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P A R T E

HIPÓTESE PROSPECTIVA
1

0 SISTEMA DE RESPOSTA SOCIAL

1. INTRO DUÇÃO

Partimos da hipótese de que a abrangência dos processos


m idiáticos, na sociedade, não se esgota nos subsistemas de produ­
ção e de recepção. Esses dois ângulos da midiatização da sociedade
são fundados na já tradicional descrição do processo de comunica­
ção como unia relação entre emissor e receptor (através de um
“canal” —que seriam os meios de comunicação). Essa descrição
tem sido largam ente criticada e pode se considerar superada por
perspectivas processuais m uito mais flexíveis e complexas. Entre­
tanto, continua estranhamente presente na percepção de senso
comum: emissores e receptores (mesmo quando, em situações de
“interatividade”, possam trocar seus papéis) parecem responder,
separadamente ou em conjunto, por todos os processos midiáticos
existentes na sociedade.

mmhção
A SOCIEDADE ENFRENTA SUA MÍDIA

Correlatamente, elabora-se um dualismo entre “m ídia” e “so­


ciedade”1, em que a primeira assume o papel “ativo” de geradora de
mensagens, e a segunda, na melhor das hipóteses, enfrenta ativa­
mente aquelas interferências, mas sempre na posição de “recebedo-
ra”. Pretendemos trazer, no presente estudo, uma perspectiva
redirecionadora, contrapondo à visão “informacional” (unidirecio-
nal) uma posição decididam ente com unicacional. Discordamos da
perspectiva de que só agora, com as redes informatizadas, verda­
deiros processos bidirecionais ocorrem. Ao invés disso, desde as
prim eiras interações m idiatizadas, a sociedade a ge e produz não só
com os meios de comunicação, ao desenvolvê-los e atribuir-lhes
objetivos e processos, mas sobre os seus produtos, redirecionan-
do-os e atribuindo-lhes sentido social. Ao fazer isso, chega inclu-
sive, pa rtin do das prá tica s de uso, a desenvolver novos objetivos e
funções para as tecnologias inventadas a serviço inicialm ente de
pontos de vista relacionados a produção/emissão.
Propomos, assim, desenvolver a constatação de um terceiro siste­
ma de processos m ídiaticos, na sociedade, que completa a processuali-
dade de midiatização social geral, fazendo-a efetivamente funcio­
nar como comunicação. Esse terceiro sistema corresponde a atividades
de resposta produtiva e direcionadora da sociedade em interação com
os produtos midiáticos. Denominamos esse terceiro componente da
processualidade m idiática “sistema de interação social sobre a
m ídia” ou, mais sinteticamente, “sistema de resposta social”.
Certamente, não se pretende atribuir ao sistem a as caracterís­
ticas de “interatividade” tal como têm sido formuladas em rela­
ção às redes informáticas. Diversamente, trata-se (em geral e com
maior freqüência) de respostas diferidas e difusas. Na verdade,
mesmo nas redes informatizadas, uma grande parte (e talvez a
mais importante) das interações é também dessa ordem, diferida
e difusa, como, aliás, é próprio da midiatização. Em grande parte,
a midiatização da sociedade corresponde a viabilizar acesso posterior

1. Esse dualismo é incoerente por diversas razões. A principal é que não se pode afirmar uma
separação entre parte (a mídia) e todo (a sociedade).
0 SISTEMA DE RESPOSTA SOCIAL

e a am pliar o escopo e a abrangência das mensagens, tornando-as


d iferid a s e difusas. Nessa perspectiva, os casos de interatividade
direta ou “estrita”2, de tipo conversacional, seja por rede infor­
m ática, seja por telefone, por correspondência escrita ou por con­
versação pessoal, podem ser considerados como casos particulares
(certamente importantes e produtivos) dos processos gerais de
interação m idiática da sociedade. Na internet, o funcionamento
“em base de dados” é, por definição, diferido e difuso. Além disso,
seria preciso d istin guir da interatividade entre usuários a “intera­
tividade” com a m áquina ou com a rede —dois processos bem
mais diferenciados do que habitualm ente se assinala.
* **

Iniciei em 2001 uma pesquisa sobre crítica da m ídia, baseado


na hipótese prospectiva de existência de um terceiro subsistema,
ao lado dos habitualm ente reconhecidos, o subsistema de produ­
ção e o subsistema de recepção. Como estava centrado no exame
das possibilidades de crítica da m ídia desenvolvido pela própria
sociedade, atrib u í a esse terceiro componente dos processos m i-
diáticos a denominação “sistem a3 crítico-interpretativo”.
Essa denominação, assim como algumas qualidades hipotéticas
que relacionei a tais processos, acabou por evidenciar dificuldades

2. Escolhemos qualificar como de "interatividade estrita" as ações de retorno direto e pontual


do receptor para o emissor. Uso a expressão "interatividade social ampla" para falar da circu­
lação com retorno diferido e difuso - ou seja, aquela na qual as informações, circulam na
sociedade, tornando-se de domínio comum (em determinado âmbito) e, nesse nível, podendo
chegar ao emissor original como retorno. Lembramos que, no processo sotial-contínuo, a
idéia de "emissor original" é uma fórmula simplificadora, pois não há "primeira rflensagem”.
O emissor de um programa de televisão, por exemplo, já está tentando responder a solicita­
ções ou lacunas do próprio sistema em circulação. Expressamos antes (ver Braga, 2000a) que,
para nossa percepção do trabalho crítico-interpretativo da sociedade, essa é a interatividade
mais relevante. Trata-se de um procedimento frequente de sistema social de resposta.

3. A s expressões "sistem a" e "subsistem a" são intercambiáveis - um sistema pode sempre
ser parte de outro, mais abrangente (logo, um subsistema deste). Um subsistema, ao ser
observado enquanto espaço de abrangência em relação a seus componentes internos, pode,
por comodidade, ser referido como o sistema em estudo.

mmhção
A SOCIEDADE ENFRENTA SUA MÍDIA

conceituais e operacionais. A prim eira delas foi a de perceber que


alguns modos e processos de “fala sobre a m ídia” (que estariam
intuitivam ente contidos naquele subsistema) não apresentavam
características propriamente críticas.
Em uma fase inicial da pesquisa, para enfrentar essa dificuldade
e para ser coerente com a am plitude necessária de meu hipotético
subsistema em fase de construção conceituai, fui levado a uma pro­
posta de abrangência muito larga da expressão “crítica”. Esse alar­
gamento seria de algum modo assegurado pela complementação
“crítico-interpretativa”, em que o “interpretar” respondería pelos
ângulos nos quais o “criticar” não comparecesse. Mas percebe-se
que a expressão se tornava tão abrangente que tendia a esvaziar a
palavra “crítica” de seu vigor histórico-conceitual. Por exemplo,
em determinado momento cogitei analisar revistas do tipo Contigo
ou T i-Ti-Ti, que se inscrevem potencialmente em meu objeto de
pesquisa pela característica de “falar sobre m ídia e seus produtos”.
No sentido inverso, mas dentro da mesma dificuldade de abran­
gência, Fernando Andacht apresentou no GT Comunicação e So­
ciabilidade da Compôs (2003) a objeção de que eu adotava, com o
conceito de agonística, um critério qualitativo exigente, para a apre­
ciação de falas em geral sobre a m ídia, que só seria pertinente para a
crítica acadêmica. Voltaremos a essa questão no capítulo final.
E certo que, definidos nossos termos, é academicamente lícito
usar as palavras no sentido específico que nos pareça mais adequa­
do, mas é preciso reconhecer que um uso excessivamente idios­
sincrático não favorece o debate e pode representar uma exigência
descabida e improdutiva. É melhor ficar o mais perto possível dos
usos consagrados.
Uma segunda dificuldade decorreu da percepção de que o sis­
tema de resposta era responsável pelo retorno da sociedade ao
sistem a produtivo, direcionando, em parte, a própria produção4.

4. Essa percepção, na verdade, foi fundante para a pesquisa, uma vez que esta decorreu de
inferências feitas no artigo "Interatividade & recepção" (Braga, 2000a), em que eu constatava
uma interacionalidade social ampla que garante o retorno das leituras e interpretações para
o sistema de produção, independente da interatividade estrita, de tipo conversadonal.
0 SISTEMA DE RESPOSTA SOCIAL

Esse processo pareceu-me tão relevante que, em alguns momen­


tos, usei a denominação “sistem a de retorno” para o componen­
te. Entretanto, se parece mesmo ser verdade que o “falar sobre a
m íd ia” gera informações de feedback , pelo menos duas restrições
podem ser feitas à generalidade daquela afirmação. A lguns pro­
cessos ocorrentes no subsistem a, ainda que possam resultar em
informações de retorno, não são ativados expressamente com esse
objetivo, sendo voltados antes para o desenvolvimento de com­
petências usuárias5. Além disso, um a parte dos processos de
retorno não tem relação com a crítica nem com as ações sociais
de “falas sobre a m íd ia” (o retorno por m edida de audiência, por
exemplo, não parece ter semelhança com os processos que me
interessam).
A terceira dificuldade, finalm ente, refere-se à crítica feita por
M ichael Hanke, professor da UFMG, sobre artigo que apresentei
em 2002 no GT Comunicação e Sociabilidade (Braga, 2003).
Hanke objetava não se caracterizar um a articulação “de sistem a”
entre as diversas categorias de observáveis que eu propunha para
m inha pesquisa, então em fase inicial. Embora eu continuasse a
ter convicção da organização sistêm ica de um terceiro componen­
te processual, não podia negar a constatação feita, no que se refere
aos observáveis referidos na pesquisa, em sua m aterialidade.
Apesar das dificuldades assinaladas, entretanto, existiam con­
dições conceituais suficientes para iniciar o trabalho de observa­
ção —o que foi feito sobre um corpus de m ateriais empíricos carac­
terizados como “falas sobre a m íd ia”, dentro das categorias
expressas pelo artigo então apresentado ao GT. O refinamento
conceituai dependia justam ente do próprio trabalho d a investi­
gação, um a vez que o artigo de 2002 expressava como primeiro
objetivo da pesquisa “desenvolver a construção do conceito de

5. É importante, então, não confundir "resposta" e "retorno". Nem toda resposta retorna
eficazmente ao interlocutor - o que, aliás, podemos experimentar no próprio processo con-
versacional, em decorrência de limitações da escuta, da pertinência ou da articulação de
objetivos.

munirão
A SOCIEDADE ENFRENTA SUA MÍDIA

subsistema crítico-interpretativo como um componente ativo da


interação sociai-m idiática”.
Sobre a base de minhas reflexões anteriores e dos fundamentos
teórico-metodológicos da pesquisa, eu dispunha, para a busca
, desse objetivo, do trabalho de investigação propriamente dito,
em que previa examinar casos concretos de ações do sistem a, e do
desafio caracterizado pelas dificuldades acima expostas, que se de­
marcaram, assim, como estímulos à reflexão e sobretudo ao trabalho
de investigação.

2. 0 SIST EM A DE INTERAÇÕES SOCIAIS SOBRE A M ÍD IA


(RESPOSTA SOCIAL)

O presente capítulo e o próximo tentam cum prir o primeiro


objetivo da pesquisa, de caracterização do sistema — ao mesmo
tempo em que fazem correções na hipótese prospectiva inicial,
para ajustá-la aos novos dados e reflexões —, reajustando a denomi­
nação e o desenho do terceiro subsistema. J á não se trata de con­
ceituar um “sistema crítico”, mas sim a própria interação social
sobre a m ídia enquanto subsistema, do qual fazem parte, entre
outros, os processos críticos.
O exame dos m ateriais perm itiu constatar que eu estava
tomando a parte como se fosse o todo - os processos crítico-inter-
pretativos e os de retorno como se fossem o próprio sistem a das
falas da sociedade com e sobre sua m ídia. Isso terá ocorrido em
conseqüência de meu interesse de partida e devido à relevância
social daqueles processos. Confundia, então, algum as processuali-
dades específicas percebidas “a olho nu” (crítica, retorno) com o
sistem a no q u a l essas processualidades tipicam ente se desenvol­
vem. O patam ar sistêm ico, por sua vez, deveria ser mais neutro e
abrangente do que o w ish fu ll think ing6 me fazia ver —no sentido

6. A expressão refere o desvio de interpretação decorrente de o pesquisador estar interessado


em uma perspectiva e, em decorrência, "ver as coisas" segundo essa perspectiva, tendendo •
a confirmá-la. Literaimente, "pensamento desejante".
0 SISTEMA DE RESPOSTA SOCIAL

de que deve comportar diferentes processos, desde a crítica mais


severa até os elementos de fluxo comercial. Ou seja: seria certa­
mente tão complexo e m ultifacetado quanto os dois sistemas
“estabelecidos”, de produção e de recepção.
A constatação da variedade de processos, mesmo no pequeno
agregado de m ateriais empíricos investigado, assim como as
objeções e dificuldades acim a referidas, tom aram evidente que o
patamar sistêm ico se encontrava em um nível acim a daquele em
que eu o estava procurando inicialm ente. Para definir esse pata­
mar foi necessário caracterizar o denominador comum entre os
diferentes processos estudados, que ao mesmo tempo pudesse dar
conta de outros processos percebidos, como o exemplo referido
acim a, das revistas tipo Contigo. Sem surpresa, verificamos que
esse patam ar é o da própria interação social sobre a m ídia e seus
processos e produtos. O patamar é ao mesmo tempo evidente
(uma vez percebido como espaço de desenvolvimento dos proces­
sos em exame) e despercebido enquanto subsistem a indispensável em
articulação com a produção e a recepção.
O sistem a de interação social sobre a m ídia (seus processos e
produtos) é um sistem a de circulação d iferid a e difusa. Os sentidos
m idiaticam ente produzidos chegam à sociedade e passam a circu­
lar nesta, entre pessoas, grupos e instituições, impregnando e
parcialm ente direcionando a cultura. Se não circulassem , não esta­
riam “na cu ltu ra ”.
Essa circulação, entretanto, desenvolvida pelo sistem a de inte­
ração social sobre a m ídia, deve ser cuidadosamente distinguida de
outras perspectivas em que a expressão “circulação” se coloca.
Prim eiro, devemos d istin guir o subsistem a de interação social
sobre a m ídia do conceito m aterial, e mais próximo da perspecti­
va econômica, de circulação de bens, em que o que importa é o
fato de objetos m ateriais e/ou serviços serem fornecidos e recebi­
dos. Não se trata, portanto, da possibilidade de um livro passar
de mão em mão, ou de que músicas circulem pela internet. Im­
porta que várias pessoas, tendo lido o mesmo livro ou ouvido e

mmhção
A SOCIEDADE ENFRENTA SUA MÍDIA

apreciado um mesmo tipo de música e tendo algum a informação


sobre tais m ateriais, “conversem” sobre tais objetos e interajam
com base nesse estímulo.
A circulação no sentido econômico encontra-se entre a disponi-
bilização da produção e o acesso ao consumo. Na verdade, corres­
ponde ao fluxo que faz chegar das instâncias de produção ao espaço
do consumo. Eliseo Verón (1996, p. 20) considera que

los discursos de Ias llamadas "comunicaciones masivas" se


caracterizan por un proceso de circulación-consumo que se
podría ilamar instantâneo: Ia distancia histórica entre pro-
ducción y consumo es prácticamente nula.

Essa perspectiva enfoca, no processo de circulação, o fluxo


m aterial do “fazer chegar” o produto ao consumidor. Ora, quan­
do se trata de valores simbólicos, e da produção e recepção de
sentidos, o que im porta m ais é a circulação posterior à recepção, ou
seja, uma vez com pletada a processualidade mais diretam ente
“econômica” (ou comercial) do processo, do “fazer chegar”, os
produtos não são sim plesm ente “consumidos” (no Sentido de
usados e gastos”). Pelo contrário, as proposições “circulam ”,
evidentem ente trabalhadas, tensionadas, m anipuladas, reinseri-
das nos contextos mais diversos. O jornal pode virar papel de
embrulho e lixo, no dia seguinte, mas as informações e estím u­
los continuam a circular. 0 sistem a de circulaçã o in tera cion a l é essa
movimentação social dos sentidos e dos estím ulos produzidos
inicialm ente pela m ídia.
Uma segunda distinção necessária é não confundir o subsiste-
ma de interação social sobre a m ídia com o que é corriqueira-
mente chamado de “circulação m idiática”. Essa expressão aparece
com algum a freqüência referindo o fato de que determ inados
acontecim entos, idéias ou pessoas são veiculados pela m ídia.
Hoje, uma boa parte do esforço social de pessoas e instituições é
obter v isib ilidade, para ter “circulação m id iática”. Devemos
então d istin gu ir: o que a m ídia veicula (que se caracteriza, na
0 SISTEMA DE RESPOSTA SOCIAL

verdade, como sistem a de produção) e o que, tendo sido veicu­


lado pela m ídia, depois circula na sociedade. Estamos tratando
dessa segunda ordem de processos, a não ser confundida com a
prim eira. Nesse tipo de circulação que nos interessa é que
vamos encontrar o que a sociedade fa z com sua m ídia: é, por­
tanto, um a resposta.
É relevante, para percebermos o sistem a de interação social
sobre a m ídia, que a circulação de produtos m idiáticos na socie­
dade não se faz apenas como “escolher e acolher” segundo crité­
rios culturais anteriores, mas gera um trabalho so cia l din âm ico:
respostas.
* **

Qualquer sistem a (ou subsistema) envolve relações de fluxo e


articulações entre seus componentes, determinantes externos e
inputs de mesmas ordens, objetivos e outputs correlacionáveis, e via­
biliza atividades e processos. Isso corresponde a dizer que, entre
os diferentes componentes (e subsistemas) de um sistem a social,
apesar da especificidade de ação de cada um , devem existir ma-
crológicas comuns.
A noção de “sistemas sociais” pode cobrir um a gam a variada
de caracterizações, desde um patam ar concreto, de instituições
formalizadas e com articulações normatizadas expressamente
(“sistem a Globo de produções m idiáticas”, por exemplo), até um
padrão em que o que se enfoca não é o agregado real de pessoas,
grupos, idéias e objetos, mas sim “um instrumento intelectual,
um procedimento heurístico, um “modelo” destinado a guiar a
percepção da realidade” (Rocher, 1969, p. 6). »
O ângulo proposto por m im no artigo referido acim a'(Braga,
2003) incorria efetivam ente em petição contraditória: assinalava
elementos com existência bastante m aterial (dispositivos críti-
co-interpretativos), pretendendo que constituíam p er se um sub­
sistem a abrangente. A objeção de M ichael Hanke era, portanto,
pertinente: faltava demonstrar o relacionamento sistêm ico (as
articulações) entre aqueles elementos. No patam ar concreto

C£™lçãO
A SOCIEDADE ENFRENTA SUA MÍDIA

referido, isso exigia institucionalização e normatividade form ali­


zada, expressa, o que certamente não ocorria.
Mas o que temos, na verdade, é outra coisa. Não se trata de
ações sociais formalmente concertadas, e sim de processos que,
independentemente de sua origem , autoria e instituição, realizam
no contexto socia l uma mesma funcionalidade sistêmica, com sim i­
laridades básicas de comportamento e resultados. Nesse patamar
de abstração, “fazem sistema” mais conceptual do que físico.7
Os diferentes dispositivos e ações específicas não fazem sistema
institucionalizado entre si, mas participam , pela natureza mesmo
de suas atividades, de um sistema social mais amplo, caracterizado
pelo fato de fazer circular idéias, informações, reações e interpre­
tações sobre a m ídia e seus produtos e processos —de produzir respostas.
Passar das estruturas a processos corresponde a substituir o
enfoque em uma determ inada classe de “objetos organizados”
(como empresas e outras instituições, grupos humanos articula­
dos, meios de comunicação) pelo enfoque em uma determ inada
classe de a tividades, com relativa autonomia ou dispersão, no que
se refere ao espaço organizacional em que tais atividades se
desenvolvem.
Isso significa que atividades de uma mesma classe podem ser
percebidas como desenvolvidas em diferentes estruturas e uma
mesma classe de estruturas pode ser observada gerando classes de
atividades diferenciadas.
Podemos falar então em “sistemas processuais”, com relativo
deslocamento em relação aos “sistemas estruturais” em que ocor­
rem. Dito de outro modo: é preciso pensar que os processos
geram estruturas tanto quanto as estruturas se realizam em pro­
cessos. Não devemos estagnar na perspectiva de que, conhecendo

7. "Sistemas físicos são sistemas de matéria e energia. Sistemas conceituais são feitos de
idéias. Sistemas conceituais existem geralmente para ajudar na realização de metas específicas
ou podem ser usados para modelar sistemas físicos" (Wikipedia, consultado em 7/1/2005 -
tradução nossa). Entendo que há uma continuidade entre os níveis mais concretos (físicos) e
os mais abstratos (conceituais) conforme a abrangência dos sistemas, e é possível situar um
determinado sistema em ponto intermediário, de agregação entre coisas, idéias e modelos.
0 SISTEMA DE RESPOSTA SOCIAL

as estruturas, podemos dizer os processos que estas desenvolvem.


E preciso também observar processos em ação para melhor com­
preender a própria formação das estruturas.
No que se refere ao sistema de resposta, o relacionamento parece
ser essencialmente processual. Nesse espaço, as relações não ocorrem
formalmente entre os diversos dispositivos do sistema de resposta (críti­
cos ou não), o que já solicitaria algum tipo de estrutura organizado­
ra. A relação principal, que permite afirmar uma processualidade
“em sistema aberto”, ocorre entre setores da sociedade, por um lado,
e ações e produtos da m ídia, por outro. Por mais que esses setores
(e seus modos de resposta) sejam diferenciados, ainda que as ações e
produtos observados sejam diversos* e mesmo que aqueles modos
organizem variadamente esses produtos e ações m idiáticas, através
de toda essa diversidade constatamos sempre relações de contigüi-
dade e de tensionamento (tais relações serão desenvolvidas adiante,
nos capítulos 2 e 3) —parâmetro que permite observar, racional e
empiricamente, e refletir comparativamente.
E a própria possibilidade de examinar suas lógicas segundo um
conjunto sistem atizado de parâmetros que perm ite tomar como
sistem a o conjunto de processos que se observa.
Encontramos, assim, o terceiro sistem a em um patamar mais
abrangente e abstrato, no qual processos sociais variados são molda­
dos por um mesmo padrão cultural de hábitos, tendências e
“lógicas”, e por objetivos comuns, ainda que não conscientemente
pré-negociados. Trata-se naturalm ente de sistem a complexo,
baseado em relações histórica e socialmente construídas.
A liás, o que podemos chamar de “sistem a de produção” e de
“sistem a usuário” apresenta essa mesma característica —s.em que
necessariamente seus dispositivos sociais operacionais façâm sis­
tema institucionalizado. O sistem a produtor é aquele que funciona
segundo um mesmo padrão geral de processos. O sistem a usuário
é ainda mais difuso, no que se refere a sua organicidade, o que
não impede que seja estudado enquanto grande sistem a social,
com existência e caracterizações discerníveis no patam ar das
mediações culturais. O que pretendemos, no presente estudo, é
A SOCIEDADE ENFRENTA SUA MÍDIA

justam ente evidenciar um sistem a social em que ele não é habi­


tualm ente percebido.
Podemos então, agora, afirmar a caracterização do objeto obser­
vado como sendo efetivamente um “sistem a”.
* **

Os processos que se passam no sistem a de interação social so­


bre a m ídia não se confundem com os processos de produção nem
de recepção e devem ser vistos como necessários em sua distinção e
articulaçao com os outros dois subsistemas, para uma percepção
adequada dos processos m idiáticos.
O sistem a de processos m idiáticos corresponde a um fluxo
entre seus subsistemas, e nao a um agregado de objetos diferentes
e meramente classificados. É relevante ter uma visão processual
do conjunto. Assim, o trabalho de observação e pesquisa a partir
de um subsistema não pode deixar de levar em conta os outros
dois, pois deles recebe e para eles envia seus vetores. É por isso
que são partes articuladas de um mesmo sistema. A ênfase em um
ou em outro dos subsistemas seria sobretudo uma questão prática
e de eficácia para a percepção e para a pesquisa.
D istinguir entre os processos de produção, de recepção e de
interação social sobre a m ídia não é uma questão classificatória —
como se devéssemos identificar, para cada ação ou objeto específico,
se esse pertence ao subsistema de produção, ao de recepção ou
ao de interação. Uma determ inada atividade ou dispositivo social
pode ter características de mais de um sistem a (ou seja: participar
de dois ou dos três). Identificados os subsistem as, uma ação pode
ser observada e considerada pela perspectiva deste ou daquele, na
m edida em que pode desenvolver objetivos, em .um ou em outro
desses sistemas.
Entretanto, alguns processos são inequivocamente “de in te­
ração social — e a estes se volta nossa pesquisa. Uma área de
interesse caracterizada como de “estudo das interações sociais
sobre a m íd ia” teria como ponto de entrada essa percepção sistê­
m ica e nela a construção de seu eixo. Observaria, aí, os processos
0 SISTEMA DE RESPOSTA SOCIAL

organizados d a sociedade sobre a m ídia e seus produtos, e os modos


como estes se articulam com a produção e a recepção, eventual­
mente tensionando-as.
Quanto à necessidade do subsistema, nós a percebemos em pelo
menos dois níveis. Sem a interação social-m idiática (sobre m ídia
e seus produtos), a circulação geral não se completa; teríamos, na
verdade, um a incoerência de funcionamento’ cultural em uma
sociedade na qual determinados processos se passariam sempre
em uma única direção (o que é d ifícil de aceitar). Assim, a falta
de percepção do terceiro subsistema pode ser relacionada ao dua­
lismo recorrentemente assinalado entre “m íd ia” e “sociedade”.
Em outro nível, vemos a necessidade (lógica) do subsistema no
fato de que, sem este, uma série de ações sociais perfeitamente
discerníveis não encontra localização na processualidade da “so­
ciedade m id iatizad a”, aparecendo ao olhar como se se tratasse
de fenômenos autônomos, ou voluntaristas “externos”, ou como
se pudessem ser “reduzidos” a caso particular de um dos dois sis­
temas reconhecidos. A necessidade do subsistem a das in tera­
ções sociais sobre a m ídia parece se colocar, assim, tanto no nível
concreto das ações sociais de interação com a m ídia (através de
processos e de dispositivos sociais) como no nível de conceptuali-
zação ou de “modelo” para entendimento desse conjunto de ações.
* **

M uitos estudos feitos já tradicionalm ente sobre instâncias e


processos m idiáticos podem ser percebidos como referentes à
interação social sobre a m ídia. Não temos a pretensão de
expressar, com nossa afirmação de um terceiro sistema,'<a exis­
tência de um campo inteiram ente inexplorado. Por outro lado,
não se trata apenas da atribuição de um rótulo a algum a coisa já
plenam ente reconhecida. Percebemos que os estudos que enfo­
cam essa circulação social, ou elem entos dela, têm ocorrido em
padrão esparso, sem percepção expressa de que a processualida­
de aí corresponda a um a atuação social sobre a m ídia. A hipóte­
se da interação como terceiro subsistem a deve p erm itir estudos

munhçã o
A SOCIEDADE ENFRENTA SUA MÍDIA

voltados para pelo menos quatro objetivos complementares de


apreensão:
a) relacionar os diferentes processos a um mesmo patamar, co­
mum a todos, e portanto perceber processualidades similares
quando, sem essa referência, perceberiamos apenas coisas
diferentes e isoladas; podem-se desenvolver, assim, percep­
ções de conjunto;
b) perceber as diferenças e especificidades de cada um dos d i­
ferentes processos de interação social sobre a m ídia, usando
o pertencimento comum a um mesmo patam ar justamente
como critério de comparação e diferenciação;

c) perceber e construir articulações internas entre os processos,


na m edida de seu pertencimento a um mesmo sistema;
d) fazer uma distinção entre esses processos e aqueles que
ocorrem na produção e na recepção —e, ao mesmo tempo,
perceber as articulações que mantenham com esses.
Na situação atual dos estudos, a discussão de elementos desse
sistem a como se fossem coisas externas aos processos m idiáticos,
ou às vezes como pertinentes ao próprio sistema produtivo e tecno­
lógico, favorece o dualismo excludente entre m ídia e sociedade.
A percepção das relações sistêmicas, pelo contrário, perm ite uma
compreensão da complexidade do subsistema e de suas distinções
e articulações internas.
Da percepção “como sistema” e da correlata constatação de sua
complexidade e variedade interna podemos derivar a proposição de
que o estudo de tais questões enquanto processos sistêmicos de interação
social-m idiática deve am pliar as possibilidades de um conhecimento
mais fino e mais articulado com a processualidade m idiática abran­
gente, permitindo construir critérios críticos para a sua análise.
Apenas como exemplo: se a crítica acadêmica pode ser descrita
como um dispositivo social de circulação e de resposta, podem-se
desenvolver estudos e reflexões sobre os ângulos em que ela atende,
0 SISTEMA DE RESPOSTA SOCIAL

ou não, o que se espera da crítica nessa ca racterística de dispositivo


socia l de interação, apoiando a superação da crítica abstrata.
* **

Se o subsistem a é efetivamente constatado em nossa observa­


ção da realidade, com significativa presença no espaço social, e
seus processos vêm sendo estudados em pesquisas da área, ainda
que de modo esparso, torna-se preciso explicar por que a existên­
cia sistêm ica dos processos de interação social permanece relati­
vamente “invisível”. Encontramos o que nos parecem ser cinco
razões principais:
a) uma visão “economicista” —que tende a situar a circulação
entre a produção e o consumo e a não perceber outros ele­
mentos de circulação que não este, ou seja, tende a enfatizar
a circulação dos produtos enquanto tal, sem perceber a
essencialidade do trabalho social exercido posteriormente;
b) o dualismo mídia/sociedade —segundo o qual os dois ter­
mos são contrapostos de modo estanque, o que se passa na
sociedade tendendo a ser visto como extram idiático ou só
como “recebimento”;
c) a investigação esparsa dos processos de interação —cada um
visto apenas na sua especificidade de objeto em estudo, ora
enquanto elemento “diretam ente” m idiático (levando a que
seja atribuído ao sistem a de produção), ora enquanto ele­
mento da ordem da recepção (quando visto pelo ângulo das
ações de usuário), ou, ainda, sem ocorrer a preocupação de
situar os processos em estudo no contexto de ordens proces­
suais mais amplas;
d) uma visão hipostasiada da “interatividade estrita” (de tipo
conversacional) —que só deixa perceber interações de usuá­
rios com a m ídia quando ocorre retorno im ediato e pon­
tual, om itindo justam ente as interações sociais diferidas e
difusas, apagadas por uma afirmação de unidirecionalidade;

comoção
A SOCIEDADE ENFRENTA SUA MÍDIA

36
e) o próprio fato de que construímos mais facilmente relações
entre processos quando podemos referi-los a sistemas en­
quanto articulações estruturais e mais dificilm ente perce­
bemos “sistemas de processos” não biunivocamente relacio­
nados a sistemas de estruturas.

3. OS DISPOSITIVOS SO CIAIS8 DO "S IS T E M A DE RESPOSTA"

O conceito de “leitu ra” (uso, recepção) como se fosse apenas


uma relação íntim a e despojada entre o leitor, usuário, e o texto
ou produto m idiático já vem sendo descartado há algum tempo.
Um dos principais argumentos de contraposição àquele entendi­
mento foi posto por Jesús M artín-Barbero (1997), com o conceito
de m ediações, segundo o qual o espectador traz para a interação
com a m ídia suas vivências e suas bases culturais socialmente ela­
boradas. Essa perspectiva enfatiza os aportes pré e extramidiáticos
e está na base de toda um a tendência dos estudos de recepção.
Com a proposta de um terceiro sistema de processos midiáticos,
assinalamos mais uma contraposição às relações “simples” entre
produto e usuário. A sociedade se organiza para tratar a própria
m ídia, desenvolvendo dispositivos sociais, com diferentes graus de
institucionalização, que dão consistência, perfil e continuidade a
determinados modos de tratamento, disponibilizando e fazendo
circular esses modos no contexto social. A própria interação com o
produto circula, faz rever, gera processos interpretativos.
Assim, não encontramos apenas interpretações de produtos
específicos que depois, um a vez feitas, circulam ; os próprios gestos
de selecionar, apreender, interpretar já se fazem em articulação
com processos e dispositivos sociais desenvolvidos no próprio

8. Para os efeitos práticos do presente item, tomaremos de Maurice Mouillaud a idéia de dis­
positivos como "lugares materiais ou imateriais nos quais se inscrevem (necessariamente) os
textos". 0 dispositivo é uma "matriz que impõe sua forma aos textos", e ainda: " o dispositivo
pode aparecer como uma sedimentação de textos" (1997, pp. 33-34). São, portanto, formas
socialmente geradas e tornadas culturalmente disponíveis como matrizes para a realização
de falas especificas. Voltaremos a essa questão no capítulo 2.
0 SISTEMA DE RESPOSTA SOCIAL

am biente de interações da sociedade com sua m ídia. As interações


sociais sobre a m ídia retroagem , portanto, sobre as interações “direta s”
com a m ídia.
Existe toda uma variedade de “dispositivos sociais”: cineclubes,
sites de m edia criticism , fóruns de debate sobre rádio e televisão, crí­
tica jornalística, revistas cujo tema é a própria m ídia, produções
acadêmicas sobre os meios, processos de autocrítica da imprensa...
Um a evidência de que a sociedade age sistem icam ente sobre a
m ídia (ao “falar” sobre esta e seus produtos) é justam ente o fato
de que se instalam na sociedade tais dispositivos, que (ainda que
não façam sistem a formal entre si) se caracterizam como modos
organizados e suscetíveis de apreensão sistem atizada e sistêm ica,
ou seja: funcionam dentro de um sistem a social, largam ente
“determinados” por este (ou por suas lógicas).
As críticas sobre produtos m idiáticos e os dispositivos sociais
são os elementos mais visíveis dos processos de circulação, assim
como “produtos e program as” são a face visível dos processos de
produção, e os usos concretos (escolhas, zapping, “leitura”, “audiên­
cia”, acolhimento, resistência, fruição, “edição”...) são a face mais
visível dos processos de recebimento. Assim , se os examinarmos
em busca de perceber suas lógicas ao fazer circular reações sociais
sobre os processos e produtos m idiáticos, podemos am pliar nossa
compreensão sobre o sistem a interacional e, indiretam ente, sobre
os processos m idiáticos em geral.
A variedade de dispositivos sociais de interação sobre a m ídia
evidencia então a consistência da proposta de conceituação de um
terceiro sistem a e confirma o interesse em estudar tais objetos
sociais em relação ao patam ar sistêmico em que os inscrevemos,
uma vez que podemos tomá-los como o elemento empírico rele­
vante para a compreensão do sistem a.de respostas sociais diferi­
das e difusas.
* * *

A partir de nossas observações de campo, constatamos algumas


ações e processos desenvolvidos por aqueles dispositivos sociais.

mmhção
A SOCIEDADE ENFRENTA SUA MÍDIA

Essas ações procuram dar conta de objetivos muito variados, que


a sociedade assume no tratamento dos produtos e processos de sua
m ídia. Identificamos alguns desses tipos de ação dentro de uma
variedade certamente mais ampla:
a) crítica —interpretações e objeções interpretativas, seleções
qualitativas etc.;
b) retorno -feed b a ck , retroalimentação do sistema de produção,
indicações para revisão, criação, redirecionamentos, constru­
ção de “gêneros” (na perspectiva de Martín-Barbero, 1997);
c) m ilitância social - crítica-ação, processos sociais de uso da
m ídia a serviço de posições e argumentos, atuações antim í-
dia e/ou de direcionamento dos teores, dos temas e das posi­
ções, defesa de setores e posições sociais perante a m ídia;
d) controles da mídia, media criticism , media accountability systems,
processos sociais de enfrentamento e controle da m ídia, de
seus poderes, de seu papel social, em defesa de valores pro­
fissionais e sociais diversos que possam ser ameaçados por
lógicas estritas da produção cultural comercial;
e) sistematização de informações - processos organizados de
classificação, organização e disponibilização de acervos...
(são, às vezes, processos relacionados à atuação crítica, mas
também à configuração de bases de dados e outras facilida­
des de acesso);
f) circulação comercial - estímulos à seleção e ao consumo
m idiático (“venda”, sedução para escolha de produtos, anti-
zapping), operações de m arketing da própria m ídia;
g) processos educacionais e formativos - aprendizagens orde­
nadas, sistemas e dispositivos educativos para uso e direcio­
namento da m ídia;
h) processos de aprendizagem em público — trata-se aqui de
um aprender do gosto e da fruição, difuso, não controlado
0 SISTEMA DE RESPOSTA SOCIAL

pelos sistemas educacionais; permeações com a riqueza e a


variedade de informações e processos; aprendizagem de
usos e de seleções; seria uma “aprendizagem de usuário”.
Incluímos nesse tipo de ação as funções de socialização,
enquanto processo de desenvolvimento de competências
culturais em sociedade m idiatizada (ver Braga e Calazans,
2001, pp. 134-156).

O denominador comum de todos esses processos é que são


modos de a sociedade interagir sobre (e portanto com) sua m ídia.
Como se percebe, alguns tipos de dispositivos têm sido mais
estudados (como aqueles referentes aos controles da m ídia, ou
m edia accou n ta bility system s), ou os procedimentos voltados para a
aprendizagem (m edia education e leitura crítica da m ídia). Mesmo
estes, mais conhecidos e analisados, parecem-nos poder receber
direcionamentos adicionais pelo fato de serem estudados enquanto
elementos de um sistem a específico de processos m idiáticos,
dentro do qual se articulam ou podem se articular com outros.
Os diferentes objetivos e processos evidenciam que a sociedade
não apenas sofre os aportes m idiáticos, nem apenas resiste pon­
tualm ente a estes. M uito diversamente, se organiza como sociedade,
para retrabalhar o que circula, ou melhor: para fazer circular, de
modo necessariamente trabalhado, o que as m ídias veiculam.
Isso corresponde a dizer que a mesma sociedade que, por
alguns de seus setores, grupos e linhas de ação, gera a m idiatiza-
ção enquanto sistem a produtivo, por outros setores e atividades
complementa essa m idiatização por meio de operações de traba­
lho e de circulação comentada daquilo que o sistema prqdutivo
oferece ao sistem a de recepção.
Todas aquelas ações e processos (e certamente outras, não
expressas aqui) podem se m isturar e se interferir mutuamente.
Isso corresponde a dizer que a sociedade desenvolve uma série de
ações sobre a m ídia —contrapropositivas, interpretativas, proati-
vas, corretoras de percurso, controladoras, seletivas, polemizadoras,
laudatórias, de estím ulo, de ensino, de alerta, de divulgação e

mmhção
A SOCIEDADE ENFRENTA SUA MlDIA

“venda” etc. - que se combinam dos modos mais variados. São


ações, de um modo geral, voltadas p a ra a sociedade. Mas, conforme
sua abrangência, podem ter um sentido direto ou indireto de
retomo sobre a m ídia - que vai se caracterizar, então, como um
retorno de sociedade, necessariamente diferido e difuso.
Um aspecto relevante a ser estudado, para um a determinada
sociedade, seria o perfil, a acuidade, o grau de pertinência e de
eficácia dos dispositivos mais atuantes e, portanto, o desenho de
como essa sociedade consegue trabalhar com sua m ídia. É possí­
vel, portanto, fazer uma análise crítica (ou político-social) de
como uma sociedade funciona m idiaticam ente não só pelo estudo
(mais habitual) das características de sua produção m idiática,
mas também (e chegando, assim, a uma compreensão mais abran­
gente) pelo estudo dos dispositivos e processos sociais que a
sociedade desenvolve para tratar de sua m ídia.
* **

O utra percepção a ser assinalada é o fato de que os dispositi­


vos socialmente gerados para organizar falas e reações sobre a
m ídia utilizam , com frequência, a própria m ídia como veicula-
dor. Essa seria um a razão adicional para a dificuldade de percep­
ção do que chamamos de sistem a de interação social sobre a
m ídia, como componente a ser diferenciado dos sistemas de pro­
dução e de recepção.
Entretanto, é bastante lógico que essa utilização m idiática
ocorra. Superada um a visão dualista entre a m ídia e a sociedade,
percebendo-se que a sociedade m idiatizada age via m ídia (e não
apenas sofre a m ídia), não haveria nenhuma razão para que os
processos de fala e reação (interação social) sobre a m ídia se acan-
tonassem em espaços extram idiáticos. Esses espaços extram ídia
efetivamente existem e são relevantes —nas salas de aula, nos bares
e cafés, nos sindicatos e associações. Mas percebe-se como é também
importante, para que as interações sociais sobre a m ídia e sobre seus
produtos tenham efeitos sociais e culturais abrangentes e permeado-
res, que desenvolvam uma operacionalidade igualm ente midiática.
0 SISTEMA DE RESPOSTA SOCIAL

Além disso, verificamos historicam ente que processos de


interação sobre a produção diferida e difusa utilizam veiculação
m idiatizada. A crítica literária é, evidentem ente, um processo
de tratam ento da literatura em um sistem a social (constituído
pela universidade, autores, críticos profissionais) voltado para
examinar, interpretar, selecionar, criticar e divulgar a produção
literária. U m a parte m uito significativa dessa produção e dos
processos da crítica é veiculada pelo mesmo meio, o livro, usado
para as produções de literatura, ou em meios complementares
(jornais e periódicos). Isso não im pede que se d istin ga uma a ti­
vidade da outra, um a, propriamente “produtiva”, a outra, uma
produção que se volta sobre a prim eira. Temos assim um a atesta-
ção histórica da possibilidade de processos de interação social
serem distintos, embora usando os mesmos meios, típicos dos
processos- “de produção”.
Que os dispositivos sociais de interação da sociedade sobre a
m ídia utilizem as mesmas m ídias veiculadoras dos produtos co­
mentados ou que utilizem outras, complementares, isso apenas
evidencia a variedade possível de ações de interação. E claro que o
livro e o jornal, m ídias mais longamente estabelecidas, são privi­
legiados tradicionalm ente como espaço para tais ações. Mas tam ­
bém o rádio e a televisão —por exemplo, nos programas de debates
sobre a própria m ídia — são arenas adequadas aos processos do
subsistema. Hoje, a flexibilidade da rede informatizada m undial
faz da internet a m ídia de escolha para os dispositivos sociais de
fala sobre a mídia. Como a rede se desenvolve em sociedade já larga­
mente m idiatizada, outros processos e produtos m idiáticos se tor­
nam facilmente m atéria-prim a para as interações aí desenvolvidas.

4. CONSEQÜÊNCIAS

É claro que constatar um sistem a de interação social sobre a


m ídia (em cujo âmbito ocorrem ações de retomo, de crítica, de
aprendizagem, de controle da m ídia e de interpretação produtiva)

munição
A SOCIEDADE ENFRENTA SUA MÍDIA

não corresponde a um a visão ingênua de que a sociedade estaria


sabendo enfrentar o que produz midiaticamente e sua disseminação,
ou de que corrigiría automaticamente as eventuais distorções do
setor de produção. Pois, assim como o setor de produção apresenta
distorções (relacionadas a suas lógicas econômicas, organizacio­
nais e políticas, a seus conceitos de cultura e de entretenimento),
o sistema de interação pode ser frágil, esparso, pobre de recursos
(m ateriais, conceituais, criativos e operacionais), de pouco alcance
e de visão pouco abrangente. Entendemos, portanto, que uma
recepção ativa é correlata, de modo fundamental, à existência na
sociedade de dispositivos de interação social vigorosos —nos dois
sentidos, de enfrentamento interpretativo e de forte presença
social, ou seja, constatar uma articulação sistêm ica entre ações
interacionais de sociedade e produção m idiática não corresponde
a afirmar “equilíbrio”, menos ainda equilíbrio estável.
Os lim ites para o funcionamento de um sistem a eficaz de
interação social m idiática certamente são correlatos, em uma
mesma sociedade, aos lim ites encontrados no sistema de produção
e no sistem a de recepção. Isso é naturalm ente relacionado a seu
funcionamento sistêmico. Por isso mesmo os processos e disposi­
tivos de interação deveríam ser estudados, na sua especificidade,
como aporte relevante para o desenvolvimento das competências
m idiático-culturais da sociedade.
Assim, além do interesse em oferecer uma ampliação de
conhecimento, para a compreensão do campo comunicacional, o
subsistema parece se colocar como espaço de escolha para a in ter­
venção crítica , cultural, educacional e operacional, nos trabalhos
da sociedade, no objetivo de estim ular seus processos m idiáticos
de modo socialmente responsável e relevante. Por isso mesmo,
embora reconhecendo a m ultiplicidade dos processos segundo os
quais a sociedade a ge sobre a m ídia (alguns dos quais meramente
reforçando motivações empresariais e de m arketing), é claro que
nosso interesse é maior pelos dispositivos voltados para as ações,
acim a referidas, de crítica, de retorno, de estím ulos de aprendiza­
gem , de controle social da m ídia e de interpretação proativa, pois
0 SISTEMA DE RESPOSTA SOCIAL


é por meio desses dispositivos que a sociedade pode exercer inter­
venções críticas.
* **

O presente capítulo referiu as principais ações e processos rea­


lizados pelo subsistema de interações sociais sobre a m ídia (ou
“sistem a social de resposta”) em sua generalidade.
O próximo capítulo discute o trabalho crítico da sociedade,
como parte constitutiva (e, pela nossa perspectiva, a mais rele­
vante) do sistem a de interações sociais sobre a m ídia. Situa aí a
crítica acadêmica e a crítica especializada, dentro de um a diversi­
dade mais am pla de processos críticos, e procura exam inar as
relações gerais entre os três subsistemas, enfatizando a existência
de contigüidades e tensões entre eles, como base mesmo da possi­
bilidade crítica.
O terceiro capítulo expõe os procedimentos de abordagem da
investigação realizada sobre dez m ateriais empíricos, caracteriza­
dos como exemplos de ações críticas sobre produtos e processos
m idiáticos. São apresentados os procedimentos de seleção e os
parâmetros adotados para a análise do m aterial.
Na segunda parte, apresentamos, em dez capítulos sucessivos,
as observações feitas sobre casos de dispositivos sociais que reali­
zam diferentes críticas e produzem, assim, respostas d iferid a s e
difusas à produção. Ao lado de uma descrição das especificidades
de cada caso, estudamos os pontos de vista de onde se faz a crítica,
os objetivos e motivações que transparecem das falas e os direcio­
namentos de interlocução propostos. Os dez materiais examinados
foram os seguintes: o site Observatório da Imprensa, m ateriais de
autocontrole em jornais (“Ombudsman” e “Conselho do Leitor”),
cartas de leitores, notícias de jornal sobre a m ídia, crítica jorna­
lística de cinema, o site Ética na TV, crítica de televisão em jornal
e três livros com diferentes ângulos e abordagens sobre m ídia, de
Arlindo Machado, Ricardo Noblat e Luís Nassif.
Dois capítulos, finalm ente, trazem reflexões conclusivas a esse
relato. O capítulo 14 faz análises transversais, comparando os dez

mmhção
A SOCIEDADE ENFRENTA SUA MÍDIA

casos e desenvolvendo a própria percepção dos parâmetros através


da observação das variações encontradas. O capítulo 15 elabora,
com o apoio do que se aprendeu no estudo em pírico, questões
conceituais sobre o sistem a de resposta e seus dispositivos, e
avança perspectivas praxiológicas sobre o conhecimento e sobre a
crítica do sistema.
2

DAS INTERAÇÕES SOCIAIS


AOS PROCESSOS CRÍTICOS

1. O TRABALH O CRÍTICO N A SO CIED ADE

No capítulo anterior apresentamos nossa tese sobre o interesse


em assum ir como terceiro componente do sistem a de processos
m idiáticos na sociedade, ao lado do subsistem a de produção e do
subsistema de recepção, a interação social sobre a m ídia, como
sistem a de resposta socialmente desenvolvido dentro da mesma
dinâm ica histórica que move a sociedade em sua m idiatização.
Sobre essa base, explicito agora a perspectiva de que a p a rte
dinâm ica desse sistem a de resposta é composta por processos e
’ dispositivos sociais que podem ser reunidos sob a rubrica comum
de “trabalhos críticos” sobre produtos m idiáticos.
Um processo interacional sobre a m ídia e seus produtos pode
ser considerado “crítico” quando atenda a pelo menos um dos
seguintes requisitos:

munição
A SOCIEDADE ENFRENTA SUA MÍDIA

46
a) é crítico porque tensiona processos e produtos m idiáticos,
gerando dinâmicas de mudança;
b) é crítico porque exerce um trabalho analítico-interpretati-
vo, gerando esclarecimento e percepção ampliada.
É claro que não há contraposição entre esses dois critérios,
uma vez que exercer um deles tende a estim ular também a ativa­
ção do outro. A diferença seria apenas de ênfase ou de motivação
prioritária.
Consideraremos, assim, como processos críticos, dentro do siste­
ma de interação social sobre a m ídia, os que se voltam para os
processos de produção m idiática e seus produtos em termos de
um enfrentamento tensional que, direta ou indiretam ente, possa
resultar em crítica interpretativa, ou em controle de desvios e
equívocos m idiáticos, em aperfeiçoamentos qualitativos, na defe­
sa de valores sociais, em aprendizagem e em socialização compe­
tentes, na fruição qualificada em termos reflexivos ou estéticos,
em informação de retorno, redirecionadora dos produtos, em per­
cepções qualificadas.
Embora considerando que o trabalho crítico mais facilmente
percebido como tal seja aquele caracterizado pelo esforço analítico-
interpretativo que ilum ina o produto m idiático em determinados
ângulos de sua constituição —ou seja, a crítica acadêmica e a crítica
jornalística —, assumiremos que todos os processos referidos acima
se demarcam como “trabalho crítico” de sociedade, representando
a parte dinâmica do sistema de interação social sobre a mídia.
Nossa tese sobre o sistem a de interação social determina,
então, o interesse em refletir e estudar os processos críticos nessa
notação abrangente. Podemos perceber “a crítica” como um pro­
cesso mais amplo e diversificado do que o trabalho analítico
desenvolvido por teóricos e intelectuais.
No espaço geral da sociedade, quais seriam os principais pro­
cessos do trabalho crítico? Os dispositivos sociais que desenvol­
vem um trabalho crítico, nesse sentido amplo, parecem realizar
pelo menos três processos principais:
DAS INTERAÇÕES SOCIAIS AOS PROCESSOS CRÍTICOS

47
a) exercem critérios, expressos ou im plícitos, segundo os quais
os produtos são observados;

b) analisam características e especificidades dos produtos e


processos m idiáticos postos em circulação; e

c) lançam vetores interpretativos e/ou de ação em direção aos


outros dois subsistemas (de produção e de recepção). Sobre
a recepção, podem estim ular as com petências dos usuários
para selecionar, interpretar e desenvolver sua própria com­
petência crítica. Sobre os produtores e sistemas de produção,
a incidência teria o sentido de rem odelar e qualificar seus
produtos e processos.

No conjunto, o funcionamento desses três processos reflete o


estado da processualidade m idiática posta em ação em uma dada r
sociedade.
Entendemos assim que o trabalho crítico das práticas m idiáti-
cas —além dos objetivos de análise, de busca de conhecimento, de
desvendamento das lógicas de um produto (ou de um gênero, ou
de um processo) —tende a exercer um a função geral de desenvol­
vimento de competências de interação na sociedade, no que se
refere àòs m ateriais e processos m idiáticos que essa sociedade
gera, faz circular e usa para os mais diferentes propósitos.

2. CRÍTICA ESPECIALIZADA VERSUS CRÍTICA DE SO CIED ADE

Quando se fala em “crítica m idiática”, de um modo gèral está


se tratando de dois tipos de produção de comentários sobre a
m ídia: a crítica acadêmica e a crítica jornalística. O foco de nosso
interesse é mais amplo do que a observação dessa crítica especia­
lizada; é relevante, entretanto, fazer algum as constatações, com
todas as ressalvas de praxe sobre as ricas e produtivas exceções ao
que a seguir apontamos.

mmhção
A SOCIEDADE ENFRENTA SUA MÍDIA

A crítica acadêmica, no Brasil, parece basear-se mais nas leitu ­


ras que fazemos de nossos autores preferidos, leituras em seguida
“aplicadas sobre” as produções m idiáticas em geral, do que em
um trabalho de observação sistem atizada, com explicitação de
critérios analíticos, sobre a produção e sobre os processos m idiá-
ticos. Com isso, uma parte significativa da crítica acadêmica é
feita antes para confortar perspectivas abrangentes sobre a m ídia
ou sobre determinados meios do que para am pliar o conhecimento
sobre produtos e processos específicos. Quando os específicos são
referidos, tendem a aparecer como ilustração de posições abstratas,
mais do que como objeto para descobertas concretas.
Quando se trata da crítica jornalística, além do eventual com-
parecimento de lim itações sim ilares (nos casos em que os críticos
são bem informados pela teoria), pode-se acrescentar ainda uma
ênfase de proposições de gosto pessoal afirmado como “verdade”,
interpretações “de autoridade”, trabalhos de julgam ento em ter­
mos de “bom/mau” e ainda uma concentração no esforço de
“indicar x contra-indicar”, ou seja, de fazer seleções como um ser­
viço “pronto” para o leitor.
O maior defeito de tais lim itações (quando elas efetivamente
ocorrem) é o de não alim entar significativam ente o debate social
sobre a m ídia. Assumimos assim uma premissa de que o mais re­
levante no trabalho da crítica não é oferecer afirmações peremp­
tórias que digam o que são e como funcionam a m ídia e seus produtos,
mas sim a possibilidade de contribuir com critérios diversifica­
dos, procedimentos e “vocabulário” para que os usuários da m ídia
exerçam e desenvolvam sua própria competência de seleção e de
interpretação do m idiático, e para que participem com eficácia
do debate social sobre a m ídia.
** *

Dito isso, é possível agora reinscrever a crítica especializada


como parte de nosso objeto de pesquisa. Para essa inclusão deve­
mos assumir algum as premissas. A crítica especializada não tem
nenhuma prevalência sobre outros tipos de comentário social. O
DAS INTERAÇÕES SOCIAIS AOS PROCESSOS CRÍTICOS

fato de ser “especializada” apenas a faz situar na sua especificida­


de (e, portanto, solicita o exame de suas lógicas específicas), não
se lhe atribuindo um estatuto de conhecimento superior. Ela nos
interessa ãpenas enquanto possível fornecedora de perspectivas e
proposições que sejam (ou possam ser) absorvidas a serviço do
debate social concreto. Quanto maior a disjunção (a ausência de
passagens e interlocução entre a crítica “de sociedade” e as críti­
cas especializadas) menos estas últim as são socialmente relevan­
tes, mesmo quando profundas, seja porque não ouçam as questões
concretas da sociedade (e apenas pretendam “dizê-las”), seja por­
que, apartadas das questões concretas, se perdem em abstrações.
Devemos, entretanto, evitar a idéia de que estamos defendendo
a substituição da fala da crítica pela “fala da rua”, ou de que aquela
deva simplesmente “descer à rua”. Seu trabalho é no espaço do
desenvolvimento teórico, mas esse, para ser significativo, deve
sintonizar com as “questões da rua”. Um dos ângulos relevantes
para o trabalho acadêmico é elaborar as “boas perguntas” que
estejam sendo sugeridas e solicitadas na vivência social, que tal­
vez o senso comum não consiga distanciamento para formular
com precisão e pertinência.
Percebemos interações entre a crítica especializada e os
comentários do mundo concreto. Aquela pode (em determinadas
condições) fornecer vocabulário crítico, informação básica, méto­
dos de aproximação —em suma, “conhecimento”. Pode estim ular
o interesse de “criticar” (se a crítica fiz er sentido no ambiente
extra-universitário). J á a crítica socialmente vivenciada oferece
seus processos sociais, a base de realidade a ser investigada, uma
percepção de objetivos, focos e interesses “vivos”, procedimentos
e “lógicas” com validade social concreta —em suma, o quê Rober­
to Schwarz (1978) chama de “problemas do lu g ar”.
Essa perspectiva contrasta com a Tdéiá'dé“distanciam ento e
objetividade. Um dos equívocos (embora certamente bem inten­
cionado) que ocorrem entre os pesquisadores e intelectuais preo­
cupados com a nocividade m idiática é que uma posição crítica
teria que se desenvolver em algum lugar extram idiático para, de

co m o ção
A SOCIEDADE ENFRENTA SUA MÍDIA

um modo totalmente externo e distante, examinar a m ídia e


apontar-lhe os descaminhos. Com base nessa “informação crítica”
assim gerada, os usuários em geral teriam então como se defender.
Ora, nossa perspectiva é que tais pontos “externos” exigem
condições m uito especiais, de d ifícil manutenção e certamente
sem possibilidades, para, daí, oferecer com eficácia, aos usuários
em geral, as suas críticas, interpretações e posições. O que se faz
nessa posição de distanciam ento é com certeza da m aior relevân­
cia para a produção de conhecimento —e deve ser defendido e
preservado. Entretanto, jam ais terá o condão de, diretam ente,
ter algum a incidência sobre os “usuários em geral”, um a vez que
estes dificilm ente estarão em condições concretas de assum ir
idêntico distanciam ento.
Paralelamente, não acreditamos que um ponto de vista “exter­
no” desse tipo possa ter, isoladamente, qualquer incidência sobre a
própria produção m idiática no sentido de cobrar qualidade ou de
apontar (eficazmente, ou seja, fazer superar) os defeitos percebidos.
U m a questão incontornável, então, para a crítica da m íd ia é
a do lu gar de onde esta se o rigina —o que corresponde ao lugar
do crítico ou ainda à perspectiva da qual se vê o objeto a c riti­
car. Um dos ângulos dessa questão aparece na polêm ica entre
Bourdieu (1997) e as proposições de Com te-Sponville e Ferry
(1999). O prim eiro observa os processos m idiáticos a p artir do
campo acadêm ico-científico, único com distanciam ento para
um a análise objetiva, e critica no segundo um a inscrição que
tenta se autojustificar também no campo m idiático. A ssim , a
defesa que os dois “fiiósofos-jornalistas” fazem de um a “crítica
in tern a” da m ídia transforma-se facilm ente na defesa de uma
crítica feita a p a r tir do campo m id iá tico.99

9. 0 que envolve, deve-se dizer, uma certa má vontade com os dois autores. Qualquer que
seja nossa posição sobre suas propostas e mesmo que a critica que lhes faz Bourdieu possa
ser pertinente, é preciso observar que o uso que fazem da expressão "crítica interna" não
corresponde à defesa dessa inscrição do crítico, mas sim envolve a utilização crítica das pro­
messas internas da cultura midiática como critério de cobrança (Comte-Sponville e Ferry,
1999, pp. 411 e 430-434).
DAS INTERAÇÕES SOCIAIS AOS PROCESSOS CRÍTICOS

Nós pretendemos um a posição que diverge das duas alternati­


vas. Não assumimos, com Bourdieu, o campo acadêmico como
único pertinente para produzir interpretações (trata-se, antes, de
inscrever esse campo como um dos geradores de dispositivos
sociais de interpretação da m ídia). Nem adotamos, com Comte-
Sponville e Ferry, um a crítica que deva necessariamente u tilizar
as promessas da cultura m idiática como critério de cobrança (esse
será um critério entre outros possíveis para a sociedade).
Assumiremos que a d ivagem adequada não depende de maior
ou menor aproximação com a m ídia —ou de “aceitar ou recusar”
critérios m idiáticos (“crítica interna x crítica externa”). Relacio­
na-se antes a uma decisão sobre o que observar na crítica:

a) apenas o teor crítico, relacionado a conceitos assumidos sobre


a sociedade; ou
b) observar a crítica enquanto relacionada com seu ponto de
operacionalidade na sociedade, ou seja, enquanto gesto social.
Por essa segunda perspectiva, que assumimos, toda crítica é
interessada e participante —na sociedade. Trata-se então de
reconhecer e observar o ângulo segundo o q u al a crítica se inscre­
ve (ou seja, é necessariamente “interna”, mas não à m ídia, e
sim à sociedade), em contraste com uma pretensão de exte-
rioridade que, evidentemente, apenas a crítica acadêmica
pode alegar (o que não significa necessariamente realizar).

A “internalidade”, pela nossa perspectiva, não se refere à ins­


crição do crítico nem a um a perform atividade m idiática de seu
texto, e sim ao esforço necessário, do analista das críticas, de per­
cebê-las segundo seu ângulo específico de articulação, enquanto
“parte” e gesto social. Assim, para nós, não se trata propriamente
de “defender” uma crítica interna ou de separar a crítica interna
da “crítica externa” para analisar apenas a prim eira, mas sim de
considerar a crítica como uma ação de sociedade, em sociedade, e,
portanto, exam iná-la por suas lógicas, segundo as quais a crítica
fa z p a rte da sociedade. Por definição (pela nossa perspectiva) todas

m u n ir ã o
A SOCIEDADE ENFRENTA SUA MÍDIA

as críticas são internas à sociedade, embora um a parte significati­


va delas se faça a partir de “lugares” (sociais) que procuram se
distinguir, se afastar, de qualquer coisa que se aproxime dos pro­
cessos m idiáticos. Ao se pretender “externa” —isenta das perspec­
tivas da produção m idiática, na verdade adota esse modo específico
de situar-se na sociedade. Há pelo menos duas posições principais
de distanciamento do sistem a de produção m idiática: a da “obje­
tividade acadêmica” e a das posições sociais de tensionamento da
produção e da m ídia. N aturalm ente cada um a dessas posições
principais comporta uma variedade extensa de pontos de vista, de
objetivos e motivações, de interlocuções preferidas.

3. DOGERALAOESPECÍFICO
Ainda permanece muito forte, na análise dos meios de comu­
nicação modernos, a velha divagem entre “apocalípticos” e “inte­
grados”. Na verdade, o embate recrudesceu com a entrada em cena
das redes informáticas, atualizando argumentos em um sentido e
outro. Os primeiros enfocam sobretudo o contraste com situações
anteriores e tendem a uma crítica radical recusadora. Os segun­
dos, voltados para potencialidades e promessas futuras, tendem a
aceitar tudo com um otimismo o mais das vezes ingênuo.
Essas posições caracterizam-se pela expressão de posições aprio-
rísticas e totalizantes sobre a m ídia (tradicionalm ente sobre a
m ídia considerada unidirecional: rádio e televisão, mas agora tam ­
bém sobre a m ídia informatizada, interativa), mais do que por
uma análise que procure fazer diferenças qualitativas e compreen­
der as lógicas e os sentidos, bem como os. lim ites, de processos e
produtos diferenciados. Uma parte significativa dessa crítica ten­
de a inscrever-se em uma ou outra das perspectivas caracterizadas
por Umberto Eco como “apocalípticas” e “integradas”.
Não se trata de adotar uma posição de equilíbrio entre esses
dois extremos, mas sim de recusar radicalm ente essa dimensão
determ inada pelos dois pólos. O problema da reflexão na área não
DAS INTERAÇÕES SOCIAIS AOS PROCESSOS CRÍTICOS

é afirm ar uma tomada de posição (num sentido ou noutro) mas sim


examinar que coisa é essa em construção na e pela sociedade —os
processos midiáticos —em sua realidade histórica. Verificar como isso
parece funcionar (segundo tais e tais critérios adotados e expressos
pelas pesquisas específicas) para assim produzir conhecimentos
sobre os processos midiáticos e as interações que estes engajam.
Fazer perguntas, portanto, e não oferecer respostas apriorísticas.10
É verdade que em tais reações abrangentes (e no ensaio-e-erro
decorrente de tais tomadas de posição) o que a sociedade está fa­
zendo é pesquisar caminhos em busca de modos para lidar com a
situação. Essas posições são, já, evidência de um a ação, na socie­
dade, do subsistem a de interação desta com e sobre a m ídia —um
modo básico de resposta. Ainda que com o objetivo últim o de
confortar a posição inicial, os a p r io r i apocalípticos e integrados, a
cada novo meio ou processo de comunicação, têm gerado respos­
tas, tentativas e experimentação motivada. Mas, com os conheci­
mentos já desenvolvidos sobre os meios de comunicação em
geral, é possível hoje (e desejável) fazer perguntas mais específi­
cas sobre produtos singulares (e sobre sua diversidade organiza­
cional e de objetivos), o que viabiliza perceber estruturações dife­
renciadas, fazer julgam entos mais finos sobre a qualidade e mais
relacionados a critérios expressos (uma vez que “qualidade” não é
um valor absoluto ou definível na ausência de referências sociais).
Sobretudo, é relevante ultrapassar a motivação de apenas “com­
provar” os a p rio ri assumidos, apocalípticos ou integrados.
Assim, supera-se a contraposição entre as posições apocalípti­
cas e as posições integradas quando se analisam produtos especí­
ficos enquanto “obras”, fazendo-se diferenças, categorizações e
qualificações. Essa distinção entre produtos percebidos como
“obras” (e analisados enquanto tal) ocorre mais nitidam ente nos

10. No mesmo sentido, Arlindo Machado (2001) faz uma crítica das respostas abrangentes,
defendendo e realizando a possibilidade de análises sérias sobre produtos específicos na
televisão. Essa obra de Machado, além de ter sido selecionada como um dos dez casos estu­
dados, nos serve de fonte nessa perspectiva critica.

mmhção
A SOCIEDADE ENFRENTA SUA MÍDIA

estudos de cinema do que em relação aos demais meios audiovi­


suais. Os processos e produtos que não mereçam m inim am ente
uma categorização como “obra” não têm recebido correspondente
cuidado de análise.
Em suma: para entender os meios, hoje, é preciso perceber v a ­
riações, ultrapassando uma perspectiva marcada por recusa ou
encantamento em bloco. Não se trata, por esse ângulo da questão,
de observar produtos e processos específicos para neles encontrar e
confirmar perspectivas apriorísticas e afirmadas de modo abran­
gente sobre um meio de comunicação, ou sobre determinados pro­
cessos midiáticos vigentes, mas sim para perceber especificidades
que possam produtivamente tensionar aquelas percepções gerais.

4. CONTIGÜIDADES E TENSÕES

Uma das críticas severas sobre a grande m ídia é afirm á-la co­
mo principal responsável pela desmontagem da esfera pública, do
debate democrático. Essa esfera, espaço de transmissão e base de
decisões entre a esfera da vida privada e as instâncias do poder de
Estado, estaria comprometida pelo fato de a comunicação social
ter-se tomado essencialmente m idiatizada. Com essa m idiatiza-
ção, discute-se sobre a possibilidade de um a “esfera pública
m idiatica — discussão que envolve uma variedade de posições
entre a negação radical e a ilusão de já contarmos com tal instân­
cia sociopolítica. Independentemente de quais sejam as posições
mais válidas nesse debate (e não podemos, é claro, entrar aqui no
mérito da questão)11, uma premissa que consideramos essencial
para o presente estudo é que qualquer hipótese de “esfera pública
m idiática (isto é, um debate social produtivo e aberto sobre
questões de relevância para a sociedade através de processos
m idiáticos) tem que ser precedida pela efetiva existência de deba­
te social produtivo e aberto sobre o s processos m idiáticos.

11. Ver, a respeito desse debate, Wilson Gomes (1998).


DAS INTERAÇÕES SOCIAIS AOS PROCESSOS CRlTICOS

Incluímos, portanto, como precondição para um a esfera pú­


blica m idiática a necessidade de existência de um sistem a de in ­
terações sociais sobre a m ídia que comporte processos críticos
pujantes e auto-reflexivos.
** *

Uma questão instigante e prelim inar é saber se é estrutural­


mente possível, na sociedade, o desenvolvimento de um tal debate,
ou seja, se a m idiatização da sociedade não a coloca de tal modo à
parte de processos reflexivos e argum entativos que qualquer h i­
pótese de debate relevante e aberto sobre os processos m idiáticos
seja descartado ou deva se lim itar a espaços privilegiados, como a
universidade. Entendemos que a possibilidade do debate depende
da existência de contigüidades e tensões entre setores e interesses
sociais suficientem ente autopercebidas para gerar contrastação —
e de autonomia de posicionamento m inim am ente requerida para
determ inar negociações de sentido.
A idéia de contigüidades e tensões corresponde a perceber que
a m ídia e os processos m idiáticos em geral interferem nas ativida­
des de outros setores. Interferências as mais diversas —desde fazer
“a mesma coisa”, mas de outro modo, até “roubar” os antigos
usuários e participantes de outras atividades, comentar, mostrar,
analisar (e, portanto, de algum modo possibilitar deslegitim a-
ções) e até mesmo (em um a sociedade já largam ente m idiatizada)
“esquecer”, não mostrar.
O campo das m ídias aborda a realidade segundo perspectivas
recorrentemente assinaladas como específicas e estruturais (como,
por exemplo, a ênfase no “espetáculo”, a rapidez expositiva e a
im ediaticidade no captar e fazer circular; ou como o estím ulo,
no público, de um a seletividade baseada nessas ênfases etc.).
Essas perspectivas contrastam com outros modos de apreensão e
tratam ento da realidade — de recorte pré ou extram idiatizado,
relacionados a am bientes marcados pela interação presencial
e/ou caracterizados por processos institucionais de longas tradi­
ções e metas sociais (escola, fam ília, política, artes etc.). Esses

com ilão
A SOCIEDADE ENFRENTA SUA MÍDIA

outros modos são constantemente invadidos por solicitações mo-


dificadoras pela perspectiva da m idiatização.
Podemos, portanto, considerar que há contigüidade entre a
m ídia e todas as demais atividades da sociedade que podem ser
referidas (incluídas) ou penetradas pela m ídia e seus processos, e
há tensões porque, ao interferir e eventualmente disputar espaço,
entram em choque (ou tentam se articular) lógicas distintas de
“fazer as coisas”.
Assim, existe potencialidade de tensão da m ídia sobre outras
instituições, uma vez que “mostrar” evidencia, expõe, contrasta,
descontextualiza do circuito habitual das próprias instituições da
sociedade para recontextualizar nos espaços variados da recepção e
nos espaços comparativos da própria mídia. Logo “deslegitim a” e
“põe em crise”. Em contra-reação, surge tensão das demais insti­
tuições sobre a mídia. Mesmo que uma boa parte delas se lim ite a
absorver os processos m idiáticos, o processo mesmo de absorção
gera tensões, pois a articulação entre lógicas diferenciadas (as
“tradicionais” e as m idiáticas) não se faz de modo automático.
Percebemos um quadro potencial de tensões: entre setores da
sociedade e a m ídia; entre meios e processos diferenciados de
comunicação (jornal x televisão; jornalismo x publicidade; entre­
tenimento x cultura ); entre diferentes valores de uma mesma
profissão de comunicação; e ainda entre o sistem a de produção e o
sistem a de recepção. Parece-nos, portanto, poder assumir - ao
menos como hipótese de trabalho —que aquele debate sobre pro­
cessos m idiáticos, por mais embrionário que seja, tem condições
sociais de existência.
Assim , o foco dinâmico de um trabalho crítico sobre a m ídia
deve ser buscado diretam ente nos debates (ainda que pobres e
raros) ativados na sociedade e solicitados pelo jogo de contigüi­
dade e tensões entre a m ídia e os demais setores sociais. Interessará
então, em nossa reflexão e para pesquisas que adotem essa pers­
pectiva, observar diferentes processos e “lógicas” que a sociedade
usa para debater sobre a m ídia, ag ir sobre ela, se defender ou sim ­
plesmente utilizá-la.
DAS INTERAÇÕES SOCIAIS AOS PROCESSOS CRÍTICOS

Por outro lado, onde tais possibilidades não compareçam é pre­


ciso desenvolver uma compreensão sobre as bases dessa lacuna e in­
vestigar a eventualidade de processos outros, aqui não percebidos.
N aturalm ente não pretendemos que o presente estudo cum­
pra uma observação abrangente sobre o trabalho crítico da socie­
dade. Examinamos apenas uns poucos processos e dispositivos,
com o objetivo de verificar a presença e um a certa diversidade de
falas, para examinar o que se pode aprender, prelim inarm ente, a
respeito do sistem a de interações, com base nessa percepção in i­
cial. A observação de casos, adiante apresentada, serve antes para
testar a proposta de construção do sistem a de interações como
objeto de pesquisa do que para um conhecimento detalhado do
estado do sistem a em nossa realidade.

5. PRODUÇÃO, RECEPÇÃOEINTERAÇÕES
Os produtos m idiáticos em circulação na sociedade são fre­
quentemente referidos como m ateriais em torno dos quais se
desenvolve um a interação m idiático-social. Esses produtos são —
com algum a frequência —de baixa qualidade informativa, estéti­
ca e cultural. Paralelam ente, apresentam-se fortes expectativas (e
cobranças) de que esse m aterial m idiático — em função de sua
difusão e acesso generalizado —deveria ter um papel inversamen­
te estim ulante, educativo e voltado para valores humanos e
sociais superiores.
A sociedade sempre desenvolveu, com variedade, sua produ­
ção expressiva. Ao lado de seus processos “de produção’^ sempre
gerou também procedimentos críticos e interpretativos que, me-
talingüisticam ente, “falam ” de seus processos e m ateriais expres­
sivos e das interações sociais que vão sendo tecidas em torno destes.
Por essa perspectiva, e também quando os processos e produtos
que nos interessam são os m idiáticos, é nossa tese que as ações
críticas não se colocam à parte e acim a das interações sociais —são
antes desenvolvidas por meio de dispositivos sociais intrínsecos das

mmhção
A SOCIEDADE ENFRENTA SUA MlDIA

interações. Esses dispositivos funcionariam como apoio, explicita­


ção e desenvolvimento das possibilidades interativas dos tipos de
materiais expressivos para os quais se voltam. Participam das in ­
terações, portanto, como componente direcionador, através das
críticas elaboradas e das seleções e preferências operadas.
Essas relações, de m útua implicação (com contigüidades, mas
também tensões), são facilmente perceptíveis no que se refere à
literatura e às artes tradicionais. Observamos ainda que as rela­
ções de tensão e contigüidade não se desenvolvem em torno de
um processo produtivo genérico (“o livro”, “a m úsica”, “o tea­
tro”...), mas sim , sobretudo, em torno de produtos específicos ou
de conjuntos de produtos (tipos, gêneros, “escolas”, períodos...).
De certa forma, é o conjunto (das produções e das falas, em relação
de contigüidade e de tensão) que constrói, socialmente, a litera­
tura, a música, o teatro.
Concordaríamos que as interações sociais em torno do livro
apresentam exemplos de excelente qualidade, e não só entre espe­
cialistas. Por que as interações sociais em torno dos produtos m i-
diáticos, embora quantitativam ente m uito diversificadas, podem
ser reconhecidas como qualitativam ente pobres?
Quando se trata da m ídia contemporânea, o trabalho crítico
parece ser mais lim itado do que o desenvolvido para os processos
expressivos mais tradicionais. No espaço acadêmico encontra­
mos com freqüência uma crítica de ordem reflexiva “geral” sobre
um meio de comunicação. Essa crítica, m uito voltada para a
observação dos efeitos sociais do m eio, não se preocupa m uito com
; as estruturas específicas deste ou daquele produto. Ou, quando
aborda produtos específicos, o faz freqüentem ente como ilustra­
ção pontual daquilo que atribui aos meios, como característica
geral destes.
Um segundo nível de elaboração crítica, a análise jornalística
de produtos m idiáticos voltada para a singularidade desses pro­
dutos, parece ser dependente da lógica m idiática dominante, e
seu esforço interpretativo é desenvolvido, sobretudo, em torno do
critério básico de “atrair ou não atrair o público”, tendendo assim
DAS INTERAÇÕES SOCIAIS AOS PROCESSOS CRlTICOS

a funcionar como correia de transmissão dos interesses m idiáticos


empresariais, no sentido da “divulgação”.
Um terceiro âmbito de elaboração crítica é o dos setores sociais
preocupados com um a elevação geral da qualidade dos processos
em benefício da sociedade. Podemos referir os diversos setores da
sociedade civil que reiteradamente vêm a público para criticar
determinados excessos televisuais e reivindicar redirecionamen-
tos. Em diversos setores públicos e privados voltados para a edu­
cação, incluindo-se aí a universidade, reiterados esforços para
desenvolver processos educacionais em interface com produções
comunicacionais (na escola ou “a distância”) têm sido feitos. Per­
cebemos, entretanto, que esse direcionamento crítico — o mais
concreto e socialmente voltado para incidências sociais defendi­
das como relevantes —raramente dispõe de instrumentos adequa­
dos a algum tipo de efetivação. Não estamos nos referindo a
instrumentos legais ou políticos, e sim a instrum entos expressivos,
socialmente percebidos como legítim os para produzir resultados
(no sentido de “fazer coisas com palavras”).
Por que tais esforços críticos, nos três âmbitos referidos, pare­
cem sempre desanimadoramente insuficientes ou então apenas
confortadores do sistem a de produção m idiática?
Se déssemos razão aos “apocalípticos”, poderiamos dizer que
os modernos meios audiovisuais seriam , em si, exclusivam ente
adequados a um entretenim ento alienante. Que a objetivação
da im agem (fora de determinados usos especializados ou no
desenvolvimento de tarefas profissionais), por ser simples e facil­
mente “consum ível”, não teria possibilidade de gerar usos in te­
ligentes ou humana e socialmente valoráveis. As interações sociais
em torno desses produtos e processos seriam conseqüentemente
pobres e sim plificadoras.
Sem entrar na discussão detalhada dessa resposta hipotética
apenas assumimos:
a) que essa não se sustenta diante do reconhecimento geral de
um a fortuna cinem atográfica de excelente nível (mesmo

mmhção
A SOCIEDADE ENFRENTA SUA MÍDIA

convivendo com uma grande quantidade de produtos de


baixa qualidade);

b) que uma grande parte das características negativas dos meios


audiovisuais contemporâneos decorre provavelmente dos
usos e interesses comerciais envolvidos, mais que de uma
incompetência “estrutural” dos processos audiovisuais de
comunicação; e

c) que, mesmo dentro dos lim ites impostos por esses interes­
ses comerciais, é possível im aginar desenvolvimentos qua­
litativos de produtos e das interações em torno deles.
Parece-nos razoável sugerir que a história desses produtos é ex­
cessivamente recente para gerar estruturas rigorosas e valoráveis.
Não soubemos ainda desenvolver (com suficiente abrangência e
penetração) dispositivos sociais centrados em processos crítico-
interpretativos capazes de tensionar produtivamente os trabalhos
de criação e produção, nem de eficazmente estim ular, cobrar, ava­
liar e selecionar bons produtos, nem ainda oferecer bases eficazes
para interpretação direta no ambiente do usuário. Temos então
um quadro que (embora reconhecendo m últiplas e relevantes
exceções) poderia ser descrito tendencialm ente como: produção de
baixo valor - dispositivos crítico-interpretativos lim itados
interações sociais pobres.
Entendemos que os processos críticos não são responsabilidade
exclusiva de uma produção distanciada e acadêmica de análise.
Nossa percepção é que, em sua abrangência, um sistem a eficiente
perm earia toda a sociedade (tanto quanto a produção m idiática)
como um componente inalienável da interação m idiática social
ampla.
Observando a existência de um tal sistem a no que se refere ao
livro e às artes tradicionais, e sua situação ainda m uito lacunar
no que se refere a rádio e televisão (e m ais lim itado ainda, embo­
ra m uito promissor, quanto a comunicações informatizadas),
podemos perceber a situação interm ediária em que se encontra o
DAS INTERAÇÕES SOCIAIS AOS PROCESSOS CRÍTICOS

cinema. Como assinalamos acim a, um dos possíveis estim ulado-


res da interação social am pla em torno do livro, do teatro e do
cinema é o fato de que a crítica debate não só o “m eio” e seus pro­
cessos em termos abstratos e gerais, mas sobretudo analisa,
comenta e interpreta (inteligentem ente) os seus produtos especí­
ficos, relacionados a sua formulação, seus objetivos e suas inci­
dências sobre o público usuário.
É possível, portanto, fazer a premissa de que, quanto mais de­
senvolvidos sejam os dispositivos críticos, mais provavelmente
eles se voltam para uma análise de produtos específicos (e menos
para análises do meio em sua generalidade); mais se tornam com­
petentes para fazer distinções refletidas entre tipos e gêneros, rela­
cionadas a seus usos disseminados na sociedade; e, finalmente, mais
competentes em interpretar estruturas e processos (em vez de sim ­
ples e impressionisticamente “ju lgar” bom ou mau um produto).
Outra premissa que podemos adotar é que um sistem a de
interações sociais sobre a m ídia bem desenvolvido se tom a com­
petente para, no conjunto e a longo prazo, “ag ir” positivamente
sobre o sistem a de produção, induzindo qualidade, pelo menos
em algum as linhas de produção.
Ao mesmo tempo fornece bases, vocabulário e critérios para os
usuários em seu esforço de seleção, interpretação e “edição” dos
produtos com que se defrontam.
* **

i Superamos já um a percepção (vigente pelo menos até os anos


1980), de que os usuários dos meios ditos “de massa” seriam
homogêneos, passivos e, portanto, facilmente m anipuláreis. Re-
conhece-se hoje um a possibilidade de resistência (basõàda em
mediações culturais extram idiáticas) do “receptor”. Mas, se o “re­
ceptor” resiste, isso não significa necessariamente que faça as me­
lhores interpretações, os melhores usos. Sente-se então a necessi­
dade de “ensinar o usuário” a fazer bom uso dos meios. Entretanto
isso arrisca levar aos usuários em geral interpretações feitas pelos
setores intelectualm ente desenvolvidos da sociedade — com a
A SOCIEDADE ENFRENTA SUA MÍDIA

pretensão de serem as mais verdadeiras (o que seria uma contra­


dição com a premissa do “receptor ativo”).
Assim, o desenvolvimento de competências do usuário parece
exigir processos sociais mais complexos do que apenas “ensinar
uma postura crítica” em perspectiva didática.
Três questões principais, relacionadas entre si, podem ser co­
locadas com relação ao desenvolvimento de competências usuárias
para interagir com a m ídia: como as pessoas selecionam (em um
dado meio) os produtos de que serão usuários; a questão das com­
petências interpretativas\ e o que é necessário para que os usuários
desenvolvam autonom ia interpretai iva.
A questão da seleção hoje se torna candente, seja pela m u lti­
plicação da oferta, no caso da televisão, com os canais a cabo ou
por satélite, seja pela questão instigante de seleções-e-percursos
na internet. De que competências as pessoas dispõem para fazer
essas seleções? Qual o estágio de competência da sociedade no
que se refere a “saber fazer seleções”?
As competências interpretativas não são alheias às competências
de seleção. Percebemos hoje o receptor como “ativo” e eventual­
mente “resistente”. Pesquisadores da linha de reflexão voltada
para o reconhecimento do “receptor ativo” desenvolvem trabalhos
no sentido de uma formação para a “leitura crítica dos meios” [e
para a m edia education (“educação para os meios”)]. Isso envolve a
questão das possibilidades interacionais dos meios de comunica­
ção e de seus produtos. Como, em que condições, através de que
processos (m idiáticos e extram idiáticos), os usuários são (ou po­
dem se tornar) competentes para fazer boas “edições” sobre a pro­
fusão de m ateriais informativos, estéticos e de entretenimento,
de modo que os u tilize no seu melhor interesse?
A questão da “edição” (elaboração de relações entre o que se
recebe pela m ídia e os interesses pessoais do usuário) leva à ques­
tão da autonomia interpretativa. Entendemos que essa “autono­
m ia” (como capacidade de fazer boas seleções e interpretações em
função de critérios válidos e auto-expressos) depende de condições
cu ltu ra is m ais que in d ividu ais. Nesse sentido, acreditamos, é que se
DAS INTERAÇÕES SOCIAIS AOS PROCESSOS CRlTICOS

colocam as perspectivas sobre mediações propostas por M artín-


Barbero. Entretanto, essas mediações são geralm ente vistas como
competências culturais extram idiáticas e resultantes de processos
outros, em um certo sentido “anteriores” ou que sobrevivem em
casulos não totalm ente penetrados pela m ídia.
Quando o usuário se encontra em situação de exposição e
acesso total à m ídia (ao mesmo tempo em que outras inserções
extram idiáticas tendem a se fazer menos fortes), que mediações
restariam para oferecer um “ponto de apoio” a um a interpretação
independente?
Essas questões, referentes aos processos seletivos, às competên­
cias para elaborar crítica e “edição” pelo usuário, no seu próprio
interesse e segundo suas perspectivas, dizem respeito, portanto, ao
desenvolvimento de “autonomia interpretativa”. Tudo isso depende
da existência, na sociedade, de um bom subsistema de interações
sociais sobre a m ídia, incluindo variedade e penetração social de
dispositivos críticos (no sentido abrangente que demos no início
deste capítulo).
Tais questões não são estranhas ao trabalho crítico. Não se tra­
taria, portanto, de “ensinar o usuário a se defender da m ídia”, ou
dizer-lhe como deve interpretar (com o risco conseqüente, acima
referido, de levar ao usuário em geral interpretações prontas,
assumidas como verdadeiras, elaboradas pelos setores intelectuais
e políticos “críticos”); mas sim —através da diversidade oferecida
pelo sistem a de interações sociais — estim ular um a cultura de
opções pessoais e de grupos que qualifique os usuários a fazerem
sua própria crítica, por sua conta e risco. Esse trabalho crítico , difu­
so e variado, desenvolvido pela sociedade, seria o componente
mais relevante e o indicador mais precioso de um bom è sólido
sistema de interações sociais.
^^^

Embora nossa constatação seja que o desenvolvimento do sub­


sistema de interação social sobre a m ídia é ainda mtiito prelim inar
(particularm ente no que se refere à televisão), isso não im plica

cm%ção
A SOCIEDADE ENFRENTA SUA MÍDIA

desconhecer a existência de processos e dispositivos disseminados


na sociedade e na própria m ídia, voltados para um trabalho analí-
tico e interpretativo, ou seja, o sistem a é frágil e lacunar, mas
existe. Paralelamente, observamos o reduzido conhecimento
disponível sobre esse subsistema, a ponto de que nem sequer é
considerado em perspectiva sistêm ica. As falas sobre a m ídia apa­
recem antes como uma atividade externa e distante do “m idiático”,
ou então, pelo contrário, como inteiram ente envolvidas no sub­
sistem a produtor e dependente deste.
O estudo organizado e plural do sistem a de resposta social
perm itiría observar suas insuficiências: de que derivaríamos pro­
posições sobre o que deveria caracterizar um sistem a mais denso,
mas também constatar a presença de boas experiências, estim ula-
doras de maiores desenvolvimentos.

6. 0 TRABALHOCRÍTICOCOMODINÂMICASOCIAL

Com as perspectivas ate aqui desenvolvidas, é agora possível


resum ir o que seriam as principais características gerais do tra­
balho critico voltado para o desenvolvimento das interações
sociais m idiáticas.
Este trabalho e compartilhado por uma m ultiplicidade de ins­
tâncias e de geradores de elaboração crítica na sociedade, incluindo
universidades, editoras, as diversas instituições públicas não-go-
vernamentais e privadas interessadas na qualidade e na efetiva
igualdade de acesso às disponibilidades e participação, grupos de
interesse auto-organizados criadores de críticas individuais, e ain­
da setores da própria m ídia.
Correlata a essa m ultiplicidade de instâncias geradoras do tra­
balho social crítico, existe um a variedade de objetivos, enfoques,
tendências sem predomínio de uma atribuição principal.
Com essa m ultip licid ad e de origens e de abordagens, o siste­
ma tem a possibilidade de expressar distinções e comparações
DAS INTERAÇÕES SOCIAIS AOS PROCESSOS CRlTICOS

qualitativas entre diferentes produtos e entre diferentes proces­


sos. Isso significa que produz critérios e com petência para ob­
servar especificidades e estudar variações —de produto a produto,
de gênero a gênero, de resultados expressivos, de circunstâncias
de apreciação, de qualidade das interações efetivadas —e tudo o
mais que estim ule um conhecimento dos usos que a sociedade
faz no espaço m idiático, desde a produção até os diversos usos e
interações.
Um bom trabalho crítico tem ainda a capacidade de oferecer
critérios diferenciados para orientar interpretações no nível do
senso comum, que possam ser elaboradas pelo usuário “não-esco-
lado”, não-intelectual, mas ainda assim com adequação e a servi­
ço de seus próprios interesses e percepções sobre o mundo, o que
significa uma ampliação de suas competências de autonomia
interpretativa e de escolha.
Observamos que nossa concepção de autonomia interpretativa
não envolve apenas a capacidade de entender um produto m id iáti­
co, e, portanto, expressar seus significados em função de critérios
previamente assumidos. Inclui também —e sobretudo —a capaci­
dade do usuário de relacioná-lo com outros produtos, de desen­
volver relações entre características do produto em observação e
questões do mundo e de sua vivência pessoal e social, de perceber
diferentes perspectivas sobre o tipo de produto - em suma, inserir
o produto em um conjunto de relações pertinentes para, assim,
fa z er uso dele segundo seus próprios interesses.
Nesse sentido, as relações de fluxo entre as dinâmicas críticas
na sociedade e os processos de recepção - as práticas do sistema
usuário —deveríam ser intensas, pois só é possível ofereça: crité­
rios interpretativos estim uladores de autonomia crítica quando
se conhece bem os processos vigentes nos usos e nas interações
habituais e estabelecidas. Por sua vez, a disponibilidade da crítica
precisaria ser am pliada, deveria ser acessível, e não distante -
teria que circular entre os diversos ambientes e patamares, de
modo que ultrapasse as trocas entre co-participantes de uma mes­
ma tendência ou de um mesmo “círculo de iniciados”.

munição
A SOCIEDADE ENFRENTA SUA MÍDIA

Finalm ente, os dispositivos críticos deveriam ter fortes rela­


ções de fluxo com os processos produtivos12, gerando a possibili­
dade de efetivas incidências sobre a qualidade de produção e o
aperfeiçoamento dos processos sociais m idiáticos. Isso significa­
ria não só a capacidade de expressar m últiplos pontos de vista
sobre as qualidades estéticas e sociais dos produtos em circulação,
mas, através da legitim idade social obtida, ter a possibilidade de
colocar padrões qualitativos e baremas de valor para a própria
produção, seus gêneros e formatos.
Colocadas as coisas nessa perspectiva, é evidente que estamos lon­
ge, no Brasil —no que se refere ao conjunto de interações sociais
midiatizadas —, de dispor de uma boa abrangência e diversidade de
dispositivos críticos. Em coerência com nossa posição acima expres­
sa, de que o sistema m idiático é formado por relações de fluxo
entre três subsistemas —produtivo, usuário e de interações —, en­
tendemos que os processos sociais m idiáticos dependem de um
desenvolvimento correlato dos três componentes do conjunto. Não
parece possível dispor de produções de qualidade sem que haja
correlatamente bons espaços de leitura e boa oferta crítica. Não
parece possível am pliar qualitativam ente a boa interpretação do
usuário sem um desenvolvimento correlato na produção e na oferta
e uso de critérios críticos e interpretações.
Se concordamos em que não se dispõe de uma boa abrangência
crítica, para obter avanços nessa direção é preciso, então, fazer a
crítica da crítica. E para isso o primeiro passo é conhecer com mais
detalhes os dispositivos críticos de que efetivamente dispomos.
* * *

Os subsistemas de produção e de uso (recepção) têm sido


razoavelmente bem estudados, a tal ponto que podemos perceber
hoje com clareza o caminho percorrido desde os anos 1970 (quan­
do se iniciaram os programas de pós-graduação em comunicação

12. Lembrando que isso não significa relações institucionalizadas, mas sim, predominante­
mente, incidências baseadas na credibilidade e na legitimidade de seu discurso.
DAS INTERAÇÕES SOCIAIS AOS PROCESSOS CRÍTICOS

no Brasil). Entretanto, os dispositivos crítico-interpretativos têm


sido pouco observados —pelo menos pela perspectiva de inserção
em um conjunto mais amplo, do qual sejam vistos como parte
constitutiva.
Para desenvolver perspectivas m ais concretas sobre como esse
subsistema deveria ser criticado —e, portanto, estim ulado —, é
preciso conhecer mais a variedade de lógicas em efetiva ação na
sociedade, suas lacunas, seus pontos fortes, suas ineficiências
concretas e específicas. Na substância, é preciso realizar uma des­
crição crítica das “lógicas” atualm ente presentes no trabalho críti-
co-interpretativo das interações m idiáticas, cotejando diferenças,
por exemplo, entre os dispositivos voltados para o livro, o cinema,
o jornal diário, o rádio, a televisão, as redes informáticas.
A busca de respostas mais efetivas à questão solicita a observa­
ção de materiais diversificados do subsistema de interações sociais,
para perceber lógicas principais aí presentes, em sua diversidade e
seu momento histórico, para analisar suas potencialidades de inci­
dência sobre o sistema de produção e para verificar a possibilidade
de desenvolvimento de critérios e “modos de dizer” que ofereçam
lugares de fala adequados a uma utilização por usuários na constru­
ção de sua própria autonomia interpretativa. O ângulo do traba­
lho de observação e reflexão corresponde a procurar perceber as
características do subsistema que o situem como componente ativo
e relevante nas interações entre a sociedade e sua mídia.
Interessará, sobretudo, perceber como a crítica se põe como
mediadora entre o produto, o trabalho de produção e o usuário,
que interações desenvolve com o produto e que discurso dirige ao
seu “leitor” (usuário) para direcionar aquela interação. *
A busca de respostas envolve também uma construção concei­
tuai do trabalho crítico-interpretativo, baseada em referências
aos principais processos e perspectivas vigentes do “fazer crítica”
sobre m ídia. Essa construção conceituai deve ser voltada para
uma ampliação e uma diversificação do escopo da crítica, em fun­
ção de seus objetivos sociais.

mmh ção
3

INVESTIGAÇÃO EXPLORATÓRIA:
OBJETIVOS E PARÂMETROS

objetivo de analisar exemplares concretos e singulares de

O crítica e de dispositivos, no presente estudo, relaciona-se,


sobretudo, com o interesse de testar a hipótese prospectiva
de um sistema de interação social com a m ídia - e sua potencialida­
de como modelo organizador de processos midiáticos que efetiva­
mente viabilize as expectativas expressas nos dois capítulos iniciais.
Tais expectativas comportam três ângulos de estudo:

a) observar e sistem atizar lógicas do processo crítico-in terpretativo


sobre a m ídia que se manifestam no sistem a social de inte­
ração m idiática (sistem a de resposta);
b) desenvolver, com base no conhecimento empírico assim obti­
do, a construção do conceito de “sistema de resposta” enquanto
âmbito constituído pelos dispositivos críticos aí elaborados;
c) a partir de inferências sobre o estado das coisas, no que se
refere aos processos crítico-interpretativos encontrados e

mmèçãQ
A SOCIEDADE ENFRENTA SUA MÍDIA

suas lógicas, elaborar reflexões prax iolâgicas sobre o sistema


de resposta e os dispositivos, apresentando propostas p relim i­
nares p a ra um a crítica da crítica.

Esse conjunto de objetivos direciona tanto as seleções feitas


como o tratamento dado aos materiais selecionados. A parte em pí­
rica da pesquisa se concentra na observação das lógicas críticas
encontradas no sistema de resposta através do estudo de dez casos
concretos de dispositivos sociais. A preocupação com os dois outros
ângulos alim enta os procedimentos de investigação, mas resulta
em reflexões ordenadas apenas nos capítulos de conclusão.
O estudo de materiais empíricos relacionados ao sistema social
de respostas se coloca como preferência diante de duas outras
opções para o desenvolvimento do tema: o esforço de aprofunda­
mento teorizante e a descrição sistem ática como mapeamento de
atividades críticas em uma determ inada abrangência social e
geográfica.
A caracterização teórica do sistema, em nossa perspectiva, de­
pende muito mais de um eventual sucesso da hipótese prospectiva
do que de uma elaboração abstrata prévia. Os dois capítulos ante­
riores desenvolveram o avanço possível na ausência de marcos
experimentais e de pesquisa. Para além desse ponto, a elucubração
dedutiva e abstrata estaria em contradição com posições assumi­
das acima, a respeito da relevância de observações específicas. O
objeto conceituai “sistema de interação social sobre a m ídia” (ou
“sistema social de resposta”) só terá validade na m edida mesmo de
sua competência prospectiva: como heurística para ampliar, via
trabalho de observação, de comentário e de pesquisa, o conheci­
mento sobre processos m idiáticos. Trata-se, afinal, de uma hipóte­
se operacional p a ra o estudo de procedimentos reais de existência
social, e não de uma “explicação” abstrata sobre os processos.
O mapeamento, por sua vez, exigiría uma extensiva cobertura,
sistem ática de toda uma variedade de processos. Deve-se observar,
entretanto, que nem sequer conhecemos a abrangência do sistema
de interações sociais sobre a m ídia - sobre o qual se poderia discutir
INVESTIGAÇÃO EXPLORATÓRIA: OBJETIVOS E PARÂMETROS

sem chegar a consenso mínim o. Um mapeamento pediria ainda


critérios classificatórios internos para que a diversidade fosse or­
denada de modo consistente. Como é evidente, não dispomos ainda
de tais critérios, que, por sua vez, dependem de um maior conhe­
cimento sobre a variedade dos processos em circulação.
Seria, portanto, prematuro pretender tais abordagens. Tendo
elaborado a hipótese de um sistem a de interações sociais sobre a
m ídia a partir da constatação em pírica de “críticas” e “falas” em
circulação na sociedade, consideramos que a observação organiza­
da de alguns casos concretos deve perm itir um a apreciação p reli­
minar da eficiência prospectiva da hipótese. Essa opção, por sua
característica exploratória, parece ser também a mais adequada ao
estado atual de conhecimento sobre o tema.

1. COMENTÁRIOS EDISPOSITIVOS
A idéia de “crítica” corresponde ao nível discursivo mais m a­
terial entre as elaborações referentes a produtos ou processos m i-
diáticos. A expressão identifica comentários singulares sobre a
m ídia. É sujeita, assim, ao artigo indefinido —“um a crítica” —ou
ao plural —“as críticas” —por contraste com a expressão “A C ríti­
ca”, que deve caracterizar o estudo de tais comentários.
Com essa perspectiva, podemos dizer que críticas m idiáticas
são trabalhos explícitos sobre determinadas produções da m ídia,
baseados em observação organizada de produtos, com objetivos
(expressos ou im plícitos) determinados por motivações sociocul-
turais diversas e voltados para o compartilhamento, na sociedade,
de pontos de vista, de interpretações e/ou de ações sobre os pró­
prios produtos (ou tipo de produtos), seus processos de produção
e/ou seu uso pela sociedade.
Não estamos tratando apenas de críticas peritas (acadêmicas ou
de jornalismo cultural), que mais frequentemente são reconheci­
das pela atribuição do rótulo “crítica”. Estas, embora exerçam,
sem dúvida, ações (pois fazemos coisas com palavras), devem ser

murarão
A SOCIEDADE ENFRENTA SUA MÍDIA

alinhadas, sobretudo, pela perspectiva de “interpretação”. Incluí­


mos também toda aquela variedade de “falas” e “comentários” que,
motivados por interesses os mais diversos, usam a formulação dis­
cursiva expressamente para agir e defender ações sobre a m ídia em
qualquer das perspectivas que denominamos acima “trabalhos crí­
ticos da sociedade”. E, ao fazê-lo, fazem resultar daí interpretações.
Por isso mesmo são utilizadas as expressões “crítica”, “comentá­
rios”, “falas” e “textos” como relativamente intercambiáveis dentro
do conjunto estudado. Como vimos no primeiro capítulo, porém,
alguns dispositivos do sistema social de resposta, embora “falas
sobre a m ídia”, não recaem no conceito de “críticas”.
As falas, comentários e críticas formam assim um prim eiro
patam ar no qual podemos apreender manifestações do sistem a
de interação social sobre a m ídia. Entretanto, apesar da prolife­
ração de falas singulares, estas não são necessariamente su i gen e-
ris. Nossa fala é sempre singular na sua especificidade m aterial e
na perspectiva individual do falante e de seus interlocutores,
mas também faz parte de processos sociais mais gerais, dentro
dos quais se inscreve —falamos dentro de categorias discursivas
(sociais, portanto) que nos oferecem padrões dentro dos quais
exercemos nossa estratégia específica.
As falas sobre a m ídia tendem a se caracterizar segundo pa­
drões, pois raramente uma fala seria inteiram ente original em
forma, conteúdo, objetivos e procedimentos. Assim, quando es­
crevo um a crítica ou comentário sobre um produto m idiático,
tipicam ente conformo minha proposta (em maior ou menor grau)
a padrões mais ou menos habituais, que possam ser reconhecidos
e encontrar entendimento. A existência desses padrões de reco­
nhecimento requer elementos básicos suficientem ente reiterados.
Os padrões ou matrizes formam a base discursiva que suporta a
variedade e abrangência de falas específicas requeridas para tratar
dos objetos analisados (com suas especificidades e ângulos prefe­
renciais) e para elaborar variações de apreciação.
A sociedade nos oferece, constantemente, esses dispositivos so­
ciais para “com eles” expressarmos a singularidade de nossa fala.
INVESTIGAÇÃO EXPLORATÓRIA: OBJETIVOS E PARÂMETROS

É claro que tais matrizes não são totalm ente im positivas nem
têm qualquer origem transcendental —decorrem, na sociedade,
diretamente das próprias práticas sociais. Vão sendo lentam ente
construídas a p artir de falas e processos discursivos que, de mo­
do etnometodológico (isto é, segundo práticas grupais, tentativas
para resolver problemas concretos), se elaboram por aproximação
sucessiva.
Se há “crítica” sobre a m ídia na sociedade, é possível identifi­
car dispositivos sociais segundo os quais essa crítica é tendencial-
mente versada. Assim, a interação social sobre a m ídia —o sistema
de resposta —não depende apenas de excelentes críticas pontuais,
ainda que estas sejam pertinentes e agudas. Depende ainda, e
sobretudo, de que bons e vários dispositivos sejam socialmente
gerados e de que estes sejam “produtivos”.
Entendemos por produtividade de um dispositivo social de
trabalho crítico sobre a m ídia que este:
a) gere uma boa fortuna crítica, sendo variadamente utilizado
para (em diferentes processos de autoria) elaborar comentá­
rios pontuais; e
b) seja de forte disseminação na sociedade, isto é, que diferen­
tes usuários da m ídia desenvolvam competências para inte­
ragir com tais dispositivos e por meio deles —reconhecendo as
críticas e comentários pontuais que no seu âmbito se elabo­
rem. Com base nesses critérios, o dispositivo ultrapassa a
situação de “coleção de comentários” elaborados nos seus
termos, para efetivamente circular — ser comentado, ser
cotejado com outras perspectivas e, particularm entej forne­
cer padrões para falas e apreciações pela sociedade.

2. A DIVERSIDADEDEOBJETOS
Quando observamos comentários e dispositivos críticos caracte­
rizados pela ótica de pertencimento a um sistema social de resposta,

mmhção
A SOCIEDADE ENFRENTA SUA MÍDIA

percebemos a grande diversidade de m ateriais que se oferecem e


teriam direito de ingresso naquele hipotético mapeamento do
sistema: debates na televisão e no rádio sobre a m ídia; colunas em
jornal, de personalidades extram idiáticas, representando in stitu i­
ções sociais; comentários críticos sobre processos de comunicação
interm ediada por computador (redes); grande variedade de obje­
tos caracterizados como “críticas da m ídia” no âmbito acadêmico,
em diferentes linhas e tendências; as publicações, em livro, de
crítica cinem atográfica; críticas sobre música popular; estudos
sobre a programação radiofônica; a pouco difundida, mas existen­
te crítica de m ateriais publicitários; o complexo conjunto carac­
terizado como “jornalismo cultural”; todo o vasto setor educacio­
nal que pode ser referido como o esforço de formação para “leitu ­
ra crítica dos meios” e para “educação m idiática”.
Podemos acrescentar ainda: depoimentos de profissionais da
comunicação que elaboram reflexões sobre o próprio exercício
profissional; matérias jornalísticas e colunas “de jornalistas” em
que se comenta o papel ou os processos da m ídia ou de determ i­
nados veículos; cartas de leitores em jornais ou revistas em que o
comentário sobre a m ídia ultrapassa o simples desacordo sobre a
informação dada ou a autodefesa diante destas; expressões jorna­
lísticas de autocontrole, como os conselhos de leitores e as colu­
nas de ombudsmen; sites na internet voltados especificamente para
comentários sobre m ídia e comunicação.
Incluímos ainda como dispositivos críticos pertinentes todos
aqueles processos voltados para o controle social da m ídia, em
defesa da sociedade, de posições éticas, de qualidade profissional
e do bom atendimento ao usuário de informações e entreteni­
mento m idiáticos.13
Dentro de qualquer dos tipos de materiais referidos, outros ângu­
los de diversidade se apresentam; quanto ao veículo, encontramos

13. Claude-Jean Bertrand (1998, p. 112) propõe uma listagem de 32 media accountability
systems - dispositivos sociais voltados, segundo diversos ângulos e processos, para a presta­
ção de contas à sociedade pela mídia.
INVESTIGAÇÃO EXPLORATÓRIA: OBJETIVOS E PARÂMETROS

comentários e críticas em livros, jornais, artigos acadêmicos, deba­


tes de televisão e rádio, e agora, crescentemente, uma circulação de
processos em rede informatizada (blogs, listas de discussão, sites). O s
objetos preferenciais abordados são também diversificados: produ­
tos dos vários meios de comunicação, gêneros televisuais e radiofô­
nicos, produções na internet que vão começando a adquirir alguma
especificidade de formato, filmes, relações específicas percebidas
entre produtos e usuários, modos de endereçamento e construção do
leitor/espectador, a substância narrativa de materiais midiáticos...
Enfim, tudo o que possa ser produzido, ativado e processado pela
mídia torna-se, ipso fa cto, tema e sujeito potencial de abordagem pa­
ra comentários que, por sua vez, passam a circular.
Finalm ente, os objetivos e ângulos de div agem dos comentá­
rios são diversos: interesse pela qualidade profissional, objetivos
estéticos, preocupações éticas, metas pedagógico-form ativas (da
produção e da sociedade), questões políticas, de esfera pública,
de cidadania, objetivos de qualidade na fruição e no entreteni­
mento. Seja porque os críticos enfocam questões específicas dife­
renciadas sobre o mesmo meio de comunicação, seja porque suas
táticas e processos de observação apreendem faces variadas do
objeto, seja porque os objetivos de cada crítica são outros, vemos
surgir das críticas diferentes objetos, mesmo quando seu tema
geral é a mesm a m ídia.
Isso corresponde a dizer que, a p artir de tais críticas, vários
“objetos” (várias questões relevantes, vários ângulos de reflexão)
se desvendam em um meio de comunicação e no conjunto de pro­
dutos aí gerados. O papel de uma crítica socialmente disponível é
mesmo este: trazer à tona tais “objetos”, desvendá-los, (refletir
sobre eles, e tornar essas percepções disponíveis até que a socieda­
de em geral se torne competente para exercer (variadamente, con­
forme as preocupações e interesses de cada um) seu esforço de
entendimento, reflexão e ação.

comnh ç ã 0
A SOCIEDADE ENFRENTA SUA MÍDIA

76
3. ASELEÇÃODEMATERIAIS PARAOBSERVAÇÃO
Não tendo a pretensão de mapear a diversidade de lógicas
segundo as quais a m ídia é observada pela sociedade ou através
das quais a sociedade tenta interagir criticam ente com a m ídia, as
análises de m ateriais empíricos apresentadas adiante não têm,
igualm ente, a pretensão de se caracterizar como amostragem re­
presentativa daquela extraordinária diversidade.
Trata-se antes de testar a possibilidade de reflexões transversais,
submetendo todos a um mesmo esquadrinhamento. Se esse trata­
mento comum for produtivo, em termos de conhecimento, confir­
ma-se a perspectiva de que podemos “construir” esse patamar em
que todos fazem parte de um mesmo “objeto de observação” —o sis­
tema social de resposta. Podemos, além disso, obter percepções para
a compreensão de lógicas em funcionamento nesse sistema.
Levantamos, assim, um certo número de interações e de p arti­
cipações da sociedade nos processos m idiáticos, envolvendo re-
flexividade. Em seguida, através do cotejo entre as lógicas perce­
bidas, examinamos criticam ente o que se aprende de sua inclusão
conjunta, como componentes do sistem a de interações sociais
sobre a m ídia.
Desse modo, o estudo de um pequeno subconjunto de em píri­
cos representa apenas um esforço inicial na construção de tal
patamar, em que uma “crítica m idiática” (como parte do sistema
de interações sociais sobre a m ídia) seja ao mesmo tempo auto-
refletida e voltada para a complexidade do objeto geral no qual se
encontram engastados seus objetos específicos de enfoque.
Para selecionar os casos de estudo, decidimos abordar m ate­
riais acessíveis, o que atende ao interesse de considerar comentá­
rios com boa disponibilidade e circulação. Acreditamos ter asse­
gurado, pela diversidade de casos, a presença de lógicas variadas,
perm itindo comparações e compondo o que poderiamos chamar
de uma “topografia lacunar”. Uma vez estabelecidas algum as
coordenadas, ainda que poucas e provisórias, será possível, em
INVESTIGAÇÃO EXPLORATÓRIA: OBJETIVOS E PARÂMETROS

77
estudos posteriores, complementar e corrigir, prefigurando o que
possa vir a se desenvolver como uma crítica significativa da críti­
ca sobre a m ídia.
O resultado dessas decisões compõe os dez capítulos que se
seguem14:

pscola de Ciência da Informação da UFMG


BIBLIOTECA "PR0Ea ETELVINA LIMA”
* Autocríticas em jornais (colunas “Ombudsman” e “Conselho
do Leitor”)

® O site Observatório da Imprensa


9 Cartas de leitores em jornal diário
9 Quando a m ídia é notícia
9 Ricardo N oblat —A arte de fazer um jornal diário
9 Luís N assif —O jornalismo nos anos 90
9 Arlindo Machado —A televisão levada a sério
* C rítica jornalística de cinema
9 O site Ética na TV
9 C rítica jornalística de televisão?

Para atender ao objetivo de testar a possibilidade de reflexões


transversais entre esses m ateriais diversos, adotamos alguns parâ­
metros que, examinados em cada um dos dez casos, nos esclare­
cem sobre as lógicas básicas de funcionamento do trabalho crítico
que exercem, perm itindo ao mesmo tempo cotejá-los em suas
especificidades e fazer inferências sobre o sistem a de intefação de
que participam .
Observe-se que selecionamos “críticas pontuais” e “dispositi­
vos”. As críticas podem ser inscritas em dispositivos (que pode­
ríam também merecer estudos através de um a análise mais

14. Ver ao final da bibliografia a referência detalhada dos casos observados.

mmhção
A SOCIEDADE ENFRENTA SUA MÍDIA

diversificadora que a de “um caso”)- Os dispositivos, embora obser­


vados em características mais “generalizadas”, ainda assim com­
parecem na forma dos m ateriais específicos que foram abordados.

4. PARÂMETROS
Afirmamos já que a análise de comentários empíricos compo­
nentes do sistema de interações sociais sobre a m ídia seria feita
em busca das “lógicas” que os sustentam. Entre os vários ângulos
que podem ser observados para inferir as lógicas de funcionamen­
to das críticas e dispositivos, acreditamos que os mais básicos
correspondem às seguintes investigações:
a) analisar o ponto de vista de onde o comentário se faz e as
articulações entre o comentário e a coisa comentada, o que
envolve também procurar compreender o sistem a de conti-
güidades e tensões entre a posição assumida e as questões
m idiáticas referidas;

b) tentar perceber os objetivos e as motivações relacionadas


àquele ponto de vista e ao sistema de continuidades e tensões;
c) observar os interlocutores propostos pelo comentário, o al­
cance e o âmbito de circulação previsto no comentário.
Nossa abordagem principal para a descrição dos casos foi a
busca, em cada um deles, de indicadores para os parâmetros refe­
ridos acim a. Esses parâmetros são explicitados a seguir.

4.1. Ponto de vista e relações entre a crítica e o objeto criticado


O “ponto de vista” de uma crítica corresponde à inscrição de seu
autor na sociedade e, particularmente, no âmbito em que os produ­
tos se fazem e circulam. Quando se trata de um tipo ou “gênero” de
crítica (mais que de autorias individuais), corresponde ao “lugar”
oferecido pelo gênero que pode ser ocupado pelos autores de críticas
INVESTIGAÇÃO EXPLORATÓRIA: OBJETIVOS E PARÂMETROS

específicas elaboradas dentro desse gênero. O ponto de vista não é,~]


porém, apenas a posição expressamente assumida pelo crítico, mas \
já um indicador relacionai entre ele e o que escolhe criticar. *
Deve-se im aginar, é claro, uma relação de interesse pela coisa
e, na m edida mesmo desse interesse, uma vontade de elucidá-la,
de (problematizando-a) corrigi-la e/ou compreendê-la. É por isso
que as relações entre a crítica e a coisa criticada envolvem conti-
güidade e tensão. Conforme o crítico, o tipo de crítica e o objeto
criticado, podem prevalecer os elementos de apreciação (explica­
ção, apreensão, compreensão, fruição) ou os elementos de “ata­
que” (reparos, verberação, cobrança de avanços, denúncia de
equívocos, desmontagem, recusa). Mas, no conjunto da crítica , é o
jogo vário entre a contigüidade e o tensionamento que produz e
estim ula as competências interpretativas que perm item d istin gu ir
e apreender os objetos em sua singularidade e especificidade.

4.2. Objetivos e motivações


Os objetivos e motivações da crítica m idiática são talvez o
espaço de maior variedade entre os parâmetros aqui considerados.
Assim como a m ídia pode incluir todo e qualquer objeto e pro­
cesso social e neles penetrar, modificando procedimentos, escopos
e resultados, as preocupações diretas com tais processos (que,
antes da m idiatização generalizada da sociedade, se desenvolviam
em espaços próprios, ou pelo menos mais “protegidos”) tornam-
se outros tantos objetivos e motivações para observar e criticar a
m ídia. Gera-se assim um a série de clivagens relacionadas a pers-i
pectivas políticas, sociais, culturais, de defesa de reivindicações e
questões sentidas como relevantes para a sociedade ou setores
organizados desta.
Além disso, os interesses e preocupações dos usuários podem j
também variar: com relação aos valores éticos, estéticos e informa- ;
cionais, à qualidade do entretenimento, aos processos narrativos etc. :
Uma parte da crítica tem como motivação defender os interesses^
dos usuários e analisar como estão sendo atendidos. Os objetivos e

mmhção
A SOCIEDADE ENFRENTA SUA MÍDIA

valores profissionais entram também em linha de conta como moti­


vadores da critica, a partir de posições de deontologia profissional,
de escolas e tendências sobre o exercício da produção, de defesa das
categorias envolvidas, de valorações simbólicas relacionadas à pro­
fissão, de posições reformadoras sobre um exercício criticado.
Em articulação com esses variados objetivos e motivações, de
modo subsumido ou principal, surgem também as preocupações
formadoras, a percepção de que, intencionalm ente ou não, a m í­
dia socializa e ensina. Os objetivos de qualificação nesse espaço
ultrapassam largamente o âmbito próprio da escola e dos educado­
res, para incluir também a preocupação com o que se aprende
difusamente na sociedade m ídiatizada e possa ser relevante ou
nocivo para os usuários. Além de se colocar como objetivo especí­
fico de críticas, a questão educacional atravessa, como motivação
para a analise critica, muitos dos outros objetivos geradores de
critérios de observação.

4.3. Interlocução, âmbitos de circulação


, Com quem fala a crítica? Todo texto se organiza para destina­
tários ou constroi destinatários sob m edida. Há uma previsão de
coerência entre o teor da crítica e o “para quem ” é formulada. As
variações são m uitas porque, além do tipo de m aterial criticado,
dependem dos recortes e angulações trabalhados e das preferên­
cias do crítico na escolha de interlocutores. Esses interlocutores
são diversos para uma mesma crítica - e podem ser intenciona­
dos pelo autor ou não. Diferentes objetivos de um a crítica se
voltam para diferentes interlocutores.
Junto com tais escolhas se delineiam o alcance social da crítica
e seu âmbito de circulação (propiciado, pretendido ou realizado).
N aturalm ente, os veículos em que a crítica consegue se expor são
largam ente responsáveis pelo alcance.
Temos assim interlocutores difusos (“a sociedade”, mas certa­
mente circunscrita ao público leitor) ou específicos (na profissão,
nos estudos, em determ inada postura político-profissional, no
INVESTIGAÇÃO EXPLORATÓRIA: OBJETIVOS E PARÂMETROS

interesse variado pelas questões e eixos propostos). A crítica pode


voltar-se mais para usuários do produto ou para criadores de tal tipo
de produção. Pode dirigir-se a públicos leigos ou especializados.
Nosso interesse pelos ângulos críticos de um sistem a de inte­
rações sociais sobre a m ídia não obriga a privilegiar apenas críticas
voltadas para públicos difusos. Percebemos a fundamental neces­
sidade dos vários circuitos —alguns bastante especializados —em
que se gestam e testam variadas tendências críticas, algum as das
quais, para se desenvolver, precisam mesmo de círculos de inter-
locução escolada (os pares).
Entendemos que, no conjunto e a longo prazo, os circuitos
não são estanques. Em uma sociedade m idiatizada, a exposição,
ampliação e miscigenação de âmbitos de circulação parecem ser
necessidade e prometem gerar qualidade. Ainda que por passa­
gens indiretas e transformações, acreditamos que cada espaço da
circulação crítica, mesmo de alcance restrito, pode ser um aporte
na construção da ação crítico-interpretativa que alim enta a inter-
locução am pla na sociedade.
* **

Os três parâmetros acima não são estanques entre si —os objeti­


vos e motivações são relacionados ao ponto de vista crítico em suas
articulações com a coisa criticada. Conforme a motivação da crítica,
ela busca determinados interlocutores e circuitos. Os interlocutores
e âmbitos de circulação de uma crítica dependem de pontos de vista
que se objetiva ver compartilhados. E assim por diante, todos con­
correm integrados para a caracterização das lógicas da crítica. A de­
cisão de examiná-los separadamente é apenas uma tática analítica
para organizar a percepção e facilitar a exposição.
Através do exame do m aterial em pírico, no exame dos dez ca­
sos selecionados, com o olhar orientado para a observação dos
parâmetros acim a, obtivemos também uma percepção mais fina
dos próprios parâmetros. Assim, algum as especificações foram
depois acrescentadas. No parâmetro “ponto de vista e relaciona­
mentos”, adquiriu especial interesse o elemento de articulação,

mmhção
A SOCIEDADE ENFRENTA SUA MÍDIA

pela observação de contigüidades e tensionamento, com mais


peso do que acreditávamos inicialm ente. Aos “objetivos e m oti­
vações relacionamos variáveis de processo (“procedimentos”) e
de valor (“critérios"). O parâmetro “interlocuções” se desdobrou
em observações sobre o que chamaremos adiante de “vetores de
fluxo”, dirigidos respectivamente ao subsistema de produção e ao
subsistema de recepção.
Com base nas observações, obtivemos, então, além de algum
conhecimento sobre as lógicas e processualidades dos dispositivos
críticos (enquanto objetos em um sistema interacional), um desen­
volvimento da própria abordagem proposta para examinar esse tipo
de objetos sociais. Essa abordagem de chegada” —se os parâmetros
básicos podem ser chamados de variáveis “de partida” —é o que nos
perm itiu sobretudo agregar as diferentes observações e desenvolver
reflexões transversais aos casos , que, ultrapassando suas especifici-
dades, permitem reflexões sobre os dispositivos sociais e sobre o sis­
tema de resposta em um patamar mais abrangente e abstrato. A
abordagem desenvolvida aparecerá nos dez casos analisados e par­
ticularm ente no capítulo 14, com as análises transversais.
Na ocorrência de novos estudos sobre tais objetos (tanto no
patam ar mais amplo do “sistem a de resposta” como no nível mais
específico de “dispositivos de crítica”), tenho a expectativa de
que a abordagem aqui proposta seja produtiva, além de viabilizar
comparabilidade entre diferentes estudos.

5. TRATAM ENTO DO S CASOS

Os parâmetros de observação não levam a um a tabulação for­


mal voltada para um a com parabilidade im ediata, critério por
critério, entre os diferentes casos. Cedo percebemos que uma
observação desse tipo geraria uma “camisa-de-força” classificató-
ria, fazendo perder de vista as dinâmicas internas de cada caso. A
prem issa e que, embora as lógicas de funcionamento possam ser
efetivamente expressas por aqueles parâmetros, a pura extração
INVESTIGAÇÃO EXPLORATÓRIA: OBJETIVOS E PARÂMETROS

de cada ângulo arriscaria fazer perder as prevalências deste ou


daquele processo e as relações mais sutis entre diferentes parâ­
metros dentro de um mesmo caso.
Preferimos então adotar a seguinte démarche\ embora olhando
cada objeto com a perspectiva de compreender, aí, o funcionamento
daqueles parâmetros, nossa descrição não p rivilegia inicialm ente
cada um deles de modo isolado. Buscamos apreender hermeneuti-
camente seu próprio funcionamento —as relações dinâmicas entre
suas partes, deixando o objeto falar segundo suas próprias estrutu­
ras —nos seus termos e com as ênfases que o caracterizam.
Ao final dessa descrição, é possível então complementar o
estudo do caso por um a segunda divagem , em que os elementos
de esquadrinhamento são os parâmetros adotados. Com isso,
ampliamos a possibilidade de articulação entre a compreensão
dos processos “de comentário” na sua especificidade e a percepção
das linhas de continuidade, diversidade e tensão que os relacio­
nam enquanto p a rtes de um conjunto maior, como dispositivos de um
sistema de interação social sobre a m ídia, ou seja, procuramos
equilibrar a observação de especificidades com a busca de compa­
rabilid ade e tratam ento comum. Isso perm itiu, após as observações
“caso a caso”, voltâr ao conjunto para um estudo “transversal”, do
qual decorre, para além da diversidade de lógicas, um a percepção
do patamar comum em que se inscrevem.
Outra questão é a possibilidade de generalizações. No conjunto,
procuramos evitar considerações que tomassem os casos como repre­
sentativos de um “tipo de crítica”. Embora alguns dos comentá­
rios m idiáticos selecionados sejam bastante paradigmáticos (como
se verá adiante), não se pretendeu fazer um levantam ento de tipos
abrangentes de observação social crítica sobre a m ídia. Entende­
mos que o âmbito de variações do que chamamos de trabalho
social crítico-interpretativo sobre a m ídia é excessivamente vasto
e ainda insuficientem ente conhecido para que se possa ter, desde
já, um a pretensão de tipologia.
Assim, por exemplo, quando descrevemos a coluna “Ombuds-
man” de Bernardo Ajzenberg, na F olha de S. Vaulo, o leitor deve

co m id o
A SOCIEDADE ENFRENTA SUA MlDIA

ter em mente que as lógicas e processos aí referidos não são consi­


derados genericamente como “funcionamento do processo de
ombudsman". Outras colunas, em diferentes jornais, podem ser
bem diversas do que é aí descrito, em ponto de vista, objetivos,
dinâmicas e articulações.
O que aprendemos, portanto, com o estudo de cada caso não é
diretam ente generalizável nem este é o objetivo da pesquisa. O
modo pelo qual o estudo de um caso ilum ina o conhecimento
sobre determinado objeto não é o da generalização. Trata-se antes
de perceber a especificidade de um objeto ou situação. Ao estudar­
mos outros objetos e situações próximos, não generalizamos para
estes o que descobrimos naqueles; em vez disso, aprendemos com
a análise do primeiro que devemos descobrir agora quais são as
especificidades dos demais. Finalmente, quando temos um número
de casos bem compreendidos, podemos então construir conceitual-
mente outro patamar em que os diferentes objetos, mantendo suas
especificidades, podem entretanto ser considerados variantes de
um padrão mais geral de funcionamento, o que é bastante diferente
do gesto de “generalizar”.

6. CARACTERIZAÇÃO DO S CASOS SELECIO NADOS

Os casos estudados podem ser categorizados em dois grupos


principais e um misto. Em um dos grupos, cada caso é um dispo­
sitivo observado diretam ente enquanto agregação de m anifesta­
ções plurais moldadas segundo seus padrões de funcionamento.
No outro grupo, cada caso refere um dispositivo, que foi estudado
através de uma manifestação singular deste. Nesses casos, para
além do m aterial específico examinado, procuramos divisar o dis­
positivo que aparece aí representado.
Caracterizam-se como trabalhos críticos m uito específicos os
livros de Arlindo Machado, Ricardo Noblat e Luís N assif (que
podem, dentro de sua especificidade, ser referidos aos dispositivos
sociais em que se inscrevem).
INVESTIGAÇÃO EXPLORATÓRIA: OBJETIVOS E PARÂMETROS

São diretam ente tratados como dispositivos: cartas de leitores,


notícias sobre m ídia, crítica cinem atográfica em jornal e críticas
jornalísticas sobre televisão —este últim o, na verdade, um a pros-
pecção em busca de verificar a possível presença de um disposi­
tivo. Os quatro objetos aparecem na pesquisa como agregados
a d hoc de m ateriais diversos —cartas, notícias, críticas e comentá­
rios variados. O que se observa, então, são “padrões”, “caracterís­
ticas genéricas”, “tendências”.
Outros três casos são de certa forma mistos: o site Observatório
da Imprensa, a autocrítica em jornais (com a coluna de Bernardo
Ajzenberg e “Conselho do Leitor” da Zero Hora) e o site Ética na TV.
São pontuais, no sentido de que possuem uma identidade e uma
especificidade —podendo ser inscritos como realizações singulares
de determinados dispositivos mais amplos. Por outro lado, são con­
juntos de textos críticos e comentários e aparecem já como matriz
diretiva dos textos específicos que aí são inscritos —têm algum a ca­
racterística de dispositivo para as falas pontuais que se elaboram
conforme sua lógica.
Os casos que aparecem como agregação de manifestações plu­
rais, assim como aqueles assinalados como mistos, aparecem já com
um certo grau de abrangência e generalidade. Seria preciso, então,
matizar afirmação anterior, de que não tratamos “tipos”, e sim casos
específicos. Porém, mesmo nos quatro casos que tratamos direta­
mente como dispositivos (cartas, notícias, críticas de jornal sobre
cinema e sobre TV), um estudo generalizador sobre as lógicas das
matrizes solicitaria uma observação mais extensiva e diversificada.
A análise, como realizada, arrisca uma tendência de tomar as percep­
ções desenvolvidas como de validade ampla. É importante, portanto,
fazer a ressalva desse risco e sublinhar que o que se descreve, nesses
itens, corresponde ao agregado específico observado e é possível encontrar
contra-exemplos e contraposições em que se poderá, cóm justiça,
dizer que não é assim que ocorre em tal ou tal outra coleção de mate­
riais do mesmo dispositivo ou similar.
Apesar dos lim ites, no que se refere às possibilidades de gene­
ralização, acredito que os casos se justificam . No caso da crítica

mmhção
A SOCIEDADE ENFRENTA SUA MÍDIA

cinem atográfica de jornal, o “gênero parece razoavelmente esta­


belecido; no caso das cartas de leitores, encontramos confirma­
ções suficientes (que são referidas no capítulo pertinente) sobre o
padrão; no caso das notícias, aceitando que a abrangência foi bas­
tante modesta, acreditamos que a tentativa de descrição e ainda
assim produtiva, dada a inexistência, em nosso conhecimento, de
estudos mais sistematizados. A própria incompletude pode ser
então estim ulante para estudos mais detalhados. Finalm ente,
quanto à crítica de televisão —em que um ponto de interrogação,
na própria denominação do capítulo, expressa a dúvida sobre uma
constituição m ínim a de “gênero (situação inversa, portanto, ao
da crítica de cinema) - , o que justifica a agregação é justam ente o
perceber que o dispositivo ainda não se constituiu m inim am ente.
Dessas quatro agregações, duas são justificadas por uma certa
consensualidade quanto ao objeto constituído pelo agregado e
duas, inversamente, pela não-constituição de objeto suficiente, o
que leva à necessidade de um estudo de fragmentos mais que de
um objeto “típico” propriamente dito. Mas isso aponta para um
p a rti-p ris, que assumimos expressamente, valorizador de sua pos­
sível e mesmo desejável constituição.
No que se refere aos casos “individuais”, é mais evidente a im ­
possibilidade de generalização. O que se objetiva aqui (como nos
demais casos, mas com mais nitidez) é, através de uma percepção da
variante específica, definir marcos de referência para outros estudos
que busquem percepções correlatas sobre outras críticas.
* * *

Os dez capítulos subseqüentes procuram realizar na observação


concreta o programa de investigação decorrente das perspectivas
acim a expostas. Funcionam assim como um teste exploratório
sobre a capacidade heurística" dà hipótese prospectiva que norteia
o presente estudo, segundo a qual podemos caracterizar as intera­
ções sociais sobre a m ídia como um “sistem a social de resposta”,
ao lado dos mais habitualm ente reconhecidos, o subsistem a de
produção e o subsistema de recepção.

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