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6/5/2014 Filosofia da Física - 2013

Filosofia da Física (2013)


Osvaldo Pessoa Jr. (USP)

O curso consiste de uma introdução à filosofia da física, voltada principalmente para a física clássica, mas também para as questões contemporâneas. Discutem-se
os conceitos fundamentais das teorias físicas, da metodologia experimental e da filosofia da ciência, salientando os debates entre diferentes interpretações de uma teoria
física. O curso busca trabalhar as competências de reflexão conceitual, discussão organizada, leitura atenta e redação cuidadosa. O enfoque de cada um dos temas será
principalmente conceitual e filosófico, buscando-se levantar e discutir um problema em cada aula.

Informativos e Roteiros:
Cronograma (atualizado em novembro) - Avaliação adiada para 13/11.
Roteiro de estudos

Tarefas:

Para Aula 2 (21/08): Ler Cap. I.


Para Aula 3 (28/08): Ler Cap. II.
Para Aula 4 (11/09): Ler seleção sobre a controvérsia do realismo: Planck x Mach.
Ler Cap. III.
Para Aula 5 (25/09): Ler seleção sobre espaço absoluto x relativo:
Newton-Espaço, Mach-Espaço. Ler tb. Cap. IV.

Textos (optativos):

Algumas controvérsias na física:


A controvérsia dos átomos: (i) Stallo, (ii) Lübeck.
A controvérsia do realismo: (i) Mach-Sensações, (ii) Planck x Mach.
A controvérsia das cordas: Smolin x Polchinski.

Filosofia da matemática: Perspectiva do olho esquerdo, de Ernst Mach (1883).


Comentários de Aristóteles sobre Zenão.
Wigner sobre a Desarrazoada efetividade da matemática.

Natureza do tempo:
Argumento de McTaggart da irrealidade do tempo.

Espaço absoluto ou relativo?


Newton-Espaço (De gravitatione e experimento do balde)
Mach-Espaço (Ciência da mecânica, cap. II, seção 2)

Exercício sobre Curvatura do espaço-tempo.

Notas de Aula:

Série Didática (aulas ministradas, ou quase)

Cap. I. Filosofia nas controvérsias científicas


Cap. II. Realismo e verdade
Cap. III. Natureza do tempo
Cap. IV. Experimento do balde e espaço absoluto
Cap. V. Determinismo e probabilidade
Cap. VI. Luz, ondas e fótons

Série Complementar (temas discutidos em aula, com mais aprofundamento):

Cap. –I. As fronteiras da intuição (aula dada em 07/08)


Cap. –II. Variantes do antirrealismo
Cap. –III. Filosofia da matemática

Série Histórica (temas filosóficos da história da mecânica clássica):

Cap. iI. Paradoxos de Zenão


Cap. iII. Filosofia mecânica

http://www.fflch.usp.br/df/opessoa/FiFi-13.htm 1/2
6/5/2014 Filosofia da Física - 2013
Cap. iIII. O conceito de "força" em Newton
Cap. iIV. Princípios de mínima ação
Cap. iV. Axiomatização da mecânica clássica

– Última atualização: 30/10/13

http://www.fflch.usp.br/df/opessoa/FiFi-13.htm 2/2
FLF0472 - Filosofia da Física - Cronograma
Prof. Osvaldo Pessoa Jr. – Depto. Filosofia (FFLCH) – sala 2007 – opessoa@usp.br
2o semestre de 2012: 4as-feiras 14:00-15:40 hs., e 19:10-20:50 hs. Sala 213 da Ala Central.
IFUSP - http://www.fflch.usp.br/df/opessoa/FiFi-13.htm

Programa (atualizado em outubro)

Aula 1 07/08 Epistemologia da Física. Os físicos precisam de filosofia?


As fronteiras da intuição.

Aula 2 21/08 Verdade e realidade. Realismo x fenomenismo. Concepções de verdade.

Aula 3 28/08 Natureza do tempo 1. O tempo existe? É absoluto ou relativo?


É denso ou discreto? O futuro é aberto?

Aula 4 11/09 Natureza do tempo 2. Eternalismo: somos uma minhoca em 4D?


O tempo teve começo?

Aula 5 25/09 Natureza do espaço 1: Paridade e o problema da inversão no espelho.


Leitura: controvérsia Planck x Mach 1.

Aula 6 02/10 Natureza do espaço 2: O espaço é absoluto ou relativo?


Argumento do balde: Newton x Mach. Leitura: controvérsia Planck x Mach 2.

Aula 7 16/10 Determinismo e probabilidade. A natureza é determinista ou há eventos


sem causa? Leitura: controvérsia Planck x Mach 3.

Aula 8 23/10 Óptica: dualidade onda-partícula. Qual é a natureza da luz?

Aula 9 30/10 Discussão: Epistemologia da Física, Mecânica Clássica e Óptica.


Discussão dos textos lidos.

Aula 10 06/11 1ª Avaliação: prova sem consulta. (Esta é uma nova data!)

Aula 11 13/11 Ontologia do eletromagnetismo. Quais conceitos do eletromagnetismo


correspondem a entidades reais? Os campos e os potenciais são reais?

Aula 12 20/11 Termodinâmica, mecânica estatística e irreversibilidade. Qual a origem da


irreversibilidade dos fenômenos macroscópicos?

Aula 13 27/11 2ª Jornada de Filosofia da Física (26-27/11) – No dia 26, 16 hs., Amit Hagar
falará no Seminário de Ensino sobre o “A primazia da geometria na física do
espaço-tempo”. No dia 27, haverá três blocos de apresentações, 10:30-12:00,
14:00-15:30 e 19:10-20:40. A lista de presença será passada nos três blocos (ou
seja, o aluno deve participar de pelo menos um bloco). Em breve, a
programação.

Aula 14 04/12 2ª Avaliação: atividade com consulta.


FLF0472 - Filosofia da Física - Roteiro de Estudos para a Atividade 1
Prof. Osvaldo Pessoa Jr. - opessoa@usp.br
IFUSP - http://www.fflch.usp.br/df/opessoa/FiFi-13.htm

A Avaliação será realizada no horário de aula, no dia 13/11, e consistirá de três questões
dissertativas. A prova é sem consulta às notas de aula ou a outros textos, com exceção dos seguintes
textos (que devem ser trazidos) disponíveis no site e no xerox: Planck x Mach, Newton-Balde,
Mach-Mecânica-Espaço. As seções indicadas com “§”, abaixo, referem-se às notas de aula.
Comece pelas perguntas específicas (precedidas por um “–”), e depois pense sobre as
perguntas mais gerais (precedidas por um número). Com relação às questões gerais, não há
“resposta certa”; o certo é o aluno pensar sobre as questões, refletir, e no dia da atividade escrever o
que pensou e também as dúvidas que permaneceram (ter dúvidas é saudável). Sugestão para o dia
da atividade: traga lápis no 2 (forte) e borracha (prova pode ser entregue a lápis; pode não haver
tempo de passar a limpo). Alternativamente, se for usar caneta, rasuras serão toleradas.

1. Os físicos precisam de filosofia?


– Considere a opinião de Einstein de que o cientista é um oportunista inescrupuloso. Você
acha que esta opinião se aplica aos cientistas que você conhece? Imagine um cientista que
se comporte de maneira contrária a isso: como ele se comportaria? Isso traria desvantagens
para ele? (§ I.1)
– Analise as posições filosóficas de Planck e Mach, em sua controvérsia envolvendo
realismo vs. fenomenismo. Você identifica fatores não-epistêmicos em seu discurso? (§
I.2)

2. A ciência deve lançar hipóteses sobre inobserváveis?


– Defina realismo e fenomenismo (§ II.1, 2 e 3).
– Caracterize a concepção de verdade por correspondência (§ II.4).

3. Qual é a natureza do tempo?


– Na sua opinião, qual é a estrutura macroscópica do tempo? (§ III.4)
– O que é a série A e a série B de McTaggart? (§ III.5)
– Você é um eternalista ou prefere a teoria das modalidades temporais? (§ III.5 e 6)

4. O espaço é absoluto ou relativo?


– Explique o argumento do balde de Newton, e a resposta de Mach (§ IV.2 e 3)
– O que é o princípio de Mach? Einstein defendeu este princípio? (§ IV.3 e 4)

5. O Universo é determinista?
– Defina o determinismo. Pode-se utilizar o “demônio de Laplace”. (§ V.2)
– A sensibilidade às condições iniciais viola o determinismo? (§ V.5)

6. Qual é a natureza da luz? Onda e/ou partícula?


– O que acontece quando um feixe de luz bem fraco incide em uma tela detectora muito
sensível (no regime quântico)? (§ VI.3)
– Imagine-se olhando para um arco-íris. As cores do arco-íris existem no mundo real ou são
uma criação de sua mente (isto é, de seu cérebro)? (§ – I.4)
Filosofia da Física Clássica
Cap. I

Filosofia nas Controvérsias Científicas


Questão: Os físicos precisam de filosofia?

1. Física e Filosofia

O trabalho do físico se concentra em pelo menos quatro pontos centrais:


(1) desenvolvimento da linguagem matemática para representar fenômenos do mundo natural;
(2) realização de experimentos para explorar este mundo; (3) elaboração de programas
computacionais que simulem um modelo do mundo físico ou que processem dados;
(4) investigação dos conceitos das teorias científicas e geração de novas ideias.
Além disso, há pelo menos quatro outras atividades periféricas que são importantes na
interface entre ciência e sociedade: (5) desenvolvimento de aplicações tecnológicas;
(6) ensino e divulgação científica; (7) organização do trabalho científico, por meio de
políticas de incentivo e distribuição de recursos; (8) ciência “complementar”: história,
filosofia, psicologia e sociologia da ciência.
Dos pontos centrais da física, a filosofia da ciência (mencionada no último item) se
debruça principalmente sobre o ponto (4), estudando os conceitos da física, seu significado,
desenvolvimento histórico e problemas. O ensino de ciências também se debruça sobre
conceitos (além dos outros três itens centrais, de maneira introdutória), mas ela não procura se
deter nos problemas não-resolvidos da ciência, ao contrário da filosofia, que prospera no
terreno das questões sem solução definida.
Há dois tipos principais de investigações em filosofia da ciência. A análise dos
conceitos e das entidades existentes no mundo físico é chamada de ontologia, que significa
“estudo do ser” ou daquilo que existe. Por outro lado, a discussão de como a investigação
científica funciona, quais os traços gerais de sua metodologia, e qual a relação entre teoria e
realidade, recebe o nome de epistemologia, ou “estudo do conhecimento”. Às vezes, o termo
“epistemologia” é usado em um sentido mais amplo, englobando a ontologia.
O trabalho dos físicos geralmente se dá sem a necessidade de reflexões filosóficas
sobre sua atividade. Será que a filosofia tem alguma utilidade para o físico? Iniciemos com
uma citação de Albert Einstein:

A relação recíproca entre a epistemologia e a ciência é de uma espécie notável. Elas são
dependentes uma da outra. Epistemologia sem contato com a ciência torna-se um
esquema vazio. Ciência sem epistemologia – na medida em que isso até seja pensável –
é primitiva e confusa. No entanto, quando o epistemólogo, que busca um sistema claro,
consegue desbravar [uma teoria científica] e atingir tal sistema, ele tende a interpretar o
conteúdo teórico da ciência em termos do seu sistema e a rejeitar qualquer coisa que não
se encaixe em seu sistema. O cientista, porém, não pode se dar ao luxo de levar tão
longe sua busca por uma sistemática filosófica. Ele aceita de bom grado a análise
conceitual epistemológica; mas as condições externas, que lhe são colocadas pelos fatos
da experiência, não permitem que ele se deixe restringir em demasia, na construção de
seu mundo conceitual, pela aderência a um sistema epistemológico. Assim, ele deve
parecer para o epistemólogo sistemático como um tipo de oportunista inescrupuloso: ele
aparece como um realista enquanto busca descrever um mundo independente dos atos
da percepção; como um idealista enquanto olha para os conceitos e teorias como
invenções livres do espírito humano (não deriváveis logicamente do que é dado
empiricamente); como um positivista, enquanto considera que seus conceitos e teorias
são justificados apenas na medida em que fornecem uma representação lógica das
relações entre as experiências dos sentidos. Ele pode até parecer como um platônico ou

1
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. I: Filosofia nas Controvérsias Científicas

pitagórico enquanto considera o ponto de vista da simplicidade lógica como um


instrumento indispensável e efetivo de sua pesquisa.1

Na visão de Einstein, o cientista pode então ser caracterizado como um “oportunista


inescrupuloso”, que não é capturado pelos rótulos estanques dos filósofos da ciência. Mesmo
assim, este cientista projetado por Einstein é alguém que adota diferentes posturas filosóficas
em diferentes momentos. Esclareceremos o significado dessas posturas filosóficas no Cap. II.
Mas nem todos os físicos concordam que a filosofia tenha importância em seu
trabalho. Na pesquisa diária que visa a publicação de papers, geralmente não há lugar para
questionamentos que fujam do “paradigma” vigente, para usar o famoso termo do historiador
e filósofo da ciência Thomas Kuhn. Este porém aponta uma ocasião especial em que os
cientistas filosofam:

Creio que é sobretudo nos períodos de crises reconhecidas que os cientistas se voltam
para a análise filosófica como um meio para resolver as charadas de sua área de estudos.
Em geral os cientistas não precisaram ou mesmo desejaram ser filósofos. Na verdade, a
ciência normal usualmente mantém a filosofia criadora à distância e provavelmente faz
isso por boas razões. Na medida em que o trabalho de pesquisa normal pode ser
conduzido utilizando-se do paradigma como modelo, as regras e pressupostos não
precisam ser explicitados.2

As crises enfocadas por Kuhn são aquelas que precedem uma grande revolução
científica. Mas há um outro tipo de crise em que os cientistas fazem uso intenso de
argumentos filosóficos: as controvérsias científicas.

2. Controvérsias Científicas

Uma controvérsia científica pode ser definida como uma disputa pública persistente,
envolvendo parcelas significativas da comunidade científica, sem fácil resolução, envolvendo
argumentos “epistêmicos” (ou seja, argumentos considerados próprios do método científico) e
também fatores não-epistêmicos, como emoções, traços de personalidade, pressões
institucionais, influências políticas, rivalidades nacionais, eventos fortuitos e até fraude.
Controvérsias científicas envolvem diferentes crenças ou opiniões, sendo uma disputa relativa
basicamente a fatos, ao passo que controvérsias políticas, éticas e tecnológicas envolvem um
conflito de diferentes atitudes ou propostas de ação, sendo uma disputa relativa a valores.3
Podem-se dividir as controvérsias científicas e tecnológicas em quatro grupos: (a)
Controvérsias entre teorias científicas ou relativas à evidência experimental, como no debate
recente entre as teorias das cordas e da gravitação quântica em laço, que examinaremos na
seção I.4. (b) Controvérsias quanto a aplicações tecnológicas, como no caso da energia

1
EINSTEIN, A. (1949), “Remarks concerning the essays brought together in this co-operative volume”, in SCHILPP,
P.A. (org.), Albert Einstein: philosopher-scientist, Library of Living Philosophers, Evanston, pp. 663-87. Citação na
pp. 683-4.
2
KUHN, T.S. (1978), A estrutura das revoluções científicas, trad. da 2ª ed. de 1970 por B.V. Boeira & N. Boeira
(com numeração dos capítulos alterada), Perspectiva, São Paulo, p. 119 (orig.: 1962).
3
MCMULLIN, E. (1987), “Scientific controversy and its termination”, in ENGELHARDT, JR., H.T. & CAPLAN, A.L.
(orgs.), Scientific controversies, Cambridge U. Press, pp. 49-91. A divisão em quatro grupos que vem a seguir
foi inspirada no site Understanding science, da U. California em Berkeley. Sobre o encerramento de
controvérsias, seguimos BEAUCHAMP, T. (1987), “Ethical theory and the problem of closure”, pp. 27-48 do livro
editado por Engelhardt & Caplan.

2
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. I: Filosofia nas Controvérsias Científicas

nuclear, ou quanto à ética na pesquisa, como no caso das células tronco. (c) Controvérsias
entre concepções científicas e não-científicas, como na disputa envolvendo o heliocentrismo
entre Galileo e o Cardeal Bellarmino, ou entre a teoria biológica da evolução e o criacionismo
(desenho inteligente). (d) Controvérsias quanto a prioridades em descobertas ou invenções,
como na disputa entre Mayer e Joule relativa à determinação do equivalente mecânico do
calor.
O encerramento de uma controvérsia pode se dar de cinco maneiras: (i) Por correção:
argumentos são dados ou evidência é encontrada, justificando cientificamente que um dos
lados da disputa é “correto” e o outro “errado”, como na controvérsia relativa ao
heliocentrismo. (ii) Por consenso: A força de uma posição supera as outras, e um consenso é
atingido, mesmo sem argumentos conclusivos; nessa caso, a controvérsia pode ressurgir
posteriormente, como na controvérsia dos quanta entre Bohr e Einstein. (iii) Por
procedimento: um procedimento formal é adotado para encerrar a controvérsia, por exemplo
por votação ou decisão governamental, como na decisão de não se construir o
Superconducting Supercollider no Texas. (iv) Por morte natural: a controvérsia irresoluta
deixa de despertar interesse e é esquecida. (v) Por negociação: uma solução minimamente
satisfatória para as partes é obtida, sem que uma posição predomine totalmente.
Controvérsias científicas surgem geralmente quando as evidências experimentais ou
aplicações práticas se tornam escassas. Assim, os argumentos usados passam a envolver
críticas de natureza filosófica, e mesmo sociológica.

3. A Unificação da Física Fundamental

Como primeiro exemplo de controvérsia científica, tomemos um exemplo atual que


ocorre na física teórica, que envolve a unificação da teoria quântica com a teoria da
relatividade geral. Antes de tratar dessa controvérsia, vale a pena fazer um pequeno resumo da
história da física teórica fundamental no séc. XX, em seu esforço de unificação das forças da
natureza, no que às vezes é chamado de “teoria de tudo”, mas que claramente não explica
diversos aspectos de sistemas complexos, como o fenômeno da consciência humana.
A mecânica quântica é a teoria que descreve o comportamento dos átomos e de sua
interação com radiação. Formulada em 1925-26, por Heisenberg, Born, Jordan, Schrödinger e
Dirac, ela apresenta uma visão de mundo bastante diferente da física clássica, partindo da
noção de que a matéria ordinária (e não só a radiação) tem propriedades ondulatórias. A teoria
funciona muito bem para sistemas de poucas partículas, e como fundamento para a mecânica
estatística, mas há dificuldades de estendê-la para sistemas macroscópicos, o que inclui a
dificuldade de descrever o aparelho de medição em termos quânticos.4
A outra grande revolução ocorrida na física no início do séc. XX começou com a
teoria da relatividade restrita, iniciada por Lorentz e Poincaré e arrematada por Einstein, em
1905, e Minkowski. Segundo esta teoria, a velocidade da luz no vácuo é a mesma para todos
os referenciais inerciais, mas não as medições de comprimento e duração temporal entre dois
eventos. O trabalho de Einstein culminou com sua teoria da gravitação (1916), a teoria da

4
Há diversos livros que discutem os princípios da física quântica e seus problemas conceituais. Em português,
uma introdução voltada para o ensino médio é apresentada por FREIRE JR., O. & CARVALHO NETO, R.A. (1996),
O universo dos quanta, FTD, São Paulo. Uma discussão dos problemas filosóficos é apresentada em: HERBERT,
N. (1989), A realidade quântica, Francisco Alves, Rio de Janeiro, e em GRIBBIN, J. (1988), À procura do gato de
Schrödinger, Presença, Lisboa. Vários livros apresentam capítulos com boas introduções à mecânica quântica,
como GREENE, B. (1999), O universo elegante, trad. J. Viegas Filho, Companhia das Letras, São Paulo, cap. 4, e
PENROSE, R. (1991), A mente nova do rei, Campus, Rio de Janeiro, cap. 6. Uma discussão de questões mais
recentes é apresentada por ZEILINGER, A. (2005), A face oculta da natureza, trad. L. Repa, Globo, São Paulo.

3
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. I: Filosofia nas Controvérsias Científicas

relatividade geral.5 Assim como a física quântica, esta teoria tem uma base de confirmação
excelente, mas ela também tem seus limites, por exemplo na descrição de buracos negros e do
início do universo (o big bang).
O próprio Einstein buscou desenvolver uma teoria que unificasse a gravitação e o
eletromagnetismo, mas o caminho a ser trilhado era árduo demais. O caminho encontrado pela
física passou primeiro pelo desenvolvimento da teoria quântica de campos relativísticos, em
1946-49, que além da simetria entre partículas e antipartículas, incorporou a noção de um
vácuo quântico polarizável. No caso da eletrodinâmica quântica, desenvolvida no período
1946-49 por Tomonaga, Bethe, Schwinger, Feynman e Dyson, a geração de “partículas
vituais” a partir do vácuo levou a cruciais correções nas massas e cargas medidas para
elétrons.6
Em 1963, Glashow, Weinberg e Salam mostraram como unificar as forças
eletromagnética e nuclear fraca, que seriam a mesma interação a temperaturas acima de 1015
K, mas sofrendo “quebra espontânea de simetria” após os primeiros instantes do big bang.
Previram a existência de três bósons de interação, observados em 1973 e 1984. O ponto alto
do projeto de unificação das forças da natureza ocorreu com o desenvolvimento teoria das
forças nucleares fortes, a cromodinâmica quântica, e a formação do chamado “modelo
padrão”, em torno de 1974. Trata-se de uma teoria quântica de campos relativísticos que
unifica as forças eletromagnética, fraca e forte, fazendo uso da noção de invariância de calibre
(gauge invariance), de famílias de partículas elementares que incluem quarks, léptons e
bósons de interação. A última previsão de partícula, feita por esta teoria, acaba de ser
verificada: a existência do bóson de Higgs.7
Nota-se também que os métodos das teorias quânticas de campo relativístico também
foram aplicados com sucesso em outro contexto, o da física da matéria condensada.8

4. A Controvérsia das Cordas

A teoria das cordas surgiu em torno de 1970 como uma explicação para dados
observados em aceleradores para interações envolvendo a força nuclear forte. Após a
derivação de uma expressão matemática, pelo italiano Veneziano, que descrevia esses dados,
Nambu, Nielsen e Susskind postularam independentemente que haveria cordas minúsculas

5
Para a teoria da relatividade restrita, um texto bem introdutório é: LANDAU, L. & RUMER, Y. (1985), O que é a
teoria da relatividade, Humus, São Paulo (orig. em russo: 1959). Ver também: STACHEL, J. (org.) (2001), O ano
miraculoso de Einstein, Ed. UFRJ, Rio de Janeiro. Das referências mencionadas na nota anterior, GREENE
(1999), caps. 2 e 3, e PENROSE (1991), caps. 5 e 7, cobrem as duas teorias da relatividade. Sobre a corroboração
experimental da relatividade geral (até 1986), ver WILL, C.M. (1996), Einstein estava certo?, trad. M.G.F.
Perpétuo, Ed. UnB, Brasília.
6
Hoje em dia temos acesso a relatos confiáveis dos conceitos e da história da física moderna através da internet.
Um sítio bastante rico é o das palestras do Prêmio Nobel, em http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/physics/
laureates. Para mais detalhes da história da eletrodinâmica quântica, pode-se consultar SCHWEBER, S.S. (1994),
QED and the men who made it: Dyson, Feynman, Schwinger, and Tomonaga, Princeton U. Press.
7
Em português, uma apresentação conceitual bastante didática do modelo padrão é: ABDALLA, MARIA CRISTINA
B. (2006), O discreto charme das partículas elementares, Ed. Unesp, São Paulo. Ver também WEINBERG, S.
(1996), Sonhos de uma teoria final, Rocco, Rio de Janeiro (orig.: 1992). Em inglês: SCHUMM, B.A. (2004), Deep
down things: the breathtaking beauty of particle physics, Johns Hopkins University Press, Baltimore.
8
Para uma discussão histórica deste compartilhamento metodológico, ver: JOAS, C. (2010), “Campos que
interagem: física quântica e a transferência de conceitos entre física de partículas, nuclear e do estado sólido”, in
FREIRE JR., O.; BROMBERG, J. & PESSOA JR., O. (orgs.), Teoria quântica: estudos históricos e implicações
culturais, Eduepb/Livraria da Física, Campina Grande, pp. 109-52.

4
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. I: Filosofia nas Controvérsias Científicas

cujos modos normais de oscilação gerariam famílias de partículas de diferentes massas


(energias). A divisão e recombinação dessas cordas explicariam as interações entre partículas.
Até 1974, várias propriedades interessantes surgiram na teoria: a possibilidade de unificar
todas as interações, inclusive a gravidade; a descrição tanto de bósons quanto férmions, por
meio da propriedade de supersimetria; a necessidade de trabalhar em muitas dimensões,
tipicamente nove dimensões espaciais, sendo que seis estariam “enroladas”.
O interesse inicial na teoria diminuiu, até que Schwarz & Green publicaram um artigo
em 1984, demonstrando que a teoria das cordas é finita e consistente, carecendo de certas
anomalias comuns a teorias unificadoras. Isso gerou a chamada 1ª revolução das cordas,
levando à solução de diversos problemas teóricos, por meio de geometrias multidimensionais
sofisticadas. Mas a proliferação em diferentes tipos de teorias acabou dispersando o interesse
dos físicos. A situação mudaria novamente em 1995, com a 2ª revolução das cordas, e a
proposta de Witten de unificar as diversas teorias, no que veio a ser chamada a teoria M, em
um espaço-tempo de onze dimensões. Em seguida, Polchinski mostrou que a teoria deveria
conter não só cordas, mas também membranas de 2 ou mais dimensões espaciais, chamadas
de “branas”. E por fim, o argentino Juan Maldacena e outros conseguiram construir um
modelo de buraco negro, por meio das branas, que explicava bem as propriedades
termodinâmicas dessas concentrações altíssimas de matéria.9
A teoria das cordas é apenas uma dentre várias tentativas de unificar a gravidade com
as outras três interações, e certamente a que tem tido maior sucesso. No entanto, em 2006
surgiram dois livros bastante críticos com relação às pretensões deste programa de pesquisa,
escritos por Lee Smolin e por Peter Woit, lançando o que veio a se chamar “a controvérsia das
cordas”.10 O argumento principal é que a teoria das cordas não tem conseguido obter
previsões empíricas que possam ser testadas experimentalmente (ver seção seguinte). Dentre
as críticas mais técnicas, está a de Smolin de que uma teoria de gravitação quântica teria que
ser “independente de fundo”, ou seja, não deveria impor restrições sobre as condições de
contorno do universo, isto é, sobre a métrica do espaço-tempo. Ao passo que não há uma
formulação da teoria das cordas que seja independente de fundo, Smolin defende que a teoria
da gravitação quântica em laço (ver seção I.7) consegue isso. As críticas de Smolin e Woit são
um bom exemplo de como os físicos lançam argumentos de ordem filosófica e sociológica.
Do lado sociológico, Smolin reclama que a alocação de verbas e contratações para os físicos
trabalhando com a teoria das cordas são desproporcionalmente altas em relação ao que é
dedicado aos programas de pesquisa rivais, na busca da unificação da gravitação com as
teorias quânticas de campo relativísticos.

5. Confirmação e Falseabilidade de Teorias

O que faz com que uma teoria científica seja considerada melhor do que outra? Vamos
supor que tenhamos duas teorias físicas rivais, como ocorria na década de 1840, com a teoria
ondulatória da luz e a “teoria da emissão”, que era a teoria corpuscular da luz proposta por
Newton. Como cada uma dessas teorias se modificava com o tempo, diante de novos

9
Bons relatos conceituais sobre a teoria das cordas encontram-se em GREENE (1999), op. cit. (nota 4), e também
no crítico SMOLIN, L. (2006), The trouble with physics, Houghton Mifflin, Nova Iorque, caps. 7-9. Ver também:
ABDALLA, E. & CASALI, A. (2003), “Cordas, dimensões e teoria M”, Scientific American Brasil, março 2003.
10
SMOLIN (2006), op. cit. (nota 9), e WOIT, P. (2006), Not even wrong, Basic Books, Nova Iorque. Uma resposta
foi dada na resenha escrita por POLCHINSKI, P. (2007), “All strung out?”, American Scientist 95(1), p. 1. Em
nossa disciplina, apresentamos uma tradução de trechos dessa controvérsia entre Smolin & Polchinski (ver “A
controvérsia das cordas”, na página do curso).

5
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. I: Filosofia nas Controvérsias Científicas

experimentos e resultados teóricos, podemos falar em “programas de pesquisa” rivais. Em


1850, Léon Foucault mostrou experimentalmente que a luz se propaga mais rapidamente no ar
do que na água, confirmando as previsões da teoria ondulatória e falseando as previsões da
teoria da emissão.
Ambas as teorias eram “falseáveis”, ou seja, elas deixavam claro quais seriam os
resultados experimentais que estariam em desacordo com as suas previsões. Como
argumentou bem Karl Popper11, apenas teorias falseáveis devem ser consideradas científicas.
A teoria ondulatória era falseável, mas com o experimento de Foucault ela foi confirmada, ou
“corroborada”, como preferia Popper. Após esse teste, que passou a ser considerado “crucial”,
a teoria da emissão foi abandonada pela maioria dos cientistas. Às vezes se fala que uma
teoria foi “refutada”, mas esse adjetivo é geralmente muito forte, pois às vezes o que parece
ser uma refutação aparentemente absoluta acaba sendo explicada por algum erro experimental
ou por algum refinamento da teoria falseada. Já o termo “falseado” não diz nada sobre se a
teoria é verdadeira ou falsa: ele apenas diz que um experimento confiável foi realizado e um
resultado proibido pela teoria foi obtido.
Apesar de a teoria ondulatória ter sido confirmada, ela continuou sendo falseável,
como seria de se esperar de uma teoria científica. E o programa de pesquisa da teoria
ondulatória da luz continuou forte e progressivo, passando por vários testes, mas nem todos,
até ser falseado de maneira notável pelos experimentos do efeito fotoelétrico de Millikan, em
1916.
Segundo os críticos da teoria das cordas, ela “não é nem falsa”, pois não poderia ser
falseada. Será que eles têm razão?

Parte da razão pela qual a teoria das cordas não faz nenhuma previsão nova é que ela
parece vir em um número infinito de versões. Mesmo se nos restringirmos a teorias que
concordam com alguns fatos observados básicos a respeito do nosso universo, como seu
tamanho imenso e a existência de energia escura, sobram em torno de 10500 distintas
teorias das cordas (ou seja, o dígito 1 seguido de 500 zeros), mais do que todos os
átomos do universo conhecido. Com um número tão vasto de teorias, há pouca
esperança de que possamos identificar o resultado de um experimento que não seria
abarcada por uma delas. Assim, o que quer que os experimentos mostrem, a teoria das
cordas não pode ser falseada (SMOLIN, 2006, p. xiv).

6. A Escala de Planck

Tanto a teoria das cordas quanto outras teorias da gravitação quântica atribuem
significado espacial para o comprimento de Planck lP, que foi derivado pelo pioneiro da teoria
quântica, Max Planck, em 1899, ao buscar exprimir uma grandeza com unidades de
comprimento, em termos de três constantes fundamentais da natureza: a constante
gravitacional G, a velocidade da luz c e a constante (reduzida) de Planck da física quântica, h.
Seu resultado foi l P = Gh / c 3 , cujo valor é 1,6·10–35 m.
Conjectura-se que a escala em que as diferentes interações têm a mesma intensidade
seja na escala de Planck ou próxima a ela. Uma corda poderia ter um tamanho bem maior do
que o comprimento de Planck, e mesmo assim ser bem menor do que o tamanho de um

11
POPPER, K.R. (1974), A lógica da pesquisa científica, trad. L. Hegenberg & O. Silveira da Mota,
Cultrix/EDUSP, São Paulo. Versão incompleta em Os Pensadores. Em inglês: The logic of scientific discovery,
Hutchinson, London, 1959. Orig. em alemão: Logik der Forschung, Springer, Viena, 1934. Ver seções 6 e 20.

6
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. I: Filosofia nas Controvérsias Científicas

próton. Já para a teoria da gravitação quântica em laço, o comprimento de Planck é a unidade


fundamental em um universo discretizado, e a unidade fundamental de tempo seria o tempo
de Planck (dividindo-se lP por c), da ordem de 10–43 segundos.

7. Teoria da Gravitação Quântica em Laço

A teoria da gravitação quântica em laço (ou loop, em inglês) parte de uma formulação
das equações da teoria da relatividade geral de Einstein em termos de um campo de calibre
(de maneira semelhante à teoria quântica de campo relativístico do modelo padrão),
desenvolvida por Ashtekar, em 1986. Em cima disso, Smolin, Rovelli e outros colegas
interpretaram a métrica do espaço-tempo como linhas de força de um campo elétrico, e
conseguiram quantizar o campo com independência de fundo.
O espaço-tempo quântico obtido é discretizado em unidades de comprimento de
Planck e do tempo de Planck. Isso pode ser visto como uma rede de pontos ligados por
segmentos de reta. A rede resultante é semelhante a “redes de spin”, usados na década de
1960 por Roger Penrose para descrever a gravitação. As partículas elementares estariam
associadas a nós e os campos aos segmentos entre os nós; o movimento dessas partículas se
daria em passos discretos, de nó em nó. O movimento da matéria e energia, por sua vez,
alteraria o padrão de conectividade da rede, o que refletiria na estrutura do espaço.12
O espaço contínuo, como o conhecemos, seria uma propriedade emergente das
estruturas no comprimento de Planck, que se comportariam de maneira aleatória, flutuando ao
sabor do princípio de incerteza quântico, como uma “espuma”. Tal concepção do espaço
como uma propriedade emergente é compartilhada por muitos teóricos das cordas.
O debate sobre se a estrutura udekométrica13 do espaço e rekométrica do tempo é
discretizada ou contínua nos remete ao paradoxos de Zenão (seção cap. iI). Será que tal
paradoxo tem alguma relevância para o debate atual?

12
Sobre a teoria da gravitação em laço, ver SMOLIN, L. (2002), Três caminhos para a gravidade quântica, trad.
W.J. Maciel, Rocco, Rio de Janeiro, caps. 9-10, e também SMOLIN, L. (2004), “Átomos de espaço e tempo”,
Scientific American Brasil, fev. 2004, 56-65. Outro texto sobre os “tijolos” que comporiam o espaço e o tempo é:
AMBJØRN, J.; JURKIEWICZ, J. & LOLL, R. (2008), “Universo quântico auto-organizado”, Scientific American
Brasil 75, ago. 2008, 28-35.
13
Os seguintes prefixos métricos são usados oficialmente para as escalas cada vez mais pequenas, de mil em mil
vezes menores: mili (10–3), micro (10–6), nano (10–9), pico (10–12), femto (10–15), ato (10–18), zepto (10–21) e yocto
(10–24). A partir deste ponto, não há regra oficial, mas uma proposta bastante divulgada é a seguinte: xeno
(10–27), weko (10–30), vendeko (10–33) e udeko (10–36). O comprimento de Planck seria em torno de 16 udekos,
mas o tempo de Planck é ainda inefável. Se inventarmos teko (10–39), seko (10–42) e reko (10–45), a nova proposta
para o crônon seria em torno de 100 rekos. Inefável também é o “comprimento de Compton” do Universo, com
valor em torno de 10–85 m! Ver: SCHILLER, C. (2012), Motion mountain: the adventure of physics, vol. I: Fall,
flow, and heat, www.motionmountain.net, Munique, pp. 51, 390.

7
Filosofia da Física Clássica
Cap. II

Realismo e Verdade
Questão: A ciência deve apenas descrever o que é observável, ou deve
lançar hipóteses sobre a realidade que estaria por trás dos
fenômenos?

1. Realismo vs. Antirrealismo

Uma distinção epistemológica fundamental, que aparece frequentemente em


controvérsias científicas, é aquela entre “realismo” e diferentes formas de “antirrealismo”.
Sucintamente, o realismo defende que a ciência pode fazer afirmações sobre entidades ou leis
inobserváveis, ao passo que o que chamaremos de fenomenismo (uma forma de antirrealismo)
defende que a ciência só deve se ater ao que é observável ou mensurável.
Esta discussão é às vezes chamada da questão do “estatuto cognitivo das teorias
científicas”.14 A melhor maneira de guardar o significado do termo “realismo” é lembrar que
se trata de um “realismo de inobserváveis”: a tese de que a ciência pode se referir a coisas que
se considera que nunca serão observadas. Além de “fenomenismo”, vários outros nomes são
associados à negação do realismo, como “instrumentalismo” e “positivismo”, como
exploramos no Cap. –II. Na Fig. –II.2, desse outro capítulo, indicamos que a posição realista é
“central”, pois ela se aproxima da maneira como concebemos o mundo em nosso cotidiano, o
que pode ser chamado de “realismo ingênuo”. Na ciência e na filosofia, os problemas para o
realismo ingênuo surgem quando atingimos domínios com os quais nunca tivemos contato na
história evolutiva, e críticas distintas ao realismo geram as diversas posições antirrealistas.
O realismo é a tese de que uma teoria bem confirmada deve ser considerada
literalmente verdadeira ou falsa, no mesmo sentido em que um enunciado particular é
considerado verdadeiro ou falso. Assim, (1) as entidades postuladas pela teoria teriam
realidade, no mesmo sentido em que objetos cotidianos são reais, mesmo que elas não sejam
observáveis (como “quarks”, “cordas”, “partículas virtuais”, “função de onda” ou “espaço-
tempo curvo”); (2) as leis teóricas e princípios gerais seriam verdadeiros ou falsos,
exprimindo a estrutura da realidade. Porém, como as teorias científicas geralmente envolvem
aproximações ou simplificações, deve-se entender a verdade através da noção de “verdade
aproximada” ou do conceito de “verossemelhança”.
O fenomenismo é a tese de que uma teoria científica refere-se apenas àquilo que é
observável, ou seja, ao “fenômeno”, em oposição ao “númeno” ou “coisa-em-si”, que estaria
para além do alcance da razão pura (como colocava o filósofo Immanuel Kant). Em outras
palavras, para o fenomenismo não faz sentido afirmar que um termo não-observacional (como
quark, etc.) corresponda a uma entidade real.

2. A Estrutura de uma Teoria Científica

Para esclarecer esta última afirmação, consideremos a representação esquemática de


uma teoria científica da Fig. II.1, em sua relação com a realidade física. A conexão entre
teoria e realidade é dada a partir dos “termos de observação” da teoria, que se referem

14
Este é o termo usado na apresentação clássica, mas desatualizada, de NAGEL, E. (1961), The structure of
science, Harcourt, Brace & World, Nova Iorque, pp. 117-52. Uma discussão mais completa e atualizada é dada
por NIINILUOTO, I. (1999), Critical scientific realism, Oxford U. Press, cap. 5.

8
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. II: Realismo e Antirrealismo

diretamente a entidades observáveis. Mas a teoria também contém termos mais abstratos,
chamados tradicionalmente de “termos teóricos”, que não correspondem a entidades
observáveis. A questão é estabelecer se faz sentido dizer que esses termos teóricos têm
referentes na realidade (ou seja, se pode-se dizer que eles se referem a algo real).
O fenomenismo está preocupado em erigir a ciência em bases seguras, nos fatos
observados ou nas sensações perceptivas. Considera assim que qualquer afirmação a respeito
da realidade não-observável é mera especulação metafísica, passível de erro. O realismo
admite que uma afirmação sobre a realidade não-observada pode ser errônea, pois a teoria
científica pode estar errada. Mas se estamos considerando a melhor teoria científica
disponível, há bases racionais para se defender que seus termos teóricos correspondem a
entidades ou estruturas reais, mesmo não havendo certeza.

Figura II.1: Esquema da relação entre teoria e realidade, segundo a “visão recebida”.15

Um bom exemplo de uma atitude realista foi a interpretação que Einstein deu à sua
teoria da gravitação relativística, que afirmava que o espaço-tempo é realmente curvo
(dependendo do conteúdo de matéria-energia em uma região). Ora, conforme argumentara
Poincaré, qualquer teoria de objetos materiais sem forças de interação, formulada em um
espaço curvo, pode ser reformulada em um espaço euclidiano (não-curvo) com a introdução
de forças de atração e repulsão. Ou seja, a teoria de Einstein pode ser reformulada em um

15
A “visão recebida” foi desenvolvida entre 1920 e 1960, e caracteriza uma teoria como sendo uma linguagem
logicamente estruturada. Uma boa referência, na qual a figura se baseia, é: FEIGL, H. ([1970] 2004) “A visão
‘ortodoxa’ de teorias: Comentários para defesa assim como para crítica”, Scientiae Studia 2(2), pp. 265-77. Devido
a dificuldades de incorporar modelos e analogias, essa visão “sintática” tem sido hoje preterida em favor da
chamada “visão semântica de teorias”.

9
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. II: Realismo e Antirrealismo

espaço-tempo euclidiano. Este, porém, rejeitava esta alternativa, porque a teoria ficaria muito
mais complicada, com a introdução de forças de interação. Assim, por razões de simplicidade,
Einstein defendeu a existência de uma entidade inobservável, o espaço-tempo curvo.

3. Discussão sobre as Posições Epistemológicas

Na seção I.1, apresentamos um texto de Einstein em que ele afirma que o cientista
pode ser visto como um “oportunista inescrupuloso”, pois pode adotar diferentes posições
epistemológicas em diferentes momentos. Einstein então menciona quatro posições, todas as
quais ele próprio deve ter adotado em sua carreira.
A definição que ele dá para o realismo se encaixa bem na definição que demos na
seção II.1: uma busca para descrever o mundo independente dos atos da percepção. No
entanto, o que ele chama de “idealismo” se aproxima mais daquilo que chamamos acima de
“construtivismo” (seção –II.2): a tese de que os conceitos e teorias são invenções livres do
espírito humano, não deriváveis das observações por meio da mera indução enumerativa (ou
seja, generalização das regularidades observadas), mas sim de um ato de perspicácia, insight,
“abdução”. Tal construtivismo é consistente tanto com o realismo quanto com o
fenomenismo.
O termo “idealismo” geralmente é usado para se referir a posições que negam que a
realidade do mundo seja independente de mentes (idealismo metafísico). Ou seja, só existe
aquilo que é percebido, como afirmou o filósofo George Berkeley. Esta posição é próxima do
fenomenismo, mas há uma diferença de ênfase. Geralmente, para as posições fenomenistas,
“não faz sentido” falar de uma realidade não observável. O idealismo metafísico é mais forte: o
não-observável não existe. As posições fenomenistas que estamos discutindo aceitam uma
forma de “naturalismo”, ou seja, aceitam que há uma natureza cujas propriedades e leis podem
ser reveladas pelo método científico. Já as posições idealistas metafísicas buscam salientar que
o sujeito, a mente, o eu, têm um papel primordial na constituição do mundo.16
No texto de Einstein, a definição de positivismo se encaixa bem na visão de mundo do
“positivismo lógico” do séc. XX, para o qual a experiência dos sentidos é a base privilegiada
para a elaboração das teorias científicas (juntamente com a lógica, que fundamenta a
matemática). Por fim, a tese de que simplicidade de uma hipótese é valor cognitivo importante
na escolha de teorias científicas não é usualmente chamada de “platonismo” ou “pitagorismo”.
Esses termos geralmente se referem ao “realismo dos universais”, que discutimos na seção
–III.4.
A tese de que o cientista não deve aderir a um único ponto de vista epistemológico, o
“oportunismo inescrupuloso” mencionado por Einstein, é geralmente chamado de
“pragmatismo” ou de “pluralismo teórico”, tendo sido defendido explicitamente por Ludwig
Boltzmann (como veremos adiante). Tal posição pode ser chamada de meta-epistemológica.
Isso significa o seguinte. Quando o cientista ou filósofo adota uma certa posição com relação ao
objeto da ciência (se esta deve se referir só aos fenômenos, ou também à realidade subjacente),
esta questão é chamada de “epistemológica”. Porém, há uma outra questão, que é se o cientista
deve se aferrar sempre a uma única posição epistemológica, ou se ele deve adotá-las conforme
as circunstâncias, de maneira pragmática. Esta seria então uma questão “meta-epistemológica”,
ou seja, de epistemologia da epistemologia.
Outro exemplo: um “relativista” afirma que “todas as verdades científicas são relativas a
um paradigma teórico”, o que constitui uma tese epistemológica. Porém, podemos lhe perguntar

16
Para mais detalhes sobre realismo e idealismo, podem-se consultar os arquivos lexicográficos do professor.
Ver: http://www.fflch.usp.br/df/opessoa/TCFC3-13-Lexico-1.pdf.

10
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. II: Realismo e Antirrealismo

se esta tese epistemológica, por ele enunciada, é uma verdade absoluta ou se ela é relativa. Esta
é uma questão meta-epistemológica.

4. Duas Concepções Opostas de Verdade

Um dos pontos mais polêmicos em discussões epistemológicas é a concepção adotada


para o conceito de verdade. Antes de começar, devemos salientar que o termo “verdade” é
carregado de valoração positiva. Assim, artistas falam de uma “verdade estética”, mas esta é
distinta da verdade “conceitual”, que nos interessa aqui. Geralmente as pessoas querem estar
do lado da verdade, então a discussão sobre a definição de verdade pode se tornar acirrada.
Há várias concepções ou definições de verdade (no sentido de “verdade conceitual”),
mas há duas que tendem a polarizar a discussão, especialmente nas ciências humanas: a noção
de “verdade por correspondência” e a noção “relativista” de verdade como uma construção
cultural. Começaremos por elas, pois são duas posições extremas, e a partir delas poderemos
introduzir as outras concepções como casos intermediários, no espectro objetivo-subjetivo.17
1) Concepção de verdade por correspondência. Segundo esta definição, a verdade é
uma relação entre um enunciado teórico (linguístico) e uma realidade. Nas palavras de
Aristóteles: “verdadeiro é dizer que o ser é [dizer do que é que ele é] e que o não-ser não é
[dizer do que não é que ele não é]” (Metafísica IV, 7, 1011 b 26). Uma opinião é verdadeira se e
somente se ela “corresponder” a um fato real do mundo. No séc. XX, essa concepção foi
articulada por G.E. Moore e Russell, em torno de 1910, e aparece no Tractatus de Wittgenstein
(1922), para quem haveria um “isomorfismo estrutural” entre proposições (enunciados) e fatos.
Se digo “a pérola nesta ostra fechada é esférica”, posso estabelecer uma
correspondência entre o termo “pérola” e uma certa coisa material, e uma correspondência
entre “ser esférica” e uma determinada forma que pode existir na realidade. O enunciado é
verdadeiro se, na realidade, a pérola em questão existir e for esférica. Nesse sentido, há uma
correspondência entre o enunciado e o fato real, e dizemos que o enunciado é verdadeiro. É
esta concepção de verdade que é adotada pelo realismo científico.
Vários pontos desta concepção são atacados pelas outras visões. O que exatamente
seria a relação de correspondência? Não se cairia em circularidade ao dizer que “é verdade
que há uma correspondência que define a veracidade dessa proposição”? Qual o critério de
aceitação de uma verdade relativa a um enunciado que se refere a uma realidade não-
observável?
Segundo esta concepção, é preciso distinguir entre uma relação de verdade, que existe
por exemplo entre o enunciado “a pérola nesta ostra fechada é esférica” e o estado real da
ostra e de sua pérola, e um critério de aceitação de verdade, ou seja, um critério que forneça
um teste para estabelecer se uma proposição é verdadeira ou falsa. Mesmo que fosse
impossível determinar se a ostra tem uma pérola esférica em seu interior, mesmo assim
haveria (segundo a presente concepção) uma relação entre o enunciado e a realidade, relação
esta que pode ser de correspondência (no caso de uma proposição verdadeira) ou não (no caso
de sua falsidade).
2) Concepção relativista de verdade. Em oposição à concepção correspondencial, a
concepção relativista é a visão de que a verdade é uma construção cultural ou social, sendo

17
Seguimos aqui a discussão de SUSAN HAACK (2002), Filosofia das lógicas, trad. C.A. Mortari & L.H.A.
Dutra, Ed. Unesp, São Paulo (orig.: 1978), cap. 7. O artigo de Russell em questão, “James’s conception of truth”,
foi republicado no seu livro Philosophical essays de 1910. Em português, outro livro atual é: KIRKHAM, R.L.
(2003), Teorias da verdade: uma introdução crítica, trad. A. Zir, Ed. Unisinos, São Leopoldo (orig. 1992).
Consultamos também: GLANZBERG, M. (2013), “Truth”, Stanford Encyclopedia of Philosophy, online.

11
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. II: Realismo e Antirrealismo

portanto relativa a uma determinada cultura, e que pode variar de época para época, mesmo
no caso das ciências naturais. Por exemplo, a partir do início do séc. XX, começaram-se a
acumular indícios de que o amianto causa doenças pulmonares. Antes de 1800, ninguém sabia
disso. Neste caso, a concepção relativista diria que o que hoje é verdade (“amianto causa
doenças pulmonares”), não era verdade no séc. XVII. Bruno Latour explorou a concepção
relativista ao argumentar que seria incorreto atribuir a morte do faraó Ramsés II à
“tuberculose”, categoria cunhada apenas no séc. XIX.
A concepção relativista foi apresentada, no contexto da disciplina da história, por
Giambattista Vico (1710), com seu lema “verum esse ipsum factum”: a verdade é ela mesma
feita (construída). Para Friedrich Nietzsche (1873), a verdade seria “um batalhão móvel de
metáforas, metonímias e antropomorfismos”, construída para fins práticos. Michel Foucault
(1969) retomou a noção de que não há fatos objetivos ou processos de verificação objetivos, e
de que o que é considerado um “fato” é uma construção humana imersa nas relações de poder
do indivíduo ou grupo social. O que é geralmente considerado “verdade” é o discurso ou
ideologia dos grupos que detêm o poder. Mas outros grupos terão a sua verdade, e as
mutações dos significados serão constantes, dado que os significados linguísticos são
arbitrários e mutáveis. Qualquer discurso pode ser “desconstruído”, expondo as raízes de sua
origem histórica e social. Esta concepção relativista, ou descontrucionista, foi incorporada a
partir da década de 1980 pelo chamado “pós-modernismo”, como na concepção de Jean
Baudrillard (1991) de que muito do que consideramos “verdade” em nossa cultura é na
verdade “simulacro”, ou seja, uma pretensa cópia da realidade, quando na verdade não
existiria a realidade pretensamente copiada, mas apenas a cópia.18

5. Outras Concepções de Verdade

Trataremos agora de duas posições que são englobadas no campo da chamada


“concepção pragmática de verdade”, mas que têm aspectos bastante distintos.19 O
“praticalismo” seria uma versão menos radical do relativismo, e o “pragmaticismo” uma
versão um pouco menos metafísica do correspondentismo.
3) O praticalismo de William James (1907) defende que o significado de uma
proposição é dado pelas suas consequências práticas; assim, uma crença é considerada
verdadeira se ela for verificável, ou se ela for útil. Uma proposição inverificável, como “antes
de uma observação, um elétron é uma entidade espalhada no espaço” (sendo que todos os
elétrons observados são pontuais), é considerada sem sentido, e não deve ser chamada de
verdadeira. No caso do praticalismo, o critério de aceitação de verdade se confunde com a
própria relação de verdade: não se pode aceitar a veracidade de uma proposição que não se
submeta ao critério de aceitação, que é a possibilidade de ser verificado ou testado. Para o
instrumentalismo de John Dewey, o termo “verdade” deveria ser substituído por um termo
menos carregado emotivamente, como o de “assertabilidade justificada” (warranted
assertability).

18
LATOUR, B. (2000), “On the partial existence of existing and nonexisting objects”, in Daston, L. (org.).
Biographies of scientific objects, University of Chicago Press, Chicago, p. 247-69. VICO, G. (1999), A ciência
nova, trad. M. Lucchesi, Record, Rio de Janeiro (orig. em italiano: 1725). NIETZSCHE, F.W. (1999), “Sobre a
verdade e a mentira no sentido extramoral”, trad. R.R. Torres Filho, in Coleção Os Pensadores, Nova Cultural,
São Paulo p. 51-60 (orig. em alemão: 1873). FOUCAULT, M. (2008), A arqueologia do saber, trad. L.F. Baeta
Neves, Forense Universitária, Rio de Janeiro (orig. em francês: 1969). BAUDRILLARD, J. (1991), Simulacros e
simulação, trad. M.J.C. Pereira, Relógio d’Água, Lisboa (orig. em francês: 1981).
19
Um breve introdução ao pragmatismo é: HAACK, S. (2002), “Pragmatismo”, in Bunnin, N. & Tsui-James
(orgs.), Compêndio de filosofia, trad. L.P. Rouanet, Loyola, São Paulo, pp. 641-57.

12
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. II: Realismo e Antirrealismo

A posição do praticalismo é próxima da do item (2), mas o relativismo não valoriza o


critério de aceitação por verificabilidade, mas defende que cada cultura estabelece seus
próprios critérios sobre o que é verdade ou não, mesmo que os enunciados verdadeiros se
refiram a cosmogonias ou a deuses inobserváveis. Ao contrário da posição do item (1), as
posições pragmáticas não veem a verdade como uma relação entre linguagem e realidade, mas
como um conjunto de práticas ou condutas que levam a pessoa (na medida do possível) a
evitar a mentira e o erro.
4) O pragmaticismo de Charles Peirce (1877) define a verdade de maneira mais
idealizada do que o praticalismo, como “o resultado final da investigação”, o que no caso da
ciência seria o resultado final a ser obtido no futuro. Se porventura a ciência não atingir este
grau final de consenso, por exemplo devido a um grande cataclisma, mesmo assim esse limite
ideal é o que é tomado como verdade. Semelhante concepção foi adotada pela teoria do
consenso de Jürgen Habermas (1976), para quem a verdade é vista como o consenso atingido
em uma situação ideal de discurso. Essas posições fogem do praticalismo, pois propõem um
critério idealizado de aceitação de verdade, um critério que na prática pode nunca ser
atingido.
Vistas essas concepções, terminaremos com mais duas posições, lembrando que há
ainda outras variantes.
5) Concepção de verdade por coerência. Segundo esta visão, uma opinião é
verdadeira se e somente se ela é parte de um sistema coerente de opiniões. Esta é a concepção
utilizada por visões idealistas, para as quais o que chamamos de “realidade” é fruto de uma
mente. Ela também é utilizada na matemática, no sentido em que a “verdade” de um teorema
não depende da correspondência com um mundo, mas apenas da consistência da derivação a
partir de postulados. Um problema enfrentado pela concepção coerentista é a acepção exata
de “coerência”: ela não poderia ser apenas a consistência interna do sistema, pois um conto de
fadas pode ser consistente, e não é considerado verdadeiro.
6) Concepções deflacionárias de verdade. Em oposição às concepções “substantivas”
descritas acima, especialmente (1), (4) e (5), alguns autores salientam que a noção de verdade
não é muito importante, ou é redundante, ou então propõem definições que são neutras em
relação às concepções substantivas. Dizer que uma proposição é verdadeira, como em “é
verdade que a neve é branca”, não diz nada a mais do que dizer que “a neve é branca”. Paul
Horwich (1990) não define explicitamente o que é verdade, mas define o que é para alguém
ter uma concepção de verdade. Outra abordagem que alguns autores consideram deflacionária
(mas nem todos) é a chamada “concepção semântica de verdade”, proposta por Alfred Tarski
em 1931, no contexto da lógica simbólica. Para evitar os paradoxos lógicos ensejados por
enunciados como “Este enunciado é falso”, propôs que toda asserção de verdade se dê na
metalinguagem, e não na linguagem objeto. A metalinguagem é a linguagem que se refere à
linguagem objeto. Assim, se afirmo que “‘A neve é branca’ é uma proposição verdadeira”,
estou na metalinguagem, e ela é uma afirmação adequada se e somente se a neve for branca
(na linguagem objeto). Tarski salientou que sua definição é “epistemologicamente neutra” em
relação às outras concepções de verdade.

13
Filosofia da Física Clássica
Cap. III

Natureza do Tempo

Questão: Qual a natureza do tempo, segundo a filosofia e a física clássica?

1. Tempo Físico precede o Tempo Subjetivo?

Para os físicos, o tempo é geralmente considerado uma grandeza real do mundo físico,
que existe de maneira independente de sujeitos conscientes. Trata-se de uma concepção
realista do tempo. Mesmo no debate a respeito de se o espaço e o tempo são absolutos,
anteriores à matéria, ou relativos, dependendo da relação entre os corpos materiais, a maioria
dos físicos parece pressupor que a resposta a essa questão independeria da presença de seres
inteligentes no Universo. Nesse sentido, trata-se de uma concepção realista a respeito do
espaço e do tempo (sobre o realismo vs. fenomenismo, ver seção II.1). Tal concepção pode
ser chamada de perspectiva naturalista do tempo, segundo a qual o tempo físico existiu antes
da evolução do ser humano, e portanto é distinto e anterior ao tempo psicológico.
No contexto filosófico, porém, é bastante difundida a noção de que o tempo depende
do sujeito do conhecimento. Um exemplo clássico desta concepção é a epistemologia de
Immanuel Kant. Para ele, tempo e espaço seriam “formas da sensibilidade”, seriam a maneira
que o sujeito formata, organiza ou constrói os dados dos sentidos.
Filosofias de cunho fenomenista, para as quais não se pode separar a realidade daquilo
que observamos ou daquilo sobre o qual temos experiência, tendem a dar prioridade
epistemológica ao tempo psicológico, pois é a este que temos acesso primordial. O tempo
físico seria apenas uma construção teórica, científica, que pressupõe a presença de um sujeito
e de sua vivência do tempo. Esta concepção aparece de maneira clara no filósofo francês
Henri Bergson. Em suma, para esta perspectiva do sujeito, o tempo é conforme as nossas
intuições, e rejeita-se a tese de que o tempo físico, que aparece em teorias físicas como a
teoria da relatividade restrita, seja anterior e mais fundamental do que o tempo psicológico ou
o tempo do sujeito transcendental.20

2. O Tempo é Absoluto ou Relativo?

No seu Principia, Isaac Newton definiu da seguinte maneira sua concepção de tempo
absoluto:

O tempo absoluto, real e matemático, por si só e por sua natureza, flui uniformemente,
sem relação com qualquer coisa externa, e recebe também o nome de duração. O tempo
relativo, aparente e comum é uma medida sensível e externa (precisa ou desigual) da
duração, que é obtida por meio de movimento, e que é normalmente usada no lugar do
tempo verdadeiro, tal como uma hora, um dia, um mês, um ano.21
20
Essa perspectiva filosófica é explorada no acessível livro de PIETTRE, B. (1997), Filosofia e ciência do tempo,
trad. M.A. Figueiredo, EDUSC, Bauru, que parte de uma discussão de se “o tempo existe fora do espírito”. Uma
abordagem mais naturalista e igualmente acessível é o livro de WHITROW, G.J. (2005), O que é tempo?, trad.
M.I.D. Estrada, Jorge Zahar, Rio de Janeiro (orig. em inglês: 1972).
21
NEWTON, I. ([1687] 2008), Principia: princípios matemáticos de filosofia natural, Livro I, trad. T. Ricci, L.G.
Brunet, S.T. Gehring & M.H.C. Célia , Edusp, São Paulo, p. 45. Mesclamos com a tradução apresentada em
COHEN, I.B. & WESTFALL, R.S. (orgs.) (2002), Newton: textos, antecedentes, comentários, trad. Vera Ribeiro,
Contraponto/Ed. UERJ, Rio de Janeiro, p. 283.

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FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. III: Natureza do Tempo

A concepção newtoniana de que há um tempo independente da matéria, que flui por si


mesmo independente do movimento dos corpos, tem sido bastante criticada: afinal, o que
significaria dizer que o tempo “flui uniformemente”? Se ele não fluísse uniformemente, como
saberíamos?22
A concepção contrária, relacionista, de que não há tempo absoluto, já está presente no
romano Lucrécio (Da natureza, I, 460-5), e foi defendida com vigor por Leibniz, em sua
crítica à concepção de Newton:

Quanto a mim, deixei assentado mais de uma vez que, a meu ver, o espaço é algo
puramente relativo, como o tempo; a saber, na ordem das coexistências, como o tempo
na ordem das sucessões.23

Na concepção relacionista, o tempo surge a partir do movimento das coisas, sendo


assim uma relação entre as coisas e não algo independente das coisas materiais (ou
espirituais). O relacionismo de Leibniz parte de uma concepção realista, ao passo que o do
neopositivista Ernst Mach é fenomenista:

Dizer que uma coisa A varia com o tempo, só significa que as circunstâncias de uma
coisa A dependem das circunstâncias de outra coisa B. As oscilações de um pêndulo se
produzem no tempo se seu deslocamento depender da posição da terra. [...] Não temos
qualquer capacidade de medir a variação das coisas pelo tempo. Pelo contrário, o tempo
é uma abstração, à qual chegamos pela mudança das coisas, e que obtemos porque não
estamos restritos a qualquer medida única e determinada, já que todas as coisas estão
conectadas entre si. [...] Mas a questão de se um movimento é uniforme em si mesmo
não tem sentido algum. Muito menos podemos falar de um “tempo absoluto”, um tempo
independente de toda variação. Este tempo absoluto não poderia ser medido por
comparação a nenhum movimento, não tendo assim qualquer valor prático e científico;
ninguém está autorizado a dizer que sabe algo sobre isso. Não passa de um ocioso
conceito “metafísico”.24

3. O Tempo é Denso ou Discreto?

Qual é a estrutura microscópica do tempo? A física clássica representa a dimensão


temporal por meio de números reais, mas será que se pode afirmar que o tempo tenha
realmente a estrutura dos números reais? (Ver a discussão das seções –III.5 e 6.)
Pode-se argumentar que, empiricamente (ou seja, por meio de experimentos e
observações), não se pode distinguir a estrutura dos números reais daquela dos números
racionais, ambas as quais são “densas”. Mas talvez fosse possível distinguir uma estrutura
temporal densa de uma estrutura discreta, representável pelos números inteiros. Vimos que a
gravitação quântica em laço defende que o tempo é discretizado nas unidades do tempo de

22
WHITROW (2005), op. cit. (nota 20), pp. 100-6. Outro livro do mesmo autor, que entra em um pouco mais de
detalhes, é: WHITROW, G.J. (1980), The natural philosophy of time, 2ª ed., Clarendon, Oxford, pp. 33-9. Sobre a
concepção relacionista de Leibniz, ver por exemplo: KOYRÉ, A. (1979), Do mundo fechado ao universo infinito,
trad. D.M. Garshagen, Forense, Rio de Janeiro, Edusp, São Paulo, pp. 239-48 (orig. em inglês: 1957).
23
Trecho (p. 177) da terceira carta de Leibniz a Samuel Clarke, escrita em 1716, e republicada em: LEIBNIZ,
G.W. (1979), “Correspondência com Clarke”, in Os Pensadores, 2ª ed., volume Newton/Leibniz (I), trad. C.L.
Mattos, Abril Cultural, São Paulo, pp. 165-232.
24
MACH, E. (1902), The science of mechanics, trad. T.J. McCormack, Open Court, Chicago, pp. 223-4 (orig. em
alemão: 1883). Ver a tradução de trechos selecionados no sítio do curso, texto Mach-Mecânica-Espaço.

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FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. III: Natureza do Tempo

Planck, da ordem de 10–43 segundos (seções I.5 e 6). Tal unidade de tempo é conhecida como
“crônon”, e foi bastante discutida entre as duas guerras mundiais, com estimativas não
menores do que 10–24 segundos. Dentre as diversas teorias do crônon, algumas atribuem ao
próprio tempo uma estrutura discretizada, ao passo que outras consideram que o tempo é
contínuo ou pelo menos denso, e que são os eventos que só podem ocorrer a intervalos
discretos de tempo.25
A discussão sobre se o tempo tem uma estrutura matemática densa ou discreta se dá,
naturalmente, no contexto do realismo (de inobserváveis). Abordagens mais fenomenistas
podem não atribuir significado a essa discussão, e inclusive negar que o tempo seja
matematizável. Filósofos que criticaram a noção clássica de tempo incluem Henri Bergson,
William James e Alfred Whitehead. Bergson criticou a “espacialização do tempo”
empreendido pela física clássica, ao descrever o tempo como um contínuo que possuiria a
estrutura matemática do espaço unidimensional. Para ele, o tempo tem um aspecto de vir-a-
ser, de devir, de abertura para o futuro, que é perdido ao se impor nele uma espacialização. Ao
invés de instantes infinitesimais, haveria uma “duração” finita, irredutível a instantes, e sem
limites bem definidos. Whitehead concordava com essa concepção, e falava na “passagem da
natureza” em sua filosofia de processos. Semelhante concepção foi retomada mais
recentemente pelo fisico-químico Ilya Prigogine.26

4. A Estrutura Macroscópica do Tempo

Qual é a estrutura do tempo em grande escala? Ele seria linear, como é pressuposto na
física clássica (Fig. III.1a), com eventos que se ordenam em uma série única, sem início ou
fim? Neste caso, para quaisquer dois eventos A e B, apenas uma das alternativas pode ser
verdadeira: ou eles são simultâneos, ou A é temporalmente anterior a B, ou B é anterior a A.
Na Fig. III.1b, representa-se um tempo linear com um início, mas sem um fim.
A Teoria da Relatividade Restrita alterou esse quadro linear simples, pois pode-se
considerar que são distintos os tempos próprios de dois observadores em diferentes
referenciais de movimento (como no paradoxo dos gêmeos, ver seção –V.2). Mas
permanecendo, por ora, dentro do contexto da física clássica, outras duas estruturas
macroscópicas importantes já foram propostas. No tempo cíclico ou circular, um instante do
passado retornaria no futuro (Fig. III.1c). Aqui, novamente, é preciso distinguir a concepção
de que o próprio tempo (considerado real e absoluto) seja cíclico, da concepção de que o
tempo absoluto é linear mas o estado do mundo material passa por ciclos e retorna a estados
anteriores. Numa concepção estritamente relacionista do tempo, o retorno exato de um estado
do mundo material seria equivalente a um ciclo do próprio tempo.

25
Uma breve discussão a respeito dos crônons e hódons (quanta de espaço) é feita por ČAPEK, M. (1965), El
impacto filosófico de la física contemporánea, Tecnos, Madri, p. 240 (orig. em inglês: 1961). O brasileiro Ruy
Farias e o italiano Erasmo Recami desenvolveram a teoria do crônon de Pietro Caldirola (1953), com uma breve
introdução histórica e filosófica, em FARIAS, R.H.A. & RECAMI, E. (2010), “Introduction of a quantum of time
(‘chronon’), and its consequences for quantum mechanics”, Advances in Imaging and Electron Physics 163, pp.
33-115.
26
BERGSON, H. (2006), Duração e simultaneidade, trad. C. Berliner, Martins Fontes, São Paulo, cap. III (orig.
em francês: 1922). Sua concepção é discutida com simpatia por ČAPEC (1965), op. cit. (nota anterior), pp. 229-
30. JAMES, W. (1911), Some problems of philosophy, Longmans, Green & Co., Nova Iorque, caps. 10-11.
WHITEHEAD, A.N. (1994), O conceito de natureza, trad. J.B. Fischer, Martins Fontes, São Paulo, p. 67 (orig. em
inglês: 1920). PRIGOGINE, I. & STENGERS, I. (1991), A nova aliança: metamorfose da ciência, Ed. UnB, Brasília.

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FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. III: Natureza do Tempo

Concepções de tempo cíclico eram comuns nas cosmologias da Antiguidade. A visão


de que o tempo é linear e eterno, mas que há recorrência do estado do Universo, está presente
na tese do “eterno retorno” do filósofo Friedrich Nietzsche (1881). Segundo seu raciocínio, se
a matéria ou a energia do universo for finita, e se ela se distribui por um número finito de
pontos, então é inevitável que mais cedo ou mais tarde este estado se repetirá, dada a finitude
da matéria e o fato de o tempo ser infinito. Semelhante raciocínio foi feito no contexto da
física teórica por Henri Poincaré (1889), no seu teorema da recorrência, que exploraremos
mais para frente.27
Outra concepção a respeito da estrutura de grande escala do tempo leva em conta a
assimetria entre o passado e o futuro. O passado e o presente são únicos, mas o futuro seria
aberto, de forma que o tempo poderia ser representado como uma árvore, em uma estrutura de
tempo ramificada (Fig. III.1d). Nesta concepção, o presente seria como um zíper que vai
fechando o futuro, transformando paulatinamente os diversos mundos possíveis do futuro em
um presente e passado únicos. Uma maneira elegante de diferenciar essas estruturas é pela
lógica temporal (seção –IV.1).

Figura III.1: Representação


esquemática de diferentes
estruturas macroscópicas do
tempo: (a) tempo linear infinito;
(b) tempo linear com um início;
(c) tempo cíclico; (d) tempo
ramificado, com futuro aberto.

5. Eternalismo

Em seu artigo sobre a irrealidade do tempo, que examinamos na seção –IV.2,


McTaggart (1908) começa apresentando duas afirmações temporais a respeito dos eventos do
mundo:
Série A: Um evento é passado, presente ou futuro.
Série B: Um evento é mais cedo, simultâneo, ou mais tarde do que outro evento.

27
Sobre Nietzsche e Poincaré, ver BRUSH, S.G. (1976), The kind of motion we call heat: a history of the kinetic
theory of gases in the 19th century, vol. 2, North-Holland, Amsterdã, pp. 627-32. Sobre o eterno retorno:
NIETZSCHE, F.W. ([1881] 2008), Vontade de poder, trad. M.S.P. Fernandes & F.J.D. Moraes, Contraponto, Rio
de Janeiro, Quarto Livro, § 384.

17
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. III: Natureza do Tempo

Ambas essas séries são geralmente atribuídas ao tempo, mas há visões metafísicas que
priorizam uma delas em detrimento da outra.28 (Para adaptar o argumento à Teoria da
Relatividade Restrita, pode-se considerar apenas os tempos próprios de cada indivíduo.)
Comecemos pela eternalismo, que é a concepção que prioriza a relação de
antecedência temporal entre eventos, ou seja, a série B. Nesta visão, passado, presente e futuro
estão em pé de igualdade: a única diferença é que “estamos no presente”, da mesma maneira
em que “estamos no Brasil”, e não na Islândia. O fato de estarmos no Brasil não implica que a
Islândia tenha um estatuto existencial menor. De maneira análoga, o fato de o vulcão
Eyjafjallajokull estar ativo hoje não implica que a erupção de Krakatoa, em 1883, tenha um
estatuto existencial menor (uma tese razoavelmente consensual), ou que a erupção do
supervulcão em Yellowstone em alguma data futura seja menos real (uma tese menos
consensual do que a anterior, mas defendida pelo eternalismo). Todos os três casos teriam
igual realidade. Claro está que não sabemos exatamente quando será a erupção do
supervulcão, mas também não sabemos exatamente onde está localizado o maior satélite da
estrela Sírio: em ambos os casos, nosso desconhecimento surgiria apenas do fato de estarmos
“aqui” e “agora”, e não alhures ou outrora.
O eternalismo, então, aceita que a série B reflita a realidade, enquanto a série A
surgiria apenas da perspectiva sob a qual vemos o mundo. Esta teoria leva adiante a
“espacialização do tempo” mencionada na seção III.3, e está comprometida com alguma
forma de determinismo (que discutiremos no cap. V). Passado, presente e futuro teriam
estatuto ontológico semelhante, sugerindo que o espaço-tempo quadridimensional possa ser
encarado como uma entidade única, dada de uma só vez: assim, esta concepção é às vezes
chamada de “universo em bloco”, termo cunhado por William James em 1882 para o universo
estritamente determinista. A concepção do universo em bloco é adotada por muitos
cosmólogos que trabalham com a teoria da relatividade geral e com a noção de espaço-tempo
curvo. Nas palavras de Hermann Weyl (1949):

O mundo objetivo simplesmente é, ele não acontece. É apenas para a contemplação da


minha consciência, rastejando para cima ao longo da linha-da-vida de meu corpo, que
uma seção do mundo vem à vida como uma fugaz imagem no espaço, continuamente
mudando com o tempo.29

O eternalismo traz um enfoque interessante para o problema da mudança. Este é o


problema de explicar como uma coisa pode mudar suas propriedades e ao mesmo tempo
manter sua identidade. Por exemplo, o navio de Teseu ficou atracado em um dos portos de
Atenas durante anos, e aos poucos suas partes foram sendo trocadas, uma a uma. Ao final,
perguntou Plutarco, tratar-se-ia do “mesmo” navio ou teríamos um “outro” navio? No caso de
um ser humano, temos o hábito de atribuir uma identidade a uma pessoa, mesmo que ela se
altere de maneira radical com o passar dos anos. Haveria alguma essência imutável que se
mantém com o passar do tempo, de forma que possamos identificar a pessoa? Ou a atribuição
de identidade é apenas de uma convenção, ligada a uma história de vida particular?
A solução do eternalismo é considerar que a “coisa” que muda com o tempo seria, na
verdade, uma objeto quadridimensional imutável. Uma pessoa como Albert Einstein, por

28
Uma boa e divertida introdução a estes temas é: CALLENDER, C. & EDNEY, R. (2004), Introducing time, Icon
Books, Cambridge (Ingl.), pp. 33-51. Uma boa introdução às questões da mudança e do tempo encontra-se em:
LOUX (2002), op. cit. (nota –18), cap. 6.
29
WEYL, H. (1949), Philosophy of mathematics and natural science, Princeton U. Press, p. 116. WHITROW
(1980), op. cit. (nota 22), pp. 273-4, 348-51, discute essa questão, e cita Weyl na p. 348. Sobre a origem do
termo “universo em bloco” em W. James e F.H. Bradley, ver NAHIN, P.J. (1999), Time machines, 2ª ed.,
Springer, Nova Iorque, pp. 151-2.

18
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. III: Natureza do Tempo

exemplo, seria na verdade uma “minhoca” quadridimensional, como mostrado na Fig. III.2. O
que observamos em 1905 é uma fatia ou parte da minhoca-Albert, ao passo que em 1935
temos outra parte da minhoca-Albert. A questão de explicar a mudança de Albert entre 1905 e
1935 seria, em princípio, tão trivial quanto explicar porque o jequitibá-rosa tridimensional de
Santa Rita do Passa Quatro tem madeira no tronco e folhas na copa: são simplesmente partes
diferentes de uma mesma coisa (um mesmo “particular concreto”). Esta teoria das partes
temporais recebe o nome de “perdurantismo”. Ela se contrapõe à visão “durantista” (ou
“continuantista”), que concebe um particular concreto como existindo em um momento do
tempo, e defende que em um tempo posterior essa coisa mantém sua identidade (teríamos o
mesmo Albert), mesmo que suas propriedades se alterem.

Figura III.2. Representação grosseira da vida de Albert Einstein, que muda de posição espacial (a
longitude r) ao longo do tempo (t), entre seu nascimento e morte. O perdurantismo considera que uma
pessoa, como Albert, deve ser encarada como um objeto quadridimensional, resultando numa figura
que lembra uma minhoca em três dimensões.

6. Modalidades temporais (tenses)

O eternalismo coloca em segundo plano a série A, que descreve passado, presente e


futuro; a concepção que a coloca no mesmo pé de igualdade (ou a considera mais importante)
que a série B é chamada em inglês de tensed theory of time, que poderíamos traduzir por
teoria dos “tempos verbais” (tenses) (o que tem mais de um significado em português) ou dos
“modos temporais”, distinguindo passado, presente e futuro. Um partidário da teoria dos
modos temporais é chamado, em inglês, de “tenser”, o que poderia ser traduzido por
“modista”.

19
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. III: Natureza do Tempo

Esta concepção se afasta da espacialização do tempo, salientando que o tempo escoa


ou vem-a-ser, de maneira assimétrica (do passado para o futuro), diferindo de maneira
fundamental do espaço (ver seção III.3). O ponto central é que o futuro não existe, é irreal, ou
é aberto. Obviamente, há uma maneira muito simples de exprimir isso, que é dizer que o
futuro “não existe ainda, mas existirá”. A teoria dos modos temporais de Arthur Prior (cuja
lógica temporal exploramos na seção –IV.1) leva ao pé da letra os tempos verbais dos verbos:
é falso dizer que o passado ou o futuro existem, só “existe” o presente; mas o passado
“existiu”, e o futuro “existirá”.30 A visão que salienta que só o presente existe (qualquer que
seja o significado disso) é conhecida como presentismo, e tende a colocar passado e futuro em
pé de igualdade (pois não “existem”).
Uma posição modista um pouco diferente dá um peso ontológico maior para o passado
do que para o futuro. O passado e o presente são definidos e inalteráveis, ao passo que o
futuro é aberto e indefinido, “fechando-se” à medida que o “zíper” do presente se desloca no
tempo (ver Fig.III.1d). Esta abordagem, que pode ser chamada de tradicional, é exemplificada
pela proposta de C.D. Broad (1933), em resposta a McTaggart.

30
Este é um interessante exemplo de como, às vezes, a metafísica acaba tendo que entregar a tocha do
significado para a semântica, e não consegue ir além das invenções linguísticas consagradas pela história da
humanidade. Outro exemplo disso se refere à existência de mundos contrafactuais (ou seja, mundos
possíveis que não existem de fato): eles existem? É melhor se conformar em dizer que “eles poderiam ter
existido”, reconhecer que esta questão é opaca à análise metafísica, e partir para outros assuntos. Outro
exemplo, em que a tocha do significado foi aparentemente entregue pelo pensamento para a linguagem, foi a
conclusão de Niels Bohr (1935, p. 700), diante do problema levantado por Einstein, Podolsky & Rosen. “É
claro que não se coloca a questão, em um caso como o considerado, de um distúrbio mecânico no sistema
considerado, durante o derradeiro estágio crítico do procedimento de medição. Mas mesmo neste estágio há
essencialmente a questão de uma influência nas próprias condições que definem os tipos possíveis de
previsões relativas ao comportamento futuro do sistema”. Por um lado, Bohr fala que (i) não há um distúrbio
mecânico de um subsistema sobre o outro, mas por outro fala em (ii) uma influência nas próprias condições
de definição do sistema composto. Mesmo não fazendo muito sentido, tal distinção é hoje expressa pela
distinção entre (i) localidade e (ii) não separabilidade. Se a nossa intuição não consegue abarcar
conceitualmente uma questão nas fronteiras do conhecimento, deixemos a linguagem e a matemática fazer o
trabalho. BOHR, N. (1935), “Can quantum-mechanical description of physical reality be considered
complete?”, Physical Review 48, 696-702.

20
Filosofia da Física Clássica
Cap. IV

Experimento do Balde e Espaço Absoluto


Questão: O espaço é absoluto ou relativo?

1. Referenciais Inerciais e Não-Inerciais

Um dos conceitos que surgem da mecânica de Newton é o de referencial inercial.


Trata-se de um referencial (sistema de referência) em movimento retilíneo uniforme (i.e., com
velocidade constante) em relação ao referencial do espaço absoluto. As leis da mecânica
clássica são invariantes ante mudanças de referenciais inerciais: eis o princípio de relatividade
“galileano”.
Se o referencial não for inercial, a sua aceleração gerará forças “fictícias” nos objetos
do sistema. Por exemplo, quando um carro faz uma curva para a esquerda, o passageiro “cai”
para a direita, não porque exista uma força real atraindo ele para a direita, mas porque, por
inércia, sua tendência natural é permanecer em movimento retilíneo uniforme, e quando o
carro vira para a esquerda, o passageiro tende a permanecer em linha reta, o que resulta num
movimento aparente para a direita, aparente em relação ao carro. No referencial do carro, a
força para a direita é fictícia, pois não há fontes que ocasionam esta força, e porque há um
referencial inercial externo que explica esta força fictícia a partir da aceleração do carro.
Mas como podemos descobrir se um certo referencial é ou não inercial? Uma proposta
inicial seria a seguinte. Analisam-se todas as acelerações dos corpos que compõem o sistema
de estudo, e buscam-se as forças responsáveis por essas acelerações, ou seja, as fontes das
forças, como massas (que geram forças gravitacionais), cargas elétricas, imãs, molas, mesas
(fonte da força “normal”), pressões, atritos, etc. Se ao final deste estudo, houver alguma
aceleração que não pode ser atribuída a uma interação física, então o referencial é considerado
não inercial. Ao se soltar uma pedra para o fundo de um poço, observa-se uma pequena
aceleração para leste. Como essa aceleração não pode ser atribuída à força gravitacional ou a
um movimento do ar, conclui-se que vivemos num referencial não inercial. De fato, a
aceleração para leste é devida à força fictícia de Coriolis, que se origina da rotação da Terra.
Tal receita apresenta alguns problemas, pois ela depende de quais interações (que
geram as forças) a teoria física aceita. Poder-se-ia talvez, a princípio, postular uma nova
interação para explicar a origem da força considerada fictícia. Como saber com certeza?

2. O Experimento do Balde

Newton apresentou o seguinte argumento em favor da existência de um referencial


inercial absoluto, que constituiria um “espaço absoluto”.31
Considere um balde parcialmente cheio de água, que repousa a mil quilômetros acima
do pólo Sul. Consideremos quatros estágios do experimento mental, ilustrados pela Fig. IV.1.
(a) Inicialmente o balde está em repouso, e a água também. (b) A seguir, o balde é girado a
uma velocidade angular constante, mas neste primeiro instante a água permanece parada, no
seu estado inicial (apenas a camada em contato com a parede do balde se movimenta, mas
esse movimento é desprezado). (c) Após algum tempo, a água passa a girar com a mesma
velocidade angular que o balde, e sua superfície deixa de ser plana, e passa a ter a forma de
31
NEWTON ([1687] 2008), op. cit. (nota 21), pp. 49-51. Ver também o relato geral de NAGEL (1961), op. cit. (nota
14), pp. 203-14, e o relato mais pungente de ASSIS, A.K.T. (1998), Mecânica relacional, Coleção CLE 22, CLE-
Unicamp, pp. 45-54, 68-9, 134-43.

21
FLF0472 Filosofia da Física (USP- 2013) Cap. IV: Experimento do Balde e Espaço Absoluto

um parabolóide de revolução. (d) Por fim, o balde é parado, mas a água, num primeiro
instante, continua girando, com sua superfície em forma de parabolóide.

Figura IV.1: (a) Balde e água parados. (b) Balde girando e água ainda parada. (c) Balde girando
e água girando junto. (d) Balde é parado, mas água continua girando.

A tendência da água de subir as paredes do balde é um fenômeno real, conseqüência


de uma aceleração radial da água. Haveria uma força (com fonte bem definida) associada a
esta aceleração, ou ela seria o efeito de uma força fictícia (ver seção IV.1)? Claramente trata-
se de um efeito que surge do movimento do balde (nenhum outro corpo do Universo foi
alterado, ou seja, assume-se uma cláusula de “ceteris paribus”). Assim, o efeito é resultante
de uma força fictícia no referencial girante do balde; ou seja, da perspectiva de um referencial
inercial, o efeito é resultado de uma aceleração.
A questão agora é: em relação a que referencial (inercial) se dá esta aceleração? Pois
para medirmos uma aceleração (constituindo uma aceleração “relativa”, segundo as definições
de espaço e tempo relativos de Newton), devemos fazê-lo em relação a algum sistema de
referência. Podemos imaginar diferentes candidatos: o balde, a Terra, as estrelas, um espaço
absoluto.
Será que o movimento da água em relação ao balde é o responsável pela forma
parabolóide de sua superfície? Não, argumentou Newton, pois na Fig. IV.1 temos duas
situações em que o movimento relativo de ambos é diferente (c e d), mas a forma da água é
idêntica; ou uma situação em que o movimento relativo é igual (a e c), mas a forma é
diferente.
Talvez então o responsável pela água subir a parede seja o movimento da água em
relação à Terra. Mas segundo a teoria da gravitação de Newton, se a Terra subitamente
parasse de girar, ou se girasse com a mesma velocidade angular que o balde, isso não teria
efeito algum sobre a água. Portanto, não é a aceleração em relação à Terra que seria
responsável pelo movimento radial da água.
Será talvez que o referencial em questão seria fixado pelas estrelas, que formam
aproximadamente uma casca esférica de matéria, no centro da qual se encontraria o balde?
Não, pois se pudéssemos girar a casca das estrelas, nenhum efeito surgiria no seu interior,
segundo a teoria de Newton. Além disso, era intuitivo para Newton que um movimento
circular das estrelas em torno da Terra apenas as fariam se afastar, sem afetar a Terra, como
vemos neste manuscrito de 1668, em que critica a concepção relacionista de Descartes:

Da mesma forma, se Deus, com tremenda força, causasse que os céus girassem de leste
para oeste [...]. Mas alguém imaginaria que as partes da Terra buscariam se afastar do
seu centro por conta da força impressa somente nos céus? Ou não seria mais agradável à
razão que, quando uma força é impressa nos céus, estes buscassem retroceder do centro

22
FLF0472 Filosofia da Física (USP- 2013) Cap. IV: Experimento do Balde e Espaço Absoluto

da revolução assim causada, sendo assim os únicos corpos que se movem própria e
absolutamente?32

Portanto, nenhum corpo material poderia fixar o referencial em relação ao qual o


efeito na água é medido. Assim, Newton concluiu que haveria um referencial espacial
imaterial, absoluto, em relação ao qual se dão todas as acelerações. Seria um referencial
inercial, mas não poderíamos determinar sua velocidade em relação a outros referenciais
inerciais. De uma perspectiva anti-realista, não teria sentido estipular uma velocidade para
este referencial.
Newton completa sua discussão com outro experimento mental, a de dois globos
ligados por uma corda. Quando o sistema gira, surge uma tensão na corda. No entanto, se as
estrelas fixas girassem em torno dos globos e estes ficassem parados, não haveria tensão na
corda, segundo a física de Newton. Assim, a tensão na corda só poderia ser explicada pela
rotação dos globos em relação ao espaço absoluto.

3. A Defesa do Espaço Relativo

A primeira defesa do espaço relativo, após o trabalho de Newton, foi feita por
Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716). Ela apareceu em uma troca de cartas com o
teólogo inglês Samuel Clarke, amigo de Newton, em 1715-6. O ponto de vista do alemão se
baseia no princípio de razão suficiente, que em sua segunda carta é expresso da seguinte
maneira: “nada acontece sem uma razão pela qual ela deva ser de uma maneira ao invés de
outra”. Em sua terceira carta, Leibniz argumenta que um espaço absoluto violaria o princípio
de razão suficiente. Pois o espaço é uniforme, e se ele não contiver coisas materiais, um ponto
do espaço não irá diferir de outro ponto. Ora, se houver um espaço absoluto, quando Deus
resolveu colocar as coisas no espaço, ele não teria razão nenhuma para colocar as coisas aqui
ou acolá, ou orientadas num sentido e não em outro (mesmo mantendo a situação relativa
entre elas). Não haveria razão suficiente para a criação das coisas no mundo em uma certa
posição e não em outra. Porém, elas de fato foram criadas. Assim, o espaço absoluto não
poderia existir. O espaço seria a ordem das coexistências, ou seja, seria a própria relação
entre as coisas materiais.33
O problema do balde não foi satisfatoriamente resolvido por Leibniz. Na verdade, foi
Clarke quem vislumbrou a possibilidade de que “se um corpo existisse sozinho, seria incapaz
de movimento, ou [...] as partes de um corpo que circula (ao redor do Sol, p. ex.) perderiam a
força centrífuga que nasce de seu movimento circular, se toda a matéria exterior que as cerca
fosse aniquilada” (in ASSIS, p. 113). Note-se também que Leibniz não percebeu que sua teoria
relacional do espaço e tempo deveria entrar em contradição com sua noção de que a energia
cinética (vis viva) teria um valor absoluto.
Outro filósofo que defendeu o espaço relativo foi o bispo irlandês George Berkeley
(1685-1753), que na sua obra De motu (1721) afirmou que “seria suficiente, para determinar o
movimento e o repouso verdadeiros [...], considerar o espaço relativo, ao invés do espaço

32
NEWTON, I. (1668), De Gravitatione et aequipondio fluidorum (Sobre a gravidade e o equilíbrio dos fluidos),
manuscrito publicado postumamente em 1962, no Unpublished scientific papers of Isaac Newton, editado por A.R.
Hall & M.B. Hall, Cambridge U. Press, pp. 89-121, seguido da tradução dos editores, pp. 123-56. O trecho abaixo
está nas pp. 126-7, e o parágrafo integral encontra-se no sítio do curso (texto “Newton-Balde”). Estima-se que o
texto foi escrito entre 1664 e 1668, e é uma crítica à mecânica de Descartes, conforme expressa em seus Princípios
de filosofia (1644), op. cit. (nota i11), parte III, § 38.
33
LEIBNIZ (1979), op. cit. (nota 32), p. 177. Seguimos aqui o relato e análise de ASSIS (1998), op. cit. (nota 31),
pp. 105-43, que contém várias citações.

23
FLF0472 Filosofia da Física (USP- 2013) Cap. IV: Experimento do Balde e Espaço Absoluto

absoluto, enquanto confinado pelo céu das estrelas fixas, que se considera estar em
repouso”.34 No entanto, ao analisar o experimento do balde girante, não invocou de maneira
clara esta possibilidade.
Essas questões foram discutidas nas décadas seguintes, mas foi só com Ernst Mach
(1838-1916) que as teses relacionais receberam uma sustentação mais forte, em sua obra A
ciência da mecânica (1883). Sua idéia básica foi considerar que “todo o universo” ou “as
estrelas fixas” é que estabelecem o referencial a partir do qual as velocidades têm significado,
assim como a lei de inércia. Segundo Mach35:

[...] se nos mantivermos no terreno dos fatos, então só conhecemos espaços e


movimentos relativos. Não levando em consideração aquele meio desconhecido do
espaço, relativamente os movimentos do Universo são os mesmos, quer adotemos o
ponto de vista de Ptolomeu [ou melhor, de Tycho Brahe], quer adotemos o de
Copérnico. Ambas as concepções são igualmente corretas; só que a última é mais
simples e mais prática. O sistema do universo não nos é dado duas vezes, uma com a
Terra em repouso e outra com a Terra em movimento; mas apenas uma única vez, com
seus movimentos relativos, os únicos determináveis. [...] O experimento de Newton
com o balde de água girante nos ensina apenas que a rotação relativa da água com
respeito às paredes do balde não produz nenhuma força centrífuga perceptível, mas que
tais forças são produzidas pela sua rotação relativa com respeito à massa da Terra e de
outros corpos celestes. (p. 232)

Para mim, só existe o movimento relativo, e não vejo, com respeito a isso, nenhuma
distinção entre rotação e translação. Quando um corpo se move relativamente às estrelas
fixas, forças centrífugas são produzidas; quando ele se move relativamente a algum
outro corpo, tais forças centrífugas não se produzem. Não me oponho a que se chame a
primeira rotação de “absoluta”, se lembrarmos que isso não significa nada mais do que
rotação relativa com respeito às estrelas fixas. Podemos fixar o balde de água de
Newton, mas girar as estrelas fixas, e então provar a ausência de forças centrífugas?
(pp. 542-3)

A tese de que o espaço, tempo e velocidades são relativos passou a ser conhecido
como princípio de Mach. Em outros termos, é a tese de que as forças fictícias são reais e
geradas pelo movimento em relação à matéria.
Uma evidência experimental, de que o espaço absoluto poderia ser substituído pelo
referencial médio do conjunto das estrelas do Universo, foram as observações do astrônomo
Hugo von Seeliger, que indicavam que o sistema inercial que se estabelece na Terra coincide
com o sistema empírico obtido a partir da observação das estrelas. Em termos newtonianos,
isso seria expresso dizendo que “o conjunto das galáxias não gira em relação ao espaço
absoluto”.
Uma conseqüência do princípio de Mach, incorporado na abordagem conhecida como
“mecânica relacional”, é a tese de que a massa inercial de um corpo é devido à interação
gravitacional com os outros corpos do Universo. Ou seja, se quase toda a matéria do
Universo, fora da Terra, desaparecesse, você poderia parar um caminhão que estivesse se
movendo em ponto morto na horizontal com suas próprias mãos (desde que seus pés
estivessem em contato com o chão, sofrendo atrito estático)! Isso ocorreria porque a massa
inercial do caminhão ficaria reduzida, já que a quantidade de matéria no Universo se reduziu.

34
BERKELEY, G. (2006), “De motu (Sobre o movimento ou sobre o princípio, a natureza e a causa da
comunicação dos movimentos)”, trad. Marcos R. da Silva, Scientiae Studia 4(1), 115-37, disponível na internet.
35
MACH, E. (1902), op. cit. (nota 24).

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FLF0472 Filosofia da Física (USP- 2013) Cap. IV: Experimento do Balde e Espaço Absoluto

A “mecânica relacional” redescoberta por André Assis, da Unicamp, pode ser


considerada uma teoria mais completa que a mecânica newtoniana, e implementa o princípio
de Mach utilizando-se de uma expressão para o potencial gravitacional que depende não só
das posições relativas mas também da velocidade relativa entre os corpos. Tal expressão para
a força foi derivada pela primeira vez por Wilhelm Weber em 1848, no contexto do
eletromagnetismo. Na gravitação, foi introduzida na década de 1870. A idéia de que a massa
inercial surge da interação com a matéria do resto do Universo apareceu no final do séc. XIX.
Essa idéia também se aplica para a origem da energia cinética dos corpos em movimento. Em
1925, Erwin Schrödinger desenvolveu a mecânica relacional de forma independente,
considerado-a “como sendo pelo menos um estágio intermediário permissível e útil [em direção
à teoria da relatividade geral], que torna possível compreender, de maneira simples mas ao
mesmo tempo sensata, uma situação empírica simples através de concepções que são familiares
a todos.”36

4. Princípio de Mach e a Teoria da Relatividade Geral

Albert Einstein formulou sua teoria da relatividade geral de 1916 tendo sido
influenciado pelas idéias relacionais de Mach. Desde 1912 Einstein utilizava o princípio,
quando calculou o aumento da massa inercial de um corpo no interior de uma casca esférica e
sua aceleração induzida pela rotação da casca.
Com a teoria da relatividade geral, Einstein generalizou sua teoria da relatividade
restrita impondo que “as leis da física devem ter uma estrutura tal que a sua validade
permaneça em sistemas de referência animados de qualquer movimento”, e não apenas para
referenciais inerciais. Ou seja, ele impôs a igualdade na forma das equações em todos os
sistemas de referência. Esta invariância na forma das equações não tinha sido sugerida por
Mach.
Einstein37 considerava que quatro conseqüências têm de ser obtidas em qualquer teoria
que implemente o princípio de Mach:
1) A inércia de um corpo deve aumentar se se acumulam na sua vizinhança massas
ponderáveis.
2) Um corpo deve sofrer uma força aceleradora quando massas vizinhas são
aceleradas; a força estaria no mesmo sentido que a aceleração.
3) Um corpo oco animado de um movimento de rotação deve produzir no seu interior
um “campo de Coriolis” que faz com que corpos em movimento sejam desviados no sentido
da rotação; deve ainda produzir um campo de forças centrífugas radial.
4) Um corpo em um universo vazio não deve ter inércia; ou, toda inércia de qualquer
corpo tem que vir de sua interação com outras massas no universo.
Inicialmente, em 1916-18, Einstein pensava que estas quatro conseqüências estavam
contidas na relatividade geral, e que portanto seria possível implementar o princípio de Mach
em sua teoria. Em meados de 1918, porém, foi obrigado a abandonar a quarta conseqüência, e
assim, aos poucos, foi abandonando o princípio de Mach. O que ocorreu foi o seguinte. As
primeiras soluções obtidas para sua equação de campo gravitacional (como a de Schwarzschild)

36
ASSIS, A.K.T. & PESSOA JR., O. (2001), “Erwin Schrödinger e o princípio de Mach”, Cadernos de História e
Filosofia da Ciência (série 3) 11, 131-52. Ver p. 145. Sobra a história da mecânica relacional, ver ASSIS (1998),
op. cit. (nota 31), pp. 297-319.
37
EINSTEIN, A. (1958), O significado da relatividade, trad. de M. Silva, Arménio Amado, Coimbra, p. 123 (orig.
em alemão: 1922).

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FLF0472 Filosofia da Física (USP- 2013) Cap. IV: Experimento do Balde e Espaço Absoluto

supunham como condição de contorno que a métrica no infinito era “minkowskiana”, ou seja,
idêntica à da relatividade restrita. Isso ia contra o princípio de Mach, pois (i) a métrica local não
seria determinada apenas pela distribuição de matéria, mas também por uma condição de
contorno, e (ii) se o universo fosse vazio, sua métrica seria toda minkowskiana, mas com isso
ter-se-ia um espaço absoluto no qual um corpo de prova teria inércia (mesmo na ausência de
outras massas). Para manter o princípio de Mach, Einstein propôs em 1917 o seu famoso
modelo cosmológico no qual o universo é fechado (como a superfície de uma esfera), de forma
que não há contorno: a métrica (que descreve as propriedades inerciais dos corpos) seria
determinada apenas pela distribuição de matéria, e não por condições de contorno. Nota-se que,
para conseguir um universo fechado estático (a expansão do universo não era ainda conhecida),
Einstein teve que modificar suas equações, introduzindo uma constante cosmológica. Concluiu
assim ter conseguido implementar o princípio de Mach. No entanto, ainda em 1917 o astrônomo
holandês Willem de Sitter mostrou que as equações modificadas admitiam uma solução para
um universo vazio, que correspondia a um universo em expansão! Após passar um ano tentando
mostrar que a solução de de Sitter era fisicamente inaceitável (devido a alguma singularidade),
Einstein abandonou suas tentativas de implementar rigorosamente o princípio de Mach. Em
1951, A.H. Taub mostrou também que as equações de Einstein sem a constante cosmológica
podem gerar um espaço curvo na ausência de matéria.38
O fato de a Teoria da Relatividade Geral permitir soluções que violem o princípio de
Mach não significa que o princípio não seja verdadeiro. Com efeito, há propostas como a de
John Wheeler (1964) de se utilizar o princípio de Mach na Relatividade Geral para selecionar
condições iniciais, de contorno ou de simetria apropriadas para o Universo. Mesmo aceitando
a validade da Relatividade Geral, é um problema em aberto a questão da validade do princípio
de Mach. Ou seja, a questão de se o espaço é absoluto ou relativo ainda está aberta!

38
ASSIS & PESSOA (2001), op. cit. (nota 36), pp. 135-9. Uma referência não citada neste artigo é: GRÜNBAUM, A.
(1964), “The philosophical retention of absolute space in Einstein’s general theory of relativity”, in SMART,
J.C.C. (org.), Problems of space and time, Macmillan, Nova Iorque, pp. 313-7.

26
Filosofia da Física Clássica
Cap. V

Determinismo e Probabilidade
Questão: A natureza é determinista ou há eventos sem causa?

1. Determinismo e Previsibilidade

O determinismo estrito é a tese de que o estado presente do Universo (ou os estados do


passado e do presente) fixa de maneira unívoca o estado do Universo em qualquer instante do
futuro. Esta tese é sugerida pela mecânica clássica, para a qual, dados as condições iniciais e
de contorno de um sistema, e dadas as equações diferenciais que regem a evolução do
sistema, o estado em qualquer instante futuro poderia em princípio ser calculado.
Segundo a mecânica clássica, o determinismo estrito vale também para um sistema
completamente isolado do resto do Universo, ou para um sistema cuja evolução não é afetada
de maneira significativa pelo ambiente. Se a evolução de um sistema for previsível para
qualquer estado inicial, isso indica que o sistema é determinista, mas o contrário não é válido.
Ou seja, se constatarmos que um sistema é imprevisível, isso não implica que ele seja
indeterminista, pois pode acontecer que não tenhamos acesso a todas as variáveis que
influenciam a evolução do sistema. Esta situação em que há um determinismo escondido é às
vezes chamada de “criptodeterminismo”. Notemos que o termo “determinismo” é uma
designação ontológica, pois se refere à natureza do mundo, ao passo que “previsibilidade” é
um termo epistemológico, relativo à capacidade que temos de conhecer o futuro.39
Um exemplo de sistema imprevisível é fornecido pela Física Quântica, teoria
desenvolvida em 1926. Após a consolidação desta teoria, achava-se que ela tinha mostrado
que o mundo é essencialmente indeterminista, mas em 1952 David Bohm forneceu uma
interpretação determinista da Física Quântica. Como resultado disso, a questão de se a
natureza é determinista ou não permanece como um problema aberto.
Apesar da imprevisibilidade para resultados de medições individuais, a Física
Quântica permite que se façam previsões precisas sobre as frequências estatísticas com as
quais diferentes resultados ocorrem. Pode-se assim falar de um determinismo estatístico.
Se o Universo não for estritamente determinista, tem-se uma situação de
indeterminismo, probabilismo ou “tiquismo” (termo usado pelo filósofo norte-americano
Charles Peirce, a partir do termo grego tyche, que é acaso). Pode-se também falar em
“estocasticidade”, mas geralmente um sistema estocástico (como um grão de pólen em
movimento browniano) é consistente com um determinismo em uma escala inferior (por
exemplo, entre os átomos que fazem o grão de pólen flutuar). Outros termos usados são
“aleatório” ou “caótico”, que são mencionados nas seções V.4 e 5.
Outra maneira de caracterizar um sistema indeterminista é falar em “perda de
causalidade”, ou afirmar que ocorrem eventos sem causa, que ocorrem espontaneamente. Isso
iria contra o “princípio de razão suficiente” de Leibniz (visto na seção V.3), para o qual tudo
tem que ter uma razão (uma causa) para acontecer.

39
A melhor referência a respeito do determinismo é EARMAN, J. (1986), A primer on determinism, Reidel,
Dordrecht, que parte de uma definição de determinismo dada pelo psicólogo William James em 1884. O termo
“criptodeterminismo” foi cunhado por WHITTAKER, E.T. (1943), “Chance, freewill and necessity in the Scientific
conception of the universe”, Proceedings of the Physical Society 55, 459-71.

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FLF0472 Filosofia da Física (USP-2013) Cap. V: Determinismo e Probabilidade

2. O Demônio de Laplace

Ao definirmos um sistema determinista, escrevemos que seria “em princípio” possível


prever com exatidão o futuro desse sistema. Uma maneira de exprimir isso de maneira um
pouco diferente foi feita por Pierre-Simon Laplace (1749-1827), em sua famosa defesa do
determinismo:

Podemos considerar o estado atual do universo como o efeito de seu passado e a causa
de seu futuro. Uma inteligência que, em um instante determinado, deveria conhecer
todas as forças que põem em movimento a natureza, e todas as posições de todos os
objetos dos quais a natureza é composta, se esta inteligência fosse ampla o suficiente
para submeter esses dados à análise, ela englobaria em uma única fórmula os
movimentos dos maiores corpos do universo e dos menores átomos; para tal inteligência
nada seria incerto e o próprio futuro, assim como o passado, estariam evidentes a seus
olhos.40

Essa “inteligência” imaginada por Laplace foi posteriormente chamada de “demônio


de Laplace”, onde “demônio” deve ser entendido no sentido original grego, como um semi-
deus (daimon) ou super-herói, sem ser necessariamente do mal.
O demônio de Laplace teria que ter pelo menos quatro propriedades para funcionar: (i)
Onisciência instantânea: Conheceria o estado de todo o Universo em um instante do tempo,
com resolução e acurácia perfeitas. (ii) Erudição nomológica: Conheceria com exatidão todas
as leis que regem o Universo. (iii) Super-computação: Seria capaz de realizar o cálculo mais
complicado em um intervalo de tempo insignificante. (iv) Não distúrbio: A atuação do
demônio não afetaria em nada o funcionamento do Universo.
Com essas quatro propriedades, pode-se definir o determinismo estrito da seguinte
maneira. Se o demônio de Laplace partir do conhecimento do estado atual do Universo, e fizer
uma previsão sobre qual será o estado exato do Universo depois de um certo tempo t, então se
ele acertar 100% de suas previsões, o Universo será determinista, se não, será indeterminista.
Muitos autores não gostam desta caracterização de determinismo porque ela depende
da noção de “previsão”, que é de natureza epistemológica (mesmo que por parte de um
demônio superpoderoso). Alternativas mais “ontológicas” seriam definir o determinismo a
partir da noção de “cópia idêntica” ou de “mundos possíveis”. No primeiro caso, pode-se
afirmar que se uma cópia fosse feita de nosso Universo, mantendo-se idênticos todas as
propriedades e estados em uma certa fatia de tempo, então todas as propriedades e estados
futuros dos dois universos seriam idênticos. No segundo caso, preferido por EARMAN (pp. 7,
13), consideram-se todos os mundos possíveis que satisfazem as leis naturais de nosso mundo
atual. O determinismo laplaciano é satisfeito se, dados quaisquer dois desses mundos
possíveis, se seus estados forem idênticos em um certo instante de tempo, então serão
idênticos para qualquer todo instante futuro.
Qualquer que seja a definição adotada, é interessante definir variedades não-
laplacianas de determinismo, que podem ser caracterizadas por um par (R1, R2) de regiões do
espaço-tempo (EARMAN, p. 17). Se R1 for uma fatia instantânea do tempo, e R2 o espaço-
tempo para tempos futuros em relação à fatia anterior, então tem-se o determinismo
laplaciano definido anteriormente. Mas R1 pode ser definido como o espaço-tempo para
tempos menores ou iguais a um certo instante, etc. Podemos ter qualquer combinação de R1 e
R2, resultando em um (R1, R2)-determinismo diferente do laplaciano.

40
LAPLACE, P.-S. (1814), Essai philosophique sur les probabilités, introdução. Traduzido de citação em francês
obtida na internet.

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3. Probabilidade

A discussão sobre se a física quântica é (cripto-)determinista ou indeterminista pode


ser reformulada com relação a se a noção de “probabilidade” é epistêmica ou ontológica. Se
afirmo que a probabilidade de obter um resultado em um experimento quântico é ½, isso é
uma expressão da minha ignorância a respeito de todos os fatores causais envolvidos –
situação típica da mecânica estatística clássica – ou exprime uma indefinição essencial da
realidade? No primeiro caso, quando atribuímos uma probabilidade apenas por falta de
informação, fala-se em uma noção epistêmica de probabilidade, ao passo que em um Universo
tiquista ou indeterminista tem-se uma probabilidade ontológica (neste caso, nem o demônio
de Laplace conseguiria prever com certeza o estado futuro do Universo).
Um exemplo dessa distinção pode ser tirado da biologia. Uma mulher grávida pode
perguntar ao médico qual é a probabilidade de seu filho ter olhos claros, e ele poderá
responder que é ½. Esta é uma probabilidade epistêmica, pois a cor dos olhos já está definida
no cromossomo do feto, e a probabilidade é atribuída devido à ignorância que se tem a
respeito do gene, que na realidade já está definido. Por outro lado, esta mesma mulher poderia
perguntar qual é a probabilidade de um segundo filho, ainda não concebido, ter olhos claros.
Se supusermos que o futuro é “aberto” (ou seja, a evolução do Universo é indeterminista),
então a resposta do médico, de que tal chance é ½, seria uma probabilidade ontológica. E se o
Universo segue o determinismo estrito?
A noção de probabilidade é fundamental na ciência, mas é curioso que haja diferentes
interpretações a respeito do que seja probabilidade. Vejamos algumas delas41:
1) Interpretação clássica. Esta é a visão tradicional, defendida por Laplace (1814), que
define a probabilidade como a razão entre os casos favoráveis e o total de casos igualmente
possíveis. O que define os casos igualmente possíveis é um “princípio de indiferença”, que
afirma que dois casos são igualmente prováveis se não há razão para preferir um em relação ao
outro. Assim, um dado simétrico teria seis casos equiprováveis. Porém, como caracterizar as
probabilidades em um dado enviesado?
2) Interpretação frequentista. No caso de um dado enviesado, a abordagem frequentista
sugere jogá-lo um grande número de vezes e anotar as frequências relativas em que cada lado
cai. No limite para um número infinito de jogadas, ter-se-iam as probabilidades de cada caso.
Este é o procedimento costumeiramente usado nas ciências empíricas, mas em termos rigorosos
há um problema envolvendo a passagem de uma sequência finita de observações para uma
sequência infinita. Desenvolvida primeiramente por John Venn (1866), foi aprofundada por
Richard von Mises (1928) e Hans Reichenbach (1935).
3) Interpretação das propensões. Um problema com a interpretação frequentista é que a
probabilidade parece não se aplicar para um evento único, mas para uma classe (sequência) de
eventos (uma abordagem instrumentalista). Karl Popper (1957) buscou corrigir isso, de uma
perspectiva realista, introduzindo a noção de “propensão”, que seria a probabilidade de um
evento único. A obtenção da frequência relativa seria um procedimento para medirmos a
propensão (mas não para defini-la), e seu valor seria pré-existente às medições.
4) Interpretação logicista. Segundo esta visão, a probabilidade de uma crença mede o
grau de confiança que se pode racionalmente ter a respeito dela com base na evidência
disponível. A probabilidade p(h/e) seria assim uma relação lógica entre proposições: entre uma
hipótese h e as evidências disponíveis e. Em outras palavras, a probabilidade mede o grau com
que e implica logicamente h (se a probabilidade for 1, tem-se uma dedução lógica). Essa visão

41
Ver as pp. 66-89 em: EARMAN, J. & SALMON, W.C. (1992), “The confirmation of scientific hypothesis”, in
SALMON, M.H. et al., Introduction to the philosophy of science, Prentice-Hall, Englewood Cliffs (NJ), pp. 42-
103. Uma versão resumida aparece nas pp. 233-41 de: HOME, D. & WHITAKER, M.A.B. (1992), “Ensemble
interpretation of quantum mechanics: a modern perspective”, Physics Reports 210, 223-317.

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FLF0472 Filosofia da Física (USP-2013) Cap. V: Determinismo e Probabilidade

foi desenvolvida por John Maynard Keynes (1921) e Rudolf Carnap (1950), entre outros. Seu
maior problema é a dificuldade de ser aplicado, já que não estipula critérios para determinar
probabilidades iniciais.
5) Interpretação subjetivista. Para contornar este último problema, a interpretação
desenvolvida por Frank Ramsey (1926), Bruno de Finetti (1937) e Leonard Savage (1954) parte
da admissão de que as probabilidades iniciais, com as quais abordamos problemas reais, são
sempre subjetivas ou “chutadas”. Mesmo admitindo isso, porém, é possível ir melhorando nossa
avaliação subjetiva com base em novas evidências, e da aplicação do teorema de Bayes: p(h/e)
= p(h)·p(e/h)/p(e). A avaliação do grau inicial de crença que uma pessoa possui é geralmente
traduzida em termos das apostas (com dinheiro) que tal pessoa faria.
6) Interpretação bayesiana objetivista. Inspirado na abordagem subjetivista, o físico
Edwin Jaynes (1957) iniciou uma abordagem que procura atribuir o grau inicial de crença com
base em critérios objetivos, relacionados com a noção de entropia. Deixaremos para discutir
esta abordagem mais para frente.

4. Definições de Aleatoricidade

Como caracterizar o que é genuinamente aleatório? A definição tradicional, provinda da


física, atribui este termo a processos: por exemplo, lançar uma moeda seria um processo
aleatório, independentemente do resultado da sequência (ou seja, mesmo que o resultado fosse
“0101010101”).
Na década de 1960, alguns matemáticos42 passaram a buscar um critério que
caracterizasse uma sequência aleatória, independentemente de como ela tenha sido gerada na
prática (ou seja, um critério que distinguisse “0100101101” de “1111111111”). Isso foi
conseguido com a noção de complexidade algorítmica, que é o tamanho do menor programa de
computador que gera a sequência. Para uniformizar este critério, este programa deve ser escrito
na linguagem de um computador abstrato conhecido como “máquina de Turing”. Uma
sequência não aleatória, como “1111111111”, seria programada da seguinte maneira: “repita o
digito ‘1’ até o final da sequência”, o que tem um tamanho fixo, qualquer que seja o tamanho da
sequência. Por outro lado, não há um programa simples para gerar a sequência de dígitos do
número π: o menor programa é simplesmente aquele que escreve os dígitos da própria
sequência. Em outras palavras, o valor máximo da complexidade algorítmica de uma sequência
binária gira em torno do seu próprio tamanho. E é esta a definição de uma sequência binária
aleatória: aquela cuja complexidade algorítmica não é menor do que seu comprimento.
Outra questão é a de gerar sequências aleatórias para serem usadas em métodos
estatísticos de modelagem computacional, métodos esses que são conhecidos genericamente
como simulações de “Monte Carlo”, em alusão ao famoso cassino. Geralmente, tais sequências
são geradas a partir de uma computação determinística, e por isso são chamadas “pseudo-
aleatórias”. Uma maneira simples de efetuar uma computação genuinamente aleatória (no
sentido físico, mencionado no início desta seção) é introduzir no cálculo o horário exato (por
exemplo, em milissegundos) em que a computação está sendo realizada.

42
Estes matemáticos foram Ray Solomonoff (1964), Andrey Kolmogorov (1965), Gregory Chaitin (1966) e Per
Martin-Löf (1966). Algumas referências são: CHAITIN, G.J. (1975), “Randomness and mathematical proof”,
Scientific American 232(5), pp. 47-52; FORD, J. (1983), “How random is a coin toss?”, Physics Today 36(4),
abril, pp. 40-7. Sobre a comparação com métodos práticos de geração de números pseudo-aleatórios, ver
COMPAGNER, A. (1991), “Definitions of randomness”, American Journal of Physics 59, 700-5.

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5. Caos Determinístico e Sensibilidade a Condições Iniciais

No início da década de 1970, com o uso disseminado de computadores na ciência,


tornou-se claro uma grande classe de comportamentos que foram denominados “caos
determinístico”, pois envolvem a não-previsibilidade em sistemas deterministas. Esta situação
surge para sistemas regidos por equações não-lineares, como as da atração gravitacional entre
planetas. Henri Poincaré mostrou, em 1890, que o problema gravitacional dos três corpos
apresenta soluções não-periódicas que apresentam extrema sensibilidade às condições iniciais.43
Em suas palavras:

Uma causa muito pequena que escapa de nossa observação determina um efeito
considerável que não podemos deixar de ver; dizemos então que o efeito é devido ao
acaso. Se soubéssemos exatamente as leis da natureza e a situação do universo no
instante inicial, poderíamos prever exatamente a situação do mesmo universo em um
momento posterior. Mas, mesmo que fosse o caso de as leis da natureza não serem
segredo para nós, poderíamos ainda conhecer as condições iniciais somente
“aproximadamente”. Se isto nos permitisse prever a situação posterior “com a mesma
aproximação”, isso seria tudo o que queríamos, e diríamos que o fenômeno foi previsto,
isto é, é governado por leis. Mas não é sempre assim: pode acontecer que pequenas
diferenças nas condições iniciais venham a produzir um erro enorme nos
acontecimentos posteriores. A previsão se torna impossível e temos um fenômeno
fortuito.

Essa sensibilidade às condições iniciais for redescoberta em 1963 pelo meteorologista


norte-americano Edward Lorenz, ao utilizar um computador para gerar trajetórias para o
sistema de equações nhão-lineares que propôs para descrever o movimento da atmosfera. O
termo “efeito borboleta” foi cunhado para esta sensibilidade, a partir do título de uma palestra
sua: “O bater de asas de uma borboleta no Brasil pode provocar um tornado no Texas?”.44

6. Violação do Determinismo na Mecânica Clássica

Apesar de nossa intuição a respeito da Mecânica Clássica nos assegurar que ela é uma
teoria que satisfaz ao determinismo estrito, há certos exemplos envolvendo velocidades
infinitas que violam o determinismo. Um exemplo para massas pontuais sujeitas à atração
gravitacional newtoniana foi dado por Mather & McGehee (1975).
Considere as quatro massas pontuais representadas na Fig. V.1, que se movem em uma
dimensão ao longo do eixo x. A partícula 1 tende para a posição – ∞ à medida que o tempo t
tende para t*. As partículas 3 e 4 tendem para + ∞ em t*, onde elas se encontram. Já a
partícula 2 vai e volta, chocando-se elasticamente com as partículas 1 e 3, alternadamente. O

43
Um detalhado relato histórico é apresentado em DIACU, F. & HOLMES, P. (1996), Celestial encounters: the
origins of chaos and stability, Princeton U. Press, pp. 3-50.
44
Há inúmeros textos que apresentam a teoria do caos determinístico, desde o texto de divulgação feito pelo
jornalista GLEICK, J. (1990), Caos: a criação de uma nova ciência, trad. W. Dutra, Campus, Rio de Janeiro (orig.
1987); passando pelo relato filosófico de KELLERT, S.H. (1993), In the wake of chaos, U. Chicago Press, até os
cursos de física de BERGÉ, P.; POMEAU, Y. & VIDAL, C. (1984), L’ordre dans le chaos, Hermann, Paris (em
inglês: Order within chaos, trad. do francês L. Tuckerman, Wiley, Nova Iorque); e, em português, FIEDLER-
FERRARA, N. & PRADO, C.P.C. (1994), Caos: uma introdução, Blücher, São Paulo. Para uma bibliografia
introdutória e comentada para o aluno de física, ver a lista de Clint Sprott em:
http://sprott.physics.wisc.edu/phys505/bibliog.htm

31
FLF0472 Filosofia da Física (USP-2013) Cap. V: Determinismo e Probabilidade

choque entre duas partículas gravitacionais envolve uma singularidade (pois o potencial
tenderia para menos infinito), mas isso pode ser superado introduzindo-se certas hipóteses no
modelo (as quais não adentraremos). Como as partículas 3 e 4 se aproximam mutuamente
cada vez mais, sua energia potencial é transferida para a partícula oscilante 2, que por sua vez
transfere energia para a partícula 1. Desta maneira, as quatro partículas tendem a uma
velocidade infinita à medida que o tempo tende a t*, e a partícula 2 oscila um número infinito
de vezes. Tal sistema não pode ser realizado na prática, mas não há nada na Mecânica
Clássica que o proíba, já que velocidades infinitas só são proibidas pela Teoria da
Relatividade Restrita.
O truque agora é imaginar um outro sistema, que é obtido ao se fazer uma reversão
temporal em t*. As leis da Mecânica Clássica são invariantes ante reversão temporal, então tal
sistema é teoricamente aceitável. Neste novo sistema, as partículas vêm do infinito, no tempo
t*, com velocidades infinitas, e vão aos poucos desacelerando. A violação do determinismo
ocorre se considerarmos, neste novo sistema, instantes de tempo anteriores a t*. Antes de t*,
não há partículas no sistema (elas só surgem em t*, provindas do infinito). Assim, mesmo que
o demônio de Laplace conhecesse o sistema neste instante (em que não existem partículas),
não haveria como prever as posições futuras (após t*) das quatro partículas.
Neste sistema “patológico” da Mecânica Clássica, portanto, o determinismo seria
violado. Outros autores forneceram sistemas sem choques em que velocidades infinitas são
atingidas, então o problema da singularidade nos choques pode ser evitado.45
Na Relatividade Restrita não há semelhantes situações patológicas, então pode-se
dizer, como faz EARMAN (p. 2), que “a Teoria da Relatividade Restrita resgata o determinismo
da principal ameaça que ele enfrenta em mundos newtonianos, e nos mundos da relatividade
restrita podem-se construir exemplos puros e limpos de determinismo, livres de artifícios”.

Figura V.1. Sistema de quatro massas pontuais movendo-se ao longo do eixo x


que tendem para o infinito no instante t*.

45
Esses casos são descritos por EARMAN (1986), op. cit. (nota 39), pp. 35-40. O exemplo discutido aparece em
MATHER, J.N. & MCGEHEE, R. (1975), “Solutions to the collinear four body problem which become unbounded
in finite time”, in MOSER, J. (org.), Dynamical systems, theory and applications, Lecture Notes in Physics 38,
Springer, Berlim, pp. 573-97. Um relato histórico e explicativo da pesquisa de McGehee e outros, na solução de
“conjectura de Painlevé”, aparece em DIACU & HOLMES (1996), op. cit. (nota 43), pp. 80-126. A conjectura
formulada por Paul Painlevé, em 1897, era de que, para um sistema mecânico com n massas pontuais, se n for
maior do que 3, então há soluções com singularidades que não são devidas a colisões. Essas singularidades
corresponderiam às oscilações infinitas em tempo finito que aparecem no modelo de Mather & McGehee.

32
Filosofia da Física Clássica
Cap. VI

Luz, Ondas e Fótons


Questão: Qual é a natureza da luz?

1. Inferências Dedutivas, Indutivas e Abdutivas

Existem três tipos principais de inferência que são usadas na ciência. O primeiro deles
é a dedução, que é muito usado em demonstrações matemáticas e lógicas. Uma inferência
dedutiva é sempre “válida”, ou seja, se as premissas forem verdadeiras, então a conclusão é
verdadeira. Um exemplo que segue a estrutura dos silogismos aristotélicos é a seguinte:

Toda onda consiste de uma perturbação em um meio contínuo.


A luz é uma onda
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– (PORTANTO)
A luz é uma perturbação em um meio contínuo.

Podemos negar que a conclusão seja verdadeira, mas isso ocorre não porque o
silogismo seja inválido, e sim porque uma de suas premissas é falsa. A dedução é considerada
uma inferência “não-ampliativa”, pois ela não aumenta o conteúdo de nosso conhecimento.
Em outras palavras, numa inferência dedutiva a informação contida na conclusão nunca é
maior do que a informação contida nas premissas. Isso vale também para a relação entre a
entrada e saída de um programa de computador (a saída nunca tem mais informação do que a
entrada).
Na ciência, porém, o que se busca é ampliar nosso conhecimento. Assim, é preciso
recorrer a outros tipos de inferência. Um tipo bastante simples é a indução por enumeração.
Um exemplo clássico é o das cores dos cisnes. Suponha que possamos identificar um cisne
por seus aspectos morfológicos, sem levar em conta sua cor. Noto então que um certo cisne
que vejo em um lago da Inglaterra é branco. Percebo que os outros cisnes à sua volta também
são. Vou à Islândia e constato que os cisnes lá são brancos; o mesmo ocorre na Patagônia
(apesar de estes terem pescoço negro). Assim, concluo que “todos os cisnes são brancos”.
Neste caso de indução enumerativa, houve uma ampliação de conhecimento, pois uma
coisa é afirmar que os quatrocentos cisnes que observei são brancos, outra coisa é afirmar que
todos são brancos. Porém, justamente por ser uma inferência ampliativa, ela não é segura:
mesmo que as premissas sejam verdadeiras, a conclusão pode ser falsa. De fato, no exemplo
dos cisnes, os holandeses descobriram-se cisnes negros na Austrália Ocidental, em 1697.
A indução por enumeração tem um papel importante nos estágios iniciais de estudo de
um fenômeno, e seu uso foi bastante divulgado por Francis Bacon, no séc. XVII, tendo sido
analisada minuciosamente por John Stuart Mill (1843). Mas a formulação de hipóteses
explicativas na ciência geralmente vai além da mera generalização de regularidades. Assim, o
filósofo norte-americano Charles Peirce cunhou o termo abdução para designar este tipo de
inferência, cujo papel já tinha sido reconhecido por Aristóteles.
Tomemos o seguinte exemplo, que se aproxima do raciocínio feito por Thomas Young
em 1802:

(A) Toda onda que passa por um obstáculo sofre difração.


(B) A luz sofre difração ao passar por um obstáculo.
–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
(C) A luz é uma onda.

33
FLF0472 Filosofia da Física (USP-2013) Cap. VI: Luz, Ondas e Fótons

Esta inferência não é uma dedução válida. Ela tem a mesma forma que a seguinte
inferência: “Toda vez que chove, minha grama molha; minha grama molhou; logo, choveu”.
O problema com esta inferência é que a grama pode ter sido molhada por uma outra causa,
como alguém tê-la regado. No entanto, apesar de a inferência ser inválida, ela resulta em um
bom palpite sobre o que aconteceu: a conclusão pode muito bem ser verdadeira.
No caso da ciência, quando observamos um fenômeno diferente, o primeiro passo é
buscar, por abdução, uma hipótese que explica o fenômeno. Mas outras hipóteses também
podem explicar o fenômeno, e no caso de haver mais de uma hipótese explicativa, deve-se
tentar montar um experimento crucial que “teste” as hipóteses, ou seja, um experimento para
o qual as diferentes hipóteses levem a previsões diferentes.
A abdução, que é uma inferência ampliativa, pode ser considerada uma inferência
inversa à dedução, pois ela busca uma hipótese explicativa a partir da qual um fenômeno
observado pode ser deduzido. No exemplo acima, a inferência dedutiva inversa é:

(A) Toda onda que passa por um obstáculo sofre difração.


(C) A luz é uma onda.
–––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
(B) A luz sofre difração ao passar por um obstáculo.

Voltemos agora à primeira inferência dedutiva apresentada nesta seção. Como é


possível se chegar a uma conclusão sobre a existência do “éter luminífero” (o meio no qual a
luz se propagaria) de maneira dedutiva? Qualquer formulação de hipótese é ampliativa, e
sabemos que a dedução não é ampliativa. O problema é que a primeira premissa não
corresponde ao grau de conhecimento que se tinha no século XIX. Uma formulação mais
precisa desta premissa seria: “Todas as ondas conhecidas – nos líquidos, nos sólidos, nos
gases – são uma perturbação em um meio contínuo”. Por analogia, supõe-se então que a luz
seja uma onda também em um meio contínuo.
A analogia é a principal estratégia “heurística” da ciência, ou seja, é a principal
estratégia para se formularem hipóteses explicativas, ou para se preverem fenômenos novos
que não sejam dedutíveis das teorias atuais. A analogia é assim a principal estratégia para se
formular abduções. No cap. VII veremos o uso que Maxwell fez da analogia.

2. Natureza Ondulatória da Luz

Todos aprendemos que a luz é uma onda transversal, conforme descobriram Thomas
Young e Augustin Fresnel nas primeiras décadas do séc. XIX. Young realizou o célebre
experimento das duas fendas, percebeu um padrão de claros e escuros, e abduziu que uma
propagação ondulatória explicaria o padrão de interferência (Fig. VI.1)
Ao longo do séc. XIX, supôs-se que a luz se propaga em um tênue meio elástico
rígido, chamado “éter”, mas tal conceito foi abandonado após o surgimento da teoria da
relatividade restrita. Com a teoria de Maxwell, surgiu o retrato da luz como ondas elétricas e
magnéticas transversais (no Cap. VIII discutimos melhor tais entidades), como na Fig. VI.2.

34 .
FLF0472 Filosofia da Física (USP-2013) Cap. VI: Luz, Ondas e Fótons

Figura VI.1: Desenho feito por Young para Fig. VI.2: Campos elétrico e magnético em uma
representar a propagação ondulatória da luz onda de luz polarizada movendo-se para a
46
no experimento das duas fendas. direita.

A interferência destrutiva, que faz com que apareçam faixas escuras no padrão
observado por Young, é um fenômeno curioso, pois envolve duas entidades que se cancelam.
Isso pode ser examinado em um
interferômetro de Mach-Zehnder,
que aparece na figura ao lado. Um
feixe de luz coerente é dividido em
um espelho semi-refletor S1, e os
dois componentes propagam pelos
caminhos A e B. O feixe A, ao
chegar no semi-espelho S2, divide-se
em duas partes, uma rumando para o
detector D1 e outro para D2. O
mesmo acontece para o feixe B.
Ajustando-se a lâmina H, pode-se
impor superposição destrutiva em D2.
Se bloquearmos o caminho A,
aparecerá luz em D2. Se então
retirarmos o bloqueio e adicionar-
mos luz, nada é detectado em D2.
Fig. VI.3: Interferômetro de Mach-Zehnder. Nesta situação, o que temos
antes de D2? Duas entidades que se
cancelam, ou simplesmente nada (ou
melhor, o vácuo)? Notemos que as
“entidades” que se superpõem são amplitudes de ondas, e não sua intensidade ou energia (que
são calculadas a partir do módulo quadrado da amplitude resultante em cada ponto).

3. Fótons

No séc. XX ficou claro que, no experimento da fenda dupla para a luz, se a intensidade
do feixe se tornasse bem fraca, e se um detector ultra-sensível fosse utilizado, o padrão de
interferência óptico se formaria ponto a ponto. A Fig. VI.4 apresenta esse acúmulo para o
caso de interferência de elétrons, que é análogo ao caso óptico. Cada pontinho é chamado de
“quantum de luz”, ou fóton, e ele foi postulado qualitativamente por J.J. Thomson, em 1904, e
46
As Figs. VI.1 e 2 foram obtidas da internet, mas se encontram também na história da óptica de: PARK, D.
(1997), The Fire within the Eye, Princeton U. Press, pp. 250, 285. A Fig. VI.3 é retirada de PESSOA JR., O.
(2003), Conceitos de Física Quântica, vol. 1, Livraria da Física, São Paulo, p. 10.

35 .
FLF0472 Filosofia da Física (USP-2013) Cap. VI: Luz, Ondas e Fótons

de maneira exata por Einstein, em 1905. A energia


associada a cada fóton de frequência ν é a mesma, de
valor hν, onde h é a constante de Planck, em unidades
de ação [mx2/t].
A formação ponto-a-ponto do padrão de
interferência é surpreendente, pois envolve um aspecto
corpuscular – os fótons – com o aparecimento de um
padrão de interferência, que é tipicamente uma
propriedade ondulatória. Uma partícula ou corpúsculo
é bem localizado e indivisível (até uma certa energia),
ao passo que uma onda clássica é estendida e
indefinidamente divisível. Como a física quântica
concilia esses aspectos contraditórios?
Antes de responder, notemos que, a rigor, o
termo “fóton” só deve ser associado àquilo que é
observado ou medido. Todos concordam sobre o que é
observado; as discordâncias surgem com relação ao
que acontece antes (e depois) da medição. Cada
“interpretação” da teoria quântica oferece um relato
diferente.
Uma interpretação ondulatória realista diria
que a luz é uma onda que sofre “colapsos” toda vez
que é medida, resultando num pacote de onda bastante
comprimido, que seria o fóton. Uma interpretação
dualista realista diria que o fóton é na verdade um
corpúsculo que segue uma trajetória bem definida
(mesmo que oscilante), sendo guiado pela onda.
As interpretações ortodoxas são mais instru-
mentalistas, e tendem a se calar sobre o que acontece
quando ninguém está observando. Dentro desta classe, Figura VI.4: Formação paulatina,
a interpretação da complementaridade, proposta por ponto a ponto, de um padrão de
Niels Bohr, associa quadros clássicos (ondulatório ou interferência de elétrons.47
corpuscular) a diferentes arranjos experimentais. O
arranjo da fenda dupla das Figs. VI.1 e 4 estaria associado a um quadro ondulatório (pois
exibe franjas de interferência), ao passo que a difração por uma fenda pontual (Fig. VI.7)
estaria associado a um quadro corpuscular, pois pode-se atribuir uma trajetória única a um
fóton detectado (no caso da figura, uma trajetória retilínea entre A e B).
Naturalmente, é muito difícil testar as diferentes interpretações diretamente (através de
medições), pois ter-se-ia que medir o que acontece quando ninguém está medindo ou
observando!

4. Física Quântica = Ondas + Detecção Quantizada

A física quântica aplica-se não só à luz, mas também a toda matéria, que é assim
imbuída de propriedades ondulatórias (podendo-se falar em “ondas de matéria”).
Quando a física quântica é comparada à mecânica clássica de partículas, fenômenos
como o efeito túnel e o princípio de incerteza aparecem como extremamente contra-intuitivos

47
TONOMURA, A. (1993), Electron Holography, Springer, Berlim. Figura obtida da Wikipédia.

36 .
FLF0472 Filosofia da Física (USP-2013) Cap. VI: Luz, Ondas e Fótons

e surpreendentes. Porém, pode-se argumentar que o mistério que ronda esses fenômenos
provém principalmente da física clássica de ondas! Ou seja, pode-se argumentar que todos os
efeitos envolvendo um quantum individual podem ser vistos como simplesmente um
fenômeno ondulatório clássico adicionado à detecção em forma de quanta.
Considere o fenômeno clássico da “reflexão interna total”, onde todo o feixe de luz é
refletido na face interna de um prisma. Quando um outro prisma é posto próximo ao primeiro,
com uma face paralela à face refletora, ocorre a “frustração” da reflexão total, ou seja, uma
parte do feixe incidente se propaga no segundo prisma (Fig. VI.5). Entre os prismas, porém,
não há propagação de luz. O que a teoria eletromagnética de Maxwell descreve é a presença
de uma “onda evanescente” na fenda entre os prismas, com uma amplitude que decresce
exponencialmente coim a distância.
O efeito túnel, da física quântica, pode ser entendido como uma combinação deste
fenômeno óptico clássico com a detecção ponto-a-ponto dos fótons ou dos quanta das ondas
de matéria (elétrons, nêutrons, átomos, etc.).

Fig. VI.5: Reflexão interna total frustrada: sem o Fig. VI.6: Formação de um pacote de
prisma de baixo, a reflexão no prisma superior é ondas: a superposição das cinco ondas
total; a aproximação do prisma inferior faz com que contínuas (cada uma de comprimento de
parte da onda incidente se propague neste prisma, onda λ bem definido) gera o pacote
“saltando” através da fenda. mostrado no topo, com boa localização
espacial mas má definição de λ.

Outro fenômeno ondulatório clássico é a formação de um pacote de onda bem


localizado no espaço a partir da superposição de uma série de ondas contínuas de
comprimento de onda bem definido (Fig. VI.6). Em tais pacotes, uma melhor resolução δx no
espaço (ou seja, um pacote melhor localizado) só pode ser obtida às custas de uma pior
resolução δk no número de onda, definido como k=2π/λ, onde λ é o comprimento de onda.
Em suma, tais grandezas clássicas são limitadas por uma relação de indeterminação δx·δk ≥ 1.
No limite quântico, considerando a relação px=h/λ obtida por Louis de Broglie para as
ondas de matéria (e por Einstein e Stark para fótons), esta propriedade das ondas leva ao
princípio de incerteza δx·δpx ≥ h/2π. Novamente, o mistério deste princípio provém da física
clássica de ondas acoplada à noção de detecção de quanta.
O chamado “problema da medição” da teoria quântica envolve uma tentativa de
compreensão da quantização da detecção a partir de uma interpretação ondulatória.

37 .
FLF0472 Filosofia da Física (USP-2013) Cap. VI: Luz, Ondas e Fótons

Em experimentos nos quais há dois ou mais fótons detectados, e nos quais eles se
originaram de um mesmo processo (ou seja, interagiram anteriormente), a afirmação de que
“os efeitos quânticos são meramente efeitos ondulatórios clássicos mais detecção quantizada”
não pode ser feita, pois surgem efeitos conhecidos como “não-localidade quântica”. Mesmo
assim, se se definirem ondas em espaços de 3N dimensões (associados a N quanta), a
afirmação continua válida. Uma terceira novidade qualitativa da física quântica
(aparentemente independente das outras duas, quantização e não-localidade) envolve os
princípios da estatística quântica.48

5. Princípio de Huygens-Fresnel

Na seção iIV.3 discutimos o princípio de Fermat, que estipula que, entre dois pontos, a
luz segue o caminho que minimiza o tempo de percurso. Veremos agora como este princípio
pode ser derivado a partir da concepção de que a luz tem natureza ondulatória. Nosso ponto
de partida é o princípio formulado por Huygens49 em 1678, dentro de sua concepção de que a
luz seria um pulso em um meio material constituído de minúsculas esferas elásticas, o “2o
elemento” de Descartes (seção iII.5). Da mesma maneira que uma bola de bilhar, movendo-se
no sentido +x, ao atingir um grupo de bolas encostadas as faz saírem em todas as direções
(todas com um componente positivo na direção x), a luz que sai da origem O e atinge um
ponto A (suposto no eixo x) gerará um pulso semi-esférico, que ruma em todas as direções (de
componente x positivo), a partir de A. Isso pode ser ilustrado pela passagem de uma frente de
onda por uma fenda única e pontual (Fig. VI.7), o que gera uma onda esférica.
O princípio de Huygens foi
aperfeiçoado por Fresnel, que incorporou a
noções de superposição construtiva e
destrutiva. Com a teoria da eletrodinâmica
quântica, que é a teoria quântica de campos
relativísticos desenvolvida por Tomonaga,
Schwinger, Feynman e Dyson ao final da 2a
Guerra Mundial (e que incorporou a noção de
um vácuo quântico polarizável, que afeta os
valores de carga elétrica e massa das
partículas elementares), o princípio de
Huygens-Fresnel foi generalizado, em
especial como o princípio da “soma sobre
Figura VI.7: Difração por uma fenda única e histórias” de Richard Feynman.
pontual A, gerando uma onda esférica. Sua Consideremos a instrutiva explicação
detecção se dá por meio de fótons, como em B. de Feynman50 sobre o fenômeno simples da
reflexão em um espelho (Fig. VI.8). A luz
gerada em O é representada como um trem de
onda contínuo que reflete em R e incide no olho do sujeito S. No entanto, a amplitude de onda
gerada em O é na verdade uma onda esférica, que é absorvida em todos os pontos do espelho,

48
Alguns livros de divulgação sobre a física quântica, em português, estão indicados na nota 4.
49
HUYGENS, C. (1986), Tratado sobre a Luz, tradução comentada de R.A. Martins, Cadernos de História e
Filosofia da Ciência, Suplemento 4. Ver pp. 18-24. Comunicado em 1678, o texto só foi publicado em 1690.
50
FEYNMAN, R.P. (2002), QED: A Estranha Teoria da Luz e da Matéria, trad. A.M.O. Baptista, Gradiva, Lisboa,
pp. 55-79 (orig. em inglês: 1985). A Fig. VI.8 é baseada em figura da p. 62.

38 .
FLF0472 Filosofia da Física (USP-2013) Cap. VI: Luz, Ondas e Fótons

e reemitida como onda esférica em cada um desses pontos! Interessam-nos os raios de luz que
chegam em S, e especificamente como os diversos componentes de luz irão se superpor
(construtiva e destrutivamente) em S. Para verificar isso, Feynman sugere que imaginemos a
fase de cada onda contínua que chega em S como um “relógio” que aponta num ângulo entre
0 e 2π (um “fasor”), desenhado no ponto de reflexão do raio. A soma das amplitudes de
mesmo módulo pode ser acompanhada somando-se as flechinhas de cada relógio. Olhando
para os reloginhos da figura, vê-se que fora da região central eles oscilam rapidamente, o que
indica que essas amplitudes são mutuamente destrutivas! A única contribuição significativa
para a luz medida em S vem da reflexão que ocorre no centro do espelho, que segue a lei
usual da reflexão, e que corresponde ao tempo mínimo de percurso. Desta forma, a concepção
de Fermat recebe uma justificação com base no princípio de Huygens-Fresnel.
Feynman aplica essas idéias a outros sistemas ópticos simples. Uma lente simples é
um dispositivo que torna os caminhos ópticos (dos raios que atingem a lente) iguais (ou seja,
suas fases relativas são nulas). Uma grade de difração pode ser obtida a partir da Fig. VI.8
cobrindo-se o espelho com ranhuras ou finas faixas de material não refletor. Nas regiões em
que a periodicidade das ranhuras é igual à periodicidade dos fasores, ocorrerá superposição
construtiva dos raios que chegam a S, e assim fica claro que pode ocorrer reflexão fora do
ponto médio entre O e S.
É interessante notar que o princípio de Huygens-Fresnel só vale para espaços com um
número ímpar de dimensões. Em duas dimensões, como na superfície de um lago, uma onda
circular gera ondas secundárias, ao contrário do que ocorre com um clarão de luz em três
dimensões, que é observado apenas uma vez.51

Fig. VI.8: Reflexão de luz originada em O, refletida no espelho, e observada em S. Diferentes


trajetórias possíveis para o raio de luz levam a diferentes fases, indicadas pelos fasores abaixo do
espelho. A superposição dos termos fora da região central é destrutiva.

51
Ver site anônimo de Kevin S. Brown, http://www.mathpages.com/home/kmath242/kmath242.htm

39 .
Filosofia da Física Clássica
Cap. –I

As Fronteiras da Intuição
Questão: Por que a Física Moderna é contraintuitiva?

1. O papel da intuição na física

A intuição que temos a respeito do mundo é confiável? “Intuição” pode ser definida
como uma crença que surge de maneira imediata na consciência, ou seja, sem a mediação de
uma cadeia de raciocínios. Segundo o psicólogo Daniel Kahneman, são “pensamentos ou
preferências que vêm rapidamente à mente e sem muita reflexão”.–1 Até o séc. XIX, muitas
correntes filosóficas confiavam no poder da intuição humana. René Descartes propôs o seu
cogito, “eu sou, eu existo”, como uma intuição fundamental a partir da qual poderia construir,
através da razão, o edifício do conhecimento.–2 A filosofia da natureza (Naturphilosophie) de
língua alemã, inspirada nas ideias de Johann Goethe e Friedrich Schelling (1799), acreditava
que poderíamos conhecer a essência da natureza através da intuição, sem necessidade de
observações metódicas e raciocínios lógicos, pois como fazemos parte da natureza (e
compartilhamos de suas leis), poderíamos descobrir dentro de nós, através da intuição, as leis
que regem toda a natureza externa. Outro filósofo que colocava a intuição acima da razão foi
Henri Bergson.
Na Física Clássica, a intuição desempenha um papel importante, muitas vezes nos
guiando na formulação de princípios e leis. Mas após o declínio do sonho romântico da
Naturphilosophie na ciência, a partir de 1830, ficou claro para a maioria dos cientistas que a
intuição humana não traz consigo as garantias de certeza. Sem dúvida, a intuição é um
excelente instrumento “heurístico”, fornecendo ideias que podem propiciar novas descobertas,
mas as hipóteses baseadas em intuições devem sempre passar pelos testes da experiência.
No início do séc. XX, com o surgimento da Teoria da Relatividade Restrita, ficou
patente que o universo se comporta de maneiras muito mais estranhas do que supõe a nossa
intuição cotidiana. Por outro lado, a paulatina aceitação da teoria da evolução biológica, com
o papel central desempenhado pelo princípio de seleção natural de Charles Darwin, forneceu
uma explicação para a estranheza da Física Moderna. O nosso aparelho cognitivo (ou seja,
cérebro, órgãos dos sentidos etc, envolvidos no conhecimento do mundo) evoluiu para se
adaptar ao nosso ambiente natural macroscópico e ao nosso ambiente social. Assim,

–1
KAHNEMAN, D. (2002), “Maps of bounded rationality: a perspective on intuitive judgment and choice”.
Palestra do Prêmio Nobel de Economia, p. 1. Disponível em: http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/economic-
sciences/ laureates/2002/kahnemann-lecture.pdf
–2
“Suporei, pois, que há não um verdadeiro Deus, que é a soberana fonte da verdade, mas certo gênio maligno,
não menos ardiloso e enganador do que poderoso, que empregou toda a sua indústria em enganar-me. Pensarei
que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as coisas exteriores que vemos são apenas ilusões e
enganos de que ele se serve para surpreender minha credulidade. [...] não me persuadi também, portanto, de que
eu não existia? Certamente não, eu existia sem dúvida, se é que eu me persuadi, ou, apenas, pensei alguma coisa.
Mas há algum, não sei qual, enganador mui poderoso e mui ardiloso que emprega toda a sua indústria em
enganar-me sempre. Não há, pois, dúvida alguma de que sou, se ele me engana; e, por mais que me engane, não
poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa. De sorte que, após ter pensado
bastante nisto e de ter examinado cuidadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter por constante que
esta proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que a enuncio ou que a concebo
em meu espírito” (DESCARTES, R., 1962, “Meditações”. In: Obra escolhida. Trad. J. Guinsburg & B. Prado Jr.
São Paulo: Difel, pp. 105-99. Original em latim: 1641. Citação de I.12 e II.4, grifos meus). O gênio maligno é o
avô de outros “demônios” que aparecerão na filosofia da física, como os de Laplace e de Maxwell.

–1
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. –I: As Fronteiras da Intuição

possuímos uma compreensão intuitiva apenas do mundo macroscópico da Física Clássica, e


não de domínios com os quais nunca tivemos contato durante a evolução.
Podemos entender intuitivamente os sólidos, os líquidos, o fogo, o ar e a luz, temos
uma boa intuição da gravidade, das forças e do trabalho. Outros conceitos da Física Clássica
que estão mais distantes do cotidiano, como a entropia e a eletricidade, já são um pouco mais
contraintuitivos. Mas quando nossa experiência, mediada por instrumentos e por teorias,
atinge domínios que nunca vivenciamos em nossa história evolutiva, nossa intuição fracassa.
Exemplos disso são o muitíssimo veloz (Relatividade Restrita), o muitíssimo pesado
(Relatividade Geral), o muitíssimo pequeno (Mecânica Quântica), o muitíssimo quente (Física
dos Plasmas), o muitíssimo frio (condensados de Bose-Einstein) e o muitíssimo antigo (o big
bang). Em outras palavras, é intuitivo que a ciência moderna seja contraintuitiva!

2. Seleção natural

Vale a pena expor brevemente o princípio de seleção natural, proposto aqui e ali ao
longo da história da biologia, mas consolidado no séc. XIX com as publicações independentes
de Alfred Wallace e Charles Darwin, em 1858. Apesar de este ser um princípio
eminentemente biológico, ele se adapta muito ao estilo mecanicista de pensamento, próprio da
Física Clássica, em que causas finais não desempenham papel importante, mas apenas causas
eficientes e flutuações estatísticas.
A seleção natural ocorre em um sistema qualquer se forem satisfeitas algumas
condições. Estas podem ser agrupadas em quatro pontos–3:

1) REPLICAÇÃO.
a) Populações orgânicas fazem parte de uma história com ancestrais e descendentes.
b) Os membros de tais populações herdam traços de seus ancestrais e os passam para
seus descendentes.
2) VARIAÇÃO.
a) Os membros também variam com relação a esses traços herdados.
b) As variações dos traços herdados ocorrem de maneira aleatória, ou seja, não são
influenciadas pelo meio ambiente. (Contra Lamarck)
3) COMPETIÇÃO.
a) Há uma tendência de tais populações de aumentarem geometricamente (exponen-
cialmente), ao passo que os recursos necessários à sua sobrevivência aumentam
aritmeticamente (linearmente). (Malthus)
b) Por causa disso, os membros de tais populações competem entre si pelos recursos
limitados.
4) ADAPTAÇÃO.
a) O meio ambiente é altamente complexo, assim como as relações do organismo com
o meio.
b) Cada organismo tem um grau de adaptação ao meio ambiente que é dado por sua
estrutura, por sua engenharia, por sua bioenergética.

–3
Estamos seguindo, com modificações, a análise de LENNOX, J.G. (1992), “Philosophy of biology”, in SALMON,
M.H. et al. (orgs.), Introduction to the philosophy of science, Prentice Hall, Englewood Cliffs (NJ), pp. 269-309.
Ver p. 271. Vale mencionar que o mecanismo de seleção natural tem sido identificado em outros sistemas que
não o da evolução das espécies. David Hull examinou três outros sistemas: mudança conceitual na ciência,
reação do sistema imune a antígenos, e aprendizado operante. Ver HULL, D.L. (2001), Science and selection,
Cambridge U. Press.

–2
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. –I: As Fronteiras da Intuição

c) Cada organismo tem um grau de sucesso reprodutivo, que é dado pelo número de
cópias geradas por reprodução assexuada, ou número de gametas ou ovos gerados
por reprodução sexuada, incluindo aí o sucesso em copular com parceiros do sexo
oposto.
d) O meio ambiente muda constantemente (fornecendo “oportunidades adaptativas”),
em geral numa escala de tempo longa em relação ao tempo de vida de um
organismo.

SELEÇÃO NATURAL: Dadas estas condições, segue-se que a probabilidade é alta de que:
N1) Algumas variações tornam seus possuidores mais bem adaptados (no sentido
estrutural) em comparação aos outros, ou seja, tais variações seriam “vantajosas”. (Diferencial
de adaptação)
N2) Os organismos com estas variações vantajosas (no sentido estrutural) terão maior
chance de sobreviver.
N3) Eles tenderão a deixar um número proporcionalmente maior de descendentes com
estas variações nas gerações seguintes. (Diferencial de transmissão)

SELEÇÃO SEXUAL:
S1) Algumas variações tornam seus possuidores de maior grau de sucesso reprodutivo
em comparação aos outros. (Diferencial de sucesso reprodutivo)
S2) Eles tenderão a deixar um número proporcionalmente maior de descendentes com
estas variações nas gerações seguintes.

O grau de aptidão (fitness) seria a reunião dos diferenciais de adaptação estrutural


(N1) e de sucesso reprodutivo (S1). Em consequência de N3 e S2, as variações vantajosas
tenderão a se fixar na população, em detrimento de outras variações, levando a uma mudança
adaptativa da população. Este mecanismo torna-se mais acentuado com as mudanças
ambientais.

3. O domínio mesoscópico do complicadíssimo

Na lista de fenômenos com os quais nunca tivemos contato epistêmico durante a


evolução, esboçado na seção –I.1, deixamos de lado o domínio do muitíssimo complicado.
Em nossas redes sociais, na internet, podemos acompanhar talvez 1000 amigos, mas a nossa
intuição fracassa ao tentar dar conta, de maneira exata, de bilhões de partículas.
Compreendemos bem o mundo macroscópico, com escala em torno de 1 m, e conseguimos
desenvolver uma teoria surpreendentemente precisa de poucos corpos na escala atômica,
abaixo de 1 nm (10–9 m), mas o domínio “mesoscópico” que cobre boa parte dessas nove
ordens de grandeza de escala, quando há um número imenso de partículas interagindo
fortemente, é um ambiente ao qual nosso aparelho cognitivo não se adaptou ao longo da
evolução. Assim, é de se esperar que surpresas contraintuitivas surjam no estudo desse
domínio do muito complicado, na passagem do nano para o macro. Isso pode estar envolvido
com dois grandes problemas perenes da Física: o problema da irreversibilidade, que
estudaremos em nosso curso, e uma questão relacionada a esta, na Física Quântica, que e o
“problema da medição”.
Além dessas questões, há toda uma série de perguntas relacionadas com a emergência
de comportamento complexo. Em sistemas de muitíssimas partículas com dinâmica
complicada, o termo “complexidade” está associado a um comportamento macroscópico
simples e eficiente, com o surgimento e manutenção de estruturas macroscópicas. Este é o

–3
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. –I: As Fronteiras da Intuição

“caminho do meio” salientado por físicos da matéria condensada, como Robert Laughlin.–4
O termo “complexidade” também é associado a sistemas de poucos corpos, com interações
não lineares, denominadas “caos determinístico”, que veremos mais para frente. É possível
que nossa intuição a respeito das “leis de escala” que varrem a região entre o nanoscópico e o
macroscópico (para não falar das escalas subatômicas) também tenha falhas.
A desconfiança a respeito de nossas intuições clássicas guiou Ernst Mach, em 1872, a
aventar a hipótese “de que não devemos necessariamente representar os processos
moleculares de maneira espacial, pelo menos não no espaço de três dimensões”. –5 Isso
estimulou a crítica ao atomismo e à mecânica estatística de Boltzmann, mas neste caso a
história mostraria que as intuições clássicas a respeito do espaço e do tempo conservam sua
validade no domínio atômico. É verdade que o surgimento da Física Quântica embananou
tudo de novo, mas mencionei o exemplo de Mach apenas para salientar que a questão dos
limites de nossa intuição, enquanto não adquirimos conhecimento satisfatório a respeito de
um domínio, é uma questão em aberto.

4. A física da consciência

Um problema conceitual especialmente agudo que surge no domínio mesoscópico é o


do surgimento da consciência. Este é um problema tão difícil para a Física que os físicos
raramente pensam nela como um problema a ser estudado.
O materialismo (ou fisicismo) consiste da tese de que a mente é produzida pelo
sistema nervoso, ou que ela emerge do corpo (de certas classes de animais). Ao contrário do
espiritualista, o materialista acredita que, na morte do cérebro, a mente desaparece.
Isso, porém, não descarta a possibilidade de que corpos perfeitamente semelhantes
gerem consciências perfeitamente semelhantes. Esta tese, de que o estado físico-químico
detalhado do corpo “determina” univocamente o estado mental, é conhecida como a tese da
superveniência da mente ao corpo. Apesar de o materialismo com superveniência ser uma
posição majoritária entre filósofos e cientistas atuais, a maior parte dos filósofos tende a
rejeitar a tese de que a mente possa ser “reduzida” ao sistema nervoso. Essa posição não
reducionista pode ser chamada de materialismo emergentista (no sentido forte do termo
“emergência”).
A natureza da relação de superveniência entre mente e cérebro é um problema em
aberto, chamado apropriadamente de “problema difícil da consciência”, –6 para o qual não se
imagina ainda a solução. Mas a hipótese de trabalho é que os problemas difíceis poderão ser
resolvidos no futuro, e que tal solução é consistente com a tese da redução mente-cérebro
Um dos pontos mais discutidos na filosofia da mente contemporânea é o experimento
mental de Mary, proposto pelo filósofo australiano Frank Jackson (1982). Imaginemos uma
–4
LAUGHLIN, R.B.; PINES, D.; SCHMALIAN, J.; STOJKOVIC, B.P. & WOLYNES, P. (2000), “The middle way”,
Proceedings of the National Academy of Sciences (U.S.A.) 97, p. 32-27.
–5
MACH, E. (1911), History and root of the principle of the conservation of energy, trad. P.E.B. Jourdain, Open
Court, Chicago, nota 4, p. 86. Original em alemão: 1872.
–6
CHALMERS, D.J. (2004), O enigma da experiência consciente, Scientific American Brasil Especial 4, Segredos
da Mente, junho, p. 40-49; disponível online, original em inglês: 1995. Ver também: FEIGL, H. (1958). The
mental and the physical. In: Feigl, H.; Scriven, M. & Maxwell, G. (orgs.). Concept, theories, and the mind-body
problem. Minnesota Studies in the Philosophy of Science, vol. 2. Minneapolis: University of Minnesota Press,
pp. 370-497. O experimento mental do quarto de Mary é apresentado em: JACKSON, F. (1982), Epiphenomenal
qualia, Philosophical Quarterly 32, p. 127-36. Para uma resenha da questão, ver NIDA-RÜMELIN, M. (2010),
“Qualia: the knowledge argument”, in Zalta, E.N. (org.), Stanford Encyclopedia of Philosophy,
http://plato.stanford.edu/archives/sum2010/entries/qualia-knowledge/.

–4
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. –I: As Fronteiras da Intuição

neurocientista que vive no futuro, quando toda a ciência da visão em cores já teria sido
desvendada. Ela foi criada em um quarto preto, branco e cinza, e nunca viu ou vivenciou
cores, mas estudou todos os aspectos físicos e químicos da ciência da visão. A questão é: ela
conhece tudo o que há para saber a respeito das cores? Quando Mary finalmente sai do quarto
e observa, pela primeira vez, a cor vermelha, há algum elemento novo adicionado a seus
conhecimentos sobre o vermelho? A resposta usual é sim. Isso indica que há uma diferença
entre o conhecimento físico de um elemento e a vivência do mesmo. Essa diferença é o que é
chamado de qualia, ou qualidades subjetivas.
Além de ser uma boa maneira de esclarecer o significado de “qualia”, o experimento
mental também é utilizado como formulação do chamado “argumento do conhecimento”.
Supõe-se que, antes de sair do quarto, Mary tem toda a “informação física” a respeito da visão
em cores humana. Porém, o experimento mental mostra que há alguma informação sobre a
visão em cores humana que ela não tinha antes de sair. Logo, nem toda informação é
informação física, ou seja, o fisicismo seria falso.
Uma análise bastante razoável do problema, seguindo Herbert Feigl (1958) e Earl
Conee (1994), distingue entre conhecimento proposicional, que Mary tinha antes de sair do
quarto, e conhecimento direto ou por contato (acquaintance), que Mary adquire ao entrar em
contato com um objeto vermelho. Desenvolvendo sua análise, podemos dizer que a ciência
teórica é um discurso linguístico, envolvendo também gráficos e imagens, que não substitui a
ciência experimental, pois nesta o cientista pode entrar em contato direto com seu objeto de
estudo, por meio de cheiros, sons e cores. O que a teoria científica faz é inferir enunciados
linguísticos e matemáticos a partir de enunciados linguísticos e matemáticos. Só a ciência
experimental pode dar acesso aos qualia (mesmo que geralmente não haja interesse em fazê-
lo). Reduzir o fisicismo à ciência teórica é inapropriado, como mostra o experimento mental
do quarto de Mary. Ponto semelhante é salientado por Nigel Thomas (1998), que ressalta que
a ciência não é só conhecimento teórico, mas envolve “experiência direta de ‘mão na massa’”.
Em suma, o que o argumento parece mostrar é que o conhecimento físico não pode se
dar, de maneira completa, apenas por meio da linguagem, da matemática e de representações
espaço-temporais.
Essa discussão ilumina o lugar das qualidades subjetivas no mundo material. Mesmo
supondo o fisicismo, o argumento do conhecimento mostra que a explicação de como os
qualia surgem a partir da matéria terá que fazer uso dos próprios qualia como primitivos, a
serem conectados por “leis de ponte” com a respectiva realização física (conforme
salientaram Feigl e Chalmers). Isso indica que as qualidades subjetivas não poderão ser
explicadas inteiramente de maneira matemática e quantitativa; a natureza das qualidades
envolve algo que está para além da representação: a própria realidade.

5. O vácuo

Outro domínio que às vezes parece desafiar nossas intuições é o “nada”, ou o vazio.
Existe o nada? Ele é observável, é cognoscível? Na filosofia, os existencialistas Kierkegaard e
Heidegger argumentaram que o nada não pode ser conhecido de maneira racional, mas que ele
surge como o objeto da angústia, daquele sentimento de tristeza e pavor que não é dirigido a
nenhuma coisa em particular. Nas ciências físicas, a discussão sobre o nada é associada à
questão de se há um vazio absoluto.
A discussão a respeito de se é possível atingir o vazio absoluto ou, pelo contrário, se a
natureza tem “horror ao vácuo”, iniciou-se na Grécia Antiga: de um lado, atomistas como
Demócrito defendiam que havia espaço totalmente vazio de matéria, enquanto do outro,
Aristóteles e os estoicos argumentava que não. No século XVII, René Descartes concebia o

–5
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. –I: As Fronteiras da Intuição

Universo como um “pleno”, ou seja, sem espaços vazios, mas outros filósofos da natureza já
começavam a produzir o vácuo, como Torricelli (1643) e Pascal (1646) com uma coluna de
mercúrio em um tubo selado invertido. Em 1654, Otto von Guericke construiu a primeira
bomba de vácuo.
O vácuo atingido nos laboratórios de Física, é claro, é um vácuo parcial. O recorde
atingido em uma câmara de vácuo na Terra é de 100 mil moléculas por cm³, o que equivale à
situação na superfície da Lua. Entre os planetas há uma “densidade de número” de 10
moléculas por cm³. Entre as estrelas de uma galáxia, 1 molécula por cm³, e no espaço entre as
galáxias há em média somente 1 molécula por metro cúbico!
Se pudéssemos lançar um vidrinho vazio para longe de nossa galáxia, tapá-lo
hermeticamente, e trazê-lo de volta, teríamos uma boa chance de não termos nenhuma
molécula dentro da garrafa! Teríamos assim o vácuo absoluto, com pressão zero! E agora, o
que haveria dentro do vidrinho? Nada?
Nada disso! À temperatura ambiente, as paredes do vidrinho emitem radiação
eletromagnética infravermelha, que permeia o interior do vidro. Se decidíssemos jogar o
vidrinho de volta para o espaço intergaláctico, mesmo assim haveria a radiação de fundo do
Universo, ou seja, a radiação eletromagnética remanescente do Big Bang, associada a uma
temperatura de 3 kelvin (ao invés dos 300 kelvin na superfície da Terra), na faixa de micro-
ondas. E haveria também a radiação provinda das estrelas, a gravidade das estrelas, e os
neutrinos que estão por toda parte.
Mas poderíamos talvez isolar o vidrinho de toda radiação eletromagnética, e abaixar a
temperatura para próximo do zero absoluto. E aí? Teríamos nada?
Plenamente não! O espaço vazio está sujeito a flutuações quânticas! Ele contém uma
energia residual, mesmo numa temperatura de zero absoluto, descrita pela primeira vez por
Albert Einstein & Otto Stern em 1913, e que recebe o nome de “energia de ponto zero”.
Em 1930, o físico inglês Paul Dirac estava tentando entender as equações que havia
obtido para o elétron, ao juntar mecânica quântica e teoria da relatividade restrita. Imaginou
que haveria um mar de elétrons, e que a situação correspondente ao vácuo seria um mar
calmo, com todos os elétrons abaixo da superfície do mar. Porém, poderia acontecer de um
elétron ganhar energia e pular para fora do mar, como uma gotinha de água que às vezes sai
voando. Neste caso, ficaria um buraco no mar, e este buraco acabou sendo interpretado como
a “antipartícula” do elétron, o chamado “pósitron” (que tem todas as propriedades idênticas às
do elétron, a menos da carga elétrica). Esse modelo visual simples daria conta, então, do
surgimento de um par elétron-pósitron a partir de energia (por exemplo, radiação
eletromagnética na forma de raio gama). O processo inverso, a aniquilação de um elétron por
um pósitron (resultando em um par de fótons de raio gama), corresponderia, no modelo de
Dirac, ao retorno da gotinha de água para dentro do mar.
Na década de 1930, tentou-se conciliar a teoria da relatividade com a teoria quântica
de campos (indo além do que conseguira Dirac), e uma das chaves para conseguir isso foi
perceber que o vácuo quântico podia ser “polarizado”, como se fosse um fluido dielétrico.
Com a consolidação desta teoria da “eletrodinâmica quântica” por Tomonaga, Schwinger,
Feynman e Dyson, após a 2ª Guerra Mundial, o conceito de vácuo quântico passou a ser parte
integrante do nosso retrato do Universo.
Na alegoria do mar de Dirac, então, o mar deve ser visualizado como uma superfície
com pequenas mas constantes ondinhas, com uma energia de ponto zero. As flutuações do
vácuo são análogas às flutuações na superfície do mar, e há sempre a possibilidade de
partículas materiais serem criadas a partir dessas flutuações, como gotinhas de água que
pulam para fora, deixando um buraco dentro d´água.
Em 1948, Hendrik Casimir previu um fascinante efeito cuja explicação envolve o
conceito de vácuo quântico. O efeito envolve duas placas perfeitamente condutoras (mas sem

–6
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. –I: As Fronteiras da Intuição

carga elétrica) que são colocadas próximas e paralelas. A previsão é que haverá uma atração
entre as placas, bem maior do que a atração gravitacional. A explicação é que a cavidade
criada entre as placas suprime certos frequências de oscilação do vácuo, de forma que a
pressão que o vácuo externo exerce sobre as placas acaba se tornando maior do que a pressão
interna (onde certas ondas foram eliminadas pelas placas). Em 1997, Steven Lamoreaux
confirmou experimentalmente o efeito Casimir. Tal efeito é hoje um problema para a
construção de dispositivos de nanotecnologia.
O primeiro efeito explicado pela eletrodinâmica quântica, a partir da noção de vácuo
quântico, foi o chamado “deslocamento de Lamb” em raias espectrais de átomos (1947).
Outro fenômeno que é parcialmente explicado pelo vácuo eletromagnético é a força
intermolecular de van der Waals. As flutuações do vácuo podem ser vistas também como as
causas do decaimento espontâneo de elétrons em átomos.–7
A energia contida no vácuo pode estar associada à “energia escura” prevista pelas
teorias cosmológicas atuais. Tal energia se manifestaria em uma “constante cosmológica” na
teoria da relatividade geral, e explicaria porque a expansão do Universo é acelerada.
Discute-se também se seria possível extrair energia do vácuo para fins humanos, mas o
consenso entre a maioria dos cientistas é que isso não é possível.
No final das contas, quem tinha razão entre os pensadores antigos? Os “vacuístas”
(atomistas) ou os “plenistas”? Como geralmente acontece em controvérsias filosóficas que
acabam sendo resolvidas pela ciência, ambos acertaram parcialmente. Os vacuístas tinham
razão em poder pensar um espaço sem moléculas, mas os plenistas talvez tenham ganho o
debate, já que mesmo o espaço sem átomos é carregado de energia, e de partículas em
potencial.

–7
Algumas discussões filosóficas e conceituais modernas a respeito do vácuo são: SAUNDERS, S. & BROWN, H.R.
(orgs.) (1991), The philosophy of vacuum, Clarendon, Oxford. AITCHISON, I.J.R. (1985), “Nothing’s plenty: the
vacuum in modern quantum field theory”, Contemporary Physics 26, p. 333-91. MILONNI, P.W. (1988),
“Different ways of looking at the electromagnetic vacuum”, Physica Scripta T21, p. 102-9.

–7
Filosofia da Física Clássica
Cap. –II

Variantes do Antirrealismo
Questão: Por que há tantas posições contrárias ao realismo?

1. Os Vários Sentidos de Empirismo

Iniciaremos este capítulo chamando atenção para o fato de que os termos em filosofia
costumam ter diferentes acepções. Um bom exemplo é o termo “empirismo”.
1) EMPIRISMOI: Inicialmente, o termo “empírico” designava uma escola de pensamento
da medicina grega antiga, e se contrapunha a pelo menos duas outras filosofias da medicina,
os “dogmáticos” e os “metódicos”. Para os empíricos, o médico deve se guiar pelos sintomas
observáveis do paciente, evitando especulações sobre o invisível (Corpo Hipocrático,
Serapião, etc.). Para os dogmáticos, a teorização sobre causas ocultas é essencial para a
prática médica. A experiência precisa ser completada com conjecturas e raciocínio (Herófilo,
Erasístrato, Asclepíades, etc.). Para os metódicos, a medicina deve se basear na experiência,
não em causas ocultas, mas é preciso sistematizar esta experiência, classificando as doenças
segundo suas características comuns (Temisão, etc.). –8
2) EMPIRISMOII: No início da era moderna, Francis Bacon utiliza o termo “empírico”
em um sentido pejorativo, como a pesquisa com base em observações não sistemáticas,
tomadas ao léu.
3) EMPIRISMOIII: No entanto, o sentido que o termo adquiriria posteriormente está
associado justamente à posição de Bacon e da escola britânica, em oposição àquela de
Descartes, Leibniz e outros metafísicos modernos. Segundo esta acepção, a fonte principal do
conhecimento é a observação. Ela se opõe ao racionalismo (ou intelectualismo) dos
metafísicos, para quem a fonte principal do conhecimento é o intelecto. No caso do
conhecimento científico, a atitude EMPIRISTAIII tornou-se claramente dominante a partir do
séc. XIX, e a tese racionalista de que o intelecto teria acesso à natureza do mundo sem a
intermediação dos sentidos tornou-se bastante minoritária.
4) EMPIRISMOIV: Dentro desse contexto, no séc. XX, o termo empirismo passou a
designar a tese de que há observações neutras e que elas devem servir de base para a “ciência
empíricaIII”. Discutiremos esta tese na seção seguinte.
5) EMPIRISMOV CONSTRUTIVO: Mais recentemente, o termo passou a designar a
posição antirrealista de Bas van Fraassen. Uma particularidade é que ele aceita a concepção
da verdade por correspondência (seção II.1), ou seja, aceita que as proposições envolvendo
termos teóricos (cujos referentes são inobserváveis) são ou verdadeiras ou falsas. Porém,
como nunca poderemos saber, a verdade deixa de ser importante, e o único objetivo da ciência
seria a “adequação empírica”, ou seja, dar conta dos dados observacionais.

2. Há Observações Neutras?

Vimos, na seção II.2, que o fenomenismo é a tese de que a ciência deve se referir
primordialmente ao que é observável ou mensurável, e que qualquer afirmação sobre
entidades ou estruturas inobserváveis é de caráter especulativo ou metafísico, não devendo

–8
Uma fonte original é: CELSUS, A.C. (1935), On Medicine, trad. W.G. Spencer, Loeb Classical Library,
Londres (original em latim: c. 30 d.C.), disponível na internet. Uma tradução de trechos do “Proêmio”, que trata
das escolas de medicina, está em: http://www.fflch.usp.br/df/opessoa/HCTex-Celso.pdf.

–8
FLF0472
472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. –II: Variantes
antes do Antirrealismo

ssim ter um papel relevante na ciência. Mas qual é o estatuto das observações?
assim observações Elas exibem a
realidade como ela é, ou toda observação é impregnada pelas concepções teóricas do sujeito?
A tese de que a ciência se funda em cima de observações neutras, em cima cim de fatos
objetivos, e que a partir daí se constroem as diferentes teorias científicas, foi chamada na
seção anterior de empirismoIV. Ela inclui a atitude de Francis Bacon, que desconfiando das
teorias metafísicas, recomendava que o cientista olhasse para a natureza com “olhos de
criança”. Congrega também os positivistas lógicos do séc. XX, que de início procuravam
erguer a ciência em cima de enunciados protocolares “incorrigíveis”, do tipo “o ponteiro do
termômetro marca 4,8 K”.
Esta tese dos positivistas lógicos começou a ser atacada por filósofos da ciência na
década de 1950, e em especial o filósofo aviador Norwood Russell Hanson–9 passou a
argumentar que toda observação é “carregada” ou “contaminada” de teoria (observation
( is
theory-laden). Segundo ele, quando Tycho Brahe e Kepler olhavam juntos para o alvorecer,
eles observavam cenas distintas: Tycho via o Sol se
mover, e Kepler via a Terra girar. Considerou
Consi figuras de
perspectiva reversível, que podem ser vistas de dois
modos, como o “pato-lebre”lebre” discutido por Wittgenstein
(Fig. –II.1).
). Para ele, esta figura pode ser vista de duas
maneiras diferentes, assim como Kepler e Tycho “veriam”
duas cenas diferentes. A defesa empirista seria que, no
caso da figura ao lado, a aparência de pato ou de lebre
Figura –II.1:
.1: Pato ou lebre?
seriam diferentes “interpretações” de um mesma padrão
sensorial visto.
Thomas Kuhn aderiu à tese da carga teórica das observações,
observações, defendendo que, num
certo sentido, Tycho e Kepler “viviam em mundos diferentes”,
diferentes”, na medida em que estavam
imersos em paradigmas opostos.
A concepção de que a mente tem um papel ativo na construção das observações pode
ser chamada de construtivismo (que é também um termo com muitas acepções).
acepções) Na filosofia,
Immanuel Kant foi o defensor
defensor de um construtivismo bastante forte, que afirmava que o
próprio espaço e tempo seriam construções da mente, além das “categorias do entendimento”,
como causalidade, substância, etc. Kant teve uma influência muito forte no séc. XIX, tanto
entre os que aderiram
eriram a alguma forma de neo-kantismo
neo kantismo (como Helmholtz), quanto entre os
que assimilaram seu fenomenismo mas rejeitaram que a mente tivesse um poder formatador
tão forte, como Mach.
Houve um célebre debate entre o empirismo e o construtivismo na Inglaterra,
Inglaterra onde
William Whewell, sob influência de Kant, desenvolveu um construtivismo mais ameno, em
que defendia que “todo fato envolve ideias”, ou seja, todo fato é apreendido sob uma certa
perspectiva teórica. Ao enfocar uma reunião de fatos isolados, como nos dados planetários de
Kepler, Whewell argumentava que “há um novo elemento” acrescentado por meio do ato de
pensar: “As pérolas estão lá, mas não formarão o colar até que alguém providencie o fio”. Ou
seja, Kepler projetou nos dados a construção mental conhecida
conhecida como elipse. Em oposição a
ele, John Stuart Mill afirmava que a elipse que Kepler identificou nas órbitas planetárias
“estava nos fatos antes que a reconhecesse [...] Kepler não colocou o que concebera nos fatos,
mas viu isso neles”.
O construtivismo pode ser articulado dentro de um contexto realista, como é o caso do
filósofo Karl Popper, para quem as hipóteses ou conjecturas são um ato de livre invenção do
cientista. Está claro que é sempre preciso testar tais hipóteses por meio de experimentos.
e Ao

–9
HANSON, N.R. (1958), Patterns of discovery, Cambridge University Press. Em português,
po há o artigo:
HANSON, N.R. (1972), “Observação e interpretação”, in MORGENBESSER, S. (org.), Filosofia da ciência, trad. L.
Hegenberg & O. S. da Mota, Cultrix,
ix, São Paulo, pp. 125-38
125 (orig.: 1967).

–9
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. –II: Variantes do Antirrealismo

passar por sucessivos testes e ser “corroborada”, pode-se dizer, segundo Popper, que a teoria
se aproxima da verdade. Tal concepção é denominada “realismo convergente”.
A tese da carga teórica das observações foi defendida também por outros filósofos da
ciência, como Pierre Duhem e Carl Hempel. Mais recentemente, o debate foi retomado por
Jerry Fodor e Paul Churchland.–10

3. Instrumentalismo e Positivismo

Na Antiguidade, a física era vista como uma ciência que buscava explicações
verdadeiras sobre o mundo, lançando hipóteses sobre as verdadeiras causas dos fenômenos.
Na astronomia, porém, com o desenvolvimento da técnica de epiciclos para prever as posições
dos astros, passou-se a considerar que a tarefa da astronomia seria apenas “salvar os
fenômenos”, ou seja, descrever com precisão as observações, fazendo previsões precisas, sem
se preocupar com a verdade. Segundo esta versão forte do instrumentalismo, uma teoria
científica seria apenas um instrumento para se fazerem previsões, e não havia a pretensão de
que os epiciclos correspondessem à realidade por detrás dos fenômenos astronômicos. Um
exemplo clássico de discurso instrumentalista foi o prefácio escrito por Andréas Osiander–11
ao livro de Nicolau Copérnico, salientando que seu sistema astronômico não tinha a pretensão
de ser verdadeiro, mas sim de salvar os fenômenos, fornecendo “um cálculo coerente com as
observações”, e não um retrato real do Universo.
O descritivismo é uma forma de fenomenismo empirista que busca traduzir ou reduzir
os enunciados teóricos de uma teoria em termos dos enunciados de observação. Uma teoria é
vista como uma formulação “econômica” (ou seja, a mais simples possível) das relações de
dependência entre eventos ou entre propriedades observáveis. Termos teóricos como
“partículas virtuais” seriam uma descrição abreviada de um complexo de eventos e de
propriedades observáveis, e não faria sentido dizer que se referem a uma realidade física
inacessível para a observação (Fig. II.1). Mesmo assim, o descritivismo aceita que um
enunciado teórico seja considerado verdadeiro ou falso, na medida em que for tradutível em
enunciados de observação verdadeiros.
A distinção entre instrumentalismo e descritivismo é sutil, e hoje em dia há uma
tendência de englobar ambos sob o nome “instrumentalismo” (em sentido lato) ou
simplesmente “fenomenismo” ou “antirrealismo”. O primeiro autor a articular detalhadamente
o descritivismo foi Ernst Mach–12, com sua preocupação em reduzir a linguagem teórica à
linguagem de observação, mas foram os positivistas lógicos (Carnap, Schlick, Reichenbach,

–10
O debate Mill x Whewell está em: MILL, J.S. ([1843] 1979), Sistema de lógica dedutiva e indutiva, trad. J.M.
Coelho, Livro III, cap. II, §3, in Os Pensadores, 2ª ed., Abril Cultural, São Paulo, pp. 171-4. O debate iniciado
pela vovozinha de Fodor está em: FODOR, J. (1984), “Observation reconsidered”, Philosophy of Science 51, p.
23-43. A réplica foi CHURCHLAND, P.M. (1988), Philosophy of Science 55, p. 167-87, seguido pela tréplica de
FODOR, idem, p. 188-98.
–11
OSIANDER, A. ([1543] 1980), “Prefácio ao De Revolutionibus Orbium Coelestium, de Copérnico”, trad. e
notas de Z. Loparić, Cadernos de História e Filosofia da Ciência 1, pp. 44-61. Há uma transcrição em
http://www.fflch.usp.br/df/opessoa/HCTex-Osiander.pdf. Sobre este assunto, ver também o texto de Geminus
em http://www.fflch.usp.br/df/opessoa/HCTex-Geminus.pdf.
–12
MACH, E. ([1886] 1959), The analysis of sensations and the relation of the physical to the psychical, Dover,
Nova Iorque. A distinção entre instrumentalismo e descritivismo é apresentada por NAGEL (1961), op. cit. (nota
15). NIINILUOTO (1999), op. cit. (nota 15), discute o descritivismo na p. 110. Notamos que estes autores usam a
palavra “fenomenismo” no sentido mais usual do termo, mais restrito que o nosso, como a variante do
descritivismo que afirma que o mundo empírico consiste apenas de sensações e seus complexos (em oposição ao
“fisicalismo”, que toma os objetos físicos observáveis como ponto de partida).

–10
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. –II: Variantes do Antirrealismo

etc., entre as décadas de 1920 e 60) que mais trabalharam nesta concepção, com sua
preocupação com a linguagem da ciência. Pode-se talvez associar o positivismo a uma visão
descritivista, apesar de se também poder associá-lo ao instrumentalismo. Além do
descritivismo, outras teses que comporiam o positivismo seriam o nominalismo (que
discutimos no contexto da filosofia da matemática, na seção III.4), o critério de demarcação
entre ciência e metafísica, a separação entre fato e valor, e a tese da unidade metodológica da
ciência.–13
Ao contrário do descritivismo, que está ligado a uma preocupação com a linguagem da
ciência e na redução do significado dos enunciados teóricos ao significado dos enunciados de
observação, o instrumentalismo não vê uma teoria científica necessariamente como uma
linguagem, mas sim como um instrumento lógico ou matemático para organizar as
observações e as leis experimentais. Uma teoria é vista não como um conjunto de enunciados
que tenham valor de verdade, mas sim regras de acordo com as quais as observações são
analisadas e inferências (previsões) são obtidas. Seria incorreto dizer que a teoria é “uma
descrição abreviada de observações” (como no descritivismo), da mesma maneira que um
martelo não é uma descrição abreviada de seus produtos. O instrumentalismo tem facilidade
em lidar com idealizações e modelos simplificados em uma teoria científica, não tendo
necessidade de definir uma noção de “verdade aproximada”.
Uma idealização, ou seja, uma teoria simplificada, fornece um bom exemplo de como
uma teoria pode funcionar como instrumento, sem ter referência (sem ser verdadeira ou falsa).
Além disso, o instrumentalismo não vê problemas em se utilizar, em diferentes momentos,
teorias contraditórias.

4. Esboço de uma Classificação de Realismos e Antirrealismos

A razão pela qual há tantas posições contrárias ao realismo é que o realismo, e a noção
de verdade por correspondência (seção II.4), é a posição que costumamos adotar em nosso
cotidiano, no dia a dia de nosso ambiente macroscópico. Nesse domínio cotidiano ele
geralmente funciona bem, apesar de o comportamento de outras pessoas requerer um conjunto
adicional de intuições, geralmente chamado “psicologia de senso comum” (folk psychology),
que tende a se casar bem com o realismo cotidiano.
Os problemas do realismo cotidiano (ou realismo “ingênuo”) começam a se tornar
sérios à medida que nos afastamos do nosso ambiente cotidiano, em relação ao qual nosso
cérebro se adaptou, ao longo da evolução biológica. A ciência que lida com ambientes ou
domínios distantes do nosso tendem a ser contraintuitiva (ver seção –I.1), e nesse contexto o
realismo encontra dificuldades.
Como há várias maneiras distintas de negar as concepções do realismo cotidiano, há
várias formas de antirrealismo. A Fig. –II.2 apresenta um esquema de diferentes posições em
filosofia da ciência, conforme a resposta dada a diferentes perguntas. O ponto de partida é a
pergunta “Há uma realidade independente de mentes humanas?”. A resposta afirmativa é a
tese do realismo ontológico, aceita por todas as formas de realismo; sua negação é o
idealismo, que nega que haja uma realidade independente de mentes, ou o fenomenismo (em
sentido estrito), que considera que esta pergunta não faz sentido.
O próximo passo é perguntar se esta realidade inobservável é atingível pelo nosso
conhecimento, ou seja, se podemos fazer afirmações verdadeiras justificadas sobre
inobserváveis. O realismo epistemológico afirma que sim, e é uma tese também aceita por

–13
Para um estudo das teses que compõem o positivismo, ver o cap. I de: KOLAKOWSKI, L. (1981), La Filosofía
Positivista, trad. G. Ruiz-Ramón, Ediciones Cátedra, Madri (original em alemão publicado em Varsóvia em 1966).

–11
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. –II: Variantes do Antirrealismo

todas as doutrinas realistas. Sua negação é o fenomenismo em sentido lato, e engloba o


empirismo, o instrumentalismo e o construtivismo, que mencionamos nas seções anteriores.
A terceira pergunta diz respeito à concepção de verdade. Todas as doutrinas realistas
aceitam o que pode ser chamado “realismo semântico”, que é a aceitação da noção de verdade
por correspondência. Há diversas negações desta concepção, conforme já discutimos na seção
II.4 e 5. O realismo axiológico defende que a meta da ciência é atingir a verdade, ao passo que
há posições antirrealistas (van Fraassen, Laudan) que aceitam a concepção de verdade por
correspondência, mas negam que atingir a verdade seja a meta da ciência. Sobre a questão de
se a verdade sobre os inobserváveis é atingível, o realismo crítico já não responde como
faziam os grandes sistemas metafísicos do séc. XVII (Descartes, Leibniz, Spinoza) e da
Antiguidade, que respondiam dogmaticamente que sim. O realismo crítico (Popper,
Niiniluoto) responde que podemos nos aproximar da verdade, mas nunca saberemos se ela foi
atingida. Por fim, os realistas científicos defendem que a melhor explicação para o sucesso
prático da ciência é que ela é aproximadamente verdadeira, ao passo que os antirrealistas
retrucam com o argumento da meta-indução pessimista (Laudan): no passado, muitas teorias
científicas consideradas verdadeiras foram abandonadas; assim, por indução, é plausível supor
que mesmo nossas melhores teorias são falsas.
Ao longo da história, diversas concepções realistas foram defendidas, como o
espiritualismo das religiões e de muitas concepções filosóficas (como Descartes e Bergson), o
materialismo (seção –I.4), o realismo de universais (que veremos na seção –III.4), e o
hilemorfismo de Aristóteles (seção iII.1).
Por fim, a Fig. –II.2 indica dois “meios realismos”. O realismo estrutural (de Poincaré,
Russell e, antes deles, do filósofo William Hamilton, que influenciou Maxwell, como
veremos no cap. VII) defende que só podemos fazer afirmações sobre estruturas ou relações
(leis) da realidade. Já o realismo de entidades, articulado por Ian Hacking, defende que só
podemos fazer afirmações sobre a existência de entidades, como um elétron, e que não
podemos saber qual é a natureza desta entidade (onda, partícula, ou outra coisa). Esta posição
se baseia no fato de que podemos manipular estas entidades com o auxílio de instrumentos
científicos.

–12
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. –II: Variantes do Antirrealismo

–13
Filosofia da Física Clássica
Cap.–III

Filosofia da Matemática
Questão: Como explicar a importância da matemática
nas ciências naturais?

1. A Desarrazoada Efetividade da Matemática

Por que a matemática é tão importante na física? Essa é a questão que o importante
físico húngaro Eugene Wigner (1902-95) discutiu em um artigo em que usou a curiosa
expressão “desarrazoada (não razoável) efetividade (eficácia) da matemática”.–14 A opinião de
Wigner era que a gente não compreende porque a matemática é tão útil na física: seria uma
espécie de “milagre”: “A lei da gravidade que Newton relutantemente estabeleceu, e que ele
pôde verificar com uma acurácia de aproximadamente 4%, posteriormente se mostrou acurada
numa porcentagem menor do que dez milésimos” (p. 231). Ou seja, usamos a matemática para
descrever um domínio limitado da realidade, e às vezes essa descrição matemática se mostra
eficaz em domínios muito mais amplos. Outro exemplo que Wigner cita é o sucesso da
mecânica quântica (a partir de 1927) em explicar os níveis energéticos do átomo de hélio, um
sistema bem mais complexo (por envolver dois elétrons interagentes) do que aqueles usados
por Heisenberg para construir sua mecânica matricial. “Com certeza, neste caso, conseguimos
‘tirar alguma coisa’ que não tínhamos posto nas equações” (p. 232).
A tese de Wigner, de que a efetividade da matemática na física é desarrazoada,
inexplicável, exprime um certo aspecto de seu pensamento filosófico no início dos anos 60,
uma sensibilidade a problemas não resolvidos, como o mistério da consciência humana ou o
problema do colapso na mecânica quântica. No entanto, muitas outras respostas foram dadas a
este problema de porque a matemática funciona tão bem na física, desde a época de Pitágoras,
que considerava que a essência da natureza são números. Curiosamente, uma resposta
semelhante à de Pitágoras foi proposta recentemente pelo cosmólogo Max Tegmark, para
quem “nosso mundo físico é uma estrutura matemática abstrata”! –15

2. A Matemática na Grécia Antiga

A matemática grega, partindo de Tales de Mileto (c. 625-546 a.C.) e Pitágoras de


Samos (c. 575-495 a.C.), se caracterizou pelo esforço de demonstrar de maneira rigorosa os
seus resultados. Os pitagóricos, reunidos onde hoje é a Sicília, defendiam que todas as
relações científicas eram expressas por meio de números naturais (1, 2, 3, ...) ou razões entre
tais números, os chamados números racionais, ½, ¾, etc. Em conseqüência desta concepção,
supunham que o espaço, o tempo e o movimento eram constituídos de elementos discretos.
Ao pitagórico Hipaso de Metaponto (nascido circa 500 a.C.) é atribuída a descoberta
dos números irracionais, como 2 , que seria a medida da diagonal de um quadrado de lado
1. Esta descoberta era vista como um problema para a filosofia pitagórica, e conta a lenda que

–14
WIGNER, E.P. (1960), “The unreasonable effectiveness of mathematics in the natural sciences”,
Communications in Pure and Applied Mathematics 13, 1-14, republicado em WIGNER (1967), Symmetries and
Reflections, Indiana U. Press, Bloomington, pp. 222-37. Disponível na internet. Tradução disponível no site do
curso: http://www.fflch.usp.br/df/opessoa/Wigner-2.pdf.
–15
TEGMARK, M. (2007), “The mathematical universe”, Foundations of Physics 38, 101-50.

–14
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. –III: Filosofia da Matemática

Hipaso teria sido lançado ao mar por seus colegas, em represália.–16 Vimos no cap. iI outro
problema para a concepção pitagórica: os paradoxos de Zenão, que punham em xeque a
concepção de que o espaço e o tempo são divisíveis.
Os matemáticos gregos passaram a dividir a matemática na teoria dos números, que
estuda entidades discretas ordenadas, e na geometria, que envolve o contínuo. Essa divisão
transparece nos Elementos, obra escrita por Euclides de Alexandria em torno de 300 a.C. Ele
reuniu os trabalhos de Eudoxo, Teeteto e outros matemáticos, sistematizou-os, melhorou as
demonstrações, e coligiu sua obra de acordo com o método axiomático. Os Elementos partem
de definições, axiomas (noções comuns, princípios auto-evidentes) e postulados (suposições
geométricas). O número 1 foi tratado como a “unidade”, e os outros como “números”
propriamente ditos. O número 0 não estava presente, e só foi introduzido na Índia, onde se
usava o sistema numérico posicional, juntamente com os números negativos, pelo matemático
Brahmagupta, em 628 d.C.

3. Os Postulados de Euclides

Euclides partiu de 23 definições, como a de ponto, que é “aquilo que não tem partes”,
e reta, que é “um comprimento sem espessura [...] que repousa equilibradamente sobre seus
próprios pontos”. Em 1899, o alemão David Hilbert reformularia a axiomatização da
geometria plana sem partir de definições primitivas: “ponto” e “reta” seriam definidos
implicitamente pelos postulados.
Os cinco axiomas usados por Euclides, em notação moderna, são:

A1) Se A=B e B=C, então A=C.


A2) Se A=B e C=D, então A+C = B+C.
A3) Se A=B e C=D, então A–C = B–C.
A4) Figuras coincidentes são iguais em todos os seus aspectos.
A5) O todo é maior do que qualquer de suas partes.

Os cinco postulados da geometria plana são:

P1) Dois pontos determinam um segmento de reta.


P2) Um segmento de reta pode ser estendido para
uma reta em qualquer direção.
P3) Dado um ponto, há sempre um círculo em que
ele é centro, com qualquer raio.
P4) Todos os ângulos retos são iguais.
P5) Se a soma dos ângulos a e b for menor do que
dois ângulos retos, então os segmentos de reta A Figura –III.1: Quinto
e B se encontram, se forem estendidos postulado de Euclides.
suficientemente (ver Fig. –III.1).

O postulado P5 é logicamente equivalente à proposição de que, dados uma reta A e um


ponto P fora dela, passa apenas uma reta por P que seja paralela a A. Veremos mais à frente
como a discussão do quinto postulado levou no séc. XIX às geometrias não-euclidianas.

–16
Muitos detalhes da história da matemática podem ser obtidos de: EVES, H. (2004), Introdução à História da
Matemática, trad. H.H. Domingues, Ed. Unicamp, Campinas (original em inglês: 1964). Sobre Hipaso, ver p.
107.

–15
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. –III: Filosofia da Matemática

Com esses axiomas e postulados, deduz-se boa parte da geometria plana, como o
teorema de Pitágoras. No entanto, a base de postulados não é completa. Por exemplo,
Euclides supôs tacitamente que uma reta que passa pelo centro de um círculo passa também
por dois pontos do círculo, mas isso não é dedutível da base de postulados! Além disso,
muitas verdades geométricas que dependem da noção de limite, algumas das quais formuladas
por Arquimedes de Siracusa (287-212 a.C.), não são dedutíveis dos axiomas de Euclides.–17
A geometria euclidiana foi o paradigma de conhecimento certo e verdadeiro, na
ciência e filosofia, até o séc. XIX.

4. Questão Ontológica: Existem Objetos Matemáticos?

Os números existem? Há 27 alunos nesta classe, isso é um fato indubitável: mas o


número 27 existe de maneira independente, no mundo, ou apenas em minha mente? Há duas
respostas básicas a esta questão.
A tradição pitagórica concebe que os números naturais são entidades reais, assim
como outros objetos matemáticos, como o triângulo. Platão (428-348 a.C.) desenvolveu esta
concepção, defendendo que as entidades matemáticas não existiriam no mundo físico, mas em
um mundo abstrato, ideal, para fora do espaço e do tempo. O filósofo Bertrand Russell,
simpático a esta concepção no livro Problemas da Filosofia (1912), utilizou o verbo
“subsistir” para designar este tipo de realidade, em oposição ao “existir” das coisas
particulares. Essa noção de subsistência, em Platão e Russell, não se limitava apenas a
entidades matemáticas, mas se estendia para quaisquer propriedades ou relações abstratas,
ditas “universais”. Assim, para Platão, aquilo que haveria em comum entre um ato justo de
um magistrado romano e um ato justo de um rei asteca seria a “justiça”, um universal que
subsistiria num mundo à parte do material. Os diferentes triângulos que desenhamos num
papiro seriam cópias imperfeitas de triângulos ideais, e o que todos os triângulos têm em
comum seria a “triangularidade”, um universal distinto de qualquer triângulo desenhável, pois
cada triângulo é ou isósceles (ao menos dois lados de mesmo comprimento) ou escaleno, ao
passo que a triangularidade não teria nenhuma dessas duas propriedades.
A visão metafísica que defende a existência de universais, quer sejam números, quer
sejam propriedades ou relações, pode ser chamada de realismo de universais. A visão
antagônica é conhecida como nominalismo, e defende que no mundo físico há particulares
concretos (coisas) com propriedades, mas tais propriedades não têm uma realidade autônoma,
independente de cada particular. Ou seja, para o nominalista, não se pode dizer que os
universais subsistem. O que o realista chama de “universais” seriam apenas idéias em nossa
mente (conceitualismo) ou nomes lingüísticos (nominalismo, em sentido estrito). A “querela
dos universais” foi disputada intensamente na Idade Média, e Guilherme de Ockham (1285-
1350) é o grande representante do nominalismo medieval, ao passo que o lógico Willard
Quine (1908-2000) é um importante nominalista moderno.–18
Em filosofia da matemática, a oposição entre realistas e nominalistas é um pouco
diferente da querela metafísica dos universais. Os realistas afirmam que os números,
conjuntos e outros objetos matemáticos existem ou subsistem de alguma maneira,

–17
O presente relato foi obtido de SKLAR, L. (1974), Space, Time, and Spacetime, U. California Press, Berkeley,
pp. 13-6. O livro de Euclides está disponível na internet, ou como: EUCLIDES (1999), Os Elementos, trad. I.
Bicudo, Ed. da Unesp, São Paulo.
–18
Uma excelente introdução ao debate metafísico entre realistas de universais e nominalistas é apresentada por
LOUX, M.J. (2002), Metaphysics: A Contemporary Introduction, 2a ed, Routledge, Londres, caps. 1 e 2. Há um
“resumão” em português na internet: http://www.fflch.usp.br/df/opessoa/TCFC3-06b-Loux-12.pdf.

–16
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. –III: Filosofia da Matemática

independentes dos seres humanos. Já os nominalistas defendem que os objetos matemáticos


são construções mentais, de forma que não se pode afirmar que os números naturais existam
no mundo.
Um dos argumentos dos realistas, em favor da existência dos objetos matemáticos, é
justamente a sua grande utilidade nas ciências naturais. Segundo este “argumento da
indispensabilidade”, formulado por Quine (que mencionamos ser um nominalista metafísico,
mas que era um realista matemático) e por Hilary Putnam, como nossas melhores teorias
científicas fazem referência a objetos matemáticos como números, conjuntos e funções, e tais
entidades são indispensáveis para a ciência, então devemos nos “comprometer” com a
existência real de objetos matemáticos, da mesma maneira que nos comprometemos com a
existência de entidades físicas teóricas como quarks e partículas virtuais. Opondo-se a este
argumento, o filósofo nominalista Hartry Field vem trabalhando num projeto para mostrar
como é possível construir teorias científicas sem números e outros objetos matemáticos, numa
certa linguagem relacional. Conseguiu aplicar seu método para a teoria da gravitação
newtoniana, mas não para outras teorias mais contemporâneas. A matemática seria útil para a
ciência pelo fato de ela simplificar muito os cálculos e a expressão de enunciados das ciências
exatas, mas ela não seria indispensável.–19

5. Questão Metodológica: Números Imaginários se aplicam à Realidade Física?

Na seção anterior, vimos que a questão sobre a existência do número natural 27 pode
receber diferentes respostas. Mas a prática do físico não é afetada por esta questão filosófica:
qualquer que seja a resposta a essa questão “ontológica” (ou seja, questão sobre o que é real),
é seguro supor que o número inteiro 27 “se aplica” corretamente à descrição da realidade
nessa sala de aula.
Podemos investigar esta questão “metodológica” em relação a números não positivos,
como os inteiros negativos. Talvez não possamos dizer que há –5 maçãs na cesta, mas
podemos dizer que a temperatura é –5˚C. Ou seja, pode-se dizer que os inteiros negativos se
aplicam a certos domínios da realidade.
E quanto aos números que representam uma reta contínua? A estrutura do espaço
físico é a estrutura dos números reais ou dos números racionais (ou de um subconjunto finito
destes)? Na seção seguinte deixaremos clara a distinção entre os dois, com base na distinção
entre conjuntos ordenados densos e completos. A questão levantada é também uma questão
ontológica, mas não em relação à natureza dos objetos matemáticos, e sim em relação a uma
entidade física, o espaço. Sendo assim, para examinar esta questão devemos levar em conta
também as evidências experimentais. Deixaremos o estudo desta questão para o Cap. ...
Associada a esta questão há também uma constatação metodológica: é usual representar o
espaço físico como um espaço matemático tridimensional contínuo, envolvendo números
reais, e não apenas números racionais.
E os números imaginários? Tais números, múltiplos de i, ou − 1 , surgiram com o
matemático italiano Gerolamo Cardano, em 1545, como soluções de equações cúbicas. Em
1637, René Descartes os chamou de “imaginários”, indicando que não os levava à sério. No
entanto, Abraham de Moivre (1730) e Leonhard Euler (1748) os estudaram, chegando à

–19
Uma resumo sucinto da filosofia da matemática é: POSY, C.J. (1995), “Philosophy of mathematics”, in AUDI,
R. (org.), The Cambridge Dictionary of Philosophy, Cambridge U. Press, pp. 594-7. Sobre o argumento da
indispensabilidade, ver: COLYVAN, M. (2004), “Indispensability arguments in the philosophy of mathematics”,
Stanford Encyclopedia of Philosophy, na internet. O filósofo brasileiro Otávio Bueno (U. Miami) tem trabalhado
nesta e noutras questões da filosofia da ciência e da matemática; por exemplo: BUENO, O. (2005), “Dirac and the
dispensability of mathematics”, Studies in History and Philosophy of Modern Physics 36, 465-90.

–17
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. –III: Filosofia da Matemática

notável equação que tanto fascinou o jovem Richard Feynman: e iπ = − 1 . Isso levaria à noção
de plano complexo, formulado por Caspar Wessel (1797), Carl Gauss (1799) e Jean Argand
(1806), que representa os números complexos a + bi em um plano.
A questão ontológica, da realidade dos números imaginários, não parece ser diferente
da questão ontológica de outros objetos matemáticos. A diferença está na questão
metodológica, pois é costume afirmar-se que “nenhuma grandeza física observável é
representada por um número imaginário”. Números imaginários aparecem na representação
de movimentos oscilantes ou ondulatórios, mas na hora de exprimir valores de correntes (na
engenharia elétrica) ou de probabilidades (na mecânica quântica), o resultado é sempre
expresso por meio de números reais. Assim, num certo sentido, números imaginários não se
aplicam à realidade observável. Mas e a realidade não-observável? Aqui recaímos na
discussão sobre o estatuto da realidade não-observável (realismo x fenomenismo), que vimos
na seção II.1.
Alguns autores argumentam que os números imaginários não podem ser eliminados da
mecânica quântica e das modernas teorias de campo, a não ser por procedimentos artificiais, e
portanto eles são indispensáveis para a física–20. Por outro lado, a discussão não é que os
números imaginários não podem ser aplicados à realidade observada, pois por convenção
poderíamos multiplicar todos os números que representam grandezas observáveis por i, de tal
maneira que seriam os reais não-imaginários que não teriam aplicação direta. O ponto da
discussão é se os números reais seriam suficientes para descrever a realidade observável, sem
necessidade de ampliar, com os números imaginários, o sistema numérico utilizado.

6. Noções de Continuidade

Consideremos o intervalo entre os números 0 e 1, e imaginemos o conjunto ordenado


de todos os números racionais (frações) deste intervalo. Este conjunto é denso, pois entre
quaisquer dois números racionais existe pelo menos um número racional. É fácil intuir que há
um número infinito de racionais neste intervalo.
No entanto, sabemos que números como 22 e π8 não são racionais, mas fazem parte
do conjunto dos reais. Está claro que este conjunto é denso, mas ele também tem a
propriedade de ser completo. Considere a seguinte seqüência crescente infinita de números
n
racionais, {13 , 105 , 3465 ,
38 1289 16988
45045 , ...}, onde cada termo n=1,2,... é expresso por −1
∑ [(4m − 3)(4m − 1)] .
m =1

Tal seqüência tem limites superiores racionais, como 52 , ou seja, há números racionais
maiores do que todos os termos da seqüência. O problema, porém, é que não há um racional
que seja o menor limite superior, ou supremo. Se considerarmos agora esta seqüência como
um subconjunto dos reais, mostra-se (a partir de fórmula derivada por Gregory e Leibniz no
séc. XVII) que tal seqüência converge para π8 , que é o supremo da seqüência. Assim, os reais
são completos, no sentido que todas as seqüências com limite superior têm um supremo.
Na matemática, a noção de continuidade aplica-se a funções, como y = f(x) .
Intuitivamente, diz-se que uma função é contínua se uma pequena variação no argumento x
levar a uma pequena variação em y. Na disciplina de Cálculo I, aprendemos a definição
rigorosa de continuidade de Cauchy para os reais, em termos de “εpsilons e δeltas”. Se uma

–20
WIGNER (1960 [1967]), op. cit. (nota –14), pp. 225, 229. YANG, C.N. (1987), “Square root of minus one,
complex phases and Erwin Schrödinger”, in KILMISTER, C.W. (org.), Schrödinger: Centenary Celebration of a
Polymath, Cambridge: Cambridge University Press, pp. 53-64. PENROSE, R. (2004), The Road to Reality: A
complete guide to the laws of the universe, Vintage, Nova Iorque, pp. 67, 1034-6.

–18
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. –III: Filosofia da Matemática

função for definida para números racionais, parece ser possível aplicar essa noção de
continuidade também para os racionais. Por outro lado, o conjunto dos números reais é às
vezes chamado de “o contínuo”.

7. Existe o Infinito?

Há uma longa história da noção de infinito na matemática, na ciência e na filosofia.


Hoje em dia aceita-se que o Universo tenha uma extensão espacial finita, mas a questão do
infinitamente pequeno ainda está em aberto, como discutimos no Cap. III.
Na matemática, um resultado importante foi obtido pelo russo-alemão Georg Cantor
(1845-1918): podem se definir infinitos maiores do que o infinito contável! O tamanho de um
conjunto é denominado sua “cardinalidade”. Cantor denotou a cardinalidade dos números
naturais por ℵ0 (alef-zero), ou infinito contável. Para encontrar a cardinalidade de outro
conjunto infinito, basta tentar mapear os elementos do conjunto nos números naturais. Por
exemplo, mostra-se que a cardinalidade dos números racionais também é ℵ0, escrevendo
todas as frações m/n em uma matriz na posição (m,n), e escolhendo uma seqüência de
ordenamento, como o da Fig. –III.2, que mapeia cada fração em um número natural (podem-
se eliminar as frações de valores repetidos).
Qual seria a cardinalidade dos números reais, entre 0 e 1? Cantor apresentou o
“argumento da diagonal”, que permite construir um número real que escapa da tentativa de
mapear bijetoramente os números reais nos inteiros. Façamos uma lista dos números reais
entre 0 e 1, com i = 1, 2, ..., escrevendo cada um da seguinte forma: pi = 0 , ai1, ai2, ai3, ...,
onde os aij são dígitos entre 0 e 9 (Fig. –III.3). Por exemplo, π8 = 0,392... teria ai1=3, ai2=9,
ai3=2, etc. Naturalmente, esta lista de números reais pi seria contavelmente infinita, mas há
pelo menos um número real que não consta desta lista, o número q = 0 , b1, b2, b3, ...,
construído da seguinte maneira. Consideremos os dígitos na diagonal i=j, ou seja, a11, a22, etc.
Se o dígito aii = 5, então bi = 4; se aii ≠ 5, então bi = 5. Com isso, constrói-se um número real
b que não consta da lista contavelmente infinita (que tem cardinalidade ℵ0). Isso mostra que a
cardinalidade dos números reais, que Cantor mostrou ser igual a 2ℵ0, é maior do que a dos
números racionais: 2ℵ0 > ℵ0 .

Figura –III.2: Números racionais são contáveis. Figura –III.3: Argumento da diagonal de Cantor.

–19
Filosofia da Física Clássica
Cap. iI

Paradoxos de Zenão
Questão: O espaço e o tempo são contínuos ou discretos?
(Nota: Esta aula não foi ministrada em 2013)

1. Pano de Fundo de Zenão

Zenão de Eleia (490-430 a.C.) é bem conhecido por causa de seus paradoxos, como
aquele da corrida de Aquiles com a tartaruga. De fato, escreveu um livro com em torno de 40
paradoxos, mas este se perdeu. O que sabemos de Zenão nos foi transmitido por Platão,
Aristóteles e pelo comentador Simplício do séc. VI d.C. i1
O que Zenão queria provar com seus paradoxos?
Como eles foram encarados na Antiguidade? Como eles são
resolvidos hoje em dia?
Zenão era discípulo do grande filósofo Parmênides
(515-450 a.C.), da cidade de Eleia (atual Itália), que defendia
que a pluralidade (o estado de haver muitas coisas distintas,
ao invés de uma só) não existe e que qualquer mudança é
impossível. O ponto de partida de Parmênides era a razão, o
intelecto, em oposição à observação. É verdade que nossos
sentidos veem uma aparente mudança, mas isso seria pura
ilusão, pois a realidade não poderia mudar. Afinal, “o que é
não pode deixar de ser”: se alguma coisa tem uma essência,
como é que essa essência pode desaparecer desta coisa? Por
outro lado, “do não-ser não pode surgir o ser”: como é que
algo pode surgir do nada? Assim, o Universo seria uno, e
Figura iI.1: Zenão de Eleia. não mudaria (algo parecido com a ideia de um único Deus
imutável).i2
As teses de Parmênides tiveram um forte impacto na filosofia da natureza na Grécia.
Elas estimularam soluções como a de Empédocles (490-435 a.C.), para quem haveria quatro
elementos imutáveis (terra, água, ar e fogo) que se combinariam em diferentes proporções
para gerar os diferentes objetos que conhecemos. A mudança seria uma recombinação dos
quatro elementos fundamentais, como na queima de madeira (constituída de uma certa
proporção de terra, água e fogo), que perde seu elemento água e fogo para se transformar em
carvão, que seria terra pura.
Zenão buscava defender as ideias de seu mestre, atacando a ideia de pluralidade e de
movimento. Sua estratégia era supor a tese que queria atacar, por exemplo a pluralidade de
pontos em uma reta, e daí deduzir uma consequência que contradissesse sua suposição,
levando assim a uma redução ao absurdo.

i1
Uma excelente apresentação é dada por: HUGGETT, N. (2004), “Zeno’s Paradoxes”, The Stanford Encyclopedia
of Philosophy, na internet Um livro clássico com textos de diversos autores é: SALMON, W.C. (org.) (1970),
Zeno’s paradoxes, Bobbs-Merrill, Indianápolis. A figura de Zenão foi retirada de http://www-history.mcs.st-
andrews.ac.uk/history/PictDisplay/Zeno_of_Elea.html.
i2
Esta concepção é semelhante ao “universo em bloco”, visto na seção IV.6. O bloco não muda, então nesse
sentido não há mudança, o que lembra o Uno parmenidiano. Por outro lado, a concepção do universo em bloco
não rejeita a pluralidade.

i1
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. iI: Paradoxos de Zenão

2. Paradoxos do Movimento

Mencionemos primeiramente os quatro paradoxos do movimento, que são


apresentados por Aristóteles (384-322 a.C.) em sua Física.i3 A Dicotomia e o Aquiles são
semelhantes: Zenão parte da suposição de que uma certa distância tem infinitos pontos, e que
um corredor teria que passar por todos eles antes de atingir a linha de chegada (ou uma
tartaruga), para concluir que o corredor nunca atinge seu objetivo. Assim, a razão mostra que
o movimento é impossível, e o que vemos é uma ilusão. A Flecha envolve a noção de que, em
cada instante, uma flecha está parada, então como ela poderia estar em movimento? O quarto
paradoxo, o Estádio, é apresentado de maneira provavelmente errônea por Aristóteles, então
ele tem que ser reconstruído.

3. Paradoxos da Pluralidade

É interessante que os paradoxos do movimento também podem ser usados contra a


tese de que o espaço e o tempo possuem partes atuais (reais), ou seja, contra a pluralidade do
Universo (que mencionamos ser uma das teses de Parmênides). O filósofo galês G.E.L. Owen
(1922-82) fez uma reconstrução de como poderia ter sido este argumento, resultando num
grande argumento contra diferentes concepções de pluralidade.i4 Ou seja, apresentaremos os
quatro paradoxos de Zenão não como argumentos contra a possibilidade de movimento – que
iremos supor que ocorre realmente – , mas contra a divisibilidade do espaço e do tempo em
partes reais. É provável que Zenão não tenha articulado seus argumentos dessa forma, mas
como nosso interesse é mais filosófico do que histórico, seguiremos a reconstrução de Owen.
O argumento em questão é consistente com a conclusão de Aristóteles de que um todo
não possui partes “atuais”, mas apenas partes “em potência”, cuja atualização só pode ocorrer
posteriormente à existência do todo. Essa prioridade do todo sobre as partes exprime uma
posição conhecida como holismo, que examinaremos na seção seguinte.
A questão a ser examinada, então, é se o espaço e o tempo são compostos de uma
pluralidade de partes reais. Há, naturalmente, duas respostas possíveis: SIM, são compostos de
partes reais; ou NÃO, são um todo sem partes reais, apenas partes imaginadas.
Vamos examinar a resposta positiva. Veremos que as diferentes possibilidades levam a
paradoxos, de forma que seremos obrigados a concluir (segundo o argumento atribuído a
Zenão) que o espaço e o tempo NÃO são compostos de partes reais.
Partamos então da tese de que o espaço e o tempo têm partes reais. A próxima questão
a ser colocada é se o espaço e o tempo podem ser divididos sem limite ou se há limites para a
divisão. Há duas respostas plausíveis: A) São divisíveis sem limite. B) Há limites para a
divisão. Consideremos a primeira alternativa.
A) O espaço e o tempo são divisíveis sem limite. Zenão então teria apresentado dois
paradoxos para refutar esta alternativa, o da Dicotomia e o de Aquiles.
1) Paradoxo da Dicotomia. Um corredor pretende cobrir uma certa extensão, digamos
de 100 m. Antes de chegar ao final, ele terá que passar por um ponto localizado no meio do
percurso, ½ da extensão total. Após isso, ele tem que passar pelo ponto que corresponde a ¾ do
percurso. Depois disso, pelo ponto 7 8 , depois 1516 , depois 31 32 , etc. Como, pela hipótese A, o

i3
ARISTOTLE (1996), Physics, trad. R. Waterfield, Oxford U. Press, orig. c. 350 a.C. Tradução para o português
de trechos relativos aos paradoxos de Zenão está disponível no saite do curso.
i4
OWEN, G.E.L. (1957), “Zeno and the Mathematicians”, Proceedings of the Aristotelian Society 58, 199-222,
republicado em SALMON (1970), op. cit. (nota –1), pp. 139-63. Um resumo deste argumento é apresentado por
TILES, MARY (1989), The philosophy of set theory, Blackwell, Oxford (nova edição pela Dover), pp. 12-21.

i2.
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. iI: Paradoxos de Zenão

espaço é divisível sem limite, há um número infinito de pontos que o corredor deve percorrer
antes de chegar ao final de seu percurso (a cardinalidade seria ℵ0, já que se trataria dos
números racionais, ver seção III.7). Assim, conclui Zenão, ele nunca chega ao final!
Este é o paradoxo da Dicotomia “progressivo”; há também a versão “regressiva”.
Antes de chegar à metade do percurso, o corredor tem que atingir ¼ da extensão total; mas
para chegar neste ponto, tem que antes atingir 18 do percurso; e antes disso, 116 , etc. Desta
maneira, o corredor nem conseguiria iniciar sua corrida!
2) Paradoxo de Aquiles. Nesta versão do argumento, o veloz Aquiles aposta uma
corrida contra uma lenta tartaruga, que começa dez metros à sua frente. Em pouco tempo,
Aquiles atinge a marca dos 10 m, mas neste intervalo de tempo a tartaruga caminhou 1 m. Em
seguida, Aquiles percorre esse metro adicional, mas a tartaruga não está mais lá, pois percorreu
mais 110 de metro. Quando Aquiles cobre este 110 de metro adicional, a tartaruga está 1100 m à
frente. E depois, 11000 à frente, e depois 110.000 , etc. Como, pela hipótese A, o espaço é
infinitamente divisível, sempre haverá um ponto que Aquiles deve atingir antes de prosseguir
em seu encalço à tartaruga. Conclui-se então que Aquiles nunca conseguirá alcançar a tartaruga!
Visto que a hipótese A levou a duas situações que vão contra o que constatamos na
realidade, ela deve ser rejeitada. Assim, supondo-se que o espaço e o tempo são compostos de
partes, não se poderia admitir que essas partes sejam infinitamente divisíveis. Para sermos
mais precisos, o que esses argumentos sustentam é que o espaço não seria infinitamente
divisível. Resta assim a hipótese alternativa.
B) Há limites para a divisão do espaço e do tempo. Neste caso, pergunta-se sobre o
tamanho desses limites: eles têm tamanho? (a) Sim, têm tamanho. (b) Não, não têm tamanho.
Consideremos cada caso em separado.
(a) Os limites para a divisão do espaço e do tempo têm tamanho. Ou seja, dentro de
uma unidade indivisível de tempo, ocorreria um pequeno movimento (esta é uma situação
difícil de imaginar, mas prossigamos com o argumento reconstruído por Owen). Neste caso,
Zenão teria invocado o paradoxo do estádio.
(3) Paradoxo do Estádio. Imagine que durante a Olimpíada, em um estádio, dois
dardos são atiradas em sentidos opostos. Estamos supondo que o espaço e o tempo são
discretizados, e que suas partes têm um tamanho ou duração mínimos (que chamaremos
“unidades”). Supomos também que cada dardo percorre uma unidade espacial a cada unidade
temporal. Consideremos um instante em que as pontas dos dardos ainda não se sobrepuseram,
mas ocupam unidades espaciais adjacentes. Isso pode ser representado ao encostarmos o dedo
indicador da mão esquerda no indicador da mão direita, com as unhas viradas para fora, de
forma que possamos ver a divisão de nossos
indicadores em três falanges (Fig. iI.2a). Escolhendo
um ponto de referência em algum objeto à nossa
frente (por exemplo, o estádio), consideremos
qual é a posição dos nossos dedos/dardos no
instante discreto (unidade temporal) seguinte. Ora,
o indicador direito se moveu uma unidade para a
esquerda, e o dedo esquerdo uma para a direita.
Assim, na nova posição relativa dos dois dedos/
dardos, há duas unidades espaciais emparelhadas
(Fig. iI.2b). No entanto, para eles terem chegado
nesta situação de emparelhamento de duas
unidades, eles teriam que ter passado pela situa-
ção intermediária em que apenas uma unidade
Figura iI.2: Paradoxo do Estádio. estivesse emparelhada. Isso teria que acontecer
em um instante que é metade da unidade temporal

i3.
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. iI: Paradoxos de Zenão

tomada como mínima. Portanto, tal unidade não é mínima, mas é divisível! Além disso,
nesta meia unidade,temporal, cada dardo voou, em relação ao estádio, uma distância que é a
metade da unidade espacial. Assim, a unidade espacial também seria divisível! Isso refutaria a
hipótese (a).
Resta-nos a outra alternativa.
(b) Há limites para a divisão do espaço e do tempo mas esses não têm extensão ou
duração, são pontuais ou instantâneos. Neste caso, segundo a reconstrução de Owen, Zenão
invocaria o seguinte problema.
(4) Paradoxo da Flecha. Um arqueiro lança uma flecha, que adquire movimento. Em
um certo instante, a flecha ocupa um espaço que é igual ao seu volume, portanto, segundo
Zenão, ela estaria parada neste instante. Isso se aplica para todos os instantes, assim, a flecha
está sempre parada e não poderia estar se movendo, o que contradiz a hipótese inicial de que a
flecha está em movimento. Poder-se-ia argumentar que a flecha não está parada no instante,
mas voa um pouquinho (durante o instante), de forma que ela estaria em diferentes posições
no início e no fim do instante; mas neste caso o instante seria divisível, indo contra a hipótese
(b). Aristóteles criticou este paradoxo argumentando que o repouso no tempo é diferente do
que ocorreria no “agora”, já que neste não se define o movimento, e portanto nem o repouso
(Física, 234a24).
Com isso, rejeitando-se ambas as opções (a) e (b), refuta-se a alternativa B, segundo a
qual haveria limites para a divisão do espaço e do tempo. Mas a alternativa A já tinha sido
rejeitada. Assim, refuta-se a tese de que o espaço e o tempo sejam compostos de uma
pluralidade de partes. A resposta para a questão inicial portanto é “NÃO”: o espaço e o tempo
são um todo sem partes reais, apenas partes imaginadas.

4. O Holismo Aristotélico

Eis então como Aristóteles utiliza o argumento de Zenão para defender sua visão
holista da matéria, de que o todo precede as partes. O espaço e o tempo não seriam compostos
de um agregado de partes. É verdade que se pode dividir um objeto em partes. Quando um
tijolo é dividido, temos uma divisão atual, em ato. Talvez se possa até dividir um tijolo o
quanto queiramos ou possamos, mas antes de realizar essas divisões atuais, elas só existem
em potência, como potencialidade. O fato de que podemos dividir um tijolo não significa que
ele seja feito de partes, pois essa possibilidade de dividi-lo é apenas uma potencialidade, não
uma atualização. O todo precede as partes.
Com esta conclusão, Aristóteles pôde resolver os paradoxos à sua maneira. Os
paradoxos da Dicotomia e de Aquiles não procedem porque, para Aristóteles, o contínuo da
pista de corrida é homogêneo. Pode-se dividi-lo sem limites, mas tal divisão não é natural, e
ela pode ser feita de diferentes maneiras. A divisão é imposta por nós, ela não existe de fato: o
enunciado do problema concretiza de maneira indevida a potencialidade de divisão. Em
primeiro lugar, o corredor percorre o todo. É por percorrer o todo que ele percorre as partes, e
não o contrário, como os enunciado dos paradoxos parecem indicar.
Aristóteles defende que se possa potencialmente dividir o contínuo de maneira
ilimitada. Com isso, rejeitam-se os paradoxos do Estádio e da Flecha, que pressupõem um
limite para a divisão. Além disso, um ponto, para Aristóteles, não é formado por divisão, de
maneira que um ponto não seria parte de uma reta. Para ele, um ponto pode ser concebido
como uma fronteira entre duas regiões distintas adjacentes.

i4.
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. iI: Paradoxos de Zenão

A visão holista de Aristóteles foi retomada no início do século XX por filósofos que
defendem que o espaço e/ou o tempo não são compostos de pontos ou instantes. Para esta
corrente, que inclui Henri Bergson, William James e Alfred Whitehead, esta seria a chave
para se entender o vir-a-ser temporal, ou seja, como o presente desabrocha do passado (ver
seção IV.3).

5. Visão Moderna dos Paradoxos

Os paradoxos de Zenão são ainda tema de discussão hoje em dia. Uma atitude muito
natural, por exemplo em relação ao Aquiles, é dizer que a conclusão de Zenão é um absurdo,
pois não corresponde à realidade, e que portanto o paradoxo deve ser rejeitado. Seguindo esta
linha, Diógenes, o Cínico (413-323 a.C.), respondeu ao paradoxo simplesmente se levantando
e andando! Mas essa constatação não resolve os paradoxos. (i) Para o paradoxo do
movimento, o ponto de Zenão é que racionalmente não pode haver movimento, de forma que
a vivência que temos deste movimento teria que ser uma ilusão dos sentidos. (ii) Para o
paradoxo da pluralidade, conforme a reconstrução de Owen, concorda-se que o movimento
ocorre, porém nenhuma hipótese sobre a pluralidade, usada para explicar racionalmente o
movimento, é livre de problemas.
O problema por trás da Dicotomia, que é o mesmo que o do Aquiles, parece repousar
na intuição de que o corredor demora um tempo finito mínimo para percorrer cada intervalo
espacial sucessivo. Como há infinitos desses intervalos, o tempo de transcurso seria infinito.
Porém, sabemos que essa intuição é errônea: o tempo de percurso por cada intervalo é
proporcional ao comprimento do intervalo (supondo velocidade constante). Esse ponto foi
apontado por Aristóteles (Física VI, 233a25), mas em outro trecho ele se confundiu com
relação à presença de infinitos intervalos finitos de tempo (Física VIII, 263a15). Da mesma
maneira que os intervalos espaciais somam 1 na série convergente ½ + 1 4 + 18 + ... , os
intervalos temporais também o fazem. O corredor acaba completando o percurso!
A moderna análise matemática, inaugurada no séc. XIX com os trabalhos de Augustin
Cauchy, Karl Weierstrass e Richard Dedekind, esclareceu a natureza das séries convergentes
e do cálculo diferencial e integral, banindo a noção de “infinitesimal”, utilizada por Leibniz e
outros. Na seção II.7, vimos como Cantor mostrou que o infinito da sequência de números
inteiros (que é igual ao infinito dos números racionais), o chamado “infinito contável”, tem
cardinalidade menor do que o “infinito não-contável” dos pontos da reta real entre 0 e 1
(ℵ0 < 2ℵ0). No entanto, não parece que seja necessário supor que o espaço seja isomórfico aos
números reais para resolver os paradoxos da Dicotomia e do Aquiles: bastaria que o espaço
tivesse a estrutura dos números racionais (ver seção III.6).
No século XX, avanços na teoria da medida e da dimensão esclareceram ainda mais a
natureza do infinito na matemática. Em 1966, o matemático Abraham Robinson formulou a
análise “não-standard”, que reintroduziu de maneira rigorosa os infinitesimais na matemática.
A aplicação desta teoria para os paradoxos de Zenão foi feita por McLaughlin (1994).i5

i5
MCLAUGHLIN, W.I. (1994), “Resolving Zeno’s paradoxes”, Scientific American 271 (5), pp. 84-9. Seguimos
nesta seção as pp. 20-6 de: SALMON, W.C. (1970), “Introduction”, in Salmon (org.), op. cit. (nota i1), pp. 5-44, e
alguns comentários de HUGGETT (2004), op. cit. (nota i1), pp. 15-6. Ver também: SALMON, W.C. (1980), “A
Contemporary look at zeno’s paradoxes”, in Salmon, Space, time, and motion: a philosophical introduction. 2a
ed., U. of Minnesota Press, Minneapolis, pp. 31-67.

i5.
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. iI: Paradoxos de Zenão

O paradoxo da Flecha levanta discussões a respeito da natureza do movimento e do


conceito de velocidade instantânea. O movimento deve ser visto como a ocupação sucessiva
de posições em diferentes instantes? Esta visão chegou a ser defendida por Bertrand Russell, e
é conhecida como a “teoria em-em de movimento” (at-at theory of motion).i6 Se for verdade
que, em cada instante, a flecha estaria parada, não se segue que ela estaria parada ao
considerarmos todo o intervalo.
O esclarecimento matemático dos paradoxos da pluralidade e do movimento deixa
ainda em aberto a questão da natureza microscópica do espaço e do tempo no mundo físico.
Será que a continuidade do espaço e do tempo deve ser vista antes de tudo como uma
propriedade holística? Ou será que eles podem ser decompostos em partes menores? Estas
partes teriam a estrutura dos números reais? Dos números racionais? Haveria instantes
infinitesimais? Faz sentido dizer que existem velocidades instantâneas? O espaço poderia ter
uma estrutura fractal? A teoria quântica teria algo a acrescentar a esta problemática?

i6
RUSSELL, B. (1903) The Principles of Mathematics, Cambridge U. Press, p. 347. Citado por SALMON (1970),
op. cit. (nota i1), p. 23.

i6.
Filosofia da Física Clássica
Cap. iII

Filosofia Mecânica
Questão: Como explicar a gravidade sem forças à distância?

Você realmente entende o que está acontecendo quando solta uma pedra e vê ela cair?
Por que ela cai? Porque ela é atraída. Mas por que ela é atraída? Porque todos os corpos se
atraem. Mas por que eles se atraem, ou melhor, qual é o mecanismo que está por trás disso?
Podemos ficar perguntando porquês para sempre? Ou uma hora temos que parar e
aceitar uma resposta dogmaticamente? E, mudando o foco da pergunta, por que queremos
obter respostas? E por que às vezes nos satisfazemos com uma resposta, sentimos uma
felicidade de termos compreendido uma questão, só para mais tarde descobrir que tínhamos
deixado de perceber uma ambigüidade, e que o prazer da compreensão era só uma ilusão?
Qual a diferença entre explicar e compreender?
As concepções tradicionais da matéria e da gravidade, antes do século XVII, eram
basicamente três: o hilemorfismo aristotélico, o atomismo greco-romano e o naturalismo
animista.

1. Hilemorfismo e a Física Aristotélica

O hilemorfismo é a filosofia desenvolvida por Aristóteles de que todas as coisas


consistem de matéria (hile) e forma (morfe). Por “matéria” entende-se um substrato (matéria
prima) que só existe potencialmente, e que só existe em ato junto com uma forma (sobre
potência e ato, ver seção iI.4). A mudança das coisas é explicada por quatro tipos de causas: o
fator material, a forma, a causa eficiente e a causa final (ou propósito). Haveria quatro
elementos básicos, terra, água, ar e fogo, cada qual tendo um par de qualidades distintivas:
terra é fria e seca; água é fria e úmida; ar é quente e úmido; fogo é quente e seco. Os
elementos tendem a se ordenar em torno do centro do mundo, cada qual em seu “lugar
natural”. Se um elemento é removido de seu lugar natural, seu “movimento natural” é retornar
de maneira retilínea: terra e água tendem a descer, ar e fogo tendem a subir. O “movimento
violento” envolve a remoção de um corpo de seu lugar natural, ou é o resultado do exercício
de uma força por um agente.
Para Aristóteles, todo movimento tem um agente (um motor) e um paciente (o
movido). A fonte do movimento é uma força (dunamin ou ísquis). No movimento natural a
força é interna, e no movimento violento ela é externa, tendo que haver contato contínuo entre
o motor e o movido. Assim, para explicar porque uma pedra arremessada continua se
movendo na horizontal, Aristóteles tinha que postular a “antiperistasis”, ou seja, o ar deslo-
cado pela frente da pedra retornaria para a parte traseira da pedra e nela exerceria uma força!
O paradigma de movimento violento é uma pessoa empurrando um objeto, como um
barco, em uma superfície, como na areia. A distância (S) percorrida em um intervalo de tempo
(T) é proporcional à força exercida (F) dividida pelo peso do corpo (P), sendo que este peso
inclui também a resistência do meio: F/P = S/T. Aristóteles tinha uma noção clara de que,
abaixo de uma certa força exercida, o movimento pode cessar (devido ao atrito estático)
(Física VII.5, 249b30-250a28).
O paradigma do movimento natural é a queda de um corpo na água. Neste caso (Física
IV.8, 215a24-b10), a força é o peso do corpo (P), e a resistência (R) exprime a densidade do
meio: P/R = S/T. Aristóteles também descreveu o movimento para cima de uma porção de
fogo com a mesma lei, indicando que a velocidade seria proporcional ao volume do objeto

i7
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. iII: Filosofia Mecânica

(De Caelo, 309b11-15). O filósofo da ciência Stephen Toulmin (1961) salientou que esta lei é
correta no domínio de observação restrito em que o corpo atinge uma velocidade terminal de
queda, sendo uma versão simplificada da lei de Navier-Stokes. Há dois trechos em que
Aristóteles indica ter noção de que, na queda dos corpos, há alteração de velocidade (Física,
230b24-28; De Caelo, 277b4-5).
Em sua Física (IV.8, 215b12-22), Aristóteles trata da possibilidade do vazio. Como
este não oferece resistência, o movimento de queda seria infinitamente rápido, o que é
inadmissível. Assim, o vazio não existiria. Porém, em outros trechos, menciona que a
velocidade de queda dos corpos depende do peso. Na Física (VIII, 216-220), considera que se
não houvesse um meio a ser vencido (ou seja, se a queda fosse no vazio), as velocidades
seriam as mesmas!
Esse resumo indica que “Aristóteles não era um idiota”,i7 que fundou suas teorias em
observações, e que tinha uma noção confusa de que a queda dos corpos poderia envolver
variação de velocidade. O aristotélico Estráton de Lâmpsaco (c. 340-268 a.C.) argumentaria que
a queda dos corpos graves no ar não se dá com velocidade uniforme, pois o barulho que um
corpo faz ao cair de uma altura pequena é bem menor do que quando cai de uma altura maior.

2. Atomismo Greco-Romano

O atomismo grego surgiu com Leucipo de Mileto (início do séc. V a.C.) e foi
desenvolvido por seu discípulo Demócrito de Abdera (c. 460-370 a.C.). Posteriormente ele se
estabeleceu como escola em Atenas no “Jardim” de Epicuro (341-270 a.C.), e foi difundido
no mundo romano por Lucrécio (c. 99-55 a.C.), em seu famoso poema Da Natureza das
Coisas.
Segundo esta visão, só teriam realidade os átomos e o espaço vazio. Cada átomo,
imperceptível para os nossos sentidos, teria uma forma e um tamanho imutável, e seria
indivisível. Haveria um número infinito de átomos espalhados no vazio infinito. Eles estariam
em movimento contínuo, chocando-se freqüentemente uns com os outros. Nas colisões, os
átomos poderiam rebater ou então se ligar através de ganchos ou formas complementares. As
propriedades primárias dos átomos, para Demócrito, seriam três: a forma de cada átomo (o
que inclui o tamanho), sua posição (o que inclui sua orientação em relação a outros átomos), e
o arranjo de um conjunto de átomos. Epicuro adicionou o peso a esta lista.
Epicuro incumbiu-se da tarefa de responder às críticas de Aristóteles ao atomismo.
Dentre essas, estava a crítica à concepção de como os mundos teriam se originado. Segundo
Demócrito, os átomos originariamente estariam “caindo” no vazio, todos na mesma direção
paralela. Átomos maiores cairiam com maior velocidade, se chocariam com os mais lentos e,
assim, se iniciariam movimentos em todas as direções, que acabariam formando os mundos,
num dos quais nós viveríamos (os outros mundos estariam espalhados pelo espaço infinito).
Vimos que Aristóteles mencionou que, se houvesse o vazio, os átomos deveriam cair com a
mesma velocidade, e assim não poderiam se chocar uns com os outros, para formar os
mundos. Epicuro (ou Lucrécio, segundo alguns autores) resolveu o problema da formação dos
mundos introduzindo um pequeno movimento aleatório lateral (“clinamen”), um movimento
sem causa, para explicar a progressiva agregação dos átomos. Esse movimento sem causa de
“átomos espirituais” seria também usado para explicar a liberdade da alma.

i7
Comentário de CASPER, B.M. (1977), “Galileo and the fall of Aristotle: a case of historical injustice?”,
American Journal of Physics 45, 325-30. Ver também KATZ, J. (1943), “Aristotle on velocity in the void”,
American Journal of Philology 64, 432-5, e TOULMIN, S. (1961), Foresight and understanding, Harper & Row,
Nova Iorque, p. 50.

i8.
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. iII: Filosofia Mecânica

Os atomistas eram materialistas, pois consideravam que, na morte, os átomos


espirituais se desagregariam, ou seja, a alma seria fruto da matéria. No séc. XVII, o atomismo
seria discutido especialmente por Pierre Gassendi, dentro da visão de mundo do catolicismo.i8

3. Naturalismo Animista

Outra corrente que foi importante nos primórdios da ciência pode ser chamada de
naturalismo animista. Esta posição considera que a natureza tem uma espécie de alma ou
vida. Na Antigüidade, ela pode ser associada aos pitagóricos, ao taoísmo na China e ao
estoicismo, entre outros. No Renascimento, o naturalismo animista ressurgiu com vigor, e
considerava que a natureza seria imbuída de uma espécie de alma, que fazia as partes
separadas (como as de um imã) desejarem se unir novamente, regidos por forças de simpatia e
antipatia. Para a escolástica aristotélica, havia uma ordem racional da natureza que o intelecto
poderia penetrar. Por contraste, o naturalismo renascentista salientava o mistério de uma
natureza opaca à razão, só cognoscível através da experiência.
Os representantes típicos desta corrente eram os alquimistas, como o suíço Paracelso
(1493-1541) e o alemão Andreas Libavius (1560-1616). A finalidade da alquimia era
conseguir a transmutação dos metais em ouro e descobrir um elixir da vida eterna e cura de
todas as doenças. Introduziram a idéia de utilizar agentes químicos na medicina, além das
ervas medicinais. A concepção alquímica da matéria baseava-se em três princípios: sal,
enxofre e mercúrio. O naturalismo renascentista foi também influenciado pelo hermetismo,
uma tradição semi-religiosa e mágica vinda da Antigüidade, que ensinava que o homem é
capaz de descobrir elementos divinos dentro de si, defendendo uma afinidade mística entre o
mundo e a humanidade, entre o macrocosmo e o microcosmo. Essa afinidade seria também a
base teórica da astrologia.
Uma das mais importantes obras dentro da tradição do naturalismo renascentista foi o
De Magnete, escrito em 1600 pelo inglês William Gilbert (1544-1603). O magnetismo seria
uma “matéria telúrica”, seria a chave para se compreender a natureza. Ele seria um poder não-
corpóreo, a “alma da Terra”, já que a intervenção de objetos entre dois imãs não afeta a
atração. Contrastou eletricidade e magnetismo da seguinte maneira: a primeira envolveria
uma ação da matéria, com força e coesão; a segunda seria uma ação da forma, com união e
concordância. Johannes Kepler (1571-1630) foi influenciado por esta tradição, ao conceber
que o Sol seria a anima motrix (alma motiva) que exerceria uma força nos planetas, fazendo-
os orbitar em torno de si. Imaginou que essa atração seria de natureza magnética.i9
Em suma, para o naturalismo animista a gravidade é explicada por uma atração entre
os corpos, que possuem uma espécie de alma, e que é semelhante ao amor entre os seres
vivos. Da mesma maneira que um filho separado da mãe é por ela atraído, e que um imã
separado em dois deseja se unir novamente, assim também os princípios de simpatia e
antipatia regeriam o comportamento dos corpos celestes.

i8
Um relato detalhado dos atomistas está em LANGE, F.A. (1974), The history of materialism, trad. E.C. Thomas,
Arno Press, Nova Iorque (1a ed. em alemão: 1866; 2a ed.: 1875). É dele a hipótese discutível de que Epicuro teria
introduzido o clinamen para responder a Aristóteles (p. 26). Uma boa fonte da história da ciência grega é:
LLOYD, G.E.R. (1970), Early Greek science: Thales to Aristotle, e LLOYD (1973), Greek science after Aristotle,
ambos da Norton, Nova Iorque.
i9
Sobre o naturalismo renascentista, ver WESTFALL, R.S. (1971), The construction of modern science,
Cambridge U. Press, pp. 25-31, e também RONAN (1987), História ilustrada da ciência da Universidade de
Cambridge, 4 vols., J. Zahar, Rio de Janeiro; Círculo do Livro, São Paulo (orig. em inglês: 1983), vol. III, pp.
11-15, 28-36.

i9.
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. iII: Filosofia Mecânica

4. A Filosofia Mecânica

Os trabalhos de Copérnico e Galileu abriram o caminho para o ressurgimento da


antiga tradição “materialista”, representada pelos atomistas, resultando no que viria a ser
chamado de filosofia mecânica (termo usado por Boyle), em que os princípios explicativos
envolvem apenas matéria e movimento. Curiosamente, esta visão de mundo surgiu no seio do
cristianismo, como uma reação contra o naturalismo animista, a partir do padre Marin
Mersenne (1623).i10 Para ele, a ameaça das doutrinas naturalistas estava na concepção de que
a matéria seria “ativa”, o que retiraria de Deus e dos próprios seres humanos a
responsabilidade pelas questões humanas. Se não houvesse atividade alguma na matéria,
como queria Mersenne, Deus teria que ser invocado para explicar essa atividade.
Na filosofia mecânica, portanto, matéria e espírito estavam separados. A matéria seria
regida apenas por causas eficientes externas, provenientes de choques, e seria “inerte”, sem
atividade ou potência internas, o que seria expresso no “princípio de inércia” da mecânica
clássica. Acabava-se com o “mistério do mundo” do naturalismo animista, e salientava-se a
transparência do mundo à razão. Deus teria criado o Universo de uma só vez, pondo a matéria
em movimento de uma vez por todas. Este movimento se conservaria, seria indestrutível. O
mundo material mover-se-ia apenas em conseqüência dos choques entre os corpos, como o
mecanismo de um relógio, seguindo a necessidade das leis da física.
Na física, a concepção mecanicista tornou-se hegemônica durante uns oitenta anos a
partir de 1644, sendo compartilhada por cientistas (Descartes, Huygens, Hooke, Boyle, o
jovem Newton) e filósofos (Gassendi, Mersenne, Hobbes). Esta visão de mundo seria
lentamente destruída pela ascensão da física de Newton e da astronomia de Kepler no
continente europeu, a partir de 1720. Com isso, a noção de força gravitacional passou a ser
aceita sem que se postulasse um mecanismo subjacente.

5. A Física e Cosmologia de Descartes

René Descartes (1596-1650) ganhou fama com seu Discurso do Método (1637), que
continha um apêndice, A Geometria, no qual mostrou como escrever curvas geométricas em
termos de equações algébricas, e vice-versa (Pierre de Fermat também estava desenvolvendo
isso, de maneira independente). Em 1644 publicou o Princípios de Filosofia, que buscou
explicar todos os fenômenos físicos (incluindo químicos, geológicos e astronômicos) em
termos de matéria em movimento.i11
A matemática tinha um papel central na concepção cartesiana. A geometria, que lidava
com formas no espaço, podia ser deduzida a partir das idéias claras e distintas do intelecto. A
física tratava de matéria em movimento. Um engenhoso passo de Descartes foi identificar a
matéria com a extensão, de tal maneira que a física passaria a ser uma geometria de figuras
em movimento (“extensão” significa espaço, volume). Identificando matéria e extensão,
quatro conseqüências eram imediatamente tiradas: i) Como o espaço é infinito, também o
seria a matéria. ii) Como o espaço é homogêneo, haveria a mesma matéria por toda parte. iii)
Como o espaço é infinitamente divisível, assim também seria a matéria, o que negava o

i10
Ver GAUKROGER, S. (1999), Descartes: uma biografia intelectual, Contraponto, Rio, pp. 191-8.
i11
DESCARTES, R. (2005), Princípios de filosofia, trad. Heloísa Burati, Rideel, São Paulo, pp. 189-93 (orig. em
latim: 1644). As Figs. IV.1 e 2 são retiradas deste livro. Sobre a filosofia mecânica em Descartes, pode-se
também consultar DIJKSTERHUIS, E.J. (1986), The mechanization of the world picture, trad. C. Dikshoorn,
Princeton U. Press, pp. 403-18 (orig. em holandês: 1950), e WESTFALL (1971), op. cit. (nota i9), pp. 30-42.

i10.
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. iII: Filosofia Mecânica

atomismo. iv) Como não faria sentido pensar num espaço sem extensão, não haveria espaço
sem matéria: o vácuo seria impossível.
Descartes partiu de um princípio a priori (anterior à experiência) para derivar as leis
gerais da física, a perfeição de Deus, e sua conseqüente invariabilidade. Porém, observamos
mudança no mundo, significando que Deus quis que o mundo estivesse em movimento. Há
portanto variação, mas tal variabilidade deve ser a mais simples possível, a mais “invariável”
possível. Isso equivaleria a um ato contínuo de conservação da quantidade de movimento
(quantitas motus) total do Universo. Tal quantidade, segundo Descartes, seria medida pelo
produto da quantidade de matéria (massa) do corpo pela velocidade do mesmo corpo: m·v. O
princípio de conservação de quantidade de movimento diz então que a soma da quantidade de
movimento (m·v) de todos os corpos do Universo é sempre a mesma. É um princípio que
ainda se aceita hoje em dia, e quem o formulou pela primeira vez foi Descartes, a partir da
idéia clara e distinta de Deus. Na verdade, o princípio hoje aceito tem uma diferença
importante, que é que a velocidade precisa ser tomada como um “vetor” (com direção), e não
simplesmente como um “escalar” (um número simples, sem direção).
Com isso, passa a enunciar três leis da natureza. A primeira é uma lei de inércia geral:
cada coisa permanece no estado em que está, enquanto não encontra outras causas exteriores.
Assim, um objeto tem a tendência natural de manter sua forma, por exemplo. A segunda lei é
a da inércia linear: todo corpo que se move tende a continuar seu movimento em linha reta,
com a mesma velocidade. Essa idéia surgiu com Galileu, mas para o cientista italiano o
movimento inercial acabava sendo um movimento circular em torno da Terra. Para Descartes,
em contrapartida, o movimento inercial (livre de causas) é sempre linear. Assim, um corpo
que gira em uma corda (uma funda, Fig. iII.1), se for liberado durante o movimento, escapará
em linha reta. E essa tendência é permanente, conforme podemos sentir pela força com a qual
a pedra girante puxa, tensiona, a corda. A terceira lei envolve um conjunto de sete regras para
descrever o choque entre os corpos, mas os filósofos naturais da época mostrariam que essas
leis estavam erradas, levando Huygens, Wallis e Wren a formularem independentemente as
leis corretas, em torno da década de 1660.
A cosmologia de Descartes baseava-se na noção de que cada estrela tinha em torno de
si um grande vórtice, que giraria da maneira como faz o nosso sistema solar (Fig. iII.2). Ou
seja, o Sol é uma dentre as várias estrelas, e os planetas orbitam à sua volta porque são
carregados por uma espécie de redemoinho de matéria. Descartes fez observações de
redemoinhos em tonéis de vinho, e pode-se observar que objetos flutuantes giram em torno de
si mesmos no mesmo sentido que a rotação do líquido: ora, é exatamente isso que acontece
com os planetas do Sistema Solar!
Haveria três tipos de matéria. O 1o elemento, chamado também de “matéria sutil”,
seria constituído de lascas minúsculas que teriam se separado do choque entre a matéria dos
outros tipos. Elas teriam um movimento muito rápido, seriam luminosas e formariam a
matéria do Sol e das outras estrelas. Teriam migrado para o centro do vórtice por causa da
tendência da matéria mais grossa de se afastar do centro. O 2o elemento seria constituído por
partículas arredondadas que preencheriam os céus. Seria a matéria transparente que carregaria
os planetas em órbita circular. O 3o elemento seria a matéria mais grossa que constitui a Terra,
os planetas e os cometas. Ela seria opaca, apesar de o ar ser tão fino que aparece transparente.
A “matéria celeste”, que a tudo permeia, seria constituída principalmente do 2o elemento, mas
também conteria a matéria sutil e fragmentos do 3o elemento, incluindo ar (Princípios de
Filosofia, IV, § 25).
O 3o tipo de matéria, que nos cerca, é cheio de interstícios, como uma esponja, e essas
fendas estão sempre preenchidas pela matéria celeste, já que o vácuo é impossível. Da mesma
maneira que uma esponja aumenta de tamanho quando ela é embebida em água, a matéria
terciária expande quando é aquecida e preenchida pela matéria celeste.

i11.
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. iII: Filosofia Mecânica

A quantidade de matéria (o que viria a ser chamada “massa”) é dada pelo volume
ocupado pela matéria terciária. Sendo assim, por que dois objetos de igual volume (digamos
1 litro), um de chumbo e outro de cera, têm pesos diferentes? A explicação de Descartes é que
o chumbo tem poucos interstícios, ao passo que a cera tem muitos. Assim, o volume
efetivamente ocupado pela matéria celeste é bem maior na cera do que no chumbo.

Figura iII.2. Vórtices


associados a diferentes
estrelas. O Sol (S) está
cercado pelas trajetórias
circulares de seus planetas.
Vê-se também a trajetória de
um cometa por entre as
células de cada vórtice.

Figura iII.1. Pedra em movimento


circular que é solta de uma funda
segue a trajetória retilínea ACG.

6. Explicação da Gravidade segundo a Filosofia Mecânica

Por que sentimos que o chumbo é mais pesado do que a cera? Qual a origem da
gravidade? Descartes considerava que a Terra gira em torno de seu eixo movido pelo vórtice
de matéria celeste. Na superfície da Terra, tal matéria se move mais rapidamente do que os
corpos grossos, como se fosse um vento. Sua tendência para sair para fora (em movimento
“centrífugo”, assim como a funda mencionada acima) seria maior do que os corpos de matéria
terciária, mais lentos. Essa saída da matéria celeste (que se daria inclusive por entre os
interstícios dos corpos mais grossos) tende a criar um vácuo em baixo da matéria terciária, de
forma que esta tem uma tendência a preencher este (quase) vácuo, descendo verticalmente (a
mesma explicação era também dada em termos de diferenças de pressão da matéria celeste).
Assim, os corpos caem, devido à rotação da matéria celeste em torno da Terra, para preencher
o espaço deixado por essa matéria celeste. A explicação para a órbita da Lua em torno da
Terra é a mesma: matéria celeste se afasta da Terra, devido ao movimento do vórtice em torno
de nosso planeta, e a Lua é obrigada a preencher o vácuo que se formaria, desviando assim de
seu trajeto retilíneo natural.
Mas por que um corpo mais pesado que cai em nossa mão gera uma sensação mais
intensa de força? Ora, os corpos caem com a mesma velocidade, como demonstrara Galileu
(desprezando-se, é claro, o efeito retardador do ar). Pelas leis do choque, um corpo com mais
matéria terciária (como o litro de chumbo) transmite mais quantidade de movimento
(velocidade) para a nossa mão do que o corpo com menos matéria terciária (como o litro de
cera). Assim, o chumbo que cai em nossa mão é mais difícil de segurar.
E se os dois corpos estiverem parados em nossa mão? Neste caso, por que o litro de
chumbo é mais difícil de segurar do que o de cera? Aí eu não sei, pergunte ao René!

i12.
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. iII: Filosofia Mecânica

A teoria da gravitação de Descartes tinha um problema sério, que era o fato de que a
tendência centrífuga da matéria celeste de se afastar do centro de rotação, digamos da Terra,
se dava apenas no plano perpendicular ao eixo da Terra. Por que então os corpos caem em
direção ao centro da Terra, mesmo fora do Equador?
Christiaan Huygens (1629-95) buscou resolver este problema em seu Discurso sobre a
Causa do Peso, redigido em 1669 mas só publicado em 1690.i12 Substituiu o vórtice
cilíndrico de Descartes por um vórtice esférico, imaginando que as partículas da matéria
etérea giram em torno da Terra em todas as direções. A velocidade v dessas partículas
obedeceria à relação v2/r = g, onde r é o raio da Terra e g a aceleração dos corpos em queda
livre. Uma pedra que fosse solta no ar seria atingida em sua parte superior por matéria celeste
de velocidade maior, e assim, segundo ele, tenderia para o centro da Terra. Para sustentar sua
teoria, Huygens realizou experimentos em uma mesa giratória com um recipiente cilíndrico de
água, com seu centro no eixo de rotação da mesa. Pedaços de cera levemente mais pesados do
que a água, que se encontravam no fundo do recipiente, tendiam para o centro do recipiente
(isto é, para o eixo de rotação) a partir de uma certa velocidade de rotação, já que não
conseguiam acompanhar o movimento da água (devido ao atrito com o fundo do recipiente).
A teoria mecânica dos vórtices planetários explicava bem o fato de os planetas se
moverem no mesmo plano em torno do Sol, em movimento aparentemente circular, e de suas
rotações e revoluções se darem no mesmo sentido. Nas palavras de Huygens (1686): “Os
planetas nadam em matéria. Pois, se não o fizessem, o que impediria os planetas de se
afastarem, o que os moveria? Kepler quer, erroneamente, que seja o Sol.”
A teoria da gravitação de Newton (1687) foi a primeira a explicar as leis de Kepler, e a
evidência experimental a favor de órbitas elípticas levou tanto Huygens quanto Leibniz a tentar
formular uma explicação mecânica para elas, em 1690 (até Newton tentou fazer isso, como
aparece na Questão 21 de seu livro Opticks). O primeiro efeito da obra de Newton foi então o
fortalecimento da teoria mecânica dos vórtices planetários. Mas a partir de 1720, a nova geração
de físicos no Continente Europeu se convenceu da superioridade do programa newtoniano.i13

7. Teoria Cinética da Gravitação

Em 1782, muito tempo depois da queda da filosofia mecânica, George Louis Le Sage,
em Genebra, encontrou uma maneira elegante de explicar a lei da gravitação de Newton por
meio de princípios mecânicos (ou seja, envolvendo apenas forças de contato). Sua teoria pode
ser chamada uma “teoria cinética da gravitação”, inspirada na idéia formulada por Daniel
Bernoulli para gases, em 1738. Na verdade, sua teoria é semelhante a uma proposta feita por
um matemático suiço, amigo de Newton, Nicolas Fatio de Duillier, em torno de 1693.
A ontologia de Le Sage envolve “corpúsculos ultramundanos”, bastante leves, que
bombardeariam todos os corpos pesados de todos os lados. Um corpo perdido no espaço
receberia um número de impactos mais ou menos igual de todos os lados, permanecendo
assim em um estado inercial. Mas quando dois corpos estão próximos, como a Terra e a Lua,
um deles bloquearia parte dos corpúsculos ultramundanos que atingiria o outro, como na
formação de uma sombra. Desta forma, os corpos se atrairiam. Le Sage ajustou seus
parâmetros de forma a obter a lei da gravitação de Newton. Para explicar porque corpos mais

i12
DIJKSTERHUIS (1986), op. cit. (nota i11), pp. 461-3. Ver também MARTINS, R.A. (1989), “Huygens e a
gravitação newtoniana”, Cadernos de História e Filosofia da Ciência (série 2) 1, 151-84.
i13
BAIGREE, B.S. (1988), “The vortex theory of motion, 1687-1713: empirical difficulties and guiding
assumptions”, em Donovan, A.; Laudan, L. & Laudan, R. (orgs.), Scrutinizing Science, (Synthese Library 193).
Kluwer, Dordrecht, pp. 85-102.

i13.
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. iII: Filosofia Mecânica

densos exercem maior força gravitacional, Le Sage teve que adotar a teoria cartesiana da
matéria, e supor que um corpo menos denso tem mais espaço vazio em seu interior.
A teoria cinética da gravitação é uma idéia que periodicamente volta à cena, ora
defendida por detratores da física “oficial”, ora incorporada em teorias cosmológicas
sofisticadas.i14

i14
BRUSH (1976), op. cit. (nota 27), vol. 1, pp. 21-2. Este menciona alguns autores do século XX que retomam
esta ideia. Ver também: GOUGH, J.B. (1970), “Lesage, George-Louis”, em Dictionary of Scientific Biography,
Scribners, Nova Iorque, vol. 8, pp. 259-60.

i14.
Filosofia da Física Clássica
Cap. iIII

O Conceito de “Força” em Newton


Questão: Qual o estatuto ontológico do conceito de força?

1. Mecanicismo com Forças à Distância

O trabalho de Isaac Newton (1642-1727) pode ser visto, por um lado, como a
culminação da tradição de pesquisa da filosofia mecânica, ao enunciar suas três leis da
mecânica (princípio de inércia, definição de força e princípio de ação e reação). No entanto,
especialmente em seu estudo da lei de atração gravitacional, introduziu a concepção de uma
força que age à distância. Ao fazer isso, injetou no programa mecanicista um elemento da
tradição do naturalismo animista (de Kepler), e foi bastante criticado por isso. No entanto, não
seguiu explicitamente a concepção de realidade desse naturalismo renascentista, mas adotou
uma postura “instrumentalista” de renunciar à busca de uma explicação mecânica para esta
atração.
Em sua juventude, Newton era partidário da concepção mecânica de Descartes e
Huygens, adotando a visão atomista divulgada principalmente por Pierre Gassendi. No
período 1664-66, estudou a mecânica de Descartes e assimilou o princípio de inércia e as leis
do choque entre corposi15. A noção de “força”, “a potência de uma causa”, era concebida
como uma pressão de um corpo sobre outro, estando restrita a choques entre corpos. Desses
autores, herdou a noção de que a força exercida por um corpo em outro, durante um choque, é
igual à força recebida. Passou a estudar os movimentos circulares, imaginando uma bola que
está presa em uma arena circular, e se move chocando-se constantemente com as paredes da
arena. Derivou uma expressão para a força “centrífuga” (também estudada por Huygens), que
descreve o movimento de fuga em relação ao centro (e não uma atração): F = mv2/r. Juntou
este resultado com a 3a lei de Kepler (que relaciona os períodos e os raios médios das órbitas
dos planetas: T 2/r3 = cte.), e encontrou uma força que decresce com a distância de acordo com
1/r2 (faça como exercício, lembrando que v=2πr/T). Ao aplicar esta fórmula para a “queda” da
Lua (usando a lei de Galileu, d = ½ at2 ), encontrou uma discrepância de uns 15%, e deixou a
questão de lado. Além disso, Newton não tinha ainda a noção de uma força de atração.
Ao finalizar esses estudos, em 1666, Newton abandonou a mecânica e foi trabalhar com
matemática e com óptica. Em 1675, após realizar importantes pesquisas em óptica, esboçou uma
visão de mundo que seguia Descartes em sua concepção de que a gravidade podia ser explicada a
partir do movimento das partículas do éter, que ocupariam todo o espaço. No entanto, adotava um
princípio secreto de “sociabilidade” para explicar algumas reações químicas. Neste ano, ficou
sabendo de uma correção para o valor de um grau de latitude, medida pelo astrônomo francês
Jean Picard em 69,1 milhas inglesas, ao invés do valor de 60 milhas que Newton usara em seu
cálculo da queda da Lua em 1666. Com essa correção, a lei da força gravitacional que ele havia
encontrado passou a explicar bem o movimento da Lua.
Em 1679, recebeu um convite de Robert Hooke (1635-1703) para reexaminar o
problema dos movimentos planetários. Após algumas dificuldades iniciais, Hooke lhe sugeriu
usar uma lei de atração com uma força proporcional a 1/r2. Deu alguns passos adiante, mas
teve uma crise nervosa e acabou abandonando as pesquisas, recuperando-se ao longo de cinco
anos. Finalmente, em 1684, o astrônomo Edmund Halley visitou Newton, perguntando ao
exímio matemático qual seria a trajetória de um corpo orbitando com uma força de atração
proporcional a 1/r2, ao que Newton respondeu que seria uma elipse, conforme tinha calculado

i15
Seguimos WESTFALL (1971), op. cit. (nota i9), pp. 120-59, e DIJKSTERHUIS (1986), op. cit. (nota i11), pp. 463-91.

i15
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. iIII: O Conceito de “Força” em Newton

cinco anos antes para o problema de Hooke. As peças então se encaixaram, e Newton retomou
seu trabalho em mecânica, recebendo estímulo e auxílio financeiro de Halley. Disso resultou a
publicação da grandiosa obra Philosophiae naturalis principia mathematica (Princípios
naturais da filosofia natural, 1687).
Outra obra importante de Newton foi seu Opticks (1704). Nesta, estendeu sua
concepção – de que existem forças que atuam à distância entre todos os corpos – para todas as
partículas, inclusive átomos e partículas de luz. Tais forças poderiam ser de atração, o que
explica a coesão dos corpos e a capilaridade, e também de repulsão, como na expansão dos
gases. O magnetismo seria outro exemplo importante de forças atuando à distância. Reações
químicas também poderiam ser explicadas por meio da atração e repulsão no nível
microscópico. Ao final do séc. XVIII, essa concepção tornar-se-ia o paradigma dominante
(especialmente para o grupo que trabalhava em torno de Laplace), no que às vezes é chamado
a visão “astronômica” da natureza: partículas imponderáveis (sem peso) sujeitas a forças de
atração e repulsão.

2. Definições e Leis no Principia

O Livro I do Principia não falou em gravitação, mas apresentou os princípios gerais


da mecânica, com definições básicas e as suas três leis. Com estas leis e a noção de força
centrípeta (força central), Newton derivou as três leis de Kepler. No Livro II, considerou
sistemas com fluidos, e criticou a concepção cartesiana de vórtices para o sistema solar. No
Livro III, aplicou sua teoria para a descrição detalhada do sistema solar, mostrando que a lei
da gravitação é a mesma para as luas de Júpiter, para os planetas em torno do Sol e para um
corpo caindo na superfície da Terra. Enunciou então a lei da gravitação universal.
É interessante enfocarmos os conceitos fundamentais apresentados por Newtoni16,
buscando entender se esses fundamentos são extraídos da observação ou formulados
teoricamente.
Seguindo o método axiomático de Euclides, como era costume no séc. XVII, Newton
parte de oito definições. A primeira é do conceito de massa, que chamava “quantidade de
matéria”, e define como o produto da densidade e do volume. Tal definição passou a ser
considerada problemática, já que ele não define o que seria “densidade”. Com o
desenvolvimento do texto, certas propriedades de “massa” deixaram claro que ela se distingue
da noção de “peso”, conceitos esses que antes de Newton não eram distinguidos claramente
(salvo em Kepler).i17
A segunda definição é de “quantidade de movimento”, hoje em dia às vezes chamada
de “momento linear”, que seria o produto da massa e da velocidade. As definições 3, 4 e 5
apresentam uma lista de três tipos de “força”. O que chama de “força inata da matéria” (vis
insita) é o que chamamos de inércia, uma tendência do corpo de resistir à ação de forças
externas, e de permanecer em seu “estado”, seja ele de repouso ou movimento retilíneo
uniforme. A “força imprimida é uma ação exercida sobre um corpo para modificar seu
estado”. É o nosso conceito atual de força, e é exemplificado pela percussão ou pela pressão
(como era costume na filosofia mecânica) e também pela força centrípeta (o que era uma
novidade). A força centrípeta, descrita na sexta definição, é aquela dirigida para um ponto, e
exemplificada pela gravidade (atuando sobre projéteis e sobre a Lua), pelo magnetismo, pela

i16
Trechos relevantes de Newton se encontram na excelente coletânea de COHEN & WESTFALL (2002), op. cit.
(nota 30), pp. 152-7, 278-91.
i17
Ver JAMMER, M. (1964), Concepts of mass in classical and modern physics, Harper & Row, Nova Iorque.

i 16 .
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. iIII: O Conceito de “Força” em Newton

força dos planetas (neste momento ainda não identificado com a gravidade) e pela força de
uma funda (ou seja, a força elástica ou a tensão em uma corda).
Nas definições seguintes, caracteriza três tipos de “quantidades” de uma força
centrípeta. A primeira é a “quantidade absoluta”, que no caso de uma força elétrica estaria
relacionada com a carga de um corpo. Ele não apresenta este exemplo, mas sim o da força
magnética, cuja “carga” estaria relacionada ao tamanho do imã e à sua intensidade. No caso
de uma força gravitacional, a quantidade absoluta seria a massa do corpo que gera a força (o
que poderíamos chamar a “carga gravitacional”).
A “quantidade aceleradora” de uma força centrípeta seria simplesmente sua
aceleração, a “velocidade que ela gera em um determinado tempo”. Na superfície da Terra, a
quantidade aceleradora é igual para dois corpos, “retirando ou descontando a resistência do
ar”. Já em montanhas elevadas, ela é menor.
Na definição 8, apresenta a “força motriz”, que equivale à nossa noção atual de força,
e é exemplificado pelo peso. O enunciado exprime claramente a noção de uma força contínua,
que em um “determinado intervalo de tempo” gera um movimento, ou seja, gera uma variação
na quantidade de movimento. Esta definição se aproxima bem da nossa concepção atual da
expressão F = ma, ao contrário da 2a lei, como veremos a seguir.
Newton pôde assim afirmar (p. 282) que “a força de aceleração está para a força
motriz assim como está a celeridade para o movimento”, ou seja, a/F = v/p, já que a
quantidade de movimento é p = mv e a força motriz é F = ma.
No escólio que se segue, diz que não irá definir tempo, espaço, lugar e movimento,
pois esses conceitos “são bem conhecidos de todos”. Com referência ao tempo, distingue entre
o tempo absoluto, real, matemático, que “flui uniformemente, sem relação com qualquer coisa
externa”, e o tempo relativo, que seria “uma medida sensível e externa”. Analogamente,
haveria o espaço absoluto, sem relação com coisas externas, e o espaço relativo, que seria
uma medida do espaço absoluto. Analogamente, haveria um “lugar” (volume) absoluto e um
relativo, e também um movimento absoluto e um movimento relativo. No Cap. V discutimos
mais a fundo esta distinção.
Mais adiante no Livro 1, Newton apresenta suas famosas três leis. A 1a lei é o
princípio de inércia, que afirma que um corpo permanece em seu estado de movimento
uniforme (velocidade constante) “a menos que seja compelido a modificar esse estado por
forças imprimidas sobre ele”.
A 2a lei afirma que “a variação do movimento é proporcional à força motriz
imprimida, e ocorre na direção da linha reta em que essa força é imprimida”. Por
“movimento” entende-se a quantidade de movimento p = mv (introduzimos o negrito para
designar grandezas vetoriais). A interpretação mais natural para o leitor moderno é supor que
Newton está afirmando que a força motriz é a derivada temporal do momento linear, ou seja,
F = d/dt (mv), que seria equivalente a F = ma.
Dijksterhuis (1986, pp. 470-4), porém, observa que a noção de força usada por
Newton em seus cálculos é de uma força impulsiva I, como em um choque entre corpos, que
resulta em uma variação finita de momento: I = ∆(mv). Para sustentar esta interpretação, o
historiador holandês refere-se ao Corolário 1 que se segue às leis, cujo enunciado é o
seguinte:
“Um corpo que sofre a ação de duas forças simultâneas descreve a diagonal de um
paralelogramo no mesmo tempo em que descreveria os lados do paralelogramo por essas
forças, separadamente” (ver Fig. iIII.1).

i 17 .
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. iIII: O Conceito de “Força” em Newton

Figura iIII.1: Paralelogramo descrevendo os


movimentos resultantes de forças impulsivas
exercidas em A.

Newton salienta que o movimento de A para B, etc., é uniforme, de forma que está
claro, neste caso, que a força exercida em A é impulsiva. A 2a lei garante que as duas forças
agindo em A agem de maneira independente, resultando no movimento de A para D. Este é
um bom exemplo de uma soma linear de causas.
É verdade que Newton parecia ter a noção de uma força que age de maneira contínua,
como exprimiu em sua Definição 8 (e também em seu Corolário 2, que não mencionamos),
mas a utilização da 2a lei em seus cálculos envolve sempre uma força impulsiva. Quem
consolidou a concepção moderna de F = ma, para forças de todos os tipos, foi Leonhard Euler
(1707-83), em 1750i18.
A 3ª lei de Newton é a lei de ação e reação: “para cada ação existe sempre uma reação
igual e contrária”. Se um corpo A exerce uma força FAB sobre um corpo B, então
necessariamente haverá uma força –FAB sendo exercida em A.
O Corolário 3 mostra como o princípio de conservação da quantidade de movimento
segue das 2a e 3a leis. O Corolário 4 mostra que o “centro de gravidade” de corpos
interagentes permanece em seu estado de movimento inercial.

3. A Natureza da Força

Qual é a natureza da força gravitacional e das forças em geral? Haveria por trás da
força gravitacional uma vera causa, um processo real que resulta nos movimentos
observados? Ou seria o conceito de força apenas uma construção matemática obtida a partir
dos movimentos observados?i19 Newton oscila entre essas duas concepções.
Em seu famoso “Escólio Geral”, escrito em 1713, na 2a edição do Principia, Newton
afirma (in COHEN & WESTFALL, 2002, pp. 154-5):

Até hoje, entretanto, não pude descobrir a causa dessas propriedades da gravidade dos
fenômenos, e não invento hipóteses; pois o que quer que não seja deduzido dos
fenômenos deve ser chamado de hipótese, e as hipóteses, sejam elas metafísicas ou
físicas, de qualidades ocultas ou mecânicas, não têm lugar na filosofia experimental.

Para entender o que Newton quis dizer com isso, é preciso distinguir duas acepções do
termo “hipótese”. (i) No sentido mais usual hoje em dia, uma hipótese é qualquer tese que
conjeturamos sem que ela ainda tenha sido submetida a teste. (ii) No sentido usado por
Newton, é uma conjectura a respeito da natureza não-observável que estaria por trás dos
fenômenos observáveis.

i18
TRUESDELL, C. ([1960] 1968), “A program toward rediscovering the rational mechanics of the age of reason”,
in Essays in the history of mechanics, Springer, Berlim, pp. 84-137. Ver pp. 112-7.
i19
Essa maneira de apresentar a distinção é baseada na seguinte interessante bibliografia sobre os problemas
filosóficos da mecânica clássica: HESSE, MARY (1964), “Resource letter PhM-1 on philosophical foundations of
classical mechanics”, American Journal of Physics 32, 905-11.

i 18 .
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. iIII: O Conceito de “Força” em Newton

Na verdade, antes de escrever o Principia, Newton trabalhou em uma teoria


“mecanicista” da gravitação (ou seja, só com forças de contato, como em Descartes, ver seção
iII.6). Isso aparece em uma carta a Boyle em 1678, e reaparece na Questão 21 do Opticks.
Tendo fracassado em sua tentativa, declarou então que “não invento hipóteses” (hypotheses
non fingo), ou seja, que não há necessidade de estipular causas ou mecanismos ocultos, já que
a expressão matemática da lei de atração universal é suficiente para que se explique o
movimento dos corpos celestes. Tal atitude pode ser chamada “fenomenista”, em oposição ao
“realismo” da filosofia mecânica (ver Cap. II).

4. Realismo e Fenomenismo em Newton

Newton era realista ou fenomenista, com relação às forças gravitacionais?


A tradição mecanicista de Descartes e Huygens era realista (assim como o atomismo
grego), já que concebiam mecanismos envolvendo partículas invisíveis que dariam conta dos
fenômenos macroscópicos observados. Newton foi formado nesta tradição (recebendo
influências também do naturalismo animista, uma visão também realista), e assim ele tinha
uma atitude basicamente realista. Um exemplo claro de uma tese realista é sua defesa do
espaço absoluto, que veremos no próximo capítulo. Outro exemplo é sua tese de que a luz
consiste de partículas emitidas com diferentes velocidades.
No entanto, ao anunciar que não se preocuparia em inventar hipóteses a respeito das
causas da força gravitacional, adotou uma postura fenomenista. Seria esta uma postura
descritivista ou instrumentalista? Não se costuma chamar sua atitude de “descritivista”
porque ele não tinha preocupação em reduzir o significado de enunciados teóricos a
enunciados de observação, como Mach faria mais tarde. Por outro lado, ele não seria um
“instrumentalista” no sentido forte da tradição astronômica, conforme expresso no prefácio de
Osiander, que mencionamos na seção anterior.
Uma solução é dizer que adotou um “instrumentalismo metodológico”, ou seja, já que
não conseguiu imaginar um mecanismo para a gravitação, absteve-se de postular uma
hipótese, não por um princípio filosófico, mas apenas pelas circunstâncias do problema.
No entanto, a partir do séc. XIX, sua afirmação seria interpretada por muitos como a
afirmação de que a Física não precisa se preocupar com mecanismos ocultos, que basta
conhecer o estado inicial e as condições de contorno observáveis, para daí fazer previsões
utilizando as leis de movimento da Física. No séc. XIX, o trabalho que lançaria esse projeto
anti-realista seria a Teoria analítica do calor (1822), de Joseph Fourier, que descrevia
situações de equilíbrio e condução térmica de maneira matemática, sem se comprometer com
a natureza última do calor, com o debate de se o calor era uma forma de movimento de
partículas ou uma substância, um fluido sem peso (“calórico”). Este trabalho foi uma das
fontes de inspiração para o positivismo do séc. XIX, que se inicia com Auguste Comte
(Kolakowski, porém, cita Hume como o primeiro positivista completo).
Apesar de sua atitude metodologicamente instrumentalista com relação às causas da
força gravitacional, Newton considerava que as forças existiam de fato, ou seja, era um
realista com relação à entidade “força”. No séc. XIX, Mach desenvolveria um positivismo
radical no qual o próprio conceito de força seria visto como uma mera construção mental, um
termo teórico (não observável), que buscaria definir em termos de grandezas observáveis,
como posições e acelerações (ver seção –V.2).
Para finalizar, notamos que a distinção entre realismo e fenomenismo leva a uma
distinção entre dois tipos de teorias científicas (seguindo nomenclatura de Rankine, 1855,
citado por Nagel, 1961). Teorias hipotéticas (transcendentes, microscópicas) enunciam
relações entre entidades hipotéticas que não são observáveis, como os mecanismos ocultos da

i 19 .
FLF0472 Filosofia da Física (USP - 2013) Cap. iIII: O Conceito de “Força” em Newton

filosofia mecânica ou os átomos da teoria cinética dos gases. Já as teorias abstrativas


(fenomenológicas, macroscópicas) formulam apenas relações entre propriedades observáveis,
como foi feito por Fourier, em sua teoria do calor, e pela termodinâmica. A afirmação de
Newton de que não inventaria hipóteses a respeito da natureza da lei da gravitação é própria
de uma teoria abstrativa.

5. Há Juízos Sintéticos A Priori?

Será que apenas através do raciocínio (antes da observação) a gente consegue chegar a
alguma verdade sobre o mundo real? Vimos que Descartes considerou que sim (seção –II.5):
partiu de princípios a priori, atingíveis pela razão pura (sem experiência ou observação), de
que o “eu” existe, de que Deus existe, de que Ele é perfeito e invariável, e teria deduzido a lei
de conservação da quantidade do movimento. Como esta lei descreve o movimento dos
corpos do mundo, diz-se que é um enunciado sintético ou factual.
Os empiristas britânicos rejeitaram essa pretensão dos metafísicos (como Descartes e
Leibniz) de que se pudesse conhecer o mundo apenas através da razão, sem observação.
David Hume (1711-76) foi o mais importante crítico desta concepção, salientando que
existem “verdades analíticas a priori”, mas não sintéticas a priori. Uma verdade analítica é ou
uma verdade lógica, como ‘Dentro de uma hora choverá aqui ou não choverá aqui’, ou uma
verdade por definição, como ‘Nenhum casado é solteiro’. A negação de uma verdade analítica
é uma contradição lógica, mas a negação de uma verdade sintética é uma possibilidade lógica
(por exemplo, que a grandeza m·e–v se conserva, ao invés de mv).
Em suma, para o empirismo não há verdades sintéticas a priori. No entanto,
influenciado por Hume, o alemão Immanuel Kant (1724-1804) buscou fazer uma síntese do
racionalismo dos metafísicos e do empirismo britânico (que ganhara adeptos na França),
salientando que o nosso conhecimento do mundo envolve uma construção mental, e que a
estrutura comum a tudo o que observamos (como o espaço euclidiano, a relação de
causalidade, etc.) é algo que nosso intelecto constrói, e não algo que possamos dizer que
existe na realidade. Para Kant, a geometria euclidiana exprime como o mundo é de fato, mas
tal geometria pode ser conhecida de maneira a priori! Assim, para Kant, haveria verdades
sintéticas a priori. A diferença com Descartes é que tais verdades não se refeririam a algo “lá
fora”, no mundo real, pois para Kant tal mundo das coisas-em-si é inatingível pela razão pura,
pela a ciência. Para o filósofo de Königsberg, as verdades mais gerais de nosso conhecimento
exprimem a maneira como nós (ou qualquer ser inteligente que tenha experiência do mundo)
inevitavelmente organizamos nossa experiência. E estas verdades podem, para Kant, serem
conhecidas de maneira a priori.
No final de sua vida, Kant procurou mostrar que as próprias três leis da mecânica
newtoniana são sintéticas a priori, ou seja, deriváveis teoricamente, sem necessidade de
observar o mundo. Esse projeto deixa claro a certeza que se tinha da veracidade da mecânica
clássica, a noção de que a ciência atinge verdades definitivas.
No séc. XX, o positivismo lógico herdou a concepção empirista de que não há verdades
sintéticas a priori, mas a partir da década de 1950, críticos como Quine argumentaram que a
própria distinção entre enunciados analíticos e sintéticos é mal formulada.
Hoje em dia, a questão se coloca em um contexto “naturalizado”, ou seja, levando em
conta que nossa mente é fruto de um cérebro que evoluiu biologicamente, de maneira a se
adaptar de forma muito fina com o ambiente. Será que o fato de termos evoluído por seleção
natural, dentro de um mundo físico-químico-biológico, permite que possamos conhecer
verdades a respeito de nós mesmos e do mundo (do qual fazemos parte) sem termos que
observar o mundo exterior?

i 20 .
Filosofia da Física Clássica
Cap. iIV

Princípios de Mínima Ação


Questão: Qual é o lugar das causas finais na física (e na ciência)?

1. Paradigmas e Programas de Pesquisa

Os princípios da mecânica de Newton, e sua teoria gravitacional, foram aos poucos


sendo aceitos pela grande maioria dos físicos e passou a constituir o que Thomas Kuhn
chamou de paradigma. Um paradigma – ou “matriz disciplinar”, como Kuhn passaria a
nomeá-lo – é constituído não só das leis gerais da teoria, mas também de estratégias
heurísticas (ou seja, de técnicas de resolução de problemas), métodos de justificação,
“exemplares” (ou seja, modelos ou exercícios prototípicos, ensinados na formação do
cientista), valores cognitivos (ou seja, quais as características desejáveis de uma boa teoria
científica), uma visão geral do mundo (incluindo teses metafísicas), o significado dos termos
linguísticos, e mesmo conhecimento tácito (aquele que não conseguimos exprimir
linguisticamente).
Dentro de um paradigma, desenvolve-se uma ciência “normal” de resolução de
charadas, sem que haja, segundo Kuhn, uma busca por novos princípios. Ele estudou como
um paradigma é substituído por outro – por exemplo, como a física de Newton foi substituída
pelas teorias da relatividade –, ao que ele denominou revolução científica. Esta seria uma
transição entre duas maneiras diferentes de ver o mundo; além disso, como os próprios
critérios do que seria uma boa teoria científica mudariam de paradigma para paradigma,
cientistas de matrizes disciplinares diferentes não teriam uma medida comum para avaliar
qual das teorias é melhor. Isso resultaria em uma “incomensurabilidade” entre paradigmas
diferentes (Kuhn, Feyerabend). O fato de que boa parte dos cientistas da velha geração não
entendessem o novo paradigma seria resolvido com a morte deles (o chamado “princípio de
Planck” da sociologia da ciência). No entanto, muitos filósofos consideram que há
procedimentos práticos para contornar as dificuldades de tradução entre campos distintos,
como o desenvolvimento de uma linguagem simplificada, compreensível para ambos os
lados. A transição entre paradigmas, segundo Kuhn, seria precedida por uma “crise”, em que
inúmeras “anomalias” (isto é, discrepâncias entre fatos observados e previsões teóricas) não
seriam resolvidas pelo paradigma anterior.i20
A “metateoria” de Kuhn (ou seja, sua teoria de como teorias científicas se
transformam) não deu ênfase adequada ao fato de que, mesmo em ciências maduras,
paradigmas diferentes podem coexistir e competir. Este aspecto foi levado em conta pelo
filósofo húngaro Imre Lakatosi21, em sua metodologia dos programas de pesquisa científica.
Para ele, a unidade do desenvolvimento científico não seria uma teoria científica isolada, mas
sim uma sequência de teorias, formando um programa de pesquisa. As teorias que se
sucedem em um programa manteriam, sem modificação, um conjunto de teses centrais que
Lakatos chamou de “núcleo duro”. Sempre que alguma nova previsão teórica é falseada pela
experiência, modificações são introduzidas em teses periféricas, que constituem o “cinto de

i20
KUHN, T. (2001), op. cit (nota 2). FEYERABEND, P. (1977), Contra o método, Francisco Alves, São Paulo
(orig. 1975). A proposta de uma linguagem simplificada é apresentada por GALISON, P. (1997), Image and logic:
a material culture of microphysics, U. Chicago Press, cap. 9.
i21
LAKATOS, I. (1979), “O Falseamento e a Metodologia dos Programas de Pesquisa Científica”, in LAKATOS, I.
& MUSGRAVE, A. (orgs.), A Crítica e o Desenvolvimento do Conhecimento, Cultrix, São Paulo, pp. 109-243
(orig. 1970).

i21
FLF0472 Filosofia da Física (USP-2013) Cap. iIV: Princípios de Mínima Ação

proteção” do núcleo. A maneira de empreender esses ajustes ao cinto de proteção, e de fazer


novas previsões, é ditada pela “heurística” do programa, que consiste do conjunto de métodos,
estratégias de trabalho e exemplos prototípicos, visando a resolução de problemas. Um
programa de pesquisa pode ser progressivo, caso em que é racional para o cientista continuar
trabalhando nele. Para ser progressivo, segundo Lakatos, o programa tem que fazer novas
previsões, mas essas previsões não precisam ser sempre corroboradas (confirmadas) pela
experiência – basta que o sejam apenas de vez em quando, de maneira “intermitente”. No
calor da hora, nunca podemos ter certeza que um programa de pesquisa foi refutado; só
podemos dizer que houve um “experimento crucial” muito tempo depois: a racionalidade
científica não é instantânea.
Larry Laudan levou adiante a noção de programa de pesquisa, mas salientou que teses
do núcleo duro podem ser abandonadas sem que se abandone a tradição do programa. Preferiu
o termo “tradição de pesquisa”, que envolve uma seqüência de teorias que se assemelham e se
sucedem, de tal forma que os cientistas participantes tenham um compromisso com pelo
menos uma parte das teses centrais de um subconjunto das teorias anteriores de sua tradição.
Um exemplo seriam as tradições de pesquisa sobre a natureza da luz: os programas
corpuscular e o ondulatório competiram desde a época de Huygens e Newton até meados do
séc. XIX, quando o ondulatório se viu vencedor, mas depois, com a física quântica, houve
uma espécie de síntese entre os dois.
A relação multifacetada entre teoria, métodos e valores foi analisada por Laudan em
seu “modelo reticulado” de racionalidade científica. Segundo esta abordagem, cada um desses
três aspectos da pesquisa científica pode afetar a evolução histórica do outro, dentro de uma
tradição de pesquisa.i22

2. Programas de Pesquisa Rivais na Mecânica Clássica

Em 1687, Isaac Newton formulou a abordagem à mecânica baseado em suas três leis
(inércia, força e ação & reação) e, supondo sua lei da gravitação universal, a aplicou com
muito sucesso para a descrição dos movimentos dos planetas do sistema solar.
A partir dessa mesma época, e culminando com seu Specimen dynamicum (1695),
Gottfried Leibniz estava definido a “força viva” (energia cinética, mv2) e a “força morta”
(energia potencial, na queda livre proporcional à altura da queda). Em processos mecânicos
em que se despreza a resistência do meio e não há obstáculos inelásticos, como um pêndulo,
haveria uma conservação da soma das forças viva e morta (esta noção já fora enunciada por
Huygens, em 1673). Num choque inelástico, vislumbrou que a força viva se transforma em
uma força morta ligada à deformação dos corpos.
Leibniz argumentou que o princípio de conservação de quantidade de movimento, de
Descartes, era errôneo. Depois da morte de Leibniz, seguiu-se um longo debate a respeito da
sua teoria das forças vivas. Em 1728, Jean-Jacques de Mairan corrigiu o enunciado do
princípio cartesiano, levando em conta as direções das velocidades (ou seja, o caráter vetorial
da velocidade). A aceitação geral do princípio de força viva só viria a partir de 1743, com o
Traité de Dynamique do francês Jean d’Alembert, mas já antes disso os suiços Johann

i22
LAUDAN, L. (1977), Progress and its Problems, Berkeley U. Press; em português: Progresso e seus
Problemas, trad. R. Leal Ferreira, UNESP, São Paulo, 2011. O modelo reticulado está exposto em: LAUDAN, L.
(1984), Science and Values, U. California Press, Berkeley.

i 22 .
FLF0472 Filosofia da Física (USP-2013) Cap. iIV: Princípios de Mínima Ação

Bernoulli e seu filho Daniel estavam resolvendo diversos problemas de mecânica utilizando
os dois princípios de conservação.i23
Quanto à abordagem newtoniana, sua sistematização foi empreendida pelo grande
matemático suiço Leonhard Euler, a partir de 1726. Em 1736, com sua Mechanica, introduz
massas pontuais, acelerações contínuas e considerações vetoriais, demonstrando de maneira
rigorosa vários resultados e resolvendo diversos problemas.
Configurava-se, a esta altura, o ramo da matemática aplicada conhecido como
mecânica racional, vista como uma geometria de corpos em movimento. Posteriormente,
discutir-se-ia se as leis da mecânica seriam necessárias ou “contingentes” (ou seja, não-
necessárias). Euler e d’Alembert defenderiam sua necessidade, ao passo que Lazare Carnot
(1783) defenderia seu caráter empírico (portanto contingente).
Paralelamente a essas linhas de pesquisa, há o desenvolvimento da dinâmica dos
corpos rígidos. Em seu Horologium oscillatorium (1673), Christiaan Huygens havia mostrado
como calcular o “centro de oscilação” de um pêndulo físico, ou seja, o pêndulo simples com o
mesmo período de oscilação. Houve muita discussão sobre esse trabalho, o que levou Jakob
Bernoulli, irmão mais velho de Johann, a publicar em 1703 um trabalho em que refaz a
demonstração de Huygens a partir das propriedades da alavanca. Isso seria uma antecipação
do princípio de trabalho virtual, de d’Alembert.
Jakob Bernoulli também inaugurou a teoria dos corpos elásticos (1705). A teoria das
vibrações se inicia com Taylor (1713) e é desenvolvida por Euler, Johann e Daniel Bernoulli.
Este último desenvolve também a hidrodinâmica (1733-38).
O Traité de Dynamique (1743) de d’Alembert trata do problema dos corpos rígidos
sem utilizar o conceito de força newtoniano, mas sim o “princípio de trabalho virtual”, que é
uma lei de equilíbrio. Tal princípio está intimamente relacionado com o de conservação de
força viva, mas d’Alembert toma o princípio de trabalho virtual como fundamental (não o de
força viva), juntamente com o princípio de inércia e o princípio de composição de
movimentos (que permite decompor um movimento de maneira conveniente para a aplicação
do trabalho virtual).
Para entender o princípio de trabalho virtual, pode-se consultar a exposição didática de
Feynmani24. Considere a situação de equilíbrio de dois corpos ligados, como o da Fig. iIV.1a.
Numa situação de reversibilidade (sem atrito), o equilíbrio pode ser estabelecido como na Fig.
iIV.1b. Nesta transição, o corpo B subiu uma altura de ∆hB = 3 m, ao passo que a descida de
A é expressa pela variação ∆hA = – 5 m. Assim, a massa desconhecida mA pode ser calculada
pela conservação de energia potencial gravitacional (a energia cinética não se altera), o que
corresponde a uma igualdade nos trabalhos realizados (a menos do sinal): mA·∆hA + mB·∆hB =
0. Numa situação mais complicada, como a da Fig. iIV.2, o valor do peso W que equilibra o
conjunto pode ser calculado considerando-se um pequeno deslocamento vertical neste peso, o
que alterará as alturas das outras massas para valores facilmente calculáveis. Aplica-se então a
conservação dos trabalhos e encontra-se o valor de W. Como esse trabalho não ocorre de fato,
mas é apenas um artifício para o cálculo, recebe o nome de “trabalho virtual”.

i23
Seguimos TRUESDELL (1968), op. cit. (nota i18), e DUGAS, R. (1988), A History of Mechanics, Dover, Nova
Iorque (orig. em francês, 1955), pp. 219-53.
i24
FEYNMAN, R.P.; LEIGHTON, R.B. & SANDS, M. (1963), The Feynman Lectures on Physics, vol. I, Addison-
Wesley, Reading, pp. 4-1 a 4-5. As Figs. iIV.1 e iVI.2 são retiradas desta referência. Tradução para o português:
Lições de Física de Feynman - Edição Definitiva, trad. A.V. Roque da Silva & K.R. Coutinho, Artmed
Bookman, Porto Alegre, 2008.

i 23 .
FLF0472 Filosofia da Física (USP-2013) Cap. iIV: Princípios de Mínima Ação

Figura iIV.1: Pesos em equilíbrio,


sem atrito, em um plano inclinado. Figura iIV.2: Situação de equilíbrio para
aplicação do princípio de trabalho virtual.

D’Alembert fez questão de não exprimir as “causas motivas” dos movimentos, ou seja,
as forças, que considerava “obscuras e metafísicas” (ver DUGAS, p. 247). A partir de seu
princípio, aplicado a sistemas com restrições entre as partes, derivou a conservação de força
viva. Esta estratégia foi posteriormente generalizada com sucesso pelo italiano de
descendência francesa Louis de Lagrange, em sua Mécanique Analytique (1788), onde
também não se fala em forças (no sentido de Newton e especialmente Euler).
Euler, por seu turno, foi bem sucedido na extensão dos princípios newtonianos para
diversos sistemas, inclusive corpos rígidos, que envolve um princípio adicional, a lei do
torque, derivada em 1776. Argumenta-se que este princípio é independente das três leis de
Newton, para casos gerais.
Delineam-se, assim, diferentes programas de pesquisa na mecânica no séc. XVIII, e
uma tendência de unificação entre eles. O programa cartesiano acabou sendo mesclado com o
leibniziano, e ambos foram incorporados ao programa d’alembertiano, que resultou na
mecânica lagrangiana. Paralelamente a isso, o programa de Newton e Euler acabou se
firmando como mais geral, aplicável em maior número de casos, fundamentado na noção de
força. A controvérsia a respeito do estatuto do conceito de força adentraria o séc. XIX, como
veremos no próximo capítulo, mas as abordagens rivais de Euler e d’Alembert acabaram
sendo vistas como duas abordagens diferentes para uma mesma ciência da mecânica.

3. Princípio de Mínima Ação

No esboço histórico da mecânica apresentada acima, deixamos de lado uma


abordagem adicional, inaugurada por Pierre de Maupertuis em 1744, o princípio de mínima
ação, e que seria posteriormente assimilado na mecânica analítica de Lagrange. Este princípio
é de interesse pois ele pretende implementar a tese filosófica de que a natureza age de maneira
a minimizar uma certa grandeza, como se ela tivesse um objetivo ou uma meta – um telos, em
grego. Nas palavras de Maupertuis: “a Natureza, na produção de seus efeitos, sempre age das
maneiras mais simples”.i25 Tal tese levou a uma grande discussão porque ela sugere que a
física pode ser construída de maneira “teleológica”, ou seja, envolvendo causas finais (que
estariam no futuro ou estariam indicando um estado no futuro), e não apenas causas eficientes
(que vêm sempre antes dos efeitos).
A física de Aristóteles é um exemplo de teleologia. Para ele, os corpos graves têm um
“lugar natural”, que é o centro do Universo, e por isso eles caem quando soltos (ver seção
iII.1). É como se eles tivessem uma meta (telos), um propósito. As explicações do naturalismo
animista (seção iII.3) também são teleológicas.
i25
DUGAS (1988), op. cit. (nota i23), pp. 254-75. Ver também YOURGRAU, W. & MANDELSTAM, S. (1968),
Variational Principles in Dynamics and Quantum Theory, Dover, Nova Iorque.

i 24 .
FLF0472 Filosofia da Física (USP-2013) Cap. iIV: Princípios de Mínima Ação

A idéia de que a natureza segue caminhos simples tem vários precursores, mas na
física o primeiro exemplo mais detalhado é dado por Héron de Alexandria, em 125 a.C. Ele
argumentou que na reflexão da luz por um espelho, o caminho percorrido é o de menor
comprimento. Considere a Fig. iIV.3, no qual a luz sai de uma vela em A, reflete no espelho
em C, e ruma para o olho em B. Este é o caminho mais curto saindo de A, refletindo no
espelho e incidindo em B. Para mostrar isso, considere um outro ponto de reflexão, D.
Ligando o ponto E, que é a imagem de A, aos pontos C e D, temos que os seguintes
segmentos têm o mesmo comprimento: AC = EC, e AD = ED. Ora, mas está claro que a linha
reta ECB é mais curta do que o caminho EDB (desigualdade do triângulo). Portanto, o
caminho ACB é mais curto do que qualquer outro caminho ADB.
Em 1662, Pierre de Fermat adaptou a estratégia de Héron para o caso da refração da
luz, só que agora considerando que a luz toma o caminho que leva menos tempo. Ele queria
mostrar que a fórmula da refração (lei de Snell) derivada por Descartes era falsa, e para isso
supôs que a luz se propaga com uma velocidade menor em meios mais densos (o que é
verdade, mas ia contra ao que achavam Descartes e Newton). Ao fazer suas contas, descobriu
que o caminho de menor tempo era justamente aquele que satisfazia a lei de Snell-Descartes!
Obteve assim uma “lei de mínimo” para a propagação da luz, mas seu resultado só seria aceito
após a metade do séc. XIX.

Figura iIV.3. Diagrama ilustrando a


demonstração de Héron de que a luz, na
reflexão, percorre o caminho de menor
distância.

Em 1744, Maupertuis buscou corrigir o trabalho de Fermat, e chegou à conclusão que


o que seria minimizado na propagação da luz não seria o tempo, mas a ação S, que é o
produto da distância r percorrida e do momento linear mv: S = ∫ m v(r) dr . Já em 1740
Maupertuis havia usado um princípio de máximo ou de mínimo para uma situação de
equilíbrio
Em 1747, mostrou que é possível aplicar este resultado para o choque de dois corpos,
quer no caso de colisões elásticas quanto inelásticas, o que tornaria o princípio mais geral do
que a conservação de força viva (que só valeria no caso de choques elásticos). A partir daí,
generalizou o princípio de mínima ação para toda a mecânica: “Quando alguma mudança
ocorre na natureza, a quantidade de ação necessária para essa mudança é a menor possível”
(DUGAS, p. 265). Maupertuis via em seu princípio uma expressão da perfeição de Deus, que
agiria por meio de leis simples e com um gasto mínimo de ação.
Em 1751, o holandês Samuel Koenig apresentou uma carta em que Leibniz teria
anunciado em 1707 que “nas variações dos movimentos, [a ação] usualmente se torna mínima
ou máxima”. Ele usou o termo “ação”, definindo-o também como o produto do tempo e da
força viva (energia cinética). Iniciou-se então uma grande polêmica sobre a prioridade e os
méritos de Maupertuis, mas a tal carta de Leibniz nunca foi encontrada (DUGAS, pp. 270-3).
Independentemente de Maupertuis, seu amigo Euler publicou em 1744 uma versão
mais particular, porém matematicamente mais precisa, do princípio de mínima ação. Segundo
seu teorema, quando uma partícula viaja entre dois pontos fixos, ela toma o caminho para o
qual ∫ v(r) dr é mínimo. Seu resultado é baseado no cálculo de variações, e na verdade o que

i 25 .
FLF0472 Filosofia da Física (USP-2013) Cap. iIV: Princípios de Mínima Ação

ele demonstra é que a integral da ação é um mínimo, um máximo ou mesmo um ponto


intermediário de derivada nula (ponto de sela).i26 A rigor, então, o princípio de Euler é um
enunciado relativo às trajetórias “virtuais” (que não satisfazem as leis de Newton) que são
vizinhas à trajetória real da partícula. “A diferença entre as integrais ∫ v dr tomadas ao longo
da trajetória real e dos caminhos virtuais vizinhos, entre os dois pontos, é uma grandeza
infinitesimal de segunda ordem; os caminhos virtuais considerados são aqueles com
velocidades que resultem na mesma energia que aquela suposta para a partícula” (YOURGRAU
& MANDELSTAM, p. 25).
O princípio variacional foi derivado de maneira mais geral por Lagrange, em 1760,
para n partículas, mostrando que as leis de Newton são equivalentes ao princípio de mínima
ação em conjunção com a lei de conservação de energia. A conservação de energia entra ao se
considerarem caminhos virtuais de mesma energia.
Com o princípio de trabalhos virtuais, Lagrange abriu caminho para sua Mécanique
Analytique (1788), que forneceu um método prático para calcular os movimentos de corpos
rígidos sujeitos a vínculos, problema cuja resolução pelos métodos de Newton e Euler em
geral se torna onerosa. Ele introduziu coordenadas generalizadas e obteve equações cuja
forma é invariante ante troca de coordenadas. Definindo a “lagrangiana” como a diferença
entre a energia cinética T e potencial V, escrita em função das coordenadas generalizadas qi e
q& := dqi/dt, sua equação é:
d  ∂L  ∂L
  − = 0 .
dt  ∂q& i  ∂qi

As formulações do princípio variacional de Euler e Lagrange estão restringidas a


caminhos virtuais de mesma energia. Essa restrição foi removida em 1834 pelo irlandês
William Hamilton, que considerou, porém, caminhos virtuais que terminam no mesmo ponto
e no mesmo tempo. Chegou assim ao chamado “princípio de Hamilton”: δ ∫ L dt = 0. “Um
sistema muda de uma configuração para outra de tal maneira que a variação da integral ∫ Ldt
entre o caminho real e um vizinho, terminando no mesmo ponto do espaço e do tempo, é
nula” (YOURGRAU & MANDELSTAM, p. 47). A partir deste princípio variacional, obtêm-se as
equações de Lagrange.
Uma formulação em que o tempo é eliminando, resultando em uma “geometrização”
do princípio de extremo, foi feita pelo alemão Carl Jacobi em 1843. Anunciou então que “em
sua forma verdadeira [é difícil] atribuir uma causa metafísica a este princípio” (DUGAS, pp.
407-8).
Princípios variacionais foram usados na velha teoria quântica e na derivação da
equação de Schrödinger, da mecânica quântica, e nos trabalhos de Schwinger e Feynmani27 na
teoria quântica de campos relativísticos.

i26
Mesmo o oscilador harmônico tem como solução um “ponto de sela” da ação, e não um mínimo. Ver GRAY,
C.G. & TAYLOR, E.F. (2007), “When the action is not least”, American Journal of Physics 75, 434-58. Devo este
comentário a Wilson Hugo Freire, físico que publicou sobre o assunto.
i27
Uma discussão interessante sobre o princípio de Fermat é feito por FEYNMAN et al. (1962), op. cit. (nota i24),
pp. 26-7 a 26-8, em que ele apresenta de maneira didática sua visão conhecida como “soma sobre histórias”.
Vemos um pouco desta abordagem na seção VI.5.

i 26 .
FLF0472 Filosofia da Física (USP-2013) Cap. iIV: Princípios de Mínima Ação

4. Causas Finais na Física

O princípio de mínima ação foi visto, por Maupertuis e Euler, como um princípio
metafísico exprimindo a perfeição de Deus ou uma tendência da natureza de escolher
caminhos mais simples. Essa noção teleológica passou a ser atacada posteriormente, por
exemplo por d’Alembert (1758), que criticou “o princípio das causas finais” (DUGAS, p. 269),
e foi abandonada pela maioria dos físicos, que costuma não interpretar os princípios de
extremo de maneira teleológica.
Mesmo assim, a linguagem teleológica está presente em algumas explicações físicas
corriqueiras. Um sistema tende para o estado que minimiza sua energia, ou para um que
maximiza sua entropia. Explicações mecânicas buscam dar conta desses enunciados
teleológicos por meio apenas de causas eficientes, como será exemplificado mais à frente com
relação à entropia.
A questão da teleologia na biologia é bem mais controversa. Pode-se interpretar o
mecanismo da seleção natural como uma explicação causal-eficiente para evolução dos seres
vivos, mas autores como Ernst Mayr defendem que uma “teleonomia” estaria associada ao
código genético.
Na cosmologia, o “princípio antrópico” pode ser interpretado como uma tese finalista,
ao afirmar que o nosso Universo contém as condições ideais para o surgimento da vida. No
entanto, em sua versão mais fraca, tal princípio é perfeitamente consistente com a causação
eficiente.

i 27 .
Filosofia da Física Clássica
Cap. iV

Axiomatização da Mecânica Clássica


Questão: Por que e como axiomatizar as teorias físicas ?

1. Contexto da Descoberta e Contexto da Justificação

Ao se discutir a metodologia da ciência, é importante traçar uma distinção entre dois


contextos: o da descoberta e o da justificação.i28 A maneira como uma descoberta científica é
feita envolve diversos fatores, incluindo aspectos psicológicos, sociais e culturais. O químico
alemão August Kekulé (1865), por exemplo, chegou à idéia de que o benzeno é um anel de
átomos de carbono após ter sonhado com uma cobra mordendo o rabo. No entanto, ele não
incluiria esta informação ao escrever seu artigo para publicação. No contexto da justificação
de uma teoria, procura-se partir de bases firmes e deduzir conseqüências de maneira rigorosa
e de acordo com os cânones da metodologia científica. No contexto da descoberta, por outro
lado, os caminhos para se adquirir conhecimento são os mais variados.
Ao se discutir uma questão de filosofia da ciência, é preciso especificar em qual
contexto se está trabalhando. Por exemplo, qual a importância da indução na ciência? A
“indução por enumeração” consiste de se observar uma regularidade em um número finito de
casos, e daí generalizar para todos os casos, em uma “lei empírica”. No contexto da
descoberta, tal método é muitas vezes usado, especialmente nos estágios iniciais de uma área
científica. Os positivistas tendem a considerar que a indução também é uma maneira de
justificar a aceitação de uma lei empírica. No entanto, autores como Karl Popper discordam
que a indução possa servir de justificação, sem negar, porém, que ela possa ter um papel na
geração de hipóteses (contexto da descoberta). Para Popper, o método privilegiado para se
justificar uma teoria é o método hipotético-dedutivo, que consiste em formular uma hipótese e
deduzir suas conseqüências empíricas (observacionais): se houver concordância entre a
previsão e o que é de fato observado, a hipótese é “corroborada” (verificada); se não, ela é
“falseada” (ou seja, a hipótese ou alguma outra suposição usada na dedução deve ser
abandonada).
Neste capítulo, examinaremos as tentativas de fundamentar teorias científicas em
bases rigorosas, por meio de sua axiomatização. Tais tentativas estão claramente no contexto
da justificação. No cap. VII, estudamos o contexto da descoberta da teoria do
eletromagnetismo por Maxwell, onde as analogias desempenham papel importante.

2. Discussão dos Princípios Newtonianos no Séc. XIX

Em meados do séc. XIX, concomitantemente com a ascensão da Termodinâmica e do


princípio de conservação de energia, vários físicos começaram a questionar os fundamentos
da mecânica newtoniana. Na França, Barré de Saint-Vernant (1797-1886), em 1851, adotou
uma perspectiva atomista para fundar a mecânica apenas nas velocidades e acelerações entre
pontos, derivando definições de “massa” e “força”. Considerava que as forças eram “agências
de uma natureza oculta ou metafísica”, e não as relacionou com as causas eficientes dos

i28
Os termos “contexto da descoberta” e “contexto da justificação” foram cunhados por Hans Reichenbach
(1938), mas a distinção é mais antiga. Immanuel Kant (1781), por exemplo, se referia a “questões de fato” (quid
facti) e “questões de direito” (quid juris). John Herschel (1830) também é citado como um autor que distinguiu
claramente entre “como alcançamos conhecimento” e “a verificação das induções”.

i28
FLF0472 Filosofia da Física (USP-2013) Cap. iV: Axiomatização da Mecânica Clássica

movimentos.i29 Por contraste, outro francês, Frédéric Reech (1852), seguiu a abordagem de
Euler ao colocar a força como ponto de partida da mecânica. Comparou uma força a um fio
tensionado que estaria ligado à partícula sofrendo a ação da força. A força poderia ser
avaliada cortando-se o fio e observando o movimento subseqüente da partícula. Trabalhando
com diferenças de acelerações, buscou eliminar a descrição em termos de um referencial
privilegiado. Sua “escola do fio” foi levada adiante por Jules Andrade (1898).
Um quarto de século após essas primeiras formulações, em 1876, o alemão Gustav
Kirchhoff (1824-87) se propôs a construir a mecânica de maneira lógica, a partir das noções de
espaço, tempo e matéria, e derivando destas os conceitos de força e massa. Uma abordagem
semelhante foi publicada independentemente, em 1883, pelo austríaco Ernst Mach (de quem
falamos nas seções III.2 e IV.3), em seu livro A ciência da mecânica. Mach considerou que os
princípios da mecânica precisariam ser fundados na experiência, e não na especulação teórica:
seu livro seria “um trabalho de explicação crítica animado por um espírito anti-metafísico”.
Fez uso de um “princípio de simetria” para definir operacionalmente (por meio de
operações experimentais) o conceito de massa (inercial). Para isso, considerou que dois
corpos idênticos A e B comunicam acelerações iguais e contrárias, aA, aB, ao longo da linha
que os une (por exemplo, por meio de uma mola). Tomando A como tendo massa unitária
mA=1, a massa de B seria tal que mB·aB = –mA·aA. Eliminou assim o apelo de Newton à noção
intuitiva de “quantidade de matéria” (ver seção iIII.2), e declarou que “nesta concepção de
massa não há teoria”. Tendo assim definido “massa” em termos operacionais, pôde
caracterizar a 2a lei de Newton como sendo uma definiçãoi30 de força: F := ma , derivada a
partir de termos observacionais. Sua estratégia foi apoiada por positivistas como Karl Pearson
(1892).
Heinrich Hertz (1857-1894) também se dedicou ao problema, logo antes de sua morte
prematura, publicando Os princípios da mecânica, apresentados em uma nova forma (1894).
Seguindo seu professor Kirchhoff, buscou construir a Mecânica a partir dos conceitos de
tempo, espaço e massa. Comentou a abordagem tradicional, baseada nos conceitos de espaço,
massa, força e movimento, que estão ligadas às leis de Newton e ao princípio de d’Alembert
(seção iIV.2), argumentando que ela teria imprecisões lógicas. Uma dessas imprecisões seria
que a noção de força em geral é tomada como a causa do movimento, mas, no caso de forças
fictícias como a força centrífuga, ela surge como efeito do movimento. Criticou também a
profusão do uso do conceito de força, por exemplo na Mecânica Celeste, sem que isso
correspondesse a algo observável: só observamos as posições dos astros em diferentes
instantes (comparou o uso de forças ao uso de epiciclos na Astronomia antiga).
Parte então da abordagem de Kirchhoff, mas faz a seguinte constatação, característica de
uma atitude realista. “Se quisermos obter um quadro do mundo que é fechado em si mesmo, no
que tange a leis, devemos conjeturar a existência de outros seres invisíveis por trás das coisas
que vemos, e buscar os atores escondidos por detrás das barreiras de nossos sentidos”. Os
conceitos de força e de energia seriam idealizações desse tipo, mas Hertz preferiu postular a
existência de “variáveis ocultas” que nada mais seriam do que massas em movimento, que se
chocariam com os corpos visíveis de maneira a dar conta do que observamos. Teríamos assim
um retrato mecanicista, semelhante ao de Descartes ou Le Sage (seções iII.6 e 7). Hertz, porém,
não estava preocupado em fornecer modelos particulares para diferentes fenômenos, como a
gravitação, mas em formular uma descrição geral que fosse consistente com os princípios da
Mecânica Clássica. A lei fundamental da Mecânica seria uma lei de mínimo (seção iIV.3): para
sistemas isolados, o sistema segue a trajetória de curvatura mínima, com uma velocidade

i29
Nesta seção, seguimos DUGAS (1988), op. cit. (nota i23), pp. 436-51.
i30
Adotamos a convenção de “dois-pontos-igualdade”, adotada por alguns lógicos, para exprimir uma definição:
“:=”. Outras signos usados para “definição” são: “≡” ou “=df.”.

i 29 .
FLF0472 Filosofia da Física (USP-2013) Cap. iV: Axiomatização da Mecânica Clássica

constante. Tal lei se reduziria para as leis conhecidas da Mecânica, como o princípio de mínima
restrição de Gauss, que era uma formulação alternativa do princípio de d’Alembert.
O último autor que consideraremos neste resumo é o francês Henri Poincaré (1854-
1912), que em sua Ciência e hipótese (1902) levou adiante o projeto de mostrar em que
medida as teorias físicas envolvem convenções. Uma convenção seria uma tese, a respeito do
mundo, que poderia ser diferente, mas que é adotada porque permite a construção de uma
teoria econômica (simples) e eficiente em suas previsões. Nossa tendência é supor que o
princípio de inércia (1a lei de Newton), por exemplo, reflete um fato fundamental do mundo
ou espelha diretamente a uma realidade. No entanto, argumenta Poincaré, não é possível
verificar experimentalmente este princípio. Podemos tentar fazê-lo lançando um corpo em
uma região na qual não há forças resultantes, mas, neste caso, como sabemos que não há
forças atuando? Um critério é verificar se um corpo de prova não sofre acelerações, mas neste
caso estaríamos usando implicitamente o princípio de inércia para constatar que numa região
não há forças, de modo a testar o próprio princípio de inércia! Seria um círculo vicioso!i31
Poincaré considerava que vários outros princípios seriam convencionais: a
simultaneidade do tempo, o espaço absoluto, a suposição que o espaço seria euclidiano, a lei
de ação e reação, e o princípio de conservação de energia. (Em um capítulo posterior
examinaremos o argumento de Poincaré a respeito deste último princípio.) A 2a lei de Newton
seria uma convenção, mas mesmo assim Poincaré associava ao conceito de força um conteúdo
intuitivo (associado à noção de esforço), ao contrário do que fizera Kirchhoff. Considerava
assim que a abordagem de Kirchhoff era apenas uma convenção possível, assim como a
adotada pela “escola do fio” que mencionamos anteriormente. Quanto ao papel da
experimentação, considerava que ela poderia verificar a teoria física de maneira apenas
aproximada (dado que não existiria um sistema perfeitamente isolado); ou seja, as convenções
da física seriam parcialmente justificadas pela experimentação.

3. Críticas ao Método de Mach

Críticas à proposta de Mach começaram a surgir de maneira mais detalhada a partir do


trabalho de dois matemáticos ingleses, L.N.G. Filon e C.G. Pendse, na década de 1930. Filon
publicou em 1926 um estudo sobre as bases da mecânica racional em que tinha simpatia pela
abordagem de Mach. Em torno de 1932, porém, passou a questionar a abordagem machiana
por razões semelhantes às consideradas por Poincaré (a quem não cita): nunca podemos ter
certeza que um corpo não está sob o efeito de uma força externa, nem que dois corpos
interagentes (segundo a receita de Mach) também não estejam. As três leis de Newton não
seriam leis experimentais, pois não podem ser provadas nem refutadas experimentalmente.
Filon concluiu que a única maneira correta de definir a massa de um corpo seria através de
seu peso, método este proposto pelo próprio Newton.i32
Em 1937, C.G. Pendsei33 mostrou que o método operacional de Mach, de observar as
acelerações entre dois corpos para inferir os valores das massas, falhava para muitos corpos.
Sem levar em conta a 3a lei de Newton, se as acelerações fossem medidas apenas uma vez, o

i31
Esta e outras discussões são tratadas em CHIBENI, S.S. (1999), “A fundamentação empírica das leis dinâmicas
de Newton”, Revista Brasileira de Ensino de Física 21, 1-13.
i32
FILON, L.N.G. (1938), “Mass and Force in Newtonian Mechanics”, Mathematical Gazette 22, 9-16.
i33
PENDSE, C.G. (1937), “A note on the definition and determination of mass in Newtonian physics”,
Philosophical Magazine 24, 1012-22. PENDSE, C.G. (1939), “A further note on the definition and determination
of mass in Newtonian mechanics”, Philosophical Magazine 27, 51-61. PENDSE, C.G. (1940), “On mass and force
in Newtonian mechanics”, Philosophical Magazine 29, 477-84.

i 30 .
FLF0472 Filosofia da Física (USP-2013) Cap. iV: Axiomatização da Mecânica Clássica

método falhava para mais do que 4 corpos, pois o número de incógnitas (forças entre pares de
partículas, mais as massas) tornava-se maior do que o número de equações. Mesmo levando
em conta a 3a lei de Newton, uma única observação de aceleração, para corpos não
coplanares, não consegue determinar as massas relativas, de maneira exata, para mais do que
5 corpos.
Pendse calculou também o que aconteceria se se pudesse medir as acelerações em
vários instantes diferentes. Inicialmente, concluiu que para acima de 7 corpos o método
falharia, mas em um artigo posterior concluiu que seria possível derivar as massas relativas
em alguns casos, com um número suficientemente grande de medições, mas não as forças!
O método de Mach funcionaria, naturalmente, se se pudesse pegar cada corpo
individualmente, e comparar sua aceleração com a de um corpo de referência, e pô-lo de volta
no sistema, supondo que sua massa não varia neste procedimento.
Na prática, é claro, tal procedimento não é necessário para corpos de nosso cotidiano,
pois confiamos em balanças. Para se determinar as massas dos planetas, não podemos retirar
os corpos para pesagem, mas o fato de o Sol ser muito mais massivo do que os planetas
facilita os cálculos a partir das acelerações. Já no caso de partículas elementares, as massas
são medidas por diversos procedimentos, muitos dos quais dependem da aceitação de uma
teoria física.
Concluindo esta seção, podemos dizer que métodos operacionais parecem viáveis na
física, mas na prática científica utilizam-se de bom grado métodos nos quais conceitos
teóricos são introduzidos de maneira primitiva.

4. Axiomatização de Teorias Matemáticas

Uma axiomatização consiste em uma formulação de uma teoria que se inspira na


sistematização que Euclides deu para a geometria (ver seção –III.3). Partem-se de axiomas,
demonstram-se teoremas e resolvem-se problemas de construção.
No séc. XIX, o quinto postulado de Euclides – que diz que dados uma reta e um ponto
fora dela, em um plano, então pelo ponto passa apenas uma paralela à reta – passou a ser
modificado, resultando nas geometrias não-euclidianas. Com isso, começou a ficar claro que o
importante em uma axiomatização na matemática não é nossa opinião sobre a veracidade dos
axiomas, mas a consistência interna do sistema axiomático. Essa concepção foi bastante
divulgada no começo do séc. XX pelo alemão David Hilbert, que sublinhou que uma
axiomatização deve deixar claro quais são as noções primitivas (não-definidas) do sistema.
No caso da Geometria Euclidiana, as noções de “ponto” e “reta” são primitivas: não devem
ser definidas a partir de outros conceitos e nem precisam satisfazer nossa intuição a seu
respeito. O significado dessas noções é parcialmente estabelecido pelos cinco axiomas de
Euclides. No entanto, diferentes “interpretações” podem satisfazer o sistema axiomático,
sendo chamadas de “modelos”. Por exemplo, o modelo representado pictoricamente na
Fig. iV.1 satisfaz o seguinte conjunto de axiomas, usados por Hilberti34:

A1: Para quaisquer duas retas, há no máximo um ponto pertencente às duas.


A2: Para quaisquer dois pontos, há exatamente uma reta que as contém.
A3: Em cada reta há pelo menos dois pontos.

A figura pode causar estranheza, porque a reta BDF não se parece com as outras.
Mesmo assim, representa um modelo do sistema de axiomas {A1,A2,A3}.
i34
Exemplo apresentado por VAN FRAASSEN, B. (2007), A Imagem Científica, trad. L.H.A. Dutra, Ed. Unesp/
Discurso, São Paulo, pp. 84-6 (orig. em inglês: 1980).

i 31 .
FLF0472 Filosofia da Física (USP-2013) Cap. iV: Axiomatização da Mecânica Clássica

Figura iV.1: Geometria dos sete pontos e sete retas, que é um modelo dos axiomas A1, A2 e A3.

5. Axiomatização Dedutivista da Mecânica Clássica

A formulação que Newton deu para a Mecânica pode ser considerada uma
“axiomatização informal”, pois partiu de algumas definições e das três leis fundamentais da
Mecânica, além da lei de atração gravitacional, e deduziu diversos teoremas. No entanto, a
sua axiomatização não satisfaz os critérios de rigor da lógica moderna, sendo por isso
considerada “informal”.
Em 1953, J.C.C. McKinsey, A.C. Sugar & Patrick Suppes publicaram uma
axiomatização da mecânica clássica de partículas que se propunha a cumprir os padrões de
rigor estipulados por Hilbert. Em especial, tomaram cuidado em deixar claro quais são as
noções primitivas da teoria mecânica. Escolheram não introduzir um axioma de
impenetrabilidade entre partículas, e pressupuseram também diversos resultados da
matemática clássica.
As noções primitivas introduzidas foram P, T, m, s e f. O que seria P? Não
diretamente uma entidade física, mas um conjunto! P e T são conjuntos, m uma função unária,
s uma função binária e f uma função ternária. A axiomatização de McKinsey et al. é uma
teoria matemática, baseada em conjuntos e em funções, que por sua vez são redutíveis a
conjuntos. Assim, Suppes cunhou o slogan que “axiomatizar uma teoria é definir um
predicado conjuntista”.i35 Essa abordagem não foi bem recebida pelos físicos, como pode ser
visto pelo comentário de Clifford Truesdell, em nota na primeira página do artigo de
McKinsey et al., que se inicia assim: “O comunicador está em completo desacordo com a
visão da mecânica clássica expressa neste artigo”.
Naturalmente, McKinsey et al. tinham em mente uma interpretação física para esses
conceitos matemáticos. P poderia ser interpretado como um conjunto de partículas p, mas
também poderia ser interpretado de maneira não física, como um conjunto de números, por
exemplo. T é interpretado como um conjunto de números reais que medem o tempo
transcorrido. A função m(p) interpreta-se fisicamente como a massa da partícula p, s(p,t) é seu
vetor posição num instante de tempo t, e f(p,t,i) é o vetor de força i atuando em p no instante t.
Apresentam então seis axiomas, de tal forma que o conjunto ordenado 〈P,T,m,s,f〉 define um
sistema de mecânica de partículas. Os axiomas P1 e P2 apenas estipulam que P não é vazio e
i35
MCKINSEY, J.C.C.; SUGAR, A.C. & SUPPES, P. (1953), “Axiomatic Foundations of Classical Particle
Mechanics”, Journal of Classical Mechanics and Analysis 2, 253-72. O slogan de Suppes aparece em um texto
não publicado de 1967, e é citado na revisão feita por SANT’ANNA, A.S. & GARCIA, C. (1998), “É Possível
Eliminar o Conceito de Força da Mecânica Clássica”, Revista Brasileira de Ensino de Física 20, 346-53, que
axiomatiza a mecânica de Hertz.

i 32 .
FLF0472 Filosofia da Física (USP-2013) Cap. iV: Axiomatização da Mecânica Clássica

que T é um intervalo de números reais. O terceiro axioma cinemático determina que o vetor
s(p,t) é duplamente diferenciável em t. O axioma P4 apenas estipula que m(p) é um número
real positivo, e P5 que a soma em i das forças f(p,t,i) converge em uma força resultante de
valor finito. O último dos três axiomas dinâmicos, P6, corresponde à 2a lei de Newton.
Notamos a importância que os autores atribuem à especificação matemática precisa dos
conceitos envolvidos.
A 1a lei de Newton é derivada de P3, P4 e P6, como o teorema de que se a força
resultante sobre um corpo é nula, o vetor velocidade é constante. Quanto à 3a lei de Newton
(ação e reação), McKinsey et al. preferem não impô-la como axioma, para permitir aplicações
em que ela não é usada, como no disparo de uma bala de canhão (em que a força de reação na
Terra é desprezada). Vemos assim uma característica pragmática de sua axiomatização,
próxima de um instrumentalismo (seção –II.3), pois na formulação dos axiomas não importa
tanto qual é a “verdade”, mas sim o quão prático é a aplicação do formalismo. De fato, no
início do artigo eles advertem:

Deve-se notar que a mecânica de partículas, como quase qualquer outra ciência em
forma dedutiva, envolve uma idealização do conhecimento empírico factual [actual
empirical knowledge] – e é assim melhor concebida como um instrumento para lidar
com o mundo [a tool for dealing with the world], do que como um retrato que o
representa. (MCKINSEY et al., 1953, p. 254.)

Apesar de não adotarem a 3a lei de Newton, provam um teorema segundo o qual qualquer
modelo de seu sistema axiomático pode ser inserido como parte de um modelo mais amplo
que satisfaz a 3a lei.
Um resultado bastante citado do trabalho de McKinsey et al. é a demonstração de que
m, s e f são noções primitivas independentes, sendo que P e T, por seu turno, poderiam ser
definidos em termos dos outros primitivos. Utilizam para isso um método lógico devido a
Alessandro Padoa (1900), que consiste essencialmente em fixar os valores dos outros
primitivos, e mostrar que o primitivo em questão pode assumir diferentes valores (ou seja, seu
valor não é fixado univocamente pelos valores dos outros primitivos). No caso da força,
mostram, em um exemplo simples, que as acelerações de um conjunto de corpos colineares
podem ser devidas a distintos conjuntos de forças (ver Fig. iV.2).
O exemplo é trivial porque os dois conjuntos de forças, α={ f 0}, β={ f 1, f 2}, fornecem
as mesmas forças resultantes em cada corpo. Isso revela a diferença entre a abordagem de
McKinsey et al. e os de Kirchhoff e Mach (seção iV.2). Kirchhoff define a força a partir da
massa e da aceleração. Assim, no exemplo da Fig. iV.2, as duas situações correspondem à
mesma força em cada partícula, que no caso é a força resultante. Na abordagem
fenomenalista de Kirchhoff, não faria sentido nesse exemplo distinguir os casos (α) e (β), a
não ser que houvesse alguma outra maneira empírica de distinguir essas situações. Já
McKinsey et al. partem do princípio que existem os dois conjuntos distintos de forças, e que
cada uma das forças indicadas é real, mesmo que empiricamente os conjuntos de forças sejam
indistinguíveis. Apesar de termos citado um parágrafo em que apresentam um discurso
instrumentalista, neste momento eles adotam uma postura mais realista que a de Kirchhoff,
com relação ao conceito de força.
Com relação a Mach, consideram plausível que se pegue cada partícula, e que cada
uma seja submetida (individualmente) ao procedimento operacional para se determinar sua
massa, em relação a uma massa de referência. No entanto, tal procedimento envolve um
cientista experimental, e McKinsey et al. não vêem como seria possível incorporar tal
cientista em um sistema clássico de mecânica de partículas!

i 33 .
FLF0472 Filosofia da Física (USP-2013) Cap. iV: Axiomatização da Mecânica Clássica

Figura iV.2: Exemplo de McKinsey et al. de dois conjuntos de forças


(indicadas por flechas) que geram as mesmas acelerações.

6. O Debate entre Axiomatizações Operacionais e Dedutivistas

Vimos até aqui duas estratégias para se fundar a mecânica clássica de partículas. Na
axiomatização informal de Newton, cada axioma pretende exprimir uma lei fundamental do
Universo, ou seja, pretende ter um importante conteúdo físico, mesmo que haja redundâncias
(a 1a lei é um caso particular da 2a). A maioria das revisões formuladas no séc. XIX (que
vimos na seção iV.2) envolviam a questão de se os postulados de Newton exprimiam
diretamente fatos observados na natureza, ou se eles envolviam conceitos teóricos (não
diretamente observáveis), como “força”. A tentativa de axiomatizar uma teoria física com
base em postulados próximos à observação pode ser chamada de abordagem empirista ou
operacional (ou mesmo “indutivista”) à axiomatização de teorias científicas.
Já a abordagem de McKinsey, Sugar & Suppes encara o conceito de força de maneira
realista (mesmo adotando um tom geral instrumentalista), aceitando que se possa definir esse
conceito de modo independente das observações. Tal abordagem pode ser chamada de
dedutivista ou realista.
Outros autores propuseram axiomatizações mais empiristas do que as de McKinsey et
al. Herbert Simon, pensador multifacetado, expoente da inteligência artificial e ganhador do
Prêmio Nobel de Economia, escreveu vários trabalhos formulando uma axiomatização de
sabor mais empiristai36. Ele contorna as dificuldades que o método de Mach enfrenta para
definir operacionalmente massa, ao incluir a lei da atração gravitacional como um axioma.
Dentre as conclusões que obteve, está a de que se se quiser definir força a partir da 2a lei de
Newton, então a lei da gravitação se torna uma lei empírica. Mas se, de maneira alternativa, se
quiser definir força a partir do axioma correspondente à lei da gravitação, então F=ma se

i36
SIMON, H.A. (1946), “The axioms of Newtonian mechanics”, Philosophical Magazine (series 7) 38, 888-905.
SIMON, H.A. (1954), “The axiomatization of classical mechanics”, Philosophy of Science 21, 340-3. SIMON, H.A.
(1970), “The axiomatization of physical theories”, Philosophy of Science 37, 16-26.

i 34 .
FLF0472 Filosofia da Física (USP-2013) Cap. iV: Axiomatização da Mecânica Clássica

torna uma lei empírica da Física. Ou seja, a questão de qual é a convenção (definição) e qual é
a lei empírica depende da perspectiva que se adota.
Um interessante balanço geral deste debate é fornecido pelo filósofo da física inglês
Jon Dorlingi37:

Este resultado [de Suppes e colegas] é normalmente tomado como mostrando que, ao
contrário das visões positivistas de Mach, massas e forças são termos teóricos que não
podem ser eliminados em favor de termos de observação. À primeira vista, essa
conclusão parece também fornecer um forte apoio para o hipotético-dedutivismo, contra
o indutivismo.
Porém, é difícil aceitar os resultados facilmente provados de Suppes da maneira em que
são vendidos filosoficamente. Por um lado (ao contrário do que a maioria dos filósofos
parece supor), os físicos matemáticos parecem, em geral, ter tido sucesso em eliminar
termos teóricos em favor de termos mais diretamente observáveis [...] (DORLING, 1977,
p. 55.)

Dorling cita as axiomatizações operacionais da Termodinâmica e da Mecânica


Quântica feitas por Robin Giles, e se detém numa axiomatização da Mecânica Clássica feita
por G.W. Mackey (1963), que fornece uma generalização do método de Mach para se
determinarem operacionalmente as massas. Conclui que o resultado de independência de
McKinsey et al. é decorrente da “escolha idiossincrática” de primitivos feita por eles, e que
seu resultado não é geral, não afetando a plausibilidade de axiomatizações operacionais ou
positivistas.

i37
DORLING, J. (1977), “The eliminability of masses and forces in Newtonian particle mechanics: Suppes
reconsidered”, British Journal for the Philosophy of Science 28, 55-7.

i 35 .
Textos Complementares
Movimento circular verdadeiro e absoluto
(1668-87)
Isaac Newton (1642-1727)
Dois trechos de Newton sobre o movimento circular:
(I) De Gravitatione et aequipondio fluidorum (Sobre a gravidade e o equilíbrio
dos fluidos), manuscrito publicado postumamente apenas em 1962, no
Unpublished scientific papers of Isaac Newton, editado por A.R. Hall &
M.B. Hall, Cambridge U. Press, pp. 89-121, seguido da tradução dos
editores, pp. 123-56 (o trecho abaixo está nas pp. 126-7). O texto foi
provavelmente escrito entre 1664 e 1668, e é uma crítica à mecânica de
Descartes. Outra tradução é apresentada por W.B. Allen, disponível na
internet (o trecho está nas pp. 5-6 deste). Trad. de Osvaldo Pessoa Jr.
(II) Trechos de: Principia – Princípios matemáticos de filosofia natural
(1687), Trad. de T. Ricci, L.G. Brunet, S.T. Gehring & M.H.C. Célia
(UFRGS), Edusp, São Paulo, 2008 (1ª edição: Edusp/Nova Stella, 1990), Sir Isaac Newton, em retrato pintado
Livro I: Definições – Escólio, pp. 48-51. por Sir Godfrey Kneller, 1702.

(I) De Gravitatione (1668):


Da mesma doutrina [de Descartes, nos Princípios de Filosofia, 1644], segue-se também que
Deus não pode gerar movimento em alguns corpos, mesmo pressionando-os com força máxima. Por
exemplo, se Deus exercesse a força máxima para causar a estrela celeste que se encontra na parte
mais distante da criação a revolver em torno da Terra (ou seja, em movimento diurno), mesmo assim,
Descartes diria que somente a Terra se moveria, não os céus (Parte III, § 38). Da mesma forma, se
Deus, com tremenda força, causasse que os céus girassem de leste para oeste ou, com uma força
pequena, girasse a Terra no sentido oposto. Mas alguém imaginaria que as partes da Terra buscariam
se afastar do seu centro por conta da força impressa somente nos céus? Ou não seria mais agradável à
razão que, quando uma força é impressa nos céus, estes buscassem retroceder do centro da revolução
assim causada, sendo assim os únicos corpos que se movem própria e absolutamente? E que quando
uma força impressa na Terra faz suas partes buscarem retroceder do centro da revolução assim
causada, por esta razão ela é o único corpo que se move própria e absolutamente? Nos dois casos, há
o mesmo movimento [relativo] de transferência dos corpos entre si. Portanto, o movimento físico e
absoluto deve ser definido por algo diferente desta transferência, e tal transferência é apenas externa.

(II) Principia (1687):


As causas pelas quais os movimentos verdadeiros e relativos são diferenciados, um do outro,
são as forças imprimidas sobre os corpos para gerar movimento. O movimento verdadeiro não é nem
gerado nem alterado, a não ser por alguma força imprimida sobre o corpo movido; mas o movimento
relativo pode ser gerado ou alterado sem qualquer força imprimida sobre o corpo. Pois é suficiente
apenas exercer alguma força sobre os outros corpos com os quais o primeiro é comparado, pois
quando eles se deslocarem, aquela relação, em que consistia o repouso ou movimento relativo desse
outro corpo, é modificada. Repetindo, o movimento verdadeiro sofre sempre alguma modificação a
partir de qualquer força exercida sobre o corpo em movimento; mas movimento relativo não sofre
necessariamente qualquer modificação por tais forças. Pois se as mesmas forças são igualmente
exercidas sobre aqueles outros corpos, com os quais a comparação é feita, tal que sua posição
relativa possa ser preservada, então aquela condição que consistia em movimento relativo será
preservada. E, portanto, qualquer movimento relativo pode ser modificado quando o movimento
verdadeiro permanece inalterado, e o relativo pode ser preservado quando o verdadeiro sofre
qualquer modificação. Assim, o movimento verdadeiro, de modo algum, consiste em tais relações.

1
Os efeitos que distinguem o movimento absoluto do relativo são as forças que agem no
sentido de provocar um afastamento a partir do eixo do movimento circular, pois não há tais forças
em um movimento circular meramente relativo; mas em um movimento circular verdadeiro e
absoluto elas são maiores ou menores, dependendo da quantidade do movimento. Se um recipiente,
suspenso por uma longa corda, é tantas vezes girado, a ponto de a corda ficar fortemente torcida, e
então enchido com água e suspenso em repouso junto com a água; a seguir, pela ação repentina de
outra força, é girado para o lado contrário e, enquanto a corda desenrola-se, o recipiente continua
nesse movimento por algum tempo; a superfície da água, de início, será plana, como antes de o
recipiente começar a se mover; mas depois disso, o recipiente, por comunicar gradualmente o seu
movimento à água, fará com que ela comece nitidamente a girar e a se afastar pouco a pouco do meio
e a subir pelos lados do recipiente, transformando-se em uma figura côncava (conforme eu mesmo
experimentei), e quanto mais rápido se torna o movimento, mas a água vai subir, até que, finalmente,
realizando suas rotações nos mesmos tempos que o recipiente, ela fica em repouso relativo nele. Essa
subida da água mostra seu esforço a se afastar do eixo de seu movimento; e o movimento circular
verdadeiro e absoluto da água, que aqui é diretamente contrário ao relativo, torna-se conhecido e
pode ser medido por este esforço. De início, quando o movimento relativo da água no recipiente era
máximo, não havia nenhum esforço para se afastar do eixo; a água não mostrava nenhuma tendência
à circunferência, nem ascendia em direção aos lados do recipiente, mas mantinha uma superfície
plana, e portanto, seu movimento circular verdadeiro ainda não havia começado. Mas,
posteriormente, quando o movimento relativo da água havia diminuído, a subida em direção aos
lados do recipiente mostrou o esforço dessa para se afastar do eixo; e esse esforço mostrou o
movimento circular real da água aumentando continuamente, até adquirir sua maior quantidade,
quando a água ficou em repouso relativo no recipiente. E, portanto, esse esforço não depende de
qualquer translação da água com relação aos corpos do ambiente, nem pode o movimento circular
verdadeiro ser definido por tal translação. Há somente um movimento circular real de qualquer corpo
em rotação, correspondendo a um único poder de tendência de afastamento, a partir de seu eixo de
movimento, como efeito próprio e adequado; mas movimentos relativos, em um mesmo e único
corpo, são inumeráveis, de acordo com as diferentes relações que ele mantém com corpos externos e,
como outras relações, são completamente destituídas de qualquer efeito real, embora eles possam
talvez compartilhar daquele único movimento verdadeiro. E, portanto, em seus sistemas, há aqueles
que supõem que nossos céus, girando abaixo da esfera das estrelas fixas, carregam os planetas junto
com eles; as diversas partes desses céus, bem como os planetas, os quais estão de fato em repouso
relativo nos seus céus, no entanto, realmente se movem, pois mudam suas poisções uns com relação
aos outros (o que nunca acontece com corpos que estão verdadeiramente em repouso), e sendo
carregados junto como os seus céus, compartilham de seus movimentos e, como partes de todos em
rotação, tentam afastar-se do eixo de seus movimentos.

Ilustração do experimento do balde de Newton. Nas duas


situações, o movimento relativo da água em relação ao
balde é a mesma, mas o fato de a água subir pelas paredes
indica que há um espaço absoluto em relação ao qual o
movimento da água se dá. Figura extraída do sítio
http://einstein.stanford.edu/SPACETIME/spacetime1.html

2
Portanto, quantidades relativas não são as próprias quantidades, cujos nomes elas carregam,
mas aquelas medidas perceptíveis delas (rigorosas ou não), as quais são comumente usadas em lugar
das próprias quantidades medidas. E se o significado das palavras deve ser determinado pelo seu uso,
então pelos nomes tempo, espaço, lugar e movimento, deve-se entender suas medidas [perceptíveis];
e a expressão será incomum e puramente matemática, se as próprias quantidades medidas forem
consideradas. Por essa razão, violam o rigor da linguagem, que deve ser mantida precisa, aqueles que
interpretam estas palavras como as quantidades medidas. Nem corrompem menos a pureza de
verdades matemáticas e filosóficas aqueles que confundem quantidades reais com suas relações e
medidas perceptíveis.
É realmente uma questão de grande dificuldade descobrir, e efetivamente distinguir, os
movimentos verdadeiros de corpos particulares daqueles aparentes; porque as partes daquele espaço
imóvel, no qual aqueles movimentos se realizam, de modo algum são passíveis de serem observadas
pelos nossos sentidos. No entanto, a situação não é totalmente desesperadora, pois temos alguns
argumentos para nos guiar, parte devido aos movimentos aparentes, que são as diferenças dos
movimentos verdadeiros, e parte devido às forças, que são as causas e os efeitos dos movimentos
verdadeiros. Por exemplo, se dois globos, mantidos a uma dada distância um do outro por meio de
uma corda que os ligue, forem girados em torno do seu centro comum de gravidade, poderíamos
descobrir, a partir da tensão da corda, o esforço dos globos a se afastarem do eixo de seu movimento,
e a partir daí poderíamos calcular a quantidade de seus movimentos circulares. E então, se quaisquer
forças iguais fossem imprimidas de uma só vez nas faces alternadas dos globos para aumentar ou
diminuir seus movimentos circulares, a partir do acréscimo ou decréscimo da tensão da corda,
poderíamos inferir o aumento ou diminuição de seus movimentos; e assim seria encontrado em que
face aquelas forças devem ser imprimidas, para que os movimentos dos globos pudessem ser
aumentados ao máximo, isto é, poderíamos descobrir suas faces posteriores ou aquelas que, no
movimento circular, seguem. Mas sendo conhecidas as faces que seguem, e consequentemente as
opostas que precedem, igualmente conheceríamos a determinação dos seus movimentos. E, assim,
poder-se-ia encontrar tanto a quantidade como a determinação desse movimento circular, mesmo em
um imenso vácuo, onde não existisse nada externo ou sensível com o qual os globos pudessem ser
comparados. Porém, se naquele espaço fossem colocados alguns corpos remotos que mantivessem
sempre uma dada posição uns com relação aos outros, como as estrelas fixas mantêm nas nossas
regiões, não poderíamos, de fato, determinar a partir da translação relativa dos globos entre aqueles
corpos, se o movimento pertence aos globos ou aos corpos. Mas, se observássemos a corda, e
descobríssemos que sua tensão era aquela mesma tensão que os movimentos dos globos exigiam,
poderíamos concluir que o movimento estava nos globos e que os corpos estavam em repouso; então,
finalmente, a partir da translação dos globos entre os corpos, devemos obter a determinação dos seus
movimentos. Mas as maneiras pelas quais vamos obter os movimentos verdadeiros a partir de suas
causas, efeitos e diferenças aparentes, e o contrário, as maneiras pelas quais, a partir dos
movimentos, quer verdadeiros ou aparentes, podemos obter o conhecimento de suas causas e efeitos,
serão explicadas mais amplamente no próximo tratado. Pois foi com este fim que o compus.

Ilustração do experimento mental dos globos girantes de


Newton. Dois globos ligados por uma corda, ao girarem
em torno do eixo comum, fazem surgir uma tensão
mensurável na corda. Para Newton, isso era mais uma
indicação de que a rotação se dá em relação ao espaço
absoluoto. Figura retirada da wikipédia:
http://en.wikipedia.org/wiki/Rotating_spheres

3
A Controvérsia sobre a Energética
em Lübeck (1895)
Georg Helm, Wilhelm Ostwald
& Ludwig Boltzmann

Baseado integralmente no artigo de DELTETE, R. (1999),


“Helm and Boltzmann: Energetics at the Lübeck
Naturforscherversammlung”, Synthese 119, pp. 45-68.

Preparado para o curso de Filosofia da Física (FLF0472),


Medalha Georg Helm da Universidade Técnica de Dresden prof. Osvaldo Pessoa Jr., 2o semestre de 2010.

A reunião anual da Naturforscherversammlung (Associação de Cientistas, a SBPC


alemã) de 1895 aconteceu de 16 a 21 de setembro na cidade de Lübeck, e foi palco de um
debate sobre a energética, interpretação da teoria da Termodinâmica que rejeitava o atomismo
e a teoria cinética dos gases em favor de uma abordagem baseada no conceito fundamental de
“energia”. Nos anos 1890, pelo menos uma dúzia de autores publicaram artigos defendendo e
explorando esta abordagem, que era mais um projeto do que um programa com novos
resultados, consistindo de derivações de resultados conhecidos a partir dos princípios gerais
envolvendo o conceito de energia. O seu defensor mais vocal era o químico letão Wilhelm
Ostwald (1853-1932, U. Leipzig), mas foi o físico alemão Georg Helm (1851-1923, da
Politécnica de Dresden) quem foi convidado para dar a palestra geral sobre o tema em
Lübeck, escolhido por uma comissão que incluía o austríaco Ludwig Boltzmann (1844-1906,
U. Viena), o maior nome da teoria cinética dos gases e mecânica estatística. A energética era
mais forte na Alemanha, mas tinha defensores em outros países, como Le Chatelier e Duhem
na França. Incluía também aplicações em campos fora da física e da química, como fisiologia
e botânica, e até um estudo de Helm em economia e uma solução proposta por Ostwald para o
problema do livre arbítrio.
Boltzmann, que acompanhava a literatura sobre energética e percebia seus pontos
fracos, de certa forma preparou o cenário para tornar públicas as suas críticas. Convidou seu
amigo Ostwald com uma carta em junho de 1895:

O professor Helm fará uma apresentação sobre a energética na


Naturforscherversammlung em Lübeck. Eu gostaria, se possível, de promover um
debate ao estilo da Associação Britânica, principalmente para me instruir sobre o
assunto. Para tanto, será sobretudo necessária a presença do maior representante desta
abordagem. Não preciso dizer o quanto a sua presença agradaria a mim em particular
(BOLTZMANN, 1895, apud DELTETE, 1999, p. 51).

O modelo britânico de encontros consistia na circulação prévia do texto e, após a apresentação


do mesmo pelo palestrante, um debate aberto.
Ostwald então solicitou ao seu colega de universidade e presidente da Associação, o
químico Johannes Wislicenus, um convite para falar na reunião, o que lhe foi consentido, mas
sua apresentação foi programada para o último dia do evento. Ostwald preferia falar antes de
Helm, e posteriormente reclamaria dessa “troca da sequência natural” das palestras devido às
“manobras táticas do presidente”. Sua palestra era intitulada “A conquista do materialismo
científico”.

1
Em sua palestra, Helm apresentou duas maneiras de derivar o princípio de
conservação de energia nos processes de conversão. A maneira mecânica, própria do
atomismo e da concepção do éter luminífero, representa a energia em termos dos movimentos
dos corpos materiais. Já a maneira que chamou de termodinâmica se limita a representar a
equivalência quantitativa das formas de energia, sem tecer considerações sobre a natureza
última da energia. Nas palavras de Helm:

O realismo da moderna energética consiste em deixar como está o conteúdo empírico de


cada forma de energia, ao invés de importar um retrato mecânico. Não está excluída a
possibilidade de compreender as diferentes formas de energia em um retrato único, mas
esta não é a preocupação primeira e mais necessária. Uma descrição quantitativa – uma
teoria dos fenômenos naturais – pode ser levada a cabo sem este [retrato único] (HELM,
1895, apud DELTETE, 1999, p. 55).

Um ponto chave da abordagem energeticista, indo além da Termodinâmica vigente


(com suas duas leis e definições de energia interna e energias livres), era decompor a
expressão de cada forma de energia (calor, eletricidade, magnetismo, radiação, etc.) em um
fator de intensidade J e um de capacidade M, de tal forma que o diferencial de energia seria
expresso por dE ≤ Σ J dM.
A apresentação de Helm foi seguida por um acalorado debate, em que Boltzmann e
Ostwald assumiram os papeis principais. O químico sueco Svante Arrhenius descreveu a
discussão entre os “cineticistas” e os energeticistas, que “salientavam que os movimentos
introduzidos pelos cineticistas eram inteiramente hipotéticos”.

O ponto de vista cinético foi defendido essencialmente por Boltzmann, apesar de ele ter
o apoio de [Felix] Klein, [Walter] Nernst, E. Wiedermann e outros [como Max Planck].
Por contraste, os energeticistas só tinham dois defensores, Helm e Ostwald, sendo que
este se mostrou um debatedor extraordinariamente habilidoso. O resultado no final foi
uma vitória completa dos cineticistas (ARRHENIUS, 1895, apud DELTETE, 1999, p. 55).

O jovem Arnold Sommerfeld lembraria do ocorrido da seguinte maneira:

[...] e apoiando os dois [Helm e Ostwald] estava a filosofia da natureza de Ernst Mach,
que não estava presente. O oponente era Boltzmann, auxiliado por Felix Klein. O
conflito entre Boltzmann e Ostwald parecia, tanto externa quanto internamente, uma
luta entre um touro e um sutil espadachim. Mas nesta ocasião, apesar de toda a sua
habilidade com a espada, o toureiro foi derrotado pelo touro. Os argumentos de
Boltzmann triunfaram. Naquela época, todos nós jovens matemáticos ficámos do lado
de Boltzmann (SOMMERFELD, 1944, apud DELTETE, 1999, p. 56).

Na verdade, o neopositivismo (fenomenismo) de Mach estava por trás apenas da


posição de Helm, que era também semelhante à posição de Robert Mayer, o primeiro a
calcular o equivalente mecânico do calor, em 1842. Já a visão de Ostwald era realista,
tomando a energia (e não a matéria) como a substância primordial do mundo. Em um texto de
1927, Ostwald lamentaria que ele e Helm estavam “separados pela aversão de Helm a uma
concepção realista de energia”, de forma que os dois eram apenas “aliados parciais”.
Boltzmann, por seu turno, fora simpático às idéias energeticistas de Ostwald, quando
elas surgiram em 1892. A filosofia da ciência de Boltzmann era de um pluralismo teórico,
incentivando quaisquer teorias que se mostrassem simples, acuradas, unificadores e
apropriadas. Porém, o fato de a teoria energeticista não ter cumprido suas promessas iniciais o
fez assumir uma posição crítica. Boltzmann concordava que o conceito de energia era
importantíssimo, e que todos os processos naturais são governados pelas duas leis da

2
Termodinâmica. Concedia também que os importantes resultados do norte-americano Willard
Gibbs tinham sido derivados a partir dessas leis. E também distinguia entre o nível das leis
empíricas, que envolvem termos de observação, e o nível das representações hipotéticas, que
segundo ele deveriam ser minimizados na ciência.
No entanto, para Boltzmann, os energeticistas também faziam uso de suposições
hipotéticas, levando a uma estrutura conceitual menos clara do que aquela das leis
termodinâmicas. Algumas dessas hipóteses eram formuladas de maneira “ad hoc”
(acochambrada), ou seja, para que o resultado de apenas uma derivação específica desse certo.
Segundo o físico vienense, muitas derivações eram vazias ou continham erros, confundindo
diferenciais exatas e inexatas (distinção formulada por Karl Neumann, e apontada na
conferência por Hermann Ebert), e nenhuma nova descoberta foi proposta. Mesmo aceitando
que as diversas leis energéticas, obtidas para diferentes formas de energia, eram interessantes,
discordava que os físicos deveriam se contentar em fazer uma “mera história natural” (como
as classificações de espécies em biologia), pois dever-se-ia buscar uma representação teórica
unificada, como era feita pelo atomismo e pela hipótese de que o calor é uma forma de
movimento. As analogias entre as diferentes formas de energia, apontadas por Mach, Helm e
o físico Gustav Zeuner, eram “extremamente interessantes” para Boltzmann, e iam em direção
a uma unificação teórica. No entanto, elas não deveriam ser vistas como negando o programa
atomista mecanicista preferido por Boltzmann. Este reconhecia que havia problemas na
“visão mecanicista da natureza”, mas para ele não havia razões para abandonar o programa e
trocá-lo pelo energeticismo.
Após a controvérsia suscitada por sua palestra, Helm escreveu para sua esposa:

Creio que a apresentação foi um grande sucesso. Fui aplaudido e elogiado, mas na
discussão houve uma briga dura. Boltzmann iniciou com comentários certamente
amistosos e apreciativos, mas aí ele contou que na Inglaterra, no ano passado, o mais
importante físico vivo [Lord Kelvin] tivera que enfrentar comentários abusivos durante
semelhante discussão. E então ele começou a atacar meus trabalhos e os de Ostwald.
Ele, e depois Klein, Nernst e Oettingen, levantaram questões para as quais eu não tinha
me preparado nos comentários e correções epistolares que eu havia solicitado
previamente. Na verdade, pareceu-me que essas questões estavam completamente fora
do escopo da discussão. Ao final, registrei uma reclamação sobre isso, e também tomei
a palavra algumas vezes durante a sessão para esclarecer certos pontos. Ostwald e
Boltzmann trocaram golpes pesados, mas a discussão não se completou, e deve ser
continuada hoje à tarde. O encontro durou das 9 até as 12, e ocorreu em um grande
ginásio onde as Sessões Gerais estão ocorrendo. O auditório estava cheio pelo menos
até a metade, de forma que algumas centenas de pessoas testemunharam o caso todo
(HELM, 1895, apud DELTETE, 1999, p. 55).

O historiador e filósofo da ciência Robert Deltete, da U. de Seattle, Estados Unidos,


escreveu sua tese de doutorado sobre a controvérsia da energética (U. Yale, 1983), e no artigo
aqui resumido enfoca apenas o episódio de Lübeck, dando certa ênfase a Helm. O resumo
desse artigo inicia com um balanço geral da energética:
“A controvérsia da energética é entendida de formas variadas como energia vs.
átomos, termodinâmica vs. mecânica estatística, fenomenalismo vs. realismo, equações vs.
retratos, e especialmente Ostwald vs. Boltzmann. Pensa-se geralmente que em Lübeck, 1895,
Boltzmann e Planck teriam demolido a energética; é verdade que seu ímpeto foi diminuído,
mas a energética, em um ou mais dos sentidos apontados acima, manteve seguidores até a
grande conferência de física na Feira Mundial de Saint Louis em 1904. De fato, depois que o
próprio Ostwald a abandonou em 1908, Ernst Mach começou a defendê-la pela primeira vez.
[...] Helm defendia uma posição machiana em filosofia, naquela época [1895], e não reificava
a energia” (DELTETE, 1999, p. 45).
3
As ideias de Newton sobre
tempo, espaço e movimento (1883)
Ernst Mach (1838-1916)
Trechos do Cap. II, seção 6, do livro Desenvolvimento histórico-
crítico da mecânica, originalmente de 1883, Die Mechanik in ihrer
Entwicklung historisch-kritisch dargestellt, Leipzig. Tradução (sem
os trechos adicionados posteriormente pelo autor) da 4a edição
alemã, de 1901, a partir da 2a edição em inglês: The science of
mechanics, trad. Thomas J. McCormack, Open Court, Chicago,
1902, pp. 222-38. Há também uma tradução em espanhol da 7a
edição alemã, de 1912: Desarrollo historico-critico de la mecanica,
trad. Jose Babini, Espasa-Calpe, Buenos Aires, 1949, pp. 188-205.
Ernst Mach em 1900.
Tradução para o português feita por Osvaldo Pessoa Jr., para o
curso de Filosofia e História da Ciência Moderna (FLF0449), 1o
semestre de 2012.

[222] 1. Newton expõe suas ideias sobre o tempo e o espaço, que agora examinaremos
de maneira mais próxima, em um escólio que se segue imediatamente às suas
definições. Para caracterizar as ideias de Newton, citaremos somente as passagens
necessárias mais importantes. [Cita Principia, Escólio, parágrafo I]
[223] 2. Diante dessas considerações, pareceria que Newton ainda estava sob a
influência da filosofia medieval, e que não foi fiel à sua ideia de se ater aos fatos. Dizer
que uma coisa A varia com o tempo, só significa que as circunstâncias de uma coisa A
dependem das circunstâncias de outra coisa B. As oscilações de um pêndulo se
produzem no tempo se seu deslocamento depender da posição da terra. Como, na
observação do pêndulo, não temos necessidade de levar em conta a sua dependência
com a posição da terra, pois podemos compará-lo a qualquer outra coisa (cujo estado
claramente depende também da posição da terra), nasce facilmente a noção ilusória de
que todas as coisas com as quais ela pode ser comparada são sem importância. Com
efeito, podemos, ao acompanhar o movimento do pêndulo, desprezar inteiramente as
outras coisas exteriores, e encontrar que, para cada uma de suas posições, nossos
pensamentos e nossas sensações são diferentes. O tempo apresenta-se assim como algo
particular e independente, de cujo transcurso depende a posição do pêndulo, enquanto
que as coisas que escolhemos livremente para a comparação parecem desempenhar um
papel meramente acessório. Não devemos, porém, esquecer que todas as coisas do
mundo estão conectadas entre si e dependem umas das outras, e que [224] nós mesmos, e
todos os nossos pensamentos, não somos senão uma parte da natureza. Não temos
qualquer capacidade de medir a variação das coisas pelo tempo. Pelo contrário, o tempo
é uma abstração, à qual chegamos pela mudança das coisas, e que obtemos porque não
estamos restritos a qualquer medida única e determinada, já que todas as coisas estão
conectadas entre si. Chamamos de uniforme um movimento para o qual, a iguais
incrementos de percurso, correspondem iguais incrementos de percurso em um
movimento de comparação, como a rotação da terra. Um movimento pode, com respeito
a outro movimento, ser uniforme. Mas a questão de se um movimento é uniforme em si
mesmo não tem sentido algum. Muito menos podemos falar de um “tempo absoluto”,
um tempo independente de toda variação. Este tempo absoluto não poderia ser medido
por comparação a nenhum movimento, não tendo assim qualquer valor prático e
científico; ninguém está autorizado a dizer que sabe algo sobre isso. Não passa de um
ocioso conceito “metafísico”. [...]

1
[226] 3. Ideias semelhantes às do tempo são desenvolvidas por Newton com respeito
ao espaço e ao movimento. Novamente citaremos algumas passagens características.
[Cita Principia, Escólio, parágrafos II e IV, e trechos sobre o movimento circular.]
[229] 4. Mal precisaríamos comentar que também nessas considerações Newton agiu
de maneira contrária a sua intenção expressa de investigar apenas os fatos. Ninguém
pode dizer nada sobre o espaço absoluto e sobre o movimento absoluto, que não sejam
meras abstrações, sem manifestação possível na experiência. Todos os nossos princípios
da mecânica, como mostramos detalhadamente, são conhecimento experimental sobre
posições e movimentos relativos dos corpos. Mesmo nos domínios em que eles são
agora reconhecidos como válidos, eles não foram e nem poderiam ser admitidos sem
terem sido previamente submetidos a testes experimentais. Ninguém está autorizado a
estender esses princípios para além dos limites da experiência. De fato, tal extensão é
sem sentido, dado que ninguém possui o conhecimento requerido para fazer uso dele.
[...]
[231] 5. Consideremos agora o ponto sobre o qual Newton, aparentemente com boas
razões, estabeleceu sua distinção entre o movimento absoluto e o relativo. Se a Terra
possui uma rotação absoluta ao redor de seu eixo, nela aparecem forças centrífugas: ela
adquire uma forma oblata [achatada], a aceleração da gravidade diminui no equador, o
plano do pêndulo de Foucault gira [conjuntamente com a rotação da Terra, eliminando o
efeito, visível em outras latitudes], etc. Todos esses fenômenos desapareceriam se a
Terra estivesse em repouso e os outros corpos celestes tivessem um movimento
absoluto rotacional em sentido inverso, de maneira que a mesma rotação relativa fosse
produzida. Este seria o caso, sem dúvida, se partíssemos ab initio da ideia de espaço
absoluto. [232] Mas se nos mantivermos no terreno dos fatos, então só conhecemos
espaços e movimentos relativos. Não levando em consideração aquele meio
desconhecido do espaço [como o éter luminífero], relativamente os movimentos do
Universo são os mesmos, quer adotemos o ponto de vista de Ptolomeu [ou melhor, de
Tycho Brahe], quer adotemos o de Copérnico. Ambas as concepções são igualmente
corretas; só que a última é mais simples e mais prática. O sistema do universo não nos é
dado duas vezes, uma com a Terra em repouso e outra com a Terra em movimento; mas
apenas uma única vez, com seus movimentos relativos, os únicos determináveis. Não
podemos dizer como seriam as coisas se a Terra não girasse [em sentido absoluto,
podendo-se manter o mesmo movimento relativo]. Podemos, porém, interpretar de
diferentes maneiras o único caso que nos é dado. Mas se o interpretamos de uma
maneira que incorra em conflito com a experiência, então nossa interpretação é
simplesmente falsa. Os princípios da mecânica podem, de fato, ser concebidos de
maneira que mesmo para rotações relativas surjam forças centrífugas.
O experimento de Newton com o balde de água girante nos ensina apenas que a
rotação relativa da água com respeito às paredes do balde não produz nenhuma força
centrífuga perceptível, mas que tais forças são produzidas pela sua rotação relativa com
respeito à massa da Terra e de outros corpos celestes. Ninguém tem a competência de
dizer qual seria o resultado do experimento se a espessura e a massa das paredes do
balde fossem aumentadas até que elas tivessem vários quilômetros de espessura. Temos
diante de nós apenas um único experimento, que devemos pôr de acordo com o resto
dos fatos que nos são conhecidos, mas não com nossas arbitrárias ficções da
imaginação.
[6. ...] [233] Querer afirmar que conhecemos mais a respeito dos corpos em
movimento do que é dado pelo seu comportamento experimental em relação ao corpos
celestes, é nos fazer passíveis de um ato de má fé. Quando dizemos que um corpo
mantém inalteradas sua direção e velocidade no espaço, simplesmente fazemos

2
referência, de forma abreviada, ao Universo como um todo. O uso de tal expressão
abreviada é permitido ao autor original do princípio, pois ele sabe que este caminho em
geral não apresentará dificuldades. Mas ele não será de valia se surgirem dificuldades
como as que foram mencionadas, se por exemplo os necessários corpos fixos entre si
estiverem ausentes. [...]
[237] 9. Nos parágrafos anteriores, tentamos dar à lei da inércia uma expressão
diferente da ordinária. Esta expressão cumpre o mesmo que a ordinária, desde que haja
um número suficiente de corpos aparentemente fixos no espaço. Ela se aplica com a
mesma facilidade, e encontra as mesmas dificuldades. Em um caso, não podemos
chegar a um espaço absoluto, no outro, nosso conhecimento tem acesso somente a um
número limitado de massas, e a soma indicada não pode assim ser completa. Não temos
como afirmar se a nova expressão ainda representaria a verdadeira condição das coisas,
caso as estrelas passassem a se movimentar rapidamente umas em relação às outras. A
experiência geral não pode ser construída a partir dos casos particulares que nos são
dados. Pelo contrário, teremos que esperar até que semelhantes experiências se
apresentem. Quiçá ela se ofereça, quando nosso conhecimento físico-astronômico for
estendido para alguma parte do espaço celeste onde os movimentos sejam mais
violentos e complicados do que em nosso ambiente. Porém, os resultados mais
importantes de nossas reflexões são que justamente os princípios mecânicos
aparentemente mais simples são de natureza muito complicada; que eles repousam
sobre experiências não realizadas, e até não realizáveis; que na prática sua base é
suficientemente segura, dada a estabilidade tolerável de nosso ambiente, para servir
como fundamento da dedução matemática; no entanto, de maneira alguma eles podem
ser considerados [238] como verdades demonstradas matematicamente, mas apenas
como princípios que não só admitem o controle constante da experiência, como de fato
o exigem. Este modo de ver tem grande valor, pois proporciona o progresso da ciência.

[Apêndice da 5a edição alemã (1901):]

[...] Para mim, só existe o movimento relativo, e não vejo, com respeito a isso, [543]
nenhuma distinção entre rotação e translação. Quando um corpo se move relativamente
às estrelas fixas, forças centrífugas são produzidas; quando ele se move relativamente a
algum outro corpo, tais forças centrífugas não se produzem. Não me oponho a que se
chame a primeira rotação de “absoluta”, se lembrarmos que isso não significa nada mais
do que rotação relativa com respeito às estrelas fixas. Podemos fixar o balde de água
de Newton, mas girar as estrelas fixas, e então provar a ausência de forças centrífugas?*
O experimento é impossível, a ideia sem sentido, pois os dois casos não são
distinguíveis entre si, para a percepção sensorial. Considero então esses dois casos
como o mesmo caso e a distinção newtoniana como uma ilusão.
[...] Novamente, eu nunca supus que apenas as massas remotas, e não as
próximas, determinam a velocidade de um corpo (como afirma Streintz, 1883, p. 7);
apenas falei de uma influência independente da distância.

*
“Können wir vielleicht das Wasserglas Newtons festhalten, den Fixsternhimmel dagegen rotieren, und
das Fehlen der Fliehkräfte nun nachweisen?”. Na 7ª edição alemã, de 1912, esta pergunta se transforma
numa afirmação: “Tente fixar o balde de água de Newton, mas girar as estrelas fixas, e então provar a
ausência de forças centrífugas” (ver a edição em castelhano, pp. 193-4). Em alemão: “Man versuche das
Newtonsche Wassergefäß festzuhalten, den Fixsternhimmel dagegen zu rotieren und das Fehlen der
Fliehkräfte nun nachzuweisen”.

3
Análise das sensações (1886):
Comentários introdutórios: antimetafísico
Ernst Mach (1838-1916)
Trechos do Cap. I do livro Contribuições para análise das
sensações, originalmente de 1886, Beiträge zur Analyse der
Empfindungen, Jena. Tradução original em inglês: The analysis
of sensations, trad. C.M. Williams, Open Court, Chicago, 1897,
correspondente à 2a edição alemã de 1900. Usamos a 2a edição
em inglês, da Dover, New York, 1959, com material novo
traduzido por S. Waterlow e lançado originalmente em 1914,
baseada na 5a edição alemã de 1906, pp. 1-37.

Tradução para o português feita por Osvaldo Pessoa Jr., para o


curso de Filosofia e História da Ciência Moderna (FLF0449),
Perspectiva do olho esquerdo de Mach (p. 19). 1o semestre de 2012.

[2] [...] [Cap. I, 2.] Cores, sons, temperaturas, pressões, espaços, tempos, e assim
por diante, estão conectados entre si de diversas maneiras, e com eles estão associadas
disposições da mente, sentimentos e vontades. Deste tecido, aquilo que é relativamente
mais fixo e permanente ganha proeminência, gravando-se na memória e exprimindo-se
na linguagem. Uma permanência relativamente maior é exibida, primeiramente, por
certos complexos de cores, sons, pressões etc., ligadas funcionalmente no tempo e no
espaço, e que recebem assim nomes especiais, sendo chamados de corpos. A
permanência de tais complexos não é absoluta. [...]
Meu amigo pode colocar um casaco diferente. Seu semblante pode assumir uma
expressão séria ou alegre. Sua complexão pode se alterar, sob os efeitos da luz ou da
emoção. Sua forma pode ser alterada pelo movimento, ou se alterar definitivamente.
Mesmo assim, o número de traços permanentes apresentados, comparado com o número
de alterações graduais, é sempre tão grande, que estas últimas podem ser desprezadas.
Trata-se do mesmo amigo com quem faço minhas caminhadas diárias. [...]
[3] Além disso, aquele complexo de memórias, humores e sentimentos, unidos a um
corpo particular (o corpo humano), que é chamado de ego [Ich], manifesta-se como
relativamente permanente. [...] A permanência aparente do ego se funda principalmente
no fato de sua continuidade, na lentidão de suas mudanças. O fundamento do ego é
constituído pelos muitos pensamentos e planos de ontem que são hoje continuados, e
sobre os quais nosso ambiente na vigília nos lembra incessantemente (ao passo que nos
sonhos o ego pode ser muito indistinto, duplicado ou totalmente ausente), e pelos
pequenos hábitos que são guardados inconsciente e involuntariamente por longos
períodos de tempo. [...] [4] O ego é tão pouco permanente quanto os corpos. Aquilo que
tanto tememos na morte, o aniquilamento de nossa permanência, de fato ocorre
abundantemente na vida. Aquilo que nós mais valorizamos permanece preservado em
numerosas cópias ou, em casos de excepcional excelência, é preservado por si mesmo. [...]
[5] Após um primeiro exame, que formou os conceitos substanciais de “corpo” e
“ego” (matéria e alma), a vontade é impelida a uma investigação mais exata das
mudanças que ocorrem nessas existências relativamente permanentes. [...] Aqui, as
partes componentes dos complexos são exibidas como suas propriedades. Uma fruta é
doce, mas ela pode também ser amarga. Outras frutas também podem ser doces. A cor
vermelha que buscamos se encontra em muitos corpos. A proximidade com alguns
corpos é agradável, com outros desagradável. Assim, gradualmente, percebemos que
diferentes complexos são constituídos de elementos comuns. [...]

1
[6] [3.] [...] Na medida em que é possível retirar individualmente cada parte
constituinte da imagem, sem destruir a capacidade que esta tem de representar a
totalidade e de ser novamente reconhecida, conclui-se que é possível retirar todas as
partes e ainda ter algo remanescente. Surge assim naturalmente a noção filosófica, a
princípio marcante, mas subsequentemente vista como monstruosa, de uma coisa em si
(diferente de sua “aparência” e incognoscível).
A coisa, o corpo, a matéria, não são nada além da combinação dos elementos –
das cores, sons, etc. – [7] nada além do seus chamados atributos. Aquele pretenso
problema filosófico multiforme, de uma coisa única com seus muitos atributos, surge
inteiramente de um equívoco com respeito ao fato de que a compreensão resumida e a
análise precisa não podem ser levadas a cabo simultaneamente, apesar de ambas serem
temporariamente justificáveis e úteis para muitos propósitos. Um corpo é uno e
inalterável apenas enquanto não for necessário considerar seus detalhes. Assim, tanto a
Terra quanto a bola de bilhar são uma esfera, se estamos dispostos a desprezar todos os
desvios da forma esférica, e não se exigir maior precisão. Mas quando somos obrigados
a fazer investigações em orografia ou microscopia, ambos os corpos deixam de ser
esferas. [...]
[4.] [...] [8] As cores, os sons e os odores dos corpos são evanescentes. Mas sua
tangibilidade permanece, como uma espécie de núcleo constante, não facilmente
suscetível de destruição, parecendo o veículo das propriedades mais fugidias ligadas a
ele. O hábito, portanto, mantém nosso pensamento firmemente ligado a este núcleo
central, mesmo quando começamos a reconhecer que a visão, a audição, o olfato e o tato
têm características muito semelhantes. Uma consideração adicional é que, devido ao
desenvolvimento singularmente extenso da física mecânica, um grau maior de realidade
é atribuído ao espacial e ao temporal, do que a cores, sons e odores. Assim, as relações
temporais e espaciais de cores, sons e odores parecem ser mais reais do que os próprios
cores, sons e odores. No entanto, a fisiologia dos sentidos demonstra que espaços e
tempos podem ser tão apropriadamente chamados de sensações, assim como cores e
sons. Voltaremos a isso mais para frente.
[5.] Não só a relação dos corpos com o ego, mas também o próprio ego gera
semelhantes pseudoproblemas, conforme pode ser indicado da seguinte maneira.
Denotemos os elementos supracitados pelas letras ABC..., KLM..., αβγ... Para maior
clareza, os complexos de cores, sons etc., geralmente chamados de corpos, podem ser
denotados [9] por ABC...; o complexo, conhecido como nosso próprio corpo, que faz
parte dos complexos anteriores, mas possui certas peculiaridades, pode ser chamado de
KLM...; o complexo composto de volições, imagens mnêmicas, e assim por diante,
serão representados por αβγ... É usual considerar que os complexos αβγ... KLM...
compõem o ego, em oposição ao complexo ABC... que compõe o mundo dos objetos
físicos. Às vezes, αβγ... é visto como o ego, e KLM...ABC... como o mundo dos objetos
físicos. À primeira vista, ABC... parece independente do ego, e oposto a ele como uma
existência separada. Mas tal independência é apenas relativa, e desaparece sob melhor
escrutínio. [...] Muitas mudanças em αβγ... passam, por meio de mudanças em KLM...,
para ABC..., e vice-versa. [...]
Vistos de maneira precisa, porém, parece que o grupo ABC... é sempre
codeterminado por KLM... Um cubo visto de perto parece grande; visto à distância,
parece pequeno; sua aparência para o olho direito é diferente daquela para o esquerdo;
às vezes ele aparece duplicado; de olhos fechados ele é invisível. Portanto, as
propriedades de um mesmo corpo parecem modificadas pelo nosso corpo, parecem
condicionadas por este. Sendo assim, [10] onde está este mesmo corpo, que parece tão

2
diferente? Tudo que pode ser dito é que com diferentes KLM... estão associados
diferentes ABC...
[Nota de rodapé 4:] Há muito tempo atrás [1868], enunciei este pensamento da
seguinte maneira: A expressão “ilusão dos sentidos” mostra que ainda não estamos
totalmente conscientes (ou pelo menos ainda não consideramos necessário incorporar o
fato em nossa linguagem ordinária) de que os sentidos não representam as coisas nem
erroneamente, nem corretamente. Tudo o que pode ser verdadeiramente dito de nossos
órgãos dos sentidos é que, sob circunstâncias diferentes eles produzem diferentes
sensações e percepções. [...]
Uma maneira comum e popular de pensar e falar é fazer o contraste entre
“aparência” e “realidade”. Um lápis colocado diante de nós no ar é visto como reto;
coloque-o parcialmente na água, e o vemos torto. Neste último caso, dizemos que o
lápis parece torto, mas que ele realmente é reto. Mas o que justifica que declaremos um
fato como sendo a realidade, e degrademos o outro para o nível das aparências? Em
ambos os casos estamos lidando com fatos que se apresentam a nós com diferentes
combinações dos elementos, combinações que em ambos os casos são condicionados de
diferentes maneiras. [...]
[12] [6.] Vemos um objeto que possui um ponto S. Se tocarmos S, ou seja, se o
fizermos entrar em conexão com nosso corpo, recebemos uma picada. Podemos ver S,
sem sentir a picada. Mas tão logo sentimos a picada, encontramos S em nossa pele. O
ponto visível, portanto, é um núcleo permanente, ao qual a picada é anexada como algo
acidental, de acordo com as circunstâncias. Com a repetição frequente de ocorrências
análogas, acabamos nos acostumando a considerar todas as propriedades dos corpos
como “efeitos” partindo de núcleos permanentes e levados ao ego por meio do corpo; e
a tais efeitos chamamos sensações. Por meio desta operação, no entanto, esses núcleos
acabam desprovidos de todo seu conteúdo sensorial, e convertidos em meros símbolos
mentais. Assim, é correta a afirmação de que o mundo consiste apenas de nossas
sensações. Temos assim conhecimento apenas de sensações, e a suposição de que há
aqueles núcleos, ou que há uma ação recíproca entre eles de onde provêm as sensações,
torna-se uma suposição completamente inútil e supérflua. Tal ponto de vista só pode ser
sustentado por um realismo indeciso [realismo pela metade] ou por um criticismo
[kantiano] indeciso.
[7.] [...] [14] Sob um exame superficial, o complexo αβγ... parece ser composto
de elementos muito mais evanescentes do que ABC... e KLM..., sendo que nestes os
elementos parecem estar conectados com maior estabilidade e de uma maneira mais
permanente (a núcleos sólidos). Apesar de um exame mais atento mostrar que os
elementos de todos os complexos são homogêneos, mesmo depois que isso é
reconhecido, a noção anterior de uma antítese entre corpo e alma volta a se esgueirar. O
espiritualista geralmente é sensível à dificuldade de atribuir a requerida solidez a seu
mundo de corpos criado pela mente; o materialista se perde quando chamado a dotar o
mundo de corpos com sensação. O ponto de vista monista, que se firmou por reflexão, é
facilmente contaminado pelas mais velhas e poderosas noções instintivas.
[11.] [...] [21] Prazer e dor também podem ser apropriadamente chamados de
sensações. [...] De fato, sensações de prazer e de dor, por mais fracas que sejam,
constituem uma parte essencial do conteúdo de todas as chamadas emoções. Qualquer
elemento adicional que emerge na consciência quando estamos sob a influência de
emoções podem ser descritas como sensações mais ou menos difusas e não localizadas
nitidamente. William James [1890], e depois dele Théodule Ribot [1896], investigaram
o mecanismo fisiológico das emoções: eles defendem que o que é essencial são as
tendências intencionais do corpo para a ação – tendências que correspondem a

3
circunstâncias e que são expressas no organismo. Apenas uma parte dessas emergem na
consciência. Estamos tristes porque choramos lágrimas, e não vice-versa, diz James. E
Ribot observa apropriadamente que uma das causas de o nosso conhecimento a respeito
das emoções estar tão atrasado é [22] que sempre confinamos nossa observação quase
exclusivamente para os processos fisiológicos que emergem na consciência. Ao mesmo
tempo, ele vai longe demais ao defender que tudo o que é psíquico é “surajouté”
[sobreposto] ao físico, e que é somente o físico que produz efeitos. Para nós, tal
distinção não existe.
[30] [Nota de rodapé 15:] Sempre considerei que tive sorte de ter me deparado, cedo
em minha vida (aos quinze anos de idade), na biblioteca de meu pai, com uma cópia dos
Prolegômenos a qualquer metafísica futura de Kant. Na época, o livro exerceu uma
poderosa e indelével impressão em mim, como nunca mais sentiria em qualquer leitura
filosófica. Uns dois ou três anos depois, a superficialidade do papel desempenhado pela
“coisa em si” subitamente ocorreu para mim. Num claro dia de verão, a céu aberto, o
mundo com meu ego repentinamente me apareceu como uma única massa coerente de
sensações, só mais fortemente coerente em meu ego. Apesar de a elaboração deste
pensamento só ter ocorrido em um período posterior, este momento foi decisivo para
toda a minha visão. Tive ainda que me esforçar muito, por um longo tempo, para reter a
nova concepção em minha área particular. Com as partes valiosas das teorias físicas,
necessariamente absorve-se uma boa dose de falsa metafísica, que é muito difícil de
separar daquilo de merece ser preservado, especialmente quando aquelas teorias se
tornaram muito familiares. Às vezes, também, as concepções tradicionais e instintivas
surgiriam com grande força, colocado obstáculos no caminho. Somente alternando os
estudos em física e na fisiologia dos sentidos, e por investigações histórico-físicas
(desde em torno de 1863), e depois de ter tentado em vão resolver os conflitos por meio
de uma monadologia psicofísica (em minhas palestras de psicofísica, publicadas em
1863), é que pude alcançar uma considerável estabilidade em minhas concepções. Não
tenho pretensões ao título de filósofo. Busco apenas adotar na física um ponto de vista
que não precisa ser alterado quando nosso olhar é levado para o domínio de outra
ciência; pois, no final das contas, tudo deve formar uma totalidade. A física molecular
dos dias atuais certamente não satisfaz este requisito. O que digo eu provavelmente não
fui o primeiro a dizer. [Cita concepções parecidas em Avenarius, Hering, Popper-
Lynkeus, Preyer, Riehl e Wahle.] [...]

4
Comentário sobre
os Paradoxos de Zenão
Aristóteles de Estagira
(384 - 322 a.C.)
Trecho extraído da Física (significando O Estudo da Natureza), de
Aristóteles. Escrito em torno de 350 a.C., sendo que o livro VIII foi escrito
em separado. Zenão de Eléia viveu c. 490-430 a.C. Baseado na tradução
inglesa de R. Waterfield, Oxford U. Press, 1996, pp. 142-6, 161-2, 219-20.
Há traduções para o inglês disponíveis na internet. Seleção de trechos,
títulos das seções e tradução do inglês feitos para o curso de Filosofia da Detalhe do afresco A Escola de Atenas,
de Rafaello Sanzio (1509).
Física (FLF0472), USP, por Osvaldo Pessoa Jr., 2o semestre de 2009.

Distância e tempo são contínuos (VI.2, 232b20-b27, 233a13-a20)

Dado que toda mudança ocorre no tempo, e não há tempo em que uma mudança não
possa ocorrer, e dado que qualquer objeto mutante pode mudar mais rapidamente ou mais
lentamente, então não há tempo em que não possa ocorrer uma mudança mais rápida ou mais
lenta. Segue-se necessariamente destes fatos que também o tempo [além da distância] deve
ser contínuo. Por “continuidade” refiro-me àquilo que é divisível em partes que, por sua vez,
são sempre divisíveis. Se aceitarmos essa definição de continuidade, segue-se
necessariamente que o tempo é contínuo. Pois, conforme já demonstramos, um objeto mais
rápido leva menos tempo para cobrir uma mesma distância. [...]
Podemos também mostrar que a continuidade da distância segue-se da continuidade do
tempo, considerando as coisas que normalmente falamos sobre eles, já que leva metade do
tempo para cobrir metade da distância, e geralmente menos tempo para cobrir uma distância
menor; tanto o tempo quanto a distância estão sujeitos às mesmas divisões. E se qualquer um
deles for infinito, o outro também o será. E a maneira em que um deles é infinito será também
a maneira em que o outro o será. Por exemplo [considerando um corpo em movimento
retilíneo uniforme], se o tempo tem extensão infinita, a distância também o terá; se o tempo é
infinitamente divisível, a distância também o será; e se o tempo é infinito nesses dois
aspectos, a distância também o será.

Zenão errou, pois há infinitos instantes em uma duração finita (VI.2, 233a21-31)

É por isso que o argumento de Zenão [a Dicotomia] parte de uma suposição falsa, de
que é impossível cobrir o que é infinito ou entrar em contato com um número infinito de
coisas, uma a uma, em um tempo finito. O ponto é que há duas maneiras pelas quais a
distância e o tempo, e em geral qualquer contínuo, são descritos como infinitos: eles podem
ser infinitamente divisíveis ou infinito em extensão. Assim, mesmo sendo impossível num
tempo finito entrar em contato com coisas que são infinitas em quantidade, é possível fazer
isso com coisas que são infinitamente divisíveis, já que o tempo também é infinito dessa
maneira. Portanto, a conclusão é que leva tempo infinito, e não finito, para cobrir uma
distância infinita, e leva um número infinito de agoras, e não um número finito, para se entrar
em contato com um número infinito de coisas.
É assim impossível cobrir uma distância infinita em um tempo finito, e é também
impossível cobrir uma extensão finita em um tempo infinito.

1
O “agora” é indivisível, portanto nada se move no agora
(VI.2, 233b31-2; VI.3, 233b33-234a4, 234a24-33, 234b8-9)

Está claro, então, que não há algo como um contínuo que não seja divisível em partes.
[No entanto,] o agora, em seu sentido primário, deve ser indivisível. Este é o tipo de
agora que ocorre em qualquer e toda duração de tempo, que é o limite do passado, pois não há
nada do futuro deste lado, e também o limite do futuro, pois não há nada do passado deste
outro lado. Dizemos então que é um mesmo limite de ambos. E a demonstração de que há tal
limite, de que o limite do passado é o mesmo que o limite do futuro, seria simultaneamente a
demonstração de sua indivisibilidade. [...]
As seguintes considerações mostrarão que nada se move no agora. Se fosse possível
para algo se mover no agora, poderia haver nele tanto movimento mais rápido quanto mais
lento. Seja N o agora, e seja AB a distância que o objeto mais rápido percorreu. No mesmo
agora, então, o objeto mais lento terá coberto uma distância menor do que AB, que chamamos
AC. Mas dado que o movimento do objeto mais lento dura todo o agora para percorrer AC, o
objeto mais rápido levaria menos tempo para cobrir AC, e conseqüentemente o agora seria
dividido. Mas vimos que o agora é indivisível. Portanto, é impossível haver movimento no
agora.
Também é impossível haver repouso no agora. Pois falamos de repouso somente no
caso de algo cuja natureza seja mover, mas que não está se movendo. Assim, dado que não há
nada cuja natureza seja mover no agora, obviamente também não há nada cuja natureza seja
estar em repouso no agora. [...]
Segue-se necessariamente, portanto, que qualquer coisa em movimento e qualquer
coisa em repouso estão em movimento e em repouso no tempo [e não no agora].

Os quatro argumentos de Zenão sobre o movimento (VI.9, 239b5-240a18)

O raciocínio de Zenão é inválido. Ele afirma que se é sempre verdadeiro que algo está
em repouso quando está em oposição a algo igual a si mesmo [ou seja, quando ocupa uma
distância que é igual ao seu comprimento], e se um objeto movente está sempre no agora,
então uma flecha movente está em repouso. Mas isso é falso, porque o tempo não é composto
de agora indivisíveis, e nem qualquer outra grandeza.
Zenão elaborou quatro argumentos sobre o movimento, que têm trazido dificuldades
para as pessoas. O primeiro [a Dicotomia] é sobre um objeto movente que não se moveria,
porque precisaria alcançar metade do caminho antes de chegar ao fim. Isso foi discutido
anteriormente [em VI.2, 233a21-31].
O segundo é chamado “Aquiles”, e afirma que um corredor mais lento nunca será
alcançado pelo corredor mais veloz, porque o que está atrás tem que primeiro alcançar o
ponto no qual o que está na frente começou, de maneira que o mais lento sempre ficaria na
frente. Este argumento, de fato, é igual à Dicotomia, com a diferença que a distância restante
não é dividida por dois. Vimos que o argumento leva à conclusão de que o corredor mais
lento não é alcançado, mas isso depende do mesmo ponto que a Dicotomia: em ambos os
casos, a conclusão de que é impossível alcançar um limite é resultado de se dividir a distância
de certa maneira. No entanto, o último argumento inclui, em seu relato, a característica
adicional de que nem aquilo que é a coisa mais veloz do mundo pode sobrepujar a coisa mais
lenta do mundo. A solução, portanto, deve ser a mesma em ambos os casos. É falsa a
afirmação de que quem está na frente não pode ser alcançado. Ele não é alcançado enquanto
continua na frente, mas ele é alcançado se Zenão admitir que o objeto movente pode percorrer
uma distância finita.

2
Ânfora panatenaica (460 a.C.)
com corredores no estádio.

Isso resolve dois dos seus argumentos. O terceiro é o que mencionei acima [a Flecha,
em 239b5-9], que afirma que uma flecha movente está parada. Essa conclusão depende da
suposição de que o tempo é composto de “agoras”, mas se essa suposição não é aceita, o
argumento fracassa.
Seu quarto argumento é o que trata de corpos iguais em um Estádio [uma pista de
corrida], corpos que se movem em sentidos opostos e passam um pelo outro. Um conjunto sai
do fim do estádio, e o outro do meio, com a mesma rapidez. O resultado, de acordo com
Zenão, é que metade de um certo tempo é igual ao dobro deste tempo. O erro em seu
raciocínio está em supor que leva o mesmo tempo para um corpo movente passar por outro
em movimento, com mesma rapidez e sentido oposto, quanto leva para o corpo movente
passar por um corpo em repouso, onde todos os corpos têm o mesmo tamanho. Isso é falso.
[Aristóteles parece ter entendido errado o argumento de Zenão.]
Por exemplo, sejam AA... os corpos estacionários, cada um do mesmo tamanho que o
outro; sejam BB... os corpos, iguais em número e tamanho a AA..., que se movem a partir da
metade do estádio; e sejam CC... os corpos, iguais em número e tamanho aos outros, que
partem do fim do estádio e se movem com a mesma rapidez que BB... Segue-se que o
primeiro B e o primeiro C, à medida que as duas fileiras passam uma em relação à outra,
alcançarão o final da outra fileira no mesmo tempo. Apesar de o primeiro C passar todos os
Bs, segue-se que o primeiro B passou metade do número dos As; e assim, afirma Zenão, o
tempo transcorrido para o primeiro B é metade do tempo transcorrido para o primeiro C,
considerando-se que em ambos os casos temos corpos iguais passando por corpos iguais, [...]
e o primeiro C permanece o mesmo tempo ao lado de cada B quanto permanece ao lado de
cada A, já que tanto os Cs quanto os Bs permanecem o mesmo tempo passando pelos As. De
qualquer maneira, esse é o argumento de Zenão, mas suas conclusões dependem da falácia
que mencionei.
A A A A
B B B B
C C C C

Duas respostas a se é possível passar por infinitos pontos (VIII.8, 263a4-b8)

Devemos dar a mesma resposta para qualquer um que use o argumento de Zenão para
perguntar se é sempre necessário primeiro cobrir metade da distância, apontando que há um
número infinito de meia distâncias e que é impossível cobrir um número infinito de
distâncias. Há também aqueles que apresentam o argumento de outra maneira, e afirmam que
quando se está atravessando uma meia distância, é preciso contá-la antes de completá-la, e

3
que é preciso fazer isso para cada meia distância sendo coberta, de maneira que cobrir a
distância inteira envolveria ter que contar um número infinito, o que considerado impossível.
Pois bem, ao discutirmos [em VI.2, 233a21-31] o movimento e a mudança,
resolvemos essas dificuldades levando em conta o fato de que o tempo contém em si um
número infinito de partes. Afinal, não há nada de estranho em que alguém atravesse um
número infinito de distâncias em um tempo infinito, e a infinitude é uma propriedade do
tempo da mesma maneira que é uma propriedade da distância. Apesar de esta solução ser
adequada como resposta à pergunta original, qual seja, se é possível atravessar ou contar
infinitas coisas em um tempo finito, ela não serve de resposta para a questão relativa ao que
de fato acontece. Pois se o nosso inquiridor fosse ignorar a distância, e ignorar a questão de se
um número infinito de distâncias pode ser coberto em um tempo finito, e fizesse a pergunta
apenas com respeito ao tempo, dado que o tempo é infinitamente divisível, a solução anterior
não seria adequada. Teríamos, pelo contrário, de utilizar o relato verdadeiro que acabamos de
apresentar, e dizer que qualquer um que divida uma linha contínua em duas metades está
tratando o ponto único em que se dá a divisão como dois pontos, pois está tratando-o tanto
como um ponto inicial quanto como um ponto final, e a contagem de metades não é diferente
da divisão em metades. Mas fazer essas divisões equivale a destruir a continuidade do
movimento, e também a linha, pois o movimento contínuo é um movimento sobre o contínuo,
e apesar de haver infinitas metades em um contínuo, eles são potenciais, não atuais. Qualquer
divisão atual põe um fim ao movimento contínuo e cria uma parada. É claramente isso o que
acontece quando alguém conta metades sucessivas, pois ele inevitavelmente conta um mesmo
ponto como sendo dois, dado que a consequência de se contar duas metades ao invés de uma
linha contínua é que um único ponto passa a constituir o fim de uma metade e o começo da
outra. Assim, a resposta que temos que dar para a questão de se é possível atravessar um
número infinito de partes, sejam elas partes do tempo ou da distância, é que em um certo
sentido isso é possível e em certo sentido não. Se elas existirem de maneira atual, isso é
impossível, mas se elas existirem de maneira potencial, então é possível. Em outras palavras,
qualquer um que esteja em movimento contínuo atravessa coincidentemente um número
infinito de distâncias, mas isso não é feito sem qualificação; trata-se de uma propriedade
coincidente [acidental] de uma linha que ela possui um número infinito de metades, mas isso
não faz parte da essência de linha.

4
Debate Planck-Mach (1909-10):
realismo vs. fenomenismo
Trechos do debate entre o físico alemão Max Planck (1858-1947) e
o físico austríaco Ernst Mach (1838-1916), extraído da seleção feita
em “The Mach-Planck polemics”, in BLACKMORE, J. (org.) (1992),
Ernst Mach – a deeper look, Boston Studies in the Philosophy of
Science 143, trad. J. Blackmore, Kluwer, Dordrecht, pp. 127-50. A
tradução completa dos artigos aparece em TOULMIN, S. (org.)
(1970), Physical reality, trad. Ann Toulmin, Harper & Row, New
York, pp. 1-52.

Tradução para o português feita por Osvaldo Pessoa Jr., para o


curso de Filosofia e História da Ciência Moderna (FLF0449), 1o
Max Planck. semestre de 2012.

A) A unidade da representação de mundo física (Max Planck)


Physikalische Zeitschrift 10 (1909) 62-75. Palestra ministrada na U. de Leyden em 09/12/1908.

[23] [...] Com essas últimas observações, estamos prontos para responder à pergunta
que fiz no final de meus comentários introdutórios: A representação de mundo
[Weltbild] física é meramente uma criação mais ou menos arbitrária de nosso intelecto,
ou devemos adotar a concepção contrária de que ela reflete processos naturais reais que
existem em completa independência de nós? De maneira mais concreta: Podemos
manter, de maneira razoável, que o princípio de conservação de energia ainda teria
validade na natureza, mesmo que não houvesse nenhuma pessoa para pensar sobre ele?
Ou que os corpos celestes ainda se moveriam de acordo com a lei da gravitação, se a
Terra e seus habitantes caíssem em escombros?
Ao responder que sim a essas perguntas, levando em conta o que foi dito
anteriormente, estou ciente de que esta resposta opõe-se a um movimento da filosofia
natural, sob a liderança de Ernst Mach, que hoje em dia goza de grande popularidade,
particularmente em círculos de cientistas naturais. Essa visão sustenta que não há
realidade além de nossas próprias impressões sensoriais, e que toda a ciência natural,
em última análise, é apenas uma adaptação econômica de nossos pensamentos às nossas
impressões, à qual somos levados pela luta pela existência. A fronteira entre o físico e o
psicológico seria meramente prática e convencional. Os elementos únicos e essenciais
do mundo seriam as impressões sensoriais.1
[24] [...] eu gostaria de salientar que os ataques que foram desferidos pelo lado
machiano contra as hipóteses atômicas e a teoria dos elétrons são insustentáveis e
injustificados. Com efeito, eu me oporia afirmando – e sei que não estou sozinho nisso –
que os átomos, mesmo que conheçamos muito pouco de suas propriedades detalhadas,
não são nem mais nem menos reais do que os corpos celestes ou os entes que nos
cercam na Terra. E eu diria ainda que um átomo pesando 1,6⋅10–24 gramas não é menos
cognoscível do que a Lua que pesa 1,6⋅1025. Está claro que não posso colocar um átomo
de hidrogênio em uma balança, e nem vê-lo, mas também não posso pôr a Lua numa
balança, e sobre a questão de ela ser visível, há também corpos celestes invisíveis mas
cognoscíveis cujas massas podem ser medidas, com mais ou menos exatidão. De fato, a
massa do planeta Netuno foi medida antes que qualquer astrônomo apontasse seu
telescópio em sua direção. Em suma, não existe um método físico de medição em que
todo conhecimento obtido por indução é eliminado, e isso vale mesmo para a pesagem
1
Mach, E., Beitrage zur Analyse der Empfindungen, 1ª ed., 1886, pp. 23, 142. Em inglês: The analysis of
sensations, tradução da 5ª ed. alemã, publicado em 1914 e 1959 (Dover), pp. 32, 311.
1
direta [ou seja, toda medição envolve hipóteses]. Basta olhar para um laboratório de
precisão para ver o grande número de experimentos e abstrações que estão embutidos
em uma tal medição, por mais simples que possa parecer.
Resta-nos perguntar por que a epistemologia de Mach [25] tornou-se tão
difundida entre os cientistas naturais. Se eu não estiver enganado, trata-se basicamente
de uma espécie de reação contra as altas expectativas da geração anterior, após a
descoberta do princípio de energia, acopladas à visão do mundo mecanicista, como se
encontra por exemplo nos escritos de Emil du Bois-Reymond. Não quero negar que tais
expectativas levaram a algumas contribuições notáveis, de mérito duradouro – basta
mencionar a teoria cinética dos gases –, mas quando vistas em um contexto mais amplo,
torna-se claro que houve uma promessa exagerada. De fato, por meio da introdução da
estatística nas considerações físicas, a esperança de resolver de forma completa a
mecânica dos átomos foi fundamentalmente abandonada.
O positivismo machiano foi uma manifestação filosófica desta inevitável
desilusão. Em face do ceticismo ameaçador, ele merece crédito completo por ter
redescoberto que o único ponto de partida legítimo de toda pesquisa científica são as
impressões sensoriais. Mas ele foi longe demais ao descartar a representação de mundo
física junto com a representação mecânica, rebaixando ambas ao mesmo nível.
Estou firmemente persuadido que o sistema machiano, se levado à cabo de
maneira coerente, não contém contradições internas, mas parece-me igualmente certo
que seu significado básico é apenas formalístico, não tocando na essência da ciência
natural. Isso porque a característica mais importante de toda pesquisa científica é a
exigência de uma representação-de-mundo constante, independente de todas as
mudanças no tempo e entre seres humanos, uma visão bastante distinta da perspectiva
de Mach. O princípio de continuidade de Mach não serve como substituto, pois
continuidade não é constância.
Conforme tentei mostrar, uma representação de mundo constante e unificada é a
meta fixa à qual a verdadeira ciência natural se aproxima cada vez mais; e na física
podemos afirmar com justiça que a nossa representação de mundo atual, mesmo
brilhando com as mais variadas cores de acordo com a individualidade do pesquisador,
mesmo assim inclui certas características que nenhuma revolução na natureza ou no
pensamento humano jamais apagará. Esta constância, que é independente de qualquer
individualidade humana e intelectual, é o que chamamos de “o real” [das Reale]. Para
dar um exemplo, há hoje em dia algum físico, que mereça ser levado à sério, que ainda
duvide da realidade do princípio de energia? Pelo contrário, o reconhecimento desta
realidade é hoje um pré-requisito para que se mereça o respeito científico.
[26] [...] Devemos reconhecer que esta meta fixada, mesmo que ela nunca possa ser
inteiramente atingida, não consiste da adaptação de nossas ideias às nossas impressões
sensoriais, mas da completa liberação da representação de mundo física da
individualidade da mente criativa. Esta é uma maneira mais precisa de exprimir o que
designei anteriormente por emancipação de elementos antropomórficos. Porém, isso não
deve ser entendido como implicando que a representação de mundo deva ser
completamente separada do intelecto criativo, o que seria uma conclusão absurda [a
liberação seria apenas da individualidade].
[...] O ponto de vista econômico foi certamente a última coisa que fortaleceu o
impulso desses cientistas [Copérnico, Kepler, Newton, Huygens, Faraday] em sua
batalha contra as visões tradicionais e as autoridades eminentes. Pelo contrário! Foi sua
crença inabalável na realidade de sua representação de mundo, quer baseada em
fundamentos artísticos ou religiosos. Em face deste fato incontestável, não deixemos de
lado a suspeita de que se o princípio machiano de economia algum dia tornar-se central
na epistemologia, ele poderá perturbar os processos de pensamento dos principais
2
intelectos, paralisar seus voos de imaginação, e dessa forma interferir no progresso da
ciência de maneira desastrosa.
Não seria mais “econômico” dar um lugar mais modesto para o princípio de
economia? Vê-se, da maneira como formulo a questão, que estou longe de querer
depreciar ou mesmo banir o interesse por “economia” em um sentido mais elevado.
[27] [...] Assim, devemos salientar, unanimemente, aquilo que cada um de nós
sempre reconhecerá e valorizará. Primeiro, a necessidade de uma auto-crítica
consciente, junto com resistência na batalha pelo conhecimento genuíno; segundo,
respeito honesto pela personalidade de nossos oponentes científicos, inabalável mesmo
em desentendimentos; e finalmente, confiança serena no poder do dizer que, por 1900
anos, nos ensinou a distinguir os falsos profetas dos verdadeiros, por meio deste lema
infalível e definitivo: “Pelos seus frutos os conhecereis”.

B) As principais ideias de minha epistemologia científica e sua aceitação pelos


meu contemporâneos (Ernst Mach) Physikalische Zeitschrift 11 (1910) 599-606.

[31] [...] Minhas primeiras publicações, naturalmente, foram recebidas por físicos e
filósofos de maneira muito fria e negativa, apesar de não faltar reconhecimento
ocasional. [...] [32] Os físicos concordavam comigo muito mais raramente. Mesmo
assim, tanto a minha visão quanto a “energética” de Ostwald tiveram como ilustre
precursor W.J. Rankine, que já tinha apontado em seu pequeno ensaio “Esboço da
ciência da energética”, de 1855, a diferença entre uma física explicativa (hipotética) e
uma física abstrativa (descritiva), recomendando a segunda como a verdadeiramente
científica, da qual a primeira seria apenas um estágio preparatório. [...] Quando, no
História e raíz do princípio de conservação e energia [1872], eu apresentei a
representação econômica dos fatos e a dependência mútua dos aparências, que hoje
podem ser vistas como uma retomada das propostas de Rankine, essas ideias
naturalmente também não foram notadas. O espanto geral que ocorreu dois anos depois,
quando Kirchhoff definiu a tarefa da mecânica como sendo a “completa e mais simples
descrição dos movimentos”, era também típica do período. [...] Só mais tarde ouvimos
de Hertz que a teoria de Maxwell consiste apenas das equações de Maxwell. [...] Foi só
em 1906, com A teoria física de Pierre Duhem, que ocorreu uma quebra completa com
o velho ponto de vista.
[34] [...] Para deixar claro como minhas ideias epistemológicas foram recebidas por
eminentes físicos modernos, peço que o leitor consulte, se possível, o texto de M.
Planck, “A unidade da representação de mundo física”, pois passarei a discutir com
algum detalhe este trabalho. [...]
[36] Essa preocupação com uma física válida para todos os tempos e pessoas,
inclusive marcianos, numa época em que tantos problemas físicos ainda nos ocupam
diariamente, parece-me muito prematura, e quase cômica. Mas já respondi a esta
questão há muitos anos. Todas as criaturas vivas que no futuro estudarem física serão
obrigadas, como nós, a cuidarem de sua nutrição e sobrevivência, ou seja, a prestarem
atenção ao que é economicamente importante e permanente para elas; e isso lhes daria
um ponto de contato com nossa física, se por algum milagre elas tiverem acesso a ela.
De fato, não duvido que se um ser, em algum lugar do Universo, organizado de maneira
análoga a nós, pudesse fazer observações antes do início da Terra ou depois de seu fim,
ele perceberia um Universo funcionando de maneira semelhante ao que nós
descrevemos. Somente nesse sentido hipotético é que sou capaz de responder racional-
mente à questão que Planck coloca na pg. 23. [37] De acordo com minha concepção,
tudo [na ciência] depende do que é biológico e econômico, não de especulação e
3
certamente não da qualidade das impressões sensoriais. Independente da resposta final
quanto à “realidade” dos átomos, não duvido que se a teoria atômica descrever
quantitativamente a realidade empírica, então as deduções derivadas dela mantêm
algum tipo de relação com os fatos, restando determinar apenas qual é este tipo. [...] Os
resultados obtidos pela teoria atômica podem passar por numerosas e úteis modificações
em significado e interpretação, se não tivermos pressa em tomá-los como realidades.
Assim, honremos as convicções dos físicos! Mas não posso fazê-las minhas.
[...] Como o leitor deve ter notado, a concepção biológico-econômica do
processo de conhecimento pode perfeitamente coexistir de maneira pacífica, e mesmo
amigável, com a física atual. A única diferença que se manifestou até agora consiste na
crença na realidade dos átomos. Aqui, Planck mal consegue encontrar termos
suficientemente degradantes para tamanha heresia. [...] Após exortar o leitor, com
caridade cristã, a respeitar seu oponente, Planck finalmente me estigmatiza, com as
conhecidas palavras da Bíblia, como falso profeta. Vê-se que os físicos estão a caminho
de formarem uma igreja; já estão usando as tradicionais armas da igreja. Deixe-me
responder de maneira simples e direta: Se a crença na realidade dos átomos é tão
importante para vocês, então abandono o modo físico de pensar (p. 23); [38] não quero
mais ser um genuíno físico (p. 24); devolvo minha reputação científica (p. 25). Em
suma, muito obrigado pela comunidade dos crentes, mas para mim a liberdade de
pensamento é mais preciosa. [...]

C) Sobre a teoria do conhecimento físico de Mach: uma resposta (Max Planck)


Physikalische Zeitschrift 11 (1910) 1180-90.

[46] [...] Creio que estou autorizado a exprimir uma opinião sobre a teoria do
conhecimento físico de Mach, dado que me ocupei de sua teoria durante muitos anos.
No período em que estive em Kiel (1885-89), considerava-me um dos seguidores mais
ferrenhos da filosofia de Mach, e reconheço livremente que ela exerceu uma forte
influência sobre meu pensamento físico. Mas posteriormente a abandonei,
principalmente porque comecei a perceber que a filosofia natural de Mach não era capaz
de cumprir a brilhante promessa que atraíra a maioria de seus apoiadores: a eliminação
de todos os elementos metafísicos da teoria do conhecimento físico. [...]
[50] [...] Quando Mach tenta avançar com base em sua teoria do conhecimento,
geralmente ele é levado ao erro. Isso se aplica a sua ideia, vigorosamente defendida mas
fisicamente inútil, de que a relatividade de todos os movimentos translacionais [51] tem
uma contrapartida na relatividade de todos os movimentos rotacionais, de forma que
não se pode decidir, em princípio, se o céu das estrelas fixas gira em torno da Terra
estática, ou se é a Terra que gira diante do céu estático das estrelas fixas. A afirmação
simples e geral de que, na natureza, o momento angular de um corpo infinitamente
distante, girando em torno de um eixo com localização finita, não pode ter um valor
finito é, para Mach, falsa ou inaplicável. [...]
Demoraria muito para descrever, em detalhe, os conceitos físicos errôneos
produzidos por esta transferência inadmissível, da cinemática para a mecânica, do
princípio de relatividade dos movimentos rotacionais. Segue-se assim que a teoria de
Mach não pode dar conta do imenso progresso associado à introdução da cosmologia
copernicana. Só este fato deveria ser suficiente para colocar sob suspeição a teoria do
conhecimento de Mach.
Assim, no presente, seus “frutos” não chegam a muito. Mas talvez algum dia no
futuro? Ficaria feliz se os fatos me corrigissem. [...]

4
A Desarrazoada Efetividade da Matemática
nas Ciências Naturais*
Eugene Wigner (1960)**

[...] e é provável que haja aqui


algum segredo que ainda está
para ser descoberto (C.S. PEIRCE)

[1. Apresentação]

[222] Há uma estória de dois amigos, que haviam sido colegas de classe no ensino médio, e
que falavam sobre seus empregos. Um deles se tornara estatístico e estava trabalhando com
tendências populacionais. Ele mostrou a separata de um artigo para seu antigo colega de
classe. O artigo começava, como de costume, com a distribuição gaussiana, e o estatístico
explicou para seu colega o significado dos símbolos que representam uma população real, a
média da população, etc. Seu colega ficou um tanto incrédulo e em dúvida se o estatístico não
estava brincando. “Como é que você pode saber isso?”, ele perguntou. “E que símbolo é este
aqui?”. “Ah”, respondeu o estatístico, “este é pi”. “Mas o que é isso?” “A razão entre a
circunferência do círculo e seu diâmetro.” “Bem, agora sua piada está indo longe demais”,
finalizou o colega, “certamente a população não tem nada a ver com a circunferência do
círculo!”
Naturalmente, tendemos a sorrir da simplicidade da abordagem do colega. Mesmo
assim, quando escutei essa estória, tive um sentimento estranho, pois a reação do colega de
classe refletia apenas o senso comum usual. Fiquei ainda mais confuso quando, [223] alguns
dias depois, alguém chegou para mim e exprimiu sua perplexidade1 com o fato de que

*
Ou seja, “a não razoável eficácia da matemática”. A versão original é: WIGNER, E.P. (1960), “The Unreasonable
Effectiveness of Mathematics in the Natural Sciences”, Communications in Pure and Applied Mathematics 13:
1-14. Baseado em palestra feita em 11 de maio de 1959 na New York University, na Richard Courant Lecture in
Mathematical Sciences. Republicado em WIGNER (1967), Symmetries and Reflections, Indiana U. Press,
Bloomington, pp. 222-37, cuja paginação indicamos no texto [entre colchetes], e em WIGNER (1995),
Philosophical Reflections and Syntheses, Part B, Vol. 6 of The Collected Works of Eugene Paul Wigner,
Springer, Berlin, pp. 534-49 (na qual esta tradução é baseada). Disponível também na internet, em versão com
algumas diferenças. Tradução de Osvaldo Pessoa Jr., para o curso de Filosofia da Física, USP, 2009. A
numeração das seções foi introduzida pelo tradutor, para fins didáticos.
**
Eugene Paul Wigner (1902-95) nasceu de família judia em Budapeste, no Império Austro-Húngaro, com o
nome Wigner Pál Jenő, e trabalhou na Princeton University a partir de 1930. Ganhou o Prêmio Nobel de 1963
por suas contribuições à teoria do núcleo atômico e das partículas elementares, especialmente a descoberta e
aplicação de princípios de simetria. Contribuiu significantemente para os fundamentos da mecânica quântica,
defendendo (especialmente na década de 60) a importância da consciência humana.
1
O comentário a ser citado foi feito por F. Werner, quando era aluno em Princeton.

1
fazemos uma seleção bastante estreita quando escolhemos os dados com os quais testamos
nossas teorias. “Se fizéssemos uma teoria que focalizasse sua atenção em fenômenos que
desprezamos, e desprezasse alguns dos fenômenos que agora prendem nossa atenção, como
saber se não teríamos conseguido construir uma teoria que teria pouco em comum com a
teoria atualmente aceita, mas que ainda assim explicaria o mesmo número de fenômenos que
a teoria atual?” Devemos reconhecer que não temos nenhuma evidência direta de que não haja
tal teoria.
As duas estórias precedentes ilustram os dois pontos principais que são os assuntos da
presente comunicação. O primeiro ponto é que conceitos matemáticos surgem em conexões
totalmente inesperadas. Além disso, eles muitas vezes permitem uma descrição
inesperadamente próxima e acurada dos fenômenos presentes nestas conexões. Em segundo
lugar, justamente por causa dessa circunstância, e porque não compreendemos as razões de
eles serem tão úteis, nós não conseguimos saber se uma teoria formulada em termos de
conceitos matemáticos é a única apropriada. Estamos numa posição semelhante ao de um
homem que recebeu um molho de chaves e que, tendo que abrir várias portas em
seqüência, sempre acerta a chave na primeira ou segunda tentativa. Ele se torna cético sobre a
coordenação unívoca entre chaves e portas.
A maior parte do que falarei sobre essas questões não será novidade; ela provavel-
mente ocorreu para a maioria dos cientistas de uma forma ou outra. Meu objetivo principal é
iluminar isso a partir de vários lados. O primeiro ponto é que a enorme utilidade da
matemática nas ciências naturais é algo próximo ao misterioso, e que não há uma explicação
racional para ela. Em segundo lugar, é justamente esta utilidade excepcional dos conceitos
matemáticos que levanta a questão da unicidade de nossas teorias físicas. Para firmar o
primeiro ponto, de que a matemática desempenha um papel desarrazoadamente importante na
física, será útil dizer algumas palavras sobre a questão “O que é a matemática?”, e depois, “O
que é a física?”, e depois como a matemática entra nas teorias físicas, e finalmente, por que o
sucesso da matemática em seu papel na física parece ser tão desconcertante. Falarei muito
menos sobre o segundo ponto, a unicidade das teorias da física. Uma resposta apropriada para
esta questão exigiria um trabalho experimental e teórico que até hoje não foi empreendido.
[224]

[2.] O Que é a Matemática?

Certa vez alguém falou que a filosofia é o uso incorreto de uma terminologia que foi
inventada justamente para este propósito.2 Na mesma linha, eu diria que a matemática é a
ciência das operações habilidosas com conceitos e regras inventados justamente para este
propósito. A ênfase principal é na invenção de conceitos. A matemática logo ficaria sem
teoremas interessantes se estes tivessem que ser formulados em termos dos conceitos que já
aparecem nos axiomas. Além do mais, ao passo que é uma verdade inquestionável que os
conceitos da matemática elementar, e em particular da geometria elementar, foram
formulados para descrever entidades que são sugeridas diretamente pelo mundo real, o mesmo
não parece ser verdadeiro para os conceitos mais avançados, particularmente os conceitos que
desempenham um papel tão importante na física. Assim, as regras para operações com pares
de números são obviamente construídas para darem os mesmos resultados que as operações
com frações, que primeiro aprendemos sem referência a “pares de números”. As regras para
as operações com seqüências, ou seja, com números irracionais, também pertencem à
categoria de regras que foram elaboradas para reproduzir as regras para operações com

2
Esta afirmação é aqui citada a partir do livro de DUBISLAV, W. (1932), Die Philosophie der Mathematik in der
Gegenwart, Junker & Dünnhaupt Verlag, Berlim, p. 1.

2
grandezas que já eram conhecidas por nós. A maioria dos conceitos matemáticos mais
avançados, como números complexos, álgebras, operadores lineares, conjuntos de Borel – e
esta lista poderia prosseguir quase indefinidamente –, foram criados para que fossem temas
adequados com os quais o matemático poderia demonstrar sua engenhosidade e senso de
beleza formal. De fato, a definição desses conceitos, juntamente com a percepção de que
considerações interessantes e engenhosas poderiam ser aplicadas a eles, é a primeira
demonstração da engenhosidade do matemático que os define. A profunda ponderação
envolvida na formulação de conceitos matemáticos é posteriormente justificada pela
habilidade com a qual tais conceitos são usados. O grande matemático explora de maneira
completa e quase implacável o domínio de raciocínio permissível e evita o não permitido. Que
esta imprudência não o leva a um emaranhado de contradições é um milagre: certamente é
difícil acreditar que nosso poder de raciocínio foi levado, pelo processo de seleção natural de
Darwin, à perfeição que ele parece possuir. Todavia, este não é o assunto que estamos
tratando. O ponto principal, que terá que ser relembrado mais tarde, é que o matemático [225]
conseguiria formular apenas um punhado de teoremas interessantes se ele não pudesse definir
conceitos além daqueles contidos nos axiomas. Além disso, os conceitos que não estão
contidos nos axiomas são definidos tendo em vista permitir operações lógicas engenhosas que
satisfaçam nosso senso estético, tanto com relação às próprias operações quanto em relação
aos seus resultados de grande generalidade e simplicidade.3
Os números complexos fornecem um exemplo particularmente notável disso que foi
dito. Certamente, não há nada em nossa experiência que sugira a introdução de tais grandezas.
Com efeito, se se pedir a um matemático que justifique seu interesse em números complexos,
ele apontará, com certa indignação, para os vários teoremas lindos demonstrados nas teorias
das equações, das séries de potência e das funções analíticas em geral, que surgiram com a
introdução dos números complexos. O matemático não está disposto a abandonar o seu
interesse nessas tão lindas realizações de sua genialidade.4

[3.] O Que é a Física?

O físico está interessado em descobrir as leis da natureza inanimada. Para que se possa
compreender esta afirmação, é preciso analisar o conceito de “lei da natureza”.
O mundo à nossa volta é de uma complexidade desconcertante, e o fato mais óbvio a
respeito dele é que não conseguimos prever o futuro. Há uma piada que atribui a concepção
de que o futuro é incerto apenas ao otimista. Porém, o otimista está certo neste caso: o futuro
é imprevisível. Conforme comentou Schrödinger, é um milagre que, apesar da complexidade
desconcertante do mundo, certas regularidades nos eventos puderam ser descobertas.(1) Uma
dessas regularidades, descoberta por Galileo, é que quaisquer duas pedras, soltas
simultaneamente de uma mesma altura, atingem o chão ao mesmo tempo. As leis da natureza

3
M. POLANYI, em seu Personal Knowledge (U. Chicago Press, Chicago, 1958, p. 188), afirma: “Todas essas
dificuldades são apenas conseqüências de nossa recusa de ver que a matemática não pode ser definida sem que
se reconheça sua característica mais óbvia: qual seja, a de ser interessante”. [Polanyi foi o orientador de Wigner.]
4
Com relação a isso, o leitor talvez se interesse nos comentários um tanto irritados de Hilbert com respeito ao
intuicionismo, que “parece romper com a matemática e desfigurá-la”, Abh. Math. Sem. (U. Hamburg) 157
(1922), ou Gesammelte Werke, Springer, Berlim, 1935, p. 188.
(1)
[Wigner apresenta também algumas referências com números entre parênteses, inseridas posteriormente.]
SCHRÖDINGER, E. (1932), Über Indeterminismus in der Physik, J.A. Barth, Leipzig. Ver também: DUBISLAV, W.
(1933), Naturphilosophie, Junker & Dünnhaupt, Berlim, cap. 4.

3
referem-se a tais regularidades. A regularidade de Galileo é um protótipo de uma grande
classe de regularidades. Trata-se de uma regularidade surpreendente por três razões.
A primeira razão para ela ser surpreendente é que ela é verdadeira não só em Pisa, e na
época de Galileo, mas ela é verdadeira em todo lugar na Terra, e sempre foi verdadeira, [226] e
sempre será verdadeira. Esta propriedade da regularidade é reconhecida como uma
propriedade de invariância e, como tive a oportunidade de apontar algum tempo atrás (2), sem
princípios de invariância semelhantes àqueles implícitos na precedente generalização da
observação de Galileo, a física não seria possível. A segunda característica surpreendente é
que a regularidade que estamos discutindo é independente de muitas condições que poderiam
afetá-la. Ela é válida quer chova ou não, quer o experimento seja feito em uma sala ou na
Torre de Pisa, quer a pessoa que solte a pedra seja um homem ou uma mulher. Ela é válida até
quando as duas pedras são soltas simultaneamente, da mesma altura, por duas pessoas
diferentes. Há obviamente inúmeras outras condições que são irrelevantes do ponto de vista
da validade da regularidade de Galileo. A irrelevância de tantas circunstâncias que poderiam
desempenhar um papel no fenômeno observado também tem sido chamada de invariância (2).
Todavia, esta invariância é de um tipo diferente da anterior, já que ela não pode ser formulada
como um princípio geral. A exploração das condições que influenciam ou não um fenômeno
faz parte da exploração experimental inicial do campo. É a habilidade e a engenhosidade do
cientista experimental que o levam a fenômenos que dependem de um conjunto relativamente
estreito de condições um tanto quanto fáceis de realizar e reproduzir.5 No presente caso, a
restrição imposta por Galileo de observar corpos relativamente pesados foi o passo mais
importante no tocante a isso. Repetindo: é verdade que se não houvesse fenômenos que são
independentes de quase todas as condições, salvo um pequeno conjunto de condições
controláveis, a física seria impossível.
Os dois pontos precedentes, apesar de serem muito significativos do ponto de vista do
filósofo, não são os que mais surpreenderam a Galileo, e nem contêm uma lei específica da
natureza. A lei da natureza está contida na afirmação de que a duração de tempo que leva para
um corpo pesado cair de uma certa altura é independente do tamanho, material e forma do
corpo que cai. No quadro da segunda “lei” de Newton, isso equivale à afirmação de que a
força gravitacional que age em um corpo que cai é proporcional à sua massa, mas é
independente de tamanho e forma do corpo que cai. [227]
A intenção da discussão precedente é nos lembrar que, primeiro, não é de forma
alguma natural que existam “leis da natureza”, e muito menos que o homem seja capaz de
descobri-las.6 O presente autor teve ocasião, há algum tempo atrás, de chamar a atenção para
a sucessão de camadas de “leis da natureza”, cada camada contendo leis mais gerais e mais
abrangentes do que a anterior, e cuja descoberta constitui uma penetração mais profunda na
estrutura do universo do que com as camadas reconhecidas anteriormente.(3) No entanto, o
ponto mais significativo no presente contexto é que todas essas leis da natureza contêm,
(2)
WIGNER, E.P. (1949), “Invariance in Physical Theory”, Proc. Am. Phil. Soc. 93: 521-6. Reproduzido nas
coletâneas mencionadas em nossa primeira nota de rodapé (*).
5
Ver, com relação a isso, o ensaio gráfico de DEUTSCH, M. (1958), Daedalus 87: 86. Abner Shimony [aluno de
Wigner] me chamou a atenção para uma passagem semelhante em PEIRCE, C.S. (1957), Essays in the Philosophy
of Science, Liberal Arts Press, Nova Iorque, p. 237.
6
E. SCHRÖDINGER, em seu What is Life?, Cambridge U. Press, 1945, p. 31 [O Que é a Vida?, trad. J. Paula Assis
& V.Y.K de Paula Assis, Ed. Unesp, São Paulo, 1977], diz que este segundo milagre pode estar para além da
compreensão humana.
(3)
WIGNER, E.P. (1950), “The Limits of Science”, Proc. Am. Phil. Soc. 94: 422-7. Reproduzido nas coletâneas
mencionadas em nossa primeira nota de rodapé (*). Ver também MARGENAU, H. (1950), The Nature of Physical
Reality, McGraw-Hill, Nova Iorque, cap. 8.

4
mesmo em suas mais remotas conseqüências, apenas uma pequena parte de nosso
conhecimento a respeito do mundo inanimado. Todas as leis da natureza são enunciados
condicionais que permitem uma previsão de alguns eventos futuros com base no
conhecimento do presente, sendo que alguns aspectos do estado atual do mundo – na prática,
a maioria esmagadora dos determinantes do estado atual do mundo – são irrelevantes do
ponto de vista da previsão. Esta irrelevância refere-se ao segundo ponto da discussão sobre o
teorema de Galileo.7
Com respeito ao estado atual do mundo – como a existência da terra na qual vivemos e
onde Galileo realizou seus experimentos, a existência do sol e de tudo que nos rodeia – as leis
da natureza permanecem totalmente caladas. É em consonância com isso, primeiramente, que
as leis da natureza podem ser usadas para prever eventos futuros somente sob circunstâncias
excepcionais – quando todos os determinantes relevantes do estado atual do mundo [as
condições iniciais] forem conhecidos. É também em consonância com isso que a construção
de máquinas constitui a mais espetacular realização do físico – máquinas cujo funcionamento
pode ser antevisto por ele. Nessas máquinas, o físico cria uma situação na qual todas as
coordenadas relevantes são conhecidas, de forma que o comportamento da máquina possa ser
previsto. Radares e reatores nucleares são exemplos de tais máquinas.
O principal propósito da discussão precedente é salientar que as leis da natureza são
todas enunciados condicionais e que elas se referem apenas a uma parte muito pequena do
nosso conhecimento do mundo. Assim, a mecânica clássica, que é o protótipo melhor
conhecido de teoria física, fornece as derivadas segundas das coordenadas posicionais de
todos os corpos, [228] com base no conhecimento das posições, etc., desses corpos. Ela não
fornece informação alguma sobre a existência desses corpos, nem sobre suas posições ou
velocidades. Deve-se mencionar, no interesse da exatidão, que descobrimos há mais ou menos
trinta anos [com a física quântica] que mesmo os enunciados condicionais não podem ser
totalmente precisos: que os enunciados condicionais são leis de probabilidade que nos
permitem apenas fazer apostas inteligentes sobre propriedades futuras do mundo inanimado,
com base no conhecimento do estado presente. Eles não permitem que façamos enunciados
categóricos, nem mesmo enunciados categóricos condicionados pelo estado presente do
mundo. A natureza probabilística das “leis da natureza” também se manifesta no caso das
máquinas, e pode ser verificado, pelo menos no caso de reatores nucleares, se eles
funcionarem a uma potência muito baixa. Porém, a limitação adicional do escopo das leis da
natureza8, que segue de sua natureza probabilística, não desempenhará papel algum no
restante da discussão.

[4.] O Papel da Matemática nas Teorias Físicas

Tendo refrescado nossas mentes sobre a essência da matemática e da física, devemos


estar numa melhor posição para examinar o papel da matemática nas teorias físicas.
Naturalmente, usamos a matemática no dia-a-dia da física, para avaliar os resultados
das leis da natureza, para aplicar os enunciados condicionais às condições particulares que
venham a prevalecer ou venham a nos interessar. Para que isso seja possível, as leis da
natureza precisam já estar formuladas em linguagem matemática. No entanto, este papel de
avaliador das conseqüências de teorias já estabelecidas não é o papel mais importante da

7
Certamente é desnecessário mencionar que o teorema de Galileo, conforme apresentado no texto, não esgota o
conteúdo das observações de Galileo com relação às leis da queda livre dos corpos.
8
Ver, por exemplo, E. Schrödinger, na referência (1) [acima].

5
matemática na física. A matemática, ou melhor, a matemática aplicada, não é quem comanda
a situação nesta função: ela está servindo meramente como um instrumento.
Todavia, a matemática desempenha um papel mais soberano na física. Isso já estava
implícito na afirmação, feita quando se discutiu o papel da matemática aplicada, de que as leis
da natureza precisam já estar formuladas em linguagem matemática para poderem ser um
objeto de uso da matemática aplicada. A afirmação de que as leis da natureza estão escritas na
linguagem da matemática foi feita propriamente há trezentos anos atrás9; hoje em dia ela é
mais verdadeira do que nunca. Para mostrar a importância que os conceitos matemáticos
possuem na formulação [229] das leis da física, recordemos, como exemplo, os axiomas da
mecânica quântica, formulados explicitamente pelo grande matemático von Neumann(4), ou
implicitamente pelo grande físico Dirac(5). Há dois conceitos básicos na mecânica quântica:
estados e observáveis. Os estados são vetores no espaço de Hilbert, e os observáveis são
operadores auto-adjuntos que atuam nesses vetores. Os valores possíveis das observações são
os valores característicos dos operadores – mas é melhor pararmos por aqui, se não quisermos
fazer uma lista dos conceitos matemáticos desenvolvidos na teoria dos operadores lineares.
É verdade, é claro, que a física escolhe certos conceitos matemáticos para a
formulação das leis da natureza, e certamente apenas uma fração de todos os conceitos
matemáticos é usada na física. É também verdade que os conceitos que foram escolhidos não
foram arbitrariamente selecionados de uma listagem de termos matemáticos, mas foram
desenvolvidos, em muitos senão em todos os casos, de maneira independente pelo físico, e só
depois reconhecidos como tendo sido concebidos anteriormente pelo matemático. Porém, não
é verdade, como muitas vezes se diz, que isso tinha que acontecer, porque a matemática usaria
os conceitos mais simples possíveis e que estes estariam fadados a aparecer em qualquer
formalismo. Conforme vimos anteriormente, os conceitos da matemática não são escolhidos
por sua simplicidade conceitual – mesmo seqüências de pares de números estão longe de ser
os conceitos mais simples –, mas por sua receptividade a manipulações sagazes e a
argumentos admiráveis e brilhantes. Não esqueçamos que o espaço de Hilbert da mecânica
quântica é o espaço de Hilbert complexo, com um produto escalar hermitiano. Certamente,
para a mente despreocupada, números complexos estão longe de ser naturais ou simples, e
eles não podem ser sugeridos por observações físicas. Além disso, o uso de números
complexos não é, neste caso, um truque de cálculo da matemática aplicada, mas é quase uma
necessidade na formulação das leis da mecânica quântica. Enfim, começa agora a parecer que
não só os números complexos estão destinados a desempenhar um papel decisivo na
formulação da teoria quântica, mas também as chamadas funções analíticas. Refiro-me à
teoria das relações de dispersão que está em franco desenvolvimento.
É difícil evitar a impressão de que um milagre nos confronta aqui, comparável em sua
natureza notável ao milagre de que a mente humana consiga enunciar mil argumentos sem
cair em contradição, ou aos dois milagres da existência das leis da natureza e da capacidade
da mente humana de descobri-las. Do que eu conheço, a observação que mais se aproxima de
uma explicação para o aparecimento de conceitos matemáticos na física é a afirmação de
Einstein [230] de que as únicas teorias físicas que estamos dispostos a aceitar são as teorias
belas. Resta argumentar que os conceitos da matemática, que convidam ao exercício de tanta
sagacidade, tenham a qualidade da beleza. Porém, a observação de Einstein explica no

9
Ela é atribuída a Galileo.

(4) VON NEUMANN, J. (1932), Mathematische Grundlagen der Quantenmechanik, Springer, Berlim. Tradução
para o inglês: Princeton U. Press, 1955.

(5) DIRAC, P.A.M. (1947), Quantum Mechanics, 3a ed., Clarendon, Oxford.

6
máximo as propriedades de teorias nas quais estamos dispostos a acreditar, e não faz
referência alguma à acurácia intrínseca da teoria. Tratemos então desta questão.

[5.] O Sucesso das Teorias Físicas é realmente Surpreendente?

Uma explicação possível para o uso que o físico faz da matemática para formular suas
leis da natureza é que ele é uma pessoa um tanto irresponsável. Como resultado disso, quando
ele encontra uma conexão entre duas grandezas que se assemelha a uma conexão bem-
conhecida da matemática, ele salta à conclusão de que a conexão é aquela discutida na
matemática, simplesmente porque ele não conhece nenhuma outra conexão semelhante. Não é
a intenção da presente discussão refutar a acusação de que o físico é uma pessoa um tanto
irresponsável. Talvez ele seja. No entanto, é importante salientar que a formulação
matemática da experiência muitas vezes grosseira do físico leva, em um número excepcional
de casos, a uma descrição espantosamente acurada de uma grande classe de fenômenos. Isso
mostra que a linguagem matemática tem mais ao seu favor do que ser a única linguagem na
qual conseguimos falar; isso mostra que ela é, num sentido muito real, a linguagem correta.
Passemos a considerar alguns exemplos.
O primeiro exemplo é o bastante citado exemplo do movimento planetário. As leis da
queda dos corpos tornaram-se razoavelmente bem estabelecidas como resultado de
experimentos conduzidos principalmente na Itália. Esses experimentos não podiam ser muito
acurados, no sentido em que hoje entendemos acurácia, em parte por causa do efeito da
resistência do ar e em parte por causa da impossibilidade, àquela época, de medir intervalos
de tempo curtos. Mesmo assim, não é surpreendente que, como resultado de seus estudos, os
cientistas naturais italianos tenham adquirido uma familiaridade com as maneiras pelas quais
objetos atravessam a atmosfera. Foi Newton quem então relacionou a lei da queda livre dos
objetos com o movimento da lua; e percebeu que a parábola da trajetória de uma pedra
arremessada na terra e o círculo da trajetória da lua no céu são casos particulares do mesmo
objeto matemático, a elipse; e postulou a lei universal da gravitação com base em uma única
coincidência numérica que na época era muito rudimentar. Filosoficamente, a lei da
gravitação formulada por Newton era repugnante para sua época e para ele próprio.
Empiricamente, ela [231] estava baseada em observações muito esparsas. A linguagem
matemática na qual ela foi formulada continha o conceito de derivada segunda, e nós que já
tentamos desenhar um círculo osculador a uma curva sabemos que a derivada segunda não é
um conceito muito imediato. A lei da gravidade que Newton relutantemente estabeleceu, e
que ele pôde verificar com uma acurácia de aproximadamente 4%, posteriormente se mostrou
acurada numa porcentagem menor do que dez milésimos, e se tornou tão intimamente
associada à idéia de acurácia absoluta que só recentemente os físicos se tornaram audaciosos
o suficiente para investigar as limitações de sua acurácia.10 Certamente, o exemplo da lei de
Newton, citado repetidas vezes, deve ser mencionado primeiro como um exemplo
monumental de uma lei, formulada em termos que parecem simples para o matemático, que se
mostrou acurada além de todas as expectativas razoáveis. Recapitulemos nossa tese com este
exemplo: primeiro, a lei, particularmente porque uma derivada segunda aparece nela, é
simples apenas para o matemático, não para o senso comum ou para o calouro sem formação
matemática; em segundo lugar, ela é uma lei condicional de escopo muito limitado. Ela não
explica nada sobre a terra que atrai a pedra de Galileo, ou sobre a forma circular da órbita
lunar, ou sobre os planetas do sol. A explicação dessas condições iniciais é deixada para o
geólogo e o astrônomo, e eles têm bastante trabalho com elas.

10
Ver, por exemplo, DICKE, R.H. (1959), Am. Sci. 25.

7
O segundo exemplo é o da mecânica quântica ordinária, elementar. Ela surgiu quando
Max Born percebeu que algumas regras de cálculo dadas por Heisenberg eram formalmente
idênticas às regras de cálculo com matrizes, estabelecidas muito tempo antes por
matemáticos. Born, Jordan e Heisenberg então propuseram substituir as variáveis de posição e
momento das equações da mecânica clássica por matrizes.(6)11Eles aplicaram as regras da
mecânica matricial para alguns problemas muito idealizados e os resultados foram bastante
satisfatórios. Porém, não havia na época uma evidência racional de que sua mecânica
matricial se mostraria correta sob condições mais realistas. Eles inclusive escreveram: “se a
mecânica aqui proposta se mostrar correta em seus traços essenciais”. De fato, a primeira
aplicação de sua mecânica a um problema realista, o do átomo de hidrogênio, foi dado vários
meses depois, por Pauli. Esta aplicação forneceu resultados que concordaram com a
experiência. Isso era satisfatório, mas era algo até esperado, pois as regras de cálculo de
Heisenberg foram abstraídas de [232] problemas que justamente incluíam a velha teoria do
átomo de hidrogênio. O milagre ocorreu apenas quando a mecânica matricial, ou uma teoria
matematicamente equivalente, foi aplicada a problemas para os quais as regras de cálculo de
Heisenberg não faziam sem sentido. As regras de Heisenberg pressupunham que as equações
clássicas de movimento tinham soluções com certas propriedades de periodicidade; e as
equações de movimento dos dois elétrons do átomo de hélio, ou do número ainda maior de
elétrons de átomos mais pesados, simplesmente não têm essas propriedades, de forma que as
regras de Heisenberg não podem ser aplicadas nesses casos. Mesmo assim, o cálculo do nível
de menor energia do hélio, feito há alguns meses atrás por Kinoshita em Cornell e por Bazley
no Bureau of Standards, concorda com os dados experimentais dentro da acurácia das
observações, que é uma parte em dez milhões. Com certeza, neste caso, conseguimos “tirar
alguma coisa” que não tínhamos posto nas equações.
O mesmo é verdade das características qualitativas dos “espectros complexos”, ou
seja, os espectros dos átomos mais pesados. Gostaria de recordar uma conversa com Jordan,
que me disse, quando as características qualitativas do espectro foram derivadas, que um
desacordo entre as regras derivadas da teoria quântica e as regras estabelecidas pela pesquisa
empírica forneceriam a última oportunidade para se fazer uma modificação no quadro geral da
mecânica matricial. Em outras palavras, Jordan sentiu que ficaríamos sem ação, pelo menos
temporariamente, se um desacordo inesperado ocorresse na teoria do átomo de hélio. Tal
teoria, naquela época, foi desenvolvida por Kellner e por Hilleraas. O formalismo matemático
era claro demais e inalterável, de forma que se o milagre do hélio, mencionado anteriormente,
não tivesse ocorrido, uma verdadeira crise teria surgido. Certamente, os físicos teriam
superado a crise de uma maneira ou outra. Por outro lado, é verdade que a física, como a
conhecemos hoje, não seria possível sem uma recorrência constante de milagres semelhantes
ao do átomo de hélio, que é talvez o milagre mais admirável que ocorreu ao longo do
desenvolvimento da mecânica quântica elementar, mas certamente não o único. De fato, o
número de milagres análogos é limitado, segundo nosso ponto de vista, apenas por nossa
disposição de ir atrás de mais casos semelhantes. A mecânica quântica teve, todavia, muitos
outros sucessos quase tão notáveis, que nos deram a firme convicção de que ela é o que
chamamos de correta.
O último exemplo é o da eletrodinâmica quântica, ou a teoria do deslocamento de
Lamb. Ao passo que a teoria da gravitação de Newton ainda tinha [233] conexões óbvias com
a experiência, no caso da formulação da mecânica matricial a experiência entrava apenas na
forma refinada ou sublimada das prescrições de Heisenberg. A teoria quântica do
deslocamento de Lamb, concebida por Bethe e estabelecida por Schwinger, é uma teoria

11(6)
BORN, M. & JORDAN, P. (1925), “On Quantum Mechanics”, Z. Physik 34: 858-8. BORN, M.; HEISENBERG,
W. & JORDAN, P. (1926), “On Quantum Mechanics, Part II”, Z. Physik 35: 557-615. A frase citada ocorre neste
último artigo, na p. 558. [Na verdade, ela aparece no último parágrafo do artigo.]

8
puramente matemática e a única contribuição direta da experimentação foi mostrar a
existência de um efeito mensurável. O acordo com o cálculo é melhor do que uma parte em
mil.
Os três exemplos precedentes, que poderiam ser multiplicados quase indefinidamente,
devem ilustrar a adequação e acurácia da formulação matemática das leis da natureza em
termos de conceitos escolhidos por sua capacidade de serem manipulados – sendo que as “leis
da natureza” têm uma acurácia quase fantástica, mas um escopo estritamente limitado.
Proponho que se refira à observação que esses exemplos ilustram como a “lei empírica da
epistemologia”. Juntamente com as leis de invariância das teorias físicas, ela é um
fundamento indispensável para essas teorias. Sem as leis de invariância, não se poderia
atribuir às teorias físicas qualquer fundamento de fato; se a lei empírica da epistemologia
fosse incorreta, careceríamos de encorajamento e reafirmação, que são necessidades emotivas,
sem as quais as “leis da natureza” não poderiam ter sido exploradas com sucesso. O Dr. R.G.
Sachs, com quem discuti a lei empírica da epistemologia, chamou-a de um artigo de fé do
físico teórico, e ela certamente o é. Todavia, o que ele chamou de nosso artigo de fé pode ser
bem sustentado por exemplos concretos – há muitos exemplos além dos três que foram
mencionados.

[6.] A Unicidade das Teorias da Física

A natureza empírica da observação precedente parece-me auto-evidente. Certamente


não se trata de uma “necessidade de pensamento”, e para demonstrar isso nem seria
necessário apontar para o fato de que ela se aplica apenas a uma parte muito pequena de nosso
conhecimento do mundo inanimado. É absurdo acreditar que a existência de expressões
matematicamente simples para a derivada segunda da posição seja auto-evidente, já que não
há expressões semelhantes para a própria posição ou para a velocidade. É portanto
surpreendente o quão facilmente a maravilhosa dádiva contida na lei empírica da
epistemologia foi tida como óbvia. A habilidade da mente humana, mencionada
anteriormente, de formar uma cadeia de 1000 conclusões e ainda assim se manter “correta” é
uma semelhante dádiva. [234]
Toda lei empírica tem o traço inquietante de que não se conhecem suas limitações.
Vimos que há regularidades nos eventos do mundo à nossa volta que podem ser formuladas
em termos de conceitos matemáticos com uma acurácia excepcional. Por outro lado, há
aspectos do mundo em relação aos quais não acreditamos que haja quaisquer regularidades
exatas. Chamamos esses de condições iniciais. A questão que se apresenta é se as diferentes
regularidades, ou seja, as várias leis da natureza que serão descobertas, se fundirão em uma
unidade consistente única, ou se pelo menos se aproximarão assintoticamente desta fusão. De
modo alternativo, é possível que sempre haja algumas leis da natureza que não tenham nada
em comum entre si. Isso é verdadeiro hoje em dia, por exemplo, com relação às leis da
hereditariedade e as da física. É até possível que algumas das leis da natureza entrem em
conflito umas com as outras, com respeito às suas implicações, mas que cada uma permaneça
suficientemente convincente em seu próprio domínio, de forma que não estejamos dispostos a
abandonar nenhuma delas. Talvez tenhamos que nos resignar a tal estado de coisas, senão o
nosso interesse em aclarar o conflito entre as várias teorias poderia se esvair. Perderíamos
interesse na “verdade última”, isto é, num retrato que seja a fusão consistente, numa única
unidade, de pequenos retratos formados a partir dos vários aspectos da natureza.
Pode ser útil ilustrar as alternativas a partir de um exemplo. Temos hoje em dia, na
física, duas teorias de grande poder e interesse: a teoria dos fenômenos quânticos e a teoria da
relatividade. Essas duas teorias têm suas raízes em grupos mutuamente exclusivos de

9
fenômenos. A teoria da relatividade se aplica a corpos macroscópicos, como estrelas. O
evento de coincidência, ou seja, em última análise o de colisão, é o evento primitivo na teoria
da relatividade, e define um ponto no espaço-tempo, ou pelo menos definiria um ponto se as
partículas colidentes fossem infinitamente pequenas. A teoria quântica tem suas raízes no
mundo microscópico e, do seu ponto de vista, o evento de coincidência ou colisão, mesmo
que ocorresse entre partículas sem extensão espacial, não é primitivo e de forma alguma
nitidamente isolado no espaço-tempo. As duas teorias operam com conceitos matemáticos
diferentes – o espaço de Riemann quadridimensional e o espaço de Hilbert de infinitas
dimensões, respectivamente. Até hoje, as duas teorias não puderam ser unidas, ou seja, não há
uma formulação matemática que tenha essas duas teorias como aproximações. Todos os
físicos acreditam que uma união das duas teorias seja inerentemente possível e que a
encontraremos. Mesmo assim, é possível também imaginar que nenhuma união das duas
teorias [235] possa ser encontrada. Este exemplo ilustra as duas possibilidades mencionadas
anteriormente, de união e de conflito, ambas as quais são concebíveis.
Para que se possa ter uma indicação de qual das alternativas finalmente esperar,
podemos fingir ser um pouco mais ignorantes do que somos e nos colocar num nível de
conhecimento mais baixo do que de fato possuímos. Se pudermos encontrar uma fusão de
nossas teorias nesse nível inferior de inteligência, poderemos confiantemente esperar que
encontraremos uma fusão de nossas teorias também no nível real de inteligência. Por outro
lado, se chegássemos em teorias mutuamente contraditórias num nível um pouco inferior de
conhecimento, a possibilidade de permanência de teorias conflitantes também não poderá ser
excluída para nós. O nível de conhecimento e engenhosidade é uma variável contínua, e é
improvável que uma variação relativamente pequena dessa variável contínua altere, de
inconsistente para consistente, o retrato de mundo atingível.10 Considerado deste ponto de
vista, é um fator adverso o fato de que algumas teorias, que sabemos serem falsas, dão
resultados tão espantosamente acurados. Se tivéssemos um conhecimento um tanto menor, o
grupo de fenômenos que essas teorias “falsas” explicam nos pareceria grande o suficiente para
“demonstrar” essas teorias. No entanto, essas teorias são consideradas “falsas” por nós
justamente pela razão de que elas são, em última análise, incompatíveis com retratos mais
abrangentes e, se um número suficientemente grande de tais teorias falsas forem descobertas,
elas estariam destinadas a se mostrarem também em conflito entre si. De maneira semelhante,
é possível que as teorias, que consideramos “demonstradas” por um número de concordâncias
numéricas que nos parece suficientemente grande, sejam falsas porque estão em conflito com
uma possível teoria mais abrangente, que estaria para além de nossos meios de descoberta. Se
isso fosse verdade, deveríamos esperar conflitos entre nossas teorias quando seu número
crescesse além de um certo ponto, e quando elas cobrissem um número suficientemente
grande de grupos de fenômenos. Por contraste ao artigo de fé do físico teórico, mencionado
anteriormente, isso é o pesadelo do teórico. [236]
Consideremos alguns exemplos de teorias “falsas” que fornecem, tendo em vista sua
falsidade, descrições alarmantemente acuradas de grupos de fenômenos. Com alguma boa
vontade, podem se descartar algumas das evidências que esses exemplos fornecem. O sucesso
das primeiras idéias pioneiras de Bohr a respeito do átomo sempre foi um tanto estreito, e o
mesmo se aplica aos epiciclos de Ptolomeu. Nosso ponto de vista atual fornece uma descrição
acurada de todos os fenômenos que essas teorias mais primitivas podem descrever. O mesmo
não é mais verdade a respeito da chamada teoria do elétron livre, que fornece um retrato

10
Este trecho foi escrito após muita de hesitação. O autor está convencido de que seja útil, em discussões
epistemológicas, abandonar a idealização que o nível de inteligência humana tenha uma posição singular numa
escala absoluta. Em alguns casos pode até ser útil considerar o grau que é possível atingir no nível de
inteligência de alguma outra espécie. Porém, o autor também reconhece que sua linha de raciocínio indicada no
texto é muito breve e não está sujeita a uma avaliação suficientemente crítica para ser confiável.

10
maravilhosamente acurado de muitas, senão a maioria, das propriedades de metais,
semicondutores e isolantes. Em particular, ela explica o fato, nunca propriamente entendido
com base na “teoria real”, que isolantes exibem uma resistência específica à eletricidade que
pode ser 1026 maior do que aquela de metais. De fato, não há evidência experimental que
mostre que a resistência não seja infinita nas condições em que a teoria do elétron livre nos
levaria a esperar uma resistência infinita. Mesmo assim, estamos convencidos de que a teoria
do elétron livre é uma aproximação grosseira que deve ser substituída por um retrato mais
acurado, na descrição de todos os fenômenos concernentes a sólidos.
Visto do nosso ponto de observação real, a situação apresentada pela teoria do elétron
livre é irritante, mas não parece ser o presságio de inconsistências que sejam insuperáveis para
nós. A teoria do elétron livre levanta dúvidas sobre o quanto devemos confiar na concordância
numérica entre teoria e experiência como evidência para a correção da teoria. Estamos
acostumados com tais dúvidas.
Uma situação muito mais difícil e confusa surgiria se pudéssemos, algum dia,
estabelecer uma teoria dos fenômenos da consciência, ou da biologia, que seria tão coerente e
convincente quanto nossas teorias atuais sobre o mundo inanimado. As leis da hereditariedade
de Mendel e o trabalho subsequente sobre genes pode muito bem ser o início de tal teoria, no
que se refere à biologia. Além disso, é bem possível que um argumento abstrato possa ser
encontrado que mostre que há um conflito entre tal teoria e os princípios aceitos da física. O
argumento poderia ser de natureza tão abstrata que poderia não ser possível resolver o
conflito, em favor de uma ou outra teoria, por meio de um experimento. Tal situação poria
uma pesada tensão na fé que temos em nossas teorias, e na nossa crença na realidade dos
conceitos que formamos. Ela nos daria um senso profundo de frustração em nossa busca pelo
que chamei de “a verdade última”. A razão pela qual tal situação é concebível [237] é que,
fundamentalmente, não sabemos porque nossas teorias funcionam tão bem. Assim, sua
acurácia pode não ser a prova de sua verdade e consistência. De fato, é a crença do presente
autor que algo semelhante à situação descrita acima existe se as atuais leis da hereditariedade
e da física forem confrontadas.
Deixem-me encerrar num tom mais animado. O milagre de que a linguagem da
matemática seja apropriada para a formulação das leis da física é uma maravilhosa dádiva que
nós nem entendemos e nem merecemos. Devemos estar gratos por ela, e esperar que ela
permaneça válida na pesquisa futura, e que ela possa se estender – para melhor ou para pior,
para nosso prazer ou para nosso espanto – sobre vastos ramos do conhecimento.
O autor gostaria aqui de registrar sua dívida para com o Dr. M. Polanyi que, há muitos
anos atrás, influenciou profundamente seu pensamento em problemas de epistemologia, e com
V. Bargmann, cuja amistosa crítica foi importante para que se atingisse o mínimo de clareza
que foi atingido. Ele também está muito agradecido a A. Shimony por ter revisto o presente
artigo e por ter lhe chamado a atenção para os escritos de C.S. Peirce.

11
FLF0472 – Filosofia da Física – 2013 – Prof. Osvaldo Pessoa
Cálculo da curvatura do espaço-tempo na Terra

(Baseado em exemplo apresentado em MISNER, C.W.; THORNE, K.S.


& WHEELER, J.A. (1970), Gravitation, Freeman, San Francisco, p. 33)

Considere o movimento parabólico de projéteis na superfície da Terra, desprezando-se a


resistência do ar. Pode-se caracterizar uma dessas trajetórias univocamente por meio de três
parâmetros, o alcance horizontal A, a altura máxima h, e a velocidade horizontal de vx. Com isso o
intervalo de tempo do trajeto é dado por t = A/vx.

Examinemos dois casos:


(Caso 1) Uma bola que percorre A = 10 m, com h1 = 5 m, e vx1 = 5 m/s.
(Caso 2) Uma bala de revólver que percorre o mesmo A = 10 m, com h2 = 5⋅10–4 m,
e vx2 = 500 m/s.

Queremos calcular o raio de curvatura dessas trajetórias, aproximando-as de um círculo. Para


um segmento de círculo, a geometria estipula que o raio de curvatura R se relaciona com a corda A e
a altura h da seguinte maneira:

ℎ ‫ܣ‬ଶ
ܴ= +
2 8ℎ

1
Responda:

(a) Calcule as curvaturas no espaço, R1 e R2, das duas trajetórias, aproximando a parábola a um
segmento de círculo.

Agora vamos calcular essas curvaturas no espaço-tempo. Para isso, devemos levar em conta
que, na Teoria da Relatividade Restrita, o tempo pode ser medido em unidades espaciais, por
exemplo metros, desde que se multiplique o seu valor em segundos pela velocidade da luz em m/s,
c = 3⋅108 m/s. Ou seja, 1 s = 3⋅108 m.

(b) Calcule agora as curvaturas no espaço-tempo, R1’ e R2’, das duas trajetórias. Para este cálculo, h
não se modifica, mas o alcance A’ deve ser recalculado para incluir a dimensão temporal ct. (O
aluno pode usar ict, que é o correto, mas as conclusões são as mesmas em ambos os casos.)

‫ܣ‬ᇱ = ඥ‫ܣ‬ଶ + ܿ ଶ ‫ ݐ‬ଶ

(c) Compare as curvaturas obtidas. Que conclusões se podem tirar?

2
A Irrealidade do Tempo*
J.M.E. McTaggart (1927)**

[9] 303. Será conveniente iniciar nossa investigação perguntando se alguma coisa que
existe pode possuir a característica de estar no tempo. Tentarei provar que não.
Parece altamente paradoxal afirmar que o tempo é irreal, e que todos os enunciados
que envolvem sua realidade estão errados. Tal afirmação envolve um afastamento da posição
natural da humanidade, que é muito maior do que o envolvido na afirmação da irrealidade do
espaço ou da irrealidade da matéria. Pois na experiência de cada homem há uma parte – seu
próprio estado, conforme lhe é conhecido por introspecção – que não parece ser nem espacial
ou material. Porém, não temos experiência alguma que não pareça ser temporal. Mesmo os
nossos juízos de que o tempo é irreal parecem estar eles próprios no tempo.
304. Mesmo assim, em todas as épocas e em todas as partes do mundo, a crença na
irrealidade do tempo mostrou-se singularmente persistente. Na filosofia e religião do Ocidente
– e ainda mais, eu suponho, na filosofia e religião do Oriente – encontramos que a doutrina da
irrealidade do tempo ressurge continuamente. Nem a filosofia e nem a religião permanecem
por muito tempo afastadas do misticismo, e quase todos os misticismos negam a realidade do
tempo. Na filosofia, o tempo é tratado como irreal por Spinoza, por Kant e por Hegel. Dentre
os pensadores mais modernos, a mesma posição é adotada por Bradley. Tal confluência de
opiniões é altamente significativa, e não é menos significativa pelo fato de a doutrina adquirir
diferentes formas e ser sustentada por argumentos tão diferentes.
Acredito que nada que exista possa ser temporal, e que portanto o tempo é irreal. Mas
creio nisto por razões que não foram colocadas por nenhum dos filósofos mencionados.

*
Trata-se de uma tradução abreviada de MCTAGGART, J.M.E. (1927), “Time”, capítulo XXXIII de sua obra The
Nature of Existence, vol. II, pp. 9-31, e que aparece parcialmente em LOUX, M.J. (org.) (2001), Metaphysics:
Contemporary Readings, Routledge, Londres, pp. 260-71. As páginas do original estão indicadas entre colchetes,
[10], e as notas de rodapé foram suprimidas. Este capítulo é uma versão modificada do original “The unreality of
time”, Mind 17, 1908, pp. 456-73, que está disponível na internet, em inglês. Tradução de Osvaldo Pessoa Jr.,
para o curso de Filosofia da Física, USP, 2011.
**
Nascido em Londres como John McTaggart Ellis (1866-25), teve mais um sobrenome McTaggart adicionado
por motivo de herança. Lecionou Filosofia na Universidade de Cambridge a partir de 1897. Foi um dos
principais idealistas britânicos, que seguiram e modificaram a metafísica de Hegel.

1
305. Posições no tempo, conforme o tempo nos aparece à primeira vista, são
distinguidos de duas maneiras. [Série B:] Cada posição é temporalmente Anterior [mais cedo,
Earlier] a algumas e temporalmente Posterior [mais tarde, Later] a algumas das outras
posições. Para constituir tal série, exige-se uma relação assimétrica transitiva, [10] e uma
coleção de termos tal que, de quaisquer dois deles, ou o primeiro está nesta relação com o
segundo, ou o segundo está nesta relação com o primeiro. Podemos tomar aqui tanto a relação
de “mais cedo que” [earlier than ] quanto a relação de “mais tarde que” [later than], ambas as
quais, é claro, são transitivas e assimétricas. Se tomarmos a primeira, então os termos têm que
ser tais que, de qualquer dois deles, ou o primeiro é anterior ao segundo, ou o segundo é
anterior ao primeiro.
Em segundo lugar, [Série A:] cada posição ou é Passado, Presente, ou Futuro. As
distinções da primeira classe são permanentes, ao passo que as da segunda não o são. Se em
algum momento M for anterior a N, ele sempre será anterior. Mas um evento, que agora é
presente, foi futuro e será passado.
306. Dado que as distinções da primeira classe são permanentes, pode-se pensar que
elas sejam mais objetivas, e mais essenciais para a natureza do tempo, do que as da segunda
classe. Creio, porém, que isso seja um erro, e que a distinção entre passado, presente e futuro
é tão essencial para o tempo quanto a distinção entre “mais cedo” e “mais tarde”, apesar de,
em um certo sentido, conforme veremos [na p. 30], essa distinção poder ser considerada mais
fundamental do que aquela entre “mais cedo” e “mais tarde”. E é porque as distinções entre
passado, presente e futuro me parecem mais essenciais para o tempo, que eu considero o
tempo irreal.
De forma abreviada, darei o nome de “série A” para a série de posições que vai do
passado remoto, passando pelo passado próximo, até o presente, e então do presente, passando
pelo futuro próximo, para o futuro longínquo, ou no sentido inverso. Para a série de posições
que vai do temporalmente anterior para o temporalmente posterior, ou no sentido inverso,
darei o nome de “série B”. O conteúdo de qualquer posição no tempo forma um evento. [...]
[11] 307. A primeira pergunta que devemos considerar é se é essencial para a realidade
do tempo que seus eventos devam formar tanto uma série A quanto uma série B. Para
começar, está claro que, na experiência atual, nós nunca observamos eventos no tempo a não
ser que eles formem essas duas séries. Percebemos eventos no tempo como estando presentes,
e esses são os únicos eventos que de fato percebemos. E todos os outros eventos que, através
da memória ou por inferência, acreditamos serem reais, nós os consideramos como presente,
passado ou futuro. Assim, os eventos do tempo, enquanto observados por nós, formam uma
série A.
308. No entanto, pode-se dizer que isso é meramente subjetivo. Pode ser que a
distinção entre posições do tempo em passado, presente e futuro seja apenas uma ilusão
constante de nossas mentes, e que a natureza real do tempo contenha apenas as distinções da
série B – a distinção entre “mais cedo” e “mais tarde”. Neste caso, não perceberíamos o tempo
como ele realmente é, apesar de podermos talvez pensar nele como ele realmente é.
Esta não é uma concepção muito usual, mas ela exige cuidadosa consideração.
Acredito que ela é insustentável porque, conforme disse anteriormente, parece-me que a série
A é essencial para a natureza do tempo, e que qualquer dificuldade na maneira de considerar a
série A como sendo real é igualmente uma dificuldade na maneira de considerar o tempo
como sendo real.

309. Suponho que seja universalmente admitido que tempo envolve mudança. De fato,
na linguagem ordinária, dizemos que algo pode permanecer sem mudar através do tempo.
Mas não poderia haver tempo se nada mudasse. E se alguma coisa muda, então todas as outras
coisas mudam com ela. Pois sua mudança deve alterar algumas das relações das outras coisas
com ela própria, e portanto deve alterar suas qualidades relacionais. O desmoronamento de
[12] um castelo de areia na costa inglesa altera a natureza da Grande Pirâmide.
Portanto, se uma série B sem uma série A pudesse constituir o tempo, a mudança seria
possível sem uma série A. Vamos supor que as distinções entre passado, presente e futuro não
se aplicassem à realidade. Neste caso, a mudança poderia se aplicar à realidade?
310. Segundo essa suposição, o que é que mudaria? Poderíamos dizer que, num tempo
que formou uma série B, mas não uma série A, a mudança consistiria no fato de que o evento
deixou de ser um evento, enquanto outro evento passou a ser um evento? Se este fosse o caso,
certamente teríamos uma mudança.
Mas isso é impossível. Se N for em algum momento anterior a O e posterior a M, ele
sempre será e sempre terá sido anterior a O e posterior a M, já que as relações de anterioridade
e posterioridade temporal são permanentes. N portanto sempre estará em uma série B. E
como, segundo nossa presente hipótese, uma série B por si só constitui o tempo, N sempre
terá uma posição em uma série temporal, e sempre terá tido uma. Ou seja, ele sempre foi um
evento, e sempre será um, e não pode passar a ser ou deixar de ser um evento. [...]
E tal mudança também não pode ser encontrada nos diferentes momentos do tempo
absoluto, mesmo que tais momentos existam. Pois o mesmo argumento se aplica aqui. Cada
momento desses terá seu próprio lugar na série B, já que cada um seria temporalmente
anterior ou posterior a cada um dos outros. E, como a série B depende de relações
permanentes, nenhum momento poderia deixar de ser, nem poderia se tornar outro momento.
[13] 311. Mudança, portanto, não pode surgir de um evento que deixa de ser um
evento, nem de um evento que muda para outro. De que outra maneira ela poderia surgir? Se
as características de um evento mudarem, então certamente haveria mudança. Mas quais
características de um evento poderiam mudar? Parece-me que há somente uma classe de tais
características. E essa classe consiste nas determinações do evento em questão pelos termos
da série A.
Tome qualquer evento – a morte da Rainha Anne, por exemplo – e considere quais
mudanças podem ocorrer em suas características. Que se trata de uma morte, da morte de
Anne Stuart, que ela tem tais causas, que ela tem tais efeitos – cada característica desse tipo
nunca se altera. “Antes de as estrelas se virem claras”,1 o evento em questão foi a morte de
uma Rainha. No último momento do tempo – se o tempo tem um último momento – ele ainda
será a morte de uma Rainha. E em todos os sentidos menos um, ele é igualmente carente de
mudança. Mas em um sentido ele muda. Ele fora uma vez um evento no futuro longínquo. Ele
se tornou a cada momento um evento no futuro mais próximo. Finalmente ele foi presente.
Depois ele se tornou passado, e sempre permanecerá no passado, apesar de a cada momento
ele se tornar cada vez mais passado.
Tais características como essas são as únicas características que podem mudar. E,
portanto, se há qualquer mudança, ela deve ser procurada na série A, e somente na série A. Se
não houver uma série A real, não há mudança real. A série B, portanto, não é por si só
suficiente para constituir o tempo, já que o tempo envolve mudança.
312. A série B, porém, não pode existir senão de maneira temporal, pois as relações de
“mais cedo” e “mais tarde”, que são as relações que ligam seus termos, são claramente
relações temporais. Segue-se portanto que não pode haver uma série B se não houver uma
série A, já que sem uma série A não há tempo. [...]

1
“Before the stars saw one another plain”, alusão ao poema de Rudyard Kipling (1892), “The Answer”, em que
o destino de uma flor já estava escrito desde o início dos tempos. (N. do T.)
[18] 325. Passo agora para a segunda parte de minha tarefa. Tendo provado, ao que me
parece, que não pode haver tempo [19] sem uma série A, resta provar que uma série A não
pode existir, e que portanto o tempo não pode existir. Isso envolveria que o tempo não é real,
já que se admite que a única maneira de o tempo poder ser real é existindo.
326. Passado, presente e futuro são características que atribuímos a eventos, e também
a momentos do tempo, se estes forem considerados realidades separadas. O que queremos
dizer com passado, presente e futuro? Em primeiro lugar, são esses relações ou qualidades?
Parece-me bastante claro que eles não são qualidades, mas relações; apesar de que, é claro,
como outras relações, eles gerarão qualidades relacionais em cada um de seus termos. [...]
327. Assim, se qualquer coisa puder ser corretamente chamada de passado, presente
ou futuro, deve ser porque ela está em uma relação com alguma outra coisa. E esta outra
coisa, com a qual ela está em relação, deve ser algo fora da série temporal. Pois as relações da
série A são relações que se alteram, e nenhuma relação que ocorra exclusivamente entre
membros da série temporal pode se alterar. Dois eventos estão exatamente nos mesmos
lugares na série temporal, relativos um a outro, um milhão de anos antes de sua ocorrência,
enquanto cada um deles está ocorrendo, e quando eles estão um milhão de anos no passado. O
mesmo é verdadeiro para a relação dos momentos uns com os outros, se os momentos forem
considerados entidades separadas. E o mesmo seria verdadeiro das relações entre eventos e
momentos. A relação que se altera deve ser referente a algo que não está na série temporal.
Passado, presente e futuro, portanto, são relações nas quais os eventos se referem a
algo fora da série temporal. Essas relações são simples, ou elas podem ser definidas? Penso
que elas são claramente [20] simples e indefiníveis. Mas, por outro lado, não penso que elas
sejam isoladas e independentes. Não me parece que possamos saber, por exemplo, qual é o
significado [da relação] de estar no passado [pastness], se não soubermos o significado de
estar no presente [presentness] ou de estar no futuro [futurity].
328. Devemos começar com a série A, ao invés de passado, presente e futuro como
termos separados. E devemos dizer que uma série é uma série A quando cada um de seus
termos tem, com referência a uma entidade X fora da série, uma e apenas uma das três
relações indefiníveis, estar no passado, estar no presente e estar no futuro, que são tais que
todos os termos que têm a relação de estar no presente de X situam-se entre todos os termos
que têm a relação de estar no passado de X, por um lado, e todos os termos que têm a relação
de estar no futuro de X, por outro.
Chegamos à conclusão que uma série A depende das relações a um termo fora da série
A. Este termo, então, não poderia ele mesmo estar no tempo, mas mesmo assim deve ser tal
que diferentes relações com referência a ele determinam que os outros termos daquelas
relações sejam passado, presente ou futuro. Encontrar tal termo não seria fácil, mas mesmo
assim tal termo precisa ser encontrado, se a série A deve ser real. Mas há uma dificuldade
mais positiva no caminho da realidade da série A.
329. Passado, presente e futuro são determinações incompatíveis. Cada evento só pode
ser um ou outro, mas nenhum evento pode ser mais do que um. Se eu disser que qualquer
evento é passado, isso implica que ele não é nem presente nem futuro, e assim também para
os outros. E esta exclusividade é essencial para a mudança, e portanto para o tempo. Pois a
única mudança que podemos ter é do futuro para o presente, e do presente para o passado.
As características, portanto, são incompatíveis. Mas todo evento possui todas elas. Se
M é passado, ele foi presente e futuro. Se ele é futuro, ele será presente e passado. Se ele é
presente, ele foi futuro e será passado. Assim, todas as três características pertencem a cada
evento. Como isso é consistente com o serem incompatíveis?
[21] 330. Pode parecer que isso possa ser facilmente explicado. De fato, foi impossível
enunciar a dificuldade sem quase dar a explicação, já que nossa linguagem tem formas verbais
para o passado, presente e futuro, mas não tem nenhuma forma que seja comum às três. A
resposta diria que nunca é verdade que M seja presente, passado e futuro. Ele é presente, será
passado, e foi futuro. Ou ele é passado, e foi futuro e presente, ou novamente é futuro e será
presente e passado. As características só são incompatíveis quando são simultâneas, e não há
nenhuma contradição com isso no fato de que cada termo ter todos eles sucessivamente.
331. Mas qual o significado de “foi” ou “será”? E qual o significado de “é”, quando
ele é usado com um significado temporal, como é o caso aqui, e não apenas para a
predicação? Quando dizemos que X foi Y, estamos afirmando que X é Y em um momento do
tempo passado. Quando dizemos que X será Y, estamos afirmando que X é Y em um momento
do futuro. Quando dizemos que X é Y (no sentido temporal de “é”), estamos afirmando que X
é Y no momento do tempo presente.
Assim, nosso primeiro enunciado sobre M – de que é presente, será passado e foi
passado – significa que M é presente em um momento do tempo presente, passado em algum
momento do tempo futuro, e futuro em algum momento do tempo passado. Mas todo
momento, como todo evento, é tanto passado, quanto presente e quanto futuro. E portanto
surge uma semelhante dificuldade. Se M é presente, não há um momento do tempo passado
em que ele é passado. Mas momentos do tempo futuro, no qual ele é passado, são igualmente
momentos do tempo passado, nos quais ele [M] não pode ser passado. Novamente, que M seja
futuro e será presente e passado significa que M é futuro em um momento do tempo presente,
e presente e passado em diferentes momentos do tempo futuro. Neste caso, ele não pode ser
presente ou passado em qualquer momento do tempo passado. Mas todos os momentos do
tempo futuro, em que M será presente ou passado, são igualmente momentos do passado.
332. Então novamente encontramos uma contradição, já que os momentos em que M
tem qualquer uma das três determinações da série A são também momentos em que ele não
pode ter essa determinação. Se tentarmos evitar isso dizendo desses momentos o que
dissemos anteriormente do próprio M – de que algum momento, por exemplo, é futuro, e será
presente e passado – então “é” e [22] “será” têm o mesmo significado que tiveram antes.
Nosso enunciado, então, significa que o momento em questão é futuro em um momento
presente, e será presente e passado em diferentes momentos do tempo futuro. Isso, é claro, é
novamente a mesma dificuldade. E assim por diante, indefinidamente.
Tal infinito é vicioso. A atribuição das características de passado, presente e futuro aos
termos de qualquer série leva a uma contradição, a não ser que seja especificado que eles as
tenham sucessivamente. Isso significa, conforme vimos, que eles as têm em relação a termos
especificados como passado, presente e futuro. E estes, novamente, para evitar uma
semelhante contradição, [são características em relação a termos que] devem por sua vez ser
especificados como passado, presente e futuro. E como isso continua infinitamente, o
primeiro conjunto de termos nunca escapa da contradição. [...]
333. A realidade da série A leva então a uma contradição, e deve ser rejeitada. E como
vimos que mudança e tempo requerem a série A, a realidade da mudança e do tempo deve ser
rejeitada. E também a realidade da série B, já que ela requer tempo. Nada é realmente
passado, presente e futuro. Nada é realmente temporalmente anterior [earlier] ou posterior
[later] a qualquer outra coisa, ou temporalmente simultâneo. Nada realmente muda. E nada
está realmente no tempo. Sempre que percebemos algo como estando no tempo – que é a
única maneira pela qual, em nossa experiência presente, de fato percebemos as coisas –
estamos percebendo-o mais ou menos como ele realmente não é. [...]
Argumentos contra a
Teoria Cinética dos Gases
(1882)
John (Johann) Bernhard Stallo
(1823-1900)

Oriundos do livro The Concepts and Theories of Modern Physics


(1882), relançado pela Harvard U. Press, 1960. Tradução do
resumo apresentado por S.G. BRUSH (1976), The Kind of Motion
We Call Heat, vol. 1, Elsevier, Amsterdam, pp. 63-5.

Preparado para o curso de Filosofia da Física (FLF0472), prof.


Osvaldo Pessoa Jr., 2o semestre de 2010.

(1) Se os átomos são absolutamente duros, eles não podem ser “elásticos”,
pois a elasticidade envolve o movimento das partes; na colisão de corpos
ordinários, há uma perda temporária de movimento da qual se dá conta por meio
da conversão de energia do movimento de larga escala para energia do
movimento das partes constituintes, mas isso é impossível no caso de colisões
atômicas. Os teóricos cinéticos, para manter o princípio da conservação de
energia, tiveram que supor que os átomos são perfeitamente elásticos, o que
contradiz o conceito de átomo.
(2) Postular que os átomos são indestrutíveis e impenetráveis não pode ser
legitimamente inferido de experimentos com sólidos, líquidos e gases
ordinários.
(3) Uma teoria científica satisfatória deve explicar fatos obscuros a partir
de fatos familiares: “uma hipótese válida reduz em pelo menos um o número dos
elementos incompreendidos de um fenômeno” (Zoellner, 1872). No caso da
teoria do gás, precisamos antes de tudo explicar a existência da elasticidade, ou
seja, da resistência à compressão, e a tendência à expansão quando uma restrição
externa é removida. Mesmo assim, a teoria cinética propõe explicar isso
invocando a pretensa elasticidade de partículas sólidas invisíveis, o que é mais
complicado e menos compreensível do que a elasticidade dos gases, já que um
sólido exibe resistência tanto à compressão quanto à dilatação, e também à
mudança de forma. Para compensar essa deficiência e tentar explicar a tendência
dos gases de expansão, a teoria cinética precisa recorrer a ainda mais hipóteses,
que são igualmente distantes da experiência. Supõe-se que os átomos estão
imbuídos de um movimento retilíneo incessante, e que eles não exercem forças
entre si, salvo quando em contato; mas não temos conhecimento de tal
comportamento no mundo real. Assim, a teoria cinética apenas complica o
fenômeno que ela professa explicar; ela representa “um destrinçamento do
Simples no Complexo, uma interpretação do Conhecido em termos do

1
Desconhecido, uma elucidação do Evidente pelo Misterioso, uma redução de um
fato ostensivo e real em um fantasma sem base e sombrio”.
(4) As várias leis de força artificiais introduzidas para dar conta de certas
propriedades dos gases são “fatais para todas as reivindicações de simplicidade
proferidas em nome da hipótese cinética, e não são de modo algum resultado dos
postulados originais [...] Eles são apenas tapa-buracos da hipótese, ofertas de
paz para sua incongruência com os fatos, puras invenções para satisfazer as
emergências criadas pela própria hipótese”.
(5) Não há bases lógicas, matemáticas ou de outro tipo para aplicar o
método estatístico às velocidades das moléculas ao invés de aos seus pesos ou
volumes.
(6) A teoria fracassa ao explicar a relação entre as propriedades térmicas
dos gases e os movimentos internos dos átomos nas moléculas.
Para concluir, Stallo afirma: “Pode parecer estranho que tantos líderes da
pesquisa científica, treinados nas severas escolas de pensamento exato e análise
rigorosa, possam ter gasto seus esforços com uma teoria tão manifestamente
repugnante para toda sobriedade científica – uma hipótese na qual a própria
coisa a ser explicada é apenas uma parte pequena das suas suposições
explicativas. Mas até os intelectos de homens de ciência são assombrados por
remanescentes pré-científicos, dentre os quais a fantasia inveterada de que o
mistério que cerca um fato possa ser eliminado minimizando-se o fato e
banindo-o para as regiões do Extra-sensível. A ilusão de que a elasticidade de
um átomo sólido requer menos explicação do que a de um corpo gasoso
volumoso está intimamente relacionada com a pretensão de que o abismo entre o
mundo da matéria e o da mente possa ser estreitado, senão superado, pela
rarefação da matéria, ou por sua resolução em ‘forças’. A literatura científica
atual está cheia de teorias cuja natureza é tentar converter fatos em ideias, por
meio de um processo de desvanecimento ou sutilização. Todas essas tentativas
são insignificantes; o espectro intangível se mostra no final mais problemático
do que a presença tangível. A fé em fantasmas [...] não é menos falta de
sabedoria na física do que na pneumatologia.”

2
A Controvérsia
*
das Cordas

Texto 1:

Trechos de
O Problema com a Física:
A ascensão da teoria das cordas,
a queda da ciência
e o que vem a seguir,

de Lee Smolin (2006)

[xii] Sou por natureza otimista, e por muito tempo combati a conclusão de que este período
da física – o período de minha própria carreira – foi excepcionalmente improdutivo. Para eu e
meus amigos, que entramos na ciência com a esperança de fazer contribuições importantes
para o que era então um campo de rápidas mudanças, há um fato chocante com o qual temos
que nos acostumar: ao contrário de qualquer geração anterior, [xiii] não realizamos nada que
possamos estar confiantes que nos sobreviverá. Isso levou a algumas crises pessoais. Mas,
mais importante, produziu uma crise na física.
O principal desafio para a física teórica de partículas, nas últimas três décadas, foi
explicar o modelo padrão de maneira mais profunda. Nesta área houve muita atividade. Novas
teorias foram propostas e exploradas, algumas em grande detalhe, mas nenhuma foi
confirmada experimentalmente. E este é o ponto crucial da questão: na ciência, para que se
possa acreditar em uma teoria, ela deve fazer uma previsão nova – diferente daquelas feitas
por teorias anteriores – para um experimento ainda não realizado. Para que o experimento seja
significativo, deve ser possível obter uma resposta que não concorde com a previsão. Neste
caso, dizemos que a teoria é falseável – passível de ser mostrada falsa. A teoria também tem

*
A expressão “The String Wars” foi usada pelo jornalista George Johnson para se referir ao debate em torno do
estatuto científico da teoria das cordas e de sua principal competidora, a gravidade quântica em laço. A
controvérsia se iniciou com a publicação do livro de LEE SMOLIN (2006), The Trouble with Physics, Houghton
Mifflin, Nova Iorque, de onde retiramos os trechos traduzidos, indicando a paginação [entre colchetes]. Em
seguida, apresentamos a resposta dada por JOE POLCHINSKI (2007), “All strung out?”, American Scientist 95(1),
p. 1. Esta resenha analisa também outro livro crítico à teoria das cordas, PETER WOIT (2006), Not Even Wrong,
Basic Books, Nova Iorque. Para referências sobre a continuação do debate, ver
http://www.kitp.ucsb.edu/members/PM/joep/A%20dialog.html . Essa discussão aparece no seriado The Big
Bang Theory, entre os personagens Sheldon Cooper e Leslie Winkle (foto), no final do 2º episódio da 2ª
temporada. Traduções de Osvaldo Pessoa Jr., para o curso de Filosofia da Física, USP, 2011.

1
que ser confirmável; deve ser possível verificar uma nova previsão que só é feita por esta
teoria. Somente quando uma teoria foi testada e os resultados concordam com a teoria é que
podemos elevar a teoria ao nível das teorias verdadeiras.
A atual crise na física de partículas surge do fato de que as teorias que foram além do
modelo padrão nos últimos trinta anos caem em duas categorias. Algumas eram falseáveis, e
foram falseadas. O restante não foram testadas – ou porque não fazem nenhuma previsão clara
[clean] ou porque as previsões que elas fazem não são testáveis com a tecnologia atual.
Nas três últimas décadas, teóricos propuseram pelo menos uma dúzia de abordagens
novas. Cada abordagem é motivada por uma hipótese persuasiva, mas nenhuma teve até aqui
sucesso. No domínio da física de partículas, essas incluem Technicolor, modelos de préons e
supersimetria. No domínio do espaço-tempo, elas incluem a teoria dos twístores, conjuntos
causais, supergravidade, triangulações dinâmicas e a gravidade quântica em laço [loop].
Algumas dessas ideias são tão exóticas quanto parecem ser.
Uma teoria atraiu mais atenção do que a combinação de todas as outras: a teoria das
cordas. Não é difícil entender as razões de sua popularidade. Ela pretende descrever
corretamente o grande e o pequeno – tanto a gravidade quanto as partículas elementares –, e
para isso ela propõe a hipótese mais audaciosa de todas as teorias: ela postula que o mundo
contém dimensões ainda não vistas e muito mais partículas do que é conhecido atualmente.
Ao mesmo tempo, ela propõe que todas as partículas elementares surgem das vibrações de
uma única entidade – [xiv] uma corda – que segue leis simples e lindas. Ela afirma ser a única
teoria que unifica todas as partículas e todas as forças da natureza. Dessa maneira, promete
fazer previsões claras e não ambíguas sobre qualquer experimento já realizado ou que poderia
ser realizado. Muito esforço foi despendido na teoria das cordas nos últimos vinte anos, mas
ainda não sabemos se ela é verdadeira. Mesmo depois de todo esse trabalho, a teoria não faz
nenhuma previsão nova que seja testável por experimentos atuais – ou mesmo atualmente
concebíveis. As poucas previsões claras que ela faz já foram feitas por outras teorias bem
aceitas.
Parte da razão pela qual a teoria das cordas não faz nenhuma previsão nova é que ela
parece vir em um número infinito de versões. Mesmo se nos restringirmos a teorias que
concordam com alguns fatos observados básicos a respeito do nosso universo, como seu
tamanho imenso e a existência de energia escura, sobram em torno de 10500 distintas teorias
das cordas (ou seja, o dígito 1 seguido de 500 zeros), mais do que todos os átomos do
universo conhecido. Com um número tão vasto de teorias, há pouca esperança de que
possamos identificar o resultado de um experimento que não seria abarcada por uma delas.
Assim, o que quer que os experimentos mostrem, a teoria das cordas não pode ser falseada.
Mas o reverso também vale: nenhum experimento jamais poderá provar que ela é verdadeira.
Ao mesmo tempo, compreendemos muito pouco sobre a maioria dessas teorias das
cordas. E do pequeno número que compreendemos com algum detalhe, cada uma está em
desacordo como os atuais dados experimentais, geralmente de pelo menos duas maneiras.1
Assim, estamos diante de um paradoxo. As teorias das cordas que sabemos como
estudar estão reconhecidamente erradas. E acredita-se que aquelas que não podemos estudar
existem em números tão imensos que nenhum experimento concebível poderia estar em
desacordo com todas elas.
Esses não são os únicos problemas. A teoria das cordas repousa em várias conjeturas
centrais, para as quais há alguma evidência mas nenhuma prova. Pior ainda, após toda a
labuta científica gasta em seu estudo, ainda não sabemos se há uma teoria completa e coerente

1
A maioria delas tem supersimetria não-quebrada, o que não é observado no mundo real. As poucas que não têm
supersimetria não-quebrada preveem que férmions e bósons possuam superparceiros de mesma massa, o que
também não é observado, e preveem também a existência de forças de alcance infinito, além da gravidade e do
eletromagnetismo, o que novamente não é observado [p. 180].

2
que possa até ser chamada de “teoria das cordas”. O que temos, de fato, não é uma teoria de
maneira nenhuma, mas uma grande coleção de cálculos aproximados, junto com uma teia de
conjeturas que, se verdadeiras, apontam para a existência de uma teoria. Não sabemos quais
são seus princípios fundamentais. [xv] Não sabemos em qual linguagem matemática ela deve
ser expressa – talvez uma nova tenha que ser inventada para descrevê-la. Na falta de
princípios fundamentais e da formulação matemática, não podemos dizer nem que sabemos o
que a teoria das cordas afirma. [...]

[xvii] Um resultado da ascensão da teoria das cordas é que há uma cisão na comunidade de
pessoas que trabalha em física fundamental. Muitos cientistas continuam a trabalhar em teoria
das cordas, e talvez até cinquenta novos doutorados sejam completados a cada ano para
trabalho neste campo. Mas há alguns físicos que estão profundamente céticos – ou nunca
concordaram ou a esta altura desistiram de esperar por um sinal de que a teoria terá uma
formulação consistente ou fará uma previsão experimental real. A cisão nem sempre é
amistosa. De ambos os lados, são expressas dúvidas sobre a competência profissional e os
padrões éticos do outro, [xviii] e é realmente trabalhoso manter as amizades entre os dois
lados.
De acordo com o retrato da ciência que todos nós aprendemos na escola, situações
como essa não deveriam se desenvolver. Somos ensinados que o aspecto central da ciência
moderna é que há um método que leva ao progresso de nossa compreensão da natureza. Está
claro que desacordo e controvérsia são necessários para o progresso da ciência, mas deveria
sempre haver um maneira de resolver uma disputa por meio de experimento ou matemática.
No caso da teoria das cordas, porém, esse mecanismo parece ter quebrado. Muitos defensores
e críticos da teoria das cordas estão tão seguros de suas posições que é difícil ter uma
discussão cordial sobre o assunto, mesmo entre amigos. “Como é que você não consegue ver
a beleza da teoria? Como é que uma teoria poderia fazer tudo isso e não ser verdadeira?”,
dizem os teóricos das cordas. Isso provoca uma resposta igualmente acalorada dos céticos:
“Você perdeu a cabeça? Como é que você pode acreditar em qualquer teoria na completa
ausência de teste experimental? Você esqueceu como a ciência deveria funcionar? Como é
que você pode estar tão seguro de que está certo, se nem sabe qual é a teoria?” [...]

[262] Nos capítulos anteriores, lancei a hipótese de que o que fracassou não foi tanto uma
teoria em particular, mas um particular estilo de pesquisa. Se alguém passar um tempo em
ambas as comunidades, na dos teóricos das cordas e na dos que trabalham em abordagens
independentes do fundo2, ele não deixará de ficar impressionado pela grande diferença de
estilo e dos valores expressos pelas duas comunidades. Essas diferenças refletem a cisão na
física teórica que se iniciou há mais de meio século.

2
Isso significa que as leis da natureza devem ser expressas em uma forma que não pressuponha que o espaço
tenha qualquer geometria fixa. Este é o núcleo da lição de Einstein. Nós a encapsulamos num princípio que
descrevemos anteriormente, que é a independência de fundo [background independence]. O princípio afirma que
as leis da natureza podem ser completamente especificadas sem fazer qualquer suposição prévia sobre a
geometria do espaço. [...] Espaço e tempo emergem das leis ao invés de fornecerem uma arena onde as coisas
acontecem [p. 81-2]. Conforme salientei várias vezes, não basta ter uma teoria com grávitons feitos de cordas
vibrando no espaço. Precisamos de uma teoria sobre o que constitui o espaço, uma teoria independente de fundo.
[...] Em outras palavras, quer a teoria das cordas seja válida ou não, ainda sim precisamos descobrir uma teoria
da gravidade quântica que seja independente de fundo [p. 239]. Gostaríamos de mostrar que o aspecto discreto
do espaço e tempo é uma consequência de colocar juntos os princípios da teoria quântica e da teoria da
relatividade. É isso que é conseguido pela gravidade quântica em laço. Ela conseguiu isso partindo da
revolucionária reformulação de Ashtekar, em 1986, da teoria da relatividade geral de Einstein. [...] A ideia
central da gravidade quântica em laço é a de uma descrição de um campo, como o campo eletromagnético,
diretamente em termos de linhas de campo. A palavra “laço” vem do fato de que, na ausência de matéria, as
linhas de campo podem se fechar sobre si mesmas, formando um laço [p. 249].

3
O estilo do mundo da gravidade quântica foi herdado do que [263] se costumava chamar
de comunidade da relatividade. Esta era conduzida pelos alunos e colaboradores de Einstein, e
pelos alunos desses – pessoas como Peter Bergmann, Joshua Goldberg e John Archibald
Wheeler. Os valores nucleares desta comunidade eram o respeito pelas ideias individuais e
programas de pesquisa, desconfiança de modas, uma dependência de argumentos
matematicamente limpos, e uma convicção de que os problemas centrais estavam intimamente
relacionados a questões de fundamento sobre a natureza do espaço, tempo e quantum.
O estilo da comunidade da teoria das cordas, por outro lado, é uma continuação da
cultura da teoria de partículas elementares. Esta sempre teve uma atmosfera mais arrogante,
agressiva e competitiva, na qual os teóricos competem para responder rapidamente aos novos
desenvolvimentos (antes de 1980, estes eram geralmente experimentais) e desconfiam de
questões filosóficas. Este estilo suplantou o estilo mais reflexivo e filosófico que caracterizou
Einstein e os inventores da teoria quântica, e triunfou quando o centro da ciência se deslocou
para os Estados Unidos, e o foco intelectual mudou da exploração de novas teorias
fundamentais para suas aplicações.
A ciência necessita de diferentes estilos, para atacar diferentes tipos de problemas.
Minha hipótese é que o que está errado com a teoria das cordas é o fato de que ela foi
desenvolvida usando o estilo de pesquisa da física de partículas elementares, que não é
apropriada para a descoberta de novos referenciais teóricos. O estilo que levou ao sucesso do
modelo padrão é também difícil de sustentar quando está desconectado dos experimentos.
Esse estilo competitivo e movido pela moda funcionava enquanto era alimentada por
descobertas experimentais, mas passou a fracassar quando não havia mais nada alimentando a
moda a não ser visões e gostos de alguns indivíduos proeminentes.
Quando iniciei meus estudos de física, em meados da década de 1970, esses dois
estilos de pesquisa eram saudáveis. Havia muito mais físicos de partículas elementares do que
relativistas, mas havia espaço para ambos. Não havia tantos lugares para pessoas que queriam
desenvolver suas soluções próprias para as profundas questões de fundamento sobre espaço,
tempo e quantum, mas havia suficiente apoio para os poucos que tinham boas ideias. Desde
então, enquanto a necessidade do estilo dos relativistas aumentou, seu lugar na academia
encolheu, devido ao domínio da teoria das cordas e de outros grandes programas de pesquisa.
Com a exceção de um único grupo de pesquisa na Pennsylvania State University, [264] não há,
desde em torno de 1990, em universidades de pesquisa dos Estados Unidos, professores
assistentes trabalhando em uma abordagem à gravidade quântica que não seja baseada na
teoria das cordas ou em dimensões mais altas.3
Por que o estilo menos apropriado para o problema em questão acabou dominando a
física, tanto aqui como no exterior? Esta é uma questão sociológica, mas é uma que devemos
responder se quisermos dar sugestões construtivas para restaurar nossa disciplina a sua
anterior vitalidade.

3
Após alguns anos de trabalho [em torno de 1970], descobriu-se que a teoria das cordas, enquanto teoria
fundamental, poderia ser consistente com a relatividade restrita e a teoria quântica apenas se várias condições
fossem satisfeitas. Primeiro, o mundo teria que ter vinte e seis dimensões. Segundo, teria que existir um táquion
– uma partícula que vai mais rápido do que a luz. Terceiro, teria que existir partículas que não poderiam ser
trazidas ao repouso – partículas sem massa. [...] Havia um quarto problema. A teoria das cordas continha
partículas, mas não todas as partículas da natureza. Não havia férmions – e portanto não havia quarks. [...] Três
desses quatro problemas foram tratados em uma única jogada. Em 1970, o teórico Pierre Ramond encontrou uma
maneira de alterar as equações que descrevem a corda, de tal maneira que ela teria férmions. Ele descobriu que a
teoria só seria consistente se ela tivesse uma nova simetria. Esta simetria misturaria bósons e férmions. [...] A
nova teoria supersimética das cordas também tratou dois outros problemas. Ela não tinha táquions, de forma que
o maior obstáculo para se levarem a sério as cordas foi eliminado. E não havia mais vinte e cinco dimensões do
espaço, apenas nove. Nove não é três, mas está mais próximo. Com a adição do tempo, a nova corda
supersimétrica (ou supercorda, para abreviar) vive em um mundo de dez dimensões [p. 105].

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x

Lee Smolin (1955- ) . Joe Polchinski (1954- )

Texto 2:

“Com a corda quebrada?”:


Resenha de The Trouble with Physics, de Lee Smolin,
e de Not Even Wrong, de Peter Woit

por Joe Polchinski (2007)

Os anos 1970 foram uma época de euforia para a física de partículas. Após décadas de
esforço, os físicos de partículas vieram a entender as forças nucleares fraca e forte, e as
combinaram com a força eletromagnética no chamado Modelo Padrão. Revigorados com esse
sucesso, voltaram-se para o problema de encontrar uma teoria unificada, um princípio único
que daria conta de todas essas três forças e das propriedades das várias partículas
subatômicas. Alguns investigadores chegaram até a tentar unificar a gravidade com as outras
três forças, e resolver os problemas que surgem quando a gravidade é combinada com a teoria
quântica.
O Modelo Padrão é uma teoria quântica de campo, na qual partículas se comportam
como pontos matemáticos, mas um pequeno grupo de teóricos explorou a possibilidade de
que, sob suficiente magnificação, poder-se-ia mostrar que as partículas são laços oscilantes ou
pedaços de “cordas”. Apesar de essa ideia aparentemente estranha de início atrair pouca
atenção, em 1984 já era aparente que essa abordagem conseguia resolver alguns problemas
centrais que, de outra maneira, pareciam intransponíveis. De forma bastante rápida, a atenção
de muitos daqueles que trabalhavam na unificação se voltou para a teoria das cordas, e nela se
manteve desde então.
Hoje, após mais de 20 anos de esforço concentrado, o que se alcançou? O que a teoria
das cordas previu? Lee Smolin, em The Trouble with Physics [O problema com a física], e
Peter Woit, em Not Even Wrong [Nem mesmo errado], argumentam que a teoria das cordas
em larga medida fracassou. O que é pior, afirmam eles, teóricos demais continuam a enfocar
seus esforços nessa ideia, monopolizando valiosos recursos científicos que poderiam ser
transferidos para direções mais promissoras.
Smolin apresenta a ascensão e queda da teoria das cordas como uma peça moral
[morality play]. Ele captura com precisão a excitação que os teóricos sentiram ao descobrirem
esta inesperada e poderosa nova ideia. Mas esta história, por mais que seja contada de maneira
absorvente, é mais um trabalho de arte dramática do que de história. Mesmo o ponto da
virada, a primeira rachadura na fachada, é baseada num mito: Smolin afirma que os teóricos

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das cordas teriam previsto que a energia do vácuo – algo geralmente chamado de energia
escura – não poderia ser positiva, e que a surpreendente descoberta de 1998 de que o universo
está se expandido de maneira acelerada (o que implica a existência de energia escura positiva)
teria provocado um rápido recuo. Mas não houve, de fato, tal previsão. Apesar de seu livro
ter, em grande parte, referências rigorosas, Smolin não cita qualquer fonte no tocante a este
ponto. Ele cita Edward Witten, mas Witten teceu seus comentários em um contexto muito
diferente – e três anos depois da descoberta da expansão acelerada. De fato, a citação está
duplamente fora de contexto, porque no mesmo encontro em que Witten falou, sua antiga
aluna Eva Silverstein forneceu uma solução para o problema a respeito do qual ele estava tão
pessimista. Este episódio também mostra que, ao contrário de outro mito, os jovens teóricos
das cordas não são tão intimidados por mais velhos.
Da maneira como Smolin registra a queda da teoria das cordas, ele apresenta outros
equívocos. Por exemplo, ele afirma que uma certa ideia central da teoria das cordas – algo
chamado de dualidade de Maldacena, a hipotética equivalência entre a teoria das cordas
definida em um espaço e uma teoria quântica de campo definida na fronteira de tal espaço – não
fornece nenhum enunciado matemático preciso. Ora, ela certamente fornece. Tais enunciados
foram verificados por meio de uma variedade de métodos, incluindo simulações
computacionais. Ele também afirma que a evidência apoia apenas uma forma fraca desta
conjetura, sem a mecânica quântica. Mas, de fato, a teoria de Juan Maldacena é inteiramente
quântica.
Um princípio crucial, de acordo com Smolin, é a independência de fundo – grosso
modo, a consistência com a perspicaz ideia de Einstein de que a forma do espaço-tempo é
dinâmica – e Smolin critica repetidamente a teoria das cordas por não possuir esta
propriedade. Aqui ele está confundindo um aspecto da linguagem matemática sendo usada
com a física que está sendo descrita. Novas teorias físicas são frequentemente descritas
usando uma linguagem matemática que não é a mais adequada para elas. Este descompasso
não é surpreendente, pois se está tentando exprimir algo que é diferente de qualquer coisa da
experiência anterior. Por exemplo, Einstein originalmente formulou a relatividade restrita em
uma linguagem que agora parece desajeitada, e foi a introdução dos quadrivetores e do
espaço-tempo pelo matemático Hermann Minkowski que posterior progresso foi possível.
Na teoria das cordas, sempre esteve claro que a física é independente de fundo, mesmo
que a linguagem usada não seja, e a busca por uma linguagem mais adequada continua. De
fato, conforme Smolin notou tardiamente, a dualidade de Maldacena fornece uma solução
para este problema, uma solução que é inesperada e poderosa. Esta solução ainda não está
completa: deve-se pregar o espaço-tempo nas bordas, mas no meio ele está livre para se torcer
e até rasgar à vontade, e buracos negros podem se formar e depois decair. Esta necessidade de
impor uma restrição nas bordas está ligada a uma propriedade conhecida como princípio
holográfico, que parece ser uma característica essencial da gravidade quântica. A extensão
deste princípio para espaços com as bordas livres exigirá uma grande ideia inovadora. É
possível que a solução para este problema já se encontre entre as abordagens alternativas
preferidas por Smolin. Mas seu candidato principal (a gravidade quântica em loop) é ainda
muito mais dependente de fundo do que a atual forma da teoria das cordas.
Boa parte da crítica de Smolin à teoria das cordas se refere a falta de rigor matemático
desta teoria. Mas física não é matemática. Os físicos trabalham mais por meio de cálculos,
raciocínio físico, modelagem e comparações do que por demonstrações, e o que eles
conseguem entender é geralmente muito mais amplo do que pode ser rigorosamente
demonstrado. Por exemplo, a teoria quântica de campo, que subjaz ao Modelo Padrão e a
muito mais na física, é notoriamente difícil de colocar em um fundamento rigoroso. De fato,
muito do interesse que os matemáticos têm na física, e na teoria das cordas em particular,
surge não do rigor da física, mas do seu oposto: os físicos, através de seus métodos,

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conseguem obter resultados novos cujas bases matemáticas não são óbvias. Os teóricos das
cordas têm um forte sentimento de que estão descobrindo algo, não o inventando. O processo
é às vezes desordenado, com idas, vindas e viradas inesperadas (como as próprias cordas!), e
o rigor não é a ferramenta principal.
Woit cobre parte do mesmo terreno, apesar de seu interesse estar mais centrado na
física de partículas e na ligação com a matemática, do que na natureza do espaço-tempo. Seu
relato é mais direto, mas está cheio de detalhe e jargão, e suas críticas à teoria das cordas são
mais simples e um tanto repetitivas.
Um ponto importante para Woit é que ninguém sabe exatamente o que é a teoria das
cordas, pois ela está especificada apenas por uma série matemática infinita cuja soma não está
bem definida. Esta afirmação é parcialmente correta: para novas teorias físicas, geralmente
transcorre um longo período de tempo entre a primeira ideia e forma matemática final. Para a
teoria quântica de campo, a situação descrita por Woit durou meio século. Na teoria das
cordas, a situação é muito melhor do que ele sugere, pois já há 10 anos temos ferramentas –
dualidades – que em muitos casos nos fornecem uma definição precisa da teoria. E essas, por
seu turno, levaram a muitas novas aplicações da teoria das cordas, como a mecânica quântica
de buracos negros, e há indícios de que uma compreensão mais completa será atingida.
Mas o que dizer sobre a falta de previsões? Esta é uma questão central, tanto para
Woit quanto para Smolin e para a teoria das cordas. Por que os últimos 20 anos,
inusitadamente, foram uma época de tão pouco contato entre a teoria e a experimentação? O
problema está parcialmente no lado experimental: o Modelo Padrão funciona bem demais, e
demora muito tempo, engenhosidade e recursos para tentar olhar para além dele, e geralmente
o que se encontra continua sendo o Modelo Padrão.
Um segundo desafio foi lançado por Max Planck há mais de um século. Quando se
combinam as constantes fundamentais da relatividade restrita, relatividade geral e mecânica
quântica, encontra-se que elas determinam uma escala de distância na qual essas teorias
parecem se juntar: o comprimento de Planck, de 10-33 centímetros. Para ter noção deste
número, teríamos que ampliar um átomo um bilhão de vezes para que ele tivesse o tamanho
de uma xícara de chá, mas teríamos que ampliar o comprimento de Planck um trilhão de
trilhão de vezes para torná-lo do tamanho de um átomo. Se pudéssemos sondar diretamente o
comprimento de Planck, seríamos capazes de ver as cordas e as dimensões extras, ou o que
quer que esteja espreitando por lá, e a questão estaria encerrada. Mas nunca conseguiremos
fazer isso, então devemos procurar evidência indireta. E, como no caso da teoria atômica, não
se pode prever quanto tempo demorará para se dar esse salto.
Smolin leva em conta o problema do comprimento de Planck (ele diz que “é uma
mentira”). De fato, o cálculo de Planck se aplica para o cenário mais pessimista. Os teóricos
das cordas identificaram pelo menos meia dúzia de maneiras pelas quais uma nova física pode
surgir em escalas acessíveis, e Smolin aponta mais uma de acordo com sua teoria preferida,
mas por enquanto essas são apenas possibilidades. Até onde os experimentos indicam, o
desafio de Planck permanece.
Ou pode ser que a teoria das cordas já tenha feito uma ligação com a observação –
uma de imensa significância. A energia escura positiva é a maior descoberta experimental dos
últimos 30 anos, com relação às leis básicas da física. Sua existência veio como uma surpresa
para quase todo mundo na física e astronomia, com exceção de poucos, incluindo, de forma
particular, Steven Weinberg.
Nos anos 1980, Weinberg estava tentando resolver um velho enigma de porque a
densidade da energia escura não é de fato maior. Ele argumentava que se a teoria subjacente
tivesse múltiplos vácuos, que descreveriam um número enorme de universos em potencial, ela
não só explicaria porque a densidade de energia escura não é alta, mas também faria a
previsão de que ela não é nula. O raciocínio de Weinberg ia contra toda a sabedoria

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convencional, mas surpreendentemente sua previsão foi confirmada pela observação, na
década seguinte.
A ligação entre teoria das cordas e energia escura está ainda sujeita a muita
controvérsia, e pode ser que Weinberg tenha obtido a resposta certa pelo motivo errado.
Porém, pode ser que ele tenha obtido a resposta certa pelo motivo certo. Neste caso, terá sido
uma das grandes ideias originais da história da física, e a propriedade de muitos vácuos da
teoria das cordas, aparentemente um de seus grandes desafios, seria de fato justamente o que a
natureza exige.
Uma segunda ligação inesperada veio dos estudos feitos usando o Colisor de Íons
Pesados Relativísticos [Relativistic Heavy Ion Collider], um acelerador de partículas do
Brookhaven National Laboratory. Esta máquina esmaga núcleos a altas energias, produzindo
um plasma quente e fortemente interagente. Os físicos descobriram que algumas das
propriedades desse plasma são modelados mais adequadamente (através da dualidade) como
um minúsculo buraco negro em um espaço com dimensões extras, do que como o esperado
aglomerado de partículas elementares no espaço-tempo usual de quatro dimensões.
Novamente, a previsão aqui não é exata, e os céticos a respeito da teoria das cordas
poderiam adotar o ponto de vista de que se trata apenas de um resultado matemático. No
entanto, uma das lições que se repetem na física é a unidade – a natureza usa um número
pequeno de princípios em uma variedade de maneiras. Assim, a gravidade quântica que está
sendo usada para entender os experimentos de Brookhaven é provavelmente a mesma que
opera no resto do universo.
À medida que nossa compreensão vem se aprofundando, outro desenvolvimento dos
últimos anos tem sido o extenso estudo das consequências experimentais de tipos específicos
de vácuos de cordas. Muitas dessas fazem previsões explícitas para a física de partículas e
cosmologia. A maioria ou todas elas podem ser falseadas por experimentos (o que é, afinal de
contas, o destino da maioria dos novos modelos). O teste conclusivo da teoria das cordas pode
ainda estar distante. Enquanto isso, a ciência progride através de muitos passos pequenos.
Uma questão central para Smolin e Woit é por que tantos cientistas muito bons
continuam a trabalhar com uma ideia que pretensamente teria tido um fracasso tão
retumbante. Ambos os livros dão explicações em termos da sociologia da ciência e da
psicologia da ciência. Tais forças existem, e vale a pena refletir sobre seus possíveis efeitos
negativos, mas tais influências não são tão fortes quanto sugeridas pelos autores. Dentre os
teóricos das cordas incluem-se pensadores independentes e heréticos, indivíduos
determinados que deram grandes contribuições – não apenas para a teoria das cordas, mas
também para outras partes da física. As fronteiras entre a teoria das cordas e as outras áreas da
física não são fechadas, e os teóricos migrariam se não acreditassem que já estavam pisando
no terreno mais promissor.
De fato, o fluxo de talento intelectual vem ocorrendo em sentido oposto: nos últimos
anos, cientistas preeminentes em fenomenologia de partículas, cosmologia inflacionária e
outros campos consideraram ideias geradas pela teoria das cordas como úteis em suas
disciplinas, assim como os matemáticos já vêm fazendo há tempos. Muitos começaram a
trabalhar com teóricos das cordas, e contribuíram para este assunto com suas perspectivas
próprias, ampliando a visão de como a teoria das cordas se relaciona com a natureza.
Esta convergência em relação a uma ideia não comprovada é notável. Novamente, vale
a pena dar um passo para trás e refletir se o balanço dos resultados equivale à melhor maneira
de fazer a ciência progredir, e se os jovens cientistas em particular estão sendo
suficientemente encorajados a pensar de novas maneiras sobre as grandes questões da ciência.
Essas são questões importantes – e não são nada simples. Porém, muito do que Smolin e Woit
atribuem à sociologia é na verdade uma questão de julgamento científico.

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No final, esses livros deixam de capturar boa parte do espírito e da lógica da teoria das
cordas. Para tanto, outros livros fazem um melhor trabalho, como O Universo Elegante [The
Elegant Universe], de Brian Greene (publicado originalmente em 1999), e The Cosmic
Landscape [A Paisagem Cósmica] (2005), de Leonard Susskind. O leitor interessado pode
também consultar o livro escrito pela fenomenóloga de partículas Lisa Randall, Warped
Passages [Passagens Retorcidas] (2005), e escrito pelo cosmólogo Alexander Vilekin, Many
Worlds in One [Muitos Mundos em Um] (2006), para relatos de dois cientistas de outros
campos que têm visto uma crescente proximidade entre a teoria das cordas e suas ideias sobre
como o cosmos está montado.

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