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O que é e o que não é literatura?

Anco Márcio Tenório Vieira


Universidade Federal de Pernambuco

La letteratura è sempre — dico sempre! — finzione, di qualsiasi cosa


parli. Può parlare di filatori di seta del Seicento, di pastori innamorati di
ninfe, di pescatori siciliani o di piccoli principi che coltivano rose sul
loro pianeta: non importa, è sempre invenzione! Sublime, utilissima e
bellissima invenzione, fabbricata per dire la verità, ma per dirla
parlando d'altro, deviando, depistando: parola indireta.2
Ludovico Ariosto (1474-1533)

Foi no Institvtio Oratória, de Marcus Fabius Quintilianus (30-95 d.C), que a palavra
“literatura” (“Conferimos, pois, a qualquer profissão o seu território próprio: a gramática, que em
latim equivale o sentido de literatura...”)3 apareceu pela primeira vez no mundo latino e, por
decorrência, no Ocidente e no mundo ocidentalizado. Litteraturam, palavra que tem em littĕra a
sua raiz semântica (em latim, letra, substantivo feminino), não designava, em princípio, somente
o conjunto dos gêneros ficcionais ou miméticos e, sim, nascia como o equivalente latino para a
palavra grega Grammatikós (Gramática), que tinha o sentido, para Platão e Aristóteles, de
“ciência das letras” (gramma, em grego, é letra).4 No caso, a arte de saber ler e escrever, já que
no mundo antigo ler e escrever eram competências distintas; do mesmo modo que saber ler não
significava, necessariamente, uma pessoa educada, muito menos culta.
Como “ciência das letras”, Quintiliano dividia a Gramática (a primeira das sete artes

1
Retomamos neste ensaio algumas breves considerações que desenvolvemos em VIEIRA (2011:10-13;
2012:55-76).
2
“A literatura é sempre — eu digo sempre! - ficção, indiferente do que você fale. Você pode falar sobre
fiadores de seda dos seiscentos, de pastores enamorados de ninfas, de pescadores sicilianos ou de
pequenos príncipes que cultivam rosas nas terras do sul: não importa, é sempre invenção! Sublime,
utilíssima e belíssima invenção, fabricada para dizer a verdade, mas para colocá-lo falando de outra coisa,
desviando, despistando: discurso indireto”.
3
“Nos suum cuique professioni modum demus: et grammatice, quam in Latinum transferentes
litteraturam uocauerunt...” (QUINTILIANO. Institvtio Oratória. In:
http://pt.scribd.com/doc/129709086/QVINTILIANI-INSTITVTIO-ORATORIA-LIBER-SECVNDVS-
docx).
4
(CURTIUS 1996:78)
O que é e o que não é literatura?, Página 2

liberais)5 em duas partes: na “Arte de falar corretamente” e na “de narrar os poetas”.6 Na


primeira, temos o instrumental para se conhecer e se fazer o uso correto da língua (neste caso, a
Gramática alargava os limites da Retórica); na segunda, o meio para explicar as obras dos poetas
e, principalmente, como uma ciência exegética, a ferramenta para interpretar os demais
fenômenos da Natureza.7 Assim, “litteratus”, como nos ensina Ernst Robert Curtius,8 “é o
conhecedor da gramática e da poesia, [mas] não necessariamente um escritor”; ou, como nota
Eric A. Havelock, é “[...] ’o homem de letras’, ou seja, um leitor de letras, [...] o seu oposto,
illiteratus, um homem sem nenhuma cultura letrada”.9 Desse modo, litteratus é aquele que
conhece as letras, as regras da Gramática ou explica as obras dos poetas, e litteraturam é a
produção intelectual do homem de letras. Ao designar toda e qualquer produção intelectual que
tinha a palavra como o seu meio de expressão, o termo litteraturam designava, inicialmente,
todos os gêneros textuais (afinal, para escrever, era preciso dominar o “uso correto da língua”).
Logo, ao enunciar a palavra “literatura” fazia-se necessário complementá-la: “literatura de que?”.
“Literatura filosófica”, “literatura política”, “literatura matemática” ou “literatura de ficção?”.
Ora, o que particulariza a literatura ficcional dos demais gêneros textuais que eram
tomados como litteraturam apenas pelo “uso correto da língua” (“recte loquendi scientiam”)?
Por que um autor como Lúcio Aneu Sêneca (4 a.C-65 d.C), que transitou por vários gêneros
textuais, a exemplo da tragédia e da filosofia, tinha a sua produção dramática designada como
“literatura de ficção” e aquela que se voltava para o “amor à sabedoria”, como “literatura
filosófica”? Que conjunto de regras e procedimentos encerra, em um mesmo sistema, as
tragédias de Sêneca e as demais obras ficcionais, distantes no tempo e no espaço, como Édipo
rei, Ilíada, A Divina comédia, Orlando Furioso, Dom Quixote, Os Lusíadas, Memórias póstumas
de Brás Cubas, Histórias extraordinárias, A Invenção de Orfeu e A Pedra do Reino? O que há
em comum (ou não) entre essas obras ficcionais e outras não-ficcionais, a exemplo dos Sermões,
do Padre Antônio Vieira, e Os Sertões, de Euclides da Cunha, para que elas compartilhem os
compêndios da história da literatura? Como distinguir conceitualmente os gêneros que
Aristóteles chamava de “poesia imitativa” (lírico, dramático e narrativo) e a teologia cristã (seja

5
Na Idade Média, A Gramática, a Retórica e a Dialética (Lógica) formavam o Trivium. A Aritmética, a
Geometria, a Música e a Astronomia constituiam o Quadrivium.
6
“recte loquendi scientiam et poetarum enarrationem” (QUITILIANO op. cit.)
7
(Ver GORDON 2012:10)
8
(CURTIUS 1996:78)
9
(HAVELOCK 1996:47)
O que é e o que não é literatura?, Página 3

ela patrista, agostiniana ou tomista) passou a designar como a literatura dos poetas (a que se vale
da allegoria in verbis, alegoria verbal, considerada distinta das alegorias comunicadas por Deus,
a allegoria in factis, alegoria factual)10 dos demais gêneros textuais, sem que tal conceito
termine, por falta de rigor teórico, transbordando ou se aplicando também as demais formas de
discurso (no caso, confundindo as duas partes da Gramática que Quintiliano fez questão de
distinguir, isto é, todo poeta para ser chamado como tal precisa, antes de tudo, conhecer e fazer
“uso correto da língua”, mas nem todo aquele que usa “corretamente” a língua pode ser chamado
de poeta)? Por que muitas definições de literatura não conseguem dar conta do fenômeno
literário em sua totalidade: quando cobrem um dado gênero, deixam outros descobertos? Por que
a poesia era vista pelos teólogos, a exemplo de Santo Agostinho (354-430), em A Cidade de
Deus, como uma criação humana cuja ciência faltava com a “verdade”? Por que Agostinho
denomina os poetas de criadores de “fábulas mentirosas” (mendacissimis fabulis), falsas (fasum),
torpes (turpe) e indignas (indignum)?11 Ou mesmo Tomás de Aquino (1224?-1277), o Doutor
Angélico, que defende, a partir de uma leitura da Metafísica, de Aristóteles,12 que “’A ciência da
poesia refere-se a coisas que, dada sua falta de verdade [...], não podem ser compreendidas pela
razão; convém seduzir a razão por meio de algumas analogias?’”13 Eis algumas perguntas que
ainda precisam de respostas pertinentes. Afinal, diante de tantos desencontros conceituais, parece
que explicar conceitualmente, hoje, a literatura tornou-se quase que o mesmo que tentar definir o
conceito de tempo: “Se ninguém me perguntar [o que é o tempo], eu sei; se quiser explicá-lo a
quem fizer a pergunta, já não sei”,14 dizia Santo Agostinho, em suas Confissões. Aparentemente
todos nós, nos dias que correm, sabemos o que é literatura e quais gêneros ela encerra (ninguém,
salvo os ingênuos, se dirige para o setor das ciências exatas, biológicas ou jurídica quando
precisa encontrar um romance ou um livro de contos ou de poesia em uma livraria ou biblioteca),
mas, de algum modo, sentimos dificuldades em explicá-la conceitualmente. Se não temos
dúvidas quanto ao estatuto literário de alguns gêneros textuais, já que eles são trans-históricos e
se calçam em cima da ficcionalidade (como o romance, a epopeia, o conto, a novela, a poesia e

10
(Ver SANTO AGOSTINHO 1991)
11
(SANTO AGOSTINHO 2009:241-242). Nos valemos também da edição em latim da obra agostiniana:
SANCTI AURELLI AUGUSTINI (1877).
12
Aristóteles observa na Metafísica (983ª, 3-4) que um provérbio grego dizia que “[...] os poetas dizem
muitas mentiras [...]” (ARISTÓTELES 2005:13).
13
(Apud CURTIUS 1996:279)
14
(SANTO AGOSTINHO 1988:278)
O que é e o que não é literatura?, Página 4

suas formas fixas), formando uma só família, ficamos sempre hesitantes em acatar ou mesmo
explicar por que certos gêneros não ficcionais são estudados nas histórias da literatura — a
exemplo da crônica, do sermão, dos textos bíblicos, das cartas, de algumas obras filosóficas, etc.
— quando eles também participam (ou são rebentos) de outras áreas do conhecimento humano.
No caso, o jornalismo, a teologia, a filosofia etc. Toda essa dúvida fica mais acentuada quando
essa reflexão se dá em um País um tanto que avesso à reflexão teórica, que aposta na ideia de que
um texto é literatura porque foi convencionado como tal ou se aprendeu dessa forma na escola
(ou na vida) e assim é, ou deve ser, se lhe parece. Afinal, como nota Luiz Costa Lima, “quando
uma comunidade não tem a prática da discussão, o uso da linguagem crítica sempre lhe parece
ameaçador”.15 Vamos ao desafio.

II

Em ensaio publicado em 1971, Richard Ohmann observa, recorrendo à teoria dos atos de
fala (speech acts),16 de J. L. Austin, que o problema dos conceitos sobre literatura é que ora eles
se centram no texto em si (“sua referência, sua verdade e seu significado”),17 os chamados atos
locutivos, ora em seus efeitos, os atos perlocutivos. Ainda dentro desse corte epistemológico,
Ohmann nota que as definições sobre literatura estão encerradas em seis proposições correntes.
A saber: 1°. Em uma obra literária, particularmente na poesia, as palavras não se referem tais
como elas se referem em outras formas de discurso; 2°. O que define a literatura é o modo como
são expressas as asserções. Assim, há os que defendem que a literatura é uma rede de mentiras
(sendo a falsidade a sua marca distintiva) e há os que asseguram que “o poeta não afirma nada”;
logo, uma obra literária “não pode se justificar por critérios de verdade”, suas proposições são

15
(LIMA 1981:193)
16
Os atos de fala são classificados em três categorias. Locutivos ou locucionários são os enunciados que,
tanto gramaticalmente quanto fonologicamente, e dentro de certo código linguístico, são reconhecíveis
pelo interlocutor/ouvinte. Perlocutivos ou perlocucionários são os atos em que o autor do enunciado
espera do seu interlocutor/ouvinte alguma reação, isto é, são atos em que o enunciador tem pouco
controle, ou um controle limitado, sobre as consequências dos seus enunciados. Ilocutivos ou
ilocucionário são os atos de asserção: perguntar, dar ordens, agradecer etc. Ao definir os atos de fala,
dentro de certas convenções e circunstâncias, eu estou realizando um ato de asserção. Ainda sobre os atos
de fala, ver OHMANN (1990:85-102)
17
(OHMANN 1987:24; 1971:1-19)
O que é e o que não é literatura?, Página 5

apenas pseudo-proposições, “despojadas de alguma maneira de seu poder assertivo”;18 3°. O


discurso literário se caracteriza pelo seu caráter e o significado implícito das palavras; 4°. Na
literatura os escritores usam as palavras buscando despertar e ordenar sentimentos emotivos no
leitor, diverso do que ocorre nas obras discursivas ou científicas, “[...] que se dirigem
primordialmente às crenças do leitor”;19 5°. dentro da comunicação verbal, que encerra seis
categorias (remetente, destinatário, contexto, contacto, código e mensagem), a função poética da
linguagem se dá no “enfoque da mensagem por ela própria [...]”;20 6°. “Todo discurso está
estruturado de acordo com a gramática da língua em que está escrita ou é falada. As obras
literárias revelam, com frequência, estruturas excessivamente alijadas das exigidas pela
gramática; a métrica e a rima são claros exemplos”.21
Para Ohmann, todos esses conceitos são antes um relatório (reporting) sobre o uso
genérico da palavra literatura do que uma definição que proporcione um “discernimento” ou uma
“penetração” (insight) da sua natureza.22 Assim, buscando definir a natureza da literatura,
Ohmann, de maneira sucinta, expõe as suas objeções aos conceitos recolhidos acima: 1°. não há
como distinguir entre o modo como as palavras se referem em literatura e o modo como elas se
referem em outras formas de discurso, pois em ambas as situações as palavras são usadas nos
dois sentidos: conotativo e denotativo;23 2°. falsas proposições podem ser encontradas tanto em
uma obra literária quanto em outras formas de discurso; 3°. todos os gêneros textuais encerram
significados implícitos, a exemplo das notas diplomáticas, dos anúncios publicitários, e das
cartas dos enamorados;24 4°. “Todo discurso produz seu impacto nas emoções do leitor e
ouvintes, e alguns discursos não literários possuem, provavelmente, maior carga emotiva do que
qualquer [outro] discurso literário”;25 5°. “[...] uma obra literária tende a atrair as diversas
atenções [do leitor] porque ele sabe que [se trata de] uma obra literária, em lugar de provar que é
uma obra literária por atrair um tipo de atenção adequada”;26 6°. “[...] apesar da importância que
tem para a literatura a repetição, a variação e os padrões de todo tipo, estes traços não delimitam

18
(OHMANN 1987:17)
19
(OHMANN 1987:19)
20
(JAKOBSON 1991:127-128. Apud OHMANN 1987:20)
21
(OHMANN 1987:21)
22
(OHMANN 1987:11)
23
(OHMANN 1987:15-16)
24
(OHMANN 1987:18)
25
(OHMANN 1987:19)
26
(OHMANN 1987:20)
O que é e o que não é literatura?, Página 6

a classe de discursos a que queremos chamar ‘literatura’, já que existem muitas conexões tanto
voluntárias como inadvertidas em todo discurso”.27
Apesar de concordarmos com as objeções de Ohmann, acreditamos, no entanto, que as
insuficiências conceituais aqui elencadas residem no fato da “natureza” da literatura só poder ser
apreensível se considerarmos o fenômeno literário (assim como qualquer outro modo formal do
conhecimento humano) como um todo sistêmico. Temos que apreender as particularidades do
texto, a intenção de quem o produz e, como parte dessa intenção, a recepção de quem o lê.
Mesmo sabendo que, isoladamente, cada um desses aspectos sejam variáveis conceituais, em
conjunto eles parecem se constituir (e é o que tentaremos demonstrar) em uma invariável.
Partindo dessa premissa, perseguiremos quatro tópicos que, em conjunto, poderão melhor definir
o que constitui, de fato, um texto literário: 1. A imitação e a ficcionalidade do texto (compondo a
unidade dos gêneros literários) e, como parte dessa ficcionalidade, a recepção de quem o lê
perfazendo o pacto ficcional; 2. A intencionalidade do autor (o estatuto histórico-temporal da
obra e, por desdobramento, as marcações dadas pelo autor empírico e que delineiam a sua
recepção); 3. A verdade e a realidade textuais (o caráter imanente do texto); 4. Os significados e
significações do texto (sua condição artística e transhistórica). Vamos por etapas.

III

A Imitação e a Ficcionalidade do Texto

Na Metafísica, Aristóteles afirma que todo conhecimento racional ou era “[...] prático, ou
produtivo, ou teorético [...]”.28 O domínio das ciências “produtivas” era o “fazer”; o das ciências
“práticas”, o “agir”; e o das ciências “teóricas”, a natureza. Esta, no caso, compreendia a física, a
matemática e a teologia; as ciências “práticas” encerravam, por exemplo, a ética e a política; e as
“ciências produtivas” a poiética, as artes. No entanto, são as ciências teoréticas que Aristóteles
considerava como as mais excelentes entre as demais ciências e, dentre elas, a teologia como a
mais excelente de todas.29 Observe-se, no entanto, que há uma diferenciação entre o “agir” e o
“fazer”. Em a Ética a Nicômaco, Aristóteles distingue

27
(OHMANN 1987:21)
28
(ARISTÓTELES 2005:271, 1025b, 25-26)
29
(ARISTÓTELES 2005:513, 1064b, 1-5)
O que é e o que não é literatura?, Página 7

[...] o que é produtível e o que é realizável pela ação. A produção é diferente da


ação [...]. Assim, a disposição prática conformada por um princípio racional é
diferente da disposição produtora conformada por um princípio racional. Assim,
nenhuma das duas é envolvida pela outra, porque nem a ação é produção nem a
produção é ação.30

No caso específico das “ciências poiéticas” ou “ciências produtivas”, objeto aqui do


nosso estudo, Aristóteles assinala que “[...] o princípio do movimento se encontra no artífice [o
poeta] e não na coisa produzida, e esse princípio consiste ou numa arte ou nalguma outra
potência”. O mesmo princípio ocorre na “ciência prática”: “[...] o movimento não reside no que é
objeto de ação, mas nos agentes”.31 Em outras palavras: “[...] o princípio das produções está
naquele que produz, seja no intelecto, na arte ou noutra faculdade; e o princípio das ações
práticas está no agente, isto é, na volição, enquanto coincidem o objeto da ação prática e da
volição”.32 Dentro desse preceito, a tékhne (τέχνη, arte) é um ofício dirigido antes ao fazer (a
produção) — no caso, à arte poética (poietiké tékhne, ποιητική τέχνη) — do que à ação (praktiké,
πρακτική), ao agir. Daí a contraposição entre as artes que imitam a natureza (a arte poética)33 e as
que complementam a natureza (a que nasce da experiência). A experiência — a arte do artesão,
do pedreiro... — é pragmática, em geral repetitiva e mecânica, requer uma habilidade e um
conhecimento técnicos adquiridos pela prática, não indo além do conhecimento do “quê”, do
“dado de fato”, e busca integrar a natureza. As artes imitativas, em contraposição, se dirigem ou
se aproximam do conhecimento do porquê, se constituindo, desse modo, em uma forma de
conhecimento ou de saber, “[...] um saber que não é fim em si mesmo nem sequer um
conhecimento buscado em vista da ação moral (como a política e a ética), mas antes em prol do
objeto produzido”.34
Investigando as causas e os princípios da Poiética, Aristóteles irá discorrer sobre quais
são os objetos de conhecimento dessa ciência. O propósito do seu estudo não é somente se ater

30
(ARISTÓTELES 2009:132, 1140ª, 1-6)
31
(ARISTÓTELES 2005:511, 1064ª, 11-14)
32
(ARISTÓTELES 2005:270-271, 1025b, 22-25)
33
Em Física, Aristóteles (2009:47, II, 194ª, 21) afirma que “[...] a técnica [arte] imita a natureza [...]”.
Para Lucas Angioni (2009:237), o argumento de Aristóteles é que “[...] a técnica imita a natureza, isto é,
técnica e natureza obedecem a padrões similares, de tal modo que o conhecimento técnico serve de
modelo adequado para conceber o conhecimento da natureza”.
34
(REALE 2001:107)
O que é e o que não é literatura?, Página 8

com vagar sobre as estruturas35 e os procedimentos formais dos gêneros trágicos e épicos, mas, e
principalmente, buscar “[...] a essência que é própria do gênero de coisas [...]” que se ocupa. 36
Para tal perquirição, o conceito de imitação (mímesis, μίμησις) se mostra central em sua “ciência
poética”.
Enunciando que a poesia é imitação, Aristóteles define os seus aspectos segundo o
“meio” (critério formal: o uso do ritmo, do canto e do metro como fatores de diferenciação entre
os poemas), o “objeto” (critério temático: a mimetização da ação dos homens segundo a sua
índole elevada ou baixa) e o “modo” (princípio enunciativo, a maneira como se efetua a
imitação: na primeira, na segunda ou na terceira pessoas).37 Mas o que é inerente à natureza do
fato artístico está delimitado nos “primeiro” e “nono” capítulos da Poética. A necessidade de tal
delimitação parece decorrer de uma constatação implícita: as classificações da imitação segundo
o “meio”, o “objeto” e o “modo” também seriam observáveis (daí serem variáveis) nos demais
gêneros textuais. Afinal, não são apenas as poesias imitativas que lançam mão do mito, do
maravilhoso, da elocução, dos procedimentos retóricos, do pensamento, do caráter, do
reconhecimento, da peripécia, da catástrofe... Em O Banquete, por exemplo, Platão se vale de um
“modo” enunciativo na segunda pessoa (a obra, por se valer do método dialético, é constituída
por diálogos entre Sócrates e os seus interlocutores), e tem como “objeto” um tema superior:
Eros e o Amor ao Bem. Assim, delimitando o que é inerente à natureza do fato artístico,
Aristóteles defende que não é a versificação que define os gêneros miméticos, pois

[...] se alguém compuser em verso um tratado de Medicina ou Física, esse será


vulgarmente chamado ‘poeta’; na verdade, porém, nada há de comum entre Homero e [o

35
Lubomír Dolezel nota que há na “[...] mereologia aristotélica uma associação duradoura entre a poética
e o ‘modelo orgânico’; a poética teórica será fortemente influenciada pelas analogias entre as estruturas
da poesia e as estruturas da natureza viva”. Citando Abraham Edel em nota de rodapé, ele assinala: “’as
partes [da tragédia] são tratadas quase da mesma maneira como são tratados, nas obras de biologia, os
órgãos ou partes dos animais, tendo em conta o desempenho das suas funções em relação ao organismo
como um todo’”. (DOLEZEL 1990:43).
36
(ARISTÓTELES 2005:511, 1064ª, 5-6)
37
(ARISTÓTELES 1994:103-106, 1447ª-1448b). Lubomír Dolezel acrescenta à tríade um quarto aspecto:
a “função”. Embora reconheça que a “função” não conste da classificação inicial da Poética, ele nota que
“noutro contexto, a função é explicitamente referida e caracterizada como ‘o prazer que se retira das obras
de imitação (1448b). A inclusão da ‘função’ no modelo das artes miméticas explica o aparecimento do
‘item catarse’ na definição da tragédia [...]. Caso contrário, a introdução da ‘catarse’ aparece como uma
anomalia no procedimento derivativo de Aristóteles [...]”. DOLEZEL (1990:39, nota 2). Para o nosso
presente estudo, recorremos também as seguintes edições da Poética: ARISTOTE (1980), (2002),
ARISTÓTELES (2008), (1997) (2010).
O que é e o que não é literatura?, Página 9

fisiólogo] Empédocles, a não ser a metrificação: aquele merece o nome de ‘poeta’, e este,
o de ‘fisiólogo’, mais que o de poeta.38

O que diferencia a obra do poeta da obra de Empédocles é que“[...] não é ofício de poeta narrar o
que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: segundo a
verossimilhança e a necessidade”.39 Exemplificando mais uma vez a sua tese, ele toma dois
gêneros textuais distintos — a Poesia e a História — e os seus “meios” de mimetizarem a
realidade:

[...] não diferem o historiador e o poeta, por escreverem verso ou prosa (pois que
bem poderiam ser postas em verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam
de ser História, se fossem em verso o que eram em prosa) — diferem, sim, em que
diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder”. (grifo
nosso)40

A comparação, aqui, não se restringe apenas ao fato de que um (o historiador) diz “as
coisas que sucederam, e outro [o poeta] as que poderiam suceder”, mas também porque a poesia,
por tratar do que poderia acontecer, é mais filosófica e mais séria do que a História, já que o
poeta se refere principalmente ao “universal” (kathólou, καθολου), e o historiador ao “particular”
ou “singular” (kath’hékaston, κάϑ’έκαστov). No tratado Da interpretação, Aristóteles define os
conceitos de “universal” e “particular” nos seguintes termos: “[...] denomino de universal aquilo
que naturalmente é predicado em muitas coisas, e de singular aquilo que não é, por exemplo:
homem pertence às coisas universais e Cálias [famoso guerreiro grego] às singulares”.41 A
História, aqui, é predicado apenas de um dado “evento”, já a poesia, enquanto “conhecimento
dos universais”, de vários objetos.42 Ou como se lê na Metafísica: “[...] a substância [ousía,
Οὐσία, aquilo que é] primeira de cada indivíduo é própria de cada um e não pertence a outros; o
universal, ao contrário, é comum: de fato, diz-se universal aquilo que, por natureza, pertence a
uma multiplicidade de coisas”.43 Assim, o “Homem” é um “universal”; um “homem específico”
(Cálias), um “particular”, um “singular”, pois este encerra “[...] aquilo que não é dito de um

38
(ARISTÓTELES 1994:104, 1447b, 16-21)
39
(ARISTÓTELES 1994:115, 1451ª, 36-39)
40
(ARISTÓTELES 1994:115, 1451ª, 39-40; 1451b, 42-45)
41
(ARISTÓTELES 2013:9-10)
42
(Ver PETERS 1983:124)
43
(ARISTÓTELES 2005:347, 1038b, 10-13)
O que é e o que não é literatura?, Página 10

sujeito ou não está presente num sujeito [...]”.44 Em “comentário” à sua tradução da Poética,
Eudoro de Sousa observa que o “universal” se dá nos gêneros miméticos pela “[...] coerência,
[pela] íntima conexão dos fatos e das ações, [sendo] as próprias ações entre si ligadas por liames
de verossimilhança e necessidade”.45 Desse modo, são as espécies de poesia imitativas que se
valem do Mito (mýthos, μυθος) (compreendido por Aristóteles como “[...] imitação de ações
[...]” e como “[...] a composição dos atos [...]”)46 as que melhor permitem ao poeta construir a
“íntima conexão dos fatos e das ações”. Por ser Uno, por encerrar uma ação com princípio, meio
e fim (como devem ser a tragédia e a epopeia), o Mito não se imputa “[...] a uma só pessoa [o
“particular”] [...], pois há muitos acontecimentos e infinitamente vários, respeitantes a um só
indivíduo, entre os quais não é possível estabelecer unidade alguma. Muitas são as ações que
uma pessoa pode praticar, mas nem por isso elas constituem uma ação una”.47 Por perseguir essa
ação Una é que o poeta não deve versificar todos os sucessos da vida de um Mito, mas somente
os que são necessários e verossímeis à ação.48 Dessa forma, a oposição entre História e poesia é,
segundo Eudoro de Sousa,

[...] entre o acontecido e disperso no tempo (História) e o acontecível, ligado por


conexão causal (poesia). ‘Acontecido’ e ‘acontecível’ são ambos verossímeis;
mas só os acontecimentos ligados por conexão causal são necessários. [Assim,]
[...] pelo lado da verossimilhança, haveria um ponto de contato entre História e
poesia; contudo, a poesia ultrapassa a História, na medida em que o âmbito do
acontecível excede o do acontecido.49

Só o “acontecível” dá ao poeta a liberdade de não se ater a todos os eventos que


constituem a trajetória de um Mito (suas particularidades), e se voltar apenas àqueles que são
“ligados por conexão causal”.
Como os poetas buscam o “universal” (uma espécie de arquétipo eterno) e não o
“particular” (o “evento”), sua imitação “[...] incidirá num destes três objetos: [1°] coisas quais
eram ou quais são, [2°] quais os outros dizem que são ou quais parecem, [3°] ou quais deveriam

44
(PETERS 1983:180)
45
(SOUSA 1994:170)
46
(ARISTÓTELES 1994:111, 1450ª, 2-3)
47
(ARISTÓTELES 1994:114, 1451ª, 16-18)
48
(ARISTÓTELES 1994:115, 1451ª, 22-29)
49
(SOUSA 1994:170)
O que é e o que não é literatura?, Página 11

ser”.50 Mesmo quando o poeta despreza o Mito e busca matéria em objetos distintos (fatos que
ocorreram ou estão a ocorrer, fatos que a tradição oral diz que ocorreram ou parecem que
ocorreram, e fatos puramente criados pela imaginação do poeta), a exemplo das comédias, das
tragédias que prescindiam do Mito, e da produção dos poetas ditirâmbicos ou líricos, ele, o
poeta, deve se submeter ao que é inerente à natureza do fato artístico: representar o que poderia
acontecer.
Para se entender melhor os argumentos de Aristóteles, lembramos que é na oposição
firmada, desde fins do século VI a.C., entre “Mito” e “Lógos” (λόγος), que se calçou o
antagonismo entre a História e os gêneros poéticos (particularmente a tragédia e a epopeia); entre
o “acontecido” e o “acontecível”. “Lógos”, no sentido de razão, racionalidade, ordem racional do
cosmo e da beleza; “Mito”, como narrativa sobre matéria ilusória, fantasiosa, da ordem do
irracional e do incognoscível. A História nasce e se constitui por negação do mítico. O
historiador, diverso do poeta, é “aquele que vê”, que “procura saber”, “informar-se”, que
investiga.51 Mas se Aristóteles não acatava a História como matéria da filosofia, por tratar do
particular e por não ser predicado de vários objetos; se os gregos tinham uma cultura anti-
histórica, pois suas concepções cíclica e repetitiva da história não acatavam o presente como algo
diverso do passado e do futuro e, por sua vez, o futuro como um evento que seria distinto do
presente (os sofistas, p. ex., acreditavam na ideia de progresso técnico, mas não na de progresso
moral), por que eles criaram a História? Para Jacques Le Goff, duas foram as motivações. A
primeira, étnica. Era preciso se distinguir dos bárbaros. Neste caso, “a concepção de história está
ligada a ideia de civilização”. A segunda, como arma política e memória das famílias nobres e
dos sacerdotes dos templos.52 José Carlos Reis nota que o conceito grego de História
desconhecia as ideias de “humanidade universal”, “progresso”, “evolução ou mesmo a
proposição de que a humanidade tinha um destino. Preocupações que só nasceriam com os
historiadores latinos (a exemplo de Políbios) e cristãos. Para os gregos, a “sua história apenas
ensinava, em relação ao futuro, a necessidade da memória, da prudência, da cautela, da
resignação”.53 Cultores de uma teoria dos ciclos da idade, os gregos (a exemplo de Heráclito)
acreditavam que cada ciclo durava 18.000 anos — “Princípio e fim se reúnem na circunferência

50
(ARISTÓTELES 1994:143, 1460b, 8-10)
51
(LE GOFF 1994:17)
52
(LE GOFF 1994:62)
53
(REIS 2006:16)
O que é e o que não é literatura?, Página 12

do círculo”, afirmava Heráclito.54 À Idade do Ouro, seguiriam as Idades de decadência e, na


ordem cíclica, ao fim dessas Idades, ressurgiria a Idade do Ouro. “Sob a ação do fogo, elemento
fundamental, o mundo conhece, através dos contrários em perpétuo fluxo de interação, fases
alternadas de criação (gênesis) e de desintegração [consumação] (ekpýrosis) que se exprimem
por uma alternância de períodos de guerra e de paz”. 55 Filhos do “Logos”, da razão, da
racionalidade, da explicação natural, os historiadores gregos buscavam dar ao mundo um sentido
metafísico, tal como a ordem e a beleza imutáveis do universo. Ao compararem a História —
“[...] o lugar sublunar da mudança, da desordem”56 — com o cosmo, os historiadores abstraiam a
história e o tempo e buscavam estabelecer a ordem das coisas, a ordem que estaria na
“substância” das mudanças. “A palavra ‘destruição’ significava só ‘mudança’ e todas as idades
voltariam a existir com as mesmas coisas e os mesmos homens”. 57 Assim, as destruições
advindas dos eventos históricos seriam apenas aparentes, pois elas encerravam uma ordem
imutável. “A mudança não poderia levar ao ser, pois um ser que muda já não é. O ser-que-é é
alheio à mudança, imutável, estável, permanente, sempre presente”.58 A “natureza humana” está
subordinadas a ciclos (crescimento, decadência e morte), mas, aos olhos da razão grega, ela é
imutável, pois as pulsões e as necessidades dos homens foram, são e serão sempre as mesmas,
assim como a ordem existente no universo. O sentido de que a história tinha como fim trazer
para a humanidade a felicidade, inexistia para os gregos. Se existia uma felicidade a ser
conquistada, esta era individual, proporcional aos feitos heroicos de cada um. Feitos que davam
ao indivíduo o direito de ser lembrado pelos pósteros.59 Os gregos, nota José Carlos Reis,

[...] não se perguntavam ‘o que fazer?’, questão que indica o futuro, mas ‘o que
aconteceu?’, questão que aponta para o passado, que preferiam recente. Não se
interessavam historicamente pelo futuro como ‘humanização’, nem pelo
longínquo passado, que tratavam miticamente. Acreditavam que o futuro
individual já estava dado e podia ser antevisto pelos oráculos. Os homens do
futuro não seriam melhores do que os passados e os atuais. Os oráculos tinham o
dom de ver a vida predestinada dos indivíduos que as musas lhe sopravam. Estas
conheciam tudo: o passado e o futuro. Os eventos presentes e passados tinham as

54
(HERÁCLITO 1991:87, frag. 103)
55
(LE GOFF 1994:297)
56
(REIS 2006:16).
57
(LE GOFF 1994:298).
58
(REIS 2006:17)
59
(REIS 2006:16)
O que é e o que não é literatura?, Página 13

mesmas características. Heródoto só queria evitar o esquecimento das


singularidades humanas. O significado dos eventos lhes era implícito e não os
transcendia.60

Se a mudança implicava na ideia de que era possível alterar a imutabilidade da ordem


cósmica, ideia desdenhada por historiadores e filósofos gregos, o Mito, que se inscrevia na
ordem do irracional e do incognoscível (ordem “[...] incompatível com um pensamento que
buscasse a verdade”61) encerrava tanto a “fortuna”, o “acaso” e a “contingência” quanto a “sorte-
azar” e a “vicissitude”: as peripécias da riqueza para a pobreza, da vitória para a derrota, da
escravidão para a liberdade e vice-versa.62 O Mito, distinto do evento histórico, podia ser tomado
como objeto do “acontecível” sem que tal condição ferisse a verdade histórica ou filosófica, pois
ele continha em si o acaso que os homens estão sujeitos ao longo da existência. Desse modo,
esse caráter incognoscível do Mito permite que o poeta colha dele mais significados do que ele
pode oferecer. É dessa forma que as Musas proclamavam “muitas falsidades, que se parecem
com a verdade; mas também, quando queremos, proclamamos verdades”.63 Em outras palavras:
se, para Tucídides, o destino de determinados eventos ou personagens é uma preconização dos
oráculos e das interferências míticas, para os gêneros poéticos eles, os oráculos e as
interferências míticas, ficam parede-meia entre a falsidade e a verdade: dentro do horizonte do
“acontecível”. Livrando-se dessa camisa-de-força imposta pela História, o Mito (como guardião
da natureza inconsciente dos desejos e dos valores coletivos) pode encerrar o “predicado de
vários objetos”. Assim, ao se ater ao evento que marca “[...] a mutação dos sucessos no
contrário”,64 isto é, aquele em que o Reconhecimento e a Peripécia provocam na vida do
personagem “[...] a passagem do ignorar ao conhecer [...]”65 e, por extensão, suscitam o terror e a
piedade no leitor/expectador — a Catarse (kátharsis, Κάθαρσις), a purificação —, o poeta toma
do Mito a moral universal que ele contém em si.
Partindo do princípio de que cada ciência encerra “[...] a essência que é própria do gênero
de coisas [...]” que se ocupa, Aristóteles distingue não apenas a Arte Poética (ciência
“produtiva”) das ciências “teóricas” e “práticas”, mas também da História, que por se valer

60
(REIS 2006:17-18)
61
(REIS 2006:17)
62
(REIS 2006:17)
63
(HESÍODO 2005:102)
64
(ARISTÓTELES 1994:118, 1452a, 22)
65
(ARISTÓTELES 1994:118, 1452a, 31)
O que é e o que não é literatura?, Página 14

também da narrativa — o “modo” —, não difere da produção do poeta por ser escrito em verso
ou em prosa, mas por buscar narrar o “acontecido” e não o “acontecível”. É essa natureza
específica da poietike tecné que urde as diversas espécies de poesia imitativa numa só família: a
que mimetiza a realidade empírica (a natureza humana e a vida) não como se ela fosse a
“semelhança mais semelhante”,66 mas pela sua recriação, por “representar o que poderia
acontecer”. Não se é poeta “pelo metro usado”, diz Aristóteles, mas “pela imitação praticada”. 67
E é a “imitação praticada”, a mímesis enquanto lugar do “acontecível”, que é inerente à natureza
do fato artístico, à essência da poietike tecné.
Se o conceito de mímesis será também acolhido no mundo latino, não podemos esquecer
que é naquele espaço literário que nasce uma nova designação para a arte dos poetas: atribuir aos
gêneros miméticos um caráter de fingimento, de fingir fazer, de simular: o fingere. Ora, fictio
(Ficção, ficción, fiktion, finzione, fiction) deriva de fingere, mas também significa, no sentido
próprio, “criação” e, no sentido figurado, “ação de fingir”. Se a palavra fictio (ficção) significa
criar (e quem cria, cria algo para), ela também encerra nesse criar o fingimento, o fingir fazer e o
simular que provem da sua raiz semântica (fingere). De modo que a sua “ação de fingir” a
distingue de outras formas de criação que estão submetidas aos conceitos e critérios de
verdade/mentira. Afinal, quem finge, finge para alguém, o que implica que esse alguém tem que
se inscrever nessa ação; ser parte dessa ação.
No entanto, quais são as implicações da palavra fingere e da sua derivação fictio no
campo da criação literária? Onde este conceito difere ou complementa o de mímesis, já que ele,
no mundo latino, se aplica ao mesmo conjunto de gêneros que os gregos acatavam como
miméticos: o lírico, o dramático e o épico? Vamos para o próximo tópico.

IV

66
Refiro-me, aqui, à passagem em que Sósia, personagem da comédia Anfitrião, de Plauto, depara-se com
alguém que era a sua “semelhança mais semelhante”. Ante tal fato inusitado, ele observa: “Quando o
examino e reconheço a minha figura, tal e qual eu sou — tenho-me visto muitas vezes ao espelho —,
nada há mais semelhante a mim mesmo” (PLAUTO 1986:46). Ou seja, nenhuma “semelhança mais
semelhante” era possível entre dois homens se não fosse por meio de uma imagem, a de Sósia, refletida
no espelho. A arte seria não o que acontece quando nos olhamos no espelho, uma imagem da
“semelhança mais semelhante”, mas o que poderia acontecer caso o espelho deformasse a nossa imagem:
“a dessemelhança do que até então nos parecia semelhante”.
67
(ARISTÓTELES 1994:104, 1447b, 15).
O que é e o que não é literatura?, Página 15

A Intencionalidade do Autor

Richard Ohmann, dentro dos chamados atos de fala, assinala que o problema das
definições correntes sobre literatura é que ora elas se centram nos atos locutivos, ora nos atos
perlocutivos. Saindo dessa dicotomia texto/efeito, vamos nos ater, agora, nos “atos
ilocucionários”, isto é, nos atos que encerram os enunciados, as perguntas, as promessas, as
ordens, os pedidos de desculpa, os agradecimentos, etc. Para tal, vamos nos valer das reflexões
desenvolvidas por John R. Searle no ensaio “O estatuto lógico do discurso ficcional”.68
Caminhemos.
Searle nota que “[...] há um conjunto sistemático de relações entre os significados das
palavras e sentenças que emitimos e os atos ilocucionários que realizamos na emissão dessas
palavras e sentenças”69 Partindo dessa premissa, ele observa que essas relações levam a uma
encruzilhada teórica quando focamos o discurso ficcional, pois “[...] como é possível que as
palavras e outros elementos tenham, numa estória de ficção, seus significados ordinários e, ao
mesmo tempo, as regras associadas a essas palavras e outros elementos, regras que determinam
seus significados, não sejam cumpridas?” 70 Antes de responder a esse “problema de difícil
solução”, que é o objeto do seu ensaio, Searle assinala duas distinções que devem ser feitas em
relação ao discurso ficcional. 1. “distinção entre ficção e literatura”; 2. “distinção entre discurso
ficcional e discurso figurado”. Vamos a elas.
1. Para Searle, a diferença entre ficção e literatura se faz necessária porque o discurso
literário é de difícil análise. É que nada obstante muitas obras literárias serem ficção, o fato é
que, para ele, nem toda obra ficcional é literatura e nem toda obra literária é ficcional. Ou seja,
inexiste, no seu entender, um conjunto de traços comuns que encerrem todas as obras literárias,
pois, citando Wittgenstein, “[...] a noção de literatura é uma noção por semelhança de família”.71

68
(SEARLE 1995:95-119; 1997:58-75)
69
(SEARLE 1995:95)
70
(SEARLE 1995:95-96)
71
(SEARLE 1995:97). O autor se refere ao livro Investigações filosóficas, de Ludwig Wittgenstein. Nesta
obra, o filósofo vienense constrói o conceito de “jogos de linguagem”. Diz ele: “[..] todo processo de uso
de palavras em (2) [a linguagem como um meio de entendimento entre um emissor e um receptor] seja
um dos jogos por meio dos quais as crianças aprendem sua língua materna. Quero chamar esses jogos de
‘jogos de linguagem’, e falar de uma linguagem primitiva às vezes como de um jogo de linguagem.// E
poder-se-ia chamar também de jogos de linguagem os processos de denominação das pedras e de
repetição da palavra pronunciada. Pense em certo uso que se faz das palavras em brincadeiras de roda.//
O que é e o que não é literatura?, Página 16

Na ausência desses traços comuns, cabe ao autor decidir se a sua obra é ou não ficção, mas, para
Searle, só ao leitor recai a decisão se uma obra é ou não literatura. Assim, não há, para ele, um
limite que caracterize as obras literárias das não-literárias.
2. No caso da segunda distinção — os discursos ficcional e figurado —, Searle observa
que em ambos os casos “[...] as regras semânticas são alteradas ou sustadas de alguma maneira”.
No entanto, no discurso ficcional essas regras se dão de modo diferente e independente das
figuras de linguagem.72 Para melhor exemplificar a sua tese, ele assinala que a expressão
metafórica é “não literal” [nonliteral], enquanto as emissões ficcionais são “não sérias”
[nonserious]. Por exemplo: quando Ricardo Piglia escreve, em seu romance Respiração
artificial, “passei a noite quase insone por causa do calor e agora estou sentado de frente para o
frescor da janela”,73 isso não significa que no momento em que ele escrevia houvesse algum
frescor entrando pela janela, fizera calor na noite anterior, ou muito menos ele passara a noite
quase insone. Não há nenhum compromisso do Piglia romancista com este enunciado dito pelo
narrador do seu romance. É desse modo que a ficção é um discurso “não sério”, nada obstante a
frase enunciada pelo escritor argentino ser literal. Diverso ocorre quando um ensaísta escreve
que o seu artigo irá analisar e interpretar a obra de Machado de Assis. Neste caso, o enunciado é,
ao mesmo tempo, sério e literal. No entanto, quando o mesmo ensaísta escreve que “’Hegel é
uma carta fora do baralho no jogo filosófico’”, esse enunciado, que é uma metáfora, é sério, mas
não é literal, já que é uma expressão metafórica.74
Feita as devidas ressalvas, Searle retoma a pergunta de “difícil solução” posta no início

Chamarei de ‘jogo de linguagem’ também a totalidade formada pela linguagem e pelas atividades com as
quais ela vem entrelaçada” (WITTGENSTEIN 1996:18-19 [§ 7]). A parte específica a que alude Searle, é
a do § 66. Vejamos: “Observe, p.ex., os processos a que chamamos ‘jogos’. Tenho em mente os jogos de
tabuleiro, os jogos de cartas, o jogo de bola, os jogos de combate, etc. O que é comum a todos estes
jogos? — Não diga: ‘Tem de haver algo que lhes seja comum, do contrário não se chamariam ‘jogos’ —
mas olhe se há algo que seja comum a todos. — Porque quando olhá-los, você não verá algo que seria
comum a todos, mas verá semelhanças de família, parentescos, aliás, uma boa quantidade deles. Como foi
dito: não pense, mas olhe! Olhe, p. ex., os jogos de cartas: aqui você encontra muitas correspondências
com aquela primeira classe, mas muitos traços comuns desaparecem, outros se apresentam. Se passarmos
agora para os jogos de bola, veremos que certas coisas comuns são mantidas, ao passo que muitas se
perdem. — Prestam-se todos eles ao ‘entretenimento’? [...] E assim podemos percorrer os muitos, muitos
outros grupos de jogos, ver as semelhanças aparecerem e desaparecerem.// E o resultado desta observação
é: vemos uma complicada rede de semelhança que se sobrepõem umas às outras e se entrecruzam.
Semelhanças em grande e em pequena escala” (WITTGENSTEIN 1996:51-52).
72
(SEARLE 1995:98)
73
(PIGLIA 1987:28)
74
(SEARLE 1995:98)
O que é e o que não é literatura?, Página 17

do seu ensaio. Para respondê-la, ele deixa de lado as diferenças entre emissões literais [literal] e
figuradas [figurative], e se propõe a explorar as dissimilitudes entre as emissões [utterances]
sérias [serious] e ficcionais [fictional].75 Para tal empreendimento, ele escolhe, inicialmente, dois
exemplos: uma matéria jornalística do New York Times, assinada por Eileen Shanahan, e um
excerto do romance The Red and the Green [O Vermelho e o verde], de Iris Murdoch.76 Ambos
os exemplos se valem de asserções que usam palavras e enunciados literais. A diferença entre um
excerto e outro é que o texto do jornal é “[...] um tipo de ato ilocucionário que se submete a
certas regras semânticas e pragmáticas bastante específicas”. A saber:

1 — A regra essencial: quem faz uma asserção se compromete com a verdade da


proposição expressa. 2 — As regras preparatórias: o falante deve estar preparado
para fornecer evidências ou razões da verdade da proposição expressa. 3 — A
proposição expressa não deve ser obviamente verdadeira para ambos, falante e
ouvinte, no contexto da emissão. 4— A regra da sinceridade: o falante
compromete-se com a crença na verdade da proposição expressa.77

Para Searle, caso o texto do New York Times não observasse todas as regras acima, sua
asserção seria defectiva [defective], isto é, incorria no falso, no errado, no incorreto ou na
mentira. Neste caso, “as regras estabelecem os cânones internos da crítica das emissões”. 78 O
inverso ocorre no texto de Iris Murdoch, pois “sua emissão não é um compromisso com a
verdade da proposição”. Isso não significa dizer que a proposição seja verdadeira ou falsa, e,
sim, que a escritora “[...] não tem qualquer compromisso com a sua verdade”. Ora, como ela não
tem “compromisso com a sua verdade”, ela não é “[...] capaz de fornecer evidências de sua
verdade”. Desse modo, “não vem ao caso que já estejamos ou não informados de sua verdade”.79
No entanto, uma pergunta se estabelece: se há uma asserção em The Red and the Green,
que tipo de ato ilocucionário é manifestado no romance de Murdoch? Como pode existir uma

75
(SEARLE 1995:99)
76
No texto do New York Times, lemos: “Washington, 14 de dezembro — um grupo de membros dos
governos federal, estaduais e municipais rejeitou hoje a ideia do presidente Nixon de que o governo
federal fornecesse ajuda financeira que possibilitasse aos governos locais reduzir impostos sobre
propriedades”. No excerto do romance, lemos: “Mais dez dias gloriosos longe dos cavalos! Era no que
pensava o segundo-tenente Andrew Chase-White, recentemente comissionado no ilustre regimento King
Edward’s Horse, enquanto vagueava contente por um jardim dos subúrbios de Dublin, numa tarde
ensolarada de domingo, em abril de 1916” (SEARLE 1995:100).
77
(SEARLE 1995:101)
78
(SEARLE 1995:102)
79
(SEARLE 1995:102)
O que é e o que não é literatura?, Página 18

asserção, se não há nenhum compromisso com as regras específicas que caracterizam as


asserções? Para Searle, uma resposta equivocada seria admitir que existe um uso distinto das
classes de atos ilocucionários nos jornais e nos textos ficcionais. Neste caso, os atos
ilocucionários na ficção não são para enunciar, descrever ou explicar, mas apenas para contar
uma estória. Assim, o ficcionista encerra o “[...] seu próprio repertório de atos ilocucionários,
que estão no mesmo plano que os atos ilocucionários de tipo padrão (fazer perguntas, fazer
pedidos, fazer promessas, fazer descrições, etc.), mas se acrescentam a eles”.80 Caso essa
premissa fosse correta, diz Searle, teríamos que admitir que uma mesma sentença literal usada,
ao mesmo tempo, na ficção e no jornal, encerraria significados distintos. Desse modo, um leitor
só poderia entender uma obra de ficção se aprendesse “[...] novos conjuntos de significados
correspondentes a todas as palavras e outros elementos contidos na obra”,81 o que o obrigaria, no
caso do falante da língua portuguesa, a ter que aprender novamente a sua própria língua materna.
A resposta correta, para Searle, é que Iris Murdoch “[...] está fingindo [pretend] fazer
uma asserção, ou agindo como se estivesse fazendo uma asserção, ou imitando o ato de fazer
uma asserção”.82 Fingir não no sentido de fraude, mas no sentido de “[...] envolver-se numa
encenação [...], de “agir como se estivesse fazendo ou fosse essa coisa, sem nenhuma intenção de
enganar”.83 Neste caso, “[...] o autor de uma obra de ficção finge realizar uma série de atos
ilocucionários, normalmente do tipo assertivo”. Assim, “[...] o critério para identificar se um
texto é ou não uma obra de ficção deve necessariamente estar fundado nas intenções
ilocucionárias do autor”.84 Mas conhecer as “intenções ilocucionárias do autor não significa
saber, no que diz respeito à análise da obra, “[...] as intenções últimas de um autor [...]”, e, sim,
as intenções quanto à identificação do texto: se é um romance, um conto, uma novela, uma
epopeia, um poema.
Outra questão colocada por Searle é: “[...] o que torna possível essa forma peculiar de
fingimento?” Para ele, o que faz a ficção possível “[...] é um conjunto de convenções
extralinguísticas, não semânticas, que rompem a conexão entre as palavras e o mundo
estabelecida pelas regras [...]”; que fazem de um enunciado uma asserção sincera e não-

80
(SEARLE 1995:103)
81
(SEARLE 1995:104)
82
(SEARLE 1995:105)
83
(SEARLE 1995:105)
84
(SEARLE 1995:106)
O que é e o que não é literatura?, Página 19

defectiva, isto é, “[...] regras [verticais] que relacionam palavras (e sentenças) ao mundo”, que
conectam a linguagem à realidade.85 Desse modo, as convenções que estabelecem o discurso
ficcional se dão em cima de regras horizontais que rompem com as regras verticais. Tais
convenções, no entanto, não encerram nem as regras do significado, nem as que estabelecem a
competência semântica do falante. Assim, Searle assinala que “[...] as elocuções fingidas que
constituem uma obra de ficção são possíveis em virtude da existência de um conjunto de
convenções que suspendem a operação normal das regras que relacionam os atos ilocucionários
ao mundo”.86 Em outras palavras: “[...] contar histórias [stories] é realmente um jogo de
linguagem à parte”. Jogo de linguagem este que “[...] não está no mesmo pé que os jogos de
linguagem ilocucionários, mas é parasitário em relação a eles”.87
Ainda dentro desse raciocínio, uma pergunta precisa ser respondida: “[..] quais são os
mecanismos pelos quais o autor invoca as convenções horizontais — que procedimentos ele
segue? Se, como eu disse, o autor não realiza de fato atos ilocucionários, mas apenas finge
realizá-los, como realiza o fingimento?” 88 Sua resposta é exemplificada pela encenação
dramática. Neste, um personagem finge (e não o autor) bater em outro personagem e este, por
sua vez, finge apanhar. Se a surra é fingida, os movimentos dos braços são reais. O mesmo
procedimento ocorreria na ficção, onde “o autor finge realizar atos ilocucionários por meio da
emissão efetiva de sentenças”. Ou seja, “[...] os atos ilocucionários são fingidos, mas o ato de
emissão é real”, já que eles se efetivam através de “[...] atos fonéticos e fáticos”.89
Se a mímesis aristotélica se atém ao texto em si (suas estruturas, seus procedimentos
formais e a sua natureza: o horizonte do acontecível), a ficção, segundo Searle, também
incorreria no mesmo caminho: o de encerrar no texto, por meio de enunciados “não sérios”
[nonserious], emissões que não têm “compromisso com a verdade da proposição”. Assim, tanto
na mímesis quanto na ficção haveria uma ruptura entre o signo e o referente, entre o signo e
aquilo a que ele se refere. É assim que Sófocles conta a estória de Édipo sem se preocupar em ser
fiel ao seu referente: a narrativa oral e imemorial do Mito (forma simples). O mesmo ocorre com
o texto ficcional: seus enunciados não têm nenhum “compromisso com a verdade da

85
(SEARLE 1995:107)
86
(SEARLE 1995:108)
87
(SEARLE 1995:108)
88
(SEARLE 1995:109)
89
(SEARLE 1995:109)
O que é e o que não é literatura?, Página 20

proposição”. Desse modo, para Searle, cabe ao autor empírico, e somente a ele, decidir se a sua
obra é ou não ficção, pois é nela que ele lança mão dos atos de falas que a caracterizam como tal.
Proposição que também se aplica à mímesis, pois o poeta ao escolher enunciar o acontecível já
delimita em qual ciência a sua obra se inscreve: os gêneros produtivos.
Concordamos que para uma emissão se constituir “não séria” é necessário que um autor
empírico não tenha “[...] qualquer compromisso com a sua verdade” (aquela enunciada pelo
narrador ou pelo eu lírico) e, por decorrência, não seja “[...] capaz de fornecer evidências de sua
verdade”. No entanto, como o leitor vai saber que tal enunciado é “não sério”? Como ele
distingue a seriedade ou a não-seriedade dos atos ilocucionários em textos que tratem do mesmo
assunto: um romance histórico sobre D. Pedro II e uma biografia histórica sobre este? Creio que
tal distinção só é possível se houver uma cooperação entre o autor e o leitor no ato de
fingimento. Ou seja, não basta que um autor empírico finja enunciar uma verdade, faz-se
necessário que o leitor saiba que ele está fingindo. A intencionalidade do autor empírico de fingir
uma estória tal como ela deveria ter acontecido só se perfaz na disposição do leitor, conhecedor
de tal intencionalidade, em acatá-la (o verbo “fingir”, por si, já encerra uma intencionalidade,
pois quem finge, finge para alguém). E aqui temos que nos ater novamente à palavra fictio. Se
ela, no sentido próprio, significa criação, e no sentido figurado, “ação de fingir”, não podemos
perder de vista, como dissemos acima, que quem finge, finge antes para alguém do que para si
mesmo. Se o leitor/expectador desconhece que os atos de fala e/ou determinados gestos
dramáticos são fingidos, a cooperação textual ou dramática não se estabelece (nesse caso, o
texto, enquanto criação, pode ser acatado como um enunciado crível e o ator, como louco). Sem
que as regras do jogo fiquem estabelecidas para ambos os jogadores — autor empírico e leitor
empírico — não é possível que o estatuto do fingimento se firme. Por que? Porque só por meio
desse pacto de fingimento mútuo as fronteiras entre a ficção, a mentira e a fantasia podem ser
dissipadas. Como sabemos, o inverso da mentira é a verdade, e não a ficção ou a fantasia. O
avesso de fingir é “desenganar”, no sentido de “esclarecer”. Mentir é iludir, trapacear. A mentira
só é “jogada” (ou melhor, só é tomada como verdade) porque um dos atores do “jogo” (o que
está sendo enganado) desconhece as regras do próprio “jogo”, desconhece que o pacto da
verdade foi colocado em suspensão. Logo, ele é levado a crer que tal enunciado — a mentira —
é verdadeiro. Um enunciado ou uma asserção só é acatado como mentira porque ele fere um
pacto, ou contrato, que envolve um acordo social, ou interpessoal, calçado em cima de um
O que é e o que não é literatura?, Página 21

determinado critério de verdade. Um exemplo: uma nota monetária só pode ser tomada como
falsa porque quem a falsificou rompeu com um pacto de verdade estabelecido entre a sociedade e
a Instituição que a governa, o Estado, já que este, por meio de vários mecanismos, é quem emite
o dinheiro e dá fé da sua validade monetária.
No caso das fronteiras entre a ficção e a fantasia, podemos dizer que a ficção encerra a
fantasia (a faculdade de imaginar ou criar pela imaginação), mas a fantasia não encerra
necessariamente a ficção. Um exemplo é o que se manifesta no portador de esquizofrenia. O
esquizofrênico é alguém que possui uma personalidade fragmentada e, por decorrência, perdeu o
contato com a realidade. Assim, o esquizofrênico toma a fantasia pela realidade empírica e,
como tal, inscrevem-na no horizonte do “acontecido”. Esquizofrênicos não fingem acreditar nas
fantasias que estão narrando ou vendo, pois aquilo que eles narram ou veem é a sua própria
realidade empírica. Por não perceber os limites entre a fantasia e a realidade empírica é que o
portador de tal distúrbio mental é colocado à margem do pacto, ou do contrato, que rege a
sociedade, ou que por ela foi instituído: seja o pacto da verdade (ou o que uma dada sociedade
entende por verdade em um dado momento histórico), seja o ficcional.
Outro ponto a observar é que a intencionalidade do autor empírico de fingir enunciados
em uma determinada estória e a disposição do leitor (seja o leitor-modelo ou o leitor empírico)90
em aceitar tal intencionalidade (instituindo a cooperação textual), só se dá porque certos gêneros
textuais encerram determinadas marcações que foram estabelecidas socialmente e, por sua vez,
acatadas. No caso dos gêneros miméticos, os gregos os definiram como épico, dramáticos e
líricos. Ora, se o “nível mais básico” das intenções de um autor é identificar o seu texto como
romance, conto, filosofia, teologia, história, sociologia, tese, dissertação etc. (e cada um desses
gêneros textuais encerra naturezas e, por sua vez, propósitos distintos), isso “já é afirmar algo
sobre as intenções do autor”, para usarmos as próprias palavras de Searle. Observando que as
intencionalidades são instituídas não somente por aquele que compôs a obra, mas também por

90
Valemo-nos aqui da distinção feita por Umberto Eco. Para o teórico italiano, “O leitor-modelo de uma
história não é o leitor empírico. O leitor empírico é você, eu, todos nós, quando lemos um texto. Os
leitores empíricos podem ler de várias formas, e não existe lei que determine como devem ler, porque em
geral utilizam o texto como um receptáculo de suas próprias paixões, as quais pode ser exteriores ao texto
ou provocadas pelo próprio texto”. O inverso é o leitor-modelo. Este é “[...] uma espécie de tipo ideal que
o texto não só prevê como colaborador, mas ainda procura criar. Um texto que começa com ‘Era uma
vez’ envia um sinal que lhe permite de imediato selecionar seu próprio leitor-modelo, o qual deve ser uma
criança ou pelo menos uma pessoa disposta a aceitar algo que extrapola o sensato e o razoável” (ECO
2010:14-15; ver também 2008:35-49).
O que é e o que não é literatura?, Página 22

quem a editou. Um livro é denominado de romance, conto ou novela e, como tal, ele é publicado
por um dado editor. Assim, toda a composição visual da obra traz marcas das intenções do autor,
reiterada por seu editor: a orelha e a contracapa que explicam sobre o que versa o livro; a ficha
catalográfica; o local que, dentro de uma livraria, lhe é destinado; as resenhas de jornais e
revistas que lhe são consagrados. É dessa maneira que a obra chega ao leitor: identificada, no
nível “mais básico”, pelas intenções do autor. Desse modo, é a intencionalidade no nível “mais
básico” que dá o estatuto histórico-temporal da obra, e, por desdobramento, as marcações que
vão promover a sua recepção por parte do leitor-modelo ou do leitor empírico, explicitando,
assim, o desejo de um dado autor em pertencer a um determinado campo do conhecimento e, por
extensão, de poder usar os atos ilocutivos de modo fingidos ou não. Logo, o pacto entre o autor
empírico e o leitor empírico (ou o leitor-modelo) se estabelece quando aquele enuncia em que
gênero o seu texto se inscreve e, por sua vez, o leitor, a par desse estatuto, assume determinadas
maneiras de pensar e agir ante o texto. Caso seja uma obra ficcional — onde o autor “está
fingindo [pretend] fazer uma asserção, ou agindo como se estivesse fazendo uma asserção, ou
imitando o ato de fazer uma asserção” —, ele, o leitor, aceita a intencionalidade do texto e, junto
com ele, finge aceitar tais enunciados; caso seja uma obra que se submeta “a certas regras
semânticas e pragmáticas bastante específicas”, ele, o leitor, irá se relacionar com o texto
observando se o autor cumpre as condições especificadas nas regras, ou, caso contrário, ele
incorre em uma asserção defectiva. Logo, diverso do que pensa Searle, não é o leitor que diz se
tal obra é ou não literatura, mas o seu autor, nada obstante a necessidade da cooperação textual
entre este e o leitor. A questão é saber quais são as regras (regras que valem para todos os
gêneros textuais, em qualquer área de saber) que definem se um texto é ou não literatura. Duas
dessas regras, como vimos, foram estabelecidas pela poética clássica, a mímesis e a fictio, e
ambas se complementam. A primeira, porque trata do horizonte do “acontecível”; a segunda,
porque vê nesse “acontecível” não somente um ato ilocucionário fingido por parte do autor
empírico, mas também um pacto de fingimento (ou uma cooperação textual) que se estende ao
leitor, que lê e finge acreditar no que lê. Mais: ambos os conceitos compartilham o fato de que
embora toda a arte poética se valha da natureza como matéria-prima de imitação (imitação da
natureza e das ações humanas), esta, ao se inscrever no campo do “acontecível” ou do fingere,
cria a sua própria verdade ou realidade textual. Verdade e realidade textuais essas que precisam
ser pactuadas com o leitor para que possam se perfazer. Ambos os conceitos — mímesis e fictio
O que é e o que não é literatura?, Página 23

— tratam de uma verdade textual, mas só o conceito latino considera o leitor ou expectador
como parte desse jogo que é instituído pela verdade textual (o “acontecível”).
E aqui vamos ao terceiro ponto da nossa análise: a verdade e a realidade textuais (o
caráter imanente do texto).

A Verdade e a Realidade Textuais

Se o ofício do historiador e, por extensão, a História, nasce quando da passagem do Mito


para o Logos, da substituição da narrativa fantasiosa, ilusória, irracional e incognoscível dos
eventos para a narrativa que se calce em cima da razão e da racionalidade, Aristóteles defendeu o
caminho inverso para as poesias imitativas (particularmente para o gênero trágico): o retorno do
Logos para o Mito. No entanto, esse retorno não significava a defesa de uma literatura que
retomasse a narrativa mítica, a forma simples, e, sim, que acolhesse o mito como “[...] o
princípio e como que a alma da tragédia”.91 Tal retorno implicou em uma série de procedimentos
que terminam por caracterizar os textos literários até os dias que correm. Se a narrativa mítica —
a exemplo da história de Édipo — não tem autor empírico, já que ela se caracteriza por ser uma
história imemorial, a tragédia Édipo Rei não só tem um autor empírico — Sófocles —, como este
se distingue do narrador textual (puramente linguístico) que, no caso do drama, se dá “mediante
todas as pessoas imitadas, operando e agindo elas mesmas”.92 Assim, os gêneros miméticos vão
distinguir não só o autor empírico do narrador textual, como o autor empírico do eu lírico textual
(o poeta “chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”, ensina-nos Fernando Pessoa). Tais
distinções foram necessárias para que os gêneros miméticos estabelecessem a diferença entre a
“verdade textual” e a “verdade” que se “[...] deixa governar pelo critério válido para os discursos
da realidade, o critério de verdadeiro/falso”.93 Ou seja, se a realidade inscrita na literatura pode
se alimentar da realidade empírica (Ao lermos Dom Casmurro vemos que ele se passa no Rio de
Janeiro da segunda metade do século XIX) e pode até se decifrar por meio dela (os princípios
morais de Bentinho se calçam na moral predominante à época em que a estória decorre), ela, ao

91
(ARISTÓTELES 1994:112, 1450a, 35-36)
92
(ARISTÓTELES 1994:112, 1447a, 24-25)
93
(LIMA 2002:666)
O que é e o que não é literatura?, Página 24

se perfazer como uma verdade textual, não se confunde mais com a verdade empírica que a
alimentou. Por mais que uma obra imite um dado referente, a ação dos seus personagens não se
manifesta na realidade empírica, mas em uma realidade puramente textual que lhe é própria, pois
esta não busca imitar a realidade empírica como um espelho, mas como ela poderia ser: uma
imagem alterada, borrada; uma imagem que só existe no texto e nele se encerra, pois a realidade
empírica foi colocada em suspensão. Logo, dilatada, duplicada, ficcionalizada. Vejamos os
exemplos de duas narrativas históricas — as de Heródoto e Tucídides — e uma narrativa
literária, a Ilíada, de Homero (a Odisseia segue a mesma estrutura narrativa da Ilíada, daí não
precisamos evocá-la aqui).
A primeira distinção a se observar é que as narrativas de Homero são em verso e as dos
historiadores gregos, em prosa. Mas esta não é uma boa distinção, pois, como nota Aristóteles,
não é o uso do verso que caracteriza a obra, mas a intenção do poeta em inscrevê-la no campo do
acontecível. A segunda distinção é que na Ilíada o narrador textual não se confunde com o autor
empírico da obra. Seu narrador são as Musas, evocadas por outro narrador (que na falta de um
nome melhor, chamaremos de “Homero”), para que elas tornem o passado presencial.94 No
entanto, ao longo da narrativa, “Homero” as interpela: seja para pedir mais detalhes sobre os
fatos, seja para mudar o rumo da narrativa. Esta distinção entre autor empírico (Homero) e
narradores textuais (“Homero” e as Musas) já impõe um pacto textual com o leitor-modelo ou
empírico: ele deve fingir acreditar que um dado narrador — “Homero” — é capaz de evocar as
Musas, dialogar com elas, registrar as suas falas e, ao mesmo tempo, se distinguir delas. Como
nem o seu autor empírico — Homero — nem o narrador textual interpelador — “Homero” —
não foram testemunhas dos fatos narrados (ocorridos em um tempo mítico), eles precisam se
valer de uma testemunhante “confiável”. Ora, sendo o narrador textual um narrador fingido, não
há nenhum compromisso do autor empírico com as emissões destes narradores, que podem até

94
“Homero”: “Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida/ (mortífera!, que tantas dores trouxe aos
aqueus/ e tantas almas valentes de heróis lançou no Hades,/ ficando seus corpos como presa para cães e
aves/ de rapina, enquanto se cumpria a vontade de Zeus),/ desde o momento em que primeiro se
desentenderam/ o Atrida, soberano dos homens, e o divino Aquiles.// Entre eles qual dos deuses provocou
o conflito?” Musas: “Apolo, filho de Leto e de Zeus. Enfurecera-se o deus/ contra o rei e por isso
espalhara entre o exército/ uma doença terrível de que morriam as hostes,/ porque o Atrida desconsiderara
Crises, seu sacerdote./ Ora este tinha vindo até às naus velozes dos Aqueus/ para resgatar a filha, trazendo
incontáveis riquezas./ Segurando nas mãos as fitas de Apolo que acerta ao longe/ e um cetro dourado,
suplicou a todos os Aqueus,/mas em especial aos dois Atridas, condutores de homens: [...]” (HOMERO
2005:30, Canto I, 1-16).
O que é e o que não é literatura?, Página 25

ser literais, mas são “não-sérios”. Parafraseando D. Couty, esta distinção entre o autor empírico e
os narradores textuais mostra a distância fundamental entre o saber do autor empírico e o dos
narradores textuais.95 A relação das Musas com os seus personagens (o ponto de vista) é que elas
sabem mais do que eles (“visão por trás”). Já “Homero” manifesta saber menos do que as Musas
e os seus personagens (“visão de fora”).
Já nas obras de Heródoto e Tucídides os narradores são os próprios autores empíricos.
Por que? Porque sendo testemunhantes dos eventos que, por ventura, estão narrando, eles nem
precisam evocar as musas (o Mito), nem fingirem serem narradores textuais, o que implicaria na
falta de compromisso com a verdade das proposições. Daí porque muitos estudiosos de Heródoto
o acusarem de ter incorrido, em várias passagens da sua obra, em falsidades, manipulações e
acréscimos. Acusações essas que jamais poderiam ser aplicadas a Homero. Pelo contrário.
Assim, no parágrafo inicial das obras de Heródoto e Tucídides, ambos se apresentam na terceira
pessoa e expõem os motivos que os levaram a escreverem tais livros.96 Em seguida, no parágrafo
seguinte, eles se inscrevem na narrativa (primeira pessoa) para que o leitor tome ciência que o
que vai ser narrado é resultado daquilo que eles viram ou ouviram de testemunhantes críveis.97
Aos olhos de hoje, Heródoto e Tucídides teriam escritos obras de testemunhos; testemunhos
deles, Heródoto e Tucídides, que participaram dos eventos e, também, dos testemunhantes
oculares, informantes das guerras narradas. Nota Richard Bauckham, parafraseando Samuel
Byrskog, que os historiadores gregos e latinos, de modo semelhante ao método da moderna
historiografia oral,

95
(COUTY 1988:94).
96
Heródoto: “Esta é a exposição das investigações de Heródoto de Halicarnasso, para que os feitos dos
homens se não desvaneçam com o tempo, nem fiquem sem renome as grandes e maravilhosas empresas,
realizadas quer pelos Helenos quer pelos bárbaros; e sobretudo a razão por que entraram em guerra uns
com os outros” (HERÓDOTO 2002:53). Tucídides: “O Ateniense Tucídides escreveu a história da guerra
entre os peloponésios e os atenienses, começando desde os primeiros sinais, na expectativa de que ela
seria grande e mais importante que todas as anteriores, pois via que ambas as partes estavam preparadas
em todos os sentidos; além disto, observava os demais helenos aderindo a um lado ou ao outro, uns
imediatamente, os restantes pensando em fazê-lo [...]”. (TUCÍDIDES 1999:19).
97
Heródoto: “Os conhecedores entre os Persas consideram que os Fenícios foram os causadores do
diferindo: sustentam que, vindos do mar chamado Eritreu para as margens do Mediterrâneo e ocupada a
região que agora habitam, de imediato empreenderam longas navegações: com mercadorias egípcias e
assírias, apontaram a diversas regiões, entre as quais estava Argos [...]”. (HERÓDOTO 2002:53).
Tucídides: “É óbvio que a região agora chamada Hélade não era povoada estavelmente desde a mais alta
antiguidade; migrações haviam sido frequentes nos primeiros tempos, cada povo deixando facilmente
suas terras sempre que forçado por ataques de qualquer tribo mais numerosa [...]”. (TUCÍDIDES
1999:19).
O que é e o que não é literatura?, Página 26

[...] estavam convencidos de que a verdadeira história poderia ser escrita somente
enquanto os acontecimentos ainda se encontravam dentro de uma memória viva, e
consideravam como suas fontes os relatos orais de experiência direta dos
acontecimentos por parte dos participantes envolvidos neles [e quanto mais
parcial fosse esse testemunhante, melhor]. Idealisticamente, o próprio historiador
deveria ter sido um participante dos eventos que ele narra — como foram, por
exemplo, Xenofonte, Tucídides e Josefo —, mas, visto que ele não poderia estar
em todos os acontecimentos que ele narra ou em todos os lugares que ele
descreve, o historiador tinha de confiar, portanto, em testemunhas oculares, cujas
vozes vivas ele podia ouvir e a quem ele próprio podia questionar: “Autopsia
[testemunho de testemunha ocular] era o meio essencial para remontar o
passado”.98

Cabia ao historiador selecionar (autopsiar) os relatos dos testemunhantes, juntá-los às


suas impressões de partícipe do evento, e, criticamente, dar um sentido à sua narrativa. “O
sentido é a atmosfera em que os fatos são postos para que assumam uma presunção
significativa”.99 Sabemos que entre os métodos da historiografia clássica e aqueles que foram
instituídos pela moderna historiografia, muitas coisas mudaram. No entanto, uma permaneceu: o
autor empírico da obra (chame-se ele Edward Gibbon, Arnold Toynbee, R. G. Gollingwood,
Fernand Braudel ou Sérgio Buarque de Hollanda) é o próprio narrador dos fatos narrados (seja a
narrativa na primeira ou na terceira pessoa), e os seus atos ilocucionários se submetem a certas
regras semânticas e pragmáticas específicas, sob o julgo da sua obra se inscrever no campo do
defectível. Não só: sua narrativa é tomada como crível porque aquilo que é narrado encontra
respaldo e testemunho (seja ele documental, seja oral) no objeto narrado: o acontecido. A
verdade do texto histórico não está calçada em si mesma, mas no seu referente. Isso não significa
dizer que a narrativa histórica está no lugar do evento em si (afinal, desde Santo Agostinho que
se sabe que a palavra é um signo, isto é, ela é a representação da coisa em si, mas não é a coisa
em si), e, sim, que ela só se perfaz porque o evento que lhe serve de objeto de análise e
interpretação se plasma na realidade empírica. Logo, essa narrativa tem sua análise e
interpretação delimitadas pelo referente: a documentação que lhe fundamenta. Desse modo, onde
termina, para o historiador, os limites da análise e da interpretação dos eventos históricos, é onde
tem inicio a narrativa literária. Por exemplo: se o historiador, refém do referente, não pode

98
(BAUCKHAM 2011:23)
99
(LIMA 1991:143)
O que é e o que não é literatura?, Página 27

afirmar que D. Pedro II morreu governando o Brasil, o escritor literário, diversamente, pode
contar a estória do nosso monarca como ela poderia ter sido. No caso, uma estória onde o
Imperador jamais fora exilado e a República nunca fora proclamada no Brasil. Como “[...] o
discurso ficcional ocupa uma posição ex-cêntrica quanto à verdade, o traço ‘referência’ sofrerá
uma modificação considerável”.100 O que ocorre com o discurso histórico se manifesta também
em todas as outras formas de discursos, mesmo aqueles mais esotéricos, a exemplo da teologia e
dos textos místicos, que se firmam e se decifram em cima dos textos sagrados (no caso do
cristianismo e do judaísmo, na Bíblia), e, por sua vez, esses textos sagrados (expressão do verbo)
se firmam e se explicitam em cima do Verbo.
Assim, se a realidade inscrita na literatura pode se alimentar da realidade empírica e até
se decifrar por meio dela, a realidade textual, ao se inscrever no horizonte do “acontecível”, não
se confunde mais com essa realidade extratextual. Não há nenhuma possibilidade de um leitor de
Guimarães Rosa se deparar, no mundo empírico, com Riobaldo ou com Diadorim (salvo no caso
de perturbação mental). O inverso ocorre com os textos das ciências exatas, biológicas, sociais,
humanas, teológicas e filosóficas: todos não só partem da realidade empírica (mesmo que seja ó
no campo especulativo), como só se decifram ou se firmam por meio dessa realidade empírica.
Mímesis, fictio, verdade textual. Estes três conceitos se interpenetram e, principalmente,
se complementam, formando uma unidade. No entanto, tais conceitos não se aplicam somente à
literatura e, por decorrência, aos gêneros artísticos, mas também a certos gêneros que são
puramente ficcionais, a exemplo das novelas televisivas, das estórias em quadrinho, das
fotonovelas, dos videoclipes.... Então o que faz determinados gêneros textuais serem literatura —
isto é, serem alçados ao campo da arte — e outros serem apenas ficções? Vamos ao nosso quarto
e último tópico.

VI

Os Significados e Significações do Texto

Como toda forma de conhecimento, a literatura — e as artes, de maneira geral — também


encerra um modo de usar ou de se relacionar com os signos: imitando o referente (representando

100
(LIMA 1991:144)
O que é e o que não é literatura?, Página 28

o que poderia acontecer), fingindo (construindo, por meio de um pacto ficcional, enunciados
não-sérios), e plasmando uma realidade e uma verdade puramente textuais (estabelecendo a
cesura entre o signo e o referente, nada obstante, na maioria dos casos, se valer deste enquanto
matéria). O resultado desse modo de se relacionar com os signos é que, na literatura, o leitor, ao
ler um poema, é levado, caso queira entender o seu sentido, a decifrar e a recifrar
permanentemente o verso, e, no caso da prosa, a se deparar com o sentido polissêmico que as
estórias narradas encerram. Em ambos os casos, temos signos carregados de significados e
significações “até o máximo grau possível”,101 como defendia Ezra Pound, sem que,
necessariamente, isso implique, como queriam os Formalistas, determinadas propriedades
sintáticas ou semânticas específicas do texto (como são exemplos, no caso da prosa, as poéticas
das Escolas Realista e Naturalista, que perseguiam antes uma narrativa denotativa do que
conotativa, nada obstante o sentido da obra está carregado de significados e significações). Essa
condição de encerrar no signo significados e significações além daqueles que encontramos nos
dicionários, tira da literatura o caráter que, muitas vezes, lhe é atribuído, particularmente pelos
estudos sociológicos (o de ser apenas um “documento”, um “indicador” ou um “epifenômeno”
da realidade empírica), e lhe confere tanto a sua condição trans-histórica (o que lhe dá uma
autonomia em relação ao referente) quanto o seu estatuto artístico. Estatuto que a leva a
perseguir não apenas o Belo (afinal, outras manifestações também buscam a beleza estética: a
moda, a decoração, o designer), mas retesar o signo com o intuito de extrair dele o máximo
possível de significados e significações além dos limites aceitáveis nas demais formas de
discurso. Desse modo a arte e, no nosso caso, a literatura, caminha no sentido inverso do
discurso persuasivo (os discursos das telenovelas, da política, do judiciário, da propaganda, da
maioria das ficções policiais, das estórias em quadrinho, das fotonovelas, dos seriados de TV).
Se este “[...] quer levar-nos a conclusões definitivas; prescreve-nos o que devemos desejar,
compreender, temer, querer e não querer”,102 a arte e, no caso específico, a literatura, não repete
para o leitor “[...] aquilo que ele já sabe e aquilo que deseja saber”, 103 mas revela aquilo que ele
não sabe (ou pelo menos ele nunca imaginou ou nunca pensou daquele modo) e o que ele nem
desejaria (ou pensou desejar) saber. Mutatis mutandis, as artes plásticas podem, aqui, nos
fornecer um bom exemplo. Ao pintar um cachimbo e escrever no rodapé da tela que aquilo não é

101
(POUND 1983:32)
102
(ECO 1986:280)
103
(ECO 1986:282)
O que é e o que não é literatura?, Página 29

um cachimbo ("Ceci n'est pas une pipe”), René Magritte não só contraria o “automatismo
perceptivo”104 do seu expectador, mas cria “[...] uma percepção particular do objeto [sua
singularização], busca[ndo] a criação da sua visão e não de seu reconhecimento”.105 Desse modo,
o artista não somente rompe a relação entre o signo (o cachimbo pintado) e o seu referente (o
cachimbo empírico), mas lhe dá significados e significações além daqueles que a linguagem
persuasiva busca dar; ou, como nota Luiz Costa Lima, a arte da imitação “[...] não só recebe o
que vem da realidade mas é passível de modificar nossa própria visão da realidade”. 106 “Se isto
não é um cachimbo, então é o que?”, perguntaria o apreciador da sua obra. A resposta poderia
ser: “tente fumá-lo”. O mesmo ocorre com Homero ao narrar a Guerra de Troia: ele não oferece
ao leitor uma estória em que ele reconheça a narrativa mítica (“o caso eu conto como o caso
foi”), e, sim, que seja o “acontecível” do “acontecido”. Assim como existe o cachimbo de
Magritte que não é um cachimbo (apenas a representação mimética do cachimbo), existe a
Guerra de Troia de Homero que não é a Guerra de Troia da narrativa mítica, mas a sua imitação.
Do mesmo modo quem inicia a leitura de Dom Casmurro buscando encontrar um discurso
persuasivo contra o adultério e a favor da família patriarcal e cristã, encontra uma linguagem
polissêmica que puxa o tapete de todas as suas certezas. O que resta ao leitor? Ou ficar na dúvida
(e não é Dom Casmurro um romance sobre a dúvida?) ou recomeçar a leitura do romance em
busca de indícios mais convincentes da traição de Capitu. A verdade textual do romance cria os
seus próprios significados e as suas próprias significações (independentes dos valores morais do
seu tempo), o que dá à obra o seu caráter trans-histórico. Pouco nos interessa agora saber qual
era, ao tempo em que a obra foi escrita, a moral que alimentava Bentinho, pois o que parecia ser
reconhecimento — uma estória de adultério passada na segunda metade do século XIX brasileiro
— singulariza-se, agora, como o discurso da dúvida. Dúvida não só nossa, leitor, mas que se
inscreve no próprio modo discursivo como a obra é organizada pelo autor empírico por meio do
narrador textual. A forma irônica é o modo que Machado de Assis encontrou para compor a sua
obra e lhe prover de significados e significações. Assim, essa forma irônica — isto é, a cesura
entre o signo e aquilo a que ele se refere, a realidade empírica — nos leva a concluir,
parafraseando Octávio Paz, que “não sabemos o que é realmente o real”: se o que veem os olhos

104
(EIKHENBAUM 1978:15)
105
(EIKHENBAUM 1978, p. 15)
106
(LIMA 2000:25)
O que é e o que não é literatura?, Página 30

de Bentinho ou o que a sua (ou a nossa) “imaginação projeta”.107 Se o reconhecimento, a matéria


do discurso persuasivo, é sinônimo de significado unívoco, a singularização é sinonímia de
linguagem carregada de significados e significações. No caso, a arte; a literatura,
particularmente.

VII

Conclusão

1. Não é por semelhança de família, como são os jogos (afinal, o que há em comum entre
uma partida de xadrez, atividade puramente cerebral, e uma de futebol, atividade em que
predomina o esforço físico? Serem ambas apenas um entretenimento?), que podemos colocar sob
o mesmo guarda-chuva a poesia, a epopeia, o drama, o romance, o conto e a novela. Apesar de
guardarem formas distintas, todos esses gêneros encerram os quatro critérios que elencamos ao
longo deste texto: (a) todos imitam (ora tomando a natureza como modelo, ora por meio da
intertextualidade, ou mesmo tentando traduzir em linguagem os sonhos e as alucinações da
mente) e contém emissões fingidas que são acatadas, em forma de pacto, pelo leitor-modelo ou
pelo leitor empírico; (b) todos trazem as intencionalidades do autor empírico; (c) todos
constroem realidades textuais; e (d), por fim, todos perseguem uma linguagem carregada de
significados e significações. Se estes critérios em conjunto (e não individualmente) caracterizam
e estão presentes em todos os gêneros literários (poesia, epopeia, drama, romance, conto e
novela), terminando por agregá-los sob o mesmo manto e, principalmente, dando-lhes um
estatuto artístico, como podemos encerrar, dentro desse mesmo manto conceitual, livros como os
do Padre Antônio Vieira e Euclides da Cunha, por exemplo, que se inscrevem em campos do
conhecimento que lhes são distintos? No caso de Vieira, a oratória religiosa (o sermão); no de
Euclides, a história social. Ambos, como sabemos, ocupando papéis de destaque em todas as
histórias da literatura brasileira (e, no caso de Vieira, também nas histórias da literatura
portuguesa), apesar das obras que predominam nesses manuais sejam, em quase totalidade, as
que encerram os quatro critérios declinados ao longo deste texto. Então, por que Vieira? Por que
Euclides? Talvez os críticos e os historiadores da literatura encontrem neles, como quer Searle, a

107
(PAZ 1991:108)
O que é e o que não é literatura?, Página 31

“semelhança de família”. Afinal, Searle, como vimos, distingue obras ficcionais de obras
literárias, já que, para ele, nem toda obra de ficção é literatura (o que concordamos com ele) e
nem toda obra literária é ficção (o que discordamos). Desse modo, parece que temos, aqui, uma
questão não respondida: o que faz um conjunto de obras ficcionais serem acatadas como
literatura e, em contrapartida, outro conjunto de obras não ficcionais serem tidas também como
literatura? Sabemos a resposta de Searle: cabe ao autor decidir se a sua obra é ou não ficção, mas
só ao leitor recai a decisão de afirmar se uma obra é ou não literatura. Assim, não há, para Searle,
um limite que caracterize as obras literárias das não-literárias: tudo depende do gosto e do
critério de quem a lê. Talvez Vieira e Euclides sejam dois bons exemplos que venham responder
o que o texto de Searle não respondeu. Vamos à análise. Para tal, evoquemos quatro estudiosos e
historiadores da nossa literatura: Alfredo Bosi, José Guilherme Merquior, Afrânio Coutinho e
Antonio Candido.
Bosi define Vieira como um “[...] estupendo artista da palavra”.108 Já Merquior toma
muitos dos seus sermões como “[...] exemplos incomparáveis de artifício retórico posto a serviço
do pensamento”. Entre estes, encontram-se “[...] a guirlanda de metáforas, desfraldadas em
amplo movimento alegórico; o amor à antítese; a frase de ritmo rápido, sincopado, enérgico;
enfim, a indicação teatral do paradoxo [...], plataforma, por sua vez, de novas salvas metafóricas,
e de novos arabescos de figuras de pensamento e de dicção”.109 Coutinho, assinala que ele,
Vieira, aliou “[...] a essência do estilo senecano, ‘coupé’ e sentencioso, à ênfase, à sutileza, ao
paradoxo, ao contraste, à repetição, à assimetria, ao paralelo, ao símile, ao manejo da metáfora
[...]”. Assim, Vieira “[...] produziu páginas que são tesouros da eloquência sagrada em língua
portuguesa”.110 Por fim, Candido toma-o como um “escritor ardente, correto, a sua linguagem
cheia de vigor e harmonia tornou-se um dos modelos da escrita clássica portuguesa”.111
No caso de Euclides da Cunha, Bosi nota que “a expressão ‘barroco científico’, com que
já se procurou batizar a sua linguagem, indica-lhe a essência, se em ‘barroco’ visualizamos, antes
de mais nada, um conflito interior que se quer resolver pela aparência, pelo jogo de antíteses,
pelo martelar dos sinônimos ou pelo paroxismo do clímax”.112 Para Merquior, Euclides da Cunha

108
(BOSI 1984:50)
109
(MERQUIOR 1979:18)
110
(COUTINHO 2001:116)
111
(CANDIDO 2004:26)
112
(BOSI 1984:349)
O que é e o que não é literatura?, Página 32

é dono de uma “[...] frase contundente, angulosa, convulsa [...], singularizada pela elasticidade da
sintaxe assindética (quase sem conectivo), dos crescendo dramáticos e dos ritmos espasmódicos
[...]”.113 Coutinho vê n’Os Sertões, “[...] como arquitetura e como construção, [...] o caráter de
narrativa, de ficção, de imaginação. Os Sertões são uma obra de ficção, uma narrativa heroica,
uma epopeia em prosa, da família de A Guerra e paz, da Canção de Rolando e cujo antepassado
mais ilustre é a Ilíada”.114 E Candido assinala em Os Sertões “[...] o voo retórico do estilo,
inclusive no rebuscamento do vocabulário e das construções sintáticas, bem-vindos aos ‘cultores
da forma’”.115
Em resumo: tirante a definição de Afrânio Coutinho para Os Sertões, que lhe atribui um
caráter ficcional (apesar do autor se valer apenas da autoridade de crítico e de professor
universitário para fazer tal asserção, deixando de lado qualquer problematização sobre o que
asseriu, isto é, a onde se encontra e como dá a ficcionalidade na obra de Euclides) todas as
demais definições confluem para o mesmo ponto: Vieira e Euclides estão nas histórias das
literaturas brasileira e portuguesa pela qualidade retórica do texto.116 Ora, se o princípio finalista
dos gêneros miméticos é a imitação, a ficcionalização, a autonomia do texto em relação ao seu
referente e, por sua vez, a construção de uma linguagem que não seja persuasiva, o que

113
(MERQUIOR 1979:196)
114
(COUTINHO 1981:82)
115
(CANDIDO 2004:83)
116
Talvez pudéssemos evocar para essas obras o conceito formalista de literaturidade (literaturnost),
desenvolvido por L. Jacobinski, em 1916, no ensaio “Conclusões sobre a teoria da língua poética”. Para
este teórico, a literaturidade perseguia antes como o efeito de estranhamento da linguagem construía a
percepção artística do que os princípios finalistas da poesia: a mímesis. É dentro desse princípio que
Jacobinski e os demais formalistas irão definir a literaturidade a partir da confrontação entre a língua
poética e a língua prática, cotidiana, que tem como fim a comunicação interpessoal. “’Os fenômenos
linguísticos devem ser classificados do ponto de vista do objetivo visado em cada caso particular pelo
sujeito falante. Se os utiliza com objetivo puramente prático da comunicação, ele faz uso do sistema da
língua quotidiana (do pensamento verbal), na qual as formas linguísticas (os sons, os elementos
morfológicos, etc.) não tem valor autônomo e não são mais que um meio de comunicação. Mas, podemos
imaginar (e eles existem realmente) outros sistemas linguísticos, nos quais o objetivo prático recue a um
segundo plano (ainda que não desapareça inteiramente) e as formas linguísticas obtenham um valor
autônomo’”. (Apud EIKHENBAUN 1978:9). No entanto, há um ruído na aplicabilidade do conceito de
literaturidade à prosa (diverso do que ocorre nas formas poéticas). Na prosa, as palavras não têm
autonomia, pois, enquanto instrumento, estão subordinadas à construção de um sentido: construção linear
calcada em cima de ideias, críticas, fatos e análises. Todo narrador (indiferente de sua prosa ser ficcional
ou não), ao tempo que narra, escolhe, analisa e interpreta. Diverso da poesia, onde o processo de
decifração da palavra e do verso só se dá pelo processo de recifração. Ou, como bem diz Octávio Paz,
“[...] o sentido do poema é o próprio poema”, pois “há muitas maneiras de dizer a mesma coisa em prosa;
só existe uma em poesia” (PAZ 1976:48).
O que é e o que não é literatura?, Página 33

encontramos nos textos de Vieira e de Euclides é exatamente o inverso (sem esquecer que ambos
não pretendiam, se pensarmos, aqui, pelo viés da intencionalidade, subordinar os seus textos a
nenhum gênero ficcional. Muito pelo contrário). No caso de Vieira, sua obra segue o plano do
discurso apregoado pela oratória: persuadir e comover. Para tal, ele se instrumenta nos preceitos
da retórica clássica: o “exórdio” ou “princípio” (o começo) do discurso, que é constituído de
duas partes: a “proposição” dos temas e a sua “divisão” (as partes que vão constituir o discurso);
segue o “desenvolvimento” do discurso, que é formado tanto pela “narração” quanto pela
“argumentação” (esta podendo encerrar o silogismo, o paralogismo, o paradoxo e exemplos); e,
por fim, a “peroração”, “conclusão” ou “epílogo” do discurso. Assim, se o discurso, enquanto
oratória, se pauta pelo bem dizer (bene dicere) e pelo persuadir (persuadere), todo esse bem
dizer e todo esse persuadir têm como fim ensinar (docere), agradar (delectare) e comover
(movere).117 No caso de Euclides, se a qualidade retórica do texto é indiscutível, não podemos
acusá-lo nem de ter construído um pacto ficcional com o leitor (toda a forma tripartite da obra
segue uma lógica que se subordina aos princípios científicos do seu tempo — o meio determina a
degradação da raça, e ambos explicam as causas do evento a ser narrado: a Guerra de Canudos),
muito menos de perseguir, em sua obra, o “acontecível”.
Assim, tanto Vieira quanto Euclides escreveram obras em que podemos acusar, em
determinados momentos da sua prosa, uma linguagem carregada de significados e de
significações (particularmente no uso de tropos), mas que não respondem ou se inscrevem nos
demais tópicos que, em conjunto, perfazem o grosso dos gêneros textuais que compõem as
histórias da literatura. Neste caso, tomá-los como literatura “por semelhança de família” (no
caso, pela qualidade retórica do texto) é subordinar os seus atos ilocutivos (enunciados sérios,
literais ou não literais) aos atos locutivos ou perlocutivos. E tais atos ou se atem ao texto (a
qualidade retórica) ou aos seus efeitos (a persuasão e a comoção). Logo: (a) a substância
específica dessas obras não é a mimeses, nem a fictio; (b) esses livros não têm uma posição ex-
cêntrica em relação aos fatos, pessoas e valores que povoam a realidade empírica. Logo, não são
fatos e pessoas puramente textuais; (c) o pacto de intencionalidade estabelecido com o leitor não
é o do fingimento, mas o do critério de verdade e realidade prevalecentes em seus tempos: seja
ela a “verdade” perseguida pela ciência e a filosofia, seja a da teologia ou das Escrituras. Se, por
ventura, esses autores faltam com a verdade nos seus textos, eles incorreram na mentira, e não na

117
Ver MOISÉS (1992:152-155); CARMONA (2003); TRINGALI (1988)
O que é e o que não é literatura?, Página 34

criação ficcional, pois, como vimos, o avesso da verdade é a mentira; já o avesso de fingir é
“desenganar”, no sentido de “esclarecer”. Por fim, o único elo entre essas obras e os gêneros
literários seria a suposta qualidade retórica dos seus textos, as supostas propriedades sintáticas ou
semânticas específicas. Porém, essas não são necessariamente propriedades (específicas) da
literatura, são procedimentos que podemos encontrar ou não em um texto literário, como também
em obras filosóficas, religiosas e de ciências exatas. Por fim, (d) um texto literário carregado de
significados e significações exclui do seu horizonte a “semelhança mais semelhante”, que é o
estatuto do “reconhecimento” (tanto os Sermões, de Vieira, que se decifram pela teologia e a
Bíblia, quanto Os Sertões, de Euclides da Cunha, que se calçam nas teorias cientificistas que lhe
eram contemporâneas, são exemplos de “reconhecimentos”, e não de “singularizações”).
Desse modo, se as obras citadas no início deste ensaio compartilham dos mesmos genes,
obras como a de Vieira e Euclides não trazem marcações que as inscrevam na mesma família em
que Memórias póstumas de Brás Cubas e Invenção de Orfeu participam. Por se nutrirem de um
referente, mas não se subordinarem a este (e aqui a dicotomia verdadeiro/falso perde
completamente o seu sentido), as obras de Machado de Assis e de Jorge de Lima terminam por
“neutralizar”118 o modo como os demais discursos (sejam eles científicos, sejam religiosos ou
morais) buscam tematizar ou apreender a realidade empírica. Se Machado e Jorge de Lima
fingem as suas asserções, o mesmo não podemos dizer de Vieira e Euclides. Daí porque a
dicotomia verdadeiro/falso poder ser aplicado aos seus textos, mas não aos de Machado e Jorge
de Lima.
Concluindo: como afirmamos no início deste artigo, os estudos sobre o que é e o que não
é literatura pecam por querer definir a literatura apenas por um dos seus aspectos: ou centrando-
se no texto ou na sua recepção. É o que faz Searle, ao defender que cabe ao autor decidir se a sua
obra é ou não ficção e, ao leitor, a decisão de afirmar se uma obra é ou não literatura. No
primeiro caso, a palavra ficção é tomada por Searle apenas no sentido de “criação” (daí porque
ele desconsiderar o leitor) e não em sua dupla acepção: a de “criação” (sentido próprio) e a de
“ação de fingir” (sentido figurado). Ora, como quem finge, finge para alguém, tomar a ficção
também no seu sentido figurado já implica na construção de um pacto com o eleitor. Logo, não é
só o autor que delimita a ficcionalidade do seu texto, mas também o leitor, que é convidado a
participar desse pacto ficcional. Sem esse pacto entre autor e leitor, a ficcionalidade não se

118
Ver LIMA (2002:666)
O que é e o que não é literatura?, Página 35

perfaz e, por extensão, os gêneros que formam as histórias da literatura e que são calçados na
ficcionalidade: a poesia, a epopeia, o drama, o romance, o conto e a novela. Gêneros estes que só
poderão ter as suas “naturezas” apreendidas e tomadas como partes de uma mesma família se
consideramos o fenômeno como um todo sistêmico: 1. A imitação e a ficcionalidade do texto
(compondo a unidade dos gêneros literários) e, como parte dessa ficcionalidade, a recepção de
quem o lê perfazendo o pacto ficcional; 2°. A intencionalidade do autor (o estatuto histórico-
temporal da obra e, por desdobramento, as marcações dadas pelo autor empírico e que delineiam
a sua recepção); 3°. A verdade e a realidade textuais (o caráter imanente do texto); 4°. Os
significados e significações do texto (sua condição artística e transhistórica). Mesmo sabendo
que, isoladamente, cada um desses aspectos sejam variáveis conceituais (podemos encontrar
cada um desses aspectos nos demais gêneros textuais, como vimos no caso de Vieira e Euclides),
em conjunto (e só em conjunto) eles se constituem (e é o que tentamos demonstrar ao longo
deste artigo) em uma invariável. Invariável esta que está presente tanto nos gêneros que
compõem a poética clássica (o épico, o lírico e o dramático) e medieval (a novela de cavalaria)
quanto nos que surgiram a partir do Renascimento (o romance, o conto e a novela).

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