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RESUMO:
Dentre os modelos propostos para as cidades no século XXI, os defensores da tecnologia
propõem as denominadas smart cities como solução aos problemas urbanos atuais. O artigo
parte dos discursos dos seus defensores e objetiva traçar apontamentos metodológicos que
explorem criticamente o pensamento tecnocrático.
Palavras-chave:
smart cities; tecnocracia; cidade financeira; democracia; capitalismo.
1 INTRODUÇÃO
Os especialistas em gestão urbana anunciam a chegada das cidades inteligentes, ou
smart cities em inglês. Eles afirmam que a tecnologia poderá, enfim, radicalmente transformar a
gestão urbana e resolver os muitos problemas das cidades, incluindo controle efetivo do tráfego,
uso eficiente de energia, majorar a segurança pública, antecipar a manutenção das vias, etc.
Gestores municipais participam de feiras especializadas de empresas que oferecem as novidades
que permitirão suas cidades “ascender” a essa nova qualidade. E as faculdades de negócios e
engenharias, como a Fundação Getúlio Vargas, abrigam projetos (e centros de pesquisa)
voltados a explorar a temática, anunciada como um grande novo mercado.
1
Se por um lado as cidades inteligentes são abstrações concretas (a tecnologia existe, os
ensaios estão na ordem do cotidiano, e há uma efetiva pressão ideológica das pessoas por esse
objeto, vendido com a promessa de resolução dos antigos problemas), por outro lado o discurso
que as envolve mais atrapalha que esclarece. Afinal, quais são os pressupostos históricos das
smart cities? O que torna uma cidade analógica ou digital (compreendendo forçosamente que
uma smart city só se realiza quando for provida de alta tecnologia digital)? Quais implicações
governamentais estão implícitas na gestão de uma smart city? Muitas são as questões, e as
respostas, provisórias por se calcarem principalmente no discurso e poucas vezes na prática.
Buscaremos a resposta a alguns questionamentos e a sua aproximação ao debate
promovido pela geografia urbana. Para isso precisamos de uma primeira aproximação avaliando
esse objeto, que será feita por dois olhares: o tecnocrático e o materialista histórico. Adiante.
1 O termo angloxão para o fenômeno, smart city, tem sido traduzido enquanto
cidades inteligentes ao português. Evidentemente que o termo sugere haver cidades não-
inteligentes, o que inocula qualquer crítica de antemão em uma sociedade fundada na
racionalidade. Por isso de sermos favoráveis a outras nomenclaturas, tais como: cidade
dinâmica, cidade esperta, cidade interativa, cidade responsível.
2
O acento se faz nos inúmeros dispositivos smarts3 (celular smart, relógio smart, central
multimídia de automóvel smart, gps smart, etc.) que permitem a coleta de informação 4, sua
transmissão e a habilidade de processamento de grandes vultos de dados (big data) para que, via
algorítmos, haja uma resposta mais eficiente às diferentes situações:
Graças às novas tecnologias, é possível informatizar, interconectar e
dotar de inteligência os sistemas básicos da cidade. Grandes cidades em
todo o mundo começam a utilizar sistemas inteligentes, como o projeto
de gestão avançada da água SmartBay em Galway, a iniciativa Wired
City de Songdo ou o sistema de transporte eSymphony em Singapura.
(…) Nas cidades inteligentes, os cidadãos o centro de tudo e nenhuma
cidade pode chegar a ser inteligente se não oferece os serviços que os
cidadãos percebem como úteis (...) (CEBREIROS e GULÍN, 2014, p.
15).
3
Sob a ótica operacional, uma SMART City é um sistema de interação a
diferentes níveis que aproveita a informação e as TIC para analisar
situações e visualizar diversas opções que favoreçam a tomada de
decisão baseada no conhecimento.. (CEBREIROS e GULÍN, 2014, p.
28).
Os mesmos autores, em alusão ao texto proposto em um seminário internacional,
denominado European Innovation Partnership on Smart Cities and Communities – Strategic
Implementation Plan, apontam que
As SMART Cities deveriam ser entendidas como sistemas de
pessoas utilizando e interatuando com materiais, serviços e
financiamento, para catalisar um desenvolvimento económico
sustentável, resiliência e um alto nível de vida. Estas interações
tornam-se Smart através de uma utilização estratégica das
infraestruturas de informação e comunicação, num processo de
planificação e gestão urbana transparente que reage as necessidades
sociais e econômicas da sociedade. (CEBREIROS e GULÍN, 2014)
É possível constatar que o pensamento tecnocrático assume a tecnologia existente e as
possibilidades de controle da estrutura das cidades, e propõe uma gestão técnica e instantânea
(uma cidade que reage às necessidades).
Tal pensamento propõe a planificação do espaço em um novo patamar, realizado por
algorítmos que melhor controlariam os semáforos (a depender do fluxo de carros nas vias),
direcionaria automóveis para vias alternativas como medida eficaz para conter o trânsito
(informando o melhor horário para se deixar a casa ou o trabalho, inclusive), melhor
dimensionaria a rede de saúde e educação em função da população a ser atendida, imporia uma
maior qualidade aos espaços público pelo constante monitoramento realizado pelos gadgets dos
cidadãos.
Chegamos assim a uma constatação importante: o olhar do pensamento tecnocrático
sobre as cidades – que conduz a pensar as smart cities – justifica a gestão pela tecnologia
enquanto um prêmio por sua racionalidade eficaz dos recursos. Saltemos agora para outra
abordagem. Adiante.
4
O materialismo não nega as Smart Cities –, apenas não as naturaliza e tampouco as
considera a “evolução” das cidades. O materialismo amplia a discussão, que deve compreender
o desenvolvimento da tecnologia e problematiza haver ou não uma nova cidade. Isso obriga o
pesquisador a se debruçar acerca a origem da tecnologia e da cidade, objetos postos em questão.
Compreende-se, sobretudo, que é necessário constituir esses dois elementos (a
tecnologia, a cidade) de conteúdos históricos e sociais e evitar a perspectiva “evolucionista” que
autonomiza (e formaliza) os termos e não ancora na materialidade histórica e social sua
explicação5. Pois, como já advertiu um filósofo, a história é feita pelos homens, conscientes ou
não do que ensejam6.
É nesse contexto que o conceito Smart Cities se torna problemático, ao revelar um
fechamento formal sobre si mesmo (a tecnologia culminou nas smart cities; as smart cities são o
emprego da própria tecnologia), explicação que não compreende as pressões das classes sociais
e as disputas envolvendo o urbano.
Ao seu turno, o pensamento tecnocrático assume a cidade enquanto um grande
mobiliário e seus problemas, todos em via a serem administrados, tal como um equilibrista de
circo mui hábil, que desempenha um ótimo trabalho em manter pratos girando sobre uma haste,
mas que não desconfia do seu ofício e eterniza a forma picadeiro.
A ideologia tecnocrata, um novo estruturalismo, perpetua o presente e, apagando os
rastros da sua origem (o passado), inocula o futuro.
6 A passagem de Marx merece ser recuperada em sua integridade, vez que ela
compreende a história realizada e realizável: “Os homens fazem sua própria história, mas não a
fazem como querem; não a fazem sob circunstância de sua escolha e sim sob aquelas com que
se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações
mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem
empenhados em revolucionar a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente
nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxílio os
espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a
fim de apresentar-se nessa linguagem emprestada.” (MARX, 1969 p. 17).
5
2.1 O passado escondido: a cidade racional e o racionalismo planificador
Iniciaremos com uma provocação: em que consiste a premissa maior da ideologia das
smart cities? A racionalização dos recursos valendo-se das informações partilhadas por
inúmeros gadgets conectados a mecanismos de respostas imediatas.
Mas tal racionalização elimina os preceitos da cidade moderna, proposta pela Carta de
Atenas de 1933? Enfaticamente pode-se responder que não; apenas afina a sua proposta.
As smart cities não rompem com o passado, mas acoplam-se às propostas do CIAM de
1933 (a possibilidade de adensar áreas com maior infraestrutura urbana, imposição de recuos
com vistas a aumentar a aeração e o número de horas de insolação das habitações, emprego de
modernas técnicas com intuito de aumentar o número de lajes e liberar o solo para superfícies
verdes, programa de viário público que admita a melhor circulação 7, zoneamento residencial,
comercial, trabalho e lazeres, etc).
Em relação às cidades modernas, a novidade das smart cities – e ela existe – é haver a
inversão do planejamento, que de contentor das distorções (urbanismo modernista) encampa
agora o papel de incitador do desenvolvimento (smart cities – sob a rubrica de “sustentável”). É
o aspecto político da cidade, entretanto, que desaparece e é suplantado pelo tecnológico sem
nunca explicitar que a tecnologia existente é uma escolha – sobretudo uma escolha política.
Adiante.
Os defensores das cidades inteligentes assumem como estável a cidade existente e
limitam-se a aperfeiçoá-las. Em termos lefebvrianos, o pensamento em voga revela-se um novo
estruturalismo. O futuro? Ele é projeto à semelhança do passado, conservando as estruturas mais
básicas (incluindo-se as de poder).
6
Se certas analogias não fossem abusivas, se poderia comparar a revolução proposta
pelas smart cities ao movimento do planeta Terra que recebe o mesmo nome. A revolução nada
mais é que um giro sobre o próprio eixo, alternando entre o dia/planejamento e a
noite/gerenciamento, para manter as coisas como estão em um movimento mais profundo, o de
translação.
Isto porque a cidade moderna, prometida pela Carta de Atenas, consiste na aplicação de
um plano (o planejamento) sobre o urbano (compreendido como território), ou seja, em uma
premissa maior sobre uma premissa menor 8. Eis o urbanismo moderno: trata-se da imposição
desse silogismo do dever ser, prática compatível com o método hipotético-dedutivo.
No outro extremo, propõe-se com as smart cities o sentido metodológico inverso: um
interminável número de aparelhos coletando instantaneamente informações da realidade para
formar um gigantesco mecanismo indutivo e gerar uma resposta (solução) baseada nos fatos.
Distinções à parte, é preciso frisar que ambos métodos (o dedutivo, o indutivo), formais
por excelência, prestam o compromisso de se acomodar sobre a produção capitalista: de um
lado o planejamento prevê a condução eficiente da produção; e do outro lado, o
administrativismo das smart cities conduz a providenciar rapidamente uma resposta, limitada às
regras programadas pela grande estrutura.
Tal como o dia e a noite na revolução terrestre, indução e dedução se alternam, e
consistem em uma pseudo-revolução da cidade, realizada para preservar o movimento mais
longo e o modo de produção existente, que se aperfeiçoa. Nesse trajeto, as antigas contradições
permanecem, são amortizadas, administradas e absorvidas, e sobre elas se depositam novas
contradições.
O racionalismo revelado pelas smart cities não é novo e não se efetivará. Pois, assim
como a cidade moderna se realizou por sua antinomia, as smart cities estão determinadas a se
realizar pelo seu oposto formal. Pois a razão formal, compreende o sociólogo francês René
LOURAU (1978), não passa de animalidade consciente, e constitui um inconsciente humano.
7
Um longo trajeto compõe a discussão da tecnologia, e ele parte da consideração que
toda ferramenta criada pelo homem torna-se uma extensão do seu corpo, e com ele interage.
Marx fundamenta que o desenvolvimento das técnicas é também o desenvolvimento do corpo
do homem9. Dito de outro modo, os homens inventam as técnicas, e as técnicas recriam o
homem.
O homem inicialmente desenvolve tecnologias que ampliam seu corpo. Um longo
período se passa até o neolítico (agricultura) e a sedentarização desse homem no território. As
ferramentas se complexificam, e o homem passa a apoiar-se na força dos animais (o arado), dos
ventos, das águas (moinhos), ampliando o domínio da natureza, com o desenvolvimento da
roda, das engrenagens, das máquinas.
Um salto se concretiza com a invenção dos motores (primeiro a vapor, a seguir a
combustão), havendo a passagem da força animal (cavalo) à força mecânica (cavalo-vapor).
Nesse trajeto nos interessa o advento da eletricidade, que além de trazer à tona uma nova ordem
de máquinas, ampliou exponencialmente as possibilidades ao permitir a transmissão de pulsos
por vias de transmissão. Adiante.
Marx descreve, no terceiro volume do capital, a importância do telégrafo elétrico para
os negócios: com a rede de transmissão conectando a Inglaterra ao Oriente, era possível
negociar a mercadoria na bolsa de Londres assim que o navio zarpasse do porto da Índia, antes
mesmo da carga chegar ao seu destino. O telégrafo, ao acelerar as comunicações, rompeu muito
mais que o tempo (tornado tempo zero), pois definitivamente superou as distâncias, anulada
(espaço zero) para os negócios.
O telégrafo elétrico, tecnologia criada para anular o tempo e o espaço, pode muito bem
esclarecer a teoria da informação. Essa tecnologia, analógica, inspira-se na transmissão e
recepção de sinais ligados e desligados, em intermitência 10.
8
Lefebvre, em um texto sobre a a teoria da informação, aponta sobre esse instrumento
que,
Na telegrafia, a língua corrente se traduz em um sistema ou código
binário de sinais: o longo e o breve, o traço e o ponto. Depois do qual é
necessário retraduzir em língua corrente e ‘decodificar’. O problema da
codificação se formula assim: ‘Representar as letras, as palavras e as
frases com dois signos, economizando ao máximo o tempo, objetivando
então o menor gasto de tempo e eliminando os ruídos, a dizer, os riscos
de confusão’. O problema se complica pelo fato de que é preciso indicar
o fim dos grupos de signos (o ‘stop’) com um gasto mínimo de tempo; é
o problema chamado ‘escansão’. A codificação deve, evidentemente, ter
em conta a frequencia das letras e de sua distribuição na língua
considerada (de maneira que o estudo das codificações se associa a um
estudo estadístico das estruturas linguísticas e no descobrimento das
leis, leis de Estoup-Zipf, de Willis e Yule, etc). (LEFEBVRE, 1973, p.
65)
Trata-se, portanto, de um expediente de simplificação da comunicação a formas binárias
(sim/não; verdadeiro/falso; aceso/apagado) para sua codificação, transmissão e decodificação,
conforme o próprio autor comenta:
Na prática, a teoria comporta a tradução de toda outra linguagem em
signos que tem o caráter ‘dual’ binário ou acoplado; mais ou menos,
traço ou ponto, lâmpada que se desliga ou se acende, impulsão elétrica
elementar que tem lugar ou não o tem, etcétera. (LEFEBVRE, 1973, p.
60)
Tal possibilidade conduziria a cogitar uma semântica universal, lógica formal por
excelência, operacionalizada por signos antagônicos facilmente discerníveis:
9
Para muitos teóricos, a cibernética e a teoria da informação se ligariam
a busca de uma semântica universal, que traduziria todas as
significações e todas as línguas em um idioma lógico, essencialmente
constituído por tábuas de signos (operadores e parâmetros ou
‘contadores’ lógicos), afetados eles mesmos de signos antagônicos
excluindo-se (o verdadeiro e o falso). Esta semântica universal ou
metalíngua seria praticamente indispensável para as máquinas de
tradução. (LEFEBVRE, 1973, p. 61)
Tal operacionalização engendraria um processo de generalização do pensamento, pois
exige um desenvolvimento que absorva as incongruências e as interiorize:
A linha perfeita representa aqui a abstração lógica e formal; seu estudo
permite em seguida passar aos casos mais concretos, quando a
transmissão comporta riscos de ‘ruídos’: interferências, erros, alteração
de mensagens, desordens e perda de informação. A teoria permite lutar
contra os efeitos ‘redundantes’, a dizer, contra a desordem e o
acréscimo de desordem, elaborando um código chamado ótimo. Permite
a pré-correção dos erros; proporciona um programa, uma regra ou um
modo operatório para trabalhar com eficácia, a dizer, manter ou
acrescer uma ordem. E não obstante, permanece formal, já que só da um
teorema de existência: demonstra que o código ótimo (o ‘extremo’)
existe, sem que tenha que determiná-lo.
Conservando um caráter formal, a teoria da informação vá entretanto do
abstrato ao concreto; avança estendendo o seu domínio. Progresso da
linha formalmente perfeita a linha real com riscos de ‘ruídos’ e logo da
transmissão descontínua de signos distintos a transmissões contínuas
(LEFEBVRE, 1973, p. 66)
Ora, a crítica inicial estabelece-se no fato da teoria da informação explorar o conídico e
hipostasiá-lo, tornando-o uma totalidade, o que nos remete à crítica formulada por
CASTORIADIS (1999, p. 18):
10
O mundo comporta uma dimensão conídica (abreviação de conjuntista-
identitário): senão, por exemplo, a ‘irrazoável eficácia das matemáticas’
se tornaria ininteligível. Mas o mundo não é um sistema conídico. Ele
não o é, primeiramente, porque inclui o imaginário humano, e o
imaginário não é conídico. Em seguida, a aplicação do conídico ao
mundo possui uma história, que se tornaria ininteligível se o mundo
fosse totalmente conídico. Enfim, supondo-se, mesmo, que o mundo
seja exaustivamente redutível a um sistema conídico, esse sistema
estaria suspenso no ar, já que seria impossível dar conta, conidicamente,
de seus axiomas últimos e de suas constantes universais
11 O censo populacional, promovido pela União e realizado pelo IBGE, expressa essa
lógica e as inúmeras tentativas de reconhecer a etnia da população se fazem sucessivamente
frustradas. Entretanto, o dado oficial existe: ele é coletado a fórcipes, tabulado e processado.
Assim, a declaração espontânea por nomenclaturas (branco, negro, amarelo, cafuzo, sarará)
sempre se faz acrescida da alternativa “outros”. Outro expediente usado foi a grade de cores, na
qual o entrevistado dita qual cor impressa no formulário corresponde à cor da sua pele. As
inúmeras dificuldades são resolvidas no campo, pela necessidade prática de se preencher o
formulário, escamoteando-se as diferenças de modo a comportá-las na grade.
11
De certo modo esse embate estava posto na antiguidade clássica, quando Zenão de Eleia
propunha um interessante desafio lógico: um objeto qualquer, para sair do ponto A e atingir o
ponto B haverá de atingir o meio do caminho, o ponto C. Como, para que consiga sair do ponto
A e atinja o ponto C, haverá de atingir o meio desse caminho, identificado pelo ponto D. Desta
forma, pela lógica formal, por haver sempre um ponto a ser percorrido, o percurso se torna
infinito, e o objeto jamais chegará ao ponto B e, portanto, tornava-se impossível o movimento.
E, contrariando Zenão, seus adversários não elaboravam grandes teorias – tampouco
precipitaram o cálculo diferencial como resposta teórica – e provavam a existência do
movimento simplesmente… andando! Lefebvre nos auxilia ao mencionar que
A verdade obriga a dizer que, de fato, o pensamento dialético (…) não
serviu a esse desenvolvimento da técnica e do conhecimento. A
filosofia não o serve. Estes progressos derivam de preocupações
prosaicas, cotidianas ou quase cotidianas, em todo caso práticas.
(LEFEBVRE, 1973, p. 61. Tradução livre).
Ora, a cibernética ao se deparar com o ponto médio, escamoteia, uniformiza, retifica os
ruídos para remover os conteúdos mais concretos permitindo, pela forma, que se transforme em
informação a adentrar o conjunto organizado e passível de ser processado. O mérito do
tratamento de massas de dados é também a sua crítica, pois o big data só é possível em
quantidade extremas de informações desprovidas/reduzidas de/em qualidade.
Nessa perspectiva, o que se propõe para as smart cities é um espaço que tende a pouca
ou nenhuma diferença qualitativa e que, simultaneamente, totalize as particularidades,
homogeneizando-as. O conjunto, aparentemente harmônico, se faz pela violência e supressão de
toda e qualquer diferença. Nesse aspecto, quanto mais harmonia o espaço sugerir, mais ele se
revelará enquanto espaço de uma ordem integralizadora, faça seu imperativo (o Estado, as
empresas gestoras) presente ou ausente.
12
No âmbito de uma estratégia SMART, os governos desempenham um
papel importante na transformação municipal em todas e cada uma das
linhas apresentadas anteriormente. Para isso, relacionam-se diretamente
com a população e estabelecem parcerias público-privadas para a
implementação de iniciativas abertas à participação.
No que diz respeito às competências que lhe são singulares, as TIC
fornecem ferramentas para disponibilizar uma informação útil e
acessível com diferentes níveis de interação, desde a possibilidade da
população avaliar o funcionamento da cidade à prestação de serviços
em linha, abrindo a porta para a realização de orçamentos participativos
através dos quais a população se envolve diretamente na gestão
municipal e no estabelecimento, por via direta, das suas prioridades.
(CEBREIROS e GULÍN, 2014, p. 53)
Esse modelo de governança – que assume diferentes nomenclaturas, sendo a gestão
colaborativa uma das formas adotadas pela esfera privada – propõem a refundação do contrato
democrático (Democracia 2.0) suspendendo a discussão que o processo democrático pressupõe,
de início, a saber: o debate presencial na Ágora pelos particulares em um momento de ausência
de qualquer forma representação do poder público, conforme exaustivamente Castoriadis expôs.
Trata-se de confundir democracia com os atos de expressar a opinião e votar, o que
remonta as assembléias burguesas em desconhecimento das práticas democráticas e
colaborativas dos gregos antigos e conselhos operários, tão bem narradas 12 por VANEIGEM
(1974). Adiante.
13
A governança pretendida suspende a discussão política e as noções de governo e
cidadania (incluindo-se o sujeito-cidadão) por assinalar a a-política do administrativismo. A
própria noção de transparência13 encampa os envolvidos a assumirem o papel de administrador,
amarrando as práticas ao existente e afastando-as do possível.
O caráter a-político14 assumido por essa ideologia faz emergir toda uma ordem de
tecnocratas apresentados enquanto portadores de uma racionalidade acima de qualquer
ideologia (de esquerda, de direita), muito embora sejam eles mesmos representantes de uma
ideologia.
Mas o caráter predominante da governança eficiente é o fato do seu discurso facilmente
possibilitar a condução da gestão urbana por empresas ou entidades jurídicas que prometam
fazer uso de medidas puramente técnicas em suas resoluções.
Nesse sentido, o poder político não apenas se desloca para a esfera privada como
também tende a se concentrar, pois a dita governança eficiente assim será reconhecida se dispor
da capacidade de rapidamente responder aos problemas urbanos simplórios (trânsito, queda de
árvores, alagamentos, cortes de energia).
13 “As ferramentas estão disponíveis pelo que hoje é necessário que os dados e a
informação das administrações públicas estejam disponíveis em aberto para a população em
geral e que sejam os cidadãos quem decida o que fazer com ela.” (CEBREIROS e GULÍN,
2014, p. 53).
14 A eficácia desse expediente parece ser maior quanto maior for o isolamento das
pessoas. Historicamente, isso foi possível com um longo processo de individualização das
pessoas. No plano teórico, é possível a efetivação de uma smart city nas sociedades de
capitalismo mais avançado, quando a separação dos indivíduos se consome mais ferozmente.
Ver, sobre a separação e a crítica da separação, a obra de Guy Debord, que inclui a dos
Situacionistas.
14
A governança eficiente exige investimentos em Pesquisa e Desenvolvimento e envolve
camadas de proteção de segredo industrial aos algorítmos desenvolvidos, de forma que é
possível anteceder que as smart cities promoverão um paradoxo: a generalização dos pólos
transmissores de informações por um lado (cada habitante da cidade será um potencial gerador e
transmissor de informações aos órgãos governantes 15) e a formação de grupos governantes em
regime de monopólio (empresas com a capacidade de receber, armazenar e processar com
eficiência o universo de informações disponibilizadas pela internet das coisas 16).
O segredo para se manter a governança nas cidades inteligentes tende menos às
abordagens criativas para resolução dos problemas e muito mais ao empenho em tornar a cidade
responsível17 aos seus habitantes, o que suplanta a discussão democrática sem dizê-lo.
16 Por sua vez, a economia realizada com uso dos próprios equipamentos dos habitantes
para a geração e transmissão das informações exige amplos investimentos em máquinas capazes
de receptar e armazenar os dados, bem como o desenvolvimento de algorítmos para seu
processamento. Quem detiver as informações e conseguir processá-las estará em posição
privilegiada em comparação a novos concorrentes, que não dominem a tecnologia necessária
para tal feito.
15
Assim Lefebvre classifica – sem nunca determinar – que a cidade política ocuparia um
ponto próximo ao da origem da linha hipotética. Tal cidade, povoada por “sacerdotes e
guerreiros, príncipes, ‘nobres’, chefes militares (…) administradores e escribas” (…) “é
inteiramente ordem e ordenação, poder.” (…) e “os lugares destinados à troca e ao comércio
são, de início, fortemente marcados por signos de heterotopia. Como as pessoas que se ocupam
deles e os ocupam, esses lugares são, antes de mais nada, excluídos da cidade política:
caravançarás, praças de mercados, faubourgs, etc.” (LEFEBVRE, 1999, p. 21 e 22), pois a
função da cidade nesse período é essencialmente política.
A cidade comercial surgirá no curso da luta (de classes) travada entre os mercadores e
os senhores territoriais. “A praça do mercado torna-se central. Ela sucede, suplanta, a praça da
reunião (a ágora, o fórum). Em torno do mercado, tornado essencial, agrupam-se a igreja e a
prefeitura (ocupada por uma oligarquia de mercadores), com sua torre ou seu campanário,
símbolo de liberdade.” (LEFEBVRE, 1999, p. 22). A troca comercial pode, assim, tornar-se a
principal função urbana, emergindo uma forma urbana compatível com a estrutura do espaço
urbano.
A cidade comercial perdura até que as indústrias, implantadas longe das cidades, para
melhor aproveitar os recursos naturais e as fontes de energia, representante da “não-cidade e
anti-cidade vão conquistar a cidade [comercial], penetrá-la, fazê-la explodir, e com isso estendê-
la desmesuradamente, levando à urbanização da sociedade, ao tecido urbano recobrindo as
remanescências da cidade anterior à indústria.” (LEFEBVRE, 1999, p. 25). O capital comercial
é superado pelo capital industrial, e essa nova função urbana caracteriza a cidade industrial.
Para o autor francês, “a cidade industrial (…) precede e anuncia a zona crítica” pois “o
induzido torna-se dominante (indutor) (…) [e] a problemática urbana impõe-se à escala
mundial.”. A mudança qualitativa é perceptível, pois “a realidade urbana modifica as relações
de produção, sem, aliás, ser suficiente para transformá-las. Ela torna-se força produtiva, como a
ciência. O espaço e a política do espaço ‘exprimem’ as relações sociais, mas reagem sobre elas”
(LEFEBVRE, 1999, p. 26).
O autor aponta o desejo por se pensar o que virá após a zona crítica. As muitas
possibilidades estão dadas, faltando apenas a sua efetivação. É nesse contexto que ele apresenta
o entendimento do urbano:
16
O urbano (abreviação de ‘sociedade urbana’) define-se portanto não
como realidade acabada, situada, em relação à realidade atual, de
maneira recuada no tempo, mas, ao contrário, como horizonte, como
virtualidade iluminadora. O urbano é o possível, definido por uma
direção, no fim do percurso que vai em direção a ele. (LEFEBVRE,
1999, p. 28)
E aqui, nesse texto de poucas páginas, uma bifurcação se apresenta nesse percurso. A
primeira via conduz às smart cities, enquanto o segundo trajeto remete à revolução urbana.
Adiante.
O caminho para as cidades inteligentes implica em reconhecer a sua função urbana. Ela
não expressaria o domínio da função financeira e do capital financeiro? Marx bem descreveu o
surgimento do capital fictício a partir da necessidade, do capital, de acelerar as trocas até
assumir a forma instantânea (tempo zero, espaço zero). À análise da moeda-crédito, títulos da
dívida e ações formulada por Marx pode-se examinar a gama de possibilidades de rendimentos
baseada em juros, dividendos e participações em processos que envolvem a mais-valia, o que
caracterizaria a sociedade atual. Se considerarmos que esse desdobrar econômico exige uma
profunda transformação da função da cidade, as chamadas smart cities se revelariam cidades de
função financeirizadas, quer seja por sua imediaticidade, quer seja por se realizarem como
imensos ativos desenvolvidos forçosamente na expectativa de se realizarem como tal no futuro.
No plano jurídico, a forma urbana funda-se na propriedade privada e na defesa do livre-
mercado, presente desde a declaração dos direitos do homem, concebido enquanto trabalhador.
Por sua vez, o caminho da revolução urbana exige a superação não reformista da cidade
industrial, com vistas a promover a passagem da sociedade industrial à sociedade urbana. Exige
a intervenção maciça dos interessados. Compreende o direito à cidade, que não se confunde
com o acesso ao mobiliário citadino por se fundar em uma experiência que expõe os limites e
implode a tábua de direitos do homem-trabalhador. A esse caminho convergem as críticas e
reivindicações dos diferentes movimentos revolucionários, que incluem a negação da forma-
mercadoria (Marx), da separação (Situacionistas) e da vida quotidiana (Lefebvre).
4. Considerações
17
A análise do presente revela que a implementação das smart cities se efetivará em um
futuro muito próximo, pois a infraestrutura necessária será promovida pelos próprios habitantes
quando do uso de seus dispositivos inteligentes – sendo o aparelho smartphone o objeto-rei para
a sua implementação.
Se as condições materiais que possibilitam as smart cities são novas por um lado, a
teoria que as alicerça remonta um debate de longa data, que inclui a teoria da informação e o
pensamento tecnocrático.
No mesmo entender, as smart cities constituem um desdobramento da cidade industrial
(e do capital industrial) que se metamorfoseia em cidade financeira (capital financeiro) criando
novas contradições que se sedimentam sobre as antigas.
Por fim, aponta-se a latência da sociedade urbana e a sua possibilidade de efetivação,
pois o pensamento tecnocrático envolvo na proposição das smart cities revela, em seu discurso,
o caráter reducionista que não comporta a vida e a transforma, necessariamente, em vida
quotidiana.
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