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PENSAR

A
DEMOCRACIA

GUILHERME GODOY
MARIA JOÃO INÁCIO
STEVEN S. GOUVEIA

[1]
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[2]
Pensar a Democracia

Organizado e editado por Guilherme Godoy,

Maria João Inácio e Steven S. Gouveia

© Prefácio: Noam Chomsky

1ª. Edição

Publicado pela primeira vez em 2017

Publicação Independente

Impressão: CreateSpace Independent Publishing

Copyright © 2017 – Editores e Contribuidores

Charleston, USA

© Todos os direitos reservados.

Nenhuma parte desta obra colectiva pode ser reproduzida sem autorização
dos organizadores e dos respectivos contribuidores.

Capa: https://www.sergioaires.com / Copyright © - Sérgio Aires

Contacto: stevensequeira92@hotmail.com

ISBN 10: 1548350958 e ISBN 13: 978-1548350956

[3]
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[4]
ÍNDICE

Agradecimentos_____________________________________________ 9

Prefácio___________________________________________________ 11
Noam Chomsky

Introdução_________________________________________________17
Guilherme Godoy, Maria João Inácio e Steven S. Gouveia

Parte I: História e Direito da Democracia

1. A Democracia actual: reflexões sobre a restrição máxima aos


direitos e interesses jurídicos como forma de assegurar a sua
máxima protecção no quadro jurídico português____________ 25
Fernando Conde Monteiro

2. A Democracia moderna e constitucionalismo nasceram quando


a burguesia tomou o poder_______________________________35
Charles de Sousa Trigueiro

3. Desafio Político – como derrubar ditaduras por métodos não


violentes em Gene Sharp________________________________ 53
Manuel da Cruz

4. Pluralismo constitucional e democracia: por uma tratativa dos


direitos humanos em tempos de mudanças climáticas_________65
Dulcilene Rodrigues

5. Entre o universalismo e o exclusismo dos direitos. O


reconhecimento identitário no sistema europeu de protecção dos
direitos humanos_______________________________________81
Vanessa Capistrano Ferreira

Parte II: Emancipação, Arte e Educação na Democracia

6. A Democracia segundo Tomás de Alencar_______________ 105


Breno Góes
[5]
7. A correlação da Democracia e o direito social à Educação___117
Érica Guerra da Silva & Ludmilla Elyseu Rocha

8. Por uma Democracia emancipatória____________________133


Maria Izabel Weber

9. Mínimo social, autonomia e participação democrática_____ 151


Thiago Santos Rocha

10. As mentalidades dos indivíduos perante o fenómeno da guerra


e o papel que comportam no processo de decisão democrática _165
Rúben Lozada Frazão

Parte III: Brasil e Democracia

11. Democracia, retrocessos ambientais e caráter


contramajoritário da constituição no Brasil______________185
Pedro Curvello Avzaradel & Rodrigo de Sousa Tavares

12. O Poder da Mídia e seus efeitos nos regimes democráticos luso-


brasileiro____________________________________________ 205
Daniella Tigre Silva & Noemi Pereira Pinheiro

13. Whatsapp e ciberativismo: novos espaços na democracia__227


Sergio Barbosa Silva

14. Democracia participativa contemporânea: uma análise


brasileira num contexto de regulação das drogas____________255
Guilherme Godoy

15. A (In)eficácia do controle difuso de constitucionalidade ___265


Marcio Felix Cavalcanti

Parte IV: Problemas e Críticas à Democracia

16. A Democracia e meritocracia_________________________299


Ricardo Tavares da Silva

[6]
17. A Democracia e a reforma do estado pós-moderno______ 315
Rui Zeferino Ferreira

18. Marx, democracia e capital(ismo): as expressões de


“despotismo do capital” no livro I de Das Kapital______337
Paulo Fernando Rocha Antunes

19. A Ignorância e injustiça da Democracia________________ 357


Steven S. Gouveia

20. Crítica à noção de democracia na obra de Slavoj


Žižek_______________________________________________ 385
Hamilton Gondim & Ana Paula Silva

21. A Mediatização da Justiça___________________________ 399


Maria João Inácio

Lista de Contribuidores_____________________________________ 411

[7]
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[8]
AGRADECIMENTOS

Esta obra colectiva teve como origem um colóquio académico


dedicado ao tema “Democracia em Debate” que ocorreu na Faculdade de
Letras da Universidade do Porto, no dia 27 de Abril de 2017, organizado pela
Associação Episteme & Logos. Assim, queremos agradecer, primeiramente,
o apoio proporcionado pelo Mind, Language, and Action Group do Instituto
de Filosofia da Universidade do Porto e à Faculdade de Letras da mesma
Universidade e também a todos os oradores que enriqueceram o colóquio
com as suas intervenções.

Agradecemos igualmente a toda a equipa da organização e


colaboradores: à Diana Neiva, à Professora Doutora Sofia Miguens e ao
Professor Doutor João Alberto Pinto, ao Vítor Guerreiro, à Leomaris
Wunderwald Aires, ao Miguel Barreto e à Alexandra Pereira, pelo
profissionalismo e atenção ao detalhe, asseguraram o sucesso do evento.

De seguida, queremos agradecer aos contribuidores desta obra pela


importante participação e envolvimento num tema tão relevante e importante
como este, demonstrando que pela discussão das convergências e
divergências de ideias se vive a Democracia.

Um especial agradecimento para os dois oradores principais do


evento, a Professora Doutora Luísa Neto, da Faculdade de Direito da
Universidade do Porto e o Professor Doutor José Manuel Mendes, do
Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho que nos honraram
com a sua prestigiada presença e brilhantes conferências.

[9]
Finalmente, queremos agradecer ao Professor Noam Chomsky pelo
precioso prefácio que redigiu para esta obra colectiva. Só faria sentido
prefaciar uma obra deste carácter alguém com uma formação
multidisciplinar e com uma enorme influência intelectual. Os editores desta
obra agradecem, ainda, a receptividade, sensibilidade e dedicação que este
projecto lhe mereceu.

Os Editores,
Porto, 27 de Junho de 2017

[10]
PREFÁCIO

Noam Chomsky
(Emeritus Professor MIT)

O tema da Democracia tem um amplo escopo. Se prestarmos atenção,


encontraremos influências dos processos democráticos em quase todas as
nossas escolhas e decisões. Como verá, este livro aborda alguns dos
problemas mais relevantes da sociedade actual. Considere um desses
problemas.
1
Mark Twain disse celebremente que “é pela bondade de Deus que no
nosso país temos estas três coisas indizivelmente preciosas: liberdade de
expressão, liberdade de consciência e prudência para nunca praticar
nenhuma delas”.
Na sua introdução não publicada a Animal Farm, dedicada à "censura
literária" na Inglaterra livre, George Orwell acrescentou uma razão para esta
prudência: há, escreveu ele, um "acordo tácito geral que ‘não adianta’ ser
mencionado”. O acordo tácito impõe uma “censura velada” baseada “numa
ortodoxia, um conjunto de ideias que se supõe que todas as pessoas que
pensam correctamente aceitarão sem questionar” e “qualquer pessoa que
desafie a ortodoxia predominante encontra-se silenciada com uma eficácia
surpreendente” mesmo sem “qualquer proibição oficial”.
Testemunhamos o exercício desta prudência constantemente em
sociedades livres. Tomemos a invasão dos EUA-Reino Unido ao Iraque, um
caso clássico de agressão sem pretexto credível, o “crime internacional
supremo” definido no julgamento de Nuremberga. É legítimo afirmar-se que
foi uma “guerra idiota”, um “erro estratégico” ou até “o maior erro

1
Prefácio baseado e traduzido do artigo “Independence of Journalism” (2017) -
https://chomsky.info/01072017 por Steven S. Gouveia e Diana Neiva. Os editores agradecem
profundamente ao Professor Chomsky pela sua geneorsa disponibilidade e confiança.

[11]
estratégico na história recente da política externa americana” nas palavras do
Presidente Obama, muito elogiado pela opinião liberal. Mas "não adiantaria"
dizer o que era, o crime do século, embora não houvesse tal hesitação se
algum inimigo oficial tivesse realizado um crime mesmo que fosse muito
menor.
A ortodoxia prevalecente não acomoda facilmente uma figura como o
General/Presidente Ulysses S. Grant que pensava que nunca tinha havido
“guerra tão perversa quanto a que foi travada pelos Estados Unidos no
México", tomando posse do que é agora o sudoeste dos EUA e a Califórnia,
e que expressou a sua vergonha por não ter tido "a coragem moral de se
demitir" em vez de participar no crime.
A subordinação à ortodoxia predominante tem consequências. A
mensagem não tão tácita é que devemos apenas lutar guerras inteligentes que
não são erros, guerras são bem-sucedidas nos seus objectivos - por definição
o justo e o certo, de acordo com a ortodoxia prevalecente, mesmo que sejam
na realidade "guerras perversas", crimes maiores. As ilustrações são
demasiado numerosas para mencionar. Em alguns casos, como o crime do
século, a prática ocorre quase sem exceção em círculos respeitáveis.
Outro aspecto familiar da subordinação à ortodoxia predominante é a
apropriação casual da demonização ortodoxa de inimigos oficiais. Para dar
um exemplo quase aleatório, a partir do exemplar do New York Times que
tenho à minha frente agora mesmo, um jornalista económico altamente
competente adverte sobre o populismo do demónio oficial Hugo Chávez que,
uma vez eleito no final dos anos 90, "começou a lutar contra qualquer
instituição democrática que se pusesse no seu caminho".
Voltando ao mundo real, foi o governo dos EUA, com o apoio
entusiasmado do New York Times, que (pelo menos) apoiou plenamente o
golpe militar que derrubou o governo Chávez – brevemente, antes de ser
revertido por uma revolta popular. Quanto a Chávez, seja lá o que for que
pensemos dele, ganhou repetidas eleições certificadas como livres e justas
por observadores internacionais, incluindo a Fundação Carter, cujo fundador,

[12]
o ex-presidente Jimmy Carter, afirmou que "das 92 eleições que
monitorizámos, diria que o processo eleitoral na Venezuela é o melhor do
mundo". E a Venezuela sob Chávez ficou regularmente muito bem
classificada em sondagens internacionais sobre o apoio público ao governo
e à democracia (Latinobarómetro com sede no Chile).
Havia, sem dúvida, déficits democráticos durante os anos de Chávez,
tais como a repressão do canal RCTV, que provocou uma enorme
condenação. Juntei-me a essa condenação, concordando que tal não poderia
acontecer na nossa sociedade livre. Se um canal de TV proeminente nos EUA
tivesse apoiado um golpe militar como a RCTV, então não seria reprimido
alguns anos depois, porque não existiria: os executivos estariam presos, se
ainda estivessem vivos.
Mas a ortodoxia supera facilmente o mero fato.
A falha em fornecer informações pertinentes também tem
consequências. Talvez os americanos devam saber que as sondagens
organizadas pela principal agência de voto norte-americana descobriram
que, uma década após o crime do século, a opinião mundial considerava os
Estados Unidos como a maior ameaça para a paz mundial, sem ter qualquer
outra ameaça concorrente; certamente não é o Irão, que ganha esse prémio
no comentário político americano. Talvez em vez de esconder este facto, a
imprensa deveria ter realizado o seu dever de trazê-lo para a atenção do
público, juntamente com considerações do que tal significa, que lições
produz para a política. Mais uma vez, o abandono do dever tem
consequências.
Exemplos abundantes como estes são suficientemente graves, mas há
outros que são muito mais importantes. Note a campanha eleitoral de 2016
no país mais poderoso da história mundial. A cobertura foi enorme e
instrutiva. Os problemas foram quase inteiramente evitados pelos candidatos
e praticamente ignoradas no comentário político, de acordo com o princípio
jornalístico de que a "objetividade" significa informar com precisão o que os
poderosos fazem e dizem, não o que ignoram. O princípio é válido mesmo

[13]
que o destino das espécies esteja em jogo – como está: o crescente perigo de
guerra nuclear e a ameaça de uma catástrofe ambiental.
A negligência atingiu um pico dramático no dia 8 de novembro de
2016, um dia verdadeiramente histórico. Naquele dia, Donald Trump teve
duas vitórias. A menos importante recebeu uma cobertura extraordinária dos
Media: a sua vitória eleitoral, com quase 3 milhões de votos a menos do que
a sua oponente, graças a características regressivas do sistema eleitoral dos
EUA. A vitória mais importante passou virtualmente em silêncio: a vitória
de Trump em Marraquexe, Marrocos, onde cerca de 200 nações se reuniram
para colocar um teor sério ao acordo de Paris sobre mudanças climáticas no
ano anterior. Em 8 de Novembro, os procedimentos pararam. O resto da
conferência foi em grande parte dedicada a tentar salvar alguma esperança
de os EUA não só não se retirarem do projecto, mas também de não o
sabotarem através do aumento acentuado do uso de combustíveis fósseis,
desmantelando os regulamentos e rejeitando a promessa de ajudar os países
em desenvolvimento a mudar para as energias renováveis.
Tudo o que estava em jogo na vitória mais importante de Trump foi a
perspectiva futura da vida humana organizada das formas que conhecemos.
Por conseguinte, a cobertura foi praticamente nula, mantendo-se o mesmo
conceito de "objetividade" determinado pelas práticas e doutrinas do poder.
Uma imprensa verdadeiramente independente rejeita o papel de
subordinação ao poder e à autoridade. Ela contesta a ortodoxia, questiona o
que "as pessoas que pensam correctamente aceitarão sem questionar", destrói
o véu da censura tácita, disponibiliza ao público em geral a informação e a
variedade de opiniões e ideias que são um pré-requisito para uma
participação significativa na vida social e política e, além disso, oferece uma
plataforma para que as pessoas entrem em debate e discussão sobre as
questões e problemas que lhes dizem respeito. Ao fazê-lo, serve a sua função
como base para uma sociedade verdadeiramente livre e democrática.
Este é apenas um exemplo particular dos tópicos que irá encontrar
neste livro. Assim, descobrirá nesta antologia variados e perplexos

[14]
problemas e ideias sobre Democracia levantados por filósofos, juristas e
cientistas políticos. Essas discussões aumentarão certamente a sua
apreciação pelo pensamento claro e rigoroso e levá-lo-á a reconhecer a
importância da reflexão filosófica e crítica em tópicos urgentes dos nossos
dias.

[15]
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[16]
INTRODUÇÃO

A Democracia, palavra com origem no grego demokratía, (palavra


composta por ‘demos’, que significa povo, e ‘kratos’, que significa poder)
tem sido implementada à custa de lutas nem sempre pacíficas acabando com
ditaduras e regimes fascistas de que a história e a humanidade não se podem
orgulhar e jamais esquecer.
Todavia, tem-se constatado que as democracias, actualmente,
enfrentam uma crise de existência, especialmente pela descredibilização do
sector político face à percepção do cidadão comum. Assim, é urgente debater
os problemas que impedem a construção de uma sociedade justa para todos,
criando condições que viabilizem o acesso, por exemplo, à educação, ao
emprego, aos cuidados de saúde e à justiça, tornando as pessoas autónomas
e mais interventivas na sociedade.
Em cenários mais ou menos recentes, verificam-se em velhas e novas
democracias, muitos atropelos cometidos, nomeadamente na sobreposição
dos interesses privados sobre o interesse público, algum autoritarismo e o
nepotismo a conspurcar os princípios que deveriam inspirar uma democracia
justa para todos. Por sua vez, a política deveria servir de exemplo na prática
diária da democracia, algo que parece cada vez mais raro, senão
perfeitamente irreal.
Mais do que nunca, a Democracia deve ser discutida de forma séria e
ponderada, com argumentos claros e rigorosos, pelo que esta obra procura
ser mais um passo nesse caminho. A mesma junta investigadores e docentes
de diversas áreas e formações que irão reflectir sobre diversos temas
relacionados directa ou indirectamente com a Democracia.

A obra está dividida em quatro partes principais: 1) História e Direito


da Democracia; 2) Emancipação, Arte e Educação na Democracia; 3) Brasil
[17]
e Democracia e, por fim, 4) Problemas e críticas à Democracia. Este livro
será certamente útil para especialistas de diversas áreas de estudo, mas
também para aqueles que se iniciam na investigação académica (estudantes
de licenciaturas, mestrados ou doutoramentos). Esperemos que a obra
forneça uma visão geral, porém detalhada, de alguns dos problemas mais
interessantes da investigação académica actual sobre o tema.
A Parte I da obra, dedicada à História e Direito da Democracia, abrirá
com um artigo de Fernando Conde Monteiro (Universidade do Minho). Com
o título “A Democracia actual: reflexões sobre a restrição máxima aos
direitos e interesses jurídicos como forma de assegurar a sua máxima
protecção no quadro jurídico português”, o artigo irá discorrer sobre a
natureza epistemológica do direito penal no contexto democrático e social
moderno.
Segue-se um artigo de título “A Democracia moderna e
constitucionalismo nasceram quando a burguesia tomou o poder”, redigido
por Chalres de Sousa Trigueiro (Universidade de Coimbra) que procurará
demonstrar uma nova leitura da história social dos direitos humanos e da sua
relação com o surgimento das democracias modernas.
Manuel da Cruz (Universidade do Porto) seguirá com um artigo que
irá expor as reflexões de Gene Sharp sobre a natureza do poder e de formas
de o alcançar através de métodos não violentos, cujo título é “Desafio
político – como derrubar ditaduras por métodos não violentos em Gene
Sharp”.
Já Dulcilene Rodrigues (Universidade de Lisboa) apresenta um artigo
de título “Pluralismo constitucional e democracia: por uma tratativa dos
direitos humanos em tempos de mudanças climáticas” onde irá reflectir sobre
a relação importante do pluralismo constitucional com a democracia e da
relevância das alterações climáticas para os direitos humanos.

[18]
Para encerrar a Parte I da obra, o artigo “Entre o universalismo dos
direitos. O reconhecimento identitário no sistema europeu de protecção dos
direitos humanos” será apresentado por Vanessa Capistrano Ferreira
(Universidade Estadual Paulista “Júlia de Mesquita Filho), cujo objectivo é
expor algumas das mais importantes lacunas dos direitos humanos europeus
que põe em causa a própria concepção de Estado democrático, apelando a
novas reflecções que possam indicar o caminho para direitos irrestritos e
verdadeiramente universais.
Iniciamos a Parte II da obra, devota à Emancipação, Arte e Educação
na Democracia, abrirá com um artigo de título “A Democracia segundo
Tomás de Alencar” de Breno Góes (PUC-Rio). O texto procurará expor a
compreensão da ideia de democracia num episódio particular do romance
“Os Maias” de Eça de Queirós, através da personagem Tomás de Alencar.
Seguir-se-á um artigo em co-autoria de Érica Guerra da Silva e
Ludmilla Elyseu Rocha (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro).
Com o título “A correlação da Democracia e o direito social à educação”, as
autoras irão defender que o agir democrático depende necessariamente da
educação adquirida. Só esta poderá garantir a sua qualidade e rigor.
Prosseguiremos com um artigo que discorrerá sobre a crise
democrática que assombra actualmente diversos países e procurará fazer o
diagnóstico dos sintomas e de formas de os combater. O artigo foi realizado
por Maria Izabel Weber (Universidade de Coimbra) e tem o título “Por uma
Democracia emancipatória”.
Thiago Santos Rocha (Universidade de Lisboa) segue com um artigo
de título “Mínimo social, autonomia e participação democrática” onde fará
uma análise teórica da importância de o Estado garantir aos cidadãos o
acesso a um mínimo social de modo a adquirirem uma autêntica autonomia
e uma participação relevante nas decisões políticas e sociais.

[19]
Finalmente, Rúben Frazão Lozada (Universidade de Lisboa) fechará a
Parte II da obra com um artigo de título “As mentalidades dos indivíduos
perante o fenómeno da guerra e o papel que comportam no processo de
decisão democrática” onde discorrerá sobre a importância do papel dos
indivíduos na frágil relação entre a Paz e a Guera.
Continuaremos com a Parte III (Brasil e Democracia) da obra que
enceta com um artigo em co-autoria de Pedro Curvello Avzaradel
(Universidade Paris I) e Rodrigo de Sousa Tavares (Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro). Intitulado “Democracia, retrocessos ambientais e
caráter contramajoritário da constituição no Brasil”, o artigo examinará as
noções teóricas sobre o tema do carácter contramajoritário das decisões
políticas estarem a levar a retrocessos ambientais perigosos.
Já Daniella Tigre Silva e Noemi Pereira Pinheiro (Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais) apresentaram em co-autoria o artigo
“O poder da Mídia e seus efeitos nos regimes democráticos luso-brasileiro”
onde discutirão o papel da mídia e os seus impactos nas democracias luso-
brasileiras.
Seguiremos com um artigo de título “Whatsapp e ciberativismo: novos
espaços na democracia” de Sérgio Barbosa Silva (Universidade de Coimbra)
onde será investigado o uso de tecnologias de informação e comunicação –
especificamente, o WhatsApp – na participação política e nos novos espaços
da democracia.
Avançaremos com a contribuição de Guilherme Godoy (Universidade
do Porto) com o artigo “Democracia participativa contemporânea: uma
análise brasileira num contexto de regulação das drogas” onde serão
abordadas novas práticas da democracia participativa.
Por fim, encerraremos a Parte III com um artigo de Marcio Felix
Cavalcanti cujo título é “A (in)eficácia do controle difuso de
constitucionalidade”. Discutir-se-á o controle da constitucionalidade das leis

[20]
e a aplicação de um modelo particular de constitucionalidade no direito
português.
A quarta e última parte, intitulada “Problemas e Críticas à
Democracia”, iniciar-se-á com a apresentação do artigo de Ricardo Tavares
da Silva (Universidade de Lisboa) com o título “A Democracia e
meritocracia” onde será discutido a não relação entre a democracia
representativa e a votação eleitoral e outras formas de selecção dos
representantes políticos que não deixarão de ser democráticas, mas que terão
critérios mais relevantes.
Prosseguiremos com o artigo “A Democracia e a reforma do estado
pós-moderno” redigido por Rui Zeferino Ferreira (Universidade de Santiago
de Compostela). Debater-se-á a definição de interesse público e os principais
bloqueios à prática de uma democracia saudável e justa.
Já Paulo Fernando Rocha Antunes (Universidade de Lisboa)
apresentará no seu artigo “Marx, democracia e capital(ismo): as expressões
de “despotismo do capital” no livro I de Das Kapital” reflexões sobre o uso
e significado da expressão assinalada no título do artigo na obra de Karl
Marx, finalizando com reflexões sobre a influência do capital no viver
humano.
Seguir-se-á uma reflexão sobre os fundamentos teóricos da
democracia, a sua ligação com o voto e conclusão de a democracia actual é
um regime demasiado frouxo para ser verdadeiramente justo. Este artigo foi
elaborado por Steven S. Gouveia (Universidade do Minho).
Continuaremos ainda com um artigo em co-autoria de Hamilton
Gondim (Universidade Estadual da Paraíba) e Ana Paula Silva
(Universidade Federal da Paraíba) com o título “Crítica à noção de
democracia na obra de Slavoj Žižek” onde será analisado a crítica da noção
de democracia moderna na obra do filósofo esloveno.

[21]
Finalmente, encarremos a Parte IV e a obra com o artigo de título “A
Mediatização da Justiça” de Maria João Inácio que abordará a relação dos
Media com a Justiça de um ponto de vista democrático. Analisará ainda a
frágil relação entra os direitos consagrados e a liberdade de informação.

Esta obra abrange diferentes perspectivas podendo complementarem-


se numa visão ampla da sociedade, apresentando o que talvez possamos
definir como sugestões críticas dos Autores que têm por base uma visão
ampla da sociedade, a qual se aljema mais coesa, dinâmica, madura e
participativa.
Assim, desejamos bons momentos de leitura, na expectativa de que
estes artigos consigam, de alguma forma, despertar o espírito crítico do leitor
sobre a essência da Demcoracia.
Encerramos esta introdução gratificando verdadeiramente todos
aqueles que merecem de facto serem reconhecidos pelo seu espantoso
trabalho de produção científica: os distintos Autores que apresentamos nesta
obra colectiva.

Os Editores

[22]
PARTE I
História e Direito da
Democracia

[23]
PARTE I
História e Direito da
Democracia

[24]
1. A DEMOCRACIA ACTUAL: REFLEXÕES SOBRE A RESTRIÇÃO
MÁXIMA AOS DIREITOS E INTERESSES JURÍDICOS COMO FORMA
DE ASSEGURA A SUA MÁXIMA PROTECÇÃO NO QUADRO
JURÍDICO PORTUGUÊS

Fernando Conde Monteiro*

Resumo: O texto em causa reflete sobre a natureza epistemológica do direito penal,


enquanto realidade inserida no contexto democrático e social moderno, concluindo no
sentido da impossibilidade de se poder dar uma resposta satisfatória neste plano, quer no
domínio axiológico-normativo, quer no âmbito da eficácia.

Palavras-chave: direito penal, necessidade, proporcionalidade, axiologia, eficiência.

1. O inter-relacionamento humano como realidade hipercomplexa

Particularmente nas sociedades atuais é reconhecido o caráter altamente complexo


que o inter-relacionamento dos seus indivíduos apresenta. Esta enorme complexidade
deriva antes de mais da multidiversidade dos entes nela participantes: desde os
relacionamentos entre simples seres humanos per se até às complexas redes de direitos e
obrigações entre estes e entes coletivos (ou mesmo paracoletivos) ou apenas entre estes
últimos, passando pelos modernos desafios colocados pelo meio ambiente, animais e
ultimamente pela inteligência artificial.1
De resto, esta mesma complexidade, assentando desde logo na própria
complexidade do ser humano, derivada das múltiplas dimensões constitutivas do mesmo,
desde os aspetos físicos e biológicos até às dimensões mentais, acaba por adquirir

*Professor da Escola de Direito da Universidade do Minho.


1
Sobre isto, MONTEIRO, F.C. (2013), “Ética e Direito Penal (Reflexões epistemológicas sobres as
relações entre ética e direito penal em face do direito positivo português)” in ROCHA J. (org.) Anuário
Publicista da Escola de Direito da Universidade do Minho – Tomo II, Ética e Direito, Braga: Escola de
Direito da Universidade do Minho/Departamento de Ciências Jurídicas Públicas, p.45 e segs.

[25]
características extremas em face do desenvolvimento social e cultural da espécie humana,
máxime por via do crescimento exponencial do conhecimento e da tecnologia.
Efetivamente, é consabido o facto de atualmente vivermos em sociedades
povoadas de um sem-número de atividades de múltipla índole que ultrapassam de longe
as simples fronteiras dos meros estados para se assumirem como realidades à escala
mundial (globalização).2
De resto, a paulatina ultrapassagem do modelo dos estados em função de
organizações de índole regional3 e mesmo universal4 mais reforça a complexidade em
causa.

2. O inter-relacionamento humano como realidade carecedora de regulamentação

2.1.Introdução

Se todo o inter-relacionamento humano necessita de respostas axiologicamente


significativas por via dos problemas que naturalmente coloca,5 então, há que procurar as
fontes de emanação de tais respostas.

2.2. Fontes de regulamentação não jurídicas

Uma primeira fonte de resolução dos problemas do inter-relacionamento humano


pode ser buscada em áreas não jurídicas: ética, simples costumes meramente sociais,
religião enquanto tal, filosofia, meras ideologias políticas, etc. Tal poderá ter expressão
através de instituições/grupos de cariz sociológico tais como: a família, religião, escola,
vizinhos, associações, etc.6

2
Algo que pode ser expresso desde a simples (ou mesmo complexa) rede de transportes e vias de
comunicação até ao ultraconhecido fenómeno das comunicações (por exemplo, a internet) e passando pela
interdependência de cariz económica, comercial, monetária, etc.
3
Pense-se desde logo na União Europeia.
4
Destaque deve naturalmente ser dado à ONU.
5
As questões neste plano vão desde a necessidade de impor limitações ao agir humano em face de terceiros
também seres humanos (por exemplo, até aonde poderei ir na defesa dos meus interesses individuais face
a um terceiro, igual a mim próprio?), também de conjuntos mais ou menos extensos de homens e mulheres
(interesses coletivos) e animais ou coisas (por exemplo, meio ambiente) até à definição de direitos e
pretensões dos entes participativos nestes diferentes tipos de relacionamentos.
6
Neste sentido, KREY, V. (2008), Deutsches Strafrecht, AT, Grundlagen, Tatbestandsmässigkeit,
Rechtswidrigkeit, Schuld, Vol. I, 3.ª ed., Stuttgart: Kohlhammer, p.2.

[26]
Um sistema deste teor, pese embora a sua coexistência com a fenomenologia
jurídica, não é considerado como suficiente e satisfatório para uma adequada resolução
da conflitualidade social, mormente nas nossas atuais sociedades hipercomplexas.7

2.3.O direito como resposta ao desafio do inter-relacionamento

A realidade jurídica, a partir das constituições e do direito internacional e também


usando de múltiplos mecanismos de direito interno, procura estabelecer uma adequada
regulamentação de toda esta complexa rede de vínculos. Para além desta função, o direito
estabelece, em caso de violação das suas normas, mecanismos interventivos que vão
desde simples declarações de invalidade de normas jurídicas até fortes restrições aos
direitos dos cidadãos, passando por sistemas de ressarcimento de danos e diversos tipos
de sanções jurídicas.

3. O direito penal moderno como possível resposta aos desafios do inter-


relacionamento humano

3.1.O conteúdo axiológico-normativo jurídico-penal

O direto penal visa estabelecer um quadro jurídico-protetivo que vai desde um


conjunto imenso e complexo de direitos individuais e coletivos (vida, integridade e saúde
dos cidadãos, propriedade e honra dos mesmos, assim como de entes coletivos, etc.) a
interesses de caráter intrinsecamente coletivo (incorruptibilidade dos funcionários
públicos, imparcialidade da administração da justiça, manutenção do estado, enquanto
tal, proteção de interesses gerais da comunidade internacional, etc.).
Todo este imenso conteúdo de cariz axiológico-normativo encontra-se
subordinado pretensamente a estritos princípios de natureza racionalizadora, que
aparecem a priori como seus critérios fundamentadores.

3.2.O princípio da necessidade de intervenção jurídico-penal (em sentido amplo)

7
Ibid., pp.2-3.

[27]
O sistema jurídico-penal só deverá intervir no âmbito axiológico-normativo se tal
for reclamado por um (por muitos considerado irrenunciável) princípio da necessidade.8
Tal significa portanto que o direito penal deverá assumir-se como uma realidade
eficiente. De qualquer maneira, esta eficiência pode ceder em função de eventuais
incomportáveis custos axiológicos que possa acarretar.9 Por outro lado, a intervenção por
parte de ramos jurídicos menos incisivos que o direito penal e de forma considerada
adequada e portanto eficiente poderá igualmente afastar este da sua eventual
intervenção.10 De resto, uma conduta poderá ser criminalizada não obstante tal ser
altamente questionável, desde logo no plano axiológico.11
Encontramo-nos assim perante a consagração dos princípios da necessidade
(incluindo a subsidiariedade), da intervenção jurídico-penal (em sentido estrito) e da
proporcionalidade ou proibição do excesso.
O art.º 18.º n.ºs 2 e 3 da Constituição portuguesa tem sido considerado como o
suporte normativo destes princípios.12

3.2.1. Consequências jurídicas do princípio da necessidade de intervenção


jurídico-penal

3.2.1.1. O conteúdo axiológico-normativo: a importância e o seu significado


como critérios de recorte jurídico-penal

A escolha do conteúdo axiológico-normativo a ser tutelado pelo direito penal deve


obedecer à ideia fundamental de que só realidades dotadas de óbvia importância neste
âmbito é que merecerão ser elevadas à categoria de coisas jurídico-penais

8
Sobre isto, MONTEIRO, F.C. (2009), Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias,
Vol. II, I. Direito Penal, 4. Parte Geral, ANDRADE, M. C.; ANTUNES, M. J.; SOUSA, S. A. (orgs.)
“Algumas Reflexões Epistemológicas Sobre O Direito Penal”, Coimbra: Coimbra Editora, p.761 e segs.
9
O que corresponde a um princípio de proporcionalidade (em sentido estrito), assim, COSTA, F. (1992),
O Perigo em Direito Penal, Coimbra: Coimbra Editora, p.252 e segs.
10
Estaremos, portanto, perante o princípio da subsidiariedade da intervenção jurídico-penal, cf., neste
sentido, BELEZA, T. (1998), Direito Penal, 1.º Vol., 2.ª ed., AAFDL, pp.50 -53; SILVA, M. (2001), Direito
Penal Português, Parte Geral, I, Introdução e Teoria da Lei Penal, 2.ª ed., Lisboa /S. Paulo: Verbo, pp. 88-
89.
11
O que poderá reduzir o direito penal a uma mera função simbólica, sobre esta, cf. ROXIN, C. (2006),
Strafrecht, AT, Grundlagen, Der Aufbau der Verbrechenslehre, Vol. I, 4.ª ed., München: C.H. Beck, pp.25-
27.
12
Neste sentido, entre nós, DIAS, F. (2007), Direito Penal I, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, pp.127-
131; cf., em sentido restritivo, em face do direito italiano, PULITANÒ, D. (1983), “Obblighi constituzionali
di tutela penale?,” Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, p.495. Efetivamente os normativos em
questão não permitem uma fundamentação em sentido positivo de um conceito material de crime, mas
eventualmente o seu recorte negativo, infra n. 15.

[28]
(sfrawürdigkeit).13 Deste modo, assegurar a proteção jurídico-penal de, por exemplo,
meras normas de etiqueta social, ordenação simples do trânsito ou de caráter
simplesmente estético é algo que por regra não fará sentido.14 Já a tomada em
consideração de valores fundamentais de cariz individual (vida, integridade física, saúde
pessoal, liberdade, propriedade, etc.), assentes na Constituição, ordem liberal, implicaria
per se uma clara obrigação de os proteger, nesta perspetiva.15 Por outro lado, valores de
âmbito coletivo, também careceriam de uma proteção penal (pense-se, por exemplo, na
16
recolha de tributos, na defesa do ambiente ou na segurança do estado) De resto, o
recorte a efetuar neste âmbito não se limita à simples consideração dos bens em si
mesmos. A forma da sua violação é igualmente um aspeto fundamental a tomar em
consideração. Uma agressão dolosa não pode comportar uma mesma valoração ética que
um comportamento meramente negligente. Portanto e antes de mais de um ponto de vista
político-criminal, a significatividade axiológico-jurídica de uma dada conduta terá
forçosamente que constituir um marco decisivo de delimitação de um autêntico direito de
ultima ratio.17 Algo que expressará iniludivelmente a acentuada eticização da realidade
jurídico-penal.

13
Sobre isto, fundamental, SAX, W. (1957), “Kriminalpolitik und Strafrechtsreform”, Juristenzeitung, p.6.
14
Cf. neste sentido ROXIN. C., op. cit., p. 18 e segs.
15
A doutrina dominante, porém, rejeita esta obrigação de incriminação (constitucional), sem mais; neste
sentido, na Alemanha, ROXIN, C., idem, p.47; entre nós, DIAS, F., op. cit., pp.129-131; em sentido
contrário, aceitando uma imposição implícita constitucional de incriminação, por exemplo, CUNHA, C.
(1995), Constituição e Crime, Uma Perspetiva da Criminalização e da Descriminalização, Universidade
Católica Portuguesa, pp.410-411. De facto, na base deste posicionamento não se encontra a fundamental
ideia de conceber os direitos de cariz liberal como direitos negativos em face do estado [PIETRZAK, A.
(1994), “Die Schutzpflicht im verfassunrechtlichen Kontexte – Überblick und neue Aspekte”, Juristische
Schulung, p.748], pois que se objetivaram (assim, por exemplo, CANOTILHO, G./ MOREIRA, V. (1991),
Fundamentos da Constituição, Coimbra: Coimbra Editora, p. 102 e segs.) e portanto se inseriram na tarefa
constitucional de os proteger (art.º s 2.º, 9.º e 18.º n. 1 da Constituição portuguesa), mas antes a ideia de
conceber esta tarefa a partir de patamares mínimos [proibição da insuficiência, CANARIS, C-W. (1984),
“Grundrechte und Privatrecht”, Archiv für die civilistische Praxis, vol. 184, p.228] e no âmbito penal, como
“possível obrigatoriedade”, fundada no estado de direito democrático em sentido material e condicionada,
em concreto, por um raciocínio argumentativo de base empírica sobre a necessidade da pena” [PALMA, F.
(2006), Direito Constitucional Penal, Coimbra: Almedina, p.56].
16
Sobre o relacionamento entre o estado social inerente ao quadro constitucional vigente e o direito penal
(secundário), DIAS, F. (1984), Para Uma Dogmática do Direito Penal Secundário, Um Contributo Para a
Reforma do Direito Penal Económico e Social, Coimbra: Coimbra Editora, p.22 e segs. Sobre a sua
obrigatoriedade constitucional supra n. 15.
17
E a confirmar isto encontramos a grande disparidade entre a punibilidade dos crimes dolosos
relativamente aos crimes negligentes, atente-se, desde logo, no caso português, por exemplo, ao homicídio
doloso simples (pena de 8 a 16 anos), art.º 131, em comparação com o homicídio negligente simples,
punível com uma pena de prisão de 1 mês a 3 anos ou em alternativa com pena de multa, art.º 137 n.º 1,
ambos os normativos do Código Penal português; sobre isto, DIAS, F. (2007), Direito Penal I, pp.349-350.

[29]
3.2.1.2.As consequências jurídico-penais enquanto formas de proteção subsidiária
do direito penal

Um direito penal, que se assuma como a entidade protetora daquilo que


axiologicamente se configura como mais valioso para a coletividade (importância
essencial dos seus valores em si mesmos e no seu recorte epistemológico), há de, por
razões de logicidade e proporcionalidade, consubstanciar em si próprio também aquelas
consequências jurídicas que se configurem como as mais incisivas de todo o sistema
jurídico (princípio da singularidade do sancionamento jurídico-penal).18

4. Crítica epistemológica ao paradigma dominante no plano da intervenção


jurídico-penal

4.1. O problema do recorte axiológico-normativo

Como anteriormente referimos, a definição dos bens jurídicos a serem tutelados


jurídico-penalmente obedece fundamentalmente a dois tipos iniciais de critérios. Por um
lado, afirmando-se a validade intrínseca do bem, enquanto tal (v.g., vida); por outro,
delimitando espécies de agressões aos valores protegidos e assim estabelecendo formas
de proteção por via disso.
Ora, a primeira questão que desde logo aqui se coloca é a de saber se, desde logo,
a escolha a priori de certos valores óbvios como a vida, a integridade física ou a saúde,
implica sem mais a solução do problema em causa. Efetivamente, nenhum bem jurídico
apresenta um caráter absoluto em termos da sua proteção. Noutros termos, qualquer valor
jurídico-penal pode ser objeto de postergação legítima. Basta para tal que esteja
justificado no âmbito do ordenamento jurídico em que se encontre estabelecido. 19 Por
outro lado, a questão da justificação em causa é um problema em aberto no plano jurídico-
epistemológico. Efetivamente, desde as clássicas legítima defesa e direito de necessidade
até à ideia (ou ideias) de adequação social, passando por cláusulas supralegais (por
exemplo, no âmbito do direito de necessidade), encontramos um sem-número de

18
Relativamente a isto, cf. STRENG, F. (2012), Strafrechtliche Sanktionen, Die Strafzumessung und ihre
Grundlagen, 3.ª ed., Stuttgart: Kohlhammer, p.1.
19
Por todos, MONTEIRO, F.C. (2015), Direito Penal I, Braga: ELSA – UMINHO, p.128 e segs.

[30]
construções jurídicas, que para além de divergirem entre si, 20 nem sequer as podemos
quantificar. 21
Por outro lado, a escolha de certos bens como carecedores de tutela jurídico-penal
pode ser altamente contestável, como nos casos, entre nós, por exemplo, da incriminação
do lenocínio (art.º 169.º do Código Penal português),22 da expressão de opiniões sobre
factos históricos (v.g., negação do holocausto nazi),23 da relevância jurídica do
consentimento da mulher grávida no crime de aborto,24 etc.
De resto, o próprio recorte valorativo no seio de um mesmo bem jurídico, com
diferentes valorações, pode efetivamente ser altamente questionado. Porque é que, por
exemplo, o homicídio ou as ofensas corporais à integridade e saúde dolosas devem ser
mais valoradas que os seus comportamentos negligentes, quando estes são mais
frequentes e, portanto, preventivamente constituem expressão de um maior alarme
social?25
Portanto, encontramo-nos perante uma clara falta de critérios de valor que com
rigor e suficiência nos possam dar a legitimidade axiológica que fundamente o conteúdo
ético-jurídico do direito penal.
As atrás ambiguidades sobre o processo de incriminação não mais expressam do
que isto mesmo. 26
Neste plano, o historicismo da realidade jurídica (incluindo o direito penal), por
praticamente todos reconhecido,27 não mais expressa do que esta óbvia anarquia

20
Veja-se, por exemplo, a erosão que entre nós tem sofrido a clássica legítima defesa, sobre isto, cf. DIAS,
F. (2007), Direito Penal I, p.404 e segs.
21
Sobre isto, cf. DIAS, F., idem, pp. 387-90.
22
Relativamente a esta polêmica e para se ter uma panorâmica da divisão da doutrina sobre este ponto,
ALBUQUERQUE, P.P. (2015), Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª ed., Lisboa: Universidade Católica Editora, p.673; cf.
igualmente com o acórdão do Tribunal Constitucional português n.º 641/2016.
23
Sobre isto, cf., com interesse, a decisão do plenário do Tribunal Constitucional de Espanha, sentença
235/2007 de 7 de novembro de 20017, disponível em
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20160641.html, acesso em 15/572017; veja-se
igualmente RIBEIRO, R. S.R., O Discurso de Incitamento ao Ódio e a Negação do Holocausto: Restrições
à Liberdade de Expressão?, disponível em
http://www.fd.uc.pt/hrc/pdf/papers/RaisaDuarteSilvaRibeiro.pdf, acesso em 15/5/2017.
24
De notar ser esta uma questão polêmica, quer em termos históricos (no caso português só a partir da Lei
n.º 16/2007, de 17 de abril é que o consentimento da mulher grávida, sem mais, relevou enquanto causa de
justificação), quer no âmbito diacrónico, em que diferentes legislações consagram soluções opostas.
25
Encontramo-nos assim perante um conflito de natureza político-criminal entre a ideia de eticidade face
às questões de pragmaticidade – uma constante em toda a fenomenologia jurídico-penal.
26
Supra n. 15.
27
Neste sentido, NEVES, C. (1993), p.49, afirma: “Os pensamentos revelam-se deste modo entidades
culturalmente históricas. São função da concepção do direito e dos objetivos práticos específicos por que
ele se orienta em cada época e nos diversos sistemas jurídicos. Mais do que isso, são função inclusivamente
do sentido fundamental da cultura englobante, do sistema cultural global, porquanto aí se oferecem já os

[31]
epistemológica, que se estende no âmbito sincrónico, com uma imensa mole de sistemas
jurídicos de diferente recorte axiológico, quer no âmbito dos seus fundamentos, quer no
seu conteúdo normativo e que igualmente tem lugar no processo aplicativo judicativo.28

4.2. O problema da pretensão de eficácia jurídico-penal

Se o problema meramente axiológico é deveras complexo, mais complexo se torna


ainda a questão da eficácia no âmbito jurídico-penal.
Efetivamente, o ponto de partida neste plano é desde logo bicéfalo, isto é, a
questão em causa diz respeito simultaneamente a aspetos empíricos, mas nela se
convolam igualmente problemas axiológicos. Por outras palavras, encontramo-nos
perante a escolha de um sistema jurídico-penal simultaneamente considerado como o
mais eficiente, mas ao mesmo tempo reclamando-se como o menos incisivo (com
menores custos axiológicos).29 Eis algo que não tem tido e não estamos a ver que possa
ter expressão efetiva em termos epistemológicos. De facto, nós encontramo-nos
impossibilitados de fazer experiências laboratoriais em termos de podermos decompor a
realidade criminológica nos seus elementos mais simples para assim estabelecermos
eventuais relações determinísticas entre fatores. Portanto a ideia de causalidade no plano
criminológico é simplesmente um mito e com ela cai naturalmente a questão do melhor
meio de combater o crime em termos estritamente empíricos. Por outro lado, como
referimos, o problema da pretensão de eficácia ou mesmo desta é necessariamente
relativizado em função da ideia de valor (proporcionalidade). Um meio simplesmente
eficaz pode não ser legítimo por se configurar demasiadamente excessivo. Portanto,
encontrando-nos perante esta busca, necessariamente que seremos confrontados com
problemas epistemológicos de impossível resolução, por via desde logo da aludida

últimos referentes intencionais (o próprio sistema de valores que o direito assimilará), já a estruturas
noéticas que nessas épocas condicionam as possibilidades de pensar abertas a qualquer pensamento
integrado nesse mesmo universo cultural “, Metodologia Jurídica: Problemas Fundamentais, Coimbra:
Coimbra Editora. Sobre especificamente a irracionalidade no âmbito jurídico-penal, MONTEIRO, F. C.
(2012), “Algumas reflexões sobre o Direito Penal a partir da Psicanálise”, Revista Jurídica da Universidade
Portucalense, n.º 15, p.80 e segs.
28
Para uma caracterização dos diferentes sistemas jurídicos contemporâneos, cf., por todos, VICENTE, D.
M. (2015), Os Grandes Sistemas de Direito Contemporâneo (Direito Comparado), vol. I, 2.ª ed., Coimbra:
Almedina.
29
Neste sentido, MONTEIRO, F.C. (2013), Ética e Direito Penal, pp.54-56; cf. igualmente RODRIGUES,
A. (2001), Novo Olhar Sobre A Questão Penitenciária, Estatuto Jurídico do Recluso e Socialização,
Jurisdicionalização, Consensualismo e Prisão, Coimbra: Coimbra Editora, pp.31-32.

[32]
impossibilidade de decompor a realidade nos seus elementos mais simples, procedendo a
experiências laboratoriais.
Não admira, portanto, que também aqui a historicidade e a culturalidade tenham
o seu lugar de destaque. Desde a simples composição de interesses entre a vítima (ou
30 31
quem a represente) e o agressor até à clássica pena de morte, passando pela multa,
desterro, penas corporais, infâmia, técnicas de reeducação, medidas de segurança e
tratamento, etc., tudo praticamente já teve expressão no plano histórico. Igualmente num
plano diacrónico a ainda atual diversidade de instrumentos penais é incomensurável.32
A tudo isto acresce a demonstrada fragilidade do sistema penal globalmente considerado
(aparelho legislativo, instâncias formais de controlo), cujas limitações de toda a espécie
e contradições implicam uma larga margem de inoperacionalidade e desvio do seu quadro
jurídico institucional.33 De resto, o investimento no combate ao crime é sempre um aspeto
a ser ponderado, desde logo politicamente, com outros aspetos, numa perspetiva de
recursos necessariamente escassos e disso o direito penal se ressente, obviamente.34
Portanto, encontramo-nos perante óbvias limitações epistemológicas também
neste âmbito.

5. Conclusão

O direito penal assume a função de proteção de bens jurídicos fundamentais da


coletividade. Fá-lo, contudo, em termos de uma óbvia fragilidade epistemológica. Daqui
que a historicidade e a culturalidade se façam sentir conjuntamente a dispersão de
decisões e a irracionalidade a tudo isto ligadas. Alternativas este estado de coisas é algo
para já impensável. De resto, outros setores do ser humano igualmente disto mesmo
participam: estética, ética, política, filosofia, etc., pelo que a resignação é algo de
inevitável.35

30
Sobre isto, entre nós, CARVALHO, T. (1982), “Condicionalidade Sócio-Cultural do Direito Penal,”
Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Vol. LVIII, pp. 1051-1052.
31
Sobre em particular esta, MONTEIRO, F. C. (2013), Estudos de Homenagem ao Professor Doutor
Alberto Xavier, Vol. III, FERREIRA, E. P.; TORRES, H.; PALMA, H. (orgs.), “A pena de morte no âmbito
do sistema jurídico-penal – reflexões críticas,” Coimbra: Almedina, pp.243-257.
32
Para uma reflexão, entre outras, sobre esta diversidade, MARKUS, D. D.; LINDSAY, F. (2007) (orgs.),
Modern histories of crime and punishment. Critical perspectives on crime and law., Stanford: Stanford
University Press.
33
Neste sentido, DIAS, F./COSTA, A., op. cit., p. 365 e segs.
34
Ressaltando os custos elevadíssimos de um direito penal muito eficaz, SILVA, S. (2004), Eficiência e
Direito Penal, Vol. 11, Coleção de Estudos de Direito Penal, trad. Maurício António Ribeiro Lopes., S.
Paulo: Manole, pp.40-41.
35
Assim, MONTEIRO, F. C. (2009), Algumas Reflexões Epistemológicas Sobre O Direito Penal, pp.759-
760

[33]
[34]
2. A DEMOCRACIA MODERNA E CONSTITUCIONALISMO
NASCERAM QUANDO A BURGUESIA TOMOU O PODER

Charles de Sousa Trigueiro1

Resumo: O presente artigo tem como objetivo demonstrar que na história social dos
direitos humanos, o estado nasce com a união de senhores feudais com o rei (apenas a
nobreza) criticando a história tradicional, na qual dizia que os estados nacionais foram
formados pela união do rei com a burguesia. O presente artigo tenta se alinhar a nova
história critica e demonstrar que as democracias modernas surgem no momento em que
a burguesia toma o poder e acaba de vez com o feudalismo, nascendo assim, as
constituições como forma de assegurar um estado de estrutura burguês para o pleno
desenvolvimento do capitalismo. Surgindo com as democracias modernas, o
constitucionalismo.

Palavras chaves: Estado, nação, constitucionalismo.

Introdução

Para realização da presente investigação foi necessário aplicar o método


dogmático, como a hermenêutica dos textos normativos recomenda, mas também o aporte
à doutrina e à transversalidade foram necessários, desde que se trata de tema
interdisciplinar de elevado teor político e sociológico, tudo alinhavado por uma tradição
de pensamento racionalista da formação dos estados e surgimentos das constituições.
Assim, o artigo, divide-se em quatro partes. Na primeira parte realizou-se uma
demonstração sobre o surgimento dos estados nacionais, os interesses das classes sociais
envolvidas, e um estudo sobre os doutrinadores e teóricos destes temas.

1 Doutorando em Direito Pública na Universidade de Coimbra; Mestre em Ciência Jurídicas, Bacharel em


ciências jurídicas e sociais pela UFPB.. Servidor Técnico Administrativo em Educação com apoio ao
Ensino, Pesquisa e Extensão, ambos pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB - Brasil. Especialista em
direitos Humanos, Econômico e Social pela UFPB. Especialista em Ordem Jurídica Ministério Público e
Cidadania pelo Centro Universitário de João Pessoa - Paraíba.

[35]
A segunda parte apresenta estudos sobre o momento em que a burguesia toma o
poder, analisando o caso da revolução francesa.
Trata a terceira parte, do estudo da concepção marxista do direito.
A quarta e última parte, analisa o surgimento do constitucionalismo.
Por fim, a investigação em mãos representa um convite ao leitor interessado em
saber mais sobre as reais possibilidades que o Estado através do surgimento do
constitucionalismo, apresenta de oportunidades para que as pessoas se desenvolva com
dignidade humana e justiça social.

1. Formação dos estados nacionais

Inicialmente cabe analisar o surgimento dos estados nacionais na Europa. A


história tradicional diz que o rei ao se aliar à burguesia nascente conseguiu poderes que
antes estavam dispersos nas mãos da nobreza feudal.
A nova história critica diz que essa é uma tese falha que não merece prosperar,
porque o Estado absolutista foi criado pela união dos nobres. Foi os senhores feudais que
concordaram em concentrar toda autoridade nas mãos dos reis.

1.1. A monarquia absolutista

No estado nacional absolutista, o rei tinha um poder absoluto. Isso quer dizer que
as únicas leis que valiam era as leis nacionais aprovadas pelo rei. O único tipo de moeda
que podia circular em toda a nação era o que fosse autorizado pelo rei. Os comandantes
do exercito e da marinha, os ministros, todos eram nomeados pelo rei. (SCHMIDT, 1999)
A autoridade do rei era absoluta porque não podia ser contestada. Sempre valia a
vontade dele. Não existiam eleições, nem partidos políticos, nem Constituição, nem
mesmo um parlamento com deputados. Ninguém publicava um livro sem autorização
real. Todos tinham de obedecer lhe. O monarca estava acima de todas as leis. (SCHMIDT,
1999)
Os primeiros estados nacionais da Europa tinham um regime político chamado
monarquia absolutista. Monarquia porque tem um rei, absolutista porque o rei governa
sem limites. (SCHMIDT, 1999)

[36]
Segundo José Damião de Lima (TRINDADE, 2002, p. 17) para explicar as razoes
do surgimento do estado nacional e da monarquia absolutista é preciso entender como
estava a Europa no final da idade média.
O fato de as pessoas falarem o mesmo idioma e partilharem as mesma tradições
culturais ajudava-as a se sentirem “da mesma família”, “da mesma comunidade” e “da
mesma nação”. As rotas de comércio ligavam os interesses econômicos de muitas cidades
e regiões e estimulavam a idéia de que, se todos se unissem, seriam mais fortes, mas
protegidos contra os “estrangeiros”. Mas não foi só por isso que se formaram os Estados
nacionais. (SCHMIDT, 1999)
Conforme dizia Marx, a historia é uma luta de classes, então, para entender porque
surgiu os Estados nacionais é preciso estudar o que estava acontecendo com as classes
sociais, como a nobreza feudal, a burguesia e os camponeses, no final da idade média.
José Damião de Lima (TRINDADE, 2002, p. 21) diz que primeiramente a Europa
sofreu com a grande crise econômica do século XIV. A população havia crescido, passava
fome e não havia mais terras disponíveis para plantar. Para piorar o quadro, as guerras e
a peste negra mataram milhares de pessoas. As cidades diminuíram de tamanho, os
campos foram abandonados. Com esse empobrecimento geral, os nobres recebiam
tributos feudais cada vez menores. Ou seja, até os nobres tinham sua riqueza diminuída.
Vendo suas rendas diminuírem, os nobres tomaram uma atitude brutal:
aumentaram a exploração feudal sobre os servos. Exigiram mais e mais tributos. Mas a
resposta dos servos também foi brutal e eclodiram inúmeras revoltas em muitas regiões
da Europa. Os servos invadiam os castelos, pegavam os objetos de valor e incendiavam
o que sobrava. Em muitos feudos, as terras foram tomadas pelos camponeses e divididas
entre eles.2
Para José Damião de Lima (TRINDADE, 2002, p. 18 ) as revoltas dos servos eram
tão maciças que o exercito particular de cada senhor feudal já não era suficiente. Os
nobres começaram a perceber que precisavam se unir para se defender das revoltas que
ameaçavam todos os senhores feudais. Ficava claro que só haveria uma maneira de

2 Segundo o historiador Francês Georges Duby (DUBY, 2009, p. 222) ele conhece uma carta de um nobre
da época que, apavorado, escreveu contando que tinha ouvido boatos de que os servos haviam estuprado
uma condessa na frente do marido. Depois, amarraram o conde e o puseram no fogo. Em seguida, obrigaram
a esposa comer pedaços da carne assada do cadáver do marido. É provável que essa historia seja exagerada,
mas de qualquer modo ela revela o pavor que os nobres estavam sentido com as insurreições camponesas.

[37]
combater as rebeliões e salvar o feudalismo: a formação de um grande exército que
atuasse em vastos territórios para esmagar de vez as revoltas servis.3
Para montar um exercito, era preciso dinheiro e organização. Portanto, o Estado
absolutista foi a organização que os nobres encontraram para se unir, cobrar impostos de
tanta gente, manter a ordem feudal sobre vastos territórios, criar novas leis e nomear
novos funcionários. (SCHMIDT, 1999)
O historiador inglês Perry Anderson destaca que:

Durante toda a fase inicial da época moderna, a classe dominante – econômica e


politicamente – era, portanto, a mesma da época medieval: a aristocracia feudal. (...)
Essencialmente, o absolutismo era apenas isso: um aparelho de dominação recolocado
e reforçado, destinado a sujeitar as massas camponesas à sua posição tradicional. (...)
Em outras palavras, o Estado absolutista nunca foi um árbitro entre a aristocracia e a
burguesia, e menos ainda um instrumento da burguesia nascente contra a aristocracia:
era a armadura política de uma nobreza atemorizada. (ANDERSON, 1985, p. 18)

O Estado absolutista foi criado pela união dos nobres. Foram eles que
concordaram em concentrar toda autoridade nas mãos dos reis. O Estado absolutista era
uma super- arma nas mãos dos senhores feudais. Antes, quando os servos se revoltavam,
eles era liquidados pelo próprio nobre e suas tropas. Com o Estado nacional, os nobres
haviam construído uma super- espada e um super- escudo: o Estado absolutista. Se os
servos ousassem se revoltar, teriam de enfrentar as leis do rei, os tribunais do rei, os
exércitos do rei. (SCHMIDT, 1999)
Ainda com Perry Anderson (ANDERSON, 1985, p. 19) o Estado absolutista não
era neutro em relação às classes sociais. O rei até que falava em governar “para todo o
povo”, mas, na prática, quando estourava uma revolta de camponeses contra nobres, o rei
estava sempre de um lado: dos nobres e do feudalismo.
De qualquer modo, os reis não podiam fazer tudo aquilo que quisessem. Se um rei
“enlouquecesse” e tomasse partido dos servos contra os nobres, provavelmente os nobres
se rebelariam e o substituiriam por outro monarca mais “lúcido”. Isso mostra que as
decisões do rei podiam ser limitadas pelos interesses da nobreza. (SCHMIDT, 1999)

3 Segundo o historiador Francês Georges Duby (DUBY, 2009, p. 238) a crise no século XIV e o aumento
dos tributos feudais geraram revoltas populares. (Na França, a rebelião camponesa foi chamada de
jacquerie. Na Inglaterra, foi liderada por um artesão chamado Watt Tyler e apoiada pelo padre John Ball).
Os camponeses perguntavam: “Quando Adão cavava a terra e Eva fiava, onde estava o cavaleiro?”. O
estado absolutista nasceu para esmagar essas revoltas.

[38]
1.2. Os interesses da burguesia

Para José Damião de Lima (TRINDADE, 2002, p. 24) a unificação nacional


favorecia a burguesia. A razão era simples: os monarcas absolutistas dava força para os
negócios da burguesia. Por exemplo, faziam leis que proibiam importação de produtos
estrangeiros concorrentes dos produtos da burguesia nacional. E os reis protegiam os
negócios da burguesia porque quanto mais dinheiro a burguesia ganhasse, mas impostos
poderia pagar ao Estado. Uma Mão lavava a outra.
Não foi a toa que grandes comerciantes e banqueiros emprestaram dinheiro e
deram todo apoio aos monarcas e nobres que lutavam pelo reforço do poder real. Afinal,
todos ganhavam com isso. (SCHMIDT, 1999)
Segundo José Damião de Lima (TRINDADE, 2002, p. 26) o Estado absolutista
podia ser interessante tanto para a nobreza como para a burguesia. Ele ajudava a conciliar
os interesses das duas classes sociais, ou seja, o rei e seus auxiliares se emprenhavam em
harmonizar a burguesia com a nobreza, levando as duas a obterem vantagens.
O historiador brasileiro Francisco J. C. Falcon destaca que:

Esse tipo de Estado assegura à aristocracia a manutenção de sua hegemonia.


[Liderança] (...) [Mas também é verdade que] a burguesia mercantil encontrou na
aliança com os príncipes [os monarcas] um instrumento capaz de favorecer seus
próprios interesses econômicos e políticos. (...) Mas, afinal, esse Estado é feudal ou é
capitalista? Na verdade, diríamos que ele é as duas coisas e, por isso mesmo, não é
exatamente nem uma, nem outra. (...) O Estado absolutista tende a expressar a busca
de um equilíbrio precário, a longo prazo impossível, entre classes (...) cujos interesses
são em parte complementares e em parte antagônicos. (FALCON, 1986, pp. 32-36.)

No entanto, não dá para se enganar: o Estado absolutista era um Estado feudal. A


principal finalidade de sua existência era salvar a pele do feudalismo das revoltas servis
e dos avanços econômicos da burguesia. Dois aspectos mostram isso muito bem.
Primeiro: os burgueses pagavam altos impostos ao Estado, a nobreza não. Segundo: os
principais cargos da burocracia estatal (funcionários públicos) eram reservados aos
nobres. Apenas membros das tradicionais famílias nobres é que podiam se tornar
ministros, governadores, diplomatas, almirantes e generais. No Estado absolutista, a lei

[39]
não era a mesma para todos. As famílias de “sangue azul” (da nobreza) tinham privilégios
especiais garantidos pela lei. (SCHMIDT, 1999)

1.3. O grande pensador da cidadania

Mais conhecido como Marsílio de Pádua, esse escritor veio a torna-se conhecido
a partir do escrito Defensor Pacis (O Defensor da Paz). Nessa obra ele criou teoria própria
sobre os diversos conflitos que traziam insegurança ao mundo ocidental, e estudando o
envolvimento no conflito entre poder religioso e civil, ele propôs uma resolução ao
problema. (STREFLING, 2010, p. 154)
Essa obra é composta em três partes, sendo que a primeira, trata dos temas
fundamentais, iniciado com um tratado sobre a paz, o surgimento e o significado da
existência da civitas; defende que a lei seja o fundamento do estado, e que o clero, igual
às outras partes, seja um órgão do estado. (STREFLING, 2010, p. 154)
Com argumentos filosóficos e usando parcialmente Aristóteles, Marsílio de Pádua
elaborou uma teoria sobre o que é e o que de deveria ser um estado.(STREFLING, 2002,
p. 115)
Marsílio de Pádua também elaborou uma concepção de paz na civitas, baseado
em Platão e Aristóteles, além da influencia na fé cristã, o filosofo paduano defendeu que
a paz é essencialmente composta pela justiça, a paz não é apenas um bem-estar ou uma
prosperidade, porque sem a justiça não existe a paz. (STREFLING, 2010, p. 155)
As revoluções acontecem nas sociedades civis devido ao seu crescimento
desproporcional. De fato, com o corpo se compõe de várias partes que devem se
desenvolver proporcionalmente, de forma que a harmonia subsista, se o corpo se
desenvolver diferentemente, não só em qualidade mas também em quantidade, o
organismo será prejudicado. Sendo igualmente a cidade constituída por grupos sociais, se
um deles se ampliar mais do que os outros, sem o percebemos, tal como acontece com os
pobres nas democracias, então acontecerão as revoluções. (MARSILIUS VON PADUA,
Defensor Pacis, I, 15, 10).
Para Marsílio a cidade precisa de um poder coercitivo, e esse poder é assegurando
pela lei, caso não exista esse poder, as associações dos cidadãos sempre terão conflitos,
que caso não estejam regulamentados pelas normas surgirão guerras que poderão destruir
as cidades. Por isso é que a lei é essa norma que garante o que é justo e institui um
guardião ou executor facilitando a convivência social. (STREFLING, 2010, p. 160)

[40]
1.4. O grande pensador político renascentista do cinquecento

Segundo Marilena Chauí (CHAUI, 2002, p. 200) o mais celebre pensador que
analisou os conceitos: de estado nacional, soberania, etc. foi o italiano Nicolau
Maquiavel, sério estudioso da história, que procurou extrair lições úteis para sua época.
Só por exemplo, foi investigando a Roma antiga que ele concluiu que a unidade nacional
é fundamental para a grandeza de um povo. Mas talvez a verdade seja que Maquiavel
preocupava-se com sua querida Itália, a qual não conseguia formar seu estado nacional.
Ainda com Marilena Chauí (CHAUI, 2002, p. 202) a vida política italiana do
tempo de Maquiavel tinha se tornado um vale-tudo pelo poder. Nobres e burgueses
contratavam mercenários para ajuda-los a se tornarem governantes das cidades-estados.
A corrupção e o assassinato político eram coisas normais. Maquiavel concluiu que, num
mundo assim, era preciso abandonar a idéia medieval de que as ações humanas
precisavam acompanhar a moral cristã. Os homens não vivem no Céu ideal, mas na Terra
real, dizia Maquiavel. E na terra (na Itália da época) ninguém chega ao poder por ser
bonzinho. O poder é alcançado pelo homem que tem a virtude de combinar a audácia com
a capacidade de agir no momento certo, a ousadia com a sorte. Somente um líder assim
seria capaz de fundar o estado italiano. A famosa obra de Maquiavel, o príncipe, é um
manual para ensinar esse homem destemido a unificar o país.
As idéias de Maquiavel podiam ser brilhantes, mas a sociedade italiana reunia
muitos conflitos que impediam que houvesse a unificação. Com isso, o pensador morreu
muito antes de os italianos construírem seu estado nacional, que só aconteceu no final do
século XIX. (SCHMIDT, 1999)

1.5. Liberalismo Político - As idéias revolucionárias

Durante o século XVII, surgiram as idéias que despertaram a consciência política


para os ingleses fazerem a revolução gloriosa. Os dois pensadores mais destacados da
época foram Thomas Hobes e John Locke. (SCHMIDT, 1999)
Marilena Chauí (CHAUI, 2002, p. 208) diz que Hobbes viveu durante a guerra
civil e a ditadura de Cromwell e ficou impressionado com a tragédia de ingleses matando
ingleses. Na sua obra o Leviatã, o pensador indaga: como evitar que o homem seja o lobo
do homem, Sua resposta: todos devem concordar em se submeter à autoridade do Estado.
Para ele, um Estado forte impediria que os conflitos sociais destruíssem a sociedade.

[41]
Segundo o historiador Francês Georges Duby (DUBY, 2009, p. 286) em 1688, a
Revolução Gloriosa coroou Guilherme de Orange rei da Inglaterra. O mesmo navio que
transportou o príncipe Guilherme de Holanda para à Inglaterra também levou o filósofo
John Locke. A revolução burguesa na Inglaterra consagrou as idéias do liberalismo
político de Locke. Na sua famosa obra o grande pensador destaca:

(...) Ninguém pode ser expulso de sua propriedade e submetido ao poder político de
outra pessoa sem dar consentimento. (...) O grande objetivo da União dos homens em
comunidades, submetidos a um governo, é a preservação da propriedade. (...)
Não possuem autoridade o homem ou vários que passarem a fazer lei sem que o povo
os tenha escolhido para essa tarefa. Então, o povo não está obrigado a obedecer (...).
Sempre que os legisladores [o governo] tentam tirar e destruir a propriedade do povo,
ou reduzi-lo à escravidão sob poder arbitrário,o povo pode entrar em guerra contra o
governo. (...)
Quem julgará se o governo age contrariamente ao encargo recebido? (...) A isso
respondo: o povo será o juiz.(LOCKE, John. Two treatises of civil government [Dois
tratados sobre o governo civil]. 2ª Ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1971.
Adaptado.)

Locke também concordava com a idéia de que o Estado deveria ser organizado a
partir do consenso (do acordo entre os cidadãos). Mas ele rejeitava a submissão total do
indivíduo ao Estado. O constitucionalismo começa a ganhar força a partir das citações de
Locke. (BOBBIO, 2010, p. 248)
No seu famoso livro Segundo tratado sobre o governo civil, ele diz que o Estado
não existe por vontade de Deus (como gostavam de afirmar os monarcas absolutistas),
mas tinha sido construído pelos homens a partir de um contrato. O Estado havia nascido
para proteger a vida, a liberdade e a propriedade dos indivíduos. Acontece que existem
Estados que não cumprem suas funções. Tendo outros que atacam a propriedade dos
indivíduos, ameaçam sua liberdade e sua vida, Locke acusava o Estado absolutista de
opressor. (SCHMIDT, 1999)
Como o Estado tinha sido criado por um acordo entre os homens, então os
indivíduos tinham o direito de mudar o governo.
Locke é considerado um dos pais do liberalismo político. O nome “liberalismo”
tem a ver com a liberdade. Para os liberais, o Estado não pode sufocar as liberdades
individuais. Ou seja, cada pessoa tem o direito de escolher suas próprias idéias religiosas,
políticas ou filosóficas, de falar em público e de escrever livros e artigos de jornais

[42]
defendendo suas convicções (liberdade de expressão), de viajar para onde quiser, de
escolher a profissão que desejar. (SCHMIDT, 1999)
Uma coisa muito importante: os liberais acreditam que o direito à propriedade é a
garantia da liberdade individual. Assim, um homem só é realmente livre quando possui
uma propriedade e faz dela o que bem entende. Entretanto, a liberdade do individuo tem
um limite: não pode sufocar a liberdade de outro individuo. É a idéia de que ‘a minha
liberdade termina onde começa a sua, e vice-versa”. Por isso deve existir uma lei,
aprovada pela maioria dos cidadãos, que impede que um individuo prejudique a liberdade
do outro. Portanto, a liberdade significa o respeito à lei democrática. (SCHMIDT, 1999)

1.6. O Iluminismo - os pensadores da revolução

A revolução gloriosa inglesa impressionou os europeus, as idéias filosóficas de


John Locke também entusiasmava os intelectuais franceses.
Isso serviu de base para um grupo de pensadores que receberam o nome de
Iluministas.
As idéias iluministas tiveram muita força na independência dos EUA e na
Revolução Francesa. Até mesmo os latinos – americanos nos seus movimentos de
independência foram influenciados.

1.6.1. Rosseau

Segundo Dalmo Dallari (DALLARI, 2005, p. 145) Rousseau foi talvez o mais
democrata de todos os iluministas. A maioria dos iluministas era a favor do despotismo
esclarecido. Rousseau preferia um governo de assembléias populares. Para ele, só poderia
haver direitos de cidadania quando as pessoas participassem das decisões do governo. Na
sua obra o contrato social mostrou que os governos foram criados por vontade dos
cidadãos e, portanto, os cidadãos tinha o direito de mudá-los.

1.6.2. Montesquieu: a separação dos poderes

Segundo Paulo Bonavides (BONAVIDES, 1997, p. 137) Montesquieu foi um dos


criadores da teoria da separação dos três poderes para controlar os poderes absolutos do

[43]
rei. Desse modo, o poder seria limitado pelo próprio poder. Montesquieu era nobre, mas
de certa forma contrariou os interesses da nobreza. O que mostra que nem sempre uma
pessoa raciocina de acordo com os interesses da classe social a que pertence.
Montesquieu apud Giuseppe de Vergottini:

Tudo estaria perdido se uma só pessoa, ou um só corpo de notáveis, de nobres ou de


povo, exercesse estes três poderes: o de fazer as leis, o de executar as decisões públicas
e o de punir os delitos ou contendas entre os particulares. (BOBBIO, 2010, p. 248)

Pela teoria dos três poderes o governo deveria ser repartido entre pessoas
diferentes. O poder Executivo (que administra o país) deveria ser entregue ao rei
(monarquia) ou a uma pessoa eleita para isso (democracia). O poder Legislativo (que faz
as leis e fiscaliza o Executivo) deveria estar nas mãos de uma assembléia de deputados
eleitos pelos cidadãos. O poder Judiciário (que garante o cumprimento das leis) seria
exercido por juízes e tribunais. (SCHMIDT, 1999)
Giuseppe de Vergottini destaca que a experiência constitucional da Inglaterra,
embora tenha sido na idade moderna, mas se pareceu com motivos medievais. “Na
realidade, a separação dos poderes foi ideada e articulada para uma sociedade ainda
aristocrática, com um regime político monárquico”. (BOBBIO, 2010, p. 252)
Montesquieu foi um dos idealizadores do constitucionalismo, porém um
constitucionalismo limitado a separação dos poderes, imperfeitamente sob o aspecto
histórico, tendo em vista, que compreende somente um dos lados, o estado misto,
enfatizando sua versão mais moderna, a separação dos poderes. (BOBBIO, 2010, p. 253)

2. A burguesia toma o poder


Para Manuel Gonçalves (FERREIRA FILHO, 2004, p. 19) um dos primeiros
passos da Revolução Francesa foi a abolição dos privilégios.
Os privilégios de diversas formas favoreciam o segundo estado (a nobreza) e o
primeiro estado (o clero), portanto, eram as classe privilegiadas em relação ao povo, a
partir daí começa a surgir o principio da igualdade ou isonomia. (SCHMIDT, 1999)
Camponeses e Sans-Cullotes passavam muita necessidade, por conta dos altos
impostos pagos para sustentar a riqueza da nobreza.
Jacques Revel destaca que:

[44]
A crítica denota uma série de círculos de exclusões: os estrangeiros com relação aos
franceses; os plebeus, os provincianos e os pedantes com relação a uma aristocracia
que em tal ocasião redescobre a irredutível vantagem proporcionada pelo dom do
nascimento: todos tem algo de menos com relação aos eleitos, e a civilidade é sua
marca vulgar. Ante o perigo que representa um eventual nivelamento das condutas
sob a norma comum, o estilo – a liberdade das aparências emancipadas de toda
autoridade – volta a ser o árbitro do verdadeiro decoro. A isso Mercier acrescenta
pouca coisa, quase um século depois. Embora burguês, teve o cuidado de excluir o
“pequeno-burguês” do círculo daqueles “que tem o trato social”.(CHARTIER, 2009,
p. 204)

Francisco J. C. Falcon. (FALCON, 1986, pp. 63-67.) diz que a maioria dos
burgueses, por sua vez, também não estava satisfeita. Pagavam ao governo impostos tão
altos que dispunham de pouco capital para investir. Além disso, o governo utilizava o
dinheiro dos impostos para sustentar o luxo da nobreza. Os burgueses, preferiam que o
Estado empregasse o dinheiro no incentivo ao crescimento dos negócios, como na
abertura de estradas e na melhoria dos portos. Mas o Estado Francês muitas vezes
prejudicava as atividades da burguesia. Em 1786, por exemplo, o rei autorizou que os
tecidos ingleses fossem vendidos livremente na França, concorrendo com os franceses.
Manuel Gonçalves (FERREIRA FILHO, 2004, p. 21) fala de quando a assembléia
aprovou a célebre Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Esse documento
baseava-se nas idéias iluministas. Para os revolucionários, só haveria justiça se esses
direitos fossem garantidos. E quais eram esses direitos? A Declaração afirmava que todos
os homens nascem livres e iguais e, portanto, ninguém pode ser escravo nem servo;
ninguém pode ser preso por causa de opiniões políticas ou religiosas; a lei tem de ser a
mesma para todos; a justiça tem de ser gratuita; ninguém pode ser torturado; os acusados
possuem direito a um advogado e deve ser julgados em público; todos os cidadãos que
tenham capacidade podem ocupar cargos no governo; o governo só pode tomar decisões
que estiverem de acordo com a vontade geral da população. Mais ainda, o povo tem o
direito de resistir à opressão.
Manuel Gonçalves (FERREIRA FILHO, 2004, p. 22) diz que em 1791, a
Constituição estava pronta. Ela tomava por base a Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão. Estabeleceu a igualdade civil (a lei passava a ser a mesma para todos) e a
separação dos três poderes (a idéia do iluminista Montesquieu): o poder Executivo
continuava com o rei, mas o poder Legislativo seria exercido por uma assembléia de

[45]
deputados. O absolutismo tinha acabado. O rei ainda era o mesmo, Luis XVI, mas agora
ele tinha de obedecer às leis feitas pelos deputados. A França havia se tornado uma
monarquia constitucional.
No regime absolutista, não existe nenhuma Constituição. Portanto, a criação de
uma constituição significava a destruição do regime absolutista. Ou seja, era a própria
revolução acontecendo! (SCHMIDT, 1999)
Na concepção marxista que a história é feita por uma luta de classes sócias
antagônicas, a Constituição passa a ser a forma material e legal da nova classe dominante
(burguesia) justificar seu domínio sobre os dominados (proletariado).
A partir daquele momento, os proprietários de terras também tinham de pagar
impostos. Os bens da Igreja (terras, tesouros, prédios) foram confiscados pelo Estado.
(SCHMIDT, 1999)
Para Nestor Sampaio (PENTEADO FILHO, 2011, p. 44) a revolução tinha sido
feita pelo Terceiro Estado. Os burgueses, os sans-culottes, a pequena burguesia e os
camponeses tinha se rebelado em conjunto. Mudanças formidáveis aconteceram em favor
de todos. Mas a burguesia tinha sido a principal beneficiada. A Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão dizia que a propriedade privada era inviolável. Ou seja, ninguém
tinha o direito de tocar nas riquezas da burguesia. A assembléia também aprovou leis que
extinguiam os monopólios mercantilistas, estabelecendo a liberdade para o mercado.
Segundo Francisco J. C. Falcon. (FALCON, 1986, pp. 63-67.) as camadas
populares se sentiam prejudicadas. Os camponeses, por exemplo, continuavam sem terra.
Quando o Estado vendeu as terras da Igreja, os beneficiados foram os ricos burgueses. Os
deputados eram eleitos com sufrágio censitário, somente as pessoas com certo nível de
renda podiam votar. Na pratica, cerca da metade dos franceses estava de fora. Para piorar,
a Assembléia aprovou a Lei de Le Chapelier, que proibia os trabalhadores de formarem
associações para defender seus direitos.
Os camponeses e os sans-culottes exigiam mudanças. Tinham o apoio dos
deputados radicais da pequena burguesia. Um deles, o advogado Robespierre4, segundo

4 Foi o principal líder jacobino. Famoso por sua firmeza, tinha o apelido de “o Incorruptível”. Quando se
tornou o homem mais poderoso da França, continuou morando na mesma casa, comendo as mesma
refeições moderadas, vestindo as mesmas roupas. Implacável com os inimigos políticos (enviou centenas à
guilhotina), defensor dos direitos dos pobres, das mulheres e dos judeus. Não tolerava nenhuma oposição
política, pois considerava que ela só servia para atrapalhar “o verdadeiro rumo da revolução”. Essa
intolerância com a oposição acabaria destruindo os jacobinos e também muitas outras revoluções. (DUBY,
2009, p. 456)

[46]
o historiador Francês Georges Duby (DUBY, 2009, p. 479) o Robespierre era defensor
do fim da escravidão nas colônias e do direito das mulheres ao voto, fez um discurso
inflamado em que perguntava aos representantes da alta burguesia: “Quem os autorizou
a despojar o povo de seus direitos?”.
Robespierre era do partido jacobino (pequena burguesia) também chamado de
montanha, os jacobinos, também eram a favor da propriedade privada, mas chegaram a
declarar que o direito do bem-estar social era mais importante que o direito à propriedade,
defendiam que o Estado deveria exercer algum controle sobre a economia. (SCHMIDT,
1999)
Para alguns escritores os jacobinos eram demagogos, para outros eram
democratas.
Aristóteles apud Giampaolo Zucchini destaca a demagogia da seguinte forma:

Quando, porém, nos governos populares a lei está subordinada ao arbítrio de muitos,
surgem os demagogos, que abrandando e adulando as massas, exasperando seus
sentimentos destruidores, distraindo-as do seu compromisso político, acabam
indicando os opositores do regime despótico instaurado como inimigos do povo e da
pátria. Conseguem assim consolidar o próprio poder com a eliminação de toda e
qualquer oposição. Aristóteles define, portanto, o demagogo com um “adulador do
povo” (Politica, v, 11, 1313 b)(...)eliminando toda a oposição. Nestas condições, os
demagoso arrogam-se o dirito de interpretar os interesses das massas, chamando a si
todo o poder e a representação das massas, instaurando uma tirania ou ditadura
pessoal.(BOBBIO, 2000, p. 318-319)

Norberto Bobbio ao tratar da democracia cita Saint Just e Robespierre ao


defenderem que a nova democracia irá varrer, para sempre, o déspotas ou o tirano, porque
será o governo da virtude. Robespierre discursou que “a mola do governo popular na
revolução é, a um tempo, a virtude e o terror, sem a virtude, o terror é funesto: a virtude
sem o terror, é imponente”. (BOBBIO, 2000, p. 323)
Norberto Bobbio apud Platão na República da democracia se diz que:

Nasce quando os pobres, após haverem conquistado a vitoria, matam alguns


adversarios, mandam outros para o exílio e dividem com os remanescentes, em
condições paritárias, o Governo e os cargos públicos, sendo estes determinados, na
maioria das vezes, pelo sorteio.(557a) (BOBBIO, 2000, p. 320)

[47]
Giuseppe de Vergottini interpreta as idéias jacobinas sustentando que elas
garantem a vontade geral merece ser defendida no plano constitucional, os direitos
fundamentais do homem, a liberdade de ir e vim, a liberdade de declarações na impressa,
defesa dos credos religiosos, e a propriedade privada para a burguesia. Desta forma, se o
cidadão obedece ao estado, ele está obedecendo a si mesmo, porque isso vem da “mística
da vontade geral que nos vem da tradição jacobina francesa” (BOBBIO, 2000, p. 250-
257)
A revolução burguesa se consolida quando os políticos astutos do Diretório
perceberam que o general Napoleão Bonaparte5 era o homem certo para consolidar o novo
regime. Propuseram a ele que utilizasse a força do exército para assumir o governo. Foi
o golpe do 18 Brumário (1799), durante esse período, a burguesia consolidaria seu
domínio econômico. (SCHMIDT, 1999)
Segundo o historiador Francês Georges Duby (DUBY, 2009, p. 541) o general
Napoleão gostava de dizer que sua maior obra não tinha sido as mais de 40 batalhas
vitoriosas, mas o famoso Código Civil (1804). Esse código era um conjunto de lei que
determinavam quais eram os direitos de quem possuía uma propriedade. Ao mesmo
tempo, proibia que os trabalhadores tivessem suas próprias associações. As conquistas da
burguesia postas na letra da lei!
Nesse mesmo ano Napoleão torna-se imperador, com apoio popular, como muitas
vezes acontece no começo das ditaduras, imperador burguês, mas imperador.
(SCHMIDT, 1999)

3. O estado democrático de direito na concepção marxista

O conceito de direito em Marx pode ser resumido como o aspecto legal e material
em que a classe dominante (burguesia) usa o poder para justificar sua dominação ou seu

5 Napoleão e o mito do herói: observando a força do acaso, alguns historiadores comentam que quando era
estudante, Napoleão se inscreveu num concurso que dava como premio uma viagem de pesquisa cientifica.
Mas foi reprovado, só que os estudantes que venceram morreram quando o navio em que viajavam
naufragou no oceano pacifico. Esses historiadores usam essa historia verdadeira, para demonstrar que se
Napoleão tivesse morrido, a burguesia francesa teria encontrado um outro general para ser coroado
Imperador, porque a historia não é feito por heróis, a historia não é feita só por uma pessoa, tudo o que
acontece é o resultado das idéias e das ações de todas as pessoas. Também não podemos ignorar as ações
das classes sociais lutando por seus interesses. Sem o apoio da burguesia Napoleão nunca teria chegado ao
poder. (DUBY, 2009, p. 554) Como dizia Karl Marx, a historia é uma luta de classes. Os iluministas tinham
um grande sonho. Eles acreditavam que um dia todos os homens e mulheres aprenderiam a refletir
criticamente. Então, todos os indivíduos pensariam por conta própria e não aceitariam mais se submeter a
alguém. A humanidade entraria numa nova era de autoconfiança, liberdade e felicidade.

[48]
domínio sobre a classe inferiormente hierarquica (proletariado), antagonismos das classes
sociais.
Para István Mêszáros6 o velho Marx, após ter elaborado a sua concepção
materialista da história, desenvolveu a tese de que o direito era essencialmente dependente
da superestrutura, ou seja, Marx percebe ao afirmar que, o Direito era um reflexo das
concepções, das necessidades e ainda, dos interesses de uma classe dominante, esta
produzida pelo desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção que
constituem a base econômica do desenvolvimento social.
Segundo Paulo Nader (NADER, 2000, p. 231) ao produzir esta teoria de que o
Direito é uma forma de dominação de classe Marx, na realidade trata esse sistema de
conceito como um conjunto de mandamentos sancionados pelo Estado.
Para Roberto Lyra (FILHO, 199, p. 23) Percebe-se que, quando Marx ao referir-
se com palavras como “apropriação” e “propriedade” está referindo-se a fatos
infrajurídicos, embora deixe levantada a questão de que o Direito deve ser necessário para
assegurar o poder conquistado sem ele, ou antes, dele.
A finalidade do Estado é garantir o interesse comum, mas este é concebido como
o conjunto dos interesses dos indivíduos proprietários. Assim, o Estado é caracterizado
por Marx como “comunidade ilusória”.
Norberto Bobbio diz que a essência do socialismo sempre foi a revolução, a
democracia direta seria o pedido popular de participação no governo e a reivindicação de
controle de poder de baixo para cima, controlando os órgãos de decisão política-
econômica. Passando de autogoverno para autogestão, onde os chamados conselhos
operários exercem o poder de controle da democracia econômica industrial (BOBBIO,
2000, p. 324)
Norberto Bobbio apud Lenin diferencia a democracia dos conselhos da
democracia parlamentar, defendendo que na sociedade capitalista existe uma
concentração da fiscalização dos órgãos pelas grandes empresas, e que o cidadão fica sem
poder para abolir os privilégios que prejudicam a vida em sociedade. (BOBBIO, 2000, p.
325)

6 Texto apresentado na Conferencia de Dublin, realizada entre 30 de novembro e 4 de dezembro de 1978,


por ocasião do 30º aniversario da Declaração dos Direitos Humanos das Nações Unidas. Versão resumida
foi publicada em A. D. Falcomer (Ed.) Understandig human rights (Dublin, Irish Shool of Ecumenies, 1980,
p. 47-61)

[49]
Norberto Bobbio apud Mosca diz que não existe outra forma de governo diferente
da aristocracia, porque em toda à história do homem na terra o poder esteve concentrado
nas mãos das minorias. (BOBBIO, 2000, p. 325)
Norberto Bobbio apud Arend Lijphart explica que o comportamento das elites
ficam mais próximos das coligações para torna-se mais fortes. (BOBBIO, 2000, p. 328)

4. Constitucionalismo

É fato que a constituição é o instrumento da soberania do povo organizado em


uma estrutura de poder designada para ser exercida por diversos órgãos.
A função do constitucionalismo é indicar as bases filosóficas para acompanhar os
princípios internos das constituições. Giuseppe de Vergottini o constitucionalismo “é a
técnica da liberdade, isto é, a técnica jurídica pela qual é assegurado aos cidadãos o
exercício dos seus direitos individuais e, ao mesmo tempo, coloca o Estado em condições
de não os poder violar”. (BOBBIO, 2000, p. 247-248)
O constitucionalismo é também conhecido como governos das leis e não das
gentes, da razão no direito, e não apenas do poder; com diversas manifestações na historia
para a limitação do poder, por isso, antes de aceitar o termo constitucionalismo, temos
que aceitar o valor que intrinsecamente está relacionada na historia do individualismo, do
direito do homem como cidadão. (BOBBIO, 2000, p. 248)
Giuseppe de Vergottini que Kant idealizou uma nova versão da separação dos
poderes, reproduzida pela Constituição Francesa de 1791 e que essa nova versão, separa
radicalmente as funções de executar e legislar, e que nas constituições francesas seguintes
a revolução, um poder acabou por destruir o outro, “ou serviu apenas, como escreveu
Kelsen, para “reservar ainda ao monarca, reduzido à metade da sua autoridade pelo
movimento democrático, a possibilidade de exercer sua influencia no campo executivo”
(BOBBIO, 2000, p. 249)
No âmbito do conceito de estado, o constitucionalismo não tem como se
desenvolver.
Uma nova definição de constitucionalismo, não muito freqüente na nossa
literatura política, baseada nas contraposições entre poder e direito, força e racionalidade.
Partindo de uma real diferença entre governo e constituição. A constituição é superior e
anterior ao governo, por isso limita o poder do governo, e caso a constituição seja violada,
esse governo será inconstitucional (BOBBIO, 2000, p. 256).

[50]
Considerações finais

Pelo estudo do presente artigo, concluímos que a historia pode ser feita de maneira
equivocada, ou melhor, a interpretação histórica pode ser feita preconceituosamente em
relação a quem a ver, subestimando uma classe social que possa ter tido valor ponderante
na relação.
A história nada mais é do que uma luta de classes antagônicas disputando o poder,
sendo assim, falar que os estados nacionais foram formados pela união de rei mais a
burguesia, chegaria a dizer que de quê? Necessidade teria a burguesia disputar com os
camponeses e proletariados o controle do estado. É errônea aquela interpretação antiga
feita pelos historiadores tradicionais, a nova historia critica comprova que a formação do
estados nacionais foi feita pela a união dos nobres (rei mais senhores feudais), e que as
revoluções burguesas, com o nascimento das constituição foi o momento em que o estado
virou burguês, para poder justificar o poder da classe dominante(burguesia) sobre os
dominados (proletariado).
Portanto, as revoluções burguesas fizeram surgir o estado democrático de direito
e o constitucionalismo moderno.

Bibliografia

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BOBBIO, Norberto; MATTEUCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de


política. Tradução Carmem c. Varriale... [et. al.]; coordenação da tradução João Ferreira;
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CHARTIER, Roger (org.). História da vida privada, 3: da renascença ao século das


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[51]
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TRINDADE, José Damião de Lima. História social dos direitos humanos. São Paulo:
Peirópolis, 200

[52]
3. DESAFIO POLÍTICO – COMO DERRUBAR DITADURAS POR
MÉTODOS NÃO VIOLENTOS EM GENE SHARP

Manuel Da Cruz1

Resumo: A realidade política contemporânea demonstra que cerca de metade dos países
vivem sob regimes ditatorias, sendo que estes aplicam medidas contrárias aos Direitos
Humanos e às liberdades civis. A luta por uma sociedade justa e livre através de métodos
nãoviolentos, tem demonstrado a possibilidade de derrubar estados autoritários. Estes
métodos e o pensamento político que os fundamenta podem ser esclarecidos em “Da
Ditadura à Democracia” de Gene Sharp, um livro que apresenta a natureza do poder e
como alcançá-lo pelo uso da nãoviolência.

Palavras-chave: democracia; luta nãoviolenta; Gene Sharp; liberdad

1. Estado da democracia e da ditadura

De acordo com o Freedom House, apenas 45% dos países são livres.2 Os outros
são governados por ditaduras militares (Birmânia), monarquias tradicionais repressivas
(Arábia Saudita e Butão), partidos dominantes (China e Coreia do Norte) e ocupantes
estrangeiros (Tibete e Saara Ocidental).
Esta elevada percentagem, contraria a moldura ideológica e política dominante no
Ocidente. O socialismo democrático (Europa) ou o liberalismo (EUA) têm assegurado os
direitos e liberdades fundamentais (como a liberdade de expressão) nas suas sociedades,
como também a defesa de uma sociedade justa, ou seja, não entregue ao poder arbitrário.
Nisto se baseia a divisão tripartida de poderes – legislativo, executivo e judicial –
princípio basilar de qualquer democracia.

1
Poeta e Filósofo, licenciado e mestre em filosofia pela faculdade de letras da universidade do porto.
2
Freedom House, Freedom in the World, www.freedomhouse.org.

[53]
A democracia é, pois, a forma de estado que tem melhor defendido estes princípios
ao contrário das ditaduras ou estados autoritários, que tendem para uma concentração de
poderes num só e em constantes ataques à liberdade de expressão e autodeterminação dos
indivíduos.
De um ponto de vista político – e é neste ponto que este artigo se foca – a ditadura
é, por natureza, um estado incomportável e de tempo relativamente menor comparado
com a democracia. Veja-se que um Estado em permanente guerra com a sua própria
população, de vigiliância constante quanto à sua expressão ideológica ou simplesmente
opinativa e um autoritarismo recorrente na vida social, impedem que esta forma tenha
sucesso a longo termo pela consequência de uma hostilidade e ódio por parte da
população.3
No entanto, confirma-se na história da humanidade uma relativa longevidade de
alguns destes estados autoritários – exemplo de Cuba de 1959 até atualmente – o que
poderia refutar a ideia da sua natureza temporária. A questão é que a história demonstra
também que estes estados apenas se conservam porque a população não se mobilizou para
os derrubar, apesar de ser esse o seu desejo perene. E se a única forma de derrubar um
Estado que constantemente comete violações às liberdades civis é a mudança artificial
pela população ou de um grupo preparado para executá-la, então devem ser discutidas as
formas possíveis e eficazes, a nível político, destes meios.

2. Meios de derrube ditatorial praticados

Apresentam-se alguns meios usados ao longo da história e como estes são


interpretados relativamente à sua eficácia.
A liberdade pela violência é quando se recorre a meios violentos e militares para
destruir o poder estabelecido. O resultado, geralmente, provoca um elevado número de
mortos e feridos, estimula uma reação mais repressiva do estado ditatorial e possibilita
tendencialmente uma guerra civil. Para além disto, é um erro estratégico, visto que os
opressores são-no devido à capacidade militar e ao forte armamento – um estado ditatorial
forte assegura-se pela sua militarização – o que contraria a realidade dos oprimidos,
população desarmada, ignorante no uso de táticas militares e com uma elevada

3
“(…) a melhor fortaleza que existe é não se ser odiado pelo povo” (Maquiavel, 2014, p.170).

[54]
dificuldade de organização armada, pela vigilância e controlo do estado ditarorial. 4 Há
também outro fator que caracteriza este meio como ineficaz, que é a ausência de estruturas
políticas no seu movimento, o que, depois de derrubada a ditadura, uma mentalidade e
prática democrática tornam-se impraticáveis, o que originou, por exemplo, o estado
cubano, que depois de uma luta de guerrilha, tornou-se uma continuação do estado
ditatorial.
O golpe de Estado é um meio em que um grupo minoritário, seja militar ou
popular, provoca uma mudança nos dirigentes governativos substituindo-os. Este meio,
por não envolver a população – maioria – e por assumir a mudança apenas ao nível dos
dirigentes, permite apenas a continuidade da má distruibuição do poder e uma troca da
liderança, não promovendo uma mudança estrutural ou de regime.
As eleições como meio nãoviolento5 que, pela participação da população, procura
alterar o poder político. Apesar dos vários exemplos de atos legislativos em regimes
ditatoriais, estes incorrem frequentemente em fraudes ou falsificações. 6 Também a
representativa dos órgãos eleitos por sufrágio podem não corresponder a um poder real,
tornando-se ineficaz e inútil.7
Acrescento, contudo, que a participação da população nas eleições de um país
ditatorial, sejam elas realizadas estatalmente ou em simulacro, são importantes para a
educação cívica e política dos cidadãos, assim como contribuem para o hábito
democrático, o que tornará mais fácil e natural a adaptação da população na mudança para
o regime democrático.
A intervenção exterior não é um método praticado pelos oprimidos, mas sim a
intervenção de outros países ou organizações externas na política interna. Esta atitude de
espera ou de crença que só algo exterior pode salvar a população da sua situação, provoca
uma inércia na ação popular e uma descrença na sua própria autodeterminação, o que
mais tarde não permitirá alicerçar um estado democrático, visto que este depende de
fatores internos. Acrescenta-se que, frequentemente, os Estados estrangeiros procuram,
no apoio à mudança democrática, promover os seus interesses económicos e políticos,
por isso não são de confiança no movimento democrático, apesar de ONG’s poderem

4
“(…) quando recorremos a métodos violentos, estamos a escolher o mesmo tipo de luta em que os
opressores são quase sempre superiores.” (Sharp, 2015, p.27).
5
O conceito “nãoviolento” é escrito junto assim como Gene Sharp escreve.
6
Durante o Estado Novo, as restrições e perseguições ocorridas nos atos eleitorais “retiravam[-lhe] qualquer
credibilidade” (Mattoso, 1994, p.271).
7
É exemplo o esvaziamento de poderes da Assembleia Nacioal, órgão eleito por sufrágio (Idem, p.270).

[55]
contribuir positivamente para esse movimento. No entanto, a força política da mudança
deve sempre partir das forças populares e não de forças externas.8
A negociação, último método, ocorre quando os membros da oposição ao regime
ditatorial negoceiam com o ditador ou a sua administração de modo a que estes cedam
em algumas medidas ou mesmo que aceitem a capitulação. No primeiro caso, esta pode
ser praticável como quando é usada a pressão política de uma greve laboral para
reivindicar um aumento salarial. Apesar do resultado poder ser a repressão, este método
aplicado a matérias menores é possível. Acontece que no caso da capitulação torna-se
impossível, pois se o ditador se sentir seguro na sua posição pode apenas recusar negociar
ou eliminar os democratas. Ou seja, a negociação só é possível quando o poder ditatorial
estiver neutralizado, e assim as exigências dos democratas poderem ser ouvidas.9
Concluindo, “a libertação das ditaduras depende, em última instância, da
capacidade dos povos para se libertarem a si mesmos”10 e a sua capacidade é melhor
exercida e beneficiada, não pelos métodos acima descritos, mas pela sua própria força
política, ou seja, pelo desafio político.

3. Desafio político

3.1 Definição

Desafio político é definido como a “aplicação da luta nãoviolenta (protestos,


nãocooperação e intervenção), de forma activa e contestária, com vista a alcançar
objectivos políticos”.11 Assim, este conceito distingue-se da luta nãoviolenta ou do
pacifismo, isto porque a sua ação e o seu objetivo é inteiramente político, ao contrário da
luta nãoviolenta que abrange mais objetivos, como o económico, ou o pacificismo por
não ser político.
Este conceito aplica-se quando são descritas “acções empreendidas pelas
populações contras as ditaduras, com vista a recuperarem o controlo das instituições

8
“Os salvadores estrangeiros raramente aparecem e, quando o fazem, é mais provável que não sejam dignos
de confiança (Sharp, 2015, p.30).
9
“Se os democratas concordarem em pôr fim à resistência em troca de uma suspensão temporária da
repressão, poderão vir a sofrer uma forte suspensão” (Idem, p.40).
10
Idem, p.33.
11
Idem, p.141.

[56]
governamentais”12. É exemplo o movimento de Gandhi pela independência da Índia
através de métodos não violentos.13
Contudo, é necessário antes compreender as fontes do poder para, depois de uma
análise, saber aplicar o desafio político e apresentar os métodos que o poderão tornar
eficaz.

3.2. Fontes do poder

Para que o desafio político tenha sucesso é necessário que suprima as fontes do
poder ditatorial. As suas fontes só podem ser compreendidas através de uma perspetiva
pluralista do poder e não monolítica.
Gene Sharp, distingue estas duas visões, sendo que a primeira apresenta uma
noção mais exata de como o poder político está institucionalizado, no sentido em que “os
governos dependem das pessoas”14 e não o seu oposto (monolítico).
Compreendendo, então, que o poder político surge do poder popular, é possível
que este seja tomado quando o governante ou o governo não correspondem às expetativas.
As fontes de poder são, para Gene Sharp, a autoridade, os recursos humanos, as
aptidões e conhecimento, os fatores imateriais, os recursos materiais e as sanções. 15 Não
desenvolvo estes conceitos, mas daqui pode-se retirar uma noção de onde se encontra o
poder e a que lugares estratégicos deve o poder político atingir.
Contudo, a concentração de poder (fontes) só é possível por três pilares da
aceitação do poder político do governante: cooperação, submissão e obediência.16
Assim, um governo só adquire poder real se a população o aceitar, e esta aceitação
não implica voluntariedade, pode ser assegurada pelo medo ou pela incapacidade de
reação dos indivíduos.17
Em oposição a estas fontes do poder estabelecido, também se encontra
concentração de poder alternativo na sociedade, apesar da sua marginalidade. Estes
centros do poder democrático exercem um papel importante na luta nãoviolenta e na
estruturação de uma sociedade democrática.

12
Ibidem.
13
Ver outros exemplos (Sharp, 1983, p.196).
14
Idem, p.18.
15
Idem, pp.20-21.
16
Sharp, 2015, p.47.
17
(…) as ditaduras totalitárias estão dependentes da população e das sociedades que governam.” (Idem, p.
48).

[57]
Estas organizações ou associações, são fundamentais devido ao seu cariz coletivo
o que contraria a atomização – isolamento do indíviduo dentro da sociedade, de modo a
que desconfie dos seus pares e receie juntar-se a movimentos de resistência – que é um
método do poder ditatorial de controlo e vigilância da sociedade.
Ao aglutinar pessoas com uma mesma motivação e objetivo político, é
possibilitado um desafio político em massa, ou seja, o movimento popular capaz de
derrubar uma ditadura pela forte pressão exercida. Também, a população ao organizar-se
em grupos sociais democráticos, aprende o processo e a prática democrática, tornando-se
estas organizações na “base estrutural de uma sociedade livre”, 18 como foi o caso da
Revolução Húngara (1956-1957) em que organizações populares estabeleceram um
“sistema federado de instituições e governação”.19
Conhecendo, assim, as fontes de poder e as fontes do poder democrático, é
necessário identificar as fraquezas do poder ditatorial para as suprimir e levar à sua
inanição política.

3.3. Calcanhar de Aquiles

Apesar da aparente invulnerabilidade de um estado ditatorial e sabendo que o


poder é pluralista, torna-se possível que este possa ser desintegrado, e para que a aplicação
do desafio político possa ser eficaz, é necessário dirigir todos os meios disponíveis para
os calcanhares de Aquiles – expressão de Gene Sharp – das ditaduras.
São vários os pontos fracos, como a ideologia do regime desgastar-se ou a
população tornar-se hostil ao regime20, no entanto, é preciso reter que estes variam de
sociedade para sociedade e que, por isso, devem ser identificados no seu contexto
específico. Identificando, deve-se concentrar o desafio político nesse ponto para que os
meios existentes não sejam desperdiçados em pontos fortes do regime, como o seu poder
militar.
Deve-se ter em conta, também, que os meios nãoviolentos aplicados aos pontos
fracos do regime não significam que não se percam vidas humanas, mas que esse risco
diminui relativamente a outros métodos e práticas.21

18
Idem, p.51.
19
Idem, p.52.
20
Idem, p.55.
21
Idem, p.56.

[58]
3.4. Elaboração estratégica

Este aspeto do desafio político é ausente na maioria dos movimentos de


nãocooperação ou de protesto, visto que são movimentos pacifistas e não políticos ou que
apenas têm uma visão mais utópica do que realista. No entanto, é fundamental para
qualquer movimento ou organização que pretenda alcançar uma mudança política, uma
estratégia a longo prazo.
A ausência de estratégia pode prejudicar o desafio político, como foram as
consequências trágicas ocorridas na manifestação da Praça Tiananmen, que pela ausência
de plano não conseguiu prever o uso de violência por parte das forças policiais. É
exemplo, também, que por falta de planeamento e de estruturas pré-democráticas, o
derrube da ditadura na Birmânia apenas contribuiu para que se implementá-se outra
ditadura.
Não só as consequências poderão ser negativas como também o desenvolvimento
da ação poderá ser ineficaz ao ignorar uma estratégia estabelecida.
Assim, Gene Sharp apresenta quatro termos fundamentais do planeamento
estratégico, permitindo a um leigo na prática militar, aplicar no seu registo político.
O conceito mais geral grande estratégia caracteriza-se por coordenar e orientar a
utilização de todos os recursos disponíveis e adequados para alcançar os objetivos, por
exemplo derrubar a ditadura e instaurar a democracia.
Segue-se a estratégia que determina a melhor maneira de alcançar objetivos
específicos, como a ação de controlar os quartéis de um país.
A tática caracteriza-se pelo uso das forças disponíveis de maneira mais hábil e
possível num contexto limitado, como mobilizar pessoas para ocupar esses quartéis.
Por último, o método é as armas específicas ou meios de ação praticados no
planeamento estratégico, como o congestionamento de instalações (sobrelotação).
Sobre este último ponto, Sharp organiza uma lista com cento e noventa e oito
métodos de ação nãoviolenta, dividindo-os em métodos de protesto e de persuasão
nãoviolentos, métodos de nãocooperação e métodos de intervenção.22

22
Idem, pp.121-132.

[59]
3.5. Aspetos da execução estratégica

Se estes são os quatro aspetos do planeamento do desafio político é preciso


considerar mais outros quatros aspetos relativos à sua aplicação.
Envolver a população é crucial para um desafio político em massa e uma
institucionalização de um estado democrático assente no poder popular. Se no estado
ditatorial a atomização separa e individualiza a população, tornando-a impotente, é
importante que esta se convença que tem poder e, para isso, deve-se atribuir-lhe tarefas
de baixo risco no processo do desafio político, contribuindo, assim, para uma
consciencialização e uma educação democrática, essenciais à conservação de um estado
democrático.
Segue-se à participação do indíviduo, a resistência seletiva que ocorre pela ação
dos centros de poder – instituições independentes ou associações – em situações
específicas injustas ou discriminatórias, e as vitórias sobre essas situações menores eleva
a moral e contribui para as mudanças progressivas nas relações de poder.
O impacto do planeamento estratégico deve ser tomado em conta, e a sua
propagação ocorre de modo mais celere quando o desafio também se torna um desafio
simbólico, ou seja, as greves de fome que não têm impacto material ou físico, podem
influenciar e iniciar um movimento de libertação.
Por último, acrescento outro aspeto importante, o convencer pilares do regime,
que, se primeiro exercem uma função de oposição, ao se converterem às forças populares
e executar as suas tarefas deficientemente ou não cumprir ordens, podem desintegrar o
regime ditatorial.

3.6. Ação do desafio político

Seguem-se destes pontos analisados, quatro tarefas que são necessárias para
derrubar uma ditadura como o reforço da determinação e autoconfiança da população
oprimida – contrariando a sua atomização; o fortelacimento dos centros de poder,
possibilitando o desafio político em massa que é o único capaz de levar à inanição política
a ditadura; a fomentação de uma força poderosa de resistência interna; e o
desenvolvimento de uma grande estratégia e a sua execução com competência.

[60]
Estas quatro tarefas são basilares na execução do desafio político, e por isso é
necessário analisar os seus objetivos possíveis e alcançáveis.
É possível, neste processo, uma conversão das forças do poder, no entanto, é raro
que o opositor seja abalado pelo sofrimento do oprimido ou que seja persuadido
racionalmente a aceitar os objetivos dos resistentes.
O método da negociação, inicialmente analisado, pode permitir uma acomodação
entre as duas partes, no entanto a alteração das relações de poder nunca é aceite quando
reivindicada pelos democratas.
A coerção nãoviolenta pode ocorrer, como a desobediência por parte das forças
militares em reprimir os resistentes, no entanto isto incorreria no mesmo erro do golpe de
Estado, ou seja, acreditar que a ação militar derrubaria o governo e instauraria a
democracia, quando esta deve partir do poder popular e não militar.
Conclui-se, então, que o único objetivo da grande estratégia deverá ser a
desintegração do poder ditatorial pela retenção das suas fontes.

4. Fase de transição

4.1. Governo Paralelo

Durante o processo do desafio político, a consciencilização democrática e o


fortalecimento dos centros de poder, pode ocorrer dentro da sociedade – uma sociedade
independente e indiferente à vontade do ditador. É exemplo o que ocorreu nos anos
oitenta, na Polónia, em que o sindicato Solidariedade conseguiu alterar as relações de
poder na sociedade por consequência da sua forte representação entre os trabalhadores,
criando assim um governo paralelo.23
Esta última forma política é relevante pois pode, na fase após o derrube da
ditadura, substituir o governo ditatorial, adotando uma Constituição e realizando eleições,
promovendo assim a estabilidade democrática.

23
“A Polónia das décadas de 1970 e 1980 é um exemplo claro da reapropriação progressiva, através da
resistência, das funções e instituições de uma sociedade.” (Idem, p.108).

[61]
4.2. Desafio em massa

A última fase do desafio político acontece quando a resistência seletiva –


promovida e praticada pelas organizações – mobiliza uma grande parte da população
ocorrendo uma ação política em massa contra o poder instituído, o que leva,
invariavelmente, à desintegração da ditadura.

4.3 Golpes de Estado

Pode ocorrer, depois deste passo, a possibilidade de movimentos contra-


revolucionários, como foi a ação dos jacobinos em França ou os bolcheviques na Rússia,
mas estes atos só podem ter sucesso quando há uma falta de preparação democrática ou
não existe nenhuma forma de governo paralelo democrata.

5. Princípios das Democracia

Concluido o processo revolucionário, é importante centrar as ações políticas na


eliminação de setores repressivos – como a polícia política – e na democratização do
aparelho governativo anterior – “O vazio governamental completo poderá abrir caminho
ao caos ou a uma nova ditadura” 24; deve-se, no imediato, desenvolver e apresentar uma
Constituição com objetivos e limites governamentais, assim como os meios, calendários
eleitorais e os direitos naturais do povo; por fim, definir e aplicar a separação tripartida
dos poderes para que o poder político não se concentre num só e retorne à ditadura.

6. Conclusão

O pensamento do teórico político Gene Sharp, aqui apresentado, apresenta uma


forma alternativa aos meios violentos aplicados no derrube de ditaduras e esclarece, ao

24
Idem, p.111.

[62]
contrário de pensadores políticos mais utópicos e ideológicos, uma noção realista da
natureza do poder.
Deve-se, então, compreender que o poder ditatorial só pode ser desintegrado por
uma ação prolongada e persistente pelas mãos de um povo determinado e corajoso, que
acredita que a liberdade não é um privilégio, mas um direito natural que, quando ausente,
é um dever lutar por ele.

Bibliografia

Maquiavel, Nicolau. (2008) O Princípe, (Figueiredo, Maria, trad.) Lisboa: Editorial


Presença.

Mattoso, José (direção). (1994) História de Portugal (Vol. 7), Lisboa: Círculo de Leitores.

Sharp, Gene. (2015) Da Ditadura à Democracia, (Sousa e Silva, Susana, trad.) Lisboa:
Tinta da China.

Sharp, Gene. (1983) Poder, Luta e Defesa, (Bertelli, Getúlio, trad.) São Paulo: Edições
Paulinas.

[63]
Esta página foi intencionalmente deixada em branco

[64]
4. PLURALISMO CONSTITUCIONAL E DEMOCRACIA:
POR UMA TRATATIVA DOS DIREITOS HUMANOS EM TEMPOS

DE MUDANÇAS CLIMÁTICAS

Dulcilene Aparecida Mapelli Rodrigues1

Resumo: O presente trabalho tem por escopo a temática do pluralismo constitucional e


da democracia, tratados como elementos fundantes e necessários para uma análise acerca
dos direitos humanos tomando-se como ponto fulcral de apreciação a situação
contemporânea dos deslocamentos populacionais em razão das mudanças climáticas num
panorama global, analisando-se o pluralismo constitucional e as vicissitudes hodiernas,
de modo a apresentar a perquirição e investigação da (des)necessária edificação de uma
ordem constitucional globalizada percuciente de uma democracia amplificada como fator
de perpetração de direitos aos seres humanos.

Palavras-chave: Pluralismo Constitucional. Democracia. Direitos humanos. Mudanças


Climáticas. Deslocamentos populacionais.

As transformações vivenciadas em cada Estado, e sua caracterização normativa,


consubstanciam variações que embasam o desenvolvimento do arcabouço constitucional,
legal e normativo diversificados em consonância com as conjunturas e evoluções
temporais.
Tem-se, assim, a incorporação efetiva da questão da fundamentalidade de
direitos, como um conteúdo próprio a ser buscado, garantindo juridicamente as condições
mínimas de vida ao cidadão e à sociedade. Fatores, que se processam, diuturnamente,
dinamizados e premidos de necessária “elasticidade” frente a necessária segurança a ser

1
Doutoranda em Direito Público na Universidade de Lisboa/Portugal, especialidade de Ciências Jurídico-
Políticas, bolsista CAPES. Mestre em Direito Público pela UNISINOS/Brasil. Especialista em Direito
Público pela UNISAL/Brasil. Professora Universitária. Advogada.

[65]
garantida aos seres humanos aviltados em seu cotidiano, em razão dos perigos e riscos a
que são expostos.
Contudo, embora seja a sociedade mundial cada vez mais desenvolvida,
encontra-se cada vez mais imbricada numa era de riscos, onde tecnologias e novas
tendências, dinamizam o viver, sem que seja possível dado ao conhecimento científico à
época detectar quais os perigos advindos de tamanho avanço. E aqui se consagra o risco
social.2
Neste sentir, Ulrich Beck3 ao asseverar sobre os riscos sociais e a suscetibilidade
aos mesmos, traça um paralelo entre as pessoas e sua posição social, eis que os mais
vulneráveis sofrem mais incisivamente os efeitos do desenvolvimento, como por
exemplo, se verifica quando da instalação de complexos industriais e depósitos de
resíduos tóxicos nas áreas mais carentes.
Ocorre que, por conta de tantas e desenfreadas intervenções, o ser humano, por
vezes, ultrapassa o limite do razoável, vitimando a natureza, que sofre e é agredida, ao
que se verifica a “reação” do meio ambiente através do clima, que se encontra em
frequente mudança, desencadeando em diversas circunstâncias, desastres climáticos.
Demonstrações da luta incessante do homem pela sobrevivência (des)ordenada,
somados à devastação ambiental que se agiganta, consubstanciam o viver hodierno de
milhares de pessoas no planeta. Fluxos migratórios contínuos perpassam os dias atuais
em todo o mundo, ao mesmo tempo em que a sociedade e o Direito buscam delinear os
acometimentos sociais aos grupos de refugiados e deslocados tão frequentes em nossos
dias atuais.
A violação dos direitos em um só lugar da Terra, inevitavelmente, é sentida em
todos os outros lugares do planeta, neste sentido, Kant4 em seu ideal cosmopolítico
pensou que a maneira de aperfeiçoar as instituições democráticas, não seria salientar a
piedade pela dor e o remorso pela crueldade, mas sim a racionalidade e a obrigação moral,
especificamente.
E ante tudo isso, o Direito não pode se calar. Urge pois, sejam edificadas
normatizações para que a dignidade dos atingidos seja garantida na sistemática mundial,

2
Teoria desenvolvida pelo sociólogo alemão Ulrich Beck, nos idos de 1986, ao escrever o livro
Risikogesellschaft BECK, Ulrich. A Sociedade do Risco. Rumo a uma outra modernidade. Tradução
de Sebastião Nascimento.São Paulo: Ed. 34. 2010.
3
BECK, Ulrich. A Sociedade do Risco. Rumo a uma outra modernidade. Trad. Sebastião Nascimento.
São Paulo: Ed. 34, 2010, p.28.
4
KANT, Immanuel. A Paz Perpétua. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2008. p.52.

[66]
para além do reconhecimento humano de cada uma destas pessoas, que muitas vezes
sequer possuem identidade jurídica.
Não obstante o reconhecimento normativo acerca dos refugiados e o forte
desenvolvimento para o reconhecimento jurídico acerca dos deslocados em razão do
clima, desde o final do século XX, há o reconhecimento do indivíduo que foi forçado ou
obrigado a deixar sua casa em razão de ameaça à sua vida, e que, assim, não teve,
condições de atravessar uma fronteira internacional e, em razão disto, não se encontra sob
a proteção das normas internacionais5 que protegem os refugiados e lhes asseguram
assistência, trata-se, assim, de um deslocado interno.6
A internacionalização das questões climáticas, notadamente a partir do século
XX, demonstra que a discussão pelos Estados tem se intensificado em foros
internacionais a fim de que haja o explícito reconhecimento do problema e sua possíveis
soluções, a serem construídas a partir de um esforço e cooperação “de toda a comunidade
internacional para concretizar mudanças institucionais e legais, profundas na ordem
internacional”7 e constitucional.
Para tanto é preciso enaltecer-se que a estrutura do Estado democrático de
Direito está indissociavelmente ligada à realização de direitos, possuindo como pilares os
direitos fundamentais e a democracia.8 Identificando-se, “com a legitimação do título e
exercício do poder político a partir da livre escolha maioritária do eleitorado – a premissa
maioritária” - e também “com o regime em que a todos os cidadãos é dada a oportunidade
de se constituírem em parceiros activos e iguais do autogoverno coletivo.”9
E aqui necessária a indagação: em tempos de globalização, relações
internacionais, afronta à segurança pessoal, nacional e internacional, faz-se precisa uma
nova ou mais ampla forma de previsão normativa, constitucional e democrática?
Contemporaneamente o desenvolvimento social e a ordem jurídica mundial,
encontram-se numa era de globalização onde as relações se intensificam e quebram
barreiras, e neste sentido a efetivação do direito ao meio ambiente ordenado em

5
Como por exemplo a específica Convenção dos Refugiados de 1951.
6
IDMC – Internal Displacement Monitoring Centre.Internal Displacement: Global Overview of
Trends and Developments in 2005. Disponível em: <http://www.internaldisplacement.
org/8025708F004BE3B1/(httpInfoFiles)/895B48136F55F562C12571380046BDB1/$file/Global%20Over
view05%20low.pdf>. Acesso em 02 mai. 2017.
7
RAMOS, Érika Pires.
Refugiados ambientais: em busca de reconhecimento pelo direito
internacional. 2011. 150 f.Tese (Doutorado) – Faculdade de Direito da USP. 2011, p.35.
8
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e (em) Crise: uma exploração hermenêutica da
construção do Direito. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2005, p.39.
9
NOVAIS, Jorge R. Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria. Coimbra Editora. 2006, p.32.

[67]
consonância aos direitos humanos, ganham efetivo relevo no que toca a possibilidade
normativa-constitucional de concretizá-los a partir dos efeitos surgidos, mormente, em
razão das mudanças climáticas.
Neste sentido, a tratativa social na contemporaneidade traduz a premente análise
da historicidade à atualidade, tendo como fonte basilar uma teoria que discorra sobre as
transformações e evoluções sociais ocorridas no tempo.
No mesmo passo, urge a apreciação de referidas transformações sob uma modo
que se consubstancie em sustentáculo para o enfrentamento dos fenômenos sociais sob os
quais o mundo hodierno vive e no que tange especificamente à segurança pública,
individual e estatal, em nossa dinamizada atualidade.
O Direito Constitucional é, pois, a norma máxima de consagração dos direitos e
deveres de um Estado, insculpindo a defesa de toda a sociedade que abriga, e, neste
sentido, é a regra edificada nas Constituições dos países democráticos, como, por
exemplo, na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, na Constituição da
República Portuguesa de 1976 e na Constituição da República Italiana de 1947.
Há que se referir, de igual senda, sobre da ideia moderna de um Estado
democrático, que possui raízes no século XVIII, implicando a afirmação de certos valores
fundamentais da pessoa humana, especialmente, se considerado o pensamento de
Rousseau.10 Esse caráter democrático implica uma constante modificação e ampliação
dos conteúdos do Estado e do Direito.11
Nesta perspectiva, as transformações vivenciadas em cada Estado, e sua
caracterização constitucional, consubstanciam variações que embasam o
desenvolvimento do arcabouço constitucional, legal e normativo diversificados em
consonância com as conjunturas e evoluções temporais.
Tem-se, assim, a incorporação efetiva da questão da fundamentalidade de
direitos, como um conteúdo próprio a ser buscado, garantindo juridicamente as condições
mínimas de vida ao cidadão e à comunidade.12 Fatores, que se processam, diuturnamente,
dinamizados e premidos de necessária “elasticidade” frente a necessária segurança a ser
garantida aos cidadãos, tão aviltados em seu cotidiano, em razão dos perigos e riscos a

10
Conforme DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da Teoria Geral do Estado. 24 ed. atual. São Paulo:
Saraiva. 2003, p.145.
11
STRECK, Lenio Luiz. MORAIS, José Luis Bolzan. Ciência política e teoria geral do estado. Porto
Alegre: Livraria do Advogado. 2010, p.95.
12
STRECK, Lenio Luiz. MORAIS, José Luis Bolzan. Ciência política e teoria geral do estado. Porto
Alegre: Livraria do Advogado. 2010, p.95.

[68]
que são expostos, que carecem de um Estado “forte e atuante” para a, e na proteção de
seus direitos.
E aqui necessária a indagação: em tempo de globalização, relações internacionais,
afronta à segurança pessoal, nacional e internacional, faz-se precisa uma nova ou mais
ampla forma de previsão normativa, constitucional e democrática?
Contemporaneamente o desenvolvimento social e a ordem jurídica mundial,
encontram-se numa era de globalização onde as relações se intensificam e quebram
barreiras, e neste sentido a efetivação do direito ao meio ambiente urbano ordenado em
consonância ao direito à moradia, delimitados em sua fundamentalidade ganha efetivo
relevo no que toca a possibilidade normativa-constitucional de concretizá-los a partir dos
efeitos surgidos em razão das mudanças climáticas.
Um embate entre normas jusfundamentais é travado, pois, quando a eficácia e
efetividade da constituição e dos direitos fundamentais no Direito Público e no Direito
Privado, demonstra-se fragilizada ante a necessária proteção dos deslocamentos em razão
das mudanças climáticas e da consequente e necessária acomodação urbana destes
deslocados, direitos que são exemplos dentre os demais e mais basilares à garantia da
dignidade destas pessoas. Fator que se dá, mesmo nos casos de conflitos com outros
direitos fundamentais, como o direito de moradia e o direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado e com o mínimo de riscos.
E nesse cenário, somado à devastação ambiental que se monstrua, vivencia-se
cada vez mais desmandos e demonstrações da luta incessante do homem pela
sobrevivência (des)ordenada, que, inexoravelmente imprime uma produção de riscos e
perigos que escoam até a urbanidade através das mudanças no clima e desastres
ambientais.
A questão primordial da sociedade contemporânea traduz a necessária forma de
saber como lidar com tal realidade, influenciada por uma forma mundial de raciocinar,
em um contexto em que, por ser de uma temática tão complexa como os direitos humanos,
deve-se buscar uma sociedade viável e plural, de princípios humanísticos, de consciência
auto-sustentável e preocupada com a equidade.
Irrompem-se, assim, os substratos que impulsionarão o desenrolar de técnicas e
modos de conhecimento entre o homem, a sociedade e o ecossistema, numa busca para
um reordenamento ético-social fundamentado em ponderações sobre os valores da
contemporaneidade com o meio social, ambiental e humano.

[69]
A sociedade contemporânea apresenta-se, pois, como produtora de riscos,
tornado a construção e ordenamento das cidades um sistemático e abrangente cenário
premente de efetivação de direitos constitucionais. Surgem, assim, os referenciais que
vão regular as técnicas e o modo de conhecimento entre o homem, a sociedade, o
ecossistema e o meio ambiente urbano: a diferenciação, a ineficácia de direitos, a
insegurança, o individualismo e o risco.
O risco é uma forma de representação e também uma forma da modalidade de
produção de vínculos da sociedade com o futuro. E a sociedade se utiliza do “médium”
probalidade-improbabilidade como maneira de constituição/representação do e para o
futuro, bem como para produzir vínculos com futuro. 13
Neste sentir, as mudanças ambientais globais, portanto, são notáveis e têm
afetado a mobilidade espacial da população. Promovem o deslocamento dessas pessoas,
muitas vezes com intenção definitiva de mudança de residência e outras vezes em espaço
e período de tempo determinado, resumindo-se em chegadas e saídas de contingentes
populacionais.
Esse reordenamento social abre espaço às discussões acerca dos valores éticos e
dos direitos fundamentais (in)efetivados na contemporaneidade com seu entorno. Nesse
sentido, questiona-se: como garantir a efetivação dos direitos à moradia, à necessária
cidade ordenada, frente às mudanças climáticas que desnorteiam e desencadeiam a
ruptura de condições mínimas de vida?
Para tanto, é preciso ter-se como perspectiva da ideia-força do Estado
Democrático de Direito,14 e do delineamento da normatização que cuida do indispensável
ao ser humano, considerando-o como componente da sociedade.
Delimitando-se, a partir de então, uma pluralidade de direitos,
concomitantemente às complexas atividades a serem desenvolvidas pelo Estado e aqui,
refira-se a democracia como elemento fundante para a realização dos direitos.
A doutrina constitucional contemporânea possui caráter compromissário com a
eficácia dos direitos fundamentais, ao assegurar que a dignidade da pessoa humana é que
confere uma unidade de sentido ao sistema de direitos fundamentais, fazendo da pessoa

13
DE GIORGI, Raffaele. Direito, Democracia e Risco: Vínculo com o Futuro. Porto Alegre: Sérgio
Antonio Fabris Editor, 1998, p.192.
14
A Constituição Portuguesa consagra em seu artigo 2º: “A República Portuguesa é um Estado de direito
democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política
democráticas, no respeito e na garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação
e interdependência de poderes, visando a realização da democracia econômica, social e cultural e o
aprofundamento da democracia participativa.”

[70]
humana fundamento da Sociedade e do Estado,15 na mesma medida em que deve haver a
consciência jurídica, perpetrada através do universalismo democrático, que consagra a
inadmissão de “indivíduos que possam ser sacrificados para o ‘bem comum’, ou mesmo,
para o ‘bem’ da maioria”.16
E no sentido de viabilização da dignidade humana, através da efetivação de
direitos fundamentais notadamente ao meio ambiente, inclusive, urbano, sadio e
constituído em cidades ordenadas não obstante o fenômeno dos desastres ambientais em
decorrência do clima, imprime o necessário tracejo de referidos direitos, sua conceituação
e demarcação normativa na seara constitucional, desde a sua primeira consagração
juspositiva até a sua instituição como direito fundamental na contemporaneidade,
sopesada neste estudo como pilar de sustentação axiológica dos ordenamentos jurídicos.
Desta feita, a Constituição já não é somente um fenômeno exclusivamente do
Estado, mas algo que se engaja no contexto de um constitucionalismo transnacional, com
integrações econômicas e políticas em espaços supranacionais, numa espécie de
interconstitucionalidade, embora, reconheçamos, ainda encontre no Estado o seu
referencial típico de elaboração jurídica e teórica.
Por assim ser, a (re)construção de fundamentos e formas de concretude dos
direitos fundamentais proposta e efetivada, quando em cotejo com as alterações ocorridas
no meio ambiente em razão das mudanças do clima, pode representar um novo paradigma
à materialização do direito à moradia em condições que garantam condições de dignidade
humana às pessoas.
Decorre daí a fundamental consideração das “condições de possibilidade para a
implementação/concretização dos direitos fundamentais sociais a partir desse novo
paradigma de Direito e de Estado.”.17 A fim de que referidos direitos, possam ser
efetivados num cenário contemporâneo e cada vez mais gritante de danos e riscos
objetivos e subjetivos, urge que saibamos como garantir a efetividade de um sistema
jurídico, social e humanitário, vivenciado cada vez sob a égide ameaçadora de danos
futuros e riscos iminentes advindos das mudanças climáticas.

15
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Constituição. Tomo II. 7ª ed. Revista e
atualizada. Coimbra: Coimbra Editora. 2013, p.128.
16
CARDUCCI, Michele. Por um Direito Constitucional Altruísta. Porto Alegre, Livraria do Advogado,
2003, p.18.
17
STRECK, Lenio. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Da
possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 3ª ed. Revista, ampliada e com posfácio.
Rio de Janeiro, 2009. p.22.

[71]
Para tanto, imprescindível a abordagem dos direitos basilares, com sua
consequente gradação, dimensão, (in)aplicabilidade e (in)efetividade, num
dimensionamento constitucional multilevel (verfassungsverbund ou multilevel
constitutionalism), no qual se identifica um processo de criação e desenvolvimento
global, no qual estabeleceram-se estruturas de governo autônomas e ao mesmo tempo,
complementares e sobrepostas às anteriormente existentes nos diferentes Estados,18 aliada
ao foco nas mudanças efetivadas no clima e suas interferências no meio ambiente gerando
o fenômeno de deslocamento populacional em razão do clima.
Não obstante a redução de riscos e incertezas globais, inicialmente, vinculada
aos Estados, inéditas possibilidades de cooperação no âmbito internacional abrem espaço
para um original sítio mundial de exigência de responsabilidades.
Uma carta constitucional traduz a atualização presente em seu conteúdo, sem
que haja predominância de interesses momentâneos; conteúdo este que deve se ater em
conformidade com os elementos sociais, políticos e econômicos de um Estado.
Ao que cabe inferir que a concepção de um Estado de Direito remete-nos ao
pensamento originário acerca das democracias, da socialização dos Direitos necessários
à normatização, que visa como delimita Garcia-Pelayo19 “o bem-estar, duplamente oposto
ao comunista e ao autoritário.”.20
Considerando-se que a ideia moderna de um Estado democrático tem raízes no
século XVIII, a afirmação de certos valores fundamentais da pessoa humana,
especialmente se considerado o pensamento de Rousseau,21 confere caráter democrático
que alude a uma constante modificação e ampliação dos conteúdos do Estado e do
direito.22

18
PERNICE, INGOLF. Multilevel Constitutionalism and the Treaty of Amsterdam: European Constitution-
Making Revisited? In: Common Market Law Review, vol. 36, 1999.
19
GARCIA-PELAYO, ao lecionar acerca das modalidades estatais desenvolvidas nos países
industrializados e pós-industrializados, afirma que “há a modalidade de Estado que é chamada de “Estado
de partidos”, quando o ator ou sujeito real do poder são os partidos, e “Estado de associações
(Werbändestaat), na hipótese de as decisões estatais serem fortemente influenciadas por grupos de interesse
organizados”. Outra denominação utilizadas, por fim, é a de “Estado Social”. (GARCIA-PELAYO,
Manuel. As transformações do Estado Contemporâneo. Tradução, Prefácio e Apêndice (Diários
Bolivarianos):Agassiz Almeida Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p.1-2.
20
GARCIA-PELAYO, Manuel. As transformações do Estado Contemporâneo. Tradução, Prefácio e
Apêndice (Diários Bolivarianos):Agassiz Almeida Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p.2.
21
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da Teoria Geral do Estado. 24 ed. atual.,São Paulo: Saraiva,
2003, p.145.
22
STRECK, Lenio Luiz. MORAIS, José Luis Bolzan. Ciência política e teoria geral do estado. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 95.

[72]
Tem-se, assim, a incorporação efetiva da questão da igualdade como um
conteúdo próprio a ser buscado, garantindo juridicamente as condições mínimas de vida
ao cidadão e à comunidade.23
E nesse condão, a consciência jurídica universal, alinhavando-se com a realidade
jurídica do momento subjetivo histórico (onde a pessoa passa a sujeito ativo pelas
garantias que lhe são dadas pelos Direitos Fundamentais), culminam na Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão (1789), termo a partir do qual se verifica o que Estado
viabilizava de forma progressivamente a universalidade estatal, garantindo ao sujeito uma
ainda incipiente projeção no plano internacional.
No “pensamento social contemporâneo, encontramos a tentativa de identificar
os direitos humanos como a norma mínima das instituições políticas, aplicável a todos os
Estados que integram uma sociedade dos povos politicamente justa.”. 24
A humanidade,

Empreendeu esforços na universalização dos direitos do homem, no que se refere à


sua categorização e implementação, representada pela Declaração Universal dos
Direitos Humanos da ONU de 1948, que inaugurou uma nova fase de
internacionalização desses direitos. 25

Do universalismo do Direito, entendido como manifestação exterior, ligado à


esfera da ética, surge o sujeito de Direito universal. Ideia a partir da qual se verifica a
confluência da liberdade com a igualdade, a qual só pode ser encontrada na Declaração
Universal dos Direitos Humanos da ONU, de 1948, onde a pessoa é o cerne de todo o
ordenamento internacional na sua completude.
Entalha-se a “democracia no Estado de Direito” a partir dos fundamentos e
ideários de dignidade da pessoa humana, da cidadania entre os povos, da soberania
popular, da democratização e a limitação de poder estatal e do pluralismo jurídico, eis
que “a configuração do Estado Democrático de Direito não significa apenas unir
formalmente os conceitos de Estado Democrático e Estado de Direito”.26

23
STRECK, Lenio Luiz. MORAIS, José Luis Bolzan. Ciência política e teoria geral do estado. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2010,p.95.
24
BARRETO, Vicente de Paulo. ‘Sobre a Dignidade Humana.’ In: O Fetiche dos Direitos Humanos e
Outros Temas. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2010, p.243.
25
CULLETON, Alfredo; BRAGATO, Fernanda Frizzo; e FAJARDO, Sinara Porto. Curso de Direitos
Humanos. São Leopoldo/RS: Editora Unisinos, 2009, p.28.
26
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25 ed. revista e atualizada nos termos
da Reforma Constitucional, até a Emenda Constitucional n. 48, de 10.8.2005, São Paulo: Malheiros Editores
Ltda., 2005, p.119.

[73]
Reconhece-se, assim, a concretização de um verdadeiro Estado Democrático de
Direito, que encontra suas premissas básicas na Constituição, ao mesmo tempo em que
urge, seja referendado um processo de redução das desigualdades em diferentes regiões
do mundo, que se dê paralelamente à ampliação de um largo espectro de liberdades
individuais, para que seja viável o compartilhamento do espaço através de múltiplas
articulações, sob a forma democrática, inclusive.
O que não é de todo fácil, em razão da atual situação mundial, em que se vivencia
um processo em que a globalização rompe a unidade entre identidade nacional, cidadania,
direitos e eficiência dos Estados no campo da proteção social.27
Somada a tal posição, deve haver a delimitação de princípios fundamentais de
conteúdo específico e que permitam o amoldamento da Constituição quando da
necessária adaptação, em virtude de mudanças sócio-políticas estatais28 e dos direitos e
obrigações individuais e estatais nela previstos, vez que “a dinâmica constitucional,
estrutura o Estado como poder de dominação formal”29, implementando “uma nova
fundação na ordem político-administrativa”.30
Habermas31 afirma que o principal aspecto do direito cosmopolita consiste na
emergência de se ter do indivíduo como sujeito de direitos no espaço supranacional, à
medida que o cosmopolitismo supera a consideração dos sujeitos coletivos sob a ótica
humanitária para dar status legal aos sujeitos individuais, justificando-lhes a participação
como membros de uma associação de cidadãos mundiais.
Visualiza-se, assim, que uma das tendências da contemporaneidade é a abertura
do Direito Constitucional em nível globalizado, de forma a erigir os indivíduos para além
de sua normatização inaugural. E como elemento primordial para a concretude dos
direitos humanos dos deslocados em razão do clima, faz necessário “conciliar a
democracia e o poder político pulverizado que lhe anda associado com o saber cientifico

27
PERALVA, Angelina. Globalização, migrações transnacionais e identidades nacionais. “Projeto nova
agenda para a coesão social na democracia na América Latina”. São Paulo. Instituto Fernando Henrique
Cardoso, Julho de 2007.p.34.
28
LEAL, Rogério Gesta. Estado, Administração Pública e Sociedade.Novos Paradigmas. Porto Alegre.
Livraria do Advogado.2006. p.21.
29
BERCOVICI, GILBERTO. Constituição e Política: uma relação difícil. Disponível
em:<http://www.scielo.br/pdf/ln/n61/a02n61>. Acesso em 14 mai. 2017, p.8-9.
30
ALVES, Jorge Fernandes. A lei das leis. Notas sobre o contexto de produção da Constituição de 1911.
In: História. Revista da Faculdade de Letras. Porto. 2006. Disponível em:
<http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/3410.pdf>. Acesso: 14 mai. 2017. p.169.
31
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. v. II. Rio de Janeiro:Tempo
Brasileiro, 1997. p.92-95.

[74]
nas mais diferentes áreas em que se espraia e sob formas e justificações as mais
diversas.”.32
E nesse contexto, o constitucionalismo plural se destaca e torna cogente a
análise, eis que “a evolução e as vicissitudes dos direitos fundamentais, seja numa linha
de alargamento e aprofundamento, seja numa linha de retracção [...], acompanham o
processo histórico, as lutas sociais e os contrastes de regimes políticos.”.33
A abertura contemporânea a um pluralismo constitucional trata-se de tema de
iminente pontuação, haja vista a necessária “subsistência e coexistência de diversas
formas e standards de tutela, nos respectivos âmbitos de aplicação de cada um dos
catálogos de direitos fundamentais”.34
E assim ter-se uma ordem constitucional globalizada percuciente de uma
democracia amplificada como fator de perpetração de direitos ao ser humano, visualizado
como parte integrante do todo, mas inevitavelmente considerado em si mesmo, de uma
maneira universal e multicultural.
Norteando-se para uma “concepção dinâmica do jurídico”35, a referência é a
pluralidade entre os povos, ao que impende se refira sobre uma concepção universal e
multicultural do Direito, onde proceda-se a uma,

inter-relação entre textos e contextos ou, mais amplamente, entre os diversos


conjuntos normativos que funcionam simultaneamente.” 36 Eis que “se descartarmos
uma democracia mundial e global |...|, raramente encontraremos um argumento mais
convincente para a correção daquilo que a história já fez.37

A confluência da liberdade com a igualdade só pode ser encontrada na


Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU de 1948, onde a pessoa é o cerne
de todo o ordenamento internacional na sua completude, significando, pois, jamais

32
GARCIA, Maria da Glória Dias. ‘Ambiente – Saber Científico, Política e Direito’. In: Estudos De
Direito Do Ambiente e de Direito do Urbanismo. Selecção de intervenções no Curso de Pós-graduação
de Especialização em Direito do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Urbanismo. Coord. Marcelo
Rebelo de Sousa e Carla Amado Gomes. Lisboa: Instituto de Ciências Jurídico-Políticas. Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa, 2011.p.43
33
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV. Direitos Fundamentais. 5ªed.
Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p.27.
34
CARTABIA, MARTA, WITTE, BRUNO DE E TREMPS, PABLO PÉREZ. Constitución Europea y
Constituciones Nacionales, Tirant lo Blanch, Valencia, 2005, p.350.
35
OST, François. O Tempo do Direito. Lisboa: Instituto Piaget.1999, p.232.
36
DELMAS-MARTY, Mireille. Por um direito comum. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p.216.
37
DWORKIN, Ronald.Justiça para Ouriços. Tradução: Pedro Elói Duarte.Coimbra: Almedina. 2012.
p.390.

[75]
esquecer que “ a dignidade da pessoa não se divide e depende tanto dos direitos
econômicos e sociais quanto dos direitos civis e políticos.”.38
Nomeadamente, edificar uma normatização integrativo-protetiva aos deslocados
ambientais, perpassa a fundamentalidade de “desenhar-se no âmbito de um sistema
multinível e em rede - a socialidade na arena global.”.39 Trata-se, assim de “um sistema
que prescinde do poder público estadual, mas sim de um sistema que trata o Estado como
um agente entre outros na construção da solução e não como o poder de ordenação
soberana e inarredável.”40 Haja vista que a diversidade regional, sentida, pois, localmente,
nos centros urbanos, possui probabilidades maiores de serem resolvidas, se contrastadas
e equilibradas a partir de regras de política global.
Nesta ambiência, premente a efetivação de uma recíproca complementariedade
de garantias e tutela de interesses individuais41 que são o norte e fundamento de uma
ordem jurídica contemporânea, fulcrada na democracia e na constitucionalidade como
parâmetro para gerenciamento dos riscos e perigos, e que visa, sobretudo, a conservação,
a melhora e a efetivação de uma contemporaneidade humanitária e democrática,
globalmente vivenciada e desde localmente efetivada, e que encarta valores sociais,
políticos e jurídicos para a consecução e efetivação do bem comum.

Considerações finais

Inelutável, pois, que todo o conjunto de princípios, regras e determinações


constitucionais e de Direito Internacional, são parâmetros para a efetivação dos direitos
fundamentais pautados pelo norte e fundamento de um Estado de Direito Constitucional
fulcrado na democracia e que visa, sobretudo, a conservação, a melhora e a efetivação de
um viver saudável e salvaguardado juridicamente para as presentes e futuras gerações.
Neste sentido, cunhar-se-á uma “conexão real entre Constituições estatais e
direito internacional nas suas múltiplas vertentes de direito internacional geral ou comum,
convencional, constitutivo de organizações internacionais e entidades afins e delas

38
DELMAS-MARTY, Mireille. Por um direito comum. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p.281.
39
SILVA, Suzana Tavares da. Direitos Fundamentais na Arena Global. Coimbra: Imprensa da
Universidade de Coimbra. 2011, p.126.
40
SILVA, Suzana Tavares da. Direitos Fundamentais na Arena Global. Coimbra: Imprensa da
Universidade de Coimbra, 2011, p.126.
41
CARVALHO, Délton Winter de. A Responsabilidade Administrativa no Estado Democrático
Ambiental.Revista Brasileira de Direito Ambiental.Ano 3.Vol.10, 2007.abr/jun. p.131.

[76]
derivado”42, onde permaneça a Constituição como normativo primeiro.
A configuração e composição através de uma efetiva atuação jurídica, deve se dar
a partir de uma matriz constitucional aliada à normatização internacional, e sem
sobreposição de normas, perpetram uma ligação uníssona e atuando em prol do bem
comum, traduzindo um convívio social pautado pela responsabilidade.
O móvel constitucional contemporâneo, apresenta-se, assim, delineado pela
consagração constitucional, pela legislação interna e pela normatividade internacional
efetivando a sustentabilidade e a responsabilidade intergeracional humana, num atuar
democrático e equânime, buscando incessantemente a consecução de um mundo mais
equânime, mais justo e mais plural.

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[77]
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[79]
Esta página foi intencionalmente deixada em branco

[80]
5. ENTRE O UNIVERSALISMO E O EXCLUSIVISMO DOS DIREITOS.
O RECONHECIMENTO IDENTITÁRIO NO SISTEMA EUROPEU DE
PROTECÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

Vanessa Capistrano Ferreira1

1. INTRODUÇÃO

“Vocês, que vão emergir das ondas em que


nós perecemos, pensem, quando falarem
das nossas fraquezas, nos tempos sombrios
de que vocês tiveram a sorte de escapar.”
Aos que virão depois de nós,
Bertolt Brecht

O fragmento acima é um trecho extraído da obra de Bertold Brecht, Poemas 1913-


1956, que aborda a ampla desolação instaurada no continente europeu após as atrocidades
cometidas pelos regimes totalitários durante a Segunda Guerra Mundial. O sofrimento
social – experimentado pela difusão da violência e dos genocídios em massa –, criou uma
espécie de trauma coletivo na Europa, desencadeando, paulatinamente, reivindicações
público-políticas por uma maior proteção, e respeito dos direitos e deveres dos indivíduos,
pela preservação das liberdades humanas mais elementares e pela instituição de um
modelo democrático mais inclusivo e, acima de tudo, duradouro (AROLD, 2007, p.06).
Mediante esse clima de instabilidades crescentes e lustrosos massacres, as
sociedades ocidentais pareciam finalmente compreender o valor moral supremo do
conceito de dignidade humana, que embora estivesse presente desde a lição luminosa da
sabedoria grega, havia sido manipulado, restringindo-se, ao longo da história, aos grupos
seletos de indivíduos e coletividades (COMPARATO, 2003, p.55). Como lembram
Christoffersen e Madsen (2011, p.01), a acepção da dignidade humana e a defesa dos
direitos do homem e de suas liberdades fundamentais haviam sido “[...]

1
Doutoranda em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(UNESP/Marília-SP). Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” (UNESP/Marília-SP). Pesquisadora na área de “Direitos Humanos, Migrações e Novas
Subjetividades” no Núcleo de Estudos e Análises Internacionais (NEAI/IPPRI/UNESP) e membro do
Grupo de Pesquisa em Relações Internacionais e Política Exterior do Brasil.

[81]
instrumentalizados como parte de uma missão”, e agora incidiam novamente na
legitimação universal de uma nova Era de Direitos, ainda que marcada por traços nítidos
de fragmentação e exclusão social. A universalidade dos direitos apontava, mais uma vez,
para um caminho deverás sinuoso e debilitado, com a presença de grandes contradições
sociais e dicotomias consideradas à primeira vista como intransponíveis.
A internacionalização civilizatória dos direitos humanos pela ONU com a
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1945, também foi responsável pela
radicalização dos ideais de liberdade, igualdade e justiça, que se tornariam, a partir de
então, a fonte moral de legitimidade de todo Estado de direito que se pretendesse
democrático, do ponto de vista substancial. Embora esse reconhecimento tenha tardado
em se impor na vida coletiva, o respeito aos direitos do homem e do cidadão assumiu um
novo patamar de atuação, sendo constantemente reiterado como um dos princípios
normativos a serem seguidos também no âmbito internacional (HABERMAS, 2012,
p.07).
Por conseguinte, com o anseio de “[...] assegurar o reconhecimento e aplicação
universais e efetivos dos direitos do homem”, garantir a promoção da unidade europeia e
o fomento do progresso econômico e social, foi celebrada em Estrasburgo, a Convenção
Europeia dos Direitos Humanos em 1950. A Convenção traduziu-se num mecanismo de
reconhecimento universal da condição humana de igualdade essencial, objetivando a “[...]
proteção e o desenvolvimento dos direitos humanos”, os quais passaram a se constituir
como “[...] as verdadeiras bases da justiça”, que repousam “[...] num regime democrático”
(CONVENÇÃO, 2017).
Essas novas liberdades buscavam afirmar os direitos individuais de proteção
humana, a garantia de eleições livres e democráticas e o comprometimento dos Estados
em aplicarem territorialmente as normas internacionais provenientes da cooperação
europeia em fase de formação. O Conselho da Europa intencionava ainda conceder certos
direitos recíprocos e obrigações em conformidade com os interesses nacionais dos
Estados signatários, consolidando seu ideal de ‘união mais estreita’, como modo de
estabelecer uma “[...] ordem pública de democracias livres”, e o respeito ao seu “[...]
patrimônio comum de ideias e tradições” (CONVENÇÃO, 2017, p.05) (YEARBOOK,
1962, p.139-140).
A defesa e a institucionalização dos direitos humanos se tornaram, portanto, uma
linguagem indiscutivelmente imperiosa no sistema europeu e para muitos analistas como,
por exemplo, Seyla Benhabib (2010), as disposições advindas da Convenção, fomentaram

[82]
uma “[...] nova fase evolutiva da sociedade civil [...] obrigando os Estados e seus
representantes a tratarem todos os seus cidadãos em conformidade com certos padrões de
direitos humanos” (BENHABIB, 2010, p.02).
Por fim, as premissas das liberdades mais essenciais, a igualdade pluralista e a
preservação da dignidade humana, pareciam ter sido conquistas com a inclusão jurídico-
formal da Carta Social Europeia em 1961 e dos Protocolos Adicionais em 1988.
Entretanto, a contribuição mais notória deu-se a partir da criação de órgãos específicos
destinados a julgar e a executar sentenças – acerca da transgressão dos direitos humanos
na Europa –, por meio do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e do Comitê de
Ministros, respectivamente.
Para muitos, os estatutos humanitários internacionais e a Convenção Europeia
sinalizaram uma importante transição dos antigos embates teórico-filosóficos – sobre a
fundamentação e da validade universal dos direitos do homem – para práticas político-
jurídicas mais concretas. Os julgamentos dos crimes contra a humanidade, os controles
mais rígidos dos regulamentos dos refugiados, imigrantes e exilados, e as recentes
articulações entre os direitos sociais, econômicos e coletivos com aspirações mais
igualitárias, justas e inclusivas, indicavam a possibilidade de existência de um novo
regime de direitos. Isto é, uma ordem social incipiente pautada na possível ‘lei sem um
Estado’ e em ‘modalidades de pertencimento’ aparentemente mais flexíveis e menos
onerosas (BENHABIB, 2012, p. 21-22).
No que tange propriamente às competências do Tribunal Europeu –
nomeadamente Sistema Europeu de Direitos Humanos em conjunto com a Comissão
Europeia até 1998 –, desde que foi instituído em 1959, pode-se considerar a preservação
dos valores inspirados no Estado de direito (para além de seus restritos projetos
nacionais), a defesa da democracia pluralista, a harmonização das tradições jurídicas
europeias e, acima de tudo, a proteção dos direitos do homem e de suas liberdades
fundamentais. Sua assistência se destina a todos os cidadãos dos Estados-parte que
compõe o Conselho da Europa, bem como os não cidadãos, que residem em seu espaço
jurisdicional (BATTJES et all, 2009). Em suma, o Tribunal foi arquitetado como um
órgão de representação dos valores universalistas e de validação dos direitos humanos,
sob a forma do exercício pleno de um modelo de cidadania transnacional (SOYSAL,
2012).
No entanto, a enfermidade do otimismo mostra-se perceptível quando analisamos
a jurisprudência do Sistema Europeu de Proteção, apresentada por meio dos documentos

[83]
oficiais e por parte da literatura especializada. O estudo crítico desse material proporciona
a observância de possíveis omissões nos casos que envolvem as leis e as políticas de não
discriminação ligadas aos grupos minoritários no continente.
Pois, como argumenta Hemme Battjes (2009), a situação dos estrangeiros e dos
não cidadãos ainda varia conforme as diversas noções de identidade construídas no
interior dos Estados nacionais, nos valores étnicos e culturais, nas raças, nos credos e nos
diferentes graus de lealdade nacional. Segundo o autor, essas distinções “[...] são
suspeitas e raramente realizadas de modo explícito”, embora ainda suscitem a
perpetuação de estruturas negativas de inferiorização sociais, divisões impugnadas e
políticas exclusivistas que não apenas desqualificam o outro, mas também, e
principalmente, possibilitam a manutenção de injustiças sócio-culturais.
Em suma, esse artigo busca problematizar o fundamento último dos direitos
humanos, acerca de seu ideal de abrangência universal, responsável pela viabilização de
um projeto europeu pautado no reconhecimento do pluralismo sociocultural, na
consolidação dos espaços de luta pela preservação da dignidade humana (HONNETH,
1999), e na defesa de contextos sociais livres de relações assimétricas de poder. Colocar-
se-ão em evidência, os possíveis empecilhos socionormativos inclusivos ao
reconhecimento humano, o qual é continuamente subjugado pelo viés cultural e pelos
males etnocêntricos, recorrentes na tradição ocidental.
A persecução desse artigo visa testar a hipótese de que os marcos tradicionais
ainda estão presentes no Sistema Europeu dos Direitos Humanos, o que abala, não apenas
as premissas igualitárias existentes no interior da concepção político-filosófica do Estado
democrático de direito, mas principalmente, a resolidarização dos laços sociais pautados
no reconhecimento das especificidades de toda a pessoa e de todas as pessoas, sem que
ocorra a inferiorização. Condição essa, imprescindível para a realização da autonomia
individual, base de edificação e desenvolvimento dos parâmetros basilares do sistema
moderno de direitos (CRISSIUMA, 2013).

2. OS DIREITOS HUMANOS E O PARADOXO DA UNIVERSALIDADE

As perspectivas de universalidade e inclusão em torno dos direitos do homem


foram introduzidas pela filosofia iluminista do séc.XVIII. Muitos filósofos como
Voltaire, Rousseau, Diderot, Grotius, Kant, Locke e Montesquieu, construíram uma base

[84]
transcendental para a criação de uma comunidade política humana, a qual poderia se
estender para além das fronteiras territoriais dos Estados europeus e da própria história
cristã (GIESEN, 2001, p.37).
A acepção de que todos os seres humanos possuíam direitos, pela sua igualdade
essencial – como seres dotados de razão – passou a definir uma constelação ascendente
de valores (COMPARATO, 2003, p.11). Contudo, apesar de seus elementos-chave
sustentarem o universalismo da concessão de direitos, da proteção, das garantias, da
preservação da igualdade, da liberdade e da dignidade humana, um novo modelo de
privilégios foi instituído. Estabeleceram-se no interior das comunidades políticas
ocidentais relações de igualdade entre aqueles que estavam incluídos, excluindo-se
concomitantemente a maior parte da população dos assuntos públicos: pois, nenhum
camponês, plebeu, escravo, mulher ou indígena teriam a “educação” ou a “liberdade”
necessárias para serem incluídos como iguais (EDER; GIESEN, 2001, p.06-07).
A dualidade existente entre as prerrogativas dos direitos humanos universais de
abrangência ilimitada e os direitos de cidadania (ancorados em marcadores estáticos e
oposições binárias – tais como o nós/eles, nacionais/estrangeiros, cidadãos/não cidadãos),
passou a moldar grande parte dos debates acerca do sistema moderno de direitos. Entre
os teóricos clássicos encontram-se Marshall, Berlim, Dworkin, Mill, Rawls, Walzer,
Taylor, dentre outros. Esses apresentaram importantes contribuições acerca dos embates
recorrentes entre liberdade e igualdade, sem perder de vista às exigências de justiça e de
pertença comunitária (KYNLICKA; NORMAN, 1997).
A teoria dos direitos ocupou-se, majoritariamente, com a conduta dos cidadãos,
ora oscilando entre às reivindicações por passividade comunitária e/ou participação ativa,
ora sobre suas responsabilidades, papéis e lealdades. A ênfase na virtude cívica auxiliou
a produção legal de novas e mais radicais distinções no interior dos contextos sociais.
Como lembra Boaventura (2007), tanto no âmbito do conhecimento como no do direito
moderno, mantiveram-se as mesmas linhas abissais da Era Colonial, ou seja, a existência
de delimitações entre aqueles que eram considerados ‘amigos’ e ‘inimigos’. Apesar das
conquistas históricas, para cada novo direito instituído se perpetuava estruturalmente a
exclusão. Segundo Boaventura, “[...] a teoria do direito mostra os lastros de exclusões e
de decadência das próprias perspectivas [de universalidade] e inclusão” (SANTOS,
2007).
Nesse contexto, os direitos humanos passaram a ser concebidos ora como fruto de
reivindicações de privilégios, ora como formas alternativas de um universalismo utópico,

[85]
sendo essa tensão um dos principais motivos de ineficácia dos sistemas de proteção
contemporâneos. Pois, por vezes, os direitos humanos tornaram-se instrumentos de um
artefato cultural particularista, que “[...] apenas a cultura ocidental tendia a formulá-los
como universais” (SANTOS, 1997, p.112), quando nada mais pretendiam do que
legitimar suas posições de poder hegemônico em detrimento de grupos minoritários.
Entretanto, quando analisamos os direitos humanos sob o prisma das
reivindicações morais, esses passam a se configurar como espaços primordiais para a
realização da dignidade humana, que realçam, sobretudo, “[...] a esperança de um
horizonte pautado pela gramática da inclusão, refletindo a plataforma emancipatória de
nosso tempo” (PIOVESAN, 2005, p.44). Boaventura (1997, p.122) ressalta ainda a
importância de não reduzirmos o estudo científico ao que existe de mais concreto, “[...]
pois, de outro modo, podemos ficar obrigados a justificar o que existe, por mais injusto
ou opressivo que seja”.
Tendo como base as possibilidades de realização de seus potenciais
emancipatórios, fundamentados no ideal de justiça social e no reconhecimento do outro,
Jürgen Habermas apresenta um modelo reconstrutivo do sistema de direitos, que cumpra
seu papel de conectar as tensões iminentes nas sociedades modernas, acerca dos dilemas
do universalismo v particularismo, da liberdade v igualdade, da autonomia pública v
autonomia privada, presentes nos direitos humanos fundamentais e, que ainda sejam
compatíveis com as pressuposições da soberania popular, do Estado de direito e da
democracia deliberativa (WERLE, 2012, p.187). Seus esforços estão orientados para o
reestabelecimento de diretrizes capazes de conduzir a uma nova práxis jurídico-
democrática à luz das transformações histórico-sociais de seus contextos de aplicação.
Habermas (2002, p. 286) considera as normas jurídicas, pautadas na garantira dos
direitos fundamentais, como leis coercitivas (devido à sua obrigatoriedade fática) e leis
da liberdade (devido ao seu teor ético de interesse simétrico de todos). Somente com a
preservação dessas duas esferas, é possível enredar-se à legitimação do direito, o qual
torna viável a preservação igualitária da autonomia de todas as pessoas,
independentemente de seus costumes e/ou tradições.
A peculiaridade dos direitos humanos para Habermas (2001) assenta-se na
complementariedade entre o direito e a moral, isto é, são normas jurídicas que também se
apresentam como normas morais. O autor os considera como a cabeça de Janus, estando
uma face voltada ao direito positivo e outra à moral. Em seu aspecto moral se expressa, a

[86]
substância universal da dignidade humana de cada um e da premissa de acesso igualitário
ao direito, devido sua condição humana de ser dotado de unicidade existencial.
Entretanto, o conteúdo moral dos direitos humanos não pode satisfazer seu
imperativo funcional no escopo da aplicabilidade nas sociedades modernas, mas somente
ele é capaz de justifica-lo simetricamente e de modo indivisível. Assim como a moral, o
direito deve preservar equitativamente a autonomia de todos, provando para além da
própria legitimidade, seu aspecto garantidor da liberdade. Para ele, “[...] a autonomia que
no campo da moral é monolítica, por assim dizer, surge no campo do direito apenas sob
a dupla forma da autonomia pública e privada” (HABERMAS, 2002, p. 290).
A autonomia pública dos cidadãos adquire sua forma na organização histórica e
social de uma comunidade ético-política, regida pela ação comunicativa e pelas
exigências de reconhecimento recíproco, a qual atribui a si própria suas leis, por meio do
exercício da vontade soberana do povo. Já a esfera da autonomia privada encarrega-se de
afigurar a garantia da autorrealização dos seres humanos, no que tange às suas relações
pessoais, sociais e institucionais.
Pela imbricação dessas esferas, Habermas (2002) formula o nexo existente entre
a formação da opinião e da vontade, mediada pela soberania do povo num espaço público
político e os direitos humanos, garantidores dos parâmetros universais de reconhecimento
da dignidade humana, dos parâmetros particulares da autorrealização individual e da
garantia do acesso igualitário ao sistema moderno de direitos. Conjuga-se, por intermédio
dos direitos humanos e da democracia, os valores da liberdade e da igualdade, tão caros
ao Ocidente.
Habermas (1997) apresenta uma interpretação com a edificação de um sistema de
direitos que não negue o reconhecimento das particularidades humanas,
consubstancializado em padrões de eticidade em decomposição. E que traduza as “[...]
expectativas de comportamento generalizadas temporal, social e objetivamente”
(HABERMAS, 1997, p.142). Estabelece-se um modelo democrático deliberativo capaz
de abarcar a totalidade de subculturas e que não abdique de sua obrigação de se
fundamentar em padrões morais de respeito à dignidade humana, bem como no respaldo
ético garantido pela participação de toda a comunidade política. Seria por intermédio dos
direitos humanos, que a autodeterminação dos povos e a autorrealização individual,
tornar-se-iam possíveis e alcançariam o objetivo ideal de uma sociedade justa e
emancipada.

[87]
Contudo, as experiências de inferiorização, privação de direitos e de degradação,
possivelmente, perpetuadas pelas rotineiras omissões nas condenações de formas de
racismo nas sociedades contemporâneas, transformaram os sistemas de proteção
contemporâneos em meros simulacros e veículos de imposição de parâmetros e interesses
provenientes de uma cultura majoritária. Com a negação de oportunidades reais de
inclusão e reconhecimento das diferenças, os indivíduos são negados de desenvolver seus
próprios mundos de herança, bem como seus sensos internos de autonomia
(autoconfiança, autorrespeito e autoestima) (WERLE, 2012, p.193).
Somente com o desenvolvimento cumulativo desses três elementos, seria possível
atingirmos espaços sociais verdadeiramente democráticos e, condizentes com os
parâmetros normativos que sustentam as concepções jurídico-filosóficas do Estado de
direito. A desorganização nessas esferas de reconhecimento afeta a eficiência funcional
das próprias instituições sociais, levando à enfermidade ou a proliferação de patologias,
típicas de uma sociedade que fracassa em relação às suas próprias metas normativas
(ROSENFIELD; SOBOTTKA, 2015).
Para Honneth (2009), essas três esferas de reconhecimento proporcionam os
níveis reguladores para o desenvolvimento da confiança, do respeito e da estima, tanto
nos âmbitos individuais quanto coletivos, sendo somente por intermédio do
reconhecimento das identidades particulares, que seria viável concebermos seres
autônomos, livres e de igual valor. Em suma, segundo a teoria do reconhecimento,
processos de negação do outro se transformam em requisitos que inviabilizam a
concretização da dignidade humana, com a inferiorização devido às diferenças
identitárias.
Se direitos são negados ou omitidos a determinados grupos sociais, está implícito
que esses não são reconhecidos como parceiros dignos de interação. Para Honneth (2009,
p. 266), “[...] a degeneração de pretensões jurídicas socialmente vigentes significa ser
lesado na expectativa de ser reconhecido como sujeito capaz de formar juízo moral; nesse
sentido vai de par com a experiência de privação de direito uma perda do autorrespeito”.
O desrespeito constitui-se como o último rebaixamento social possível, através do
qual se nega o valor de indivíduos e coletividades, com a depreciação de suas identidades
prático-morais, de suas tradições e formas de vida. Uma vez que, para existir estima, é
fundamental que seja concedido juridicamente uma real inclusão e reconhecimento do
outro, capazes de fazerem nascer sentimentos de autorrealização, assim como laços

[88]
abstratos de solidariedade cívica2. A discriminação, o desrespeito e os procedimentos
exclusivistas acabam por abalar o significado positivo de grupos inteiros levando à
instauração de patologias, tais como o sofrimento social. Vistos como ‘indesejados’ no
interior de uma comunidade política, os indivíduos sofrem um bloqueio em suas
autorrelações práticas e, consequentemente, podem culminar em processos de
desintegração do próprio corpo social.
Os sistemas jurídicos e as comunidades políticas, a despeito das diferenças, devem
estar abertos ainda aos processos de subversão, mediados pelos conflitos morais-
intersubjetivos, capazes de conduzir as sociedades às novas conquistas universalistas de
igualdade e particularistas de autonomia e autorrealização pessoal. Torna-se evidente que
o direito, que busca se isolar das reivindicações histórico-sociais e de seus dissensos,
condensando-se à mera função simbólica, torna-se inidôneo para representar as
sociedades modernas, marcadas pela convivência supercomplexa (HONNETH, 2009,
p.267).
Propõe-se então uma verificação dos possíveis parâmetros exclusivistas de
aplicação dos direitos humanos na Europa. Visto que sua conivência representa não
apenas uma negação do projeto universalista dos direitos humanos – sobre seus
imperativos morais de respeito à dignidade humana, à liberdade e à igualdade –, mas de
negação dos próprios preceitos éticos do Estado democrático de direito e da formação
identitária autônoma (fundada a partir das experiências de reconhecimento recíproco).

3. A POLÍTICA DA NÃO-DISCRIMINAÇÃO NO SISTEMA EUROPEU DOS


DIREITOS HUMANOS: RETÓRICA OU REALIDADE?

O triunfo do princípio universalista torna-se menos convincente quando analisado


sob o viés crítico do pensamento social. Uma vez que, simultaneamente à constante
reiteração jurídico-formal da nova Era de direitos, continuam-se a proliferar casos de
desrespeito, exclusão e/ou indiferença que fragilizam as prerrogativas jurídico-filosóficas
de constituição do Estado democrático de direito. Para tanto, passaremos para uma
avaliação dos atuais códigos normativos e procedimentos formais de combate às formas

2
“Que nasce no nível da heterogeneidade das consciências populares. [Provenientes] das experiências
vividas no âmbito da sociedade e derivadas dos processos de socialização, que distinguem a necessidade
de um homem livre e solitário, que possa contrapor os desafios e a crescente complexidade social que a
modernidade traz. A partir dessas experiências surge a questão de como sua universalidade se comporta
frente às diversidades culturais” (ALVES; POKER; FERREIRA, 2005, p.118).

[89]
de intolerância de grupos minoritários na Europa, por intermédio da análise da
jurisprudência política do Sistema Europeu dos Direitos Humanos, acerca da lei da não
discriminação.
Em 1973, o sistema europeu de proteção foi acionado por alguns cidadãos da
Commonwealth3 – residentes na Grã-Bretanha e provenientes das antigas colônias do
Quênia, de Uganda e da Tanzânia –, que perderam o seu direito de residirem
permanentemente no Reino Unido devido às aprovações da Commonwealth Immigrants
Acts de 1962 e de 1968. Por meio dessas diretivas nacionais, os antigos cidadãos deixaram
de possuir a liberdade de entrar livremente no Reino Unido para trabalhar ou morar. Os
atos “[...] limitaram o direito de entrada e impuseram controles rígidos de imigração sobre
‘certas classes de cidadãos’, incluindo àqueles que já habitavam o Reino Unido e as
Colônias, e aos que ainda não possuíam ligações estreitas com a Grã-Bretanha”
(CONSEIL, 1985, p.04).
As leis de imigração britânicas existentes até 1962 foram alteradas e, as novas
diretrizes criaram ‘categorias de pessoas’ para efeitos de ‘aceitação’ em seus territórios,
as que tinham o direito de residência permanente eram chamadas de ‘patriais’ e as que
não possuíam essa salvaguarda foram denominadas de ‘não patriais’. Essas classificações
foram destinadas a todos os imigrantes e aos ‘cidadãos da Commonwealth’ (que
‘pertenciam’ ao Reino Unido e aos que ainda ‘não pertenciam’).
Para Khalida Qureshi (1968, p.134), as aprovações dessas leis migratórias foram
fulcrais para o reestabelecimento dos antigos conflitos coloniais – sobre as distinções de
raça e de cor –, que ainda pairavam sobre as sociedades europeias, promovendo ainda
novos problemas ligados à eclosão do racismo e da intolerância, especialmente, na Grã-
Bretanha. Referiram-se também às rejeições das minorias nacionais – que já detinham
passaportes ingleses –, mas eram originalmente da África. O autor menciona que a recusa
britânica na aceitação de alguns ‘cidadãos da Commonwealth’ produziu uma espécie de
‘cidadania de segunda classe’, sendo a primeira vez que essas classificações raciais e
diferenciações sociais apareciam na forma de lei no Reino Unido. Constituíram-se assim
como políticas de combate à ‘africanização’ da Grã-Bretanha e a um modo de conter o
aumento dos fluxos migratórios, após a independência de suas antigas zonas de
exploração.

3
Caso dos 35 Africanos Orientais contra o Reino Unido (processo nº 4626/70).

[90]
A maior ironia da Commonwealth Immigrants Act de 1968, é que sua promulgação
ocorreu no mesmo ano escolhido pelo Conselho da Europa e pelas Nações Unidas como
o Ano Internacional da Proteção dos Direitos Humanos. Esse ato sectário envolveu uma
violação explícita aos direitos humanos, por restringir direitos de cidadania anteriormente
conquistados e fomentar o acirramento social com violências racialmente direcionadas
aos cidadãos das antigas colônias britânicas (asiáticos, negros e árabes). Concebeu-se,
deste modo, como um ato discriminatório legalmente fundamentado de limitação de
direitos. Segundo Qureshi (1968, p.134-136) “[...] infelizmente em certas sociedades essa
antipatia tornou-se uma obsessão patológica [...] de nações racistas diante de uma pressão
contínua para aceitarem a ideia da igualdade racial”.
No entanto, dois anos após a aceitação desse processo pelo Sistema Europeu de
Proteção dos Direitos Humanos, o Reino Unido decidiu emitir uma autorização provisória
de permanência para alguns dos seus ‘cidadãos de segunda classe’, como um ato
atenuador das críticas e contestações crescentes. Essa ação levou à Comissão Europeia a
declarar profunda “[...] satisfação pelas medidas adotadas pelo governo para facilitar a
entrada no Reino Unido dos provenientes da África Oriental” (35EAST, 1978, p.07). E,
mediante a essas circunstâncias, foi concluído que “[...] todos os problemas que deram
origem ao processo deixaram de existir” (35EAST, 1978, p. 07) e o Comitê de Ministros
do Conselho da Europa afirmou estar profundamente “[...] satisfeito com as medidas
tomadas pelo Reino Unido para lidar com o fluxo de refugiados que a crise africana
produziu” (DEMBOUR, 2006, p.150).
Embora tenha sido admitido no período que os cidadãos da Commonwealth “[...]
foram tratados como cidadãos de segunda classe e foram sujeitos a atos de discriminação
racial”, e afirmado que “[...] a discriminação baseada na raça, em certas circunstâncias,
poderia equivaler a um tratamento degradante nos termos da Convenção Europeia”
(35EAST, 1978, p.08). Não foi, de fato, constatada nenhuma violação de direitos
humanos pelo Reino Unido. Isto é, as prerrogativas judiciais da Convenção – no primeiro
caso emblemático de combate ao racismo –, garantiram a prossecução de assimetrias na
concessão dos direitos dos ‘cidadãos britânicos’ da Commonweatlh, ao abrigo da
continuidade da aplicação das leis de imigração. Ao governo da Grã-Bretanha não foi
emitido nenhum pedido de revogação ou reformulação de suas diretivas internas. Ao
contrário, foi admitido que os problemas que originaram as reivindicações ‘deixaram de
existir’ e todas as queixas foram retiradas unilateralmente de Estrasburgo.

[91]
Os conflitos descritos foram ‘resolvidos’ com a permanência de vicissitudes
raciais no âmbito da proteção humana e contínuas lacunas acerca do reconhecimento de
identidades minoritárias no Reino Unido. Cabe lembrar ainda, que ‘omissões jurídicas’
também são formas de posicionamento político, e apesar da constatação de que “[...] a
discriminação baseada na raça, em certas circunstâncias, poderia equivaler a um
tratamento degradante”, nenhuma violação foi atribuída (35EAST, 1978, p.11). Mais do
que isso, em maio de 19854, o Tribunal admitiu que “[...] embora um Estado membro não
possa aplicar políticas de tratamento preferencial aos seus nacionais ou às pessoas dos
países com que tenha laços mais estreitos”, as regras migratórias no Reino Unido não são
uma “[...] evidência da diferença real de tratamento com base na raça” (CONSEIL, 1985,
p.33). As restrições à ‘imigração primária’ visam ‘proteger o mercado de trabalho
nacional’ em um período de forte crise, o que o leva à elaboração de regras especialmente
direcionadas “[...] aos imigrantes que são da Commonwealth e do Paquistão, e como
resultado afetaram menos brancos do que outros, [mas isso] não é razão suficiente para
considera-los racistas” (CONSEIL, 1985, p.34-35).
Em consonância a essa declaração, as políticas preferenciais de tratamento dos
cidadãos nacionais em detrimento dos estrangeiros ou dos ‘cidadãos de segunda classe’
passaram a ser justificadas à luz dos períodos de crise econômica e com a finalidade de
manter a ‘unidade social coesa’. E mesmo que ‘os brancos’ não tenham sido tão afetados
como os de ‘cor’, isso não evidenciaria – segundo os argumentos do Tribunal Europeu –
, que as legislações nacionais fossem ‘racistas’ ou ‘sectárias’. Uma vez que essas
distinções sociais não foram elaboradas com o objetivo de ‘humilhar ou degradar’ grupos
específicos, apenas estabeleciam – em termos jurídicos ‘neutros’ –, quais seriam os
imigrantes passíveis de serem ‘incluídos’ permanentemente e quais seriam ‘inferiorizados
e não reconhecidos’ pelo direito britânico.
As políticas de imigração britânicas tornaram-se assim mecanismos que
regulavam a ‘inclusão’ e a ‘exclusão’, construindo hierarquias com base em juízos
determinados pelos parâmetros de atribuição de nacionalidade. Esses critérios passaram
a flutuar conforme as necessidades econômicas e a conveniência da política nacional. No
interior do discurso da ‘igualdade’ – existente no bojo dos direitos humanos universais –
, o pertencimento, a nacionalidade e a cidadania passaram a cumprir funções
contraditórias que proporcionavam uma agenda comum de reivindicações pautadas na

4
No caso de Abdulaziz, Cabales e Balkandali contra o Reino Unido (processos nº 9214/80; 9473/81;
9474/81).

[92]
‘inclusão’, mas incapazes de se distanciar dos instrumentos discriminatórios de
‘exclusão’ do outro – do estrangeiro e do ‘diferente’ (RUDIGER, 2007, p.55).
Hemme Battjes (2009, p.200) chama a atenção para o escopo do direito que
envolve as leis e as políticas de imigração, pois esse não deve implicar “[...] que cada
governo é apenas responsável pelo bem-estar e pelo pertencimento ideal de seus próprios
membros, possuindo uma obrigação limitada na proteção dos direitos dos não cidadãos”,
principalmente se as violações estiverem vinculadas às prerrogativas essenciais de vida –
de grupos que não possuem voz política ou representação. Para Farahat (2009), “[...] a
não-cidadania dos imigrantes é, ou deveria ser, uma questão prioritária” para o Sistema
Europeu dos Direitos Humanos, pois ela assume um papel muito mais significativo para
esses segmentos da sociedade do que para os portadores de um tipo de ‘cidadania plena’
(BATTJES et all, 2009, p.202).
Portanto, o ideal seria criar uma abordagem político-jurídica conjunta, integrada
e inclusiva sem que o exclusivismo do pertencimento nacional entrasse em conflito direto
com o compromisso da ‘igualdade pluralista’. Pois, políticas baseadas no reconhecimento
do outro e na constante negociação das diferentes necessidades e perspectivas transitam
do nível individual ao coletivo, não exigindo assimilação, mas requerendo, acima de tudo,
uma cultura democrática participativa. Reivindicam-se assim instrumentos político-
jurídicos que garantam a igualdade de tratamento e não obscureçam as particularidades
atinentes aos direitos humanos. As diretivas comunitárias europeias deveriam servir para
impulsionar a ação do ‘reconhecimento’ nos níveis nacionais, garantindo novos impulsos
e uma possível articulação do sistema moderno de direitos com a ‘igualdade’ e a
‘diferença’ (RUDIGER, 2007, p.41-63).
Pois, nem a ‘igualdade’ nem a ‘inclusão’ podem seguir com hierarquias sociais
que legitimam padrões culturais dominantes, que apenas servem para eternizar
tratamentos desiguais (em virtude do pertencimento a um determinado grupo étnico ou
racial). As desigualdades tornam-se relações estruturais existentes no interior das
sociedades, que não são desencadeadas apenas por ações ou atitudes individuais, mas
acima de tudo, corroboradas por instituições que fazem ‘vista grossa’ às violações
sistêmicas. Assume-se maior risco de fragmentação ao permitir a exacerbação das
diferenças no bojo das sociedades modernas e, aumenta-se o desejo por políticas de
exclusão e práticas de discriminação, que efetivamente restringem a igualdade daqueles
que são identificados como não pertencentes às comunidades essencialmente majoritárias
(RUDIGER, 2007, p.41-63).

[93]
Além disso, em maio de 20005, o Tribunal Europeu transferiu o ônus de obtenção
de prova de uma alegada situação de discriminação, racismo ou intolerância para a vítima
durante os procedimentos judiciais levados à Estrasburgo. Ou seja, o sistema de proteção
passou a adotar uma medida jurídica equivalente a uma acusação penal existente somente
no âmbito dos Estados nacionais6, sem ao menos justificar o motivo de tal exigência em
matéria de defesa ou salvaguarda dos direitos humanos no continente.
Para Marie-Bénédicte Dembour (2009, p.227) essa doutrina se, “[...] constituiu
como uma regra do direito que tornou possível ao Tribunal se manter distante de
reconhecer o racismo por décadas, insistindo até recentemente em um padrão irreal de
provas e por rejeitar, o próprio conceito de discriminação” na construção de sua
jurisprudência política. Retardaram-se assim, por um longo período de tempo, medidas
específicas contra preconceitos raciais recorrentes na extensa história social europeia,
consolidando-se como assentimentos positivos em relação às desigualdades enquanto
expressões diferenciais de poder entre grupos de pessoas, e não apenas como ‘simples’
falhas de um sistema que protege indivíduos num sentido estreito. Embora tenha
oferecido um nível mínimo de proteção contra a discriminação nos níveis nacional e
internacional – pelo menos em seus aspectos simbólico-discursivos – foi insuficiente na
edificação de “[...] uma peça central em torno da qual uma cultura da igualdade poderia
verdadeiramente se desenvolver” (RUDIGER, 2007, p.48-49).
Em 2002, um juiz maltês chamado Giovanni Bonello anexou uma opinião
divergente ao final de um processo em Estrasburgo,7 afirmando que considerava
particularmente perturbador que, em mais de cinquenta anos de escrutínio judicial, o
Sistema Europeu de Proteção não tivesse encontrado um único caso de violação do direito
à vida ou do direito de não ser submetido à tortura ou a outro tratamento degradante ou
desumano, induzido pela raça, cor, credo, ou lugar de origem das vítimas. Mostrou a
essencialidade de uma revisão no âmbito do Tribunal, que postergava o cumprimento do
direito de não discriminação por meio de garantias legais que comprometiam sua
eficiência em termos da proteção dos direitos humanos na Europa.
Segundo Bonello (2002), embora esse nível de prova – “para além de qualquer
dúvida razoável” – faça sentido nos contextos nacionais penais, é virtualmente
‘impossível’, ‘insustentável’ e ‘inatingível’ ao requerente que alega a discriminação racial

5
Caso de Velikova contra a Bulgária (processo nº 41488/98).
6
Acordo Irlanda/Reino Unido de 18 de janeiro de 1978, série A nº25, §61.
7
Caso de Anguelova contra a Bulgária (processo nº 338361/97).

[94]
alcança-lo em matéria de direitos humanos. Tornou-se “[...] um padrão de prova que serve
apenas para garantir que os danos aos direitos humanos, por mais ostentosos e proibitivos
[que sejam], permaneçam ilesos” na Europa (CONSEIL, 2002, p.41). Recordou-se ainda
que o racismo é um problema que assola o continente, no entanto, “[...] ao folhear os
relatórios do Tribunal, um observador desinformado teria razões suficientes para concluir
que [...] a Europa democrática está isenta de qualquer suspeita de racismo, intolerância e
xenofobia”, já que sua “[...] jurisprudência [parece ser] um refúgio exemplar de
fraternidade étnica em que os povos das mais diversas origens se unam sem angústia,
preconceito ou discriminação” (CONSEIL, 2002, p. 39). Logo, para o juiz não poderia
ser concebido nenhum [...] instrumento jurídico mais eficiente para garantir que a
proteção contra a discriminação se tornasse ilusória e inoperante do que exigir das vítimas
um padrão de prova que em outros litígios civis não é exigido por mais ninguém
(CONSEIL, 2002, p.41).
Bonello (2002) ainda afirmou que o Tribunal Europeu está atrás, no que tange à
proteção contra a discriminação racial, de outros tribunais de direitos humanos, como por
exemplo, a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Já que ela atribuiu em sua
jurisprudência política recente que, a defesa dos direitos humanos não deve ser
confundida com a ‘justiça criminal’, pois, “[...] os Estados não comparecem perante a
Corte como réus de uma ação criminal. O objetivo do direito internacional não é punir
aqueles que são culpados de violações, mas sim proteger as vítimas, prever e reparar os
danos resultantes dos atos dos Estados responsáveis”, o que o Sistema Europeu de
Proteção tem falhado sistemática e historicamente (CONSEIL, 2002, p.41).
Cabe ressaltar que esses posicionamentos “[...] não foram palavras de um ex-
advogado amargurado, mas de um juiz do Tribunal que [demonstrou que] não podia mais
seguir seus colegas” (DEMBOUR, 2006, p.133). Faltaria, portanto, maior clareza
doutrinária em relação aos seus deveres de prevenir e proteger indivíduos e coletividades
em detrimento dos interesses dos Estados em si. Pois, a jurisprudência do Sistema
Europeu deveria representar uma “[...] reação contra as omissões e a inércia dos órgãos
de poder público no presente domínio da proteção” (TRINDADE, 1999, p.48),
aprimorando assim os mecanismos internacionais em prol de direitos humanos mais
inclusivos e igualitários.

[95]
Apesar desse nível de prova ter sido alterado em 2005,8 sendo transferido agora
aos Estados infratores, o Tribunal Europeu ainda continua a defender sua ausência de
responsabilidade em condenar ‘formas indiretas’ de intolerância ou racismo nas
sociedades europeias, cabendo a ele apenas a função de responsabilizar ou não os Estados
contratantes acerca da violação da Convenção Europeia.9 Sua postura não apenas descarta
o desenvolvimento histórico-social indispensável ao aprimoramento moral e ético da
própria substância normativa dos direitos humanos, como também se utiliza de garantias
legais para omitir-se em relação ao seu dever de proteger e prevenir formas de
inferiorização e não reconhecimento do outro, ainda existentes nos contextos sociais
europeus. A noção de proteção mostrou-se assim insuficientemente inábil em eliminar a
degradação de grupos historicamente subjugados, com uma tendência inercial em lidar
com uma ordem social generalizada de violações e violências.
Em suma, a lei da não discriminação europeia “[...] revela-se como uma falsa
promessa” (DEMBOUR, 2006, p.133), demonstrando que nem as autoridades nem o
Tribunal consideraram, de fato, o racismo no seu recente quadro político-jurisprudencial
de proteção dos direitos humanos, sendo suas atribuições ‘surpreendentemente limitadas’
e que “[...] soam até mesmo como palavras um pouco vazias” (DEMBOUR, 2006, p.137).
Sendo, portanto, “[...] seu fracasso infeliz, pra dizer o mínimo” (DEMBOUR, 2006,
p.135). Ressaltamos, por isso, a essencialidade de compreendermos que, “[...] existe uma
luta política onde quer que se deem relações de dominação e que os direitos humanos se
ligam inevitavelmente às tramas sociais que potencializam a autonomia e a autoestima de
todos e de cada um [que se] feriu” (GALLARDO, 2014, p.59).
Assim, sob um viés crítico-normativo, podemos dizer que ao descartar o
enfretamento da discriminação, da intolerância e do racismo ainda existentes nos
contextos sociais europeus, recusam-se formas reais de transferência e/ou redistribuição
de poder, capazes de combater assimetrias que comprometem continuamente a formação
cumulativa das esferas identitárias dos sujeitos em causa. Esses cenários reificantes
comprometem não apenas os imperativos da ‘moralidade’ liberal do Estado de Direito,
ou a ‘ética’ pressuposta nos posicionamentos humanitários, mas principalmente abrem
caminhos para questionamentos mais sérios acerca da própria regressão do ideal
democrático das sociedades europeias supercomplexas, devido à possibilidade de

8
Caso de Nachova contra a Bulgária (processos nº 43577/98 e 43579/98).
9
Caso de D.H e outros contra a República Checa (processo nº 57325/00).

[96]
existência de marcos tradicionais nos parâmetros de ‘justiça’, de ‘igualdade’, e até mesmo
de ‘liberdade’, tão impreteríveis à cultura ocidental.

4. CONCLUSÃO

Como apresentado sumariamente nesse texto, segundo a teoria do


reconhecimento, as experiências de privação de direitos, inferiorização e degradação
influem diretamente na consolidação das esferas de autorrespeito e autoestima. Âmbitos
esses substanciais para se pensar na garantia da dignidade humana, bem como na
efetividade da autonomia individual – base elementar para a constituição das próprias
perspectivas normativas do sistema moderno de direitos (pautado na defesa dos direitos
humanos fundamentais). Assim, com o abalo nas prerrogativas de autorrealização dos
indivíduos e em suas autorrelações práticas, torna-se inviável pensarmos em ideais
igualitários, em concepções abrangentes de justiça social e em emancipação humana,
levando ao surgimento de patologias sociais, devido ao sentimento crescente de injustiças
e opressões.
Jürgen Habermas e Axel Honneth apresentaram o sistema moderno de direitos
como um medium essencial para a garantia da integração social e, para a confirmação das
“[...] perspectivas reais e plausíveis de superação das injustiças e sofrimentos de nossa
realidade” (WERLE, 2012, p.192), devendo ainda ser comprometido com o ideal de
promoção da justiça social. Sistema esse, forjado nos processos democráticos de
formação da vontade livre e coletiva, com o objetivo de satisfazer as reivindicações
historicamente não cumpridas de grupos constantemente inferiorizados.
Apesar disso, continuamente, continuam-se a proliferar dúbias condutas que
insistem em legitimar poderes ilegítimos e, abster-se da naturalização da repressão ou
violência, colocando os sistemas jurídicos de proteção como instituições sociais ainda
consubstancializadas em tramas de dominação. Uma legislação que se isola das
reivindicações sócio-históricas, assume a função de apenas encobrir as contradições e as
irracionalidades que ainda permeiam as instituições sociais regidas por uma maioria que
não visa à justiça, mas sim obstruem os caminhos para que esta seja alcançada. Se o
Estado de direito se mostra frágil, o teor democrático, coletivo e plural de suas instituições
político-jurídicas também se tornam particularmente dubitáveis.

[97]
Com a crítica das atuais lacunas jurídico-políticas europeias, a respeito da
proteção de ofendidos e degradados, é oportuno iniciarmos uma reflexão que englobe um
canal jurídico de acesso irrestrito aos direitos e que não acoberte poderes sociais
assimétricos ou ainda políticas de poder inseridas numa lógica de dominação usual. Nessa
perspectiva, os direitos humanos poderiam assumir sua função de “[...] realizar seu
conteúdo moral transcendente que se impregnou na memória da humanidade”, levando à
edificação dos ideais de emancipação sobre fenômenos da ordem da vida em sociedade.
Pois, “[...] pior do que as tentativas legítimas malsucedidas, é sua ambiguidade, que
coloca os próprios padrões morais na penumbra” (HABERMAS, 2012, p.31).
Contestam-se, assim, práticas político-jurisprudenciais que não apenas silenciam
a “[...] arbitrariedade, a opressão e a humilhação” de grupos constantemente
inferiorizados e não incluídos no direito moderno, mas que fragilizam a própria ordem
jurídico-normativa, na qual se originou a concepção de Estado democrático de direito,
devido manutenção dos bloqueios sociais à autorrealização de todos os indivíduos, com
a reificação continuada de suas identidades.

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[101]
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[102]
PARTE II
Emancipação, Arte e
Educação na Democracia

[103]
PARTE II
Emancipação, Arte e
Educação na Democracia

[104]
6. A DEMOCRACIA SEGUNDO TOMÁS DE ALENCAR

Breno Góes1

Resumo: O trabalho oferece uma compreensão da ideia de democracia presente no


episódio do romance Os Maias, de Eça de Queirós, no qual o personagem Tomás de
Alencar recita um poema intitulado exatamente “A Democracia”. Para tal, leva em conta
os procedimentos estéticos utilizados pelo autor para apresentar a cena, além de pontos
das teorias de Jacques Rancière e Hans Blumenberg que se relacionam com as imagens
literárias. A hipótese é que a imagem produzida da democracia nessa cena específica
contrapõe-se a uma outra, mais geral, produzida pela íntegra do romance.

Palavras-chave: Eça de Queirós; Os Maias; Tomás de Alencar; Democracia; Estética.

Este artigo, inserida no âmbito de uma pesquisa maior, irá se debruçar sobre o
romance Os Maias, de Eça de Queirós. Mais especificamente, sobre um episódio desse
romance no qual a questão da democracia é explicitamente abordada. Seus objetivos
serão, em primeiro lugar, compreender como a ideia de democracia se manifesta no
âmbito desse episódio específico e, em um segundo lugar, como esse episódio ajuda a
iluminar uma outra ideia de democracia abordada implicitamente no todo da obra.
Antes, contudo, cabe ressaltar a relevância de um debate sobre estética literária
num contexto no qual se debate a democracia. É um encontro que me parece muitíssimo
adequado: não foi por acaso que o filósofo francês Luc Ferry batizou seu tratado sobre
estética como Homo Aestheticus - A Invenção do Gosto na Era Democrática. Para Ferry,
a mesma pulsão histórica que levará as nações de dentro e fora da Europa a revoluções
contra o Antigo Regime - que reivindicaram para si o termo “democracia” - também

1
Breno Góes (1991) ingressou em 2016 como mestrando no programa “Literatura, Cultura e
Contemporaneidade” da PUC-Rio, no Rio de Janeiro. Tem sido, desde então, orientado pela professora
Izabel Margato.

[105]
animará o lento processo de emancipação da esfera sensível do ser humano.2 O sensível
emancipado, por um lado, funda aquilo que hoje chamamos de arte e por outro torna-se o
objeto de estudo da estética. Trata-se, tanto no caso da revolução democrática contra o
Antigo Regime quanto no caso do surgimento da modernidade estética romântica, de
situar o poder não mais na tradição, mas no sujeito. Não mais em uma doutrina pré-
estabelecida, mas na contingência. Meu artigo se funda, desde já, nessa ambiguidade: a
democracia aparecerá aqui tanto como um referente do texto sobre o qual me debruçarei
quanto como espírito imanente da própria estética.

***

Isso posto, passemos ao objeto de estudo deste artigo. Os Maias, romance escrito
ao longo de dez anos e publicado em 1888 por Eça de Queirós, apresenta-nos em seu
antepenúltimo capítulo o episódio do sarau da Trindade, no qual o personagem Tomás de
Alencar recita um poema de sua autoria intitulado “A Democracia”. Alencar é um
personagem cuja trajetória acompanhamos desde o início do romance: vimos como ele se
identificou com a escola literária do romantismo e como, graças a essa identificação,
chegou a se estabelecer, no passado, como escritor de grande sucesso em prosa, verso e
drama. Vimos também como a chegada da “ideia nova”, isto é, a escola literária realista,
lhe roubou grande parte do seu público e do seu prestígio. Vimos, finalmente, como esse
revés levou Alencar a tomar certo posicionamento político, evidentemente atravessado
por suas preocupações de ordem pessoal:

Ultimamente [Alencar] pendia para ideias radicais, para a democracia humanitária de


1848: por instincto, vendo o romantismo desacreditado nas letras, refugiava-se no
romantismo político, como num asilo paralelo: queria uma república governada por
génios, a fraternização dos povos, os Estados Unidos da Europa... Além disso, tinha
longas queixas desses politiquotes, agora gente de Poder, outrora seus camaradas de
redacção, de café e de batota… (Queirós, 1988, p. 213).

É nesse contexto que Alencar vai ao Ginásio da Trindade, durante um sarau


frequentado pela alta burguesia lisboeta, organizado para arrecadar fundos para os
desabrigados por uma cheia. Lá, recita “A Democracia”. Um pouco antes de ir ao palco,

2
cf. FERRY, 1990, p. 39

[106]
contudo, faz uma declaração de intenções. Conversando com João da Ega, define seu
poema como: “Uma coisita nova (...) algumas verdades duras a toda essa burguesia…” 3.
Traído por seu público, Alencar quer agora atacá-lo: à maneira dos decadentistas
franceses, seu propósito é épater les bourgeois. Contudo, não se pode perder de vista
também a genuína preocupação social de um personagem que considera o meio em que
vive como inteiramente tomado pela decadência promovida pela “ideia nova”. Com essa
dupla preocupação, o poeta decide brandir justamente a imagem da democracia. Não
qualquer democracia, mas aquela da “fraternização dos povos” e da “república governada
por gênios”.
É preciso reconhecer a coerência interna das intenções de Alencar. De fato, em
tese, o público da Trindade teria tudo para se sentir chocado com “A Democracia”, e até
mesmo atacado por pelo poema: nesta altura do romance, Eça de Queirós já construiu
uma imagem sólida da alta sociedade lisboeta que a situa nos antípodas de qualquer
república governada por gênios, como atesta o personagem do Conde de Gouvarinho, e
atrelada demais a privilégios aristocráticos para qualquer sentimento de possível
fraternidade.
Eça instaura, como se vê, uma situação na qual um personagem artista pretende
usar sua arte para provocar certo efeito político. É preciso determo-nos neste ponto, já
que o autor de Os Maias explorou essa mesma situação em um texto não ficcional. Em
20 de Julho 1885, portanto, ao longo do processo da escrita de Os Maias, Eça publica
“Uma carta sobre Victor Hugo”, um ensaio no qual seus comentários sobre o autor francês
em certo momento motivam uma reflexão sobre o papel da arte na política. Eça anota
que, diferentemente dos homens cultos, “as massas não se movem senão pela imaginação
e pelo sentimento”4 e que “em todos os movimentos sociais, o mais poderoso agente é o
sentimento”5. Já neste ponto de sua carreira, embora fazendo uma distinção entre
“homens cultos” e “massas”, Eça de Queirós tem consciência de que o potencial de
mobilização da arte não estaria nos conceitos racionais nela inculcados, mas na forma
como a obra mobiliza o campo mais vago e indeterminado do sensível. Eça vai além e
distingue a maneira através da qual a arte é capaz de mobilizar o aparato sensível daquele
que a consome: “com imagens, com sentimentos, com declamações”6.

3
Queirós, 1988, p. 580
4
Queiroz, s.d., p. 126
5
Queiroz, s.d., p. 127
6
Queiroz, s.d., p. 127

[107]
Eça está interessado, portanto, no potencial estético-político das imagens,
especificamente das imagens literárias. Sabe do poder contido nas figuras de linguagem.
Tendo isso em mente, voltemos ao episódio d’A Democracia de Tomás de Alencar:

Esguio, mais sombrio naquele fundo cor de canário, o poeta derramou pensativamente
pelas cadeiras, pela galeria, um olhar encovado e lento: e um silêncio pesou, mais
enlevado, diante de tanta melancolia e de tanta solenidade.

- A Democracia! anunciou o autor de Elvira com a pompa duma revelação.


Duas vezes passou pelos bigodes o lenço branco, que depois atirou para a mesa. E
levantando a mão num gesto demorado e largo:

“Era num parque. O luar


Sobre os vastos arvoredos
Cheios de amor e segredos…

-Que lhe disse eu? - Exclamou o Ega, tocando o cotovelo do marquês.- É


sentimento… Aposto que é o festim!
E era com efeito o festim, já cantado na Flor de Martírio, festim romântico,
num vago jardim onde vinhos de chipre circulam, caudas de brocado rojam entre
maciços de magnólias, e das águas do lago sobem cantos ao gemer dos violoncelos…”
(Queirós, 1988, p. 583)

Não são precisos mais de três versos de “A Democracia” para que João da Ega
perceba a estratégia utilizada pelo poeta. Embora a inflexão para a poesia social seja uma
novidade na carreira de Tomás de Alencar, seu repertório de imagens segue inalterado. É
o que prova a repetição de uma mesma imagem já usada em “Flor do Martírio”, um outro
poema do personagem, apresentado no início do romance, antiquíssimo e sem qualquer
preocupação social.7 Para já, pode-se assinalar o imenso contraste entre o caráter
previsível deste poema de Alencar e aquilo que em 1885 Eça de Queirós apontara como
positivo na literatura de Victor Hugo. No ensaio, o autor de Os Trabalhadores do Mar
fora valorizado por “construir outra linguagem”8, isto é, dar um tratamento à língua

7
“O Alencar, esse, proclamava-se com alarido seu «cavaleiro e seu poeta». (...) ia dedicar- lhe o seu poema,
taõ anunciado, taõ esperado - FLOR DE MARTIRIO!” Queirós, 1988, p. 127
8
“A língua polida e sóbria de Ronsard, de Racine, de Voltaire, admiravelmente trabalhada para exprimir
sentimentos medianos e equilibrados, e por isso perfeita como Instrumento de crítica – seria inteiramente
impotente para essa esforçada epopeia. [Victor Hugo] Teve por isso de construir outra linguagem que
pudesse traduzir todo o homem, toda a Natureza, nos seus mais adversos extremos, desde o bestial ao divino
(...)” Queiroz, s.d., p. 120.

[108]
francesa que a tornasse capaz de atingir o efeito por ele desejado em sua obra. Aqui, o
personagem de Os Maias rende-se à língua tal qual ela se lhe apresenta: dá a um poema
social o mesmo tratamento linguístico que dera a sua obra anterior. Já aqui começa a se
construir a noção de que as imagens literárias de Alencar são de alguma forma
inadequadas.
A declamação segue. Desde a primeira interrupção de Ega, já citada, a escolha
narrativa de Eça é a de não apresentar a íntegra de “A Democracia”. O romance vai
intercalando alguns dos versos de Alencar com a voz do narrador que “resume” o poema,
dando conta ainda da performance do poeta e das reações do público. Contudo, e não sem
alguma ironia cruel e intenções de denúncia, o narrador preserva em seu discurso certas
imagens que, destacadas no texto com letras maiúsculas, parecem tiradas diretamente do
poema de Alencar. Essas imagens, fora do corpo do poema, soam ainda mais deslocadas
e inadequadas:

“(...)no estrado, o Alencar achara a solução do sofrimento humano! Fora uma Voz que
lha ensinara! Uma Voz saída do fundo dos séculos, e que através deles, sempre
sufocada, viera crescendo todavia irresistivelmente desde o Golgota até à Bastilha! E
entaõ , mais solene por traz da mesa, com um arranque de Precursor e uma firmeza de
Soldado, como se aquele honesto móvel de mogno fosse um púlpito e uma barricada
- o Alencar, alçando a fronte numa grande audácia à Danton, soltou o brado temeroso.
Alencar queria a República!
Sim, a República! Não a do Terror e a do ódio, mas a da mansidão e do Amor. Aquela
em que o Milionário sorrindo abre os braços ao Operário! Aquela que é Aurora,
Consolação, Refugio, Estrela mística e Pomba.” (Queirós, 1988, p. 587)

A última linha do parágrafo é especialmente expressiva por usar do recurso da


enumeração: nela, as imagens utilizadas por Alencar para descrever a república ficam
dispostas serialmente, como se estivessem se sobrepondo uma à outra. O que acontecerá
mais à frente é uma intensificação dessa sobreposição de imagens, ao ponto dos referentes
(a república, a democracia…) submergirem e desaparecerem sob elas. Veja-se o parágrafo
em que o narrador descreve simultaneamente o gran-finale do poema e a reação do
público:

“Uma rajada farta e franca de bravos fez oscilar as chamas do gás! Era a paixão
meridional do verso, da sonoridade, do Liberalismo romântico, da imagem que esfuzia
no ar com um brilho crepitante de foguete, conquistando enfim tudo (...). E quando

[109]
Alencar, alçando os braços ao tecto, com modulações de preghiera na voz roufenha,
chamou para a terra essa pomba da Democracia, que erguera o voo do Calvário, e
vinha com largos sulcos de luz - foi um enternecimento banhando as almas, um fundo
arrepio de êxtase. (...) E mal se sabia já se Essa, que se invocava e se esperava, era a
deusa da Liberdade - ou Nossa Senhora das Dores.” (Queirós, 1988, pp. 589-590)

Aqui se dá a suprema quebra queirosiana da expectativa criada pelo personagem:


o público ao qual Alencar pretendia incomodar ao “dizer umas verdades” acaba por se
identificar plenamente com o poema e o aplaude, satisfeito. O narrador atribui esse
movimento explicitamente às “imagens” e à “sonoridade” do poema de Alencar, que são
tão familiares e codificadas para o seu público que, por trás delas, o propósito do poeta
se perde: não se distingue mais se Alencar está falando da Liberdade advinda da
“fraternidade dos povos” ou da Nossa Senhora das Dores, entidade religiosa no convívio
da qual seu público se sente perfeitamente confortável.
O repertório de imagens poéticas de Alencar, como os de qualquer poeta,
identificam aquilo que Jacques Rancière chama de um “regime de visibilidade”. 9 Isto é:
as metáforas, os termos comparativos e os recursos literários do poeta determinam a
forma como um certo objeto se deixa ver no seu texto. Contudo, o conceito de regime de
visibilidade também determina aquilo que pode ou não pode ser visto. Ou seja: segundo
Rancière, certos objetos somente se deixam ver a partir de certos recursos, e não de outros.
De alguma forma, parece ser a isto que o episódio do Sarau da Trindade alude: na cena,
a Democracia não se deixa ver a partir das imagens poéticas conservadoras, previsíveis e
em última análise bem comportadas de Alencar. Na medida em que o poema se presta a
ser algo com o que a burguesia decadente e nem um pouco democrática da Lisboa
queirosiana se identifica, fica claro que ele se torna uma imagem dessa mesma burguesia,
o que entra em franca contradição com as intenções originais de Alencar.

***

Este episódio de Os Maias parece colocar o seguinte problema: é possível que a


democracia ultrapasse o status de referente do qual se fala e chegue a ser percebida
sensivelmente em um discurso? Até o ponto em que a democracia é um referente, estamos
situados no terreno da conceitualidade: interessa a definição do que é a democracia.

9
Para o conceito de “regime de visibilidade” conferir o capítulo “Dos regimes da arte” em Rancière, 2005,
p. 27.

[110]
Percebê-la sensivelmente nos remete, por outro lado, às imagens que podem ser dela
produzidas e que chegam a torná-la uma forma discernível aos sentidos, isto é: instaurá-
la10. Uso o termo aqui em referência à categoria estética “instauração”, definida por
Etienne Souriau da seguinte forma:

“chamamos instauração a todo processo abstrato ou concreto de operações criadoras,


construtoras, ordenadoras ou evolutivas que conduz à posição de um ser na sua
factilidade, quer dizer, com um suficiente brilho de realidade” (Souriau, 1933, p. 393)

O problema proposto pode ser, portanto, re-enunciado assim: é possível instaurar a


democracia? Essa estruturação da pergunta imediatamente deixa ver como ela não é uma
preocupação apenas artística, que alguns poderiam supor ociosa, mas um problema de
fato político: Instaurar a democracia quer dizer produzir imagens dela. Mas que imagem
de democracia se pode produzir sem que a própria ideia de democracia seja contradita ao
longo da construção do discurso, como acontece no episódio do sarau da Trindade?
A resposta a esta pergunta não será jamais unívoca, devido à própria natureza das
imagens literárias: na medida em que se distinguem dos conceitos, as imagens pertencem
ao que Hans Blumenberg chama de campo “não conceitual” da linguagem, o que significa
que elas não remetem a uma noção de verdade, estando antes abertas a leituras diversas
em contextos diversos.11 O próprio episódio do sarau deixa claro que o poema de Alencar
não era inadequado em absoluto, e sim ineficaz naquele contexto histórico e para aquele
público específico. Sabemos então que as imagens da democracia, se forem possíveis,
terão que ser múltiplas e constantemente atualizadas.
A hipótese que norteia o âmbito mais geral da minha investigação, ainda em
andamento, é a de que o próprio romance Os Maias se presta a uma leitura como imagem
da democracia. Proponho uma compreensão do romance como se ele fosse o inverso do
poema de Alencar em suas páginas inscrito: ao contrário do poema, não tem a democracia
como principal referente, mas também, ao contrário do poema, é capaz de instaurar
sensivelmente a democracia através de suas imagens. Voltemos, portanto, a Os Maias.

***

10
Sobre a noção de uma percepção sensível: “que ascese vã volver o espírito para o céu dos inteligíveis! É
no mundo sensível que encontraremos as formas; porque é aí que elas estão em ato” em Souriau, 1933, p.
393.
11
Para o conceito de “não conceitual”, conferir Blumenberg, 2013.

[111]
O episódio do sarau da Trindade ocorre logo antes do clímax do romance. Na
altura em que Alencar recita seu poema, todo o conflito envolvendo a revelação de que a
personagem Maria Eduarda não era casada, incluindo a subsequente vingança de Dâmaso
Salcede, está resolvido. O terreno está preparado para a peripécia final: o Ginásio da
Trindade é precisamente o lugar em que João da Ega encontrará monsieur Guimarães,
portador de evidências sobre o passado de Maria Eduarda que acabarão por levar o
romance ao seu desfecho. Essa, poder-se-ia dizer, é a função do episódio do sarau no
romance. No entanto a revelação de Guimarães é adiada, uma vez que o narrador
queirosiano demora-se por vinte longas páginas na narração pormenorizadamente
descrita dos eventos ocorridos no sarau, narração esta que nada acrescenta à história dos
protagonistas Carlos e Maria Eduarda da Maia.
Chamo a atenção para o fato: trata-se de um episódio na trama de um romance
que deveria estar submetido hierarquicamente à intriga dos personagens principais,
cumprindo uma função nela, mas acaba por desrespeitar essa hierarquia e por muitas
páginas rouba o proscênio que em tese deveria estar ocupado pelos protagonistas. A isso,
some-se o fato de que este não é o único episódio disfuncional ao longo do romance, isto
é, não é o único momento da narrativa em que um de seus elementos não se limita a
cumprir sua função. Poderíamos citar inúmeros outros, também de extensa duração: o
jantar do Hotel Central, a ida a Sintra, a corrida de cavalos… são cenas que se dilatam
muito mais do que suas anódinas funções na intriga principal permitiriam. Além disso,
são muitos os objetos e ambientes que não cumprem funções cardinais na trama e que são
descritos cuidadosamente pelo narrador. Pode-se dizer que a intriga principal, envolvendo
a família Maia, avança com vagar e dificuldade, abrindo caminho nesse romance saturado
de descrições e narrações episódicas. Sintomaticamente, a história dos “Maias” tem que
dividir espaço com os “episódios” inclusive no título do livro, batizado por Eça - muito
eloquentemente - como Os Maias - Episódios da Vida Romântica.
Embora muitos críticos queirosianos registrem fartamente essa característica do
romance, a exiguidade do tempo aqui disponível me impede de me debruçar sobre essa
fortuna crítica fazendo-lhe justiça. Contudo, é impossível não ressaltar que mesmo a
crítica contemporânea a Eça de Queirós já identificava seus episódios “disfuncionais” e,
mais do que isso, considerava-os imperdoáveis falhas de composição do romance. Fialho
de Almeida, por exemplo, considera que Os Maias é “uma obra [...] imbricada de
remendos, sobreposições trabalhosas [...] divergindo da ação principal, em longas e

[112]
inúteis explanações”12. Esse tipo de acusação, na qual subjaz a noção de que a obra
criticada é disforme, foi frequentemente feito ao longo do século XIX, não só aos
romances de Eça mas a outros que hoje compreendemos como realistas. Jacques Rancière
parte exatamente da recorrência dessa crítica para teorizar sobre esses romances.
Segundo Rancière, o que parece disforme na literatura realista (e aqui estou
considerando Os Maias como um romance dessa escola) é o descumprimento de algumas
expectativas: romances como Os Maias desrespeitariam certos “princípios que estruturam
a lógica clássica da representaçaõ ”13, de acordo com os quais “a obra de arte é um tipo
definido de estrutura — uma totalidade orgânica, dotada de todas as partes constituintes
necessárias para a vida e nada mais”14. Ora, o que Rancière está discutindo é exatamente
o processo segundo o qual esses romances se ordenam para que cheguem a existir: está
discutindo sua instauração.
O fato de uma obra realista parecer disforme - “imbricada de remendos” - somente
por sua ordenação textual, tem que ver com a maneira como essa obra se deixa apreender
em seu aspecto sensível. O que quer dizer que há certa implicação sensível no fato de
longas descrições e narrativas episódicas estarem tomando o lugar dos personagens
centrais no corpo do romance. Rancière encontra um texto francês, de 1857, escrito por
Armand de Pontmartin sobre Madame Bovary de Flaubert, no qual o crítico transforma
essa perturbação sensível em imagem. Pontmartin diz que as obras realistas são a
“democracia em literatura”. Esta é, precisamente, a noção que quero reivindicar aqui para
Os Maias. A de que esse romance, por sua relação disfuncional entre seus episódios e a
trama principal, constitui uma imagem literária da democracia.

***

Há inúmeros aspectos desse imenso romance de Eça que precisam ser estudados
para que essa interpretação ganhe consistência. O lugar e o momento para este estudo
serão outros.
Por ora, para efeitos de conclusão, cabe dizer que qualificar o realismo como
“democracia em literatura” tem que ver com certa compreensão específica de democracia,
na qual ela se institui como fator desestruturador da ordem aristocrática do Antigo

12
Almeida, 2000, p. 35
13
Rancière, 2010, p. 78
14
Rancière, 2010, p. 78

[113]
Regime. Democracia, aqui, não é o nome de uma forma de governo, mas o nome de um
princípio. Um princípio des-hierarquizador. Penso que seja este o princípio dominante na
escrita de Os Maias e eventualmente de uma parte mais larga da obra de Eça de Queirós.
A cena de Alencar falhando miseravelmente no seu propósito de “dizer umas verdades”
através do seu poema “A Democracia” funciona como indício disso. Parece indicar que
o papel político da literatura não está em se fazer um poema sobre a democracia que
mantenha uma estrutura hierárquica rígida e conservadora, mas em escrever
“democraticamente” o que quer que seja, mesmo a história de um amor incestuoso entre
quasi aristocratas no Portugal da Regeneração.
Podemos dizer que a noção de democracia pensada como um princípio, implícita
na noção de “democracia em literatura”, está sempre em estado de advérbio de modo.
Trata-se de uma maneira de fazer. Ela não está fixa no horizonte e não depende, como
quer Alencar, da “fraternização dos povos” ou de uma “república de gênios”: ela se
instaura e se atualiza a cada momento em que um elemento periférico recusa seu status
de periférico, se torna disfuncional e ocupa um espaço que, segundo as expectativas, seria
o lugar de direito apenas de uns poucos elementos protagonistas. Exatamente como faz
Alencar ao recitar seu poema, no fim das contas, ao tomar para si umas tantas páginas de
um romance sobre outrem.

[114]
Bibliografia:

ALMEIDA, F. (2000) “Os Maias” in LOURENÇO, A. A. (org.). O Grande Maia - A


recepção imediata de Os Maias de Eça de Queirós, Braga: Ângelus Novus.

BLUMENBERG, H. (2013) Teoria da não-conceitualidade, Belo Horizonte, Editora


UFMG.

FERRY, L. (1990) Homo Aestheticus, Lisboa: Edições 70.

QUEIRÓS, E. (1988) Os Maias - Episódios da Vida Romântica, Lisboa: Biblioteca


Ulisseia de Autores Portugueses.

QUEIROZ, E. (s.d.) Notas Contemporâneas, Porto: Lello & Irmão Editores.

RANCIÈRE, J (2005). A Partilha do Sensível - estética e política, São Paulo: EXO


experimental org.;ed 34

RANCIÈRE, J. (2010) “O efeito de realidade e a política da ficção.” in Novos estud. -


CEBRAP, no.86, pp. 75-90

SOURIAU, E. (1933) “Art e vertité” in Revue Philosophique de la France et de l’étranger,


Vol. 2, no 115, pp. 161-201 apud PITA, A. P. (1990) “Para ler Homo Aestheticus de Luc
Ferry” in FERRY, L. Homo Aestheticus, Lisboa: Edições 70.

[115]
Esta página foi intencionalmente deixada em branco

[116]
7. A CORRELAÇÃO DA DEMOCRACIA E O DIREITO SOCIAL
À EDUCAÇÃO

Érica Guerra da Silva1


Ludmilla Elyseu Rocha2

Resumo: Este trabalho tem por objetivo demostrar que na democracia o agir
racionalmente do homem depende da educação que este tenha adquirido. O homem como
animal político deve ser educado a tomar suas decisões de forma racional visando o bem-
estar social. Desta feita, o estudo é voltado para a forma de governo democracia, sendo
abordado o conceito, conhecendo sua origem, evolução e aplicação nos estudos
contemporâneos. No estudo da evolução da democracia estuda-se a democracia antiga,
na perspectiva Aristotélica e a sua influência no período medieval, que corresponde ao
período histórico entre o final dos séculos IV-V até o Renascimento e o início do
pensamento moderno; período iluminista, que se destaca por estruturar o contrato social
e a democracia moderna, na qual houve a expansão das questões que se tornaram políticas
(saúde, educação, previdência social, moradia etc.) e a necessidade de conhecimento
prévio acerca das questões com as quais lidam, para se evitar a burocratização e a
desapropriação do controle pelos indivíduos. Privilegiando a análise da democracia sob
o viés do direito fundamental à educação, que no Brasil após a Constituição/88, passou a
se constituir um dos Direitos Sociais, além de ser reconhecida como direito de todos. Isso
repercute na criação de um dispositivo de controle, embora o verdadeiro Direito Social
não se traduza somente pela previsão de acesso, mas pela certeza da oferta regular e da
requerida permanência, o que cabe ao cidadão cobrar dele, além daquela, o chamado
controle social, através de meios jurídicos constitucionalmente garantidos. Mais que
cobrar a oferta cabe a ele, mais além, reivindicar a qualidade dessa oferta. Eis aí o avanço
do garantismo constitucional de asseguração não só do provimento dos bens sociais, entre
eles a educação, mas também do controle de sua oferta e de sua qualidade.

1
Doutora em Direito. Professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ-ITR). Autora
de Livros e artigos jurídicos.
2
Doutora em Educação. Professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ-ITR). Autora
de Livros e artigos jurídicos.

[117]
Palavras-chave: Democracia; educação; Direito Social.
Introdução

O objetivo do presente trabalho é demostrar que o direito à educação, que se


mostra redutível à noção dos direitos de segunda geração, exprime no plano do sistema
jurídico-normativo a exigência de um agir do Estado, através de políticas públicas que
tornem reais direitos formais: procuraram garantir a todos o acesso aos meios de vida e
de trabalho num sentido amplo.
Para tanto, este trabalho apresenta-se da seguinte forma: na primeira parte
desenvolve-se o estudo sobre a forma de governo democracia, sendo abordado o conceito,
conhecendo sua origem, evolução e aplicação nos estudos contemporâneos. No estudo da
evolução da democracia se estuda a democracia antiga, na perspectiva aristotélica e a sua
influência no período medieval, que corresponde ao período histórico entre o final dos
séculos IV-V até o Renascimento e o início do pensamento moderno; período iluminista,
que se destaca por estruturar o contrato social e a democracia moderna, na qual houve a
expansão das questões que se tornaram políticas (saúde, educação, previdência social,
moradia etc.).
Na segunda parte, o estudo é voltado para análise do direito à educação no
ordenamento jurídico brasileiro. Assinalando-se que o direito à educação – que representa
prerrogativa constitucional deferida a todos (CF, art. 205), notadamente às crianças (CF,
arts. 208, IV, e 227, caput) – qualifica-se como um dos direitos sociais mais expressivos.
No terceiro capítulo, realiza-se a análise jurisprudencial sobre o direito
fundamental social à educação, através de julgados do Supremo Tribunal Federal (STF),
que considera a educação é direito fundamental do cidadão, assegurada pela Constituição
da República, e deve não apenas ser preservada, mas, também, fomentada pelo Poder
Público e pela sociedade, configurando a omissão estatal no cumprimento desse mister
um comportamento que deve ser repelido pelo Poder Judiciário.
Por fim, com relação à sistemática da investigação, trata-se de pesquisa do tipo
bibliográfico documental qualitativa, orientada pelo modelo crítico dialético. Logo, trata-
se de pesquisa bibliográfica e qualitativa, que tem como fontes previstas para o alcance
dos objetivos: a Constituição Federal; a legislação brasileira e a doutrina.

[118]
1. Aspectos Históricos da Democracia

A democracia é o regime político baseado na soberania popular e na distribuição


equitativa do poder, ou seja, justo tratamento igual para todos e soberania da vontade da
maioria.
A palavra democracia etimologicamente oriunda do grego, composta de demo,
povo, e Kratos, força, poder.
Na Grécia antiga, no século 347 a.C, para Aristóteles “a cidade é verdadeiramente
natural do homem, por ser o horizonte no interior do qual ele busca, encontra e realiza os
bens que lhes são próprios.”3
Apesar de o radical polis significar (cidade-estado grega), ele é naturalmente
associado com a política, uma vez que “era mais do que um Estado porque era também,
além e acima disto, uma crença religiosa e uma concepção ética: porque também envolvia
a economia, visando à produção e ao comércio: porque, somando-se a tudo isto, era uma
associação cultural para a busca comum da beleza e da verdade.”4
Nas cidades-estados gregas prevalecia a ideia de que o povo deveria governar para
o povo, ou seja, não havia representantes do povo, mas sim uma atuação direta do povo
através de assembleia popular.
Indispensável dizer que na Grécia antiga a expressão cidadão indicava apenas o
membro ativo da sociedade política, ou seja, aquele que podia participar das decisões
políticas. Havia, ainda, na polis os homens livres não dotados de direitos políticos e os
escravos.
O pensamento aristotélico na discussão sobre a origem da sociedade natural é
determinante, sobretudo por ser o discurso mais antigo da afirmação de que o homem é
um ser político por natureza. Neste contexto deve ser entendida a afirmativa de que o
homem é um “animal político.”
O associativismo natural exige do homem racionalidade na hora de adotar
decisões, tendo evidência sobre o fim de sua ação e, a partir desse fim, sobre o bem que
deve ser realizado em circunstâncias particulares. Assim, o homem racional será capaz

3
PERINE, Marcelo. Quatro lições sobre a ética de Aristóteles. São Paulo: Edições Lyola. 2006. p. 84.
4
BARKER, Ernest. Principles of Social & Political Theory. Oxford, Clarendon, 1951. p. 5-7 apud
AZEVEDO, Plauto de Faraco de. Justiça distributiva e aplicação do direito. Porto Alegre: Fabris, 1983.
p. 21.

[119]
de decidir a partir da concepção do bem geral para concluir sobre o que é imediatamente
melhor na circunstância particular.
O homem tem de aprender a ser o princípio de suas ações, a decidir de maneira
razoável, ou seja, tem de aprender a encontrar o justo meio e, sobretudo, tem de aprender
a ser justo, porque a justiça é o fundamento da cidade.5
Ciente de que a virtude não se encontra nos homens e o justo meio se encontra
naquela parte da alma na qual o excesso e a falta são possíveis, é preciso que o homem
crie o hábito de ser virtuoso. O hábito se adquire pelo treinamento, ou seja, pela educação.
Neste sentido, Marcelo Perine:

“Educar o cidadão é, em primeiro lugar, habituá-lo a discernir os aspectos relevantes


das circunstâncias particulares para a realização do que é o melhor naquela
circunstância. Em segundo lugar, educar o cidadão é habituá-lo a relacionar, por meio
do raciocínio, seus bens com um conceito do que é bem geral, formulado nos costumes
e nas leis da cidade. Educar o cidadão, em terceiro lugar, é torná-lo capaz de
reconhecer seus bens entre as atividades exigidas em cada circunstância para o
desempenho de alguma função na cidade. Em quarto lugar, educar o cidadão é fazê-
lo capaz de raciocinar a partir dessa concepção do bem geral para concluir sobre qual
bem, “dentre os bens específicos que lhe são imediatamente acessíveis, deveria de fato
propor-se alcançar enquanto aquilo que é imediatamente melhor para ele. Por fim,
educar o cidadão é habituá-lo ao exercício da virtude da phronesis, que consiste no
hábito de decidir, nas circunstâncias concretas, a partir de modelos do bom e do
melhor que estão acima de sua individualidade, porque são os modelos que lhe dão a
sabedoria, por um lado, e, por outro, porque são os modelos estabelecidos pelas leis.” 6

Observa-se que viver bem aristotelicamente é viver de acordo com a ética, nas
virtudes, ou seja, com o bom desenvolvimento do espírito racional. Para que haja
equilíbrio (justo meio) é preciso que a razão dirija as decisões do cotidiano dominando as
paixões e criando bons hábitos.
No que tange à democracia, Aristóteles descreve a liberdade como princípio
básico. A liberdade, segundo o filósofo, somente pode ser desfrutada na democracia. Para
que a liberdade seja justa é preciso ser garantido a todos o direito de governar se ser
governado alternativamente, pois o conceito popular de justiça é a observância do
princípio da maioria, e não do mérito, e se este é o conceito de justiça dominante, a

5
PERINE, Marcelo. Quatro lições sobre a ética de Aristóteles. São Paulo: Edições Lyola. 2006., p. 85.
6
PERINE, op.cit., p. 86.

[120]
maioria deve ser necessariamente soberana.
Aduz que “são características comuns às democracias, mas a democracia e o poder
popular em sua plenitude fundamentam-se no princípio reconhecido de justiça
democrática, isto é que todos sejam iguais, segundo o principio da maioria, puramente
numérica.”7
Observa-se que o princípio da igualdade é basilar na democracia para que haja
justiça. A igualdade aqui tratada importa a participação de todos, alternativamente, nas
funções do governo.
O período medieval, que corresponde ao período histórico entre o final dos séculos
IV-V até o Renascimento e o início do pensamento moderno (final dos séculos XV-XVI),
foi conhecido como um período de obscurantismo, marcado pelo atraso econômico e
político do feudalismo, das guerras religiosas e pelo monopólio irrestrito da Igreja nos
campos da educação e cultura.
Nesse período identificamos duas fases distintas do ponto de vista filosófico e
cultural:

A primeira corresponde ao período que se segue à queda do Império Romano (sec. V)


praticamente até os secs. IX-X, quando a situação política e econômica começa a se
estabilizar. A fase final (secs. XI-XV) equivale ao desenvolvimento da escolástica e à
grande produção filosófica que se dá com a criação das universidades (sec. XIII), até
a crise do pensamento escolástico e o surgimento do humanismo renascentista (sec.
XV-XVI).8

Na primeira fase do período medieval, o pensamento de Santo Agostinho (354-


430 d.C) abre caminho para o desenvolvimento da filosofia medieval e aproxima-se do
pensamento platônico, fundado na ideia do Estado ideal cujas leis e organização reflitam
a composição e a figura do homem justo. Santo Agostinho produz a grande obra filosófica
desde a antiguidade: “comentários aos livros do Antigo e do Novo Testamento” são os
principais pontos de partida da tradição exegética e hermenêutica ocidental.9 Sua

7
ARISTOTELES. Política. Tradução de Mário da Gama Kury. 3ª ed. Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 1997, p. 205.
8
MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 103.
9
A concepção de história de Santo Agostinho e sua teoria da natureza humana e da iluminação divina foram
fundamentais para a consolidação da Igreja nesse período e na Idade Média, dada a importância e influência
como teólogo e filósofo. Permitiram, por exemplo, que a Igreja se preocupasse mais em converter os
bárbaros pagãos, afinal dotados da mesma natureza humana, do que em simplesmente combate-los, já que
não havia condições de derrotá-los pelas armas. Tornaram possível assim a cristianização da Europa

[121]
influência foi decisiva na elaboração e consolidação da filosofia cristã na Idade Média,
até a redescoberta do pensamento Aristotélico no século XIII.
Santo Agostinho na obra “A cidade de Deus” propunha a obediência aos ditames
da lei promulgados pelo Estado, desde que ela não contrariasse a lei divina. O Estado
existe por causa do homem, e não o homem por causa do Estado. Quanto à Justiça,
Santo Agostinho explicitava ser aquela disposição de ânimo que, tendo em vista o
interesse comum, atribui a cada um o próprio valor.
Na segunda fase do período medieval se dá o desenvolvimento da escolástica10,
sob a influência árabe na formação da tradição filosófica ocidental, sobretudo na
reintrodução do pensamento Aristotélico com São Tomás de Aquino (1224-1274), frade
dominicano com sua carreira profundamente ligada às universidades da época, sobretudo
à de Paris.
Na sua obra “Suma Teológica” São Tomás de Aquino expõe seu pensamento
sobre o Direito, em que o ponto de partida é a sua ontologia sobre o homem. Disserta que
o homem é o único animal racional e político, por ser social por natureza, vive dentro de
uma sociedade. A obrigação do homem é organizar a sociedade e buscar o bem comum.11
O Estado é uma unidade de ordem que tem um objetivo próprio, o bem comum.
A autoridade do Estado é um preposto ou representante do povo, e tem poderes para
realizar os objetivos do bem comum. O bem comum só poderá ser alcançado pela ação
da comunidade. A necessidade do bem comum, para realização da natureza humana, é o
que funda o Estado, que resulta das exigências da própria natureza humana e não de um
Pacto ou Contrato Social.
São Tomás de Aquino conhece todas as formas clássicas de governo proposta
por Aristóteles. Não esconde seu favoritismo: para ele, filho do seu tempo, o século XIII,
o governo ideal é a monarquia absoluta.12

ocidental naquele momento de profundas mudanças. Além disso, sua concepção de que a Igreja guarda na
Terra as chaves da cidade de Deus foi uma das base da doutrina da supremacia do poder espiritual sobre o
temporal na Idade Média. (Ibidem, p. 103)
10
No século XII, época das catedrais e das universidades, prevalece a Escolástica. Trata-se de um método
de ensino e aprendizagem. O mestre tem um texto nas mãos e, à medida que vai fazendo a leitura perante
a turma, explica. É a famosa praelectio (= pré + lição). Os textos mais usados nas universidades são os de
Prisciano e Donato, Aristóteles e Boécio, Graciano, Galeno e Hipócrates, Santo Agostinho, a Sagrada
Escritura, as Sentenças de Pedro Lombardo, Aberlado. No século XII, a Escolástica domina as maiores
universidades medievais, a de Paris, a Sorbonne atual, e a de Oxford, cuja a fama continua até hoje. É o
auge da Escolástica. (VALLE, Gabriel; VALLE, Sofia. Lições de filosofia do direito. Rio de Janeiro:
Forense, 2012, p. 124)
11
Ibidem, p. 125.
12
Ibidem, p. 128.

[122]
O século XVIII se destaca por estruturar o contrato social através de pensadores e
suas obras de destaques: Hobbes (Leviatã); Locke (Dois tratados sobre o Governo),
Rousseau (O contrato social) e Montesquieu (O espírito das Leis).
Desde o período iluminista (Kant, 1781[1959]; Rousseau, 1968), a prevalência da
racionalidade ao nível político esteve associada à rejeição das formas ilegítimas de
governo, uma concepção que entende que a racionalidade é fundamento do ato primário
de autorização do governo pelos indivíduos.13
Rousseau expôs que o contrato social é estabelecido entre indivíduos e os
transforma em cidadãos. Como todo pensador que se inscreve dentro da corrente do
contratualismo clássico sobre o Estado, Rousseau parte de um hipotético estado de
natureza originário, puramente abstrato. Tal recurso vai lhe permitir justificar o
nascimento do Estado moderno, não mais a partir de argumentos teleológicos, como nos
séculos anteriores, mas a partir de um produto da vontade: o contrato social. A
racionalidade que motivaria o homem a ingressar em sociedade seria o desejo de
conviver, de viver bem na companhia dos outros – os sentimentos e/ou paixões humanas
– boas, em detrimento daquela que serve apenas como fundamento do triunfo do interesse
pessoal ou privado.14
No Contrato Social, Rousseau afirma que somos livres quando nos encontramos
submetidos às leis que nos damos. Ou seja, sou livre porque faço a lei. Este tipo de
liberdade consistiria no desejo de todo indivíduo ser seu próprio senhor, não ser escravo
de ninguém, o que Rousseau considera a liberdade moral. Tal assertiva se relaciona à
liberdade filosófica a que Montesquieu faz referência no Espírito das Leis, que consiste
no exercício da própria vontade.
Esse tipo de liberdade, como autonomia moral, estará presente tanto no ato
inaugural que cria a sociedade, por meio do legítimo contrato social, como no momento
do indivíduo que, já convertido em cidadão, participa da elaboração da lei.15
Montesquieu, no século XVIII, na França, explicou a virtude como um agir com
frugalidade (prudência) na república, o amor à pátria, que leva a bondade dos costumes.

13
A teoria democrática dos séculos XVIII e XIX entendia o livre debate em público como parte intrínseca
do processo de formação da vontade geral. No entanto, a teoria democrática deixou de perceber que o
caminho que leva de Rousseau a Marx permite a entrada dos interesses particulares no debate público e,
portanto, o triunfo dos interesses particulares e da manipulação em relação ao processo de formação da
racionalidade política. (SANTOS, Boaventura de Souza. Democratizar a democracia – Os caminhos da
democracia participativa. Porto: Afrontamento, 2003, p. 565).
14
BARRETTO, 2009, Op. cit., p. 744-747.
15
Ibidem, p. 749.

[123]
O amor à república, numa democracia, é o amor à democracia; amor à democracia é o
amor à igualdade. O amor à igualdade, numa democracia, limita a ambição ao único
desejo, à única felicidade de prestar à pátria maiores serviços do que os outros cidadãos.16
Como positivista, Montesquieu defende que “é uma máxima bem verdadeira
aquela que diz que, para que se ame a igualdade e a frugalidade numa república, é preciso
que as leis as tenha estabelecido.”17 Contudo, reconhece que na democracia a igualdade
é a alma do Estado; ela é, “no entanto, tão difícil de ser estabelecida que uma extrema
exatidão neste sentido nem sempre seria conveniente. Basta que se estabeleça um censo
que reduza ou que fixe as diferenças num certo ponto; depois é função das leis particulares
igualar, por assim dizer, as desigualdades, com os encargos que impõe aos ricos e com o
alívio que dão aos pobres.”18
O século XX foi de intensa disputa em torno da democracia sob dois aspectos:
primeiro, defini-la como forma de governo; segundo aspecto acerca das condições
estruturais da democracia.
O debate sobre a democracia da primeira metade do século XX foi marcado pelo
enfrentamento entre duas concepções de mundo (fim da Guerra Fria e o aprofundamento
no processo de globalização) e a sua relação com o processo de modernização do
Ocidente.19 De um lado, a concepção da liberal-democracia e do outro a concepção
marxista de democracia.
Na segunda metade do século XX, a dimensão sobre complexidade e
inevitabilidade da burocracia foi-se fortalecendo na mesma medida em que as funções do
Estado também foram crescendo com a instituição do Estado do bem-estar social.
Nas democracias modernas a expansão das questões que se tornaram políticas
(saúde, educação, previdência social, moradia etc.) e a necessidade de conhecimento
prévio acerca das questões com as quais lidam, levaram a uma burocratização e
desapropriação do controle dos indivíduos.
No período denominado de segunda onda de democratização, de 1943 a 1962, na
Europa, houve a implantação e a consolidação da democracia em que o povo assume o
papel de produtor de governo, isto é, a atuação do povo se restringe à escolha daquele
grupo particular entre as elites que seria mais qualificado para governar.

16
MONTESQUIEU, Op. cit., p. 54-55.
17
Idem
18
Ibidem, p. 57-58.
19
SANTOS, 2003, Op. cit., p.43

[124]
Na América Latina o mesmo período representou um grande fracasso para
democracia. Em meados da década de 70, apenas dois países na América Latina eram
democráticos. Houve uma crise nos paradigmas da democracia que exigiu novos
conteúdos das entidades e instituições da sociedade civil.
O Brasil alternou períodos autoritários e democráticos, tendo na década de 80 do
século passado, sido alcançado pela onda de democratização que atingiu países do Sul.
Durante o processo brasileiro de democratização e de constituição de atores comunitários,
surgiu de modo semelhante à ideia do “direito de ter direitos” como parte da redefinição
dos novos atores sociais.20

2. O Direito Fundamental Social no Estado Democrático Brasileiro

No Brasil após a Constituição de 1988, a Educação passou a se constituir um dos


Direitos Sociais, além de ser reconhecida como direito de todos. Uma das garantias do
direito de acesso à educação é a de que seja assistida não apenas pela família, mas que
seja provida pelo Estado.
O direito à Educação passa a ser Direito Fundamental, quando esta Constituição
o declara em seu artigo 6° que "são direitos sociais a educação, (...) na forma desta
Constituição", manifestando, pela primeira vez, na história do constitucionalismo
brasileiro, a importância e a consolidação da educação como um dos Direitos Sociais,
corroborado pelo artigo 205, ao afirmar que "a educação, direito de todos e dever do
Estado e da família, e artigo 206 no qual especifica que o ensino será ministrado com base
nos seguintes princípios (...) inciso IV gratuidade do ensino público nos estabelecimentos
oficiais.” Com este último dispositivo, é reconhecida a gratuidade em todos os níveis
educacionais, inclusive para o ensino médio e superior, fato não registrado em qualquer
Constituição anterior.
O verdadeiro Direito Social não se traduz somente pela previsão de acesso, mas pela
certeza da oferta regular e da requerida permanência, o que cabe ao cidadão cobrar dele,
além daquela, o chamado controle social, através de meios jurídicos constitucionalmente
garantidos. Mais que cobrar a oferta cabe a ele, mais além, reivindicar a qualidade dessa
oferta. Eis aí o avanço do garantismo constitucional de asseguração não só do provimento

20
SANTOS, 2003, Op. cit., p.56.

[125]
dos bens sociais, entre eles a educação, mas também do controle de sua oferta e de sua
qualidade.
Diante do quadro traçado até o momento desde o período colonial, quando se
descortinou uma colonização exploratória que tinha por base legal uma legislação
transplantada alheia à realidade do local ao qual se destinava, até a coetaneidade e
coessencialidade dos Direitos Civis, Políticos e Sociais insertos pela Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988, tem-se uma visão da Educação e da legislação na
sociedade brasileira, ressaltando-se o fato de que a falta de acesso à escolaridade, entre outros
fatores, por não formar, o sujeito-cidadão, foi um dos muitos elementos que serviu como
ambiente propício ao nascimento de um fenômeno, para muitos justificativa da corrupção que
assola o País na atualidade, que é o jeitinho brasileiro, mecanismo de alternativa ao
cumprimento da lei.21
Com uma base extremamente pobre no que diz respeito ao gozo e ao uso de direitos,
o Brasil esteve aquém dos Direitos Sociais já em evidência há mais de três séculos na Europa.
O acesso a esses direitos, bem como a permanência desses como indisponíveis à população
dependem de uma educação eficiente que leve em consideração toda uma evolução social,
para que sejam devidamente adequados no sentido de tornar a população consciente de sua
cidadania. Segundo Marilou Manzini Covre, a educação, inserida na práxis coletiva, é
conscientização, é vir-a-ser (sic) contínuo.22
Educação é muito mais que um projeto educacional ou práticas de ensino. É todo um
arcabouço cultural onde pululam experiências da sociedade como um todo que influenciam
o atuar de cada cidadão no sentido de uma efetivação democrática. Marilou Manzini
Covre preleciona:

educação é o fator ‘ex machina’, que deve preservar a ‘responsabilidade ética’ e cuidar
da formação de homens que lutem por interesses coletivos da sociedade, e não por
interesses particulares de grupos, mantendo a planificação democrática.23

Como a simples liberdade de consciência não basta para que se manifeste o


Direito Individual, os Direitos Sociais juntam-se a ela com a Educação no sentido de
possibilitar o desenvolvimento intelectual e cultural do ser humano por serem

21
COVRE, Marilou Manzini. Sujeito/Cidadão-em-construção. Revista InterAção.Com. do Centro
Interuniversitário de Estudos da Criatividade – CIEC. V. 3. São Paulo, 2004, p. 04.
22
COVRE, Marilou Manzini. A Fala dos Homens. 2ª Edição. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993, p.
229.
23
Ibidem, p.213.

[126]
mecanismos de acesso aos objetivos colimados pelos Direitos Individuais como a
liberdade, igualdade, vida digna, enfim, todos aqueles que contribuem para a construção
do ser humano integral.
Inseridos na primeira parte da Constituição da República Federativa do Brasil de
1988, os Direitos e Garantias Fundamentais coroaram o reconhecimento de todos os
demais Direitos necessários ao desenvolvimento da pessoa humana, incluindo a
Educação como sendo parte dos Direitos Sociais.
A importância da Educação, entre outros direitos, ser parte dos Direitos
Fundamentais, reside no fato de, segundo J.J. Gomes Canotilho:

normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo


fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; implicam, num
plano jurídico-subjetivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais
(liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar
agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa). 24

Diante de tal assertiva, passa-se a entender a pertinência do entendimento dos


Direitos Sociais, especificamente em relação à Educação, para o exercício da Cidadania
no sentido de observância da lei que, sob a ótica do Direito Constitucional, ensina SILVA
(1993):

(...) não indica somente a qualidade daquele que habita a cidade, mas, mostrando
a efetividade dessa residência, o direito político que lhe é conferido, para que possa
participar da vida política do país em que reside.25

Ao assegurar o Direito à Educação em capítulo próprio e diferenciado, a


Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, automaticamente contingencia
a família e sujeita o Estado à sua efetivação, e, consequentemente, à necessidade de serem
criados mecanismos de utilização para si e para a sociedade o que, promoverá uma
qualificação profissional que constituirá um norte para a inclusão social.
Importante salientar que de nada adiantariam os avanços em termos de
reconhecimento da Educação como Direito Fundamental se, ao interpretar a Constituição,

24
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e a Teoria da Constituição. 7ª Ed. Coimbra:
Almedina, 2003, p. 541.
25
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15ª ed. São Paulo, Malheiros, 1998,
p.427.

[127]
não fosse levada em consideração a sua sistemática. Para tal, torna-se imperioso
identificar os direitos protegidos pelo constituinte, a ponto de dar-lhes a natureza de
princípios.
Neste contexto, tem-se como basilar o Princípio da Unicidade que obriga o
intérprete a considerar a constituição na sua globalidade e a procurar harmonizar os
espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar.26

3. Análise Jurisprudencial do Direito Fundamental Social à Educação

O Supremo Tribunal Federal tem afirmado que a educação é um direito


fundamental indisponível de todos os indivíduos, devendo o Estado propiciar meios que
viabilizem o seu exercício. Nesse sentido:

“EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO.


AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CARÊNCIA DE PROFESSORES. UNIDADES DE
ENSINO PÚBLICO. OMISSÃO DA ADMINISTRAÇÃO. EDUCAÇÃO. DIREITO
FUNDAMENTAL INDISPONÍVEL. DEVER DO ESTADO. ARTS. 205, 208, IV E
211, PARÁGRAFO 2º, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. A educação é um
direito fundamental e indisponível dos indivíduos. É dever do Estado propiciar meios
que viabilizem o seu exercício. Dever a ele imposto pelo preceito veiculado pelo artigo
205 da Constituição do Brasil. A omissão da Administração importa afronta à
Constituição. 2. O Supremo fixou entendimento no sentido de que "[a] educação
infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em
seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da
Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo
governamental[...]’ (, Segunda Turma, Relator o Ministro Eros Grau, DJe de 7/8/09). 27

Sobre o tema, a decisão monocrática proferida no Agravo de Instrumento, nº


725.891/SC, Relator o Ministro Celso de Mello, DJ de 10/10/08, assim fundamentada:

CRIANÇA DE ATÉ CINCO ANOS DE IDADE. ATENDIMENTO EM CRECHE E


EM PRÉ-ESCOLA. EDUCAÇÃO INFANTIL. DIREITO ASSEGURADO PELO

26
CANOTILHO, op. cit., p. 1144.
27
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental em Recurso Extraordinário n.º RE nº
594.018AgR. Segunda Turma. Relator: Eros Grau. DJe 07/08/2009. Disponível em:
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/ sob o número 6201723. Acesso em: 13 maio 2017.

[128]
PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV, NA REDAÇÃO
DADA PELA EC Nº 53/2006). COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO
CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO. DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE
IMPÕE AO PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART.
211, § 2º). AGRAVO IMPROVIDO . - A educação infantil representa prerrogativa
constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de
seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica,
o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV). - Essa prerrogativa
jurídica, em consequência, impõe, ao Estado, por efeito da alta significação social de
que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional de criar condições
objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das 'crianças até 5 (cinco)
anos de idade' (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades
de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a
frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de
prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal. - A educação
infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em
seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da
Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo
governamental. - Os Municípios – que atuarão, prioritariamente, no ensino
fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2º) – não poderão demitir-se do
mandato constitucional , juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art.
208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da
discricionariedade político-administrativa dos entes municipais, cujas opções,
tratando-se do atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser
exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou
de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social. - Embora
inquestionável que resida, primariamente , nos Poderes Legislativo e Executivo, a
prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível , no entanto,
ao Poder Judiciário, ainda que em bases excepcionais, determinar, especialmente nas
hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas
implementadas, sempre que os órgãos estatais competentes, por descumprirem os
encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório, vierem a
comprometer, com a sua omissão, a eficácia e a integridade de direitos sociais e
culturais impregnados de estatura constitucional. A questão pertinente à 'reserva do
possível'.28

28
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo de Instrumento, nº 725.891/SC. Segunda Turma. Relator:
Celso de Mello. DJe 10/10/2008. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?
docTP=TP&docID=1966289. Acesso em: 13 maio 2017.

[129]
Para a efetividade do direito fundamental à educação, não mais é suficiente
apregoar a necessidade de vontade política. Nesse intuito, a medida mais fecunda para
levar a efeito a obrigação do Estado a respeito do tema é a definição de política pública,
que garanta a todos uma educação gratuita compatível com o princípio da dignidade
humana.

Considerações Finais

Pinto Ferreira, ao analisar esse tema, expõe acertadamente sobre a recente


introdução do direito à educação nos textos constitucionais, revelando a tendência das
Constituições em favor de um Estado social: “Esta clara opção constitucional faz deste
ordenamento econômico e cultural um dos mais importantes títulos das novas
Constituições, assinalando o advento de um novo modelo de Estado, tendo como valor-
fim a justiça social e a cultura, numa democracia pluralista exigida pela sociedade de
massas do século XX.”29
O Poder Constituinte Originário, da Carta Magna de 1988, em tema de educação,
estabelece um programa a ser adotado através de políticas públicas que visem cessar a
situação de exclusão social e de desigualdade de acesso às oportunidades. A não
implementação do programa de educação pode se qualificar como uma censurável
situação de inconstitucionalidade por omissão imputável ao Poder Público.
Nesse contexto constitucional, que implica também na renovação das práticas
políticas, o administrador está vinculado às políticas públicas estabelecidas na
Constituição Federal, a sua omissão é passível de responsabilização e a sua margem de
discricionariedade é mínima, não contemplando o não fazer.30

29
FERREIRA, Pinto. Educação e Constituinte. Revista de Informação Legislativa, vol. 92, p. 171/173.
30
FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. Políticas Públicas – A Responsabilidade do Administrador
e o Ministério Público. Max Limonad: São Paulo, 2000, p. 59, 95 e 97.

[130]
Referências Bibliográficas:

ARISTOTELES. Política. Tradução de Mário da Gama Kury. 3ª ed. Brasília: Editora


Universidade de Brasília, 1997.

AZEVEDO, Plauto de Faraco de. Justiça distributiva e aplicação do direito. Porto


Alegre: Fabris, 1983.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental em Recurso Extraordinário


n.º RE nº 594.018AgR. Segunda Turma. Relator: Eros Grau. DJe 07/08/2009. Disponível
em: http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/ sob o número 6201723. Acesso em: 13
maio 2017.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo de Instrumento, nº 725.891/SC. Segunda


Turma. Relator: Celso de Mello. DJe 10/10/2008. Disponível em:
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=1966289. Acesso
em: 13 maio 2017.

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e a Teoria da Constituição. 7ª Ed.


Coimbra: Almedina, 2003.

COVRE, Marilou Manzini. A Fala dos Homens. 2ª Edição. São Paulo: Editora Brasiliense,
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Interuniversitário de Estudos da Criatividade – CIEC. V. 3. São Paulo, 2004.

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FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. Políticas Públicas – A Responsabilidade do


Administrador e o Ministério Público. Max Limonad: São Paulo, 2000.

[131]
MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a
Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

PERINE, Marcelo. Quatro lições sobre a ética de Aristóteles. São Paulo: Edições
Lyola. 2006.

SANTOS, Boaventura de Souza. Democratizar a democracia – Os caminhos da


democracia participativa. Porto: Afrontamento, 2003.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15ª ed. São Paulo,
Malheiros, 1998.

VALLE, Gabriel; VALLE, Sofia. Lições de filosofia do direito. Rio de Janeiro:


Forense, 2012.

[132]
8. POR UMA DEMOCRACIA EMANCIPATÓRIA

Maria Izabel Braga Weber1

Resumo: A arena política expandiu-se das instituições às ruas, pois as instituições


democráticas tradicionais não conseguem processar ao contento e em tempo todas as
demandas que não são, inclusive, necessariamente novas, pelo contrário. Estamos diante
de velhos impasses de um sistema de dominação que está a demonstrar seu nível de
exaustão — a crescente desigualdade e a consequente exclusão ao nível local e global.
Desde a frustração do Comitê Trilateral em anunciar uma crise da democracia
representativa, baseada na erosão da confiança política, que não se consolidou
rapidamente, falar sobre ela no século XXI exige-se cautela. Assim, com diferentes
conceções dos antigos aos modernos, revela-se sim uma crise, mas um tipo específico –
caracterizado pela predominância de princípios liberais em detrimento de uma precária
igualdade em um cenário de resistência às políticas austeras. Durante um certo tempo, o
conceito de desigual e combinado explicou o crescimento económico pautado na
desigualdade social. No entanto, a combinação frágil e o descompasso das diferentes
globalizações incrementaram essas desigualdades que passaram a comprometer o
crescimento económico. Por outro lado, movimentos de resistência, de inclusão e de
recomposição de direitos criaram força. Como reação à tríade "igualdade, liberdade e
fraternidade", onde apenas a liberdade desenvolveu-se e globalizou-se, diversidade e
multiplicidade de circunstâncias locais, a multiculturalidade, demonstram que a
solidariedade, a identidade de direitos e uma emancipação por responsabilização podem
tornar possível um novo modelo de democracia esta, sim, capaz de se globalizar. Com
base na análise de pesquisas de cultura política, tomando os recentes acontecimentos do
Brasil, como estudo de caso, em comparação com os países do sul da Europa (Portugal,
Espanha e Itália - cada qual com um sistema e um regime de governo), apesar de suas
particularidades, exemplifica-se essa crise democrática, ressaltando-se a diversa origem
de seus papéis no mundo contemporâneo (colonizadores e colonizados).

Palavras Chaves: democracia; cultura política; movimentos sociais; sul global; novo
modelo.

*1 A autora é Gestora, Cientista política e estudante PhD no Programa de Doutoramento Democracia no


Século XXI CES/Feuc/Universidade de Coimbra.

[133]
A democracia inacabada – do reconhecimento à autonomia

Qualquer discussão em torno do conceito de democracia, mesmo que ampliemos


a perspetiva dominante para a inclusão de diferentes experiências e epistemologias2
(Wamala, 2004), ancora, perpassa ou encontra referência nas cidades-estados gregas de
Sólon, Clístenes e Péricles existentes há mais de dois mil e quinhentos anos. Desde esse
período, vemos uma dinâmica de alteração desse regime baseada em poder, revoluções e
reformas, as quais afetaram a compreensão do termo, até hoje inacabado.
O conceito de inacabado, aqui utilizado, não é só influenciado pela antropologia
pedagógica de Paulo Freire, do qual consciente, buscamos seu acabamento intangível,
porém libertador, mas acresce-se a influência de um resgate, pois o fato de suplantarmos
o passado pelo futuro que venceu torna necessário voltar ao passado sempre que possível,
para tentarmos retomar a linha de pensamento que se tornou invisível quando enterrada
pelo conhecimento da história prevalecido.3
Neste sentido, esses reformadores citados agregaram valores que alimentaram o
termo democracia em seu princípio, mas que a modernidade os ocultou e os secundarizou,
liberando apenas resíduos que nos impedem de reconstruir e reconhecer uma cultura, de
fato, democrática. Todos esses personagens interessam ao reconhecimento do termo, por
terem sido eles agentes da práxis transformadora que propiciaram uma busca por mais
justiça ou, como diria Aristóteles (1984; 1097b), felicidade.
Os resíduos que perpassaram, não por acaso, pelo tempo, contribuíram para
mesclar os sufixos archè e kratos, como se ambos fossem indistintos: enquanto um
identificava quantitativamente o uso e a finalidade do poder, o segundo termo adjetivava
esse quantitativo em sua forma verbal de exercício do poder – mas um poder não apenas

2
Ver, a exemplo, a análise da sociedade tradicional Ganda feita por Wamala “Pode-se recordar que foi o
pequeno tamanho da população das antigas polis gregas que facilitaram a participação de todos os cidadãos
livres no funcionamento de seus assuntos políticos” transcrita de Government by Consensus: an analysis of
a traditional form of democracy. In: Wiredu, K (ed.). 2004. A Companion to African Philosophy. Malden,
Oxord, Victoria: Blackwell (435-442). Disponível em http://filosofia-
africana.weebly.com/uploads/1/3/2/1/13213792/edward_wamala_-
_governo_por_consenso._uma_análise_de_uma_forma_tradicional_de_democracia.pdf
3
Da mesma forma como o fez Pierre Rosanvallon (2008, 84): “This history has largely been forgotten, so
we must first pause to trace its broad outlines if we are to proceed further in our reflections. We must go all
the way back to the beginning – to the Greeks, that is – in order to understand why the history of democracy
took the course it did”.

[134]
impositivo, mas também este valorado4 (Ober, 2007). Assim, temos o conceito de
democracia associado à ação transformadora, como veremos adiante.
Partindo de Aristóteles, pelo fato de ter ele analisado e comparado inúmeras
constituições concernentes ao seu tempo próximo, transformando a narrativa histórica de
seu ponto de vista, temos que as reformas sociais de Sólon,5 por exemplo, permitiram a
publicação das leis, a repatriação de atenienses vendidos como escravo e o perdão de suas
dívidas, restaurando o pequeno campesinato livre6 (Ferreira, 1988) que se tornaria a base
constituinte do demos. Também citado por Aristóteles, ampliando as reformas anteriores,
vemos Clístenes,7 o qual, por sua vez, realizou um processo de ainda maior amplitude
democrática ao privilegiar uma igualdade pautada no respeito à diferença8 (Vernant,
1976). As reformas de Clístenes foram também transformadoras por associar o conceito
de democracia ao conceito político de Cidade em seus aspetos religiosos, geográficos,
jurídicos e económicos – ao relacionar o ordenamento territorial à conformação política
instituída – transformando-a, de fato, em Cidade-Estado:

O que se manifesta de início nas reformas de Clístenes é a preeminência do princípio


territorial sobre o gentílico na organização da pólis...Tribos, trítias, demos foram
delineados sobre o solo como tantas realidades podem inscrever-se em um mapa. No
centro da pólis, a ágora, reorganizada e remodelada, forma um espaço público,
nitidamente circunscrito... O centro traduz no espaço os aspetos de homogeneidade e
de igualdade [ágora política e laica], não mais ... de hierarquia [acrópole gentílica,

4
De facto, Segundo Joshua Ober, “…So kratos, when it is used as a regime-type suffix, becomes power in
the sense of strength, enablement, or ‘capacity to do things.’ This is well within the range of how the word
kratos and its verb forms were used in archaic and classical Greek... In sum, …, I would suggest that the –
kratos-root terms originally referred to a (newly) activated political capacity. This would explain why there
is no monokratia or oligokratia: “the one” and “the few” …
5
“...Sólon libertou o povo, tanto no presente, como em relação ao futuro, ..., publicou leis e aboliu as
dívidas, quer privadas quer públicas, ..., porque desse modo sacudiu o fardo” (Aristóteles apud Ferreira,
1988, 119)
6
Pequenos e médios proprietários, em cujas mãos passara a estar o essencial da economia ateniense,
constituíam desde então o grosso do dêmos, como ainda acontecia ao iniciar-se a Guerra do Pe1oponeso”
(Ferreira, 1988, 43)
7
“Foi esse príncipe quem dividiu o povo daquela região em dez tribos e implantou o governo democrático”
discorreu Heródoto in História (CXXXI).
8
“A corrente democrática vai além e define todos os cidadãos, em quanto tal, independentemente de sua
sorte ou virtude, como ‘iguais, tendo todos exatamente os mesmos direitos a participar de todos os aspectos
da vida pública. Tal é o ideal de isonomia que considera a igualdade sob a forma de uma relação simples
de um para um. Apenas a justa medida capaz de acomodar as relações entre cidadãos é a igualdade plena e
completa ...que ...pareia o acesso à magistratura...faz desaparecer todas as diferenças que tornam opositores
as diversas partes da cidade, ...unifica por meio da mistura e fusão, de modo que sob o plano político nada
distinga mais uma da outra. Este objetivo é alcançado das reformas de Clístenes, que estabelece uma
organização política complexa que ...se apresenta como a solução de um problema: qual lei deve organizar
a cidade de modo que esta seja uma em sua multiplicidade de seus cidadãos, e que esses sejam iguais em
suas necessárias diversidades?” (Vernant, 1976, 82-83) [tradução da autora]

[135]
aristocrática e mítica]... Como nos informa L. Genet, as mudanças do significado do
centro que, de símbolo religioso ..., torna-se símbolo político... As reformas de
Clístenes propõem-se, precisamente, a ultrapassar a oposição entre campo e cidade e
a edificar uma comunidade políade que ignore deliberadamente, na organização dos
tribunais, das assembleias e das magistraturas, toda distinção entre urbanos e rurais.
Tal é exatamente o sentido da ‘mistura’ que Clístenes quis realizar de todos os antigos
elementos de que se compusera antes à cidade... o que se define no princípio não é
uma forma especial de habitat nem uma categoria à parte de cidadãos, mas o fato de
que no centro do território ela reúne em um mesmo ponto todos os edifícios, civis e
religiosos, que estão ligados à vida comum do grupo, tudo que é público por oposição
ao privado (Gonçalves, 2005, 11-45).

Prossegue Aristóteles observando o contributo das reformas promovidas por


Péricles, da linha de Clístenes (seu tio-avô), voltadas para a ampliação da participação
popular na direção da vida pública da Pólis (Ferreira, 1990). O apogeu e o caráter
democrático da vida pública de Péricles, contudo, é objeto de extensa e variada
bibliografia, especialmente dos pensadores modernos – de onde aparece tanto como
exemplo (Homo, 1954), quanto como um duvidoso demagogo, artífice de um populismo
clientelista (De Sanctis, 1944) – ressaltando, na maior parte das vezes, o poderio, a
expansão naval e a centralização tributária para cobrir as despesas públicas que
propiciaram a instituição da mistoforia9 e a construção de grandes obras, como o Pártenon
(Chasin, 2007), ao invés de ressaltarem os tribunais deliberativos, e a redução ainda maior
do poder do Aerópgo (Pseudo-Xenofonte, 2013), bem como o sucesso financeiro advindo
não da acumulação de terras do período anterior, aliado a uma concentração tributária
(Chasin, 2007), mas tendo sido iniciado pelas reformas de Sólon, Clístenes e, finalmente,
Péricles com o desenvolvimento do comércio da agricultura, movido pelos novos
componentes do demos (Ferreira, 1988).
Cabe ressaltar, que não se trata de um simples romancear ou idealizar a
democracia sem manter o foco na análise crítica do contexto dos fatos sociais, políticos e
econômicos que envolviam esses personagens, mas de resgatar os componentes de um
estado de natureza democrático para assinalar que os consensos modernos sobre a
democracia, deram-se sob aceções falhas ou incompletas do termo. Assim, ressaltamos

9
Diria ter sido o primeiro grande programa de inclusão social na participação da vida pública ao garantir
um pagamento aos cidadãos que, não tendo posses e dependendo de seu trabalho diário, não participava da
vida pública. Muito criticado por seus opositores, influenciou em muito o desenvolvimento da indústria
naval da época.

[136]
três premissas: a) que a democracia originária, deu-se sempre no sentido da ampliação do
conceito de cidadania (ainda que restrita aos limites culturais, legais, sociais e económicos
de sua época) e da inclusão efetiva de um maior número de cidadãos na participação da
vida pública; b) que todos esses processos deram-se por meio de “reformas
revolucionárias” ou de “revoluções reformadoras”, as quais, baseadas em leis e em um
processo de legitimação legal, buscavam alterar os fatores de exclusão da participação do
poder,10 diretamente influenciadas pela realidade que se pretendia alterar; c) por fim, que
uma simplificação dos fatores que norteavam a democracia originária não permitiram a
identificação do conceito de democracia com seus princípios basilares que mediam a
relação complexa entre liberdade individual e privada e igualdade pública.
Assim, sem muito nos deter sobre a imensa discussão referente aos detalhes da
democracia dos antigos, sua qualidade, que perpassa os anos, reside significativamente
no tratamento dessa forma de governo dada aos seus princípios fundamentais de
igualdade e de liberdade (Ferreira, 1989), bem como na intensa participação política11
(Menezes, 2006). Por mais contemporâneo que possa parecer, é na constante deliberação
que a democracia ateniense se consolidou e permitiu a ascensão de Atenas, tendo o
conceito de isegoria, antes central, dissociando-se completamente do termo moderno –
este mais voltado para a formalização do processo eleitoral e da origem e do exercício do
poder de mando. Quanto à igualdade e à liberdade, os atenienses percebem não se tratar
de princípios absolutos em si, porém, permitem o avanço de um ou de outro na busca do
equilíbrio de uma forma que, para alguns, nasceu do desvio e que para outro desvio pior
poderia caminhar.12

10
Mais uma vez, aqui, comento sobre a relação de poder em uma verdadeira democracia, como nos lembra
Ober (2007, 5): “Demokratia, which emerged as a regime-type with the historical self-assertion of a demos
in a moment of revolution, refers to a demos’ collective capacity to do things in the public realm, to make
things happen. If this is right, demokratia does not refer in the first instance to the demos’ monopolistic
control of pre-existing constitutional authority. Demokratia is not just “the power of the demos” in the sense
“the superior or monopolistic power of the demos relative to other potential power-holders in the state.”
Rather it means, more capaciously, “the empowered demos” – it is the regime in which the demos gains a
collective capacity to effect change in the public realm. And so, it is not just a matter of control of a public
realm but the collective strength and ability to act within that realm and, indeed, to reconstitute the public
realm through action.”
11
A autora, baseando-se em uma norma de Sólon que condenava o cidadão indiferente, esclarece que: “Ser
cidadão, para os antigos, era uma prerrogativa a ser preservada e o exercício de sua cidadania se constituía
não em um direito individual, como nos modernos, mas em um dever de participação nos negócios comuns
da cidade”. (Menezes, 2006, 48)
12
Lembremos a esta altura tanto de Aristóteles: “A democracia é a menos má das três espécies de perversão,
pois no seu caso a forma de constituição não apresenta mais que um ligeiro desvio… Por conseguinte,
embora nas tiranias mal existam a amizade e a justiça, nas democracias elas têm uma existência mais plena,
pois onde há igualdade entre os cidadãos estes possuem muito em comum.”. (1159b-1161b-10; p.186-189);
quanto do receio de Platão, sob a figura de Sócrates: ”Sócrates — Verdadeiramente, a tirania não se originou
nenhum outro governo senão da democracia, seguindo-se aí liberdade extrema, penso eu, uma extrema e

[137]
A legitimidade dos governos democráticos atenienses, portanto, pautava-se na
condição de “se sentirem livres, porque eram iguais perante a lei, de que se sentiam
autores, e apenas a ela obedeciam. Tinham todos a mesma possibilidade de participar e
norteavam-se nas suas decisões políticas, pelo princípio da maioria.”. (Ferreira, 1989,
174-175) Como corolário, discorrer sobre igualdade e liberdade parece ser o segundo
passo para compreender a relação mais propícia entre o regime democrático, suas
instituições e os cidadãos, reunidos como sociedade civil, pois quanto mais óptima for
esta relação, mais estável será a democracia.
Obviamente que a igualdade (nem para os antigos, nem para os modernos) não
pode ser considerada como absoluta, pois, por vezes, é por meio de um tratamento
desigual que se atinge a igualdade pretendida. Então, a que tipo de igualdade nos
referimos que depende de um tratamento desigual para se tornar realidade? Trata-se de
uma igualdade tanto em decidir pelo coletivo, quanto em receber um tratamento
igualitário por parte do Estado em uma mesma situação. Em ambos os casos, trata-se de
uma igualdade externa ao indivíduo, que só se efetiva, quando o indivíduo se percebe
livre nesses casos. No exemplo grego, temos a junção dos conceitos de isonomia e
isocracia, ambos associados ao de isegoria. (Ferreira, 1990, 17-31)
Não há igualdade quando, por motivo de uma desigualdade intrínseca, que não
pode ser alterada, homens e mulheres, assim, como brancos e não-brancos, com exatas
qualificações percebem remunerações distintas pela realização de tarefa idêntica. Não há
igualdade quando ricos e pobres recebem penas distintas por um mesmo delito
cometido;13 quando, distintamente, lhes é permitido aceder aos espaços e aos benefícios
públicos, e participar da definição de seus destinos. Não haverá democracia quando essas
desigualdades sistêmicas persistirem. Neste sentido, a crise da democracia grega nos
mostrou que, aparte das instituições e das leis, o aumento da desigualdade, o
aniquilamento do pequeno campesinato (que sucedeu à Guerra), bem como as políticas

cruel servidão. Adimanto — Concordo…Sócrates — A terceira classe é o povo, todos os que trabalham
com as mãos e os que são estranhos aos negócios e não possuem quase nada. Numa democracia, esta classe
é a mais numerosa e a mais poderosa quando está unida. Adimanto — É verdade. Mas não se dispõem
muito à união, a menos que lhe caiba uma parte de mel…” (República, VIII, 564 a).
13
Mister se faz comentar a análise de Trabulsi (2011, 131) em seu excelente trabalho sobre as reformas
promovidas por Péricles serem ou não consideradas como clientelistas aos olhos contemporâneos e, ao citar
Kagan, comenta: “O ideal democrático necessitava que a maioria dos cidadãos tomasse parte nas decisões
públicas, mas os pobres não podiam se dedicar a isso se não recebessem uma compensação (...) A criaç ão
das indenizações pelo serviço público prestado deu a muitos atenienses, pela primeira vez, seu verdadeiro
status de cidadão, e é com essas reformas que começa a democracia ateniense plena, completa. (KAGAN,
2008, p.72-3)

[138]
de austeridades implementadas em benefício de grupos oligárquicos, contribuíram para
considera-la inacabada.14

Democracia no Século XXI – um desafio

O fio narrativo aqui não é a história, assim, procurou-se, apenas, resgatar o


conceito de demos; reforçar a necessária ampliação dos detentores do poder de decisão (e
não necessariamente de mando); e, por fim, afirmar a intrínseca relação entre o sentido
de democracia e o sentido amplo de justiça (social, mas também política e jurídica), para
buscar um conceito de democracia que realmente abarque um conjunto de regras de
constituição da organização social que ofereça ao cidadão uma condição de autonomia
garantida pelos princípios de igualdade pública e liberdade individual (material e pós-
material).
Assim, aproximando-se temporalmente e de acordo com Huntington (1994), a
terceira, mais longa e mais ampla vaga democrática iniciou-se com a Revolução dos
Cravos em Portugal, modestamente comemorada por uns e reverenciada, por outros. Tal
contradição é natural, entendendo todas as disputas inerentes a um processo
revolucionário intrinsecamente associado ao papel das forças armadas15 sob um contexto
político, social e económico que viu a sobreposição de uma democracia liberal, marcada
por lutas anticoloniais e uma paulatina inserção no universo europeu ocorrida entre um
cenário de Guerra Fria, de um lado e Guerra Quente, de outro. Seria necessária uma
extensa obra para tratarmos deste tema em específico, o que, se calhar, não atende ao
pretendido, mas ressaltamos que comemorar eventos históricos e simbólicos como este,

14
Claude Mosse (1970, 50) afirma: “El problema de la injusta distribución de las riquezas y de la
desaparición de la clase media campesina es considerado por los teóricos del siglo IV como el problema
fundamental, aquél que da origen a todos los demás”.
15
Segue uma brevíssima lista de textos sobre a Revolução dos Cravos, os quais podem ser encontrados em
https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/viewFile/17138/14211, a saber:
1) Varela, R. 2006. O 25 de abril, a Espanha e a História. Tecnologia: perspetivas críticas e culturais (181,
separata).

2) __________. 2011. A História do PCP na Revolução dos Cravos. Bertrand Editora. 

3) Rezola, M. 2007. 25 de abril. Mitos de uma Revolução. Esfera dos Livros. Lisboa.

4) Moura, P. 2012. Otelo: O Revolucionário. Dom Quixote. Lisboa (327- 330).

5) Gonçalves, V. 2002. Um general na Revolução. Editorial Notícias - entrevista a Maria Manuela Cruzeiro.
Lisboa (p.269).
6) A depender da corrente ideológica, o sítio eletrónico esquerda net (http://www.esquerda.net/artigo/dez-
filmes-sobre-revolução-dos-cravos-no-youtube/31990) preparou uma serie com filmes, documentários e
entrevistas sobre o tema.

[139]
influenciam tanto no aprofundamento da reflexão quanto na práxis que motiva, pelo
estímulo da memória,16 uma possível mobilização animada por certos princípios.
Após esses eventos, enquanto Fukuyama (1992) aventou para o fim da história e
a consolidação da democracia liberal representativa diante dos acontecimentos que
marcaram os últimos anos do século XX, outros autores, ao contrário, já percebiam os
desafios que a democracia atual precisaria enfrentar, identificando seu fim, como o fez
Jean-Marie Guéhenno (1999) – ao trazer conceitos referentes ao pensar global e o agir
local; ou sua iminente crise – como o fez o trio responsável pelo relatório trilateral (1975).
Mas antes mesmo de discutirmos a linha teórica (permeada, certamente, por
questões ideológicas) a ser seguida para definir se a democracia está ou não em seu fim
ou em crise, ou, ainda, avaliar criticamente as teorias democráticas como o fez
Cunningham (2001); revisitá-las como o fez Sartori (1994); ou ressaltar o alerta revelador
sobre o crescente sentimento antidemocrático feito por Rancière (2005), faz-se necessário
identificar a linha que está a separar os teóricos da democracia e os atores sociais dessa
dita democracia, ou que quer que entendamos como tal e, assim, evitar a dissociação e a
incompreensão dos conceitos de democracia, participação política, sociedade civil e
Estado para, então, conseguir avaliar a qualidade da democracia para todos os atores sob
um mesmo padrão, como alerta Merkel conforme se segue:

Increasing portions of the citizens will abstain from voting, parties lose their members,
markets dominate democratic politics, democratic governments are deprived of the
proper means to govern and the people will remain being satisfied. This is a much
more probable scenario than an acute crisis of democracy or its collapse. But it will
change the functioning of democratic institutions, organizations, procedures and even
some principles of democratic governing in the 21st century. A theoretical dilemma
will emerge: the people, the last instance and arbiter of democracy, may
democratically accept (e.g by elections or documented in surveys) those changes,
which democratic scholars will consider as undemocratic. The rift between
democratic theorists and the citizens regarding what democracy is and is not may then
increase in the future (Merkel, 2013, 20-21).

16
Relevante para o contexto é a dissertação de Luciana de Castro Soutelo (2009), encontrada em
https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/20320/2/mestlucianasoutelomemoria000085060.pdf, uma
vez que resgata a memória democrática dos eventos que marcaram o 25 de abril, tendo como pano de fundo
as publicações da imprensa, diante de um cenário de crescente conservadorismo.

[140]
Diante do exposto, faz-se necessário traduzir os fundamentos da democracia para
disputar os espaços e as ações públicas e, para tal, estabelecer um quadro conceitual
básico que prime pela clareza, mas não em detrimento de todas as dimensões da
hermenêutica. Esses fundamentos, contudo, dependem do cerne da linha argumentativa
dos diferentes teóricos, por exemplo, ao partir do foco da política como mediação de
conflito,17 Dahl (2000) estabelece critérios para uma divisão da teoria da democracia que
foca em dois aspetos principais e independentes: o debate público e a capacidade de
representação. Por outro lado, a tradicional visão minimalista atribuída a Schumpeter
(2003), quanto ao processo eletivo, também uma redução da compreensão da perceção do
autor18 e observada por Sartori (2009), ressalta as condições de acesso do demos.
Com base na revisão da literatura da teoria democrática elaborada por Sartori
(1994) – o qual, de encontro ao conceito de que há muitas democracias19 e teorias
oriundas das diversas compreensões do termo, afirma haver apenas uma – e para dissipar
a confusão sobre o termo (Dahl, 2000), apresentamos, de um lado, um grupo minimalista
que apregoa uma democracia representativa e formal como exclusiva solução e, por outro,
aqueles que associam diretamente uma maior participação da sociedade para deliberar
sobre as questões públicas junto ao Estado como condição sine qua non para uma
democracia mais qualitativa – aqui baseando-nos nos conceitos do associativismo de
Tocqueville (2005), na desconstrução do mito da democracia direta e na intrínseca relação

17
“En el pasado y en el presente los regímenes divergen grande mente por la amplitud con que conceden
abiertamente, aplican pública mente, y garantizan plenamente estas ocho oportunidades instituciona les,
cuando menos a algunos miembros del sistema político que quieran oponerse al gobierno”. (Dahl, 2000,
14)
18
“Esta definición se ha convertido en la definición clásica de democracia. Pero adviértase: la definición
de Shcumpeter es procedimental, es decir, que establece cuál es el procedimiento que no sólo obstaculiza
la oligarquía, sino que produce ‘demo-beneficios’. Por tanto, es una definición necesaria pero no suficiente,
o de cualquier forma no exhaustiva. (Sartori, 2009, 52)
19
“La tesi delle molte teorie contrappone alla teoria completa, alla teoria d’insieme, una sequela de spicchi
di teoria, di sotto-teorie incomplete, così cadendo nel classico errore della pars pro toto, di spacciare una
parte per il tutto. Pertanto, e di contro, io andrò a sostenere che la teoria della democrazia (al singolare) è
divisa soltanto dalla discontinuità che separa la democrazia degli antichi dalla democrazia dei moderni, e
he la democrazia dei moderni è fondamentalmente ‘una’: è la teoria della democrazia liberale. Beninteso,
da questo mainstream, dal filone centrale, si diramano molti rivoli. Beninteso, è anche lecito andare
all’assalto della teoria d’insieme muovendo da teorie parziali…il che non toglie che la sola teoria completa
della democrazia che è congiuntamente i) descrittiva e prescrittiva, e anche ii) conversione della teoria nella
pratica, è ad oggi la teoria dello Sato liberal-democratico”. (Sartori, 2007,7-8)

[141]
com a justiça latu sensu por Pateman20 (2004), e na relação21 entre direito, discurso,
política, poder, participação e legitimação desenvolvida por Habermas (1997).
Um esclarecimento faz-se necessário, pois todos os conceitos e contribuições
desses autores, porém, necessitam de uma adaptação de suas ideias à realidade local, ou
uma interpretação local para uma melhor aplicação de suas ideias e compreensão do
conceito de democracia. Retomando o 1º encontro trilateral, contudo, lembramos a
preocupação dos três autores do relatório sobre o que eles concluíram serem os perigos
de uma disfunção da democracia, do qual necessita-se uma análise crítica (Hungtinton,
1975, 161-162).22
O primeiro aspeto levantado por eles que estaria levando à crise da democracia é
que a “busca pelas virtudes democráticas de igualdade e liberdade (individualismo) tem
levado a uma deslegitimação da autoridade e a perda da confiança em lideranças
(representantes legitimamente eleitos)”. Realmente, há uma crescente perda mundial de
confiança comparativa institucional dos cidadãos, conforme podemos observar em
diversos índices disponíveis, aqui sintetizados pelo Eldeman barómetro.23 No entanto,
uma certa dose de desconfiança não necessariamente é um sinal exclusivamente
negativo.24 E pelos comparativos de alguns países em relação ao último levantamento25.

20
“Justice and democracy are two separate concepts, though they are inextricably intertwined” (Pateman,
2004, 23) e “The argument of the participatory theory of democracy is that participation in alternative areas
would enable the individual better to appreciate the connection between the public and the private spheres.
The ordinary man: might still be more interested in things nearer home, but the existence of a participatory
society would mean that he was better able to assess the: performance of representatives at the national
level, better equipped to: take decisions of national scope when the opportunity arose to do so, and better
able to weigh up the impact of decisions taken by national representatives on his own life and immediate
surroundings.” (Pateman, 1976, 110)
21
“Os direitos do homem, fundamentados na autonomia moral dos indivíduos, só podem adquirir uma
figura positiva através da autonomia política dos cidadãos. O princípio do direito parece realizar uma
mediação entre o princípio da moral e o da democracia” (Habermas, 1997, 131)
22
Livre tradução da autora.
23
O instituo realiza pesquisas on-line em 28 países há 17 anos. Todo o relatório é encontrado em:
https://www.edelman.com/global-results/.
24
“Desconfiança expressa atitude de descrédito ou desmerecimento de alguém ou de algo, embora, na
democracia, alguma dose de desconfiança em instituições possa ser sinal sadio de distanciamento dos
cidadãos de uma esfera da vida social sobre a qual têm pouco controle (WARREN, 2001; PETTIT,1998;
SZTOMPKA, 1999; USLANER, 2001). Mas a desconfiança em excesso e, sobretudo, com continuidade
no tempo, pode significar que, tendo em conta as suas orientações normativas, expectativas e experiências,
os cidadãos percebem as instituições como algo diferente, senão oposto, àquilo para o qual existem: neste
caso, a indiferença ou a ineficiência institucional diante de demandas sociais, corrupção, fraude ou
desrespeito de direitos de cidadania geram suspeiçaõ , descrédito e desesperança, comprometendo a
aquiescência, a obediência e a submissaõ dos cidadãos à lei e às estruturas que regulam a vida social (LEVI,
1998; MILLER e LISTHAUG, 1999; DALTON, 1999; TYLER, 1998)”. (Moisés, 2005,34)
25
Os gráficos foram elaborados pela autora com base no eurobarómetro, com dados de 2016
(http://ec.europa.eu/commfrontoffice/publicopinion/index.cfm/Chart/getChart/chartType/gridChart//them
eKy/18/groupKy/98/savFile/838) e no latinobarómetro, com dados de 2015, por serem os últimos
disponíveis (http://www.latinobarometro.org/latOnline.jsp).

[142]
No entanto, esses e outros dados que o comprovam per se não esgotam a questão
da confiança nas instituições, nem tampouco, confirma a relação de causalidade presente
no relatório trilateral. Há muito mais a questionar do que responder, pois situações
económicas favoráveis, que anteriormente contribuíam para uma estabilidade positiva no
índice, não impediram que a confiança se mantivesse relativamente baixa quanto aos
governos, muitas vezes, dissociados da figura do líder.
Da mesma forma, a fragmentação partidária não correspondeu necessariamente à
fragilidade da governabilidade, pois alguns sistemas encontraram mecanismos de
ajustamento, como as coalizões (em que pese o controverso custo de sua manutenção).
Por outro lado, a expansão da participação política, foi o que mais contrariou as
preocupações levantadas no relatório – uma vez que, muitos foram os exemplos de
aumento na confiança pari passo o aumento da inclusão social. Somente a última
disfunção observada quanto à resposta tardia dos governos ensejarem o paroquialismo
nacionalista, mostrou-se uma realidade recente com exemplo americano.
Em que pese os aspetos discutíveis negativos e positivos referentes ao conceito de
populismo (mais à esquerda, tradicionalmente relacionado aos países da América do Sul;

[143]
ou mais à direita nacionalista, já tradicionalmente associado aos países europeus); em que
pese a compreensão do modelo meritocrático de democracia chinesa baseado no min zuh
confucionista, são necessários alguns parâmetros, que permitam aos Estados e,
principalmente, aos seus cidadãos (incluídos e excluídos), identificá-los como desejáveis.
Assim, de forma agregada, essas medidas contribuem, infelizmente premidas por uma
epistemologia dominante, com a diferenciação e até qualificação dos diferentes regimes.
No entanto, mais do que dizer se a democracia em determinado local é mais ou
menos fluida, de maior ou menor intensidade, mais ou menos consistente, interessa
identificar os elementos que compõe o demos contemporâneo e se estes detêm o poder de
decisão e o acesso e o retorno igualitário ao mundo jurídico. Da mesma maneira é
perceber quão próxima do ponto ótimo está a dicotomia entre igualdade pública e
liberdade e qual elo a sustenta: o sucesso económico ou uma confiança solidaria? O caso
brasileiro, bem como o dos países da Europa sulista, que enfrentaram a implementação
de políticas de austeridade económica, servem para ilustrar possíveis contextos de crise
que apontam para os extremos dessa dicotomia.

Democracia – Crises & Perspectivas entre colonizados e colonizadores

Assim como o imperialismo de Atenas foi um dos problemas que levaram à


derrocada e à participação na Guerra do Peloponeso, após o período de expansão
comercial do século XVI, a junção de três sistemas relacionais (colonialismo, capitalismo
e patriarcado) agravou e consolidou uma desigualdade estrutural e sistémica que segrega
parte do corpo dos indivíduos, componentes do demos contemporâneo, que não foram
inseridos nos processos democráticos, mesmo com a melhora económica vivenciada por
alguns países.
A exemplo, demorou pouco mais de cem anos da abolição da escravidão para o
governo federal reconhecer oficialmente que havia racismo no Brasil. E mais um pouco
ainda para reconhecer sua presença nas ações do próprio Estado, sob a forma de um
racismo institucional. Durante este período, no entanto, os negros e as comunidades
indígenas sofreram desde o período colonial, as mazelas da opressão. Durante um
primeiro período, de forma legal; após a abolição, de uma forma invisível; durante a
ditadura, sob uma desculpa; formas diferentes de um mesmo projecto opressor e
segregador, sob grupos que resistem, porém não de forma audível pelo Estado.

[144]
Por um lado, diante de um cenário repetido institucionalmente nas escolas, nos
meios culturais, de comunicação e académicos, o Brasil era conhecido como uma
verdadeira democracia racial — éramos um povo cordial, como diria Sérgio Buarque de
Holanda (apud Souza, 1998). Por outro, dados empíricos e estatísticos demonstram, ainda
hoje, como se perpetua uma situação sistêmica de segregação de direitos, retribuição
desigual por serviços idênticos e uma abissal diferença de oportunidades (entre homens e
mulheres, entre brancos e não brancos; incluídos e excluídos…), inclusive em inúmeros
textos técnicos institucionais.
Que forma ou regime de governo propiciou a perpetuação dessas desigualdades?
Que tipo de Estado ou de estrutura normativa? Sob que condições económicas e sociais?
Como e por que os preteridos permitem a existência de uma desigualdade sistêmica ou,
se resistem, como e por que essa desigualdade persiste? Quão efetiva é a participação
política no processo de tomada de decisão para combater essa desigualdade sistêmica?
Quanto a inclusão social nas decisões do Estado para combater essa desigualdade
sistêmica, contribui para a qualidade de uma democracia? Qual o grau qualitativo da
democracia brasileira pós 2016?
Longe de conseguir responder a todas essas questões, a premissa a ressaltar é que
o Brasil vive uma crise democrática (Avritzer, 2016; Souza, 2016; Mattos et alli, 2016;
Anderson, 2016) que possui características semelhantes a outras crises pelo mundo
(White, 2016), mas com um contorno único devido: a sua composição política e social,
ao histórico de sua cultura política (Baquero, 1994, 2008) e aos membros de sua elite
(Cheibub, 1996; Abrúcio, 1998; Almeida & Carneiro, 2003).
Pretende-se contribuir para desvelar o argumento de que a qualidade da
democracia brasileira atual (após a interrupção de um mandato eletivo sob controverso
fundamento jurídico, parlamentar e, especialmente, de legitimidade da vontade popular)
demonstra mais do que uma simples falha, e sim um defeito estrutural que encobre a
relação assimétrica de interesses entre Estado e sociedade civil, idealmente baseada no
diálogo e no consentimento formal (explicitado pelo exercício do voto ou pela aferição
prática de sua participação direta).
Contrariando ou confirmando Aristóteles, a tradição brasileira não é
revolucionária. É de lutas, opressão e resistências, mas não revolucionária no sentido
jurídico-político do termo. Hoje, percebe-se uma democracia formal e jurídico-legal-
cordial, mas estará ela consolidada? Da mesma forma que, após a abolição da escravidão
(que também não se deu de forma revolucionária), criou-se o mito da democracia racial

[145]
e do brasileiro cordial, a agregação de dados estatísticos e empíricos permitiram explicitar
a enorme segregação e desigualdade, sobre o contraste inerente à história do país, cria-se
hoje, o mito da estabilidade democrática.
O Estado nesses últimos anos tentou compensar essa desigualdade ampliando a
participação da sociedade civil na construção de políticas públicas inclusivas e no
investimento em políticas redistributivas, gerando uma relação de interdependência entre
a sociedade civil e o Estado (Avritzer, 2012). No entanto, o grau de autonomia das
organizações e dos movimentos sociais conquistados no mesmo período, contribuiu para
que esses pudessem exigir de forma mais veemente uma ação efetiva da parte do Estado
para diminuir as desigualdades persistentes, como a luta por moradia influenciada por
movimentos como o MST e as reivindicações dos movimentos negros.
Retomando o conceito de disfunção democrática, percebeu-se que sem o tempo
necessário para organizar a comunicação entre os componentes desses movimentos e
transformar seus anseios em uma ação política contrária aos seus objetivos incentivada
por grupos políticos do próprio Estado, vimos uma articulação tardia de alinhamento
político entre esses grupos e os grupos políticos institucionalizados e favoráveis às suas
causas. A insatisfação económica acabou por gerar um efeito contrário que contribui para
o agravamento da crise política vivida pelo Brasil atualmente.
Contraditoriamente ao caso chinês, no caso brasileiro, em que se viu uma melhora
significativa do quadro económico nas duas últimas décadas, conforme apresentado
acima, não foi possível perceber grandes alterações nos valores de sua cultura política,
nem tampouco, o reflexo na consolidação de suas instituições e na confiança do governo.
No caso da América Latina de uma forma geral, antes de analisarmos a particularidade
brasileira, de fato, os dados de 2016 do relatório do latinobarómetro demonstram uma
constância quanto ao apoio à democracia ao longo das duas últimas décadas, e uma
inconstância no PIB, o qual não parece ter afetado da mesma forma esse apoio.
O que se ressalta aqui, é que a democracia quando permite ou perpetua
desigualdades além das económicas — baseadas em conceitos de dominação, como é o
caso do Brasil — pode ser vista como altamente instável, independentemente de sua
durabilidade (a qual é puramente circunstancial). Neste sentido, análises complementares
como o da judicialização da política (Avritzer, 2014) são essenciais para tentar avaliar o
grau de estabilidade da democracia. Realmente, sem retomar a discussão clássica na
ciência política brasileira dos ciclos alternantes entre autoritarismo e democracia
(Skidmore apud Moisés, 2005b), ou adotar o conceito híbrido, tendo em vista a falta de

[146]
ruptura clara entre os regimes autoritários e democráticos é mais plausível perceber a
sustentação dessa frágil democracia na interdependência participativa entre sociedade
civil e Estado, tanto quanto esperar uma relação de equilíbrio entre os poderes, onde o
judiciário, atualmente, é reconhecido como altamente interventor e sem conexão definida
com a sociedade civil em sua composição e atuação, por exemplo (Avritzer, 2012).

Conclusão

Com esses pequenos insights, finalizo remetendo-me ao conceito de emancipação


política pela via jurídica democrática e representativa26 tendo o Brasil como pano de
fundo para dizer que enquanto as instituições não reconhecerem a instabilidade da
estrutura política, social, jurídica e económica do país sob ameaças de austeridade e
sacrifício popular e passarem a adotar diversas acções para: a) valorizar, incentivar e não
desvirtuar a real participação da sociedade civil organizada; b) tornar efetiva a
contribuição dessa participação em políticas públicas inclusivas; c) garantir condições
para que os partidos políticos consigam intermediar a vontade das ruas na arena política
oficial; d) que o parlamento, de fato, reflita ideologicamente a vontade de seu eleitorado,
sem comprometer os princípios constitucionais; e) propiciar um crescimento económico
que não se encerre per se, mas que vise a diminuição da desigualdade de fato; e, por fim,
f) estabelecer princípios democráticos pétreos, as democracias como a brasileira ainda
serão consideradas fluidas, etéreas, falhas, de baixa intensidade ou qualquer outra
denominação teórica que se lhe queira dar.

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[149]
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[150]
9. MÍNIMO SOCIAL, AUTONOMIA E PARTICIPAÇÃO
DEMOCRÁTICA

Thiago Santos Rocha*

Resumo: O presente estudo visa a análise teórica da importância de o Estado garantir aos
seus cidadãos o acesso a um mínimo social como condição para sua autonomia e,
consequentemente, participação livre na formação da vontade das instituições políticas e
sociais que afetam sua vida cotidiana, mormente do próprio Estado. Considera-se por
mínimo social a parcela de direitos fundamentais necessária à asseguração da dignidade
da pessoa humana, englobando patamares de direitos fundamentais tais como, mas não
limitados a, direito à moradia, à alimentação, à educação, à saúde, à assistência aos
desamparados e ao acesso à justiça. A negação destes elementos necessários à dignidade
humana fragiliza, ou até mesmo inviabiliza, a participação democrática do indivíduo. Sem
o acesso a condições educacionais adequadas o cidadão é incapaz de compreender e se
posicionar sobre temas da vida pública. Da mesma forma, a limitação do acesso a
condições materiais necessárias à garantia de níveis mínimos de direitos fundamentais
afeta negativamente a capacidade de o indivíduo se autodeterminar e posicionar
livremente nos espaços políticos e sociais. Tais limitações impedem a participação
autônoma e em igualdades de condições dos indivíduos nos projetos democráticos, ao
passo que permitem a existência de uma subclasse, composta por um número muitas
vezes expressivo de cidadãos na sociedade, substancialmente excluída dos processos
decisórios da vida pública. O estudo defende que a garantia do mínimo de condições
materiais e de formação que permitam ao cidadão se posicionar de forma livre e autônoma
nos espaços sociais, em especial na formação da vontade estatal legitimadora e
determinante das políticas públicas, é condição para uma sociedade na qual a democracia
tenha a concepção mais profunda, e não com caráter restritivo e elitista cuja expressão se
resume a uma fórmula de escolha de representantes.

Palavras-Chave: Mínimo Social; Autonomia; Democracia.

*
Mestrando em Direito e Ciência Jurídica – Especialidade de Direitos Fundamentais, pela Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa. E-mail: tsrocha@gmail.com.

[151]
Introdução

Muitos dos atuais Estados se classificam como sendo democráticos de direito.


Todavia, há que se inquirir se, de fato, ainda que regidos por um ordenamento jurídico
que extrai seus nortes de uma constituição estabelecedora de procedimentos para escolha
dos governantes, tais Estados podem ser caracterizados como democráticos.
Em outros termos, ao se questionar se a democracia se exaure na formalidade da
participação política, dúvida esta que não parece comportar resposta positiva em tempos
hodiernos, indica-se a necessidade de se avaliar o liame entre o cidadão e a formação e
execução da vontade das instituições políticas e sociais que o afetam.
Garantir ao cidadão, em condições formalmente livres e iguais, o direito de votar
e ser votado, podem ser medidas inócuas em sociedades marcadas por desigualdade de
condições materiais que não só permitem, mas também levam à existência de indivíduos
em situação de extrema privação de recursos.
A lotaria do nascimento pode colocar o indivíduo no mundo por meio de uma
família que, por recursos próprios e contra sua vontade, não consiga assegurar ao
indivíduo, desde os primeiros anos da infância, condições materiais básicas para ter
respeitada sua dignidade humana. Não é rara a possibilidade de esta mesma família ser
resultado de um ciclo que se iniciou da mesma forma, em uma verdadeira armadilha de
pobreza.
Não é escopo deste estudo específico analisar a complexa e intrincada rede de
fatores que produz e reproduz a pobreza extrema nas sociedades modernas1, mas sim o
seu impacto na livre formação e realização da vontade do indivíduo, afetando sua
autonomia em seus aspectos privado e público.
Nesta esteira, é colocado à discussão o papel da garantia do mínimo social aos
indivíduos pelo Estado como forma de prover as necessidades básicas do cidadão,
assegurando positivamente as condições de dignidade humana e deixando a formação da
vontade afastada das amarras da privação material.
A análise de tal temática não possui respaldo apenas no campo acadêmico e
teórico. A falta de suporte da democracia por aquele que deveria ser sua fonte de
legitimidade, a saber, o cidadão, pode colocar em risco mesmo suas características
formais.

1
Interessante estudo sobre este tema encontra-se em BANERJEE, A. V. & DUFLO, E. (2012) “Poor
economics – A radical rethinking of the way to fight global poverty”, New York: Public Affairs.

[152]
A título de exemplificação, não apenas por ser o berço do autor deste estudo, mas
por se tratar de região em que Estados ditos democráticos são marcados por situação
socioeconômica na qual a escassez de recursos atinge significativo número da população,
considerem-se alguns números da América Latina.
Conforme dados do Informe 2016 da Corporación Latinobarómetro, apenas 54%
da população latino-americana consideram a democracia como um regime preferível a
qualquer outro. Quando analisados os números específicos do Brasil, este número cai para
32%2.
Ainda segundo o mesmo Informe, 25% da população da América Latina afirma
que, permanentemente ou alguma vez, esteve privada de comida suficiente.3 Ademais,
47% dos latino-americanos afirmam não se importar se o governo fosse não democrático,
mas resolvesse os problemas econômicos. No Brasil, tal número de indiferença sobe para
55% da população.4

1. Participação popular e aprofundamento da democracia

Ao se propor a realizar qualquer análise relacionada a democracia, faz-se


fundamental tecer algumas considerações quanto ao significado atemporal mínimo
abarcado por tal termo.
Embora essa abordagem seja sistematicamente ignorada até mesmo pelos
discursos parlamentares, é inegável que ela se apresenta como essencial para a
legitimidade de um regime pretensamente democrático.
Para tanto, um bom ponto de partida está na ideia concebida a partir das origens
etimológicas do termo. A união do demos ao kratos sugere a identificação, em uma só
figura semântica, de povo e governo, sendo que no detalhamento desta ligação são
identificados diversos modelos históricos e teóricos.
Friedrich Müller vai além, e analisa com peculiar senso crítico a utilização do
vocábulo povo na sustentação da democracia. Identifica três esferas funcionais que, por
meio de correlação mútua na busca pela coincidência real entre povo e população,

2
CORPORACIÓN LATINOBARÓMETRO. (2016) “Informe Latinobarómetro 2016”. Buenos Aires,
Disponível em: <www.latinobarometro.org>. Acesso em: 28 de abr. 2017, p.11.
3
Ibidem, p.71.
4
Ibidem, p.21.

[153]
contrapõem-se à utilização de “povo” como ícone.5 Seriam tais esferas o “povo” ativo, o
“povo” como instância global de atribuição da legitimidade e o “povo” como destinatário
de prestações civilizatórias do Estado.
No âmbito desta discussão, há sempre que se considerar a compreensão do kratos,
a qual implica a exigência de o demos não se apresentar como mero sujeito do poder
decisório, mas que sua vontade seja levada a sério como fator determinante em última
instância.6
Além disso, deve-se ter em mente que a democracia não apresenta fim em si
própria, uma vez que o elo povo-governo atua como meio de afirmação do povo, ao qual
torna possível garantir seus direitos fundamentais historicamente conquistados.
Em que pese a importância do rompimento com o modelo absolutista medieval, o
Estado moderno trouxe, já no século XVIII, uma considerável contradição em seu seio.
A burguesia, ao traçar os princípios filosóficos de sua revolta estendeu-os apenas
formalmente como aspectos inerentes a todos os homens.
A extensa base territorial, a alta densidade demográfica, a complexa organização
social e a emergência de um forte princípio unificador do Estado-nação, constituíram
dificuldades práticas perante as quais sucumbia a possibilidade de exercício das
longínquas práticas da democracia grega, que extraía a vontade do Estado-cidade
diretamente do povo.7
Prontas estavam as bases materiais sobre as quais se lançaram as teorias
democráticas do liberalismo, marcadas pelo seu caráter restritivo que reduzia a
democracia a um sistema político representativo, por vezes ocultando uma forma de
domínio social.
Todavia, as mudanças operadas no cerne da concepção estatal nos séculos XIX e
XX atuaram no sentido de atribuir eficácia ao princípio democrático, por meio da
participação popular na organização do Estado, na formação e na atuação do governo,
com o fito de garantir não só a liberdade, como também a igualdade dos indivíduos.8
A já constatada impossibilidade da democracia direta, aliada às falhas do sistema
representativo em aferir a vontade popular, levou ao surgimento de um regime político

5
MÜLLER, F. (1998) “Quem é o povo? a questão fundamental da democracia”, São Paulo: Max Limonad.
p.111.
6
MÜLLER, F. (1998) “Quem é o povo? a questão fundamental da democracia”, São Paulo: Max
Limonad, p.111.
7
BONAVIDES, P. (2000) “Ciência política”, São Paulo: Malheiros, pp.272-273.
8
DALLARI, D. A. (1998) “Elementos de teoria geral do Estado”, São Paulo: Saraiva, p.151.

[154]
intermediário: a democracia semidireta ou participativa. Com a justaposição de
instrumentos da democracia direta à representação, o povo saiu da dita participação
política, muitas vezes nominal, para a participação jurídica no governo estatal.9
Os princípios da democracia participativa reacenderam a discussão em torno da
democratização, ou aprofundamento democrático, da sociedade, estendendo a
importância da vontade livre e igual do cidadão à formação da vontade de diversas
instituições que estão relacionadas a sua vida.
Todavia, mesmo em uma sociedade na qual a estrutura formal da democracia
participativa seja consolidada, assegurando aos seus membros o direito de interferir na
vontade das instituições, a concreta autonomia do cidadão se apresenta como elemento
essencial para diferenciar uma real democracia de um autoritarismo social
instrumentalizado por formalidades democráticas.

2. As condições materiais como limitadoras da autonomia do cidadão

Mais uma vez recorrendo-se à etimologia grega para busca do significado básico
do termo, temos que a autonomia, pela junção da própria pessoa (auto) à lei (nomos),
corresponde à capacidade de ditar para si as normas de sua conduta, ou seja,
autodeterminar-se.
É comum encontrar na doutrina a divisão entre autonomia privada, equivalente à
capacidade de autodeterminação da pessoa, e autonomia pública, ligada ao poder do
cidadão de participar das tomadas de decisão da comunidade política na qual esteja
inserido, identificando-se assim com os caminhos tomados pelas instituições.
É valiosa a concepção de Santiago Nino, ao formular como princípio da
autonomia a livre eleição individual de planos de vida e persecução de ideais de
excelência humanos, não cabendo ao Estado ou aos demais indivíduos interferir em tal
escolha, mas apenas desenhar instituições que facilitem a busca de sua concretização,
afastando a interferência mútua.10

9
BONAVIDES, P. (2000) “Ciência política”, São Paulo: Malheiros, p.275.
10
NINO, C. S. (1989) “Ética y derechos humanos”, Buenos Aires: Editorial Astrea, pp. 204-205. John
Rawls, em raciocínio pautado nas instituições básicas de uma sociedade, defende que “uma sociedade bem
ordenada afirma a autonomia das pessoas e encoraja a objetividade dos seus juízos ponderados sobre a
justiça” (p. 394), sendo que “os membros de uma sociedade bem ordenada, quando avaliam os seus projetos
de vida através dos princípios da escolha racional, decidirão manter o seu sentido de justiça como forma de

[155]
Em uma sociedade na qual a dignidade da pessoa humana figure como um valor
central, não parece plausível afirmar que há alguma hierarquia entre a autonomia privada
e a autonomia pública. Ademais, embora a autonomia pública seja diretamente associada
à ideia de democracia, não se pode olvidar a importância da autonomia privada para
participação democrática.
A autonomia privada trata-se de uma verdadeira liberdade positiva, capacidade
real de escolha, não se restringindo à ausência de obstáculos à conduta.11 Tal capacidade
está diretamente relacionada à existência de condições sociais, econômicas e culturais
que permitam ao indivíduo construir e expressar sua personalidade dentro do contexto
histórico no qual está inserido.
O cidadão concreto que, por diversas contingências, não seja capaz de formar
livremente a própria vontade, dificilmente estará apto a transpor sua real vontade ao
âmbito das instituições das quais participe. O homem econômico do Estado moderno não
é mais aquele totalmente dedicado à política como o antigo e restrito cidadão grego,
necessitando, antes de tudo, garantir o seu sustento em uma sociedade capitalista que
possui a desigualdade de bens como um de seus pilares.
Pode-se afirmar que a autonomia privada e a autonomia pública encontram-se
entrelaçadas de forma indissociável em uma sociedade democrática. A livre formação da
vontade do indivíduo é premissa para que sua real vontade se expresse como componente
do processo de deliberações que conduzem as instituições nas quais está inserido,
notadamente o Estado.
Em sentido que completa o círculo do raciocínio, assegurar que a vontade das
instituições seja fruto da participação democrática é a melhor forma de orientar as
atividades do Estado e das demais instituições para medidas, negativas e positivas, que
construam um ambiente isento de constrições à vontade individual. Em outros termos,
não se pode garantir as bases da democracia em um laboratório não democrático.
Isto posto, é preciso refletir se uma sociedade que conviva com a existência de
indivíduos que, alheios à sua vontade, enfrentam problemas crônicos de alimentação,
habitação, saúde, acesso à justiça, dentre outros, pode ser considerada uma sociedade de
indivíduos autônomos.

regular a sua conduta uns face aos outros” (p.389). RAWLS, J. (1993) “Uma Teoria da Justiça”, Lisboa:
Editorial Presença.
11
SARMENTO, D. (2016). “Dignidade da Pessoa Humana – Conteúdo, trajetórias e metodologia”, Belo
Horizonte: Editora Fórum, p.142

[156]
Indo além, uma tal sociedade, ainda que assegure constitucionalmente o direito ao
voto igualitário a cada indivíduo na escolha dos representantes e a participação nas
principais decisões de todas suas instituições, deixa dúvidas sobre seu caráter
democrático.

3. Mínimo social como requisito para efetividade da democracia

Ao se analisar o papel do Estado na garantia de condições materiais básicas que


permitam aos cidadãos viver de forma condigna, surge a discussão em torno do dever de
se assegurar a todos o mínimo social. Embora haja divergência em torno dos
fundamentos, do conteúdo, e mesmo da nomenclatura deste mínimo, a sua defesa está
inserida no ideário de diversos autores da filosofia política e jurídica.
A começar pela nomenclatura, esta ideia está presente na literatura especializada
sob denominações como mínimo social, mínimo existencial, mínimo vital, dentre outras.
Para fins deste estudo, adota-se a nomenclatura de mínimo social por se entender que esta
melhor expressa a ideia de mínimo necessário para garantir não apenas a existência
fisiológica do indivíduo, mas também a sua inserção social na condição de agente
autônomo, e não mero objeto.
O conteúdo do mínimo social está diretamente ligado à ideia de dignidade da
pessoa humana.12 Assim, pode ser caracterizado como o atendimento às necessidades
básicas necessárias à vida digna ou, em outros termos, como o respeito ao mínimo de
cada direito fundamental necessário a uma vida social que permita ao indivíduo
desenvolver e realizar sua personalidade de acordo com a dignidade humana.
Não se pode ignorar que o parâmetro de dignidade da pessoa humana é variável
de acordo com aspectos históricos, sociais, econômicos e culturais. As condições
necessárias para um indivíduo ter uma vida considerada digna variam, por exemplo, não
apenas entre um cidadão que atualmente viva na Noruega e outro que resida no Brasil,
mas também entre os cidadãos que vivam em um mesmo país em diferentes períodos
históricos.

12
Nesse sentido, dentre outros, SARMENTO, D. (2016). “Dignidade da Pessoa Humana – Conteúdo,
trajetórias e metodologia”, Belo Horizonte: Editora Fórum, p.239. NOVAIS, J. R. (2017) “Direitos Sociais
– Teoria Jurídica dos Direitos Sociais enquanto Direitos Fundamentais”, Lisboa: AAFDL Editora, p.230.

[157]
Por via de consequência, o mínimo social possui seu conteúdo variável de acordo
com os mesmos fatores que afetam a concepção temporal da dignidade da pessoa humana.
Assim, por mais que seja óbvio que as necessidades básicas de um indivíduo englobem
alimentação, saúde, moradia, acesso à justiça, saneamento básico, dentre outros, o
patamar das necessidades de cada um destes aspectos que pode ser considerado como
básico varia de acordo com o contexto no qual a pessoa esteja inserida.
Frise-se também a importância da educação como componente do mínimo social,
haja vista que de pouco adianta o acesso a determinados bens materiais se o indivíduo
não possuir a formação necessária para se posicionar de forma emancipadora no ambiente
em que participa.
É comum a referência internacional ao conteúdo abstrato do mínimo social como
identificado com o previsto na primeira parte do artigo 25.º da Declaração Universal dos
Direitos Humanos (DUDH), de 1948, segundo o qual:

Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua
família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao
alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e
tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice
ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes
da sua vontade.

Todavia, esta delimitação de conteúdo pode ser insuficiente em determinados


cenários concretos. Como se nota da transcrição do artigo 25.º da DUDH, seu foco está
nos ditos direitos sociais, não abarcando direitos ordinariamente classificados como de
liberdade. Em determinadas situações, podem ser necessárias medidas prestacionais para
assegurar garantias básicas no que diz respeito a, por exemplo, acesso à justiça e ao
tratamento não degradante a reclusos no sistema penitenciário. Isto leva à já referida
defesa do mínimo social como conteúdo mínimo de direitos fundamentais como um todo,
e não apenas de direitos sociais.13
Ao se analisar os principais argumentos filosóficos para a garantia estatal às
condições materiais básicas, podem eles ser agrupados em dois conjuntos, na medida em

13
É digno de referência o pensamento de Jorge Reis Novais, que defende não haver, em ordenamentos
constitucionais como os atualmente vigentes em Portugal e Brasil, argumentos dogmáticos suficientes para
diferenciação entre direitos sociais e direitos de liberdade, devendo todos os direitos fundamentais ter o
mesmo tratamento. NOVAIS, J. R. (2017) “Direitos Sociais – Teoria Jurídica dos Direitos Sociais enquanto
Direitos Fundamentais”, Lisboa: AAFDL Editora, pp.299 e ss.

[158]
que entendam o mínimo social como um meio para se assegurar outro objetivo,
fundamento instrumental, ou como um fim em si mesmo, fundamento independente.14
Dentre os defensores do fundamento instrumental do mínimo social, merece
destaque o pensamento de John Rawls. Em sua teoria da justiça, Rawls estabelece aqueles
que seriam os dois princípios da justiça aplicáveis às instituições de uma sociedade bem
ordenada. O primeiro princípio, lexicalmente precedente ao segundo e conhecido como o
da máxima liberdade igual, estabelece que cada pessoa deve ter direito igual ao mais
amplo sistema de liberdades básicas iguais, compatível com um semelhante sistema de
liberdade para todos. Já o segundo princípio, subdividido em duas partes, estabelece que
as desigualdades econômicas e sociais devem ser distribuídas de forma que,
simultaneamente, resultem nos maiores benefícios possíveis aos menos favorecidos
(princípio da diferença) e sejam consequência do exercício de cargos e funções abertos a
todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades (princípio da igualdade de
oportunidades). Dentro do segundo princípio, o da igualdade de oportunidades teria
prioridade lexical sobre o da diferença.15
Embora na primeira formulação de sua teoria Rawls tenha deixado o mínimo
social como elemento da fase legislativa, ligada ao princípio da diferença, 16 em sua obra
posterior, O Liberalismo Político, afirma que o primeiro princípio de justiça, o da máxima
liberdade igual, pode ser lexicalmente precedido de um princípio que assegure a
satisfação do mínimo social, ou seja, das necessidades básicas dos cidadãos, ao menos à
medida que seja necessária para que os cidadãos sejam capazes de entender e exercer de
forma fecunda esses direitos e liberdades.17 Nesta construção, Rawls considera o mínimo
social não mais deixado ao plano legislativo, como ocorre com o princípio da diferença e

14
SARMENTO, D. (2016). “Dignidade da Pessoa Humana – Conteúdo, trajetórias e metodologia”, Belo
Horizonte: Editora Fórum, p.195.
15
RAWLS, J. (1993) “Uma Teoria da Justiça”, Lisboa: Editorial Presença, p. 239.
16
RAWLS, J. (1993) “Uma Teoria da Justiça”, Lisboa: Editorial Presença, p. 222. Esta concepção inicial
de Rawls fora bastante criticada por Jeremy Waldron, segundo o qual o mínimo social deveria ser um
princípio de justiça por estar relacionado à ideia de exigência de comprometimento do indivíduo com as
instituições básicas. Nesta linha de raciocínio, relegar a definição do mínimo social integralmente ao
princípio da diferença, no plano legislativo, seria equivalente a não diferenciar a privação relativa da
privação absoluta de condições materiais. WALDRON, J. (1993) “John Rawls and the Social Minimum”,
in WALDRON, J. “Liberal Rights”, Cambridge: Cambridge University Press, pp.250–270.
17
RAWLS, J. (2000) “O Liberalismo Político”, São Paulo: Editora Ática, pp.49-50. Em sentido semelhante,
e expressamente respondido, com algumas ressalvas, por Rawls, é a elaboração apresentada por Rodney
Peffer, propondo reestruturar os princípios da justiça em quatro princípios, sendo o primeiro o que visa
assegurar o mínimo social. PEFFER, R. G. (1990) “Marxism, Morality, and Social Justice”, Princeton:
Princeton University Press, p.418.

[159]
o princípio da igualdade de oportunidades, mas sim como um fundamento
constitucional.18
Assim, Rawls considera o mínimo social como um instrumento necessário à
realização das liberdades básicas e iguais. Uma vez que a participação política é garantida
por liberdades básicas, o regime democrático é diretamente afetado pela garantia, ou não,
do mínimo social aos cidadãos.
Já dentre os autores que relacionam o mínimo social diretamente à ideia de
democracia, merece destaque o pensamento de Jürgen Habermas, que atribui a
legitimidade do Direito à identificação dos cidadãos como não apenas destinatários, mas
também coautores das normas. Tal autor desenvolve, a partir do poder comunicativo, a
ideia de democracia deliberativa, que tem por base o diálogo social entre pessoas livres e
iguais. Segundo tal pensamento há, em abstrato, cinco categorias de direitos fundamentais
que determinam o status das pessoas de direito, quais sejam, (1) os que resultam da
configuração politicamente autônoma do direito à maior medida possível de iguais
liberdades subjetivas de ação, (2) os que resultam da configuração politicamente
autônoma do status de um membro em associação voluntária de parceiros do direito, (3)
os que resultam imediatamente da possibilidade de postulação judicial de direitos e da
configuração politicamente autônoma da proteção jurídica individual, (4) os referentes à
participação, em igualdade de chances, em processos de formação de opinião e de
vontade, nos quais civis exercitam a sua autonomia pública e por meio dos quais eles
criam direito legítimo, e (5) os que asseguram as condições de vida garantidas social,
técnica e ecologicamente, na medida em que isso for necessário ao aproveitamento, em
chances iguais, dos direitos elencados de (1) a (4).19
Assim, o papel do mínimo social em Habermas verifica-se como um instrumento
necessário a assegurar os demais direitos fundamentais que conferem legitimidade ao
Direito e permitem o funcionamento da democracia deliberativa.
De outra feita, há os autores que, mesmo sem negar a relevância do mínimo social
para a efetivação dos direitos de liberdade e da democracia, identificam o fundamento da
garantia das necessidades básicas do indivíduo em si mesma, de forma independente e
não relativa. Para esta fundamentação, é levantado o forte argumento de que, o mínimo
social, como elemento da dignidade da pessoa humana, deve ser garantido também

18
RAWLS, J. (2000) “O Liberalismo Político”, São Paulo: Editora Ática, p.279.
19
HABERMAS, J. (1997) “Direito e democracia: entre facticidade e validade”, v.1, Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, pp.159-160.

[160]
àqueles indivíduos vulneráveis que, por diversas contingências intrínsecas não sejam
capazes de exercer sua autonomia privada ou pública (ex. pessoas com limitações
cognitivas).20
Em suma, nenhuma das principais linhas de fundamentação filosófica do mínimo
social questionam a relevância dele para se assegurar a autonomia do indivíduo e, por
consequência, garantir a efetividade da democracia.
Uma sociedade democrática não se legitima se o indivíduo não tiver asseguradas
as condições para se autodeterminar na esfera privada, participar de forma ativa, livre e
igual, na esfera pública e, assim, identificar a sua vontade como elemento de formação da
vontade estatal que, por sua vez, reverterá ao próprio cidadão por meio de políticas
públicas.

Considerações Finais

A relação entre mínimo social, autonomia (privada e pública) e democracia é


extremamente imbrincada. Em termos simples e objetivos, o indivíduo privado do
conjunto de parcelas mínimas de direitos fundamentais necessário à dignidade humana é
incapaz de autodeterminar-se. Não se pode supor, por exemplo, que um cidadão faminto,
analfabeto, sem moradia ou com diversas sequelas de doenças, tenha liberdade para
formar e implementar seu plano de vida.
Da mesma forma, este indivíduo que sequer é capaz de exercer sua autonomia
privada não consegue se lançar ao jogo democrático em igualdade de condições com os
demais cidadãos que, por diversos fatores, incluindo por vezes a sorte de ter nascido em
uma família abastada, possuam suas necessidades básicas plenamente atendidas.
O reflexo desta desigualdade de condições de participação não será outro senão a
desigualdade do peso da vontade dos indivíduos, formalmente livres e iguais, na formação
da vontade das instituições sociais e políticas, das quais o Estado é o mais visível
expoente.
Ao não identificar as medidas deliberadas e executadas pelo Estado com suas reais
necessidades, os indivíduos não se apresentarão em condições de defender as instituições
democráticas, fechando-se assim o círculo que abala a coesão social e leva ao descrédito

SARMENTO, D. (2016). “Dignidade da Pessoa Humana – Conteúdo, trajetórias e metodologia”, Belo


20

Horizonte: Editora Fórum, p.208.

[161]
da democracia, reduzida a um conjunto de regras para dar aparência democrática a um
ilegítimo autoritarismo social.

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WALDRON, J. (1993) “John Rawls and the Social Minimum”, in WALDRON, J.


“Liberal Rights”, Cambridge: Cambridge University Press, pp.250–270.

[163]
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[164]
10. AS MENTALIDADES DOS INDIVÍDUOS PERANTE O FENÓMENO
DA GUERRA E O PAPEL QUE COMPORTAM NO PROCESSO
DE DECISÃO DEMOCRÁTICA

Ruben Filipe Lozada Frazão1

Ao contrário daquilo que muitos poderão pensar vivemos hoje num período
histórico que pode e deve ser considerado privilegiado em relação aos séculos anteriores.
Isto porque, com algumas excepções pontuais, as nações do Mundo Ocidental convivem
entre si através de relações bilaterais que proporcionam aos seus habitantes um clima de
paz, harmonia e tranquilidade. Esta situação presente, encarada agora como um dado
adquirido, nem sempre foi uma realidade efectiva na vivência dos povos e no panorama
político internacional. Já pesará a menção mas forçosamente há que voltar a repeti-lo: não
esqueçamos os tormentos e tumultos pelos quais o século XX teve que atravessar com a
vinda dessas duas grandes Guerras Mundiais; e, anteriormente a essas inquietações, as
escaramuças que se prolongavam durante décadas entre as principais potências da
Europa. Ou seja, quer isto dizer que nos períodos históricos anteriores à nossa era actual,
o mundo já fora amplamente marcado por momentos em que os conflictos armados entre
os povos, as comunidades e as nações eram costumeiros e regulares.
Devido à distância remota destes tempos é-nos quase impossível conjurar uma
imagem que sirva para ilustrar esta paisagem moribunda, todavia, não restam dúvidas, ela
foi uma realidade efectiva na vida das populações. O frágil balanço entre a Paz e a Guerra
das comunidades já era conhecido desde a Antiguidade dos gregos e dos romanos, sendo
que o desequilíbrio desta balança é ainda anterior ao período considerado berçário da
Civilização Ocidental. Mas, sendo realmente este o caso, de onde poderá provir este
desequilíbrio que parece irromper recorrentemente por entre as comunidades dos
homens? Haverá motivos para encarar este tipo de preocupações em relação a possíveis
cenários de guerras com relutância e cepticismo? E será que uma atitude de descrença e
apatia perante estas hipóteses estão de algum modo relacionadas com a falta de
perspectiva que os indivíduos possuem em relação aos eventos do passado?

1
Licenciado em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Publicou um artigo
intitulado, “Democracia: Discurso e Realidade” na 5º edição da Revista Apeiron. Publicou um poema e
uma fotografia na obra, “Filosofia e as Artes”.

[165]
Este artigo propõe-se a responder a estas e outras questões que surjam na senda
de uma pergunta mais geral e que será responsável pelo norteamento da mesma: “Como
explicar as mentalidades actuais das populações em relação aos estados de Paz e Guerra
entre as nações e qual o papel que os indivíduos encetam no processo de decisão
democrática na eventualidade de um conflicto armado”.
Para que se responda satisfatoriamente a estas questões primeiro será necessário
repensar o fenómeno da Guerra em si e as impressões que foram deixadas nas
consciências dos indivíduos ao longo das eras. Só desta forma poderemos entender as
mentalidades actuais das populações e as alterações que foram surgindo ao longo dos
tempos até se chegar à época presente. Em função do tema que se estuda é expectável
encontrar uma disparidade de opiniões em relação aos fenómenos de Guerra e à
ocorrência generalizada de conflictos armados, contudo, existem pelo menos três tipos de
posições que ao longo da história marcaram o pensamento filosófico em volta deste tema.
Estas posições estão normalmente associadas às ideias que exponho de seguida: que todos
os actos de guerra são permitidos; que nem todos os actos de guerra deviam ser
permitidos; e, por fim, que nenhum acto de guerra deveria ser permitido. Ora, estas três
ideias corresponderão precisamente às mentalidades que os indivíduos comportaram ao
longo dos séculos e podem inclusivamente ajudar à circunscrição dos períodos históricos
onde se verificou uma maior afluência a estes ideários por parte das gentes. Postulo então
que à primeira etapa que a Humanidade atravessou enquadra-se a ideia de que todo o acto
de Guerra é permitido. A este período histórico corresponderá a Antiguidade e, de um
modo mais geral, todas as eras que lhe antecederam.
Os conflictos armados, apesar de nesta altura já serem considerados como algo de
nefasto e destabilizador por si, não eram encarados com o mesmo tipo de preocupações
que hoje acabamos por dar ao tema. Isto porque, não obstante as preocupações de carácter
filosófico em relação à Guerra e aos problemas advindos da má governabilidade e
instabilidade política2, não havia ainda nesse período uma teoria de base que colocasse os
direitos e a dignidade dos indivíduos em primeiro plano. Tal noção era, aliás,
incompatível com o período em causa. A Antiguidade Grega é uma época extremamente
marcada pelos privilégios e estes estavam maioritariamente associados àqueles que
detinham o estatuto de cidadão nas Pólis gregas. Neste tempo, apesar de ser possível

2
Um exemplo da análise destes temas poderá ser encontrado nos vários livros que compõem a da famosa
obra de Platão, A República.

[166]
ingressar circunstancialmente na cidadania da Cidade-Estado, por norma, o estatuto de
cidadão era um atributo político que estava dependente do birthright3, e só poderia ser
entregue mediante o cumprimento de um conjunto de requisitos4. Por consequência, nem
todos os habitantes das Cidades-Estado tinham o estatuto de cidadão assegurado e
garantido, mesmo que residissem no interior das suas fronteiras.
A condição de Igualdade que unia os cidadãos da Pólis não era um valor que podia
ser extrapolado de uma compreensão racional daquilo que significa ser uma pessoa - ou
seja, um ser dotado de individualidade, de livre-arbítrio, de poder de acção e de decisão
sobre si próprio. Ao invés disso, a Igualdade era encarada uma condição artificial inerente
à própria constituição de um estado político, sendo que este último também era encarado
como produto artificial, criado pelos homens e com o único objectivo de levar a cabo a
sua própria governação. Quer isto dizer que, apesar dos cidadãos ostentarem um estatuto
de Igualdade, este não era proveniente da própria condição natural de homens, mas sim,
da instituição política artificial criada em prol deles e que os reunia num espaço público
de governabilidade. A característica deste estado político que se alinha com este tipo de
raciocínio - que não vê cada homem como seu igual mas sim, onde cada homem é desigual
entre outros - dá-se pelo nome de Isonomia.

Hence, equality, which we, following Tocqueville's insights, frequently see as a


danger to freedom, was originally almost identical with it. But this equality within the
range of the law, which the word isonomy suggested, was not equality of condition -
though this equality, to an extent, was the condition for all political activity in the
ancient world, where the political realm itself was open only to those who owned
property and slaves - but the equality of those who form a body of peers. Isonomy
guaranteed equality, but not because all men were born or created equal, but, on the
contrary, because men were by nature not equal, and needed an artificial institution,
the polis, which by virtue of its isonomy would make them equal. Equality existed
only in this specifically political realm, where men met one another as citizens and
not as private persons. The difference between this ancient concept of equality and
our notion that men are born or created equal and become unequal by virtue of social
and political, that is man-made, institutions can hardly be over-emphasized. The
equality of the Greek polis, its isonomy, was an attribute of the polis and not of men,
who received their equality by virtue of citizenship, not by virtue of birth. Neither
equality nor freedom was understood as a quality inherent in human nature, they were
both not φύσε, given by nature and growing out by themselves; they were νόμφ, that

3
Traduzindo para Português, o termo mais feliz seria o “direito de berço” .
4
Aristóteles, 1996, The Constitution of Athens, 1274b32-1275b20

[167]
is, conventional and artificial, the products of human effort and qualities of the man-
made world.” (Arendt, Hannah, 1990, pp.30-31)

Por isso, na Antiguidade, havia uma clara distinção entre aqueles que eram
considerados os Cidadãos da Pólis e todos aqueles que pertenciam aos diferentes
“estamentos” e/ou “castas” da sociedade. Refiro-me, portanto, aos estrangeiros, às
mulheres e aos escravos. Neste período histórico, onde a Democracia dava os seus
primeiros passos como conceito e como produto de uma experiência política, o que era
mais aterrador na experiência da Guerra para um cidadão da Pólis era perder o seu estatuto
de Homem Livre. Vive-se uma época em que a “morte era preferível à escravatura”5.
Isto significa que os Homens Livres eram incentivados a lutar até à réstia das suas forças.
O que coincide com as posturas encetadas pelos heróis da literatura clássica, onde as
ideias e influências do heroísmo estão bastante difusas, devido em grande parte às
epopeias de Hesíodo e de Homero. A propósito, e voltando brevemente à questão da
cidadania nas Cidade-Estado, restará apenas referir que um dos requisitos para a admissão
era, precisamente, a capacidade de se poder armar autonomamente na eventualidade de
um cenário de Guerra. Por consequente, era esperado que um cidadão pudesse sair para
o combate em defesa da sua Pólis . É assim que podemos entender uma parte da cultura
e da mentalidade helenística. As disposições políticas deste tempo são gritantes com outro
tipo de prioridades que hoje já não recebem o mesmo tipo de foco ou onde, porventura, o
foco ter-se-á virado numa posição diametralmente oposta.
Quanto a este período histórico faltará referir, mesmo que por breves instantes, o
advento e a subsequente queda do Império Romano. Herdando dos gregos grande parte
do seu património artístico e intelectual, os romanos debateram-se por criar uma cultura
que pudesse rivalizar com as aquisições do mundo helenístico. Contudo, não foi apenas
nesse aspecto que os romanos empreenderam os seus esforços. As suas políticas de
expansão e de conquista são bem conhecidas e uma empresa expansionista dessa
magnitude necessitou de uma “mão-de-obra” bastante numerosa. As legiões romanas
subjugaram quase sem impedimentos todas as regiões por onde o império decidiu alastrar-
se. Confrontados com um mundo pragado pelo desejo de conquista e expansão militar,
onde os conflictos armados eram as únicas vias para determinar os vencidos dos
vencedores, o Império Romano, como tal, enfrentou vários momentos de instabilidade

5
Platão, 1972, A Republica, III, 386b -387b

[168]
interna e externa, até que por fim chegou a um ponto de implosão. Podendo-se abrir
também a hipótese que as sucessivas Guerras e conflictos não foram provenientes de uma
mentalidade de Guerra e de expansão territorial, restará apenas dizer que, na pior das
hipóteses, terá sido este o acto ou a acção dominante durante a vigência deste período.
No que diz respeito à segunda etapa que a Humanidade atravessou podemos
considerar este período como constituindo um ponto de viragem nas mentalidades dos
indivíduos. Surge, assim, a aderência e a defesa de um novo ideal: que nem todos os actos
de guerra deviam ser, por norma, permitidos. Esta ideia começou a ganhar as suas raízes
entre os períodos históricos onde se situam os inícios da Alta Idade-Média até aos inícios
da Idade Moderna. Aqui é pertinente referir o papel central que os intelectuais destas
épocas desempenharam para a construção de uma doutrina ético-moral que veio a beber
a sua inspiração ao pensamento judaico-cristão. Apesar de se encontrarem alguns ecos
destes pensamentos em tempos anteriores, as preocupações em relação à justificação dos
confrontos bélicos começaram a ganhar mais relevância quando os reinos da Peninsula
Ibérica, ou seja Portugal e Espanha, se encontravam já no período intermédio da Era dos
Descobrimentos. O êxito comprovado das missões marítimas por parte dos peninsulares
cativou o interesse das outras potências europeias (a Inglaterra, a França e a Holanda), e
despertou nelas o desejo de instaurar pela força a sua própria hegemonia política,
económica e cultural. Como tal, todas estas potências debatiam-se pela busca e captura
de novos territórios, sendo que o nosso país não era uma excepção a este tipo de
mentalidade. O reino de Portugal, que já começara nesta odisseia marítima muito antes
que os demais, não se limitava a singrar cegamente pelos mares adentro, buscando e
adquirindo aleatoriamente, as províncias e os portos que fossem surgindo durante o
percurso das suas travessias.
O reino também estava investido numa outra missão - a evangelização. Ou seja,
para além de procurar expandir a sua influência em territórios ainda não explorados pelos
demais, também se tinha em mente a expansão e a dilatação da fé cristã. Portugal,
conjuntamente com Espanha, foram os principais responsáveis pela propagação da
religião católica no Novo Mundo; e, os seus desembarques nestas terras longínquas
vieram a comprovar as suspeitas de muitos no Velho Continente: a existência de povos
nativos que eram alheios à mensagem de Cristo. Os nativos recém encontrados,
desconhecendo os idiomas falados pelos europeus e as tecnologias apresentadas pelos
mesmos, foram imediatamente classificados como povos indígenas, o que, para os
colonos, denotara já um claro abismo civilizacional. Na presença de novas terras,

[169]
ostentando uma abundância de recursos e especiarias locais, os colonos decidiram
avançar contra os nativos sob o pretexto de conquista e conversão religiosa, reclamando
as suas terras natais e subjugando-os à escravatura. Este frenesim bélico e expansionista
deixou um trilho de destruição e de desapropriação pelo Novo Mundo fora. Às sociedades
indígenas foi-lhes retirada a autonomia política, económica e cultural. Contudo, os actos
que aqui transpareciam não estavam isentos de críticas nem de contestações. No meio
destes conflictos armados, havia quem ponderasse se estas conquistas, sob os pretextos
da expansão e da dilatação da fé, serviam realmente os ensinamentos do Cristianismo.
Confrontando os ensinamentos de Cristo com os actos levados a cabo pelos
colonos, tanto as acções preconizadas pelos espanhóis como pelos portugueses
encaminhavam-se em direcções diametralmente opostas ao que fora os ensinamentos do
messias. Foi neste preciso momento que surgiu um dos maiores defensores do baluarte
da Paz, da tolerância e aceitação do Outro, que, coincidentemente, também foi um
português. Refiro-me a Padre António Vieira. Este humanista do século XVII defendeu,
entre outros filósofos do seu tempo, o direito à liberdade dos povos indígenas. António
Vieira foi um dos grandes precursores das ideias que hoje fazem parte dos princípios
basilares que ordenam as nossas sociedades modernas: a Igualdade entre os homens de
várias raças e etnias e a abolição da escravatura. Este pensamento de Vieira já antecipara
uma tendência que só surgiria séculos mais tarde com a introdução das Luzes. Em
conjunção com estes ideais de proa, Vieira também advogou a defesa do conceito de
Guerra Justa, sendo que esse é o maior ponto de interesse para o nosso estudo em questão.
O que a teoria da Guerra Justa vem a explicitar é que nem todos os conflictos armados
devem ser, por norma, permitidos. A justificação que foi empregue para sustentar esta
teoria reside nas directrizes do pensamento cristão que nos orienta para a realização de
uma vida de carácter ético e moral, dissuadindo-nos, portanto, de encetar comportamentos
desnecessariamente agressivos para com os outros.
Para a teoria da Guerra Justa ser aplicável é necessária a reunião de certos pré-
requisitos que validem e/ou justifiquem um cenário de confrontação. Estes pré-requisitos
são: estar perante um ataque iminente por parte de agressor injusto e/ou de agirmos em
função da defesa de inocentes. Só debaixo destas circunstâncias é que a Guerra é encarada
como justa e lícita. No decorrer do período colonial português nas Américas, o reino
serviu-se da teoria da Guerra Justa em certas ocasiões para subjugar os índios que
desestabilizavam as colónias e/ou os seus moradores, sendo cedida a licença legal para
“re-educar” os desordeiros. Nos casos em que as missões apostólicas dos padres eram

[170]
impedidas através da violência por parte dos nativos, aqui também se verificava um
pretexto para iniciar a Guerra Justa. O que não deve ser mal entendido é uma possível
licença sob o rationale da Guerra Justa para subjugar e impor ao pagão uma fé em Deus.
A teoria da Guerra Justa não subscreve a estes tipo de actos.

Em primeiro lugar, a recusa ou boicote à pregação crista dava direito à guerra justa.
A conversão era concebida como um processo essencialmente cognitivo, um ato de
instrugao que levaria o converso à integração por vontade própria na congregação de
fieis (congregatio fide Hum). A conversão forçada era, portanto, desprovida de
autêntico significado.290 No entanto, mesmo que não pudessem ser coagidos a crer,
ainda assim, os índios não poderiam impedir o anúncio da Palavra. Porém, a estreita
relação estabelecida pela mentalidade cristã entre Fé e determinados tipos de
comportamentos sociais e características culturais propiciava, sem dúvida, a
existência de argumentos que sustentavam a legitimidade da introdução forçada na
«civilização» como condição preliminar necessária para a conversão voluntária.
Mesmo que tal opinião (considerada herética segundo o magistério tridentino) fosse
defendida por diversos grupos, a guerra nunca chegou a ser legitimada sob o pretexto
da conversão.

Em segundo lugar, temos que a prática de hostilidades contra os moradores e índios


aliados e o rompimento das alianças celebradas davam aos portugueses o direito de
mover uma guerra justa contra os índios. Há aqui, portanto, a distinção entre os índios
mansos, pacificados, e os índios bárbaros, hostis, que continuamente atacavam as
vilas, os engenhos e os aldeamentos. Contra eles, a guerra era justa; seu princípio
derivava-se do direito de proteger os inocentes contra a tirania e os convertidos contra
as ameaças dos pagãos. «No arrazoado da época, aquele que não defendia o próximo,
tendo a chance de fazê-lo, incorria no mesmo delito do agressor.» Conforme a
explicação de Hansen: «Considerando que a paz do "bem-comum” define a finalidade
cristã alegada pela monarquia na colonização, a guerra contra os bárbaros é justa.»

Em terceiro, o impedimento da realização do comércio e o empecilho ao direito de


circulação, autorizavam a guerra justa. A associação e a comunicação eram direitos
da alçada do direito das gentes (Jus Gentium), e, por isso, derivados do direito natural.
O fundamento moral desse direito está na amizade que os homens devem estabelecer
entre si, de acordo com o que é preconizado nas Escrituras. Ao negarem-se a receber
os portugueses, os índios estavam indo contra a um direito fundamental, portanto, era
lícita a sua imposição. Por fim, os resgates de índios condenados à morte nos rituais
de antropofagia (chamados de índios de corda) eram tambem apontados como causa
de guerra justa, pois a antropofagia era contraria à lei natural. Em todos estes casos,

[171]
ainda assim, a guerra so era legitimada mediante a autorização do Rei ou agente
responsável, mormente o governador.” (Ludmila Gomides Freitas, 2014, 149-151)

Mas escusado será dizer que nem sempre a tradução que corre do plano das ideias
para o plano da acção sensível é feita sem alguma depuração, querendo isto dizer que,
provavelmente, os colonos terão forçado, em alguma ocasião, a justificação da Guerra
Justa para silenciar e “domesticar” os nativos. Não obstante, estes actos não
constrangiram Vieira na sua missão evangelizadora. Ao invés disso, reforçaram mais
ainda a sua postura humanista e alertaram-no para a necessidade de pregar aos colonos a
urgência de viver uma vida bem-aventurada e que se orientasse pelos os valores da
compaixão, da tolerância e do amor ao próximo.
Desta forma podemos entender os sermões de Vieira como servindo um papel
pedagógico que tinham como a sua finalidade o câmbio das mentalidades, não só dos
colonos portugueses, mas também dos europeus. O discurso de Vieira, apesar de não
parecer oferecer novidades nos dias que correm, deve, todavia, ser confrontado com as
mentalidades dominantes da época. Nesses tempos, em que as principais potências da
Europa apenas se interessavam em aumentar o seu poderio, o discurso do Pe. António
Vieira incomodou as várias sociedades que funcionavam à base do esclavagismo. Como
tal, ganhou bastante inimigos e os seus sermões chegaram a ser motivo de perseguição e
de enclausuramento. No nosso século, os seus sermões ainda trazem consigo uma carga
de pendor universalista e são aplicáveis transversalmente a toda a Humanidade.
Incorporam um conjunto de escritos que são hoje considerados uma referência a nível
mundial em prol da defesa dos Direitos das gentes. Graças a estas iniciativas por parte de
Vieira, como de todos aqueles que decidiram envedar pela mesma veia incendiária,
iniciou-se um momento na História que viria a moldar as consciências das gerações
futuras.
Apesar da mentalidade de Vieira e dos seus homólogos não ser ter sido a
dominante entre as elites europeias, ela começou um trabalho de consciencialização que
viria a ganhar terreno para uma aderência crescente no futuro, eclodindo mais tarde na
terceira etapa que a Humanidade conseguiu conquistar. Relativamente à terceira etapa
que a Humanidade conseguiu alcançar, esta veio a identificar-se maioritariamente com a
ideia de que os actos de Guerra não deveriam ser, de todo, permitidos. Os períodos
históricos que circunscrevem esta mentalidade estão entre os séculos XVIII da Idade
Moderna e o nosso século XXI da Idade Contemporânea. Para que esta mudança fosse

[172]
possível foi necessária a passagem de três séculos de história. Postulo que a razão por
detrás desta mudança na mentalidade dos indivíduos esteve associada à ocorrência de três
eventos-chave que se deram entre estes dois períodos, a saber, a Revolução Francesa, a
Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria. Na esteira dos humanistas do século XVII,
que capitanearam a defesa incondicional da Liberdade e dos direitos dos povos indígenas,
os revolucionários franceses levantaram-se em tom de revolta e de protesto contra os
privilégios do Antigo Regime vivido em França.
O seu objectivo era terminar com um regime político responsável pela divisão dos
indivíduos em Três Estados (Clero, Povo e Nobreza) e uniformizar os direitos e as leis
para que fossem aplicáveis igualmente por todos os cidadãos. Para alcançar estes
objectivos foi necessária a queda da Monarquia Absoluta em França. Apesar do
movimento revolucionário francês ter recebido várias influências, a que contribuiu mais
para a sua praxis foi a influência da doutrina iluminista. O Iluminismo contribuiu
decisivamente para o desenvolvimento do pensamento político e filosófico no século
XVIII e funcionou como a matriz intelectual da Revolução. As novas ideias políticas
sugeridas por esta matriz, e posteriormente implementadas através da Revolução
Francesa, estão hoje consagradas na nossa experiência política actual. Refiro-me a ideias
como por exemplo: a separação da Igreja e do Estado, a separação tripartida dos poderes
(Executivo, Legislativo e Judicial), a tolerância religiosa, a defesa da liberdade de
expressão, o direito universal à educação, o direito a constituir um governo, etc. Todavia,
aquele que terá sido o maior contributo que a Revolução Francesa deixou para a
posteridade foi a elaboração da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. A
grande novidade desta Declaração, que equivaleria, portanto, àquilo que hoje
consideramos a Constituição de um país, é que a sua esfera de influência não estava
limitada às fronteiras particulares da França.
Os conteúdos da Declaração estavam redigidos para ter um alcance universal e,
como tal, aplicáveis a todos os homens, independentemente do seu país de residência.
Quer isto dizer que entre os objectivos desta Declaração não estava apenas o de sarar os
males que a nação francesa padecia; foi também o de dar a oportunidade para que outros
homens da época se pudessem unir num ambiente de comunhão pública e, em conjunto
com os seus semelhantes, instaurar e usufruir de um governo democrático, eleito e
formado pelos próprios cidadãos. Qualquer República que aderisse à Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, estaria, por extensão, a participar do lema da
Revolução Francesa: Igualdade, Fraternidade e a Solidariedade. Mas, apesar disso, nem

[173]
todas estas pretensões correram conforme planeado. A História já o comprovou vezes
sem conta: até os movimentos mais bem intencionados podem, por vezes, ficar envoltos
nas contradições que surgem no decorrer da sua própria experiência; e a Revolução
Francesa não foi alheia a este mal. Esta revolução, que preconizou a defesa dos direitos
dos homens por entender, justamente, a preciosidade da vida humana e as condições
necessária para a efectivação da sua Liberdade, viu os seus valores a serem
constantemente assassinados. A Revolução tornara- se de tal modo extrema que até os
principais apoiantes e cabecilhas do movimento original foram eliminados pelas
multidões facciosas, não se deixando controlar já pelos ditames da Assembleia Geral
francesa.
Quiçá, o mais irónico desta era das revoluções foi o facto de que os conteúdos da
Declaração, aclamados pela sua racionalidade e pela perfeição na concepção geométrica,
não se alastraram para os demais países da periferia; ou, pelo menos, não da maneira
intensionada pelos revolucionários franceses. A aparente anarquia vivida em França deu
lugar para que outros homens tentassem subir ao poder na tentativa de apaziguar as
multidões em fúria. Foi neste preciso momento que Napoleão ascendeu, tornando-se, num
tempo mais tarde, no imperador, governante de uma Europa com uma clara influência
francesa. Ao mesmo tempo que as conquistas napoleónicas iam prosseguindo pelo
continente adentro, houve também uma necessidade premente para iniciar uma reforma
aos estatutos legais franceses. Dada a emergência e as circunstâncias políticas do
momento, as heranças da Declaração foram compiladas em algumas partes para dar
origem a um novo documento legal e vinculativo da nação, o Código Napoliónico. Uma
vez que o Código Napoliónico entrou em vigor, qualquer país que se viu ocupada por
Napoleão sofreu também a aplicação deste Código. Foi dessa forma, portanto, que uma
Monarquia imperialista conseguiu disseminar alguns ideais presentes na Revolução
Francesa ao invés de uma adopção mais “naturalizada” da Declaração através da
instauração de Repúblicas. Portugal foi uma das nações europeias a receber parte destas
influências, o que permitiu mais tarde a possibilidade de implementar uma Monarquia de
regime constitucional.
Este regime político obedeceu a algumas das reivindicações dos ideários da
Revolução Francesa, como por exemplo, a separação de tripartida dos poderes, a
reivindicação da liberdade de imprensa, o direito à educação, etc. Mas no que diz respeito
às sucessivas Guerras e conflictos armados, estes continuaram a suceder-se no Velho
Continente e não viram sinais de abrandamento. Apesar das sociedades mostrarem alguns

[174]
indicadores de progresso social e político, considerando-se tanto o plano jurídico como o
plano legal, na verdade, a implementação prática destes “progressismos” nem sempre foi
uma tarefa exequível. No entanto, os passos legais e jurídicos para assegurar a
salvaguarda destes valores ficaram obtidos e, graças a eles, iniciou-se então um longo
processo de cimentação dos ditos ideais nas mentalidades das gentes. Foi apenas com a
chegada da Segunda Guerra Mundial e, posteriormente, da Guerra Fria, que esses ideais
receberam o seu pretendido reconhecimento.
Apesar da Primeira Guerra Mundial ser também conhecida como a “guerra para
terminar todas as Guerras”, neste altura, as várias nações soberanas ainda estavam
interessadas em proteger e garantir o seu modo de vida actual. Ou seja, não havia uma
preocupação estritamente humanista para com as situações de conflito que se passavam
no mundo. Podemos retirar esta leitura com uma análise do jogo político que indicava
para um certo interesse em conservar as posições hegemónicas de algumas potências do
Ocidente. A Segunda Guerra Mundial acabou por actuar como mais um eco desta frívola
mentalidade e foi motivada por um misto de sentimentos que marcaram a humilhação, a
cobiça e o desejo de vingança por parte do povo alemão. Aqui a componente tecnológica
da Guerra recebe um especial destaque pois foi a partir do desfecho deste conflicto que
os indivíduos ganharam pela primeira vez uma nova perspectiva em relação ao fenómeno
da Guerra. Isto sucedeu-se porque até antes nunca houve uma percepção que pudesse
transmitir de uma forma tão clara e distinta, a imagem de devastação e miséria
generalizada pelo continente inteiro. Desde aí foi possível retirar duas lições com a
experiência desta última guerra mundial: a consciência da destruição, da miséria e de um
sofrimento alargado; e o apercebimento de uma ameaça real de aniquilação por parte dos
novos instrumentos de Guerra. Podemos conjugar estas duas lições com os dois
acontecimentos que ilustraram melhor esta realidade: por um lado, temos o avanço das
tropas alemãs sobre a Europa inteira, que, como sabemos, devastou o continente; e, por
outro, a documentação apresentada que relatou os efeitos e as consequências caso uma
bomba atómica viesse a ser denotada. Até esse momento, nunca se pensou que com
apenas um acto, que hoje em dia se resume ao carregar de um botão, se poderia causar
tanta destruição e uma ruína sem precedentes. Para referir por instantes este último
cenário basta relembrar o efeito que as bombas largadas sobre Hiroshima e Nagasaki
surtiram.
Foi a primeira e última vez em que se recorreu a esta táctica para alcançar o
desfecho de uma Guerra. Sem margem para dúvidas, este acto deixou as suas marcas no

[175]
povo japonês que, desde então, adopta uma política que se foca no desarmamento nuclear.
O desfecho desta grande guerra encentivou os homens mais prudentes e esclarecidos da
época a cogitar um plano para que se impedisse a repetição do mesmo cenário. Desde
esse momento, demonstrou-se uma clara evolução perante aquilo que foi a postura pré-
fecho da Segunda Guerra Mundial e aquela que vigorou durante o decorrer da Guerra
Fria. Para as nações envolvidas directamente no conflito, neste caso, os EUA e a União
Soviética, um ataque iminente por parte de qualquer um dos eixos deixaria não só estes
países como o próprio planeta devastado. Mesmo sem postular a destruição completa
destas potências, a destruição parcial dos seus territórios encorreria na inutilização das
suas terras, vendo-se agora afectadas pela radiação e que, por sua vez, daria azo às
emergências migratórias das populações. Como tal, um desfecho da Guerra por detonação
deixaria qualquer um dos lados num estado miséria e pobreza absoluta. Todos sairiam
perdedores deste conflito. A única solução que se apontava para a Guerra em questão era
o esperar pelo aliviar das tensões.
Eventualmente, com o colapso da União Soviética e o abrandamento das tensões
internacionais, por fim alcançou-se a Paz e uma estabilidade relativa no mundo. Durante
a vigência da Guerra Fria houve diversos planos que tiveram como objectivo a
reconciliação da Europa e a construção de um continente mais unido que agisse segundo
uma série de acordos internacionais e intergovernamentais. Apesar de alguns acordos
estarem também motivados pelo medo da expansão comunista (como pode ser entendida
a criação da NATO), outros acordos focaram-se na criação de uma união que impedisse a
Europa de voltar a entrar em guerra contra si mesma. A Comunidade Europeia do Carvão
e do Aço e a União Económica Europeia foram projectos capitaneados e inspirados pela
Declaração Schuman, recebendo o seu nome a partir de um dos pais do projecto
federalista europeu. Foi também a partir deste momento que a organização das Nações
Unidas ganhou mais relevância a nível internacional. Com as relações internacionais de
algum modo estabilizadas e encaminhadas agora para a realização um projecto comum,
a União pôde prosseguir na sua ambição de fomentar e expandir uma certa ideia de
direitos humanos, tidos agora como universais; uma ideia já materializada através
Declaração Universal dos Direitos Humanos e redigida nos momentos após a conclusão
da Segunda Guerra Mundial.6

6
A Declaração Universal Dos Direitos Humanos tem como sua inspiração, justamente, a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, podendo esta ser considerada o seu percursor.

[176]
Para alcançar estes objectivos era indespensável a revitalização da Alemanha que
se encontrava dividida entre o eixo este/oeste na sequência do estado pós-guerra da
Segunda Guerra Mundial e, mais tarde, fomentar o seu desenvolvimento do ponto de
vista económico, político e até militar. Este objectivo não poderia ser alcançado sem se
criar uma nova aliança franco-alemã e um reaproximamento diplomático com os restantes
países do continente. Com o passar dos anos e com a transição de uma paz mais relativa
para uma que ostentasse mais confiança internacional, as relações entre as nações
soberanas do continente prosperaram, e, com elas, o seu desejo de formular um plano
com o intuito de reinventar e de consolidar uma nova ideia de Comunidade Internacional.
Na esteira da cooperatividade, as nações do Velho Continente lançaram-se num longo
período que compreendeu um projecto de intercâmbio e ajustamento legal. Mais tarde,
este projecto viria cristalizar-se na experiência da União Europeia. Foi dessa maneira que
ficou feita a jornada que nos trouxe à consciencialização de que todos actos de Guerra
não deviam ser permitidos. A mentalidade vigente da nossa era é agora a de repúdio e de
intolerância perante os conflitos armados.
Contudo, não nos devemos precipitar nesta acepção. Se por um lado conseguimos
chegar a um ponto na História em que os vários povos ostentam uma mentaldiade de
pacifismo em relação à Guerra, há também que notar que esta evolução poderá não provir
necessariamente de uma estrita aprendizagem com o passado. Em jeito de reatar algunas
pontas soltas nesta comunicação e respondendo finalmente a algumas das questões que
ficaram em aberto aquando a abertura do ensaio, podemos agora afimar que parte desta
mentalidade poderá também estar ligada a outras preocupaões que fogem do âmbito
humanitário. Se ponderarmos do ponto de vista económico facilmente podemos chegar à
conclusão que as nações hoje em dia não se podem “dar ao luxo” de entrar em Guerra
umas com as outras. Isto explica-se pelo facto das nações se encontrarem
economicamente conexas e dependentes umas das outras. Se há fluctuações indesejadas
a nível dos serviços prestados nacional/internacionalmente, causando assim um inpacto a
nível alimentar, energético, turístico, tanto a nossa nação como as restantes irão sofrer
uma assentuada queda em actividade; e, quanto mais longa for a possíbilidade ou a
ocorrência de um conflito armado, maior serão as consequências e complicações com que
teremos de lidar para prestar a reabilitação aos estragos causados.
Do ponto vista político não creio que seja necessário relembrar os dramas vividos
(e ainda vivenciados) pela Europa durante esta época das crises migratórias. Estão na sua
origem a Guerra da Síria e as regiões da periferia afectadas pelas lutas constantes contra

[177]
o autoproclamado Estado Islâmico. A União Europeia vive hoje um dos períodos mais
atribulados da sua experiência política e ainda se encontra envolta num longo e moroso
processo de coordenação intergovernamental para que se encontre uma solução duradoura
para estes problemas. Neste momento, um dos testes que se lhe coloca é averiguar se é
ou não capaz de operar eficazmente num espaço de acordo e consentimento mútuo quanto
às necessidades e as válidas reivindicações de soberania dos seus estados-membros.
Ponderando outras questões que se liguem aos quadrantes sociais/culturais, aqui também
se denotam outras repercussões. Existiram alterações nos estados de consciência dos
indivíduos, reflectidas ora pela situação que marca o momento, ora por inclinações mais
rescondidas que só recentemente tiveram oportunidade de vociferar as suas opiniões.
Refiro-me, neste caso, à ascensão do discurso de Extrema-Direita pela a Europa inteira.
Se houver a necessidade de apontar para uma tese que consiga subsumir a posição geral
da população europeia quanto ao fenómeno da Guerra, avanço então a seguinte ideia: há,
de facto, no meu entender, razões bastante plausíveis para crêr numa certa posição de
relutância e de cepticismo por parte das gentes em relação a um cenário de confrontação.
Como se defende esta posição? De uma maneira realmente simples: A era mítica
dos Heroís gregos está findada, querendo isto dizer que em pleno século XXI poucos ou,
diria, quase ninguém, está disposto a prescindir da sua vida por uma certa ideia de glória
que se obteria no campo de batalha e/ou pela salvaguarda dos seus privilégios, unida com
a recusa da submissão por parte de exército invasor; seguindo o mesmo raciocínio, maior
parte, senão todos os países colonizadores, anularam as suas pretensões imperialistas do
passado e vivem hoje tranquilamente segundo uma política de acolhimento, inclusão e de
abertura social para com os indivíduos de outros países; a era dos Impérios e dos
Descobrimentos prescreveram e quase ninguém ousa levantar um plano político que
reavive as mentalidade do expansionismo e da dilatação do território. Os indivúdos, as
comunidades e as nações, abjetam singularmente a Guerra, quer tenham em consideração
a pespectiva humanista da vida, onde se acaba por valorizar os ideais que protegem o
valor e a dignidade das pessoas, quer se considere uma preocupação mais egoísta em
preservar o seu próprio modo de vida, esta, por sua vez, acompanhada de um conjunto de
condições propícias ao seu desenvolvimento. O medo da perda da nossa segurança, do
nosso conforto e da possibilidade de não poder prosperarmos no futuro próximo lança-
nos numa postura de desmotivação e de desalento em relação aos combates. Eis as razões
que apresento que tentam dar a entender o porquê desta mentalidade pacifista em relação

[178]
à Guerra, cobrindo tanto as motivações de foro mais humanitário sem, todavia, descurar
de uma visão mais egoísta do esquema.
Para concluir, restará apenas referir qual o papel é que os indivíduos comportam
no processo de decisão democrática quanto aos fenómenos de Guerra. De um ponto de
vista histórico, e cingindo-nos à terceira etapa que a Humanidade conseguiu conquistar,
é possível considerar um vário leque de perspectivas. Com a Revolução Francesa,
podemos verificar que com ou sem a presença de um mecanismo de organização
democrática, as multidões, se instigadas até ao seu limite, poderão, por vezes, insurgir-se
contra os seus governantes e/ou os seus “Capitães de Abril”; na iminência das ameaças
ideológicas do estrangeiro e perante a urgência de criar uniões que vissem a construção
de blocos coesos e articulados politicamente, os governantes de cada nação poderão, por
sua vez, criar estas organizações internacionais unilateralmente e sem o tácito
consentimento das suas populações. Bastará relembrar que tanto as organizações
internacionais como a Nato, as Nações Unidas, entre tantas outras que operam a um nível
intergovernamental não têm na chefia dos seus cargos, indivíduos eleitos
democraticamente pelas massas mundiais a nível nacional e/ou internacional. Os assuntos
que concernem a Defesa e a protecção das nações, apesar de passarem superficialmente
nos programas políticos aquando as épocas de eleições, não são pontos onde
verdadeiramente se toque e se dê o merecido destaque por parte dos mídia. Certamente
que se terá que considerar a posição que cada nação ocupa à escala mundial e, segundo
ela, averiguar a pertinência desses temas para as populações em geral.
Contudo, no seu essencial, creio que se poderá dizer que estes assuntos sofrem
uma alienação e/ou uma mitigação alargada no que diz respeito à informação prestada às
populações. Isto reflecte-se necessariamente na consciência que os indivíduos comportam
e na sua capacidade (ou falta dela) para poder com articular uma agenda política que
represente verdadeiramente as suas preocupações. Por ser, porventura, um aspecto mais
especializado da política, onde a opinião e o discernimento público poderia causar mais
problemas do que soluçõe, opta-se então pelo afastamento da interacção e do debate
público. O papel que os indivíduos comportam relativamente aos assuntos de Guerra,
neste momento, é praticamente nulo. Para que isso se altere (e antes de nos questionarmos
propriamente se se deve alterar) são necessários, pelo menos, dois cenários: a vontade
avassaladora por parte de cada povo para participar politicamente nestas decisões e a
facultação de tantos outros meios como o acesso à informação e à educação especializada
para enfrentar estes problemas.

[179]
Se houver esta possibilidade de participação política no futuro, haverá forçamente
um certo grau de civismo (ou “Contrato Social”) a acompanhar implicitamente estas
decisões. Se, por um lado, postularmos que os indivíduos estão preparados para tomar
estas responsabilidades, podendo decidir a posição que o seu país deve tomar em relação
às suas Guerras e aos conflicto situados longe das suas fronteiras, da mesma forma,
também se exigira uma atitude consistente com os seus ditames se se criar um mecanismo
de decisão democrática (como, por exemplo, através de um referendo) para averiguar o
curso de acção a tomar na eventualidade de se chegar a uma decisão pela maioria. Estou
mais inclinado a pensar que se se referendar uma posição de resistência e/ou agressão a
uma determinada entidade, quer seja esta uma comunidade quer seja esta uma nação
estrangeira, o que provavelmente acabaria por acontecer seria um desertar e um
desacatamento destas decisões em prol de um prospecto melhor de futuro que garantisse
a nossa sobrevivência acima de tudo. Restará esperar pela evolução dos tempos, da
História e das mentalidades dos indivíduos para que se possa afirmar com certezas qual
foi o próximo passo que a Humanidade decidiu tomar.

[180]
Bibliografia

Fontes Principais

SOROMENHO MARQUES, V. (1997) “Guerra e Racionalidade, O Futuro da Guerra


ou a Guerra Pelo Futuro”, Lisboa: Edições Colibri

HARDT, M,. NEGRI, A. (2005) “Multidão - Guerra e Democracia na Era do Império”.


Porto: CAMPO DAS LETRAS - Editores

ARENDT, H. (1990) “On Revolution”, London: Pinguin Books

PLATÃO. (1972), “A República”, Coimbra: Atlantida Editora

ARISTÓTELES. (1972) “The Polítics and The Constituition of Athens”, Cambridge:


University Press

Fontes Electrónicas

GOMIDES FREITES. L. (2014) “O Sal da Guerra: Padre António Vieira e as Tópicas


Teológico-jurídicas na Apreciação da Guerra Justa Contra os Índios.”, Uberlândia,
Acesso em: https://repositorio.ufu.br/handle/123456789/16319

[181]
Esta página foi intencionalmente deixada em branco

[182]
PARTE III
Brasil e Democracia

[183]
PARTE III
Brasil e Democracia

[184]
11. DEMOCRACIA, RETROCESSOS AMBIENTAIS E CARÁTER
CONTRAMAJORITÁRIO DA CONSTITUIÇÃO NO BRASIL

Pedro Curvello Saavedra Avzaradel

Rodrigo de Souza Tavares

Resumo: Às vésperas de completar 29 anos, a Constituição Brasileira ainda é considerada


uma das mais avançadas na seara ambiental. Sua edição, somada à reestruturação
constitucionalmente conferida aos órgãos da Administração Pública e do Ministério
Público e, ainda, aos imperativos da proteção ambiental, que seriam fortemente reiterados
poucos anos depois, na Conferência das Nações Unidas realizada no Rio de Janeiro, em
1992, foi decisiva para que o Direito Ambiental ganhasse, no Brasil, unidade e maior
efetividade. Esse arcabouço possibilitou a edição de normas infraconstitucionais
importantes, tais como a Lei de Crimes Ambientais e a Lei do Sistema Nacional de
Unidades de Conservação. Contudo, os últimos anos vêm demonstrando uma preocupante
tendência inversa. Antes tida, sobretudo, como um ponto de partida, capaz irradiar
orientações na elaboração, na aplicação e na revisão das normas jurídicas, visando uma
maior proteção ambiental, atualmente a Constituição tem cumprido preponderantemente
o papel de barreira impeditiva de retrocessos na legislação sobre meio ambiente, papel
este que, tudo indica, irá se intensificar nos próximos anos, inclusive em razão de alguns
projetos de emenda constitucional em pauta no Congresso Nacional. Nesse contexto,
torna-se primordial entender o significado e os limites do caráter contramajoritário da
Constituição. Para tanto, examinaremos as noções teóricas pertinentes ao tema do caráter
contramajoritario das decisões em sede de controle constitucional, os principais projetos
de lei e propostas de emenda à Constituição que, em nossa opinião, estabelecem
retrocessos ambientais.

Palavras-chave: Democracia – Retrocessos Ambientais –dificuldade contramajoritária


Pós-doutorado em Florestas, Clima e Energia pela Universidade Paris I. Doutor em Direito da Cidade
(UERJ). Professor Adjunto do Polo Universitário de Volta Redonda da Universidade Federal Fluminense
e docente do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional (PPGDC) da mesma Universidade.
Pesquisador do Grupo de Estudos em Meio Ambiente e Direito (GEMADI/UFF) e do Grupo de Pesquisa
Energias Renováveis, Descentralização e o papel dos Entes Federados da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro. pedroavzaradel@id.uff.br

Professor Adjunto do Departamento de Direito Público da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ). Doutor em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro (PUC-Rio). tavares_rodrigo_@hotmail.com

[185]
Introdução

A despeito de recentes tragédias ambientais e do crescimento da consciência sobre


a imprescindibilidade da preservação do meio ambiente em todo mundo, a agenda
legislativa brasileira parece andar na contramão da história. Neste artigo serão
apresentados alguns exemplos de retrocessos constantes de normas e projetos de normas
em tramitação no Brasil.
Considerando o forte caráter protetivo da Constituição da República Federativa
do Brasil, de 1988, pródiga na previsão de direitos fundamentais, surge questão sobre a
transformação desse documento numa barreira imposta às normas infraconstitucionais e
de reforma constitucional cujo intuito parece ser flexibilizar a tutela ambiental em nome
do maior dinamismo da atividade econômica. Partindo da análise de normas sobre
licenciamento ambiental, proteção de florestas, regulação de atividades desportivas e
culturais com animais e delimitação de terras indígenas, traçaremos um painel da
tendência retrógada contida na legislação brasileira.
Como poderemos observar, essa hipótese tangencia aspectos centrais da teoria
constitucional atinentes ao caráter contramajoritário das decisões em sede de controle de
constitucionalidade. A pergunta que se coloca é se a Corte Constitucional brasileira tem
legitimidade para barrar, ou pelo menos mitigar a redução de direitos fundamentais
prevista neste contexto.
Como será exposto, uma revisão inicial do acervo jurisprudencial do Supremo
Tribunal Federal, levanta algumas duvidas neste sentido. Ademais, a esperança de que o
controle de constitucionalidade fomente um diálogo qualificado entre as instituições
públicas e a sociedade civil será avaliada e criticada neste trabalho.
Por fim, o presente artigo representa um esforço antecipação da jurisprudência
ambiental do Supremo Tribunal, empreitada sempre sujeita à frustração imposta pela
realidade. Em síntese, nosso intuito foi problematizar questões de jurisdição
constitucional diante das vicissitudes da política ambiental brasileira atual.

1. Perspectivas no contexto das propostas de retrocesso

Perfeitamente normal e até cotidiano é o exercício do controle de


constitucionalidade e logo também o do papel contramajoritário das Cortes

[186]
Constitucionais. No Brasil não poderia ser diferente: atualmente já ultrapassamos a casa
das 5.700 Ações Diretas de Inconstitucionalidade ajuizadas, cabendo lembrar que tal
papel pode ser desempenhado também nos autos de Ações Declaratórias de
Constitucionalidade (ADCs) julgadas improcedentes1.
Parte dessas ações do chamado controle concentrado são dirigidas contra leis e
emendas constitucionais que buscam alterar o regime jurídico da proteção ambiental.
Ocorre, contudo, que nos últimos anos podemos observar um movimento deliberado por
parte das legislaturas do Congresso Nacional no sentido de flexibilizar e diminuir (ao
menos numa avaliação jurídico abstrata, o que nos interessa para fins de controle
concentrado) tal proteção. Mais do que a quantidade de propostas nesse sentido,
preocupa-nos igualmente que muitas sejam direcionadas a modificar conquistas e
institutos relevantes do Direito Ambiental no Brasil.
Embora alguns autores como Rogerio Rocco2 apontem a atual Lei de
Biossegurança (Lei 11.105/2005) como sendo o inicio da chamada fase retrógada do
Direito Ambiental, acreditamos que esse processo se inicia em 2012 com a edição do
atual Código Florestal. Isto porque entre os anos de 2005 e 2012 tivemos a aprovação de
algumas leis e emendas constitucionais importantes. Sem pretender esgotar os exemplos,
podemos citar no plano infraconstitucional a aprovação: da Lei de Gestão das Florestas
Publicas (Lei 11.284) e da Lei da Proteção do Bioma da Mata Atlântica (Lei 11.428) em
2006; da Política Nacional de Saneamento Básico (Lei 11.445) em 2007; da Política
Nacional de Mudanças Climáticas (Lei 12.187) em 2009 e da Política Nacional de
Resíduos Sólidos (Lei 12.305) em 2010; e, por fim, da Lei Complementar 140, no final
de 20113. No plano Constitucional podemos citar as emendas nº 48 de 2005 e nº 71 de
2012, que detalharam a proteção constitucional do patrimônio cultural.
Por sua vez, a partir de 2012 observamos que parte significativa das propostas de
alteração da legislação e até mesmo da proteção constitucional do ambiente passa a ser
direcionada a diminuição ou flexibilização desta. Daí porque se pode afirmar que, ao

1
Informações disponíveis em:
http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=5181381. Acesso em 12 mai.
2017.
2
ROCCO, Rogério G.. História da Legislação Ambiental Brasileira: um passeio pela legislação, pelo direito
ambiental e por assuntos correlatos. In: Ronaldo Coutinho; Flávio Ahmed. (Org.). Curso de Direito
Ambiental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 03-27.
3
Apesar das acertadas criticas feitas pela doutrina, inegável que a regulamentação das competências
comuns constitucionais trazidas pela Lei Complementar 140/2011 foi benéfica no sentido de diminuir a
insegurança jurídica existente no que tange ao exercício das atribuições ambientais pelos entes federados,
sobretudo das competências para a realização das ações de licenciamento e fiscalização.

[187]
menos em termos abstratos jurídicos, a tendência é de retrocesso na proteção jurídica
ambiental. Vale frisar que a proteção efetiva depende da implementação das leis
existentes, bem como do investimento publico na gestão, no monitoramento e nos
controles ambientais.
Marco inicial desta atual e preocupante fase, a aprovação do atual marco legal
florestal em 2012, além de trazer uma clara diminuição da proteção jurídica conferida às
florestas, ocorre num contexto totalmente avesso às pretensões do projeto de lei que fora
aprovado. A despeito de diversas manifestações por parte da academia, do terceiro setor,
de órgãos e agências do próprio Estado; mesmo após a tragédia da Região Serrana do
Estado do Rio de Janeiro em 2011 (com mais de mil mortos, centenas de desalojados e
desabrigados), na qual ficou evidente a importância de algumas normas do anterior
Código Florestal que acabariam revogadas ou flexibilizadas; não obstante estar o Brasil
às vésperas da realização da conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento
Sustentavel no Rio de Janeiro, conhecida como Rio +20; aprovou-se a Lei nº 12.651, de
25 de maio de 2012.
Nesse contexto, a aprovação com ampla margem desta lei claramente demonstrou
a intenção de setores do Congresso Nacional de levar a cabo uma pauta ou agenda política
que procura resolver problemas econômicos do Brasil com a diminuição de direitos
sociais e ambientais, mesmo que contra todas as evidências trágicas e cientificas dos
riscos envolvidos.
Cumpre destacar que o diploma em cotejo é questionado perante o Supremo
Tribunal por meio de 4 Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIS 4901, 4902, 4903
e 4937) 4 e sustentada por uma Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC 42).
Quando da conclusão deste artigo, todas essas ações se encontravam pendentes de
julgamento, passados praticamente 5 anos da publicação da lei 12.651/2012.
Neste contexto, um dos institutos mais visados por esta nova tendência consiste
no licenciamento ambiental, conceituado no artigo 2º da Lei Complementar nº 140/2011
como “o procedimento administrativo destinado a licenciar atividades ou
empreendimentos utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente
poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental” (BRASIL,
2011).

4
Confira-se AVZARADEL, Pedro Curvello Saavedra. Novo Código Florestal: enchentes e crise hídrica no
Brasil. Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2016.

[188]
Esta Lei Complementar conferiu ao art. 10 da Lei nº 6.938/1981 sua redação atual,
de acordo com o qual estão sujeitos ao licenciamento prévio “a construção, instalação,
ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadores de recursos
ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de
causar degradação ambiental” (Idem, Ibidem).

Pode-se dizer que o licenciamento ambiental é um instrumento de controle prévio de


atividades, com base em leis, regulamentos e normas técnicas, cujo objetivo é
compatibilizar o empreendimento com a tutela do meio ambiente equilibrado. Traduz
o preventivo exercício do Poder de Polícia Administrativa, concretizando importantes
princípios do Direito Ambiental como o da prevenção, o da precaução e do poluidor-
pagador (AVZARADEL, 2015, p. 616).

No ano de 2015, o Brasil presenciou o que se considera hoje o maior desastre


ambiental da historia pátria, resultado do rompimento da barragem da empresa Samarco,
localizada na Cidade de Mariana, no Estado de Minas Gerais. Mais de 30 milhões de
metros cúbicos de rejeitos de atividades de mineração ali antes represados foram
despejados no Rio Doce, causando sérios danos ambientais nos Estado de Minas Gerais
e do Espírito Santo. Este fato foi associado de forma clara às falhas no licenciamento e
na fiscalização da barragem em questão5.

Entretanto, o evento não arrefeceu, como poderia se esperar, o ânimo do


Congresso Nacional ou de Assembleias Estaduais de tornar mais flexível o regime do
licenciamento ambiental. Podemos citar, num primeiro momento, o Projeto de Lei nº 654
de 2015 e a Proposta de Emenda Constitucional nº 65, bem como a conversão em Lei
Estadual do Projeto de Lei 2946/16 em Minas Gerais, Estado no qual, como vimos,
localizava-se a barragem e onde sobrevieram parte significativa dos danos ambientais.

Apesar de existirem alertas sobre os riscos de rompimento da barragem, o acidente


aconteceu. A atividade estava com a licença de operação em processo de renovação
desde o ano de 2013, pendente de avaliação pelo Estado de Minas Gerais. A
fiscalização das condições da barragem, apesar de alertas terem surgido,
simplesmente não foi capaz de efetivar as melhorias necessárias e o cumprimento da
legislação aplicável, por exemplo, à segurança de barragens. Inexistia, por exemplo,

5
Confira-se a respeito AVZARADEL, Pedro Curvello Saavedra; FARIAS, Talden Q.; COUTINHO,
Isabela E. Cury. Breves apontamentos sobre a tragédia da Samarco. Fórum de Direito Urbano e Ambiental
(Impresso), v.1, p.31 - 47, 2016.

[189]
um Plano ou planejamento (obrigatório na legislação sobre barragens) para casos de
acidentes. Este exemplo é considerado hoje a maior tragédia ambiental do Brasil.
E o problema tende a piorar também neste particular. Isto porque, ao invés de reforçar
as normas de controle prévio de atividades, e, principalmente, sua efetivação e
implementação práticas, a saída encontrada pelos legisladores tem sido a de procurar
abreviar ao máximo o licenciamento - visto como mero entrave, pouco útil e, para
alguns, desnecessário. O que poderia ser um instrumento de planejamento e capaz,
inclusive, de gerar ganhos de eficiência para os empreendimentos, hoje se converte,
na grande parte dos casos, numa via sinuosa e vagarosa, compostas de pilhas de papel.
Em Minas Gerais, Estado no qual ocorreu a tragédia da Samarco, com claros indícios
de falhas no licenciamento ambiental do empreendimento (especificamente no que
tange aos riscos e medidas associados às barragens que romperam), foi aprovada em
janeiro de 2016 a Lei Estadual 21.972, que reestruturou o licenciamento ambiental no
aludido Estado.
A partir da citada lei estadual, esgotado o prazo legal de análise dos pedidos de licença
sem o pronunciamento do órgão ambiental competente, o processo de licenciamento
será "incluído na pauta de discussão e julgamento da unidade competente [...]
sobrestando-se a deliberação quanto aos demais assuntos" (art. 23). Este dispositivo
poderá importar em avaliações precipitadas de risco, principalmente em casos de
grande complexidade técnica.
No mesmo sentido, em âmbito nacional, tramita no Congresso Nacional o Projeto de
Lei do Senado PLS 654/2015, que pretende consagrar mecanismo semelhante e,
ainda, submeter a procedimento "mais ágil" atividades e empreendimentos
considerados estratégicos, os quais ficariam excluídos da obrigação de realizar
audiências públicas durante o licenciamento ambiental (AVZARADEL, 2016b,
p.181).

Continua em tramitação no Senado Federal o Projeto de Lei 654/20156. Já a


Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 65/2012 encontra-se no momento no
aguardo do agendamento de uma audiência publica. Diversos ofícios foram recebidos até
então pelo Senado Federal, com manifestações e moções de repúdio acerca do projeto7.
Conforme a descrição ou ementa desta PEC, caso aprovada seja acrescentara o
seguinte parágrafo 7º ao artigo 225: “a apresentação do estudo prévio de impacto
ambiental importa autorização para a execução de obra, que não poderá ser suspensa ou
cancelada pelas mesmas razões a não ser em face de fato superveniente” (BRASIL, 2012).

6
Informações disponíveis em http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/123372.
Acesso em12 mai. 2017.
7
Informações disponíveis em http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/109736.
Acesso em 12 mai. 2012.

[190]
Em breves linhas, essa proposta transforma o Estudo Prévio de Impacto Ambiental
- feito sob responsabilidade do empreendedor na fase prévia ou preliminar do
licenciamento, sem qualquer analise ou aprovação pelo Poder Publico - em autêntica
licença de implementação, blindada contra eventuais atos administrativos que a procurem
suspender, a menos que haja fato antes desconhecido. Os riscos da adoção dessa regra em
empreendimentos como as barragens de rejeitos favorecerão a ocorrência de novas
tragédias como a de Mariana/MG.
Ainda no que tange ao licenciamento ambiental, podemos citar também o projeto
que procura estabelecer a Lei Geral do Licenciamento – o Projeto de Lei nº 3.729/2004.
Este projeto possui, atualmente, 18 outras proposições apensas, sendo 10 posteriores a
2012 e 8 anteriores. Atualmente o PL se encontra na Comissão de Finanças de
Tributação8.
Dentre as previsões que merecem destaque estão: a renovação sucessiva e
automática das licenças ambientais mediante formulário preenchido pela internet quando
os empreendimentos e a legislação aplicável não tenham sofrido alterações; uma lista de
atividades que estão dispensadas do licenciamento ambiental de forma geral e abstrata; a
possibilidade de o empreendedor contestar as condicionantes impostas pelo Poder Publico
após a expedição da licença; o fim da exigência de apresentação de certidão de
compatibilidade com o as regras de uso e ocupação do solo (Brasil, 2017).
Ao comentar as proposições que buscam alterar o licenciamento ambiental após a
tragédia de Mariana/ME, a professora Ana Maria de Oliveira Nusdeo assim se posiciona:

A aprovação de Projetos de lei que defendem, não o aperfeiçoamento do


licenciamento ambiental, mas sua flexibilização não representa apenas um retrocesso
à proteção ambiental, também passará longe da desejada celeridade e segurança
jurídica desejada pelos empreendedores.
(...)
Por fim, cabe acrescentar que o licenciamento não será célere; juridicamente seguro
ou eficaz para garantir a proteção ambiental se não houver investimento na capacidade
técnica dos órgãos licenciadores e da geração de adequadas informações ambientais.
O seu fortalecimento e adequado orçamento para suas funções são medidas tão
importantes quanto possíveis alterações legislativas (NUSDEO, 2017).

8
Informações disponíveis em
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=257161. Acesso em 12 mai.
2012.

[191]
Como bem coloca a autora, a única forma de conjugar o principio da prevenção
com a desejada celeridade é através de investimentos públicos nos órgãos e entidades do
Poder Publico que se dedicam à condução do licenciamento ambiental e à expedição das
licenças.
Não obstante, as propostas de alteração da proteção ambiental não se restringem
apenas ao licenciamento ambiental. Sem a intenção de esgotar todos os debates possíveis,
traremos neste artigo mais dois exemplos: a questão dos povos originários (vulgarmente
conhecidos como indígenas) e a relação entre os animais não humanos e as práticas que
são consideradas como sendo culturais/esportivas (em especial a chamada vaquejada).
Sobre primeira questão, cumpre destacar que:

(... ) o final do texto constitucional, precisamente os artigos 231 e 232, traz o


regime de proteção dos indígenas, aos quais se reconhece o direito originário
sobre as terras tradicionalmente por eles. Ocupadas, necessárias à manutenção
do seu modo de vida e do equilíbrio ambiental desses espaços, garantindo os
recursos naturais dos quais dependem. Essas terras integram o domínio da
União, nos termos do artigo 20, inc. XI.
(…)
Consagra o texto Constitucional, em favor deles, a posse e o usofruto
permanente dessas terras (§ 2°), que devem ser demarcadas pela União
Federal. Ainda, essas terras “são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos
sobre elas, imprescritíveis” (§ 4°).
(...)
Veda-se no Texto Maior a remoção dos povos indígenas das terras tradicio-
nalmente por eles habitadas, “salvo, ‘ad referendum’ do Congresso Nacional,
em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no
interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional,
garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato tão logo cesse o risco” (§
5°).
Pela leitura do dispositivo parece claro que os indígenas apenas poderão ser
removidos de suas terras em caráter excepcional e temporário, quando houver
risco grave o bastante para eles ou para a soberania do País (por exemplo, em
regiões de fronteira), o que reforça o dever do Estado de respeitar a posse e o
uso por eles das terras que tradicionalmente habitam (AVZARADEL, 2016b,
p. 163-164).

[192]
No caso dos povos originários, cumpre sublinhar os projetos de Lei e de Emenda
à Constituição que procuram modificar os mecanismos através dos quais são demarcadas
as terras reconhecidas como sendo a esses pertencentes. Isto porque, muitas vezes, eles
foram expulsos dessas terras, hoje sendo as mesmas ocupadas por pessoas que se
dedicam, na maior parte dos casos, a atividades agropecuárias.
Certo número de Propostas de Emenda Constitucional procura transferir do Poder
Executivo, que atua através da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), para o Legislativo
a competência para aprovar a demarcação das terras pertencentes a povos originários.
Podemos citar a PEC 215/2000 e as outras 11 propostas até o momento a ela apensadas9.
Outra proposta de Emenda Constitucional, a PEC 45/2013 foi proposta no Senado Federal
e prevê a impossibilidade de demarcação de terras indígenas em áreas “invadidas”10. No
plano infraconstitucional, o Projeto de Lei nº 490/2007 procura estabelecer regra idêntica,
possuindo igualmente 11 proposições apensas11.
Por fim, não podemos deixar de citar a questão da chamada vaquejada. Deixamos
este exemplo por ultimo pela singularidade de haver uma decisão do Supremo Tribunal
Federal que declara tal pratica cultural/desportiva como inconstitucional:

O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) julgou procedente a Ação Direta de


Inconstitucionalidade (ADI) 4983, ajuizada pelo procurador-geral da República
contra a Lei 15.299/2013, do Estado do Ceará, que regulamenta a vaquejada como
prática desportiva e cultural no estado. A maioria dos ministros acompanhou o voto
do relator, ministro Marco Aurélio, que considerou haver “crueldade intrínseca”
aplicada aos animais na vaquejada.
O julgamento da matéria teve início em agosto de 2015, quando o relator, ao votar
pela procedência da ação, afirmou que o dever de proteção ao meio ambiente (artigo
225 da Constituição Federal) sobrepõe-se aos valores culturais da atividade
desportiva.
Em seu voto (leia a íntegra), o ministro Marco Aurélio afirmou que laudos técnicos
contidos no processo demonstram consequências nocivas à saúde dos animais:
fraturas nas patas e rabo, ruptura de ligamentos e vasos sanguíneos, eventual

9
Informações disponíveis em
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=14562 . Acesso em 8 mai.
2017.
10
Informações disponíveis em http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/114322 .
Acesso em 8 mai. 2017.
11
Informações disponíveis em
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=345311. Acesso em 8 mai.
2017.

[193]
arrancamento do rabo e comprometimento da medula óssea. Também os cavalos, de
acordo com os laudos, sofrem lesões.
Para o relator, o sentido da expressão “crueldade” constante no inciso VII do parágrafo
1º do artigo 225 da Constituição Federal alcança a tortura e os maus-tratos infringidos
aos bois durante a prática da vaquejada. Assim, para ele, revela-se “intolerável a
conduta humana autorizada pela norma estadual atacada”.
Na mesma ocasião, o ministro Edson Fachin divergiu do relator e votou pela
improcedência da ação. Para ele, a vaquejada consiste em manifestação cultural, o que
foi reconhecido pela própria Procuradoria Geral da República na petição inicial. Esse
entendimento foi seguido, também naquela sessão, pelo ministro Gilmar Mendes. Na
sessão de 2 de junho deste ano, os ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e
Celso de Mello seguiram o relator. Já os ministros Teori Zavascki e Luiz Fux seguiram
a divergência, no sentido da validade da lei estadual.
O julgamento foi retomado na sessão desta quinta-feira (6) com a apresentação do
voto-vista do ministro Dias Toffoli, favorável à constitucionalidade da lei cearense.
Ele entendeu que a norma não atenta contra nenhum dispositivo da Constituição
Federal. “Vejo com clareza solar que essa é uma atividade esportiva e festiva, que
pertence à cultura do povo, portanto há de ser preservada”, disse. Segundo o ministro,
na vaquejada há técnica, regramento e treinamento diferenciados, o que torna a
atuação exclusiva de vaqueiros profissionais.
Na sessão de hoje, também votaram os ministros Ricardo Lewandowski, e a
presidente da Corte, ministra Cármen Lúcia, ambos pela procedência da ação.
Dessa forma, seguiram o relator os ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber,
Ricardo Lewandowski, Celso de Mello e a presidente da Corte, ministra Cármen
Lúcia. Ficaram vencidos os ministros Edson Fachin, Teori Zavascki, Luiz Fux, Dias
Toffoli e Gilmar Mendes12.

Cumpre destacar que o citado inciso VII do § 1º do artigo 225, veda praticas
cruéis, que ameacem espécies de extinção ou suas funções ecologias e

“por mais óbvio que seja, que se trata de vedações constitucionais, sem exceção. No
plano infraconstitucional, tanto a pesca no período de reprodução das espécies (prática
que gera risco de extinção) quanto o tratamento cruel dos animais não humanos
consistem em crimes ambientais” (AVZARADEL, 2016b, p. 146)

Após o julgamento, ocorrido em 6 de outubro de 2010, o Congresso Nacional


intensificou a tramitação de projetos de lei e propostas de emenda constitucional no

12
Informações disponíveis em
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=326838&caixaBusca=N . Acesso em
8 mai. 2017.

[194]
sentido de declarar constitucional o que fora dito incompatível com a Constituição. No
final do mês seguinte à decisão, foi aprovada a Lei nº 13.364, que declara a vaquejada,
dentre outras praticas, como patrimônio cultural nacional imaterial (BRASIL, 2016a).
Além disso, existem 2 propostas de emenda constitucional em intensa tramitação
no Congresso Nacional sobre o mesmo assunto. As PECs 270/2016 e 304/2017 tramitam
em regime especial (e acelerado). A primeira procura inserir os §§4º e 5º no artigo 215
da Constituição (que disciplina a proteção de manifestações culturais pelo Estado) para
fazer constar o seguinte:

§ 4º Os rodeios e vaquejadas, e expressões artístico-culturais decorrentes, serão


preservados como patrimônio cultural imaterial brasileiro.
§ 5º A prática da modalidade esportiva das manifestações da cultura nacional previstas
no §4º deste artigo serão asseguradas, na forma em que dispuser a Lei (BRASIL,
2016b).

Por sua vez, a PEC 304/17, pretende acrescentar o § 7º ao artigo 225 da


Constituição (que traz o capitulo sobre o meio ambiente) pra que conste o seguinte:

§ 7º - para fins do disposto no final do inciso VII do §1º deste artigo, não se
consideram cruéis as praticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam
manifestações culturais, conforme o §1º do art. 215 – registradas como bem de
natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser
regulamentadas por lei especifica que assegure o bem-estar os animais envolvidos
(BRASIL, 2017b).

Embora não tenhamos encontrado as razões justificadoras da PEC 304/2017, a


PEC 270 traz a devida justificativa cujo texto menciona expressamente a decisão
proferida pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 4983. Menciona a motivação da
proposta o fato do julgamento não ter sido unânime, nos seguintes termos:

A margem estreita do resultado, com apenas um voto de maioria, demonstra


que o tema está longe de alcançar consenso, divergências que ultrapassam o
foro do Tribunal. E a força vinculante que resulta dessa decisão, permitindo
que a vedação à realização das vaquejadas se estenda para todas as regiões do
Brasil, a despeito do debate popular, representa verdadeiro extermínio da
herança secular do modo de viver e de fazer dos vaqueiros e sertanejos
(BRASIL, 2016b).

[195]
Conforme informações da Câmara dos Deputados, as propostas foram aprovadas
em primeiro turno no dia 10/05, o que nos leva a crer que em breve a emenda poderá ser
promulgada. Conforme noticia do portal oficial da citada instituição:

Misto de esporte e atividade cultural herdada de antigas técnicas do manejo


do gado no sertão nordestino, a vaquejada consiste atualmente na derrubada
de um boi pela cauda por dois cavaleiros e é praticada em pistas de areia
espalhadas por todo o país.
Ao julgar a constitucionalidade da Lei 15.299/2013, do Estado do Ceará, que
regulamentava a vaquejada, acrescentando-lhe procedimentos de segurança
para os bois, o Supremo Tribunal Federal (STF) firmou, em outubro do ano
passado, o juízo de que a atividade é intrinsecamente cruel para com os
animais, entendimento revertido agora pela PEC13.

A nosso ver, a questão central que se coloca é: seria possível que uma emenda
constitucional seja aprovada após uma decisão do Supremo Tribunal Federal que, com
fundamento no texto original da Carta Magna, entendeu ser a pratica da vaquejada
inconstitucional? Mais do que isso, poderia o Congresso Nacional reverter a
jurisprudência firmada (AVZARADEL, 2016b, p. 146) em outros casos como os das
rinhas de galo e da farra do boi, no sentido de que as praticas culturais somente são
aceitáveis se respeitadas a vedação constitucional de maus tratos aos animais? Por fim,
no que interessa em especial ao discutido acima, em que medida a decisão do Supremo
Tribunal Federal nos autos da ADI 4983 favoreceu um debate qualificado sobre o tema?

2. Diálogos e Conflitos entre Poderes: impasses criados pela agenda de


retrocessos ambientais.

As questões levantadas acimam expõem os impasses criados pelo exercício da


jurisdição constitucional. A relação entre um regime democrático e o poder atribuído aos
Tribunais para aferir a compatibilidade entre leis e a Constituição, eventualmente
declarando a nulidade daquelas, é uma verdadeira fratura entre as placas tectônicas que
formam os Estados Constitucionais contemporâneos. Como explicar a derrogação da

13
Informação disponivel em
http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/05/11/constitucionalidade-da-vaquejada-avanca-na-
camara. Acesso em 13 mai. 2017.

[196]
vontade da maioria da população, manifestada através de seus representantes eleitos,
mediante uma decisão exarada por um painel de juízes não eleitos?
Este impasse foi denominado por Alexander Bickel (1986) de “dificuldade
contramajoritária”, termo lapidar que ganhou amplo uso na teoria constitucional.
Diversos estudiosos do Direito Constitucional consideram, a exemplo de Roberto
Gargarella (2011), o controle de constitucionalidade como algo que desafie a capacidade
de autodeterminação e o princípio majoritário, bases de um sistema democrático.
Na tentativa de aliviar essa tensão, muitas teorias foram criadas para buscar fundar
a chamada legitimidade democrática da jurisdição constitucional. É bastante difundida a
dicotomia entre teorias substancialistas (DWORKIN, 2003), que veem na jurisdição
constitucional um instrumento para defesa de valores nucleares da sociedade, positivados
na Constituição, e procedimentalistas (ELY, 1980), que veem nesta apenas uma
ferramenta para garantia do procedimento democrático, independente do conteúdo
valorativo que é veiculado neste procedimento. Desta maneira, o aprofundamento teórico
da polêmica sobre o caráter contramajoritário da jurisdição constitucional mostra que o
paradoxo que opõe, de um lado, tribunais e a defesa de direitos, e do outro, legisladores
e a representação democrática, é fundado em falsas premissas.
Uma tendência crescente no âmbito da teoria constitucional tem sido a defesa de
modelos dialógicos ou cooperativos da jurisdição constitucional. Neste sentido, ao invés
de se buscar um órgão responsável por fornecer a última palavra no que diz respeito à
interpretação da Constituição, é dada ênfase ao diálogo interinstitucional e social oriundo
de decisões de grande repercussão na esfera do controle de constitucionalidade
(BATEUP, 2005).
Alguns países, como o Canadá, por exemplo, preveem mecanismos explícitos de
reversão parlamentar de decisões judiciais tomadas em sede de controle de
constitucionalidade. Noutros, como a Nova Zelândia, a natureza fraca dos mecanismos
de controle de constitucionalidade, calcado apenas numa espécie de declaração de
inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade, forçam uma maior interlocução entre
tribunais e parlamento, garantindo ainda assim níveis de proteção dos direitos
fundamentais similares aos de países nos quais os Tribunais receberam a competência
institucional para declarar em definitivo a inconstitucionalidade (TUSHNET, 2003).
Em questões fundamentais de moralidade política de uma comunidade é rotineiro
perceber que os pronunciamentos dos tribunais são frequentemente seguidos por amplo
debate público e, por vezes, por medidas legislativas visando influenciar ou modificar a

[197]
regulação definida pelo Poder Judiciário. Na história constitucional americana, pode ser
destacada a repercussão do Caso Roe vs. Wade, apenas um ponto de inflexão nos
acaloradas debates entre “defensores da vida” ou da “liberdade de escolha individual”14.
Estes diálogos em torno do real significado da Constituição representam uma
possibilidade de amadurecimento deliberativo e exercício público da razão por diferentes
atores, quando bem conduzidos. Considerando a existência do pluralismo de valores nas
sociedades contemporâneas (RAWLS, 2000) essa abertura ao diálogo e à cooperação
reforça o caráter democrático da jurisdição constitucional, ao ponto de que, para alguns
autores, seria melhor falarmos em “oportunidade” ao invés de “dificuldade
contramajoritária” (FEREJOHN, PASQUINO, 2010). Nas palavras de FEREJOHN e
PASQUINO:

“The emphasis on judicial conformity neglects the fact that in most cases, it
was a decision by the Court that set the public debate going, and that the Court
itself played a major role in laying out the terms under which public arguments
are made and judged.
(…)
In effect, then, constitutional history is a stage on which these three actors
interact, and where the countermajoritarian power of the court is the power to
force the other actors to deliberate again about what to want or do
(FEREJOHN, PASQUINO, 2010, p. 358; 365)”.

No Brasil, embora o art. 102 da CRFB de 1988 atribua ao Supremo Tribunal


Federal (STF), órgão de cúpula do Judiciário, o papel de guardião da Constituição, não
existem óbices para que essa função seja executada em cooperação com os demais
Poderes, ao contrário, isto é o que se espera de um sistema constitucional fundado na
independência e harmonia entre os Poderes. No acervo de decisões do STF, encontram-
se alguns exemplos nos quais o significado da interpretação constitucional foi desafiado
por atos legislativos posteriores (TAVARES et. al, 2010).
Isso ocorreu, por exemplo, com a decisão do STF no Recurso Extraordinário
197.917/, julgado em 2002, cujo mérito versava sobre o limite do número de vereadores
em comparação ao número de habitantes de um município. A decisão em tela redundou

14
Para uma exposição pormenorizada sobre a questão dos direitos fundamentais e do aborto nos E.U.A.
ever Dworkin (2003).

[198]
na redução de 11 vagas na Câmara Municipal de Mira Estrela e forneceu uma regulação
detalhada para aferir a proporção razoável entre população e representantes no legislativo
municipal. Em resposta à decisão do Supremo, o Congresso Nacional promulgou em 2009
a Emenda Constitucional nº 58, estabelecendo 24 faixas de proporção para o número de
vereadores. Na prática, a medida redundou num aumento das câmaras municipais em todo
país, em sentido inverso ao pretendido pela decisão do STF.
Noutro caso, o Supremo explicitamente enfrentou a questão relativa à
possibilidade de superação legislativa dos seus entendimentos em matéria de
interpretação constitucional. Tratava-se de discussão atinente ao foro por prerrogativa de
função. Em diversos julgamentos, o Tribunal entendeu que o foro especial só gera efeitos
durante o exercício da função pública que o impõe, cessando após o fim de seu exercício.
Tal entendimento cancelava aquele previsto na súmula 394 do STF. Em resposta, o
Congresso Nacional editou a Lei nº10.628/10, que restaurava o entendimento contido na
súmula 394. Desta feita, calcando-se na ideia de supremacia constitucional, o STF
pronunciou-se na ADI 2797/DF pela impossibilidade de revisão legislativa dos seus
entendimentos. Posição assim resumida na fundamentação do aresto:

Certo, a Constituição não outorgou à interpretação constitucional do Supremo


Tribunal o efeito de vincular o Poder Legislativo, sequer no controle abstrato da
constitucionalidade das leis, quando as decisões de mérito só terão força vinculante
para os “demais órgãos do Poder Judiciário e Poder Executivo”. Menos ainda cabe
cogitar de vinculação do Legislativo às decisões do STF que diretamente aplicam a
Constituição aos fatos: ao contrário das proferidas no controle abstrato de normas, são
acórdãos que substantivam decisões tipicamente jurisdicionais, de alcance restrito às
partes. O ponto está em que às leis ordinárias não é dado impor uma dada interpretação
da Constituição. A circunstância de que a interpretação constitucional convertida em
lei ordinária contrarie a jurisprudência do Supremo Tribunal – guarda da Constituição
– não é, assim, determinante, por si só, da inconstitucionalidade, embora evidencie o
desconcerto institucional a que pode conduzir a admissão da interpretação da
Constituição por lei ordinária.

Como podemos observar a possibilidade de diálogo em torno da construção do


significado da Constituição é uma realidade no Brasil. Sendo precipitado creditar ao STF
a prerrogativa de conferir a última palavra em matéria constitucional. Todavia, a
oportunidade dialógica parece estar dando azo a “entreveros institucionais”, resolvidos

[199]
prioritariamente por argumentos de inconstitucionalidade formal, cuja substância é muito
tênue para fomentar um debate qualificado na esfera pública.
Sendo assim, as perspectivas para o exercício do caráter contramajoritário da
jurisdição constitucional no contexto das propostas de alteração da legislação e das
normas constitucionais ambientais não são lá muito promissoras. Imaginar que o STF irá
realizar um controle qualificado da constitucionalidade de normas constitucionais
ambientais derivadas, tais como as emendas constitucionais que visavam declarar a
vaquejada parte do patrimônio cultural brasileiro, parece superrogatório diante das
capacidades institucionais e do histórico decisional deste Tribunal. Por outro lado,
podemos esperar uma atuação mais incisiva no que tange à fiscalização da
constitucionalidade de normas ambientais infraconstitucionais que representem
retrocessos ambientais. Por fim, cumpre ressaltar que o marco definidor desta relação se
dará no campo da política. Afinal, como afirmam Ferejohn e Pasquino (2010), por maior
poder formal que seja atribuído a uma Corte no no controle de constitucionalidade, suas
opiniões tendem a se conciliar àquelas da opinião pública. Mesmo quando
manifestamente contrárias à vontade da maioria, elas tendem a convergir numa síntese
dialética que envolve instituições e atores sociais.

Conclusões

Como vimos, diversas podem ser as visões sobre o exercício pelas cortes
constitucionais do chamado controle de constitucionalidade. Se, de um lado, muitos
autores vislumbram uma dificuldade contramajoritaria e um autêntico desafio ao regime
democrático, outros estudiosos enxergam nas decisões atinentes a tal controle uma
oportunidade de reforço dos debates e diálogos com outros atores da sociedade.
Hodiernamente, a conjuntura política e econômica brasileira tem se traduzido
também numa tendência de diminuição de direitos. Nesse contexto, institutos centrais do
Direito Ambiental tais como o licenciamento, assim como a demarcação de terras
indígenas para povos originários (cotidianamente delas expulsos) e as vedações de
tratamento cruel aos animais não humanos (habitualmente envolvidos em praticas
culturais e desportivas com caráter econômico) passam a ser objeto de diversas propostas
de emenda constitucional e de numerosos projetos de lei. Mesmo diante de todas as
evidências do momento critico que passamos no que tange às questões climáticas e
ambientais, essa agenda prossegue com passos firmes e acelerados.

[200]
Considerando a jurisprudência aqui compartilhada, não nos parece provável que
o Supremo Tribunal declare a maior parte das emendas aqui mencionadas como
inconstitucionais – ponto no qual esperamos estar enganados. Por essa razão, será de vital
importância que a sociedade civil participe do debate e se coloque claramente à favor da
proteção ambiental perante a classe política.
De outro lado, acreditamos que a Suprema Corte exercera um controle mais
vigoroso sobre os projetos de lei que buscam alterar a legislação ambiental trazendo em
termos abstratos cristalinos retrocessos no que tange è proteção do meio ambiente
ecologicamente equilibrado enquanto direito fundamental. Mas aqui convém lembrar que
muitos desses projetos de lei estão associados a propostas de emendas constitucionais
sobre a mesma temática e em tramitação veloz no Congresso Nacional, o que nos remete
ao primeiro problema e, novamente, à necessidade de um debate publico plural e de uma
manifestação clara da opinião publica em sentido contrario aos anseios de redução e
fragilização da proteção socioambiental.

[201]
Referências:

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___. Lei 13.364, de 29 de novembro de 2016. Eleva o Rodeio, a Vaquejada, bem como
as respectivas expressões artístico-culturais, à condição de manifestação cultural nacional
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___. Proposta de Emenda Constitucional n. 270/2016. Acrescenta parágrafo § 4º ao art.
215 da Constituição Federal, para preservar rodeios e vaquejadas, e expressões artístico-
culturais decorrentes, como patrimônio cultural imaterial brasileiro, assegurada a sua
prática como modalidade esportiva, na forma da Lei. Disponível em
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1501437&fil
ename=PEC+270/2016. Brasília: 2016b. Acesso em 12 mai 2017.

[202]
___. Proposta de Emenda Constitucional 65/2012. Acrescenta o § 7º ao art. 225 da
Constituição Federal para assegurar a continuidade de obra pública após a concessão da
licença ambiental. Disponível em
http://legis.senado.leg.br/diarios/BuscaDiario?tipDiario=1&datDiario=14/12/2012&pagi
naDireta=71121 . Acesso em 10 mai. 2017.
___. Lei Complementar 140, de 8 de dezembro de 2011. Fixa normas, nos termos dos
incisos III, VI e VII do caput e do parágrafo único do art. 23 da Constituição Federal, para
a cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios nas ações
administrativas decorrentes do exercício da competência comum relativas à proteção das
paisagens naturais notáveis, à proteção do meio ambiente, ao combate à poluição em
qualquer de suas formas e à preservação das florestas, da fauna e da flora; e altera a Lei
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27.
TAVARES, Rodrigo S. et al. Diálogos institucionais e ativismo. Curitiba: Juruá, 2010.

[203]
Esta página foi intencionalmente deixada em branco

[204]
12. O PODER DA MÍDIA E SEUS EFEITOS NOS REGIMOS
DEMOCRÁTICOS LUSO-BRASILEIROS

Daniella Raquel Tigre Silva1

Noemi Pereira Pinheiro2

Resumo: Por meio do presente artigo busca-se investigar o papel da mídia e seus
impactos nos regimes democráticos luso-brasileiro. Para tanto, em um primeiro momento,
será analisado o surgimento da mídia e seu fortalecimento enquanto instrumento
formador da opinião pública, sobretudo nos países objeto deste estudo, qual sejam, Brasil
e Portugal. Posteriormente, será estudado o papel midiático tanto no processo de
fortalecimento da Democracia, quanto no seu enfraquecimento nos respectivos países.
Será examinada também neste estudo a parcialidade das notícias divulgadas nos meios de
comunicação e a forma como a população recebe-as, sempre empregando o mais alto grau
de confiabilidade e veracidade nas informações veiculadas. Por fim, será realizada uma
análise crítica dos pontos controvertidos levantados ao longo do estudo, como por
exemplo, a manipulação midiática da população e sua utilização como massa de manobra
a serviço dos interesses de determinados grupos que detêm o poderio político, econômico
e dos meios de comunicação. A metodologia adotada baseia-se em um estudo
bibliográfico doutrinário. Os resultados demonstram que a veiculação midiática constante
de falhas do sistema de governo democrático acabam por enfraquecê-lo, bem como abrem
precedentes ao florescimento dos ideais totalitários no imaginário popular.

Palavras-chave: Democracia. Mídia. Política. Totalitarismo.

1
Aluna de licenciatura da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Primeira colocada geral no
concurso de estagiários do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (2014).
2
Aluna de Licenciatura pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Autora do artigo intitulado
“Imunidades Parlamentares” publicado na Revista da Assembleia Legislativa de Minas Gerais no ano de
2017.

[205]
1. Introdução

O presente artigo tem como objetivo uma análise do papel da mídia e de seus
efeitos nos regimes democráticos luso-brasileiro.
Inicialmente, será realizada uma breve análise histórica do surgimento da mídia,
especialmente no Brasil e em Portugal.
Posteriormente, investigaremos o poder da mídia enquanto quarto poder,
instrumento formador da opinião pública e, nas palavras de Machado, sua assunção na
“posição de ‘protetores da verdade’, estabelecendo assim seu poder e autoridade moral,
acima das instituições e quedando-se imune às críticas.”3
Em seguida, teceremos considerações acerca da manipulação, ausência de
parcialidade nos meios de comunicação e a utilização dos meios de comunicação a serviço
dos interesses dos grupos de hegemonia político-econômica dos países em questão.
Também será abordada a mídia no tocante à sua função comunicadora de ser uma
espécie de canal utilizado pela sociedade para a expressão de seus anseios coletivos.
E por fim, faremos uma análise crítica acerca da mídia e de seus desdobramentos
no regime de governo democrático.

2. O surgimento da mídia em Portugal e no Brasil: breves considerações.

O termo “imprensa” abrange na atualidade a imprensa escrita, radio- difundida,


tele-difundida, bem como aquela veiculada por meio da rede mundial de computadores.
Entretanto o termo deriva da “prensa móvel”, processo gráfico de impressão de jornais
escritos, aprimorado por Johannes Gutenberg em meados do século XVI.
Em Portugal, o início da imprensa escrita e periódica deu-se com a publicação das
chamadas “Gazetas da Restauração” em 1641. Já no ano de 1820 pode-se demarcar o
início da imprensa de opinião no país. Contudo, a efetiva organização industrial da
imprensa portuguesa ocorreu definitivamente apenas no ano de 1865. (Tengarrinha,
2013).
Quanto ao Brasil, sabe-se que o surgimento da indústria jornalística ocorreu de
forma tardia, tendo em vista a política colonial restritiva de Portugal que proibia a
impressão de livros e jornais em solo brasileiro. Sendo assim os primeiros jornais, “o

3
Machado, 2004, p.119.

[206]
Correio braziliense” e a “Gazeta do Rio de Janeiro”, surgiram apenas a partir de 1808
com a transferência da corte portuguesa para o Brasil. (Azevedo, 2006).
Apesar disso, “o Correio braziliense” era editado e distribuído a partir de Londres,
pelo que pode-se considerar que a “Gazeta do Rio de Janeiro” foi o primeiro jornal
efetivamente impresso no Brasil. Vale dizer que este último limitava-se à publicação dos
decretos da Corte e à cobertura das atividades da família real exilada no Brasil. (Azevedo,
2006).

3. Mídia como quarto poder.

Com efeito, não há como falar em política, sequer em democracia, sem falar em mídia,
uma vez que esta é considerada nos dias de hoje, uma espécie de quarto poder, ou até
mesmo “supra poder” por alguns autores, tendo em vista sua forte influência sobre os
demais poderes. (Guareschi, 2007).
De qualquer maneira, não há dúvidas de que a mídia mudou a política, no que diz
respeito a pelo menos dois aspectos relevantes. (Sartori, 1992 cit. in Singer, 2001).
Primeiramente, a mídia determina os temas sobre os quais recairá a atenção pública e
também é ela que decide o que deve ser dito, ou não, exercendo assim uma forte influência
na formação da opinião pública. (McCombs e Shaw, 1972 et al cit. in Singer, 2001).
Em segundo lugar, a mídia mudou a disputa eleitoral, substituindo os partidos
políticos em sua função comunicadora, em maior ou menor grau. (Rubin, 1981 cit in
Singer, 2000 ).

3.1 O poder simbólico

A comunicação se estrutura como ponto central para qualquer sociedade, sendo a


mais básica e vital de todas as necessidades, estando presente desde os tempos mais
remotos, até a atualidade, conforme afirma Dr. Lair Ribeiro, em seu livro Comunicação
global “a mágica influência da neurolinguistica aplicada à comunicação”.
Assim, utilizamos a linguagem em todos os âmbitos da vida humana, tornando-se
um meio indispensável para a constituição de uma sociedade e sua evolução

Comunicação é a mais básica e vital de todas as necessidades, depois da sobrevivência


física. Mesmo para se alimentar, desde os tempos pré-históricos, os homens

[207]
precisaram se entender e cooperar uns com os outros, através da comunicação
interpessoal ( RIBEIRO, Lair, 1993, pág. 11).

Bourdieu, em seu livro “o poder simbólico”, tendo como base a tradição neo-
kantiana, insere a linguagem como espécie dentro do gênero “sistemas simbólicos”, os
quais se compõe pelo mito, arte, ciência e língua4. Além disso, ressalta sua
instrumentalidade para a produção de conhecimento e construção do mundo dos objetos.
Diante disso, observa-se a visão dos símbolos como elementos ativos na
construção do mundo social, superando a teoria passiva da linguagem, a qual serviria
apenas como meio de descrição da realidade.
Ribeiro, em seus estudos, conclui de forma semelhante a Bourdieu, afirmando que
“é uma ilusão pensar que usamos a linguagem para descrever a realidade. O que ocorre é
exatamente o oposto: linguagem cria realidade. Eu estou criando uma realidade para você,
que está lendo este livro”. 5
No entanto, o que se entende por realidade, e de que modo podemos perquiri-la?
Conforme Guareschi, deve-se entender por real “o que existe, o que tem valor, o
que traz respostas, o que legitima e dá densidade significativa ao nosso cotidiano”6. Aqui,
nota-se a importância dos meios de propagação e disseminação dos símbolos, tais como
a mídia, vez que, ainda nas palavras do autor “hoje algo passa a existir ou deixa de existir,
sociologicamente falando, se é mediado, ou não”.

3.2 Mídia e seu papel na formação da opinião pública

Conforme afirma Guareschi:

Depois da II Grande Guerra não foi mais possível, como o fora antes,
fundamentar a sociedade ou em crenças ou nas relações de trabalho: ela se
fundamenta agora na comunicação e na produção de conhecimento através da
informação (Guareschi, 2007, p.08).

4
Bourdieu, 1989, p. 08.
5
Ribeiro, 1993, p. 22.
6
Guareschi, 2007, p. 09.

[208]
Nota-se, através da assertiva supracitada, que para se produzir o conhecimento -
essencial para a formação tanto da opinião individual, quanto da “consciência coletiva”,7
é necessário a veiculação da informação, bem como o seu conteúdo influenciará no que
será abstraído.
De acordo com o modelo cascata:

a opinião pública se formaria a partir de pequenos grupos, situados no topo da


pirâmide social e depois viria “descendo”, por degraus, até a base da pirâmide.
No primeiro degrau dessa “cascata”, estaria o pequeno grupo das elites
econômicas e sociais; no segundo grupo estariam o das elites políticas e, no
terceiro, a mídia, seguida pelos chamados formadores de opinião –
intelectuais, religiosos, artistas, educadores, líderes empresariais e sindicais,
jornalistas – e, finalmente, no último degrau, a grande maioria que constitui a
base da população (Carla Luciane Blum Vestena, 2008, pág. 11).

Assim, por possibilitar a manipulação das massas, os meios de comunicação


tornam-se um meio de dominação altamente cobiçado por aqueles que estão no poder e
que lá querem se manter.

As diferentes classes e fracções de classes estão envolvidas numa luta


propriamente simbólica para imporem a definição do mundo social mais
conforme aos seus interesses, e imporem o campo das tomadas de posições
ideológicas reproduzindo em forma transfigurada o campo das posições
sociais. Elas podem conduzir essa luta quer diretamente, nos conflitos
simbólicos da vida quotidiana, quer por procuração, por meio da luta travada
pelos especialistas da produção simbólica (produtores a tempo inteiro) e na
qual está em jogo o monopólio da violência simbólica legitimada (...)
(Bourdieu, 1989, pag. 11).

Dessa forma, a mídia perde a função de poder fiscalizador, passando para as mãos
dos detentores do capital, que a utilizam para agendar temas públicos e formar a
compreensão sobre mundo e a política.

7
Termo tratado por Durkheim, o qual se resume a um conjunto de ideais coletivos comuns em um
determinado sistema social.

[209]
3.3 O porquê da dominação

Até o presente momento já pode-se concluir o poder da mídia frente a dominação


das classes sociais, no entanto, deve-se perguntar quais motivos levam a aceitação por
parte da população das informações que lhes são passadas.
Para responder tal pergunta, necessário será a análise do papel da mídia na
atualidade e uma analogia com a política Romana.
Ao longo da expansão do Império Romano diversas revoltas foram surgindo, de
modo que seus governantes necessitaram idealizar mecanismos para contenção da
população, bem como desestimular o interesse em assuntos políticos.

Diante da expansão do império, aumentou, logicamente, o contingente populacional,


desencadeando vários problemas sociais. Com o aumento territorial e a elevação no
número de escravos, a população romana passou a ter que pagar excessivos tributos,
associado à subida no índice de desemprego e analfabetismo. Além disso, não havia
mais moradias dignas para a maior parte da população. Muitos desses problemas
ocorreram por conta de um governo extremamente corrupto, o qual priorizava o
interesse privado em detrimento do público (Soares Filho, 2010, pag. 336).

Nesse contexto, surge a famosa política de “pão e circo” ou panem et circenses,


no original em Latim.
Poucos conhecem o termo supracitado, porém tal aparato é frequentemente
noticiado em filmes que relatam o período Romano. Em o “Gladiador”8, por exemplo,
nota-se que a população Romana se reunia no Coliseu para assistir os sangrentos
espetáculos que lá ocorriam, vibrando de emoção com o que viam.
Para mais, enquanto os espetáculos estavam em curso, pões eram jogados para os
telespectadores se alimentarem, de modo a terem lazer e alimentação gratuita, e assim se
acalmarem frente ao cenário de desigualdade social e corrupção política da época.

8
Filme estadunidense, sobre a direção de Ridley Scott, lançado em 2000; o qual retrata a vida de um antigo
general, possível sucessor do trono, que após um golpe acaba por ser escravizado. O interessante do filme
para o artigo em questão, se refere a análise sobre a forma como a população é retratada - quer seja, suja e
mal vestida, em detrimento da alta classe social, sempre mostrada com glamour e roupas belas. Tal
característica faz refletir sobre a desigualdade social existente na época. Além disso, nota-se também, que
as lutas sempre possuíam um alto índice de telespectadores, de modo que o coliseu sempre estava cheio.
Tal fato atesta a eficácia da política de pão e circo na época, pois a população ao comparecer nas
apresentações se esquecia dos problemas sociais, transformando toda sua indignação em forma de
expectativa frente as batalhas travadas entre os gladiadores.

[210]
Para conter a possível revolta da massa populacional, os imperadores
ampliaram a política do pão e circo iniciado por Otávio Augusto. Tratava-se
de um golpe da gestão pública, no sentido de distribuir migalhas de pão e trigo
para alimentar a população e promover diversos espetáculos públicos – lutas
de gladiadores nas arenas – com o objetivo de entretê-los, para que ficassem
alienados a real situação romana (Soares Filho, 2010, pag. 336).

Em pesquisa divulgada pela secretaria de comunicação social da presidência da


república (Secom), “95% dos entrevistados afirmaram ver TV, sendo que 73% têm o
hábito de assistir diariamente. Em média, os brasileiros passam 4h31 por dia expostos ao
televisor, de 2ª a 6ª-feira, e 4h14 nos finais de semana”9, passando tais dados a variar de
acordo com a idade, gênero e escolaridade.
Em acréscimo, os índices de analfabetismo no Brasil também se mostram altos,
se compondo por um percentual absoluto de 8%10, o que corresponde a um total de
aproximadamente 17 milhões de pessoas.
Vale ressaltar que a carga de trabalho da população brasileira também é exaustiva,
de modo que 47,5% dos trabalhadores laboram entre 40 a 44 horas por semana, e 11,9%
mais de 49 horas11.
Indo mais além, “ao redor de 80% dos temas e assuntos que são falados no trânsito,
no trabalho, em casa e nos encontros sociais são colocados em discussão pela mídia. Neste
sentido, ela determina, até certo ponto, o que deve ser falado e discutido”12.
Dito isso, verifica-se que o Brasil passa por um momento histórico semelhante ao
enfrentado por Roma, onde os detentores do monopólio midiático13, criam programações
às quais recortam um cenário social, buscando retratar o seu comportamento, os
problemas enfrentados, acrescentando, porém, o fator fundamental - que é a conquista do
ambicionado, apesar das dificuldades; e isso atrai a atenção do público14.

9
IBGE, pesquisa sobre os hábitos de consumo de mídia pela população brasileira, realizada em 2015.
10
IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por amostra
de Domicílios 2007/2015.
11
IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por Amostra
de Domicílios 2014-2015.
12
Guareschi, 2007, p. 10.
13
Conforme retratado por Pedrinho A. Guareschi, em seu artigo “mídia e democracia: o quarto versus o
quinto poder”, publicado na revista “Debates”, 2007, p. 20, atualmente 90% da mídia pertence a 9 famílias.
Em decorrência disso, conforme ressalta o autor, a censura acaba por mudar de lugar, sendo agora a
população que fica impedida de exercer o seu direito de dizer a palavra, bem como expressar sua opinião.
14
O ser humano quando lê algum livro ou assiste algum filme, tende a se identificar com os personagens
nele contidos, de modo a se espelhar na figura do que achar mais parecido consigo. Posto isso, a mídia ao
retratar cenários da vida cotidiana, gera um sentimento de pertencimento na comunidade, além de conseguir

[211]
Tais programações, tendem a gerar um sentimento de pertencimento, vez que o
trabalhador ao chegar cansado em casa – após longas jornadas de trabalho, liga a televisão
e vê a vida que ambiciona ter, se incorporando ao personagem.
Vale ressaltar, que o trabalhador, por estar cansado, acaba por não filtrar as
informações que lhes são passadas, não as questionando, mas apenas absorvendo-as – e
os detentores do monopólio se aproveitam disso, para bombardear o telespectador de
informações.

Ora parece que os meios de comunicação sabem muito bem como aproveitar esse
aspecto do indivíduo que, sensorialmente, apreende a realidade. E no fluxo cada vez
mais veloz de informações, notícias e dados a repetição da criminalidade e da
violência como pautas midiáticas chegam ao público de uma forma naturalizada, em
relação às quais sequer existe crítica possível, dada a sua quase irrefutabilidade.
(Sartori, 2001 cit. Gomes e Albuquerque, 2014, p. 84).

Assim, a mídia como nova política de pão e circo, por meio de suas técnicas acaba
por criar a padronização do comportamento, tendo como base a política ideológica da
classe dominante.

(...) A mídia dociliza o eleitor e o controla conforme determinados expedientes. Isto


porque o próprio Estado favorece a alienação popular, uma vez que sua atuação tem
sido centrada em prover o povo daquilo de que mais necessita, a saber, o divertimento.
(...) A televisão tem sido o mecanismo multissensorial (por requerer a atenção da
visão, da audição e, principalmente, por influenciar no senso psicológico do indivíduo
por meio de imagens sugestivas) mais eficaz na transmissão de campanhas eleitorais.
Sua eficácia deve-se ao fato de que pretere o uso da lógica e difunde quadros globais
e 7 incompletos das mensagens, permitindo a alienação e facilitando o induzimento
do eleitorado(...). (Bittar, 2002, cit. in Melissa Freitas Guimarães, 2012).

manipular as expectativas populacionais. À exemplo, quando um protagonista consegue triunfar, mesmo


após dificuldades enfrentadas, o telespectador tende a acreditar que o mesmo deva acontecer consigo –
deixando de lutar pelos seus direitos, enquanto espera pelo “iminente” final feliz.

[212]
4. Mídia e sua função comunicadora em auxílio a democracia versus
manipulação dos meios de comunicação ao longo da história luso-brasileira.

Conforme afirma Guareschi “para que haja democracia numa sociedade, é


necessário que haja democracia também no exercício do poder de comunicar”15. Além
disso, afirma ainda, que essa se concretiza através de cinco pontos fundamentais, quais
sejam: a igualdade, a diversidade, a solidariedade, a liberdade, e por fim, a participação.
A participação se reflete como um dos elementos essenciais para a concretização
da democracia, porém acaba por ser o mais esquecido. As pessoas se encontram
desinteressadas frente aos seus direitos políticos, em razão da falta de credibilidade
política, bem como o sentimento de impotência para com a modificação desse cenário.
Na Grécia antiga por exemplo via-se a importância da “participação” na
constituição da democracia, de modo que a isegoria - liberdade e igualdade de fala entre
os cidadãos, era incentivada. Assim, ao se reunir na ágora (praças públicas), os cidadãos
contribuíam diretamente para a tomada de decisões concernente a polis.
Com o desenvolvimento dos meios de comunicação, e a quebra de fronteiras
gerada pela informação, não há mais a necessidade de reunião de todos os cidadãos nas
praças públicas para que debates ocorram.
Desse modo, conforme ressalta Guareschi, a mídia deveria ser a nossa nova àgora,
vez que possui meios para instruir debates nacionais, bem como o seu alto alcance
possibilitaria “ser o porta-voz de todos os grupos organizados da sociedade. Essa é sua
função principal e constitucional”16.
No que tange a liberdade, deve-se ressaltar que essa só se configura quando todos
os direitos forem respeitados, inclusive o direito à informação.
Tendo aqui, a imprensa, papel fundamental, vez que através dela, tornam-se
públicos temas antes só restritos aos governantes.
No entanto, a pergunta que se deve fazer – e que nesse ponto do artigo o leitor já
possui a capacidade de responder, é existe tal participação em nossa sociedade? Os
meios de comunicação são um serviço público com a tarefa de ser porta-voz dos seus
membros, na construção da cidade que se quer? Além do mais, há liberdade de
informação?

15
Guareschi, 2007, p. 12.
16
Guareschi, 2007, p. 20.

[213]
Antes de voltarmos a essas perguntas far-se-á uma análise dos regimes ditatórias
e a influência da mídia para a sua consolidação e decadência.

4. 1 O Estado Novo

Trata-se do regime político instaurado por Getúlio Vargas, estadista brasileiro,


que perdurou de 1937 até 1946.

em setembro de 1937, o governo divulgou a existência de um falso plano comunista


para assumir o poder no Brasil, o Plano Cohen, que, na verdade, fora redigido por um
oficial integralista do exército. O plano serviu como pretexto para o golpe: em 10 de
novembro Vargas ordenou o fechamento do Congresso, a extinção dos partidos
políticos e a suspensão da campanha presidencial e da Constituição. Estava instalada
a ditadura do Estado Novo (Vicentino, Dorigo, 2013, p.44).

Assim, nota-se que Vargas se utilizou dos meios de comunicação para instaurar o
medo gerado pelo suposto perigo comunista e, assim, se manter no poder e centralizá-lo
em torno de si.

Vargas explicou suas razões e seus projetos à população através do rádio: diante da
inoperância do Legislativo, era preciso, segundo ele, reajustar o organismo político às
necessidades econômicas do país. Esse reajuste significou a total centralização do
poder: em 27 de novembro, com a concordância dos governadores, transformados em
interventores, as bandeiras estaduais foram queimadas em cerimônia pública, e em 2
de dezembro todos os partidos políticos foram extintos (ARAÚJO, 2011, p. 21).

Cria o Departamento de Imprensa e propaganda, e institui órgãos de fiscalização


do que será divulgado, tais como a Agencia Nacional. Detém assim, nas mãos do
executivo o monopólio da informação.
Para além do Estado Novo, cabe ressaltar, em 1951, “(...)a criação da Última Hora,
jornal inovador que introduziu uma serie de técnicas de comunicação de massa até então
desconhecidas no Brasil”17.

17
Alzira Alves de Abreu, 2017, p.1, “Getúlio Vargas e a Imprensa, uma relação conflituosa”.

[214]
4.2 Ditadura Militar

O período da Ditadura Militar no Brasil, perdurou de 1964 até 1985, e foi


caracterizado, dentre outras coisas, pela centralização do poder nas mãos do chefe de
Estado, bem como a censura para com a mídia e repressão a qualquer tipo de manifestação
contrária aos atos do Estado.
Os meios de comunicação da época estavam passando por uma mudança, de forma
que ocorrera, gradativamente, a substituição da rádio18 pela Televisão, aumentando o
alcance populacional a ser atingido.

Essa mudança nos padrões de audiência e o surgimento de novas fórmulas de


programas foram acompanhadas por um salto nos números dos aparelhos de TV,
durante 1967. Entre janeiro de 1966 e janeiro de 1967 o número de unidades familiares
aumentou de 633.156 para 698.065, registrando 10% de acréscimo. Entre janeiro de
1967 e janeiro de 1968, o aumento foi de quase 35%, totalizando 959.221 unidades
familiares, só no Estado de São Paulo. Além disso, o acesso das classes mais pobres
ao aparelho cresceu no montante geral. Mas foi em 1968 que a TV passou a ser, não
só mais disseminada na sociedade numericamente falando, mas também
sensivelmente mais “popular”. Outra estatística esclarecedora demonstra que entre
1965 e 1967 a média anual de vendas de aparelhos de TV oscilou entre 10 e 15%.
Somente de 1967 para 1968, as vendas aumentaram 45%. (Marcos, para Boletim de
Assistência de TV (São Paulo), Ibop apud NAPOLITANO, 2001, como referido em,
Carocha, 2006, p.191/192).

Assim, a mídia, tanto em forma de televisão, rádio ou jornais, teve um papel


fundamental para a instauração do Golpe, vez que incitou movimentos tais como “ A
Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, bem como colocou no imaginário popular
o medo da instauração do Comunismo19 pelo Presidente da época ( Jõao Goulart)20.

18
Aparelho altamente utilizado por Vargas para a manipulação das classes sociais.
19
Vale ressaltar, que o contexto histórico do momento, se refere a Guerra Fria, com a polarização do mundo
em dois blocos essenciais - o Capitalista e o Socialista, assim sendo, tal fator corroborou para o medo da
instauração do Comunismo no país.
20
Alexandre Haubrich, jornalista e editor do bloque JornalismoB, em matéria para o site “revista o vies”,
junta trechos de notícias que circulavam durante momentos antes da instauração da Ditadura no Brasil,
afirmando que “Nos primeiros dias de abril de 1964, O Globo, Folha de S. Paulo, Estado de S. Paulo, Jornal
do Brasil, Estado de Minas e muitos outros jornalões publicaram manchetes como “São Paulo parou ontem
para defender o regime” (Folha de S. Paulo) e “Fugiu Goulart e a democracia está sendo restabelecida” (O
Globo), “Só há uma coisa a dizer a Goulart: saia!” (Correio da Manhã) (...)”.

[215]
Quando o foco das críticas se voltou para Goulart, sobrepuseram-se anti-getulismo,
anti-comunismo, resistência à centralidade cada vez maior dos sindicatos na política,
resistência a mudanças sociais e à exposição ampliada de demandas dos trabalhadores;
resistências, enfim, às transformações em curso, que poderiam reconfigurar os limites
do debate público e da esfera política no Brasil. Os artigos publicados pelo jornalista
e político udenista Carlos Lacerda na Tribuna da Imprensa naquele momento são,
talvez, o exemplo mais forte dessas sobreposições. É importante, para os objetivos
deste trabalho, lembrar que os principais jornais do país posicionaram-se, naquele
momento, a favor do afastamento de Goulart e, com ênfases e envolvimento
diferenciados, a favor de um golpe que, ao afastá-lo, restauraria a “ordem” e protegeria
o país da demagogia, do sindicalismo, do comunismo, da subversão dos valores, de
uma suposta ditadura de esquerda ( Flávia Biroli, 2009, p. 277).

4.3 Salazarismo

O Salazarismo - também conhecido como “Estado Novo” português, corresponde


a um período ditatorial em Portugal, que se estendeu de 1933 até 1974, tendo como
características principais o nacionalismo, a concentração do poder nas mãos do chefe de
Estado, e a censura.

De todos os mecanismos repressivos a Censura foi sem dúvida o mais eficiente, aquele
que conseguiu manter o regime sem alterações estruturais durante quatro décadas
(Mário Soares, 1977, cit. in Vanessa Gomes Rolim, 2011).

Antonio Oliveira Salazar, ciente da importância do papel dos meios de


comunicação, organizou um aparato de censura e manipulação da informação, à exemplo
do Secretariado de Propaganda Nacional21 que noticiava Portugal como exemplo
Europeu.

Não se pode falar de Censura sem falar no Secretariado de Propaganda Nacional -


SPN. O SPN criou-se em 1940, num gabinete de coordenação dos serviços de
Propaganda e informação, servia para fazer propaganda ao regime e portanto tinha
todos os interesses em ter a Censura ao seu lado, para cortar aquilo que fosse contra
ao Regime.(...) (Vanessa Gomes Rolim, 2011, p.1).

21
O SPN, mais tarde teve sua nomenclatura modificada para Secretariado Nacional de Informação – SNI.

[216]
Não se falava sobre a miséria e desemprego; muito pelo contrário, a imagem
repassada era de um país que oferecia educação e vida de qualidade para os seus cidadãos.

(...) preocupava-se em mostrar a aparência das coisas e não a realidade em si, tanto
nos Meios de Comunicação Social nacionais como internacionais. A nível interno
havia uma Censura prévia e posteriori, suspendendo, cortando, mutilando ou
proibindo todos os textos, imagens e sons que, de um modo imediato e transparente,
pusessem a descoberto a realidade das coisas e das situações, e, portanto, anulassem
a aparência da realidade que o regime apresentava como verdadeira (Vanessa Gomes
Rolim, 2011, p.1).

Após a análise da utilização da mídia em contextos ditatoriais luso-brasileiros, já


podemos responder à pergunta22 feita no ponto 04, de modo a constatar que a sua função
fiscalizadora fora desvirtuada, sendo utilizada muito mais como meio de dominação
social do que como mecanismo de exposição e discussão sobre a sociedade que se quer.

5. Bombardeamento de notícias pela mídia e os desdobramentos no tocante


ao regime de governo democrático.

Considerando a distorção da função fiscalizadora da mídia, far-se-á, nas linhas a


seguir, uma análise sobre os efeitos trazidos ao regime democrático com o fenômeno de
bombardeamento de notícias pela mídia, sobretudo aquelas ligadas à temática criminosa
e aos escândalos políticos.
Pois bem. Segundo a Teoria do agendamento de Maxwell, os indivíduos nas
sociedades modernas contemporâneas, são hoje mais do que nunca, devido ao progresso
nos domínios da ciência e das novas tecnologias, sujeitos a elevados índices de
informação que de algum modo os condicionam. (1972 cit. in Leal, 2010).

22
Relembrando o leitor, a pergunta feita fora “existe tal participação em nossa sociedade? Os meios de
comunicação são um serviço público com a tarefa de ser porta-voz dos seus membros, na construção da
cidade que se quer? Além do mais, há liberdade de informação? ”.

[217]
Já no que diz respeito à escolha das informações a serem veiculadas, Machado
afirma que a novidade, a atipicidade e o drama23, são os fatores determinantes na escolha
jornalística de um tema, tendo em vista que são comerciais. (Machado, 2004, p.109).
Com efeito, isso justifica a atenção dada pela mídia:

às ofensas violentas e sexuais e aos seus contextos (e.g., escolas, meio rural), agentes
(e.g., mulheres, sujeitos de alto estatuto) e vítimas (e.g., crianças) mais atípicos (Levi,
1997). Daí também o evitamento pelo crime banal (...) e o imediatismo da maioria dos
relatos (que separam o crime da estrutura social envolvente) ( Machado, 2004, p.109).

Thompson, em seu estudo acerca de escândalos políticos, afirma ainda que a


política e os políticos trabalham com um material especial, que é a credibilidade. (2002,
cit. in Guareschi, 2007).
A matéria prima da política é a credibilidade, um capital simbólico. Ora, a mídia
é o meio de produção desse capital, tanto para construí-lo, como para destruí-lo, como é
o caso do escândalo político, tema de estudo do autor. (2002, cit. in Guareschi, 2007).
Nesta esteira o pânico moral em torno dos crimes é significante da insatisfação social
(uma forma de lhe dar um rosto e de lhe apontar os responsáveis) e de seu policiamento
(real ou metafórico) a forma de recuperar a paz social ameaçada.” (Machado, 2004).
Sabe-se também que um dos principais sujeitos no processo de construção do
discurso da insegurança é a mídia. Inúmeros estudos demonstram que a mídia hiper-
representa a violência, sendo esta muitas vezes discrepante à incidência real destes
crimes. (Machado, 2004, p. 107).
Nesse sentido, Machado afirma que:

Apenas a título de exemplo, refiram-se os dados de Liska e Baccaglini (1990),


segundo os quais, apesar de o homicídio corresponder a apenas 0,2% dos crimes nos
EUA, ele ocupa 30% das referências ao crime nos jornais; os de Doob (1984, cit.
Connor e Whelan, 1996), que refere que 50% das notícias jornalísticas no Canadá
envolvem violência, quando tal representa apenas 5% do crime oficial; ou os de
Williams e Dickinson (1993, cit. Heath e Gilbert, 1996), que encontraram na

23
Aqui entra a questão da criminalidade. Ao ligar a televisão, a todo momento fala-se sobre a criminalidade,
assassinatos cometidos, desmoralização da família e etc., conforme corroborado por Raber, ao afirmar que
“95 % dos entrevistados de sua amostra apontam a mídia como sua principal fonte de informação sobre os
crimes”. (1980, cit Machado, 2004, p. 106, 107).

[218]
Inglaterra 60% de referências à violência nas notícias sobre o crime, para uma
ocorrência de 5% desses casos nas estatísticas oficiais (Machado, 2004, p. 107).

Segundo Graber, na cidade americana de Chicago, cerca de 20% a 24% das


notícias na televisão versavam sobre a corrupção. Já o estudo de Schlesinger e de seus
colaboradores revelam que os escândalos bolsistas constituíam 18% a 29% dos temas
criminais relatados (Graber, 1980 et al, cit.in Machado, 2004, p.118).
Tal fenômeno ocorre tanto nos programas televisivos quanto nos jornais. Reiner
afirma que “o crime e a justiça criminal sempre foram fontes de espetáculo e
entretenimento populares, antes mesmo do aparecimento do mass media.” 24
Quanto à atração da mídia pelo crime, Sacco destaca que isso se deve à
necessidade de produção de notícias com o escopo de preencher os vazios noticiosos em
épocas de menor agitação política e social. (Sacco 1995, cit. in Machado, 2004, p.108).
Observa-se ainda que as exigências de credibilidade e independência podem levar
a mídia a autoconstituir-se em defensora dos “interesses populares” e da “verdade dos
fatos” (publicitando, por exemplo, os crimes de figuras poderosas e da polícia), chegando
mesmo a assumir o papel de agentes de controle da justiça” (e.g. Sacco, 1995 et al cit.
Machado, 2004, p. 118).
Tal papel é importante no processo de avanço democrático, na medida em que traz
à tona taxas de ocorrência de crimes violentos e escândalos políticos que outrora eram
ocultados do conhecimento público. (Singer, 2001.)
Nota-se que a ação de fiscalização da grande imprensa contribui também para
limitar de alguma forma as falhas éticas dos representantes, das instituições políticas e de
justiça. (Singer, 2001.)
Entretanto, como efeito da veiculação reiterada dessas notícias temos, a exemplo:
a rápida sucessão dos fenômenos do pânico e sua banalização, redução da capacidade de
mobilização social, e sobretudo: descredibilização popular nas instituições políticas.
(Machado, 2004).
Além da ação benéfica de policiamento, a mídia impressa logo desenvolveu o que
Sartori denominou “parcialidade de oposição crítica” – ou seja, uma atitude de ataque
permanente aos políticos, com a consequente desmoralização destes e das instituições
representativas (Sartori, 1992 cit. in Singer, 2001).

24
(Reiner, 1997 cit. In Machado, 2004, p. 107, 108).

[219]
O que se nota é que a ação de policiamento exercida pela grande imprensa não
contribuiu na melhora da qualidade da representação, pois grande parte dos parlamentares
eleitos são proprietários ou estão ligados a esquemas de comunicação regional, que não
são independentes dos interesses políticos, como se mencionou acima (Singer, 2000).
Em outras palavras, assistimos à criação de um círculo vicioso. Os políticos eleitos
com apoio da imprensa regional, quando chegam ao poder, são desmoralizados pela
imprensa nacional, mas conseguem ser reeleitos com o apoio da mesma imprensa
regional, não modificada até então pelo avanço da democracia. O resultado é uma grande
desmoralização do sistema representativo seja no Brasil, seja em Portugal (Singer, 2000).
Ou seja, se, de um lado, a ação de fiscalização da grande imprensa contribui para
limitar de alguma forma as falhas éticas dos representantes, ainda não se assistiu a uma
mudança na qualidade da representação política nesses países (Singer, 2000).
O resultado tem sido a condenação das instituições representativas, como tais, por
uma parcela significativa do eleitorado. No Brasil, tendo como base a última eleição do
país no ano de 2016, os resultados demonstram que 32,5% dos eleitores optaram pela
abstenção, pela anulação de seus votos ou pelo voto em branco, enquanto em Portugal
tendo como base as eleições de 2009, a porcentagem de abstenções foi de 40,9 % (Caram
e Ramalho, 2016 e Sousa, 2013).
Esses dados são reflexo dessa rejeição à simples idéia da representação (devemos
lembrar que no Brasil, onde o voto é obrigatório, uma alienação dessa ordem é muito
significativa) (Singer, 2000).
No Brasil, essa descrença pode ser apreendida da pesquisa feita pelo Ibope
(Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatísticas), quando foram entrevistadas 5.300
pessoas em nove capitais e interior do estado de São Paulo. Ao serem perguntados se os
políticos se preocupam com o bem-estar da população, o eleitorado de algumas capitais
demonstrou que acredita muito pouco no político brasileiro: Brasília 2,98%; Porto Alegre,
3,21%; Recife, 4,53%; Rio de Janeiro, 5,42%; São Paulo, 5,48%; Curitiba, 6,06; Belo
Horizonte, 6,39%; Fortaleza, 6,79%; Salvador, 7,33%; São Paulo (interior), 8,87% (Veja,
25/07/01, no 1.710 cit. in Chaia e Chaia, 2000).
O grande problema é que se a sociedade se desinteressa do processo político, é
menos provável que no futuro haja um aumento da qualidade na política. Portanto, a
crítica da imprensa aos políticos, se não resultar em mudanças positivas na qualidade da
representação, não contribuirá para reforçar as instituições. Na verdade, a desconfiança

[220]
na representação pode criar uma representação pior, caso haja um afastamento da
população em relação à política. (Singer, 2000).
Com efeito, como resultado da descredibilização da população nas instituições
democráticas, mais do que a piora da representatividade no próprio regime democrático,
nota-se ainda um perigo maior: o retorno dos antigos regimes totalitários de governo.
Na obra “As origens do totalitarismo” de Hanna Arendt, a autora descreve o
cenário que precedia à tomada de poder pelos regimes totalitários, nos seguintes termos:

Antes que a política totalitária conscientemente atacasse e destruísse a própria


estrutura da civilização européia, a explosão de 1914 e suas graves conseqüências de
instabilidade haviam destruído a fachada do sistema político — o bastante para deixar
à mostra o seu esqueleto. Ficou visível o sofrimento de um número cada vez maior de
grupos de pessoas às quais, subitamente, já não se aplicavam as regras do mundo que
as rodeava. Era precisamente (necessário) a aparente estabilidade do mundo exterior.
(Arendt, 1978, p. 390, grifo nosso).

Ora, o que se observa é que cenários de crise política (crises de


representatividade), econômica e social (com enfoque ao aumento das taxas de
desemprego e de criminalidade), tendem a naturalmente abalar o regime democrático de
governo.
Tal tendência é maximinizada quando a mídia reiteradamente veicula esse tipo de
informação, causando não apenas uma descredibilização geral em relação ao regime
democrático, mas também contribuindo para o florescimento dos ideais totalitários nos
setores mais conservadores da sociedade, uma vez que diante do aparente cenário de
“caos” e “desordem” advindos do regime democrático, tais setores clamam por um
governo centralizador que recupere a ordem e a estabilidade perdidas.
Nessa esteira, afirma Machado que os meios de comunicação “funcionam como
aliados dos órgãos de controlo social, alimentando o medo e a punitividade.”25 Acrescenta
ainda que a mídia contribui na manutenção da “ordem social existente ao reforçar a crença
numa ameaça externa e ao dar «peso e credibilidade à retóricas políticas que exigem
severidade e o restabelecimento da lei e da ordem.”26
Conclui ainda que este processo potencializa-se nos momentos em que a
hegemonia dos grupos dominantes é mais ameaçada, recorrendo-se à “dramatização de

25
(Machado, 2004, p. 112-113).
26
(Machado, 2004, p. 112-113)

[221]
uma ameaça externa para garantir o consenso intergrupal e para legitimar o recurso a
medidas coercitivas de supressão ou silenciamento da discordância política.” 27
A exemplo disso temos o fenômeno do ressurgimento da extrema direita e do
neonazismo em pleno século XXI, principalmente nos Estados Unidos e no continente
europeu. (Vízentini, 2000).
Em Portugal em que pese não haja um “neo- salazarismo” militante e organizado,
nota-se que diante das crises de caráter político e econômico enfrentadas pelo país nos
últimos anos, cada vez é mais crescente a presença movimentos de cunho nacionalista e
conservador que buscam a retomada dos tempos áureos vividos pelo país durante a
ditadura do Estado Novo.
Já no Brasil, de maneira muito análoga, têm se observado, principalmente a partir
das manifestações de 2013, pessoas saindo às ruas e clamando pela “intervenção militar
já”, sobretudo após às recentes revelações midiáticas dos casos de corrupção envolvendo
políticos dos poderes executivo e legislativo brasileiro.

6. Considerações finais

Certo é que a mídia produz verdadeiros movimentos criminalizadores por meio


das notícias veiculadas em suas páginas de jornal, programas de auditório e telenoticiário,
o que nos leva a perceber que a notícia não é apenas mera reprodução de acontecimentos,
mas sim fruto de um esforço discursivo sobre o qual existem interesses e objetivos
determinados. (Gomes e Albuquerque, 2014, p. 84).
Com efeito, nota-se que a mídia tende a favorecer leituras do crime que favorecem
os interesses dos grupos dominantes e a reprodução das normas sociais, uma vez que a
veiculação constante do crime gera descredibilização popular no sistema do consenso
social às custas da supressão da discordância política. (Beckett, 1994, cit.in Machado,
2004, p.113,114).
Contudo, também é verdade que ela tem sido, em certa medida, um ambiente
discursivo público com espaços de abertura e receptividade a posicionamentos
alternativos e com algum potencial de transformação da ordem social. (Machado, 2004,
p.120 e 121).

27
(Machado, 2004, p. 112-113).

[222]
Portanto, o grande desafio a ser atingido é fazer com que a mídia se torne para os
cidadãos um espaço plural de debate das decisões políticas, possibilitando, nas palavras
de Habermas, uma deliberação verdadeiramente crítica e racional acerca das temáticas
que dizem respeito à esfera pública. (1984, cit.in Azevedo, 2006).

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[225]
Esta página foi intencionalmente deixada em branco

[226]
13. WHATSAPP E CIBERATIVISMO: NOVOS ESPAÇOS
NA DEMOCRACIA

Sérgio Barbosa dos Santos Silva1

Resumo: O objetivo geral deste texto é investigar como o uso das tecnologias da
informação e comunicação (TIC’s), em particular, o WhatsApp, vem se apresentando
como elemento central para a convocação e a mobilização de ciberativistas nas formas
contemporâneas de participação política e novos espaços na democracia. Para tanto, foi
enfocado de que forma os usuários do grupo “# Unidos Contra o Golpe” organizaram
protestos em 2016 na cidade de Florianópolis, no que se convencionou denominar
usualmente de ciberativismo. O método de investigação é “netnografia” do grupo do
WhatsApp, juntamente com a análise de mensagens postadas e a realização de entrevistas
semi-estruturadas, ressaltando as motivações quanto ao seu uso político. Para isso, o
estudo utilizou procedimentos analíticos de cunho amplamente qualitativo. A pesquisa
verificou o potencial mobilizador do WhatsApp para além das abordagens dicotômicas
que, por um lado, defendem entusiasticamente o potencial democratizador da internet
como uma espécie de “ágora digital”, por outro, observam sua expansão como tendência
à alienação e à desmobilização. Conclui-se, a partir da análise empírica, que os múltiplos
usos do WhatsApp representaram novas formas de participação política traduzidas em
mecanismos de ativação da cidadania e impacto positivo nas formas coletivas de
sociabilidade do grupo.

Palavras-chaves: WhatsApp; Ciberativismo; Democracia; Participação Política.

1
Bacharel em Sociologia pela Universidade de Brasília (2014). Licenciado em Ciências Sociais pela
Universidade de Brasília (2015). Mestre em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa
Catarina (2017). Atualmente, é aluno do doutoramento em Democracia no século XXI pelo Centro de
Estudos Sociais (CES) junto à Universidade de Coimbra em Portugal. Desenvolve pesquisas relacionadas,
principalmente, aos seguintes temas: democracia; participação política; internet; WhatsApp e
ciberativismo. Endereço eletrônico: sergio.barbosa30gmail.com

[227]
Introdução

Este texto investiga o uso político do WhatsApp com objetivo de analisar


modalidades de participação política no âmbito da bibliografia sobre ciberativismo e
TIC’s (Tecnologias da Informação e Comunicação). Em específico, buscamos entender
o papel do WhatsApp na convocação e mobilização de ciberativistas inscritos em um
grupo do aplicativo intitulado “# Unidos Contra o Golpe” ou UCG (iniciais utilizadas
pelos usuários).
O UCG foi criado a partir do desejo de lutar contra o golpe2 que se organizou no
ano de 2016 no Brasil e reivindicou o retorno de Dilma Rouseff à presidência da
república. A indignação com a situação política do Brasil motivou os usuários inscritos
no grupo a refletirem e discutirem o cenário que o país atravessou nesse ano.
Nossas discussões caminham no sentido de investigar um espaço de política
criado no grupo do WhatsApp para além dos canais institucionais. Nosso intuito não é
estabelecer uma relação causal entre o UCG e participação política, mas desvendar o
conteúdo social presente neste processo, buscando novos insights, mesmo que se
considere a incapacidade de cobrir todos os possíveis aspectos da temática em um
momento de velozes transformações tecnológicas (Kies, 2010, p. 5).
A estratégia metodológica adotada foi a “netnografia” do grupo do WhatsApp
desde o ingresso deste pesquisador em meados de Abril de 2016. A partir da
“netnografia”, realizamos a análise das informações postadas pelos usuários do grupo no
mês de setembro de 2016 e quinze entrevistas semi-estruturudas com residentes de
Florianópolis inscritos no UCG.
Este artigo está dividido em duas seções. Na primeira parte elucidamos uma
discussão teórica sobre como o ciberativismo pode ser considerado uma forma de
participação para além dos canais institucionais da política, revisamos a bibliografia sobre
a temática de internet e política e ressaltamos como novas práticas participativas podem
utilizar o WhatsApp como ferramenta de politização.
A seção dois é dedicada à análise empírica, a partir da combinação das
metodologias supracitadas: em um primeiro momento tecemos considerações sobre a
“netnografia” juntamente com as postagens do UCG em setembro de 2016 e

2
Este pesquisador está em comum acordo com os ciberativstas investigados e, portanto, considera que a
saída da presidenta Dilma Rouseff foi um golpe.

[228]
apresentamos alguns resultados das entrevistas realizadas com os ciberativistas de
Florianópolis. As considerações finais revelam um “novo olhar” sobre como ver e fazer
a política no século XXI, tendo como base as interações do grupo investigado no
WhatsApp.

Ciberativismo e Whatsapp

Ao investigar o uso político do WhatsApp pelo UCG, pretendemos: “compreender


melhor os fenômenos de participação política nas sociedades contemporâneas,
reconhecendo que nem todos os movimentos e associações estão dispostos a participar
dos espaços institucionais de partilha do poder” (Pereira, 2012, p. 84). Em verdade,
vivemos um tempo de esgotamento do modelo democrático neoliberal (Mouffe, 2016) e
“reinvenção da política” (Errejón & Mouffe, 2016). Talvez um dos maiores obstáculos
do século XXI seja justamente:

colocar as pessoas no centro, uma política humana, dos cuidados, para humanizar as
instituições, aberta à participação, à deliberação, à tomada de decisão e à capacidade
de desenvolver propostas. Politicamente, como a atividade que nos humaniza e nos
dá significado substitui a política como herança técnica dos burocratas (Sabariego,
2016, p. 269, tradução nossa).

Se a democracia liberal enquanto sistema político hegemônico vem enfrentando o


“paradoxo democrático” (expansão de governos democráticos concomitante ao
decréscimo da participação das populações em relação às instituições tradicionais da
política), podemos diagnosticar sinais de esgotamento quanto aos mecanismos
representativos dos sistemas políticos modernos.
Mouffe (2016) apresenta a natureza do modelo ocidental de democracia como
uma articulação de duas tradições diferentes, quais sejam: a tradição do liberalismo
político com sua ideia de “Estado de direito”, de liberdade individual e dos direitos
humanos e uma segunda tradição democrática de igualdade e de soberania popular. Entre
estas duas tradições, o paradoxo ganha corpo porque o peso maior reside na primeira
tradição. Mais do que isso: nas democracias contemporâneas as decisões políticas, de uma
forma geral, estão fora do alcance dos cidadãos, na medida em que seu linguajar “técnico”
afastou a população da participação política.

[229]
Em contrapartida, os diferentes movimentos de indignação que sacudiram o
mundo nos últimos anos, - como a Revolução Egípcia, o movimento 15-M na Espanha, o
Ocuppy nos Estados Unidos, as Jornadas de Junho no Brasil em 2013 - mostraram-se,
apesar de seus limites, capazes de oxigenar a democracia e compartilharam as seguintes
características entre si: rejeição aos partidos políticos, baixa confiança nas formas
convencionais de organização política, formação e mobilização via internet (Castells,
1999; 2003 ;2013; Feixa & Nofre, 2013; Feixa et al, 2016; Gerbaudo, 2012; 2017;
Vommaro, 2014; 2015).
O advento das TIC’s simultaneamente à difusão da internet permitiu tanto a
comunicação direta entre os indivíduos, quanto a distribuição da informação de forma
multidirecional e horizontal. É relevante, por isso, repensar o processo de funcionamento
do poder político frente às constantes transformações expostas pela globalização no
século XXI, reconhecendo que os indivíduos, por não confiarem nas tradicionais formas
de fazer política, não se sentem representados politicamente pelo atual quadro
institucional (Barbosa, 2016; 2017). Resultado: os índices de participação nas eleições de
países com mais longa tradição democrática vêm declinando nas últimas décadas, assim
como as filiações às principais instituições representativas (Castro; Reis, 2012).
Mouffe (2015) observa que um dos grandes desafios da democracia no século XXI
é “não poder se limitar a estabelecer uma solução conciliatória entre interesses ou valores
ou a deliberar acerca do bem comum; ela precisa apoiar-se concretamente nos desejos e
fantasias do povo” (Mouffe, 2015, p. 6). Como avaliar uma era de imprevisibilidade,
mudanças e transformações em que as redes de interação social expandem-se para fora
das unidades políticas territorialmente definidas pela organização do Estado Moderno?
Mais ainda: se, nas democracias liberais contemporâneas, percebemos o acúmulo
de uma quantidade irrestrita de demandas que não podem ser canalizadas via mecanismos
institucionais, as decisões políticas cada vez mais são realizadas em espaços que estão
fora do controle dos cidadãos. Sendo assim, no lugar de uma confrontação de ideias e
projetos, estamos presenciando o esfacelamento do regime representativo das
democracias liberais aliado a um crescimento contínuo de descontentamento da
população em relação ao mundo político.
A partir desse questionamento, percebe-se a formação de uma lacuna na
capacidade comunicativa entre o Estado e os cidadãos. De um lado, o poder político
continua em uma esfera local; de outro, os cidadãos acumulam não só uma insatisfação
generalizada justificada pela separação entre governantes e governados, como também

[230]
demonstram pouca vontade de se engajarem em um sistema político carente de
“ferramentas comunicacionais” comuns ao cotidiano dele.
Percebemos, então, um “descompasso” entre uma sociedade civil que pleiteia por
repostas rápidas e eficientes, ao mesmo tempo em que os canais da participação política
sinalizam não acompanhar essas demandas requeridas. Há, assim, uma série de lacunas
quanto à compreensão dos valores que orientam e embasam as ações dos atores no campo
político e também acerca das formas de sua socialização. Neste trabalho, consideramos
que percepções de situações sociais objetivas podem passar por impressões e avaliações
subjetivas acerca dos fenômenos políticos.
A formação das “paixões” na política, elemento-chave considerado por Mouffe
(2016) na construção de formas coletivas foi também diagnosticado no grupo investigado.
Por paixão, Chantal entende “um certo tipo de afeto comum que é mobilizado no campo
político na constituição de formas de identificação” (Errejón & Mouffe, 2016, p. 53,
tradução nossa) e “desempenham um papel fundamental na política, e a tarefa da política
democrática não é superá-las por meio do consenso, mas elaborá-las de uma forma que
estimule o confronto democrático” (Mouffe, 2015, p. 5).
O confronto entre identidades diversas no UCG permitiu florescer a “paixão”
como elemento fundamental na constituição do espaço coletivo dentro do grupo no
WhatsApp. Foi o elemento que deu fôlego ao modus perandi do UCG, à medida que o
choque de opiniões diversas entre os usuarios foi crescendo concomitante ao
entrosamento do grupo e, ao fim e ao cabo, foram capazes de formar um ator coletivo.
Em verdade, os aspectos da “paixão” operam como ingrediente contrário à forma racional
de conceber o mundo político. Em outras palavras: “a dimensão da política do mundo
social não se reduz a atividades, espaços, atores ou racionalidades oficialmente
reconhecidos como políticos” (Seidl & Grill, 2013, p. 8).
A partir dessas ideias, as TIC’s têm possibilitado novas formas de atuação política
para além dos canais institucionais, “aumentando a capacidade de mobilização e a
articulação dos cidadãos e possibilitando um maior envolvimento dos atores sociais”
(Penteado et al, 2015, p. 1598). As formas de ativismo digital sinalizam novas
possibilidades de mobilização política ao sugerir reconfigurações de práticas
participativas.
A saber, “compreendeu-se que a internet não traz modificações automáticas; nós,
usuários, é quem configuramos e utilizamos as ferramentas de maneiras diversas, com
objetivos pontuais, influenciados por inúmeros fatores” (Marques, 2011, p. 10). Não há,

[231]
portanto, uma relação mecânica entre o WhatsApp e participação política: esta TIC “não
promove automaticamente a participação política e nem sustenta a democracia; é preciso,
antes, olhar tanto para as motivações dos sujeitos quanto para os usos que eles fazem dela,
em contextos específicos” (Maia, 2011, p. 69).
A crise na participação é sentida, a priori, no ambiente offline, e a internet pode
mobilizar (ou pelo menos fazer um esforço) na recuperação pelo gosto da participação no
campo político e não ser a chave para a solução da crise de representatividade vivida pelas
democracias contemporâneas. A saída para este impasse, a nosso ver, é o bottom-up,
prática que permite agregar até aquele indivíduo que outrora estava desinteressado pela
participação política, mas que, agora, com canais interativos, tem potencial para iniciar
práticas participativas. As pessoas que já não participam da política, talvez não comecem
a participar exclusivamente por conta da internet. Mais do que isso:

O que se pode oferecer, na verdade, é um surplus para os cidadãos participarem da


vida pública, visto que há uma apropriação social da tecnologia digital que é imediata,
pouco custosa e muito eficiente, além de não demandar sacrifícios enormes para o
indivíduo engajar-se politicamente (Barbosa, 2016, p. 56).

As novas possibilidades de acesso, organização, indexação e circulação de


conteúdos criam modalidades novas modalidades de participação. A saber, o
ciberativismo “facilita a formação de novas identidades coletivas, na medida em que cria
espaços temáticos de discussão que permitem a convergência de posições políticas de
pessoas dispersas geograficamente e que muitas vezes nem se conhecem” (Eisenberg,
2015, p. 245).3
O principal termo importado dos estudos de internet e participação é o
ciberativismo. Este pode ser definido como qualquer tipo de ativismo que utilize as TIC’s
como ferramenta política. Em específico, “o ciberativismo corresponde a práticas
comunicacionais que, utilizando plataformas, redes e suportes digitais, sobretudo na
internet, visam entrosar e dar maior visibilidade a lutas no interior da sociedade”
(Eisenberg, 2015, p. 131).
Suas modalidades incluem um repertório variado de ações dispostas a “fortalecer
conexões entre comunidades” (Eisenbeg, 2015, p. 132) desde ferramentas de interação do

3
Um exemplo de iniciativa digital que permite ao cidadão apresentar sugestões no escopo da hipercidadania
é a “RNSP (Rede Nossa São Paulo) que se apropria de ferramentas interativas e colaborativas da internet
para incentivar uma maior participação popular em suas ações políticas” (Amadeu et al, 2014, p. 209).

[232]
meio online como campanhas virtuais, grupos de discussão, fóruns, chats, petições até as
assembléias, atos públicos, passeatas, panfletos e protestos ocorridos meio offline.
Considera-se, neste estudo em questão, que todo usuário inscrito no UCG é, de alguma
forma, um ciberativista.
O ciberativismo, ao fim e ao cabo, é uma manifestação de ativismo social
contemporâneo, na qual o emprego das TIC’s promove modalidades criativas de ações
políticas colaborativas em redes sociais virtuais. Trata-se de colocar em prática uma nova
maneira de ver, sentir e agir politicamente na sociedade contemporânea ao propor ideias
e ações por meio de inúmeros usos das TIC’s que estão reinventando o ativismo político.
Renomados sociólogos têm se destacado na seara do ciberativismo, entre os quais:
o italiano Paolo Gerbaudo, o argentino Pablo Vommaro, o espanhol Manuel Castells, a
brasileira Maria da Glória Gohn e o espanhol Carles Feixa. Gerbaudo (2012; 2014; 2016;
2017; 2017a; 2017b) talvez seja uma das vozes mais ativas no que tange o ciberativismo
no mundo contemporâneo. O sociólogo italiano ressalta que o ciberespaço ocupa uma
posição onde tudo acontece, ou seja, onde os indivíduos conectados trocam ideias entre
si e com o mundo. Os ciberativistas atuam como internautas que colam, copiam, replicam,
editam, sintetizam e multiplicam as redes sociais virtuais, em milhões de tweets e posts
sobre notícias a respeito dos acontecimentos políticos em geral.
O autor realiza um rico trabalho de campo etnográfico ao testemunhar as múltiplas
manifestações de ativismo através das redes sociais virtuais. Seu conceito-chave é
choreography of assembly (coreografia coletiva). Entende-se como um “processo de
construção simbólica de um espaço público que se constrói em torno de um ajuste de cena
emocional e um script dos participantes na assembleia física” (Gerbaudo, 2012, p. 12,
tradução nossa). As coreografias coletivas podem ser “caracterizadas por sua
inventividade e dinâmica de ação, agrupando um número significativo de estratégias. O
uso de diferentes estratégias é seguido de uma atualização constante das informações na
internet, demonstrando dinamismo e envolvimento” (Penteado et al, 2015, p. 1611) com
o meio offline.
A teoria da “coreografia coletiva” (Gerbaudo, 2012) destaca não só as
oportunidades, mas também os riscos envolvidos na adoção entusiástica dos movimentos
sociais contemporâneos. Estas contribuem para transformar locais simbólicos de protesto
em "trending places" (em comparação com a definição do Twitter para “trending topics”),
que adquirem um imenso poder de atração local por um determinado período de tempo,

[233]
mas depois (como acontece com todos os “trending topics” do Twitter) desaparece
progressivamente.
Nos diferentes movimentos de indignação investigados por Paolo Gerbaudo
(Revolução Egípcia, Indignados na Espanha e Occupy nos Estados Unidos), apesar das
reivindicações para grupos se configurarem sem liderança absolutas, a partir de um
caráter dinâmico e assimétrico do processo de mobilização, a função do coreógrafo para
dar o primeiro passo, para definir uma data, para lançar uma ideia, criar um hashtag é
fundamental.
O modo inaugural como o sociólogo versa sobre a noção fluida de natureza
dinâmica, assimétrica e complexa dos processos de mobilizações em escala mundial nos
reserva grandes desafios teórico-conceituais e metodológicos (Gerbaudo, 2016; 2017;
2017a; 2017b). Trata-se de pensar novas metodologias que possam avaliar grupos em que
o valor da espontaneidade e não adoção de mecanismos de delegação e representação
sejam basilares.
A noção de “coreografia coletiva” serve, então, para reavaliar a noção tradicional
de lideranças dos movimentos sociais e colocar o ciberativismo no rol das formas
emergentes de participação política. O ‘choreography of assembly” de Gerbaudo (2012)
é substituída, no liguajar de Vomarro (2014), por carnavalización de la protesta. Assim
como no aporte teórico do sociólogo italiano, a carnavalización de la protesta refere-se à

A dramatização das identidades do protesto, a captação dos meios de comunicação, a


perturbação das relações do espaço público e, sobretudo, a representação de novas
maneiras de se conceber a política no mundo contemporâneo. Constitui-se de uma
configuração peculiar em torno das ações políticas juvenis, onde o político e o
artístico-cultural estão inevitavelmente articulados (Vomarro, 2014, p. 68, tradução
nossa).

O recado de Vomarro (2014) é que essa juventude representa um símbolo de uma


política que se reconhece como nova e suas mobilizações na América Latina expressam
“uma vocação persistente para promover alternativas inovadoras no campo da
participação política no que tange a capacidade de protestar e servir como forte potencial
para continuar protagonizando novas mobilizações sociais, conflitos e mudanças”
(Vomarro, 2014, p. 69, tradução nossa).
Castells (2013) elucida uma mudança na maneira como a organização das novas
formas de ativismo é vivenciada pelos seus participantes. Ele denomina essas novas

[234]
práticas participativas como “movimentos sociais em rede”. Estes surgem como um
projeto calcado nas experiências dos indivíduos, reinventando o modo como a estrutura
democrática funciona e partilha interesses, ideias e valores que deságuam no espírito
coletivo.
A natureza desses movimentos caracteriza-se de forma espontânea e com
ocorrência a qualquer momento e em qualquer lugar do mundo, amparada em larga escala
pelo uso das TIC’s. São características destes “movimentos sociais em rede”: o descrédito
em relação às instituições políticas tradicionais e ao não-funcionamento dos mecanismos
de representação; a desconfiança das informações disseminadas pelos veículos da mídia
tradicional e por corporações financeiras; sem lideranças e organizações formais; sem
orientações estratégicas e autoridades verticais (não programáticos); têm sua formação e
são mobilizados primordialmente via internet (simultaneamente globais e locais); uso
intensivo das redes sociais virtuais (interação dinâmica entre ciberespaço e espaço
urbano); conectados em redes de múltiplas formas (multimodais) e, por último, são
movidos pela tríade: indignação, entusiasmo e esperança.
Equivale a dizer: diferentes formas de indignação são catalisadas em diferentes
partes do globo. Segundo o sociólogo espanhol, o espaço da autonomia é uma
característica essencial no arranjo espacial dos “movimentos sociais em rede”.
Autonomia é definida como a “capacidade de um ator social tornar-se sujeito ao definir
sua ação em torno de projetos elaborados independentemente das instituições da
sociedade, segundo seus próprios valores e interesses” (Castells, 2013, p. 172).
Gohn (2013), talvez a referência brasileira de maior renome nessa área de
pesquisa, ressalta que os novíssimos movimentos sociais centram-se no advento da
internet por meio da comunicação interativa das redes sociais virtuais. A internet tem
aumentado o escopo das possíveis políticas que favorecem o fortalecimento de
movimentos emergentes com caráter emancipatório.
A socióloga brasileira observa que não foram sindicatos ou os partidos que
convocaram estes tipos de manifestações e sim os cidadãos plugados em redes sociais
virtuais. Aliás, “desde o início se fez crítica radical a todas as instituições do
establishment – parlamento, partidos, sindicatos, empresas, igrejas e monarquia” (Gohn,
2013, p. 34). Segundo Gohn (2013), todos que têm acesso às mesmas informações,
particularmente os jovens, estão ligados em um único mundo, onde também podem ficar
lado a lado, curtir páginas, compartilhar vídeos, fotos, artigos, posts, sem contar a
replicação em perfis, blogs e sítios.

[235]
A “geração Hashtag” 4 formada pelas mobilizações coletivas da juventude na era
da internet é destacada no trabalho de Feixa et al (2016). Estes jovens estiveram presentes
em inúmeros protestos sociais que explodiram nos últimos anos entre 2009 e 2014. A
saber: “todos estes movimentos surgiram no meio virtual, criaram hashtags que se
converteram em Trending Topics (tendências mundiais) e consolidaram o papel
mobilizador das redes sociais virtuais em geral e do Twitter em particular” (Feixa et al,
2016, p. 111, tradução nossa).
A geração # (hashtag), segundo Feixa et al (2016), perfaz uma nova fase da
sociedade em rede, caracterizada pela supremacia das redes sociais virtuais. Uma de suas
características basilares é a indexação (classificação numérica e temática) dos atores
participantes respeitando afinidades sociais, ideológicas e culturais, assim como uma
multiplicação exponencial das capacidades de conexão e colaboração entre os jovens
(Fernández-Planells, 2016). Esta geração inaugura “novas formas de protestos, onde
jovens de distintos países participam de manifestações convocadas pelo meio virtual e
propagadas e organizadas por telefones móveis” (Feixa et al, 2016, p. 111, tradução
nossa).
O que todos estes autores apresentam como denominador comum, em maior ou
menor grau, é abrir espaço para possibilidades políticas cujas posições não estão dadas,
mas que são construídas pelos atores sociais envolvidos no processo. As chaves de análise
– Gebaudo (“coreografia coletiva” e “movimentos das praças”); Vommaro
(“carnavalização dos protestos”); Feixa (“geração hashtag”); Castells (“movimentos
sociais em rede”); Gohn (“novíssimos movimentos sociais”) – expressam movimentos
contemporâneos associados a uma “geopolítica da indignação global” (Bringel & Pleyers,
2015) que devem ser situados por suas demandas peculiares “em diferentes coordenadas
espaço-temporais” (Bringel & Pleyers, 2015, p. 8).
As TIC’s, confome visto, podem servir como instrumentos de mudança social e o
ciberativismo ganha “nouva roupagem” na seara de estudos sobre participação política ao
proporcionar a emergência de novos espaços para a democracia. Neste trabalho, em
específico, procuramos entender como o grupo criado no WhatsApp em Florianópolis
serviu como espaço proveitoso para formação de uma identidade coletiva que evoluiu de

4
As hashtags (#) são palavras-chave antecedidas pelo símbolo #, que servem tanto para destacar quanto
para conectar mensagens sobre o mesmo assunto em redes sociais virtuais. No Twitter, as hashtags dos
assuntos mais recorrentes vão para os Trending Topics.

[236]
forma contingente e atingiu proporções que nem mesmo os usuários do grupo
imaginavam em suas expectativas iniciais.
O potencial democrático do WhatsApp pode sim ser apropriado por inúmeros
atores sociais de modo a organizar e articular redes de protestos, como diagnosticado no
UCG. Neste processo, os mundos online e offline estão conectados, a saber: “a análise de
como eles se relacionam, seja via atores offline que deflagram movimentos virtuais ou
intervêm na comunicação virtual, seja nos momentos posteriores, quando a dinâmica
política se desloca para outros espaços” (Sorj, 2016, p. 13) é pautada por práticas de
intervenção que estão para além do mundo institucional, criando um “novo tecido
democrático online/offline” (Sorj, 2016, p. 18).
Mas como surge o aplicativo móvel WhatsApp? Por que ele é considerado a “bola
da vez” no mundo inteiro? O WhatsApp é um “aplicativo de mensagens multiplataforma
que permite trocar mensagens pelo celular sem pagar por SMS”.5 Foi criado em 2009 e
teve seu auge em escala mundial no ano de 2012. Desde então, vem passando por várias
atualizações nas suas funcionalidades. Em apenas quatro anos de existência ele cresceu
mais que o Facebook e seus números de penetração em diferentes países aumentam
exponencialmente (Gutiérrez-Rubí, 2015). Não por menos, em fevereiro de 2014, o
Facebook anunciou a compra do aplicativo por 16 bilhões de dólares.6
Os usuários dessa tecnologia móvel podem enviar imagens, vídeos e documentos
em PDF, fazer ligações sem custos desde que haja conexão com a internet. Dentre as
funcionalidades, destacamos: conversa em grupos permitindo partilhar todo tipo de
informação com os usuários inscritos (que é o canal investigado por este trabalho); a
modalidade WhatsApp Web, que sincroniza conversas do dispositivo móvel para outro
dispositivo, (ou seja, no computador pessoal é possível retomar as conversas presentes no
aplicativo do celular); e a execução de chamadas de voz e de vídeo, podendo realizar até
ligações internacionais.7
Trata-se de uma ferramenta comunicacional que facilita a organização em grupo,
é versátil, tem abrangência global e forte potencial para diversas formas de ação. Ainda
podemos destacar a facilidade de relacionar, empoderar e promover a ação coletiva. E,
não menos importante, tem uma reverberação crescente em diversas esferas da vida

5
Disponível em: https://www.whatsapp.com/?l=pt_br Acesso em: 02 de Maio de 2016.
6
Disponível em: http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2014/02/criado-em-2009-whatsapp-cresceu-mais-
rapido-que-facebook-em-4-anos.html Acesso em: 04 de dezembro de 2016
7
Disponível em: https://www.whatsapp.com/features/ Acesso em: 03 de Dezembro de 2016.

[237]
social, sendo usado em ambientes de trabalho, meio acadêmico, campo esportivo, esfera
privada, campanhas políticas, movimentos sociais, e para qualquer outro grupo de pessoas
afins.
Com a adesão enorme de usuários a esta rede de tecnologia móvel em todo o
planeta, o Brasil seguiu o mesmo caminho: “A crescente penetração do WhatsApp,
aplicativo de conversação para smartphones se fazia presente em 56% dos aparelhos
móveis brasileiros em 2014” (Savazoni & Copello, 2016, p. 118).8 A expansão da
tecnologia móvel aliada ao barateamento dos preços dos “smartphones” culminou em um
maior acesso à rede virtual pela população (Hansen, 2016).
Gutiérrez-Rubí (2015) destaca que os grupos presentes no WhatsApp relacionam
indivíduos construindo comunidade de interesses, mas que também promove ação
autônoma e criativa dos usuários. Há o que o autor denomina de “mobile lifestyle”:
comportamento social e individual que relaciona, empodera e promove ação coletiva e
autônoma a partir do uso do “smartphone”. No nosso cotidiano, por exemplo, desde que
saímos de nossos lares todos os dias vemos o quanto é comum ter algum indivíduo
“clicando” a todo instante em seu celular.
Esse “mobile lifestyle” é percebido, por exemplo, nos grupos do WhatsApp ao
aproximar pessoas com interesses comuns através da própria iniciativa individual que se
inicia com o administrador do grupo. A saber, “por sua dimensão global e por seus mais
de 700 milhões de usuários em todo o mundo, o WhatsApp se revela, de forma
esmagadora, uma ferramenta indispensável para a política” (Gutiérrez-Rubí, 2015, p. 9,
tradução nossa).
O uso político do WhatsApp tem sido uma das marcas nas novas formas de
ativismo online. Estudos mostram que o “baixo interesse por aplicações para celulares e
tecnologias móveis não foi capaz até o momento de formar uma categoria própria”
(Bragatto & Nicolás, 2012, p. 20). Além disso, “a crescente penetração do WhatsApp nos
smartphones” (Savazoni & Copello, 2016, p. 118) tem crescido de forma exponencial na
sociedade informacional do século XXI.

Radiografia do UCG

O “UCG” foi criado no dia 30 de Março de 2016 às 19:19 (horário de Brasília)


por um usuário de Florianópolis em um período próximo à votação pela Câmara dos

8
No senso comum, a população brasileira rebatizou o aplicativo como “ZapZap”.

[238]
Deputados do pedido de impeachment contra a presidenta Dilma Rouseff. O grupo
chegou a ter 256 usuários inscritos que, reivindicavam a volta de Rouseff à presidência.
Que contexto político brasileiro levou à criação do “UCG”? Por quê o nome “Unidos
contra o Golpe”?
Avritzer (2016) denominou a turbulência política na democracia brasileira de
“impasse”. O cientista político elenca os motivos que levaram a tal paralisia, quais sejam:
colapso da aliança congressual de sustentação do governo, esgotamento do
presidencialismo de coalizão, forte mobilização da opinião pública contra a presidenta e
forte impacto da operação lava-jato. Logo, a crise política aliada ao agravamento da crise
econômica resultou em condições de ingovernabilidade pelo poder executivo (Avritzer,
2016).
No momento em que este texto era escrito, o UCG tinha cerca de 197 usuários,
sendo aproximadamente mais de cem registrados no grupo com o DDD (+48) 9. O número
de usuários varia de um dia para outro, já que tanto podem entrar novos como sair antigos.
No grupo, praticamente todos os números foram inscritos como administradores, o que
permite adicionar novos integrantes e sinaliza uma organização de forma horizontal.
A grande maioria dos inscritos provém da região Sul do país, especialmente da
cidade de Florianópolis, mas estando presentes ciberativistas de outras regiões e alguns
do exterior. Houve então uma transnacionalização do grupo sem qualquer pretensão
inicial para isso. O UCG é formado por um grupo heterogêneo de atores sociais, tais
como: educadores, engenheiros, petroleiros, geólogos, médicos, psicólogos,
psicanalistas, arquitetos, sindicalistas, estudantes universitários, dentistas, atores, poetas,
cronistas, bancários, músicos, professores universitários, mestres, doutores e políticos.
Os integrantes do grupo se posicionam majoritariamente como defensores de uma
ideologia de esquerda: se orientam basicamente para a promoção da igualdade entre os
homens e para a mudança da ordem social. Bobbio (1994) explica que na esquerda
percebemos o princípio do igualitarismo; o laicismo; a crítica das limitações ético-
religiosas; a inexistência de conceitos absolutos de bem e mal; os interesses dos
trabalhadores, que devem prevalecer sobre a necessidade de crescimento econômico; o
antifascismo; e a identificação permanente com as classes inferiores da sociedade. A
saber: “a conotação central da noção de esquerda apresentada por Norbeto Bobbio é com
a ideia de igualdade. Segue sendo usada no mundo político e tem que ser mantida”

9
Esse DDD equivale a usuários da Grande Florianópolis e da região sul do Estado de Santa Catarina. Há
também DDD (+47) E (+49) que equivalem a outras regiões do Estado.

[239]
(Errejón & Mouffe, 2016, p. 131, tradução nossa).
Este pesquisador criou um modus operandi para qualificar o modo de ação do
UCG baseado em sua “netnografia”. O grupo se uniu sob um projeto de esquerda formado
por vários atores sociais. O florescimento das “paixões”, conforme visto, foi elemento-
chave e se mostrou capaz de dar coesão ao grupo. Os ciberativistas criaram possibilidades
de participar num coletivo e isso não envolveu uma solução necessariamente racional.
Eles se uniram, mas reconheceram os direitos de outros usuários a exporem também seus
pontos de vista sobre o contexto político brasileiro. Houve o dissenso, mas com uma base
de consenso, princípios éticos e morais que foi essencial para se organizarem em
conjunto. O modus operandi do UCG “não decorreu necessariamente de um projeto
consciente, mas simplesmente daquilo que as pessoas fazem, sentem, percebem, e termina
por articular à medida que procuram significados para sua vida cotidiana” (Harvey, 2014,
p. 22).
No caso brasileiro, quando uma força política consevadora transformou a
consciência da população e a ganhou a sua confiança: tornou-se muito difícil construir
uma alternativa para ocupar esse terreno. O grupo surgiu com motivações, interesses e
projetos de se unirem contra esta “direita que saiu do armário” (Messenberg 2016) e o
início do governo Temer.
Para isso, utilizaram os dispositivos do WhatsApp para interagir socialmente,
motivados pela indignação com a situação política brasileira e propelidos pelo entusiasmo
de criar novos projetos de ações políticas que revelaram valores pró-democráticos. Um
das questões fundamentais nesta pesquisa foi investigar como esse modus operandi
(Quadro 1) permitiu um espaço proveitoso para potenciais formas de participação política
e aproximação de vínculos entre os usuários.

[240]
Quadro 1: Fatores estruturantes e Modus Operandi do UCG
Contexto
Três Criação do
político
motivações- Grupo no
brasileiro que Resultado: Modus operandi UCG
chave para WhatsApp
favoreceu a
criação do grupo
união do UCG
- - Interações
Impeachment via postagens
de Dilma a um custo
Rouseff; reduzido e de
forma
- Início do interativa;
Governo
Temer; - Convocação
de protestos,
- Cortes
a partir do
drásticos no
cruzamento
- Parlamentares orçamento das online
políticas - Processo organizativo na forma de
conservadores (WhatsApp /
sociais, redes, onde os ciberativistas:
off-line identificam problemas; compartilham
redução de
(ruas); informações; convocam protestos;
benefícios,
- Mídia destituição de buscam soluções conjuntas; e ainda
- Espaço desenvolvem formas de solidariedade
tradicional direitos, seja
coletivo de para garantir o respeito ao direito de
parcial no mundo do
articulação; outros usuários exporem seus pontos
trabalho, seja
nas políticas de vista. Sua organização
- Inserção da descentralizada é basicamente formada
sociais e nos
- Judiciário política na por diversos participantes que não
serviços
Espetacularizado públicos; prática reconhecem uma liderança formal
cotidiana;
- Medidas
anti-sociais - Paixão
como a como
aprovação da elemento
PEC 241 ou irracional que
PEC 55; permitiu
maior coesão
-Não legado ao grupo.
de Junho de
2013.

Fonte: Elaboração do autor.

Traçamos informações diversas, onde colocamos as experiências subjetivas como


parte da redação e buscamos um significado comum entre as análises das postagens com
as entrevistas realizadas, tendo em mente a “netnografia” deste pesquisador “seguindo os
atores” do UCG, desde o momento de seu ingresso. Ao combinar as três técnicas de
pesquisa (“netnografia”, análise de postagens e entrevistas), entramos em contato mais
profundo com as informações disseminadas no grupo.

[241]
O intervalo utilizado para análise de mensagens postadas no WhatsApp no mês de
setembro de 2016 foi um período posterior a consumação do impeachment (31 de agosto),
valendo-se de variáveis de análise presentes no Quadro 2.
Quadro 2: Operacionalização de ações estratégicas do “UCG” em setembro de 2016

VARIÁVEL AÇÕES ESTRATÉGICAS


OBSERVÁVEIS

A Mecanismo propositivo Construção da comunidade de interesses.


Defesa de ideias e valores.

B Criação de outras ações em redes sociais Ação para formar outros grupos no
virtuais WhatsApp para exercer uma atividade
específica; atalhos para eventos no
Facebook; Vomitaço; Tuitaço.

C Mobilização Convocação para alguma atividade ou


protesto. Ação de estímulo nos grupos
do WhatsApp e outras formas de
interação e mobilização em outras redes
sociais virtuais. Uso da criatividade e da
arte nos protestos.
D Estratégias de novas ações Ferramentas utilizadas para colocar as
ideias em práticas. Auxílio na resolução
de impasses, tomadas de decisão a partir
de discussão e debate entre os usuários
do grupo.

E Difusão de informações Informações de contexto geral. Vídeos,


fotos, atalhos de sites, áudios postados
pelos ciberativistas. Lógica do
streaming, realizando transmissão ao
vivo dos acontecimentos das
manifestações.

F Respostas rápidas Quando um ciberativista, responde a


outro usuário utilizando a mensagem do
primeiro, aproveitando essa
funcionalidade do WhatsApp.
G Difusão de material não veiculado pela Isso acontece especialmente nas
mídia tradicional situações em que os meios de
comunicação tradicionais não cumprem
seu papel percebido em relação aos
critérios jornalísticos autoproclamados
como objetividade e imparcialidade. Uso
recorrente de notícias veiculadas pelo
coletivo alternativo “Mídia Ninja”
(Narrativas Independentes Jornalismo e
Ação).

[242]
Fonte: Elaboração do autor.

Utilizamos essas variáveis, uma vez que foram construídas para caracterizar a
ação do grupo neste mês investigado, levando em conta também a “netnografia” realizada
desde meados de Abril. Foi realizado um uso mais qualitativo das mensagens postadas,
tomando certos diálogos ou interações como exemplos típicos, mesmo que não sejam
necessariamente representativos em relação a todos os usuários inscritos no UCG, no
sentido de poder acompanhar as orientações subjetivas dos atores sociais durante o mês
de setembro.
Tem-se em mente que “é preciso sobretudo observar as situações e os contextos
nos quais a troca de informações se produz, assim como a construção, por meio de debate,
das regras às quais os interlocutores se submetem” (MARQUES, 2011, p. 19). Para isso,
este pesquisador dirigiu-se à parte de configuração do grupo do WhatsApp, escolheu a
opção de exportar a conversa e enviou para seu próprio e-mail para ter acesso ao histórico
das mensagens e poder realizar a interpretação das mensagens no intervalo proposto.
Neste histórico temos acesso a todas as mensagens postadas em setembro de 2016.10
No período escolhido (setembro de 2016) o Brasil já atravessava um momento
político pautado pelo avanço da direita. Foi justamente no pós-impeachment da presidenta
Dilma que a PEC 241 foi aprovada pela Câmara e depois pelo Senado, onde ganhou o
nome de PEC 55. Da perspectiva dos integrantes do UCG, estas eram propostas nada
preocupadas com os valores democráticos e representavam o corte de 20 anos de direitos
sociais adquiridos pela população menos desfavorecida, nunca adotada nesta magnitude
em qualquer país do planeta.11
O que as postagens dos ciberativistas nos revelaram? Partimos da pergunta de
Gerbaudo: “como os participantes, muitas vezes agindo a uma distância do outro, vêm
perceber a si mesmos e são vistos pelos outros como parte de um ator comum?”
(Gerbaudo, 2014, p. 264, tradução nossa) A interação por meio destas postagens
favoreceu a formação de um ator coletivo? Percebemos, de forma geral, a utilização de
“respostas rápidas”, à medida que os ciberativistas acompanharam a votação do Senado
que culminou no impeachment da presidenta Dilma Rouseff. Houve um sentimento de

10
As mídias que os ciberativistas postam não são enviadas para o e-mail, embora as mensagens
permaneçam de forma integral.
11
A auditora fiscal Maria Lúcia Fattorelli fez campanha intensa nas redes sociais virtuais contra a PEC
241/55, que recorrentemente eram divulgadas pelos usuários do UCG. Ver:
https://www.youtube.com/watch?v=zyFcWMBxWjQ Acesso em: 10 de dezembro de 2016.

[243]
indignação e foram convocados protestos. Alguns cibeativistas saíram do WhatsApp e
foram às ruas. Percebemos de A até a G (todas as categorias descritas no quadro 2)
utilizadas no mês de setembro de 2016. Os usuários do grupo recorrentemente postaram
fotos, vídeos, atalhos de sites com textos e fizeram do WhatsApp um canal legítimo de
participação política para se comunicarem de forma rápida e instantânea.
As varáveis utilizadas foram classificadas de acordo com as postagens. Elas foram
criadas após a análise do mês de setembro. Detectamos também que os ciberativistas
usam textos em “caixa alta”, quando querem ganhar mais atenção dos outros usuários. O
uso recorrente da “#ForaTemer” foi bastante expressivo, confirmando o estudo de Feixa
et al (2016). As características das modalidades de ciberativismo elencadas no trabalho
de Penteado et al (2015) como “informação, consulta, mobilização, engajamento,
deliberação e empoderamento” foram fontes centrais para criamos nossa
operacionalização.
Podemos inferir que os usuários do UCG formaram um ator coletivo a partir da
interação das mensagens compartilhadas entre eles. Mais do que isso: a mobilização
intensa de suas participações com um respeito mútuo permitiu calorosos debates no grupo
do WhatsApp por meio do compartilhamento, difusão de idieias e articulação política.
Em futuros estudos, sugerimos alargar o período de análise e, se possível, quantificá-las
a partir da classificação.
De forma complementar à análise das postagens do mês de setembro de 2016, a
opção por entrevistas semi-estruturadas teve o objetivo de qualificar a análise de
trajetórias dos ciberativistas juntamente com sua intensidade da participação política no
WhatsApp, a partir de suas percepções e motivações, além de mapear os repertórios de
atividades desempenhadas por eles desde seu início no meio virtual até sua repercussão
no meio offline. Dessa forma, foram exploradas questões do tipo “como o uso do
WhatsApp mudou o perfil de atuação na política” e, “se houve uma maior participação
na política a partir do incremento desta ferramenta ou não”. Para responder a estas
perguntas, as entrevistas12 proporcionaram aos ciberativistas refletirem sobre seu uso
político do WhatsApp.
Por meio de um roteiro semi-estruturado, buscou-se evidenciar a interpretação de

12
Optamos por realizar 15 entrevistas, seguindo o recrutamento via “snowball” e de alguma forma este
número foi suficiente para interpretar o “modo de agir” do UCG e, por isso, decidimos encerrar a “bola de
neve” na entrevista de número 15, permitindo a viabilidade da pesquisa. As entrevistas foram gravadas por
este pesquisador.

[244]
suas motivações para participarem da vida política, a partir dos conteúdos valorativos
expressos no discurso dos entrevistados. Procurou-se, então, “ouvir” os sujeitos
investigados, frisando o sentido subjetivo que os atores sociais dão às suas próprias ações
no grupo do WhatsApp.
Dentre os entrevistados temos engenheiros agrônomos, estudante de história,
aposentada, ativista política, psiquiatra, pedagogo, empresária, jornalista, dentista,
candidatos a vereadores, graduando de design, consultora em relações internacionais.
Utilizamos a técnica de recrutamento snowball e garantimos uma elasticidade nas
entrevistas realizadas quanto ao nível de participação dos entrevistados. Assim, nosso
esforço foi pontuar os principais aspectos enumerados pelos ciberativistas, procurando
costurar os pontos chaves apresentados no roteiro.
A maioria dos entrevistados tem pós-graduação ou pelo menos uma graduação e
no geral a média é de 3 a 5 salários mínimos como renda mensal familiar, ocupando
distintos cargos de trabalho. Dentre eles, temos ciberativistas jovens e tambem mais
velhos13. Não há uma data específica para entrada de cada um no grupo, variando de um
ciberativista para o outro: eles ingressaram no intervalo de Abril a Julho de 2016.
As principais motivações para participarem do “UCG” foram: indignação com a
realidade política brasileira, luta pelos valores democráticos, reunião de pessoas contra o
impeachment da presidenta Dilma Rouseff, ação prática permitida pelo WhatsApp,
encontro de pares, desespero perante o governo Temer, sentimento de pertencimento a
uma causa, compartilhamento de informações não veiculadas pela mídia tradicional,
preocupação com a ascensão de ideias protofacistas em todo o território brasileiro, debate
sobre soluções para a crise política, informações sobre os protestos.Vimos então um
ecletismo de justificativas, mas com um sentimento comum de “tomar parte de algo”,
“integrar”, “vontade coletiva de agir”, “construir”, “existir no mundo” expressando, ao
fim e ao cabo, o desejo de “unir-se contra o golpe”.
O WhatsApp ajudou a divulgar informações que não estavam sendo cobertas pela
mídia tradicional. Para eles, o UCG tratou sobre questões relevantes da política, um grupo
auto-avaliado como crítico do cenário político brasileiro, mais do que simplesmente
expressar apenas opiniões alheias e “achismos”. Um entrevistado afirma: “o UCG
consegue ter uma maior visibilidade de como as pessoas e enxergam a política brasileira.
Os usuários do grupo usam o diálogo como forma de fortalecimento do grupo”.

13
Não houve a possibilidade de tracarmos o perfil dos atores do grupo inteiro, uma vez que entrevistamos
apenas quinze usuarios.

[245]
Do grupo, surgiram novas redes de conexões via WhatsApp, a partir da formação
de novos grupos. Em seguida, realizaram também links com o Facebook. Um das
questões elencadas por praticamente todos entrevistados é o desuso do Twitter, embora
revelarem fazer seu uso quando fossem convocados para o que se convecionou chamar
“tuitaço”.14 Segundo um dos entrevistados, “o Twitter não estou usando, não está mais na
moda”.
Os entrevistados revelaram que o uso do WhatsApp facilitou a formação de
opiniões e reflexões sobre política. Talvez seja este o diferencial desta TIC frente ao
Facebook, uma vez que o recrutamento de pessoas por esta plataforma é mais veloz e a
troca de informações mais instantânea: o fato de imagens, vídeos e notícias em geral
serem compartilhadas de maneira rápida resultou em um considerável efeito político na
opinião de alguns entrevistados.
Vários ciberativistas comentaram que o WhatsApp mudou a forma como se vê a
política, devido à difusão ágil da informação, conforme esta afirmação: “ás vezes no ato
não conseguimos ter contato com os outros usuários. Vemos as bandeiras, os cartazes e
não há oportunidade para o diálogo, quando voltamos para o WhatsApp podemos discutir
um tema que não houve espaço para debatê-lo no protesto”.
Os entrevistados ressaltaram que houve uma mudança abrupta com o advento do
modelo muitos-para-muitos, já que há uma melhoria incondicional na disseminação de
notícias (isso não deixa de ir ao encontro de nossas discussões realizadas à respeito do
ciberativismo na seção 1). E o muitos-para-muitos no WhatsApp têm um caráter mais
efêmero e obrigátorio do que no Facebook: “no sentido de que se no Facebook você pode
escolher as pessoas que irão ler suas postagens, no grupo do WhatsApp assim que é
postada uma mensagem, todos os usuários inscritos obrigatoriamente irão ler.” No
entanto, mesmo com essas diferanças eles reconhecem que se não tivéssemos este cenário
de TIC’s, alguns dos entrevistados afirmaram que a situação do país poderia ter sido ainda
pior.
Visitar páginas no Facebook, criar eventos dentro de uma comunidade são
algumas das atividades listadas que os usuários do UCG puderam fazer a partir do
WhatsApp. Um deles ressaltou ainda que criou uma página no Facebook a partir do que

14
Manifestação feita pela publicação maciça de tuites para protestar, geralmente por motivos políticos.
Dispon]ivel em> http://noticias.band.uol.com.br/brasil/noticia/100000799934/tuita%C3%A7o-pede-
ren%C3%BAncia-de-michel-temer.html Acesso em 10 de Fevereiro de 2017.

[246]
vinha sendo debatido no grupo do WhatsApp e revelaram acompanhar mais o grupo do
WhatsApp do que propriamente o Facebook.
Um entrevistado comentou que, ao divulgar protestos no UCG, ele ainda oferece
carona para o ciberativista que quiser acompanhá-lo como forma de motivar outras
pessoas a participarem de manifestações convocadas pelo grupo. Vimos que o caminho
online/offline é ambíguo: por um lado, relataram situações em que estiveram com uma
pessoa do seu lado com quem conversa no mundo online, mas que no mundo real não foi
possível identificar; de outro, reconheceram que há interação no protesto, facilitada,
sobretudo, pela convocação que se inicia no meio online.
Uma das vantagens percebidas é o recurso do áudio usado no grupo do UCG, o
que tornou mais fácil identificar, por exemplo, ciberativistas do grupo no protesto. Vimos
que, quando eles utilizam o recurso de áudio, a voz serve como uma expressão de
empoderamento. Quanto mais empoderada, mais recursos de áudio são utilizados. Vários
entrevistados salientaram a formação de lideranças no grupo, conferindo esse título às
pessoas que mais participam e organizam as atividades do UCG, embora reconheçam que
tais lideranças não se veem como líderes. Estas percepções ratificam as teorias sobre a
horizontalidade como uma característica-chave dessas novas formas de ativismo que
explodem mundo afora. Uma das ciberativistas identificou que participa de outros grupos
que se originaram do UCG: “Eu participo de um grupo de confecção de material e cartazes
e de um grupo de leitura que se originaram do grupo mãe.”
Diagnosticamos também que, no momento da entrada de um usuário no grupo,
subitamente o novo integrante é transformado em administrador do grupo, tendo a opção
de adicionar novos usuários caso assim o queira. A partir daí, foi criada uma lógica em
que todos passaram a ser administradores do grupo, corroborando mais uma vez a
horizontalidade de sua organização. Cada usuário contribuiu de alguma forma com o
fortalecimento dos laços sociais no UCG, seja com conhecimento, leitura ou reflexões
sobre as informações postadas. Foi bastante citado pelos entrevistados o fato de postarem
informações do jornalismo independente “Mídia Ninja”, como uma capacidade de contra-
informação dos veículos da mídia tradicional.
Não houve um caráter programático a ser seguido, além de ser livre a expressão
de cada um no grupo. Este talvez seja o maior diferencial do UCG na sua forma de
atuação. Se nosso dia tem apenas 24 horas e é cada vez mais acelerado, a forma de utilizar
o WhatsApp que os ciberativistas encontraram foi peculiar, pois, além de participarem das
atividades do grupos, combinaram responsabilidades pessoais e profissionais com a

[247]
possibilidade de aproximar a participação política à vida cotidiana (Bringel & Pleyers,
2015, p. 15).
Maior difusão de opiniões, criar algo diferente do que já temos foram uma das
apostas de alguns entrevistados no grupo. O UCG mostrou que o virtual e o real estão
conectados em único mundo. Significa dizer: um modo novo de promover interação e de
circular um mutirão de informações no grupo do WhatsApp. Mais ainda: “os cidadãos
comuns no centro dos debates, das iniciativas e das práticas. Isso aproxima o ativismo
social e a cidadania ao mundo da vida e das experiências vividas pelas pessoas” (Bringel
& Pleyers, 2015, p. 15).
Os principais motivos que o levam os integrantes do UCG a participarem da
política é o desejo de um futuro melhor; muitos declararam participar desde muito jovens
do mundo político. Embora reconheçam ter uma participação assídua, afirmaram que a
política deveria oferecer mais canais para participação. Vários ciberativistas começaram
a fazer o uso do WhatsApp depois de 2013, como também revelaram participar de outros
grupos políticos na plataforma móvel.
Um dos pontos chaves destacados por um de nossos entrevistados é capacidade
de o WhatsApp propor um mecanismo inverso de participação, qual seja: “se no momento
do protesto não houve tempo ou oportunidade para as pessoas expressarem suas opiniões
entre elas, terminado o momento offline do encontro, elas podem retomar suas pautas de
discussão na dimensão online do WhatsApp”. Desta forma, foi destacado um caminho
“offline/online” como um dos estilos própios criado pelo grupo.
Um dos ciberativistas revelou usar o WhatsApp sempre para fins políticos e
declara participar também de outros grupos desta ferramenta. Avalia que o UCG é um
grupo eclético e que se inicia no âmbito local da cidade de Florianópolis e toma
proporções internacionais. Vimos que houve uma transnacionalização do grupo ao obter
a adesão de outros usuários de diferentes localidades do Brasil e também no exterior, para
além da esfera local.
O modus operandi de se organizar foi de fundamental importância para difundir
informações não veiculadas pela mídia tradicional, fato também filtrado pelas postagens
no mês de setembro de 2016. Esta plataforma permitiu dar voz a um público que não
encontrou seu espaço em canais tradicionais. Isso foi um fator preponderante para
motivação de vários participantes do grupo, ao promoverem uma reunião de pessoas que
compartilhavam um interesse político comum, por mais que existissem divergências
explicitadas durante esta integração, conforme apontou algumas vozes dos entrevistados.

[248]
Significa dizer: os usuários do UCG compreenderam “a democracia em um sentido
ampliado, não como sinônimo de instituições, representação ou eleições, mas com uma
criação sociopolítica e uma experiência subjetiva” (Bringel & Pleyers, 2015, p. 12).
A “capilaridade” do grupo é outra característica fundamental. Por meio do caráter
instantâneo, no momento em que os usários recebiam informações do UCG,
encaminhavam as postagens recebidas para outros grupos, o que fazia com que o
conteúdo ali divulgado fosse disseminado para um alcance imensurável de outras redes
de usuários, conforme sinaliza este entrevistado:

Encontrei os meus pares no UCG. Aqui no Sul a maioria é de direita. Então você se
sente muito solitário. Família, Rua, Grupo de amigos é coxinha para todo lado. Risos.
Então fico muita solitária mesmo e me sinto acompanhada por este grupo. Encontrar
seus semelhantes é um instrumento útil do Whats. Além de ser uma forma barata de
massificar a informação. Apesar dos usuários não se conhecerem pelo WhatsApp,
quando eles iam no atos se encontravam. Combinamos de usarmos algo vermelho
como uma fitinha, por exemplo, para nos identificarmos nos protestos. No entanto,
cada um se manifesta de forma livre no grupo, então às vezes ocorre desentendimento
entre os usuários, e eles se retiram e depois alguém vai buscá-lo e insere o número de
volta. Fato curioso do UCG. Eu já encontrei um ex-integrante do grupo. Ele saiu
porque não consegui ler o mutirão de informações que eram postadas diariamente.
Mas mesmo sabendo disso, eu não quero ficar sozinha. Quando penso em apertar o
botão para sair do grupo, eu reflito melhor, e decido por permanecer no UCG. O papel
do Whats é de organizar os que pensam igual e querem mudar algo. Se eu não estivesse
no grupo estaria mais triste, mais isolada. Tive vivências no grupo que experimentei
ações que não as viveria se não estivesse ali. Foi uma nova forma de viver a política.
(Entrevista nº 6)

Mais ainda: talvez a forma de ver a política tenha continuado a mesma para os
entrevistados, mas eles ressaltaram que o UCG mudou a forma como “fazem a política”,
no sentido de que o recrutamento para protestos, a disseminação instantânea das
informações e organização de atividades são feitas numa velocidade que satisfaz a
globalização da comunicação no século XXI.

Considerações Finais
O uso do WhatsApp como plataforma para participação é um desafiador objeto de
pesquisa, já que provoca alterações nos estilos de vida contemporâneos e abre espaço para
uma abordagem teórica multidisciplinar. Mais ainda no caso específico deste artigo, que

[249]
explorou metodologias ainda incipientes. No entanto, seguimos as sugestões do trabalho
de Alcântara (2014) ao utilizar o grupo do WhatsApp investigado como uma experiência
empírica do ciberativismo.
Nosso trabalho mostrou que os ciberativistas investigados construíram e
mantiveram laços de articulação criados no momento de interação do UCG. Percebemos
uma evolução do nível de proximidade dos ciberativistas desde que o grupo foi criado,
em Abril de 2016. De alguma forma, este grupo do WhatsApp apresentou diversas
maneiras de expressar as “paixões” (MOUFFE, 2016), a partir do momento em que foram
capazes de formular suas próprias enunciações, passíveis de serem aceitas ou contestadas
pelos outros usuários, de incendiar os debates e participar de forma interativa no grupo,
tendo em mente que o caráter plural do dissenso é inerente ao trato da política.
No momento em que se discute o que é “reiventar a política” no século XXI, estes
ciberativistas nos deixam pistas: foram “challengers” ao desafiarem as maneiras de pensar
a política para além dos canais institucionais e participaram ativamente de discussões
realizadas no UCG e, portanto, realizaram um simples exercício de aproximar a política
ao seu cotidiano.
Mais do que isso: demonstraram adquirir “energia niveladora, democrática,
ingrediente indispensável para mudanças” (Mouffe & Errejón, 2016, p. 54), qual seja:
foram para as ruas, convocaram protestos, disseminaram informações ignoradas pela
mídia tradicional, confeccionaram camisetas do grupo, organizaram inúmeras atividades.
Ao fim e ao cabo, criaram um modus operandi UCG, enquanto seres políticos. A
imprevisibilidade, as mudanças e as transformações que este grupo percorreu serviram
como suporte para o surgimento de relações sociais ali aprofundadas.
Tecemos, portanto, uma investigação sobre o impacto político do uso do
WhatsApp, analisando o caso do UCG na cidade de Florianópolis no Brasil. A democracia
brasileira, como outras democracias mundo afora, tem se mostrado de forma caricatural e
muito distante da energia dos movimentos que emergem nas redes sociais virtuais. Os
estudos sobre ciberativismo à luz do WhatsApp nos reservam uma frutífera agenda de
pesquisa e propõem uma reflexão abrangente que têm permitido ampliar o significado do
ciberativismo e suscitado novos debates acerca da democracia. Este estudo espera ter sido
uma contribuição para tanto no sentido de almejar novos canais de participação para
ampliar o debate político de forma plural.

[250]
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[254]
14. DEMOCRACIA PARTICIPATIVA CONTEMPORÂNEA:
UMA ANÁLISE BRASILEIRA NUM CONTEXTO

DE REGULAÇÃO DAS DROGAS

Guilherme Augusto Souza Godoy‡

Resumo: Introdução O trabalho traz uma visão contemporânea com novas práticas no
âmbito da democracia participativa. Objetivo Procura-se ampliar o entendimento e
funcionamento da democracia participativa, tendo em vista as diferentes esferas de
aplicação com o crescimento de adesão às novas tecnologias de comunicação em massa.
Metodologia Através da análise de um caso tenta-se ilustrar os conceitos apresentados.
Resultado A tentativa é de se centrar nas formas de democracia relacionadas com as novas
tecnologias, ressaltando-se a importância de apresentar conceitos relacionados ao
contexto analisado. Conclusão Com esta revisão procura-se analisar um cenário atual
discorrendo sob uma visão democrática renovada.

Palavras-chave: Democracia digital; Democracia participativa; Regulação das drogas.

Introdução

Com a nova geração de jovens, que de uns anos pra cá já nasceram em contato
com as novas tecnologias, é preciso haver adaptação em todas as esferas que se fortalecem
com a interessante participação da juventude.
Nesse sentido, os órgãos do governo vem também se adaptando, criando
mecanismos e ferramentas para estarem onde os jovens frequentam. Sendo grande parte
em ambientes virtuais, então investem em presença nos smartphones, nas redes socias e
outros.


Doutorando e Mestrando em Criminologia pela Universidade do Porto, Pesquisador no Grupo de
Pesquisa/CNPQ “História Social do Crime” na UFAL, Especialista em Direito Penal e Processual Penal
pela UFMT e em Direito Público pelo ICE.

[255]
Um mecanismo interessante são as hashtags do Twitter. Tamara Small fornece
uma visão sobre como as hashtags, em conjunto com palavras-chave, proporcionam um
destacamento projetado para atribuí-la a um segmento em execução, acelerando sua
recuperação, podendo ligar a mídia a audiências anteriormente fora do alcance. (Loader
e Mercea, 2011)
As tecnologias vem avançando a cada dia vive-se uma era em que as informações
e bons estudos, boas discussões, fóruns, vídeos, entrevistas e inúmeras outras fontes de
conhecimentos estão disponível online e de forma “gratuita”. A forma de pagamento de
boas fontes são com nossos dados, com o nosso acesso, com as nossas informações
pessoais, que são divulgadas a qualquer site que acessamos através de cookies, sendo uma
valiosa moeda de trocas, pois com nossos dados pessoais são selecionadas publicidades
ao nosso gosto, isso proporciona o pagamento de serviços de qualidade que são oferecidos
como se fossem de graça, isso gera um ciclo em uma troca de interesses, por um lado
quem acessa ter interesses a um bom conteúdo gratuito, por outro quem divulga o
conteúdo também ganha com aquele acesso de forma discreta, quase que imperceptível.
Com esse ciclo as pessoas vem se tornando cada vez mais dependentes da
tecnologia e dos gadgets para acessar as informações, há uma vida paralela num mundo
virtual, ou seja, decisões passam a ser tomadas através do que acontece nesse mundo, é
mais fácil comunicar e agregar um grupo de pessoas virtualmente do que pessoalmente,
tendo em vista a facilidade em juntar pessoas com interesses em comum virtualmente,
pessoas que vivem em cidades ou mesmo países diferentes, cada vez mais também está
sendo facilitada a comunicação em diferentes idiomas, com as ferramentas de tradução
simultânea. A tendência é as pessoas se inserirem mais no mundo virtual, com isso tudo
que envolve a vida em sociedade no mundo real passa a ter que se adaptar ao virtual, aí
se enquadra a democracia e a política, disso que iremos tratar nesse trabalho.

1- Democracia participativa enquanto Democracia Digital

Primeiramente é importante entender o conceito de democracia participativa,


podendo ser traduzido pela participação dos cidadãos, o envolvimento no processo de
governância (através de votação nas eleições, referendos, iniciativas populares, pesquisas
populares, consultas populares, etc.) (Bevort, 2006, pp. 164–166)
A democracia digital é entendida como uma «esfera pública virtual» que busca
uma «renovação democrática com base nas características de redes abertas e colaborativas

[256]
de mídia social». Nesse sentido, as mídias sociais permitem uma democracia mais
participativa. (Loader e Mercea, 2011).
No estudo contemporâneo sobre mídia, apresenta-se a diferença entre os meios de
comunicação «um-para-muitos», como a televisão, o cinema, o rádio, os jornais, as
revistas, por outro lado os meios de comunicação «muitos-para-muitos» como é, cada vez
mais, o caso da Internet, nomeadamente a partir do desenvolvimento da chamada Web
2.0. Este termo designa os sites da Internet que utilizam tecnologia superando as páginas
de conteúdo estático e assim permitindo aos utilizadores interagir e colaborar entre si
(Morais et al., 2014, p. 107), tratando-se das redes sociais.
A democracia digital, considerada «uma nova onda de otimismo tecnológico»,
tem acompanhado, mais recentemente, o advento de plataformas de mídia social como o
Twitter, Facebook, YouTube, Wikies e a blogosfera. (Loader e Mercea, 2011)

2- Novas tendências políticas através da democracia digital

Castells 2009 (citado por Casero-Ripollés, 2017) afirma que as redes sociais (web
2.0) «possuem diversas conexões democráticas já que podem estimular a participação
cidadã na discussão pública, fomentar o pluralismo e reconfigurar as relações de poder
vigentes». Para Van-Dijck, 2013 (citado por Casero-Ripollés, 2017) «são plataformas
centradas no usuário que facilitam as atividades comunitárias e que promovem a
conectividade como um valor social.
Pode-se destacar ainda que esse espaço virtual possibilita que os usuários:
- Participem nas discussões públicas com a livre expressão de suas opiniões
(Shirky, 2011 citado por Casero-Ripollés, 2017);
- Tomem iniciativas sobre dinâmicas de construção da agenda pública (Sung-Tae;
Young-Hwan, 2007 citado por Casero-Ripollés, 2017);
- Iniciem processos de monitorização política para fiscalizar os poderes políticos,
econômicos e midiáticos (Keane, 2009; Feenstra; Casero-Ripollés, 2014, citados por
Casero-Ripollés, 2017)
Na sequência do que apontou Casero-Ripollés, vamos analisar e refletir acerca das
questões postas por Zúñiga et al (2010) sobre o contraste entre a participação política on-
line e off-line em blogs:

[257]
(A) A conversa política cara-a-cara continua a ser um caminho robusto
para a participação entre aqueles que freqüentam blogs políticos ou eles
dependem exclusivamente de formas de comunicação on-line?
(B) A cidadania online está em desacordo com os modos convencionais
de participação política?
(C) Os blogs políticos de visita estimulam a participação ou
simplesmente satisfazem o motivo de se envolver na política sem ação
política online ou offline?

Para tentar responder a estas questões os autores fizeram um estudo empíco


analisando os seguintes fatores: «Participou de uma reunião ou discurso político»,
«Trabalhou para um partido político ou candidato», «Contribuiu com dinheiro para uma
campanha política», «Enviou um e-mail para um editor de um jornal / revista», «Usou
um e-mail para entrar em contato com um político», «Assinou uma petição on-line».,
conseguindo um resultado de que 55,4% da amostra haviam participado da política de
forma offline e 16,9% de forma online.
Os autores concluem que está surgindo uma participação híbrida entre o mundo
real e o mundo virtual, com engajamento e ação políticos, o que consideram «uma nova
democracia digital».
Numa outra perspectiva, Briggs (2017) cita os estudos de Ward e de Vreese, 2011,
afirmando que a E-participation «não é apenas sobre votação, discussão ou engajamento
e outras formas de ativismo». Luis Hestres, 2013 (citado por Briggs, 2017) afirma que a
internet «também se tornou um canal crítico da liberdade de expressão, particularmente
nas sociedades democráticas. Muitos estudiosos encontram uma relação positiva entre o
uso da internet e o envolvimento político, especialmente forte entre os jovens».
Nesse sentido, Cuconato e Waechter, 2012 (citado por Briggs, 2017),
acrescentam a importante sentença de que a nova «internet-based communication»
facilita uma «difusão generalizada da cultura juvenil e uma arena na qual os jovens podem
encontrar espaço livre para renegociar e, como resultado, reinventar sua identidade
individual e coletiva como atores sociais, culturais e políticos independentes».

[258]
Outro destaque importante, acrescentado por O’Toole, 2014 (citado por Briggs,
2017), é o «DIY1 activism», feito em conjunto com um aumento de consciência e a ajuda
de um bom networking.
Sobre esse aumento de conciência Aelst et al (2017) acrescenta que «para que uma
democracia esteja funcionando bem, os cidadãos precisam de informações sobre política»
e menciona um estudo do Reuters Institute Digital News Report que conclui que entre
pessoas com menos de 44 anos (dentro da amostra utilizada), a mídia online é agora
considerada a mais importante fonte de notícias.

3- Aplicação em contexto brasileiro e conceitos pertinentes

3.1- Enquete sobre regulação das drogas

Dentre as temáticas e esferas da democracia digital, adota-se nesse trabalho o tema


drogas, trazendo aqui uma breve análise da aplicação do posicionamento tratado no tópico
anterior, em contexto brasileiro.
Hoje, com a tendência das redes sociais, os órgãos oficiais também estão inseridos
nesse meio, buscando a utilização de linguagem adequada e aproveitando as ferramentas
e público que dispõem, para colher dados e dar espaço à opinião pública (Serrat, 2017).
Nesse sentido, trazemos para o estudo, uma postagem realizada na página oficial
do Senado Federal2 no facebook (Senado Federal, 2015).
A postagem tem como título, em meio a uma imagem, «Maconha. Qual a sua
opinião sobre a legalização do uso medicinal ou recreativo da droga?» Na métrica
utilizada nessa rede social, antes das recentes mudanças que trouxeram novas
possibilidades, mede-se o número de «curtidas» (likes), «comentários» (comments) e
«compartilhamentos» (share). Nesse caso a postagem gerou 5.905 curtidas, 4.201
comentários e 2.103 compartilhamentos.
Numa análise crítica, podemos analizar a forma com que foi constituída a
mensagem, ou seja, com pouca delimitação ou direcionamento que possibilitassem
respostas concretas e uma participação democrática efetiva.
A mensagem é apresentada de uma forma genérica, principalmente ao utilizar o
termo «legalizar», sendo que o mais adequadro seria utilizar o termo «regular», tendo em

1
Do it yourself (faça você mesmo).
2
órgão do Poder Legislativo brasileiro

[259]
vista as diferentes formas de regulação das quais a legalização é uma delas. Além disso a
mensagem não se refere à esfera da regulação, ou seja, se é relativa ao consumo, comércio
e/ou cultivo. Vejamos abaixo uma breve conceptualização sobre o tema.

3.2- Conceitos relacionados à temática

3.2.1- Regulação das drogas


Dentre os principais modelos de regulação de drogas, alternativos à
criminalização, podemos destacar a descriminalização, a despenalização e a legalização.
A descriminalização é uma espécie de despenalização, diferenciando-se pelo fato da
sanção aplicada à determinada ação perder o caráter criminal, sendo substituída por uma
sanção não penal, geralmente civil ou administrativa, ou seja, quem foi apreendido não
terá registro criminal. A despenalização é parecida, pode ocorrer em dois níveis:
deixando de haver uma pena e passando a haver apenas sanções alternativas ou reduzindo
o quantum de aplicação de pena a determinada ação, no entanto, a simples despenalização
mantém o caráter criminal. A legalização é quando o tipo penal é retirado do código penal
ou lei penal especial, mas continua havendo um controle sobre a ação (diferente de
liberalização), uma regulamentação, em regra administrativamente, passando a ação a ser
controlada por órgão regulamentador (Pacula apud Pertwee, 2014; Quintas, 2015;
MacCoun, 1993).
Esses três tipos podem abranger diferentes esferas e finalidades, podendo ser
referentes ao comércio, consumo e produção, de todas as drogas ou drogas específicas,
para fins recreativos ou medicinais.

3.2.1.1- Aplicação dos conceitos

É importante, nessa parte do trabalho, fazer uma breve análise da aplicação dos
conceitos até aqui expostos, quanto à regulação das drogas.

3.2.1.1.1- Portugal e a descriminalização do consumo de drogas

O Decreto-Lei nº 30/2000 descriminalizou o consumo de todas as drogas, na posse


de até dez doses diárias, sendo que a referência em gramas de cada dose, em relação a

[260]
cada tipo de droga, está estipulada na Portaria n.º 94/96, de 26 de março, anexada ao
Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro.
O consumo de drogas passou a ser uma contra-ordenação, quem é apreendido
consumindo, até as referidas dez doses diárias, é encaminhado às Comissões para
Dissuasão de Toxicodependentes, onde são aplicadas sanções pecuniárias ou sanções não
pecuniárias, podendo ser aplicadas apenas sanções não pecuniárias aos
toxicodependentes.
No Acórdão n.º 8/2008 do Supremo Tribunal de Justiça, foi decidido que nos casos
dos consumidores que forem apreendidos com quantidades que ultrapassam ao limite
imposto, mesmo que ultrapassem minimamente, haverá repristinação do artigo do
Decreto-Lei nº 15/1993, já revogado, ou seja, voltará a vigorar o crime de uso de drogas
para estes casos, com previsão inclusive de pena privativa de liberdade.

3.2.1.1.2- Uruguai e a legalização do comércio, consumo e produção de cannabis

No Uruguai, entrou em vigor a Lei nº 19.172, de 20 de dezembro de 2013, que


legalizou o consumo, cultivo e comércio de cannabis.
A lei foi regulamentada através dos Decretos nº 128/016 de 02/05/2016, nº 46/015
de 04/02/2015, nº 372/014 de 16/12/2014 e nº 120/014 de 06/05/2014 3, onde estipulou-
se a criação de um órgão que regulamenta, controla e fiscaliza as atividades que passaram
a ser lícitas, denominado Instituto de Regulação e Controle da Cannabis (IRCCA) e traz
os conceitos e pormenores dessas atividades.
Os usuários de drogas devem se cadastrar no mencionado órgão e há uma
quantidade limite de consumo. Para cultivar, também deve-se cadastrar e se submeter à
fiscalização do órgão regulamentador. A venda da cannabis também está sob as regras
controladas pelo respectivo órgão, através do Estado (Pardo, 2014).

3.2.1.1.3- Brasil e a despenalização do consumo de drogas

No Brasil, a nova lei de drogas entrou em vigor em 2006, houve despenalização,


ou seja, deixou de haver pena privativa de liberdade para os atos no âmbito do consumo
de drogas, mas manteve o caráter criminal, com sanções alternativas.

3
Ley N° 19172. Regulacion Y Control Del Cannabis. Disponível em
<https://www.impo.com.uy/bases/leyes/ 19172-2013>. Acesso aos 20.abr.2017.

[261]
4- Desenvolvimento de novas práticas democráticas com ajuda da tecnologia

Recentemente foi lançado um aplicativo para smartphone onde as pessoas podem


editar e votar em projetos de lei4.
A prática já era prevista na ordenação brasileira, mas pouco desenvolvida. A
sociedade brasileira vem se interessando cada vez mais em participar ativamente da
democracia, além de tal ferramenta facilitar o acesso, o que está apresentando já
resultados.
Apesar de ser um recurso que já estava disponível previamente, tal exercício da
vontade do povo, fora do período das eleições, sempre foi pouco estimulado e
concretizado.
Espera-se, com a ajuda de tecnologia, um avanço de novas perspectivas na
democracia participativa, inclusive já se fala em implantar o mesmo sistema em outros
países, que apresentam legislação semelhante e permitam tais práticas5.

Conclusão

Com o trabalho apresentaram-se novos conceitos sobre a democracia


participativa, ilustrando novas práticas num contexto específico, qual seja, sobre
regulação das drogas, podendo ser um importante tema onde se possa exercer a
democracia participativa, na sequência das mudanças que vem ocorrendo no cenário
global6.
Pode se entender a importância desse avanço da democracia, dentro dos ambientes
virtuais, dando ao público ali estabelecido o poder da participação nas escolhas que
podem se desenvolver para atos legislativos.

4
Mudamos. Disponível em <https://www.mudamos.org/>. Acesso aos 19.mai.2017.
5
Entrevista no programa televisivo “Conversa com Bial”. Disponível em
<http://gshow.globo.com/tv/noticia/ pedro-bial-discute-uso-de-aplicativo-na-criacao-de-projetos-de-
lei.ghtml>. Acesso aos 19.mai.2017.
6
GODOY, G. A.S. (2016). Toxicômano-Delinquente versus Toxicodependente – Regulação das Drogas
como Fenômeno Destacado em Desafios Atuais do Cenário Global. Revista Jurídica Unicuritiba. V. 2. N.
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[262]
Por fim, apresenta-se plataforma já em funcionamento onde se uniu a tecnologia
a uma prática já existente e prevista na legislação, que com uma nova ferramenta torna-
se mais frequente e usual, na perspectiva de novos rumos no âmbito democrático.

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[264]
15. A (IN)EFICÁCIA DO CONTROLE DIFUSO
DE CONSTITUCIONALIDADE

Marcio Felix Cavalcanti1

Resumo: Objetivou-se com esse trabalho analisar o controle de constitucionalidade das


leis e a aplicação do modelo concreto de constitucionalidade no direito português;
visando, pormenorizadamente, discutir a convergência entre a supremacia constitucional,
o controle de constitucionalidade e seus fundamentos, abordando, apenas
superficialmente e, dentro do possível, as previsões do direito brasileiro. A pesquisa
tratou-se de uma revisão bibliográfica em doutrinas, legislações e jurisprudências. As
considerações apontaram que para evitar o abuso de poder e o desrespeito às normas
jurídicas o legislador constituinte criou o instituto do controle de constitucionalidade,
tanto o preventivo como o repressivo. O primeiro evita o ingresso de normas
constitucionais ou rejeita projeto de lei em andamento. O repressivo visa retirar do
ordenamento jurídico lei ou ato normativo contrário à constituição. Analisar o controle
concreto, difuso ou incidental precede definir o estudo das vias de controle (vias de
impugnação) que tem por fim responder a seguinte indagação: de que modo uma lei pode
ser impugnada perante o judiciário? A fiscalização difusa é concreta, predominantemente
subjetiva e incidental. É apreciada ex officio pelo juiz e por via de exceção. Daí a
existência da via incidental (também denominada de defesa ou exceção) dentro do
controle concreto (difuso) que permite a competência para realizar o controle de
constitucionalidade entre os diferentes órgãos do judiciário, ou seja, qualquer Juízo ou
Tribunal poderá realizar o controle de constitucionalidade. Será analisada de que forma
esse controle se procede, quais as semelhanças e diferenças e quais vantagens e
desvantagens com enfoque na legislação portuguesa e de que forma essas semelhanças e

1
Mestrando em Ciencias Jurídicas pela Universidade Autónoma de Lisboa - UAL. Agente da INTERPOL.
Policial Federal. Pós Graduado em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá/RJ. Professor de Direito
Penal e Direito Processual Penal pela Faculdade Joaquim Nabuco, Professor de Processo Penal e Pós
Graduação em Direito Penal pela Faculdade Guararapes. Professor de Direito Processual Penal pela
Faculdade de Ciências Humanas de Igarassu. Bacharel em Direito Pela Universidade Católica de
Pernambuco. Bacharel em Administração pela Universidade de Pernambuco. Consultor Jurídico do
Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco.

[265]
diferenças encontram pontos em comum com a legislação brasileira como forma de
proteção a Carta Magna e em consequência a salvaguarda de todo ordenamento jurídico.

Palavras-chave: Constituição, Controle de Constitucionalidade, Via Incidental, Controle


Difuso.

Introdução

Traz-se à baila considerações à cerca do princípio da Supremacia Constitucional


e como se opera o modelo difuso de controle de constitucionalidade.
O interesse pelo tema se deu em virtude de sua importância para a sociedade e sua
aplicabilidade dentro dos sistemas jurídicos, uma vez que só se pode falar em controle de
constitucionalidade nos regimes democráticos, positivado em constituições democráticas.
Nos vários ordenamentos jurídicos, o controle de constitucionalidade é um
assunto complexo. Em muitas legislações há divergências de institutos, modelos, vias e
sistemas de controle. As especificidades também incluem a forma como se dá a
interpretação conforme a Carta Magna e como se opera a modulação de efeitos perante o
órgão máximo de controle do judiciário.
Sabe-se que o controle de constitucionalidade toma maior vulto nas Constituições
rígidas, pois, segundo Agra2, neste tipo de constituição há diferenciação entre normas
constitucionais e normas infraconstitucionais; do contrário, nas constituições flexíveis,
em que a norma infraconstitucional revoga a norma constitucional se com ela entrar em
contradição, não se pode falar em controle de constitucionalidade.
Destarte, o objetivo do presente trabalho é fazer uma breve análise à cerca do
controle concreto de constitucionalidade. Visa ainda, discutir à cerca da garantia da
segurança jurídica, uma vez que o poder de declarar a inconstitucionalidade significa a
eliminação das normas inconstitucionais e a faculdade de se alinhar às normas corretas e,
até mesmo, decidir a partir de quando deverão vigorar essas normas.
Para tanto, foi necessária a realização de um trabalho de pesquisa, notadamente
bibliográfico e legislativo, a fim de alcançar uma abordagem mais direcionada, uma
noção mais aprofundada e abalizada sobre o tema. O método dedutivo foi aplicado porque

2
AGRA, Walber de Moura - Curso de Direito Constitucional.p.127.

[266]
através dele se explica o fenômeno surgido a partir do problema, procurando confirmar a
hipótese, pela utilização da análise geral para a particular até a conclusão.
O trabalho encontra-se dividido em cinco capítulos: o primeiro capítulo explora a
classificação e a supremacia constitucional. Os demais capítulos abordam o sistema
português de fiscalização constitucional concreta na via difusa. Finalizando com críticas
ao modelo lusitano com breves menções ao sistema brasileiro.

1. Supremacia Contitucional e sua Classificação

O vocábulo Constituição oferece vários sentidos que convém serem distinguidos


nos seus principais significados: em seu sentido básico, “Constituição é o ato de
constituir, de estabelecer, de firmar3. Em seu sentido jurídico:

Constituição é o conjunto de princípios, mandamentos, regras e preceitos, que se


dizem fundamentais, estabelecidos pela soberania de um povo, através de seu poder
constituinte, para servir de base a sua organização política e firmar os direitos e
deveres cada um dos seus componentes.4

Numa acepção mais próxima da utilizada pela doutrina constitucionalista, embora


haja várias, pode-se conceituar a Constituição como sendo o texto ou estatuto básico de
um Estado que organiza a estrutura desse Estado, estabelece a sua forma de governo, a
garantia de suas liberdades públicas, dos seus direitos fundamentais e o modo de
aquisição e exercício de poder.
Ainda de acordo com Silva5

A constituição do Estado, considerada sua lei fundamental, seria, a organização dos


seus elementos essenciais: um sistema de normas jurídicas escritas ou costumeiras,
que regula a forma do Estado, a forma de seu governo, o modo de aquisição e o
exercício do poder, o estabelecimento dos seus órgãos, os limites de sua ação, os
direitos fundamentais do homem e as respectivas garantias. Em síntese, a constituição
é o conjunto de normas que organiza os elementos constitutivos do Estado.

3
SILVA, José Afonso - Curso de Direito Constitucional Positivo.p.200.
4
SILVA, José Afonso - Op.Cit.p.201.
5
Idem, Ibidem.

[267]
Dadas algumas definições sobre Constituição, cumpre-se explicitar o que seja a
ciência do direito constitucional. Gilmar Ferreira Mendes6, dada a elasticidade do termo
direito constitucional, conceitua ou essa ciência de forma resumida ou detalhada.
Segundo o citado autor, em sua concepção resumida, o “Direito Constitucional é
a ciência encarregada de estudar a Teoria das Constituições e o ordenamento positivo dos
Estados”. Já na concepção detalhada, o Direito Constitucional pode ser conceituado como
a “parcela da ordem jurídica que compreende a ordenação sistemática e racional de um
conjunto de normas supremas encarregadas de organizar a estrutura do Estado e delimitar
as relações de poder”.
Já Silva7 define o Direito Constitucional como “o ramo do direito público que
expõe, interpreta e sistematiza os princípios e normas fundamentais do Estado”.
Assim, há vários sentidos ou concepções nas quais se pode definir ou entender o
que seja uma Constituição. Os principais sentidos são os seguintes: o sociológico, o
político e o jurídico.
Segundo o significado sociológico de Constituição, como foi entendido por
Ferdinand Lassale, “a Constituição de um país é a soma dos fatores reais do poder que o
governam. É a Constituição real e efetiva, em contraste com a existência de uma
constituição escrita que pode significar uma simples folha de papel, ou seja, nada de real
valor”.8
Já Carl Schimitt9 prefere considerar a Constituição como um elemento de valor
político, designando-a como sendo, em sua essência, a decisão política fundamental. Ele
também faz uma diferenciação entre constituição e leis constitucionais.
A primeira é considerada como a decisão política fundamental, ou seja, designa
os seguintes elementos: direitos individuais, estrutura e órgãos do Estado, vida
democrática, dentre outros, politicamente considerados fundamentais. Já as leis
constitucionais são as demais normas que, embora estejam ínsitas no documento
constitucional, não contém matéria cuja decisão política seja fundamental.
Por fim, dentre as principais concepções sobre as constituições encontramos a
formulada pelo jurista Hans Kelsen10 que entende ser a Constituição um documento

6
MENDES, Gilmar Ferreira - Curso de Direito Constitucional.p.47.
7
SILVA, José Afonso - Op. Cit.p.204.
8
AGRA, Walber de Moura - Curso de Direito Constitucional.p.221.
9
AGRA, Walber de Moura - Op.Cit.p.234.
10
KELSEN, HANS - Jurisdição Constitucional.p.29.

[268]
jurídico, ou seja, esse documento é considerado norma pura, puro “dever-ser”, sem
nenhuma alusão a outra concepção seja ela política, sociológica ou outra qualquer.
Nas lições do jurista Miguel Reale à respeito da concepção Kelseniana:11

Para Kelsen, o Direito não é senão um sistema de preceitos que se concatenam, a partir
da Constituição, que a norma fundamental manda cumprir, até os contratos privados
e as sentenças. Desse modo a concepção Kelseniana redunda em monismo
normativista, do ponto de vista de atividade jurisprudencial. Consiste essa doutrina
em dizer que para o jurista a realidade não pode ser vista a não ser como um sistema
de normas que se concatenam e se hierarquizam. Todo o mundo jurídico não é senão
uma sequência de normas até atingir, sob forma de pirâmide, o ponto culminante da
norma fundamental, que é condição lógico-transcendental do conhecimento jurídico.

Há outros juristas alemães que vêm se dedicando ao estudo da jurisdição


constitucional, dentre esses podemos destacar Konrad Hesse12 que têm suas idéias à
respeito dela:

A função da Constituição é buscar a unidade política do Estado e da ordem jurídica.


Trata-se de uma unidade de atuação (e não preexistente), que se torna possível e se
realiza mediante acordo e compromisso, a concordância tácita ou a simples aceitação.
Somente por meio da cooperação planificada e, portanto, organizada, pode surgir a
unidade política. A qualidade da Constituição é a de construir, estabilizar, racionalizar
e limitar o poder e, desse modo, assegurar a liberdade individual.

Conforme a incisão acima, existe um conteúdo normativo na Constituição. Nada


de extremos como o positivismo jurídico de Kelsen13 ou o positivismo sociológico de
Carl Schmitt, tem-se que buscar uma relação de condicionamento entre o aspecto material
e o normativo.

1.1.Classificação Constitucional

A classificação das Constituições pode ser feita sob vários aspectos os quais
destacam-se as descritas a seguir.

11
REALE, Miguel - Filosofia do Direito.p.458.
12
HESSE, Konrad - A Força Normativa da Constituição.p.257.
13
KELSEN, Hans - Jurisdição Constitucional.p.128.

[269]
Elas podem ser classificadas quanto ao conteúdo, em constituições materiais ou
formais: as primeiras são aquelas consideradas materialmente constitucionais, pouco
importando se encontra ou não num documento, já as Constituições materiais são aquelas
que se inserem dentro de um documento estabelecido pelo constituinte originário.
Já quanto à forma, elas podem ser escritas (instrumentais) ou costumeiras (não
escritas), também chamadas de consuetudinárias, que se diferenciam das primeiras por
estarem codificadas em um único documento, enquanto que a segunda encontra-se
disposta em vários documentos ou mesmo em princípios e regras não escritas em nenhum
documento, mas presentes na organização social e política de um povo.
Quanto ao modo de elaboração, elas podem ser dogmáticas (sistemáticas) ou
históricas. As dogmáticas caracterizam-se por ser um texto final elaborado pelo poder
constituinte. Já as históricas são decorrentes das tradições ao longo do tempo de um
determinado povo.
Quanto a origem, as constituições podem ser promulgadas, também denominadas
de democráticas ou populares, e outorgadas.
As promulgadas surgem de uma Assembléia Nacional Constituinte, enquanto que
as outorgadas são fruto de uma imposição dos detentores do poder em determinada época.
Há também as cesaristas e as pactuadas.
Quanto a estabilidade e a alterabilidade, as constituições imutáveis são escritas
que somente podem ser modificadas por um processo legislativo mais dificultoso do que
o empregado para as normas não constitucionais.
Já a constituição denominada semirrígida contém duas espécies de normas.
Algumas podem ser alteradas pelo processo legislativo ordinário ou comum, enquanto
que outras só podem ser modificadas por intermédio de um processo legislativo especial,
em geral mais dificultoso.
Quanto à extensão podem ser sintéticas, que possuem conteúdo abreviado,
limitando-se a tratar dos elementos essenciais do Estado. E analíticas de texto extenso,
abordando também matérias variadas não substancialmente constitucionais. 14
Quanto a finalidade, as constituições podem ser classificadas em garantia que
visam estabelecer normas ligadas à liberdade do indivíduo. As dirigentes que visam
assegurar programas e diretrizes para atuação futura dos órgãos estatais e as constituições

14
PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo; DIAS, Frederico - Aulas de Direito Constitucional.p.14.

[270]
balanço destinadas a reger o Estado durante período certo de tempo, já pré-determinado
em seu próprio texto15.
Sabe-se que as Constituições têm, em sua essência, como objeto e conteúdo:
desenhar a estrutura do Estado, a organização de suas entidades e dos seus órgãos, os
meios de obtenção legítima do poder, assegurar os direitos e garantias fundamentais,
determinar o regime político e disciplinar os fins socioeconômicos do Estado, bem como
os fundamentos dos direitos econômicos, sociais e culturais.
Concernente aos seus elementos, pode-se designar basicamente 5 (cinco)
elementos presentes nas Constituições contemporâneas: os elementos orgânicos, os
limitativos, os sócio-ideológicos, os elementos de estabilização constitucional e os
formais de aplicabilidade16.

1.2.A Supremacia Constitucional Segundo os seus Fundamentos Principais

A supremacia da Constituição só é possível com o instituto do controle de


constitucionalidade. Sendo assim, esse instituto é de fundamental importância para que
os princípios, as normas e as regras estabelecidas pela Constituição sejam devidamente
acatadas, cumpridas e respeitadas por todos os sujeitos a sua disciplina.
O controle de constitucionalidade pode ser definido como sendo um instrumento
jurídico que objetiva analisar a compatibilidade entre uma lei ou ato normativo e a
Constituição.
Em virtude dessas considerações preliminares, mister conhecer, em primeiro
lugar, o pensamento de Bobbio17.

A complexidade do ordenamento, sobre o qual chamamos atenção até agora, não


exclui sua unidade. Não podemos falar de ordenamento jurídico se não o tivéssemos
considerado algo de unitário. Que seja unitário um ordenamento simples, isto é, um
ordenamento em que todas as normas nascem de uma única fonte, é facilmente
compreensível. Que seja unitário um ordenamento complexo, deve ser explicado.
Aceitamos aqui a teoria da construção escalonada do ordenamento jurídico, elaborada
por Kelsen. Essa teoria serve para dar uma explicação da unidade de um ordenamento
jurídico complexo. Seu núcleo é que as normas de um ordenamento jurídico estão no
mesmo plano. Há normas superiores e inferiores. As inferiores dependem das

15
FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira- Curso de Direito Constitucional.p.129.
16
SILVA, José Afonso - Op.Cit.p.145.
17
BOBBIO, Norberto - Teoria do Ordenamento Jurídico.p.48.

[271]
superiores subindo das inferiores àquelas que se encontram mais acima, chega-se a
uma norma suprema, que não depende de nenhuma norma superior, e sobre a qual
repousa a unidade do ordenamento. Essa norma fundamental que dá unidade a todas
as outras normas, isto é, faz das normas espalhadas e de várias proveniências um
conjunto unitário que pode ser chamado ordenamento.

A norma fundamental é o termo unificador das normas que compõem um


ordenamento jurídico. Sem um “Texto Magno”, as normas de que falamos até agora se
constituem num amontoado, não um ordenamento.
Em outras palavras, por mais numerosas que sejam as fontes do direito num
ordenamento complexo, tal ordenamento constituiu uma unidade de fato de que, direta
ou indiretamente, com voltas mais ou menos tortuosas, todas as fontes do direito podem
ser remontadas a uma única norma. Devido à presença, num ordenamento jurídico, de
normas superiores e inferiores, ele tem uma “estrutura hierárquica”.
As normas de um ordenamento são dispostas em ordem hierárquica. A
Constituição encontra-se no topo da pirâmide normativa, ou seja, é a fonte primária de
todos os direitos, deveres e garantias, ou seja, é a norma fundamental de todo o
ordenamento jurídico. Desse modo, ela é que confere o fundamento de validade das leis
e demais atos normativos de nossa ordem jurídica.
Assim todas as normas, sejam elas de quaisquer espécies, devem se adequar com
os ditames constitucionais para que sejam consideradas constitucionais, isto é, de acordo
com a Constituição e, portanto, válidas em nosso ordenamento jurídico vigente.
Vê-se, portanto, o liame que há entre a supremacia constitucional e o controle de
constitucionalidade. Pois este é um simples meio, instrumento ou técnica de controle,
como o próprio nome está a indicar, de se verificar se as normas são compatíveis com a
Constituição vigente.
Desse modo, é de bom alvitre dar uma noção do que vem a ser o instituto do
controle de constitucionalidade, assim podemos defini-lo de uma forma singela segundo
Uadi Lamêgos Bulos18, como sendo o instrumento de garantia da supremacia das
constituições. Uma outra definição para a supremacia constitucional ou supremacia da
constituição é dada por Silva19

18
MENDES, Gilmar Ferreira - Op.Cit.p.82.
19
SILVA, José Afonso - Op.Cit.p.204.

[272]
Quando a Constituição é rígida, em consequência, torna-se a lei fundamental e
suprema do Estado. Toda autoridade só nela encontra fundamento e só ela confere
poderes e competências governamentais. Nenhum dos poderes do Estado são
soberanos, porque todos são limitados, expressa ou implicitamente, pelas normas
positivas daquela lei fundamental. Exercem suas atribuições nos termos nela
estabelecidos.

Além do mais, segunda esse constitucionalista, todas as normas que integram a


ordenação jurídica só serão válidas se, se conformarem com as normas da Carta Maior.
Outra definição de grande importância sobre o instituto do Controle de
Constitucionalidade é aquela dada por Bastos:20

O controle de constitucionalidade das leis consiste no exame da adequação das


mesmas à Constituição, tanto do ponto de vista formal quanto material, para o efeito
de recusar-se obediência a seu mandamento, ou mesmo para o efeito de declarar-lhe
a nulidade. Há, portanto, a possibilidade do controle exercido por aquele em que a
norma é dirigida, como também por órgãos encarregados de exercer tal função pelo
texto constitucional, com a finalidade de subtrair à sua força obrigatória todos aqueles
que integram o mesmo sistema jurídico.

Ainda sobre o tema, citemos a lição deixada pelo mestre da Escola de Viena, Hans
Kelsen:21

A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano,


situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes
camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da relação de
dependência que resulta do fato de a validade de uma norma, que foi produzida de
acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por seu
turno, é determinada por outra; e assim por diante, até abdicar finalmente na norma
fundamental – pressuposta. A norma fundamental – hipotética, nestes termos – é,
portanto, o fundamento de validade último que constitui a unidade desta interconexão
criadora.

A razão para existência do controle de constitucionalidade é que ele serve como o


principal instrumento que há nos países que adotam uma constituição rígida ou

20
BASTOS, Celso Ribeiro - Curso de Direito Constitucional.p.63.
21
KELSEN, Hans - Op.Cit.p.105.

[273]
semirrígida, a fim de que seja assegurada a unidade de constituição como um princípio
que deve ser intentado com o fito de manter a coerência lógica do texto constitucional,
evitando-se a desestruturação e até mesmo a ruptura da “Lei Maior” de um Estado.
Ademais, convém ressaltar que, como uma consequência lógica de garantia e
supremacia constitucional, o cotado instrumento de jurisdição constitucional assegura os
direitos e garantias fundamentais, os quais não podem estar ausentes em qualquer
constituição que se preze.
Por fim, convém ressalvar que dois fatores são necessários para que haja controle
de constitucionalidade: a supremacia da constituição e a rigidez constitucional.

2. A Fiscalização de Constitucionalide em Portugal

O sistema português de controle em face da supremacia da constituição, por ser misto, é


tão complexo quanto o brasileiro. Nele está contemplada a fiscalização concreta da
inconstitucionalidade, bem como a fiscalização abstrata da inconstitucionalidade, em sua
forma preventiva e sucessiva, e a fiscalização da constitucionalidade por omissão. O
presente estudo trará à baila como ponto específico da problemática à respeito da eficácia
ou não do controle concreto de constitucionalidade na via difusa a fim de ofertar o debate
do pensar à cerca do modelo existente e sua sistemática de atuação.

2.1. Rigidez Constitucional e Modelos de Controle.

Os países que possuem Constituições rígidas, terão, consequente processo


especial para modificação de seu texto. Essa rigidez termina por posicionar a Constituição
em um patamar superior aos das demais leis fazendo surgir o princípio da Supremacia
Formal da Constituição. Como consequência, surge a necessidade de se criar um
mecanismo de validade das leis em face da Constituição que é justamente o controle de
constitucionalidade.22
Ao longo da história, vários foram os modelos desenvolvidos com o objetivo de
preservar a Constituição e mantê-la regendo todo o sistema jurídico.
Vejamos os ensinamentos de Jorge Miranda23:

22
PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo; DIAS, Frederico - Aulas de Direito
Constitucional.p.846.
23
MIRANDA, Jorge – Op.Cit.p.124.

[274]
A observação histórico-comparativa revela três grandes modelos ou sistemas típicos
de garantia da constitucionalidade: O modelo de fiscalização política, dito
habitualmente tipo francês; O modelo de fiscalização judicial (judicial review)
desenvolvido nos Estados Unidos desde 1803; O modelo de fiscalização jurisdicional
concentrada em tribunal constitucional ou modelo austríaco (por ter por paradigma o
tribunal instituído pela Constituição austríaca de 1920) ou Europeu (por hoje se ter
estendido a quase toda a Europa).

O sistema de controle de constitucionalidade português possui características


próprias do sistema austríaco desenvolvido por Kelsen e da fiscalização judicial
desenvolvida no direito norte-americano.
O sistema austríaco de controle de constitucionalidade se caracteriza, sobretudo,
pelo confronto de compatibilidade de uma lei ou ato normativo em face de uma
Constituição. Cynara Monteiro24 esclarece que no sistema austríaco, existe a concepção
de que a lei é válida até que seja declarada de modo contrário pelo órgão competente
devendo-se resguardar os efeitos e as relações jurídicas que se aperfeiçoaram antes de sua
desconstituição.
A judicial review, por sua vez, se caracteriza basicamente pela aferição da
compatibilidade da lei com a Constituição diante de um caso concreto. Francisco Cabral25
explicita que a iniciativa de se atribuir às Cortes de Justiça a guarda da Constituição teve
como marco histórico, nos Estados Unidos, a jurisprudência da Suprema Corte firmada
no caso Marbury versus Madison, em 1803, cujo relatório foi firmado por John Marshall,
considerado o marco inicial da Judicial Review.
Ainda segundo o mesmo autor, poder-se-ia dizer que:

modelo de controle de constitucionalidade das leis, idealizado por Marshall, se dava


apenas de forma difusa, ou seja, no caso concreto. Dispõe o poder judiciário de
competência para declarar nulos todos os atos e leis contrárias à Constituição norte-
americana. Portanto a competência do judiciário é difusa, tendo em vista que se realiza
no curso de um processo por qualquer juiz ou tribunal. 26

24
MARIANO, Cynara Monteiro – Controle de Constitucionalidade e Ação Rescisória em Matéria
Triburária.p.127.
25
CABRAL, Francisco de Assis – Controle de Constitucionalidade.p.33.
26
Idem – Ibidem.

[275]
O sistema de controle de constitucionalidade português no modelo difuso se
destaca por sua complexidade assim como ocorre no direito brasileiro. Sofreu influência
do controle originado nos Estado Unidos e permite a todos os órgãos do judiciário a
fiscalização das normas em face da Constituição com eficácia entre as partes de um
processo suscitado num caso concreto. Assim seguem os ensinamentos de Maria Benedita
Urbano:

o modelo de controlo difuso ou norte-americano (judicial review of legislation)


caracteriza-se pela atribuição a juízes e tribunais, inferiores e superiores, estaduais e
federais, do poder de controlar a constitucionalidade das normas (controlo difuso), e
pela eficácia inter partes das respectivas decisões (efeitos de mera desaplicação no
caso concreto, ou seja, a decisão apenas se impõe como res judicata no processo e
para as partes). Quanto à questão de inconstitucionalidade, ela surge no âmbito de
uma questão jurídica colocada perante um tribunal ordinário, podendo, deste modo,
afirmar-se que a norma ou normas objeto de controlo estavam relacionadas e, mais
que isso, eram imprescindíveis à resolução da questão jurídica colocada. 27

Na via incidental28, a lei só pode ser impugnada diante de uma controvérsia


concreta, submetida a apreciação do poder judiciário. Enfim, em um caso concreto
submetido à apreciação do poder judiciário, uma das partes argui a inconstitucionalidade
de uma lei com o fim de afastar a sua aplicação a esse caso concreto, em seu benefício.29
Em virtude destas características esse sistema também é denominado de sistema concreto
de controle da constitucionalidade ou sistema difuso de controle da constitucionalidade.

27
URBANO, Maria Benedita – Curso de Justiça Constitucional.p.30.
28
Com respeito a via de exceção e sua natureza, uma das exposições mais claras, sucintas e didáticas que
se conhecem é ainda aquela ministrada por Rui Barbosa nas conclusões clássicas expendidas sobre a
matéria. Primeiro estabeleceu ele as seguintes premissas: “ O poder de fazer a lei não compreende o de
reformar a Constituição. Toda lei, que cerceie instituições e direitos consagrados na Constituição, é
inconstitucional”. Em seguida, compendiou as condições da via de exceção nesses requisitos elementares:
“Que a intervenção judicial seja provocada por interessado. Que essa intervenção se determine por ação
regular, segundo as formas técnicas do processo. Que a ação não tenha por objeto diretamente o ato
inconstitucional dos poderes legislativo, ou Executivo, mas se à inconstitucionalidade dele apenas como
fundamento e não alvo do libelo. Que a decisão se circunscreve ao caso em litígio, não decretando em tese
a nulificação do ato increpado, mas subtraindo simplesmente à sua autoridade a espécie em questão. Que o
julgado não seja exequendo senão entre as partes, dependo os casos análogos, enquanto o ato não for
revogado pelo poder respectivo, de novas ações, processadas cada uma nos termos normais”. Enfim,
consubstanciou-se todas essas regras numa única, que traduz excelentemente a técnica do controle
jurisdicional por via de exceção: a inaplicabilidade do ato inconstitucional dos poderes Executivo ou
Legislativo, decide-se em relação a cada caso particular, por sentença proferida em ação adequada e
executável entre as partes. Cfe., BARBOSA, Rui – Atos Inconstitucionais.p.128.
29
PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo; DIAS, Frederico – Op.Cit.p.854.

[276]
2.2. Objeto da Fiscalização de Constitucionalidade

A fiscalização da constitucionalidade em Portugal,30 recai sobre normas jurídicas.


Submetem-se ao controle, portanto: normas constitucionais introduzidas por revisão
constitucional, normas transitórias ou outras constantes em leis de revisão; atos
legislativos assim definidos como leis, decretos-leis e decretos legislativos regionais; atos
normativos da Assembléia da República sem forma de lei ou conexos com atos de
fiscalização política; Decretos normativos do Presidente da República; Regimento das
Assembléias e dos demais órgãos colegiais do Estado, das regiões autônomas e do poder
local; Atos normativos da administração pública quando violem diretamente a
Constituição; e demais Acórdão, convenções, estatutos e regulamentos que ataquem o
texto constitucional31.
Completando as lições de Jorge Miranda “ são insuscetíveis de fiscalização as
normas e os atos normativos de direito privado: contratos normativos, estatutos de
associações e fundações, pactos sociais, regulamentos internos de pessoas coletivas
privadas e normas deontológicas”.32
Quanto aos princípios e as normas de direito internacional, bem como tratados que
regem a União Européia e as normas emanadas por suas instituições, fazem parte do
direito português e quando regularmente ratificadas passam a viger na ordem jurídica
interna.33
Destarte, Patrícia Ribeiro, narra que as Cortes de Justiça das comunidades
Européias tem lutado para que a norma comunitária possua regime especial, que é o da
primazia sobre as normas nacionais, tornando-a obrigatória para os juízes dos tribunais
internos34.
A autora continua ressaltando que:

sobre essa questão, a Constituição portuguesa mostra-se favorável ao primado do


direito comunitário. Entretanto o texto constitucional proclama a prevalência absoluta

30
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA. Diário da República I Série. N.° 86 (10-04-76).
[Em linha]. P.738-775. [Consult. 24 Abr. 2017]. Disponível em https://dre.pt/web/guest/legislacao-
consolidada/-
/lc/337/201704250116/diploma/10?rp=indice&q=constitui%C3%A7%C3%A3o&did=34520775
31
MIRANDA, Jorge. Op.Cit. pp.200-205.
32
MIRANDA, Jorge. Op.Cit.p.206.
33
BONAVIDES, Paulo – Curso de Direito Constitucional.p.327.
34
RIBEIRO, Patrícia Henriques – As Relações entre o Direito Internacional e Direito Interno.p.96.

[277]
dos dispositivos constitucionais sobre qualquer outra norma que lhe seja oposta, não
importando qual seja a sua origem.35

Complementando o entendimento quanto aos diplomas legais internacionais,


Jorge Miranda persiste ao explicitar que “as normas de direito internacional situam-se
num plano tal que não podem infringir a Constituição”. “Pelo contrário, porque depende
de sua aceitação, o Estado não pode adstringir-se as normas emanadas por organizações
internacionais de que faça parte opostas à sua Constituição”.36
Ademais, o próprio Presidente da República pode requerer ao Tribunal
Constitucional apreciação preventiva da constitucionalidade de qualquer norma constante
de tratado internacional que lhe tenha sido submetido para ratificação, de decreto que lhe
tenha sido enviado para promulgação como lei ou como decreto-lei ou de acordo
internacional cujo decreto de aprovação lhe tenha sido remetido para assinatura.37
Por fim, ressalte-se que a Constituição portuguesa admite o fenômeno da
inconstitucionalidade superveniente38, bem como o fenômeno da repristinação39, ambos
terminantemente proibidos na legislação brasileira.
A inconstitucionalidade superveniente resulta de incompatibilidade entre uma lei
um texto constitucional futuro. A repristinação é o instituto jurídico pelo qual a norma
revogadora de uma lei, quando revogada, traz de volta a vigência daquela que revogada
originariamente.40
Assim descreve Jorge Miranda:

Se existe, primeiro, a norma de direito ordinário e, de seguida, emerge uma norma


constitucional que dispõe em sentido discrepante há que se distinguir duas fases: até
a entrada em vigor desta nova norma – fase em que a norma de direito ordinário era,

35
Idem - Ibidem.
36
MIRANDA, Jorge. Op.Cit.p.206.
37
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA. Diário da República I Série. N.° 86 (10-04-76).
[Em linha]. P.738-775. [Consult. 24 Abr. 2017]. Disponível em https://dre.pt/web/guest/legislacao-
consolidada/-
/lc/337/201704250216/diploma/14?rp=indice&q=constitui%C3%A7%C3%A3o&did=34520775.
38
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA. Diário da República I Série. N.° 86 (10-04-76).
[Em linha]. P.738-775. [Consult. 24 Abr. 2017]. Disponível em https://dre.pt/web/guest/legislacao-
consolidada/-
/lc/337/201704250116/diploma/10?rp=indice&q=constitui%C3%A7%C3%A3o&did=34520775.
39
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA. Diário da República I Série. N.º 86 (10-04-76).
[Em linha]. P.738-775. [Consult. 24 Abr. 2017]. Disponível em https://dre.pt/web/guest/legislacao-
consolidada/-
/lc/337/201704250216/diploma/14?rp=indice&q=constitui%C3%A7%C3%A3o&did=34520775
40
ALEXANDRINO, Marcelo – Op.Cit.p.850.

[278]
por hipótese, válida e eficaz, e uma segunda em que a norma de direito ordinário fica
desprovida de fundamento de validade, se torna inválida. Por conseguinte, a
declaração de inconstitucionalidade vem reporta-se a esse momento e, porque, não
atinge o momento de criação da norma, não pode afetar o efeito revogatório que tenha
determinado, donde, não haver repristinação. 41

Os professores Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino esclarecem que a


inconstitucionalidade originária é aquela que torna o ato inválido no momento de sua
produção, em virtude do desrespeito ao texto Magno então vigente. Já a
inconstitucionalidade superveniente resulta da controvérsia entre a lei e um texto
constitucional futuro. E a repristinação é o instituto jurídico pelo qual a norma revogadora
de uma lei, quando revogada, traz de volta a vigência daquela que revogada
originariamente. Sendo, todos os institutos citados proibidos no Brasil.42
O efeito repristinatório é “o fenômeno da reentrada em vigor da norma
aparentemente revogada. Já a repristinação, instituto distinto, substanciaria a reentrada
em vigor da norma efetivamente revogada em função da revogação (mas não anulação)
da norma revogadora”.43
Em Portugal o efeito repristinatório é aplicável na fiscalização concreta de
constitucionalidade: “De facto, se a norma inconstitucional é inválida ab initio e como tal
deve ser considerada, não se pode reconhecer efeitos jurídicos à norma inconstitucional
revogatória ou, pelo menos, o juízo de inconstitucionalidade, mesmo quando proferido
em sede de fiscalização concreta, destrói retroactivamente tais efeitos”,44 tendo o Tribunal
Constitucional lusitano já se pronunciado a esse respeito.45

41
MIRANDA, Jorge. Op.Cit.p.339.
42
PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo; DIAS, Frederico - Aulas de Direito
Constitucional.p.849.
43
CLÈVE, Clèmerson Merlin - A fiscalização Abstrata da Constitucionalidade no Direito
Brasileiro.p.250.
44
MEDEIROS, Rui - A Decisão de Inconstitucionalidade. Os Autores, o Conteúdo e os Efeitos da
Decisão de Inconstitucionalidade da Lei.p.665.
45
TRIBUNAL CONSTITUCIONAL. Acórdão n.°103/87. [Em linha]. [Consult. 25 abril 2017]. Disponível
em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19870193.html.

[279]
3. O Sistema Português de Fiscalização Concreta

3.1 Processo de Fiscalização

Canotilho ensina que “o processo incidental de inconstitucionalidade ou processo


de fiscalização concreta tem por objeto a apreciação de uma questão de
inconstitucionalidade, levantada a título de incidente, nos feitos submetidos a julgamento
perante qualquer tribunal. Trata-se de uma fiscalização concreta, pois ela efectua-se
quando, num processo a decorrer em tribunal, se coloca a questão da
inconstitucionalidade de uma norma com pertinência na causa”.46
Ainda segundo Canotilho importante ressaltar que:

O controle difuso, pode considerar-se uma tradição republicana do direito


constitucional português, embora mais teórica do que prática, no domínio das
Constituições de 1911 e de 1933. No domínio da Constituição de 1976, esse controle
tem sido uma forma privilegiada de dinamização do direito constitucional. 47

O processo de fiscalização concreta e normas jurídicas, designado também por


processo incidental48 acarreta o direito e o dever de fiscalização dos juízes relativamente
a normas aplicadas a um caso concreto levados a sua apreciação.
Paulo Bonavides discorre sobre o controle por via de exceção (controle concreto):

aplicado às inconstitucionalidade legislativas, ocorre unicamente dentro das seguintes


circunstâncias: quando no curso de um pleito judiciário, uma das partes levanta, em
defesa de sua causa, a objeção de inconstitucionalidade da lei que se lhe quer aplicar.
Sem o caso concreto (a lide) e sem a provocação de uma das partes, não haverá
intervenção judicial, cujo julgamento só se estende as partes em juízo. A sentença que
liquida controvérsia constitucional não conduz à anulação da lei, mas tão somente a
sua aplicação ao caso particular, objeto da demanda. É o controle por via incidental.

46
CANOTILHO, J.J. Gomes – Direito Constitucional e Teoria da Constituição.p.981.
47
CANOTILHO, J.J. Gomes – Op.Cit.p.982.
48
Ceretti assim esclarece o que seja “via incidental” no sistema jurídico italiano: “Diz-se por via incidental
porque constitui um incidente do julgamento principal que se desenvolve perante uma autoridade
jurisdicional, ordinária ou administrativa, civil ou penal, constituída por órgãos judiciários ordinários ou
por seções especializadas ou também, até que continue a existir, por alguns juízes especias”. Cfe.,
CERETTI, Carlo - Diritto Constituzionale Italiano.p.602.

[280]
Uma norma em desconformidade material, formal ou procedimental com a
Constituição deve ser considerada nula de pleno direito. Assim, o juiz, ao antes de decidir
qualquer caso concreto de acordo com essa norma, deve examinar se ela viola o texto
magno. Consequentemente, os juízes passam a ter acesso direito à Constituição, aplicando
ou não normas cuja inconstitucionalidade foi impugnada.
Nos feitos submetidos a julgamento, os Tribunais não podem aplicar normas que
infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela contidos.49
Assim que surja um problema de inconstitucionalidade de uma norma no decurso
de processo (seja ele penal, civil, administrativo), as decisões tomadas por um juiz a quo
(declarando ou não a inconstitucionalidade) são passíveis de recurso, por via incidental,
para o Tribunal Constitucional.50

3.2. Requisitos Subjetivos e Objetivos

Para que seja possível provocar um incidente de inconstitucionalidade faz-se


necessária a presença de certos requisitos e circunstâncias denominados na doutrina
processual geral por requisitos ou pressupostos processuais.

O controle de constitucionalidade é a verificação da adequação de um ato jurídico, ou


de uma lei em especial à Constituição. Tal controle envolve a verificação de requisitos
formais e subjetivos como a competência do Órgão que o editou; objetivos, como a
forma, o rito e os prazos observados em sua edição, bem como requisitos substanciais,
que são representados pelo respeito aos direitos e às garantias consagrados na
Constituição.51

O marco inicial da fiscalização concreta de constitucionalidade em Portugal52 e


consequentemente da legalidade do sistema jurídico considera como “tribunais todos os

49
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA. Diário da República I Série. N.° 86 (10-04-76).
[Em linha]. P.738-775. [Consult. 24 Abr. 2017]. Disponível em https://dre.pt/web/guest/legislacao-
consolidada/-
/lc/337/201704250316/diploma/10?rp=indice&q=constitui%C3%A7%C3%A3o&did=34520775.
50
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA. Diário da República I Série. N.° 86 (10-04-76).
[Em linha]. P.738-775. [Consult. 24 Abr. 2017]. Disponível em https://dre.pt/web/guest/legislacao-
consolidada/-
/lc/337/201704250416/diploma/14?rp=indice&q=constitui%C3%A7%C3%A3o&did=34520775
51
RICCITELLI, Antônio – Direito Constitucional: Teoria do Estado e da Constituição.p.76.
52
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA. Diário da República I Série. N.° 86 (10-04-76).
[Em linha]. P.738-775. [Consult. 24 Abr. 2017]. Disponível em https://dre.pt/web/guest/legislacao-

[281]
órgãos jurisdicionais”53 aos quais é atribuída, como função principal, a atividade
jurisdicional.
Além do Tribunal Constitucional, existem as seguintes categorias de tribunais
responsáveis pela fiscalização de constitucionalidade: O Supremo Tribunal de Justiça e
os Tribunais de primeira e segunda instância, O Supremo Tribunal Administrativo e dos
demais Tribunais administrativos e fiscais e o Tribunal de Contas.54
Segundo Jorge Miranda, “ Todos os tribunais, seja qual for a sua categoria
exercem a fiscalização. Consequentemente, todos os juízes são necessariamente juízes
constitucionais e não apenas os do Tribunal Constitucional”.55
Diante de todos órgãos previstos aptos a apreciarem a consonância de uma norma
em conformidade com a Constituição, o incidente de desconformidade pode ser suscitado
pela parte, ex officio pelo juiz e pelo Ministério Público. Para as partes justifica-se por
serem meio idôneos de defenderem seus interesses subjetivos. Quando ao Juiz e ao
Parquet justifica-se pela vinculação os órgãos jurisdicionais aos princípios da
constitucionalidade da unidade da ordem jurídica.56
Na esfera objetiva, a controvérsia a ser invocada perante um juiz deve ser uma
questão inconstitucionalidade, ou seja, invariavelmente, uma colisão ou não de conflito
entre uma norma com a Constituição. Deve ser uma discussão de desconformidade
constitucional diante de uma lide concreta apresentada ao juiz. Além disso, deve ser uma
questão de inconstitucionalidade, ou seja, pressupõe um juízo de simetria entre uma
norma com “Texto Magno” e por fim deve ser uma questão levantada durante um

consolidada/-
/lc/337/201704250616/diploma/10?rp=indice&q=constitui%C3%A7%C3%A3o&did=34520775.
53
A jurisdição pode ser contenciosa ou voluntária. A diferença entre elas é que na primeira, a parte busca
obter uma determinação judicial que obrigue a parte contrária, ao passo que na segunda, busque uma
situação que valha para ela mesma. Na contenciosa, a sentença sempre obriga uma das partes em relação a
outra. Na voluntária, é possível que a sentença beneficie as duas partes. Na primeira o juiz persegue a
solução de uma controvérsia que lhe apresentada em julgamento. Na segunda, ainda que haja uma questão
conflituosa, não é ela posta, necessariamente, diretamente em juízo para apreciação judicial. A jurisdição
voluntária não serve para que o juiz diga quem tem razão, mas para que tome determinadas providências
que são necessárias para proteção de um ou ambos os sujeitos da relação processual. Relativamente a
natureza jurisdicional da atividade do tribunal é preciso considerar que para haver um feito submetido a
julgamento não precisar dizer respeito apenas a um litígio entre as partes (processos de jurisdição
contenciosa), bastando a existência de um caso ou interesse juridicamente tutelado a resolver pelo juiz
(processo de jurisdição voluntária) como por exemplo, providências de alimentos, providências em relação
a cônjuges, Cfe., GONÇALVES, Marcus Vinícius Rios – Direito Processual Civil.p.104.
54
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA. Diário da República I Série. N.° 86 (10-04-76).
[Em linha]. P.738-775. [Consult. 24 Abr. 2017]. Disponível em https://dre.pt/web/guest/legislacao-
consolidada/-
/lc/337/201704250616/diploma/10?rp=indice&q=constitui%C3%A7%C3%A3o&did=34520775
55
MIRANDA, Jorge, Op.Cit.p.244.
56
CANOTILHO, J.J. Gomes – Op.Cit.p.985

[282]
processo, pois só um embate apresentado durante o processo pode ser apreciado pelo juiz
e levada em consideração na decisão da causa.57
Por conseguinte, o caso concreto apresentado diante de um juiz, figura como pano
de fundo (uma questão de mérito) mas que, para ser julgado, depende da validade ou
invalidade de uma norma que será aplicada ou não a esse caso concreto. Assim a questão
da constitucionalidade não pode ser a questão principal a ser discutida, aparece como um
incidente, ou seja, uma questão incidental que é relevante, naquele momento, para solução
do caso vislumbrado.58
Além da questão de inconstitucionalidade ter por objeto normas que devam ser
empregues na causa, decorrente das regras tradicionais de prejudicabilidade ou
indispensabilidade, cabe ao juiz a quo se pronunciar sobre a procedência da questão. Cabe
ao julgador, diante do caso concreto, decidir se é fundada ou não a pretensão da parte
quanto a inconstitucionalidade arguida. A decisão deverá vir em forma de sentença, não
comportando despachos ou decisões interlocutórias, independentemente de
posteriormente serem revogadas pelo Tribunal Constitucional.59

4. Apreciação da Inconstitucionalidade

Analisando o mandamento constitucional, “nos feitos submetidos a julgamento,


não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os
princípios nela consignados”.60
A respeito da justiça constitucional relativo ao controle de constitucionalidade
das normas, surgem indagações relevantes: qual o papel dos juízes constitucionais nesse
domínio? Qual a correta metodologia a adotar pelos juízes constitucionais? Nas decisões
dos juízes e tribunais cabe recurso para o Tribunal Constitucional? 61
O objeto do recurso não se relaciona com a decisão de mérito do órgão a quo, mas
apenas o seguimento da decisão judicial incidente sobre o controle de constitucionalidade,

57
BONAVIDES, Paulo – Curso de Direito Constitucional.p.310.
58
CABRAL, Francisco – Op.Cit.p.53.
59
CANOTILHO, J.J Gomes – Op.Cit.p.986.
60
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA. Diário da República I Série. N.° 86 (10-04-76).
[Em linha]. P.738-775. [Consult. 24 Abr. 2017]. Disponível em https://dre.pt/web/guest/legislacao-
consolidada/-
/lc/337/201704250616/diploma/10?rp=indice&q=constitui%C3%A7%C3%A3o&did=34520775.
61
URBANO, Maria Benedita – Op.Cit.p.95.

[283]
ou seja, apenas parte da decisão em que o órgão de primeira instância recusou a aplicação
de uma norma cuja constitucionalidade foi questionada.62
A lei que ofende a Constituição, não desaparece assim da ordem jurídica, do corpo
ou sistema das leis, podendo ainda ter aplicação noutro caso a menos que o poder
competente a revogue. De modo que o julgado não ataca a lei em tese ou em in abstracto,
nem importa o formal cancelamento de suas disposições, cuja aplicação fica inibida para
aquela demanda. É a chamada relatividade de coisa julgada. Na impede que em outro
processo, em caso semelhantes, perante o mesmo juiz ou perante outro, possa a mesma
lei ser novamente aplicada.63

4.1. Apreciação Oficiosa pelo Juiz

A característica principal de uma lei é a sua obrigatoriedade, e uma vez em vigor,


torna-se obrigatória a todos. Dessa forma, ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando
que não a conhece. “Sendo assim, a ignorantia legis neminem excusat tem por finalidade
garantir a eficácia da lei, que estaria comprometida se se admitisse a alegação de
ignorância de lei vigente. Como consequência, não se faz necessário provar em juízo a
existência da norma jurídica invocada, pois se parte do pressuposto de que o juiz conhece
o direito ( iura novit curia )”.64
No sentido da apreciação oficiosa pelo juiz, apaziguadores os ensinamentos de
Jorge Miranda:

a apreciação oficiosa – ligue-se ou não ao princípio jura novit curia – implica o


seguinte: O juiz não é obrigado a aplicar normas que repute inconstitucionais; o juiz
não fica obrigado a aplicar uma lei, que não foi suscitada por uma das partes e não se
vincula a não aplicar uma outra que foi arguida por uma das partes; o juiz não fica
obrigado, em certo processo, de reconhecer a inconstitucionalidade de uma lei por que
nenhuma das partes o impugnou e em outro, deixar de reconhecer porque nenhuma
das partes o fez; O juiz não fica adstrito à norma constitucional invocada como
parâmetro podendo julgar a luz de outra norma que entenda ser mais adequada ao caso
concreto e por fim, não fica preso ao vício alegado, podendo reconhecer outro vício
de inconstitucionalidade.65

62
CANOTILHO, J.J. Gomes – Op.Cit.p.989.
63
BONAVIDES, Paulo – Op.Cit.p.310.
64
GONÇALVES, Carlos Roberto – Direito Civil: Parte Geral.p.22.
65
MIRANDA, Jorge – Op.Cit.p.247.

[284]
A relatividade da coisa julgada, já mencionada, nada impede que em outro
processo, em casos análogos, perante o mesmo juiz ou perante outro, possa a mesma lei
ser eventualmente aplicada. Essa aplicação só não ocorrerá naturalmente se uma das
partes, inovando a exceção de inconstitucionalidade, tiver sua pretensão diferida pelo juiz.
“Pode o juiz recusar a exceção, perfilhando a tese exatamente oposta àquela que
prevaleceu na primeira hipótese de aplicação.66
Assim sendo, a conclusão à cerca da apreciação oficiosa acarreta a desobrigação
do juiz em aplicar normas que julgue inconstitucionais.67
A apreciação oficiosa resulta que o juiz não está submisso à norma constitucional
conjurada pelas partes como paradigma, podendo assentar com base noutra norma que
considere mais apropriada ao caso, podendo, inclusive, verificar qual a norma
constitucional que, segundo sua avaliação, possa ter sido infringida.68
Ressalta-se, por último, que a questão de inconstitucionalidade pode ser
fomentada em qualquer fase do processo e em qualquer instância judicial69, ou seja, tanto
em primeira instância quanto em grau de recurso. Atribuindo competência a todos os
juízes – inclusive àqueles dos tribunais de recurso – da competência para apreciar
oficiosamente a inconstitucionalidade das normas nos feitos submetidos a julgamento.70

4.2. A Fiscalização dos Tribunais

Já ressaltado anteriormente, se apresenta assim a arquitetura no supedâneo da


fiscalização concreta sobre o tolhimento dos tribunais ao aplicar normas que infrinjam à
Constituição.71

66
BONAVIDES, Paulo – Op.Cit.p.312.
67
MIRANDA, Jorge – Op.Cit.p.246.
68
MIRANDA, Jorge – Op.Cit.p.247.
69
MOREIRA, Vital – A Fiscalização Concreta no Quadro do Sistema Misto de Justiça
Constitucional.p. 831.
70
MIRANDA, Jorge – Op.Cit.p.245.
71
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA. Diário da República I Série. N.° 86 (10-04-76).
[Em linha]. P.738-775. [Consult. 24 Abr. 2017]. Disponível em https://dre.pt/web/guest/legislacao-
consolidada/-
/lc/337/201704250616/diploma/10?rp=indice&q=constitui%C3%A7%C3%A3o&did=34520775.

[285]
Significa que todos os tribunais72, mais especificamente o Supremo Tribunal de
Justiça e os tribunais judiciais de primeira e de segunda instância, o Supremo Tribunal
Administrativo e os demais tribunais administrativos e fiscais e o Tribunal de Contas 73,
tem competência para proceder a fiscalização de constitucionalidade. Como
consequência, todos os juízes são necessariamente juízes constitucionais e não apenas os
pertencentes ao Tribunal Constitucional.74
O controle de constitucionalidade incidental pode ser iniciado em toda e qualquer
ação submetida a apreciação do poder judiciário em que haja um interesse concreto em
discussão, qualquer que seja a sua natureza. Não faz diferença sequer a espécie de
processo, podendo ser suscitado o incidente de constitucionalidade em processos de
conhecimento, de execução, ou cautelar, seja qual for matéria discutida.75
Ninguém pode dirigir-se a tribunal a fim de invocar uma declaração de uma
inconstitucionalidade de uma norma. Mas nada impede que alguém se lhe dirija propondo
uma ação tendente à declaração, à realização ou a reparação de um direito ou interesse,
cuja legitimação depende de decisão positiva de fiscalização constitucional.
Destarte, a questão de inconstitucionalidade só pode e só deve ser conhecida e
decidida na medida em que haja um nexo incindível ente ela e a questão principal objeto
do processo.

Trata-se de uma questão prejudicial imprópria porque questão que se acumula com
questão objeto do processo e cujo julgamento cabe ao mesmo tribunal, não se devolve
para outro processo ou para outro tribunal. Já questão prejudicial própria só se verifica
quando haja recurso para o tribunal constitucional. E por fim a questão pode ser
suscitada na primeira instância como em recurso, o que bem se compreende, até
porque os tribunais de recurso também conhecem oficiosamente de
inconstitucionalidade76

72
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA. Diário da República I Série. N.° 86 (10-04-76).
[Em linha]. P.738-775. [Consult. 24 Abr. 2017]. Disponível em https://dre.pt/web/guest/legislacao-
consolidada/-
/lc/337/201704250616/diploma/10?rp=indice&q=constitui%C3%A7%C3%A3o&did=34520775.
73
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA. Diário da República I Série. N.° 86 (10-04-76).
[Em linha]. P.738-775. [Consult. 24 Abr. 2017]. Disponível em https://dre.pt/web/guest/legislacao-
consolidada/-/lc/337/201704250616/diploma/10?rp=indice&q=constitui% (REIS e GONÇALVES, 2016)
(GOUVEIA, 2013)C3%A7%C3%A3o&did=34520775.
74
MIRANDA, Jorge – Op.Cit.p.244.
75
PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo –Direito Constitucional Descomplicado.p.728.
76
MIRANDA, Jorge – Op.Cit.p.245.

[286]
A fiscalização difusa de constitucionalidade revela-se indissociável da função
jurisdicional seja pela natureza da demanda, seja da própria Constituição77, que, inclusive,
insere também o Tribunal Constitucional no conhecimento incidental da
inconstitucionalidade quando tiver que exercer incidentalmente qualquer de suas
competências jurisdicionais (fora da fiscalização de legalidade e constitucionalidade das
normas jurídicas).

4.3. Decisões Recorríveis

Dentre os vários conceitos existentes, é considerável entender que recurso é um


meio processual de impugnação, voluntário ou obrigatório, utilizado antes da preclusão,
apto a propiciar um resultado mais vantajoso na mesma relação jurídica processual,
decorrente de reforma, invalidação, esclarecimento ou confirmação.78
À despeito da fiscalização concreta da constitucionalidade e da legalidade “cabe
recurso para o Tribunal Constitucional não apenas de decisões não jurisdicionais, mas
também de decisões não previstas no art. 280 da Constituição Portuguesa79 e no art. 70
da lei 28/82”.80
Segundo Canotilho, das decisões dos Tribunais relativas a questão da
inconstitucionalidade cabe recurso para o Tribunal Constitucional. É o chamado recurso
de constitucionalidade. O objeto do recurso não é a decisão do tribunal a quo, sobre o
mérito da questão, mas apenas o seguimento da causa decorrente do incidente de
inconstitucionalidade.81
Conforme pautado anteriormente e agora, segue ressaltado por Jorge Bacelar:

77
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA. Diário da República I Série. N.° 86 (10-04-76).
[Em linha]. P.738-775. [Consult. 24 Abr. 2017]. Disponível em https://dre.pt/web/guest/legislacao-
consolidada/-
/lc/337/201704250616/diploma/10?rp=indice&q=constitui%C3%A7%C3%A3o&did=34520775.
78
REIS, Alexandre Cebrian Araújo; GONÇALVES, Victor Eduardo Rios – Direito Processual
Penal.p.659.
79
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA. Diário da República I Série. N.° 86 (10-04-76).
[Em linha]. P.738-775. [Consult. 24 Abr. 2017]. Disponível em https://dre.pt/web/guest/legislacao-
consolidada/-
/lc/337/201704250616/diploma/10?rp=indice&q=constitui%C3%A7%C3%A3o&did=34520775.
80
MIRANDA, Jorge – Op.Cit. p.248.
81
CANOTILHO, J.J. Gomes – Op.Cit.p.989.

[287]
num primeiro momento, a fiscalização concreta pode ser realizada pelos tribunais em
geral, ex officio ou a pedido das partes, em qualquer momento do percurso processual,
incluindo a última instância de decisão jurisdicional, podendo ainda, dentro da
jurisdição geral, haver recursos de decisões de constitucionalidade concreta.82

Por outras palavras, segundo Canotilho, “o objeto do recurso não é a decisão


judicial em si mesma, mas apenas a parte dessa decisão em que o juiz a quo recusou a
aplicação de uma norma por motivo de inconstitucionalidade ou aplicou uma norma cuja
inconstitucionalidade foi impugnada.
Toda vez que, diante de um caso concreto, os juízos monocráticos (de primeiro
grau) no âmbito de suas respectivas competências, tomarem decisões de acordo com suas
respectivas convicções sobre a matéria, podem afastar a inconstitucionalidade de uma lei,
com o fim de afastar sua aplicação incidentalmente, sendo possível recurso para o órgão
de máximo de controle, mas especificamente com respeito àquela parcela da decisão que
afastou a norma espúria.
Num momento posterior, “a fiscalização concreta é exclusivamente efetuada pelo
Tribunal Constitucional, a título de recurso da decisão de outro tribunal, tomadas no
primeiro momento processual conforme previsão da Constituição”.83
À luz dos ensinamentos de Canotilho, trata-se de uma norma interpretativa
mediatizada pela decisão recorrida, porque esta norma deve ser apreciada no segundo
recurso conforme a interpretação que lhe foi dada nessa decisão.84
A decisão de fiscalização85, com recurso para categorias de tribunais superiores,
e posterior recurso para o Tribunal Constitucional: “é a situação em que o tribunal a quo,
decidiu não julgar inconstitucionais as fontes normativas consideradas aplicáveis, decisão
que, no entanto, pode ser contestada, por recurso, primeiro dentro da jurisdição dos
tribunais em razão da matéria, e depois para o próprio Tribunal Constitucional.86
É importante ressaltar que o recurso para o Tribunal Constitucional, no bojo da
fiscalização concreta, “é um recurso sem caráter extraordinário, o que pode trazer

82
GOUVEIA, Jorge Bacelar – Manual de Direito Constitucional.p.359.
83
Idem, Ibidem.
84
CANOTILHO, J.J. Gomes – Op.Cit.p.989.
85
TRIBUNAL CONSTITUCIONAL. Acórdão, n.°141/92. [Em linha. [Consult. 25 abril 2017]. Disponível
em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19920141.html.
86
GOUVEIA, Jorge Bacelar – Manual de Direito Constitucional.p.330.

[288]
consequências relevantes no “controlo” do sistema processual geral, como por exemplo
o impedimento do trânsito em julgado das sentenças dos tribunais a quo”.87
Jorge Miranda ensina que são três os tipos de decisões que cabem recurso:

Aquelas que recusem aplicação, de certa norma com fundamento em


inconstitucionalidade (art. 280 CRP) ou em ilegalidade ou em contradição com uma
convecção internacional. (art. 70 da Lei 28/82, após 1989)”.; “Decisões que apliquem
norma cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade haja sido suscitada durante o
processo e em que a norma aplicada seja um dos fundamentos normativos da
decisão”88; “decisões que apliquem norma anteriormente julgada inconstitucional ou
ilegal pelo próprio Tribunal Constitucional, ou anteriormente julgada inconstitucional
pela Comissão Constitucional (art. 70 CRP) ou que apliquem norma legislativa em
desconformidade com o anteriormente decidido pelo Tribunal. 89

Ainda quanto aos tipos de recursos, eles diferem quanto ao objeto ou a qualidade
dos recorrentes, quanto ao caráter obrigatório ou facultativo e quanto aos atos normativos
sujeito a controle.
Quanto ao objeto, os recursos de decisões positivas de inconstitucionalidade são
os que tenham recusa à aplicação de uma norma por motivo de inconstitucionalidade. Já
os recursos de decisões negativas, tratam-se de decisões que aplicaram uma norma a qual
foi rejeitada a sua arguição de inconstitucionalidade. Há ainda os recursos de decisões
aplicadoras de normas que já foram julgadas pelo Tribunal Constitucional que tem vista
obrigatória para o Ministério Público. Por fim há os recursos de decisões judicias, restritos
a questões de natureza jurídico-constitucional e jurídico internacional que apliquem
normas constantes de atos legislativos contrariadas por convenções internacionais.90
Quanto as partes processuais91, essas podem interpor recurso de acordo com as
disposições inerentes ao código de processo civil, referentes as partes principais,
acessórias ou a terceiros prejudicados.92

87
CANOTILHO, J.J. Gomes – Op.Cit.p.989.
88
TRIBUNAL CONSTITUCIONAL. Acórdão n.°366/96. [Em linha]. [Consult. 25 abril 2017]. Disponível
em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19960366.html
89
MIRANDA, Jorge – Op.Cit.p.248.
90
CANOTILO, J.J. Gomes.Op.Cit.p.990.
91
Todas as pessoas, sem exceção têm capacidade de ser parte, porque são titulares de direitos e obrigações
na ordem civil. A regra abrange as pessoas naturais ou físicas e as jurídicas, de direito público ou privado.
Dentre as pessoas físicas, nem todas terão capacidade processual, ou seja, a aptidão para estar em juízo
pessoalmente. Cfe. GONÇALVES, Marcus Vinícius Rios – Direito Processual Civil.p.193.
92
LEI n.º 41/2013. Diário da República I Seção, N.º 121/2013 (26-06-13). [Em linha]. [Consult. 25 abril
2017]. Disponível em https://dre.pt/web/guest/pesquisa/-/search/497406/details/normal?l=1.

[289]
Oficiosos são os recursos interpostos pelo Ministério Público quando forem parte
num processo. Essa obrigatoriedade se dá quando intervêm a título principal como estar
a representar o Estado ou entidades estatais carentes de proteção. Ou quando intervêm
acessoriamente do exercício da função de assistência em “processos de interesse público
em que são partes pessoas coletivas de utilidade pública ou sujeitos jurídicos a que o
Estado deve especial atenção, como por exemplo incapazes e ausentes”. Por fim há ainda
os recursos facultativos afetos as partes e ao Ministério Público sempre que este não esteja
obrigado a recorrer de ofício, onde, caso contrário, neste último caso, serão obrigatórios,
como por exemplo, “os recursos de decisões positivas de inconstitucionalidade”.93

5. Críticas ao Controle Concreto de Constitucionalidade

No Brasil, o controle incidental surge em um caso concreto, no curso do processo


submetido à apreciação do poder judiciário. O objetivo da parte que argui a
constitucionalidade é afastar a aplicação da lei àquele caso concreto. Logo, oportuno
registar que a decisão do judiciário só aproveitará as partes do processo em que é
proferida, ou seja, consubstancia-se na eficácia inter partes.94
Portanto, a decisão proferida só alcança as partes do processo em que é proferida,
continuando a lei válida e aplicável para todas as demais pessoas que não integraram
aquela demanda judicial.
Ainda de acordo com a previsão brasileira, no bojo do controle incidental, a
decisão, em regra, opera efeitos retroativos (ex tunc), ou seja, a lei é declarada
inconstitucional desde o seu nascimento.95
Em Portugal, Jorge Miranda, discorre, como pontuação crítica ao sistema misto
lusitano, citando um texto da Juíza Maria Lúcia da Conceição Abrantes Amaral96 em que
ela descreve “que o modelo comum europeu favorece em maior grau, do que o modelo
português, a pacificação das relações entre jurisdição constitucional e jurisdição comum”.
97
A decisão do juiz que suspende a instância e coloca a questão de constitucionalidade à

93
CANOTILHO, J.J Gomes – Op.Cit.p.991.
94
PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo; DIAS, Frederico – Op.Cit.p.869.
95
Idem. Ibidem.
96
TRIBUNAL CONSTITUCIONAL. Composição. [Em linha]. [Consult. 25 abril 2017]. Disponível em
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/juizes02.html.
97
Na verdade, a juíza Maria Lúcia da Conceição Abrantes Amaral, critica o modelo português de recurso,
onde a sentença do Tribunal Constitucional, contrário a sentença do tribunal a quo, obriga a reforma da

[290]
apreciação do Tribunal Constitucional, que, sendo um tribunal de recurso, suas decisões
alteram o ordenamento jurídico, atacam normas que tardam a morrer e por tanto ainda
vigoram, renovando direitos incertos e que não valem plenamente.98
O jurista, pontua críticas ao sistema, citando também o Professor e Doutor Jorge
Reis Novaes, relatando que o sistema é “deficitário na proteção jus fundamental”, mas
com garantias de recursos excessivas inadequadas. O sistema de reenvio prejudicial faz
com que os juízes deixem de decidir questões de inconstitucionalidade, sendo obrigado a
ver suas decisões revogadas polo Tribunal Constitucional, tendo depois que reformá-las.
Retirando a utilidade do processo, gerando apenas a sua dilação e a erosão da imagem
dos tribunais.
Em sentido contrário, a substituição do atual sistema misto português para o
sistema unicamente concentrado, mesmo que composto pelo reenvio prejudicial,
culminaria com a anulação do poder de decidir o direito dado a cada juiz a quo. O
princípio de que nenhuma lei inconstitucional deve ser aplicada pelo julgador reduz a uma
suspensão do juízo, limitando o poder do julgador ao poder de questionar. Tomando-se a
questão da inconstitucionalidade um mero incidente na aplicação do direito. 99
Por fim, Jorge Miranda se posiciona favoravelmente ao modelo misto português
ressaltando que:

com mais de 38 anos (contando o tempo da Comissão Constitucional) o sistema tem


funcionado de modo globalmente positivo tornando-se paradigmático nos Estados de
Língua portuguesa. Ele propicia o acesso dos cidadãos à garantida Constituição,
através do direito de invocação da constitucionalidade e da obtenção de uma decisão
em qualquer tribunal, tornado, com isso todos os juízes corresponsáveis pela
Constituição, ou seja, tornando-os todos constitucionais.100

decisão que já fora tomada. No modelo comum de suspensão de instância, a sentença do Tribunal
Constitucional relativa a inconstitucionalidade, é sempre emitida antes que tenha sido proferida sobre o
mérito da causa, qualquer decisão. Depois o modelo de suspensão de instância tende a impedir que haja
processos de controle de constitucionalidade ditados por interesses exclusivos das partes.
98
MIRANDA, Jorge – Op.Cit.p.283.
99
MIRANDA, Jorge - Op.Cit.p.284.
100
MIRANDA, Jorge - Op.Cit.p.287.

[291]
Conclusão

Do exposto, pode-se concluir que o sistema português de controle concreto de


constitucionalidade é complexo, apontado pela doutrina como um controle misto de
constitucionalidade, por reunir elementos, como se viu, do controle difuso e do controle
concentrado.
Possuem raízes em modelos distintos, tendo sido desenvolvidos no seio de
instituições próprias e de maneira natural, espontânea. O modelo norte-americano tem o
seu contorno e sua efetividade definidos por uma norma constitucional não escrita, o stare
decisis101, que garante a segurança necessária à própria operacionalidade do sistema.
O modelo europeu, por outro lado, confere à Corte Constitucional status
diferenciado do Judiciário, declaradamente político, composta por membros, nas palavras
do então Ministro da Corte portuguesa Cardoso da Costa, com “diferentes sensibilidades
constitucionais”, o que lhes confere legitimidade bastante para decidir questões das mais
relevantes da ordem constitucional, com efeito vinculante aos demais órgão estatais,
principalmente ao Judiciário, o que, da mesma maneira, garante a segurança necessária à
operacionalidade do sistema.
“Recorde-se que os tribunais em geral são, igualmente, órgãos de justiça
constitucional, estando também vocacionados para assegurar uma proteção plena dos
direitos fundamentais dos particulares. A proteção jurisdicional dos direitos fundamentais
nem sequer circunscreve às violações resultantes de normas jurídicas. A concepção aqui
adotada não ignora que o dogma da infalibilidade não se aplica às decisões dos tribunais,

101
A doutrina do stare decisis tem a sua origem no direito inglês, decorrente da expressão latina stare
decisis et non quieta movere, sendo utilizado ou aplicado na esfera civil. No âmbito constitucional, essa
expressão tem um significado mais abrange, senão vejamos: No âmbito do estudo do direito constitucional,
os EUA são o nosso grande exemplo, para o qual essa expressão assume o significado de um comando
mediante o qual as Cortes devem dar o devido peso e valor ao precedente, de forma que uma questão de
direito já estabelecida deveria ser seguida sem reconsideração, desde que a decisão anterior fosse
impositiva. Há uma íntima correspondência entre o stare decisis e o Estado Democrático de Direito, já que
ela assegura que o direito não se altere de forma errática, constante e permite que a sociedade presuma que
os princípios fundamentais estão fundados no direito, ao invés das inclinações ou voluntariedades pessoais,
dos indivíduos. Desta forma, temos a construção do stare decisis horizontal e o vertical. A idéia de que os
Tribunais e outros órgãos do Poder Judiciário devem respeitar os seus próprios precedentes, internamente,
é chamado de stare decisis horizontal ou em sentido horizontal, sendo vinculante, portanto, para o próprio
órgão, que não pode mais rediscutir a matéria, o que também é denominado de binding efectt (efeito
vinculante), mas interno. Já o stare decisis vertical significa que as decisões vinculam externamente,
também a todos, sendo obrigatória para os demais órgãos do Poder Judiciário, inclusive a Administração
Pública Direta e Indireta e demais Poderes. Cfe. MACIEL, Adhemar Ferreira – Dimensões do Direto
Público.p.84.

[292]
não excluído, portando a possibilidade de as decisões jurisdicionais em gerais ofenderem
direitos fundamentais”, ainda mais grave quando proferidas em última instância.102
O primitivo sistema da Constituição de 1976, só admitia recurso para Comissão
Constitucional quando os tribunais se recusassem a aplicar uma norma constante de lei,
decreto-lei, decreto regulamentar, decreto regional ou diploma equiparável, com
fundamento em inconstitucionalidade (art.°282/1, na redação originária). Afastava-se
assim “a hipótese de recurso nos casos em que, não obstante o incidente de
inconstitucionalidade, os tribunais decidissem pela constitucionalidade da norma ou
normas em discussão”. Isso constituía uma grave limitação das possibilidades de defesa
dos cidadãos e um notável esvaziamento do princípio da constitucionalidade das leis.103
O controle por via de exceção é de sua natureza o mais apto a prover a defesa do
cidadão contra os atos normativos do poder, porquanto em toda demanda que suscite
controvérsia constitucional sobre lesão de direitos individuais estará sempre aberta a uma
via recursal a parte ofendida. A extensão de iniciativa da sindicância de
constitucionalidade, em se tratando de via direta, “é decisiva para marcar-lhe a feição
liberal ou estatal, democrática ou autoritária, em ordem a determinar se o controle se faz
com o propósito de atender aos fins individuais ou aos interesses do Estado, interesses
que tanto podem exprimir uma necessidade de harmonia na relação entre os distintos
órgãos da soberania estatal”.104
A prática dos tribunais portugueses já tinha demonstrado como era frágil a defesa
dos cidadãos quanto ao regime de irrecorribilidade de certos atos normativos. Os juízes
se equivocavam aplicando normas flagrante inconstitucionais. Viu-se o cidadão sem
defesa por não se poder recorrer contra inconstitucionalidade e a norma em apreço ser
insuscetível de recurso. O primeiro problema foi resolvido pela admissibilidade de
recurso contra decisão de inconstitucionalidade, e o segundo foi solucionado pela
vicissitude recursal da parte que suscitou a controvérsia contra decisões de
inconstitucionalidade, qualquer que conste o diploma do ato normativo impugnado.105
No texto originário da Constituição portuguesa impunha-se o esgotamento dos
recursos ordinários e só uma vez esgotados é que seria possível impetrar recurso para
Comissão Constitucional. O regime atual é mais coerente com a natureza incidental da

102
MIRANDA, Jorge - Op.Cit.p.292.
103
CANOTILHO. J. J. Gomes – Op.Cit.p.993.
104
BONAVIDES, Paulo. Op.Cit.p.333.
105
CANOTILHO, J.J Gomes – Op.Cit.p.992.

[293]
inconstitucionalidade e com a própria razão de ser do controlo concentrado com a base
num controlo difuso.106
Por fim, salutar a existência de um mecanismo processual constitucional de
controle das leis, a fim de evitar violação aos direitos individuais, coletivos e sociais,
tantos os absolutos como os relativos, sob a custódia do legislador constituinte, na alçada
da criação de um sistema capaz de garantir a firmeza e a estabilidade ao direito expresso
no texto magno em face do direito subjetivo social pairado pela incerteza ou insegurança
jurídica.

Referências

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106
CANOTILHO, J.J Gomes – Op.Cit.p.995.

[294]
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[296]
PARTE IV
Problemas e Críticas à
Democracia

[297]
PARTE IV
Problemas e Críticas à
Democracia

[298]
16. A DEMOCRACIA E MERITOCRACIA

Ricardo Tavares da Silva1

Resumo: A minha proposta consiste no seguinte: não há identidade (ou uma qualquer
relação conceptual) entre democracia representativa e eleição por voto, pelo que podemos
adoptar outro modo de selecção dos representantes legislativos sem que, com isso, o
sistema deixe de ser democrático. A selecção dos representantes legislativos diz respeito
a quem exerce o poder legislativo, enquanto o carácter democrático ou não-democrático
do sistema diz respeito a quem é titular do poder legislativo. Todas as objecções
habitualmente efectuadas aos sistemas democráticos são, afinal, objecções ao sistema da
eleição por voto (sistema electivo). Assim sendo, devemos adoptar o melhor dos modos
de selecção. O melhor desses modos é o que assenta no critério da competência.

Palavras-chave: Democracia; Meritocracia; Representação; Eleição; Competência

1 – Ausência de identidade ou conexão conceptual

a) Exercício do poder legislativo

Nos sistemas de democracia representativa, por definição, existe a cisão entre


quem é titular do poder legislativo e quem o exerce. Nisto se distingue dos sistemas de
democracia directa.
Há ou não um problema relativamente à selecção dos representantes legislativos?
Isto é: há um só modo de selecção concebível, a eleição por voto, ou há vários modos
concorrentes, surgindo uma discussão quanto ao modo que deve ser o consagrado?
À partida, parecem ser vários os modos de selecção concebíveis: para além da
eleição, são concebíveis o sorteio, a nomeação, para além daqueles modos assentes em

1
Universidade de Lisboa. Licenciatura em Direito pela Faculdade de Direito de Lisboa e Mestrado em
Filosofia pela Faculdade de Letras de Lisboa. Doutorando em Filosofia. Membro do Centro de Investigação
em Direito Penal e Ciências Criminais.

[299]
critérios, sejam eles extrínsecos – selecção em função da idade, do género sexual, do
estatuto social, etc. – ou intrínsecos – selecção em função da competência – ao exercício
da função legislativa.2
Das duas, uma: ou democracia representativa implica eleição por voto e, então, a
adopção de um outro sistema que não o electivo implica não estarmos verdadeiramente
perante um sistema democrático-representativo; ou democracia representativa não
implica eleição por voto e, então, a adopção de um outro sistema que não o electivo não
implica o abandono do princípio democrático.
A pergunta a fazer é esta: se for consagrado um sistema que não o electivo, os
indivíduos que forem seleccionados por essa via deixam de poder ser considerados
representantes do povo? A minha resposta é negativa: a relação de representação não se
define pelo modo como o representante é selecionado; caracteriza-se, apenas, pelo facto
de alguém “vir em nome” de outrem (o representante torna presente o ausente, o
representado).
Se bem que, por a esmagadora maioria das organizações democráticas ter
consagrado o sistema electivo e de este se ter tornado de tal maneira presente, tomamos
por praticamente sinónimas as expressões ‘democracia representativa’ e ‘sistema
electivo’, no significado de ‘democracia representativa’ não existe referência alguma a
um modo específico de selecção dos representantes.
Portanto, para que um determinado sistema legislativo constitua um sistema de
democracia representativa, basta que se verifiquem as seguintes condições: i) o povo é
titular do poder legislativo (princípio democrático); ii) o exercício desse poder é deixado
a alguns ou a um (representação). Estes “requisitos” podem encontrar-se preenchidos com
qualquer modo de selecção dos representantes legislativos.

b) Contra-argumentos

Contra o que acabou de ser dito, Pitkin, em The Concept of Representation,


apresenta o seguinte argumento: só designamos de ‘representantes’ em sentido próprio

2
Por ‘critério da competência’ estou a entender um modo de selecção a priori, assente no preenchimento
de requisitos formais que indiquem a existência de competência para o exercício do cargo. Estou a ignorar
aquele modo de selecção a posteriori de acordo com o qual o representante é selecionado atendendo à
competência demonstrada durante o próprio “exercício” do cargo (a legitimidade de exercício de Max
Weber). A entrada na profissão deve atender à potência, não ao acto, pois este já pressupõe que se tenha
entrado na profissão. A competência demonstrada durante o exercício do cargo será condição, não de
entrada, mas de manutenção na profissão.

[300]
aqueles que exercem funções por via da eleição. A representação legislativa é um tipo de
representação sui generis, que se distingue dos outros tipos, precisamente, por a selecção
do representante se dar por via da eleição.
Porém, creio que, com a posição de Pitkin, inverte-se o sentido da relação
realmente existente: não é que tenhamos adquirido a convicção de que representação
legislativa implica eleição por voto por força da definição de ‘representação legislativa’;
a “definição” de ‘representação legislativa’ é que se acomodou à convicção instalada de
que representação legislativa implica eleição por voto.
O significado da palavra ‘representação’ que se popularizou, principalmente
quando se fala em representação legislativa, não coincide com o significado mais puro (o
correcto, digamos) da mesma: o uso da palavra ‘representação’ sofreu um desvio face ao
significado puro por decorrência, precisamente, da aceitação social generalizada da tese
segundo a qual a eleição constitui o único modo de seleccionar os representantes
legislativos.
Alguns autores (como Jorge Miranda no seu manual Ciência Política – Formas
de Governo) argumentam ainda que a maneira pela qual o povo ainda decide num sistema
representativo é através da selecção dos representantes; daí que representação legislativa
implique eleição por voto. Mas, com o mecanismo da representação legislativa, os
representados nada têm de decidir: todas as suas decisões são efectuadas pelos seus
representantes. É para isso mesmo que serve a representação.
Outro argumento que se pode aduzir a favor da identificação ou conexão
conceptual entre representação legislativa e eleição consiste no seguinte: se o
representado decide que há lugar à representação, também escolhe quem o representa –
tal encontra-se no seu espaço de liberdade.
Mas possuir liberdade para decidir (realizar algo) não implica possuir liberdade
para escolher (o conteúdo daquilo que se realiza). Aliás, para um certo modelo
psicológico da vontade, ao decidirmos efectivar uma determinada acção, fazemo-lo sem
capacidade para escolher o conteúdo dessa acção.
A ser assim, podemos decidir que haja representação sem que a escolha dos
representantes se encontre à nossa disposição: o facto de a outorga de “poderes” de
representação a uma pessoa ser objecto de decisão não significa nem implica que a
selecção dessa pessoa como representante seja, também ela, objecto de decisão.
Outro contra-argumento: não é precisamente a possibilidade de eleger os
representantes legislativos que impede que haja ditadura? Historicamente, sempre que se

[301]
põe cobro a uma ditadura, implementa-se o sistema electivo. Se o sistema não for electivo,
não estaremos perante uma ditadura?
Direi que não: numa ditadura, não há sequer processo de selecção de
representantes. Há um ou alguns indivíduos que se impõem pela força, não estando
comprometidos com um (qualquer um) modo de selecção. Por alguma razão as ditaduras
tendem a ser ditaduras militares. E se o não-comprometimento não se verifica
relativamente ao poder legislativo ordinário, certamente que se verifica relativamente ao
poder constituinte.
Então aceitemos que democracia representativa não implica eleição por voto.
Ainda assim, pode alegar-se que implica um qualquer modo de selecção que não se baseie
em critérios (eleição, nomeação ou sorteio), pois a aposição de critérios constituirá um
factor de descriminação.
Porém, sempre que há uma selecção, há discriminação. Mas, já que a há, que seja
feita com base em factores relevantes para o exercício do cargo. Aliás, havendo factores
relevantes a ter em consideração para o exercício dos cargos legislativos, a sua não-
consideração consubstancia-se numa desigualdade. Assim, nos modos de selecção
baseados em critérios, nomeadamente, em critérios intrínsecos, há discriminação, é
verdade, mas a mesma é positiva e, como tal, devida.
É de notar, a este respeito, que o povo não é menos titular do poder legislativo por
o acesso aos cargos legislativos se encontrar “barrado” por critérios, nomeadamente, por
critérios de competência, pois tais critérios dizem respeito ao exercício, não à titularidade,
do poder legislativo. A “barrar-se” alguma coisa com a aposição de critérios, tal coisa
será o exercício do poder legislativo, não a sua titularidade (esta não deixa de estar no
povo)3.
Para além disso, se o acesso aos cargos públicos legislativos em função da
competência é discriminatório, também o acesso aos cargos públicos e profissões públicas
em geral o é: o governo pelos mais competentes não é mais discriminatório do que a
restante organização pública.
De qualquer maneira, até é por força do sistema electivo que o acesso ao exercício
do poder legislativo se encontra verdadeiramente barrado: só quem fizer parte do sistema

3
É de notar que o termo ‘democracia’ é, mutas vezes, usado para designar a conjunção de liberdade e
igualdade de acesso aos cargos representativos. Mas esse é um seu significado impróprio, pois este termo
só se aplica propriamente quando em questão esteja a titularidade do poder. Nem sempre que há liberdade
e igualdade de acesso a algo há democracia.

[302]
partidário, em estreita ligação com o sistema electivo, tem reais hipóteses de chegar aos
cargos legislativos.
Em suma: tal como uma pessoa singular não deixa de ser titular das posições
normativas de que for titular só por ter seguido um critério de selecção da pessoa a quem
outorgou uma procuração, o mesmo acontece com uma pessoa colectiva.

c) Um falso dilema

Quem identifique (ou associe) democracia representativa e eleição por voto,


encontra-se perante o seguinte dilema: ou se defende a democracia representativa e se
aceita os seus males; ou se rejeita os seus males e, com isso, rejeita-se o princípio
democrático.
A “balança” penderá para o menor dos males: mantemo-nos fiéis aos valores que
subjazem à democracia ou cedemos perante as consequências da sua implementação.
Defensores incondicionais do princípio democrático optam pela primeira hipótese;
pensadores como Platão optam pela segunda hipótese.
Para quem não proceda a essa identificação (associação), o dilema referido é falso:
podemos rejeitar os males da democracia representativa e continuar a defendê-la. A
representação legislativa é compatível com outros modos de selecção que não a eleição
por voto, nomeadamente, com o critério de selecção baseado na competência para o
exercício da função legislativa.
Assim, nesta perspectiva, todas as objecções que têm sido habitualmente
apresentadas contra a democracia representativa devem ser vistas, afinal, como objecções
ao sistema electivo.

2 – Modos de selecção dos representantes legislativos

a) Objecções ao sistema electivo

As objecções ao tipo de sistema que se encontra instituído na grande maioria dos


sistemas democráticos são por demais conhecidas. Tentarei elencar as mais relevantes.
A primeira objecção diz respeito aos representantes eleitos: estes não são
necessariamente bons para desempenhar o cargo. Isto não impede que, casualmente, seja

[303]
eleito alguém que até seja competente para o cargo. Mas isso não será garantido pelo
modo de selecção em questão; ser-lhe-á acidental.
A segunda objecção diz respeito aos representados/eleitores: quem vota não é
necessariamente informado ou racional nas suas decisões. Mais uma vez, isto não impede
que o eleitorado até seja esclarecido e siga a via mais racional: mas isso não será garantido
pelo facto de serem os próprios representados a seleccionar os seus representantes.
A terceira objecção diz respeito à relação entre eleitores e candidatos: esta é de
persuasão e/ou de popularidade, pelo que a eleição acaba reduzida a uma competição que
se ganha pela força da publicidade e da retórica, não pela força da racionalidade e da
dialéctica. Quem conseguir chegar junto do eleitorado e convencê-lo a votar em si, será
quem ganha (na maioria das vezes, a selecção dos representantes reduz-se a um concurso
de popularidade).
Por isso – e esta é a quarta objecção –, só tem hipótese de ocupar um cargo
legislativo quem possuir os meios para chegar junto do eleitorado e convencê-lo a votar
em si. Mais especificamente, a capacidade de financiamento da campanha eleitoral e a
proximidade junto dos órgãos de comunicação social já delimita o universo de potenciais
candidatos.
Mais: quem for eleito terá mais em atenção, no exercício do seu cargo, a vontade/o
interesse de quem o financiou e/ou divulgou a sua mensagem do que a/o de quem
representa – quinta objecção.
Se é para referir “requisitos” de candidatura, então há que voltar a referir a íntima
relação existente entre sistema electivo e sistema partidário e, com ela, a delimitação à
partida, mais uma vez, do universo de potenciais candidatos – sexta objecção.
E é ainda o sistema partidário que gera a circularidade na ocupação dos cargos
legislativos (acabam por ser “sempre os mesmos” a ocupá-los), pelo que o resultado
prático é equivalente à aristocracia: não há uma democracia real (não existe um
verdadeiro processo de selecção de representantes) – sétima objecção.
Como refere Colin Bird (suportado por David Miller), do ponto de vista clássico,
o que hoje identificamos como a regra democrática de selecção dos representantes é
melhor descrito como aristocracia electiva, na qual as elites políticas, organizadas em
partidos políticos, competem por votos em eleições regulares (diagnóstico que coincide

[304]
com a “definição” realista de ‘democracia’ dada por Mosca e pela chamada ‘teoria elitista
da democracia’)4.
Para um verdadeiro democrata, pior do que este sistema (excluindo os modelos
nos quais o povo não é, sequer, invocado) será só a “democracia representativa” teorizada,
por exemplo, por Hobbes, na qual o povo, titular originário do poder legislativo, o
transmite, por via do pacto de constituição do “estado civil”, a alguns ou a um só
indivíduo, que se torna no derradeiro titular do poder legislativo (Hobbes afirma
categoricamente que o monarca, quando recebe o poder, pode aliená-lo como bem
entender, assim como, com a sua morte, lhe sucedem na sua titularidade os seus
descendentes5).
No modelo de Hobbes, não há, verdadeiramente, representação: os
“representantes” não se limitam a exercer o poder legislativo em nome do povo; tornam-
se nos seus titulares – como se vê, “deixa-se entrar pela janela o que não se deixou entrar
pela porta”. O modelo hobbesiano constitui um mero artifício teórico destinado a
justificar, ainda, o velho status quo aristocrático-monocrático (daí a forte oposição de
Rousseau a esta “democracia representativa”, oposição que levou Mosca a apelidá-lo de
‘o verdadeiro pai da doutrina da soberania popular’).
O modelo liberal, “encarnado” no sistema electivo, não vai tão longe, pois é
pensado pela e para a burguesia: o poder legislativo tem de estar no povo (para não estar
exclusivamente em alguns, isto é, na nobreza); porém, só o estará formalmente, pois só
uma classe privilegiada do povo (as elites – a burguesia) terá realmente o direito de
legislar. O sistema partidário incumbir-se-á de garantir essa separação dentro do próprio
povo.

4
Como lembra Bird, “(…) it is worth noting that the association of democracy and election is relatively
recent: from antiquity until roughly the eighteenth century, political theorists more often associated voting
and election with elitist forms of rule like oligarchy or aristocracy” (Bird, 2006, 203). Já Miller, no
seguimento da análise que faz da posição de Schumpeter, efectua a seguinte consideração:
“This is strong stuff, and what it really entails is that the best we can hope for is what is sometimes called
‘elective aristocracy’, where all that can be asked of the ordinary citizen is that she should be able to
recognize people who are competent to make decisions on her behalf (and to vote them out of office if they
prove not to be). Whatever its other virtues, such a system hardly matches the democratic ideal that political
authority must rest in the hands of the people as a whole” (Miller, 2003, 41).
5
Um bom critério de identificação de uma defesa da aristocracia ou da monocracia consiste em aferir se o
poder legislativo é tratado como um direito privado, sujeito às mesmas regras de aquisição, extinção e
transmissão (como é o caso da sucessão por morte). Aliás, considero que a defesa de sistemas aristocráticos
e monocráticos se encontra associada a um entendimento individualista ou atómico (liberal, dir-se-á) da
sociedade, enquanto a defesa de sistemas democráticos se encontra associada a um entendimento
comunitarista (social, dir-se-á) da sociedade.

[305]
Ora, este modelo, porque estimula a promiscuidade entre o poder legislativo e
outros “tipos” de poder social, como o económico, aumenta, consequentemente, o risco
de corrupção envolvendo os eleitos – oitava objecção.
No sistema electivo, no mínimo, dá-se o facto de o valor que acaba por ser
privilegiado ser o da vitória (nas eleições), não o da “saúde” social. No máximo, dá-se o
facto de os piores para o cargo estarem a exercê-lo e no seu próprio interesse. No meio,
dá-se o facto de a democracia representativa não passar de uma “fachada” ao serviço da
aristocracia.

b) O critério da competência

Qual é, então, o melhor modo de selecção dos representantes legislativos? Que


sistema devemos consagrar?6 Apresentarei sumariamente aqueles que considero serem os
principais argumentos a favor do critério da competência.
Antes de mais, temos o argumento da analogia com as profissões, presente n’A
República de Platão: se estivermos doentes e precisarmos de nos aconselhar com alguém
em matéria de saúde, procuraremos um especialista, o médico, sendo que a última coisa
que desejaremos será reunir uma multidão e pedir aos presentes que votem o remédio
certo; o mesmo deve acontecer com a “saúde” do Estado.
Podemos restringir a analogia às profissões exercidas no sector público: se o
acesso ao comum dos cargos públicos é efectuado com base na satisfação de critérios de
competência – e não por eleição –, então o mesmo deve ser feito relativamente aos cargos
públicos de governação. Não há razão alguma para diferenciar.
Observe-se que, enquanto, para Platão, o critério da competência nos dá uma
resposta ao problema de saber a quem cabe a titularidade do poder legislativo – pelo que
o que resulta é a defesa da aristocracia –, aqui, esse critério dá-nos uma resposta ao
problema de saber a quem cabe o exercício do poder legislativo – partindo do princípio
de que a titularidade do mesmo pertence ao povo. Utilizo um tal argumento, não para
rejeitar a democracia a favor da aristocracia, mas para rejeitar o sistema electivo a favor
do critério da competência.
Basicamente, aceito a reivindicação tradicional de que o sistema democrático deve
ser o acolhido por uma questão de princípio (dado, fundamentalmente, o valor da

6
Assumo a verdade da condicional ‘se é o melhor modo de selecção, então deve ser o consagrado’. E
assumo a verdade da proposição ‘o melhor modo de selecção é o que traz melhores consequências’.

[306]
autonomia da decisão: o que diz respeito à colectividade deve ser decidido pela
colectividade) e não tendo em conta as suas consequências (contra esta reivindicação
tradicional, ver Brennan, 20067), pois situo a ponderação de consequências ao nível do
exercício do poder legislativo, não da sua titularidade. Movo-me num contexto
democrático, não consistindo a minha posição numa defesa tanto da aristocracia como da
epistocracia.8
A este respeito, é de referir Cabral de Moncada, que concebe aquela forma de
governo, que não é propriamente aristocracia, que

significaria apenas a precedência ou colocação dos melhores (…) à frente do Estado,


no desempenho de quaisquer funções que estes possam ser chamados a desempenhar”,
sendo que “a razão desta precedência, como logo se vê, já nada terá que ver com
privilégios políticos de nenhuma classe, para se fundar somente no critério da
competência, do mérito e da virtude”, pelo que, “neste sentido, já não político, a
aristocracia virá afinal a ser tão compatível com a monarquia como com a democracia
e a república, só podendo redundar em maior utilidade para o bem-comum em ambas
elas.9

Complementarmente, temos um argumento de maioria de razão (‘se se pode o


mais, então pode-se o menos’): se se pode ser legislador sem se preencher requisitos de
competência, então pode ser-se médico, arquitecto, polícia, etc., sem se preencher
requisitos de competência. Ou, o que é equivalente, se não se pode ser médico, arquitecto,
polícia, etc., sem se preencher requisitos de competência, então não se pode ser legislador
sem se preencher requisitos de competência (‘se não se pode o menos, então não se pode
o mais’).
Se em todas as profissões exercidas no sector público tem de se preencher
requisitos de competência, por que razão isso já não será assim com os cargos
legislativos? Trata-se de uma profissão pública de especial responsabilidade que exige
ainda mais que só os mais qualificados para o lugar o possam exercer.

7
“(…) Others think we should value democracy the way we value a person, as an end in itself. But as we
saw over the past few chapters, arguments for these conclusions don’t work. This leaves us with a final
option. Perhaps democracy is valuable the way a hammer is valuable. It’s nothing more than a useful tool
(…)” (Brennan, 2016, p. 204).
8
Contrariamente a Platão, não defendo que só alguns são titulares do poder legislativo. Contrariamente a
Brennan, insurjo-me, desde logo, contra qualquer sistema electivo de selecção dos representantes
legislativos.
9
Moncada, 1966, pp. 196-197.

[307]
Acrescendo aos dois argumentos apresentados, há que dizer que o critério da
competência colmata todos os defeitos do sistema electivo. Um bom indicador de que um
determinado modo de selecção é o melhor consiste precisamente nessa aptidão para fugir
às objecções feitas ao sistema electivo. Aliás, os defeitos do sistema electivo resultam do
facto de não se seguir o critério da competência na selecção dos representantes
legislativos.
Por exemplo. Disse-se que, seguindo o modo de selecção por eleição, os
representantes não são necessariamente bons para desempenhar o cargo. Ora, o filtro da
avaliação da competência visa, por natureza, garantir que o cargo legislativo seja
desempenhado por quem tenha competência para isso. A crítica de que o sistema electivo
não garante o bom exercício do poder legislativo já tem subjacente a intuição de que essa
garantia deve existir.
Também se disse que quem vota não é necessariamente informado ou racional nas
suas decisões e que a força da publicidade e da retórica se sobrepõem à força da
racionalidade e da dialéctica. De acordo com o critério da competência, os parâmetros
fixados para o exercício do cargo visam, precisamente, assegurar de que a selecção é
racional e informada, assente nos factores relevantes.
E, embora não haja total garantia de que o representante selecionado de acordo
com o critério da competência vá exercer correctamente (tanto tecnicamente como
eticamente) as suas funções, este não terá razões especiais ou externas ao seu cargo (que
não as puramente pessoais) para ter em atenção outros interesses que não o dos
representados, contrariamente ao representante eleito.
E isto é assim para qualquer profissão: não há total garantia de que os médicos
façam o seu trabalho competentemente, que não sejam negligentes, que não deixem de se
preocupar pelos pacientes, etc.. Mas para fazer face a isto é que existem instrumentos
jurídico- deontológicos adequados, o mesmo devendo acontecer para a prática legislativa.

c) Representação e divisão do trabalho

Gostaria de ir mais longe e defender que democracia representativa não só não


implica eleição por voto como implica mesmo selecção dos representantes com base no
critério da competência. Tal acontecerá porque, de uma maneira geral, a representação
pública se insere numa lógica de divisão ou especialização do trabalho, nomeadamente,
da divisão entre trabalho privado e trabalho público.

[308]
Alego, portanto, que em todas as actividades profissionais públicas há
representação, pelo que o modo de selecção dos funcionários públicos – o processo de
contratação pública – já é um modo de selecção de representantes. Como tal, de facto, o
critério da competência já é usado para seleccionar os representantes do povo.
Suponhamos que são funções do Estado, isto é, da colectividade, por exemplo, o
ensino e a assistência médica, providos lado a lado com o ensino privado e a assistência
médica privada. Se assim for, então toda a comunidade – todos os cidadãos – devem
prestar esses serviços. Porém, não é isso que se observa: a maioria dos membros de uma
comunidade não exerce cargos públicos.
O que se passa, então? Estamos perante um mecanismo de representação da
colectividade: os professores públicos representam a colectividade quando se trata de
exercer a função estadual de ensinar; os médicos públicos representam a colectividade
quando se trata de exercer a função estadual de dar saúde; etc.. Em geral, os funcionários
públicos são representantes de todos os cidadãos, nomeadamente, dos que, por se
dedicarem à actividade privada, se encontram ausentes do sector público.
Como refere Pitkin, no contexto da análise e apreciação da tese da Organschaft
(desenvolvida por Gierke e Jellinek no início do séc. XX), qualquer pessoa que exerça
uma função pela colectividade pode ser vista como seu representante (tanto os carteiros
como os juízes e os embaixadores representam o Estado), pelo que, obviamente, os
representantes, definidos desta maneira, não precisam ser eleitos: o modo de selecção é
irrelevante desde que sejam “órgãos” do grupo – os representantes eleitos não diferem de
estatuto daqueles que são selecionados de outro modo.
Ora, os representantes legislativos são os especialistas a quem deixamos o trabalho
legislativo. A razão de ser para a representação legislativa tem de ser a mesma para a
representação pública em geral: por um lado, a indisponibilidade de cada cidadão para
exercer a parte do poder legislativo que lhe cabe, por se ter especializado numa qualquer
actividade (em regra, privada); por outro lado, a dedicação exclusiva à actividade
legislativa por parte de certos indivíduos, de maneira a garantir os maiores e melhores
resultados, de acordo com os critérios de maximização da eficiência e qualidade da
produtividade próprios da divisão do trabalho10.

10
Kelsen, por exemplo, também aceita a verdade da condicional ‘se há lugar à representação legislativa,
então há lugar à divisão entre trabalho público e trabalho privado’. Como afirma, “differentiation of social
conditions leads to a division of labour not only in economic production but within the domain of the
creation of law as well” (Kelsen, 1949, p. 289). Já Rousseau aceita a verdade da condicional equivalente,
‘se não há lugar à divisão entre trabalho público e trabalho privado, então não há lugar à representação

[309]
Assim, mais do que por mera impraticabilidade da democracia directa – que
sempre se pode contornar, ainda para mais com os meios tecnológicos de que dispomos
–, é mesmo por força da divisão ou especialização do trabalho que o sistema
representativo acaba por ser implementado.
Retomando a questão levantada no início, efectivamente, não há um verdadeiro
problema relativo ao modo de selecção dos representantes que deve ser o consagrado:
logo à partida, a própria razão de ser da representação legislativa é garantir que se tem os
mais competentes a exercê-la.
Isto explica o aparente (chamar-lhe-ei assim) paradoxo da abstenção, de acordo
com o qual as elevadas taxas de abstenção tanto podem revelar que os representados não
querem ter o encargo de decidir quem os representa (mas querem ser representados) como
podem revelar a crescente insatisfação dos representados relativamente à actuação dos
representantes eleitos (o que parece indiciar que não querem ser representados): os
cidadãos querem ser representados mas querem ser bem representados. O problema não
está no sistema representativo: está no sistema electivo.

Conclusão

A minha proposta não consiste numa posição incondicional relativamente à defesa


do critério da competência: defendo, sim, que é verdade que, se for adoptado um sistema
de democracia representativa, então é (deve ser) adoptado o modo de selecção dos
representantes assente na competência para o exercício da função legislativa.
O argumento da analogia com as profissões deve ser enquadrado nesta
perspectiva: se a selecção dos representantes nas várias funções do Estado é efectuada
com base na satisfação de critérios de competência – e não por eleição –, então o mesmo
deve ser feito relativamente à função legislativa. Se os professores e os médicos públicos,
que representam o todo da colectividade, são selecionados de acordo com o critério da

legislativa”. Como diz, “logo que o serviço público deixa de ser a principal tarefa dos cidadãos e que eles
preferem servir com a bolsa a servirem com a sua pessoa, o Estado já está próximo da ruína” (Rousseau,
2003, p. 95). Observa que, se é preciso combater, “pagam tropas e ficam em casa” e, se é preciso ir ao
conselho, “nomeiam deputados e ficam em casa”: “à força da preguiça e do dinheiro, têm finalmente
soldados para sujeitarem a pátria e representantes para a venderem” (idem, p. 95-96). Rousseau, mais do
que criticar a “democracia representativa” de Hobbes, criticava efectivamente a verdadeira democracia
representativa, com base na sua “aversão” à divisão entre trabalho público e trabalho privado. Porém,
Rousseau julgava tratar-se da mesma crítica, por não distinguir transmissão da titularidade do poder
legislativo (a que existe no modelo hobbesiano) de transmissão do exercício do mesmo (a que existe nos
sistemas de democracia representativa). É que a titularidade pode ser intransmissível sem que o exercício
o seja.

[310]
competência, então os legisladores, que também representam o todo da colectividade,
também devem ser selecionados pelo mesmo critério.
Dada a condicional apresentada, os argumentos que podem ser usados contra a
minha proposta são, afinal, argumentos contra o próprio princípio representativo, a favor
da democracia directa, que podem ser generalizados a qualquer função pública.
Veja-se, paradigmaticamente, o ‘argumento do sábio iluminado’. Pode
argumentar-se que a minha proposta pressupõe que há um conjunto restrito de “sábios
iluminados” especialmente aptos para decidir o que legislar, o que é, dir-se-á, uma
pressuposição elitista.
Mas a pressuposição apontada não reside na minha proposta; é inerente à adopção
de uma democracia representativa: se há representantes, já estamos a colocar certos
indivíduos numa posição “privilegiada” para o exercício da actividade legislativa; se
estamos a seleccionar um grupo restrito de pessoas para legislar, já estamos a descriminar.
Ora, o que defendo é que, já que estamos a descriminar, ao menos que o façamos
com base em boas razões. Aliás, a exigência de que o candidato a representante legislativo
faça prova da sua competência para o cargo implica uma desconfiança quanto à existência
de sábios naturalmente iluminados: é a formação para o exercício da função legislativa
que garantirá a respectiva competência.
Se se considera a seleccão de um grupo restrito de pessoas para legislar
(injustificadamente) elitista, então estar-se-á a defender que não deve haver democracia
representativa de todo: a substituição da vontade do povo pela vontade de “sábios
iluminados” nunca se encontrará justificada ou legitimada, porquanto será
discriminatória.11
Isto é: se ‘democracia’ significa ‘o sistema no qual a titularidade e o exercício do
poder legislativo pertencem ao povo’, então um sistema no qual se selecione somente
alguns indivíduos para exercer o poder legislativo com base na sua competência para tal
é tão anti-democrático como um sistema no qual se selecione somente alguns indivíduos
para exercer o poder legislativo com base numa eleição.
Poder-se-á defender que há, não uma impossibilidade normativa, mas uma
impossibilidade de facto de se restringir o exercício do poder legislativo aos que possuem
competência para tal: sempre se pode dizer, tal como o fazem os teóricos da Organschaft,

11
De acordo com este entendimento, não haverá diferença (pelo menos, valorativa) entre um sistema
aristocrático (no qual a titularidade do poder legislativo se encontra em alguns indivíduos) e um sistema de
democracia representativa (no qual o exercício do poder legislativo se encontra em alguns indivíduos).

[311]
que a função legislativa se distingue das demais funções do Estado por implicar um querer
ou determinar pela vontade, e que isto justifica a não-adopção do critério da
competência.12
Mas, mais uma vez, isto constitui uma objecção ao sistema representativo, não ao
critério da competência: se o facto de estar implicado um querer ou determinar pela
vontade impede que haja representantes seleccionados com base na competência, impede,
também, desde logo, que haja representantes seleccionados por qualquer outro modo: está
a defender-se que não é simplesmente possível fazer substituir a “vontade geral”.
É de notar que se pode defender a insubstituibilidade da “vontade geral” com base
na aceitação do critério da competência. Aqui, considera-se que a pressuposição de que
há um conjunto restrito de “sábios iluminados” especialmente aptos para decidir o que
legisla é errada. É este o entendimento (um dos entendimentos) de Rousseau: a vontade
geral é a mais competente para decidir relativamente aos assuntos comuns.13

12
Já Rousseau havia dito que “a soberania não pode ser representada pela mesma razão por que não pode
ser alienada”, visto que “ela consiste essencialmente na vontade geral, e a vontade geral não se representa:
é a própria ou é outra; não existe meio-termo”. Ora, “dado que a lei é a declaração da vontade geral, é claro
que no poder legislativo o povo não pode estar representado (…)”, pelo que, “examinando bem as coisas,
se acharia que muito poucas nações têm leis” (Rousseau, 2003, p. 97).
13
O argumento avançado por Rousseau é, como já se percebeu faz algum tempo, falacioso, por estar a ser
aproveitada a ambiguidade da frase ‘Todos sabem o que é melhor para si’: a proposição ‘cada um sabe o
que é melhor para si’ até pode ser verdadeira sem que daí decorra a verdade da proposição ‘o conjunto dos
indivíduos sabe o que é melhor para a colectividade’.

[312]
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[314]
17. A DEMOCRACIA E A REFORMA DO ESTADO PÓS-MODERNO

Rui Miguel Zeferino Ferreira1

Resumo: Na contemporaneidade é uma realidade insofismável que a democracia tem


mostrado dificuldades em promover o interesse público, especialmente em salvaguardar
os interesses das gerações futuras. Este deve ser o ponto de partida para discutir a
democracia real e não aquela que foi idealizada e que utopicamente vem sendo defendida
por determinados setores da sociedade. Nestas circunstâncias, convém notar que, por um
lado, a democracia deveria promover o interesse público e, por outro, que o seu
funcionamento baseia-se num sistema político-eleitoral que deveria expressar a vontade
da maioria da sociedade e legitimar os eleitos para o exercício dos cargos políticos. Num
primeiro grupo de questões importa clarificar o que devemos entender por interesse
público. Neste ponto pretende-se analisar a falta de conexão entre o pagamento e o
consumo de bens públicos; a questão da maximização dos resultados eleitorais; do
condicionamento dos comportamentos motivado pelos ciclos económico-políticos e dos
interesses das gerações presentes e futuras. Num segundo grupo de questões analisa-se a
democracia na ótica do problema dos recursos comuns; da troca de votos e do dilema da
não cooperação. Posteriormente são analisados os principais bloqueios políticos que estão
na origem da crise da democracia. Por último, avança-se no sentido que a democracia
pós-moderna exige cooperação e competição, aplicando-se a cooperação às políticas
estruturais de longo prazo e reservando-se a competição e a ideologia para as políticas de
curto prazo. Em síntese, mostrar-se a essencialidade da reforma do Estado, tanto do
Estado de bem-estar como das instituições públicas, com o objetivo de recentrar as
soluções para a democracia na implementação da meritocracia; da transparência; da
eficiência e na celebração de um novo contrato social, que não resulte da imposição de
uma visão única da sociedade, nem imponha injustificadamente poderes a determinados
grupos da sociedade em detrimento de outros.

Palavras-Chave: Democracia; Estado; Interesse público; Constitucionalismo; Pós-


modernidade.

1
Doutorando em Direito, pela Universidade de Santiago de Compostela. Investigador na Universidade de
Santiago de Compostela. Investigador-Colaborador Estrangeiro no grupo de investigação “Teoria Jurídica
do Mercado” da Universidade Presbiteriana Mackenzie (São Paulo/Brasil). Advogado. Juiz-Árbitro no
Centro de Arbitragem Administrativa.

[315]
Introdução

O presente artigo adota uma perspetiva político-económica, bem como


constitucional, isto porque embora não se discuta o problema na ótica das finanças
públicas, é inegável que os problemas do défice orçamental, défice da balança de
pagamentos, dívida pública e dívida externa são resultado dos erros e deficiências do
sistema democrático e do nível de intervenção do Estado. Por isso, faz todo sentido que
nos debrucemos sobre a democracia e o Estado sob essas perspetivas.
Na atualidade existe um número crescente de perigos e de temores que recaem
sobre os indivíduos, que foram paulatinamente surgindo nas últimas décadas com a
evolução política nos países ocidentais. Neste sentido, pretende-se construir as
necessárias “pontes” para novas soluções de democracia, que partem do pressuposto que
este modelo é o único que permite a pacífica substituição de uns governantes por outros.
A designada crise democrática parte do número cada vez maior de críticas ao seu modo
de funcionamento e atuação, o que vem representando um motivo de grande preocupação
no início do corrente século. A atual situação resultou em grande parte da incorreta e
perversa utilização do sistema democrático,2 uma vez que foi instrumentalizado com o
escopo de justificar a licitude de quaisquer objetivos que os governos entendessem
prosseguir. Como anteriormente se afirmou:

É pois necessário, ainda que tal possa parecer um projeto utópico, transformar o
modelo democrático, sob pena da instituição democrática entrar em colapso, pelo que
se torna fundamental eliminar os defeitos do sistema democrático, para que as suas
inegáveis vantagens possam evidenciar-se de modo mais evidente e notório.
(FERREIRA, 2016, p.72)

Neste sentido, começaremos por analisar as razões que subjazem ao sentimento


dos cidadãos quanto ao incumprimento do interesse público por parte do Estado, para aí
se analisar as questões da falta de conexão entre o pagamento e o consumo de bens
públicos, da maximização dos resultados eleitorais, do condicionamento dos

2
Neste sentido veja-se FERREIRA, R. M. Z. (2016) “A crise do sistema democrático ocidental: A
degradação da confiança dos jovens nas instituições democráticas”, in GONÇALVES, R. M. (coord.)
Administración Pública, Juventud y Democracia Participativa, Santiago de Compostela: Xunta de Galicia,
p.72.

[316]
comportamentos motivado pelos ciclos económico-políticos e dos interesses das gerações
presentes e futuras. Em seguida, em outro ponto, será analisada a democracia na ótica do
problema dos recursos comuns, da troca de votos e do dilema da não cooperação, para
em seguida se perspetivar os principais bloqueios políticos decorrentes do funcionamento
dos partidos políticos, do modelo constitucional fomentador do descontrolo nas finanças
públicas, do modelo de organização administrativa e do sistema eleitoral.
A identificação destes problemas levará a construir o entendimento que a
democracia do Estado pós-moderno, fortemente influenciado pelos fenómenos da
globalização, do comércio internacional e da revolução tecnológica terá de exigir a
cooperação e a coordenação, e não apenas a competição, que em alguns casos se aproxima
da “guerrilha” política. Ora, a competição expurgada da referida ideia de “guerrilha”
política deve ser reservada para as políticas de curto prazo, como forma de evitar a
instabilidade causadora da fragilização da democracia. Neste panorama a reforma do
Estado mostra-se essencial, devendo a mesma abranger a discussão sobre o Estado de
bem-estar ou Estado social, mas igualmente sobre as instituições públicas e os modelos
constitucionais e de organização administrativa, ultrapassados num contexto de Estado
pós-moderno. O objetivo deverá ser o recentrar das soluções para a existência de uma
democracia baseada na meritocracia, na transparência, na eficiência e na simplicidade, o
que implicará a celebração de um novo contrato social, que não resulte da imposição de
uma visão única da sociedade, nem conceda injustificadamente poderes a determinados
grupos da sociedade em detrimento de outros.

1. A democracia e o interesse público dos indivíduos

A democracia tem vindo a demonstrar dificuldades em promover o interesse


público, em especial quanto à salvaguarda dos interesses das gerações futuras, que vêm
sendo comprometidos por via do descontrolo das finanças públicas. Estas dificuldades
têm promovido a degradação da confiança dos indivíduos no sistema democrático, que
têm a sua génese na atuação do Estado e dos seus governos, cujas opções ainda que
legitimadas democraticamente têm originado efeitos não desejados pelos indivíduos. A
evolução que se tem verificado tem promovido o afastamento dos indivíduos da política,
tanto na participação eleitoral como na vida política partidária, por não verem as suas
legítimas expetativas representadas e prosseguidas pelos seus representantes. Assim,
importa que nos debrucemos sobre as causas que constituem dificuldades à prossecução

[317]
do interesse público, questionando sobre a existência de outros modelos de democracia
admissíveis para o século XXI.
Importa ver as causas da crise democrática para que seja possível continuar a fazer
evoluir e a defender a democracia, o que não pode ser conseguido sem críticas ao seu
modo de funcionamento atual, uma vez que dele tem resultado o enfraquecimento do pilar
da liberdade individual dos indivíduos integrados em cada comunidade.
Como afirma alguma doutrina portuguesa “há uma confusão frequente entre
aquilo que se desejaria que [a democracia] fosse e aquilo que ela de facto é”.3 Na verdade,
por um lado, a democracia deveria promover o interesse público da sociedade enquanto
comunidade coletiva, quanto aos bens que não podem ser fornecidos pelo mercado. Por
outro, o seu funcionamento baseia-se em eleições e votos, que expressam a vontade da
maioria da sociedade, atribuindo legitimidade aos eleitos para o exercício dos cargos, mas
que vem abandonando a natureza de intervenção limitada na economia e na sociedade,
em consequências das correntes keynesiana e socialista. Com estas considerações não se
pretende colocar em causa a democracia, pois segue-se o entendimento expresso por
FRIEDRICH A. HAYEK, segundo o qual a democracia corresponde ao único sistema
político que permite pacificamente a escolha e a substituição dos governantes4. Contudo,
tem-se vindo a agudizar a crise do sistema democrático, muito porque o sentimento da
sociedade vai no sentido que o contrato social está a ser violado pelos políticos, o que
gera a denominada instabilidade democrática.
A primeira questão que importa analisar passa por perceber o que devemos
entender por interesse público, isto porque, por um lado, temos os que sustentam que será
aquilo que é defendido pela maioria, que independentemente de não ser a vontade de
todos, será aquela que resulta da maioria expressa em eleições. Por outro, temos aqueles
que defendem que corresponderá ao resultado de um processo que termina com a decisão
política, onde se dá maior importância às condições de deliberação prévias à decisão final.
Esta segunda posição é aquela que tem sido maioritariamente seguida. Acresce que na
atualidade muitas decisões políticas são tomadas num ambiente de incerteza, em que não
é possível com rigor saber qual seria o efetivo interesse público, o que nos conduz ao
perigoso campo movediço das probabilidades. Quando se entra neste campo movediço o
decisor político corre o risco de não atuar conforme aos desejos e às aspirações dos

3
PEREIRA, P. T. (2012) Portugal: Dívida Pública e Défice Democrático, Lisboa: Fundação Francisco
Manuel dos Santos, n.º 24, p.63.
4
HAYEK, F. A. (1982) Derecho, legislacion y libertad, Vol. III [s. l.]: Union Editorial, S.A.

[318]
indivíduos que compõem uma determinada comunidade política, pelo que em certas
matérias será necessário encontrar formas adequadas para conhecer o efetivo interesse
público dos indivíduos, de modo a permitir que as suas decisões políticas representam a
vontade da maioria. Neste contexto, deve-se igualmente ponderar que os resultados
eleitorais são cada vez menos representativos, quando se verifica que a taxa de abstenção
de participação eleitoral se aproxima em muitos casos dos 60%. Efetivamente, o
fenómeno é hoje o inverso, em que a representação não é da maioria da sociedade, mas
da minoria, o que subverte os ideais do modelo democrático. Por isso, em face da
inexistência de modelos perfeitos, julga-se que a democracia “ideal” exige que a tomada
da decisão política, sobretudo em relação a projetos com impacto estrutural, implique um
efetivo escrutínio público.
Além disso, essa tomada de decisão implica a existência de processos
transparentes, tanto quanto à decisão em si mesma como aos procedimentos preliminares
e instrutórios que a ela conduzirão. Adicionalmente, o processo decisório deve garantir a
imparcialidade dos intervenientes, bem como estar suportado em estudos sobre os
impactos presentes e futuros. É que, os impactos para o futuro devem estar previstos e,
bem assim, salvaguardadas as gerações futuras face às consequências que derivam de
fenómenos como as dívidas ocultas e implícitas, que geram para essas gerações
responsabilidades financeiras e sociais elevadas. Para tanto, é necessário devolver aos
indivíduos enquanto membros de uma comunidade política a discussão livre, ponderada
e argumentativa das vantagens e desvantagens das decisões políticas estruturantes da
sociedade atual e futura.

2. Causas impeditivas da promoção do interesse público

Neste quadro geral, existem várias causas que levam a que a decisão política ainda
que aparentemente democrática não promova o interesse público, podendo-se encontrar,
por um lado, causas ligadas à atuação dos partidos políticos e, por outro, causas com
distinta origem. Por isso, importará estudar individualmente a falta de conexão entre o
pagamento e o consumo de bens públicos; o objetivo da maximização dos resultados
eleitorais; o condicionamento dos comportamentos motivado pelos ciclos económico-
políticos; as causas decorrentes dos interesses das gerações presentes em detrimento das
gerações futuras; os obstáculos no acesso à informação; a atuação dos grupos de interesse;
o problema resultante dos recursos comuns; o problema da troca de votos e a causa
resultante do fenómeno do dilema da não cooperação.

[319]
2.1 A falta de conexão entre o pagamento e o consumo de bens públicos

A falta de conexão entre o pagamento e o consumo de bens públicos, é uma causa


que leva à não promoção do interesse público, como resultado do pagamento dos bens
públicos e o seu efetivo consumo ou utilização ocorrerem em momentos distintos, bem
como resultado da possibilidade de esse pagamento não vir efetivamente a dar origem à
utilização de quaisquer bens públicos. Na realidade, diferentemente do que se passa com
os bens privados em que o pagamento dá lugar imediatamente a um benefício, com os
bens públicos muitas vezes esse benefício só ocorre posteriormente e não com base nos
seus próprios pagamentos, mas com base nos pagamentos de terceiros indivíduos.
Também, por várias vezes o benefício futuro não tem representação adequado nos
sacrifícios no pagamento a que foram os indivíduos sujeitos, nem nas restrições que esses
pagamentos deram causa na sua própria liberdade individual. Acresce ainda, a
circunstância do sujeito (indivíduo) que paga por uma suposta e hipotética vantagem
futura ser diferente daquele que o consome, o que origina o problema da boleia da
contribuição fiscal alheia, em que a evasão fiscal não determina a perda do direito ao
acesso a bens públicos, uma vez que mesmo que os indivíduos não tenham contribuído
terão no futuro acesso de modo igual aos mesmos bens públicos.

2.1 A maximização dos resultados eleitorais

A maximização dos resultados eleitorais tem por objetivo último não a satisfação
do interesse público dos indivíduos e da sociedade, mas o próprio interesse dos políticos
e das vantagens que advêm diretamente para si da conquista do poder, o que exige a
obtenção de votos e a arregimentação de apoios e interesses de certos grupos da
sociedade. Este modo de atuação vem subverter os princípios do sistema democrático, em
particular quando tais fins são conseguidos através do défice público. Por isso, não está
em causa qualquer ideia de consciência ou justiça social, mas a simples ideia de conquista
do poder.
O objetivo da conquista de poder é conseguido por via da realização de despesa
pública do agrado dos eleitores e em especial dos grupos de interesse, levando a que os
menos informados não compreendam as consequências futuras, em especial ao nível do
aumento dos impostos e da redução de benefícios. Na verdade, os fenómenos de aumento
de despesas e de redução da carga de impostos são em épocas eleitorais usuais, por serem
apreciadas pelos eleitores. Este modo de atuação irá traduzir-se em vantagens nos

[320]
resultados dos escrutínios eleitorais para os partidos e políticos que asseguram este tipo
de comportamentos, o que demonstra igualmente um défice de informação e de educação
dos eleitores, uma vez que não compreendem que o aumento das despesas no presente
terá um efeito de aumento de impostos no futuro. Este tipo de comportamento tem ainda
a consequência de agravar o défice entre a geração atual e a futura, com a transferência
de dívidas implícitas para as futuras gerações. Isto encerra uma perspetiva de observação
de curto prazo, quando democracia exige que todos os seus atores tenham uma visão a
longo prazo, de modo a não comprometer as gerações futuras. Como advertia
BENJAMIN CONSTANT5, a democracia representativa do Estado moderno exigia um
elevado grau de educação para que o seu funcionamento fosse adequado, porém, na
atualidade é visível que alguns subverteram o seu funcionamento exatamente por falta
desse suporte educacional e cultural.

2.2 Os ciclos económico-políticos

Os ciclos económico-políticos também têm o efeito de não promoverem a


prossecução do interesse público dos indivíduos e das comunidades em que se encontram
inseridos. Isto sucede porque os ciclos económicos de crescimento ou de retração estão
associados e são afetados pelos períodos eleitorais. Como consequência do modo de
funcionamento da democracia, quanto à lógica da captura de votos e ao modelo eleitoral,
promove-se a existência de políticas expansionistas nas épocas próximas de eleições, com
aumento das despesas públicas e a redução da carga tributária. Seguidamente, após os
interessados ascenderem ao poder o ciclo inverte-se, passando a adotar-se medidas
restritivas, que passam pela redução nas despesas públicas e o aumento dos impostos.
Assim, os ciclos eleitorais comandam as decisões de política económica e o
funcionamento da democracia, porque é este tipo de atuação que permite aos atores
políticos vencer eleições, que beneficiando da falta de informação e de conhecimentos do
eleitorado subvertem o funcionamento idealizado da democracia.

2.3 As políticas de curto prazo

As políticas dos governos assentam numa visão de curto prazo, com uma
amplitude reduzida a determinados caminhos, que não têm promovido o interesse
publico, em especial numa lógica de longo prazo. Na realidade, o interesse público não

5
CONSTANT, B. (2016) A Liberdade dos Antigos comparada com a dos Modernos, Silveira:
BookBuilders.

[321]
pode ser visto apenas sob a perspetiva das gerações atuais, uma vez que o Estado tem o
dever e a obrigação de salvaguardar e defender as gerações futuras, de modo a que não
herdem uma realidade comprometida, e uma democracia enfraquecida e em
desmoronamento político, económico e sociocultural. Assim, a subversão do sistema
democrático, a visão imediatista de curto prazo e a lógica de poder eleitoralista tem
conduzido a uma inaptidão do Estado para lidar com o problema intergeracional.
Na atualidade não existem dúvidas que a geração futura será severamente afetada
pela atual, sem que possa posicionar-se pelo voto. São exemplos deste problema as
alterações climáticas e o envelhecimento da população, que em conjunto agravam a
sustentabilidade dos sistemas da segurança social, decorrente do crescimento da dívida
implícita para as futuras gerações, uma vez que os contribuintes das futuras gerações
serão insuficientes para garantir o pagamento dos direitos sociais devidos à atual
população ativa e contribuidora. A estes problemas globais, junta-se no caso português,
a dívida pública, a dívida externa e os contratos com obrigações de longa duração, como
são as parcerias público privadas.
O problema intergeracional ocorre em grande medida pela visão de curto prazo
dos políticos e respetivos partidos, bem como da conjugação de alguns fatores. Em
primeiro lugar, do desconhecimento do alcance e dimensão do problema, o qual é
consequência de uma inadequada preparação da classe política atual. Em ligação a este
fator temos um segundo, que resulta da pouca relevância dada às questões éticas
intergeracionais. Por fim, o terceiro fator resulta do desfasamento temporal entre a
decisão política e os impactos económicos e sociais, existindo aqui comportamentos
temerários e irresponsáveis que levarão os políticos a considerar que os eventuais
problemas surgirão muito mais tarde, se ocorrerem, e que outros os deverão solucionar.
Daqui resulta a imputação e a transferência irresponsável de consequências e
competências para a sua resolução aos futuros governantes.

3. Outras causas de dificultam a prossecução do interesse público

Nos pontos anteriores identificaram-se as causas que sustentam que não esteja a
ser prosseguido o interesse público, as quais decorrem da atuação dos atores políticos e
dos partidos políticos. Porém, nem só a esses agentes se deve imputar a responsabilidade
da crise do sistema democrático e da não satisfação do interesse público. Assim, existem

[322]
outras causas que levam a que as decisões políticas não estejam de acordo com o interesse
público e que assim promovam a crise no sistema democrático.
Por um lado, existem cidadãos pouco informados, o que é consequência do custo-
benefício do acesso à informação, em face da pouca influência individual que cada eleitor
tem na decisão política. Efetivamente, o acesso à informação e ao conhecimento tem
custos elevados, bastando observar que muitos dos problemas atuais da democracia são
de natureza económica, o que exige o conhecimento das ciências económicas. Outro
problema a que estará associado tal desconhecimento, e que o justifica nas questões de
menor complexidade resulta dos escassos benefícios que advêm para o individuo desse
conhecimento. Em particular, no que concerne à influência que cada indivíduo tem sobre
o setor público, quer no Estado em sentido amplo, quer na governação. Logo, o elevado
custo-benefício individual promove que o eleitor tenha uma escassa informação e,
consequentemente, seja condicionado e capturado eleitoralmente pelas políticas
expansionistas. Estas circunstâncias conduzem a que os indivíduos deixem de lado as
preocupações políticas e o interesse na participação direta na construção democrática.
Por outro lado, a não prossecução do interesse público resultará ainda da
intervenção dos grupos de interesse, altamente organizados, quando comparados com a
ineficácia dos grupos latentes6. Na realidade, muitas medidas que seriam pela maioria da
sociedade e dos seus indivíduos tidas como positivas não são implementadas porque não
têm associadas a si grupos de interesse organizados, enquanto outras decisões políticas
que beneficiarão camadas restritas da sociedade são rapidamente implementadas fruto da
pressão dos grupos de interesse. Em face da organização da sociedade e do sistema
político, o sistema democrático acentuou o poder dos grupos de interesse, que beneficiam
do seu poder de influência político-económica sobre os partidos políticos. Como já
anteriormente se defendeu:

O sistema democrático acentuou o poder dos grupos de interesse, que procuram


transmitir os custos dos seus privilégios para os outros cidadãos ou grupos,
designadamente dos benefícios fiscais e sociais que recebem. Este facto tem levado a
que os “jogadores” com menos poder de influência no processo democrático fiquem
mais gravemente onerados. Outro dos problemas que é diagnosticável ao Estado

6
Os grupos latentes abrangem os interesses com incidência política não formalmente organizados, mas que
se encontram largamente difundidos na sociedade. Neste sentido veja-se: PEREIRA, P. T. (2001)
“Governabilidade, grupos de pressão e o papel do Estado, A Reforma do Estado em Portugal: problemas e
perspectivas”, in Actas do 1 Encontro Nacional de Ciência Política, Lisboa: Editorial Bizâncio/Instituto
Superior de Economia e Gestão – Universidade Técnica de Lisboa.

[323]
resulta da transferência de importantes blocos de poder para os grupos de interesse, e
não apenas a atribuição direta de benefícios e de vantagens, o que vem tendo como
consequência o crescimento desmesurado do Estado (FERREIRA, 2015, p. 10).

4. O dilema da não cooperação, a troca de votos e os recursos comuns

A democracia enfrenta ainda um conjunto de outros problemas que podemos


identificar como sendo o problema dos recursos comuns, da troca de votos e o resultante
do dilema da não cooperação. O problema dos recursos comuns resulta do facto de
aqueles que tomam as decisões ficarem titulares dos benefícios exclusivos de certas
políticas públicas, enquanto os seus custos são distribuídos pela globalidade dos
indivíduos e da comunidade, inclusivamente por quem não é beneficiado. Daqui resulta
o problema de que aquilo que é pago pela maioria dos indivíduos não tem
correspondência naquilo que vêm efetivamente a receber, pelo que os benefícios estão
concentrados em alguns privilegiados, enquanto os custos estão difusos por toda a
comunidade. Este é um problema facilmente visível com os investimentos constantes do
orçamento de Estado, quando um determinado investimento visa beneficiar uma concreta
comunidade, mas é financiado através dos impostos que são de toda a comunidade. Deste
modo, ocorre a imputação dos custos a todos os membros contribuidores de uma
comunidade quando apenas alguns deles serão beneficiados, dando-se um uso aos
recursos comuns que poderemos apelidar de privado.
Um segundo problema resultará da troca de votos, que tem na sua génese o facto
da lógica de poder implicar a existência de acordos políticos, associados a decisões que
não promovem a melhoria do bem-estar da sociedade, mas apenas garantem a
sobrevivência política de alguns. Ora, o problema não está no facto de existirem acordos
políticos, mas na circunstância dos mesmos não terem por escopo o bem-estar da
generalidade dos indivíduos, mas o projeto de poder privado e próprio dos decisores e
representantes políticos. Por isso, este tipo de acordos tem promovido que sejam adotadas
más soluções, contrárias ao bem-estar geral, criando um efeito negativo sobre o bem-estar
e o interesse público dos indivíduos e da comunidade.
Por fim, o mais sério problema resulta dos efeitos do dilema da não cooperação,
que funcionará de modo semelhante à conhecida teoria da economia política do “dilema
do prisioneiro”. Segundo o “dilema do prisioneiro” estamos perante um problema da
teoria dos jogos, em que se supõe que cada jogador, por si, quer aumentar ao máximo as

[324]
suas vantagens, sem ligar ao que sucede com os resultados dos demais jogadores. Nessa
ótica, a melhor opção seria a traição, porém, a teoria ensina-nos que o melhor resultado
seria obtido através da colaboração e não pela competição (traição). Isto porque, havendo
traição, o que naturalmente sucederá é que os demais jogadores também adotarão um
comportamento de traição como medida de retaliação. Assim, nenhum dos jogadores
maximizará os benefícios que resultariam da cooperação, nem obterão o benefício
máximo que resultaria da traição, que não é alcançado por todos adotarem o mesmo
comportamento.
No dilema da não cooperação ocorre exatamente o mesmo fenómeno, fruto da
incompreensão da existência de dois patamares de ação política, o constitucional
(institucional) e o parlamentar (político-competitivo), em que no primeiro deve existir
cooperação e coordenação, e no segundo a competição. Este facto deriva dos ciclos
políticos e dos processos eleitorais. Contudo, nas questões estruturais para o individuo e
para a comunidade deveria existir coordenação e cooperação, ao contrário do que sucede,
uma vez que se tem vindo a operar uma opção por uma visão de curto prazo, em prejuízo
das gerações futuras. Daqui resulta o aparecimento de governos minoritários, a
instabilidade política, a instabilidade económico-financeira e a sujeição à pressão e
influência dos grupos de interesse, que procuram promover a criação de despesa pública,
de isenções e de benefícios da mais variada espécie. Assim, o voto e a austeridade não
são conciliáveis num sistema democrático com o seu atual modo de funcionamento, em
que cada um dos intervenientes entende que lhe é mais favorável a não cooperação. Isto
é, em termos de votos obtêm aparentes ganhos, gerando aquilo que se poderá apelidar de
populismo democrático. Porém, na perspetiva não cooperativa ninguém ganha votos,
porque conforme resulta da teoria dos jogos, todos irão adotar uma política despesista,
conduzindo a que o resultado não seja o esperado. Logo, se todos os partidos
cooperassem, o nível de bem-estar social e a sustentabilidade das contas públicas acabaria
por ser melhor do que aquele que é na realidade.
Em democracia tudo é possível, boas e más decisões, crescimento e estagnação
económica, pelo que embora haja legitimidade democrática as decisões poderão não ser
conformes ao interesse público. Por isso, existe cada vez mais uma necessidade de
construir um modelo de democracia que garanta a efetiva deliberação pública por parte
dos indivíduos e da comunidade em que estão inseridos. É verdade que a quantidade e a
necessidade de decisões rápidas será no século XXI uma causa impeditiva dessa discussão
pública abrangente, mas será necessário optar e implementar modelos que promovam a

[325]
discussão pública nas questões estruturais. Esta circunstância exige que o sistema
democrático deste século seja dotado de instituições adequadas, que promovam a
cooperação e a coordenação, o que implica por sua vez a reformulação do contrato social,
de algumas leis estruturais e a criação de novas instituições.

5. Os entraves e condicionamentos políticos em democracia

Neste ponto importa perceber quais os entraves de natureza política ao


desenvolvimento da lógica de cooperação e coordenação, com vista ao desenvolvimento
do objetivo de prossecução do interesse público. O primeiro entrave resulta da existência
de partidos políticos fechados, o que provoca a ausência de deliberação pública sobre as
grandes reformas do Estado e a incapacidade para alterar o sistema eleitoral, o sistema de
financiamento partidário e o modelo de recrutamento político. Estes fatores têm
conduzido e sido a causa do afastamento dos indivíduos da política. Na realidade, os
partidos da governação foram-se desenvolvendo como clubes fechados em si mesmos,
como verdadeiras cotadas de alguns indivíduos, que surgem erroneamente como
defensores do Estado de bem-estar, ainda que para isso tenham conduzido o Estado a
crises económicas, financeiras e políticas. A trajetória seguida levará indubitavelmente
ao fim do Estado de bem-estar tal como hoje o conhecemos, sendo que os seus
responsáveis serão os mesmos que se afirmam seus grandes defensores.
Um segundo entrave resulta do modelo constitucional, o qual apesar de ter sido
severamente alterado no seu propósito inicial de caminhar para uma sociedade socialista,
assenta num papel pouco influente do presidente da República, ao contrário do que sucede
com a assembleia da Republica e o Governo. Deste modelo resulta um bloqueio pelo facto
da separação de poderes se mostrar incapaz de controlar os governos despesistas. Além
disso, apenas existe uma aparente separação de poderes, pois analisando-se as ingerências
entre o poder executivo e o legislativo é possível perceber que não existe uma verdadeira
separação de poderes. Na realidade, o modelo constitucional mostrou-se incapaz de
garantir os necessários freios e contrapesos à atuação dos governos, nomeadamente no
que se refere às grandes opções estratégicas do país ao nível do investimento e da gestão
do setor público empresarial. Neste sentido, a opção pela introdução de uma segunda
câmara mostra-se fundamental para garantir o controlo do poder executivo e legislativo.
O principal problema resulta da circunstância dos membros do órgão parlamentar
(poder legislativo) terem como grande preocupação a distribuição de favores a

[326]
determinados grupos de interesse, pouco preocupados com os indivíduos-eleitores e os
seus interesses. Esta é uma das consequências do mercado político e do problema da troca
de votos, em que as assembleias representativas para além de assumirem a função de
legislar vieram alargar a sua esfera de influência às funções de controlo do órgão
executivo de governo, que não o têm feito ou, pelo menos, têm sido coniventes com a sua
atuação. Este facto tem gerado uma confusão dentro deste órgão entre o poder legislativo
e o executivo, que estando imune a qualquer regra de controlo deu origem à subversão do
modelo democrático. Por isso, torna-se necessário a introdução de uma segunda câmara
ou assembleia que garanta o adequado controlo da câmara “baixa”, uma vez que esta deve
estar limitada na sua atuação no que respeita à atividade financeira. Como afirmado:

(…) as assembleias legislativas deverão limitar-se à elaboração das normas


respeitantes à referida espécie, permanecendo afastadas de todo o poder relacionado
com a adoção de normas dirigidas à obtenção de quaisquer objetivos concretos
(FERREIRA, 2016, p. 82)

O trabalho legislativo tem de consistir sempre no respeito sobre determinados


princípios e não apenas na mera adoção de decisões concretas, relativas à atuação
sobre certas questões. O verdadeiro trabalho deve estar ligado a uma perspetiva de
longo prazo, para além do que decorre da perspetiva constitucional, pelo que não deve
ser alvo de interrupções, mas somente sujeita a ajustamentos (FERREIRA, 2016,
p.82).

Por isso, a revisão do modelo constitucional deve passar pela introdução de uma
câmara “alta”, para a salvaguarda do sistema democrático, o que implicará a reformulação
da tradicional separação de poderes, para que resulte a consagração efetiva da
democracia.
O terceiro entrave resulta do modelo de organização administrativa vigente, cuja
reforma se encontra bloqueada. É evidente a inexistência de políticas regionais de
desenvolvimento, o que deriva das instituições existentes não terem um verdadeiro cariz
regional, além de estarem desprovidas das necessárias competências e recursos
financeiros. Tal tem sido motivado pelo facto de muitos dos organismos de intervenção
regional se tratarem de órgãos desconcentrados da administração central do Estado, que
desprovidos da necessária autonomia não têm conseguido promover o desenvolvimento
regional. Acresce que os atuais distritos, depois de mais de 170 anos de alterações
demográficas, apresentam-se desconformes à realidade. Esta circunstância tem impedido
[327]
qualquer alteração do sistema eleitoral, que se encontra dependente da reforma
administrativa, e que por sua vez condiciona a própria reforma dos partidos políticos, por
estarem estes diretamente ligados à estruturação administrativa do país.
Por fim, o quarto entrave resulta do sistema eleitoral fechado, que, por um lado,
se fundamenta na existência de listas restritas, em que poucos cidadãos podem aceder às
mesmas e, por outro, conduz a que a relação eleito-eleitor seja praticamente inexistente.
Esta realidade tem levado ao afastamento de eleitores e de pessoas válidas da atividade
política, com o consequente enfraquecimento da qualidade parlamentar. Assim, os
partidos políticos têm sido um dos principais responsáveis pela atual situação da
democracia, assente no problema geral e global da corrupção. A ela está associado o
problema da partidarização da administração pública, assente na lealdade política e não
no mérito, uma vez que do ponto de vista político se tem tentado furtar à existência de
avaliação sobre as políticas públicas, tratando os eleitores como verdadeiros súbditos, e
não informando a sociedade sobre a eficiência das políticas públicas empreendidas. Deste
modo, construiu-se um Estado paternalista, em que a democracia é utilizada apenas para
legitimar o poder de alguns, funcionando como um mero plebiscito, o que conduz à
adoção de soluções totalitárias, embora democráticas. Nas palavras de FRIEDRICH A.
HAYEK, a democracia “han degenerado en algún tipo de «dictadura plebiscitaria»”,7 pelo
que a crise da democracia tem origem em grande medida no seu modo de funcionamento
interno e nos seus atores políticos.
Em conexão com atuação dos partidos políticos encontra-se o problema das elites,
que sendo hoje inexistentes promoveram o surgimento do carreirismo político de fraca
qualidade intelectual. Neste âmbito, a intervenção das universidades também não tem
sido a mais adequada, levando a um cada vez maior distanciamento entre o Estado, a
administração pública e as universidades, o que tem sido favorecido pelo seu
envelhecimento, estatismo e entraves que colocam internamente à concorrência e à
competição universitária.
A democracia atual vive condicionada pelo sistema de partidarização política
instituído no final do século XX, o que tem conduzido a que as alterações no poder
político impliquem mudanças radicais nas políticas, na organização do Estado, nos órgãos
dirigentes e nas orientações ideológicas. A consequência das constantes alterações de

7
HAYEK, F. A. (1982) Derecho, legislacion y libertad, Vol. III [s. l.], Union Editorial, S.A., p.18, que cita
na sua obra HEIMANN, E. (1949) Rationalism, Christianity and Democracy, Heidelberg: Festgabe für
Alfred Weber, p.175.

[328]
correntes políticas tem sido a instabilidade política e, associada a ela, a instabilidade
económica, financeira e legislativa.
Este tipo de comportamento constitui uma versão minimalista de democracia, que
alegoricamente pode ser vista como uma guerra, em que aquele que a vence fica com o
prémio do poder e o espólio coletivo, enquanto os perdedores (derrotados eleitoralmente)
devem abandonar o jogo político até ao próximo ato eleitoral, sujeitando-se à linha
política seguida pelo partido vencedor. Contudo, a democracia não exige apenas
competição e debate politico-ideológico, mas, igualmente, cooperação e coordenação de
políticas. A visão de afastamento dos perdedores e de mera competição é inaceitável para
a democracia do século XXI, uma vez que deve ser pela cooperação que devem ser
estabelecidas as políticas estruturais de longo prazo. Apenas dessa forma será possível
obter a desejável estabilidade política, económica, financeira e social. A competição e o
debate ideológico devem ficar reservados apenas para as decisões políticas de curto prazo.
Ora, é a referida instabilidade que causa o enfraquecimento da administração pública, a
qual por sua vez enfraquece o Estado e fragiliza a democracia.

6. A reforma do Estado pós-moderno

Neste contexto, a crise na democracia do século XXI exige a reforma do Estado,


devendo a mesma começar pela revisão do Estado de bem-estar, o qual vem adulterando
o funcionamento do mercado quando deseja assegurar a redistribuição do rendimento, a
segurança e o acesso a bens públicos. Na atualidade, o modelo existente de Estado de
bem-estar é insustentável sob o ponto de vista económico e social. Tal sucede por dois
motivos, por um lado, devido a causas demográficas e, por outro, devido a causas
financeiras.
O descalabro das finanças públicas encontra os seus fundamentos na circunstância
do Estado ter pretendido modificar as condições normais do funcionamento do mercado,
com o escopo de garantir bem-estar a toda a sociedade, mas que devido ao crescimento
económico anémico tornou-se financeiramente insustentável. A sua insustentabilidade
financeira é agravada igualmente pela crise demográfica, de onde resulta o fenómeno do
envelhecimento populacional, que tem pelo menos o efeito de diminuir o número de
contribuintes para o dito Estado de bem-estar, promovendo, por um lado, a redução das
receitas para o seu financiamento e, por outro, o agravamento da pressão fiscal sobre a
população ativa e a evasão fiscal dos indivíduos-contribuintes que pretendem escapar ao

[329]
confisco do Estado. Por isso, torna-se necessário reformular o Estado de bem-estar,
encontrando o necessário equilíbrio e compatibilização entre o pilar da justiça (social e
fiscal) e o pilar da liberdade individual dos indivíduos. Pois, a partir do momento que se
implementou um modelo de “pater famílias distribuens”8 o Estado assumiu uma função
de direção e de interveniente económico, criando entraves e condicionamentos ao livre
desenvolvimento da liberdade individual.
Como se afirmou:

(…) talvez, nunca como hoje, se exija uma mudança tão radical de paradigma, pois, é
a própria sociedade que o exige e não determinadas classes sociais como aconteceu
em períodos históricos anteriores. Ademais, no Estado pós-moderno da globalização
e da revolução tecnológica, o indivíduo-contribuinte reivindicará para si um papel
cada vez mais ativo, fruto do entendimento que o paradigma dos novos tempos passa
pela diminuição da intervenção do Estado (…), como forma de restabelecer a plena
liberdade dos indivíduos (…). Desta “nova” construção resultará a liberdade da
sociedade civil, enquanto resultado da reunião das diversas liberdades individuais.
(FERREIRA, 2017, p.27)

Além disso, a simples reforma do Estado de bem-estar será insuficiente se as


instituições públicas não forem igualmente reformadas face aos novos paradigmas do
século XXI, em especial os decorrentes da globalização, do comércio internacional e da
revolução tecnológica. Neste âmbito, e em face das falhas existentes, quanto à
transparência das decisões políticas e à partidarização da administração pública, assume-
se como fulcral para além da introdução de uma câmara “alta” para a supervisão do poder
legislativo e executivo, a criação de uma instituição que supervisione as nomeações
políticas, à imagem do Office of the Commissioner of Public Appointments do sistema
inglês, que garanta procedimentos transparentes, abertos e justos. Esta instituição deverá
ter ainda a missão de verificar a existência de conflitos de interesses, de reforçar a
meritocracia, de melhorar a qualidade dos gestores e da sua gestão, com vista à redução
do desperdício de recursos financeiros.
No âmbito do desenvolvimento da meritocracia, elemento essencial para o
desenvolvimento e sustentação dos regimes democráticos, torna-se hoje fundamental
promover a introdução da regra da diferenciação pelo mérito na administração pública.

8
É possível encontrar o desenvolvimento do conceito de pater famílias distribuens em MARBACH. F.
(s.d.). Zur Frage der wirtschaftlichen Staatsintervention. Bern: A. Francke AG, p.56.

[330]
Isto implica uma avaliação efetiva, a qual não deve comportar um procedimento pesado,
excessivo e burocrático. Neste contexto, a academia deve ser chamada a desempenhar o
seu papel de formação da administração pública, bem como de criação de uma elite que
garanta a existência de um setor público de elevada qualidade técnica, embora de
dimensão mais reduzida. Com esse escopo, o Estado deverá promover a formação dos
cargos dirigentes mais elevados da administração pública, através da convocação do
ensino universitário para a criação de uma escola de altos estudos da administração.
Assim, a democracia exige ganhos de eficiência no setor público, o que implica uma
adequada formação, mas também a existência de mobilidade, de concorrência e de mérito
no seio da administração pública, o que vem sendo dificultado pela ação dos partidos
políticos e dos grupos de interesse. Ora, uma das formas de contornar estas últimas
dificuldades - mobilidade, concorrência e mérito - passa por promover a implementação
da mobilidade obrigatória.
A reforma do Estado deve ainda, por um lado, garantir a transparência e o acesso
à informação produzida pelos serviços administrativos, nomeadamente, pela introdução
do princípio que a transmissão da informação é obrigatória e sujeita a divulgação no sítio
eletrónico de cada entidade. Além disso, deve ser promovida a convocação da academia
universitária para estudar a informação disponibilizada e avaliar as opções adotadas no
que respeita às despesas públicas e às políticas públicas empreendidas, com a
possibilidade de serem apresentadas propostas e relatórios quanto à sua eficácia e
eficiência, face aos seus objetivos de equidade e de garantia do interesse público. Por
outro lado, tendo em conta os problemas gerados pela instabilidade política – programa
ideológico e políticas públicas – a reforma do Estado deve garantir a clarificação e a
estabilidade na estrutura do Estado, independentemente dos ciclos político-eleitorais, bem
como distinguir o grau de autonomia na gestão, em função da capacidade desses
organismos para gerar receitas próprias. Isto é, deve existir uma relação direta entre a
autonomia financeira e a jurídica, de modo a evitar os fenómenos de desorçamentação.
Estas medidas apresentam-se como fundamentais para fazer face ao défice
democrático, em resultado do facto de a democracia não ter conseguido dar a segurança,
a justiça social, a estabilidade e o crescimento económico prometido e desejado pelos
indivíduos e, bem assim, por inexistirem instituições que promovam a cooperação e não
apenas a competição, de modo a assegurar a estabilidade das políticas estruturais. Isto
tem levado ao bloqueio da democracia e à obtenção de resultados insatisfatórios, pelo que
se torna necessário para além de reinventar o Estado, fazê-lo também com a democracia.

[331]
Neste contexto, deve ser revisto o contrato social edificado com a Constituição da
Republica Portuguesa de 1976, face aos seus resultados insatisfatórios. É possível tudo,
mas se a democracia não for alterada os problemas estruturais manter-se-ão, o que
implicará no futuro a existência de novas crises e intervenções internacionais.
A mudança implica consensos, os quais deverão ser constitucionalizados para
garantir a necessária estabilidade. É, pois, necessário cooperar em tudo aquilo que seja
extraordinário, de modo a obter amplos consensos, deixando a competição reservada para
o jogo político das decisões ordinárias. Isto implica a criação de restrições ao jogo
político, como forma de limitar a imputação de responsabilidades financeiras pesadas às
futuras gerações. Além disso, o contrato social deverá garantir a não imposição de uma
visão única da sociedade, que não imponha um modelo à minoria e vice-versa, nem
imponha injustificadamente poderes a determinados grupos da sociedade em detrimento
de outros. Logo, importará ainda reduzir a dimensão da Constituição aos seus elementos
essenciais, retirando o seu excessivo conteúdo programático, não como uma restrição de
direitos, mas antes como uma forma adequada de diminuir os litígios, tanto políticos como
judiciais, e de a tornar mais flexível e adaptável à realidade do Estado pós-moderno, da
globalização e da revolução tecnológica.

7. Conclusão

Em face do estudo constante dos pontos anteriores, que assumiram uma perspetiva
constitucional e político-económica, torna-se patente as falhas, os erros e as deficiências
do sistema democrático e do modelo de intervenção do Estado. Contudo, quando se
debate a democracia e o Estado não se deve apontar para um concreto modelo de
sociedade, que é um assunto de natureza ideológica, e que por isso deve ficar reservado
para o debate parlamentar. Pelo contrário, o que se sustenta ao longo do texto é a
necessidade de salvaguardar as gerações futuras, estabelecendo limites àquilo que as
gerações atuais podem impor às gerações futuras.
Os problemas do sistema democrático encontram-se essencialmente no sistema
político-partidário e na forma de atuação dos seus agentes, sem prejuízo de se
identificarem outros problemas como o papel dos grupos de interesse e o custo-benefício
do acesso à informação. O conjunto agregado destes problemas tem conduzido a que a
democracia não venha satisfazendo os interesses dos indivíduos e das comunidades em
que estão inseridos. Nesse sentido, enunciou-se como principais problemas a falta de

[332]
conexão entre o pagamento e o consumo de bens públicos, a necessidade política na
maximização dos resultados eleitorais e dos condicionamentos motivados pelos ciclos
económico-políticos, que têm por escopo a conquista do poder e não a prossecução do
interesse público. Ademais, explorou-se a existência de outros problemas e bloqueios ao
adequado funcionamento do sistema democrático, decorrentes da questão dos recursos
comuns, trocas de votos e do dilema da não cooperação.
Com a identificação dos principais problemas, por um lado, torna-se evidente a
existência da necessidade e, em alguns casos, da obrigação das reformas estruturais serem
regularmente reavaliadas, para sujeição a eventuais aperfeiçoamentos. Isto poderia ser
obtido através da introdução das sunset clauses,9 que estipulando um prazo de validade
para alguns atos legislativos obrigaria as assembleias e os parlamentos a uma reavaliação
periódica das melhores opções, promovendo a maior responsabilização dos decisores e
fortalecendo o sistema democrático. Por outro lado, embora se defenda o papel
fundamental do setor privado e do mercado no fortalecimento do sistema democrático,
com um Estado de intervenção mínima (guarda-noturno), deve-se admitir que a utilização
dos privados não tem sido exemplar, pelo que importa consagrar o princípio que a sua
utilização deve ser menos onerosa que o fornecimento de bens e serviços pelo próprio
setor público.
A nível institucional, a Assembleia da Republica deveria assumir um papel mais
importante nas decisões do investimento público. Por isso, as medidas estruturais devem
ser obrigatoriamente aprovadas por uma maioria qualificada, de forma a aumentar a
responsabilidade de todos os intervenientes políticos. Acresce que sendo a aprovação
mais difícil seria forçada a cooperação e a existência de consensos. Na mesma lógica se
mostram essenciais a introdução da obrigatoriedade dos orçamentos plurianuais para os
grandes projetos de investimento. Na estrutura político-administrativa, mostrou-se a
necessidade de reforçar nas áreas metropolitanas a solidariedade e o diálogo entre os
municípios, por via do aumento da coordenação, bem como reformar a divisão
administrativa, com a supressão dos distritos e a criação das regiões administrativas, ainda
que inicialmente se deva avançar apenas com a agregação dos distritos menos populosos.
Também se mostra fulcral a definição dos círculos eleitorais, com a criação dos círculos

9
Sobre a temática veja-se: FERREIRA, R. M. Z. (2016) “A Modificação dos Modelos de Governação do
Estado: A Utilização das «Sunset Clauses»”, in MONTE, M. F.; CALHEIROS, M. C.; PEREIRA, M. A.
V.; GONÇALVES, A. Direito na Lusofonia – Diálogos Constitucionais no Espaço Lusófono, Braga: Escola
de Direito da Universidade do Minho, pp.345-352.

[333]
uninominais, o que levaria à revisão dos partidos políticos e ao crescimento da
participação dos cidadãos na vida política, em especial na escolha dos representantes e na
sua responsabilização política. No âmbito partidário, mostrou-se a necessidade de
rever o seu modelo de financiamento, de modo a que sejam consignadas verbas para que
os grupos de estudo possam desenvolver políticas sustentáveis e alternativas aos atuais
modelos socioeconómicos, bem como rever o princípio da disciplina de voto, em
particular em algumas matérias, promovendo o debate e a deliberação interna de ideias,
com o objetivo de impulsionar a atuação da sociedade civil.
Em síntese, mostrou-se a essencialidade da reforma do Estado, tanto do Estado de
bem-estar como das instituições públicas, com o objetivo recentrar as soluções para a
democracia na implementação da meritocracia, da transparência, da eficiência e na
celebração de um novo contrato social, que não resulte da imposição de uma visão única
da sociedade, nem imponha injustificadamente poderes a determinados grupos da
sociedade em detrimento de outros. Esta essencialidade exige acordos estáveis e
duradouros, que não dependam dos ciclos politico-eleitorais, assumindo os indivíduos um
papel dinamizador. Em especial, quanto ao Estado, é necessária uma sociedade mais livre,
solidária, transparente, deliberativa e dinâmica, o que está dependente do
desenvolvimento da individualidade da pessoa10, por via da revisão de valores e das
mentalidades ínsitas na comunidade.

Bibliografia

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Suporte do Sistema Democrático”, Revista Internacional Consinter de Direito,
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10
Sobre o individualismo veja-se: FERREIRA, R. M. Z. (2016) “O individualismo: O pilar para a
construção de um Estado de liberdade”, in Revista Jurídica – UNICURITIBA, Vol. 4, n. 45, pp. 300-325.

[334]
FERREIRA, R. M. Z. (2016) “A crise do sistema democrático ocidental: a degradação da
confiança dos jovens nas instituições democráticas”, in MIRANDA
GONÇALVES, R. (coord.) Administración Pública, Juventud y Democracia
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FERREIRA, R. M. Z. (2016) “A Modificação dos Modelos de Governação do Estado: A
Utilização das «Sunset Clauses»”, in MONTE, M. F.; CALHEIROS, M. C.;
PEREIRA, M. A. V.; GONÇALVES, A. (org.) Direito na Lusofonia – Diálogos
Constitucionais no Espaço Lusófono, Braga: Escola de Direito da Universidade
do Minho.
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de liberdade”, in Revista Jurídica – UNICURITIBA, Vol. 4, n. 45.
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PEREIRA, P. T. (2012) Portugal: Dívida Pública e Défice Democrático, Lisboa:


Fundação Francisco Manuel dos Santos, n.º 24.

[335]
Esta página foi intencionalmente deixada em branco

[336]
18. MARX, DEMOCRACIA E CAPITAL(ISMO): AS EXPRESSÕES DE
“DESPOTISMO DO CAPITAL” NO LIVRO I DE DAS KAPITAL

Paulo Fernando Rocha Antunes1

Resumo: O presente texto delimita o âmbito da sua abordagem nas expressões de


“despotismo do capital” (Despotie des Kapitals), por Marx assim identificadas no Livro
I de Das Kapital, e, por tabela, confronta, não exaustivamente, o status de democracia. O
texto expõe, na ordem em que surgem ao longo da obra, os três momentos em que o autor
assinala as ditas expressões: 1) direção capitalista do trabalho; 2) desenvolvimento
tecnológico em capitalismo; e, 3) acumulação de capital (de onde as outras duas
expressões apresentam-se, de certa maneira, como seus efeitos, embora também a
influenciem). Por conseguinte, segue-se o mais próximo possível o que é entendido por
mais-valia (absoluta e relativa), e no fim, em jeito de remate, propõe-se ainda refletir
acerca da influência do capital na reprodução do viver humano.

Palavras-chave: Capital; Democracia; Despotismo; Mais-valia; (Re)produção.

[…] innerhalb des kapitalistischen Systems vollziehn sich alle Methoden zur
Steigerung der gesellschaftlichen Produktivkraft der Arbeit auf Kosten des
individuellen Arbeiters; alle Mittel zur Entwicklung der Produktion schlagen um in
Beherrschungs- und Exploitationsmittel des Produzenten, verstümmeln den Arbeiter
in einen Teilmenschen, entwürdigen ihn zum Anhängsel der Maschine, vernichten mit
der Qual seiner Arbeit ihren Inhalt, entfremden ihm die geistigen Potenzen des
Arbeitsprozesses im selben Maße, worin letzterem die Wissenschaft als selbständige
Potenz einverleibt wird; sie verunstalten die Bedingungen, innerhalb deren er
arbeitet, unterwerfen ihn während des Arbeitsprozesses der kleinlichst gehässigen
Despotie, verwandeln seine Lebenszeit in Arbeitszeit, schleudern sein Weib und Kind
unter das Juggernaut-Rad des Kapitals. Marx, 1867

1
Doutorando em Filosofia Política Contemporânea pelo Programa de pós-graduação da Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa (FLUL). Investigador do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa
(CFUL) integrado no Grupo de investigação PRAXIS, membro do Núcleo de Estudos Políticos da
Universidade de Lisboa (nepUL) e do Grupo de Estudos Marxistas (GEM). Contacto:
pauloantunes@campus.ul.pt.

[337]
§ 1. Apontamentos introdutórios

A partir do título indicado, esta breve exposição poderia delinear, mesmo que
sumariamente e uma vez que é o tema proposto para debate geral, como Karl Marx (1818-
1883, e, também, Friedrich Engels – 1820-1895) pensa a democracia, mais precisamente,
por identificação de algumas passagens-chave constantes no Livro I do seu Das Kapital
(1867), dado que é, de facto, a obra que aqui se apresenta para reflexão.2
Assim como esta breve exposição poderia delinear, por via de algumas tiradas
fundamentais, como a democracia é pensada sob alguns matizes do marxismo; pelo
menos com referência a alguns dos seus mais ilustres epígonos, por exemplo, mais
politicamente, Vladimir Lénine (1870-1924), Leon Trótski (1879-1940) ou Antonio Gramsci
(1891-1937), ou, mais filosoficamente, György Lukács (1885-1971) ou Louis Althusser (1918-
1990), salvaguardadas as diferenças de monta entre os autores mencionados.3
Porém, o espaço é insuficiente para um exercício exegético de tão extenso objeto, quanto
se complica por não ter sido tema tratado com exclusiva e sistemática atenção, pois este
encontra-se passim nas obras dos autores mencionados, entre outros. 4
Na verdade, a apresentação, como o subtítulo indica, cinge-se à abordagem das
expressões de “despotismo do capital” (Despotie des Kapitals), pelo autor assim
identificadas no Livro I de Das Kapital, e, por tabela, confronta, não exaustivamente, o
status de democracia.5

2
Os outros dois livros que compõem O Capital, organizados e publicados postumamente à responsabilidade
de Engels, respetivamente em 1885 e 1894, não serão utilizados.
3
A obra O Estado e a Revolução (Государство и революция, 1917) de Lénine será, porventura, o texto
mais conhecido acerca da perspetiva marxista sobre a relação entre a revolução proletária e a democracia.
Veja-se uma de suas passagens: «A democracia não é idêntica à subordinação da minoria à maioria. A
democracia é um Estado que reconhece a subordinação da minoria à maioria, isto é, uma organização para
exercer a violência sistemática de uma classe sobre outra, de uma parte da população sobre outra. Propomo-
nos [os marxistas] como objetivo final a supressão do Estado, isto é, de toda a violência organizada e
sistemática, de toda a violência sobre os homens em geral. Não esperamos o advento de uma ordem social
em que o princípio da subordinação da minoria à maioria não seja observado. Mas, aspirando ao socialismo,
estamos convencidos de que ele se transformará em comunismo e, em ligação com isto, desaparecerá toda
a necessidade da violência sobre os homens em geral, da subordinação de um homem a outro, de uma parte
da população a outra parte dela, porque os homens se habituarão a observar as condições elementares da
convivência social, sem violência e sem subordinação.» (256-257).
4
Para duas perspetivas acerca desta questão atente-se a parte da discussão havida nos anos 90 do século
passado, cf. FEMIA, 1993, para uma perspetiva adversa a Marx, dado que o autor permite-se deambular
sobre uma ligação do marxismo a um tipo de “despotismo”; e WOOD, 1995, para uma perspetiva mais
favorável, descontando as incompreensões da autora em relação à perspetiva marxista do desenvolvimento
social. Tenha-se ainda em conta um estudo mais recente, cf. ROPER, 2013.
5
Para o efeito anunciado, remete-se para os momentos precisos em que Marx assinala o chamado
“despotismo do capital”, constantes apenas no Livro I (justifica-se, desta maneira, a nota 1). Todavia, ao
longo da obra (inclusive nos Livros II e III) é possível confrontar a dimensão despótica do capitalismo, pelo
autor surpreendida, ampla e profundamente explanada, mesmo que já não se refira diretamente a um
“despotismo”. Já nos Manuscritos de 1861-63, que serviram de preparação a Das Kapital, Marx utilizava

[338]
Considerei mais proveitoso para todos, dado o anunciado, refletirmos sobre a
sociedade atual, privilegiando o subsequente debate, em vez de apresentar alguma
proposta de democracia extraída de Das Kapital ou do marxismo no geral, posto que o
estudo de Marx contribui para uma mais apurada compreensão acerca dos
desenvolvimentos posteriores à sua época.

§ 2. Das Kapital e as expressões de “despotismo do capital”

Direção capitalista do trabalho

São três os momentos no Livro I de Das Kapital em que Marx assinala o


“despotismo do capital”, comecemos pela primeira vez em que o autor o faz. 6
Marx refere-se, então, a uma direção capitalista (kapitalistische Leitung) do
trabalho. Desta afirma que é dupla segundo o conteúdo – por um lado, trata do processo
de trabalho social para a produção de um produto, por outro, do processo de valorização
de capital. O autor afirma ainda que esta duplicidade é, em rigor, “despótica” segundo a
forma (cf. 1867: 351).
Veja-se, um pouco atrás, Marx destacava o seguinte:

O motivo propulsor e o objetivo determinante do processo de produção capitalista é,


antes de mais, a maior autovalorização [Selbstverwertung] possível do capital, i. é, a
maior produção possível de mais-valia [Mehrwert], portanto a maior exploração
possível da força de trabalho pelo capitalista (1867: 350). 7

a dita expressão (cf. 1861-63: 331). Não obstante, com vista a um tema como a democracia outros tópicos
da obra poderiam preencher o nosso interesse, por exemplo, a Fictio iuris que Marx identifica no que diz
respeito ao “trabalho livre”; os primórdios da especulação atual; a origem da(s) dívida(s) pública(s) em
capitalismo; etc. (cf. por exemplo, 1867: 598-599, 782 ss.). A propósito do Livro I de Das Kapital, tomemos
a seguinte passagem de empréstimo a Domenico Moro (1962-) – do seu Nuovo compendio del Capitale.
Sintesi del I libro del Capitale di K. Marx con riferimenti e confronti con la realtà contemporanea (2006)
– com vista a ilustrar um certo entendimento de “democracia”: «Mesmo a representação recentemente
mais celebrada do liberalismo capitalista, a Bolsa, representa não o advento de um capitalismo
“democrático”, em que o pequeno aforrador pode participar nos lucros, mas sim um enorme destruidor de
riqueza e sobretudo um consumidor desses pequenos aforros, sacrificados no altar das especulações e dos
jogos dos grandes investidores, bancários e financeiros […].» (137).
6
Seguimos a ordem de exposição do autor, explicada nos prefácios da obra, e que exige o exercício de ir
do mais abstrato (“do mais celular”, cf. 1867: 12) ao mais concreto, isto é, a uma totalidade relacional. É
por isso que Marx começa a obra com a “mercadoria”, o elemento mais imediato do modo de produção
capitalista.
7
«Zunächst ist das treibende Motiv und der bestimmende Zweck des kapitalistischen Produktionsprozesses
möglichst große Selbstverwertung des Kapitals, d.h. möglichst große Produktion von Mehrwert, also
möglichst große Ausbeutung der Arbeitskraft durch den Kapitalisten.».

[339]
Aproveitemos o ensejo para uns breves parênteses acerca do que é entendido por
mais-valia e sobre a maneira como o capitalista a trata e se apodera dela, com vista a uma
melhor compreensão do que está em causa.
Para o efeito, talvez seja importante recordar o que esteve na origem do trabalho
assalariado. Para que este tipo de trabalho fosse historicamente possível, foi fundamental
a separação do produtor (trabalhador) do seu meio de trabalho, do seu meio de
subsistência, e a apropriação deste meio por parte de outros indivíduos (cf. MARX, 1867:
595). Aqueles passaram a ter, necessariamente, de trabalhar para estes. 8
A mais-valia pressupõe o assalariamento, a divisão do dia de trabalho em trabalho
necessário (notwendige Arbeitszeit) – o trabalho que o produtor realiza para a sua
subsistência –, e sobretrabalho (Mehrarbeit) – o trabalho que produz a mais (de facto, a
9
mais-valia) para proveito do proprietário dos meios em que produz. O trabalhador
perdeu a capacidade de produzir alguns (ou todos) dos seus meios de subsistência. Agora
o trabalhador recebe um salário que corresponde a uma parte do que produz em meios
alheios e através dele gera (ou procura gerar, o que nem sempre é possível) a sua
subsistência (cf. MARX, 1867: 457).
Todo este processo, aqui muito sucinta e insuficientemente abordado, retrata a
origem da chamada “força de trabalho livre”, o trabalhador pode não possuir mais nada,
no que se refere à produção, como acima se verifica, mas possui a sua força de trabalho
– não é pertença direta de outrem (escravo) ou das terras de outrem (servo) –, apesar de a
sua força servir apenas na medida em que é empregue por outros. Ou seja, essa aplicação
da força de trabalho já não é mais dispersa ou despendida através de instrumentos próprios
(ou sequer coletivos), mas sempre em meios apropriados por outrem.
O resultado desta propriedade privada (burguesa) dos meios de produção é o
seguinte: cada novo produto consiste na criação de uma mais-valia pertencente ao

8
Recorde-se ainda, a breve trecho, parte do processo social que confirmou a referida separação, própria do
modo de produção capitalista, recorde-se todo o processo de expropriação dos pequenos produtores desde
o final da Idade Média: a sua expulsão das terras com vista à produção massificada de pasto para enormes
rebanhos para produzir lã (cf. a chamada “revolução agrícola”, MARX, 1867: 744 ss.; NUNES, 2017: 61-
62), mas, também, o crescimento de alguns comerciantes ao ponto de concentrarem em si meios de
produção outrora dispersos, a acumulação usurária, a génese do rendeiro capitalista, etc. (cf. MARX, 1867:
761 ss.).
9
Como Marx adverte, a mais-valia não é para se procurar na esfera da circulação (Sphäre der Zirkulation),
onde a troca de “equivalentes” e de “não equivalentes” não poderia gerar qualquer mais-valia (cf. 1867:
189), é, por conseguinte, necessário que alguém lucre com a força de trabalho alheia, isto é, que alguém
esteja desprovido de qualquer meio de produção e sirva igualmente de consumidor no mercado. Esta
questão remete para a teoria do valor (no âmbito da produção), o que transcende os objetivos do presente
trabalho.

[340]
proprietário dos respetivos meios. É esta mais-valia que não remete, por exemplo, para
um fundo social ou para os produtores diretos, que vai constituir o capital moderno, o
(re)investimento, o “lucro”, nos cofres dos capitalistas.
Simplificando, na aceção de Marx, depois de pago o salário, os meios de trabalho
e, eventualmente, os impostos, a mais-valia acaba por ser a diferença entre ser
proprietário, “explorador de trabalho alheio”, e assalariado, produtor direto, portanto,
explorado, no que ao modo de produção capitalista diz respeito.
Fechemos os parênteses e voltemos à questão da direção capitalista do trabalho.
A direção do trabalho descrita constitui uma forma despótica de produção, tendo
em conta que a produção social não visa a satisfação das necessidades da sociedade – que,
na verdade, é constituída por uma maior parte que produz e que consome –, porquanto
tem como fim último a autovalorização do capital, a produção de mais-valia. A produção,
sob esta direção, orienta-se para a reprodução capitalista, para benefício particular,
privado (e aqui não interessa se é uma sociedade por ações, um indivíduo, etc.).
Marx vai ainda referir outro aspeto da direção capitalista do trabalho: o capitalista
recorre a expedientes tais como o trabalho de supervisão (Arbeit der Oberaufsicht, cf.
1867: 351-352), a expensas da promoção de indivíduos que sirvam de supervisores do
trabalho alheio, de seus intermediários, e façam cair sobre os restantes todas as pressões
e até perseguições com vista ao cumprimento das metas estabelecidas. Trata-se de uma
espécie de capatazes modernos ou de oficiais militares à frente de um exército, neste caso,
de operários (ou, dito de outra maneira, de trabalhadores assalariados).
A partir desta direção e supervisão reflete-se ainda um outro aspeto: o “despotismo
da divisão manufatureira do trabalho” (Despotie der manufakturmäßigen Arbeitsteilung,
cf. MARX, 1867: 377). Sob esta divisão os trabalhadores constituem meros membros de
um mecanismo total pertencente ao capitalista, a mesma condição “mecânica” também se
encontra no período fabril desde a Revolução Industrial. 10

10
Esta fusão operário-máquina foi soberbamente satirizada no filme Modern Times (1936). Apenas para
um breve exemplo e convite à memória, entre outras cenas que poderiam ser descritas, leia-se: «A cena de
abertura da fábrica do filme Modern Times de Charlie Chaplin [1889-1977] traz ao de cima o despotismo
da linha de montagem, o relógio de tempo e a vigilância eletrónica dos trabalhadores. A fantasiosa
“Máquina de Alimentar Billows” [Billows Feeding Machine], concebida para prolongar o despotismo do
capital durante a pausa para o almoço, acabou por não ser “prática”.» - «The opening factory scene of
Charlie Chaplin’s film Modern Times brings home the despotism of the assembly line, the time clock, and
electronic surveillance of workers. The fanciful ‘Billows Feeding Machine’, designed to prolong capital’s
despotism through the lunch break, turned out not to be ‘practical’.» (sublinhados nossos, REUTEN, 2004:
261 n.).

[341]
O modo de produção capitalista tende a expandir a divisão interna do trabalho,
própria das suas unidades de produção, à restante sociedade. Em capitalismo a sociedade
tende a transformar-se numa sociedade de indivíduos especializados em diversas funções
com vista à maximização dos lucros, ao just in time, cortando assim as redundâncias e
despesas extraordinárias do trabalho disperso e desconectado que quase sempre
representam “areia na engrenagem” do capital (cf. MARX, 1867: 377-378).11
O despotismo do capital expressa-se, neste primeiro momento, a partir do
“comando industrial”, da função gestionária, do próprio capitalista, da “supervisão” que
faz cair sobre os trabalhadores e da sua organização (da divisão do trabalho) com vista à
autovalorização do capital (cf. MARX, 1867: 351-353).12

Desenvolvimento tecnológico em capitalismo

O segundo momento em que Marx assinala o “despotismo do capital” pode


encontrar-se, de certa maneira, resumido na seguinte passagem: «Através da adição
preponderante de crianças e mulheres ao pessoal combinado de trabalho [ao mecanismo
total], a maquinaria quebra finalmente a resistência que o operário masculino na
manufatura ainda opunha ao despotismo do capital.» (1867: 424).13
O que se encontra aqui de diferente em relação ao período essencialmente
manufatureiro, e que vai contribuir para quebrar a resistência dos trabalhadores, é o
desenvolvimento tecnológico (fundamentalmente da maquinaria) sem par na história da
humanidade.

11
Segundo aponta Marx, esta é uma das contradições do modo de produção capitalista – no seu próprio
desenvolvimento deixa sinais de se poder transformar noutra coisa –, aqui, podemos encontrar a
possibilidade de se planificar a economia, o que em capitalismo atinge os seus limites devido à anarquia
do seu modo de produção, à concorrência de todos contra todos.
12
Veja-se ainda a seguinte passagem do autor alemão: «Este poder [o de dirigir a produção das massas] dos
reis asiáticos e egípcios ou dos teocratas etruscos, etc., passou, na sociedade moderna, para o capitalista,
quer ele se apresente como capitalista isolado ou, como nas sociedades por ações, como capitalista
combinado [kombinieri].» - «Diese Macht asiatischer und ägyptischer Könige oder etruskischer Theokraten
Usw. ist in der modernen Gesellschaft auf den Kapitalisten übergegangen, ob er nun als vereinzelter
Kapitalist auftritt, oder, wie bei Aktiengesellschaften, als kombinierter Kapitalist.», (1867: 353). Deve ser
tida ainda em consideração, em relação à direção capitalista do trabalho, a divisão internacional do trabalho
e aquilo que mais à frente será retomado como “mundialização”.
13
«Durch den überwiegenden Zusatz von Kindern und Weibern zum kombinierten Arbeitspersonal bricht
die Maschinerie endlich den Widerstand, den der männliche Arbeiter in der Manufaktur der Despotie des
Kapitals noch entgegensetzte.»

[342]
É-se, pois, convidado a falar um pouco mais sobre a mais-valia (a estender os
parênteses anteriores), agora, acerca do que é descrito como mais-valia absoluta
(absoluten Mehrwerts) e mais-valia relativa (relativen Mehrwerts).
A mais-valia absoluta tange ao aumento do dia de trabalho, à possibilidade de se
estender o máximo que se puder o dia de trabalho com vista a extrair de cada trabalhador
maior produção. Se os trabalhadores passam mais tempo a produzir e produzem mais
mercadorias (ou alguma coisa que equivalha, algo que seja produzido ou no seu ato –
como uma massagem, um corte de cabelo – fundamentalmente para venda), supostamente
produzem mais, então, será possível produzir mais mais-valia. Mantendo-se o trabalho
necessário nos mesmos padrões, o mesmo salário, ou com “desconto” no “suplementar”,
apenas o sobretrabalho aumenta (cf. MARX, 1867: 3.ª secção).
A mais-valia relativa tange à possibilidade de se aumentar a mais-valia sem
aumentar o dia de trabalho (e pode mesmo haver diminuição deste). É, pois, preciso
aumentar a produção sem mexer nos limites naturais de cada trabalhador, pelo menos de
um dia de trabalho médio (ao que corresponde o tempo médio dos trabalhadores em geral
ou em determinados setores ou nações). Portanto, a mais-valia relativa visa aumentar o
sobretrabalho na medida em que diminui, proporcionalmente, o tempo de trabalho
necessário (cf. MARX, 1867: 4.ª secção, por exemplo, 532-533).
A hora da tecnologia soará, no modo de produção capitalista, por servir para a
diminuição do tempo de trabalho necessário (cf. por exemplo, MARX, 1867: 494, 495).
Veja-se, é porque a manufatura atingiu os seus limites – por um lado, porque os
trabalhadores estavam já nos limites das suas capacidades, mas ainda ofereciam alguma
resistência, pois eram precisos trabalhadores com determinadas qualidades pessoais (o
trabalho manual precisa de uma “certa habilidade”); por outro, porque o desenvolvimento
da manufatura gerou uma demanda maior do que a sua capacidade produtiva –, e a
concorrência obrigava os capitalistas a melhorar e aumentar a sua produção, que a
maquinaria teria de sofrer uma revolução (cf. MARX, 1867: 337-338; 483 ss. passim).
Uma vez que se tornava difícil o aumento de mais-valia absoluta, restava
principalmente procurar diminuir o tempo (de trabalho necessário) que os produtores
trabalhavam para a sua subsistência, com vista a aumentar o (sobre)trabalho que estes
efetuavam em beneficio da autovalorização do capital, isto é, da produção de mais-valia.
Voltemos à passagem acima utilizada. Com a revolução na maneira e nos meios
de produção no sentido de um maior desenvolvimento tecnológico, Marx confirma,
tornou-se possível aos capitalistas “quebrar a resistência” do operário masculino – com a

[343]
concorrência, o poder reivindicativo diminuiu, os capitalistas procuraram desse modo
“docilizar” os trabalhadores.14
A partir do momento em que a maquinaria tornou supérflua a “habilidade”
individual ou coletiva, foi possível a introdução de mulheres e crianças na produção,
passando a “bastar” um dedo para carregar no botão, ou um braço para limpar a máquina;
15
bem como a partir do momento em que a família se encontrava toda a trabalhar tornava-
se também possível baixar o salário, visto que mais gente levava dinheiro para casa
(embora, por vezes, todos juntos não auferissem mais do que a mesma quantia que
anteriormente apenas o homem auferia); bem como a partir do momento em que a
maquinaria faz o trabalho de mais do que um indivíduo torna-se possível dispensar outros
e com isso exercer maior pressão sobre os que trabalham. 16
Quer dizer, o desenvolvimento tecnológico em capitalismo visa, mais do que tudo,
a autovalorização do capital, quer seja pelo aumento da intensidade do trabalho –
aumentando a produção dentro do mesmo tempo (mais-valia relativa) –, quer seja pelo
aumento da pressão sobre quem produz – se a “habilidade” de cada produtor já não é
indispensável, este torna-se ainda mais descartável (já não é o trabalhador que emprega a
função, mas a função que emprega o trabalhador). Aos trabalhadores masculinos deixou
de servir a união que haviam atingido nas suas reivindicações, agora a situação

14
Aqui também se encontra a questão da subsunção formal (formelle Subsumtion) e real (reelle Subsumtion)
dos trabalhadores sob o capital, se a primeira corresponde, mais genericamente, à produção de mais-valia
absoluta, a segunda corresponderá à produção de mais-valia relativa e de como os seus métodos acabam
por se apoderar de toda a produção e também servem a produção de mais-valia absoluta, no fundo a
subsunção real pressupõe a formal (a compra da força de trabalho “livre”) e toda a captura social pela
produção de mais-valia, (cf. MARX, 1867: 533; MURRAY, 2004).
15
As mulheres e as crianças daquele tempo podem encontrar correspondência com os trabalhadores que
hoje são considerados pouco qualificados ou imigração de mão de obra barata. O seu impacte no mercado
de trabalho não será muito diferente. E se pensarmos à escala global, encontra-se correspondência no que
os países “tradicionalmente” de mão de obra barata significam para o trabalho nos países supostamente
mais desenvolvidos. Veja-se como Marx extrai uma passagem de um jornal e a comenta: «Hoje
encontramo-nos, graças à concorrência do mercado mundial desde então estabelecida, um bom pedaço
adiante. “Se a China”, explica o membro do Parlamento Stapleton aos seus eleitores, “se a China se tornar
um grande país manufatureiro não vejo como a população manufatureira da Europa poderá aguentar o
confronto sem descer ao nível dos seus concorrentes.” (Times, 9 de Setembro de 1873.) – Agora [diz Marx]
o objetivo ansiado pelo capital inglês já não são salários continentais, não, mas salários chineses.» - Heute
sind wir, dank der seitdem hergestellten Weltmarktskonkurrenz, ein gut Stück weiter. „Wenn China”,
erklärt das Parlamentsmitglied Stapleton seinen Wählern, „wenn China ein großes Industrieland wird, so
sehe ich nicht ein, wie die europäische Arbeiterbevölkerung den Kampf aushalten könnte, ohne auf das
Niveau ihrer Konkurrenten herabzusteigen.” („Times”, 3.Sept. 1873.) - Nicht mehr kontinentale, nein,
chinesische Löhne, das ist jetzt das ersehnte Ziel des englischen Kapitals.» (1867: 627-628 n.). Não se tem
aqui em vista uma analogia com a China atual, ainda que em diversos aspetos se possa estabelecer uma
correspondência.
16
A maquinaria também permitiu aumentar a produção e o dia de trabalho no sentido em que as unidades
de produção deixaram de ter horários limitados e foi possível introduzir os trabalhos por turnos, e noturno,
cobrindo as 24 horas. Para um maior aprofundamento do impacte da maquinaria na produção capitalista,
cf. MARX, 1867: 391-530.

[344]
(tecnológica) era outra, a chantagem do desemprego e dos baixos salários adquiria
renovados contornos.
Aqui se configura o que Marx chamava de “exército industrial de reserva”
(industrielle Reservearmee), mas também de “sobrepopulação relativa” (relative
Übervölkerung), ao que se adequa, noutros termos, um “exército de desocupados” ou
“banco de reserva do capital”.17
Como acima é indicado, este “exército” serve os propósitos de pressão sobre o
trabalho – os trabalhadores empregados sujeitam-se a condições degradantes para
assegurar o emprego sob pena de serem substituídos por algum dos desempregados, que,
por sua vez, anseiam (necessitam) voltar a estar empregados podendo sujeitar-se, também
eles, a condições degradantes só para voltar a ter um emprego –, mas serve também os
fluxos de produção, a necessidade de empregar mais trabalhadores em determinados
18
períodos produtivos (cf. MARX, 1867: 657 ss.). Tudo isto segue do facto dos
trabalhadores não possuírem meios próprios de subsistência (nem individuais, nem
coletivos). Atente-se à seguinte passagem:

O capital age sobre ambos os lados simultaneamente. Quando a sua acumulação, por
um lado, multiplica a procura de trabalho, ele multiplica, por outro lado, a oferta de
operários pela sua “libertação”, enquanto, simultaneamente, a pressão dos
desocupados constrange os ocupados a fazer fluir mais trabalho, portanto, em certo
grau torna a oferta de trabalho independente da oferta de operários. O movimento da
lei da oferta e da procura de trabalho nesta base perfaz o despotismo do capital
(sublinhados nossos, MARX, 1867: 669). 19

A necessidade de mais ou menos trabalhadores anda a par com as necessidades de


produção (de autovalorização do capital) dos capitalistas, se precisam ou não de absorver
mais trabalhadores ou se dispõem de condições para dispensar um maior número destes
e manter a rentabilidade ou aumentá-la. São as suas necessidades que põem e dispõem

17
À época o termo “desempregados” não existia, daí Marx ter encontrado diferentes terminologias para
expressar à sua maneira essa realidade (cf. REUTEN, 2004: 290).
18
A sobrepopulação é relativa e não absoluta (como acreditavam os malthusianos) porque tem que ver com
os fluxos do mercado de trabalho dado em capitalismo e não com uma real sobrepopulação humana em
determinado lugar, ou seja, o que está em causa é a empregabilidade das populações, capturada pelo capital,
e é o desemprego que apoia o preconceito sobrepopulacional de tipo absoluto (cf. MARX, 1867: 648-649).
19
«Das Kapital agiert auf beiden Seiten zugleich. Wenn seine Akkumulation einerseits die Nachfrage nach
Arbeit vermehrt, vermehrt sie andrerseits die Zufuhr von Arbeitern durch deren „Freisetzung“, während
zugleich der Druck der Unbeschäftigten die Beschäftigten zur Flüssigmachung von mehr Arbeit zwingt,
also in gewissem Grad die Arbeitszufuhr von der Zufuhr von Arbeitern unabhängig macht. Die Bewegung
des Gesetzes der Nachfrage und Zufuhr von Arbeit auf dieser Basis vollendet die Despotie des Kapitals.»

[345]
(despoticamente) os assalariados com a força coerciva de uma lei, que não é mais do que
a lei de movimento do capital, isto é, a da necessidade da sua autovalorização.
Por conseguinte, o capital apresenta-se mais uma vez despoticamente: a
tecnologia é desenvolvida para servir o seu movimento e não para o desenvolvimento
social, daí se cria e mantém o desemprego (moderno). Tudo isto sucede, por exemplo, ao
mesmo tempo em que são desenvolvidas as condições para diminuir o tempo de trabalho
de cada trabalhador, pois existem condições para este efeito, no entanto, impõe-se uma
intensificação do trabalho e, como se não bastasse, os capitalistas procuram “docilizar” o
trabalho por essa via. 20
Deste modo, a questão da exploração do trabalhador com vista à mais-valia
absoluta regressa (na verdade, nunca se terá ausentado) – no sentido em que a chantagem
com vista a forçar um aumento do dia de trabalho, quer seja por horas extraordinárias ou
pelo aumento absoluto deste, encontra novo fôlego.
É por isso que Marx se vai referir à maquinaria como um “meio de guerra”
(Kriegsmittel) para reprimir os trabalhadores na sua luta contra a autocracia do capital
(Autokratie des Kapital), seguramente, na maneira como é utilizada em capitalismo (cf.
1867: 459). Deve-se ter em consideração que no autor não existe qualquer romantismo
pré-tecnológico, ao invés, denuncia-se o que é feito com a tecnologia dadas as relações
de produção capitalistas. 21
É a maneira como os capitalistas desenvolvem a tecnologia que se expressa como
um outro momento (complementar ao anteriormente exposto) de despotismo do capital.

Acumulação de capital

Na sequência do que Marx afirma como o “despotismo mais mesquinhamente


odioso” – a maneira como a tecnologia é utilizada para lançar os trabalhadores para
debaixo da “roda de Jaganata” (celebração hindu em que os crentes se lançam para de

20
De acordo com Marx, esta é mais uma das contradições do sistema capitalista – à medida que o ser
humano desenvolve tecnologia que o pode libertar do tempo excessivo de trabalho era de se esperar que se
libertasse realmente desse excesso, mas que pudesse, por outro lado, manter o seu emprego, trabalhando
menos tempo. Marx chama precisamente a atenção para a impossibilidade disto, dadas as relações de
produção capitalistas, é, pois, preciso superá-las (cf. 1867: 552).
21
É, na sequência disto, que a ciência também é posta de maneira despótica ao serviço do modo de produção
dominante, tanto para compelir diretamente o trabalho como para elevar os lucros (cf. MARX, 1867: 460).
Um dos exemplos atuais, porventura, dos mais gritantes, encontrar-se na “batalha” das farmacêuticas e na
maneira como a cura não é o seu objetivo, antes, a acumulação de lucros.

[346]
baixo da roda de um carro cerimonial como derradeiro sacrifício) –, 22 o autor alemão vai
acrescentar:

[…] na medida em que o capital se acumula, a situação do operário – seja qual for a
sua paga, alta ou baixa – tem de piorar. […] A acumulação de riqueza num polo é,
portanto, simultaneamente, acumulação de miséria, tormento de trabalho, escravatura,
ignorância, brutalidade e degradação moral no polo oposto, i. é, do lado da classe que
produz o seu próprio produto como capital (1867: 675). 23

Antes de mais, Marx não se está a referir às condições particulares de uma só


nação, embora a Inglaterra lhe sirva como exemplo principal e na altura as misérias
londrinas fossem bem descritas na literatura da época. 24
O autor apela a que se procure pensar o desenvolvimento social moderno com
base na mundialização do mercado (na altura ainda embrionária), naquilo que hoje se
oculta por detrás do termo genérico: “globalização”. Não é por acaso que o autor alemão
termina o Livro I a falar da moderna teoria da colonização (Die moderne
Kolonisationstheorie, cf. 1867: 792-802).
As nações ditas desenvolvidas estão ligadas a outras nações que acabam por
representar o papel de classes indigentes e depauperadas, o que naqueles tempos estava
bem patente nas suas próprias sociedades. Na realidade, ainda hoje nenhuma das nações
ditas desenvolvidas se livrou de ter entre si pobreza, desemprego e/ou empregados-(sub-
)assalariados no limiar da pobreza (são diversas as estatísticas que o confirmam).

22
Aproveitamos para traduzir a epígrafe: «[…] aquando da análise da produção da mais-valia relativa,
vimos: que no interior do sistema capitalista se consumam todos os métodos para a elevação da força
produtiva social do trabalho à custa do operário individual; que todos os meios para o desenvolvimento da
produção se convertem em meios de dominação e de exploração do produtor, estropiam o operário
(tornando-o) um homem parcelar, desdignificam-no a um apêndice da máquina, aniquilam com o tormento
do seu trabalho o conteúdo deste, alienam-lhe as potências espirituais [geistigen Potenzen] do processo de
trabalho na mesma medida em que a este último é incorporada a ciência como potência autónoma;
deformam as condições no interior das quais ele trabalha, sujeitam-no durante o processo de trabalho ao
despotismo mais mesquinhamente odioso, transformam o seu tempo de vida em tempo de trabalho, lançam-
lhe mulher e filhos para debaixo da roda de Juggernaut [Jaganata] do capital.» (sublinhados nossos, 1867:
674).
23
«Es folgt daher, daß im Maße wie Kapital akkumuliert, die Lage des Arbeiters, welches immer seine
Zahlung, hoch oder niedrig, sich verschlechtern muß. [...] Die Akkumulation von Reichtum auf dem einen
Pol ist also zugleich Akkumulation von Elend, Arbeitsqual, Sklaverei, Unwissenheit, Brutalisierung und
moralischer Degradation auf dem Gegenpol, d.h. auf Seite der Klasse, die ihr eignes Produkt als Kapital
produziert.»
24
Cf., por exemplo, a obra realista de Charles Dickens (1812-1870), ou, noutros registos, os relatórios dos
inspetores do trabalho a que Marx recorre variadas vezes ao longo d’O Capital, mas também a
importantíssima obra de Engels – Die Lage der arbeitenden Klasse in England (1845).

[347]
No fundo, o que Marx pretende afirmar, inter alia, é que por melhor que seja o
salário de um trabalhador a relação de dominação (capitalista) mantém-se. Desse modo,
independentemente do trabalhador ser “bem pago”, permanece a possibilidade de ser
atirado para “debaixo da roda” logo que os lucros não correspondam ao necessário para
fazer face às exigências do mercado capitalista. Mesmo “bem pago”, o trabalhador é
tecnicamente explorado.
O que se encontra aqui em causa é o processo de acumulação de capital
(Akkumulationsprozeß des Kapitals). Se as condições para extrair mais-valia dependiam
de uma acumulação original – isto é, o capital não veio do nada –, agora o capital é
reconversão de mais-valia, e é a esta reconversão (“lucros” advindos do capital investido)
que é chamada acumulação de capital (porque investido ou reinvestido, mas também,
parte dele, embolsado). 25
A acumulação de capital assenta na propriedade dos meios de produção e, mais
particularmente, no trabalho em capitalismo – assalariamento e extração de mais-valia –,
e juntando-se a necessidade de mais poder concorrencial e mais investimento, a
acumulação significa sempre menos nas mãos de muitos e mais nas mãos de poucos. 26

25
O processo de acumulação de capital teve a sua origem, já aqui brevemente aludida, mesmo que a
existência do capitalismo apareça agora fundamentalmente como circular. Dado o caso em que não se
pudesse identificar uma diversidade de fatores originários do capitalismo, este funcionaria como dentro de
um círculo (eterno…), o que é manifesta e historicamente errado. A perversidade da chamada acumulação
original (Die sogenannte ursprüngliche Akkumulation) de capital aparece retratada por Marx no 24.º
capítulo do Livro I, desde a expropriação do povo do campo, à legislação sangrenta contra os expropriados
(tornados vagabundos), à origem dos rendeiros, o papel dos usurários, etc. (cf. 1867: 741 ss.). Tenha-se
ainda em conta que diversos defensores do capitalismo elogiam o chamado “capital inicial”, descurando o
caráter sanguinário da maior parte dele e que o capital atual já só é produzido por trabalho alheio não pago,
e mesmo a especulação, o juro, etc., arrancam daqui (cf. MORO, 2006: 92).
26
«A acumulação é conquista do mundo da riqueza social. Com a massa do material humano explorado,
ela estende simultaneamente a dominação direta e indireta do capitalista.» - «Die Akkumulation ist
Eroberung der Welt des gesellschaftlichen Reichtums. Sie dehnt mit der Masse des exploitierten
Menschenmaterials zugleich die direkte und indirekte Herrschaft des Kapitalisten aus.» (MARX, 1867:
619). Tomemos o exemplo seguinte – o caso de Itália, mas comparável com qualquer outro país dito
“desenvolvido” –, ainda que pudéssemos igualmente utilizar quaisquer dados mais atuais como os da
Oxfam: «A consequência das expulsões do ciclo produtivo, do aumento dos pobres – “importados” ou
autóctones – e do trabalho precário é o aumento da pressão sobre os salários dos empregados “regulares”,
que de facto, pela primeira vez em décadas, viram reduzir-se o seu poder de compra real. Segundo fontes
do Banco de Itália, entre 2000 e 2002 o rendimento das famílias italianas que vivem do rendimento de um
operário ou de um empregado sofreu uma baixa de 1,8% em termos reais. A descida do salário real
determinou uma acentuação da polarização social no interior da sociedade italiana. Em 1989 o 1% mais
rico dos italianos dispunha de 10,6% do rendimento nacional, enquanto em 2000 possuía 17,2 %. Pelo
contrário, os 80% inferiores, que em 1989 possuíam 42,1% do património nacional, em 2000 já só tinham
36,2%. Mas esta situação não é típica só de Itália. Como assinala o The Economist, na maioria dos países
avançados os salários reais nos últimos anos cresceram bem abaixo do aumento da produtividade. […] O
elemento mais surpreendente, se não tivermos em conta a lógica do capital exposta por Marx na lei da
acumulação, é que o crescimento da pobreza é mais forte precisamente onde a acumulação e os lucros mais
aumentam e onde esta lei não é entravada (ou só parcialmente entravada) por fatores antagónicos,
exatamente como acontece nos EUA.» (MORO, 2006: 115, 119). A dominação torna-se direta sobre quem

[348]
O capital circula, desde que assentou em trabalho assalariado (ou seja, desde que
deu o salto do originário para formalmente constituído), como propriedade sobre trabalho
passado não pago, sobre sobretrabalho acumulado (cf. MARX, 1867: 609). O
desenvolvimento desta relação social de produção é, por conseguinte, gerador de
desigualdade.
A acumulação de capital constitui-se como uma tendência histórica, não se fica
por um primeiro momento ou se esvai pura e simplesmente. Aqui se encontra o que Marx
anteviu como a “era dos monopólios”, a maneira como a concorrência, que se estimula
conforme as acumulações alheias, ajuda a uma concentração (Konzentration) e
centralização (Zentralisation) do capital: os pequenos vão caindo e os grandes vão-se
fundindo, trustificando e/ou comprando-se uns aos outros, enfim, multinacionalizando-
se. É o que o autor vai descrever como “tendência geral para a acumulação capitalista”
(cf. 1867: 789-791), quanto mais o capitalista acumulou mais ele pode (e precisa)
acumular. 27
O despotismo da acumulação coage o capitalista a jogar o jogo de uma
concorrência de vida ou de morte e «como fanático [que se torna ou não pode deixar de
ser ou tornar] da valorização do valor ele coage sem escrúpulos a humanidade à produção
pela produção» (MARX, 1867: 618). 28
A autovalorização do capital deve ser permanente em capitalismo, é esta que
permite ao capitalista: crescer no mercado; despender mais folgadamente, por exemplo,

trabalha e indireta sobre quem está desempregado, mas total, de certa maneira, por via do “despotismo” do
ciclo de acumulação de capital.
27
O autor ao delinear o desenvolvimento da concentração e da centralização de capital em meados do século
XIX acabou por antever (não foi profecia, mas uma questão de tendência material) os desenvolvimentos do
princípio do século XX em diante, no que diz respeito às multinacionais e aos monopólios originados. Entre
as várias razões e consequências do que aqui é aludido, vejamos um exemplo: «Em fases de crescimento
limitado, ou de crise, a centralização substitui a falta de dinamismo económico e permite, por um lado, a
aquisição de mercados vantajosos, e, por outro, realizar aquelas poupanças sobre os custos fixos que
permitem elevar a taxa de lucro. De facto, as fusões implicam racionalizações da estrutura das empresas
envolvidas que eliminam as duplicações ou redundâncias, do ponto de vista capitalista. Deste modo, a
racionalização da atividade produtiva é toda a favor do capital, enquanto os custos ficam a cargo da classe
trabalhadora, seja em termos de cortes no pessoal seja em termos de pressão salarial sobre aqueles que
permanecem empregados.» (MORO, 2006: 102-102).
28
«Als Fanatiker der Verwertung des Werts zwingt er rücksichtslos die Menschheit zur Produktion um der
Produktion willen […]». Tenha-se em consideração que a “produção pela produção” não é mais do que
outra maneira para se referir à produção pela mais-valia, uma vez que não existe, em rigor, qualquer
“produção pela produção”: «[…] a concorrência impõe a cada capitalista individual as leis imanentes do
modo de produção capitalista como leis coercivas exteriores. Ela coage-o a estender permanentemente o
seu capital para o conservar, e só o pode estender por intermédio de acumulação progressiva.» - «[…] die
Konkurrenz herrscht jedem individuellen Kapitalisten die immanenten Gesetze der kapitalistischen
Produktionsweise als äußere Zwangsgesetze auf. Sie zwingt ihn, sein Kapital fortwährend auszudehnen,
um es zu erhalten, und ausdehnen kann er es nur vermittelst progressiver Akkumulation.» (MARX, 1867:
674).

[349]
também em artigos de luxo (com a acumulação este é um mercado que recrudesce); fazer
face à concorrência; manter a sua vantagem nas relações sociais, etc. O capitalista precisa
de se colocar numa posição favorável para realizar mais-valia, pois se esta é produzida
por via do sobretrabalho alheio (na hora da produção), apenas é realizada quando o
produto encontra aceitação no mercado (cf. MARX, 1867: 338).
O capitalista torna-se ele mesmo um instrumento nas mãos do capital (é, como
Marx chega a descrever, “personificação do capital”), uma vez que este exige dele que o
acumule e o faça circular com vista à sua autovalorização, sob pena de o capitalista
sucumbir no mercado face aos seus concorrentes (convenhamos que apesar deste caráter
instrumental sob o capital, a posição do capitalista é bem mais “confortável” do que a do
trabalhador).
A produção distancia-se das necessidades imediatas (não que dantes se
aproximasse especialmente), mesmo que a isso não se tenha de reduzir ou reconduzir toda
a produção, mas o que está aqui em causa é que já só tem em vista os lucros (daí toda a
concorrência). As necessidades básicas tornam-se “danos colaterais” no capital, mas, sem
a sua satisfação, nem que seja a contragosto, não existe quem produza, por isso, em
conformidade, no fim até se procura lucrar com esse mercado inevitável e imprescindível
para a sobrevivência humana. 29 Pouco importa que as necessidades venham do estômago
ou da imaginação (cf. MARX, 1867: 49).

29
Marx assinala o facto de o capitalista “matar dois coelhos com uma só cajadada”, visto que lucra quando
recebe do trabalhador, mas também com aquilo que lhe dá. Por um lado, o que o trabalhador lhe dá a
ganhar, ao trabalhar nos seus meios de produção, e, por outro lado, quando o trabalhador recebe o que
consumir dos produtos do capitalista, realizando a mais-valia em potência. O trabalhador é, por
conseguinte, produção e reprodução do meio de produção mais indispensável ao capitalista, o próprio
trabalhador. Segundo o autor, nada altera a coisa, mesmo que o operário efetue o seu consumo individual
em prol de si e não do capitalista, pois o capitalista lucra sempre duas vezes (cf. 1867: 597-598). Veja-se
ainda como o autor alemão, 20 anos antes, em Misère de la Philosophie (1847), descreveu os novos tempos
que se afirmavam: «Veio, então, um tempo em que tudo aquilo que, outrora, os homens consideravam
inalienável tornou-se objeto de troca, de tráfico, podendo alienar-se. Trata-se do tempo em que as próprias
coisas que, até aí, eram transmitidas, mas jamais trocadas, oferecidas, mas nunca vendidas, conquistadas,
mas nunca compradas – virtude, amor, opinião, ciência, consciência, etc. –, trata-se do tempo em que tudo,
finalmente, passa pelo comércio. O tempo da corrupção geral, da venalidade universal ou, para expressá-lo
em termos de economia política, o tempo em que todas as coisas, morais ou físicas, tornando-se valores
venais, devem ser levadas ao mercado para que se aprecie o seu mais justo valor.» - «Vint enfin un temps
où tout ce que les hommes avaient regardé comme inaliénable devint objet d'échange, de trafic et pouvait
s’aliéner. C’est le temps où les choses mêmes qui jusqu’alors étaient communiquées, mais jamais
échangées; données, mais jamais vendues; acquises, mais jamais achetées, – vertu, amour, opinion, science,
conscience, etc., – où tout enfin passa dans le commerce. C’est le temps de la corruption générale, de la
vénalité universelle, ou, pour parler en termes d’économie politique, le temps où toute chose, morale ou
physique, étant devenue valeur vénale , est portée au marché pour être appréciée à sa plus juste valeur.»
(1847: 7). Quer dizer, trata-se aqui de uma “mercadorização” universal.

[350]
O despotismo do capital expressa-se, finalmente, no sentido da sua tendência para
a acumulação (de capital) – como totalidade do processo de produção capitalista –, de
onde a direção do trabalho e o desenvolvimento tecnológico capitalistas apresentam-se,
de certa maneira, como seus efeitos, como parte do processo, contudo, também a
influenciam, mas nunca como fatores em última instância decisivos. 30

§ 3. Em jeito de remate

Com vista a finalizar, tomemos, ainda, o caso da (re)produção do viver humano.


A produção, de acordo com Marx e Engels, diz respeito às condições necessárias
para a sobrevivência humana, para a produção da própria vida material (Produktion des
materiellen Lebens selbst), isto é, diz respeito à necessidade que o ser humano tem de
comer, beber, habitar, vestir, etc., de (re)produzir essas mesmas condições. Quer dizer,
na medida em que a reprodução da vida humana esteja nas mãos (ou pelo menos
condicionada) de alguns indivíduos, então, essa reprodução estará dependente destes e
não das necessidades sociais (cf. MARX-ENGELS, 1845: 28). 31 Em capitalismo parece
que essas condições foram de facto capturadas:

Se a produção tem forma capitalista [kapitalistische Form], também a


reprodução. Tal como no modo de produção capitalista o processo de trabalho
aparece somente como um meio do processo de valorização, assim também a

30
«A finalidade última [da mudança tecnológica] é a acumulação de capital.» - «The ultimate end is the
accumulation of capital.» (SMITH, 2004: 224). A todo este processo de acumulação correspondem ainda
as crises cíclicas do capitalismo e, em profunda contradição com o seu próprio desenvolvimento, a
possibilidade de transformação da sociedade, porém, não cabe aqui aprofundar estes tópicos.
31
«Seja qual for a forma social do processo de produção, ele tem de ser contínuo ou de percorrer
periodicamente sempre de novo os mesmos estádios. Uma sociedade pode tão pouco deixar de consumir
quanto pode deixar de produzir. Considerado numa conexão permanente e no fluxo constante da sua
renovação, cada processo social de produção é, portanto, simultaneamente, processo de reprodução
[Reproduktionsprozeß].» - «Welches immer die gesellschaftliche Form des Produktionsprozesses, er muß
kontinuierlich sein oder periodisch stets von neuem dieselben Stadien durchlaufen. So wenig eine
Gesellschaft aufhören kann zu konsumieren, so wenig kann sie aufhören zu produzieren. In einem stetigen
Zusammenhang und dem beständigen Fluß seiner Erneuerung betrachtet, ist jeder gesellschaftliche
Produktionsprozeß daher zugleich Reproduktionsprozeß.» (MARX, 1867: 591). Noutro local Marx vai
chamar a atenção para a distribuição dos meios de consumo como consequência das condições de produção,
ou seja, no modo de produção capitalista a distribuição baseia-se na “propriedade do capital vs propriedade
da força de trabalho” e nesta distribuição dos meios de produção decorre semelhante distribuição dos meios
de consumo; o que será diferente em caso de outro tipo de propriedade dos meios de produção, por exemplo,
no caso de propriedade social (cf. 1875: 22).

[351]
reprodução apenas aparece como um meio de reproduzir como capital o valor
adiantado, i. é, como valor que se valoriza (MARX, 1867: 591). 32

Em igual medida, a reprodução do viver humano (dada esta captura) torna-se


reprodução das próprias condições de exploração dos trabalhadores (reprodução do
próprio capitalismo), visto que estes são coagidos pela sua condição (entre outras coisas,
por via da sua expropriação individual) a vender a sua força de trabalho para viver, o que
permite constantemente ao capitalista a sua compra e consequente acumulação (cf.
MARX, 1867: 603).
Em capitalismo não são apenas os meios de produção que estão nas mãos de
alguns indivíduos – isso já se passava noutros modos de produção (por exemplo,
escravatura e feudalismo) –, mas toda a reprodução da vida humana, todo o seu dia de
trabalho, tudo isto gira em torno do capital, que aparece assim como o grande déspota da
era contemporânea. 33 Porém, não de maneira hipostasiada, pois o capital trata-se, de
facto, de uma conjugação historicamente determinada das relações humanas. No fundo,
o capitalismo aparece como uma “ditadura do lucro”, por mais regulamentada que a
concorrência ou o mercado estejam (diversas tentativas para a sua regulamentação saíram
malogradas, desde as suas primeiras às suas principais crises). 34

32
«Hat die Produktion kapitalistische Form, so die Reproduktion. Wie in der kapitalistischen
Produktionsweise der Arbeitsprozeß nur als ein Mittel für den Verwertungsprozeß erscheint, so die
Reproduktion nur als ein Mittel, den vorgeschoßnen Wert als Kapital zu reproduzieren, d.h. als sich
verwertenden Wert.». Moro resume-o da seguinte maneira: «O processo produtivo, qualquer que seja o
modo de produção dominante, deve ser contínuo. De facto, nenhuma sociedade pode renunciar a consumir
para se reproduzir, e portanto qualquer processo de produção é em primeiro lugar um processo de
reprodução dos meios de produção e da força de trabalho empregados e consumidos. A reprodução, tal
como a produção, também tem forma capitalista e tem a função de reproduzir o capital.» (sublinhados do
autor, 2006: 91). Tomem-se alguns exemplos: a necessidade de se alimentar passa a estar sob o comando
do capital, veja-se a recente subida dos preços de bens alimentares por via da sua entrada na produção de
combustível – o caso do milho –; a necessidade de beber, atente-se à política sobre o leite na União Europeia
e veja-se o tempo das quotas leiteiras e o vazamento de milhares de litros de leite produzidos “a mais”, ou
agora, com o fim das quotas leiteiras, a “corda na garganta” dos pequenos produtores, uma vez que passam
a competir diretamente com os grandes; a necessidade de habitação e toda a questão da especulação
imobiliária – as “leis do arrendamento”, etc. –; e a necessidade de vestir, e aqui nem vale a pena pensar
muito, basta ver em que países são produzidas a maior parte das roupas. Trata-se, mais propriamente, da
procura da manutenção das taxas de lucro.
33
Quiçá ainda se encontra aqui uma outra linha interpretativa para o famoso Leviathan (1651) de Thomas
Hobbes (1588-1679): afinal que Leviatã foi esse que se ergueu desde então e a tudo subsumiu sob o seu
jugo? E que guerra de todos contra todos é essa, a concorrência entre produtores e detentores da produção?
Terá o autor inglês tentado civilizar sob a espada e o báculo o mercado que na época crescia e se desenvolvia
de outra maneira que não a mercantil simples ou o Leviatã será, mais propriamente, o “protetor do
mercado”, e procurou, ao invés, docilizar aqueles que se opunham a este tipo de mercado? Enfim, quem é
o lobo afinal? (Cf. HOBBES, 1651).
34
Para algumas passagens de Marx acerca das crises cíclicas do capitalismo, cf., por exemplo, 1867: 20 e
476.

[352]
Ora, a concorrência não parece funcionar independente do mercado mundial nem
da promiscuidade entre o poder económico e político. Não parece funcionar independente
do tipo de democracia coetâneo, isto é, do tipo de democracia que elege uma elite política
que se encontra socialmente distante daqueles que representa e bem mais próxima
àquela(s) classe(s) que dita(m) as regras do mercado, mas também não parece funcionar
independente das condições sociais que por esta(s) são detidas desde a generalidade dos
Média, do “way of life” propagandeado, etc. 35 Bem como nada do que foi referido parece
funcionar independente do tipo de relações de produção vigentes.
Tendo em consideração a dimensão despótica do capital aqui exposta, nas suas
expressões por Marx denunciadas, a democracia tende a não passar de uma formalidade,
na verdade, distante do seu conteúdo real, uma vez que este se encontra prenhe de
desigualdades. 36
O trabalhador em “democracia”, dado o capitalismo, supõe-se “livre”, contudo,
não pode satisfazer as suas necessidades básicas sem ter de vender a sua força de trabalho,
visto que os meios de produção (terras, restantes infraestruturas, objetos de trabalho
fundamentais, etc.) já não lhe pertencem sequer como no caso da corveia medieval
(trabalhar a maior parte dos dias para o senhor e alguns para si). O que é possível porque
a democracia (burguesa) atual equivale diferentes tipos de propriedade, a dos meios de
produção e a da força de trabalho – assim aparece a esfera da circulação, como relação
entre iguais, troca por troca. 37
Pode-se até dizer que a democracia é a forma política que melhor se adequa a esta
situação de desigualdade real, pelo menos no seguimento do que se deu conta. Tal
significando uma “democracia” como a melhor maneira (em capitalismo) de propagar a
ideia (enganadora) de que todos os indivíduos em mercado são livres, iguais e autónomos,

35
Aqui valia a pena refletir acerca do que Lénine denominou como “omnipotência da riqueza” e como esta
condiciona a vida em sociedade, o poder que os “acumuladores” de capital exercem sobre os demais
“apenas” por possuíram tamanha riqueza (cf. 1917: 198); mas também acerca das suas profundas reflexões
sobre a democracia, assumindo diversas expressões históricas, não incompatível com uma ditadura, pois
esta corresponderá ao poder do Estado de uma classe sobre outra, inevitável dada uma divisão social de
classes, podendo ser mais ou menos democrática (cf. 1917: passim).
36
«A pobreza e a desigualdade profundas não são caraterísticas acidentais da ordem capitalista global. Elas
são construídas dentro das “regras do jogo”» - «Profound poverty and inequality are not accidental features
of the global capitalist order. They are built into ‘the rules of the game’.», (SMITH, 2009: 122).
37
«A propriedade privada adquirida pelo trabalho próprio, por assim dizer, assente na fusão do indivíduo
trabalhador, singular, independente, com as suas condições de trabalho, foi suplantada pela propriedade
privada capitalista, que assenta na exploração de trabalho alheio, mas formalmente livre.» - «Das
selbsterarbeitete, sozusagen auf Verwachsung des einzelnen, unabhängigen Arbeitsindividuums mit seinen
Arbeitsbedingungen beruhende Privateigentum wird verdrängt durch das kapitalistische Privateigentum,
welches auf Exploitation fremder, aber formell freier Arbeit beruht.» (MARX, 1867: 790).

[353]
porquanto juridicamente não existem classes – nenhuma (aparentemente) tem poder
direto sobre outra –, assim, acabando a “democracia” por legitimar as relações sociais-
económicas vigentes em capitalismo (cf. MARX, 1867: 189-190). 38
Em suma, a discussão em torno de um certo status de democracia não pode deixar
de ter em conta o assento social e económico em que esta se desenvolve (ou reflete), sob
pena de cair em mera formalidade. Apesar de soar a truísmo, infelizmente este assento
parece escapar à maior parte daqueles que pretendem refletir acerca das limitações e
aspirações de uma suposta democracia, principalmente quando desculpam os problemas
em questão sob o manto do elogio “fácil” e “genérico” de uma democracia como “o pior
dos sistemas, com exceção de todos os outros”.
Creio que se está em condições de terminar, ficando comodamente por uma
passagem que continua outro excerto utilizado nesta exposição, com vista a ajeitar um
remate:
Logo, portanto, que os operários [mas podem ser igualmente os restantes
assalariados, entre outros] se apercebem do segredo do que se passa, i. é, que
na mesma medida em que eles trabalham mais, produzem mais riqueza alheia,
e na mesma medida em que a força produtiva do seu trabalho cresce, tanto
mais precária se torna para eles a sua função como meio de valorização do
capital; logo que descobrem que o grau de intensidade da concorrência entre
eles próprios depende exclusivamente de pressão da sobrepopulação relativa;
logo que, portanto, procuram organizar por meio de trades unions

38
Não obstante, parece que na medida em que a democracia deixe de dar os resultados que são pretendidos
– acumulação e autovalorização do capital –, logo lhe cai a máscara. Atente-se ao que Marx denuncia em
entrevista: «A classe média [a burguesia] inglesa sempre se mostrou disposta a aceitar o veredicto da
maioria, desde que gozasse do monopólio do poder de voto. Mas, diga-me [Marx dirige-se ao jornalista],
logo que [ela] se encontre ultrapassada eleitoralmente [outvoted] no que considera questões vitais, veremos
aqui uma nova guerra de escravocratas.» - «The English middle class [the bourgeois] has always shown
itself willing enough to accept the verdict of the majority so long as it enjoyed the monopoly of the voting
power. But mark me, as soon as it finds itself outvoted on what it considers vital questions we shall see
here a new slave-owner’s war.» (MARX, 1871: 457-458). Marx tem presente o que se passou na Guerra
Civil Americana (1861-1865), a maneira como os escravocratas do Sul deram início à guerra quando as
coisas já não lhes corriam tão bem no plano executivo e legislativo, nomeadamente a partir da vitória
eleitoral de Abraham Lincoln (1809-1865). No fundo, a análise pode resumir-se da seguinte maneira,
voltemos a tomar uma passagem de empréstimo: «Venceu o ponto de vista expresso nesta história
(verdadeira ou inventada, pouco importa), que relata uma conversa entre dois membros da nobreza. Um
deles diz ao seu amigo não poder compreender como é que ele aceita que o seu cocheiro possa ter um voto
igual ao dele, ao que este último responde: é que, assim, posso dispor do meu voto e também do voto do
meu cocheiro.» (NUNES, 2017: 98 n.). Exemplos não faltariam para ilustrar os momentos em que o voto
não correspondeu ao esperado e logo se violou todo o sufrágio universal tão elogiado quando tudo “corre
bem”. Lembremo-nos do que fez deflagrar a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) – a vitória eleitoral dos
republicanos –; o Chile de Salvador Allende (1973); ou os mais recentes referendos na Irlanda (2008 e
2009) realizados até que desse o resultado pretendido, escusado será lembrar a chantagem a que o povo
irlandês foi sujeito durante o intervalo entre referendos; e os exemplos continuariam. O capitalismo tende
mais para a coincidência da sua forma política com o seu caráter despótico real, do que o contrário.

[354]
[sindicatos], etc., uma ação conjunta e planificada entre os ocupados e os
desocupados para quebrarem ou enfraquecerem as consequências ruinosas
daquela lei natural da produção capitalista sobre a sua classe – o capital e o
seu sicofanta, o economista político, clamam que há violação da lei “eterna”
e por assim dizer “sagrada” da oferta e da procura. Toda a coesão entre
ocupados e desocupados designadamente perturba o jogo “puro” daquela lei
(sublinhados nossos, MARX, 1867: 669-670). 39

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as tarefas do proletariado na revolução, Obras Escolhidas em seis tomos, Lisboa-
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Philosophie in ihren Repräsentanten Feuerbach, B. Bauer und Stirner, und des
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MARX (1847) Misère de la Philosophie. Réponse à la Philosophie de la misère de M.
Proudhon, Paris: A. Frank; Bruxelles: C. G. Vogler.

39
«Sobald daher die Arbeiter hinter das Geheimnis kommen, wie es angeht, daß im selben Maß, wie sie
mehr arbeiten, mehr fremden Reichtum produzieren und die Produktivkraft ihrer Arbeit wächst, sogar ihre
Funktion als Verwertungsmitte! des Kapitals immer prekärer für sie wird; sobald sie entdecken, daß der?
Intensitätsgrad der Konkurrenz unter ihnen selbst ganz und gar von dem Druck der relativen Übervölkerung
abhängt; sobald sie daher durch Trade’s Unions usw. eine: planmäßige Zusammenwirkung zwischen den
Beschäftigten und Unbeschäftigten zu organisieren suchen, um die ruinierenden Folgen jenes
Naturgesetzes der kapitalistischen Produktion auf ihre Klasse zu brechen oder zu schwächen, zetert das
Kapital und sein Sykophant, der politische Ökonom, über Verletzung des „ewigen” und sozusagen
„heiligen” Gesetzes der Nachfrage und Zufuhr. Jeder Zusammenhalt zwischen den Beschäftigten und
Unbeschäftigten stört nämlich das „reine” Spiel jenes Gesetzes.»

[355]
_______ (1861-63). Economic manuscript of 1861-63, Marx and Engels Collected
Works, London: Lawrence & Wishart, 1988; vol. 30, pp. 9-451.
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Capital. Crítica da Economia Política, tradução de José Barata-Moura et al,
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[356]
19. A IGNORÂNCIA E INJUSTIÇA DA DEMOCRACIA

Steven S. Gouveia1

Resumo: O valor da Democracia dependerá sempre dos juízos ou dos critérios que
escolhermos para a avaliar. Assim, se a paz social for o critério, é obviamente claro que
as democracias (talvez mais ocidentais) são um caso de sucesso. Se a igualdade ou a
liberdade forem os critérios, talvez possamos aí ter já algumas dúvidas. Imagine-se um
regime ditatorial em que o ditador ordena que toda a gente seja igual (literalmente: toda
a gente tem acesso às mesmas oportunidades, à mesma riqueza, à mesma qualidade de
vida, etc.). Se o nosso critério for a igualdade, então teremos de concluir que essa ditadura
parece ser um melhor sistema político que a democracia. Assim, o que queremos levantar
neste ponto é que o valor do sistema democrático dependerá sempre do critério escolhido
para o avaliar. Usualmente, o defendido é que a democracia é, dentro dos vários critérios
que possamos escolher, o regime mais interessante e justo. Churchill afirmou,
famosamente, que a democracia é a pior forma de governo, expecto todas a outras. Mas
será mesmo assim?
O objectivo deste artigo é perceber os fundamentos teóricos da democracia, a sua
ligação com o voto e, finalmente, demonstrar porque a democracia actual é um regime
demasiado frouxo para ser verdadeiramente justo. Apresentaremos ao longo da exposição
uma alternativa mais interessante e justa.

Palavras-Chave: Voto – Injustiça – Ignorância – Democracia – Epistocracia

1
Estudante de Doutoramento em Filosofia na Universidade do Minho. Investigador do Mind, Languague
and Action Group do Instituto de Filosofia da Universidade do Porto. Visiting Researcher (2017) no
Institute of Mental Health Research, University of Ottawa.

[357]
I

Um dos fundamentos mais relevantes da democracia é afirmar que todas as


pessoas têm valor e importância igual numa sociedade. Todos os indivíduos contam e são
importantes para o processo de decisão política. Mas, por que é que tal implica que todos
tenham a oportunidade de votar e escolher os decisores políticos e, consequentemente, as
próprias políticas? Devemos perguntar-nos se tal direito de voto é interessante e útil, isto
é, se leva a decisões justas. Se, por qualquer motivo, outro sistema político levar a
decisões mais justas que a democracia, então seria irracional defender que todos devem
ter direito a voto, dado que o resultado seria pior para todos.
O valor da democracia não é, como se poderia pensar, uma discussão recente. A
mesma aconteceu com grande impacto no seu próprio berço de nascimento: na Antiga
Grécia. O Partenon, templo dedicado à deusa grega Atena na Acrópole de Atenas e
construído por iniciativa de Péricles, é visto como símbolo da democracia, o que explica
porque os grandes líderes democráticos gostam de ser lá fotografados.
No Livro IX da República de Platão, Sócrates é apresentado como sendo um
grande crítico da democracia. Numa conversa com Adimanto, Sócrates usa o seu famoso
método socrático para mostrar ao próprio interlocutor que a democracia tem demasiadas
falhas intoleráveis. Sócrates começa por comparar a sociedade a um barco. Se fossemos
viajar de barco, quem idealmente escolheríamos para comandar o leme do barco?
Qualquer pessoa? Ou alguém que conhecesse as regras e os detalhes da arte da
navegação? Adimanto, o interlocutor, responde: claramente, devemos escolher alguém da
segunda opção! Então, pergunta Sócrates, porque achamos normal que qualquer pessoa
esteja apta a julgar quem deve governar uma nação?
Votar numa eleição ou num referendo é uma habilidade, não uma intuição
aleatória. E como qualquer habilidade, ela precisa de ser ensinada de forma sistemática à
população. Existir a opção de qualquer pessoa votar é, segundo Sócrates, tão
irresponsável como permitir que qualquer pessoa tome o leme do navio. O próprio
Sócrates viria a ser vítima directa da ignorância do voto: o filósofo foi julgado e
condenado por ‘corromper’ a juventude.
Uma das versões mais populares do julgamento indica que 500 atenienses foram
convidados a decidir sobre o caso. A sentença – morte por cicuta – foi aprovada por uma
margem muito pequena a favor da acusação. Claro, Sócrates não defendia uma solução
puramente elitista, em que apenas alguns pudessem votar. Mas defendia, distintamente,

[358]
que apenas aqueles cidadãos que pensassem racional e profundamente sobre os assuntos
políticos deveriam poder votar.
Podemos assim distinguir duas formas de democracia: uma democracia
intelectual, e uma democracia por direito de nascimento. Actualmente, a segunda
prevalece: damos o direito de votos a todos, sem haver qualquer ligação com a sabedoria
de cada um. Além de fazer esta crítica feroz, Sócrates ainda dissertou sobre as
consequências que a segunda forma de democracia iria necessariamente causar.
Segundo o filósofo grego, o voto ignorante iria necessariamente criar um sistema
demagogo. A própria Antiga Grécia está cheia de exemplos horrendos de demagogia,
como a figura de Alcibíades, um político muito rico e profundamente retórico que
aniquilou a liberdade ateniense, tendo conduzido a bela Atenas para um desastre militar
na Sicília. Sócrates sabia o quão fácil seria para os políticos explorar o desejo da
população para soluções fáceis e superficiais. Será absolutamente normal se o exemplo
actual da eleição de Donald Trump ou do Brexit vier agora à cabeça do leitor.
A democracia assenta num paradoxo fundamental. Por um lado, tem o benefício
de espalhar largamente o poder em vez de o concentrar nas mãos de poucos (como
acontecia com a monarquia absolutista ou a ditadura). Contudo, isso cria um problema:
removemos o incentivo das pessoas usarem o poder de forma egoísta para o seu próprio
bem à custa de todos os outros. Isso parece louvável, mas cria o seguinte paradoxo:
quando oferecemos às pessoas tão pouco poder e fazemos com que o poder seja tão
disperso, os votos individuais deixam de fazer diferença, pelo que as pessoas não têm o
incentivo de usar o voto racional e sabiamente.
Um princípio fundamental da democracia é que cada voto conta e é importante.
Cada pessoa tem direito a um voto e esse voto pode ser fulcral. Podemos formalizar e
calcular a importância do voto de cada pessoa. Suponha-se, por exemplo, que Donald, um
cidadão americano, tem de votar nas eleições presidenciais americanas e escolher entre
Donald Trump ou Hilary Clinton. Suponha-se que Donald prefere Clinton a Trump.
Donald acredita assim que Clinton seria mais benéfica no poder para a população
americana em geral do que Trump (causaria menos degradação social, apostaria na saúde
e na educação, etc.). Contudo, as razões enunciadas não mostram ainda que é racional
que Donald vote em Clinton. Antes, tal depende do quão provável é o voto do Donald
fazer alguma diferença. O mesmo se pode afirmar sobre apostar na lotaria: por muitos
milhões que possamos ganhar na lotaria, tal não implica que seja racional gastar dinheiro
em várias apostas.

[359]
Suponha-se, assim, que o objectivo de Donald é mudar o resultado da eleição entre
os dois maiores partidos. Nesse caso, o valor expectável do seu voto (Uv) é:

(1) Uv = p[V(D)−V(R)]−C

onde p representa a probabilidade do voto de João ser decisivo, [V(D) – V(R)] representa
(em termos monetários) a diferença no valor expectável dos dois candidatos e C
representa o custo de oportunidade de votar. Resumidamente, o valor do voto do João é
o valor da diferença dos dois candidatos descontando a hipótese do seu voto ser decisivo,
menos o custo de oportunidade de votar. Desta forma, votar é exactamente igual,
matematicamente, a comprar um bilhete de lotaria e esperar ganhá-la. A não ser que
p[V(D)−V(R)] > C então, considerando os objectivos propostos por Donald inicialmente,
é irracional para ele votar.2
Há, claro, uma discussão intensa sobre o valor preciso de calcular a probabilidade
de um voto ser decisivo. Mas é consensual que esse valor será sempre demasiado pequeno
para ser tomado como racionalmente relevante. O benefício expectável de um voto (i.e.,
p[V(D)−V(R)] > C) vale, pelo menos, menos que um milionésimo de um centavo (cf.
Lomasky & Brennan, 1993: 56-57).
Apesar deste dado relevante, muitas pessoas argumentam que temos a obrigação
moral de votar. Um dos argumentos mais usados pode ser afirmado do seguinte modo:

(2) E se toda a gente ficasse em casa e não votasse? O resultado seria desastroso! Logo,
temos [todos] a obrigação moral de votar (Lomasky & Brennan, 2000: 75)

Ora, para qualquer pessoa sem formação em lógica e teorias da argumentação, este até
poderá passar por um bom argumento e convencer muita gente que, de facto, temos a
obrigação moral de votar numa determinada eleição. Mas, de facto, o argumento é muito
fraco, tratando-se de uma versão muito pouco interessante da falácia da generalização.
Para ver a fraqueza do argumento, peço ao leitor que tome atenção ao seguinte argumento:

2
Cf. Brennan, 2016.

[360]
(3) E se toda a gente ficasse em casa e não cultivasse? O resultado seria desastroso
(morreríamos todos à fome!). Logo, temos [todos] a obrigação moral de nos tornar
agricultores. (Ibid, 76).

Não se segue do facto de ninguém fazer alguma actividade que todos tenhamos de fazer
essa actividade. O que interessa é que um número suficiente de pessoas tenha essa
actividade. Assim, esta primeira tentativa falha em apresentar razões válidas para a tese
da obrigatoriedade do voto que, lembre-se, é uma tese universalista.3
Mesmo assumindo que existam argumentos a favor do dever de votar, um
problema surge de imediato: demonstrar que há um dever de votar não é suficiente para
apelar a um certo objectivo x que os cidadãos plausivelmente têm o dever de apoiar. O
que é necessário provar é que votar é a única forma de alcançar x. Assim, o que se está a
afirmar é que votar é apenas uma forma num conjunto diversificado de alcançar o mesmo
x. Por exemplo, suponha-se que é argumentado que os cidadãos devem votar para exercer
a sua virtude cívica. O melhor argumento teria a seguinte formulação:

(4) Deves ser moralmente virtuoso e praticar actividades necessárias para seres
virtuoso;
(5) A virtude cívica é uma virtude moral;
(6) Logo, deves praticar actividades necessárias para seres virtuoso;
(7) A virtude cívica requer votar;
(8) Logo, deves votar.4

Ainda assim, teríamos de explicar porque é que exercer a virtude cívica implica
votar – (7) é portanto, a nosso ver, falsa - em vez de executar qualquer outro acto de
virtude cívica (como fazer voluntariado, doar para caridade, dar aulas a iletrados, escrever
artigos ou livros sobre a democracia, pintar um quadro, participar em manifestações,
questionar as ordens superiores, etc.) muito mais eficaz.
Assumindo então que esta forma de justificar o voto é equivocada, podemos
avançar com uma terceira forma de justificar a obrigatoriedade do voto. A ideia é a
seguinte: temos a obrigação de votar por causa da luta que os nossos antepassados tiveram
para possuirmos actualmente esse direito. Devemos isso aos agentes políticos do passado.

3
Isto é: todos temos o dever moral de votar.
4
Cf. Bennan, 2011: 55. A expressão “deves” resume a expressão “és moralmente obrigado a”.

[361]
Expomos, assim, o simbolismo que está imbuído no voto contra os tempos negros das
sociedades ditatoriais. Assim, esta terceira tese afirma que temos a obrigação moral de
votar porque muitas pessoas sofreram (e até morreram) para actualmente termos esse
direito. Apesar de parecer uma boa tese, podemos alterar os detalhes da mesma, mantendo
a estrutura, e perceber o quão frágil esta é. Por exemplo:

(9) “Pessoas lutaram no passado (e algumas foram presas, torturadas e até


executadas) pela nossa liberdade de expressão; logo, estamos moralmente
obrigados a escrever livros (para expressar o direito à liberdade de expressão)”

(10) “Pessoas lutaram no passado (e algumas foram presas, torturadas e até


executadas) pelo direito de associação e manifestação; logo, estamos moralmente
obrigados a marchar nas manifestações”.

Com (9) e (10) mostramos, assim, a fragilidade do argumento. Claro, é importante termos
esses direitos. Mas nada indica que temos a obrigatoriedade moral de activamente praticar
todos os direitos que foram alcançados no passado.
Uma quarta forma de justificar a obrigatoriedade moral do voto é a seguinte: um
cidadão y que não vota está activamente a beneficiar de uma boa governação e da votação
de um determinado governo. Apesar de não ter votado, esse cidadão está a colher os frutos
de um governo eleito pelos restantes cidadãos. Ora, tal pode revelar-se injusto pois y não
contribuiu directamente para isso. Contudo, mesmo não tendo sido parte activa da escolha
do governo, y está a ganhar com isso (assumindo que a governação dos políticos eleitos
é positiva). Deste modo, y possui uma dívida para com a sociedade e deve repará-la
através da sua participação política pelo voto.
O problema deste argumento é que, novamente, não mostra a necessidade lógica
de que votar é a melhor forma de pagar a dívida à sociedade. Mesmo que assumamos (o
que é discutível), que um cidadão que não vota deve retribuir os ganhos que obtém de um
governo eleito, não se segue daí que y deve votar. Antes, e como já indicámos acima,
existem inúmeras maneiras mais eficazes de dar algo à sociedade do que votar. Aliás,
como já vimos em (1), votar não parece, pragmaticamente, eficaz ou revelante para dar
retorno à sociedade.
Assim, concluímos que não parecem haver boas razões a favor da obrigatoriedade
moral de votar. Mas, mesmo assumindo que fossemos obrigados a votar, porque é que
isso seria algo positivo?

[362]
Nos Estados Unidos da América5 foram feitos vários estudos6 para perceber o
conhecimento político, social e económico do cidadão comum. A maioria dos cidadãos
americanos não consegue nomear o nome do congressista eleito no seu estado ou sequer
conhece a duração do mandato de cada político (cf. Caplan, 2007: 8).
Na campanha presidencial Americana de 1992, que opunha George H.W. Bush a
Bill Clinton, o facto mais conhecido do primeiro era que detestava brócolos. 86% da
população sabia nomear o nome do cão dos Clinton, mas apenas 15% tinham
conhecimento que ambos os candidatos eram a favor da pena de morte. Estudos
internacionais mostram que o conhecimento da população americana encontra-se
somente um pouco abaixo da média mundial (cf. Carpini & Keeter, 1996: 89-92).
Além de desconhecerem factos que deveriam ser relevantes na votação de cada
um, e de conhecerem muitos factos totalmente irrelevantes, os votantes têm muitas vezes
leituras exageradas ou absolutamente incorrectas das políticas actuais.
Por exemplo, foi sugerido aos cidadãos americanos que escolhessem dois sectores
que mais fundos recebiam do orçamento público (entre ajudas sociais, programas sociais,
saúde, educação, força militar, pagamento de juros de dívida pública, ajuda estrangeira,
segurança, etc.). O sector onde o governo americano investia mais dinheiro era, segundo
a percepção dos cidadãos americanos, no auxílio financeiro a países estrangeiros (cf.
Caplan, 2007, 79-80).
Além de indicarem o sector, foi-lhes também solicitado que indicassem que
percentagem do orçamento seria aplicada nesse sector. Neste caso, a maioria da população
indicou que um quarto (1/4) do orçamento federal americano era gasto na ajuda externa
quando, efectivamente, o orçamento usado para esse sector não representa mais de um
por cento do orçamento total disponível (cf. Norris, 2011).
Outro exemplo actual pode ser dado sobre o Brexit: grande parte da população
votou a favor do Brexit por causa do impacto dos imigrantes: estes vêm roubar-lhes os
empregos e vêm viver à custa do Estado. Ou seja: os cidadãos britânicos vão estar a pagar
impostos para que os imigrantes usufruam de benefícios fiscais sem, contudo, retribuir
para esses gastos. Esta é a narrativa que a maior parte dos cidadãos britânicos têm da
realidade. Contudo, a realidade é bem diferente. Estudos (Dustmann & Frattini, 2014)
apontam que os factos são exactamente o oposto: os imigrantes pagaram mais impostos
do que os próprios cidadãos britânicos. Segundo o estudo, os imigrantes (entre o período

5
Muitas das referências são retiradas de Huemer, Michael (2012).
6
Por exemplo: Ilya, 1998, 2004 e 2013.

[363]
de 2000 e 20011) vindos de fora da União Europeia contribuíram com mais 2% de
impostos do que aquilo que obtiveram como apoios e benefícios sociais. Já os imigrantes
vindo dos países-membros da União Europeia, no mesmo período, contribuíram com
mais 34% de impostos do que adquiriram em apoios e benefícios do governo britânico.
Curiosamente, e contra qualquer percepção comum da população, são os próprios
cidadãos britânicos que, em média, pagaram menos impostos 11% em relação aos apoios
e benefícios sociais que receberam do governo.
Assim, a nossa primeira sugestão positiva é defender que quem deve decidir sobre
as decisões políticas de uma nação devem ser os especialistas. Mas porque seria vantajoso
que os especialistas tivessem maior impacto nas decisões políticas? Na verdade, é difícil
encontrar consensos em diversos problemas. Mas apesar da dificuldade de muitas
questões, alguns dos problemas que ainda hoje causam diversas dificuldades à sociedade
poderiam ser facilmente resolvidos se os decisores políticos dessem atenção aos
especialistas. A questão do terrorismo (supostamente religioso) está infelizmente na
moda. Grande parte dos especialistas na área de estudo deste fenómeno concordam que o
terrorismo funciona especificamente como réplica de ocupações militares estrangeiras7.
Por exemplo, Osama Bin Laden afirmou que:

O Povo do Islão acordou e percebeu que é o principal alvo da agressão da aliança dos
Cruzados-Sionistas. (…) A última e maior dessas agressões (…) é a ocupação da terra
dos dois Lugares Sagrados [Arábia Saudita] pelo exército dos Cruzados americanos e
seus aliados (Bin Laden, 1996).

Ora, a leitura dos decisores políticos dos ataques terroristas nunca aborda este ponto
fulcral da discussão, escolhendo outros factores: o choque de culturas e valores, o
fundamentalismo religioso, o mal essencial dos terroristas, etc., razões que possam
justificar socialmente a continuação dessas mesmas invasões. Exemplo pragmático disso
é parte do discurso de George W. Bush em resposta ao 11 de Setembro de 2001:

Eles odeiam as nossas liberdades: a nossa liberdade religiosa, a nossa liberdade de


expressão, as nossas liberdades de voto e de nos associarmos entre nós e
discordarmos. (…) Esses terroristas matam não apenas para acabar com vidas, mas
para romper e acabar com um modo de vida. (…) Esta é uma luta civilizacional. Esta

7
Cf. Pape e Feldman, 2010: 9-10; Scott, 2010: 53-54, 55-56, 114-115 e 290.

[364]
é uma luta de todos os que acreditam no progresso e no pluralismo, na tolerância e na
liberdade (Bush, 2001).

Infelizmente, evitar ouvir os especialistas deste problema apenas faz com o mesmo
continue e tenha proporções cada vez maiores. Este caso particular mostra que, mesmo
quando um sector específico da sociedade conhece, porque estudou racional e
empiricamente uma determinada questão política, o conhecimento é ignorado pelos
líderes políticos e, consequentemente, pela população em geral, que apenas tem acesso a
uma Media cujo interesse principal é o lucro, e não a verdade. A democracia permite tudo
isto.
Outro problema é o das alterações climáticas. As evidências são óbvias. Mas a
democracia permite eleger políticos que negam este fenómeno, algo que acaba por
prejudicar o mundo inteiro, directa ou indirectamente, a curto e a longo prazo.
Claro, a ciência social e política é muito mais complexa de investigar do que a
ciência dita natural. Será difícil imaginar que tipo de experiência ou teste poderíamos
formular para compreender o que é a justiça ou a equidade. Tal acontece porque as
questões políticas são tendencionalmente questões não empíricas. É muito difícil
construir uma experiência com uma sociedade inteira, aplicar diversas variáveis e
perceber como devemos resolver algum problema particular. Neste sentido, a ciência
natural é bastante mais fácil de ser praticada: basta isolar determinado objecto em
laboratório e estudá-lo aprofundadamente.
Fazer isto com a sociedade é muito mais complexo. Mas, exactamente porque os
problemas são complexos, esse seria um ponto para favorecer as decisões dos sábios, e
não as decisões populares.
Na aproximação das eleições, os governos investem bastante no incentivo ao voto,
sendo que em alguns países o mesmo é até obrigatório. Mas é difícil perceber porque é
que o voto ignorante é importante numa sociedade que procura ser justa e equitativa. É
nossa convicção que os políticos apelam bastante ao voto como forma de legitimar a sua
eleição. Mas não nos esqueçamos do impacto que o voto tem: literalmente, votar numa
política específica é impor à força medidas políticas aos outros cidadãos.
A votação de uma lei e da sua aplicação é de facto algo que necessita de uma boa
justificação: está subjacente à formulação de uma lei uma força coerciva enorme para
quem a violar ou desobedecer. Tal força jurídica necessita de uma favorável
fundamentação, e não uma justificação baseada no voto da maioria ignorante.

[365]
Exigir que os cidadãos tenham a obrigação moral de estudar e adquirir
conhecimentos para escolherem racionalmente o melhor candidato é, certamente, exigir
demasiado da sociedade. Tal implicaria outras pressuposições, como o acesso a formações
gratuitas, medidas de incentivo ao conhecimento, etc. Mas o que defendemos é que é
fundamentalmente errado pensar que os cidadãos têm a obrigação ou dever moral de
votar. No máximo, o que podemos afirmar certamente é que os cidadãos ignorantes têm
a obrigação moral de não votar (cf. Bernnan, 2011: cap.3).
Dada as condições de votos de cada pessoa, podemos até afirmar que é moral e
socialmente irresponsável sequer votar numa eleição. Um argumento para defender o que
acabo de afirmar pode ser o seguinte:

(11) Temos a obrigação moral de não participar em actividades colectivas


prejudiciais quando não participar nessas actividades não impõe um custo pessoal
significativo;

(12) Usar um voto injustificado (por ser incompetente) e prejudicial é participar


numa actividade colectiva prejudicial, enquanto que a abstenção impõe um custo
pessoal baixo;

(13) Logo, não deves fazer uso de um voto prejudicial injustificado. (Ibid, 84.)

A conclusão (13) sugere que, se és incompetente, então tens a obrigação moral de não
votares numa eleição, dado que o teu voto iria prejudicar a maioria pela tua falta de
conhecimento. Esta é a mesma razão porque uma pessoa que não é formada em Ciências
da Saúde tem a obrigação moral de não prestar auxílio em situação de acidentes graves:
exactamente por serem incompetentes, a probabilidade de causarem problemas é elevada
e, por isso, a pessoa tem o dever moral de abster-se de auxiliar alguém em estado crítico,
devendo, antes, chamar os especialistas de saúde especializados nesse tipo de auxílio.
Além do problema da ignorância política, existe um segundo problema relevante
no voto. Devemos perceber como é que as pessoas votam de facto. Estudos empíricos
apontam que, ao contrário da crença comum, os votantes não votam no próprio interesse8,

8
Mesmo que as pessoas votassem para promover os interesses egoístas de cada cidadão (o que não é
indicado por vários estudos), tal só iria promover o seu interesse se o peso desse voto superasse o peso de
outros votos. Por exemplo: se pertencer a uma minoria étnica que é odiada pela maior parte da sociedade,
mesmo que todos os elementos desse grupo minoritário votassem, o voto não teria qualquer impacto no
resultado final. Aconteceria que o voto informado de minorias iria ser esmagado pelo voto desinformado

[366]
isto é, não votam egoisticamente. Antes, votam naquilo que percepcionam como sendo o
interesse nacional.9
Por exemplo, nas legislativas de Outubro de 2015 em Portugal, se as pessoas
votassem todas egoisticamente, então o Partido Comunista ou o Bloco de Esquerda
seriam os partidos mais votados, porque ambos defendiam o aumento substancial do
salário mínimo, das pensões e subsídios, do investimento na saúde e educação, isto é,
medidas que beneficiariam directamente a maioria dos cidadãos. Mas não é isso que
acontece, factualmente. Um cidadão quando vota fá-lo pensando não em si, mas naquilo
que percepiona como o interesse nacional. E é aqui que voltamos ao problema da
ignorância política: aquilo que é percepcionado por cada cidadão como interesse nacional
é baseado em má informação, profundamente influenciada por crenças superficiais que
não tomam em conta os factos e evidências apresentados pelos cientistas sociais e
políticos.
A democracia funciona actualmente deste modo, seguindo um exemplo de
Brenann10: façamos uma analogia do sistema democrático com uma cadeira universitária
e os alunos que a frequentam. Cerca de 300 alunos estão inscritos nessa cadeira e o
professor anuncia no início do semestre que a avaliação da cadeira será um único exame
final no fim do semestre e contará inteiramente para nota final de cada aluno. Mas, em
vez de cada aluno ter a sua nota final (relativa ao exame que fez), o professor vai fazer
uma média das notas de todos os alunos inscritos e todos terão a mesma nota final. O
resultado deste método seria desastroso: nenhum aluno estudaria e a nota média seria
certamente negativa.
Efectivamente, a estrutura do sistema democrático é similar a esta forma de
pensar. Os votantes não conhecem nada de relevante para votarem. Como vimos, quando
estudamos o que eles sabem, o conhecimento geral da sociedade é profundamente
ignorante. Mas este fenómeno é, contudo, um elemento racional, a que os especialistas

da maioria. A democracia permite isto, e a nossa proposta procurará formas de atenuar esta e outras
injustiças.
9
Cf. Funk and Garcia-Monet (1997), Funk (2000), Feddersen, Gailmard, and Sandroni (2009) e Chong
(2013: 101). Agradeço pessoalmente a Jason Brennan por me indicar estes estudos.
10
Claro, o número de indivíduos que participam na cadeira universitária ou na eleição é relevante para o
resultado final. Isto porque numa turma de 5 indivíduos, facilmente a média seria positiva. Contudo,
enquanto mais pessoas estiverem a ser consagradas, menos será o valor médio de sabedoria. O caso das
eleições é óbvio: são milhões de pessoas a ofuscar o conhecimento relevante de outros milhares.

[367]
chamam de “ignorância racional”11. Racional porquê? Porque o problema da democracia
é retirar, como vimos em (1), o incentivo do voto. O custo-benefício de votar, isto é, o
tempo, energia e investimento que seria necessário gastar para tornar um votante
competente é demasiado elevado para o benefício que esse votante iria retirar do seu voto.
Assim, a maior parte das pessoas escolhe racionalmente ignorar grande parte da
informação relevante para votar.
Além de ser grave a maioria dos cidadãos não ter conhecimento suficiente para
votar, podemos fazer uma afirmação muito mais radical: é totalmente injusto,
moralmente. Tal acontece porque os políticos tendem a ter um grande incentivo em
responder às preferências do eleitorado (embora haja alguma independência - o que
explica, por exemplo, porque as democracias não funcionam assim tão mal). Por razões
que nos parecem históricas, a generalidade das pessoas não tende a compreender o quão
injusto é este processo de decisão.
Uma das razões mais óbvias é que o número de pessoas que participam neste
processo é demasiado grande para ser racionalmente pensado. Outra razão é que o tema
da democracia possui uma expressão de sacralização criada pela sua luta contra as
ditaduras. Vejamos a seguinte situação para compreender o impacto que decisões mal
informadas podem ter na vida real das pessoas.
Imagine que João é suspeito de homicídio qualificado nos Estados Unidos da
América e pode receber a pena de morte ou prisão perpétua. É seleccionado um júri
aleatório e os factos e evidências dos acontecimentos são apresentados. O Júri retira-se
para tomar a decisão. Contudo, grande parte das pessoas do júri não tomou atenção ao
julgamento (um estava a ler um livro do Nicholas Sparks, o outro as Tardes da Júlia, etc.).
Claro, o Júri poderia solicitar a transcrição do julgamento, mas a maioria dos participantes
acha uma tarefa demasiado entediante ler tanta informação. Assim, o Júri decide tomar a
decisão atirando uma moeda ao ar. Se calhar cara, o homem é culpado. Se calhar coroa, é
libertado. Para tornar a situação dramática (se esta não for já suficientemente dramática),
o homem é considerado culpado porque aleatoriamente saiu cara. Qual é o problema desta
deliberação? Qualquer pessoa afirmará revoltada que todo o processo é problemático.

11
Nas palavras de Caplan, a maior parte dos cidadãos são “racionalmente irracionais”. Uma pessoa é
racionalmente irracional quando é instrumentalmente racional para essa pessoa ser epistemicamente
irracional (cf. Brenann, 2016: 61).

[368]
Para tomar decisões tão importantes, não se pode ignorar os factos e evidências, nem os
especialistas. Fazê-lo é tornar o próprio processo injusto e moralmente reprovável. Toda
a gente concordará certamente com esta leitura.
O passo que o leitor tem de fazer agora é perceber que o sistema democrático
funciona exactamente como o caso ficcional que acabo de relatar. A votação democrática
é feita por pessoas como o nosso Júri, que ignoram os factos das ciências políticas, sociais
e económicas, que preferem passar tempo a ver novelas ou reality shows. Dado que
ignoram completamente a política, o gesto do seu voto é literalmente o atirar de uma
moeda ao ar. Este processo é totalmente ilegítimo porque sairão decisões político-
jurídicas desse sufrágio que serão, novamente, impostas pela coerção da lei a todos os
cidadãos desse país. Assim, devemos estar abertos a explorar programas de investigação
alternativos à democracia, diferentes formas de governo representativo e diferentes
formas de votação em vez de um completo sufrágio universal com direitos de votos iguais
para todos.

II

Que alternativa será essa? A epistocracia12, uma forma de regime político que,
como vimos inicialmente, encontra ecos em Platão, é apresentada por Jason Brennan na
sua obra “Against Democracy” (2016). A democracia cartacteriza-se fundamentalmente
pela Lei de Povo. Pelo contrário, a epistocracia caracteriza-se pela Lei dos Especialistas.
Porque devemos escolher que pessoas com pouco conhecimento em política e economia
possam tomar decisões políticas e económicas de uma nação, quando podemos propor,
muito mais racionalmente, que sejam especialistas com formação específica a fazê-lo?
Num sistema epistocrático, o peso dos votos de cada pessoa dependerá da sua
formação e nível de especialidade. Uma questão se levante de imediato: o que conta como
votante competente? Que critério devemos escolher para escolher que votos de que
pessoas terão mais peso? O problema do voto não é que as pessoas não sabem, por
exemplo, qual deve ser, em abstracto, o perfil de um presidente. O problema é que as
pessoas, por razões cognitivas e emocionais, não sabem aplicar esse conhecimento
abstracto na hora do voto.

12
Termo cunhado por Estlund ,2003.

[369]
Não se está a afirmar que a democracia no seu todo funciona mal. Muitos
movimentos sociais surgiram do processo democrático e foram fundamentais para a
melhoria da sociedade em geral. O problema é que a democracia, como sistema, também
permite más decisões. Por que não haveríamos de querer um sistema político que, em vez
de acertar metade das decisões correctamente, tivesse uma taxa de acerto superior a 90%?
O problema da democracia (e a imagem que muitos pensadores passam da mesma)
é que representa um modelo que, na teoria, é perfeito, mas que na realidade, funciona
mal13. A imagem ilusória da democracia é que as várias partes discutem as suas diferenças
e chegam a uma solução que seja saudável para ambas as partes e para todos. Mas na
realidade o mundo político é um mundo feroz, embutido de interesses pessoais, onde as
pessoas são profundamente influenciadas por vários vieses14 mesmo quando confrontadas
com factos e evidências. A democracia funciona algumas vezes, e falha muitas vezes.
O facto de alguém ter mais conhecimento não significa que deve estar numa
posição de poder. Mas, por outro lado, deveria ser claro que alguém que é incompetente
não deveria mandar e ter poder sobre nós.15
Segundo Brennan (2016: 17-19), existem dois modelos de votantes: (a) os Hobbits
e os (b) Hooligans. Os (a) são cidadãos com pouco conhecimento que não querem saber
muito de política, não possuem uma ideologia estável e não pensam muito nos problemas
políticos e não participam de todo no processo político. Os (b) são pessoas que apostaram
na política, têm orgulho da sua identidade partidária, mas são extremamente enviesados,
odeiam pessoas de outros partidos que discordam deles, etc.

13
Duas referências importantes neste sentido, que opõe uma imagem mais ideal que os teóricos
democráticos possuem contra visões empíricas de como a democracia funciona realmente são Murtz,
(2006), e Christopher & Larry (2016).
14
Alguns dos vieses que nos influenciam são os seguintes: “(a) confirmation bias: We tend to accept
evidence that supports our preexisting views. (b) disconfirmation bias: we tend to reject or ignore evidence
that disconfirms our preexisting views. (c) motivated reasoning: we have preferences over what we believe,
and tend to arrive at and maintain beliefs we find comforting or pleasing, or whatever beliefs we prefer to
have. (d) intergroup bias: we tend to form coalitions and groups. We tend to demonize members of other
groups, but are highly forgiving and charitable toward members of our own groups. We go along with
whatever our group thinks and oppose what other groups think. (e) availability bias: the easier it is for us
to think of something, the more common we think that thing is. The easier it is for us to think of an event
occurring, the more significant we assume the consequences will be. We are thus terrible at statistical
reasoning. (f) prior attitude effect: when we care strongly about an issue, we evaluate arguments about the
issue in a more polarized way. (g) peer pressure and authority: people tend to be influenced irrationally by
perceived authority, social pressure, and consensus” (Brennan, 2016: 62).
15
Nas palavras do autor: “when some citizens are morally unreasonable, ignorant, or incompetent about
politics, this justifies not permitting them to exercise political authority over others. It justifies either
forbidding them from holding power or reducing the power they have in order to protect innocent people
from their incompetence” (Brennan, 2016: 30).

[370]
Estes são os dois tipos de pessoas com quem temos de lidar tanto num sistema
democrático como num sistema epistocrático. Não possuímos, factualmente, um número
elevado de cidadãos racionais, com pensamento crítico e rigoroso. A questão é então
perceber se podemos criar um sistema que diminua o impacto dos mais ignorantes e que
aumente o impacto dos mais sábios.
Claro, a democracia poderia funcionar melhor se tivéssemos um melhor sistema
educacional, mais oportunidades para os pobres e minorias, etc. Mas, como vimos, parece
ser próprio do sistema democrático impossibilitar um desenvolvimento mais acelerado
dessas melhorias.
Muitas vezes a pessoa ignorante é contra uma política específica que,
factualmente, a favorece. Por exemplo, nos Estados Unidos, o típico votante de Trump
recebe um maior subsídio do seu rendimento através das receitas do mercado livre,
embora eles sejam contra. Sabemos isso porque podemos estudar empiricamente esses
detalhes. Apesar do mercado livro trazer-lhes vantagens económicas, são contras as
próprias instituições que melhoram a sua qualidade de vida, por acharem que estas os
estão a prejudicar e vão, assim, lutar contra elas e votar no político que for contra medidas
de mercado livre.
Não sabemos se um modelo epistocrático será um melhor modelo que o
democrático. Essa resposta terá de ser investigada empiricamente. O que acreditamos é
que um modelo deste tipo irá produzir melhores resultados do que o actual. Mas veremos
o que os cientistas sociais e políticos nos irão dizer sobre o mesmo.
E em relação a voto? Que outras formas de votação podem existir? Esta questão
não será tanto da responsabilidade do teórico político, mas dos cientistas políticos. Isto é:
trata-se de uma questão empírica pensar noutras formas de eleger os nossos
representantes.
A diferença fundamental entre a democracia e a epistocracia é a forma como
elegemos o governo. Todas as instituições sociais e políticas mantêm-se, mas não temos
por princípio um sufrágio universal e igual para todos.
Assim, podemos ter um sistema de votação em que toda a gente pode ter direito a
um voto apenas se passarem por um teste rigoroso de conhecimento político básico. Outra
proposta, que encontra ecos em John Stuart Mill seria um sistema em que todos os
cidadãos têm direito a um voto, mas se o cidadão passar por alguma forma de credenciá-
lo como tendo conhecimento relevante, esse cidadão ganharia um segundo voto. Outra
ideia seria manter o sufrágio universal, isto é, toda a gente poderia votar, mas apenas os

[371]
cidadãos que tivessem passado a um teste de competências gerais sobre os programas de
governo seriam contabilizados. Outra forma seria manter também o sufrágio universal,
mas criar uma instituição epistocrática que poderia vetar ou aprovar as decisões que
sairiam desse sufrágio universal (como acontece, por exemplo com o Tribunal
Constituicional português, que pode vetar uma decisão tomada por um tribunal de menor
dimensão ou uma lei aprovada pela Assembleia da Repúblico por ser inconstitucional).
Existem, claro, vários problemas com estas propostas. O que defendemos é que
devemos estudar empiricamente se estas teriam mais sucesso que o sistema actual. E, se
as evidências demonstrarem isso, não haverá razões para não aplicarmos outros sistemas
que o regime democrático.
Aristóteles respondeu à crítica platónica à democracia afirmando que, apesar do
rei-filósofo ser a melhor escolha para governar, este nunca viria a existir na vida real: as
pessoas comuns não são sábias ou boas o suficiente para desempenhar esse papel ou não
podem sequer ser treinadas para tal. Concordamos com o Estagirita: tentar criar reis-
filósofos (ou seja, pessoas com elevadíssimo conhecimento político, económico e social)
é impossível. No mundo real, governar é uma tarefa demasiada difícil e complexa para
ser praticada por uma pessoa. E, pior que isso, tal poder poderá levar a pessoa errada ao
cargo: alguém que iria abusar desse poder para os seus próprios fins.
Ainda assim, a epistocracia não sofre com essa crítica, exactamente porque não
defende a concentração de poder num cidadão ou num conjunto restrito de cidadãos (cf.
Brenan, 2016: 27 – 28). Além das várias formas apresentadas acima, podemos dar mais
sugestões: por exemplo, ninguém, por princípio, tem o dever de votar; quem quiser ter
esse direito terá de fazer algum tipo de teste de competência. A poucos dias do processo
de eleição, daqueles cidadãos que passarem no teste, alguns serão selecionados
aleatoriamente para votar. Novamente, muitos exemplos podem ser dados: a nossa
sugestão é que seja investigado qual a forma mais justa de votação.
Podemos, assim, concluir apresentando formalmente o argumento de Brenann:

(14) Não existem boas razões para preferirmos a democracia à epistocracia;


(15) É injusto prejudicar de forma forçada e significativa a vida dos cidadãos em
resultado de decisões tomadas por um órgão deliberativo incompetente;
(16) Devemos substituir um método incompetente de tomada de decisão por um
mais competente;

[372]
(17) O sufrágio universal tende a produzir decisões incompetentes, enquanto
certas formas de epistocracias são susceptíveis de produzir decisões mais
competentes;
(18) Portanto, provavelmente, devemos substituir a democracia por certas formas
de epistocracia.

A democracia é claramente superior à ditadura. Muitos debates sobre o valor da


democracia carregam este lado mais emocional do que racional. Grande parte dos grandes
pensadores actuais viveram num tempo de ditaduras ferozes, contra todo o tipo de
liberdades, viram as suas obras apagadas das bibliotecas e, os que menos sorte tiveram,
foram presos e até assassinados. Ora, este contexto mais cultural e social da discussão
não permite que muitos possam discutir seriamente a democracia, pois acham que metê-
la em causa é voltar a permitir que a ditadura tenha algum espaço no debate.
Claro, não é de todo isso que defendemos. As ditaduras são obviamente más em
quase todos os critérios que elegemos inicialmente. Um dos problemas mais sérios das
ditaduras é atentarem contra os direitos humanos, contra a liberdade e contra a vida. Ora,
não seria difícil imaginar o resultado de uma votação democrática sobre o homicídio:
trata-se de um problema pouco complexo. A maioria dos cidadãos percebe (por diversas
razões) que estar morto é pior do que estar vivo. Claro, o problema filosófico do valor da
vida e da morte é complexo. Mas toda a gente16 concorda que a morte é um mal.
Facilmente, o resultado de uma votação a favor de uma lei contra o homicídio teria uma
votação positiva gigante (talvez uma minoria votasse contra).
Contudo, o problema da democracia é que os problemas com que lidamos
actualmente – a legalização das drogas leves ou pesadas, a eutanásia, o aborto, a guerra17,
a justiça, a saúde, a educação, da pobreza, etc18. – são problemas muito mais complexos
do que o primeiro. E é difícil perceber como é que podemos permitir racionalmente que
propostas de leis tão importantes e complexas possam ir a votação da uma maioria
ignorante.
A ignorância não está só na generalidade do povo. Os próprios líderes políticos
são aqueles que, por vezes, mais ignorância possuem. A maioria dos deputados

16
Menos os caros epicuristas, claro!
17
Analiso o problema da guerra em Gouveia, 2017.
18
Outro problema importante é, por exemplo, se a meritocracia é um sistema justo e deve ser aplicado e
se a existência de free-riders é um problema de justiça (cf. Gouveia, 2015).

[373]
actualmente eleitos tem formação jurídica. Ora, o ensino do Direito e a formação jurídica
não é de todo suficiente para tomar uma decisão política racional. Muitos dos eleitos usam
o conhecimento dos códigos jurídicos para favorecer determinados grupos privados ou
conhecidos. Assuntos tão complexos como os acima mencionados não devem claramente
ser objecto de discussão popular.
É curioso que a grande parte dos leitores poderá ser contra o que acabo de declarar.
Mas peço que pensem no seguinte exemplo. Imaginem que possuem um tumor cerebral
e que têm de ser sujeitos a tratamento e cirurgia com urgência. Seria racional reunirem-
se na praça pública e deixarem à escolha popular o diagnóstico e tratamento (a decisão!)
nas mãos de pessoas que não possuem formação médica e são bastante ignorantes em
medicina? Claramente, nenhum dos leitores iria optar por essa solução. O leitor iria, se
tivesse essa possibilidade, contratar o melhor médico especialista activo. Porquê? Porque
é racional escolher alguém que estudou e tem formação para o tratar, e seria irracional
dar a escolha do tratamento a uma maioria de cidadãos profundamente ignorantes. O que
defendemos é somente que as pessoas sejam coerentes e que o mesmo deva acontecer em
relação às decisões políticas e económicas.
Um regime político vale apenas pelos fins da Justiça que alcança. Esses fins são
independentes dos procedimentos que o regime político assume. Escolhemos, assim, o
melhor modelo de governo que melhor nos levará a esses fins. Outra forma de ler a
democracia é afirmar que esta é boa em si mesmo. Mas o que torna então a democracia
boa em si mesma? Uma das razões é que a democracia permite que cada cidadão se
defenda a si próprio através do voto. As monarquias e ditaduras não permitem que tal
aconteça: a decisão recai apenas num conjunto muito pequeno da população total.
Pelo contrário, na democracia, o nosso voto dá-nos a habilidade de nos proteger
contra certas políticas ou leis. Esta é uma boa razão para justificar a tese do valor da
democracia como fim. Contudo, há um equívoco empírico enorme nesta visão. A razão
seria válida se o voto fosse realmente relevante. Mas, como mostrámos em (1), o cálculo
estatístico do impacto do nosso voto mostra-nos que este não tem qualquer relevância
para o resultado final de uma eleição (aproxima-se de zero).
Em segundo lugar, mesmo que o nosso voto fosse de algum modo relevante numa
eleição, o mesmo só serviria para nos proteger se soubéssemos como votar. Como
demonstrámos, a maior parte da população possui uma ignorância profunda sobre o
conhecimento político que deveria ser requerido para votar. Assim, a maioria das pessoas
não estão em posição de sequer compreender qual seria a melhor forma de votar. Pior que

[374]
isso, como já vimos acima, a democracia desincentiva as pessoas a procurar
conhecimento relevante para votar.
Imagine o seguinte caso: um milionário aborrecido convida-o para entrar num
jogo. O jogo acontecerá na sua biblioteca pessoal, que possui mais de cinco mil livros. A
primeira versão do jogo é a seguinte: o milionário entrega-vos um livro para a mão e
afirma que dentro desse livro se encontra uma pista para descobrirem onde estão
guardados um milhão de euros. Se descobrir a pista, ganhará o dinheiro. Qualquer pessoa
nessa situação iria decidir perder algum tempo a folhear o livro até encontrar a tal pista,
mesmo que isso tomasse algum tempo da sua vida.
Contudo, não é esta situação em que nos encontramos numa democracia. A versão
que representa o sistema actual de eleição é semelhante à segunda versão do jogo: desta
vez, o milionário não vos entrega nenhum livro, mas afirma que uma pista se encontra
dentro de um dos milhares de livros que a sua biblioteca possui. Aí, já seria difícil
compreender se alguém tomasse a decisão de gastar centenas de horas do seu tempo e de
sua energia para encontrar a pista que lhe poderia dar um milhão de euros. A democracia
funciona exactamente da mesma maneira: a informação que um votante precisa de ter
para tomar uma boa decisão é demasiada exigente para o benefício que o mesmo irá retirar
do voto. Assim, racionalmente, escolhe não se informar e manter-se na ignorância. É por
isso que o sistema democrático desincentiva o próprio conhecimento político e social que
seria relevante possuir para votar de forma racional e inteligente.
Qual é então o valor da democracia? A nossa posição é descrita na literatura
científica como “Instrumentalismo”19: a ideia de que a democracia vale como um
instrumento para atingirmos outros objectivos, como a paz social, a equidade, a liberdade,
etc. Isto é: a democracia deixa de ter um valor por si mesmo, independente das
consequências que pode vir a ter, e passa a ter um valor puramente instrumental.
Contra esta perspectiva, encontram-se as posições que assumem que a democracia
vale por si mesma, chegando a afirmar que qualquer decisão que um regime democrático
tome é justa somente por ter sido escrutinada democraticamente (procedularismo), ou
posições que, como relatamos acima, conferem à democracia um valor simbólico, tal
como fazemos com obras de arte. Do nosso ponto de vista, achamos que a democracia
valerá pelas consequências ou factores externos que a mesma poderá trazer.

19
Cf. Brenann, 2016: 23-27.

[375]
Deste modo, se de facto encontrarmos uma forma de produzir mais justiça e
igualdade sem ser pelos processos democráticos actuais, então seria irracional e até
injusto não escolher essas formas de garantir um mundo melhor.

III

Críticas

Vejamos, para concluir, as principais críticas à proposta avançada ao longo do artigo.

(A) O leitor poderá achar que este sistema seria demasiado difícil de implementar: seriam
precisas demasiadas alterações para que tal sistema pudesse realmente funcionar. Assim,
a nossa proposta não é uma proposta séria porque será demasiado ideal. Apesar de haver
alguma sapiência nesta crítica, a mesma é facilmente descartada pela própria história dos
direitos humanos e da própria democracia. O fim da escravidão era também visto como
um sonho ideal, uma pura utopia. A liberdade de expressão nas sociedades ditatoriais era
também uma ideia absurda. Todos os direitos humanos foram considerados nalgum tempo
e espaço da história difíceis, senão impossíveis, de serem implementados. Mas, apesar
dessa dificuldade, a realidade é que hoje temos esses direitos exactamente porque esta
sociedade é mais justa que a anterior. Ora, se pudermos implementar um sistema que pode
ser ainda mais justo que a democracia, tal poderá acontecer de facto, deixando de ser uma
mera fantasia. Devemos começar por investigar, sugere Brennan, os países mais estáveis
democraticamente. Dados oficiais oferecidos pelo Economist Intelligence Unit’s (EU)
apresentaram o Democracy Index 2016, com os seguintes resultados20:

20
Fonte: Willige, 2017.

[376]
Assim, a nossa proposta sugere, por exemplo, que os países com democracias mais
estáveis (o estudo indica que no Top5, se encontram os seguintes países: a Dinamarca, a
Nova Zelândia, a Suécia, a Islândia e, em primeiro lugar, a Noruega).
O que podemos fazer até não atingirmos um regime epistocrático total? Podemos
implementar medidas para tornar a democracia menos irracional, oferecendo, por
exemplo, formações básicas e gratuitas a toda a população em Ciência e Filosofia Política
e, principalmente, em Lógica e Teorias da Argumentação.

(B) Uma segunda crítica, mais interessante, é a seguinte: a epistocracia deixa pessoas (as
ignorantes) de fora e isso é altamente discriminatório e atenta contra a autonomia.21 Não

21
Sobre a autonomia que a suposta democracia oferece aos cidadãos, Robert Nozick (1974) tem uma
história interessante que reproduzimos nas palavras do autor: “Consider the following sequence of cases...
and imagine it is about you: 1) There is a slave completely at the mercy of his brutal master's whims. He
often is cruelly beaten, called out in the middle of the night, and so on. 2) The master is kindlier and beats
the slave only for stated infractions of his rules (not fulfilling the work quota, and so on). He gives the slave
some free time. 3) The master has a group of slaves, and he decides how things are to be allocated among
them on nice grounds, taking into account their needs, merit, and so on. 4) The master allows his slaves
four days on their own and requires them to work only three days a week on his land. The rest of the time

[377]
há maneira de fugir a esta crítica: de facto, a defesa do sistema epistocrático implica
necessariamente discriminação. Mas o defensor desta crítica terá de explicar, em primeiro
lugar, porque é que a discriminação é reprovável necessariamente. Isto é: não é um
problema pessoas ficarem de fora e serem discriminadas pela sua falta de conhecimento
porque isso já acontece actualmente na democracia, por exemplo, através da Lei, e
ninguém acha isso reprovável: os doentes mentais e as crianças e jovens até aos 18 anos
não podem votar. Mas a parte mais interessante da discriminação é a sua justificação: os
menores não podem votar exactamente pelas razões que estamos a oferecer. Essas razões
passam por se assumir que são incompetentes, que não possuem ainda conhecimento
básico suficiente para tomar uma decisão tão séria, etc. O que a nossa proposta sugere é
que esta intuição é correcta: as pessoas mal informadas não deviam escolher o futuro de
uma nação. Mas a nossa sugestão é que tal não é consequência da idade (que nos parece
um critério puramente arbitrário), mas sim da própria ignorância política da maioria dos
cidadãos. Claro, um argumento muito forte contra este tipo de sistema epistocrático é a
exclusão ou diminuição do poder de voto daqueles que sabem menos poder levar a uma
sociedade mais injusta. Contudo, este problema é um problema puramente empírico, onde
podemos estudar cientificamente se de facto a sociedade está mais injusta do que era
anteriormente. Não se trata, assim, de uma questão de princípio ou susceptível de
argumentação a priori. Se, de facto, a implementação de uma epistocracia levar a uma

is their own. 5)The master allows his slaves to go off and work in the city (or anywhere they wish) for
wages. He requires only that they send back to him three-sevenths of their wages. He also retains the power
to recall them to the plantation if some emergency threatens his land; and to raise or lower the three-sevenths
amount required to be turned over to him. He further retains the right to restrict the slaves from participating
in certain dangerous activities that threaten his financial return, for example, mountain climbing, cigarette
smoking. 6) The master allows all of his 10,000 slaves, except you, to vote, and the joint decision is made
by all of them. There is open discussion, and so forth, among them, and they have the power to determine
to what uses to put whatever percentage of your (and their) earnings they decide to take; what activities
legitimately may be forbidden to you, and so on. 7) Though still not having the vote, you are at liberty (and
are given the right) to enter into the discussions of the 10,000, to try to persuade them to adopt various
policies and to treat you and themselves in a certain way. They then go off to vote to decide upon policies
covering the vast range of their powers. 8) In appreciation of your useful contributions to discussion, the
10,000 allow you to vote if they are deadlocked; they commit themselves to this procedure. After the
discussion you mark your vote on a slip of paper, and they go off and vote. In the eventuality that they
divide evenly on some issue, 5,000 for and 5,000 against, they look at your ballot and count it in. This has
never yet happened; they have never yet had occasion to open your ballot. (A single master also might
commit himself to letting his slave decide any issue concerning him about which he, the master, was
absolutely indifferent.). 9) They throw your vote in with theirs. If they are exactly tied your vote carries the
issue. Otherwise it makes no difference to the electoral outcome.
The question is: which transition from case 1 to case 9 made it no longer the tale of a slave?" (Nozick,
1974: 290-292). A ideia de Nozick é mostrar que a democracia actual não é muito diferente do estado do
escravo e que a primeira pode ser tão criticada como a segunda. A tese não é radical no sentido de afirmar
que somos meramente escravos do regime democrático. Antes, a ideia é afirmar que não possuimos tanta
liberdade, autonomia e controlo nas nossas vidas como pensamos ter.

[378]
situação pior que a anterior, serei o primeiro a defender a democracia. A minha crença é
que, como todas as outras áreas, haver especialistas a decidir será sempre mais vantajoso
que o contrário. Numa analogia, não devemos, por exemplo, excluir cidadãos de conduzir
porque são ateus ou liberais. Porém, isso não implica que todas as restrições dos direitos
legais de conduzir sejam injustas. Há certamente razões que justificam racionalmente que
certas pessoas conduzam (e.g. serem condutores incompetentes, impondo um risco
demasiado elevado aos restantes condutores) (cf. Brenann, 2016: 31). Assim, talvez
hajam cidadãos que são demasiado incompetentes e impõe demasiado riscos para os
outros cidadãos. E talvez tenhamos todo o direito de exigirmos sermos protegidos da sua
incompetência.

(C) Uma terceira crítica pode ser oferecida para justificar a ignorância do cidadão comum:
a culpa não é, de facto, do cidadão comum, mas do papel dos Media. Sabemos que os
Media são empresas cujo foco e principal objectivo é, como todos as empresas, o lucro.
Assim, muita da informação que encontramos nos variados Media é ambígua,
problemática e, em casos extremos, absolutamente falsa. Poderíamos, assim, defender
que o facto da população estar mal informada deve-se exactamente à qualidade dos nossos
Media. Ora, apesar de parecer uma ideia interessante, achamos que tal é apenas uma
forma de evitar o verdadeiro problema. O erro desta perspectiva é que, de facto, já existem
nos Media plataformas que relatam e discutem conhecimento e informação política sobre
variadas políticas. Vários canais de televisão têm programas excelentes, onde convidam
especialistas para discutirem com rigor variados problemas. A própria internet está a
revolucionar o acesso à educação de excelência através dos MOOCS.
Assim, já existem nos Media plataformas de qualidade que aumentam de facto o
conhecimento político dos cidadãos comuns. Infelizmente, levanta-se novamente o
problema da ignorância política: a maior parte dos cidadãos não assiste a esses programas,
preferindo outras formas de passar o seu tempo. E mesmo quando alguns cidadãos
investem bastante do seu tempo e energia na política, o que costumam fazer é acompanhar
e assistir programas que confirmem já as suas ideias pré-concebidas. O problema não é
os cidadãos não terem acesso rigoroso a conhecimento político. É, de facto, não quererem
saber, pelos motivos que apontámos acima ligados à falta de incentivo causado pela
democracia.

(D) uma quarta crítica bem presente, por exemplo, na defesa epistocrática de Brenann é
a uma falha importante: o filósofo nunca chega a definir com exactidão o que é o
[379]
conhecimento competente. A expressão mais usada é de “political knowledge”, usada 44
vezes, e “social scientific knowledge”, usada 22 vezes. O autor vai oferecendo exemplos
do que passa por conhecimento relevante, mas seria difícil criar um teste de competências
se nos basearmos nas ideias apresentadas na obra “Against Democracy” (2016). Apesar
desta ser uma boa crítica, ela não ataca directamente a ideia episotocrática. Isto porque a
definição do que é conhecimento competente para tomar uma boa decisão política não é
trabalho do teórico político, mas do cientista político. É este que deverá redigir testes de
competências adequados – esse não é o papel do filósofo político. Assim, esta crítica
apenas salienta a intuição fundamental de epistocracia: a ideia de que devem ser os
especialistas a decidir sobre as questões da sua especialidade.

(E) Qual será, então, a melhor crítica contra este tipo de sistema? De facto, a melhor
crítica já foi revelada acima e é de carácter empírica: se as experiências que fizeremos no
futuro mostrarem que esta ideia está fundamentalmente equivocada e que causa pior
consequências que a democracia, então esta proposta terá o seu funeral. Mas, atenção:
não devemos exigir da epistocracia uma perfeição em todas as decisões – algo que não
fazemos minimamente com a democracia. Afinal, a epistocracia será constituída por seres
humanos que são seres limitados cognitivamente – se soubéssemos tudo e fôssemos todos
bons, então nem sequer era preciso haver política nem esta discussão. Assim, o melhor
argumento contra esta ideia é que não sabemos, simplesmente, como poderá funcionar,
se será usada como forma de abuso de poder, e que consequências irá trazer. Novas formas
de governo são sempre arriscadas de implementar e mudanças drásticas devem ser feitas
com muito cuidado. Assim, o que é preciso é investigar e fazer ciência rigorosa e perceber
se de facto a democracia pode ser ultrapassada por um sistema mais justo, equitativo e,
no fundo, melhor para todos.
É claro que podemos vir a descobrir que a epistocracia pode levar a criar mais
desigualdade e discriminação, como indica a crítica (A)22, pois os mais educados e
competentes são por norma pessoas já priveligiadas na sociedade. Mas a questão não é,
novamente, se podemos ter uma epistocracia perfeita: podemos ter uma epistocracia
enviasada e que causa certas injustiças. O problema é que a democracia é também

22
Claro, a nossa convicção é que mais conhecimento não tratará mais injustiça. Estudos apontam para esta
evidência: o cientista politico Scott Althaus (2003, 11-12) calculou que votantes com mais conhecimento
político são, em geral, contra a guerra, menos punitivos em relação ao crime, mais tolerantes em assuntos
sociais, mais dispostos a aceitar impostos para reduzir o défice orçamental, etc. Já Caplan (2007)
demonstrou que votantes incompetentes tendem a ser mais pessimistas, mais suspeitos do mercado livre,
contra o comércio externo ou a imigração.

[380]
enviasada e injusta. Ou seja, o que queremos descobrir é se a epistocracia é menos injusta
(embora também o irá ser, certamente, porque, novamente, é constituída por seres
humanos) do que os sistemas actuais democráticos.

Assim, para concluir, o que a defendemos é uma afirmação condicional: SE a


epistocracia funcionar melhor que a alternativa, ENTÃO devemos implementá-la no
futuro.23 Veremos o que a investigação empírica nos dirá, em breve, sobre a antecedente
do condicional.24

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Althaus, Scott (2003), Collective Preferences in Democratic Politics, New York:


Cambridge University Press.

23
Cf. Brenann, 2016: 21.
24
Debati alguns dos temas deste artigo com colegas e personalidades importantes da esfera intelectual
nacional. A reacção mais comum foi a acusação óbvia, mas falaciosa, do “ditador” filósofo. Esta reacção
deve-se, novamente, a uma falta de competência em lógica. O argumento geral tem a seguinte formulação:
“Ou és a favor da Democracia, ou és a favor da Ditadura” – criticar a primeira parte é, supostamente,
defender a segunda. Ora, este argumento comete uma falácia básica: a falácia do falso dilema ou da falsa
dicotomia. Este tipo de falácia ocorre quando duas opções esgotam o conjunto, que é fechado. Essas duas
opções são opostas uma à outra e esgotam todas as opções desse conjunto. Assim, um número limitado de
opções é oferecido mas, na realidade, existem mais opções. O falso dilema ocorre, assim, no uso ilegítimo
do operador disjuntivo. Como este artigo demonstra, há mais opções do que o tradicional binómio
Democracia-Ditadura: a Epistocracia. As ideias apresentadas podem parecer radicais, é certo. Mas peço ao
leitor que coloque as lentes da História: a Democracia foi, outrora, vista como a maior forma de
radicalidade. E hoje, para o bem e para o mal, está estabelecida. Poderá dar-se o mesmo com a epistocracia.
Se tal acontecer, então é porque as investigações empíricas demonstraram que este sistema é mais justo que
a democracia que é o que interesssa, no fundo. Mais radical ainda é minha dívida para com a Diana Neiva,
o Carlos Coelho, o Pedro Marques, o Kevin Gouveia e a Carolina Noronha, que discutiram o tema e deram
óptimas perspectivas que o meu cérebro limitado nunca poderia antecipar.

[381]
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[384]
20. CRÍTICA À NOÇÃO DE DEMOCRACIA NA OBRA
DE SLAVOJ Žižek

Hamilton Cezar Gomes Gondim1


Ana Paula Pereira Silva2

Resumo: O presente trabalho aborda a crítica da noção de democracia moderna na obra


do filósofo e psicanalista esloveno Slavoj Žižek. Abordamos inicialmente a influência do
pensamento marxista para a crítica žižekiana de democracia. Explicitamos em seguida a
sua crítica à noção de povo como a base democrática e a concepção singular de Žižek de
explosão democrática como violenta lógica igualitária. Contrastamos, para melhor
compreensão, a crítica žižekiana com o modelo de defesa democrática e antitotalitarista
na teoria de Claude Lefort. Por último, expomos os impasses e limites de investigação de
Žižek para a formulação de um projeto político alternativo ao campo democrático.

Palavra-chave: Política. Democracia. Totalitarismo.

1. Introdução: influência marxista

O filósofo esloveno e psicanalista Slavoj Žižek se “alinha” parcialmente a uma


tradição marxista em que o próprio Estado é interpretado como um campo de disputa por
interesses ligados ao modo de produção capitalista e a luta de classes, incluso neste campo
o regime político democrático. Em tal tradição marxista, o aparelho estatal se apresenta
de modo não evidente como de imediato interesse da demanda popular. O Estado e os

1
Mestre em Filosofia pela UFPB.
2
Mestre em filosofia pela UFPB e membro do Grupo de pesquisa Teoria e História dos Direitos Humanos,
vinculado ao Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos, liderado pelo prof. Dr. Giuseppe Tosi, bem como
do Grupo de Pesquisas em Democracia, liderado pelo prof. Dr. Jorge Adriano Lubenow.

[385]
procedimentos legais da democracia funcionam, pelo contrário, como opostos aos
interesses da população. Engels, em sua introdução à obra A guerra civil na França de
Marx, delineia a questão do poder Estatal e a Comuna de Paris, explicitando a dificuldade
em lidar com o Estado. Embora o Estado tenha surgido como uma solução para a
regulamentação da sociedade civil tendeu a usurpar ou tomar o poder em detrimento da
própria sociedade, seja na forma de um regime monárquico ou democrático3:

Em que consistia o traço característico do Estado até então existente? A sociedade


havia criado, para a consecução de seus interesses comuns, seus próprios órgãos,
originalmente por meio da divisão simples do trabalho. Mas esses órgãos, tendo em
seu ápice o poder estatal, converteram-se, com o passar do tempo e em nome de seus
próprios interesses, de servidores da sociedade em senhores desta (ENGELS, 2011,
p.196).

O Estado como não comprometido com a sociedade civil, mas com interesses
diversos é também explicitado por Marx, na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel.
Marx expõe que a família e a sociedade civil são os fundamentos do Estado, e que o
caráter especulativo na obra hegeliana teria supostamente invertido tal fundamentação. A
leitura de Marx é que a família e a sociedade civil na obra hegeliana seriam momentos
produzidos pela e para a Ideia real, que visa à figura do Estado. Partindo de uma crítica
de uma teleologia hegeliana rumo ao Estado e analisando detalhadamente as mediações
entre sociedade civil e Estado, Marx chega à discussão de uma divisão no interior da
sociedade. Marx acredita que a separação entre sociedade civil e Estado acaba por
fortalecer uma cisão que tolhe o povo de ser soberano e agir conforme a sua vontade 4,
criando apenas um Estado formal:

O Estado Constitucional é o estado em que o interesse estatal, enquanto interesse real


do povo, existe apenas formalmente, e existe como uma forma determinada ao lado
do Estado real; o interesse do Estado readquiriu aqui, formalmente, realidade como
interesse do povo, mas ele deve ter também apenas essa realidade formal. Ele se
transformou numa formalidade, no haut goût da vida do povo, numa cerimônia
(MARX, 2010, p.83).

3
Engels já analisa como a democracia relativamente nova dos Estados Unidos mantém os mesmos
problemas de outros modelos políticos, ao qual há o desligamento dos interesses da sociedade civil com do
Estado: “É precisamente na América que podemos observar melhor como se opera essa autonomização do
poder estatal em relação à sociedade, da qual ele deveria ser um mero instrumento”(ENGELS, 2011, p.196).
4
Como bem expõe o tradutor Rubens Enderle (2010, p.8) na sua nota à edição da Crítica da filosofia do
Direito de Hegel, Marx ainda está na fase em que é marcado pela influência de Rousseau, com a noção de
vontade geral e soberania popular.

[386]
Já na sua Introdução a Critica da Filosofia do Direito, escrita por volta de um ano
após a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel e publicada nos Anais franco-alemães,
Marx pensa por meio de categorias diferentes, abandonando uma análise ainda ligada a
noção de povo e cada vez mais numa análise estratificada em classes. Marx reafirma que
o Estado, em vez de ser a realização máxima de uma sociedade e um povo, se constitui
como violento e opressor para atendimento de demandas particulares de certas classes.
Marx, entretanto, esboça uma possibilidade de emancipação não dependente da noção de
vontade do povo:

Onde se encontra, então, a possibilidade positiva de emancipação alemã? Eis a nossa


resposta: na formação de uma classe com grilhões radicais, de uma classe da sociedade
civil que não seja uma classe da sociedade civil, de um estamento que seja a dissolução
de todos os estamentos, de uma esfera que possua um caráter universal mediante seus
sofrimentos universais e que não reivindique nenhum direito particular porque contra
ela não se comete uma injustiça particular, mas a injustiça por excelência, que já não
possa exigir um título histórico, mas apenas o título humano, que não se encontre
numa oposição unilateral às consequências, mas numa oposição abrangente aos
pressupostos do sistema político alemão; uma esfera, por fim, que não pode se
emancipar sem se emancipar de todas as outras esferas da sociedade e, com isso, sem
emancipar todas essas esferas – uma esfera que é, numa palavra, a perda total da
humanidade e que, portanto, só pode ganhar a si mesma por um reganho total do
homem. Tal dissolução da sociedade, como um estamento particular, é o proletariado
(MARX, 2010, p.156).

Marx identifica que, para que um Estado não se “perverta” em uma forma de
dominação, é preciso que o proletariado conquiste o poder como condição para a própria
emancipação humana. Mas o que impede que esta classe não domine todas as demais com
o objetivo de perseguir seus próprios interesses particulares? A resposta de Marx refere-
se ao próprio caráter destoante do proletariado: diferente dos outros grupos que podem
ascender ou se revezar no poder em busca de um interesse particular de classe (mantendo
de modo razoavelmente uniforme o sistema político-econômico) o proletariado seria o
único que, ao tomar o poder, desmantelaria a estrutura de classes vigente, pois, na sua
própria ascensão, o proletariado não conseguiria continuar a organizar a sociedade
hierarquicamente com base na venda e exploração da força de trabalho assalariado dos
desprovidos de meios de produção: “Todas as outras classes são capazes (potencialmente)
de atingir a ‘condição de classe dominante’, enquanto o proletariado não pode atingi-la

[387]
sem abolir a si mesmo enquanto classe” (ŽIŽEK, 2011, p. 409). Desse modo, o
proletariado seria a classe mais universal, pois a sua emancipação traz consigo não apenas
o êxito de uma reivindicação isolada ou, como Marx sugere acima, uma “injustiça
particular”, mas traz em si a erradicação de todas as injustiças sociais originadas no modo
de produção capitalista, uma emancipação humana.

2. Crítica à noção de democracia

Žižek não advoga pelo caráter do proletariado como um atual grupo


emancipatório. Entretanto, Žižek mantém a posição de Marx de que é preciso haver uma
classe ou grupo que, ao ganhar o poder, esteja potencialmente impossibilitada de manter
a estrutura da sociedade por este caráter de universalidade já citado.
Mas hoje, diferente do século XIX em que o proletariado poderia vir a ser
identificado de modo dominante no cenário dos expropriados/excluídos, a própria
condição de proletário seria escassa e até privilegiada se compararmos com um novo
grupo crescente de expropriados. Žižek acredita que no tempo presente os grupos
expropriados/explorados se aproximam muito mais da noção de populaça ou plebe
encontrada nos Princípios da filosofia do Direito de Hegel:

Quando um grande número de indivíduos desce além do mínimo de subsistência que


por si mesmo se mostra como o que é normalmente necessário a um membro de uma
sociedade, se esses indivíduos perdem, assim, o sentimento de direito, da legalidade
e da honra de existirem graças à sua própria atividade e ao seu próprio trabalho,
assiste-se então à formação de uma plebe (HEGEL, p.208, 1976).

Tal definição hegeliana se atualizada, segundo Žižek, poderia englobar muitos


daqueles que são marginalizados no atual capitalismo tardio: os habitantes das favelas, os
desempregados, os imigrantes e trabalhadores ilegais. Tal massa ou grupo seriam,
potencialmente, os que poderiam se identificar com esse caráter de universalidade que
outrora Marx projetou no proletariado:

Os favelados são literalmente uma coletânea dos que são “parte de parte alguma”, o
elemento “supranumerário” da sociedade, os excluídos dos benefícios da cidadania,
os desenraizados e despossuídos, aqueles que, de fato, “não tem nada a perder, a não
ser os grilhões”. É realmente surpreendente que muitas das características dos

[388]
favelados se encaixem na antiga definição marxista do sujeito-revolucionário
(ŽIŽEK, 2011, p.420).

Esses grupos que Žižek identifica, por exemplo, nos habitantes da favela ou no
termo abrangente de plebe, são livres de qualquer laço substancial com sua sociedade,
sendo essa liberdade consequência direta da sua marginalidade em relação à
regulamentação estatal. Estes grupos marginais não são, entretanto, idênticos à classe
operária marxista do século XIX, definida pela sua exploração econômica e venda da sua
força de trabalho como mercadoria. O que define a situação dos favelados ou da
heterogênea plebe é a sua não integração sociopolítica5 em campos assumidos de direito
e do cidadão: “O favelado é uma espécie de negativo do refugiado: um refugiado de sua
própria comunidade, aquela figura que o poder estatal não tenta controlar por meio da
concentração […] mas é empurrado para um espaço fora do espaço de controle (ŽIŽEK,
2011, p.420). Žižek propõe que o grande esforço no século XXI é tentar pensar formas de
organização da plebe ou populaça enquanto um grupo homogêneo para modificação do
campo político
Mas, independente de qual grupo protagonista para uma mudança social, Žižek
concorda com os termos formais em Marx da necessidade de uma classe ou grupo que
apareça como mais universal para emancipação. Ele concorda também que esta classe
universal surge apenas representada numa parte que pode revolucionar toda a sociedade.
Mas, neste modelo de pensamento de Žižek e Marx, não haveria desacordo entre uma
noção fundamental da democracia e de povo enquanto formas legítimas do espaço
político? Tal desacordo se torna evidente ao lembrarmos que a noção de classes e grupos
já nos estabelece uma estratificação ou divisão dentro da sociedade, e o que outrora era o
homogêneo (o povo) passa a ser segmentado em “facções” (proletariado contra burguesia,
oprimidos contra opressores, plebeus contra nobres, etc). Além disso, não é a noção de
tomada de poder do proletariado (se continuarmos o exemplo da tradição marxista), isto
é, a noção de ditadura do proletariado oposta à noção de democracia como entendemos
usualmente? A noção de classe não nos retira de uma política inclusiva de sermos, de

5 Para Žižek, a formação da nossa plebe do século XXI é consequência de um certo modelo de organização
política e não um efeito acidental: “[…] o conceito de populaça [plebe] descreve um excesso “irracional” e
necessariamente produzido do Estado moderno racional, ou seja, um grupo de pessoas para as quais não há
lugar dentro de uma totalidade organizada embora pertençam formalmente a ela (ŽIŽEK, 2013, p. 284).

[389]
algum modo, “povo”? Žižek está ciente dessa dificuldade e é categórico: “O povo é
inclusivo, o proletariado é exclusivo; o povo combate intrusos, parasitas, os que
atrapalham sua total autoafirmação, o proletariado trava uma luta que divide o povo em
seu próprio âmago. O povo quer se afirmar, o proletariado quer se abolir” (ŽIŽEK, 2011,
p. 411)
Se a luta e estratificação de classes aparece como um ponto de divisão do povo,
qual seria a ligação positiva entre a democracia e luta de classes? Não parece que a
democracia moderna é antagônica à noção de luta de classes, já que esta última cinde a
sociedade em facções que lutam violentamente pelo poder? Žižek propõe que é preciso
reformular ou resgatar a noção basilar e não moderna de democracia para que esta se ligue
a uma noção de luta de classes.

[…] o que é democracia em seu aspecto mais elementar? É um fenômeno que surgiu
pela primeira vez, na Grécia Antiga, quando os membros do demos (aquele que não
tinham um lugar firmemente determinado na estrutura social hierárquica) não só
exigiram que fossem ouvidos contra os que estavam no poder, não só protestaram
contra os crimes que sofreram, não só queriam que sua voz fosse reconhecida e
incluída na esfera pública, em pé de igualdade com a aristocracia e com a oligarquia
dominantes, mas sobretudo eles, os excluídos, apresentaram-se com a encarnação do
Todo da Sociedade, da verdadeira Universalidade: “Nós, o 'nada' o que não conta na
ordem, somo o povo, somos Todos contra os outros que só representam seus interesses
particulares privilegiados”(ŽIŽEK, 2011, p.410)6.

Žižek acredita que há uma aproximação, grosso modo, entre os integrantes do


demos e a noção do proletariado em Marx, no sentido de serem uma camada que não
encontra um local definido ou adequado para si na sociedade, a não ser como uma parte
que é situada para pura exploração. A não aceitação desta posição imposta ao demos e ao
proletariado por uma estrutura social gera o conflito. O caráter de Todo ou o caráter
universal do demos e do proletariado se encontra justamente porque o grupo como o
demos ou o proletariado “encarnam” (em sua situação deslocada e explorada) todas as
injustiças que ocorrem apenas parcialmente em diversas outras camadas da sociedade.
Mesmo sendo apenas uma parcela da população, a condição do demos ou do proletariado
vivencia a totalidade das dificuldades inerentes de uma sociedade. Se uma parcela da
sociedade se encontra num local onde padece de todas as contradições, dificuldades e

6
Žižek alude e parafraseia, nesta passagem, o exemplo do filósofo Jacques Rancière contido na obra La
Mésentente.

[390]
injustiças de sua sociedade é esta parcela que tem melhor potencial de se identificar com
o Todo, sem levar em conta um interesse particular de grupo ou classe:

Esta identificação de parte da sociedade sem lugar propriamente definido (ou que
rejeita o lugar subordinado alocado para ela dentro da sociedade) com o Todo é o gesto
elementar de politização, perceptível em todos os grandes eventos democráticos,
desde a revolução francesa […]. Nesse sentido exato, política e democracia são
sinônimas: o alvo básico da política antidemocrática é e foi, sempre e por definição,
a despolitização, a exigência de que “tudo volte ao normal”, em que cada indivíduo
se mantém em sua tarefa específica. E isso nos leva à inevitável conclusão paradoxal:
“a ditadura do proletariado” é outro nome para a violência da própria explosão
democrática (ŽIŽEK, 2011, p.411).

Žižek redefine a democracia num processo de identificação com um ato político


de uma classe universal (universalidade nos termos já acima mencionados) e da sua
tomada deliberada de poder, ainda que seja por um processo violento. Nessa perspectiva
de explosão democrática, Žižek critica as formas de democracia institucionais atuais
como um fenômeno/sistema político que, no lugar de tornarem efetivas e sanarem as
contradições dentro da sociedade, ratificam e mantém o caráter das mesmas injustiças:

[…] e se a democracia no segundo sentido (o procedimento regulamentado de registrar


a “voz do povo”) for, em última análise, uma defesa contra si mesma, contra a
democracia no sentido de intrusão violenta da lógica igualitária que perturba o
funcionamento hierárquico do sistema social, da tentativa de tornar esse excesso
novamente funcional, de torná-lo parte do funcionamento normal das coisas? (ŽIŽEK,
2011, p.413)

Žižek, ao tomar essa afirmação de democracia como violenta lógica igualitária,


discorda de visões modernas de modelos democráticos que identificariam possivelmente
tal lógica violenta igualitária como uma forma de totalitarismo, tal qual Claude Lefort.

3. Lefort entre a democracia e os riscos totalitários

Lefort convive na metade do século XX com intelectuais da esquerda francesa


que resistem a uma revisão do conceito de democracia fora do campo de uma análise
marxista de luta de classes. Lefort encontra, assim, certo descrédito da temática da
democracia e do totalitarismo frente a uma crítica marxista comum da sua época: “O novo
[391]
conceito [totalitarismo] foi considerado como um conceito de direita, forjado a serviço de
um desígnio reacionário” (LEFORT, 1987, p.71).
Lefort especula que a recusa de uma parcela da crítica marxista em acatar uma
noção de totalitarismo ocorre porque tal conceito seria uma problemática restrita para a
democracia moderna7. Mas, a democracia não aparece como uma meta em si nos
discursos marxistas, já que é comumente interpretada como mais um mecanismo
político/ideológico de manipulação em prol de uma classe dominante, ou seja, a
burguesia. Entretanto, o relacionamento entre democracia e totalitarismo, para Lefort, não
poderia ser explicado por uma visão marxista de transformação do modo de produção
que, por sua vez, modifica indiretamente a dinâmica das relações sociais, políticas e
culturais. Lefort também discorda de um modelo marxista ao qual a democracia é apenas
um modo formal de política que oblitera os reais antagonismos sociais.
Lefort desenvolve uma teoria em que a democracia moderna se desenvolve e
ganha força a partir do século XVIII em contraponto a uma forma de política representada
pelo Antigo Regime. Tal modo que antecede a democracia tem seu desdobramento na
Idade Média com uma forma de legitimidade teológico-política numa noção de sociedade
como um grande corpo. A figura do rei incorporaria a imagem da comunidade e
asseguraria na sua liderança a unidade social: “O antigo regime é composto de um número
infinito de pequenos corpos que dão suas referências identificadoras. E esses pequenos
corpos se organizam no seio de um grande corpo imaginário do qual o corpo do rei fornece
a réplica e garante a integridade” (LEFORT, 1987, p.117).
Entretanto, com os processos revolucionários na Europa moderna há uma desintegração
dessa visão de sociedade como corpo simbolizado pela figura do monarca. Há um processo, para
Lefort, na passagem democrática de “desincorporação”, ao qual o cidadão não é visto mais como
mera parte funcional de um grande corpo social e sim como indivíduo. Este indivíduo e sua
vontade poderiam ser contabilizados por meio de processos como o sufrágio. Tal procedimento
regulamentar substitui o discurso político em dissolução do Antigo Regime representado num
corpo e preenche uma nova forma de compreensão de povo e de coexistência social.
Segundo Lefort, a democracia moderna tem a sua soberania originada no poder do povo.
Entretanto, o modo como se manifesta a soberania e o poder do povo é especificado em suas
formas e procedimentos pelo direito. Deste modo, esta circunscrição do poder oriundo do povo
pelo direito delimita as suas formas legítimas de manifestação. Uma Constituição, por exemplo,

7 Lefort discorda dessa visão, expondo que modelos políticos não democráticos e fora do campo do
capitalismo, tal qual o antigo sistema burocrático-partidário da União Soviética, também são passíveis de
serem regimes totalitários.

[392]
fixa as possibilidades dos governantes na democracia para que se assegure uma boa expressão da
vontade popular por meio do sufrágio universal e em seus diversos modos de representação.
Além do poder ser limitado pelo direito, ele não se confunde com o indivíduo que no
momento está no exercício do poder. Esta limitação gera o impedimento de que algum indivíduo
ou grupo tente se identificar plenamente com o poder em exercício: “E a mesma razão faz com
que não haja povo em ato fora da operação regulamentada do sufrágio e com que não haja poder
susceptível de encarná-lo” (LEFORT, 1987, p.100). O lugar do poder encontra-se, assim,
“tacitamente reconhecido como um lugar vazio, por definição inocupável, um lugar simbólico,
não um lugar real” (LEFORT, 1987, p.100).
Assim, a qualidade da democracia, segundo Lefort, é que seu locus de poder é
vazio. Significa que devido a uma série de aparatos institucionais, a democracia impede
que um agente político empírico se aproprie do poder sob um discurso de lugar natural e
permanente. A admissão de que não há um grupo ou pessoa que possa incorporar ou
“encarnar” o poder é elevado à grande vantagem da democracia. O exercício de poder
numa sociedade democrática seria periodicamente redistribuído por certas normas que
garantiriam a disputa e mudança de poder.
Não há, assim, na democracia, um agente capaz de corporificar o poder ou soberania do
povo fora dos procedimentos de direito. Qualquer grupo ou pessoa que tente essa identificação
recairia numa das virtuais ameaças da democracia: o totalitarismo. Os sistemas totalitários,
segundo Lefort, fazem coincidir a soberania e o poder emanado da vontade do povo com a vontade
do dirigente ou de um grupo.
A democracia é dependente de uma noção de povo para se legitimar como modalidade
política. Mas, enquanto se necessita de unidade para haver uma representação democrática, há
também, em seu outro polo, a necessidade de reconhecimento do caráter fragmentado, disperso,
cheio de antagonismos e interesses particulares que também são inseridos no regime democrático.
A democracia insere o campo da disputa e da contestação entre as partes que a compõe a noção
de povo.
Já um regime que Lefort assume como totalitário, abole o segundo polo que compõe o
campo democrático da disputa e dissensão, assumindo apenas o caráter de unidade do povo. A
partir apenas deste caráter de unidade, os regimes totalitários constituem uma referência do povo,
do seu poder e da soberania a partir de uma visão de povo-Uno:

No que este [povo-Uno] consiste, idealmente? Num grande vivente, na sociedade


concebida como indivíduo coletivo, agindo, fazendo-se, tomando posse de todas as
suas faculdades para se realizar, desembaraçando-se de tudo o que lhe é estranho, um

[393]
corpo que tem o recurso de controlar os movimentos de cada um de seus órgãos e de
cada um de seus membros (LEFORT, 1987, p.101).

O povo-Uno é a referência que os sistemas totalitários usam para se identificar


plenamente com o poder ou fazer coincidir o locus do poder com aquele que a exerce. Para tal, o
povo é visto como uma unidade do corpo social. Não há divisões nesta sociedade e todas as cisões
são aparentes na medida em que as partes supostamente compõem um todo chamado povo. As
dissensões, contestações ou campo de disputa entre as partes não são tratados como ações
inerentes a um campo político, como na democracia. Pelo contrário, nos regimes totalitário uma
parcela ou grupo que cinde a posição do grupo dirigente aparece já como um Outro fora dessa
grande unidade e corpo social. O Outro aparece como elemento ameaçador e inimigo externo da
sociedade:

O princípio de uma divisão, de uma alteridade interna [na sociedade] é abolido


enquanto o outro se vê lançado para fora. Os próprios camponeses perseguidos, como
todo aquele sobre quem se abate a repressão, são qualificados, sejam quais forem os
motivos do poder, como representante desse outro (LEFORT, 1987, p.102).

No totalitarismo há uma negação de uma divisão e autonomia no campo social, além de


uma completa intolerância no interior da sociedade para a contestação e iniciativas individuais ou
coletivas fora da tutela daqueles que são dirigentes do poder. No sistema totalitário se desfazem
as fronteiras que cerceiam o poder apenas ao campo político. Assim, o poder do povo identificado
plenamente com um grupo ou indivíduo dirigente não tem nenhuma referência ou limite além de
si mesmo: “[Um sistema totalitário] não reconhece nenhum imperativo fora dele, nem os da
economia, nem os do direito e da justiça, nem os do conhecimento científico, nem os da
informação, nem os da arte” (LEFORT, 1987, p.102).
No totalitarismo se perdem as esferas separadas com seus critérios autônomos e
diferenciadas do campo político. A legalidade ou ilegalidade, o justo ou o injusto, o artístico e
não artístico, o científico e o senso comum ganham sua legitimidade e apreciação na dependência
do dirigente do poder. Não há mais diferenciação no interior da sociedade, nem distinção entre
aquele que está no poder e o próprio poder “Não há separação entre a posição do dirigente e o
poder, nem entre o poder de Estado e a sociedade. A noção de uma sociedade civil apaga-se”
(LEFORT, 1987, p.103).
Segundo Lefort, a democracia moderna se caracteriza justamente pela separação entre o
espaço político e de poder referente ao Estado, e os outros espaços autônomos no interior da
sociedade civil como o campo estético, cultural, econômico e jurídico que obedecem a suas
próprias regras. Tal separação entre Estado e sociedade civil se desfaz no totalitarismo.

[394]
Lefort, entretanto, reconhece o relacionamento íntimo entre a democracia e a sua
possibilidade virtual de totalitarismo, como os ocorridos no século XX. Isso porque, embora o
local vazio da democracia seja uma dimensão que permita desincorporar o poder de grupos ou
indivíduos, ainda assim, há o risco da lógica democrática ser abalada por eventos fortuitos como
guerras e profundas crises econômicas. Esse ponto da história (em que a existência de conflitos e
lutas entre as partes não podem mais ser resolvidos na esfera política e seus procedimentos
regulamentares) possibilita uma aparição do poder como que incorporado diretamente na
sociedade em determinados grupos ou líderes, sem quaisquer mediações. Essa incorporação do
poder fantasiada, por exemplo, na ideia de identidade de um líder com o povo, numa demanda
por uma identidade substancial da sociedade direta com o poder, sem divisões nem dissensões,
geraria o esteio para surgimento do totalitarismo.

4. Impasses e limites da posição žižekiana em relação à Lefort

No sentido em que a democracia é proposta por Lefort, a possibilidade de uma


violenta lógica igualitária incorporada num grupo ou facção que representa o Todo (que
é a proposta žižekiana recuperada na ideia de Marx), mesmo que modifique a própria
ordem hierárquica social vigente, seria esquematizada como uma possível forma de
usurpação do local vazio do poder, e um possível evento totalitário virtual no modelo
democrático. Já para Žižek a explosão democrática é justamente o momento em que um
grupo excluído, marginalizado e que é contado como um nada na ordem social vigente
assume, devido a tal condição precária e de padecimento total, como mais legítimo
representante do Todo ou da sociedade. Para Žižek, a problemática da concepção de
Lefort seria que a própria democracia apenas renormaliza/reproduz a ordem social
vigente com seus procedimentos institucionais periódicos, como o voto. Žižek endossa a
crítica tradicional marxista que a divisão entre Estado e sociedade civil não é autônoma,
e é sempre já permeada por interesses de classes. Mas Žižek vai um pouco mais adiante
em sua crítica e mitiga a posição de Lefort de que a identificação de um grupo com o
local vazio do poder engendra necessariamente uma forma de totalitarismo. Há uma
tendência no pensamento žižekiano de que, para haver grandes mudanças sociais, é
necessário correr grandes riscos. A possibilidade de formação de uma sociedade nova, só
pode ocorrer carregando o perigo virtual de um processo revolucionário e emancipador
gerarem o seu revés latente totalitário. Žižek nos propõe: “Sugerimos que é o gesto
arriscado – porém necessário – de tornar problemático a própria noção de democracia,

[395]
mover-se para outro lugar, ter a coragem de elaborar um projeto positivo e viável 'além
da democracia'” (ŽIŽEK, 2011, p.121).
Ainda que Žižek esteja correto quanto à crítica da noção de democracia como
forma regulamentada de manutenção do sistema social e suas contradições, surgem
questões frente ao seu posicionamento. Uma delas é a dificuldade de como manter a
“explosão democrática” e a imposição igualitária desta classe ou grupo mais universal:

Portanto, o problema é, como regulamentar/institucionalizar o próprio impulso


democrático igualitário violento, como impedi-lo de se afogar na democracia no
segundo sentido da palavra procedimento regulamentado)? Se não houver como fazê-
lo, então a democracia “autêntica” continua a ser uma explosão utópica momentânea
que, no famoso dia seguinte, tem de ser normalizada (ŽIŽEK, 2011, p.413).

Žižek propõe que essa explosão democrática com uma lógica igualitária não seja
momentânea, mas permanente. Seria preciso que não se crie uma ordem onde ressurja a
velha hierarquia social de dominação e exploração. Mas como resolver esta dificuldade?
Como evitar a possibilidade de usurpação posterior de um grupo que detém o poder e se
identifica com o todo social?
Além disso, Žižek não constrói um novo programa virtualmente efetivo para ir
além da democracia, apesar de suas críticas. É verdade que podemos encontrar na obra
de Žižek “posturas” e nichos potenciais de onde a democracia num sentido mais radical,
isto é, numa noção de explosão democrática, poderia surgir e se desenvolver num novo
programa político após o seu momento inicial, mas não podemos encontrar, por exemplo,
algum tipo de “prolegômenos a toda democracia futura” ou uma terceira via explícita.
A despeito de analisar a democracia e questionar sobre suas falhas inerentes, Žižek
colocaria a si e suas obras numa função de propor indagações aos eventos políticos que
ocorrem em nossa realidade, sem, entretanto estabelecer imediatamente uma proposta de
nova ordem positiva que solucione a situação vigente.

Considerações Finais

Observamos que Žižek mantém uma das estruturas básicas de mudança social
oriunda do pensamento de Marx. Tal estrutura é a de um agente ou grupo universal que
padece de todas as contradições e dilemas da sociedade e, por esta condição sui generis,

[396]
tal grupo estaria habilitado a representar e agir em nome do Todo. Enquanto Marx
identifica tal noção com o proletariado, Žižek na contemporaneidade a identifica com os
marginalizados, desempregados e imigrantes ilegais, compondo uma massa miserável
circunscrita pela noção hegeliana atualizada de plebe ou populaça.
Entretanto, a estrutura de um grupo que se identifica e age em nome do Todo vai
de encontro à noção de povo concebida em certos modelos democráticos modernos.
Observamos, por meio de uma incursão ao pensamento de Lefort, que o modelo žižekiano
de um grupo que age legitimamente pelo Todo devido a uma posição específica na
sociedade, seria identificado como antidemocrática e como uma possível forma ou lógica
do totalitarismo. A democracia seria justamente o lugar sempre vazio em que
periodicamente alguns são eleitos para representar o povo, enquanto o totalitarismo seria
um grupo/líder específico que se identifica plenamente com o povo e se propõe como
habilitado a exercer o poder em nome de toda a sociedade. Observamos assim um impasse
não resolvido entre emancipação social e usurpação do poder do povo, ou ainda, entre a
teoria žižekiana e a de Lefort quanto à análise deste tipo de atitude de um grupo se
identificar com o todo social.
Considerado tal impasse, evidenciamos dificuldades ulteriores na obra de Žižek
em embasar novas diretrizes ou uma via positiva para além do campo democrático, o que
nos indica um possível limite entre o seu campo da teoria e o da atuação política. Žižek
crítica o modelo democrático moderno e o sufrágio como um ratificador e reprodutor de
certos antagonismos sociais. Entretanto, não há nenhuma articulação precisa sobre um
modelo alternativo. Embora Žižek aponte os protagonistas desta modificação social com
a atualização da noção de plebe hegeliana, ainda assim não esboça como esse grupo pode
se organizar.
Devemos notar também que a noção de plebe ou populaça, ao qual ele atualiza
para os parâmetros do século XXI, forma um grupo extremante heterogêneo advindos de
camadas e experiências sociais distintas. É discutível quais os limites de uma unidade ou
coordenação dos próprios indivíduos que a compõe.
Outra questão que fica em aberto ao atual pensamento de Žižek é como assegurar
e tentar estabelecer a igualdade depois do momento que se segue à inserção da violenta
lógica igualitária e de efetiva mudança social. As formas de modelo social estável, distinto
da democracia, aparecem como incógnitas nos seus trabalhos. Frente a esses limites e
questões em Žižek, cabe-nos apenas a espera do desenvolvimento futuro de tais repostas,
na medida que é um pensador ainda em franca atividade.

[397]
5. Referências

ENGELS, F.: “Introdução à guerra civil na França, de Karl Marx”. In: MARX. K. A
guerra civil na França. Tradução de Rubens Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo:
Boitempo, 2011.

HEGEL, G.W.F. Princípios da Filosofia do Direito. Tradução de Orlando Vitorino. 2ª


ed. Martins Fontes, Lisboa: 1976.

LEFORT, C. A invenção democrática. Os Limites do totalitarismo. Tradução de Isabel


Marva Loreiro.2ª ed. Brasiliense: São Paulo: 1987.

MARX. K. A guerra civil na França. Tradução de Rubens Enderle e Leonardo de Deus.


São Paulo: Boitempo, 2011.

_________. Crítica da filosofia do direito de Hegel ; tradução de Rubens Enderle e


Leonardo de Deus. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2010.

_________. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus


representantes Feuerbach, Bruno Bauer e Stirner,e do socialismo alemão em seus
diferentes profetas. Tradução de Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano Calvino
Martorano.São Paulo: Boitempo, 2007.

ŽIŽEK, S. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético. Tradução


de Rogério Bettoni. São Paulo: Boitempo, 2013.

_______. Em defesa das causas perdidas. Tradução de Maria de Medina. São Paulo:
Boitempo, 2011.

[398]
21. A MEDIATIZAÇÃO DA JUSTIÇA

Maria João Rocha Inácio*

“Não pode haver Justiça concretizada pelo Estado na vida dos


cidadãos se a primeira pedra de um qualquer sistema judiciário não for
uma ideia de Justiça partilhada naquilo que torna comum o viver
colectivo (...) e depois transmiti-la, ensiná-la, vivenciá-la.”.1

Vera – Cruz Pinto (2015)

A breve reflexão que proponho incide sobre a relação dos Media com a Justiça,
sob a égide Democrática. Assim, abordo a problemática e os possíveis pontos de cedência
entre estes direitos consagrados, analisando por um lado, a liberdade de informação (os
Media) e, por outro lado, a tutela do direito em relação aos bens jurídicos mais pessoais,
sublinhando a Presunção de Inocência.
Entendo que são duas as razões que justificam o sentido de oportunidade e de
relevância sobre este escrito. A primeira razão prende-se com a dimensão temporal do
assunto em análise: vivemos tempos imprevisíveis e, não obstante esta ser uma questão
que vem do passado, ela é cada vez mais do futuro. A segunda razão coloca-se quanto ao
seu objecto controverso (ou controvertido) e consequente resultado: são quantificáveis,
visíveis e qualificáveis, os prejuízos que resultam da Mediatização da Justiça.
Tantas outras questões poderiam ter sido aqui analisadas, poder-se-ia inclusive ter
abordado o assunto mediante outros ângulos de visão, dada a diversidade dos
intervenientes na Mediatização da Justiça. Contudo, apresso-me a referir que talvez não
tenha respondido a todas as questões que o assunto exige, ou a partilhar as respostas mais
completas com o leitor, ainda que o desejasse fazer; somente pretendo tecer a este
propósito algumas notas pessoais, alicerçadas em opiniões de personalidades que se
destacam no tema, na expectativa de contribuir para a valorização da Democracia.

* Jurista.
1
Cf. Eduardo Vera-Cruz Pinto, O Futuro da Justiça, Lisboa, Nova Vega e Autor, 2015, p. 10.

[399]
***

1. A Mediatização da Justiça, enquanto fenómeno e fruto democrático, convida à


reflexão, alertando-nos para a necessidade de um sensível manuseamento jurídico quando
em causa estão direitos e deveres de harmonia pouco consensual.
A Constituição da República Portuguesa (doravante, também CRP) consagra os
direitos de personalidade (nomeadamente o direito ao bom nome e à honra), assim como
o princípio basilar e intocável de que todo o arguido se considera e presume inocente, até
trânsito em julgado da sentença que o condene.
Contudo, vivemos numa sociedade mediatizada, sendo imperativo encontrar
consensos entre os direitos constitucionais em confronto: o direito à liberdade de
informação, pelos Media, e o respeito pelos direitos, liberdades e garantias pessoais. Um
desses consensos a conseguir, incide, à priori, no espaçamento temporal entre os Media
e a Justiça bem como na forma de comunicar.
A ser assim, importará aferir e ponderar casuisticamente o dano e custo que estão
em juízo, parecendo-me essencial acautelar interpretações distorcidas do que é
considerado o interesse público da notícia. Sendo certo que os Media são um poder,
essencial e legítimo em Democracia, tal não lhes confere legitimação para se sobreporem
ao exercício pleno das outras instituições democráticas, nomeadamente aos Tribunais.
Portanto, e particularizando, a liberdade de imprensa consagrada nos artigos 37.º
e 38.º da CRP, na Lei de Imprensa e no Estatuto do Jornalista, bem como salvaguardada
noutros instrumentos internacionais, não é um direito absoluto. Pelo contrário, é um
direito que pode ser restringido, o que não significa automaticamente censurar,
discriminar ou colocar entraves informativos. Creio que essa restrição deve operar
somente quando a comunicação efectuada pelos Media se afasta da sua missão ao serviço
da Democracia, função essa que se consubstancia no direito individual e colectivo de
estarmos informados.

2. Olhando para as sociedades democráticas actuais, através de um critério de


localização espacial e temporal, fica clara a ideia de que a sociedade de hoje, já não é a
sociedade de ontem, como referido por António Henriques Gaspar (2011), “É o tempo

[400]
de efémero, em que parece não haver memória do passado nem sentido do futuro.”.2 Com
efeito, nas sociedades de comunicação, nas quais a Mediatização da Justiça é o seu
corolário mais recente, destaca-se, desde logo, a visibilidade que daí advém3 para a
construção de “representações sociais”, que distorcem a representação da justiça:

Notícias, em recomposição factual de fragmentos que lhes retira rigor e sentido e que
não permitem ler o conjunto, artigos de “fazedores de opinião”, discussões em espécie
de democracia em directo em formato popular dos vários fóruns que preenchem horas
de emissão na rádio e na televisão, constituem elementos de recomposição, e muito
provavelmente de reordenamento das representações. 4
António Henriques Gaspar (2011)

Para António Henriques Gaspar (2011), esta realidade tem enquadramento


justificativo nas sociedades de desconfiança, porquanto sinónimo de democracia de
opinião e de fiscalização5: falamos do “povo-juiz” e do interesse dos Media em relação
aos casos judiciais que possam induzir “(...) reactividade ao escândalo (...)”, que parecem
“(...) ter atingido verdadeiramente o limite do suportável.”. 6
Aqui chegados, importa destrinçar esta circunstância mediática e seus
afloramentos. Para tal, recorremos ao conceito actual de opinião pública, definido como:

(...) o resultado agregado das crenças individuais numa determinada sociedade,


captado ou construído - sendo muitas vezes incerta a fronteira entre a captação e a
construção – nos meios de comunicação de massa e nas sondagens.7
Miguel Nogueira de Brito (2014)

Mas, na sua origem, no século XVIII, a opinião pública, entendia-se como “ (...)
o resultado esclarecido da reflexão colectiva e pública sobre as bases da ordem social.”.8
É precisamente sobre o resultado esclarecido da reflexão colectiva e pública que as
palavras de Rogério Alves (2009) têm a sua relevância:

2
Cf. António Henriques Gaspar, Mediatização da Justiça e Protecção de Direitos Pessoais, Revista Julgar,
N. º15, Coimbra Editora, 2011, p. 11.
3
Principalmente para a Justiça Penal.
4
Cf. António Henriques Gaspar, Mediatização da Justiça e Protecção de Direitos Pessoais, Revista Julgar,
N. º15, Coimbra Editora, 2011, p.12.
5
Idem, Ibidem.
6
Idem, pp. 13-15.
7
Cf. Carlos Blanco de Morais, Maria Luísa Duarte, Raquel Alexandra Brízida Castro, Media, Direito e
Democracia, Coimbra, Edições Almedina, 2014, p. 110.
8
Idem, Ibidem.

[401]
Em primeiro lugar, há muita gente que fala da Justiça e não sabe nada dela. Não é
admissível que alguém sem aptidões médicas comente, por exemplo, uma intervenção
cirúrgica, mas a Justiça pode ser comentada por todos. 9
Rogério Alves (2009)

Nesta sequência de ideias, o cidadão tende a procurar intervir como juiz,


fomentando a existência de um “tribunal do povo”10, auxiliado pelos Media, criando
representações mentais que dificilmente poderão ser consideradas as mais justas. A este
propósito, cito António Henriques Gaspar (2011), quando equipara as sociedades
actuais ao tempo medieval do pelourinho, “(...) que julga e condena em directo e sem
apelo.”.11
É, pois, desta forma que hoje o cidadão apresenta-se como um consumidor e seguidor dos
Media. Desde logo, porque os Media, dada a relação privilegiada que estabelecem com o
cidadão, substituem-se a este, como se de uma relação de familiaridade ou de confiança
se tratasse, privando-o de ser arquitecto das suas próprias opiniões.
Nesta altura, talvez o leitor esteja a recordar o que tem sido a realidade portuguesa, no
que concerne à opinião pública, relativamente aos casos mais mediáticos. O resultado da
justiça popular, contagiada pelas informações divulgadas pelos Media, manifesta-se,
precocemente, para que seja aplicada ao alegado “criminoso” a mais rigorosa das penas.
Isto, numa altura em que a ideia rainha devia ser - e tem de ser - a Presunção de Inocência,
ao invés, reina o não merecimento de direitos e garantias fundamentais. A este propósito,
Manuel Magalhães e Silva (2014), refere que:

Há uma percepção de realidade que faz com que as questões da justiça sejam
apreendidas não enquanto equilíbrio de direitos e enquanto virtude - dar a cada um o
que de direito lhe pertence-, mas como formas de justiceirismo, que é aquilo que
caracteriza, habitualmente, as comunidades com menor desenvolvimento cultural e
cívico, como é a nossa.12
Manuel Magalhães e Silva (2014)

9
Cf. Fernando Contumélias; Mário Contumélias, Justiça à portuguesa, Alfragide, Publicações Dom
Quixote, 2009, p. 115.
10
Cf. António Henriques Gaspar, Mediatização da Justiça e Protecção de Direitos Pessoais, Revista Julgar,
N. º15, Coimbra Editora, 2011, p. 13.
11
Idem, p. 17.
12
Cf. Carlos Blanco de Morais, Maria Luísa Duarte, Raquel Alexandra Brízida Castro, Media, Direito e
Democracia, Coimbra, Edições Almedina, 2014, p. 94.

[402]
Desta maneira, o modo de agir da Justiça, condicionado por critérios de natureza
política, económica e social tem perdido hegemonia, travando uma relação de forças com
os Media na administração da justiça, competência essa que a CRP atribui em exclusivo
aos Tribunais.13 14
Em qualquer caso, compete sempre aos Media informar o cidadão,
inclusive dos assuntos relacionados com a Justiça, desde que essa liberdade de expressão
não se traduza em ofensas injustificadas e lesivas ao cidadão, ou onde o interesse público
da notícia não é visível.
O que nos coloca no caminho do Direito, pois, nas palavras de Eduardo Vera-Cruz
Pinto (2015), “(...) só o direito justo é direito; e só há direito justo no equilíbrio de direitos
e deveres (...)”. 15

3. Os Media ganham, claramente, à Justiça em proximidade e em linguagem,


como fica patente pela leitura das palavras de António Henriques Gaspar (2011), ao
abordar este assunto de uma forma bem visual, traçando uma imagem brilhante do estado
das coisas, ao escrever, a propósito da liberdade de informação, as palavras: “totalitarismo
comunicacional”, “tirania da comunicação” e “erros cognitivos aos destinatários da
informação.”.16
Afinal, estarão os Media a contribuir para criar um maior fosso de literacia entre
os indivíduos e, poderá a nossa democracia estar a viver o revés das liberdades de
expressão adquiridas pós 25 de Abril?
Na prática, os Media, ocupam os mais variados espaços públicos e privados, a qualquer
hora, dialogando com uma linguagem acessível, directa e instantânea, sendo de admitir
que os Media usam, para tanto, o jogo das emoções jornalísticas.
É por isso que nas palavras de Machado e Santos (2009), a Mediatização da Justiça é
vista como:

(...) um dos mais prementes desafios para as sociedades actuais na medida em que é
dada ao público a possibilidade de observar procedimentos, regras e o funcionamento
da justiça. Por via das imagens e discursos produzidos nos media, o público recebe

13
A este respeito, parece desajustado que os intervenientes da Justiça, nomeadamente os Juízes e
Advogados, se vejam, de repente, actores num espaço mediático, para o qual não tiveram a mínima
preparação.
14
Cf. Artigo 202.º da Constituição da República Portuguesa.
15
Cf. Eduardo Vera-Cruz Pinto, O Futuro da Justiça, Lisboa, Nova Vega e Autor, 2015, pp. 58-59.
16
António Henriques Gaspar, Mediatização da Justiça e Protecção de Direitos Pessoais, Revista Julgar, N.
º15, Coimbra Editora, 2011, pp. 15-16.

[403]
dados que lhe permitem elaborar concepções e representações acerca do sistema de
justiça e da ordem social vigente (...). 17

Machado e Santos (2009)

Hoje, sabe-se que o processo de influência dos Media atinge um público


generalizado, mas de forma diferente consoante os receptores, estando em causa variáveis
como, por exemplo, critérios de natureza sócio- culturais, de literacia e identificação
pessoal.
Dito isto, o papel dos indivíduos e da sociedade de massas caminha para questões
nunca vistas, novas para o direito e, no entender de Mc Luhan (2000), “(...) os indivíduos
vêem reduzida a sua capacidade de selecção e de defesa, uma vez que são os media que
determinam a sua maneira de pensar.”,18 em relação à informação que lhes é transmitida,
gozando aqui a Comunicação Social de um “veículo” privilegiado para tal. 19
Mas, neste ponto, em boa verdade, faz sentido recordar Cícero, nas Regras do
Discurso, onde escreveu que àquele que discursasse em público cabia-lhe probare,
delectare, flectere.20
O que até aqui me propus esclarecer, são os problemas de comunicação entre
Justiça e Direito, que normalmente culminam nos ditos julgamentos em praça pública,
fruto de erros cognitivos e crenças sem fundo de razão - onde não há possibilidade de
defesa, e que esbarram com o Direito, desde logo, no seu núcleo protector da dignidade,
do direito e defesa à imagem. Também a própria justiça fica prejudicada, pois parece
inegável que se trata, acima de tudo, de um problema de comunicação que urge ser
resolvido. Assim, refere Isaías Pádua (2016) que:

A Justiça tem nesse aspeto sido penalizada por não ter ainda encontrado a melhor
forma de comunicar com os cidadãos, a quem a mesma se dirige e se destina a servir.
E um dos passos a dar terá, a nosso ver, de ir no sentido de resolver e clarificar, de
vez, o seu relacionamento com a comunicação social e a forma de interagir com ela. 21
Isaías Pádua (2016)

17
Vide, Fernando Bessa Ribeiro, « Helena Machado e Filipe Santos (organização de) Justiça, ambientes
mediáticos e ordem social V. N. Famalicão », Configurações [Online], 9 | 2012, posto online no dia 27
Novembro 2013, consultado a 1 de Junho 2017. URL: http://configuracoes.revues.org/1218.
18
Cf. Clara Ferrão Tavares, Os media e a aprendizagem, Lisboa, Universidade Aberta, 2000, p. 18.
19
Idem, Ibidem.
20
Cf. Eduardo Vera-Cruz Pinto, O Futuro da Justiça, Lisboa, Nova Vega e Autor, 2015, p. 49.
21
Vide, António Isaías Pádua, em entrevista na Sollicitare, Edição n.º 18, Setembro de 2016, p. 20.

[404]
De forma a conseguir este desiderato comunicacional entre os Media e a Justiça,
parece interessante a opção da criação de Gabinetes Institucionais, liderados por
especialistas das duas áreas que, segundo Manuel Magalhães e Silva (2014),22 a
funcionar junto dos Tribunais de Relação, STJ e STA, DIAP’s23 e Procuradorias Distritais
do Ministério Público, assim como gabinetes itinerantes por distrito judicial, para atenuar
os conflitos e melhorar o diálogo entre estes dois poderes.24
Acredito que através deste trabalho sinérgico, seja possível aos Media
contribuírem para cultivar a literacia jurídica no cidadão, principalmente junto daquele
menos esclarecido.
Em consequência desta acção conjunta, vista como um compromisso, talvez a violação
do segredo de justiça não seja tão almejada, evitando-se, também, eventuais manipulações
dos Media “(...) com selectivas fugas de informação (...)”, conforme refere José Miguel
Júdice (2015).25

4. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (doravante, também TEDH)


comparou a comunicação social a um “watch dog” dos regimes democráticos. Dito isto,
é legítimo perguntar qual o papel que o TEDH atribui à Comunicação Social. Entendo
que são dois os papéis a destacar: informar o cidadão sobre as questões de interesse
público e, trazer à luz do dia assuntos de relevância jurídica. 26
O TEDH não é um tribunal de recurso de decisões judiciais internas, trata-se sim
de um tribunal que dirime questões em que os Estados possam ter de alguma forma
limitado “(...) o direito de informar o público (...)”. 27
A base legal para este raciocínio encontra-se no artigo 10.º da Convenção Europeia dos
Direitos do Homem, (doravante, também CEDH) que incide sobre a liberdade de

22
Cf. Carlos Blanco de Morais, Maria Luísa Duarte, Raquel Alexandra Brízida Castro, Media, Direito e
Democracia, Coimbra, Edições Almedina, 2014, pp. 100-101.
23
Respectivamente, Supremo Tribunal de Justiça (STJ), Supremo Tribunal Administrativo (STA) e
Departamentos de Investigação e Acção Penal (DIAP’s).
24
Veja-se a experiência que tem sido tentada já noutros países, como Espanha.
25
Cf. JÚDICE, José Miguel, Os Riscos da Italianização em Portugal, Advocatus, 2015, p. 23, disponível
em:http://www.plmj.com/xms/files/noticias_imprensa/2015/01_Janeiro/20150209Advocatus_Justica_e_c
omunicacao_social_Jose_Miguel_Judice.pdf, consultado a 1 de Junho de 2017. Ainda que noutro contexto,
José Miguel Júdice refere esta questão: “(...)manipulando-se os media com selectivas fugas de informação
(...)”.25
26
Reside aqui o âmbito e pertinência do jornalismo de investigação.
27
Cf. Carlos Blanco de Morais, Maria Luísa Duarte, Raquel Alexandra Brízida Castro, Media, Direito e
Democracia, Coimbra, Edições Almedina, 2014, p. 322.

[405]
expressão28: sempre que estejam em causa assuntos de interesse público os Estados
devem abster-se de interferir.
Não obstante, a liberdade de Imprensa, dado que não é um direito absoluto pode,
na medida do n.º 2, do Artigo 10.º da CEDH, ser restringida.
Essa limitação encontra justificação nos “deveres e responsabilidades” que lhe estão
adstritas, dispondo o citado artigo o seguinte sobre esse exercício de liberdade:

(...) pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções,


previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade
democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança
pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral,
a protecçaõ da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de
informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder
judicial. 29

A este respeito, permitam-me colocar a questão: Segredo de Justiça30 ou Direito


de Informar?
A resposta tem sido dada pela própria justiça, em particular pelo TEDH, enquanto
instância superior do Direito Internacional. A jurisprudência do TEDH entende que a
violação do segredo de justiça deva ser punível somente quando existam prejuízos para o
processo judicial em causa, no momento da investigação. No entanto, parece-me que
deste entendimento não se deva inferir a sobreposição do dever de informar sobre o
segredo de justiça. 31
Desde logo, porque em causa estão dois valores constitucionais de hierarquia igual,32
nomeadamente a liberdade de informação (os Media) e, por outro lado, a tutela do direito
em relação aos bens jurídicos mais pessoais, sublinhando-se, por esta razão, que a não ser
assim o segredo de justiça não está a cumprir uma das suas finalidades: salvaguardar a
presunção de inocência.

28
Dispoõe o Artigo 10.º, n.1 da CEDH que: “Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este
direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias
sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O
presente artigo naõ impede que os Estados submetam as empresas de radiodifusao ̃ , de cinematogra a ou de
̃
televisao a um regime de autorizaç a ̃ o pré via.”.
29
Cf. Artigo 10.º, n.º 2, da CEDH.
30
Cf. Artigo 20.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.
31
Em entendimento contrário, cf. Miguel Fernandes, vide, André Ventura, Miguel Fernandes, Justiça,
Corrupção e Jornalismo, Vida Económica, 2015, p. 26.
32
Cf. Artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa, aos quais estão sujeitos.

[406]
Podemos ou não concordar, mas parece relevante a ideia de José Miguel Júdice
(2015) sobre o segredo de justiça:

(...) é sobretudo essencial para os casos de arguidos que seguramente cometeram os


crimes e não tanto para os que se venha a revelar ser inocentes. O Estado de Direito
obriga a que sejam respeitados sobretudo aqueles que se vier a provar ser criminosos,
pois os outros não deveriam sequer ser incomodados, ainda que muitos o sejam. 33
José Miguel Júdice (2015)

Um passo importante, será encontrar cedências justas e mútuas, entre o direito à


informação e o direito à reserva da vida privada. O TEDH tem vindo a ser unânime,
legislando com base num difícil raciocínio de concordância efectiva e prática entre estes
dois direitos, colocando como critério último de decisão o interesse público da notícia.
Em boa verdade, este enigma, sobre a dicotomia entre a liberdade de informação
e os seus próprios limites, em salvaguarda pela protecção dos direitos pessoais e
fundamentais não é, nem se prospectiva, uma tarefa fácil.
5. Importará, sempre, in extremis, saber quando é que o interesse público da
notícia se deve, ou não, sobrepor aos direitos pessoais. Assim, importa recorrer ao
Princípio da Proporcionalidade, abraçando a possibilidade de reinterpretar o mito da
superioridade da liberdade de expressão e de informação, para que esta não seja uma
liberdade superior a idênticos direitos constitucionais.34
Daí que, António Henriques Gaspar (2011) frise a necessidade de se considerar
o “efeito recíproco de mútuo condicionamento entre normas protectoras de diferentes
bens jurídicos”35, em estreita análise com a doutrina do TEDH, com base no artigo 10.º
da CEDH.36 Quanto a este ponto, destaca ainda as situações pessoais de extrema
vulnerabilidade para os indivíduos, como é o caso das filmagens de arguidos detidos e
todo o aparato de exposição pública37: interesses comerciais, camuflados numa ideia de
interesse público.
Este fenómeno da Mediatização da Justiça, segundo Rogério Alves (2009), trata-

33
Cf. JÚDICE, José Miguel, Os Riscos da Italianização em Portugal, Advocatus, 2015, p. 23, disponível
em:http://www.plmj.com/xms/files/noticias_imprensa/2015/01_Janeiro/20150209Advocatus_Justica_e_c
omunicacao_social_Jose_Miguel_Judice.pdf, consultado a 1 de Junho de 2017.
34
Cf. António Henriques Gaspar, Mediatização da Justiça e Protecção de Direitos Pessoais, Revista Julgar,
N. º15, Coimbra Editora, 2011, p. 18.
35
Idem, p. 19.
36
Note-se que tem vindo a existir uma maior tendência em desfavor dos direitos pessoais.
37
Cf. António Henriques Gaspar, Mediatização da Justiça e Protecção de Direitos Pessoais, Revista Julgar,
N. º15, Coimbra Editora, 2011, p. 25.

[407]
se de uma “(...) profunda mediatização da desgraça.”, acrescentando que esses casos não
se devem esconder, “Mas sublinhar a criminalidade também não é pedagógico (...).”38,
contudo ressalva que:

“É verdade que a comunicação social também precisa de vender, tem um produto, está
em competição com os seus congéneres, (...) e sabe que a ausência desse tipo de
notícia, desse tipo de sensacionalismo, (...) vai provocar uma quebra relativamente aos
seus parceiros.”. 39
Rogério Alves (2009)

Esse interesse público tem vindo a ser, em alguns casos, justificado pelos Media
através das audiências ou dos jornais esgotados40, mas, esta constatação de consumismo,
por parte do cidadão, não traduz a essência de um verdadeiro interesse público. Será
sobretudo o desvalor das sociedades actuais já aqui retratadas, fruto da ausência do
resultado esclarecido de reflexão.
Enfim, deseja-se que esses direitos da liberdade dos Media quando em confronto
com direitos pessoais sejam manuseados com diligência e acuidade, no que será realmente
o interesse público, sempre caso a caso41, parecendo existir espaço para o Legislador e a
Jurisprudência irem mais além. Na certeza de que não havendo direitos absolutos,
prevalecerá sempre este princípio da casuística. 42

6. Procuro reforçar, assim, a necessidade da Justiça e dos Media se conciliarem e,


encontrarem um propósito comum, comunicando, pois se assim não for, segundo Isaías
Pádua (2016) “Sem esse passo será muito mais complicado distorcer aquela imagem,
menos positiva, com que a Justiça se apresenta aos olhos do cidadão (...)". 43
Caminhamos, aceleradamente, para um momento da Democracia onde a Justiça
estará excessivamente mediatizada, mediatismo esse que atentará cada vez mais contra
os direitos fundamentais: imagem, vida privada, presunção de inocência.

38
Cf. Fernando Contumélias; Mário Contumélias, Justiça à portuguesa, Alfragide, Publicações Dom
Quixote, 2009, pp. 111 -112.
39
Idem, p. 112.
40
Cf. António Henriques Gaspar, Mediatização da Justiça e Protecção de Direitos Pessoais, Revista Julgar,
N. º15, Coimbra Editora, 2011, p. 24.
41
Idem, p. 25.
42
Cf. André Ventura, Miguel Fernandes, Justiça, Corrupção e Jornalismo, Vida Económica, 2015, p. 27.
43
Vide, António Isaías Pádua, em entrevista na Sollicitare, Edição n.º 18, Setembro de 2016, p. 20.

[408]
Parece ficar a ideia de que, hoje, o povo também é juiz na praça, tornou-se
demasiado fácil opinar e, parte da informação que nos chega, pode ser uma informação
demasiado lacunosa ou frágil. Também, a pluralidade de negócios associados aos Media
fez deles um império. Assim, é interessante a abordagem de Vera- Cruz Pinto (2015),
quando refere que: “Os poderes comunicacionais ao serviço do lucro e dos interesses
egoístas dos proprietários de agências de criação e de difusão da informação conveniente
não são o meio adequado para ‘comunicar a justiça’.”. 44
Para o citado jurista, os
magistrados e os seus órgãos institucionais e representativos têm de aprender a comunicar
com a comunidade, mas:

(...) não necessariamente participando do círculo mediático montado a respeito de


certos processos, respondendo a jornalistas impreparados, a questões laterais; mas
com formas planificadas e eficazes, apoiadas por profissionais da comunicação, dando
a informação possível e indispensável para evitar especulações nocivas e ofensas ao
princípio da presunção de inocência. 45

Entendamos que o facto de diariamente termos por adquiridos a grande maioria


dos direitos fundamentais, o mesmo não significa que estes estejam salvaguardados, nem
no presente nem para o futuro, ao invés, compete-nos assegurar que não haja espaço para
uma regressão a este nível.

7. Os Media são essenciais, intrínsecos às sociedades que se querem livres, como


a nossa, também “(...) o grau de democraticidade de um Estado pode ser razoavelmente
aferido através do grau efectivo de liberdade de expressão de que gozam os seus
cidadãos.”.46
Por outro lado, a eficácia da Justiça obriga a que esta seja mais célere, e que o
facto punitivo aconteça o mais perto possível do momento da prática do acto que a ele
deu origem. Mas, por mais eficiente que este procedimento seja, deverá sempre levar
tempo e ponderação – o tempo que assuntos sérios precisam.
Fica a certeza de que a Justiça eficaz ainda está por cumprir e o verdadeiro diálogo
entre a Justiça e os Media por encontrar.

44
Cf. Eduardo Vera-Cruz Pinto, O Futuro da Justiça, Lisboa, Nova Vega e Autor, 2015, p. 152.
45
Idem, Ibidem.
46
Cf. Francisco Teixeira da Mota, A Liberdade de Expressão em Tribunal, Ensaios da Fundação Francisco
Manuel dos Santos, Relógio D’ Água Editores, 2013.

[409]
Quis, com estas breves notas, reflectir e induzir à reflexão da urgência de voltar à
“(...) limpidez do essencial (...).”47. Kant afirmava que devemos tratar os estranhos da
mesma forma que desejamos ser tratados, no entanto não disse como o fazer numa
sociedade que tem tanto de democrática como de mediatizada. No livro Justiça para
Ouriços, Ronald Dworkin (2012), possivelmente responde a esta questão, lendo-se “(...)
afirmo que temos responsabilidades muito mais estritas de não lesar estranhos do que
responsabilidades de os ajudar.”. 48

Porto, Junho de 2017

47
Cf. António Henriques Gaspar, Mediatização da Justiça e Protecção de Direitos Pessoais, Revista Julgar,
N.º15, Coimbra Editora, 2011, p. 15.
48
Cf. Ronald Dworkin, Justiça para Ouriços, Coimbra, Almedina, 2012, p. 279.

[410]
LISTA DE CONTRIBUIDORES

Ana Paula Silva Pereira (Universidade Federal da Paraíba): possui bacharelado (2011),
licenciatura (2012) e mestrado em filosofia (2014) pela Universidade Federal da Paraíba
(UFPB). Participa do grupo de pesquisa e extensão em Teoria e História dos Direitos
Humanos, vinculado ao Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da UFPB, liderado pelo
professor Giuseppe Tosi e do Grupo de Pesquisa em Democracia, liderado pelo professor
Jorge Adriano Lubenow. Foi tutora das disciplinas de filosofia do curso de Licenciatura
em Ciências Biológicas no projeto de educação à distância pela Universidade Aberta do
Brasil (UAB/UFPB) (2013-2014). Entre seus trabalhos são encontrados os seguintes
temas e autores: totalitarismo, banalidade do mal, ditadura, estado de exceção, refugiados,
apátridas, direitos humanos, Hannah Arendt e Giorgio Agamben.

Breno Góes: é brasileiro, natural do Rio de Janeiro, formado em Letras pela PUC-Rio.
Orientado pela professora Izabel Margato, e co-orientado pela professora Isabel Pires de
Lima, tem empreendido uma pesquisa em nível de mestrado na mesma instituição,
investigando a dimensão política dos aspectos estéticos da obra de Eça de Queirós.

Charles de Sousa Trigueiro (Universidade de Coimbra): doutorando em Direito Público


- Universidade de Coimbra - Portugal. Mestre em Ciências Jurídicas, Especialista em
Direitos Humanos, Econômicos e Sociais, Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais
ambos pela Universidade Federal da Paraíba - Brasil, onde é servidor técnico
administrativo em educação. Principais publicações: TRIGUEIRO, C. S.; nunes P. C. M.
“O Desempenho do Ministério Público e dos Órgãos de Defesa do Consumidor nas
Relações de Consumo do Produtos Combustíveis”. In: Maria Luiza Pereira de Alencar
Mayer Feitosa; Maria Marconiete Fernandes Pereira. (Org.). Direito Econômico da
Energia e do Desenvolvimento - Ensaios Interdisciplinares. 1ed.São Paulo: Conceito,
2012, v. , p. 1-335 e TRIGUEIRO, C. S. NETO, M. R. S. “A transparência dos gastos
públicos brasileiros e a investigação do combate à corrupção dos agentes públicos” .In:
Fabio da Silva Veiga; Rubén Miranda Gonçalves. (Org.). O direito atual e as novas
fronteiras jurídicas. 1ed.Barcelos, Portugal: Instituto Politécnico do Cávado e do Ave,
2017, v. 1.

Daniella Raquel Tigre Silva (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais):


graduanda do 7º período de Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais. Publicou no VI Congresso Latino- americano de Direito Material e Processual do
Trabalho, o artigo intitulado “O Fenômeno da terceirização: uma análise dos impactos
críticos na efetividade do Direito do Trabalho”. Contato: daniellatigre96@gmail.com.

Dulcilene Aparecida Mapelli Rodrigues (Universidade de Lisboa): doutoranda em


Direito, na Especialidade de Ciências Jurídico-Políticas na Faculdade de Direito -
Universidade de Lisboa. Bolsista CAPES. Mestre em Direito pela Universidade do Vale
do Rio dos Sinos -Brasil. Pós-graduada em Direito Público pelo Centro Universitário
Salesiano – Brasil. Professora Universitária. Advogada. . Algumas publicações:
RODRIGUES, Dulcilene A. M.. O Direito Constitucional, a Temática Ambiental e o
Limite Ético- Responsável para a atuação Jurídica. Revista Jurídica Luso-Brasileira, v. 1,
p. 489-526, 2016; RODRIGUES, Dulcilene A. M.. Alterações do Clima, Deslocamentos
Humanos e a Premente Juridicidade Contemporânea: o Sopesamento a partir de uma

[411]
Contextualização Jurídico- Integrativa. Revista Internacional de Direito Ambiental, v. 14,
p. 55-74, 2016; RODRIGUES, Dulcilene A. M.. O Direito Lusófono e o Risco Social:
Necessária Globalização Constitucional?. In: MONTE, Mário Ferreira; CALHEIROS,
Maria Clara; PEREIRA Maria Assunção do Vale; GONÇALVES, Anabela
(Coordenadores). (Org.). Direito na Lusofonia.Cultura, direitos humanos e globalização.
1ed.Braga: Escola de Direito da Universidade do Minho, 2016, v. 1, p. 97-105;
RODRIGUES, Dulcilene A. M.; CARDOSO, Tatiana de A. F. R . Os Direitos Humanos
na Sociedade Globalizada: uma Apreciação Luhmanniana. Revista Onis Ciência, v. 1, p.
85-106, 2014 ou RODRIGUES, Dulcilene A. M.. O discurso da tolerância e o meio
ambiente, uma abordagem sobre o tema da responsabilidade (e da) ética. Revista
Internacional de Direito Ambiental, v. 02 n.5, p. 127-146, 2013.

Érica Guerra da Silva (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro): doutora em


Direito pela Universidade Estácio de Sá. Membro Efetivo do Instituto dos Advogados
Brasileiros. Membro Permanente da Comissão de Direito Empresarial do Instituto dos
Advogados Brasileiros. Vice-Presidente da Comissão de Direito Empresarial do Instituto
dos Advogados Brasileiros, biênios 2014/2016 e 2016/2018 . Professora Adjunta da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Autora de Livros e artigos
jurídicos, tendo, recentemente lançado a obra: A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA NA
VERTENTE DA JUSTIÇA COMO EQUIDADE: A IMPORTÂNCIA DA
DEMOCRACIA PARTICIPATIVA NAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE EFETIVIDADE
DO DIREITO FUNDAMENTAL À MORADIA.

Fernando Conde Monteiro (Universidade do Minho): licenciado em Direito pela


Universidade Livre, Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de
Coimbra e Doutor pela Universidade do Minho, onde exerce funções de docência na
Escola de Direito, na área Jurídico-Criminal, sendo Diretor do Curso de Criminologia e
Justiça Criminal. Algumas das suas principais publicações: “O Problema da Verdade em
Direito Processual Penal (Considerações Epistemológicas) ”, in Simpósio em
Homenagem a Jorge de Figueiredo Dias, Por ocasião dos 20 Anos do Código de Processo
Penal Português, Coimbra Editora, 2009,pp. 321-31; “Reflexões epistemológicas sobre
o direito penal”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias,
Vol. II, Coimbra Editora, 2009, pp. 757 – 82; ou “Reflexões epistemológicas sobre a
liberdade enquanto possível pressuposto do agir humano e sua (ir)relevância para a
construção do jurídico.”, in Anuário Publicista da Escola de Direito da Universidade do
Minho, Tomo I, Braga – Responsabilidade e Cidadania, 2012, pp. 46-88.

Guilherme Augusto Souza Godoy (Universidade do Porto): doutorando em


Criminologia pela Escola de Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade do
Porto - Portugal, Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade
Federal do Mato Grosso. Especialista em Direito Público pelo Instituto Cuiabano de
Educação. Bacharel em Direito pela Universidade de Cuiabá. Pesquisador no Grupo de
Pesquisas/CNPQ/UFAL “História Social do Crime”. Revisor e Membro do Conselho
Científico da revista “Cadernos de Dereito Actual” de Santiago de
Compostela. http://bit.ly/guilhermegodoy.

Hamilton Cezar Gomes Gondim (Universidade Estadual da Paraíba): é Mestre (2014),


licenciado (2012) e bacharel (2011) em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba.
Professor substituto da Universidade Estadual da Paraíba no período entre 2016 e 2017.

[412]
Pesquisador na área de ética e filosofia politica, com ênfase na área de metaética
mooreana e pesquisa dos estudos democráticos na obra žižekiana.

Ludmilla Elyseu Rocha (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro): professora


Adjunta em Direito Privado na Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro/UFRRJ/Instituto Três Rios/ITR - Departamento de Direito, Humanidades e Letras
(DDHL). Membro da Comissão de Atividades Complementares. Doutorado em Educação
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/PPGE - Programa de Políticas Públicas e
Gestão Educacional - UFRJ/RJ (2008). Mestre em Direito pela Universidade Gama Filho
- UGF/RJ/Linha de Pesquisa: Estado e Cidadania (2000). Bacharel em Direito pela
Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal - AEUDF (1987). Licencianda em
Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRRJ - Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais/IFCS. Pós graduanda em Filosofia Moderna e Contemporânea pela
Faculdade de Filosofia de São Bento no Rio de Janeiro.

Manuel Da Cruz (Universidade do Porto): licenciado e mestre em filosofia ética e


política com a dissertação “Mecânica Social”, pela Faculdade de Letras da Universidade
do Porto. Com trabalhos filosóficos e literários publicados na Revista de Filosofia da
FLUP, na Biblioteca (edição da obra Trovas) e publicada a obra Ex Libris (poesia),
contando também a edição online de um trabalho filosófico sobre lógica (Estudo das
Questões).

Marcio Felix Cavalcanti (Universidade Autónoma de Lisboa): mestrando em Ciências


Jurídicas pela Universidade Autónoma de Lisboa - UAL. Agente da INTERPOL. Pós
Graduado em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá/Rio de Janeiro. Professor
de Direito Penal e Direito Processual Penal pela Faculdade Joaquim Nabuco, Professor
de Processo Penal e da Pós Graduação em Direito Penal pela Faculdade Guararapes e
Professor de Direito Processual Penal pela Faculdade de Ciências Humanas de Igarassu.
Bacharel em Direito Pela Universidade Católica de Pernambuco. Bacharel em
Administração pela Universidade de Pernambuco. Consultor Jurídico do Tribunal de
Justiça do Estado de Pernambuco. Palestrante Internacional. Artigos publicados: a) I
Congreso Internacional de Derecho, Gobernanza e Innovación – I CIDIGIN -Universidad
de Santiago de Compostela, 29 y 30 de junio de 2017, com o Título: A
(DES)NECESSIDADE DE PRODUÇÃO EXCEDENTE EMBRIONÁRIA NA
PROCRIAÇÃO MEDICAMENTE ASSISTIDA. b) 5th International Academic
Conference on Social Sciences (IACSS 2017) to be held in Barcelona, Spain, on July 27-
28, 2017, com o Título: THE (I)LEGALITY OF ABORTION OF THE FOETUSES
ANENCEPHALIC AND MICROCEPHALIC.

Maria Izabel Braga (Universidade de Coimbra): Weber Bacharel e Mestre em Ciência


Política pela Universidade de Brasília, Brasil, há cerca de 20 anos a autora concluiu sua
primeira fase formativa, com trabalhos na área do multiculturalismo e racismo. Jovem
activista estudantil, presidente do Centro Académico durante a graduação, entrou, então,
para o serviço público brasileiro e passou a dedicar-se como “activista estatal”,
produzindo e trabalhando para a inclusão dos direitos das minorias junto ao Ministério da
Justiça, quando coordenou o Programa “Cidadania e Direitos Humanos” em cooperação
internacional com o PNUD/ONU. Em seguida, buscou incentivar a modernização da
gestão pública, contratada para actuar no Programa Nacional de Apoio à Modernização
da Gestão e do Planejamento dos Estados Brasileiros e do Distrito Federal (PNAGE).
Posteriormente, assumiu diversos cargos no governo local com ênfase na área de meio

[413]
ambiente, onde participou de um curso de especialização (financiado pela Agência de
Cooperação Japonesa - JICA), sobre acções contra problemas ambientais urbanos, na
cidade de Sapporo. Desde 2011, a autora exerceu suas atividades na área de gestão do
território, especialmente com regularização fundiária, sempre promovendo a participação
da sociedade civil, ao coordenar a Conferência Extraordinária das Cidades no Distrito
Federal. Por fim, em seu último ano antes de ingressar no Programa de Doutoramento em
Democracia no Século XXI, do Centro de Estudos Avançados (CES) da Universidade de
Coimbra, a autora Coordenou a elaboração e implantação do Programa Carta de Serviços
ao Cidadão, com ampla participação da sociedade local e do Estado, sempre a fomentar
a transparência e as formas participativas na formulação, execução e controle das acções
públicas do Estado.”

Maria João Rocha Inácio: licenciada em Direito pela Universidade Lusíada do Porto e
com uma Pós-Graduação em Gestão de Pessoas, pela Porto Business School. É,
actualmente, jurista e formadora, nas áreas do Direito e da Gestão. Colabora com algumas
revistas e é autora de artigos sobre temas ligados ao Direito e Cidadania.

Noam Chomsky (Emeritus Professor MIT) : considerado por diversas vezes o pensador
mais influente do mundo, é Professor Emérito do Massachusetts Institute of Technology.
É, factualmente, o cientista mais citado, sendo também o professor com mais títulos
honorários na história da academia. Tem abordado variados temas, desde a Linguística à
Psicologia, passando pela Filosofia Política e pela Ciência Cognitiva. Publicou mais de
50 livros originais, sendo traduzidos para todo o mundo. Considerado o “pai da linguística
moderna”, é também um dos filósofos analíticos mais relevantes.

Noemi Pereira Pinheiro (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais): Graduanda


do 7º período de Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Publicou
no VI Congresso Latino- americano de Direito Material e Processual do Trabalho, o artigo
intitulado “O Fenômeno da terceirização: uma análise dos impactos críticos na
efetividade do Direito do Trabalho”. Publicou ainda, sob orientação do professor- doutor
Bruno Almeida, o artigo denominado “Imunidades Parlamentares” em agosto de 2017 na
revista da Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Contato: Noemipinheiro@live.com

Paulo Fernando Rocha Antunes (Universidade de Lisboa): doutorando em Filosofia


Política Contemporânea pelo Programa de pós-graduação da Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa (FLUL). Investigador do Centro de Filosofia da Universidade de
Lisboa (CFUL) integrado no Grupo de investigação PRAXIS, membro do Núcleo de
Estudos Políticos da Universidade de Lisboa (nepUL) e do Grupo de Estudos Marxistas
(GEM). Contacto: pauloantunes@campus.ul.pt. Destacam-se algumas publicações:
ANTUNES, Paulo Fernando Rocha – “Sein und Zeit: Sobre uma Improvável Ética”.
Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência – 3.º quadrimestre de 2014 – Vol. 7 –
n.º 3 – pp. 01-17; ANTUNES, Paulo – “Práxis e Pragmatismo: Para um
(re)esclarecimento”. Vértice 174/Janeiro-Fevereiro-Março 2015, pp. 5-20. ANTUNES,
Paulo Fernando Rocha – “Rawls e Marx: apontamentos em torno da ‘Divisão do
Trabalho’”. Griot: Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia – Brasil, v.12, n.2,
dezembro/2015/www.ufrb.edu.br/griot, pp. 122-145; ANTUNES, Paulo – “Vasco de
Magalhães-Vilhena [, Maurice Cornforth] e a crítica marxista ao Pragmatismo”.
Philosophica, 49, Lisboa, 2017, pp. 65-79 e ANTUNES, Paulo Fernando Rocha – “Marx,
Engels e a Guerra Civil Americana: um contributo para a compreensão da conceção

[414]
materialista da história”. Apeiron - Revista Filosófica dos Alunos da Universidade do
Minho / Student Journal of Philosophy (Portugal). Nr. 10, abril de 2017, pp. 49-75.

Pedro Curvello Saavedra Avzaradel (Universidade Paris I): é pós-doutorando em


Direito Ambiental pela Universidade Paris I (2017), Doutor em Direito da Cidade pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ, 2012), Mestre em Sociologia e Direito
pela Universidade Federal Fluminense (UFF, 2008) e Bacharel em Ciências Jurídicas e
Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ, 2005). Professor
Adjunto da UFF, desde 2014 atua no Curso de Direito do Polo Universitário de Volta
Redonda, sendo um dos lideres do Grupo de Estudos em Meio Ambiente e Direito
(GEMADI) e ministrando as disciplinas Direito Ambiental, Direito Florestal e Direito
Administrativo. Integra desde 2015 o quadro permanente do Programa de Pós-Graduação
em Direito Constitucional da mesma Universidade (PPGDC/UFF). É pesquisador do
'Grupo de Pesquisa Energias Renováveis, Descentralização e o papel dos Entes
Federados' da UERJ. Autor do livro "Novo Código Florestal: enchentes e crise hídrica no
Brasil"(2016), participou da organização de algumas obras coletivas, destacando-se as
seguintes: "Democracia Ambiental na América Latina: uma abordagem
comparada"(2016), "Questões Socioambientais na América Latina"(2016),
"Constituição, Crise Hídrica, Energia e Mineração na América Latina"(2016) e "O Estado
Regulador no Cenário Ambiental" (IDPV, 2017). Atua principalmente com os seguintes
temas: mudanças climáticas, tutela das florestas, Direito Ambiental na sociedade de risco
e Direito Constitucional Ambiental. Atualmente, pesquisa os aspectos jurídicos das
relações existentes entre a proteção das florestas, a produção de energia e as alterações
no clima.

Ricardo Manuel Marques Tavares da Silva (Universidade de Lisboa): Instituição:


Faculdade de Letras da Lisboa e Centro de Investigação de Direito Penal e Ciências
Criminais (Faculdade de Direito de Lisboa). Formação: Licenciatura em Direito pela
Faculdade de Direito de Lisboa; Mestrado em Filosofia pela Faculdade de Letras de
Lisboa; Doutorando em Filosofia (Faculdade de Letras de Lisboa) Contacto:
ricardo.silva@campus.ul.pt. Bolseiro FCT (Doutoramento) entre Janeiro de 2013 e
Março de 2017. Vencedor do Prémio Ensaio Filosófico promovido pela Sociedade
Portuguesa de Filosofia em 2011. Selecção de artigos publicados: "Se as Afirmações
Sobre Acontecimentos Contingentes Futuros Forem Agora Verdadeiras ou Falsas, Pode o
Futuro Permanecer Ainda em Aberto?", Revista Portuguesa de Filosofia, Vol. 68, n.º 1 e
2: pp. 245 – 274; "A Filosofia Moral Kantiana como Teoria da Aplicação da Norma",
philosophy@lisbon, Vol. 1, n.º 1: pp. 27 – 44; "Uma Semântica Para os Termos
Normativos", Anatomia do Crime, n.º 1: pp. 153 – 172; "Uma Defesa Não-Mentalista da
Ética Animal", APEIRON - Revista Filosófica dos Alunos da Universidade do Minho, n.º
8: pp. 103 – 122 e “O Modo de Selecção dos Representantes Legislativos”, Revista
Portuguesa de Filosofia, Vol. 73, n.º 1: pp. 159-190.

Rodrigo de Souza Tavares (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro): possui


graduação em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestrado em Direito,
Estado e Cidadania pela Universidade Gama Filho e Doutorado pela Pontifícia
Universidade católica do Rio de Janeiro. Associado do CONPEDI. Foi revisor da Revista
de Ciênciais Sociais - UGF. Foi professor das Universidades Gama Filho e UFRJ. É
professor Adjunto da UFRRJ. Foi parecerista do IBAM. Desenvolve pesquisa na área de
Direito, com ênfase em Teoria do Direito e Direito Constitucional. Atualmente tem como

[415]
foco de investigação o campo do Direito e das Emoções, bem como as implicações
jurídicas da Psicologia Experimental.

Ruben Filipe Lozada Frazão (Universidade de Lisboa): é licenciado em Filosofia pela


Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Um entusiasta da Filosofia,
nomeadamente na área da Filosofia Política, já publicou na 5º edição da Apeiron –
Student Journal of Philosophy” com o artigo: “Democracia: Discurso e Realidade”, e tem
também outras publicações no formato de um poema (Sonho Errante) e de uma foto (Cão-
pedra) para a obra, “Filosofia e as Artes”.

Rui Zeferino Ferreira (Universidade de Santiago de Compostela): Doutorando em


Direito, pela Universidade de Santiago de Compostela. Mestre em Direito em Ciências
Jurídico-Económicas, pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Investigador
na Universidade de Santiago de Compostela. Professor-convidado da aula de “Direito
Orçamentário e finanças públicas na Península Ibérica”, ministrada no dia 15 de julho
de 2016, no âmbito do curso intensivo de verão “El Derecho Ibérico y su Influencia en
América Latina”, na Universidade de Santiago de Compostela (Espanha). Investigador-
Colaborador Estrangeiro no grupo de investigação “Teoria Jurídica do Mercado” da
Universidade Presbiteriana Mackenzie (São Paulo/Brasil). Investigador-Colaborador
Estrangeiro no grupo de investigação “Direito, Agronegócio e Sustentabilidade” da
Universidade de Rio Verde (Rio Verde/Brasil). Membro do Conselho Científico da
Revista “Cadernos de Dereito” e da Revista “Gladius et Scientia”, do Centro de Estudios
de Seguridad, ambas da Universidade de Santiago de Compostela. Revisor na Revista
Jurídica FA7, da Faculdade 7 de Setembro (Brasil); da Revista Jurídica de Direitos
Fundamentais e Tributação (Brasil); da Revista da AGU (Brasil) e da Razón Crítica:
Revista de Estudios Sociales, Jurídicos y Humanos, Universidad de Bogotá Jorge Tadeo
Lozano (Colombia). Advogado. Juiz-Árbitro no Centro de Arbitragem Administrativa
(CAAD). Formador. Presidente da Assembleia-Geral do Instituto Iberoamericano de
Estudos Jurídicos, da APECCJ – Associação de Promoção do Ensino, da Ciência e da
Cultura Jurídica. Em 2017, publicou: “A simplificação dos sistemas tributários: A
evolução e a compreensão histórica até ao século XXI”, inParadigmas do Direito
Constitucional Atual; e “Apontamentos acerca do problema da dívida pública portuguesa
do século XXI”, in RevistaCadernos de Dereito Actual.

Sérgio Barbosa Dos Santos Silva (Universidade de Coimbra): Bacharel em Sociologia


pela Universidade de Brasília (2014). Licenciado em Ciências Sociais pela Universidade
de Brasília (2015). Mestre em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa
Catarina (2017). Atualmente, é doutorando em Democracia no século XXI
pelo Centro de Estudos Sociais (CES) junto à Universidade de Coimbra
em Portugal. Desenvolve pesquisas relacionadas, principalmente, aos seguintes
temas: democracia; participação política; internet; WhatsApp e ciberativismo. Endereço
eletrônico:sergio.barbosa30gmail.com . Última publicação: BARBOSA, Sérgio (2016).
“É possível a internet alavancar novos canais de participação política?” in Revista
Controversias y Concurrencias Latinoamericanas, v. 8, n. 13, junio, pp. 44-58.

Steven S. Gouveia (Universidade do Minho): é estudante de doutoramento em Filosofia


na Universidade do Minho, sob supervisão do Prof. Dr. Manuel Curado (Universidade do
Minho) e do Dr. Georg Northoff (University of Ottawa). A sua investigação primária foca-
se na relação entre a Neurociência e a Filosofia. Tem trabalhado também sobre a relação
entre a tecnologia, a política e a sociedade. É Editor Principal da "Apeiron - Student

[416]
Journal of Philosophy", que conta com 11 números publicados até à data e que contou
com a participação de pensadores como Nöel Carrol, Daniel Dennett, Peter Singer, Noam
Chomsky, Luaty Beirão ou Slavoj Zizek. Organizou e editou recentemente a obra
colectiva "Filosofia e as Artes", que conta com a participação de artistas de renome
internacional (e.g. Leonel Moura, Joana Vasconcelos, Ana Luísa Amaral ou Valete) e de
reputados filósofos da arte É membro do Mind, Language and Action Group (MLAG)
do Instituto de Filosofia da Universidade do Porto e Visiting Researcher no Institute of
Mental Health Research (2017), na Universidade de Ottawa. É ainda membro-fundador
e vice-presidente da Associação Episteme & Logos. É o organizador principal da
“International Conference on Philosophy of Mind”, que vai na sua terceira edição (2017)
e que já contou com a presença de Thomas Metzinger, William Child, Tillman Vierkant,
Tim Crane ou David Papineau. Publicará brevemente a obra “Philosophy of Mind:
Contemporary Perspectives” pela Cambridge Scholars Publishing, estando a organizar
(com Ana Figueiredo Sol) uma obra sobre Bioética e, com Dena Shottenkirk e Manuel
Curado, uma obra de filosofia da mente que contará com grandes nomes internacionais
da área.

Thiago Rocha (Universidade de Lisboa): é mestrando em Direito e Ciência Jurídica,


Especialidade de Direitos Fundamentais, pela Faculdade de Direito da Universidade de
Lisboa (FDUL, 2016/2018). Possui graduação em Direito pela Universidade Federal de
Uberlândia (2005), Especialização em Direito Público (2009) e Especialização em
Direitos Sociais (2015). Atualmente, exerce as funções de Diretor Científico do Núcleo
de Estudantes Luso-brasileiro da FDUL e consultor jurídico ad hoc para Direito Público
na Ernst & Young Brasil. Tem experiência na área de Direito Público, com ênfase em
Direito Administrativo, atuando principalmente em processos licitatórios, regidos pela
legislação brasileira ou por diretrizes de organismos internacionais, tais como, mas não
limitado a, BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), BIRD (Banco
Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento) e PNUD (Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento). Ministrou cursos destinados a formação de servidores
públicos em diferentes Estados do Brasil, bem como desenvolveu material e treinamento
destinado a público interno. Desenvolve produção acadêmica com ênfase em temas de
democracia, cidadania, direitos fundamentais e direitos humanos

Vanessa Capistrano Ferreira (Universidade Estadual Paulista “Júlia de Mesquita


Filho): estudante de doutoramento em Relações Internacionais pela Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Faculdade de Filosofia e Ciências de
Marília/SP) no Brasil. Mestre em Ciências Sociais e bacharel em Relações Internacionais
pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (Faculdade de Filosofia e
Ciências de Marília-SP) no Brasil. Dedica-se à temática de Estudos Europeus,
principalmente em: teoria crítica, direitos humanos, cidadania e reconhecimento
identitário. É pesquisadora na área de "Direitos Humanos, Migrações e Novas
Subjetividades", no Núcleo de Estudos e Análises Internacionais do Instituto de Políticas
Públicas e Relações Internacionais da Unesp, e membro do Grupo de Pesquisa em
Relações Internacionais e Política Exterior do Brasil na linha de "Direitos Humanos e
Relações Internacionais". Atualmente, é subsidiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo (FAPESP). Em 2014, recebeu menção honrosa na categoria de
pós-graduação pela Delegação da União Europeia no Brasil. É co-autora na obra Cultura
e direitos humanos nas relações internacionais, vol.2 – Reflexões sobre direitos humanos,
organizada pelo professor doutor Rafael Salatini (2016). Autora do artigo União
Europeia: a luta pelo reconhecimento identitário e a questão da cidadania

[417]
supranacional, publicado pelo periódico Brazilian Journal of International
Relations (2014). E, por fim, responsável pelo The European Court of Human Rights: An
analysis from perspectives of inclusion and the recognition of differences in identity,
apresentado no Newnham College (Universidade de Cambridge) e publicado pela FLE
Learning em 2016.

[418]
[419]

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