A dolorosa realidade da violência de pais contra crianças
19/04 - 09:52 - Paulo Moreira Leite
O indiciamento de Alexandre Nardoni, pai de Isabella, jogada do 6º
andar de um edifício de apartamentos, é uma notícia chocante, mas não chega a ser um ponto fora do gráfico. Pai e madrasta são indiciados por homicídio qualificado Influência do caso sobre crianças preocupa pais e especialistas Conforme notificações sobre violência doméstica reunidas pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi), em 2000, o número de crianças mortas dentro de casa chegou a 135, enquanto número de registros de violência nas famílias chegou a 4.330. Em 2001, foram 257 mortes e 6.675 registros de violência. Em 2002, 42 mortes e 5.721. Para 2003, último ano com dados disponíveis, os dados são 22 e 6.497. Os estudiosos acreditam que 3 em cada 10 crianças brasileiras moram em lares onde a violência é um dado quase tão freqüente como água na torneira e comida na mesa. Apenas no Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), o órgão da polícia paulista que investiga homicídios, atuam três equipes especializadas em crimes contra crianças e adolescentes. Um número infinitamente maior de policiais atua nas delegacias dos direitos da mulher. Essa função não é exatamente nova. Foi criada depois que o Congresso aprovou o Estatuto da Criança e do Adolescente (Eca). Para os policiais, a tragédia de Isabella transformou-se num episódio marcante em função de aspecto especial – envolve uma família de classe média. Mas não chega a ser uma novidade. A responsável maior pela condução das investigações que envolvem a morte de Isabella, a delegada Elizabeth Saito tem uma longa experiência acumulada em crimes contra crianças e adolescentes no período em que estava na linha de frente do trabalho policial. Em seu gabinete, na Casa Verde, Elizabeth recorda a morte de Luciana Joaquina, um nome que não esquece, tampouco a data: "foi no dia vinte e oito de outubro de mil novecentos e noventa e sete." Nesse dia, conta, foi chamada para apurar a morte de Luciana, um ano e seis meses, em um barraco numa favela em Vila Flávio, em São Mateus. "Nós vimos aquele corpinho desfalecido, com um corte no pescoço. Vimos uma faca, limpa, mas com um pouco de sangue, na pia. Quando os legistas chegaram e foram levar o corpo, descobriram que a cabeça fora separada do corpo," conta. "Todos começamos a chorar." Única pessoa presente na casa no momento do crime, um adolescente que era parente da vítima contou uma história desconexa. Disse que fora vítima de um assalto, que depois tentara se esconder e não sabia o que havia ocorrido. Aos poucos, ele admitiu que fora o assassino e, menor de idade, acabou encaminhado para uma casa da antiga Febem. Os crimes contra crianças são assim – brutais, dolorosos. Elizabeth lembra de outro caso que atendeu, o menino Gilmar, oito anos, empalado com um cabo de vassoura. Ou de uma menina de quatro anos, que chegou a delegacia com queimaduras de cigarro nas pernas, na boca, no pescoço, no bum-bum... Descobriu-se que o pai, que era dependente químico e gostava de passar a noite na farra, ficou zangado quando voltou para casa depois de uma noitada de samba. Ele queria dormir, a menina queria acordá-lo. Como os dois não se entenderam, ele decidiu queimá-la com cigarro. Convencida de que os outros casos não tiveram o mesmo impacto em função do patrimônio das vítimas, a delegada pergunta: "alguém chorou por Luciana Joaquina, pelo Gilmar, por essa menina queimada de cigarro?" Ela mesma responde: "a familia chorou. Os policiais choraram. Mas a população nem ficou sabendo. Não lembro de ter saído uma notícia no jornal." Fenômeno antigo A maioria dos estudiosos está convencida de que a violência entre pais e filhos é um fenômeno antigo que envolve uma situação nova. A delegada Márcia Buccelli Salgado passou duas décadas, entre 1980 e 2001, fazendo atendimento a famílias na zona leste de São Paulo. Depois disso, tornou-se a principal autoridade, na polícia paulista, na investigação da violência doméstica. Ela acredita que casos escabrosos sempre ocorreram, no interior de todas as famílias, em todas as épocas – a diferença é que não eram divulgados, como hoje. Mas a delegada está convencida também de que se vive, hoje, numa fase onde crianças são geradas em famílias sem estrutura nem preparo. Pais são figuras ausentes, as mães não tem compromisso com a prole, que vive largada, sem orientação nem cuidado. Quando a criança se comporta, tudo bem. Quando sai da linha, entra na pancada – num tipo de violência desmedida, sem relação com os chamados castigos pedagógicos das famílias de meio século atrás. "A violência doméstica ocorrre em muitas familias pobres, mas sua origem não é a falta de dinheiro," diz a delegada. "É a falta de amor. Crianças que não eram queridas nem desejadas se transformam num estorvo e são vítimas de pais que não tinham preparo moral nem psicológico para ter um filho. Eles querem se livrar do filho." Em seus plantões de delegacia, surgia pelo menos uma denúncia de agressão contra crianças – por mês. Não eram palmadas, mas queimaduras – com ponta de cigarro ou colher de alumínio. Ela encontrou mães que usavam até fios de cobre para arranhar as costas dos próprios filhos. Questionada sobre a ocorrência de casos semelhantes em famílias de classe média, a delegada diz que a comparação é difícil "porque as pessoas em melhor situação tem psiquiatra particular, escola particular, advogado particular. O governo não fica sabendo. Mas os casos aparecem também." Desde Sigmund Freud se sabe que o impulso agressivo acompanha a natureza humana depois que o macaco desceu da árvore. O uso de palmadas -- e mesmo golpes de cinta, algumas vezes com a fivela de ferro -- para reforçar a educação de filhos era uma cena tradicional em muitas famílias do passado. Era uma crueldade: as crianças choravam, trancavam-se no quarto, fugiam para a rua. Essa violência provocava medo e sofrimento, mas fazia parte de um pacto familiar. Apesar da dor física, era vista e aceita como parte do processo educativo. Não havia perversidade – pelo menos, não era visto assim. A delegada Márcia explica: "a pessoa podia bater de cinta, com a fivela, mas isso era um esforço para dizer: 'quem manda no galinheiro sou eu.' Agora não se quer afirmar nem educar. O que se quer é bater, é livrar-se de um problema." Hoje, essa violência mudou de direção e de finalidade. Perdeu as características antigas e ganhou outras. A evolução dos costumes venceu diversos anacronismos, mas criou um espaço doméstico bruto e desorganizado, onde os pais têm dificuldade de definir limites para si próprios e é claro que, em função disso, também não conseguem estabelecer limite para os filhos. Isso gera violência num grau que não se conhecia antes. Pais deixam de agir como pais, mães deixam de se comportar como mães – e mesmo irmãos nem sempre são irmãos. "A violência tornou-se uma forma de linguagem dentro família," afirma a antropóloga Cintia Sarti. Para ela, a violência é hoje "uma forma de relacionamento entre pais e filhos, marido e mulher, filhos e pais." Cintia Sarti diz que "seria um erro pensar a violência nas famílias como uma aberração, uma raridade. A violência é parte do cotidiano e será assim enquanto as relações familiares continuarem do jeito que são." A antropóloga lembra que a família contemporânea abandonou a autoridade patriarcal, que conferia ao pai e marido a última palavra sobre a mulher e os filhos, por um regime de convívio entre indivíduos mais iguais em direitos – e narcisistas pelo comportamento. Por esse novo modelo, criou-se um universo de papéis menos definidos, onde todos vivem a luta de seus interesses individuais e ninguém é capaz de estabelecer fronteiras para impulsos e vontades. Toda pessoa que já frequentou uma reunião na escola dos filhos já ouviu a conhecida melodia de que os pais de hoje não conseguem estabelecer limites para os seus herdeiros. "Numa família narcisista, está cada vez mais difícil reconhecer o outro, porque ninguém consegue enxergar seus próprios limites, situação que gera conflitos que podem produzir violência," diz ela. Numa avaliação das mudanças de comportamento ocorridas nas últimas décadas, a antropóloga explica que "a minha geração abandonou um regime que lhe parecia autoritário, mas não foi capaz de manter a autoridade necessária para educar os filhos." Nesse ambiente, o velho conflito familiar pode se transformar numa guerra de personalidades doentes e perversidades sem fim. A autoridade do pais tornou-se uma noção problemática não só por causa das pedagogias liberais, mas também em função de realidades políticas concretas, como a existência de Conselhos Tutelares, eleitos, que têm o direito de interpelar os responsáveis em função de suas atitudes diante dos filhos. Num caso exemplar, um pai que residia no Parque do Carmo, na zona leste de São Paulo, foi chamado a explicar-se perante o Conselho Tutelar porque havia aplicado uma surra numa filha de 13 anos. Ela passara duas noites consecutivas fora de casa, contrariando uma determinação expressa de não deixar a residência naqueles dias, muitos menos em companhias suspeitíssimas. Ao explicar-se, declarou que faria tudo de novo – porque sua prioridade era proteger a filha. Boa parte dos pais que o ouviam concordaram – apesar de tudo. Espertos como só eles sabem ser, adolescentes utilizam os Conselhos para colocar os pais contra a parede. "Já vi muita menina mandando a mãe calar a boca," conta a delegada Marcia Salgado. "Nessa hora, eu reagia assim: 'se você fosse minha filha..." O que a senhora faria se aquela moça desbocada fosse sua filha, doutora delegada? Ela responde assim: 'não faria nada. O Estatudo da Criança e Adolescente proibe até palmada e eu tenho o dever de cumprir a lei e fazê-la respeitar." Crianças torturadas A morte de Isabella ocorreu dias depois da descoberta de que, em Goiânia, a empresária Silvia Calabresi Lima aprisionava e torturava regularmente uma filha adotiva de 12 anos, sem que ninguém da família reagisse. Há casos piores – com filhos biológicos. Alvo de ira psicótica por parte da mãe, um menino de São Paulo foi recolhido a um abrigo de vítimas da violência e reconstruiu a própria identidade a ponto de mudar de nome. Passou anos sofrendo violências sistemáticas. Certa vez, a mãe chegou a torturá-lo com uma chave de fenda colocada no céu da boca. Ele tinha três irmãos, mas nenhum foi capaz de defendê-lo, embora todos tivessem testemunhado várias agressões. O silêncio e a falta de solidariedade também marcam famílias nessa situação. Muitas pessoas costumam imaginar que os casos de estrupro dentro de uma mesma família são freqüentes em casais que acumulam vários casamentos, com filhos de várias pareceiras. Errado. No mais completo levantamento sobre o assunto, constata-se que 80% dos estupros envolvem pais biológicos. Em residências pobres, a falta de dinheiro provoca a erosão precoce da autoridade de pais e mães que não têm como utilizar um dos mais eficientes recursos de controle sobre os filhos. Nas camadas que sobrevivem em outros patamar, o dinheiro da família pode ajudar a derrubar barreiras e quebrar tabus. No início da década, o delegado Armando de Oliveira Costa Filho fez parte da equipe de policiais que prendeu e interrogou Suzanne Richthofen, a adolescente que ajudou o namorado a matar o pai e a mãe a pauladas dentro de casa, na esperança de embolsar uma bela herança. Convencido de que a falta de valores religiosos e familiares é o grande fator que alimenta este tipo de violência, o delegado não esquece um momento do interrogatório. "Quando nós explicamos que eles seriam responsabilizados por seus atos, ela perguntou se poderia vender o carro," recorda o delegado Armando. Ele não tem dúvidas de que "a brutalidade aumentou dentro de casa. Os valores não existem." Vida familiar Embora os casos sejam cada vez mais volumosos, a maioria das famílias consegue encontrar meios de manter seus conflitos num limite suportável, evitando a explosão de tragédias e perversidades. Os estudiosos apontam, porém, para um fator que dificulta o entendimento do que se passa dentro de casa: o descompasso entre a realidade das famílias – e a visão que se costuma ter sobre elas. "A maioria das pessoas tem uma visão idealizada da vida familiar. Pensa que as famílias sempre são solidárias, que protegem seus filhos e garantem a unidade de seus membros. Essa é a família que a maioria gostaria de ter. Mas ela nem sempre corresponde à realidade e essa visão tende a minimizar os problemas, mesmo quando são graves, e impede que se enxergue possibilidades de agir enquanto é tempo," afirma Dalka Ferrari, da Andi. Fonte: http://ultimosegundo.ig.com.br/paulo_moreira_leite/2008/04/19/a_dolorosa_realidade_da_violencia_de_pais_contra_ criancas_1278905.html