Sunteți pe pagina 1din 258

Responsabilidade Civil

é a obrigação imposta a alguém de reparar os danos sofridos por terceiro.

Contratual - é a proveniente da falta de cumprimento das obrigações emergentes dos


contratos, de negócios unilaterais ou da lei , quando as obrigações em sentido técnico provêm da lei.

Extracontratual - resulta da violação de direitos absolutos ou da prática de actos que,


embora lícitos, causam prejuízo a outrem. Na responsabilidade extracontratual, a obrigação de
indemnizar nasce, em regra, da violação de uma disposição legal ou de um direito absoluto que é
inteiramente distinto dela.

A responsabilidade contratual vem regulada nos art. 798º e ss, no campo do incumprimento
e mora, enquanto que a extracontratual encontra guarida própria no Capítulo fontes das
obrigações, art. 483º e ss.

Para além de os efeitos serem comuns (art. 562º) e de a culpa dever ser apreciada nos
mesmos termos, os da responsabilidade civil (799º, 2 e 487º, 2, bom pai de família, embora na
contratual o ónus da prova recaia sobre o devedor - 799º, 1, e na extracontratual caiba ao lesado,
salvo beneficiando de presunção legal de culpa, provar a culpa do autor da lesão - 487º, n.º 1) - o que
leva a que se reúna na obrigação de indemnizar - 562º e ss - as regras comuns da causalidade
entre o facto e o dano, cálculo e formas de indemnização, também o mesmo acto pode envolver para
o agente, simultaneamente, responsabilidade contratual (por violar uma obrigação) e
responsabilidade extracontratual (por infringir ao mesmo tempo um dever geral de abstenção ou o
direito absoluto correspondente). Será o caso do motorista que, com culpa e no mesmo acidente,
provoca ferimentos nos passageiros que contratualmente transporta - contratual - e nos transeuntes
que atropela - extracontratual.

... parece que perante uma situação concreta, sendo aplicáveis paralelamente as duas
espécies de responsabilidade civil, de harmonia com o assinalado princípio, o facto tenha, em primeira
linha, de considerar-se ilícito contratual. Sintetizando: de um prisma dogmático o regime da
responsabilidade contratual «consome» o da extracontratual. Nisto se traduz o princípio da
consumpção - BMJ 468-407.

Vaz Serra (RLJ 102-312 e 313) ensina: «a solução que se afigura preferível é a de que são
aplicáveis as regras de ambas as responsabilidades, à escolha do lesado, pois a solução contrária
representaria para este um prejuízo grave quando as normas da responsabilidade extracontratual lhe
fossem favoráveis, e não é de presumir que ele tenha querido, com o contrato, afastá-las, não sendo
mesmo válida uma convenção prévia de exclusão de algumas delas... A responsabilidade contratual
não exclui a delitual».

Exemplos - Rebentamento de cilindro solar que provoca danos na casa: duas indemnizações
(uma referente ao equipamento danificado e outra aos danos na habitação), duas responsabilidades
(contratual e extra contratual) e dois prazos de prescrição ou caducidade (prazo ordinário de 20 anos
pelos danos na habitação e do art. 921º, nº 3, do CC, quanto à venda, podendo esta ser impedida pelo
reconhecimento do direito pelo obrigado – 325º, nº 1 e 331º, nº 2 CC - 92-I-237; de garrafa de gás
doméstico (Ac. STJ 8.5.2003, P.º 03B1021). Resp. contratual e extra contratual em contrato de
empreitada para construção de muro de suporte que, por violação das normas de segurança na
construção (RGEU ou impostas pelas autarquias) acaba por ruir e provocar danos - BMJ 370-529.

1
Julgou-se não ocorrer caducidade (1220º e 1225º, na redacção então vigente) pela empreitada mas
ser, antes, aplicável a prescrição do nº 1 do art. 498º cujo prazo ainda não decorrera.

I - O facto de se celebrar um contrato de transporte em navio não significa que todo e qualquer dano causado ao
transportado na ocasião do transporte deva ter solução jurídica com base nas normas da responsabilidade contratual.
II - A circunstância de ter ocorrido lesão do direito à saúde (os direitos absolutos, como a saúde e a vida, gozam
de protecção legal, não necessitando de contrato para a sua protecção) do transportado na fase do cumprimento do
contrato de transporte (por o navio, indo das Berlengas para Peniche, ter colidido com uma traineira, de tal colisão
resultando danos para o passageiro autor na acção) não é suficiente para descaracterizar o tipo de responsabilidade civil
que recai sobre o transportador nem impede a aplicação das regras relativas à responsabilidade civil extracontratual por
factos ilícitos, incluindo as relativas à prescrição – Ac. do STJ, 13.2.01, Col. STJ 01-I-117.

O mesmo se passa com a responsabilidade civil e criminal resultantes de facto ilícito, do


mesmo acidente: o condutor será condenado em pena criminal e em indemnização (aqui
acompanhado pelos responsáveis meramente civis, substituídos pela Seguradora, nos termos da lei do
seguro obrigatório), correspondendo cada uma à respectiva responsabilidade.

A responsabilidade extracontratual funda-se


- em geral na culpa (483º,1),
- excepcionalmente (483º, 2) no risco (499º a 510º), preocupação social de indemnização de
lesados sem culpa destes e,
- em casos residuais, em factos lícitos:
- 1348º, 2 - obrigação de indemnizar os donos dos prédios vizinhos por danos causados
por escavações;
- por acto praticado em estado de necessidade - 339º, nº 2;
- por passagem forçada momentânea - 1349º, 3;
- por expropriações - 1310º.

Outras diferenças

a) - a responsabilidade delitual é menos exigente, quanto a alguns dos seus pressupostos,


quando por facto de terceiro. Porém, compare-se o disposto no art. 500º - independentemente de
culpa, responsabilidade puramente objectiva, na comissão, na responsabilidade extracontratual, em
paralelo com o estatuído no art. 800º para os simples auxiliares do devedor na responsabilidade
contratual;
b) - a mora é necessária na responsabilidade contratual (804º e 805º), não na
responsabilidade delitual que tem um especial regime de mora (805º, 3, parte final) e de indemnização
suplementar para além dos juros (806º, 3, in fine);
c) - as convenções de irresponsabilidade seriam nulas na responsabilidade delitual, mas
não na contratual (800º, 2);
d) - a solidariedade constitui a regra na responsabilidade delitual (497º), ao passo que na
responsabilidade contratual o regime normal é o da conjunção (513º), pois a solidariedade de
devedores só existe se resultar da lei ou da vontade das partes;
e) - só a responsabilidade delitual está sujeita a prescrição de curto prazo (498º e 309º).
f) - graduação da indemnização na resp. extracontratual (494º), salvo P. Jorge que aplica esta
norma à responsabilidade contratual.
g) - Onus da prova a cargo do lesado da resp. extracontratual - 487º - e presunção de culpa
do devedor na contratual - 799º. Também na Responsabilidade extracontratual consagra a lei casos
de presunção de culpa, como nos art. 491º a 493º e 503º, nº 3.

2
A tendência actual da doutrina vai no sentido da unificação das duas espécies de
responsabilidades - Calvão da Silva, Pedro Albuquerque e Meneses Cordeiro, citados no BMJ
445-492.
Funções da responsabilidade civil:

- reparadora ou compensatória - em regra a indemnização não excede o dano sofrido –


562º;
- punitiva, sancionatória - o montante da indemnização varia consoante o grau de culpa -
494º e 497º, 2 ; 570º.

Resp. Ext. por FACTOS ILÍCITOS - PRESSUPOSTOS - 483º

A) - Por Culpa

I - Facto voluntário - no sentido de dominável, controlável pela vontade humana; só em


relação a factos assim pode falar-se de ilicitude e de culpa. Mas não tem o acto que ser querido:
negligência inconsciente, distracção, actos de incapazes - 488º,1 e 489º, 1 e 2. Motorista que
adormece - BMJ 279-160 – ou que, sentindo-se doente, insiste em conduzir e causa danos em
consequência de acidente vascular cerebral que o acometeu.

Tanto pode ser um facto positivo, acção, como traduzir-se num facto negativo, abstenção
ou omissão. Mas neste caso, só quando havia, por força da lei ou do negócio jurídico, o dever
de praticar o acto omitido - 486º.

É o caso do doido que foge do hospital - que o devia vigiar - em que estava internado e é
atropelado (Bol. 349-516), da falta de vedação em obra de construção civil (BMJ 300-391), da
empresa de alarmes que não providenciou em caso de assalto (Col. 94-5-223) do cão que,
atropelado na auto-estrada, provoca danos no automóvel (Ac. do STJ, na Col. Jur. STJ 2004-II-96
e 2006-I-56), por pedras ou areia (Col. 96-4-149 e 197), por poça de água e consequente despiste
do carro (Col. 97-2-32). Sendo a notícia veiculada por um órgão de informação audiovisual
(televisão), são igualmente responsáveis por ela o produtor do programa e o director de informação,
apesar de não terem conhecimento da notícia por, ao contrário do que deviam, não terem pré-
visionado a informação – Col. STJ 01-III-21 (caso Subtil).

Todos os incumprimentos contratuais, mesmo considerando unicamente aqueles que resultam


da omissão de uma prestação de facere ou de dare são susceptíveis de fundamentar a
responsabilidade delitual do devedor perante terceiros. É necessário, porém, que a prestação
omitida (ou cumprida defeituosamente), vise a protecção de terceiros perante determinados
riscos ou perigos.
«Não são, portanto, todas as omissões de deveres contratuais que podem originar a
responsabilidade delitual do devedor perante terceiros prejudicados, mas apenas aquelas que
ocasionam os prejuízos que o cumprimento da prestação visa evitar» ... «o contrato cuja eficácia
fundamenta uma responsabilidade delitual do devedor perante terceiros prejudicados com o seu
incumprimento exige que o cumprimento da prestação vise a preservação de certos riscos ou perigos»

«Do princípio de neminem laedere pode deduzir-se um dever geral de absten ção de
actos lesivos, mas a omissão de um dever de actuação só releva quando este dever de agir
for imposto, por lei ou convenção, a alguém que se coloca, relativamente a um certo

3
resultado, numa posição de garante do artigo 486º do Código Civil » (O Concurso de Títulos de
Aquisição da Prestação, págs. 323 a 324).

Fora do domínio da responsabilidade civil ficam apenas os danos causados por causas de
força maior ou pela actuação irresistível de circunstâncias fortuitas ou forças naturais invencíveis.

II - Ilicitude - é a reprovação da conduta do agente no plano geral e abstracto da lei,


[agir objectivamente mal (Col. STJ 2006-I-85)], antes da culpa que se reporta a um
comportamento concreto, que significa agir em termos que, naquele concreto
circunstancialismo, são merecedores de censura).

a) - Violação de um direito de outrem : direitos absolutos, direitos reais, de personalidade,


de autor.
São os casos de inclusão de nome na lista telefónica quando fora contratada a
confidencialidade (Col. 93-3-132 STJ); de nome de médico, nas páginas amarelas, com deficiências
(Col. 93-I-17), publicação de anúncio de massagens, em jornal, com telefone de outrem, sem que o
jornal tenha averiguado a identidade do autor do anúncio (Col. 89-2-139), abuso de liberdade de
imprensa e ruídos ou actividades que não permitem dormir, já aflorados a propósito dos direitos de
personalidade - art. 70º - e de que é exemplar o ac. no BMJ 453-417 que trata do direito à vida,
direitos de personalidade, colisão de direitos do dono do talho barulhento e dos habitantes dos andares
superiores:

«Segundo a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de Dezembro de 1948, «todo o indivíduo tem
direito à vida [...]» (artigo 3.°) e «toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a
saúde e o bem-estar, principalmente quanto [...] ao alojamento […]» (artigo 25.°, n.º 1), e, como resulta do disposto no
artigo 16.° (hoje, art. 8º) da Constituição da República Portuguesa, estes textos estão integrados no ordenamento jurídico
português, o mesmo acontecendo com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, aprovada pela Lei n.º 65/78, de 13
de Outubro, cujo artigo 2.°, n.º 1, dispõe que «o direito de qualquer pessoa à vida é protegido por lei [...]».
Mas também a nossa Constituição preceitua que a integridade moral e física das pessoas é inviolável (artigo
215.°, n.º 1), que todos têm direito à protecção da saúde (artigo 64.°, nº 1) e que todos têm direito a um ambiente de vida
humano, sadio e ecologicamente equilibrado (artigo 66.°, n.º 1).
Estamos perante direitos fundamentais, porque figuram entre os direitos, liberdades e garantias (capítulo I do
título II da parte I) ou porque são direitos fundamentais de natureza análoga (artigo 17.° da Constituição), de natureza
social (capítulo II do título III); e é indiscutível que o direito ao repouso, à tranquilidade e ao sono se insere no direito à
integridade física e a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, enfim ao direito à saúde e à
qualidade de vida.
Por sua vez, no artigo 70.°, n.º 1, do Código Civil a lei protege os indiví duos contra qualquer ofensa ilícita ou
ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral.
E também a Lei n.º 11/87, de 7 de Abril (Lei de Bases do Ambiente), estabelece que todos os cidadãos têm direito
a um ambiente humano e ecologicamente equilibrado (artigo 2.°, n.º 1), que a luta contra o ruído visa a salva guarda da
saúde e bem-estar das populações e se faz, além de outras medidas, através da adopção de medidas preventivas para a
eliminação da propagação do ruído exterior e interior, bem como das trepidações [artigo 22.°, n.º 1, alínea f)], e ainda que
existe obrigação de indemnização, independentemente de culpa, sempre que o agente tenha causado danos significativos
no ambiente, em virtude de uma acção especialmente perigosa, muito embora com respeito do normativo aplicável (artigo
41.°, n.º 1).
E não pode, finalmente, esquecer-se o artigo 483.° do Código Civil, segundo o qual aquele que, com dolo ou
mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica
obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
Tanto a doutrina como a jurisprudência têm convergido nesta orientação (ver, quanto aos direitos fundamentais
constitucionalmente consagrados, Castro Mendes, Estudos Sobre a Constituição, vol. I, págs. 103 e segs.; Jorge Miranda,
Manual de Direito Constitucional, tomo IV, págs. 55, 56, 136 e segs. e 471 e segs.; J. J. Gomes Canotilho, Direito
Constitucional, edição de 1991, págs. 532 e segs. e 565 e segs.; quanto aos direitos de personalidade e sua ofensa através
do ruído, ver Vaz Serra, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 103.°, págs. 374 e segs.; Heinrich Ewald Horster,
Teoria Geral do Direito Civil, págs. 257 e segs.; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., pág.
104; acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Abril de 1995, de 17 de Março de 1994, de 21 de Setembro de

4
1993, de 16 de Abril de 1991, de 13 de Março de 1986, de 4 de Julho de 1978 de 28 de Abril de 1977, em respectivamente
Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 1995, tomo I, pág. 155, Novos Estilos, Março de
1994, pág. 61, Colectânea de Jurisprudência, 1993, tomo III, pág. 26; Boletim do Ministério da Justiça, n.º 406, pág. 623, n.º
355, pág. 356, n.º 279, pág. 124, n.º 266 pág. 124).

Há, frequentemente, colisão ou conflito de direitos fundamentais que importa solucionar.


Pois bem, muito embora não exista um modelo de solução, um critério de solução válido em termos gerais e
abstractos [com base, por exemplo, numa ordem de valores ou na distinção entre os direitos sujeitos a leis restritivas e
direitos não sujeitos a leis limitadas (J. J. Gomes Canotilho, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 125.°, págs.
293 e segs.), claro está que é preciso decidir os casos concretos e a via indicada parece ser a que harmonize os direitos
em conflito ou, se necessário, dê prevalência a um deles, de acordo com as circunstâncias concretas e à luz de uma
hierarquia decorrente das próprias normas constitucionais - na verdade, a Constituição concede maior protecção aos
direitos, liberdades e garantias do que aos direitos económicos, sociais e culturais e há uma ordem decrescente de
consistência, de protecção jurídica, de densidade subjectiva daqueles para estes - ou de aplicação de critérios metódi cos
abstractos que orientem a tarefa de ponderação e ou harmonização concretas, tais como «o princípio da concordância
prática», «a ideia do melhor equilíbrio possível entre os direitos colidentes» (Jorge Miranda, ob. cit., págs. 135, 145,146 e
301; J. J. Gomes Canotilho, ob. cit., págs. 660, 661 e 538).

De qualquer modo, no campo da lei ordinária, há um texto atinente à colisão de direitos, o artigo 335.° do Código
Civil, que dispõe:
1 - Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os direitos ceder na medida do necessário
para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes.
2 - Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior.

Ora, no nosso caso, temos, de um lado, um direito à integridade física, à saúde, ao repouso, ao sono, e, de outro,
um direito de propriedade ou, se se quiser, um direito ao exercício de uma actividade comercial e não temos dúvida que
aquele primeiro direito, gozando da plenitude do regime dos direitos, liberdades e garantias (artigo 19.°, n.º 6, da
Constituição), é de espécie e de valor superior aos segundos, os quais são direitos fundamentais que apenas beneficiam
do regime material dos direitos, liberdades e garantias (Jorge Miranda, ob. cit., págs. 145 e 146; J. J. Gomes Canotilho, ob.
cit., pág. 538).
Assim, há que dar prevalência ao direito à integridade física, ao repouso, à tranquilidade, ao sono, como, de
resto, a doutrina e a jurisprudência vêm defendendo (Vaz Serra, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 103.°,
págs. 374 e segs.; Cunha de Sá, Abuso de Direito, págs. 528 e 529; Pessoa Jorge, Ensaio sobre os Pressupostos da
Responsabilidade Civil, pág. 201; os já citados acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Julho de 1978, de 13 de
Março de 1986, de 17 de Março de 1994 e de 26 de Abril de 1995).
À luz do que se acaba de dizer e atentos os factos provados, nomeadamente os supra-incluídos nos n.os 2, 4, 5,
6, 7, 9 e 10, afigura-se-nos indiscutível a obrigação de o réu indemnizar os autores, por se terem provado, contrariamente
ao afirmado pelo recorrente, os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, a saber: o facto, a ilicitude, a
imputação do facto ao lesante sob a forma culposa, o nexo de causalidade entre o facto e o dano».

Mantém-se a responsabilidade ainda que o BAR, o estabelecimento barulhento, esteja


licenciado – Cadernos de Direito Privado, n.º 12, pág.13 a 20: a observância das disposições legais
destinadas a proteger interesses alheios não afasta a obrigação de indemnizar os danos resultantes
da violação ilícita de direitos de outrem .

b) - Violação de lei que protege interesses alheios, de leis que não conferem um direito
subjectivo a essa tutela - leis penais, de trânsito, de certas actividades como a construção civil,
electricidade, elevadores cuja porta abre sem que o elevador se encontre nesse patamar ( BMJ 412-
438), leis administrativas - que visam principalmente a protecção de interesses colectivos, como a
concorrência, a saúde pública, mas não deixam, também, de atender aos interesses particulares de
indivíduos ou de grupos e visam prevenir o simples perigo de dano, em abstracto.

Neste concreto tipo de ilicitude é indispensável que se verifiquem três requisitos:


1º - Q ue à lesão dos interesses do particular corresponda a violação de uma norma
legal. O agressor do artista não terá que indemnizar o empresário prejudicado pelo cancelamento do
espectáculo (?).

5
2º - Q ue a tutela dos interesses particulares figure entre os fins da norma violada,
não seja mero reflexo dos interesses colectivos. Será este o caso de um electricista que morre
electrocutado quando fazia uma ligação eléctrica e os familiares pretendiam valer-se do Regulamento
de Segurança das I. U. E. (BMJ 453-484).
3º - Que o dano se tenha registado no círculo de interesses privados que a lei visa
tutelar. Não haverá responsabilidade se o ilícito - queda de cimento - ocorre em espaço vedado ao
público ou reservado a certas pessoas que não o lesado - estacionamento de médico em lugar
reservado à direcção da clínica.

«O terceiro requisito não se verifica, por ex., quando uma postura administrativa manda iluminar determinados
recintos, para protecção dos operários que laboram em certas fábricas ou das crianças que frequentam certa escola, e a
falta de iluminação vem a causar danos em pessoas estranhas que pelo recinto circulam indevidamente;

«Em tese geral, dir-se-á que «a omissão é causa do dano sempre que haja o "dever jurídico de praticar um acto"
que, seguramente ou muito provavelmente, teria "impedido a consumação" desse dano».
Por outras palavras: «as omissões só geram responsabilidade civil, «desde que (...) se verifique um pressuposto
específico», que é a existência de «um dever jurídico da prática do acto omitido» e, designadamente, desde que esteja
presente o nexo de causalidade, por forma a que possa afirmar-se que o acto omitido teria «seguramente ou com a maior
probabilidade obstado ao dano» (cfr. Antunes Varela, "Das Obrigações em Geral", vol. I, 9ª ed., págs. 545/ /546, Almeida
Costa, "Direito das Obrigações», 7ª ed., pág. 485, e Pedro Nunes de Carvalho, "Omissão e Dever de Agir em Direito Civil",
Coimbra, 1999, págs. 115, 116 e 137).
No nexo de imputação entre o facto e o dano, a ligação é feita mediante um nexo de adequação do resultado
danoso à conduta.

Tem-se entendido que o nosso Código Civil adoptou, no seu art. 563°, a designada doutrina da causalidade
adequada, ao prescrever que «a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente
não teria sofrido se não fosse a lesão».
Nas elucidativas palavras de Galvão Teles - citado por Pires de Lima/Antunes Varela, in "Código Civil Anotado",
vol. I, 4.ª ed., pág. 578 -, «determinada acção ou omissão será causa adequada de certo prejuízo se, tomadas em conta
todas as circunstâncias conhecidas do agente e as mais que um homem normal poderia conhecer, essa acção ou omissão
se mostrava, à face da experiência comum, como adequada à produção do referido prejuízo, havendo fortes probabilidades
de o originar».
Daqui resulta, pois, que, de acordo com a teoria da adequação, «só deve ser tida em conta como causa do dano
aquela circunstância que, dadas as regras da experiência e o circunstancialismo concreto em que se encontrava inserido o
agente (tendo em atenção as circunstâncias por ele conhecidas ou cognoscíveis) se mostrava como apta, idónea ou
adequada a produzir esse dano»
Mas para que um facto deva considerar-se causa (adequada) daqueles danos sofridos por outrem é preciso que
tais danos constituam uma consequência normal, típica, provável dele, exigindo-se, assim, que o julgador se coloque na
situação concreta do agente para a emissão da sua decisão, levando em conta as circunstâncias que o agente conhecia e
aquelas circunstâncias que uma pessoa normal, colocada nessa situação, conheceria.
Trata-se daquela operação que costuma designar-se por "prognose póstuma" ou "juízo abstracto de adequação"
e com ela pretende evitar-se que se responsabilize o agente por danos que se produziriam em consequência de um
conjunto de circunstâncias atípicas, anormais e imprevisíveis, que não conhecesse ou podia conhecer (cfr. Antunes Varela,
op. cit., págs. 908 e 909 e Pedro Nunes de Carvalho, op. cit., págs. 57 e 58).

Voltando à questão que nos ocupa e subsumindo aqueles factos ao direito assim interpretado, concluímos
falharem aqui três dos cinco requisitos da responsabilidade por culpa – única a considerar na circunstância – e
consequente obrigação de indemnizar.

Falta a culpa da Ré porque não lhe é imputável a ausência, no momento do acidente, das tábuas que, pregadas
aos grampos, constituíam os legais guarda-corpos, desde o assentamento das pedras nos degraus das escadas até ao dia
do acidente. Tanto mais que o edifício estava fechado e o acesso era reservado, com a chave na mão do arvorado da Ré,
aos trabalhadores das montagens eléctricas ou da Constropraia que haviam assentado as pedras nos degraus e ultimavam
as obras na ombreira da porta da cave.

Também falta o terceiro requisito especial da ilicitude: a infeliz vítima entrou indevidamente no edifício em que
encontrou a morte. Foi-lhe dito que o prédio em que podia ver o assentamento das pedras nos degraus era o B5, único

6
simétrico do B3 em que os seus empregados trabalhavam em idêntico assentamento. A protecção das escadas imposta
pela lei não se destina a acautelar quem entra num prédio sem autorização, quem ali circula indevidamente. Protege
estranhos à obra, é certo, mas quando aí se encontrem devidamente, quando o responsável o possa avisar dos perigos
possíveis.

Por fim, está ausente a relação de adequação entre a (temporária) falta de guarda-corpos naquele lanço de
escadas e a queda do infeliz José Rodrigues. Como se viu, o quesito 5º mereceu resposta fortemente restritiva,
precisamente retirando-se-lhe as palavras desequilibrou-se e, não tendo guarda alguma a que se apoiar. Ou seja, resultou
improvado que a queda se tenha ficado a dever ao facto de o José Rodrigues não ter guarda alguma a que se apoiar» - Ac.
STJ na revista 299.07 – 6ª secção.

Factos ilícitos especialmente previstos na lei

484º - Col. STJ 99-I-120 a 122, com estudo da ofensa do direito de personalidade através
de imprensa, direito ao bom-nome e dever de informar, direito de liberdade de imprensa:

«7 - Os RR. atingiram, assim, o honra do A.


O valor pessoal de cada homem constituído ao longo dos seus anos de vida por tudo aquilo que fez ao ser
recebido pela sociedade, representa a sua honra - Ac. S.T.J. 26/06/95 e 03/10/95, respectivamente, Bol. 448, págs. 378 e
450, pág. 424.
Como ensinava Dr. Capelo de Sousa - Direito Geral de Personalidade, 1995, págs. 303 e 304:
"A honra juscivilisticamente tutelada abrange desde logo a projecção do valor da dignidade humana, que é inata,
ofertada pela natureza igualmente a todos os seres humanos, insusceptível de ser perdida por qualquer homem em
qualquer circunstância.
Em sentido amplo inclui também o bom-nome e reputação, enquanto sínteses do apreço social pelas qualidades
determinantes da unicidade de cada indivíduo e pelos demais valores pessoais adquiridos pelo indivíduo no plano moral,
intelectual, sexual, familiar, profissional ou político".
Pretende-se proteger o homem em face do que ele é não do que ele tem, como afirma De Cupis.
Daí a sua dignidade constitucional tutelada pelo art. 26º, n˚ 1, da Lei Fundamental, ex vi art. 1º e 2º: a pessoa
humana, é o bem supremo da nossa ordem jurídica, o seu fundamento e o seu fim — ver Ac. Tribunal Constitucional de
05/02/97, D.R. de 15/04/97, págs. 21, 478 e segs.
Embora a nossa Constituição não contenha expressamente uma cláusula geral de tutela da personalidade, ao
contrário da República Federal da Alemanha — art. 2º, n˚ 1.

8 - O art. 70º do C.C. estatui, no seu n˚ 1: "A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de
ofensa à sua personalidade física ou moral".
E no seu n˚ 2 inclui expressamente a responsabilidade civil entre os meios gerais de tutela de personalidade
física ou moral — sobre a fonte deste artigo, ver os citados Ac. S.T.J., Bol. 448 e 450, por nós relatados.
O nosso legislador recorreu à "cláusula geral" — personalidade física ou moral — para a protecção de cada
indivíduo encontrar apoio legal, dada a crescente e imprevisível mutação de vida, em face da visão actualista inserida no
art. 9º, n˚ 1, do C. C.
A personalidade é o bem jurídico, unitário e globalizante, protegido pelo art. 70º.
Diremos com o Dr. Capelo de Sousa — ob. cit., pág. 117:
"Poderemos definir positivamente o bem de personalidade humana juscivilisticamente tutelado, como o real e
potencial físico e espiritual de cada homem em concreto, ou seja, o conjunto autónomo, unificado, dinâmico e evolutivo dos
bens integrantes da sua materialidade física e do seu espírito reflexivo, sócio-ambientalmente integrado".
O objecto do direito geral de personalidade é a personalidade de titular desse direito.
Estamos frente a um bem jurídico global, unitário, complexo e coerente.
O seu conteúdo traduz-se naquele conjunto de faculdades contidas no poder jurídico, veiculadas por meios
jurídicos de agir postos na disponibilidade do sujeito, visando a realização do seu interesse.
Poder projectado no uso e fruição da sua personalidade, exigindo dos outros sujeitos oriundos da relação jurídica
— como conjunto de faculdades unificadas — a abstenção de praticar actos que ilicitamente ofendem ou ameacem aquela
personalidade, sob pena de aplicabilidade do estatuído no n˚ 2 do art. 70º.
Não estamos perante um conceito superior, com mera função de ordenação, como sustenta Esser.
Mas sim perante um direito geral de personalidade recebido no art. 70º, como lex generalis.
Aí se recebe e protege o homem com o seu direito à diferença, projectada em concepções e daí actuações
próprias.

7
O seu conteúdo normativo está delimitado "pelos efeitos de negócios jurídicos emergentes da autonomia privada,
por direito de outrem, por deveres do seu titular, pelas regras da colisão de direito, pela ponderação das causas
justificativas de ilicitude e de culpa e pela não indemnizabilidade dos danos não patrimoniais sem gravidade" - Dr. Capelo e
Sousa, ob. cit. pág. 607, em nota.
O objecto do direito geral de personalidade é a personalidade de titular desse direito.
Estamos frente a um bem jurídico global, unitário, complexo e coerente.
O seu conteúdo traduz-se naquele conjunto de faculdades contidas no poder jurídico, veiculadas por meios
jurídicos de agir postos na disponibilidade do sujeito, visando a realização do seu interesse.
Poder projectado no uso e fruição da sua personalidade, exigindo dos outros sujeitos oriundos da relação jurídica
— como conjunto de faculdades unificadas — a abstenção de praticar actos que ilicitamente ofendem ou ameacem aquela
personalidade, sob pena de aplicabilidade do estatuído no n˚ 2 art. 70º.

9 - A noção de direito subjectivo já se encontrava implicitamente no Direito Romano, sem que este a tenha
teorizado Puig Brutau, Introducción al Dereccho Civil, 1980, pág. 259.
Por exaltação renascentista da pessoa humana e impulso dos jusnaturalistas, plasmou-se nas doutrinas liberais
que inspiraram o Código Napoleónico.
O nosso C.C. de 1867, na esteira da teoria da vontade de Savigny, definiu-o, no art. 2º como "a faculdade moral
de praticar ou deixar de praticar certo facto".
O actual de 66º não define direito subjectivo.
E bem.
Com efeito, a definição como noção geral de cada instituto ou figura, constituindo preceitos vinculativos do
"operador" do direito, ao delimitar o âmbito de aplicação dos respectivos regimes legais, toma o aspecto de texto didáctico,
que não se compatibiliza com a dinâmica da vida.
E com maior gravidade vai apresentar uma teorização, que compete prima facie à jurisprudência e à doutrina.
Doutrina que está profundamente dividida quanto à noção de direito subjectivo — Ver Dr. Capelo de Sousa, ob.
cit., págs. 606 a 619.
Facilmente poderemos aderir à dada pelo Prof. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, 1996, Vol II,
pág. 457 — ali não referida, até por ser de data posterior — como "o poder jurídico de realização de um fim de determinada
pessoa, mediante a afectação jurídica de um bem".
Estamos perante um poder do respectivo titular de se "dirigir ao juiz para obter o seu reconhecimento e obrigar
terceiros a adoptar um comportamento que o respeite".
Foi isto que fez o A, em defesa da sua dignidade, da sua honra.
A honra é o bem jurídico afectado pelo art. 70º do C.C. à tutela jurídica civilística, dando-lhe intenção axiológico-
normativa própria e válida.
Sem que haja taxatividade de modos típicos da sua violação: "qualquer ofensa" - n˚ 1 art. 70º.
O que se projecta numa especial ponderação por parte do juiz ao apreciar a matéria fáctica, dada a sua intrínseca
maior complexidade valorativa.

10 - A tutela civil incorporada neste art. 70º consubstancia-se no direito de exigir do R. infractor responsabilidade
civil, nos termos dos arts. 483º e 484º.
Precisamente por o direito geral de personalidade ser um direito subjectivo, pessoal absoluto.
Para além dos dois tipos de situação de responsabilidade civil enumerados no n˚ 1 do art. 483º (grundbstände) —
violação dos direitos de outrem e violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios (em recepção
diferente art. 1.382º do C.C. Francês e 2.043º do C.C. Italiano, sistema de dupla cláusula geral e § 823 do C.C. Alemão —
sistema (de tatbestände), o nosso legislador recebeu uma série de previsões particulares (Sondertsbestände).
Estas concretizam ou completam aquelas.
São as insertas nos arts. 484º, 485º e 486º - Prof. A. Varela, Obrigações I, 9ª ed., pág. 508 e P. Jorge - Ensaio
sobre os Pressupostos de Responsabilidade Civil, pág. 308 e ainda nos arts. 491, 492 e 493 - Prof. M. Cordeiro,
Obrigações II, págs. 351 e 352.
Assim, a ofensa ao bom-nome prevista no art. 484º é um caso especial de facto antijurídico definido no art. 483º.
Daí a sua subordinação ao princípio geral inserto no art. 483º.

11 - Foi na 2ª Revisão Ministerial que no art. 483º se introduziu a palavra "ilicitamente", hoje incluída no art. 483º.
É que, anteriormente, quer no Anteprojecto do Prof. Vaz Serra, Bol. 92, pág. 37 — onde se empregava o advérbio
"antijuridicamente", quer na 1ª Revisão — onde este desapareceu — não se fazia referência ao carácter "ilícito" da conduta.
A antijuridicidade decorre da violação do direito de outrem, ou de qualquer disposição legal destinada a proteger
interesses alheios.
"É antijurídica a conduta que ameace lesar o crédito e o bom-nome" — Prof. A. Varela, ob. cit., vol. I, pág. 567 e
Prof. Pires Lima e A. Varela — Anotado, 4ª ed., pág. 486.

8
A ilicitude circunscreve-se mais directamente à ausência de uma causa de justificação.
Traduzida em comportamento que vai de encontro ao estatuído numa norma jurídica.
Com a ressalva de eventual existência de uma causa de justificação — art. 483º, n˚ 1 — Ac. S.T.J. de 98/09/03,
Proc. 803/98, por nós relatado.
Ou seja, a "ilicitude traduz a reprovação da conduta do agente, embora no plano geral e abstracto em que a lei se
coloca, uma aproximação da realidade" — Prof. A. Varela, Obrigações, vol. I, 9ª ed., pág. 562.
A violação do direito de personalidade, com efeito, pode ser afastada quando o facto do lesante é praticado no
exercício regular de um direito, no cumprimento de um dever, em acção directa, em legítima defesa ou com o
consentimento do lesado — Ac. do S.T.J. já citado, Bol. 450, pág. 429.
Os RR. sempre sustentaram que na elaboração do programa do Telejornal em apreço foram respeitadas todas
as regras deontológicas da profissão de jornalista, não havendo outra finalidade que não fosse a de informar, com verdade
e isenção.
Levantaram o melindroso problema prático e actual da difícil convivência entre o direito da liberdade da
comunicação social e o constitucional e absoluto direito ao bom-nome e reputação — ver Ac. do S.T.J. de 26/04/94; Col.
Jur. do S.T.J., 1994, Ano II, Tomo II, pág. 54; de 29/10/96, Col. Jur., S.T.J, 1996, Ano IV, Tomo 111, pág. 80 e de 27/05/97,
Col. Jur., S.T.J., 1997, Ano V, Tomo II, pág. 102.
No sumário daquele acórdão de 29/10/96 escreveu-se "o direito de liberdade de expressão e informação, não
pode, ao menos em princípio, atentar contra o bom-nome e reputação de outrem, sem prejuízo, porém, de em certos casos,
ponderados os valores jurídicos em confronto, o princípio da proporcionalidade conjugado com os ditames da necessidade
e da alegação e todo o circunstancialismo concorrente, tal direito pode prevalecer sobre o direito ao bom nome e
reputação".
Correcto.
Só que no caso em apreço a matéria fáctica provada atrás descrita, não só não favorece a tese dos recorrentes,
que encontraria apoio naquele aresto, como, pelo contrário, até comprova o alegado pelo A.
Efectivamente o que muito sinteticamente se provou é que os RR. quiseram transmitir informação com
identificação dos detidos e dos proprietários dos "stands") não contida em comunicado oficial, que já oportunamente
conheciam (onde havia omissão de identificação dos detidos e dos proprietários dos "stands", estabelecendo, desta forma,
uma conexão não verdadeira entre o A. como proprietário dos "stands" e os factos relatados.

12 - Sendo pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos:


- facto voluntário do agente,
- ilicitude,
- imputação do facto ao lesante,
- dano,
- Nexo de causalidade entre o facto e o dano
há que apurar finalmente os danos.
O invocado dano patrimonial não está provado.
Com efeito, o tribunal — fls. 371/v — respondeu "não provado" à matéria do quesito 15, onde se perguntava se o
A. sofreu uma paragem na evolução, até então sempre crescente, da sua clientela por causa da actuação dos RR.
O dano não patrimonial está provado — respostas aos quesitos 7-8-10-11-12 e 13.
A honra do A foi profundamente ofendida, aferida objectivamente a sua gravidade, pelo que a sua reparação
merece a tutela do direito — art. 496º, n˚ 1.
Nos termos do n˚ 3 do art. 496º, o montante de indemnização por danos não patrimoniais será fixada
equitativamente, tendo em atenção os índices circunstanciais referidos no art. 494º.
Ou seja, o grau de culpabilidade do responsável, a situação económica do lesante e do lesado e as demais
circunstâncias do caso.
E de acordo com a corrente jurisprudência.
Os RR. agiram com dolo, dolo directo, na medida em que quiseram directamente realizar o facto ilícito.
Na esteira do Prof. A. Varela, Obrigações, 9ª ed., vol I, pág. 590 "o jornalista sabe que narrando certo facto, atinge
a honra ou o bom-nome de outrem e é esse preciso efeito que pretende atingir".
A relevância do Telejornal da RTP das 19h30, na formação da opinião pública, é enorme, não só em face da sua
inerente publicidade, como pelo cunho da seriedade e veracidade que se manifesta imanente, visando uma natural
convivência cívica.
O A. foi vexado, como homem, como docente universitário, no exercício das elevadas funções públicas que
exerceu e como profissional liberal.
É conhecida a situação económica da R.T.P.
Os casos mais recentes e que podem apresentar algum paralelismo com o dos autos foram os julgados nos já
referidos Ac. S.T.J., Bol. 448, pág. 378, Col. Jur., S.T.J., 1994, Ano II, Tomo II, pág. 54; e 1997, Ano V, Tomo II, pág. 102; e
17/06/98, Proc. 612/98 — 1ª secção.

9
Daí que se repute equilibrado o montante de 3.000.000$00 com quantum indemnizatório pelos danos não
patrimoniais sofridos pelo A.
13 — Termos em que, concedendo-se em parte a revista, condena-se os RR. a pagar ao A. a indemnização no
montante de 3.000.000$00 pelos danos não patrimoniais sofridos pelo A., acrescida de juros moratórios desde a citação e
bem assim à publicação desta decisão, nos termos do art. 54º da Lei de Imprensa, absolvendo-os quanto ao pedido
referente aos peticionados danos patrimoniais.
Custas por A. e RR., respectivamente, na proporção de 2/5 e 3/5.

Lisboa, 24 de Fevereiro de 1999.


Torres Paulo Aragão Seia Lopes Pinto»
***
«1 - O direito à imagem e direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, enquanto direitos fundamentais de
personalidade, são inatos, inalienáveis, irrenunciáveis e absolutos, no sentido de que se impõem, por definição, ao respeito
de todas as pessoas.
2 - O que se passa no interior da residência de cada pessoa e na área, privada, que a circunda, integra o núcleo
duro da reserva da intimidade da vida privada legalmente protegida.
3 - A publicação numa revista pertencente à ré de uma reportagem fotográfica legendada divulgando, sem
consentimento do autor, uma visita por ele feita na companhia da mulher à residência familiar então em fase de construção
na cidade de Madrid, integra a violação simultânea dos seus direitos à imagem e à reserva da intimidade da vida privada.
4 - A ilicitude desta conduta não é afastada, nem pelo facto de o autor ser uma pessoa de grande notoriedade,
adquirida graças à sua condição de futebolista profissional mundialmente reconhecido (figura pública), nem pela
circunstância de as fotografias mostrarem apenas a entrada da casa e de esta se encontrar em fase de construção.
5 - O direito da liberdade de imprensa tem como limite intransponível, entre outros, a salvaguarda do direito à
reserva da intimidade da vida privada e à imagem dos cidadãos.
6 - De igual modo, também a invocação do direito de informar consagrado no art.º 37º, nº 1, da Constituição não
legitima a conduta do lesante se não houver qualquer conexão entre as imagens ou factos divulgados pertencentes ao foro
privado do lesado e a actividade profissional por ele desempenhada que originou a sua notoriedade pública – Ac. do STJ
(Cons.º Nuno Cameira), de 14.6.2005, no P.º 05A945.
***
«1.
Comecemos com uma breve referência ao regime da liberdade de expressão e de informação jornalística
decorrente da lei portuguesa de origem interna e externa.
A Constituição da República Portuguesa prescreve, por um lado, que os direitos fundamentais nela consignados
não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional e, por outro, que as
preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia
com a Declaração Universal dos Direitos do Homem (artigo 16º).
A propósito da liberdade de expressão e de informação, está consignado na Declaração Universal dos Direitos do
Homem que todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão e que isso implica o direito de não ser
inquietado pelas suas opiniões e de procurar receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por
qualquer meio de expressão (artigo 19º).
Além disso, prescreve a Declaração Universal dos Direitos do Homem, no que concerne à intimidade, à honra e à
reputação, que ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família ou na sua correspondência
nem ataques à sua honra e reputação, e que contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito à protecção da
lei (artigo 12º).
Atendendo à ênfase que a Declaração Universal dos Direitos do Homem dá ao direito à honra e reputação,
expressando que ninguém sofrerá ataques em relação a ela, no confronto com a menor ênfase dada ao direito de
expressão e de informação, a ideia que resulta é a de que o último é limitado pelo primeiro.
Finalmente, estabelece a Declaração Universal dos Direitos do Homem que no exercício desses direitos e no
gozo dessas liberdades ninguém está sujeito senão às limitações estabelecidas pela lei com vista exclusivamente a
promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros e a fim de satisfazer as justas exigências da
moral, da ordem pública e do bem estar numa sociedade democrática (artigo 29º, nº 2).
A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, a que a República Portuguesa também está vinculada,
prescreve, por seu turno, por um lado, que qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão, compreendendo a
liberdade de opinião e de receber ou de transmitir informações ou ideias sem ingerência de qualquer autoridade pública e,
por outro, que o exercício dessas liberdades, por implicar deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas
formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas na lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade
democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e da honra ou
dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais ou para garantir a autoridade e a
imparcialidade do poder judicial (artigo 10º, e 8º, nºs 1 e 2, da Constituição).

10
Assim, também a Convenção Europeia dos Direitos do Homem expressa o limite ao direito de expressão e de
informação pelo direito de personalidade, incluindo, naturalmente, a honra e a reputação.
A propósito da liberdade de expressão e informação, estabelece a Constituição Portuguesa, além do mais, por um
lado, ser a República Portuguesa baseada na dignidade da pessoa humana (artigo 1º).
E, por outro, no que concerne ao direito de integridade pessoal, estabelece que a vertente moral das pessoas é
inviolável e que a todos é reconhecido o direito ao bom-nome e reputação (artigos 25º, nº 1, e 26º, nº 1).
Quanto à liberdade de expressão, expressa a Constituição, por um lado, que todos têm o direito de exprimir e de
divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de
informar, de se informar e de ser informado, sem impedimentos nem discriminações.
E, por outro, que a todas as pessoas, singulares ou colectivas é assegurado, em condições de igualdade e
eficácia, o direito de resposta e de rectificação, bem como o direito a indemnização pelos danos sofridos (artigos 37º, nºs 1
e 4).
A liberdade de expressão e de informação e o direito à integridade pessoal inscrevem-se no capítulo dos direitos
e liberdades e garantias pessoais inserto na Constituição e são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e
as privadas.
Mas não se trata de direitos absolutos, porque a lei ordinária pode restringi-los nos casos expressamente
previstos na Constituição e em termos de se limitarem ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos (artigo 18º, nºs 1 e 2).
O direito ao bom nome e reputação consiste, essencialmente, em a pessoa não ser ofendida ou lesada na sua
honra, dignidade ou consideração social mediante imputação feita por outrem, bem como no direito a defender-se dessa
ofensa e a obter a correspondente reparação.
No plano da lei portuguesa de origem interna, releva o Estatuto dos Jornalistas, aprovado pela Lei nº 1/99, de 13
de Janeiro.
São jornalistas os que, como ocupação principal, permanente e remunerada, exercem funções de pesquisa,
recolha, selecção e tratamento de factos, notícias ou opiniões, através de texto, imagem ou som, destinados à divulgação
informativa, por exemplo, pela imprensa (artigo 1º, nº 1).
Constituem direitos fundamentais dos jornalistas, além do mais, a liberdade de expressão e de criação e de
acesso às fontes de informação e a garantia de sigilo profissional e de independência (artigo 6º, alíneas a) a d)).
A liberdade de expressão e de criação dos jornalistas não está sujeita a impedimentos ou discriminações (artigo
7º, nº 1).
O direito de acesso às fontes de informação é-lhes assegurado, além do mais, pelos órgãos do Estado e das
regiões autónomas que exerçam funções administrativas, e o seu interesse nesse acesso é considerado legítimo nos casos
de direitos dos interessados à informação, de consulta de processos e de passagem de certidões independentemente ou
não de despacho (artigo 8º, nºs 1, alínea a), e 2).
Mas o referido direito de acesso às fontes de informação não abrange os processos em segredo de justiça, os
documentos classificados ou protegidos ao abrigo de legislação específica nem os dados pessoais não públicos dos
documentos nominativos relativos a terceiros (artigo 8º, nº 3).
Salvo o disposto na lei processual penal, os jornalistas não são obrigados a revelar as suas fontes de informação,
e o seu silêncio não é passível de sanção directa ou indirecta (artigo 11º, nº 1).
Independentemente do disposto no respectivo Código Deontológico, constituem deveres fundamentais dos
jornalistas o exercício da sua actividade com respeito pela ética profissional, a informação com rigor e isenção, a abstenção
de formular acusações sem provas, o respeito pela presunção de inocência e a não falsificação de situações com intuitos
de abuso da boa fé (artigo 14º, alíneas a), c) e h)).
As regras deontológicas atinentes à profissão de jornalista constantes do respectivo Código Deontológico,
aprovado pela assembleia geral do Sindicato dos Jornalistas, envolvem, além do mais que aqui não releva, o dever de
relatar os factos com rigor e exactidão, de os interpretar com honestidade, devendo comprová-los, ouvindo as partes com
interesses atendíveis no caso; combater o sensacionalismo e considerar a acusação sem provas como grave falta
profissional; salvaguardar a presunção de inocência até ao trânsito em julgado da sentença; assumir a responsabilidade por
todos os seus trabalhos e actos profissionais; promover a pronta rectificação das informações que se revelem inexactas ou
falsas e não humilhar as pessoas ou perturbar a sua dor (nºs 1, 2, 5 e 7).
Por seu turno, a Lei de Imprensa - nº 2/99, de 13 de Janeiro - expressa o seguinte, em tanto quando releva no
caso vertente.
O conceito de imprensa abrange as reproduções impressas de textos ou imagens disponíveis ao público,
independentemente dos processos de impressão, reprodução ou distribuição (artigo 9º, nº 1).
As reproduções impressas são periódicas se editadas em série contínua, sem limite definido de duração, sob o
mesmo título, abrangendo períodos determinados de tempo (artigos 10º, alínea a) e 11º, nº 1).
E são informativas se visarem predominantemente a difusão de informações ou notícias, e de informação geral se
o seu carácter for não especializado, e de informação especializada caso se ocupem predominantemente de determinada
matéria, designadamente científica, literária, artística ou desportiva (artigo 13º, nºs 2 a 4).

11
As publicações periódicas devem ter um director, a quem compete, além do mais, orientar, superintender e
determinar o conteúdo da publicação (artigos 19º, nº 1 e 20º, nº 1, alínea a)).
É garantida a liberdade de imprensa, que abrange o direito de informar, de se informar e de ser informado sem
impedimentos, discriminações ou limitações por qualquer tipo de censura (artigo 1º).
A liberdade de imprensa implica o reconhecimento dos direitos e liberdades fundamentais dos jornalistas,
nomeadamente a liberdade de expressão e de criação, de acesso às fontes de informação, o direito ao sigilo profissional e
a garantia de independência e da cláusula de consciência (artigos 2º, nº 1, alínea a) e 22º, alíneas a), b), c) e d)).
O direito dos cidadãos a serem informados é garantido, além do mais, pelo reconhecimento do direito de resposta
e de rectificação e do respeito pelas normas deontológicas no exercício da actividade jornalística (artigo 2º, nº 2, alíneas c)
e f)).
Os limites à liberdade de imprensa são os que decorrem da lei – fundamental e ordinária – de forma a
salvaguardar o rigor e a objectividade da informação, a garantir os direitos ao bom nome, à reserva da intimidade da vida
privada, à imagem e à palavra dos cidadãos e a defender o interesse público e a ordem democrática (artigo 3º).
Na determinação das formas de efectivação da responsabilidade civil emergente de factos cometidos por meio da
imprensa observam-se os princípios gerais e, no caso de escrito ou imagem inseridos em publicação periódica com
conhecimento e sem oposição do director ou do seu substituto legal, as empresas jornalísticas são solidariamente
responsáveis com o seu autor pelos danos que tiverem causado (artigo 29º).
Assim, a revista em que foi publicada a notícia objecto do recurso integra-se no conceito de publicação
informativa genérica, ou seja, não visa a informação especializada.
À eficácia destes meios de publicação informativa na realização dos fins de comunicação corresponde, como
contraponto, a exigência do máximo rigor e da máxima cautela na averiguação da realidade dos factos que divulgam,
sobretudo quando essa divulgação, pela natureza do seu conteúdo, seja susceptível de afectar o direito ao bom nome e a
reputação social das pessoas em geral, sem exclusão dos próprios falecidos.
O rigor e a objectividade que a lei exige na programação e na informação implica que as empresas que
desenvolvem essa actividade e os jornalistas que nela operem sejam rigorosos e objectivos na averiguação da verdade dos
factos ou acontecimentos relatados, sobretudo quando sejam susceptíveis de afectar direitos de personalidade.
O direito à honra, ao bom nome e à consideração social constitui um limite à liberdade de informação e de
imprensa, pelo que, infringindo os jornalistas culposamente e, decorrentemente, as empresas que desenvolvam a
actividade jornalística o dever de rigor e de objectividade de informação, são, em regra, responsáveis pela indemnização ou
compensação dos prejuízos dela decorrentes para outrem.

2.
Prossigamos com a análise da tutela legal geral dos direitos de personalidade.
A igualdade da dignidade da pessoa humana constitui um princípio estruturante da República Portuguesa (artigos
1º e 13º, nº 1, da Constituição).
Nessa conformidade, em contexto de desenvolvimento normativo, estabelece a Constituição, por um lado, ser a
integridade moral das pessoas inviolável, e, por outro, ser a todos reconhecido o direito ao bom nome e reputação (artigos
25º, nº 1 e 26º, nº 1).
Em consonância com as mencionadas normas da Constituição, estabelece a lei ordinária, por um lado, a tutela
penal por via dos tipos criminais de difamação, injúria e de ofensa à memória de pessoa falecida, a que se reportam,
respectivamente, os artigos 180º, 181º e 185º do Código Penal.
E, por outro, prescreve a tutela meramente cível no sentido de a lei proteger os indivíduos contra qulquer ofensa
ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral (artigo 70º, nº 1, do Código Civil).
Trata-se, em qualquer caso, da protecção do direito geral de personalidade, decorrente do nascimento da pessoa
humana, que se desdobra em vários direitos absolutos, oponíveis erga omnes, incidentes, além do mais que aqui não
releva, sobre a honra, a consideração social e o bom nome.
Tem sido considerado nos tribunais, como é o caso do acórdão recorrido, seguindo a doutrina, por um lado,
traduzir-se a honra da pessoa no elenco de valores éticos de cada uma, em que avultam o carácter, a lealdade, a
probidade, a rectidão, ou seja, a dignidade subjectiva.
E, por outro, traduzir-se a vertente da consideração social no merecimento da pessoa no meio social em termos
de bom nome, de confiança, de estima, de reputação e de dignidade objectiva.
Dir-se-á que o direito ao bom-nome e reputação envolve a proibição da ofensa por outrem à pessoa na sua
honra, dignidade ou consideração social, e à sua defesa, incluindo a vertente da respectiva reparação.
No plano meramente civilístico, único que releva no caso vertente, prescreve a lei, que, independentemente da
responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às
circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida (artigo
70º, nº 2, do Código Civil).

12
Assim, neste quadro de estatuição normativa, a tutela sancionatória concernente à referida violação dos direitos
de personalidade é susceptível de ser bifronte, ou seja, por via das mencionadas providências ou através de indemnização
ou compensação no âmbito da responsabilidade civil, ou de ambas em termos de cumulação, conforme os casos.
A imposição de providências tutelares preventivas ou atenuantes da violação do direito de personalidade depende
necessariamente, na espécie, de se tratar, respectivamente, de ameaça de ofensa ou de ofensa já efectivada.
O direito à indemnização lato sensu a que se reporta o normativo em análise depende, como é natural, da
violação ilícita e culposa do direito de personalidade, da existência de dano patrimonial ou não patrimonial e do nexo de
causalidade adequada entre ele e aquele facto (artigos 71º, nº 2, 483º, nº 1, 496º, nº 1, 562º e 563º, do Código Civil).

3.
Façamos agora a análise da particularidade da ofensa à memória das pessoas falecidas.
A a ofensa a pessoas falecidas, para além de integrar o tipo criminal do artigo 185º do Código Penal, a que já se
fez referência, também encontra tutela no artigo 71º do Código Civil.
Expressa o último dos referidos artigos, por um lado, que os direitos de personalidade gozam igualmente de
protecção depois da morte do respectivo titular (nº 1).
E, por outro, terem legitimidade para requerer as providências previstas no nº 2 do artigo anterior o cônjuge
sobrevivo ou qualquer descendente, ascendente, irmão, sobrinho ou herdeiro do falecido (nº 2).
Recorde-se que o nº 2 do artigo 70º deste Código, para o qual o nº 2 do artigo em análise remete, expressa que,
independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as
providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da
ofensa já cometida.
A doutrina está dividida a propósito da interpretação dos nºs 1 e 2 do artigo 71º do Código Civil, ou seja, quanto
às questões de saber, por um lado, se a protecção que envolvem se reporta ainda a direitos de personalidade das pessoas
falecidas ou das pessoas a que se refere o último dos mencionados normativos.
E, por outro, na segunda hipótese, se as referidas pessoas têm ou não direito a indemnização ou compensação
no quadro da responsabilidade civil, ou apenas a faculdade de requererem em juízo as mencionadas providências no
âmbito do processo de jurisdição voluntária a que se reportam os artigos 1474º e 1475º do Código de Processo Civil.
PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, no “Codigo Civil Anotado”, volume I, Coimbra, 1987, página 105, e
DIOGO LEITE DE CAMPOS, “Lições de Direitos de Personalidade”, Coimbra, 1995, páginas 44 e 45, entendem, os
primeiros que em certa medida a protecção em causa constitui um desvio à regra do artigo 68º do Código Civil, e o último
que a personalidade se prolonga para depois da morte, e defenderem os parentes e herdeiros do falecido um interesse
deste, em nome dele, e não um interesse próprio.
Diverso é o entendimento de JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, “Direito Civil, Teoria Geral, volume I, Introdução,
As Pessoas, Os Bens”, Coimbra, 1998, páginas 89 a 91, de LUIS A. CARVALHO FERNANDES, “Teoria Geral do Direito
Civil, Lisboa, 1995, páginas 179 a 181, e de HEINRICH EWALD HORSTER. “A Parte Geral do Código Civil Português,
Teoria Geral do Direito Civil”, Coimbra, 1992, páginas 259 a 263.
O primeiro entende que o prolongamento para além da morte apenas ocorre em relação ao valor pessoal e que a
protecção da lei se reporta apenas à memória do falecido, e que não há direito a indemnização nem para o finado nem para
as pessoas a que se reporta o nº 2 do artigo 71º do Código Civil.
O segundo, por seu turno, entende que a lei protege o interesse das pessoas previstas no artigo 71º, nº 2, do
Código Civil, em função da dignidade do falecido, mas que não têm direito a indemnização, limitando-se a tutela às
providências mencionadas naquele preceito, e o terceiro considera que as aludidas pessoas exercem um direito próprio no
interesse de outrem, mas que não têm direito a indemnização.
De modo diverso dos últimos mencionados autores entendem RABINDRANATH VALENTINO ALEIXO CAPELO
DE SOUSA, “Direito Geral de Personalidade”, Coimbra, 1995, páginas 10 a 19, PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, “Teoria
Geral do Direito Civil”, Coimbra, 2007, páginas 86 e 87 e “Direito de Personalidade”, Coimbra, 2006, páginas 118 a 123,
CARLOS ALBERTO MOTA PINTO, “Teoria Geral do Direito Civil”, Coimbra, 2005, páginas 206 a 213, ANTÓNIO MENEZES
CORDEIRO, “Tratado de Direito Civil Português”, I, Parte Geral, Tomo III, Pessoas, Coimbra, 2004, páginas 461 a 467, e
JOÃO DE CASTRO MENDES, “Teoria Geral do Direito Civil”, volume I, Lisboa, 1978 páginas 109 a 111.
Estes últimos autores consideram que a personalidade cessa com a morte da pessoa; mas enquanto o primeiro
considera que alguns dos bens nela integrados permanecem no mundo das relações jurídicas e são autonomamente
protegidos em termos de tutela depois da morte, os restantes interpretam a lei no sentido de que a tutela legal se refere aos
direitos das pessoas previstas no nº 2 do artigo 71º do Código Civil, em cuja titularidade se inscrevem os direitos de
personalidade.
Acresce que todos eles entendem que as mencionadas pessoas têm direito a indemnização ou compensação por
virtude da ofensa à memória do falecido, verificados os respectivos pressupostos.
Ora, a solução para o caso há-de assentar, como é natural, na interpretação do disposto nos artigos 71º, nºs 1 e
2, do Código Civil, tendo em conta o que se prescreve no artigo 9º daquele diploma, e na sua aplicação ao quadro de facto
que as instâncias deram por assentes em sede de condensação e que não foi posto em causa no âmbito dos recursos.

13
Resulta da lei que a personalidade se adquire com o nascimento completo e com vida e que cessa com a morte
(artigos 66º, nº 1 e 68º, nº 1, do Código Civil).
Assim, não obstante o primeiro dos referidos normativos expressar que a personalidade jurídica cessa com a
morte, o terceiro artigo seguinte - o nº 1 do artigo 71º - expressa que os direitos de personalidade gozam de protecção
depois da morte do respectivo titular.
Na fixação do sentido e do alcance da lei, deve o intérprete presumir ter o legislador consagrado as soluções
mais acertadas e sabido exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9º, nº 3, do Código Civil).
A expressão igualmente que consta no nº 1 do artigo 71º do Código Civil decorre da circunstância de no nº 1 do
artigo anterior se estabelecer proteger a lei os indivíduos contra qualquer ofensa à sua personalidade física ou moral.
Ora, como o nº 1 do artigo 70º do Código Civil se reporta, naturalmente, as pessoas com personalidade jurídica,
isto é aos vivos, salientando o desvio àquele preceito, foi inserido no nº 1 do artigo 71º do mesmo diploma a expressão
igualmente.
Tendo em conta o elemento literal do nº 1 do artigo 71º do Codigo Civil, a par do seu escopo finalístico de
protecção da memória das pessoas falecidas ou do respeito dos mortos, impõe-se a conclusão no sentido de que, embora
a personalidade jurídica cesse com a morte, alguns dos direitos que a integravam continuam a ser protegidos depois do
decesso da pessoa.
Nesta perspectiva, não se configura contraditória a cessação da personalidade jurídica com a morte das pessoas
com a protecção de alguns dos direitos que a integravam, como valores pessoais que se destacam sob a motivação do
respeito pela memória de quem terminou de viver.

4.
Vejamos, ora, se recorridos ofenderam ilícita e culposamente a memória do ascendente dos recorrentes.
Resulta dos factos provados, por um lado, ter sido o ascendente dos recorrentes bioquímico, professor do ensino
superior, e escritor, falecido há cerca de seis meses, e ter sido referenciado em Abril de 2001, na revista Maxim,
propriedade da recorrida, dirigida pelo recorrido Domingos Amaral, em artigo escrito pelo recorrido Paulo Neves e
fotografias do recorrido Ignácio Villamar.
E, por outro, que o referido artigo, acompanhado da fotografia do ascendente dos recorrentes e de outras
fotografias de criminosos, expressava a suspeita da autoria do primeiro de crimes graves de homicídio de mulheres
prostitutas.
Resulta das regras da experiência, por um lado, que na memória das pessoas perdura o juízo negativo que em
determinado momento é formado acerca de factos, pessoas ou coisas, pelo que a ofensa da personalidade moral de
alguém também fica no tempo e no espaço de vivência.
E, por outro, que a reputação de uma pessoa leva uma vida a construir, mas para a destruir bastam dias e até
mesmo horas ou minutos.
Na colisão entre os direitos de informar por via da imprensa e da liberdade económica das empresas jornalísticas
e os direitos à honra e reputação das pessoas, prevalece o que, em concreto, deva considerar-se superior, nos termos do
artigo 335º, nº 2, do Código Civil.
Os factos acima referidos dados por assentes nas instâncias, pela sua estrutura, são civilmente ilícitos do ponto
de vista formal e material, porque violaram, sem justificação, o disposto no artigo 71º, nº 1, do Código Civil e ofenderam o
interesse civilmente protegido da memória da honra e consideração do ascendente dos recorrentes.
Sabe-se, seguindo a doutrina, que a culpa lato sensu abrange as vertentes do dolo e da culpa stricto sensu, ou
seja, respectivamente, a intenção de realizar o comportamento ilícito que o respectivo agente configurou ou a mera
intenção de querer a causa do facto ilícito.
A culpa stricto sensu ou censura ético-jurídica exprime um juízo de reprovação pessoal em relação ao agente
lesante que, no caso-espécie, devia e podia agir em termos de evitar a causa do dano.
Nesta última vertente da culpa ainda se distingue, por um lado, a consciente e, por outro, a inconsciente,
conforme o agente tenha previsto a produção do facto ilícito mas sem razão plausível acreditou que ela não ocorresse, ou
pura e simplesmente não a previu, por falta de atenção ou de perícia, mas podendo prevê-la se nisso concentrasse a
inteligência e a vontade.
No nosso ordenamento jurídico, a culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai
de família, em face das circunstâncias de cada caso (artigo 487º, nº 2, do Código Civil),
Assim, a diligência relevante para a determinação da culpa é a de uma pessoa normal em face do
circunstancialismo do caso concreto.
No quadro de facto do caso em apreciação, em que a actividade da comunicação social se desenvolve no âmbito
jornalístico, a pessoa padrão a que a lei se reporta é aquela que actua no exercício daquela relevante actividade.
Assim, a diligência relevante para a determinação da culpa é a de uma pessoa normal, mais concretamente de
um jornalista diligente e conhecedor das regras da sua profissão, designadamente as constantes da lei geral e especial e
no respectivo Código Deontológico, em face do circunstancialismo do caso concreto, bem como a estrutura da
sensibilidade normal das pessoas que envolvem o meio social de referência.

14
Conforme já resulta do exposto a propósito da Lei de Imprensa, constitui dever fundamental dos jornalistas o
exercício da sua actividade com respeito pela ética profissional, a informação rigorosa e isenta, a abstenção de acusações
sem provas, o respeito pela presunção de inocência e o não engendrar de situações não reais sob abuso da boa fé (artigo
14º, alíneas a), c) e h)).
Ademais, no plano deontológico, naturalmente de harmonia com a especificidade da actividade jornalística, quem
a exerce tem o dever de relatar os factos com rigor e exactidão, interpretá-los com honestidade intelectual, comprová-los,
ouvindo oportunamente as partes directamente interessadas, abstrair do sensacionalismo e de acusação sem provas e
salvaguardar a presunção de inocência até ao trânsito em julgado da sentença e não humilhar as pessoas nem perturbar a
sua dor.
O noticiado em causa envolveu a divulgação dos factos com o sentido de facultar ao público a suspeita da prática
dos crimes acima referidos, sem que, em termos de razoabilidade, seja de concluir que os recorridos imprimiram ao
processo de difusão da notícia a escrupulosa observância das leges artis próprias da actividade jornalística.
Em consequência, importa concluir que os recorridos jornalistas agiram na emissão da notícia em causa com
culpa stricto sensu, isto é, de modo censurável do ponto de vista ético-jurídico.

5.
Continuemos com a análise da subquestão de saber se os recorridos se constituíram ou não na obrigação de
indemnizar os recorrentes.
O nº 2 deste artigo 71º do Código Civil, de alcance instrumental em relação ao que se prescreve no seu nº 1,
elenca as pessoas com legitimidade para requererem as providências previstas no nº 2 do artigo anterior, ou seja, o
cônjuge sobrevivo, os descendentes, os ascendentes, os irmãos, os sobrinhos ou herdeiros do falecido.
Resulta deste normativo que a legitimidade a que se reporta abstrai da posição jurídica de herdeiro em relação à
pessoa falecida à qual foi dirigida a ofensa, mas tem por relevante a proximidade familiar ou presumivelmente afectiva.
A referida legitimidade inscreve-se na titularidade das pessoas mencionadas naquele normativo, ou seja, trata-se
de interesses em agir próprios funcionalmente dirigidos à protecção de vertentes da personalidade do defunto, que, por
força da lei, se destacaram para além da morte.
O referido normativo circunscreve a mencionada legitimidade dos vivos para proteger a memória dos mortos às
providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da
que já esteja consumada.
É uma limitação que exclui o primeiro segmento normativo do nº 2 do artigo 70º do Código Civil, ou seja, o que se
refere à salvaguarda da responsabilidade civil a que haja lugar.
Em consequência, da conjugação das normas dos nºs 2 do artigos 70º e 71º do Código Civil em análise, resulta a
conclusão no sentido de que as pessoas legalmente legitimadas para requerer as aludidas providências não o são para
formular algum pedido de indemnização ou de compensação no quadro da responsabilidade civil, seja com base na ofensa
à pessoa falecida, seja por virtude de sofrimento próprio derivado dessa ofensa.
É uma solução legal que se conforma com a realidade das coisas, na medida em que o ofendido já não dispõe de
personalidade jurídica e a ofensa não afecta directamente as pessoas a que se reporta o mencionado normativo.
Dir-se-á, em suma, que os recorrentes não têm direito a exigir dos recorridos a compensação por danos não
patrimoniais que pretenderam fazer valer na acção em causa.

6.
Finalmente, atentemos na síntese da solução para o caso decorrente dos factos declarados assentes nas
instâncias e da lei,
O direito à liberdade de expressão e de informação por via da imprensa não prevalece, em regra, sobre o direito
das pessoas à honra, bom nome e consideração social.
Os recorridos ofenderam ilícita e culposamente a memória do já falecido ascendente dos recorrentes, que a lei
protege, não obstante a respectiva personalidade jurídica haver cessado com a morte.
A referida ofensa, pela sua natureza e estrutura, não afectou directamente os direitos de personalidade dos
recorridos, certo que só afectou aspectos destacados da personalidade do seu ascendente.
O nº 2 do artigo 71º não atribui às pessoas a que se reporta um direito próprio de indemnização lato sensu, mas
tão só a legitimidade de requerer as providências previstas no nº 2 do artigo 70º, ambos do Código Civil.
Os recorrentes não têm, por isso, no confronto dos recorridos, o direito de lhe exigir a pretendida compensação
por danos não patrimoniais» Ac. do STJ (Cons.º Salvador da Costa) de 18.10.07, P.º 07B3555.

No mesmo sentido e versando pedido indemnizatório formulado por Valle e Azevedo pode ver-
-se a Col. 01-II-103; Informação anotada em ficha de Banco - 93-II-171 STJ; em carta dirigida a
autoridades - BMJ 406-623.

15
Não se exige animus iniuriandi vel difamandi - BMJ 467-577.

Ainda sobre violação do bom-nome através da imprensa (Televisão) pode ver-se o caso Subtil
na Col. Jur. (STJ) 2001-III-21 e através do exercício do direito de queixa na mesma Col. (STJ) 2001-
III-122: A ofensa do crédito ou do bom-nome de uma pessoa está subordinada aos princípios gerais da
responsabilidade delitual; a afirmação ou divulgação de um facto pode não ser ilícita se corresponder
ao exercício regular de um direito, faculdade ou dever .

Ainda sobre a liberdade de imprensa, direito à honra e à reserva da intimidade da vida privada,
deve analisar-se o Ac. do STJ (Cons.º Araújo Barros), de 26.2.2004, na Col. Jur. STJ 2004-I-74 a
80, assim transcrito:

«Sem grande preocupação com a análise do comportamento dos réus - e respectiva qualificação - as decisões
das instâncias fundamentam, no essencial, a absolvição dos recorridos no facto de o recorrente não haver sido
directamente atingido na sua imagem, honra e reputação (que assim não foram violados), porquanto as notas publicadas
apenas se referiram a um eventual relacionamento entre a sua mulher e E.
Citando até o acórdão recorrido o Prof. Antunes Varela quando defende que apenas tem direito à indemnização,
salvo nas situações excepcionais do art. 495º do C.Civil, o titular do direito violado ou do interesse imediatamente lesado
com a violação de disposição legal e já não o reflexa ou indirectamente prejudicado. (1)
E afirma, depois, em jeito de conclusão, que "tais notícias referem-se a comportamento menos honroso da mulher
do ora apelante: será ela, portanto, que terá de se mover com vista à ofensa da sua honra se, na verdade, a considera
ofendida. Porém, uma coisa é certa: a honra do apelante não foi ofendida com as notícias publicadas no D a respeito da
sua mulher. Não há nenhuma razão para considerar que, com a publicação de tais notícias, a honra do apelante, o seu bom
nome, a sua reputação, foram afectados: se ele era até então homem sério e honesto, não o deixou de ser com a
publicação de tais notícias" (fls. 197).
Parece-nos, no entanto, que se procedeu a uma subsunção demasiado simplista do direito aos factos provados, a
qual, por isso mesmo, não podemos sufragar.
E, antes de mais, importa saber se com a publicação das expressões acima mencionadas - e porque as decisões
das instâncias assim o impõem - se pode considerar que foi concreta e directamente violado algum direito absoluto do aqui
autor, situação que permitiria qualificar a conduta dos réus como antijurídica (pelo menos objectivamente).
A antijuridicidade do comportamento situa-se na violação de um direito absoluto de outrem - como tal qualquer
direito de personalidade, designadamente o direito à honra e ao bom nome, ou mesmo o direito à reserva da intimidade
privada.
Na verdade, os direitos de personalidade (como hão-de qualificar-se os direitos à honra e ao bom nome)
pertencem à categoria dos direitos absolutos, como direitos de exclusão, oponíveis a todos os terceiros, que os têm que
respeitar.
"Estes direitos emanam da própria pessoa cuja protecção visam garantir. Resulta isto do nº 1 do art. 70º CC, que
protege os indivíduos - independentemente de culpa - contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua
personalidade física ou moral. A protecção assim garantida abrange o homem naquilo que ele é e não naquilo ele tem.
Contudo, objecto da respectiva relação jurídica nunca é o indivíduo ou a pessoa ou a sua personalidade, mas sempre o
direito de personalidade que incide sobre certas manifestações ou objectivações da mesma". (2)
A ideia da protecção da pessoa humana, da sua personalidade e dignidade, encontra expressão jurídica em
vários preceitos da Constituição da República Portuguesa (3) (o art. 1º fala da dignidade da pessoa humana como
fundamento da sociedade e do Estado; o art. 13º, nº 1, refere-se à igual dignidade social dos cidadãos; o art. 24º, nº 1,
declara que a vida humana é inviolável; o art. 25º garante o direito à integridade moral e física da pessoa; o art. 26º
consagra outros direitos pessoais, nomeadamente respeitantes à identidade, ao desenvolvimento da personalidade, à
capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e
familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação).
Em sintonia com estes preceitos encontram-se os arts. 70º a 81º do C.Civil que transpõem a ideia
constitucionalizada da protecção à pessoa humana para o campo do direito civil.
O Código Civil, não contendo uma definição geral ou uma definição de direito de personalidade (apenas o art. 70º
consagra o direito geral de personalidade), abrange, na sua protecção, no âmbito do direito civil, todos aqueles "direitos
subjectivos, privados, absolutos, gerais, extra-patrimoniais, inatos, perpétuos, intransmissíveis, relativamente indisponíveis,
tendo por objecto os bens e as manifestações interiores da pessoa humana, visando tutelar a integridade e o
desenvolvimento físico e moral dos indivíduos e obrigando todos os sujeitos de direito a absterem-se de praticar ou de
deixar de praticar actos que ilicitamente ofendam ou ameacem ofender a personalidade alheia sem o que incorrerão em

16
responsabilidade civil e/ou na sujeição às providências cíveis adequadas a evitar a ameaça ou a atenuar os efeitos da
ofensa cometida". (4)
Segundo o mencionado Prof. Capelo de Sousa, "poderemos definir positivamente o bem da personalidade
humana juscivilisticamente tutelado como o real e potencial físico e espiritual de cada homem em concreto, ou seja, o
conjunto autónomo, unificado, dinâmico e evolutivo dos bens integrantes da sua materialidade física e do seu espírito
reflexivo, sócio-ambientalmente integrado". (5)
Assim, tendo ocorrido uma ofensa ilícita, a lei admite que possa, além das providências adequadas à situação,
haver lugar à responsabilidade civil caso se verifiquem os pressupostos da responsabilidade por factos ilícitos,
designadamente a culpa e a existência de um dano (art. 70º, nº 2, em ligação com o art. 483º do C. Civil) ou os
pressupostos da responsabilidade pelo risco, ou seja, a concretização do risco e a existência de um dano (art. 70º, nº 2, em
ligação com o art. 499º do citado diploma).
A questão está agora em saber se os factos apurados assumem carácter ilícito, ou seja, em palavras claras, se
violam, por acção ou por omissão, qualquer comportamento que a lei justamente proíba (designadamente se violam ou não
o direito de personalidade do recorrente).
E, analisados os factos provados, parece-nos que a resposta não pode deixar de ser afirmativa.
É perfeitamente irrelevante o facto de nas notas publicadas pelo D apenas se referir a F, mulher do autor: daí não
pode extrair-se a ilação de que só esta pode ter sido ofendida na sua honra pessoal. É que, se calhar, por aquilo que na
sequência se deixa adivinhar - teor de vida livre - a mesma poderá nem sequer se ter sentido ofendida.
O que é decisivo, e indubitável é que a veiculação das directas insinuações feitas à mulher do autor - no mínimo
tratando-a como mulher leviana e imputando-lhe a prática de adultério - sendo aquele homem conhecido e publicamente
relacionado, objecto de chacota da parte de amigos e conhecidos, o atingiu directa e objectivamente na sua honra e
consideração.
Não se encontra, assim, o autor, ao contrário do que entendeu o acórdão recorrido, numa situação de prejudicado
reflexa ou indirectamente. O que manifestamente acontece - e aqui o acórdão impugnado confundiu a pessoa atingida com
a forma como foi atingida - é que o autor foi directamente prejudicado no seu direito ao bom nome, honra e consideração
social, embora de modo indirecto, através da referência a um comportamento, no mínimo, leviano da sua mulher.
Afigurando-se-nos, mesmo, completamente desinserida da realidade social a conclusão do citado acórdão,
referindo-se ao autor, de que "se ele era até então homem sério e honesto, não o deixou de ser com a publicação de tais
notícias". Não está, na realidade em causa a seriedade e honestidade do autor. O que tem que ser tido em conta é a sua
honra, bom nome e reputação social, que, sem qualquer dúvida, foram violados (sem falar já da violação do direito à
intimidade da sua vida conjugal privada) na medida em que, como é sabido - e o autor demonstrou - o marido traído deixa
de gozar da consideração social que lhe era concedida, passa a ser desprezado e objecto de comentários pouco
abonatórios.
Impõe-se, pelo exposto, concluir que, ao contrário do que entenderam as instâncias, o autor foi directamente
atingido na sua honra, consideração, bom nome e intimidade da vida privada, direitos estes que pertencem à categoria dos
direitos absolutos, como direitos de exclusão, oponíveis a todos os terceiros, que os têm que respeitar, e juridicamente
tutelados contra qualquer ofensa.
Apreciando, agora, o comportamento dos réus quanto à ocorrência ou não de ilicitude subjectiva e à natureza do
nexo da sua imputação àqueles (mera culpa ou dolo) - já que a voluntariedade da conduta deles se encontra claramente
demonstrada nos autos - começaremos por indicar as disposições que podem justificar a obrigação de indemnizar
resultante da responsabilidade civil extracontratual.
Assim, dispõe o art. 483º, nº 1, do C. Civil, que "aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito
de outrem... fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos decorrentes da violação". Acrescentando o nº 2 que "só existe
obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei".
Por seu turno, estabelece o art. 484º do mesmo diploma que "quem afirmar ou difundir um facto capaz de
prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, responde pelos danos causados".
A questão está agora em saber se os factos apurados assumem subjectivamente carácter ilícito, ou seja, em
palavras claras, se violam, por acção ou por omissão, qualquer comportamento que a lei justamente proíba.
Os factos ocorreram em 1996.
Na parte que importa, regem-se pelas disposições conjugadas, ressalvada a respectiva hierarquia, da
Constituição da República, da Lei de Imprensa (6), bem como do Estatuto do Jornalista (7).
O artigo 37º, nº 1, da Constituição estabelece que "todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu
pensamento, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de
ser informados, sem impedimentos nem discriminações".
E o nº 4 do mesmo preceito assegura a todas as pessoas, singulares ou colectivas, o direito a indemnização
pelos danos sofridos em resultado de infracções cometidas no exercício do direito de liberdade de expressão e informação,
garantindo o artigo 38º, nº 1, a liberdade de imprensa, que implica, além do mais, a liberdade de expressão e criação dos
jornalistas (al. a) do nº 2).
A Lei de Imprensa formula idênticos princípios, ou valores (arts. 1º, 4º e 5º).

17
Por sua vez, o Estatuto do Jornalista assinala, que os jornalistas "devem respeitar escrupulosamente o rigor e
objectividade da informação", assim como "os limites ao exercício da liberdade de imprensa, nos termos da Constituição e
da Lei" (als. b) e c) do art. 1º).
Tão importante, assim, vem a ser assegurar o livre exercício dos direitos de informação e de livre expressão do
pensamento, de que a liberdade de imprensa constitui modo qualificado (8), enquanto "elemento imprescindível ao
funcionamento e aperfeiçoamento das instituições democráticas" (9), como garantir o respeito pelos demais direitos,
liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos, em que, em idêntico plano constitucional, se inclui a da dignidade da
pessoa humana (citado art. 1º) e dos direitos à integridade moral (art. 25º, nº 1º) e ao bom nome e reputação (art. 26º, nº
1º).
Exposto o quadro legal de referência, importa, então, saber como conjugar, em caso de conflito, estes dois
direitos fundamentais: o direito/dever de informação e o direito à honra, ao bom nome e à reputação social.
Quer a Constituição, quer as leis ordinárias mencionadas, não estabelecem, neste domínio, qualquer regime
especial relativamente à ilicitude em matéria civil e, naturalmente, à respectiva obrigação de indemnizar, quando ocorrer,
por responsabilidade civil extracontratual, limitando-se a remeter, expressa ou tacitamente, para os princípios gerais e
normas do Código Civil (arts. 37º, nº 4, da Constituição e 24º da Lei da Imprensa).
Será, pois, com base nas normas da sistemática civilística (designadamente arts. 70º, 483º, nº 1, 484º, 487º e
497º, nº 1, do C. Civil), que deve ser avaliada a ilicitude (e, eventualmente, a culpa) como pressuposto da obrigação de
indemnizar fundamentada na responsabilidade civil extracontratual.
De um modo geral, "o homem é definido pela liberdade que pode exercer, face a um coeficiente naturalmente
humano de adversidade que resulta da presença dos outros. Se a existência de um outro homem se afirma ela mesma,
como necessidade de facto, na relação fundamental entre mim e o outro, o cogito da existência do outro confunde-se com o
meu próprio cogito, pelo que a existência do outro é o limite à minha própria liberdade".
Em sentido amplo o direito geral de personalidade "inclui também o bom nome e a reputação, enquanto sínteses
do apreço social pelas qualidades determinantes de unicidade de cada indivíduo e pelos demais valores pessoais
adquiridos pelo indivíduo no plano moral, intelectual, sexual, familiar, profissional ou político". (11)
O direito ao bom nome e reputação "consiste essencialmente no direito a não ser ofendido ou lesado na sua
honra, dignidade ou consideração social mediante imputação feita por outrem, bem como no direito a defender-se dessa
ofensa e a obter a competente reparação" (12).
A honra abrange desde logo a projecção do valor da dignidade humana, que é inata, ofertada pela natureza
igualmente para todos os seres humanos, insusceptível de ser perdida por qualquer homem em qualquer circunstância".
(13).
É a honra um "bem da personalidade e imaterial, que se traduz numa pretensão ou direito do indivíduo a não ser
vilipendiado no seu valor aos olhos da sociedade e que constitui modalidade do livre desenvolvimento da dignidade
humana, valor a que a Constituição atribui a relevância de fundamento do Estado Português; enquanto bem da
personalidade e nesta sua vertente externa, trata-se de um bem relacional, atingindo o sujeito enquanto protagonista de
uma actividade económica, com repercussões no campo social, profissional e familiar e mesmo religioso". (14)
Ora, como atrás referimos, prevê o art. 484º do C. Civil uma possibilidade de indemnização desde que, sublinhe-
se, se verifiquem os pressupostos definidos no artigo 483º.
Na verdade, a ofensa prevista no artigo 484º mais não é que um caso especial de facto antijurídico definido no
artigo precedente que, por isso, se deve ter por subordinada ao princípio geral consignado nesse artigo 483º, não só
quanto aos requisitos fundamentais da ilicitude, mas também relativamente à culpabilidade. (15)
Ou seja, para além das duas disposições básicas de responsabilidade civil constantes do artigo 483º, o nosso
legislador recebeu uma série de previsões particulares que concretizam ou complementam aquelas, entre elas, e desde
logo, a do artigo 484º.
Assim, Almeida Costa (16), após considerar que um dos casos especiais de ilicitude previstos no Código Civil é o
da ofensa do crédito ou do bom nome, conclui que "parece indiferente... que o facto afirmado ou difundido seja verdadeiro
ou não. Apenas interessa que, dadas as circunstâncias concretas, se mostre susceptível de afectar o crédito ou a
reputação da pessoa visada".
Também Menezes Cordeiro (17) entende que a ofensa do crédito ou do bom nome está sujeita às regras gerais
dos delitos, concluindo pela responsabilidade de quem, com dolo ou mera culpa, viola o direito ao bom nome e reputação
de outrem, após o que afirma que "é indubitável que a divulgação de um facto verdadeiro pode, em certo contexto, atentar
contra o bom nome e a reputação de uma pessoa. Por outro lado, a divulgação de um facto falso atentatório pode não
constituir um delito - por carência, por exemplo, de elemento voluntário. Por isso, a solução deve resultar do funcionamento
global das regras da imputação delitual".
Segundo Antunes Varela (18), além das duas grandes directrizes de ordem geral fixadas no artigo 483º, o Código
trata de modo especial alguns casos de factos antijurídicos, o primeiro dos quais é o da afirmação ou divulgação de factos
capazes de prejudicarem o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa (artigo 484º).
Autor que prossegue (19) dizendo que "pouco importa que o facto afirmado ou divulgado seja ou não verdadeiro -
contanto que seja susceptível, ponderadas circunstâncias do caso, de diminuir a confiança na capacidade e na vontade da

18
pessoa para cumprir as suas obrigações (prejuízo do crédito) ou de abalar o prestígio de que a pessoa goze ou o bom
conceito em que ela seja tida (prejuízo do bom nome) no meio social em que vive ou exerce a sua actividade"
"A tutela do direito à intimidade da vida privada desdobra-se em duas vertentes: a protecção contra a intromissão
na esfera privada e a proibição de revelações a ela relativas". (20)
Há, por conseguinte, que procurar, antes de mais, a concordância prática desses direitos, de informação e livre
expressão, por um lado, e à integridade moral e ao bom nome e reputação, por outro, mediante o sacrifício indispensável
de ambos. (21)
Em último termo, o reconhecimento da dignidade humana como valor supremo da ordenação constitucional
democrática impõe que a colisão desses direitos deva, em princípio, resolver-se pela prevalência daquele direito de
personalidade (nº 2 do art. 335º do C. Civil). (22)
Podendo dizer-se que o simples facto de "atribuir a alguém uma conduta contrária e oposta àquela que o
sentimento da generalidade das pessoas exige do homem medianamente leal e honrado é atentar contra o seu bom nome,
reputação e integridade moral". (23)

A liberdade de imprensa, e com ela a faculdade de livre expressão e divulgação da informação e dos meios da
comunicação social (arts. 37º e 38º da Constituição) é uma liberdade responsável e, por isso, neste particular, em que
atinge ou pode atingir o direito à honra e reputação social também constitucionalmente consagrado (arts. 25º e 26º do
mesmo diploma constitucional), há-de corresponder ao fim para que é concedida e não prosseguir, ainda que
indirectamente, outros fins.
Se, por um lado, se reconhece ser direito fundamental dos jornalistas a liberdade de criação, expressão e
divulgação, a qual não está sujeita a impedimentos ou discriminações, nem subordinada a qualquer forma de censura,
autorização, caução ou habilitação prévia e acesso às fontes (arts. 5º, 6º, 7º, 8º e 9º do Estatuto do Jornalista), certo é,
também, constituir dever desses profissionais respeitar os limites ao exercício da liberdade de imprensa nos termos da
Constituição e da Lei (citado art. 1º, nº 1, al. c), do mesmo Estatuto).
Na delimitação do direito à informação intervêm princípios éticos, pelos quais o jornalista responde em primeiro
lugar (24), constituindo dever de quem informa esforçar-se por contribuir para a formação da consciência cívica e para o
desenvolvimento da cultural sobretudo pela elevação do grau de convivialidade como factor de cidadania, e não fomentar
reacções primárias, sementes de violência, ou sentimentos injustificados de indignação e de revolta, tratando assuntos com
desrespeito pela consciência moral das gentes, contribuindo negativamente para a desejável e salutar relação de
convivialidade entre elas. O princípio norteador da informação jornalística deve ser o de causar o menor mal possível, pelo
que quando se ultrapassam os limites da necessidade ou quando os processos são, de per si, injuriosos, a conduta é
ilegítima. (25)
Pode, aliás, na sequência do exposto, concluir-se que o direito à informação comporta três limites essenciais: o
valor socialmente relevante da notícia; a moderação da forma de a veicular; e a verdade, medida esta pela objectividade,
pela seriedade das fontes, pela isenção e pela imparcialidade do autor, evitando manipulações que a deontologia
profissional, antes das leis do Estado, condena.
Ora, o conflito entre os dois direitos constitucionalmente garantidos - o direito de liberdade de informação e o
direito à honra e ao bom nome - terá que ser resolvido, nos termos do art. 335º do C.Civil, pela cedência, em casos de
direitos iguais ou da mesma espécie, na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem
maior detrimento para qualquer das partes (nº 1), ou pela prevalência do que deva considerar-se superior quando os
direitos forem desiguais ou de espécie diferente (nº 2).
Sendo ambos os direitos enunciados, pelo menos em teoria, de igual hierarquia constitucional, o primeiro não
pode, em princípio, atentar contra o segundo, devendo procurar-se "a harmonização ou concordância pública dos
interesses em jogo, por forma a atribuir a cada um deles a máxima eficácia possível", (26) "em obediência ao princípio
jurídico-constitucional da proporcionalidade, vinculante em matéria de direitos fundamentais". (27)
Nesta conflitualidade, "sendo embora os dois direitos de igual hierarquia constitucional, é indiscutível que o direito
de liberdade de expressão e informação, pelas restrições e limites a que está sujeito, não pode, ao menos em princípio,
atentar contra o bom nome e reputação de outrem, sem prejuízo, porém, de em certos casos, ponderados os valores
jurídicos em confronto, o princípio da proporcionalidade conjugado com os ditames da necessidade e da adequação e todo
o circunstancialismo concorrente, tal direito poder prevalecer sobre o direito ao bom nome e reputação". (28)
Designadamente assim sucede nos casos em que "estiver em causa um interesse público que se sobreponha
àqueles e a divulgação seja feita de forma a não exceder o necessário a tal divulgação", (29) sendo exigível que a
informação veiculada se cinja à estrita verdade dos factos. (30)

Apreciando o comportamento dos réus face ao exposto - em ordem a qualificá-lo quanto à sua natureza ilícita
ou/e culposa - cumpre, desde já, afirmar que "uma conduta é ilícita quando ofende um direito subjectivo... sendo certo que
"os direitos subjectivos de que nos fala o art. 483º do C.Civil são, fundamentalmente, os direitos absolutos - e nestes, os
direitos de propriedade, os direitos de personalidade e os chamados direitos familiares patrimoniais". (31)

19
Assim, é manifesto que a "ilicitude se reporta ao facto do agente, à sua actuação, não ao efeito (danoso) que dele
promana, embora a ilicitude do facto possa provir (e provenha até as mais das vezes) do resultado (lesão ou ameaça de
lesão de certos valores tutelados pelo direito) que ele produz". (32)
Facto esse que "constitui a violação de um dever, o que implica: em primeiro lugar, a existência desse dever e,
portanto, a destinação dum comando a seres inteligentes e livres que podem conhecê-lo e obedecer-lhe; em segundo lugar,
a prática contrária de conduta diferente da devida". (33)
E, nesta medida, pode dizer-se que a ofensa ao crédito e ao bom nome prevista no art. 484º do C.Civil (que
constitui um dos factos antijurídicos especialmente previstos na lei) não é mais que um caso especial de facto anti-jurídico
definido no art. 483º precedente, pelo que se deve considerar subordinada ao processo geral deste art. 483º. (34)
Donde, a mera violação do direito ao bom nome de alguém (na medida em que este direito se impõe a todas as
pessoas) contém, já em si, a antijuridicidade do comportamento dos agentes, sendo necessariamente ilícito, salvo se tal
ilicitude estiver afastada por qualquer circunstância justificativa do facto praticado e da violação ocorrida.
O que poderia acontecer apenas se, in casu, e como acima referimos, estivesse em causa um interesse público
sobreponível aos direitos violados, a divulgação houvesse sido feita por forma adequada aos interesses em jogo, e,
sobretudo, se a informação veiculada correspondesse, no essencial, à verdade dos factos ocorridos (ou só muito
excepcionalmente embora com ela se não compaginasse, desde que na séria convicção de serem verdadeiros). (35)
No caso sub judice não pode considerar-se demonstrado o interesse público da notícia elaborada e veiculada
pelos réus (é mesmo duvidoso que se trate de uma notícia). Encontramo-nos perante um daqueles típicos casos de
aproveitamento de colunas criadas nos jornais, supostamente para divertir os leitores à custa de insinuações, maledicência,
fofocas, sensacionalismo barato e, quantas vezes, sem qualquer interesse objectivo de informar a comunidade.
Assim é inequívoca a antijuridicidade da conduta dos réus, posto que, em derradeira análise, violou direitos de
personalidade do autor.
E na justa medida em que, em jornal de larga dimensão, divulgaram factos que sabiam contender com o bom
nome, honra e intimidade da vida privada das pessoas atingidas, de mais a mais de forma a serem reproduzidos por outra
publicação nacional, há-de considerar-se, no mínimo, que agiram com falta de rigor e de objectividade, não havendo,
assim, qualquer causa justificativa do seu comportamento, capaz de afastar a sua aparente ilicitude: donde, a actuação
deles é certamente culposa.

Na verdade, "agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do lesante merecer a reprovação ou
censura do direito. E a conduta do lesante é reprovável, quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias
concretas da situação, se concluir que ele podia e devia agir de outro modo" (36), modo esse pelo qual agiria um bom pai
de família perante as mesmas circunstâncias (art. 487º, nº 2, do C. Civil).
Ora, a divulgação dos factos acima descritos mostra-se desajustada do comportamento que qualquer pessoa
normalmente diligente adoptaria, tornando-se, dessa forma, censurável e culposa, tanto mais quanto é certo que o dever de
indemnizar não está dependente de intencionalidade ofensiva, bastando a simples reprobabilidade da actuação (mera
negligência).
Assim é natural a conclusão, face à disposição do art. 487º, nº 2, do C.Civil, de que agiram culposamente.
Sendo indubitável que o fizeram dolosamente. Com efeito, age com dolo - actualmente, aliás, considerado
simplesmente como uma graduação da culpa em sentido amplo - aquele que procede voluntariamente contra a norma
jurídica cuja violação acarreta o dano (37), ou com intenção de ofender o direito, legalmente tutelado, de outrem. Por
exemplo, "o jornalista que sabe que, narrando certo facto, atinge a honra ou o bom-nome de outrem; e é esse preciso efeito
que ele pretende atingir". (38)
Sendo que, no caso em apreço, não custa aceitar a existência de dolo, na modalidade de dolo necessário -
reconhecendo, para tanto, que os recorridos (incluído o próprio D) não podiam deixar de ter previsto o facto ilícito como
consequência necessária da sua conduta, de tal modo o resultado se apresentava intrínseca e indissoluvelmente ligado ao
resultado.
Ou, pelo menos, dolo eventual, porquanto é possível, ao lado dos casos em que é patente uma intencionalidade
dirigida (dolo directo), englobar, ainda, qualificáveis como dolosos, outros actos em que o agente, não querendo
directamente o facto ilícito, todavia o previu como uma consequência necessária, segura, da sua conduta (dolo necessário),
ou prevendo-o apenas como um seu efeito possível, se quedou insensível ante a possibilidade da respectiva verificação
(dolo eventual).
Ora, conhecendo os réus, como era seu especial dever, a natureza melindrosa e difamatória dos seus escritos,
tinham também o dever de ter impedido a sua divulgação - ao não o fazer, apesar de terem previsto a produção do facto
ilícito como efeito possível ou eventual dessa sua conduta, conformaram-se com ele, aceitando-o.
Sendo seguro que, ao assim agirem, quiseram intencionalmente atingir os visados ou mesmo que, prevendo a
ofensa ao bom nome, foram muito além do direito que lhes assistia de livremente informar (é, aliás, duvidoso que uma
coluna de que constam insinuações mais ou menos malévolas, possa ser integrada no âmbito do direito de informar).
Concluindo: o comportamento dos réus é ilícito e violador do direito ao bom nome do autor, e qualificável como
doloso.

20
Vejamos agora, configurada a obrigação de indemnizar dos réus pela violação do direito à intimidade da vida
privada, à honra e ao bom nome do autor, a questão do montante da indemnização.
Estabelece, neste domínio, o art. 496º, nº 1 do C.Civil, que "na fixação da indemnização deve atender-se aos
danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. Acrescentando o nº 3 que "o montante da
indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas
no art. 494º". Sendo que este art. 494º manda atender, na fixação da indemnização, ao grau de culpa do agente, à situação
económica deste e do lesado e às demais circunstâncias do caso que o justifiquem.

Assim, o montante da reparação há-de ser proporcionado à gravidade do dano, devendo ter-se em conta na sua
fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das
realidades da vida. (39)

"Nos crimes contra a honra, para a reparação do dano não patrimonial, haverá que considerar a natureza, a
gravidade e o reflexo social da ofensa em função do grau de difusão do escrito, do sofrimento do ofendido e da sua
situação social e política". (40)

No caso sub judice interessa ainda ponderar que a divulgação teve lugar através da imprensa, que tem como
destinatário um universo mais ou menos indeterminado de pessoas, meio de difusão com uma particular aptidão
potenciadora do dano, "seja pelo elevado número de pessoas que tiveram acesso à notícia, seja pela activação da
engrenagem social que em consequência da notícia se produz (retransmitindo-a, ampliando-a, deformando-a), seja pelo
grau de credibilidade que o acontecimento impresso tem no público". (41)
Assim, na busca da solução mais ajustada às circunstâncias, importa agora concluir sobre o valor pecuniário que
se considera justo para, no caso concreto, compensar o lesado pelos danos não patrimoniais que sofreu - tendo sempre
presente e atentando, com bom senso e prudência, nas especificidades do circunstancialismo que concorre na situação
sub judice e que fazem dela uma situação circunstancial própria e diferente.

Posto o que, interessa recortar alguns dos pontos mais significativos: o jornal D é uma publicação que se vende
em todo o território nacional; a partir da data da publicação dos artigos o autor passou a ser alvo de observações jocosas
dos seus colegas de trabalho e de alguns passageiros da TAP que o conheciam devido à vida pública que levava; o autor,
em consequência da publicação dos artigos referidos pediu uma licença de vencimento como única forma de se furtar aos
incómodos e ultrajes de que foi alvo; o casal constituído pelo autor e a mencionada F acabou por se separar devido às
discussões e aos embaraços que tais artigos provocaram em ambos; os réus agiram culposamente, com dolo directo dos
primeiros e necessário (ou eventual) do D.

Desconhece-se a situação económica concreta das partes, se bem que se possa intuir que a do autor, atenta a
actividade que exercia e a vida pública que levava, assim como a do D, empresa jornalística sobejamente conhecida, são
razoáveis.

Ora, conjugando o descrito quadro factual com os elementos doutrinais e jurisprudenciais antes recenseados,
tudo sopesando e valorando com o equilíbrio e ponderação que se exige, entendemos como justa, criteriosa e adequada às
circunstâncias do caso a quantia, calculada nesta data, nos termos do art. 566º, nº 2, do C.Civil, actualizada, de
5.000.000$00 (ou seja, 24.939,99 Euros) para compensar os danos não patrimoniais sofridos pelo autor.

Quantia sobre a qual hão-de incidir juros de mora, à taxa legal de 4%, (42) desde a data da prolação desta
decisão e até pagamento integral, em conformidade com o entendimento do Ac. STJ (Uniformizador de Jurisprudência) nº
4/2002, de 9 de Maio. (43)

Pelo exposto, decide-se:


a) - julgar procedente o recurso de revista interposto pelo autor A;
b) - revogar o acórdão recorrido e, em consequência, julgando a acção procedente, condenar os réus B, C, e "D -
Sociedade Editora, SA", solidariamente, a pagarem ao autor a quantia de 24.939,99 Euros, acrescida de juros de mora, à
taxa legal de 4%, desde a data da prolação deste acórdão e até pagamento integral;
c) - condenar os recorridos nas custas da revista, assim como a suportarem o pagamento das custas devidas nas
instâncias.

Lisboa, 26 de Fevereiro de 2004


Araújo Barros
Oliveira Barros
Salvador da Costa

21
------------------------------
(1) O mesmo autor refere, a propósito ("Das Obrigações em Geral", vol. I, 6ª edição, Coimbra, 1989, pág. 591)
que "tem direito à indemnização o titular do direito violado" situação que, como adiante veremos, é a que aqui está em
causa.
(2) Heinrich Horster, in "A Parte Geral do Código Civil Português", Coimbra, 1992, pág. 258.
(3) Redacção advinda da 5ª Revisão (Lei Constitucional nº 1/2001, de 12 de Dezembro).
(4) Rabindranath Capelo de Sousa, in "A Constituição e os Direitos de Personalidade", in Estudos sobre a
Constituição, vol. 2º, Lisboa, 1878, pág. 93.
(5) In "O Direito Geral de Personalidade", Coimbra, 1995, pág. 117.
(6) Dec.lei nº 85-C/79, de 29 de Novembro (revogado apenas pela Lei nº 2/99, de 13 de Janeiro).
(7) Lei nº 62/79, de 20 de Setembro (revogada, a nosso ver, tacitamente, pela Lei nº 1/99, de 13 de Janeiro).
(8) Ac. TC nº 113/97, de 05/02/97, in BMJ nº 464, pág. 119 (relator Bravo Serra).
(9) Costa Andrade, in "Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal", Coimbra, 1996, 39-B) ss.
(10) Cfr. Acs. STJ de 12/07/2001, no Proc. 2103/01 da 7ª secção (relator Neves Ribeiro); de 14/05/2002, no Proc.
267/0 da 1ª secção (relator Ferreira Ramos); de 10/10/2002, no Proc. 2751/02 da 7ª secção (relator Oliveira Barros); e de
05/12/02, no Proc. 3553/02 da 7ª secção (relator Araújo Barros), os quais, nesta parte, seguiremos de perto.
(11) Rabindranath Capelo de Sousa, in "O Direito Geral de Personalidade", citado pelo Ac. STJ de 27/06/95, in
BMJ nº 448, pág. 378 - relator Torres Paulo (maxime 386).
(12) Gomes Canotilho e Vital Moreira, in "Constituição da República Portuguesa Anotada", 3ª edição, págs. 180 e
181.
(13) R. Capelo de Sousa, in "O Direito Geral da Personalidade", Coimbra, 1995, págs. 303 e 304.
(14) Maria Paula G. Andrade, in "Da ofensa do crédito e do bom nome", 1996, pág. 97.
(15) Cfr. Acs. STJ de 14/05/76, in BMJ, nº 257, pág. 131 (relator Miguel Caeiro); e de 17/10/2000, no Proc. 372/00
da 6ª secção (relator Azevedo Ramos).
(16) "Direito das Obrigações", 5ª edição, Coimbra, 1991, pág. 453.
(17) "Direito das Obrigações", vol. II, Lisboa, 1990, pág. 349.
(18) "Das Obrigações em Geral", vol. I, 9ª edição, pág. 567.
(19) Obra e volume citados, págs. 567 e 568).
(20) Ac. STJ de 25/09/2003, no Proc. 2361/03 da 7ª secção (relator Oliveira Barros).
(21) Cfr. Figueiredo Dias, in RLJ, Ano 115°, pág. 102; bem como Cardoso da Costa, in "A Hierarquia das Normas
Constitucionais e a sua Função na Protecção dos Direitos Fundamentais", in BMJ nº 396, págs. 6 e 17, referindo-se ao
apelo a um paradigma normativo assente no princípio da concordância prática ou do schonendsten Ausgleich (menor
comprometimento possível dos direitos). Cfr. Costa Andrade, obra citada, pág. 34.
(22) Brito Correia, in "Direito da Comunicação Social", 2000, págs. 574-3, 575 e 587 ss. Como assinala Nuno e
Sousa, in "A Liberdade de Imprensa", 1984, págs. 290 ss. (antes publicado no suplemento ao BFDUC, XXVI, 1983, págs.
179 ss), decorre, inclusivamente, dos n° s 2 e 3 do art. 18° da Constituição que "os direitos de liberdade não garantem
âmbitos absolutos de liberdade, incluindo-se num ordenamento jurídico que intervém no caso de conflitos entre direitos".
Encontram-se sujeitos - apenas - "aos limites estritamente necessários à salvaguarda de outros interesses do Estado
democrático"; mas a própria Constituição indica "vários interesses dos particulares, considerados como interesses públicos,
que têm primazia sobre a liberdade de opinião: os direitos ao bom nome, reputação, imagem e reserva da intimidade da
vida privada e familiar". Afirmando que o direito de informar cessa quando se puser em perigo o direito à honra, ver Faria e
Costa, "O círculo e a circunferência em redor do direito penal da comunicação", in "Direito Penal da Comunicação (alguns
escritos)", 1998, apud Ac.TC n° 67/99, no Proc. n° 609/96, de 03/02/99, in DR, II S, de 05/04/99. Ver ainda Figueiredo Dias,
in RLJ, Ano 115°, págs. 135, 137, 170 e 172, e Rabindranath Capelo de Sousa, "O Direito Geral de Personalidade", 1995,
págs. 533 ss. e 552-2.2., ss.
(23) Ac. STJ de 20/03/73, in BMJ nº 225, pág. 222 (relator Bogarim Guedes).
(24) Cfr. Preâmbulo do Código Deontológico dos Jornalistas, aprovado em 4 de Maio de 1993.
(25) Ver, com o sentido apontado, o estudo de Beleza dos Santos, in RLJ Ano 92º, págs. 165 ss.
(26) Ac. STJ de 29/10/96, in BMJ nº 460, pág. 686 (relator Aragão Seia).
(27) Figueiredo Dias, "Direito de Informação e Tutela da Honra no Direito Penal da Imprensa Português", in RLJ
Ano 115º, pág. 102.
(28) Ac. STJ de 05/03/96, in CJSTJ Ano IV, 1, pág. 122 (relator Fernando Fabião).
(29) Ac. STJ de 26/09/2000, in CJSTJ Ano VIII, 3, pág. 42 (relator Silva Salazar).
(30) Há, mesmo, quem considere que a violação é ilícita, embora relate factos verídicos - opinião de que, em
certa medida, discordamos - "contanto que seja susceptível de, ponderadas as circunstâncias do caso, diminuir a confiança
na capacidade e na vontade da pessoa ou de abalar o prestígio de que a pessoa goze ou o bom conceito em que vive ou
exerce a sua actividade" (Acs. STJ de 03/10/95, in BMJ nº 450, pág. 424 - relator Torres Paulo).
(31) Jorge Ribeiro de Faria, in "Direito das Obrigações", vol. I, Coimbra, 1990, págs. 416 e 417.
(32) Antunes Varela, in "Das Obrigações em Geral", vol. I, 6ª edição, Coimbra, 1989, pág. 502.

22
(33) Fernando Pessoa Jorge, "Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil", in Cadernos de Ciência
e Técnica Fiscal, nº 80, Lisboa, 1972, pág. 68.
(34) Cfr. Ac. STJ de 14/05/76, in BMJ nº 257, pág. 131 (relator Miguel Caeiro).
(35) Ac. STJ de 26/09/2000 (in CJSTJ Ano VIII, 3, pág. 42), acima citado.
(36) Antunes Varela, ob. e vol. cits., pág. 531.
(37) Menezes Cordeiro, in "Direito das Obrigações", 2º vol., Lisboa, 1990, pág. 314.
(38) Antunes Varela, ob. e vol. cits., pág. 539.
(39) Antunes Varela, in "Das Obrigações em Geral", vol. I, 9ª edição, pág. 627, nota (4). Cfr. Acs. STJ de 25/11/93,
in CJSTJ, Ano I, 3, pág. 143 (relator Folque de Gouveia); e de 05/11/98, no Proc. 957/98 da 1ª secção (relator Ribeiro
Coelho).
(40) Nuno de Sousa, in "A Liberdade de Imprensa", Coimbra, 1984, págs. 269 e 270.
(41) João Luís de Moraes Rocha, in "Lei de Imprensa", 1996, pág. 100.
(42) Portaria nº 291/2003, de 9 de Abril.
(43) In DR IS-A, de 27/06/2002.
***

Acórdão do STJ (Cons.º Fonseca Ramos) de 30.9.2008, no Pr.º 08A2452:

OFENSA À HONRA ATRAVÉS DA IMPRENSA


DIREITO AO BOM NOME
DIREITO DE PERSONALIDADE
DIREITO À INFORMAÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL

I) - O art. 70º do Código Civil tutela a personalidade, como direito absoluto, de exclusão, na perspectiva do direito
à saúde, à integridade física, ao bem-estar, à liberdade, ao bom nome, e à honra, que são os aspectos que individualizam o
ser humano, moral e fisicamente, e o tornam titular de direitos invioláveis.

II) – O art. 484º do referido diploma legal ao proteger o bom-nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva,
tutela um dos elementos essenciais da dignidade humana – a honra.

III) – A afirmação e difusão de factos que sejam idóneos a prejudicar o bom-nome de qualquer pessoa acarretam
responsabilidade civil (extracontratual), gerando obrigação de indemnizar se verificados os requisitos do art. 483º, nº1, do
Código Civil.

IV) – O art. 484º do Código Civil prevê caso particular de antijuridicidade que deve ser articulado com aquele
princípio geral – contido no art. 483º – não dispensando a cumulativa verificação dos requisitos da obrigação de indemnizar.

V) - Os jornalistas, os media, estão vinculados a deveres éticos, deontológicos, de rigor e objectividade, que se
cumprem com a recolha de informação, com base em averiguações credíveis que possam ser confrontadas, para testar a
genuinidade das fontes, de modo a que o dever de informar com isenção e objectividade, não seja comprometido por
afirmações levianas ou sensacionalistas, fazendo manchetes que têm, quantas vezes, como único fito o incremento das
vendas e a avidez da curiosidade pública, sem que a isso corresponda qualquer interesse socialmente relevante.

VI) – Se forem violados deveres deontológicos pelos jornalistas, por não actuarem com a diligência exigível com
vista à recolha de informações; se negligentemente, as não recolheram de fonte inidóneas e se essas informações e as
fontes não foram testadas de modo a assegurar a sua fidedignidade e objectividade, estamos perante actuação culposa.

VII) – Assiste ao Jornal o direito, a função social, de difundir notícias de interesse público, importando que o faça
com verdade e com fundamento, pois, o direito à honra em sentido lato, e o direito de liberdade de imprensa e opinião são
tradicionais domínios de direitos fundamentais em conflito, tendo ambos tutela constitucional pelo que facilmente se entra
no campo da colisão de direitos – art. 335º do Código Civil – sendo que, em relação a factos desonrosos, dificilmente se
pode configurar a exceptio veritatis a cargo do lesante.

VIII) A prova da actuação diligente na recolha e tratamento da informação – a actuação segundo as leges artis –
incumbe ao jornalista.

23
IX) – No caso em apreço, provou-se que o Jornal procedeu a uma prudente investigação dos factos, junto da
área de residência do Autor, baseada em fontes diversificadas, junto de vizinhos e do contacto com as autoridades policiais
locais que confirmaram a veracidade dos factos relatados na notícia.

X) - Se não se provou que a publicação da notícia causou ao visado dano moral – sofrimento, psicose, depressão
(como foi alegado) – e não havendo negligência do jornalista na recolha das fontes, nem tendo resultados danos, não
existe obrigação de indemnizar, por a dignidade do Autor não ter sido afectada, pese embora o desvalor dos factos
noticiados.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

AA, em 9.9.2003, intentou pelas Varas Cíveis da Comarca de Lisboa – 13ª Vara – acção declarativa de
condenação, com processo ordinário, contra P...- Imprensa Livre, S.A., pedindo a condenação desta no pagamento da
quantia de € 100.000,00, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, contados desde a data de citação até integral
pagamento, e, ainda, em quantia a liquidar.

Alegou que:

- a Ré P...-Imprensa Livre, S.A. é proprietária do jornal “O Correio da Manhã”;


- a Ré publicou uma notícia sobre o Autor relatando factos falsos, lesando-lhe o seu bom-nome;
- o que lhe causou danos não patrimoniais.

A Ré “P...- Imprensa Livre, S.A.” regularmente citada apresentou contestação nos termos constantes de fls. 37-55,
em que invocou a excepção peremptória de exclusão da ilicitude e se defendeu por impugnação motivada, tendo concluído
pela improcedência da acção e consequente absolvição do pedido.
….
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, tendo sido proferida sentença a julgar a acção improcedente.
Inconformado, o Autor recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por Acórdão de 28.2.2008, fls.293 a
304, julgou o recurso improcedente, confirmando a decisão recorrida.
De novo inconformado recorreu para este Supremo Tribunal …

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes
factos:

1.A Ré “P...- Imprensa Livre, S.A.” é proprietária do jornal “O Correio da Manhã” (alínea A) dos Factos Assentes).
2. No dia 13/07/2003, Domingo, o jornal “O Correio da Manhã” publicou na primeira página uma notícia que
ocupava meia página e tinha como título, em letras garrafais o seguinte: “100 Crimes aos 19 anos” (alínea B) dos Factos
Assentes)
3. Ao lado, em caracter menor, escreveu-se no jornal o seguinte: “conhecido por “Puto Mitra”, rouba desde os dez
anos e está agora em prisão preventiva na cadeia de Caxias suspeito de muitos furtos e uma violação” – (alínea C) dos
Factos Assentes).
4. Na página 6 do mesmo jornal, a notícia foi desenvolvida, referindo-se designadamente:

- “tem contra si as evidências de nove anos de actividade delituosa”;


- “desde os dez anos que o jovem fez carreira de realização de pequenos furtos”;
-“abordava transeuntes na via pública, fazendo uso de diversas armas brancas para os desapossar de todos os
valores”;
- “o roubo de viaturas, foi, desde sempre, uma das especialidades de puto mitra”;
- “esteve alegadamente envolvido num caso de violação” – (alínea D) dos Factos Assentes).
5. À data de 13/07/2003, o Autor foi condenado por duas vezes, por sentenças transitadas em julgado, pela
prática de crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p., no artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 2/1998, de 03/01,
nas penas de 20 e 60 dias de multa, por factos praticados em 26/07/2001 e em 16/09/2002, respectivamente – (alínea E)
dos Factos Assentes).
6. O Autor AA é um jovem de 19 anos – (resposta ao quesito 1º).
7. O Autor é conhecido como “Puto Mitra” – (resposta ao quesito 2º).
8. Ao publicar a notícia o jornal “O Correio da Manhã” pretendeu desenvolver e relatar factos de interesse para os
leitores, o público em geral, e mais especificamente dos leitores da região da Área Metropolitana de Lisboa – (resposta ao
quesito 8º).

24
9. A notícia foi formulada com base numa investigação feita junto da área de residência do Autor, baseada em
fontes diversificadas, junto de vizinhos e do contacto com as autoridades policiais locais – (resposta ao quesito 9º).
10. As autoridades policiais locais confirmaram a veracidade dos factos relatados na notícia (resposta ao quesito
10º).
11. Atento o carácter melindroso dos factos imputados ao Réu, o autor da notícia optou por nunca identificar o
Autor, mas apenas, por colocar a alcunha que, dentro do seu meio o Autor é conhecido, reservando a sua identidade para o
público em geral – (resposta ao quesito 12º).

Fundamentação:

O que está em causa é saber se a notícia publicada no jornal CM do dia 13.7.2003, com o título de grande
destaque “100 crimes aos 19 anos” e o mais que aí se escreve sobre o Autor, viola o seu direito ao bom nome, à honra e ao
prestígio social.

A problemática da acção e dos recursos centra-se, pois, em torno dos direitos de personalidade.
Os direitos de personalidade eram objecto de tutela no Código de Seabra sendo aí denominados direitos
originários.
O art. 359º definia-os como aqueles “Que resultam da própria natureza do homem, e que a lei civil reconhece, e
protege como fonte e origem de todos os outros. Estes direitos são: 1º — o direito de existência; 2.° - o direito de liberdade;
3.° - o direito de associação; 4° — o direito de apropriação; 5.° - o direito de defesa”.
No lato conceito de direito de existência compreendiam-se a vida e integridade do homem, bem como a honra, a
reputação e o bom-nome, ou seja, a dignidade moral do ser humano (art.360º).
O citado Código reconhecia também o direito à liberdade de imprensa – art. 570º – sancionando quem dele
abusasse com a obrigação de reparar os direitos de outrem ou da sociedade nos termos da lei – art. 364º.

Os direitos originários eram considerados inalienáveis só podendo ser limitados por “lei formal e expressa”
implicando a sua violação obrigação de reparar a ofensa – art. 2361º do citado Código.
Esta protecção com assento constitucional na Lei Fundamental de 1933 e de 1976 tem vindo a ser alargada, não
só pelo contributo das ciências sociais como pelo avanço dos estudos doutrinais e jurisprudenciais, sendo que a
Constituição de 1976 de modo claro tutela direitos de personalidade como o direito à vida (artigo 24°), à integridade moral e
física (artigo 25º); à identidade pessoal, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação à imagem, à palavra e à
reserva intimidade da vida privada e familiar (artigo 26°), à liberdade e segurança (artigo 27°) e à inviolabilidade do
domicílio e da correspondência (artigo 34.°).

O art. 26º, nº 1, da Constituição da República consigna:

“A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade


civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à
protecção legal contra quaisquer formas de discriminação”.

Gomes Canotilho e Vital Moreira, em comentário ao citado preceito, escrevem in “Constituição da República
Portuguesa Anotada”, Vol. I, 4ª ed., pág.466:
“O direito ao bom nome e reputação (nº 1) consiste essencialmente no direito a não ser ofendido ou lesado na
sua honra, dignidade ou consideração social mediante imputação feita por outrem, bem como no direito a defender-se
dessa ofensa e a obter a competente reparação cfr. Código Penal, arts. 164° e 165°”.

Na lei ordinária a personalidade moral, o bom-nome e consideração social das pessoas, são valores tutelados
(artigos 70º e 484º do Código Civil).

Assim o art. 70º Código Civil estatui:

“1. A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou
moral.
2. Independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer
as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos
da ofensa já cometida.”

25
Este normativo tutela a personalidade, como direito absoluto, de exclusão, na perspectiva do direito à saúde, à
integridade física, ao bem-estar, à liberdade, ao bom nome, e à honra, que são os aspectos que individualizam o ser
humano, moral e fisicamente, e o tornam titular de direitos invioláveis.

O art. 484º do citado Código estatui – “Quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o
bom-nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, responde pelos danos causados .”

Este normativo ao proteger o bom-nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, tutela um dos elementos
essenciais da dignidade humana – a honra.

"A honra abrange desde logo a projecção do valor da dignidade humana, que é inata, ofertada pela natureza
igualmente para todos os seres humanos, insusceptível de ser perdida por qualquer homem em qualquer circunstância...
Em sentido amplo, inclui também o bom nome e reputação, enquanto sínteses do apreço social pelas qualidades
determinantes da unicidade de cada indivíduo no plano moral, intelectual, sexual, familiar, profissional ou político".
Rabindranah Capelo de Sousa, “O Direito Geral da Personalidade”, 1995, págs. 303-304.

Maria Paula Andrade, in “Da Ofensa do Crédito e do Bom Nome”, 1996, pág. 97, afirma ser a honra um "…Bem
da personalidade e imaterial, que se traduz numa pretensão ou direito do indivíduo a não ser vilipendiado no seu valor aos
olhos da sociedade e que constitui modalidade do livre desenvolvimento da dignidade humana, valor a que a Constituição
atribui a relevância de fundamento do Estado Português; enquanto bem da personalidade e nesta sua vertente externa,
trata-se de um bem relacional, atingindo o sujeito enquanto protagonista de uma actividade económica, com repercussões
no campo social, profissional e familiar e mesmo religioso".

Pedro Pais de Vasconcelos – “Teoria Geral do Direito Civil” – 2005, pág.38 e segs:

“ […] O direito à vida, ou à honra, ou à integridade física, ou à privacidade, ou à imagem, por exemplo, não
constituem direitos subjectivos autónomos, mas antes poderes jurídicos que integram o direito de personalidade do seu
titular, poderes estes que são exercidos quando a dignidade do seu titular for posta em causa através de ameaças ou
ofensas àqueles específicos bens de personalidade.
A tipificação dos chamados direitos especiais de personalidade é um reflexo da tipificação de específicos bens de
personalidade que integram a dignidade humana e das lesões que historicamente se foram tornando típicas.
A dignidade humana pode ser ameaçada ou ofendida em diversos bens que a integram — vida, integridade física,
honra, privacidade, imagem, nome, etc. — para a defesa de cada um dos quais o direito de personalidade contém
específicos meios ou bens, que beneficiam de específicos poderes jurídicos” – (destaque e sublinhados nossos).

O mesmo tratadista, in “Direito de Personalidade”, - Almedina 2006 – pág. 76.


“O direito à honra é uma das mais importantes concretizações da tutela e do direito da personalidade.
A honra é um preciosíssimo bem da personalidade.
A honra é a dignidade pessoal pertencente à pessoa enquanto tal, e reconhecida na comunidade em que se
insere e em que coabita e convive com as outras pessoas…A perda ou lesão da honra – a desonra – resulta, ao nível
pessoal, subjectivo, na perda do respeito e consideração que a pessoa tem por si própria, e ao nível social, objectivo, pela
perda do respeito e consideração que a comunidade tem pela pessoa.
A lesão da honra pode não ser total – só em casos excepcionais o será – e limitar-se a um seu detrimento. A
honra, neste caso, é lesada, mas não perdida…Todas as pessoas têm direito à honra pelo simples facto de existirem, isto
é, de serem pessoas. É um direito inerente à qualidade e à dignidade humana. Mas as pessoas podem perder a honra ou
sofrer o seu detrimento em virtude de vicissitudes que tenham como consequência a perda ou diminuição do respeito e
consideração que a pessoa tenha por si própria ou de que goze na sociedade.
As causas de perda ou do detrimento da honra – de desonra – são, em termos muito gerais, acções da autoria da
própria pessoa ou que lhe sejam imputadas, e que sejam consideradas reprováveis na ordem ética vigente, quer ao nível
da própria pessoa, quer ao nível da sociedade.”

Sendo a honra e o direito ao bom nome valores absolutos que se inscrevem no âmbito dos direitos de
personalidade, absolutos e invioláveis, importa saber se a publicação em causa lesou direitos do Autor ao publicitar factos
que, em si mesmos, são desonrosos para qualquer cidadão.

“O Professor Beleza dos Santos ensinava que a honra é aquele mínimo de condições, especialmente de natureza
moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si,
pelo que é e vale, e que a consideração é aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a

26
qualquer pessoa, de tal forma que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa ao desprezo público (R.L.J.,
Ano 92º, pág. 164)” – cfr. Ac. deste Supremo de 30.10.2003 – Proc. 03P3369 – in www.dgsi.pt.

A afirmação e difusão de factos que sejam idóneos a prejudicar o bom-nome de qualquer pessoa acarretam
responsabilidade civil (extracontratual), implicando a obrigação de indemnizar se verificados os requisitos do art. 483º do
Código Civil.

O art. 484º do Código Civil prevê caso particular de antijuridicidade que deve ser articulado com aquele princípio
geral contido no art. 483º, não dispensando a cumulativa verificação dos requisitos da obrigação de indemnizar.

Mário Júlio de Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 11ª edição, págs.564-565, depois de aludir aos “critérios
básicos” da responsabilidade civil do art. 483º, nº1, do Código Civil indica como “casos especiais de ilicitude a ofensa do
crédito ou do bom nome”, e depois de transcrever o art. 484º, afirma:

“Infere-se da lei que tem de haver a imputação de um facto, não bastando alusões vagas e gerais.
A regra consiste na irrelevância da veracidade ou falsidade do facto, mas, sempre que esteja em causa a
protecção de interesses legítimos, parece de admitir a “exceptio veritatis” (…). Sublinhe-se, por fim, que o facto afirmado ou
difundido deve mostrar-se, ponderadas as circunstâncias concretas, susceptível de afectar o crédito ou a reputação da
pessoa visada — pessoa singular ou colectiva, onde se incluem as sociedades”.

Menezes Cordeiro, in “Direito das Obrigações”, vol. II, p. 349:

“É indubitável que a divulgação de um facto verdadeiro pode, em certo contexto, atentar contra o bom-nome e a
reputação de uma pessoa. Por outro lado, a divulgação de um facto falso atentatório pode não constituir um delito – por
carência, por exemplo, de elemento voluntário.
Por isso, a solução deve resultar do funcionamento global das regras da imputação delitual".

Também Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 9ª edição, a propósito do art. 484º do Código Civil
(págs. 567-568), afirma:

“Pouco importa que o facto afirmado ou divulgado seja ou não verdadeiro – contanto que seja susceptível,
ponderadas circunstâncias do caso, de diminuir a confiança na capacidade e na vontade da pessoa para cumprir as suas
obrigações (prejuízo do crédito) ou de abalar o prestígio de que a pessoa goze ou o bom conceito em que ela seja tida
(prejuízo do bom nome) no meio social em que vive ou exerce a sua actividade".

Dispõe o artigo 483º do Código Civil:

“Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal
destinada a proteger interesses alheios fica obrigado indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação ”.

Como pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, são apontados – o facto voluntário do agente, a
ilicitude, a culpa (dolo ou negligência), o dano e o nexo de causalidade.

Importa então saber se, in casu, se encontram verificados os requisitos do normativo citado, sobretudo, se ao
difundir, via imprensa, as imputações feitas ao Autor, a Ré agiu com culpa, entendida esta como juízo de censura ético-
jurídico, em função de no caso deverem ser omitidas as alusões depreciativas feitas ao Autor.

Desde logo, há que ponderar que aos jornalistas assiste o direito de informar e tal direito é uma manifestação
constitucional da liberdade de expressão e de imprensa – arts. 37º e 38º da Lei Fundamental – direitos consagrado na lei
ordinária.

Assim o art. 3º da Lei de Imprensa – Lei 2/99, de 13/01:


“A liberdade de imprensa tem como únicos limites os que decorrem da Constituição e da lei, de forma a
salvaguardar o rigor e a objectividade da informação, a garantir os direitos ao bom nome, à reserva da intimidade da vida
privada, à imagem e à palavra dos cidadãos e a defender o interesse público e a ordem democrática.”

E o seu art. 9º, nº 1:

27
“Integram o conceito de imprensa, para efeitos da presente lei, todas as reproduções impressas de textos ou
imagens disponíveis ao público, quaisquer que sejam os processos de impressão e reprodução e o modo de distribuir
utilizados.

Um dos limites à liberdade de informar, que não é por isso um direito absoluto, é a salvaguarda do direito ao bom-
nome.

Os jornalistas, os media, estão vinculados a deveres éticos, deontológicos, de rigor e objectividade, que se
cumprem com a recolha de informação com base em averiguações credíveis que possam ser confrontadas para testar a
genuinidade das fontes, de modo a que o dever de informar com isenção e objectividade, não seja comprometido por
afirmações levianas ou sensacionalistas, fazendo manchetes que têm, quantas vezes, como único fito o incremento das
vendas e a avidez da curiosidade pública, sem que a isso corresponda qualquer interesse socialmente relevante,
provocando, quantas vezes, danos devastadores nos visados.

Pedro Pais de Vasconcelos – “Direito de Personalidade” págs.75-76 afirma certeiramente:

“São particularmente gravosas – e merecem especial atenção – as ofensas à honra cometidas através da
comunicação social… O impacto que os meios de comunicação de massa – imprensa, rádio e televisão e Internet – têm na
sociedade e a credibilidade de que, porventura imerecidamente, beneficiam, agravam brutalmente as lesões causadas.
É sabido que a generalidade das pessoas acredita acriticamente no que os jornais, a rádio e principalmente a
televisão comunicam e como são ineficazes os desmentidos posteriormente publicados, quase sempre tarde e com impacto
insuficiente.
As ofensas à honra assim cometidas são extremamente gravosas e dificilmente reparáveis. A liberdade de
imprensa não sobreleva o direito à honra.
Embora ambos estejam formalmente consagrados na Constituição da República como direitos, liberdades e
garantias, a defesa da honra situa-se no âmbito superior dos direitos de personalidade e é, por isso, hierarquicamente
superior à liberdade de imprensa”.

Se forem violados deveres deontológicos pelos jornalistas por não actuarem com a diligência exigível com vista à
recolha das informações, se negligentemente as não recolheram de fonte inidóneas, se essas informações e as fontes não
foram testadas de modo a assegurar a sua fidedignidade e objectividade (1) , estamos perante actuação culposa.

No caso em apreço provou-se que:


“Ao publicar a notícia o jornal “O Correio da Manhã” pretendeu desenvolver e relatar factos de interesse para os
leitores, o público em geral, e mais especificamente dos leitores da região da Área Metropolitana de Lisboa – (resposta ao
quesito 8º).
A notícia foi formulada com base numa investigação feita junto da área de residência do Autor, baseada em fontes
diversificadas, junto de vizinhos e do contacto com as autoridades policiais locais – (resposta ao quesito 9º).
As autoridades policiais locais confirmaram a veracidade dos factos relatados na notícia (resposta ao quesito 10º).
Atento o carácter melindroso dos factos imputados ao Réu, o autor da notícia optou por nunca identificar o Autor, mas
apenas, por colocar a alcunha que, dentro do seu meio o Autor é conhecido, reservando a sua identidade para o público em
geral – (resposta ao quesito 12.º)”.

Ao dar à estampa, sobre o Autor, notícias que lhe imputam “100 crimes aos 19 anos”, afirmando-se que
“conhecido por “Puto Mitra”, rouba desde os dez anos e está agora em prisão preventiva na cadeia de Caxias suspeito de
muitos furtos e uma violação” – (alínea C) dos Factos Assentes); “tem contra si as evidências de nove anos de actividade
delituosa”; “desde os dez anos que o jovem fez carreira de realização de pequenos furtos”; “abordava transeuntes na via
pública, fazendo uso de diversas armas brancas para os desapossar de todos os valores”; “o roubo de viaturas, foi, desde
sempre, uma das especialidades de puto mitra”; “esteve alegadamente envolvido num caso de violação” – (alínea D) dos
Factos Assentes) – sem dúvida que está objectivamente posta em causa a honra e o bom-nome do Autor, porque os factos
são infamantes e impróprios de uma pessoa/cidadão de bom carácter.

Assiste ao Jornal o direito, a função social, de difundir notícias de interesse público, importando que o faça com
verdade e com fundamento, pois, entre o direito à honra em sentido lato, e o direito de liberdade de imprensa e opinião são
tradicionais domínios do direito de personalidade em conflito, tendo ambos tutela constitucional pelo que facilmente se
entra no campo da colisão de direitos – art. 335º do Código Civil – sendo que, em relação a factos desonrosos, dificilmente
se pode configurar, a nosso ver, a exceptio veritatis a cargo do lesante.

28
Todavia, importa ponderar com Figueiredo Dias, “Direito de Informação e Tutela da Honra no Direito Penal da
Imprensa Português”, RLJ Ano 115º, págs. 101-102, 105-106 e 170-171:

“... É o próprio texto constitucional que invoca o direito penal a tomar o seu lugar e a sua responsabilidade na
solução dos conflitos entre as figuras jurídico-constitucionais do direito à honra e do direito de informação...”.

É socialmente aceitável limitar a tutela da honra se se visar a salvaguarda do núcleo essencial do direito à
informação, não sancionando as ofensas, caso constituam “meio adequado e razoável de cumprimento da função pública
da imprensa”, usado por esta "com a intenção… de cumprir a sua função pública e, assim, de exercer o seu direito-dever
de informação”, desde que, como ensina o reputado Professor, se admita a prova da verdade da imputação "no preciso
âmbito do direito de informação”, ainda que através da simples demonstração de "uma crença fundada na verdade” obtida
de acordo com "as exigências derivadas das “leges artis” dos jornalistas, das suas concepções profissionais sérias, e que
se não contentarão com a criação de um convencimento meramente subjectivo, mas imporão que aquela – a verdade da
imputação – repouse numa base objectiva”.

Exigível é que "... A imprensa, no exercício da sua função pública, não publique imputações que atinjam a honra
das pessoas e que saiba inexactas, cuja exactidão não tenha podido comprovar ou sobre a qual não tenha podido informar-
se convenientemente” – cfr. Estudo citado, págs. 101-102, 105-106 e 170-171.

Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, I Volume – 7ª edição – em nota de rodapé – pág. 559 – ensina:

“Para haver culpa, no caso de afirmação ou divulgação de factos susceptíveis de prejudicar o crédito ou o bom
nome de alguém, basta, em princípio, que o agente queira afirmar ou difundir o facto, pouco importando que ele soubesse
ou não que, em consequência disso, o lesado perderia um negócio vantajoso ou uma colocação rendosa ou veria desfeito o
seu noivado. Desde que o agente conheça ou devesse conhecer a ilicitude ou o carácter danoso do facto, é justo que sobre
ele recaia o encargo de reparar os danos efectivamente causados por esse facto”.

Daí que a prova da actuação diligente na recolha e tratamento da informação – a actuação segundo as leges artis
– incumba ao jornalista.

No caso em apreço, provou-se que o Jornal procedeu a uma investigação dos factos junto da área de residência
do Autor, baseada em fontes diversificadas, junto de vizinhos e do contacto com as autoridades policiais locais – e que
estas autoridades policiais locais confirmaram a veracidade dos factos relatados na noticia.

Aqui avulta, em termos valorativos da actuação do Jornal, a circunstância de, tratando-se de imputações de
factos do foro criminal, ter sido obtida confirmação das investigações acerca do Autor, junto de fonte que tem de considerar-
se idónea – a autoridade policial.

Assim sendo, pese embora muitas das imputações serem relativas a período da idade do Autor, em que ainda
não era penalmente imputável, não podendo por isso falar-se na prática de crimes, mas antes de actividades censuráveis,
como decorre dos factos referidos: “desde os dez anos que o jovem fez carreira de realização de pequenos furtos”,
“abordava transeuntes na via pública, fazendo uso de diversas armas brancas para os desapossar de todos os valores”,“o
roubo de viaturas, foi, desde sempre, uma das especialidades de puto mitra” – o facto de não se terem provado, mas
apenas que à data da publicação da notícia o Autor fora condenado duas vezes pela prática de crime de condução de
veículo sem habilitação legal – só por si não implica que se deva considerar que o Jornal publicou notícia que sabia ser
falsa.

Isto porque na sequência das investigações feitas pelo Jornal a autoridade policial confirmou a “veracidade dos
factos relatados na notícia” – resposta ao quesito 10º.

Esta confirmação policial tem de se considerar uma fonte credível e se o Jornal publicou os factos após tal
confirmação, razoavelmente, podia ter confiado na idoneidade da fonte, o que o exime de censura (culpa).

Assim, desde logo, se considera inverificado o requisito “culpa” – art. 483º, nº1, do Código Civil – por a actuação
do Jornal não ser censurável, tendo agido segundo as regras deontológicas, curando de produzir notícias verdadeiras ou,
pelo menos, fidedignamente confirmadas como tal; ademais, o Autor foi sempre referido pela sua alcunha, pelo que a sua
identificação apenas era do conhecimento daqueles com quem lidava na sua vida de relação, tendo sido omitidos dados
que dessem a conhecer quem era, preservando o seu nome o que exprime prudência.

29
Mas, mesmo que assim não fosse, ter-se-á que concluir que os factos provados não demonstram a existência de
dano e, consequentemente, de nexo de causalidade.

No caso, o dano seria a quebra de prestígio social e a afectação do bom-nome do Autor pelo facto de ter sido
visado pelas notícias.

Não se provou a existência sequer de dano moral – sofrimento, psicose, depressão (como foi alegado) – pelo que
não havendo nem culpa nem dano, prejudicada fica a existência de nexo de causalidade e, logo, a obrigação de
indemnizar.

“Para haver obrigação de indemnizar, é condição essencial que haja dano, que o facto ilícito culposo tenha
causado um prejuízo a outrem” – Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. I, p. 619.

“Dano é o prejuízo in natura que o lesado sofreu nos interesses (materiais, espirituais ou morais) que o direito
violado ou a norma infringida visam tutelar. É a lesão causada no interesse juridicamente tutelado” – obra e autor citado.

Não se verificando os requisitos da obrigação de indemnizar a pretensão do recorrente soçobra.



A decisão recorrida não discriminando o Autor, não violou o princípio da universalidade de direitos que a
Constituição consagra no art. 12º; tão pouco, atropelou o princípio da igualdade – art. 13º da Lei Fundamental – acerca do
qual Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada – I volume, 4ª edição, pág. 337,
escrevem:

“A base constitucional do princípio da igualdade é a igual dignidade social de todos os cidadãos (n° 1) — que,
aliás, não é mais do que um corolário da igual dignidade humana de todas as pessoas (cfr. art. 1°) —, cujo sentido imediato
consiste na proclamação da idêntica “validade cívica” de todos os cidadãos, independentemente da sua inserção
económica, social, cultural e política, proibindo desde logo formas de tratamento ou de consideração social
discriminatórias”.

Pelo quanto expusemos o recurso não merece provimento.

Decisão:

Nestes termos nega-se a revista.

Custas pelo Autor/recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário com que litiga.

Supremo Tribunal de Justiça, 30 de Setembro de 2008

Fonseca Ramos (Relator)


Cardoso de Albuquqerque
Azevedo Ramos
_________________
(1) O Estatuto do Jornalista estabelece que estes devem respeitar escrupulosamente o rigor e objectividade da
informação – al.a), do art. 14°, da Lei nº1/99, de 13/01.

485º - dever de informação de Banco BMJ 411-527 (sobre a natureza e consequências de


certa operação bancária) e Parecer de F. Correia sobre informação em OPV na Col. 93-4-25.

486º - Os atrás referidos, doido que foge do hospital; criança gravemente queimada em
infantário, caso este decidido pelo STJ por Ac. de 25.11.98, no BMJ 481-470 tratando de forma
exaustiva as questões assim sumariadas:

RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL


E POR FACTOS ILÍCITOS
DANO NÃO PATRIMONIAL
DANOS FUTUROS
EQUIDADE

30
CULPA IN VIGIIANDO
QUEIMADURAS DE 3º GRAU EM CRIANÇA
NUM INFANTÁRIO
INDEMNIZAÇÃO A FAVOR DOS PROGENITORES

I - A omissão dos deveres de socorro e de prevenção do perigo, derivados das obrigações contratuais de
vigilância e de assistência assumidas pela ré, sobre as crianças recolhidas num seu infantário, omissão que foi causadora
de lesões de direitos absolutos daquelas, implica responsa-bilidade, quer contratual quer extra-contratual, para com os
respectivos pais.
II - Na noção geral de dano não patrimonial, acolhida pelo nº 1 do artigo 496º do Código Civil, cabem a dor
física e moral, a perda do sentimento de auto-estima e a amputação da alegria de viver, devendo a compensação
monetária de um tão grande desvalor ser feita com recurso à equidade, nos termos do nº 3 do mesmo normativo.
III - Os prejuízos irreversíveis sofridos por bebé de 7 meses de idade resultantes de aleijões nas mãos e da
desfiguração da face, implicando privação de uma parte importante da futura capacidade de ganho, são susceptíveis de
indemnização (564º, nº 2, equidade - 566º, nº 3), não valendo contra-argumentar que, face à tenra idade do lesado, dar
como assente o lucro cessante ou o respectivo montante constitui um exercício de futurologia.
IV - Enquanto titulares do poder paternal, os pais têm o direito de ver o filho me nor crescer e desenvolver-se em
saúde, por força do nº 1 do artigo 68º da Constituição da República Portuguesa. A directa violação de tal direito, absoluto,
pela grave omissão dos funcionários da ré, de que resultaram danos pessoais para o menor implica indemni zação, por
danos não patrimoniais, a favor dos progenitores.

Alusão às causas justificativas ou de exclusão de ilicitude - acção directa (336º),


Legítima defesa (337º), estado de necessidade (339º) e consentimento do lesado (340º), também
referidas naquele ac. na Col. STJ 99-I-120 a 122.

III - Culpa ou Nexo de imputação do facto ao lesante - Só pode dizer-se que alguém
agiu com culpa quando esse alguém é imputável e no caso concreto podia e devia ter agido de
outro modo. Só então é possível formular um juízo de censura, de reprovação, de culpa.

Imputabilidade - capacidade de entender e querer - 488º- Inimputáveis presumidos - nº 2


do 488º.

Responsabilidade das pessoas obrigadas à sua vigilância - 491º (BMJ 451-39) - cópia - e
dos próprios inimputáveis - 489º (equidade e impossibilidade de obter a reparação das pessoas a
quem incumbe a vigilância - BMJ 436-168: maior criminalmente inimputável, sem vigilante por não
interdito ou com vigilante mas este sem bens, deve indemnizar:

Depois de fixar o princípio da irresponsabilidade civil do inimputável, o legislador veio admitir a sua condenação
por danos resultantes de factos ilícitos que cometa, isto por motivos de equidade, verificado que seja todo um requi sitório
que o Professor Antunes Varela assim articula:
a) - Que haja um facto ilícito;
b) - Que esse facto tenha causado danos a alguém;
c) - Que o facto tenha sido praticado em condições de ser considerado culposo;
d) - Que haja entre o facto e o dano o necessário nexo de causalidade;
e) - Que a reparação não possa ser obtida à custa do vigilante do inimputável;
f) - Que a equidade justifique a responsabilidade total ou parcial do autor, em face das circunstâncias concretas
do caso;
g) - Que a obrigação de indemnizar seja fixada em termos de não privar o inimputável dos meios necessários aos
seus alimentos ou ao cumprimento dos seus deveres legais de alimentos.
Simplesmente, a esta impossibilidade económica de o vigilante poder reparar os danos produzidos pelo
inimputável é inteiramente equiparável aquela outra hipótese de este último ser maior, de não estar interditado e de,
portanto, não ter representante legal. A circunstância de a lei não contemplar expressamente a situação concreta que se
nos depara não é intransponível, tudo dependendo de se poder ou não recorrer à analogia como processo de preencher a
lacuna encontrada.

31
Culpa - é fundamental neste tipo de responsabilidade que se possa estabelecer um nexo
psicológico entre o facto e a vontade do lesante, que esse nexo seja passível de um juízo de censura.
Nos termos do art. 483º, n.ºs 1 e 2 - só existe obrigação de indemnizar independen-
temente de culpa nos casos especificados na lei.
Este juízo de censura pode revestir as modalidades de dolo e negligência ou mera culpa.
No caso de dolo, juízo de censura mais intenso, a indemnização não pode ser inferior ao
valor dos danos. Não já no caso de mera culpa - 494º e 497º, 2 e 570º

Modalidades da culpa em sentido lato: - 483º - dolo e mera culpa.

DOLO - 1. Directo - o lesante representa e quer o resultado, apesar de conhecer a


ilicitude desse resultado;
2. Necessário - não querendo directamente o facto ilícito, o agente todavia previu-
o como uma consequência necessária, segura, da sua conduta.
3. Eventual - sempre que o agente, ao actuar, não confiou em que o efeito
possível da sua actividade se não verificaria;

Mera culpa, negligência consciente - o agente só actuou porque confiou em que o


resultado não se produziria, o agente previu (como possível) a produção do facto e não tomou as
medidas necessárias para o evitar.
Mera culpa ou negligência inconsciente - imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão,
omissão do dever de diligência.

A Culpa é apreciada em abstracto - 487º, 2 - diligência de um bom pai de família, em face


das circunstâncias de cada caso.
Prova da culpa

Nos termos do art. 342º, 1, sendo a culpa elemento constitutivo do direito à indemnização,
cabe ao A. fazer a prova dela - 487º, 1 - a menos que beneficie de presunção; não assim na
responsabilidade contratual, onde a falta de culpa funciona como excepção e, por isso, cumpre ao
devedor provar que o incumprimento não se deve a culpa sua - 342º, 2 e 799º1.

Presunções de culpa - 487º, 1 – (não são casos de responsabilidade objectiva)

Presunção judicial por violação de norma - Nas acções de indemnização por facto ilícito, embora caiba ao
lesado a prova da culpa do lesante, a posição daquele será frequentemente aliviada por intervir aqui, facilitando-lhe a
tarefa, a chamada prova de primeira aparência (presunção simples): se a prova prima facie ou por presunção judicial
produzida pelo lesado, apontar no sentido da culpa do lesante, cabe a este o ónus da contraprova; em princípio, procede
com culpa o condutor que, em contravenção aos preceitos estradais, causar danos.
Provado que a condução do automóvel era feita em manifesta violação da regra enunciada no artigo 13º, n.° 1,
do Código da Estrada (fora de mão), demonstrada ficou, em princípio, a culpa do réu condutor, culpa presumida que só
resultaria afastada se os réus tivessem provado que aquela condução pela esquerda da meia faixa de rodagem à direita do
condutor se encontrava justificada por ocorrer situação de facto subsumível a qualquer das excepções previstas naquele
artigo 13º - antigo art. 5º - do Código da Estrada - BMJ 414 -533, com muita informação.

No mesmo sentido decidiu o mesmo STJ em 9.7.98, por Ac. no BMJ 479-592:

Existe inobservância do direito estradal quando se realiza a ultrapassagem de outro veículo sem que se respeite
uma prudente distância relativamente a ele, o que faz presumir a culpa na produção dos danos dela decorrentes.
A responsabilidade fundada na culpa - culpa presumida é o mesmo que culpa efectivamente provada -
permite formular uma pretensão indemnizatória que ultrapassa os limites fixados para a que se baseia no risco, caso em
que não há lugar à aplicação do nº l do artigo 508º do Código Civil.

32
Mais recentemente - Ac. de 8.6.99, no BMJ 488-323 - afirmou-se que tem sido orientação
praticamente constante do Supremo Tribunal de Justiça aquela segundo a qual a prova da
inobservância das leis e regulamentos faz presumir a culpa na produção dos danos dela decorrentes,
dispensando a prova em concreto da falta de diligência.

Igualmente assim decidiu o STJ em Ac. de 20.11.2003, na Col. STJ 2003-III-149:

«Como tem sido, maioritariamente, considerado pela jurisprudência do STJ, a prova da inobservância de leis ou
regulamentos faz presumir a culpa na produção dos danos decorrentes de tal inobservância, dispensando a concreta
comprovação da falta de diligência (Acs. de 28/05/74, in BMJ 2372-231, de 20/12/90, in BMJ 402-558, de 10/01/91, in BMJ
403-334, de 26/02/92, in BMJ 414-533, de 10/03/98, in BMJ 475-635, ou de 09/07/98, in BMJ 479-592). É que, embora em
matéria de responsabilidade civil extra-contratual a culpa do autor da lesão em princípio não se presuma, tendo de ser
provada pelo lesado (art. 487º, nº 1, do Cód. Civil), a posição deste é frequentemente aliviada por intervir aqui, facilitando-
lhe a tarefa, a chamada prova de primeira aparência (presunção simples): se esta prova aponta no sentido da culpa do
lesante, passa a caber a este o ónus da contraprova. Para provar a culpa, basta assim que o prejudicado possa
estabelecer factos que, segundo os princípios da experiência geral, a tornem muito verosímil, cabendo ao lesante fazer a
contraprova, no sentido de demonstrar que a actuação foi estranha à sua vontade ou que não foi determinante para o
desencadeamento do facto danoso. Isto não está sequer em contradição com o disposto no art. 342º do Cód. Civil, que
consagra um critério de normalidade no que respeita à repartição do ónus da prova, no sentido de que aquele que invoca
determinado direito tem de provar os factos que normalmente o integram, tendo a parte contrária de provar, por seu turno,
os factos anormais que excluem ou impedem a eficácia dos elementos constitutivos do direito.
Assim sendo, no caso dos autos, a Ré Seguradora, e ora recorrente, teria de provar que o facto de o condutor da
viatura em si segura circular fora da sua faixa de rodagem não teria sido determinante para o evento ou que esse facto foi
causado por factores estranhos à sua vontade.
Como essa prova não foi feita, nenhum tipo de censura merece a sentença recorrida".
Concordando-se inteiramente com esta posição, fica assente que houve culpa do condutor do veículo.»

Presunções legais de culpa - ... responde ... Salvo se... 350º, 2:

491º - pessoas obrigadas, por lei ou negócio jurídico, à vigilância de incapazes naturais.
Respondem por facto próprio, por culpa in vigilando – Estudar aquele Bol. 451-39, com voto de
vencido.
Ciclista menor que atropela peão - responsabilidade dos pais - BMJ 421-420, também
referido no voto de vencido agora visto.
Menor que mata o amigo: relacionar este art. 491º com os art. 122º, 123º, 1878º, nº 1 e 1881º,
nº 1, conforme decidido pelo STJ, em 28.10.92, no BMJ 420-565:

CULPA IN VIGILANDO
DEVER DE VIGILÂNCIA DE MENORES
INDEMNIZAÇÃO
RESPONSABILIDADE DOS PAIS

I - A responsabilidade que recai sobre os pais e encarregados da vigilância de menores funda-se na culpa,
resultante de, nessa vigilância, terem descurado os deveres próprios do exercício de tal função.
II - Essa culpa deve ser apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada
caso (artigo 487º nº 2, do Código Civil), recaindo sobre o eventual responsável a obrigação de provar ter cumprido o seu
dever de vigilância ou que os danos se teriam produzido ainda que o tivesse cumprido (artigo 491º do Código Civil).
III - Um vulgar pai de família não está obrigado a um dever de vigilância que preveja que dois rapazes amigos,
considerados pelos conhecidos como especialmente bem comportados, em passeio mais ou menos habitual de exploração
das matas da zona, se envolvam em confronto físico, em resultado de observações desprimorosas para a família feitas pelo
que veio a ter a posição de vítima.
IV - A circunstância de ambos, numa exploração daquele tipo, serem portadores de armas cortantes não é,
sequer, factor que justifique uma obrigação acrescida de vigilância e cuidado, por se configurar como normal o respectivo
transporte no concreto circunstancialismo do caso, atendendo à idade de ambos e à natureza da deslocação que
empreendiam, em espírito de aventura, e sem que, em outras ocasiões anteriores, tivessem sido criadas quaisquer dúvidas
sobre a idoneidade dos mesmos para se fazerem acompanhar da referida espécie de armas.

33
***
«Da responsabilidade dos pais da vítima.

Os pais do menor - este, ao tempo com 15 anos de idade, falecido em consequência do acidente que também
causou danos à Autora - foram demandados com fundamento na culpa in vigilando – art. 491º do Código Civil.
O Tribunal de 1ª Instância considerou que os RR. pais do menor, não violaram o seu dever de vigilância dos actos
do seu filho.
Já a Relação entendeu diversamente, condenando-os por ter considerado ter havido omissão desse dever.

A fls. 432 do Acórdão pode ler-se – “Sobre os Réus CC e mulher, pais do menor DD, recai, pois, a
responsabilidade pelos danos causados pelo menor a terceiro, a menos que os mesmos lograssem provar que cumpriram o
seu dever de vigilância ou que os danos se teriam produzido ainda que o tivessem cumprido.
Ora, afigura-se-nos que os factos provados não dão mostra de que os Réus CC e mulher cumpriram o seu dever
de vigilância em relação ao menor DD, não estando sequer em causa que os danos se teriam produzido ainda que
tivessem cumprido o seu dever de vigilância.
Se cumprissem esse dever, impedindo o menor de conduzir um veículo que não estava habilitado a conduzir nem
tinha a idade adequada para o efeito, os danos não se teriam produzido”.

Dispõe o art. 491º do Código Civil:

“As pessoas que, por lei ou negócio jurídico, forem obrigadas a vigiar outras, por virtude da incapacidade natural
destas, são responsáveis pelos danos que elas causem a terceiro, salvo se mostrarem que cumpriram o seu dever de
vigilância ou que os danos se teriam produzido ainda que o tivessem cumprido ”.

O normativo estabelece presunção de culpa daqueles que, por lei ou negócio jurídico, têm o dever de vigilância.

O Conselheiro Pais de Sousa, in “Incapacidade Jurídica dos Menores Interditos e Inabilitados no Âmbito do
Código Civil”, escreve:
“ O normativo (art. 491°) estabelece uma presunção legal contra as pessoas obrigadas por lei ou negócio
jurídico, a vigiar os menores que causaram danos a terceiro.
É que, de acordo com a experiência, boa parte dos actos ilícitos praticados pelos incapazes têm origem numa
falta de vigilância adequada. Assim, para acautelar o direito de indemnização do lesado contra a irresponsabilidade ou falta
de solvabilidade do autor da lesão e para estimular o cumprimento dos deveres das pessoas obrigadas à vigilância, fixou-
se a referida presunção.
A responsabilidade das pessoas obrigadas à vigilância não é uma responsabilidade objectiva ou por facto de
outrem, mas por facto próprio, visto a lei presumir que houve uma omissão de vigilância adequada (culpa in vigilando). Por
lei estão obrigados, entre outros, os pais e tutores…”.

A obrigação de vigilância, no caso de filhos menores, incumbe aos pais, desde que não inibidos do poder
parental, porquanto, competindo-lhes o dever educar, a sua responsabilidade radica em acto próprio – a omissão daquele
poder-dever, cuja exigência e padrões são indissociáveis de razões culturais e idiossincráticas.
O poder paternal deve ser exercido no interesse dos filhos, competindo aos pais o poder-dever de velar pela
segurança e saúde e prover ao seu sustento e “dirigir a sua educação”.
Cabe, assim aos pais, nos termos dos arts. 122º, 123º, 1878º, nº1, 1881º, nº1 e 1885º, nº1, do Código Civil, a
promoção do desenvolvimento físico e psíquico, intelectual e moral dos filhos menores e velar pela sua segurança,
educação, saúde, assim como representá-los.
Educação implica formação e acompanhamento que não podem ser frutuosos se quem educa não pode, ou não
tem um comportamento que sirva de exemplo.
Educar é velar pela segurança, saúde e formação moral dos filhos, dotando-os de condições de vivência física
que permitam um desenvolvimento são, harmonioso e equilibrado, sob pena de, omitindo ou negligenciando tais deveres,
contribuírem para uma personalidade desajustada contrária aos valores que as sociedades devem preservar e que devem
começar no seio familiar.

Dário Martins de Almeida – “Manual de Acidentes de Viação”, em comentário ao art. 491º do Código Civil escreve:
“Dois postulados comandam aqui a presunção de culpa das pessoas obrigadas à vigilância de outrem, impondo:
a) — que exista um dever legal ou convencional de vigilância; b) — que essa vigilância obrigatória tenha por objecto
prevenir perigos resultantes de vigilandos (menores ou dementes), quer pela educação, quer através de cautelas normais,
a apreciar segundo as circunstâncias de cada caso”.

34
[…] Fixada na lei como culpa presumida, não interessa trabalhá-la nos quadros da culpa in abstracto ou da culpa
objectiva; ela existe, desde que não seja ilidida a presunção.
E, para ilidir esta, basta apenas que se faça a prova de um destes factos: a) — que o dever de vigilância foi
cumprido, segundo as circunstâncias de cada caso concreto, nas quais se incluem a ocupação e a condição do próprio
vigilante; b) — que os danos se teriam produzido mesmo que esse dever tivesse sido cumprido (ausência portanto de nexo
de causalidade)”.
A presunção estabelecida pelo art. 491° não abrange os casos de responsabilidade objectiva, assim se decidiu
no Acórdão da Relação do Porto de 5.7.1979, in CJ, 1979, IV, 1251.

Todavia não é essa a posição da doutrina.

Naquela obra, Pais de Sousa, pág.211, cita Vaz Serra:


“Tendo em vista a doutrina proposta acerca da reparação dos danos causados por pessoas sem discernimento,
isto é, inimputáveis, parece que a essas pessoas não deve ser imposta a responsabilidade pelo risco (já que não podem ter
a direcção efectiva da coisa e, portanto, criar o risco), no sentido preconizado a não ser que, por motivos de equidade, tal
deva acontecer”.
“Poderia parecer que estas pessoas deveriam responder tal como se tivessem discernimento, porque a
responsabilidade se baseia, não na culpa, mas na criação do risco.
Como, porém, a criação do risco supõe um poder efectivo de direcção e vigilância da coisa (pois essa criação
deve ser consciente), só nos aludidos termos parece razoável a responsabilidade, nos respectivos termos gerais”.
E não se diga que se trata de uma solução destinada apenas aos acidentes causados por veículos. Estamos com
o Dr. Sá Carneiro ao afirmar que esta se aplica tanto à responsabilidade objectiva como à fundada na culpa”.

O dever de vigilância, cuja violação implica responsabilidade presumida, culpa in vigilando, não deve ser
entendido como uma obrigação quase policial dos obrigados (sejam pais ou tutores), em relação aos vigilandos porque,
doutro modo, o não deixar, sobretudo, no que ao poder paternal respeita, alguma margem de liberdade e crescimento do
menor, seria contraproducente para a aquisição de regras de comportamento e vivências compatíveis com uma sã
formação do carácter e contenderia com a desejável inserção social.

Daí que importe ajuizar, casuisticamente, se tal dever foi ou não cumprido.

Dário Martins de Almeida, obra citada, pág. 230/231:


“ Escreve o Prof. Vaz Serra, se o filho, habitando embora com os pais, pratica o facto ilícito cm condições que
excluem esse dever (fá-lo, por exemplo, quando se encontra na escola, longe da vigilância dos pais, e sem que o facto
possa revelar falta de educação que os pais deviam dar-lhe), não existiria a presunção de culpa; se ele, não habitando
embora com os pais, pratica o facto quando se acha sob o dever de vigilância deles, existiria presunção de culpa” (Boletim
nº85, p. 410).
“O dever de vigilância deve ser entendido em relação com as circunstâncias de cada caso, não se podendo ser
demasiadamente severo a tal respeito.
As pessoas, que têm o dever de vigilância, têm, em regra, outras ocupações; por outro lado, as concepções
dominantes e os costumes influem na maneira de exercer a vigilância, de modo a não poder considerar-se culpado quem
de acordo com elas ou com eles, deixe certa liberdade às pessoas cuja vigilância lhe cabe” (Boletim nº85, p. 426).
E Rodière acentua: que “o pai não pode ser obrigado a exercer em todo o tempo sobre seu filho uma vigilância
directa e à vista, que as suas obrigações profissionais não poderiam permitir sempre, nem a idade ou o ofício do filho
autorizar sempre”, pelo que “não é… permitido nem afirmar a priori que o pai aceita de maneira irrecusável certos riscos
[…].
“O que os tribunais devem procurar em cada caso é o que teria feito, nas mesmas circunstâncias, um bom pai de
família, consciente dos seus deveres, e comparar-lhe a conduta do interessado ”.

No caso dos autos provou-se que os pais sabiam que o filho tinha o motociclo com o qual se acidentou e que o
menor tinha uma motorizada que era guardada em casa dos pais.
O menor falecido tinha à data do acidente 15 anos de idade.
A decisão da 1ª instância absolveu os pais, argumentando, factualmente, que:

“Na manhã em que ocorreu o acidente, o pai do menor, o réu CC deu uma queda, sofrendo um traumatismo
craniano.
Por esta razão foi ao Hospital de Santo André, em Leiria, a fim de ser socorrido.

35
Deu entrada no hospital às 12 horas e 54 minutos e teve alta com destino ao domicílio às 16 horas e 45 minutos
do dia 7 de Março de 2000.
Ele e a mulher (que o acompanhava) regressaram a casa cerca das 17 horas e 45 minutos, altura em que tiveram
conhecimento de que o seu filho tinha tido um acidente de motorizada…
A matéria de facto acabada de transcrever evidencia que, no dia em que ocorreu o acidente, não era exigível aos
réus que cumprissem o seu dever de vigilância…”. – cfr. itens 49) a 52) dos factos provados.

Entendeu-se, assim, que, com base na impossibilidade física provocada pelo acidente sofrido, coincidentemente
no dia do acidente, pelo pai do menor, não pôde ele nem a sua mulher (a mãe) exercer o dever de vigilância sobre filho,
pelo que nunca o poderiam impedir, nesse dia, de tripular o motociclo, não tendo deste modo omitido, culposamente, o
dever de vigilância.

A Relação entendeu diversamente, considerando que tal omissão começou quando os RR. não impediram o filho
de comprar o motociclo, facto que era do seu conhecimento.

Se entendêssemos o dever de vigilância como a obrigação de seguir pari e passu a actividade do menor, então
teríamos de concluir que, no dia fatídico, os pais não poderiam ter evitado que o seu filho circulasse com o motociclo. A
circunstância tem algum relevo.
O dever de vigilância radica na omissão de comportamentos próprios, que são a jusante, causa de actuações
desviantes ou censuráveis dos vigilandos; por isso se trata de culpa presumida dos obrigados à vigilância e não de
responsabilidade independentemente de culpa, que só seria despoletada quando um evento danoso envolvesse culpa (em
sentido impróprio, entenda-se) do vigilando.
Não é o critério da proximidade física o decisivo, em regra, muito embora se possam conceber casos em que
assim possa ser.
Pense-se o facto do menor anunciar, na presença dos pais, que vai agredir alguém, ou atear fogo, e eles não
impedem essa actuação, podendo fazê-lo.

No caso dos autos, tendo o menor 15 anos de idade, o que faz com que segundo as regras de experiência de
vida, a vigilância dos pais não seja tão intensa e presente, também, fisicamente, como quando os filhos são mais novos e
não têm a percepção do desvalor dos seus actos nem avaliam as consequências da sua actuação, não é de considerar que
os pais omitiram o seu dever de vigilância, por naquele dia o menor ter conduzido o motociclo, já que os pais, nem desse
facto tinham conhecimento, não sendo suficiente o ter-se provado que sabiam que o filho tinha tal veículo.

Os factos provados, no que concerne à actuação dos pais – pessoas modestas – em relação às quais nada foi
alegado que os permitisse considerar maus educadores – mesmo considerando a sua culpa presumida – não são de molde
a considerá-los responsáveis pela actuação do seu filho, no contexto factual do evento que causou danos à Autora» – Ac.
do STJ (Cons.º Azevedo Ramos) de 6.5.2008, no P.º 08A1042.

492º - Danos causados por edifícios ou obras - embora o artigo 492º C.C. estabeleça uma
presunção de culpa que favorece o lesado, tal presunção só funciona após a prova, onus do
lesado, de o evento se ter ficado a dever a vício de construção ou defeito de conservação. O
lesado apenas tem de provar o facto que serve de base à presunção . A presunção onera tanto
o proprietário como o possuidor, devendo considerar-se possuidor quem (o empreiteiro, p. ex.,) leva a
cabo a obra, quem tem a coisa à sua guarda - Col. STJ 01-I-39 e BMJ 493-367; queda de muro
sobre automóvel estacionado – Col. Jur. (STJ) 02-III-51.

Col. STJ 96-I-77 e III -122 - Ruptura de cano da EPAL.


Este caso de ruptura de cano da Epal com inundação e danos a terceiros foi decidido pelo
STJ, por Ac. na Col. STJ 98-I-138, como actividade perigosa subsumida à previsão do nº 2 do art.
493º do CC.
Longo voto de vencido entende que não se trata de actividade perigosa mas antes de obra
com o regime do art. 492º, nº 1, cabendo ao lesado provar os pressupostos de presunção de culpa
ali consagrada:
«Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal
destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação, só

36
existindo obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados da lei. É o que resulta do art. 483º
do C. Civil.
Mas é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa - nº 1 do
art. 487º do C. Civil.
De tudo decorre que, na responsabilidade civil extra-contratual por factos ilícitos culposos, é ao lesado que
incumbe o ónus da prova da materialidade fáctica demonstrativa da culpa do autor da lesão.
Por vezes, contudo, a lei determina que o ónus da prova se inverta, como sucede na responsabilidade civil extra-
contratual por danos causados por edifícios ou outras obras ou por coisas, animais ou actividades. Assim está disposto nos
arts. 492º e 493º do C. Civil, que prevêem uma actividade delitual e não objectiva.
Quer dizer, o ónus de prova do lesado respeita aos pressupostos da presunção de culpa; provados estes,
incumbe ao apontado causador da lesão demonstrar a ausência da sua culpa.
Como tem sido jurisprudência uniforme deste Tribunal - cfr. Acs. de 9/5/1991, Proc. nº 80.456, da 2ª Secção, de
6/2/1996, Bol. 454, 697, de 4/12/1996, Col. Jur. STJ, III, 3, 122 e de 18/2/1997, Bol. 502, 464 - tem que se concluir que uma
conduta de água, resguardada e sem evidência de erros técnicos de construção ou montagem, é algo que, pela sua própria
natureza não pode ser havido como perigoso, de modo a poder ser enquadrado no nº 2 do citado art. 493º.
Cai, assim, na previsão do nº 1 do também referido art. 492º, que prescreve: O proprietário ou possuidor de
edifício ou outra obra que ruir, no todo ou em parte, por vício de construção ou defeito de conservação, responde pelos
danos causados, salvo se se provar que não houve culpa da sua parte ou que, mesmo com a diligência devida, se não
teriam evitado os danos.
Como se diz no citado Ac. de 6/2/1996 no tatbstand do art. 492º está uma perigosidade não tanto de actividade
ou meio, mas de anomalia, como, por natureza, será o ruir de edifício ou outra obra, ou, como dizem os Profs. Pires de
Lima e Antunes Varela, C. CIVIL Anotado I vol., 4ª ed., 494º por vício de construção ou defeito de conservação.
Os mesmos Profs. a fls. 493º opinam que, quando o preceito se refere a edifícios ou outras obras, inclui os muros
ou paredes divisórias dos prédios, as pontes, os aquedutos, os canais, as albufeiras, uma coluna, um poste, uma antena,
um andaime, etc. O que é necessário é que a obra esteja unida ao prédio ou ao solo e não se trate de uma coisa móvel.

Também o Prof. Vaz Serra, Responsabilidade Pelos Danos Causados Por Edifícios ou Outras Obras, Bol. 88,13,
depois de fazer uma incursão pelo direito comparado, acaba por se fixar na análise das três orientações fundamentais:
a) responsabilidade independente de culpa pelos danos devidos a defeito de manutenção ou vício de construção
(Códigos francês, italiano, suíço);
b) responsabilidade com culpa presumida pelos danos resultantes do vício de construção ou de defeito de
manutenção (Código alemão);
c) responsabilidade dependente de culpa provada (Código português então vigente).
Acaba por se inclinar para a presunção de culpa e diz: a doutrina legal seria, portanto, aplicável, também a muros
de tapagem ou de suporte, a diques, a monumentos, a pontes, a aquedutos, a pilares, a máquinas unidas ao prédio, a
andaimes, a tendas, a poços, a passeios, a pontes, a canalizações, etc.
Por tudo o exposto, em outras obras, devem incluir-se, também, as condutas de água que atravessam as ruas e
os seus ramais exteriores de ligação para abastecimento dos prédios.
A EPAL é a concessionária do abastecimento público de água a Lisboa e localidades limítrofes, como vem
decorrendo da Portaria nº 10.367, de 147471943, e dos Decs.Leis nºs. 553-A/74, de 30/10, nº 190/81, de 4/7 e nº 230/91,
de 21/6.
Para tanto, tem de observar as prescrições administrativas e técnicas aplicáveis, de modo a construir e a
conservar em bom estado as condutas que constituem a rede de abastecimento de água.
Não se provou, como alegara a A., que a ruptura da conduta se desse pelo facto de ser insuficiente para o
volume do caudal e pressão de água que nela se transportava, nem que se tivesse constatado anteriormente que fosse
inadequada funcionalmente, quer dizer, não se provou qualquer relação de causalidade entre determinada deficiência do
material e o evento danoso.
Demonstrado não ficou, pois, qual a causa da ruptura, não se tendo a A. desincumbido do ónus de provar que a
EPAL não tenha cumprido as prescrições técnicas adequadas, ficando-se sem se saber o porquê concreto do evento.
Provou-se, sim, que a ruptura não foi antecedida de qualquer sinal prévio, sendo instantânea e súbita, que se
localizou num segmento diferente daquele em que ocorreu o sinistro anterior e que o piquete da EPAL demorou apenas dez
minutos a comparecer no local, tendo procedido à interrupção do abastecimento e iniciado a reparação.
E era à A. que incumbia provar, como se viu, os pressupostos da presunção da culpa da EPAL.
Não se tendo provado que a EPAL não tivesse vindo a fazer a vigilância necessária e a conservação
indispensável do material utilizado na distribuição da água, substituindo o que se encontrasse deteriorado, não se pode
concluir haver vício de construção ou defeito de conservação, mas que se ignoram as causas da ruptura, não só porque
não há factos demonstrativos da culpa da EPAL, como também porque a materialidade provada torna irrelevante a falta da
prova da inexistência da sua culpa».

37
Também o STJ decidiu, em 12.5.2005 – Revista 932/05 – que:

I - Uma conduta de água sem evidência de erros técnicos de construção ou montagem não é algo que possa ser
havido como perigoso em termos de preencher a previsão do nº 2 do art. 493° C. Civ.
II - Por sua vez, a presunção de culpa do art. 492° C. Civ. só funciona uma vez provados os seus pressupostos,
isto é quando se mostre ocorrer efectivamente a situação de facto que integra a sua previsão ( Tatbestand), dependendo,
pois, da demonstração de que na realidade houve vício de construção ou defeito de conservação ou manutenção
determinante do evento danoso.

Ac. do STJ (Cons.º Fonseca Ramos) de 29-04-2008, no P.º 08A867 :

I) - A perigosidade a que alude o art. 493º, nº 2, do Código Civil é uma perigosidade intrínseca da actividade
exercida, quer pela sua natureza, quer pelos meios utilizados, perigosidade que deve ser aferida a priori e não em função
dos resultados danosos em caso de acidente, muito embora a magnitude destes possa evidenciar o grau de perigosidade
da actividade, ou risco dessa actividade.
II) – As coisas, sobretudo imóveis, são passíveis de causar dano, carecendo de vigilância com a inerente
prevenção, através de manutenção e conservação, a cargo do seu proprietário ou possuidor.
III) – O art. 492º do Código Civil estabelece uma inversão do ónus probatório, presumindo a culpa do
responsável, demonstrado que esteja a vício de construção ou o defeito de manutenção.
IV) – No caso em apreço, a prova da existência do vício de construção ou defeito de conservação é deveras
difícil por parte do lesado, já que não tendo, em regra, conhecimentos técnicos, nem sabendo quais a regras de actuação
que são utilizadas pela E..., para aferir do estado das canalizações subterrâneas, lhe é praticamente impossível provar a
existência de defeitos de conservação.
V) - Daí que ao lesado apenas seja exigível uma prova de primeira aparência do defeito e do nexo de
causalidade, sendo de considerar que se ocorre uma ruptura numa conduta de água transportada sob pressão,
subterraneamente, e essa ruptura for causadora de danos, e não se devendo tal facto a culpa do lesado, nem a caso
fortuito ou de força maior, existiu defeito de conservação.
VI) – Quando alguém tem contra si uma presunção de culpa, esta tem de ser ilidida pela prova do contrário, ou
seja, de factos que a excluam.
VII) – Ruindo a obra, no caso ocorrendo ruptura numa conduta de água, sem que se demonstre a existência de
caso fortuito ou de força maior, ou culpa do lesado, não tendo o responsável feito a prova de que não houve culpa sua, ou
que mesmo que tivesse adoptado a diligência devida o evento danoso teria ocorrido, há que concluir pela sua culpa
presumida, reportada ou a vício de construção ou a defeito de conservação.
VIII) – Naturalisticamente houve seis eventos danosos, mas, uma vez que a sua proximidade temporal e a razão
de ser deles está intrinsecamente ligada a uma única causa – a ruptura dos tubos condutores da água – para efeitos de
franquia, apenas se deve considerar um único sinistro e não seis.

493º, 1 - Coisas ou animais - responsabilidade de quem detém a coisa (baliza não


devidamente fixada que cai em cima da criança que se dependura nela, responsabilidade do dono do
campo de futebol – Col. Jur. STJ 2006-I-95) ou animal com o dever de vigilância. Trata-se aqui de
sancionar a presunção de que o detentor - proprietário, comodatário, depositário, pastor - não tomou
as medidas necessárias para evitar o dano. Presunção ilidível, nos termos dos art. 350º, 2 e parte
final do nº 1 do art. 493º.

O proprietário ou quem utilize o animal no seu próprio interesse pode ainda responder
pelo risco quando os danos resultem do perigo especial que a utilização dos animais envolve - 502º.

Exemplos: - toiro na feira que ataca um vitelo e a pessoa que segurava este - Col. 82-II-
361; cavalos que fogem do cercado e colidem com automóvel - BMJ 369-693; bois que invadem a
estrada e provocam acidente - Col. STJ 00-III-169; ovelhas imobilizadas nos carris originam
descarrilamento do comboio – Col. STJ 2003-II-115; águas vindas do andar superior, desabitado,
que danificam o andar inferior - Col. 97-I-48; árvore que cai em cima do automóvel - Col. 89-III-74;
morro que desaba sobre a via férrea - BMJ 320-145; Câmara que deixa obstáculo na via pública, uma
tampa de saneamento elevada em relação ao piso, vala não sinalizada - Ac. Doutrinais do STA, Ano
XXXIV - nº 30.

38
493º, 2 - actividades perigosas - Há obrigação de reparar os danos, excepto se o lesante
mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir.
Não basta provar, como nos casos anteriores, que os danos se teriam produzido por outra causa,
mesmo que o agente tivesse adoptado todas as providências exigidas pelas circunstâncias.

A actividade pode ser perigosa tanto pela sua natureza como pelos meios utilizados.
Exemplos: exercícios militares - BMJ 407-234; construção civil - BMJ 446-217; monda
química por avião - Col. 85-IV-293; transporte de produtos inflamáveis - Col. 80-II-183; lançamento
de foguetes - STJ 94-III-47; Ralye automóvel - BMJ 411-647; oficina de pirotecnia Col. 90-V-49;
uso de Caterpillar que danifica cabos telefónicos - STJ 95-III-153; locomotiva a carvão e incêndios
que provoca - RLJ 112-268; ruptura de cano da Epal quando se entenda a condução subterrânea de
água como actividade perigosa (vista Col. STJ 98-I-138); escavações em trincheira - BMJ 493-367;
armazenamento e transporte de resinas e materiais inflamáveis – Col. STJ 02-I-114; karting – Col.
01-V-251; motas de água – Col. STJ 04-III-127; lançamento de fogo de artifício – Col. STJ 2004-
II-92:

Dispõe o nº 2 do artigo 493º do Código Civil que quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade,
perigosa por sua natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que
empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir.
Esta norma consubstancia um dos casos de presunção legal estabelecida no âmbito da responsabilidade civil
extracontratual.
Como é sabido, quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz – nº 1 do
artigo 350º do Código Civil " competindo-lhe apenas alegar e provar o facto que serve de base à presunção, como ensina
Antunes Varela na RLJ 122 - 217, onde, com a habitual clareza, dá resposta directa à questão que nos é colocada nos
seguintes termos:
«Desde ... que o queixoso alegue e prove que os danos foram causados no exercício de uma actividade perigosa
(por sua natureza ou pela natureza dos meios utilizados), a lei (art. 493º, nº 2, do Cód. Civil) presume, a partir desse facto
(base de presunção), que o acidente foi devido a culpa do agente.
Para exigir a indemnização, não se torna, por conseguinte, necessário ao queixoso alegar nem provar
as circunstâncias concretas do acidente, para convencer o tribunal de que o agente procedeu com culpa e é,
consequentemente, obrigado a reparar o dano causado.
Ao demandado é que cabe, pelo contrário, se quiser liberar-se da obrigação de indemnizar, o ónus de
alegar e provar, nos termos da disposição legal citada, que empregou todas as providências exigidas pelas
circunstâncias para prevenir os danos ou que o acidente se deveu a culpa do lesado ou de terceiro.»
(sublinhado nosso).
Ora, a recorrida autora alegou e provou o facto (o lançamento do fogo de artifício, considerado actividade
perigosa) e as lesões que ele, directa e necessariamente, lhe causou, bem como as consequências danosas que daí lhe
advieram.
Tanto basta para fazer funcionar a presunção legal estabelecida no nº 2 do artigo 493º do Código Civil no sentido
de a culpa, o outro fundamental pressuposto da obrigação de indemnizar por responsabilidade extracontratual (artigos 483º
e 487º do Código Civil) - ser atribuída ao fogueteiro, quem quer que tenha sido.
Essencial é que, conforme ficou provado (supra 7º), o fogo de artifício tenha sido realizado (através desse
anónimo fogueteiro) por conta, ordem e no interesse da ré irmandade de S. Bento da Porta Aberta, uma vez que, assim e
como bem decidiram as instâncias nos termos do artigo 165º, referido ao artigo 500.º, nº 1, ambos do Código Civil, é esta
entidade que responde pela indemnização, em solidariedade com a recorrente Império, por força do contrato de seguro
identificado nos autos e supra referenciado em 42.
Só não seria assim se as rés tivessem destruído a presunção legal em apreço, alegando e provando que, no
lançamento do fogo, tinham sido empregues todas as providências exigidas pelas circunstâncias para prevenir os danos,
ou que o acidente se ficou a dever a culpa da própria autora, ou de terceiro.
O que não sucedeu».

ASSENTO de 21.11.79, no D.R. de 29.1.80: o disposto no artigo 493º, n.° 2, do Código


Civil, não tem aplicação em matéria de acidentes de circulação terrestre».
***

39
«Resulta do nº 2 do artigo 493º do Código Civil que quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade
perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que
empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias do caso, com o fim de os prevenir.
Actividade perigosa é aquela que, face às circunstâncias do caso concreto , implica para outrem uma
situação de perigo, ou seja, a probabilidade de lhe infligir um dano, o mesmo é dizer que envolve maior probabilidade de
causar danos do que generalidade das actividades.
Estamos perante uma situação em que o prédio contíguo era de construção antiga, implantado em terrenos de
constituição lodosa de mais de vinte metros de profundidade, e as fundações do novo edifício eram de dupla cave
executadas próximo das fundações do primeiro imóvel em profundidade de cerca de dez metros.
Acresce que, na realização das mencionadas fundações, os agentes de BB, SA utilizaram máquinas pesadas e
geradoras de forte trepidação por debaixo do mencionado edifício contíguo.
Certo é que a actividade da construção civil, abstractamente considerada, não é susceptível de ser qualificada de
perigosa, para os efeitos previstos no artigo 493º, nº 2, do Código Civil.
Todavia, perante o circunstancialismo concreto envolvente, designadamente a fragilidade das fundações do
prédio contíguo em razão da natureza do respectivo terreno de implantação, face às aludidas considerações de ordem
jurídica, a conclusão é no sentido de que se tratou de actividade perigosa por virtude da natureza dos meios empregados.

Está assente, por um lado, que BB, SA iniciou em meados de 1994 a sua intervenção na obra com a construção
das paredes de contenção das fundações e que a preceder o início das escavações foi construída uma parede de
contenção de terrenos.
E, por outro, que executou a obra de acordo com o projecto aprovado, seguindo as indicações da respectiva
dona, sujeita à sua permanente fiscalização, e com recurso a técnicas normalmente usadas naquele tipo de obras.

A lei estabelece condições especiais relativas à segurança das edificações, além do mais, no Regulamento Geral
das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 38 382, de 7 de Agosto de 1951.
A regra é no sentido de o delineamento e a construção das edificações e a sua manutenção dever garantir a
segurança, além do mais, para os prédios vizinhos (artigo 128º).
Durante a execução das obras de qualquer natureza devem adoptar-se as precauções ou disposições
necessárias para evitar danos materiais (artigo 135º).
Na execução de terraplanagens, na abertura de poços galeria, valas e caboucos, ou noutros trabalhos de
natureza semelhante, os revestimentos e os escoramentos deverão ser cuidadosamente construídos e conservados,
adoptando-se as demais disposições necessárias para impedir qualquer acidente, tendo em atenção, além do mais, a
natureza do terreno e a localização da obra em relação aos prédios vizinhos (artigo 138º).
Incumbia a BB, SA, na sua qualidade de empreiteira, sujeita ao cumprimento das regras da arte da construção
civil e da lei, no âmbito da sua autonomia técnica, executar os trabalhos de escavação e de assentamento das fundações
em termos de não originar estragos a outrem, mormente no prédio contíguo, na altura da titularidade do recorrente.
O conteúdo do projecto de construção que devia executar ou as instruções que lhe tenham sido dadas pela dona
da obra, no âmbito ou fora do âmbito do seu direito contratual de fiscalização, são insusceptíveis de a desonerar do dever
de diligência com vista a não provocar estragos nos prédios contíguos.
Tendo em conta a factualidade provada, vários estragos no prédio urbano que então era do recorrente derivaram
das escavações no prédio contíguo, da implantação das suas fundações e de outras operações de construção realizadas
por agentes de BB, SA.
A afirmação que está assente de que BB, SA cumpriu o projecto com técnicas normalmente usadas no tipo de
obras que realizou, é meramente conclusiva, pelo que, sem factos concretos que a sustentem, não pode relevar no sentido
de que cumpriu as regras técnicas e de diligência que as circunstâncias do terreno em que operava e o prédio contíguo
exigiam.
Sabe-se que BB, SA não fez escorar o edifício e a selagem das ancoragens em estratos com melhores
características resistentes nem consolidou previamente os alicerces.
Perante este quadro de facto, em relação aos estragos que provocou no prédio que então era do recorrente, BB,
SA e CC, SA não demonstraram que os titulares dos órgãos e ou agentes da primeira tomaram as precauções que se lhe
impunham de harmonia com as regras da arte da construção civil e das normas de segurança nas edificações acima
referidas.
Com efeito, a escavação e implementação das fundações em causa, considerando a natureza a estrutura do
terreno envolvente e do prédio contíguo, exigiam particular cuidado na movimentação de máquinas para suavizar a
trepidação, e de escoramento, que os agentes de BB, SA não tiverem.

40
Não resulta, assim, dos factos provados que a recorrente BB, SA, através dos seus agentes e representantes,
tenha utilizado as regras próprias da arte da construção civil que se lhe impunham, ou seja, não foi ilidida a presunção de
culpa a que ser reporta o artigo 493º, nº 2, do Código Civil.
Em consequência, importa concluir no sentido de que a recorrente BB, SA, através dos agentes e representantes,
não cumpriu o dever objectivo de cuidado exigível ao empreiteiro normal em execução de obras do tipo das que estão em
análise, ou seja, agiu com culpa, pelo menos na sua vertente inconsciente (artigo 350º do Código Civil)» - Ac. do STJ
(Cons.º Salvador da Costa) de 22.4.2008, no P.º 08B626.

Em matéria de culpa é importante notar que a culpa concorrente do lesado na produção ou


agravamento dos danos pode levar à redução ou, até, à exclusão da indemnização - art. 570º:

RESPONSABILIDADE CIVIL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
NEXO DE CAUSALIDADE
CONCULPABILIDADE DO LESADO

I - Constituem pressupostos da responsabilidade civil, nos termos dos artigos 483º e 487º, nº 2 do Código Civil,
a prática de um acto ilícito, a existência de um nexo de causalidade entre este e determinado dano e a imputação
do acto ao agente em termos de culpa , apreciada como regra em abstracto, segundo a diligência de um «bom pai de
família».
II - A causa juridicamente relevante de um dano é - de acordo com a doutrina da causalidade adequada
adoptada pelo artigo 563º do Código Civil aquela que, em abstracto, se revele adequada ou apropriada à produção desse
dano, segundo regras da experiência comum ou conhecidas do lesante.
III - Ocorrendo a violação de normas de perigo abstracto, tendentes a proteger determinados interesses - como o
são as regras do Código da Estrada definidoras de infracções em matéria de trânsito rodoviário - a investigação de um
nexo de causalidade adequada entre a conduta e o dano serve para excluir da responsabilidade decorrente de certo facto
as consequências que não sejam típicas ou normais.
IV - A prova da inobservância de leis ou regulamentos faz presumir a culpa na produção dos danos dela
decorrentes, dispensando a correcta comprovação da falta de diligência.
V - Para que se verifique conculpabilidade do lesado, justificativa de eventual redução ou exclusão da
indemnização nos termos do artigo 570º, nº 1, do Código Civil, é necessário que a conduta daquele possa considerar-se
uma concausa do dano, em concorrência com o facto do responsável.
VI - Tendo um veículo pesado de mercadorias invadido a faixa de rodagem oposta, ao descrever uma curva a
pelo menos 60 km/h, e em consequência embatido num velocípede a motor a menos de 50 cm do eixo da via, é de
entender que, para além da responsabilidade do condutor daquele veículo, existiu conculpabilidade do condutor do
velocípede, na medida em que não respeitara a regra do Código da Estrada que manda transitar «o mais próximo possível
das bermas e passeios» mas não já, porque não adequada à causação do acidente, em função da violação, também
cometida, da regra concernente à distância a manter em relação ao veículo que o precedia.
VII - É adequada em relação ao acidente assim descrito a repartição de responsabilidade entre o condutor do
veículo pesado de mercadorias e o do velocípede a motor nas percentagens de 80% e 20%, respectivamente - STJ, Ac. de
10.3.98, BMJ 475-635

«A Relação entendeu que a questão da relevância ou não da circunstância de as AA, A e C e F não usarem cinto
de segurança, na altura do acidente, foi correctamente analisada na sentença do tribunal de 1ª instância.
Controvérsia que logo relevaria para os efeitos da estatuição-previsão do nº 1 do artº 570° do C. Civil, que reza
pela forma seguinte:
«Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao
tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se
a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída».
O D - ora recorrente - aquando da dedução do articulado superveniente, sustentara que a jurisprudência dos
tribunais superiores teria vindo a pronunciar-se no sentido da inversão do ónus da prova, quando não utilizados os
equipamentos de segurança, (cinto de segurança e/ou capacete de protecção), assim devendo recair sobre o lesado
(alegante das lesões) o ónus de demonstrar que essas lesões ainda se teriam (mesmo assim) produzido, e da mesma
forma e com a mesma intensidade, se não houvesse sido omitida aquela utilização.
No Ac do STJ de 15-12-98, in CJSTJ, Tomo III, pág. 156, tirado a partir de uma hipótese de «falta de capacete
de protecção», considerou-se que tal falta só relevaria, para os efeitos do nº 1 do artº 570° do C. Civil, quando o acidente
fosse imputável ao condutor do veículo de duas rodas (e já não quando o mesmo fosse da responsabilidade de terceiro) e
que, nesses casos, seria «sobre a vítima-autora que impenderia o ónus de alegar e provar que, não obstante a sua falta de

41
capacete, as lesões por si sofridas, e com a gravidade atingida, teriam, na mesma ocorrido, caso levasse o capacete
protector».
E, na realidade, «se a culpa pela verificação do evento danoso (acidente) couber a terceiro, isto é, a um estranho
ao veículo de duas rodas (v.g. um condutor de um automóvel que o abalroou) não haveria então razões para excluir ou,
sequer, reduzir o montante indemnizatório em atenção à falta do capacete, pois não faria sentido que esse terceiro
beneficiasse da estatuição normativa destinada à protecção da vítima; esta não estaria, nessas circunstâncias, em situação
diferente da de um condutor de velocípede simples, ao qual a lei não impõe o uso de capacete protector (cfr., neste sentido,
o acórdão deste mesmo Supremo Tribunal de 6-10-82, in BMJ, nº 320°, pág. 319).
Já, porém, se o acidente fosse imputável ao condutor do veículo de duas rodas, aí já não se poderia olvidar a
componente de culpa introduzida pelo passageiro/tripulante, na medida em que se teria exposto voluntariamente não só
aos riscos próprios de circulação do veículo, como, também, às consequências da imperícia, da desatenção, ou seja da
conduta culposa/negligente do respectivo condutor. Nesta eventualidade, já seria lógico impender sobre o autor o ónus de
provar que, em tal quadro circunstancial, o capacete, mesmo que usado, não teria tido qualquer utilidade protectora. E se
não satisfizesse tal encargo considerar-se-ia ter também contribuído para a produção dos danos.
De qualquer modo, obrigar os lesados a provarem que o facto de não usarem o cinto de segurança em nada
contribuiu para as lesões ou seu agravamento será, as mais das vezes, coonestar uma prova diabólica, como tal muito
difícil de produzir.
Volvendo à hipótese dos autos, vem assente que as AA. A, C e F viajavam no banco traseiro do veículo
sinistrado, sem que trouxessem colocado os respectivos cintos de segurança, com que o veículo se encontrava equipado.
A A. A e a vítima/falecido F foram projectados para fora do automóvel, no decurso do despiste, tendo ficado
prostrados na estrada, tendo sofrido ambos, em consequência do sinistro, lesões que determinaram o internamento e
exames médicos à primeira e a morte ao segundo.
Esses passageiros não tiveram qualquer interferência no desencadear do acidente, e não vem provado que ainda
que trouxessem colocado o cinto de segurança o resultado tivesse sido exactamente o mesmo, mas não se poderá deixar
de ter em conta as circunstâncias particularmente aparatosas do acidente, nelas incluídas o capotamento do veículo, com a
consequente potencialidade para a produção de lesões graves - tal como a Relação bem observou» - Acórdão STJ
(Cons.º Ferreira de Almeida) de 06-05-2004 Processo 04B1217, na base de dados do ITIJ.

***
«A questão que se pode colocar, e vem proposta, é a de saber se, concorre a denominada culpa do lesado, a
intervir no sentido da redução da indemnização devida pelo lesante-transportador.
Com efeito, a “culpa do lesado” não interfere com a culpa do agente, designadamente diminuindo-a, limitando a
sua intervenção aos efeitos indemnizatórios da responsabilidade do lesante, actuando apenas sobre o montante a ressarcir.
Não está aqui em causa, para que o evento deva considerar-se imputável ao lesado, o concurso de um facto
ilícito ou mesmo necessariamente culposo do lesado, censurável a título de culpa no sentido técnico-jurídico contido no art.
487º C. Civil, ou não é necessário que esteja, bastando que o facto (censurável) deva ser “atribuível” a actuação do próprio
lesado, nos termos previstos no art. 570º do mesmo diploma.

Entendemos, com efeito, que referindo, embora, o art. 570º-1 C. Civil que a indemnização deve ser reduzida ou
mesmo excluída quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, tendo
em consideração a gravidade das culpas das partes e as consequências delas resultantes, não se pode falar, com rigor,
como consta do preceito, em culpa do lesado. A expressão “culpa” deve aqui ser entendida em sentido muito amplo, pois
que a indemnização deve ser reduzida ou negada desde que o acto do lesado tenha sido concausa do prejuízo, mesmo
que não tenha carácter ilícito ou corresponda à violação de um dever, nos termos em que o pressupõe um juízo de culpa
em sentido estrito (cfr. PESSOA JORGE, “Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil”, 360; MENEZES
CORDEIRO, “D.to das Obrigações”, 2º, 409; A. VARELA, “Das Obrigações em Geral”, 9ª ed., I, 948).
De qualquer modo, face à referência da lei à gravidade das «culpas», tem-se por segura a necessidade de
formulação de um juízo de censura sobre o comportamento do lesado, embora desligado da ilicitude, decorrente de uma
actuação negligente ou deficiente relevante no processo causal (adequado) do dano. O que se pretende excluir na
formulação legal serão, como escreve A. VARELA (RLJ, 102º-60), “os casos em que entre o facto ilícito do agente ou o
dano e o facto do lesado há um puro nexo mecânico-causal, para apenas abrangerem os casos em que o comportamento
do prejudicado é censurável ou reprovável”.

Há então que tomar posição sobre o concurso desse facto “culposo”, de uma acção livre e consciente do lesado
que represente um «acto constitutivo de responsabilidade pessoal» do Autor, da sua auto-responsabilização, e, em caso
afirmativo, sobre a medida da sua gravidade.

Ora, entende-se que, ainda aqui, as Instâncias ajuizaram correctamente.

42
Temos por certo que alguém que se proponha ou aceite ser transportado, de noite e com tempo chuvoso, num
ciclomotor desprovido de luzes destinadas a assinalar a presença do veículo em marcha na via pública, assume uma
posição de autocolocação em perigo, mediante a assunção dos riscos próprios dessa circulação objectivamente
contravencional, temerária e com especial aptidão para a produção de acidentes como o que está em apreciação.
Quando tal suceda, a contribuição autodanosa do lesado, por via da assunção voluntária dum risco, traduzido no
perigo típico da circulação na via pública em tais condições, parece-nos óbvia.
Com efeito, assente a responsabilidade do condutor criador imediato do perigo, o conhecimento da exposição
voluntária ao mesmo, conjugada com a possibilidade de ocorrer o facto danoso, verificada que esteja a adequação causal
entre esses pressupostos e o dano, pode configurar-se o concurso da “culpa”, a justificar a redução da indemnização
prevista no art. 570º.
Trata-se de casos em que o lesado “actualiza, sem necessidade, e com uma actividade imprevidente ou
temerária” o perigo existente na conduta do seu criador imediato, “ultrapassando o grau de uma aptidão danosa normal ou
típica”, ocorrendo nessa «heterocolocação em perigo consentida», em que o transportado não se expõe ao risco típico
resultante da condução, mas ao «maior risco», como que uma “«cooperação» culposa para o dano” (BRANDÃO
PROENÇA, ob. cit., 638 e ss.)» - Ac. do STJ (Cons.º Alves Velho) de 7.2.2008, no P.º 07A4598.

IV - DANO - dano real - morte, ferimentos, amolgadela do carro, destruição da coisa; É a


lesão causada no interesse juridicamente tutelado.

- dano patrimonial - reflexo deste dano real sobre a situação patrimonial do lesado: despesas
e prejuízos causados pelo dano real. Abrange tanto o dano emergente - prejuízos causados em bens
ou direitos já existentes à data da lesão - como o lucro cessante - benefícios que o lesado deixou
de obter, mas a que ainda não tinha direito à data da lesão.
- dano não patrimonial - insusceptível de avaliação pecuniária, atinge bens que não fazem
parte do património do lesado; tais danos apenas podem ser compensados, mais que indemnizados -
dor física ou moral, honra, bom nome, beleza, perfeição física e estética, disfunção sexual,
impotência ...

Sobre as várias espécies de danos e métodos de cálculo dos danos futuros pode ver-se a
longa anotação no BMJ 451-39 e ss, maxime 50 e 51, e estudo do Cons.º Sousa Dinis, na Col.
STJ 01-I-5 a 12:

«Os danos indemnizáveis são, como se sabe, patrimoniais e não patrimoniais. Mas a realidade "dano" ou
"prejuízo", consagrada desde logo no art. 564º do CC, aparentemente simples, aparece, na prática, sob vários aspectos ou
sub-realidades, por vezes confundidas.

I - Os vários aspectos da realidade "dano".


Com efeito, na norma legal o dano compreende o prejuízo causado (dano emergente) e os benefícios que o
lesado deixou de obter em consequência da lesão (lucro cessante) - art. 564º nº 1 - para além dos danos futuros (nº 2). No
entanto, há uma clara omissão sobre o dano corporal em si.

Todavia, se fizermos um "zoom", como o fez o Ac. do ST J de 28/10/92 (CJ, Ano XVII, T4, p. 28 e ss.), verificamos
que, na realidade "dano", podemos encontrar:
- danos emergentes, os quais incluem os prejuízos directos e as despesas directas, imediatas ou necessárias;
- ganhos cessantes;
- lucros cessantes;
- custos de reconstituição ou de reparação;
- danos futuros;
- prejuízos de ordem não patrimonial.
- Os prejuízos directos traduzem-se na perda, destruição ou danificação de um bem, o qual tanto pode ser um
objecto como um animal, ou uma parte do corpo do lesado ou o próprio direito à vida deste; as despesas necessárias ou
imediatas correspondem ao custo de prestação dos serviços alheios necessários quer para a prestação de auxílio ou de
assistência, quer para a eliminação de aspectos colaterais decorrentes do acto ilícito, aspectos estes que abrangem
realidades tão diversificadas como a limpeza do local, reboques de viaturas ou o enterro de quem tenha falecido.

43
- Os ganhos cessantes correspondem à perda da possibilidade de ganhos concretos do lesado, incluindo-se na
categoria de lucros cessantes.
Mas esta perda não deve ser confundida:
- a) com a perda de capacidade de trabalho, que é, nitidamente, um dano directo, que se pode aferir em função
da tabela nacional de incapacidades,
- b) nem com a perda da capacidade de ganho, que é o efeito danoso, de natureza temporária ou definitiva, que
resulta para o ofendido do facto de ter sofrido uma dada lesão impeditiva da obtenção normal de determinados proventos
certos, em regra até ao momento da reforma ou da cessação da actividade como paga do seu trabalho, e que se inclui na
categoria dos prejuízos directos, embora com uma importante vertente de danos futuros,
- c) nem ainda com a perda efectiva de proventos futuros de natureza eventual, ainda que em vias de
concretização, que se inclui na categoria de lucros cessantes,
- d) nem com a perda que possa resultar do eventual desaparecimento de uma situação de trabalho, produtora ou
potencialmente produtora de ganhos, que também se inclui na categoria de lucros cessantes.

- Os custos de reconstituição ou de reparação correspondem ao preço dos bens ou serviços necessários


para proceder a uma correcta reparação, quando tal seja possível, do objecto, animal, ou da parte do corpo ou órgão
destruídos ou danificados, e compreende, por ex. os preços de oficina, de hospitalização, de operações cirúrgicas e até de
eventuais próteses que se torne necessário efectuar, motivo pelo qual existe uma estreita relação entre eles e o campo dos
danos ou prejuízos directos, mas sem que as duas realidades se confundam.

- Os danos futuros compreendem os prejuízos que, em termos de causalidade adequada, resultaram para o
lesado (ou resultarão de acordo com os dados previsíveis da experiência comum) em consequência do acto ilícito que foi
obrigado a sofrer, ou, para os chamados "lesados em 2º grau", da ocorrência da morte do ofendido em resultado de tal acto
ilícito, e ainda os que poderiam resultar da hipotética manutenção de uma situação produtora de ganhos durante um tempo
mais ou menos prolongado, e que poderá corresponder, nalguns casos, ao tempo de vida laboral útil do lesado, e
compreendem, ainda, determinadas despesas certas, mas que só se concretizarão em tempo incerto (ex. substi tuição de
uma prótese ou futuras operações cirúrgicas).

- Os danos morais ou prejuízos de ordem não patrimonial são prejuízos insusceptíveis de avaliação pecu-
niária, porque atingem bens que não integram o património do lesado (ex. a vida, a saúde, a liberdade, a beleza). Não
devem confundir-se com os danos patrimoniais indirectos, isto é, aqueles danos morais que se repercutem no património
do lesado, como o desgosto que se reflecte na capacidade de ganho diminuindo-a (pois esta constitui um bem redutível a
uma soma pecuniária).

Porque estes danos não atingem o património do lesado, a obrigação de os ressarcir tem mais uma natureza
compensatória do que indemnizatória, sem esquecer, contudo que não pode deixar de estar presente a vertente
sancionatória (Prof. A. Varela, Das Obrigações em Geral, I vol., p. 630, 9ª ed.). Com efeito, em termos de dinheiro, em
quanto se pode avaliar a vida, as dores físicas, o desgosto, a perda da alegria de viver, uma cicatriz que desfeia?
O chamado dano de cálculo não serve para aqui. Por isso, a lei lançou mão de uma forma genérica, mandando
atender só àqueles danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (art. 496º nº 1 do CC).
Gravidade que deve ser apreciada objectivamente, como ensina o Prof. A. Varela (obra cit. p. 628). Por outro lado, a lei
remete a fixação do montante indemnizatório por estes danos para juízos de equidade, haja culpa ou dolo (art. 496º nº 3 do
CC), tendo em atenção os factores referidos no art. 494º (grau de culpabilidade do agente, situação económica deste e do
lesado e quaisquer outras circunstâncias).
Assim, o julgador deve ter em conta todas as regras de boa prudência, do bom senso prático, da justa medida
das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida, sem esquecer a natureza mista da reparação, pois visa-se
reparar o dano e também punir a conduta, como atrás se disse. Cumpre aqui, ainda, salientar que a velha distinção feita
por M. Andrade entre culpa lata, leve e levíssima (Teoria Geral das Obrigações, 2ª ed. p. 341-342) mantém actualidade e
tem aqui cabimento (P. Lima e A. Varela, CC anot. I, p. 497). Entre as "quaisquer outras circunstâncias" referidas no art.
494º, costumam a doutrina e jurisprudência francesas, perante referência igual, apontar a idade e sexo da vítima, a
natureza das suas actividades, as incidências financeiras reais, possibilidades de melhoramento, de reeducação e de
reclassificação (Françoise Cocral, Les responsabilités diverses et le contrat d'assurance)».

***
«Dispõe o art. 496º do Código Civil:

“1. Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a
tutela do direito.
2. (...)

44
3. O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso,
as circunstâncias referidas no artigo 494º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais
sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos número anterior.”

“Danos não patrimoniais – são os prejuízos (como dores físicas, desgostos morais, vexames, perda de
prestígio ou de reputação, complexos de ordem estética) que, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque
atingem bens (como a saúde, o bem estar, a liberdade, a beleza, a honra, o bom nome) que não integram o património do
lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação
do que uma indemnização” – Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, 6ª edição, l. °-571.

São indemnizáveis, com base na equidade, os danos não patrimoniais que “pela sua gravidade mereçam a tutela
do direito” – nºs 1 e 3 do art. 496º do Código Civil.

Para a formulação do juízo de equidade, que norteará a fixação da compensação pecuniária por este tipo de
“dano”, socorremo-nos do ensinamento dos Professores Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I,
pág.501;

“O montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado em qualquer caso
(haja dolo ou mera culpa do lesante) segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à
sua situação económica e às do lesado e do titular da indemnização, às flutuações do valor da moeda, etc. E deve ser
proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso
prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.”.

Neste sentido pode ver-se, “inter alia”, o Ac. do STJ, de 30.10.96, in BMJ 460-444:

“ (...) No caso dos danos não patrimoniais, a indemnização reveste uma natureza acentuadamente mista, pois
“visa reparar, de algum modo, mais que indemnizar os danos sofridos pela pessoa lesada”, não lhe sendo, porém, estranha
a “ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente”. O
quantitativo da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais terá de ser calculado, sempre, “segundo critérios
de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular da
indemnização”, “aos padrões da indemnização geralmente adoptados na jurisprudência, as flutuações de valor da moeda,
etc.”.
No caso que nos ocupa, o dano violado foi a integridade física da Autora, que viu o acidente causar-lhe danos
corporais de gravidade, que deixaram sequelas permanentes, quer a nível psicológico, quer a nível físico.

Importa, de harmonia com os factos provados, considerar que o acidente ocorreu por culpa exclusiva do segurado
da Ré, quando a Autora tinha 13 anos de idade, sendo volvidos mais de 13 anos quando intentou a liquidação dos danos.
Nesse meio tempo, a Autora, nascida em 20.5.1982, submeteu-se no ano de 2001 a duas intervenções cirúrgicas
para remoção de cicatrizes, tendo estado internada quatro dias.
Não obstante tais intervenções e tratamentos cirúrgicos e reeducativos, a Autora ficou ainda com cinco cicatrizes
com a seguinte localização:

a) Cicatriz em “W” com 09 cm, na hemiface direita, desde a região pré-auricular até ao sulco naso-geniano,
acompanhando o ramo mandibular;
b) Cicatriz paralela à anterior, também em “W”, com cerca de 3,5 cm, equidistante da região pré-auricular e canto
externo do olho direito;
c) Cicatriz da região cervical, circular com cerca de 1,5 cm de diâmetro, com o meio raio a atingir 2,5 cm;
d) Cicatriz do couro cabeludo, região tempero-parietal esquerda com cerca de 5 cm, com área de alopécia
circundante;
e) Cicatriz do mento à direita, com 01 cm – Resposta ao ponto 13° da B.I.

Cicatrizes essas que correspondem a um dano estético fixável num grau seis, numa escala de 0 a 7 – Resposta
aos pontos 14 e 17° da B.I.
Tais cicatrizes causam à Autora, a nível funcional, sensação de desconforto com alteração da sensibilidade ao
nível das cicatrizes da face e, atento o estado actual da medicina, já não são possíveis de minorar.
Trata-se de um dano estético do maior relevo, tanto mais que se as cicatrizes afectam o rosto são visíveis e não
passíveis de regressão ou tratamento após as cirurgias.

45
Sem que a afirmação envolva qualquer discriminação em razão do sexo – que seria infractora do princípio da
igualdade – art. 13º da CR – o facto de se tratar de uma mulher jovem, desportista, com formação universitária e profissão
que implica contacto público, essa afectação permanente do estado físico constitui grave dano estético, mais a mais,
sabendo-se que a aparência física está relacionada com a expressão individual dos sujeitos, a sua relação consigo mesmo
e com o ambiente social, o que contende com sentimentos de auto-estima, em tempos em que é socialmente exigida boa
aparência.
O dano estético é uma lesão permanente, um dano moral, tanto mais grave quanto são patentes e deformantes
as lesões, sendo de valorar especialmente quando são visíveis e irreversíveis.
Como se pode ler in “Dano Estético-Responsabilidade Civil – da jurista brasileira Teresa Lopez – 3ª edição
actualizada com o Código Civil de 2002 – pág. 19:

“ O problema da reparação do dano estético tem importância em dois planos: o ontológico, pois “ser e aparência
coincidem” e qualquer lesão que a pessoa sofra em sua forma externa acarreta um abalo, um desequilíbrio na
personalidade, dando origem a grandes sofrimentos; o outro plano é o sociológico, pois, exatamente por causa de uma
lesão estética, pode a pessoa não ter a mesma aceitação no meio social, o que também vai ser fonte de grandes
desgostos.
Dessa forma, o dano estético é dano moral que ofende a pessoa no que ela é, em todos os seus aspectos.
Em outras palavras, no dano à pessoa há vários bens jurídicos ofendidos, apesar de a causa ter sido a mesma, e
é por isso que a reparação deve ser a mais completa e justa possível, ressarcindo e possibilitando cumulação de
indenizações referentes a cada um deles”.

Como se provou, as cicatrizes provocaram um dano estético de grau seis numa escala máxima de 7, o que aliado
ao facto de serem irreversíveis e localizadas em zona visível – na face – uma delas com 9 cm que percorre a hemi-face
direita, desde a região pré-auricular até ao sulco naso-geniano, acompanhando o ramo mandibular, para apenas referir a
mais expressiva.

Não se destinando a atribuição pecuniária pelo dano moral a pagar qualquer preço pela dor – “pretium doloris”,
que é de todo inavaliável, mas antes a proporcionar à vítima uma quantia que possa constituir lenitivo para a dor moral, os
sofrimentos físicos, a perda de consideração social e os sentimentos de inferioridade (inibição, frustração e menor auto-
estima), a quantia a arbitrar é fixada com recurso à equidade devendo ser ponderada, no caso, a gravidade objectiva do
dano, mormente a sua localização, extensão e irreversibilidade [as lesões na face são psicologicamente mais traumáticas
que noutra parte do corpo] e as circunstâncias particulares do lesado – a idade, o sexo e a profissão» - Ac. do STJ
(Cons.º Fonseca Ramos) de 14.10.2008, no P.º 08A2677.

Hoje não sofre dúvida a indemnizabilidade do dano não patrimonial, como claramente
resulta do art. 496º. Ponto é que pela sua gravidade, medida por padrões objectivos, tal dano
mereça a tutela do direito.
Na fixação do montante da indemnização ganha particular relevo a equidade, aliada às
circunstâncias referidas no art. 494º - 1ª parte do nº 3 do art. 496º.

DNP na responsabilidade contratual?

Ver divergências doutrinais e jurisprudência dominante em sentido afirmativo, tudo no acórdão


do STJ, de 21.3.95, no BMJ 445-487, assim sumariado:

I - Os danos não patrimoniais são ressarcíveis no âmbito da responsabilidade contratual, além do mais porque os
artigos 798º e 804º, nº 1, do Código Civil não estabelecem qualquer restrição ou limitação relativa aos
prejuízos indemnizáveis com esse fundamento.
II - O simples incumprimento de contrato não origina, todavia, por si só, o ressarcimento dos danos não
patrimoniais dele resultantes.
III – Essa reparação só se justifica, face ao disposto no art. 496º, nº 1, do CC - que reflecte um princípio geral
válido para toda a responsabilidade civil -, quando a especial natureza da prestação o exigir, ou se as circunstâncias que
acompanhem a violação do contrato contribuírem decisivamente para uma grave lesão de bens ou valores não
patrimoniais.
IV – São ressarcíveis, a título de danos não patrimoniais, a preocupação, a angústia, o incómodo e o desgosto
causados aos compradores de uma parcela de terreno em empreendimento turístico que se viram impossibilitados de
utilizar a casa que nele construíram por a sociedade vendedora e promotora do empreendimento não ter, ao contrário

46
daquilo a que contratualmente se obrigara, criado as infra-estruturas (estradas de acesso, fornecimento de água e
electricidade) necessárias à respectiva habitabilidade.

Neste sentido decidiu o STJ em Ac. de 29.4.2003, na Col. Jur. STJ 2003-II-30, maxime 34:
«A ressarcibilidade (rectius, a compensação por…) de danos não-patrimoniais não se limita, não é exclusiva do
domínio da responsabilidade delitual, ocorre também na contratual.
As pessoas colectivas podem ser atingidas nos seus valores ou interesses de ordem não patrimonial e a
infracção pode, inclusive, merecer protecção criminal (CP - 187).
Para os sinais distintivos do comércio organizou, desde longa data, a lei, face à função social da propriedade
industrial, um regime jurídico próprio na defesa dos direitos privativos, na garantia da lealdade da concorrência e na
repressão da concorrência desleal (CPI-1).
Nos contratos de franchising a utilização, pelo franquiado, dos sinais distintivos do comércio do franquiador não
só é obrigatória como assume uma relevância fundamental na distribuição em que este tipo de contratos se integra como
ainda no seu desenvolvimento e execução para penetração dos mercados.
A ré, como distribuidora e actuando com a imagem comercial da 2ª autora, negociava os produtos desta, a qual
tinha o direito de exclusividade do fornecimento.
Negociando produtos de outra marca num posto de abastecimento da “BP”, facilmente identificável como tal,
mesmo se tapado o logotipo desta, situado em localidade onde a concorrência local e regional entre as diversas marcas de
combustíveis e lubrificantes é forte, é evidente que lesou o direito de imagem e o prestígio da 2ª autora».

Contra: Antunes Varela, na RLJ 123-254 a 256:

«A ressarcibilidade dos danos não patrimoniais não aparece consagrada na área comunitária da obrigação de
indemnização, não, porque o legislador tenha omitido a questão, visto tratar dela no artigo 496º do Código. Mas vem
expressamente regulada na zona privativa da responsabilidade extracontratual, neste artigo 496º, com a intenção manifesta
de a restringir a esta área da responsabilidade civil.
Quando, no texto do nº 1 do artigo 496º do Código Civil, se prescreve que na fixação da indemnização deve
atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, não se faz menção da
indemnização em termos gerais (como sucederia se a disposição estivesse implantada na secção - arts 562º e seguintes -
que trata da obrigação de indemnização), mas da indemnização referida no artigo anterior, ou seja, da indemnização dos
danos provenientes da lesão corporal.

6. Sabido que a lei afasta, em termos inequívocos, a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais no domínio da
responsabilidade contratual, interessará agora naturalmente conhecer as razões por que o legislador o faz.
São razões que não divergem, no fundo, das que têm sido desenvolvidas na doutrina germânica em defesa da
solução idêntica adoptada no direito alemão.
Como se sabe, o § 253 do Código civil
alemão, sempre que haja danos sem carácter patrimonial, só permite que o lesado exija indemnização (Entschüdigung) em
dinheiro nos casos determinados por lei.
E entre os raros casos que a legislação (alemã) admite essa indemnização dos immaterieller Schaden figura o §
847 do Código civil, aplicável às lesões corporais ou da saúde e às privações da liberdade (Freiheitsentziehung), desde que
haja qualquer agressão ilícita desses bens, nos termos do
§ 823.
Ficam, assim, intencionalmente fora do seio de acção deste preceito muitas das violações de direitos ou de
interesses abrangidas pela responsabilidade extracontratual, como as violações do direito de propriedade e, na área dos
direitos de personalidade, a ofensa do direito à honra ou ao bom nome da Pessoa, mas também todos os danos imateriais
situados na área da responsabilidade contratual.
É uma limitação hoje em dia frequentes vezes acusada de excessiva. Mas não deixa de reconhecer-se ao mesmo
tempo que, relativamente à responsabilidade contratual, a atitude restritiva da lei tem plena justificação.
Por um lado, atentas a vastíssima área do comércio jurídico coberta pelos contratos e a extraordinária frequência
das violações contratuais, seria seriamente de recear um aumento extraordinário das pretensões de indemnização de
danos dessa ordem se a sua admissibilidade fosse reconhecida.
Por outro lado, essa solução não deixaria de constituir uma poderosa tentação para os contraentes, no sentido de
exagerarem todos os incómodos, preocupações, afectações, do bom nome e do prestigio da firma que a falta de
cumprimento ou a mora no cumprimento por parte do outro contraente lhe tivesse causado.
Por fim, seria real e bastante sério o perigo da comercialização dos valores morais, estimulando os contraentes a
tirarem partido de todas as faltas que de perto ou de longe tivessem ligação com a sua personalidade» .

47
Notar que desde a Lei n.º 24/96, de 31 de Julho (Lei de defesa do consumidor, art. 12.º, n.º
4, n.º 1 do mesmo art. 12.º na redacção dada pelo Dec-lei n.º 67/2003, de 8 de Abril (venda de bens de
consumo) o consumidor tem direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais
resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos .

Também pode ser devida indemnização por DNP na responsabilidade extracontratual por
factos lícitos - BMJ 457-317:

I - O proprietário que procede a escavações no seu prédio responde civilmente pelos danos produzidos nos
prédios vizinhos, nos termos do artigo 1348º, nº 2, do Código Civil, ainda que aquelas escavações tenham sido efectuadas
por empreiteiro, mediante contrato de empreitada celebrado com o dono da obra.
III - A admissibilidade da reparação dos danos não patrimoniais corresponde a um princípio imanente no nosso
direito, havendo lugar a indemnização por tais danos quando se trate de responsabilidade civil extracontratual emergente
quer de actos lícitos quer de actos ilícitos.

Danos por MORTE da vítima

É jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça que a lesão do direito à vida - sendo
a vida o bem supremo do homem e origem da sua personalidade - é indemnizável - BMJ 404 - 454.

Em caso de morte da vítima há, normalmente, vários danos a ressarcir, tanto patrimoniais
como não patrimoniais, e várias pessoas com direito a indemnização.
Por isso convém, na fixação da indemnização, discriminar uns e outros danos, tanto na origem
deles como nos destinatários da correspondente indemnização.

Assim:

Danos patrimoniais - despesas médicas, de assistência e socorro, hospitalares, de funeral,


como previsto nos nº 1 e 2 do art. 495º;
- de alimentos a quem o lesado os prestava, tanto em cumprimento de obrigação
natural como legal (2009º) - nº 3 do art. 495º. Compreendem-se aqui os alimentos
prestados pelo falecido à pessoa que com ele vivia em união de facto – Col. STJ 97-III-61 -
ideia agora reforçada pela Lei nº 7/2001, ou casada em regime de separação – Col. STJ 03-
II-145.
- outros, a tratar a propósito da obrigação de indemnizar, designadamente salários e
rendimentos perdidos, por incapacidade parcial ou total permanente, com ou sem perda de
salários.

Danos não patrimoniais:

a) - sofridos pelo falecido, enquanto vivo, como as dores físicas ou morais, a angústia da
proximidade da morte, o internamento hospitalar e respectivos tratamentos.
Radicaram-se na esfera jurídica do falecido e, de acordo com certa corrente doutrinária e
jurisprudencial, são transmissíveis por via sucessória de acordo com as regras respectivas - 496º, 3,
início da parte final. Há quem defenda que, também a indemnização por este dano cabe àquelas
pessoas indicadas no n.º 2 do art. 496º

b) - sofridos pelas pessoas referidas no nº 2, especialmente chegadas ao finado -


496º, 3, in fine. Não está aqui incluído o companheiro, o cônjuge na união de facto – Ac. STJ, de
4.11.2003, na Col. Jur. (STJ) 2003-III-133
48
c) - Dano da própria morte, pela supressão do direito à vida - 496º, 2 - é
indemnizável e cabe, jure proprio, originário, não por via sucessória, aos familiares referidos no
nº 2 do art. 496º e pela ordem aí indicada.
Esta questão tem sido objecto de forte polémica, como se vê do Ac. do STJ, de 9.5.96, no
BMJ 457-280:

O artigo 496º, nº 2, do Código Civil, refere-se aos titulares activos dos direitos de indemnização por danos não
patrimoniais sofridos pelo de cujus em caso de lesão de que proveio a morte.
A este respeito, a doutrina tem-se dividido, defendendo:
uns, que tais direitos de indemnização cabem primeiramente ao de cujus e depois se transmitem
sucessoriamente para os seus herdeiros legais ou testamentários (Galvão Telles, Direito das Sucessões, 1971, págs. 83
a 87);
outros, que tais direitos após terem cabido ao de cujus se transmitem sucessoriamente para as pessoas
mencionada no nº 2 do artigo 496º do Código Civil (Vaz Serra, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 103º, pág.
172; Leite Campos, A Indemnização do Dano da Morte, 1980, pág. 54), e
ainda outros que esses direitos de indemnização são adquiridos directa e originariamente pelas pessoas
indicadas no nº 2 do artigo 496º do Código, não havendo lugar por isso a transmissão sucessória (Antunes Varela, Direito
das Obrigações, vol. I, 6.ª ed., pág. 583; Pires de Lima e Antunes Vareja, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., pág. 500.
Nesta polémica doutrinal (e também jurisprudencial, cfr. acórdãos deste Supremo Tribunal de 16 de Março de
1973, Boletim do Ministério da Justiça nº 225, pág. 216, e de 13 de Novembro de 1974, Boletim do Ministério da Justiça, nº
241, pág. 204), propendemos para a orientação que os danos não patrimoniais sofridos pelo morto nascem, por direito
próprio, na titularidade da pessoas designadas no nº 2 do artigo 496º, segundo a ordem e nos termos em que nesta
disposição legal são chamadas. Esta adesão radica-se na argumentação utilizada quer por Antunes Varela - ob. cit., pág.
585 - quer por Capelo de Sousa - Lições de Direito das Sucessões, vol. I, 3ª ed., págs. 298 a 304 - argumentação esta
sólida no que se refere aos trabalhos preparatórios do Código, os quais revelam, em termos inequívocos, que o artigo
496º, na sua redacção definitiva, tem a intenção de afastar a natureza hereditária do direito a indemnização
pelos danos morais sofridos pela própria vítima (Capelo de Sousa, op. cit., 298, nota 433).

Basta ver que o cônjuge aparece aqui como beneficiário da indemnização desde a redacção
original do preceito, quando só com a reforma de 1977 ele passou a ser herdeiro.
Sobre esta matéria convém ler as Lições de Família e Sucessões, de Leite de Campos, as
Sucessões, de Capelo de Sousa, de P. Coelho, as Obrigações (8ª ed. 619 e ss) e Comentário de A.
Varela na RLJ 123 - 185 e ss, citado no BMJ 466-450 e do seguinte teor:

“Quem acompanhar atentamente os trabalhos preparatórios do Código Civil, sem nenhuma ideia preconcebida
afivelada à cabeça, não poderá deixar de reconhecer que entre a tese da indemnização nascida no património da vítima e
transmitida por via sucessória a alguns dos seus herdeiros e a concepção da indemnização como direito próprio, originário,
directamente atribuído ao cônjuge e aos parentes mais próximos, à margem do fenómeno sucessório da herança da vítima,
a lei adoptou deliberadamente a segunda posição.
No artigo 759º do Anteprojecto geral de Vaz Serra sobre o «Direito das obrigações», ao regular-se a questão da
«satisfação do dano não patrimonial», e depois de no n.º 2 dessa disposição se atribuir aos parentes, afins ou cônjuge da
pessoa morta por culpa de outrem uma satisfação (pecuniária, é evidente) pelo dano não patrimonial que o facto lhes
tivesse causado, prescrevia-se no n.º 4, relativamente aos danos não patrimoniais causados ao próprio lesado, o seguinte:
«O direito de satisfação por danos não patrimoniais causados à vítima transmite-se aos herdeiros desta, mesmo
que o facto lesivo tenha causado a sua morte e esta tenha sido instantânea.»
Era a consagração inequívoca, na hora de ponta (ou seja, no caso extremo da morte instantânea) da aquisição
derivada do direito à indemnização pelo dano da morte, através do puro canal da devolução sucessória.
Na 1ª revisão ministerial dos diversos anteprojectos, que foi, como todos sabem, mais uma tarefa de redução,
expurgação e reordenação sistemática de textos do que um reexame substancial de afinação e uni formização de soluções,
o artigo 476º (do Livro das Obrigações) continuava ainda a distinguir nos n.os 2 e 3 entre os danos não patrimoniais
causados à vítima da lesão e os danos não patrimoniais sofridos pelos familiares da vítima. E, quanto aos primeiros, o texto
da disposição mantinha de igual modo, com suficiente clareza, a tese transmitida pelo Anteprojecto de Vaz Serra.
«O direito de satisfação por danos não patrimoniais causados à vítima, dizia efectivamente o n.º 2 desse artigo
(476º), transmite-se aos herdeiros desta, ainda que o facto lesivo tenha causado a sua morte imediata», numa clara
aceitação da tese da aquisição derivada do direito à indemnização, por via hereditária, mesmo no caso de morte ins-
tantânea.

49
Porém, na 2ª revisão ministerial, na qual todas as normas seleccionadas pela 1ª revisão foram como que
passadas a pente fino, com vista ao aperfeiçoamento substancial das soluções e à uniformização de critérios própria de
toda a legislação codificada, a posição da lei perante a indemnização da morte da vítima sofreu uma alteração radical.
No artigo 498º saído dessa revisão (correspondente ao art. 496º da versão definitiva do Código) deixa de falar-se
na transmissão do direito à indemnização (pelo dano da morte), não se alude mais à hipótese da morte instantânea e não
se chamam sequer os herdeiros a recolher a indemnização colada à herança da vítima.
Tal como na versão final do n.º 2 do artigo 496º do Código, passou antes a dizer-se que, por morte da vítima, o
direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e
bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes, e, por último, aos irmãos ou
sobrinhos que os representem.
Com esta eliminação da referência à transmissão do direito à indemnização, com a substituição dos herdeiros, na
titularidade da indemnização, pelo cônjuge e familiares mais próximos da vitima, à margem da sucessão legítima, em
termos diferentes da ordem normal da vocação sucessória, o legislador quis manifestamente chamar estas pessoas, por
direito próprio, a receberem, como titulares originários do direito, a indemnização dos danos não patrimoniais causados à
vitima da lesão mortal - e que a esta competiria, se viva fosse. E é confrangedor verificar que ainda hoje há julgadores – e
julgadores qualificados - que interpretam e aplicam o disposto no n.º 2 do artigo 496º do Código Civil, como se o preceito
legal não tivesse história ou o intérprete desdenhosamente fizesse gala de a ignorar ou como se o texto da versão definitiva
da disposição coincidisse integralmente com a redacção das normas correspondentes, quer do Anteprojecto de Vaz Serra,
quer da 1ª revisão ministerial».
***
«1.1- Em caso de lesão de que provenha a morte, o Código Civil prevê expressamente um direito a indemnização
por danos não patrimoniais sofridos, além da vítima, pelas pessoas referidas no art. 496º, nº 2, isto é, pelo cônjuge não
separado judicialmente de pessoas e bens e pelos filhos ou outros descendentes e, na falta destes, pelos pais ou outros
descendentes e, por último, pelos irmãos ou sobrinhos que os representem.
Não sofre qualquer dúvida que o direito à vida, nos termos deste normativo, constitui um dano autónomo,
susceptível de reparação pecuniária.
Já não se apresenta totalmente uniforme o entendimento em saber se a reparação deste dano nasce, por direito
próprio, na esfera jurídica das pessoas referidas no aludido nº 2 e pela ordem aí estabelecida ou se nasce no património da
vítima e se transmite, por via sucessória, para essas mesmas pessoas.
Com argumentação sólida estruturada não só nos trabalhos preparatórios do Código Civil, como também na
interpretação objectiva do próprio texto do nº 2 do art. 496º, conclui Antunes Varela in Das Obrigações em Geral, I, 10ª ed.,
pág. 613 que da leitura deste preceito decorre que nenhum direito de indemnização se atribui, por via sucessória, aos
herdeiros da vítima, como sucessores mortis causa, pelos danos morais correspondentes à perda da vida, quando a morte
da pessoa atingida tenha sido consequência imediata da lesão e que, no caso de a agressão ou lesão ser mortal, toda a
indemnização correspondente aos danos morais (quer sofridos pela vítima, quer pelos familiares mais próximos) cabe, não
aos herdeiros por via sucessória, mas aos familiares por direito próprio, nos termos e segundo a ordem do disposto no n.° 2
do artigo 496º.
Esta nos parece ser, efectivamente, a orientação que a lei perfilhou.
Aliás, a indemnização destina-se, essencialmente, a reparar um dano. Enquanto não houver dano ainda não
existe a obrigação de indemnizar. Logo, no caso de lesão de perda da vida do lesado, o dano de morte já não se pode
constituir na sua esfera jurídica. E se não era titular deste direito no momento da morte, não pode transmiti-lo, por
inexistente, para os seus sucessores.
A indemnização pela perda do direito à vida cabe, não aos herdeiros da vítima por via sucessória, mas aos
familiares referidos e segundo a ordem estabelecida no nº 2 do art. 496º C.Civil, por direito próprio; neste sentido pode ver-
se, entre outros, o ac. S.T.J., de 1999/03/16, in B.M.J 485º-386 .

Ao lado do dano morte e dele diferente, há o dano sofrido pela própria vítima no período que mediou entre o
momento do acidente e a sua morte.
Pode acontecer, e segundo os recorrentes isso aconteceu no caso vertente, que a vítima não tenha morte
imediata e durante período de tempo que sobreviva ao acidente passe por um quadro deveras doloroso.
Este dano vivido pela vítima antes da sua morte é passível de indemnização, estando englobado nos danos não
patrimoniais sofridos pela vítima a que se refere o nº 3 do mencionado art. 496º.
Estes danos nascem ainda na titularidade da vítima. Mas, como expressivamente refere a lei, também o direito
compensatório por estes danos cabe a certas pessoas ligadas por relações familiares ao falecido. Há aqui uma transmissão
de direitos daquela personalidade falecida, mas não um chamamento à titularidade dos bens patrimoniais que lhe
pertenciam, segundo as regras da sucessão, como também se refere no ac. S.T.J., de 2005/06/16 in www.dgsi.pt/jstj .
Quis-se chamar essas pessoas, por direito próprio, a receberem a indemnização pelos danos não patrimoniais
causados à vítima de lesão mortal e que a ela seria devida se viva fosse.

50
Naquele nº 3 incluem-se ainda os danos não patrimoniais sofridos pelos familiares da vítima com a sua morte,
danos próprios desses familiares.
Mas os familiares com direito a indemnização por danos próprios decorrentes da morte da vítima são apenas os
referidos no nº 2 do art. 496º.

1.2 - Dilucidada esta questão, impõe-se partir para a verdadeira questão controvertida colocada qual seja a de
saber se os recorrentes, enquanto pais da vítima, que se finou no estado de casada e sem filhos, têm direito a
indemnização por danos não patrimoniais pela morte do filho.
Por morte da vítima, diz-se no n.º 2 do art. 496º, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe em
conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes,
aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.
Do teor literal deste texto normativo decorre que este direito de indemnização cabe, em simultaneidade, ao
cônjuge e aos filhos e, representativamente, a outros descendentes que hajam sucedido a algum filho pré-falecido.
Só na falta desta primeira classe de familiares é que os referidos no segundo grupo terão direito a essa
indemnização, ou seja, só se não houver cônjuge nem descendentes da vítima é que os ascendentes passarão a ter direito
à indemnização neste sentido se pronuncia também Antunes Varela, ob. cit., pág. 624.
Este comando normativo está, aliás, de acordo com a regra contida no art. 2135º C.Civil, ao preconizar que,
dentro de cada classe de sucessíveis, os parentes de grau mais próximo preferem aos de grau mais afastado.

Ora, segundo alegam os recorrentes, a vítima, seu filho, faleceu no estado de casado e sem filhos.
Segundo o princípio do chamamento sucessivo consagrado no nº 2 do art. 496º, só na falta de qualquer dos
familiares aludidos no primeiro grupo é que serão chamados os familiares dos grupos seguintes.
Uma vez que a vítima era casada, o cônjuge integra o primeiro desses grupos e, como não havia filhos, será o
único titular do direito a indemnização devida pela sua morte , não tendo os pais da vítima direito a compensação por
danos não patrimoniais (quer dos sofridos pela vítima, quer por eles próprios) com a morte do filho.» - Ac. do STJ (Cons.º
A. Sobrinho) de 24 de Maio de 2007, P.º 07B1359.
***
«No caso em apreço o critério para compensação do dano não patrimonial – perda do bem vida – é
determinado segundo a equidade.

A lei civil considera indemnizáveis os danos não patrimoniais que “pela sua gravidade mereçam a tutela do
direito” – art. 496º, nº 1, do Código Civil.
O nº 3 do art. 496º do Código Civil estatui: “O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo
tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art. 494º; no caso de morte, podem ser
atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a
indemnização nos termos do número anterior”.
A propósito deste normativo os Professores Antunes Varela e Pires de Lima, in “Código Civil Anotado” – vol. I,
págs. 500/501, comentam:

“Por outro lado, na fixação da indemnização equitativa prescrita no nº 3 do artigo 496º deverá o tribunal tomar em
linha de conta, como parcela autónoma da soma de valores indemnizatórios a que haja de proceder, a perda da vida da
vítima, entre os danos morais sofridos pelos familiares.
Ao lado dos desgostos ou dos vexames causados pela agressão ou pela causa dela, a falta do lesado é, para os
seus familiares, salvo raríssimas e anómalas excepções, causa de um profundo sofrimento – tanto mais intenso quanto
mais fortes fossem os laços de afecto que uniam estes àquele (cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 5ª ed., vol. I,
159).
E esse sofrimento – esse dano moral – deve ser indemnizado (cfr. a parte final do nº3 do artigo).”

(...) “ O montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado em qualquer
caso (haja dolo ou mera culpa do lesante) segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do
responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular da indemnização, às flutuações do valor da moeda, etc.
E deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa
prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.”

A perda da vida da vítima deve ser indemnizada, pese embora a indiscutível afirmação de que a Vida, como bem
supremo que é, não tem preço, como é costume afirmar-se.
Sendo invioláveis a vida privada, a honra e os direitos que se inscrevem no âmbito da personalidade individual,
não faria sentido que a violação e supressão da expressão máxima e suporte desses direitos, ficasse civilmente impune.

51
Na lata definição de Savatier dano moral é “Todo o sofrimento humano que não resulta de uma perda pecuniária”.

Na RLJ nº 123, pág. 279, em comentário ao Acórdão do STJ, de 23.5.85, o Professor Antunes Varela, com a
autoridade do seu saber, escreveu:

“ (...) A compensação pecuniária prevista na lei visa cobrir um dano, que é a perda da vida causada pela lesão,
embora na determinação do seu montante o julgador não possa, como resulta do disposto no nº 3 do art. 496º e no art.
494º do Código Civil, abstrair do grau de culpa do agente, do reflexo económico-social que o facto tem na vida dos
familiares do lesado, nem da repercussão que o pagamento da indemnização pode ter na situação patrimonial do
responsável... (...) a indemnização pela morte de uma pessoa não tem um valor fixo...”.

A compensação pela perda do direito á vida deve reflectir o grau de reprovação da conduta do lesante. Menezes
Cordeiro “Direito das Obrigações”, 2° vol, p. 288 ensina que “a cominação de uma obrigação de indemnizar danos morais
representa sempre um sofrimento para o obrigado; nessa medida, a indemnização por danos morais reveste uma certa
função punitiva, à semelhança aliás de qualquer indemnização”.
Galvão Telles, “Direito das Obrigações”, 387, sustenta que “a indemnização por danos não patrimoniais é uma
“pena privada, estabelecida no interesse da vítima – na medida em que se apresenta como um castigo em cuja fixação se
atende ainda ao grau de culpabilidade e à situação económica do lesante e do lesado”.
Menezes Leitão realça a índole ressarcitória/punitiva, da reparação por danos morais quando escreve:
“assumindo-se como uma pena privada, estabelecida no interesse da vítima, por forma a desagravá-la do comportamento
do lesante” – “Direito das Obrigações”, vol.I, 299.
Pinto Monteiro, de igual modo, sustenta que, a obrigação de indemnizar é “uma sanção pelo dano provocado”, um
“castigo”, uma “pena para o lesante” – cfr. “Sobre a Reparação dos Danos Morais”, RPDC, n°l, 1° ano, Setembro, 1992, p.
21.
No caso em apreço foi grosseira a sua actuação ao conduzir de modo distraído – manuseava um telemóvel – um
veículo pesado de mercadorias com um semi-reboque acoplado, não tendo, culposamente, avistado a vítima que atropelou
mortalmente.

Assim, e tendo em conta que o Supremo Tribunal de Justiça tem atribuído pela perda do bem vida, valores que se
situam entre os € 50.000,00 e 60.000,00 Cfr. Ac. deste Supremo Tribunal de 5.7.2007 – Proc. 07A1734, in www.dgsi.pt,
parece-nos mais equitativa a compensação, atribuindo a quantia de € 50.000,00, ao invés dos € 30.000,00 que o Acórdão
recorrido fixou – Ac. do STJ (Cons.º Fonseca Ramos) de 10.7.2008, no Pº 08A2677 .

***
«D - A autora reclama uma indemnização pela perda do direito à vida do seu filho nado-morto, em consequência
das lesões sofridas no ventre materno e que tiveram como causa o acidente em apreço.
A Relação negou o aludido direito, fundando-se no disposto no artº 66º do C. Civil, que determina que a
personalidade adquire-se no momento do nascimento completo e com vida e no facto dos direitos que a lei confere aos
nascituros dependerem do seu nascimento. Assim, concluiu que, uma vez que o filho da autora morreu no seu ventre, não
podia beneficiar de qualquer direito próprio, nomeadamente indemnizatório.
A indemnzação por falecimento devido a acto ilícito, a reparação do chamado direito à vida tem sido aceite pela
jurisprudência deste STJ, embora os recortes jurídicos de tal direito sejam ainda polémicos. Em qualquer dos casos, porém,
sempre se terá de entender que esse direito indemnizatório se reporta à morte de uma pessoa jurídica singular, pelo que, a
se admitir que a personalidade jurídica só surge nos termos do citado artº 66º, então, a morte do feto não é indemnizável
nestes termos, como decdiu a 2º instância. Neste sentido o Ac. STJ de 25.05.85 – RLJ 3795 185.
Esta posição faz parte da nossa tradição jurídica, uma vez que outra não era a posição do C. de Seabra:
artº 6º - “A capacidade judiciária adquire-se pelo nascimento; mas o indivíduo, logo que é procriado, fica debaixo
da protecção da lei, e tem-se por nascido para os efeitos declarados no presente código.”
artº 110º - “Só é tido por filho, para os efeitos legais, aquele de quem se prove, que nasceu com vida e com figura
humana.”
artº 1.479º - “Os nascituros podem adquirir por doação, contanto que estejam concebidos ao tempo da mesma
doação e nasçam com vida.”
artº 1776º - “Só podem adquirir por testamento as criaturas existentes, entre as quais é contado o embrião.
§ único. Reputa-se existente o embrião, que nasce com vida e figura humana, dentro dos trezentos dias,
contados desde a morte do testador.

E é neste sentido que parecem ir Gomes Canotilho e Vital Moreira quando escrevem – Constituição nota IV ao
artº 24º :

52
“A Constituição não garante apenas o direito à vida, enquanto direito fundamental das pessoas. Protege
igualmente a própria vida humana, independentemente dos seus titulares, como valor ou bem objectivo. É nesse sentido
que aponta a redacção do nº 1. Enquanto bem ou valor constitucionalmente protegido, o conceito constitucional de vida
humana parece abranger não apenas a vida das pessoas, mas também a vida pré-natal, ainda não investida numa
pessoa,... a vida intra uterina. (bold e sublinhado nossos)”.

A questão terá de ser determinada em sede da jurisprudência nacional, uma vez que a posição do Tribunal
Europeu dos Direitos do Homem, tal como resulta da sua decisão de 02.06.04 é a seguinte:
“No plano europeu, o Tribunal observa que a questão da natureza e do estatuto do embrião e/ou do feto, não é
objecto dum consenso...apesar de se verem surgir elementos de protecção deste/destes, a propósito dos progressos
científicos e das consequências futuras da pesquisa sobre as manipulações genéticas, as procriações medicamente
assistidas ou das experiências com o embrião. No máximo, pode-se encontrar como denominador comum dos Estados a
pertença à espécie humana; é a potencialidade deste ser e a sua capacidade em tornar-se uma pessoa, a qual é aliás
protegida pelo direito civil em grande número de Estados, como em França, em matéria de sucessões ou de liberalidades,
mas também no Reino Unido...que devem ser protegidas, em nome da dignidade humana, sem para isso criar “uma
pessoa” que teria um “direito à vida”, no sentido do artº 2º”.
Para concluir “...o Tribunal está convencido de que não é desejável, nem mesmo possível actualmente responder
em abstracto à questão de saber se a criança por nascer é uma pessoa”.

Exposto o tema deste modo, pareceria ele de fácil solução face às normas da lei ordinária. O nascituro, que como
tal falecia, não teria tido personalidade jurídica, não podendo ser titular de qualquer direito, como, no caso em apreço, do
direito à vida.

E - No entanto, há que reconhecer a existência de correntes doutrinais que, valendo-se do nº 1 do artº 24º da
Constituição, que prescreve a inviolabilidade da vida humana, arguem de inconstitucional o artº 66º. O surgimento da
personalidade jurídica seria assim reconduzível ao momento da concepção.

Para Mário Emílio F. Bigotte Chorão – Estudos em Homenagem Ao Professor Doutor Soares Martinez - , a
interpretação do artº 24º nº 1 feita pelo Tribunal Constitucional tem sido insatisfatória na medida em que - Acs. nºs 25/84 de
19.03.84 e 85/85 de 29.05.85 - , entende que “a vida pré-natal é protegida, não a título de direito subjectivo do nascituro,
que carece de personalidade jurídica, mas como mero valor ou bem objectivo...que o legislador ordinário pode subpor a
certos direitos ou interesses constitucionalmente tutelados (vida, saúde, dignidade e liberdade da mulher, qualidade de
vida, paternidade e e maternidade conscientes).”
Refere ainda que “Neste debate, só raramente se situa o problema da identidade do embrião num plano
supralegal e de fundamentação metafísica.”
E conclui: “Na negação da personalidade jurídica ao conceptus repercutem-se profundamente diversos factores:
os preconceitos legalistas e positivistas presentes na codificação e na dogmática jurídica dos dois últimos séculos; a
concepçãp normativo-kelseniana; a chamada “cultura da morte” muito influente muito influente nos meios da Esquerda
tradicional, comunista e socialista, e em certa mentalidade do radicalismo liberal, como se acaba de ver, uma vez mais, na
recente polémica em Portugal, sobre a liberalização do aborto.”
Contrapõe a adopção de um conceito de personalidade jurídica singular fundado no conceito natural ou
ontológico de pessoa humana (ubi persona naturalis, ibi persona iuridica), reconhecendo-a como qualidade inata e direito
natural do homem.

Para Pedro Pais de Vasconcelos – Teoria Geral do Direito Civil 2007 73 – “O nascituro é um ser humano vivo com
toda a dignidade que é própria à pessoa humana. Não é uma coisa. Não é uma víscera da mãe.
A protecção jurídica que a lei lhe dá não é apenas objectiva. Se o fosse, o seu estatuto não seria diferente
daquele que é próprio das coisas ou animais especialmente protegidos...O nascituro não é, pois, objecto do direito. Como
pessoa humana viva, o nascituro é pessoa jurídica. A sua qualidade pessoal impõe-se ao Direito, que não tem o poder de
negar a verdade da pessoalidade, da hominidade, da humanidade do nascituro. Não pode, pois, deixar de ser reconhecido,
pelo Direito, ao nascituro a qualidade de pessoa humana viva, o mesmo é dizer, a personalidade jurídica.(sublinhado
nosso).
Acaba por preconizar uma interpretação do artº 66º no sentido de se referir apenas à capacidade de gozo.

Para Menezes Cordeiro existe um direito à vida do nascituro, referindo que as razões que, conforme o artº 24º da
Constituição, justificam o direito à vida das pessoas em geral, são as mesmas que devem fundamentar o direito à vida do
nascituro.

F - Quid juris?

53
Sublinhámos uma afirmação de Pedro Pais de Vasconcelos, por entendermos que contém ela uma indicação
metodológica relevante. Diz aquele ilustre Professor que a qualidade pessoal do nascituro impõe-se ao Direito, que não tem
o poder de a negar. Concordamos que o Direito está submetido a realidades sociais ou naturais básicas que aquele não
pode afastar e que é em conformidade com elas que pode ser erguido o ordenamento jurídico.
Vejamos, por isso, qual é o ordenamento natural em que todas estas ideias se forjam.
Sobre a origem da dignidade humana é posível descortinar duas teses principais. A espirtualista de inspiração
cristã e a laica ou social assente no conceito de cidadania.
Para a primeira o homem tem uma essência espiritual, presente desde o momento da concepção, pelo que é
impossível não reconhecer a existência de uma pessoa, em toda a sua dignidade a partir desse momento.
Para a segunda, agnóstica quanto à fundamentação metafísica da primeira, a dignidade humana deriva do facto
de todos os homens e mulheres serem por igual livres e fraternos, pelo que a personalidade só pode existir quando surje
um novo centro de imputação de valores viável e autónomo, como todos os outros, um novo cidadão ou cidadã ou seja,
quando ocorre o nascimento. É a partir daí que a dignidade da cidadania se impõe. E, consequentemente, a personalidade.
Um nascituro não é certamente apenas uma víscera de sua mãe, mas também não é, de acordo com a lei natural – a lei da
natureza – um ente verdadeiramente individualizado, que possa ser considerado um igual das restantes pessoas e a quem
possam ser atribuídos os direitos de que estas podem ser titulares.

E numa sociedade pluralista, multicultural e constitucionalmente agnóstica não vemos como não possa deixar de
prevalecer no campo dos valores esta última tese. E que deve, por essa razão, ser a adoptada pelo Direito. É esta
concepção que informa a tradição jurídica dos dois últimos séculos e que está mais bem preparada para enfrentar os
problemas éticos que o desenvolvimento da engenharia biológica coloca. Porque capaz de admitir que eventualmente se
possam sobrepor outros valores àquele que o feto sempre representará. Compreendemos a angústia dos defensores da
tese espirtualista, ao terem de assumir a defesa da personalidade e espiritualidade de um embrião manipulado
geneticamente, congelado, ou duplicado. Mas o problema é metafísico não social.
A vida uterina é preciosa, deve ser defendida como promessa de um ser humano e nessa medida está abrangida
pela norma do nº 1 do artº 24º da Constituição. Mas nos termos da citação de Gomes Canotilho e Vital Moreira atrás
consignada, de vida ainda não integrada numa pessoa. E, salvo o devido respeito, é redutor dizer que esta protecção
“objectiva” da vida uterina é equiparável à protecção em especial de certas coisas ou animais, como faz Pedro Pais de
Vasconcelos. Talvez haja maior afeição por um feto, quando se o considera simplesmente na sua real potencialidade
biológia e humana, do que quando se lhe atribui em abstracto pretensos direitos e faculdades, que o tornam refém de
ideologias e princípios, que, historicamente, nem sempre se terão traduzido na melhor defesa dos reais interesses do
nascituro. Como nos casos doutrinalmente designados por wrong birth, ou seja, quando em nome dessa humanidade do
feto não se podia impedir que viessem ao mundo seres doentes e condenados ao sofrimento.
Sublinhe-se que não se trata de uma visão ideológica ou parcelar, porque unicamente se funda nos valores
basilares que devem fundar um Estado de Direito, à luz do que pensa e sente, actualmente, a comunidade dos cidadãos.

Antunes Varela – Estudos Em Homenagem cit. 633 - defende-a do seguinte modo: “Ora, a preferência da lei
portuguesa (artº 66º nº 1), da lei alemã (artº 1º do Cód. Civil alemão) e da generalidade das legislações, pelo momento do
nascimento com vida (em detrimento do instante da concepção, na evolução do embrião humano), não pode considerar-se
uma opção arbitrária, nem antinatural ou artificial do legislador, como pretende Ernst Wolf, por três razões fundamentais:
a) por virtude da notoriedade e do fácil reconhecimento do facto do nascimento, em contraste com o secretismo
natural e social da concepção do embrião;
b) embora a vida do homem comece, de facto, com a sua concepção, a formação da pessoa, no fenómeno
continuado e progressivo do desenvolvimento psico-somático do organismo humano, quanto às propriedades fundamentais
do ser humano (a consciência, a vontade, a razão) está sempre mais próximo do nascimento do indivíduo do que da
fecundação do óvulo no seio materno;
c) olhando ainda ao fenómeno psico-somático do desenvolvimento do ser humano, compreende-se perfeitamente
que seja o nascimento, como momento culminante da autonomização fisiológica perante o organismo da mãe, o marco
cravado na lei para o reconhecimento da personaldade do filho.

É a partir desse momento que surge compreensivelmente aos olhos da lei um novo sujeito de direito, um novo
centro de imputação dos valores fundamentais que integram a imensa dignidade da pessoa humana.

Temos assim que a fixação pelo artº 66º nº 1 do C. Civil da personalidade jurídica singular com o nascimento não
é incompatível com o comando do artº 24º nº 1 da Constituição, uma vez que este preceito, ao considerar a vida humana
inviolável, está a impor a protecção genérica da gestação humana, sem considerar o nascituro como um centro autónomo
de direitos.

54
G - No caso dos autos é impossível, por tudo o que fica exposto, reconhecer ao filho da autora um direito à vida
susceptível de ser indemnizado, uma vez que faleceu ainda antes de adquirir a qualidade de pessoa jurídica, não podendo,
assim, ser titular de qualquer direito.
O dano morte em causa é indemnizável, mas em sede de reparação dos danos não patrimoniais sofridos pela
recorrente. Esta questão foi versada no acórdão da Relação, mas não foi levantada pela autora no presente recurso, pelo
que dela não se pode conhecer, para efeitos do eventual aumento da quantia fixada pela Relação. Será adiante tratada,
mas apenas ao apreciar a pretensão do réu recorrente de que deveria ser reduzida.
Pede igualmente a autora uma indemnização pelo sofrimento do feto entre a ocorrência da lesão e a sua morte.
Para além de ser impossível atribuir àquele um direito à reparação por carecer de personalidade jurídica,
conforme atrás consignado, segue-se que nem tal sofrimento se encontra demonstrado na matéria de facto assente - cf.
ponto 22 dos factos assentes – Ac. do STJ (Cons.º Bettencourt de Faria) de 9.10.2008, P.º 07B4692 .

Não obstante não se encontrarem na acção todas as pessoas com direito a indemnização a
que alude o art. 496º, nº 2, do CC, tal não obsta a que o Tribunal fixe, desde logo, a quota
indemnizatória dos presentes.
É que apesar da lei, naquele artigo, usar a expressão «em conjunto», tal não significa que o
Tribunal não deva descriminar a parte que concretamente cabe a cada um dos beneficiários, de acordo
com os danos por eles sofridos, já que «terem direito à indemnização em conjunto» significa que
os descendentes não são chamados só na falta do cônjuge, como sucede com os beneficiários do 2º e
3º grupos indicados no mesmo nº 2, para os quais vigora o principio do chama-mento sucessivo – Col.
STJ 97-III-61.

A expressão usada no nº 2 do art. 496º ... filhos ou outros descendentes não significa que
os descendentes que não sejam filhos (netos ou bisnetos) concorrem com o cônjuge e filhos. Deve
entender-se que o direito à indemnização caberá pois em conjunto, não ao cônjuge, aos filhos «e»
outros descendentes, mas sim ao cônjuge e aos filhos e também (ou) a outros descendentes que
eventualmente hajam sucedido a algum desses filhos, pré-falecidos, por direito de
representação - BMJ 485-393.

Pelo que esta decisão negou legitimidade e indemnização quer por perda de alimentos quer
por danos não patrimoniais ao neto que vivia com o falecido avô mas tendo este deixado cônjuge e
filhos.
Pelo Acórdão nº 275/2002, de 19.6.2002, no DR, II, de 24.7.02, o Tribunal Constitucional
julgou inconstitucional, por violação do n.º 2 do art. 36º da Constituição, conjugado com o princípio da
proporcionalidade, a norma do n.º 2 do art. 496º do CC na parte em que, em caso de morte da vítima
de um crime doloso, exclui a atribuição de um direito de indemnização por danos não patrimoniais
pessoalmente sofridos pela pessoa que convivia com a vítima em situação de união de facto, estável
e duradoura, em condições análogas às dos cônjuges.
Em 4.11.2003 por Ac. na Col. Jur. (STJ) 2003-III-133 o STJ decidiu não ser
inconstitucional a norma do art. 496º, nº 2, do CC, na medida em que afasta da sua previsão de
indemnização por danos não patrimoniais o cônjuge de facto:

«Sob tal perspectiva, não há como não concluir que a dita norma nem vai contra o art. 13º (princípio da
igualdade), nem contra o art. 36º, 1 (família, casamento e filiação), conjugado com o princípio da proporcionalidade, nem
contra o art. 67° (família), todos da Constituição da República, porque, na verdade, a distinção que estabelece tem
respaldo numa prioridade de valores e num programa de protecção que ela própria adoptou, e, por isso, não é
injustificadamente arbitrária nem discriminatória, nem desprotege a família de facto.
Trata diferentemente, para aquele efeito indemnizatório, o cônjuge legal e o cônjuge de facto, tendo boas razões
para distinguir, aí, o que distinto é, sem, por outro lado, ao negar o direito ao cônjuge de facto passar dos limites da
necessidade, da adequação e da racionalidade, que dão corpo à ideia de proporcionalidade.
É de dizer, nesta última perspectiva, que o direito previsto no nº 2, do art. 496º, CC, não constitui, na óptica da
proporcionalidade, como princípio de direito constitucional inspirador dos direitos fundamentais, uma medida necessária à
protecção do direito fundamental a constituir família, porque não implica com a protecção minimamente exigível àquele

55
elemento base da sociedade, e que, nessa medida, atribuir tal direito ao cônjuge de direito e não ao cônjuge de facto não
constitui defeito de protecção deste último.
O direito que o nº 2, do art. 496º, CC, confere ao cônjuge de direito e nega ao cônjuge de facto (e porque não,
então, ao companheiro da união de facto homossexual?) tem uma justificação que passa muito para além do amor e da
compaixão, porque tem, igualmente, raízes na subordinação a deveres menos próximos do prazer, mas que cimentam a
união, como sejam o auxílio, a cooperação a fidelidade, a entrega total que a união de facto, que se extingue num simples
querer (art. 8º, 1, b, Lei 7/01), decididamente não garante.
O único acórdão do Tribunal Constitucional que, até ao momento, abordou o problema (nº 275/02, no D. R., 2ª
série, nº 169, de 24.07.02, pág. 12.896 e ss.), foi tirado sobre um caso de homicídio doloso e a solução nele encontrada,
diferente da aqui defendida, tem, confessadamente, a marca da gravidade extrema do ilícito.
Vem, pois, com uma faceta de casuísmo que o debilita como precedente jurisprudencial».

Em seus Acórdãos n.ºs 86/2007, 87/2007, ambos de 6.2.2007, e 210/2007, de 21.3.2007, o T.


C. decidiu:

«13. Conclui-se, pois, que a norma do artigo 496.º, n.º 2, do Código Civil, na parte em que exclui o direito a
indemnização por danos não patrimoniais da pessoa que vivia em união de facto com a vítima mortal de acidente de viação
resultante de culpa exclusiva de outrem, não viola nem o princípio da igualdade nem o artigo 36.º, n.º 1, da Constituição
conjugado com o princípio da proporcionalidade, parâmetros constitucionais invocados pelo recorrente (já que nada mais
se pode retirar, no sentido da inconstitucionalidade, da invocação da “concepção constitucional de família vertida no art.º
67.º, n.º 1 da Constituição”, que não tenha já sido considerado na fundamentação que antecede) .

Titulares do direito a indemnização - o lesado; os terceiros – (só?) nos casos vistos (495º
e 496º, nº 3, in fine) de responsabilidade extracontratual.

Enquanto que o Ac. do STJ, de 2.11.95 decidiu que apenas são passíveis de tutela os danos
não patrimoniais sofridos pelo próprio ofendido, outras decisões atenderam aos DNP sofridos por
terceiro, danos que, de acordo com as regras gerais (496º, nº 1 e 563º CC), são claramente
indemnizáveis.

A Relação do Porto, por ac. de 30.3.2000, na Col. 00-II-209 - entendeu ser devida ao
nascituro indemnização pela perda do pai, caso aquele venha a nascer - 66º, n.os 1 e 2, CC.
O Ac. no BMJ 347-398, desfavoravelmente comentado na RLJ 123-185 indemnizou ambos
os pais pela perda de feto (nascituro, sem personalidade jurídica - art. 66º CC) em acidente de viação,
como direito próprio, do n.º 1 e não dos n.os 2 e 3 do art. 496º do CC.
O notável Ac. do STJ, de 25.11.98, já atrás sumariado, foi mais longe e julgou indemnizável o
dano não patrimonial sofrido pelos pais de uma criança gravemente queimada, mas em que não
ocorreu a morte, com base nos art. 496º, nº 1, do CC e 68º, nº 1, da Constituição.
Pode ler-se no texto do acórdão e no tocante a este assunto:

Danos não patrimoniais sofridos pelos pais do menor.


Não é difícil imaginar o seu sofrimento moral.
Diz o processo que «o acidente e suas sequelas causaram aos autores um desgosto e uma dor moral de
proporções máximas».
Nem era preciso dizê-lo.
Mas, apesar de tudo, não é apodíctico que seja um dano indemnizável.
Salva a hipótese de morte da vítima, o direito de indemnização por danos não patrimoniais apenas cabe ao
directamente lesado com o facto ilícito. Di-lo-no, desde logo, o nº 1 do artigo 483º do Código Civil.
Em sede de responsabilidade civil por factos ilícitos e pelo risco, o correspondente crédito de indemnização, tanto
do dano patrimonial como do dano não patrimonial, entronca no titular do direito ou do interesse imediatamente violados, só
excepcionalmente se estendendo a terceiros.
Estão neste último caso as hipóteses consideradas nos diferentes números do artigo 495º do Código Civil (cuja
epígrafe fala, precisamente, em «indemnização a terceiros em caso de morte ou lesão corporal») e no nº 2 e na segunda
parte do nº 3, ambos do artigo 496º do mesmo Código.

56
Estender, por argumento de analogia, o comando do nº 2 do artigo 496º a situações como a dos autos carece de
validade, visto que não procede, neste, a razão justificativa da extensão a terceiros do direito de indemnização pelo dano
não patrimonial, e que é, precisamente, a morte da vítima; como norma excepcional, ela seria, aliás, insusceptível de
aplicação analógica, nos termos do artigo 11º do Código Civil.
Não há, na hipótese, caso omisso, carecido de integração, nos termos do artigo 10º do Código Civil, mas, tão-só,
um caso deliberadamente não regulado .
Por mais intensas e atrozes que tenham sido as dores morais dos pais, elas não deixam de ser uma
consequência indirecta, reflexa, do acto lesivo da integridade física do menor.
Porém, a omissão causadora dos danos implicou directamente com o poder-dever legal dos pais de velarem pela
segurança e saúde do filho (artigo 1878º, nº 1, do Código Civil).
Se do incumprimento do dever contratual da Santa Casa resultaram danos corporais para o menor, então não foi
só o direito absoluto deste à integridade física que ficou directamente violado, mas, também, e directamente, o, também
absoluto, direito (que também é dever) dos pais ao são e harmonioso desenvolvimento físico do seu filho menor ,
direito que a lei lhes garante e reconhece através da atribuição/imposição do poder paternal e do reconhecimento da
paternidade e da maternidade como valores fundamentais, de matriz constitucional.
Enquanto titular do poder paternal, o progenitor tem não só o dever de garantir a segurança e a saúde do filho
como, também, o direito de o ver crescer e desen volver-se em saúde, por força do nº 1 do artigo 68º da
Constituição.
Tal direito, como direito absoluto, é violado directamente pela acção ou pela omissão de que resultam danos
pessoais para o filho menor, e, por isso, a sua violação pode implicar, ao abrigo do nº 1 do artigo 496º do Código Civil,
indemnização por danos não patrimoniais; sem necessidade, pois, do recurso espúrio ao argumento de analogia tirado da
norma do nº 2 do mesmo artigo.
No caso dos autos, a grave omissão (artigo 486º do Código Civil) dos funcionários da Santa Casa (165º e 500º,
nº 1) causou directamente dano ao referido direito dos autores maiores e os danos não patrimoniais resultantes são de
gravidade indiscutível, na perspectiva indemnizatória.
Tomando agora em conta todos os factores que, supra, foram relevados para efeitos de determinação do
montante indemnizatório devido ao menor, e considerando, ainda, que os autores (pais) sofreram «um desgosto e uma dor
moral de proporções máximas», «de par com enorme preocupação pelas consequências das lesões e pelas hipóteses de
um mínimo de recuperação», entendem que tais danos não patrimoniais dos progenitores devem ser compensados com a
quantia de 1.000 000$00, para cada um.

A esta questão de saber se serão ressarcíveis, no âmbito da responsabilidade civil


extracontratual, os danos de natureza não patrimonial suportados por pessoas diversas do
lesado directo (pais cujo filho fica tetraplégico ou psiquicamente afectado, a exigir permanentes
cuidados, marido que fica impotente) Abrantes Geraldes 1 responde afirmativamente, contra o ensino
do Professor Antunes Varela na RLJ 123-255, 256 e 281:

«… o reconhecimento do direito pode assentar no preceituado nos arts. 483.° e 496º, n° 1, normas capazes de
conferir os requisitos formais mínimos exigidos pelo art. 9º, nº 2, para delas arrancar o ressarcimento dos danos não
patrimoniais invocados por quem ainda esteja a coberto da respectiva protecção normativa.
Assim, sem prejuízo dos argumentos de ordem racional referidos por Vaz Serra, pode concluir-se, com Américo
Marcelino, que "o grande princípio consagrado no nº 1 do art. 496.° não põe outras reservas, outras condições, que não
sejam tratar-se de danos tais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito".
Com efeito, tal preceito consagra o princípio geral da ressarcibilidade dos danos de natureza não patrimonial, sem
que dele resulte a intenção declarada do legislador de apenas tutelar os prejuízos que ocorrem na es fera jurídica do lesado
directo ou os que decorrem da sua morte. Por outro lado, tal como se verifica quando a jurisprudência francesa se defronta
com o art. 1382.° do Code Civil, está por demonstrar que o legislador, através do preceituado no art. 483.°, tenha
pretendido restringir ao lesado directo o direito de indemnização. A referência à "violação do direito de outrem", a par da
protecção dos "interesses alheios" deixa ao intérprete suficiente campo de manobra capaz de integrar danos que, posto
que verificados na esfera jurídica de terceiros, ainda sejam imputáveis ao facto ilícito.
Essa imputação verifica-se de forma directa nos casos em que as lesões corporais na pessoa do sinistrado se
repercutem imediatamente noutras pessoas que em simultâneo são afectadas, como ocorre quando se verifica uma
situação de impotência do lesado que logicamente prejudica o relacionamento sexual no âmbito do casamento,
consequência que, assumindo uma especial gravidade, confere ao outro cônjuge o direito de indemnização por danos
próprios.

1
- Estudos em Homenagem ao Professor I. Galvão Telles, Volume IV, pág. 263 e ss

57
Já não é tão directa noutras situações. Ainda assim, desde que as lesões físicas ou psíquicas assumam uma
gravidade que impliquem para os familiares próximos uma situação de angústia ou um elevado encargo pessoal ou
emocional, deve ser-lhes reconhecido um direito de indemnização autónomo enquanto interessados inscritos no âmbito de
protecção das normas definidoras da responsabilidade civil extra-contratual».

E conclui:
«São ressarcíveis os danos não patrimoniais suportados por pessoas diversas daquela que é
directa-mente atingida por lesões de natureza física ou psíquica graves, nos termos gerais do art.
496.°, nº 1, designadamente quando fique gravemente prejudicada a sua rela ção com o lesado ou
quando as lesões causem neste grave dependência ou perda de autonomia do lesado;
Tal direito de indemnização deve ser circunscrito às pessoas indicadas no nº 2 do art. 496.°».

V - NEXO DE CAUSALIDADE entre o facto e o dano - 563º.

Causa virtual é o facto real ou hipotético (veneno) que tenderia a produzir certo dano (morte)
se este não tivesse sido causado por um outro facto que é a causa real (tiro). Salvo em casos
excepcionais - 491º, 492º e 493º, nº 1 - irreleva a causa virtual. Ver A. Varela, Obrigações, 9ª
ed., I, 639 a 643.

Alude-se a causalidade interrompida ou interrupção do nexo causal, quando um facto (causa virtual), adequado
a provocar determinado dano, não chega todavia a ocasioná-lo, porque, entretanto, um outro facto (causa operante),
autónomo do primeiro - quer dizer, não sua consequência adequada - e independentemente dele, produziu o mesmo resul-
tado danoso. Exemplo: A ministra ao cavalo X de B uma dose mortal de veneno, acontecendo, porém, que, antes de se
consumarem os seus efeitos, o cavalo é morto a tiro por C.
A esta figura costuma contrapor-se a da causalidade antecipada ou prematura, que se verifica quando o dano,
provocado por certo facto, se teria produzido mais tarde, em consequência de um outro. Exemplo: E destrói uma tela
famosa de F que pereceria no dia imediato, num incêndio do edifício em que se encontrava, se aquela destruição não
houvesse ocorrido.

Evidencia-se nos dois casos o mesmo fenómeno de causalidade hipotética, embora encarado, respectivamente,
sob o ângulo da causa virtual e da causa operante. Os problemas que se põem são os seguintes: por um lado, o de saber
se a causa virtual ou hipotética do dano pode fundamentar uma obrigação de indemnização do seu autor - o problema da
relevância positiva da causa virtual; por outro lado, o de saber se pode invocá-la o autor da causa operante ou real, para
excluir ou reduzir a obrigação de indemnização que sobre ele impende - o problema da relevância negativa da causa
virtual.
Ora, entende-se que a causa hipotética ou virtual não constitui fundamento de uma obrigação de indemnização,
devendo considerar-se o dano como consequência do facto interruptivo. O autor da causa virtual apenas estará obrigado a
reparar o «efeito parcial», porventura produzido, de que o seu facto foi, na verdade, causa real ou operante.
Atente-se em que consiste a responsabilidade pelo referido «efeito parcial», retomando o exemplo do cavalo de B
envenenado por A e que, entretanto, C abate a tiro. A morte do cavalo foi produzida pelo tiro de C, mas não pode pretender-
se que este tenha causado juridicamente qualquer dano a B, pois o cavalo envenenado, porque morreria logo em seguida,
já nada significava no seu património. Portanto, o dano que corresponde ao valor do cavalo operou-se, efectivamente, em
consequência do facto de A e não do facto de C.
Daí que a responsabilidade de A não resulte de se atribuir relevância positiva à causa virtual, mas tão-só de ele
dever ser responsabilizado pela diminuição do valor do bem - na hipótese equivalendo praticamente à sua completa
destruição - «que foi já consequência dos termos do processo causal hipotético decorridos antes do facto interruptivo».
Apura-se, em suma, «que muitas vezes o princípio, correctamente aplicado, da responsabilidade pelo “efeito parcial”
realmente produzido, envolverá praticamente as mesmas consequências a que levaria a ideia de responsabilizar o autor da
série causal interrompida (dando relevância positiva à causa hipotética) pelo dano que teria causado».

Mas possuirá a causa virtual relevância negativa, isto é, o autor da causa real pode exonerar-se da obrigação
de indemnização, no todo ou em parte, invocando a causa virtual que originaria o mesmo dano?
Reconduzindo o problema a uma questão de causalidade, há que apurar se a causa real pode considerar-se
efectivamente causa do dano, sendo certo que ele sempre se produziria em resultado da causa virtual. E a resposta é a de
que a referida causalidade existe.

58
A causa virtual não possui a relevância negativa de exclui-la, dado que em nada afecta o nexo causal entre o
facto operante e o dano: sem o facto operante o lesado teria um dano idêntico, mas não aquele preciso dano. Assim, existe,
em princípio, a obrigação de indemnizar.
Eis o que se infere no domínio da causalidade. Todavia, encarando o problema noutro plano, o da isenção ou
atenuação da obrigação indemnizatória, verifica-se que pode, excepcionalmente, ser tomada em linha de conta a
circunstância de que o dano viria a produzir-se como consequência da causa virtual ou hipotética - que, nessa medida,
apresenta relevância negativa.

Vários preceitos do Código Civil português expressam a referida posição. Tal sucede nos artigos 491.°, 492.°, nº
1, 493.°, nº 1, 616.°, nº 2, 807.°, nº 2, e 1136.°, nº 2. Observa-se que todos eles patenteiam o traço comum de o
beneficiário da relevância negativa da causa virtual ou hipotética se encontrar numa posição de responsabilidade agravada.
Apreciemos o artigo 491.°, que responsabiliza as pessoas obrigadas à vigilância de incapazes naturais pelos
danos que estes causem a terceiro, «salvo se mostrarem que cumpriram o seu dever de vigilância ou que os danos se
teriam produzido ainda que o tivessem cumprido». O agravamento da responsabilidade resulta, desde logo, de se tratar de
um «casus mixtus» (fortuito e de culpa), pois os danos derivam directamente do acto do incapaz e só indirectamente,
quando derivam, do incumprimento do dever de vigilância. Acresce um outro aspecto: o do agravamento que decorre da
presunção de culpa, que excepciona a regra da responsabilidade extracontratual (art. 487.°, nº 1).
É diante do aludido agravamento duplo da posição do responsável que a lei entende justo admitir a relevância
negativa da causa virtual. Esta opera mesmo em face de culpa provada do responsável.
Valem reflexões similares a respeito dos artigos 492.°, nº 1, e 493.°, nº 1, que se ocupam, respectivamente, da
responsabilidade do «proprietário ou possuidor de edifício ou de outra obra que ruir, no todo ou em parte, por vício de
construção ou defeito de conservação» e da responsabilidade de «quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel com o
dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo de vigilância de quaisquer animais». A mesma responsabili -
dade pelos danos causados a terceiro e as paralelas presunções de culpa e relevância negativa da causa virtual.
O artigo 807.°, nº 2, prevê uma situação concernente à mora debitória, entrando-se na esfera da
responsabilidade contratual, onde a culpa do devedor se presume (art. 799.°, nº 1). Portanto, o agravamento da
responsabilidade terá de procurar-se noutro aspecto. Reside ele no facto de a lei colocar a cargo do devedor moroso o
risco da perda ou deterioração fortuita da coisa, impondo-lhe a indemnização dos prejuízos causados ao credor por essa
perda ou deterioração, ainda que não lhe sejam imputáveis. Em contrapartida deste agrava mento, faculta-se «ao devedor a
possibilidade de provar que o credor teria sofrido igualmente os danos se a obrigação tivesse sido cumprida em tempo».
Caso semelhante patenteia o artigo 1136.°, nº 2, em que a lei agrava a posição do comodatário, enquanto o
responsabiliza pela perda ou deterioração fortuita da coisa comodada que aplicou a fim diverso daquele a que a mesma se
destina ou consentiu que terceiro a usasse sem para isso estar autorizado. Isenta-se, porém, o comodatário da responsa -
bilidade, desde que prove que a perda ou deterioração «teria igualmente ocorrido sem a sua conduta ilegal».
Uma derradeira situação resulta do artigo 616.°, nº 2, relativo à impugnação pauliana (a «acção pauliana» do
direito brasileiro). É assim: julgada procedente a impugnação pauliana de um acto de alienação, o adquirente de má fé
toma-se responsável pelo valor tanto dos bens que tenha alienado como dos que hajam perecido ou se hajam deteriorado
por caso fortuito. Mais uma vez, todavia, a lei tempera a solução, admitindo a prova de que «a perda ou deterioração se
teriam igualmente verificado no caso de os bens se encontrarem no poder do devedor» - Almeida Costa, na RLJ 134-
294/296 .

Embora a causalidade adequada vá ser mais profundamente analisada no âmbito da


obrigação de indemnizar, deixa-se transcrito o sumário de Ac. do STJ (Cons.º Noronha
Nascimento), de 3.12.98, no BMJ 482-207:

« IV - A nossa lei civil (artigo 563º do Código Civil) consagra a teoria da causalidade adequada, teoria esta que
admite duas variantes: a positiva e a negativa.
Na variante positiva, que é mais restritiva e mais conexionada com a valoração ética do facto (pelo que é
utilizada para a fixação do nexo causal no âmbito do direito criminal) a previsibilidade do agente tem que se referir ao facto
e à amplitude dos danos que dele emergem; ou seja, o agente só é culpado do que previu, quanto ao facto que
praticou e quanto aos danos que perspectivou.
Na variante negativa - a que está consagrada no artigo 563º do Código Civil - que é mais ampla e que tem um
sentido ético da culpa menos restrito (por isso que é mais utilizada no direito civil, na teoria da responsabilidade), a
previsibilidade do agente reporta-se ao facto e não aos danos, o que significa que o agente será sempre responsável
por danos que jamais previu, desde que provenham de um facto - condição deles - que ele praticou e que
visualisou. Assim, um facto é causal de um dano quando é uma de entre várias condições sem as quais o dano não se
teria produzido.

59
V - Não há nexo causal entre o acidente e a morte do acidentado quando não há qualquer facto provado que
permita considerar o acidente como condição causal da morte, sendo certo que a causalidade entre facto e dano tem de
ser provada pelo autor porque é um facto constitutivo (artigo 342º, nº 1, do Código Civil) que, se essa prova se não fizer,
quem sofre o respectivo ónus é a parte a quem incumbia essa prova (artigo 346º, in fine, do Código Civil).

O assim decidido é jurisprudência constante do STJ, como pode ver-se dos seguintes
sumários:
O art.º 563 do CC consagra a doutrina da causalidade adequada na sua formulação negativa, que não pressupõe
a exclusividade do facto condicionante do dano, nem exige que a causalidade tenha de ser directa e imediata, pelo que
admite:
- não só a ocorrência de outros factos condicionantes, contemporâneos ou não;
- como ainda a causalidade indirecta, bastando que o facto condicionante desencadeie outro que directamente
suscite o dano - Ac. de 07-04-2005, na Revista n.º 294/05 - 2.ª Secção

I - Na concepção mais criteriosa da doutrina da causalidade adequada, para os casos em que a obrigação de
indemnização procede de facto ilícito culposo, quer se trate de responsabilidade extracontratual, quer contratual - a
"formulação negativa", acolhida no art.º 563 do CC segundo a jurisprudência dominante do STJ - o facto que actuou como
condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo
indiferente para a verificação do mesmo, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excepcionais, anormais,
extraordinárias ou anómalas que intercederam no caso concreto.
II - Para que um dano seja considerado efeito adequado de certo facto, em corolário da teoria sumariada em I,
não tem que se tornar previsível para o seu autor. A previsibilidade é decerto exigível relativamente, v. g., ao requisito da
culpa, visto constituir um elemento (intelectual) desta em qualquer das suas modalidades, mas não em relação aos danos.
III - Formulados pedidos de indemnização pela perda integral do lucro de comercialização de um lote de vinhos,
que se deterioraram por facto ilícito e culposo da transportadora Ré, e pela indemnização das despesas inutilizadas no
lugar de destino concernentes a essa comercialização, é inconciliável o ressarcimento cumulativo das duas sortes de
danos, uma vez que o lucro esperado não podia ser auferido sem que tais despesas fossem realizadas.
IV - A procedência, por conseguinte, do pedido de indemnização da perda do lucro, esgota e consome a
protecção do interesse do lesado mediante a indemnização das despesas de comercialização, determinando a
improcedência deste outro pedido - Ac. de 07-04-2005, na Revista n.º 4474/03 - 2.ª Secção


VII - O art.º 563 do CC consagrou, quanto ao nexo de causalidade, a doutrina da causalidade adequada, na
formulação negativa de Enneccerus-Lehman, nos termos da qual a inadequação de uma dada causa para um resultado
deriva da sua total indiferença para a produção dele, que, por isso mesmo, só ocorreu por circunstâncias excepcionais ou
extraordinárias.
VIII - Esta doutrina, nomeadamente no que concerne à responsabilidade por facto ilícito culposo - contratual ou
extracontratual - deve interpretar-se, de forma mais ampla, com o sentido de que
- o facto que actua como condição só deixará de ser causa do dano desde que se mostre por sua natureza de
todo inadequado e o haja produzido apenas em consequência de circunstâncias anómalas ou excepcionais e de que
- a citada doutrina da causalidade adequada não pressupõe a exclusividade da condição, no sentido de que esta
tenha só por si determinado o dano - 03-03-2005, na Revista n.º 4249/04 - 7.ª Secção

IV - O facto é causa adequada do dano quando, considerando a sua natureza intrínseca e as circunstâncias
conhecidas ou cognoscíveis do agente, se mostra idóneo, do ponto de vista do direito, para aumentar o risco de produção
do prejuízo - Ac. de 15-03-2005, na Revista n.º 4808/04 - 6.ª Secção

Na Revista 1564.03 – 6ª secção, escrevi:

«Nos termos do art. 483º, n.º 1, do CC, aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de
outrem, ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos
danos resultantes da violação.
Dispõe conformemente o art. 563º do CC que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que
o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.
Nos termos do n.º 1 do art. 570º do mesmo diploma, quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a
produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes

60
e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo
excluída.
No ensinamento dos Prof. Pires de Lima e Antunes Varela 2, a obrigação de reparar um dano supõe a existência
de um nexo causal entre o facto e o prejuízo; o facto, lícito ou ilícito, causador da obrigação de indemnizar deve ser a causa
do dano, tomada esta expressão agora no sentido preciso de dano real e não de mero dano de cálculo. A disposição deste
artigo, pondo a solução do problema na probabilidade de não ter havido prejuízo se não fosse a lesão, mostra que se
aceitou a doutrina mais generalizada entre os autores - a doutrina da causalidade adequada -, que Galvão Telles formulou
nos seguintes termos: «Determinada acção ou omissão será causa de certo prejuízo se, tomadas em conta todas as
circunstâncias conhecidas do agente e as mais que um homem normal poderia conhecer, essa acção ou omissão se
mostrava, à face da experiência comum, como adequada à produção do referido prejuízo, havendo fortes probabilidades de
o originar» (Manual de Direito das Obrigações, n.º 229).
Vaz Serra, depois de referir alguns casos em que não há uma causa adequada, afirma igualmente: «Não podendo
considerar-se como causa em sentido jurídico toda e qualquer condição, há que restringir a causa àquela ou àquelas
condições que se encontrem para com o resultado numa relação mais estreita, isto é, numa relação tal que seja razoável
impor ao agente responsabilidade por esse mesmo resultado. O problema não é um problema de ordem física ou, de um
modo geral, um problema de causalidade tal como pode ser havido nas ciências da natureza, mas um problema de política
legislativa: saber quando é que a conduta do agente deve ser tida como causa do resultado, a ponto de ele ser obrigado a
indemnizar. Ora, sendo assim, parece razoável que o agente só responda pelos resultados para cuja produção a sua
conduta era adequada, e não por aqueles que tal conduta, de acordo com a sua natureza geral e o curso normal das
coisas, não era apta para produzir e que só se produziram em virtude de uma circunstância extraordinária» (est. cit., n.º 5,
no BMJ n.º 84).
O Professor Antunes Varela3 ensina que a «resposta ao problema da causalidade (ou seja, do nexo exigível entre
o facto e o dano, para que este seja indemnizável) vem dada no artigo 563º cujo texto é o seguinte: «A obrigação de
indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão».
Os trabalhos preparatórios do Código, na parte referente a este preceito, revelam de modo inequívoco que com
ele se quis consagrar a teoria da causalidade adequada. Faz-se aí apelo ao prognóstico objectivo que, ao tempo da lesão
(ou do facto), em face das circunstâncias então reconhecíveis ou conhecidas pelo lesante, seria razoável emitir quanto à
verificação do dano. A indemnização só cobrirá aqueles danos cuja verificação era lícito nessa altura prever que não
ocorressem, se não fosse a lesão. Ou, por outras palavras: o autor do facto só será obrigado a reparar aqueles danos que
não se teriam verificado sem esse facto e que, abstraindo deste, seria de prever que não se tivessem produzido.
A fórmula adoptada não é, todavia, inteiramente feliz para exprimir o pensamento do legislador.
Há, com efeito, danos que o lesado muito provavelmente não teria sofrido se não fosse o facto ilícito imputável ao
agente, e que, no entanto, não podem ser incluídos na obrigação de indemnização, porque isso repugnaria ao pensamento
da causalidade adequada que o artigo 563º indubitavelmente quis perfilhar.
Tomado ao pé da letra, o texto do artigo 563º dir-se-ia consagrar a tese da pura condicionalidade, assente na
teoria da equivalência das condições. Pelo seu espírito, colhido principalmente através dos trabalhos preparatórios do
Código, a disposição quer sem dúvida consagrar o recurso ao prognóstico objectivo, nos termos em que o recomenda a
doutrina da causalidade adequada.
Deste modo, para que um dano seja reparável pelo autor do facto, é necessário que o acto tenha actuado como
condição do dano. Mas não basta a relação de condicionalidade concreta entre o facto e o dano. É preciso ainda que, em
abstracto, o facto seja uma causa adequada (hoc sensu) desse dano».
«Pode-se, assim, afirmar que a causa juridicamente relevante será a causa em abstracto adequada ou
apropriada à produção desse dano segundo regras da experiência comum ou conhecidas do lesante e que pode ainda ser
vista, numa formulação positiva, como a condição apropriada à produção do efeito segundo um crité rio de normalidade, ou,
numa formulação negativa, que apenas exclui a condição inadequada, pela sua indiferença ou irrelevância, verificando-se
então o efeito por força de circunstâncias excepcionais ou extraordinárias 4».

«… aderimos ao conceito de causa adequada que nos dá a formulação negativa, que se deve a Enneccerus-
Lehmann, segundo a qual, o facto que seja, no caso concreto, condição sine qua non do dano, é em princípio causa
adequada dele, só deixando de ser se, em abstracto e dada a sua natureza geral, se mostrar de todo indiferente para a
verificação do dano, tendo no caso concreto provocado o dano apenas por virtude de circunstâncias excepcionais,
anormais, extraordinárias ou anómalas, sendo por isso inadequado para o dano.
Também no acórdão do STJ, de 3.12.1998 (no BMJ 482, pág. 207 e segs.) se entendeu que o artº 563º do CC
consagra a teoria da causalidade adequada na variante negativa, que é a mais ampla e que tem um sentido ético da culpa
menos restritivo, de acordo com a qual a previsibilidade do agente se reporta ao facto e não aos danos, o que significa que
2
- CC Anotado, I, 4ª ed., notas aos art. 562º e 563.
3
- Das Obrigações em Geral, I, 9ª ed., 928.
4
- Ac. do STJ (Garcia Marques), de 10.3.98, no BMJ 475-641; no mesmo sentido, o Ac. do mesmo STJ (Silva
Paixão), de 15.1.2002, na Col. Jur. (STJ) 2002-I-38.

61
o agente será sempre responsável pelos danos que jamais previu, desde que provenham de um facto – condição deles –
que ele praticou e que visualizou, sendo um facto causal de um dano quando é uma de entre várias condições sem as
quais o dano não se teria produzido.
Na docência de Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª Edição, pág. 894 e 900), tratando-se de
responsabilidade contratual – como é o caso dos autos - desde que o devedor ou lesante praticou um facto ilícito e este
actuou como condição de certo dano, justifica-se que o prejuízo recaia, em princípio, sobre quem, agindo ilicitamente, criou
a condição do dano, o que só deixa de ser razoável a partir do momento em que o facto ilícito, na ordem natural das coisas,
se pode considerar de todo em todo indiferente para a produção do dano registado por terem concorrido decisivamente
circunstâncias extraordinárias, fortuitas ou excepcionais.

A recorrente tentou, através de consultores externos, pôr em funcionamento o processo informático criado e
fornecido pelo recorrido, mas não obstante isso, depararam-se obstáculos no programa I..., tais como dados incorrectos,
aparecimento de mensagens de erro e bloqueio do sistema, situação que teve origem na falta de «documentação» do
programa, levada pelo recorrido quando deixou a recorrente, para quem trabalhava, e por ele não devolvida.
Feita uma análise à situação, com assessoria técnica da L..., concluiu-se que a solução mais eficiente e rentável
seria a de abandonar totalmente a programa I... e adquirir novo software, que pudesse responder adequadamente às
necessidades da empresa.
Consultado o mercado, a recorrente decidiu-se pela aquisição do programa I... para substituir integralmente o
programa I..., com o que despendeu 30.313.442$00.
É certo que a recorrente continuou a usar durante vários meses o programa I..., após a saída do recorrido, mas
isso sucedeu porque pensou que fosse possível ultrapassar os problemas por recurso à consultadoria externa, e porque
não era possível fazer a transferência imediata e total de um sistema informático para o outro, numa actividade como a da
recorrente, que labora continuamente, sendo necessário formar pessoal, testar o programa e ir passando gradualmente o
serviço de um sistema para o outro, departamento a departamento, fazendo ao mesmo testes de segurança.
É igualmente certo que o recorrido quando comunicou à recorrente que cessava as suas funções na empresa, lhe
sugeriu a realização de um contrato de manutenção, como consultor externo, mas isso é irrelevante, porquanto a
recorrente, mercê do princípio da autonomia privada, na vertente negativa de contratação, não tinha obrigação de aceitar
qualquer negociação desse tipo, até porque a relação laboral de confiança com o recorrido poderia estar afectada, e este
tinha ido viver para o estrangeiro, como invoca na petição de embargos.
Resumindo, a aquisição de um novo programa informático pela recorrente decorreu da circunstância de o
recorrido se ter recusado a entregar àquela a documentação do I..., como era obrigação contratual dele (cfr. facto nº 5 e artº
405º do CC).
Efectivamente, não obstante as tentativas para superar os problemas causados pela falta da aludida
documentação, acabou por se chegar à conclusão de que não era viável, económica e tecnicamente, ultrapassar os
problemas do I... sem a devolução da sua documentação (referida no ponto 28 da matéria de facto provada).
Tornou-se imperioso adquirir outro sistema informático, demonstrado ter essa necessidade sido originada pelo
facto de o recorrido não ter devolvido a documentação do programa I....» Ac. do STJ (Cons.º Faria Antunes) de
25.9.2007, P.º 07A2206.

«A propósito do nexo de causalidade, expressa a lei que, quem estiver obrigado a reparar um dano, deve restituir
a situação que existiria se não tivesse ocorrido o evento que obriga à reparação (artigo 563º do Código Civil).
Reportando-se a indemnização aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão,
reconduz a lei a causalidade à probabilidade, ou seja, afasta-se da ideia de que qualquer condição é causa do dano,
consagrando a concepção da causalidade adequada.
Dir-se-á, assim, decorrer do artigo 563º do Código Civil não bastar que o evento tenha produzido certo efeito para
que, de um ponto de vista jurídico, se possa considerar causado ou provocado por ele, antes sendo necessário que o
primeiro seja uma causa provável ou adequada do segundo.
Aproximando as referidas normas ao caso vertente, dir-se-á, por um lado, que no processo causal conducente a
uma situação de dano concorrem múltiplas circunstâncias, umas que se não tivessem ocorrido ela não teria eclodido, e
outras que, mesmo não verificadas, não excluiriam a sua ocorrência.
E, por outro, não ser suficiente, para que o mesmo se verifique, que a acção ou a omissão do agente tenha sido
conditio sine qua non do dano, exigindo-se que ela seja adequada em abstracto a causá-lo.
Assim, no referido contexto, o nexo de causalidade implica que a acção ou a omissão do agente seja uma das
condições concretas do evento, e que, em abstracto, seja adequada ou apropriada ao seu desencadeamento.
Em consequência, o juízo sobre a causalidade integra, por um lado, matéria de facto, certo que se trata de saber
se na sequência de determinada dinâmica factual um ou outro facto funcionou efectivamente como condição
desencadeante de determinado efeito.
E, por outro, matéria de direito, designadamente a determinação, no plano geral e abstracto, se aquela condição
foi ou não causa adequada do evento, ou seja se, dada a sua natureza, era ou não indiferente para a sua verificação.

62
Este Tribunal pode sindicar o juízo da Relação no que concerne à segunda das mencionadas vertentes do nexo
de causalidade adequada, mas não o pode sindicar no que concerne à primeira (artigos 722º, nº 2, e 729º, nº 2, do Código
de Processo Civil).
A Relação considerou não ter sido provado o nexo de causalidade entre o comportamento do autor no que
concerne à manutenção do edifício e às obras de reforço das respectivas fundações em causa, julgamento que não
podemos aqui alterar.
Mas resulta dos factos provados que a deterioração do prédio do recorrente resultou, em processo de
agravamento das sucessivas intervenções da actividade da construção civil, primeiramente de T..- Terraplanagens de
Aveiro, Ldª sob mandato de AA, Ldª, e, posteriormente, de BB, SA, também sob mandato da segunda das referidas
sociedades.
Em consequência, a conclusão é no sentido da existência de nexo de causalidade adequada entre as obras de
construção civil realizadas pela AA, Ldª, através de T..., Ldª, primeiramente, e de BB, SA, posteriormente, no plano da
acção e da omissão de medidas de prevenção e segurança, e os estragos no prédio do recorrente, que implicaram a sua
reparação» - Ac. do STJ (Cons.º Salvador da Costa) de 22.4.2008, no P.º 08B626 .

«2.2- Como já se insinuou, artigo 563.° do Código Civil consagra o princípio da causalidade adequada na sua
formulação negativa.
E este Supremo Tribunal vem entendendo que “o facto que actuou como condição do dano só deixará de ser
considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo indiferente (gleichgultig) para a
verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou
anómalas que intercedam no caso concreto. “(cf. ainda os Acórdãos de 4 de Novembro de 2004 — P.° 2855/04-2.’ de 13 de
Janeiro de 2005 — P.° 4063/04-7°; Prof. A. Varela, in ‘Das Obrigações em Geral’, 10.ª ed, I, 893, 899, 890/1 — ‘… do
conceito de causalidade adequada pode extrair-se, desde logo, como corolário, que para que haja causa adequada, não é
de modo nenhum necessário que o facto, só por si, sem a colaboração de outros, tenha produzido o dano. Essencial é que
o facto seja condição do dano, mas nada obsta a que como frequentemente sucede, ele seja apenas uma das condições
desse dano. ‘)

É a consagração do ensinado por Enneccerus-Lehman, que para o Dr. Ribeiro de Faria, conduz a que “a
inadequação de uma dada causa para um resultado deriva da sua total indiferença para a produção dele, que, por isso
mesmo, só ocorreu “ pelas referidas circunstâncias excepcionais ou extraordinárias. (apud ‘Direito das Obrigações’, 1, 502)
e que o Prof. Almeida Costa diz dever interpretar-se no sentido de que “ o facto que actua como condição só deixará de ser
causa do dano desde que se mostre por sua natureza de todo inadequado e o haja produzido apenas em consequência de
circunstâncias anómalas ou excepcionais sendo que a citada doutrina da causalidade adequada ‘não pressupõe a
exclusividade da condição, no sentido de que esta tenha só por si determinado o dano.’ (in ‘Direito das Obrigações’, 632).

Parte-se, pois, de uma situação real, posterior ao facto, e até ao dano, e afirma-se que o segundo decorreria
daquele perante um desenvolvimento normal, ou seja, o dever de indemnizar existe em relação aos danos que terão
provavelmente resultado da lesão.
Ou como julgou este Supremo Tribunal “a inadequação de uma dada causa para um resultado deriva da sua total
indiferença para a produção dele, que, por isso mesmo, só ocorreu por circunstâncias excepcionais ou extraordinárias’”
(Acórdão de 20 de Outubro de 2005 — 05B2286).
O facto terá de ser, em concreto, “conditio sine qua non” do dano mas também ser, em abstracto, causa normal,
ou adequada da sua verificação.
É o que a doutrina que o direito Norte-Americano chama de “substantial factor formula.”
Também aí, dano só não se considera causado pelo facto se este apenas o produziu por circunstâncias anómalas
e imprevisíveis.
Mas é-o ainda que causado indirecta, ou mediatamente, pelo facto.
Este entendimento resulta da conjugação dos artigos 562.° (‘...a situação que existiria...’) e 563.° (‘...danos que o
lesado provavelmente não teria sofrido...’) do Código Civil. (cf Prof. Pessoa Jorge, ‘Ensaio sobre os pressupostos da
responsabilidade civil’, 410-nota 373; Prof. Galvão Telles, ‘Direito das Obrigações’, 409 ss).”» - Ac. do STJ (Cons.º S.
Povoas) de 17.6.2008, no P.º 08A1700.

B) - R. Extracontratual pelo RISCO

Este tipo de responsabilidade nasceu da necessidade de reparar danos reconhecidamente


indemnizáveis mas produzidos sem culpa, antes resultantes da forma de organização do trabalho e
da utilização de máquinas com consequente diluir de responsabilidades; assenta na ideia ubi

63
commoda ibi incommoda. Também a responsabilidade sem culpa estimulará o empresário a
aperfeiçoar a organização e por aí diminuir a sinistralidade.
Esta mesma ideia de socialização do risco levou a alargar a responsabilidade sem culpa à
circulação rodoviária, criando-se o seguro obrigatório e o Fundo de Garantia Automóvel para os
casos de falta de seguro ou de seguro ineficaz.

A responsabilidade pelo risco prescinde da culpa e, por vezes, da própria ilicitude, como
acontece na responsabilidade por factos naturais, de terceiro ou do próprio lesado.
Mas na regulação desta responsabilidade faz-se frequente apelo às regras da
responsabilidade por culpa, pois é a lei - 499º - que manda aplicar à responsabilidade pelo
risco as normas da responsabilidade por factos ilícitos.

I - Comitente – 500.º

É claro caso de responsabilidade objectiva, pois o comitente responde


independentemente de culpa e mesmo que o comissário tenha agido contra as instruções
recebidas. Restar-lhe-á o reembolso pelo comissário, de duvidosa solvabilidade.
Mas são necessários três requisitos:
a) - Comissão - que implica liberdade de escolha (?) pelo comitente e
subordinação do comissário ao comitente, que tem o poder de direcção, de dar instruções ou ordens
- nº 1.
b) - exercício da função - nº 2, in fine - com a fórmula legal quis-se afastar da
responsabilidade do comitente os actos que apenas têm um nexo temporal ou local com a
comissão.
c) - responsabilidade do comissário. Em princípio o comitente só responde, se
tiver havido culpa do comissário.

Por comitente , entende-se a pessoa que, por livre nomeação ou mera designação de facto,
encarrega outra de um serviço ou comissão, quer gratuita, quer retribuída, no seu próprio interesse,
permanente ou ocasional (pressupõe uma relação de autoridade).
Por comissário , entende-se aquele que aceita voluntariamente o encargo, ficando sob as
ordens ou instruções do comitente, mesmo que este se proponha utilizar os conhecimentos ou melhor
preparação técnica daquele (pressupõe sempre uma relação de subordinação, a apreciar no caso
concreto, segundo as circunstâncias).

No “Código civil Anotado”, 4ª ed., pág. 507, dos Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, lê-se
que o termo «comissão » não tem aqui o sentido técnico preciso, que reveste nos arts. 266º e segs.,
do Cód. Comercial, mas o sentido amplo de serviço ou actividade realizada por conta e sob a
direcção de outrem, podendo essa actividade traduzir-se num acto isolado ou numa função
duradoura, ter carácter gratuito ou oneroso, manual ou intelectual .
O Prof. Menezes Cordeiro entende que a comissão abrange toda a tarefa de que o
comissário foi incumbido pelo comitente e surge para efeitos de responsa-bilidade desde que exista
uma escolha de comissário, o comissário actue por conta do comitente e se estabeleça uma relação
de subordinação do primeiro para com o segundo - Col. STJ 01-I-130.

Mantém-se a responsabilidade do comitente: o facto danoso deve estar numa relação de


causalidade ou conexão com a função», «deve ser praticado com os meios postos à
disposição do comissário em razão das suas funções», «deve ser inspirado pelo interesse
do comitente», «a incumbência feita ao comissário deve ser pressuposto indispensável do

64
dano, de tal sorte que o comissário não teria praticado o facto fora da comissão» - BMJ 413-
496: - gerente de banco que angariava aceites de favor para encobrir financiamentos que o Banco de
outra forma não faria; Col. Jur. (STJ) 01-III-27: sociedade dona de discoteca não é responsável por
agressão dos seus seguranças a terceiros se praticada a agressão, ainda que na discoteca, por razões
pessoais e por vingança de anteriores agressões dos clientes da discoteca aos agora seguranças.

O gerente de uma sociedade por quotas que conduz um veículo da sociedade é


comissário desta – Col. STJ 2001-II-23.

Contra:
«Temos apenas como factos a considerar os mencionados nos n.ºs 8, 14 e 17 da matéria de facto: “aquando do
acidente, o condutor do QZ provinha da casa de um cliente da “Mármores SSSS, Lda”, a quem havia acabado de vender
pedra mármore; era sócio e gerente da sociedade “Mármores SSSS. L.da”; e trabalhava para a sociedade proprietária
deste veículo, sendo esse trabalho remunerado”.

Não se provando a relação de trabalhador-entidade patronal, resta apenas averiguar se há uma relação de
comissão por o condutor do veículo ser sócio gerente da sociedade.

Ora, essa questão vem muito bem explicada por Mota Pinto (8) (9) quando defende que o nexo que liga os
órgãos da pessoa colectiva e esta é de verdadeira organicidade e não de simples representação; só assim se pode
considerar que a pessoa colectiva tem capacidade para o exercício de direitos “pois a relação entre um órgão e o ente em
que se integra, é de verdadeira identificação e, assim, agindo o órgão é a própria pessoa que age.”

Se se concluísse pela representação, então (10) devia rejeitar-se a tese da capacidade para o exercício de
direitos das pessoas colectivas, pois haveria autonomia entre as personalidades jurídica do representante e do
representado.

A conclusão a que o Mestre chega é fundamentada na lei: “infere-se da solução dada pela lei a um concreto
problema da regulamentação: o problema da responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas”, que apenas
“pode resultar dum comportamento (acção ou omissão) próprio”

Nem na representação legal nem na voluntária – menos nos casos das relações de comitente-comissário – a lei
impõe aos representados “a obrigação de indemnizar os danos causados a outrem pelos seus representantes, mesmo que
estes tenham sido causados em conexão com as suas funções”.

Na representação legal nenhuma norma o impõe, estando até excluída na norma genérica do art. 483.º e na
representação voluntário apenas o art. 500.º do CC a admite, havendo uma relação de dependência entre representante e
representado.

Conclui (11) que as pessoas colectivas têm capacidade para o exercício de direitos porque estatuindo no art.
165.º do CC a responsabilidade civil das pessoas colectivas, as pessoas físicas que agem em seu nome e no seu interesse
são ou integram verdadeiros órgãos.

“A situação (12) prevista no art. 500.º abrange apenas um sector caracterizado da representação voluntária: os
casos em que o procurador pode ser considerado um comissário nos termos e para os efeitos do mesmo artigo. Ora, tal
qualificação só lhe pode caber quando estiver numa relação de dependência em face do representado – quando estiver
submetido a um poder de direcção, a uma autoridade deste. Só então se poderá dizer que foi encarregado de uma
comissão, nos termos do referido artigo 500.º. Sendo assim, tal situação nenhuma analogia apresenta com a ligação entre
a pessoa colectiva e os seus “representantes”, pois estes –pelo menos o órgão mais qualificado – não são encarregados de
uma comissão, mas são eles próprios os formuladores da vontade da pessoa colectiva, os titulares de toda a iniciativa e
não meros comitidos”.

Portanto, sendo o sócio gerente (13) da sociedade a conduzir o veículo (14), tudo se passa como sendo a própria
sociedade a fazê-lo.

A entender-se doutro modo, as sociedades agiriam sempre por intermédio de comissário, presumindo-se sempre
a sua culpa, no contexto do art. 503.º, 3 do CC, o que colocaria as sociedades numa posição bem diferente da de uma

65
pessoa singular que, conduzindo o seu próprio veículo, apenas responde pelo risco próprio da sua circulação, não se
provando a culpa de qualquer dos condutores; nunca se presume a culpa nos termos do art. 503.º, 3 do CC, a menos que
se prove uma relação de comissão, nos termos do art. 500.º, 1 do CC (15).
Quer o art. 165.º (16) do CC quer o art. 6.º, 5 (17) do CSC – textos semelhantes - remetem para a
responsabilidade dos comitentes pelos actos dos seus comitidos, devendo entender-se que quer um quer outro dos
dispositivos citados pressupõem sempre uma relação de comissão.
Se é o próprio órgão a agir, a sociedade responde ou por culpa ou pelo risco, verificado os respectivos
pressupostos.

No caso dos autos, não se provando uma relação de comissão (18), a sociedade R. responde apenas pelo risco
da circulação do veículo, nos termos do art. 503.º, 1 do CC, por o veículo circular no seu interesse e tendo ela a sua
direcção efectiva, pois, como diz A. Varela (19), “tem a direcção efectiva do veículo a pessoa que, de facto, goza ou usufrui
as vantagens dele, e a quem, por essa razão, especialmente cabe o controlar o seu funcionamento”.
O detentor do veículo é quem tem a sua direcção efectiva – “elemento fundamental que serve de suporte legal à
responsabilidade objectiva na circulação terrestre”(20)..

Assim, sendo o seu sócio gerente a conduzi-lo e provindo da casa de um seu cliente, a quem acabara de vender
pedra mármore, provado está o circunstancialismo legal que permite impor à R. a responsabilidade objectiva do acidente
ocorrido, mas apenas no contexto do art. 503.º, 1 do CC que não com a presunção de culpa a que se refere o n.º 3 do
mesmo normativo.» Ac. do STJ (Cons.º Pinto Montes) de 19.6.2008, P.º 08B1754.

Sobre responsabilidade da pessoa colectiva por actos ou omissões de seus agentes,


representantes ou mandatários (art. 165º e 500º) pode ver-se o Ac. do STJ de 18 de Junho de
1996, na Col. STJ 96-II-142:

«Dispõe o mencionado art. 165º que "as pessoas colectivas respondem civilmente pelos actos ou omissões dos
seus representantes, agentes ou mandatários nos mesmos termos em que os comitentes respondem pelos actos ou
omissões dos seus comissários".
Decorre do mesmo artigo que o regime de responsabilidade civil das pessoas colectivas é afinal idêntico ao
previsto no artigo 500º do já aludido Código no que tange à responsabilidade do comitente.
Como ensina Mota Pinto, in ob. e loc. citados, para que a pessoa colectiva responda civilmente devem verificar-
se os pressupostos seguintes:
"1) - Que sobre o órgão, agente ou mandatário recaia igualmente a obrigação de indemnizar…".
"2) - Que o acto danoso haja sido praticado pelo órgão, agente ou mandatário no exercício da função que lhe foi
confiada".
3) - Que "ao lado da pessoa colectiva fique igualmente adstrito à obrigação de indemnizar o órgão, agente ou
mandatário (artigo 500º, nº 1)".
4) - Que "a pessoa colectiva que tiver satisfeito a indemnização ao lesado tenha direito de regresso contra o
órgão, agente ou mandatário, podendo exigir-lhe o reembolso de tudo quanto haja pago, desde que tenha havido culpa
deste no plano das relações internas" e isso em face da responsabilidade contratual do órgão, agente ou mandatário para
com a pessoa representada.
5) - Que, de igual modo, "o órgão, agente ou mandatário, desde que tenha satisfeito a indemnização à vítima
possa exercer o direito de regresso ou recursória contra a pessoa colectiva", se não houver da sua parte culpa que o
responsabilize no plano das relações internas.

Mas, para lá da autorizada opinião de Mota Pinto nos termos que antes se deixaram expressos, não pode
esquecer-se o ensinamento, em sentido idêntico, de outros ilustres autores como Almeida Costa, in "Direito das
Obrigações", 1994, 6ª edição, págs. 516-521, Menezes Cordeiro, in "Direito das Obrigações", 1991, 2ª edição, vol. II, págs.
373 e segs., Pessoa Jorge, in "Ensaio sobre os pressupostos da Responsabilidade Civil", 1968, págs. 147e segs., e, ainda,
Calvão da Silva, in "Responsabilidade Civil do Produtor, págs. 366 e segs.
De salientar ainda o que referem, acerca da temática da responsabilidade das pessoas colectivas e dos
comitentes, Pires de Lima e Antunes Varela, nos comentários relativos aos artºs 165º, 493º e 500º, in "C. C. Anotado",
1987, 4ª edição, vol. I, a págs 167 e 168, 495 e 496 e, ainda, 507 a 510. E do mesmo modo não é de esquecer o artigo
998º do C. Civil relativo à responsabilidade por factos ilícitos das sociedades, que com aqueles normativos deve
concatenar-se, sendo oportuno o comentário inserto no aludido "C. C. Anotado", 1968, 1ª edição, vol. II, págs. 249 e 250.
Também a jurisprudência tem tomado posição convergente no sentido da existência da responsabilidade civil das
pessoas colectivas por acto ou omissão dos respectivos órgãos, agentes ou mandatários, como se alcança dos Acórdãos
deste Supremo, de 11/01/1972, in BMJ, 213-203, de 10/01/1975, in BMJ. 243-240, de 11/06/1975, in BMJ. 248-406, de

66
19/10/1976, in BMJ. 260-155, de 17/11/1977, in BMJ. 271-201, de 26/10/1978, in BMJ. 280-300, e de 14/11/1984, in BMJ.
351, 408.
Por último impõe-se lembrar o que diz Vaz Serra, a propósito da responsabilidade civil das pessoas colectivas, in
BMJ. 85 -204. Refere este autor que "tratando-se de grandes ou médias empresas em que seja habitual o emprego de
terceiros" … e em que "a complexidade dos trabalhos aumente o risco a que terceiros estão sujeitos pela acção desses
auxiliares, ou de comissão especialmente perigosa para terceiros responde o comitente, independentemente de culpa sua,
pelos danos que o comissário causar".
Pouco depois, citando Quagliariello, diz ainda que "é suficiente que o facto ilícito tenha sido ocasionado pela
incumbência confiada. Não é preciso uma relação de causalidade entre a prestação do autor do facto ilícito e o mesmo
facto, basta que o primeiro constitua um indispensável pressuposto do dano, quer dizer, que se o dependente não tivesse
sido adstrito àquela actividade não se teria podido verificar o ilícito, mesmo que este tenha sido cometido contrariando as
disposições impostas pelo dador do trabalho".

3) Dito isto vamos passar a focar a 2ª questão o que fazemos como se segue:
Considerando o que vimos de explanar em 2) que antecede e a matéria de facto apurada e referida em A) Os
Factos Provados, podemos desde já dizer que assiste razão à autora, ora recorrente.
a) Estabelece o artigo 493º, nº 2, do C. Civil, que "quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade,
perigosa por natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou
todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir".
Vê-se desta norma - onde na sua última parte está consagrada a inversão do ónus da prova - que impendia sobre
a R. recorrida "ECE", na tese da A. a causadora dos danos, o dever de provar o emprego de todas as cautelas necessárias
à boa execução dos trabalhos Ievados a cabo.
Da matéria fáctica apurada verifica-se que aquela R. não conseguiu fazer essa prova sendo certo que a
actividade normal da R., se bem que ligada à construção civil, se configura como engenharia de alto risco, aliás assim
qualificada pela própria R. seguradora, o que nos determina - e logicamente se impõe a que entendamos dever considerá-
la como uma actividade perigosa nos termos e para os fins do mencionado arte 493º, nº 2.
Incumbia à "ECE", como produtora e usando a linguagem de Calvão da Silva, in ob.cit., págs. 390 e segs.,
convencer o Tribunal de que não incorrera "em qualquer culpa de organização, que o processo de produção fora bem
organizado, e controlado sem lacunas, que as fontes de vício ou defeito eram inexistentes". Falhando nessa incumbência a
"ECE" claudicou na defesa da sua tese e, assim, terá de arrostar com as consequências da sua omissiva conduta.
b) Para finalizar diremos apenas que a matéria provada é suficientemente clara e elucidativa no sentido de
termos como configurado o condicionalismo previsto nas já mencionadas normas legais dos artigos 483º nº 2, 493º nº 2,
165º, 998º e 500º do C. Civil, normas essas de que manifestamente resulta a responsabilidade da "ECE" pelos actos e
omissões dos seus agentes ou mandatários, responsabilidade essa geradora da obrigação de indemnizar mesmo sem
culpa.
Essa responsabilidade deverá ser vista também no ângulo da responsabilidade pessoal dos gerentes, que
embora não praticando os actos geradores do dano, actuaram como seus produtores pela escolha que fizeram do pessoal,
equipamento e materiais, sem olvidar a correcta utilização do binómio homem-máquina e a salvaguarda das adequadas
medidas de segurança e controle na execução dos trabalhos.
Demonstrado está também que os operários que procediam às obras em causa o faziam por conta, a mando e
sob a direcção da "ECE", sendo por demais evidente que os trabalhos levados a cabo, se inseriam no âmbito da
"comissão" que lhe fora conferida.
Está, pois, bem demonstrada a responsabilidade da "ECE" pelos actos dos seus agentes ou mandatários».

bem como o Ac do STJ, na Col. STJ 99-I-127, com o seguinte sumário:

I - Para que o banco como pessoa colectiva responda por actos do seu funcionário, é necessário que sobre este
recaia igualmente a obrigação de indemnizar e que o acto danoso tenha sido praticado no exercício da função confiada
àquele mesmo funcionário.
II - A responsabilidade do banco não é afastada se os actos dolosos do agente, embora praticados em vista de
fins pessoais, estiverem integrados formalmente no quadro geral da sua competência e o agente infiel aproveita uma
aparência social que cria um estado de confiança do lesado na lisura do comportamento daquele.
III - O comissário responde a título de culpa e o comitente a título de responsabilidade objectiva, sendo este um
dos casos em que existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa.

O STJ, por Ac. de 28.4.99, na Col. STJ 99-II-185, reafirmou esta doutrina, decidindo:

67
A responsabilidade do comitente prevista no art. 500º do CC só existe quando o acto do comissário é praticado
no exercício das suas funções, bastando, no entanto, que ele esteja conexionado com o quadro geral da competência
ou com os poderes que lhe são conferidos, sendo certo que o comitente apenas responde pelos actos ilícitos
praticados pelo comissário, mesmo que cometidos intencionalmente ou contra as instruções daquele, desde que a
comissão seja adequada ou idónea desses eventos.
Verifica-se essa responsabilidade objectiva de uma companhia de seguros quando um dos seus funcionários,
enquanto técnico comercial, contacta um dos ofendidos propondo-lhe uma aplicação financeira naquela seguradora, com
boas condições de rentabilidade, apresentando uma carta na qual escreveu o nome do gerente de uma delegação,
simulando que fora escrita e assinada pelo mesmo, dando a aparência e criando a confiança de que os ofendidos estavam
a contratar com a respectiva seguradora.
Não impede essa responsabilidade da companhia de seguros, ainda que o arguido tenha manifestamente
excedido as instruções daquela, desde que o seu comportamento se insira no exercício das funções que então
desempenhava na mesma.

Acórdão do STJ (Cons.º Oliveira Barros), de 2.3.2006, na Col. Jur. (STJ) 2006-I-97 a 100:

I - Ao determinar, no seu nº 1º, que, desde que sobre o comissário recaia a obrigação de indemnizar,
aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que
o comissário causar, o art. 500º C. Civ. institui uma situação de responsabilidade objectiva do comitente.

II - Consoante art. 500º, nº 2, C. Civ., essa responsabilidade do comitente depende da verificação de


três requisitos:
a) - a existência de relação de comissão, que implica liberdade de escolha pelo comitente e
se caracteriza pela subordinação do comissário ao comitente, que tem o poder de direcção,
ou seja, de dar ordens ou instruções;
b) - a responsabilidade do comissário, já que, em princípio, o comitente só responde se tiver
havido culpa do comissário;
c) - que o acto praticado pelo comissário o tenha sido no exercício da função que lhe foi
confiada.

III - Com a fórmula restritiva adoptada nesse nº 2, a lei quis afastar da responsabilidade do comitente
os actos que apenas têm um nexo temporal ou local com a comissão.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

Em 3/6/98, AA e BB moveram à Empresa-A, acção declarativa com processo comum na forma ordinária, que foi
distribuída à 1ª Secção do 6º Juízo, depois Vara, Cível de Lisboa.

Pretendida nessa acção a condenação da demandada no pagamento de 2.543.288$00, com juros de mora,
alegaram para tanto:
- serem titulares da conta n°212562011, do Empresa-B e portadores de um cartão magnético de débito, vulgo
Multibanco, que estava guardado no escritório em que a A. exerce a sua actividade profissional ;
- que esse cartão foi dali retirado por uma empregada da Ré, CC, que fazia a limpeza dos escritórios ;
- e que, na posse desse cartão, esta fez levantamentos e despesas no montante pedido.

Saneado, condensado e instruído o processo, realizou-se o julgamento, vindo, depois, a ser proferida, em
19/3/2004, sentença que condenou a interveniente CC a pagar aos AA a quantia peticionada, absolvendo os restantes RR
do pedido.

Por acórdão de 26/4/2005, o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso de apelação que os AA
interpuseram dessa sentença, que confirmou.

É dessa decisão que vem, agora, pedida revista.

Convenientemente ordenada, a matéria de facto fixada pelas instâncias é como segue :

68
(a) - A sociedade administradora do empreendimento onde está instalado o escritório dos AA prestava-lhes
serviço de recepção e encaminhamento dos clientes.
(b) - A Companhia Administradora Empresa-C, celebrou com a A. AA o acordo escrito junto por cópia a fls. 22 a 27
destes autos, que tinha como objecto a prestação dos serviços de apoio à actividade da A. identificados na cláusula 1ª
desse acordo.
(c) - A Companhia Administradora Empresa-C. celebrou com a Empresa-D um contrato de seguro designado de "
responsabilidade civil geral " titulado pela apólice n° 6553, e um contrato de seguro designado de " riscos múltiplos "
titulado pela apólice n° 2502204, através dos quais transferiu para esta a responsabilidade civil que lhe pudesse ser
imputada pelo exercício da sua actividade comercial.
(d) - A Empresa-A, celebrou com a Empresa-C, o acordo escrito junto por cópia a fls. 28 e 29 destes autos, que
tinha por objecto a prestação de serviços de limpeza na Rua da Misericórdia, 76, entrada e sala de fotocópias no r/c, 1º, 2º,
3º, 4º, 5º e 6º.
(e) - No que respeitava às tarefas contratadas, a Empresa-A actuava com total autonomia e independência de
meios e pessoal em relação àquela interveniente.
(f) - Era a Empresa-A que seleccionava e dirigia o pessoal que prestava, por sua conta e sob as suas ordens e
direcção dos seus responsáveis, os serviços de limpeza contratados com a interveniente referida e que vigiava esse
pessoal, quer através do seu corpo de inspectores, quer pelos encarregados das equipas de trabalhadores, que ela
entendia necessário enviar para as instalações da interveniente.
(g) - A Ré CC era funcionária da Ré Empresa-A, com a categoria de trabalhadora de limpeza, tendo ficado
encarregue da limpeza do escritório da Autora.
(h) - A Ré Empresa-A proporcionou àquela funcionária o ingresso nos escritórios de forma periódica, não
controlando à entrada e saída os objectos que a mesma transportava consigo, nem a obrigando a permanecer nos
escritórios em grupo, de forma a que existisse um controlo durante a permanência.
(i) - O acesso ao interior do escritório da Autora foi possibilitado à referida CC única e exclusivamente porque se
tratava de uma funcionária da Ré Empresa-A.
(j) - Os AA são titulares da conta n° 212562011 do Empresa-B, sendo portadores de um cartão magnético de
débito, que estava guardado dentro de uma gaveta no escritório em que a A. exerce a sua actividade profissional, na sala
502 do Centro Luxor, sito na Rua da Misericórdia, n° 76, em Lisboa.
(l) - Esse cartão foi retirado dessa gaveta pela empregada que fazia a limpeza do escritório, a Ré CC, que, agindo
voluntariamente, se apoderou do cartão, bem sabendo que não podia abrir a gaveta, que o cartão não era seu, e que o seu
comportamento não era permitido por lei.
(m) - Sabendo (também) que não devia mexer nos papéis, a mesma CC, empregada de limpeza, foi consultar
uma agenda existente naquele escritório, procurando o código do referido cartão Multibanco, que efectivamente aí
encontrou.
(n) - Estes factos foram praticados nas horas de serviço da CC.
(o) - Na posse do cartão e do respectivo código de acesso, a Ré CC efectuou movimentos para pagamento de
compras e para levantamento de dinheiro, e, com o seu comportamento, retirou 2.543.288$00 da conta bancária que sabia
ser dos AA.
(p) - Estes movimentos e levantamentos foram efectuados entre 19/12/97 e 7/1/98.
(q) - O cartão foi retido por uma máquina ATM.
(r) - Os AA emitiram e enviaram à Ré Empresa-A, que a recebeu, a carta junta por cópia a fls. 30 destes autos, de
que consta no essencial: "( ...) É pois nosso entendimento que, independentemente das consequências criminais que
decorrem da queixa já apresentada contra aquela empregada, existe responsabilidade pecuniária dessa empresa pelas
consequências do acto ilícito praticado por uma funcionária sua em exercício de funções. Solicitamos, assim, que com a
maior brevidade possível e, no máximo, até ao final do corrente mês, procedam à regularização do referido prejuízo, no
montante de 2.543.288$00, sendo que a ré nada pagou" ( D ).

Verificada a responsabilidade da interveniente CC, que foi condenada a pagar aos AA a quantia de 2.543.248$00,
e afastada, sem oposição dos recorrentes, a responsabilidade civil das intervenientes Empresa-C, e Empresa-D, está agora
em causa, apenas, a determinação da existência, ou não, de responsabilidade civil extracontratual da recorrida
Empresa-A.

No acórdão recorrido considerou-se que, como geralmente reconhecido, a responsabilidade do comitente prevista
no art. 500º, nº 2º, C. Civ., depende da verificação de três requisitos:

a) - a existência de relação de comissão, que implica liberdade de escolha pelo comitente e se caracteriza pela
subordinação do comissário ao comitente, que tem o poder de direcção, ou seja, de dar ordens ou instruções ;
b) - a responsabilidade do comissário, já que, em princípio, o comitente só responde se tiver havido culpa do
comissário ;

69
c) - que o acto praticado pelo comissário o tenha sido no exercício da função que lhe foi confiada.
Demonstrados, no caso, os dois primeiros, a absolvição da Ré Empresa-A deveu-se ao não preenchimento do
terceiro dos requisitos referidos, tendo-se julgado que o comportamento da interveniente CC não estava intrinsecamente
ligado às funções que lhe estavam confiadas.

É contrário o entendimento dos recorrentes a esse respeito: segundo sustentam, a responsabilidade da Ré


Empresa-A resulta do facto de a Ré CC ter praticado o facto ilícito no exercício da função que aquela lhe confiou, e tal
assim por encontrar-se numa posição especialmente adequada à prática de tal facto, em vista da natureza dos actos de
que foi incumbida e dos objectos que lhe foram confiados, cujo acesso lhe foi possibilitado pela Ré Empresa-A, nas
condições em que lhe ordenou que procedesse à limpeza.
O art. 500º C. Civ. institui uma situação de responsabilidade objectiva do comitente ao determinar, no seu nº1º,
que, desde que sobre o comissário recaia a obrigação de indemnizar, aquele que encarrega outrem de qualquer comissão
responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar.

Porém, de harmonia com o seu nº 2º, a responsabilidade do comitente só existe se o facto danoso for praticado
pelo comissário, ainda que intencionalmente ou contra as instruções daquele, no exercício da função que lhe foi confiada.
Na verdade:

"Para efeitos do artigo 500º C. Civ., a comissão deve ser entendida como serviço ou actividade realizada por
conta e sob a direcção de outrem, podendo traduzir-se num acto isolado ou numa função duradoura, gratuita ou onerosa,
manual ou intelectual".

"A responsabilidade do comitente só existe se o facto danoso for praticado pelo comitido no exercício da função
que lhe é confiada" (2) .

No entender de Antunes Varela (3), " com a fórmula restritiva adoptada (no nº 2) a lei quis afastar da
responsabilidade do comitente os actos que apenas têm um nexo temporal ou local com a comissão. Mas, acentuando ao
mesmo tempo que a responsabilidade do comitente subsiste, ainda que o comissário proceda intencionalmente contra as
instruções dele, mostra-se que houve a intenção de abranger todos os actos compreendidos no quadro geral da
competência ou dos poderes conferidos ao dito comissário. (...) Serão, assim, da responsabilidade do comitente os actos
praticados pelo comissário com abuso de funções, ou seja, os actos formalmente compreendidos no âmbito da comissão,
mas praticados com um fim estranho a ela ".

Preenchem, pois, o terceiro requisito referido os actos praticados pelo comissário "no quadro geral da
competência ou dos poderes do dito comissário, que pertençam ao quadro da actividade adoptada para realizar o fim da
comissão (Larenz) e que tenham sido praticados com o agente da sociedade agindo em tal veste ou qualidade, isto é, por
causa das suas funções " (4) .

Já não assim os actos do comissário que, "praticados no lugar ou no tempo em que é executada a comissão,
nada tenham com o desempenho desta, a não ser porventura a circunstância de o agente aproveitar as facilidades que o
exercício da comissão lhe proporciona para consumar o acto" (5).

Deste modo, " deverá entender-se que um facto ilícito foi praticado no exercício da função confiada ao comissário
quando, quer pela natureza dos actos de que foi incumbido, quer pela dos instrumentos ou objectos que lhe foram
confiados, ele se encontre numa posição especialmente adequada à prática de tal facto " (6).

Isto significa que "a lei abrange unicamente os actos ligados ao serviço, actividade ou cargo, embora exista
apenas um nexo instrumental, excluindo os praticados por ocasião da comissão com um fim ou interesse que lhe seja
estranho. E subsiste a responsabilidade do comitente, mesmo que o comissário, nesse quadro, tenha agido
intencionalmente ou contra as suas instruções" (7).

Os factos provados na acção revelam que:

- a Ré CC era funcionária da Ré Empresa-A, com a categoria de trabalhadora de limpeza, tendo ficado


encarregada da limpeza do escritório da Autora no âmbito de acordo celebrado por aquela e que tinha por objecto a
prestação de serviços de limpeza ;
- a Empresa-A proporcionou à CC o ingresso nos escritórios de forma periódica, única e exclusivamente porque
se tratava de uma sua funcionária, não controlando à entrada e saída os objectos que a mesma transportava consigo, nem
a obrigando a permanecer nos escritórios, em grupo, de forma a que existisse um controlo durante a permanência ;

70
- era a Empresa-A que seleccionava e dirigia o pessoal que prestava por sua conta, e sob as suas ordens e
direcção dos seus responsáveis, os serviços de limpeza contratados com a interveniente e era a Empresa-A que vigiava
esse pessoal, quer através do seu corpo de inspectores, quer pelos encarregados das equipas de trabalhadores, que ela
entendia necessário enviar para as instalações da interveniente ;
- a Ré CC, que fazia a limpeza do aludido escritório, durante as horas de serviço de limpeza, apoderou-se de um
cartão Multibanco que se encontrava guardado dentro de uma gaveta, e foi, depois, consultar uma agenda existente
naquele escritório, procurando e encontrando o código do referido cartão ;
- na posse do cartão e do respectivo código de acesso, a CC efectuou movimentos para pagamento de compras
e para levantamento de dinheiro, retirando da conta bancária, que sabia ser dos autores, 2.543.288$00.

É perante esta situação de facto que há que determinar se a actuação ilícita e dolosa da CC se situa ou não no
âmbito do exercício das suas funções de comissária, com a consequência de a Ré Empresa-A, comitente, poder ser
responsabilizada pelos actos praticados por essa sua empregada, conforme arts.165º e 500º C. Civ. Ora:

Não parece que se deva discordar das instâncias, levando os princípios e fundamentos da teoria do risco além do
que a doutrina já adiantada refere (8). Com efeito:
Esse tipo de responsabilidade, assente na ideia de que ubi commoda, ibi incommoda, nasceu da necessidade de
reparar danos reconhecidamente indemnizáveis, mas produzidos sem culpa, antes resultantes da forma de organização do
trabalho, da delegação de tarefas e da utilização de máquinas com a consequente diluição de responsabilidades. E
também a responsabilidade sem culpa estimulará o empresário a aperfeiçoar a organização e a diminuir, por esse modo, a
sinistralidade.
Por isso, "deve considerar-se justo que, alargadas por meio do concurso de terceiros as potencialidades do
comitente de satisfação dos próprios interesses, lhes deva corresponder, numa espécie de equilíbrio jurídico, a
responsabilidade pelos danos provenientes da actuação do comitido. (...) O comitente apresenta-se, deste modo, como
garante da responsabilidade em que incorre a pessoa que actua sob a sua direcção. Porque tudo se passa, afinal, como se
ele próprio agisse. E, sendo assim, o risco da insuficiência do património do comissário deve suportá-lo ele e não o lesado."
(9).
A responsabilidade pelo risco prescinde da culpa e, por vezes, da própria ilicitude, como acontece na
responsabilidade por factos naturais, de terceiro ou do próprio lesado.
Mas, por outro lado, a apreciação da questão está intrinsecamente ligada à autoridade do comitente sobre o
comitido, ao poder de vigilância e direcção que a comissão importa e, sobretudo, à confiança que é, em princípio,
transmitida aos terceiros com quem se relaciona, mormente através do comissário, de que os actos compreendidos na
comissão serão efectuados adequada-mente (sem desvios).
Em último termo, "será de responsabilizar a pessoa colectiva (comitente) pelos actos dos seus representantes,
mandatários ou agentes que, da perspectiva do lesado, tenham com as funções destes uma conexão adequada, uma vez
que foi a pessoa colectiva quem os escolheu ..." (10).

Por essas razões, considerou-se já que "o exercício da função que deve acompanhar a prática do acto pelo
comissário, para que se considere verificada a responsabilidade do comitente, não exige o rigoroso cumprimento do
encargo proposto ao comissário, bastando um certo nexo de causalidade adequada entre o facto praticado e a função do
comissário " (11).
Ou que "a responsabilidade do comitente pelos actos dos comitidos não deve existir apenas quando o acto seja
praticado rigorosamente na execução do encargo, pois, se assim fosse, tal responsabilidade desaparecia praticamente ou,
pelo menos, reduzir-se-ia a bem pouco, dado que os actos ilícitos dos comitidos constituem sempre ou em regra uma
evasão das funções" (12).
Assim, "para que se verifique a responsabilidade do comitente nos termos do art. 500º C. Civ. é preciso que o
comissário - que pode ser um simples serviçal, um assalariado ou qualquer encarregado da prestação de um serviço -
tenha sido escolhido pelo comitente e que o facto danoso haja sido praticado no exercício de função àquele confiada,
bastando, para caracterizar este vínculo, que o facto esteja devidamente relacionado com o serviço executado" (13) .
A imputação ao comitente, nos termos do art. 500º, nº 2, C. Civ., mantém-se ainda que o comissário actue
ilicitamente (voluntariamente) ou aja contra as instruções ou a vontade (explícitas ou mesmo implícitas) do comitente,
desde, naturalmente, que tudo se passe no âmbito da competência material da incumbência feita ao comissário (14).

Desta sorte (15):

No momento dos factos praticados, a Ré CC encontrava-se, de facto, no exercício das funções que lhe haviam
sido confiadas de proceder à limpeza do escritório da autora, sendo, desse modo, utilizada pela Ré Empresa-A para
cumprir o encargo que esta assumira.

71
Cometida a subtracção em seu proveito dum cartão Multibanco e respectivo código de acesso por ocasião do
exercício das funções, é, no entanto, indiscutível que, ao fazê-lo, não actuou no exercício dessas funções, com o qual esse
acto não tem qualquer relação de causalidade adequada, passando ao furto de objecto que se encontrava no local em que
prestava o serviço.
É acto que só um nexo temporal e local liga à comissão, claramente fora do quadro geral da competência da
comissária, que, designadamente, sabia bem, consoante (l) e (m), supra, que não podia abrir gavetas, nem devia mexer
nos papéis - e ainda menos, apoderar-se do que lhe não pertencia.
Trata-se, enfim, de acto que, praticado no lugar e no tempo em que era executada a comissão, nada, no entanto,
tinha a ver com o desempenho da função cometida, a não ser a circunstância de a comissária ter aproveitado as facilidades
que o exercício da comissão lhe proporcionava para o consumar.
Esse desvio da actividade de que tinha sido incumbida - era para tal que lhe tinha sido proporcionado pela
comitente o acesso ao escritório da Autora que, naturalmente, confiou na concretização, em situação de normalidade, dos
serviços prestados -, não tem relação directa com o exercício das funções que lhe competiam.
Não existe nexo de causalidade adequada entre o facto praticado e a função da comissária.
Não obstante o falado nexo temporal e local, não parece que se possa dizer que se está efectivamente perante
factos ilícitos praticados no exercício ou por causa do exercício das funções da empregada de limpeza aludida.
Não pode, por isso, a nosso ver, responsabilizar-se a comitente pelos actos da comissária.

Como notado no projecto primitivo, já, por exemplo, se julgou que "não é praticado no exercício de funções o acto
do vigilante de empresa que participa na subtracção fraudulenta de cheques da própria empresa " (16).

Referível o disposto no art. 500º ao nº 2 do art. 483º, adita-se o que segue, com referência ao outrossim invocado
nº 1 deste último, previsão relativamente à qual consabidamente vale o disposto no nº 1 dos arts. 342º e 487º (cfr. também
nº 2 deste último), todos do C. Civ. :

No plano da responsabilidade subjectiva por culpa in eligendo a que aparentemente se alude nas conclusões 12ª
a 14ª (17) , bastará notar que, sem cabimento, nesse âmbito, sempre fácil juízo ex post facto, em todo o caso, não constam
do elenco dos factos provados elementos susceptíveis de servir de base a fundado juízo ou conclusão a esse respeito. O
mesmo vem, em último termo, a valer em relação à igualmente arguida omissão de cuidados que, ao contrário do que em
geral sucede em relação à guarda dos cartões de débito e à reserva ou segredo do competente código, nada
especialmente fazia prever que fossem necessários, por forma a justificar-se juízo de ou conclusão por culpa in vigilando,
outrossim aludida nas conclusões 15ª e 16ª.

Presente o princípio da eficácia relativa dos contratos que decorre do art. 406º, nº 2, C. Civ., nada, por fim, se vê
que adiante ou atrase à resolução da causa a consideração de eventual responsabilidade contratual perante terceiro a que
alude a conclusão 17ª.

Alcança-se, na conformidade do exposto, a decisão que segue:

Nega-se a revista, com custas pelos recorrentes.

Lisboa, 2 de Março de 2006


Oliveira Barros (relator por vencimento)
Araújo de Barros (voto de vencido) Revogaria o acórdão recorrido porque considero, como aliás defendi no
projecto que, como relator, tinha elaborado que deve entender-se que a funcionária da ré, com a categoria de trabalhadora
de limpeza, encarregada da limpeza do escritório da autora, e a quem aquela proporcionou o ingresso no referido escritório
de forma periódica, que, durante as horas de serviço de limpeza, se apoderou de um cartão Multibanco que se encontrava
guardado dentro de uma gaveta e do código do referido cartão, utilizando-o para efectuar movimentos para pagamento de
compras e para levantamento de dinheiro, retirando da conta bancária, praticou tais factos ilícitos no exercício ou por causa
do exercício das suas funções, ocorrendo, pois, em tal caso, a responsabilização da comitente, nos termos do art. 500º, nº
2, do C. Civil.
Salvador da Costa
-----------------------------------------------------------------------------
(1) Se a actividade do comissário lhe aproveita in utilibus, deve também sofrer-lhe as consequências in damnosis.
Trata-se, afinal, de uma aplicação do princípio fundamental de justiça que se exprime na máxima ubi commoda, ibi
incommoda.
(2) Ac. STJ de 12/7/2001, no Proc.nº 1981/01 da 6ª Secção (relator Silva Salazar ).
3) " Das Obrigações em Geral ", I, 6ª ed. (1989), 611 e 612.
(4)Mota Pinto, " Teoria Geral do Direito Civil " (1980), 207 e 208.

72
(5) Antunes Varela, ob., vol., e ed.cits, 611, nota 2.
(6) Pires de Lima e Antunes Varela, " Código Civil Anotado ", I, 4ª ed. (1987), com a colaboração de M. Henrique
Mesquita, 509.
(7) Almeida Costa, " Direito das Obrigações ", 5ª ed. (1991), 500.
(8) Face ao regime instituído pelo art. 500º do C.Civil, que afastou a doutrina da culpa in eligendo, o comitente
não é visado por qualquer presunção de culpa : ele é, pura e simplesmente, responsável. Cfr. Menezes Cordeiro, " Direito
das Obrigações ", 2º ( 1990 ), 377.
(9) Jorge Ribeiro de Faria, " Direito das Obrigações ", II ( 1990 ), 11 e 19/20.
(10) Heinrich Hörster, " A Parte Geral do Código Civil Português " ( 1992 ), 395.
(11) Ac. STJ de 25/02/93, no Proc.nº 82071 da 1ª Secção (relator Dionísio Pinho ).
(12) Ac. STJ de 19/10/76, BMJ 260/155 ( relator Ferreira da Costa ).
(13) Ac. STJ de 25/11/75, BMJ 251/167 ( relator Acácio de Carvalho ).
(14) Ut Menezes Cordeiro, ob., vol. e ed, cits,. 372 e 373.
(15) Ligeiras, no geral, de mera forma ou estilo, as alterações introduzidas, só daqui em diante se deixa de
praticamente transcrever o adiantado no projecto do primitivo relator.
(16) Ac. STJ de 31/1/2002, no Proc.nº 701/01 da 2ª Secção (relator Moura Cruz).
(17) E que, como visto - cfr. nota 8, não se presume.

Culpa do comissário - 500º, nº 1, in fine. Mas esta culpa do comissário pode ser a
simples culpa presumida, por não ilidida a presunção do 503º, nº 3, 1ª parte e 506º, 1.

«O artigo 503º do Código Civil, a primeira das disposições compreendidas na área da responsabilidade pelo risco
proveniente dos acidentes de viação, trata em três proposições normativas distintas da principal questão que a matéria
suscita: a determinação das pessoas responsáveis pela indemnização dos danos causados pelo acidente.

No n.º 1 define-se a responsabilidade do detentor do veículo (da tal pessoa que tendo a direcção efectiva do
veículo e o utiliza no seu próprio interesse, no momento em que o acidente ocorre), impondo-lhe uma responsabilidade
marcadamente objectiva (ele responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veiculo, mesmo que este não se
encontre em circulação).

No n.º 2 determina-se, por sua vez, os termos em que respondem, nesta zona especial do risco da circulação
terrestre, as pessoas não imputáveis, sujeitando-as ao mesmo regime do equidade e de culpa objectiva aplicável a sua
responsabilidade por factos ilícitos.

Por fim, no n.º 3, estabelecem-se as regras a que obedece, em termos perfeitamente autónomos, a
responsabilidade dos comissários (daqueles que conduzem o veículo por conta de outrem), distinguindo para o efeito dois
tipos de situações:
- o primeiro, constituído pelos casos em que o causador dos danos conduzia por conta de outrem no momento
em que o acidente ocorreu, para os quais a lei (1ª parte do n.º 3 do art. 503º) estabelece a presunção de culpa do condutor;
- o segundo, formado pelos casos em que o causador do acidente conduzia fora do exercício das suas funções
de comissário, aos quais a lei (2ª parte do nº 3 do art. 503º) manda aplicar o princípio da responsabilidade objectiva (pelos
riscos próprios do veículo) consagrado no nº 1 do mesmo artigo 503º.

Por força da consideração autónoma dos três números em que o corpo do artigo 503º do Código Civil se divide, o
comissário responde por todos os danos que causar através do acidente de viação, desde que não consiga elidir a
presunção de culpa que a lei faz incidir sobre ele. O detentor do veículo, por conta de quem este seja conduzido,
responde nesse caso, não por forca do disposto no nº 1 do artigo 503º, mas em obediência à doutrina que o artigo 500.º do
Código Civil estabelece para a responsabilidade do comitente pelos danos que o comitido causar» - Prof. Antunes Varela,
na RLJ 121-46/47.

Sobre responsabilidade de pessoa colectiva (clube de hóquei em patins), o Ac. do STJ


(Cons.º Salvador da Costa), de 29.11.2005, no P.º 05B3678:
«Atentemos agora, em tanto quanto releva no caso vertente, os pressupostos da obrigação de indemnizar no
quadro da responsabilidade civil extracontratual.
A responsabilidade civil é uma modalidade da obrigação de indemnizar, ou seja, de eliminar o dano ou prejuízo
reparável, que pode ser patrimonial ou não patrimonial, no primeiro caso se atinente a interesses avaliáveis em dinheiro e,

73
no segundo, se referente a interesses não avaliáveis em dinheiro, como é o caso do corpo, da vida, da honra, da saúde e
da beleza.

Em regra, os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual são o facto voluntário ilícito, a culpa lato
sensu do seu autor, a afectação prejudicial da esfera jurídica de outrem e o nexo de causalidade adequada entre a última e
o primeiro (artigos 483º, nº 1, 562º e 563º do Código Civil).
O artigo 483º, n.º 1, do Código Civil utiliza os conceitos de ilicitude e de culpa com significado e função diversa,
no último caso com a envolvência da censura ético-jurídica relativa à acção ou à omissão em causa, e, no primeiro, com o
sentido de acção ou omissão consciente e livre, proibida pelo direito.
Assim, o facto ilícito é o contrário ao direito, mas a antijuridicidade não é exclusivamente estruturada no plano
objectivo, isto é, como acção ou omissão meramente contrária às normas jurídicas, mas também no plano subjectivo, ou
seja, quando a acção ou omissão resulta de acto humano consciente e livre.
Em suma, o facto ilícito é o comportamento de uma pessoa, por acção ou omissão, controlável pela vontade,
consubstanciado na violação de um direito de outrem, designadamente um direito absoluto, por exemplo o direito à
integridade física.
A culpa lato sensu abrange as vertente do dolo e da culpa stricto sensu, traduzindo-se a primeira na intenção de
realizar o comportamento ilícito que o agente do comportamento configurou, e a segunda na mera intenção de querer a
causa do facto ilícito.
A culpa stricto sensu ou censura ético-jurídica exprime um juízo de reprovação pessoal em relação ao agente
lesante que, em face das circunstâncias especiais do caso, devia e podia agir de outro modo, ou seja, na omissão da
diligência que, na espécie, lhe era exigível.
Distingue-se no plano da culpa stricto sensu entre a culpa consciente, por um lado, em que o agente prevê a
produção do facto ilícito, mas, por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria, crê na sua não verificação e só por isso não
toma as providências necessárias para o evitar, e a culpa inconsciente, por outro, em que o agente não chega, por
imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, a conceber a possibilidade da produção do evento danoso, mas podendo e
devendo prevê-lo se usasse da diligência devida.
No nosso ordenamento jurídico, a culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai
de família, isto é, de uma pessoa normal, em face das circunstâncias de cada caso (artigo 487º, nº 2, do Código Civil),
A expressão bom pai de família refere-se ao homem de diligência normal, e a expressão circunstâncias de cada
caso tem a ver com o que ele faria no quadro da situação circunstancial envolvente.
A existência de prejuízos reparáveis, entre os quais se demarcam os patrimoniais e os não patrimoniais , a
que acima já se fez referência, constitui o terceiro pressuposto da referida obrigação de indemnizar.

No que concerne aos danos patrimoniais distingue-se entre o dano emergente e o lucro cessante, o primeiro
como diminuição efectiva do património, e o segundo como o seu não aumento em razão da frustração de um ganho.
Não releva para a referida classificação o momento em que o prejuízo ocorre, porque o dano emergente é
susceptível de se configurar como futuro e o lucro cessante é configurável como actual, certo que o último pressupõe ser o
lesado, ao tempo da lesão, titular de uma situação jurídica que, a manter-se, lhe daria direito a determinado ganho.

Finalmente, a obrigação de indemnização depende de que entre o acto ilícito ou antijurídico e o prejuízo ocorra
um nexo de causalidade adequada (artigos 562º e 563º do Código Civil).
Decorre, assim, dos referidos normativos que a obrigação de indemnizar só abrange os danos que, tendo
resultado da lesão, dela teriam resultado em termos de um juízo de probabilidade ex post.
4.
Vejamos agora se o recorrente é ou não sujeito da obrigação de indemnizar a recorrida.

Numa das jogadas de um elemento da equipa adversária do recorrente, a bola movimentada pelo respectivo
stick, em ricochete, seguiu para a bancada e lesionou a recorrida no olho direito.
Com a referida acção, o referido jogador originou à recorrida lesão grave que a obrigou a internamento hospitalar,
a intervenções cirúrgicas, a interrupção laboral e a sujeitou a dores, sofrimento e incapacidade permanente.

A Constituição estabelece, além do mais que aqui não releva, ser a integridade física e moral das pessoas
inviolável (artigo 25º, nº 1).
Em conformidade com o referido normativo constitucional, a lei ordinária reconhece e consagra a existência de
um direito geral de personalidade, que inclui o direito à inviolabilidade física (artigo 70º, n.º 1, do Código Civil).
No caso vertente, estamos aparentemente perante um comportamento do referido jogador envolvido de ilicitude
formal e material, por se traduzir na infracção do artigo 70º, n.º 1, do Código Civil e na afectação negativa do direito
legalmente protegido de integridade física da recorrida.

74
Importa agora estabelecer a conexão entre a acção do mencionado jogador de hóquei patins e acção e ou
omissão do recorrente, como pessoa colectiva, ou seja, dos seus órgãos.
O campo de jogos, ou seja o ringue de patinagem em que ocorria o jogo entre o recorrente e a Associação
Académica da Amadora, era da titularidade do primeiro, que o utilizava em jogos da modalidade de hóquei em patins com
outras equipas.
Quem no seu interesse, de natureza económica ou outra, organiza algum evento, designa-damente desportivo,
em que as pessoas assistem, fica naturalmente obrigado a garantir-lhes a necessária segurança, devendo, para o efeito,
tomar as medidas de precaução adequadas, segundo o circunstancialismo envolvente.
A referida obrigação de segurança recai, no caso espécie, sobre o recorrente, porque, como clube visitado, foi ele
o organizador directo do jogo.
E se omitisse as referidas precauções, que devesse implementar, sujeitava-se à obrigação de reparar os danos
ou lesões de outrem que dessa omissão tivessem resultado (artigo 486º do Código Civil).
É certo que os regulamentos desportivos da modalidade, que estavam estabelecidos na altura do jogo de hóquei
em patins em causa pela Federação Portuguesa de Patinagem só exigia a colocação de uma rede protectora com a altura
de quatro metros ao longo de duas tabelas de fundo da pista, e não em toda a linha das bancadas.
Com efeito, embora à data dos factos já estivesse publicado o Decreto-Lei nº 270/89, de 18 de Agosto, que
tornava obrigatória a vedação nos recintos desportivos em termos a regulamentar, ainda não havia então sido publicado o
conexo regulamento, o que só viria a acontecer por via da Portaria nº 371/91, de 30 de Abril, ou seja, seis meses e dez dias
depois do evento em análise.
Em consequência, independentemente de a referida Portaria visar ou não a protecção de quem assiste aos jogos
das bancadas das bolas que ressaltem dos campos de jogos, o regime que dela decorre é inaplicável ao caso em análise
(artigo 12º, nº 1, do Código Civil).
Mas isso não significa que ao recorrente não fosse exigida mais segurança do que aquela que era pressuposta
pelo aludido regulamento se fosse previsível que ela não era suficiente para garantir a segurança das pessoas que aos
jogos assistiam das bancadas.

Sabe-se que o jogo de hóquei patins era desenvolvido com uma bola com o peso de 155 gramas e circunferência
de 23 centímetros e que os sticks usados pelos jogadores eram de madeira, plástico ou material semelhante, e que as
bolas atingem elevadas velocidades.
Consequentemente, era razoavelmente previsível para os órgãos do recorrente que as bolas impulsionadas pelos
jogadores, por exemplo as dirigidas às balizas de ambos os lados do ringue, por efeito do choque com algum obstáculo, por
exemplo as traves das balizas, e do subsequente ricochete, poderiam seguir a trajectória lateral e atingir as bancadas por
virtude de no seu enfiamento inexistirem redes de protecção.
Por isso, era razoavelmente previsível para os órgãos do recorrente que, sem a protecção com rede da própria
zona das bancadas, as bolas podiam seguir na direcção delas e atingir as pessoas que assistiam aos jogos.

Conforme resulta do exposto, a responsabilidade civil extracontratual resulta da prática de um acto ilícito ou seja,
da violação de um dever de origem diversa da obrigação.
Mas há casos de impossibilidade de cumprimento do referido dever, a qual é susceptível de derivar de caso
fortuito ou de força maior.
A doutrina tem considerado que o caso fortuito é, grosso modo, o evento não previsível, que poderia ter sido
evitado se tivesse sido previsto, e que o caso de força é o evento não previsível e que, se fosse previsto, não poderia ser
evitado.
A lei refere-se, por exemplo, por um lado, em matéria de responsabilidade civil por acidentes de viação, à
exclusão da responsabilidade pelo risco, além do mais, quando eles resultem de caso de força maior estranha ao
funcionamento do veículo (artigo 505º do Código Civil).

E, por outro, a propósito dos danos causados por instalações de energia eléctrica ou gás, caso em que a lei exclui
a reparação de danos devidos a causa de força maior, que define como a causa exterior independente do funcionamento e
utilização da coisa (artigo 509º, nº 2, do Código Civil).
E a ideia que ressalta das referidas normas no que concerne à causa de força maior é a de que deve ser externa
ao funcionamento ou utilização da coisa que desencadeou a lesão lato sensu.
Nessa linha, no plano da responsabilidade civil, o caso fortuito não pode apenas ser visionado em si mesmo,
porque o deve também ser na perspectiva dos seus efeitos, no confronto do dever de diligência do obrigado a evitar a lesão
ou dano de outrem.
Assim, não se pode considerar caso fortuito para o efeito de desresponsabilização do obrigado o evento que por
ele podia ser evitado num quadro de previsão e diligência normal.

75
Ora, tendo em conta o referido circunstancialismo, a conclusão é no sentido de que a lesão ocular da recorrida
não resultou de caso fortuito, mas de omissão de medidas de segurança por parte dos órgãos do recorrente, em termos de
culpa inconsciente.
O recorrente está, por isso, constituída e na obrigação de indemnizar a recorrida (artigos 483º, nº 1, 486º do
Código Civil)».

II
Estado e outras pessoas colectivas públicas - 501º

Estas pessoas colectivas respondem tanto por actos de gestão pública como por actos de
gestão privada.
A doutrina e a jurisprudência estabeleceram o critério de que a distinção entre actos de
gestão pública e privada se deve orientar pela natureza funcional ou não do acto ou da omissão do
exercício de um poder público, sendo que nos actos de gestão pública há o exercício de um jus
imperii - Ac. do STJ, de 17.3.93, BMJ 425-463, com muita doutrina e jurisprudência.
A responsabilidade do Estado e de outras pessoas colectivas públicas , por actos de
gestão privada, está regulada no art. 501º do CC, nos termos em que os comitentes respondem
pelos danos causados pelos seus comissários , ou seja, respondem como as pessoas colectivas
privadas (art. 165º do CC).

A Responsabilidade civil extracontratual do Estado por actos de gestão pública e por


danos decorrentes das funções política, legislativa e jurisdicional, bem como dos seus
funcionários e agentes, tem assento constitucional e na lei ordinária.

Começando pela Constituição e sem prejuízo de outras normas que em pormenor se verão,
tal responsabilidade resulta do disposto nos art. 22º e 271º.

art. 22º

O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os
titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas
funções e por causa desse exercício, de que resulte a violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo
para outrem.

Segundo G. Canotilho e Vital Moreira5, deste art. 22º resulta:

- a consagração do princípio da responsabilidade patrimonial directa das entidades


públicas (todas as administrações, estadual, local, autónoma e institucional, sem
excepção) por danos causados aos cidadãos;

- da imputação a título directo às entidades públicas, da responsabilidade por danos


causados pelos titulares dos seus órgãos ou pelos seus funcionários ou agentes e da
forma solidária perante o cidadão lesado resulta que o cidadão pode demandar quer o
Estado, quer os funcionários ou agentes, quer ambos conjuntamente .

- o teor literal deste artigo leva a considerar a responsabilidade do Estado por actos
legislativos, bem como por actos jurisdicionais, ainda que os titulares desses órgãos
legislativos ou jurisdicionais possam não ser civilmente responsáveis, como acontece com
os Deputados (arts. 157º, nº 1) e com os Juizes (216º, nº 2).

5
- Constituição da República Portuguesa, Notas ao art. 22º, de que vai cópia.

76
A responsabilidade dos funcionários e agentes vem regulada no

art. 271º

1. Os funcionários e agentes do Estado e das demais entidades públicas são responsáveis civil,
criminal e disciplinarmente pelas acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa
desse exercício de que resulte violação dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos, não
dependendo a acção ou procedimento, em qualquer fase, de autorização hierárquica.
2. É excluída a responsabilidade do funcionário ou agente que actue no cumprimento de ordens ou
instruções emanadas de legítimo superior hierárquico e em matéria de serviço, se previamente delas tiver
reclamado ou tiver exigido a sua transmissão ou confirmação por escrito.
3. Cessa o dever de obediência sempre que o cumprimento das ordens ou instruções implique a
prática de qualquer crime.
4. A lei regula os termos em que o Estado e as demais entidades públicas têm direito de regresso
contra os titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes.

Na lei ordinária e por actos de gestão pública, a responsabilidade do Estado e outras


pessoas colectivas públicas (e, em certos termos, dos seus agentes) é regulada pela Lei nº 67/2007,
de 31 de Dezembro.

Antes vigorava o regime estabelecido pelo Dec-lei n.º 48051, de 21.11.1967 ,


estudado no Acórdão nº 236/Tribunal Constitucional/2004 - Processo nº 92/2003
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:

1 - Osvaldo Jesus Paulino dos Reis e o Estado Português foram condenados, por sentença de 29 de Novembro
de 2002 do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, a pagar uma indemnização a Maria José Henriques Jacinto Tomás
e a Mafalda Sofia Jacinto Tomás, respectivamente viúva e filha de Armindo dos Reis Tomás, por danos patrimoniais e não
patrimoniais, em virtude da morte deste causada por disparos de arma de fogo feitos pelo referido Osvaldo Reis no
exercício das suas funções como agente da extinta Guarda Fiscal, actualmente GNR - Guarda Nacional Republicana.
Inconformado, o réu Osvaldo Jesus Paulino dos Reis interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, tendo dito
no requerimento de interposição de recurso que, «notificado da sentença de 29 de Novembro de 2002 e verificando que a
mesma recusou a aplicação do regime resultante do artigo 2º e artigo 3º, nº 1 e nº 2, do Decreto-Lei nº 48 051/1967, de 21
de Novembro, na medida em que de tal regime resulta que o agente administrativo do Estado não responde civilmente
perante terceiros por actos ilícitos meramente culposos praticados dentro dos limites das suas funções e no exercício
destas, com fundamento em inconstitucionalidade (ou caducidade, por violação de norma constitucional) de tal regime, em
função do disposto no artigo 271º, nº 1, da Constituição, vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional, em secção
[artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei nº 28/1982, de 15 de Novembro], restrito à questão da inconstitucionalidade em causa
(artigo 71º da mesma lei), ou seja, a não aplicação do regime resultante das disposições combinadas do artigo 2º e artigo
3º, nº 1 e nº 2, do Decreto-Lei nº 48 051/1967, de 21 de Novembro, na medida em que de tal regime resulta que o agente
administrativo do Estado não responde civilmente perante terceiros por actos ilícitos meramente culposos praticados dentro
dos limites das suas funções e no exercício destas, em função do disposto no artigo 271º, nº 1, da Constituição, requerendo
a sua admissão, com efeito e processamento legais».

Admitido o recurso, o réu Osvaldo de Jesus Paulino dos Reis apresentou as suas alegações, que concluiu como
segue:
«1 - O regime do disposto no artigo 2º e artigo 3º, nº 1 e nº 2, do Decreto-Lei nº 48 051, de 21 de Novembro de
1967, de que resulta a não responsabilização civil do titular de órgão, funcionário ou agente pelos prejuízos causados por
acto ilícito cometido no exercício de funções e por causa delas de forma meramente negligente não é inconstitucional, pois
não viola o disposto no artigo 271º, nº 1, da Constituição.
2 - Aliás, é o próprio nº 2 desta norma que prevê expressamente uma situação de exclusão de responsabilidade
do funcionário ou agente.
3 - O artigo 22º da Constituição apenas impõe que, sempre que haja acto ilícito ou mesmo simples acto gerador
de prejuízos (ainda que lícito), haja responsabilidade civil da pessoa colectiva pública, a qual será solidária com a do titular
de órgão, funcionário ou agente, quando esta exista.

77
4 - É o próprio nº 4 do artigo 271º da Constituição que admite que, se ‘a lei regula os termos em que o Estado e
as demais entidades públicas têm o direito de regresso contra os titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes’, então a
lei pode regular as situações em que não existe direito de regresso, isto é, não há responsabilidade solidária.
5 - O objectivo do nº 1 do artigo 271º da Constituição é tão-só impedir a existência de um regime de ‘privilégio
administrativo’ ou ‘garantia administrativa’, em que a responsabilização civil, penal ou disciplinar de titular de órgão,
funcionário ou agente possa depender de autorização.
6 - O artigo 271º da Constituição deixa ao legislador ordinário o poder de definir as condições e situações em que,
sem prejuízo da responsabilidade da pessoa colectiva pública, há também, solidária com esta, responsabilidade do titular
de órgão, funcionário ou agente e, designadamente, o de isentar desta o titular do órgão, funcionário ou agente que agiu no
exercício de funções e por causa delas de forma meramente negligente.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e declarada a não inconstitucionalidade do regime
do disposto no artigo 2º e artigo 3º, nº 1 e nº 2, do Decreto-Lei nº 48 051/1967, de 21 de Novembro, de que resulta a não
responsabilização civil do titular de órgão, funcionário ou agente pelos prejuízos causados por acto ilícito cometido no
exercício de funções e por causa delas de forma meramente negligente, com consequente baixa dos autos ao tribunal
recorrido para reforma da decisão recorrida, que deve ser reformulada em função do juízo de não inconstitucionalidade do
regime legal que recusou aplicar.»

As recorridas contra-alegaram, concluindo:


«1 - As ora recorridas intentaram acção declarativa contra o ora recorrente e o Estado Português, pedindo a
condenação destes no pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais.
2 - A causa de pedir dessa acção residiu no facto de o ora recorrente (agente da Guarda Fiscal, hoje GNR) ter
disparado seis tiros, quando se encontrava em exercício de funções, que atingiram, respectivamente, o marido e pai das
recorridas, vindo o mesmo a falecer.
3 - O ora recorrente respondeu pelo crime que cometeu no 1º Tribunal Militar Territorial de Lisboa (processo Nº
99/1993), tendo sido condenado pelo crime previsto e punido pelas disposições conjugadas do artigo 207º, nº 1, alínea a),
do Código de Justiça Militar (CJM) e artigo 136º, nº 2 (negligência grosseira), do Código Penal, aplicável ex vi do artigo 5º
do CJM, a cumprir uma pena de 18 meses de presídio militar.
4 - Os tribunais militares não são competentes para apreciar os pedidos de indemnização emergente dos
processo-crime de que vierem a conhecer, pelo que as ora recorridas tiveram de intentar essa acção no Tribunal
Administrativo de Círculo da Comarca de Lisboa.
5 - No âmbito desses autos (processo nº 1072/1999, 4ª Secção), foi proferida, em 29 de Novembro de 2002,
decisão que, não obstante considerar que o ora recorrente agiu com negligência, determinou que o mesmo deveria ser
responsabilizado pelo seu acto ilícito, solidariamente com o Estado, condenando-o no pagamento às ora recorridas dos
danos patrimoniais e não patrimoniais por estas sofridos.
6 - Para tal, o M.mo Juiz a quo considerou que com a entrada em vigor da Constituição da República Portuguesa
de 1976 e face ao teor do seu artigo 22º (na redacção que lhe foi dada pela RC/1982) e artigo 271º (na redacção que lhe foi
dada pela RC/1989) a responsabilidade civil dos titulares dos órgãos das entidades públicas e dos funcionários e agentes
perante terceiros deixou de se circunscrever aos casos em que tivessem excedido os limites das sua funções ou que no
exercício de tais funções tivessem procedido dolosamente.
7 - Pelo que os titulares e agentes do Estado e as demais entidades públicas respondem civilmente perante
terceiros pelas acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício de que resulte a
violação dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, não só nos actos dolosos mas também nos actos
negligentes, consciente ou inconsciente.
8 - Existindo por isso uma divergência sobre a compatibilidade do artigo 2º e artigo 3º, nº 1 e nº 2, do Decreto-Lei
Nº 48 051/1967, de 21 de Novembro , com o disposto no artigo 22º (na redacção que lhe foi dada pela RC/1982) e artigo
271º (na redacção que lhe foi dada pela RC/1989), ambos da Constituição da República Portuguesa.
9 - E, sendo os preceitos constitucionais de aplicabilidade directa e de valor hierárquico superior aos consagrados
no direito ordinário, recai sobre o artigo 2º e artigo 3º, nº 1 e nº 2, do Decreto-Lei Nº 48 051/1967, de 21 de Novembro, uma
inconstitucionalidade superveniente de acordo com o plasmado no nº 2 do artigo 290º (na redacção que lhe foi dada pela
RC/1989) da Constituição da República Portuguesa.
10 - Termos em que deve ser negado provimento ao presente recurso e, consequentemente, declarada a
inconstitucionalidade superveniente do regime disposto no artigo 2º e artigo 3º, nº 1 e nº 2, do Decreto-Lei Nº 48 051/1967,
de 21 de Novembro, por contrariarem o conteúdo e o alcance do artigo 22º (na redacção que lhe foi dada pela RC/1982),
artigo 271º (na redacção que lhe foi dada pela RC/1989) e artigo 290º, Nº 2 (na redacção que lhe foi dada pela RC/1989),
todos da Constituição da República Portuguesa, mantendo-se a decisão ora recorrida, seguindo-se os ulteriores termos até
final.»

O Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto em exercício neste Tribunal contra-alegou, concluindo:

78
«1º Com a entrada em vigor da actual Constituição e face ao teor do seu artigo 22º e artigo 271º - que
estabelecem categoricamente a regra da solidariedade passiva - a responsabilidade civil dos titulares dos órgãos,
funcionários e agentes das pessoas colectivas públicas deixou de se circunscrever aos casos em que hajam excedido os
limites das suas funções ou, no exercício destas, tenham procedido com dolo, podendo fundar-se na referida norma
constitucional - directamente aplicável - o regime de solidariedade no caso dos actos funcionais ilícitos, praticados com
negligência do agente.
2º Ocorrendo, deste modo, uma equiparação - quanto a este aspecto específico - entre o regime da efectivação
da responsabilidade por actos de ‘gestão pública’ administrativa e de ‘gestão privada’ do Estado, face ao estatuído no artigo
501º do Código Civil.
3º Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade superveniente constante da decisão
recorrida.»

Cumpre apreciar e decidir.


2 - A sentença recorrida resolve a questão de saber se na acção proposta contra o Estado e um seu agente para
efectivação da responsabilidade civil extracontratual do Estado por facto ilícito e culposo praticado pelo agente no exercício
das suas funções este deve, ou não, responder.

Sustentou, com efeito, o réu não poder ser ele demandado na acção uma vez que o facto danoso lhe era
imputado a título de negligência, pelo que, nos termos do regime definido no artigo 2º e artigo 3º do Decreto-Lei nº 48 051,
não era civilmente responsável perante terceiros pelo ilícito cometido.
Não se põe em causa na sentença a tese de que, de acordo com tal regime, o agente não responde perante o
lesado pelos danos causados por facto ilícito e meramente culposo praticado no exercício das suas funções.
Mas depois de se sintetizar esse regime, resultante do artigo 2º, nº 1, e artigo 3º, nº 1 e nº 2, do Decreto-Lei nº 48
051, acrescenta-se:

Contudo, este diploma há-de compatibilizar-se com a Constituição da República Portuguesa.


E é nesse labor de compatibilização do Decreto-Lei nº 48 051 com a Constituição que a decisão recorrida
conclui que, por aplicação directa do artigo 22º da Constituição da República Portuguesa e decorrendo efeitos
derrogatórios imediatos sobre o direito ordinário que com tal preceito constitucional seja incompatível, se impõe a
responsabilidade do agente ou funcionário, não apenas nos casos de actos funcionais dolosos a que se refere o artigo 3º
daquele diploma legal mas também nos de negligência, consciente ou inconsciente.
O que, em direitas contas, se faz na sentença recorrida é, afinal, desaplicar o regime instituído pelo Decreto-Lei nº
48 051 (maxime o artigo 2º e artigo 3º, nº 1) no ponto em que dele resulta a irresponsabilidade do agente, face ao lesado,
por danos causados por acto funcional ilícito praticado com negligência.
Muito embora a desaplicação derive da caducidade da norma por incompatível com a Constituição, tal não
impede que o Tribunal Constitucional conheça do recurso interposto ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do
Tribunal Constitucional, como é jurisprudência consolidada deste Tribunal (cf., de entre outros, o Acórdão Nº 2/1984,
Acórdão Nº 20/1984, Acórdão Nº 29/1984 e Acórdão Nº 31/1984, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 2º vol., pp. 198,
385, 431 e 123, respectivamente).

E a questão a decidir é, pois, a de saber se a Constituição impõe que o agente do Estado responda directamente
perante o lesado por actos ilícitos praticados no exercício das suas funções, com negligência, devendo considerar-se
caducado o regime definido pelo artigo 2º e artigo 3º, nº 1 e nº 2, do Decreto-Lei nº 48 051 por afrontar aquela imposição.

3 - São do seguinte teor as normas em apreço, constantes do Decreto-Lei nº 48 051, de 21 de Novembro de


1967:
«Artigo 2º
1 - O Estado e as demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos
direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses resultantes de actos ilícitos
culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa
desse exercício.
[2 - Quando satisfizerem qualquer indemnização nos termos do número anterior, o Estado e as demais pessoas
colectivas públicas gozam do direito de regresso contra os titulares do órgão ou os agentes culpados, se estes houverem
procedido com diligência ou zelo manifestamente inferiores àqueles a que se achavam obrigados em razão do cargo.]

Artigo 3º
1 - Os titulares do órgão e os agentes administrativos do Estado e as demais pessoas colectivas públicas
respondem civilmente perante terceiros pela prática de actos ilícitos que ofendam os direitos destes ou as disposições

79
legais destinadas a proteger os seus interesses se tiverem excedido os limites das suas funções ou se, no desempenho
destas e por sua causa, tiverem procedido dolosamente.
2 - Em caso de procedimento doloso, a pessoa colectiva é sempre solidariamente responsável com os titulares
do órgão ou agente.»

4 - Antes de se apreciar a questão de constitucionalidade em causa, importa tecer algumas considerações,


necessariamente breves, sobre a responsabilidade da Administração no nosso ordenamento jurídico , quer no plano
constitucional quer no plano do direito infraconstitucional.
No domínio do direito público, começou por afirmar-se o princípio da irresponsabilidade do Estado «enquanto
corolário directo da ideia de soberania e de uma inerente ausência de responsabilidade do rei», embora se admitisse que o
particular prejudicado pudesse, em certos casos, ser ressarcido no âmbito do direito privado (cf. Paulo Otero,
«Responsabilidade civil pessoal dos titulares de órgãos, funcionários e agentes da Administração do Estado», in La
responsabilidad patrimonial de los poderes públicos, III Coloquio Hispano-Luso de Derecho Administrativo, Marcial Pons,
1999, p. 490).
Vieira de Andrade sintetiza este regime como de «irresponsabilidade pública, responsa-bilidade privada »
(cf. «Panorama geral do direito da responsabilidade civil da Administração Pública em Portugal», in La responsabilidad
patrimonial de los poderes públicos, III Coloquio Hispano-Luso de Derecho Administrativo, Marcial Pons, 1999, p. 40).
Com a evolução histórica e, em especial, à medida que se foi evoluindo para um Estado de direito social, com
uma interpenetração crescente entre Estado e sociedade civil, manifestada na descentralização administrativa, na
multiplicação de poderes públicos e na política intervencionista em matéria de relações sociais, esta dicotomia viria a
tornar-se insustentável na «sociedade técnica de massas» (cf. Rogério Ehrhardt Soares, in Direito Público e Sociedade
Técnica, citado por Vieira de Andrade, loc. cit. e ob. cit.).
Já na Constituição de 23 de Setembro de 1822, embora se não consagrasse o princípio da responsabilidade
directa ou indirecta da Administração por danos causados aos particulares em virtude do exercício das funções que lhe são
próprias, não deixava de se estabelecer no artigo 14º, integrado no título I, com a epígrafe «Dos direitos e deveres
individuais dos Portugueses», que «todos os empregados públicos serão estritamente responsáveis pelos erros de ofício
e abusos do poder, na conformidade da Constituição e da lei».
A Carta Constitucional de 29 de Abril de 1826 manteve no essencial este princípio constitucional de
responsabilidade dos funcionários públicos por «abusos e omissões» praticados no exercício das suas funções - é o
que resulta do artigo 145º, § 27, constante do título VIII da Carta.
A Constituição de 4 de Abril de 1838, no título III, artigo 26º, manteve inalterado aquele princípio geral.
Com a implantação da I República, diferentemente do que vinha acontecendo no constitu-cionalismo monárquico,
a Constituição de 21 de Agosto de 1911 não consagrou o princípio geral de responsabilidade dos funcionários públicos
por actos ilícitos praticados no exercício das respectivas funções. Estatuía, porém, o artigo 3º, § 30, que «todo o cidadão
poderá apresentar aos poderes do Estado reclamações, queixas e petições, expor qualquer infracção à Constituição e, sem
necessidade de prévia autorização, requerer perante a autoridade competente a efectiva responsabilidade dos
infractores».
Da Constituição de 11 de Abril de 1933 não consta qualquer referência à responsabilidade dos
funcionários/empregados públicos por actos ilícitos praticados no exercício das suas funções nem tão-pouco à efectivação
da responsabilidade do autor de infracção à Constituição, estabelecendo-se, no entanto, quanto à reparação dos danos
causados a outrem, que o cidadão português tem «o direito de reparação de toda a lesão efectiva conforme
dispuser a lei, podendo esta, quanto a lesões de ordem moral, prescrever que a reparação seja pecuniária » (cf.
o artigo 8º, Nº 17).

A Constituição de 1976 consagrou pela primeira vez o princípio da responsabilidade das entidades públicas,
contendo vários e importantes artigos em matéria de responsabilidade da Administração (por virtude do exercício da
actividade administrativa) e do Estado em geral, atinentes ao exercício das outras funções que lhe incumbem (cf., para o
último caso, o artigo 27º, nº 5, responsabilidade do Estado por privação da liberdade, artigo 29º, nº 6, responsabilidade
por danos causados por condenações injustas, artigo 62º, nº 2, responsabilidade por requisição e expropriação por
utilidade pública, artigo 66º, nº 3, responsabilidade por lesão do direito ao ambiente, e artigo 120º, nº 1, responsabilidade
dos titulares dos cargos políticos).
As disposições constitucionais relevantes em matéria de responsabilidade da Administração constam do artigo
22º e artigo 271º da lei fundamental, a que mais adiante voltaremos.
No plano do direito infraconstitucional, começa por se salientar que o Código Civil de Seabra (1867) consagrou o
princípio da irresponsabilidade do Estado no artigo 2399º e artigo 2400º, onde se dispunha que nem o Estado nem os
funcionários eram responsáveis pelas perdas e pelos danos que causassem no desempenho das obrigações que lhes
fossem impostas por lei, excepto se excedessem ou não cumprissem as disposições da mesma lei, caso em que
responderiam pessoalmente como qualquer cidadão.

80
Relativamente aos actos de gestão privada, a doutrina e a jurisprudência da época entendiam que eles eram
susceptíveis de gerar responsabilidade do Estado.
Com a importante revisão de 1930, o Código Civil, não deixando de manter o princípio da irresponsabilidade dos
«empregados públicos» pelas perdas e pelos danos causados no desempenho das obrigações que lhes são impostas por
lei, com a referida ressalva, estabeleceu, pela primeira vez, a responsabilidade solidária das «entidades» de que aqueles
eram «serventuários» nos casos em que os «empregados públicos» respondessem.
No âmbito do direito público, o Código Administrativo de 1936-1940 estabeleceu a responsabilidade civil das
autarquias locais por actos praticados com ofensa de lei pelos seus órgãos e agentes no âmbito das respectivas atribuições
e competências, com observância das formalidades essenciais e para a realização dos fins legais (cf. o artigo 310º do
Código Administrativo de 1936 e artigo 366º do Código Administrativo de 1940).
O Código previa ainda a responsabilidade pessoal dos titulares dos órgãos, agentes ou funcionários das
autarquias locais por actos geradores de prejuízo que não tivessem sido praticados no âmbito das respectivas atribuições e
competências, com observância das formalidades essenciais e para a realização dos fins legais (cf. o artigo 311º do Código
Administrativo de 1936 e artigo 367º do Código Administrativo de 1940).

Importante marco na evolução do regime da responsabilidade civil da Administração no nosso ordenamento


jurídico foi, sem margem para dúvidas, o Código Civil de 1966.
Como revelam os respectivos trabalhos preparatórios, o legislador tinha a intenção de regular toda a matéria da
responsabilidade extracontratual da Administração Pública, mas a orientação que acabou por prevalecer foi a de regular
apenas a responsabilidade por danos causados no «exercício da actividade de gestão privada» (cf. o artigo 501º), deixando
para as leis administrativas a disciplina da responsabilidade da Administração no «domínio dos actos de gestão pública».
Foi o que veio a acontecer, pouco tempo depois, com a publicação do Decreto-Lei nº 48051/1967, de 21 de
Novembro, que ainda hoje se mantém em vigor.
Com efeito, no seu artigo 1º, este decreto-lei determina que a responsabilidade civil extracontratual do Estado e
demais pessoas colectivas públicas no domínio dos actos de gestão pública se passa a reger pelo que nele se dispõe.
Na parte que nos interessa - responsabilidade por facto ilícito -, o regime então instituído (que exclui
implicitamente a matéria relativa aos danos causados por actos pessoais dos funcionários) pode sintetizar-se nos seguintes
termos:
Pelos danos causados por actos ilícitos e culposos (negligência) praticados pelos titulares dos órgãos e pelos
agentes administrativos do Estado e pelas demais pessoas colectivas públicas no exercício das suas funções e por causa
desse exercício respondem, directa e exclusivamente, perante o lesado, o Estado ou as demais pessoas colectivas
públicas (artigo 2º, nº 1);
Pelos danos causados por actos praticados por aqueles mesmos entes (titulares de órgãos ou agentes
administrativos) nas mesmas condições (no exercício das suas funções e por causa destas), mas cometidos com dolo,
respondem, solidariamente, perante o lesado, o Estado ou as demais pessoas colectivas públicas e o lesante (artigo 3º, nº
1 e nº 2);
Pelos actos praticados ainda pelos mesmos entes «se tiverem excedido os limites das suas funções» responde,
exclusivamente, perante o lesado, o lesante (artigo 3º, nº 1).

No âmbito das relações internas, o Estado e as demais pessoas colectivas públicas que tiverem satisfeito
qualquer indemnização gozam de direito de regresso contra os lesantes, nos casos em que estes agiram «com diligência
e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se achavam obrigados em razão do cargo» (artigo 2º, nº 2).

Como refere Carlos Cadilha (intervenção produzida em conferência sobre «responsabilidade civil extracontratual
do Estado», publicada pelo Ministério da Justiça, sob o título A Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, p. 238),
configuram-se, assim, as seguintes situações:

« a ) Responsabilidade exclusiva da Administração (actos praticados com culpa leve);


b ) Responsabilidade exclusiva da Administração com direito de regresso (actos praticados com
negligência grave);
c ) Responsabilidade solidária da Administração (actos praticados com dolo);
d ) Responsabilidade exclusiva dos titulares dos órgãos, funcionários ou agentes (actos que excedam
os limites das funções).»

É a conformidade à Constituição deste regime que tem vindo a ser objecto de controvérsia na doutrina e na
jurisprudência, sendo que, para o caso, nos importa exclusivamente o que concerne à responsabilidade do funcionário por
acto funcional ilícito e negligente.
E isto porque a sentença recorrida - disse-se já - resolve a questão de constitucionalidade ponderando apenas a
situação, que entende em causa, da responsabilidade do funcionário perante o lesado, no âmbito das relações externas,

81
por danos causados por acto funcional ilícito e culposo, sendo certo que ela não distingue o grau de culpa (grave ou leve)
imputado ao agente e não o qualifica no caso.
5 - É a primeira vez que o Tribunal Constitucional se confronta, directamente, com a questão (a Comissão
Constitucional afrontou lateralmente a questão no seu parecer nº 22/1979, in Pareceres da Comissão Constitucional, vol.
9º, p. 40), o que não pode deixar de significar - considerando a obrigatoriedade do recurso para o Tribunal Constitucional
por parte do Ministério Público em caso de recusa de aplicação de norma com fundamento na sua inconstitucionalidade -
que ou os autores não têm demandado, nas pertinentes acções, os funcionários e agentes ou os nossos tribunais não têm
geralmente julgado contrário à Constituição o regime instituído pelo Decreto-Lei nº 48 051, enquanto prescreve a
irresponsabilidade dos titulares dos órgãos, funcionários ou agentes do Estado por actos funcionais ilícitos e culposos no
âmbito das relações externas.
E, com efeito, da jurisprudência conhecida dos nossos tribunais superiores dá-se apenas nota de dois arestos
que, no aspecto em causa, julgaram inconstitucional o referido regime, por a Constituição ter passado a impor a
responsabilidade directa do lesante: um proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 6 de Maio de 1986, in Boletim do
Ministério da Justiça, ano 357, p. 392, e o outro prolatado pelo Supremo Tribunal Administrativo em 3 de Maio de 2001
(processo Nº 47 084).
A verdade é que, ao menos na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, o citado acórdão mantém-se
isolado na doutrina que professa. Com doutrina oposta - no sentido de que a Constituição não fez caducar aquele
regime - v. os Acórdãos de 22 de Maio de 1990 (processo Nº 28 120), de 29 de Outubro de 1992 (processo Nº 29 994), de
29 de Abril de 1999 (processo Nº 40 503) e, como mais recente, o de 28 de Fevereiro de 2002 (processo Nº 48 178).
Na doutrina, a divergência é mais acentuada, com clara dominância da tese em que assentou a sentença
recorrida.
Não sendo inteiramente líquida a posição adoptada quanto à questão que ora nos ocupa, Gomes Canotilho e Vital
Moreira (Constituição da República Português Anotada, 3ª ed., p. 22) parecem, no entanto, apontar para a
incompatibilidade do regime do Decreto-Lei nº 48 051 com o artigo 22º da Constituição, uma vez que, depois de
acentuarem, relativamente ao problema da imputação, «a atribuição, a título directo, às entidades públicas da
responsabilidade por danos causados pelos titulares dos seus órgãos ou pelos funcionários ou agentes», entendem que
«daqui deriva também a forma solidária da responsabilidade, podendo o cidadão lesado demandar quer o Estado, quer os
funcionários ou agentes, quer ambos conjuntamente», o que implicará o afastamento das normas do Decreto-Lei nº 48 051
que isentam de responsabilidade, nas relações externas, o titular do órgão, funcionário ou agente que aja com culpa.
Por seu turno, Freitas do Amaral (intervenção produzida na citada conferência sobre «Responsabilidade civil
extracontratual do Estado», pp. 44 e segs.) afirma categoricamente que o Decreto-Lei nº 48 051 se tornou «em parte
inconstitucional quando a Constituição, no artigo 22º, veio estabelecer o princípio geral da responsabilidade solidária entre
o Estado e os seus órgãos, agentes ou representantes.
Como todos sabemos, o artigo 2º e artigo 3º do Decreto-Lei nº 48 051 não previam para todos os casos de
responsabilidade o regime de solidariedade, e agora a Constituição obriga a rever essa matéria».
Quando, porém, prefigura o quadro de alternativas que se abrem ao legislador ordinário, admite que se mantenha
«um sistema de responsabilidade exclusiva do agente em certos casos e de responsabilidade solidária em todos os
demais» ou uma «ideia [...] de uma responsabilidade exclusiva do Estado em caso de culpa leve, apenas com
responsabilidade solidária propriamente dita para os casos de culpa grave e dolo», reconhecendo que tal pode não resultar
do artigo 22º da Constituição mas, sim, do artigo 271º da Constituição da República Portuguesa.
Para Rui de Medeiros ( Acções de Responsabilidade, p. 37), o artigo 2º, nº 2, do Decreto-Lei nº 48 051 consagra
uma solução «num contexto hoje já inexistente de responsabilidade exclusiva da pessoa colectiva pública perante o terceiro
lesado»; no seu «Ensaio sobre a responsabilidade civil do Estado por actos legislativos» escreve que «a crítica mais
certeira que podia fazer-se ao regime consagrado no artigo 2º do Decreto-Lei nº 48 051 era a de que a irresponsabilidade
do funcionário perante o lesado, nos casos de negligência, não se harmonizava com a função pedagógico-educativa da
responsabilidade civil e, sobretudo, não protegia o direito de indemnização dos particulares. Por isso, correctamente, a
Constituição de 1976 estabelece a regra da solidariedade» (p. 93); e, mais adiante, diz que o artigo 22º da Constituição,
«ao recusar uma responsabilidade exclusiva do Estado, visa tornar mais efectivo o direito à reparação dos danos e,
indirectamente, estimular a diligência dos servidores do Estado» (p. 98). Em suma, o artigo 2º do Decreto-Lei nº 48 051 ter-
se-ia tornado inconstitucional (p. 99).
Jorge Miranda afirma que o Decreto-Lei nº 48 051 continua em vigor, «salvo, porventura, na parte caducada por
inconstitucionalidade superveniente (por não estender a todas as formas de actuação ilícita com culpa a regra da
solidariedade» («A Constituição e a responsabilidade civil do Estado», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério
Soares, p. 932).
Para Fausto Quadros (intervenção produzida na citada conferência sobre «Responsabilidade civil extracontratual.
. .», cit., pp. 59 e 60), «deve pôr-se termo à inconstitucionalidade por omissão do Decreto-Lei nº 48 051/1967, de 21 de
Novembro, resultante da violação ao artigo 22º da Constituição, acolhendo-se formalmente o princípio da responsabilidade
solidária entre a Adminis-tração e os funcionários ou agentes. Nesse caso, deve, porém, assegurar-se o dever de regresso
da Administração, e não apenas o seu direito de regresso, sempre que o agente tenha agido com culpa grave ou dolo».

82
Carlos Cadilha (intervenção cit., p. 239), assinalando a «impossibilidade que directamente decorre da directiva
constitucional de fazer incidir sobre os funcionários ou agentes uma responsabilidade pessoal exclusiva, mesmo em
relação a danos que resultem de actos em que estes tenham excedido os limites das suas funções», entende que «a
alternativa que se depara ao legislador ordinário é a de estender a esses casos o regime do direito de regresso por parte da
Administração, em paralelo com o que já hoje sucede com os danos derivados de actos funcionais praticados com
diligência grave ou dolo»; na nota (8), deixa claro que «as entidades públicas, em virtude da sua responsabilidade solidária,
funcionam como garante do pagamento da indemnização, independentemente do grau de culpa que possa imputar-se à
conduta lesiva do funcionário ou agente. Daí que o credor possa exigir a prestação integral à Administração ou ao seu
servidor, ou contra ambos conjuntamente, cabendo o direito de regresso, por parte do demandado, nos termos que vierem
a ser fixados na lei regulamentadora».
Para Paulo Otero («Responsabilidade civil pessoal dos titulares dos órgãos, funcionários e agentes da
Administração do Estado», in La responsabilidad patrimonial de los poderes públicos, cit., pp. 489 e segs.), «o princípio da
solidariedade na responsabilidade civil permite ao administrado que tenha sido lesado intentar uma acção administrativa de
responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito contra a entidade pública integrante da Administração Pública, contra o
autor do facto ou contra ambos, solicitando em qualquer das três hipóteses (dolo e negligência consciente ou inconsciente)
o ressarcimento integral do prejuízo sofrido. Quando for demandado por culpa leve, o funcionário pode exercer o direito de
regresso».
Pode dizer-se que toda esta orientação doutrinária se constrói, no essencial, com base no segmento normativo do
artigo 22º da Constituição, que se refere à « forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes» em
que o Estado e as demais entidades públicas respondem civilmente perante os lesados.
Com efeito, no âmbito dos actos ou omissões ilícitos e culposos praticados no exercício das funções e por causa
desse exercício - e só estes agora nos interessam -, o Decreto-Lei nº 48 051 estabelece a irresponsabilidade dos
funcionários, no plano das relações externas, em todos os casos de culpa (grave ou leve), só respondendo, nesse mesmo
plano, se tiverem excedido os limites das suas funções ou tiverem procedido com dolo.
Por outro lado, o Estado, neste mesmo plano, ou responde exclusivamente, em caso de culpa dos funcionários,
gozando, porém, de direito de regresso quando se tratar de culpa grave, ou solidariamente, em caso de dolo.
Ou seja: no regime do diploma de 1967, por actos praticados no exercício das funções ou por causa desse
exercício, nem o Estado responde solidariamente em todos os casos nem os funcionários podem ser directamente
demandados também em todos os casos (só, aliás, podem sê-lo por terem excedido os limites das funções ou por terem
procedido com dolo).
Daí que - aceite que a norma constitucional atribui ao Estado, a título directo, a responsabilidade por danos
causados pelos seus funcionários - a interpretação daquele segmento da norma constitucional, no sentido de que a
utilização do conceito de solidariedade visa designar as pessoas responsáveis, conduza à conclusão de que os
funcionários passam a responder, sempre, perante o lesado, qualquer que seja o grau de culpa com que tenham agido; e é
assim que se considera supervenientemente inconstitucional a norma, ou o complexo normativo, do Decreto-Lei nº 48 051
de que resulta a irresponsabilidade dos funcionários, no plano das relações externas, por conduta culposa.
É, aliás, nesta linha que se insere a doutrina da decisão recorrida ao recusar a aplicação do artigo 2º e artigo 3º,
nº 1 e nº 2, do Decreto-Lei Nº 48 051, como também a tese sustentada pelos recorridos, chamando ainda à colação o
disposto no artigo 271º da Constituição da República Portuguesa.
Vejamos se é assim, não deixando de reconhecer que a Comissão Constitucional, como se referiu já, no seu
parecer nº 22/1979 (que é a única pronúncia sobre a matéria na jurisprudência constitucional) não deu por inquestionável e
adquirida aquela tese, afirmando que «não será de todo impossível compatibilizar as referidas normas do Decreto-Lei nº 48
051 com o disposto no artigo 21º, nº 1, da Constituição (preceito a que actualmente corresponde o artigo 22º): quando este
fala da “forma solidária” sob a qual responderão o Estado e os seus agentes, não é absolutamente necessário a adopção
do estrito esquema das “obrigações solidárias” do direito civil, antes será porventura possível entender que a
responsabilidade, sem deixar de ser solidária, pode depender de diferentes pressupostos, consoante ela se afira em
relação ao Estado ou aos seus agentes».

6 - A norma do artigo 22º da Constituição de 1976 constitui uma inovação relativamente aos textos
constitucionais anteriores, elevando ao nível supralegal (constitucional) princípios que até então haviam apenas sido
acolhidos no direito infraconstitucional, máxime no Decreto-Lei nº 48 051.
Ela veio a ser inscrita na parte I da Constituição da República Portuguesa, referente aos «Direitos e deveres
fundamentais», e no título I, que contempla os «Princípios gerais» sobre a matéria.
Trata-se, pois, de uma norma que respeita aos direitos, liberdades e garantias, o que, obviamente, não basta -
como não basta a sua qualificação como princípio geral - para uma caracterização rigorosa do tipo de norma em causa.
Com efeito, como assinala Maria Lúcia Amaral ( Responsabilidade do Estado e Dever de Indemnizar do Legislador, p. 430),
«estas mesmas normas podem ser ainda de tipos diversos, consoante atribuem ou não atribuem verdadeiros direitos
subjectivos aos particulares».

83
Certo é que, antes mesmo desta operação qualificativa, o que, desde logo, se impõe ao intérprete é a
circunstância de se tratar de uma norma com uma previsão inequívoca (e não só pela expressão da epígrafe,
«Responsabilidade das entidades públicas»): «o Estado e as demais entidades públicas [...]»; o que se torna ainda mais
impressivo pelo facto de outra norma constitucional, já não inserida na parte referente aos «direitos fundamentais» - o
artigo 271º -, dispor directamente sobre a «responsabilidade dos funcionários e agentes».
Isto desde logo legitima a «circunspecção» de Sinde Monteiro («Aspectos particulares da responsabilidade
médica», in Direito de Saúde e Bioética, pp. 133 e segs.) face a interpretações da mesma norma que dela retiram regras
precisas sobre a responsabilidade de funcionários e agentes, quando escreve: «deverá ser-se em extremo prudente, ou
mesmo circunspecto, na leitura desta disposição de uma forma tal que resultem afinal disciplinados os pressupostos do
dever de responder dos próprios funcionários, que já não somente das “entidades públicas”. Tecnicamente, isso equivale a
encontrar uma estatuição para algo (uma hipótese de facto) que não aparece incluído na previsão da norma».
Sucede, na verdade, que a interpretação em causa vai buscar à estatuição da norma - responsabilidade das
entidades públicas, em forma solidária, pelos danos - um alargamento da previsão, apenas pela razão da «solidariedade»
(que é sempre uma modalidade das obrigações em que cada um dos devedores responde pela totalidade da dívida,
supondo a existência de mais de um devedor), e esquece que o preceito dispõe sobre a responsabilidade das entidades
públicas com os titulares de órgãos, funcionários ou agentes, e não destes com aquelas, sendo certo que ele pode obrigar
as primeiras a responder civilmente sempre que os segundos responderem, mas já não impor a responsabilidade directa
dos segundos em todos os casos em que as entidades públicas devam responder.
Trata-se, aliás, de um entendimento que causa sérios embaraços a quem queira ver consagrada na norma
também a responsabilidade das entidades públicas por actos lícitos, ou pelo risco, onde seria de todo desrazoável, ou
mesmo absurdo, co-responsabilizar os titulares de órgãos, funcionários e agentes (cf., neste sentido, Vieira de Andrade,
Panorama Geral do Direito da Responsabilidade da Administração Pública em Portugal, cit., p. 54).
Para além de que, seguindo o mesmo entendimento, e - repete-se - numa norma que visa consagrar um princípio
geral de responsabilidade das entidades públicas, acabaria por se estabelecer, de uma forma insidiosa, o agravamento
automático da responsabilidade dos titulares dos órgãos, funcionários e agentes, no plano das relações externas, o que, a
ser essa a intenção do legislador constituinte, teria o seu lugar próprio no artigo 271º da Constituição da República
Portuguesa (cf. a intervenção de Margarida Cortez in conferência sobre «A responsabilidade civil extracontratual do
Estado», cit., p. 259, e «Responsabilidade civil da Administração por actos administrativos ilegais e concurso de omissão
culposa do lesado», p. 30), o que, como se verá, não acontece neste último preceito (Sinde Monteiro, ob. cit. e loc. cit., p.
144).
A verdade é que, ao estabelecer apenas um regime de solidariedade, não é inevitável que a norma do artigo 22º
da Constituição seja lida em termos de designar os responsáveis, independentemente dos pressupostos da obrigação de
indemnizar de cada um dos obrigados.
Escreve, a este respeito, Sinde Monteiro ( loc. cit., p. 142): «A expressão “em forma solidária” conota sem dúvida
uma certa modalidade das obrigações, caracterizada (a pars debitoris) principalmente pela responsabilidade de cada um
dos devedores pela prestação integral (artigo 512º e segs. do Código Civil). Mas uma coisa é a modalidade (regime) da
obrigação, e coisa diferente a fonte do vínculo obrigacional. Normalmente, quando a lei civil declara vários sujeitos
solidariamente responsáveis, está a pressupor que na pessoa de cada um deles se reúnem os requisitos do dever de
indemnizar, quer de carácter geral quer os particularmente atinentes à fattispecie em causa.»
Por isto, diz o mesmo autor - e com razão -que «faz pois sentido ler o texto do artigo 22º da Constituição deste
modo: ‘o Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares [...]’,
desde que sobre estes recaia a obrigação de indemnizar». E, sendo a norma omissa quanto aos pressupostos desta
obrigação, é à legislação ordinária - no caso, ao Decreto-Lei nº 48 051 (artigo 2º e artigo 3º) que deve apelar-se para saber
em que condições respondem, directamente, os funcionários e agentes por actos ilícitos e culposos praticados no exercício
e por causa das suas funções, estendendo-se, então, às entidades públicas (em termos solidários) a mesma
responsabilidade.
É, alias, esta incompletude da norma do artigo 22º da Constituição da República Portuguesa [«Que pressupostos
devem estar reunidos para que possamos afirmar esta mesma existência (a existência do direito à indemnização)? Que
condições devem ser verificadas para que possamos anuir quanto à sua titularidade concreta? Que parâmetros de decisão
devem ser utilizados para que possamos condenar o Estado a indemnizar danos que os seus actos tenham provocado?»)
uma das principais razões que leva Maria Lúcia Amaral ( ob. cit., p. 439) a concluir que ela não é uma norma atributiva de
um direito, entendendo que as normas constitucionais que atribuem direitos, liberdades e garantias, com o regime próprio
constante do artigo 18º da Constituição, «não podem deixar de ser dotadas de uma particular densidade de estrutura», e
escrevendo a propósito:
«Por causa das imposições de vinculatividade e de aplicabilidade directa fixadas no nº 1 do artigo 18º, as normas
atributivas de direitos, liberdades e garantias têm de ser, no que diz respeito à atribuição do direito, normas dotadas
daquele tipo de eficácia máxima que é próprio das chamadas regras self-executing.»

84
Reconhece-se, com a mesma autora, que a configuração do instituto da responsabilidade civil extracontratual da
Administração, com a consagração do dever público de indemnizar e os respectivos pressupostos, foi obra do Decreto-Lei
nº 48 051, no termo de uma evolução feita ao nível do direito infraconstitucional, e que o artigo 22º da Constituição acaba
por acolher o instituto que a legislação ordinária modelara, conferindo-lhe dignidade constitucional.
Tal constitucionalização garantiu o instituto (ou o seu núcleo essencial - o princípio da imputação directa ao
Estado dos ilícitos cometidos pelos titulares dos órgãos, funcionários e agentes), condicionando o legislador ordinário a não
retroceder «até àquele nível histórico de desenvolvimento em que se desconhecia o instituto e em que se recusava ao
particular a titularidade do direito subjectivo» (Maria Lúcia Amaral, ob. cit., p. 449).
A norma do artigo 22º da Constituição da República Portuguesa - dirigindo-se ao legislador, com vista a garantir o
instituto, e implicando limites à sua conformação pela lei ordinária - parece, assim, justificar a qualificação de norma de
garantia institucional que a mesma autora lhe atribui (no mesmo sentido, Vieira de Andrade, loc. cit., p. 53, e Manuel Afonso
Vaz, «A responsabilidade civil do Estado. Considerações gerais sobre o seu estatuto constitucional», nº 14, p. 9, ao afirmar
que adoptaria tal qualificação, «não fosse o facto da figura da garantia institucional não merecer o consenso da doutrina
quanto à sua aplicabilidade directa»).
Nesta conformidade, as situações de responsabilidade exclusiva do Estado e das entidades públicas, no plano
das relações externas, que o Decreto-Lei nº 48 051 consagra, no ponto em que cumprem princípios de justiça (formal e
substancial) não ficam comprometidas com o disposto no artigo 22º da Constituição. E o que esta norma impõe será
apenas que o Estado e as demais entidades públicas respondam sempre ao lado dos titulares dos órgãos, funcionários e
agentes por actos funcionais, quando a lei impuser a responsabilidade directa destes (é o caso, por exemplo, do disposto
na primeira parte do artigo 3º, Nº 1, do Decreto-Lei nº 48 051), sem, contudo, contender - repete-se - com as imposições
normativas (de lei ordinária) de responsabilidade exclusiva do Estado.
Cumpre-se, deste modo, a principal função do instituto da responsabilidade civil - a função reparadora que
especialmente garante aos particulares o ressarcimento dos danos causados pelos actos praticados pelos titulares dos
órgãos, funcionários e agentes do Estado e de entidades públicas.
Não seria, com efeito, a responsabilidade directa destes últimos, em todos os casos - como resulta da tese da
decisão recorrida -, que iria reforçar, de modo relevante (a ponto de merecer a tutela constitucional), a garantia dos
particulares. Tal reforço só poderia admitir-se pelas supostas dificuldades burocráticas na execução das decisões
condenatórias do Estado e entidades públicas – pressuposto que seria inadmissível na Constituição de um Estado de
direito -, sendo certo que é ao legislador ordinário que cumpre obviar a esses constrangimentos, como de resto sucedeu já
com a recente reforma do contencioso administrativo.
Dir-se-ia, em contrário, que a exigência da responsabilização dos titulares de órgãos, funcionários e agentes, nas
relações externas, decorre da função preventiva do instituto e da garantia dos princípios da legalidade e da eficiência
administrativa.
Certo é, porém, que, e em primeiro lugar, não resulta necessariamente da responsabilidade exclusiva da
Administração, no plano das relações externas, a irresponsabilização dos titulares de órgãos, funcionários e agentes; a
responsabilidade destes pode ser accionada por via do direito de regresso, como desde logo o demonstra o disposto no
artigo 2º, nº 2, do Decreto-Lei nº 48 051, abrindo-se ainda ao legislador, a coberto do disposto no artigo 271º, nº 4, da
Constituição, a possibilidade de regular esse direito em termos de abranger outras situações.
Por outro lado, se ainda for rigorosamente efectivada a responsabilidade penal e disciplinar a que se refere o
disposto no artigo 271º, nº 1, da Constituição, não deixa de se assegurar o sancionamento de condutas ilegais e culposas,
com o inerente efeito de compelir os titulares dos órgãos, funcionários e agentes à observância do princípio da legalidade a
que estão constitucio-nalmente sujeitos na sua actuação funcional.
Por último, não deixa de se assinalar que o acolhimento da tese segundo a qual o artigo 22º da Constituição
impõe, em todos os casos, a responsabilidade directa dos titulares dos órgãos, funcionários e agentes, por actos ilícitos e
culposos praticados no exercício e por causa das suas funções, gera problemas graves na regulação de situações de culpa
leve, onde, para a generalidade da doutrina, se reconhece a inconveniência de tal responsabilidade.
Com efeito, a dispor-se nesse sentido - irresponsabilidade em caso de culpa leve, como acontece na proposta de
lei Nº 88/IX, in Diário da Assembleia da República, IIª série-A, Nº 2, de 20 de Setembro de 2003, que retoma a proposta Nº
95/VIII, do anterior Governo, in Diário da Assembleia da República, IIª série-A, de 18 de Julho de 2001 -, e na consideração
de que o artigo 22º da Constituição da República Portuguesa consagraria um direito fundamental do particular com aquele
alcance, sempre se introduziria uma restrição desse direito que dificilmente encontrará justificação na tutela constitucional
de outros direitos, bens ou valores.
Resta acrescentar - sem que, no entanto, se considere relevante para a resolução da questão de
constitucionalidade - o que alguns autores têm salientado (cf. Margarida Cortês, ob. cit., p. 29, e Sinde Monteiro, ob. cit., p.
145): o Decreto-Lei nº 100/1984, de 29 de Março (muito posterior, portanto, à Constituição), definiu a responsabilidade dos
titulares dos órgãos, funcionários e agentes das autarquias em termos muito idênticos aos do Decreto-Lei nº 48 051, o que
implicitamente revela que a tal se não opuseram vinculações constitucionais.
Em suma, pois, nada se retira do artigo 22º da Constituição que imponha a inconstitu-cionalidade superveniente
das normas do Decreto-Lei nº 48 051 de que resulta a irresponsabilidade dos funcionários do Estado, no plano das

85
relações externas, por danos causados por actos ilícitos e culposos (culpa leve ou grave) praticados no exercício das suas
funções e por causa desse exercício (artigo 2º e artigo 3º, Nº 1 e Nº 2).
7 - Mas se isto é assim tendo como parâmetro de constitucionalidade o disposto no citado artigo 22º da
Constituição da República Portuguesa, nada a este propósito se altera considerando o que consagra o artigo 271º, nº 1, da
mesma lei fundamental.
É esta a posição de Sinde Monteiro quando afirma que o artigo 271º «não estabelece expressis verbis uma
regulação incompatível com o direito anterior», embora condescenda em que a letra do nº 1 «é compatível com um sistema
diferente» (ob. cit., p. 145, e Nº 24).
E é também o que defende Margarida Cortez («Responsabilidade civil da Administração.....», cit., p. 30) ao dizer
que «o legislador podia, por ocasião da regulação da responsabilidade dos funcionários e agentes (artigo 271º), ter
agravado a posição destes face ao lesado, mas não o fez».
Trata-se, com efeito, de uma norma que se limita a estabelecer a responsabilidade civil, criminal e disciplinar dos
funcionários e agentes do Estado e das demais entidades públicas por actos e omissões praticados no exercício das suas
funções.
Mas, tal como acontecia com o artigo 22º da Constituição da República Portuguesa, também aqui o preceito
deixa, desde logo, em aberto a questão de saber quais os pressupostos do dever de indemnizar e perante quem é
efectivada a responsabilidade (o Estado e as entidades públicas, por via de regresso, ou os particulares lesados?),
elementos que estão, por agora, concretizados no Decreto-Lei nº 48 051.
Com tal abertura, o preceito deve ser interpretado em termos de deixar para o legislador um espaço que permite
adaptar o instituto às necessidades e exigências de momento - nomeadamente o de prever a responsabilidade dos
funcionários e agentes em casos de culpa (leve ou grave) -, garantindo, de qualquer modo e sempre, o direito de o
particular ver ressarcidos os danos sofridos por actos ilícitos e culposos cometidos no exercício da função administrativa.
E não deixará de dizer-se, como acentua Sinde Monteiro ( loc. cit., p. 145), que o direito de regresso previsto no nº
4 do mesmo artigo 271º da Constituição da República Portuguesa «se compatibiliza mal com um regime regra de
responsabilidade directa dos agentes, só fazendo plenamente sentido num sistema de condenação prévia do Estado».

8 - Decisão
Pelo exposto, e em conclusão, decide-se:
a) - Não julgar supervenientemente inconstitucionais as normas do artigo 2º e artigo 3º, nº 1 e nº 2, do
Decreto-Lei nº 48 051, enquanto eximem de responsabilidade, no plano das relações externas, os titulares de órgãos,
funcionários e agentes do Estado e as demais entidades públicas por danos causados pela prática de actos ilícitos e
culposos (culpa leve ou grave) no exercício das suas funções e por causa delas;
b) - Conceder, consequentemente, provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformada de acordo
com o presente juízo de constitucionalidade.

Lisboa, 13 de Abril de 2004. - Artur Maurício (relator) - Rui Manuel Moura Ramos - Carlos Pamplona de Oliveira -
Maria Helena Brito - Luís Nunes de Almeida.

Ainda no anterior regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado pode ver-se o


caso de responsabilidade civil pelo exercício da função legislativa no Ac. do STJ, de 24.2.94, no BMJ
434-396 e ss, (militares saneados pelo Dec-lei nº 309/74, de 8 de Julho) e por leis de arrendamento
que congelaram as rendas, adiante referido.

Por omissão de oportuno e capaz exercício da função legislativa , extinção de fronteiras


pela adesão à EU e prejuízos para a actividade de despachantes oficiais, mas tratando a questão
em termos mais amplos e com muita informação, veja-se o Ac. do STJ (Ex.mo Cons.º Araújo
Barros), de 25.9.2003, na Col. Jur. (STJ) 2003-III-57 a 63:

Sumário:
1. O artigo 22º da Constituição da República Portuguesa confere aos cidadãos o direito de fazerem
valer contra o Estado uma pretensão indemnizatória por omissão de oportuno exercício de actividade
legislativa.
2. Tal pretensão só pode, porém, fundamentar-se na omissão legislativa ilícita e culposa do Estado.
3. Existe actuação ilícita do legislador sempre que este viole normas a que está vinculado (normas
constitucionais, internacionais, comunitárias ou leis de valor reforçado).

86
4. O facto de o Estado Português, não obstante poder gozar de benefícios alfandegários até 1995,
haver antecipadamente, em 1993, pedido a sua supressão, insere-se na política estratégica global de adesão à
UE, inquestionável sob o ponto de vista de omissão legislativa.
5. Demonstrado que, na sequência desse acto político, o Estado fez publicar diversos diplomas
destinados a mitigar o impacto negativo daquela medida política no sector dos despachantes oficiais, há que
concluir que não ocorre uma total omissão do dever de legislar.
6. A eventual insuficiência das medidas legislativas adoptadas tem que ser, nos termos do artº. 342º,
nº. 1, do C. Civil, provada pela invocada titular da pretensão indemnizatória.

Por omissão de legislação pode ler-se, ainda, o caso do Aquaparque na Col. 97-I-107,
comentado na RLJ 134-224 pelo Professor Gomes Canotilho:

«7. Qual ou quais as razões justificativas de nossa crítica relativamente ao rigor jurídico-dogmático da sentença?
A primeira, como se irá ver, reside no passe de mágica em torno do nexo de causalidade. É este passe de mágica que
justifica a ruptura lógica na argumentação, quando, depois de se reconhecer que o agente real, provocador do dano de
morte, era a empresa Aquaparque, que "primou" pela retirada das grelhas protectoras na zona perigosíssima de sucção e
pela negligência grosseira nos serviços de vigilância, se transita para uma causa virtual - a do legislador omissivo. Mais do
que isso: dá-se tal relevância a tal causa que quase se pode concluir (ou, pelo menos, per mitir-se a ilação) pela
desoneração do agente realmente causador do dano!
A segunda ordem de considerações críticas prende-se com o recorte dogmático da categoria de omissões
legislativas. É possível que a retórica argumentativa do Tribunal se tenha deixado influenciar pela jurisprudência
comunitária iniciada pelo célebre caso Francovici.
Neste célebre acórdão, o Tribunal de Justiça das Comunidades "criou" um mecanismo sancionatório de não
transposição de directivas que passou a ser conhecido pela responsabilidade jurídico-comunitária do Estado-membro por
omissão de transposição de directivas.

8. Regressemos ao nexo de causalidade. A sentença insiste em dar como demonstrado o que é preciso
demonstrar - que a omissão de medidas legislativas sobre parques aquáticos foi a causa adequada da morte. A doutrina
mais representativa sublinha que só existe causalidade, no caso de omissão normativa, quando o exercício
atempado do dever de legislar (ou de melhorar a legislação existente) teria impedido, com alto grau de
probabilidade, a causação do dano de morte. Por outras palavras: só pode afirmar-se existir um nexo de
causalidade quando, a verificar-se uma actua ção positiva e constitucionalmente exigida do poder legislativo, o
dano, segundo um juízo de probabilidade próximo da certeza, não se teria produzido.
Compreendem-se as cautelas na formulação do princípio da causalidade adequada. Desde logo, porque a viola-
ção do dever funcional de legislar não é causa adequada do dano quando este também se produziria no caso de actuação
juridicamente incensurável dos poderes públicos. Não há lei que valha perante omissões dolosas como as que se
verificaram no caso dos autos - não colocação das grelhas de protecção e inexistência de vigilância adequada. Esta con -
clusão pode reiterar-se quando se coloca o problema em termos da exigência de deveres de protecção por parte do Estado
(Schutz-pjlicht).
Segundo se pode depreender do teor argumentativo da sentença, estaríamos perante uma exigência de actuação
reclamada por normas garantidoras dos direitos fundamentais (grundrechtliche Handlungsgebote). Mas qual é a estrutura
lógica desta exigência de um dever de actuação? A nosso ver, trata-se de uma estrutura teleológica que se reconduz
fundamentalmente, tendo em consideração o dever de protecção da vida, este esquema:
1) - alcançar e promover a protecção do bem da vida é uma exigência de actuação dirigida ao poder legislativo
pelas normas constitucionais garantidoras do direito à vida (fim da norma = V);
2) - se a medida legislativa (ML) não é editada deixa de poder ser alcançado e promovido o fim da norma (V);
3) - logo, exige-se a adopção de uma medida legislativa (ML)

Como facilmente se conclui, trata-se de uma estrutura teleológica típica de normas principiais que, numa primeira
visão das coisas (prima facie), exigem todas as medidas possíveis para a protecção do bem da vida. No caso dos parques
aquáticos, dir-se-ia que seria exigível a adopção de medidas legislativas adequadas para proteger o bem da vida daqueles
que neles gastam momentos lúdicos e de prazer. Mas só isso. Coisa completamente diferente é afirmar que a não
existência de medidas legislativas "adequadas" foi a causa adequada da morte de um jovem.

9. É patente a falta de clareza da sentença na articulação do requisito da ilicitude da omissão legislativa com a
pretensão de protecção subjectiva do particular. O exemplo trágico do caso sub judice mostra que o dever geral de
protecção de um bem tão fundamental, como é o bem da vida, não conduz necessariamente à existência de uma pretensão
de protecção subjectiva do particular. É necessário recortar três graus ou três momentos:

87
1) dever de protecção potencial: em qualquer norma garantidora de um direito fundamental localiza-se um valor
(bem) objectivo, incumbindo aos poderes públicos a respectiva protecção;
2) dever de protecção actual: a tarefa de protecção transforma-se, perante determinadas circunstâncias de facto,
num dever concreto de protecção;
3) o dever concreto de protecção implica a existência de um dever de legislação.

Vamos admitir que estavam preenchidos os três momentos: a existência de uma tarefa estadual de protecção, a
transmutação dessa tarefa em dever de protecção actual e a indispensabilidade de uma medida legislativa para dar
cumprimento a esse dever. Por outras palavras: seriam exigíveis medidas legislativas de protecção, no caso concreto dos
parques aquáticos, porque só elas são adequadas e eficazes para assegurarem, neste caso, a protecção do bem da vida.
Mas como derivar daqui um dever secundário de protecção, de natureza jurídico-subjectiva? E, no caso de não
cumprimento do dever de legislação, como justificar uma pretensão de protecção subjectiva do particular?
No fundo, a ideia subjacente aos considerandos da sentença em apreço é esta: aos deveres de protecção
correspondem direitos de protecção. Haveria, pois, direitos de protecção dos titulares de direitos fundamentais, a serem
protegidos pelo Estado perante agressões ou ameaças de agressões, por parte de privados, desses mesmos directivos.
Como reconhece a doutrina, a fundamentação dogmática destes direitos de protecção é marcada por uma assinalável
margem de indeterminação e insegurança. Mesmo quando se reconhece a existência de um direito subjectivo, isso não
implicará uma accionabilidade judicial imediata contra qualquer poder público. A afirmação de um direito subjectivo
dependerá da situação de agressão ou de perigo concretamente existentes.

No caso dos autos, parece dar-se como demonstrada a existência dessa situação, mas não fica provado como é
que os utentes de parques aquáticos têm, por este motivo, um direito especial de protecção. A radicalização de um discurso
subjectivizador acabará numa universalização dissolvente dos deveres de protecção . A morte de frequentadores de
discotecas - também reconhecidos como locais de risco - seria devida à inexistência de legislação mais adequada. A morte
de espectadores nos estádios imputar-se-ia à ausência de legislação protectora. A morte por acidentes na estrada teria
como responsável o Estado "dono" das estradas. Compreende-se, assim, que a doutrina dos "deveres de protecção" e dos
correspondentes "direitos de protecção" não possa dispensar uma dogmática específica em sede dos pressupostos da
responsabilidade por omissão legislativa. Foi o que tentámos demonstrar a propósito do princípio da causalidade ade -
quada.

10. Uma última consideração diz respeito à prova da culpa e distribuição das responsabilidades. Deu-se como
provado que, já em Agosto de 1991, o Aquaparque fora citado na comunicação social, a propósito de um estudo
desenvolvido pelo Instituto Nacional de Defesa do Consumidor. Deu-se como provado que este estudo esteve na base de
comunicações e avisos diversos dirigidos quer aos "proprietários e Agentes exploradores de Parques de Diversões
Aquáticos" quer ao "público". Deu-se como provado que o trabalho desenvolvido pelo Instituto Nacional de Defesa do
Consumidor "foi larga e amplamente divulgado em órgãos de comunicação social". A Deco, num número publicado
precisamente um mês antes da morte do jovem identificado nos autos (Junho de 1993), divulgou um estudo em que
alertava para os riscos dos parques aquáticos em funcionamento em Portugal. A pergunta a fazer é esta: porquê
responsabilizar apenas o Estado por falta de legislação e de outras medidas preventivas dos perigos dos parques
aquáticos? Em que medida os representantes legais do lesado não deveriam ser responsabilizados pela não adopção de
medidas de cautela relativamente à frequência de parques aquáticos pública e notoriamente perigosos? Em que medida os
pais, na qualidade de tutores do filho menor, não devem assumir aqui uma quota (pequena ou grande) de responsabilidade
pela morte do filho?
Como se vê, o instituto da responsabilidade tem ainda potencialidades bastantes para descobrir os culpados.
Entre o empresário dolosamente desleixado e negligente e o Estado ilicitamente inactivo, está o cidadão responsável por
condutas e omissões. A responsabilidade é, também, um "problema de obrigações" do cidadão responsável num Estado de
direito democrático. "Há mar e mar, há ir e voltar"!

Por pretensos danos resultantes das restritivas leis de arrendamento que mantiveram as
rendas congeladas, leia-se o Ac. da R.ão de Lisboa, de 20.5.1997, na Col. 97-III-91. Esta decisão
foi confirmada pelo STJ, Ac. no BMJ 489-320, maxime 324 a 328.

Exemplos de omissão podem ver-se naqueles casos em que a Polícia não defende os direitos
do cidadão ameaçado por uma multidão enfurecida, como aconteceu numa manifestação
alegadamente anticomunista em Famalicão, omissão de que resultou o saque e destruição do
escritório dum conhecido advogado e político local, o Dr. Lino Lima - BMJ 333-284; da criança que é

88
deixada sozinha, com os colegas, na sala de aula, sem qualquer vigilância e que aí sofre acidente -
Col. 99-III-261; do doido internado que, por falta de vigilância, foge do hospital e é atropelado.

Ou naqueloutro caso em que o Ministro da Justiça, com violação do dever jurídico-funcional


de um comportamento consequente , não nomeou para o STA um Juiz, como lhe fora proposto -
Comentário do Prof. Canotilho, na RLJ 125-74 e ss, com estudo dos pressupostos da
responsabilidade civil do Estado, em geral (facto, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade entre
a conduta e dano).

Exigindo que as acções ou omissões lesivas tenham sido praticadas no exercício de


funções e por causa desse exercício, requer-se que o acto caiba no âmbito do escopo funcional ou
que, pelo menos, se verifique uma aparência de relação funcional justificativa da boa-fé e
confiança do cidadão lesado. Exclui-se, assim, o «critério do mera ocasionalidade» e o «critério da
ocasionalidade necessária».

Exemplo de responsabilidade civil do Estado por danos provenientes da função jurisdicional


- atraso de processos ou demora anormal em proferir sentença - comentário pelo prof. Canotilho a
Ac. do STA, de 7 de Março de 1989, na RLJ ano 123, pág. 293 e ss de que vai cópia.

Quanto a decisões alegadamente erradas e por isso geradoras de danos para os


particulares pode ver-se o Ac. do STJ de 8.7.97, no BMJ 469-395, assim sumariado:

I - São da competência dos tribunais comuns as acções para apuramento de responsabilidade do Estado por
actividade jurisdicional
II - A responsabilidade civil por exercício de função jurisdicional só vem expressamente concebida, quanto ao
Estado, nos artigos 27º, nº 5, e 29º, nº 6, ambos da Constituição da República Portuguesa.
III - O artigo 22º da Constituição da República Portuguesa abrange manifestamente a responsabilidade civil da
actividade administrativa, também consagra idêntica responsabilidade com referência a prejuízos causados pela actividade
jurisdicional, para além dos casos específicos em que é prevista.
IV - No reconhecimento, em concreto, de uma obrigação de indemnizar, por parte do Estado, por facto do
exercício da função jurisdicional, não basta a discordância da parte que se diz lesada, nem sequer a convicção, que em
processo como o presente sempre será possível formar, de que não foi justa ou a melhor a solução encontrada no
julgamento que vier questionado.
Impõe-se que haja a certeza de que um juiz normal e exigivelmente preparado e cuidadoso não teria nunca
julgado pela forma a que se tiver chegado, sendo esta inadmissível e fora dos cânones minimamente aceitáveis.

Ou o do STJ (Cons.º Nuno Cameira), de 31.3.2004, na Col. Jur. do STJ 2004-I-157 e ss:

1) Para além dos dois casos específicos expressamente mencionados nos art.ºs 27º, nº 5, e 29º, nº 6
(prisão ilegal e condenação penal injusta), o art.º 22º da Constituição abrange na sua previsão a
responsabilidade civil extra-contratual do Estado decorrente da actividade jurisdicional.
2) Independentemente da existência de lei ordinária que o concretize, o direito reconhecido pelo art.º
22º da Constituição beneficia do regime estabelecido no seu art.º 18º para os preceitos constitucionais
respeitantes aos direitos, liberdades e garantias, designadamente quanto à sua aplicação directa.
3) A autonomia na interpretação do direito e a sujeição exclusiva às fontes de direito jurídico-
constitucionalmente reconhecidas são manifestações essenciais do princípio da independência dos juízes.
4) Os actos jurisdicionais de interpretação de normas de direito e de valoração jurídica dos factos e
das provas, núcleo da função jurisdicional, são insindicáveis
5) O erro de direito praticado pelo juiz só poderá constituir fundamento de responsabilidade civil na
jurisdição cível quando, salvaguardada a essência da função jurisdicional referida no ponto 4), seja grosseiro,
evidente, crasso, palmar, indiscutível, e de tal modo grave que torne a decisão judicial numa decisão
claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

89
I. Alegando ter proposto uma acção de despejo decidida na 1ª instância e na Relação contra lei expressa, o que
lhe causou prejuízos de vária ordem, A demandou o Estado Português, pedindo a sua condenação no pagamento de
99.759,50 € e juros legais desde a citação.
O réu contestou, dizendo em resumo que as duas decisões postas em causa não foram ditadas contra lei
expressa, já que "interpretaram e aplicaram criteriosamente o direito, optando pela decisão mais justa e adequada aos
interesses em presença, ponderando e sopesando as posições doutrinais e as correntes jurisprudenciais mais
qualificadas", e que não há qualquer nexo causal entre os prejuízos alegadamente sofridos e os actos jurisdicionais
questionados.
Foi proferido despacho saneador-sentença que julgou a acção improcedente e condenou a autora na multa de 20
UCCs como litigante de má fé.
Sob apelação da autora a Relação confirmou a sentença, excepto no tocante à condenação a título de má fé, que
foi revogada.
Mantendo-se inconformada a autora pede revista, sustentando que, ao não condenar o réu na indemnização
pedida, o acórdão recorrido violou o artº 22º da Constituição, o disposto no DL 48.051, de 21.10.67, e o artº 115º do RAU,
devendo, por isso, ser revogado.

III. A questão posta no recurso tem a ver com a responsabilidade civil extra-contratual do Estado e está na ordem
do dia, quer nos restantes países europeus, quer entre nós.
Na situação ajuizada, concretamente, o facto ilícito gerador da responsabilidade do Estado foi, segundo a
recorrente, o erro de direito cometido nas duas sucessivas decisões proferidas na acção de despejo mencionada no facto
nº 9. Na sua tese, ambas as sentenças - a da 1ª instância e a da Relação que a confirmou - foram pronunciadas contra
legem: violaram ostensiva e grosseiramente a lei (art.º 115º, nº 2, a), do RAU) ao considerar "ter havido trespasse de
estabelecimento comercial quando se operou tão somente uma cedência ilícita do direito ao arrendamento"; assim, conclui
ainda, "parece irrefutável estarmos em presença de um erro grosseiro do juiz, que agiu com culpa grave ao qualificar o
negócio realizado como trespasse, não podendo dizer-se, para sua defesa, que a matéria sobre que incidiu a sua decisão é
controvertida ou que cai no âmbito da livre apreciação do julgador. Porque efectivamente não cai. Face a um dado
objectivo, a transmissão do espaço apenas, sem mais valores, o tribunal entendeu haver trespasse. E errou"; "deste modo,
- afirma a finalizar - "não poderemos senão considerar que se preenchem os pressupostos da responsabilidade do Estado
por actos da administração da justiça, uma vez que as decisões proferidas (facto), enfermando de um erro grosseiro
(culpa), redundaram numa violação de lei (ilicitude) que causou (nexo) avultados danos (dano) na esfera jurídica da
recorrente, que têm que ser reparados".
Como se vê, está em causa a chamada responsabilidade do Estado-Juiz, por facto do poder jurisdicional.
A actualidade e premência do problema resulta do enorme desenvolvimento do poder judicial nas últimas
décadas. Este fenómeno encontra-se associado a múltiplos factores, de que destacaríamos a título meramente ilustrativo
apenas três, todos intimamente relacionados entre si:
Em primeiro lugar a projecção, o aprofundamento e a sofisticação do Estado Social, que, levando-o a intervir em
sectores da vida social de que estava ausente há poucas décadas, aumentou exponencialmente o papel de controle que
cabe ao poder judicial, designadamente à jurisdição administrativa e constitucional;
Em segundo lugar a proliferação de leis que, visando justamente assegurar os novos direitos e as novas garantias
reclamados com veemência crescente por todos os sectores da sociedade, apelam a cada passo para a utilização de
conceitos indeterminados e cláusulas gerais como instrumento de realização da justiça por parte dos tribunais, assim
atribuindo aos juízes um papel cada vez mais significativo no aperfeiçoamento do Estado de Direito (adequação das leis às
necessidades da vida prática, sempre em acelerada mutação);
Em terceiro lugar, a acentuação da tendência para cada qual afirmar os seus direitos por via judicial (1), o que
tem aumentado de forma impressionante a litigiosidade e o grau de exigência a que os juízes ficam submetidos, por terem
de resolver toda a sorte de questões, mesmo aquelas que até há bem pouco tempo se decidiam no âmbito da acção cívica,
da actividade política, ou de sectores específicos da administração.
Está claro que neste ambiente de verdadeira transformação da natureza do poder judicial o juiz vai dispondo
progressivamente, mesmo sem o querer, de novos poderes (ou, se se quiser, de novas e diversificadas competências), o
que lhe confere um papel mais activo, mais próximo e mais determinante na evolução da sociedade.
Só que isto, logicamente, tem reflexos a dois níveis.
Por um lado, a mais poder - e, no sentido exposto, a maior liberdade decisória - corresponde uma maior
responsabilização; por isso é que, como escreveu Mauro Cappelletti (2), existe hoje em todo o mundo uma tendência para
submeter os juízes a controle, tendo em vista melhorar o seu desempenho e eficácia e reconhecer a sua responsabilidade,
sem diminuir todavia de modo excessivo o seu isolamento em relação ao poder político, que garante a respectiva
independência. Em sentido idêntico, Pedro Bacelar de Vasconcelos ponderou o seguinte: "Só por inaceitável atavismo ou
reverência corporativa se pode explicar, numa época em que o judicial acabou por partilhar o destino interventor dos
restantes poderes públicos e se revela capaz de produzir os mais duros e imprevisíveis estragos na esfera pessoal e

90
patrimonial dos particulares, que a responsabilidade do Estado por exercício da função jurisdicional permaneça circunscrita,
no essencial, às hipóteses de privação de liberdade. Em matéria de responsabilidade nada justifica que quaisquer lesões
devidas a erro judiciário - seja por dolo, negligência, erro grosseiro - ou resultantes, em geral, do funcionamento anormal da
administração da justiça, não constituam o lesado no direito a uma compensação, fundado na lesão simultânea do
interesse particular e do próprio interesse público, a patentear aqui a inviabilidade de uma bipartição radical entre actos
lícitos e ilícitos" (3).
Por outro lado, a mais e mais variadas competências, e a maior pressão social no sentido de resolver os litígios
em tempo razoável e com justiça, corresponde um risco acrescido de errar.
Era a este ponto, justamente - o do erro judiciário - que, feito o breve enquadramento geral que antecede,
pretendíamos chegar, pois é nele, como já vimos, que se situa o âmago do presente litígio.
Segundo o artº 22º da Constituição o Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em
forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício
das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte a violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo
para outrem.
De acordo com a generalidade da doutrina nacional, este preceito constitucional abrange na sua previsão a
responsabilidade civil decorrente da actividade jurisdicional, para além dos dois casos específicos expressamente
mencionados nos seus artºs 27º, nº 5 e 29º, nº 6 (prisão ilegal e condenação penal injusta). Isto porque, sem qualquer
dúvida, o poder judicial é um poder do Estado, sendo certo que o vocábulo funções utilizado nesta norma da Constituição
abrange todas as funções estaduais, incluindo, naturalmente, a jurisdicional. Além disso, como se refere no acórdão do
Supremo Tribunal de 8.7.97 (CJSTJ, V, II, 153), embora este preceito não se inclua no Título II - Direitos, Liberdades e
Garantias - o direito nele reconhecido deve ser visto em paralelo com as obrigações de indemnizar que podem derivar para
o Estado do que se dispõe nos artºs 52º, nº 3, e 62º, nº 2, da Constituição, estendendo-se-lhe, por isso, o regime ditado
pelo artº 18º, nº 3, em particular a sua aplicação directa, independentemente da existência de lei ordinária que o concretize
(4).
Em qualquer caso, seria sempre defensável o entendimento de que, não tendo o legislador ordinário, na
sequência desta norma constitucional, regulado a efectivação do direito de indemnização - delimitação do seu âmbito,
caracterização do dano indemnizável, pressupostos e condições da acção respectiva, fixação do tribunal competente, etc -
subsistiria em vigor o diploma que anteriormente regulava a responsabilidade civil extracontratual do Estado e das
restantes pessoas colectivas públicas por actos de gestão pública (o DL 48.051, de 21.11.67), na medida em que não
contrarie os princípios constitucionais.
Certo é que, estando em causa conceber e caracterizar a responsabilidade civil do Estado numa situação como a
presente - sentença proferida no âmbito da jurisdição cível alegadamente eivada de erro de direito - é imperioso ter em
conta as normas e princípios constitucionais, todos eles concretizados na lei ordinária, que definem a estrutura do poder
judicial, a organização dos tribunais e o estatuto dos juízes.
Assim, com interesse para o caso, é de referir que:
Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo (art.º
202º, nº 1, CRP).
Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente
protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e
privados (art.º 202º, nº 2, CRP).
Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei (art.º 203º CRP).
Os juízes não podem ser responsabilizados pelas suas decisões, salvas as excepções consignadas na lei (art.º
216º, nº 2, CRP).
Os magistrados judiciais não podem abster-se de julgar com fundamento na falta, obscuridade ou ambiguidade da
lei, ou em dúvida insanável sobre o caso em litígio, desde que este deva ser juridicamente regulado (art.º 3º, nº 2, do EMJ -
Lei 21/85);
Os magistrados judiciais julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a ordens ou
instruções, salvo o dever de acatamento pelos tribunais inferiores das decisões proferidas, em via de recurso, pelos
tribunais superiores (art.º 4º, nº 1, do EMJ);
O dever de obediência à lei compreende o de respeitar os juízos de valor legais, mesmo quando se trate de
resolver hipóteses não especialmente previstas (art.º 4º, nº 2, do EMJ);
Os magistrados judiciais não podem ser responsabilizados pelas suas decisões (art.º 5º, nº 1, do EMJ);
Só nos casos especialmente previstos na lei os magistrados judiciais podem ser sujeitos, em razão do exercício
das suas funções, a responsabilidade civil, criminal ou disciplinar (art.º 5º, nº 2, do EMJ);
Fora dos casos em que a falta constitua crime, a responsabilidade civil apenas pode ser efectivada mediante
acção de regresso do Estado contra o respectivo magistrado, com fundamento em dolo ou culpa grave (art.º 5º, nº 3, do
EMJ).
Perante as normas transcritas, já se vê como se torna difícil e delicado concretizar o comando do art.º 22º da
Constituição, criando a tal "norma de decisão" a que os autores citados na nota 4) aludem, quando se trate de avaliar

91
acerca da existência de um erro de direito cometido em acto jurisdicional e da sua relevância enquanto facto gerador de
responsabilidade civil.
Com efeito, e desde logo, manifestação essencial do princípio da independência é a autonomia na interpretação
do direito (5), ou, como refere o Prof. Gomes Canotilho, no exercício da jurisdição. Segundo este autor, "qualquer relação
hierárquica no plano da organização judicial não poderá ter incidência sobre o exercício da função jurisdicional. A existência
de tribunais de hierarquia diferente e a consagração de órgãos de disciplina (Conselhos Superiores) também não perturba
o princípio da independência do juiz no exercício da jurisdictio (Cfr. Ac. TC 257/98)". Corolário de igual modo essencial do
mesmo princípio é a independência funcional do juiz, que não significa outra coisa senão que no exercício da sua função
jurisdicional ele apenas está sujeito às fontes de direito jurídico-constitucionalmente reconhecidas. Por outro lado, o
princípio da irresponsabilidade (cit. Art.º 216º, nº 2, CRP) tem por finalidade assegurar a independência: como observa o
autor acima citado, tal princípio transporta a ideia de que o juiz não pode ser condicionado na sua função pelo medo de
uma punição ou pela esperança de um prémio.
A isto acresce que a ciência do Direito não é exacta: faz parte da sua essência a controvérsia, a argumentação e
a interpretação. Por outro lado, como alguém já lembrou, o número de casos excederá sempre o número de leis; e como
não vivemos num mundo ideal, perfeito, nem o legislador é capaz de prever todas as hipóteses possíveis, nem os tribunais
conseguem sempre, na prática, adequar sem distorções as leis às situações da vida que lhes compete apreciar. Enfim, a
verdade absoluta é inatingível: tem de admitir-se a hipótese de ocorrência de erros na decisão jurisdicional, quer de facto,
quer de direito, porque nenhum dos intervenientes processuais, começando pelas partes e seus advogados, passando
pelas testemunhas e peritos, e terminando nos juízes, tem o dom da infalibilidade; todos estão sujeitos a errar e a induzir
em erro.
Por tudo isto, subscrevemos por inteiro as considerações que se seguem, inseridas no acórdão deste tribunal a
que atrás fizemos referência e cuja pertinência ao caso sub judice é patente:
"Sabido, como é, que as suas características de generalidade e abstracção distanciam cada vez mais a lei dos
casos da vida, e considerando a multiplicidade de factores, endógenos e exógenos, determinantes da opção final que o juiz
toma - atentemos, desde logo, na variedade de critérios, por vezes de sentido divergente, que o próprio art. 9º do CC nos
dá sobre a interpretação da lei -, bem se compreende que seja com grande frequência que se manifestam sobre a mesma
questão opiniões diversas, cada uma delas capaz de polarizar larga adesão, e com isso se formando correntes
jurisprudenciais das quais, se se pode ter a certeza de que não estão ambas certas, já difícil ou impossível será assentar
em qual está errada.
Daí que a própria reapreciação de decisões judiciais pela via do recurso não signifique, em caso de revogação da
decisão recorrida, que esta estava errada; apenas significa que o julgamento da questão foi deferido a um tribunal
hierarquicamente superior e que este, sobrepondo-se ao primeiro, decidiu de modo diverso.
Dentro deste quadro, a culpa do juiz só pode ser reconhecida, no tocante ao conteúdo da decisão que proferiu,
quando esta é de todo desrazoável, evidenciando um desconhecimento do Direito ou uma falta de cuidado ao percorrer o
"iter" decisório que a levem para fora do campo dentro do qual é natural a incerteza sobre qual vai ser o comando emitido.
A circunstância de dois juízes decidirem em sentidos opostos a mesma questão de direito não significa
necessariamente, face à problemática da responsabilidade extracontratual do Estado, que um deles terá agido com culpa,
embora se não saiba qual; as mais das vezes, significará apenas que em ambos os casos funcionou, de modo correcto, a
independência dos tribunais e dos juízes, contribuindo para o progresso do Direito através da dialéctica estabelecida entre
opiniões e modos de ver que se confrontam e interinfluenciam, a exemplo do que se dá na doutrina.
Por isso as legislações estrangeiras e as posições doutrinárias vêm exigindo uma culpa grave para permitir a
formulação do necessário juízo de crítica sobre o decidido. E, designadamente, a Lei italiana n° 117/88 qualifica como
culpa grave a grave violação da lei e a afirmação ou a negação de um facto que esteja, respectivamente, excluído ou
assente de modo incontestável em face dos autos, quando isso se deva a negligência indesculpável do juiz - cfr. Álvaro de
Sousa Reis Figueira, Estatuto do Juiz/Garantias do Cidadão, Col. Jur. 1991-11-56.
Com interesse para acentuar esta vertente do problema é de referir que já em 1979 Nótula sobre o Artigo 208° da
Constituição Independência dos Juízes, in Estudos sobre a Constituição, 3° Volume, pg. 657 - Castro Mendes escrevia:
"Merecem, além disso, neste momento uma referência particular dois elementos especialmente nocivos - e em Portugal a
epidemia é grave e geral - ao processo decisório: a sobrecarga de trabalho e a pressa. Estamos aqui de novo, perante
factores impeditivos de uma decisão boa (ou largamente impeditivos, transformando a decisão justa em produto muitas
vezes da sorte), embora não constitutivos de uma decisão má.
E é notório o agravamento dramático que desde então se tem sentido neste campo".
Fique, pois, claro que para o reconhecimento, em concreto, de uma obrigação de indemnizar, por parte do
Estado, por facto do exercício da função jurisdicional não basta a discordância da parte que se diz lesada, nem sequer a
convicção, que em processo como o presente sempre será possível formar, de que não foi justa ou a melhor a solução
encontrada no julgamento que vier questionado.
Impõe-se que haja a certeza de que um juiz normal e exigivelmente preparado e cuidadoso não teria nunca
julgado pela forma a que se tiver chegado, sendo esta inadmissível e fora dos cânones minimamente aceitáveis".
A isto permitimo-nos acrescentar tão somente o seguinte:

92
Os juízes não podem abster-se de julgar, invocando a falta ou a obscuridade da lei ou alegando dúvida insanável
acerca dos factos em litígio. Mais: o dever de obediência à lei não pode ser afastado sob o pretexto de que é injusto ou
imoral o conteúdo do preceito legislativo (art.º 8º do CC). Pode suceder, deste modo, que o juiz se veja na contingência de
aplicar um preceito legal a determinados factos em consequência duma interpretação da lei que não é, na sua perspectiva
pessoal, a mais adequada, ou cujo sentido não lhe surge como unívoco. Em tais casos, que decerto não serão tão poucos
quanto isso, com que propriedade poderá falar-se em erros de direito imputáveis ao juiz? Como discernir claramente,
nessas e noutras hipóteses, onde começa e onde acaba a valoração dos factos e a interpretação das leis que constitui o
cerne da função de julgar, constitucionalmente protegida de qualquer interferência?
Tudo quanto se disse até ao momento demonstra a dificuldade a que nos referimos de início - a dificuldade, no
fundo, de conciliar o princípio da independência dos tribunais, necessária ao desempenho imparcial da sua função
soberana, com o princípio da responsabilidade do Estado por actos ilícitos dos juízes, hoje aceite nos ordenamentos
jurídicos mais avançados (6).
Talvez por isso, encontramos uma assinalável convergência de pontos de vista quando o facto ilícito em causa é
aquele que nos interessa no caso sub judice - erro de direito praticado num acto jurisdicional.
Podemos resumi-la nas seguintes proposições essenciais:
a) - Os actos de interpretação de normas de direito e de valoração jurídica dos factos e das provas, núcleo da
função jurisdicional, são insindicáveis;
b) - Por tal motivo, o erro de direito - que pode respeitar à aplicação (lei a aplicar), à interpretação (sentido da lei
aplicada), ou à qualificação (dos factos) - é eliminado, em princípio, pelo sistema de recursos ordinários previstos na lei,
que permite a correcção de sentenças viciadas por um tribunal superior antes que se tornem irrecorríveis (art.ºs 676º a 761º
do CPC);
c) - Na jurisdição cível, estão ainda previstos os recursos extraordinários de revisão e de oposição de terceiro,
que contemplam vários fundamentos de impugnação de decisões transitadas em julgado (art.ºs 771º a 782º do CPC);
d) - O erro de direito só será fundamento de responsabilidade civil quando, salvaguardada a essência da função
judicial referida em a), seja grosseiro, evidente, crasso, palmar, indiscutível, e de tal modo grave que transforme a decisão
judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas.
Na última edição da sua monumental obra Direito Constitucional e Teoria da Constituição (7ª edição, pág. 509) o
Prof. Gomes Canotilho resumiu o estado da questão no nosso país, escrevendo o seguinte:
"Não obstante as reticências da jurisprudência portuguesa, a orientação mais recente de alguns países vai no
sentido de consagrar a responsabilidade dos magistrados (de tribunais singulares ou colectivos) quando a sua actividade
dolosa ou gravemente negligente provoca um dano injusto aos particulares. Sob pena de se paralisar o funcionamento da
justiça e perturbar a independência dos juízes, impõe-se aqui um regime particularmente cauteloso, afastando, desde logo,
qualquer hipótese de responsabilidade por actos de interpretação das normas de direito e pela valoração dos factos e da
prova. Por outro lado, é duvidoso que, fora dos casos de responsabilidade penal e disciplinar do juiz, se possa admitir a
responsabilidade civil do juiz com a consequente possibilidade de direito de regresso por parte do Estado.
No entanto, podem descortinar-se hipóteses de responsabilidade do Estado por actos ilícitos dos juízes e outros
magistrados quando: (1) houver grave violação da lei resultante de negligência grosseira; (2) afirmação de factos cuja
inexistência é manifestamente comprovada pelo processo; (3) negação de factos, cuja existência resulta
indesmentivelmente dos actos do processo; (4) adopção de medidas privativas da liberdade for a dos casos previstos na
lei; (5) denegação de justiça resultante da recusa, omissão ou atraso do magistrado no cumprimento dos seus deveres
funcionais" (o sublinhado é nosso).
Na situação ajuizada, porém, está de todo em todo excluída a possibilidade de formular tais juízos de valor.
Vejamos porquê.
Sucedeu que numa acção de despejo intentada pela autora contra a massa falida de Supermercados "B, Ldª",
quer o tribunal da 1ª instância, quer Relação, aplicando aos factos da causa a norma do art.º 115º, nº 2, al. a), do RAU,
decidiram:
A 1ª instância: "O que releva para se concluir que determinada organização constitui um estabelecimento
comercial é a prova das condições para que possa entrar em funcionamento, a fim de ali serem desenvolvidas as
actividades que preencham os seus fins.
Para que exista um estabelecimento comercial não se torna necessário "que a respectiva organização económica
que serve de suporte ao ente jurídico esteja a funcionar e em movimento; basta que esteja apto para entrar em movimento"
- sentença citada no Ac. Da Relação de Lisboa de 8.3.04, na CJ XIX, II, 73.
Como se viu, após a realização das obras que o trespassário entendeu levar a cabo, o estabelecimento estava
apto para abrir as portas e recomeçar a funcionar, que foi o que aconteceu, o que mostra que o facto de ter estado fechado
e sem mercadorias ou outro tipo de bens não levou ao desaparecimento do estabelecimento comercial como realidade
económica, nem como realidade jurídica, susceptível de ser trespassado" (fls 87).
A Relação: "No que concerne à segunda questão, a da inexistência de trespasse por inexistência de elementos
mínimos para caracterizarem o estabelecimento comercial, a autora alegou, para além do encerramento do
estabelecimento em questão, que o mesmo estava vazio de mercadorias.

93
Esta alegação foi entendida como insuficiente para integração de um quadro de impossibilidade de trespasse por
inexistência de estabelecimento na decisão recorrida, e bem.
Com efeito, o que se exige no art.º 115º, nºs 1 e 2, b), do RAU, é que se transmita o que integre, no caso, o
estabelecimento, não tendo a alusão a mercadorias o significado de ser imprescindível a transmissão desse elemento se,
na circunstância, não existir.
Relevante, sim, é que o conjunto que se transmita seja adequado a funcionar como determinado estabelecimento
comercial, nomeadamente tendo em conta o ramo, como resulta do disposto no art.º 115º, nº 2, b), do RAU.
A essa luz é acertado o entendimento expresso na sentença recorrida, no sentido de que saber-se que realizadas
obras pela 2ª ré, concretamente reparação de canalizações, substituição de vidros, substituição do pavimento e pintura das
paredes, o conjunto transmitido pôde reiniciar o seu giro. É que não se tratando sequer de obras que revelem
reestruturação do local, nem implicando reequipamento ou semelhante, há que se concluir que o conjunto que se vem
referindo se manteve adequado a prosseguir os fins próprios do estabelecimento comercial primitivamente ali instalado.
Improcedem, assim, as correspondentes conclusões da apelante".
Convém notar que no processo em que estas decisões foram tomadas ficou provado, além dos factos atrás
relatados (secção II) que logo após o trespasse a ré "B, Ldª", iniciou obras no arrendado e abriu-o ao público no dia
6.12.99.
Ora, a simples leitura dos passos transcritos mostra à evidência, cremos nós, que os tribunais proferiram as
decisões questionadas no puro e simples cumprimento do seu dever legal de julgar, a que não poderiam eximir-se, e
movendo-se, no caso, dentro do círculo, verdadeiramente inexpugnável, em que podem actuar com inteira independência:
enquadramento jurídico dos factos, sua valoração à luz do direito tido por aplicável e selecção e interpretação da norma
jurídica isolada para resolver o litígio.
E como resulta de tudo quanto se expôs, isto, por si só, é já determinante para a improcedência do recurso.
Mas pode ir-se mais longe.
Na realidade, analisando as coisas com o necessário distanciamento, logo se constata que representa uma
afirmação no mínimo temerária dizer, como diz a recorrente, que os tribunais decidiram manifestamente contra legem ao
aplicar o art.º 115º, nº 2, a), do RAU do modo como o fizeram.
Na verdade, semelhante aplicação da lei nada tem de extraordinário, assentando numa interpretação daquele
preceito que não é original nem sequer isolada. Considerar que um estabelecimento comercial sem mercadorias continua a
sê-lo, e, por isso, é susceptível de trespasse, não pode de forma alguma reputar-se como uma aberração, uma decisão
completa-mente absurda e irrazoável, reveladora de grosseira e indesculpável ignorância do direito vigente. Face à
multiplicidade de elementos, corpóreos e incorpóreos, que compõem um estabelecimento comercial, e tendo em conta que
o trespasse, conforme é entendimento unânime, implica uma sua transferência global, unitária, alguns conceituados
autores defendem que as hipóteses tipificadas no nº 2 do art.º 115º do RAU são meras presunções de inexistência de
trespasse (cfr. Manuel Januário Gomes, Arrendamentos Comerciais, 2ª edição, pág. 171), ou índices semióticos da não
transmissão do estabelecimento (Orlando de Carvalho, RLJ 110º, pág. 111). Por isso, o arrendatário poderá demonstrar que
se realizou de facto um trespasse (Pereira Coelho, Arrendamento, 1988, pág. 215). O Conselheiro Pinto Furtado não
perfilha este entendimento do texto legal em análise (cfr. Manual do Arrendamento Urbano, pág. 496 e seguintes). Em todo
o caso, não deixa de reconhecer, referindo-se à construção dos autores citados, que é "brilhante, de indesmentível apuro
técnico" (pág. 497); e mais adiante acaba por afirmar o seguinte (pág. 502): "Acentuemos aqui, uma vez mais, que a
transmissão tem de ser global e em conjunto, sem impor que tenha de ser total. A distracção à unidade global de certos
bens, de certas relações contratuais, certas unidades globais menores, que não roubem a identidade do estabelecimento,
são legítimas e não descaracterizam o trespasse" (o sublinhado é nosso). Pela nossa parte, diríamos até que a própria letra
do preceito, em especial a utilização da adversativa "ou ", reforça de algum modo o acerto, ou, pelo menos, a razoabilidade
da interpretação censurada pela recorrente: afigura-se que, segundo o legislador, não é essencial à existência de trespasse
a transferência de todos os elementos que integram o estabelecimento, mas apenas a daqueles que formam, digamos
assim, o seu núcleo irredutível. Ora, na situação apreciada na acção de despejo posta pela autora tudo indica que foi
precisamente isto que sucedeu: a ausência de mercadorias (e é preciso não esquecer que o locatário era um
supermercado declarado falido) não impediu que, sete meses decorridos sobre o trespasse, e concluídas obras que não
foram de reestruturação do local, a trespassária abrisse ao público o estabelecimento instalado no arrendado.
Somos assim levados a concluir que no caso presente não se verifica nenhum dos pressupostos legais da
responsabilidade civil do réu, designadamente, e em especial, a prática de facto ilícito, o que deita por terra a pretensão da
autora.
IV - Nestes termos, nega-se a revista e condena-se a autora nas custas.

Lisboa, 31 de Março de 2003


Nuno Cameira
Sousa Leite
Afonso de Melo
-----------------------

94
(1) E, note-se, já não apenas direitos subjectivos em sentido estricto, senão também interesses difusos e
interesses individuais, homogéneos ou não (cfr. a Lei 83/95, de 20 de Agosto - Lei de Acção Popular).
(2) Autor citado pelo Cons. Rui Pinheiro em "Democracia, Poder Judicial e Responsabilidade dos Juízes", trabalho
incluído na obra Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado - Trabalhos preparatórios da Reforma, edição da
Coimbra Editora (pág. 68 e sgs, maxime pág. 77)
(3) Em "A crise da justiça em Portugal", pág. 37, edição Gradiva.
(4) Neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição Anotada, 3ª edição, pág. 170: segundo estes
autores cabe aos tribunais, na falta de lei concretizadora, criar uma "norma de decisão" tendente a reparação de danos
resultantes de actos lesivos de direitos, liberdades e garantias ou dos interesses juridicamente protegidos dos cidadãos.
(5) Neste exacto sentido, cfr. obra cit. na nota anterior, pág. 795.
(6) Note-se que o Supremo já decidiu, em acordão relatado pelo 1º adjunto deste (acórdão de 3.12.98, Processo
98A644) que é admissível acção de indemnização contra o Estado por negligência grosseira no exercício da função judicial.

Comentário desfavorável de G. Canotilho a decisão do STA e com bons ensinamentos na


matéria pode ver-se na RLJ 124-83 e ss

- Embora a referência do art. 22º à responsabilidade solidária das entidades públicas e titulares de seus
órgãos, agentes ou funcionários aponte, em primeiro lugar, para acções ou omissões ilícitas - só nesse
caso se justifica a responsabilidade solidária - o âmbito normativo-material do preceito não pode deixar de
abranger também as hipóteses de responsabilidade do Estado por actos lícitos e de responsabilidade
por risco, podendo apenas a lei exigir certos requisitos quanto ao prejuízo ressarcível (ex.: exigência de um
dano especial e grave). De outro modo, ficaria lesado o princípio geral da reparação dos danos causados a
outrem.

- Não distingue a lei entre acto e omissão, que tanto um como outra podem ser lesivos de direitos dos
cidadãos.

O art. 22º está integrado na Parte I, Direitos e Deveres Fundamentais, pelo que não pode deixar de ser
considerado como um direito de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias , constantes do Título II, com
o regime de aplicação directa característica destas - art. 18º - e pode ser invocado pelos particulares para fazer valer
uma pretensão de indemnização contra o Estado.

Nos termos do art. 266º, nº 1, a Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito
pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
Por isso, abrange este art. 22º a chamada faute du service: Se determinado serviço administrativo funcionou mal
(ou seja, não funcionou como seria legítimo esperar de um serviço administrativo moderno que se pretende justo e
eficiente), e o facto lesivo que causa danos ao particular não é imputável a um funcionário ou agente individualizável mas
sim ao próprio serviço, é justo que se admita a responsabilidade da própria Administração e o correspondente dever de
indemnizar os danos causados ao particular. De outro modo, deixar-se-ia o particular sem tutela de um dos seus direitos
fundamentais: o direito ao ressarcimento de danos causados por outrem. Tal direito deve ser respeitado quer a violação
seja imputável a um qualquer particular, quer à própria Administração 6.

Rui de Medeiros 7 aponta variadas (cinco) razões, inclusive de história parlamentar do art. 22º para, em
contrário do Parecer nº 54/82 da PGR, considerar aplicável esta norma à responsabilidade do Estado por facto de leis.
Ao contrário de Canotilho e Vital Moreira, entende este Autor que o art. 22º, ao consagrar a responsabilidade
solidária, pressupõe unicamente a responsa-bilidade do Estado por factos ilícitos e culposos e não
responsabilidade por factos lícitos ou pelo risco.
Na indemnização incluem-se os danos não patrimoniais.

Nos termos do art. 271º, nº 1, da Constituição,


(Responsabilidade dos funcionários e agentes)

1. Os funcionários e agentes do Estado e das demais entidades públicas são responsáveis civil, criminal e
disciplinarmente pelas acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício de que

6
- Obra citada em nota 4, 112.
7
- Ensaio sobre a Resp. Civil do Estado por Actos Legislativos, 86 e ss.

95
resulte violação dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos, não dependendo a acção ou procedimento,
em qualquer fase, de autorização hierárquica.
2. É excluída a responsabilidade do funcionário ou agente que actue no cumprimento de ordens ou instruções
emanadas de legítimo superior hierárquico e em matéria de serviço, se previamente delas tiver reclamado ou tiver exigido a
sua transmissão ou confirmação por escrito.
3. Cessa o dever de obediência sempre que o cumprimento das ordens ou instruções implique a prática de
qualquer crime.
4. A lei regula os termos em que o Estado e as demais entidades públicas têm direito de regresso contra os
titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes.

O direito de regresso das entidades públicas contra os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes,
previsto no nº 4 deste art. 271º efectiva-se perante os Tribunais Administrativos e de acordo com o Dec-lei nº 48051.
O âmbito normativo deste preceito é mais vasto do que o nº 1, visto que regula o direito de regresso do Estado e
demais entidades públicas não apenas contra os funcionários e agentes, mas também contra os titulares de cargos
políticos prevista no art. 117º, nº 1, caso em que o Estado e demais entidades públicas também respondem
solidariamente, quanto à responsabilidade civil.

Os casos e condições de exclusão de responsabilidade do funcionário por dever de obediência vêm regulados
nos n.os 2 e 3, em termos que não suscitam dúvidas.

Para além destes duas fundamentais normas constitucionais - 22º e 271º - outras - algumas já referidas - há
dispersas pela Constituição, referidas em Estudo de Maria José Rangel de Mesquita, na obra coordenada pelo Prof.
Fausto de Quadros8, de que se destaca:

1 - Responsabilidade do Estado por privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na Lei: artigo
27º, nº 5. Desenvolvem o regime aplicável os art. 225º e 226º do CPP.

2 - Responsabilidade por danos causados por condenações injustas: artigo 29.°, n.° 6. Interessam aqui os
art. 449º e ss, designadamente o art. 462º, todos do CPP.
Nos termos do art. 216º, nº 2, da Constituição, os juizes não podem ser responsabilizados pelas suas decisões,
salvas as excepções consignadas na lei. O mesmo se diz no art. 5º da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, o E.M.J.
As excepções consignadas na lei são as constantes do art. 1083º do CPC: condenação por crime de peita,
suborno, concussão ou prevaricação, casos de dolo, imposição por lei expressa e denegação de justiça.

3 - Responsabilidade por (actos lícitos) requisição e expropriação por utilidade pública - 62º, nº 2, da
Constituição.

4 - Responsabilidade por lesão dos direitos dos consumidores (art. 60º), saúde pública (64º), qualidade
de vida, ambiente (art. 66º) e património cultural (73º e 78º da Constituição) - .
São conhecidas as leis de defesa do consumidor (Lei nº 24/96, de 31 de Julho, alterada pelo Dec-lei nº 67/2003,
de 8 de Abril, comentado por Calvão da Silva, em Compra e Venda de Bens de Consumo , alterado pelo Dec-lei n.º 84/2008,
de 21 de Maio), do ambiente (Lei nº 11/87, de 7 de Abril) e de defesa do património cultural (por último, a Lei nº 107/2001,
de 8 de Setembro), tendo esta, em conjugação com os art. 308º e 309º, 3, a) do C. P. de 1982 e 213º, nº 1, d) do Cód. de
1995, levado à condenação de particular que destruiu uma estação arqueológica.

5 - Responsabilidade dos titulares de cargos políticos - 117º, nº 1, da Constituição: é a concretização do


princípio geral de responsabilidade civil previsto no artigo 22º, na medida em que os titulares dos cargos políticos devem
responder civilmente pelos danos causados a terceiros por acções ou omissões praticados no exercício das suas funções e
por causa desse exercício, nos termos de qualquer titular de um órgão do Estado ou entidade publica.

Extremamente difícil é definir os termos em que se pode admitir a responsabilidade civil do Estado por actos
políticos ou de governo.
Convém começar por precisar que o conceito de acto político não deve ser recortado a partir da lei, mas deve
resultar da Constituição. A noção de acto político “há-de encontrar-se na síntese das competências dos órgãos políticos de
soberania e das regiões autónomas.

8
- Resp. Civil Ext. da Administração Pública, Almedina, 1995, 95 e ss.

96
A função administrativa não cobre "actos que definam relações de Direito Constitucional entre os órgãos de
soberania. E o mesmo se diga de actos pelos quais o Estado entra em relações de Direito Internacional Público com outros
Estados”. Em contrapartida, os pretensos restantes "actos de governo" são verdadeiros actos administrativos.
Nos termos do art. 22 CRP, os actos políticos, definidos de acordo com a Constituição, também podem fazer
incorrer o Estado em responsabilidade. Deve, no entanto, reconhecer-se que a obrigação de indemnizar do Estado
fracassará, em muitos casos, por não verificação dos pressupostos da responsabilidade civil.
Por um lado, não existe, no actual estádio do Direito português, forma de tutela jurisdicional oponível a esta
categoria de actos juridico-públicos.
Por outro lado, mesmo que se entenda, com José Carlos Soares, que "da insusceptibilidade de anulação
contenciosa não resulta - porque são duas categorias jurídicas absolutamente distintas e independentes - a impossibilidade
de exigir responsabilidade por esses actos, quando ilegais e causadores de prejuízos", a ampla discricionariedade na
prática de actos políticos reduz enormemente os casos de actuação ilícita.
Por último, numerosos actos políticos são insusceptíveis de violar direitos subjectivos ou interesses legalmente
protegidos dos particulares e, nessa medida, os danos que possam causar não têm de ser ressarcidos 9.

Há quem pretenda afastar a obrigação de indemnizar por acto ilícito legislativo sempre que a lei é julgada (com
efeitos ex tunc - art. 282º da Constituição) inconstitucional porque destruída fica a eficácia da lei inconstitucional desde
a data da sua entrada em vigor. Mas não é assim, porque

1. Os efeitos da inconstitucionalidade não se esgotam na desvalorização da conduta inconstitucional. A obrigação


de indemnizar é um efeito secundário da inconstitucionalidade.

2. a) O direito de indemnização distingue-se da realização específica do direito ou interesse violado e, por


isso, a extinção do direito ou interesse "principal" não impede o nascimento de um direito de
indemnização autónomo, desde que se verifiquem os pressupostos específicos da responsabilidade
civil;
b) A indemnização cobre, não só a falta do próprio bem devido, mas também os outros danos
patrimoniais e os danos morais causados pelo facto ilícito.

3. a) - A eficácia ex tunc da decisão de inconstitucionalidade implica a destruição dos efeitos jurídicos da


norma legislativa inconstitucional; não elimina, ao invés, o problema da responsabilidade civil do Estado legislador pelos
danos causados directamente pela lei, sem dependência de um acto de execução;
b) - A invalidade originária da lei inconstitucional determina a anulação retroactiva dos actos
administrativos nela baseados: a Administração deve, na execução da sentença anulatória, reintegrar o direito ou interesse
violado ou reconstituir in natura a situação do particular; havendo uma causa legítima de inexecução, o lesado pode exigir
uma indemnização que cubra o valor objectivo do bem sacrificado. A restituição do bem devido ou a atribuição de um bem
equivalente não repara os outros danos patrimoniais e os danos morais causados pelo acto ilegal e, por isso, não afasta o
problema da responsabilidade subjectiva do Estado.

4. - A retroactividade da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral não atinge, em princípio,
as situações consolidadas. Mas o direito de indemnização, efeito secundário da inconstitucionalidade, não é posto em
causa nos casos em que a lei inválida produz os seus efeitos principais.

5. a) - A limitação dos efeitos de inconstitucionalidade, prevista no art. 282º, nº 4 CRP, mesmo na sua
modalidade mais radical de destruição da norma com eficácia ex nunc, não afecta, em princípio, a responsabilidade civil do
Estado pelo ilícito legislativo;
b) - Todavia, o interesse público de excepcional relevo pode exigir a limitação do direito à reparação dos
danos causados por uma lei inconstitucional. Esta limitação é compatível com a natureza do direito de indemnização, direito
fundamental de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias;
c) - A possibilidade de limitar a indemnização dos danos causados por actos legislativos contrários à
Constituição vale igualmente no domínio da fiscalização concreta, difusa ou concentrada. O art. 282º, nº 4, CRP permite,
assim, ultrapassar os receios de que a admissibilidade duma responsabilidade do Estado legislador se tome um encargo
insuportável para as finanças públicas.

Sobre pressupostos da obrigação de indemnizar por actos legislativos formula o


Autor que vimos citando as seguintes

9
- Rui de Medeiros, op. cit., 125.

97
CONCLUSÕES

1 - Pressupostos da responsabilidade civil do Estado por actos legislativos são, nos termos do art. 22 CRP, o
facto ilícito, a culpa do legislador e o dano indemnizável.
2. a) - O facto ilícito não equivale à existência de uma lei inconstitucional.
b) - Por um lado, o dever jurídico violado pode constar de normas infracons-titucionais.
c) - Por outro lado, não basta a inconstitucionalidade (ou ilegalidade) para estar verificado o
pressuposto da ilicitude.
Assim, desde logo, não há facto ilícito legislativo nos casos de inconstitucionalidade (ou ilegalidade)
superveniente: a essência do ilícito civil está na acção e o legislador, no momento em que aprova a lei, não viola nenhum
dever jurídico a que esteja adstrito.
Além disso, a ilicitude, pressuposto da responsabilidade civil, não se reconduz à violação de qualquer norma
jurídica em vigor no momento da prática do facto: o facto ilícito pressupõe a violação de um direito ou interesse legalmente
protegido dos particulares, independentemente de terem ou não natureza patrimonial; a violação de normas orgânicas ou
formais também pode constituir um facto ilícito.
d) - Se ilicitude não é sinónimo de inconstitucionalidade (ou de ilegalidade), a verdade é que pressupõe a
violação de uma disposição ou princípio constitucional (ou infraconstitucional). Da decisão do tribunal que concede uma
indemnização, porque considera a lei inconstitucional (ou ilegal), cabe recurso para o Tribunal Constitu cional, nos casos e
nos termos previstos pelo art. 280 CRP.

3. a) - A análise da culpa nos vários domínios em que opera a responsabilidade civil revela que a
crescente objectivação da culpa facilita a formulação de um juízo de reprovação mas não equivale à consagração de uma
responsabilidade objectiva: a culpa continua a pressupor que o autor do facto ilícito, em face das circunstâncias concretas
da situação, podia e devia ter agido de outro modo.
b) - Não se podem aceitar as concepções que sustentam que a inconstitucionalidade consubstancia in
re ipsa a culpa. Tão-pouco se aceitam as afirmações de que só em hipóteses excepcionais haverá culpa do legislador.
c) - Verifica-se a culpa do legislador quando este podia e devia ter evitado a aprovação da lei
inconstitucional. Há casos nítidos em que a aprovação da lei inconstitucional não é censurável, mas, em contrapartida, são
frequentes os erros indesculpáveis do legislador.
4. - O artigo 22º da Constituição garante o direito à reparação de todos os danos patrimoniais danos emergentes
e lucros cessantes resultantes da violação ilícita de qualquer direito ou interesse legalmente protegido do particular, bem
como, no caso de violação dos direitos, liberdades e garantias, o direito à compensação dos danos não patrimoniais
sofridos pelo lesado.
5. a) - A ideia de que a lei não pode causar danos é inaceitável. Não admira, por isso, que a controvérsia
se centre hoje na questão de saber se os danos imputáveis ao legislador são apenas os que decorrem directamente da lei
ou igualmente os que resultam da concretização da norma legislativa inconstitucional.
b) - O problema da imputação ao Estado legislador dos danos causados por actos de aplicação de uma
lei inconstitucional depende, em última análise, da existência de um nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano. Tudo
se resume à questão de saber se, para o Direito, o acto de aplicação da lei é consequência da conduta do legislador e,
nessa medida, se esta é causa dos danos suportados pelos particulares.
c) - Nos casos em que os órgãos e agentes administrativos são obrigados a cumprir a norma
inconstitucional, a aprovação da lei contrária à Constituição é, seguramente, causa adequada dos danos que resultam
imediatamente da execução da lei e a obrigação de indemnizar só poderá recair sobre o Estado legislador.
d) - Nos casos em que a entidade administrativa executa uma lei inconstitucional, apesar de a lei não
ser obrigatória, actua ilicitamente e, havendo culpa, será responsável, em forma solidária com o autor material do facto
ilícito. Mas, frequentemente, conseguir-se-á também demonstrar que, no caso concreto, a execução da norma legislativa
nula (ou inexistente) constitui uma consequência previsível do comportamento do legislador e, por conseguinte, poder-se-á
igualmente admitir uma responsabilidade civil do Estado por actos legislativos.

6. a) - A doutrina e a jurisprudência admitem, por vezes, que o Estado não é obrigado a indemnizar os
danos causados por actos praticados em violação de normas orgânicas ou formais, porque ele poderia ter causado o
mesmo dano através de uma actuação conforme com a Constituição e as leis.
b) - Ora, esta questão reconduz-se, no fundo, ao problema da relevância negativa da causa virtual, nos
casos em que a causa virtual constitui um facto lícito do lesante.
c) - Para a eventual relevância negativa da causa virtual não basta afirmar que o Estado pode refazer a
norma inválida; é necessário que ele aprove, de facto, uma nova norma de conteúdo idêntico à anterior, sem repetir o vício
que determinou a invalidade.

98
d) - Mas a simples reaprovação da lei não exclui necessariamente o direito de indemnização. Há que
distinguir: nos casos em que os danos sofridos pelo particular consistem no valor do bem, objecto do direito ou interesse,
pode afirmar-se que para exonerar o Estado basta, nos termos gerais, que a nova lei só disponha para o futuro; nos casos
em que os danos decorrem da falta de disponibilidade do bem durante o período em que vigorou a norma orgânica ou
formalmente inconstitucional, a responsabilidade do Estado pelo ilícito legislativo só é excluída se a nova lei tiver eficácia
retroactiva.

Também aqui tem aplicação o disposto no art. 570º do CC, sempre que o lesado concorreu para a produção ou
agravamento dos danos: se não recorreu contenciosamente (268º, nº 4), embora o art. 7º, in fine, do Dec-lei nº 48051, seja
incompatível com a Constituição na medida em que nega indemnização se o lesado não recorreu ou teve negligente
conduta processual.

Ainda nesta parte e no tocante a prisão preventiva ilegal ou a que se seguiu absolvição
pode ver-se o Bol. 453-405 (à luz dos art. 27º, nº 5, da Constituição e do C. P. Penal; no caso de
revisão de sentença por condenação injusta, regem os art. 29º, nº 6, da Constituição e atinentes
daquele Código).

O art. 225º do CPP de 2007 dispõe o seguinte:

1 - Quem tiver sofrido detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação pode
requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos quando:
a) A privação da liberdade for ilegal, nos termos do n.º 1 do artigo 220.º, ou do n.º 2 do artigo 222.º;
b) A privação da liberdade se tiver devido a erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto
de que dependia; ou
c) Se comprovar que o arguido não foi agente do crime ou actuou justificadamente.
2 — Nos casos das alíneas b) e c) do número anterior o dever de indemnizar cessa se o arguido tiver
concorrido, por dolo ou negligência, para a privação da sua liberdade.

Era esta a sua redacção anterior:

1 – Quem tiver sofrido detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal pode requerer, perante o
tribunal competente, indemnização dos danos sofridos com a privação da liberdade.
2 – O disposto no número anterior aplica-se a quem tiver sofrido prisão preventiva que, não sendo
ilegal, venha a revelar-se injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que
dependia. Ressalva-se o caso de o preso ter concorrido, por dolo ou negligência, para aquele erro.

O Ac. de 1 de Junho de 2004, relatado pelo Cons.º Azevedo Ramos, na Col. Jur. (STJ)
2004-II- 80 e 213, apesar de referido ao art. 225º do CPP na anterior redacção, mantém todo o
interesse:

I - O art. 22 da C.R.P. estabelece um princípio geral de directa responsabilidade civil do Estado.


II - Em alargamento dessa responsabilidade a factos ligados ao exercício da função jurisdicional, para além do
clássico erro judiciário, o art. 27, nº 5, da Constituição da República impõe ao Estado, de modo especial, o dever de
indemnizar quem for lesado por privação ilegal da liberdade, nos termos que a lei estabelecer.
III - Em cumprimento do preceituado no art. 27, nº 5, da Constituição, o art. 225 do C.P.P. veio regular as
situações conducentes a indemnização, por privação da liberdade, ilegal ou injustificada.
IV - A previsão do art. 225, nº 2, do C. P. P. comporta também o acto manifestamente temerário.
V - A prisão não é injustificada, e muito menos por erro grosseiro, só porque o interessado vem a ser absolvido.
VI - A circunstância de alguém ser sujeito a prisão preventiva, legal e judicialmente estabelecida, e depois vir a
ser absolvido em julgamento, sendo então libertado, por não se considerarem provados os factos que lhe eram imputados e
que basearam aquela prisão, só por si, não possibilita o direito a indemnização.
VII - O julgamento é realizado em prazo razoável quando é efectuado em prazo consentâneo com a gravidade, a
complexidade dos factos e a observância dos prazos legais, sem dilações temporais indevidas»

e que na parte interessante se transcreve:

99
«A questão a decidir consiste em saber se ao Estado deve ser assacada responsabilidade civil pelos danos
sofridos pelo autor, em virtude da prisão preventiva a que foi sujeito.
Vejamos:
1. O autor pretende receber do Estado a quantia de 412.007,06 euros (82.600.000$00), como indemnização pelos
danos patrimoniais e não patrimoniais que sofreu em consequência da manutenção da prisão preventiva a que esteve
submetido desde 11-5-97 até 13-7-98, de modo que considera injustificado, por ter sido absolvido, e ainda por o julgamento
não ter sido efectuado em prazo razoável.
Baseia o seu pedido, designadamente, na suposta violação dos arts. 22º e 27º, nº 5 da Constituição da
República, arts. 5° e 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, art. 9° do dec.-Iei 48.051, de 21-11-67, e art. 225
do C.P.P.
A primeira instância julgou a acção improcedente, por considerar que não assiste ao autor o direito de
indemnização pelos danos sofridos com a privação da sua liberdade, no âmbito do invocado processo penal, por não se
verificarem os respectivos pressupostos, já que:
- não sofreu prisão preventiva manifestamente ilegal (art. 225, nº 1, do C.P.P 10.);
- tendo sofrido prisão preventiva, que não foi ilegal, não se mostra que tal prisão se viesse a revelar injustificada
por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia (art. 225, n° 2, do C.P.P.);
- o julgamento foi realizado em prazo razoável.
E com razão, diga-se, desde já.

Todos têm direito à liberdade e à segurança - art. 27, n° 1, da Constituição da República Portuguesa.
A liberdade do ser humano é um dos direitos estruturantes da personalidade.
Mas como a generalidade dos direitos, o direito à liberdade sofre limitações, quando o seu exercício colide com
outros direitos também estruturantes da sociedade, como seja o direito à segurança.
Surge, assim, um conflito entre o direito à liberdade individual e o direito de perseguição criminal que o Estado
deve exercer para salvaguarda dos princípios inalienáveis da defesa e da segurança.
O instituto da prisão preventiva alicerça-se em interesses societários de defesa interna de uma comunidade, que,
tornando premente a sua existência no âmbito da repressão e combate ao crime, conflituam com o direito à liberdade
pessoal.
Processualmente, encontramo-nos na intersecção de dois interesses processuais que o direito constitucional
penal tem de satisfazer: a perseguição e punição dos criminosos e a tutela dos inocentes.
Numa época de assunção do direito à reparação do erro judiciário e da prisão preventiva ilegal, a grande questão
que se coloca é a de definir como imputar tal reparação ao Estado.
Pois bem.

Dispõe o art. 22 da Constituição da República:


"O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis em forma solidária com os titulares dos
seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse
exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem".

Por sua vez, o art. 27, nº 5, da mesma Lei Fundamental preceitua:


"A privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de indemnizar o
lesado nos termos que a lei estabelecer”.
Ora, da conjugação destes normativos constitucionais, pode concluir-se o seguinte:
- o art. 22 estabelece um principio geral de directa responsabilidade civil do Estado;
- em alargamento dessa responsabilidade a factos ligados ao exercício da função jurisdicional, para além do
clássico erro judiciário, o art. 27, nº 5, impõe ao Estado, de modo especial, o dever de indemnizar quem for lesado por
privação ilegal da liberdade, nos termos que a lei estabelecer.

10
- Artigo 225º do CPP – Modalidades
1 – Quem tiver sofrido detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal pode requerer,
perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos com a privação da liberdade.
2 – O disposto no número anterior aplica-se a quem tiver sofrido prisão preventiva que, não
sendo ilegal, venha a revelar-se injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de
facto de que dependia. Ressalva-se o caso de o preso ter concorrido, por dolo ou negligência, para
aquele erro.
(Redacção que lhe foi dada pelo artigo 1º da Lei nº 59/98, de 25 de Agosto)

100
É nestes termos que se mostra instituída uma responsabilidade directa do Estado por actos da função
jurisdicional, por lesão grave do direito à liberdade, sendo em cumprimento da injunção final do citado art. 27º, n° 5, da
Constituição, que o art. 225 do Cód. Proc. Penal veio regular e definir as situações conducentes a indemnização por
privação da liberdade, ilegal ou injustificada.

O citado art. 225º é uma disposição inovadora, sem correspondência no Código de Processo Penal de 1929, de
natureza claramente substantiva, apesar de inserida num diploma de carácter adjectivo.
Em anotação ao referido art. 225º, escreve Maia Gonçalves (Código do Processo Penal, Anotado e Comentado,
11ª edição, pág. 464) "o disposto neste capítulo sobre indemnização por privação da liberdade ilegal ou injustificada resulta
de Convenções a que Portugal aderiu, designadamente da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, aprovada pela Lei
65/78, de 13 de Outubro, que no seu art. 52, nº 5, dá direito de indemnização a qualquer pessoa vítima de prisão ou
detenção em condições contrárias às que nesse artigo se estabelecem, e que a nossa lei interna perfilhou. Resulta ainda
do disposto no art. 2, nº 2, aI. 38) da Lei de Autorização Legislativa nº 43/86, de 26 de Setembro".
No nº 1, do art. 225 do C.P.P., prevêem-se as situações de detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegais,
ou seja, as levadas a cabo por quaisquer entidades administrativas ou policiais, como ainda por magistrados judiciais,
agindo estes desprovidos da necessária competência legal ou fora do exercício do seu munus ou sem utilização do
processo devido, ou mesmo, quando investidos da autoridade pública do cargo, se hajam determinado à margem dos
princípios deontológicos e estatutários que regem o exercício da função judicial ou impulsionados por motivações com
relevância penal, como por peita, suborno, concussão, prevaricação ou abuso de poder.
O nº 2, do mesmo art. 225º, contempla as situações em que a prisão preventiva tenha cobertura legal, mas venha
a revelar-se injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia (erro de facto relativo
aos factos invocados para fundamentar a decisão de determinar a prisão ou de a manter, por não existirem ou não
corresponderem à verdade.
Ressalva-se o caso do preso ter concorrido, por dolo ou negligência, para aquele erro.
Há erro de facto quando o erro verse sobre qualquer outra circunstância que não a existência ou conteúdo de
uma norma jurídica (erro na interpretação ou ainda sobre a sua aplicação).
É comum considerar que há erro grosseiro quando for indesculpável, no sentido de escandaloso, crasso ou
intolerável, em que não teria caído um agente dotado de normal inteligência e circunspecção e que não sucederia a um
Juiz minimamente cuidadoso, dotado dos conhecimentos e cuidados técnico-deontológicos médios.
A apreciação dos factos que emolduram a conduta de um arguido sujeita a exame de um Juiz, para efeito de
validação ou manutenção da sua prisão preventiva, contém em si própria a possibilidade de erro.
Daí que não seja qualquer erro que legitime a aplicação do art. 225º, nº 2.
Mas não poderá aceitar-se que só caiba no mencionado art. 225, nº 2, o erro tão grosseiramente patenteado que
a previsão da norma acabe por nunca ser preenchida.
Por isso, deve entender-se, como já se decidiu no Acórdão deste S.T.J. de 12-10-00 (proferido na revista nº
2321/00, da 2ª secção), que a previsão do art. 225, nº 2, do C.P.P., comporta também o acto temerário, ou seja, "aquele
que - perante a factualidade exposta aos olhos do jurista e contendo uma duplicidade tão grande no seu significado, uma
ambiguidade tão saliente no seu lastro probatório indiciário - não justificava uma medida gravosa de privação da liberdade,
mas sim uma outra mais consentânea com aquela duplicidade ambígua".
O acto manifestamente temerário, ou seja, aquele que as circunstâncias patentemente aconselhavam que tivesse
sido substituído por outro, e que, ao ser praticado, lesou gravemente os direitos de personalidade do arguido, também
deverá ser considerado englobado no conceito do art. 225, nº 2, designadamente, quando a lesão desses direitos,
decorrente daquele acto, salta aos olhos ser desproporcionada em confronto com as vantagens ou desvantagens que ele
proporcionou.
Para ser concedida indemnização ao abrigo do art. 225º, nº 2, do C.P.P. era ainda necessário que a privação da
liberdade tivesse causado ao lesado prejuízos anómalos e de particular gravidade, mas este requisito foi suprimido pela Lei
59/98, que alterou a redacção daquele preceito.
Debruçando-se sobre a constitucionalidade do art. 225º do C. P. P., o Acórdão do Tribunal Constitucional nº
160/95, de 15-3-95, (publicado no B.M.J., Suplemento, Acórdãos do Tribunal Constitucional, Novembro de 1995 - Abril de
1995, págs. 584 e segs.) também já decidiu:
"... no quadro do mesmo instituto da responsabilidade civil do Estado o art. 22 (da C.R.P.) regula essa responsa -
bilidade em geral, e o art. 27, nº 5 (da mesma L. F.) regula-a para a situação específica de privação da liberdade contra o
disposto na Constituição e na lei".
E mais adiante:
"Como já ficou dito no Acórdão nº 90/84 (do Tribunal Constitucional), trata-se aqui de situações em que a Consti -
tuição deixa deliberada e intencionalmente dependente do legislador - dito de outro modo: em que remete para o legislador
- a efectivação de um certo princípio ou do direito por este reconhecido.
Ao fazê-lo o legislador constitucional não apenas atribui ao legislador ordinário um específico encargo, mas,
verdadeiramente, lho reserva.

101
O legislador, portanto, cumpriu a directiva constitucional no nº 1, do art. 225, prevendo aí os casos de detenção
ou prisão preventiva manifestamente ilegal e distinguindo no nº 2, os caos em que ela não é ilegal.
Não lhe estava vedado pelo legislador constitucional seguir esse caminho, pois o nº 5, do art. 27 limita-se a prever
a privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei, derivando, no plano da responsabilidade civil, por parte
do Estado, de actuações lícitas ou ilícitas dos órgãos intervenientes nessa privação da liberdade".
Assim, como a Constituição reserva ao legislador ordinário a tipificação dos casos em que é dever do Estado
indemnizar um cidadão que sofreu prisão preventiva fora dos casos previstos na lei, não sofre de qualquer inconsti -
tucionalidade o referido art. 225º do C.P.P., com a interpretação que aqui lhe foi dada.
Não se ignora o diverso entendimento de certa doutrina, que se pronuncia no sentido de que a Constituição
confere o direito de indemnização independentemente de culpa e de que o legislador ordinário não pode limitar a responsa -
bilidade do Estado aos casos típicos de prisão preventiva ilegal ou injustificada (Luís Guilherme Catarino, A Respon -
sabilidade do Estado, pela Administração da Justiça, págs. 355 e 380; Rui Medeiros, Ensaio Sobre a Responsabilidade Civil
do Estado por Actos Legislativos, pág. 105; João Aveiro Pereira, Responsabilidade Civil por Actos Jurisdicionais, pág. 215).
Mas tal entendimento não tem sido acolhido pela jurisprudência largamente dominante deste Supremo
(orientação de que divergiu o Acórdão do S.T.J. de 12-11-98, publicado na Col. Ac. S.T.J., VI, 3º, pág. 112), sendo que
encontra apoio na lição de Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa, Anotada, 3ª ed., pág.
187), donde resulta que o art. 225 do C.P.P. interpreta correctamente o sentido do preceito constitucional do art. 27, nº 5
(Ac. S.T.J. de 3-12-98, rev. 864/98, da 2ª secção; Ac. S.T.J. de 11-11-99, Rev. 743/99, da 2ª secção; Ac. S.T.J. de 9-12 -99,
Rev. 762/99, da 1ª secção; Ac. S.T.J. de 6-1-00, Rev. 1004/99, da 7ª secção; Ac. S.T.J. 4-4-00, Rev. 104/00, da 6ª secção;
Ac. S.T.J. de 20-6-00, Rev. 433/00, da 6ª secção; Ac. de 19-9-02, Rev. 2282/02, da 7ª secção; Ac. S.T.J. de 13 -5-03, rev.
1018/03, da 6ª secção; Ac. S.T.J. de 27-11-03, rev. 3341/03, da 7ª secção).
Consequentemente, face ao disposto nos arts. 27, nº 5 da C.R.P. e 225 do C.P.P., é de concluir não ser de aceitar
"a imputação ao Estado, referida ao art. 22 da Constituição (de cuja previsão o art. 27, nº 5, constitui historicamente
alargamento), de uma responsabilidade objectiva geral por actos lícitos praticados no exercício da função jurisdicional, em
termos de abranger, para além do clássico erro judiciário, a legítima administração da justiça, em sede de detenção e de
prisão preventiva legal e justificadamente efectuada e mantida; nem sequer a aplicação, sem outra exigência, nesta
hipótese especial, que é a ocorrente, do regime geral ou comum da responsabilidade civil extra-contratual previsto nos arts.
483 e 562 do C. C., como se lê no citado Ac. deste S.T.J. de 27-11-03 (proferido na Rev. 3341/03, da 7ª Secção).

2. Expostos estes princípios, é bom de ver que a acção não podia proceder, em virtude do recorrente não ter
provado os pressupostos fixados na lei para a existência do direito de ser indemnizado pelos danos sofridos em
consequência da prisão preventiva a que foi sujeito.
Tal conclusão não colide com o princípio da presunção da inocência do arguido, que também não acarreta
automaticamente o dever de indemnizar por parte do Estado a todo aquele que, mantido em prisão preventiva, vem, a final,
a ser absolvido.
É que não se mostra que a prisão preventiva tivesse sido manifestamente ilegal, nem que tivesse havido erro
grosseiro, ou sequer erro temerário, na apreciação dos pressupostos de facto que levaram à sua aplicação e respectiva
manutenção até ao julgamento, como resulta dos factos provados e bem se evidencia na sentença recorrida.
A prisão preventiva não é injustificada, e muito menos por erro grosseiro, só porque o interessado vem a ser
absolvido (Ac. S.T.J. de 17-10-95, Col. Ac. S.T.J., 1995, 3º, 65).
O juízo de condenação é necessariamente mais exigente que o juízo de indiciação ou acusação.
Apesar dos indícios recolhidos no processo criminal justificarem a prisão preventiva e levarem à suposição do
arguido vir a ser condenado, ele não deixa de se presumir inocente - art. 32, nº 2, da Constituição.
Porque assim é, não se fazendo prova cabal dos factos integrantes do crime ou crimes pela qual a acusação foi
recebida, o arguido terá necessariamente de ser absolvido.
As circunstâncias que antecederam e acompanharam a prisão preventiva do autor mostram que ela foi
formalmente legal, oportuna e justificada, ab initio e até à realização do julgamento, onde veio a ser absolvido.
A prisão preventiva foi apreciada em momentos diferentes, por diversos juízes, cujas decisões foram mesmo
objecto de dois recursos para a Relação, onde foi justificadamente mantida.
A absolvição ocorreu não porque tenha sido demonstrada, de forma positiva, a inocência do autor, mas porque
não foi feita prova bastante da sua culpa, face ao silêncio a que, na audiência de julgamento, se remeteram os arguidos
que anteriormente lhe haviam imputado actividade delituosa.
A Constituição consagra, como direito fundamental do cidadão, o direito à liberdade.
Todavia, como já se salientou, não se trata de um direito absoluto e ilimitado, mas antes sujeito a restrições.
Ora, nesta base e desde que observadas as regras constitucionais e legais quanto a tempo e condições, é
evidente que a prisão preventiva não pode fazer nascer o direito a qualquer indemnização.
E, mesmo quando nasça um tal dever indemnizatório, será apenas o que resultar dos termos que a lei
estabelecer.

102
3. Para fundamentar o seu pedido, o autor também alega o facto do processo criminal, em que foi arguido, não ter
sido julgado e decidido em prazo razoável, daí resultando a privação da sua liberdade por um período de tempo
excessivo.
Mas sem razão.
O conceito de prazo razoável decorre directamente da estatuição constitucional do "due process of law" constante
do art. 14, nº 3, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de Nova lorque, que estabelecia que toda a pessoa
acusada criminalmente tem direito a ser julgada em processo sem dilações temporais indevidas.
Entre nós, o art. 32, nº 2, da Constituição, também proclama que todo o arguido seja julgado no mais curto prazo
compatível com as garantias de defesa.
Por sua vez, o art. 20, nº 4 da Lei Fundamental consagra: "Todos têm direito a que uma causa em que
intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo".
Tal preceito está relacionado com a previsão dos arts. 5º e 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
O que deve entender-se por prazo razoável?
Têm sido ponderados os seguintes critérios, através dos quais se pode materializar o referido conceito:
- circunstâncias do caso, tendo em atenção a complexidade do processo;
- comportamento do recorrente e das autoridades com competência sobre o processo;
- forma como o caso foi tratado pelas autoridades judiciais e administrativas;
- consequências para as partes.

Para se avaliar da razoabilidade do prazo do julgamento, num determinado processo, há sempre que começar
por atender aos prazos previstos na lei processual para a prática dos necessários actos.
No caso dos autos, o autor esteve preso preventivamente desde 11 de Maio de 1997 até 13 de Julho de 1998,
sendo restituído à liberdade no decurso da audiência de julgamento.
Analisada a sequência dos actos processuais que o elenco dos factos provados evidencia e a necessidade de
observância da tramitação legal do processo penal em que o autor era um dos seis co-arguidos e, em especial, dos
tramites conexionados com o respeito pelas garantias de defesa das várias pessoas ali arguidas, não pode deixar de
concluir-se que, apesar da natural complexidade do processo crime, o mesmo foi tratado com celeridade.
O julgamento foi realizado em prazo razoável, consentâneo com a gravidade, complexidade dos factos e a obser-
vância dos prazos legais, sem dilações temporais indevidas.
Improcedem, pois, as conclusões do recurso».

O Ac. do T. Constitucional nº 12/05 pronunciou-se pela não inconstitu-cionalidade do


art. 225º do CPP, com votos de vencido.
Pela importância do estudo sobre esta questão em especial, e, em geral, sobre a responsa-
bilidade do Estado, transcreve-se a parte interessante:

B) Questão de constitucionalidade
10. O recorrente entende que a norma em causa é inconstitucional, e invocando, nesse sentido, para além de
normas de instrumentos internacionais (o artigo 5º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o artigo 9º, n.º 5, do
Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos), os artigos 22º e 28º, n.º 2, da Constituição.
A alegada violação do artigo 28º da Constituição, sobre prisão preventiva, apenas poderia relevar, porém, no
contexto da análise da legalidade dessa prisão – e não já, como se disse, para a questão da conformidade constitucional
do n.º 2 do artigo 225º do Código de Processo Penal (que se refere apenas a prisão preventiva que não é ilegal, mas vem a
revelar-se injustificada), ou, sequer, do n.º 1 do artigo 225º do Código de Processo Penal, pois para esta a conclusão sobre
a legalidade (manifesta ou não) da prisão preventiva é um dado, relevante para a verificação da sua hipótese.
Pôr-se-á, pois, de lado aquele artigo 28º, como parâmetro de controlo da norma em questão, que é relativa à
indemnização por prisão preventiva injustificada, e não às condições para o decretamento ou manutenção da prisão
preventiva.
Por outro lado, e apesar da possibilidade de o Tribunal Constitucional atender, na apreciação da
constitucionalidade da norma impugnada, a parâmetros diversos dos invocados pelo recorrente – nos termos do artigo 79º-
C da Lei do Tribunal Constitucional, importa afastar, como parâmetro de controlo do artigo 225º do Código de Processo
Penal, o artigo 29º, n.º 6, da Constituição, que reconhece aos “cidadãos injustamente condenados” o “direito, nas condições
que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos”. Na verdade, não é esta indemnização
por condenação injusta – ou a indemnização em caso de erro judiciário, a que se reporta o artigo 3º do protocolo n.º 7 à
Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, de 1984 –, prevista também já na
Constituição de 1933 (artigo 8º, n.º 20, para o caso de revisão das sentenças criminais) e, hoje, no artigo 462º do Código
de Processo Penal de 1987 (bem como, anteriormente, no artigo 126º, §§ 5º, 6º e 7º, do Código Penal de 1886) que é
objecto da previsão do artigo 225º do Código de Processo Penal. Para o caso de revisão de uma decisão condenatória, o

103
artigo 462º do Código de Processo Penal prevê que a sentença deve atribuir “ao arguido indemnização pelos danos
sofridos”, paga pelo Estado. Diversamente, o artigo 225º do Código de Processo Penal refere-se à privação da liberdade
ilegal ou injustificada causada por prisão preventiva (ou por detenção), a qual, como se sabe, constitui uma medida de
coacção – a medida de coacção mais gravosa – aplicada no decurso do processo penal (normalmente logo nas fases de
inquérito ou instrução), cuja fundamentação pode ser – e normalmente terá mesmo de ser – mais precária do que a da
privação da liberdade aplicada em consequência de uma decisão condenatória em pena de prisão, proferida depois do
julgamento, no termo de um processo com todas as garantias de defesa.

Para a privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei (sem pressupor já uma decisão de
condenação), o legislador constitucional previu, antes, especificamente no artigo 27º, n.º 5, que ela “constitui o Estado no
dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer”. É esta a norma constitucional que é directamente aplicável
ao caso dos autos. Isto, porém, sem descurar, igualmente, a possibilidade de confronto, quer com princípios como os do
respeito pela dignidade da pessoa humana e do Estado de Direito (artigos 1º e 2º da Constituição), quer com a garantia
institucional consagrada no artigo 22º da Constituição, de responsabilidade civil do Estado “por acções ou omissões
praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e
garantias ou prejuízo para outrem.”
Como, porém, se encontra no artigo 27º, n.º 5, da Constituição uma previsão específica para a indemnização por
privação da liberdade em processo penal “contra o disposto na Constituição e na lei”, começar-se-á pela apreciação da
conformidade do artigo 225º, n.º 2, da Constituição com esta norma.

11. Antes de prosseguir, cumpre, ainda, porém, vincar um ponto que se afigura especialmente importante. É ele o
de que não compete ao Tribunal Constitucional decidir qual é o regime da responsabilidade civil do Estado por detenção ou
prisão preventiva injustificada que se afigura, em abstracto ou na hipótese dos autos, mais conveniente, ou, sequer, mais
justo. Antes lhe cumpre apenas apreciar a conformidade com as normas e princípios constitucionais das soluções
normativas sobre a obrigação de indemnização por prisão ou detenção injustificada, ainda que estas soluções possam, aos
olhos de alguns ou mesmo de uma maioria, revelar-se menos convenientes ou, até, injustas.
É que, como se sabe, para a previsão e definição de um tal regime torna-se indispensável conciliar exigências de
sinal contrário, para cuja avaliação, ponderação e satisfação, estabelecendo os indispensáveis compromissos político-
legislativos, é o legislador quem está especialmente legitimado e apetrechado, e não este órgão de fiscalização
concentrada da constitucionalidade. Assim, não compete, por exemplo, a este Tribunal decidir a questão, de política
legislativa, de saber se a melhor solução é a de serem sempre suportados pelo Estado os danos resultantes de uma prisão
preventiva cuja falta de justificação apenas se possa vir a revelar ex post – mas apenas se é exigida pela Constituição uma
tal solução (aliás, também não excluída pela decisão recorrida, que se limitou a concluir que o recorrente não provou os
pressupostos exigidos pelo artigo 225º do Código de Processo Penal). A ponderação de valores, a realizar para a decisão
de política legislativa – questionando se a prisão preventiva de quem não veio a ser condenado pode ser justificada pelo
interesse geral, e, designadamente, ajuizando sobre a conveniência de critérios como o da fonte dos indícios da prática de
um facto criminoso (ou da sua aparência) –, não compete, pois, a este Tribunal, o qual apenas concretiza o quadro
constitucional no qual tal ponderação (por natureza de política legislativa, e a realizar por órgãos legitimados e
apetrechados para tal) se há-de realizar. E não é de excluir que, perante a solução final encontrada, se possa afirmar que
outra melhor, ou até mais justa, seria pensável, tendo-se, porém, antolhado aquela solução (por exemplo, condicionadora
da indemnização a certos pressupostos) mais conveniente ao legislador, por razões de segurança, de eficiência ou,
mesmo, simplesmente de praticabilidade, sem que esta última seja, logo por esse facto, inconstitucional: podendo não
corresponder ao melhor direito, ou ao direito mais justo, não terá, logo por isso, de ser fulminada como “não-direito”,
constitucionalmente censurável.

12. O Tribunal Constitucional teve já ocasião de analisar o artigo 27º, n.º 5, da Constituição, confrontando com ele
o artigo 225º da Constituição (no caso, o seu n.º 1) e explicitando o sentido e os limites que resultam, para o legislador, da
consagração constitucional do dever do Estado de indemnizar o lesado, nos termos que a lei estabelecer, em caso de
privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei. Fê-lo no acórdão n.º 160/95 (publicado em Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 30º vol., pág. 807), recordando igualmente o que se havia dito anteriormente, no acórdão n.º 90/84
(publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 4º vol., pág. 267), e considerando também o artigo 5º, n.º 5, da
Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, nos termos seguintes:
«(…)
A marcação do confronto passa pela consideração do afastamento do artigo 5º, n.º 5, da Convenção Europeia
dos Direitos do Homem (“Qualquer pessoa vítima de prisão ou detenção em condições contrárias às disposições deste
artigo tem direito a indemnização” – é o seu texto), que o recorrente invoca, pois, como regista o Ministério Público, nada
aditando aquela Convenção ao que já consta da Constituição, no seu artigo 27º, não interessa apreciar, no recurso de
constitucionalidade, como é este, a eventual desconformidade entre norma de direito interno – aquele n.º 1 do artigo 225º –
e a aludida Convenção.

104
Diga-se, em todo o caso, que a alínea c) do n.º 1 do mesmo artigo 5º da Convenção consente que qualquer
pessoa seja presa ou detida “a fim de comparecer perante a autoridade judicial competente, quando houver suspeita
razoável de ter cometido uma infracção, ou quando houver motivos razoáveis para crer que é necessário impedi-lo de
cometer uma infracção ou de se pôr em fuga depois de a ter cometido”, o que cobre claramente as situações de prisão
preventiva, em termos, aliás, menos rigorosos que os consagrados nos artigos 27º, n.º 3, alínea c), e 28º da nossa
Constituição, pelo que, neste ponto, não é possível ofender aquela Convenção sem simultaneamente ofender a
Constituição da República Portuguesa.

Por outro lado, o n.º 5 do artigo 27º desta Lei Fundamental garante indemnização por privação por liberdade
contra o disposto “na lei”, e, para este efeito, a aludida Convenção cabe neste conceito de “lei” (neste sentido, cfr. Ireneu
Cabral Barreto, “Nota sobre o Direito à Liberdade e à Segurança”, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 2,
fascículo 3, págs. 443 e seguintes, em especial pág. 473).

E a mesma marcação passa ainda pela consideração do afastamento do artigo 22º da Constituição, que,
conjugando-se com o artigo 271º, consagra o princípio da responsabilidade civil do Estado e demais entes públicos, ponto
em que o Ministério Público, nas suas alegações, se afadiga em demonstrar que o âmbito normativo-material daquele
artigo 22º “não abrange a responsabilidade por actos lícitos da função jurisdicional” e não é, por isso, com base nele que
“há que apreciar a constitucionalidade da norma questionada”.
É que, contrariamente ao trajecto seguido pelo Ministério Público, com judiciosas considerações, não é caso de
chamar à colação a norma do artigo 22º da Constituição, desde logo porque o recorrente não o faz no requerimento de
interposição do recurso de constitucionalidade nem nas conclusões das suas alegações, sendo meramente pontual e
episódica no texto das mesmas alegações a referência àquela norma e ao regime constante do Decreto-Lei n.º 48051, de
21 de Novembro de 1967.

Depois porque, mesmo na óptica do artigo 79º-C, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, aditado pelo artigo 2º da
Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro, nunca seria caso de aferir a violação de tal norma pelo questionado n.º 1 do artigo 225º do
Código de Processo Penal, pois se aí se consagra, em geral, o princípio da responsabilidade civil do Estado e demais entes
públicos, “por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício”, também no
artigo 27º, n.º 5, da Constituição, se consagra de igual modo o mesmo princípio da responsabilidade civil do Estado, mas
por actos de “privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei” (como dizem Gomes Canotilho e Vital
Moreira, aí se “consagra expressamente o princípio da indemnização de danos nos casos de privação inconstitucional ou
ilegal da liberdade (ex.: prisão preventiva injustificada, prisão ordenada por autoridade judicial sem o ‘processo devido’), o
que representa o alargamento da responsabilidade civil do Estado (cfr. art. 22º) a factos ligados ao exercício da função
jurisdicional, não se limitando esta responsabilidade ao clássico erro judiciário (cfr. art. 29º-6)” – Constituição anotada, 3ª
ed., pág. 187).
No quadro do mesmo instituto jurídico da responsabilidade civil do Estado, o artigo 22º regula essa
responsabilidade, em geral, e o artigo 27º, n.º 5, regula-a para a situação específica de “privação da liberdade contra o
disposto na Constituição e na lei”. Daí que, de forma mais linear, se possa afirmar, como faz o Ministério Público, que não é
com base naquele artigo 22º que “há que apreciar a constitucionalidade da norma questionada”, na medida, em que a
hipótese sub judicio se localiza no plano de uma “privação da liberdade”, sofrida pelo recorrente.

12. Feita, assim, a redução da controvérsia presente ao confronto entre o n.º 1 do artigo 225º do Código de
Processo Penal e o n.º 5 do artigo 27º da Constituição, é bem de ver desde

III. Decisão

Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide:

a) - Não julgar inconstitucional o artigo 225º, n.º 2, do Código de Processo Penal de 1987, na parte em que faz
depender a indemnização por “prisão preventiva que, não sendo ilegal, venha a revelar-se injustificada” da existência de
um “erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia”;
b) - Em consequência, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida, no que à questão de
constitucionalidade respeita;
c) - Condenar o recorrente em custas, com 20 (vinte) unidades de conta de taxa de justiça.

Lisboa, 12 de Janeiro de 2005

Paulo Mota Pinto


Benjamim Rodrigues

105
Maria Fernanda Palma (vencida nos termos da declaração de voto junta).
Mário José de Araújo Torres (vencido, nos termos da declaração de voto junta)
Rui Manuel Moura Ramos

Pela sua exaustiva fundamentação deve ser atentamente estudado o Acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça (Cons.º Santos Bernardino) de 11.9.2008, no Pr.º 08B1747:

RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO


PRISÃO PREVENTIVA
INDEMNIZAÇÃO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
PRISÃO PREVENTIVA ILEGAL
ERRO GROSSEIRO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
ABSOLVIÇÃO EM JULGAMENTO

Sumário:
1. O art. 225º do CPP, na redacção que lhe foi conferida pela Lei 48/2007, de 29 de Agosto, não é aplicável aos
casos de prisão preventiva ocorridos antes da entrada em vigor deste diploma, não sendo de aplicar, para resolver a
questão, a norma do art. 5º do CPP, que rege sobre a aplicação da lei processual penal no tempo.

2. Isto porque o art. 225º, apesar de inserido num diploma de carácter adjectivo, assume natureza
eminentemente substantiva; e, estabelecendo o regime da indemnização cível por danos causados pelo Estado a qualquer
pessoa, no exercício da função jurisdicional, é verdadeiramente uma regra de direito privado comum ou civil, uma norma
sobre a responsabilidade civil extracontratual, sendo a sua aplicação no tempo definida pelas regras do art. 12º do Cód.
Civil.

3. A inexistência de indícios bastantes para integrar o conceito legal de «fortes indícios», exigido, além doutros
requisitos, para que a prisão preventiva possa ser decretada, configura – se a prisão preventiva for decretada – uma
ilegalidade, e o despacho que a decreta é ilegal, não sendo o erro (grosseiro ou não) o vício que o inquina. Todavia, para
fundar o direito à indemnização, nos termos do n.º 1 do art. 225º do CPP (redacção anterior à introduzida pela Lei 48/2007),
não basta a ilegalidade da prisão preventiva: exige-se que tal ilegalidade seja manifesta, tendo em conta as circunstâncias
em que foi aplicada, pelo que, em tal situação, também só a manifesta inexistência de «fortes indícios» confere direito a
indemnização.

4. No n.º 2 do art. 225º prevê-se o caso de prisão preventiva legal, mas que posteriormente veio a verificar-se ser
total ou parcialmente injustificada, por erro grosseiro – ou seja, por erro escandaloso, crasso ou palmar, que procede de
culpa grave do errante – na apreciação dos respectivos pressupostos de facto.

5. O erro grosseiro na aplicação da prisão preventiva tem de ser apreciado à luz de um juiz de médio saber,
razoavelmente cauteloso e ponderado na valoração dos pressupostos de facto invocados como fundamento desta.

6. O princípio constitucional da igualdade reconduz-se à proibição do arbítrio e da discriminação, postulando que


se dê tratamento igual a situações de facto essencialmente iguais e tratamento desigual a situações de facto desiguais e,
inversamente, proibindo que se tratem desigualmente situações iguais e de modo igual situações iguais. Tal princípio não
impede a diferenciação de tratamento, mas apenas a discriminação arbitrária, as distinções de tratamento que não tenham
justificação e fundamento material bastante.

7. O princípio da presunção de inocência, igualmente com assento constitucional, constituindo uma regra de
tratamento a dispensar ao arguido ao longo do processo, não briga com a aplicação e manutenção da prisão preventiva.

8. O juízo sobre o erro grosseiro na valoração dos pressupostos de facto determinantes da prisão preventiva, a
formular em momento posterior, tem por base os factos, elementos e circunstâncias que ocorriam na ocasião em que esta
foi decretada ou mantida.

9. E o facto de o arguido sujeito a prisão preventiva legalmente decretada vir a ser posteriormente absolvido em
julgamento, por não provados os factos que lhe eram imputados, é, por si só, insusceptível de revelar a existência de erro

106
grosseiro por parte de quem decretou a aludida medida de coacção, e, por isso, não implica, só por si, a possibilidade de
indemnização nos termos do art. 225º/2 do CPP.

10. Dizendo-se, no acórdão penal absolutório, que “não resulta dos factos provados que os arguidos, ou qualquer
deles, tenham ateado fogo ou provocado incêndio”, e que, por isso, vão absolvidos dos crimes que lhes eram imputados, a
absolvição é, no caso, decorrência do princípio in dubio pro reo: não se provar que praticaram os factos não significa que
os não tenham praticado.

11. O art. 22º da Constituição parece não abranger a chamada responsabilidade por actos lícitos – o que excluiria
a sua aplicação a casos em que foi aplicada prisão preventiva, de forma legal, mas em que, a final, ocorreu absolvição.

12. Mas, a não ser assim, então é certo que tal preceito consagra genericamente um direito a indemnização por
lesão de direitos, liberdades e garantias, enquanto o n.º 5 do art. 27º tem um domínio especial ou específico de aplicação,
consagrando expressamente o princípio de indemnização de danos nos casos de privação inconstitucional ou ilegal da
liberdade, o que representa o alargamento da responsabilidade civil do Estado a factos ligados ao exercício da função
jurisdicional, para além do clássico erro judiciário.

13. Assim, no domínio da responsabilidade civil do Estado, o art. 22º regula essa responsabilidade, em geral, e o
art. 27º, n.º 5 regula-a para a situação específica de «privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei»; e a
relação de especialidade em que o art. 27º, n.º 5 se encontra, no confronto com o art. 22º, conduz a que este não seja
invocável no âmbito do campo de intervenção daquele.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1.
AA intentou, em 21.09.2006, no Tribunal Judicial de Almodôvar, acção com processo ordinário contra o ESTADO
PORTUGUÊS, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a indemnização de € 200.000,00, por danos não patrimoniais por
ela sofridos e da responsabilidade do demandado.
Alegou, em síntese, ter sido sujeita, em 31.07.2004, à medida de coacção de prisão preventiva, aplicada em
despacho judicial, em que a Ex.ma Juíza entendeu que havia fortes indícios de ter a autora, com outro, ateado quatro focos
de incêndio que deflagraram no concelho de Almodôvar no dia 26 desse mesmo mês.
Porém, a decretada prisão preventiva era injustificada e deveu-se a erro grosseiro na apreciação dos
pressupostos de facto que determinaram a sua aplicação, já que não existiam os invocados fortes indícios da prática do
crime pela autora.
Por despacho de 27.08.2004, que enfermou do mesmo erro, e que incidiu sobre requerimento da autora
impetrando a substituição da prisão preventiva por outra medida não privativa da liberdade ou pela obrigação de
permanência na habitação, a dita medida de coacção foi mantida, e o mesmo sucedeu posteriormente, noutros despachos
de reexame dos respectivos pressupostos, dos quais a autora recorreu, sem que lhe tenha sido reconhecida razão.
Em 29 de Setembro de 2005, foi proferido acórdão pelo tribunal colectivo do círculo de Beja, e a autora, arguida
no processo respectivo, foi absolvida.
A autora – que esteve em prisão preventiva desde 31.07.2004 até 26.09.2005 – tinha, quando foi detida, 43 anos
de idade, era pessoa dinâmica e trabalhadora e tinha um núcleo familiar e social estável, tendo sofrido danos não
patrimoniais, que especifica, decorrentes da injustificada prisão preventiva, pelos quais deve ser indemnizada em quantia
nunca inferior à peticionada.

O Ministério Público contestou (fls. 450), aceitando os factos documentados nos autos e impugnando os
restantes. Concluiu pedindo a improcedência da acção, com a consequente absolvição do Estado do pedido.

Foi proferido saneador-sentença, no qual a Ex.ma Juíza julgou a acção improcedente e absolveu o Estado
Português do pedido.

Inconformada com tal decisão, a autora interpôs dela o pertinente recurso de apelação.
Sem êxito, porém, pois a Relação de Évora, em acórdão oportunamente proferido, julgou a apelação
improcedente, confirmando a decisão recorrida.

Ainda inconformada, a autora traz agora a este Supremo Tribunal o presente recurso de revista, rematando as
respectivas alegações com a enunciação das seguintes conclusões:

107
1ª - Com a revisão do CPP, levada a cabo pela Lei 48/2007, de 28 de Agosto, alargou-se a obrigação de
indemnizar por prisão preventiva (p.p.) a situações em que se comprove que o arguido não foi o agente do crime ou que
tenha agido justificadamente;
2ª - O Tribunal a quo proferiu acórdão absolutório sem se ter pronunciado sobre a nova e diversa redacção do
preceito que confere o direito a indemnização por p.p.;
3ª - Atento o disposto no art. 5º do CPP, sobre a aplicação da lei processual penal no tempo, deveria o Tribunal a
quo ter analisado a situação em apreço á luz da nova redacção do art. 225º do CPP, pronunciando-se quanto à verificação
ou não do disposto na sua al. c), uma vez que essa nova redacção entrou em vigor em 15 de Setembro de 2007;
4ª - A regra do art. 5º do CPP aplica-se aos presentes autos, apesar de se curar aqui de matéria cível, uma vez
que a norma invocada pela recorrente como suporte da sua pretensão se insere no CPP e as directrizes de aplicação no
tempo constantes do art. 5º são válidas para todo o diploma legal;
5ª - De todo o modo, sempre seria de aplicar a lei mais favorável (retroactividade in melius), tal como no direito
penal material, por ser o art. 225º do CPP uma norma de direito material;
6ª - Não tendo apreciado o caso à luz da nova redacção do art. 225º do CPP, o acórdão recorrido incorreu em
erro na determinação da norma aplicável e em omissão de pronúncia, o que determina a sua nulidade (art. 668º/1.d),
aplicável ex vi do art. 721º/2, ambos do CPC);
7ª - O art. 27º, n.º 5 da CRP estatui que “A privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei
constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer”; e norma semelhante existe no art. 5º
n.º 5 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), aprovada pela Lei 65/78, de 13 de Outubro;
8ª - Em obediência aos citados preceitos, o art. 225º do CPP estabelece que tem direito a ser indemnizado pelos
danos sofridos quem tiver sofrido detenção ou p.p. ilegal, injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos
de facto de que dependia, ou quando venha a comprovar-se que não foi o arguido o agente do crime ou actuou
justificadamente;
9ª - O acórdão recorrido concluiu pela improcedência da pretensão da recorrente quanto aos vícios apontados à
sentença da 1ª instância, e que eram: (1) a existência de erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto que
determinaram a aplicação da medida de p.p., que continuou a existir nos sucessivos despachos que a mantiveram, e (2) a
simples subsistência por um longo período da privação da liberdade que, afinal, se veio a verificar injustificada, porque a
recorrente até veio a ser absolvida, assume um carácter de gravidade, penosidade e anormalidade que a esta confere o
direito de ser indemnizada;
10ª - Quanto à 1ª questão, a Relação adere aos fundamentos da sentença, e conclui que não estão verificados os
pressupostos da obrigação de indemnizar, já que do facto da absolvição não se pode concluir que a ora recorrente não haja
praticado os factos que lhe eram imputados;
11ª - Todavia, a ora recorrente não foi absolvida com fundamento no princípio in dubio pro reo; e ainda que o
tivesse sido, não é correcta a interpretação, que é a do acórdão recorrido, de que esse princípio não tem que ver com o
princípio constitucional da presunção de inocência, pois só uma directriz de presunção de inocência do arguido poderá
justificar que a dúvida sobre a prova produzida seja valorada a seu favor;
12ª - A aplicação da medida de coacção de p.p. não viola o princípio da presunção de inocência desde que
aplicada de acordo com as precauções de que o legislador rodeou a sua aplicação (medida de ultima ratio, apenas aplicada
quando existam fortes indícios da prática do crime e quando absolutamente necessária para a realização dos fins do
processo);
13ª - O erro grosseiro ou acto temerário na aplicação da p.p. deve ser analisado à luz de um juiz de médio saber,
razoavelmente cauteloso e ponderado na aplicação e ponderação dos pressupostos da p.p. e dos efeitos nefastos que ela
sempre acarreta. Um tal juiz apenas aplica essa medida quando existam nos autos FORTES INDÍCIOS da prática do crime
imputado ao arguido;
14ª - Quando foi proferido o despacho que determinou a p.p. da recorrente, os indícios existentes nos autos
consistiam apenas numa informação de uma pessoa que tinha visto passar uma carrinha num local de incêndio pelas
15.00/15.30 horas, as declarações do co-arguido cujo atraso mental é flagrante e que foi levado pela PJ aos locais dos
incêndios antes de ter sido constituído arguido, depoimentos de testemunhas que também viram passar uma carrinha de
cor branca ao final da tarde na zona dos incêndios, sendo que ambos os arguidos negaram ter cometido o crime de
incêndio que deflagrou pelas 15 horas;
15ª - O Tribunal a quo entendeu que o despacho que aplicou a p.p. é rico na descrição de factos que indiciavam a
recorrente como autora de crime de incêndio, mas não fez o exercício – exigível – de averiguar se tais indícios cabem no
conceito de fortes indícios nos termos do art. 202º do CPC;
16ª - Ora, a avaliação da força indiciária das provas recolhidas no processo, para efeitos de aplicação de medidas
de coacção, pressupõe um raciocínio de conjugação entre todos os indícios, por forma a fundamentar um juízo de
prognose acerca da possibilidade de condenação do arguido no final da fase de julgamento, devendo estar sempre
presente nessa avaliação o princípio constitucional da presunção de inocência;

108
17ª - E os indícios supra referidos não eram suficientes para que um juiz pudesse, com base neles, formar a
convicção no sentido de que a recorrente pudesse vir a ser condenada – o que vale dizer que o juiz que proferiu o
despacho que decretou a p.p. incorreu em erro grosseiro, pelo menos na modalidade de acto temerário;
18ª - Como também os despachos judiciais que mantiveram a p.p., proferidos em 27.08.2004, em 14.09.2004 e
em 21.10.2004, incorreram no mesmo erro grosseiro, pois não existiam nos autos fortes indícios de que a recorrente
tivesse praticado o crime;
19ª - E, para além disso, na data em que foi proferido o despacho judicial de 02.12.2004, que manteve a p.p., os
indícios existentes encontravam-se já enfraquecidos pela existência de prova em contrário;
20ª - Nomeadamente, a testemunha BB veio rectificar que afinal apenas teria visto uma senhora, que podia ser a
autora, já depois das 22.00 horas e não pelas 15.00 horas, como constava inicialmente (doc. 6 junto com a p.i.) e já tinham
sido inquiridos CC, que confirmou ter passado a tarde com a ora recorrente, e DD, que confirmou que a recorrente jantou e
esteve consigo na noite dos factos (doc. 21 junto com a p.i.);
21ª - Este despacho incorre mesmo em erro grosseiro – já nem se admite a hipótese de acto temerário – pois do
incêndio que teve grandes dimensões e que deflagrou cerca das 15.00 horas deixou de existir qualquer indício nos autos;
22ª - Quando foi proferido o despacho judicial de 19.01.2005, toda a prova corria a favor da autora, já que o
Tribunal já tinha o ofício da Empresa-A, que permitia confirmar que a ora recorrente estivera em Beja durante toda a tarde
(doc. 25 junto com a p.i.) e, por outro lado, outras três testemunhas foram ouvidas e confirmaram ter estado com esta
durante a noite dos factos (doc. 26 junto com a p.i.) – logo, nenhum indício existia de ter sido a recorrente quem provocou o
incêndio em causa nos autos, sendo, neste despacho, ainda mais flagrante o erro grosseiro em que o juiz incorreu;
23ª - O despacho judicial de 17.02.2005 revoga a medida de coacção ao arguido EE já em posse do relatório
psiquiátrico que o considera inimputável (doc. 29 junto com a p.i.), sujeitando-o a TIR, e apesar de as declarações deste
arguido serem o único indício que existia contra a ora recorrente e de ele ter sido considerado inimputável, esta não viu a
sua medida de coacção alterada;
24ª - Os despachos judiciais de 15.04.2005, de 22.04.2005 e de 13.07.2005, que mantiveram a p.p., incorreram
em ERRO GROSSEIRO MUITO GRAVE quanto aos pressupostos de facto de que dependia a manutenção da p.p. da
recorrente, por duas vias;
25ª - Por um lado, não existia qualquer indício sequer suficiente da prática do crime pela recorrente, já que o
único que restava eram as declarações do citado EE, que já se sabia ter uma idade mental de sete anos, e por outro, os
pressupostos que determinaram a p.p. da arguida e do co-arguido EE foram exactamente os mesmos, e se em relação ao
EE (que entretanto voltara a ser considerado imputável) já não se verificavam os pressupostos do art. 202º e os requisitos
gerais do art. 204º do CPP, encontrando-se apenas sujeito a TIR, nada justificava a manutenção da p.p. da recorrente;
26ª - Assim, além de incorrerem em erro grosseiro na aplicação dos pressupostos da p.p., estes despachos, ao
interpretarem os arts. 202º e 204º do CPP no sentido de manter a recorrente em p.p., são inconstitucionais por violação do
disposto no art. 13º da CRP, inconstitucionalidade que já tinha sido arguida na altura da prolação dos despachos;
27ª - Em todos eles foi também violado o princípio da presunção de inocência, já que este princípio deve ter
também incidência directa na formulação do juízo de probabilidade de condenação;
28ª - A propósito destes despachos, o tribunal recorrido entendeu que “Não cabe neste âmbito tomar qualquer
posição sobre a bondade de tais despachos, até porque os recursos sobre os mesmos mereceram da parte desta Relação
a sua confirmação”;
29ª - Ora, sucede que o tribunal a quo tinha que os ter analisado do ponto de vista da suficiência indiciária, para
poder concluir afinal pela existência ou não de erro grosseiro aquando da aplicação de medida de coacção de prisão
preventiva;
30ª - Não poderia ter concluído pela inexistência de erro grosseiro, apenas com base na consideração de que o
despacho que aplicou a medida de coacção de p.p. é rico na descrição dos factos que são imputados à autora e que,
quanto aos despachos que a mantiveram, mostram-se ponderadas as alegações da recorrente nos requerimentos em que
pedia a substituição da p.p. por outra medida de coacção;
31ª - Acresce, e isto é posição firmada na jurisprudência, que a apreciação e qualificação do erro grosseiro ou
temerário, de que resultou a prisão preventiva posteriormente revelada como injustificada, tem de ser feita tendo por base
os factos, elementos e circunstâncias que ocorriam na altura em que a prisão foi decretada ou mantida, sendo irrelevante,
para tal constatação, o facto de, mais tarde, o detido ter vindo a ser absolvido ou mesmo não submetido a julgamento por,
entretanto, terem surgido novas provas que afastaram a sua anterior indiciação (Ac. STJ de 17.10.95, Ac. STJ de 03.12.98,
Ac. STJ de 19.09.2000).
32ª - Assim, a interpretação do disposto no art. 225º do CPP, no sentido plasmado na sentença recorrida – de que
a apreciação do erro grosseiro na verificação dos pressupostos de facto de que dependia a aplicação da p.p.,
nomeadamente a aplicação desta sem a existência de fortes indícios (como dispõe o art. 202º do CPP) não pode reportar-
se à análise da existência ou não de fortes indícios no momento em que essa decisão foi proferida – é inconstitucional por
violação do disposto nos arts. 22º, 27º n.º 3 alínea b) e n.º 5 da CRP;
33ª - Mesmo do acórdão absolutório proferido nos autos 90/04.7 GBADV é possível perceber que nunca existiram
nos autos fortes indícios de ter a recorrente praticado o crime, pois, sem qualquer invocação do princípio in dubio pro reo, o

109
acórdão absolutório faz até algumas considerações que constituem, no fundo, O RESUMO DE TODA A PROVA QUE
EXISTIA NOS AUTOS, donde decorre que nunca existiram indícios suficientes nos autos da prática do crime pela arguida;
34ª - Conclui-se, assim, que a decisão que aplicou a p.p. e os dois despachos que a mantiveram incorreram em
erro grosseiro pelo menos na modalidade de acto temerário, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 225º do CPP,
que todas as decisões posteriores de manutenção da p.p. incorrem em erro grosseiro “tout court” e que os três últimos
despachos de manutenção da p.p. incorrem em erro grosseiro muito grave;
35ª - A ora recorrente foi absolvida da prática do crime de incêndio de que vinha acusada, no âmbito do processo
comum n.º 90/04.7 GBADV, que correu termos no Tribunal da comarca de Almodôvar, tendo o acórdão absolutório, em
matéria de responsabilidade criminal, concluído que “Dos factos provados não resulta que os arguidos, ou qualquer deles,
tenha ateado fogo ou provocado incêndio”;
36ª - É COMPLETAMENTE FALSO QUE TENHA SIDO INVOCADO O PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO OU QUE
O MESMO ESTEJA IMPLÍCITO EM QUAISQUER ENTRELINHAS DO ACÓRDÃO PROFERIDO;
37ª - A prova produzida em audiência de julgamento não concitou qualquer dúvida no espírito do julgador: da
factualidade apurada não resultava que “os arguidos tenham ateado fogo ou provocado incêndio”, por isso impunha-se a
absolvição dos arguidos expressa nas seguintes palavras que se transcrevem do acórdão absolutório: “É quanto basta
para, sem necessidade de mais considerações, concluir pela improcedência da acusação e pela absolvição dos arguidos
dos crimes que lhes são imputados nos presentes autos”;

38ª - Por isso, não só o tribunal recorrido devia ter apreciado o disposto no art. 225º do CPP na sua nova
redacção – al. c) do n.º 1 – como devia ter concluído pela procedência da pretensão da recorrente pelo fundamento aí
previsto, já que a referência que a nova al. c) do n.º 1 do art. 225º do CPP faz a comprovar-se que o arguido não foi agente
do crime não pode ser entendido de uma forma positiva – no sentido de ser o arguido a fazer prova da sua inocência –
porque tanto não lhe exige a lei, mas há-de aplicar-se a todos os casos em que saia infirmada a tese da acusação e, outra
interpretação deste artigo, revela-se inconstitucional, por violação do princípio da presunção de inocência, consagrado no
art. 32º da CRP, uma vez que o arguido se presume inocente até trânsito em julgado e não impende sobre si qualquer ónus
de demonstrar a sua inocência;
39ª - É a interpretação que se impõe até por razões sistemáticas, uma vez que o art. 674º-B do CPC dispõe que,
para todos os efeitos – salvo ilisão em contrário – uma sentença absolutória determina que a pessoa não praticou os factos
que lhe eram imputados;
40ª - Ao considerar que não assiste à autora o direito de ser indemnizada pela privação da sua liberdade, o
acórdão recorrido violou também o art. 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, e o n.º 5 do art. 5º da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem;
41ª - Também, segundo orientação jurisprudencial, a aplicação do disposto no art. 5º da Convenção Europeia dos
Direitos do Homem à ordem jurídica interna, impõe que uma pessoa sujeita a prisão preventiva da qual decorram especiais
danos e que venha a ser absolvida deverá sempre ter direito a indemnização.
42ª - De acordo com esta orientação doutrinal e jurisprudencial (Ac. STJ de 11.12.98 e Ac. STJ de 3.11.2003),
tendo-se efectuado o raciocínio resultante da aplicação dos artigos 27º, n.º 5 da CRP e 225º do CPP e concluindo-se que
na situação em concreto não se verificou qualquer erro grosseiro, no sentido de indesculpável, crasso ou palmar, que tenha
conduzido ao decretamento da prisão preventiva, há que enquadrar legalmente o “thema decidendum” de outra
perspectiva;

43ª - E essa perspectiva não pode deixar de ser a do artigo 22º da CRP, que abrange também hipóteses de
responsabilidade por actos lícitos, onde se inclui a responsabilidade por facto da função jurisdicional traduzido em acção ou
omissão que venha a revelar-se materialmente indevida e de que resulte lesão para os direitos dos cidadãos
(designadamente ofensa do direito à honra, à reputação, ao bom nome, ao crédito, à liberdade), podendo apenas a lei
exigir certos requisitos quanto ao prejuízo ressarcível (por exemplo a exigência de um dano especial e grave);
44ª - De acordo com esta orientação – que se entende dever ser aplicada ao caso dos autos – não há
incompatibilidade mas sim complementaridade entre a previsão genérica do artigo 22º e a previsão específica do artigo 27º,
n.º 5, visto que este último dispositivo constitucional representa um alargamento da responsabilidade civil do Estado já
consagrada naquele anterior normativo;
45ª - Violou assim o tribunal a quo, no acórdão recorrido, as disposições constantes dos arts. 5º, 225º e 202º do
CPP, 668º/1.d), aplicável ex vi do art. 721º/2, e 674º-B, do CPC, 22º, 27º, n.os 3.b) e 5, da CRP, 11º da Declaração
Universal dos Direitos do Homem, e 5º, n.º 5 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Deve, pois – finaliza a recorrente – ser revogado o acórdão recorrido concluindo-se pela procedência da acção.

O réu Estado contra-alegou concluindo pela manutenção do decidido.


Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
2.
Vem, das instâncias, fixada a seguinte matéria de facto:

110
1 – No 1º interrogatório da arguida AA, ora recorrente, realizado em 31 de Julho de 2004, a que foi dado o n.º
90/04.7GBADV, pode ler-se nas suas declarações que:
“Vive no Monte da Foz do Zebro, que é arrendado, com o marido e duas filhas.
Vive lá também o EE, que cuida do gado e faz o que é necessário. Está lá há cerca de 3 anos. É um miúdo com
problemas mas é bem comportado, sendo a relação entre ambos boa.
O EE não é capaz de conduzir.
As senhorias do monte vivem em Alte. Existe uma ordem judicial para saírem do monte até Setembro.
As senhorias costumam deixar cortiça no monte. No entanto, este ano foram pôr a cortiça nas terras do Sr. FF
que já se encontrava a semear o Monte da Foz do Zebro.
Este Senhor FF está aborrecido com ela e com o seu marido.
As senhorias não lhe deram qualquer explicação para terem retirado a cortiça lá do monte.
Tem dois carros, um Peugeot 307, cinzento, de sua propriedade e que lhe foi oferecido pelo seu amigo CC e uma
carrinha Wolkswagen de 9 lugares e cor branca.
Costuma conduzir qualquer carro.
Tem um sítio para guardar os carros debaixo de telha.
Na manhã do dia 26/07/2004 foi à equitação com a filha, perto de Silves, não se recordando se levou o carro ou a
carrinha.
Chegou a casa por volta do meio-dia e chegou por volta das 13 horas. Veio à Peugeot, em Beja, mudar o óleo ao
carro acompanhada do CC. Foi ele que foi à oficina e ela ficou a ver as lojas junto aos jardins de bacalhau.
O marido não sabia que tinham ido os dois.
Cerca das 15h e 30m/16h o CC telefonou-lhe e disse-lhe para ir ter com ele porque em Almodôvar estava tudo a
arder, pois um amigo tinha-lhe telefonado a contar. Disse-lhe também que tinha lá um tractor e umas éguas.
Foi buscá-lo e dirigiram-se então ao Monte dele onde chegaram por volta das 17 h.
Já estava tudo rodeado de fumo.
O monte do CC fica a cerca de 1.5 Km a 2 Km do dela.
O CC pediu-lhe para ir com ele numa carrinha Nissan, creme de caixa aberta, à fazenda onde tinha o tractor e os
animais.
Deixou o Peugeot no Monte dele e foram. Depois trouxe a carrinha para baixo e o CC trouxe o tractor e as bestas.
Isto demorou cerca de meia hora.
Como tinha as filhas no Monte, foi para casa onde permaneceu durante um bocado.
Nunca antes das 8 h da noite saiu com o EE e foram tentar ver o fogo.
Ia na estrada do Zebro mas não havia lá fogo. Pensou em voltar para trás, o que fez, mas cheirou-lhe a fumo pelo
que voltou outra vez em direcção à casa do Sr. FF, onde estava tudo ardido.
Voltou para trás e parou junto a um fogo ao pé da estrada onde estavam várias pessoas inclusivamente a mulher
do Sr. FF que disse que “Isto tem que ser pessoas que não tratam comigo que vêm fazer coisas destas à minha porta”. Não
lhe respondeu.
Foi embora para casa e não saiu mais de lá.
Quando se ausentou deixou as chaves da carrinha no armário, como costuma fazer.
Desconhece o que o EE fez enquanto esteve ausente.
Desconhece quem terá sido o autor dos incêndios.
Nega que tenha dado quaisquer ordens ao EE para que ele ateasse os fogos.
O EE foi lá para casa por um fim-de-semana mas acabou por ficar até hoje.
Dão-lhe alimentação e vestuário e cerca de 200 euros mensais.
Na sequência do processo relativo ao serviço militar obrigatório do EE, foi elaborado um relatório médico do qual
resulta que o mesmo apresentava uma idade mental de 4 ou 5 anos.
E mais não disse.”
2 – Em consequência das declarações referidas em 1. e da prova carreada para os autos foi proferido o seguinte
despacho:
“Valido a detenção porque efectuada ao abrigo do disposto no artigo 257º do CPP, tendo sido respeitado o prazo
de apresentação em juízo.
Apesar das declarações da arguida que nega os factos que lhe são imputados, os autos contem elementos que
levam a concluir existirem fortes indícios de ter a mesma conjuntamente com o arguido EE, sido os autores dos incêndios
que deflagraram no concelho de Almodôvar e em causa nos presentes autos.
Com efeito, e pese embora a mesma afirme que na altura em que deflagrou o 1º incêndio (entre as 15h e as 15h
e 30m do dia 26/07/2004) se encontrava em Beja, acompanhada de um seu amigo CC, existe nos autos uma informação
de acordo com a qual terá sido vista numa carrinha de cor branca, pelas 15h/15h e 30m conduzida por uma senhora e
acompanhada por um indivíduo de sexo masculino.
Ora, a própria arguida assume ser proprietária de uma carrinha de cor branca que conduz habitualmente, sendo
que o seu empregado, o arguido EE, a costuma acompanhar. Existem também nos autos depoimentos que dão conta de

111
que foi vista a arguida a conduzir a referida carrinha, acompanhada de um jovem, cerca das 19h, sendo que após a
passagem dos mesmos pelo local terão deflagrado focos de incêndio.
Por outro lado não podemos deixar de ter em consideração que as relações pessoais entre a arguida e o
proprietário da casa junto da qual ocorreu o lº incêndio são más, facto esse confirmado pela própria arguida.
O arguido EE assumiu desde logo que ateou três fogos, a mando da AA, sua patroa.
Descreveu a forma como ocorreram os factos esclarecendo que era esta que o levava ao local numa carrinha
branca, de nove lugares, que foi ela que lhe deu os fósforos, que lhe indicava os locais, e que esperava por ele para o levar
do local dos incêndios.

Das próprias declarações da arguida resulta que o arguido EE se encontra numa situação de dependência, pelo
menos económica, da sua pessoa.
Alem disso, a mesma confirma que por volta das 20 h saiu na carrinha com o EE e foram aos locais onde existia o
fogo.
Não conseguiu a arguida explicar o motivo pelo qual o arguido EE terá assumido a prática de tais factos, sendo
certo que os mesmos foram confessados por ele.
Conjugados todos estes elementos com a circunstância da localização de todos os focos de incêndios, junto à
mesma estrada, a proximidade temporal e a curta distância entre eles, e ainda o facto de os mesmos se situarem no lado
esquerdo da estrada, somos levados a concluir existirem fortes indícios de uma resolução criminosa, por parte dos
arguidos, de causarem um incêndio de grandes dimensões, o que efectivamente veio a acontecer.
O facto de os três fogos mais pequenos não terem causado prejuízo, não implica que os mesmos não tenham
criado perigo para a vida, integridade física ou bens patrimoniais de elevado valor, sendo que só não tiveram maiores
repercussões por motivos alheios à vontade dos arguidos.
A postura da arguida, negando a prática dos factos, aliada à circunstância das relações de vizinhança serem más
e ao tipo de crime em causa levam a pressupor a existência de perigo de continuação da actividade criminosa,
Atendendo ás gravíssimas consequências do incêndio em causa existe manifestamente um perigo de
perturbação da ordem e paz pública.
Considero ainda existir, nesta fase, perigo de perturbação do inquérito, nomeadamente no que diz respeito à
aquisição de provas.
Pese embora o alegado pela Ex.ma defensora da arguida no que diz respeito à existência de um forte apoio
familiar, não existem elementos nos autos que permitam concluir que, ficando a arguida em liberdade, nos termos
requeridos, os supra referidos perigos sejam acautelados.
O crime em causa nos presentes autos é o de incêndio, p. e p. pelo art. 272° n.º 1, al. a) do C. Penal cuja moldura
penal é de 3 a 10 anos de prisão, o que permite a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva.
Considerando tudo o que supra ficou exposto, afigura-se-nos que a única medida de coacção adequada e
proporcional é a de prisão preventiva.
Face ao exposto, e ao abrigo do disposto nos artigos 191º a 194º, 196º, 202º, n.º 1, alínea a) e 204º al. b) e c) do
C. P. Penal, determino que a arguida aguarde os ulteriores termos processuais sujeita a TIR, já prestado nos autos e à
medida de coacção de prisão preventiva.”

3 – No mesmo dia foi igualmente realizado 1º interrogatório judicial de arguido detido do arguido EE, onde o
mesmo referiu que:
“Na Segunda-feira, dia 26 de Julho, a sua patroa AA disse-lhe para irem atear uns fogos, quando eram cerca das
cinco da tarde.
Deu-lhe uma caixa de fósforos da cozinha e transportou-o numa carrinha de nove lugares de cor branca,
dirigiram-se, então, para o local identificado a fls. 31 a 32 e reconhecido pelo arguido como tal. Lá chegados o arguido saiu
da carrinha, entrou dentro do mato, ateou o fogo e fugiu novamente para o interior da carrinha. Logo de seguida, dirigiram-
se ao local identificado a fls. 33 e 34, reconhecido como tal pelo arguido, saiu do carro, baixou-se, acendeu o fósforo,
chegou-o ao pasto e esperou que incendiasse, tendo abandonado logo o local entrando na carrinha.
De seguida foram para casa onde estiveram um pouco na esquina do monte. Disseram às filhas dela que iam sair
e que não se iam demorar. Saíram num Peugeot 307, cor cinzenta, e foram ter com umas pessoas que estavam junto de
uma máquina que estava a apagar o fogo onde permaneceram durante um bocado.
Voltaram para casa, já era o fim do dia, puseram o Peugeot debaixo de telha, saíram outra vez com a carrinha e
no local de fls. 35, reconhecido como tal pelo arguido, abriu a porta agachou-se, acendeu o fósforo e pegou fogo ao pasto.
Depois foram para casa e não saíram mais de lá.
Não foram verificar se tinha ardido muita coisa nem tentaram apagar o fogo.
Foi a AA que lhe disse para irem atear os fogos porque os vizinhos se riam dela, mas respondeu-lhe “não sou
moço de fazer estas coisas” , mas acabou por ir.
A Autora chamava-o muitas vezes de parvo e maluco e queria que ele deixasse de trabalhar lá no monte.
Não lhe deu nem prometeu nada em troca do trabalho de atear os fogos.

112
Disse-lhe que se ele contasse a alguém o mandava embora.
Pensa que trocavam a carrinha pelo carro para que não desconfiassem deles.
A Policia Judiciária falou com a AA e foi ela que os mandou ter com ele.
Já tinha dito à Policia Judiciária que eram quatro fogos, mas ele só ateou três.
Quando a Policia Judiciária foi ter com ele disse-lhes logo que tinha ateado os três fogos mas não o grande e
prontificou-se a ir ao local para lhe mostrar como tinha feito as coisas.
No dia seguinte, Terça-feira, dia 27, foram ao local onde tinham ateado os incêndios para verem se os mesmos se
tinham apagado ou continuavam a arder.
Na noite do dia 26 a AA ainda lhe pediu para ir atear outro fogo, passando a estrada no Barranco e entrando pele
mato, mas respondeu-lhe “agora não ardo mais nenhum”, porque já tinha visto o fogo grande e ficou com medo.
Durante essa tarde havia parado um carro vermelho atrás dele, mas não saíram do carro, nem lhe disseram
nada, desconhecendo quem se encontrava no seu interior.
Os fogos que ateou não pegaram por causa do vento.
Não sabe quem ateou o fogo grande que já lavrava quando ateou os fogos pequenos.
Teve conhecimento desse fogo grande através do seu amigo CC, que lhe fez um telefonema avisando-o que
havia uma coluna de fogo, só depois disso é que foi com a patroa atear os fogos.
Não sabe o número do telemóvel que o amigo CC lhe tinha oferecido nos anos e não sabe onde se encontrava a
AA quando foi feito o telefonema.
O Patrão, DD, marido da AA, não pode saber nada disto se não zanga-se com eles.
Veio trabalhar com a AA e o DD quando tinha dezanove anos, porque o pai, GG, o maltratava.
O pai tem doze filhos, seis de cada mulher.
Tem problemas de fala porque o pai lhe colou um pé no peito.
Tem o 4° ano de escolaridade.
Reconhece que tem alguma falta de memória e que por vezes se esquece das perguntas que foram feitas.
Está triste por ter ateado os três fogos.
Mais não disse, depois de lido e achado conforme, ratifica e assina.”
4 – Perante as declarações do arguido EE e bem assim de provas carreadas para os autos foi proferido o
seguinte despacho:
“A detenção é válida, porque efectuada conforme o disposto nos art. 257º, n.° 2, do CPP, tendo sido respeitado o
prazo de apresentação em juízo.
Indiciam fortemente os autos a prática pelo arguido do crime p. e p. pelo art. 272°, n° 1 al. a) do Código Penal,
cuja a moldura penal é de 3 a 10 anos de prisão.
Pese embora o arguido apenas tenha admitido que ateou três fogos, nas suas palavras “pequenos”, sem
consequência de maior, o certo é que tal depoimento conjugado com a prova documental e os depoimentos existentes nos
autos levam a concluir ter sido também ele o autor do incêndio que deflagrou no dia 26/07/2004, em Zebro de Baixo, com
uma dimensão enorme e que alastrou a diversos concelhos, causando prejuízos elevadíssimos.
Pese embora o arguido revele uma personalidade frágil e manipulável, o certo é que o mesmo demonstrou ter
consciência da ilicitude e da gravidade da sua conduta, demonstrada através da forma conforme tentou sempre distinguir
os três “incêndios pequenos” do “incêndio grande”.
A actuação do arguido, ao atear fogos em locais diferenciados da mesma zona permite concluir indiciariamente
que o pretendido era causar um incêndio de grandes dimensões, com consequência bastante gravosas, o que veio a
acontecer atenta a dimensão do incêndio e o perigo criado pelo mesmo, existindo apenas uma resolução criminosa.
O facto do arguido, segundo ele próprio afirma, ter actuado a mando da AA não afasta a conclusão de que houve
uma determinação sua na prática dos factos ilícitos, na medida em que ele próprio afirma que lhe foi pedido para atear um
outro fogo, mas que já não o fez porque teve medo, atendendo à existência do “fogo grande”.
Além disso, o mesmo refere que nada lhe foi dado ou prometido para que actuasse da forma que o fez.
A personalidade do arguido, que como já foi referido, se revela frágil e manipulável mostra a existência de um
forte perigo da actividade criminosa.
A natureza do crime em causa e a grande proporção do incêndio causado leva a que exista perigo de perturbação
da tranquilidade pública e ainda perigo para a aquisição da prova.
Tais circunstâncias determinam que a única medida adequada e proporcional a aplicar no caso concreto seja a
prisão preventiva uma vez que todas as outras se revelam inadequadas e insuficientes.
Face ao exposto, e nos termos das disposições conjugadas dos artigos 191° a 194°, 196°, 202º, n.º 1 al. a) e
204º, al. b) e c) do Código do Processo Penal, determino que o arguido aguarde os ulteriores termos sujeito às seguintes
medidas de coacção:
a) TIR, já prestado nos autos;
b) Prisão preventiva.
Passe os competentes mandados de condução ao Estabelecimento Prisional.
Cumpra-se o disposto na última parte do art. 194°, n° 3 do CPP.”

113
5 – Por requerimento da ora autora, apresentado em Tribunal a 16/08/2004 para ser junto aos autos de inquérito
supra mencionados, pode ler-se que:
“AA, arguida nos autos supra referendados, vem expor e requerer a V.Ex.ª o seguinte:
No despacho proferido em consequência do 1° interrogatório judicial de arguido detido foi aplicada a arguida a
medida de coacção de prisão preventiva com os seguintes fundamentos:
(…)
Ora, o Tribunal não deu qualquer credibilidade ao depoimento da arguida em 1° interrogatório – já que a mesma
negou ter cometido o crime de que se encontra indiciada e afirmou que estava em Beja na altura em que terá deflagrado o
incêndio – o que veio a culminar com a sua prisão preventiva.
Ora, a arguida está inocente do crime de que vem acusada e a sua prisão preventiva está a causar danos na sua
pessoa e na sua família que são irreversíveis já que a arguida pensa em pôr fim à sua própria vida pois não está a aguentar
a situação da prisão preventiva quando bem sabe que está inocente – mais vale 1000 culpados na rua do que um inocente
preso defendem muitos – e por outro lado a sua filha mais velha encontra-se também numa situação limite como infra se
explanará.
Nesta medida, embora a direcção do inquérito caiba ao Ministério Publico, a arguida vem fazer uso do direito que
lhe é conferido pelo artigo 61° nº 1 alínea f) do C.P.P. e pelo art. 32° n° 7 da Constituição da República Portuguesa, a fim
de afastar os alegados indícios existentes nos autos em ordem a lhe ser alterada a medida coacção que lhe foi aplicada, já
que entende que estamos perante um erro judiciário, porventura o mais grave do sistema judiciário, que é o de colocar em
prisão preventiva alguém que está inocente.
A arguida pretende assim fazer prova de que não se encontrou em qualquer dos locais onde deflagraram os fogos
na hora em que estes se deram.
Que os depoimentos, porventura existentes nos autos são maliciosos com o intuito de a prejudicar e que essas
pessoas – se eventualmente referem que a viram a atear algum fogo – estão a mentir.
Que o depoimento do EE, não pode merecer qualquer credibilidade já que este é inimputável, face à sua idade
mental e a sua sugestionabilidade como traço de personalidade.
Que a sua situação de prisão preventiva pode agravar a doença da sua filha HH a um nível crítico.
(…)
Nestes termos, requer que todas as diligências de prova solicitadas, nomeadamente:
a) Inquirição das testemunhas:
(…)
b) Solicitação à Empresa-A S.A. para facultando-se das suas antenas indicar a localização dos telemóveis da
arguida e de CC no dia 26 de Julho;
c) Acareação entre as testemunhas ora arroladas e as que já prestaram depoimento no processo;
d) Acareação entre a arguida AA e o co-arguido EE;
e) Perícia psiquiátrica ao arguido EE a determinar oficiosamente pelo Tribunal face ao relatório médico ora junto e
segundo o qual o arguido é inimputável já que tem uma idade mental de 5 ou 6 anos;
f) Reconstituição do facto ao abrigo do disposto no artigo 150° do C.P.P., a realizar nos termos supra solicitados;
Sejam realizadas com carácter de urgência em ordem a ser alterada a medida de coacção de prisão preventiva
que foi aplicada à arguida no 1° interrogatório judicial por qualquer outra que não seja privativa da liberdade
nomeadamente as previstas nos artigos 197°, 198°, 200º, todos do C.P.P., ou em ultimo caso a prevista no art. 201° do
C.P.P.
Mais se requer que as inquirições de CC e DD e eventuais acareações com outras testemunhas no processo
sejam realizadas em dias diferentes por razões óbvias que se prendem com o facto de o DD desconhecer o relacionamento
da arguida com CC.
Caso o Tribunal entenda que os relatórios médicos ora juntos aos autos não são suficientes para fazerem prova
do que aí referem, requer que sejam inquiridos os médicos subscritores dos mesmos cujos dados se encontram nos
respectivos papéis timbrados.”
6 – No despacho, proferido em 16/08/2004, que incidiu sobre o requerimento aludido no n.º anterior, é referido:
“Os presentes autos encontram-se em fase de inquérito. Durante o inquérito a direcção dos autos pertence ao
MP, assistido pelo OPC – artigos 262º, 263º, 267º e 270º do Código de Processo Penal.
Neste momento a autoridade judiciária competente encontra-se a proceder ao conjunto de diligências a que alude
o n.º 1 do artigo 262º do Código de Processo Penal.
Face aos elementos coligidos, não se verifica qualquer necessidade de proceder, à presente data, à realização de
qualquer das diligências solicitadas pela arguida.
Pelo exposto, indefere-se o requerido.”
7 – No requerimento da ora autora, entrado a 20.08.2004, nos mesmos autos de inquérito, lê-se que:
“AA, arguida nos autos supra referendados, vem expor e requerer a V.ª Ex.ª o seguinte:

114
No despacho proferido em consequência do 1º interrogatório judicial de arguido detido foi aplicada à arguida a
medida de coacção de prisão preventiva, tendo entendido o Tribunal existirem nos autos elementos que permitem concluir
pela existência de fortes indícios de a arguida conjuntamente com o arguido EE ter sido a autora dos incêndios que
deflagraram no concelho de Almodôvar.
Pese embora a arguida desconheça quais os elementos coligidos para os autos até ao momento, o que resulta do
despacho proferido em sede de 1° Interrogatório judicial é que tais indícios resultam de uma informação (eventualmente
uma informação de serviço da PJ com proveniência em fonte anónima), em alguns depoimentos e na confissão do co-
arguido EE, o qual implica a arguida.
Ora, o Tribunal entendeu que o depoimento da arguida que negou o crime e referiu que se encontrava em Beja na
altura em que o fogo terá deflagrado não devia merecer qualquer credibilidade.
Por entender que se cometeu um grave erro judiciário ao ser determinada a sua prisão preventiva, já que se
encontra inocente do crime porque está indiciada, a arguida, em requerimento que deu entrada nesse Tribunal em
16.08.2004, ao abrigo do disposto no art. 61º alínea f) do C.P.P., requereu inúmeras diligências probatórias que lhe
permitiriam fazer a prova da sua inocência e forneceriam ao tribunal elementos suficientes para poder rectificar o erro em
que incorreu ao determinar a sua prisão preventiva.
Contudo, por despacho proferido no mesmo dia de entrada do requerimento, 16.08.2004, todas as diligências
solicitadas foram indeferidas, tendo já sido interposto recurso deste despacho porquanto o mesmo é manifestamente ilegal.
Com o indeferimento das diligências requeridas o Tribunal impediu a arguida de fazer a prova que pretendia, ou
seja, de que não se encontrou em qualquer dos locais onde deflagraram os fogos na hora em que estes se deram.
Que os depoimentos, porventura existentes nos autos são maliciosos com o intuito de a prejudicar e que essas
pessoas – se eventualmente referem que a viram a atear algum fogo – estão a mentir.
Que o depoimento do EE, não pode merecer qualquer credibilidade já que este é inimputável, face à sua idade
mental e a sua influenciabilidade como traço de personalidade.
Que a sua situação de prisão preventiva pode agravar a doença da filha HH a um nível crítico, existindo real
perigo para a sua vida.
Sucede que os documentos que deram entrada conjuntamente com o requerimento em 16.08.2004 permitem
desde já produzir alguma da prova que a arguida se propunha fazer, pois verificam-se desde já alterações nos
pressupostos de facto e de direito que determinaram a prisão preventiva.
Para prova de que a arguida seguiu para Beja cerca das 13 horas acompanhada do seu amigo CC tendo
regressado ao monte deste por volta das 17h/17H30M, a arguida juntou a factura da oficina da Peugeot onde se refere, na
última folha, a data de entrada e a data de saída do veículo.
A Arguida esclareceu também o Tribunal que mantém com o Sr. CC desde há vários anos um relacionamento
amoroso que, embora seja do conhecimento da sua família, não é do conhecimento do seu companheiro; que é este
relacionamento que não passa despercebido à população que por este motivo a despreza o que terá eventualmente levado
a que o seu nome tenha sido o primeiro a ser apontado.
Através de junção de uma petição inicial de uma acção que tem na base a questão dos terrenos a arguida
demonstrou que, tanto a polícia judiciária como o Ministério Público, estavam enganados ao apontar como móbil do crime
questões de vingança por causa de terrenos. Na verdade a situação dos terrenos, originou um processo judicial no qual, ao
contrário do que se tem vindo a afirmar na comunicação social e pela policia judiciária em comunicado, a arguida não é
parte mas sim o seu companheiro, e que ao contrário do que se diz na promoção do Ministério Publico foi resolvido por
acordo não existindo por parte da arguida “motivos que se prendem com questões de vingança contra as proprietárias dos
terrenos que arderam” até porque não arderam quaisquer terrenos das autoras da referida acção.
Acresce que o companheiro da arguida acordou em Tribunal em deixar o terreno que explora em Setembro.
Por outro lado, o mais forte indício existente no processo deverá ser a confissão do co-arguido EE, mas através
do relatório médico junto com o requerimento de 16.08.2004, a arguida fez já prova de que o arguido é muito
provavelmente inimputável.
O Médico que elaborou o relatório, Dr. II, médico psiquiatra e na altura director do Centro de Saúde Mental de
Faro, observou o EE em 18-06-2002, quando este tinha 19 anos, tendo uma única observação sido suficiente para este
conceituado médico concluir que o EE tinha uma idade mental entre os cinco e os seis anos, sendo uma pessoa
influenciável, e portanto sugestionável perante qualquer interrogatório que lhe tenha sido feito, já que na realidade se trata
de uma pessoa inimputável nos termos da lei, pois perante esta os menores de 16 anos são inimputáveis (vide art. 19°
C.P.) logo também o será uma pessoa com urna idade mental de 5 ou 6 anos sendo que no decurso do processo será
possível apurar que o EE é inimputável nos termos previstos no art. 20° do C.P. pois sofre de anomalia psíquica, já que tem
um Q.I. de 42%, logo o seu depoimento não pode ser merecedor de qualquer credibilidade e não pode valer para um co-
arguido/a ser colocado/a em prisão preventiva.
Também no requerimento de 16.08.2004, se fez já prova de que a filha mais velha da arguida de nome HH, que
tem 17 anos, sofre de pressão crónica e anorexia nervosa, com completa dependência da mãe e a sua condição clínica foi
agravada com a prisão desta e que a HH sofre também de Perturbação Mista de ansiedade e Depressão, situação
agravada com o afastamento da mãe e que poderá piorar de forma critica, o que toma urgente a colocação da arguida em

115
liberdade ou pelo menos com a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação por forma a estar junto da
filha.
Verifica-se face ao exposto que existem já diversas alterações de facto tendo em consideração os documentos
juntos em relação ao circunstancialismo que existia à data em que foi determinada a prisão preventiva.
No que concerne aos pressupostos de Direito, entendeu o Tribunal, que o facto da arguida negar os factos, aliado
às más relações de vizinhança, pressupõe perigo de continuação da actividade criminosa, existindo também perigo de
perturbação da ordem e paz pública devido às consequências do incêndio e perigo de perturbação do inquérito no que diz
respeito à aquisição de provas.
Quanto ao pressuposto da alínea b) do art. 204° do C.P.P. – perigo de perturbação do decurso do inquérito –
encontra-se neste momento afastado pois a arguida solicitou inúmeras diligências que seriam extremamente úteis para a
descoberta da verdade, as quais foram indeferidas, pontuando assim a sua conduta pela máxima colaboração na
averiguação dos factos, mostrando-se cooperante com o Tribunal, tentando fazer a recolha para o inquérito de elementos
que dele ainda não constam, pelo que não se verifica este pressuposto, tanto mais que o despacho que refere a sua
existência nem sequer fundamenta em que medida este perigo de perturbação do inquérito existe.
Por outro lado, e no que respeita ao pressuposto da alínea c) do art. 204º do C.P.P., ou seja o perigo de
perturbação da ordem e tranquilidade públicas, no requerimento de 16.08.2004 a arguida esclareceu que não irá regressar
ao local onde residia porque entende que foi alvo de uma cabala que só pode ter origem no ódio que as pessoas sentem
por si face ao seu relacionamento com o CC, sendo que face ao acordo que o seu companheiro fez em Tribunal sempre a
família iria deixar o local em Setembro.
O filho mais velho da arguida de nome YY, já arrendou uma casa em São Bartolomeu de Messines, sita na Rua
da Liberdade n° ..., a fim de aí passarem a residir as suas irmãs que actualmente se encontram entregues aos cuidados da
irmã da arguida de nome, JJ, já que a HH está no último ano de um curso que frequenta em Alte e que tem transporte
próprio desde Messines, sendo que a KK, a filha mais nova da arguida, frequenta o 6° ano de escolaridade também em
Messines.
Caso a arguida seja colocada em liberdade será também nesta casa que passará a residir, deixando de existir o
perigo de perturbação da ordem e paz pública já que a arguida não pretende regressar ao local onde vivia.
Quanto ao perigo de continuação da actividade criminosa, este não existe já que a arguida não pretende
regressar aquele local e este perigo resultava, segundo o Tribunal, das más relações de vizinhança, e de qualquer modo
sempre será totalmente afastado se for aplicada a medida de coacção de obrigação de permanência na habitação prevista
no art. 201° do C.P.P..
Para além de não se verificarem os pressupostos que justificariam a manutenção da medida de coacção que lhe
foi aplicada há ainda que atender a que a prisão preventiva como ultima ratio do sistema coactivo só deverá ser aplicada
quando todas as outras se mostrem manifestamente insuficientes, e no caso em apreço está a causar na vida da arguida e
da sua família danos irreparáveis, já que a sua filha mais velha se encontra em perigo de vida em resultado da prisão
preventiva, tal como resulta dos relatórios médicos já juntos aos autos.
Assim, atendendo a que não se verifica qualquer dos pressupostos que poderiam justificar a manutenção da
prisão preventiva; a que a situação pessoal da arguida que é primária e bem inserida familiarmente, justifica que esta se
encontre em liberdade para poder ajudar a sua família e a sua filha pois esta é completamente dependente de si e
encontra-se numa situação em que poderá existir perigo para a vida, é de revogar a medida de coacção aplicada à arguida
substituindo-a por outra com um efeito mais útil e ressocializador, sendo que em ultima instância a obrigação de
permanência na habitação em São Bartolomeu de Messines acautela o perigo de perturbação do inquérito, o perigo de
continuação da actividade criminosa e o perigo perturbação da ordem e paz pública.
Verifica-se neste momento, com a mudança da família para São Bartolomeu de Messines, uma atenuação das
exigências cautelares que determinaram a aplicação da prisão preventiva, pelo que a medida de coacção deverá ser
alterada por uma menos gravosa tal como dispõe o art. 212°, n.° 3 do C.P.P..
Logo, face ao princípio da adequação e proporcionalidade, inserto no art. 193° do C.P.P., a prisão preventiva é
neste caso totalmente inadequada e desproporcionada, já que a medida prevista no art. 201° do C.P.P. é suficiente face às
exigências cautelares que o caso requer e face aos indícios existentes, os quais se encontram já fragilizados face aos
documentos juntos ao processo e que poderão mesmo ser afastados quando for deferida a realização das diligências de
prova solicitadas pela arguida.
Pelo exposto
Requer a V. Ex.ª se digne substituir a prisão preventiva por outra ou outras medidas de coacção alternativas não
privativas da liberdade, nomeadamente as previstas nos artigos 197°, 198°, 200° ou 201°, todos do C.P.P., por
proporcionadas aos indícios existentes nos autos e à sua inserção familiar e personalidade.
Mais requer, ao abrigo do disposto no art. 61° alínea f) do C.P.P., que sejam realizadas as diligências solicitadas
no requerimento que deu entrada em 16.08.2004, em ordem a comprovar o ora exposto a reforçar as provas documentais
já juntas aos autos e supra referidas.

116
Caso o tribunal entenda que os relatórios médicos já juntos aos autos não são suficientes para fazerem prova da
situação clínica da filha da arguida e do co-arguido EE, requer que sejam inquiridos os médicos subscritores dos mesmos
cujos dados encontram nos respectivo papeis timbrados.
Requer também a realização de relatório social à arguida ao abrigo do disposto no art. 213° n.° 4 do C.P.P. “
8 – Na promoção efectuada pelo Magistrado do Ministério Publico, datada de 25.08.2004 em consequência do
requerimento referido no n.º anterior, pode ler-se que:
“AA, arguida nos presentes autos e submetida à medida coactiva de prisão preventiva, veio, mediante
requerimento, solicitar a substituição da referida medida por outra não privativa da liberdade, designadamente as previstas
nos art. 197”, 198°, 200° e 201°, todos do CPP, invocando, em suma, não ter sido a autora do ilícito penal previsto e punido
pelo art. 272° nº1, a!. a) do CP.
Vejamos,
O co-arguido EE assumiu que ateou três fogos a mando da arguida AA sua patroa.
De outro lado, as testemunhas identificadas nos autos referiram ter visto a carrinha com os sinais dos autos,
pelas 15hl5/15h30, conduzida por uma senhora e um indivíduo do sexo masculino.
A Arguida assumiu ser proprietária de uma carrinha de cor branca que conduz habitualmente, acrescendo que o
seu empregado, EE, a costuma acompanhar.
A Arguida confirmou ainda que, por volta das 20 h saiu na sobredita carrinha com o EE, tendo-se deslocado aos
locais onde existia o fogo.
Por conseguinte, e face a tais elementos, não podemos deixar de considerar verificados indícios suficientes de
que a arguida cometeu o ilícito em apreço.
De outra banda entendemos verificados os pressupostos que determinaram a aplicação da medida de coacção
de prisão preventiva, designadamente o perigo de continuação da actividade criminosa, de perturbação do inquérito e de
perturbação da ordem e paz pública.
Assim, entendemos que o requerimento da arguida deve ser indeferido, mantendo-se a medida de coacção já
aplicada”.
9 – Sobre o requerimento referido em 7. dos factos provados, foi proferido o seguinte despacho, datado de
27.08.2004:
“A arguida AA, veio requerer a substituição da medida de coacção de prisão preventiva que lhe foi aplicada por
outra medida de coacção não privativa da liberdade, alegando, ter ocorrido uma alteração substancial de facto e de direito
dos pressupostos que determinaram a sua aplicação.
Alega ter estado em Beja, numa oficina a arranjar o seu carro, no dia em que deflagraram os incêndios, tendo
saído de casa por volta das 13 horas, só tendo regressado por volta das 17 horas, juntando cópia da factura da oficina,
onde se refere a data de entrada e saída do veículo.
Junta cópia de uma petição inicial de acção judicial, com a qual pretende demonstrar haver um erro de
apreciação quanto aos alegados motivos do crime (questões de vingança por causa de uns terrenos) uma vez que tais
terrenos não pertencem à arguida, mas sim ao seu companheiro, tendo a questão em litígio sido resolvido por acordo, no
qual ficou acordado que este deixaria o terreno em Setembro.
Por fim, junta cópia de relatório médico, com o qual pretende demonstrar que o co-arguido EE é inimputável, não
devendo, por isso, serem valoradas as suas declarações.
O Ministério Público teve vista nos autos tendo-se pronunciado pelo indeferimento requerido.
Decidindo.
Prescreve o artigo 212°, n.º 1, do CPP que as medidas de coacção são imediatamente revogadas, por despacho
do juiz, sempre que se verificar:
a) terem sido aplicadas fora das hipóteses ou das condições previstas na lei; ou
b) terem deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação.
Dispõe o n.º 3 que quando se verificar uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a aplicação
de uma medida de coacção, o juiz substitui-a por outra menos grave ou determina uma forma menos gravosa da sua
execução.
Salvo o devido respeito por opinião diversa, os elementos agora trazidos aos autos, não trazem novos factos que
sejam susceptíveis de infirmar os indícios constantes dos autos e já apreciados pelo Tribunal.
A factura junta pela arguida não é suficiente para, por si só, demonstrar que arguida tenha estado em Beja, para ir
levar/levantar o seu carro à oficina, uma vez que um carro pode ser levado e levantado, numa oficina, por outra pessoa,
podendo a factura ser emitida em nome do proprietário e entregue a terceiro, sendo certo que a própria arguida referiu, nas
suas declarações, que quem levou o carro à oficina foi o seu amigo CC, tendo esta ficado no Jardim do Bacalhau, a ver
montras.
Por outro lado, mesmo que assim fosse, um dos incêndios, junto ao barranco do Zebro, deflagrou entre as 19h00
e as 19h30 minutos, altura em que a arguida, de acordo com as suas próprias declarações, já teria regressado de Beja.
Acresce que, testemunhas identificadas nos autos referiram ter visto, no local pelas 15h00, uma carrinha branca,
igual à da arguida, conduzida por uma senhora e um indivíduo do sexo masculino

117
A arguida reconhece ser proprietária de uma carrinha de cor branca que conduz habitualmente, sendo muitas
vezes acompanhada pelo seu empregado, o co-arguido EE.
Uma das testemunhas inquiridas, disse mesmo ter visto a carrinha da arguida entre as 19horas e as 19h30m do
dia 26.07.2004, a tentar inverter a marcha no caminho junto do barranco do Zebro, local onde cinco minutos depois
verificou existir fumo, tendo esclarecido que a carrinha é da arguida e que esta se fazia acompanhar de um indivíduo jovem
que disse desconhecer.
Tal descrição é consentânea com a descrição efectuada pelo co-arguido EE, sendo certo que a arguida admitiu
ter saído com a carrinha e com este, por volta das 20h00, tendo-se deslocado aos locais onde ocorreram os incêndios.
A Arguida reconheceu em sede de 1° interrogatório ter más relações de vizinhança com a proprietária da casa
junto da qual ocorreu o 1° incêndio, o que contraria o alegado, agora e nesta sede, pela arguida, nada demonstrando,
nesse sentido, a cópia da petição inicial relativa à acção acima referida.
Quanto à pouca credibilidade que devem merecer as declarações do co-arguido, EE, refira-se que em sede de 1º
interrogatório judicial do mesmo, foi apreciado e valorado o facto de o mesmo revelar uma personalidade frágil e
manipulável, tendo-se considerado que o mesmo «demonstrava ter consciência da ilicitude e gravidade da sua conduta»,
demonstrada através da forma como relatou os factos.
É assim, evidente, que o Tribunal não deixou de valorar e apreciar a credibilidade que lhe mereceram as
declarações do mesmo, sendo que, também nesta sede vigora o principio da livre apreciação da prova, sempre norteado
por critérios objectivos e estribado em factos concretos, os quais foram tidos em conta, aquando da ponderação dos
indícios existentes e da medida de coacção a aplicar.
Acresce que as declarações do arguido EE mostram-se consentâneas com os testemunhos recolhidos nos autos
e com alguns dos factos relatados pela própria arguida, nomeadamente quanto a terem saído, já quase de noite, na
carrinha branca, no dia 26.07.
Entende-se, pois que os elementos agora juntos, não trazem aos autos quaisquer novos factos ou elementos que
infirmem os indícios que constam dos mesmos, e por conseguinte, nenhuma alteração de facto e de direito das
circunstâncias que determinaram a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, nos termos previstos no artigo
212°, n.º 1, do CPP.
Pelo exposto, decide-se manter a medida de coacção já aplicada nos autos por se considerar que, por ora, os
pressupostos de facto e de direito que determinaram a sua aplicação se mantém inalterados.
Requerimento entrado em 27.08.2004:
AA, arguida nestes autos, notificada do despacho que indeferiu o seu requerimento de interposição de recurso, do
despacho proferido em 16.08.20004, pela Digna Procuradora-Adjunta de turno, vem arguir a irregularidade deste, alegando
em síntese que:
Por requerimento datado de 16.08.2004, visando a alteração da medida de coacção de prisão preventiva que lhe
foi aplicada, veio requerer ao Juiz de Instrução criminal a realização de várias diligências com as quais pretende trazer aos
autos novos factos, susceptíveis de abalar os elementos constantes dos autos e, com base nos quais, por despacho judicial
proferido em sede de 1° interrogatório de arguido detido, foi determinado que a arguida aguardasse os ulteriores termos do
processo sujeita à medida coacção de prisão preventiva, por se ter considerado existirem fortes indícios da prática, pela
arguida, de um crime de incêndio, p. e p. pelo artigo 272°, n.º 1, ai. a) do Código Penal e, ainda, existir perigo de
perturbação da ordem e paz pública e de perturbação do inquérito;
Tal requerimento é dirigido ao Juiz de Instrução Criminal, ao abrigo do disposto no artigo 212° do CPP pelo que o
magistrado do MP, ao indeferir a realização de tais diligências, extravasou o âmbito das suas competências.
O referido requerimento não foi objecto de apreciação jurisdicional.
Por outro lado, por requerimento datado de 20.08.2004, a arguida veio reiterar o pedido de realização das
diligências que havia requerido em 16.08.2004, com vista à revisão da medida de coacção que lhe foi aplicada.
Tal requerimento ainda não foi apreciado, tendo sido aberta vista ao MP para se pronunciar sobre o mesmo,
encontrando-se os autos conclusos, neste momento, também para a sua apreciação.
Ora, independentemente de poder assistir razão à arguida, quanto ao facto de ter dirigido um requerimento ao
JIC, o qual terá sido objecto de despacho do MP, a verdade é que o requerido a 16.08.2004, irá agora ser apreciado, face à
sua renovação, por requerimento entrado em 20.08.2004.
A verificar-se uma irregularidade processual, como defende a arguida, a declaração da mesma comportaria a
invalidação do acto ferido com tal vício e dos actos subsequentes e do mesmo dependentes, o que, in casu, traduzir-se-ia
na prática de um acto inútil, face à apreciação que se irá fazer, do por si requerido em 16.08.2004, pelos motivos acima
expendidos.
Mostra-se, pois prejudicado, nessa parte o requerido.
A arguida vem requerer a realização de várias diligências, ao abrigo do disposto no 212° do CPP, visando infirmar
os indícios constantes dos autos e que determinaram a sua prisão preventiva.
As diligências que pretende sejam realizadas, visam demonstrar a versão por si já apresentada em sede de 1°
interrogatório judicial de arguido detido, ou seja, não ser a autora dos incêndios, por não ter estado no local no momento
em que estes deflagraram.

118
Em fase de inquérito, a reapreciação dos pressupostos que determinaram a aplicação de uma medida de
coacção, a efectuar pelo Juiz de Instrução Criminal, não se confunde, nem se pode confundir, com a realização de
diligências de inquérito, as quais competem ao Ministério Público.
Na verdade, conforme se escreve no Ac. da Relação de Lisboa, datado de 03.2004, in www.dgsi.pt, «a decisão,
transitada em julgado, que aplica a prisão preventiva é inatacável enquanto não ocorreram alterações significativas nos
pressupostos em que a mesma assenta.
O Tribunal não pode pronunciar-se acerca das questões relativas a tais pressupostos que tenha anteriormente
apreciado, por se mostrar esgotado o seu poder jurisdicional, fora do condicionalismo do artigo 212°, n.º 1, alíneas a) e b) e
n.º 3, do CPP.
Tal significa que a requerente de novas diligências que visem alterar a medida de coacção aplicada, tem que
adiantar factos concretos que consubstanciem alterações significativas, no que concerne à imputação efectuada no
primeiro interrogatório».
Ora, a arguida, com excepção dos factos e motivos alegados, relativamente à eventual atenuação das exigências
cautelares que determinaram a sua prisão preventiva, não traz novos elementos de facto que comportem uma alteração
significativa, nos termos acima referidos.
Na verdade, o que pretende é fazer prova da sua versão dos factos (não ter estado nos locais onde deflagraram
os incêndios no momento em que tal aconteceu, por ter estado em Beja, e posteriormente em casa), a qual foi objecto de
apreciação no primeiro Interrogatório judicial.
Por outro lado, as diligências requeridas, para prova de tais factos, configuram verdadeiras diligências de
inquérito, as quais competem ao Ministério Publico, cfr. artigo 53º. n.º 2, al. b), 263°, n.º 1, ambos do CPP, e para as quais
não é competente o juiz de instrução.
Nesse sentido vd. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto. Processo: 0010219, datado de 15-03-2000,
publicado na CJ T2 ANO XXV pág. 234 e sumariado na Internet, in www.dgsi.pt, no qual se escreve: «Na fase do inquérito,
não compete ao juiz de instrução mas sim ao Ministério Público, a realização de diligências solicitadas pelo arguido
(inquirição de testemunhas), que se encontrava preso preventivamente, com vista a demonstrar não poder ser autor do
crime que lhe é imputado e em consequência à revogação daquela medida de coacção.»
Acresce que a arguida poderá, sempre, requerer a realização de tais diligências ao titular do inquérito, o
Ministério Público.
Pelo exposto, indefere-se a realização das diligências requeridas, com excepção da inquirição das testemunhas
indicadas, para apreciação da alegada atenuação das exigências cautelares que determinaram a aplicação da medida de
coacção de prisão preventiva, ou seja perigo de perturbação da ordem pública e do inquérito, face ao alegado e ao disposto
no artigo 212°, n.º 1, al. b), do CPP.”
10 – Do despacho referido no n.º anterior, foi interposto recurso para o Tribunal da Relação de Évora, onde foi
proferido Acórdão da mesma Relação, datado de 14 de Dezembro de 2004 e onde se pode ler:
“Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I – No processo de inquérito n.º 90/04.7GBADV, que corre termos no Tribunal Judicial de Almodôvar, o M.mo Juiz
manteve, por despacho de 27-8-04, a medida de coacção de prisão preventiva aplicada à arguida, AA id. a fls. 54, por não
ter ocorrido, por ora, qualquer alteração às circunstâncias que determinaram a aplicação da mesma e indeferiu a realização
das diligências requeridas, salvo a inquirição de três testemunhas, a que se procedeu no dia 8 de Setembro de 2004, para
apreciação da alegada atenuação das exigências cautelares.
Inconformada, a arguida recorreu, tendo terminado a motivação com as seguintes conclusões:
(…)
Nestes termos, os fortes indícios da prática pela arguida do crime de incêndio não se encontram minimamente
fragilizados com os documentos juntos aos autos, pelas razões mencionadas.
A prisão preventiva foi determinada para acautelar os perigos, de continuação da actividade criminosa – que
derivava do facto da arguida negar os factos, aliado às más relações de vizinhança – de perturbação da ordem e paz
publica, devido às consequências do incêndio, e de perturbação do inquérito, no que diz respeito à aquisição de provas.
A arguida alega que, com a sua mudança e da família do local do crime para a localidade de S. Bartolomeu de
Messines as circunstâncias referidas deixam de se verificar, pelo que em seu entender, a medida de coacção fixada deve
ser imediatamente revogada nos termos do artigo 212º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal.
O incêndio em causa nestes autos alastrou a diversos Concelhos do Algarve, tendo causado prejuízos
elevadíssimos para o ambiente, para os proprietários dos terrenos, de casas, de veículos, animais e outros meios de
subsistência que arderam em consequência do mesmo.
Os donos dos bens referidos perderam o que conseguiram adquirir ao longo da sua vida com muitos sacrifícios
ficando, pois, em total desespero e ansiando pela oportunidade de fazer justiça pelos meios próprios.
O crime em causa agita fortemente não só a comunidade algarvia mas, toda a sociedade portuguesa despertando
sentimentos de vindicta e de insegurança.

119
Perante este quadro, a mudança de residência da arguida para S. Bartolomeu de Messines e a fixação de outra
medida de coacção, nomeadamente a obrigação de permanência na habitação, não acautela suficientemente o perigo de
perturbação da ordem e tranquilidade publica, nem qualquer dos outros perigos como a recorrente pretende fazer crer.
Os pressupostos de facto e de direito que determinaram a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva
não se alteraram, pelo que se impõe manter o despacho recorrido.
III – Neste termos, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento
ao recurso, mantendo o despacho recorrido”
11 – No despacho de 14.09.2004, proferido nos mesmos autos de inquérito n.º 90/04.7GBADV, pode ler-se que:
“A arguida AA veio requerer a alteração da medida de coacção a que se encontra sujeita.
Alegou para tanto uma série de factos tendentes a afirmar a sua inocência.
Alegou ainda que os perigos de fuga, perturbação do inquérito e da ordem e paz publicas não se verificam, posto
que o seu agregado familiar entretanto mudou a residência para Messines, tendo umas das suas filhas necessidade de
acompanhamento constante e que sempre teria bastado a obrigação de permanência na habitação para prevenir eventual
risco de perturbação do inquérito.
O seu requerimento veio a ser indeferido.
Todavia, a decisão que assim concluiu acabou por admitir a inquirição de 3 testemunhas indicadas para
apreciação das exigências cautelares que determinaram a aplicação da medida de coacção a que se encontra sujeita.
Ou seja, abriu-se de novo a apreciação da manutenção da medida de coacção apenas sobre um dos
fundamentos invocados.
Cabe pois decidir.
Para afirmar que, salvo o devido respeito, melhor seria se se tivesse logo decidido a questão.
Pois o alegado, mesmo que cabalmente demonstrado, é insuficiente para que se decida de outra forma.
Vejamos.
Se a obrigação de permanência na habitação sempre teria bastado para prevenir eventual risco de perturbação
do inquérito, então deveria a arguida ter recorrido da decisão que aí se fundou para aplicar a prisão preventiva (como de
resto anunciou ir fazer…).
Não o tendo feito não pode agora, mais a mais com tal fundamento, vir colocar em crise a decisão.
A mudança de residência, para local que dista apenas algumas dezenas de quilómetros, não altera as exigências
que determinaram a aplicação da medida salvaguardando a manutenção da ordem e paz publicas (as gravíssimas
consequências do incêndio), desde logo porque, como resulta das cartas juntas aos autos, o fogo foi bem visível em
Messines, povoação situada em pleno Concelho de Silves, o mais atingido do País pelos fogos florestais de 2003 e 2004…
O perigo de fuga, a que obstaria o estado de saúde de sua filha, não foi fundamento para a aplicação da medida,
pelo que a correspondente referencia é, de todo, deslocada.
Sempre se dirá, no entanto, que a correspondente circunstancia é legalmente insuficiente para o efeito, pois
apenas em casos contados e devidamente previstos, são as condições de saúde, do próprio, causa de alteração de medida
de coacção.
Termos em que se mantém a medida de coacção aplicada à arguida AA.
Notifique.”
12 – Do despacho referido no n.º anterior, foi interposto recurso para o Tribunal da Relação de Évora, o qual, por
Acórdão datado de 18 de Janeiro de 2005, proferiu a seguinte decisão:
“No âmbito dos autos de inquérito registados sob o n.º 90/04.7GBADV-B, a correr termos pelos serviços do
Ministério Publico, junto do Tribunal Judicial da Comarca de Almodôvar, veio a arguida AA interpor recurso do despacho
proferido – em 14 de Setembro de 2004 – pelo M.mo Juiz de Instrução que determinou a manutenção da medida de
coacção aplicada à arguida aquando do primeiro interrogatório judicial, em 31 de Julho de 2004 – a saber: que a mesma
aguardasse os ulteriores trâmites processuais sujeita a TIR e à medida de coacção de prisão preventiva -, indeferindo a
requerida substituição de tal medida.
(…)
Assim, em qualquer caso – quer nas hipóteses do artigo 212º, quer mesmo do artigo 213º -, sempre seria
legalmente possível ao Sr. Juiz apreciar se os pressupostos da aplicação da medida de coacção de prisão preventiva se
continuariam a verificar.
Por todo o exposto, tendo presente as conclusões da recorrente e as normas legais que referiu terem sido
violadas, temos de concluir pela manutenção do despacho recorrido.
III. Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal da Relação de Évora em negar provimento ao
recurso e, em consequência, em manter a decisão proferida em 1ª instância.”
13 – Em despacho datado de 21.10.2004, proferido nos autos de inquérito n.º 90/04.7GBADV, pode ler-se:
“Atento o preceituado no artigo 213º do Código de Processo Penal, impõe-se o reexame dos pressupostos da
aplicação da medida de coacção de prisão preventiva de três em três meses.

120
Compulsados os presentes autos verifica-se que se mantêm inalterados os pressupostos de facto e de direito que
levaram à decretação da medida de prisão preventiva aplicada ao arguido EE no pretérito dia 30 de Julho de 2004 e
fundamentaram o despacho de fls. 89 e 90.
Igualmente, no que respeita à arguida AA, resultaram inalterados os pressupostos de facto e de direito que
levaram à decretação da medida de prisão preventiva que lhe foi aplicada no pretérito dia 31 de Julho de 2004 e
fundamentaram o despacho de fls. 106 e seguintes.
Não se encontram excedidos os prazos de prisão preventiva estabelecidos no artigo 215º do Código de Processo
Penal.
Dado o estado dos autos não se afigura necessário proceder à audição do arguido EE. E, no que respeita à
arguida AA, considerando que já veiculou a sua posição no recurso interposto, igualmente não se afigura necessário
proceder à sua audição.
Nesta conformidade, por subsistência dos aludidos pressupostos, nos termos no artigo 213º, n.º 1, do Código de
Processo penal, determino que os arguidos EE e AA continuem a aguardar os ulteriores termos do processo na situação de
prisão preventiva em que se encontram.
Notifique (cfr. artigo 114º do Código de Processo Penal).”
14 – No requerimento apresentado pela ora autora a 21.10.2004 nos supra referidos autos de inquérito, pode ler-
se:
“Ex.mo SENHOR PROCURADOR-ADJUNTO
AA, arguida nos autos supra referendados, vem expor e requerer a V.ª Ex.ª o seguinte:
A arguida em ordem a fazer prova da sua inocência e conseguir a alteração da medida de coacção que lhe foi
aplicada em l.º interrogatório Judicial tem vindo reiteradamente a solicitar ao Tribunal a realização de inúmeras diligências
probatórias.
Na douta resposta ao recurso interposto do despacho judicial proferido em 27.08.04, vem o digno magistrado do
Ministério Público tomar posição também sobre essas diligências solicitadas alegando concordar com o direito da arguida a
requerer as diligências que se lhe afigurem necessárias mas que as mesmas só deverão ser realizadas quando se reputem
essenciais para a descoberta da verdade.
Considera no entanto o digno magistrado do Ministério Público que essas diligências deveriam ter sido requeridas
ao Ministério Público, entidade esta que tem a direcção do inquérito.
Apesar de as aludidas diligências terem sido requeridas junto do Juiz de Instrução na medida em que se
pretendia após a realização das mesmas a consequente alteração da medida de coacção, não deixa de assistir razão ao
Ministério Público já que tratando-se de diligências que para além de permitir provar a inocência da arguida seriam muito
importantes para a descoberta da verdade e nessa medida poderiam e no entender do Tribunal até deveriam ter sido
requeridas junto do Ministério Público, motivo pelo qual neste momento se requerem o que e faz nos termos e com os
fundamentos seguintes:
A Arguida vem fazer uso do direito que lhe é conferido pelo artigo 6l° n.° 1 alínea f) do C.P.P. e pelo art. 32° n° 7
da Constituição da República Portuguesa, a fim de afastar os alegados indícios existentes nos autos contra si contribuindo
assim também para a descoberta da verdade.
Deste modo, a arguida pretende assim fazer prova de que não se encontrou em qualquer dos locais onde
deflagraram os fogos na hora em que estes se deram.
Assim:
Para prova de que a arguida seguiu para Beja cerca das 13 horas acompanhada do seu amigo CC tendo
regressado ao monte deste por volta das 17h/17H30M, e até porque o Ministério Público em sede de resposta ao recurso
referiu que a factura já junta aos autos emitida pela Peugeot não permite provar que a arguida acompanhou o amigo CC,
requer que este seja ouvido como testemunha, sendo a sua identificação a seguinte:
CC, solteiro, agricultor, residente na Ribeira de Odelouca – ..., 7700 Almodôvar, CCI 1258.
Mais se requer, que com carácter de urgência – já que se trata de trata de uma prova que se poderá perder com o
tempo, seja oficiado à Empresa-A S.A., para através das suas antenas indicar a localização dos telemóveis da arguida
durante todo o dia 26 de Julho o que permitirá provar sem qualquer sombra para dúvidas todos os locais onde a arguida se
encontrou nesse dia.
Os números de telemóvel da arguida são os seguintes:
918792002 (de assinatura) – contacto este que se encontra referenciado na factura da Peugeot e que poderá ser
confirmado junto de outras entidades que têm o contacto da arguida como as escolas das filhas.
... (de carregamento, vulgo vitamina)
O telemóvel com o número 918792002 encontra-se registado em nome de CC, contribuinte n.º ... ou neste
momento talvez já em nome de Empresa-B, L.da. Deste pacote empresarial fazem também, parte os telefones com os
seguintes números:
... utilizado pelo próprio CC, cuja indicação da sua localização no dia 26 de Julho deverá também ser solicitada
para provar que o mesmo no referendado período se encontrou a acompanhar a AA a Beja.

121
91 879 2009 utilizado pelo arguido EE, através do qual – caso esteja apreendido nos presentes autos – poderá
ser confirmada a informação ora prestada através do registo dos contactos existente no telefone.
91 7503135 utilizado pela filha mais velha da arguida, de nome HH.
91 755 89 18 utilizado pela filha mais nova da arguida, de nome KK.
Quando regressou ao monte do CC a arguida andou a ajudá-lo conjuntamente com o avô daquele, de seu nome
LL, a salvar uma éguas e um tractor que se encontravam num local ameaçado pelo fogo, só depois tendo regressado a
casa. Esta situação poderá ser confirmada pelo avô do senhor CC cujos dados são os seguintes e cuja inquirição se
requer:
LL, residente na mesma morada do senhor CC.
Quando regressa a sua casa cerca das 18h30m ou 19h a arguida encontra já naquele local um amigo do seu
companheiro de nome MM, tendo pouco depois chegado a casa o seu companheiro, DD de nome, com um amigo de nome
NN.
Mantiveram-se todos em casa a comentar a situação, tendo o companheiro saído de casa cerca das 20h,
acompanhado dos seus amigos, para ir ver onde se encontravam os fogos, sendo que passado algum tempo a arguida
também saiu de casa na carrinha branca, sempre depois das 20h da noite, nesta altura com o arguido EE que pediu para a
acompanhar, tendo ir ver onde o fogo deflagrava, sendo que na altura em que a arguida saiu todos os fogos haviam já
deflagrado e que nos locais onde a arguida foi encontravam-se também centenas de pessoas a ver os fogos.
Requer-se assim a inquirição destas pessoas que estiveram na presença da arguida até que esta saiu de casa e
que poderão testemunhar que todos os fogos haviam já deflagrado quando eles saíram (antes dela) e cujos dados são os
seguintes:
DD, residente no ..., 8375 São Marcos da Serra.
MM, residente na Foz do Açor, ..., Monchique.
NN, residente em ..., 7670 Santana da Serra.
Mais se requer, ao abrigo do disposto no art. 146° do C.P.P., acareação entre estas pessoas e aquelas que
prestaram depoimentos nos autos e onde eventualmente referem que viram a arguida nos locais onde os fogos
deflagraram, na medida em que não é possível estar em dois locais ao mesmo tempo.
Mais requer, já que o arguido confessa o crime e que a arguida o nega, que seja realizada acareação entre os
dois ao abrigo do disposto no art. 146° do C.P.P., já que neste momento o Tribunal apenas considera credível o depoimento
do EE não dando credibilidade ao da ora arguida, logo é de extrema importância para a descoberta da verdade apurar
quem está a falar com verdade e quem está a mentir o que só se pode conseguir com a acareação, até porque se esta
diligência constitui um meio de prova subsidiário – o que se admite – também é verdade que deve ser de utilizar quando os
depoimentos dos arguidos sejam contraditórios.
Nestes termos, requer que todas as diligências de prova solicitadas, nomeadamente:
(…)
Sejam realizadas com carácter de urgência já que todas são de extrema importância para a descoberta da
verdade na medida em que o Tribunal poderá concluir que está a incorrer em erro quando suspeita da arguida e a mantém
em prisão preventiva”;
15 – O despacho de 29.10.2004, que incidiu sobre o requerimento referido no n.º anterior, refere:
“A fls. 1303 dos presentes autos veio o arguido EE requerer a realização de perícia psiquiátrica às suas
faculdades mentais, com o fim de avaliar se sofre de anomalia psíquica, nos termos do artigo 20°, do Código Penal, bem
como, perícia sobre a sua personalidade, o que faz ao abrigo do disposto nos números 1 e 2, do artigo 159° e 160°, ambos
do Código de Processo Penal.
Alega para o efeito que, na altura de ir para a tropa, foi examinado por um médico psiquiatra que lhe diagnosticou
uma idade mental de 6 anos.
Ora, não obstante em sede de interrogatório judicial do arguido se tenha entendido que este revelava “uma
personalidade frágil e manipulável” e que, “o certo é que o mesmo demonstrou ter consciência da ilicitude e da gravidade
da sua conduta “ – cfr. fls. 89 e 90 – atenta a situação processual em que o mesmo se encontra – prisão preventiva – é
manifesta a relevância das diligências cuja realização é requerida.
Em conformidade, solicite ao Instituto Nacional de Medicina Legal a indicação de peritos médicos para cada uma
das perícias solicitadas, com carácter de urgência, a fim de virem a ser nomeados peritos, bem como, a indicação do dia e
local onde os exames médicos deverão ser realizados.
Notifique. “
16 – No despacho de 2 de Dezembro de 2004, proferido nos autos de inquérito n.º 90/04.7GBADV, pode ler-se:
“Veio a arguida AA, ao abrigo do disposto na alínea f), do artigo 61º e alínea d), do número 1, do artigo 120°, do
Código de Processo Penal, arguir a nulidade do despacho do Digno Substituto do Adjunto constante de fls. 1346 e 1347,
em virtude do indeferimento da realização de diligências que, no seu entender, são essenciais para a descoberta da
verdade, na medida em que, permitiriam provar que não poderia ter sido a arguida a cometer qualquer crime, provocando,
dessa forma, a insuficiência do inquérito.

122
O Digno Substituto do Procurador-Adjunto junto desta comarca pronunciou-se no sentido da improcedência da
referida nulidade, na medida em que, por um lado, não prescrevendo a lei o acto requerido pela arguida como obrigatório, a
sua omissão, não pode dar lugar à insuficiência do inquérito; por outro, considerando como prematura a sua arguição,
atendendo a que não se encontra ainda encerrada a fase de inquérito (cfr. fls. 1403 a 1405).
Cumpre apreciar e decidir.
De acordo com o preceituado no número 1 do artigo 262° do Código de Processo Penal:
“O Inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os
seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação“.
A presente fase processual, cuja direcção cabe ao Ministério Publico coadjuvado pelos órgãos de polícia criminal,
caracterizada por uma série de actos de recolha de provas e apuramento de responsabilidades, destina-se, assim, a um
objectivo determinado: a decisão referente à acusação.
A violação ou inobservância de certa disposição processual penal apenas acarreta a nulidade do acto a que
respeita quando esta for expressamente prevista na lei como tal – princípio da legalidade ou da tipicidade das nulidades
(cfr. artigo 118°, do Código de Processo Penal).
De acordo com o preceituado na alínea d) do número 1 e alínea c) do número 3, do artigo 120° do mesmo
diploma, a insuficiência do inquérito ou da instrução e a omissão posterior de di1igências que pudessem reputar-se
essenciais para a descoberta da verdade constitui uma nulidade dependente de arguição, a qual poderá ter lugar até ao
encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que
tiver encerrado o inquérito.
Face à não imposição, em geral, da prática de quaisquer actos típicos de investigação, questiona-se se a
apreciação da insuficiência ou não do inquérito se fará em função da omissão, apenas, da prática de actos obrigatórios ou
ainda, da prática de quaisquer outros de investigação e de recolha de prova necessários à descoberta da verdade ou só a
estes.
GERMANO MARQUES DA S1LVA ensina a este propósito que a insuficiência do inquérito é uma nulidade
genérica que só se verifica quando se tiver omitido a prática de um acto que a lei prescreve como obrigatório e, desde que
para essa omissão a lei não disponha de forma diversa. Assim, “(…) a omissão de diligências não impostas por lei não
determina a nulidade do inquérito por insuficiência, pois a apreciação da necessidade dos actos de inquérito é da
competência exclusiva do MP” (vide, nem sentido, autor cit., in “Curso de Processo Penal “, Verbo, pág. 67 e 68).
Vejamos os elementos do caso.
A arguida AA, ao abrigo do direito que lhe assiste (cfr. alínea f). do artigo 61°, do Código de Processo Penal), veio
requerer a realização das seguintes diligências: inquirição de CC, LL, NN, MM e OO, na qualidade de testemunhas; a
acareação entre estas pessoas e aquelas que prestaram depoimentos nos autos: a acareação entre os arguidos; e, por
último, que seja oficiado à Empresa-A a localização dos telemóveis da arguida (.... e ...), durante todo o dia 26 de Julho,
bem como dos telemóveis utilizados por CC (91 8792001) e EE (...) – cfr. Fls. 1314 a 1318.
O Digno Substituto procedeu à inquirição de CC e de LL considerando que “os fortes indícios de que a arguida
terá incorrido na prática de, pelo menos um crime de incêndio, previsto e punível pelo artigo 272º, n.º 1, alínea a), do
Código Penal, não foram minimamente abalados pelas declarações entretanto prestadas nestes Serviços por CC e LL na
inquirição a que foram submetidos” e indeferiu a realização das restantes diligências requeridas invocando para o efeito
que tais diligencias não se mostravam necessárias “por ora’, para a realização desta fase processual, fazendo alusão ao
artigo 127º, do Código de Processo Pena1.
Ora, seguindo de perto a posição segundo a qual apenas a omissão de actos obrigatórios determina a
insuficiência e, uma vez que, os actos cuja realização foi requerida pela arguida não constituem actos cuja realização seja
obrigatória, somos de entender que não se verifica a arguida insuficiência.
Por outro lado, efectivamente, a arguição da omissão da sua realização na presente fase processual mostra-se
prematura, pois que ainda não terminou o inquérito e o Ministério Publico, no âmbito da sua competência, pode ainda
considerar necessária a realização de tais actos.
Nestes termos e pelas aludidas razões, indefere-se a arguida nulidade.
Sem custas.
Notifique.
Fls. 1387
Veio a arguida AA requerer a inquirição de três testemunhas – NN, MM e OO -, que, no seu entender, poderão
afastar os indícios que ainda subsistem da pratica de um crime de incêndio, para efeito de eventual revogação/alteração da
medida de coacção de prisão preventiva que lhe foi aplicada, em sede de primeiro interrogatório judicial.
Alega para o efeito o facto de o Digno Substituto do Procurador-Adjunto junto desta Comarca, no seu despacho
de fls. 1346 e 1347, referir que a arguida se encontra indiciada de, pelo menos, um crime de incêndio. No seu entender, tal
afirmação consubstancia uma alteração de facto que levou à decretação da medida de prisão preventiva no pretérito dia 31
de Julho de 2004 (cfr. Despacho que constitui fls. 106 e seguintes dos autos).
Cumpre apreciar e decidir.
De acordo com o preceituado na alínea b) do número 1 do artigo 212º do Código de Processo Penal:

123
“As medidas de coacção são imediatamente revogadas, por despacho do juiz, sempre que se verificar (…) terem
deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação”.
Passemos ao caso concreto.
Antes de mais, a questão a analisar prende-se com a utilização da expressão “pelo menos, um crime de
incêndio”, utilizada pelo Ministério Público, porquanto é com base na interpretação que dela faz a arguida, que,
posteriormente, considera pertinente a inquirição de testemunhas destinadas a fazer prova de que não é autora de um
crime de incêndio que terá ocorrido ao final da tarde.
Compulsados os presentes autos resulta de uma leitura mais detalhada e do texto integral dos despachos
proferidos a fls. 1247 e 1291 que, no entender do Ministério Público, os autos indiciam a prática pelos arguidos de, pelo
menos, um crime de incêndio, na medida em que salvaguarda a hipótese de se verificar um concurso efectivo de crimes de
incêndio.
Efectivamente pode ler-se a fls. 1247: (…) “os autos indiciam a prática, pelos arguidos EE e AA, de, pelo menos
(por não poder desde já afastar-se a possibilidade de haver concurso efectivo de crimes de incêndio ou, até, de crimes de
incêndio e de crimes de dano, ou ainda de se verificar a agravação pelo resultado, prevista no artigo 285º, do Código
Penal) um crime de incêndio, previsto e punível pelo artigo 272º, n.º 1, alínea a), do Código Penal).
Ora, sendo esta a base factual que fundamenta o requerimento em análise e mostrando-se evidente que o
Ministério Público continua a considerar que a arguida se encontra fortemente indiciada da prática dos factos que
determinaram a decretação da medida de prisão preventiva, em sede de primeiro interrogatório, nada mais há a apreciar.
Em conformidade, mantendo-se inalterados os pressupostos que determinaram a aplicação à arguida da medida
de prisão preventiva e fundamentaram as posteriores decisões de manutenção, indefere-se o requerido.
Sem custas.
Notifique.

Ao abrigo do preceituado no artigo 187º, 190º e 269º, n.º 1, alínea c), todos do Código de Processo Penal
determino que se solicite, com carácter de urgência, a indicação da localização dos telemóveis com os números ..., ..., ...
e ..., durante todo o dia 26 de Julho de 2004.
Consigne-se que tal informação se destina a instruir os presentes autos e que os mesmos se encontram em
segredo de justiça.
(…)
17 – Do despacho referido no n.º anterior foi interposto recurso para o Tribunal da Relação de Évora, tendo sido
por aquela instância proferido o Acórdão de 8 de Março de 2005 onde se pode ler que:
“Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
Pelos Serviços do M.ºP.º, junto do Tribunal Judicial da Comarca de Almodôvar, corre processo de inquérito em
que são arguidos AA, identificada nos autos, e outro, indiciada da prática de um crime de incêndio p.p. pelo artigo 272º, n.º
1, alínea a), do Código Penal.
Tendo-se procedido a interrogatório de arguido detido foi, quanto à arguida decretada, como medida de coacção,
a prisão preventiva.
Em 12/11/04 a arguida requereu ao M.mo Juiz de Instrução a declaração de nulidade do despacho do Digno
Substituto do Procurador-Adjunto que lhe indeferiu diligências de prova por si requeridas.
Em 15/11/2004 a arguida requereu a revogação ou alteração da medida de coacção.
Por despacho de 2/12/2004 o M.mo Juiz “a quo” indeferiu os pedidos de declaração de nulidade e de revogação
ou alteração da medida de coacção de prisão preventiva imposta à arguida.
Deste despacho recorreu a arguida alegando, em conclusão, o seguinte:
(…)
Nesta conformidade, por todo o exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da
Relação de Évora:
Em negar provimento ao recurso do segmento do despacho que indefere a arguida nulidade, porém, revogam o
despacho recorrido quanto a esse segmento que deverá ser substituído por outro que declare não poder ser tomado
conhecimento, naquela fase processual, da nulidade invocada;
Não tomar conhecimento do recurso quanto ao segmento do despacho que reapreciou a medida de coacção, por
inutilidade superveniente da lide.”
18 – A 24 de Março de 2005, foi declarado encerrado o inquérito nos autos n.º 90/04.7GBADV e proferido
despacho de acusação contra os arguidos AA e EE, sendo imputada à arguida a prática de quatro crimes de incêndio, p. e
p. pelo artigo 272º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, sendo um em autoria moral e três em co-autoria material e imputado
ao arguido a prática, em co-autoria material, de quatro crimes de incêndio, p. e p. pelo artigo 272º, n.º 1, alínea a), do
Código Penal, conforme documento de fls. 294 e seguintes que aqui se dá por integralmente reproduzido.
19 – No despacho de 22 de Abril de 2005, proferido nos autos n.º 90/04.7GBADV, pode ler-se:
“(…)
Medidas de coacção:

124
Da arguida AA
No que respeita à arguida AA verifica-se que se mantêm inalterados os pressupostos de facto e de direito que
levaram à decretação da medida de prisão preventiva que lhe foi aplicada aquando do seu primeiro interrogatório judicial,
no pretérito dia 31 de Julho de 2004 e fundamentaram o despacho de fls. 106, bem como as posteriores decisões de
manutenção (cfr. Fls. 1632 e 2538).
Não se mostram excedidos os prazos da prisão preventiva estabelecidos no artigo 215º do Código de Processo
Penal.
Dado o estado dos autos não se afigura necessário proceder à audição do arguido, nem do Ministério Público.
Nesta conformidade, por subsistência dos aludidos pressupostos, nos termos do artigo 213º, n.º 1, do Código de
Processo Penal, determino que a arguida AA continue a aguardar os ulteriores termos do processo na prisão preventiva em
que se encontra.
(…)”
20 – Igualmente do despacho referido no n.º anterior, foi interposto recurso para o Tribunal da Relação de Évora,
o qual proferiu o Acórdão de 25 de Julho de 2005, onde se pode ler:
“Por despacho judicial de 22 de Abril de 2005 foi determinado que a recorrente AA continuasse a aguardar os
ulteriores termos do processo na situação de prisão preventiva em que se encontra.
Por se ter entendido manterem inalterados os pressupostos de facto e de direito que levaram à decretação da
medida de prisão preventiva que lhe foi aplicada aquando do seu primeiro interrogatório judicial no pretérito dia 31 de Julho
de 2004 e fundamentaram o despacho de fls. 106, bem como as posteriores decisões de manutenção.
E, por tal, ao abrigo do disposto no artigo 213º, n.º 1, do Código de Processo Penal se manteve a aludida medida
de coacção.
Inconformada com tal decisão traz AA o presente recurso, onde formula as seguintes conclusões da sua
motivação de recurso:
(…)
E que não existindo factualidade nova, a tal respeito, não pode, nem deve, ora, contrariar-se o anteriormente
decidido, até por falta de fundamento bastante para o efeito.
Sendo avisado o tecido pelo Magistrado do Ministério Publico na sua motivação de recurso a fls. 308 e 309 dos
autos, e que aqui se dá por inteiramente reproduzido; o que só reforça a conclusão já retirada.
Pelo que, a prisão preventiva afigura-se como a única medida adequada e proporcionada, tendo em conta a
gravidade dos crimes em causa e as sanções previsivelmente aplicadas – cfr. Artigo 193º do Cod. Proc. Pen.
Porquanto, a manterem-se os elementos de prova existentes nos autos é de prever como bem possível, a
condenação da recorrente pela prática dos crimes de que vem acusada.
Daí, não se pode alterar a medida de coacção fixada, com base no disposto nos artigos 212º do C.P.P., por
inexistir fundamento para tanto.
Termos são em que acordam em negar provimento ao recurso, confirmando-se o despacho recorrido.”
21 – No processo comum colectivo n.º 90/04.7GBADV, foi realizada audiência de discussão e julgamento, tendo
sido, a final, proferido o Acórdão do Tribunal de Círculo de Beja, datado de 29.09.2005 onde se pode ler que:
“(…)
Estão provados os seguintes factos:
a) - Em data não concretamente apurada do ano de 1995, os irmãos PP, QQ e RR consentiram que a Arguida e o
seu companheiro DD fossem residir para uma parte da parcela urbana de um prédio misto pertencente àqueles, sito na Foz
do Zebro, freguesia de S. Barnabé, concelho de Almodôvar, sem qualquer outra contrapartida que não fosse a de guardar e
conservar a terra e essa parte da parcela urbana.
Arguida e o seu companheiro passaram, então, a residir nessa parte da referida parcela urbana, continuando a
restante parte a ser utilizada pelos seus proprietários.

b) - RR faleceu em 27 de Novembro de 1999, deixando como únicas herdeiras PP e QQ.


c) - Pretendendo vender o prédio acima mencionado, PP e QQ pediram à Arguida e seu companheiro que
abandonassem a parte do mesmo que ocupavam.
Em face à recusa destes em abandonarem o prédio, foi intentada acção no Tribunal Judicial da Comarca de
Almodôvar, com esse objectivo, em 29 de Novembro de 2002.
No dia 10 de Outubro de 2003, na audiência preliminar que teve lugar no âmbito da referida acção, PP, QQ e DD,
respectivamente Autoras e Réu, celebraram um acordo através do qual este se comprometeu a restituir àquelas a parcela
do prédio mencionado até final do mês de Setembro de 2004.
Tal acordo foi homologado e transitou em julgado no dia 10 de Outubro de 2003.
d) - Em 2004, FF, vizinho da Arguida, semeou cereais numa parcela do prédio pertencente a PP e QQ.
e) - No dia 26 de Julho de 2004, no sítio de Zebro de Baixo, freguesia de S. Barnabé, concelho de Almodôvar, nas
imediações da residência de FF, encontravam-se depositadas oitocentas arrobas de cortiça pertencentes a PP e QQ.
O que era do conhecimento da Arguida.

125
Tal cortiça tinha valor não inferior a € 40 000,00 (quarenta mil euros).
f) - No dia 26 de Julho de 2004, entre as 15H00 e as 15H30, deflagrou um fogo no sítio de Zebra de Baixo, nas
imediações da residência de FF.
Na ocasião e local acabados de indicar, a temperatura do ar era superior a 36 graus centígrados, a humidade
relativa era de 12% e o vento soprava a uma velocidade média superior a 20 Km/hora, na direcção sudoeste.
g)
À volta do local onde tal fogo se iniciou existia uma grande extensão de mato e arvoredo denso, designadamente
de sobreiros.
O fogo propagou-se de forma rápida para sul, este e sudeste.
Atingiu uma área de cerca de 30.000 hectares, onde existiam importantes espécies e projectos florestais,
nomeadamente sobreiros, medronheiros e eucaliptos, bem como pilhas de cortiça, colmeias, oliveiras e árvores de fruto.
O mencionado fogo causou prejuízos avaliados em mais de € 40.000.000,00 (quarenta milhões de euros), nos
concelhos de Almodôvar, Silves, Loulé e São Brás de Alportel.
h)
O fogo colocou em risco residências e outros bens de valor existentes pelos locais onde lavrou.
i)
No dia 26 de Julho de 2004, entre as 19H00 e as 19H30, a cerca de vinte e cinco metros de uma ponte sita nas
imediações do cruzamento onde existiam placas de sinalização para Monte do Zebra e Malhão, no caminho que liga Zebro
de Baixo à Foz do Zebro, no lado esquerdo de tal caminho, atento o sentido de marcha acabado de indicar, deflagrou um
incêndio que consumiu uma área de cem metros quadrados.
Junto da área acabada de indicar existia mato, silvas e árvores.
Este fogo não tomou maiores proporções em virtude de ter sido prontamente combatido por bombeiros.
j)
Mais tarde, cerca das 00H00, a cerca de cinquenta metros de uma fonte que dista cerca de novecentos metros do
local onde deflagrou o incêndio acabado de referir, no caminho que liga o sítio do Zebro de Baixo ao sítio da Foz do Zebro,
deflagrou um incêndio que consumiu uma área de seis metros quadrados.
Junto da área acabada de indicar existia mato, sobreiros e medronheiros.
Este fogo extinguiu-se sem intervenção humana.
l)
No dia 27 de Julho de 2004, cerca das 00H15, nas imediações da estrada que liga a aldeia de S. Barnabé ao sítio
do Boião, a cerca de um quilómetro do cruzamento com a estrada que liga o sítio da Foz do Zebro ao sítio do Zebra de
Baixo, deflagrou um incêndio, que consumiu uma área de vinte e cinco metros quadrados.
Junto da área acabada de indicar existia pasto alto e árvores.
Este fogo não tomou maiores proporções em virtude de ter sido prontamente combatido por populares.
m)
Os três últimos incêndios acabados de referir ocorreram numa ocasião em que o primeiro dos incêndios acima
mencionados estava ainda activo e avançava com intensidade em direcção ao Algarve.
Todos estes incêndios constituíram motivo de grande alarme para as populações residentes nas zonas onde os
mesmos ocorreram.
n)
Ao cair da tarde do dia 26 de Julho, os Arguidos, fazendo-se transportar no veículo automóvel de marca
Wolkswagen, modelo Transporter, de cor branca e com matrícula , conduzido pela AA, percorreram diversos locais da zona
da Foz do Zebro, para ver o fogo.
Pelos mesmos locais andaram, com idêntico objectivo, várias outras pessoas.
o)
Durante a noite, a arguida AA e o seu companheiro, DD, percorreram diversos locais da zona da Foz do Zebro,
para ver o fogo.
Pelos mesmos locais andaram, com idêntico objectivo, várias outras pessoas.
p)
Nada consta do certificado do registo criminal dos Arguidos.
q)
À data da prática dos factos relatados, a Arguida AA vivia maritalmente com DD e com duas filhas menores.
A arguida dedicava-se às tarefas domésticas e o seu companheiro executava projectos florestais.
r)
À data da prática dos factos relatados, o Arguido EE trabalhava como pastor para o companheiro da arguida AA.
Residia nas imediações da casa habitada por aqueles.
Actualmente, o arguido vive na companhia de familiares.
s) - O Arguido EE tem QI que se situa entre 43% e 52%. Padece de atraso mental moderado, irreversível e que
equivale a idade mental não superior à de uma criança com sete anos de idade.

126
t) - O incêndio acima referido nas alíneas f), g) e h) atingiu e destruiu bens pertencentes a JVP, JMCR, ECC,
MGBGM, AJMB, VFFG, MVVPTS, PVL, MDC, MFG, MFP, MDG, CIP, MIM, JMSP, AJNP, VCMP, MJGC, SMSG, PSG e
MJG.

Com interesse para a decisão da causa não ficaram provados quaisquer outros factos, nomeadamente:
- que após o falecimento de LPM a Arguida e o seu companheiro tenham alterado o seu comportamento,
deixando de praticar os actos necessários à boa conservação da parte do prédio que ocupavam;
- que após o falecimento do LPM, a Arguida tenha impedido a entrada de ASPM numa das casas existentes na
parcela de terreno que ocupava, e que tal atitude tenha levado à intervenção da Guarda Nacional Republicana;
- que a arguida tenha ficado descontente com o facto de FF ter semeado cereal em parcela de terreno
pertencente a PP e de QQ;
- que fossem más as relações existentes entre a Arguida, PP, QQ e FF;
- que a Arguida AA tenha ordenado ao Arguido EE que, durante a parte da tarde do dia 26 de Julho, ateasse um
fogo junto residência de FF;
- que o Arguido EE tenha acatado tal ordem;
- que o Arguido EE se tenha dirigido às imediações da residência de FF e que tenha ateado fogo a mato seco,
canas e ramos aí existentes;
- que o fogo que deflagrou nas imediações da residência de FF apenas a não tenha atingido, bem como à cortiça
pertencente a PP e QQ, e outros bens aí existentes, por ter sido prontamente combatido por populares;
- que ao fim da tarde do dia 26 de Julho, no caminho que liga o sitio do Zebro de Baixo ao sítio da Foz do Zebro,
perto de uma ponte sita nas imediações do cruzamento onde existiam placas sinalizando as direcções do Monte do Zebro e
do Malhão, a arguida AA tenha entregue uma caixa de fósforos ao arguido EE e lhe tenha dito para ir atear fogo a um pasto
que se localizava do lado esquerdo de quem circula no sentido sítio do Zebro de Baixo – Sitio da Foz do Zebro;
- que o arguido EE tenha acatado tal ordem;
- que o Arguido EE tenha percorrido cerca de vinte e cinco metros e, com o auxilio de um fósforo, tenha ateado
fogo ao pasto existente no local indicado pela Arguida AA, sito num terreno denominado Monte das Pereiras;
- que o local acabado de mencionar diste apenas alguns metros de um terreno pertencente a PP e QQ; .
- que mais tarde, cerca das 00H00, no caminho que liga o sítio do Zebro de Baixo ao sitio da Foz do Zebro, perto
de uma fonte sita a cerca de novecentos metros do local onde anteriormente deflagrara outro incêndio, a Arguida AA tenha
entregue uma caixa de fósforos ao Arguido EE e lhe tenha dito para ir atear fogo em local que lhe indicou e que se
localizava do lado esquerdo de quem circula no sentido sítio do Zebro de Baixo – sítio da Foz do Zebro;
- que o Arguido EE tenha acatado tal ordem;
- que o Arguido EE tenha percorrido cerca de cinquenta metros e tenha ateado fogo a plantas secas ali
existentes;
- que o local acabado de mencionar se situe numa propriedade pertencente a PP e QQ:
- que este fogo tenha sido extinto por acção humana;
- que alguns minutos mais tarde, na estrada que liga a aldeia de São Barnabé ao sítio de Boião, e a cerca de um
quilometro do cruzamento com a estrada que liga o sitio da Foz do Zebro ao sitio do Zebro de Baixo, a arguida AA tenha
ordenado ao arguido EE que ateasse fogo ao pasto ali existente;
- que o Arguido EE tenha acatado tal ordem;
- que o arguido EE, com o auxílio de um fósforo, tenha ateado fogo ao pasto;
- que o local acabado de mencionar pertença a um indivíduo de nome TT.

A audiência de julgamento decorreu com o registo em fita magnética dos depoimentos e esclarecimentos nela
prestados.
Tal circunstância que deve, também nesta fase do processo, revestir-se de utilidade, dispensa o relato detalhado
dos depoimentos prestados.
Posto isto, a convicção do Tribunal alicerçou-se nos depoimentos das testemunhas e peritos inquiridos e no teor
dos documentos que se encontram juntos ao processo.
Os factos não provados ficaram a dever-se à ausência de elementos probatórios que os confirmassem com um
mínimo de segurança e a prova em sentido contrário.
Alguns aspectos não podem, no entanto, deixar de se analisar.
Os arguidos, exercendo direito que a lei lhes confere, recusaram prestar declarações.
Dos depoimentos das testemunhas JMNG, ABC e JHSB [agentes da Polícia Judiciária que investigaram os factos
a que os autos se reportam] resulta a descrição das diligências que levaram a cabo e que na zona onde os incêndios
deflagraram algumas pessoas atribuíram aos arguidos a autoria dos mesmos.
Dos depoimentos referidos é ainda possível concluir, de forma inequívoca, que os referidos agentes da autoridade
já sabiam da existência dos diversos locais onde haviam deflagrado fogos e da localização dos mesmos quando,
acompanhados pelo arguido EE, realizaram a reportagem fotográfica que dos autos consta.

127
Dos depoimentos de testemunhas arroladas pela acusação resulta a suspeita da autoria dos incêndios, por banda
dos arguidos, por os terem visto nos locais onde os mesmos deflagraram.
Tal suspeita não reside em qualquer outra circunstância, sendo certo, ainda, que nesses locais foram vistas várias
outras pessoas.
Dos documentos que dos autos constam, uma palavra para os cronogramas das chamadas telefónicas. Deles
resulta, tão só, a realização de telefonemas, sendo totalmente desconhecido o seu conteúdo.
Dos depoimentos de testemunhas de defesa resulta que a arguida AA, na ocasião em que deflagrou o primeiro
incêndio, se encontrava na cidade de Beja.
Resta referir o depoimento do médico psiquiatra e do psicólogo clínico que contactaram com o arguido EE para
avaliar as suas faculdades mentais.
Foi por ambos dito que, no decurso da conversa que com o referido arguido mantiveram, o mesmo referiu ter
ateado fogos, insistindo que o fizera a mando da arguida AA.
A utilização destas palavras do arguido, pelos referidos técnicos de saúde, e o crédito que lhes deram, não serviu
senão para justificar o resultado da avaliação a que procederam.

(...)
Por todo o exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal:
em julgar improcedente a acusação e, em consequência, em absolver os arguidos AA e EE da prática
dos crimes de incêndio, previstos e punidos pelo artigo 272º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, que lhes são imputados
nos presentes autos.
(...)
3.
O objecto do presente recurso consiste em apurar se, no enquadramento fáctico acabado de enunciar, a
recorrente tem jus a ser indemnizada pelo Estado, pelos danos não patrimoniais sofridos em consequência da prisão
preventiva que suportou, no âmbito do processo-crime acima referenciado e em que veio a ser absolvida.
Serão as conclusões da alegação da recorrente que balizarão a indagação deste Supremo Tribunal, já que, como
é sabido, por elas se determina o âmbito do recurso.
E, em síntese, pode dizer-se que nelas se defende a tese de que a prisão preventiva em causa assenta em erro
judiciário grosseiro.
Importa, por isso, começar por fazer uma análise, em tese geral, da matéria envolvida.

No quadro constitucional dos direitos, liberdades e garantias pessoais ocupa lugar de relevo o direito à liberdade,
com assento no art. 27º da nossa Lei Fundamental (CRP).
Consagrando-o, no n.º 1, como um direito fundamental, este normativo indica expressamente, no n.º 2, as
medidas de privação da liberdade constitucionalmente admissíveis, estatuindo que essas medidas só podem decorrer ou
de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida
de segurança.
Fora deste regime-regra define-se um rol variado, mas taxativo, de medidas de privação da liberdade, «pelo
tempo e nas condições que a lei determinar» (n.º 3), nele se incluindo, em lugar de destaque, «a prisão preventiva por
fortes indícios da prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos»
[al. b) desse n.º 3].
Finalmente, o preceito em análise, para além de um dever de informação imediata e de forma compreensível das
razões da privação da liberdade, estabelece ainda o princípio da indemnização, pelo Estado, dos danos decorrentes da
privação inconstitucional ou ilegal («contra o disposto na Constituição e na lei») da liberdade (n.os 4 e 5).
Textua assim o falado n.º 5:
A privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de indemnizar o
lesado nos termos que a lei estabelecer.
A responsabilidade civil do Estado é, assim, alargada, no domínio dos factos decorrentes da função jurisdicional,
não ficando circunscrita ao plano do clássico erro judiciário (condenação injusta), a que alude o n.º 6 do art. 29º do diploma
fundamental.
A Constituição conforma-se com o que dispõe a Convenção Europeia sobre os Direitos do Homem (aprovada
para ratificação pela Lei 65/78, de 13 de Outubro), que, no seu art. 5º, depois de consignar que toda a pessoa tem direito à
liberdade e segurança (n.º 1), acrescenta que ninguém pode ser privado da sua liberdade, salvo nos casos que explicita,
entre eles «se for preso e detido a fim de comparecer perante a autoridade judicial competente, quando houver suspeita
razoável de ter cometido uma infracção, ou quando houver motivos razoáveis para crer que é necessário impedi-lo de
cometer uma infracção ou de se pôr em fuga depois de a ter cometido», e remata, no n.º 5, estatuindo que «qualquer
pessoa vítima de prisão ou detenção em condições contrárias às disposições deste artigo, tem direito a indemnização».
A prisão preventiva tem carácter excepcional, não devendo ser decretada nem mantida sempre que possa ser
aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei (art. 28º/2 da CRP).

128
Estes ditames constitucionais encontram tradução e desenvolvimento nas regras a propósito definidas no Código
de Processo Penal (CPP), mais exactamente nos arts. 191º a 228º, dos quais decorre, à evidência, esse carácter
excepcional e subsidiário da prisão preventiva (art. 193º/2 e 202º/1), deles emergindo igualmente as garantias que a
confortam ou que vigiam a sua aplicação e execução – aplicação por decisão judicial devidamente fundamentada, com
garantias formais de defesa (art. 64º) e possibilidade de recurso (art. 219º), com possibilidade de suspensão e revogação
imediatas (arts. 211º e 212º), com reexame periódico dos seus pressupostos (art. 213º), com prazos de duração máxima
(215º) e possibilidade de reacção contra ela, em certos casos, através da providência excepcional de habeas corpus (art.
222º).
Voltando ao n.º 5 do art. 27º da CRP, ele encontra desenvolvimento ou execução na lei ordinária – concretamente
no art. 225º do CPP, que sofreu alteração com a Lei 48/2007, de 29 de Agosto.

O art. 225º do CPP tem, actualmente, a seguinte redacção:

1. Quem tiver sofrido detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação pode requerer,
perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos quando:
a) A privação da liberdade for ilegal, nos termos do n.º 1 do artigo 220º, ou do n.º 2 do artigo 222º;
b) A privação da liberdade se tiver devido a erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que
dependia;
ou
c) Se comprovar que o arguido não foi agente do crime ou actuou justificadamente.
2. Nos casos das alíneas b) e c) do número anterior o dever de indemnizar cessa se o arguido tiver concorrido,
por dolo ou negligência, para a privação da sua liberdade.

O fundamento de indemnização constante da alínea c) do n.º 1 é novo – foi introduzido pela mencionada Lei
48/2007.
A versão anterior a esta Lei era a seguinte:

1. Quem tiver sofrido detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal pode requerer, perante o tribunal
competente, indemnização dos danos sofridos com a privação da liberdade.
2. O disposto no número anterior aplica-se a quem tiver sofrido prisão preventiva que, sendo ilegal, venha a
revelar-se injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia. Ressalva-se o caso
de o preso ter concorrido, por dolo ou negligência, para aquele erro.

É à luz da interpretação deste normativo – se na redacção actual se na anterior à Lei 48/2007, ver-se-á de
seguida – que deverá enfocar-se a pretensão da recorrente, apreciada, repete-se, no contexto das questões suscitadas nas
conclusões da sua alegação de recurso.

3.1. A primeira questão tem, precisamente, que ver com o que vem de ser referido: a determinação de qual a
redacção do indicado art. 225º a ter em conta.
A recorrente começa por imputar ao acórdão recorrido o vício de nulidade, sustentando que nele se incorreu em
erro na determinação da norma aplicável e em omissão de pronúncia.
Erro na determinação da norma aplicável, porque seria de aplicar a nova redacção daquele preceito, e,
designadamente, a neófita alínea c) do n.º 1, e não o preceito na sua roupagem anterior; omissão de pronúncia, porque
nem sequer foi analisada e ponderada a possibilidade de aplicação da nova e diferente redacção do preceito.
A questão coloca-se porquanto, no momento da prolação do acórdão, já tinha entrado em vigor o novo texto: o
acórdão da Relação foi proferido em 15.11.2007 e a Lei 48/2007 entrou em vigor em 15.09.2007.

Adiantamos, desde já, a nossa resposta a tal questão – a recorrente não tem razão.
O art. 5º do CPP não tem que ser chamado a terreiro: trata-se de norma que rege sobre a aplicação da lei
processual penal no tempo, e que estabelece, no n.º 1, a aplicação imediata desta lei, «sem prejuízo da validade dos actos
realizados na vigência da lei anterior», estatuindo no n.º 2 que a lei processual penal não se aplica aos processos
(obviamente aos processos criminais) iniciados anteriormente à sua vigência, quando da sua aplicabilidade imediata possa
resultar agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu
direito de defesa, ou quebra da harmonia e unidade dos vários actos do processo (destaque de nossa autoria).
Não estamos aqui perante um processo criminal, nem está em causa a situação processual de qualquer arguido,
pelo que é abusivo pretender aplicar, num processo de natureza cível (uma acção de indemnização), aquele aludido
preceito.
O art. 225º do CPP, não obstante a sua inserção num diploma de carácter adjectivo, assume natureza
eminentemente substantiva. E, estabelecendo o regime da indemnização cível por danos causados pelo Estado a qualquer

129
pessoa no exercício da função jurisdicional, é, verdadeiramente, uma regra de direito privado comum ou civil, uma norma
sobre a responsabilidade civil extracontratual: a sua inserção num diploma processual penal não releva para efeitos da sua
caracterização, não define a sua natureza. A sua aplicação no tempo é definida pelas regras do art. 12º do Cód. Civil. E das
regras emergentes deste normativo – a principal das quais é a de que a lei só dispõe para o futuro – colhe-se, sem margem
para dúvidas, que a nova formulação daquele apontado art. 225º só logra aplicação aos casos de prisão preventiva (e de
detenção e de obrigação de permanência na habitação) ocorridos após o início de vigência da Lei 48/2007, ou seja, após
15 de Setembro de 2007, o que exclui, de todo, o caso em análise, em que a prisão preventiva foi decretada em
31.07.2004, e mantida por despachos posteriores, todos eles anteriores àquela data.
Neste sentido decidiu já este Tribunal, considerando, em situação análoga à aqui em apreço, ser aplicável “tendo
em conta a sucessão da lei no tempo, o regime da lei ordinária que, nesta matéria, vigorava ao tempo dos factos, ou seja,
antes da alteração introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto (art. 12º, n.º 1 do Código Civil)” (1) .
Daqui decorre a falência da argumentação ex adversu esgrimida pela recorrente.
E também resulta seguro que a sem-razão da mesma recorrente se estende à alegada omissão de pronúncia.
Desde logo, há que reter, por evidente, que o erro na determinação da norma aplicável não constitui nulidade da
sentença. Na verdade, e como adverte o Prof. ANTUNES VARELA, da enumeração taxativa das causas de nulidade, que o
art. 668º do CPC acoberta, logo ressuma a conclusão de que não se inclui entre elas o chamado erro de julgamento, a
injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo
judiciário (2).
Por outro lado, a nulidade de omissão de pronúncia, prevista na 1ª parte da al. d) do n.º 1 do citado art. 668º, está
directamente relacionada com a regra do art. 660º, n.º 2, segundo a qual «o juiz deve resolver todas as questões que as
partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a
outras».
Ora, para além de que a eventual aplicabilidade do novo art. 225º do CPP não foi suscitada perante a Relação,
nem sequer cabe no conceito de «questões» aquilo que as partes alegam no tocante à indagação, interpretação e
aplicação das regras de direito, não tendo cabimento falar de omissão de pronúncia quando a sentença não trata
explicitamente considerações, argumentos, juízos de valor alegados pelas partes. As «questões» a que a lei alude não
abrangem os argumentos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, pois o julgador é livre na interpretação e aplicação do
direito: verificando-se que da sentença constam os factos e as razões de direito em que o tribunal fundou a sua decisão,
não existe a apontada nulidade.
Concluímos, pois: a nova redacção do art. 225º não é aplicável ao caso sub judicio, por força dos princípios
válidos em matéria de aplicação das leis no tempo; e, como também ficou demonstrado, não se verifica a suscitada
nulidade, por omissão de pronúncia, do acórdão recorrido.

3.2. Importa, pois, passar à questão seguinte, já perspectivada por referência ao citado art. 225º do CPP, na
redacção anterior à introduzida pela Lei 48/2007.
De acordo com o mencionado preceito, pode requerer indemnização dos danos sofridos com a privação da
liberdade, quem tiver sofrido prisão preventiva manifestamente ilegal, ou quem tiver sofrido prisão preventiva que, não
sendo ilegal, venha a revelar-se injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia.
O acórdão recorrido concluiu que a prisão preventiva não se revelou injustificada por erro grosseiro, em perfeita
sintonia com a decisão da 1ª instância, que também havia afastado a manifesta ilegalidade daquela.
A recorrente questiona tal conclusão, entendendo verificado, nos moldes que se irão explicitar, o erro grosseiro na
apreciação dos pressupostos de facto que determinaram a aplicação e a posterior manutenção, em vários despachos
subsequentes, da prisão preventiva.
Vejamos, pois.
Para melhor entendimento do que está em causa vejamos, antes de mais, o sentido e significado das normas em
apreço, não deixando de o fazer também relativamente ao n.º 1, não obstante não vir invocado pela recorrente.
Diz este n.º 1 respeito à reparação devida quando a privação da liberdade tiver sido manifestamente ilegal.
O advérbio de modo tem o sentido de indubitavelmente, de modo evidente, claro ou inequívoco.
Como se escreveu em Parecer da PGR (3), do Conselho Consultivo da PGR, de 30.03.92. será prisão ou
detenção manifestamente ilegal aquela cujo vício sobressai com evidência, em termos objectivos, da análise da situação
fáctico-jurídica em causa, como é o caso da prisão preventiva com fundamento na indiciação da prática de um crime a que
corresponda pena de prisão de máximo inferior a três anos [agora, igual ou inferior a cinco anos].
Não basta, pois, para fundar o direito à indemnização, a ilegalidade da prisão preventiva: exige-se que tal
ilegalidade seja manifesta, tendo em conta as circunstâncias em que foi aplicada.
No n.º 2 prevê-se o caso de prisão preventiva legal, mas que posteriormente veio a verificar-se ser total ou
parcialmente injustificada, por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto.
“A prisão preventiva, nesta situação, será, num primeiro momento, válida, não sendo inquinada por qualquer vício
que sustente a sua revogação e pelo qual possa ser atacada através de recurso ou outra providência.

130
Trata-se, nesta situação, de apreciar ex post facto os fundamentos da medida. Ou seja, posteriormente à sua
determinação e em função daquilo que a fundamentou se ter verificado que a mesma, por um erro grosseiro, na apreciação
dos seus pressupostos de facto, se configurou injustificada” (4).
“O erro é o desconhecimento ou a falsa representação da realidade fáctica ou jurídica envolvente de uma
determinada situação.
O erro grosseiro é o erro indesculpável, crasso ou palmar em que se cai por falta de conhecimento ou de
diligência”.
Trata-se, nas palavras de Manuel de Andrade, do erro escandaloso, crasso, supino, que procede de culpa grave
do errante (5); do erro que o sujeito, dotado de uma normal capacidade de pensar e agir coordenadamente, tinha obrigação
de não cometer (6).
Dito isto, avancemos.
Não custa reconhecer razão à recorrente quando sustenta que o erro grosseiro ou acto temerário na aplicação da
prisão preventiva tem de ser analisado à luz de um juiz de médio saber, razoavelmente cauteloso e ponderado na
valoração dos pressupostos de facto invocados como seu fundamento. E também não se questiona que essa medida só
deve ser aplicada quando existam fortes indícios da prática do crime pelo arguido – trata-se de uma exigência
constitucional [art. 27º/3.b)] e legal (art. 202º/1.a) do CPP) – impondo-se ainda a verificação de algum dos requisitos a que
alude o art. 204º, bem como a consideração de que qualquer outra medida de coacção é inadequada ou insuficiente (citado
art. 202º).
Tudo isto demonstra que é absolutamente excepcional o regime da prisão preventiva e rigoroso o quadro legal
que sustenta a admissibilidade da aplicação desta medida de coacção (7) .
A propósito da existência de fortes indícios sustenta a recorrente a sua inverificação no caso concreto, afirmando
que os existentes no momento em que foi proferido o despacho que determinou a sua prisão preventiva não eram
bastantes para que um juiz – aquele juiz médio, acima referido – pudesse, com base neles, formar a convicção de que a
recorrente pudesse vir a ser condenada; e conclui que, por isso, o juiz que proferiu o dito despacho incorreu em erro
grosseiro, pelo menos na modalidade de acto temerário, vício em que igualmente incorreram os despachos judiciais que
mantiveram a prisão preventiva, proferidos em 27 de Agosto, 14 de Setembro e 21 de Outubro de 2004.
Ora, convém precisar que a exigência de «fortes indícios» decorre, como vimos já, da própria lei, constituindo um
requisito inequívoco que sustenta a admissibilidade da prisão preventiva. Por isso, e ao contrário do que pensa a
recorrente, a sua inexistência configura – se, apesar disso, a prisão preventiva for decretada – uma ilegalidade, e o
despacho que a decretar é ilegal, não sendo o erro (grosseiro ou não) o vício que o inquina.
Na verdade, o que se verifica na prisão preventiva injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos
de facto é coisa diferente: é que, posteriormente à aplicação da medida, vem a verificar-se que os factos carreados para o
processo, que o juiz ponderou para essa aplicação, e com base nos quais produziu a sua decisão, ou não existem ou são
de todo falsos, por não terem qualquer correspondência com a realidade: só estas situações configuram a existência de
erro, que será grosseiro se for, como vimos, indesculpável, tendo o juiz nele incorrido por falta de conhecimento ou de
diligência (8).
Ora, não é isto que a recorrente afirma. O que ela, dizendo de outro modo, sustenta é que os indícios existentes
não eram bastantes para integrar o conceito legal de fortes indícios.
Todavia, como já ficou evidenciado, não basta, como critério para fundar o direito a indemnização por privação da
liberdade, a ilegalidade da prisão preventiva: só a manifesta ilegalidade da prisão preventiva confere direito a
indemnização, pelo que também só a manifesta inexistência de «fortes indícios» pode servir-lhe de suporte (9).
O conceito de «fortes indícios» é um conceito branco, aberto, fluido, que – adianta Mouraz Lopes – não permite
que, fora da situação em concreto, se teçam grandes considerações sobre o seu conteúdo, entendendo-se embora que
será algo mais, um plus, relativamente ao conceito de «indícios suficientes» a que aludem os arts. 283º/1 e 308º/1 do CPP,
e que o n.º 2 daquele art. 283º define como aqueles de que resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser
aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.
Poderá falar-se, no caso concreto, em manifesta inexistência de «fortes indícios», aquando da apreciação feita no
despacho que decretou a prisão preventiva da arguida, ora recorrente, e nos despachos posteriores acima referenciados,
que mantiveram aquela medida de coacção?
A resposta só pode ser um rotundo não!
Basta ler o dito despacho, transcrito no n.º 2 da matéria de facto assente, para se ter conhecimento de um
alargado acervo indiciário, que, pela sua natureza, não nos repugna qualificar de forte, e que levava a concluir – pelo tal juiz
médio, pressuposto pela recorrente – ter a arguida, conjuntamente com o seu co-arguido, sido autora dos incêndios que
determinaram a sua detenção; juízo que saía ainda mais reforçado com a leitura das declarações do co-arguido.
O despacho de 27.08.2004, onde se decidiu manter a prisão preventiva aplicada à arguida, por se considerar que
os pressupostos de facto e de direito que determinaram a sua aplicação se mantinham inalterados, procedeu a uma análise
exaustiva dos fundamentos avançados pela mesma arguida, concluindo que os elementos por esta “agora trazidos aos
autos não trazem novos factos que sejam susceptíveis de infirmar os indícios constantes dos autos e já apreciados pelo

131
Tribunal”. E este despacho, de que a arguida interpôs recurso, foi mantido pela Relação de Évora, por acórdão de
14.12.2004, no qual se escreveu, inter alia, o seguinte:
Nestes termos, os fortes indícios da prática pela arguida do crime de incêndio não se encontram minimamente
fragilizados com os documentos juntos aos autos, pelas razões mencionadas [destaque de nossa autoria; cfr. n.º 10 dos
factos assentes].
No despacho de 14.09.2004 (n.º 11 da matéria de facto assente), que igualmente manteve a prisão preventiva da
arguida, foi devidamente fundamentada a decisão, apreciando-se um fundamento por aquela invocado para alteração da
medida de coacção, que foi reputado legalmente insuficiente para o efeito. Também dele foi interposto recurso para a
Relação de Évora que, por acórdão de 18.01.2005, negou provimento ao recurso, mantendo intocado o despacho recorrido.
O despacho de 21.10.2004 é uma decisão de reexame dos pressupostos da aplicação da medida de coacção,
nos termos do art. 213º do CPP. Nele se exarou, no respeitante à arguida, que “resultaram inalterados os pressupostos de
facto e de direito que levaram à decretação da medida de prisão preventiva que lhe foi aplicada”, e, por isso, foi
determinado, por subsistência dos aludidos pressupostos, que continuasse a aguardar os ulteriores termos do processo na
situação em que se encontrava.
É bom de ver que, relativamente a tais despachos, inalterados que se achavam os fundamentos indiciários que
serviram de suporte ao decretamento da prisão preventiva, não pode falar-se da inexistência de fortes indícios da prática,
pela arguida, do crime de incêndio, e menos ainda, como seria exigível, da sua inexistência manifesta.
Claudica, pois, a matéria vertida nas conclusões 12ª a 18ª da alegação da recorrente. Não é demais repeti-lo: não
se demonstra a alegada inexistência de fortes indícios; menos ainda se pode afirmar, como seria necessário, a sua
manifesta inexistência.

3.3. Nas conclusões 19ª, 20ª e 21ª visa a recorrente o despacho judicial de 02.12.2004, que manteve a prisão
preventiva, sustentando que, na data da sua prolação, os indícios existentes encontravam-se já enfraquecidos pela
existência de prova em contrário, designadamente pela rectificação do depoimento de uma testemunha e pelos
depoimentos de duas outras – CC Rodrigues, com quem ela, recorrente, confessadamente mantinha uma relação amorosa,
e DD (ou MA?), de quem era esposa ou com quem vivia em união de facto.
De acordo com a recorrente, este despacho incorre em erro grosseiro, também porque do incêndio de maiores
dimensões deixaram de existir quaisquer indícios nos autos de inquérito.
Todavia, não existe nos presentes autos prova do que a recorrente afirma, não sendo de sufragar o afirmado, mas
indemonstrado, enfraquecimento ou amolecimento dos fortes indícios que justificaram a aplicação da medida de coacção
mais gravosa.
E da leitura do criticado despacho (n.º 16 dos factos assentes) constata-se que nele foram apreciadas e
decididas, com a exigível fundamentação, as questões que o deviam ser, tendo-se concluído, no que aqui importa, pela
forma seguinte:
Em conformidade, mantendo-se inalterados os pressupostos que determinaram a aplicação à arguida da medida
de prisão preventiva e fundamentaram as posteriores decisões de manutenção, indefere-se o requerido.
Não há nestes autos – reafirma-se – prova de que este despacho tenha desvalorizado quaisquer factos novos
com virtualidade para pôr em causa aqueles que serviram de arrimo ao decretamento da prisão preventiva.
O que significa que nenhum proveito pode a recorrente auferir da matéria das conclusões acima indicadas.

3.4. Alvo seguinte da censura da recorrente são os despachos judiciais de 19.01.2005 e de 17.02.2005, como flui
das considerações vazadas nas conclusões 22ª e 23ª.
Sucede, porém, que tais despachos não integram a matéria de facto que vem provada das instâncias – por isso
mesmo, para que dúvidas não se suscitassem, se procedeu ao fastidioso trabalho de a reproduzir, em vez de se optar pelo
cómodo recurso à remissão consentida pelo n.º 6 do art. 713º, aplicável ex vi do art. 726º, ambos do CPC.
Ora, como é sabido, como regra o Supremo só decide sobre matéria de direito, não podendo, a não ser nos
casos excepcionais contemplados no n.º 2 do art. 722º do mesmo diploma – que não se verificam no caso em apreço –
alterar a decisão das instâncias sobre a matéria de facto (art. 729º/2).
E mesmo recorrendo aos documentos (não impugnados) juntos com a p.i., a que a recorrente faz alusão, não é
possível validar a asserção afirmada na primeira das aludidas conclusões, sendo que, quanto à outra, o que pode dizer-se
é que não existe uma relação de causa-efeito entre a declaração de inimputabilidade do co-arguido (aliás, posteriormente
revogada) e a alteração da medida de coacção da arguida, ora recorrente: a primeira não implicava necessariamente a
segunda.

3.5. E que dizer dos despachos judiciais de 15.04.2005, 22.04.2005 e 13.07.2005, que mantiveram a prisão
preventiva e que, no dizer da recorrente, enfermam de erro grosseiro muito grave na avaliação dos pressupostos de facto
de que dependia a manutenção da prisão preventiva?
A extrema gravidade do erro grosseiro com que a recorrente estigmatiza os ditos despachos decorreria:

132
a) da não existência de qualquer indício da prática, por ela recorrente, do crime que lhe era imputado, já que o
único indício que restava eram as declarações do co-arguido, que já se sabia ter a idade mental de sete anos;
b) os pressupostos determinantes da prisão preventiva de um e outro foram exactamente os mesmos, pelo que
se em relação ao co-arguido (que, entretanto, voltara a ser havido como imputável) já não se verificavam os requisitos
legais dos arts. 202º e 204º do CPP, tendo ficado apenas sujeito a TIR, nada justificava a manutenção da prisão preventiva
da recorrente.
Acrescenta a recorrente que, ao interpretarem aqueles preceitos no sentido de a manter em prisão preventiva,
tais despachos são inconstitucionais, por violarem o disposto no art. 13º da Constituição.
Pois bem:
Relativamente ao primeiro e terceiro daqueles despachos, eles não integram a matéria de facto que vem, das
instâncias, dada como provada.
Vale, pois, quanto a eles, mutatis mutandis, o que se deixou referido no n.º anterior.
Ademais, a afirmação primeira da recorrente não encontra ressonância nem no inquérito nem nos presentes
autos. O despacho de 22.04.2005, que foi precedido da análise do processo pelo Ex.mo JIC, considerou que se mantinham
sem alteração os pressupostos de facto e de direito que levaram à imposição da prisão preventiva e justificaram as
posteriores decisões de manutenção. E tal despacho foi objecto de recurso, tendo a Relação de Évora, por acórdão de
25.07.2005, considerado que não existiam factos novos, a tal respeito, não podendo nem devendo contrariar-se o
anteriormente decidido, “até por falta de fundamento bastante para o efeito”. Ponderou ainda que a prisão preventiva se
afigurava “como a única medida adequada e proporcionada, tendo em conta a gravidade dos crimes em causa e as
sanções previsivelmente aplicadas”, acrescentando que “a manterem-se os elementos de prova existentes nos autos é de
prever como bem possível a condenação da recorrente pela prática dos crimes de que vem acusada”. Por isso mesmo
rematou com a conclusão de não se poder alterar a medida de coacção fixada, a coberto do disposto no art. 212º do CPP,
por inexistir fundamento para tanto, e negou provimento ao recurso.
Não temos razão – à míngua de factos que apontem em sentido diverso – para pôr em causa o bem fundado das
ditas decisões – a da 1ª instância e a da Relação – pelo que não cabe senão, hic et nunc, referenciar o desvalor da
afirmação contida na antecedente alínea a).
No que tange ao segundo dos fundamentos [supra, sub al. b)]:
A conclusão aí avançada pela recorrente é, ressalve-se o devido respeito, claramente errónea.
Os pressupostos e requisitos de aplicação (ou manutenção) da prisão preventiva não são de funcionamento
automático. Uma e outra não prescindem da análise do caso concreto, nas circunstâncias fácticas que o rodeiam, nem são
indiferentes à personalidade do sujeito/arguido. O mesmo crime, praticado em co-autoria por dois sujeitos, pode exigir para
um a aplicação da medida de prisão preventiva, por ser qualquer outra medida inadequada ou insuficiente, e para o outro
uma medida de coacção muito menos gravosa; se aplicada a ambos, pode, em dado momento, justificar a manutenção da
medida quanto a um e impor a sua revogação ou alteração quanto ao outro.
Cada homem é um homem ... La Palisse diria!
Mas esta óbvia verdade serve para pôr a nu a fragilidade do argumento em apreço.
Basta atentar nas diferenças, designadamente ao nível psicológico e psiquiátrico, existentes entre a ora
recorrente e o seu co-arguido no processo-crime, para logo se intuir que o facto de a este haver sido substituída a prisão
preventiva por outra medida de coacção não impunha que idêntico procedimento fosse seguido em relação àquela. A
recorrente negou os factos, enquanto o seu co-arguido os confessou; a recorrente é uma pessoa de forte personalidade e
determinada, contrariamente ao seu co-arguido, seu subordinado e de personalidade frágil e inteligência limitada; e, tendo
sido declarado inimputável relativamente ao crime de incêndio, tal implicava a cessação da medida de coacção privativa de
liberdade a que vinha sendo sujeito.
Não existe, pois, interpretação, no(s) despacho(s) em apreço, das normas dos arts 202º e 204º do CPP, que
afronte o disposto no art. 13º do diploma constitucional, que consagra o princípio da igualdade.
Este princípio tem sido objecto de largo tratamento doutrinal e jurisprudencial. Em apertada síntese, pode dizer-se
que ele se reconduz à proibição do arbítrio e da discriminação, já que postula que se dê tratamento igual a situações de
facto essencialmente iguais e tratamento desigual a situações de facto desiguais, e, inversamente, proíbe que se tratem
desigualmente situações iguais e de modo igual situações desiguais.
Ou seja: o princípio não impede a diferenciação de tratamento, mas apenas a discriminação arbitrária, as
distinções de tratamento que não tenham justificação e fundamento material bastante.
Como se refere em Parecer da PGR, que recorre a uma fórmula adoptada pela jurisprudência constitucional
alemã, “o princípio da igualdade será violado se um grupo de destinatários da norma, em comparação com outros
destinatários da norma, é tratado de modo diferente sem que existam entre os dois grupos diferenças de tal natureza e de
tal peso que possam justificar o tratamento desigual” (10).
Não é, manifestamente, como resulta do que acima ficou referido, o caso vertente.
E também não se vê como possa haver-se por afrontado, nos aludidos despachos, o princípio da presunção de
inocência, também ele com assento constitucional (art. 32º/2).

133
Não se duvida de que o arguido em prisão preventiva goza de uma presunção de inocência, e que esse estatuto
o acompanha em todas as fases do processo, até ao trânsito em julgado da sentença de condenação: a presunção de
inocência constitui, sem dúvida, uma regra de tratamento a dispensar ao arguido ao longo do processo.
Mas, não enfermando o(s) despacho(s) visado(s) do vício que lhes é imputado – já que não se demonstra, nem
se aceita que, no momento da sua prolação, tivesse havido alteração das circunstâncias de facto que justificaram a
emissão do despacho inicial (o que decretou a prisão preventiva) e que impusessem a cessação desta – não logra
fundamento a imputada violação de tal princípio.
É irrefutável que a presunção de inocência ao longo do processo não briga com a aplicação e manutenção da
prisão preventiva.
O tempo em que a doutrina e a jurisprudência de alguns países, levando ao extremo o teor literal da expressão
«presunção de inocência», chegaram a defender que esta invalidaria toda e qualquer prisão preventiva (questão que
chegou a ser discutida em países como a Itália e a Alemanha) passou há muito. Hoje ninguém defende – e a recorrente, é
justo salientá-lo, também não o faz – um entendimento tão radical do princípio da presunção de inocência que nele
vislumbre um obstáculo intransponível à existência da prisão preventiva, e menos ainda que, como sucedeu durante o
nazismo alemão e o fascismo italiano, se deva abrir mão deste princípio, a pretexto da sua alegada incompatibilidade com
a prisão preventiva (que dessa, sim, não poderia abdicar-se).
Num Estado de Direito democrático, em que o objectivo fundamental será o de promover e assegurar a defesa da
dignidade da pessoa humana, não pode, obviamente, vingar um tal ideário. Por isso, razão tem a recorrente quando
assinala que, do princípio constitucional da presunção de inocência, deve decorrer a proibição de submeter uma pessoa a
medidas de coacção restritivas da liberdade quando, relativamente aos factos que lhe são imputados, persistem dúvidas
razoáveis, em termos de não se poder afirmar a existência de fortes indícios da prática, por ela, dos factos que lhe são
imputados.
Só que, como ficou demonstrado, não é essa a situação de que a recorrente, no caso em apreço, pode valer-se.

3.6. Ainda relacionado com a questão tratada no n.º anterior, vale acrescentar que o acórdão recorrido não se
sujeita à crítica que a recorrente lhe endereça nas conclusões 28ª a 30ª.
Na verdade, não se limitam às referências deixadas pela recorrente na primeira de tais conclusões – o que, em
rigor, significaria verdadeira omissão de pronúncia imputável à Relação – as considerações a propósito tecidas no acórdão
ora recorrido.
Para além do trecho transcrito na conclusão 28ª, a Relação disse ainda:
Mas, ainda assim, somos levados a dizer que face aos manifestos indícios que apontavam para a prática pela
autora de um crime de incêndio, a prisão preventiva que foi aplicada à autora mostrava-se como a medida de coacção mais
adequada à situação para qualquer juiz minimamente cuidadoso e diligente.
Em nosso entender nem sequer se colocava uma situação de ambiguidade resultante, como tantas vezes
acontece, duma factualidade duplamente significante, a impor-lhe alguma prudência na aplicação da medida residual, antes
a medida aplicada se impunha, sob pena de ninguém poder ser preso preventivamente, por, no limite, toda e qualquer
prisão preventiva não confirmada em julgamento poder constituir o Estado na obrigação de indemnizar.
E, em sede de julgamento, não se apuraram factos que, a projectarem-se na decisão que manteve a autora
detida até ao acórdão absolutório, nos leve a considerá-la como ferida de manifesta ilegalidade ou de erro grosseiro sobre
os pressupostos de facto.

3.7. Nada mais certo, como vem sendo jurisprudência deste Supremo Tribunal, do que aquilo que a recorrente
expressa na conclusão 31ª.
Efectivamente, o juízo sobre o erro grosseiro na valoração dos pressupostos de facto determinantes da prisão
preventiva, a formular em momento posterior, faz-se sempre em função do momento e das circunstâncias em que a
decisão foi proferida, ou seja, tem por base os factos, elementos e circunstâncias que ocorriam na ocasião em que a prisão
preventiva foi decretada ou mantida.
E certo é também que o facto de o arguido sujeito a prisão preventiva legalmente decretada vir a ser
posteriormente absolvido em julgamento, por não provados os factos que lhe eram imputados, e colocado em liberdade, é,
por si só, insusceptível de revelar a existência de erro grosseiro por parte de quem decretou a aludida medida de coacção,
e, por isso, não implica, só por si, a possibilidade de indemnização nos termos do art. 225º n.º 2 do CPP.
Quer a doutrina (11), quer a jurisprudência deste Supremo Tribunal (12) , têm evidenciado esta asserção.
Não vemos, porém, que o acórdão recorrido haja postergado ou feito tábua-rasa destes princípios, e
designadamente (como refere a recorrente na sua conclusão 32ª), haja feito interpretação inconstitucional – por afrontosa
das normas constitucionais dos arts. 22º e 27º/3.b) e 5 – do art. 225º do CPP no sentido de que a apreciação do erro
grosseiro na verificação dos pressupostos de facto de que dependia a manutenção da prisão preventiva não pode reportar-
se à análise da existência ou não de fortes indícios no momento da prolação da respectiva decisão.
Não vemos plasmada no texto do acórdão uma tal interpretação.

134
O que vemos é antes a afirmação de que “as decisões postas em crise, proferidas no âmbito do processo crime,
na altura em que foram proferidas, face aos factos e relatos existentes nos autos, foram sensatamente tomadas, (...) e não
estão verificados os pressupostos constitutivos da obrigação de indemnizar, requeridos pela autora ... não se pode concluir
que, judicialmente absolvida, a autora não praticou os factos que lhe eram imputados” (sublinhado nosso).
E mais adiante, louvando-se em considerações da sentença da 1ª instância, continua:
(...) não houve qualquer erro judiciário, fundador e justificativo da decisão de prisão preventiva e da sua
manutenção, até ao julgamento que absolveu a autora (...).
Condensando, e para finalizar, à luz da ponderação de facto e de direito, que acaba de efectuar-se, reportada aos
elementos estruturantes da acção, não ocorreu, como não se manteve, uma prisão preventiva inocente – causa de pedir –
geradora do pedido de um crédito sobre o Estado, a benefício da autora.
(...)
Não houve erro nem ilegalidade perante os pressupostos verificados ao tempo da prisão e durante a sua
manutenção, até ao julgamento (sublinhado nosso).
E finalmente, pode ainda ler-se no acórdão sob censura:
(...) apreciando o despacho que determinou a prisão preventiva da recorrente, ele é rico na descrição de factos
que indiciavam a recorrente como autora de um crime de incêndio, pelo que a decisão tomada não assentou de forma
alguma em erro grosseiro ou temerário na apreciação daqueles..
Depois, perante os elementos constantes dos autos, também os despachos de reexame da medida de coacção
mostram que foram ponderadas as alegações da ora recorrente nos requerimentos em que pedia a substituição da prisão
preventiva por outra medida de coacção, concluindo depois com apelo aos factos indiciados e que não se mostravam
contrariados nos autos (sublinhado nosso).
Face ao exposto, não resulta da factualidade assente a existência de erro grosseiro ou temerário na apreciação
dos pressupostos de facto que determinaram a decretação (e a posterior manutenção) da prisão preventiva, condição
indispensável ao atendimento da pretensão da recorrente.
Fica, assim, com a transcrição acabada de fazer, esconjurada a arguida inconstitucio-nalidade.

3.8. A recorrente sustenta ainda que do próprio acórdão absolutório, proferido no processo-crime, se pode extrair
a conclusão da existência de erro grosseiro na aplicação dos pressupostos de facto de que dependia a aplicação da prisão
preventiva, pois que nele se faz como que o resumo de toda a prova que existia nos autos, que evidencia que nunca
existiram nos autos indícios suficientes da prática do crime pela arguida, não tendo sido, por outro lado, a absolvição
fundada no princípio in dubio pro reo. Daí o erro grosseiro, não apenas da decisão de aplicação da prisão preventiva, como
dos despachos posteriores que a mantiveram.
É a matéria das conclusões 33ª a 37ª.
Que dizer?
Antes de mais, que têm aqui plena pertinência as considerações que supra se deixaram expressas (sub 3.2.): a
imposição da prisão preventiva na ausência de indícios (recte, de «fortes indícios») configuraria, não um erro grosseiro,
mas uma verdadeira ilegalidade.
Depois, que a afirmação da recorrente – de que do acórdão absolutório se retira que nunca existiram nos autos
do processo criminal indícios suficientes da prática do crime – é uma conclusão que só vincula a própria recorrente, e que
não podemos acolher, desmentida que é pela existência do leque indiciário referenciado nos despachos transcritos nos
n.os 2 e 4 dos factos assentes.
Finalmente, que no acórdão penal absolutório não ficou provado que a ora recorrente não tenha sido autora dos
crimes por que foi acusada.
Isto mesmo decorre da transcrição que a recorrente exarou na conclusão 35ª. O que se escreveu no dito acórdão
foi que não resulta dos factos provados que os arguidos, ou qualquer deles, tenham ateado fogo ou provocado incêndio;
não se escreveu que dos factos provados resulta que os arguidos, ou qualquer deles, não ateou fogo nem provocou
incêndio – e só esta conclusão significaria a comprovação da efectiva inocência da ora recorrente.
Mal se entende, por isso, a persistência, o afã com que a recorrente, nas conclusões 35ª, 36ª e 37ª, intenta
demonstrar o indemonstrável – isto é, que a sua absolvição não é decorrência do princípio in dubio pro reo.
Como salienta M. Maia Gonçalves, os tribunais, em caso da absolvição por carência de prova, só em casos
extremos e sem margem para dúvidas declaram que o arguido está inocente, por estar provado que não praticou os factos
que integram o crime. “Declaram antes, em atenção ao princípio in dubio pro reo, não se provar que os praticou; o que não
significa que os não tenha praticado. E assim, em tais casos, não estará provado que o arguido não foi agente do crime;
simplesmente não se fez prova bastante de que o tivesse sido, sem que no entanto tivesse feito prova de que o não tivesse
sido” (13).
O acórdão referido não deixa dúvidas quanto ao seu sentido. Não se vislumbra nele uma palavra no sentido de
inocentar os arguidos – no sentido, isto é, de afirmar que não foram eles (ou algum deles) que atearam fogo ou provocaram
os incêndios.

135
A frase transcrita pela recorrente – “Dos factos provados não resulta que os arguidos, ou qualquer deles, tenha
ateado fogo ou provocado incêndio” – tem implícita, como lógico complemento, estoutra: “nem resulta provado que o não
tenham feito”. Daí a inevitável absolvição dos réus. É, em todo o seu esplendor – queira a recorrente ou não – o
funcionamento do aludido princípio in dubio pro reo.

3.9. Já acima (n.º 3.1.) ficou expresso o nosso entendimento de que a nova redacção do art. 225º não é aplicável
ao caso sub judicio, por força dos princípios válidos em matéria de aplicação das leis no tempo.
Face à inaplicabilidade deste aludido preceito, e designadamente da nova al. c) do seu n.º 1, deixa de se
justificar, ficando prejudicado, o conhecimento da questão respeitante à eventual verificação dos pressupostos do direito à
indemnização, nos termos da citada alínea, e da eventual inconstitucionalidade, por violação do princípio da presunção de
inocência, da interpretação da referida norma no sentido mencionado nas conclusões 38ª e 39ª (art. 660º/2, 1ª parte,
aplicável ex vi dos arts. 726º e 713º/2, todos do CPC).
Nada se dirá, por isso, a tal respeito.

3.10. De tudo quanto precede, já resulta – julgamos que de modo claro – que também a imputação, ao acórdão
recorrido, de violação do disposto no art. 11º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e no n.º 5 do art. 5º da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem carece de fundamento.
O preceito da DUDH, consagrando o princípio da presunção de inocência, não vai além do que preceitua o n.º 2
do art. 32º da Constituição; e a norma da CEDH («Qualquer pessoa vítima de prisão ou detenção em condições contrárias
às disposições deste artigo tem direito a indemnização» - é o seu texto), nada aditando ao consignado no n.º 5 do art. 27º
do diploma fundamental, só poderá haver-se por ofendida se o for também este preceito constitucional.
Ora, já acima ficou explanado o entendimento de que não ocorreu, in casu, violação do predito princípio da
presunção de inocência (da arguida). Quanto à CEDH, importa reiterar que, de acordo com a alínea c) do n.º 1 do seu art.
5º, qualquer pessoa pode ser presa ou detida «a fim de comparecer perante a autoridade judicial competente, quando
houver suspeita razoável de ter cometido uma infracção, ou quando houver motivos razoáveis para crer que é necessário
impedi-lo de cometer uma infracção ou de se pôr em fuga depois de a ter cometido», o que, cobrindo, sem dúvida, as
situações de prisão preventiva, o faz até em termos menos rigorosos que os consagrados nos arts. 27º/3.c) e 28º da
Constituição, o que também aponta, neste ponto, para a conclusão de que não é possível violar a dita Convenção sem
simultaneamente ofender a Constituição da República Portuguesa.
Acresce que o n.º 5 do art. 27º da nossa Constituição garante indemnização por privação por liberdade contra o
disposto »na lei», e, para este efeito, a aludida Convenção cabe neste conceito de «lei» (14), que, como também já ficou
demonstrado, não se mostra que tenha sofrido entorse com os despachos proferidos no processo-crime, que determinaram
e mantiveram a prisão preventiva da arguida.
Improcede, pois, a matéria da conclusão 40ª.

3.11. A última questão suscitada nas exaustivas e brilhantes alegações da recorrente convoca esta ideia-força: a
aplicação do art. 5º da CEDH na ordem jurídica impõe que uma pessoa sujeita a prisão preventiva da qual decorram
especiais danos e que venha a ser absolvida deverá ter sempre jus a uma indemnização.
Funda-se a recorrente em orientação jurisprudencial que, conforme refere, defende que, se decorrer da aplicação
dos arts. 27º, n.º 5 da Constituição e 225º do CPP que a prisão preventiva não resultou, na situação em concreto, de erro
grosseiro, haverá que enfocar o “thema decidendum” de uma diferente perspectiva – a do art. 22º da Constituição, cujo
âmbito normativo-material não pode deixar de abranger as hipóteses de responsabilidade por actos lícitos, aí incluída a
responsabilidade por facto da função jurisdicional traduzido em acção ou omissão, que venha a revelar-se materialmente
indevida e de que resulte lesão para os direitos dos cidadãos, podendo apenas a lei exigir certos requisitos quanto ao
prejuízo ressarcível (v.g., a exigência de um dano especial e grave).
Haveria uma relação de complementaridade da previsão específica do n.º 5 do art. 27º relativamente à previsão
genérica do art. 22º, não representando o primeiro senão um alargamento da responsabilidade do Estado já consagrada no
segundo; e a concretização, a nível infra-constitucional, da responsabilidade das entidades públicas (entre elas, o Estado)
vazada no dito art. 22º, constaria do art. 9º do Dec-lei 48.051, de 21.11.67.
Este entendimento é tributário do pensamento de certa doutrina (15), segundo a qual a Constituição confere o
direito de indemnização independentemente de culpa, não podendo o legislador ordinário limitar a responsabilidade do
Estado aos casos típicos de prisão preventiva ilegal ou injustificada – doutrina que, no entanto, não tem logrado grande
ressonância na jurisprudência deste Supremo Tribunal, onde apenas parece ter tido acolhimento nos dois acórdãos citados
(aliás deficientemente) pela recorrente: o acórdão de 12.11.98 (Proc. 98B795) e o de 11.03.2003 (Proc. 03A418) (16).
Na verdade, a jurisprudência largamente dominante (17) diverge de tal modo de ver.
E não vemos motivos para dela nos afastarmos, afigurando-se-nos que podemos, para tanto, encontrar algum
arrimo na lição de Gomes Canotilho/Vital Moreira (18).

136
Assinalam estes ilustres Professores que o normativo do art. 22º parece não abranger a chamada
responsabilidade por actos lícitos. E tal postularia – dizemos nós – a sua não aplicação a casos em que foi aplicada prisão
preventiva, de forma legal, mas em que, a final, ocorreu absolvição.
É que, admitindo que o art. 22º constitui também fundamento constitucional quanto à responsabilidade do Estado
por facto de função jurisdicional, não deixam estes autores de considerar que a Constituição prescreve, expressis verbis, a
indemnização no caso de privação inconstitucional ou ilegal da liberdade (mesmo quando decretada por um juiz) e nos
casos de condenação injusta, como, por exemplo, nas hipóteses de erro judiciário (arts. 27º/5 e 29º/6); e, por isso, para
além destes casos, o princípio geral (do art. 22º) da responsabilidade do Estado por facto da função jurisdicional deve valer
“sempre que das acções ou omissões ilícitas praticadas por titulares de órgãos jurisdicionais do Estado, seus funcionários
ou agentes resultem violações de direitos, liberdades e garantias ou lesões de posições jurídico-subjectivas (ex: prisão
preventiva ilícita, prescrição de procedimento, não prolação de uma decisão jurisdicional num prazo razoável)” (nosso o
sublinhado).
Mas, a não se entender que o âmbito do art. 22º se cinge à responsabilidade do Estado por actos ilícitos, então
dir-se-á, como no acórdão de 19.10.2004, que o aludido preceito constitucional consagra genericamente um direito a
indemnização por lesão de direitos, liberdades e garantias – não se confinando nos limites da responsabilidade do Estado
por actos ilícitos, de natureza legislativa ou jurisdicional – enquanto o art. 27º, no seu n.º 5, “consagra expressamente o
princípio de indemnização de danos nos casos de privação inconstitucional ou ilegal da liberdade (ex: prisão preventiva
injustificada, prisão ordenada por autoridade judicial sem o «processo devido»), o que representa o alargamento da
responsabilidade civil do Estado (cfr. art. 22º) a factos ligados ao exercício da função jurisdicional, não se limitando esta
responsabilidade ao clássico erro judiciário (cfr. art. 29º/6)” (19.
Assinala-se, assim, ao n.º 5 do art. 27º um domínio especial ou específico de aplicação, confinado, no
alargamento daquela responsabilidade, aos casos de privação de liberdade do cidadão, “nos termos em que a lei a
estabelecer”. Neste domínio regeria a norma especial (a do n.º 5 do art. 27º) e não a norma geral (a do art. 22º): nesta
estaria consagrado, em geral, o princípio da responsabilidade civil do Estado «por acções ou omissões praticadas no
exercício da suas funções e por causa desse exercício»; naquela, como já ficou referido, o princípio da responsabilidade do
mesmo Estado por danos nos casos específicos de privação inconstitucional ou ilegal da liberdade.
Por outras palavras (que são as do Ac. do Trib. Const. n.º 160/95, de 15.03.95, já citado):
“No quadro do mesmo instituto jurídico da responsabilidade civil do Estado, o art. 22º regula essa
responsabilidade, em geral; e o art. 27º, n.º 5, regula-a para a situação específica de «privação da liberdade contra o
disposto na Constituição e na lei».
E, por ser assim, a relação de especialidade em que o art. 27º, n.º 5 se encontra, no confronto com o art. 22º,
conduz a que este último não seja invocável no âmbito do campo de intervenção daquele, ou seja, em matéria de danos
resultantes da privação da liberdade contrária à Constituição ou à lei (20)(21).
Face ao disposto no aludido art. 27º, n.º 5 e também no art. 225º do CPP (22), não é de aceitar – como se
concluiu no assinalado Acórdão de 27.11.2003 – “a imputação ao Estado, referida ao art. 22º da Constituição (...), de uma
responsabilidade objectiva geral por actos lícitos praticados no exercício da função jurisdicional, em termos de abranger,
para além do clássico erro judiciário, a legítima administração da justiça, em sede de detenção e de prisão preventiva legal
e justificadamente efectuada e mantida; nem sequer a aplicação, sem outra exigência (...), do regime geral ou comum da
responsabilidade civil extra-contratual previsto nos arts. 483º e 562º do CC”.
“Não sendo [o art. 27º, n.º 5] uma norma programática, mas antes uma norma que estabelece um direito concreto
(...), é também inequívoco que deixa ao legislador ordinário a “margem de liberdade” legislativa própria dos poderes
legiferantes consagrada num Estado de Direito, no sentido de estabelecer, através da lei, quais os requisitos que, violados,
despoletam o direito à indemnização por violação desse direito.
Essa opção foi efectuada pelo legislador de 1987 ao estabelecer os requisitos que sustentam a admissibilidade
do direito de indemnização através do mecanismo do artigo 225º do CPP” (23).
De tudo decorre, em direitas contas, que não assiste à recorrente o direito de reclamar do Estado o pagamento
de indemnização com fundamento apenas em ter sofrido prisão preventiva – obedecendo as decisões que a decretaram e
que a mantiveram aos pressupostos legais, e sem que nelas se haja detectado erro na apreciação das circunstâncias de
facto que lhes serviram de suporte – mesmo tendo sido, a final, absolvida do(s) crime(s) por que vinha acusada.
Como a própria reconhece, a prisão preventiva não é injustificada, e menos ainda por erro grosseiro, só porque
quem a sofre vem a ser absolvido: a circunstância de a recorrente ter sido absolvida, por falta de prova do cometimento do
ilícito que lhe era imputado é insusceptível, só por si, de revelar o erro grosseiro de quem ordenou e manteve tal medida de
coacção.
Improcedem, pois, as conclusões do recurso, não se mostrando violados os preceitos indicados pela recorrente.
4.
Nestes termos, nega-se a revista.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 11 de Setembro de 2008

137
(A. Santos Bernardino)
(Bettencourt de Faria)
(Pereira da Silva)
-----------------------------------------------------------------------------------------
(1) Acórdão de 29.01.1008, proferido no Proc. 08B84, disponível em www.dgsi.pt.
(2) Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 686
(3) Parecer n.º 12/92, do Conselho Consultivo da PGR, de 30.03.92.
(4) Mouraz Lopes, estudo e loc. cits., pág. 87.
(5) In Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. 2º, Coimbra 1974, pág. 239.
(6) Aveiro Pereira, A responsabilidade civil por actos jurisdicionais, Coimbra 2001, pág. 213.
(7) São palavras de Mouraz Lopes, em A responsabilidade civil do Estado pela privação da liberdade decorrente
da prisão preventiva, na Revista do Ministério Público, ano 22º Out.- Dez. 2001, pág. 82.
(8) Neste sentido, Mouraz Lopes, estudo e loc. cits., pág. 89.
(9) Cfr. o estudo citado na nota anterior, pág. 84
(10) Cfr. Parecer n.º 14/2005, in DR, II Série, n.º 40, de 24.02.2006, fls. 2838.
(11) Mouraz Lopes, estudo e loc. cits., pág. 90.
(12) Cfr., por todos os Acs. de 19.09.2002, Proc. 02B2282, e de 29.01.2008, Proc. 08B84, ambos disponíveis em
www.dgsi.pt.
(13) In Código de Processo Penal Anotado, 16ª ed., Almedina Coimbra – 2007, pág. 516.
(14) Cfr. Ac. do Trib. Const. n.º 160/95, de 15.03.95, in BMJ 446 (Suplemento), pág. 584 e ss. (606/607).
(15) Luís Guilherme Catarino, A responsabilidade do Estado pela Administração da Justiça, págs. 355 e 380, Rui
Medeiros, Ensaio sobre a responsabilidade civil do Estado por actos legislativos, págs. 105/106, João Aveiro Pereira,
Responsabilidade civil por actos jurisdicionais, pág. 215.
(16) Ambos disponíveis em www.dgsi.pt; o primeiro acha-se ainda publicado na Col. Jur. – Acs. do STJ, VI, t. 3,
pág. 112.
(17) Cfr. os Acs. STJ de 03.12.98 (Proc. 98B864), de 09.12.99 (Proc. 99A762), de o6.01.2000 (Proc. 99B1004),
de 04.04.2000 (Proc. 00A104), de 19.09.2002 (Proc. 02B2282), de 13.05.2003 (Proc. 03A1018), de 27.11.2003 (Proc.
03B3341), de 18.03.2004 (Proc. 04A1572), de 19.10.2004 (Proc. 04B2543) e de 22.01.2008 (Proc. 07A2381), todos
consultáveis em www.dgsi.pt, e ainda os de 11.11.99, na revista 743/99, da 2ª Secção e de 20.06.2000, na revista 433/00,
da 6ª Secção (estes dois últimos não os encontrámos naquele sítio, admitindo que por deficiência nossa).
(18) Cfr. Constituição da República Portuguesa anotada, vol. I, 4ª ed., págs. 430/431.
(19 Autores e ob. cits. na nota anterior, págs. 484/485.
(20) Cfr., neste sentido, o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 28.01.2003, in Col. Jur.- (21)Acs. do STJ, ano XI,
tomo I, pág. 52 (na capa deste vol. vem, por manifesto lapso, indicado que respeita ao ano XXVIII).
(22) Aqui considerado – como nas referências anteriores, e tal como acima se deixou explicitado – na redacção
anterior à introduzida pela Lei 48/2007, de 29 de Agosto.
(23) Mouraz Lopes, estudo e loc. cits., pág. 97.

Sobre responsabilidade do Estado, em geral, mesmo por actos lícitos , convém ver o Ac.
do STJ, de 28.4.98, BMJ 476-137, assim sumariado:

I - O artigo 22º da Constituição da República Portuguesa abrange a responsabilidade do Estado por acções ou
omissões praticadas no exercício da função jurisdicional de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou
prejuízo para outrem.
II - O direito de indemnização consagrado no artigo 22º da Constituição está sujeito ao regime dos direitos,
liberdades e garantias (artigo 17º da Constituição da República Portuguesa), sendo nessa medida uma norma dotada de
eficácia imediata, pelo que directamente aplicável, vinculando as entidades públicas e privadas e não dependendo de lei
para poder ser invocado pelo lesado (artigo 18º, nº 1, da Constituição da Replica Portuguesa).
III - No que concerne ao prejuízo causado a terceiros pelos órgãos, funcionários e gentes do Estado ou das
demais pessoas colectivas de direito público - responsabilidade extracontratual - rege o Decreto-Lei nº 48 051, de 21
de Novembro de 1967, cujo regime é aplicável ao pedido de indemnização por actos praticados por órgãos do Estado,
nomeadamente pelos tribunais.
IV - Nesta área de actividade de gestão pública, o Estado e as outras pessoas colectivas públicas respondem
civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses
resultantes, não só de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no
exercício das suas funções e por causa desse exercício (artigo 2º, nº 1, do Decreto - Lei nº 48 051), como também de
factos lícitos praticados em idênticas circunstâncias (artigo 9º, nº 1, do mesmo diploma legal).
V - O meio processual adequado para formular o pedido de indemnização a título de desvalorização de viatura
apreendida em processo crime e declarada perdida a favor do Estado, mas cuja restituição foi posteriormente ordenada,

138
não é a acção cível, mas sim recurso aos mecanismos previstos nos artigos 11º e 13º do Decreto-Lei nº 31/85, de 25 de
Janeiro, onde é facultada aos eventuais lesados a possibilidade de composição judicial do litígio no próprio processo onde
foi decretada a apreensão.
VI - Independentemente dessa desvalorização pode entender-se que a privação da viatura durante o período de
apreensão implica, nos dias de hoje, para o seu proprietário, encargos ou prejuízos que, sendo considerados especiais ou
anormais, envolvem a obrigação de indemnização por parte do Estado, a título de responsabilidade civil pela prática de
actos lícitos, nos termos do disposto pelos artigos 22º da Constituição da República Portuguesa e 9º, nº 1, do Decreto-Lei
nº 48 051, de 21 de Novembro de 1967.

No Boletim 485, a págs. 173 publica-se Ac. do STA, de 24.3.99, que na parte interessante
diz:

Conforme jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal, os pressupostos da responsabilidade civil


extracontratual da Administração por actos de gestão pública correspondem aos da responsabilidade civil de
índole privatística, consagrada no artigo 483.° do Código Civil.
Assim, constituem requisitos da obrigação de indemnizar, a cargo das autarquias locais:
a) - A prática por esta, através de um seu órgão ou agente, de um acto ilícito (positivo ou omissivo), no exercício
de funções públicas ou por causa delas (ilicitude);
b) - Que esse acto lhe seja imputável, a título de dolo ou mera culpa (culpa);
c) - Que dele tenham resultado prejuízos (dano).
d) - Verificação de um nexo de causalidade entre esse acto e os prejuízos (nexo causal).
A sentença recorrida considerou verificados in casu todos os referidos pressupostos e condenou o réu município,
ora recorrente, a pagar ao autor a quantia de 221148$00 a título de danos materiais, acrescida de juros desde a citação até
integral pagamento, bem como na quantia de 120 000$00, a título de danos morais.
A discordância do ora recorrente em relação ao decidido radica em três pontos:
- No montante atribuído a título de danos patrimoniais;
- No reconhecimento da existência de danos morais;
- Existência de culpa do autor na produção do acidente.

As partes estão, pois, de acordo relativamente à conduta ilícita do réu.


Com efeito, incumbe ao réu, por força das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 28.º da Lei n.º 2110, de 19 de
Agosto de 1961, 46º, n.º 1 e 3, 151º, nº 1, alínea h), e nº 4, alíneas a) e e), do Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março, e
ainda do artigo 3º, n.os 1 e 3, do Código da Estrada, então vigente, o dever de zelar pela conservação e reparação das
estradas a seu cargo, para bem da respectiva segurança e comodidade de circulação, bem como sinalizar de forma visível
todos os locais que possam oferecer perigo para a circulação rodoviária.
Ora, resultando provado dos autos que existia na faixa de rodagem um buraco com cerca de 1 m de diâmetro
e cerca de 20 cm de profundidade, que não estava sinalizado, por causa do qual já haviam ocorrido anteriormente vários
acidentes [n.os 3), 4) e 6) da matéria de facto], é indubitável a verificação do requisito da ilicitude, por violação dos deveres
de manter as vias nas devidas condições de segurança e no de sinalizar os obstáculos nelas existentes (cfr. artigo 6º do
Decreto-Lei nº 48 051, de 2l de Novembro de 1967).
E, face à definição ampla de ilicitude constante do citado artigo 6º do Decreto-Lei nº 48 051, torna-se difícil
estabelecer uma linha de fronteira entre os requisitos da ilicitude e da culpa, de tal modo que estando em causa a violação
de deveres como os acima referidos, violação essa que se manifesta através de uma conduta omissiva ilegal, o elemento
culpa dilui-se na ilicitude, isto é, a culpa assume o aspecto subjectivo da ilicitude que se traduz na culpabilidade do agente,
ainda que no caso em apreço não seja possível a sua individualização, tratando-se da chamada culpa de serviço ou
culpa administrativa - cfr. acórdãos deste Supremo Tribunal Administrativo de 10 de Março de 1988, recurso nº 25 468,
de 27 de Setembro de 1994, recurso nº 33 992, e de 17 de Dezembro de 1996, recurso nº 38 481.
Deste modo, os factos provados são suficientes para preencher os requisitos da ilicitude e da culpa.
Alega, porém, o recorrente, a este respeito, que o autor «foi o maior culpado, senão o único culpado, na produção
do acidente», pois «tinha obrigação de avistar o buraco e, se tal não sucedeu, foi porque conduzia sem a diligência a que
era obrigado ou não teve a perícia, a que também era obrigado, para evitar cair nele com o seu veículo».
Todavia, dos factos provados não resulta qualquer elemento donde se possa concluir a falta de diligência ou a
imperícia do autor, ou que a velocidade de 50 km/hora fosse excessiva para o local ou que o buraco em causa fosse visível
por forma a que um condutor normal, naquelas circunstâncias, pudesse evitar o acidente.
Por outro lado, de acordo com a corrente maioritária da jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo, é
aplicável à responsabilidade civil extracontratual das autarquias locais por acto ilícito de gestão pública a
presunção de culpa estabelecida no artigo 493º nº 1, do Código Civil - cfr., entre muitos, os acórdãos de 16 de Maio
de 1996...

139
Com base nesta presunção, o município responde pelos danos provocados em consequência
de acidente de viação ocorrido com veículo automóvel que caiu num buraco existente numa estrada
municipal, se não demonstrar que os seus agentes cumpriram o dever de fiscalizar e vigiar de forma
sistemática as condições de segurança e de conservação da via, designadamente sinalizando os
obstáculos nela existentes, por forma a prevenir acidentes.

Porém, o município ora recorrente não fez qualquer prova de cumprimento dos apontados deveres, antes
resultando dos factos provados que já haviam ocorrido outros acidentes no local, por causa do buraco existente na via, sem
que aquele tivesse, entretanto, tomado qualquer providência para os evitar.
É aplicável à responsabilidade do Estado, autarquias ou pessoas colectivas de direito público em geral o regime
do CC em tudo o que não esteja previsto naquele Dec-lei nº 48051 e não colida com os princípios nele acolhidos.

Também se entendeu aplicável a presunção do nº 1 do art. 493º CC (quem tiver em seu


poder coisa móvel ou imóvel )... estrada ou rua com tampa de saneamento levantada e que danifica
automóvel que nela bate) em acção contra a CM de Matosinhos, dona daquela rua no ac. STA, de
29.4.98, BMJ 476-157):

É aplicável à responsabilidade civil extracontratual das autarquias locais por acto ilícito de
gestão pública, a presunção de culpa estabelecida no artigo 493 º nº l, do Código Civil.

Outros casos:
Por atrasos de processos - T. Adm. - BMJ 454-423; Resp. por acto legislativo - BMJ 434-
396 - militares saneados; por legislação locatícia - Col. 97-II-91 e BMJ 489-320, atrás vistos ; por
omissão de legislação - caso do Aquaparque de Lisboa e acidente ali ocorrido - Col. 97-I-107 e RLJ
134-202 e despachantes oficiais.
O STA, em Ac. de 2.5.91, no BMJ 407- 234, entendeu que os exercícios de preparação
militar constituem actividade extremamente perigosa.

E em 1999 decidiu assim:

Responsabilidade civil extracontratual da Administração por actos de gestão pública — Falta de


sinalização de obstáculos nas vias públicas — Falta do serviço — Presunção de culpa

I - A responsabilização da Administração por factos ilícitos (acções ou omissões) no âmbito da gestão pública não
depende necessariamente da individualização, pelo lesado, dos representantes ou agentes da Administração a quem sejam
imputáveis factos ilícitos concretos, podendo também resultar da chamada «falta do serviço», naquelas situações em que
os danos verificados não são susceptíveis de serem imputados a este ou àquele comportamento em concreto de um
qualquer agente administrativo, antes são consequência do mau funcionamento generalizado do serviço administrativo em
causa.
II - É aplicável à responsabilidade civil extracontratual das autarquias locais por actos de gestão pública a
presunção de culpa consagrada no artigo 493.”, n.” 1, do Código Civil.
III - A sinalização de trabalhos em curso tem primacialmente em vista precaver os condutores da eventualidade
do surgimento de viaturas e máquinas em manobras e da presença de trabalhadores nas faixas de rodagem, bem como da
possível menor qualidade transitória do pavimento da via, mas não constitui sinalização adequada ao surgimento, a seguir
a uma curva, de uma tampa de esgoto de tal maneira sobre-elevada em relação ao pavimento adjacente que o veículo do
auto, ao passar sobre essa tampa, nela embateu com a sua parte inferior do que resultou a danificação da caixa de veloci -
dades - S.TA., 7.12.99, BMJ 492-236

Responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública


(resumo do regime anterior à Lei n.º 67/2007)
1. - Na ordem jurídica portuguesa, a matéria da responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública
tem assento constitucional.

140
Na verdade, o artigo 22º da Constituição, que estabelece o princípio geral da responsabilidade das entidades
públicas por danos causados aos cidadãos, dispõe, sob a epígrafe «Responsabilidade das entidades públicas»:

«O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos
seus órgãos, funcionários e agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse
exercício de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem.»

Por sua vez, o artigo 271º da Constituição, sob a epígrafe «Responsabilidade dos funcionários e agentes»,
determina, no n.º 1, que «os funcionários e agentes do Estado e das demais entidades públicas são responsáveis civil,
criminal e disciplinarmente pelas acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse
exercício de que resulte violação dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos, não dependendo a acção
ou procedimento, em qualquer fase, de autorização hierárquica»; segundo o n.º 4, a lei «regula os termos em que o Estado
e as demais entidades públicas têm direito de regresso contra os titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes».

2. - A responsabilidade civil extracontratual do Estado no domínio da função administrativa é ainda hoje regulada,
nuclearmente, pelo Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967, que define os termos da responsabilidade do
Estado e das demais pessoas colectivas públicas por factos ilícitos culposos, por factos casuais e por factos lícitos.
No que respeita à responsabilidade por factos ilícitos, o Estado responde perante terceiros pelas ofensas dos
direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de actos ilícitos
culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa
desse exercício (n.º 1 do artigo 2º), ficando com direito de regresso se os titulares do órgão ou os agentes culpados
houverem procedido com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se achavam obrigados em razão do
cargo (n.º 2 do artigo 2º).
Ainda no campo dos factos ilícitos, o artigo 3º refere-se à responsabilidade dos próprios titulares do órgão e dos
agentes administrativos quando excederem os limites das suas funções ou se, no desempenho destas e por sua causa,
tiverem procedido dolosamente, sendo, neste último caso, a pessoa colectiva solidariamente responsável com o titular do
órgão ou agente (n.º 1); em caso de procedimento doloso, o Estado e as outras pessoas colectivas de direito público
respondem solidariamente com os titulares dos órgãos ou agentes respectivos (n.º 2).

A articulação dos artigos 2º e 3º do Decreto-Lei n.º 48 051 com os artigos 22º e 271º da Constituição tem
suscitado dificuldades, defendendo-se quer a inconstitucionalidade daqueles artigos 11 quer a sua derrogação12
No actual quadro legal, podem configurar-se as seguintes situações13:
«a) Responsabilidade exclusiva da Administração (actos praticados com negligência leve);
b) Responsabilidade exclusiva da Administração com direito de regresso (actos praticados com negligência
grave);
c) Responsabilidade solidária da Administração (actos praticados com dolo);
d) Responsabilidade exclusiva dos titulares de órgãos, funcionários ou agentes (actos que excedam os limites das
funções).»

«A exemplo do que acontece no direito civil, são quatro os pressupostos do dever de indemnizar: o facto ilícito,
a culpa, o prejuízo e o nexo de causalidade , entendidos de modo idêntico à compreensão que deles é feita no direito
civil.»
Consideram-se ilícitos, para este efeito, «os actos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os
princípios gerais aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem
técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração» (artigo 6º).
A apreciação da culpa, nos termos do n.º 1 do artigo 4º do Decreto-Lei n.º 48051, é feita de acordo com o
disposto no artigo 487º do Código Civil, ou seja, «a culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um
bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso».
Quanto ao prejuízo, que tanto abrange o dano patrimonial como o dano não patrimonial, e no que respeita ao
nexo de causalidade, «sempre se entendeu que se deviam aplicar ao caso os princípios gerais do direito civil».

Os artigos 8º e 9º do Decreto-Lei n.º 48051 tratam, respectivamente, da responsabilidade fundada no risco e da


responsabilidade por factos lícitos.

11
25 - Rui Medeiros, Ensaio sobre a responsabilidade civil do Estado por actos legislativos; João
Caupers, Introdução ao Direito Administrativo.
12
- Fermiano Rato, em Dic. Jur. da Adm. Pública
13
- Carlos Cadilha, Revista do MºPº, Abril a Junho de 2001, n.º 86, pág. 10.

141
3. - Havendo danos decorrentes da actividade de gestão pública 14, o Estado responde por eles segundo as
normas do Decreto-Lei n.º 48 501 e perante os tribunais administrativos.
O Decreto-Lei n.º 129/8415, de 27 de Abril, que aprovou o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, atribui
aos tribunais administrativos de círculo a competência para conhecer das acções sobre responsabilidade civil do Estado,
dos demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos e agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública,
incluindo acções de regresso [alínea h) do n.º 1 do artigo 51º.

No que respeita à competência territorial para as acções relativas a responsabilidade civil extracontratual, o n.º 1
do artigo 55º daquele Estatuto estabelece que devem ser propostas:
a) no tribunal do lugar em que ocorreu o acto se tiverem por fundamento a prática de acto material;
b) no tribunal determinado por aplicação dos artigos 52º a 54º se tiverem por fundamento a prática de acto
jurídico;
c) no tribunal da residência habitual do réu, se se tratar de acções de regresso com fundamento na prática de
acto jurídico.
As acções propostas pelos particulares para efectivar a responsabilidade civil extracontratual da Administração
por danos resultantes de actos de gestão pública são acções condenatórias, que seguem os termos do processo civil de
declaração, na forma ordinária, conforme o disposto no artigo 72º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos,
aprovada pelo Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho.
É de notar que a Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 267/85, foi
entretanto revogada pela Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro, que aprovou o Código de Processo nos Tribunais
Administrativos, mas que só entrará em vigor em 1 de Janeiro de 2004. De todo o modo, o n.º 1 do artigo 5º da Lei n.º
15/2002 prescreve que «as disposições do Código de Processo nos Tribunais Administrativos não se aplicam aos
processos que se encontrem pendentes à data da sua entrada em vigor» - Parecer da PGR, de 7.6.2003, no DR, II, de
18.7.2003.

Responsabilidade civil do Estado pelo risco


Indemnização
Prejuízo especial e anormal

Parecer da PGR, de 1.9.2004, no DR, II, nº 222, de 20.9.2004 :


«A nossa ordem jurídica admite que a Administração, a par da responsabilidade fundada numa culpa que lhe é
imputada pelo carácter funcional da actividade ilícita causadora do prejuízo, possa incorrer em responsabilidade sem culpa,
fundada no risco originado por coisas, actividades ou serviços excepcionalmente perigosos, segundo o disposto no artigo
8.° do Decreto-Lei nº 48051, de 21 de Novembro de 1961.
Como salienta Vieira de Andrade, uma das novidades do Decreto-Lei nº 48 051 traduziu-se na consagração,
como princípio geral, da responsabilidade pelo risco (objectiva) por parte dos poderes públicos.
De entre os fundamentos avançados pela doutrina para alicerçar a responsabilidade objectiva destaca-se a teoria
do risco e o princípio da igualdade perante os encargos públicos.
A complexidade da vida económica e social do Estado moderno justifica a autorização de actividades que em
muitas situações acarretam um risco de danos muito superior ao normal, mas essenciais para a vida económica e a
colectividade.
Compreende-se, no entanto, que se responsabilizem as pessoas que as exercem perante os danos
eventualmente produzidos a terceiros, como uma espécie de contrapartida pelas vantagens auferidas pelo exercício de tais
actividades.
Emerge aqui como um imperativo de justiça o princípio geral segundo o qual quem retira vantagens de uma
actividade deve correr os riscos inerentes à mesma.
O princípio da igualdade perante os encargos públicos impede que se faça recair de forma desproporcionada
sobre determinados cidadãos as consequências graves do desenvolvimento de actividades perigosas mas socialmente
relevantes. É que tratando-se de actividades exercidas pela Administração Pública em benefício da colectividade, é justo
que seja esta a suportar os prejuízos que daí advierem.
Como ficou dito, a responsabilidade pelo risco ou por factos casuais que se dirige a toda a Administração Pública,
isto é, ao Estado e demais pessoas colectivas públicas, tem assento no artigo 8.° do Decreto-Lei nº 48 051.

14
- Actos praticados pelos órgãos ou agentes da Administração no exercício de um poder publico, ou
seja, no exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público, ainda que não
envolvam ou representem o exercício de meios de coerção» (cf. Ac. do T Conflitos, de 5.11.81, no
BMJ 311-195.
15
- Ver, adiante, a lei hoje vigente.

142
O artigo 8.° tem o seguinte conteúdo:

«O Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem pelos prejuízos especiais e anormais resultantes do
funcionamento de serviços administrativos excepcionalmente perigosos ou de coisas e actividades da mesma natureza,
salvo se, nos termos gerais, se provar que houve força maior estranha ao funcionamento desses serviços ou ao exercício
dessas actividades, ou culpa das vitimas ou de terceiro, sendo nesse caso a responsabilidade determinada segundo o grau
de culpa de cada um.»

A lei faz depender a obrigação de indemnizar da verificação de pressupostos positivos e negativos.


Em primeiro lugar, é necessário que, os prejuízos causados sejam especiais e anormais, exigindo-se nexo de
causalidade entre tais danos e o funcionamento de serviços excepcionalmente perigosos ou de coisas ou actividades da
mesma natureza.
Em segundo lugar, exclui-se a responsabilidade se os prejuízos especiais e anormais forem imputados a casos
de força maior estranha ao funcionamento desses serviços ou ao exercício dessas actividades, ou a culpa das vítimas ou
de terceiros por interrupção do nexo de causalidade.
O legislador não fixa aprioristicamente qualquer critério orientador do que deva ser considerado «prejuízo
especial e anormal» ou mesmo em relação ao que deva considerar-se por «serviços, coisas ou actividades
excepcionalmente perigosas».
A especialidade e a anormalidade do dano, exigidas pelo artigo 8º do Decreto-Lei nº 48 051, apresentam-se como
conceitos indeterminados que necessitam de urna mediação valorativa na sua aplicação aos casos concretos.
Segundo o Supremo Tribunal Administrativo «terá de ser o julgador a proceder em cada caso a essa qualificação,
colocando-se, por abstracção, no momento da prática do facto para, mediante um juízo ex post e ponderadas as
circunstâncias em que esta teve lugar, decidir se a fonte geradora dos danos - actividade, coisa ou ser viço - se reveste ela
mesma de perigo excepcional».
Referindo-se ao papel desempenhado pelos requisitos da anormalidade e da especialidade do prejuízo, referidos
nos artigos 8º e 9º do Decreto-Lei nº 48051, Gomes Canotilho pondera que a sua exigência «só pode fundar-se na
necessidade de um duplo travão ou limite:
1) Evitar a sobrecarga do tesouro público, limitando o reconhecimento de um dever indemnizatório do Estado ao
caso de danos inequivocamente graves;
2) Procurar ressarcir os danos que, sendo graves, incidiram desigualmente sobre certos cidadãos.»

Segundo o mesmo autor, na apreciação dos pressupostos da responsabilidade objectiva, o legislador visou
distinguir dois momentos perfeitamente diferenciáveis: «em primeiro lugar, saber se um cidadão ou grupo de cidadãos foi,
através de um encargo público, colocado em situação desigual aos outros; em segundo lugar, constatar se o ónus especial
tem gravidade suficiente para ser considerado sacrifício».
Temos, desta forma, que a especialidade decorre da incidência desigual do prejuízo sobre um cidadão ou grupo
de cidadãos. Se a incidência do prejuízo, ainda que grave, atingir a totalidade da população, é seguro não poder falar-se de
especialidade.
Se a Administração actua no interesse geral o risco inerente à perigosidade que caracteriza essa actuação e os
danos que daí possam advir devem ser suportados por todos os que beneficiam das vantagens dessa actuação, ou seja,
pela colectividade no seu conjunto.
Consideração diferente merecem aqueles casos em que os prejuízos afectam determina-das pessoas e não a
generalidade dos cidadãos, acarretando para aquelas a imposição de um sacrifício desigual. Nestas situações, o Estado
deve suportar o seu ressarcimento em nome do princípio da igualdade perante os encargos públicos e de exigências de
equidade aliadas à própria noção de justiça retributiva.
Assim sendo, para que o prejuízo possa qualificar-se como especial terá de se provar que um cidadão ou grupo
de cidadãos foi, através de um encargo público, colocado numa situação desigual em relação à generalidade das pessoas.
Do lado do requisito da anormalidade do dano, é preciso ter presente que o prejuízo anormal não equivale
propriamente a prejuízo grave. O critério da maior ou menor intensidade do dano anda asso ciado ao da generalidade do
mesmo, no sentido de que pode haver danos mais ou menos intensos mas que se estendem a um grande número de
cidadãos, ou danos especialís-simos, mas de pequena gravidade.
Por outro lado, em regra, o prejuízo só será anormal se não puder ter-se por incluído no risco inerente à vida em
comum.
A ideia é desonerar a Administração nas situações em que estejam em causa pequenos sacrifícios, simples
encargos sociais que devam ser considerados normalmente exigíveis como contrapartida dos benefícios emergentes da
existência e funcionamento dos serviços públicos. Somente quando o dano exceda os encargos considerados normais
exigíveis como contrapartida da existência e funcionamento dos serviços públicos poderá funcionar o instituto da
responsabilidade.

143
Parte-se do princípio de que na sociedade moderna e complexa dos nossos dias, caracterizada pela ampla
intervenção do Estado, o cidadão deve suportar determinados ónus ou constrangimentos con siderados normais ou
contrapartida natural dos benefícios que recebe . Obrigar o Estado a responder por todos os encargos decorrentes da
máquina administrativa poderia acarretar delicados e insolúveis problemas financeiros.
Neste sentido, Vieira de Andrade, depois de realçar a consagração, no diploma de 1967, como princípio geral, da
responsabilidade pelo risco (objectiva) por parte dos poderes públicos, como uma novidade, logo acrescenta: «percebe-se
que tal responsabilidade 'por factos casuais' seja limitada em função da ideia de anormalidade, pois que não era pensável
(no país e na época) uma responsabilidade seguradora por parte do Estado».
Os danos indemnizáveis restringem-se, em suma, aos resultantes do funcionamento de serviços administrativos
(reeducação de delinquentes, inimputáveis perigosos), coisas (explosivos, energia nuclear) ou actividades (actividades
militares, certas actividades policiais) que sejam excepcionalmente perigosas.
Por outro lado, não haverá «responsabilidade por aqueles danos que recaiam genérica-mente sobre todos os
cidadãos ou sobre categorias abstractas de pessoas, nem tão-pouco pelos danos que se possam considerar normais
dentro do domínio de risco que é próprio da vida em sociedade».
A doutrina exposta sobre os pressupostos da responsabilidade objectiva é a seguida pela jurisprudência, em
especial do Supremo Tribunal Administrativo (STA), reiterada em vários arestos.
Com efeito, o STA também entende por «prejuízo anormal aquele que não é inerente aos riscos normais da vida
em sociedade, suportados por todos os cidadãos, ultrapassando os limites impostos pelo dever de suportar a actividade
lícita da Administração».
Ao exigir-se a anormalidade do dano tem-se em vista eliminar do «conjunto dos danos indemnizáveis, as meras
bagatelas, os sacrifícios ligeiros que, sendo custos de sociabilidade, são compensados por outras vantagens
proporcionadas pela actuação da máquina estadual e local».
Por prejuízo especial «entende-se o que não é imposto à generalidade das pessoas, mas a pessoa certa e
determinada em função de uma relativa posição específica».
Com o requisito da especialidade, visa-se reservar «o direito à indemnização aos danos que, não sendo
generalizados, incidam desigualmente sobre um cidadão ou grupo de cidadãos, provocando uma rotura no princípio da
igualdade na repartição dos encargos públicos».
Em síntese, segundo jurisprudência reiterada do STA, «o Estado e demais pessoas colectivas públicas só são
sancionados com a obrigação de indemnizar prejuízos que, em função da sua natureza, volume, extensão e actualidade,
sejam suficientemente graves e afectem um determinado cidadão ou grupo de cidadãos" impondo-lhes um sacrifício
iniquamente desigual em confronto com a generalidade das pessoas».
Por outro lado, os mencionados prejuízos somente relevam se conexionados com «actividades, coisas ou
serviços a que ande ligada uma ameaça notável, uma relevante potencia-lidade actual de lesões a terceiros, ou de que
resulte a exposição destes a uma situação típica de perigo à qual esteja normalmente inerente uma alta probabilidade de
lesão de direitos destes e de causação de danos».
O STA tem feito aplicação destes pressupostos em variadas situações ligadas, por exemplo, a danos emergentes
de exercícios de preparação militar.
No Acórdão de 20 de Janeiro de 1977, o Tribunal enquadrou no âmbito do artigo 8º o dano causado pelo
lançamento de uma granada que provocou «um incêndio que tomou proporções assustadoras e consumiu cerca de 5 ha de
mata» de uma determinada herdade.
E, no Acórdão de 4 de Novembro de 1982, «o dano causado pela morte de um transeunte por um tiro disparado
por um dos elementos de uma força militar numa operação policial».
Também os prejuízos ocasionados por acidentes resultantes da execução de obras públicas têm sido
enquadrados no âmbito da responsabilidade pelo risco.
No seguimento da doutrina tradicional, o STA desde cedo admitiu tratar-se de uma actividade à qual anda
associada uma especial perigosidade justificadora, do ressarcimento dos danos causados a título de responsabilidade pelo
risco.

Este corpo consultivo também já teve oportunidade de pronunciar-se sobre o alcance do artigo 8º do Decreto-Lei
nº 48051.
No parecer n.º 162/80, de 11 de Junho de 1981, concluiu-se que o Instituto Navarro de Paiva, em razão das suas
actividades de observação e colocação de menores mentalmente deficientes ou irre gulares, era de considerar um serviço
excepcionalmente perigoso para os efeitos do disposto no artigo 8º, devendo o Estado responder pelo ressarcimento dos
danos produzidos no recheio da casa do director substituto daquele estabelecimento, situada nas próprias instalações,
devido a fogo posto por um dos menores internados.
Constitui, aliás, entendimento há muito perfilhado pela doutrina que aos serviços de prisões abertas e de hospitais
de alienados é inerente «o risco de causação de prejuízos pela periculosidade dos indivíduos de que eles se ocupam», pelo
que os cidadãos lesados na altura de possíveis fugas de presos ou alienados deverão ser ressarcidos pelos prejuízos
especiais e graves emergentes da manutenção de um serviço do Estado excepcionalmente perigoso.

144
Também no parecer n.º 187/83, de 7 de Fevereiro, foi apreciada a situação de um deputado, secretário da Mesa
da Assembleia da República, que, à saída de uma sessão parlamentar em que interviera, foi agredido por populares, os
quais lhe danificaram a viatura em que seguia. Chegou-se à conclusão que o Estado devia responder pelos danos sofridos
pelo deputado em causa, dado tratar-se de uma função que, em determinadas situações de hostilidade para com aquele
órgão de soberania, podia ser considerada excepcionalmente perigosa para efeitos do disposto no artigo 8.° do Decreto-Lei
nº 48051.
Tendo em conta os dados colhidos pela doutrina e jurisprudência, podemos dizer que o âmbito da
responsabilidade pelo risco abrange, designadamente, os danos provocados por acidentes na execução de obras públicas,
os resultantes do uso de armas de fogo em pessoas ou bens alheios a operações policiais de manutenção de ordem
pública ou captura de criminosos, os causados por explosões em armazéns de munições, em aviões, barcos ou outros
veículos de guerra durante treinos ou manobras, os danos causados por delinquentes ou alienados em liberdade vigiada e,
bem assim, por menores internados em regime de semiliberdade, e, ainda, os prejuízos provenientes do emprego da
energia atómica.
Em todas estas situações, mesmo que não exista culpa, «entende-se que a Administração deve ser responsável,
visto que sendo a sua actividade exercida em benefício da colectividade é justo que suporte os prejuízos que daí
advierem».
Os destinatários beneficiários da responsabilidade pelo risco são, naturalmente, os terceiros lesados com o
funcionamento dos serviços, coisas ou actividades excepcionalmente perigosas.
Pode questionar-se se estarão também incluídos no seu âmbito os danos sofridos pelos próprios funcionários ou
agentes enquanto ao serviço de uma pessoa colectiva pública.
Tendo por referência o direito francês, verifica-se que, originariamente, o instituto cobria a separação dos danos
causados pelo funcionamento dos serviços aos seus próprios colaboradores. E ainda hoje a jurisprudência aplica o instituto
aos agentes públicos que não beneficiem de regime legal próprio de reparação.
Entre nós, Gomes Canotilho , visando os danos patrimoniais graves sofridos por agentes da ordem em resultado
de combate a tumultos e ao terrorismo, pondera que não intervindo «a legislação de invalidez, da responsabilidade em
relação aos colaboradores benévolos, dos acidentes de trabalho ou risco profissional, há que reconhecer tratar-se de uma
actividade excepcionalmente perigosa, devendo os próprios agentes da ordem ter, como os terceiros, direito ao
ressarcimento dos prejuízos especiais e graves sofridos».
Esta orientação foi também seguida por este corpo consultivo no aludido parecer nº 162/80. Ficou aí consignado
que o director interino de um estabelecimento de acolhimento em regime de semi-liberdade de menores mentalmente
deficientes ou irregulares devia ser equiparado a terceiro para o efeito de ver ressarcidos pelo Estado os danos causados
nos seus bens próprios por um menor internado nesse estabelecimento, para efeitos do disposto no artigo 8.° do Decre to-
Lei nº 48 051.
Na verdade, afigura-se que esta solução não é contrariada pela cláusula geral inserta no artigo 8.° do Decreto-Lei
nº 48 051 e, na ausência de disciplina legal específica, decorrerá do princípio da justiça e da repartição dos encargos
públicos que não sejam os próprios agentes a suportar as consequências especialmente graves decorrentes do
desempenho de actividades perigosas desenvolvidas em benefício da colectividade.

Finalmente, importa tecer algumas considerações sobre o que deva entender-se por «força maior estranha ao
funcionamento dos serviços»;
O conceito de «causa de força maior» é utilizado no direito civil para excluir a responsabilidade pelo risco
causada por veículos ou a responsabilidade do devedor pelo incumpri-mento definitivo das obrigações.
A doutrina e, em muitos casos, a própria lei aludem apenas a caso fortuito num sentido lato que compreende
ambas as figuras, tanto mais que em matéria de «não cumprimento das obrigações o caso fortuito e o caso de força maior
produzem as mesmas consequências exoneratórias».
No entanto, alguns autores tendem a avançar critérios operativos que permitem a distinção entre os dois
conceitos.
O caso fortuito, compreendendo inundações, incêndios, a morte, etc., anda associado ao desenvolvimento de
forças naturais a que se mantém alheia a acção do homem.
O caso de força maior, nele se incluindo as situações de guerra, prisão, roubo, etc., consiste num facto de
terceiro, pelo qual o devedor não é responsável.
Como refere Almeida Costa, «o conceito de caso de força maior tem subjacente a ideia de inevitabilidade: será
todo o acontecimento natural ou acção humana que, embora previsível ou até prevenido, não se pode evitar, nem em si
mesmo nem nas suas consequências. Ao passo que o conceito de caso fortuito assenta na ideia da imprevisibilidade: o
facto não se pode prever, mas seria evitável, se tivesse sido previsto».
Para efeitos de acidentes de trabalho, o nº 2 do artigo 7º da Lei nº 100/97, de 13 de Setembro, declara que só se
considera caso de força maior, que exclui o direito a reparação, «o que sendo devido a forças inevitáveis da natureza,
independentes de intervenção humana, não constitua risco criado pelas condições de trabalho nem se produza ao executar
o serviço expressamente ordenado pela entidade empregadora em condições de perigo evidente».

145
No direito administrativo, força maior é um facto imprevisível e não querido, uma causa que transforma o agente
administrativo em instrumento cego de forças externas irresistíveis.
Marcello Caetano, reflectindo sobre o conceito, a propósito do contrato administrativo, pondera que «caso de
força maior é, pois, o facto imprevisível e estranho à vontade dos contraentes que impos sibilita absolutamente de cumprir
as obrigações».
O mesmo autor aponta como exemplos típicos de força maior os cataclismos (tais como incêndios, os tremores
de terra, as inundações, etc.), as greves, os actos de guerra ou de rebelião, etc.
No parecer nº 39/77 concluiu-se que um incêndio, cujas causas eram ignoradas e que devastou um perímetro
florestal, era um facto estranho ao exercício da actividade de gestão pública de defesa e fomento da riqueza florestal do
País, constituindo uma causa de força maior. Nesta sequência, o Estado não era «responsável pelo ressarcimento dos
danos produzidos pelo fogo no recheio da casa do guarda florestal daquele perímetro, mesmo quando a casa é
propriedade do Estado, é o domicílio obrigatório do funcionário e fica localizada dentro da floresta» - Parecer da PGR, de
1.9.2004, no DR, II, nº 222, de 20.9.2004

***
Desde 30 de Janeiro de 2008 vigora a Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, que aprovou o
Regime da Responsabilidade Civil Exracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas.
Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro

Aprova o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas

A Assembleia da República decreta, nos termos da alínea c) do artigo 161.º da Constituição, o seguinte:

Artigo 1.º
Aprovação
É aprovado o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, que se
publica em anexo à presente lei e que dela faz parte integrante.

Artigo 2.º
Regimes especiais
1 - O disposto na presente lei salvaguarda os regimes especiais de responsabilidade civil por danos decorrentes
do exercício da função administrativa.
2 - A presente lei prevalece sobre qualquer remissão legal para o regime de responsabilidade civil extracontratual
de direito privado aplicável a pessoas colectivas de direito público.

Artigo 3.º
Pagamento de indemnizações
1 - Quando haja lugar ao pagamento de indemnizações devidas por pessoas colectivas pertencentes à
administração indirecta do Estado ou à administração autónoma e a competente sentença judicial não seja
espontaneamente executada no prazo máximo de 30 dias, o crédito indemnizatório só pode ser satisfeito por conta da
dotação orçamental inscrita à ordem do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais (CSTAF) a título
subsidiário quando, através da aplicação do regime da execução para pagamento de quantia certa regulado na lei
processual civil, não tenha sido possível obter o respectivo pagamento junto da entidade responsável.
2 - O disposto no número anterior não prejudica a possibilidade de o interessado solicitar directamente a
compensação do seu crédito com eventuais dívidas que o onerem para com a mesma pessoa colectiva, nos termos do
artigo 170.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, sem necessidade de solicitar previamente a satisfação
do seu crédito indemnizatório através da aplicação do regime da execução para pagamento de quantia certa previsto na lei
processual civil.
3 - Nas situações previstas no n.º 1, caso se mostrem esgotadas as providências de execução para pagamento
de quantia certa previstas na lei processual civil sem que tenha sido possível obter o respectivo pagamento através da
entidade responsável, a secretaria do tribunal notifica imediatamente o CSTAF para que emita a ordem de pagamento da
indemnização, independentemente de despacho judicial e de tal ter sido solicitado, a título subsidiário, na petição de
execução.
4 - Quando ocorra a satisfação do crédito indemnizatório por via do Orçamento do Estado, nos termos do n.º 1, o
Estado goza de direito de regresso, incluindo juros de mora, sobre a entidade responsável, a exercer mediante uma das
seguintes formas:
a) Desconto nas transferências a efectuar para a entidade em causa no Orçamento do Estado do ano seguinte;

146
b) Tratando-se de entidade pertencente à Administração indirecta do Estado, inscrição oficiosa no respectivo
orçamento privativo pelo órgão tutelar ao qual caiba a aprovação do orçamento; ou
c) Acção de regresso a intentar no tribunal competente.

Artigo 4.º
Sexta alteração ao Estatuto do Ministério Público
O artigo 77.º do Estatuto do Ministério Público (Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro, rectificada no Diário da
República, 1.ª série, n.º 263, de 14 de Novembro de 1986, e alterada pelas Leis n.os 2/90, de 20 de Janeiro, 23/92, de 20
de Agosto, 33-A/96, de 26 de Agosto, 60/98, de 27 de Agosto, e 42/2005, de 29 de Agosto), passa a ter a seguinte
redacção:
«Artigo 77.º
[...]
Fora dos casos em que a falta constitua crime, a responsabilidade civil apenas pode ser efectivada, mediante
acção de regresso do Estado, em caso de dolo ou culpa grave.»

Artigo 5.º
Norma revogatória
São revogados o Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967, e os artigos 96.º e 97.º da Lei n.º 169/99,
de 18 de Setembro, na redacção da Lei n.º 5-A/2002, de 11 de Janeiro.

Artigo 6.º
Entrada em vigor
A presente lei entra em vigor no prazo de 30 dias após a data da sua publicação.

ANEXO
REGIME DA RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO E DEMAIS ENTIDADES
PÚBLICAS

CAPÍTULO I

Disposições gerais

Artigo 1.º
Âmbito de aplicação
1 - A responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público por
danos resultantes do exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa rege-se pelo disposto na presente
lei, em tudo o que não esteja previsto em lei especial.
2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, correspondem ao exercício da função administrativa as
acções e omissões adoptadas no exercício de prerrogativas de poder público ou reguladas por disposições ou princípios de
direito administrativo.
3 - Sem prejuízo do disposto em lei especial, a presente lei regula também a responsabilidade civil dos
titulares de órgãos, funcionários e agentes públicos por danos decorrentes de acções ou omissões adoptadas no
exercício das funções administrativa e jurisdicional e por causa desse exercício.
4 - As disposições da presente lei são ainda aplicáveis à responsabilidade civil dos demais trabalhadores ao
serviço das entidades abrangidas, considerando-se extensivas a estes as referências feitas aos titulares de órgãos,
funcionários e agentes.
5 - As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público,
bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função
administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos
trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no
exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.

Artigo 2.º
Danos ou encargos especiais e anormais
Para os efeitos do disposto na presente lei, consideram-se especiais os danos ou encargos que incidam sobre
uma pessoa ou um grupo, sem afectarem a generalidade das pessoas, e anormais os que, ultrapassando os custos
próprios da vida em sociedade, mereçam, pela sua gravidade, a tutela do direito.

147
Artigo 3.º
Obrigação de indemnizar
1 - Quem esteja obrigado a reparar um dano, segundo o disposto na presente lei, deve reconstituir a situação que
existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
2 - A indemnização é fixada em dinheiro quando a reconstituição natural não seja possível, não repare
integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa.
3 - A responsabilidade prevista na presente lei compreende os danos patrimoniais e não patrimoniais, bem como
os danos já produzidos e os danos futuros, nos termos gerais de direito.

Artigo 4.º
Culpa do lesado
Quando o comportamento culposo do lesado tenha concorrido para a produção ou agravamento dos danos
causados, designadamente por não ter utilizado a via processual adequada à eliminação do acto jurídico lesivo, cabe ao
tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas tenham
resultado, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.

Artigo 5.º
Prescrição
O direito à indemnização por responsabilidade civil extracontratual do Estado, das demais pessoas colectivas de
direito público e dos titulares dos respectivos órgãos, funcionários e agentes bem como o direito de regresso prescrevem
nos termos do artigo 498.º do Código Civil, sendo-lhes aplicável o disposto no mesmo Código em matéria de suspensão e
interrupção da prescrição.

Artigo 6.º
Direito de regresso
1 - O exercício do direito de regresso, nos casos em que este se encontra previsto na presente lei, é obrigatório,
sem prejuízo do procedimento disciplinar a que haja lugar.
2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, a secretaria do tribunal que tenha condenado a pessoa
colectiva remete certidão da sentença, logo após o trânsito em julgado, à entidade ou às entidades competentes para o
exercício do direito de regresso.

CAPÍTULO II
Responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função administrativa

SECÇÃO I
Responsabilidade por facto ilícito

Artigo 7.º
Responsabilidade exclusiva do Estado e demais pessoas colectivas de direito público
1 - O Estado e as demais pessoas colectivas de direito público são exclusivamente responsáveis pelos danos que
resultem de acções ou omissões ilícitas, cometidas com culpa leve, pelos titulares dos seus órgãos, funcionários ou
agentes, no exercício da função administrativa e por causa desse exercício.
2 - É concedida indemnização às pessoas lesadas por violação de norma ocorrida no âmbito de procedimento de
formação dos contratos referidos no artigo 100.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, de acordo com os
requisitos da responsabilidade civil extracontratual definidos pelo direito comunitário.
3 - O Estado e as demais pessoas colectivas de direito público são ainda responsáveis quando os danos não
tenham resultado do comportamento concreto de um titular de órgão, funcionário ou agente determinado, ou não seja
possível provar a autoria pessoal da acção ou omissão, mas devam ser atribuídos a um funcionamento anormal do
serviço.
4 - Existe funcionamento anormal do serviço quando, atendendo às circunstâncias e a padrões médios de
resultado, fosse razoavelmente exigível ao serviço uma actuação susceptível de evitar os danos produzidos.

Artigo 8.º
Responsabilidade solidária em caso de dolo ou culpa grave

148
1 - Os titulares de órgãos, funcionários e agentes são responsáveis pelos danos que resultem de acções ou
omissões ilícitas, por eles cometidas com dolo ou com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se
encontravam obrigados em razão do cargo.
2 - O Estado e as demais pessoas colectivas de direito público são responsáveis de forma solidária com os
respectivos titulares de órgãos, funcionários e agentes, se as acções ou omissões referidas no número anterior tiverem sido
cometidas por estes no exercício das suas funções e por causa desse exercício.
3 - Sempre que satisfaçam qualquer indemnização nos termos do número anterior, o Estado e as demais pessoas
colectivas de direito público gozam de direito de regresso contra os titulares de órgãos, funcionários ou agentes
responsáveis, competindo aos titulares de poderes de direcção, de supervisão, de superintendência ou de tutela adoptar as
providências necessárias à efectivação daquele direito, sem prejuízo do eventual procedimento disciplinar.
4 - Sempre que, nos termos do n.º 2 do artigo 10.º, o Estado ou uma pessoa colectiva de direito público seja
condenado em responsabilidade civil fundada no comportamento ilícito adoptado por um titular de órgão, funcionário ou
agente, sem que tenha sido apurado o grau de culpa do titular de órgão, funcionário ou agente envolvido, a respectiva
acção judicial prossegue nos próprios autos, entre a pessoa colectiva de direito público e o titular de órgão, funcionário ou
agente, para apuramento do grau de culpa deste e, em função disso, do eventual exercício do direito de regresso por parte
daquela.

Artigo 9.º
Ilicitude
1 - Consideram-se ilícitas as acções ou omissões dos titulares de órgãos, funcionários e agentes que violem
disposições ou princípios constitucionais, legais ou regulamentares ou infrinjam regras de ordem técnica ou deveres
objectivos de cuidado e de que resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos.
2 - Também existe ilicitude quando a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos resulte do
funcionamento anormal do serviço, segundo o disposto no n.º 3 do artigo 7.º

Artigo 10.º
Culpa
1 - A culpa dos titulares de órgãos, funcionários e agentes deve ser apreciada pela diligência e aptidão que seja
razoável exigir, em função das circunstâncias de cada caso, de um titular de órgão, funcionário ou agente zeloso e
cumpridor.
2 - Sem prejuízo da demonstração de dolo ou culpa grave, presume-se a existência de culpa leve na prática de
actos jurídicos ilícitos.
3 - Para além dos demais casos previstos na lei, também se presume a culpa leve, por aplicação dos princípios
gerais da responsabilidade civil, sempre que tenha havido incumprimento de deveres de vigilância.
4 - Quando haja pluralidade de responsáveis, é aplicável o disposto no artigo 497.º do Código Civil.

SECÇÃO II
Responsabilidade pelo risco

Artigo 11.º
Responsabilidade pelo risco
1 - O Estado e as demais pessoas colectivas de direito público respondem pelos danos decorrentes de
actividades, coisas ou serviços administrativos especialmente perigosos, salvo quando, nos termos gerais, se prove que
houve força maior ou concorrência de culpa do lesado, podendo o tribunal, neste último caso, tendo em conta todas as
circunstâncias, reduzir ou excluir a indemnização.
2 - Quando um facto culposo de terceiro tenha concorrido para a produção ou agravamento dos danos, o Estado
e as demais pessoas colectivas de direito público respondem solidariamente com o terceiro, sem prejuízo do direito de
regresso.

CAPÍTULO III
Responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional

Artigo 12.º
Regime geral

149
Salvo o disposto nos artigos seguintes, é aplicável aos danos ilicitamente causados pela administração da justiça,
designadamente por violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável, o regime da responsabilidade por factos
ilícitos cometidos no exercício da função administrativa.

Artigo 13.º
Responsabilidade por erro judiciário
1 - Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação
injustificada da liberdade, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais
manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos
de facto.
2 - O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição
competente.
Artigo 14.º
Responsabilidade dos magistrados
1 - Sem prejuízo da responsabilidade criminal em que possam incorrer, os magistrados judiciais e do Ministério
Público não podem ser directamente responsabilizados pelos danos decorrentes dos actos que pratiquem no exercício das
respectivas funções, mas, quando tenham agido com dolo ou culpa grave, o Estado goza de direito de regresso contra
eles.
2 - A decisão de exercer o direito de regresso sobre os magistrados cabe ao órgão competente para o exercício
do poder disciplinar, a título oficioso ou por iniciativa do Ministro da Justiça.

CAPÍTULO IV
Responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função político-legislativa

Artigo 15.º
Responsabilidade no exercício da função político-legislativa
1 - O Estado e as regiões autónomas são civilmente responsáveis pelos danos anormais causados aos direitos
ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos por actos que, no exercício da função político-legislativa, pratiquem, em
desconformidade com a Constituição, o direito internacional, o direito comunitário ou acto legislativo de valor reforçado.
2 - A decisão do tribunal que se pronuncie sobre a inconstitucionalidade ou ilegalidade de norma jurídica ou sobre
a sua desconformidade com convenção internacional, para efeitos do número anterior, equivale, para os devidos efeitos
legais, a decisão de recusa de aplicação ou a decisão de aplicação de norma cuja inconstitucionalidade, ilegalidade ou
desconformidade com convenção internacional haja sido suscitada durante o processo, consoante o caso.
3 - O Estado e as regiões autónomas são também civilmente responsáveis pelos danos anormais que, para os
direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos, resultem da omissão de providências legislativas
necessárias para tornar exequíveis normas constitucionais .
4 - A existência e a extensão da responsabilidade prevista nos números anteriores são determinadas atendendo
às circunstâncias concretas de cada caso e, designadamente, ao grau de clareza e precisão da norma violada, ao tipo de
inconstitucionalidade e ao facto de terem sido adoptadas ou omitidas diligências susceptíveis de evitar a situação de
ilicitude.
5 - A constituição em responsabilidade fundada na omissão de providências legislativas necessárias para tornar
exequíveis normas constitucionais depende da prévia verificação de inconstitucionalidade por omissão pelo
Tribunal Constitucional.
6 - Quando os lesados forem em tal número que, por razões de interesse público de excepcional relevo, se
justifique a limitação do âmbito da obrigação de indemnizar, esta pode ser fixada equitativamente em montante inferior ao
que corresponderia à reparação integral dos danos causados.

CAPÍTULO V
Indemnização pelo sacrifício

Artigo 16.º
Indemnização pelo sacrifício
O Estado e as demais pessoas colectivas de direito público indemnizam os particulares a quem, por razões de
interesse público, imponham encargos ou causem danos especiais e anormais, devendo, para o cálculo da indemnização,
atender-se, designadamente, ao grau de afectação do conteúdo substancial do direito ou interesse violado ou sacrificado.

Contém as alterações introduzidas pelos seguintes diplomas:

150
- Lei n.º 31/2008, de 17 de Julho
Consultar versões anteriores deste artigo:
-1ª versão: Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro

Na fase de discussão pública desta Lei o Ex.mo Professor Fausto de Quadros proferiu muito
interessante conferência que está na net (com outras intervenções em colóquio de 8 e 9 de Março de
2001).

A RESPONSABILIDADE DO LEGISLADOR NO ÂMBITO


DO ARTIGO 15.° DO NOVO REGIME INTRODUZIDO
PELA LEI N.° 67/2007, DE 31 DE DEZEMBRO
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA

1. RESPONSABILIDADE POR ACTO COMETIDO NO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO LEGISLATIVA

Cumpre, antes de mais, ter presente que um acto (formalmente) legislativo pode conter uma ou mais
determinações de natureza administrativa, passíveis de serem qualificadas como actos administrativos. Por esse motivo, a
Constituição da República Portuguesa (CRP), no seu artigo 268.°, n.° 4, e o Código de Processo nos Tribunais
Administrativos, no seu artigo 52.°, n.° 1, consagram o princípio de que a impugnabilidade dos actos administrativos não
depende da forma segundo a qual esses actos foram praticados 16.

A doutrina distingue, portanto, dentro do universo dos actos jurídicos que são adoptados sob a forma legislativa,
aqueles que são apenas formalmente legislativos, mas, na realidade, contêm decisões materialmente administrativas,
daqueles que podem e dever ser qualificados como legislativos, não apenas do ponto de vista formal, mas também do
ponto de vista material.
No primeiro tipo de situação, a decisão, embora contida num acto formalmente legislativo, é meramente
administrativa porque é, na realidade, adoptada ao abrigo de lei anterior, em cujos pressupostos já se encontram
assumidas as opções políticas primárias que competiam ao legislador: trata-se, pois, de uma decisão que é produzida no
exercício de uma competência tipificada numa lei e que, portanto, apenas pode envolver a eventual realização de opções
circunscritas a aspectos secundários, menores ou instrumentais em relação às opções já contidas nessa lei.
Pelo contrário, no segundo tipo de situação, a decisão pode e deve ser qualificada, do ponto de vista material,
como legislativa na medida em que exprime a realização de opções primárias, inconstituídas, com um conteúdo inovador -
expressão da intencionalidade específica, consubstanciada na formulação de opções políticas primárias da comunidade
política, que é característica do exercício da função legislativa 17.
Com efeito, como a função legislativa exprime a vontade politica primária da comunidade, definindo o que esta
assume ser o interesse geral, para que uma norma seja materialmente legislativa, ela tem de ser uma fonte de direito inicial
e, portanto, de ter um conteúdo inovador, determinado por directo apelo à consciência ético-social vigente. Pelo contrário,
como à função administrativa corresponde um papel condicionado e subordinado de concretização, de realização prática do
interesse geral superiormente definido pelo legislador, o contributo inovador dos comandos ditados a esse nível não pode
deixar de circunscrever-se a aspectos secundários, menores ou instrumentais, como o desenvolvimento ou a adaptação
das normas legais, por razões de eficiência, de flexibilidade e de proximidade em relação aos factos 18.
Repare-se, entretanto, que a materialidade do acto legislativo não se confunde com o carácter geral e abstracto
das determinações nele contidas. Embora, por regra, a intencionalidade própria da função legislativa se tenda a exprimir na
emissão de regras de carácter geral e abstracto, a verdade é que é frequente o fenómeno da aprovação de actos
legislativos que, embora exprimam uma opção política primária, inovadora, introduzem uma ou mais determinações de
conteúdo concreto, correspondendo, assim, ao que, na doutrina, tem sido qualificado como leis-medida
(Massnahmengesetz)19.

16
- Cfr., por todos, DIODO FREITAS Do AMARAL, Direito Administrativo, vol. IV, Lisboa, 1988, pp. 153 segs.; MARIO
AROSO DE ALMEIDA, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 4ª ed., Coimbra, 2005, p. 162.
17
2 - Para o quadro terminológico subjacente à contraposição traçada no texto, cfr. MANUEL AFONSO VAZ, Lei e
causa da lei. A causa da lei na Constituição Portuguesa de 76, Porto, 1995, designadamente a pp. 57-58, 406-408, 421-
423, 494-504, 507 e 512. Em geral sobre a questão da materialidade do conceito de lei, cfr., por todos, CARLOS
BLANCO DE MORAIS, As Leis Reforçadas, Coimbra, 1998, pp. 83 segs.
18
3 - Cfr. MANUEL AFONSO VAZ, op. loc. cits.; CARLOS BLANCO DE MORAIS, op. cit., pp. 130 segs.
19
- 4 Sobre o conceito, cfr. JORGE MIRANDA. "Sentido e conteúdo da lei como acto da função legislativa", in Nos Dez
Anos da Constituição, Lisboa, 1987, pp. 188-190; GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da
Constituição, 7.• ed., Coimbra, 2003, pp. 717 segs., com outras referências. Para uma apreciação critica, entretanto,
das complexas questões que, entre nós, se colocam a propósito do conceito de lei-medida, cfr. MARIA LÚCIA
AMARAL PINTO CORREIA, Responsabilidade do Estado e Dever de Indemnizar da Legislador, Coimbra, 1998,

151
Pode, pois, dizer-se que o exercício da função legislativa só tendencialmente se concretiza na emanação de
normas gerais e abstractas. Decisiva é a intencionalidade do acto, o facto de introduzir opções políticas primárias, por apelo
directo à consciência ético-social vigente na comunidade. Desde que isto suceda, temos um acto materialmente legislativo,
ainda que as opções nele contidas tenham conteúdo concreto 20.
È, pois, neste domínio que se coloca a questão da eventual responsabilidade do Estado pelo exercício da função
legislativa.
2. ENQUADRAMENTO CONSTITUCIONAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO
ESTADO POR DANOS DECORRENTES DO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO LEGISLATIVA

Já em momento anterior ao da sua regulação no artigo 15.° do novo regime da responsabilidade civil
extracontratual do Estado e demais entidades públicas, era reconhecida na nossa ordem jurídico-constitucional, à face do
disposto no artigo 22.° da CRP, a existência do instituto da responsabilidade do Estado por danos ilicitamente causados no
exercício da função legislativa.
Por estritas razões de economia de exposição, permitimo-nos, a este propósito, remeter para a conseguida
síntese de Rui Medeiros21, que se passa a enunciar.

"Aparentemente, dir-se-á que as diversas opiniões que têm sido manifestadas nos anos mais recentes [sobre a
matéria da responsabilidade do Estado pelo exercício da função legislativa] são muito diversas, impedindo por isso que,
mesmo em pontos essenciais, se possa falar numa communis opinio.
"Todavia, e em rigor, não é isso o que se passa. Com efeito, não obstante as dificuldades interpretativas que o art.
22.° [da CRP] suscita e as controvérsias doutrinais que em torno dele têm surgido, existe actualmente um consenso muito
alargado - que não é sinonimo de unanimidade - sobre as questões fundamentais em que se joga o tudo ou nada de uma
acção de indemnização proposta, mesmo na ausência de lei concretizadora do art. 22.°, contra o Estado por acções ou
omissões ilícitas do Legislador. Isto é bem visível na resposta substancialmente comum que a doutrina largamente
dominante dá a três aspectos centrais da teoria da responsabilidade por facto ilícito do Legislador.

"1º) O art. 22.° estabelece um princípio geral de responsabilidade por facto das leis 22.

“2º) Não obstante ser controverso se este preceito vale apenas para a responsabilidade por factos ilícitos ou, pelo
contrário, abrange também a reparação pelo sacrifício ou pelo risco, cabe claramente no âmbito do art. 22.° a
responsabilidade por ilícito legislativo23.
"Convém referir antes de mais que são já em número significativo os autores que sustentam que o art. 22.° da
Constituição está justamente pensado para a responsabilidade por factos ilícitos, cobrindo assim também os danos
causados pelo ilícito legislativos.
"Todavia, mesmo os autores que recusam uma leitura mais restritiva do art. 22.° da Constituição não hesitam em
vislumbrar nesse preceito constitucional o fundamento para uma responsabilidade civil do Estado pelo exercício ilícito da
função legislativa24.

designadamente a pp. 260 segs.


20
- Cfr., a propósito, JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo V, 3.ª ed., Coimbra, 2004, pp. 137-139 e
150.
21
- Cfr. RUI MEDEIROS, "A responsabilidade civil pelo ilícito legislativo no quadro da reforma do Decreto-Lei n.° 48
051", Cadernos de Justiça Administrativa n.° 27, pp. 20 segs.
22
- Cfr. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, Coimbra, 2000, p. 289; GOMES CANOTILHO,
Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 1999, pp. 474-475; GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA,
Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, p. 168; JOÃO CAUPERS, "Responsabilidade
do Estado por actos legislativos e judiciais", in La responsabilidade patrimonial de los poderes públicos, Madrid,
1999, pp. 79 segs.; MARIA DA GLORIA GARCIA, A responsabilidade civil do Estado e demais pessoas colectivas
públicas, Lisboa, 1997, p. 62; MARIA LUISA DUARTE, "A responsabilidade dos Estados-membros por actos
normativos e o dever de indemnizar os prejuízos resultantes da violação do Direito Comunitário - em especial, o caso
português", in A cidadania da União e a responsabilidade dos Estados por violação do Direito Comunitário, Lisboa,
1994, pp. 83-84; MARIA Jota RANGEL DE MESQUITA, "Responsabilidade do Estado e demais entidades públicas: o
Decreto-Lei n.° 48 051, de 21 de Novembro de 1967, e o artigo 22.° da Constituição", in Perspectivas Constitucionais,
vol. II, Coimbra, 1997, pp. 380 segs.; LUÍS CATARINO, A responsabilidade do Estado pela administração da justiça,
Coimbra, 1999, p. 152.
23
- Cfr. MARCELO REBELO DE SOUSA, "Responsabilidade dos estabelecimentos públicos de saúde: culpa do agente
ou culpa da organização?", in Direito da saúde e da bioética, Lisboa, 1996, pp. 162-163; M. REBELO DE SOUSA/MELO
ALEXANDRINO, Constituição da República Portuguesa Comentada, Lisboa, 2000, p. 105; MANUEL AFONSO VAZ, A
responsabilidade civil do Estado - considerações breves sobre o seu estatuto constitucional, Porto, 1995, pp. 8-9 e 12-
13; MARIA DA GLÓRIA GARCIA, op. cit., pp. 58-59 e 66. V. ainda, embora em termos menos incisivos, J. CAUPERS, op.
cit., p. 83.
24
- Cfr. JORGE MIRANDA, Manual… cit., tomo IV, pág. 289/290 e 293; GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e
Teoria da Constituição, Coimbra, 1999, p. 476; MARIA LUÍSA DUARTE, op. Cit., pp 85/86.

152
"3.°) Em face da omissão do Legislador, que tarda em concretizar a referida disposição constitucional, o art. 22.°
pode ser directamente invocado [...] actualmente, a esmagadora maioria da doutrina [...] não hesita em reconhecer que este
preceito constitucional pode já hoje, mesmo na ausência de lei, ser aplicado directamente pelos tribunais numa acção de
responsabilidade"25.
Como, entretanto, também refere o mesmo Autor, com indicação de referências, "este entendimento - adoptado
pela doutrina largamente maioritária - obteve inequívoco acolhimento na jurisprudência". E por isso concluía o Autor que o
art. 22.° da CRP era "uma norma directamente aplicável mesmo na falta de lei concretizadora, cabendo aos juízes e aos
tribunais criar a norma de decisão respectiva".
Cumpre ter, pois, presente que, já antes da entrada em vigor do novo regime agora introduzido, era entendimento
generalizado, tanto na doutrina, como na jurisprudência, que do artigo 22.° da CRP decorria o fundamento directo da
responsabilidade do Estado pelo facto das leis, competindo, por isso, aos juízes, na falta de lei concretizadora, proceder à
densificação dos correspondentes pressu-postos, a partir do referido artigo 22.° e/ou dos princípios gerais da
responsabilidade civil. A responsabilidade do legislador não constitui, portanto, uma excentricidade que o legislador, com a
Lei n.° 67/2007, de 31 de Dezembro, se tenha agora lembrado de inventar. Pelo contrário, do que se trata é de procurar
preencher o vazio normativo dentro do qual os tribunais se vinham, até agora, movendo, em matéria tão sensível e
delicada, densificando os pressupostos de que, de harmonia com o que tem defendido a doutrina maioritária, deve
depender a responsabilidade do Estado pelo facto das leis.

3. PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO POR FACTO


ILÍCITO COMETIDO NO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO LEGISLATIVA

Como é sabido, os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual subjectiva são quatro: o facto ilícito, a
culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

3.1. O pressuposto da ilicitude

Existe uma conduta ilícita por parte do legislador, passível de constituir o Estado em responsabilidade por facto
ilícito, quando o legislador produza urna lei que viole parâmetros objectivos de validade que se lhe imponham e da qual
resulte a ofensa de direitos ou interesses juridicamente protegidos. Para que a conduta do legislador seja ilícita, é, pois,
necessário que ela configure a violação de normas cuja observância se lhe imponha e que daí advenha a lesão de direitos
ou interesses juridicamente protegidos26.
Neste sentido, o n.° 1 do artigo 15.° do novo regime procura densificar este critério, prevendo que a ilicitude pode
advir da "desconformidade com a Constituição, o direito internacional, o direito comunitário ou acto legislativo de valor
reforçado"27.

3.2. O pressuposto da culpa

Não se pode deixar de entender, à face do disposto no n.° 4 do artigo 15.° do novo regime, que a
responsabilidade civil do Estado pelos danos resultantes do exercício da função legislativa pressupõe a existência de
culpa28.

25
- Cfr. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 1999, p. 476; GOMES
CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Op. cit., p. 170; M. REBELO DE SOUSA/MELO ALEXANDRINO, op. cit., cít., p. 105;
MARIA DA GLÓRIA GARCIA, op. cit., p. 61; MARIA LUISA DUARTE, op. cit., pp. 87-89, e "O artigo 22.° da Constituição
Portuguesa e a necessária concretização dos pressupostos da responsabilidade extracontratual do legislador - ecos
da jurisprudência comunitária recente", in Legislação n.° 17 (1996), pp. 17-18 e 33, em nota. V. ainda JORGE
MIRANDA, Manual..., cit., tomo IV, p. 269; ALEXANDRE SOUSA PINHEIRO/MARIO JOAO FERNANDES, Comentário à IV
Revisão Constitucional, Lisboa, 1999, p. 107. V., enfim, PAULO OTERO, "Responsabilidade civil pessoal dos titulares
de órgãos, funcionários e agentes da Administração do Estado", in La responsabilidad patrimonial de los poderes
públicos, Madrid, 1999, p. 492; MARIA JOSÊ RANGEL DE MESQUITA, op. cit., p. 392; LUIS CATARINO, op. cit., pp. 171
segs.
26
- Cfr. RUI MEDEIROS, "A responsabilidade civil...", cit., p. 26.
27
- Como é sabido, as leis de valor reforçado têm em comum o facto de serem actos legislativos com um valor
paramétrico em relação a outros actos legislativos, que lhes devem obediência e para os quais eles funcionam como
um marco de aferição da respectiva validade material. Entre as leis de valor reforçado e as leis que venham a ser
emanadas dentro do respectivo âmbito de aplicação existe, com efeito, uma relação de prevalência funcional, por
força da qual serão inválidas as disposições contidas nas leis que, devendo fazê-lo por se reportarem a matéria por
ela regulada, não se conformem com os parâmetros de validade decorrentes de uma lei de valor reforçado. Em geral
sobre as leis de valor reforçado, cfr., por todos, JORGE MIRANDA, Manual..., cit., tomo V, pp. 353 segs.; GOMES
CANOTILHD, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.° ed., pp. 781 segs.; BLANCO DE MORAIS, op. cit.,
designadamente a pp. 157 segs., que, no sentido do texto, utiliza o conceito de parametricidade directiva para explicar
a capacidade da lei de valor reforçado de "fixar vínculos de direcção material sobre outras leis".
28
- Cfr. Rui MEDEIROS, Ensaio sobre a responsabilidade civil do Estado por actos legislativos, Coimbra, 1992, p. 175.

153
Tem sido reconhecido, é certo, que o conceito civilístico de culpa se conjuga mal com a liberdade de conformação
inerente à função política e com o contraditório inerente ao pluralismo parlamentar, pelo que só se pode falar neste domínio
em culpa numa acepção objectivizada e imbricada com o princípio da responsabilidade política 29. Mas isso explica,
precisamente, a previsão do n.° 4 do artigo 15.° do novo regime.
Nas palavras de Antunes Varela, pode, com efeito, dizer-se, em termos gerais, que "agir com culpa significa
actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou a censura do direito. E a conduta do lesante é
reprovável quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e
devia ter agido de outra forma"30. Por esse motivo, o referido artigo 15.° adopta, no seu n.° 4, o critério de saber se,
atendendo às circunstâncias concretas do caso, o legislador podia e devia ter evitado a conduta ilícita, inspirando-se para o
efeito, no modo como o Tribunal de Justiça da União Europeia vem exigindo uma violação suficientemente caracterizada do
Direito Comunitário para reconhecer a existência de responsabilidade dos Estados membros da União por violação grave e
manifesta de obrigações impostas pelo Direito Comunitário, "de tal modo que o conteúdo do acto demonstre que o seu
autor agiu de modo arbitrário e em flagrante violação das regras conformadoras da sua competência" 31.
Afigura-se, em todo o caso, válido, no domínio em análise, o critério geral — que, no domínio da responsabilidade
pelo exercício da função administrativa, veio, de resto, a encontrar consagração expressa no artigo 10.°, n.° 2, do novo
regime — de que, quando a responsabilidade dos poderes públicos decorre da prática de um acto jurídico ilícito, é, por
regra, de entender que existe uma presunção de culpa, que "resulta do princípio segundo o qual a ilegalidade dos actos
jurídicos contém em si culpa suficiente, à luz da referência geral do Estado de Direito, para a imputação ao Estado dos
danos que tais actos produzem"32.

3.3. O pressuposto dos danos

De acordo com o disposto no artigo 15.°, n.° 1, o Estado só responde pelos danos anormais que cause no
exercício da função legislativa. O preceito faz, desse modo, apelo a um conceito que, no domínio da responsabilidade pelo
exercício da função administrativa, o Decreto-Lei n.° 48 051 já utilizava e que, por conseguinte, foi sendo objecto, ao longo
do tempo, de aturada elaboração jurisprudencial e doutrinal. Como agora expressamente dispõe o artigo 2.° do novo
regime introduzido pela Lei n.° 67/2007, a referência tem o alcance de limitar a responsabilidade do Estado, no domínio em
análise, à reparação dos danos "que, ultrapassando os custos próprios da vida em sociedade, mereçam, pela sua
gravidade, a tutela do direito".
Note-se, porém, que o legislador não circunscreve a reparação aos danos especiais, tal como definidos também
no artigo 2.°: por conseguinte, a especialidade do dano constitui, nos termos do artigo 16.°, pressuposto da obrigação de
indemnizar pelo sacrifício - que, a nosso ver, também se impõe ao legislador, quando em relação a determinada lei se
preencham os pressupostos do artigo 16°, sem que a lei em causa se refira à indemnização devida pelo sacrifício por si
imposto -, mas não da obrigação de reparar por facto ilícito. No propósito, ainda assim de prevenir encargos demasiado
pesados com o pagamento de indemnizações, o n.° 6 do artigo 15° admite, no entanto, que o montante da indemnização a
atribuir possa ser limitado, quando seja muito elevado o número dos lesados 33.

3.4. O pressuposto do nexo de causalidade entre os danos e o facto ilícito

Embora o artigo 15.° a tal não se refira, na apreciação do preenchimento deste último pressuposto, cumpre
distinguir os danos que devem ser efectivamente imputados à ilicitude da lei, de outros eventuais danos, não imputáveis à
lei, em si mesma considerada, mas a circunstâncias exógenas entretanto verificadas, designadamente em virtude da
deficiente aplicação da lei.
Cumpre, em todo o caso, recordar que, para se poder dar por quebrado o nexo de causalidade entre os danos e a
conduta do legislador, é necessário que se possa afirmar que a actuação que foi desenvolvida pelos órgãos incumbidos da
execução da lei não foi uma consequência provável da conduta do legislador, mas antes se apresentou como uma
consequência excepcional do quadro normativo resultante da lei 34.
Acrescente-se, em todo o caso, que, ainda que, no plano dos factos, seja de concluir que também houve lugar a
uma execução negligente, por parte da Administração Pública, de uma lei que já era, em si mesma, lesiva, essa eventual

29
14 - Cfr. JORGE MIRANDA, Manual..., cit., tomo IV, pp. 294-295. Cfr. também Rui MEDEIROS, "A responsabilidade
civil..." cit., p. 27.
30
15 - Cfr. RUI MEDEIROS, Ensaio..., cit., p. 177.
31
16 - Cfr., a propósito, a intervenção de RUI MEDEIROS, Responsabilidade civil extra-contratual do Estado - Trabalhos
preparatórios da reforma, Coimbra, 2002, p. 206.
32
17 - Para a afirmação, no domínio da responsabilidade pelo exercício da função administrativa, do critério em
referência no texto, cfr. BARBOSA DE MELO, "Responsabilidade civil extra-contratual - não cobrança de derrama pelo
Estado", in Colectânea de Jurisprudência, Ano XI, tomo 4, pp. 37-38.
33
18 - Cfr., a propósito, Rui MEDEIROS, "A responsabilidade civil..." cit., p. 28.
34
19 - Cfr., com as devidas adaptações, RUI MEDEIROS, Ensaio..., cit., pp. 202-203.

154
circunstância não tem o alcance de extinguir a responsabilidade do legislador. Com efeito, se for de admitir que não só o
legislador, ab initio, mas também, mais tarde, certos órgãos administrativos concorreram, cada um à sua maneira e na
medida das suas funções, para a produção (e continuação) da situação danosa, apenas restará concluir que existe um
concurso de responsabilidades pelo exercício ilícito, tanto da função legislativa, como, depois, da função administrativa.
Nem por isso, deixará, pois, de existir responsabilidade pelo exercício da função legislativa.

4. A RESPONSABILIDADE POR OMISSÃO DO LEGISLADOR

O artigo 15.º do novo regime em análise refere-se à responsabilidade pela omissão de providências legislativas
nos seus n.ºs 3 e 5.
No n.º 3, estabelece que essa responsabilidade só existe quando a omissão diga respeito à adopção de
"providências legislativas necessárias para tornar exequíveis normas constitucionais": ou seja, quando exista uma situação
de inconstitucionalidade por omissão, tal como ela surge configurada no artigo 283.° da CRP. E, por isso mesmo,
acrescenta, no n.° 5, que a constituição nessa modalidade de responsabilidade depende da prévia verificação pelo Tribunal
Constitucional, nos termos do referido artigo 283.° da CRP, da existência da situação de inconstituciona-lidade por
omissão.
Não podemos deixar de assinalar a infelicidade das soluções deste modo consagradas, que, na prática, esvaziam
o instituto da responsabilidade do Estado por omissão do dever de legislar, em termos cuja conformidade ao disposto no
artigo 22.° da CRP se afigura questionável.
Com efeito, afigura-se desde logo inaceitável que a constituição do Estado em responsabilidade perante os
lesados dependa, nas situações de inconstitucio-nalidade por omissão, de uma prévia verificação, pelo Tribunal
Constitucional, que, nos termos do artigo 283.° da CRP, os lesados não têm legitimidade para pedir, pois que, em termos
gerais, só pode ser requerida pelo Presidente da República ou pelo Provedor de Justiça 35.
Mas, ainda mais grave, ao circunscrever a possibilidade da existência de responsabilidade por omissão do
legislador às situações previstas no n.° 3, de omissão de providências necessárias para tornar exequíveis normas
constitucionais, o legislador deixa de fora todo o universo das situações de incumprimento dos deveres de protecção de
direitos fundamentais que, nos modernos Estados de Direito democráticos, se tende a reconhecer que se impõem ao
legislador e que, pelo menos em situações de violação evidente, não se devem deixar de considerar ressarcíveis à face do
artigo 22.° da CRP, mesmo na ausência de previsão no artigo 15.° em análise 36.
Talvez se possa dizer que temos, finalmente, aqui a resposta ao caso Aquaparque. Resposta, contudo,
desproporcionada em nossa opinião, na medida em que - independentemente do juízo crítico que, a nosso ver, merecem
as decisões que foram proferidas no caso Aquaparque (sem que, no entanto, o Estado tenha esgotado as vias de recurso
de que dispunha para reagir contra elas) - opções legislativas de fundo não devem ser influenciadas pela eventual
incorrecção de decisões jurisdicionais concretas.

5. O NOVO REGIME DE RECURSO PARA O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL

A adequada compreensão do sentido da previsão introduzida pelo n.° 2 do artigo 15° do novo regime em análise
supõe um breve enquadramento, do ponto de vista da caracterização do sistema dos recursos para o Tribunal
Constitucional que se encontram previstos na CRP.
Como é sabido, o artigo 280.° da CRP prevê que cabe recurso para o Tribunal Constitucional - em determinados
casos, obrigatório para o Ministério Público - de todo um conjunto de decisões dos tribunais que apliquem ou recusem a
aplicação de normas com fundamento na respectiva inconstitucionalidade ou ilegalidade por violação de leis de valor
reforçado.

Ora, para que um tribunal recuse, num determinado processo, a aplicação de uma norma com fundamento na sua
inconstitucionalidade, é necessário que, nesse processo, ele tenha sido chamado a aplicar essa norma ao caso concreto e,
35
20 - Veja-se, a propósito, o Acórdão n.° 238/97 do Tribunal Constitucional.
36
21 - Não se pode, pois, deixar de notar que vai (infelizmente) longe o tempo em que RUI MEDEIROS, "A
responsabilidade civil...", cit., pp. 28 segs., lançava a sua (desproporcionada) ira contra a (inocente) proposta de lei
por cuja elaboração fomos responsáveis, no âmbito do Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério
da Justiça, e que, no já longínquo ano de 2001, desencadeou o longo procedimento legislativo de mais de seis anos
(I) que conduziu à aprovação do novo regime aqui em análise — proposta à qual o referido Autor imputava
"importantes restrições juridicamente inaceitáveis", mas que, em todo o caso, nem circunscrevia a responsabilidade
do legislador por omissão às situações de inconstitucionalidade por omissão, nem fazia depender a constituição
nessa modalidade de responsabilidade da prévia verificação pelo Tribunal Constitucional da existência da situação de
inconstitucionalidade por omissão... Na verdade, o longo procedimento de elaboração do regime em análise foi
marcado por uma evolução marcada pela crescente limitação do âmbito da responsabilidade por omissões cometidas
no exercício da função legislativa. Veja-se, a propósito, a apreciação critica de Rui MEDEIROS, "Apreciação geral dos
projectos", in Cadernos de Justiça Administrativa n.° 40, pp. 16-17, embora ainda reportada aos projectos existentes
em 2003.

155
portanto, que a referida norma constitua o padrão de decisão que ao tribunal cumpriria aplicar para a resolução do caso
sub iudice. Por este motivo se assume que o poder-dever de recusar a aplicação de normas inconstitucionais é um poder
de que, no nosso ordenamento jurídico-constitucional, os tribunais são investidos pelo artigo 204.° da CRP, que os impede
de aplicar normas inconstitucionais aos feitos submetidos ao seu julgamento, exigindo-lhes que os julguem como se não
existissem as normas julgadas inconstitucionais, aplicando, se for caso disso, e em vez delas, as normas anteriores, que
elas tinham vindo revogar ou substituir 37/38. Sucede, porém, que, numa acção de responsabilidade civil extracontratual do
Estado fundada na prática de um ilícito legislativo consubstanciado na emissão de uma lei inconstitucional - ou ilegal, por
violação de lei com valor reforçado -, o tribunal não é chamado a aplicar as normas da lei que no processo vem qualificada
como ilícita. Tais normas não constituem, na verdade, o padrão de decisão que o tribunal é chamado a aplicar. Por
conseguinte, o tribunal, no âmbito dessa acção, não pode, por definição, recusar a aplicação das referidas normas (tal
como também não pode, por definição, proceder à respectiva aplicação...): na verdade, a lei alegadamente inconstitucional
- ou ilegal - apenas releva, no âmbito da acção, como um facto, que ao tribunal cumpre qualificar juridicamente.

As decisões que atribuem indemnizações por danos decorrentes da emissão de actos legislativos ilícitos não
põem, na verdade, em causa a capacidade de tais actos para produzir os efeitos a que se dirigem: limitam-se a qualificar
esses efeitos como ilícitos, para daí extraírem as devidas consequências no plano da responsabilidade, sem porem em
causa a subsistência na ordem jurídica de tais efeitos, cuja produção assumem como um facto. É, aliás, porque esses
efeitos se produziram e subsistem na ordem jurídica que existem danos e cumpre repará-los.

Para melhor ilustrar a distinção, pense-se no exemplo da pessoa que, no âmbito de uma acção de despejo,
suscita o incidente da inconstitucionalidade da norma legal em que essa acção se sustenta e que, portanto, o tribunal é
chamado a aplicar no âmbito dessa acção. Se o tribunal julgar a norma inconstitucional, recusará a sua aplicação e decidirá
o caso como se a norma em causa não existisse, fazendo com que os seus efeitos não se projectem sobre a esfera do
interessado, que não sofrerá, por isso, qualquer dano causado pela norma inconstitucional: a recusa de aplicação afasta a
produção de efeitos lesivos no caso concreto e, portanto, a ocorrência de danos.

A nosso ver, isto é precisamente o contrário do que sucede numa acção de responsabilidade civil extracontratual
fundada na inconstitucionalidade - ou na ilegalidade, por violação de lei de valor reforçado - de uma norma legal, em que o
tribunal que julga a norma inconstitucional (ou ilegal) não procede, por definição, à recusa de aplicação dessa norma,
decidindo o caso como se ela não existisse, mas, pelo contrário, assume como um facto a existência da norma, para o
efeito de extrair consequências da sua ilicitude, no plano da responsabilidade pelos danos que dela possam resultar.

Daqui se retira que a modalidade de juízo de inconstitucionalidade que os tribunais são chamados a formular nas
acções de responsabilidade civil extracontratual do Estado emergente da emissão de actos legislativos inconstitucionais (ou
ilegais por violação de lei de valor reforçado) não corresponde ao paradigma que se encontra subjacente ao sistema
previsto na CRP de fiscalização sucessiva concreta da constitucionalidade das normas e da legalidade das leis. Como, na
verdade, assinala Rui Medeiros, "a desvalorização da conduta inconstitucional não é, em rigor, o único efeito da
inconstitucionalidade. Sendo o efeito porventura mais relevante e um efeito prototípico, outros podem existir. A obrigação de
indemnizar por ilícito legislativo é, precisamente, um dos outros efeitos da inconstitucionalidade: não se trata já de impedir
que a norma inconstitucional produza os efeitos jurídicos que lhe corresponderiam, mas de eliminar todos os danos que
resultaram da vigência da lei na ordem jurídica"39.

As decisões que, nas acções de responsabilidade pelo exercício da função legislativa, os tribunais são chamados
a proferir não se enquadram, por isso, no sistema de recursos para o Tribunal Constitucional que se encontra previsto no
artigo 280.° da CRP. Quando concebeu o sistema de recursos das decisões jurisdicionais para o Tribunal Constitucional,
reportando-o exclusivamente às situações (paradigmáticas) de aplicação ou recusa de aplicação de normas, a CRP não

37
22 - Cfr., por todos, CARLOS BLANCO DE MORAIS, Justiça Constitucional, tomo II, Coimbra, 2005, p. 550; GOMES
CANOTILHO/VITAL MOREIRA, op. cit., p. 1028.

38
23 Como explica GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., pp. 901 e 983, no
controlo concreto (difuso) de constitucionalídade, a cargo dos tribunais ordinários, trata-se de "dar operatividade
prática à ideia da judicial review americana: qualquer tribunal que tem de decidir um caso concreto está obrigado, em
virtude da sua vinculação pela constituição, a fiscalizar se as normas jurídicas aplicáveis ao caso são ou não
válidas". Como "uma norma em desconformidade material, formal ou procedimental com a constitucionalidade é
nula", deve o juiz, “antes de decidir qualquer caso concreto de acordo com esta norma, examinar ('direito de exame',
'direito de fiscalização') se ela viola as normas e princípios da constituição. Desta forma, os juízes têm acesso directo
á constituição, aplicando ou desaplicando normas cuja inconstitucionalidade foi impugnada".

39
24 - Cfr. RUI MEDEIROS, Ensaio..,, clt., p. 13.

156
teve em vista a modalidade de juízo de constitucionalidade a que, no âmbito destas acções, os tribunais são chamados a
realizar.

É esta circunstância que o novo regime em análise procura dar resposta, no n.° 2 do artigo 15.°, assegurando a
existência, também nestes casos, de recurso para o Tribunal Constitucional 40.

A RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL


DA ADMINISTRAÇÃO POR FACTO ILÍCITO:
REFLEXÕES AVULSAS SOBRE O NOVO REGIME
DA LEI 67/2007, DE 31 DE DEZEMBRO

CARLA AMADO GOMES

Elegendo como objecto de análise o novo regime da responsabilidade civil extracontratual da administração por
facto ilícito instituído pela Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, a autora principia a sua exposição realçando a prevalência
daquele regime sobre regimes especiais aplicáveis a entidades de direito público, quando estes operem remissões para
normas de imputação de matriz privada, bem como sobre regimes especiais de responsabilidade aplicáveis a entidades
privadas ancorados no Direito privado, sempre que aquelas prossigam funções materialmente administrativas.
A autora concentra-se na definição do “âmbito objectivo da lei", o que a leva, por um lado, a colocar em evidência
a circunstância de esta contemplar qualquer forma de actividade administrativa e a reconhecer que a LRCEE confere plena
efectividade ao artigo 22.° da CRP na medida em que contempla todas as situações potencialmente geradoras de
responsabilidade.
No plano da "solidariedade entre pessoa colectiva e titular do órgão/funcionário agente do dano", a autora conclui
no sentido de que a consagração da solidariedade entre titular de órgão, agente ou funcionário e pessoa colectiva, nos
termos do artigo 8.°/2 da LRCEE e sob o impulso do artigo 22.° da CRP, constitui uma mais-valia para as vítimas de acções
ou omissões ilícitas, porque lhes permite optar na escolha do réu da acção de efectivação da responsabilidade.
No que respeita á "responsabilidade pelo risco", autora faz notar que o instituto, presente no artigo 11.° da
LRCEE, exprime um aligeiramento do limiar de imputação dos danos relativamente ao anterior regime, na medida em que
abandona a qualificação da excepcionalidade da actividade, substituindo-a pela especialidade.
No que respeita á "indemnização por danos infligidos a bens de fruição colectiva" que afirma derivar
fundamentalmente do n.° 3 do artigo 52.° da CRP, a autora lamenta o facto de o legislador não ter concretizado esta
dimensão protectiva na Lei 83/95, de 31 de Agosto, fazendo simultaneamente notar que tal inércia legislativa —
configuradora de uma autêntica inconstitucionalidade por omissão — poderia ter sido atalhada com a LRCEE caso esta
contivesse uma alteração/aditamento á Lei 83/95, de 31 de Agosto.

SUMÁRIO: 0. Considerações gerais; 1. Âmbito objectivo da Lei; 1.1. Responsabilidade por violação de
normas de Direito Comunitário; 2. Solidariedade entre pessoa colectiva e agente do dano; 3. Responsabilidade
por défice de ponderação de circunstâncias de risco; 4. Indemnização por danos infligidas a bens de fruição
colectiva

O texto suportou a intervenção oral da autora nas Jornadas sobre A nova lei da responsabilidade civil
extracontratual do Estado, promovidas pelo Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade
de Lisboa, nos dias 13 e 14 de Março de 2008. Agradece-se ao Doutor Jorge Miranda a lembrança do convite.

O. A Lei 67/2007, de 31 de Dezembro (Regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais


entidades públicas = LRCEE), foi fruto de uma longa espera 41. Não tanto no plano da responsabilidade da Administração,
domínio coberto pelo DL 48.051, de 27 de Novembro de 1967 42, mas sobretudo no tocante à responsabilidade dos órgãos e
seus titulares das outras duas funções do Estado: legislativa e jurisdicional. Este silêncio tornava-se crescentemente
ruidoso em razão de dois factores convergentes: em primeiro lugar, e logo desde 1976, a coincidência entre realização do
Estado de Direito e responsabilização das entidades públicas por quaisquer acções e omissões que violem direitos dos
particulares, traduzida no artigo 22.° da CRP; em segundo lugar, a pressão da jurisprudência internacional, maxime
40

41
- E de um tortuoso processo pois, como é do conhecimento geral, foi objecto de um veto político por parte do Presidente
da República, que obrigou a confirmação pela Assembleia da República, nos termos do artigo 136.°/2 da CRP.
42
- Sobre este regime, veja-se Maria da Glória DIAS GARCIA, A responsabilidade civil do Estado e demais pessoas
colectivas, Lisboa, 1997, pp. 29 segs.

157
comunitária, no sentido do ressarcimento de danos provocados aos particulares, quer por facto da função jurisdicional
(atraso na administração de justiça, pelo qual Portugal já foi diversas vezes condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos
do Homem43; erro grosseiro na aplicação do Direito Comunitário, na sequência do Acórdão do Tribunal de Justiça de 10 de
Setembro de 2003 — caso Köbler 44), quer por facto da função legislativa (não transposição ou transposição incorrecta de
directivas comunitárias; não revogação de legislação nacional incompatível com normas comunitárias — na sequência da
jurisprudência Francovich e Brasserie du Pêcheur45).
Nestas breves linhas, vamos concentrar-nos na responsabilidade do Estado-Administrador, por facto ilícito 46,
embora proponhamos uma passagem fugaz, em razão da contiguidade, pelos terrenos da responsabilidade pelo risco.
Dada a fertilidade da doutrina jus-administrativista e constitucionalista neste domínio, vamos eximir-nos de grandes
desenvolvimentos e resumir as nossas observações a alguns pontos, que passaremos a identificar:

1. Âmbito objectivo da Lei;


2. Solidariedade entre pessoa colectiva e titular do órgão/funcionário agente do dano;
3. Pressupostos de fixação da indemnização em caso de responsabilidade pelo risco;
4. Responsabilidade por riscos imprevisíveis;
5. Indemnização por danos infligidos a bens de fruição colectiva.

Antes de entrar na apreciação destes aspectos, gostaríamos, telegraficamente, de deixar quatro apontamentos,
em sede geral:
i) Depois de estabelecer, no artigo 2.°/1, a preferência de regimes especiais de responsabilidade civil
extracontratual da Administração (v. g., Código das Expropriações) sobre o disposto na presente lei, o artigo 2.°/2 da
LRCEE assume o regime da responsabilidade civil por facto da função administrativa aí contido como geral e subsidiário
relativamente a qualquer situação de responsabilização de entidades públicas, nomeadamente para efeitos de prevalência
sobre qualquer remissão para regimes especiais de direito privado. A pretensão do legislador é, claramente, a de gerar
uniformidade, principiológica e normativa, em sede de responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos que
desenvolvem a função administrativa – sendo certo que o regime continua a ser tributário da legislação civilística, onde se
encontra sedeado o instituto transversal da responsabilidade civil, mal se compreendendo a opção envergonhada do
legislador em ter retraído a consagração expressa da aplicação subsidiária do Código Civil 47.
Daí que a articulação entre os n.°s 1 e 2 deste preceito, bem como com o n.° 5 do artigo 1.° do Decreto
Preambular, nos leve a crer, por um lado, na prevalência da LRCEE sobre regimes especiais aplicáveis a entidades de
direito público quando estes operem remissões para normas de imputação de matriz privada e, por outro lado, na
prevalência da LRCEE sobre regimes especiais de responsabilidade aplicáveis a entidades privadas ancorados no Direito
privado, sempre que aquelas prossigam funções materialmente administrativas, identificadas através da concessão de
prerrogativas de autoridade ou da conformação por normas de Direito Administrativo;

ii) Na lógica da uniformização do regime de responsabilidade civil extracontratual por actos da função
administrativa, a LRCEE aplica-se, como se viu, a entidades privadas investidas em tarefas materialmente administrativas
ou submetidas ao Direito Administrativo 48 — artigo 1.°/5 do Decreto Preambular — bem assim como, evidentemente, a
entidades públicas integradas na função administrativa. No entanto, e contrariando algumas vozes 49, o legislador não
prescindiu da distinção entre "gestão pública" e "gestão privada", embora tenha abandonado esta terminologia, na qual

43
- Lembrem-se os casos Guincho (Acórdão de 10 de Julho de 1984), Barahona (Acórdão de 8 de Julho de 1987) e Martins
Moreira (Acórdão de 26 de Outubro de 1987) - e também, em geral, os casos identificados por Ireneu CABRAL BARRETO,
A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Anotada, 2.• ed., Coimbra, 1999, pp. 144 segs. (e notas).
44
- Caso C-224/01.
45
- Acórdãos de 19 de Novembro de 1991, Casos c-6/90 e 9/90, e de 5 de Março de 1993, Casos C-46/93 e 48/93,
respectivamente.
46
- Sobre o regime da nova lei, veja-se Marcelo REBELO DE SOUSA e André SALGADO DE MATOS, Responsabilidade
civil administrativa, Lisboa, 2008, pp. 18 segs.
47
- O Código Civil não só contém a chave de decifração de um conjunto de conceitos utilizados pela LRCEE — danos
patrimoniais e não patrimoniais; danos futuros (artigo 3.°/3) —, como é destinatário de remissões expressas daquela Lei
(cfr. os artigos 5.° e 10.°14).
48
- Numa extensão plenamente justificada pela despublicização formal e que vai ao encontro, quer de disposições de
natureza substantiva como os n °s 3 e 4 do artigo 2.° do CPA, quer de normas adjectivas como a da alínea i) do n.° 1 do
artigo 4.° do ETAF.
49
- Vasco PEREIRA DA SILVA, Em busca do acto administrativo perdido , Coimbra, 1996, pp. 108 (nota 2) e 109; do mesmo
Autor, ver também Responsabilidade Administrativa em matéria de Ambiente , Lisboa, 1997, pp. 19-20. Para uma defesa da
dualidade de regimes, Diogo FREITAS DO AMARAL, A responsabilidade da Administração no Direito Português , Lisboa,
1973, pp. 19-20.

158
ecoava o seminal Acórdão Blanco, do Tribunal de Conflitos francês 50. Com efeito, o n.° 2 do artigo 1.° do Decreto
Preambular à LRCEE estabelece que "... correspondem ao exercício da função administrativa as acções e omissões
adoptadas no exercício de prerrogativas de poder público ou reguladas por disposições ou princípios de direito
administrativo", delimitação que afasta do regime da LRCEE as acções e omissões de entidades públicas e privadas
investidas na função administrativa que não se traduzam na actuação de poderes de autoridade. Nestas hipóteses,
continuam a aplicar-se os artigos 501.° e 500.° do Código Civil — responsabilidade dos comitentes e comissários —,
desvirtuando-se assim, sem razão bastante (uma vez que, mesmo destituída de poderes de autoridade, a entidade
administrativa prossegue um interesse público), o propósito de harmonização de regimes (só parcialmente) subjacente à
LRCEE51;

iii) Correspondendo à pressão doutrinal52, a LRCEE esclarece que o concurso de culpa do lesado não é facto
impeditivo de imputação da responsabilidade à entidade directamente responsável pelo dano, mas apenas causa de
redução (ou, no limite, exclusão) do montante indemnizatório. Como se sabe, este esclarecimento tomava-se necessário
em virtude da ambígua fórmula utilizada pelo artigo 7.°, 2.ª parte, do DL 48.051, susceptível de ser aproveitada de molde a
excluir a imputação sempre que se verificasse concurso de culpa do lesado, nomeadamente devido à falta de propositura
atempada do meio processual tendente à minimização dos danos 53 (na época, reduzido à providência cautelar da
suspensão de eficácia do acto, cuja concessão se pautava por critérios altamente restritivos). A LRCEE continua a investir o
lesado no ónus de utilização atempada da via processual adequada, mas deixa claro que "cabe ao tribunal determinar, com
base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas tenham resultado, se a indemnização
deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída" (artigo 4.° do Decreto Preambular). Só é pena que, surgindo
após a reforma da legislação processual administrativa, o artigo 4.° da LRCEE ainda circunscreva (mesmo que
exemplificativamente) "a via processual adequada" à "eliminação do acto lesivo" 54 e não tenha enveredado por uma
terminologia mais abrangente — como, por exemplo, a cessação de efeitos da conduta lesiva (que cobriria, quer actuações
materiais e jurídicas, quer acções e omissões);

iv) A epígrafe do artigo 6.° do Decreto Preambular da LRCEE é enganadora, uma vez que esta norma impõe,
mais do que um direito de regresso, um verdadeiro dever de regresso da entidade pública contra o funcionário que, nos
termos do artigo 8.°/1 do Decreto Preambular da LRCEE, agir com dolo ou culpa grave no exercício das suas funções e,
por causa desse exercício, tenha provocado danos 55. Este dever, ancorado no princípio da culpa, tende a incrementar a
50
- Sobre o significado desta jurisprudência, veja-se o nosso Contributo para o estudo das operações materiais da
Administração Pública e do seu controlo jurisdicional, Coimbra, 1999, pp. 273 segs. e doutrina citada.
51
- Entrelaçando-se com as cláusulas de jurisdição definidas no artigo 4 °/1/g) e i) do ETAF — os tribunais administrativos
ocupam-se dos litígios emergentes de actuações ou omissões que, configurando relações jurídicas administrativas, causem
lesão aos particulares, quer sejam desenvolvidas por entidades públicas, quer por entidades privadas. Assim, traduzindo o
exercício de funções materialmente administrativas, ainda que não traduzindo o exercício de poderes de autoridade e
envolvendo sujeição a normas de Direito privado, as acções e omissões danosas imputáveis a estas entidades, no âmbito
destas situações, deverão ser sindicáveis junto dos tribunais administrativos.
Esta é a postura do Tribunal dos Conflitos, reportada ainda a uma situação resolvida à luz do DL 48.051, expressa no
Acórdão de 26 de Setembro de 2007 (proc. 13/07). O Tribunal obtemperou que "mesmo os actos de gestão privada
praticados no quadro de actividades funcionalmente administrativas pelas pessoas colectivas de direito público ou pelos
titulares dos seus respectivos órgãos (...) dão lugar à existência de uma relação jurídico-administrativa regulada pelo direito
público". Pronunciando-se no sentido da valência desta posição no contexto do entrelaçamento entre o artigo 4.°/1/g) do
ETAF e a LRCEE, Rosendo DIAS José, Súmula de jurisprudência constitucional, in CJA, n.° 66, 2007, p. 70 (apelando à
promoção da tutela efectiva que esta opção acarreta).
52
- Nomeadamente, de Rui MEDEIROS, Ensaio sobre a responsabilidade civil do Estado por actos legislativos, Coimbra,
1992, pp. 217 segs., max. 223. Leiam-se também as extensas considerações de Carlos CADILHA, Responsabilidade da
Administração Pública, in Responsabilidade civil extra-contratual do Estado. Trabalhos preparatórios da reforma, Coimbra,
2002, pp. 235 segs., 243 segs.
53
- Era a posição sustentada por A. Queiró (conforme esclarece Rui MEDEIROS), que influenciou alguma jurisprudência, já
ultrapassada. Cfr., por exemplo, o Acórdão do STA de 3 de Novembro de 2005 (Proc. 01028/04), no qual se entendeu que o
art. 7º,/2, 2ª parte, do DL 48.051 não continha uma excepção peremptória preclusiva do direito de indemnização por
concurso de culpa do lesado.
54
- Recorde-se que, nos termos do artigo 58.°/4 do CPTA, o prazo de impugnação dos actos administrativos anuláveis
estabelecido no n.° 2/b) do mesmo preceito, não é peremptório, dada a possibilidade de, invocando ter sido induzido em
erro, ter laborado em erro desculpável ou ter sido confrontado com um justo impedimento, o interessado propor a acção de
anulação até ao prazo-limite de um ano, contado nos termos do artigo 59°/1, 2 e 3 do CPTA.
55
- A mensagem do Presidente da República à Assembleia da República, explicativa do veto político quanto ao primeiro
decreto aprovado por esta contém, no ponto 6., uma advertência relativa ao exercício do dever de regresso pelas entidades
públicas, o qual implicará custos de sobrecarga da máquina judicial (administrativa), e custos de operacionalidade do

159
diligência e cuidado dos titulares dos órgãos e dos agentes e garante que o erário público só responde subsidiariamente
por danos causados por incúria dos funcionários em face dos seus deveres funcionais 56. A dúvida que desponta é a de
saber se também no caso da extensão do regime da LRCEE a entidades privadas investidas em funções materialmente
administrativas este dever se impõe. Tenderíamos a considerar que sim, em razão da idêntica valência do primeiro
argumento, ainda que não do segundo (o erário público não sai beliscado com a não actuação do dever de regresso pelas
pessoas colectivas privadas).

1. O âmbito da LRCEE57 contempla qualquer forma de actividade administrativa, traduzida no exercício de


poderes de autoridade ou na sujeição a princípios e normas de Direito Administrativo, cuja actuação ou omissão cause
lesão aos particulares. No plano da responsabilidade por factos ilícitos, e em virtude da indistinção do grau de ilicitude de
acções e omissões capaz de gerar responsabilidade das entidades públicas decorrente do artigo 22.° da CRP, os artigos
7.° e 8.° contemplam uma ampla paleta de situações, desde a falta leve, passando pela falta grave e culminando na falta
dolosa. O que varia é o sujeito da imputação, no plano das relações externas. De fora ficam as chamadas faltas pessoais,
cometidas pelos titulares de órgãos e agentes no exercício das funções mas não por causa desse exercício 58.
Aferindo a compatibilidade destas normas com a matriz constitucional do artigo 22.° conclui-se que o legislador
ordinário cobriu todas as hipóteses de responsabilização das entidades que exercem a função administrativa, desde a falta
leve à falta dolosa (todas as acções e omissões ilícitas) 59. No caso da falta do serviço, a LRCEE associou a ilicitude às
situações em que o funcionamento da estrutura administrativa não corresponde aos padrões médios que seriam
razoavelmente exigíveis com vista à satisfação atempada das solicitações dos utentes (v. g., repartição pública que
funciona, durante um certo período, apenas com um funcionário, devido à requisição de um segundo e a baixa por doença
de um terceiro; empresa transportadora que tem 10 veículos a operar, quando seriam necessários 15) - artigos 9.°/2 e
7.°/4.
Note-se, por um lado, que esta despersonalização da ilicitude – ou a acentuação da vinculação à legalidade – não
significa que a "má administração"60 possa ser sindicada por quem quer que seja, desconectada de um prejuízo singular. O
mau funcionamento dos serviços, para relevar em termos de responsabilidade civil por facto ilícito, deve ser causa
adequada de um dano individualizado, não bastando a sua configuração como uma violação da legalidade objectiva ou um
incómodo para a colectividade em geral61. Não são concebíveis as figuras da acção pública, ou das acções intentadas por
autores populares para fazer cessar uma situação de funcionamento anormal do serviço, muito menos para requerer
indemnizações com esse fundamento. O risco do mau funcionamento da estrutura administrativa da Administração de
prestação, suportada por um Estado crescentemente deficitário em virtude do aumento de despesas com prestações
sociais, deve ser suportado por todos como um risco de civilização — embora sujeito a gerar responsabilidades específicas
em caso de dano localizado.
Por outro lado, a irrelevância da ilegalidade de certas actuações (ou omissões) administrativas, seja ou não
identificável o seu autor, não pode ser arbitrariamente sustentada, sob pena de constituir uma compressão intolerável do
serviço (directos, em virtude da ausência do funcionário do serviço para cumprir as obrigações inerentes ao processo
judicial, e indirectos, uma vez que terá que suportar os custas da defesa). Além da eventual inércia gerada pela
responsabilização directa, que poderá conduzir os funcionários a não agir.
56
- Trata-se de um dever imperfeito, uma vez que a LRCEE não associa à ausência da sua efectivação qualquer reacção.
Tenderíamos a defender a utilização da acção pública, pela via da acção administrativa comum (artigo 37.°/1/d) do CPTA),
para forçar a condenação da entidade à propositura da acção - ou, como alvitrou J. M. SERVULO CORREIA em
intervenção oral nas Jornadas, a acção administrativa especial de condenação à prática de acto devido (por relação com o
n.° 2 do artigo 14°, que refere uma "decisão"), promovida pelo Ministério Público ao abrigo do artigo 68.°/1/c) do OPTA.
De todo o modo, as consequências financeiras da omissão do dever de regresso sempre serão controláveis através da
intervenção do Tribunal de Contas (esta sugestão foi deixada por Luís Fábrica nas Jornaads sobre a LRCEE promovidas
pelo IGAP no dia 5 de Maio de 2008, na Faculdade de Direito da Universidade Católica (Porto) nas quais interviemos).
57
- Doravante, os artigos citados sem referência constam do Decreto Preambular da LRCEE.
58
- Cfr. um caso de fronteira que atesta bem as dificuldades de delimitação deste segmento no Acórdão do STA, I, de 12 de
Julho de 1990, in Apêndice ao DR, de 31 de Janeiro de 1995, pp. 4275 segs. (espancamento de um técnico de Informática
em visita de serviço á Base do Alfeite por um oficial na sequência de uma interpelação, não acatada, para mover a viatura
em que se deslocava para outro local — o Tribunal considerou que havia falta funcional, cometida em "progressão
emocional").
59
- Inclusive, no âmbito pré-contratual (artigo 7.°/2), numa referência quiçá redundante em face da abertura do artigo 4
°/1/g) do ETAF, só compreensível em razão de exigências da Comissão Europeia relativamente ao cabal cumprimento das
Directivas Contratos. Sobre este especifico regime de responsabilidade, veja-se o artigo de Esperança MEALHA, também
inserido neste número.
60
- Cfr., sobre o conceito de "boa administração", Mário Aroso DE ALMEIDA, O Provedor de Justiça como garante da boa
administração, in O Provedor de Justiça. Estudos. Volume comemorativo do 30.° Aniversário da Instituição, s/local, 2006,
pp. 13 segs.
61
- Cfr. J. J. GOMES CANOTILHO, O problema da responsabilidade do Estado por facto lícito, Coimbra, 1974, pp. 74-75.

160
princípio da responsabilidade (ou mesmo um esvaziamento deste). Exemplo paradigmático é o dos vícios formais, cujo
branqueamento por renovação do acto inviabilizaria qualquer pedido ressarcitório — embora a sua verificação abra
caminho à anulação (ou declaração de nulidade) do acto. Assim já o entendeu o Tribunal Constitucional, no Acórdão
154/2007, no qual estava em causa a conformidade da interpretação do artigo 2.°/1 do DL 48.051 com o artigo 22.° da
CRP, disposição em que o juiz a quo se baseou para rejeitar uma pretensão indemnizatória de um particular que pretendia
ver-se ressarcido pelos danos sofridos na sequência da prolação de um despacho de suspensão, não fundamentado, dos
efeitos de um acto favorável, que veio, aliás, a ser judicialmente anulado.
Apesar de ter dado procedência ao pedido anulatório, o tribunal administrativo considerou improcedente o pedido
de ressarcimento de danos provocados pela paralisação da obra (uma instalação de cultura de rodovalho), alegadamente
com causa na falta de fundamentação do despacho que decretou o embargo. As normas impositivas do dever de
fundamentação teriam por âmbito de protecção, segundo o tribunal, a transparência administrativa e não qualquer "direito à
fundamentação", muito menos com expressão económica62.
O Tribunal Constitucional, perante a tentativa de neutralizar o vício de forma como representação de ilicitude
relevante no contexto do artigo 22.° da CRP (numa visão optimizadora da norma fortemente caracterizada pelo sistema de
fiscalização, concreta, ao abrigo do qual actuou), afirmou que:

“... a verdade é que não é compatível com o artigo 22.° da Constituição uma interpretação do artigo 2.° do
Decreto-Lei n.° 48.051 que exclua sempre e em qualquer caso a responsabilidade do Estado por danos
verificados na sequência de um acto administrativo anulado por falta de fundamentação quando a sentença
anulatória não for executada e não for praticado novo acto, sem o vício que determinou a anulação, com o
fundamento de que se não verifica nunca o pressuposto da ilicitude do acto.
E isto se diz sem embargo de se não excluir a possibilidade de o pedido de indemnização vir a ser julgado
improcedente por não verificação de qualquer dos pressupostos da responsabilidade civil."

Por último, cumpre sublinhar que a ilicitude se basta com a falta leve - ainda que só a entidade responda por dano
eventualmente provocado. O artigo 10.°/2 estabelece que se presume "a existência de culpa leve na prática de actos
jurídicos ilícitos", sem prejuízo da possibilidade de demonstração de graus mais elevados de culpa 63. A culpa in vigilando é
uma expressão da culpa leve (se não mais grave), nos termos gerais da responsabilidade civil, uma vez que configura uma
omissão de deveres de vigilância impostos por lei, regulamento, norma técnica ou dados da experiência (artigo 10.º/3) 64. A
falta de serviço - espantosamente - constitui outro campo onde a presunção de culpa leve decorre da ilicitude (artigos 9.°/2
e 10.°/2) -, ainda que sem possibilidade de identificação do "culpado"...
A imputação às entidades (e só às pessoas colectivas) com funções administrativas dos danos gerados na
sequência da prática de faltas leves é um imperativo constitucional (uma vez que o artigo 22.° da CRP não distingue graus
de ilicitude) e uma decorrência lógica dos princípios do Estado de Direito, da dignidade da pessoa humana, da protecção
dos direitos fundamentais pessoais e patrimoniais. E faz para nós sentido que o funcionário seja eximido de responder
(civilmente, pelo menos) por danos ocorridos por efeito da prática de faltas cometidas com culpa leve, por força da
concorrência de dois argumentos: em primeiro lugar, em nome de uma ideia de proporcionalidade — só faltas com um
determinado grau de culpa devem penalizar o funcionário porque ele é humano, sujeito ao erro, desde que desculpável e
não reiterado, e o serviço tem que contar com esse dado objectivo; em segundo lugar, em nome dos princípios da
prossecução do interesse público e da eficiência administrativa (artigos 266.°/1 e 267.°/2 da CRP) — a responsabilização
directa do funcionário por qualquer falta poderia conduzir à paralisação da actividade administrativa, devido ao espectro do
ressarcimento de danos.
Se isto é verdade, não podemos, todavia, deixar de expressar, de iure condendo, uma dúvida quanto à
imputabilidade genérica por faltas leves. Sem negar a imperatividade do principio da responsabilização das entidades com
62
- Realce-se que o tribunal administrativo, tendo detectado o vicio de falta de fundamentação, não prosseguiu na análise
de outros vícios de que o acto alegadamente padecia. O que torna o vicio de forma um fundamento "solitário" de
sustentação da ilegalidade que, em virtude da não execução da sentença anulatória, acaba por carregar sobre os seus
ombros todo o peso da paralisação da obra e do dano do autor.
63
- Carlos CADILHA (Regime geral da responsabilidade civil da Administração Pública, in CJA, n° 40, 2003, pp. 18 segs.,
29) sublinha que "a presunção de culpa não equivale, sem mais, a um dever objectivo de indemnizar, mas tão-somente
determina um agravamento da posição processual da Administração, que terá de comprovar que se empenhou na procura
da solução legal".
64
- A remissão da LRCEE para o Código Civil - nomeadamente, para o artigo 493.° - estabelece uma conexão entre a
responsabilidade por omissão ilícita e a responsabilidade pelo risco (artigo 11° da LRCEE), na medida em que o n.° 2 do
artigo 493.° dispõe que "Quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza
ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências
exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir". Ora, ainda que a Administração consiga ilidir a presunção de culpa
por omissão ilícita, pode vir ainda a confrontar-se com um pedido ressarcitório baseado na especial perigosidade da
actividade desenvolvida.

161
funções administrativas por quaisquer acções e omissões ilícitas — porque ele decorre incontornavelmente do artigo 22.°
da CRP —, hesitamos em admitir um princípio de responsabilização plena, por qualquer dano verificado nestas
circunstâncias. Isto porque nos parece inquestionável a constatação de uma margem de risco de erro inerente à actuação
da Administração prestadora, com múltiplas solicitações, crescentemente complexas. Quer devido a falhas humanas, quer
em virtude de problemas de implementação de novas tecnologias de atendimento e processamento de pedidos, gera-se um
risco de civilização neste contexto que deve ser suportado por todos, salvo em situações de danos anormais.

A contraposição do argumento de que o particular lesado é também contribuinte e com os seus impostos paga
para que a máquina administrativa funcione sem falhas — essa seria a via de repartição do risco da exponencialidade
performativa da Administração de prestação — é falaciosa, porque a generalidade dos contribuintes acaba por ser
duplamente prejudicada: não só paga os custos de (mau) funcionamento; como tem que suportar indemnizações por
qualquer dano decorrente de falta leve ou desse mau funcionamento 65. E nem se diga que o dano relevante é resultado de
faltas grosseiras ou dolosas, e que a falta leve tende a gerar danos insignificantes, porque tal correspondência está longe
de ser automática (um dano gravíssimo pode ter origem numa falta leve e um dano despiciendo pode resultar de uma falta
grave). Parece-nos que o princípio da justa repartição dos encargos públicos haveria de ter, também nesta sede, uma
aplicação, circunscrevendo o dever de indemnizar por falta leve (e, dada a presunção de culpa leve que lhe vai (mal)
associada, por falta de serviço) a casos de comprovada eclosão de danos anormais na esfera jurídica dos particulares. Não
foi esta, no entanto, a opção do legislador.
Suportaria esta hipótese argumentativa o confronto com o artigo 22.° da CRP? A primeira vista, não, uma vez
que, ao restringir o direito de indemnização por facto ilícito às vítimas de danos anormais, estar-se-ia a pôr em causa o
princípio de que o poder público deve responder por todas as condutas que lesem, ilicitamente, os direitos dos particulares.
Aceitando teoricamente a responsabilização a montante, esvaziar-se-ia de sentido a jusante, aquando da aferição da
anormalidade do prejuízo. Porém, não podemos olvidar que, ainda que se possa retirar da previsão do artigo 22.° uma
norma suficientemente densa para sustentar um direito subjectivo (um direito fundamental de natureza análoga aos direitos,
liberdades e garantias)66, ele deve ser submetido a um teste de compatibilidade com outras posições jurídicas,
nomeadamente com valores constitucionalmente protegidos que possam provocar compressões do seu conteúdo. Haverá
necessidade e equilíbrio na imposição do ressarcimento de danos cuja origem são falhas inevitáveis e menores na
engrenagem da complexa máquina administrativa da Administração de prestação, de cujo funcionamento toda a
comunidade aproveita e sem o qual a sociedade não auferiria do nível de conforto que actualmente se verifica? Tendemos a
afirmar que não, e que se trataria, portanto, de uma restrição admissível ao conteúdo de tal direito fundamental.

1.1. O facto de o artigo 9.°/1 não incluir a referência a disposições de Direito Comunitário (algo
surpreendentemente, dado que o menciona expressamente no campo da responsabilidade por facto da função legislativa 67)
não inibe a Administração de atender ao conteúdo regulatório de regulamentos comunitários em vigor, quer promovendo a
necessária concretização através da emissão de regulamentos de execução (quando devidos), quer extraindo do seu
conteúdo a normação de conformação de direitos dos particulares 68.
Como se sabe, o Direito Comunitário tem uma vocação de aplicação uniforme em todos os Estados-membros,
por força do principio da solidariedade (artigo 10.° do TCE), a que Portugal está adstrito (cfr. os artigos 7.°/6 e 8.°/3 e 4 da
CRP e artigo 249.°, § 2.°, do TCE). Sendo as suas normas dotadas de clareza, precisão e incondicionalidade — como é a
regra, no domínio dos regulamentos —, os particulares podem invocar este efeito directo com vista à definição de situações
jurídicas de vantagem. A Administração, por seu turno, deve conferir-lhes plena aplicação, mesmo que para isso tenha que
afastar normas internas de conteúdo contrário.

65
- Em sentido idêntico, reportando-se ao sistema francês, G. CHAVRIER, Essai de justification et de conceptualisation de
la faute toureie, in AJDA, 2003120, pp. 1026 segs.: "II faut dono juger que les interêts de l'administration sont tout aussi
défendables et dignes de respect que ceux das particuliers: répêter que la faute lourde est'Ilegítima, c'est nier la spécificité
des missions de service public mise en évidence par l'arrêt Blanco. Surtout, é force de victimiser le particulier, on tinira par
renforcer son hostilité naturelle é I'égard d'une administration qu'il faut financer par l'impôt et qui, en plus, commet des
Pautes alors que ses missiona ne sont pas reconnues comme difficiles par la justice" (pp. 1027, 1028).
66
- Contra, Maria Lúcia AMARAL, Responsabilidade do Estado e dever de indemnizar do legislador , Coimbra, 1998, pp.
439 segs.; Manuel AFONSO VAZ, A responsabilidade civil do Estado. Considerações breves sobre o seu estatuto
constitucional, Porto, 1995, pp. 9-10.
67
- Sobre a responsabilidade do legislador por emissão (ou manutenção em vigor) de norma interna contrária ao Direito
Comunitário, Maria Luísa DUARTE, A responsabilidade dos Estados-membros por actos normativos e o dever de
indemnizar os prejuízos resultantes da violação do Direito Comunitário — Em especial, o caso português , in A cidadania da
União e a responsabilidade dos Estados por violação do Direito Comunitário, Lisboa, 1994, pp. 53 segs.
68
- Cfr. Paulo OTERO, A Administração Pública nacional como Administração comunitária: os efeitos internos da execução
administrativa pelos Estados-membros da União europeia , in Estudos em homenagem à Professora Doutora Isabel
Magalhães Collaço, I, Coimbra, 2002, pp. 817 segs.

162
Menos simples se afigura a questão relativamente às directivas cujo prazo de transposição tenha expirado e não
tenham sido transpostas pelo legislador. Estes actos, caso contenham disposições claras, precisas e incondicionais, podem
ser invocados pelos particulares para derrogar direito interno contrário e para fundamentar posições jurídicas de vantagem,
como é entendimento pacífico desde a prolação do Acórdão Van Duyn 69. Ora, a questão que se coloca é a de saber se a
Administração nacional, através dos seus serviços e respectivos funcionários, pode (ou mesmo deve) dar aplicação directa
a estas normas (ou, pelo menos, interpretar o direito nacional de acordo com elas, se possível), uma vez que, não o
fazendo, viola o princípio da vinculação do bloco legal comunitário, compromete o Estado português perante a
Comunidade, arriscando a propositura de acção por incumprimento (nos termos dos artigos 226 e segs. do TCE) e lesa
ilicitamente direitos dos particulares (que estes, mais tarde, poderão vir a fazer valer em tribunal, através de acções,
impugnatórias ou condenatórias, nas quais o juiz constate o efeito directo da norma da directiva, com ou sem apoio no
processo de reenvio prejudicial70)
Do ponto de vista meramente interno, dir-se-ia que a Administração não tem esta obrigação, impendendo ela
apenas sobre o legislador (cfr. o artigo 112.°/8 da CRP). Aliás, a desaplicação de direito interno por preferência de norma
comunitária pode, numa certa perspectiva, ser visto como uma violação do princípio da separação de poderes, em termos
formais. E levanta problemas idênticos — na complexidade — à possibilidade de desaplicação de norma legal ou
regulamentar por alegada inconstitucionalidade 71. Contudo, a jurisprudência comunitária é clara na sujeição de todas as
funções do Estado — legislativa, administrativa e jurisdicional — ao princípio da solidariedade, o que nos leva a crer que as
administrações nacionais crescentemente se virão a confrontar com este desafio. Mormente quando (e se) o Tratado de
Lisboa entrar em vigor, a aplicação de normas de directivas atributivas de direitos aos particulares na ausência da sua
transposição poderá constituir uma cláusula, se não excludente, pelo menos desagravante, da responsabilidade estadual
por incumprimento do Direito Comunitário72, que passará a poder ser sujeito a sanções pecuniárias compulsórias na acção
de incumprimento por não transposição logo no primeiro processo (e não, como presentemente acontece, apenas na
segunda fase, na qual se constata o não acatamento da sentença condenatória) 73.
Com efeito, no Acórdão Fratelli Costanzo74, o Tribunal de Justiça, depois de ter concluído no sentido do dever de
desaplicação do direito nacional contrário à directiva sobre contratos públicos, sublinhou que:

"II serait par ailleurs contradictoire de juger que les particuliers sont fondés à invoquer les dispositions d'une
directive remplissant les conditions dégagées ci-dessus, devant les juridictions nationales, en vue de faire
censurer l'administration, et d'estimer néanmoins que celle-ci n'a pas l'obligation d'appliquer les dispositions de la
directive en écartant celles du droit national qui n'y sont pas conformes. II en resulte que, lorsque sont remplies les
conditions requises par la jurisprudente de la Cour pour que les dispositions d'une directive puissent être
invoquées par les particuliers devant les juridictions nationales, tous les organes de l'administration, y compris les
autorités décentralisées, telles les communes, sont tenues d'en faire application" (consid. 31) (realçado nosso).

Reconhecemos que dificilmente tal obrigação se sedimentará na consciência das Administrações nacionais,
desde logo pela complexidade inerente à interpretação das normas do Direito Comunitário, pela ausência de um
mecanismo de reenvio prejudicial no seio da estrutura administrativa, pelas consequências financeiras eventualmente
subjacentes à aplicação das normas das directivas... Mais a mais, tendo em conta que o Tribunal de Justiça, no que
69
- Cfr. o Acórdão do Tribunal de Justiça de 4 de Dezembro de 1974, Caso 41/74.
70
- Frisando este aspecto por referência é decisão Brasserie du Pêcheur, Luisa VERDELHO ALVES, Tutela ressarcitóda e
outras respostas do sistema de justiça da Comunidade Europeia perante o incumprimento dos Estados , in RCEJ, n.° 12,
2007, pp. 137 segs., 142-143. Note-se que a acção indemnizatória tem plena autonomia relativamente à acção por
incumprimento, não dependendo de uma prévia pronúncia nesta última sede. No entanto, como sublinha Denys SIMON, a
constatação prévia do incumprimento contribui para estabelecer o grau de ilicitude da acção ou omissão das autoridades
nacionais — La responsabilité de l'État saisie parle droit communautaire, in AJDA, 1996/7-8, pp. 489 segs., 493 (v. também
pp. 496-497).
71
- Sobre este problema, no sentido afirmativo, Rui MEDEIROS, A decisão de inconstitucionalidade, Lisboa, 1999, pp. 167
segs., e André SALGADO DE MATOS, A fiscalização administrativa da constitucionalidade, Coimbra, 2004, max. pp. 217
segs. Contra, Jorge MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, VI, Coimbra, 2001, pp. 176 segs. (mas admitindo
excepções — pp. 181-182); J. C. VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2.ª
ed., Coimbra, 2001, pp. 206 segs., max. 210-211 (mais generoso do que Jorge Miranda na admissão de excepções).
72
- Temos consciência da diversidade de planos entre a acção por incumprimento (predominantemente objectiva e
relacionando Estado e Comunidade) e da acção para efectivação da responsabilidade civil extracontratual da Administração
(predominantemente subjectiva e relacionando particulares e Administração nacional). O que pretendemos dizer é que, não
se eximindo a uma pronúncia condenatória, o Estado-membro pode sensibilizar ou mesmo inibir a Comissão de solicitar a
aplicação de sanções pecuniárias em situações como esta, uma vez que consegue demonstrar que a execução do Direito
Comunitário está a ser realizada, ainda que na ausência de diploma nacional de transposição.
73
- Cfr. o novo n.° 3 do futuro artigo 260 do TFUE.
74
- Acórdão do Tribunal de Justiça de 22 de Junho de 1989, Caso 103/88.

163
respeita à responsabilidade por facto da função jurisdicional, exige erro grosseiro — patamar que terá que ser, por maioria
de razão, aplicado em sede de função administrativa. Mas não deixa de ser verdade que a violação do Direito Comunitário
(normas dotadas de efeito directo, bem entendido), quando cause lesão ao particular, constitui uma ilicitude equiparável à
violação de norma do bloco legal interno e, verificada a sua prevalência sobre direito nacional — ou invocabilidade imediata
na ausência deste — em acção judicial, o particular poderá accionar a entidade administrativa no sentido da efectivação da
responsabilidade pelos danos causados pela dilação temporal no reconhecimento do seu direito. A jurisprudência
Francovich e Brasserie du Pêcheur milita nesse sentido.

2. Como já ficou dito, a LRCEE confere plena efectividade ao artigo 22.° da CRP na medida em que contempla
todas as situações potencialmente geradoras de responsabilidade, desde a falta leve à falta dolosa. Mas o preceito
constitucional não se basta com a afirmação do princípio da responsabilidade por acção ou omissão ilícita, determinando
além disso a regra da solidariedade entre a pessoa colectiva e o autor material do facto ìlicito 75.

A LRCEE hipotiza quatro situações:


a) Danos provocados por faltas leves: a entidade responde exclusivamente (artigo 7.°/1);
b) Danos provocados por falta grave ("diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se encontravam
obrigados em razão do cargo" — artigo 8.°/1): há responsabilidade solidária e, caso seja a entidade a satisfazer o pedido
indemnizatório, tem dever de regresso contra o funcionário faltoso;
c) Danos provocados por faltas dolosas (artigo 8.°/1): há responsabilidade solidária e, caso a entidade satisfaça o
pedido indemnizatório, tem dever de regresso contra o funcionário faltoso;
d) Danos provocados por qualquer tipo de falta, mas cujo autor seja inidentificável ou seja impossível provar a
autoria pessoal (artigo 7.°/3 e 4) e devam ser atribuídos a um funcionamento anormal do serviço: responde exclusivamente
a entidade.

Rapidamente se conclui que a LRCEE ficou aquém da previsão do artigo 22.° em a) — pois, ao designar, em
exclusivo, a pessoa colectiva como responsável (quer nas relações externas, quer nas internas, uma vez que exclui o
direito de regresso contra o funcionário que tenha praticado falta leve), dispensou a solidariedade no caso de danos
cometidos com falta leve. Já em d), a técnica objectiva de imputação subjacente à figura da "falta do serviço" provoca
idêntico resultado, gerando a imputação exclusiva à pessoa colectiva. É nas hipóteses b) e c) que a solidariedade se afirma
— e de forma mais intensa do que no DL 48.051.
Na verdade, a lei anterior, não isentando de responsabilidade os funcionários autores de faltas cometidas por
infracção de deveres de zelo, imunizava-os do confronto directo com as vítimas, remetendo o acerto de contas para o plano
das relações internas, através do direito de regresso exercido pela pessoa colectiva (cfr. o artigos 2.°/2 e 3.°/1 do DL
48.051). O mesmo é dizer que, quanto à falta grave não existia solidariedade — uma vez que à vítima era negada a
possibilidade de exigir a totalidade da quantia ressarcitória desejada aos seus autores materiais. Já quanto ao dolo, o
particular podia escolher entre demandar a pessoa colectiva, os titulares dos órgãos/agentes, ou mesmo ambos, em
litisconsórcio passivo voluntário.
Este sistema assentava no que nos parece constituir um equívoco. Os motivos porque os funcionários eram
poupados às acções indemnizatórias prendiam-se, alegadamente, com o facto de os não inibir no exercício das suas
funções, por um lado e, por outro lado, por o princípio da responsabilidade se bastar, na sua operatividade, com a presença
da pessoa colectiva em juízo, cujo património, mais avultado do que o do funcionário, permitiria ressarcir a vítima do seu
prejuízo de forma plena e efectiva. No entanto, de uma banda, os funcionários sujeitavam-se de imediato à
responsabilização disciplinar, e adiava-se a sua responsabilização civil até à prolação da decisão condenatória da pessoa
colectiva, mas não se excluía o regresso. E, de outra banda, o incremento de garantia da dívida por força da afectação do
património da pessoa colectiva revelava-se muitas vezes fictício, perante o incumprimento da obrigação de solver a dívida
indemnizatória pela pessoa colectiva, perante a inexistência de verba inscrita no seu orçamento para esse fim, perante a
necessidade de recorrer, em última instância, ao processo executivo do processo civil para pagamento de quantia certa,

75
- É a tese que faz vencimento na doutrina portuguesa: entre outros, vejam-se Maria José RANGEL DE MESQUITA, Da
responsabilidade civil extracontratual da Administração no ordenamento jurídico-constitucional vigente, in Responsabilidade
civil extracontratual da Administração Pública, coord. de Fausto de Quadros, Coimbra, 1995, pp. 39 segs., 118 segs.; Diogo
FREITAs oo AMARAL, Intervenção no Colóquio Responsabilidade civil extra-contratual do Estado. Trabalhos preparatórios
da reforma, Coimbra, 2002, pp. 43 segs., 47, FAUSTO DE QUADROS, Intervenção no mesmo Colóquio, loc. cit., pp. 53
segs., 59, Jorge MIRANDA, A Constituição e a responsabilidade civil do Estado, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor
Rogério Soares, Coimbra, 2001, pp. 927 segs., 932; Rui MEDEIROS, Anotação ao artigo 22°, in Jorge MIRANDA e Rui
MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, I, Coimbra, 2005, pp. 209 segs., 214 (exigindo a solidariedade para danos
praticados com culpa grave e dolo).
Contra: João CAUPERS, Os malefícios do tabaco. Anotação ao Acórdão 236/04 do Tribunal Constitucional, In CJA, n,° 46,
2004, pp. 16 segs., 20.

164
deparando com a impenhorabilidade dos bens da pessoa colectiva por força da sua adstrição à prossecução de fins de
utilidade pública (cfr. os artigos 822.°/b) e 823.°/1 do CPC) 76...
Acresce a inconstitucionalidade da supressão de legitimidade passiva dos funcionários praticantes de faltas
graves lesivas de posições jurídicas particulares, no confronto com o artigo 22.° da CRP. Se a opção pela responsabilidade
exclusiva da pessoa colectiva no caso de falta leve se admite à luz do princípio da eficiência administrativa (artigo 267.°/2
da CRP), já no caso de falta grave a balança da ponderação de interesses se desequilibra com esta solução — ainda que
colmatada pelo direito de regresso. Não basta a presença da pessoa colectiva em juízo para garantir o direito do particular
ao ressarcimento: a Constituição exige que a vítima possa designar os réus na acção de efectivação da responsabilidade
por facto ilícito, ao empregar o termo "solidariamente", de entre dois pólos distintos (a pessoa colectiva e o funcionário
faltoso). O artigo 271.°/1 da CRP nada mais faz do que confirmar este princípio de responsabilização directa,
especialmente justificado em hipótese de falta grave e falta dolosa 77.
Apesar da pressão doutrinal no sentido (mínimo) da necessidade de interpretação conforme à Constituição dos
artigos 2.° e 3.° do DL 48.051, ou (máximo) da sua caducidade por inconstitucionalidade superveniente, os tribunais
insistiram (salvo dois casos pontuais78) em negar legitimidade passiva aos funcionários nas acções de efectivação da
responsabilidade por facto ilícito cometido com negligência grosseira, recusando mesmo o seu chamamento à demanda na
qual a pessoa colectiva figurasse como ré principal. O Supremo Tribunal Administrativo, entre outras fórmulas, obtemperou
que:

"O artigo 22° da Constituição da República Portuguesa apenas consigna, no “tocante ao regime de solidariedade,
que a responsabilidade do Estado e das demais pessoas colectivas acompanha necessariamente a dos seus
órgãos, funcionários ou agentes. Mas não a inversa, ou seja, não pretendeu estender a estes a responsabilidade
ressarcitória fundada na sua conduta funcional que, por qualquer razão atendível (designadamente a forma de
imputação subjectiva, a natureza do ilícito ou o grau do dano, o legislador ordinário entende dever lançar
exclusivamente sobre o Estado79".

Esta posição ganhou força a partir do momento em que o Tribunal Constitucional considerou a exclusão da regra
da solidariedade em caso de culpa grave conforme à Constituição. No Acórdão 236/04 80, os juízes do Palácio Ratton
consideraram os artigos 2.° e 3.°/1 e 2 do DL 48.051, não supervenientemente inconstitucionais, na medida em que
eximiam de responsabilidade, no plano das relações externas, os titulares de órgãos e agentes que, com culpa (leve ou
grave), provocassem danos na esfera jurídica dos particulares, no exercício das suas funções e por causa delas. O Tribunal
Constitucional (em secção), não considerou decorrer do artigo 22.° da CRP um imperativo de estabelecimento do regime
de solidariedade, ainda que tal pudesse decorrer da função preventiva do instituto da responsabilidade e da garantia dos
princípios da legalidade e da eficiência administrativa:

"Certo é, porém, que, e em primeiro lugar, não resulta necessariamente da responsabilidade exclusiva da
Administração, no plano das relações externas, a irresponsabilização dos titulares de órgãos, funcionários e agentes; a
responsabilidade destes pode ser accionada por via do direito de regresso, como desde logo o demonstra o disposto no
artigo 2.°, n.° 2, do Decreto-Lei n.° 48.051, abrindo-se ainda ao legislador, a coberto do disposto no artigo 271.°, n.° 4, da
Constituição, a possibilidade de regular esse direito nos termos de abranger outras situações.
Por outro lado, se ainda for rigorosamente efectivada a responsabilidade penal e disciplinar a que se refere o
disposto no artigo 271.°, n.° 1, da Constituição, não deixa de se assegurar o sancionamento de condutas ilegais e
culposas, com o inerente efeito de compelir os titulares dos órgãos, funcionários e agentes à observância do principio da
legalidade e que estão constitucional-mente sujeitos na sua actuação funcional.
Por último, não deixa de se assinalar que o acolhimento da tese segundo a qual o artigo 22.° da Constituição
impõe, em todos os casos, a responsabilidade directa dos titulares dos órgãos, funcionários e agentes, por actos ilícitos e
76
- No Acórdão 236/04 (que será referido infra), o Tribunal Constitucional descartou a procedência deste argumento,
atribuindo ao legislador ordinário a responsabilidade pela remoção destas "dificuldades burocráticas na execução das
decisões condenatórias" das entidades públicas...
77
- O facto de o n.° 4 do artigo 271.° falar em direito de regresso do Estado contra o funcionário não pode ser lido como
excludente da possibilidade de responsabilização directa (que dispensaria o regresso). Este preceito obriga a uma
articulação necessária com o artigo 22°, que estabelece a solidariedade: logo, a concessão à vitima da escolha de
chamamento a juízo da pessoa colectiva, do funcionário ou de ambos, resolvendo estes, entre si, posteriormente e se for
caso disso, a questão do direito de regresso.
78
- Acórdãos: do STJ, de 6 de Maio de 1996 (in BMJ 357, pp. 392 segs.); do STA, de 3 de Maio de 2001 (in Ap DR de 8 de
Agosto de 2003, pp. 3249 segs.).
79
- Acórdão do STA, de 29 de Outubro de 1992, in Ap DR de 17 de Maio de 1996, pp. 5957 segs Para uma resenha deste
linha jurisprudencial, veja-se o Acórdão do Pleno do STA de 29 de Setembro de 2006, proc. 0855/04 (que decidiu uma
oposição de acórdãos em que o acórdãos fundamento era o acórdão de 5 de Maio de 2001, citado).
80
- Cfr. A anotação de João Caupers, cit.

165
culposos praticados no exercício das suas funções, gera problemas graves na regulação de situações de culpa leve, onde,
para a generalidade da doutrina, se reconhece a inconveniência de tal responsabilidade ."

Apesar de o Tribunal Constitucional ter reiterado esta posição posteriormente (veja-se o Acórdão 5/05), o
legislador ordinário acabou por ceder às pressões da doutrina, alargando a solidariedade aos casos de negligência
grosseira. A nosso ver, bem, porque a manutenção da situação anterior traduzir-se-ia em perpetuar uma interpretação da
Constituição de acordo com a lei e não o inverso 81. O sistema actual permite, desta feita, a escolha, por parte da vítima,
entre demandar pessoa colectiva, autor material ou ambos. Vejamos algumas hipóteses (e sub hipóteses):

i) A vítima demanda o funcionário em virtude de acção ou omissão lesiva cometida com culpa grave. Se se provar
a culpa grave, o assunto fica resolvido: a vítima obtém ressarcimento e a pessoa colectiva fica dispensada de efectivar
qualquer regresso. Se o funcionário conseguir inverter a prova de culpa grave, demonstrando que agiu com (mera) culpa
leve, então o juiz deve absolvê-lo do pedido, restando ao particular intentar nova acção contra a pessoa colectiva. Olhando
para a solução prevista no artigo 8º/4, parece-nos que ela faria sentido nesta situação, de absolvição do funcionário: a
economia processual e a tutela jurisdicional efectiva sustentariam esta alteração subjectiva da instância - embora num
momento processual anómalo, ou seja, após a prolação de uma decisão de fundo (ainda que absolutória);
ii) A vítima demanda a pessoa colectiva em virtude de acção ou omissão lesiva cometida com culpa grave (ou
dolo) por um funcionário. A pessoa colectiva tem todo o interesse em chamar à demanda o funcionário pois, uma vez
provada a culpa grave, caso a vitima decida prosseguir a execução contra este, já não haverá necessidade de efectivar o
direito/dever de regresso - e caso decida perseguir a entidade, esta ficará a dispor de um título executivo que lhe facilitará o
exercício do dever de regresso82.

Caso se mantenha sozinha em juízo convém desdobrar esta hipótese em duas sub hipóteses:

a) Há condenação — das duas, uma:


- ou ficou provada a culpa grave do funcionário, e a entidade, liquidando a quantia indemnizatória junto da vítima
por efeito da sentença condenatória, deverá exercer o regresso contra o funcionário numa nova acção 83;
- ou não ficou provada a culpa grave, sendo certo que, apurada a ilicitude, se presume a culpa leve (artigo 10°/2)
- o ressarcimento é da exclusiva responsabilidade da entidade 84. Aqui chegados, estabelece o artigo 8.°/4 que "a respectiva
acção judicial prossegue nos próprios autos, entre a pessoa colectiva de direito público [ou de direito privado, por força da
extensão operada pelo artigo 1.°/5] e o titular de órgão, funcionário ou agente, para apuramento do grau de culpa deste e,
em função disso, do eventual exercício do direito de regresso por parte daquela".

A LRCEE inspirou-se no mecanismo previsto no artigo 329.° do CPC, que estabelece que, caso o devedor
principal chame à demanda o devedor solidário (devendo fazê-lo obrigatoriamente na contestação) e se, tendo apenas sido
impugnada a solidariedade da dívida (não a sua existência ou pressupostos), houver condenação do devedor principal no
saneador, a causa pode prosseguir entre autor do chamamento e chamado, circunscrita à questão do direito de regresso.
Trata-se de uma especialidade processual que promove a economia de meios e a celeridade na resolução da causa na sua
globalidade (relações externas e internas), que só procede com base em dois requisitos: haver chamamento à demanda do
codevedor no momento processualmente adequado; e estar em causa apenas a impugnação, por parte do réu, do regime
de solidariedade.

81
- Como reconhece João CAUPERS, Os malefícios..., cit., p. 18.
82
- Carlos CADILHA sumaria as vantagens desta faculdade: "O chamamento à demanda faculta não só uma defesa
conjunta dos responsáveis solidários, como também acautela o direito de regresso do réu principal, permitindo enxertar no
processo o conflito de interesses entre o devedor e o chamado quanto ao direito de regresso e aos respectivos
pressupostos. A Administração poderá, desta forma, obter o reconhecimento judicial do seu direito de regresso contra o
funcionário, munindo-se de um titulo executivo, e obviando à necessidade de, no futuro, ter de propor uma acção autónoma
para obter o reembolso do montante indemnizatório em que tenha sido condenada.
A intervenção provocada abre ainda caminho a que o Estado possa transaccionar ou confessar o pedido, por razões de
justiça ou de equidade, dando assim satisfação à pretensão do demandante, sem pôr em risco o seu direito de regresso,
visto que a acção poderá prosseguir entre o autor do chamamento e o chamado para resolver os aspectos atinentes à
existência do regime de solidariedade (cfr. art. 329º, n.° 3, do CPC)" — Regime geral..., cit., p. 23.
83
- Acção administrativa comum essa na qual o funcionário poderá controverter o juízo sobre o grau de culpa aferido na
acção indemnizatória, ilibando-se assim de responsabilidade? Hesitamos na resposta positiva, na medida em que tal
hipótese corresponderia a admitir uma dupla pronúncia, díspar, sobre factos já debatidos na primeira acção. No entanto, o
artigo 522.° do Código Civil (solidariedade entre devedores) parece admitir a oponibilidade deste caso julgado entre
devedores.
84
- Caso o funcionário tenha sido chamado à demanda, nesta hipótese deverá ser absolvido do pedido.

166
Ora, o artigo 8.°14 fica aquém destes pressupostos e, em consequência, vai muito além dos resultados
processualmente admissíveis. Note-se que, por um lado, nada nos é dito quanto à essencialidade do chamamento do
funcionário à demanda como pressuposto de accionamento desta solução. Por outro lado, o facto de, no artigo 10°/2 (para
o qual expressamente remete), se prever uma presunção de culpa, a qual não foi invertida — pois, caso contrário, como
poderia haver condenação, ainda que sem apuramento do grau de culpa? —, tem implicações inibitórias para o (eventual)
co-devedor, ausentes da previsão do preceito do CPC... Finalmente, a não articulação expressa com a especialidade
processual consignada no CPC — por remissão —, provoca perplexidade.
Com efeito, a disposição suscita-nos as maiores dúvidas quanto à sua exequibilidade, na medida em que, não só
implica uma modificação subjectiva e objectiva da instância — o autor é substituído pelo réu e entra um novo réu; o pedido
perde a natureza indemnizatória e ganha natureza restitutiva —, como, e gerador de maior incomodidade, pressupõe uma
decisão condenatória, ou seja, o trânsito em julgado, com o consequente esgotamento da competência jurisdicional. Mais:
pressupõe a fixação dos pressupostos da responsabilidade exclusiva da entidade, ilibando o funcionário identificável como
autor material do facto gerador do dano.
Parece-nos, salvo melhor opinião e reflexão, que a LRCEE vem criar uma espécie de semi-caso julgado, ou um
caso julgado parcial com uma dimensão predominantemente garantística: para efeitos de ressarcimento do particular, vale
a presunção de culpa leve; para efeitos de regresso, fica em aberto a possibilidade de apuramento de um grau superior de
responsabilidade do agente... Esta solução é inexequível e redunda na responsabilização exclusiva da pessoa colectiva, de
forma intoleravelmente penalizadora do interesse público (pois, de jure condito, não há qualquer restrição do dever de
indemnizar por falta leve aos casos de dano especial e anormal). Não se prevendo expressamente o chamamento à
demanda e perante a presunção de culpa leve ínsita no artigo 10.°/2, o grau de culpa (grave ou dolo) deve ficar
definitivamente apurado na acção movida pela vítima contra qualquer um dos devedores, sob pena de a inexequibilidade
da solução prevista no n.° 4 do artigo 8.° redundar na inevitável condenação da entidade, a título exclusivo e esvaziar
concomitantemente, o dever de regresso.
Aparentando impraticável este mecanismo de aproveitamento da instância para exercício do dever de regresso —
é, ao cabo e ao resto, disso que se trata —, sempre deverá ser deduzida uma acção autónoma para o efeito. Porém,
havendo presunção de culpa leve e esgotado o poder jurisdicional naqueles autos, é duvidoso que haja base para o
regresso, uma vez que já a entidade pública foi condenada, definitivamente, por dano causado com culpa leve. Ou seja, o
não apuramento do grau de culpa beneficia o funcionário, tendo esta decisão efeitos reflexos sobre a sua posição no
sentido de o eximir de responder em acção de regresso.

b) Há absolvição:
Ficando a pessoa colectiva absolvida, a questão que se coloca é a de saber que efeito tem esta decisão no que
concerne à responsabilidade do funcionário. Em bom rigor, a constatação da inexistência de culpa (sequer leve) deve
conduzir à extensão ao funcionário dos efeitos deste caso julgado, mesmo estando ele ausente dos autos. Note-se que o
artigo 498.°/2 do CPC estabelece haver identidade de sujeitos quando as partes se equiparam do ponto de vista da sua
"qualidade jurídica"; o efeito jurídico pretendido pelo autor/vítima é o mesmo; e a causa de pedir assenta na apreciação dos
mesmos factos. Acresce que, como dispõe o n.° 2 do artigo 497.° do CPC, a excepção dilatória do caso julgado tem por
objectivo evitar que o tribunal "seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior" — o que
seria o caso. Em conclusão: se a entidade for absolvida, mesmo não tendo estado em juízo, o funcionário pode invocar a
excepção de caso julgado para se eximir a acção de efectivação de responsabilidade proposta contra si pela vítima, por
alegada falta grave ou dolosa85;

iii) A vítima demanda a pessoa colectiva e o funcionário em virtude de acção ou omissão lesiva cometida com
culpa grave (ou dolo). Obtendo sentença condenatória, ainda poderá optar por executar cada um de per se, ou ambos86.
Executando o funcionário, fica extinta a cadeia ressarcitória externa e interna. Executando a pessoa colectiva, deve esta
pedir regresso ao funcionário, numa acção posterior e autónoma. Caso execute ambos, o sucesso da primeira execução
determinará a inutilidade superveniente da outra lide. Apesar da duplicação de custos, parece-nos que a vítima ganhará
mais em executar ambos, na medida em que os tempos das acções executivas poderão variar. Note-se que a execução
contra a pessoa colectiva pode enfrentar a insuficiência da dotação inscrita no Orçamento à ordem do Conselho Superior
85
- Cfr. o artigo 522.° do Código Civil. Como explicam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, "Se o caso julgado é
absolutório, já os condevedores se podem aproveitar dele em relação ao credor, considerando-se a dívida extinta em
relação a todos eles", exceptuando-se situações de absolvição em que o fundamento se prenda estritamente com
circunstância pessoal do devedor.
86
- Sendo certo que, correndo estas acções nos tribunais administrativos, a execução seguirá os termos do CPTA
relativamente à pessoa colectiva (pública) — artigo 157.°/1 do CPTA — e os termos do CPC relativamente aos funcionários
— artigo 157.°/2 do CPTA. No que concerne às pessoas colectivas privadas investidas em missões de natureza
administrativa, parece-nos ter a execução (para pagamento de quantia certa) que correr nos termos do CPC, não só
atendendo à natureza (formal) da entidade, como porque o mecanismo de satisfação de créditos previsto no artigo 172.° do
CPTA não parece ter aplicação fora da Administração em sentido orgânico.

167
dos Tribunais Administrativos e Fiscais (cfr. o artigo 172.°/7 do CPTA) 87, transitando então para um novo regime de
processo, enquanto o funcionário terá sempre o seu salário (pelo menos) como garantia de pagamento...

Em resumo: a consagração da solidariedade entre titular de órgão, agente ou funcionário e pessoa colectiva, nos
termos do artigo 8.°/2 da LRCEE e sob o impulso do artigo 22.° da CRP, constitui uma mais valia para as vítimas de acções
ou omissões ilícitas, porque lhes permite optar na escolha do réu da acção de efectivação da responsabilidade. Não só se
trata de uma opção mais culpabilizante — e tendencialmente moralizante — dos autores materiais, como incrementa a
tutela jurisdicional efectiva dos particulares porque, sem embargo de a pessoa colectiva ser, em grande parte das
situações, uma aposta mais segura do ponto de vista do pleno ressarcimento do dano sofrido (sobretudo se vultuoso), não
é menos verdade que a execução contra o agente do dano poderá propiciar uma aceleração do processo de ressarcimento
(embora ele possa prolongar-se no tempo, mormente se o funcionário só tiver como património a sua retribuição, que não
pode ser penhorada em proporção superior a um terço — artigo 824.°/1/a) do CPC).
Estas hipóteses e sub hipóteses foram delineadas tendo em consideração acções comuns exclusivamente
destinadas a obter ressarcimento por danos, propostas pelos particulares contra a pessoa colectiva, funcionário ou ambos.
Saliente-se que, tendencialmente e dadas as amplas possibilidades de cumulação de pedidos hoje contempladas no CPTA
(cfr. os artigos 4.° e 47.°), o pedido indemnizatório surgirá subsidiariamente em acções especiais de impugnação da
validade de actos/normas ou de condenação à prática/emissão de actos/normas — ou mesmo em acções comuns (v. g.
pedido de rectificação de uma informação alegadamente errónea, veiculada por um serviço da Administração sanitária, que
lesa o interesse económico de uma empresa, acompanhado de pedido de ressarcimento de danos). Donde, o normal será
a propositura da acção contra a pessoa colectiva (como determina o artigo 10°/2, em regra), chamando-se eventualmente à
demanda o funcionário posteriormente — quando o julgador estiver em condições de avançar para a análise do pedido
indemnizatório.
Note-se que, na lógica do CPTA e também nos termos do artigo 3.°/1 da LRCEE (à semelhança do disposto no
artigo 566.°/1 do CC), a forma de ressarcimento ideal será a reconstituição natural — ou seja, a anulação do acto e a
reconstituição da situação actual hipotética, ou a condenação da emissão do acto/norma devido. Estes efeitos decorrerão
da sentença condenatória na acção especial, e não do pedido indemnizatório. Daí que, em princípio, não se coloque a
questão de saber se o funcionário pode ser condenado na reconstituição natural sob a forma de prática de actos
administrativos (prestação infungível), porque desacompanhado da pessoa colectiva cujas competências operacionaliza 88.
Aliás, em razão da norma do n.° 2 do artigo 38.° do CPTA, a acção comum (de efectivação da responsabilidade civil
extracontratual) não poderá ser utilizada para obter um efeito que se deveria ter tentado alcançar através de um outro meio
processual — nomeadamente, da acção especial (de impugnação da validade de acto/norma).

Arriscaríamos, pois, afirmar que a valência autónoma do artigo 3.° da LRCEE só avulta nos casos de efectivação
da responsabilidade civil extracontratual da Administração por acção/omissão material, uma vez que, em hipóteses
cobertas pela acção especial, o efeito reconstitutivo da situação actual hipotética resultará da sentença condenatória — ou,
caso o pedido (impugnatório) seja apenas formulado no momento executivo, da sentença prolatada em processo executivo
de sentença de anulação de acto/norma. Por outras palavras, o artigo 3.° da LRCEE só induz um efeito reconstitutivo de
per se quando do julgamento do pedido principal tal efeito não resultar, desde logo. Sendo certo que a acção de
indemnização não poderá redundar no reconhecimento de uma pretensão que o autor deveria ter obtido, atempadamente,
por outro meio.

3. Numa sociedade altamente complexa e tecnicizada como é a actual, seria de estranhar a ausência, na LRCEE,
do instituto da responsabilidade pelo risco. O artigo 11.° dá-lhe guarida, aligeirando o limiar de imputação dos danos
relativamente ao anterior regime, na medida em que abandona a qualificação da excepcionalidade da actividade,
substituindo-a pela especialidade ("actividades, coisas ou serviços administrativos especialmente perigosos"). Gerador de
alguma surpresa é o facto de não se restringir esta modalidade de imputação aos danos especiais e anormais, como no
caso da responsabilidade por facto lícito (artigo 16.°), ou pelo menos aos danos anormais, à semelhança da
responsabilidade por facto da função legislativa (cfr. o artigo 15.°/1). É certo que o DL 48.051 era omisso quanto a estes

87
- Os obstáculos à efectivação do direito ao ressarcimento do particular complicam-se extraordinariamente por força da
previsão (deslocada) do artigo 3°, que atira para os termos da acção executiva para pagamento de quantia certa regulada
no CPC os processos indemnizatórios movidos contra pessoas colectivas inseridas na Administração indirecta e autónoma,
salvo quando possa haver compensação de créditos (n.° 2). Esta acção, que deverá correr junto dos tribunais
administrativos, enfrentará, no limite, as cláusulas de impenhorabilidade decorrentes dos artigos 822.° e 823.° do CPC, que
levará, muito provavelmente, à aplicação subsidiária do CPTA, de acordo com o n.° 3 — longo tempo depois da propositura
da acção executiva inicial...
88
- Fomos alertados para esta questão por Luís FABRICA, na sua intervenção sobre Direito de regresso nas Jornadas
sobre a Lei da Responsabilidade Civil extracontratual promovidas pelo IGAP no dia 5 de Maio de 2008, na Faculdade de
Direito da Universidade Católica (Porto).

168
qualificativos, mas com a sua revogação esperar-se-ia do legislador o aditamento, pacificamente entendido desde a tomada
de posição de GOMES CANOTILHO nesse sentido, na obra O problema da responsabilidade do Estado por facto lícito 89.
MARGARIDA CORTEZ, a propósito do projecto de alteração do DL 48.051, manifestava dúvidas quanto a esta
subordinação. Em discurso directo: "Por um lado, cremos que a circunstância de o serviço, a coisa ou a actividade ser
especialmente perigoso constitui condição suficiente para a reparação do dano. Afinal, não constituirá o carácter perigoso
do serviço, da actividade ou da coisa um índice semiótico da anormalidade do dano? Por outro lado, acreditamos que, por
razões de justiça material, o carácter especial do dano deve dar lugar à possibilidade de fixar equitativamente a
indemnização em montante inferior ao que corresponderia à reparação integral dos danos quando for significativamente
elevado o número de lesados"90.
A LRCEE parece ter seguido esta posição. Mas, se assim é, fá-lo sem acautelar a transição — isto é, sem
fornecer uma lista indicativa do que considera serem actividades especialmente perigosas, sem fixar tectos de atribuição
dos montantes indemnizatórios, sem estabelecer regras de repartição da responsabilidade no caso de actividades privadas
autorizadas (no âmbito das quais a Administração deverá, cremos, responder a título subsidiário) — e corre o risco de
gerar, da parte da jurisprudência (bastante tradicional, nesse campo), resistências que se poderão traduzir na minimização
dos montantes indemnizatórios... E, no caso de danos provocados a um conjunto alargado de pessoas (v. g. carga policial
sobre manifestantes; contaminação por vírus hospitalar; ofensas sucessivamente praticadas por um evadido da prisão),
ainda que as acções de efectivação de responsabilidade tenham tendência a concentrar-se num mesmo tribunal (cfr. o
artigo 18.° do CPTA), facto é que dificilmente se reunirão os pressupostos de apensação de processos (cfr. o artigo 28.° do
CPTA), a qual veicularia a ponderação equitativa dos montantes indemnizatórios. Além de que é duvidoso que, sem
consagração legal específica, o julgador possa socorrer-se da equidade como factor modulador (cfr. o artigo 4.° do CC).
Em suma: temos as maiores dúvidas sobre a forma voluntariosa, como a LRCEE abraçou esta solução. Não pode
olvidar-se estarmos aqui num domínio em que a culpa é dispensada, actuando este instituto como um mecanismo de
redistribuição social do risco e não como uma forma de penalizar, ética e pecuniariamente, uma determinada pessoa ou
entidade. Logo, os pressupostos de atribuição dos montantes indemnizatórios deverão constituir travões — embora não
bloqueios — a formas de constituição das entidades públicas (e privadas) em seguradoras universais. O rebaixamento do
limiar de atribuição da eventual indemnização em função da "especialidade" (e já não excepcional perigosidade) da
actividade, acompanhado da exigência da "anormalidade do prejuízo", teria constituído um primeiro passo mais adequado
no sentido da liberalização — controlada — desta forma de responsabilização 91.

A razão porque incluímos a referência à responsabilidade pelo risco não é, porém, a necessidade de fazer esta
advertência, mas antes o querer sublinhar a estreita vizinhança entre o risco e o perigo, o evento previsível através das
melhores técnicas e conhecimentos disponíveis e o facto imprevisível por apelo ao quadro mais completo que a técnica e o
conhecimento podem propiciar — ou seja, a contiguidade entre a responsabilidade por facto ilícito e a responsabilidade
pelo risco. Tudo se joga, do lado da Administração, na capacidade de antecipação de riscos previsíveis ou na incapacidade
de formular juízos de prognose que permitam conformar a sua actividade de molde a evitar riscos que poderia ter evitado.
No âmbito dos riscos tecnológicos, esta é uma fronteira extremamente difícil de traçar, dada a dose de incerteza inerente à
sua caracterização e gestão.
O critério de aferição da eventual responsabilidade da Administração por défice de ponderação dos factores de
risco parece residir na possibilidade prática de exclusão da sua eclosão, à luz das melhores técnicas disponíveis. Ainda que
se aceite a eventualidade de eclosão do risco — em virtude da especial perigosidade da actividade —, este só será
imputável à entidade que desenvolve a actuação ou que a autoriza relativamente a terceiros a titulo de facto ilícito caso se
demonstre que esta não usou de toda a diligência, pautada pelo recurso à melhor informação disponível (ainda que não
unânime) e ao melhor apetrechamento técnico, científica e economicamente possível, com vista à sua evitação ou
minimização. Não se provando negligência na aferição da existência do factor de risco e do seu grau de lesividade (porque
pode tratar-se de um risco despiciendo ou socialmente tolerável), e ficando atestada a causalidade adequada entre facto e
dano, a responsabilidade, a despontar, será forçosamente objectiva 92.
Transplantando para este domínio o critério estabelecido na decisão Whyl, do Tribunal Constitucional alemão 93,
no domínio da gestão do risco, a Administração deve ter em consideração, não apenas os dados científicos objecto de
89
- J. J. GOMES CANOTILHO, O problema da responsabilidade..., cit., pp. 122 e 271 segs. Veja-se também J. MOREAU,
La responsabilité administrative, 2.ª ed., Paris, 1995, pp. 98 segs.
90
- Margarida CORTEZ, Contributo para uma reforma da lei da responsabilidade civil da Administração , in
Responsabilidade civil extra-contratual do Estado. Trabalhos preparatórios da reforma, Coimbra, 2002, pp. 257 segs., 262,
263.
91
- Para mais desenvolvimentos, v. o nosso A responsabilidade administrativa pelo risco na Lei 67/2007, de 31 de
Dezembro: uma solução arriscada?, ainda inédito.
92
- Para mais desenvolvimentos sobre este ponto, ver o nosso Risco e modificação do acto autorizativo concretizador de
deveres de protecção do ambiente, Coimbra, 2007, esp. pp. 399 segs.
93
- Decisão de 19 de Dezembro de 1985 (Wyhl), in Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts, Band 72, pp. 300
segs.

169
consenso na comunidade científica, mas também todas as opiniões que revistam um mínimo de solidez e credibilidade (alie
vertretbaren wissenchaftlichen Erkenntnisse in Erwãgung ziehen) 94. A responsabilidade pela apreciação e gestão do risco
só se detém perante a probabilidade puramente teórica, um "fantasma de risco, numa construção puramente intelectual" 95,
inconcebível à luz de qualquer hipótese científica credível 96. Esse é o espaço onde fica acantonado o risco residual,
inerente à vida em sociedade. Todo o risco praticamente possível deve ser ponderado.
Problemática pode ser a valoração, para efeitos de imputação de responsabilidade por facto ilícito, a dar a
opiniões minoritárias — não seguidas pela Administração. Ao julgador deparar-se-ão dificuldades de duas ordens: por um
lado, inteligir adequada e conscienciosamente, a base das ponderações efectuadas pela Administração; por outro lado,
avaliar o equilíbrio, traduzido na acção ou omissão (lesiva), presente nessa ponderação, equacionando probabilidade de
eclosão do risco, magnitude e objecto dos seus efeitos e natureza dos bens jurídicos envolvidos. O primeiro obstáculo é
superável pelo auxílio de peritos. Quanto ao segundo, mesmo perante a hipótese dramática da consumação do dano, deve
merecer do juiz uma cuidadosa atitude de auto-contenção, uma vez que existe uma dose de discricionaridade na gestão de
riscos, que aumenta na proporção da incerteza dos dados de facto e da importância dos bens jurídicos potencialmente
afectados. Só perante uma violação manifesta dos parâmetros da proporcionalidade enquanto método de gestão do risco
deve o juiz considerar a existência de responsabilidade da Administração (por facto ilícito).

4. O último apontamento que queremos deixar prende-se com o problema do ressarcimento da colectividade por
danos causados a bens de que os seus membros desfrutam e dos quais retiram utilidades indivisíveis. Esta questão, cujo
enxerto nestas reflexões avulsas pode surpreender, já foi pontualmente objecto da nossa atenção noutros locais 97, pelo que
nos limitaremos ao essencial.
No que toca à ressarcibilidade de danos provocados em bens de fruição colectiva, ela deriva fundamentalmente
do n.° 3 do artigo 52.° da CRP, quando se refere à possibilidade, para o lesado ou lesados, de requerer indemnização por
danos causados em interesses de fruição dos bens elencados (exemplificativamente) nas alíneas a) e b). O nosso
legislador constitucional — consciente ou inconscientemente — alargou a protecção destes interesses de facto ao
ressarcimento de danos, quando podia ter optado por excluir essa dimensão, bastando-se com a atribuição de legitimidade
popular com vista à cessação de ofensas, actuais ou iminentes. Lamentavelmente, não concretizou esta dimensão
protectiva na Lei 83/95, de 31 de Agosto (Lei da acção popular), uma vez que esta, no artigo 22.°/2, só prevê as situações
de danos de interesses individuais homogéneos.
Esta ausência é apenas colmatável através de uma alteração legislativa que, em primeira linha, determinasse
precisamente a condenação do lesante de bens de fruição colectiva (maxime, o proprietário, se for o caso) em
reconstituição natural do estado do bem e, em segunda linha, e na total impossibilidade de reconstitutio in natura,
instituísse uma solução similar à do Direito brasileiro (afectação das quantias indemnizatórias a fundos destinados à
promoção e preservação de interesses de fruição de bens colectivos), ou outra (afectação a ONGAs; a entidades públicas
com atribuições específicas de protecção e promoção do ambiente, património, ordenamento do território; ao financiamento
de programas de educação ambiental integrados nos currículos escolares). A inércia do legislador traduz uma autêntica
inconstitucionalidade por omissão, que poderia ter sido atalhada com a LRCEE, caso contivesse uma alteração/aditamento
à Lei 83/95, de 31 de Agosto.

A falta de identificação precisa da categoria de danos em bens de fruição colectiva não só constitui uma
amputação do nível de protecção determinado na norma constitucional, como, no caso do ambiente pelo menos, tenderá a
agudizar-se quando da transposição — já atrasada — da Directiva 2004/35/CE, de 21 de Abril, do Parlamento Europeu e
do Conselho, sobre responsabilidade por danos ambientais, que claramente individualiza situações de dano ecológico 98.
Saliente-se que esta Directiva (que traça um elenco amplíssimo de danos ecológicos considerados ressarcíveis sob a sua
égide — cfr. os artigos 2.°/1 e 3.°), exclui expressamente o arbitramento de reparação pecuniária aos particulares que
tiverem desencadeado o pedido ressarcitório (e que podem ser organizações não governamentais — cfr. o artigo 11.º/1, §

94
- Decisão Wyhl, cit., p. 315.
95
- C. NOIVILLE, Príncipe de précaution et Organisation mondiale du commerce. Le cas du commerce alimentaire, in JDI,
2000/2, pp. 263 segs., 276.
96
- Ou, no limite, extraordinariamente remota, como a queda de asteróides — J.-Bernard AUBY, L'évolution du traitement
des risques dans et par le Droit Public, in REDP, 2003/1, pp. 169 segs., 172.
97
- No que toca à indemnização da colectividade por dano ecológico, vejam-se os nossos Princípios jurídicos ambientais e
protecção da floresta: considerações assumidamente vagas , in RCEJ, n.° 9, 2006, pp. 141 segs., 160; e O Provedor de
Justiça e a tutela de interesses difusos, in Textos dispersos de Direito do Ambiente (e matérias relacionadas), lI, Lisboa,
2008, pp. 235 segs., 253.
98
- Sobre a questão da reparação do dano ecológico ã luz da Directiva, v. C. HARMON, La réparation du dommage
écologique, in AJDA, 2004/33, pp. 1792 segs.

170
3º99. Isto porque se traduz sempre em formas de reparação: primária, complementar ou compensatória, como descreve o
Anexo III, as quais consubstanciam acções concretas.
Esta solução, que deixa sem suporte a existência de um qualquer dano não patrimonial da comunidade por
afectação de um bem ecológico, aposta numa certa neutralização pecuniária deste tipo de dano — mas só como forma de
evitar enriquecimentos ilegítimos de autores populares, institucionais ou particulares. As acções de reparação têm um custo
económico não negligenciável, que deverá ser suportado pelo lesante (se tiver tido culpa) ou pelo Estado, caso desafecte
estes danos do plano da responsabilidade objectiva do operador (cfr. o artigo 8.°/4). Ponto é que o imperativo constitucional
— e comunitário — seja cumprido, tomando-se a sério o dano ecológico e a sua reparação. Bem assim como, aproveitando
o balanço, se providencie idêntica solução relativamente a outros danos em bens de fruição colectiva (maxime, de bens
culturais).

Lisboa, Maio de 2008

A RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS DECORRENTES


DO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO JURISDICIONAL
(EM ESPECIAL, O ERRO JUDICIÁRIO)

GUILHERME DA FONSECA

1. A recente publicação da Lei n.° 67/2007, de 31 de Dezembro, que aprovou o Regime da Responsabilidade Civil
Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, e em vigor desde 30 de Janeiro do corrente ano (art. 6.° da Lei),
veio pôr a nu e a claro a responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional (o Capítulo III da
Lei), ou, de forma mais simples, a responsabilidade do Estado-Juiz.
Ainda que se possam levantar dificuldades e suscitar complexidades, a propósito daquele Capítulo III da Lei,
sobretudo, a nível da classe dos magistrados, os presumíveis causadores dos danos, é facto que não se pode iludir uma
realidade intensa da nossa vivência quotidiana, e que é a de um dever de indemnizar, desde logo, por parte do Estado,
havendo danos para os cidadãos decorrentes do exercício da função jurisdicional 100. Um dever de indemnizar, a que
corresponde um direito dos cidadãos lesados a uma indemnização, com cobertura constitucional, de tal modo que se não
possa dizer que se reconhece o direito por danos causados, por exemplo, à propriedade, ao comércio, e à indústria, mas
não se reconhece o mesmo direito por danos emergentes da violação de direitos tão ou mais fundamentais, como o direito
à liberdade individual ou o direito a uma sentença de um tribunal justa e célere.

O Estado não pode escolher entre prestar e indemnizar: ele tem o dever de prestar — e a justiça é também uma
prestação — e deve indemnizar, se a prestação for omitida ou irregularmente realizada.
Já lá vai longe o tempo do princípio da irresponsabilidade do Estado e hoje a afirmação vai no sentido cada vez
mais amplo do favorecimento da protecção dos cidadãos, aí se incluindo o direito geral e universal dos cidadãos à
reparação dos danos que lhes sejam causados, qualquer que seja a sua origem, em função do poder estadual em causa.
E é bom não esquecer a ideia que se colhia do Código Civil de Seabra, do século XIX, constante do Título
dedicado à responsabilidade por perdas e danos causados por empregados públicos, no exercício das suas funções, sem
excluir a responsabilidade dos juízes pelos seus julgamentos, as acções por crimes, abusos e erros de oficio dos juízes e a
reparação devida ao réu absolvido em revisão de sentença criminal executada (são os epígrafes dos arts. 2401.°, 2402.° e
2403º.

2. Antes de avançar, importa chamar a atenção para alguns aspectos clarificadores do nosso tema.
Em primeiro lugar, a responsabilidade civil que vamos abordar é a responsabilidade civil extracontratual, tout
court, não havendo que tratar da responsabilidade contratual ou pré-contratual.
Em segundo lugar, os pressupostos da responsabilidade civil são os que se conhecem no âmbito do direito das
obrigações e a mesma responsabilidade é sempre uma responsabilidade por actos de gestão pública estadual (mesmo que
haja traços privatísticos, como acontece actualmente com certos modelos processuais, tais como, o processo executivo, o
processo de mediação ou o processo arbitrai).
Por último, há que salvaguardar regimes especiais, que não vão ser aqui tratados: o regime especial aplicável aos
casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade, que foi ressalvado no n.° 1 do art.
13.° da Lei (é o regime constante do art. 225.°, relativamente à indemnização por privação da liberdade ilegal ou
99
- Mas não veda, parece-nos, a afectação de quantias a fundos geridos por entidades com competências em sede
ambiental, pelo menos a titulo complementar das destinações primárias que a directiva elenca (quando se justifique).
100
- E a Constituição, entre as garantias dos juízes, a independência e a irresponsabilidade pelas suas decisões, não
constitui nenhum obstáculo, pois a norma do n,º 2 do art. 216º ressalva “ as excepções consignadas na lei”, aqui a Lei n.º
67/2007.

171
injustificada, e dos arts. 461.° e 462.°, no âmbito da sentença absolutória no juízo de revisão, preceitos esses do Código de
Processo Penal); e o regime especial da acção de indemnização contra magistrados, prevista e regulada nos arts. 1083.° a
1093.°, do Código de Processo Civil, envolvendo uma responsabilidade pessoal e subjectiva dos magistrados, de que o
Estado se demarca (responsabilidades pelos danos causados, em especial, quando haja condenação por crime de
suspeita, suborno, concussão ou prevaricação, e nos casos de dolo e denegação da justiça).

3. É o Capitulo III da Lei a regular a responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função
jurisdicional, ocupando-se os arts. 12.° a 14.°, respectivamente, do regime geral — e é "o regime da responsabilidade por
factos ilícitos cometidos no exercício da função administrativa" —, da responsabilidade por erro judiciário e da
responsabilidade dos magistrados, a nível do direito de regresso que o Estado goza contra eles.
O legislador, todavia, não esteve em branco ao longo de um processo legislativo que, estranhamente, foi
demorado nesta década de 2000, porque, por um lado, o texto constitucional obrigou-o a agir, por força do disposto nos
arts. 22.° e 271.°, e, por outro lado, as reformas no domínio do Direito Público, nestes últimos vinte anos, com o impulso da
Constituição, em especial, a Constituição administrativa, não podiam deixar de o influenciar (a constitucionalização da
justiça administrativa e os direitos e garantias dos administrados, sobretudo a nível do art. 267.°, são os aspectos mais
significativos a registar).
Na verdade, é facto que o legislador foi adiantando alguma coisa sobre a responsabilidade, nos pontos relativos
ao âmbito da jurisdição administrativa, à competência material e territorial dos tribunais administrativas, ao modelo das
acções administrativas, com soluções inovatórias, e aos tribunais arbitrais.
É o que pode colher-se de uma leitura dos arts. 3.°, n.° 2, 4.°, n.°s 1, als. g) e h), e 3, al. a), 24.°, n.° 1, al. f), e
37.°, al. c), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e também de uma leitura dos arts. 18.°, 37.°, n.° 2,
al. f), e 185.° do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aí se encontrando referências à
responsabilidade dos juízes pelas suas decisões, à responsabilidade pelo exercício da função jurisdicional, e às acções
correspondentes (acções de responsabilidade e acções de regresso contra os juízes e os magistrados do Ministério Público
em serviço nos tribunais administrativos e nos tribunais do contencioso tributário).
O legislador esteve, pois, a par de toda esta matéria desde 2001, quando se iniciou o processo legislativo, com a
apresentação de sucessivas propostas de lei, e bebeu, em parte, no articulado do anterior Decreto-Lei n.° 48 051, de 21 de
Novembro de 1967, que vigorou durante quarenta anos e foi um marco importante nesta matéria da responsabilidade Civil
do Estado e demais entidades públicas.

4. Um percurso pelos arts. 12.°, 13° e 14.° revela-nos, numa primeira abordagem simplificada, que são três ou
quatro os centros decisores da Lei.

4.1. O primeiro relaciona-se com o regime geral aplicável "aos danos ilicitamente causados pela administração da
justiça", e que é "o regime da responsabilidade por factos ilícitos cometidos no exercício da função administrativa", de que
se ocupa o Capítulo II da Lei, responsabilidade que, aliás, é proclamada no art. 1.°, n.° 1, e alargada à "responsabilidade
civil dos titulares de órgãos, funcionários e agentes públicos, por danos decorrentes de acções ou omissões adoptadas no
exercício das funções administrativa e jurisdicional e por causa desse exercício" (n.° 3 do mesmo art. 1.°).
É uma clausula geral de remissão, no domínio da responsabilidade por factos ilícitos, que se extrai do art. 12.° e
a que, desde logo, se pode apontar a crítica de uma demasiada amplitude, cabendo no ilícito um sem número de situações,
ligadas à administração da justiça, com intervenientes vários: juízes, magistrados do Ministério Público e funcionários de
justiça.
E a cláusula de remissão implica que se deva atender às acções ou omissões ilícitas, cometidas com culpa leve,
envolvendo só a responsabilidade exclusiva do Estado, por força do regime do art. 7.°, n.° 1, e aqueles que são cometidos
"com dolo ou com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles que se encontram obrigados em razão do cargo",
envolvendo a responsabilidade solidária do Estado com os autores dessas acções ou omissões, sendo que se presume "a
existência de culpa leve na prática de actos jurídicos ilícitos", por aplicação dos arts. 8.°, n.°s 1 e 2, e 10.°, n.° 2 101.
Uma exemplificação consta logo do art. 12°, quando se reporta à "violação do direito a uma decisão judicial em
prazo razoável”, mas pode estender-se "violação do direito a um processo equitativo", que é a fórmula do n.° 4 do art. 20.°
da Constituição, a que tudo corresponde a uma verdadeira denegação de justiça.
Então, cabe aqui todo o tipo de actos processuais do juiz de que resulte o arrastamento no tempo de um
processo sem decisão, seja por omissão, ou o desrespeito da disciplina dos processos urgentes. E também todo o tipo de
actos processuais do juiz de que resulte a violação do princípio do contraditório ou do princípio da igualdade, por exemplo,
de que resulte o desfavorecimento de uma das partes no processo (o que, na prática, será sempre o caso de desrespeito
daqueles princípios, quando a lei manda observá-los).
101
- A distinção da responsabilidade suscita a questão da conformidade com a Constituição do regime da responsabilidade
exclusiva do Estado, quando há acções ou omissões ilícitas, cometidas com culpa leve. É que o art. 22.° assenta na
responsabilidade em forma solidária do Estado "com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes", sem distinguir
as situações danosas. É questão jurídico-constitucional que se deixa em aberto.

172
É um mundo de hipóteses que se podem imaginar, umas vulgares e outras menos vulgares, como seja, por
exemplo, a violação, pelo juiz, de dever especial de urbanidade — o caso de maltratar o advogado de uma das partes num
julgamento —, com influência negativa no decorrer do processo, porque o advogado ficou perturbado.
Por último, neste mesmo âmbito do art. 12°, há ainda a considerar as acções ou omissões ilícitas que sejam
atribuídas aos magistrados do Ministério Público e, de modo geral, às secretarias dos tribunais, de que decorram danos
ilicitamente causados aos cidadãos102.

4.2. O segundo tem a ver com o art. 13.°, que condensa a responsabilidade Civil por erro judiciário derivado de
decisões jurisdicionais causadoras de danos e que a lei tipifica com decisões "manifestamente inconstitucionais ou ilegais"
ou como decisões "injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto" (n.° 1).
O mesmo n.° 1 ressalva o "regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de
privação injustificada da liberdade", campo em que releva o erro judiciário, mas deveria incluir na ressalva o regime
especial da acção de indemnização contra magistrados, regulada no Código de Processo Civil, e atrás referida. Também o
n.° 1 deixa a dúvida sobre se o advérbio "manifestamente" se liga só às decisões "inconstitucionais ou ilegais" ou se
estende às decisões "injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto", devendo
entender-se que abrange todas as situações tipificadas no n.° 1.
Também aqui tem de fazer-se a distinção entre as acções ou omissões ilícitas cometidas com culpa leve e as que
são cometidas com culpa grave ou dolo, presumindo-se sempre aquela culpa. Ao erro grosseiro, todavia, parece ligar-se a
ideia de culpa grave, na medida em que a decisão jurisdicional em causa reflecte uma diligência e zelo manifestamente
inferiores aqueles a que se encontram obrigados os juízes em razão do cargo, na óptica do art. 8.°, n.° 1.
São múltiplas as hipóteses que se podem conjecturar a propósito de decisões jurisdicionais manifestamente
ilegais:
- as mais simples, como sejam, a aplicação de uma lei expressamente revogada, sem que haja qualquer questão
de sucessão de leis no tempo, ou a aplicação da lei penal mais desfavorável para o arguido, ou ainda o desrespeito do n.°
2 do art. 95.° do CPTA, quando o juiz administrativo julga processos impugnatórios;
- os menos simples, com sejam, a aplicação de uma norma ou de um regime jurídico com um determinado
sentido interpretativo, mas ao arrepio de uma corrente doutrinal e jurisdicional unanimemente seguida e consolidada e que
todos esperariam ver acolhida; o conhecimento, na decisão, de questões não suscitadas pela partes e que não são de
conhecimento oficioso.

Já quanto às decisões jurisdicionais "manifestamente inconstitucionais", a dúvida está em saber se aí se incluem


as decisões que aplicam normas feridas de inconstitucionalidade (inconstitucionalidade orgânica, formal ou material),
nomeadamente, se elas foram já julgadas inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional ou até declaradas inconstitucionais,
com força obrigatória geral.
Parece que não é isso que se quer com as decisões jurisdicionais "manifestamente inconstitucionais", antes, e só,
as decisões que directamente afrontam a Lei Fundamental, nomeadamente, em matéria de direitos fundamentais. Será a
hipótese de uma decisão que aceite meios de prova, como seja, a tortura, em processo penal, ou uma decisão que defira o
pedido de extradição, quando o crime é punido com pena de morte, segundo o direito do Estado requisitante.
Mais fácil de ponderação, na prática, é a hipótese do erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto, que
se reconduz a um erro sobre a matéria de facto. Ou há erro ou não, a dificuldade estará na produção de prova na acção
indemnizatória a intentar pelo cidadão prejudicado e vitima dos danos decorrentes da decisão jurisdicional ferida do tal erro
grosseiro.
Por último, o n.° 2 levanta dificuldades, com a exigência, como pressuposto processual da acção indemnizatória,
da "prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente", naturalmente, em processo de recurso jurisdicional, o
que não se compadece com todos os casos em que não é legalmente possível interpor esse recurso (desde logo, os casos
que se relacionam com a alçada dos tribunais).
O melhor teria sido prever, como pressuposto processual, a exigência de uma séria probabilidade da existência
de erro judiciário, pois, a ser como está, pode a norma do n.° 2 brigar com o princípio da judicialidade consagrado no art.
20.°, da Constituição, conjugado com o direito á reparação dos danos que assiste a todos os cidadãos, nas situações em
que se limita o direito de acção ou até se priva esse direito. A menos que se avance pela eliminação das alçadas em todas
as jurisdições, o que parece ser impensável.

102
- Há ainda a questão que pode levantar-se, face à referida cláusula geral de remissão para o regime do art. 7.°, de
danos decorrentes do funcionamento anormal do serviço, nos termos e condições fixadas nos n.°s 3 e 4 daquele preceito
legal, como seja, por exemplo, uma situação de denegação de justiça, porque o tribunal não tem salas ou gabinetes a
funcionar em condições normais, e o juiz não pode realizar os julgamentos. É que o funcionamento anormal é também
ilicitude (art. 9.°, n.° 2).

173
4.3. Finalmente, resta o art. 14.°, sobre a responsabilidade dos magistrados (é a epígrafe do preceito), mas o que
importa aqui é o direito de regresso de que o Estado goza "contra eles", os magistrados judiciais e do Ministério Público
(n.° 1).
Esta norma suscita perplexidades, sobretudo, em conjugação com o art. 6.°, que estatui ser obrigatório o
exercício do direito de regresso, e determinando o n.° 2 que "a secretaria do tribunal que tenha condenado a pessoa
colectiva remete certidão de sentença, logo após o trânsito em julgado, à entidade ou às entidades competentes para o
exercício do direito de regresso", o que só pode significar que o legislador não quer que fique esquecido "o exercício do
direito de regresso".
E a perplexidade está em que o n.° 2 do art. 14.° faz caber a decisão de exercer o direito de regresso sobre os
magistrados "ao órgão competente para o exercício do poder disciplinar, a titulo oficioso ou por iniciativa do Ministro da
Justiça". Como conciliar a obrigatoriedade do exercício do direito de regresso com uma, pelo menos aparente,
discricionariedade do "órgão competente para o exercício do poder disciplinar'', para decidir sobre o exercício do direito
sobre os magistrados? Será que aquele órgão pode obstar ao exercício do direito de regresso, ou, então, nada decidir?
É, no mínimo, uma solução legal incompreensível e ainda mais incompreensível é a previsão do Ministro da
Justiça tomar alguma iniciativa, para provocar a decisão daquele órgão - qualquer que ele seja -, pois isso significa que o
Ministro pode intrometer-se nas competências do órgão, que se caracteriza pela autonomia e independência face ao
Governo.
E, depois, qual o sentido útil de tal iniciativa ministerial: para não ser esquecido o direito de regresso? Ou para
influenciar o órgão competente na tomada de decisão?
Como quer que seja, tudo aponta no sentido de que, na prática, havendo lugar ao direito de regresso, a norma entre no
esquecimento, funcionando só a disposição geral do art. 6.°, sendo, portanto, incumbência do Estado o exercício desse
direito "contra eles", os magistrados, quando é caso disso, em todos os casos, em obediência ao princípio da igualdade
constitucionalmente consagrado no art. 13.°103

Sobre responsabilidade civil emergente de acto médico pode ver-se os Ac. do STA, de
23.4.96 e 17.12.96, referidos em nota no BMJ 485-155, cópia das notas da conferência do Prof.
Costa Andrade, na Universidade Portucalense, em 15.1.2003, e o Ac. do STJ (Cons.º Fonseca
Ramos) de 4.3.2008, P.º 08A183:
«Os autos versam a questão da responsabilidade civil pela prática de acto médico, entendido o conceito como
acto executado por um profissional de saúde que consiste numa avaliação diagnóstica, prognóstica ou de prescrição e
execução de medidas terapêuticas, estando o recorrente de acordo que sobre si impende responsabilidade civil, em virtude
do exame a que procedeu, para averiguar se o Autor padecia de cancro na próstata, ter concluído pela existência de tal
maligna doença que, foi determinante para a intervenção cirúrgica para extirpação total de tal órgão – prostatectomia total –
quando, afinal, o Autor apenas padecia de prostatite (inflamação da próstata e não de cancro).

As partes não dissentem que celebraram um contrato de prestação de serviços – art. 1154º do Código Civil – e
assim considerou a decisão recorrida.

Com efeito, o facto do Autor, mediante pagamento de um preço, ter solicitado ao Réu, enquanto médico
anatomopatologista, a realização de um exame médico da sua especialidade, exprime vinculação contratual.

Estamos perante um contrato de prestação de serviços médicos.

A violação do contrato acarreta responsabilidade civil – obrigação de indemnizar desde que o devedor da
prestação – no caso o Réu – tenha agido voluntariamente, com culpa (dolo ou negligência), tenha havido dano e exista
nexo de causalidade entre o facto ilícito culposo e do dano – art. 483º, nº 1, do Código Civil.
“O devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado” — artigo 762.°, nº1, do Código
Civil, devendo actuar de boa-fé — nº 2 do falado normativo.
“O devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa
ao credor” — artigo 798° do mesmo diploma.
“Incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede
de culpa sua” — nº 1 do artigo 799° do Código Civil.
O nº 2 deste normativo estatui que “a culpa é apreciada nos termos aplicáveis à responsabilidade civil”.
103
- Uma nota final para registar uma sugestão: a de que, obrigando o exercício do direito de regresso á utilização de uma
acção de regresso, podia estar previsto na Lei que fosse enxertado na acção indemnizatória respectiva um incidente de
dedução de um pedido de intervenção provocada dos titulares de órgão, funcionários e agentes solidariamente
responsáveis, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 329.° do Código de Processo Civil.

174
Importa, então, apurar se o apelante agiu com culpa e, se assim se considerar, se ilidiu a presunção que sobre si
impende.

“Agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do devedor ser pessoalmente censurável ou
reprovável. E o juízo de censura ou de reprovação baseia-se no reconhecimento, perante as circunstâncias concretas do
caso, de que o obrigado não só devia como podia ter agido de outro modo” — “Das Obrigações em Geral”, vol. II, pág. 95,
6ª edição – Professor Antunes Varela.
O mesmo tratadista define-a como “o nexo de imputação ético-jurídica que liga o facto ilícito ao agente” — RLJ
102-59.
Por imposição do artigo 799°, nº 2 do Código Civil é aplicável a regra do artigo 488.° segundo a qual a culpa se
afere por um padrão abstracto, tendo como paradigma a diligência própria de um bom pai de família que actuasse nas
concretas circunstâncias que se depararam ao obrigado.

As normas citadas são inquestionavelmente aplicáveis à responsabilidade civil contratual, onde vigora a
presunção de culpa do devedor, incumbindo-lhe ilidir a presunção de que o incumprimento da prestação não procede de
culpa sua, entendido o conceito de incumprimento em sentido lato, abrangendo o cumprimento defeituoso.

Baptista Machado, in “Resolução por Incumprimento”, Estudos de Homenagem ao Professor Doutor J.J. Teixeira
Ribeiro, 2º, 386, define deste modo, o conceito de “cumprimento defeituoso ou inexacto”:

a) É aquele em que a prestação efectuada não tem os requisitos idóneos a fazê-la coincidir com o conteúdo do
programa obrigacional, tal como este resulta do contrato e do princípio geral da correcção e boa fé.
b) A inexactidão pode ser quantitativa e qualitativa.
c) O primeiro caso coincide com a prestação parcial em relação ao cumprimento da obrigação.
d) A inexactidão qualitativa do cumprimento em sentido amplo pode traduzir-se tanto numa diversidade da
prestação, como numa deformidade, num vício ou falta de qualidade da mesma ou na existência de direitos de terceiro
sobre o seu objecto”.

A responsabilidade civil é extracontratual se a obrigação incumprida tem origem em fonte diversa de contrato.

Tal responsabilidade resulta da violação de deveres de conduta, vínculos jurídicos gerais impostos a todas as
pessoas e que correspondem aos direitos absolutos – Almeida Costa, in “ Direito das Obrigações”, 5ª edição, pág. 431.

O cumprimento da obrigação pode implicar para o devedor a assunção de uma obrigação de meios ou de uma
obrigação de resultado.

Segundo aquele civilista a “obrigação de meios” existe quando o devedor apenas se compromete a desenvolver,
prudente e diligentemente, certa actividade para a obtenção de um determinado efeito, mas sem assegurar que o mesmo
se produza – “Direito das Obrigações”-733.

O Professor Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, 5ª edição, 2º, define obrigação de resultado “como
aquela em que o devedor, ao contrair a obrigação, se compromete a garantir a produção de certo resultado em benefício do
credor ou de terceiro”.

O Professor Menezes Cordeiro, in “Direito das Obrigações”, 1980, 1º-358 define-a:

“Como aquela em que o devedor está adstrito à efectiva obtenção do fim pretendido”.

Como refere o Professor Antunes Varela, no 2º volume da obra citada, 5ª edição, pág.10:

“Nas obrigações de resultado, o cumprimento envolve já a produção do efeito a que tende a prestação ou do seu
sucedâneo, havendo, assim, perfeita coincidência entre a realização da prestação debitória e a plena satisfação do
interesse do credor ”.

A execução de um contrato de prestação de serviços médicos pode implicar para o médico uma obrigação de
meios ou uma obrigação de resultado.

É comum considerar-se que a prática de acto médico coenvolve da parte do médico, enquanto prestador de
serviços que apelam à sua diligência e saber profissionais, a assunção de obrigação de meios.

175
Existe incumprimento se é cometida uma falta técnica, por acção ou omissão dos deveres de cuidado, conformes
aos dados adquiridos da ciência, implicando o uso de meios humanos ou técnicos necessários à obtenção do melhor
tratamento.

Casos há em que o médico está vinculado a obter um resultado concreto, sendo exemplo mais frequente a
cirurgia estética de embelezamento, [como afirmam os civilistas brasileiros], mas já não a cirurgia estética reconstrutiva,
sendo esta geralmente considerada com exemplo cirúrgico de obrigação de meios.

Os actos cirúrgicos comportam alguma margem aleatória que pode contender com o resultado; nestes casos o
erro médico é mais dificilmente descortinável.
Mas é aí que o médico deve agir, com redobrada cautela, observando os dados adquiridos pela ciência, ou seja,
adoptando os procedimentos mais evoluídos da técnica.

Assim, se considerarmos que a prestação do Réu envolvia uma obrigação de meios, provado no caso da análise
que lhe competia fazer actuou com os deveres de prudência e a técnica sugerida pelas legis artis – não estaria ele
vinculado a determinar, com rigor, se o material biológico que se comprometeu analisar tinha ou não células cancerígenas.

Com o devido respeito, entendemos que face ao avançado grau de especialização técnica dos exames
laboratoriais, estando em causa a realização de um exame, de uma análise, a obrigação assumida pelo analista é uma
obrigação de resultado, isto porque a margem de incerteza é praticamente nenhuma.

Mal estariam os pacientes se os resultados de análises, ou exames laboratoriais, obrigassem, apenas, os


profissionais dessa especialidade a actuar com prudência, mas sem assegurarem um resultado; dito prosaicamente,
concluiriam o exame e a sua obrigação estava cumprida se afirmassem ao doente – eis o resultado mas não sabemos se
em função do que foi analisado padece ou não de doença.

Importa, pois, ponderar a natureza e objectivo do acto médico para não o catalogar a prioristicamente na
dicotómica perspectiva obrigação de meios/obrigação de resultado, devendo antes atentar-se, casuisticamente, ao objecto
da prestação solicitada ao médico ou ao laboratório, para saber se, neste ou naqueloutro caso, estamos perante uma
obrigação de meios – a demandar apenas uma actuação prudente e diligente segundo as regras da arte – ou perante uma
obrigação de resultado com o que implica de afirmação de uma resposta peremptória, indúbia.

De outro modo, a prestação devida pelo médico cirurgião que tem a seu cargo uma melindrosa intervenção
cirúrgica, comportando elevado grau de risco, seja em função do estado do paciente, seja em função da gravidade da
doença, seria tratada no mesmo plano que a simples realização de uma cirurgia rotineira, ou de exame laboratorial, mais a
mais, se a interpretação dos resultados, no estado actual da ciência não comporta qualquer incerteza.

No caso em apreço, provou-se que o tipo de biópsia a que o Autor foi submetido e o sequente exame histológico,
pode estabelecer um prognóstico em conformidade com a maior ou menor diferenciação celular, sendo este o único método
que garante a certeza do diagnóstico, isto é, que garante se se trata de cancro.

No caso de intervenções cirúrgicas, em que o estado da ciência não permite, sequer, a cura mas atenuar o
sofrimento do doente, é evidente que ao médico cirurgião está cometida uma obrigação de meios, mas se o acto médico
não comporta, no estado actual da ciência, senão uma ínfima margem de risco, não podemos considerar que apenas está
vinculado a actuar segundo as legis artes; aí, até por razões de justiça distributiva, haveremos de considerar que assumiu
um compromisso que implica a obtenção de um resultado, aquele resultado que foi prometido ao paciente.

É de considerar que em especialidades como medicina interna, cirurgia geral, cardiologia, gastroenterologia, o
especialista compromete-se com uma obrigação de meios – o contrato que o vincula ao paciente respeita apenas às legis
artis na execução do acto médico; a um comportamento de acordo com a prudência, o cuidado, a perícia e actuação
diligentes, não estando obrigado a curar o doente.

Mas especialidades há que visam não uma actuação directa sobre o corpo do doente, mas antes auxiliar na cura
ou tentativa dela, como sejam os exames médicos realizados, por exemplo, nas áreas da bioquímica, radiologia e,
sobretudo, nas análises clínicas.

Neste domínio é dificilmente aceitável que estejamos perante obrigações de meios, consideramos que se trata de
obrigações de resultado.

176
Se se vier a confirmar a posteriori que o médico analista forneceu ao seu cliente um resultado cientificamente
errado, então, temos de concluir que actuou culposamente, porquanto o resultado transmitido apenas se deve a erro na
análise.

Na decisão recorrida considerou-se que, em casos como o dos autos, podem coexistir a responsabilidade
contratual e a responsabilidade extracontratual, entendimento amparado no Estudo publicado, in BMJ 322-21 e segs., da
autoria de Figueiredo Dias e Sinde Monteiro (que aí se cita) – “O mesmo facto pode constituir uma violação do contrato e
um facto ilícito…”.

O Professor Pinto Monteiro, abordando a problemática da coexistência da responsabilidade civil contratual e


extracontratual, na sua obra “Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil” – Almedina 2003 – depois de
afirmar que a questão é “delicada e controversa não tendo sido objecto entre nós (tal como de resto, na generalidade dos
sistemas) de regulamentação específica” e depois de aludir à existência de lacuna voluntária, citando Rui Alarcão, escreve
– págs. 430 /431:

“… A esta luz, parece que a solução mais razoável, dentro do espírito que enforma a ordem jurídica portuguesa, é
a que Vaz Serra propunha, devendo permitir-se ao lesado, em princípio, a faculdade de optar por uma ou outra espécie de
responsabilidade, de cumular, na mesma acção, regras de uma e outra, à sua escolha) (1)
…Neste sentido deporá o facto, por um lado, de não poder afirmar-se uma distinção essencial ou de natureza
última entre as duas formas de responsabilidade… parecendo subjacente à lei a ideia de uma unidade substancial entre
ambas, que não será prejudicada pelos aspectos específicos que a responsabilidade contratual apresenta. Por outro lado,
facultar ao lesado a escolha entre os regimes que melhor o protejam, no caso concreto, é a solução que melhor se ajusta
ao princípio do favorecimento da vítima, princípio esse que enforma o quadro legal […].
Parece, assim, que deverá ter-se por consagrada, de iure condito, a tese da admissibilidade do concurso de
responsabilidades, gozando o lesado, em princípio, da faculdade de optar por delas […].
A inclusão dos deveres de protecção no quadro contratual (Vertragsrahmen) não pode acarretar, para o lesado, a
perda da protecção que lhe seria conferida pela responsabilidade extracontratual…”.

Segundo João Álvaro Dias, in “Procriação Assistida e Responsabilidade Médica”, Coimbra, 1996, pp. 221-222:

“É hoje praticamente indiscutível que a responsabilidade médica tem, em princípio, natureza contratual. Médico e
doente estão, no comum dos casos, ligados por um contrato marcadamente pessoal, de execução continuada e, por via de
regra, sinalagmático e oneroso.
Pelo simples facto de ter o seu consultório aberto ao público e de ter colocado a sua placa, o médico encontra-se
numa situação de proponente contratual.
Por seu turno, o doente que aí se dirige, necessitando de cuidados médicos, está a manifestar a sua aceitação a
tal proposta. Tal factualidade é, por si só, bastante para que possa dizer-se, com toda a segurança, que estamos aqui em
face dum contrato consensual pois que, regra geral, não se exige qualquer forma mais ou menos solene para a celebração
de tal acordo de vontades”.

No mesmo sentido António Henriques Gaspar, in “A Responsabilidade Civil do Médico”, in CJ, Ano III, 1978, p.
341, quando afirma:
“…Dúvidas não restam que juridicamente a relação médico-doente haverá de enquadrar-se na figura conceitual
de contrato – negócio jurídico constituído por duas ou mais declarações de vontade, de conteúdo oposto, mas convergente,
ajustando-se na comum pretensão de produzir resultado unitário, embora com um significado para cada parte”.

Abordando a questão na perspectiva da responsabilidade extracontratual, afirma:


“Também, e em relação ao próprio doente, o médico apenas pode ser responsabilizado extracontratualmente, se
a sua actuação, violadora dos direitos do doente é culposa, se processou à margem de qualquer acordo existente entre
ambos, o que acontecerá em todos os casos em que o médico actue em situações de urgência que não permitem qualquer
hipótese de obter o consentimento, o acordo do doente”.

Carlos Ferreira de Almeida, in “Contratos Civis de Prestação de Serviço Médico”, comunicação apresentada ao II
Curso de Direito de Saúde e Bioética”, publicada in “Direito da Saúde e Bioética” 1996, págs.81e 82: afirma:
“ A responsabilidade delitual constitui meio exclusivo, quando contrato não haja, e concorre com a
responsabilidade contratual, quando o médico viola um direito subjectivo absoluto incidente sobre a vida ou a saúde do
paciente.
“A violação de outros direitos, designadamente de natureza patrimonial, só é ressarcível em sede contratual”.
(sublinhámos)

177
Na mesma linha, Miguel Teixeira de Sousa, in “O Ónus da Prova nas Acções de Responsabilidade Civil Médica”,
comunicação apresentada ao II Curso de Direito da Saúde e Bioética e publicada in “Direito da Saúde e Bioética”, Lisboa,
1996, edição da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, p. 127, sustenta que a responsabilidade civil
médica:
“É contratual quando existe um contrato, para cuja celebração não é, aliás, necessária qualquer forma especial,
entre o paciente e o médico ou uma instituição hospitalar e quando, portanto, a violação dos deveres médicos gerais
representa simultaneamente um incumprimento dos deveres contratuais”; “em contrapartida, aquela responsabilidade é
extracontratual quando não existe qualquer contrato entre o médico e o paciente e, por isso, quando não se pode falar de
qualquer incumprimento contratual, mas apenas, como se refere no art. 483º, nº1, do Código Civil, da violação de direitos
ou interesses alheios (como são o direito à vida e à saúde)”.

Voltando à lição de João Álvaro Dias, obra citada:


“A natureza da responsabilidade médica não é unitária e (...), ao lado de um quadro contratual que constitui a
regra, deparamos com situações múltiplas, em que a natureza delitual da responsabilidade é absolutamente indiscutível”.

Na actividade médica, na prática do acto médico, tenha ele natureza contratual ou extracontratual, um
denominador comum é insofismável – a exigência [quer a prestação tenha natureza contratual ou não] de actuação que
observe os deveres gerais de cuidado.
Tais deveres são comuns, em ambos os tipos de responsabilidade.
Com efeito, o devedor deve actuar segundo as regras da boa prática profissional, pelo que a existência de culpa
deve ser afirmada se houver omissão da diligência devida, que a natureza do acto postulava em função dos dados
científicos disponíveis.

Na responsabilidade contratual, o devedor arca com a presunção de culpa que lhe incumbe ilidir – art. 799º, nº 1,
do Código Civil – e na responsabilidade extracontratual cabe ao lesado a prova da culpa do autor da lesão – art. 483º, nº 1,
do Código Civil.

No caso dos autos é manifesto que se acha feita a prova de um erro médico por parte do Réu, sendo de certo
modo irrelevante, ao nível do grau de censurabilidade, encarar o ilícito na perspectiva da responsabilidade contratual ou
extracontratual, para além de ambas os tipos de responsabilidade poderem coexistir na mesma situação, como no caso
ocorre.

No recurso, a questão do ónus da prova não se discute, mas sempre se dirá, sufragando o entendimento de
Manuel Rosário Nunes, in “O Ónus da Prova nas Acções de Responsabilidade Civil por Actos Médicos”, págs. 41-42:

“A doutrina e a jurisprudência italianas consideram que a ideia fundamental em matéria de ónus da prova nas
acções de responsabilidade civil por actos médicos consiste em separar os tipos de intervenção cirúrgica, repartindo o ónus
da prova de acordo com a natureza mais ou menos complexa da intervenção médica».
“Assim, enquanto nos casos de difícil execução o médico terá apenas alegar e provar a natureza complexa da
intervenção, incumbindo ao paciente alegar e provar não só que a execução da prestação médica foi realizada com
violação das leges artis, mas que também foi causa adequada à produção da lesão, nos casos de intervenção “rotineira” ou
de fácil execução, ao invés, caberá ao paciente o ónus de provar a natureza “rotineira” da intervenção, enquanto que o
médico suportará o ónus de demonstrar que o resultado negativo se não deveu a imperícia ou negligência por parte deste”.

Podemos, assim, considerar que a realização da análise e a elaboração do pertinente relatório não postulava
risco técnico, pelo que o apontar de resultado desconforme com o real estado de saúde do doente se deveu a um erro do
Réu, pese embora, o seu prestígio e reputação profissionais que os autos espelham.

Concluímos, que encarada a actuação do Réu, seja à luz da responsabilidade civil contratual ou extracontratual,
está demonstrada a sua culpa e, porque se verificam os pressupostos da obrigação de indemnizar, terá que ressarcir o
Autor dos danos sofridos em consequência do erro cometido».

Nos termos do art. 4º do ETAF – alterado e republicado pela Lei nº 107-D/2003, de 31


de Dezembro,

1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham
nomeadamente por objecto:

178
a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares
directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo
de disposições de direito administrativo ou fiscal;
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por pessoas colectivas de direito
público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem como a verificação da invalidade de quaisquer
contratos que directamente resulte da invalidade do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração;
c) Fiscalização da legalidade de actos materialmente administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado
ou das Regiões Autónomas, ainda que não pertençam à Administração Pública;
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por sujeitos privados,
designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos;
e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a
respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-
contratual regulado por normas de direito público;
f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo,
de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do
respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um
concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime
substantivo de direito público;
g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas
de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores
públicos;
i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da
responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público;
j) Relações jurídicas entre pessoas colectivas de direito público ou entre órgãos públicos, no âmbito dos
interesses que lhes cumpre prosseguir;
l) Promover a prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos,
em matéria de saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural e bens
do Estado, quando cometidas por entidades públicas, e desde que não constituam ilícito penal ou contra-ordenacional;
m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas colectivas de direito público para que não seja competente
outro tribunal;
n) Execução das sentenças proferidas pela jurisdição administrativa e fiscal.

2 - Está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que
tenham por objecto a impugnação de:

a) Actos praticados no exercício da função política e legislativa;


b) Decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal;
c) Actos relativos ao inquérito e à instrução criminais, ao exercício da acção penal e à execução das respectivas
decisões.

3 - Ficam igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:

a) A apreciação das acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras
ordens de jurisdição, bem como das correspondentes acções de regresso;
b) A fiscalização dos actos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do Supremo Tribunal de
Justiça;
c) A fiscalização dos actos materialmente administrativos praticados pelo Conselho Superior da Magistratura e
pelo seu presidente;
d) A apreciação de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, que não conferem a qualidade de
agente administrativo, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público.

Nos termos do art. artigo 4º da referida Lei nº 107-D/2003, de 31 de Dezembro,

1 - O artigo 9º e o artigo 31º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, com a redacção que lhes é dada
pela presente lei, entram em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.
2 - As demais disposições contidas na presente lei entram em vigor no dia 1 de Janeiro de 2004.

179
Sobre a competência material dos T. Administrativos ou T. Judiciais para conhecer de acção
por danos por responsabilidade extracontratual do Estado, decidiu o STJ, em 7 de Outubro de
2004, no Proc. 3003/04 – 2ª Secção, Ac. relatado pelo Ex.mo Conselheiro Ferreira de Almeida:

I. Para efeitos de determinação da competência material dos tribunais administrativos, é decisivo o critério
constitucional plasmado no art.º 212°, n° 3 104 da lei fundamental, nos termos do qual compete aos tribunais dessa jurisdição
especial o julgamento de acções que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas
administrativas.
II. Estão excluídos da jurisdição administrativa as questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja
pessoa de direito público.
III. Para efeitos da apreciação/avaliação de um certo acto, ou facto, causador de prejuízos a terceiros
(particulares) numa ou noutra das categorias (gestão privada/gestão pública) reside em saber se as concretas condutas
alegadamente ilícitas e danosas se enquadram numa actividade regulada por normas comuns de direito privado (civil ou
comercial) ou antes numa actividade disciplinada por normas de direito público administrativo.
IV. Os tribunais comuns são os competentes para o julgamento de uma acção para efectivação da
responsabilidade civil extracontratual de uma empreitada de construção de uma estrada nacional - obra essa adjudicada
pelo ICOR (hoje IEP) - cuja causa de pedir se traduz numa conduta alegadamente ilícita e produtora de danos para um
terceiro particular directamente lesado.
V. Se um dos segmentos do pedido reclamar em abstracto a intervenção dos tribunais administrativos - tal
controvérsia - se meramente “consequente" ou "dependente" da reclamada (e eventual) responsabilidade (directa) da
entidade privada adjudicatária/concessionária, perderá a sua autonomia para efeitos de apreciação jurisdicional, assim se
perfilando uma hipótese em tudo semelhante à da "extensão da competência” ou de “competência por conexão” do tribunal
comum, nos termos e para os efeitos do n° 1 do art.º 96° do CPC .

Já de acordo com o novo ETAF, o STJ (Cons.º Sebastião Povoas), em Acórdão de 8 de


Maio de 2007 (P.º 07A1004) decidiu assim:

Sumário:
1) - Na vigência do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº
13/2002 de 19 de Fevereiro, na redacção da Lei nº 107-D/2003, de 31 de Dezembro, os tribunais
administrativos são os competentes para as acções destinadas a efectivar a responsabilidade civil extra
contratual de uma Freguesia, “ex vi” da alínea g) do nº 1 do artigo 4º.
2) - Irreleva para a determinação de competência que os actos praticados sejam qualificados como de
gestão pública ou de gestão privada, apenas bastando estar-se em presença de uma relação jurídico
administrativa.
3) - A relação jurídico-administrativa é aquela em que pelo menos um dos sujeitos é a Administração,
estando em causa um litígio regulado por normas de direito administrativo.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

O Dr. AA intentou no 2º Juízo no Tribunal Judicial da Covilhã, acção popular (com processo ordinário) contra a
Freguesia de BB, representada pela respectiva Junta, pedindo a sua condenação a:
- retirar o muro e o passeio que edificou junto à Estrada Nacional 506 A, deixando uma margem de 6 metros a
partir do eixo da via, como estatui o Regime Municipal das Edificações Urbanas;
- efectuar o tratamento dos esgotos vindos do parque e do restaurante, não os derivando directamente para o rio
Zêzere;
- retirar todas as placas identificadoras do local com alusão à freguesia de BB, colocando placas identificando o
local como da freguesia de CC;
- abster-se de construir qualquer edifício numa margem não inferior a 100 metros paralela ao rio Zêzere e a
proceder a obras de protecção do rio de acordo com serviços do Estado;
- pagar à freguesia de CC uma indemnização não inferior a 50000,00 euros pelos danos causados ao meio
ambiente e aos utilizadores da EN 506-A.

104
- … 3. Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos
contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas
administrativas e fiscais.

180
A 1ª instância julgou procedente a excepção de incompetência absoluta, por entender competentes os tribunais
administrativos.
Recorreu o Autor tendo a Relação de Coimbra dado provimento ao agravo e julgado competente o tribunal
escolhido “ab initio”.

1 - Competência dos Tribunais Administrativos.
1.1 - É “thema decidendum” a fixação do tribunal competente em razão de matéria, nos termos do nº 1 do
artigo 107º do CPC.
Há que ponderar, a montante, o pedido e a causa de pedir da acção onde foi excepcionada a incompetência
absoluta.
Tendo a lide sido intentada em 12 de Janeiro de 2005 é aplicável o actual ETAF aprovado pela Lei nº 13/2002 de
19 de Fevereiro, na redacção da Lei nº 107-D/2003 de 31 de Dezembro.
A regra é a competência em razão da matéria ser distribuída por várias categorias de tribunais “que se situam no
mesmo plano horizontal, sem nenhuma relação de hierarquia (de subordinação ou dependência) entre eles”, usando a
noção do Prof. Antunes Varela (in “Manual de Processo Civil”, 2ª ed, 207).
A regra é ser competente o tribunal judicial (ou jurisdição comum), de acordo com o artigo 66º do CPC, que fixa o
princípio da competência residual.
Aos tribunais administrativos – que são os que relevam na economia desta decisão – compete o julgamento dos
litígios com origem na administração pública, “latu sensu”, ressalvadas excepções legais – cf. o artigo 1º do ETAF.
Mas sempre, e como atrás se acenou, considerando o “quid disputatum”, isto é a identidade das partes, os termos
da pretensão (aqui incluindo o pedido e a “causa petendi”) – cf. Prof. Manuel de Andrade apud “Noções Elementares de
Processo Civil”, 1979, 91.

Aqui o Autor pretende efectivar a responsabilidade extra contratual da Freguesia de BB por danos causados ao
meio ambiente (destruição de uma linha de água, uma levada ou barroca, desviando águas pluviais, e outras, para o rio
Zêzere; construção de ramais de esgotos a derivarem directamente para o rio Zêzere, sem qualquer tratamento; colocação
de placas, induzindo em erro sobre a área da freguesia; provocar inundações do rio por implantação de obras em terreno
de aluvião; contrariar pareceres da Reserva Agrícola Nacional, da Direcção Regional do Ambiente e do Ordenamento do
Território e da CM da Covilhã; violação do Plano Director Municipal da Covilhã e o Regulamento Municipal das Edificações
Urbanas e ao trânsito (construção de um muro e eliminação de um passeio pondo em risco a circulação automóvel na EN
506 A).

1.2 - Nos termos do artigo 501º do Código Civil a responsabilidade civil do Estado e demais pessoas colectivas
públicas era accionada nos tribunais judiciais quando o acto lesivo era praticado “no exercício de actividades de gestão
privada”. Tratando-se do exercício de actividades de gestão pública, o ETAF que vigorava – DL nº 129/84, de 27 de Abril –
consagrava a jurisdição administrativa.
Discutiam-se, então, os conceitos de actos de gestão pública e de actos de gestão privada, sendo, “grosso
modo”, e respectivamente aqueles em que a administração intervém com as prerrogativas do poder público e a gestão
privada se age, fundamentalmente, nos quadros do direito privado e a ele sujeito. (cf. v.g, o Prof. Marcello Caetano – “é
gestão pública a actividade da Administração regulada pelo Direito Público e gestão privada a actividade da Administração
que decorra sobre a égide do Direito Privado” – apud “Manual de Direito Administrativo, II, 1143; o Acórdão do STJ de 19 de
Outubro de 1976 – BMJ 260-155 – “A gestão privada compreende a actividade do ente público subordinado à lei aplicável a
quaisquer actividades análogas dos particulares; pelo contrário a gestão pública pressupõe o exercício do jus imperii”; o
Acórdão do Tribunal de Conflitos de 4 de Abril de 2006 – Pº 8/03 – “Actos de gestão pública são os praticados pelos órgãos
e agentes da Administração no exercício de um poder público, isto é, no exercício de uma função pública, sob o domínio de
normas de direito público, ainda que não envolvam ou representem o exercício de meios de coerção; actos de gestão
privada são os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração em que esta aparece despida de poder e, portanto,
numa posição de paridade com o particular ou particulares a que os actos respeitam, nas mesmas condições e no mesmo
regime em que poderia proceder um particular com inteira subordinação às normas de direito privado”; e ainda, v.g, os
Acórdãos do Tribunal de Conflitos de 29 de Junho de 2004 – Pº 1/04 e de 12 de Janeiro de 1989 – Acórdãos Doutrinais do
STA – 330-85).

Certo, porém, que, e como nota Georges Vedel, a distinção entre gestão pública e gestão privada apenas
“definem uma directiva geral ou uma inspiração, mais do que um verdadeiro critério jurídico” (in “Droit Administratif”, 1968,
84; Prof. Vaz Serra, “Responsabilidade Civil do Estado e dos seus Órgãos ou Agentes” – BMJ 85-446 ss – RLJ 110-313;
Prof. Afonso Queiró, RLJ, 121-237; Dr. J. Sinde Monteiro, “Actos de Gestão Pública – Erro de tratamento médico em
Hospital” – CJ, XI, 4º, 47 e ss; e Prof. Freitas do Amaral – “Direito Administrativo”, III, 493 – os actos “deverão qualificar-se
como gestão pública se na sua prática ou no seu exercício forem de algum modo influenciados pela prossecução do
interesse colectivo, ou porque o agente esteja a exercer poderes de autoridade ou porque se encontre a cumprir deveres

181
ou sujeito a restrições especificamente administrativas, isto é, próprias dos agentes administrativos. E será gestão privada
no caso contrário.”).
1.3 - Era esta, no essencial, a jurisprudência e a doutrina produzidas durante a vigência da anterior redacção do
ETAF (de 1984).

Actualmente, porém – e como se disse aplicável a esta lide, por em vigor desde 1 de Janeiro de 2004 – o artigo
4º nº 1 alínea g) do ETAF (2002/2003) diz competir à jurisdição administrativa o julgamento das “questões em que, nos
termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a
resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa.”
Trata-se de procurar pôr termo à, muitas vezes difícil, inserção dos actos nos conceitos de gestão privada e de
gestão pública e conceder em todos os casos de responsabilidade aquiliana assacada aos órgãos de Administração uma
espécie de “foro especial”, subtraindo-os aos tribunais comuns.
Assim entende o Prof. João Caupers (in “Introdução ao Direito Administrativo”, 7ª ed, 2003, 265); o Cons. Santos
Serra (in “A Nova Justiça Administrativa e Fiscal Portuguesa”, no Congresso Nacional e Internacional de Magistrados na VI
Assembleia da Associação Ibero americana dos Tribunais de Justiça Fiscal e Administrativa”, México, 2006); Dr.s Mário
Esteves de Oliveira e R. Esteves de Oliveira, “Código do Processo nos TA e ETAF – Anotados, I, 59; e Dr. Mário Aroso de
Almeida, in “Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos”, 4ª ed, 99).
Poderia, assim, e sem mais, concluir-se pela competência da jurisdição administrativa.
Mas deve ponderar-se que o nº 3 do artigo 212 da Constituição da República refere serem competentes os
tribunais administrativos e fiscais para acções “que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas
administrativas e fiscais.” (e, a final, o nº 1 do artigo 1º do ETAF).
Daí que o artigo 4º nº 1 g) da ETAF tenha de ser lido à luz desta norma constitucional, em termos de a
responsabilidade delitual dos órgãos da administração só seja conhecida no foro administrativo se a comissão do acto ilícito
estiver no âmbito de relações jurídicas administrativas.
Este conceito não se confunde com acto de gestão pública, sendo antes, um conceito quadro muito mais amplo.
Assim será, sob pena do ETAF de 2002 nada ter inovado, frustrando-se a intenção do legislador.
Precisemos então o conceito.

1.4 - Crê-se que na base estará uma perspectiva jurídico material, tendo de existir uma controvérsia resultante de
relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo.
É que podem assim existir relações jurídicas materialmente administrativas sem que tenham como titulares
órgãos da administração.
Na opinião dos Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira (“Constituição da República Portuguesa – Anotada”, 3ª ed,
815) “Estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (ou fiscais) (nº 3 in fine). Esta
qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras:
1 - as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular,
funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração);
2 - as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou
fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico civil”. Em
termos positivos, um litigio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações
jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal.”

O Cons. Fernandes Cadilha (no seu recente “Dicionário de Contencioso Administrativo”, 2007, p. 117/118) refere:
“Por relação jurídico-administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos
quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas
subjectivas. Pode tratar-se de uma relação jurídica intersubjectiva, como a que ocorre entre a Administração e os
particulares, intradministrativa, quando se estabelecem entre diferentes entes administrativos, no quadro de prossecução
de interesses públicos próprios que lhes cabe defender, ou inter orgânica, quando se interpõem entre órgãos
administrativos da mesma pessoa colectiva pública, por efeito do exercício dos poderes funcionais que lhes correspondem.
Por outro lado as relações jurídicas podem ser simples ou bipolares, quando decorrem entre dois sujeitos, ou poligonais ou
multipolares, quando surgem entre três ou mais sujeitos que apresentam interesses conflituantes relativamente à resolução
da mesma situação jurídica (quanto às características de uma relação jurídica deste tipo, Gomes Canotilho, “Relações
jurídicas poligonais, ponderação ecológica de bens e controlo judicial preventivo”, Revista Jurídica do Urbanismo e do
Ambiente, nº1, Junho 1994, pags. 55 e ss.)

Em consequência, e ainda com este autor, o artigo 4º n.º 1 alínea g) abrange todos os casos de responsabilidade
civil extra contratual da Administração “independentemente de se tratar de danos resultantes de actos de gestão pública ou
de gestão privada (neste sentido, avulta não apenas o elemento histórico de interpretação, visto que essa possibilidade é
expressamente mencionada na exposição de motivos, como o elemento literal, dado que a alínea g) do nº 1 deixou de fazer

182
qualquer distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada.” e ainda, “as acções de responsabilidade civil
extracontratual de sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime especifico da responsabilidade do Estado e demais
pessoas colectivas públicas” (ob. cit. 115).

Aceita-se, sem quaisquer reservas que assim seja, mas só por ter sido propósito do legislador confiar à jurisdição
administrativa os litígios emergentes da responsabilidade extra contratual da Administração (quiçá por os tribunais
administrativos estarem mais vocacionados, e até tenham maior sensibilidade, para lidar com questões que envolvam
aplicação do direito público e com a Administração pública) mas também por querer arredar de vez a velha dicotomia
gestão pública – gestão privada, tantas vezes de difícil caracterização e com linhas de demarcação muito ténues, e fonte
de conflitos doutrinários entre administrativos e civilistas.
Assim sendo, e no caso em apreço, tratando-se de ter de efectivar a responsabilidade aquiliana de uma
Autarquia, e ainda estando em causa a aplicação de normas de direito administrativo, tal como ressalta da matéria
articulada na petição, são competentes os tribunais administrativos.

2 - Conclusões.
Pode, desde já, concluir-se:

a) Na vigência do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº 13/2002 de 19 de
Fevereiro, na redacção da Lei nº 107-D/2003, de 31 de Dezembro, os tribunais administrativos são os competentes para as
acções destinadas a efectivar a responsabilidade civil extra contratual de uma Freguesia, “ex vi” da alínea g) do nº 1 do
artigo 4º.
b) Irreleva para a determinação de competência que os actos praticados sejam qualificados como de gestão
pública ou de gestão privada, apenas bastando estar-se em presença de uma relação jurídico administrativa.
c) A Relação jurídico administrativa é aquela em que pelo menos um dos sujeitos é a Administração, estando em
causa um litígio regulado por normas de direito administrativo.
Nos termos expostos, acordam dar provimento ao agravo, revogando o Acórdão recorrido, mantendo-se o
decidido na 1ª Instância.
Custas pela recorrida.
Lisboa, 8 de Maio de 2007

Sebastião Povoas Moreira Alves Alves Velho

No mesmo sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (Ex.mo Cons.º Salvador da


Costa) de 12.2.2007, no Pr.º 07B238:

1. O âmbito de jurisdição administrativa abrange todas as questões de responsabilidade civil


envolventes de pessoas colectivas de direito público, independentemente de as mesmas serem regidas pelo
direito público ou pelo direito privado.
2. Os conceitos de actividade de gestão pública e de gestão privada dos entes públicos já não
relevam para determinação da competência jurisdicional para a apreciação de questões relativas à
responsabilidade civil extracontratual desses entes por tribunais da ordem judicial ou da ordem administrativa.
3. O disposto no nº 7 do artigo 10º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos abrange o
litisconsórcio voluntário passivo emergente de responsabilidade solidária ou conjunta extracontratual ou
contratual das entidades públicas e das entidades particulares.
4. Os tribunais da ordem administrativa são os competentes para conhecer da acção em que o autor,
no confronto de uma freguesia e de uma sociedade comercial, exige-lhes indemnização por danos causados
pela última em execução de um contrato de empreitada de obras públicas relativas a um caminho público
celebrado entre ambas.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I
"AA" e BB intentaram, no dia 19 de Abril de 2006, contra a Freguesia de ... e "Empresa-A, acção declarativa de
condenação, com processo sumário, pedindo a sua condenação a pagar-lhe € 7 505 e juros à taxa legal desde a citação,
com fundamento em danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de destruição de esteios de ramadas, videiras,
ferros de suporte e fissuras na casa, por via de realização de pelas obras, com utilização de explosivos, de repavimentação
e alargamento do Caminho Público do Paço pela segunda ré sob adjudicação da primeira.
A Freguesia de ...., na contestação, invocou a incompetência material do Tribunal Judicial de Vila Verde, sob o
fundamento de para a acção serem competentes os tribunais da ordem administrativa, e os autores, na resposta, sob o
fundamento de se tratar de actividade de gestão privada, afirmaram a competência dos tribunais da ordem judicial.

183
Na fase do saneamento, foi proferida sentença, no dia 12 de Junho de 2006, que absolveu as rés da instância
com fundamento na incompetência em razão da matéria do Tribunal e em a competência para a acção se inscrever nos
tribunais da ordem administrativa.

Agravaram os autores, e a Relação, por acórdão proferido no dia 19 de Outubro de 2006, revogou a referida
sentença, sob o fundamento de se tratar de responsabilidade civil derivada de gestão privada da Freguesia da ... e, por
isso, a competência para a acção se inscrever nos tribunais da ordem judicial.
Interpôs a Freguesia da ... recurso de agravo para este Tribunal…

II
É a seguinte a síntese do que os recorridos afirmaram na petição inicial a título de causa de pedir:
1. Os autores são donos de um prédio misto de casa de rés-do-chão e andar com logradouro, destinados a
habitação e a leiras do ....
2. A referida casa dista três metros do Caminho do Paço que faz parte da rede viária da Freguesia da ..., em cuja
linha divisória há um muro de pedra.
3. Por contrato celebrado entre a Freguesia da ... e Empresa-A, esta comprometeu-se a realizar por conta
daquela, mediante um preço, a obra de alargamento e de repavimentação do Caminho do Paço.
4. Em Março de 2005, a Freguesia da ... iniciou as referidas obras, mas ela e Empresa-A não as executaram com
os cuidados e exigências que lhes eram impostos, tendo a última, nos dias 22 e 28 de Abril seguintes, usado dinamite no
rebentamento de pedra que passava no Caminho.
5. Com isso destruíram-lhe esteios de ramadas, videiras, ferros de suporte, e causaram-lhe fissuras na casa.
6. A Freguesia da ... e Empresa-A respondem solidariamente pelos danos causados pela última, em actividade
perigosa, sob ordens e instruções da primeira, esta independentemente de culpa, nos termos dos artigos 493º, nº 2, 498º e
500º do Código Civil e 277º do Código Penal.

III
A questão essencial decidenda é a de saber se os tribunais da ordem judicial são ou não competentes para
conhecer da acção declarativa de condenação em causa.

1.
Comecemos pela caracterização do pedido e da causa de pedir formulados na acção.

O que os recorridos pretendem no confronto da recorrente e de Empresa-A é a sua condenação solidária no


pagamento de determinada quantia a título de indemnização.
A causa de pedir é, por um lado, um contrato de empreitada de obras públicas, nos termos em que o define o
artigo 1º, nº 1, do Decreto-Lei nº 59/99, de 2 de Março, celebrado entre a recorrente e Empresa-A.
E, por outro, a acção e ou omissão daquelas, uma de natureza pública e outra de natureza particular, no âmbito
da execução do referido contrato, causadora de danos reparáveis no património dos recorridos.
Assim, a causa de pedir em que os recorridos baseiam o pedido traduz-se essencialmente em actividade de
execução de um contrato de empreitada de obras públicas celebrado entre a recorrente e Empresa-A causadora de
estragos no seu prédio misto acima identificado.
Trata-se, assim, de uma situação de responsabilidade civil extracontratual que envolve a recorrente e Empresa-A,
por um lado, e os recorridos, por outro, conexa com a referida relação jurídica administrativa (artigos 483º, nº 1 e 1305º do
Código Civil).

2.
Atentemos agora na competência jurisdicional em razão da matéria em geral dos tribunais da ordem judicial
e da ordem administrativa.
A competência em razão da matéria do tribunal afere-se pela natureza da relação jurídica tal como é apresentada
pelo autor na petição inicial, isto é, no confronto entre o respectivo pedido e a causa de pedir.
A questão da competência ou da incompetência do tribunal em razão da matéria para conhecer de determinado
litígio é, naturalmente, independente do mérito ou demérito da pretensão deduzida pelas partes.
Estamos, conforme já se referiu, perante um litígio formal relativo à competência do tribunal em razão da matéria
para conhecer de uma acção de indemnização no quadro da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito imputado
pelos recorridos a uma freguesia, pessoa colectiva de direito público, e a uma sociedade comercial que se rege pelo direito
privado.
A regra da competência dos tribunais da ordem judicial, segundo o chamado princípio do residual, é a de que são
da sua competência as causas não legalmente atribuídas aos tribunais de outra ordem jurisdicional (artigos 66º do Código

184
de Processo Civil e 18º, n.º 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 3/99,
de 13 de Janeiro - LOFTJ).
Considerando que o confronto é delineado entre a competência dos tribunais da ordem judicial e a dos tribunais
da ordem administrativa, vejamos qual é o âmbito da competência dos tribunais desta última ordem.

O artigo 212º, n.º 3, da Constituição define o âmbito da jurisdição administrativa por referência ao conceito de
relação jurídica administrativa, certo que prescreve competir aos tribunais administrativos o julgamento de acções e
recursos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais.
Conexo com o referido normativo, rege o artigo 1º, nº 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais -
ETAF - segundo o qual os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para
administrar justiça nos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais.
Nesse quadro, compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham,
nomeadamente, por objecto, além do mais, que aqui não releva, as questões em que, nos termos da lei, haja lugar a
responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público (artigo 4º, nº 1, alínea g), do ETAF).
Dir-se-á ser a regra no sentido de à jurisdição administrativa incumbir o julgamento de quaisquer acções que
tenham por objecto litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, ou seja, todos os litígios originados no âmbito
da administração pública globalmente considerada, com excepção dos que o legislador ordinário expressamente atribua a
outra jurisdição.
A referida competência fixa-se no momento da instauração da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto
e de direito que ocorram posteriormente, e se no mesmo processo existirem decisões divergentes sobre a questão da
competência, prevalece a do tribunal de hierarquia superior (artigo 5º do ETAF).

3.
Vejamos agora, tendo em conta a data dos factos mencionados na petição inicial e a da sua apresentação em
juízo, a relevância ou não do conceito de actos de gestão pública ou de gestão privada na definição da competência dos
tribunais da ordem judicial e da ordem administrativa.

As autarquias locais, incluindo as freguesias, como é o caso da recorrente, são pessoas colectivas territoriais
dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respectivas (artigos
235º, n.º 2 e 236º, nº 1, da Constituição).
O conceito de actos de gestão pública e de actos de gestão privada tem essencialmente a ver, como é natural,
com a actividade de gestão pública e de gestão privada da Administração, a primeira regulada pelo direito público e a
segunda regulada pelo direito privado.
Assim, quando o acto praticado pela pessoa de direito público, naturalmente através de um seu órgão ou agente,
seja de direito privado, submetido às mesmas normas aplicáveis quando o acto fosse praticado por um particular, deve ser
entendido como acto de gestão privada.
Conforme acima se referiu, compete aos tribunais da jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham
por objecto as questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas
colectivas de direito público (artigo 4º, nº 1, alínea g), do ETAF).
Assim, ao invés do regime de pretérito, a lei alargou o âmbito de jurisdição administrativa a todas as questões de
responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se as
mesmas são regidas por um regime de direito público ou por um regime de direito privado.
Certo é que a distinção entre actividade de gestão privada e de direito público releva para a determinação do
direito substantivo aplicável à relação jurídica em causa, nos termos previstos no Decreto-Lei nº 48 051, de 21 de
Novembro de 1967.
Todavia, conforme resulta do artigo 4º, nº 1, alínea g), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, ao
invés do que ocorria no regime de pretérito, os conceitos de actividade de gestão pública e de gestão privada dos entes
públicos não relevam para determinação da competência jurisdicional para a apreciação de questões relativas à
responsabilidade civil extracontratual desses entes por tribunais da ordem judicial ou da ordem administrativa.

4.
Atentemos agora na regra da legitimidade passiva nas acções da competência dos tribunais da ordem
administrativa.
As relações jurídicas administrativas pressupõem, como é natural, o relacionamento de dois ou mais sujeitos, que
é regulado por normas jurídicas, derivante de posições activas e passivas, mas sob a envolvência da realização do
interesse público.
A regra da legitimidade passiva nas acções da competência dos tribunais da ordem administrativa é no sentido de
que cada acção deve ser proposta contra a outra parte na relação material controvertida e, quando for caso disso, contra as
pessoas ou entidades titulares de interesses contrapostos aos do autor (artigo 10º, nº 1, do CPTA).

185
Acresce que, nas referidas acções, podem ser demandados particulares ou concessionários, no âmbito de
relações jurídico-administrativas que os envolvam com entidades públicas ou com outros particulares (artigo 10º, nº 7, do
CPTA).
Resulta, deste último normativo a possibilidade de accionamento de entes públicos e de outros interessados,
ainda que não sejam concessionários ou agentes administrativos, desde que a relação material controvertida lhes diga
igualmente respeito.
O âmbito da sua previsão e estatuição envolve o litisconsórcio voluntário passivo emergente de responsabilidade
solidária ou conjunta extracontratual ou contratual da entidade pública e de uma entidade particular (MÁRIO AROSO DE
ALMEIDA/CARLOS CADILHA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Coimbra, 2005, págs. 80
a 82).
É, aliás, uma solução harmónica com o que se prescreve em sede de realização do direito substantivo, no artigo
4º, nº 2, do Decreto-Lei nº 48 051, de 21 de Novembro de 1967, segundo o qual os vários responsáveis respondem
solidariamente no que concerne às relações externas.

5.
Atentemos agora na definição da competência jurisdicional para conhecimento do objecto do litígio, única questão
que é objecto do recurso, do que se excluem as questões do mérito da causa e da própria legitimidade ad causam das
partes.
Ora, a responsabilidade civil em causa é imputada a actuações materiais concorrentes de um ente público e de
uma sociedade regida pelo direito privado, esta em execução de um contrato de empreitada de obras públicas.
Estamos no caso vertente perante uma acção em que a uma entidade pública e a uma entidade privada são
imputáveis factos causadores de danos indemnizáveis, em que se lhes imputa uma obrigação conjunta, como co-
devedoras, em paralelismo de posições jurídicas, relativamente ao direito de indemnização invocado pelos recorridos.
É uma unidade objectiva de pretensão formulada contra a referida dualidade de sujeitos contitulares da mesma
relação jurídica controvertida, o que configura uma situação de litisconsórcio voluntário inicial do lado passivo (artigo 27º, nº
1, do Código de Processo Civil).

O mero accionamento da recorrente com fundamento na responsabilidade civil extra-contratual, conexionada com
a execução da relação jurídica administrativa envolvida pelo referido contrato de empreitada de obras públicas, implica que
a competência para dirimir o litígio em causa se inscreva nos tribunais da ordem administrativa (artigo 4º, nº 1, alínea g), do
ETAF).
Os tribunais da ordem administrativa são competentes para conhecer da acção, independentemente de os
recorridos terem pretendido satisfazer o alegado direito de crédito apenas no confronto da recorrente ou também no
confronto de Empresa-A.
Neste quadro de litisconsórcio voluntário do lado passivo, envolvente de uma unidade relação jurídica material
controvertida, o tribunal que for competente para conhecer do pedido formulado contra a recorrente não pode deixar de o
ser também para conhecer do pedido formulado contra Empresa-A.
A conclusão, é por isso, no sentido de que são competentes para conhecer do litígio em causa, tal como os
recorridos o formulam na petição inicial, os tribunais da ordem administrativa.

6.
Vejamos, finalmente, a síntese da solução para o caso espécie decorrente dos termos da petição inicial
formulada pelos recorridos e da lei.

O litígio envolve uma situação de responsabilidade civil extracontratual conexa com uma relação jurídica
administrativa relativa a um contrato de empreitada de obras públicas celebrado entre um ente público e um ente particular.
A definição da competência dos tribunais da ordem administrativa para conhecer da referida situação de
responsabilidade civil extracontratual imputada à recorrente não pressupõe a distinção da derivante de actividade de gestão
pública e de gestão privada.

Os tribunais da ordem administrativa são competentes para conhecer do litígio em causa pelo mero facto de ser
accionada a recorrente na sua posição de pessoa colectiva de direito público.
No quadro da unidade de relação jurídica controvertida invocada pelos recorridos - litisconsórcio voluntário inicial
do lado passivo - a competência para conhecer do pedido formulado contra a recorrente abrange o conhecimento do
pedido formulado contra a sua litisconsorte.
Os tribunais da ordem administrativa, ao invés do que foi decidido no acórdão recorrido, são os competentes para
conhecer do litígio em causa.

186
Em consequência, ocorre a excepção dilatória de incompetência absoluta do tribunal, conducente à absolvição da
instância da recorrente e de Empresa-A, nos termos dos artigos 101º, 105º, n.º 1, 288º, n.º 1, alínea a), 493º, n.º 2, e 494º,
alínea a), do Código de Processo Civil.
Procede, por isso, o recurso.
Vencidos, são os recorridos responsáveis pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do
Código de Processo Civil).

IV
Pelo exposto, dando provimento ao recurso, revoga-se o acórdão recorrido, declara-se a subsistência do
conteúdo da sentença proferida no tribunal da primeira instância, e condenam-se os recorridos no pagamento das custas
dos recursos e da acção.

Lisboa, 12 de Fevereiro de 2007.

Salvador da Costa Ferreira de Sousa Armindo Luís

***
«Competência material:

Foi celebrado um contrato de compra e venda entre a autora e o réu, através do qual este adquiriu àquela diverso
mobiliário, sendo que tal aquisição foi efectuada através do procedimento pré-contratual administrativo regulado no dec-lei
55/95, de 29 de Março .
As instâncias consideraram que o tribunal comum é o competente em razão da matéria para conhecer da acção.
O recorrente entende que o Tribunal Administrativo é o materialmente competente, em virtude das partes terem
submetido o contrato ao regime previsto no dec-lei 55/95, de 29 de Março, sendo aplicável o disposto nos arts 4, nº1, al. e)
e f) do ETAF, aprovado pela Lei 13/02, de 19 de Fevereiro.
Mas sem razão.
O mencionado dec-lei 55/95 veio concentrar o que se encontrava disperso em diversa legislação, adequando-o à
legislação comunitária e tentando dar clareza, simplicidade e transparência às contas públicas.
No referido diploma nada se impõe às entidades privadas e apenas se estabelece o regime da realização de
despesas públicas com locação, empreitadas de obras públicas, prestação de serviços e aquisição de bens, bem como o
da contratação pública relativa à prestação de serviços, locação e aquisição de bens móveis – art. 1º do dec-lei 55/95.
O art. 1, nº 1, do ETAF preceitua que os tribunais de jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania
com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas
administrativas e fiscais .
O art. 4, do ETAF, dispõe:
1- Compete aos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente
por objecto:
(...)
e) – Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a
respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento contratual
regulado por normas de direito público .
f) – Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto
administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos
específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade
pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um
regime substantivo de direito público.
Por sua vez, o art. 178, nº 1, do Código do Procedimento Administrativo, define o contrato administrativo como “o
acordo de vontades pelo qual é constituída, modificada ou extinta uma relação jurídica administrativa”.

Ora, compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento de acções e recursos contenciosos que tenham
por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas ou fiscais – art. 212, nº 3 da
Constituição da República.
Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas
não atribuídas a outras ordens judiciais – art. 211, nº 1, da Constituição .
Daqui se extrai que são da competência dos tribunais judiciais todas as causas que não sejam atribuídas a outras
ordens jurisdicionais.
O que significa dizer que a competência material dos tribunais judiciais se determina através de um critério de
competência residual.

187
Também dos arts 66 do C.P.C. e 18, nº 1, da LOFT se retira que a competência dos tribunais judiciais é residual.
Relação jurídica administrativa “é aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse
público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a
administração “ (Freitas do Amaral, Direito Administrativo, Vol. III, pág. 439).

Pois bem.
A relação contratual estabelecida entre recorrente e recorrida, da qual resultou a dívida reclamada por esta, não
reveste natureza administrativa, por não se verificarem os mencionados requisitos .
Com efeito, na relação mantida, o recorrente actuou despojado de poderes de autoridade ou de restrições de
interesse público, e à recorrida também não foram atribuídos direitos ou impostos deveres públicos perante o recorrente .
No caso concreto, o que se verifica é que houve um procedimento administrativo pré-contratual, como era exigido
ao Município de Lisboa pelo aludido dec-lei 55/95, tendo a recorrida sido escolhida sem prévio concurso público.
Mas tal situação, só por si, não é suficiente para se poder afirmar que os tribunais administrativos sejam os
materialmente competentes para conhecerem da falta de pagamento do mobiliário adquirido.
Não estão em causa questões relativas à validade de actos pré-contratuais, nem a interpretação, validade e
execução do contrato de compra e venda.
O contrato está perfeito, operou-se a entrega do mobiliário e a respectiva transferência da propriedade .
Só falta o Município de Lisboa proceder ao pagamento do que é devido.
Por isso, não tem aqui aplicação as alíneas e) e f) do nº1, do art. 4, do ETAF.
Como se decidiu no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 10-3-05, Proc. 21/03, “o que determina a competência
material dos Tribunais Administrativos para o julgamento de certas acções, é o elas versarem sobre conflitos de interesses
públicos e privados no âmbito das relações administrativas, pelo que a declaração dessa competência pressupõe que se
julgue que o conflito nelas desenhado é um conflito de interesses públicos e privados e que o mesmo nasceu e se
desenvolveu no âmbito de uma relação jurídica administrativa.
Na distinção, sem sempre fácil, entre contratos administrativos e contratos de direito privado, importa considerar
não só a presença de um contraente público e a ligação do objecto do contrato às finalidades do interesse público que esse
ente prossiga – o que é fundamental - mas também as marcas da administratividade e os traços reveladores de uma
ambiência de direito público existentes nas relações que neles se estabelecem “.
Não concorrendo no contrato em apreciação nenhuma destas características, é de concluir, como se conclui, ser
o tribunal cível o materialmente competente para a apreciação e conhecimento do objecto da acção» - Ac. do STJ
(Cons.º Azevedo Ramos) de 24.6.2008, P.º 08A1714.

Antes de decidir qual o tribunal competente em razão da matéria (administrativos ou judiciais)


convém analisar os estatutos da pessoa colectiva a demandar, pois neles se contém, quase sempre,
regulada essa matéria.
Para todo o sector empresarial do Estado, as E.P.E (hospitais, etc.), rege o Dec-lei n.º
300/2007, de 22 de Agosto, cujo art. 18º dispõe assim:

Artigo 18.º
Tribunais competentes
1 — Para efeitos de determinação da competência para julgamento dos litígios, incluindo recursos contenciosos,
respeitantes a actos praticados e a contratos celebrados no exercício dos poderes de autoridade a que se refere o artigo
14.º, serão as empresas públicas equiparadas a entidades administrativas.
2 — Nos demais litígios seguem-se as regras gerais de determinação da competência material dos tribunais.

O art. 14º referido dispõe assim:


Artigo 14.º
Poderes de autoridade
1 — Poderão as empresas públicas exercer poderes e prerrogativas de autoridade de que goza o Estado,
designadamente quanto a:
a) - Expropriação por utilidade pública;
b) - Utilização, protecção e gestão das infra-estruturas afectas ao serviço público;
c) - Licenciamento e concessão, nos termos da legislação aplicável à utilização do domínio público, da ocupação
ou do exercício de qualquer actividade nos terrenos, edificações e outras infra -estruturas que lhe estejam afectas.
2 — Os poderes especiais serão atribuídos por diploma legal, em situações excepcionais e na medida do
estritamente necessário à prossecução do interesse público, ou constarão de contrato de concessão.

188
Por sua vez, diz o
Artigo 7.º
Regime jurídico geral
1 - Sem prejuízo do disposto na legislação aplicável às empresas públicas regionais, intermunicipais e municipais,
as empresas públicas regem-se pelo direito privado, salvo no que estiver disposto no presente diploma e nos diplomas que
tenham aprovado os respectivos estatutos.
2 - As empresas públicas estão sujeitas a tributação directa e indirecta, nos termos gerais.
3 - As empresas participadas estão plenamente sujeitas ao regime jurídico comercial, laboral e fiscal, ou de outra
natureza, aplicável às empresas cujo capital e controlo é exclusivamente privado.

III - Animais - 502º

Enquanto que o art. 493º presume a culpa do vigilante, o art. 502º consagra a
responsabilidade pelo risco de quem utiliza os animais no seu próprio interesse , desde que os
danos resultem do perigo especial que envolve a sua utilização, como acontece com mordedura de
cão – Col. Jur. 03-I-166 (Relação do Porto, 6.1.2003):

«Conforme art. 493º, nº 1, do CC - com os demais que, sem menção da respectiva origem, vierem a ser citados -
Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar e, bem assim, quem tiver assumido o encargo da
vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma
culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua .

Por seu turno, nos termos do disposto no art. 502º, sob a epígrafe "Danos causados por animais", Quem no seu
próprio interesse utilizar quaisquer animais responde pelos danos que eles causarem, desde que os danos resultem do
perigo especial que envolve a sua utilização.

Como, argutamente, se observa no douto Ac. do STJ, de 13/12/2000 (Pinto Monteiro) - Col./STJ, 3º, 170 -
«Saliente-se que o referido art. 493º, nº 1, se refere a culpa in vigilando, contemplando os casos em que o dano resulta da
não observância do dever de guarda dos animais. Situação diferente é a abrangida pelo art. 502º, em que existe
responsabilidade baseada no risco inerente à utilização dos animais. Aqui sim, prescinde-se da culpa, consagrando-se a
responsa-bilidade objectiva».
Em idêntico sentido, aliás, se pronunciou o Ac. desta Relação de 16/01/90 (Eduardo Martins) - Bol. 393º/666),
onde foi entendido que «Os danos provocados pelas mordeduras de cão resultam do perigo especial que envolve
a sua utilização, não importando indagar da culpa dos donos do cão, já que a responsabilidade deles se baseia
no risco»…
E, segundo o sustentado no douto Ac. do STJ de 11/10/94 (Cardona Ferreira) - Col./STJ, 3º/91, «… este é um tipo
de responsabilidade pelo risco ou objectiva, cuja concorrência com responsabilidade a título de culpa a generalidade da
jurisprudência deste Supremo não tem admitido, a partir da lei vigente e da sua interpretação adequada (arts. 505º e 570º
do CC), Profs. Pires de Lima e A. Varela, "Anotado", I, 4ª ed., 517; Prof. A. Costa, "Direito das Obrigações", 4ª ed., 419;
Doutrina subjacente e reflectida, v.g., nos Acs. do STJ de 11/12/70 (Bol. 202º/190) e de 05/03/74 (Bol. 235º/253).

Finalmente, impõe-se observar que, conforme defendido no douto Ac. do STJ de 09/03/78 (Rodrigues Bastos),
Bol. 275º/191, com anotação concordante do Prof. Vaz Serra (RLJ - Ano 111º/279 e segs.), «Quando a lei se refere ao
perigo especial que envolve a utilização dos animais, não quer aludir a um perigo específico…, mas a todas as situações
perigosas que resultam dos animais, conforme a sua espécie e modo como são utilizados… O termo "especial",
empregado no art. 502º do CC, tem por finalidade esclarecer que o risco há-de variar conforme a espécie dos animais
utilizados, e não que, desprezando o risco geral do seu aproveitamento, os utentes deles só respondam por riscos
específicos, criados por circunstâncias anormais».

Acórdão do STJ (Cons.º Oliveira Barros), de 17.6.2003, P.º 03B1834:

I - O artº. 493º, nº. 1, C. Civ. tem em vista a responsabilidade, fundada na aí estabelecida presunção de culpa, do
efectivo detentor, como é o caso do guardador dos animais, isto é, de quem, - seu proprietário ou não -, enquanto e
porquanto na sua efectiva detenção, assume o encargo da vigilância de seres, por sua natureza, irracionais.
II - Como o respectivo início revela, é, por sua vez, na previsão do artº. 502º C. Civ. que cabe a responsabilidade
do proprietário dos animais enquanto, independentemente da sua efectiva detenção, utente ou beneficiário das respectivas

189
utilidades; e tal assim em obediência a equitativo princípio do risco: ubi emolumentum, ibi onus - ou, em mais conhecida
fórmula, ubi commoda, ibi incommoda.
III - Previstos no artº. 502º C. Civ. os danos que correspondam ao perigo próprio ou específico da utilização dos
animais em causa, a responsabilidade do seu proprietário estabelecida nesse dispositivo não é excluída por caso fortuito ou
de força maior, designadamente o constituído por temporal.
IV - O risco previsto nessa disposição legal varia com a espécie dos animais utilizados, havendo, pois, que ter em
conta o risco próprio, especial, do rebanho - numeroso - alegadamente assustado.
V - O risco especial que a utilização de animais acarreta e que o artº. 502º C. Civ. contempla em termos de
responsabilidade objectiva - ou seja, como diz o nº. 2 do seu artº. 483º, "independentemente de culpa" -, não é, em todo o
caso, apenas o próprio da espécie de animais em questão: visa, pelo contrário, igualmente o risco geral do aproveitamento
de animais, resultante - seja qual for a sua espécie - da sua natureza de seres vivos que actuam por impulso próprio.
VI - A limitação constante da parte final do artº. 502º C. Civ. visa apenas excluir os casos em que o dano em
questão tanto podia ter sido causado pelo(s) animal(is) como por qualquer outra coisa, nenhuma ligação havendo com o
sobredito perigo próprio ou específico da utilização de animais.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. Os Caminhos de Ferro Portugueses (E.P.) moveram, em 5/5/2000, acção declarativa com processo comum na
forma sumária contra A, com vista a obter a condenação do demandado a pagar-lhes indemnização no montante de
2.357.972$00, equivalente a € 11.761,51, com juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
Invocando o artº. 502º C. Civ., alegaram para tanto competir-lhes, enquanto empresa pública titular da exploração
dos transportes ferroviários em todo o território nacional, usar, fruir e conservar todas as infra-estruturas afectas à rede
ferroviária nacional, e que em 5/11/97, pelas 23,30 horas, altura em que por essa linha férrea circulava determinado
comboio, cerca de 600 ovelhas pertencentes ao Réu se encontravam à solta na via férrea, ao km 149,300 da linha do
Alentejo, no sítio de Coitos, Beja, tendo aquele comboio embatido nesses animais. Desse embate advieram indicados
danos - nomeadamente decorrentes de avarias na locomotiva, que descarrilou, e na via férrea, da paragem e atrasos na
circulação de 5 outros comboios, da supressão de 4, igualmente identificados, e da circulação dum comboio de socorro -
cuja indemnização, no total referido, reclamam.

Contestando, o Réu opôs, em suma: - ter-se tratado de noite de violento temporal; ter a inundação do terreno em
que se encontravam e a chuva e o vento levado os animais a fugir, destruindo a rede que delimitava o perímetro do redil; -
ter o pastor, que se encontrava em habitação adjacente, ficado impossibilitado de tal impedir, quer pela tempestade que o
impossibilitava de movimentar-se, quer pela escuridão que o impedia de ver; - e terem-se os animais abrigado sob uma
ponte rodoviária, onde foram trucidados pelo comboio referido.
Não se mostraria, por isso, preenchida a previsão legal invocada, que, relativa aos danos causados por animais,
exige que ocorram em virtude do perigo especial que a sua utilização envolva.
Excepcionou, mais, culpa da empresa pública A. na produção do evento e no avolumar dos prejuízos, por fazer
circular o comboio interveniente apesar do temporal aludido e consequente visibilidade deficiente e insuficiente aderência.
Outrossim deduzida defesa por impugnação, concluiu esse articulado pedindo, em reconvenção, a condenação
da A. a pagar-lhe, com fundamento na morte de 693 ovelhas e invocação dos artºs. 493º, nº. 2, e 503º (nº. 1) C.Civ., a
quantia de 7.860.000$00, equivalente a € 39. 205,51, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a notificação (da
contestação), até integral pagamento.
A reconvenção foi admitida, com alteração da forma de processo, que passou à forma ordinária; e houve réplica.

5. Cabe, de todo o modo, observar igualmente que, desde que os danos correspondam ao perigo próprio ou
específico da utilização dos animais em causa, a responsabilidade do seu proprietário estabelecida no artº. 502º não é
excluída pelo caso fortuito ou de força maior que o temporal constitui (5).
É certo que o risco previsto nessa disposição legal varia com a espécie dos animais utilizados (6).
Em causa exploração pecuária, haveria, como a Relação considera, que ter, neste plano, em conta o risco
próprio, especial, do rebanho - numeroso - alegadamente assustado (e que, segundo a contestação, se teria refugiado, na
via férrea, sob uma ponte rodoviária): revelando-se, em tais circunstâncias, irrecusável que os danos reclamados se
encontram em correlação adequada com o perigo específico que o mesmo envolvia. Em todo o caso:

Como explicado no aresto em que o recorrente se louva (7), o risco especial que a utilização de animais acarreta
e que o artº. 502º contempla em termos de responsabilidade objectiva, - ou seja, como diz o nº. 2 do artº. 483º,
"independentemente de culpa" - não é apenas o próprio da espécie de animais em questão: muito pelo contrário, visa
igualmente o risco geral do aproveitamento de animais, "resultante" - seja qual for a sua espécie -, "da sua natureza de
seres vivos que actuam por impulso próprio" (8).

190
A limitação constante da parte final do artº. 502º - "desde que os danos resultem do perigo especial que envolve a
sua utilização" - visa apenas excluir os casos em que o dano em questão tanto podia ter sido causado pelo(s) animal(is)
como por qualquer outra coisa, nenhuma ligação havendo com o sobredito perigo próprio ou específico da utilização de
animais (9).
Em contrário do que o recorrente menos bem defende, já que assim faz de costas para a lição não só da
doutrina, mas também da jurisprudência que ele próprio cita, o artº. 502º não se refere somente ao perigo especial de
determinada espécie de animais, mas de igual modo ao perigo especial que qualquer ser irracional, dado, precisamente,
que destituído de razão, necessariamente envolve. É, mesmo, esse perigo que, descontado facto de terceiro, eventual caso
fortuito ou de força maior pode, em vez de afastar, inclusivamente, acentuar, agravar ou desenvolver: tal, se bem parece,
nomeada e manifestamente sendo o que ocorre no caso do arguido pânico de rebanho determinado por temporal (10).

6. Em questão danos causados por animais, são, nessa base, referidos os artºs. 493º (nº. 1) e 502º.
Importa, no entanto, de facto, observar de imediato que se trata de previsões distintas, com diferente campo de
aplicação (11), e que nada permite aproximar pelo modo ensaiado em 3. da alegação do recorrente. Com efeito:
O artº. 493º, nº. 1, tem em vista a responsabilidade, fundada na aí estabelecida presunção de culpa, do efectivo
detentor, como é o caso do guardador, dos animais, isto é, de quem, - seu proprietário ou não -, enquanto e porquanto na
sua efectiva detenção, assume o encargo da vigilância de seres, por sua natureza, irracionais (12).
Como o respectivo início revela - "Quem no seu próprio interesse utilizar animais" -, é, por sua vez, na previsão
do artº. 502º que cabe a responsabilidade do proprietário dos animais enquanto - independentemente da sua efectiva
detenção - utente ou beneficiário das respectivas utilidades; e tal assim em obediência a equitativo princípio do risco: ubi
emolumentum, ibi onus - ou, em mais conhecida fórmula, ubi commoda, ibi incommoda (13).
É a esta luz que há, neste caso, que entender o artº. 13.º, n.º 1, CRP - invocado nestes autos, como, aliás,
frequente, com despropósito evidente.
É, com efeito, e precisamente, próprio do princípio da igualdade que se trate por forma igual o que realmente se
revele igual, e que, diversas as situações de facto, se trate de modo diferente o que em boa verdade se manifeste ser
diferente. Aliás:
No que se refere à responsabilidade extracontratual do proprietário de animais, há que atender, antes de mais, ao
disposto no nº. 1 do artº. 483º.
Aí prevista responsabilidade fundada em culpa efectiva, não se mostra, neste caso, alegada, nem é discernível
(14) .
Segue-se atentar em que os animais se encontravam à efectiva guarda de outrem - o que, em princípio, arreda a
previsão do artº. 493º, nº. 1.
Outrossim presente o disposto no artº. 500º, logo, de todo o modo, será de admitir que a ocorrência de caso que
não pode ser evitado, como sucede com as tempestades ou outro qualquer caso fortuito ou de força maior, afasta a culpa
(15).
Todavia cumpre, em último termo, e em vista, ainda, do nº. 2 do predito artº. 483º, atentar na previsão do artº.
502º, fundada em que, enquanto seres irracionais, os animais "são quase sempre uma fonte de perigos, mais ou menos
graves" (16) .
Por isso, como determinado nesse artº. 502º, quem os utiliza em seu proveito deverá suportar as consequências
desse perigo especial que a utilização de animais implica ou acarreta.
Cumulativa a responsabilidade regulada nos artºs. 493º e 502º, só o proprietário foi demandado nesta acção (17).
7. Conduz quanto se leva dito à seguinte decisão:
Nega-se a revista.
Confirma-se a decisão das instâncias.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 17 de Junho de 2003


Oliveira Barros
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa

Ac. do STJ (Cons.º Ribeiro de Almeida) de 19.6.2007, no P.º 07A1730:



«A responsabilidade extracontratual abrange os casos de ilícito civil. Deriva, mormente, da violação por acção ou
omissão, de um dever ou vínculo jurídico geral, de um daqueles deveres de conduta impostos a todas as pessoas e que
correspondem aos direitos absolutos, ou até da prática de certos actos que, embora lícitos produzem dano a outrem – Cfr
entre outros, Prof. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 2ª ed vol. I, pág. 398 e ss.

191
E porque a responsabilidade contratual resulta da violação de um direito de crédito ou obrigação em sentido
técnico – Vaz Serra BMJ 85/115 – o caso que nos ocupa preenche a responsabilidade extracontratual. Assim, a via que se
percorre quando se analisa a arrogada responsabilidade, ou tão só a alegada responsabilidade dos Réus, pela conduta
assumida é a responsabilidade civil extracontratual, pois o que está em causa é a violação por acção ou omissão, de um
dever ou vinculo jurídico geral um daqueles deveres de conduta impostos a todas as pessoas e que correspondem aos
direitos absolutos.
“Aquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal
destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pêlos danos resultantes da violação” – Código
Civil – Art° 483° nº 1.
São destarte, pressupostos do dever indemnizatório:
a) violação de um direito ou interesse alheio; b) ilicitude; c) vínculo de imputação do facto ao agente; d) dano; e)
nexo de causalidade entre o facto e o dano – Cfr. Prof. Antunes Varela, ob.cit, pág. 356; Dr. Rodrigues Bastos, “Notas ao
Código Civil” 2°vol pág. 282.
Prescreve o artigo 499º do Código Civil que á responsabilidade pelo risco, na parte aplicável e na falta de
preceitos legais em contrário, são extensíveis as disposições que regulam a responsabilidade por factos ilícitos.
O Artigo 493º prevê os danos causados por coisas, animais e actividades. Assim quem tiver o encargo de
vigilância de qualquer animal responde pelos danos que os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve
da sua parte. Existe assim uma presunção de culpa para aqueles que tem a seu cargo a vigilância de animais.
Inverte-se o ónus da prova como decorre das presunção legal, pelo que será o vigilante a fazer a prova de que
agiu sem culpa.
Por outro lado o Artigo 502º do Código Civil prevendo os danos causados por animais preceitua:
«Quem no seu próprio interesse utilizar quaisquer animais responde pelos danos que eles causarem, desde que
os danos resultem do perigo especial que envolve a sua utilização».
Esclarece Antunes Varela/Pires de Lima no Código Civil Anotado I Vol, pág. 511 que «Na subsecção relativa à
responsabilidade por factos ilícitos, a propósito dos casos dos casos de presunção de culpa, impõe-se a obrigação de
indemnizar certos danos causados por animais (art. 490). Este artigo 502.° refere-se também aos danos causados por
animais. Mas estabelecendo para eles um principio de responsabilidade objectiva — regime que se depreende do texto do
preceito (que não ressalva a culpa, como se faz no art. 493.°) e ainda da sua inserção na subsecção que trata da
responsabilidade pelo risco».
Assim o Artigo 493 refere-se ás pessoas que assumiram o encargo da vigilância dos animais, o Artigo 502 é
aplicável aos que utilizam os animais no seu próprio interesse.
Assim os proprietários ou os possuidores destes animais, utilizando-os no seu proveito «que como seres
irracionais, são quase sempre uma fonte de perigos, deve suportar as consequências do risco especial que acarreta a sua
utilização». – Obra citada pág 512-.
«Interessa assim que o dano proceda do perigo especial que envolve a utilização do animal e já não de qualquer
facto estranho a essa perigosidade específica».
Comparando o disposto no Artigo 493 com o Artigo 502 temos que concluir que uma responsabilidade não exclui
a outra.
Aquele prevê um caso de responsabilidade por danos causados por animais, mas aí a responsabilidade é do
vigilante do animal e funda-se na culpa, só havendo deslocação do ónus da prova; no artigo 502 a responsabilidade
assenta no princípio do risco que se cria, em relação a terceiros, com a utilização perigosa de animais.
Isto posto há que avaliando a prova determinar se o preceito a aplicar é um ou outro.
Sob pena de nos repetirmos no Artigo 493 trata-se de presumir que o guarda da coisa tem culpa no facto
causador do dano, dado a tê-la á sua guarda pelo que deve tomar as medidas necessárias para evitar o dano. È que um
animal abandonado a si mesmo pode causar um perigo para terceiros e o guarda deve, por isso, adoptar as medidas que
sejam as necessárias a evitar o dano, acresce que está em melhor situação do que o prejudicado para fazer a prova
relativa á culpa, uma vez que tinha o animal á sua disposição deve saber como ninguém, se realmente foi cauteloso na
guarda. Além disso o animal por si guardado pode reverter em seu benefício, devendo, portanto suportar o encargo da falta
de culpa. A sua responsabilidade é delitual e não advém do risco.

Rememorando os factos na parte que tem interesse para a questão colocada devemos desde já afirmar que na
perspectiva do Artigo 493 do Código Civil os recorrentes não conseguiram demonstrar que a culpa era do Autor.
Admitindo que não assumiram o encargo da vigilância do animal de modo explícito, essa vigilância advém de
modo tácito do benefício da disponibilidade do «canidio», dado que o mesmo era suposto guardar a oficina que já tinha sido
assaltada diversas vezes.

Acontece que se provou que na data em que ocorreu o acidente cerca das 7,30 h., o Autor deslocou-se à oficina
dos Réus para aí mandar reparar o seu veículo automóvel; Estando a oficina fechada, o Autor aproximou-se do portão de
entrada da mesma e olhou para o seu interior;

192
Nessa altura o cão mordeu o nariz do Autor;
Em consequência o Autor ficou sem a cartilagem do nariz;
O cão estava solto no interior da oficina.
Após o Autor ter sido mordido pelo cão, os Réus colocaram uma chapa na parte inferior do gradeamento do
portão.
No local não estava colocada placa alertando para a existência do cão.
O cão pertence e pertencia na data referida em 2) também ao interveniente BB.
Dos factos provados resulta que quer nos termos do disposto no Artigo 493 que nos termos do Artigo 502 ambos
do Código Civil, os Réus sabiam que tinham um cão potencialmente perigoso dentro da oficina á solta, sem qualquer aviso
da sua presença e depois da ocorrência do facto danoso colocaram uma chapa na parte interior do gradeamento do portão.
Assim o cão já não poderia atacar quem quer que fosse que se apresentasse no exterior da oficina e se abeirasse do
portão.
Os Réu recorrentes utilizavam o cão no seu interesse e por isso são responsáveis pelos danos causados mesmo
a título de risco.
Tinham consciência da perigosidade do animal, de tal modo que depois do Autor ter sido atacado, colocaram uma
chapa na parte interior do gradeamento do portão. A lei trata-o como animal perigoso – DL 312/03 e Portaria 422/04 Anexo
a que se refere a al. b) daquele DL
Não podem os Recorrentes afirmar afoitamente que o Autor é que se aproximou do portão e por isso teve culpa
do acontecido. Por uma lado está provado que o Autor procurava a oficina para ser arranjado um seu veículo, por outro
aproximou-se do portão sem que estivesse qualquer anúncio a dar conta da existência de um cão rottveiler, que são cães
perigosos. A lei trata-o como animal perigoso.
Entendendo que o cão estava abandonado no interior da oficina o que constituía um perigo para terceiros e
sendo do chamado, certo que os Recorrentes retiravam benefício da disponibilidade do cão, uma vez que o mesmo estava
na oficina para obstar a que a mesma fosse assaltada, daí se presumindo a culpa.
Utilizando o animal no seu próprio interesse os Recorrentes também são responsáveis pelo dano nos termos do
Artigo 502 do Código Civil.
Podendo coexistir a responsabilidade fundada na culpa ou no risco quer numa das situações quer na outra os
Recorrentes são sempre responsáveis pelos danos que o cão causou ao Autor.
No caso do Artigo 493, não se exige que exista um dever específico de vigilância, bastando que se trate de
animais que possam ocasionar danos; a vigilância há-de incumbir àquele que tenha o poder de facto sobre o animal.
Era o caso dos Recorrentes.
Não se pode admitir que para prevenir um furto ou roubo se use de meios que sejam perigosos ou que potenciem
esse perigo, pois de outro modo a ordem social e jurídica teria que admitir todos os meios, mesmo os ilícitos para defesa da
propriedade. Rottweil, electrificação do portão uso de armas prontas a dispararem com a entrada de um ladrão numa
propriedade: onde estará a diferença?

Face ao que se deixou exposto, improcedem todas as conclusões das alegações de recurso.

Acorda-se em negar a revista.


Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 19 de Junho 2007


Relator : Ribeiro de Almeida
Adjuntos: Nuno Cameira
Sousa Leite

Gansos que atacam passante - Col. 81-5-145; toiros - BMJ 325-553.

IV - Energia eléctrica e gás - 509º

As empresas que detêm a direcção efectiva das instalações de produção, armazenagem,


condução ou entrega de energia eléctrica ou gás respondem pelos acidentes devidos a culpa dos
seus órgãos, agentes, representantes ou comissários e, objectivamente, pelos devidos ao mau
funcionamento do sistema de condução ou entrega e defeitos da própria instalação - nº 1.

193
Quanto à instalação, a responsabilidade será afastada se a empresa provar que essa
instalação, ao tempo do acidente, estava de acordo com as regras técnicas em vigor e em perfeito
estado de conservação - nº 1, in fine.
Também estão afastados os danos devidos a causa de força maior tal como definidos no nº 2,
ou imputáveis à própria vítima ou terceiro, pois é regra geral a de que culpa e risco não convivem no
mesmo saco - 505º.
Os danos causados por aparelhos de uso de energia - fogões, frigoríficos, televisão - não
estão sujeitos ao regime desta responsabilidade objectiva.

Mesmo inexistindo responsabilidade pelo risco, pode a EDP responder como comitente, por
culpa dos seus funcionários, se esses seus agentes, chamados várias vezes a prédio que dava
choque não cuidaram de averiguar as causas da anomalia, só o fazendo após a morte de um indivíduo
que morreu electrocutado no chuveiro - Col. STJ 97-III-132.

Limites de responsabilidade: 510º e remessa para o 508º, com a redacção introduzida pelo
Dec-lei nº 59/2004, de 19 de Março.

BMJ 348-397 - A acção da força de ventos fortes não ciclónicos concorrentes para o entrechoque dos cabos de
rede de distribuição de energia eléctrica não constitui força maior excludente da responsabilidade civil da empresa
distribuidora pelos danos provocados por esse entrechoque, como faíscas e incêndio. Dever de previsão e de evitar esse
entrechoque.

Col. 91-I-47 - Idem, estorninho que poisa num fio e provoca curto circuito noutro fio que cai e é calcado por
pessoa que morre electrocutada.

RESPONSABILIDADE CIVIL
Responsabilidade objectiva
Instalações de condução de energia eléctrica
«Força maior»
(Ac. do STJ, de 3 de Outubro de 2002, na Col. Jur. (STJ) 02-III-77)

I - Os danos causados pela instalação ou entrega de energia eléctrica ou de gás correm por conta das empresas
que as explorem.
II - Provando-se que um incêndio nas instalações da autora foi originado por um «raio», que provocou uma
descarga eléctrica, que por sua vez causou a queda de uma linha de alta tensão, causadora do incêndio, e não se
provando que a ré haja omitido qualquer dever, seja de manutenção e conservação da linha eléctrica, seja na prevenção de
eventuais descargas eléctricas, falha o nexo de imputação do facto ao presuntivo lesante, ou seja a respectiva culpa.
III - Ainda que os danos fossem advenientes da condução ou instalação de energia eléctrica, sempre a
responsabilidade da ré se encontraria afastada por ocorrência de motivo de força maior.
BMJ 431-441 - A Petrogal é responsável pela instalação de queima de gás que instalou em restaurante, em que
só ela pode mexer e de que, por isso, tem a direcção efectiva.

Col. STJ 96-II-26 - fio eléctrico descarnado que, caindo em poça de água, mata pessoa a cavalo.
Responsabilidade por culpa, omissão do dever de conservação e vigilância - 486º- Culpa. Não há limites da
indemnização.

Col. 94-II-5 - entrega de energia eléctrica de voltagem superior à contratada que, por isso, provoca danos em
electrodomésticos. Responsabilidade objectiva e obrigação de indemnizar.

Acórdão STJ (cons.º Araújo Barros), de 22.5.2003, P.º 03B892, base de dados do ITIJ:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

194
"A" intentou no Tribunal Judicial de Leiria, acção com processo ordinário contra B pedindo a condenação desta a
pagar-lhe a quantia de 3.842.213$00, acrescida de juros de mora, desde a citação até integral reembolso.

Alegou, para tanto, em resumo, que:


- entre autora e ré vigora um contrato de fornecimento de energia eléctrica, pelo qual esta, mediante o pagamento
de um preço por banda daquela, lhe fornece energia eléctrica em condições tais que não ofereça perigo de avaria de
equipamentos, isto é, com parâmetros tidos como normais a componentes eléctricos e electrónicos;
- em 4 de Novembro de 1996, ocorreu uma descarga eléctrica no posto de transformação que serve a zona da
urbanização de Porto Moniz, em Leiria, local onde a autora possui as suas instalações;
- a descarga eléctrica ficou a dever-se a trabalhos que estavam a ser executados no posto de transformação de
energia eléctrica, descarga essa que, pela sua grande potência, danificou diverso equipamento da autora, com os
respectivos prejuízos computados no montante de 2.242.213$00;
- perdeu ainda a autora todo o software, programas de contabilidade, de facturação, de controlo de stocks, de
processamento de salários e de orçamentos, sendo de 1.000.000$00 o custo de tal software;
- houve ainda necessidade de repor toda a informação a nível de stocks, de processamento de salários, de
orçamentos, de contas-correntes de clientes e de fornecedores, o que implicou um gasto de 200 horas de pessoal, ao custo
de 1.500$00/hora.

Citada a ré, veio a mesma contestar, alegando, também em síntese:


- na data em referência, na Rua Afonso Lopes Vieira, em Leiria, uma retroescavadora, pertencente a C,
manobrada por um dos seus trabalhadores, procedia a escavações, sem o devido cuidado, sem ter em consideração a
rede eléctrica subterrânea da ré, perfeitamente sinalizada, pelo que embateu num cabo da rede eléctrica de média tensão
de 15 kwa que liga ao PT RLA, tendo-o cortado;
- tal sinistro ocorreu por culpa do manobrador da máquina, que trabalhava por conta, direcção e no interesse da
sua proprietária, a qual executava escavações por conta e sob a orientação directa e expressa de D, numa obra desta;
- o sinistro provocou alterações de tensão na rede eléctrica e não houve nesta qualquer outro incidente
susceptível de provocar alterações de tensão;
- a instalação da autora e os seus aparelhos eléctricos, se sensíveis a tais alterações de tensão ou sobretensões,
devem estar munidos de aparelhos que limitem ou eliminem essas tensões ou alterações de tensão, o que então não
sucedia.

Realizado o julgamento, exarada decisão acerca da matéria de facto controvertida, foi proferida sentença, na
qual, julgando-se a acção parcialmente procedente, se condenou a ré a pagar à autora a quantia de 2.242.213$00,
acrescida de juros, desde a citação até integral pagamento, bem como aquela que se vier a liquidar em execução de
sentença, com referência ao custo da reposição do software.
Inconformada, apelou a ré B, sem êxito embora, uma vez que o Tribunal da Relação de Coimbra, em acórdão de
12 de Maio de 2002, julgou improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.
Interpôs, então, a mesma B recurso de revista, pugnando pela revogação do acórdão impugnado.

No que concerne à segunda questão em apreço, assente que entre a autora e a ré/recorrente fora celebrado e
estava em vigor, um contrato de fornecimento de energia eléctrica, e que tal contrato, na justa medida em que, por virtude
de uma potente descarga ocorrida na rede eléctrica da segunda, ficou danificado diverso equipamento da primeira, foi
cumprido defeituosa-mente, resta analisar se esse cumprimento defeituoso - e aqui reside o cerne do problema - é ou
não imputável, a título de culpa, à recorrente.

Com efeito, só o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação (ou cumpre de modo imperfeito)
se torna responsável pelos prejuízos que causa ao credor (arts. 798º e 801º, nº 1, do C. Civil).

Portanto, na economia da citada norma, há que averiguar da imputabilidade do incumpri-mento do contrato, na


dicotomia imputável ou não imputável ao devedor, cabendo na segunda modalidade todas as situações em que o
incumprimento (ou cumprimento imperfeito) resulta de facto de terceiro, de circunstância fortuita ou de força maior, da
própria lei ou de facto do próprio credor. Desta forma, rigorosamente, só nos casos de incumprimento imputável ao devedor
da prestação é que este se constitui na obrigação de indemnizar. (4)

Situação que, aliás, se encontra concretamente prevenida para o fornecimento de energia eléctrica pela
respectiva concessionária, no Dec. lei nº 43.335, de 19 de Novembro de 1960,

São estes os parâmetros legais em que assenta a decisão da causa, sem, todavia, se esquecer que, no âmbito
da responsabilidade obrigacional, ao credor/lesado incumbe tão só demonstrar o defeito da prestação (facto ilícito) sendo

195
ao devedor/lesante que cumpre provar que o cumprimento defeituoso não procede de culpa sua, culpa essa que é
apreciada nos termos aplicáveis à responsabilidade civil (art. 799º do C. Civil).

Invoca a recorrente, desde logo, que o sinistro ocorrido nas instalações da autora se ficou a dever a facto culposo
de terceiros (deixaremos para depois a invocação feita quanto à culpa do próprio credor).

Retomando a matéria de facto, na parte relevante, temos assente que:

- no dia 4 de Novembro de 1996, na parte da manhã, ocorreu uma descarga na rede eléctrica da B, em
consequência da qual se verificaram danos em diverso equipamento e material informático da autora;
- a rede eléctrica que abastece a autora encontrava-se em bom estado de conservação;
- no dia 4 de Novembro de 1996, pelas 11,30 horas, uma retroescavadora, propriedade da C e manobrada por um
empregado desta empresa, procedia a escavações na Rua Afonso Lopes Vieira, em Leiria; o manobrador da máquina fazia
as escavações sem ter em consideração a rede eléctrica subterrânea da ré, que estava sinalizada; ao executar as
escavações, o manobrador da máquina embateu no cabo da rede eléctrica de média tensão a 15 Kwa que liga ao PTRLA -
Porto Moniz, tendo cortado um dos fios condutores; a C executava as escavações por conta e sob a direcção directa e
expressa da D; nem o manobrador, nem a proprietária da máquina, nem a D solicitaram à B o mapa da localização das
redes eléctricas subterrâneas da zona;
- o corte de um dos fios condutores do cabo de média tensão da rede eléctrica provocou alterações de tensão
nessa mesma rede; naquele dia e hora, na manhã do dia 4 de Novembro de 1996, não houve outro incidente na rede
eléctrica susceptível de provocar alterações de tensão;
- a rede eléctrica foi implantada de acordo com o projecto aprovado pela fiscalização oficial e devidamente
licenciada; a implantação e estado de conservação da rede eléctrica é verificada por vistoria da Direcção-Geral da Energia
e por brigadas da ré B; a instalação da autora é abastecida através do PTLRA 220 Porto Moniz;

A apreciação da questão ora equacionada conduz-nos, no fundo, a ter que ponderar sobre qual o facto que, em
concreto, causou os danos no equipamento da autora.

Conclui o acórdão recorrido não ser possível (e a prova de que o facto causador dos danos se deveu a terceiro
impenderia sobre a ré B - art. 342º, nº 2, do C. Civil), atenta a matéria de facto assente, considerando as muitas hipóteses
concebíveis para a verificação da descarga eléctrica no Posto de Transformação da recorrente e, sobretudo, a
impossibilidade de determinar se aquela descarga resultou, em concreto, do corte de um dos fios condutores da rede
eléctrica de média tensão, a 15 Kwa, que liga ao PTRLA de Porto Moniz, extrair a ilação de que haja sido a actividade do
manobrador da máquina da C a causa adequada da descarga ocorrida naquele PT.

E bem, a nosso ver.

É que "a causa juridicamente relevante será a causa em abstracto adequada ou apropriada à produção dum dano
segundo as regras da experiência comum ou conhecidas do lesante e que pode ser ainda vista, numa formulação positiva,
como a condição apropriada à produção do efeito segundo um critério de normalidade ou, numa formulação negativa, que
apenas exclui a condição inadequada, pela sua indiferença ou irrelevância, verificando-se então o efeito por força de
circunstâncias excepcionais ou extraordinárias". Por isso, do conceito de causalidade adequada pode extrair-se o corolário
segundo o qual o que é essencial é que o facto seja condição do dano, mas nada obsta a que ele seja apenas uma das
condições (adequadas) desse dano". (5)

O que importa saber, para determinar qual a causa concreta da produção dos danos no equipamento da autora, é
"se a condição, determinada naturalisticamente, foi ou não de todo indiferente para a produção do dano e só se tornou
condição em virtude de outras circunstâncias extraordinárias, sendo portanto inadequada a produzir tal dano". (6)
A única coisa que temos como certa é que a descarga no PT foi determinante da alteração das tensões da
energia fornecida à autora que, por virtude dessas alterações, sofreu os danos no equipamento informático.

Qual a verdadeira causa da descarga eléctrica - não obstante as considerações que se fazem no parecer junto (e
trata-se, apenas de um Parecer Técnico, não vinculativo) - é facto que se não descortina com a probabilidade próxima da
certeza que se exige em qualquer julgamento.

Pode, sem dúvida - é hipótese que se não afasta - ter sido devida unicamente ao corte do cabo subterrâneo
condutor da rede eléctrica de média tensão que liga ao PTRLA de Porto Moniz.
Mas também poderá, como avisadamente se adianta no acórdão recorrido, "conjecturar-se que a descarga
eléctrica que provocou os danos à autora não terá resultado directa e necessariamente do corte do cabo que provocou a

196
alteração da tensão, sendo antes a mesma proveniente da religação do funcionamento da rede eléctrica abastecedora das
instalações da autora ... nada tendo a mesma a ver, possivelmente, e de forma directa, com o incidente ocorrido no cabo
eléctrico, a montante do PT".

E isto não obstante se ter provado que, naquela manhã, não ocorreu qualquer outro incidente na mesma rede,
susceptível de provocar alterações de tensão, que aquela rede foi implantada de acordo com o projecto aprovado pela
fiscalização oficial e devidamente licenciada, que essa implantação (bem como o seu estado de conservação) é verificada
por vistoria da Direcção-Geral da Energia e por brigadas da ré B e que se encontrava em bom estado de conservação. Na
verdade, nem mesmo assim é possível com a necessária segurança estabelecer uma relação de causa e efeito entre o
corte do cabo condutor e a descarga ocorrida no PT.

Consequentemente, em nosso entender, bem se decidiu no acórdão impugnado quando se concluiu não estar
suficientemente demonstrada a existência de facto de terceiro adequado a produzir, directamente, a descarga eléctrica de
que advieram os danos no equipamento da autora (o que não significa que essa relação de causa e efeito não possa ser
provada em acção de regresso, uma vez que, quanto a tal, se não forma caso julgado relativamente às chamadas).
Analisaremos, por último, a invocada imputação dos danos sofridos pela autora a facto culposo dela própria, situação que,
a verificar-se, pode, nos termos do art. 570º do C.Civil, excluir ou reduzir a indemnização.

Retomamos os factos em que há-de assentar a decisão desta questão:

Nem as instalações da autora nem os seus aparelhos informáticos estavam munidos de aparelhos que eliminem
alterações de tensão; as unidades de protecção (que ali existiam) arderam.

Sustenta a recorrente que as UPS (unidades de protecção) se destinam a assegurar o funcionamento do


equipamento durante algum tempo em caso de falta de energia, não constituindo protecções dos equipamentos.
E que, impondo o art. 61º (?) do Dec.lei nº 740/74, para as instalações de consumo, que estas sejam dotadas de
descarregadores de sobretensões, ou seja de dispositivos apropriados à protecção contra sobretensões, protecções que as
instalações da autora não tinham, só a ela se ficaram a dever os danos causados no seu equipamento informático.
O Dec.lei nº 740/74, de 26 de Dezembro, constitui, como do seu preâmbulo se infere, um diploma que
regulamenta as condições das instalações eléctricas com vista à sua aprovação pelas entidades competentes, destinando-
se, conforme o art. 1º, "a fixar as condições técnicas a que devem obedecer os estabelecimentos e a exploração das
instalações eléctricas ... com vista à protecção de pessoas e coisas e à salvaguarda dos interesses colectivos".

É, por isso, um diploma que tende a proteger os utilizadores de instalações, naturalmente consumidores, não
podendo, só por si, fundamentar a exclusão da responsabilidade das entidades fornecedoras de energia eléctrica.

Em todo o caso, o art. 595º do Regulamento de Segurança de Instalações de Utilização de Energia Eléctrica (por
ele aprovado) apenas determina que "sempre que numa instalação possam surgir sobretensões, quer em condições
normais de funcionamento, quer em caso de avaria, deverá a mesma ser dotada de um aparelho que limite ou elimine
essas tensões".
Aparelho esse que, em conformidade com o disposto no art. 33º, se destina a impedir ou limitar os efeitos
perigosos ou prejudiciais da energia eléctrica a que possam estar sujeitas as pessoas, coisas ou instalações.
Tal significa apenas que deverá existir uma adequada protecção contra as sobretensões que advenham de
condições normais de funcionamento das instalações, ocorridas portanto nas próprias instalações, o que, sem dúvida, era
conseguido através das unidades de protecção ali existentes.
Quanto às sobretensões que decorrem de situações externas (inclusive pára-raios), até pela intensidade que
poderão atingir, não é exigida a existência de qualquer protecção específica, tanto mais quanto é certo que se presume que
a empresa que assume a obrigação de fornecer energia eléctrica a distribui, quanto à intensidade da tensão, de acordo
com os parâmetros normais.

Tal entendimento revela-se, aliás, no espírito da própria Lei nº 23/96, de 26 de Junho, que considerou a
preocupação de protecção do pequeno e médio consumidor de baixa tensão, o consumidor final, pela pressuposição
natural de falta de meios técnicos para controlar os fornecimentos (e a tensão) de energia efectuados. (7)
Parece, assim, que se justifica plenamente, também nesta parte, a decisão recorrida, já que não está
minimamente demonstrado que o evento, bem como os danos dele resultantes, se ficaram a dever a conduta censurável da
autora.

Por todo o exposto, decide-se:

197
a) - julgar improcedente o recurso de revista interposto pela ré B;
b) - confirmar inteiramente o acórdão recorrido.
c) - condenar a recorrente nas custas da revista.

Lisboa, 22 de Maio de 2003


Araújo Barros Oliveira Barros Salvador da Costa
------------------------
(1) - Miguel Teixeira de Sousa, in "Estudos sobre o Novo Processo Civil", 2ª edição, Lisboa, 1997, pag. 179.
(2) - Acs. STJ de 05/07/90, no Proc. 79434 da 2ª secção (relator Ricardo da Velha); de 08/11/95, no Proc. 87509
da 1ª Secção (relator Lopes Pinto); de 30/10/96, no Proc. 155/96 da 2ª Secção (relator Mário Cancela); e de 14/04/99, no
Proc. 167/99 da 2ª Secção (relator Noronha Nascimento).
(3) - Salvador da Costa, in "Os Incidentes da Instância", 2ª edição, Coimbra, 1999, pag. 121. Cfr. Ac. STJ de
05/02/2002, no Proc. 3869/01 da 1ª Secção (relator Garcia Marques).
(4) - Cfr. Antunes Varela, in "Das Obrigações em Geral", vol. II, 4ª edição, Coimbra, 1990, pags. 60 e 61.
(5) - Ac. STJ de 12/10/99, no Proc. 534/99 da 1ª secção (relator Ferreira Ramos). No mesmo sentido o Ac. STJ de
24/04/99, no Proc. 188/99 da 1ª secção (relator Aragão Seia).
(6) - Ac. STJ de 28/10/99, no Proc. 812/99, da 2ª secção (relator Ferreira de Almeida).
(7) - Cfr. Ac. STJ de 06/01/2000, no Proc. 738/99 da 2ª secção (relator Lúcio Teixeira).

INSTALAÇÃO DE POSTES DE TRANSPORTE DE ENERGIA ELÉCTRICA

- Servidão administrativa
- Danos não patrimoniais
- Direito a ambiente sadio e ecologicamente equilibrado
- Enriquecimento sem causa e responsabilidade civil

Ac. de 31 de Março de 2004, na Col. Jur. 2004-I-151

I - O direito de servidão - direito da concessionária fazer atravessar no prédio do particular linha de transporte de
energia eléctrica aérea e montar no mesmo os necessários apoios -, não obstante não carecer da autorização do
proprietário do prédio serviente, está condicionado, em termos de eficácia de imposição, à obtenção de licença de
estabelecimento.
II - Se da exposição ao campo electromagnético das linhas eléctricas resultarem efeitos nocivos sobre a saúde, o
bem-estar e a tranquilidade das pessoas expostas ou violação do seu direito subjectivo a ambiente de vida sadio e
ecologicamente equilibrado, a concessionária está obrigada a indemnizar por danos não patrimoniais e pode ordenar-se
alteração do trajecto ou remoção das linhas.
III - Embora tenha praticado facto ilícito ao instalar duas linhas de transporte de electricidade e respectivo poste
de apoio no prédio dos RR., sem autorização deles, antes de obtido o licenciamento de cada uma das duas linhas e
enquanto o não obteve, a A. não incorreu em responsabilidade civil e consequente obrigação de indemnizar, nos termos
dos arts. 483º e segs. e 562º e segs. do CC, por inexistência de dano.
IV – Mas porque enriqueceu à custa dos RR., deixando de pagar a utilização que fez do imóvel a estes
pertencente, deve a A. a indemnização que se liquidar em execução de sentença, nos termos do art. 473º, nº 1, do CC,
independentemente da qualificação jurídica dos factos alegados e provados como responsabilidade delitual ou
enriquecimento sem causa (art. 664º do CPC).

RESPONSABILIDADE PELO RISCO

- Dano derivado de condução de electricidade


- Força maior
- Aves selvagens protegidas

Ac. de 13 de Julho de 2004, na Col. Jur. (STJ) 2004-II-155

I - São sindicáveis pelo Supremo as presunções judiciais usadas pelas instâncias a partir de factos
desconhecidos ou para contrariar respostas restritivas, negativas ou tidas como não escritas.
II - Não é devida a causa de força maior a descarga eléctrica provocada por cegonhas que, com aceitação da
operadora, tinham ninho no posto de transformação onde se deu aquela descarga.

198
III - A prevenção de incidentes deste tipo cabe na permissão que a lei dá, excepcionalmente, para o abate de
aves selvagens protegidas.

RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL

- Danos decorrentes de actividades perigosas


- Condução e entrega da energia eléctrica

Ac. STJ (Cons.º Ribeiro de Almeida) 25.3.2004, na Col. Jur. (STJ) 2004-149:

I - Na actividade de condução e entrega de energia eléctrica, o facto de terem sido cumpridas as regras em vigor
e tudo estar em perfeito estado de conservação, não isenta a respectiva entidade responsável pela sua exploração de
responsabilidade objectiva, no caso de terem resultado danos para terceiros dessa actividade, a menos que se prove a
culpa da vítima na produção desses danos.
II - Porém, provando-se que a instalação do condutor da energia eléctrica não estava de acordo com as regras de
distância fixadas pelo Regulamento de Segurança de Linhas de Alta Tensão, tal faz, desde logo, presumir a culpa da
entidade responsável por essa inobservância e bem assim ainda o nexo de causalidade entre essa inobser vância e os
danos que tenham sido provocados devido a essa actividade.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


Na 8ª Vara Cível do Porto, Paulo Ferreira intentou acção declarativa de condenação contra EN Electricidade do
Norte SA pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de 13.053.500$00 acrescida de juros de mora à taxa legal
desde a citação.
Alega que no dia 22 de Novembro de 1995, cerca das 14 horas e 30 minutos, no prédio sito à Estrada Exterior da
Circunvalação, 8136, Porto, quando se encontrava a trabalhar na varanda do apartamento do 42 andar, foi vítima de um
acidente de electrocussão. Devido ao tempo húmido que se fazia sentir, à proximidade dos cabos condutores da corrente e
à tensão nominal conduzida pelas linhas 60.000 volts - gerou-se um arco eléctrico, tendo o Autor sido passado por uma
descarga eléctrica que lhe causou danos, alguns dos quais jamais recuperará. No caso concreto, para uma tensão nominal
de 60.000 volts, a distância das linhas nunca poderia ser inferior a 7 metros e 50 centímetros do edifício. O Autor sofreu
várias lesões e sequelas em consequência da descarga eléctrica sofrida, computando no montante peticionado a totalidade
dos danos patrimoniais e não patrimoniais por si sofridos.
….
O Artigo 493º nº 2 do Código Civil estabelece presunção de culpa ao estabelecer que quem causar dano a outrem
no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto
se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir.
Os actos ordenados com vista à realização de determinado fim consubstanciam o exercício de uma actividade.
Quem exerce actividades perigosas que derivam da natureza dessa mesma actividade é obrigado e reparar o
dano daí decorrente.
A elisão da presunção de culpa faz-se pela prova de que foram tomadas as medidas idóneas para evitar o dano
dela resultante, medidas essas ditadas pelas normas técnicas, aferidas pela diligência de um homem médio. Consagra-se
assim a tese da culpa em abstracto.
A presunção de culpa só é ilidida se quem tem a direcção efectiva dessa actividade provar que tomou todas as
providências que, segundo a experiência são adequadas a evitar o perigo.

Assim, para efeito da inversão do ónus da prova consagrada no Artigo 493º do Código Civil, a perigosidade da
actividade deve existir no exercício desta, considerada em abstracto, não se atendendo por isso à inexperiência de quem a
exerce.

A par da responsabilidade subjectiva consagra a lei a responsabilidade objectiva ou pelo risco, obrigando a
indemnizar independentemente da culpa, embora excepcionalmente.

Estatui o artigo 509º do Código Civil que:


1. Aquele que tiver a direcção efectiva de instalação destinada a condução ou entrega da energia eléctrica ou do
gás, e utilizar essa instalação no seu interesse, responde tanto pelo prejuízo que derive da condução ou entrega da
electricidade ou do gás, como pelos resultantes da própria instalação, excepto se ao tempo do acidente esta estiver de
acordo com as regras técnicas em vigor e em perfeito estado de conservação.
2. Não obrigam a reparação os danos devidos a causa de força maior; considera-se de força maior toda a causa
exterior independente do funcionamento e utilização da coisa".

199
Assim a responsabilidade objectiva é estabelecida para a hipótese da responsabilidade resultante da
instalação da energia eléctrica e para a responsabilidade resultante da condução e entrega da energia eléctrica.
Na instalação só não existe responsabilidade se ela estiver de acordo com as regras técnicas em vigor e em
bom estado de conservação. Na condução e entrega de energia eléctrica só inexiste essa responsabilidade no caso de
força maior.
No caso da condução e entrega o facto de terem sido cumpridas as regras técnicas em vigor e tudo estar em
perfeito estado de conservação, tal não isenta de responsabilidade objectiva a entidade responsável pela condução e
entrega de energia. Tal isenção só aproveitaria se os danos fossem originados na instalação da energia e não já na sua
condução e entrega, como foi o caso.
Acrescenta-se que no caso dos autos a instalação do condutor da energia eléctrica não estava de acordo com o
Regulamento de Segurança de Linhas de Alta Tensão que determinava que, por aplicação de fórmula de cálculo de
distância da linha ao edifício fosse de 4 metros e a mesma encontrava-se a 2,60 metros.
A não observância de leis ou regulamentos faz presumir a culpa do autor dessa inobservância e o nexo de
causalidade entre essa inobservância e os danos que se lhe liguem e a cuja produção as leis e os regulamentos visam
obstar. Por outro lado a recorrente não alegou, e por isso não podia ter provado, que empregou todas as providências
exigidas pelas circunstâncias para prevenir o dano. A sua culpa presume-se nos termos do Artigo 493º nº 2 do Código Civil.
Não basta que o autor da actividade perigosa tenha observado as cautelas que o Regulamento impõe sendo
ainda indispensável, para afastar a sua responsabilidade, que tenha adoptado as demais providências exigidas pelas
circunstâncias com o fim de prevenir os danos.
A finalidade do Artigo 493º, nº 2, é ditada pela conveniência de estabelecer um regime particularmente severo
para a responsabilidade civil resultante de actividades perigosas (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral 2ª ed. pág.
419 e 420);
Para além da culpa presumida existe ainda culpa efectiva por parte da recorrente, que tendo conhecimento desde
1/9/95 que a linha estava a 2,60 metros de distância da varanda do 4º andar mandou executar um projecto de modificação
da linha no dia 5 seguinte e só concluiu a obra em 27/12/95 um mês depois de ter ocorrido o acidente.

RESPONSABILIDADE CIVIL
- Vertente negativa da causalidade adequada
- Incêndio florestal
- Linhas de energia eléctrica de alta tensão

Ac. de 4 de Novembro de 2004, na Col. Jur. (STJ) 2004-III-108:

I – Para a vertente negativa da causalidade adequada, o facto - condição só não deve ser considerado causa
adequada do dano quando se mostra, pela sua natureza, de todo inadequado e o haja produ zido apenas por ocorrência de
circunstâncias anómalas ou excepcionais.
II - A empresa de distribuição de energia eléctrica de alta tensão que permitiu o crescimento de árvores debaixo
das linhas transportadoras, tendo ocorrido um incêndio florestal que, por força do calor debaixo dessas linhas, acabou por
torcer e fazer explodir um poste de alta tensão, provocando grande explosão e uma bola de fogo que, através da linha
telefónica, propagou o incêndio à casa dos AA. sita nas proximidades, é responsável, com culpa, pela indemnização que
lhes é devida.

Acórdão STJ (Cons.º Araújo Barros) de 05/08/2003, P.º 03B1021 :

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A" e mulher B, por si e como representantes legais da sua filha C, intentaram, no Tribunal Judicial da comarca de
Braga, acção declarativa, com processo ordinário, contra D, peticionando a condenação desta a pagar-lhes a quantia de
14.374.786$00 e o que vier a ser liquidado em execução de sentença quanto aos danos futuros a apurar, em consequência
do rebentamento de uma garrafa de gás fornecida pela ré em execução de contrato que haviam celebrado.

Contestou a ré, aceitando a celebração do contrato de fornecimento de gás, mas alegando que o mesmo foi por si
cumprido, sendo os autores que não observaram os deveres contratuais, pois sabiam que a garrafa não poderia ser
colocada na garagem.

200
Exarado despacho saneador, condensados e instruídos os autos, procedeu-se a julgamento, com decisão acerca
da matéria de facto controvertida, vindo, depois, a ser proferida sentença que julgou improcedente a acção, absolvendo as
rés dos pedidos.

Inconformados, apelaram os autores, tendo, na sequência, o Tribunal da Relação de Guimarães, em 27 de


Novembro de 2002, proferido acórdão em que, embora com um voto de vencido, concedeu provimento parcial ao recurso,
revogando a sentença recorrida e condenando a ré D a pagar aos autores a quantia global de 19.463,94 Euros.

Foi agora a vez de, quer os autores, quer a ré D, interporem recurso de revista.
Pretendem os primeiros que seja julgada a acção procedente, por provada, condenando-se a ré a pagar-lhes as
quantias de 32.713,00 Euros e 39.903,81 Euros, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais por
eles sofridos.
Sustenta a segunda que, revogando-se o acórdão recorrido na parte em que condenou a recorrente com base no
risco, deve manter-se integralmente a sentença de 1ª instância.

Retomaremos, antes de mais, a matéria de facto que releva para a resolução da primeira questão equacionada.

- a ré e os autores celebraram contrato de fornecimento de gás propano, em cujo âmbito a ré se obrigou,
mediante pagamento do respectivo preço, a colocar na residência dos autores A e mulher as necessárias garrafas com
esse produto, para fins domésticos, contrato de que sempre resultou claro e inequívoco que a segurança das ditas garrafas
e o seu funcionamento era da inteira responsabilidade da ré, a quem incumbia zelar e responder pela segurança, enquanto
o cliente autor se obrigava a cumprir as normas de segurança dele constantes;

- no dia 26 de Outubro de 1998, a ré entregou aos autores A e mulher uma dessas botijas de gás, tendo sido
colocada pelos funcionários daquela na garagem da residência destes;

- foi a empregada doméstica dos autores quem solicitou ao empregado da ré que colocasse a garrafa na garagem
e este fê-lo na convicção de que aquela ou os seus patrões a colocariam, o mais rapidamente possível, no depósito
adequado;

- passados dois dias, essa garrafa de gás explodiu, causando diversos danos na garagem e em bens nela
existentes.

Cumpre, antes de mais, adiantar que, a nosso ver, o acórdão recorrido, subsumindo os factos provados ao regime
da responsabilidade civil extracontratual, não fez a mais correcta interpretação e aplicação do direito, quer no concreto,
quer no domínio dos respectivos princípios gerais.

Na verdade, é bem claro que entre a ré e os autores foi celebrado um contrato duradouro, pelo qual aquela se
obrigou, mediante pagamento do respectivo preço, a fornecer e colocar as garrafas de gás propano, que comercializava,
para os usos domésticos destes. Tal contrato, vulgarmente designado como contrato de fornecimento, livremente acordado
quanto ao seu objecto e cláusulas (art. 405º, nº 1, do C. Civil (1)) assume a natureza jurídica de um verdadeiro contrato de
compra e venda (2) ou, no mínimo, é disciplinado pelas disposições que o regulam, atento o disposto no art. 939º do C.
Civil.

Daí que ao seu cumprimento, defeituoso ou não, bem como ao incumprimento, se devam aplicar as normas do
contrato de compra e venda (in casu da compra e venda defeituosa) designadamente o preceito do art. 918º - dado
estarmos perante o fornecimento de coisa indeterminada de certo género - e, por força dele, "as regras relativas ao não
cumprimento das obrigações".

Refere, neste particular, o art. 798º que "o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se
responsável pelo prejuízo que causa ao credor". Não obstante esta referência explícita ao incumprimento, não pode deixar
de se ter como princípio básico "o de que o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação se torna
responsável pelos prejuízos ocasionados ao credor. Isto quer se trate de não cumprimento definitivo, quer de simples mora
ou de cumprimento defeituoso (arts. 798º, 799º, 801º e 804º)". (3)
Consequentemente, também no caso de mau cumprimento ou cumprimento imperfeito, é aplicável o princípio de
que o devedor que, por culpa sua, cumpre defeituosamente se constitui na obrigação de indemnizar o credor da prestação
devida.

201
Assim, nestas situações, a obrigação de indemnizar reveste natureza claramente contratual ou obrigacional,
porquanto, subordinada embora aos pressupostos comuns a todas as formas de responsabilidade - acto ilícito, culpa, dano
e nexo de causalidade entre o facto e o dano - ela resulta da violação de um direito de crédito ou obrigação em sentido
técnico (ou de um contrato). Ao contrário do que acontece com a responsabilidade extracontratual, que é fonte autónoma
da obrigação de indemnizar, a responsabilidade contratual é apenas condição modificativa da obrigação de prestar em
obrigação de indemnizar - mas a obrigação é a mesma.

É certo que, in casu, se constata que a pretensão indemnizatória dos autores se compagina com danos
causados, não na própria coisa fornecida, mas para além dela própria (na garagem e nos objectos que aí se encontravam).

Ora, nesta situação parecerá ocorrer uma dupla espécie de responsabilidade: de um lado, relativamente aos
danos sofridos pelo lesado em função dos defeitos da coisa em si (de natureza tipicamente contratual); de outro, com
respeito aos danos causados para além dessa coisa, quer no património quer na saúde do credor ou de terceiro
(responsabilidade que decorre da aplicação do princípio geral do art. 483º, nº 1). Embora, não o esqueçamos, a pretensão
indemnizatória seja apenas uma, de ressarcimento dos prejuízos sofridos.

Há quem, defendendo a chamada teoria do cúmulo das diferentes espécies de responsabilidade, considere que,
enquanto na responsabilidade pelos prejuízos situados no defeito da coisa se está perante responsabilidade contratual, já
em relação aos danos ocorridos para além da coisa fornecida, se verifica responsabilidade aquiliana, decorrente de facto
ilícito, nesta medida extracontratual, já que os danos se não situam no âmbito ou perímetro do contrato, estando para além
do interesse do cumprimento. (4)

Não se nos afigura sustentável, tout court, tal opinião.

Antes nos parece, já que essencialmente a pretensão indemnizatória é apenas uma, incindível na sua
fundamentação e configuração, que deve ela fundar-se numa única espécie de responsabilidade: é a opinião dos que
defendem o sistema do não cúmulo de responsabilidades.

Neste pressuposto, na esteira de Vaz Serra (5), já se considerou que, em tais casos, gozará o credor da
faculdade de optar pelo tipo de responsabilidade que mais lhe convier (naturalmente a responsabilidade contratual que, por
princípio - no mínimo quanto à prescrição e quanto à prova da culpa - lhe é mais favorável). (6)

Cremos, todavia, mais adequado considerar aplicáveis, ainda dentro do sistema do não cúmulo de
responsabilidades, também quanto aos danos causados para além da própria coisa defeituosa, desde que produzidos na
esfera jurídica do credor/comprador, as regras atinentes ao cumprimento defeituoso das obrigações. (7)
Desde logo, na verdade, o nexo que liga o direito à indemnização por todos os danos advindos do cumprimento
defeituoso da obrigação e o direito da vendedora ao recebimento do preço, "é o nexo sinalagmático próprio dos contrato
bilaterais. Nexo que, em princípio, tanto une as prestações fundamentais emergentes da celebração do contrato (sinalagma
genético) como abarca as prestações da mesma natureza provenientes do desenvolvimento da relação contratual
(sinalagma funcional)". (8)

Por isso, "nas hipóteses de concurso das duas variantes da responsabilidade civil, há-de convir-se que qualquer
delas, a funcionar isoladamente, esgotaria a protecção que a ordem jurídica pretende dispensar a casos desse tipo. A
integração de tais hipóteses num ou noutro esquema - e que equivale à correspondente qualificação como ilícito contratual
ou extracontratual - depende, portanto, da perspectiva geral que preside à regulamentação do direito das obrigações.
Ora, neste âmbito, impera, como não se ignora, o princípio da autonomia privada, segundo o qual compete às
partes fixarem a disciplina que deve reger as suas relações, com ressalva dos preceitos imperativos. Assim, parece que,
perante uma situação concreta, sendo aplicáveis paralelamente as duas espécies de responsabilidade civil, de harmonia
com o assinalado princípio, o facto tenha, em primeira linha, de considerar-se ilícito contratual. Sintetizando: de um prisma
dogmático, o regime da responsabilidade contratual consome o da extracontratual. Nisto se traduz o princípio da
consumpção". (9)

Ademais, não pode olvidar-se que "sobre o vendedor impendem determinados deveres de protecção, de origem
não negocial (mas abrangidos, sem dúvida, pela cláusula da boa fé que deve presidir à celebração e execução dos
contratos - arts. 227º, nº 1 e 762º, nº 2) destinados a proteger o património ou a saúde do comprador na medida em que
possam ser afectados pelo contrato, e por cuja violação o vendedor responde nos moldes da responsabilidade contratual".
(10)

202
Deste modo, atento o exposto (e optando pelo sistema do não cúmulo e, dentro deste, pelo princípio da
consumpção), cremos que, quanto aos danos causados, quer na garagem em que se encontrava a botija de gás que
explodiu, quer nos objectos que aí estavam, a responsabilidade da ré, a existir, será, toda ela, de natureza contratual (em
derradeira análise porque esta consome a eventual responsabilidade extracontratual paralela). (11)

É claro que, ainda no que toca à responsabilidade contratual, a obrigação de indemnizar só ocorre desde que
verificados os respectivos pressupostos, dos quais o primeiro é precisamente o incumprimento ou cumprimento defeituoso
da obrigação (facto objectivamente ilícito).

E se relativamente à falta de cumprimento se pode considerar demonstrado tal facto pela simples alegação (já
que, em direito, o pagamento se não presume), já quanto ao cumprimento inexacto ou defeituoso, na medida em que existe
cumprimento, será sempre ao credor que incumbe provar o defeito da prestação, por norma, adimplente. (12)

Sendo, como bem refere Calvão da Silva (13) "à luz do destino da coisa fixado pelas partes ou, na sua falta ou
insuficiência, à luz do uso corrente ou função normal das coisas da mesma categoria, que o tribunal apreciará da existência
da defeituosidade, de vício que desvaloriza a coisa ou impede a realização do fim a que se destina e de falta de qualidades
asseguradas ou necessárias para a realização do fim esperado".

Aliás, no domínio da compra e venda, o art. 913º, referenciando quatro tipos de vícios da coisa (vício que a
desvaloriza; que impede a realização do fim a que é destinada; que a coisa não tenha as qualidades asseguradas pelo
vendedor; que não tenha as qualidades necessárias para a realização do fim a que se destina), pretendeu uma
equiparação entre os vícios e a falta de qualidades da coisa, embora o legislador não haja tomado posição quanto à
natureza objectiva ou subjectiva do defeito, qualificando-o, sobretudo, à luz da desconformidade com o interesse
(pactuado) do comprador.

Ora, parece evidente que uma garrafa cheia de gás, de mais a mais com a perigosidade de que se reveste, não
satisfaz o interesse do credor - utilizá-lo para fins domésticos - desde o momento em que explode. Assim, o defeito
encontra-se claramente demonstrado pelo simples facto de ser haver provado que a garrafa explodiu.

E isto sem que se haja, em contrapartida, provado qualquer facto exterior à própria coisa (não é adequado a
produzir a explosão o simples facto de a botija de gás se encontrar na garagem em vez de estar no depósito habitual, nem
é justificativo dessa explosão o facto de se encontrarem na garagem três automóveis e lenha seca) que haja causado ou
contribuído para a explosão verificada.

Termos em que é de concluir que o ter-se provado que a garrafa de gás explodiu (sendo certo, aliás, que a ré se
encarregou da segurança das garrafas fornecidas, bem como do seu funcionamento) é suficiente para se considerar que os
autores provaram o defeito da prestação efectuada pela ré.

Doutro passo, e como na responsabilidade contratual se presume a culpa do devedor (art. 799º, nº 1), seria à ré,
se quisesse exonerar-se da obrigação de indemnizar, que incumbiria demonstrar que a explosão não ficou a dever-se a
culpa sua.

O que, em nosso entendimento, não fez. Em contrário, estando encarregada da segurança e funcionamento das
garrafas e gás fornecidos, não impediu que a garrafa entregue ficasse depositada na garagem dos autores (embora tal
facto, por si só, não possa justificar a explosão) em vez de a ter colocado no depósito que, para o efeito, existia no quintal
daqueles. E não afasta essa culpa presumida, nem a diminui, o mero facto de ter sido a empregada dos autores que
indicou ao empregado da ré que colocasse a garrafa na garagem, uma vez que, a entender-se que havia nessa situação
qualquer insegurança ou perigo, aquele empregado (agindo por conta da ré, em condições de se considerar a sua actuação
como adoptada por ela própria - art. 800º, nº 1) não deveria ter seguido a sugestão da referida empregada, colocando a
garrafa no local que lhe estava destinado.

Desta forma, não demonstrada a ausência de culpa da ré, provados os demais requisitos de que depende a
obrigação de indemnizar, não restam dúvidas de que está aquela ré constituída na obrigação de indemnizar os autores
pelos danos causados pela explosão da garrafa de gás por ela fornecida.

Por último, mais como reforço da posição assumida, cumpre referir que, não se tendo provado que a explosão se
ficou a dever a culpa dos autores ou a facto de terceiro, sempre a ré se constituiria na obrigação de indemnizar,
independentemente de culpa, nos termos do art. 12º, nº s 1 e 4, da Lei nº 24/96, de 31 de Julho.

203
É que, considerado consumidor "todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos
quaisquer direitos, destinados a uso não profissional por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade
económica que vise a obtenção de benefícios" (art. 2º, nº 1, do citado diploma), teremos que configurar a relação contratual
estabelecida como contrato de consumo, no âmbito do qual o consumidor tem direito, além do mais, à qualidade dos bens
e serviços e à prevenção e reparação dos danos patrimoniais ou não patrimoniais que resultem da ofensa de interesses ou
direitos individuais, homogéneos, colectivos ou difusos (art. 3º, als. a) e f) da mesma Lei).

Gozando, nos termos do acima citado art. 12º, caso lhe seja fornecida a coisa com defeito, salvo se dele tivesse
sido previamente informado e esclarecido antes da celebração do contrato, do direito de exigir, independentemente de
culpa do fornecedor do bem, a reparação da coisa, a sua substituição, a redução do preço ou a redução do contrato (nº 1),
e tendo, em todo o caso, "direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de
bens ou prestações de serviços defeituosos" (nº 4).

Também por este motivo se justificaria a obrigação de indemnizar os autores.

Atentemos, agora, no quantum indemnizatur.

A obrigação de indemnizar, pautada pelo princípio da restauração natural, tende a repor a situação que existiria
se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (art. 562º).

Sendo certo que o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado - danos emergentes - como os
benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão - lucros cessantes (art. 564º, nº 1), e também os danos
de natureza não patrimonial que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (art. 496º, nº 1). (14)

Demonstrado ficou - nem sequer está posto em causa - que os autores sofreram danos patrimoniais no valor de
32.713,00 Euros correspondentes a 6.558.371$00).

Sustentam, no entanto, estes que os danos não patrimoniais deverão ser compensados com, pelo menos, a
atribuição da indemnização de 14.963,93 Euros para cada um dos pais e de 9.975,95 Euros para a filha.

Todavia, e quanto a nós, afigura-se perfeitamente adequada a indemnização fixada no acórdão recorrido (de
1.500 Euros para cada um dos autores).

Na verdade, fazendo apelo à equidade (e note-se que o disposto no art. 494º não é aplicável no âmbito da
responsabilidade contratual (15)), e considerando que os meros incómodos ou arrelias não são passíveis de indemnização
(16), parece-nos perfeitamente justa e equilibrada a compensação de 1.500 Euros atribuída a cada um dos autores.

Tudo o mais pretendido seria manifesto exagero, inaceitável pelo padrão de que, o recurso à equidade deve
traduzir o que, no caso concreto, é justo, ou mais justo.

Por último, dir-se-á que não ocorre, no caso sub judice, qualquer limitação ao montante indemnizatório, já que,
por um lado, sendo a responsabilidade contratual e assente na culpa da ré, nunca seria aplicável o disposto no art. 510º, nº
1 (o qual, aliás, conjugado com o art. 509º, apenas se refere a danos causados por instalações de gás, situação que
manifestamente aqui não ocorre).

Consequentemente, os montantes das indemnizações a pagar serão os correspondentes a todos os danos que
resultaram da explosão da garrafa de gás, ou seja, 32.713,00 Euros quanto aos danos patrimoniais e 1.500 Euros a cada
um dos autores, a título de danos não patrimoniais.

E não pode invocar-se, como pretendem os recorrentes, que se a botija de gás estivesse no depósito adequado,
os prejuízos não seriam os que se verificaram. Antes de mais, já acima consideramos não ter havido conduta culposa dos
autores (nem mesmo das Normas de Segurança anexas ao contrato de fornecimento, que os autores se comprometeram a
cumprir, consta a obrigação de colocarem as garrafas de gás no depósito existente). E, por outro lado, encontramo-nos no
domínio da responsabilidade contratual em que à devedora que cumpriu defeituosamente não é lícito invocar a relevância
de causa virtual.

Por todo o exposto, decide-se:

a) - julgar improcedente o recurso de revista interposto pela ré D;

204
b) - julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelos autores A e mulher B, e filha C;
c) - alterar o acórdão recorrido, apenas na parte em que fixou o montante indemnizatório devido, a título de danos
patrimoniais, condenando a ré a pagar aos autores A e mulher B, a esse título, a quantia de 32.713,00 Euros
(correspondente a 6.558.371$00);
d) - manter, no demais, o acórdão recorrido, designadamente na parte em que fixou os montantes a pagar
relativamente aos danos não patrimoniais (1.500,00 Euros - correspondente a 300.000$00 - a cada um dos autores);
e) - condenar a recorrente D nas custas da revista que interpôs, bem como a suportar, na proporção do ora
decidido, as custas devidas nas instâncias;
f) - condenar os recorrentes autores nas custas da revista que interpuseram, na medida do respectivo
decaimento, bem como também, na mesma medida, a suportarem as devidas nas instâncias.

Lisboa, 8 de Maio de 2003


Araújo Barros Oliveira Barros Salvador da Costa
________
(1) - A que pertencem todas as disposições adiante citadas sem outra indicação.
(2) - Cfr. Ac. STJ de 19/11/98, no Proc. 797/98 da 2ª secção (relator Ferreira de Almeida).
(3) - Almeida Costa, in "Direito das Obrigações", 5ª edição, Coimbra, 1991, pág. 884.
(4) - Neste sentido, Menezes Cordeiro, "Cumprimento Imperfeito do Contrato de Compra e Venda", Parecer in CJ
Ano XII, 4, pág. 44; assim como "Violação Positiva do Contrato", in Estudos de Direito Civil, vol. I, Coimbra, 1987, pág. 134;
e Pedro Martinez, in "Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada", Coimbra, 1994, pág.
288.
(5) - "Responsabilidade Contratual e Responsabilidade Extracontatual", in BMJ nº 85, págs. 208 e seguintes.
(6) - Acs. STJ de 09/12/92, no Proc. 81787 da 1ª secção (relator Santos Monteiro); e de 25/03/99, no Proc.
114/98 da 2ª secção (relator Quirino Soares).
(7) - Ac. STJ de 22/04/86, in BMJ nº 356, pág. 349 (relator Moreira da Silva). Curiosamente reporta-se este
acórdão a uma situação em que ocorreram danos em consequência da explosão de uma bilha de gás, considerando existir
responsabilidade contratual quanto aos danos causados no património do credor e responsabilidade extracontratual, como
não podia deixar de ser, relativamente aos danos causados no património dos vizinhos deste.
(8) - Antunes Varela, "Cumprimento Imperfeito do Contrato de Compra e Venda", Parecer in CJ Ano XII, 4, pág.
31;
(9) - "Direito das Obrigações", 5ª edição, Coimbra, 1991, págs. 440 e 441.
(10) - Opinião de Claus-Wilhelm Canaris, citado por Carneiro da Frada in "Perturbações Típicas do Contrato de
Compra e Venda", in Direito das Obrigações sob a orientação de Menezes Cordeiro, vol. 3º, Lisboa, 1991, pág. 82. Cfr., ao
que parece com igual entendimento, Almeida Costa, ob. cit. pág. 441.
(11) - Posição aliás sustentada, além de outros, nos Acs. STJ de 19/03/85, in BMJ nº 345, pág. 405 (relator
Joaquim Figueiredo); de 08/02/94, in CJSTJ Ano II, 1, pág. 95 (relator Fernando Fabião); de 26/05/98, no Proc. 558/98 da
1ª secção (relator Torres Paulo); e de 26/01/99, no Proc. 974/98 da 1ª secção (relator Pinto Monteiro).
(12) - Acs. STJ de 05/11/98, no Proc. 865/98 da 1ª secção (relator Pinto Monteiro); e de 26/01/99, no Proc.
1976/98 da 1ª secção (relator Ferreira Ramos); e de 23/11/2000, no Proc. 3014/00 da 7ª secção (relator Dionísio Correia).
(13) - "Compra e Venda de Coisas Defeituosas", Coimbra, 2001, pág. 43; citando o ilustre jurista, ver Ac. STJ de
23/05/2002, no Proc. 1445/02 da 7ª secção (relator Dionísio Correia).
(14) - Não sofre contestação, hoje em dia, o entendimento de que os danos não patrimoniais são devidos
também nos casos de responsabilidade civil contratual (a titulo de exemplo, Acs. STJ de 27/01/93, in BMJ nº 423, pág. 494
- relator Raúl Mateus; e de 12/11/96, no Proc. 163/96 da 1ª secção (relator Pais de Sousa).
(15) - Antunes Varela, in "Das Obrigações em Geral", vol. II, 4ª edição, Coimbra, 1990, pág. 102.
(16) - Ac. STJ de 19/09/2002, no Proc. 1968/02 da 2ª. secção (relator Joaquim de Matos).

FORNECIMENTO DE ENERGIA
RESPONSABILIDADE PELO RISCO

Ac. do STJ (Cons.º Custódio Montes) 07B2521, de 20/09/2007:


1. Só nos casos de sobretensão normal é que a lei impõe ao consumidor que tenha a sua instalação eléctrica
dotada de aparelho que limite ou elimine as sobretensões que possam ocorrer.
2. Porque o fornecimento da energia eléctrica ao consumidor não pode ser feita em sobretensões anormais, a CC
é responsável pelo risco pelos danos causados quando as mesmas se verificarem.

Vem demonstrado que “em consequência de uma sobretensão eléctrica na rede da CC de abastecimento de
energia eléctrica às instalações da autora, ocorrida em Fevereiro de 2001, foram queimados os equipamentos eléctricos
descritos nas respostas aos quesitos 76.º e 77.º”(1).

205
Em consequência dessa avaria, verificou-se que “o descarregador de sobretensões do PT se encontrava
danificado” (2).
Daqui deriva que a mencionada sobretensão foi anormal ou, pelo menos, não resulta que a mesma tenha sido
uma sobretensão normal.
Só nos casos em que haja uma sobretensão normal (3), é que a lei impõe ao consumidor que tenha a sua
instalação dotada de um aparelho que limite ou elimine as sobretensões que possam surgir.
O fornecimento de energia ao consumidor não pode sê-lo em sobretensões anormais.
Acresce que no caso dos autos não vem demonstrado que as instalações da A. não estavam dotadas de aparelho
de protecção de tensões; apenas vem demonstrado o facto emergente da resposta ao n.º 73.º da BI“(4) que mais não é do
que o dispõe a lei no citado art. 595.º.

Não se verifica, pois, culpa da lesada na verificação dos danos.

Ora, não havendo culpa da lesada e verificando-se que os danos foram causados pela entrega da electricidade à
A. em sobretensão anormal, a CC responde pelo risco, no comando do disposto no art. 509.º, 1 do CC“ (5). “(6).
Isso apenas não acontece se “os danos forem devidos a causa de força maior” (7).
Causa de força maior é toda a “causa exterior independente do funcionamento e utilização da coisa”(8)..
O facto alegado como integrante de causa de força maior foi a queda de uma árvore.
Mas, como se diz nas instâncias, a queda da árvore causou a interrupção do fornecimento da energia eléctrica,
não sendo essa interrupção a razão dos danos ocasionados à A.
Por outro lado, mesmo que os danos tivessem sido causados pela queda da árvore, não vem demonstrado, como
cabia à A. demonstrar (9). que a mesma se encontrava para além dos 15 metros da rede eléctrica e fora da sua área de
protecção (10).

Com estes acrescentos, que nem seriam necessários à bem fundada decisão recorrida (11), para cujos demais
fundamentos se remete, improcede o recurso.
….
Lisboa, 20 Setembro 2007

Custódio Montes (relator) Mota Miranda Alberto Sobrinho

Responsabilidade objectiva do produtor de energia eléctrica e nuclear - pág. 608 e


628, respectivamente, da obra homónima do Professor Calvão da Silva.

V - Veículos - 503 a 508º

ASSENTOS
nº 1/83, no D.R. IA, de 28.6.83

A primeira parte do n.º 3 do artigo 503.º do Código Civil estabelece uma presunção
de culpa do condutor do veículo por conta de outrem pelos danos que causar, aplicável nas
relações entre ele como lesante e o titular ou titulares do direito a indemnização.

Não é inconstitucional por violação do princípio da igualdade entre o condutor por conta de outrem, onerado
com presunção de culpa, e o condutor por conta própria ou proprietário que apenas responde pelo risco ou por culpa
provada pelo lesado. - T.C. BMJ 438-71 e BMJ 428-540.

Questão resolvida pelo Assento - Segundo acórdão de 24.11.77, a presunção de culpa


estabelecida no n.º 3 do art. 503.º opera nas relações entre o condutor lesante e o lesado; por
acórdão de 28.2.80 decidira-se que apenas tinha lugar essa presunção nas relações de
responsabilidade objectiva do condutor em nome de outrem e o dono do veículo.

nº 3/94, no D.R. IA, de 19.3.94 e BMJ 433-69:

206
A responsabilidade por culpa presumida do comissário, estabelecida no art. 503°, nº
3, primeira parte, do Código Civil, é aplicável no caso de colisão de veículos prevista no
artigo 506.º, n.° 1, do mesmo Código.

Questão resolvida pelo Assento - No acórdão recorrido decidiu-se que, ocorrendo uma
colisão entre dois veículos, um conduzido pelo seu proprietário e outro por comissário, e não se tendo
averiguado a culpa de qualquer deles, a responsabilidade devia ser repartida na proporção do risco,
ao passo que, naquele acórdão fundamento, se decidiu que, nas mesmas condições, a
responsabilidade devia ser atribuída ao proprietário do veículo conduzido por comissário, por haver
uma presunção legal de culpa contra este. Foi esta tese que o Assento consagrou.

nº 7/94, no D.R. IA, de 28.4.94

A responsabilidade por culpa presumida do comissário, nos termos do artigo 503.°,


n.°3, do Código Civil, não tem os limites fixados no n.° 1 do artigo 508º do mesmo diploma.

Questão solucionada - dado que a lei não distingue entre culpa provada e culpa
presumida e desde que o Assento de 1983 criou uma verdadeira presunção de culpa contra o
condutor - comissário, é claro que se não aplicam os limites do 508º, expressamente legislados para o
risco. A limitação da indemnização devida por responsabilidade fundada na culpa apenas está prevista
nos casos de mera culpa e de acordo com os critérios do art. 494º.
A questão perdeu acuidade devido à nova redacção do art. 508º e AUJ nº 3/2004, DR IA, de 13
de Maio.

D.R. II, 24.6.96:


O dono do veiculo só é responsável, solidariamente, pelos danos causados pelo
respectivo condutor quando se alegue e prove factos que tipifiquem uma relação de
comissão, nos termos do artigo 500º, n.° 1, do Código Civil, entre o dono do veículo e o
condutor do mesmo.

Questão solucionada: não basta ser proprietário para ser comitente. Comissão significa
serviço ou actividade realizada por conta e sob a direcção de outrem, podendo esta actividade
traduzir-se num acto isolado ou numa função duradoura, ter carácter gratuito ou oneroso, manual ou
intelectual.

No entanto, decidiu-se - Col. STJ 01-I-127 - que



II - O facto de determinada pessoa ser proprietário do veículo causador do acidente cria a presunção,
naturalmente ilidível, de que o veículo circulava sob a sua direcção e no seu interesse.
III - De facto, tais requisitos não são elementos constitutivos do direito do lesado, mas, quando não se
verificarem, factos impeditivos desse direito.
IV - O comitente responde pelo dano se o acto danoso foi praticado pelo comissário no exercício das funções
confiadas e no interesse do comitente, ainda que em concreto sem ou contra as instruções deste.
V - Neste caso, a responsabilidade de ambos é solidária, mas o comitente tem direito de regresso contra o
comissário - Ac. STJ, de 20.02.01.

E em 6.12.2001, na Col. Jur. (STJ), 2001-III-141, decidiu o mesmo STJ que:

I - A propriedade faz presumir a direcção efectiva e o interesse na utilização do veículo pelo seu proprietário.
II - Sendo tais requisitos de verificação cumulativa é, pois, sobre o proprietário do veículo que incide o onus de
demonstrar o contrário.

207
Ou, como na base de dados do ITIJ, Processo n.º 01A3460:

I - A propriedade faz presumir a direcção efectiva e o interesse na utilização do veículo pelo


proprietário, por presunção natural extraída a partir do art. 1305º, mas admitindo-se que este prove a
excepção, fazendo com que o julgador se não decida pelo que é normal de acordo com o art. 349º.
II - Cabe ao dono do veículo o ónus de demonstrar as circunstâncias de onde possa inferir-se que não
possuía, no momento do acidente a direcção efectiva do veículo nos termos e para os efeitos do nº 1 do art.
503º do C. Civil.
III - O requisito do interesse na circulação visa afastar a responsabilidade objectiva daqueles que,
como o comissário, utilizam o veículo, não no seu próprio interesse, mas em proveito ou às ordens de outrem
(o comitente).
IV - Nesta perspectiva, o comissário, conduzindo no interesse alheio, não responde pelo risco, ao
abrigo do art. 503º, nº 1. Não tendo ele interesse na circulação e cabendo este ao comitente, será sobre este
último que recairá a aludida responsabilidade.
V - Tal interesse pode ser de natureza material ou económica, mas também de natureza moral ou
espiritual.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Para obter o ressarcimento dos danos sofridos num acidente de viação ocorrido entre um veículo por si conduzido
e um outro conduzido por A, pertencente a B - TÉCNICA DE INCÊNDIO, LDA. e cujos riscos de circulação estavam
cobertos até ao montante de 12.000.000$00 por seguro contratado com a COMPANHIA DE SEGUROS C, o autor D
demandou todas elas em acção declarativa proposta no 1º Juízo Cível de Coimbra para obter a sua condenação solidária a
pagarem-lhe 4.900.000$00 com referência aos danos patrimoniais e não patrimoniais que liquidou na petição inicial e ainda
no que em liquidação da sentença a proferir viesse a ser apurado quanto a danos futuros de ambas estas categorias.
Todas as rés contestaram impugnando danos e factos relativos ao acidente, pedindo as duas primeiras a
absolvição do pedido e pedindo a terceira que se proferisse sentença de acordo com a factualidade que viesse a ser
apurada.
Após saneamento - onde se afirmou a inexistência de obstáculos ao julgamento de mérito quanto a todas as
partes -, condensação e audiência de julgamento veio a ser proferida sentença que, dando procedência parcial à acção,
condenou todas as rés até ao limite do seguro, e apenas as 1ª e 2ª rés a partir daí, a pagarem ao autor a quantia que vier a
ser liquidada em execução de sentença correspondente à indemnização pelos danos não patrimoniais já sofridos -
2.500.000$00 -, danos patrimoniais no montante de 142.500$00 relativos a calças, anel, casaco e custo de relatório médico
e danos futuros patrimoniais e não patrimoniais na parte em que não devam considerar-se abrangidos pelas quantias já
pagas pela seguradora.

Apelaram a B e o autor, vindo a ser proferido pela Relação de Coimbra acórdão que, revogando em parte a
sentença, absolveu do pedido a B e elevou para 4.000.000$00 a indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos
desde o acidente e até à propositura da acção.
Inconformado, o autor interpôs este recurso de revista em que, dizendo ter sido violado o disposto no art. 503º, nº
1 do CC e pedindo a revogação do acórdão recorrido na parte em que absolveu a B e a subsistência, nesta parte, do
decidido na 1ª instância, formulou ao alegar as seguintes conclusões:

Trata-se de um acidente havido em 16/12/91, no qual o autor sofreu diversos danos e por cuja ocorrência foi
havida como culpada a ré A, que conduzia um veículo pertencente à B.
Sobre este ponto concreto provou-se que:
- A ré A conduzia na ocasião do acidente o QO tendo obtido para tanto o acordo do seu marido que era, ao tempo,
sócio gerente da ré B, esclarecendo-se ainda que utilizava o mencionado veículo para se deslocar para a Escola
Secundária D. Duarte onde naquela altura leccionava - resposta ao quesito 84º.

Enquanto que na sentença da 1ª instância a responsabilidade da B foi extraída da simples afirmação de ser
proprietária do QO, referida ao art. 503º do CC - diploma do qual serão as normas que sem outra identificação referirmos
adiante -, já no acórdão recorrido se entendeu que:
- tem sido entendido na jurisprudência que a propriedade faz presumir a direcção efectiva e o interesse na
utilização do veículo pelo proprietário, por presunção natural extraída a partir do art. 1305º, mas admitindo-se que este
prove a excepção, fazendo com que o julgador se não decida pelo que é normal de acordo com o art. 349º;

208
- admitindo-se haver direcção efectiva do veículo por parte da B e que a condução não era abusiva, a ela presidiu
um interesse meramente egoísta do casal, sem qualquer interesse da B, material ou económico ou de qualquer outra
ordem, na circulação do veículo.

O recurso está, como se vê, centrado numa única questão, que é a de saber se a circulação do veículo, no
decurso da qual o acidente se deu, teve, ou não, lugar no interesse da B .
Estamos em pleno campo de interpretação e aplicação do nº 1 do art. 503º que responsabiliza pelos danos
decorrentes dessa circulação aquele que tem a sua direcção efectiva e em cujo interesse ela é feita, sendo estes requisitos
de verificação cumulativa.

A propósito da direcção efectiva do veículo - embora seja de entender que o mesmo deverá passar-se com o
interesse na sua circulação, conforme constataram diversos dos acórdãos a seguir citados -, deve assinalar-se, desde já,
que este STJ tem entendido que a mesma cabe ao respectivo dono, cabendo a este o ónus de demonstrar as
circunstâncias de onde possa inferir-se o contrário - cfr. acórdãos de 7/7/71, BMJ nº 207, pg. 141, de 1/4/75, BMJ nº 246,
pg. 126, de 3/6/75, BMJ nº 248, pg. 399, de 6/5/80, BMJ nº 295, pg. 369, de 13/6/83, BMJ nº 328, pg. 559, de 25/10/83,
BMJ nº 330, pg. 511, de 3/11/83, BMJ nº 331, pg. 504, e de 27/10/88, BMJ nº 380, pg. 469.
É assinalado por Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 8ª edição, pg. 670, que o requisito do
interesse na circulação "... visa afastar a responsabilidade objectiva daqueles que, como o comissário, utilizam o veículo,
não no seu próprio interesse, mas em proveito ou às ordens de outrem (o comitente)".
Também Meneses Cordeiro, Direito das Obrigações, Vol. II, pg. 385, afirma que "... só há interesse próprio
quando não haja comissão".
Nesta perspectiva, o comissário, conduzindo no interesse alheio, não responde pelo risco, ao abrigo do art. 503º,
nº 1. Não tendo ele interesse na circulação, e cabendo este ao comitente, será sobre este último que recairá a aludida
responsabilidade.
O que no caso não releva visto que nenhuma relação de comissão existiu entre a B e a A.

Mas o problema tem de ser visto sob uma outra perspectiva.


É ela a da posição do dono do veículo, que pode, como acima se disse, provar que a circulação se deu sem ser
no seu interesse.
Este interesse pode ser de natureza material ou económica, mas também de natureza moral ou espiritual - cfr.
Antunes Varela, obra citada, pg. 671 e Dario Martins de Almeida. Manual dos Acidentes de Viação, 2ª edição, pg. 313, que
admitem como suficiente um mero interesse de gentileza.
No entanto, tem alguma diferença que o acordo obtido pela A tenha sido dado pelo seu marido, ao tempo sócio e
gerente da B, ou que, diferentemente, o tenha sido pela B, através desse seu sócio gerente.
Isto é, o referido interesse de gentileza tanto pode ter sido do marido da A como da B, neste caso exercitado
através de um seu gerente. E esta última hipótese não é de descartar visto que, como se depreende dos autos, a A disse,
ao prestar depoimento de parte, ser sócia da B; e, tendo isto sido posto em dúvida durante a audiência, veio a ser junta aos
autos, a demonstrar tal facto, certidão de uma escritura pública pela qual aquela A comprou em 29/10/90 uma quota desta
sociedade.
Por outro lado, um acordo como o referido, a prestar por uma sociedade através de um sócio gerente, não carece
de forma especial, pelo que é idóneo para colocar esta numa situação que a não responsabiliza directamente, apenas
podendo vir a gerar, eventualmente, uma responsabilidade; ninguém pensará, supomos, em exigir que a ordem a um
empregado para se deslocar ao serviço da sociedade num veículo desta teria que ser assinada por dois gerentes...
Assim, tem que se entender que os factos apurados não afastam esta última hipótese, o que leva a que se
conclua que a B não afastou cabalmente a pertinência, no caso, da ideia segundo a qual a propriedade do veículo coincide,
até demonstração em contrário, com a direcção efectiva do veículo e com o interesse na sua circulação.

Daí que, na falta dessa demonstração, se não possa acompanhar o acórdão recorrido quando afirmou ter havido
um interesse meramente egoísta do casal, com exclusão de qualquer interesse próprio da B, nem quando daí retirou,
correspondentemente, a desresponsabilização desta.
Por isso a absolvição que nele se decretou quanto a esta ré não pode ser mantida.
Concedendo-se a revista, revoga-se o acórdão recorrida na parte em que absolveu a B, ficando neste ponto a
valer a condenação proferida na 1ª instância, com a única alteração, que se mantém, já decretada no acórdão recorrido
quanto ao ressarcimento dos danos não patrimoniais.
Custas da revista pela recorrida.
A "B" suportará ainda as custas da sua apelação.
As custas da apelação do autor serão suportadas pelas aí recorridas.

Lisboa, 6 de Dezembro de 2001

209
Ribeiro Coelho
Garcia Marques
Ferreira Ramos

«... Com efeito, conforme jurisprudência e doutrina maioritárias, é perfilhado o entendimento de que quem tem a
direcção efectiva do veículo é aquele que o tem em uso por conta própria e possui o poder efectivo de dispor dele. Se o
põe em circulação, no seu próprio interesse, é ele o criador do risco, e daí a sua responsabilidade objectiva. O interesse
pode ser material ou apenas moral, como o daquele que o empresta a outrem por um dever de amizade ou de gratidão.
Por outro lado, tem sido praticamente uniforme a jurisprudência que temos por acertada, que entende ser a
propriedade do veículo o invólucro natural da direcção efectiva e interessada dele.
Por isso, provada a propriedade, a primeira aparência de responsabilidade assim criada impõe sobre
o proprietário o ónus de prova da utilização abusiva excludente dessa mesma responsabilidade .
Portanto, provada a propriedade do veículo sinistrante sem que o dono afastasse a presunção natural que sobre
si impendia de ter a direcção efectiva e interessada dele, nos precisos termos do art. 503º, nº 1, do Cód. Civil, responde ele
pelos riscos inerentes ao funcionamento de tal veículo, sendo de notar que não lhe aproveita a exclusão contemplada no
art. 505º do mesmo diploma, só porque o acidente foi causado por culpa (no caso exclusiva) do condutor comitido.
Pelo contrário, tal caso é justamente dos que importam responsabilidade solidária desse condutor culposo por
força dos princípios gerais emergentes do art. 483º do CC, em conjugação com a do comitente, segundo o disposto no art.
500º, n.os 1 e 2, do mesmo diploma.
Aqui chegados, isto é, concluindo-se pela responsabilização civil - ainda que objectiva - do dono do veículo
sinistrante - no caso o demandado civil Mário Nunes - rapidamente se atinge a conclusão de que não foi correcta a decisão
de o absolver.
Repare-se mesmo que o art. 29º, nº 6, supra citado, do DL 522/85, não restringe a intervenção litisconsorcial, ao
lado do FGA, ao dono do veículo ou ao condutor dele: a causa deve ser obrigatoriamente dirigida, além do Fundo de
Garantia Automóvel, também contra o responsável civil, expressão claramente mais abrangente que as primeiras.
Mas sendo assim, demonstrada que está a responsabilidade civil do dono do motociclo conduzido pelo arguido
Júlio Nunes, resulta evidente a razão do recorrente FGA, ao pretender ver revogada a sentença na parte em que absolveu -
STJ, Secção Criminal, 22.2.2001, Col. STJ 01-I-269.

Acórdãos STJ (Cons.º Azevedo Ramos), de 23/05/2006, P.º 06A1084, ITIJ:

I - O termo "comissão" , utilizado no art. 503, nº 3, do C.C., tem um sentido amplo de serviço ou actividade
exercida por conta e sob a direcção de outrem, podendo ser um acto isolado ou duradouro, gratuito ou oneroso.
II - Não é necessária uma relação de trabalho subordinado para que se preencha o conceito civilista de comissão.
III - Estando provado que o veículo interveniente no acidente era conduzido por um sócio gerente de uma
sociedade por quotas, ao serviço e por conta dessa sociedade, a quem a mesma viatura pertencia, é de considerar que o
acidente deve ser imputado, a título de culpa presumida, ao referido condutor, por conduzir tal veículo por conta de outrem
e não ter demonstrado que não teve culpa no sinistro.
IV- Tudo isto, por o exercício da gerência se inscrever no referido conceito de comissão, que não é mais do que a
função executiva do ente social, exercida em consonância com o objecto da sociedade e de acordo com as linhas mestras
definidas pelos sócios em assembleia geral ou por voto escrito.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Em 19-3-03, AA e mulher BB, instauraram a presente acção ordinária contra a ré Empresa-A, pedindo a
condenação desta a pagar-lhes a quantia de noventa mil euros, acrescida de juros, como indemnização pelos danos que
sofreram em resultado de um acidente de viação ocorrido no dia 30-5-01, em que foram intervenientes o motociclo FQ,
conduzido pelo seu filho, CC, e o veículo ligeiro de mercadorias VB, conduzido por DD, sócio-gerente da sociedade
Empresa-B, no exercício da actividade desta firma e por conta da mesma, a quem o VB pertencia.
Os autores imputam a culpa exclusiva do acidente, de que resultou a morte de seu filho, ao condutor do VB,
seguro na ré, por ter invadido a faixa esquerda de rodagem, no momento em que estava a ser ultrapassado pelo motociclo.
A ré contestou, impugnando a culpa, que atribui ao filho dos autores, por este ter iniciado a ultrapassagem sem
respeitar a aproximação das bandas sonoras que existiam antes de uma passadeira para peões e ter imprimido ao seu
veículo uma velocidade de 70 Km horários, de tal modo que ao passar por aquelas bandas sonoras perdeu o seu domínio,
indo embater no veículo seguro na ré.

210
Realizado o julgamento e apurados os factos, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente
e condenou a ré a pagar aos autores a indemnização de 80.000 euros, acrescida de juros, à taxa anual de 4%, desde a
data da sentença e até efectivo pagamento, sentença que a Relação de Coimbra confirmou, na sequência de apelação
interposta pela ré.


2 - Se o sócio-gerente, condutor do VB, não é comissário da sociedade, dona do veículo, não lhe
sendo aplicável a presunção de culpa do art. 503, nº 3, do C.C.

A culpa presumida:

O acidente só pode ser imputado a culpa presumida do condutor do VB, nos termos do art. 503, nº 3, do C. C.,
por conduzir este veículo por conta da "Empresa-B ", e não ter provado que não teve culpa.
Na verdade, embora fosse sócio-gerente da referida sociedade, dona do veículo, o indicado DD conduzia o VB ao
serviço e por conta daquela firma, sustentando o seu agregado familiar com os rendimentos auferidos naquela empresa, a
qual suporta os encargos com a circulação daquela viatura.
O termo comissão, utilizado no art. 503º do C. C., tem um sentido amplo de serviço ou actividade realizado por
conta de outrem, podendo ser um acto isolado ou duradouro, gratuito ou oneroso (Ac. S.T.J. de 8-5-96, Col. Ac. S.T.J., IV,
2º, pág. 253).
A relação de comissão a que se referem os arts 500 e 503 do C. C. não implica o conceito técnico jurídico que lhe
é conferido pelos arts 266 e segs do Cód. Comercial, que a configura como um mandato mercantil sem representação, pois
basta um serviço realizado por conta e sob a direcção de outrem.
Daí que o comitente seja responsável sempre que exista uma comissão, em tal circunstan-cialismo, e o
comissário cometa um facto ilícito e culposo, no exercício das suas funções.
Não é necessária uma relação de trabalho subordinado para que se preencha o conceito civilista de comissão.
No caso vertente, a relação de comissão entre a sociedade "Empresa-B", como comitente, e o condutor do VB,
como comissário, está suficientemente demonstrada, face aos factos apurados.
Nesta linha se tem orientado a jurisprudência dominante deste Supremo Tribunal de Justiça, de que se destaca o
Acórdão do S.T.J. de 22-2-01 (Col. Ac. S.T.J., IX, 2º, pág. 23) que, em caso paralelo, também já decidiu no mesmo sentido,
quando nele se escreve:
"O exercício da gerência inscreve-se manifestamente na relação de comissão, assim delineada, até porque
aquela mais não é do que a função executiva do ente social (aqui uma sociedade por quotas), exercida em consonância
com o objecto da sociedade e de acordo com as linhas mestras definidas pelos sócios em assembleia geral ou por voto
escrito.
O gerente não é, pois, dono da sociedade; exerce um serviço por conta e sob a direcção do ente social e
delimitado pelo conjunto dos sócios organizados deliberadamente em assembleia".
Posição diversa seria desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade, valendo-se dela para o que é
vantajoso e alijando-a para o que for incómodo.
Tanto basta para se concluir pela culpa presumida do condutor do VB, improcedendo as conclusões do recurso.

Termos em que negam a revista.


Custas pela recorrente.

Lisboa, 23 de Maio de 2006


Azevedo Ramos
Silva Salazar
Afonso Correia

Ac. do STJ (Cons.º Azevedo Ramos), de 31/10/2006, no Pr.º 06A3245:

I - É de admitir uma presunção de condução efectiva e interessada relativamente ao dono de um veículo, pois o
conceito de direcção efectiva e interessada cabe dentro do conteúdo do direito de propriedade .
II - Mas essa presunção não pode dar lugar a uma segunda presunção, no sentido de que, tendo em regra, o
proprietário a direcção efectiva e a utilização interessada, quem quer que o conduza é seu comissário .
III- A condução por conta de outrem pressupõe uma relação de comissão, nos termos do art. 500, nº 1, do C.C.
IV - O termo "comissão " tem aqui o sentido amplo de serviço ou actividade desempenhada por conta e sob a
direcção de outrem, podendo essa actividade traduzir-se num acto isolado ou numa função duradoura, ter carácter gratuito
ou oneroso, manual ou intelectual .

211
Ac. do STJ (Cons.º Pinto Montes) de 19.6.2008, P.º 08B1754:

«Defendem os AA., como primeira questão, que (2) os factos provados constituem uma relação de comissão quer
se considere a relação de comissão entre o gerente – condutor do veículo – e a sociedade – dona do mesmo, quer a
relação de comissão entre trabalhador e entidade patronal.

Mas não tem razão.


Como se diz no acórdão recorrido, não se provou que “os serviços por si (ou seja o condutor) prestados eram
efectuados por ordem e sob a direcção e fiscalização da sociedade Mármores SSSS, L.da”, conforme resulta da resposta
restritiva ao n.º 4.º da base instrutória.
Ora, para que se verifique uma relação de comissão, torna-se necessário que se aleguem e provem factos que a
integrem, tal como ela é definida pela lei (3): “aquele que encarrega outrem de qualquer comissão….”
“A comissão (4) pressupõe uma relação de dependência entre o comitente e o comissário, que autorize aquele a
dar ordens ou instruções a este, pois só essa possibilidade de direcção é capaz de justificar a responsabilidade do primeiro
pelos actos do segundo”.
Por isso, era necessário que se alegasse e demonstrasse essa relação de dependência, não bastando
demonstrar apenas que “à data do acidente, o condutor do QZ trabalhava para a sociedade proprietária deste veículo,
sendo esse trabalho remunerado”.
(Esta factualidade demonstra apenas que a sociedade Mármores SSSS, L.da tinha a direcção efectiva do veículo
e que o utilizava no seu próprio interesse (5); por isso, responde pelo risco da sua circulação).

Perguntava-se no n.º 4 da BI se “os serviços prestados eram efectuados por conta e sob a direcção e fiscalização
da sociedade Mármores SSSS, L.da”, mas tal facto não foi dado como provado (6).
Argumentam os recorrentes que as expressões contidas no número da BI em análise são conceitos de direito.
Não são, de todo.

Mas se o fossem, era aos AA. que competia alegar os factos concretos integrantes desse alegado conceito de
direito e eles apenas alegaram o que foi vertido nesse número (7); não alegaram outros factos.

Por isso, o argumento não tem qualquer relevância.


Temos apenas como factos a considerar os mencionados nos n.ºs 8, 14 e 17 da matéria de facto: “aquando do
acidente, o condutor do QZ provinha da casa de um cliente da “Mármores SSSS, Lda”, a quem havia acabado de vender
pedra mármore; era sócio e gerente da sociedade “Mármores SSSS. L.da”; e trabalhava para a sociedade proprietária
deste veículo, sendo esse trabalho remunerado”.

Não se provando a relação de trabalhador-entidade patronal, resta apenas averiguar se há uma relação de
comissão por o condutor do veículo ser sócio gerente da sociedade.
Ora, essa questão vem muito bem explicada por Mota Pinto (8) (9) quando defende que o nexo que liga os
órgãos da pessoa colectiva e esta é de verdadeira organicidade e não de simples representação; só assim se pode
considerar que a pessoa colectiva tem capacidade para o exercício de direitos “pois a relação entre um órgão e o ente em
que se integra, é de verdadeira identificação e, assim, agindo o órgão é a própria pessoa que age.”
Se se concluísse pela representação, então (10) devia rejeitar-se a tese da capacidade para o exercício de
direitos das pessoas colectivas, pois haveria autonomia entre as personalidades jurídica do representante e do
representado.
A conclusão a que o Mestre chega é fundamentada na lei: “infere-se da solução dada pela lei a um concreto
problema da regulamentação: o problema da responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas”, que apenas
“pode resultar dum comportamento (acção ou omissão) próprio”
Nem na representação legal nem na voluntária – menos nos casos das relações de comitente-comissário – a lei
impõe aos representados “a obrigação de indemnizar os danos causados a outrem pelos seus representantes, mesmo que
estes tenham sido causados em conexão com as suas funções”.
Na representação legal nenhuma norma o impõe, estando até excluída na norma genérica do art. 483.º e na
representação voluntário apenas o art. 500.º do CC a admite, havendo uma relação de dependência entre representante e
representado.
Conclui (11) que as pessoas colectivas têm capacidade para o exercício de direitos porque estatuindo no art.
165.º do CC a responsabilidade civil das pessoas colectivas, as pessoas físicas que agem em seu nome e no seu interesse
são ou integram verdadeiros órgãos.

“A situação (12) prevista no art. 500.º abrange apenas um sector caracterizado da representação voluntária: os
casos em que o procurador pode ser considerado um comissário nos termos e para os efeitos do mesmo artigo. Ora, tal

212
qualificação só lhe pode caber quando estiver numa relação de dependência em face do representado – quando estiver
submetido a um poder de direcção, a uma autoridade deste. Só então se poderá dizer que foi encarregado de uma
comissão, nos termos do referido artigo 500.º. Sendo assim, tal situação nenhuma analogia apresenta com a ligação entre
a pessoa colectiva e os seus “representantes”, pois estes –pelo menos o órgão mais qualificado – não são encarregados de
uma comissão, mas são eles próprios os formuladores da vontade da pessoa colectiva, os titulares de toda a iniciativa e
não meros comitidos”.
Portanto, sendo o sócio gerente (13) da sociedade a conduzir o veículo (14), tudo se passa como sendo a própria
sociedade a fazê-lo.
A entender-se doutro modo, as sociedades agiriam sempre por intermédio de comissário, presumindo-se sempre
a sua culpa, no contexto do art. 503.º, 3 do CC, o que colocaria as sociedades numa posição bem diferente da de uma
pessoa singular que, conduzindo o seu próprio veículo, apenas responde pelo risco próprio da sua circulação, não se
provando a culpa de qualquer dos condutores; nunca se presume a culpa nos termos do art. 503.º, 3 do CC, a menos que
se prove uma relação de comissão, nos termos do art. 500.º, 1 do CC (15).
Quer o art. 165.º (16) do CC quer o art. 6.º, 5 (17) do CSC – textos semelhantes - remetem para a
responsabilidade dos comitentes pelos actos dos seus comitidos, devendo entender-se que quer um quer outro dos
dispositivos citados pressupõem sempre uma relação de comissão.
Se é o próprio órgão a agir, a sociedade responde ou por culpa ou pelo risco, verificado os respectivos
pressupostos.

No caso dos autos, não se provando uma relação de comissão (18), a sociedade R. responde apenas pelo risco
da circulação do veículo, nos termos do art. 503.º, 1 do CC, por o veículo circular no seu interesse e tendo ela a sua
direcção efectiva, pois, como diz A. Varela (19), “tem a direcção efectiva do veículo a pessoa que, de facto, goza ou usufrui
as vantagens dele, e a quem, por essa razão, especialmente cabe o controlar o seu funcionamento”.
O detentor do veículo é quem tem a sua direcção efectiva – “elemento fundamental que serve de suporte legal à
responsabilidade objectiva na circulação terrestre”(20)..
Assim, sendo o seu sócio gerente a conduzi-lo e provindo da casa de um seu cliente, a quem acabara de vender
pedra mármore, provado está o circunstancialismo legal que permite impor à R. a responsabilidade objectiva do acidente
ocorrido, mas apenas no contexto do art. 503.º, 1 do CC que não com a presunção de culpa a que se refere o n.º 3 do
mesmo normativo.

Improcede, pois, esta primeira questão suscitada pelos recorrentes.»

Ac. do STJ (Cons.º Salvador da Costa) de 19.6.2008, P.º 08B1745:



Alegou a recorrente que a factualidade assente não exclui que EE, SA tenha assumido a responsabilidade pelas
lesões causadas pela utilização do equipamento objecto do contrato de locação financeira que celebrara com FF, SA,
nem que o contrato de seguro também cubra a sua responsabilidade de locatária.
O tribunal da primeira instância considerou que FF, SA não podia ser responsabilizada pela indemnização em
causa por não ser titular da direcção efectiva da referida máquina, e, consequentemente, que também o não podia ser EE,
SA com base no contrato de seguro celebrado entre ambas, no que foi secundado pela Relação, do que a recorrente
discorda.
Os factos provados não revelam que o acidente que constitui a causa de pedir na acção seja imputável a título de
culpa a quem quer que seja, designadamente ao condutor da máquina, KK, pelo que a solução do pleito deve ser
equacionada no quadro da responsabilidade extracontratual baseada no risco.
A este propósito, expressa a lei que o detentor da direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o
utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos seus
riscos próprios, ainda que se não encontre em circulação (artigo 503º, nº 1, do Código Civil).
Tem, em regra, a direcção efectiva do veículo quem sobre ele tem o domínio de facto, usufrui as vantagens por
ele proporcionadas e aproveita as utilidades resultantes do seu uso.
Os factos provados não revelam que HH conduzisse a máquina como comissário da recorrente ou sem
consentimento ou contra a vontade dos seus representantes, pelo que inexiste fundamento legal para enquadrar a situação
em causa no disposto na parte final do nº 3 do artigo 503º do Código Civil.
A regra resultante da experiência é a de que o proprietário tem a direcção efectiva do veículo, o que pode ser
inferido através de presunção judicial (artigos 349º e 351º do Código Civil).
A lei caracteriza o contrato de locação financeira como sendo aquele pelo qual uma das partes se obriga, contra
retribuição, a conceder à outra o gozo temporário de uma coisa, adquirida ou construída por indicação desta e que a
mesma pode comprar, total ou parcialmente, num prazo convencionado, mediante o pagamento de um preço determinado
ou determinável, nos termos do próprio contrato (artigos 1º do Decreto-Lei nº 171/79, de 6 de Junho, e 12º, nº 1, do Código
Civil).

213
Trata-se de um contrato de execução continuada de médio ou longo prazo, destinado a financiar uma pessoa
através do uso de um bem, proporcionando-lhe a posse e a utilização para determinado fim, inserindo o locatário na sua
esfera jurídica o direito potestativo de futura aquisição.
O seu escopo finalístico assenta mais no uso do bem do que na propriedade sobre ele, certo que se trata, em
regra, de financiamento de uma actividade produtiva.
Por via do referido contrato, FF, SA concedeu à recorrente o gozo da máquina, e a última vinculou-se, por via de
cláusula geral integrada no referido contrato e da lei, ao pagamento da respectiva renda e a outorgar contrato de seguro
que cobrisse, além do mais, a perda ou deterioração e a responsabilidade civil por danos por ela causados (artigos 24º,
alínea e), do Decreto-Lei nº 171/79, de 6 de Junho, e 12º, nº 1, do Código Civil).
Com a entrega da referida máquina à recorrente pela FF, SA, passou esta a ter o poder de facto sobre ela,
usufruindo das respectivas vantagens, controlando em exclusivo o seu funcionamento, tendo, enfim, só ela, a direcção
efectiva da mesma.

Perante este quadro, inexiste fundamento para o funcionamento da presunção judicial – não legal
porque não prevista na lei como tal – de que FF, SA, por ser titular do direito de propriedade sobre a
mencionada máquina, tinha em relação a ela o poder de facto em que se consubstancia a direcção efectiva a
que alude o nº 1 do artigo 503º do Código Civil.

Em consequência, tal como foi considerado nas instâncias, a obrigação de indemnização das recorridas inscreve-
se na recorrente com base no risco, e não na FF, SA.»

Em ALD o locatário não é comissário do locador-proprietário - Col. 97-V-192 - Idem para o


comprador com reserva de propriedade.

Com base em A. Varela, Obr., 7ª ed., I vol., 651 e ss, o STJ - BMJ 470-582 - decidiu que
o locador mantém, com o locatário, a direcção efectiva, no aluguer sem condutor.

503º

A responsabilidade do nº 1 (pelo risco) depende da conjugação de dois requisitos:


direcção efectiva do veículo - constitui uma fórmula de natureza normativa, envolvendo um
poder real ou material, de facto, de utilização e destino desse veículo, com a inerente faculdade, quer
de manutenção ou conservação, quer de superintendência ou vigilância, com ou sem domínio jurídico.
Não precisa ter o volante nas mãos. É o detentor. E
utilização no próprio interesse - não tem que ser necessariamente uma utilização
proveitosa ou lucrativa, em sentido económico; pode haver nela um mero interesse de gentileza,
como quando se cede a viatura a um amigo, um interesse meramente recreativo, o que não deixa de
constituir aquela «posição favorável à satisfação de uma necessidade», na definição dada ao interesse
por Carnelutti - D. M. Almeida, Manual de acidentes de viação.

Visa este requisito afastar a responsabilidade objectiva do comissário, o interesse pode até
ser reprovável, como o empréstimo para um crime.
O comissário, porque não é criador de risco, não responde nunca pelo risco enquanto
comissário. Se deixa de ser comissário, porque conduz fora do exercício de funções, então responde
pelo risco, como “comitente” que passa a ser, nos termos da parte final do nº 3 do art. 503º.

Havendo culpa (provada ou presumida) do comissário, perante o terceiro lesado respondem


solidariamente o condutor culpado e o detentor do veículo, sem sujeição aos limites do 508 º - BMJ
396-383: O comissário porque culpado - Assentos 1/83 e 7/94; O comitente porque garante da
indemnização total, sem limites, mas com direito de regresso - 497º,1, 500º, 1 e 3, 503º,1, 507º, 1
e V. Serra, RLJ 112-263, e 109-278; A. Varela, Obr., 8ª ed., 675; Col. 87-3-195; Assento nº
7/94.

214
Se o comissário conduz fora de funções, contra ou sem a vontade do detentor -
responde independentemente de culpa, como comitente - 503º, 1 e 3, parte final.
Comissário é também o ajudante de motorista ou o empregado da CP que dá a partida ao
comboio - Col. STJ 95-II-152.

RESPONSABILIDADE CIVIL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DIRECÇÃO EFECTIVA DO VEÍCULO
SEGURO OBRIGATÓRIO DO GARAGISTA CONDUTOR SEM CARTA DE CONDUÇÃO FUNDO
DE GARANTIA AUTOMÓVEL

I - O proprietário de uma viatura automóvel que a entrega a uma oficina para reparação perde a direcção efectiva
do veículo a favor deste, durante o período de reparação e enquanto a viatura se encontrar em poder do garagista, o que,
desde logo, é indiciado pela existência de um direito de retenção do garagista sobre o proprietário, no caso de não
pagamento das despesas efectuadas por aquele (artigos 754º e 755º, nº 1, alíneas e) e d), do Código Civil).
II - A responsabilidade civil do proprietário do veículo e da sua seguradora está excluída quando o acidente de
viação, causado por condutor sem carta de condução, e que não foi expressa ou tacitamente autorizado a conduzir o
veículo, pelo seu proprietário, é devido a uma causa estranha à vontade deste, numa modalidade de circulação da viatura
que se não efectua no interesse do mencionado proprietário.
III Enquanto na legislação sobre o seguro obrigatório de 1979 (constante do Decreto-Lei nº 408/79, de 25 de
Setembro) se não previam seguros do garagista e do condutor, e se determinava que a obrigação de segurar recaía sobre
o proprietário do veículo (salvo nos casos de usufruto, venda com reserva de propriedade ou locação financeira), mas que
era válido o seguro do veículo feito por pessoa diversa daquelas, ao mesmo tempo que se estipulava que, no caso de
concorrência de seguros, a obrigação de indemnizar recaía sobre o seguro feito por terceira pessoa, na legislação de 1985
(constante do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro) criou-se um seguro obrigatório do garagista, dando-se vida legal
a um seguro que já existira antes (o seguro de carta ou de condutor), e estabeleceu-se um regime de responsabilizações
sucessivas, do qual fica afastado o seguro feito pelo proprietário do veículo – Ac. do STJ, de 21.10.92, no BMJ 420-531:

«Dado o exposto, tem de se concluir que, contrariamente ao pretendido pelo recorrente, a viatura causadora do
acidente destes autos não possuía qualquer seguro válido, e que, por tal motivo, a responsabilidade pela indemnização
recai sobre o Fundo de Garantia Automóvel, em harmonia com o disposto no art. 21º do Decreto-Lei n.° 522/85, de 31
de Dezembro, na redacção do Decreto-Lei n.° 122-A/86, de 30 de Maio, sem prejuízo do direito de regresso que a este é
conferido em relação ao condutor e ao garagista».

I - A direcção efectiva de um veículo não depende do domínio jurídico sobre este, podendo existir sem esse
domínio, da mesma forma que tal domínio pode existir sem ela, pois essa direcção, intencional e expressamente
qualificada pela lei como efectiva, se identifica com o poder real, de facto sobre o veículo em causa.
II - Confiado o veículo, para reparação ou revisão, pelo seu proprietário, a uma garagem, é a entidade proprietária
desta que fica com a direcção efectiva do veículo, pelo que, ocorrido um acidente de viação por culpa de um empregado da
mesma garagem quando este actuava no exercício dessas suas funções de empregado, não pode ser responsabilizado o
proprietário do veículo nem a sua seguradora, mas o garagista ou a sua seguradora – Ac. STJ, de 30. Set. 2004, na
Rev. 2445.04.

Ac. do STJ (Cons.º Sebastião Povoas), de 18.5.2006, P.º 06A1274:



«O artigo 503º do Código Civil delineia os conceitos de comissão e de direcção efectiva do veículo.
O Doutor Pessoa Jorge define aquele como consistente na "realização de actos de carácter material ou jurídico
que se integram numa tarefa ou função confiada a pessoas diferentes do interessado." (in "Ensaio sobre os pressupostos
da responsabilidade civil", 148).
O acto, ou actividade, é realizado no interesse de outrem do qual o comissário tem uma relação de dependência.
O comitente é responsável se se conjugarem os requisitos da direcção efectiva do veículo e o da utilização no
próprio interesse.
A direcção efectiva envolve um poder material de uso e destino do veículo. A utilização no próprio interesse
implica uma utilização proveitosa - em sentido económico ou não - do veículo. (cf. Prof. A. Varela - "Das obrigações em
geral" I, 671).
A propriedade faz presumir a direcção efectiva e o interesse na utilização, sendo que a jurisprudência deste STJ
vem decidindo no sentido de que cabe ao dono o ónus de demonstrar quaisquer circunstâncias de onde se possa inferir o

215
contrário. (cf. vg. os Acórdãos de 7 de Julho de 1971 - BMJ 207-141, de 1 de Abril de 1975 - BMJ 246-126, de 6 de Maio de
1980 - BMJ 295-369, de 13 de Junho de 1983 - BMJ 328-559, e de 27 de Outubro de 1988 - BMJ 380-469).

1.2 - Delineados os conceitos é fácil concluir que, "in casu", a direcção efectiva do veículo, aquando do evento,
era do seu proprietário.
O mesmo ainda não tinha dado entrado na oficina de reparação nem se encontrava a ser testado, antes ou após
a revisão a que ia ser submetido.
O mecânico (garagista) limitava-se a conduzi-lo até à sua oficina - onde teriam lugar os trabalhos - a pedido do
dono.
Em regra é o dono, ou pessoa a sua solicitação, que desempenha essa tarefa, não sendo frequente que os
mecânicos se desloquem para levar os veículos para reparação.
Se o dono solicitou essa condução ao mecânico - tal como o poderia ter feito em relação a qualquer outra pessoa
- não perdeu a direcção efectiva do veículo que continuou a circular no seu próprio interesse.
Nesta linha, o Acórdão do STJ de 31 de Maio de 2005 (Pº 1059/05 1ª) decidiu que "provando-se que na altura do
acidente, o condutor do veiculo o levava para lhe efectuar a revisão pedida pelo proprietário do veiculo, e que o condutor
transferira a responsabilidade civil pelo exercício da sua actividade, mediante contrato de seguro de garagista, deve
considerar-se que a direcção efectiva do veiculo era do proprietário, pois era a pedido e no interesse dele que o veiculo era
conduzido."
Trata-se de julgado que merece todo o acolhimento.
Daí que a responsabilidade seja da Ré "Empresa-A", na qualidade de seguradora do veiculo, por provada a culpa
do condutor.
A condenação desta seguradora exclui a condenação da Ré "Empresa-B", seguradora do garagista, que vinha
demandada a título subsidiário.

Acórdão do STJ (João Camilo), de 5 de Julho de 2007, Pº 07A1991:

I. Tendo sido actualizada a indemnização dos danos patrimoniais ou não patrimoniais, de forma
expressa ou tácita, ao abrigo do disposto no art. 562º, nº 2 do Cód. Civil, a concessão de juros de mora
incidentes sobre aquela, apenas deve ser efectuada para o período temporal posterior à data da sentença
actualizadora, nos termos do art. 805º, nº 3 do mesmo diploma, interpretado restritivamente.
II. O contrato de seguro de garagista previsto no art. 2º, nº 3 do Dec.-Lei nº 522/85 de 31/12, abrange
os danos causados pelo tomador do seguro quando circula com veículos automóveis no âmbito da sua
actividade profissional.
III. Estão assim, em princípio, cobertos por este seguro os danos que o mecânico causa a terceiros na
condução dos mesmos veículos, quer na actividade de experimentação daqueles, quer na condução dos
mesmos, com vista à sua devolução aos seus donos, após o serviço de reparação.
IV. A actividade do garagista consistente na condução do veículo reparado, com destino à devolução
do mesmo ao seu proprietário, é realizada no interesse do mesmo garagista, pelo que este tem, então, a
direcção efectiva do mesmo veículo, para os fins do art. 503º, nº 1 do Cód. Civil.

Riscos próprios do veículo - máquina-condutor ; qualquer avaria mecânica, se não


culposa, integra estes riscos. O pneu que pode rebentar, o motor que pode explodir, a manga de eixo
ou a barra da direcção que podem partir, a abertura imprevista de uma porta em andamento, a falta
súbita de travões ou a sua desafinação, a pedra ou gravilha ocasionalmente projectadas pela roda do
veículo; uma vertigem momentânea, um súbito colapso cardíaco, o encandeamento solar ou doutro
veículo.
Sendo o acidente provocado por caso de força maior estranho ao funcionamento do veículo
(explosão provocada pelo raio de uma tempestade; choque ou colisão provenientes de ciclone,
enxurrada, deslocação de terras, queda de uma árvore, rajada de vento, abalo de terra, vaga marítima,
etc.), cessa a obrigação de indemnizar com base no risco, pois os danos não são inerentes ao
funcionamento do veículo.

Deve notar-se que o combóio tem prioridade absoluta nas passagens de nível, mas o
maquinista responde como condutor comissário, tendo contra si a presunção de culpa do nº 3 do art.
503º - Col. STJ 96-II-124.

216
RESUMO

Viatura conduzida por um condutor por conta de outrem (no exercício de funções) quando
ele age com culpa ou não ilida a presunção do artigo 503º, n.° 3 do Código civil :

- responde o mero condutor, por culpa, podendo beneficiar dos limites do artigo 494° e,
solidariamente com este, responde aquele que detém a direcção efectiva dessa
viatura e a utiliza no seu interesse, ou seja o comitente, sem os limites do 508 º - 497º,
nº 1, 500º, n.os 1 e 3, 503º, nº 1 e 507º, 1, Assento 7/94, Col. 87-3-95, V. Serra e A. Varela,
acima citados.

Por força da consideração autónoma dos três números em que o corpo do artigo 503º do
Código Civil se divide,

- o comissário responde por todos os danos que causar por acidente de viação, desde que
não consiga elidir a presunção de culpa que a lei faz incidir sobre ele;
- O detentor do veículo, por conta de quem este seja conduzido, responde nesse caso, não
por força do disposto no n.° 1 do artigo 503º, mas em obediência à doutrina que o artigo 500º do
Código Civil estabelece para a responsabilidade do comitente pelos danos que o comitido causar - A
Varela, RLJ 121-46:

O artigo 503º do Código Civil, a primeira das disposições compreendidas na área da responsabilidade pelo risco
proveniente dos acidentes de viação, trata em três proposições normativas distintas da principal questão que a matéria
suscita: a determinação das pessoas responsáveis pela indemnização dos danos causados pelo acidente.

No n.º 1 define-se a responsabilidade do detentor do veículo (da tal pessoa que tendo a direcção efectiva do
veículo e o utiliza no seu próprio interesse, no momento em que o acidente ocorre), impondo-lhe uma responsabilidade
marcadamente objectiva (ele responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veiculo, mesmo que este não se
encontre em circulação).

No n.º 2 determina-se, por sua vez, os termos em que respondem, nesta zona especial do risco da circulação
terrestre, as pessoas não imputáveis, sujeitando-as ao mesmo regime do equidade e de culpa objectiva aplicável a sua
responsabilidade por factos ilícitos.

Por fim, no n.º 3, estabelecem-se as regras a que obedece, em termos perfeitamente autónomos, a
responsabilidade dos comissários (daqueles que conduzem o veículo por conta de outrem), distinguindo para o efeito dois
tipos de situações:
- o primeiro, constituído pelos casos em que o causador dos danos conduzia por conta de outrem no momento
em que o acidente ocorreu, para os quais a lei (1ª parte do n.° 3 do art. 503º) estabelece a presunção de culpa do condutor;
- o segundo, formado pelos casos em que o causador do acidente conduzia fora do exercício das suas funções
de comissário, aos quais a lei (2.ª parte do n.º 3 do art. 503º) manda aplicar o princípio da responsabilidade objectiva (pelos
riscos próprios do veículo) consagrado no n.º 1 do mesmo artigo 503º.

Por forca da consideração autónoma dos três números em que o corpo do artigo 503º do Código Civil se divide, o
comissário responde por todos os danos que causar através do acidente de viação, desde que não consiga elidir a
presunção de culpa que a lei faz incidir sobre ele. O detentor do veículo, por conta de quem este seja conduzido, responde
nesse caso, não por força do disposto no nº 1 do artigo 503º, mas em obediência à doutrina que o artigo 500.º do Código
Civil estabelece para a responsabilidade do comitente pelos danos que o comitido causar.

Beneficiários da responsabilidade - 504º

Vista a nova redacção dada a este art. 504º pelo Dec-Lei nº 14/96, de 6 de Março, que
aplicou em Portugal a Directiva nº 90/232/CEE, de 14.5.90, a questão que se levantava em relação

217
aos gratuitamente transportados deixou de ter interesse: só beneficiavam de indemnização se
provassem a culpa do condutor - 504º, 2; agora também são abrangidos na responsabilidade pelo
risco, mas só por danos pessoais, sendo nula, quanto a pessoa transportada, cláusula em contrário -
504º, 3 e 4.
A nova redacção do art. 504º apenas é aplicável aos casos ocorridos depois da sua entrada
em vigor - BMJ 491-207.

Transporte gratuito - é o não pago, gracioso, por cortesia, a boleia - BMJ 459-527.

Exclusão da responsabilidade pelo risco - 505º

A responsabilidade prevista no art. 503º, nº 1, só é excluída, nos termos do artº 505º, quando o
acidente for imputável, devido, atribuível, ao próprio lesado ou a terceiro, mesmo animal, ou quando
resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veiculo.
É terceiro o condutor por conta de outrem, acidentado, sem culpa, por rebentamento de um
pneu do carro que conduzia - Col. 96-II-5.
Podem dar causa a acidente menores e inimputáveis em geral, pelo que aí cessa a
responsabilidade pelo risco - BMJ 413-554: menor de sete anos atropelado com inteira culpa dele.

Não há concorrência entre culpa do lesado ou de terceiro e risco do veículo. Pode é haver
concorrência de culpas, regulada no art. 570º, entre o condutor e a vítima – A. Varela, Obrigações
em Geral, I, 9ª ed., 699 e ss.

Diferente entendimento do Prof. Calvão da Silva no seu ensino, como pode ver-se na RLJ
134-115:

Sem prejuízo do concurso da culpa do lesado, a responsabilidade objectiva do deten tor do


veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou
quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
Equivale isto a admitir o concurso da culpa da vítima com o risco próprio do veí culo,
sempre que ambos colaborem na produção do dano, sem quebra ou interrupção do nexo de
causalidade entre este e o risco pela conduta da vítima como causa exclusiva do evento lesivo. Afora o
caso de o facto do lesado (como o facto de terceiro) ter sido a causa única do dano, a
responsabilidade fixada pelo n.º 1 do art. 503º não é afastada, admitindo-se que a indemnização seja
totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (Ex.mo Cons.º Santos Bernardino), de


04/10/2007, no Processo 07B1710:

1. A causa de pedir, nas acções de indemnização por acidente de viação, é o próprio acidente, e abrange todos
os pressupostos da obrigação de indemnizar. Se o autor pede em juízo a condenação do agente invocando a culpa deste,
ele quer presuntivamente que o mesmo efeito seja judicialmente decretado à sombra da responsabilidade pelo risco, no
caso de a culpa se não provar. E assim, mesmo que não se faça prova da culpa do demandado, o tribunal pode averiguar
se o pedido procede à sombra da responsabilidade pelo risco, salvo se dos autos resultar que a vítima só pretende a
reparação se houver culpa do réu.

2. De acordo com a jurisprudência e a doutrina tradicionais, inspiradas no ensinamento de Antunes Varela, em


matéria de acidentes de viação, a verificação de qualquer das circunstâncias referidas no art. 505º do CC – maxime, ser o
acidente imputável a facto, culposo ou não, do lesado – exclui a responsabilidade objectiva do detentor do veículo, não se
admitindo o concurso do perigo especial do veículo com o facto da vítima, de modo a conduzir a uma repartição da
responsabilidade: a responsabilidade pelo risco é afastada pelo facto do lesado.

218
3. Esta corrente doutrinal e jurisprudencial, conglobando na dimensão exoneratória do art. 505º, e tratando da
mesma forma, situações as mais díspares – nas quais se englobam comportamentos mecânicos dos lesados, ditados por
medo ou reacção instintiva, factos das crianças e dos inimputáveis, comportamentos de precipitação ou distracção
momentânea, etc. – e uniformizando as ausências de conduta, as condutas não culposas, as pouco culposas e as muito
culposas dos lesados, conduz, muitas vezes, a resultados chocantes.

4. Mostra-se também insensível ao alargamento crescente, por influência do direito comunitário, do âmbito da
responsabilidade pelo risco, e da expressa consagração da hipótese da concorrência entre o risco da actividade do agente
e um facto culposo do lesado, que tem tido tradução em recentes diplomas legais, que exigem, como circunstância
exoneratória, a culpa exclusiva do lesado, bem como à filosofia que dimana do regime estabelecido no Cód. do Trabalho
para a infortunística laboral.

5. O texto do art. 505º do CC deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso da
culpa do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é
excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de
causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.

6. Ao concurso é aplicável o disposto no art. 570º do CC.

7. A este resultado conduz uma interpretação progressista ou actualista do art. 505º, que tenha em conta a
unidade do sistema jurídico e as condições do tempo em que tal norma é aplicada, em que a responsabilidade pelo risco é
enfocada a uma nova luz, iluminada por novas concepções, de solidariedade e justiça.

8. Ademais, na interpretação do direito nacional, devem ser tidas em conta as soluções decorrentes das
directivas comunitárias no domínio do seguro obrigatório automóvel e no direito da responsabilidade civil, já que as
jurisdições nacionais estão sujeitas à chamada obrigação de interpretação conforme, devendo interpretar o respectivo
direito nacional à luz das directivas comunitárias no caso aplicáveis, mesmo que não transpostas ou incorrectamente
transpostas.

9. Não pode, no caso concreto, concluir-se que o acidente é unicamente ou exclusivamente imputável à menor,
condutora do velocípede, e que o veículo automóvel foi para ele indiferente, isto é, que a sua típica aptidão para a criação
de riscos não contribuiu para a eclosão do acidente.

10. Na verdade, não obstante a actuação contravencional da menor, que manifestamente contribuiu para o
acidente, a matéria de facto apurada permite também concluir que a estrutura física (as dimensões, a largura) do veículo
automóvel, na ocasião timonado por uma condutora inexperiente, habilitada há menos de seis meses, está inelutavelmente
ligada à ocorrência do acidente.

11. Na fixação da indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela menor deve, depois de determinado o
seu valor, de acordo com a equidade, fazer-se funcionar o critério da repartição do dano, nos termos do art. 570º do CC,
não se perdendo de vista a própria condição da vítima, decorrente da sua idade, ao tempo da produção do dano, não
podendo valorar-se a sua conduta causal por critério igual ao que seria aplicável a um ciclista adulto.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1.

AA, menor, representada pelos seus pais, intentou, no Tribunal Judicial da comarca de Pombal, em Maio de 2001,
acção com processo ordinário contra COMPANHIA DE SEGUROS I..., S.A., reclamando desta o pagamento da quantia de
7.583.000$00 – acrescida de juros moratórios legais até efectivo e integral pagamento – como indemnização pelos danos
patrimoniais e não patrimoniais que diz ter sofrido em consequência do acidente de viação, ocorrido em 30.08.98, na
estrada que liga Arnal a Valongo, em que estiveram envolvidos o auto ligeiro de passageiros, de matrícula ...-...GD,
segurado na ré, e um velocípede conduzido pela autora.
O acidente, traduzido em colisão frontal entre o veículo automóvel e o velocípede, ter-se-ia devido a culpa
exclusiva da condutora daquele veículo, dele tendo resultado para a autora danos patrimoniais e não patrimoniais,
quantificáveis no montante peticionado, e por cujo ressarcimento é responsável a ré.

219
Contestada a acção e prosseguindo esta a sua legal tramitação, veio a ser proferida sentença, que a julgou
improcedente, com a consequente absolvição da ré.
Fundou-se a douta decisão na falta de prova de factos susceptíveis de configurarem a culpa da condutora do
veículo automóvel, e na impossibilidade de fazer intervir as regras da responsabilidade objectiva, previstas no art. 503º do
CC, por ser o acidente imputável à própria autora (art. 505º do mesmo diploma).

A autora apelou, mas sem êxito, pois a Relação de Coimbra, em acórdão oportunamente proferido, negou
provimento ao recurso, confirmando, com a mesma fundamentação, a sentença da 1ª instância.

Desse acórdão traz agora a autora a este Supremo Tribunal a presente revista, tendo rematado as suas
alegações – nas quais intenta demonstrar que o acidente ocorreu também por culpa da condutora do Renault, ainda que
concorrente com a sua própria culpa – com a enunciação das seguintes CONCLUSÕES:

1ª - Da matéria apurada – embate do veículo automóvel com a parte esquerda (farol, farolim e guarda-lamas
esquerdo) na parte frontal da perna, na face e no braço esquerdo da autora, e no quadro e na roda traseira do lado
esquerdo do velocípede – terá de concluir-se que o embate ocorreu na faixa esquerda da via, atento o sentido Arnal-
Valongo; mas,
2ª - Mesmo a admitir-se provir a autora da Rua do Jamboínho, sempre a condutora do auto – a quem se exige,
como a um condutor médio, que seja avisada, prudente e cuidadosa – ao ver uma menor a circular numa bicicleta, para
entrar na via, onde já circulava o Renault, podia e devia – querendo – afrouxar e evitar o embate;
3ª - Como é sabido, a regra da prioridade não é absoluta, e a ilicitude não se confunde nem se identifica com a
culpa, devendo, em cada caso, ser interpretada e analisada consoante as circunstâncias de tempo, modo, lugar e dinâmica
dos veículos, tal como o grau de exigência a cada um dos condutores;
4ª - Por erro de interpretação e/ou aplicação, não foram correctamente observados e aplicados, e mostram-se,
por isso, violados, os arts. 70º, 481º, 487º, 494º, 496º, 499º e 562º do Código Civil, e os arts. 13º/1, 24º/1 e 25º/1.a) e f) do
Código da Estrada.

Em contra-alegações, a ré pugna pelo não provimento do recurso.

Corridos os vistos legais, cumpre agora decidir.

2.

É a seguinte a MATÉRIA DE FACTO que vem fixada das instâncias:


1. No dia 30.08.98, pelas 16.15 horas, junto á localidade de Vila Verde, S. Simão de Litém, Pombal, ocorreu um
acidente de viação;
2. Tal acidente consistiu na colisão frontal do veículo automóvel ligeiro de passageiros, marca Renault, modelo
19, matrícula ...-...-GD, com um velocípede sem motor auxiliar;
3. O veículo automóvel encontrava-se então registado em nome de A...M...S... e de BB;
4. O velocípede pertencia à autora;
5. Nas circunstâncias de tempo e de lugar acima referidas, a BB conduzia o veículo automóvel pela estrada
municipal que liga as localidades de Arnal e Valongo, nesse sentido de marcha;
6. No local do acidente existe um entroncamento onde confluía a estrada que liga Valongo a Arnal e uma outra
via, à direita, atento o sentido de marcha Arnal-Valongo;
7. Aquando do acidente era de dia, o tempo estava bom e o sol aberto;
8. Em consequência do acidente o velocípede conduzido pela autora ficou com a roda de trás empenada, assim
como o quadro;
9. Através do contrato de seguro válido à data do acidente e titulado pela apólice n.º ...-...-43-43755303, o
proprietário do veículo automóvel tinha transferido para a ré a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação
causados por esse veículo;
10. A autora nasceu a 04.07.1988;
11. Nos momentos imediatamente anteriores à eclosão do acidente, a autora circulava pela rua do Jamboínho,
com direcção à estrada que liga as localidades de Arnal e Valongo, montada no seu velocípede;
12. O veículo Renault ...-...-GD embateu com a sua parte frontal esquerda, junto à zona do farol frontal esquerdo,
no velocípede em que a autora se fazia transportar, não tendo sido possível determinar o local exacto em que este foi
embatido;
13. O embate ocorreu na metade direita da faixa de rodagem da estrada que liga as localidades de Arnal a
Valongo, considerando o sentido de marcha Arnal-Valongo;

220
14. Em local exacto que não foi possível determinar, da estrada que liga as localidades de Arnal e Valongo,
ficaram estilhaços de vidro do veículo Renault;
15. Com o embate, a autora foi impulsionada e elevada, vindo a embater contra a parte esquerda do pára-brisas
do veículo Renault;
16. Após, a autora foi projectada para a estrada, acabando por ficar imobilizada na berma esquerda,
considerando o sentido Arnal-Valongo, a distância exacta do local do embate que não foi possível determinar, apresentando
a autora ferimentos, traumatismos e hemorragias;
17. Após o embate, o veículo Renault ainda prosseguiu a sua marcha durante alguns metros, acabando por se
imobilizar junto ao limite direito da faixa de rodagem por onde seguia, atento o seu sentido de marcha, não tendo sido
possível determinar a distância exacta entre o local do embate e o local de imobilização do veículo;
18. O velocípede da autora ficou imobilizado na metade esquerda da faixa de rodagem da estrada que liga as
localidades de Arnal a Valongo, considerando o sentido de marcha Arnal-Valongo, não tendo sido possível determinar a
distância exacta entre o local do embate e o local de imobilização do velocípede;
19. No local, a via desenvolvia-se em traçado recto, em cerca de 200 metros, era asfaltada, tinha o piso em
razoável estado de conservação, tinha 5 metros de largura, nela podendo processar-se trânsito nos dois sentidos;
20. No momento do acidente registava-se pouco tráfego rodoviário na estrada em que ele ocorreu;
21. Em consequência do acidente e das lesões para si resultantes do mesmo, a autora foi transportada, de
urgência, numa ambulância dos Bombeiros Voluntários de Pombal, ao H. D. de Pombal;

45. O entroncamento referido em 6. era formado pela estrada que liga as localidades de Arnal e Valongo, por um
lado, e pela rua do Jamboínho, que conduz a Vila Verde, por outro lado;
46. No limite da rua do Jamboínho, na parte em que a mesma entronca na estrada que liga as localidades de
Arnal e Valongo, existia um sinal de aproximação de estrada com prioridade, destinado aos condutores dos veículos que
seguissem daquela rua para a estrada que ligava Arnal a Valongo;
47. O veículo Renault seguia pela metade direita da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha, a
velocidade exacta que não foi possível determinar;
48. Quando iniciava a transposição do entroncamento referido em 45., a condutora do veículo Renault foi
surpreendida pela entrada do velocípede tripulado pela autora na metade direita da estrada que liga Arnal a Valongo, atento
este sentido;
49. A autora circulava pela rua do Jamboínho, com direcção à estrada que liga as localidades de Arnal e Valongo,
tripulando um velocípede sem motor;
50. Sem aguardar a passagem do veículo Renault, que iniciava a transposição do dito entroncamento, a autora
entrou na metade direita da estrada que liga Arnal a Valongo, atento este sentido, assim cortando a linha de marcha do
veículo Renault e tornando o acidente inevitável;
51. O veículo automóvel foi comprado na constância do casamento existente entre A...S... e BB.
3.

Como é sabido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, sem prejuízo da
possibilidade de apreciação de outras questões, desde que de conhecimento oficioso.
E a questão principal a decidir consiste em saber se se verificam os pressupostos da responsabilidade civil, por
facto ilícito ou pelo risco, implicando, in casu, obrigação de indemnizar por parte da recorrida.
A este propósito, a sentença da 1ª instância expressou o seguinte entendimento:
“... dos factos provados não resulta que os donos ou a condutora do veículo segurado na ré tenham assumido
qualquer comportamento negligente de que tenha resultado a eclosão do acidente a que os autos se reportam.
Restaria a possibilidade de responsabilizar objectivamente os donos ou a condutora do veículo com fundamento
no art. 503º/1 CC.
Porém, vistos os factos dados como provados nas respostas aos quesitos 50º a 57º, logo se verifica que a autora
violou, com a sua condução do seu velocípede, a obrigação para ela decorrente do sinal de aproximação de estrada com
prioridade (art. 3º-A/1/2 do Regulamento do CE, na redacção em vigor à data do acidente – sinal B 1) e a regra de cuidado
decorrente desse sinal (obrigação do condutor ceder passagem a todos os veículos que transitem na via de que se
aproxima), do mesmo modo que violou a regra de cuidado emergente do art. 32º/4 do CE, na redacção em vigor a essa
mesma data, tendo sido por causa disso que eclodiu o acidente a que os autos se reportam.
Logo, sendo o acidente imputável à própria autora, deve ter-se por excluída a referida possibilidade de
responsabilização objectiva.”
A Relação sufragou este entendimento, escrevendo que a questão “já foi apreciada na sentença ora recorrida,
tendo-se aí concluído atribuir a responsabilidade exclusiva da produção do acidente em causa à infeliz autora, condutora
então de um velocípede sem motor.
Conclusão essa com a qual, face aos factos apurados, estamos de acordo.”
E mais adiante, em reforço desta conclusão, aduz ainda estas considerações:

221
“Por vezes, é o próprio lesado que não põe em prática, em relação aos seus próprios bens (como seja a
integridade física ou a vida), as cautelas que se exigem em relação aos direitos de terceiros. Neste caso a conduta do
lesado, porque entra em concurso com conduta do lesante, merece um juízo de censura semelhante (ao) da conduta deste,
a aferir por igual padrão (art. 487º, n.º 2), que a lei coloca na veste de culpa – art. 570 do CC.
A palavra “culposo” aparece aqui em sentido impróprio ou vulgar, dado que se refere a uma conduta do próprio
lesado (...). Mas não basta o facto culposo do lesado, sendo necessário que esse acto do lesado tenha sido uma das
causas do dano, de acordo com os mesmos princípios de causalidade adequada aplicáveis ao agente – à
“conculpabilidade” acresce a “concausalidade” (...).
Ora, postas tais considerações, basta atentar na matéria factual dada como assente, (...), para se concluir do
acerto do juízo valorativo feito pelo senhor juiz a quo ao imputar à conduta da autora a responsabilidade exclusiva pela
produção do acidente em causa.
(...)
(...), no caso em apreço, perante os factos que foram dados como assentes, afigura-se-nos ser manifesto que
nenhuma censura ético-jurídica pode, fundadamente, ser feita à conduta do veículo segurado na ré, pois desses factos
apurados não se vislumbra que outro comportamento concreto aquela deveria ter adoptado para evitar o acidente (sendo
certo que nem sequer se sabe a velocidade a que a mesma então circulava).
Deste modo, e face à conclusão de que o acidente em causa se ficou a dever exclusivamente à conduta culposa
da autora, fica, assim, prejudicado o conhecimento da 3ª questão acima elencada (cfr. art. 660º, n.º 2, do CPC).
Parece, pois, ser entendimento da Relação, ao ponderar a possibilidade de concurso, para a produção do dano,
entre a conduta do lesante e a do lesado – ou seja, o caso em que uma e outra são causais do dano – que esse concurso
apenas pode ser considerado no domínio da culpa (“conculpabilidade” e “concausalidade”). E porque, no caso concreto,
igualmente entendeu que a actuação da condutora do veículo automóvel não é passível do juízo de censura ético-jurídica
em que a culpa se analisa, e que o acidente (bem como o dano dele resultante) é apenas imputável, no que ao juízo de
culpa concerne É só nesta perspectiva (da culpa dos intervenientes no acidente) que a Relação encara a questão, quando
conclui que “o acidente em causa se ficou a dever exclusivamente à conduta culposa da autora”, à actuação da própria
lesada, considerou inexistir obrigação de indemnizar por parte da recorrida, pois que também a possibilidade de
responsabilização objectiva, nesse cenário (acidente imputável à própria autora), deve ter-se por excluída.
E essa vem sendo, na verdade, a posição unânime da jurisprudência, que, una voce, tem rejeitado a possibilidade
de concorrência de risco do lesante e culpa do lesado: sempre que o acidente for imputável ao próprio lesado (por culpa ou
facto deste, mesmo não culposo), fica excluída a responsabilidade do lesante – a culpa ou facto do lesado exclui o risco do
lesante.

3.1. Dissentindo da valoração que, dos factos provados, foi operada no acórdão recorrido (e na douta sentença
da 1ª instância), forceja agora a recorrente por convencer que de tais factos deve extrair-se a conclusão de existência de
culpas concorrentes na eclosão do sinistro.
Todavia, a sua argumentação, enquanto dirigida à demonstração da culpa da condutora do veículo automóvel,
não convence.
A matéria de facto apurada – que o Supremo não pode alterar – rejeita, de forma evidente, o sentido da primeira
conclusão da recorrente, no tocante à localização do embate na faixa esquerda da via em que aquela condutora seguia.
Como pode concluir-se que o embate ocorreu na faixa esquerda da via, atento o sentido Arnal-Valongo, se se
acha provado que ele teve lugar “na metade direita da faixa de rodagem da estrada que liga as localidades de Arnal a
Valongo, considerando o sentido de marcha Arnal-Valongo” (n.º 13 da matéria de facto assente)?
Melhor sorte não logram as segunda e terceira conclusões avançadas pela recorrente, já que, da aludida matéria
de facto, nada permite concluir que a condutora do veículo automóvel, nas concretas circunstâncias de tempo, modo e
lugar em que actuou, tenha omitido as cautelas e os cuidados que se exigem a um condutor médio, não estando
igualmente provados factos que permitam concluir que pudesse e devesse agir de outra forma, de modo a evitar o
acidente.
Assim, não merece censura a conclusão – que vem expressa não só no acórdão recorrido como também na
sentença da 1ª instância – de que se acha indemonstrada a culpa da condutora do veículo Renault na verificação do
acidente.
E tão pouco se pode questionar a relevância da conduta da autora para essa verificação – conclusão que,
assumida pelas instâncias, a própria recorrente aceita, embora, como vimos, em termos de concorrência de culpas.

3.2. O que se deixa referido não esgota, porém, o âmbito do recurso.


Embora as conclusões da recorrente só refiram e visem a culpa concorrente da condutora, ao conhecimento da
questão em apreço – que é, repete-se, a de saber se existe, in casu, obrigação de indemnizar – interessa também a
problemática da eventual responsabilização daquela condutora com base no risco.
Só percorrendo também esta via é que o Supremo esgotará, como lhe compete, todos os aspectos da questão
jurídica que lhe é submetida, tanto mais quanto é certo ter sido este aspecto abordado nas decisões das instâncias.

222
Avança-se esta consideração para afastar, desde já, qualquer tentação de imputar ao Supremo, face ao teor das
conclusões da recorrente, o vício de excesso de pronúncia. A causa de pedir, nas acções de indemnização por acidente de
viação, é o próprio acidente, e abrange todos os pressupostos da obrigação de indemnizar. Se “o autor pede em juízo a
condenação do agente na reparação do dano, num dos domínios em que vigora a responsabilidade objectiva, mesmo que
invoque a culpa do demandado, ele quer presuntivamente (a menos que haja qualquer declaração em contrário) que o
mesmo efeito seja judicialmente decretado à sombra da responsabilidade pelo risco, no caso de a culpa se não provar.” E
assim, “ se o autor invocar a culpa do agente na acção destinada a obter a reparação do dano, num caso em que
excepcionalmente vigore o princípio da responsabilidade objectiva, mesmo que não se faça prova da culpa do demandado,
o tribunal pode averiguar se o pedido procede à sombra da responsabilidade pelo risco, salvo se dos autos resultar que a
vítima só pretende a reparação se houver culpa do réu.” Prof. A. VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. I, 7ª ed., pág.
690/691.

3.2.1. As instâncias afastaram a possibilidade de responsabilização da condutora do veículo automóvel com base
no risco porque concluíram ser o acidente imputável à própria lesada, não se demonstrando a culpa da condutora do
veículo.
Seguiram, pois, o entendimento jurisprudencial, já acima aludido, segundo o qual não pode haver concurso de
responsabilidades do lesado, a título de culpa, e do titular da direcção efectiva do veículo, assente no risco. Entendimento
também seguido por parte da doutrina civilista nacional. Apurada culpa da condutora do velocípede, e excluída a culpa da
condutora do Renault, nada mais é preciso indagar: está excluída a responsabilidade desta pelos danos sofridos pela
primeira.
Trata-se, como vimos, de entendimento pacífico, fundado na interpretação que, do art. 505º do CC. (são deste
Código os normativos que forem citados na exposição precedente sem indicação do diploma a que pertencem) sem
hesitações, a jurisprudência nacional tem perfilhado, ou seja, a de que para afastar a responsabilidade civil pelo risco, a
que se reporta o n.º 1 do art. 503º, basta que o acidente seja devido, em termos de culpa ou mesmo de mera causalidade,
ao próprio lesado ou a terceiro.
Todavia, este modo de ler e de entender a lei vem sendo objecto, ultimamente, de profundas críticas provindas de
uma parte significativa da doutrina nacional, que – desde logo em atenção ao prestígio científico e à auctoritas dos juristas
de que promanam – justificam deste Alto Tribunal uma análise e uma atenção que até agora, ao que parece, não
mereceram.
Não deve o Supremo, a nosso ver, acomodar-se perante o reparo de que aquela uniforme jurisprudência é
tributária “de uma mera compreensão lógico-formal dos textos legais, de sabor cristalizado, com rejeição de um
pensamento jurídico moderno, actualizado, e que faz da tutela dos lesados no tráfego rodoviário o seu leitmotiv”. São
palavras de J. C. BRANDÃO PROENÇA, Responsabilidade pelo risco do detentor do veículo e conduta do lesado: a lógica
do “tudo ou nada”? in Cadernos de Direito Privado, n.º 7 Julho/Setembro 2004, pág. 25.
Vejamos, pois.

3.2.2. A jurisprudência e a doutrina tradicionais, na questão que vimos considerando, ancora o seu ideário no
ensino e no entendimento do Prof. ANTUNES VARELA.
Para este saudoso Mestre, o art. 505º coloca um problema de causalidade: a verificação de qualquer das
circunstâncias nesse preceito referidas – acidente imputável ao lesado ou a terceiro; acidente resultante de causa de força
maior estranha ao funcionamento do veículo – quebra o nexo de causalidade entre os riscos próprios do veículo e o dano,
excluindo a responsabilidade objectiva do detentor do veículo, pois que o dano deixa, então, de ser um efeito adequado do
risco do veículo.
Bastará a imputação causal do acidente ao lesado para excluir a responsabilidade objectiva. Não se exige, pois,
que o acidente seja devido a facto culposo do lesado, que seja causado pela conduta censurável deste; abrangem-se
também todos os casos em que o acidente é devido ao lesado, mesmo que não haja culpa deste.
A possibilidade de concurso, em acidente de viação, do perigo especial do veículo com facto de terceiro ou da
vítima (culposo ou não culposo), de modo a conduzir a uma repartição da responsabilidade ou a uma atenuação da
obrigação de indemnizar fundada no risco, é claramente rejeitada, com o argumento de não ser justa nem ter consagração
legal. Se o acidente ocorre porque o lesado ou terceiro não observaram as regras de prudência exigíveis em face do perigo
normal do veículo, cessa a responsabilidade do detentor, porque, não obstante o risco inerente à viatura, os danos provêm
de facto de outrem.
A responsabilidade (objectiva) imposta ao detentor do veículo é já de tal modo severa que não é justo nem
razoável “sobrecarregá-la ainda com os casos em que, não havendo culpa dele, o acidente é imputável a quem não
adoptou as medidas de prudência exigidas pelo risco da circulação”.

3.2.3. Será de manter este entendimento?


Ou justificar-se-á uma inversão de rumo, projectada a partir de uma interpretação menos rígida dos preceitos
legais aplicáveis?

223
Não nos parece irrespondível a objecção de que a possibilidade de concorrência do risco do detentor ou condutor
do veículo com culpa do lesado não é de sufragar, porquanto, defendida pelo Prof. VAZ SERRA nos trabalhos preparatórios
do Código, com a formulação do correspondente preceito, este não foi acolhido no texto definitivo do diploma.
Repare-se que o próprio VAZ SERRA, mesmo após a publicação do Código Civil, continuou a defender a tese da
concorrência, argumentando, por um lado, que a expressão acidente imputável ao lesado, do art. 505º, deve ser entendida
com o sentido de acidente devido unicamente a facto do lesado, e por outro, que, sendo a situação de concorrência entre
risco e culpa semelhante às contempladas no art. 570º, deve este preceito ser aplicado por analogia a tal situação, o que
conduz à aplicação dos princípios gerais sobre conculpabilidade do lesado.
E não falta quem sustente que “o art. 484º da 1ª revisão ministerial do projecto do Código Civil não é
suficientemente persuasivo no sentido de afirmarmos, com ANTUNES VARELA, que foi “repudiada” a tese de VAZ SERRA”
- BRANDÃO PROENÇA, ibidem, pág. 26.
Por outro lado, não podemos deixar de ponderar a justeza da crítica, que à corrente tradicional tem sido dirigida,
de conglobar, na dimensão exoneratória da norma do art. 505º, tratando- -as da mesma forma, situações as mais
díspares, como sejam os comportamentos mecânicos dos lesados, ditados por um medo invencível ou por uma reacção
instintiva, os eventos pessoais fortuitos (desmaios e quedas), os factos das crianças e dos (demais) inimputáveis, os
comportamentos de precipitação ou distracção momentânea, o descuido provocado pelas más condições dos passeios,
uniformizando, assim, “as ausências de conduta, as condutas não culposas, as pouco culposas e as muito culposas dos
lesados por acidentes de viação”, “desvalorizando a inerência de pequenos descuidos à circulação rodoviária”, e
conduzindo, muitas vezes, a resultados chocantes.
Tal corrente mostra, ademais, na sua inflexibilidade e cristalização, uma insensibilidade gritante ao alargamento
crescente, por influência do direito comunitário – e tendo por escopo a garantia de uma maior protecção dos lesados – do
âmbito da responsabilidade pelo risco, que tem tido tradução em vários diplomas (a que faremos alusão mais adiante) cujo
relevo maior radica, por um lado, na exigência, como circunstância exoneratória, de culpa exclusiva do lesado, e, por outro,
na expressa consagração, no sector da responsabilidade civil do produtor ou fabricante de produtos defeituosos, da
hipótese de concorrência entre o risco da actividade do agente e “um facto culposo do lesado” (art. 7º/1 do Dec-lei 383/89,
de 6 de Novembro).
Esta evolução legislativa não pode, a nosso ver, ser ignorada, e dela devem ser retiradas “as devidas
consequências para uma actualização interpretativa da rigidez normativa do Código Civil, tanto mais que a partir de
meados da década de 80 passaram a coexistir dois regimes diferenciados, ou seja, o rígido sistema codificado e uma série
de subsistemas imbuídos de um escopo protector e direccionado para os lesados” Autor e loc. cits. na nota anterior, pág.
29..
Como não deve ser ignorado o papel das directivas comunitárias no domínio do seguro obrigatório automóvel e a
sua influência no direito da responsabilidade civil do próprio Código Civil. Sendo embora certo que, como é entendimento
do Tribunal de Justiça, “na falta de regulamentação comunitária que precise qual o tipo de responsabilidade civil relativa à
circulação de veículos que deve ser coberta pelo seguro obrigatório, a escolha do regime de responsabilidade civil aplicável
aos sinistros resultantes da circulação de veículos é, em princípio, da competência dos Estados-Membros”, não deixa de
ser igualmente verdade que as soluções decorrentes da interpretação das disposições das directivas ou do seu efeito útil
penetram (ou devem penetrar) as legislações nacionais nesse domínio; e a sua influência no direito português é visível,
quer na erradicação, do texto do art. 504º, dos limites aí estatuídos para a responsabilidade do transportador a título
gratuito, quer na alteração dos limites máximos indemnizatórios do art. 508º.
A corrente jurisprudencial tradicional é igualmente insensível à filosofia que dimana do regime, estabelecido no
Código do Trabalho, para os acidentados laborais, onde se estabelece que o dever de indemnização do empregador só é
excluído se o acidente “provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado”.
Estas são razões com força suficiente, a nosso ver, para pôr de remissa a interpretação jurisprudencial a que
vimos aludindo.
Com a obrigatoriedade de contratação de um seguro de responsabilidade civil como pressuposto da circulação de
veículos terrestres a motor – introduzida pelo Dec-lei 408/79, de 25 de Setembro – e verificada a íntima conexão material
entre as normas do Código Civil relativas à responsabilidade pelo risco em matéria de acidentes causados por veículos e
as deste último diploma (e os subsequentes, sobre a mesma temática do seguro obrigatório), impõe-se que a procura das
soluções do nosso direito positivo, nesta matéria, seja penetrada de uma lufada de ar fresco, sensível “às novas linhas de
força da relação entre o risco dos veículos e a fragilidade de certos participantes no tráfego” e que conduza à tutela destes
últimos, dos lesados mais frágeis.
Justifica-se, pois, cada vez mais, que se dê a devida atenção às vozes autorizadas de qualificados professores de
Direito, que vêm clamando contra a rigidez da doutrina tradicional.

3.2.4. O Prof. CALVÃO DA SILVA vem, no seu ensino universitário, entendendo que o texto do art. 505º,
devidamente interpretado, expressa a doutrina seguinte Cfr. a sua anotação ao Ac. STJ de 01.03.2001, na RLJ ano 134º,
págs. 112 e ss, e designadamente, quanto a este ponto, págs. 115/118.:

224
Sem prejuízo do concurso da culpa do lesado, a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída
quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de
força maior estranha ao funcionamento do veículo.
No entendimento deste ilustre Mestre conimbricense, a lei admite, assim, o concurso da culpa do lesado com o
risco próprio do veículo, sempre que ambos concorram na produção do dano, decorrendo essa admissibilidade (se bem
captámos o seu pensamento), do teor da parte inicial do preceito em apreço.
Na verdade – diz CALVÃO DA SILVA, decompondo a norma em análise – a ressalva feita no início do art. 505º
(“Sem prejuízo do disposto no artigo 570º”) é para aplicar à responsabilidade fixada no n.º 1 do artigo 503º; e esta é a
responsabilidade objectiva; logo, a concorrência entre a culpa do lesado (art. 570º) e o risco da utilização do veículo (art.
503º) resulta do disposto no art. 505º, que só exclui a responsabilidade pelo risco quando o acidente for imputável – i.e.,
unicamente devido, com ou sem culpa – ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte (exclusivamente) de força maior
estranha ao funcionamento do veículo.
E, efectivamente, parece-nos que só assim interpretado o art. 505º, logra significado e efeito útil a sua parte
inicial. Assentando a responsabilidade fixada no n.º 1 do artigo 503º no risco da utilização do veículo, e não na culpa, e
estando o concurso da conduta culposa do condutor ou detentor do veículo com facto culposo do lesado previsto
directamente no art. 570º, não seria razoável interpretar a parte inicial, acima transcrita, do art. 505º, como aplicável
havendo culpas de ambas as partes. Numa tal interpretação, aquela parte inicial seria absolutamente desnecessária:
mesmo que o art. 505º dela fosse amputado, sempre o caso de concorrência entre facto ilícito e culposo do condutor e
facto culposo do lesado seria regulado pelo disposto no art. 570º.
CALVÃO DA SILVA chama ainda, em favor da sua tese, vária legislação avulsa – em matéria de responsabilidade
civil por acidentes com intervenção de aeronave (Dec-lei 321/89, de 25 Set., art. 13º; Dec-lei 71/90, de 2 Mar., art. 14º), ou
de embarcação de recreio (Dec-lei 329/95, de 9 Dez., art. 43º), ou no domínio da produção e distribuição de energia
eléctrica (Dec-lei 184/95, de 27 Jul., art. 44º), e sobretudo, a respeitante à responsabilidade civil do produtor ou fabricante
de produtos defeituosos (Dec-lei 389/89, art. 7º/1, já acima referido) – onde expressamente se refere ou da qual decorre a
necessidade de conduta culposa exclusiva do lesado para afastar a responsabilidade pelo risco, ganhando particular
relevância este último diploma, que consagra “modelarmente” a tese da concorrência entre o risco da actividade do
fabricante e a culpa da vítima.
Assim, uma interpretação progressista ou actualista do art. 505º, que tenha em conta (art. 9º/1) a unidade do
sistema jurídico – isto é, que considere o sistema jurídico global de que a norma faz parte e, neste, o referido acervo de
normas que consagram o concurso da culpa da vítima com o risco da actividade do agente, e repute adquirida, como
princípio geral e universal do pensamento jurídico contemporâneo, essa regra do concurso – e as condições do tempo em
que tal norma é aplicada – em que a responsabilidade pelo risco é enfocada a uma nova luz, iluminada por novas
concepções, de solidariedade e justiça – impõe, segundo este autor, que se tenha por acolhida, naquele normativo, a regra
do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, nem sequer se lhe podendo opor o obstáculo representado
pelo n.º 2 do mesmo art. 9º, já que tal interpretação tem um mínimo de correspondência ou ressonância nas palavras da lei.
Também BRANDÃO PROENÇA se tem mostrado profundamente crítico em relação ao entendimento tradicional
nesta matéria, como logo deixa perceber a passagem, acima transcrita, de sua autoria.
Passagem que reflecte e reafirma um pensamento consolidado, já exaustivamente explanado num estudo de
grande valia, que constituiu a sua dissertação de doutoramento em Ciências Jurídicas “A conduta do lesado como
pressuposto e critério de imputação do dano extracontratual”, Liv. Almedina, Coimbra – 1997., onde este autor proclama
Ob. cit., págs. 275/276. que “a posição tradicional, porventura justificada em certo momento, esquece, hoje, que, por
exemplo, o peão e o ciclista (esse «proletariado do tráfego» de que alguém falava) são vítimas de danos, resultantes,
muitas vezes, de reacções defeituosas ou pequenos descuidos, inerentes ao seu contacto permanente e habitual com os
perigos da circulação, de comportamentos reflexivos ou necessitados (face aos inúmeros obstáculos colocados nas «suas»
vias) ou de «condutas» sem consciência do perigo (maxime de crianças) e a cuja danosidade não é alheio o próprio risco
da condução”, de tal modo que bem pode dizer-se “que esse risco da condução compreende ainda esses outros «riscos-
comportamentos» ou que estes não lhe são, em princípio, estranhos”.
“Numa época em que a relação pura de responsabilidade, nos domínios do perigo criado por certas actividades,
se enfraqueceu decisivamente, não parece compreensível, a não ser por preconceitos lógico-formais, excluir liminarmente
o concurso de uma conduta culposa (ou mesmo não culposa) do lesado, levando-se a proclamada excepcionalidade do
critério objectivo às últimas consequências”.
Daí a opção deste reputado jurista por uma interpretação mais harmónica, que não exclua à partida o concurso
entre o risco dos veículos e certas condutas dos lesados.
E é assim que, na ausência de uma norma específica, idêntica à do art. 7º/1 do Dec-lei 389/89, já acima citado,
propende para subsumir tal concurso ao critério do n.º 1 do art. 570º, “atendendo ao paralelismo das duas situações de
concorrência, sintonizadas com a necessidade de uma adequada repartição do dano” “A conduta do lesado ...”, pág. 819..
A este entendimento doutrinal mais moderno, de afirmação da concorrência do risco com a culpa da vítima – para
cujo desenvolvimento é de justiça salientar também o papel dos estudos desenvolvidos por JORGE SINDE MONTEIRO
desde há quase 30 anos Cfr. “Responsabilidade civil”, in RDEc., ano IV, n.º 2, Jul./Dez. 1978, pág. 313 e ss., e

225
“Responsabilidade por culpa, responsabilidade objectiva, seguro de acidentes, in RDEc., ano V, n.º 2, Jul./Dez. 1979, pág.
317 e ss. e ano VI/VII, 1980/1981, pág. 123 e ss. – têm aderido outros prestigiados juristas, como ANA PRATA Cfr. o estudo
intitulado “Responsabilidade civil: duas ou três dúvidas sobre ela”, in Estudos em comemoração dos cinco anos da Fac. de
Direito da Univ. do Porto, 2001, pág. 345 e ss., merecendo referência o actual posicionamento do Prof. ALMEIDA COSTA,
que, tendo seguido, durante muito tempo, a posição tradicional, na esteira de A. VARELA, se mostra agora sensível à
argumentação de BRANDÃO PROENÇA e dos demais arautos da tese da concorrência “Se um facto do próprio lesado, (...)
concorrer com a culpa do condutor, a responsabilidade poderá ser reduzida ou mesmo excluída, mediante aplicação do
artigo 570º. E, de igual modo, existindo concorrência de facto de terceiro, quanto à repartição da responsabilidade. Ora,
valerá esta doutrina para o caso de haver concurso de facto da vítima ou de terceiro, já não com a culpa do condutor, mas
com o risco do veículo? Respondem afirmativamente VAZ SERRA, (...), PEREIRA COELHO, (...), SÁ CARNEIRO, (...), e
por último BRANDÃO PROENÇA, (...). Afiguram-se-nos ponderosas as considerações aduzidas, designadamente na
perspectiva da tutela do lesado” (Direito das Obrigações, 10ª ed. reelaborada, Almedina, Setembro/2006, pág. 639, nota 1.
Entre os práticos do direito tem sido o Juiz Desembargador AMÉRICO MARCELINO, com argumentação
consistente, um estrénuo defensor deste entendimento Cfr. “Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil”, 8ª ed. revista e
ampliada, pág. 309 e ss..

3.2.5. Já acima se aludiu à influência das directivas comunitárias no domínio do seguro obrigatório automóvel e
no direito da responsabilidade civil, defendendo-se que a interpretação das suas disposições ou o seu efeito útil geram
soluções que penetram (ou devem penetrar) as legislações nacionais nessas matérias Cfr. a propósito desta temática, o
importante estudo do Conselheiro José Carlos Moitinho de Almeida, “Seguro obrigatório automóvel: o direito português face
à jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias”, acessível em www.stj.pt (link Estudos Jurídicos).
Explicitando melhor o sentido dessa afirmação, diremos que as soluções que, no âmbito da aplicação das cinco
directivas comunitárias existentes em matéria de seguro obrigatório automóvel, têm sido afirmadas pelo Tribunal de Justiça,
não podem deixar de ser tidas em conta na interpretação do direito nacional.
Entende o Tribunal de Justiça (TJ) que, salvo no tocante à situação prevista no art. 2º, n.º 1 da 2ª Directiva –
pessoas que se encontrem no veículo causador do acidente e que tenham conhecimento de que este era roubado – não
são admissíveis disposições legais ou cláusulas contratuais que excluam, em determinadas circunstâncias, a
responsabilidade da seguradora. Assim, v.g., não pode excluir-se a cobertura do seguro quando o condutor se encontre sob
a influência do álcool.
No acórdão Candolin (acidente provocado por condutor que seguia com uma taxa de alcoolemia de 2,08, daí
resultando a morte de um passageiro e danos no veículo, cujo proprietário era outro dos passageiros transportados), o TJ,
depois de reafirmar aquele seu entendimento, salientou ainda que o escopo visado pelo legislador comunitário, nas 1ª (art.
3º/1), 2ª (art. 2º/1) e 3ª (art. 1º) Directivas, foi o de “permitir que todos os passageiros vítimas de acidente causado por um
veículo sejam indemnizados dos prejuízos sofridos”, não podendo o direito nacional retirar àqueles preceitos o seu efeito
útil – consequência que se produziria se, com base em critérios gerais e abstractos, a legislação de um Estado-Membro,
fundada na contribuição do passageiro para a produção do dano por ele sofrido, afastasse a indemnização devida pela
seguradora ou a limitasse desproporcionadamente.
Ora, a fundamentação do acórdão, respeitando embora à obrigação da seguradora, tem igual valimento no
domínio da responsabilidade civil. Se o “efeito útil” das aludidas Directivas impõe que os passageiros transportados, que
hajam sofrido danos, sejam indemnizados, mesmo que, por sua culpa, tenham contribuído para a verificação desses danos,
de concluir é que essa deve ser a solução imposta pelas regras da responsabilidade civil, já que o respectivo seguro se
encontra condicionado, no seu funcionamento, por essas regras.
E o que se diz para os passageiros transportados vale igualmente para os peões, ciclistas e outros utilizadores
não motorizados das estradas, que constituem, normalmente, a parte mais vulnerável num acidente, e cujo ressarcimento é
também preocupação das Directivas comunitárias.
Num outro caso, que deu origem ao Acórdão Elaine Farrell, o TJ entendeu que a cobertura do seguro obrigatório
deve abarcar os danos causados aos passageiros transportados em parte do veículo não destinada a essa finalidade, e
que o “efeito útil” do art. 1º da 3ª Directiva impede que, com base em critérios gerais e abstractos, um direito nacional
exclua ou limite de modo despropor-cionado a indemnização de um passageiro, pelo simples facto de ter contribuído para o
dano.
Não se afigura, assim, compatível com o direito comunitário – e, designadamente, com o art. 1º da 3ª Directiva –
a interpretação que, do art. 505º, vem fazendo a doutrina tradicional, no sentido de que a simples culpa ou a mera
contribuição do lesado para a produção do dano exclui a responsabilidade pelo risco, contemplada no art. 503º. O efeito útil
das disposições comunitárias acima aludidas impõe sempre a indemnização das vítimas de acidentes causados por
veículos automóveis, excepto se se tratar de passageiros transportados, com seu conhecimento, em veículo roubado.
Como é entendimento do TJ, que diz decorrer dos arts. 189º (actual 249º) e 5º do Tratado CE, as jurisdições
nacionais devem, dentro do possível, interpretar o respectivo direito nacional à luz das Directivas comunitárias no caso
aplicáveis, mesmo que não transpostas ou incorrectamente transpostas. É a chamada obrigação de interpretação
conforme.

226
É também a esta luz que entendemos, procedendo, dentro do possível, a uma interpretação conforme com o
direito comunitário, das regras nacionais sobre a responsabilidade civil objectiva, que essas normas consagram a
possibilidade de concurso do risco do condutor do veículo com a conduta culposa do lesado, e que a responsabilidade pelo
risco só é excluída, tal como entende CALVÃO DA SILVA, quando o acidente for imputável – i.e., unicamente devido, com
ou sem culpa – ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte (exclusivamente) de força maior estranha ao
funcionamento do veículo. Não sendo esse o caso, logrará aplicação, na fixação da indemnização, o art. 570º.

3.3. Regressando ao caso concreto aqui em apreciação, importa, pois, indagar se, para além da culpa da
autora, condutora do velocípede, terá contribuído para a eclosão do sinistro o risco próprio do veículo automóvel.
Analisando a matéria de facto provada, parece-nos que se impõe responder afirmativamente a esta questão, não
sendo possível concluir que o acidente é unicamente ou exclusivamente imputável à autora – é dizer, que a actuação desta
foi, só por si, idónea para a ocorrência do acidente, e que o veículo automóvel foi para tal indiferente, sem que a sua típica
aptidão para a criação de riscos tenha contribuído para o mesmo acidente. Nem a tal conclusão obsta o que consta da
parte final do n.º 50 da “matéria de facto” supra, já que a referência aí contida à inevitabilidade do acidente (“tornando o
acidente inevitável”) é um mero juízo conclusivo, não um facto que haja de ter- -se em conta.
Em causa está um acidente com intervenção de um velocípede simples, conduzido por uma criança de 10 anos
de idade, e um veículo auto ligeiro, cuja perigosidade, em abstracto, decorre da sua própria natureza – das suas
dimensões, do seu peso, da velocidade que pode atingir, da maior ou menor dificuldade em o manobrar – de “máquina
enquanto engrenagem de complicado comportamento”; e que, na situação concreta, era timonado, numa via também
aberta a veículos não motorizados, por uma condutora inexperiente, habilitada há menos de seis meses, factos só por si
potenciadores do risco próprio da viatura.
E deverá atentar-se em que o veículo embateu no velocípede com a sua parte frontal esquerda, junto à zona do
farol do lado esquerdo – é dizer, quando o velocípede já tinha cruzado quase toda a frente do Renault – projectando para
cima a condutora do velocípede, contra a parte esquerda do pára-brisas e atirando-a para a berma esquerda da estrada. A
estrutura física (as dimensões, a largura) do veículo está assim, a nosso ver, inelutavelmente ligada à ocorrência do
acidente.
Por outro lado, o automóvel, enquanto máquina de funcionamento complexo, domina-se e controla-se tanto
melhor – diminuindo o seu perigo potencial para os utentes das vias – quanto mais experimentado e hábil for o condutor. E
a experiência ganha-se com a prática da condução, ao longo dos anos; e com esta vai-se também aguçando a habilidade,
e vai-se ganhando uma capacidade de reacção quase instintiva a situações complexas do tráfego rodoviário que um
condutor neófito não detém, sem que, porém, tal lhe possa ser censurado, no plano da culpa.
Ora, dentro dos riscos próprios do veículo, a que se refere o art. 503º do CC, cabem, “além dos acidentes
provenientes da máquina de transporte, os ligados ao outro termo do binómio que assegura a circulação desse veículo (o
condutor)” A. VARELA, “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 7ª ed., pág. 664.. E, em nosso entender, surpreende-se, no caso
concreto – enquanto factores que contribuíram para a verificação do acidente – a conjugação do perigo do próprio veículo
com a inexperiência da sua condutora, potenciadora desse perigo.
Não se quer significar – não é demais reafirmá-lo, para que dúvidas não restem – que esta inexperiência se tenha
projectado no domínio da culpa, em termos de a ligar a qualquer conduta negligente (por acção ou omissão) da condutora
do Renault; quer-se apenas dizer que essa falta de experiência, condicionando inelutavelmente o total e absoluto domínio
das “artes” da condução, não deixou de se repercutir, em sede de causalidade, no processo dinâmico que levou à eclosão
do evento lesivo.
Por isso, sem embargo de se reconhecer que o caso concreto não se reconduz às situações mais claras e nítidas
que podem ocorrer no domínio da concorrência entre culpa e risco, deve, ainda assim, concluir-se que, para o acidente – e
para os danos que dele resultaram para a ora recorrente, condutora do velocípede – contribuíram a conduta desta,
violadora das regras do direito estradal referidas na sentença da 1ª instância, e os riscos próprios do veículo Renault.
O que, de acordo com a interpretação do preceituado no art. 505º, acima operada, reclama a
subsunção desta situação concursual de causas do dano à norma de repartição do dano que é o art. 570º.

3.4. Importa, para tanto, que se cure da determinação dos danos sofridos pela autora.
Esta reclama indemnização por danos patrimoniais – no montante global de 83.000$00, correspondentes a
despesas com transportes, medicamentos e reparação do velocípede – e por danos não patrimoniais – pelas dores físicas
e psíquicas que suportou, pela tristeza, abatimento, inibição e diminuição perante as colegas e demais pessoas, pela perda
de afirmação pessoal, pelas sequelas permanentes das lesões.

O montante indemnizatório é fixado de acordo com juízos de equidade, tendo em conta as circunstâncias
concretas de cada caso.
Tendo em atenção o aludido e apurado quadro fáctico – particularmente impressivo na revelação de alguns dos
mais marcantes componentes do dano não patrimonial: quantum doloris de grau 4 (numa escala de 1 a 7); prejuízo
estético, de especial relevo numa jovem mulher como é agora a autora; perda de afirmação pessoal, também aqui de

227
significado não despiciendo, porque respeita à inserção e relacionamento social de alguém que atinge agora a fase adulta
da vida – e as circunstâncias a que manda atender o n.º 3 (1ª parte) do art. 496º, e atentando ainda nos padrões
indemnizatórios geralmente adoptados na jurisprudência, afigura-se-nos conforme à equidade, fixar agora em € 20.000,00
(vinte mil euros) o valor do dano não patrimonial traduzido no sofrimento físico e psicológico, no desgosto e nas inibições
que as lesões sofridas provocaram na autora, hoje uma jovem de 19 anos de idade.
Isto antes de fazer funcionar o critério de repartição do dano, previsto no art. 570º.
Importa, porém, como vimos, fazer intervir este preceito.
Embora no concurso de causas – o risco e o facto da vítima – a actuação da autora tenha tido um peso
significativo na produção do dano, considerada a gravidade que encerra o atropelo das regras de trânsito no caso violadas,
a justificar, por isso, a redução significativa da indemnização, afigura-se-nos, no plano de uma adequada ponderação de
interesses, que a justiça do caso concreto, em que a equidade se funda, não pode perder de vista a própria condição da
vítima ao tempo da produção do dano – uma criança de dez anos que, com a despreocupação e imprudência próprias da
idade, não atentou no sinal de trânsito que lhe impunha a obrigação de ceder passagem aos veículos que transitassem na
via de que se aproximava – cuja conduta causal não pode ser analisada e valorada por critério igual ao aplicável a um
ciclista adulto, sem levar em conta a sua condição de “desadaptada ao tráfego”, de que fala BRANDÃO PROENÇA.
Vale isto dizer que, a nosso ver, a indemnização acima aludida não deve ser objecto de redução que ultrapasse
60% do seu valor, entendendo-se conforme à equidade fixá-la, no quadro do art. 570º/1, em € 8.000,00 (oito mil euros).
Por tal indemnização é responsável a ré recorrida, para a qual se achava transferida, pelo dono do veículo
Renault, por contrato de seguro válido à data do acidente, a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação com
intervenção desse veículo.

4.
Face a tudo quanto se deixa exposto, concede-se em parte a revista e, revogando-se o acórdão da Relação,
condena-se a ré recorrida a pagar à autora recorrente, como indemnização pelos danos não patrimoniais por esta sofridos,
a quantia de € 8.000,00 (oito mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data deste acórdão.
Custas, aqui e nas instâncias, por autora e ré, na proporção do vencido (e sem prejuízo do apoio judiciário de que
a autora beneficia).

*
Lisboa, 4 de Outubro de 2007

Santos Bernardino (relator)


Bettencourt de Faria
João Bernardo, com declaração de voto (*)
Pereira da Silva, com declaração de voto (**)
Rodrigues dos Santos, com declaração de voto (***)

(*)
«I - Votei o acórdão, conquanto me pareça - ressalvada sempre a muita consideração - que não é facilmente
conciliável a culpa do lesado com o risco, entendido este nos termos tradicionais.
Creio que se poderia ir mais além, conforme passo a, sumariamente, expor.
II – A responsabilidade civil foi regulada no nosso Código Civil no prisma do atingimento do agente, na sua esfera
patrimonial. O património deste merece, à partida, tutela, mas situações há em que o seu comportamento justifica que tal
património seja atingido com a obrigação de indemnização. Em primeira linha, porque agiu com culpa e produziu danos a
outrem e, em segunda linha, porque assumiu um risco do qual derivou a produção também de danos a outrem.
Daí a redacção – entre muitos e pensando já no caso dos acidentes de viação - dos artigos 483.º, n.º1 (“Aquele
que com dolo ou mera culpa violar…fica obrigado a indemnizar…”) e 503.º do Código Civil (“Aquele que tiver a direcção
efectiva de qualquer veículo…, Aquele que conduzir veículo por conta de outrem…”)
III – Este modo de ver as coisas e no que respeita aos acidentes de viação com veículos, sofreu profunda
alteração de origem comunitária.
Passou-se a encarar esta problemática na perspectiva da vítima, tendo-se conjugado tal perspectiva com o
alcance social do seguro obrigatório.
Assim, muito exemplificativamente:
“ A institucionalização do seguro obrigatório… revelou-se uma medida de alcance social, inquestionável, que, com
o decurso do tempo, apenas impõe reforçar e aperfeiçoar, procurando dar uma resposta cabal aos legítimos interesses dos
lesados em acidente de viação” - preâmbulo do Decreto-Lei n.º522/85, de 31.12;
“Considerando que os montantes até à concorrência dos quais o seguro é obrigatório devem permitir, em toda e
qualquer circunstância, que seja garantida às vítimas uma indemnização suficiente, seja qual for o Estado membro onde o
sinistro ocorra”- considerandos da Directiva do Conselho de 30.12.1983 (84/5/CE);

228
“Considerando que deve ser garantido que as vítimas de acidentes de veículos automóveis recebam tratamento
idêntico…” – considerandos da Directiva do Conselho de 14.5.1990 (90/232/CEE);
“Considerando que, no sector da responsabilidade civil automóvel, a protecção dos interesses dos sinistrados que
podem reclamar uma indemnização diz respeito a todos e que, por conseguinte, é conveniente velar por que os sinistrados
não sejam prejudicados ou sujeitos a maiores incómodos…” considerandos da Directiva do Conselho de 8.11.1990 (90/618
CEE);
“É efectivamente adequado completar o regime instituído pelas Directivas … a fim de garantir que as pessoas
lesadas por acidentes de viação recebam tratamento idêntico… isso implica a concessão à pessoa lesada do direito de
acção directa contra a empresa de seguros…”- considerandos da Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho de
16.5.2000 (2000/26/CE);
Toda esta ideia básica de protecção da vítima se vem acentuando, nomeadamente, com a 5.ª Directiva
(transposta, como as demais, para a ordem jurídica interna) e pelo Decreto-Lei n.º291/07, que vai revogar aquele Decreto-
Lei n.º 522/85, de 31.12.
IV – Este modo de encarar a realidade dos acidentes com veículos a motor, que foi sendo recebida na ordem
jurídica interna, não constitui plenamente o reverso da medalha, cujo verso corresponde à visão que deixámos expressa
em II.
Se encararmos a problemática na perspectiva da vítima, vêm ao de cima muitas realidades que a visão do nosso
Código Civil deixara obnubiladas. Referimo-nos, por exemplo, aos casos em que o acidente é originado pela vítima, mas
sem que se lhe possa assacar culpa (porque é inimputável em razão de anomalia psíquica ou da idade, sendo a “culpa in
vigilando”, de todo, desadequada para ser aqui adaptada) ou em que a culpa é leve. E, noutro âmbito, na perspectiva do
lesado, passou a ser incompreensível que haja lugar a indemnização se o dono do veículo tinha a direcção efectiva dele,
utilizando-o no seu próprio interesse e não a haja – da seguradora – se tais requisitos não se verificarem, como, por
exemplo, no caso de furto.
V – Por outro lado, esta protecção ao lesado é bem compreensível.
Os acidentes com veículos constituem, nas sociedades modernas, a principal causa de morte ou de lesões
graves numa longa fase da vida do ser humano. A este depara-se-lhe uma realidade que constitui – na perspectiva que
aqui nos interessa dos acidentes e suas consequências – um desvalor particularmente intenso, que justifica que a ideia de
indemnização se vá afastando do modo como o acidente se deu, relegando, nomeadamente, para menor importância, a
questão da culpa ou dos fins por que o condutor pôs o veículo em movimento. É na própria circulação dos veículos,
encarada no seu todo, que se vai procurar, cada vez mais, a razão de ser da indemnização. O acidente em si representará
uma concretização já com esse “pano de fundo”.
E, tanto assim é, que noutras ordens jurídicas, com expressão mais acentuada na Lei francesa de 5.7.1985, a Lei
Badinter - toda ela redigida na perspectiva da vítima de acidentes de circulação em que esteja implicado um veículo
terrestre a motor - se vêm favorecendo claramente os lesados.
Por outro lado, e como já se salienta no texto do acórdão, em muitos domínios da nossa vida social, os
legisladores vêm assumindo protecção dos lesados, atenta a realidade que subjaz à eclosão de danos. Os acidentes de
trabalho, a responsabilidade do produtor, os acidentes com aeronaves, os casos de lesões graves resultantes directamente
de actos intencionais de violência são alguns dos exemplos em que o lesado, pela via da indemnização, beneficia dum
regime legal favorável, desligado da culpa de quem indemniza e, muitas vezes, dele próprio.
Sendo certo que, em muitos dos casos assim contemplados, estão em causa situações bem menos delicadas do
que, por exemplo, a nossa. Basta pensar-se na culpa do acidentado de trabalho que não perde, por isso o direito à
indemnização (a não ser nos casos de culpa grosseira) e na eclosão do acidente de viação aqui em causa em que uma
menor, de dez anos, conduzindo um velocípede sem motor, não “respeita”(?) um sinal de aproximação de estrada com
prioridade.
VI - No nosso país, à parte o recebimento das directivas, o legislador tem-se mantido imóvel perante a
enormidade que atingiu a circulação automóvel, comparada com a do tempo em que se conceberam as disposições do
Código Civil.
Justifica-se, então, uma interpretação actualista de tais disposições legais, imposta, aliás, atento todo o quadro
que vimos traçando, pelo artigo 9.º. n.º1 parte final do mesmo código. E impulsionada, não só pelas disposições de origem
comunitária, como também pelos Acórdãos do TJCE citados no texto do nosso acórdão.
VII – Só que, da visão actualista, resulta, a meu ver, por um lado, algum rompimento com o próprio conceito de
risco que emerge das disposições de tal código (atente-se, por exemplo, no artigo 8.º, n.º2 do Decreto-Lei n.º 522/85) e, por
outro, a minoração da importância da culpa do lesado, remetendo-a apenas para um dos critérios, de entre vários, que o
tribunal deve ter em conta para decidir (vejam-se os referidos Acórdãos do TJCE).
A fonte da indemnização já não se irá buscar, dogmaticamente, ou à culpa ou ao risco, mas brota logo,
alimentada pela enormidade que constitui a circulação de veículos conjugada com as regras do seguro obrigatório. Repare-
se, por exemplo, na técnica usada na mencionada Lei Badinter. Parte-se logo da indemnização às vítimas de acidentes de
circulação e, depois, como excepção, surge a culpa grave do lesado (“faute inexcusable”), aliás, não relevante nos casos
em que os acidentados têm menos de 16 (e tenhamos presente o nosso caso…) ou mais de 70 anos ou sejam titulares de

229
incapacidade de, pelo menos, 80%. Não se procurou um estribo na culpa ou em risco (que nem é sequer ali referido) para
se indemnizar.
VIII – Efectuado o mencionado rompimento, já não se coloca, com acuidade, a questão da concorrência entre
culpa e risco. Ultrapassar-se-ia, deste modo, a dificuldade que referimos em I.
IX – Todavia, assim raciocinando, abrimos campo a um mar de incertezas, sobre os parâmetros de protecção ao
lesado. Desde a sua inimputabilidade, em razão da idade ou de anomalia psíquica, passando pela afectação não culposa
da sua capacidade de atenção como a resultante da influência de medicamentos ou de provecta idade, e seguindo para a
maior vulnerabilidade do peão e do ciclista nos acidentes com veículos a motor, sem olvidar os casos em geral de culpa
leve ou não exclusiva, tudo serve, ou pode servir, para restabelecer, pela via indemnizatória, um equilíbrio entre os
intervenientes em acidentes de viação que estava comprometido à partida.
O TJCE já vem tutelando, nos sobreditos arestos, protecção especial aos transportados no veículo acidentado. As
suas palavras – nomeadamente nos considerandos – inculcam a ideia de que é de estender tal protecção a outros casos.
Situam-se, pois, “prima facie”, em sede de direito comunitário os critérios de protecção dos lesados em acidentes
de viação.
Daí que entenda que se justificaria, no presente caso – e ressalvada, mais uma vez, a muita consideração – o
reenvio prejudicial.
Não se lançando mão do reenvio, entendo que o presente acidente se situa, gritantemente, entre os merecedores
de protecção da lesada. Era uma criança de 10 anos, que circulava de bicicleta e que colidiu com um automóvel. A sua
idade não permitirá mesmo que se fale, com propriedade, em desrespeito pelo sinal de prioridade ou, latamente, em culpa
dela. Terá havido “culpa in vigilando” – cujos contornos não resultam dos factos - mas, como já referimos, esta é
manifestamente desadequada para tutelar estes casos.
Por isso, votei o acórdão.»

(**)
«Vencido. Negaria a revista, confirmando, por mor de tal, integralmente, o acórdão impugnado, sopesado que:
No exarado no artº 505º do CC, mesmo interpretado consoante sufragado por Vaz Serra ou Calvão da Silva, e é
outrossim, proposto por Brandão Proença, estes alguns dos civilistas «convocados» em abono da tese que fez vencimento,
não encontra aquela, não obliterado o provado, justo repouso, salvo sempre o devido respeito por entendimento díspar.
Inexiste, entre nós, norma consagrando a não permissão de oponibilidade da «faute inexorable» para os danos
corporais sofridos pelos menores, desta ou daquela idade, mesmo que aquela tenha sido a causa motriz e exclusiva do
acidente.
Efectivamente:
Em nosso entender, «in casu», resulta, mas seguramente, do apurado que o sinistro foi na realidade devido,
unicamente, a culpa grave da lesada, a infeliz autora, para a eclosão do acidente de viação não tendo, consequentemente,
contribuído o risco próprio do veículo automóvel.
Estamos, a nosso ver, ante paradigmática hipótese em que, mesmo engrossando as «fileiras» dos que, com
acerto, adite-se, recordam, como Brandão Proença, que um «pensamento jurídico moderno, actualizado, faz da tutela dos
lesados no tráfego rodoviário o seu leitmotiv» (in « Cadernos de Direito Privado», nº 7, Julho/Setembro de 2004, pág.25),
outra solução se não impunha, em sede de revista, que não a confirmação do naufrágio, «in totum», da acção, sem mácula
decretado pelas instâncias.
O ter-se feito funcionar a concorrência heterogénea, o havido apelo à solução concursal, riscos próprios do
veículo/conduta da lesada, culposa, nela se tendo feito assentar a bondade da parcial concessão da revista, toda a
materialidade fáctica a ponderar a apreciada, naquela, repito, não antolho arrimo.»

(***)
«Vencido conforme voto do Exmo Conselheiro Pereira da Silva»

Este Acórdão está favoravelmente comentado pelo Prof. Calvão da Silva, na RLJ
137, pág. 49 a 64: «só havendo prova certa e segura do facto da vítima ou de terceiro (ou de força
maior) como causa única e exclusiva do acidente é que não haverá lugar ao concurso do risco próprio
do veículo com o facto do lesado, em conformidade com a sobredita interpretação actualista do art.
505º e o sobreanalisado diretio comunitário que apenas em circunstâncias excepcionais admite limitar
não desproporcionadamente – já não recusar ou ecluir – a indemnização da vítima, com base numa
apreciação individual da sua conduta em concreto».

Força maior - tem de ser estranha ao funcionamento do veículo e inevitável com as


precauções normalmente exigíveis aos condutores.

230
"Caso de força maior (na definição de Enneccerus-Nipperdey) é o acontecimento cognoscível, imprevisível e
que não deriva da actividade em curso, e que, por isso mesmo, lhe é exterior, e cujo efeito danoso não pode evitar-se com
as medidas de precaução que racionalmente seriam de esperar. Desta sorte, para se poder dizer que há uma causa de
força maior é necessário que o acontecimento causal seja exterior à pessoa do detentor e da própria coisa que provoca ou
produz o risco".
Assim, "a causa de força maior configura-se pelo seu carácter de facto imprevisível (para as pessoas
normalmente avisadas) e inevitável (apesar de toda a diligência possível). Objectivamente, surge como fenómeno
inesperado; subjectivamente, toda a diligência possível é inoperante para o deter ou minimizar. Para poder excluir a
responsabilidade pelo risco terá de ser, porém, estranha ao funcionamento do veículo".
Ora, in casu, não era a situação imprevisível porquanto a chuva que caíra e havia humedecido o terreno em que a
máquina trabalhava, assim como a proximidade de pessoas como o sinistrado, faziam prever, pelo menos para uma pessoa
medianamente avisada, que o piso pudesse ceder ao peso de uma máquina como a utilizada e a máquina viesse a atingir
qualquer daquelas pessoas.
Ademais, o desequilíbrio da máquina nem sequer é estranho ao seu funcionamento, constituindo um dos riscos
próprios deste género de veículos, qualquer que seja a sua causa. Sendo certo que as circunstâncias em que ocorreu
aquele desequilíbrio não podem ser consideradas excepcionais ou anómalas para poderem afastar o nexo de causalidade
adequada entre os riscos próprios do veículo e o acidente.
Desta forma, parece inteiramente justificada a conclusão de que a ré "José Moreira Fernandes & Filhos, Lda.", é
responsável pelos danos causados (nos termos do art. 500°, n° 1, do Cód. Civil), já que o condutor da retro escavadora era
seu empregado, actuando sob as suas ordens, no exercício das respectivas funções – Ac. STJ (Consº Araújo Barros) de
4.10.2004, na Col. Jur. (STJ) 2004-III-43.

Provando-se apenas que o condutor de um veículo não teve culpa no acidente e não se
provando culpa da vítima, de terceiro ou caso de força maior, existe responsabilidade pelo risco a
cargo de quem tiver a direcção efectiva da viatura e a utiliza no seu próprio interesse - 505º e 503º, 1 -
Col. 82-I-95.

Acidente de viação
Responsabilidade pelo risco
Culpa não provada
Condutor/proprietário do veículo
Peão
I - Num acidente de viação entre um veículo automóvel e um peão, face à ausência de culpa provada, pelo
afastamento da responsabilidade subjectiva de ambos os intervenientes, a questão terá de ser analisada sob o prisma da
responsabilidade pelo risco, com fundamento no n.º 1 do artigo 503º do Código Civil
II - Tal responsabilidade apenas será de excluir se o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou
houver resultado de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
III - É, também, de afastar a presunção de culpa do nº 3 do artigo 503º do Código Civil quando o condutor do
veículo atropelante for também seu proprietário - STJ 23.3.2000, BMJ 495-298

Ac. do STJ (Cons.º Ferreira de Almeida), de 14/04/2005, P.º 05B686 do ITIJ:

I. O nexo de causalidade (naturalístico) constitui matéria de facto, cujo conhecimento, apuramento e sindicância
se encontram subtraídos ao Supremo, como tribunal de revista que é, sendo que indagar se, na sequência do
processamento naturalístico dos factos, estes funcionaram ou não como factor desencadeador ou como condição
detonadora do dano, é algo que se insere no puro plano factual.

II. Subjaz à responsabilidade pelo risco a que se reporta o artigo 503°, n°1, do Código Civil, o princípio " ubi
commoda ibi incommoda": os veículos são portadores de perigos especiais que obrigam a determinados cuidados ou
prevenções por banda de quem os possui ou utiliza, pelo que quem concretamente (da respectiva utilização) retira os
benefícios e colhe os correspondentes proveitos, terá também de suportar os inerentes incómodos (advenientes do perigo
de circulação da própria viatura) e independentemente de existência de culpa por banda do seu proprietário.

III. Se não ficar provada a culpa de qualquer dos intervenientes para a produção do evento danoso, é de convolar
a responsabilidade baseada na culpa para responsabilidade baseada no risco, sendo que uma tal convolação se traduz
numa operação de qualificação jurídica.

231
Por o acidente ser claramente imputável a terceiro não pode a CP ser responsabilizada por danos causados em
passageiro por pedra arremessada por desconhecido e que atingiu esse passageiro - Col. STJ 2001-I-75.

Colisão de veículos - 506º

1 - CULPA - provada ou presumida

a) - de ambos os condutores - cada um responde pelos danos correspondentes ao facto


que praticou - 483º e 570º. Em caso de dúvida considera-se igual a culpa de cada um - 506º, in fine.

Quando para a produção de um acidente tenham concorrido vários veículos cujos condutores
agiam por conta de terceiro, e que não tenham logrado ilidir a presunção estabelecida na primeira
parte do nº 3 do art. 503º do Código Civil, consideram-se com o mesmo grau de culpa para efeitos de
reparação de danos causados a terceiros - Col. 90-I-293 e Assento de 26.1.94, o nº 3/94,
também publicado no BMJ 433-69.

No caso de colisão de veículos conduzidos por comissários, e não se provando a ausência de culpa de algum
deles, o acidente deve ser atribuído a culpa de ambos os condutores, os quais são solidariamente responsáveis pelos
danos causados a terceiros (artigo 497.°, n.º 1).
Em relação aos danos sofridos por ambos ou por algum desses condutores, deverá atender- -se, na fixação
da indemnização, ao disposto no artigo 570º, n.° 1; o «facto culposo do lesado», aí previsto, pode basear-se em simples
culpa presumida, quando for desta natureza a culpa do lesante, até pelo confronto com o disposto no n.° 2 desse artigo; há
aí culpas simultâneas e concorrentes, porque «à culpa de cada um dos condutores corresponde a culpa de cada um dos
lesados» - BMJ 426-471.

b) - de um só dos condutores - só ele responde por todos os danos: no outro veículo,


pessoas e coisas transportadas em ambos os veículos ou não.

2) - SEM CULPA

a) - Danos nos dois veículos:


No caso de colisão de veículos prevista no artigo 506.°, n.º 1, do Código Civil, em que ambos
os condutores tenham contribuído para os danos e não haja culpa de nenhum deles, há que somar
todos os danos resultantes da colisão (não só os causados nos próprios veículos como também os
causados nas pessoas ou nas coisas neles transportadas) e repartir a responsabilidade total na
proporção em que cada um dos veículos houver contribuído para a produção desses danos, sendo
que, em caso de dúvida, se considera igual a medida de contribuição de cada um dos veículos para os
danos, nos termos do n.° 2 do mesmo artigo - BMJ 439-538 e art. 506º, nº 1, 1ª parte.

b) - Danos em um só dos veículos - idem; reparte-se a responsabilidade nesse dano


segundo a proporção em que o risco de cada um dos veículos para ele contribuiu.

3 - Danos causados por um só dos veículos - só aquele que os produziu é obrigado a


indemnizar - 506º, 1, parte final.

Resp. Solidária - 497º (culpa) e 507º (risco)

Havendo vários responsáveis, ainda que um responda por culpa e outro pelo risco , é
solidária a responsabilidade de todos, designadamente quando o comissário responde por culpa

232
presumida e o comitente pelo risco, como garante da indemnização. Pelo que o lesado pode exigir de
qualquer deles a indemnização por inteiro - 512º, nº 1.
Porém, se o lesado tiver contribuído para o acidente, verá proporcionalmente reduzido o
montante indemnizatório a que teria direito - Col. 00-I-268

Ac. do STJ (Cons.º Ferreira de Almeida) de 24.6.2004, na Col. Jur. (STJ) 2004-II-15:

«11. Responsabilidade civil das RR. perante a lesada.


A responsabilidade das seguradoras mede-se e afere-se, como é sabido, pela dos respectivos segurados, o que
constitui, de resto, o cerne e o escopo do contrato de seguro.
A sinistrada (peão) foi atropelada na berma da via, tal como vem assente em sede factual.
Nenhuma das RR. aceita a responsabilidade do respectivo segurado, antes a imputando ao outro segurado co-
interveniente.
Sustenta a Ré "Tranquilidade" que foi o "RD" que iniciou a ultrapassagem quando o "JP" já estava a executar a
manobra de ultrapassagem, assim lhe cortando a linha de trânsito; pelo contrário, afirma a Ré "HDI" que foi o "JP" que
pretendeu efectuar uma dupla ultrapassagem, ou seja: ultrapassar o "RD" quando este já empreendia a ultrapassagem a
outro veículo.
Mas o que nos mostram os autos em material de facto?
- à frente do "JP", seguia um táxi, à frente do táxi seguia o "RD", à frente deste seguia um veículo automóvel de
instrução de condução auto;
- o veículo "JP" iniciou a ultrapassagem do táxi, pela esquerda;
-o veículo "RD" iniciou a ultrapassagem do veículo que o precedia, invadindo a hemifaixa esquerda;
- para evitar embater no "RD", o condutor do "JP" travou e desviou-se para a sua esquerda invadindo a berma
onde colheu a Elsa Maria;
- o local é um recta de boa visibilidade, com 6,10 metros de largura.
Tal como salientou a Relação, perante tal factualidade não se torna possível concluir com segurança a qual dos
condutores atribuir a culpa pela produção do evento.
Qual dos dois veículos "JP" ou "RD" iniciou (primeiro) a manobra de ultrapassagem do veículo que seguia à sua
frente, sem que previamente se houvesse certificado de que o poderia fazer sem perigo de aciente?
Ou seja a qual dos condutores imputar, em exclusivo, a contra-ordenação causal p. e p. no art. 38°, n.os 1 e 2, al.
c), do CE/94?
Sem dúvida que ambos executaram uma manobra de ultrapassagem do veículo que seguia à sua frente, mas não
se torna possível saber, com um mínimo de certeza e segurança, qual das manobras haja funcionado como causa
principalmente detonadora do sinistro e qual o grau/proporção de culpa, se é que ela existiu, de cada um dos condutores
em presença.
A Relação não usou a este respeito de qualquer presunção judicial, tal como era teoricamente possível fazê-lo
com apelo ao disposto no art. 349° do Cód. Civil.

Antes subsumiu a hipótese na estatuição-previsão nos n.os 1 e 2 do art. 506º e art. 507°, nº 1 do Cód. Civil -
critério da repartição do risco - e a verdade é que tais normas não contemplam apenas os casos de danos para qualquer
um dos veículos ou para ambos advenientes de uma colisão entre eles, mas também os danos resultantes para terceiro,
(designadamente um peão que seja colhido na berma da estrada por qualquer deles em consequência da colisão entre
ambos, tal como sucedeu na hipótese sub judice).
Tal como escreve Antunes Varela in "Das Obrigações em Geral", vol I, 9ª ed., págs. 710 e 711, trata-se de "danos
em cujo processo causal interferem simultaneamente os dois veículos e, que, nessa ordem de ideias, não podem deixar de
recair sobre as pessoas por cuja conta corre o risco dos veículos". E isto porque "as considerações que mandam atender à
contribuição do risco quanto aos danos causados nos veículos, procedem no sentido de outro critério não dever vigorar
quanto aos danos restantes provocados pela mesma ocorrência (concreta). Outro critério de repartição seria ilógico e, além
de ilógico, arriscava-se seriamente a ser injusto".
E, mais adiante: "se a disposição do art. 506º, nº 1, 1ª parte, se funda "em que o dano causado aos dois veículos
ou a um destes o é por ambos eles, devendo, por isso, ter-se em conta esse facto na fixação da indemnização devida pelos
responsáveis, é incontestável que esse fundamento tanto colhe para os danos causados nos veículos como para os
restantes danos provenientes da colisão".
E, finalmente: como nenhuns elementos fazem crer que o art. 506° tenha querido estabelecer princípios
diferentes para os vários núcleos de danos provenientes da colisão, deve o preceito ser interpretado extensivamente, de
molde a abranger todos os prejuízos que tenham tido como causas concorrentes os riscos próprios dos dois veículos".
Depara-se-nos, deste modo, um caso de colisão de veículos em que se não torna viável estabelecer a
contribuição de cada um dos veículos intervenientes para os danos causados a terceiro, devendo em tal circunstância e em

233
caso de dúvida - e por força do disposto no n° 2 do art. 506º do Cód. Civil - ficcionar como igual a medida dessa
contribuição, bem como a contribuição da culpa de cada um dos condutores para o desencadear do evento.
De qualquer modo "em face do terceiro lesado, seja na sua pessoa, seja nos seus bens, qualquer dos detentores
do veículo responde solidariamente pela reparação integral do dano" - conf. ob. e loc. cits., pág. 711, nota 1.
Como assim, nas relações externas em face do terceiro lesado, a responsabilidade dos condutores é solidária,
como solidária é a das respectivas seguradoras perante o sinistrado (art. 507°-, n° 1 do Cód. Civil), por força do contrato de
seguro.
E à seguradora que houver pago a indemnização por acidente simultaneamente de viação e de trabalho assiste
direito de regresso contra o terceiro causador do acidente, responsável quer a título de culpa quer a título de risco, podendo
exigir a reparação integral do dano ou à entidade patronal ou ao causador do acidente ou à respectiva seguradora.
No sentido de que o direito da entidade patronal (ou da respectiva seguradora) do sinistrado em acidente simulta -
neamente de viação e de trabalho contra terceiro responsável pelo acidente (ou respectiva seguradora) para reembolso das
quantias pagas é um direito de regresso, veja-se, vg, o Ac. do STJ de 24/05/01, in Proc. 1342/01 – 2ª Sec.»

Ac. do STJ (Sebastião Povoas ), de 06/03/2007, P.º 07A277:


«…
A matéria assim singelamente apurada não permite, na verdade, dirigir a qualquer um dos dois condutores um
juízo de censura, pois que se não pode afirmar que qualquer um deles tenha omitido os deveres de cuidado impostos pelas
normas de circulação rodoviária que lhes teriam permitido evitar o embate (sendo certo que a culpa, como resulta do artigo
487º, não se presume e no caso dos autos nenhuma presunção legal de culpa existe).
Quanto ao condutor do veículo onde seguia a autora, não se pode concluir sequer que ele tenha invadido a faixa
de rodagem contrária ao seu sentido de marcha.
Por seu lado, quanto ao condutor do veiculo seguro, apesar de o local do embate permitir concluir tal invasão, o
certo é que, atentas as versões do embate trazidas aos autos pelas partes e a matéria que resultou provada, não pode o
tribunal concluir que tal invasão se tenha ficado a dever a qualquer omissão de dever de cuidado que sobre si impendesse
(vejam-se aliás as respostas negativas aos factos 5º, 6º e 9º e respostas restritivas aos factos 2º, 3º e 4º da base
instrutória)”.
A culpa não vem questionada em sede de recurso onde, e apenas, se questiona a repartição do risco.
Daí que não se conheça desse nexo de imputação até para evitar possível “reformatio in pejus”, caso se
concluísse pela culpa do segurado da recorrente.

Sem culpa de qualquer dos condutores, e sendo ambos os proprietários, com efectiva direcção do veiculo,
respondem a titulo de risco, nos termos do nº 1 do artigo 503º do Código Civil, já que os utilizavam no seu próprio interesse.
Apelando agora para o artigo 506º da lei substantiva e, inapurada que ficou a culpa de qualquer dos condutores,
sendo que se trata de dois veículos ligeiros com presuntiva igual contribuição para os danos, há que lançar mão do nº 2 e
considerar igual (50% cada) a contribuição de cada um.
A responsabilidade não é solidária, “ex vi” do nº 1 do artigo 497º do Código Civil, já que surge, desde logo,
perfeitamente delimitada, por repartida.
Essa solidariedade é afastada, como refere a recorrente, sendo que a acção foi apenas intentada contra uma das
seguradoras.
E podia tê-lo sido contra ambas.
É que, embora transportada gratuitamente no veiculo conduzido pelo proprietário, a seguradora deste teria de a
indemnizar ao abrigo do artigo 7º nº 1 do DL nº 522/85 de 31 de Dezembro, na alteração introduzida pelo DL nº 130/94, de
19 de Maio, que transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva nº 90/232/CEE do Conselho, de 14 de Maio de 1990 (cf.
o Acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, de 30 de Julho de 2005 – CJ/STJ, 2005, II, 7), sem prejuízo
do nº 2 alínea d) quanto a “lesões materiais”.
Afasta-se assim o entendimento do Prof. A. Varela (“Das Obrigações em Geral”, I, 558) constante da decisão
recorrida por defendido antes da alteração do nº 2 do artigo 504º CC – hoje nº 3 – DL nº 14/96, de 6/3 – quanto ao
transporte gratuito e das novas regras de seguro obrigatório introduzidas pelo citado DL 130/94.
Tratando-se de responsabilidade individual, a recorrente é condenada no pagamento de 50% do total,
correspondente à responsabilidade do seu segurado.»

Limites máximos - 508º

Este art.º 508º tem, desde o Dec-lei n.º 59/2004, de 19 de Março, esta redacção:
1 - A indemnização fundada em acidente de viação, quando não haja culpa do responsável, tem como
limite máximo o capital mínimo do seguro obrigatório de responsa-bilidade civil automóvel.

234
2 - Se o acidente for causado por veículo utilizado em transporte colectivo, a indemnização tem como
limite máximo o capital mínimo do seguro obrigatório de responsa-bilidade civil automóvel estabelecido para os
transportes colectivos.
3 - Se o acidente for causado por veículo utilizado em transporte ferroviário, a indemnização tem
como limite máximo o capital mínimo do seguro obrigatório de responsa-bilidade civil estabelecido para essa
situação em legislação especial.

Já depois de publicado este Dec-lei o STJ fixou jurisprudência pelo AUJ n.º 3/2004, de 25 de
Março, no DR IA, de 13 de Maio, nos termos seguintes:

O segmento do art. 508º, n.º 1, do Código Civil, em que se fixam os limites máximos
de indemnização a pagar aos lesados em acidentes de viação causados por veículos
sujeitos ao regime do seguro obrigatório automóvel, nos casos em que não haja culpa do
responsável, foi tacitamente revogado pelo artigo 6º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de
Dezembro, na redacção dada pelo Dec-lei n.º 3/96, de 25 de Janeiro .

Precisamente porque se trata aqui de responsabilidade sem culpa, a lei fixou limites à
indemnização devida por responsabilidade objectiva. São esses limites os fixados no art. 508º.

A interpretação desta norma não suscita dificuldades de maior. Notar-se-á, ainda assim, que:

1 - Os limites máximos de indemnização também valem para o caso de colisão de veículos


que envolva duas ou mais viaturas.

2 - De acordo com o artigo 12º, do Código Civil, a lei só dispõe para o futuro e só para os
factos novos quando dispõe sobre os seus efeitos. Assim, os limites máximos do artigo 508º do Código
Civil são os estabelecidos por este texto na redacção vigente ao tempo do acidente de viação - BMJ
439-538.
Dada a natureza interpretativa e o texto do AUJ n.º 3/2004, desde o Dec-lei n.º 3/96, de 25 de
Janeiro, os limites indemnizatórios em cada momento vigo-rantes são os estabelecidos para o seguro
obrigatório automóvel.

3 - Os limites máximos de indemnização fixados no artigo 508°, na redacção aplicável ao


caso, só operam depois de repartida a responsabilidade pela forma determinada no artigo 506º - BMJ
439-547.

4 - Este limite fixado no artigo 508º do Código Civil só funciona depois de determinado
concretamente o montante da indemnização que seria devida, abstraindo desse limite - BMJ 420-468.

5 - Sobre este limite legal podem incidir juros de mora, se devidos, e ainda que a seguradora
tenha limite de capital seguro - BMJ 375-342, 428-572 e Col. 88-III-89. É que os juros são devidos
pela mora no cumprimento da indemnização e não por força do seguro.

Acórdão do STJ (Cons.º Fonseca Ramos) de 27.11.2007, Pr.º 07A3954 :

I – A Jurisprudência portuguesa dominante, quando chamada a pronunciar-se sobre a questão da revogação


tácita do art. 508º, nº1, pelo art. 6º do DL. 522/85, pronunciou-se no sentido dessa não revogação e, do mesmo passo
considerou, na generalidade, que a 2ª Directiva, por não ter sido transposta para o direito interno português não podia ser
invocada como fonte de direito.

II – O Estado deveria ter transposto a 2ª Directiva até 31.12.1995 e só o fez através do DL.59/2004, de 19.3.

235
III – Incumbia ao Estado – para quem entende que as Directivas não são imediatamente aplicáveis – proceder à
rápida transposição – sob pena de violação do princípio da igualdade – art. 13º da CRP – e da tutela efectiva e acesso ao
direito – art. 20º da Lei Fundamental.

IV – Os Estados-membros estão obrigados a reparar os prejuízos causados às partes pela violação do direito
comunitário e essa violação pode resultar da não aplicação na ordem jurídica interna das normas e princípios comunitários
– por omissão – ou quando desrespeite Acórdãos do TJCE.

V – A responsabilidade assacada ao Estado resulta de um comportamento omissivo violador do Tratado, omissão


que é ético-juridicamente censurável, o que exprime culpa.

VI – Tratando-se de responsabilidade civil extracontratual aquela que os AA. pretendem actuar com a acção,
alegaram e provaram factos integradores da causa de pedir, no caso: o facto ilícito, a culpa, o dano, e o nexo de
causalidade entre o facto e o dano – art. 483º do Código Civil e arts. 2º e 6º do DL. 48.051, de 21.11.1967 – pelo que a
condenação do Réu Estado não merece censura.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

AA, BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH, e II

Intentaram, em 2.5.2003, pelo Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, [que se declarou incompetente em
razão da matéria], vindo os autos a tramitar pelo 2° Juízo do Tribunal Judicial da Comarca da Póvoa de Varzim, acção
declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário, contra o Estado Português.

Pedem:
a) Que o Estado Português seja declarado responsável pela omissão da transposição da Directiva 84/5/CEE, de
30 de Dezembro de 1983, para a ordem jurídica interna;
b) Que o Estado Português seja condenado a pagar aos autores a quantia de € 73.378,91, juros vencidos no
valor de € 21.198,91, e vincendos, à taxa legal, até ao integral pagamento resultante do prejuízo sofrido pela não
transposição da Directiva em crise;

c) Liquidação em execução de sentença do valor das custas indevidamente aplicada que resultaram do
decaimento da acção.

Alegam, em síntese:

- os autores são os filhos de R...F..., falecida no estado de viúva em 24 de Março de 1998 e, consequentemente,
os seus únicos e universais herdeiros;

- a mãe dos autores faleceu em consequência das lesões sofridas no acidente de viação constante da acção
ordinária nº104/99, que correu os seus termos pelo Tribunal de Círculo de Vila do Conde;

- realizado o julgamento, foi proferida sentença em 14 de Março (por lapso referiu-se Maio) de 2001, que
quantificou todos os danos sofridos pelos autores em resultado da morte de sua mãe no valor de 18.711.150$00, sendo
certo que sobre essa quantia incidiam juros de mora às taxas legais em vigor desde a citação até efectivo pagamento;

- porém, no mesmo libelo resulta que os autores não conseguiram provar a culpa do condutor do veículo que
atropelou mortalmente a sua mãe e apenas condenou a ré Companhia de Seguros, “Mundial Confiança, S.A.”, responsável
civil pelo veículo lesante com base na responsabilidade objectiva e com fundamento no disposto no artigo 508°, nº1, do
Código Civil, pelo que a indemnização atribuída aos autores foi reduzida a 4.000.000$00;

- não se conformando com a citada sentença, os autores apelaram para o Tribunal da Relação do Porto, em
recurso que correu os seus termos com o nº1/2002, pela 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto, onde foi proferido
Acórdão, em 4 de Fevereiro de 2002, que decidiu pela improcedência do recurso, confirmando a sentença da 1ª instância;

236
- de novo inconformados, os autores interpuseram recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo
nas suas alegações defendido junto daquele Tribunal a matéria constante das “Conclusões”;

- da cláusula segunda das citadas “Conclusões”, os autores defenderam que não deve haver lugar à limitação do
montante da indemnização devida pela responsabilidade pelo risco, tal como ainda prescreve o artigo 508°, nº 1, do Código
Civil, pois a aludida Directiva Comunitária é directamente aplicável a nossa ordem jurídica;

- efectivamente, à data do sinistro, 24 de Março de 1998, o capital mínimo obrigatoriamente seguro resultante da
conjugação dos Decretos-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, e 3/96, de 25 de Janeiro era, de harmonia com o artigo 6°,
nº1, do valor de 120.000.000$00, concluindo que o artigo 508°, nº1, do Código Civil Português se encontra tacitamente
revogado pelo citado artigo 6°, nomeadamente pela redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei nº3/96, de 25 de
Janeiro;

- o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça sobre a matéria em crise decidiu, no seu nº 2, no sentido de que a
Directiva não influencia a vigência do artigo 508° do Código Civil, nem a sua interpretação, pelo que confirmou o Acórdão
da Relação do Porto, por decisão de 5 de Novembro de 2002, transitada em julgado em 21 do mesmo mês;

- os autores percorreram todas as instâncias cíveis portuguesas, tendo obtido decisões que negaram a aplicação
da Directiva em crise, o que resultou em que, em vez de terem recebido 18.711.150$00 e respectivos juros, conforme
sentença da 1ª instância, apenas foram indemnizados com o capital de 4.000.000$00, acrescidos de juros;

- assim, os autores deixaram de receber a quantia de 14.711.150$00, bem como os respectivos juros a que
teriam e têm direito, e que deverão ser contados desde a citação da ré Companhia de Seguros, em 23 de Março de 1999,
até ao seu efectivo recebimento, à taxa legal;

- acresce à presente situação que os autores foram condenados em custas proporcionais no seu decaimento e
das quais ainda não se conhece o valor final, dado o tribunal competente ainda as não ter contado, pelo que, desde já,
requereram que as mesmas sejam liquidadas em execução de sentença.

Contestando a acção, o Magistrado do Ministério Público, em representação do Estado Português, aceitou, no


essencial, os factos alegados pelos autores sob os artigos 1º a 8° e 10° da petição inicial, com a correcção de que a douta
sentença proferida pelo Tribunal de Círculo de Vila do Conde o foi em 14 de Março de 2001 e não em 14 de Maio de 2001,
como é alegado no artigo 3º da petição inicial.

Por excepção, apresentou a seguinte defesa:

- a transposição de directivas comunitárias para o nosso direito faz-se por meio de Lei ou de Decreto-Lei,
consoante as matérias, sendo a sua comissão ou omissão actos inequivocamente legislativos, pelo que a presente acção,
atenta a sua causa de pedir, está expressamente excluída da jurisdição administrativa, devendo o Tribunal Administrativo
ser julgado incompetente em razão da matéria e, em consequência, absolvido o réu da instância.

No mais, sustentou que a questão da presente acção respeita apenas a matéria de direito, concluindo, para além
do mais, pela não verificação dos requisitos da responsabilidade civil do Estado por actos ilícitos de gestão pública, nos
termos do artigo 2° do Decreto-Lei nº48051, de 21 de Novembro de 1967, pugnando pela absolvição do réu, logo no
despacho saneador.

Houve réplica…

***

Remetidos (de novo) os autos ao Tribunal da Póvoa de Varzim, foi dispensada audiência preliminar e proferida
decisão de mérito, julgando a acção improcedente e, em consequência, absolveu o Réu Estado Português, do pedido.

***
Os Autores recorreram para o Tribunal da Relação do Porto que, por Acórdão de 24.5.2007, julgou procedente a
apelação e revogou a sentença recorrida, julgando-se a acção totalmente procedente, em função do que se condenou o
Estado Português a pagar aos Autores a quantia de 14.711.150$00 (73.378,91€, setenta e três mil trezentos e setenta e
oito euros e noventa e um cêntimos) acrescida dos juros legais em vigor, desde a data da citação na acção da 1ª instância
onde lhe foram aplicados os limites do nº1 do art. 508º do Código Civil, até efectivo e integral pagamento.

237
***
Inconformado recorreu o Ex.mo Magistrado do Ministério Público que, alegando, formulou as seguintes
conclusões:

A) Em cumprimento do determinado pela Segunda Directiva 84/5/CEE do Conselho, de 30.12.1983, Portugal


alterou em tempo as suas disposições legais nacionais;

B) Com a alteração dos montantes globais mínimos para danos corporais e materiais por sinistro pelos quais o
seguro é obrigatório, e com a revogação tácita do nº1 do art. 508° do Código Civil (operada pelo art. 6.° do D.L nº522/85,
de 3 1/12, na redacção dada pelo DL nº3/96, de 25/1), foi completa e correctamente transposta, para o direito Nacional,
aquela Segunda Directiva;

C) Interpretação diferente constitui erro de julgamento;

D) Não se verifica conduta omissiva por parte do Estado Português, nem se verificam as condições — referidas
pela jurisprudência do Tribunal de Justiça –, para que o Estado possa ser responsabilizado pela reparação dos prejuízos
peticionados.

E) O acórdão recorrido violou as disposições dos artigos 22° da CRP, e 483° do Código Civil.

Nestes termos, dando provimento ao recurso e revogando o Acórdão recorrido farão Justiça.

Os AA. contra-alegaram, pugnando pela confirmação do Acórdão.

***

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta a seguinte matéria de facto:

- em 24.3.1998 a mãe dos AA. foi vítima mortal de um acidente de viação;

- por sentença de 14.3.2002 o Tribunal da causa considerou que os danos indemnizáveis ascendiam a
18.711.150$00;

- todavia, porque se condenou com fundamento na responsabilidade objectiva do condutor segurado da Ré


(seguradora na acção), por aplicação do art. 508º, nº1, do Código Civil, na redacção ao tempo vigente, normativo
conjugado com o art. 21º da Lei 38/87, de 23.12, a indemnização foi reduzida para 4.000 contos na velha moeda;

- os AA. recorreram para o Tribunal da Relação do Porto que por Acórdão de 4.2.2002 negou provimento ao
recurso;

- os AA. recorreram para este Supremo Tribunal que, por Acórdão de 5.11.2002, confirmou o Acórdão desta
Relação.

Os AA. sustentam que o Réu Estado por não ter transposto a referida Directiva até 31.12.1995 (o prazo inicial era
até 31.12.1988 – art. 5º da Directiva – Anexo I - Parte IX- F.) incorreu em culpa e como tal deve indemnizar os AA. já que se
a Directiva tivesse sido transposta teriam recebido a indemnização na sua totalidade, pelo que pedem, agora, que o Estado
seja condenado a pagar-lhes a diferença entre o que receberam e aquilo que deveriam ter recebido.

A questão da Directiva, ligada com a revogação do art.508º, nº1, do Código Civil, foi alvo de divergentes decisões
dos Tribunais, até que este Supremo Tribunal, em Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (AUJ) nº3/2004, de 25 de
Março, in DR, I-A, de 13.5.2004 decidiu:

“O segmento do art. 508º, nº 1, do Código Civil, em que se fixam os limites máximos da indemnização a pagar
aos lesados em acidentes de viação causados por veículos sujeitos ao regime do seguro obrigatório automóvel, nos casos
em que não haja culpa do responsável foi tacitamente revogado pelo art. 6º do DL nº 522/85, de 31.12, na redacção dada
pelo DL nº 3/96, de 25.1”.

238
Seis dias antes da publicação daquele AUJ, o DL. 59/2004, de 19.3 alterou a redacção dos arts. 508º, nº 1, e 510º
do Código Civil.

O art.508º, nº1, ficou com a seguinte redacção: (Limites máximos) – “A indemnização fundada em acidente de
viação, quando não haja culpa do responsável, tem como limite máximo o capital mínimo do seguro obrigatório de
responsabilidade civil automóvel”.

No preâmbulo do DL.59/2004, de 19 de Março, que alterou os arts. 508º e 510º do Código Civil, pode ler-se:

“O nº 2 do artigo 1º da Directiva 84/5/CEE, do Conselho, de 30 de Dezembro de 1983, relativa à aproximação das


legislações dos Estados membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos
automóveis (Segunda Directiva), incidindo sobre o alcance da cobertura garantida pelo seguro obrigatório, fixa para o
mesmo limites mínimos com o objectivo de reduzir as discrepâncias que subsistiam entre as legislações dos Estados
membros quanto ao alcance da obrigação de cobertura daquele seguro.
O artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, alterado pelos Decretos-Leis nºs 3/96, de 25 de
Janeiro, e 301/2001, de 23 de Novembro, procede à transposição do artigo 1.º da Directiva 84/5/CEE, estabelecendo no
n.º1 o montante do capital mínimo obrigatoriamente seguro.
Contudo, nos termos do n.º1 do artigo 508.º do Código Civil, o montante máximo de indemnização fixada é
inferior ao montante mínimo do capital obrigatoriamente seguro nos casos de responsabilidade civil automóvel.
Com efeito, ainda que as directivas comunitárias sobre seguro automóvel não estabeleçam distinção entre
responsabilidade com culpa e responsabilidade pelo risco, dizendo respeito ao seguro obrigatório e não à responsabilidade
civil, tem-se entendido que os montantes mínimos do capital seguro fixados pelo nº 2 do artigo 1º da Segunda Directiva têm
de ser respeitados independentemente da espécie de responsabilidade civil em jogo […].
[…] Contudo, manteve-se o pensamento jurídico fundamental da existência de uma íntima relação entre os limites
máximos de responsabilidade civil e o capital do seguro obrigatório.
Segundo este princípio, a manutenção de limites máximos de indemnização inferiores aos do capital
obrigatoriamente seguro constituiria um contra-senso do legislador, podendo prejudicar a garantia dos legítimos interesses
dos lesados.
Considerando que existe legislação especial que fixa montantes mínimos para o seguro obrigatório nas situações
em que estejam em causa, por um lado, acidentes causados por veículos utilizados em transporte ferroviário e, por outro,
em diversas situações em que estão em causa danos causados por instalações de energia eléctrica ou de gás, seguiu-se o
princípio anteriormente exposto para se fixarem novos critérios de determinação dos montantes máximos de indemnização
por responsabilidade objectiva em cada um daqueles casos”. (sublinhámos).

Antes do AUJ e da alteração legislativa dois entendimentos dominavam a jurisprudência.

Para uns, o art. 508º, nº1, do Código Civil não foi revogado pelo art. 6º do DL. 522/85, de 31.12, na redacção
dada pelo DL n° 3/96, de 25 de Janeiro – Acórdãos deste STJ de 9.5.2002, in CJSTJ, 2002, II, 55 e de 18.12.2002, in
CJSTJ, 2002, III, 167.

Para outra corrente, tal normativo do Código Civil foi tacitamente revogado pelo citado DL – cfr. inter alia Ac. deste
STJ, de 10.7.2002 – com um voto de vencido – acessível em www.dgsi.pt - Proc.02B4591.

Aí se escreveu:

[…]” O problema da vigência do art° 508°, Código Civil, apenas se deve pôr relativamente ao segmento da norma
que fixa os montantes do limite máximo da responsabilidade.
Não se discute, obviamente, o princípio geral, ínsito na mesma disposição, de que a responsabilidade pelo risco
dos veículos de circulação terrestre não é ilimitada, ao contrário da responsabilidade por facto ilícito.
Isto posto, deve dizer-se que é perfeitamente compreensível a dúvida sobre se os montantes fixados no citado
art.508° ainda se encontram em vigor, tendo em conta que, nesse particular, o Estado Português ainda não adaptou a
redacção do artigo à Directiva 84/5/CEE, mais concretamente, aos arts.l°, n°2, e 5°, n°3, na redacção que lhes foi dada
pelo Anexo I, Parte IX, F, do Acto Relativo às Condições de Adesão do Reino de Espanha e da República Portuguesa e às
Adaptações dos Tratados, artigos aqueles que, segundo o entendimento do TJCE, expresso no Acórdão de 14.09.2000, in
Proc. C-348/98, publicado na CJ do TJCE8 (…), Ano 2000, p. 1-6711, “obstam à existência de limites máximos de
indemnização inferiores aos montantes mínimos do seguro obrigatório neles fixados”. (sublinhámos).

239
De notar que este aresto de 2002 considerava que Portugal não tinha transposto a Directiva e, por isso, tal como
em outras decisões dos Tribunais Superiores, a discussão passou também pela questão de saber se a Directiva, pese
embora a sua não transposição, poderia ser ou não ser invocada no âmbito interno.

A esta questão este STJ respondeu negativamente nos Acórdãos proferidos em 1.10.1996, in BMJ 460-313;
19.9.2002, in CJSTJ, 2002, III, 46, e 28.5.2002, este acessível in www.dgsi.pt Proc.02B1313, considerando que por a
Directiva não ter sido transposta para o direito português seria inaplicável na ordem interna.

Era praticamente consensual que a Directiva não tinha sido transposta para o direito interno e, tanto assim foi,
que o legislador só alterou o art. 508º, nº1, do Código Civil, através do DL. 59/2004, de 19.3, pouco tempo antes do AUJ
3/2004 de 25.3.

Mas, pese embora a não transposição da Directiva, estas produzem efeitos directos nas ordens internas, desde
que sejam suficientemente claras e precisas, sejam incondicionais e não estejam dependentes da adopção de ulteriores
medidas complementares por parte dos Estados-membros ou das instituições comunitárias.

Ora, do disposto no art. 8º, nº3, da Constituição da República, pode concluir-se que as normas comunitárias
gozam de primazia sobre o direito interno, o que tem levado a doutrina a afirmar o princípio do primado do direito
comunitário sobre o direito interno – Gomes Canotilho e Vital Moreira in “Constituição da República Portuguesa, Anotada”,
2007,1º Volume, págs.263 /264 “…Trata-se aqui de explicitar uma das consequências jurídicas (porventura a mais
importante) da adesão a uma organização dessa natureza, a saber, a submissão directa e imediata às normas dela
emanadas (regulamentos, directivas), nos termos dos respectivos tratados constitutivos…A fórmula adoptada pela
Constituição — vigoram directamente na ordem interna — não deixa dúvidas que as normas emitidas por organizações
internacionais dotadas de poderes “legislativos” — seja qual for a sua natureza jurídica — vigoram directamente na ordem
jurídica interna, como normas “legislativas” internacionais, vinculando imediatamente o Estado e os cidadãos,
independentemente de qualquer acto de mediação, seja aprovação ou ratificação por qualquer órgão do Estado, seja
publicação no jornal oficial (mas devendo-o ser no jornal da organização internacional de que elas emanam). É a aplicação
à legislação internacional, com as necessárias adaptações, do mesmo princípio de recepção automática ou plena, que,
como se mostrou, vale para o direito internacional ordinário, comum ou convencional (nos l e 2), com a diferença de que
aquelas não carecem de nenhum acto interno de aprovação ou ratificação…” .

“O Tribunal de Justiça das Comunidades também tem afirmado o princípio do primado do ordenamento
comunitário sobre os direitos nacionais (Ac. de 78.03.09, in CJ do TJ, 1978, p. 244,), o que implica que a norma de direito
interno ceda perante o preceito comunitário que com ela colida e, também, que sobre o juiz nacional recaia a obrigação de
respeitar esse primado, designadamente assegurando o pleno efeito das disposições de direito comunitário, interpretando e
aplicando o direito nacional em conformidade com o ordenamento comunitário” – cfr. Ac. deste STJ, de 27.5.2004, in
www.dgsi.pt, número convencional JSTJ000.

Apesar do Tribunal de Justiça das Comunidades defender a aplicação directa das directivas não transpostas,
desde que as suas regras sejam precisas e claras, tendo em conta o carácter vinculativo constante do art. 249º do Tratado
de Roma De 25 de Março de 1957. O instrumento de ratificação de Portugal ao presente tratado foi depositado em
27.12.1985 e publicado em Aviso de 22.02.1986. A presente versão, aquando da sua realização, contemplou as alterações
introduzidas pelos seguintes diplomas: Tratado da União Europeia-Tratado de Maastricht, de 7 de Fevereiro de 1992;
Tratado de Amesterdão, de 2 de Outubro de 1997; Tratado de Nice, de 26 de Fevereiro de 2001. Última alteração: Tratado
de Adesão – 2003, de 16 de Abril de 2004, com entrada em vigor em 1 de Maio de 2004, após conclusão do depósito dos
instrumentos de ratificação por todos os países signatários.
e do dever dos Estados-Membros conferirem primazia ao direito comunitário sem distinção quanto à fonte – art.
10º – até para evitar que estes retirem vantagens dessa omissão.

Como se refere no citado Acórdão de 27.5.2004:

“Assim se afirmou no TJ Comunidades o efeito vertical (no âmbito das relações entre os particulares e o Estado)
das directivas não transpostas que contenham disposições incondicionais (quando enunciam obrigações não sujeitas a
condição nem dependentes de actos de terceiros) e precisas (quando enunciam uma obrigação em termos inequívocos
para serem aplicadas pelo órgão jurisdicional), em nome do princípio da responsabilidade do Estado pela sua não
transposição e, posteriormente, com algumas limitações, o efeito horizontal (força vinculativa dos actos comunitários no
âmbito das relações entre os particulares).
Embora a jurisprudência do TJ tenha começado por negar o efeito directo horizontal das directivas não
transpostas, há pelo menos um certo consenso no sentido de que a eficácia horizontal das directivas não transpostas se

240
revela através do princípio da interpretação do direito nacional conforme o direito comunitário” – Maria João Palma, in
“Breves Notas sobre a Invocação das Normas das Directivas Comunitárias perante os Tribunais Nacionais”, edição da
AAFDL, 2000, pp. 17 e ss. (sublinhámos).

Concluímos, assim, que a Jurisprudência portuguesa dominante, quando chamada a pronunciar-se sobre a
questão da revogação tácita do art. 508º, nº1, pelo art. 6º do DL. 522/85, pronunciou-se no sentido dessa não revogação e,
do mesmo passo considerou, na generalidade, que a 2ª Directiva, por não ter sido transposta para o direito interno
português não podia ser invocada como fonte de direito.

Mas será que, como deixa entrever o douto recorrente, pelo facto de alguma Jurisprudência considerar
tacitamente revogado aquele art. 508º, nº1, do Código Civil e, por isso, ser possível aos Tribunais proferirem decisões que
não acolhessem aquele limite indemnizatório, isso evidencia que o Estado não agiu com culpa?

“Com efeito, a revogação tácita do nº1 do art. 508° determina a inexistência de omissão legislativa, causa de
pedir na presente acção (a consubstanciar a “ilicitude”) – lê-se a fls. 363 das doutas alegações do recorrente.

Assim considerar seria admitir que, ante a incerteza na interpretação e aplicação do Direito, alguém pudesse
colher a seu bel prazer o sentido que lhe fosse mais favorável, ou melhor dito, no caso como o dos autos, os cidadãos
poderiam contar com as decisões que perfilhassem o entendimento da revogação tácita, sempre teriam os seus direitos
salvaguardados.

Não podemos deixar de manifestar desacordo.

A jurisprudência, pese embora o seu importante papel na estabilização e interpretação do Direito, não é em si
fonte de Direito e, por outro lado, para o cidadão comum o que é perturbador é que os Tribunais não resolvam de modo
rápido questões controversas.

O facto de quase simultaneamente o legislador ter alterado a lei e o STJ ter proferido Acórdão Uniformizador de
Jurisprudência sobre a questão disputada é sintomático de que o legislador sentiu necessidade de tornar a lei clara.

Ora incumbia ao Estado – para quem entende que as Directivas não são imediatamente aplicáveis – proceder à
rápida transposição – sob pena de violação do princípio da igualdade – art. 13º da CR – e da tutela efectiva e acesso ao
direito – art. 20º da Lei Fundamental.

Basta pensar no tratamento diferente que tiveram aqueles que viram causa idêntica ser julgada por Tribunal que
considerou aplicável a Directiva e ter ocorrido revogação tácita do art. 508º, nº1, do Código Civil, e aqueloutros que por a
sua pretensão ter sido julgada por Tribunal que perfilhou diferente entendimento, não viram a sua pretensão decidida tão
favoravelmente.

A solução do AUJ, a nosso ver, e ao contrário do que parece entender o Recorrente, nada tem a ver com a
questionada existência de culpa na não transposição atempada da directiva, além do mais, porque não tendo aquele AUJ a
imperatividade dos antigos Assentos, ele não é vinculativo “Os assentos foram substituídos pela possibilidade de
julgamento ampliado do recurso de revista, nos termos dos artigos 732°-A e 732°-B, do Código de Processo Civil, quando
tal se revelar necessário ou conveniente para assegurar a uniformidade da jurisprudência. A decisão proferida para tal
efeito apenas produz efeitos no processo, e não inclui qualquer norma, com força vinculativa geral (e a sua eficácia
uniformizadora da jurisprudência é, assim, predominantemente persuasiva). Além disso, os assentos proferidos
anteriormente ao citado Decreto-Lei nº 329-A/95 passaram a ter o valor dos acórdãos proferidos nos termos dos referidos
artigos 732.°-A e 732.°-B (cfr. o art. 17º, nº 2, daquele diploma). Pelo que hoje os assentos também já não são fontes de
direito”. – “Teoria Geral do Direito Civil” – 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto – págs. 64 a 69; e, tanto
assim é que o legislador, ciente que a discussão se poderia arrastar em prolongadas discussões jurisprudenciais, alterou a
lei no sentido da Directiva, sinal evidente que se “considerava em falta”.

O Estado deveria ter transposto a 2ª Directiva até 31.12.1995 e só o fez através do DL.59/2004, de 19.3.

[À data do sinistro, 24 de Março de 1998, o capital mínimo obrigatoriamente seguro resultante da conjugação dos
Decretos-Lei nº522/85, de 31 de Dezembro, e 3/96, de 25 de Janeiro era, de harmonia com o artigo 6°, nºl, do valor de
120.000.000$00, mas porque os Tribunais de Instância e este STJ consideraram que o referido normativo do Código Civil
não tinha sido revogado, a indemnização foi de 4.000 contos. Se ao tempo dessas decisões proferidas no processo já
estivesse em vigor a alteração legislativa e a doutrina do AUJ os AA. teriam recebido mais 14.711.150$00].

241
Eis-nos volvidos ao cerne do recurso – terão os AA. direito a ser indemnizados por aquilo que não receberam, em
função de ao tempo das decisões judiciais não ter sido transposta a Directiva, ou seja, incorreu o Estado em
responsabilidade civil extracontratual, mormente, por ter agido com culpa?

Reafirmamos que, quer o AUJ, quer, sobretudo, a alteração da redacção dos arts. 508º e 510 do Código Civil O nº
1 do citado normativo estabelece: “A indemnização fundada em acidente de viação, quando não haja culpa do responsável,
tem como limite máximo o capital mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel”. O art.510º passou a
estabelecer – “A indemnização fundada na responsabilidade a que se refere o artigo precedente, quando não haja culpa do
responsável, tem, para cada acidente, como limite máximo o estabelecido no nºl do artigo 508°, salvo se, havendo seguro
obrigatório, diploma especial estabelecer um capital mínimo de seguro, caso em que a indemnização tem como limite
máximo esse capital.” mais não fizeram que reconhecer que Portugal estava em situação de incumprimento da obrigação
emergente da referida 2ª Directiva.

Como consta do Acórdão de fls.210 a 220, que relatámos na Relação do Porto:

É inquestionável que a causa de pedir e o pedido têm como fundamento a responsabilidade extracontratual do
Estado por não ter transposto para a ordem jurídica interna a 2ª Directiva 84/5/CEE, que visava obstar à existência de
legislação nacional que, prevendo montantes máximos de indemnização inferiores aos montantes mínimos de garantia
fixados por esses artigos 1º, nº2, e 5º, nº3, na redacção que lhe foi dada pelo Anexo I Parte IX, F, quando, não havendo
culpa do condutor do veículo que provocou o acidente, só haja lugar a responsabilidade civil pelo risco.

A responsabilidade assacada ao Estado resulta de um comportamento omissivo violador do Tratado, já que o


Estado Português deveria ter transposto a Directiva até 31.12.1988, nos termos das normas antes citadas, prazo que foi
prorrogado até 31.12. 1995, sem que o fizesse.

No direito português – art. 486º do Código Civil – “As simples omissões dão lugar à obrigação de reparar os
danos, quando, independentemente dos outros requisitos legais, havia, por força da lei ou de negócios jurídico, o dever de
praticar o acto omitido”.

Mas importa enfocar a questão na perspectiva do direito comunitário.

Luís Guilherme Catarino, in “A Responsabilidade do Estado pela Administração da Justiça – O Erro Judiciário e o
Anormal Funcionamento” – págs. 199/200, escreve:

“A jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades, nomeadamente através do célebre Acórdão


Francovich, firmará a responsabilidade do Estado perante os seus nacionais, pelos danos causados pela violação do direito
comunitário, com fundamento no próprio Tratado.
Não nos debruçaremos aqui sobre este Acórdão, que decerto vem acordar as consciências para um dado
adquirido – a saber, a responsabilidade dos Estados-membros por actos ou omissões do legislador nacional contrários ao
direito comunitário –, e para a questão da aplicabilidade directa das directivas.
[…] Mas será que os Estados se podem escudar em princípios internos de irresponsabilidade, ou de falta de
procedimentos, de forma a obviar à protecção jurisdicional do lesado?
Se o princípio da garantia e protecção jurisdicional efectiva dos direitos dos cidadãos implica que os Estados-
membros tomem “todas as medidas gerais ou especiais capazes de assegurar o cumprimento das obrigações decorrentes”
do Tratado de Roma (art. 10°), tal implica que “as vias de direito mais adequadas existentes na ordem jurídica interna
devem ser interpretadas de forma a respeitar estas exigências (…) ou mesmo que uma via de direito apropriada seja criada
se não existir”, pelos Tribunais”. (sublinhámos).

Os Estados-membros estão obrigados a reparar os prejuízos causados às partes pela violação do direito
comunitário e essa violação pode resultar da não aplicação na ordem jurídica interna das normas e princípios comunitários
– por omissão O efeito directo das directivas comunitárias permite aos cidadãos comunitários invocar, perante os Tribunais
Nacionais, a tutela das normas comunitárias que não sejam directamente aplicáveis no ordenamento jurídico dos Estados-
membros, mas que devam ser transpostas no seu ordenamento jurídico. Com a finalidade de resguardar direitos
regulamentados pelo ordenamento jurídico comunitário, na hipótese de o Estado-membro não implementar a legislação no
prazo ou nas formas previstas, poderá o cidadão europeu prejudicado solicitar ao tribunal que declare a omissão do
Estado, condenando-o a uma obrigação de indemnizar por perdas e danos. Esse princípio teve início através da construção
jurisprudencial, pelo "caso Francovich" e aplica-se às hipóteses em que o Estado não adopte as orientações emanadas de

242
uma directiva comunitária, ou venha a adoptá-las fora do prazo estipulado, ou mesmo transpondo a directiva no
ordenamento jurídico interno, o fizer de modo a que não produza os efeitos previamente estabelecidos.

– ou quando desrespeite Acórdãos do TJCE.

José Luís Caramelo Gomes, in “O Juiz Nacional e o Direito Comunitário” págs. 120 e 121, escreve:

“… Ora, como pensamos ter demonstrado supra, Francovich terá estabelecido um princípio da responsabilidade
do estado pela falta de transposição de directivas que tenham em vista a criação de direitos a favor dos particulares,
quando o conteúdo desses direitos seja determinável a partir das normas da própria directiva que não foi transposta.
Recordando a jurisprudência constante do TJCE, as directivas serão invocáveis em juízo quando não tenham sido
atempadamente transpostas, sejam claras precisas e incondicionadas e criem direitos a favor dos particulares.
Este é precisamente o caso das directivas em causa nos processos Francovich (…) Wagner Miret (…) e Faccini
Dori.
De facto, esta parece ser a forma evidente de interpretar alguns dos considerandos do acórdão Francovich “Da
responsabilidade do Estado pela violação do direito comunitário” – Marta Chantal da Cunha Machado Ribeiro – Coimbra,
Almedina, 1996.:
“ (…) Embora a responsabilidade do Estado seja assim imposta pelo direito comunitário, as condições em que a
mesma institui um direito à reparação dependem da natureza da violação do direito comunitário que está na origem do
prejuízo causado. (…)
Quando, como no caso dos autos, um Estado-membro ignora a obrigação que lhe incumbe por força do artigo
249º, terceiro parágrafo, do Tratado, de tomar todas as medidas necessárias para atingir o resultado prescrito por uma
directiva, a plena eficácia dessa norma de direito comunitário impõe um direito à reparação quando estão reunidas três
condições. (…).
A primeira dessas condições é que o resultado prescrito pela directiva implique a atribuição de direitos a favor dos
particulares (…). A segunda condição é que o conteúdo desses direitos possa ser identificado com base nas próprias
disposições da directiva (…).
Finalmente, a terceira condição é a existência de um nexo de causalidade entre a violação da obrigação que
incumbe ao Estado e o prejuízo sofrido pelas pessoas lesadas”.

É abundante a jurisprudência, em matéria de direito a indemnização pelos prejuízos sofridos pelos particulares
em consequência de violações do direito comunitário imputáveis a um Estado-Membro – cfr. Acórdãos Francovich e o. de
19.11.1991 (Colectânea de Jurisprudência TJCE, p.I-5357, nº36), Brasserie du Pêcheur e Factortame de 5.3.1996, British
Telecommunications de 26.3.1996, Hedley Lomas de 23.5.1996 e Ac. de 4.7.2000, in CJTJCE -2000.

Em tais Acórdãos o Tribunal de Justiça, atendendo às circunstâncias dos casos, julgou que os particulares
lesados têm direito a reparação, desde que estejam reunidas três condições:

1. Que a regra de direito comunitário violada tenha por objecto conferir direitos,
2. Que a violação seja suficientemente caracterizada e,
3. Que exista um nexo de causalidade directo entre essa violação e o prejuízo sofrido pelos particulares.

No caso em apreço temos por incontestavelmente aplicáveis os citados princípios jurídicos, razão por que nos
parece manifesta a existência de culpa – comissão por omissão do Réu Estado – omissão essa geradora do dever de
indemnizar – art. 483º, nº1, e 486º do Código Civil.

A omissão do Estado, em função daquilo a que estava obrigado, por força da Directiva é, só por si, ético-
juridicamente censurável, o que exprime culpa.

Tem toda a pertinência a alusão a Rui Medeiros – “Ensaio Sobre a Responsabilidade Civil do Estado por Actos
legislativos”, Almedina, Coimbra 1992, páginas 188 a 194 – quando na decisão recorrida se pondera:

“Reportando-se concretamente à culpa do legislador, Rui Medeiros lança mão do conceito geral de culpa para
compreender o significado desta figura, a qual ocorre sempre que o Estado legislador podia e devia ter evitado a situação
de acção ou omissão, sempre considerando o caso concretamente decidendo, e no pressuposto de que as características
que rodeiam a actividade legislativa obrigam a concluir que o grau de diligência exigível do legislador é particularmente
elevado”.

243
Como se decidiu no Ac. destes STJ de 21-03-2006, in www.dgsi.pt,JSTJ000 de que foi Relator o Ex.mo
Conselheiro Dr. Azevedo Ramos:
“O art. 22 da C.R.P., abrange quer a responsabilidade do Estado por actos ilícitos, quer por actos lícitos, quer pelo
risco (Gomes Canotilho, R.L.J. Ano 124-85; Barbosa de Melo, Parecer, na CJ Ano XI, Tomo IV, pág. 36; Ac. S.T.J. de 1.6.04,
CJSTJ, II, 2º, 126; Ac. S.T.J. de 28.4.98, BMJ 476-137, Ac. S.T.J. de 27-3-03, CJSTJ., XI, 1º, 143; Ac. S.T.J. de 29-6-05,
também relatado pelo ora relator, na Col. Ac. S.T.J., XIII, 2º, 147).
A jurisprudência e a doutrina vêm aceitando ser o mencionado art. 22 uma norma directamente aplicável, por
integrar um direito fundamental de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, sem prejuízo de eventual
concretização legislativa.
Os requisitos do dano e da indemnização deverão estabelecer-se através de lei concretizadora, devendo recorrer-
se às normas legais relativas à responsabilidade patrimonial da administração”.

Sobre a responsabilidade civil do Estado decorrente da actividade legislativa – cfr. Ac. deste Supremo Tribunal de
14.6.2007 – Proc. 07B190 – in www.dgsi.pt de que foi Relator o Ex.mo Conselheiro Dr. Duarte Soares.

Pertinentes são as considerações vazadas no Ac. deste STJ de 10.4.2003, relatado pelo saudoso Conselheiro Dr.
Araújo de Barros, in www.dgsi.pt – Proc. 03B1944:

A responsabilidade civil do Estado legislador – responsabilidade extracontratual por acto ilícito – porque, como tal,
assenta na disposição geral do art. 483º do Código Civil, ocorre apenas quando verificados os pressupostos da obrigação
de indemnizar: facto voluntário do agente, ilicitude do facto, imputação do facto ao lesante (culpa), dano e nexo de
causalidade entre o facto e os danos causados (…).
Está, in casu, essencialmente em questão a eventual caracterização do acto legislativo do Estado (omissão de
legislação) como acto ilícito.
Ora, "o acto ilícito é o acto contrário ao direito. No contexto do instituto da responsabilidade civil, o conceito da
ilicitude tem um significado bem preciso: indica ele aquela forma particular de contraditoriedade ao direito que fornece um
pressuposto típico da génese de um dever de indemnizar; que contém em si mesma força suficiente para dar vida a uma
relação obrigacional nos termos da qual o autor do acto ilícito se constitui em dever de ressarcir" […]. A vinculação do
Estado ao direito internacional está consagrada, como princípio, no art. 8º da Constituição.
Tal vinculação é mais íntima quando está em causa o direito comunitário. Na verdade, no relacionamento
instituído entre esta ordem jurídica e as ordens jurídicas internas dos Estados membros vigoram, entre outros, o princípio
da aplicabilidade directa do direito comunitário na ordem jurídica dos Estados membros (sempre que a sua execução não
careça de uma intervenção legislativa dos Estados) e o princípio do primado do Direito Comunitário face a toda e qualquer
norma nacional… […].
O Tribunal Constitucional tem invocado, também, com alguma frequência o princípio da confiança legítima ou da
protecção da confiança como parâmetro constitucional de controlo das acções do Estado, particularmente do legislador. De
todas as vezes que tal acontece, a ideia aparece sempre associada à de Estado de Direito. Num Estado como este, diz-se,
os cidadãos têm de poder saber com o que contam. E tal significa poder confiar, de algum modo, na previsibilidade do
direito, como forma de orientação de vida, de modo que a lei, no seu devir, nunca afecte aquele mínimo de certeza ou
segurança que as pessoas devem poder depositar na ordem jurídica" – Maria Lúcia Amaral, "Dever de Legislar e Dever de
Indemnizar a propósito do caso Aquaparque do Restelo", in Themis, Revista da Faculdade de Direito da UNL, Ano I, nº2,
2000, pág. 93, citando os Acs. TC nºs. 1/97, 330/97 e 517/99.

O regime normativo, após a referida alteração legal, e o citado AUJ, está claramente definido no Acórdão deste
STJ, de 4.10.2005, relatado pelo Ex.mo Conselheiro Dr. Azevedo Ramos, in www.dgsi.pt proc.05A2284 – cujo sumário
transcrevemos:

“I – A indemnização fundada em acidente de viação, quando não haja culpa do responsável, tem como limite
máximo o capital mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, nos termos do artigo único, do Dec-Lei
59/04, de 19 de Março.
II – Por força do Acórdão Uniformizador de jurisprudência nº 3/04,de 25.3.04, o segmento do art. 508, nº 1, do
Código Civil, em que se fixam os limites máximos da indemnização a pagar aos lesados de acidente de viação causados
por veículos sujeitos ao regime do seguro obrigatório automóvel, nos casos em que não haja culpa do responsável, foi
tacitamente revogado pelo art. 6º do Dec-Lei 522/85, de 31 de Dezembro, na redacção que lhe foi dada pelo Dec-Lei 3/96,
de 25 de Janeiro.
III – A alteração do art. 6º do Dec-Lei 522/85, pelo citado Dec-Lei 3/96 (que veio elevar para 120.000.000$00 o
capital mínimo obrigatoriamente seguro por sinistro) produz efeitos, desde 1 de Janeiro de 1996, aplicando-se a nova
redacção introduzida neste art. 6º aos contratos vigentes com capital inferior a 120.000.000$00.

244
IV – Assim, a partir de 1.1.96, ficaram abolidos os limites máximos de indemnização, então previstos no art. 508,
nº 1, do Código Civil.
V – O Acórdão Uniformizador do S.T.J. nº 3/04 tem natureza interpretativa, pelo que se aplica retroactivamente a
um acidente ocorrido em 20.3.97”.

Temos assim por adquirido que a pretensão dos AA., ancorando no regime legal agora vigente se aplica desde
1.1.1996.
Os AA. pretendem socorrer-se deste regime legal, agora, para exigirem do Estado a diferença entre o que a
sentença condenatória lhes atribuiu, em função da redacção então vigente do art. 508º do Código Civil, e aquilo que
deveriam ter recebido (ainda nos termos de tal sentença) se o Estado tivesse já harmonizado o direito interno, em
conformidade com a 2ª Directiva n.º84/5/CEE, de 30 de Dezembro de 1983, cuja transposição apenas se verificou com a
nova redacção dada àquele normativo pelo Decreto-Lei n.º 59/2004, de 19 de Março.
Tratando-se de responsabilidade civil extracontratual aquela que os AA. pretendem actuar com a acção, alegaram
e provaram factos integradores da causa de pedir, no caso: o facto ilícito, a culpa, o dano, e o nexo de causalidade entre o
facto e o dano – art. 483º do Código Civil e arts. 2º e 6º do DL. 48.051, de 21.11.1967.
Tais requisitos ocorrem pelo que a condenação do Réu não merece censura. Neste sentido o Acórdão deste
Supremo Tribunal, de 7.12.2005, Revista nº 3063-2ª secção, que confirmou por remissão o Acórdão recorrido.

Decisão:
Nestes termos nega-se a revista.
Sem custas face à isenção legal de que goza o Réu.

Supremo Tribunal de Justiça, 27 de Novembro de 2007

Fonseca Ramos (Relator) Rui Maurício Cardoso de Albuquerque

Ac. de viação e de trabalho

Ver o Ac. do STJ de 24.01.2002, na Col. Jur. (STJ) 2002-I-54:

ACIDENTE DE VIAÇÃO E DE TRABALHO

Complementaridade das indemnizações


Âmbito da reparação
Danos não-patrimoniais

I - As indemnizações por acidente simultaneamente de viação e de trabalho não são cumuláveis e sim
complementares, subsistindo a emergente do acidente de trabalho para além da que foi paga pelos danos
causados pelo acidente de viação.
II - Em princípio a reparação dos danos emergentes do acidente de trabalho compreende apenas as
prestações previstas na base IX da Lei 2127 de 3 de Agosto de 1965, quando aplicável.
III - A inacumulabilidade das indemnizações simultaneamente por acidente de viação e de trabalho
apenas faz sentido em relação aos danos patrimoniais.
IV - Na medida em que concorrem uma com a outra, prevalece a responsabilidade subjectiva do
terceiro sobre a responsabilidade objectiva patronal, assumindo esta um carácter subsidiário ou residual.
V - Se o lesado exerceu o direito à indemnização contra o responsável pelo acidente de viação e foi
por este indemnizado, não podendo cumular ambas as indemnizações, importa observar o disposto nos nºs. 2.
e 3. da base XXXVII da Lei 2127 quando aplicável.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I - A Companhia de Seguros Fidelidade, S.A. intentou, em 30 de Janeiro de 1997, no Tribunal Judicial da
Comarca de Águeda, acção declarativa com processo sumário contra a Companhia de Seguros Metrópole, S.A., ambas
com os sinais dos autos, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de Esc. 3.230.875$00 e respectivos juros,
quantia que pagou pela sua segurada, a “Ourivesaria e Relojoaria Arromba” para reparar os danos sofridos pelo empregado
desta, Abílio Silva, num acidente de viação e de trabalho, em consequência de um ramo de acidentes de trabalho celebrado
com a referida entidade patronal, titulado pela apólice nº 5083993.
A Ré contestou por impugnação e excepcionou a sua ilegitimidade, a prescrição e a existência de caso julgado,
tendo a Autora, na sua resposta, pugnado pela improcedência de tais excepções.

245

Foi dispensada a realização da audiência preliminar, nos termos do disposto no artigo 787º, nº 1, do CPC.
E, em obediência ao citado acórdão da Relação de Coimbra, de 4 de Maio, foi, em 5 de Maio de 2000, proferido
despacho saneador, no qual, depois de se decidir julgar improcedente a excepção de caso julgado e de relegar para
momento posterior o conhecimento da também alegada excepção da prescrição, se passou ao imediato conhecimento do
pedido, tendo-se concluído que não impendia sobre a Ré a obrigação de proceder ao reembolso, uma vez que, tendo sido
já demandada pelo acidente de viação e pago a respectiva indemnização, ficou desonerada não só perante o lesado mas
também perante a Autora, isto é, a seguradora que reparou os danos do acidente de trabalho. E, não recaindo sobre a Ré a
obrigação em cujo cumprimento vinha pedida a sua condenação, igualmente se concluiu que se mostrava destituída de
interesse a questão da alegada prescrição de tal obrigação. Termos em que a acção foi julgada improcedente,
absolvendo-se a Ré do pedido - cfr. fls. 162-171.
Inconformada, a Autora apelou, tendo o Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 19 de Junho de 2001,
de fls. 195 a 207, decidido considerar improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida.
Continuando inconformada, traz a Autora a presente revista…
............................................
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - São os seguintes os factos dados como assentes pela 1ª instância:


- Em 24-04-92, em área da comarca de Águeda, ocorreu um acidente que as partes consideraram como de
viação e de trabalho.
- A Autora, anteriormente a esse acidente, celebrara com a entidade patronal do sinistrado, Abílio José Dias Silva,
um contrato de seguro de acidentes de trabalho, titulado pela apólice nº 5083993, que abrangia os trabalhadores ao sai
serviço, dele beneficiando o sinistrado.
- Este instaurou contra a Ré uma acção sumária (de indemnização por acidente de viação), por ser ela a
seguradora do veículo a cujo condutor o sinistrado atribui a culpa na produção do acidente.
- Tal acção correu termos por este Juízo e Tribunal, com o n” 208/95, e nela o sinistrado e a ora Ré chegaram a
acordo, por transacção homologada por sentença, nos termos da qual esta se obrigou a pagar-lhe a quantia de Esc.
2.250.000$00, quantia para a qual reduziu o pedido e com cujo recebimento se deu por totalmente indemnizado pelos
danos de natureza patrimonial e não patrimonial que lhe advieram do referido acidente.
- A Ré pagou ao sinistrado essa quantia em 10-05-96, do que ele deu quitação.
- Do acidente resultaram para o sinistrado lesões que lhe provocaram uma IPP de 27,75%.
- No cumprimento das suas obrigações contratuais, por via desse acidente, a Autora suportou despesas e
pagamentos no montante global de 3.230.875$00.
Consta dos autos, a fls. 89, certidão da acta de audiência, realizada em 08-05-96, onde se estabelecem os
termos da transacção, homologada por sentença, que pôs termo à acção sumária nº 208/95. Ali se prescreve, além do
mais, o seguinte: “1º O autor reduz o pedido para o montante de dois milhões duzentos e cinquenta mil escudos. (…) 3º
Com o recebimento desta quantia, o autor considera-se totalmente indemnizado pelos danos patrimoniais e não
patrimoniais destes autos, contra a ré Companhia de Seguros Metrópole”.
Justifica-se ainda reproduzir o teor do recibo, datado de 10 de Maio de 1996, junto aos autos pela Ré, ora
Recorrida, na sequência do ordenado pelo Tribunal da Relação de Coimbra de 4 de Maio de 1999 (cfr. fls. 155, vs.). É o
seguinte o conteúdo de tal documento:
RECIBO DE INDEMNIZAÇÃO
Eu, Abílio José Dias Silva, casado, relojoeiro, residente no lugar de Fermentões, freguesia de Valongo do Vouga,
concelho de Águeda, declaro que recebi da Companhia de Seguros Metrópole, S.A. a quantia de 2.250.000$00 (dois
milhões duzentos e cinquenta mil escudos) como indemnização por todos os danos patrimoniais reclamados no processo
nº 208/95 que correu seus termos pelo 1º Juízo do Tribunal Judicial de Águeda e de acordo com o termo de transacção
efectuado em tal processo.

III - 1 - A pretensão da Autora de ser reembolsada, pela Ré, do montante que pagou a título de seguradora de
acidentes de trabalho.
O caso dos autos é um caso em que os danos foram provocados por um acidente que é simultaneamente
acidente de viação e acidente de trabalho ou de serviço.
Nos termos do nº 1 do artigo 18º do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, “quando o acidente for
simultaneamente de viação e de trabalho aplicar-se-ão as disposições deste diploma, tendo em atenção as constantes da
legislação especial de acidentes de trabalho”.
À data do acidente encontrava-se em vigor a Lei nº 2127, de 3 de Agosto de 1965, que promulgou as bases do
regime jurídico dos acidentes de trabalho e doenças profissionais (1).
Na economia da Lei nº 2127 assume particular relevo a Base XXXVII, que previne para a hipótese de o acidente
ser causado por companheiro de trabalho ou por terceiros (2).

246
O interesse desta Base reside no especial regime que estabelece sempre que o sinistrado do trabalho fica, em
razão do acidente, titular de dois direitos de reparação: um pelo risco, perante a entidade patronal; outro por facto ilícito
culposo, perante terceiro. Os casos, de longe, mais frequentes em que se desencadeia esta confluência de
responsabilidades são os dos acidentes de viação de que são vítimas trabalhadores em serviço de entidades patronais,
quando tais acidentes são culposamente provocados por “terceiros” (3).

2 - Acerca do regime próprio dessa concorrência de responsabilidades, há que distinguir entre o plano das
relações externas - relações entre cada um dos responsáveis e o lesado - e o domínio das relações internas - relações
entre os dois (ou mais) responsáveis pela reparação dos danos.

2.1. - No quadro das relações externas, o lesado poderá exigir a reparação dos danos causados pelo acidente,
quer da entidade patronal, quer do condutor ou detentor do veículo.
Mas, como salienta, com desenvolvimento, o acórdão recorrido, só neste aspecto se pode falar de uma
responsabilidade solidária da entidade patronal e do detentor do veículo. O outro aspecto do regime de solidariedade, que
consiste no facto de a prestação de um dos devedores liberar o(s) outro(s), já não ocorre nestes casos. Na verdade, se a
indemnização paga pelo detentor do veículo extingue, de facto, a obrigação de indemnizar a cargo da entidade patronal, já
o inverso não é exacto, na medida em que a indemnização paga por esta não extingue a obrigação a cargo do responsável
pelo risco do veículo ou pela culpa do respectivo condutor.
Por outro lado, as duas indemnizações não se podem somar uma à outra.
2.2. - No plano das relações internas, há que distinguir. Assim:
a) se é o detentor do veículo quem paga a indemnização devida, não lhe assiste nenhum direito em relação à
entidade patronal, excepção feita aos casos da existência de culpa por parte desta na produção do dano;
b) No entanto, se a indemnização for paga, no todo ou em parte, pela entidade patronal, esta ficará sub-rogada,
nos termos da referida Base XXXVII da Lei nº 2127, nos direitos do sinistrado.
Esta diversidade de tratamento evidencia que a lei não coloca os dois riscos no mesmo plano. Como ensina
Antunes Varela, “o risco próprio do veículo causador do acidente funciona como uma causa mais próxima do dano do que o
perigo inerente à laboração da entidade patronal” (4).
Não se justifica, no entanto, no caso ora em análise, prosseguir o excurso de índole teórica a que temos vindo a
proceder, uma vez que ambas as partes estão de acordo em que o acidente em causa foi de viação e de trabalho e a
Recorrida aceita o montante das despesas alegadas pela Recorrente, bem como o direito a ser reembolsada delas.
O que se discute é se esse reembolso deve ser feito pela Recorrida, como pretende a Recorrente, ou pelo
sinistrado, como entenderam as instâncias e tal como considera a Recorrida.

3 - Da conjugação dos quatro números da Base XXXVII da Lei nº 2127, pode traçar-se o seguinte quadro de
situações possíveis, para o caso de o responsável pelo acidente de trabalho ter pago à vítima a indemnização do acidente:
a) - se a vítima recebeu indemnização pelo acidente de viação, a entidade patronal ou a sua seguradora, que
pagaram, terão o direito de ser reembolsadas pela vítima – cfr. os nºs 2 e 3 da referida Base;
b) - se a vítima não recebeu indemnização pelo acidente de viação, e se ainda não propôs acção contra os
responsáveis pelo acidente de viação, a seguradora da entidade patronal, que houver pago, não pode exercer o direito de
regresso contra os responsáveis antes de decorrido um ano após o acidente;
c) - decorrido um ano sem que a vítima proponha a acção contra os responsáveis pelo acidente de viação, já a
entidade patronal ou seguradora desta poderão exercer, em acção própria, o direito de regresso contra os responsáveis
pelo acidente de viação;
d) - uma vez instaurada a acção pela vítima contra os responsáveis pelo acidente de viação, seja antes ou depois
de decorrido o prazo de um ano a contar da data do acidente, a entidade patronal ou a seguradora desta têm o direito de
intervir como parte principal nessa acção, para aí formular a pedido de reembolso.

4 - Tendo presente o exposto e, bem assim, a matéria de facto dada como provada, acima reproduzida, para que
ora se remete, vejamos quais as ilações a extrair relativamente ao caso sub judice.
Em primeiro lugar, as indemnizações por acidente, ao mesmo tempo, de trabalho e de viação não são
cumuláveis. São, isso sim, complementares, subsistindo a emergente do acidente de trabalho, para além da que foi paga
pelos danos causados pelo acidente de viação.
Em segundo lugar, e em princípio, a reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho, compreende
apenas as prestações previstas na Base IX da Lei nº 2127, que estabelece o seguinte:
O direito à reparação compreende as seguintes prestações:

a) Em espécie: prestações de natureza médica, cirúrgica, farmacêutica e hospitalar e outras acessórias ou


complementares, seja qual for a sua forma, desde que necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde e
da capacidade de trabalho ou de ganho da vítima e à sua recuperação para a vida activa;

247
b) Em dinheiro: indemnização por incapacidade temporária absoluta ou parcial para o trabalho; indemnização em
capital ou pensão vitalícia correspondente à redução na capacidade de trabalho ou de ganho; em caso de incapacidade
permanente: pensões aos familiares da vítima e despesas de funeral, no caso de morte.
Não constando da previsão do normativo acabado de reproduzir qualquer referência aos danos não patrimoniais,
significa isto que a inacumulabilidade das indemnizações por acidente, simultaneamente, de trabalho e de viação, apenas
faz sentido em relação aos danos patrimoniais.
Em terceiro lugar, na medida em que concorrem uma com a outra, prevalece a responsabilidade subjectiva do
terceiro sobre a responsabilidade objectiva patronal. Assim se entende que esta última assuma um carácter subsidiário ou
residual. Como escreve Vítor Ribeiro, a responsabilidade patronal “extingue-se ou não conforme haja ou não efectivo
pagamento da primeira”, isto é, da responsabilidade subjectiva de terceiro (5).
Em quarto lugar, se o lesado exerceu o direito à indemnização contra o responsável pelo acidente de viação e foi
por este indemnizado - situação que, como já se viu, corresponde ao caso dos autos -, não podendo cumular ambas as
indemnizações, importa observar o disposto nos nºs 2 e 3 da Base XXXVII. Trata-se de situação subsumível ao caso da
alínea a) supra enunciada no ponto 3.

5 - Aproximemo-nos agora do caso concreto.


O sinistrado e a recorrida chegaram a acordo quanto ao pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais
e não patrimoniais, não se discriminando no quantum global de 2.250.000$00 os montantes correspondentes a cada uma
das referidas categorias de danos. Tendo tal indemnização sido paga ao sinistrado, cai-se no âmbito da previsão dos nºs 2
e 3 da Base XXXVII da Lei nº 2127 (6).
Tendo o sinistrado optado pela indemnização do acidente de viação, e sendo a indemnização arbitrada à vítima
de montante inferior ao dos benefícios conferidos em consequência do acidente, a desoneração da responsabilidade será
limitada àquele montante” – nº 3 da Base XXXVII.
Vejamos sobre quem incide a obrigação de reembolsar a seguradora da responsabilidade por acidente de
trabalho do que lhe for devido.
Na vigência do Decreto-Lei nº 408/79, de 25 de Setembro, diploma que instituiu o seguro obrigatório de
responsabilidade civil automóvel, prescrevia o nº 1 do artigo 21º que “quando o lesado em acidente de viação beneficie do
regime próprio dos acidentes de trabalho, por o acidente ser simultaneamente de viação e de trabalho, o segurador de
trabalho ou o responsável directo, na falta deste seguro, responderá pelo acidente de trabalho, tendo o direito de haver do
segurador do responsável pelo acidente de viação ou do fundo de garantia automóvel. Na falta de seguro, o reembolso das
indemnizações pagas, nos termos dos números seguintes e do que vier a ser regulamentado”.
Ou seja, a norma transcrita previa um reembolso efectuado directamente pela seguradora da responsabilidade
civil à seguradora da responsabilidade por acidente de trabalho.
O Decreto-Lei nº 408/79 viria a ser, no entanto, revogado pelo Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro (artigo
40º). Ora, como já se disse, o artigo 18º deste último diploma, no seu nº 1, sempre que o acidente fosse simultaneamente
de viação e de trabalho, mandava ter em consideração as disposições constantes da legislação especial de acidentes de
trabalho.
Tendo presente que, no Decreto-Lei nº 522/85, não se encontra previsto o reembolso directo entre as
seguradoras, importa atentar no regime da Lei nº 2127 na matéria vertente. Ora, resulta do disposto nos nºs 2 e 3 da Base
XXXVII que o reembolso deve ser efectuado pela vítima do acidente, isto é, pelo beneficiário da indemnização.
Diga-se, a propósito, que, na vigência da Lei nº 100/97, de 13 de Setembro, continua a estar previsto o regime do
“reembolso pelo sinistrado” em acidente (beneficiário da indemnização) - artigo 31º, n.os 2 e 3.
Considerando que, à data da verificação do acidente dos autos já não se encontrava em vigor o regime previsto
no Decreto-Lei nº 408/79, de 25 de Setembro (artigo 21º), mas sim o que, por força da remissão operada pelo Decreto-Lei
nº 522/85, resultava da aplicação das normas da Base XXXVII da Lei nº 2127, dúvidas não existem acerca do bom
fundamento da decisão do acórdão recorrido.

6 - Entende, porém, a Recorrente, repetindo, em grande parte, os argumentos, a propósito, aduzidos na


antecedente apelação, que, por não haver qualquer duplicação de pagamentos indemnizatórios por parte da Ré recorrida,
nem recebimentos indevidos ou em duplicado por parte do acidentado, visto serem diversos os pedidos formulados contra
a recorrida pelo sinistrado e pela ora recorrente, o acórdão recorrido violou o direito da recorrente em ser reembolsada das
despesas próprias, tendo violado também o disposto nos artigos 473º, 483º e 562º do CC e o nº 4 da Base XXXVII da Lei
nº 2127, não sendo de aplicar ao caso o disposto nos nºs 2 e 3 da referida Base.
Mas não tem razão.
Por um lado, tendo o sinistrado exercido o direito de acção para concretização da responsabilidade civil resultante
do acidente de viação, e tendo sido paga a indemnização correspondente, não só não ocorreu a violação do nº 4 da
referida Base, mas também, porque verificado o preenchimento das situações abrangidas pelas respectivas previsões, se
caiu no âmbito de aplicação da disciplina dos nºs 2 e 3 daquela Base XXXVII.

248
A Recorrente não tem razão quando insiste em ser reembolsada pela Recorrida das importâncias que, como
seguradora do acidente de trabalho, despendeu com o sinistrado.

Com efeito:
a) As despesas de que a Recorrente pretende ser reembolsada integram-se no dano sofrido pelo sinistrado no
acidente dos autos, na vertente “acidente de trabalho” - cfr. a Base IX da Lei nº 2127, já oportunamente referenciada. E
como foi paga a indemnização ao sinistrado, embora no acordo firmado por transacção não se tenha feito a destrinça dos
montantes devidos a título de reparação de danos patrimoniais e de reparação de danos não patrimoniais, o que está em
causa é a aplicação dos números 2 ou 3 da Base XXXVII da mesma Lei.
b) Foi a Recorrente que deixou passar, sem das mesmas fazer uso, a oportunidade e a faculdade a que se refere
o nº 4 da Base XXXVII, disposição que lhe concedia a possibilidade de exercer direitos que podia ter utilizado para uma
mais eficaz defesa dos seus interesses. (7)
c) Atenta a evolução legislativa já assinalada e tendo presentes os normativos aplicáveis, deixou de ser possível,
a partir da revogação do Decreto-Lei nº 408/79, de 25 de Setembro (artigo 21º), o reembolso directo entre as seguradoras
do acidente de viação e de trabalho, depois de ter sido paga pela primeira a indemnização devida ao sinistrado – artigo 18º
do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro e nºs 2 e 3 da Base XXXVII da Lei nº 2127.
d) Pelo que, tendo a recorrida pago a indemnização devida pelo acidente de viação, pela qual o beneficiário
optou, é a este que compete o reembolso da Recorrente em conformidade com o disposto pela referida Base XXXVII.
Improcedem, pois, as conclusões do presente recurso, não ocorrendo a violação dor normativos indicados.
Termos em que se nega a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas a cargo da Recorrente.

Lisboa, 24 de Janeiro de 2002

Garcia Marques Ferreira Marques Lemos Triunfante

(1) A Lei nº 2127 veio a ser revogada pela Lei nº 100/97, de 13 de Setembro (artigo 42º).
(2) A Base XXXVII, sob a epígrafe “Acidente originado por companheiro ou terceiros”, dispõe o seguinte:
“1. Quando o acidente for causado por companheiros da vítima ou terceiros, o direito à reparação não prejudica o
direito de acção contra aqueles, nos termos da lei geral.
2. Se a vítima do acidente receber de companheiros ou de terceiros indemnização superior à devida pela
entidade patronal ou seguradora, esta considerar-se-á desonerada da respectiva obrigação, e terá direito a ser
reembolsada pela vítima das quantias que tiver pago ou despendido.
3. Se a indemnização arbitrada à vítima ou aos seus representantes for de montante inferior ao dos benefícios
conferidos em consequência do acidente ou da doença, a desoneração da responsabilidade será limitada àquele montante.
4. A entidade patronal ou a seguradora que houver pago a indemnização pelo acidente terá o direito de regresso
contra os responsáveis referidos no nº 1, se a vítima não lhes houver exigido judicialmente a indemnização no prazo de um
ano, a contar da data do acidente. Também à entidade patronal ou seguradora assiste o direito de intervir como parte
principal no processo em que a vítima exigir aos responsáveis a indemnização pelo acidente a que alude esta base”.
(3) Cf. Vítor Ribeiro, “Acidentes de Trabalho – Reflexões e Notas Práticas”, Rei dos Livros, 1984, págs. 227 e 228.
(4) Cfr. “Das Obrigações em Geral”, vol. 1º, 10ª edição, pp. 698 a 702. Para maiores desenvolvimentos, atente-se
no que se escreve no acórdão recorrido, peça detalhada e profusamente fundamentada, a fls. 201 e segs.
(5) Op. cit., pág. 238.
(6) Que, recorde-se, dispõem, respectivamente, o seguinte:
“2. Se a vítima do acidente receber de companheiros ou de terceiros indemnização superior à devida
pela entidade patronal ou seguradora, esta considerar-se-á desonerada da respectiva obrigação, e terá direito a ser
reembolsada pela vítima das quantias que tiver pago ou despendido.
3. Se a indemnização arbitrada à vítima ou aos seus representantes for de montante inferior ao dos
benefícios conferidos em consequência do acidente ou da doença, a desoneração da responsabilidade será limitada àquele
montante”.
(7) Cujo teor se recorda ser o seguinte:
“4. A entidade patronal ou a seguradora que houver pago a indemnização pelo acidente terá o direito de
regresso contra os responsáveis referidos no nº 1, se a vítima não lhes houver exigido judicialmente a indemnização no
prazo de um ano, a contar da data do acidente. Também à entidade patronal ou seguradora assiste o direito de intervir
como parte principal no processo em que a vítima exigir aos responsáveis a indemnização pelo acidente a que alude esta
base”.

O art. 18º do revogado Dec-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, Lei do Seguro Obrigatório,


mandava aplicar as disposições deste Dec-Lei aos acidentes simultaneamente de viação e de trabalho
249
ou acidentes em serviço, tendo em atenção as constantes da legislação especial de acidentes de
trabalho.

Actualmente rege o art. 26º do Dec–lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto (seguro obrigatório):

Artigo 26.º
Acidentes de viação e de trabalho
1 - Quando o acidente for simultaneamente de viação e de trabalho, aplicar- -se-ão as
disposições deste decreto-lei, tendo em atenção as constantes da legislação especial de acidentes de
trabalho.
2 - O disposto no número anterior é aplicável, com as devidas adaptações, quando o acidente
possa qualificar-se como acidente em serviço, nos termos do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de
Novembro.

Destaca-se o artigo 31º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro (actual Lei dos Acidentes
de Trabalho, que revogou a Lei n.º 2127):

Acidente originado por outro trabalhador ou terceiros

1 – Quando o acidente for causado por outros trabalhadores ou terceiros, o direito à reparação não prejudica o
direito de acção contra aqueles, nos termos da lei geral.
2 – Se o sinistrado em acidente receber de outros trabalhadores ou de terceiros indemnização superior à devida
pela entidade empregadora ou seguradora, esta considera-se desonerada da respectiva obrigação e tem direito a ser
reembolsada pelo sinistrado das quantias que tiver pago ou despendido.
3 – Se a indemnização arbitrada ao sinistrado ou aos seus representantes for de montante inferior ao dos
benefícios conferidos em consequência do acidente ou da doença, a desoneração da responsabilidade será limitada
àquele montante.
4 – A entidade empregadora ou a seguradora que houver pago a indemnização pelo acidente tem o direito de
regresso contra os responsáveis referidos no nº 1, se o sinistrado não lhes houver exigido judicialmente a indemnização no
prazo de um ano a contar da data do acidente.
5 – A entidade empregadora e a seguradora também são titulares do direito de intervir como parte principal no
processo em que o sinistrado exigir aos responsáveis a indemnização pelo acidente a que se refere este artigo.

Pagamentos feitos pela Segurança Social

Os CRSS 105 e o Centro Nacional de Pensões (gestor de pensões por invalidez,


velhice e morte 106), sempre que haja terceiros responsáveis pelo facto determinante da prestação de
segurança social, ficam sub-rogados nos direitos do lesado (artigo 16º da Lei n.° 28/84, Dec-lei nº
59/89, de 22 de Fevereiro) e só pode considerar-se sub-rogado em relação às prestações que pagou
(vide artigos 592º, n.° 1, e 593°, n° 1, do Código Civil), não podendo pedir desde logo o «reembolso
das quantias que vier a satisfazer ao lesado» - BMJ 443-99 e 109.
Mas podem e devem exigir dos responsáveis - ou dos beneficiários se estes receberam
indemnização do responsável - o reembolso dos subsídios de doença e outras prestações
provisoriamente suportadas pela Segurança Social. Para poderem formular estes pedidos devem as I.
S. S. ser notificadas da pendência de acção cível ou acção penal - Dec-lei nº 59/89, de 22 de
Fevereiro.
Se em consequência do acidente o lesado ficou incapacitado, o CNP, reconhecendo embora o
direito do lesado a pensão por invalidez, pode reter os pagamentos ou exigir o reembolso do que
tenha pago até ao limite da indemnização devida por perda da capacidade de ganho, presumidamente

105
- Instituições de Segurança Social a nível distrital.
106
- (Dec-lei nº 96/92, de 23 de Maio)

250
de dois terços de toda a indemnização acordada com o terceiro (art. 9º e 10º do Dec-lei nº 329/93, de
25 de Setembro).

O STJ, por Ac. de 23.10.2003, na Col. Jur. (STJ) 2003-III-111 a 116 (Cons.º Salvador da
Costa) decidiu:

I – No caso de frustração de ganhos como resultado de evento danoso gerador de indemnização e que
se prolongue por um longo período de previsão, a solução mais ajustada é a de conseguir a sua quantificação
imediata com a utilização intensa de juízo de equidade.
II - No caso de recurso a fórmulas jurisprudenciais usadas para conseguir padrões de cálculo
objectivos, na tentativa de conseguir um critério uniforme, o cálculo deve, ainda assim, ser temperado com o
critério da equidade, considerando, se possível, no caso de morte da vítima, a natureza do trabalho, o salário
auferido por aquela, o dispêndio relativo a necessidades próprias, a depreciação da moeda, as suas condições
de saúde ao tempo do decesso, o tempo provável de trabalho que realizaria e a expectativa de aumento
salarial e de progressão da carreira.
III - A pensão de sobrevivência e o subsídio por morte devidos aos beneficiários pelo sistema de
segurança social assume a natureza de medida de carácter social e, por seu turno, a prestação devida por
terceiro em razão da perda do rendimento de trabalho e do despendido com o funeral da vítima assume
natureza indemnizatória no quadro da responsabilidade civil.
IV - As instituições de segurança social assumem um papel subsidiário e provisório face à obrigação
de indemnização de que é sujeito passivo o autor do acto determinante de responsabilidade civil; nem as
contribuições para a segurança social constituem a contrapartida directa do subsídio por morte ou pensão de
sobrevivência, nem o respectivo reembolso pelo responsável pelo evento morte se traduz em enriquecimento
sem causa.
VI - Não são cumuláveis, na esfera patrimonial dos credores da indemnização, a indemnização por
perda do rendimento de trabalho e do dispêndio com o funeral da vítima e a pensão de sobrevi vência e o
subsídio por morte devidos aos beneficiários do sistema de segurança social.
VII - Por conseguinte, o Centro Nacional de Pensões tem direito de exigir, no caso de evento gerador
de obrigação de indemnização, o reembolso do que pagou a titulo de pensão de sobrevivência e o subsídio por
morte, por sub-rogação dos beneficiários, tal implicando que esse valor deve ser deduzido ao montante
indemnizatório devido a estes

A natureza da pensão de sobrevivência e do subsídio por morte é determinável com base no seu regime
legal.
Resulta da lei que a pensão de sobrevivência é uma prestação social pecuniária que visa compensar determi-
nados familiares do falecido beneficiário da segurança social da perda do rendimento de trabalho determinada pela morte
(artigo 3º do Decreto-Lei nº 322/90, de 18 de Outubro).
Como a pensão de sobrevivência visa compensar a perda do rendimento do trabalho pelos familiares dos
beneficiários da segurança social, a sua finalidade coincide, verificados os respectivos pressupostos, com a da obrigação
de indemnização do dano de lucro cessante.
A prestação social designada por subsídio por morte destina-se, por seu turno, a compensar o acréscimo dos
encargos decorrentes da morte do beneficiário, com vista a facilitação da reorganização da vida familiar (artigo 4º, nº 2, do
Decreto-Lei nº 322/90, de 18 de Outubro).
Assim, o subsídio por morte traduz-se em prestação pecuniária compensante do dispêndio no funeral do
beneficiário da segurança social realizado pelos respectivos familiares, independentemente da causa da morte.
Como o subsídio de morte visa compensar o dispêndio com o funeral do beneficiário da segurança social, a sua
finalidade coincide, verificados os respectivos pressupostos, com a da obrigação de indemnização desse prejuízo por dano
emergente.
Não constituem aquelas prestações a directa contrapartida das contribuições dos beneficiários para o respectivo
sistema, isto é, estas não são o directo fundamento e medida daquelas, mas, em qualquer caso, trata-se de obrigação
própria das instituições de segurança social ou de previdência social de inscrição obrigatória.
Na sua estrutura, ambas as referidas prestações se traduzem em prestações pecuniárias sociais, isto é, sem o
carácter indemnizatório das prestações relativas à perda de rendimento de trabalho e de dispêndio com o funeral do
beneficiário da segurança social.
Confrontando a pensão de sobrevivência e o subsídio por morte com a prestação devida por terceiro em razão da
perda de rendimento de trabalho e do despendido com o funeral do beneficiário da segurança social, dir-se-á, em síntese,
que a primeira assume a natureza de medida de carácter social e a última natureza indemnizatória no quadro da
responsabilidade civil.

251
Vejamos agora se os recorrentes subordinados têm ou não direito a cumular na sua esfera patrimonial o valor da
pensão de sobrevivência e do subsídio por morte de Manuel Silva com o valor indemnizatório devido pela recorrente
principal no quadro da responsabilidade civil por facto ilícito por ela assumida por via contratual, em razão da perda de
rendimento do trabalho e do dispêndio com o funeral, ou seja, se as mencionadas prestações são ou não cumuláveis.
A lei vigente ao tempo do decesso de Manuel Pinheiro Silva, e actualmente, prescreve que no caso de
concorrência, no mesmo facto, do direito a prestações pecuniárias dos regimes de segurança social com o de
indemnização a suportar por terceiros, as instituições de segurança social ficam sub-rogadas nos direitos do lesado até ao
limite dos valores que lhe conceder (artigos 16º da Lei nº 28/84, de 14 de Agosto, e 71º da Lei nº 32/2002, de 20 de
Dezembro).
A referida concorrência depende das circunstâncias de haver obrigação de indemnizar por parte de terceiro e de a
indemnização abranger a perda de rendimento de trabalho e maior dispêndio implicado pelo funeral (Ac. do STJ, de
3.7.2002, C.J Ano X, Tomo 2, pág. 237).
No desenvolvimento do referido regime de sub-rogação, a lei estabeleceu mecanismos tendentes a facilitar às
instituições de segurança social o reembolso do valor por elas despendido a título de prestações sociais, sem distinção de
natureza, à custa dos responsáveis pelo pagamento de indemnizações derivadas de factos que originaram o evento delas
determinante (artigos 1º e 2º do Decreto-Lei nº 59/89, de 22 de Fevereiro).
Ao expressar no exórdio do último dos mencionados diploma que as instituições de segurança social se substi -
tuem às pessoas responsáveis em favor dos beneficiários, proporcio-nando-lhe rendimentos de que são privados por acto
de terceiro determinante de responsabilidade civil de que tenha resultado incapacidade temporária ou definitiva para o
exercício de actividade profissional ou a morte, o legislador esclareceu, de algum modo, a intencionalidade da lei no sentido
da incomunicabilidade em análise.
O disposto nos artigos 16º da Lei nº 28/84, de 14 de Agosto, e no artigo 71º da Lei nº 32/2002, de 20 de
Dezembro, traduz-se em normativo especial de sub-rogação legal, no confronto do que prescreve o artigo 592,º nº 1, do
Código Civil, segundo o qual, o terceiro que cumpre a obrigação fica sub-rogado nos direitos do credor se tiver garantido o
cumprimento ou haja outra causa do seu interesse directo na satisfação do direito de crédito.
O direito de sub-rogação das instituições de segurança social e, consequentemente, a não definitividade do
encargo com o pagamento, por exemplo, das pensões de sobrevivência e do subsídio por morte, só existe no caso de
concorrência, pelo mesmo facto, do direito a prestações pecuniárias dos regimes de segurança social com o de
indemnização a suportar por terceiro.
Esta especialidade da sub-rogação deriva da finalidade das prestações sociais em causa, certo que podem
implicar um encargo definitivo para as instituições de segurança social, designadamente no caso de a morte do beneficiário
resultar de causa natural, por exemplo de envelhecimento ou doença, ou à própria vítima exclusivamente imputável.
Este direito de sub-rogação coloca as instituições de segurança social na titularidade do direito de crédito
indemnizatório dos familiares do falecido contra o terceiro civilmente responsável pela morte do beneficiário em causa.
Este direito de sub-rogação, estabelecido sem qualquer distinção nos artigos 16º 107 da Lei nº 28/84, de 14 de
Agosto, e no artigo 71º108 da Lei n° 32/2002, de 20 de Dezembro, num quadro em que se não vislumbram razões de
sistema para distinguir, não é afastado pela natureza do subsídio por morte, certo que não é atribuído como contrapartida
de descontos em vida do beneficiário.
Dir-se-á que as instituições de segurança social assumem um papel subsidiário e provisório face à
obrigação de indemnização de que é sujeito passivo o autor do acto determinante da responsabilidade civil.
Não se põe em causa a afirmação dos recorrentes subordinados no sentido de que o subsídio por morte é pago
de uma só vez pela segurança social em razão desse evento e independentemente da sua causa e de que nada tem a ver
com a perda de rendimentos de trabalho ou de alimentos.
107
- Artigo 16º (Responsabilidade civil de terceiro)
«No caso de concorrência, pelo mesmo facto, do direito a prestações pecuniárias dos
regimes de segurança social com o de indemnização a suportar por terceiros, as instituições de
segurança social ficam sub-rogadas nos direitos do lesado até ao limite do valor das prestações que
lhes cabe conceder».

108
- Artigo 71º Responsabilidade civil de terceiros
«No caso de concorrência pelo mesmo facto do direito a prestações pecuniárias dos regimes
de segurança social com o de indemnização a suportar por terceiros, as instituições de segurança
social ficam sub-rogadas nos direitos do lesado até ao limite do valor das prestações que lhes cabe
conceder».

252
Ao invés, porém, do que entendem, nem as contribuições para a segurança social constituem a contrapartida
directa daquele subsídio, nem o respectivo reembolso pelo responsável do evento morte se traduz em enriquecimento sem
causa, pelo que inexiste fundamento legal que obste ao seu reembolso pelo terceiro que seja responsável por aquele
evento.

Em consequência, importa concluir, por um lado, no sentido da incomunicabilidade na esfera patrimonial


dos recorrentes subordinados, da indemnização por perda do rendimento do trabalho realizado por Manuel
Silva e do dispêndio com o seu funeral a prestar-lhes pela recorrente principal com as prestações de
segurança social consubstanciadas na pensão de sobrevivência e no subsídio por morte.
E, por outro, que o Centro Nacional de Pensões tem direito a exigir da recorrente principal o que
pagou a título dos aludidos pensão de sobrevivência e de subsídio por morte, com a necessária implicação de
esse valor ser deduzido ao montante indemnizatório atribuído aos recorrentes subordinados .

O Estado goza de subrogação legal pelos vencimentos e mais despesas havidas com
funcionário seu (normalmente, agentes de polícia feridos em serviço), acidentado por culpa de outrem
– Assento nº 5/97, no DR IA, de 27.3.97, e BMJ 463-35.

Responsabilidade médica

Estudo no BMJ 332-21 e ss, dos Prof. Figueiredo Dias e Sinde Monteiro, nas vertentes
criminal e civil, respectivamente.

Guilherme de Oliveira publicou estudo sobre Consentimento Informado na RLJ 125º-33 e


ss, de que destacamos:
- a necessidade de obter o consentimento informado assenta na protecção dos direitos à
integridade física e moral do doente (25º da Constituição e 70º CC);
- esta protecção tem dignidade constitucional, e enquadra-se no tipo de normas que gozam
do privilégio da «aplicação imediata», vinculando directamente todos os sujeitos de
direito, públicos e privados (18º CRP);
- por esta razão, embora possa variar a estrutura jurídica em que se executa o acto médico
(clínica privada, em casas de saúde privadas ou em hospitais públicos) essa diversidade
não tem qualquer influência na necessidade de obter um consentimento informado do
doente, antes da intervenção concreta.

Em 5.7.2001 decidiu o STJ, por ac. na Col. Jur.(STJ) 2001-II-166:

RESPONSABILIDADE CIVIL
Assistência médica
Deveres do médico
Onus de prova
Tutela contratual e delitual

I - A assistência médica surge, em regra, por via de um contrato de prestação de serviços, com carácter pessoal,
de execução continuada, com vista ao tratamento do doente, de modo a assegurar-lhe os melhores cuidados possíveis, no
intuito de lhe restituir a saúde, suavizar o sofrimento e salvar ou prolongar a vida.
II - O médico deve agir segundo as exigências das leges artis e os conhecimentos científicos então existentes,
actuando de acordo com um dever objectivo de cuidado, assim como de certos deveres específicos, como seja o dever de
informar sobre tudo o que interessa à saúde ou o dever de empregar a técnica adequada, que pode prolongar-se mesmo
após a alta do paciente.
III - Tratando-se de uma obrigação de meios, cabe ao paciente demonstrar que o médico, na sua actuação,
atentas as exigências das leges artis e os conhecimentos científicos então existentes, violou esses deveres objectivos de
cuidado ou então qualquer dever específico.
IV - A responsabilidade civil por assistência médica, tanto pode ter tutela contratual, como extracontratual, como
sucede com uma actuação do médico violadora dos direitos do doente à saúde e à vida.

253
Ver cópia dos apontamentos da lição proferida pelo Senhor Professor Costa Andrade sobre
Direito Penal Médico.

Acidentes em auto-estradas
Estudo do Prof. Sinde Monteiro, na RLJ 131-41 e ss

Em 26 de Outubro de 1991, na região de Santarém, um cão atravessou a auto-estrada e colidiu com num
automóvel que, por isso, se despistou, do que resultaram danos tanto no automóvel como nas pessoas transportadas.
O STJ, considerando tratar-se de responsabilidade extracontratual, não haver presunção de culpa nem inversão
do onus da prova nas bases da concessão aprovada pelo Dec-Lei nº 315/91, de 20 de Agosto, e que os AA não provaram
culpa da Brisa no aparecimento do cão, confirmou a decisão de improcedência das instâncias.

Aquele Ex.mo Professor estuda a questão sob três diferentes pontos de vista:
A - Responsabilidade delitual por ser a disciplina potencialmente aplicável a toda a causação de danos na vida
social.
B - Responsabilidade contratual por a utilização de auto-estradas estar normalmente condicionada ao
pagamento de portagem.
C - Contrato com eficácia de protecção para terceiros que resultaria das obrigações da concessionária,
constantes do contrato de concessão (Base XXXVI, nº 2), mesmo quanto a estradas em que não há portagem (SCUTs).

A - Resp. delitual - Neste prisma, tendo a Brisa em seu poder a auto-estrada no seu todo, não só o piso como
também as vedações (que não impedem a entrada de animais), aplicar-se-ia a presunção de culpa do nº 1 do art. 493º CC,
consistindo a ilicitude na violação de disposição destinada a proteger interesses alheios : a Base XXII, nº 5, al. a) do
contrato de concessão, aprovado pelo Dec-Lei nº 294/97, de 24 de Outubro, que contempla o dever de vedação em toda
a extensão, disposição com eficácia externa relativamente às partes no contrato.
O mesmo se diz no respeitante à Base XXXVI, nº 2, que consagra o dever de assegurar a circulação em boas
condições de segurança e comodidade, a implicar responsabilidade por pavimento irregular, neve, gelo, manchas de óleo,
etc.
Nas restantes estradas mantém-se a presunção do nº 1 do art. 493º, mas em menor grau, apenas em relação
àqueles obstáculos anormais, como valas e outros não sinalizados, em violação do art. 5º do C. Estrada. O menor dever de
vigilância e a mais baixa velocidade nessas estradas levam a esse afrouxamento da presunção de culpa.

B – Resp. contratual - O preço da portagem é mais o preço de uma prestação de serviço do que taxa de direito
público. Estaríamos em presença de contrato entre o utente e a concessionária, empresa de direito privado e fim lucrativo.
A presunção de culpa resultaria aqui do art. 799º, nº 1, do CC.
C - Contrato com eficácia de protecção de terceiros - Há auto-estradas sem portagem, pelo que nestas não
é possível o apelo à responsabilidade contratual. O que está agora em causa é o contrato de concessão enquadrável na
figura dos contratos com eficácia de protecção para terceiros.
O próprio preâmbulo do Decreto-Lei nº 294/97 alude a que algumas das bases do contrato de concessão têm
«eficácia externa relativamente às partes no contrato» (in fine).
Entre outras, integra-se nesse número a Base XXXVI, cujo nº 2 determina que «a concessionária será
obrigada, salvo caso de força maior devidamente verificado, a assegurar permanentemente, em boas
condições de segurança e comodidade, a circulação nas auto-estradas, quer tenham sido por si construí-das,
quer lhe tenham sido entregues para a conservação e exploração, sujeitas ou não ao regime de portagem ».
Esta garantia, ligada funcionalmente à observância do disposto em numerosas cláusulas contratuais, tem em
vista a protecção de terceiros, os utentes, que são quem vai suportar os efeitos do bom ou defeituoso cumprimento das
obrigações assumidas pela concessionária, sem que todavia lhes caiba um direito à prestação, como corresponderia à téc-
nica do contrato a favor de terceiro.
Parece assim razoável a inclusão desses terceiros no âmbito de protecção do contrato celebrado com o Estado, o
que justifica a chamada à colação da figura dos «contratos com eficácia de protecção para terceiros».

Com respeito ao grupo de casos mais recente (protecção do património), o que se pretende essencialmente
com o recurso a esta moderna figura de «quase-contrato» é conseguir tutela jurídica para interesses (puramente
patrimoniais) que, em princípio, não são delitualmente protegidos. Mas a propósito do grupo de casos tradicional, no qual
estão em causa bens jurídicos (vida, integridade física, propriedade) que gozam de tutela delitual geral, por integrarem
verdadeiros direitos subjectivos (art. 483º, nº 1), a razão de ser do instituto consiste justamente em permitir aos

254
beneficiários usufruírem de certas vantagens do regime jurídico contratual, das quais, no direito português, a mais
importante concerne ao ónus da prova da culpa.
Isto quanto a aspectos de regulamentação ou de regime jurídico. Quanto à construção técnico-jurídica, não
inteiramente pacífica, é geralmente apontado um certo hibridismo do instituto, situado a meio caminho entre o contrato e o
delito.

Em resumo 109:

a) - No plano da responsabilidade civil extracontratual, a aplicação do art. 493º, nº 1, mas pelo ângulo do dever
de vigilância sobre uma coisa imóvel, a auto-estrada, considerada esta por um prisma funcional como uma globalidade.
À entidade gestora cabe garantir a segurança da utilização, sendo esses níveis definidos, inter alia, pelo contrato
de concessão, onde se contém a referida obrigação de vedação em toda a extensão (que não encontramos no direito
comparado).
Desde que se verifique uma falha objectiva (uma anormalidade) e exista um nexo de causalidade entre essa falha
e os danos, pode dizer-se que o acidente foi causado pela coisa auto-estrada.
O aparecimento de um animal, bem como a verificação de outras «armadilhas» (areia, buracos, deformações,
pedras ou outros obstáculos) fazem presumir a omissão culposa de um «dever no tráfico» ou «dever de prevenção de
perigos» visando garantir a segurança da circulação.
Dada a multiplicidade de modos possíveis de intromissão do animal, a demonstração de que não teve lugar a vio -
lação de um dever (ou de que, em todo o caso, esta não é de atribuir a culpa) parece requerer a prova histórica do
acontecimento, aparecendo como insuficiente ou inconclusiva a constatação de que não se detectaram falhas na vedação.

b) - Havendo lugar ao pagamento de portagem, um «contrato de utilização» de direito privado, em que os


deveres da concessionária, em matéria de segurança, se hão-de medir pela bitola das obrigações assumidas face ao
Estado (ver infra, al. c)). A actividade da entidade gestora pode bem ser vista como um negócio (por detrás do manto diá -
fano do serviço público), para mais explorada com fins lucrativos, não se vendo motivos decisivos para distinguir o
pagamento de um quantitativo pela utilização da auto-estrada, aliás proporcional à distância percorrida, do da compra de
um título de transporte ferroviário, possa embora a lei baptizar aquele de taxa e não de preço (de direito privado).

c) - Em qualquer caso, haja ou não pagamento de portagem (mas sem interesse, na primeira situação, para
quem aceite existir contrato), um «contrato com eficácia de protecção para terceiros», dando-se este alcance ao contrato
de concessão, desde logo com apoio no próprio preâmbulo do Decreto-Lei aprovador das bases da conces são, que faz
alusão à «eficácia externa relativamente às partes no contrato».
A esta relação especial, tecnicamente do mesmo tipo da «culpa na formação dos contratos» regulada no art. 227º
do Código Civil (também aqui se está perante uma «relação obrigacional sem deveres primários de pres tação») é de
aplicar o estatuto contratual e com isso a inversão do ónus da prova previsto no art. 799º, nº 1, do Código Civil, com a
concretização da base XXXVI, nº 2 do contrato de concessão (constante do anexo ao Decreto-Lei de aprovação de tal
contrato), a qual obriga à demonstração por parte da concessionária de que as falhas de segurança foram provocadas por
«caso de força maior».

Quanto à eventual concorrência entre estes diversos fundamentos de uma pretensão indemnizatória, só faz
sentido colocar a questão do concurso entre o delito e o contrato ou, em alternativa, entre o delito e o quase-contrato.
Admitindo-se que a utilização de uma auto-estrada com portagem configura a celebração de um contrato de
utilização, não faz sentido o recurso ao sucedâneo «contrato com eficácia de protecção para terceiros»; mas o recurso a
esta figura já tem todo o interesse, mesmo em relação àquela espécie de auto-estradas, para quem rejeitar a ideia do
contrato de utilização.
A questão de fundo da admissibilidade abstracta dessa concorrência justificaria um desenvolvimento autónomo.
Na linha da posição defendida nos trabalhos preparatórios do Código Civil como a melhor de iure condendo, temo-nos
inclinado a favor de um concurso de fundamentos de uma única pretensão indemnizatória, parecendo-nos que a ideia do
non-cumul des responsabilités délictuelle et contractuelle ostenta uma marca de origem desadaptada à nossa cultura jurí-
dica.

Estes ensinamentos do Prof. Sinde Monteiro foram repetidos a propósito de danos por arremesso de pedras da
passagem superior não vedada - Ac. STJ, de 17.2.2000 (Col. Jur. STJ 00-I-107) - e aparecimento de cão na auto-
estrada, (sentença de Santo Tirso) na RLJ 133-17 a 32 e 59 a 66.

Naquele ac. do STJ decidiu-se:

109
- Sinde Monteiro, RLJ 132º-94 a 96

255
I - Quando o utente pretende circular por certo troço de auto-estrada, entre ele próprio e a Brisa, como
concessionária da sua exploração, estabeleceu-se um contrato inominado, em que ao pagamento da "taxa-portagem", por
parte do utilizador, corresponde a prestação por parte da concessionária, de aceder à circulação pela auto-estrada, com
comodidade e segurança.
II - Não obstante os danos provocados no veículo circulante em consequência de despiste determi nado por um
cão a vaguear na auto-estrada ou do impacto de pedras arremessadas de "passagem aérea", não têm que ser
indemnizados pela Brisa, por o não cumprimento do contrato ficar a dever-se não a conduta ilícita e culposa daquela con -
cessionária mas de terceiro, eventualmente desconhecido.

Aqueles ensinamentos do Prof. Sinde Monteiro foram seguidos no Ac. do STJ, de 22 de Junho de 2004, na
Revista n.º 1299/04, da 6ª secção, na Col. Jur. (STJ) 2004-II-96 a 102.

ACIDENTE EM AUTO-ESTRADA
Colisão com cão
Responsabilidade da Brisa
Culpa - Ónus da prova

I - O contrato celebrado entre o utente que pretende circular pela auto-estrada e a Brisa, sua concessionária, é
um contrato inominado em que o utente tem como prestação o pagamento de uma taxa e a Brisa a contraprestação de
permitir que o utente "utilize" a auto-estrada, com comodidade e segurança.
II - Embora o contrato de concessão tenha como Partes Contratantes o Estado Concedente e a Brisa
Concessionária, algumas das Bases da Concessão têm carácter normativo, eficácia externa relativamente às partes no
contrato, razão por que o legislador as integrou no Decreto-Lei aprovador da Concessão, dele fazendo parte integrante
(final do preâmbulo e art. 14 do Dec: -Lei nº 294/97, de 24 de Outubro).
III - Uma dessas Bases é a XXXVI, nº 2, segundo a qual «a concessionária será obrigada, salvo caso de força
maior devidamente verificado, a assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade, a
circulação nas auto-estradas, quer tenham sido por si construídas, quer lhe tenham sido entregues».
IV - O aparecimento de um cão de elevado porte na faixa de rodagem da auto-estrada constitui reconhecido
perigo para quem ali circula, cabendo, por isso, à Brisa evitar essa (e outras) fonte de perigos, essa anormalidade.
V - Assim, não pode pôr-se a cargo do automobilista a prova da negligência da Brisa ou da origem do cão porque
não foi a prestação dele que falhou nem ele tem a direcção efectiva, o poder de facto sobre a auto-estrada (como um todo,
incluindo vedações, ramais de acesso e áreas de repouso e serviço.
VI - Só o «caso de força maior devidamente verificado» exonera o devedor (a concessionária) da sua obrigação
de garantir a circulação em condições de segurança (art. 799º, nº 1, do CC) e, na hipótese de inexecução, do dever de
reparar os prejuízos causados.
VII - Não será suficiente (ao devedor, a Brisa) mostrar que foi diligente ou que não foi negligente: terá de
estabelecer positivamente qual o evento concreto, alheio ao mundo da sua imputabilidade moral, que não Ihe deixou
realizar o cumprimento.
VIII - Essa prova só terá sido produzida quando se conhecer, em concreto, o modo de intromissão do animal. A
causa ignorada não exonera o devedor, nem a genérica demonstração de ter agido diligentemente.

Mas foram de algum modo contrariados pelo Ac. do mesmo STJ, de 14.10.2004 (Cons.º Oliveira Barros), na
Revista 2885/04, assim sumariado:

I - Exercendo actividade pública de que a Administração é titular, as empresas privadas concessionárias de bens
públicos substituem a Administração nas relações com o público e actuam como se fossem entidades públicas.

II - O pagamento de uma ”taxa de portagem“ pelos utentes da auto-estrada representa a cobrança de uma receita
coactiva, de um financiamento público, e não a satisfação, por parte do utilizador dessa via, de uma obrigação assumida no
âmbito de um contrato sinalagmático, cuja contraprestação do Estado, transferida, por concessão, para a Brisa, seria a
possibilidade de circulação na via referida, com condições de segurança e níveis de fiscalização mais elevados em
comparação com as demais estradas.

III - A figura dos contratos com eficácia de protecção de terceiros surgiu no direito alemão com a finalidade de
ultrapassar limitações, nesse ordenamento, do regime da responsabilidade extracon-tratual que não se verificam no nosso
sistema jurídico.

IV - Estranhos ao contrato de concessão, os utentes da via não podem exigir da Brisa o cumprimento das
obrigações assumidas naquele contrato, nomeadamente a obrigação de assegurar permanentemente, em boas condições

256
de segurança e comodidade, a circulação nas auto-estradas “, conforme Base XXXVI, n.º 2 do Anexo ao DL 294/97, que,
na expressão do n.º 1 do art. 483º C. Civ., constitui uma ”disposição legal destinada a proteger interesses alheios “.

V - A responsabilidade da Brisa perante os utentes das auto-estradas cuja exploração lhe foi concedida é de
natureza extracontratual, regulada no art.483º ss C. Civ.

VI - A presunção instituída no art. 493º n.º 1, reporta-se apenas a danos causados pelo imóvel e não no imóvel.

VII - O aparecimento de um animal na auto-estrada e a existência de abertura na vedação da mesma perto do


local onde ele se encontrava constituem anomalia que justifica a presunção - simples, natural, judicial ou hominis - de que
na sua construção ou manutenção não foi observado o cuidado devido.

Na revista 3835/04 – 1ª secção decidiu-se em sentido contrário, conforme Parecer de Manuel A. Carneiro da
Frada:
Acidente de viação
Brisa
Responsabilidade extracontratual
Responsabilidade contratual
Presunção de culpa

I - Os utentes de auto-estrada concessionada à Brisa não celebram qualquer contrato com a Brisa, antes sabem
que a auto-estrada é um bem público do Estado cuja utilização custa um "preço" imposto por este, embora cobrado e
arrecadado pela concessionária a coberto de um contrato de concessão.
II - A falta de pagamento desse "preço" (taxa) não gera qualquer responsabilidade contratual.
III - Ocorrendo acidente de viação, pode o lesado exigir responsabilidade civil à concessionária, com base na
violação das normas de protecção dos terceiros utentes contidas no contrato de concessão, constantes do DL 294/97, de
24-10.
IV - Visando estas normas proteger interesses alheios, cabem na previsão do art.º 483, n.º 1, do CC. Estamos,
assim, não no âmbito de qualquer responsabilidade contratual, mas no domínio da responsabilidade aquiliana decorrente
da dita violação, nos termos do art.º 483 do CC.
V - A considerar-se existir uma relação contratual entre a concessionária e o utente que pagou a portagem e que
a responsabilidade daquela tinha natureza contratual quanto ao utente-pagador, ficaria por determinar a natureza da sua
responsabilidade quanto aos restantes passageiros, os quais, por não terem, seguramente, qualquer relação contratual
com a concessionária, receberiam tratamento diferenciado, em violação do princípio da igualdade rodoviária.
VI - Os utentes da auto-estrada não podem deixar de ter todos os cuidados de condução, tendo em conta que
não é possível evitar em termos absolutos a presença de animais na via, sobretudo os de menor porte ou aqueles que,
devido às suas características inatas, não podem ser impedidos pela obrigatória vedação (ex. gatos, texugos). No caso dos
cães podem mesmo ser introduzidos na via pelos próprios utentes que aí os abandonam, sem que isso possa ser
controlado, regra geral, pela concessionária.
VII - No domínio da responsabilidade (extracontratual) da concessionária de auto-estradas, é aplicável a
presunção de culpa consagrada no art.º 493, n.º 1, do CC, quando se trata de danos causados pela auto-estrada em si
mesma (pelos riscos próprios dela), considerada esta como um imóvel complexo, formado pelas faixas de rodagem e por
todos os elementos estruturais que a integram (pontes, passagens de peões, viadutos, faixas de separação, bermas,
taludes, vedações, instalações de apoio, cabines de portagem, etc.).
VIII - Isto na medida em que tal imóvel está em poder da concessionária a quem compete o dever de vigiá-la e
conservá-la em boas condições de circulação. Assim, se o acidente resultar de um buraco existente no pavimento, do
aluimento deste, da queda de uma passagem aérea para peões, de uma ponte ou viaduto ou mesmo de um lençol de água
acumulada por deficiência de construção ou de manutenção, pode dizer-se que o dano resultou da auto-estrada.
IX - Mas tendo a causa do acidente sido a travessia da via por um cão (não se tendo provado como apareceu o
animal na faixa de rodagem, nem sequer que existia qualquer buraco na vedação da auto-estrada ou que a vedação não
existia ou estava demolida parcialmente ou era inadequada), já não é aplicável a presunção legal do art.º 493, n.º 1, do CC,
visto que os danos emergentes não foram causados pela coisa (nem sequer pela vedação enquanto elemento integrante),
mas por uma realidade exterior à coisa, o próprio animal - 03-03-2005, Revista n.º 3835/04 - 1.ª Secção

Por Ac. de 2.2.2006 (Cons.º Noronha Nascimento), na Col. Jur. (STJ) 2006-I-56 a 60, decidiu-se, por 4 votos a
favor e um de vencido, que:

Num acidente provocado pelo atravessamento de um porco na auto-estrada, a responsabilidade só não será da
concessionária desta se ela conseguir provar que a existência do porco na auto-estrada não se deveu à violação de

257
qualquer dever de cuidado da sua parte, nomeadamente demonstrando que o mesmo surgiu naquele local de forma
incontrolável, ou foi ali colocado por alguém.

Nos termos do art. 12º da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho,


Nas auto-estradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário, com
consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança
cabe à concessionária, desde respectiva causa diga respeito a:
a) - Objectos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem;
b) - Atravessamento de animais;
c) - Líquidos na via, quando não resultantes de condições climatéricas anormais.

C) - Por factos lícitos danosos

O acto pode ser lícito porque visa satisfazer um interesse colectivo ou um interesse qualificado
de uma pessoa de direito privado, mas pode não ser justo que para satisfação desses interesses se
sacrifique os direitos de uma ou mais pessoas sem nenhuma compensação.
São exemplos o estado de necessidade - 339º, nº 2 -, 1367º (apanha de frutos em prédio
confinante), 1347º a 1349º (instalações, escavações e passagem forçada momentânea para obras, p.
ex.) e, sobretudo, as expropriações. Não seria justo, antes seria contrário ao princípio da igual
repartição dos encargos públicos, que fosse um só ou vários proprietários a ficar sem os seus bens
para construção de uma obra pública que vai servir toda a comunidade. Por isso a Constituição - 62º,
nº 2 - e a lei - 1310º CC e Cód. Exp. - art. 1º - obrigam a entidade expropriante a indemnizar o
expropriado.

Porto, Outubro de 2008

258

S-ar putea să vă placă și