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2017­5­24 Heidegger e a linguagem | Academia Brasileira de Letras

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Heidegger e a linguagem

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Antonio Olinto (/academicos/antonio­olinto)

A presença de Martin Heidegger na filosofia do século passado obrigou o homem de nossa época a alterar posições e repensar diretrizes. Se o existencialismo de
Kierkegaard possuía um caráter de angustia intensamente exprimida (e talvez por isso mesmo fosse mais intensamente existencialista), faltava­lhe um método para
que suas idéias se enfeixassem num sistema ao agrado das correntes filosóficas normais.

O pensamento de Kierkegaard não precisava de um sistema que o abrigasse ou promovesse. Já para Heidegger, ligado a Husserl ­ o herdeiro do ponto de vista
metodológico de Kant e Descartes no plano próximo, e de Aristóteles e Platão no longínquo ­, era necessário, antes dos primeiros passos, o estabelecimento de um
método que pudesse culminar num sistema de pensamento. Para isso, tinha necessidade até de inventar uma terminologia, de criar palavras próprias, capazes de
exprimir o que sabia existir de novo em seu esforço filosofante.

Foi tão longe nesse propósito (mais do que James Joyce na literatura) que provocou duas reações: ou não o entendiam ou achavam ridículas suas invenções
vocabulares. Acontece, no campo da filosofia mais do que no das artes, um imediato enrijecimento de idéias desenvolvidas por filósofos anteriores, de modo que,
diante de uma novidade, pode o professor comum de filosofia, mesmo em grandes centros universitários como os da Alemanha, apegar­se a seus acontecimentos
mais antigos e recusar a novidade.

Haveria verdadeira novidade em Heidegger? Do ângulo de quem procura o "sentido do ser", sim. Porque a simples proposição de que o "Da­Sein" (o "ser­ai") seja
apreendido em sua ontologicidade existente, do ser enquanto ser do ente, em sua relação com o "estar­no­mundo", faz surgir um lado novo do problema.

Em seu trabalho "Uber den Humanismus", diz Heidegger: "a essência estática do mundo repousa na ek­sistência, que se apresenta distinta da existência pensada
de um ponto de vista metafísico". Acrescenta que essa existência é o que a filosofia da Idade Média concebia como actualistas: o que Kant chamava de
"objetividade da experiência"; Hegel, de "idéia da subjetividade absoluta"; e Nietszche de "eterno retorno do mesmo". Para Heidegger a ek­sistência só tem sentido
no "universo que a circunda", no "mundo", no fato de que o ser de seu ente, o seu ser, é um "ser­ai".

As plantas e os animais, privados de linguagem, permanecem no "seu universo" mas "sem mundo", isto é, sem o enlarguecimento consciente que a linguagem ao
mesmo tempo registra e permite.

O problema da linguagem é, por isso, muito importante para Heidegger (como o tem sido, desde a filosofia grega, para todos os pensadores sistemáticos). Em
Heidegger, a linguagem não é apenas um meio de expressão (ou, como ele mesmo diz, "o meio de um organismo se manifestar").

Quando afirma que "a linguagem é a morada do ser" é porque acredita que o que existe antes de tudo é o Ser, que o pensamento pode pro­mover a relação do Ser
com a essência do homem sendo e que a linguagem é parte decisiva desse encontro. Ou melhor, talvez o verbo "pro­mover" não explique bem a tese de Heidegger
no caso porque o pensamento para ele não é a "relação", nem a produz, nem a fabrica; apresenta­a, sim, como uma oferenda ao Ser, e, no processo dessa oferta,
o Ser chega à linguagem.

Não preciso acrescentar que, em filosofia ou fora dela, a linguagem nem sempre significa apenas a linguagem falada, o uso de palavras na fala ou na escrita. Mas,
qualquer que seja a direção do pensamento ­ na sua tomada de contato com o mundo, com seu "universo circundante" ­, existe um ponto interno de
comunicabilidade que comumente assume a forma da palavra.

O pensamento puro, como tal, isto é, sem palavras, o pensamento que fosse apenas conjunto sensorial (visual, táctil, gustativo) poderia, em tese, ir tão longe como
o que tem a ajuda das palavras, mas, se a elas chegamos, foi porque, nessa oferenda do pensamento ao Ser, culminou um longo processo da luta do homem em
busca de si mesmo.

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A identidade entre a procura do pensador e a do poeta (poeta aqui significando todo aquele que cria, que fabrica um produto de beleza, com os elementos de
qualquer tipo de linguagem, vocabular ou não), essa identidade tem aproximado, ao longo dos tempos, homens de feituras diversas, todos ligados ao pensamento
e à ação.

A ação (inclusive a que é mostrada na tragédia, na epopéia, no drama, no romance contemporâneo) está intimamente unida ao Ser "que está sendo", ao Ser
existente, ao ek­sistente que "está­ai". Há um perigo (tanto para quem concebe e fabrica como para quem examina e julga obras de arte) que domina grande parte
do pensamento ocidental: é a divisão lógica, a que costumamos fazer entre "sujeito" e "objeto", divisão criada por uma necessidade de tornar a linguagem um
denominador comum de sentimentos que se comunicam, de vontades que se manifestam, de ações que se anunciam, de dramas que se revelam, de fábulas que
se elaboram, de romances que se registram.

A necessidade da separação entre "sujeito" e "objeto" pode levar o criador ou o examinador a um extremo perigoso: o de provocar um exagerado afastamento
entre o homem e o mundo exterior, entre o Ser do homem e a sociedade e/ou comunidade circundante, num alheamento que se transforme em alienação. Nesse
combate contra o isolamento do Ser faz­se mister que a linguagem se liberte de suas prisões gramaticais (toda linguagem tem, helás, sua gramática) tarefa
reservada ao pensador e ao poeta.

É claro que, no sentido comum da palavra, o pensamento de Heidegger também leva a uma angústia, bem parecida com a que atormentava Kierkegaard. Desde
que Heidegger chegou ao ponto de considerar que o ser mesmo da existência é "ser­para­a­morte", plantou a angústia no centro de sua filosofia. A "angústia diante
da morte" cria, segundo o filósofo, este ser inautêntico, o ser cotidiano, que não é pessoa alguma, não é ser algum, não constitui uma ek­sistência, porque está
divorciada do próprio esclarecimento do conhecimento de si mesmo, por causa do terror que a idéia da morte causa em cada um.

A fuga à cotidianidade acaba sendo, por isso, uma preparação para o encontro de si mesmo. Nesse ponto a filosofia de Heidegger obriga o pensamento a buscar
saídas para sua temporalidade. Das páginas que o filósofo escreveu sobre a linguagem pode­se extrair o germe de uma estética geral ­ e de uma estética do
romance em particular ­ já que a linguagem elabora, para Heidegger, a história e a estória do ser e se "pensar é o compromisso do Ser", este compromisso é um
"compromisso na ação", um compromisso que existe "para e pela verdade do Ser".

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro ­ RJ) em 07/08/2002

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro ­ RJ) em, 07/08/2002

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