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INTRODUÇÃO
2. Alcance e limitações dos
modelos cienttftcos e de sua
aplicação aos problemas urbanos; Diante dos graves e complexos problemas provocados pelo
3. Considerações sobre as crescimento ininterrupto e desordenado dos centros urba-
teorias de mudança social; nos e metropolitanos, os cientistas sociais enfrentam um
4. Funcionahsmo e teoria de sério dilema: por um lado, sofrem a pressão das autori-
sistemas como instrumentos dades e da opinião pública, no sentido de proporem pla-
de análise sociol6gica; nos e diretrizes de ação, visando atenuar a situação calami-
5. Urbanização como processo tosa das cidades e de suas populações. Por outro, todavia,
de mudança social; sentem-se inclinados a manter uma atitude "científica",
6. Teoria e prática no livre de juízos de valores e acima das lutas políticas.
tratamento de problemas urbanos; No contexto da vida urbana na sociedade de classes,
7. Algumas implicações para a qualquer plano viário, projeto de construção habitacional
pesquisa sociológica, o ou programa de desenvolvimento comunitário torna-se ins-
planejamento e o desenvolvimento trumento de intervenção, de mudança dirigida nas relações
da comunidade. entre os diversos grupos e forças de pressão, que compõem
a trama da sociedade urbana. Como herança do positivis-
mo, acostumamo-nos a atribuir ao conceito "mudança" a
conotação de melhoria, progresso, o que pressupõe uma
série de parâmetros estabelecidos, metas e diretrizes em
função de objetivos e valores dos indivíduos ou grupos
envolvidos por esses processos de mudança social dirigida.
Ao perguntarmos aos tecnocratas e planejadores, to-
Henrique Rattner * davía, em função de que interesses e a partir de que mode-
lO ou teoria da sociedade são elaborados planos e projetos
e tomadas decisões a eles pertinentes, as respostas, geral-
mente, são bem significativas: o interesse público ou as
necessidades coletivas, à primeira pergunta, enquanto a
segunda será eventualmente descartada com a explicação
de que os planos e projetos, por estarem baseados e elabo-
rados a partir do conhecimento científico, e implantados
de acordo com a racionalidade tecnológica, escapariam do
subjetivismo e de juízos de valor inerentes às teorias socio-
lógicas. As atividades técnicas de planejamento e de exe-
cução dos projetos, por sua racionalidade "científica" in-
trínseca, prescindiriam de uma teoria ou de um modelo de
análise e explicação da realidade social.
Este trabalho pretende examinar criticamente o "in-
teresse público" alegado como valor e parâmetro do plane-
íjamento e, concomitantemente, analisar alguns dos mode-
'los teóricos sociológicos que fundamentam e orientam a
atuação dos planejadores e dos técnicos nos diferentes se-
tores da administração urbana.
A relevância de tal abordagem, numa época em que os
cientistas sociais se tornam cada vez mais receptivos a de-
mandas por pesquisas aplicadas e ansiosos por trabalhar
com problemas que sejam de implicações práticas imedia-
tas, é mais do que evidente: se, por um lado, princípios
científicos solidamente estabelecidos são considerados
condição necessária, porém não suficiente, para uma ação
inteligente e eficaz do poder público, por outro, é necessá-
rio examinar os pressupostos teóricos declarados ou subja-
* Professor do Departamento de centes desse conhecimento científico. A alegação de sua
Fundamentos Sociais e Jurídicos neutralidade e isenção de valores subjetivos ou políticos
da Administração da Escola de não é facilmente sustentada à luz de uma análise crítica
Administração de Empresas de São Paulo, das motivações e efeitos da interação social, da qual a
da Fundação Getulio Vargas. atividade científico-técnica representa apenas um de seus
Desenvolvimento de comunidade no progresso de urbanização notas para uma crítica das teorias sociologicas do planejamento
variados aspectos. Na vida social, no caldeirão de idéias, localização de suas raízes, próprio a um modelo causal
aspirações e interesses individuais e grupais, simplesmente linear e determinista, deve ser considerado responsável por
inexistem objetivos neutros, livres de juízos de valor e boa parte dos desacertos e malogros na área de planeja-
"apolíticos". Ao contrário, a seleção dos problemas a se- mento urbano e regional. Por outro lado, mesmo os mode-
'rem atacados e resolvidos pela ação do poder público, bem los de explicação e intervenção mais complexos e sofísti-
como os próprios conceitos pelos quais deflnimos o pro- cados não têm produzido resultados satisfatórios, por esta-
blema e o inserimos em determinada realidade - objeto rem referidos a teorias sociológicas inadequadas e distan-
dos planos e programas de ação, são todos carregados de tes da realidade social, econômica e política dos países em
valores e, portanto, abertos ao subjetivismo e à "írracíona- desenvolvimento. Portanto, à prática do planejamento e
lidade" das ideologias. da administração eftcientes das áreas metropolitanas, de-
O procedimento metodológico a ser adotado neste vem preceder indagações teóricas sobre a natureza dos
ensaio procurará firmar uma posição crítica, e não norma- processos de desenvolvimento e de mudança social, dos
tiva; levantar dúvidas e examinar a coerência dos modelos quais a "urbanização" representa apenas um aspecto, em-
e abordagens propostos, em vez de formular diretrizes e bora fundamental.
apontar "soluções" para os problemas sociais das grandes E à luz das definições básicas desses conceitos e sua
áreas e aglomerações urbanas. inter-relação é que se pode aferir as funções e o alcance de
técnicas de intervenção e de mudança dirigida, tais como o
planejamento e o "desenvolvimento de comunidade".
Processo de urbanização
Da mesma forma com que o império britânico justifi- O exemplo talvez mais perfeito do caráter ideológico
cava suas conquistas no século passado, pelo "fardo do e conservador do funcionalismo e de qualquer teoria
homem branco", pela sua "missão civilizatória" do mundo "científica" sistêmica encontramo-lo em T. Parsons.
subdesenvolvido, assim os burocratas e homens do "apare- Em seu "sistema social" por analogia ao orgânico,
lho" soviético legitimam sua interferência nos outros paí- existe, como pressuposto, uma ordem natural, regida por
ses, pela sua condição de nação-líder do "socialismo". "leis" que tornam o funcionamento e mesmo, inclusive, as
mudanças sociais previsíveis e controláveis.
Sem querer negar o valor "heurístico" do modelo
funcionalista, somos levados a indagar: estamos diante de
4. FUNCIONALISMO E TEORIA DE
uma descrição indiscutível e real do mundo social ou esta-
SISTEMAS COMO INSTRUMENTOS DE
ríamos apenas lançando mão de um parâmetro artificial e
ANÁLISE SOCIOLÓGICA
deliberado, cuja validade e utilidade não podem ser admi-
tidose priori?
Tal como o evolucionismo está sendo encarado como prin- Ademais, sistemas sociais não têm necessidades, obje-
cípio fundamental da vida, também a visão do mundo tivos, requisitos ou motivações, mas os indivíduos e os
como um "sistema" ordenado e regulado está firmemente grupos sociais os têm! Não podemos, tampouco, observar
implantada em nossa mente. Para compreender melhor os a "estrutura" social e ao observarmos seu "funciona-
conceitos empregados na teoria e na análise de sistemas mento" verificamos que nem todas as ações e atividades
com relação à mudança social e ao planejamento, é preciso de Seus membros são orientadas para a manutenção e so-
examinar as premissas básicas do "funcionalismo". brevivência do conjunto! No fundo, o funcionalismo co-
Sua aplicação como teoria ou modelo de explicação mo teoria "científica", embora pretenda ser política e
rias ciências sociais tem raízes numa analogia entre a vida ideologicamente neutra, não passa de uma justificação do
orgânica e a social; tal como a análise de um organismo status quo, como tal, perfeitamente aceitável tanto pelo
biológico, também o funcionalismo sociológico é "holís- regime capitalista quanto pelo "socialista".
tico", ou seja, considera todas as partes e aspectos do Como instrumento de análise, supervaloriza o equilí-
sistema social como interligados e conexos, sendõ a natu- brio, a unidade e o consenso entre os elementos do con-
reza e características de cada elemento determinadas e junto - as classes sociais - o que o torna incapaz de
explicáveis por referência ao conjunto. Preocupando-se, explicar o porquê das mudanças no sistema social.
essencialmente, com as relações e a interdependência das Negligenciando os aspectos mais sérios e profundos
partes do sistema social, o funcionalismo visa explicar os das transformações sociais, o funcionalismo como doutri-
fenômenos sociais sob o ângulo de sua "função" ou con- na convém aos detentores do poder, àqueles que definem
tribuição para a existência e sobrevivência do conjunto. "como o sistema deve ser", e quais as mudanças desejáveis
Diferentemente do modelo analítico causal, o funciona- e permitidas.
lismo pressupõe os princípios da interação e interdepen- Também na teoria geral de sistemas encontramos ca-
dência como processos sociais básicos, afastando-se assim racterísticas análogas àquelas verificadas no funciona-
do modelo causal-linear clássico das ciências exatas. lismo: à visão "gestáltica" (Von Bertalanffy) e à aborda-
Em suas grandes linhas, o funcionalismo parte de uma gem "holfstica" de um conjunto composto por partes in-
visão evolucionista, considerando a transição do físico-or- ter-relacionadas, podemos acrescentar o isomorfismo, ou
gânico-humano como um contínuo de caráter universal, seja, as similaridades estruturais, responsáveis pela sujeição
18 enquanto a história representaria as fases de ajustamento de todos os sistemas aos mesmos padrões e leis de organi-
ou de adaptação "funcional" da espécie humana ao seu zação (J. W. Forrester), e a tendência ao mesmo estado
meio-ambiente. Em determinado momento desse proces- final. A manutenção do equilíbrio do sistema seria assegu-
so, surge a estratificação social, conseqüência da divisão rada mediante mecanismos de retroalimentação e de auto-
social do trabalho, a qual, gerando a necessidade de fun- regulagem, os quais controlariam as funções das partes e
ções políticas, resulta na formação da burocracia, expres- evitariam, assim, a destruição do conjunto.
são máxima da ordem social.
Novamente, poder-se-ia perguntar: os sistemas têm
Visto sob este prisma, o funcionalismo se apresenta
existência real ou se trata de um expediente heurístico?
como uma teoria sociológica conservadora, preocupado
Empiricamente, parece duvidosa a demonstração da exis-
com a manutenção do equilíbrio social, de acordo com as
tência de um sistema ou mesmo de suas características já,
"leis" inerentes ao sistema.
assinaladas. Se é possível verificar-se a ocorrência de certas
Não é aqui o lugar para entrar na análise das contri-,
relações, mais ou menos regulares, de elementos contidos
buições distintas feitas por autores como Durkheim - que
num conjunto, isto não implica a existência de leis sístê-
distingue entre "função" e "causa"; Malinowski - princí-
rnicas gerais e uniformes.
pio da satisfação de necessidades primárias e secundárias;.
Merton - que chamou a atenção para as funções manifes- Surgida como reação ao empirismo exagerado aoe
tas e latentes e, sobretudo, para as disfunções perceptíveis determinismo causal, a teoria de sistemas oferece aparen-
nos sistemas; Kings1ey Davis, Radc1iffe-Brown e muitos temente uma visão prática e objetiva da realidade, para
outros. quem procura atuar dentro da estabilidade e através da
Processo de urbanização
alguma, uma qualidade ou característica fundamental da Por maior que seja a coerência interna de cada um dos
vida e, sim, representa um instrumento, uma técnica que, modelos descritos, sua operacionalidade, ou seja, seu po-
por analogia, transfere parâmetros e modelos de uma es- der de análise e explicação de processos sociais reais é
trutura inorgânica e não-humana para os aspectos e pro- limitado, conforme tentaremos demonstrar em seguida.
blemas sociais, com reforço de uma filosofia "funciona-
lista" subjacente.
5. URBANIZAÇÃO COMO PROCESSO
Em resumo, a abordagem sistêmica destaca-se e é pre-
DE MUDANÇA SOCIAL
ferida, mais do que por suas funções cognitivas, pelo pres-
tígio e poder que confere aos planejadores e tecnocratas.
Em oposição aos outros métodos usados no planeja- A natureza e o crescimento das cidades ocupam um espa-
mento, considerados intuitivos e pouco exatos, a análise ço importante nos debates sobre mudança social. Na maio-
sistêmica dá ênfase à quantificação e à manipulação, de ría dos trabalhos sobre urbanízaçãof é destacada a ten-
dados por meio de modelos matemáticos, o que permitiria dência à concentração da produção e dos serviços em cida-
maior grau de previsão e predição. Uma das conseqüências des-primatas ou metrópoles, no decorrer do processo de
inelutáveis desse enfoque, atribuindo a responsabilidade crescimento econômico. O crescimento mais do que vege-
das decisões àqueles que são detentores exclusivos do tativo das cidades é considerado vantajoso, por possibilitar'
know-how técnico-científico, é a concentração do con- a realização de economias de escala e o oferecimento de
trole sobre decisões e aplicações de recursos nas mãos dos toda uma gama de serviços técnicos, sociais e culturais que
tecnocratas, cuja atuação tende a ofuscar os problemas seria difícil, senão impossível, encontrar nas aglomerações
sociais reais, usando o jargão da expertise técnica. urbanas menores do interior do país.
A rigor, o prestígio da teoria de sistemas entre os Sendo considerado, portanto, como um processo na-
planejadores e tecnocratas não pode ser atribuído a seus tural e inevitável, pouca atenção é dispensada às disfun-
aspectos humanísticos ou a seu valor como modelo tOO- ções das grandes aglomerações metropolitanas e aos pro-
rico, Ao contrário, sua atração reside nas características blemas decorrentes dos desequilíbrios regionais e sociais,
técnicas e seus aspectos políticos conservadores, que abs- tais como o subemprego e a marginalização de amplas
traem ou negam simplesmente o significado do conflito camadas da população "urbanizada".
como processo fundamental da vida social. As críticas e objeções a essa política de urbanização
Não se pode negar que o grau de integração social são minimizadas ou afastadas com a invocação economi-
varia de um sistema para outro e que as sociedades primiti- ,cista de que não se pode dividir o bolo antes de ser feito -
vas são mais integradas e mudam menos rapidamente do portanto, crescer e multiplicar é a palavra de ordem. As
que as mais complexas. disfunções serão corrigidas no decorrer do próprio proces-
Mas, a partir do pressuposto de que consenso e inte-: so e aqueles que arcam com o ônus do crescimento caó-
gração fossem conceitos sinônimos, ou, pelo menos, empi- . tico serão posteriormente recompensados.
ricamente relacionados e, assim, também coerção e confli- Não pretendemos discutir aqui os limites humanos
to, foram elaborados dois modelos distintos e antagônicos, dos sacrifícios exigidos e os prazos da compensação. Ver-
da sociedade. O modelo de "consenso" atribui aos siste- dade é que, nos períodos de expansão econômica, os sacri-
mas sociais as características de coesão, solidariedade, reci- fícios são exigidos em nome da aceleração do processo
procidade, cooperação, estabilidade e persistência, en- (fazer o bolo crescer mais rapidamente), enquanto que nos
quanto o de "conflito" lhes atribui as características de momentos dramáticos de recessão econômica, faltarão os
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hostilidade, coerção, má integração e mudança. O pri- recursos para atender às necessidades das camadas da po-
meiro dá ênfase à significação das normas sociais e da pulação menos privilegiadas.
legitimidade, enquanto o segundo indica a importância Essa visão evolucionista da urbanização, cujos parâ-
dos interesses e do poder. metros foram calcados nos modelos norte-americano e eu-
Críticos das teorias dualistas! apontam que certas ca- ropeu das cidades, é irrelevante e até prejudicial à compre-
racterísticas dos dois modelos não são mutuamente exclu- ensão da situação dos países em desenvolvimento, porque
sivas; consenso não significa necessariamente oposição à transfere uma problemática vivida em época, lugares e
mudança, e o uso do poder coercitivo pode inibir ou retar- condições históricas diferentes, para as circunstâncias es-
dar o processo de mudança. pecíficas e inéditas das cidades nos países em desenvolvi-
A associação entre as diversas características dos res- mento. Ignorando a unicidade cultural e apoiando-se em
pectivos modelos pode ser atribuída mais a inclinações paradigma ultrapassado, segundo o qual "o país mais
ideológicas do que às observações empíricas "objetivas" adiantado mostra o caminho ao atrasado", a visão evolu-
dos cientistas sociais. Os sociólogos do século XIX esta" cionista da urbanização é falha porque localiza os proble-
vam muito preocupados com o conflito e seu papel nas mas em sociedades' específicas, em vez de considerar a
transformações sociais, enquanto a maioria dos sociólogos rede de relações e interações de cidades, regiões e nações,
do século XX trataram preferencialmente da coesão e per- com potencial econômico e poderio militar diferentes.
sistência dos sistemas sociais, negligenciando tanto o con- Tanto a perspectiva teórica européia, que pesquisa e
flito quanto a mudança. analisa o processo de urbanização a partir de suas origens
. ProcelllJO de urbanização
A teoria sociológica interpretativa, por outro lado, que a população quer". Em vez de tentar saber se as pes-
rejeita a idéia de uma estrutura social monolítica com soas valorizam seu meio-ambiente e em que termos o fa-
características deterministas do comportamento indivi- zem, o survey torna-se instrumento de promoção de obje-
dual, e dá ênfase à intenção, às opções e à liberdade que tivos e programas presumidos pelos planejadores como ne-
concorrem para a aprendizagem do significado dos objetos cessários e desejados.
e das situações. Em lugar de uma visão determinista da Não se pretende com isto negar a utilidade do survey,
sociedade, com relações "existentes", a sociologia inter- contanto que se defina claramente sua função explorató-
pretativa insiste numa visão de relações sociais "criadas" ria, de procurar insights e de estabelecer prioridades (que
pelo homem ativo, capaz de escolher, interpretar e criar, e não são idênticas às necessidades da burocracia). Apenas, é
não apenas reagir passivamente. 7 preciso expor e esclarecer previamente as premissas teó-
A premissa subjacente aos modelos sistêmicos e fun- ricas que o orientam, sob pena de ignorar ou encobrir as
cionalista é o "consenso" como princípio fundamental da projeções ideológicas do sujeito-autor da pesquisa.
ordem social, dele se derivando parâmetros de "bem co- Nas duas últimas décadas, e em oposição ao planeja-
mum" e de "interesse público", que podem, por sua vez, mento burocrático-autoritário, surgiram tentativas basea-
funcionar como critérios para o planejador e o adminis- das na "participação" e no envolvimento das pessoas,
trador público. Estabelecido, assim, um acordo sobre os antes passivas, na definição dos problemas do planeja-
objetivos mais importantes, passa-se à identificação tácita mento e na equação das soluções mais apropriadas."
do consenso com eficiência e sistema democrático, em
. Face à crise do planejamento tradicional e à ameaça
franca oposição ao conflito como premissa operacional,
da programação de esquemas de "ação direta", como as
sendo que as duas premissas diferentes levam, forçosa-
invasões de áreas ou conjuntos habitacionais pelos fave-
mente, a definições diferentes do que seja um '''problema
lados, apareceu primeiro o advocacy-planning, pouco efi-
social".
caz, porém sustentado, durante algum tempo, por profís-
Para um modelo funcionalista de análise e interven-
.sionais competentes e honestos, desejosos de melhorar a
ção, pressupondo a harmonia de interesses e eliminando a
sorte dos menos afortunados, nas aglomerações urbanas. A
ação espontânea e criativa dos indivíduos, os problemas
inocuidade da ação dos modernos narodnikis9 favoreceu a
são resolvidos por ajustamentos e acomodação, o que exi-
emergência de diversos esquemas de "participação", entre
ge medidas burocráticas. estes o "desenvolvimento de comunidade". Parecia uma
A abordagem interpretativa define como problema so- resposta adequada à situação de impasse, despertando no
cial a situação de determinados grupos em relação a outros público a impressão do interesse dos planejadores nos va-
e encara o recurso ao "interesse público" como instru- lores sociais de representação e participação, abrindo-lhe a
mento de manipulação, em função dos interesses dos gru- I
possibilidade de concorrer na definição dos principais pro-
pos dominantes. Portanto, as autoridades ou os detentores blemas e prioridades do planejamento.
do poder, mais do que resolvem, "definem" o que é ou
Entretanto, a viabilidade de qualquer uma dessas téc-
não é problema social, com a conseqüente alocação de
nicas de planejamento dependerá, basicamente, do contex-
recursos humanos, financeiros e materiais para as áreas e
to social, da relação de forças e de grupos de pressão, em
setores, definidos como "problemáticos".
que for inserida. Em outras palavras, as coordenadas socio-
políticas podem tornar em técnica manipulativa o "desen-
volvimento de comunidade", levando-o a defender os mes-
7. ALGUMAS IMPLICAÇÕES PARA A mos interesses e a apoiar os mesmos projetos do planeja-
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PESQUISA SOCIOLÓGICA, O PLANEJAMENTO mento tecnoburocrático. Apenas, em vez de medidas im-
E O DESENVOLVIMENTO DA COMUNIDADE positivas, procurar-se-á "educar" o povo para as posições
oficiais dos planejadores, baseadas em modelos de "con-
senso" e de cientificismo econômico-espacial.
No elenco das técnicas de pesquisas sociológicas, o survey
Assim, o problema fundamental do planejamento ur-
(levantamento) ocupa lugar de destaque pela preferência
bano parece resumir-se na seguinte indagação: quem terá
com que a ele recorrem os pesquisadores a serviço de pla-
poder para definir quais sejam os problemas mais urgentes
nejamento. Por lidar com grande número de casos e empre-
e, portanto, para decidir sobre a alocação e o controle dos
gar como sistema básico de inferência a análise multívaria-
cional e outras técnicas quantitativas, o levantamento é recursos disponíveis?
considerado quase equivalente à experimentação nas ciên- Assim, à guisa de conclusão deste ensaio, somos leva-
cias naturais. Todavia, à falta de hipóteses teoricamente dos a tecer algumas considerações sobre as relações de
fundamentadas, corre-se o perigo de obter resultados mais poder e sua relevância para o "desenvolvimento de comu-
exatos do que significativos, a menos que se suponha: tam- nidade".
bém, que os fatos são "auto-explicativos". A noção de "comunidade" tem papel fundamental no
Os usos e abusos do survey como técnica auxiliar no planejamento, porque se baseia, por um lado, em modelo
planejamento são freqüentes, especialmente quando reali- e fílosofía de "consenso", ou seja, uma visão do mundo e
zados para confirmar ou negar hipóteses, previamente for-. da sociedade, como "deviam ser" e, por outro lado, legiti-
muladas pelos planejadores e administradores, sobre "o ma um modelo paternalista do processo decisório.
Processo de urbanização
.ínteração social dos grupos populacionais que, por sua vez, 7 Bailey, J. Social theory for planning. London, Routledge &
2. A intervenção planejada de "desenvolvimento de co- 11 Goodman, R. After the planner. New York, Simon & Schuster,
1971.
munidade", por melhor intencionada, quando não sufi-
cientemente lastrada em premissas teóricas depuradas da
9 Partidários de Narodnaya Volya - o partido da "vontade do
ideologia do "consenso", pode levar à frustração e à auto- povo" na Rússia czarista, nos fins do século passado, que pregava a
restrição das reivindicações participatórias, por ignorar as ida dos intelectuais às massas, a fim de despertá-las e ativá-las.
condições estruturais das desigualdades e desequilíbrios
econômicos, sociais e políticos. 10 Mumford, L. A cultura das cidades. Belo Horizonte, MG, Edi-
tora Itatiaia, 1961. Especialmente o capo 3, p. 152-233.
3. Finalmente, é preciso reexaminar criticamente as pre-
missas da teoria política subjacente a certas técnicas de
planejamento, inclusive o "desenvolvimento de comuni-
dade". Postular que o poder político esteja distribuído,
aIBLlOGRAFIA
mais ou menos uniformemente; que não estaria, porém,
sendo ativado por motivos de apatia, 'ignorância ou desin-
teresse de certas camadas da população parece ingênuo e
carente de comprovação empírica, embora tais argu- a) Ciência - filosofia e método científicos
mentos sejam usados para justificar e legitimar o "desen-
volvimento de comunidade". Benn, S. J. & Mortimore, G. W. Rationality and the social
sciences. London, Routledge & Kegan Paul, 1976.
Importa reconhecer e admitir a heterogeneidade con-
flitiva de interesses e aspirações numa sociedade de classes, Blackburn, R. ed. Ideology in social science. London,
o que torna difícil, senão inviável, uma situação de "bem- Fontana, 1972.
estar comum" ou a satisfação das necessidades de todos.
Admitir que o resultado provável de qualquer inter- Bloor, D. Knowledge and the social imagery. London,
venção dirigida no processo de mudança social - planeja- Routledge & Kegan Paul, 1976.
mento, desenvolvimento de comunidade etc. -'- será um
jogo de soma zero, talvez seja doloroso e cause desconfor-
Braithwaite, R. B. Scientific explanation. New York,
to, pois tiraria do planejador e tecnocrata o manto da
Harper, 1960.
racionalidade científica e o véu da neutralidade política .
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