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Entrevista
Com mais de 70: legados de ideias e ideais
C
ecília Maria Vieira Helm, 74 anos, é natural de Curitiba, Paraná,
professora titular aposentada da Universidade Federal do Paraná.
Especializou-se em Etnologia Indígena no Museu Nacional da
Universidade do Brasil (1962-1963). Realizou docência livre e concurso para
professora titular de Antropologia Social na vaga deixada pelo professor José
Loureiro Fernandes, na década de 1970. Fez o seu pós-doutorado em
Antropologia na Cidade do México, no Ciesas, 1979-1980; foi bolsista do CNPq
recebendo bolsa até 2009 de produtividade em pesquisa durante o período que
atuou nos Programas de Pós-Graduação em Antropologia Social das
É casada com Édison Helm, publicitário, tem 3 filhas, Cecília Beatriz, Cristiane
e Carolina e 5 netos.
Cecília: Bem, meu nome é Cecília Maria Vieira Helm, sou filha de José
Rodrigues Vieira Netto, professor de Direito Civil da UFPR. Meu pai foi
presidente da OAB/Seccional do Paraná, e em consequência de seu modo de
pensar distinto dos homens que governaram o país durante o golpe militar de
1964, foi cassado e aposentado compulsoriamente do cargo que ocupava na
UFPR. Minha mãe, Irmina Carneiro Vieira, de tradicional família dos Campos
Gerais do Paraná, era professora primária. Tiveram quatro filhas, todas
formadas em cursos na UFPR. Meu pai era descendente de imigrantes
portugueses e espanhóis.
Sou casada com Édison Helm, meu companheiro há 54 anos, de pais alemães.
Ele é publicitário aposentado, trabalhou em vários jornais em Curitiba. Temos
três filhas: Cecília Beatriz, médica veterinária, professora da UFPR, mestra em
Morfologia Celular. Minha segunda filha, Cristiane Vieira Helm, pesquisadora
concursada da Embrapa, Paraná, tem doutorado em Tecnologia de Alimentos,
UFSC. A terceira filha, Carolina Vieira Helm é arquiteta, especialista em
decoração de ambientes, faz especialização em arquitetura de hospitais,
planeja os espaços em hospitais de Curitiba.
Cecília: sim. Meu maior trabalho é com os kaingang, que pertencem à família
linguística jê. São mais de 25 mil indivíduos espalhados pelo Sul e Sudeste,
ocupando terras indígenas administradas pela Funai, em São Paulo,
Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, e estão entre os cinco povos
indígenas mais populosos do Brasil. Há famílias kaingang vivendo na área rural
e algumas em cidades. Já pesquisei os guarani da Terra Indígena
Mangueirinha, no Paraná, e os xetá, que foram pesquisados e descritos pelo
professor José Loureiro Fernandes, na década de 1950. Escrevi sobre a
história dos grupos indígenas no Paraná.
Cecília: cito mais um. Consegui, por intermédio dos velhos, refazer toda a
história da ocupação da terra no Paraná, mostrando para o Ministério Público
Federal e para a Justiça Federal que a terra era de fato dos kaingang, pois já
era ocupada, alguns séculos atrás, desde 1815. O governo do Paraná se
apropriou de parte da terra e a vendeu a um fazendeiro rico, que instalou uma
madeireira na fazenda. Os índios não se conformaram e ficaram lutando, até
que veio um jovem, um juiz federal, Mauro Spalding. Ele se sensibilizou pela
questão, leu todo o meu laudo, de 200 páginas, e publicou sua sentença,
curiosamente do mesmo tamanho - 200 páginas, considerando a parte central
da Terra Indígena Mangueirinha como de ocupação tradicional dos kaingang e
guarani. Então, se não fossem os velhos kaingang a me informarem como
chegaram àquela região... O esquema de parentesco estou dando aqui para
você (mostra novamente o mapa de parentesco inserido no livro que escreveu).
Tudo isso favoreceu a se ter a real ocupação, a posse permanente do índio
daquela terra. Antes até de sair a sentença, os índios se organizaram num
movimento e foram de madrugada, em caminhão emprestado, a fim de
expulsar os empregados dos fazendeiros, colocando todo mundo na estrada.
Portal: perdão pelo coloquialismo, mas há um ditado que diz: “pau que dá em
Chico dá em Francisco...”
Cecília: não diria assim, porque eles não têm a questão de “à margem”, mas
têm o sentido de quem está e quem não está no poder, e sabem que os jovens
estão no poder, que recebem a cesta básica, fazem a distribuição, recebem o
ICMS Ecológico. Os jovens marcam data para eleição de cacique, ou seja, tudo
isso é o jovem índio quem faz hoje. Vou contar um fato interessante. Entre os
kaingang existem facções. O A casa com B e B casa com A. Essas metades
são os kamé e os kairu, divisão social relacionada à descendência. Até
décadas atrás era incestuoso casar A com A. Não podia, tinha que casar com
B, e isso já está se perdendo. Eles mesmos dizem: “Ah, Cecília, você pergunta
isso, é coisa de velho”. Então, somente o velho sabe as tradições, o velho
conhece a cultura tradicional. Hoje, muitos kaingang perceberam que não
podem perder nada disso, nem a língua, nem as tradições, embora saibamos
que as transformações sociais são fortes. A televisão, por exemplo, está
instalada em todas as casas, do moço e do velho, todo mundo quer ter
televisão. É um veículo grande de transformação, embora seja uma sociedade
diferenciada. Os moços estão olhando muito no que diz a nossa televisão, no
que se fala no rádio, nos políticos que dão pouca coisa para o índio, mas vão lá
pedir votos.
Cecília: saem sim, e há experiências que antes não tinham, como ir a Curitiba
estudar, ir ao hospital, enfim, estão em contato permanente com a nossa
sociedade, isso é bastante intenso.
Cecília: vejo a velhice como boa etapa da minha vida. Não acho que a idade
dificultou meu trabalho em gabinete e em campo. Atualmente, devido a um
câncer que comprometeu a saúde do Édison, meu marido, não temos viajado
de carro. Escrevo sobre o material que tenho em meu escritório. Acho que a
idade me tornou mais disciplinada, com melhor visão dos fatos. Continuo
escrevendo diariamente, produzindo, me sinto bem trabalhando, penso que se
deixar de escrever, publicar, viajar, ficarei depressiva. Gosto muito de minha
profissão, de minha família, que sempre apoia meus projetos. Sou muito feliz,
sempre aprendendo coisas novas. Ao escrever sobre um tema pesquiso para
me informar sobre quem já escreveu a respeito do mesmo. Respeito aqueles
que sabem. Entrei há dois anos para a Academia Paranaense de Letras, fui
eleita por unanimidade de votos, e gosto de participar das reuniões, ouvir os
confrades e confreiras. Sou a única antropóloga que atua na APL.
Cecília: não, não penso assim. Acho que a velhice não deve ser encarada
como etapa difícil. Gosto do meu corpo, das minhas roupas, as quais escolho
atentamente. Vou à cabeleireira uma vez por semana. Meu apartamento é
confortável, tem jardim, flores, comprei com o que economizei de meu salário
na universidade. Tenho diarista apenas, gosto de cozinhar pratos refinados,
gosto de convidar parentes e amigos para almoços e lanches em meu
apartamento. Já operei uma artrose na bacia, às vezes uso bengala para dar
mais segurança. Espero que isso ajude a ver meu perfil traçado, esse da
terceira idade, com qualidade de vida e alegria.
Ao final da entrevista Cecília Helm conversa com Beltrina Côrte, editora do Portal do Envelhecimento
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