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1. Introdução
O que move esta pesquisa é a necessidade de demonstrar que o ensino de
compreensão de textos não pode se eximir de orientar o aluno a reconhecer, quando for
o caso, a presença de processos intertextuais e de fazê-lo atentar para as funções que as
intertextualidades podem desempenhar na construção da coerência. Os tipos de
intertextualidade devem ser examinados em gêneros do discurso diversificados, pois o
modo como participam dos textos depende não somente dos propósitos do locutor, mas
também de outros fatores, dentre eles, as características de cada gênero. Este capítulo se
restringe, no entanto, aos gêneros que se compõem de animações conhecidas do grande
público. Tendo sempre em conta o contexto sociodiscursivo em que as animações são
planejadas e consumidas, discutimos aqui conceitos e classificações pertinentes à
intertextualidade.
O objetivo deste capítulo é, assim, apresentar uma proposta de abordagem das
relações intertextuais em aulas de língua portuguesa, tomando como exemplo gêneros
de animação. Para isso, distribuímos os comentários em duas seções: a primeira se
concentra na definição das noções fundamentais para esta proposta – texto,
intertextualidade e animação; a segunda se dedica à explicação dos critérios de análise
que sugerimos para o tratamento da intertextualidade. No contexto das animações,
povoado de figuras em movimento, numa criativa profusão de imagens, de formas e de
cores, o fenômeno da intertextualidade encontra um nicho apropriado. É através da
intertextualidade que um texto é mencionado em outro, de maneira mais, ou menos,
explícita.
3. A intertextualidade em animações
Segundo Nobre (2014), os processos intertextuais podem ser vistos, do ponto de
vista constitucional, por três ângulos:
1) um composicional, que define se a relação intertextual se dá por copresença ou
por derivação;
2) um formal, que avalia o modo como o texto original é retomado, se por
reprodução, adaptação ou menção;
3) um referencial, que aborda o grau de explicitude/implicitude da remissão
textual.
Comecemos observando as animações pelo critério composicional e verificando
como ocorrem as situações de copresença, que acontecem quando são usados
fragmentos de um texto em outro. Isso significa que, na composição de um texto, haverá
frações dele que correspondem a remissões a personagens ou a traços deles, a trechos de
fala de outros textos, ou a outros aspectos multimodais que evocam outros textos.
Imaginemos, por exemplo, um episódio do desenho Pica Pau em que ele se traveste de
Chapeuzinho Vermelho (por meio de elementos imageticamente característicos a esta
última personagem, no caso, capa e capuz vermelhos e cesto com suprimentos para a
avó):
1
Genette (2010); Piègay-Gros (2010); Sant’Anna (2007); Koch (2002; 2004); Koch, Bentes e Cavalcante
(2007) Cavalcante (2008a; 2008b; 2012); Cavalcante e Brito (2010; 2012); Rifatere (1989); Forte (2013).
Figura 3: Pica Pau travestido de Chapeuzinho Vermelho
Em outro episódio do desenho animado Pica Pau, ele esfrega uma lâmpada
maravilhosa no intuito de solicitar a realização de três desejos a um gênio. Com isso, faz
uma alusão a diversos contos d’As mil e uma noites, especialmente o conto Aladim).
Essas alusões colaboram especialmente para a promoção do humor nesses gêneros de
animação.
Além dessas copresenças, podemos encontrar nas animações, dentro do
parâmetro da composicionalidade, as situações de derivação, que se dão quando o texto
original gera um outro texto, porque ocorre uma espécie de transformação de um texto
em outro – é o que chamamos de paródia. Os exemplos dados anteriormente, de longas-
metragens em animação, inspirados em clássicos da literatura universal, são todos
compostos por derivação, pois o texto original de que partiram sofre modificações de
toda ordem. Nem todo o conteúdo apresentado consta nas versões originais, ou seja, há
diálogos e canções que entram na constituição das animações que inexistem nas
histórias originais, sem contar que alterações no enredo são suscetíveis de ocorrer em
decorrência do propósito mesmo das animações. Em geral, encontram-se mais casos de
derivação em longas-metragens e mais casos de copresença distribuídos em episódios
de desenhos animados.
Um exemplo representativo é o filme A Bela Adormecida, da Disney, uma
adaptação do conto clássico infantil, cuja versão mais divulgada é a dos Irmãos Grimm.
A personagem principal, uma princesa, é enfeitiçada por uma bruxa e cai num sono
profundo, até que o feitiço é quebrado por um príncipe encantado, que a desperta com
um beijo. O filme de desenho animado reproduz a história original.
Figura 4: Cartaz do filme A bela adormecida, dos estúdios Disney
Se sairmos do parâmetro composicional e analisarmos a partir do parâmetro
formal, diremos, seguindo Nobre (2014), que três são as maneiras possíveis de
retomada de elementos originais: reprodução, adaptação e menção. A reprodução
ocorre quando, na intertextualidade, não existem alterações em relação ao original. Em
textos escritos, é o caso das citações diretas. A adaptação, por sua vez, acontece quando
o conteúdo do original é preservado, porém alteram-se sintaticamente os trechos
remetidos. Já na menção, verifica-se a ausência de trechos originais (reproduzidos ou
adaptados), todavia ocorre a relação intertextual por meio da alusão ou da referência de
um texto mediante um elemento que lhe é característico (nome do autor, da obra, de
personagens marcantes, etc.). As copresenças por reproduções, adaptações e menções
podem também ajudar a confirmar que um texto está sendo derivado de outro, conforme
defende Faria (2014).
Filmes de animação, como A Bela Adormecida e muitos outros da Disney,
quanto ao parâmetro formal, são adaptações por excelência, uma vez que a modalidade
do texto original (seja ele prosa, poesia, teatro, etc.) acaba recebendo uma nova
linguagem: a cinematográfica. As adaptações ocorridas são de diferentes ordens, dentre
as quais se destaca a alteração na extensão, na modalidade e, eventualmente, no enredo
das histórias originais. Tais modificações de conteúdo não são exclusividade da
passagem do original para a animação: histórias como A Bela Adormecida, Branca de
Neve e os sete anões, A princesa e o sapo, Cinderela, Aladim ou Rapunzel tiveram sua
origem na oralidade, e ao longo dos séculos foram passando por diversas alterações,
deixando aos poucos de ser histórias de cunho popular para cumprir uma função lúdico-
pedagógica, voltada para o público infantil. Outras histórias que sofrem recorrentes
adaptações para a linguagem de animação já têm sua origem na prosa literária, algumas
aqui já citadas.
Ainda que a grande maioria das relações intertextuais em animações, em seu
parâmetro formal, ocorram por meio da adaptação, é possível encontrarmos também
reproduções e menções. Trechos famosos de reprodução são as frases: “Espelho,
espelho meu...”, “Abra-te, sésamo!”, “Um por todos e todos por um!”, dentre outros,
que ocuparam lugar na tradição e permanecem praticamente inalterados. As menções,
por sua vez, são expedientes bastante comuns em desenhos animados: personagens
clássicos, como Branca de Neve, Chapeuzinho Vermelho, Robin Hood, Dom Quixote,
etc., ora fazem uma aparição no universo do desenho, ora são objeto do travestimento
de outras personagens, como acontece nos filmes do Shrek.
Já analisamos as animações pelos parâmetros composicional e formal.
Veremos, por último, como podem ser vistas segundo o parâmetro referencial, que diz
respeito ao grau de explicitude ou implicitude das relações intertextuais. Em animações,
geralmente, nos casos de derivação de um texto em outro, costuma-se dar a referência
do texto original. Nos casos de copresença de trechos de um texto em outro, é muito
raro, em decorrência da natureza das animações, tornar explícitas as fontes, cabendo ao
público o reconhecimento ou não da relação intertextual e da autoria. Explicando
melhor, seria um contrassenso interromper o enredo da animação e informar que a frase
ou expressão mencionadas são da autoria de alguém.
Para concluir, podemos refletir sobre como as animações poderiam ser vistas a
partir, não de um aspecto constitucional, como analisamos até agora, mas a partir de
um aspecto funcional, examinando se as intertextualidades usadas no texto têm uma
função séria, ou lúdica, ou satírica, ou irônica etc. (GENETTE, 2010).
De acordo com Nobre (2014), a distinção entre lúdico e satírico estaria no grau
de deformidade do texto original relativo ao propósito do texto. No regime lúdico,
haveria desvio considerável, mas com intuito jocoso, cômico; no regime satírico haveria
desvio extremo, e o intuito seria a crítica, o sarcasmo, a ridicularização. É conveniente
ressaltar, todavia, que a distinção entre o lúdico e o satírico é sempre muito difícil de ser
estabelecida, pois o que é lúdico para determinado indivíduo pode ser satírico para
outro. Além disso, as duas funções podem coabitar em um mesmo texto. O mais
importante é que o aluno seja capaz de identificá-las e de compreender o papel delas
para os propósitos dos processos intertextuais no texto.
Animações clássicas como Branca de Neve e os sete anões, Cinderela ou A bela
adormecida teriam função séria, pelo desvio mínimo e pelo grau de seriedade. Já
animações como Enrolados (cujo enredo é inspirado em Rapunzel, como se pode
constatar, abaixo, pela imagem do filme) ou Deu a louca na Chapeuzinho Vermelho
poderiam ser consideradas como tendo função lúdica, pois alteram em demasia o
enredo, porém com intuito jocoso, numa espécie de jogo com as possibilidades de
alteração do enredo.
4. Conclusão
Neste capítulo, apresentamos uma proposta de análise das relações intertextuais,
demonstrando como na produção de filmes de animações muitas vezes esse recurso é
utilizado. Reconhecer o uso de estratégias intertextuais é o procedimento inicial para
uma série de atividades que permitem melhor compreensão desses textos e estimulam os
alunos a realizar a leitura das fontes, propiciando formação de fecundo repertório
cultural. De fato, para que seja possível identificar traços intertextuais quanto aos
parâmetros composicional, formal, referencial e funcional – discutidos ao longo deste
texto –, muitas vezes se faz necessário voltar aos textos originais ou comparar as mais
diversas versões de uma mesma história, verificando as semelhanças e as diferenças.
Aos professores, cabe, após se aprofundarem nas possibilidades de exploração dos
recursos intertextuais, selecionar diferentes gêneros do discurso presentes no cotidiano
dos alunos, tais como filmes de animação, vídeos ou desenhos animados nos quais
estratégias intertextuais utilizadas sejam para eles de fácil reconhecimento. Cremos que
práticas pedagógicas dessa natureza permitem também o acesso, quando possível, às
fontes de inspiração das animações e, desse modo, o uso de animações, sejam elas
longas-metragens ou episódios de desenhos, poderá ser considerada em contexto
escolar.
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