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O Manual é dividido em doze partes, separadas por categorias de assunto. Cada parte contém
definições e explicações acerca de diversos aspectos da experiência LGBT e sugestões para
como abordar (ou por vezes não abordar) na mídia. As seções são 1) Sexualidade; 2)
Orientação sexual; 3) Identidade de gênero; 4) Atitude social; 5) Homofobia; 6) Aids; 7)
Política e militância; 8) União estável e família; 9) Religião; 10) Datas; 11) Símbolos
do Movimento LGBT; 12) A ABGLT. Também contém quatro anexos ao final, 1) Código
de Ética dos Jornalistas, 2) Projeto de Lei da Câmara Federal 122/06 (criminalização da
homofobia), 3) Resolução 001/99 do Conselho Federal de Psicologia (“normas de atuação
para os psicólogos em relação à questão da Orientação Sexual”) 4) o Projeto de Lei 4.914/09
(união homoafetiva).
A primeira impressão, e que inicialmente norteou a pesquisa foi de que estas definições
estavam erradas, ou continham equívocos e que seria produtivo buscar nas condições de
produção fatores que justificassem o erro. Uma drag queen não é somente um homem em
roupas femininas para fins artísticos, há toda uma questão de identidade de gênero atrelada. O
crime de estupro não mais se restringe à penetração do pênis na vagina. A pessoa pansexual
se difere da bissexual em que não se trata de uma atração dentro do binarismo de gênero e
engloba atração por indivíduos em todos os pontos do espectro de identidade de gênero e não
tem relação alguma com atração por objetos. Muitos desses supostos equívocos repetem
conceitos muito correntes no senso comum da população em geral. Uma das hipóteses
levantada foi que devido ao Manual se destinar a profissionais da comunicação, pessoas que
podem não ter tanto contato com nomenclaturas e a população LGBT, houve uma escolha
consciente de aproximar as definições de um padrão que seria aceito pelo senso comum e
facilmente compreendido por leigos. Ou até que os erros teriam acontecido devido a falta de
conhecimento dos produtores do Manual. No entanto, nenhuma destas linhas de investigação
se mostrou produtiva. Mesmo que se confirmasse uma escolha ou desconhecimento dos
autores, isso nada diz a respeito do efeito de sentido provocado. Não se pode falar em
“escolha consciente” quando se trata de um sujeito psicológico. O desejo do sujeito empírico
não faz diferença alguma, uma vez que ele está submetido aos efeitos de memória, da história
e do próprio funcionamento da língua. Sendo assim, não fazia sentido indagar quanto à
natureza do sujeito empírico, uma vez que não importa quem é a pessoa no mundo, mas sim
como esta se coloca no discurso como sujeito de linguagem.
Apesar do abandono da linha de pesquisa da natureza dos autores do Manual, a
questão de condições de produção ainda se manteve relevante, mas dessa vez se referindo às
condições discursivas e não materiais. Como foi mencionado na descrição do material,
pode-se considerar o Manual com um funcionamento análogo ao de um dicionário. Há um
sujeito que seleciona quais itens lexicais são relevantes e quais podem ser apagados. Há uma
definição de cada um numa estrutura “X é Y” Nunes (2006). E como ocorre com dicionários,
espera-se que estes tragam uma transparência nos sentidos, o que provavelmente explica a
reação ao perceber falhas e vazios nas definições trazidas pelo Manual. Considerando o
Manual como um dicionário terminológico, pode-se por analogia considerar os sujeitos
produtores como sujeitos lexicógrafos, que serão analisados como tais.
As condições de produção de um dicionário em nada se diferem das condições de
quaisquer discursos emitidos por sujeitos em todas as esferas discursivas. Há um sujeito
inconsciente, que não é totalmente responsável por seus ditos e não ditos. Ocorrem
apagamentos, silenciamentos, opacidade. No dicionário se apresenta o mesmo jogo de um A
que produz o discurso a um destinatário B, cada um ocupando sua posição e tendo sua
posição dada pela sua relação com o outro. O sujeito lexicógrafo toma esta posição ao
assumir um sujeito que consulta e valida seus ditos. Por sua vez, o sujeito receptor do
discurso assume a sua emissão por uma figura de autoridade na língua, detentora de um
conhecimento inacessível a si, que se torna acessível no ato de produção do dicionário. E é
nesta questão da relação autor-lexicógrafo com seu receptor que a questão dos erros no
Manual se torna interessante. Ao assumir na figura dos autores competência nos assuntos
pertinentes à população LGBT e suas terminologias, é conferida uma aura de infalibilidade,
transparência e cristalização linguística. Todavia, o que se pode observar, do ponto de vista
discursivo, é justamente o contrário. Sendo o autor um sujeito da língua, o que se deve
esperar é justamente a opacidade, os esquecimentos e apagamentos. A memória discursiva
não deixa de agir aí, selecionando e antecipando o dizível disponível ao autor.
Tais relações entre autor-produtor não são, de forma alguma, simétricas e iguais. Há
um constante jogo de poder, de hierarquização entre quem fala o que, quem pode falar o que
e a quem tal e tal coisa pode ser dita. Estas posições não são rígidas, mas são criadas no
momento da emissão do discurso e da posição que os sujeitos envolvidos atribuem um ao
outro, bem como projeções advindas do contexto sócio-histórico e as memórias do já-dito.
Como postula Eni Orlandi,
Temos assim a imagem da posição sujeito locutor (quem sou eu para lhe falar
assim?) mas também da posição sujeito interlocutor (quem é ele para me falar
assim, ou para que eu lhe fale assim?, e também a do objeto de discurso (do que eu
estou lhe falando, do que ele me fala?). É pois todo um jogo imaginário que preside
a troca de palavras. (ORLANDI, 2010 p.40)
Referências Bibliográficas