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cÁnne uVlcClintock

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Couro imperial
RAÇA, GÊNERO E SEXUALIDADE
NO EMBATE COLON I AL

TRADUÇÃO
Plinio Dentzien

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le o I T o " • l'N:NMW-1:MJ
FICHA CATALOCR.ÁflCA ELABORADA PELO
SISTtMA DE 818llOTECAS DA USICAMP
DIRETORlA DE TRATAME:-:TO DA ISFOR~AÇÂO

M131c McClincock, 19s•-


Couro impcri1l: ,._.. gênero e scxw.lid.u!e no embate coloni.t / Anne McClincod:;
tuduçio: Plínio Dcnnicn. - Campin:u. sr: Edi,or1d1 Unicamp. 1010.

1. Comportimenioscxu.t - Grl·Breunha - Colônias - Hinóri.L 1. Rclaçoo homem-


mulher - Grl,Br<canha - Hinória - Séc. xrx. J. Plj>CI scxu.t - Gr.i-Bre11nlu - Colô,
nias - História_ 4. Gr.i-Breunha - Colônias - Rclaçôcs u,i,is. I.Titulo.

CDD J0l.41
ISBN 978-Ss-168-0893-s 301.4s1

lndiccs p:an catilogo sistemitico:

,. Ü>mp<>mmcJ>to ..,rua] - Gri,Breunlu - Colônias - Hisróri• 101.41


1. Relações homcm-mulher-Grl-Breunlu- l-lisrória -Séc. XIX 101.4< ,.
3. Papel scxu,1- Cri-Bretanha - Colônias - Históri.l J0H<
4. Gri-Brccanlu- Colónias - Rcbçoo raciais 301.4s1

Título Origin.t: /wtp,ru/ le,uJ,,r: ,.,,,, xrnJrr aná ICCU4Íiry ,n the colorrwl torrrw •
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I
géneros & :f'eminismos

A coleção Gêneros & Feminismos foi criada pela equipe de pesquisa-


dores do Pagu-Núcleo de Estudos de Gênero da Unicamp e rc,:l!be o
apoio da Editora da Unicamp. Voltada para a divulgação de obra~ im-
portantes da história do feminismo e da área de estudos de gênc:·v, no
país e no exterior, pretende ser uma fonte de referência importar,~~ para
os pesquisadores dessa área em nosso país.
Para ~b e Valerie

1
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Agradecimentos

Ao ESC REVER este livro, acumulei várias dívidas. O!Jero primeiro agra-
decer aos meus amigos por seu apoio incondicional e pelas inspirações.
Eles i.ão muitos para serem nomeados aqui, mas sabem quem são, e
agradeço a todos.
M uitas pessoas foram generosas ao dedicarem tempo para ler, editar
ou discutir partes deste manuscrito de várias maneiras: Kwame Antho-
ny Appiah, Nancy Armstrong, Adam Ashforth, Homi Bhabha, John
Bird, Elleke Boehmer, Jerry Broughton, Carol Boyce-Davies, Neville
Choonoo, Clara Connolly, Laura Chrisman, David Damrosch, Jean
Franco, Henry Lewis Gates, Liz Gunncr, Catherine Hall, Stuart Hall,
Janet Hart, Kathlcen Hill, Clifford Hill, Rachel Holmes, O!Jadri Is-
mail, Cora Kaplan, David Kastan, Dominic LaCapra, Neil Lazarus,
David Lloyd, Melinda Mash, Aamir Mufti, Benita Parry, Ken Parker,
Mary Louisc Pratt, Bruce Robbins, George Robertson, Ellen Rooncy,
Trish Rosen, Andrew Ross, Lynne Segai, Elia Shohat, George Stade,
Bob Stam, Michael Sprinker, Michael Taussig, Robert von Halberg,
Penny von Eschen, Cherryl Walker, Cornel vVest e Patrick Williams.
Agradeço a todos.
Estou profundamente agradecida a todos os meus amigos em Co-
lumbia, especialmente a Marccllus Blount, Ann Douglas,Jean Howard,
Priscilla vVald e a Gauri Viswanathan, cujas risadas, solidariedade e vibra-
ção intelectual foram mais importantes do que posso expressar. Um
agradecimento especial a Edward Said, por sua mistura inspiradora de
engajamento acadêmico e político, e também a Zaineb Istrabadi, por sua
amizade e apoio. Estou também profundamente grata a l\llichacl Seidel,
por seu apoio e encorajamento, e um obrigada muito especial a Joy Hayton,
por sua gentileza, sanidade e pela ajuda incansável ao longo dos anos.
.l\lleus alunos em Columbia, muitos dos quais agora são bons amigos,
tornaram o ensino uma CÃ-periência inspiradora e inesquecível. Não exa-
gero o valor de sua capacidade intelectual e de seu entusiasmo. Um afe-
tuoso apreço também para Bill Dellinger, Evelyn Garcia, Nigel Gibson
e Jon Roth, por sua ajuda e bom humor, ao me socorrerem administra-
tivamente em incontáveis ocasiões.
Durante os anos magros, quando· Columbia era um lugar pouco hos-
pitaleiro para mulheres, o Instituto de Pesquisa sobre Mulher e Gênero
apoiou uma comunidade muito amiga e viva. Tenho uma dívida especial
com Miranda Pollard e Martha Howell, por sua sabedoria e tenacidade
en1 criarem um fórum indispensável para o envolvimento e o apoio in-
telectuais. George Bond e Mareia Wright, no Instituto de Estudos
Africanos, também criaram uma comunidade valiosa e fico imensamen-
te grata a eles por seu apoio ao longo dos anos .
.l\llinha editora, Cecília Cancellaro, foi uma companheira de trabalho
excelente. Sua inteligência.~~m jaça e seu entusiasmo são enormemente
apreciados. Stewart Cauley e Matthew DeBord, lVIaura Burnett e Clau-
dia Gorelick pacientemente encaminharam um manuscrito errático até
os seus estágios finais e não se queixaram de uma série de mudanças de
última hora. Minha editora de texto, Connie Oehring, heroicamente
organizou uma horda de notas desregradas e as tornou dóceis, e o traba-
lho meticuloso de Jerry Broughton com a leitura de provas me salvou
num momento particularmente crítico. Sua amizade e a de Rachel Hol-
mes me apoiaram quando eu mais precisava. O projeto inovador de Les-
lic Sharpe e Hermann Feldhaus acrescentou uma forte dimensão gráfica
ao livro, e a capa provocativa de Tom Zummer ofereceu um resumo de
todo o meu projeto.

I
Este livro não poderia ter sido concluído sem a valiosa contribuição
do SSRC-MacArthur International Peace and Security Program. Estou
enormemente grata ao estímulo, à bolsa e à comunidade intelectual aos
quais tive acesso através de seu generoso apoio financeiro.
Todos no Institute of Commonwealth Studies tornaram minha es-
tada em Londres inesquecível e produtiva. Um agradecimento especial a
Shula Marks, por sua inspiração intelectual e generosidade. Encontrei
poucas pessoas com tal capacidade de juntar uma percepção aguda com
uma generosidade e carinho pessoal tão grandes. l\1eu agradecimento
carinhoso também para Joan Rofe, por seu bom humor e bondade; e
também para David Blake, Irene Ammah e Rowena Kochanowska por
seu apoio. Tenho também uma dívida com o grupo de leitura sobre nacio-
nalismo e gênero do ICS, cujas discussões e ideias me ajudaram muito.
Um agradecimento especial ao African National Congress por sua
gentileza em tornar disponível o logo da Liga das l\llulheres do CNA.
Robert Opie foi muito generoso ao me dar acesso à sua maravilhosa
coleção de propaganda no Museum of Advcrtising and Packaging, em
Gloucestcr; estou muito grata a de pela gentileza. E stou também muito
grata a Ronald l\1ilne e ao Master e Fellows do Trinity College, Cam-
bridge, por me permitirem o acesso ao incrível arquivo de Arthur Munby.
Agradeço também a John Botia e a Gary Collins por me facilitarem o
acesso aos anúncios de A. e F. Pears Ltd., dos Unilever Historical Archi-
ves. Gostaria também de reconhecer a ajuda indispensável das bibliote-
cárias e da equipe fotográfica da British Library e do British lVIuseum;
agradeço por sua paciência, engenho e proficiência. O s bibliotecários da
Biblioteca da University of London, do Public Record Office e da Co-
lumbia University deram informações e ajuda valiosas. Sou também
grata a Shuter e Shooter, National e Pers, Die Burger e The Guardian, por
sua ajuda com as fotografias. Qµero finalmente manifestar meus mais
sinceros agradecimentos a Gerald Ackerman, por seus esforços e por sua
generosidade cm tornar disponível a imagem de capa, e também a De-
borah Lorcnzen, do Museu de Arte de Indianápolis.
Trechos deste livro apareceram antes sob v:irias formas na Série Escri-
tores Ingleses e Escritores Europeus (Scribners); em Patrick Williams e
Laura Chrisman (orgs.), Colonial Discourse/Post-Cdonial 7ht!ory (Lon-
dres: Harvester Wheatshcaf, 1993); em Francis Baker, Peter Hulme e
Margarct lverson (orgs.), Essays in Colonial and Post-Colonial 7heory
(Manchester: Manchester University Press, 1993); cm George Robert-
son et ai. (orgs.), Travtler's Tales (Londres: Routledge, 1994); em Femi-
nist Review, 44 (Verão, 1993); em New Formations (Primavera, 1993); em
Transition, 54, 1991; cm Social Ttxt, 25, 26, 1990; em Dominic LaCapra
(org.), Ihe Bounds of Rat'( (Ithaca: Comell Unversity Press, 1991); cm
Cherryl Walker (org.), Women and Gender in Southern A/rica (Cape
Town: David Philip, 1990); em Reginald Gibbons (org.), Writers From
South A/rica. Culture, Politics and Literary 7heory in South A/rica Today
(Chicago: Northwestem University Press, 1989); em Criticai lnquiry,
março, 1987, em Robert von Halberg (org.), Poetry and Politics (Chicago:
University of Chicago Press, 1988); em Social Text, Primavera, 1992; em
South Atlantic Quarter!y, Inverno, 1988, vol. 87 (1). Agradeço a todos os
editores e a todas as equipes envolvidas. Sou particularmente grata a
Henry Finder e a Scott ~Ialcomson, não apenas por suas notáveis habi-
lidades na editoração, mas também por sua valiosa amizade. Calorosos
agradecimentos também ao Social Text Collective.
Ao completar este livro, tenho uma dívida de gratidão especial com
Valerie Phillips, curadora e amiga. Finalmente, e acima de tudo, não há
palavras para expressar a profundidade de minha admiração, gratidão e
amor por Rob.
Sumário

Introdução
Pós-colonialismo e o anjo do progresso ...................................................15

PA RTE r

O IMPÉRIO DO LAR

r. A situação da terra - Genealogias do imperialismo ............................. 43


2. "Massa" e as criadas - Poder e desejo na metrópole impcrial.. ............ 123
3. Couro imperial - Raça, travestismo e o culto da domesticidade ........ 201
4. Psicanál.ise, raça e fetichismo feminino ................................................ 271

PARTE l

ENGANOS MÚTUOS

.5• O império do sabonete - Racismo mercantil e


propaganda imperial ............................................................................. 307
6. A família branca do homem - O discurso colonial e a reinvenção
do pat~iarcado ....................................................................................... 341
7. Olive Schreiner - O s limites do feminismo colonial.. ........................ 377

PARTE J
O DESMANTELAMENTO DA CASA DO SENHOR

8. O escândalo da hibridez -A resistência das negras e a


ambiguidade narrativa .......................................................................... 43.1
9. "Azikwelwa" (não vamos embarcar) - Resistência cultural nas
décadas desesperadas ............................................................................ 479
10. Adeus ao paraíso futuro - Nacionalismo, gênero e raça ...................... 517

Pós-escrito
O anjo do progresso .............................................................................. 569

Lista de ilustrações ............................................................................... S77

f ndice .....................................................................................................~83

.,·:

1 '
r
Introdução
Pós-colonialismo e o anjo do progresso

H:i muito~ m:ip~s de um lugar


e muitas histó rias de um tempo.
Julie Frcdcricksc

RAÇA, DI NHE IRO E SEXUAL IDADE

NAS PÁGINAS iniciais do best-uller de Henry Rider Haggard, King


Solomons Mines [As minas do rei Salomão], descobrimos um mapa. O
mapa, é o que nos dizem, é uma cópia de outro que leva três ingleses
brancos às minas de diamante de Kukuanaland, em algum lugar do sul
da África (Figura rAY. O mapa original foi desenhado cm 1590 por um
mercador português,José da Silvestre, quando estava morrendo de fome
no "seio" de uma montanha chamada Seios de Sheba. Riscado nos restos
de um linho amarelo arrancado de sua roupa e inscrito com uma "lasca
de osso" alimentada do próprio sangue do mercador, o mapa de Silvestre
promete revelar a riqueza da câmara do tesouro de Salomão, mas leva
com ele a tarefa obrigatória de antes matar a "mãe-bruxa", Gago oi.
Dessa forma, o mapa de Haggard junta em miniatura três dos temas
dominantes do imperialismo ocidental: a transmissão do poder mas-
culino branco através do controle das mulheres colonizadas; o surgimcn-
t~ de uma nova ordem global de conhecimento cultural; e o comando
imperial do capital mercantil - três dos temas que circula.m neste livro.

1. Henry Ridcr Haggard, King Solomoni 1\1ir.ts (Londres: Dcnt, 1885).


...-

Couro impaial

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Figura rA - A situa(4o da taTa.


Esbo(o do mapa da ruia para as m inas do rti Salom4o.
I

16
lntrcdurdo - 'Pd1 -,olonialismc,? anj? do progrt11a

O que distingue o mapa de Haggard dos vários outros que ornam


as narrativas coloniais é que ele é explicitamente sexual. A terra, que é
também a fêmea, é literalmente mapeada cm fluidos corporais mascu-
linos, e a fálica lasca de osso de Silvestre se torna o órgão através do
qual ele lega o patrimônio do capital excedente a seus herdeiros bran-
cos, investindo-os da autoridade e poder adequados aos guardiões do
sagrado tesouro. Ao mesmo tempo, a herança colonial masculina tem
lugar dentro de uma troca necessária. A morte de Silvestre no mau
(congelado) seio é vingada, e a herança patrilinear branca é ass~gurada
:ipenas com a morte de Gagool, a "mãe, velha mãe" e "gênio do mal da
terra"•. O mapa de Haggard, assim, alude a uma ordem oculta subja-
cente à modernidade industrial: a conquista da força sexual e de traba-
lho das mulheres colonizadas.
O mapa também revela um paradoxo. De um lado, é um trecho es-
boçado do campo que os homens brancos devem atravessar para assegu-
rar as riquezas das minas de diamantes. D e outro, se o mapa for inverti-
do, revela de uma vez o diagrama do corpo feminino. O corpo está
esticado e truncado - as únicas partes desenhadas são as que denotam
a sex1.1alidade feminina. Na narrativa, os viajantes cruzam o corpo a
partir do sul, começando perto da cabeça, representada pela "poça de
água ruim" encolhida - a sintaxe mutilada exibindo o lugar da inteli-
gência e da criatividade femininas como sendo o da degeneração. No
centro do mapa, estão os dois picos de montanhas chamados de Seios de
Sheba - dos quais as cordilheiras se estendem para os dois lados como
braços sem mãos. O comprimento do corpo está inscrito pelo reto cami-
nho real da Estrada de Salomão, levando do limiar dos seios congelados
até o umbigo koppie direto como uma seta ao monte púbico. Na narra-
tiva, esse monte é chamado de "Três Bruxas" e figurado por um triân-
gulo de colinas cobertas de "escuras urzes"3• Esse escuro triângulo ao
mesmo tempo aponta para as entradas de duas passagens proibidas e as
oculta: a "boca da caverna do tesouro" - a entrada vaginal à qual os

1. Idem, op. cit., pp. 74. 8+


3. IJcm, op. cit., p. 118.

17
Couro imperial

homens são levados pela mãe negra, Gagool - e atrás dela a fossa anal
da qual eventualmente os homens se arrastarão com os diamantes, num
ritual de nascimento masculino que deixa morta a mãe negra, Gagool.
No mapa, os genitais femininos são chamados de Três Bruxas. Se as
Três Bruxas assinalam a presença de forças femininas alternativas e de
noções africanas alternativas de tempo e de conhecimento, Haggard se
defende da ameaça de uma força feminina e africana resistente, não só
dispondo violentamente da poderosa figura de mãe na narrativa, mas
também colocando ao lado das Três Bruxas no mapa os quatro pontos
cardeais: ícone da "razão" ocidental, da agressão técnica do ocidente e da
posse masculina e militarizada da terra. O logo da bússola reproduz a
figura espalhada da mulher marcada pelos eixos da contenção global.
N a escalada da mina, carregados com diamantes do tamanho de
"ovos de pombas", os brancos inglc;ses dão à luz três ordens - a ordem
reprodutiva masculina da monogamia patriarcal; a ordem econômita
branca do capital minerador; e a ordem polítfra global do império. Ao
mesmo tempo, tanto o mapa como a narrativa revelam que essas três
ordens não são distintas, mas assumem forma íntima na relação entre
elas. Dessa maneira, a aventura do capital minerador reinventa o patriar-
cado branco - na específica forma de classe inglesa do gentil homem
de alta classe média - como herdeiro do "Progresso" imperial na chefia
da "Familia do H omem"- uma família que não admite a mãe.
O mapa de Haggard abstrai o corpo feminino como uma geometria
da sexualidade caprurada..sôb a tecnologia da forma imperial. Mas tam-
bém revela uma curiosa camera obscura, pois nenhuma leitura do mapa
está completa em si mesma: cada uma revela a sombria inversão repre-
sentada por seu outro lado reprimido. Se nos alinharmos com a auto-
ridade masculina da página impressa, com os pontos da bússola colonial
e com os rótulos sangrentos, o mapa pode ser lido e o tesouro alcançado,
mas a mulher colonizada está de cabeça para baixo. Se, ao contrário,
invertemos o livro e pusermos cm pé o corpo da mulher, as palavras san-
grentas em seu corpo - de fato a aventura colonial como um todo -
se tornam incoerentes. No entanto, nenhuma versão existe sem a outra.
Couro imperial se propõe a explorar cs:;a ligação perigosa e contraditória

18
r
lntrodu fflo - 'Pós-,olon ialismo ( o anjo :io progresso

entre a força imperial e a anti-imperial; entre dinheiro e sexualidade;


entre violência e desejo; entre trabalho e resistência.

GÊNERO, RA ÇA E CL ASSE
Categorias articuladas

Passou-se um tempo até que percebemos que o nosso


lugar era a própri:i casa da diferença, e n;io a ,~ur.tnça
de qualquer diferença particular.
Audre Lorde

Começo com o mapa de H aggard porque ele oferece uma fantástica


combinação dos temas de gênero, raça e classe, que são as preocupações
que circulam neste livro. Couro impa-ial oferece três críticas relacionadas.
Sob muitos aspectos, o livro é uma disputa continuada com o projeto do
imperialismo, o culto da domesticidade e a invenção do progresso in-
dustrial. O mapa de Haggard me intriga, ademais, porque oferece uma
parábola em miniatura para um dos princípios centrais deste livro. Nos
capítulos que se seguem, argumento que raça, gênero e classe não são
distintos reinos da experiência, que existem em esplêndido isolamento
entre si; nem podem ser simplesmente encaixados retrospectivamente
como peças de um Lego. Não, eles existem em relação entre si e através
dessa relação - ainda que de modos contraditórios e em conflito. Nes-
se sentido é o tema triangular que anima os capítulos que se seguem: as
relações ín6mas entre a força imperial e a resistência; entre o d inheiro e
a sexualidade; entre raça e gênero.
No mapa de Haggard, as minas de diamante são simu1taneamente o
lugar da sexualidade feminina (reprodução por gênero), a fonte do te-
i:ouro (produção econômica) e o lugar da disputa imperial (diferença
racial). A fálica lasca de osso de Silvestre não é apenas a ferramenta da
inseminação masculina e do poder patriarcal, mas também a insígnia da
despossessão racial. Aqui, então, gênero não é só uma questão de sexua-
lidade, mas também uma questão de subordinação do trabalho e pilha-
gem imperial; raça não é só uma questão de cor da pele, mas também

10
-
Cour~ impaial
.•
l
1
uma questão de força de trabalho, incubada pelo gênero. Apresso-me a
acrescentar que não quero implicar que esses domínios são redutíveis ou
idênticos entre si; em vez disso, existem em relações íntimas, recíprocas
e contraditórias.
Uma afirmação central de Couro impttrial é que imperialismo não é
uma coisa que aconteceu em outro lugar - um fato desagradável da '
i

história exterior à identidade ocidental. Ao contrário, o imperialismo e


a invenção da raça foram aspectos fundament:iis da modernidade in-
dustrial ocidental. A invenção da raça nas metrópoles urbanas, que ex-
ploro com mais detalhes abaixo, tornou-se central não só para a auto-
definição da classe média, mas também para o policiamento das "classes
perigosas": a classe trabalhadora, os irlandeses, os judeus, as prostitutas,
as feministas, os gays e as lésbicas, os criminosos, a turba militante, e
assim por diante. Ao mesmo tempo, o culto da domesticidade não foi
simplesmente uma irrelevância trivial e passageira, propriamente per-
tencente ao reino privado e "natural" da família . Mais que isso, argu-
mento que o culto da domesticidade foi uma dimensão crucial, ainda
que oculta, das identidades, tanto a masculina quanto a feminin a - por
cambiantes e instáveis que fossem - , e elemento indispensável tanto
do mercado industrial quanto da empresa imperial.
Não é preciso dizer que se poderia pensar jâ, agora, que os homens
europeus foram os agentes mais diretos do império. E , no entanto, os
teóricos do imperialism~.<: _do pós-colonialismo só raramente se dedica-
ram a explorar a dinâmica de gênero do tema'. Ainda que fossem ho-
mens brancos os que comandavam os navios e portavam os rifles dos
exércitos coloniais, e que eram donos e supervisores das minas e planta-

4. Nem mesmo o imensamente impomnte e inRuente Oritt1talitmo de Edw:ird Sai d explo-


ra o gênero como categoria const.irutiva do imperialismo. Da mesma forma, a vasta e
crucial história dos negros de Peter Fryer, Staying Powo, é quase muda sobre as mulheres,
:usim como a valiosa anilise da culrura popular negr.i de Paul Gilroy, Thoe Ain't No Blark.
in the Unianfad.. Edwud S~d. Orimtalúm (Nova York: Vinngc, 1978); Petcr Frycr, Stay-
ing Power: The History ofBlarl Peopü in Britain (Londres: Pluto Press, 1984); Paul Gilroy,
11,cre //i11~ No Bla<.t. ;,. ''" UniOfl Ja,lt.· 11u Cultural Politia ofRnc, nnd Natíon (Londres:
H utchinson, 1987).

20
lntrodurão - '1'61-co/011ialismo to anjo do prozrtJJo

ções com escravos, e que comandavam os flu.xos globais de capitais e


carimbavam as leis das burocracias imperiais; ainda que fossem homens
brancos europeus os que, ao final do século XIX, eram donos e gerentes
de 85% da superfície da Terra, a relação crucial, mas oculta, entre gênero
e imperialismo foi, até muito recentemente, desconhecida e desprezada
como um fait accompli da natureza.
Na última década, surgiram evidências que estabeleceram que ho-
mens e mulheres não experimentaram o imperialismo da mesma manei-
ras. O imperialismo europeu foi, desde o começo, um enconlro violento
com hierarquias preexistentes de poder que tomou forma não como um
desdobramento de seu próprio destino, mas como interferência oportu-
nista e desordenada com outros regimes de poder. Tais encontros, por
sua vez, alteraram as trajetórias do próprio imperialismo. Dentro desse
longo e conflituoso engajamento, a dinâmica de gênero das culturas colo-
nizadas foi tão distorcida a ponto de alterar as formas irregulares que o
imperialismo assumiu em várias partes do mundo.
As mulheres colonizadas, antes da intntsão do domínio imperial,
eram invariavelmente prejudicadas dentro de suas sociedades, em ma-
neiras que davam ao reordenamento colonial de seu trabalho sexual e
econômico resultados muito diferentes dos que obtinham os homens
colonizados. Como as escravas, trabalhadoras agrícolas, serventes do-
mésticas, mães, prostitutas e concubinas das vastas colônias da Europa,
as mulheres colonizadas tinham de negociar não só os desequilíbrios cm
suas relações com seus próprios homens, mas também o barroco e vio-
lento conjunto das regras e restrições hierárquicas que estruturavam
suas novas relações com os homens e as mulheres do império6•

S, Par.i uma resenha abrangcme, \·er Ann Laura Sroler, ·Carnal Knowlcdge and Imperial
Power: Gender, Race, and Mor:tlity in Colonial Asia", in Micaela di Leonardo (org.),
Gmdrr and tht Cromoads of KnMJJ!tdgt: Ftminüt Anthropclogy in tht Postmodmi Era
(Berkeley: University of C:ilifomia Pcess, 199!}, pp. s1-100.
6.. Para análises regionais e históricas do impacto do coloni:llismo sobre as mulheres, ver
l\fona Eticnne e Eleanor Lcacock (orgs.), Jl1Jmm and Ccloni::.ation (Nova York: Praeger,
1980); Dclia Jarrctt Ma01ulay, "Bbck \Vomen's H istory•, tr:abalho apresentado à vVomcn's
History Confcrcncc, Londres, jul., 1991; N~nc:y 11.illkin e Edna Bay (orgt.), Womtn in

21
Couro impaial

As mulheres coloniais também foram ambiguamente situadas den-


tro desse processo. Barradas dos corredores do poder formal, experi-
mentaram os privilégios e as contradições sociais do imperialismo de
maneira muito diferente dos homens coloniais. Fossem elas embarcadas
como condenadas ou recrutadas para a servidão doméstica ou sexual;
tivessem elas servido discretamente ao poder como esposas dos oficii.is
coloniais, sustentando as fronteiras do império e gerando seus filhos e
filhas; tivessem elas dirigido escolas missionárias ou enfermarias de hos-
pitais em postos remotos, ou trabalhado nas lojas ou lavouras de seus
maridos, as mulheres coloniais não tomaram quaisquer das decisões
econômicas ou militares do império e muito poucas delas colheram seus
enormes lucros. Leis do casamento, leis da propriedade, leis da terra e a
intratável violência da decisão masculina as aprisionavam em padrões de
gênero de desvantagem e frustração. A vasta e fraturada arquitetura do
imperialismo era eivada de gênero e atravessada pelo fato de que os
homens brancos faziam e executavam as leis e poüticas de seu próprio
interesse. Ainda assim, os priviJégios da raça com frequência colocavam
as mulheres brancas em posições de poder - ainda que emprestado -
não só sobre as mulheres colonizadas, mas também sobre os homens
colonizados. Como tais, as mulheres brancas não eram as infelizes pas-
santes do império, mas as cúmplices ambíguas, tanto como colonizado-
ras quanto como colonizadas, privilegiadas e restringidas, fossem passi-
vas ou ativas7•

Africa: Srudia in Social and Economic Chang, (Stanford: Sranford Univcrsity Prcss, 1976);
Chcrryl Walkcr (org.), Womm arrd Gmder in Southern tffrúa to 1945 (C:ipc Town: David
Philip, 1990); Hazd Carby, "On thc Thrcshold of Womcn's Era. Lynching, Empirc anc
Scxuality in Bl:ick Fcrninist Thcory~, Critirai lm;uiry 11, 1 (1985), pp. 262-77.
7. Par:i aniliscs regionais e históricas das mulheres coloni:iis, ver Helen Calbway, Gmd,r,
Culture and Empire: European m,mm in Colonial Nigeria (Londrc,: MacmiUan, 1987);
Jackic Cock, Maids a~d Nfadams (Johanncsburgo: Ra,-an Press, 1980); Jean Comaroff e
John Comarolf, "Christianity and Co loni:ilism in South Africa", /lmericarr Ethnologist 13
(1986), pp. 1-21; Bcvcrlcy Garm:U, "Colonial \Vi\·es: VWains or Victims?", in Hillary Cal·
lan e Shirlcy Ardncr (orgs.) , 1he lncor~rated Wifa (Londres: Croom Hclm, 1984), e Irene
Silvcrbla11, /llfoon, Sun and Wiuhes: Gender Ideologia ar.d Cl:m in Inca and Coloni11/ Per11
(Pri nccton: Princcton Univcrsity Prcss, 1987).

22
lntr!ldu;4'J - P6t-<llloniali,mo to anjo do progrt110

Argumento ao longo desce livro que o imperialismo não pode ser


plenamente compreendido sem uma teoria do poder do gênero. O po-
der do gênero não foi a pátina superficial do império, um brilho efême-
ro sobre a mecânica mais decisiva da classe ou da raça. Mais que isso, a
dinâmica do gênero foi, desde o início, fu ndamental para assegurar e
manter o empreendimento imperial. Do meu ponto de vista, porém, o
gênero não foi a única dinâmica do imperialismo industrial, nem a do-
minante. Desde o final dos anos 1970, surgiu uma forte e apaixonada
crítica fem inista - em boa parte feita por mulheres de cor - que desa-
fia certas feministas eurocêntricas que pretendem dar voz a uma femini-
lidade essencial (em conflito universal com uma masculinidade essen-
cial) e que privilegiam o gênero acima dos outros conflitos.
H azel Carby, por exemplo, fez uma das primeiras críticas das femi-
nistas brancas que "escrevem sua heritória e a chamam de história das
mulheres, mas ignoram nossas vidas e negam suas relações conosco".
"Esse é o momento", ela diz, "em que estão atuando dentro das relações
do racismo e escrevendo história"ª. Nos Estados Unidos, de maneira
semelhante, bcll hooks argumenta, com força e influência, a favor do
reconhecimento da diferença racial e da diversidade entre as mulheres, e
também pela política de alianças9 • Na I nglaterra, Valerie Amos e Prati-
bha Parmar, entre outras, seguem Carby na acusação às feministas bran-
cas segundo a qual elas compartilham "a amnésia dos historiadores
brancos quando ignoram as maneiras fundamentais pelas quais as mu-
lheres brancas se beneficiaram da opressão dos negros"'º.

8. Hazel Carby, "\.Yhitc Womcn Listcn! Black Fcminism rnd thc Boundarics of Sister-
hood", in Ccnter for Contempor.uy Cultural Studics (org.), 7ht Empirt StriJ:,1 Ba,k: Rau
and R.aâsm in ;os Britain (Londres: Hutchinson, 1982).
9. bdl hooks, Ain~ I a l~manf Blatk H~,r-Ln and F,minúm (Londres: Pluto Prcss, 1981).
10. Valeric Amos e Praribha Parmar, "Challcnging Imperial Feminism•, Ftminitt Rroitw 17
(Outono, 1984), p. 5. Este livro tem uma dívida profunda com essa crítica, que é agora
e..~ensa. Para importantes aniliscs do fcrrún.ismo ocidcnt~ cm rcbção ao colonialismo,
ver Chandra T. Mohanty, "Under \11/cstcm Eycs: Fcminist Scholarship and Colonial Ois-
courscs", Ftminist Re<Ji(W 30 (1988), pp. 61-88; Kum-Kum Bavnani e Margarct Coulson,
"Transforming Sodalíst Fcminism: Thc Challenge of Racism", Fm,inút Rroirw z3 (19S6),
pp. 81-92; l\lamcJ Lazrcg, "Fcminism and Dilfcrcnce: Thc Perils of\Vriting as a\Voman

1
'
iJ
Couro imptrial
ri
i1
1
:
Argumento, ademais, que gênero não é sinônimo de mulheres. Como
diz Joan Scott: "Estudar as mulheres isoladamente perpetua a ficção de
que uma esfera, a experiência de um sexo, tem pouco ou nada que ver
com a do outro"". À diferença de Catherine l\1lacKinno n - p:ira quem
"a sex-ualidade está para o feminismo como o trabalho está para o mar-
xismo" -, argumento que o feminismo se refere tanto à classe, ao traba-
lho e ao dinheiro quanto ao sexo. D e fato, u m d os movimentos mais
valiosos da teoria feminista recente foi sua insistência na separação entre
sexualidade e gênero e o reconhecimento de que o gênero é u m proble-
m:i tanto par:i a masculinidade quanto para a feminilidade. Como diz
Cora Kaplan, a atenção ao gênero como categoria privilegiada da análi-
se tende a "representar a diferença sexual como natural e fixa - um a
feminilidade constante e transistórica numa luta tornada libidinal com
uma masculinidade universal igualmente 'dada"'".
Michel Foucault argumenta que, no século XIX, a ideia de sexuali-
dade deu uma unidade fictícia a um conjunto de ªelementos anatômicos,
funções biológicas, condutas, sensações e prazeres"'3• A unidade fictícia
da sexualidade, d iz ele, se tomou "um princípio causal, um significado

on \.Yomen in AJgeria", Ftmini1t Studi,1 14, 3 (1988), pp. 81-107, e Gayatri Chakravorti
Spivak, "French Feminism in the lnternational Frame", in ln 0th" World1: ES1ay1 in
Cultural Pclitir1 (Nova York: Methuen, 1987). Ver também Spiv:ik, 7ht Pou-Colonial Critü:
lnttT1Jiew1, Strat,git1. Di~oguu, Sarah Harasym, org. (Nova York: Routledge, 1990), e o
número especial sobre "feminism :and the Critique of Colonial Discourse", lnsmptiom
:;/4 (1988). Para um1 análise mais geral das mulheres brancas e o racismo, ver Vron \Vare,
Bryond th, Palt: Whiu U-&mcn, Rarism and History (Londres: Vcrw, 1992).
11. Joan \V.Scott, Gmdtr and tht Politia ofHistory (Nova York: Columbia University Press,
1988), p. 32. Co mo diz Denise Riley: ªser uma mulher também é inconstante, e n:io ofe-
rece um fundamento ontológico•. Denise Riley, "Am I that Namet• Ftmini1m and th,
Cattgory oj•Womm· in Hiuory (Basingsroke: MacmiUan, 1989), pp. 1-2. Para uma crítica
importante do essencialismo de gcnero e de raça, ver Diana Fuss, Eumtial!y Sptak.ing:
Ftminism, Naturt and Dijftrmu (Nova York: Routledge, 1989).
u. Cora Kaplan, St a Chang,1: Culturt and Ftmini1m (Londres: Verso, 1989), p. 27. Da mesma
maneira. Scott observa: •o uso do gc nero salien12 um sistema inteiro de relações que
podem incluir SC.'(O, mas não é diretamente detenninado pelo sexo nem diretamen te de-
terminador da sexualidade. - Gmdtr and tt, Politia ofH iJt,;ry, p. 32.
13. !Vlichcl Foucault, Hiltory of Stxuality, trad. Richard H oward (Nova York: Vintage, 1980,
vol. t,), p. n.
-
111trodu;4o - 'Pós-,olonialisrno e o anjo do progruso

onipresente, um segredo a ser descoberto em todo lugar: o sexo foi, as-


sim, capaz de funcionar como um significante universal e como um
significado universal"'•. Ao privilegiar a sexualidade, porém, Foucault
esquece como uma elaborada analogia entre raça e gênero se tornou,
como argumento no capítulo 1, um tropo organizador para outras for-
mas sociais.
Ao mesmo tempo, não vejo raça e etnia como sinônimos de negro ou
colonizado. D e fato, a primeira parte deste livro foi escrita em simpatia
com o desafio oblíquo de bell hooks: "uma mudança de direção que seria
verdadeiramente descolada seria a produção de um discurso sobre raça
que interrogasse a brancura"15• A invenção da brancura, aqui, não é a
norma invisível, mas o problema a ser investigado16•
Não estou convencida, porém, de que a raça é um mero efeito de
significantes flutuantes, nem pelas afirmações de que "deve existir algu-
ma essência que precede e/ou transcende o fato das condições objeti-
vas"'7. Estou aqui de acordo com o argumento cogente de Paul Gilroy,

14. Idem, op. c:it., p. 23.


15. beU hooks, "Tnvelling Theocies Tnvelling Thcoriscs•,Jnsmptions 5 (1989), p. 162.
16. Para uma exploração histórica da brancun como emia, ver Catherine HaU, Whitt, Ma/e
and Middl, Class: Exploratfons in Feminism and Hú tory (Cambridge: Polity Press, 1991).
17. Norman Harris, wW ho's Zoomin'Who': The New Black Formalism", 7hejourna/ ofMid-
wtsl Modtrn Languagt .llsmiation 10, 1 (1987), pp. 37·45. Ver também Joyce A. Joyce,
"\,Vho the C 2p Ftt': Unconsciousncss and Unconscion2bleness in the C rificism o fHous-
ton A. Baker,Jr. :md Henry Louis G2tes•, New Litmrry His~ry 18, 1 (198;), p. 379. Duas
coleções crític2S que 2bordl!ll essas questões são Henry Louis Gates, Jr. (org.), "Rau:
Writing and Diffcrmtt (Chkago: University of Chkago Preso, 1986), e C,tcs (org.), Blntl:
Liltraluu and Literary 7h~ory(Nova York e Londres: Methuen, 1984). Ver também Gates,
Figuru in Blat!t: 1~rds, Si:m and thr "Rarialº Se!( (Oxford: Oxford University Press,
1987); Kwame Anthony Appi2h, "lhe Uncompletcd Argumcnt: Dubois 2nd the lllusion
ofRace", Criri,al lm;uiry u , 1 (19Ss) pp. 21·3r, Appiah, ln My Futheri Houu:.11/rira in tht
Philosopt,y ofCu/tur, (Londres: Methuen, 1992); e Hortense Spillers, "Mama's Baby, Pa-
p:.:S Maybc: An American Gnmmar Book", D iarritia (Verio, 1987) pp. 6s·95. No con-
texto britânico, ver Sruart Hall, "Cultural ldentity 2nd Diaspora•, in Jonathan Ruthcr·
ford (org.),ldmtity: Commimity, Cultur, and Dijfermu (Londres: Lawrence and Wish:irt,
1990), pp. 122-37. Na mesr:ia coleç20, ver a análise d e Kobcna Merece das noções pós·
modernas de identidade em "Wclcome to the Jungle: ldentityand Diversity in Postmodern
Politics", pp. • 3-71, e Pntibh• Parmar, "Bbck Feminism: Thc Politics of Articul:i.tion•, in
Rutherford, ldmtity, pp. 101-26. Sobre raça como categoria, ver Paul Gilroy, 1her, .llin't No
Courq impuial

segundo o qual "a polarização entre teorias essencialistas e antiessenc:a-


listas da identidade negra não ajuda maisn'8 • Explorar a instabilidade
histórica do discurso sobre a raça - abraçando, como ela fazia no sécu-
lo XIX, não só povos colonizados, mas também os irlandeses, prostitutas,
judeus e assim por diante - de nenhuma maneira implica cair na verti-
gem da indecidibilidade. Questionar a noção de que a raça é uma essên-
cia fixa e transcendente, imutável através dos tempos, não significa que
"toda :1 conversa sobre 'raça' deve cessar", nem que as invenções barrocas
da diferença racial não tenham tido efeitos tangíveis ou terríveis' 9• Ao
contrário, é precisamente a invenção de hierarquias históricas que torna
mais urgente a atenção ao poder e à violência sociais.
Couro imperial se situa, assim, onde vários discursos - feminismo,
marxismo e psicanálise, entre eles - se misturam, convergem e diver-
gem. Um cuidado permanente do.livro é recusar a separação cünica de
psicanálise e história. lVluitas vezes, a psicanálise foi relegada ao domí-
nio (convencionalmente universal) do espaço doméstico, privado, enquan-
to a política e a economia foram relegadas ao domínio (convcncional-
mente histórico) do mercado público. Argumento aqui que a quarentena
disciplinar da psicanálise cm relação à história correu paralela à própria
modernidade imperial. Em lugar de me inclinar ante essa separação e
optar teoricamente por um lado ou pelo outro, faço um apelo por uma
investigação renovada e transformada das relações não reconhecidas en-
tre a psicanálise e a história socioeconômica.
Couro imperial tenta repensar a circulação de noções que podem ser
observadas entre a familia, a sexualidade e a fantasia (o domínio tradi-
cional da psicanálise) e as categorias trabalho, dinheiro e mercado (do-
mínio tradicional da história política e econômica). Talvez seja adequa-

B!ac!t. in the UniM Jaclr: ... Pua um2 d iscussão dos problcm2S d a raça como c2 tegoria,
e um apelo à etnia como altcrnni\·a, \·cr Floya Anthias e Nira Yuval-Davis, "Conrcx•
tualizing Feminism: Gendcr, Ethnic and Class Oivisions", F,miniJt Rroiew 15 (ln·
vemo, 1983).
l8. Paul Gilroy, 7h, BlaciAtlantic: M odtrnity and Doub!t C:Onscioumm (Cambridge: Haí\-ard
Univcrsity Prcss, 1993), p. x.
19· Houston A. Baker, "Caliban's Tripie Pby", Criticai lnquiry 13, 1 (Outono, 1986), p. 186.
Introdução - Pós-,olonialismo, o anj~ Jo progusso

do que tal pesquisa tenha lugar como uma crítica da modernidade


imperial, pois foi precisamente durante a era do alto imperialismo que a
psicanálise e a história social divergiram.
Como não acredito que o imperialismo tenha sido organizado cm tor-
no de uma única questão, quero evitar privilegiar uma categoria em relação
às outras como tropo organizador. De fato, gasto mais tempo questio-
nando narrativas de gênese que orientam o poder em torno de uma
unica cena originária. Por outro lado, não quero incorrer num pluralis-
mo liberal de lugar-comum que abraça generosamente a diversidade
para melhor apagar os desequilíbrios de poder que arbitram a d iferença.
Certamente, uma das suposições fundadoras deste livro é que nenhuma
categoria social existe em isolamento privilegiado; cada uma existe numa
relação social com outras categorias, ainda que de modos desiguais e
contraditórios. Mas o poder raramente é atribuído por igual-diferen-
tes situações sociais são sobredeterminadas pela raça, pelo gênero, pela
classe, ou por cada uma dessas categorias por sua vez. Acredito, contudo,
que se pode dizer com segurança que nenhuma categoria social deve
permanecer invisível em relação a uma análise do império.

C ILADAS DO PÓS-COLONIAL

Qyase um século depois da publicação de As minas do rei Salomão, cm


novembro de 1992 - ano do triunfo do quinto centenário dos Estados
Unidos - uma e..xposição pós-colonial chamada de Estado Híbrido es-
treou na Broadway. Para entrar na exposição do Estado Híbrido, você
entra na Passagem. Em lugar de uma galeria, você encontra uma an-
tecâmara escura, onde uma palavra branca o convida a avançar: colonia-
lismo. Para entrar no espaço colonial, você passa por uma porta baL"<a,
apenas para se encontrar encerrado noutro espaço negro - uma lem-
brança dos curadores, ainda que fugaz, de Franti Fanon: "O nativo é um
ser sitiado" 20 • l\1as a saída do colonialismo, parece, é avançar. Uma se-
gunda palavra branca,pós-colonialismo, o convida, através de uma porta

20. Frantz Fanon, 7h, Wrttthtd oftht Earth (Londres: Pcnguin, 1963), p. 29.
r
l
Couro impuial

ligeiramente maior, ao próximo estágio da história, depois do qual você


emerge, inteiramente ereto, no Estado Híbrido brilhantemente ilumina-
do e barulhento.
Estou menos fascinada pela exposição cm si do que pelo paradoxo
entre a ideia de h istória que dá forma à Passagem e a ideia diferente de
história que dá forma à exposição do próprio Estado Híbrido. A expo-
sição celebra a "história paralela":

A história paralela aponta para a realidade de que não há mais uma visão domi-
nante (mainstream) da cultura artística none-:uneric:ina, com diversas "outras"
cultul"3s menos imponantes à sua volta. Existe, ante!, uma história paralela qut!
está mudando nossa compreensão do nosso entendimento transcultural!I.

E, no entanto, o compromisso. da exposição com a "história híbri-


da" - o tempo múltiplo - é con traditado pela lógica üncar da Passa-
gem, "Uma breve rota para a liberdade", que resulta na reencenação de
um dos tropos mais tenazes do colonialismo. No discurso colonial, como
na Passagem, o movimento no espaço é análogo ao movimento no tem-
po. A hlstória se forma em duas direções opostas: o progresso d a huma-
nidade, passando da privação encurvada para a direção da ereta razão
iluminada. O outro movimento apresenta o reverso: o retrocesso para o
que chamo de espaço anacrônico (tropo que analiso cm maior detalhe
adiante) da vida adulta masculina, branca, na direção de uma degenera-
ção negra primordial, geralmente encarnada nas mulheres. A Passagem
ensaia essa lógica temporal: progresso pelas portas ascendentes, da pré-
história primitiva, privada de linguagem e de luz, através dos estágios
)
épicos do colonialismo, pós-colonialismo e hibridez iluminada. Ao dei-
xar a exposição, a história é atravessada para trás. Como no discurso co-
lonial, o movimento para frente no espaço é para trás no tempo: da cons-
ciência verbal ereta e da liberdade lubrida - significada pelo coelho
branco ch a.mado "Free" (não tão livre) que vaga pela exposição - através

21. Folheto da mostn, · ·thc Hybrad S121c Exhibít", Exit Art, 178 Broadway, Nov• York
(2 nov.-14 dez., 1991).
ltttrodurâo - 'P61 -,oloniali1mo t tJ anjtJ do progrt110

dos estágios históricos de estatura decrescente até a trôpega zona sem


linguagem do pré-colonial, da fala ao silêncio, da luz para a escuridão.
O paradoxo que estrutura a exposição é intrigante, porque é um pa-
radoxo, sugiro, que dá forma ao termo "pós-colonialismo". Estou dupla-
mente interessada no termo, porque a ubiquidade quase ritualística das
palavras "pós" na cultura corrente (pós-colonialismo, pós-modernismo,
pós-estruturalismo, pós-guerra fria, pós-marxismo, pós-apartheid, pós-
soviético, pós-Ford, pós-feminismo, pós-nacional, pós-histórico, e mes-
mo pós-contemporâneo) assinala, acredito, uma crise notável ua ideia
do progresso histórico linear.
Charles Baudelaire chamou a ideia de progresso e aperfeiçoamento
de "a grande ideia do século XX". Em 1855, ano da primeira exposição
imperial de Paris, Victor Hugo anunciava: "o progresso é a pegada do
próprio Deus",,_Em muitos aspectos, este livro se dedica a desafiar tan-
to a ideia de progresso quanto a de Familia do Homem, e simpatiza com
a injunção de Walter Benjamin no sentido de "excluir qualquer traço de
'desenvolvimento' da imagem dn história" e de superar a "ideologia do
progresso [... ] cm todos os seus aspectos"'l.
Boa parte dos estudos pós-coloniais se coloca contra a ideia imperial
do tempo linear. E, no entanto, o termo "pós-colonial", assim como a
exposição, é assombrado pela própria figura do desenvolvimento linear
que pretendia desmontar. Mctaforicamentc, o termo "pós-colonialismo''
marca a história como uma série de estágios ao longo de um memorável
caminho do "pré-colonial" ao "colonial", ao "pós-colonial" - um com-
promisso espontâneo, ainda que negado, com o tempo linear e com a
ideia de desenvolvimento. Se uma tendência teórica a ver a literatura do
"Terceiro Mundo" como se ela progredisse da "literatura de protesto"
para a "literatura de resistência" para a "literatura nacional" foi criticada
por recolocar o tropo iluminista do progresso linear e sequencial, o ter-
mo "pós-colonialismo" é questionável pela mesma razão. ivlctaforica-

22. Apud Susan Buck-Morss, 77;, Dialtctiu ofSuing: H-ízlter Bmjamin ar.d the Ar,ades Projtcl
(Cambridge: lhe ~OT Prcss, 1989), p. 90.
13. Idem, op. cit., p. 79.

29
Couro impa ial

mente pousado no limite entre o velho e o novo, o fim e o começo, o


termo anuncia o fim de uma era do mundo apenas ao invocar o mesmís-
simo tropo do progresso linear que animou essa era.
Se a teoria pós-colonial procurou desafiar a grande marcha do histo-
ricismo ocidental e seu séquito de binários (cu/o outro, metrópole/colô-
nia, centro/periferia etc.), o termo "pós-colonialismo" de qualquer ma-
neira reorienta o globo uma vez mais em torno de uma única oposição
binária: colonial/pós-colonial. Além disso, a teoria é assim deslocada <lo
eixo binário do poder (colonizador/colonizado - em si mesmo pouco
nuançado, como no caso das mulheres) para o eixo binário do tempo, um
eL"<o ainda menos produtivo de nuança poütica, porque não distingue
entre os beneficiários do colonialismo (os antigos colonizadores} e as
vítimas do colonialismo (os antigos colonizados). A cena pós-colonial
acontece numa suspensão da história, como se os eventos históricos de-
finitivos fossem anteriores ao nosso tempo e não estivessem acontecen-
do agora. Se a teoria promete um descentramento da história na hibri-
dez, no sincretismo, no tempo multidimensional e assim por diante, a
singularidade do termo realiza um recentramento da história global em
torno da exclusiva rubrica do tempo europeu. O colonialismo volta ao
momento de sua desaparição.
O prefixo "pós", ademais, reduz a cultura dos povos além do colonia-
lismo ao tempo preposicional. O termo confere ao colonialismo o pres-
tígio da história propria~e!lte dita; o colonialismo é o marcador deter-
minante da história. Outras culturas compartilham apenas uma relação
cronológica preposicional a uma era eurocêutrica que acabou (pós) ou
que ainda nem começou (pré). Em outras palavras, as múltiplas culturas
do mundo são marcadas, não positivamente pelo que as distingue, mas
por uma relação retrospectiva subordinada cm relação ao tempo Linear
europeu.
O termo também assinala uma relutância cm abandonar o privilégio
de ver o mundo em termos de uma abstração singular e a-histórica.
Folheando a onda recente de artigos e livros sobre o pós-colonialismo,
fico impressionada por quão raramente o termo é usado para denotar
multiplicidade. Prolifera o seguinte:"a condição pós-colonial", "a cena

30
l,itroduç6o - 'Pós-,olonialismo, o anjo do progrtuo

pós-colonial", "o intelectual pós-colonial", "o espaço disciplinar emer-


gente do pós-colonialismo", "a situação pós-colonial", "a prática da pós-
colonialidade", e a mais tediosa e genérica de todas: "o Outro pós-colo-
nial". Sara Suleri, por exemplo, se confessa cansada de ser tratada como
uma "máquina de alteridade"4 •
Não estou convencida de que uma das mais importantes áreas emer-
gentes da investigação intelectual e política está mais bem servida ins-
crevendo a históiia como uma única questão. Assim como a categoria
"mulher" foi desacreditada como tapeação universal pelo feminismo, in-
capaz que é de distinguir entre as várias histórias e os desequilíbrios
de poder entre as mulheres, também a categoria singular "pós-colonial"
pode prontamente autorizar uma tendência panóptka a ver o globo
através de abstrações genéricas destituídas de nuança política' 5• O pano-
rama que se descortina no horizonte se toma por isso tão expansivo que
os desequil.tbrios internacionais de poder ficam eficientemente borra-
dos. Categorias historicamente vazias como "o outro", "o significante",
"o significado", "o sujeito", "o falo", "o pós-colonial", embora com influ-
ência acadêmica e valor profissional de mercado, correm o risco de elu-
dir distinções geopolíticas cruciais até a invisibilidade.
Os autores do livro 1he Empire Writes Back, por exemplo, defendem
o termo "literatura pós-colonial" com três argumentos: ele se centra na-
quela "relação que forneceu o ímpeto criativo e psicológico mais impor-
tante na escrita"; expressa as "razões do agrupamento num passado co-
mum" e "faz um aceno à visão de um futuro mais liberado e positivo"16 •
E, no entanto, a inscrição da h istória em torno de uma única "continui-
dade de preocupações• e de um único "passado comum" corre o risco de
uma negação fetichista de cruciais distinções internacionais que são es-

24. Sara Suleri, apud Appiah, ln My Fathers Houu..., p. 253.


25. Ver 3 excelente an:í.lise de Appiah das torsões do pós-modernismo e do pós-colonialismo
cm "lhe Postcolonial and thc Postmodcrn~, in ln ivly F&ther's House... , pp. 2:!.1•54. Ver
também Ken Parker, "Vcry Like a \.Vhale: Postcolonialism bctween C:rnoniáries and
Ethnicitics", Social ldentitits 1, 1 (Primavera, 1995). ·
•6. BW fuhcroft, Gareth Gríffiths e Hele n Tiffin, 1Ju Empirt Wriu1 Bali.: 1htory and Practiu
in Po1f(o/onial Littratum (Londres: Routlcdge, 19S9), p. 24.
..
Couro imp~ria/

cassamente entendidas e inadequadamente teorizadas. Além disso, os


autores decidem, idiossincraticamente, por assim dizer, que o termo j
1
"pós-colonialismo'' não deve ser entendido como tudo o que aconteceu
desde o colonialismo europeu, mas antes como tudo o que aconteceu 1
desde o começo mesmo do colonialismo, o que quer dizer voltar os re-
lógios para trás e desenrolar os mapas do pós-colonialismo para 1492 e
até antes•7. De um só golpe, Henry James e Charles Brockden Brown,
para mencionar apenas dois de sua lista, são acordados de sua conversa
lt
;

com o tempo e chamados à cena pós-colonial, ao lado de membros mais .


•J

regulares como NgugiWa Thiong'O e Salman Rushdie.


De maneira mais problemática, a ruptura histórica sugerida pelo
prefi.xo "pós" desfigura tanto as continuidades quanto as descontinuida-
des do poder que deram forma aos legados dos impérios coloniais euro-
peus e britânicos (sem falar nos islâmicos, japoneses e chineses e de
outros impérios coloniais). Ao mesmo tempo, as diferenças políticas en-
tre culturas são subordinadas à sua distância temporal do colonialismo
europeu. O pós-colonialismo, porém, como o pós-modernismo, padece ~
globalmente de um desenvolvimento desigual A Argentina, formal- 1
1
mente independente da Espanha imperial por mais de um século e meio,
1
não é "pós-colonial" da mesma maneira que Hong-Kong (destinada a
não ser independente da Grã-Bretanha até 1997). Nem o Brasil é pós-
colonial da mesma maneira que o Zimbábue. Poder-se-ia dizer que a
maioria dos países do m_u_ndo, cm qualquer sentido significativo ou teo-
ricamente rigoroso, compartilha um único passado comum ou uma úni-
ca condição comum, chamada de condição pós-colonial, ou pós-colo-
nialidade? As histórias da colonização africana são certamente, em
parte, histórias das colisões entre os impérios europeus e árabes e a mi-
ríade dos estados e culturas africanos fundados cm linhagens. Podem
esses países ser entendidos agora como se tivessem sido formados exclu- •
sivamente em torno da experiência "comum" da colonização europeia?
i
Na verdade, muitas culturas africanas, latino-americanas, caribenhas e
'
27. "Usamos o termo 'pós-colonial', pvré,n, pua cobrir 10d," culrun .,fetad" pdo processo
imperial desde o momento da colonização a1e o prcscnrc". Idem, op. cit., p. 2•

.. ,.
lntr,,du;d" - q>/s-,olonialismo ( o anj" do progr(SSI)

asiáticas contemporãneas, embora profundamente afetadas pela coloni-


zação, não estão necessariamente preocupadas principalmente com seu
contato inicial com o colonialismo europeu.
De outro lado, o termo "pós-colonialismo" é, cm muitos casos, pre-
maturamente um termo de celebração. A Irlanda poderia, à primeira
vista, ser pós-colonial, não fosse pela ocupação britânica da Irlanda do
Norte, para não falar dos babitantes palestinos dos territórios ocupa-
dos por Israel e da margem ocidental; de fato, pode não haver nada
"pós" sobre o colonialismo. Seria pós-colonial a África do Sul? O Ti-
mor Leste? A Austrália? O Havaí? Porto Rico? Por qual.fiatde amnésia
histórica podem os Estados Unidos da América, cm particular, quali-
ficar-se como pós-coloniais - termo que pode apenas ser uma monu-
mental afronta aos povos nativos norte-americanos atualmente opon-
do-se ao triunfo dos conferes de 1992? Pode-se ainda perguntar se o
surgimento da Europa unida em 1992 não assinala também o surgi-
mento de um novo império, ainda incerto quanto às suas fronteiras e
ao seu alcance global.
Meus receios, portanto, não se referem à substância teórica da teoria
pós-colonial, boa parte da qual admiro muito'5• Antes, questiono a
orientação da disciplina emergente e suas teorias concomitantes e as
mudanças de currículos cm torno de um termo monoürico singular, usa-
do a-historicamente e assombrado pela imagem do progresso linear do
século XIX. Nem pretendo banir o termo para um gulag verbal gelado;
não parece haver razão por que ele não possa ser usado judiciosamente
em circunstâncias apropriadas, no contexto de outros termos, ainda que
numa posição menos grandiosa e global.
Mais importante ainda: orientar a teoria em torno do eixo temporal
colonial-pós-colonial torna mais fácil não ver e, portanto, não teorizar,
as continuidades nos desequilíbrios internacionais em termos de poder
imperial. Desde os anos 1940, o imperialismo norte-americano sem colô-
nias assumiu diferentes formas (militar, poütica, econômica e cultural),

28. Para uma :inálise astuciosa da teoria pós-colonial, ver Rob<:r. Young, Whitt ,~ytholagfrs:
Writing History and tb( Wnt (Londres: Routledge, 1990).

33
Couro impuial

algumas ocultas, algumas apenas meio ocultas. O poder do capital finan-


ceiro norte-americano e das gigantescas corporações multinacionais no
comando dos fltLxos de capital, pesquisa, bens de consumo e informações
da mídia à volta do mundo pode exercer uma força coercitiva tão grande
como qualquer canhoneira colonial. É precisamente a maior sutileza, a
inovação e a variedade dessas formas de imperialismo que tornam ins-
tável a ruptura hfatórica implicada pelo termo "pós-colonialismo".
O termo "pós-colonialismo" é prematuramente celcbratório e ofüs-
cante de mais de uma maneira. Embora alguns países sejam pós-colo-
niais em relação a seus senhores europeus de outrora, podem não ser
pós-coloniais em relação a seus novos vizinhos colonizadores. E , no en-
tanto, o neocolonialismo não é simplesmente uma repetição do colonia-
lismo, nem é uma mistura hegeliana ligeiramente mais complicada de
tradição e colonialismo num novo lubrido histórico. São necessários ter-
mos e análises mais complexos de tempos alternativos, e também histó-
rias e causalidades mais complexas para lidar com complexidades que
não podem ser atendidas pela simples rubrica de pós-colonialismo.
O termo é ainda mais instável em relação às mulheres. Num mundo
em que as mulheres fazem dois terços do tnbalho, ganham 10% da ren-
da e são donas de menos de 1% da propriedade, a promessa do "pós-co-
lonialismo" foi uma história de esperanças adiadas. Em geral não se nota
que as burguesias e deptocracias que calçaram os sapatos do progresso
pós-colonial e da modernização industrial tenham sido suprema e vio-
lentamente masculinas ...éomo exploro no capítulo 10 sobre gênero e
nacionalismo, nenhum E stado pós-colonial em qualquer parte assegu-
rou a homens e mulheres acesso igual aos direitos e recursos do Estado-
nação. As necessidades das nações pós-coloniais têm sido amplamente
identificadas não só com aspirações e interesses masculinos, mas a pró-
pria representação do poder nacional se baseia em construções prévias
do poder do gênero.
A militarização global da masculinidade e a feminização da pobreza
asseguraram que mulheres e homens não vivam o pós-colonial da mes-
ma maneira, nem partilhem a mesma condição pós-colonial singular. A
culpa do contínuo pleito das mulheres não pode ser depositada apenas

34
lntrodu;iJo - <f'd1-colonia/i1mo, o anjo do progr,sso

na porta do colonialismo ou anotada e esquecida como um dilema neo-


colonial passageiro. O peso continuado do autointeresse econômico
masculino e as variadas ondas da cristandade patriarcal, do confucionis-
mo e do fundamentalismo islâmico continuam a legitimar a negação do
acesso das mulheres aos corredores do poder político e econômico, sua
persistente desvantagem educacional, a dupla jornada de trabalho, adis-
tribuição desigual do cuidado das crianças, a má nutrição, a violência
sexual, a mutilação genital e a violência doméstica. As histórias dessas
políticas masculinas, embora profundamente implicadas no colonialis-
mo, não são redutíveis a ele e não podem ser entendidas sem diferentes
teorias do poder de gênero.
Edward Said argumentou, de modo notável, que a sujeição sexual
das mulheres orientais aos homens ocidentais "ocupa o lugar de um pa-
drão de força relativa entre o leste e o oeste e do discurso sobre o oriente
que ele habilita"29• Para Said, o orientalismo assume a forma perversa
de uma "fantasia masculina de poder" que atribui características sexuais
a um oriente tornado feminino para o poder e a posse pelo ocidente.
Mas a sexualidade se aproxima, aqui, de não ser mais que uma metáfora
de outras dinâmicas mais importantes (isto é, masculinas) que aparecem
no que Said chama de "uma província exclusivamente masculina"30• A
sexualidade como tropo para outras relações de poder foi certamente
um aspecto continuado do poder imperial. A feminização da terra "vir-
gem", como exploro com mais detalhes abaixo, operou como uma me-
táfora para relações que frequentemente não eram sobre a sexualidade
ou eram apenas indiretamente sexuais. Eve Kosofsky Sedgwick explo-
rou de maneira notável como as triangulações do espaço masculino/fe-
minino/masculino muitas vezes serviram para estruturar relações ho-
mossociais masculinas11 • Mas, ao ver a sexualidade apenas como uma
metáfora, corre-se o risco de evitar o gênero como dinâmica constitutiva

19. Edward Sa.id, Orimta/ú,r., p. 6.


30. Idem, op. cir., p. 107.
31. Evc Kosofsky Scdgwick, Btl'Wun Mm: English Litmifur, a11d Malt Homo1otial Dt1irt
(Nov3 York; Columbia Univcrsiry Prcss, 1985).
Couro imperial

do poder imperial e do anti-imperial. Digo isso não para diminuir a


enorme importância e influência da obra de Said sobre as relações im-
periais masculinas, mas antes para lamentar que ele não tenha explorado
sistematicamente a dinâmica do gênero como um aspecto crítico do
projeto imperial.
Falsos universais como a "mulher pós-colonial" ou o "outro pós-colo-
nialn obscurecem relações não só entre homens e mulheres, mas também
entre as mulheres. As relações entre uma turista francesa e a mulher
haitiana que lava seus lençóis não são as mesmas que as relações entre
seus maridos. Filmes como Out ofA/rica, redes de vestuário como Bana-
na Republic e perfumes como Safari mascateiam a nostalgia neocolonial
por uma era em que mulheres europeias em vivas blusas brancas e em
verde safári supostamente encontravam a liberdade no império: dirigin-
do plantações de café, matando leões e rasgando os céus coloniais em
aeroplanos - uma falsa comercialização da "liberação" das mulheres
brancas que não tornou mais fácil para as mulheres de cor formarem •
J
alianças com as brancas em qualquer lugar, e nem deterem as críticas dos j
nacionalistas desde logo hostis ao feminismo.
Em minha opinião, o imperialismo surgiu como um projeto ambí-
guo e contraditório, formado tanto pelas tensões dentro das poüticas '
metropolitanas e pelos confütos dentro das administrações coloniais -
na melhor das hipóteses, questões oportunistas e imediatas - quanto
pelas variadas culturas <?. circunstâncias cm que os coloniais se introme-
tiam e pelas respostas e resistências confütantes com que se enfrentavam.
Por isso, não estou convencida de que as dicotomias sancionadas - co- 1
lonizador/colonizado, eu/outro, dominação/ resistência, metrópole/ j
colônia, colonial-pós-colonial - sejam adequadas para a tarefa de dar 1
1

conta dos legados tenazes do imperialismo, e menos ainda de opor-se 1


estrategicamente a eles. Derivadas historicamente do maniqueísmo me- 1
tafísico do próprio iluminismo imperial, tais dicotomias correm o risco 1t
de simplesmente inverter, mais que superar, as noções dominantes do
poder. Cuido, então, das sobrcdeterminações do poder, pois acredito que 1
é na encruzilhada das contradições que as estratégias de mudança po-
·dem ser encontradas.
ij

l
.,.,
"'
ln1rodu;á11 - 'Pós-,olonialismo to anjo do progrtss11

Ao longo deste livro, estou profundamente interessada na miríade de


formas tanto da atuação [agency] imperial quanto da anti-imperial. Es-
tou, porém, menos interessada na atuação enquanto questão puramente
formal ou filosófica do que no conjunto dos caminhos difíceis em que
a; ações e desejos das pessoas são mediados pelas instituições do poder:
a família, a mídia, a lei, os exércitos, os movimentos nacionalistas e assim
por diante. Desde o começo, as experiências das pessoas, de desejo e
raiva, de memória e poder, comunidade e revolta são inflectidas e me-
diadas pelas instituições através das quais elas encontram seu signifi-
cado - e que elas, por sua vez, transformam. Couro imperial cuida, por
isso, tanto de questões de violência e poder quanto das questões de fan-
tasia, desejo e diferença.
Qyero abrir as noções de poder e resistência a urna política mais di-
versa de atuação, envolvendo a densa rede de relações entre coerção,
negociação, cumplicidade, recusa, dissimulação, mímica, compromisso,
afiliação e revolta. Procurar apenas as fissuras da ambivalência formal
(hibride2, ambiguidade, indecidibilidadc) não pode, em minha opinião,
explicar a ascensão de certos grupos e culturas ao poder, nem o aban··
dono e a supressão de outros. Perguntar como o poder vence ou fracas -
sa - a despeito de seu caráter provisório e de sua constituição na con-
tradição e na ambiguidade - envolve investigar não só as tensões da
forma conceitua!, mas também as torções da história social.
Qµero afirmar de saida, porém, que não vejo o imperialismo como
uma força inerentemente britânica dirigida para fora a partir de um
centro europeu para subjugar os territórios periféricos "do Outro''Jl.
Como o vejo, o poder imperial surgiu de uma constdação de processos,
tomando a forma casual de uma miríade de encontros com formas alter-

32. Ver a análise de Gauri Viswanathan de como os "eventos nu periferias reformularam e


determinaram as rebções domésticas",cm "Raymond \Villiams and British Coloni:ilism:
lhe Limits of Metropolitan Culruru Thcory," in Dcnnis L. Dworkin e Lcslic G . Roman
(orgs.), VietJJ1 Bryond lht Border ~untry: &ymond William.J ar.d Cultural Politics (Nova
York: Routlcdgc, 1993), p. uo. Para uma análise histórica 2brangcnte, ver D. K. Ficld-
housc, 17,e Colonial Empim: /1 Comparatiw Surwyfrom 1/;e Eighlunlh Cm1ury (Basing·
stokc: MacmiUan, 1965), especialmente o capitulo 9.

37
Couro imptrial

nativas de autoridade, conhecimento e poder. Estou, assim, profur.da-


mente interessada no que Gilroy chama de "processos de mutação cul-
tural e (des)continuidade indócil que excedem o discurso racial e evitam
a captura por seus agentes"JJ_O imperialismo foi uma situação constan-
temente contestada, produzindo efeitos históricos q ue não eram prede-
terminados, nem incontestes, nem permanentes - num contexto, não
se pode esquecer, de extremas desigualdades de poder.
Parece- me importante, portanto, não ler as con tradições do d iscurso
colonial como uma questão só de textualidade. O que Gayatri Spivak
chama, numa frase precisa, d e "violência epistêmica planejada do pro-
jeto imperialista" també m foi sustentado pela violência institucional
planejada dos exércitos e tribunais,das prisões e d a máquina do E stadoJ 4 •
O poder das armas, dos chicotes e das algemas, ainda que sempre envol-
vido no d iscurso e na representação, não é redutível à "violência da pa-
lavra"35. Se os textos colo niais revelam fissuras e contradições, os pró-
prios colo niais frequentemente obtiveram sucesso ao dirimir questões
indecisas com um excesso violcntu de masculinidade militarizada. Os
capítulos que se seguem cuidam, assim, d as relações íntimas - ainda
que muitas vezes conflitivas - entre o poder texrual e o institucío naJ.
N este livro, espero fazer mais do que simplesmente indicar que dife-
rentes grupos de poder - mulheres e ho mens, colonizados e coloniza-
dores, trabalhadores e classe média - ocuparam diferentes posições na
arena global do imperialismo. A estória, como diz Scott, não é simples-
mente "sobre as coisas que aconteceram às mulheres e aos homens e
como eles e elas se relacionaram a essas coisas; em lugar disso, d iz res-
peito a como os significados subjetivos e coletivos de mulheres e homens

33. Cilroy, 1lu Bta,k At!anti,... , p. 2.


34. Spivak, "l he Rani ofSirmur· , in Francis Buker ct ai.{orgs.), Euro~ and its Others ( Esscx:
University_of Essex, 1985, vol. 1), p. 131. Ver também a útil crítica de Spivak ao que da
chama de "cromatis:no• (a redução da raça a uma questão de coe da pele) cm "l mpcrit-
lism and Sexual Di.fference,• Oxford Literary /vviro., 8 (1986), p. 135.
35. É daco que niio estou sugerindo que a própria Spivak pense assim, o que nfo faria justi-
ça à sutileza e à importância de suas aniüscs do pós -colonialismo.
1 lntroduçdo - 'Pós-eolonialim:o f o anjo do progruso

enquanto categorias de identidade foram construídos"36• Em outras pa-


lavras, a estória não é simplesmente sobre relações entre negros e bran-
cos, entre homens e mulheres, mas sobre como as categorias de brancura
e negritude, masculinidade e feminilidade, trabalho e classe passaram a
existir historicamente desde o início.
Na primeira parte do livro, investigo como o espaço metropolitano
vitoriano foi reordenado como espaço para a exposição do espetáculo
imperial e a reinvenção da raça. No processo, trabalho com vário:; lema:;
postos etn circulação: o racismo e o fetichismo da mercadoria, os ex-
ploradores urbanos, o surgimento da fotografia e as exposições impe-
riais, o culto da domesticidade, a invenção da ideia da mulher ociosa, a
negação do trabalho das mulheres, o travestismo e a ambiguidade de
gênero, a invenção da ideia de degeneração, o tempo panóptico e o es-
paço anacrônico.
Na segunda parte do livro, pesquiso como as colônias - em particu-
lar a África - se tornaram o teatro para a exibição, entre outras coisas,
do culto da domesticidade e da reinvenção do patriarcado. Nessa parte,
exploro alguns dos temas decisivos do discurso colonial: a feminização
da terra, o mito das terras vazias, a crise das origens, o colonialismo do-
méstico, a saga do sabão e o surgimento do fetichismo da mercadoria, o
reordenamento da terra e do trabalho, a invenção da ideia da preguiça
racial - bem como o complexo das variadas formas de resistência a
esses processos. Ao explorar os intrincados filamentos entre imperialis-
mo, domesticidade e dinheiro, sugiro que o marketing de massas do im-
pério como sistema global estava casado com a reinvenção ocidental da
domesticidade, de tal forma que o imperialismo não pode ser entendido
sem uma teoria do espaço doméstico e de sua relação com o mercado.
Ao mesmo tempo, os capítulos seguintes exploram as ameaçadas estra-
tégias da recusa, da negociação e da transformação que foram lançadas
na resistência ao empreendimento imperial. Na última seção do livro,
cm particular, cuido dos eventos na África do Sul desde o final dos anos
1940 até a atual contestação sangrenta sobre o poder nacional.

36. Scott, Gmd(r and the P~lities o/H istory, p. 6.

iJ 70
Couro imptrial

Escolhi, assim, contar uma série de estórias contraditórias e sobre-


postas - de trabalhadoras negras e brancas e de homens e mulheres de
classe média. Os gêneros que elegi são diversos - fotografia, diários,
etnografias, novelas de aventuras, histórias orais, poesias declamadas e
uma miríade de formas de cultura nacional. Entre outras, essas formas
culturais incluem os extraordinários diários e as fotografias de Hannah
Cullwick, uma empregada doméstica vitoriana para todo serviço e seu
casamento secreto com o poeta e advogado vitoriano, Arthur Munby;
o sucesso de vendas das fantasias imperiais de Ridcr Haggard; as expo-
sições e fotografias imperiais; anúncios de sabão; os escritos políticos e 1

as novelas da feminista Olh-e Schreiner; a narrativa de uma doméstic;l ~


'
sul-africana "Poppie Nongena"; a política cultural negra na África do l
Sul depois do levante de Soweto; os escritos de Frantz Fanon; e as vozes •l
variadas e conflitantes de afrik.aners e nacionalistas africanos na África
do Sul.
Essas narrativas têm muitas fontes e não prometem revelar um pas-
sado remoto, de qualquer modo tarefa utópica. Este üvro é, antes, um
compromisso - motivado, seletivo e de oposição - tanto com as nar-
rativas imperiais quanto com as anti-imperiais dos pais e das familias,
1,
do trabalho e do ouro, das mães e das empregadas. 1

l l
1
ll

1
1

~
PARTE I

,
O IMPERIO DO LAR
. -
F
~

1
lj
I

A situação da terra
1 Genealogias do imperialismo
1
Eu não sou o campo de trigo.
Nem a terra virgem.
Adrienne Rich

PORNOT RÓPI CO S

C oNS J DE REM OS, PA llAcomeçar, uma cena colonial.


Em 1492, Cristóvão Colombo, tropeçando pelo Caribe cm busca das
Índias, escreveu para casa para dizer que antigos marinheiros tinham
errado ao pensar que a Terra era redonda. Ao contrário, dizia, ela tinha
1
a forma de um seio de mulher, com uma protuberância no topo na for-
ma inconfundível de um mamilo - cm direção ao qual ele singrava
J lentamente.
A imagem de Colombo torna a Terra feminina na forma de um seio
·1
cósmico, em relação ao qual o herói épico é uma criança perdida e ínfi-
ma, ansiando pelo mamilo celestial. A imagem da Terra como seio aqui
não lembra a bravura masculina do explorador, investido de sua missão
de conquista, mas sim o incômodo sentido da ansiedade masculina, a
infantilização e o desejo pelo corpo feminino. Ao mesmo tempo, o cor-
po feminino é figurado como marcando a fronteira do cosmos e os limi-
tes do mundo conhecido, envolvendo os homens andrajosos, com seus
sonhos de pimenta e pérolas, em seu corpo oceânico indefinido.
A fantasia do seio em Colombo, como o mapa dos seios de Shcba em
H aggard, segue urna longa tradição de viagens masculinas como uma
erótica do alumbramcnto. Durante séculos, os continentes incertos -
Couro impuial

África, Ásia, as Américas - foram concebidos pelo saber europeu como


libidinosamente eróticos. As estórias dos viajantes estavam eivadas de
visões da monstruosa sexualidade de terras distantes, onde, segundo a
lenda, os homens exibiam pênis gigantescos e as mulheres copulavam 1
com macacos; dos seios dos homens tomados femininos fluía o leite, e
as mulheres militarizadas cortavam os seus. Viajantes da Renascença
j
!
encontravam uma audiência voraz e lasciva para suas estórias picantes, ,l
de tal forma que, muito antes da era do alto imperialismo vitoriano, a '
África e as Américas já se tinham tornado o que pode ser chamado de
pornotrópicos para a imaginação europeia - uma fantástica lanterna
mágica da mente na qual a Europa projetava seus temores e desejos se-
xuais proibidos.
Os pomotrópicos europeus vinham de uma longa tradição. No segun-
do século a.D., Ptolomeu escreveu sobre a África, com confiança, que "a
l
constelação do escorpião, que diz respeito às partes pudendas, domina
aquele continente"'. Leo Africano concordava que não hnvin "nação sob l
1
o céu mais chegada ao sexo" do que "os negros" 2• O eremita de Francis
Bacon era visitado pelo espírito da fornicação, que acabou sendo um "pe-
]
queno, sujo e feio etíope"l. John Ogilby, adaptando os escritos de Olfert
Dapper, com muito tato informava a seus leitores que os africanos oci-
dentais se distinguiam como "grandes propagadores"\ ao passo que o
plantador Edward Long via a África como "originadora de tudo o que
era monstruoso na natt:u:.~a"5• Por volta do século XIX, o saber popular
tinha estabelecido firmemente que a África era a zona quintessencial da
aberração e da anomalia sexual - "o próprio retrato", como dizia W. D.

1. Apud Pctcr Frycr, Staying PO'Wer: 1h, HiJtory of 8/acl:: Ptople in Britain (Londres: Plu10
Prcss, 1984), p. 139.
1. John Lco Africanus, // Gtographi,al History of//frita, rnd. John Pory (Londres: Gcorg.
Bishop, 1600), p. 38.
3. Francis Bacon, "Ncw Atlantis: A \.Yorkc Unfinishcd", in Sylfla Sylflarum or a Naturai
Hútory in Ün Centuri,1 (Londres: \ .Yilliam, 1670), p. 16.
4. John Ogilby, Afri,a: Bting an Aaural, Dmription oftht R,gions o///tgypt tU. (Londres:
Too. Johnson, 1670), p. 451.
5. Edward Long, 1h, Hut,ry ofjamaita (Londres: T. Lowndcs, 1n4), pr. 381·3.
e.A situa;tlo da urra - (jmtalogias do imptrialism~

Jordan, "da negação perversa"6 • A História universal citava uma tradição


estabelecida e nobre quando declarava que os africanos eram "orgulho-
sos, preguiçosos, traiçoeiros, ladrões, quentes e chegados a todo tipo de
ltL'<Úrias"7• Era tão impossível, insistia, "ser africano e não lascivo, como
ser nascido na África e não ser africano" 3•
Dentro dessa tradição pornotrópica, as mulheres figuravam como a
epítome da aberração e do excesso sexuais. O folclore as via, ainda mais
que aos homc:ns, como dadas a uma lascívia tão promíscua que beirava o
bestial. Sir Thomas Herbert observou sobre os africanos "a semelhança
que eles têm com os babuínos, que, pude observar, fazem frequente
companhia às mulheres"9 • Long via uma lição mais próxima de casa no
espetáculo africano do excesso Sô.'Ual feminino, pois acreditava que as
britânicas da classe trabalhadora habitavam, mais naturalmente que os
homens, as perigosas fronteiras da transgressão sexual e racial: "as mu-
lheres das classes baixas na Inglaterra", escreveu de modo agourento,
"têm preferência notável pelos negros"'º. O viajante vVilliam Smith ad-
vertia seus leitores sobre os perigos de viajar como brancos à África,
pois, naquele continente desordeiro, as mulheres "quando encontram
um homem despem suas partes baixas e se atiram sobre ele"".
Durante a Renascença, à medida que a "fabulosa geografia" das via-
gens antigas era substituída pela "geografia militante" do imperialismo
mercantil e pelo comércio triangular, os atrevidos navios mercantes de
Portugal, Espanha, Grã-Bretanha e França começaram a desenhar o
mundo num único novelo de rotas de comércio". O imperialismo mer-

6. Winthrop D. Jordan, White 0fltr Black: Am,ri(an Attitud,s T011.1ard tht Negro, 1550-1812
(Nova York: \V. W. Norton, 19n), p. 7.
7. 1h, Modtrn Pari o/tht Uniflmal History (T. Osbome etc., 1760, vol. V), pp. 658-9.
8. Op. cit., p. 659.
9. Sir Thomas Herbert, Somt Ytan Trawl lnto Dit:m Parts if Afriea and Aria tíu Cnal
(Londres: R. Scot, 16n), p. 18.
10. Edward Long, Candid &factiom ( Londres: T. Lo,..'Tldcs, tr,:), p. 48.
11. \Villiam Smith, A New Voyagt to Guinta ( Londres: John Noursc, li45), pp. 221-2.
12. O termo "geografia fabulosa· é de Ivlichael T:mssig, in Sl;amanism, Cofonialism and th,
Wild iWan: A Study in Ttrr0r and Htaling (Chicago: lhe University of Chicago Prcss,
Couro imperial

cantil começou a ser encorajado por sonhos de dominar não só um im-


pério de comércio sem limites, mas também um ilimitado império de
conhecimento. Francis Bacon (1561-1626) deu voz exemplar à falta de
modéstia do expansionismo intelectual da Renascença: "meu único de-
sejo terreno", escreveu, "é[ ... ] expandir os lamentavelmente estreitos li-
mites do domínio do homem sobre o universo até seus limites prometi-
dos"'3. lvlas a visão de Bacon de um conhecimento mundial dominado
pela Europa era animada não só por uma geografia imperial do poder,
mas também por uma erótica (de gênero) do conhecimento: "eu venho
na verdade", proclamou, "trazer a vós a natureza com todos os seus des-
cendentes para pô-la a vosso serviço e torná-la vossa escrava"q_
Com muita frequência, a metafísica do Iluminismo apresentava o
conhecimento corno uma relação de poder entre dois espaços de gênero,
articulados por uma jornada e pot uma tecnologia de conversão: a pene-
tração masculina e a exposição de um interior feminino velado; e a
agressiva conversão de seus "segredos" numa ciência masculina visível da
superfície. Bacon deplorava o fato de que "enquanto as regiões do globo
material [... ) foram cm nossos tempos expostas e reveladas, o globo in-
telectual permanece confinado aos estreitos limites de antigas desco-

1987), p. 15.Joseph Conr:id cunhou o termo "geografia militante" cm seu ensaio "Gcogra·
phy and Some Explorcrs", in únt Essays (Londres: J. M. Dent & Sons, 1916), p. 31. Para
uma história do fim da escra\'idão colonial, ,-er Robin Blackbum, 1},e Owrthrow ofColo-
11ial S!a'Uery: I776-11k,8 (Londres: Verso, 198!1).
13. Benjamin Farrington, 1he Philosophy of Francis Bacon: /111 Essay 011 lts DevelopmmtJrom
r6oJ to 1609 With Ne-.,, Translatiom ofFundammtal úxtr (Chicago: Thc Univcrsity Chi-
cago Prcss, 1964), p. 62. Ver LudmillaJordanova, S(x:,a/ Visions: lmages ofGmder in Scimce
and Medicine Bef'l:Jan the Eightanth and Twmtieth Cmturies (Nova York: Harvcstcr
\Vheatsheaf, 1989), Ver r:imbém E. F. Keller, &ft((tions on Gmder and Scim« (New Ha-
ven: Yale Univcrsity Press, 1985), especialmente os capítulos 2 e 3; Susan Griffin, H1Jman
and Nature: 1he Roaring lmide Her(Nov:i. York: Harpcr & Row, 1978); e Gcncvicve Lloyd,
ÜJ< lvlan of Reason: "1Wa1t· and 'Fur.ale" in lffsum Phi!orophy (Minneapolis: Minnesota
Univcrsity Prcss, r984).
14. Farrington, 1h( PhilwJphy ofFranâs Bacon.. . , p. 62. Para o gênero na ,isão da ciência de
Bacon, ver Carolyn Merchant, 7h, D,ath of Narure: Womm, E,ology and th, Sâmtifi,
Rewlution (Sio Francisco: Harper and Row, 1980), especialmente o capítulo 7.
cA situação da terra - qoual11gias do imperialismo

bertas"'5• Viajando no enigma do infinito, para lá destravar os "segredos


da natureza", Fausto também exclamou:

Novos caminhos se abrem para mim.


Rasgarei o véu que esconde o que desejamos,
Irromperei nos domínios da energia abstrata'6 •

O conhecimento do mundo desconhecido estava mapeado como


uma metafísica da violência de gênero - não como o reconhecimento
expandido das diferenças culturais - e era validado pela nova lógica
iluminista da propriedade privada e do individualismo possessivo. Nes-
sas fantasias, o mundo era tornado feminino e espacialmente exposto
1
para a exploração masculina, e então remontado e organizado no inte-
resse do poder imperial massivo. Assim, para René Descartes, a expan-
1 são do conhecimento masculino equivalia a um violento arranjo de pro-
~ priedade que fazia dos homens "senhores e possuidores da natureza"'7.
Na rnente desses homens, a conquista imperial do globo encontrava sua
.figura e sua sanção política na prévia subordinação das mulheres como
uma categoria da nature-La.

i AS IvlULHERES COMO MARCADORAS


DAS FRONTEIRAS DO IMPÉRIO

l Qyal é o sentido dessa persistente generificação da incógnita imperial?


Qyando os homens europeus atravessavam os perigosos limiares de seus

l mundos conhecidos, ritualisticamentc tornavam femininas as fronteiras


e os limites. Figuras femininas eram plantadas como fetiches nos pontos
ambíguos de contato, nas fronteiras e orifícios da zona disputada. Os

15. Francis Bacon, "Novum Otg1111um", in James Spedding, Robert Ellis e Douglas Hcath
(orgs.), 1he 1/.1;r.ks ofFrancis Bacon (Londres: Longmans, 1870), p. 82.
16. Goethe, Fawt. Parte I, apud Jordanova, Sexual Vúiom... , p. 93.
17. Rcné Descartes, Dis,ouru on Me1hod and lhe Medilatians (Harmond~worth: Pcnguin,
196S), p. 78.

j . 47
Couro impaial
l
1
1

marinheiros prendiam figuras femininas de madeira nas proas de seus j


barcos e batizavam- nos - como objetos liminares exemplares - com l
~
nomes femininos. Os cartógrafos enchiam os mares vazios de seus
mapas com ninfas e sereias. Os exploradores chamavam terras desco-

l
nhecidas de territórios "virgensn. Os filósofos figuravam "a verdade"
como fêmea, e então fantasiavam sobre retirar o véu. De muitíssimas
maneiras, as mulheres serviam como figuras mediadoras e liminares
por meio das quais os homens se orientavam no espaço, como agentes
do poder e do conhecimento.
Os próximos capítulos exploram parcialmente os modos historica-
mente diferentes, mas persistentes, em que as mulheres serviram como
marcadoras das fronteiras do imperialismo, as ambíguas mediadoras
do que parecia ser - pelo menos superficialmente - o protagonismo
predominantemente masculino-do império. O primeiro ponto que de-
sejo salientar, porém, é que a feminização da terra incógnita era, desde
o começo, uma estratégia de contenção violenta - que pertence aos
domínios canto da psicanálise quanto da economia política. Se, à pri-
meira vista, a feminização da terra parece não ser mais do que um
sintoma familiar da megalomania masculina,ela também trai uma pa-
ranoia aguda e um profundo (se não patológico) sentido de ansiedade
e perda de limites.
Como sugerem as imagens de Colombo e H aggard, a erótica da
conquista imperial e_ra também uma erótica da subjugação. Num
nível, a representação da terra como fem inina é um tropo traumá-
tico, que ocorria quase invariavelmente, sugi ro, depois da confusão
masculina com os limites, mas como uma estratégia de contenção
histórica e não arquetípica. Como traço visível de paranoia, femi-
nizar a terra é um gesto compensatório, que nega a perda masculina
dos limites reinscrevendo um excesso ritual de limites, acompanha-
do, com frequência, por um excesso de violência militar. A fe miniza-
ção da terra representa um momento ritualístico no discurso impe-
rial, como os invasores masculinos se protegem do temor de desordens
narcisistas ao reinscrever, como natural, um excesso de hierarquia de
gênero.
<.A situação da tara - qenealogi,u do imperialismo

Mary Douglas observa que as margens são perigosas'5• As sociedades


são mais vulneráveis nas margens, nas esgarçadas beiras do mundo co-
nhecido. Tendo velejado além dos limites dos mares conhecidos, os ex-
ploradores entram no que Victor Turner chamou de liminaridade'9 • Para
Turner, a liminaridade é ambígua, fugindo à "rede de classificações que
normalmente situam os espaços e as posições no espaço cultural"'º. Ali
na fronteira entre o conhecido e o desconhecido, os conquistadores, ex-
ploradores e navegadores se tornavam criaturas da transição e do limiar.
Como tais, eram perigosos, pois como diz Douglas: "O perigo está nos
estados de transição [ ...] A pessoa que deve passar de um para o outro
está ela mesma em perigo e produz perigo para as outras"21 • Como fi-
guras do perigo, os homens das margens tinham "licença para emboscar,
roubar, estuprar. Esse comportamento é mesmo imposto a eles. Com-
portar-se antissocialmente é a própria expressão de sua condição margi-
nal"ª. Ao mes1no tempo, os perigos representados pelas pessoas margi-
nais são administrados por rituais que as separam de seu status anterior,
segregando-as durante algum tempo e então publicamente declarando
sua entrada em seu novo status. O discurso colonial repetidamente en-
saia esse padrão - marginalidade perigosa, segregação, reintegração

O "DESCOBRIMENTO" IMPERIAL E A
AMBIVALÊNCIA DE GÊNERO

Consideremos agora outra cena colonial. Num desenho famoso (c.


1575), Jan van der Straet retrata o "descobrimento" da América como
um encontro erótico entre um homem e uma mulher (Figura 1.1)23• Um

18. Mary Douglas, Purity and D:mger (Londres: Routlcdge & Kegan Paul, 1966), p. 63.
19. Victor Turner, 1he Ritual Proms: Struct1m andAnti-Stru(/ure (lthaca: Comell Univcrsíty
Press, 1969).
20. Idem, op. cít., p. 95.
21. Douglas, Purity and Dangrr, .P· 78.
21. Idem, op. cít., p. 79.
z3. Ver Petcr Hulme, "Polytropí: Man: Tropcs ofSexualíty and Mobility ín Early Colonial
Discoursc", ln Francis Barker cl al. (orgs.), Europe and lu Oth~rs (Essc.x: Univcrsity of

49
..
Couro imperial

AMt.fU C A .
'-";-"""""°.,.. •- 1 ~ rTff:111 . <.:>-". Sn-tJ ........, ...J, -~ UfV"""-.,

Figura r.r - Pomotripico: As mulhueJ como marcadoras dos limitu do imptrio. Amlrico do
Nortt, e. r6oo. Gro'IJara dt 1Juodort Gallt, uguindo desmho dt fan '1/an dtr Stratt (e. 1575).

Vespúcio em armadura completa está ereto e senhorial diante de uma mu-


lher nua e eroticamente convidativa, que se inclina para ele de uma
rede. À primeira vista, as lições imperiais do desenho parecem claras.
Despertada de sua languidez sensual pelo épico recém-chegado, a indí-
gena estende uma mão convidativa, que insinua sexo e submissão. Sua
nudez e seu gesto sugerem um eco visual da Criação, de Michelangclo.
Vespúcio, o recém-chégado semelhante a Deus, está destinado a inse-
miná-la com as sementes masculinas da civilização, a frutificar a selva
e a subjugar as cenas revoltantes do canibalismo vistas ao fundo. Como
diz Peter Hulme num belo ensaio: "A terra é nomeada como fêmea,
contraparte passiva do ímpeto maciço da tecnologia masculina"14• A

Esscx, 1984, vol. 2). T ambérn Louis Montrose, "The \,York of Gender in the Discoursc of
Discovcry", Rtpmmtation.1 33 (Inverno, 1991), pp. 1-,p. Par., imagens europeias da Amé-
rica, ver H ugh Honour, 1he New Goldm lAnd: Europtan /maga ef Ammca from the
DiscO'IJtries to tht Pmmt Time (Nova York: Pantheon Books, 1975), capítulo 4.
24. Hulmc, "Polyuopic Man ...·, p. 21.
r l
cA situaçdo da tara - qm~alogias do imptria/ism,

l•' América representa alegoricamente o convite da natureza à conquista,


enquanto Vespúcio, envergando os instrumentos de fetiche do senhorio
imperial - astrolábio, bandeira e espada - , confronta a terra virgem
com o patrimônio do domínio científico e do poder imperial. Investido
da prerrogativa masculina de nomear, Vespúcio torna a identidade
americana uma extensão dependente da sua e atribui direitos territo-
riais masculinos e europeus a toda ela e, por extensão, a seus frutos.
i\tlais de perto, porém, o desenho de van der Straet, como o mapa de
Haggard e a fantasia dos seios de Colombo, conta uma história dupla do
descobrimento. A cena inaugural do descobrimento cheira não só a me-
galomania masculina e agressão imperial, mas também a ansiedade e
paranoia masculinas. Na distância central do quadro, entre Américo e
América, desdobra-se uma cena de canibalismo. Os canibais parecem
mulheres e estão assando num fogo uma perna humana. Uma coluna de
chamas e fumaça se eleva para o céu, unindo terra, fogo, água e ar numa
cena elementar, estruturada como uma reunião visual de opostos: terra/
céu; terra/mar; masculino/feminino; vestido/despido; ativo/passivo; ver-
tical/horizontal; cru/cozido. Situado na praia, limiar entre terra e mar, o
desenho é, quase em qualquer sentido, uma cena liminar.
As figuras nas margens são femininas, o que é notável. Aqui as mu-
lheres marcam, literalmente, as margens do novo mundo, mas o fazem
de tal maneira que sugerem uma profunda ambivalência no homem eu-
ropeu. Em primeiro plano, o explorador está por inteiro - cm armadu-
ra completa, ereto, senhorial, a encarnação do poder imperial masculino.
Presa a seu olhar, a mulher está nua, subserviente e vulnerável a seu
avanço. Ao fundo, contudo, o corpo masculino está, literalmente, em
pedaços, enquanto as mulheres se envolvem ativa e poderosamente. A
perna arrancada que assa na fogueira evoca uma desordem do corpo tão
catastrófica que chega a ser fatal.
Essa visão ansiosa marca um aspecto, sugiro, de uma duplicidade
recorrente no discurso imperial masculino. Isso pode ser visto como o
simultâneo horror da catastrófica perda de limites (implosão), associado
a temores de impotência e infantilização, ligados por um excesso de orr
1 dem dos limites, e a fantasias de poder ilimitado. Desse modo, a cena
l
·,
51
Couro imptrial

inaugural do descobrimento se torna uma cena de ambivalência, sus-


pensa entre uma megalomania imperial, com sua fantasia de intermi-
nável rapina, e um temor contraditório de subjugação, com sua fantasia
de desmembramento e emasculação. A cena, como muitas cenas impe-
riais, é um documento tanto da paranoia quanto da megalomania.
Como tal, a cena diz menos sobre o "Outro a ser logo colonizado" do
que sobre urna crise na identidade imperial masculina. Tanto Américo
corno América são aspectos divididos do invasor europeu, representan-
do aspectos negados da identidade masculina, deslocados para um es-
paço "tornado feminino" e administrados por recurso ao ordenamento
de gênero preexistente.
Suspensa entre a fantasia da conquista e o terror da subjugação, entre
o estupro e a emasculação, a cena, tão claramente dependente do gênero,
representa uma divisão e um deslocamento de uma crise que é propria-
mente masculina. A generificação da América corno simultaneamente
nua e passiva e turbulentamente violenta e canibalística representa uma
divisão dentro do conquistador, negado e deslocado para uma cena tor-
nada feminina.
Como em muitas cenas imperiais, o medo da subjugação se expressa
mais agudamente no tropo canibal. Nesse rropo familiar, o medo de ser
subjugado pelo desconhecido é projetado sobre os povos colonizados
como sua determinação a devorar o invasor inteiro. O mapa de Haggard
e a cena do descobrime.nto de van der Straet não são exceções, pois am-
bas implicitamente representam a sexualidade feminina como canibal: a
cena canibal, a "boca da c.avema do tesouro".
1
~
Em 1733, observou Jonathan Swift:

Assim os geógrafos nos mapas da África


i
1

Enchem os vazios com desenhos selvagens


E sobre quedas inabitá\•eis
Põem elefantes em lugar de cidades15 • 1.
25. Jonathan Swift, "On Poctry: A Rhapsody.(1733), apud Pcter Barbcr e Christopher Bom!,
Tatu from tht Map Room: Fali a11J Fiaicn a/,out 1\rlaps and Their J\llal.ers (Londres: BBC
Books, 1993), p. zo.
e.A situa;ão da ttrra - Çjuualogias do imptrialilmo

Mais tarde, Graham Greene notou como os geógrafos punham a


palavra "canibais" nos espaços vazios dos mapas coloniais. Com a palavra
"canibal", os cartógrafos tentavam afastar a ameaça do desconhecido
nomeando-o, e ao mesmo tempo confessando um terror de que o d esco-
nhecido pudesse surgir e devorar o invasor inteiro. Documentos colo-
r.iais estão repletos de lembretes da fascinação, do fetiche que os espaços
vazios dos mapas exerciam sobre a vida de exploradores e escritores.
11as as ansiedades implosivas sugeridas pelo tropo canibal eram tam-
bém afastadas por meio de ritos fantásticos de violência imperial.
O mapa colonial incorpora vividamente as contradições do discurso
colonial. A feitura de mapas pôs-se a serviço da pilhagem colonial, pois
o conhecimento constituído pelo mapa precedia e também legitimava a
conquista do território. O mapa é uma tecnologia de conhecimento que
professa a captura da verdade sobre um lugar de forma puramente cien-
tífica, operando sob a guisa da exatidão científica e prometendo recupe-
rar e reproduzir a natureza exatamente como ela é. Como tal, é também
uma tecnologia da posse, que promete que aqueles com a capacidade
de fazer representações tão perfeitas também terão direito ao controle
territorial.
E , no entanto, as beir:is e espaços vazios dos mapas coloniais são ti-
picamente marcados com vivos lembretes das lacunas do conhecimento
e, portanto, do caráter tênue da posse. As lacunas do conhecimento eu-
ropeu aparecem nas margens e vazios desses mapas na forma de cani-
bais, sereias e monstros, figuras liminares que falam das relações que
ressurgem entre gênero, raça e imperialismo. O mapa é uma coisa li-
minar, associada a limiares e zonas marginais, carregada de forças peri-
gosas. Como ícone exemplar da "verdade" imperial, o mapa, como a bús-
sola e o espelho, é o que Hulmc apropriadamente chama de "tecnologia
mágica", um fetiche poderoso que ajuda os coloniais a negociar os pe-
rigos das margens e limiares num mundo de terríveis ambiguidades16•
Parece crucial, portanto, salientar desde o começo que tornar a terra
feminina é ao mesmo tempo uma poética da ambivalência e uma poHtica

26. Hulmc, -Polytroplc Man .. .', p. 21.

1
53
1
(ouro imperial

da violência. Os "descobridores" - sujos, vorazes, doentes e malchei-


rosos como provavelmente eram, varrendo as margens de seu mundo
conhecido e arribando às praias fatais de seus "novos" mundos, seus
membros cobertos de abscessos e pústulas, suas mentes infestadas por
fantasias sobre o desconhecido - tinham ultrapassado quaisquer ga-
rantias sancionadas. Suas fúrias, seus massacres e estupros, seus atrozes
rituais de masculinidade militarizada brotavam não só de sua avidez
econômica por especiarias, prata e ouro, mas também da fúria implacá-
vel da paranoia.

O MAPEAMENTO DA TERRA "VIRGEM"


E A CRISE DAS ORIGENS

O "descobrimento" é sempre atrasado. A cena inaugural nunca é, de fato,


inaugural ou originária: alguma coisa sempre aconteceu antes. O dese-
nho de van der Straet confessa isso em seu subtítulo: "Américo redesco-
bre a América". Louis Ivlontrose sugere que a cena foi provavelmente
entendida na época por referência a um terrível incidente que teria ocor-
rido durante uma das viagens anteriores de Vespúcio. Um jovem espa-
nhol, que estava sendo inspecionado por um grupo de mulheres curio-
sas, foi repentinamente derrubado por um violento golpe por trás,
desferido por uma mulher; foi sumariamente assassinado, retalhado e
assado, diante dos oll}qs de seus conterrâneos'7• Essa estória, com seu
peso indecoroso de ameaça feminina e resistência à invasão, contradiz o
mito do convite feminino à conquista. Ao mesmo tempo, contradiz
a afirmação de Vespúcio de ser o primeiro.
Vespúcio está, de fato, atrasado. De qualquer maneira, ele nega seu
atraso e reivindica uma relação privilegiada com o momento do "desco-
brimento" e a cena das origens recorrendo a uma estratégia conhecida:
nomeia a "América" com seu próprio nome. O desejo de nomear exprime
um desejo de uma única origem, ao lado de um desejo de controlar a
origem dessa origem. Mas a estratégia de nomear é ambivalente, pois

27. Montrose, "lhe Work of Gcndcr...", p. 4-

54
e.,{ situarão da tara - Cjmtalogias do imptrialismo

exprime tanto uma ansiedade sobre o poder gerador quanto uma


negação.
Luce lrigaray sugere que a insistência masculina cm marcar "o pro-
duto da cópula com seu próprio nome" deriva da incerteza da relação do
homem com suas origens'8• "O fato de ser privado de um útero", diz ela,
é "a privação mais intolerável do homem, pois sua contribuição para a
gestação - sua função na origem da reprodução - é assim afirmada
como menos do que evidente, como sujeita a dúvida": 9_ O pai não tem
prova visível de que o filho é seu; seu status na gestação não é garantido.
O nome, o patrimônio, é um substituto para a ausente garantia da pa-
ternidade; só o nome do pai marca a criança como sua.
Historicamente, o desejo masculino de uma relação garantida com
a origem - assegurando, como o faz, a propriedade e o poder masculi-
nos - é contraditado pela duplicação sexual das origens, pelo visível
papel ativo das mulheres na produção da criança e pela contribuição
incerta e passageira dos homens. Como compensação, os homens dimi-
nuem a contribuição das mulheres (o que, nota lrigaray, é difícil de
questionar) reduzindo-as a meios e máquinas - meras portadoras -
sem atuação criativa ou poder de nomear. A insistência no patrimônio
marca uma negação: a de que algo diferente {uma mulher) seja neces-
sário para garantir a reprodução do mesmo - o filho com o mesmo
nome do pailº.
A cena sexual da origem encontra uma analogia na cena imperial do
descobrimento. Ao nomear vistosamente "novas" terras, os imperiais as
marcam como suas, garantindo, assim (ao menos eles acreditam), uma
relação privilegiada com a origem - na embaraçosa ausência de outras
garantias, donde a fixação imperial na nomeação, em atos de "descobri-
mento," cenas batismais e rituais masculinos de nascimento.

28. Luce lriga.ray, Sptculumofthe Othtr Woman, trad. Gillian C. Cill (lthaca: Comell Univer-
sity Press, 1974), P· 23.
29. Ibidem.
30. Idem, op. cit., p. 74.

55

Couro imprrial

O ato imperial de descobrimento pode ser comparado ao ato mascu-


lino do batismo. Em ambos os riruais, os homens ocidentais negam pu-
blicamente a aruação criativa dos outros (dos colonizados/das mulheres)
e se arrogam a força das origens. O rirual masculino do batismo - com
suas pias de água benta, sua lavagem e seus parteiros - é um substituto
do ritual de nascimento, durante o qual os homens se compensam por
seu papel invisível no nascimento da criança e diminuem a atuação das
mulheres. Na cristandade, pelo menos, o batismo repõe o nascimento
como ritual masculino. Durante o batismo, além disso, a criança recebe
um nome - do pai e não da mãe. O trabalho de parto e a força criativa
da mãe (ocultos cm seu "confinamento" e sem receber reconhecimento l
social) são diminuídos, e as mulheres são publicamente declaradas ina-
dequadas para iniciar a alma humana no corpo de Cristo. Aos olhos da
l
'
cristandade, as mulheres são geradoras incompletas: a criança deve nas-
cer de novo e deve ser nomeada pelos homens.
l
i

Como o batismo, o ato imperial do descobrimento é um substituto


do ritual do nascimento: as terras já foram povoadas, assim como a
criança já nasceu. Por isso, o descobrimento é um ato retrospectivo. Como
observa Mary Louise Pratt, o descobrimento não tem existência pró-
pria: "Ele apenas se torna real depois que o viajante (ou outro sobrevi-
vente) volta ao lar e o faz existir através de textos: um nome num mapa,
um relato para a Ruyal Geographical Society, para o Foreign O.ffice, para a
London Missio11 Society! um diário, uma conferência, um livro de via-
gens"J1. O descobrimento, como nota Pratt, em geral envolve uma jorna-
da para uma região remota, com perguntas aos habitantes locais sobre se
eles conhecem um rio, um lago ou uma cachoeira próximos, pagando a 1
;
esses habitantes para os levarem a esses locais, e então "descobrindo" o
lugar, muitas vezes pelo ato passivo de vê-lo. Durante esses atos extrava-
gantes de descobrimento, os homens do império inventam um momcn·
to (masculino) de pura origem e o marcam visivelmente com um dos
fetiches da Europa: uma bandeira, um nome num mapa, uma pedra ou

31. Mary Loui<e P ratt, lmpn-ial E)'t1: Trat:tl Wriling andTra,uculturalion {Nova York: Rout•
lcdgc, 1992), p. 204.

56
cA siluaçdo da urra - (jmtalogias do imptrialismo

talvez mais tarde, um monumento. Retornarei, a seu devido tempo, à


questão do fetiche e de sua relação com a crise das origens.

0 MITO DAS TERRAS VAZIAS

A Guiana é um país que é ainda virgem,


nunca saqueado, revirado nem forjado.
\ Valter Ralcigh

O mito da terra virgem é também o mito da terra vazia, envolvendo


tanto umrt despossessão de gênero quanto de raça. Em narrativas pa-
triarcais, ser virgem é estar vazia de desejo e de atuação sexual, aguar-
dando passivamente o ímpeto da inseminação masculina da história, da
linguagem e da razã<>3:. Nas narrativas coloniais, a erotização do espaço
"virgem" também faz uma apropriação territorial, pois, se a terra é vir-
gem, os povos colonizados não podem rehindicar direitos territoriais
originários, e o patrimônio masculino e branco é assegurado violenta-
mente, assim como a inseminação sexual e militar de um vazio interior.
Esse tema duplicado - a atuação negada das mulheres e dos coloniza-
dos - é recorrente nos capítulos que se seguem.
A jornada colonial rumo ao interior virgem revela uma contradição,
pois ela é figurada como avançando no espaço geográfico, mas· regre-
dindo no tempo histórico, para aquilo que é figurado como uma zona
pré-histórica de diferença racial e de gênero. Testemunha-se aqui uma
característica recorrente do discurso colonial. Como não se supõe que
os povos indígenas estejam espacial.mente l:i - pois as terras estão "va-

3z. Para uma bela e detalhada discussão das metiforu im~riais de gênero no cinema, ver
Elia Shohat, "Gender and thc Culturc of Empirc: Toward a Fcminist Etnography of thc
Cinema", Quartnly RNiewofFilm and Vidro 13, 1·3 (Primaven, 1991), pp. 45•84. Pau uma
análise do gênero na fronteira norte-americana, \-Cr Annettc Koloony, 1ht Lay of tht
Land: Mttaphors aI Expnitnu and Hutory in Amtrfran Lifa and Ltttm (Chapei Hill:
Univcrsity ofNorth Carolina Prcss, •9iS) , e 7h, Land Befart Her: Fanl/JIJ and Expnim<t
o/tht /lmerúan Frorúiers. 1630-186o (Cha~l H ill: Urüversity oi Nonh Carolina Prcss,
1984). Ver também Henry Nash Smit.h, Virgin Land: 7ht Amtri,an Wt11 as Symbol and
Myth (Cambridge: Han-ard Univcrsity P.-.:ss, 1971).

57
Couro impuial

zias" - , eles são simbolicamente deslocados para o que chamo de tspafo


anacrónico, um tropo que alcançou (como exploro em mais detalhe abai-
xo) plena autoridade administrativa como tecnologia de vigilância na
era vitoriana tardia. Segundo esse tropo, povos colonizados - como as
mulheres da classe trabalhadora na metrôpole - não habitam a história
propriamente dita, mas existem num tempo permanentemente anterior
no espaço geográfico do império moderno como humanos anacrônicos,
atávicos, irracionais, destituídos de atuação humana - a encarnação
viva do arcaico "primitivo".
Um dilema fundamental confrontava os coloniais, porém, pois as
terras "vazias" eram visivelmente povoadas, e traços da antiguidade des-
ses povos estavam à mão na forma de ruínas, antigos povoados, crânios
e fósseis. r\í está pelo menos uma razão para a obsessão vitoriana com
sobrevivências e traços, ruínas é. esqueletos - lembretes alegóricos do
fracasso de uma narrativa única das origens. Nos capítulos 4, 5 e 10, ex-
ploro mais detalhadamente esses dilemas coloniais.
Para as mulheres, o mito da terra virgem apresenta dilemas específi-
cos, com importantes diferenças para as mulheres coloniais e para as
colonizadas, como argumento nos capítulos 9 e 10. As mulheres são a
terra que está para ser descoberta, penetrada, nomeada, inseminada e,
acima de tudo, possuída. Simbolicamente reduzidas, aos olhos dos ho-
mens, ao espaço em que se travam as disputas masculinas, as mulheres
experimentam dificuldades particulares ao reivindicar genealogias alter-
nativas e narrativas alternativas de origem e nomeação. Simbolicamente
ligadas à terra, as mulheres são relegadas a um domínio :ilém da história
e, assim, mantêm uma relação panicularmente vexatória com as narrati-
vas de mudança histórica e de efeito político. E, o que é ainda mais
importante, as mulheres são figuradas como propriedade pertencente
aos homens e, portanto, estão fora, por definição, das disputas masculi-
nas sobre terra, dinheiro e poder político.
É importante salientar, desde o ponto de partida, contudo, que a
questão do gênero no imperialismo assumiu formas muito diferentes
em partes diferentes do mundo. A Índia, por exemplo, nunca foi vista
como terra virgem, e a iconografia do harém não fazia parte da erótica

·8
)
cA situa;do da Urra - q,n,alogias do imptrialismo

colonial do Sul da África. As mulheres do Norte da África, do Oriente


Médio e da Ásia eram com frequência capturadas pela iconografia do
véu, enquanto as demais mulheres africanas estavam sujeitas à missão
civilizadora do algodão e do sabão. Em outras palavras, as mulheres ára-
bes deviam ser "civilizadas" sendo despidas (tirando-se-lhes o véu), en-
quanto as subsaarianas deviam ser "civilizadas" sendo vestidas (em limpo
e branco algodão britânico). E ssas distinções suntuárias eram sintomá-
1
ticas de diferenças críticas de modos legislativos, econômicos e políticos
J cm que o racismo mercantil imperial era imposto em diferentes partes
l do mundo.

DOMESTICIDADE E RACISMO
DA .MER CA DORI A

Domistico - relativo ao lar, domicilio ou


assuntos da família
Domnlicar - n:aturalizar
(colonos, animais)
civilizar
(selvagens)

l P(9umo dirionário Oxford do Inglês corrente

Em 1899, ano em que estourou a guerra anglo-bôer na África do Sul,


1 uma propaganda do Sabonete Pears no McC/ure's Magazine (Figura 1.2)
anunciava:

o primeiro passo para tomar mais leve o FARDO DO HOMEM BRANCO é ensi-
nar as virtudes da limpeza. o SABONETE PEARS é um potente fator no
abrilhantamento dos cantos escuros da terra à medida que a civilização avan-
ça, enquanto para as mais cultivadas nações da terra ele est:i no mais alto
posto - é o sabonete ideal de toaletell_

33. M,Clum Magaz.int 13 (maio·out., 1899).

59
Couro imptrial

A propaganda mostra um almirante trajando puro branco imperial,


lavando suas mãos na cabine enquanto seu vapor cruza o oceano no
domínio do império. Nessa imagem, a domesticidade privada e o mer-
cado imperial - duas esferas consideradas pela classe média vitoriana
como inteira e naturalmente distintas - convergem num único espetá-
culo mercantil. O santuário doméstico do banheiro do homem branco
dá vantagem ao domínio global do comércio, de tal forma que o pro-
gresso imperial se consuma num só golpe - como tempo panóptico.

. ... ; .. . .. .._,.;.·_._;. -·_, ·--~'-· ..


. '.• .. •.. n..r ~ ~ ......... "'PW--c .•,:•::>. '
.· Thc;-Whitc·:,Man ·s-Bl\\"UCn'",;;•
•• •~h , ~ ~• ,k -.w,90;,., d t ~ ·,. _•

. ·., P:ç~r.~~-.$o~P::·/·• . . :
,. a,.._,.....,_..., ,,_ bt.ck,--c iJ1ic .t.vtr ~ , . , / ,llic •'"" "
~ .-Jo.,o. .. ~ .....-~ dw Cllill-.4 J .., M~
~ ,t--.C ... t lil,t idr..S ....... ......
......., .~ ·•.

FigJLra r.2 - Dom~stitidatk imperial.

A vigia é tanto janela como espelho. A janela, ícone da vigilância


imperial e a ideia iluminista do conhecimento como penetração, se abre
para cenas públicas de conversão econômica. Uma cena retrata um afri-
cano ajo~lhado recebendo, agradecido, o sabonete Pears, como se ajoe-
lharia diante de um fetiche religioso. O espelho, emblema da autocons-
ciência iluminista, reflete a imagem da higiene imperial branca e
masculina. A higiene _doméstica, comv sugere o anúncio, purifica e pre-

60
cA" situação da urra - <Jmfalogias do imptrialism,;

serva o corpo masculino branco da contaminação na zona limiar do


império. Ao mesmo tempo, a mercadoria doméstica garante o poder
masculino branco, a genuflexão dos africanos e o domínio do mundo.
Na parede, uma lâmpada elétrica significa a racionalidade científica e o
avanço espiritual. Dessa forma, a mercadoria doméstica dá a lição do
progresso imperial e da civilização capitalista: para o homem branco, a
civilização avança e se abrilhanta através de seus quatro amados fetiches
- o sabonete, o espelho, a luz e a roupa branca. Como detalho mais
adiante, esses fetiches sãu recorrentes através do Kitsch mercantil vito-
riano tardio e na cultura popular da época.
A primeira observação sobre o anúncio do Pears é que ele figura o
imperialismo como passando a existir através da domtsticidadt. Ao mes-
mo tempo, a domesticidade imperial é uma domesticidade sem mu-
lheres. O fetiche da mercadoria, como forma central do iluminismo
industrial, revela o que o liberalismo gostaria de esquecer: o doméstico
é político, o político tem gênero. O que não poderia ser admitido no
discurso racionalista masculino (o valor econômico do trabalho domés-
tico das mulheres) é negado e projetado para o domínio do "primitivo"
e para a zona do império. Ao mesmo tempo, o valor econômico da~
culturas colonizadas é domesticado e projetado para o domínio do "pré-
histórico".
Um traço característico da classe média vitoriana era sua preocu-
pação peculiarmentc intensa com fronteiras rígidas. Na ficção imperial
e no Kitsch mercantil, objetos de fronteira e cenas liminares se repetem
ritualmente. À medida que os coloniais se moviam de um lado para
outro através dos limiares de seu mundo conhecido, a crise e a confusão
de limites eram mantidas à distância e contidas por fetiches, rituais de
absolvição e cenas liminares. Sabonete e rituais de ümpeza passaram a
ser centrais para a demarcação dos limites do corpo e para o policiamen-
to das hierarquias sociais. A limpeza e os rituais de fronteiras fazem
parte da maioria das culturas; o que caracterizava os rituais vitorianos de
ümpeza, porém, era sua relação peculiarmente intensa com o dinheiro.
Estou duplamente interessada no anúncio do sabonete Pears porque
ele registra uma mudança que vejo como tendo tido lugar na cultura do

61
Couro imptrial

imperialismo nas últimas décadas do século XIX. Foi a passagem do


racismo cien tifico incorporado nos periódicos médicos, científicos e an-
tropológicos, nos escritos de viagens e nas etnografias, para o que chamo
de racismo mercantil O racismo mercantil- nas forma s especificamen-
te vitorianas de propaganda e fotografia, nas exposições imperi:i.is e no
movimento dos museus - converteu a narrativa do progresso imperial
em espetáculos de consumo produzidos em massa.
Durante o século XVllI, surgiu o que Pratt chama de "consciência
planerária"H. A consciência planetária imaginou desenhar todo o mun-
do numa única "ciência da ordem," na expressão de Foucault. Carl Lineu
forneceu o impulso para essa ideia imodesta ao publicar, em 1735, o Sys-
tema Natura, que prometia organizar todas as formas de plantas numa
única gênese narrativa35• Para Lineu, ademais, a reprodução sexual se
tornou o paradigma para a forma natural em geral.
I nspirados por Lineu, hordas de exploradores, botânicos, historiado-
res d a natureza e geógrafos se entregaram à vocação de ordenar as for-
mas do mundo numa ciência global da superfície e da ótica da v~rdadc.
Dessa maneira, o projeto do Iluminismo coincidia com o projeto impe-
rial. Como diz Pran: "Pois o que eram o comércio de escravos e o siste-
ma d e plantation senão maciços e.xperimentos em engenharia social e
disciplina, produção cm série, sistematização da vida humana, padro-
nização das pessoas?"36• A ciência global da superfície era um projeto
de conversão, dedicado a transformar a terra numa única moeda econô-
mica, uma única orige·én da história e um padrão universal de valor cul-
tural - posto e administrado pela Europa.
O que me preocupa aqui, porém, é que, se a ciência imperial da su-
perfície prometia desenrolar um único "Grande Mapa da Humanidade"
e forj ar uma única autoridade masculina europeia para todo o planeta, a
ambição ultrapassou o efeito durante bastante tempo. O projeto estava

34. Pr:m, lmpmal Eys..., p. 134.


35. Idem, op. cit., p. 15.
· 36. Idem, op. cit., p. 36.

62
ui situa;ão da terra - qm,alogias dq imptria/ismo

cheio de paradoxos, incomplen1de e ignorância intelectual. A capacida-


de tecnológica de mapear e catalogar a superfície da terra continuou, por
algum tempo, dependente de acidentes, inferior e evidentemente inepta.
Os promotores do projeto global não tinham a capacidade técnica para
reproduzir formalmente a "verdade" ótica da natureza nem a capacidade
econômica de distribuir essa verdade para consumo global. Para que isso
acontecesse, o projeto global teria de esperar até a segunda metade do
século XIX, com o surgimento do espetáculo mercantil - em particular,
a fotografia.
Os capítulos seguintes se ocupam dessa mudança do racismo cien-
tífico para o racismo mercantil, pelo qual o racismo evolucionista e o
poder imperial fora.m postos no mercado numa escala até então inima-
ginável. No processo, o lar da classe média vitoriana se tornou um es-
paço para a exibição do espetáculo imperial e para a reinvenção da raça,
enquanto as colônias - a África, em particular - se tornavam um es-
paço para exibir o culto vitoriano da domesticidade e da reinvenção do
gênero.
A domesticidade denota tanto um espaço (um alinhamento geográ-
fico e arquitetônico) quanto uma refarão social de poder. O culto da do-
mesticidade, longe de ser um fato universal da ~natureza", tem uma ge-
nealogia histórica. A ideia do "doméstico" não pode ser aplicada de
maneira geral a qualquer casa ou domicílio como fato universal ou na-
turalJ7. 1àntas vezes alardeado como um espaço universal nantral -
abrigado nos interiores mais recônditos da sociedade, ainda que teorica-
mente além do domínio da análise política-, o culto da domesticidade
envolve processos de metamorfose social e sujeição política das quais o
gênero é a dimensão permanente, mas não a única.
Etimologicamente, o verbo "domesticar" tem a mesma raiz de "do-
minar", que deriva de dominus, senhor do domm, o lar38 • Até 1964, po-

37. Jean e John L. Com:iroff, "Homem3dc Hcgcmony: l\lodcrnicy, Domesticity, and Colo-
oialism in South Africa", in Karcn Hansen (org.), Afriran Encauntm with Dommiâty
(Ncw Brunswick: Rutgcis Univcrsity Prcss, 1992), p. 39.
38. Idem, op. cit., p. 3.
C1111ro imptrial

rém, o verbo "domesticar" também carregava como um de seus signi- 1


ficados a ação de "civilizar"39 • Nas colônias (como exploro melhor no
capítulo 6), o posto da missão se tornou uma instituição liminar para
transformar a domesticidade enraizada no gênero e nos papéis de clas-
se europeus numa domesticidade para controlar um povo colonizado.
Através dos rituais da domesticidade, cada ,·ez mais global e muitas
vezes violenta, animais, mulheres e pessoas colonizadas eram retiradas
de seu estado de "selvageria" putativamente ~natural", ainda que, iro-
nicamente, pouco "razoável," e eram induzidas, através da narrativa ·1

doméstica do progresso, a uma relação hierárquica para com os homens


brancos.
Assim, a ideia histórica da domesticidade mantém uma relação am-
1
1
bivalente com a ideia imperial de natureza, pois a "domesticação" se im-
põe energicamente à natureza para produzir uma esfera social que é
considerada natural e universal em primeiro lugar. Em outras palavras,
l
nas colônias, a cultura europeia (a missão civilizadora) se tornou ironica-
mente necessária para reproduzir a natureza (as divisões "naturais" do
trabalho doméstico), anomalia que demandou muita energia social - e
muito trabalho doméstico - para ser ocultada. A ideia de progresso -
a "natureza" se aperfeiçoando ao longo do tempo - foi fundamental
para administrar essa anomalia.
O culto da domesticidade, argumento, se tornou central para a iden-
tidade imperial britâ~i~a, por contraditória e conflituosa que esta fosse,
e surgiu uma dialética intrincada. O imperialismo difundiu o culto vito-
riano da domesticidade e a separação histórica entre o privado e o pú-
blico, que tomou forma em torno do colonialismo e da ideia de raça. Ao
mesmo tempo, o colonialismo se formou em torno da invenção vitoria-
na da domesticidade e da ideia do larº. (Figs. 1.3, 1.4).

39. Idem, op. cit., p. 23.


40. Pu3 uma an:i.lise da domesticidade colonial no Sul da Africa, ver Jean e John L. Com1-
roff, "Homcmade Hegemony...", pp. 3;·74.
,.

e.A situa;4o da urra - (jtntalogias do imptrialismo

Figura r.3 - Domtsticando o impirio.

. ,.......

Figura r.4 - A idmtidadt nacional óritãnica amnnt aforma ímptrial.


Couro imptrial

Este, então, é o tema central deste livro: quando o espaço doméstico


foi racializado, o espaço colonial foi domesticado. Certamente, o espetá-
culo mercantil não era a única forma cultural para a mediação do colo-
nialismo doméstico. Os escritos de viagens, novelas, cartões-postais,
fotografias, pornografia e outras formas culturais podem ser investiga-
dos de maneira igualmente fértil para essa relação crucial entre domes-
ticidade e império. O espetáculo mercantil, porém, se estendeu muito
além da elite cultural e de posses e deu ao colonialismo doméstico uma
influência de longo alcance.

TEMPO PANÓPTICO

Já não precisamos recorrer à história para ver (a natureza


humana) em todos os seus estágios e períodos[...] agora
o Grandé ·ivlapa da Humanidade é desenrolado de uma
só vez: e não há estado ou gradação de barbarismo e nem
modo de refinamento que não tenhamos à nossa vista no
mesmo instante.
Edmund Burke

A ciência imperial da superficie se alimentou de dois tropos centraliza-


dores: a invenção do que chamo de tempo panóptico e a do espaço anacrô-
nico. Com a publicação da Origem das espécies, Charles Darwin conferiu
ao projeto global uma dimensão decisiva - o tempo secular como agen-
te de uma história unificada do mundo. Assim como Lineu tentara clas-
sificar o fragmentário registro botânico num simples arquivo de forma
natural, a partir de 1859, os evolucionistas sociais assumiram a tentativa
maciça de ler, a partir do descontínuo registro natural (a que Darwin
chamava de "uma história imperfeitamente mantida do mundo"), um
único pedigree da história do mundo cm evolução. Agora, não só o espa-
ço natural, mas também o tempo histórico podiam ser colhidos, reuni-
dos e mapeados numa ciência global da superfície.
A importante meditação sobre o tempo e a antropologia de Johannes
Fabian, Time and the Other: How Anthropology 1l1akes Its Object, mostra
como os evolucionistas sociais romperam o domínio da cronologia bí-

66
cA situa(do da terra - (jm talogias do inrptrialismo

blica - isto é, o tempo da crônica - secularizando o tempo e pondo-o


à disposição do projeto empírico - isto é, o tempo cronológico•'. Para
fazê-lo, ele observa, "e1pacializaram o tempo". "O paradigma da evolução
se apoiava numa concepção do tempo que era não só secularizada e
naturalizada, mas também plenamente espacializada". O eLxo do tempo
foi projetado sobre o cLxo do espaço e a história se tornou global. Com
o darwinismo social, o projeto taxonômico, aplicado primeiro à nature-
za, era agora aplicado à história cultural. O tempo se tornou uma geo-
J grafia do poder social, um mapa a partir do qual ler uma alegoria global
da diferença social "natural". E, o que é mais importante, a história assu-
miu o caráter de espetáculo.
Nas últimas décadas do século XIX, o tempo panóptico se autonomi-
zou. Por tempo panóptico, refiro-me à imagem da história global con-
sumida - com um olhar - num único espetáculo a partir de um ponto
de invisibilidade privilegiada. No século XVII, Bossuet, no Discours sur
l'histoire tmiverselle, argumentava que qualquer tentativa de produzir
uma história universal dependia de ser capaz de figurar a "orde m dos
tempos" num olhar ("comme d'un coup d'oei/")4 '. Para atingir os padrões
"científicos" estabelecidos pelos historiadores da natureza e pelos empi-
ricistas do século XVIII, era necessário um paradigma visual para exibir
o progresso evolucionário como espetáculo mensurável. A figura exem-
plar que surgiu foi a evolucionista Árvore da Família do Homem.

! A natureza da Renascença - a natureza divina - era entendida


como cosmológica, organizada de acordo com a vontade de Deus numa
irrevogável cadeia do ser. Em contraste, o evolucionista social Herbert
Spencer via a evolução não como uma cadeia do ser, mas como uma
árvore. Como diz Fabian: "A árvore sempre foi uma das formas mais
simples de construir esquemas classificatórios fundados na subsunção e
na hierarquia"• 3• A árvore oferecia uma imagem antiga de uma genealo-

41. Johannes Fabian, Tim, and tl:e Other: How Antbrnpology A'lahs I N Objut (Nov:i York:
Columbia Univcrsity Pn:ss, 1983), p. 15.
42. Jacques Benignc Bossuet, DiscouN sur l'histoirt uni11aullt, apud idem, op. cit., p. 4.
43. Idem, op. cit., p. 96.
Couro impuial

gia natural do poder. Os evolucionistas sociais, porém, tomaram a árvo-


re divina e cosmológica e a secularizaram, tornando-a uma imagem de
comutação que mediava entre a natureza e a cultura como imagem na-
tural do progresso evolucionário humano.
"A Árvore Nlorfológica das Raças H umanas" de Mantegazza, por
exemplo, mostra vividarnente corno a imagem da árvore foi posta à dis-
posição dos cientistas raciais (Figura 1.5). Na imagem que lVlantegazza
tinha da história global, surgem três princípios. Primeiro, mapeadas
contra a árvore, as culturas descontinuas do mundo parecem ser coman-
dadas dentro de urna única narrativa europeia originária. Segundo, a
história humana pode ser imaginada como naturalmente teológica, um
processo orgânico de crescimento para cima, com o europeu como apo-
geu do progresso. Terceiro, incômodas descontinuidades históricas podem
ser ordenadas, submetidas e subordinadas a uma estrutura hierárquica de
tempo ramificado - o progresso diferencial das raças mapeado contra
os ramos evidentes da árvore. Na árvore do tempo, a hierarquia racial e
o progresso histórico se tornaram os faits a((omplis da natureza .

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Figura r.5 - lnvmlando o prograso: a tfn.,•orr racialfamiliar.

68
cA situa;õo da urra - qo:,alogias do imperialismo

A imagem da árvore, contudo, estava ligada a uma segunda imagem


decisiva: a Familia do H omem. O "Grupo Familiar dos Katarrhinen"
oferece um bom exemplo (Figura 1.6). Nesse grupo familiar, o progresso
evolutivo é representado por urna série de tipos anatômicos distintos,
organizados corno uma imagem linear de progresso. Nessa imagem, o
olho segue os tipos evolutivos rumo ao alto da página, do arcaico para o
moderno, de tal fo rma que o progresso parece desenvolver-se natural-
mente diante do olho como uma série de marcas que evoluem no rosto.
O progresso assume o caráter de um espetáculo, sob a forma da família.
Toda a história cronológica do desenvolvimento humano é captada e
consumida num golpe de vista, de tal forma que a anatomia se torna
uma alegoria do progresso, e a história é reproduzida como uma tecno-
logia do visível (Figura r.7)-H.
Assim, o evolucionismo social e a antropologia deram à política e à
economia um conceito do tempo natural como familiar. O tempo não
fora apenas secularizado, mas também domesticado, questão não colo-
cada por Fabian. A mescla de árvore e família n:t árvore familiar do
homem dava ao racismo científico uma imagem de género para popu-
larizar e disseminar a ideia de progres~o raâal. Há aqui, entretanto, um
problema, pois a árvore familiar representa o tempo da evolução como
tempo sem mulheres. A imagem da família é uma imagem de negação,
pois contém apenas homens, arranjados num friso de homens sós que
ascendem para o apogeu do }lomo sapiens individual. Cada época é re-
presentada por um único tipo masculino, caracterizado, por sua vez, por
visíveis estigmas anatômicos. Desde o início, a ideia de progresso racial
l
i tinha gênero, mas de tal maneira que tornava as mulheres invisíveis en-
quanto agentes históricos.

H• Dolf Sternberger, ~eguindo \Valter Benjamin, viu no popular fenõmeno vitorilno do ci-
clorama uma popularização da teoria de Darwin como um "ciclorama da evolução". Na
imagem panorâmica, a história ap:irece como uma "progre1sào natural" do macaco ao
homem, de modo que "o olho e o olho da mente podem deslizar, p:ir.,. cima e para bai:<o,
de um lado pan o outro, pelas figuras que 'evoluem~. Apud c.-.:cclente ÜYTO de Susan
Buck-Morss, 7ht D ia/afia ofSuing: Wafttr B,njamin and thr llr<adn Proj((t (Cambridge:
lhe MIT Prcss, 1990), p. 67.
Couro impuial

u., , ••.,........,,. .........,... .. ..... s.,.... ·- !,.

Figura 1.6- •o Grupo Familiar dos Kata"hinm": inventando a Fam(/ia do Hom(m.

r..,_ . _ _

........ - --·
.... __ ...

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·-·
Figura 1.7 - Tempo panóptuo: o progr(sso consumido num golp( d( vista.
vi situafdo d a tara - qm((z/ogias do imperialismo

Desse modo, a figura da Família do Homem revela uma contradi-


ção persistente. O progresso histórico é naturalizado como uma fa-
mília que evolui, ao passo que as mulheres, na qualidade de atores
históricos, são negadas e relegadas ao reino da natureza. A história é
assim figurada como familiar, mas a família como instituição é vista
como além da história. Os capítulos que se seguem (em particular o
capítulo u) cuidam fundamentalmente das implicações históricas
desse paradoxo.

ESPAÇO ANACRÔNICO

\Valter Benjamin observa que uma característica central do capitalis-


mo industrial do século XIX era o "uso de imagens arcaicas para iden-
tificar o que era historicamente novo sobre a 'natureza' das mercado-
rias"45. No mapeamento do progresso,imagens do tempo "arcaico"-isto
é, do tempo não europeu - eram sistematicamente evocadas para
identificar o que era historicamente novo na modernidade industrial.
A fixação da classe média vitoriana nas origens, com narrativas de gê-
nese, com arqueologia, crânios, esqueletos e fósseis - o bric-à-brac
imperial do arcaico-, era recheada da compulsão fetichista a colecio-
nar e exibir que dava forma ao museu imaginário do empirismo de
classe média. O museu - como moderna casa-fetiche do arcaico -
tornou-se a instituição exemplar que dava corpo à narrativa vitoriana
do progresso. No museu do arcaico, a anatomia da classe média assu-
1 miu forma visível (Figura 1.8).

45. Apud idem, op. cit., p. n7.

71
.,.,.
Couro imptrial

TllfE'S WAXWORKS.
'IN1 ,nr ~•• •• ,. ,., "º•"'"••
.,.. , · ••· t«u._.,.,....,....,. ~ .,..~._..., --~··

Figur.11.8 - Espa;o anatr6ni<o: A im1tnçao do arcaico.

Entretanto, na compulsão de colecionar e reproduzir a história toda,


o tempo - precisamente quando aparece mais histórico - se detém
em suas pegadas. Nas imagens do tempo panóptico, a história aparece
estática, fixa, coberta de poeira. Paradoxalmente, então, no ato de tornar
o tempo mercadoria, a mudança histórica - especialmente o trabalho
de mudar a história - tende a desaparecer.
A esta altura, aparece outro tropo. Pode ser chamado de invenção do
espaço anacrônico, e ele alcançou plena autoridade como tecnologia ad-
ministrativa e reguladora ao final da era vitoriana. Dentro desse tropo, a
atuação das mulheres, dos colonizados e da classe trabalhadora é negada
e projetada num espaço anacrônico: pré-histórico, atávico e irracional,
inerentemente deslocado no tempo histórico da modernidade.
Segundo a versão colonial desse tropo, o progresso imperial no es-
paço do império é figurado como uma jornada para trás no tempo até
um momento anacrônico da pré- história. Por extensão, a jornada de rc-

72
r.A situarão da tara - qtn,alogias d o imptria fis mo

torno à Europa é vista como um ensaio da lógica evolucionista do pro-


gresso histórico para frente e para o alto até o apogeu do Iluminismo na
metrópole europeia. A diferença geográfica através do espaça é figurada
como uma diferença histórica através do tempo. O ideólogo J.-lVI. Dege-
rando captou essa noção concisamente: "O viajante filosófico, velejando
até os confins da terra, está de fato viajando no tempo; está explorando
o passado"46 . A ameaçadora e resistente heterogeneidade das colônias
era contida e disciplinada não porque social ou geogrnficamente dife-
rente da Europa e, portanto, igualmente v:ilida, mas porque temporal-
mente diferente e, portanto, irrevogavelmente superada pela história.
Hegel, por exemplo, talvez o proponente filosófico m:iis influente
clcssa noção, figurava a África como pertencendo não simplc!smente a
um espaço geográfico diferente, mas a uma zona temporal diferente,
sobrevivendo anacronicamente dentro do tempo da história. A África,
diz Hegel, "não é parte histórica do mundo [ ...] não tem movimento ou
desenvolvimento a exibir"•7• A África veio a ser vista como paradigma
colonial do espaço anacrônico, uma terra perpetuamente fora do tempo
na modernidade, à deriva e historicamente abandonada. A África era
uma terra-fetiche, habitada por canibais, dervixes e curandeiros, aba.,-
donada na pré-história exatamente antes que o Weltgeisl (insidioso
agente da razão) se manifestasse na história.
Na metrópole industrial, a evocação do espaço anacrônico (a inven-
ção do arcaico) se tornou central para o discurso da ciência racial e da
vigilância urbana das mulheres e da classe trabalhadora. O s cientistas
raciais e, mais tarde, os eugenistas viam as mulheres como o inerente-
mente atávico arquivo vivo do arcaico primitivo.
Para alcançar os padrões empíricos dos cientistas naturais era neces-
sário inventar estigmas visíveis que representassem - como espetáculo
mercantil - o anacronismo histórico das classes degeneradas. Como
observou Sander G ilman, uma resposta foi encontrada no corpo da mu-

46. Joseph-Marie Degerando, 1br Observation ofSavage Peoples, F. C . T Moore, org. (Berke-
ley: UniversityofCalifomia Press, 1969 {1800]).
47. W illiam Pictz, "lhe Prob!em of the Fctish, 11", R,, 13 (Primavcn, 19S7), p. 45.

73
Couro impuial

lher africana, que se tornou o protótipo da invenção vitoriana do atavis-


mo primitivo. "No século XIX," diz Gilman, "a mulher negra era perce-
bida como possuidora não só de um apetite sexual 'primitivo', mas
também dos sinais externos desse temperamento - órgãos sexuais pri-
mitivos"48. Em 1810, a exibição da africana Saartjie Baartman tornou-se
o paradigma da invenção do corpo feminino como anacronismo. O su-
posto excesso dos genitais dessa mulher (representados que eram por
um excesso de visibilidade do clitóris na figura do "avental hotentotc")
foi superexposto e patologizado diante do olhar disciplinar da ciência
médica masculina e do público voyeur9 . Cuvier, cm sua notória medica-
lização de seu esqueleto, comparou a mulher da "mais baixa" espécie
humana ao "mais alto macaco" (o orangotango) vendo uma afinidade
atávica na aparência anômala do "órgão de geração" da mulher negra.
Como em Lineu, a reprodução sexual servia como paradigma da ordem
e da desordem sociais.
Na superexposição dos órgãos genitais africanos e na patologização
médica do prazer sexual feminino (especialmente o prazer clitoridiano,
que estava fora da teleologia reprodutiva da heterossexualidade mas-
culina), os cientistas vitorianos encontraram um fetiche para incorporar,
medir e embalsamar a ideia do corpo feminino como espaço anacrônico.
Assim, uma contradição na formação da classe média (entre sexualidade
clitoridiana - sexo para o prazer feminino - e sexualidade reprodu-
tiva - sexo para o pr_?zcr masculino e geração de filhos) era projetada
no domínio do império e na zona do primitivo. Como órgão inerente-
mente inadequado, diz Freud, "o órgão genital feminino é mais primi-
tivo que o masculino" e o clitóris "é o protótipo normal dos órgãos infe-
riores"5º. Como anacronis~o histórico, ademais, o imaturo clitóris deve

48. Sandcr Gilman, Dijfeunu and Parhology: Sttr,orypts ofSt:r:ualiry, Rau and i\lfadt1tss (Itha-
ca: Corncll Univcrsity Prcss, 1985), p. 45.
49. Baanman foi exibida pela Europa por cinco anos. Em 1829 uma mulher hotentote nua, a
" Vênus hotemote", foi a principal atração de um baile dado pela Duquesa du Barry cm
Paris.
50. Freud, "Fetishism", in 1he Standard Edition efthe Complete Psyd1ologi(a! H·&rks ofSigmund
Freud, trad. James Strachey (Londres: The Hogarth Prcss, 1927, vol. VII), p. tj7. Ver a

74
e.A lit u.z;tJ, da urra - Ç mtalogias d, i111ptria/ismo

ser disciplinado e subordinado numa narrativa linear do progresso he-


terossexual reprodutivo - a tarefa vaginal de gerar um filho com o
mesmo nome do pai.
Como argumento nos capítulos 2, 3 e 4, o espaço doméstico vitoriano
também foi submetido à figura disciplinar do espaço anacrônico. As
mulheres que transgrediam as fronteiras vitorianas entre o público e o
privado, entre o trabalho e o lazer, entre o trabalho pago e o não pago,

,
1
1 tornavam-se cada vez mais estigmatizadas corno espécimes de regressão
racial. Tais mulheres, dizia-se, não habitavam propriamente a história,
mas eram protótipos de humanos anacrônicos: infantis, irracionais, re-
j gressivas e atávicas, existindo num tempo permanentemente anterior
1 dentro da modernidade. As serventes domésticas eram frequentemente
descritas na iconografia da degeneração como "pragas", "raças negras",
"escravas"e "pnm1t1vas
· · · , ,.

A INVENÇÃO DA RAÇA E A
FAMÍLIA DO HOMEM

Em 1842, Friedrich Engels, filho dissidente de um empresário alemão,


atravessou o l\tlar do Norte para investigar a "verdadeira condição" dos
operários que trabalhavam nas fábricas de seu pai51• Poucos anos depois,
anunciou que, cm meio às calamidades daquela primeira grande crise
industrial, ele achara "mais do que meros ingleses, mesmo de uma só
nação isolada". Achara "homens, membros da grande e universal família
da humanidade"s:. No entanto, a observação de Engels traz um parado-
xo. Aventurando-se no labirinto da calamidade urbana dentro dos cor-
tiços e becos infestados de vermes, além dos arrotos das estamparias e
fábricas de ossos da Inglaterra que se industrializava, Engels descobre

crítica de Luce lrigaray da patologização freudiana da sexualidade feminina em Sptrulum


l oftht Other Woman, pp. 13-139.
1 5r. Friedrich Engels, 1lie Ccndition ofthe lf&rking Clas; in England, trad. \V. O. Hendcrson e
\V. H. Chaloner (Stanford: Stanford University Prcss, r958 [1844]), p. 4.
51. Idem, op. cit., p. 8.

75
Couro imp~rial

que a família da humanidade está desarranjada por toda parte. M ais que
a "família de uma humanidade 'única e indivisível"' a que apelou no pre-
fácio, Engels descobriu "a decadência universal da vida familiar entre o,
trabalhadores"H. De fato, a tragédia da universal "Familia do Homem"
da classe trabalhadora era que "a vida familiar[ ...] é quase impossível"54•
Ademais, na visão de Engels, há uma causa para a confusão: "É inevitá-
vel que, se uma mulher casada trabalha numa fábrica, a vida familiar é
inevitavelmente destruída"55•
O que me interes sa aqui é que Engels, ao lam,:ar sua "acusação" aos
ingleses, figura as crises familiares que assolam os pobres urbanos através
da iconografia da raça e da degeneração. Vivendo cm cortiços que pouco
mais eram do que ~ermos não planejados", a classe trabalhadora - ele
sente - se tornou degradada e degenerada: "Uma raça fisicamente de-
generada, roubada de toda a humanidade, degradada, moral e intelec-
tualmente reduzida à besrialidade"56• A classe trabalhadora é uma "raça
inteiramente à parte", de tal forma que ela e a burguesia são agora "duas
nações radicalmente dissemelhantes, tão distintas quanto a diferença de
raça poderia fazê-las"S7_
Engels imagina as primeiras grandes crises do industrialismo através
dos dois tropos da degeneração e da Família do Homem - um tropo
extraído do reino da domesticidade e o outro, do reino do império. Tes-
temunha-se aqui a figura de um duplo deslocamento: a história global é
imaginada como um~ familia universal (uma figura do espaço doméstico
privado), enquanto as crises domésticas são imaginadas em termos ra-
ciais (a figura pública do império). Depois dos anos 1850, sugiro, as prin-
cipais contradições dentro da modernidade industrial - entre privado e
público, domesticidade e indústria, trabalho e lazer, trabalho pago e não
pago, metrópole e império - foram sistematicamente mediadas pores-

53. Idem, op. cit., p. 161.


54. Idem, op. cir., p. 1~5.
55. Idem, op. cit., p. 161.
56. Idem, op. cit. p. 33.
57. Idem, op. cit., pp. 361,420 .
vf situardo da tara - (jtntalogias di, imperialismo

ses dois discursos dominantes: o uopo da <lc:gencração (reversível como


o cropo do progresso) e o tropo da Familia do H omem.
Por volta da segunda metade do século XIX, a analogia entre degene-
ração de raça e de gênero passou a exercer uma forma especificamente
moderna de dominação social, com o surgimento de uma intrincada
dialética - entre a domesticação das colônias e a racialização da metró-
pole. Na metrópole, a ideia do desvio racial era evocada para policiar as
classes "degeneradas"- a classe trabalhadora militante, os irlandeses, os
judeus, as feministas, os gays e as lésbicas, as prostitutas, os criminosos,
os alcoólatras e os loucos - , que eram vistas coletivamente como des-
viantes raciais, atávicos em regressão a um momento primitivo na pré-
história humana, sobrevivendo ominosamente no coração da moderna
metrópole imperial.
Nas colônias, os negros eram vistos, entre outras coisas, como desvian-
tes de gênero, corporificações da promiscuidade e excesso pré-históricos;
seu atraso evolutivo, evidenciado por suas "femininas" faltas de história,
de razão e de arranjos domésticos apropriados. A dialética entre domes-
ticidade e império, contudo, era eivada de contradição, anomaHa e para-
doxo. Este livro existe no cruzamento entre essas contradições.
Depois da metade do século, sugiro, surgiu uma analogia triangular
entre as degenerações racial, de classe e de gênero. O controle "natural"
masculino da reprodução no casamento heterossexual e o controle "na-
tural" burguês do capital no mercado dos bens eram legitimados por
referência a um terceiro termo: a zona "anormal" da degeneração racial.
Dinheiro e sexualidade ilícitos eram vistos como relacionados, pela
analogia negativa com a raça. No triângulo simbólico do dinheiro des-
viante - a ordem da classe; sexualidade desviante - a ordem do gê-
nero; e raça desviante - a ordem do império, as classes degeneradas
eram metaforicamente ligadas por um regime de vigilância e eram co-
letivamente vistas como transgrcssoras das distribuições apropriadas de
dinheiro, sexualidade e propriedade. Vistas como fatalmente ameaça-
doras da economia fiscal e libidinal do Estado imperial, passaram a ser
submetidas a um policiamento cada vez mais vigilante e violento.

77
l. .
Couro imperial

O PARAD OXO DA FAMÍLIA

Depois de 1859 e do advento do darwinismo social, o excesso de distin-


ções de raça, classe e gênero foi reduzido a uma única narrativa pela
imagem da Família do Homem. A "família" evolucionária oferecia uma
figura metafórica indispensável pela qual distinções hierárquicas fre-
quentemente contraditórias podiam ganhar a forma de uma narrativa de
gênese global. Surge então um curioso paradoxo. A família como metá-
fora oferecia uma narrativa única de gênese para a história global, en-
quanto a família como instituição se tornava um vazio histórico. À me-
dida que o século XIX avançava, a família como instituição era vista
como existindo, naturalmente, além do mercado de bens, além da poü-
tica e além da história propriamente dita. A família tornou-se, então,
tanto a antítese da história como a figura organizadora da história.
Ao mesmo tempo, tinham de ser encontradas tecnologias do conhe-
cimento que dessem à figura da família uma forma institucional. As
tecnologias centrais que surgiram para a exibição mercantil cio progres-
so e da família universal foram, sugiro, as instituições vitorianas quintes-
senciais do museu, da exibição da fotografia e da propaganda imperial.
Numa observação importante, Edward Said apontou para a transi-
ção, na cultura da alta classe média vitoriana, de "filiação" (relações fami-
liares) para "afiliação" (relações não familiares): ao mostrar como o fra-
casso em produzir crianças assumiu o aspecto de uma aflição cultural
sempre presenteS8• Pa~ Said, a decadência da filiação é tipicamente
acompanhada por um segundo momento - a virada para uma ordem
~ompensatória de afiliação, que pode ser uma instituição, uma visão, um
credo ou uma vocação. Embora retendo a importante distinção entre
filiação e afiliação, quero complicar o movimento linear da estória de
Said. À medida que a autoridade e as funções sociais das grandes famí-
lias de serviço (investidas de rituais de filiação de ordem e subordinação

58. Edwud S:aid, 1hc World, thc Ttxt, and the Critic (Cambridge: Harvard Univcrsity Prcss,
1983), p. 19.
vi situaç,fo da urra - qm,al?gias do imptrialismo

patrilinear) eram deslocadas para a burocracia, a imagem anacrônica da


família de filiação era projetada sobre instituições emergentes de afilia-
ção como sua forma namralizada.
Em outras palavras, a ordem de filiação (familiar) não desapareceu.
Ela antes floresceu como uma imagem metafórica, reinventada dentro
das novas ordens da burocracia industrial, do nacionalismo e do colo-
nialismo. Além disso, a filiação assumiria uma forma cada vez mais im-
perial quando a imagem da família em evolução era projetada sobre a
naçao imperial e as burocracias coloniais como sua forma legitimadora
natural.
O poder e importância do tropo da família era duplo. Primeiro, a
família oferecia uma figura indispensável para sancionar a hierarquia
social numa unidade de interesses orgãnica putativa. Como a subordi-
nação da mulher ao homem e da criança ao adulto eram considerados
fatos narurais, outras formas de hierarquia social podiam ser descritas
em termos relativos à família para garantir a diferença social como cate-
goria da natureza. A imagem da família passou a figurar a hierarquia
dentro da unidade como elemento orgânico do progresso histórico e, as-
sim, tornou-se indispensável para legitimar a exclusão e a hierarquia em
formas sociais não familiares como o nacionalismo, o liberalismo indivi-
dual e o imperialismo. A descrição metafórica da hierarquia social como
natural e familiar dependia, assim, da naturalização prévia da subordina-
ção social das mulheres e das crianças.
Segundo, a família oferecia um tropo valioso para figurar o tempo
histórico. Dentro da metáfora da família, tanto a hierarquia social (hie-
rarquia sincrônica) quanto a mudança histórica (hierarquia diacrônica)
podiam ser retratadas como namrais e inevitáveis, mais que construídas
historicamente e, portanto, sujeitas a mudança. A projeção da imagem
da família sobre o progresso nacional e imperial permitia que o que era
frequentemente uma mudança violenta fosse legitimado como desdo-
bramento progressivo de um decreto natural. A intervenção imperial
podia, assim, ser vista como uma progressão linear e não revolucionária
que naturalmente continha a hierarquia dentro da unidade: pais pater-
nais governando benignamente crianças imaturas. O tropo da família

79
Couro imptrial

orgânica se tornou inestimável em sua capacidade de dar o álibi da na-


tureza à intervenção estatal e imperial.
Desde 1850, a imagem da familia natural e patriarcal, em aliança com
o darwinismo social pseudocientífico, veio a constituir o tropo organiza-
dor para comandar o desconcertante conjunto de culturas numa única
narrativa global ordenada e administrada pelos europeus. No processo, a
ideia de natureza divina foi superada pela ideia da natureza imperial que
garantia dali em diante que a quintessência "universal" do individualis-
mo iluminista pertencia apenas aus proprietários (homens) de ascen-
dência europeia.

DEGENERAÇ ÃO
1
Um discurso triangular

Desde o início, a ideia de progresso que iluminou o século XIX foi acom-
panhada por seu lado sombrio. Imaginar a degeneração em que a huma-
nidade poderia cair fazia parte necessária de imaginar a exaltação a que
ela poderia aspirar. As classes degeneradas, definidas como desvios do
1
tipo humano normal, eram tão necessárias para a autodefinição da elas- ,
se média quanto a ideia de degeneração era para a ideia de progresso,
pois a distância percorrida por algumas partes da humanidade ao longo
do caminho do progresso só podia ser medida pela distância em que
outras estavam atrasadass9 • A normalidade surgia, assim, como produto
do desvio, e a invenção barroca dos conjuntos de tipos degenerados su-
blinhava os limites do normal.
A poética da degeneração era uma poética da crise social. Nas últi-
mas décadas do século, os planejadores sociais vitorianos se basearam no
danvinismo social e na ideia de degeneração para figurar as crises sociais

59. As classes dcgencr.adas nio eram percebidas como sinónimos das "respeit:iveis" classes
trabalhadoras, que se tinham dedicado aos beneficio, da labuta sóbria e diligente duC1n·
te o bOôm do final dos anos 1860 e início dos 1S;o. Como diz claramente Henry M ayhcw:
"Considera.rei o conjunto dos pobres metropolitanos cm três fases separadas, aqueles que
trabalharão, os que não podem trabalhar e os que nlo querem trabalhar•. Henry Mayhew,
"L:,bour :and the Poor", Chronide, 19 out., 1849.

80
c.Ã situaçdo da urra - Çjtntalogias do imperialismo

que irrompiam incessantemente nas cidades e nas colônias. Ao final dos


anos 1870, a Inglaterra soçobrava em severa depressão, e durante os 1880
a insurgéncia de classe, os levantes feministas, o renascimento socialista,
a crescente pobreza e a escassez de moradias e de empregos alimenta-
vam os temores da classe média, que se aprofundavam. As crises nas
cidades eram aumentadas pelas crises nas colônias, quando a Inglaterra
começava a sentir o acicate das rivalidades imperiais da Alemanha e dos
Estados Unidos. A atmosfera de catástrofe iminente deu surgimento a
granrles mudanças na teoria social, que se fundavam na poética da dege-
neração como via de legitimação. Carregado que estava do pensamento
lamarquiano, o discurso eugenista da degeneração era apresentado tanto
como um regime de disciplina imposto a um populacho profundamente
angustiado, quanto como uma resposta à resistência popular muito real.
Imagens biológicas de doenças e contágio serviam ao que Sander
Gilman chamou de "institucionalização do medo", alcançando quase
todos os recessos da vida social vitoriana e fornecendo à elite vitoriana a
justificativa de que ela precisava para conter e disciplinar as "classes pe-
rigosas"60. Quando o século chegou ao fim, as imagens biológicas de
doenças e pestilência formavam uma complexa hierarquia de metáforas
sociais que carregavam considerável autoridade. Em Oul<ast London,
Gareth Stedman Jones mostra como Londres virou o foco das crescen-
tes ansiedades dos vitorianos ricos em relação aos pobres não regenera-
dos, descritos diversamente como as classes "perigosas" ou "maltrapi-
lhas," os "pobres casuais" ou o "resíduo"61• As favelas e os cortiços eram
vistos como viveiros e antros de "cólera, crime e cartismo"6'. "Apodre-

60. Ver Sandcr Gilman (org.), Dtgen,ratian: Tht Dari Sidt ofProgrm (Nov-a York: Colum-
bia Univ~rsity Prcss, 1985), p. ,óv. Ver u mbém idem, Dijfumu and Pathology... ; Nancy
Stcpan, ~Racc and Gcndcr: lhe Role o f Analogy in Scicncc· , 1sün Qun., 1986), pp. 261-n;
e Richard D. Walter, •What Bccamc of thc Degencr.atc? A 8 :icf H istory of thc Con-
ccpt".Journal oftht History ofM tdicint and tlu Allitd Scimw 11 (1956), pp. 41-9.
61. Garcth Stcdman Joncs, Outcast London (Nova York: Panthcon, 19;1), p. 11. Ver também
Henry Mayhew, Lo11do11 Laóour and t ht London Poor, IU,John Rosenberg, org., (Nov-a
York: Do\·cr, 1968), pp. 376-7, Gertrudc H immclfarb, 1Jx ldu of Pof.•trty (Nov-a York:
Vintagc Books, 1985), p. 361.
1 62. M:iyhcw, L(Jndo,: Laóour... , p. 167.
1
1

81
1
Couro imptrial

cendo" em covis escuros e sujos, os pobres vagando à procura de comida


eram descritos por imagens de putrefação e debilidade orgânica. Tho-
mas Plint descrevia a "classe criminosa" como um "veneno moral" e um
"cancro pestilento", um corpo "não nativo" predando os saudáveis63• Car-
lyle via a totalidade de Londres como um quisto infectado, uma úlcera
maligna no corpo poütico nacional.
A imagem do sangue ruim foi derivada da biologia, mas a degenera-
ção era menos um fato biológico do que uma figura social. C entral à
ideia de degeneração era a ideia de contágio (a transmb:;ão da doença,
pelo toque, de corpo a corpo), e central à ideia de contágio era a peculiar
paranoia vitoriana sobre a ordem das fronteiras. O pânico sobre a con-
tiguidade do sangue, sobre a ambiguidade e a mestiçagem expressava as
intensas ansiedades sobre a falibilidade do homem branco e a potência
imperial. A poética do contágio justificava uma política de exclusão e
dava sanção social à fixação da classe média na sanitização das frontei-
ras, em particular a sanitização das fronteiras sexuais. As fronteiras cor-
porais eram sentidas como perigosamente permeáveis e demandavam
contínua purificação, de tal modo que a sexualidade, cm particular a das
mulheres, era isolada como principal transmissor do contágio racial e,
portanto, cultural. Esforços cada vez mais vigilantes para controlar os
corpos das mulheres, especialmente em face da resistência feminista,
estavam eivados de ansiedade aguda sobre a profanação das fronteiras
sexuais e as consequências que a contaminação racial tinha para o con-
trole masculino e branco da progênie, da propriedade e do poder. Certa-
mente, as síndromes de sanitização eram em parte tentativas de comba-
ter as "doenças da pobreza", mas também serviam mais profundamente
para racionalizar e ritualizar as fronteiras de policiamento entre a elite
dirigente vitoriana e as classes "contagiosas", tanto nas metrópoles im-
periais quanto nas colônias.
O controle da sexualidade das mulheres, a exaltação da maternidade
e da criação de uma raça viril de construtores do império eram perce-

63. Thomas Plint, Crime in England: ltr RL/ation, Chara<ler and Eximi, as D({Jt/opd from
1801 lo 19./8(Nova York: Amo, 1974 (1851)), pp. 148· 9.

82
<Á situaçdo da Urra - Çjm,alogias do imp,rialismo

bidos amplamente como os meios fundamentais para controlar a saúde


e a riqueza do corpo político imperial masculino, de tal forma que, na
virada do século, a pureza sexual surgia como metáfora de controle para
o poder racial, econômico e político"-'. Na metrópole, como mostra A nna
Davin, a população era poder, e as sociedades para a promoção da higie-
ne pública florescia m, enquanto a criação dos filhos e o aperfeiçoamen-
to do estoque racial se tornavam um dever nacional e imperial. A inter-
venção do Estado na vida doméstica aumentava rapidamente. O temor
pela destreza militar do exército imperial era exacerbado pela Guerra
dos Bôeres, com a descoberta dos físicos mofinos, os maus dentes e a má
saúde dos recrutas oriundos da classe trabalhadora. A maternidade era
racionalizada com a pesagem e mensuração dos bebês, a arregimentação
dos hor.írios domésticos e a administração burocrática da educação do-
méstica. lvlulheres "improdutivas" (prostitutas, mães solteiras, solteiro-
nas) e homens "improdutivos" (gays, desempregados, empobrecidos) me-
reciam um opróbrio especial. Aos olhos dos tomadores de decisões e
administradores, as fronteiras do império podiam ser asseguradas e
mantidas apenas pela disciplina e decoro domésticos, com a probidade
sexual e a sanidade moral.
Se, na metrópole, como escreve Ann Stoler, "a deterioração racial era
considerada resultado da torpeza moral e da ignorância das mães das
classes trabalhadoras, nas colônias os perigos eram mais generalizados e
as possibilidades de contaminação, piorcs"65• Ao final do século, medidas
administrativas cada vez mais vigilantes foram tomadas contra relações
domésticas abertas ou ambíguas, contra o concubinato, contra costumes
mestiços.

64. Ver Anna Davin, "Impcrialism and .Mothcrhood", History Workshop 5 (Primavera, 1978),
PP· 9-65.
65. Ann Laura ~1olcr, "Carnal Kno"iedgc and Imperial Power. Gendcr, Iucc and M orafa:y
in Colonial Asia, • in Mic1cla di Leonardo (org.), Gmdtr a: tlg Cros1r11ad1 ofKnowl,dg,:
F,minist Anthropology in th, Postmodtrn Era (Berkeley: Univcrsity of Californi3 Press,
1991), P· 74.
Couro imptrial

A mestiçagem (união inter-racial) em geral e o concubinato em particular


representavam o maior perigo para a pureza racial e para a identidade cultu~al
em todas as suas formas. Através do contato sexual com mulheres de cor, os
europeus "contraíam" não só doenças como também sentimentos inferiores,
inclinações imorais e extrema suscetibilidade a estados incivilizados66 •

Nos próximos capítulos, examino como as mulheres que eram colo-


cadas de maneira ambígua na divisão imperial (enfermeiras, babás, go-
vernantas, prostitutas e serventes) serviam como marcadoras defrontei-
ras e mediadoras. Com as tarefas de purificação e manutenção de
fronteiras, elas eram especialmente fetich izadas como perigosamente
ambíguas e contaminantes.
A força social da imagem da degeneração era dupla. Primeiro, as
j
classes ou grupos sociais era!ll descritos com frequência como "raças", I
"grupos estrangeiros", ou "corpos não nativos" e, assim, podiam ser isola- '
dos como biológicos e "contagiosos" e não como grupos sociais. O "resí-
duo" era visto como os marginais irredimíveis que davam as costas ao
progresso, não por alguma incapacidade de lidar com o capitalismo in-
dustrial, mas por uma degeneração orgânica da mente e do corpo. A
pobreza e a angústia social eram vistas como falhas biológicas, uma pa-
tologia orgânica no corpo político que significava uma ameaça crônica à
riqueza, saúde e poder da "raça imperial".
Segundo, a imagem exalava um sentido da legitimidade e urgência
da intervenção do Estado, não só na vida pública, mas também nos ar-
ranjos domésticos mais íntimos da metrópole e da colônia. Depois da
década de 1860, houve uma vacilação da fé nos conceitos de progresso
individual e de perfectibilidade67. Se a filosofia do Iluminismo tentara
reescrever a história cm termos do sujeito individual, o século XIX fazia
grande número de sérios desafios à história, como o heroísmo do pro-
gresso individual. Não era possível confiar cm que políticas de laissez

66. Stolcr, "Carnal Knowlcdge ... ~, p. 78.


67. N:io Íoi por acidente que Darwin escolheu como tir:ulo On lht Origin ofSptâts cm lugar
de, digamos, a origem do homem.
:A situardo da urra - Çjm,alogias do imptrialismo

Jaire por si sós pudessem lidar com os problemas da pobreza ou acalmar


o medo da insurreição da classe trabalhadora. "Em tais circunstâncias, o
problema da degeneração e da concomitante pobreza crônica teriam de
ser resolvidos cm última instância pelo Estado"68• A utilidade de metá-
foras quase biológicas como "tipo", "espécie", "gênero" e "raça" estava em
que elas davam expressão a ansiedades sobre a insurreição de classe e
gênero sem trair a natureza social e política dessas distinções. Como
disse Condorcet, tais metáforas faziam '"da própria natureza uma cúm-
plice no crime da desigualdade politica"69•

DEGENERAÇÃO E A ÁRVORE DA FAMÍLIA

O dia em que, equivocando-se sobre as ocupações infe-


riores que a natureza lhes deu, as mulheres dei.xarem o lar
e passarem a tomar parte em nossas batalhas; nesse dia
começa.rã uma revolução social e tudo o que mantém os
laços sagrados da família desaparecerá.
Le Bon

Na poética da degenerescência, encontramos duas figuras ansiosas do


tempo histórico, ambas elaboradas dentro da metáfora da familia. Uma
narrativa conta a história do progresso familiar da humanidade, da
criança nativa degenerada até o homem branco adulto. A outra narrativa
apresenta o inverso: a possibilidade do declínio racial da paternidade
branca para a degeneração negra primordial encarnada na mãe negra.
Os cientistas, médicos e biólogos da época incansavelmente pondera-
vam a evidência de ambas, organizando os "fatos" científicos e elabo-
rando as múltiplas taxonomias da diferença racial e sexual, barrocas em
sua complexidade e com floreios nos detalhes.
Antes de 1850, duas narrativas das origens das raças estavam em jogo.
A primeira e mais popular, o monogenismo, descrevia a gênese de todas
as raças a partir da única fonte criativa em Adão. Apoiando-se na noção

i 68. Joncs, Ouf(ast London, p. 313.


69. Apud Stcphen J:iy Gould, 11u Jl,Ji1mtas11r, ofM an (Nova York: Norton, 1981), p. u.

85
Couro impuial

de corrupção em Plotino, como distância da fonte originária, os cientis-


tas viam as diferentes raças como tendo caído, de maneira desigual, da
perfeita forma edênica encarnada em Adão. Simplesmente por viver em
climas diferentes, as raças tinham degenerado de maneira desigual,
criando uma hierarquia intrincadamente nuançada de decadênc:a. Em
meados do século, contudo, começou a ganhar terreno uma segunda
narrativa concorrente - o poligenismo, teoria de acordo com a qual as
diferentes raças teriam surgido em lugares diferentes, em diferentes
"centros d1: criação";o, Desse ponto de vista, certas raças cm certos luga-
res eram vistas como original, natural e inevitavelmente degeneradas7'.
A própria liberdade veio a ser definida como uma zona não natural para
os africanos. A desgraça persegue a raça que migra de seu lugar.
A partir de 1859, porém, a teoria da evolução acabou com o manto
criacionista que suportara o intenso debate entre os defensores do mo-
nogenismo e do poligenismo, mas contentou os dois lados apresentando
um argumento ainda melhor para o racismo que compartilhavam. Os
defensores do monogenismo continuavam a construir hierarquias linea-
res de raças segundo seu valor mental e moral; os do poligenismo agora
admitiam uma ancestralidade comum nas brumas pré-históricas, mas
afirmavam que as raças tinham estado separadas o bastante para desen-
volver as principais diferenças herdadas em talento e intcligência7'.
Naquele tempo, a teoria da evolução entrou numa "aliança profana"
com o fascínio dos números, a pletora de medidas e a ciência da cstatís-

70. Ver Samuel G.Morton, "Valuc and thc \Vorld Speáes in Z.oology",Ammcan]oamal of
Scimu and Art; 11 (maio, 1851), p. 175; e Gould, 1h, i\tlúm,asure ofill/an, p. 73.
71. Advertidos pelo medo da miscigenação e pela livre movimcnução dos negros depois da
abolição da escravatura na América e nas colónias, e argumentando a partir das cvidên·
das das múmias egípcias, os defensores do poligcnismo sustentavam que as diferentes
raças sempre tinham sido criações fi.us e separadas cm seus lares cm zonas e com climas
diferentes cm todo o mundo. E scravos libertos, por exemplo, eram vistos como "conde -
nados à degeneração ao se deslocarem pan o Norte, para território branco temperado, e
ao se mo,-crcm social e politie2mcnte cm direção à libcrd3dc". Stcpa.n, "Racc and Gcn-
der...", p. 100.
72. Gould, 1he /1-lism,asurt o/,\tlan, p. 73 .

86
(,/{ situarão da ttrra - Çtntalogias do imptriali,mo

tica73 • Essa aliança deu à luz o racismo "científico", a mais autorizada


tentativa de colocar o ordenamento social e a inaptidão social num pé
biológico e "científico". Os cientistas se tornaram cativos da magia da
mensuração. Procuravam critérios anatômicos para determinar a posição
relativa das raças na série humanai4 • Francis Galton (1822-19u), pioneiro
da estatística e fundador do movimento da eugenia, e Paul Broca, cirur-
gião clírúco e fundador da Sociedade Antropológica de Paris (1859), ins-
piraram outros cientistas que os scg\liram na vocação de medir o valor
racial a partir da geometria do corpo humano. Ao critério anterior da
capacidade craniana como medida principal da posição racial e sexual
acrescentava-se agora uma pletora de outros critêrios "científicos": o com-
primento e a forma da cabeça, o prognatismo, a distância entre o topo da
cabeça e a sobrancelha, a cabeça chata, o perfil em focinho, o antebraço
longo (característico dos macacos), panturrilhas subdesenvolvidas (ma-
cacos novamente), orelha simplificada e sem lóbulo (considerada estig-
ma de excesso sexual, notável nas prostitutas), a colocação do furo na
base do esqueleto, a lisura do cabelo, o comprimento da cartilagem nasal,
o achatamento do nariz, os pés preênseis, testas baixas, rugas c.xcessívas
e pelos faciais. Os traços do rosto mostravam o caráter da raça.
Cada vez mais, apelava-se a esses estigmas para identificar e discipli-
nar as "raças" atávicas dentro da raça europeia: prostitutas, irlandeses,
judeus, desempregados, criminosos e loucos. Na obra de homens como
Galton, Broca e o médico italiano Cesare Lombroso, a geometria do
corpo correspondia à psique da raça.
O que é aqui de importância imediata é que o caos de critérios in-
ventados para distinguir a degenerescência foi finalmente reunido numa
narrativa histórica dinâmica por uma metáfora dominante: a Família do
Homem. O que fora um desorganizado e inconsistente inventário de

73. Idem, op. cit., p. 74.


74. Na década de 18:20, Samuel G. Morton tinha começ.ado a reunir sua vasta coleção de
crânios humanos de todo o mundo, meschndo uma íncansá\-cl medição de suas c.ipaci-
dadcs cranianas com seu ób,io faro p2n a in,-cnção interpretativa e cngcnhosidade, ela-
borando nessa base seu famoso trat2do sobre o Carl.ter da raça, Crania Amtri<ana (Fila-
dfüia: John Pcnnington, 1839).
Couro imp~rial

atributos raciais estava agora reunido numa narrativa de gênese que ofe-
recia, acima de tudo, uma figura de mudança histórica.
Ernst Haeckel, o zoólogo alemão, produziu a ideia mais influente
para o desenvolvimento dessa metáfora75• Sua frase famosa, "a ontogenia
recapitula a filogenia", captava a ideia de que a linhagem ancestral da
espécie humana podia ser lida a partir dos estágios do crescimento de
uma criança. Cada criança refaz, em miniatura orgânica, o progresso
ancestral da raça. A teoria da recapitulação, assim, mostrava a criança
como um tipo de bonsai social, uma árvore de família em miniatura.
Como disse Gould, cada indivíduo, quando cresce para a maturidade, 1
"trepa cm sua própria árvore famüiar"76 • O valor irresistível da ideia de
recapitulação escava em que ela oferecia um critério biológico aparente-
l
mente absoluto para o ordenamento não só racial, mas também sexual e f
de classe. Se a criança branca do se.xo masculino era uma regressão atá-
vica a um ancestral adulto primitivo, ela podia ser comparada com ou-
tra!> raças e grupos viventes para posicionar seu nível de inferioridade
evolutiva. Aparecera, assim, uma analogia vital:

O s adultos de grupos inferiores devem ser como as crianças dos grupos su-
periores, pois a criinça representa um ancestral adulto primitivo. Se negros
e mulheres adultos são como crianças brancas do sexo masculino, então são
representantes vivos de um estágio ancestral na evolução dos homens bran-
cos. Uma teoria anatômica para ordenar as raças - baseada nos corpos in-
teiros - foi dcscobena 77•

75. Ver trechos selecionados de H aeckcl, in Thcodorc D. McCown e Kenneth A. R. Ken-


nedy (orgs.), Climbir.g Mani Family Tru: A Coll«tio11 of Writingt on Human Phylogniy,
1699 to 1971 (Englcwood Cliffs: Prcntice, 1972), pp. 133·48. Para uma discussão detalhada,
ver Gould, Ontogmy and Phylogrny (Cambridge: Harvard University Press, 1977), espc·
cialmente pp. 126-35.
76. Idem, 7lu Nlism,asuu of /vlan, p. n4. Gould observa que :i rccapitulaçil.o se tornou a
ideia que habilitou a obsessão do final do século XIX com a recuperação da evolução de
linhagens ancestrais e desempenhou um papel •'ital não só nas profissões de embriolo-
gia, morfologia comparada e paleontologia, mas também na articulação da teoria
psicanalítica.
77. Idem, op. cit., p. 326.

88
cA" situa;do da tara - q m,alogias do imptria!ismo

Haggard resumiu a analogia: "No essencial, o selvagem e a criança


são idênticos". De modo semelhante, Mayhew descreveu o vendedor de
rua de Londres como uma regressão atávica, uma criança "racial" que,
"sem treinamento, voltaria a sua base paterna - o selvagem vagabun-
do"78. G. A. Henry, como Haggard, também autor de estórias influentes
e populares para meninos, argumentava na mesma direção: "A inteligên-
cia de um negro médio é aproximadamente a mesma de uma criança
europeia de dez anos"79. Assim, a metáfora da familia e a ideia de reca-
pitulação entra.iam na cultura popular, na literatura infanto-juvenil, nos
escritos de viagens e na "ciência" racial com grande força.

..... .. ........... . .. -·--


· .. ·- ·---
·. -.-·-··.,.
-:_ ~ . ·"·-

,,

Fir;ura 1.9- Mtn1urarão racial como ótica da flerdadt.A rhargt de N ast na


H arpcr's Wcckly (9 dt dn:.embro dt 1876) aprtsmta uma analogia entre o
ptso racial t político dt um es<ravo liótrlo t dt 11m irlandis.

78. Idem, op. cit., p. 320.


79. G . A. Henry, By Shur Plud.: ATalt oftht A shanti fl11r (Londres: Bbckic and Son, 1884),
p.118.
Couro impaial

O alcance do discurso foi enorme. Grande número de grupos "infe-


riores" podia agora ser mapeado, medido e hierarquizado contra o "pa-
drão universal" da criança masculina branca - no regaço da metáfora da
familia e do regime iluminista da mensuração "racional" como uma ótica
da verdade. Em suma, surgira um mapa tridimensional da diferença so-
cial e1n que pequenas nuanças de hierarquia racial, de classe e de gênero
podiam ser putativamentc medidas no espaço: o espaço mensurável do
corpo empírico (Figura 1.9).

"N EGROS BRANCO S" E "CALIBÃS CELTAS"


Antinomias da Raça

Ele era um jovem irlandês [ ...) tinha a silenciosa beleza


duradoura de uma máscara de marfim ... aquela momen-
tânea imobilidade, revelada... um estar fora do tempo
[ ...) que os negros expressam às vezes sem querer; algo
antigo, antigo, antigo e aquiescente na raça!
D . H . Lawrence

Nas últimas décadas do século XIX, o termo "raça" foi usado de maneira
instável e cambiante, às vezes como sinônimo de "espécie", às vezes, de
"cultura", às vezes, de "nação", às vezes para denotar etnia biológica ou
subgrupos dentro de grupos nacionais: a "raça" inglesa" por comparação,
digamos, com a "irlandesa". Um pequeno, mas dedicado grupo de médi-
cos, colecionadores, clérigos, historiadores e geólogos se prontificaram a
desvelar as mínimas nuanças de diferenças que distinguiam as "raças" da
Inglaterra. O doutor John Beddoe, membro fundador da Sociedade Et-
nológica, devotou 30 anos de sua vida a medir o que chamava de "Índice
de Negritude" (a quantidade de melanina residual na pele, no cabelo e
nos olhos) nos povos da Inglaterra e da Irlanda, e concluiu que o índice
aumentava fortemente de leste para oeste e de sul para norte80 •

80. John Bcddoc, 1he &w of Britair.: A Contri/,ution ,~ IM Anthrnpolagy of l~stem Eurap(
(Bristol: J. W. Anowsmith, 1885). Sobre o estereótipo racial dos irlandeses, ver L. Pcrry
Curris, Jr., À~s and Ang,ls: 7he l rishma,r in Vi,toría,r Caric.,tur~ (Ncwu,n Abbor: David
cA situação da urra - q,n,alogias do imperialismo

Em 1880, Gustave de Molinari (1819-1912) escreveu que os grandes


jornais da Inglaterra "não deixam escapar ocasião de tratar os irlandeses
como raça inferior - como uma espécie d e negros brancos" [sic]8'. A
expressão de Molinari "negros brancos" apareceu em tradução numa
abertura de matéria no "lhe TimeJ e era consistente com a suposição,
desde a década de 1860, de que certos traços físicos e culturais dos irlan-
deses os marcavam como uma raça de "calibãs celtas" por contraste com
os anglo-saxões. Como comentou um viajante :i Irlanda: "Sapatos e

,
meias são raran1ente usados por esses seres que parecem formar uma
raça diferente do resto da humanidade"".
Mas a Irlanda apresentava um dilema para o discurso imperial pscu-
dodarwiniano. Como a primeira e mais antiga colônia da Inglaterra, a
de proximidade geográfica da Irlanda cm relação à Inglaterra, como obser-
1 va D avid Lloyd, resultou "em que ela passou pela transição para o colo-
nialismo hegemónico muito mais cedo do que qualquer outra colônia"83 •
Mas, como nota Claire Wills, a dificuldade de colocar os irlandeses de
tez pálida na hierarquia do império era "aumentada pela ausência do
marcador visual da diferença na cor da pele que era usada para legitimar
a dominação em outras sociedades coloniais"84• O estereótipo inglês dos
irlandeses como raça degenerada e simiesca também complica as teorias
pós-coloniais de que a cor da pele (o que Gayatri Spivak chama util-
mente de "cromatismo") é o sinal fundamental da alteridade. O croma-
tismo, observa Wills, é uma diferença "que naturalmente não se aplica à

and Charl~s. 1?71); Rich:>rd Ncd Lcbow, White Britai11 and Black l rdand: 'lhe Injlumu oJ
Sur,otypts on Colon ial Policy (Filadélfia: lns titute for thc Study of Human Issues,
1976); e Thomas \.Villiam Hodgson Crosland, The Wild lrishman ( Londres: T. Werne r
Lau rie, 1905).
81. A expressão de Molina ri "une v:1riété de négrcs bbncs~ 2pa rtceu tradu~id2 numa abertu-
ra do 7h, T imes de Londres, a 18 de setembro de 1880. Ver Curtis, Apes and/lng,ls... , p. 1.
~2 . Philip Lu ckombc, A Tour 1hrough lreland: Wherein th~ Prescnt Stau of that Kingdom is
Considerd (Londres: T. Lowndes, 1783), p. 19.
83. David Lloyd, Nationalism and ,"vlinor Literalure (Berkeley: Univenity of Cilifomia Press,
1988), p. 3·
1 84. Cl:úre \,Vills, "Language Politics, Narrativc, Political Violence~, 1h~ Oxford Lit,rary Iv-
flitw 13, Neocolonialism, Robert Young (org.) (1991), p. 21.

1 91
CourtJ imperial

relação entre os irlandeses e seus colonizadores inglescs,,g5• Certamente


foram feitos grandes esforços para assemelhar a fisionomia dos irlande-
ses à dos macacos, mas, argumenta Wills, o racismo inglês se concentra-
va principalmente no "barbarismo" do sotaque irlandês96•
Acredito, porém, que o racismo inglês também deriva da noção do
barbarismo d,;mistico dos irlandeses como marcador da diferença racial.
Numa imagem exemplar, um irlandês é apresentado preguiçando diante
de seu barraco, o próprio retrato do desleixo doméstico (Figura 1.10). A
casa está em péssimo estado e o tampo da janela está caindo. Ele vadia

...

F igura I.10 - ·calibãs ultas·. Puck, w/. 10, rr 258, 15/ro., 1882, p.378.
O título da charge de FrtdericJ: B. Opp<r, •o Rei de um Barraco~
sugere uma analogia entre irlandese1 e africanos.

85. Idem, op. cit., p. 56.


86. Ver também Richard Kcarncy (org.), 11,e lrish Mind(Dublin: \<Volfhound Prcss, 1985); L.
P. Curtis, Jr.,Anglo-Saxom and Celts: A Study cfAnti-[rúh Pujudiu in Victarian Englattd
(Bridgcport: Confcrencc on British Srudícs ofUniversity of Bridgcport, 1968); Scamus
Dcanc, "Cívilians and Bubarians", Jrtlandi Fit!d Day (Londres: Hutchinson, 198s),
pp.33-,p.

92
,..
vi situarão da urra - gm,alogias do imperialismo

alegremente sentado sobre uma tina virada, prova visível de uma relaxa-
da falta de dedicação à ordem doméstica. O que parece ser uma panela
se inclina em sua cabeça. Na porta, limite entre o público e o privado,
sua mulher mostra um relaxamento igualmente alegre. Tanto na mulher
como no homem, a ausência da cor da pele como marcador da degene-
ração é compensada pelo simiesco das fi sionomias: lábios exagerados,
testas baixas, cabelo desleixado e assim por diante. Nos próximos capí-
tulos, sugiro que a iconografia da degenerafão domistica foi usada ampla-
mente para mediar as múltipla:; coucradiçõcs da hierarquia imperial -
não só em relação aos irlandeses, mas também aos outros "negros
brancos": judeus, prostitutas, a classe trabalhadora, trabalhadores do-
mésticos, e assim por diante, cm que a cor da pele como marcadora do
poder era imprecisa e inadequada.
Estigmas raciais foram usados sistematicamente, ainda que muitas
vezes contraditoriamente, para elaborar mínimas nuanças de diferenças
cm que as hierarquias sociais de raça, classe e gênero se sobrepunham
num gráfico tridimensional de comparação. A retórica da raça era usada
para inventar distinções entre as que hoje chama.ríamos de classes87. T.
H. Huxley comparou o pobre do leste de Londres com o selvagem po-
linésia; William Booth escolheu o pigmeu africano, e William Barry
pensava que as favelas se assemelhavam a um navio negrciro88•
As mulheres brancas eram consideradas uma "raça" increntemente
degenerada, semelhante cm fisionomia aos negros e macacos. Gustave 1c
Bon, autor do famoso estudo sobre o comportamento das multidões, La
Prychologie des Foules, comparou o tamanho do cérebro da mulher ao do
gorila e evocou essa comparação como :;iual de um lapso no desenvolvi
mento: "Todos os psicólogos que estudaram a inteligência das mulheres,

87. Seth Luther, por c.xcmplo, acreditaV2 que "as mulheres e filhas dos industriais ricos n:io
se associariam a ttabalmdoras de fábricas, e ainda menos a um escravo negro", .llddrtss to
tht Working Mtn ofNt'W Engla~d, panfleto republicado cm Phüip Taft e Lco Sten (orgs.),
Rt!igion, R.efarm and Revolution. Labor Panauas in th, Nintltmth Cmtury (Nova York:
Amo, 1970), p. 1.
SE. William Booth,Jn Darktu England and tht lláy Out (Londres: l ntcrnational Hcadquartcr.;
of the Salvation Army, 1890); \Vi!liam Barry, 1he New Antigont(Londccs: Barry, 1887).

93
l
j

Couro imptrial

e também poetas e novelistas, hoje reconhecem que elas representam a


forma mais baixa da evolução humana e que estão mais próximas das
crianças e dos selvagens do que de um homem civilizado adulto"89 • Ao
mesmo tempo, a retórica do gênero era usada para fazer distinções cada vez
mais finas entre as diferentes raças. A raça branca era tida como o macho
da espécie e a raça negra, como a fêmea90• De modo semelhante, a retórica
da classe era usada para inscrever pequenas e sutis distinções entre outras
raças. O homem zulu era visto como o "cavalheiro" da raça negra, mas
exibia traços típicos das mulheres da raça branca (Figura 1.n). Carl Vogt,
por exemplo, o proeminente analista de raça alemão de meados do século,
via semelhanças entre os crânios de crianças brancas do sexo masculino e
os das mulheres da classe trabalhadora, enquanto observava que um ho-
mem negro maduro compartilhava sua "barriga pendular" com a mulher
branca que tivesse tido muitos.filhos9'. Em certos momentos, os aborígi-
nes australianos ou, alternativamente, os etíopes, foram vistos como a
"classe baixa" mais rebaixada das raças africanas, mas com maior frequên-
cia as koisanas (pejorativamente chamadas de hotentotes ou "gente do
mato") eram postas no exato nadir da degeneração humana, logo antes das
espécies fora da forma humana e tornadas bestiais (Figura 1.12)92•

89. Gustavc lc Bon, La Psyehologie des Foules (1879), pp. 60-1. Apud Gould (1981), p. 105; Trad.
para o inglês Robert Merton, 'lhe Crowd: A Study ofthe Popular Mind (Nova York: Viking,
1960).
90. Ver Stepan, "Racc and Gcnder...•.
91. Carl Vogt, Ú<tum on Man: His Plau in Creation a.1d ;,, the History ofthe Earth, org. Ja-
mes Hunt (Londres: Longman, Green and Robcrts, 1864), p. 81. Para a analogia da sexua-
lidade "patológica" das "raças mais babcas" e a das mulheres, ver Eugenc S. Talbot, Dege-
nerary: Its Cawes, Sig,u and &1ulh (Londres: \V. Scott, 1898), pp. 319-23. Ver tam'oém
Havclock Ellis, Man and Woman: A Study of Stcondary Sexual Charaaeristiu (Londres:
Black, 1926), pp. 1o6-7. Para o funcionamento da analogia no discurso científico, ver Ste-
pan, "Race and Gender... ", pp. 261-77. Para a relação entre sexualidade feminina e degene-
ração, ver Jill Conway, "Stereotypcs of Fcmininity in a Theory ofScxual Evolucion", Vic-
torian Studies 14 (1970), pp. 47-62; e Fraser Harrison, 'lhe Dark Angd: Aspech of Victorian
Sexuality (Londres: Shcldon, 1977).
92. Philip Thickncss prnsava que as pessoas negras na lnglacecra, "suas pernas quase sem pan-
rurrilhas e seus pés chatos e largos, com longos dedos [ ... ]tinham muita semelhança com
os orangotangos[...] e outros quadrúpedes de seu próprio clima",A Yearsjoumry through
Franu and Pari ofSpain, 2• ed., •nS, PP· 102-5. Apud Frycr, Staying Pown-. .. , p. 162.

94
cA situa;do da ltrra - <jm,alogias do imptrialismo

1
J
i . #- ·- -

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Figura r.1r - Homtns africanos tornados ftmininos.

Figura 1.12 - Mulher militanu como dtgmerada.

95
Couro imptria/

Em resumo, então, o homem inglês de classe média era posto no


pináculo da hierarquia da evolução (em geral, o homem da classe média
ou da alta classe média era considerado racialmente superior ao aristo-
crata degenerado que tinha decaído da supremacia). As mulheres ingle-
sas de classe média vinham a seguir. Os irlandeses e judeus eram repre-
sentados como as "raças femininas" mais degeneradas dentro do gênero
masculino branco, aproximando-se do estado dos macacos93 • As irlande-
sas da classe trabalhadora estavam ainda mais atrasadas nas profundezas
111ais remotas da raça branca. 1
As trabalhadoras domésticas, as trabalhadoras das minas e as pros- 1
titutas da classe trabalhadora (mulheres que trabalhavam pública e vi- 1
sivelmente por dinheiro) ficavam no limiar entre as raças branca e ne- l
gra, vistas como tendo caído longe do tipo perfeito de homem branco
e compartilhando muitas características atávicas com os negros "avan-
çados" (Figura 1.13). A s prostitutas - análogas metropolitanas da pro-
miscuidade africana - eram marcadas como especialmente atávicas e
regressivas. Habitando o limiar entre casamento e mercado, entre pú-
blico e privado, as prostitutas flagrantemente pediam dinheiro por ser-
viços que os homens de classe média esperavam de graça9• . As prosti-
tutas transgrediam visivelmente os limites da classe média entre o
privado e o público, o trabalho pago e o não pago e, em consequência,
eram vistas como "negras brancas" habitando o espaço anacrônico, seu
atavismo "racial" marcado anatomicamente por sinais regressivos: "ore-
lha darwiniana", traséiro exagerado, cabelo rebelde e vários outros es-
tigmas "primitivos"9S.

93. Charles IGngslcy, autor de l~stward Ho e 7h, Hízttr Babies, escreveu, depois de uma
viagem a Sligo cm 1860: •Sou assombrado pelos chimpan2és humanos que vi ao longo de
centenas de milhas de território horrível( ... ] Ver chimpanús brancos é terrível; se fossem
negros, não sentiria tanto". Carta a su:a mulher, 4 de julho de 1860, in Francis E. IGngslcy
(org.), Charles Kingsley: His Lett,rs and 1Wtmories ofHis lift {Londres: Henry S. IGng anel
Co., 1877), p.107.
94. Exploro a relação entre prostituição, ra~ e o direito cm "Scrcwing thc S)'Stcm: Scxwork,
Racc and thc Law", Bou11dary 1119,: {Verão, 1992), PP· ;ro-95.
95. Ver a análise de Gilman da racialização das prostitutas cm Dilftrtnre and Pathology...
<.A situação da terra - (jtnea!Ggias d~ imperialismo

Figura r. 13 -A mulher trabalhadora como degentrada.

A essa altura, a ideia da Família do Homem era ela mesma confirma-


da pelas ubíquas analogias metafóricas com a ciêm.:ia e a biologia. Incen-
tivada pelo racismo pseudocientífico desde os anos 1850 e pelo racismo
mercantil desde os 1880, a família patriarcal monogâmica, chefiada por
um único pai branco, era ostentada como um fato biológico, natural,
inevitável e correto, sua linhagem impressa desde tempos imemoriais no
sangue da espécie - durante a mesma época, pode-se acrescentar, em
que as funções sociais do lar familiar estavam sendo substituídas pelo
Estado burocrático.
Surgiu, assim, uma analogia triangular entre desvios de raça, classe e
gênero como elemento crítico na formação da moderna imaginação im-
perial. No triângulo do dinheiro desviante, da sexualidade desviante e da
raça desviante, as assim chamadas classes degeneradas eram metaforica-
mcntc unidas num regime de vigilância, vistas coletivamente através de
imagens de patologia sexual e aberração racial como atrasos atávicos
para um momento primitivo na pré-história humana, sobrevivendo lugu-
bremente no coração da moderna metrópole imperial. Retratados como
transgressores das distribuições naturais de dinheiro, poder sexual e pro-

97
Couro imp~rial

priedade e, portanto, ameaçando gravemente a economia libidinal e fis-


cal do Estado imperial, esses grupos passaram a ser submetidos a um
controle estatal cada vez mais vigilante e violento.

O IMPERIALISMO COMO
ESPETÁCULO 1\1 ERCANTI L

Em 1851, os tópicos do progresso e da Família do Homem, do tempo


panóptico e do espaço anacrônico encontraram sua corporificação ar-
quitetônica na Exposição Mundial, no Palácio de Cristal do H yde Park,
em Londres. Na exposição, a narrativa do progresso começou a ser con-
sumida como espetáculo de massa. A exposição reunia sob um telhado
de vidro uma monumental exibição da "indústria de todas as nações".
Cobrindo 14 acres do parque, apresentava exibições e artefatos de 32
membros convidados da "Familia das Nações". Repleta de mercadorias
industriais, artigos de decoração, jardins ornamentais, máquinas, instru-
mentos musicais e minérios, e abarrotada por milhares de espectadores
maravilhados, a Grande Exposição se tornou um monumento não só de
uma nova forma de consumo de massa, mas também de uma nova for-
ma de espetáculo mercantil.
O Palácio de Cristal hospedava o primeiro sonho de consumo de um
tempo mundial unificado. Como monumento do progresso industrial, a
Grande Exposição dava corpo à esperança de que todas as culturas do
mundo pudessem ser reunidas sob um único teto - o progresso global
da história representado como progresso mercantil da Família do H o-
mem. Ao mesmo Lempo, a exposição anunciava um novo modo de his- 1

tória mercantilizada: o consumo de massa do tempo como espetáculo


mercantil. Andando pela exposição, o espectador (admitido ao museu da 1
modernidade pelo pagamento em dinheiro) consumia a história como
mercadoria. Os dioramas e cicloramas (réplicas naturalistas e populares
de cenas do império e da história natural) ofereciam a ilusão de reunir 1
todas as culturas do globo num único pedigree do tempo mundial. Numa
imagem exemplar, a Grande Exposição literalmente levou os povos do
mundo para uma exibição monumental da mercadoria: o progresso glo-

98
cA situard~ da u rra - Çtntalt1gia1 do imptrialismo

bal consumido visual.mente numa única imagem (Figura 1.14). O tempo


ficou global, uma acumulação progressiva de cicloramas e cenas arranja-
das, ordenadas e catalogadas segundo a lógica do capital imperial. Ao
mesmo tempo, estava claramente impücito que apenas o Ocidente tinha
a capacidade técnica e o espírito inovador para fazer o pedigru histórico
da Familia do homem de forma técnica tão perfeita.

r,· .....

'
'

..

Figura r. h/ - O progresso glo6al consumido num golpe de 'flista.

A exposição teve seu equivalente poütico no Panóptico ou Casa de


Inspeção. Em 1787,Jeremy Bentham propôs o Panóptico como modelo
de uma solução arquitetônica para a disciplina social. O princípio orga-
nizador do panóptico era simples. Fábricas, prisões, casas de trabalho e
escolas seriam construídas em torno de uma torre de observação. Inca-
pazes de ver o que se passa dentro da torre de inspeção, os moradores
presumiriam estar sob vigilância perpétua. A rotina cotiruana seria rea-
lizada num regime de visibilidade permanente. A elegância da ideia era
o princípio da autovigiH.ncia; sua economia estaria, supostamente, na

99
Couro imp~rial

eliminação da necessidade de violência. O s internos, pensando que esti-


vessem sob observação constante, policiariam a si mesmos. O panóptico,
assim, dava corpo ao princípio burocrático do poder hegemónico dis-
perso. Na Casa de Inspeção, o regime do espetáculo (inspeção, observa-
ção, visão) se mesclava ao regime do poder.
Como observou Foucault, o ponto crucial do panóptico é que, em
teoria, qualquer um pode operar a Casa de Inspeção. Os inspetores são
infinitamente intercambiáveis, e qualquer membro do público pode vi-
sitar a Casa de Inspeção para inspecionar como as questões são encami-

1
nhadas. Como nota Foucault: "Esse panóptico, sutilmente arranjado de
tal forma que um observador pode observar, num olhar, tantos indiví-
duos, também permite que qualquer um venha e observe qualquer dos
1
observadores. A máquina de ver[...] se tornou um prédio transparente
em que o exercício do poder pode ser supervisionado pela sociedade
como um todo".
A inovação do Palácio de Cristal, aquela exemplar casa de inspeção
de vidro, estava em sua capacidade de misrurar o princípio do prazer
com a disciplina do espetáculo. Na máquina de ver de vidro, milhares de
inspetores civis podiam observar os observadores: uma disciplina voyeu-
rística perfeitamente incorporada na característica popular do ciclora-
ma. Sentados na torre de observação circular do ciclorama, os especta-
dores consumiam as imagens cm movimento diante deles, aceitando a
ilusão de viajar em velocidade através do mundo. O ciclorama invertia o
princípio panópticÓ ·e o colocava à disposição do prazer consumista,
convertendo a vigilância panóptica num espetáculo mercantil - o con-
sumo do globo por voyeurs. E, no entanto, todo o tempo presos ao en-
cantamento da vigilância, esses "monarcas-imperiais-de-tudo-o-que-
vcem" ofereciam suas costas imóveis à observação dos outros96•
O Palácio de Cristal converteu a vigilância panóptica num prazer
consumista. Como observa Susan Buck-Morss: "A mensagem das expo-

96. Mary Louise Pratt usa o termo "monarca-de-tudo-o-que- vejo" para descrever a postura
imperial de converter o espcticulo panorimíco, especialmente no momento da "desco-
berta", numa posição de autoridade e poder.

100
cA 1ituar4o da urra - (jtntalogia1 do imptrialismo

sições mundiais era a promessa de progresso social para as massas sem


revolução"97• A Grande Exposição era um museu sem história, um mer-
cado sem trabalho, uma fábrica sem trabalhadores. Nas seções indus-
triais, a tecnologia era apresentada como se fizesse surgir sem esforço e
já pronto o vasto empório da mercadoria do mundo.
Ao mesmo tempo, no laboratório social da exposição, tomava forma
um princípio político crucial: a ideia de democracia como consumo
voyeurista do espetáculo mercantil. Mais crucial ainda, urna emergente
narrativa nacional começou a incluir a classe trabalhadora na narrativa
do progresso como consumidora do espetáculo nacional. Estava implí-
cita na exposição a nova experiência do progresso imperial consumido
como espetáculo nacional (Figura 1.15). Na exposição, trabalhadores in-
gleses brancos podiam sentir-se incluídos na nação imperial, e o espetá-
culo voyeurístico da "superioridade" racial os compensava por sua subor-
dinação de classe (Figura 1.16)95•

Figura 1.15 - Ofttichismo da m<rcadoria torna-st glohal

97. Buck-Mons, 11u Dialtctiu ofStting... , p. n8.


98. Se as feiras mundiais enm cm geral festividades para a classe média pagante, faziam-se
grandes esforços para encorajar os trabalhadores ao consumo cm massa de mercadorias
como cspcticulo. Reunidos sob um só teto, os trabalhadores do mundo podiam admirar
as maravilhas que tinham produzido, mas n:io podiam possui-las. Em 1867, 400 mil tra·
balhadorcs franceses ganharam entradas para a Feira de Paris; trabalhadores estrangeiros
eram hospedados :\.s cw= do governo. Idem, op. cit., p. 86.

IOI
Couro imp~ria/

Figura 1. 16 - O imf<rialismo <oberto de a(ú<ar.

Durante o que Luke Gibbons chama de "crepúsculo do colonialis-


mo", foi fabricado um brinquedo de criança para as "Grandes casas" de
ascendência irlandesa, e esse brinquedo prometia oferecer o "Império
britânico num golpe de vista" 99• Gibbons assim descreve o brinquedo:
"Tinha a forma de um mapa do mundo, montado numa roda completa
com pequenas aberturas que revelavam tudo o que valia a pena saber
sobre os cantos m:ús ~emotos do império. Uma das aberturas mostrava
a composição de cada colônia cm termos de sua população "branca" e
"nativa", como se essas categorias fossem mutuamente exclusivas"'ºº.
Esse mundo de brinquedo incorpora perfeitamente a megalomania que
anima o desejo panóptico de consumir o mundo inteiro. Também incor-

99. Sou grata a Luke Gibbons, que escreveu sobre: esie brinquedo cm "Race against Time:
Racial Discourse and lrish HistOl)'~, Oxford Literary R.euie-w 13, Neoco!onialism, Robert
Young (org.), (1991), p. 95.
100. Ibidem.

102
vi sit11a;ão da t~rra - qmealogias do impuialismo

pora seu fracasso, pois, como acrescenta Gibbons: "Qyando chegou à


Irlanda, a roda parou, pois aqui havia uma colônia cuja população era
"nativa" e "branca" ao mesmo tempo. Esse era um canto do império que,
aparentemente, não podia ser abarcado com um golpe de vista"'º'. O
mundo de brinquedo marca uma transição - da ciência imperial da
superfície para o racismo mercantil e o Kitsch imperial. O Kitsch impe-
J
1 rial e o espetáculo mercantil tornaram possível o que o mapa imperial
i
1 apenas podia prometer: o marketing de massas do imperialismo como
sistema global de signos (Figura 1.17).

)'
.
1
MÍMICA COLONIAL E AMBIVALÊNCIA
1
l Escrevo, então, com a convicção de que a história não se faz em torno de
uma categoria social privilegiada. As diferenças de raça e classe não po-
dem, acredito, ser entendidas como sequencialmente derivadas da di-
ferença sexual, nem vice-versa. Antes, as categorias formadoras da mo-

t
1
j
!
t
l

1 Figura r. r; - O império dosfetiches.

101. Ibidem.

103
Couro imptrial

dernidade imperial são categorias articuladas, no sentido de que passam


a existir em relações históricas entre si e surgem apenas em interde-
pendência dinâmica, cambiante e íntima. A ideia de "pureza" racial, por
exemplo, depende do policiamento rigoroso da sexualidade das mulhe-
res; como noção histórica, então, a "pureza" racial está inextricavelmen-
te implicada na dinâmica do gênero e não pode ser compree ndida sem
uma teoria do poder do gênero. Contudo, não vejo raça, classe, gênero
e sexualidade como estruturalmente equivalentes entre si. O fetiche j
vitoriano do sabonete e das roupas brancas, digamos, não pode ser re- ~
<luzido ao fe tiche fálico como efeito secundário ao longo de uma cadeia
significante que vai da sexualidade à raça. Antes, essas categorias con-
vergem, se misturam e se sobredeterminam entre si de maneiras in-
trincadas e muitas vezes contraditórias. Num importante ensaio, Ko-
bena Mercer nos adverte contra invocar o mantra da "raça, classe e
gênero" de modo a "achatar as relações complexas e indeterminadas
pelas quais a subjeti\'idade se constitui nos espaços sobredeterminados
c11tre relações de raça, gênero, etnia e sexualidade"1º 1 • l\llercer nos esti-
mula a estar alerta para as antinomias cambiantes e instáveis da dife-
rença social "de um modo que fala para o caráter confuso, ambivalentc
e incompleto das 'identidades' que realmente habitamos em nossas ex-
periências vividas"'03.
Consideremos, a esse respeito, a ideia de lrigaray, de mímica de gê-
nero e a de H omi ~ h_abha, de ambivalência colonial. Em seu brilhante
e incendiário desafio à psicanálise ortodoxa, Luce lrigaray sugere que
em certos contextos as mulheres desempenham a feminilidade como
um disfarce necessário'º•. Para lrigaray, as mulheres aprendem a mími-
ca da feminilidade como uma máscara social. Num mundo colonizado

101. Kobcna Mcrcer, "Reading Racw Fetishism: lhe Photographs ofRobcrt Mapplcthorpc•,
in Emily Aptcr e \Vilfüm Pietz (orgs.), Fttishilm as Cultural D ilcouru (h haca: Corncll
University Press, 1993), p. 324.
103. Ibidem.
104. Luce lrigaray, ThiJ Sa Which is N~t O,u, tnd. Catherine Porttr {lthaca: Comell Univer-
sity Prcss, 1985), p. 76. Irigaray desem-oh-c aqui a ideia de Joan Riviere da feminilidade
como disfarce.

104
117'
;'
µ

cA situarão da tara - qmealogias do impaialismo

pelo desejo masculino, as mulheres encenam a heterossexualidade como


uma performance irônica que não é menos teatral por ser urna estratégia
de sobrevivência. Em certos momentos, sugere lrigaray, as mulheres
devem assumir deliberadamente os papéis femininos impostos a elas,
mas fazê-lo de tal maneira a "converter uma forma de subordinação
numa afirmação"10s. Pela "alegre repetição" das normas invisíveis que
sustentam a heterosse.J...-ualidade, as mulheres desvendam com arte a fal-
ta de equivalência entre a "natureza" e a performance de gênero. Somos
"tão boas mímicas" precisamente porque a feminilidade não chega na-
turalmente1º6. De qualquer maneira, a mímica cobra seu preço; nascida
da necessidade, ela tem dois gumes e duas línguas, uma estratégia pro-
visória contra o esquecimento. Na própria teoria de lrigaray, porém, a
ideia da mímica também cobra um preço, pois a própria Irigaray corre
o risco de privilegiar a mímica como uma estratégia essencialmente
feminina e, assim, paradoxalmente, reinscreve precisamente aquelas di-
cotomias de gênero que tão brilhantemente desafia. No processo, Iriga-
ray também evita as possibilidades teatrais e estratégicas do disfarce
masculino: camp, dança ( voguing), drag, travestismo e assim por diante.
Ignorando a intervenção de Irigaray em termos de gênero, Homi
Bhabha leva a ideia de mímica para a arena colonial e explora sutilmen-
te a mímica como "uma das estratégias mais escapadiças e eficazes do
poder e do conhecimento coloniais"107. No esquema de Bhabha, a mí-
mica é uma identidade defeituosa imposta aos colonizados que são obri-
gados a refletir uma imagem dos coloniais, mas de forma imperfeita:
"quase a mesma, mas não branca"1º8 • Submetidos à missão civilizadora,
os mímicos (a Bhabha eles parecem ser apenas homens) servem como
intermediários do império: são os professores, soldados, burocratas e in-
térpretes culturais colonizados que Fanon descreve como "empoados

105. Ibidem.
106. Ibidem.
107. Homi K. Bhabha, "Of Mimicry• and Man: lhe Ambi,-a.lence of Colonial Discourse",
Ottoher 28 (Primavera, 1984), p. 126.
108. Idem, op. eit., p. 130.

105
Couro impuial

com a cultura colonial"'º9 • A linhagem desses mímicos - homens an-


glicizados que não são ingleses - pode ser recuperada dos escritos de
Macaulay, K.ipling, Forster, Orwell e Naipaul, e compreende, nas pala-
vras de Macaulay, "uma classe de intérpretes entre nós e os milhões que
governamos""º.
A originalidade de Bhabha está cm sua apresentação provocadora
de categorias estéticas (ironia, mimese, paródia) para fins psicanalíticos
no contexto do império. Para Bhabha, o discurso colonial é ambivalen-
te porque procura reproduzir a imagem de "um Outro reformado e re-
conhecível [ ... ] que é quase o mesmo, mas não e:.:atamente"m. Os mímicos
são obrigados a habitar uma zona inabitável de ambivalência que não
lhes garante nem identidade nem diferença; devem fazer a mímica de
uma imagem que não podem assumir plenamente. É aí que está o fra-
casso da mímica como Bhabha a vê, pois no deslizamento entre identi-
dade e diferença, a autoridade "normalizadora" do discurso colonial é
posta em questão. O sonho da civilidade pós-iluminismo é alienado de
si mesmo porque no Estado colonial não pode mais exibir-se como um
estado de natureza. A mímica se torna "ao mesmo tempo semelhança e
ameaça""'.
Não questiono o rico entendimento da noção de mímica colonial de
Bhabha, nem sua valiosa insistência, seguindo Fanon, sobre o elusivo
jogo de fantasia, de·sejo e o inconsciente na disputa colonial. O que me
interessa neste momento, porém, é a política de atuação implícita no
esquema mimético. Como Bhabha a vê, nesse ensaio pelo menos, a amea-
ça da mímica deriva de sua ambivalência - uma divisão epistemológica
que revela a dupla visão do discurso colonial e, assim, perturba sua auto-

109. Frann Fanon, 7/x Wretched o/the Earth (Londres: Penguin, 1963), p. 47. Para uma aná-
lise do uso do termo "mímica" por Naipaul, ver Rob Nixon, london Cal/ing: V. S. Nai-
paul, Pou,o/onial Mandarin (Oxford: Oxford University Press, 1992), especialmente o
capítulo 6.
110. T. B. Macaulay, "Minute on Education", in \Villiam Thcodore de Bary (erg.), Sourw of
/ndian Tradition (No,-a York: Columbia Uni,·ersity Prcss, 1958, vol. II), p. 49.
111. Bhabha, "OfM;micry and Man ...•, p. u6.
11:. Idem, op. cit., p. 117.

106
cA 1itua;tJo da urra - Çmtalogia1 do impuia/iJmo

ridade"3• A falha do colonialismo é sua subversão interna e que o derro-


ta: a subversão formal , a "ruptura", a "perturbação", o que está no meio
do discurso. Vista desta maneira, a mímica colonial é um "compromisso
irônico" que garante seu próprio "fracasso estratégico""•.
O "fracasso estratégico" da "apropriação colonial" se torna desse
ponto de vista um efeito estrutural assegurado pela ambivalência discur-
siva. "Como", pergunta Bhabha, "o desejo é disciplinado e a autoridade,
deslocada?" Essa é fundamentalmente uma questão de poder; ela é tam-
bém uma questão sobre atuação histórica. Ao contrário de alguns críti-
cos, não creio que Bh1bha queira sugerir que a mímica é o único fe-
nômeno colonial, nem o mais importante, assim como Irigaray não
sugere que a mímica é a única estratégia à disposição das mulheres. De
qualquer modo, para Bhabha, aqui a autoridade colonial parece serdes-
locada menos pelas contradições sociais cambiantes ou pelas estratégias
militantes dos colonizados do que pela ambivalência formal da própria
representação colonial.
Embora reconhecendo a importância vital do conceito de ambiva-
lência tanto cm lrigaray quanto em Bhabha (crucial como é para a tra-
dição do pensamento dialético), a questão é se ele é suficiente para situar
a atuação nas fi ssuras internas do discurso115• Situar a atuação na ambi-
valência traz o risco do que poderia ser chamado de fetichismo da for-
ma: a projeção da atuação histórica sobre abstrações formais que são
antropomorfizadas e ganham vida própria. Aqui, as abstrações se tor-
nam atores históricos; o discurso deseja, sonha e faz o trabalho do colo-
nialismo ao mesmo tempo em que assegura seu desaparecimento. No
processo, as relações sociais entre humanos aparecem como metáforas
de relações estruturais entre formas - através de: um fetichismo forma-

113. "A menau [ameaça) da mímica é sua douhlt [dupla) visio que, ao revelar a ambi\-:ucncia
do discurso colonial, também pcrrurba sua autoridade". Idem, op. cit., p. 129.
n4. "O sucesso da apropriaçiio colonial depende da proliferaç:io de objetos não apropriados
que arugurtm uu frarano utrattgiro" (grifo nosso). Idem, op. cít., p. 127.
115. Nesse ensaio, abstrações formais pa.rccem ter atuaçio: a repe1enta(dO marginali:za a mo-
numentalidade da históri~; a ambivalência d3 mimi<a rompe a autoridade colonial; a di-
ftrtn{a ameaça a autoridade colonial; o dtujo tem objetivos estratégicos.
Couro imptrial

lista que efetivamente foge às questões mais confusas da mudança his-


tórica e do ativismo social.
Uma questão importante levantada pela obra tanto de l rigaray quan-
to de Bhabha, ainda que de maneiras diferentes, é saber se a ambiva-
lência é inerentementc subversiva. Num ensaio posterior, Bhabha com-
plica de maneira útil sua ideia de mímica e sugere que as ambivalências
da subjetividade colonizada não precisam, afinal, ser uma ameaça para o
poder colonial: "presas como estão ao imaginário, essas posições cam-
biantes nunca ameaçarão seriamente as relações dominantes de poder,
pois existem para exercer essas relações de modo agradável e produ-
tivo"116. Aqui, Bhabha vê o poder dominante protegido do jogo da am-
bivalência não por causa da força econômica, política ou militar dos que
estão no poder. Antes, as "posições cambiantes" da subjetividade colonial
estão "cativas do 'Imaginário"'-. Uma vez mais, contudo, a atuação é des-
locada numa abstração estrutural (o Imaginário) que garante uma con-
dição de estase flutuante, indeterminada.
Em outro ensaio, "Signs Taken for Wonders" [Signos Tomados como
Maravilhas], Bhabha desenvolve ainda mais a ideia de mímica, desta vez
menos como uma estratégia colonial que se autoderrota que como uma
forma de recusa anticolonial. A mímica agora "marca aqueles momentos
de desobediência civil dentro da disciplina da civilidade: signos de resis-
tência espetacular"''7• Isso oferece a importante promessa de uma teoria
da resistência e, ao ~esmo tempo, novas áreas para elaboração histórica.
Isso também leva Bhabha mais para perto de Irigaray, para quem a mí-
mica é vista como uma estratégia dos que estão fora do poder. Mas, se a
mímica sempre trai uma escorregada entre identidade e diferença, não
seria necessário elaborar como a mímica colonial difere da mímica anti-
colonial; e se a mímica colonial e a anticolonial são formalmente idênti-
cas na sua ambivalência fundamental, por que a mímica colonial terá

116. Idem, "Diffcrcncc, Di,crimination and thc Discoursc ofColonialism", in Francis Barkcr
ct al. (orgs.). 11,e Polit:cs of71uory (Colchcstcr: Uni,·crs:ty of Essex, 1983), p.105.
117. Idem, "Signs Takcn as Wondcrs: Qycstions of Ambivalcncc and Authority undcr a Trce
Outsidc Dchli, 181(, in Francis Barkcr ct ai. (orgs.), Europe and its Others, (Cokhcstcr:
Univcrsity of Esscx, 1985, \-OI. 1), p. 162.

108
uf situar4o da Iara - qmealogias d~ impaia(ismo

tido sucesso durante tanto tempo? De fato, se todos os discursos são


ambivalentes, o que distingue o discurso dos que estão no poder daque-
le dos que estão fora dele? Entre colonial e anticolonial, entre macho e
fêmea, a mímica lança uma sombra teórica.
Se lrigaray desafia o masculinismo de Lacan e argumenta a favor da
mímica como uma estratégia especificamente feminina (um gesto essen-
cialista que elide a raça e a classe), Bhabha, por sua vez, contorna lri-
garay e se refere só à raça, deixando de lado no processo gênero e classe.
Retvrnando a uma mímica sem gênero, Bhabha efetivamente reinscreve
a mímica como estratégia masculina sem reconhecer sua especificidade
de gênero. O "Homem" ironicamente genérico no título de Bhabha ( 0/
Mimicry and lvlan) tanto esconde como revela que Bhabha está falando
apenas de homens. Evitando a diferença de gênero, porém, Bhabha im-
plicitamente ratifica o poder de gênero, de modo que o masculino passa
a ser a norma invisível do discurso colonial. Evitando a diferença de
raça, por sua vez, lrigaray ratifica a invisibilidade do poder imperial.
~anto mais se insiste na ubiquidade transistórica da ambivalência,
tanto menos poderosa ela se torna como conceito. Na compulsão de
repetir, a ubiquidade do ambivalente se torna a cena deste. Se a ambiva-
lência está em toda parte, cm que ponto ela se torna subversiva? Acima
de tudo, como explicar, em primeiro lugar, como os poderes dominantes
viraram dominantes? Para responder a essas perguntas, não seria neces-
s:irio um engajamento mais exigente com o poder social e econômico
do que a desconstrução das rupturas da forma? <2!1cro salientar, no en-
tanto, que coloco essas perguntas não para eliminar a noção de ambiva-
lencia - longe disso - , mas para complicá-la historicamente. Como
melhor diz Gayatri Spivak: "A crítica mais séria na desconstrução é a
crítica de algo útil".

H l B RI DEZ, TRAVESTISMO E
FE T ICHI SM O RACIAL

Nos próximos capítulos, argumento que conceitos como mímica e am-


bivalência são menos poderosos, se reduzidos a uma única categoria so-

109
Couro impuial

cial privilegiada (seja o gênero, como em lrigaray, ou a raça, como em


Bhabha). A mímica racial pode ser semelhante à de gênero de maneiras
importantes, mas não são socialmente intercambiáveis. De fato, a mími-
ca como termo requer considerável elaboração.
Diferentes formas de mímica, como o passar-se por e o travestismo,
exibem ambiguidade de modos diferentes; distinções críticas se perdem,
se essas práticas culturais historicamente variantes são reunidas sob o
seu signo a-histórico. O passar-se por racial não é o mesmo que o traves-
tismo de gênero; o voguing [dança] negro não é o mesmo que brancos
com as caras pintadas de preto; negros como menestréis [minstre/J -
brancos com a cara pintada de preto ou negros atuando como tais] não
são o mesmo que drags lésbicas. Na cena do fetiche, o travestismo envol-
ve, com frequência, a flagrante exibição da ambiguidade (a perna cabelu-
da sob a saia de seda); na verdade, boa parte do escândalo do travestismo
reside em sua ostentação da identidade como diferença. O passar-se por
racial, ao contrário, com mais frequência envolve o cuidadoso mascara-
mento da ambiguidade: diferença como identidade.
No contexto do colonialismo, as mudanças globais geradas pelo im-
perialismo revelam que os coloniais foram capazes, com muita frequên-
cia, de conter as ambivalências da missão civilizadora com efeitos espan-
tosos. No Heart ofDark.ness [ Coração das trei,as], de Conrad, por exemplo,
Marlow é levado rio acima por um africano que serve como exemplo
vívido de um mímic.? _híbrido. O africano que cuida da caldeira do barco
habita aquele limiar impossível entre colonizador e colonizado; Marlow
o vê como uma anomalia histórica: "o selvagem que era bombeiro"'.s.
Um iniciado na modernidade, ele é também um habitante atrasado do
tempo anacrônico da bruxaria, do feitiço e dos encantamentos. Aos
olhos de Marlow, esse "espécime aperfeiçoado" é "tão edificante quanto
[ ... ] um cão numa paródia, de calças e com um chapéu de plumas, que
anda nas patas de trás"" 9 • Nos termos de Bhabha, ele é um "compromis-
so irônico" da mímica; o mesmo, mas não branco.

118. Joseph Conr:id, H,art ofDarlmm (Londres: Penguin, 197.J [1902]), p. 52.
u9. Ibidem.

IIO
vf situafdO da Urra - Çtn~alogias do impuialismo

:tvlas o mímico de Conrad é menos perturbador da autoridade colo-


nial do que parece à primeira vista, pois sua imperfeição paródica é con-
sistente com a narrativa colonial da degeneração africana. Viajando rio
acima, os coloniais são vistos como viajando para trás no espaço anacrô-
nico: "Subir o rio era como viajar para os inícios mais remotos do mun-
do [ ...] Éramos errantes na terra pré-histórica [ ...] Viajávamos na noite
dos primeiros tempos, do tempo que já passou"t'º. Dentro do tropo do
espaço anacrônico, o fracasso mímico do bombeiro é menos um dilema
discursivo do que um elemento familiar da narrativa do progresso colo-
nial. Ao habitar a cúspide da pré-história e da modernidade colonial, o
"espécime aperfeiçoado" é visto como a medida viva do quanto os afri-
canos terão ainda que viajar para atingir a modernidade. Em outras pa-
lavras, o deslizamento entre diferença e identidade deixa de ser contra-
ditório ao ser projetado sobre o eixo do tempo como função natural do
progresso imperial.
Com efeito, o mímico de Conrad não perturba fatalmente a imagem
pós-iluminista do homem nem assegura seu fracasso estratégico; sua
incoerência mímica é antes indispensável para a narrativa do atraso his-
tórico dos colonizados. O que é mais, sua ambivalência é violentamente
suprimida por sua morte, obliteração narrativa que oferece um lembrete
sóbrio de que os coloniais desejavam e eram capazes de barrar a poética
da ambivalência recorrendo às tecnologias da violência.
A página de abertura do Kim, de Rudyard Kipling, é outro caso. En-
tramos na narrativa de Kipling flanqueados pelo museu colonial e pela
arma colonial. O mímico, Kim , tendo derrubado um menino indiano,
senta acima do canhão ªque respira fogo", Zam-Zammah; à frente de
Kim, o Museu de Lahore. A potência fálica de Kim é também uma
questão de legitimidade racial; para Kipling, Kim tem "alguma justifica-
tiva" ao usurpar o lugar do menino indiano, "uma vez que os ingleses
dominavam o Punjab e Kim era inglês""'. Nessa cena inaugural, o colo-
nialismo figura não só como uma poética da ambivalência cultural (en-

n o. Idem, op. cit., pp. 48-51.


121. Rudy:ud lGpling, Kim (Londres: Pcnguin, 1987 [1901)), p. 7.

III
Couro imp~ria/

carnada na Maravilhosa C asa fetiche do museu europeu), mas também


como uma política da violência militar: "~em detém Zam-Zammah
( ...] detém o Punjab". Controlar tanto a arma quanto a casa maravilhosa,
sugere Kipling, é necessário para dominar o Grande Jogo.
Levar a sério a questão da atuação histórica ("Como [ ... ] destituir a
autoridade?") envolve interrogar mais que as ambivalências da forma;
também envolve interrogar as confusas imprecisões d a história, as nego-
ciações e estratégias conflituosas dos usurpados, a militarização da mas-
culinidade, a exclusão das mulheres do poder político e econômico, a
execução decisiva da violência étnica e assim por diante. A ambivalência
pode bem ser um aspecto crítico da subversão, mas não é um agente
suficiente do fracasso colonial.
Vale considerar o travestismo como exemplo culturalmente variante
de mímica. As roupas são os signos visíveis da identidade social, mas
estão permanentemente sujeitas ao desarranjo e ao roubo simbólico.
Por essa razão, o traves tido pode ser investido de poderes grandes e sub-
versivos. E m seu pioneiro livro, Vésud Interests, Marjoric Carbcr recusa
a narrativa tradicional do travesti como biologicamente aberrante ou
patológico e nos convida, em lugar disso, a tomá-lo em seus próprios
termos - como encarnação transgressiva da ambiguidadcm.
Garber questiona com brilhantismo a narrativa do progresso que
presume uma identidade "real" (masculina ou feminina) sob a máscara
travestida. Propõe, em lugar disso, que o travesti põe cm questão as ca-
tegorias binárias "masculino" e "feminina" e se torna cm consequência a
"figura que pern1rba"11J. O livro de G arbcr é de grande importância, até
por sua tentativa de incluir questões de raça na cena do travestismo. De
qualquer maneira, como argumento cm maior detalhe nos capítulos 3 e
5, ao universalizar todos os travestis como transgressivos ("a figura que
perturba") e ao inscrever todos os fetiches como originários da cena la-
caniana de castração ("o falo é o fetiche, o fetiche é o falo"), Garbcr não

122. M arjorie Garbcr, Vtsud lnu ruts: Cross-Drming and Cultural Authority {Nova York:
Routlcdge, 1992).
123. Idem, op. cit., p. 103.

JI2
c/f situarão da ttrra - (jenealogias do imptrialismo

L
.....
faz justiça teórica à rica diversidade de travestis culturais e aos fetiches
históricos que ela mesma revelar:•.
Reduzir todos os fetiches e todos os travestis a uma única gênese
fundada na ambiguidade fálica nos impede de dar conta das diferenças
entre práticas subversivas, reacionárias ou progressistas. O triângulo ro-
sa, por exemplo, é um signo ambivalente que tem sido exibido por prá-
ticas políticas radicalmente alternativas. O travestismo também pode
ser mobilizado para uma variedade de propósitos políticos, nem todos
subversivos. O fato de que o fetichismo seja fundado na contradição não
necessariamente garante sua transgressividade; o fato de que o traves-
tismo perturbe identidades sociais estáveis não garante a subversão po-
lítica do gênero, da raça ou da classe social. Quando fuzileiros no exér-
cito dos Estados Unidos se enfeitam como drags ou pintam o rosto de
preto, o poder branco não é necessariamente subvertido, nem a mascu-
linidade é desarranjada. Talvez se, ao contrário, lésbicas no exército se
travestissem diariamente, ou negros gays fizessem noturnamente uma
performance voguing, o efeito quem sabe não fosse visto como tão hilário
ou inocente.
O passar-se por étnico culturalmente forçado (imigrantes judeus ou
irlandeses sendo assimilados nos Estados Unidos, digamos) ou a hibri-
dez brutalmente imposta (a gravidez imposta das muçulmanas por estu-
pro na Bósnia-Herzegovina) implicam relações muito diferentes com a
hibridez e a ambiguidade. O deslizamento en tre diferença e identidade
está presente em todos esses casos, mas o peso psíquico e as consequên-
cias políticas variam dramaticamente. O glamour lírico forjado por al-
guns teóricos pós-coloniais nem sempre é historicamente garantido.
É importante salientar, a esse respeito, que o travestismo não envolve
apenas ambiguidade de gênero; existe ampla evidência de travestismo
racial, de classe e étnico. Reduzir todos os fetiches a uma única narrativa
de gênese fundada na ambiguidade fálica nos impede de dar conta ade-
quadamente dos fetiches raciais e étnicos que não podem ser subsumi-

124. Idem, op. cit., p. 125.

113
Couro impuial

dos sob o signo da diferença sexual sem considerável perda de sutileza


teórica e profundidade histórica. Na teoria lacaniana (que questiono no
capítulo 4), a diferença linguística e cultural é fundada na diferença se-
xual, pertence à ordem do Simbólico e é encarnada na Lei do Pai. Como
resultado, as diferenças racial e de classe se tornam teoricamente deriva-
das da diferença sexual ao longo de uma cadeia significativa que privile-
gia a heterossexualidade masculina. Garber, por exemplo, lê o fetiche
corno "urna figura da indecidibilidade da castração"us_ Como argumento
no capítulo 31 ela, dessa forma, arrisca reduzir o travestismo racial a u1na
função secundária da ambiguidade sexual, como quando nota "o para-
doxo do negro na América (do Norte) como simultaneamente signo de
potência sexual e símbolo de emasculação e castração""6• Aqui desapa-
recem as negras - talvez necessariamente, uma vez que seu papel no
fetichismo branco e cm suas próprias formas de fetichismo (de qualquer
maneira excluídas da cena lacaniana) não pode ser explicado sob o signo
fálico da castração.
Embora o travestismo, drags, o passar-se por, voguing e camp sejam,
cm termos gerais, formas de mímica, tendem também a apresentar pos-
sibilidades culturais muito diferentes. Essas diferenças se perdem, se
forem obedientemente reunidas sob o signo transistórico da ambivalên-
cia fálica. O que os lacanianos chamam de "significante fálico" transcen-
dente, em minha opinião não tem um status privilegiado ou dominante
cm relação ao que Stuart Hall distingue como "significante étnico"127•
Questionar a falocracia branca da cena lacaniana de castração nos per-
mite elaborar uma genealogia mais nuançada de tais fenômenos do que
é correntemente permitido na narrativa heterossexual do progn:ssu.
Nem sempre a perturbação das normas sociais é subversiva, espe-
cialmente nas culturas mercantis pós-modernistas, em que a fluidez

125. Idem, op. cit., p. n1.


126. Idem, op. cit., p. 271.
12i, Sruart Hall, ~Pluralism, Race and Class in Carib~an Society", in Rau and ClaJI in Posl-
Co/onial Societies (Paiis: Uneseo, 1977), pp. 150-82.
cA situa;do da Urra - qmealogias do imperialismo

formal, a fragmentação e o marketing através da diferença são elemen-


tos centrais. De fato, grupos privilegiados podem, ocasionalmente,
mostrar seu privilégio precisamente pela exibição extravagante de seu
direito à ambiguidade. Qyando o astro inglês do futebol, Paul Gascoigne,
voltou em triunfo da Copa do Mundo, desfilou pelas ruas com seios de
plástico, como se o excesso de sua façanha heterossexual no campo de
futebol autorizasse sua exibição privilegiada de ambiguidade de gê-
nero. Na série de televisão do Monty Python, os h omens se vestem
ritualmente como mulheres (com frequência atravessando fronteiras
de classe), mas mulheres raramente aparecem nos episódios, e muito
t1 menos como homens. Pessoas negras primam pela ausência. D essa
maneira, a perturbação das normas sociais pelo programa efetiva-
mente afirma urna heterossexualidade masculina branca e privilegia-
da. E m suma, a encenação da desordem simbólica pelos privilegiados
pode meramente esvaziar os questionamentos por parte daqueles
que não têm o poder de exibir a ambiguidade com comparável licen-
ça ou autoridade.

PASSAR -S E POR C OLON I AL

K im, de Rudyard Kipling, oferece um rico exemplo de mímica e traves-


tismo como técnica de vigil:incia e não de subversão colonial. Em mui-
tos aspectos, a história de Kipling pode ser lida como uma narrativa do
passar-se por racial. As origens de Kim são ambivalentes em quase to-
dos os sentidos, pois ele encarna perfeitamente a crise colonial das ori-
gens. Órfão de uma babá inglesa e de um sargento irlandês, é criado nos
fervilhantes bazares de Lahore por uma "mestiça" que o mantém fora do
alcance dos missionários, passando-se ela mesma por branca. Kim, ao
contrário, gasta muito do seu tempo passando-se por indiano. "Qyeima-
do tão escuro quanto qualquer nativo", falando "de preferência o verná-
culo" (p. 7), dormindo e acocorando-se "como só os nativos conseguem"
(p. 137), capaz de "mentir como um oriental" (p. 36) e bebendo água "à
moda nativa" (p. 25), Kim passa por "nativo" de um modo que nenhum
dos indianos no livro consegue passar-se por branco. Na cúspidc das

u5
Couro impuial

culturas, habitando as zonas liminares de bazar, rua, telhados e estradas,


Kim é tanto um híbrido cultural quanto um mímico racial.
Certamente, uma das razões desse passar-se de tanto sucesso é que
ele é meio irlandês, o que, no discurso colonial, o coloca racialmente
mais perto dos indianos do que se ele fosse inteiramente inglês. A ambi-
guidade racial de Kim é acentuada por seu talento para o travestismo; ele
acha "mais fácil meter-se em trajes hindus ou maometanos quando se
envolve em certos negócios" (p. 10). Mais precisamente, Kim é um trans-
formista. Ao longo da narrativa, ele passa sem esforço de ~um traje com-
pleto de hindu" (p. 10) para as roupas e a identidade de um sahib branco
e de volta para "parecer um jovem hindu de baixa casta - perfeito em
todos os detalhes" (p. 171) - , e outra vez de volta para sahib, "ele volta
outra vez a ser um sahih por algum tempo" (p. 142). "Ele precisa só mudar
de roupa, e num piscar de olhos ele será um jovem hindu de baixa casta"
(p. 147). O talento de Kim para o travestismo racial permite que ele mer-
gulhe facilmente "na alegre desordem asiática•, jogando o jogo colonial
sem ser percebido (p. 89). Com a ajuda da gentil prostiruta, "um pouco
de tintura e três jardas de tecido", o mímico Kim entra no Grande Jogo
como espião colonial, transformando a competição entre Inglaterra e
Rússia pelo controle da Índia numa "estupenda travessura" (p. 14).
Como um híbrido cultural, Kim é o que Kipling chamava de "ho- ,

mem de dois lados" (p. 176). Mas neste caso a mímica não é uma identi-
dade defeituosa imposta ao colonizado, nem uma estratégia de resistên-
cia anticolonial. O travesti Kim borra a distinção entre colonizador e
colonizado, mas só para sugerir um controle colonial reformado. O mí-
'
mico moleque encarna a ambiguidade simbólica e a hibridez étnica, mas
emprega sua ambiguidade não para subverter a autoridade colonial, mas
para reforçá-la. É o sahih indianizado: indiano, mas não exatamente.
A passagem de Kim é o privilégio da brancura. Como travesti anglo-
irlandês, encarna noções contraditórias de identidade racial: branco ou
negro? Colonizador ou colonizado? Sua passagem e travestismo fazem
surgir séria "especulação sobre o que é chamado de identidade pessoal" '
(p. 247). De qualquer forma, seu "sangue branco" e sua esperteza irlan-
desa se afirmam cm momentos críticos; a raça, parece, é mais profunda

116 j
cA situa;do da ttrra - Çjmtalogias do imptrialismo

que apenas a cor da pele ou as roupas. "Onde um nativo se teria <lcilado,


o sangue branco põe Kim de pé" (p. 65). O babu, ao contrário, é um mí-
mico risível, ridicularizado pelos russos como representante do "mons-
truoso hibridismo de leste e oeste" (p. 318). Como o "espécime melho-
rado" de Conrad, o babu é a mímica que não deu certo: "Nunca um
produto tão miserável do domínio inglês na Índia foi lançado de modo
tão infeliz sobre os estrangeiros" (p. 316). Ele é o homem de Bhabha
tomado inglês sem sê-lo; K.im, por outro lado, é o indianizado que não é
indiano. Evidentemente, "descer" na hierarquia cultural é permissível;
"subir" não é.
O "sangue branco" de K.im lhe permite conter as ambiguidades da
cultura e ganhar uma universalidade que o coloca "além de todas as cas-
tas" (p. 262). Transcendendo a confusão étnica da ingovernável Índia, ele
é mais bem dotado para governar. K.im é o outro lado da mímica: o colo-
nial que se passa pelo Outro para melhor governar. Desse modo, a rege-
neração do órfão anglo-irlandês se torna uma alegoria exemplar de um
estilo reformado e mais discreto de controle imperial.
Não se deve esquecer que cm Kim o privilégio da passagem é exclu-
sivamente masculino. Ao longo da narrativa, as mulheres são figuras de
abjeção, repudiadas, mas indispensáveis. "'Não tive mãe, minha mãe',
disse K.im" (p. 367). As mulheres servem como marcadores de limites e
figuras liminares; facilitam o enredo masculino e as transformações
masculinas, mas não são agentes de mudança, nem são herdeiras conce-
bíveis do poder político. A sexualidade feminina, nesse contexto, serve
como ameaça contínua ao poder masculino: "Como pode um homem
seguir o Caminho ou o Grande Jogo quando é sempre incomodado
pelas mulheres?", queixa-se Kim. A reprodução sexual marca uma turbu-
lência na narrativa, um lugar de irresolução impossível, como se Kipling
simplesmente não soubesse o que fazer com ela. De qualquer maneira,
negada e repudiada, ela recorre como elemento necessário na contenção
das ambiguidades da raça.
Embora a sexualidade feminina seja rejeitada em Kim, é uma hete-
rossexualidade precariamente estabelecida que contém as instabilidades
das raças. Perto do final da narrativa, a etnicidade polimorfa de Kim
Couro imptrial

ameaça ficar fora de controle: "Quem é Kim - Kim - Kim?" (p. 248).
"[... ] O que sou eu? Muçulmano, hindu,jain ou budista?" (p. 192). "[ ...]
Eu sou Kim. Eu sou Kim. E o que é Kim?" (p. 374). Engolfado pela ver-
tigem étnica e descontrolado pela descoberta mortificante de que não
passa de uma "engrenagem" dispensável no G rande Jogo, Kim reivindica
sua identidade através de um curioso ritual de heterossexualidade restau-
rada. Tendo afastado a ameaçadora sexualidade das mulheres nas mon-
tanhas, ele se atira no chão e encena uma dissolução, deslocada e inces-
tuosa com a "l\1ãc Terra", um ato ambíguo no qual a sexualidade é ao
mesmo tempo repudiada e confirmada. "Ele [... ] se deitou ao comprido
[ ...] E a Mãe Terra [... ] respirou através dele para restaurar a pose que
perdera deitando-se por tanto tempo afastado de suas boas correntes.
Sua cabeça se apoiava sem forças no seio dela, e suas mãos abertas se
renderam à força dela" (p. 374).
Uma vez mais, a mãe negada volta como limite indispensável da
identidade masculina. Isso é o que Julia Kristeva chama de abjeção118 •

ABJEÇÃO E UMA PSICANÁLISE SITUADA

Abjeção (do latim, aójicere) significa expelir,jogar fora . Em Totem e tabu


e cm O mal-estar na civilizafáo, Freud foi o primeiro a sugerir que a ci-
vilização se funda no repúdio a certos prazeres pré-edipianos e fixações
incestuosas. Seguindo Freud e o brilhante trabalho de Mary Douglas
sobre rituais liminares, Kristcva argumenta que um ser social é constitu-
ído pela força da expulsão. Para se tornar social, o eu tem de expelir
certos elementos que a sociedade considera impuros: excremento, san-
gue menstrual, urina, sêmen, lágrimas, vômito, comida, masturbação,
incesto e assim por diante. Para Kristeva, porém, esses elementos expe-
lidos nunca podem ser completamente apagados; eles assombram as
margens da identidade do sujeito com a ameaça de perturbação ou mes-
mo dissolução. Ela chama esse processo de abjeção.

ofHc" or: dn Euay on d bjution, trad. L<on S. Roudicz (Nova Yo rk:


128. J ulia Kristc\'a, Po--.i,m
Columbia Univcrsicy Prcss, 1982).

118
•)
,A situ11r,1o da tara - Cjm Mlogias do impaialismo

O abjeto é tudo o que o sujeito procura expurgar para tornar-se so-


cial; é também um sintoma do fracasso dessa ambição. Como um com-
.. promisso entre "condenação e anseio", a abjeção marca os limites do eu;
ao mesmo tempo, ameaça o eu com perigo perpétuoi:9 • Desafiando li-
mites sacrossantos, a abjeção testemunha o precário controle da socie-
dade sobre os aspectos fluidos e não refinados da psique e do corpo.
"Podemos chamá-la de fronteira", diz ela. "A abjeção é acima de tudo
ambiguidade"'3º.
A abjeção desenha a silhueta da sociedade na beira instável do eu;
simultaneamente põe em perigo a ordem social com a força do delírio e
da desintegração. Essa é a descoberta brilhante de Kristeva: o abjeto ex-
pelido assombra o sujeito como sua fronteira constitutiva íntima. O ab-
jeto é "alguma coisa rejeitada da qual não conseguimos afastar-nos"'3'.
Couro imperial explora, em parte, o paradoxo da abjeção como as-
pecto formativo do imperialismo industrial moderno. Sob o imperia-
lismo, argumento, certos grupos são expulsos e obrigados a habitar as
margens impossíveis da modernidade: a favela, o gueto, o sótão, o bor-
del, o convento, o bantustão colonial e assim por diante. Povos abjetos
são aqueles que o imperialismo industrial rejeita, mas de que não pode
prescindir: escravos, prostitutas, os colonizados, trabalhadores domés-

l
ticos, loucos, desempregados etc. Certas zonas liminares se tornam
abjetas e são policiadas com vigor: a Casbah árabe, o gueto judeu, a fa-
vela irlandesa, o sótão e a cozinha vitorianos, o acampamento dos in-

ll
vasores, o asilo mental, o distrito das luzes vermelhas e o quarto de
dormir. Habitando o espaço entre domesticidade e mercado, entre
indústria e império, o abjeto retorna para assombrar a modernidade
como seu repúdio íntimo e constitutivo: o rejeitado de que não conse-
guimos libertar-nos.
A abjeção é muito sugestiva para meus propósitos, pois ela é aque-
le estado liminar que paira sobre o limiar entre o corpo e o corpo

u9. Idem, op. cit., p. 9.


;
130. Ibidem.
131. Idem, op. cit., p. 4·
Couro impuial

político - e, assim, sobre o limite entre a psicanálise e a história ma-


terial. Como argumento nos capítulos 2 e 4, o cordão sanitário disci-
plinar entre a psicanálise e a história é, ele mesmo, um produto da
abjeção. Com grande frequência, a psicanálise freudiana tradicional
procura expurgar certos elementos do romance familiar: a babá da
classe trabalhadora, a sexualidade feminina (especialmente o clitóris),
economia e classe, homossexualidade, raça e império, diferença cultu-
ral e assim por diante; mas esses elementos abjetos assombram a psi-
canálise como a pressão de um limite constitutivo interno. Da mesma
forma, a história material, especialmente em sua forma marxista mais 'l
economicista, repudia elementos mais desregrados, como o incons-
ciente, o desejo sexual e a identidade, o irracional, o fetichismo; esses
elementos voltam para estruturar a economia marxista como um insis-
tente repúdio interior. A abje"ção lança sombras na zona entre a psica-
nálise e a história material, mas de tal maneira que põe sua separação
histórica radicalmente em questão.
Nos capítulos que se seguem, proponho o desenvolvimento de uma
psicanálise situada - uma psicanálise culturalmente contextualizada
que é, ao mesmo tempo, uma história psicanalíticamente informada.
Em relação à abjeção, pode-se fazer a distinção, por exemplo, entre
objetos abjetos (o clitóris, a sujeira doméstica, o sangue menstrual) e
estados abjetos (a bulimia, a imaginação masturbatória, a histeria), que
não são o mesmo que zonas abjetas (os territórios ocupados de Israel,
prisões, abrigos para mulheres cspancadas).Agentes socialmente indica-
dos da abjeção (soldados, trabalhadores domésticos, enfermeiras) não
são o mesmo que grupos socialmente abjetos (prostitutas, palestinos,
lésbicas). Processos psíquicos de abjeção (fetichismo, negação, o repri-
mido) não são o mesmo que processos políticos de abjeção (genocídio
étnico, remoções cm massa, "limpeza" de prostitutas). Todos esses com-
preendem dimensões interdependentes, mas também distintas de abje-
ção, que não constituem a replicação transistórica de uma única forma ,
universal (e muito menos do falo transcendente), mas, antes, surgem
como elementos inter-relacionados, ainda que contraditórios, de um
processo imensamente intrincado de formação social e psíquica.

120
"
vf situa;áo da urra - gmealogias do imperiaiismo

Qyando um sul-africano branco nega identificação com a babá ne-


gra que o criou, o processo é sugestivo da remoção forçada das negras
aos estúpidos bantustões, embora não seja idêntico a ele. Certamente,
os processos estão misturados: a definição das sul-africanas como "su-
pérfluos apêndices" de seus homens, e sua expulsão da narrativa branca
nacional, está inextricavelmente relacionada aos temores masculinos da
mãe arcaica, ainda que não se reduza a isso. A noção de um temor mas-
culino arquetípico da mãe é inadequada para o pleno entendimento da
expulsão <la:; 1nulheres, pois não pode explicar as torções históricas
da raça: por que são as negras e não as brancas que são territorialmen-
te expulsas. Como exploro no capítulo 10, as narrativas da maternidade
nacional são muito diferences para as brancas e para as negras na Áfri-
ca do Sul.
O problema da variação histórica também levanta o do papel da
crítica na cena da ambivalência. Como pergunta Robert Young:

O que é específico da situação colonial, se os textos coloniais apenas demons-


tram as mesmas propriedades que podem ser encontradas em qualquer leitu-
ra desconstrutiva de te.xtos europeus?[ ...] Como surge a equivocidade do
discurso colonial e quando? No momento de sua enunciação ou com o histo-
riador ou intérprete do presente?13=.

Se o jogo subversivo da ambivalência é apenas latente no discurso, à


espera de que o crítico o ative, seria a própria relação entre crítico pós-
colonial e discurso colonial uma forma de mímica, a mímica da relação
entre psicanalista e cliente - a mesma, mas não exatamente? Se a tare-
'
. fa da crítica pós-colonial for ati~ar as incertezas e os intervalos do dis-
curso, está bem, mas isso pode não passar de um exercício formalista, a
menos que se assuma a tarefa histórica mais exigente de interrogar as
práticas sociais, as condições econômicas e a dinâmica psicanalítica que
motivam e limitam o desejo, a ação e a força humanos.

132. Robert Young, White Mythologies: Writing History and the W<st (Londres: Routlcdge,
1990), p. 1;i.

121
Couro imperial

Em suma, Couro imperial é escrito com a convicção de que a psicaná-


lise e a história material são mutuamente necessárias para um engaja-
mento estratégico com o poder instável. Proponho a elaboração de nar-
rativas que interroguem as relações entre psicanálise e história material,
sem preservar em qualquer dos lados a sombra de sua oposição binária.
Ao explorar o fetichismo feminino e racial, o travestismo e o sadomaso-
quismo (SIM), a paranoia colonial, o apagamento da sujeira doméstica,
a invenção do espaço anacrõnico, do tempo panóptico, e assim por dian-
te, eu argumento que a psicanálise não pode ser imposta a-historica-
mente sobre a disputa colonial, quando menos porque a psicanálise sur-
giu cm relação histórica com o imperialismo em primeiro lugar. Em vez
disso, apelo a um engajamento mútuo que compreenderia tanto urna
descolonização da psicanálise quanto urna psicanálise do colonialismo.
Talvez se possa chegar a dizer que não deveria existir história material
sem psicanálise nem psicanálise sem história material.

122
2

"Massa" e as cria
· das
Poder e desejo na metrópole imperial

Diga- me, Sócrates, você teve uma babá?


Platão

O EXPLORADOR URBANO

A 4 DE JULHO de 19101 articulado com o resto da Fleet Street, o Daily


Mirror trombeteava a descoberta de um escandaloso casamento entre
classes:

ROMANCE DO CASA.!\IENTO DO ADVOGADO - Nova luz na notável


revelação do testamento - esposa e criada - versos que defendem sua esco-
lha contra a crític.a do mundo'.

A ocasião para o excitado alvoroço foi "a revelação do notável testa-


mento" do falecido Arthur J. Munby, conhecido advogado e homem de
letras vitoriano (1828-1910). Em seu testamento, Munby anunciava ao
mundo que por 45 anos amara Hannah Cullwick, "criada nascida em
Shifnal", e que por 36 desses anos Cullwick fora "sua querida e amada
esposa e criada"•. Por ordem de Munby, e temendo revelações escanda-

,. Dcrck Hudson, Munby, Man ofTwo Wor/th: 'lhe Lifa and Diarie1 of/lrthurJ ,Wunby, I812-
1910 (Cambridge: Gambit, 1974), p. 437. Ver também M ichael Hilcy, Victorian i%r!ing
$%mm: Portraits fr()m Lifa (Boston: David R. Godinc, 19i9).
•· M uul>y, "Diary", in Hudson, Mun6y.. . , p. 436.

123
Couro imp,rial

losas, sua familia trancou à chave seus documentos privados por 40 anos.
Em 1950, uma abertura cerimonial das caixas de documentos no Trinity
Colüg~ finalmente revelou, como o Mestre para a Imprensa formulou
secamente: "diários e poemas de Mr. iv1unby e cartas para ele de sua
mulher. Também fotografias e estudos de mulheres trabalhadoras de fins
do século XIX, cm cujas condições de vida Mr. Munby tinha interesse
sociológico"3•
lVlas o conteúdo dos volumosos docum entos de l\1unby- um diário
secreto, centenas de páginas de cartas, numerosos esboços e fotografias
de mulheres - revela uma obsessão compulsiva pelo espetáculo das
mulheres trabalhadoras que era consideravelmente mais e consideravel-
mente menos que sociológica. D e fato, os documentos secretos são elo-
quentes de uma tentativa incansável de negociar uma das mais profun-
das contradições na formação.social da vida da classe média vitoriana: a
associação peculiarmente vitoriana e peculiarmente neurótica entre tra-
balho e sexualidade.
A curiosa vida de Arthur Munby me permite construir o seguinte
argumento: na metrópole urbana, algumas das ambiguidades formativas
de gênero e classe eram administradas e policiadas pelos discursos sobre
a raça, de tal forma que a iconografia do imperialismo entrava na iden-
tidade da classe média e da alta classe média brancas com força funda-
mental, ainda que contraditória. As estranhas peregrinações de Munby >
me permitem, adc~~is, explorar as fronteiras incertas de gênero e classe,
privado e público, casamento e mercado e, ao fazê-lo, investigar algumas
das relações formativas entre imperialismo, indústria e o culto da do-
mesticidade. Fico particularmente intrigada pelas relações ocultas entre
psicanálise e história social, ocultação vividamente encarnada na figura
liminar da babá vitoriana. A vida de Munby oferece uma parábola exem-
plar para os contornos de poder e desejo na metrópole imperial.
O espetáculo voycurístico das mulheres trabalhando era a obsessão
da vida de l\tlunby. Durante quase 60 anos, uma necessidade obscura o
levava a longas perambulações noturnas pelas ruas de Londres, condu-

3. Idem, op. cit., p. 438.


•,:;Maua· tas criadas - 'Poda t dtujo na m(fr4polt impuial

zindo-o a porões fedorentos, às profundezas esquálidas dos music halls,


a hospitais e delegacias de poücia, através de mercados e docas miserá-
veis - inspecionar as estranhas mulheres da sujeira e da lida, as criadas
nos sótãos e as serventes, leiteiras, prostitutas e vendedoras ambulantes
de uma Inglaterra que se industrializava. :Nlunby perseguia pontes, par-
ticularmente a Ponte de Londres, que o atraía libidinosamente por ser "a
grande via pública das jovens trabalhadoras", onde diariamente as ven-
dedoras de frutas e ensacadoras, frágeis e delicadas sob pilhas de sacos,
fa-tiam seu trabalho•. Ele frequentava os circos, cativndo pelas acrobatas
scminuas, que pareciam meninos (Figura 2.1). Ao longo de sua \,-ida, atra-
vessou milhares de quilômetros para visitar aldeias remotas, minas de car-
vio e áreas costeiras, em busca de novas formas de "trabalho bruto femi-
nino" (Figuras. 2.2, 2.3). Lia com ávida absorção censos governamentais
e relatórios sobre as condiç ões das trabalhadoras e encheu centenas de
páginas com seus encontros e descobertas. Aonde quer que fosse, Munby

Figura 2.1 - O mcanto da ambiguidadt dt géntro.

•· Idem, op. cit•• p. 99.

125
Couro imperial

Figura 2. 2 - O 4petd<Ulo wyeuristico do traóalho feminino óruto.

Fig,,ra 1.3 - O ar'luiw fliwnte do traóalho femin ino.

126
"c.Jlt(aua·, as criadas - 'Poder, dn,jo na mttrdpoü imperial

abordava as trabalhadoras e as importunava, tocando-as, perguntando


sobre seu trabalho, anotando sua aparência em detalhes minuciosos, es-
boçando-as e fotografando-as como tipos, seguindo-as pelas ruas até
suas casas para conceder-lhes suas atenções filantrópicas nem sempre
bem-vindas - todo o tempo parecendo inconsciente dos desequilíbrios
de poder que lhe davam liberdade para intrometer-se em suas vidas.
.lv1as eram precisamente esses desequilíbrios de poder social que lhe per-
mitiam seus prazeres compulsivos e perpetuamente adiados. Ele era in-
teiramente indiforente aos trabalhadores homens.
Aos 31 anos, Munby pôs em palavras a fome peculiarmente sem limi-
tes e, podemos acrescentar, pc:culiarmente imperial que governava sua
vida: "Se tivesse os meios, investigaria, sendo hoje suficientemente velho
para não ser mal interpretado, as estatísticas fisicas e morais das mulhe-
res trabalhadoras de todo o mundo"5• O!iase 30 depois, aos 58, registrava:
"Por razões minhas, durante mais de 30 anos estudei o tema do trabalho
feminino, não meramente em livros e de segunda mão, mas com meus
próprios olhos e no loca1"6. Uma umação de pesquisa empírica e graves
estatísticas o protegiam, acreditava ele, de "más interpretações".
No entanto, podemos ler aí uma outra narrativa: a história espontâ-
nea do poder de classe, gênero e raça que deu forma ao projeto incren-
temente imperial do empiricismo vitoriano. As fotografias, esboços e
diários reunidos por Munby constituem um dos maiores arquivos da
vida de mulheres trabalhadoras, repleto do desejo agressivo de colecio-
nar, do rearranjo racional e de exibição voyeurística. As obsessões cura-
tórias de Munby são de considerável interesse, pois nelas podemos dis-
cernir alguns dos lineamentos de poder de classe e de gênero que
animavam o enigma vitoriano do "tema do trabalho feminino". De fato,
pode-se dizer que o enigma da divisão do trabalho por gênero e a elabo-
rada divisão de gênero inflamaram a vida de .lvlunby pelas mesmas ra-
zões que animaram sua época.

5. Idem, op. cit., P· 37·


6. De uma carta assinada ~A. J. M. •, sábado, 30 de janeiro de 1886, in 'Jh, Wigan and Dútria
.Advn-tisn, p. :,. Apud HiJer, Vi,torian llf>r~ing llf>mm ... , p. 14.

127
;
Couro impuial

O D UPL O VÍNCULO
l'vlães e criadas

!\linha segunda mãe, primeira mulher,


Anjo de minha vida infantil.
Robert Louis Stevcnson

M unby nasceu em 1928, da filha de um pastor bem estabelecido e de um


advoga<lu de Yorkshire. Sua família, assim, habitava aquela posição de
classe liminar que imitava o estilo de vida da nobreza dona de terras sem
ter direito a seus privilégios. O pai de Munby não tinha terras nem títu-
los, mas seu trabalho na burocracia industrial em expansão lhe permitia
conforto e segurança substanciais, e lhe deu meios de ostentar durante
28 anos o emblema vitoriano de prosperidade e status social de classe
média: uma babá chamada I-iannah Carter.
A mãe de Munby, na visão de seu filho amoroso, tinha saúde delicada
e era propensa a "fraqueza e histeria" - seguindo o estereótipo da vito-
riana de classe alta que o próprio Munby descrevera como a "mulher de
porcelana de Dresden"7• Munby a lembra como "muito antiquada": "Sua
bela face delicada e cabelos dourado-avermelhados e graciosa figura",
suas pinturas de flores e sua habilidade na harpa traziam à mente de
Munby "as damas dos tempos de Jane Austen"8• Mas a mímica anacrô-
nica de Caroline Munby, imitando o estilo de vida de urna classe acima
da sua, só foi possível pela presença contraditória, cm sua família, de
urna mulher de classe abaixo da sua.
Por razões óbvias e lamentáveis, conhecemos quase nada sobre Han-
nah Cartcr. Munby manteve contato com ela durante toda a sua vida,
visitando-a regularmente até a morte dela. Além disso, não há registro.
lVlas há poucas dúvidas de que foi a babá da classe trabalhadora que
cuidou, acariciou e disciplinou Munby como bebê e corno criança. A
primeira identidade de classe e de gênero de Munby tomou forma cm

7. Munby, "Di:uy", in Hudson, J\t[unby.. . , p. 126.


8. Cana à Su.. R. D. Lit.:hficld, 16 de julho de 1879. Apud Hud<on, lvfunhy..., p. 398.

128
ºcJ\,fassa· r as triadas - 'Podrr, drsrjo na mrtrópolt imprrial

torno de duas mulheres: a amada mulher da classe trabalhadora, forte e


dominadora, mas pelo édito social, relegada às "ordens mais baixas", e a
mulher de alta classe média, vivendo no ócio, fisicamente delicada e
adorada de longe. Cada uma delas representava diferentes aspectos de
classe da dupla imagem vitoriana contraditória do sexo femini no.
Fundamentalmente, a diferença entre elas era marcada pelo dinheiro:
uma era (mal) paga pelo serviço doméstico, a outra, não. As contradições
de classe e de gênero da sociedade vitoriana tardia entraram na vida de
:tvlunby com n força de um enigma insolúvel. Resolver o enigma do du-
plo gênero se tornou a obsessão que consumiu sua vida. Sua principal
estratégia para administrar as contradições foi, acredito, o discurso im-
perial sobre a raça. A esse respeito, Munby não era e.xcêntrico, mas era
um perfeito representante de sua classe.
"Pouco restou da infància de Munby", escreve seu biógrafo Derek
1-Iudson, "exceto uma encantadora silhueta com um chicote na mão" 9 •
D e pé, ereto, de perfil, o menino posa como um nobre em miniatura,
corn o chicote levantado. O chicote marca a metamorfose do menino
em homem e é eloquente da violência social da formação do homem.
Projetando-se logo abaixo da cintura do menino, simboliza o domínio
masculino em duas dimensões: o reino da sexualidade e o do trabalho. A
um só e mesmo tempo, é um emblema peculiarmente masculino de po-
tência fálica e de domínio violento do trabalho tanto de criados como de
bestas. Na precária ascensão à masculinidade, o chicote marca o limite
entre mulheres e homens e entre homens e animais, limites tanto mais
imprecisos por terem de ser frequentemente reinscritos. Na lógica da
iconografia privada (mas longe de idiossincrática) de Nlunby, a afinidade
metafórica de mulheres e cavalos é exibida em cenários que incansavel-
mente igualam sexualidade feminina e servidão'º.

9. l\ lunby, "Oi:iry•, in Hudson, Munhy..• , p. 8.


to. Ver o brilhante ensaio de Leonorc Davidoff, "Cl:us and Gender in Victorian Engl3nd",
in Judith L. Newton, Mary P. Ryan e Judith R. \Valkowitz (orgs.), Stx and Clan in
m,mms History (Londres: Roudedgc &. Kegan P:iul, 1983), p. 43. O:nidoff nora como, em
sua poesia, Munby compan. as mulheres com animais domcsric:idos que foram "doma-
dos• pelos homens.

129
..
:-
Couro imperial

Não é claro quando Munby começou a tomar consciência de seus


desejos eróticos pelo espetáculo das mulheres no trabalho, mas em
Cambridge ele começou a escrever poemas de elogio a pescadoras e
camponesas 11 • Em Trinity, demonstrou-se um satélite menor, orbitando
num amplo circulo de conhecidos mais luminosos. Qyando ele fez 22
anos, seu pai tinha reunido capital suficiente para construir a imitação
de uma mansão, completa com as características requeridas de exibição
conspícua: "três belas salas de recepção no térreo; uma sala de refeições
e uma sala de estar, uma sala para us criados, uma para o mordomo e
uma para carruagens, um estábulo e quarto de selas, tudo abrindo para
um amplo pátio"". De qualquer maneira, Munby ainda era o filho de
utn servidor civil e, portanto, obrigado a trabalhar para viver. Qualifi-
cou-se como advogado em 1851 e, a despeito de uma decidida falta de
interesse pelo direito, estabel_eceu-se co;i um d~s Inner Temples [um dos
quatro conjuntos cm volta da Corte Real], onde permaneceu pelo resto
de sua vida.
Munby gastou a melhor parte de sua vida caminhando. Nenhum
verbo aparece mais em seus diários do que "fui". Como Friedrich En-
gels, Henry Mayhcw e as hostes de exploradores inspirados pelo Lon-
don Labour and the London Poor, Munby saía diariamente para a terra
incógnita das vidas de Londres, mapeando incansavelmente os novos
"espécimes" de trabalho feminino que encontrava, documentando suas
características como tipos e trazendo para o conforto privado de seu
quarto memórias exóticas e eróticas de visões femininas inesperadas.
Depois de caros jantares, descia aos porões para observar as mulheres
sujas de gordura e água. Voltando de seus clubes, no frio, aproximava-se
das leiteiras que safam para o trabalho. Em todo lugar nas ruas, seguia
mulheres, importunando-as com suas perguntas. Suas intenções, afir-
mava, eram puramente sociológicas: encontrar os arquétipos pelos quais
representar o trabalho feminino por inteiro.

II. M unby, ~owy·, in Hudson, Mun6y...• p. n.


12. Ibidem.

130
•cJl,tassa• t ,zs criadas - 'Podtr t dtstjo na mttrópolt imptrial

O FLÁNEUR
Gênero e o espaço urbano

Munby não era de nenhuma maneira excêntrico em suas andanças. Ca-


minhar significava ócio e o poder masculino de classe. Em Cambridge,
ele adquirira o hábito de longas caminhadas e das horas noturnas, apro-
priadas à classe ociosa, da qual ele não era um verdadeiro membro. A
qualidade ociosa de suas descrições é adequada ao estilo do jláneur que,
como diz Benjamin, "faz a botânica do asfalto"'•. Mas lVIunby também
não era verdadeiramente um homem da cidade. Ele estava inteiramente
fora de lugar. Como o fláneur de Benjamin, Munby estava de fato "tão
fora de lugar numa atmosfera de completo lazer como no tumulto febril
da cidade"' 4 • Munby habitava o limiar entre trabalho e lazer, não perten-
cendo a nenhum dos dois. Segundo Benjamin, "o fláneur ainda está no
limiar, tanto da cidade quanto da classe burguesa. Nenhuma das duas o
envolveu; em nenhuma delas ele está em casa. Procura refúgio na multi-
dão"'5. Munby também se refugiou na multidão, em que mergulhava
diariamente. Ele era travado por limites precisos, aos quais retornare-
mos. A multidão era um lugar liminar. Em sua insolente promiscuidade,

i mercadores e balconistas, prostitutas e ambulantes, banqueiros e mendi-


gos se misturam, se tocam e passam uns pelos outros. A multidão poli-
morfa era profundamente atraente para Munby, cujo projeto de vida era
produzir a ambiguidade social como espetáculo controlado. Munby era
intoxicado pela multidão porque esta era, por definição, o lugar onde as
barreiras sociais estavam permanentemente à beira da ruptura.
O projeto urbano e as tipologias de Munby eram análogos aos dos
physiologues de Paris que, como observa Benjamin, se propunham a in-
vestigar os "tipos" sociais que podiam ser encontrados "por uma pessoa
dando uma olhada no mercado público." O projeto dos physiologues era

13. \.Valter Benjamin, Charlu Baudelaire: A Lyric Poü in the Era ofHigh Capitalism (Londres:
Verso, 1973), p. 36.
14. Idem, op. cit., p. Ii5·
15. Idem, op. cit., p. 174.

131
Cquro impuia/

"basicamente um gênero pequeno burguês"16• Ylas era também mn gê-


nero imperial, pois a notação de tipos e espécimes era característica das
etnografias de viagens escritas à época por homens que davam uma boa
olhada no mercado do império. Os projetos urbanos e imperiais estavam
unidos por um compromisso comum com uma ótica da verdade. Como
os physiologues, 1'1unby compartilhava com os exploradores imperiais o
projeto do empiricismo que procurava mapear o mundo segundo uma
ciência das aparências da superfície'i. Esses homens herdaram do Ilumi- .'
nismo a crença em que um catáJogo preciso das superfícies visívei:; -
criado por bússola, paquímetro e câmera - podia garantir o domínio
tanto metafísico quanto militar do globo. Como o mapa colonial, as no-
tações de Munby ofereciam um discurso da superficie e pertenciam -
como o museu e o recinto de exposições - ao arquivo industrial do
espetáculo.
A Benjamin não ocorre notar que o flâneur, o physiologue e o explo-
rador urbano são homens. lVlas ele lembra que quem o apresentou à ci-
dade foram as mulheres: "Deixem-me agora lembrar quem me apresen-
tou à cidade [...] as babás", escreve'8• Freud também evoca a memória de
sua babá. No caso de Munby, primeiro a babá, então as criadas, leiteiras,
prostitutas e vendedoras de rua o apresentaram ao labirinto da cidade.
Pode-se encontrar uma convergência entre os projetos da psicanálise e
do modernismo. O primeiro espaço explorado por esses homens desas-
sossegados da nova burguesia foi o corpo de urna babá. Pela narrativa
deles, foram suas babás que os apresentaram, quando crianças, aos cho-
ques e visões do espaço urbano. Se, para Benjamin, o parque era a cena
da harmonia doméstica burguesa, era uma cena governada pelas babás da
classe trabalhadora. No parque, as crianças brincavam até que eram cha-
madas "pela voz da babá, de seu banco de comando: ali ela senta austera

16. Idem, op. cit., p. 36.


17. Benjamin observa: "Relações interpessoais cm grandes cidades se distinguem por uml
marcada preponderância da atividade do olho sobre a atividade da orelha." Idem, op.
cit., p. 38.
18. Idem, R.,ft, aiom (Nova York: Harcourt Bncc Jov.inovich, 1978), p. 3.

132
"ú\,(am1· tas criadas - Podtr t dnejo na mttrdpoü imperial

e cuidadosa"'9 • Não é surpreendente, então, que, quando adultos, os ho-


mens na cúspidc do modernismo - Zola, Freud, Baudelaire - buscas-
sem a imagem de suas babá~ nas prostitutas, criadas e atrizes que foram
suas amantes, musas e modelos. Nem é sürpreendente que projetassem
o corpo feminino na cidade moderna como sua primeira forma.
Se o corpo da mulher foi o primeiro espaço para o conhecimento e o
autodescobrimento da criança, mais tarde a cidade, como primeiro espa-
ço do autoconhecimento moderno, foi mapeada como um espaço femi -
nino. Tornada feminina, a cidade era representada e feita dócil com mais
facilidade para o conhecimento e poder masculinos, pois tais represen-
tações podiam depender do fato prévio da subordinação social das mu-
lheres. No processo, porém, ocorrem uma conversão e uma negação. A
memória perturbadora da atuação e poder fe mininos, encarnada na me-
mória da babá, é projetada sobre a cidade como superfície feminina. A
mulher enquanto agente se torna a mulher enquanto espetáculo. Através
do discurso imperial da superfície e do arquivo do espetáculo, a cidade-
labirinto é capturada e reivindicada como um território masculino de
classe média. A psicanálise, portanto, precisa dar outra longa olhada
para o corpo da mulher de classe trabalhadora.
Benjamin fala da multidão como apresentando o choque traumático
de um traço de memória. Para Munby, o choque específico, a memória
catastrófica e prazenteira, era o espetáculo do trabalho feminino. Munby
via a multidão irracional, subversiva e tornada feminina da imaginação
vitoriana como um refúgio, mas só na medida em que pudesse controlar
seus contrastes pelo poder voyeurístico. Movendo-se na multidão como
voyeur, a identidade de Munby era fluida e segura. Na multicl:in, ele po-
dia observar despercebido os perigosos contrastes da identidade social,
então catalogar e rearranjar esses contrastes no museu privado de seu
diário, mediando sem decisão ou angústia as diferentes dimensões de
sua identidade. Como Baudelaire, l\il unby amava a solidão, mas ele a

19. Idem, op. cit., p. 6. Para uma excelente análise de gênero e da cidade, ver Elizabcth \.Vil-
son, 1ht Sphinx in tht City: Urban Lift, thc Control of Disortkr and m,mm (Londres:
Vingo Prcss, 1991).

133
Couro impuial

desejava na multidão, onde os traços individuais são obliterados. Bau-


delaire podia estar-se referindo a l\llunby quando observou: "Um
observador é um príncipe que está em qualquer lugar de posse de seu
incógnito"'º.

O FLÁNEUR E O ENIGMA DAS


ORIGENS DE CLASSE

Se a multidão oferecia uma arena de contrastes voyeuristas, Munby só


estava interessado nas mulheres. Entretanto, ele não estava igualmente
enamorado de todas as mulheres. Fazia pouco esforço para esconder seu
desprezo pela uespuma cintilante da alta sociedade"". As afetadas her-
deiras ornamentais que desfilavam nos bailes tinham escassa atração
sobre ele. "Ter casado com Laura Matilda e todas as suas relações e en-
contrado uma vasta platitude de tecidos, palavreados e idiotices!"22 , Ele
tinha o mesmo desprezo por operárias, costureiras e altas servidoras
bem vestidas, que via como nada mais que pálidas mímicas das mulheres
de classe alta com seu "híbrido comportamento de moças finas" 13 e "rou-
pas que aspiravam ser de damas"24 • Como observa Leonore Davidoff,
"em comum com muitos vitorianos de classe média alta, não inteira-
mente seguros de sua posição, ele não gostava daqueles que tentavam
subir na vida"•s. Mas seu desprezo por essas "híbridas" era também fun-
dado no fato de que elas não podiam oferecer o "delicioso contraste"
entre a classe trabalhadora e a classe alta que ele buscava sem descanso.
l\llunby era incansável na procura das mulheres que faziam o traba-
lho mais sujo, mais sórdido e menos interessante: lavadeiras, leiteiras,
criadas para todo serviço, lavradoras, pescadoras, as mineiras de Wigan,

20. Apud Benjamin, Charlu Bauddairt... , p. 40.


21. Munby, "Diary", in Hudson, Munóy... , p. 97.
22. Idem, op. cit., p. u6.
23. Idem, op. cit., p. 35.
24. Idem, op. cit., p. 79.
25. Leonore Davidoff, "Class and Ccndcr... ", p. ;;.

134
"c:iWassa· tas criadas - 'Poda t dtujo na mttr<ipolt impaia/

prostitutas e faxineiras. O fetiche de Munby não era simplesmente o


trabalho; era o trabalho servil. E não era só o trabalho servil, mas o tra-
balho servil em contraste com o llLxo ocioso 26• "Uma forte mulher ca-
seira e simples, em seu duro trabalho da vida comum em meio ao ócio e
ao luxo, é para mim objeto do maior interessc"'7. Munby procurava o
contraste de classe encarnado nas duas mães que tinham governado sua
infância. Todas as trabalhadoras que ele procurava compartilhavam as
características de classe de sua babá, Hannah Carter; eram mulheres
cujo trabalho era servil, visivelmente sujo, não industrial, mulheres po-
bres, economicamente independentes do casamento e fisicamente for-
tes. Essas mulheres apresentavam um "contraste sugestivo" com mu-
lheres da classe de sua mãe: ociosas, endinheiradas, economicamente
dependentes do casamento e fisicamente delicadas. Era o choque visual
involuntário desse contraste (palavra que retorna com ênfase fetichista
ao longo de seus diários) que empurrava Munby com força irresistível e
insaciável.
Para Munby, a visão de uma leiteira musculosa e de mãos ásperas,
"retrato de força canhestra", ficava ainda mais picante pelo espetáculo
simultâneo de uma dama "passando afetadamente no momento, com
mãos pequenas em luvas cor de lavanda: o contraste", ele exulta, "era
delicioso" 28 • Uma e outra vez, seus diários retrospectivamente sabo-
reiam - como espetáculo - o visível contraste de classes femininas.
Um registro lembra como,jantando fora, seus olhos assistiram ao espe-
táculo de como "todas essas jovens damas, de colos brancos, como fadas
de musselina e flores, tinham sua elegância realçada por uma bela, mas
rústica e áspera garçonete"29• Passeando por Mayfair, ele ficava fascinado
por Kate O'Cagney, "rainha das leiteiras", por causa do "contraste rús-
tico" que ela apresentava à elegância urbana circundante.

26. Ibidem.
27. Munby, ªDiary, 1862~. Apud Hile); Victorian Working Womm... , p. 21.
28. Idem, op. cit., terça-feira, u de junho de 1861, in Hudson, Munby..., p. 99.

<
. 29. Idem, op. cit., sexta-feira, 23 de novembro de 1860, in idem, op. cit., p. 83.

..i
135
C,uro impaial

O enigma que o excitava era o das origens, a origem das diferenças


de classe e da fluidez potencial da identidade de classe expressa na
possibilidade da troca de nomes: "Gentil e bela na face como elas - e
seu nome Laura também - por que deveria ter uma vida tão diferen-
te?". E, no entanto, Munby não era um revolucionário. Não tinha von-
tade de resgatar a criada da lavanderia de sua faina. Antes, eram precisa-
mente os éditos do contraste d e classe que lhe permitiam intermináveis
pequenos prazeres, intermináveis "tristes deleites": "Mas sempre, estar
entre a espuma borbulhante do topo da sociedade tem um triste de-
leite, pois traz vividamcnte diante de mim aquela gentil criatura des-
locada que rasteja entre a escória; aquela criada de todo serviço que
poderia ter sido uma bela na sala íntima, mas é um burro de carga na
cozinha".

A BABÁ E O ENIGMA DAS ORIGENS

Podemos contar a ess.u pessoas (as cri:idas) sua estória


sem ter de esperar por sua contribuição. Elas querem
confirmar o que lhes comamos, mas não podemos
aprender nada delas.
Sigmund Freud

Parece ter sido meu destino descobrir apenas o óbvio:


que as crianças têm sentimentos sexuais, o que toda
babá sabe.
Sigmund Freud

Se a situação fam iliar de Munby o predispôs a uma obsessão de toda a


vida pelas mulheres da classe trabalhadora, ele não estava sozinho nisso.
O desejo pela criada tem uma história cheia de contradições. Na figura
da criada, a psicanálise e a história social podem convergir, quando me-
nos porque foi nesse momento histórico que se afastaram.
Com o avanço do século XIX, as mulheres eram cada vez mais cha-
madas para o serviço doméstico, até que, em meados do século, dois
terços de todos os servidores domésticos eram mulheres. Em 1851, 40%

136
"ú\,lassa· tas ,riadas - Podar dtu}o "ª mttrdpolt imperial

das mulheres assalariadas trabalhavam como domésticas. Entre 1851 e


1871, o número de criadas aumentou mais de 56%, duas vezes mais rápido
que a população, o maior crescimento se dando nos anos 1860. Nas últi-
mas décadas do século, o trabalho doméstico feminino era a maior cate-
goria de trabalho, depois da agricultura. Passou a ser visto como lugar-
comum o fato de que nenhum lar de classe média ou alta classe média
de respeito podia deixar de ter pelo menos uma criada. Como observa
Eric Hobsba'\vm: "A mais ampla definição da classe média [ ...] era a de
ter criadas domésticas"3º.
Não é surpreendente, portanto, que os escritos, pornografia e memó-
rias dos homens vitorianos, estejam repletos de referências a babás ego-
vernantas, testemunhando de maneira vívida a influência dessas n1ulhe-
res da classe trabalhadora sobre os jovens que as tinham a seu cargo.
Com grande frequência, babás e criadas dormiam no mesmo quarto das
crianças: lavavam-nas e vestiam- nas; davam palmadas em suas bundas;
lavavam suas vaginas ou pênis; limpavam o vômito; cuidavam delas
quando doentes; acariciavam-nas; disciplinavam-nas e puniam-nas; en-
sinavam-nas a falar, a ler e a escrever; contavam-lhes estórias e inicia-
vam-nas nas "maneiras" de sua classe.
Por muitos relatos, encontros sexuais entre as criadas e os meninos
de que cuidavam não eram incomuns. Relações sexuais entre as criadas
e as meninas da casa provavelmente também aconteciam, mas eram, por

30. Eric Hobsbawm, 1Ju Age ofCapital (Londres: Abacus, 1977), p. 286. Ver tambim idem,
1hr Age ofEmpirt, 1875-19r., (Londres: \ Vcidenfcld and Nicolson, 19Si), pp. 180- 1. Como
observa John Fletcher C!ews Hanison: "A essência da classe média era a cxpericncia da
relação com outras classes ou ordens da sociedade. Com um grupo, criados domésticos, a
classe média tinha uma relação especial e intima: uma desempenhava um papel essencial
na dcliniçio da identidade da outra~. 7h~ Early Viuorians, 18p-r8J1 (Nova York: Praeger,
1971), p. 110. Parte imporunte na deliniçio da relação da cl:1Sse média com a classe traba-
lh~dora era a elaboração de rituai s de deferência (curvar-se, afastar-se andando de cost:IS,
baixar os olhos). A ocupação de mordomo, por exemplo, era, antes tudo, uma "ocupação
de deferência", envolvendo a troca de dinheiro cm pag.imcnto pelo reconhecimento ceri-
monial do poder da classe alra. Ver o texto de Bruce Robbins sobre o papel dos criados
na literatura cm 1hr Srrr,ant's Hand: Englüh Fiction from Bd= (Nova York: Columbia
Univcrsity Prcss, 1986).

137
Couro impaial

,
razões óbvias, menos visíveis Eugene Talbot, por e.xemplo, observa: "A
3'. ~
história sexual dos meninos mostra muitas vezes que sua iniciação à vida
sexual se dava com mulheres mais velhas. Com frequência criadas"32•
Freud concorda: "É sabido que babás inescrupulosas põem crianças que
choram a dormir acariciando seus órgãos genitais"l3• Freud fala da "fim-
tasia co1num que faz da mãe ou babá uma sedutora", e observa que a
"sedução real [ ... ] é bastante comum; é iniciada por outras crianças ou
por alguém que se encarrega da criança e quer acalmá-la ou pô-la para
dormir ou fazê-la dependente"34•
Isso sugere que as relações de poder entre as mulheres da classe tra-
balhadora e os jovens sob seus cuidados não eram idênticas às relações
de poder entre as criadas da casa e seus empregadores adultos. Se as
crianças tinham poder social potencial sobre as criadas no lar, parece,
por muitos relatos, que as criadas exerciam considerável poder e influên-
cia sobre as crianças. Muitas das mulheres, parece, iniciavam os encon-
tros sexuais. Não é de todo improvável que jovens mulheres cheias de
desejos sexuais, barradas do intercurso fora do lar, tenham cedido a for-
mas prazenteiras de vingança física e de poder sobre as meninas e me-
ninos sob sua guarda, de maneira que ofereciam compensação à sua su-
jeição diante dos adultos na família e diante da sociedade como um 1
todo. Isso não contradiz as relações muito reais de submissão que man-
tinham as domésticas sob o jugo de seus senhores e senhoras. Mas, ao
afinnar o domínio s~~al e psicológico sobre as crianças, ou criar genu-
ína dependência emocional, essas mulheres poderiam ter negociado
oportunidades de reconhecimento, controle ou vingança.
Em privado, babás e governantas tinham poder considerável para
julgar e punir aqueles de quem cuidavam. Lorde Curzon, vice-rei da

31. Ida Bauer, a "Dora" de Freud, lembra suas intimidades sexuais com a governanta da casa.
Freud, Dora: An AnalysiJ ofa Cau ofHysteria (Nova 'rork: Collier Books, 1963), p. 78.
32. Eugçne S. T albot, Degmeration: lts Cauus, Signs and Rmdts (Londres: Scott, 1898),
P· 361.
33. Freud, 1ne Standard Edition of the Complete Psychohgical mirks of Sigmund Freud, trad.
James Srrachcy (Londres: lhe Hogarth Press, 1905, vol. VII), p. 1So.
34. Idem, "Fem:tle Sexua!icy". in Tlu Standard edirion . . . (1931, vol. XXI), pp. 232-3.

138
.~·""
•c:;wassa• tas criadas - q>oder t dtujo 11a mttrdpolt imperial

Índia de 1898 a 1905 e secretário de relações exteriores nos governos de


Lloyd George, Bonar Law e Stanley Baldwin, registrou amargamente
em sua biografia como sua babá, Miss Paraman, "em seus momentos
selvagens", era uma "tirana brutal e vingativa", que estabelecia sobre as
crianças

um sistema de terrorismo tão completo que nenhuma delas jamais reuniu


coragem para subir a escada e contar ao pai ou à mã.e. Ela nos espancava com
1
í a sola de seus chinelos nas costas nuas, nos batia com suas escovas de cabelo,

.
l
nos amarrava longas horas numa cadeira [ ...] nos prendia no escuro [ ... ] nos
forçava a confessar mentiras que nunca disséramos, pecados que nunca co-
1
metêramos e então nos punia selvagementc pela confissão!>.

1 Babás podiam também inspirar devoção e dependência por toda a

l
vida. \i\Tinston Churchill, por exemplo, registrou como sua amada babá,
Mrs. Everest, foi sua "mais querida e íntima amiga durante os 20 anos
que ele tinha vivido". Até a morte dela, como disse o filho dele, ela con-
tinuou como "a principal confidente de suas alegrias, seus problemas e
J esperanças [ ...] 36". Em tributo talvez inconsciente à influência que ela

l tivera sobre suas concepções da diferença de gênero, Churchill orgulho-


samente lhe deu o apelido de "Woomany" (fusão de woman [mulher] e
nanny [babá]).
J
1 Num sentido muito real,essas crianças cresceram com duas (ou mais)
f
l mães, as quais eles aprenderam a distinguir aprendendo os papéis sociais
1 da diferença de classe, o significado dos uniformes, das cortesias e cur-
' vaturas, os rituais de reconhecimento e deferência que separavam as

l
JS· Apud Jonathan Gathome-Hardy, 77,, Riu and Fali oftht British Nanny (Londres: 'Wei-
denfcld and Nicolson, 1972), p. 17. A babi malvada de Sinisttr Strut, de Compton
MacKenzie, era provavelmente baseada nas lembranças de sua própria babá.
36. Apud idem, op. cit., p. 26. Como muitas crianças, Churchill dormia no quarto de sua
babá: era lavado, trocado, v.::stido, alimentado e educado por ela e, durante os primeiros
oito anos de sua vida, praticamente nunca deixou a companhia dela. A babá Everest es-
colhia as roupas de ChurchiU, seus amigos, seus li\Tos, sua comida e até as escolas que
frequentava.

139
Couro impuial

cuas figuras mais poderosas na vida da criançaJ7_ As contradições eram


agudas. De um lado, "em sua esfera", como diz Gathorne-Hardy, "o po- ..
der da babá era absoluto"18• De outro, ela podia ser contestada, diminu-
ída ou demitida por uma palavra da patroa.
Certamente nenhuma outra cultura dividiu a sexualidade feminina
tão claramente cm linhas de classe. ~Iulheres da classe trabalhadora
eram vistas como destinadas biologicamente à lascívia e ao excesso; as
mulheres de classe alta eram naturalmente indiferentes aos delírios da
carne. l\1ães eram frequentemente objeto de adoração remota e assom-
bro abstrato. George Bernard Shaw, que foi criado quase inteiramente
por babás e criadas, disse de sua mãe: "Sua negligência quase completa
cm relação a mim tinha a vantagem de que cu podia idealizá-la ao ex-
tremo de minha imaginação e não tinha contatos sórdidos ou desilusões
com ela"39. Churchill escreveu sobre sua mãe biológica: "Eu a amava
profundamente - mas à distância". ~1ary Lutyens lembra que "funções
íntimas ficavam a cargo da babá ou de Annie, nossa criada [ ...] Eu não
gostava que minha mãe me visse no banho"40 • A divisão vitoriana das
mulheres cm putas e madonas, freiras e prostitutas tem suas origens,
então, não em arquétipos universais, mas na estrutura de classes do lar.

FREUD E A BABÁ
Abjeção e classe

A psicanálise freudiana clássica em sua maior parte, tem recusado fir-


memente dar qualquer status teórico à criada, a não ser como uma intro-
missão temporária no romance familiar, ou como uma substituta dos

37. Como observa Nancy Chodorow: "Ser mãe, entio, nio é apenas dar um filho à luz - é 1
ser uma pessoa que socializa e nutre. É ser uma encarregada principal". 1h, R,p,od11aion
of,\1othtring: Psyrhoanalysis and the So<iologyofGmdn- (Berkeley: University of California
Press, 1978), p. u.
38. Cathome- Hardy, 1he Riu and Fali ofthe British Nanny, p. 78.
39. Apud ibidem.
40. Mary Lutyens, To be Young: Some Chaptn-1 of/lutobiography (Londres: Rupert Hart-Da-
\~S, 1959), p. 15.
·c:Jlrtassa·, as criadas - Poda, d,ujo 11a nutrópolt impaial

pais. Em importante artigo,Jim Swann afirma que a teoria edipiana de


Freud era fundada na elisão teórica da babá (Kinderfrau) de seu próprio
desenvolvimento infantil... Durante o período crucial da autoanálise de
Freud (maio a outubro de 1897), ele revelou numa carta a \iVilhelm Fliess,
do dia 3 de outubro, que, ao contrário de sua teoria dos pais como cau-
sadores da neurose, seu próprio pai não tinha tido "papel ativo" cm seu
caso41 • O "primeiro originador" não fora seu pai nem sua mãe, mas sua
babá tcheco-eslovaca e católica, Monika Zajic.
"Minha primeira originadora", r.sc:reve Freud, "era uma mulher feia,
idosa, mas esperta, que me contou bastante sobre Deus todo-poderoso e
o inferno e que instilou em mim uma alta opinião sobre minha própria
capacidade"º· Swann aponta para a carga sexual do termo "originadora
(Urhtberin)": a babá de Freud foi "a primeira a levantá-lo", isto é, a exci-
tá-lo até uma ereção44 • O alumbramcnto do menino, parece, foi ocasio-
nado não só pela limpeza doméstica diária de seus órgãos genitais, mas
por atenções sexuais explícitas. No dia 4 de outubro, Freud continua
escrevendo a Fliess: "O sonho de hoje produziu o seguinte: ela foi mi-
nha professora em matéria sexual''•s. Zajic não foi só a fonte do primei-
ro alumbramcnto erótico de Freud; também foi a fonte de sua primeira
humilhação sexual: "(ela) se queixou de que eu era desajeitado e incapaz
de fazer qualquer coisa. A impotência neurótica sempre chega dessa
mancira"•6• A Kinderfrau de Freud fica, como a maioria das criadas do-
mésticas, como uma figura nas sombras, na melhor das hipóteses. De

4t. Jím Swann, "Ma ter and Nanny: Freud's Two Mothcrs and the 0iscovcry of thc Ocdipal
Complcx", Ameriran Imago: A Psichoanalyti,Journal (Prima,·cra, 1974), pp. 1-64. Ver tam-
bém Kcnneth A. Grigg, -Ali Roads Lcad to Rome': The Role of thc Nursemaid in
F'reud's Dreams~.fourna/ ofthc Ameritan Psychoanalytir Assoâation 21 (19n), p. 109.
42. Carta a Flicss, 3 de outubro de 1897, in Jeff'rcy lVloussaicff'Masson (trad. e org.), 7he Com-
?lct, Ú/ftn ofSigmund Freud to Wilhdm Flim, 1887-1904 (Cambridge: Harvud Univcr-
sity Press, 1985), P·. 268.
43. Ibidem.
44. Swann, ~Mater and Nanny... ", p. 17.
45. Freud, Carta a Fliess, 4 de outubro de 1S97, in 1lx Compl<te Úllm... , p. 269.
46. Ibidem.
Couro imptrial

qualquer maneira, como professora e juíza, ela influenciou profunda-


mente o menino, tanto no conhecimento quanto no poder, e, de acordo
com Freud, foi ela, mais que seu pai e sua mãe, que exerceu a força diri-
gente sobre a primeira história geradora de sua identidade sexual, psico-
lógica e econômica; foi ela que lhe transmitiu "os meios de viver e con-
tinuar a viver"4 7.
Entre a memória de Freud e sua teoria, porém, acontece uma conver-
são. Ao registrar suas memórias de infância, Freud atribui à babá um
papel poderoso como agente sexual, mas quando elabora sua teoria do
Édipo alguns dias depois, ele não só bane de cena a "primeira origina-
dora", mas substitui sua memória da impotência sexual (falta de capaci-
dade sexual com a babá) pela teoria da agressão sexual (excesso de capa-
cidade sexual com a mãe). Um deslocamento através da classe ("mais
tarde [ ...] surgiu a libido pela matrem") faz uma inversão de gênero (da
babá para Freud). Na carta de 1897 para Fliess, Freud escreveu da babá:
"Ela foi minha professora em matéria sexual". Mas, quando ele final-
mente escreve "Feminilidade", a mãe expulsou a babá: "A sedutora é
geralmente a mãe [ ...] que por sua atividade sobre a higiene corporal da
criança inevitavelmente estimulou e até provocou pela primeira vez sen-
sações prazenteiras em seus órgãos genitais". Na carta anterior, Freud
revelara que isso não era verdadeiro cm seu próprio caso, pois sua mãe
era uma figura distante da perfeição idealizada: "Para mim, ela era a mãe
perfeita. Eu não teria gostado que ela me medicasse, me banhasse, me
confortasse ou segurasse minha cabeça quando eu estava doente. Essas
funções íntimas corriam por conta da babá ou de Annie, nossa criada".
Ao apagar a atividade da babá, Freud salvaguarda o papel histórico
do homem como agente sexual. Mas fica um resíduo histórico, pois a
teoria de Édipo de fato não d á conta das memórias e sonhos que preten-
de explicar. De fato, pode-se dizer da teoria de Édipo de Freud que ela 1

;
é o que resta, uma vez que ele elide as divisões de classe que estrutura-
vam os lares de classe média e média alta. Depois, a babá volta urna vez
mais, apenas para ser banida outra vez, quando Freud afuma que "esque- -,

47. Ibidem.

142
·c:;wassa· t as triadas - Podu t dutjo na mttrópolt impaia/

mas herdados filogeneticamente" são "precipitados da história da civili-


zação humana. O complexo de Édipo [ ...] é um dcles"~8• Para Freud,
aqui, o complexo de Édipo é um esquema "herdado" que supera a expe-
riência historicamente variada da criança: "Somos muitas vezes capazes
de ver o esquema que triunfa sobre a experiência do indivíduo[ ... ] Onde
quer que as experiências não se ajustem ao esquema hereditário, elas são
remodeladas na imaginação"~9• Freud toma como exemplo de "experiên-
cia pessoal" superada pelo complexo de Édipo hereditário o processo
que "está cm operação quando uma babá passa a desempenhar o papel
da mãe ou quando as duas se fundem"50• Aqui, o próprio conhecimento
de Freud do poder formador da babá da classe trabalhadora é superado
e negado por sua invenção de urn "precipitado da história da civilização"
i:lvariante, herdado.
Nesse sentido, a teoria de Édipo é uma teoria biombo, que esconde e
revela ao mesmo tempo uma dimensão fundamental do poder que Freud
não podia nem ignorar nem permitir-se perceber inteiramente: o papel
histórico das babás e governantas da classe rrabalhadora que retornavam
com insistência ritual para assombrar seus sonhos, suas análises e os
casos de seus pacientes. A babá (que Freud chama de die A/te e de das
a/te Weib) é o outro repudiado da classe trabalhadora: o abjeto expulso
de que ele não consegue abrir mão.
''Histéricos", escreveu Freud, "sofrem principalmente de reminis-
cências". En1 seu próprio caso, admite, "Se [ ... ] consegui resolver mi-
nha própria histeria, então devo agradecer à velha mulher que me deu,
cm tão tenra idade, os meios de viver e continuar a viver" 5'. A histeria
a que Freud se refere aqui é seu medo de viajar e sua "neurose de Ro-
ma", que parece surgir de sua incapacidade de reconhecer e resolver
sua imagem materna dividida, divisão que surge não a partir de alguma

46. Idem, "From the History of an lnfuntile Ncurosis·, 1ru Standard Edition ... (1918 [19r4),
vol. XVII), p. 119.
49. Ibidem.
50. Ibidem.
51. Idem, Caria a Flicss, ln 77,e Compltu úttm .. . , p. 269.
Couro impaial

divisão arquetípica na psique, mas da duplicação de classe do lar vito-


riano. Qyando Freud foi separado de sua mãe durante o confinamento
dela, sua babá católica levou-o muitas vezes à missa, dando-lhe os
meios para resistir à perda da mãe naquele período. A saudade sexual
que Freud sentia de sua mãe e sua incompetência com a babá se mis-
turam com as histórias católicas de "céu e inferno", e, em sonhos recor-
rentes, a cidade católica de Roma - a mãe que não era sua mãe -
tornou-se "a terra prometida vista de longe".
D ividido cm seus primeiros anos entre duas religiões, e também en-
tre duas mães e duas classes, Freud cm anos posteriores desenvolveu
un1a profunda "fobia de viagens" e uma "neurose de Roma". Em sua
1
carta de 3 de outubro a Fliess, Freud registra que, depois de ter sido ex- 1
citado pela babá, "mais tarde [ ...] a libido cm relação a matrem foi des-
pertada, a saber por ocasião de uma viagem de Leipzig a Viena, durante
a qual devemos ter passado a noite juntos e deve ter havido uma opor-
tunidade de vê-la nudam"5'. Freud observa em outro lugar que o uso de
uma língua estrangeira marca uma repressão; não é acidental que ele
aqui recorra ao latim, antiga üngua mãe da igreja de sua babá, para des-
crever sua excitação por sua outra mãe, marcando, assim, o lugar da du-
plicação e da defesa. O desejo pela babá/mãe/religião e o fracasso em
penetrá-la dão forma à "neurose de Roma" que assolava suas viagens.
Indo com frequência à Itália e ansiando por Roma, Freud não conseguia
entrar na cidade sonhada, voltando a poucas milhas de seu destino. Em
algum nível, sua incapacidade de fundir-se com a babá foi transformada
numa incapacidade de entrar em Roma. Incapaz, finalmente, "de agra-
decer à memória da velha mulher" em sua teoria, Freud foi incapaz de
resolver sua histeria.

A PSICANÁLISE E A NEGAÇÃO DA CLASSE

Barraqa da teoria do romance familiar edipiano, a babá de qualquer ma-


neira retorna insistentemente à cena da memória com a força irresistível

p . Idem, Col!uud L,turs, p. 168.


\
"e:Ji,(aua· e at criadat - P oder, deujo na metrópole imperial

de um fetiche. A 9 de fevereiro de 1898, Freud escreveu a Fliess que havia


rumores de que ele receberia o título de professor no jubileu do impera-
dor. A titulação com o autoridade profissional masculina imediatamente
lhe provocou ansiedade e um sonho. O sonho, escreveu, "infelizmente
não pode ser publicado, porque seu fundo, seu segundo significado, vai e
volta entre minha babá (minha ntãe) e minha esposa"H. Kenneth Grigg
observou que nessa e em outras passagens Freud condensa de maneira
inseparável sua Amme (babá) e sua jovem mãe, Amalic. Algo do inad-
missível sentido m ais profundo do sonho se revela na ambiguidade "mi-
nha babá (minha mãe)", que pode tanto significar que a babá era sua
uverdadeira mãe" ou que a babá era simplesmente a substituta simbólica
de sua "verdadeira" mãe. O ponto é que a ambiguidade é insolúvel, deri-
vando, como deriva, da duplicação histórica dentro da economia domés-
tica da mãe de alta classe média não assalariada e da "mãe" assalariada da
classe trabalhadora: die afie ou afie T#ib.
Na teoria de Édipo, porém, a duplicação "impublicável" da figura da
mãe pela classe é ocultada pela divisão e atribuição, em separado, ao pai
e à mãe de ambos os papéis (o poder da punição social e o poder de
evocar o desejo sexual) que Freud observa na babá. O duplo vínculo
histórico da classe é assim dividido e deslocado para o pai e para a mãe
como função universal do gênero. O sonho de Freud e o peso da compre-
ensão que ele revela são "impublicáveis," pois publicá-los teria significa-
do reconhecer publicamente o poder de engendrar da babá da classe
trabalhadora, de cujo trabalho subordinado dependia a casa e, portanto,
levando à necessidade de reescrever inteiramente o drama de Édipo que
ele estava prestes a revelar ao mundo.
Em sua carta de 4 de outubro de 1897 a Fliess, Freud observa que seu
sonho da Kinderfrau entrelaça as referências repreensivas dela a sua
incompetência sexual com as "alusões mais mortificantes" a sua corrente
"impotência" profissional. Ao contar seu sonho, Freud faz a identificação

Sl, Idem, op. cit., 9 d e fevereiro de 1S98, p. 299.

145
Couro impuial

vitoriana padrão de desempenho sexual com troca econômicaH. O so-


nho iguala sua incapacidade de desempenho sexual com sua incapacida-
de de ganhar dinheiro, mas também revela uma inversão e uma estraté-
gia de vingança. Na troca econômica da terapia, inverte-se a primeira
relação de um Freud dcspossuído com sua babá: "Assim como a velha
mulher recebia de mim dinheiro por seu mau tratamento, hoje cu recebo
dinheiro pelo mau tratamento dos meus pacientes"55• O "mau tratamen-
to" de Freud com seus pacientes serve como compensação adiada pelo ,·
"mau tratamento" de sua babá (excitação sexual e humilhação) para com
ele quando criança. Tanto os papéis sexuais como os econômicos são
invertidos, de tal maneira a dar a Freud um domínio aparente sobre as
relações contraditórias de sexualidade e economia dentro da família.
Qyando Freud tinha dois anos e meio de idade, dois eventos cruciais
se seguiram: sua babá foi d~mitida por roubar e sua mãe deu à luz sua .1
irmã, Anna. A perda da mãe se condensa com a perda anterior da babá:
"Não conseguia encontrar minha mãe em lugar nenhum; chorava em •
desespero [ ...] Quando sentia falta de minha mãe, tinha medo que ela
sumisse de minha vida, como a velha mulher tinha sumido pouco an-
tes"56. Mas os relatos do desaparecimento da babá são contraditórios.
Primeiro, Freud escreve: "Ela me induziu a roubar zehners (moedas) e
dá-las a ela". O dinheiro roubado foi encontrado entre os objetos dela,
junto com alguns brinquedos de Freud, e ela foi sumariamente despa-
chada para a prisão por dez meses. Depois de averiguar o evento com
sua mãe, Freud revê sua opinião: "Escrevi a você que ela me induziu a
roubar as moedas e dá-las para ela. Na verdade, o sonho significa que ela ,..
1nesma as roubou"~7. !

Freud então acrescenta uma frase notável. "A interpretação correta é:


Eu = Ela". Na primeira versão, o dinheiro pertence por direito à babá cm

54. Ver Steven Marcus, 11,e 0th" ViC11Jrians: A Study of &xuality anJ Porn1Jgraphy in MiJ-
Nínetunth Century England (NO\?. York: New American Libí3l), 1964), pp. xiü, 221.
55. Freud, Carta a Fliess, in Colle~ted útt"s... , p. 269.
56. I dem, op. cit., 15 de outubro de 1897, in Collet!ed ÚIUn, p. 271.
57. Ibidem.
"cJl,tassa· tas criadas - 'Poda t du,jo na mttrdpolt imptrial

troca de seu "mau tratamento'', sua instrução sexual a Freud. Na segunda


versão, a babá é a ladra e o menino é absolvido: a prisão da Kinderfrau
por dez meses exclui a "má" circulação de dinheiro do filho para a Kin -
derfrau e de sexo da Kinderfrau para o filho, fora da ordem reprodutiva
do casamento. Na narrativa final, autorizada, os limites entre classe e
gênero são redesenhados. O dinheiro da trabalhadora é d evolvido ao
património da classe mais alta e a prerrogativa masculina de livre acesso
sexual às mulheres da classe trabalhadora é restaurada. M as a babá as-
sombra Freud como sua abjeta identificação: "Eu "' Ela".

"E U = ELA"
A identificação de Freud co m o fem inino

Proponho que a equação "Eu = Ela" evoca uma contradição que Freud
lutou para resolver ao longo de sua carreira. A figura da babá levanta um
problema crucial na teoria da identificação de Freud. Para Freud, como
argumenta Swann de maneira brilhante, a mãe é identificada como um
objeto a possuir e controlar mais que como um ideal com que se identi-
ficar. A relação com a mãe é uma relação dependente de objeto. "Na
teoria da identificação de Freud, há um conjunto de contradições que ele
tenta resolver alocando a dependência da relação-objeto às mulheres e a
identificação ativa aos homens, separando o que é um complexo proces-
so dinâmico em duas categorias distintas da relação de identidade por
gênero"S8• Na teoria de Freud, a perda da mãe é vista não como perda de
uma das relações pessoais mais profundas que se pode ter, de que se
pode ser dependente para a própria vida, mas como a perda de um obje-
to. As mulheres pertencem ao reino da escolha de objeto mais do que ao
reino da identificação social. D e fato, identificação com a figura da mãe
como patológica e perversa, a fonte de fixação, impedimento e histeria.
Mas a disjunção teórica entre as mulheres como objeto de escolha e as
mulheres com quem é desejável identificar-se é desfigurada pela equação

58. Swann, "Mater 2nd N:anny.. . ," p. 39.


Couro imp~ria/

do sonho "Eu = Ela", que sugere uma identificação muito mais compli-
cada com a babá como agente social. O desejo da criança de ser como a
poderosa e desejada babá/mãe (e de ter bebês, corpos femininos e poder)
é fi rmemente rechaçado na teoria, mas volta à tona insistentemente cm
sonhos na época em que a teoria está sendo elaborada.
Nun1a carta anterior a Fliess, a 31 de maio de 1897, Freud descreve
um sonho em que ele subia uma escada "vestindo muito pouca rou-
pa", quando se sentiu eroticamente excitado e "paralisado" ao desco-
brir que uma mulher o seguia escada acimas9. No entanto, quando
mais tarde Freud registra o sonho no livro Interpretação dos sonhos,
tem lugar uma mudança curiosa. Na nova versão, a mulher é identi-
ficada como uma criada e, em vez de subir a escada atnis de Freud,
ela a desce cm direção a ele. Semivestido, Freud está na posição con -
vencionalmente "feminina" de ser d espido e julgado, enquanto a cria-
da é a voyeuse observando sua vulnerabilidade exposta; da assume a
posição masculina da altura superior, descendo em direção a Freud,
inteiramente vestida60• Desta vez, Freud registra sua resposta não
como excitação erótica, mas como ansiedade.
Em conjunto, as duas versões revelam as duplas contradições de
classe e gênero que marcam a relação de Freud com a babá: entre mu-
lheres que são identificadas por seu trabalho (criadas) e as que não o
são; entre a hierarquia de classe dos andares de cima e de baixo dentro
do lar; entre a exci~a5ão erótica e a inadequação erótica; entre homens
com o poder social de olhar para mulheres semidespidas e babás com
o poder social de olhar para meninos semidespidos. Em ambas as ver-
sões, a incapacidade de Freud de resolver as contradições é expressa
como paralisia e impotência. l\llas a segunda versão, pública, termina
não com a criada subindo atrás de Freud (na imagem vitoriana, padrão
da evolução social, mas descendo para seu "mundo inferior", enquanto
a excitação erótica de Freud é negada e,apagada. Uma vez mais, a ver-

59. Freud, Carta a Flicss, 31 de maio de 1897, Coll~ct<d Lett<rs, p. 249.


60. ldcm, 1he /nurprttation efDreams, 71,~ Standard Edition ... , vols. 4·5, p. 238.
"c7v!assa•, as triadas - 'P,;dtr t dtuj,; na mttrdp,;/t impuial

são pública d e Freud representa uma inversão e u m deslocamento: sua


posição de classe o autoriza a subordinar a babá, permitindo-lhe subir
até sua "delicada e bela mãe" no alto.
A criada retorna, espontaneamente, nas histórias de caso. No caso do
pequeno Hans, a elisão da identificação com babás e mães (como encar-
regadas privilegiadas de crianças) leva o caso cada vez mais profunda-
mente à contradição. Na narrativa do "Homem dos Ratos", a topografia
do desejo de gênero é mapeada no corpo da criada. O "Homem dos
Ratos" lembra a senhorita Petcr, que cuidava dele quando tinha quatro
ou cinco anos: "Eu estava deitado ao lado dela e pedi que ela deixasse
que eu me enfiasse sob sua saia [ ...] ela estava com pouca roupa e cu
dedilhei seu sexo e as partes baixas de seu corpo" 61 • O "Homem Lobo"
lembrava sua babá, Grusha, ajoelhada no chão com uma vassoura curta
feita de um maço de ramos a seu lado. l\llais tarde, o "Homem Lobo" se
sentiu irresistível e violentamente apaixonado por uma camponesa que
viu ajoelhada, lavando roupas. Como observa Freud, essa era "a posição
da criadn, em que ela é rebaixada fisicamente", em que ele estava fixado.
Mas, como Peter Stallybrass e Allon White apontam,

Freud está tão voltado a demonstrar que a obsessão do •Homem Lobo" com
Grusha é o significante de uma cena primitiva cm que o "Homem Lobo" viu
seu pai fazendo amor com sua mãe que acaba sendo forçado a minimizar a
figura da criada. Grusha (o objeto "sujo") só será considerada quando retornar
à cena do romance familiar61 •

Em outras palavrcls, Freud discerne brilhantemente a divisão no su-


jeito, mas não pode admitir em sua teoria as dimensões de classe que
deram origem a essa divisão. Em lugar disso, a criada só tem valor como
substituta simbólica para o romance familiar burguês.

61. Idem, 1909, p. .µ.


62. Pc1cr St:illybrass e Allon \.Vhitc, 7ht Politia and Pcttia of Tran.1grmion (Londres:
Mcthucn, 1986), p. 153.

149
Couro imptrial

A REINVENÇÃO DA
FA.MÍLIA DO HOMEM

A elisão, por parte de Freud, da babá da teoria de Édipo também elide o


fato de que as casas de família são, acima de tudo, estruturas econômicas
historicamente variáveis. Admitir o poder e a atividade da babá é admi-
tir que o poder da autoridade paterna é inventado e, portanto, está aber-
to à mudança63• Ao esquecer a babá, Freud podia esquecer a estruturação
da identidade infantil e social em torno dos desequilJbrios econômicos
na família. O romance familiar é livrado da contaminação de classe e, o
que é 1nais importante, do dinheiro. Através da teoria de Édipo, a mul-
tiplicidade das economias familiares é reduzida a uma economia única,
naturalizada e privatizada como a unidade universal da família monogâ-
mica do homem, um "esquema hereditário" que transcende a história e
a cultura. A família é ostentada como além da política e, portanto, além
da mudança social, precisamente no momento em que as mulheres vito-
rianas de classe média começam a desafiar os limites entre o privado e o
público, entre o trabalho assalariado e o não assalariado.
A análise de Freud é perseguida pela presença da governanta que,
como as prostitutas de esquina em Roma, ele gostaria de esquecer, mas
de quem constantemente se lembra. "Eu gostaria de lembrar a gover-
nanta", murmura ele no caso Dora; mas Freud não pode admitir plena-
mente a presença histórica da governanta no romance familiar6~. Esque-
cendo a babá, Freud ôfereceu ao mundo uma teoria universal da Família
do Homem, pois a sexualidade masculina era inevitavelmente mais po-
tente que a feminina, que era inerentemente deficiente, anacrônica e
"primitiva". A teoria de Édipo reinventou a autoridade familiar paterna
como um fait accompli universal e inevitável, no momento preciso, argu-

63. Jane Gallop observou que a babá constituía a maior ameaça à homogeneidade da família.
~A família nunca foi, em qualquer dos tc.xtos de Frel!d, completamente separada de ques-
tões.de classe econômica... [A babá) é tão parte da família que as fantasias da criança (o
inconsciente) não distinguem 'mãe ou babá-. 7ht Dalighttr's Seduction: Ftminism and Psy-
choanalyiií (lthaca: Cornell University Press, 1982), p.144.
64. FicuJ, Drm,: An Anulysis afu Cusc afHysttriu, I'· 78.

150
º,:i\,(assa•, as aiadas - Podtr, d,ujo na mttrdpole imptrial

mento mais tarde, em que a emergência de uma burocracia imperial


privava a imagem do pai de poder simbólico corno símbolo designado
de todo poder político.
Jane Gallop observou que a criada está "'na porta' tanto quanto é uma
figura liminar: existindo entre 'dentro da família' e 'fora da família'. Tran-
sar com ela é um ato liminar, entre o incesto e a cxogamia"65 • No último
sonho de Ida Bauer, antes que ela deixasse Freud, como uma criada po-
dia deixar o seu senhor ("isso soa como uma criada ou governanta - um
aviso de 15 dias"), Ida oferece a Freud, no último minuto, a chave, a gazua
para o caso. Qyando Ida volta à casa, a criada abre a porta. "A criada
abriu a porta para mim". A imagem arquitetônica da porta aberta (no
limiar entre privado e público) a esta altura significa sexualidade além da
estrutura da economia doméstica. Mas Freud não consegue vê-la, pois
uma criada tem a porta nas mãos. Ele insistiu: "Não podemos aprender
nada delas"66 •
Assim como Freud se identifica com a babá ("Eu = Ela"), ele identi-
fica Ida com a criada numa equivalência simbólica de servidão e fe1nini-
lidadc que revela até que ponto as identidades sexuais de homens e mu-
lheres de classe alta eram formadas e informadas pelas criadas de classe
trabalhadora cm meio a eles. Numa palavra, o gênero não é uma dimen-
são separada da identidade à qual se adiciona, cumulativamente, a di-

65. Jane Gallop, 1he Daughteri Sdu<1ion ... , p.146.


66. Em seu excelente ensaio "Freud"s Dor:i, Dor:i's Hysteria", M:iria Ramas restaura o signi-
ficado da criada no mai, famoso frac2sso de Freud e ob,eri.'2 que a feminilidade estava
ligada ao serviço, especialmente cm relação à sexualidade, "uma fantasia de heterosse.xua-
lidade como serviço devido aos homens, e serviço explicitamente baseado cm submissão
e degradação". "Freud's Dora, Dora's Hystcria", in Charles Bernheimcr e Claire Kahanc
(orgs.), ln Doras Cau. Fr,ud - Hyslma - F,minism {Nova York: Columbia Univcnity
Press, 1986), p. 175. A escolha por Freud do nome "Dora" para Ida revela a deformação e
negação da identidade da classe trabalhadora requerida para manter a diferença de classe.
Steven Marcus observ-.1 que Freud chamou Ida de "Dora• por causa da criada de sua
própria família que teve de mudar de nome por ter o mesmo nome que a irmã de Freud.
A homologia de nomes, sugestiva de uma inaceitável homologia de identidade, tinha
de ser apagada. Ao chamar Ida de "Dora", Freud reconhecia implicitamente seu desejo de
obrigar Ida a assumir uma identidade substitut.a, a fim de preservar o decoro do romance
familiar heterossexual.

151
mensão de classe. Antes, o gênero é uma categoria articulada, construída
através da classe e pela classe.
Freud era incapaz de resolver essa tríade inadmissivelmente enreda-
da de classe do desejo sen1 admitir uma completa análise de classe cm
sua teoria. Incapaz de atribuir a primeira força originadora de desenvol-
vimento psicossex"Ual a uma mulher da classe trabalhadora (como era
compelido a fazer pelo insistente material de seus próprios sonhos), em
lugar disso ele reprime a criada e desloca seu poder e sua identificação
com o poder dela para uma identificação com o pai. Dessa maneira, na
elaboração final da teoria de Édipo, a babá desapareceu. No lugar dela,
Freud recoloca a mãe como objeto do desejo e o pai como sujeito do
poder social e econômico e, assim, violentamente fecha a porta do ro-
1nance familiar para esse intrusivo e inadmissivelmente poderoso mem-
bro da classe trabalhadora feminina. Finalmente, a entrada da esposa na
tríade feminina permite que Freud, através do contrato de casamento,
domine, co1no marido, tanto a mãe como a criada. Assim, a elaboração
ele Freud da teoria que faria seu nome e fama foi assegurada a expensas
de uma repressão: o apagamento da trabalhadora doméstica co1no pri-
meira originadora da identidade sexual e econômica. Como diz Rob-
bins: "foi em grande parte graças ao sucesso dessa teoria que a intromis-
são maciça do desejo pelas criadas nas vidas das classes que as mantinham
nesse período não atraiu mais atenção"67•
Assim, a teoria freudiana ortodoxa tem uma premissa numa visão da
família que exclui a presença histórica da trabalhadora doméstica, ou a
define como acidente irrelevante. Mas, se restaurarmos o que Freud
intencionalmente reprimiu, surge um quadro inteiramente diferente. Se
a primeira identificação (sexual e psicológica) da criança é com uma
mulher da classe trabalhadora e então duplicada e contraditada pela
presença da mãe biológica, pode-se argumentar que o cenário da indi-
viduação será alterado significativamente; o menino tem de separar-se 1
de duas mulheres, de maneiras diferentes. Essa duplicação faz surgir
uma fragilidade e a incerteza da identidade, que é resolvida ou pelo ::

67. Robbins, 1he Sn-vant's Hand. . . , p. 196.

152
"úWassa" tas criadas - Podtr t deujo na metrópolt imperial

menos adiada e administrada, principalmente por referência ao poder


de classe.
No período vitoriano, sugiro, essa duplicação é também administra-
t da projetando sistematicamente sobre as mulheres da classe trabalha-
~
.,
••
dora a ideologia da raça. A identificação original do menino com o
' corpo feminino permanecerá sempre como vestígio, mas elemento in-
tegral de su.t própria identidade. Como a chegada à masculinidade é
precária, requererá sempre constante vigilância e reafirmação ritual.
Talvez essa seja u1na das razões por que a figura da babá na cultura vi-
toriana tardia é tantas vezes investida de atributos e poderes "masculi-
nos". Aqui, as referências ubíquas na vida masculina vitoriana às mulhe-
res da classe trabalhadora como "assexuadas", "masculinizadas",
"vulgares" e "rudes" podem encontrar sua dimensão psicanalítica, ainda
que essa dimensão não seja a única. Tendo isso ent mente, podemos
voltar a Munby.

GÊNERO E CLASSE
Uma narrativa social

l\1unby não estava sozinho em sua obsessão com a imagem duplicada da


feminilidade vitoriana. O influente 1he Madwoman in the Attic, de San-
dra Gilbert e Susan Cubar, traça a etiologia literária dessa duplicação,
pela qual a "tradição patriarcal" vê o ser da mulher como dividido cm
dois: a puta e a madona, a freira e a feiticeira, a donzela e a medusa, a
r
esposa e a sereia, a mãe e a bruxa danada65 • De modo semelhante, 1he
Jfóman and the Demon, de Nina Auerbach, explora como a iconografia
i

•\ masculina vitoriana está repleta de alianças entre mulheres e fadas, mu-
lheres e duendes, mulheres e vampiros, mulheres e toda a panóplia de
'
f rastejantes e serpenteantes mutantes da criação. "Enquanto os vitoria-
~ nos bem pensantes elevavam a mulher até o anjo, sua arte se refestelava

t
1
!,
t
68. Sandra Gilbert e Susan Cubar, 1he Madwoman in the A11i,: 1ht Woman Writer and the
Nin,lunlh Cmtury Litn-ary lmagination (New H2vcn: Y:ue Univet$Íty Prcss, 1979).

153
Couro impaial

com imagens de sereias"69• Na visão de Auerbach, a imagem dupla de


mulher e monstruosidade admitia o poder arquetípico e mítico do femi-
nino: "Imagens fortes de opressão se tornam imagens de poder a custo
suprimido"7<>.
Essas críticas veem a imagem dupla das mulheres como se surgisse
de uma duplicação arquetípica na consciência que poderia ser transcen-
dida por um desafiador ato de vontade estética. Não poderíamos, porém,
e de maneira m:iis :ipropriada, ver essa dupla imagem das mulheres que
assombra a superfície dos textos masculinos vitorianos como se estes
surgissem menos de uma duplicação arquetípica no inconsciente mascu-
lino e mais da duplicação contraditória (e não menos patriarcal) de clas-
se que era uma realidade cotidiana nas casas e infãncias desses homens
de alta classe média? Os duendes e fadas que povoam os textos mascu-
linos poderiam ser vistos como se derivassem não de um inconsciente
universal masculino, mas antes da memória histórica das cozinhas e
fundos onde trabalhavam mulheres da classe trabalhadora, dos colos das
babás e criadas da classe trabalhadora que ecoavam sussurros de fadas
nos quartos das crianças de classe média. As imagens de monstros e
sereias são remanescentes de uma tradição oral trazida pelas mulheres
trabalhadoras. Essas imagens são de fato imagens de poder feminino,
mas são especificamente traços de memória de poder feminino da classe
trabalhadora e deitam raízes em divisões de classe e na mudança histó-
rica. Assim, as imagens de demônios femininos acopladas a imagens de
madonas representam uma contradição geral de classe que era vivida
diariamente dentro d:i c-..:is:i vitoriana: a contradição entre o poder a cus-
to reprimido da trabalhadora doméstica assalariada e a relativa falta de
poder da esposa não assalariada.
Esse ponto é cn,cial se quisermos ver as estratégias genuínas para a
mudança política. Nem Gilberr e Cubar, nem Auerbach identificam •,
plenamente as bases materiais e econômicas da duplicação do eu femi- ;

.
69. l'\ina Auerbach, Tht fli>man and tht D t mon: Thl Lift of a Viaorian Myth (Cambridge:
Harvard Univcrsity Press, 1982), p. 7.
70. Ibidem.
•,:J,,tassa· e as criadas - Poda e deujo na metrópole imperial

nino. Para Gilbert e Gubar, a fuga dos caixões de vidro do texto patriarcal
envolve estilhaçar o espelho e libertar as mulheres da superficie de cristal,
matando anjos e demônios e libertando o "verdadeiro eu" na incandes-
cência de un1 futuro transfigurado. A tarefa emancipadora continua esté-
tica: a escritora "só pode fazer isso revisando os textos do Criador"7'.
Também Auerbach vê a libertação das mulheres como se ocorresse atra-
vés de um ato de vontade feminina transcendental e essencialmente esté-
tica. Mas a dinâmica da transfiguração continua na bruma. A visão ro-
mântica de um eu feminino essencial que explodiria numa chuva de
cristal de palavras e flutuando dos confins do texto-espelho continua
sendo un1a visão estetizada.
Além disso, o heroísmo de uma consciência autogeradora, transcen-
dente e iluminada, sem apoio de qualquer coisa que não uma vontade
emancipadora de autocriação e de uma estética da metamorfose, é es-
sencialmente uma ideia de classe média do século XIX, fabricada por
uma classe ansiosa por criar seu próprio discurso de legitimidade sem
ser capaz de recorrer à ideia de história ou de tradição (que era um:l re-
serva de classe mais baixa ou mais alta). A classe média tinha de afirmar
a liberdade de criar seu ser a partir de sua própria energia de autoge-
ração. Para Auerbach, o passo das mulheres para fora da "moldura im-
posta" do patriarcado requeria um ato de vontade transcendente, libe-
rando a "eterna energia do caráter como metamorfose perpétua"i'l. Mas,
a menos que as contradições históricas e de classe que animam a imagi-
nação patriarcal vitoriana sejam levadas a sério, essa transcendência es-
tética ostentada continuará inacessível para a maioria das mulheres
como erarn os mitos masculinos vitorianos de autonomia de classe mé-
dia para a maioria das mulheres. O "futuro liberado" de Auerbach con-
tinuará resolutamente acorrentado para a vasta maioria das mulheres no
mundo - pobres e analfabetas - como o eram as variadas visões do
romantismo masculino. Precisamos, antes, retornar às contradições de
classe que deram farma ao espelho patriarcal.

jl. Gilbcrt e Cubar, 77u NladW<Jman in the /lttic.. . , p. 76.


72. Aucrbach, 'Thc H{>ma11 a11d thc Dcrno11.•. , P· u8.

155
Couro impuial

O FANTASMA NO ESPELHO

A 4 de julho de 1863, durante as semanas do quente verão em que lVIunby


vagava sem descanso pelas ruelas de Londres, Punch imprimiu uma elo-
quente charge de Sir John Tenniel sobre a moldura de classe que vincu-
lava a imagem espelhada da mulher vitoriana duplicada. Intitulada "A
dama assombrada", ou "O fantasma no espelho", a charge tornava públi-
cas as escandalosas condições de trabalho das costureiras de Londres
(1'igura 2.4). Em junho de 1863, na "alta estaçao" de Londres, uma costu-
reira de 20 anos, Mary Ann Walkley, entrou em colapso e morreu de
exaustão depois de trabalhar 26 horas e meia sem descanso. A charge de
Tenniel, publicada semanas depois, retrata uma senhora que admira sua
imagem num espelho de corpo inteiro e que vislumbra refletida no es-
pelho a imagem surpreendente de uma mulher exausta e à morte, cur-
vada nas sombras às suas costas. Em lugar de um eu feminino unificado,
o espelho reflete a imagem duplicada da feminilidade vitoriana: acima

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Figura 2.4 -A sinistra dupli,afáO do gintro p~la dasst.


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",,J\l(assa• tas criadas - 'Poder t dtujo na mttr6polt impt rial

de uma cascata da saia de babados de renda (metonímia do ócio decora-


tivo), o corpo feminino se divide em dois, um cotovelo branco (sinal de
ausência de trabalho) e um torso desgrenhado de classe trabalhadora,
quase morto de exaustão. O espelho emoldura uma hidra, irmãs siame-
sas que expressam plenamente a reciprocidade contraditória e fatal da
identidade das mulheres da classe trabalhadora e da classe alta. O espe-
lho está na loja, lugar de consumo e troca femininos, onde o trabalho da
mulher trabalhadora se metamorfoseia no prestígio da mulher de classe
alta. O trabalho, assim, se torna um ícone <lo enquadramento social <la
identidade, e a imagem duplicada da feminilidade vitoriana pode ser
vista menos como uma duplicação arquetípica no inconsciente do que
como expressão simbólica da divisão material das mulheres por traba-
lho e classe.
No ramo "suado" da confecção de roupas em Londres, a intrincada
elegância, os elaborados espartilhos, chapéus, penas e punhos de renda
vestidos pelas mulheres das classes ociosas era1n feitos pelas mulheres
pobres, que passavam as piores dificuldades. Subcontratação e salários
mínimos; horas extremamente longas com pagamento miserável; e tra-
balho que era basicamente manual, repetitivo e exaustivo, realizado cm
sótãos lotados e quentíssimos, davam o nome de "suadouro" a um dos
trabalhos femininos mais terrivelmente explorados. A indústria do ves-
tuário expressava, assim, as contradições dominantes do trabalho das
mulheres. Do trabalho das mulheres nos negócios suados dependiam os
vestidos extravagantemente suntuosos das mulheres ociosas de classe
alta de Londres.
Isso envolvia uma semiótica social da visibilidade. Para as classes al-
tas, acordar ao meio dia e dançar até de manhã era .para ser visto como
conspicuamente ocioso; encomendar à tarde um vestido para ser usado
na mesma noite era para ser visto como conspicuamente rico. A sala de
t!star (ostentando móveis artisticamente decorativos e aparadores com
portas de vidro repletos de caras pratarias e porcelanas) era o espaço
onde as mulheres era1n visitadas para serem vistas como conspicuamen-
te ociosas, enquanto o espaço público para a exibição visível da ociosida-
de ern o baile. As roupas caras e elaboradas vestidas pelas mulheres tor-

157
Couro imperial

naram-se os ícones visíveis da prosperidade e do status de classe


masculinos. Ao mesmo tempo, como a charge de Tenniel deixa muito
claro, esses emblemas de prestígio da classe alta dependiam do trabalho
mortal da classe trabalhadora feminina.

CRUZAMENTOS PERIGOSOS
Trabalho e dinheiro

Não é fácil dar conta de uma civilização da mão.


Roland Barthcs
11
Muitos críticos observaram o fascínio libidinoso de Munby com as mãos
das mulheres73• Ao encontrar uma mulher da classe trabalhadora, ele
atentava compulsivamente p~a suas mãos avermelhadas, machucadas e
marcadas pelo trabalho, e então voltava para casa para entesourar o pra-
zer em descrições no diário que estão repletas de brilho erótico adiado. .,
Descrições de mãos femininas voltam repetidamente ao longo dos diá-
rios: "Tirei minha luva (elas não tinham luvas!) para segurar a palma
larga. As duas [ ...] tinham mãos grossas, infinitamente sugestivas ao
toque e à vista"74. Sem dúvida, mãos eram "infinitamente sugestivas"
para Munby porque visivelmente expressavam as sobredeterminações
de sexo, dinheiro e trabalho.
As mãos expressavam a classe das pessoas e sua relação com o tra-
balho. Mãos delicadas eram mãos não manchadas pelo trabalho. A lin-
guagem das luvas falava da "boa criação", do lazer e do dinheiro, en-
quanto suaves mãos brancas revelavam que as pessoas podiam comprar
i
o trabalho de outras. Como observou Hobsbawm: "A maneira mais '

segura de distinguir-se dos trabalhadores era empregar trabalhadores"75•


Assim, 1nulheres de classe média que em verdade passavam seus dias

73. Hudson, Munby. .. , p. 16; Robbins, 1he S<N.Jant's Hand... , p. 2; Davidoff, "Class and Gen-
der... ,» p. 41.
74. Munby, "Diary", in Hudson, Munby..., p.134.
75. Eric Hobsbawm, lnduury and Empire (Harmondsworch: Pc:nguin, 1968), I'· 85.
ºv'Waua· e as criadas - Poder e deujo na metrópole imperial

esfregando, lin1pando e polindo iam a extremos para disfarçar seu tra-


balho e apagar sua evidência das mãos. Ao 1nesmo tempo, as mãos eram
ícones metonímicos flutuantes, a palavra referindo-se a inteiras classes
.. artesanais: dockhands [trabalhadores das docas],farmhands [trabalhado-
res na lavoura]. Por essa razão, as mãos eram também ícones anacrônicos,
aparecendo com grande força simbólica no momento mesmo quando o
trabalho manual estava en1 vias de ser substituído pelo trabalho mecâ-
nico - o trabalho vivo da mão seria logo substituído pelo trabalho
morto da máquina.
As 1nãos representam um traço histórico da memória, a nostalgia de
um momento econômico em desaparição. Ao mesmo tempo, represen-
tam um traço de memória psicológica, a nostalgia de um momento sexu-
al em desaparição (que está diretamente relacionado ao domínio econô-
mico também em desaparição). As mãos mantêm o traço de memória
de uma fixação anterior - aquelas mãos úmidas, ásperas e avermelhadas
da classe trabalhadora que banhavam, acariciavam, castigavam e alimen-
tavam os meninos vitorianos que viriam a ascender ao poder. Por essa
razão, elas carregam a força de um fetiche. As memórias masculinas vi-
torianas estão cheias de lembranças do cheiro e da sensação distintivos
das mãos das babás. Assim, a memória sexual veio a se formar em torno
de uma linguagem corporal de sujeira e limpeza e levou a uma afinidade
iconográfica em que sexo e trabalho se tornaram inextricáveis. Davidoff
observa que as mãos tinham conotações sexuais explícitas: eram as mãos
que faziam o "trabalho sujo" da masturbação 76• As mãos tambén1 eram
instrumentos do castigo, levando a urna economia de prazer e dor nos

l
riLuais de flagelação a que os vitorianos era111 Lão afeiLo:;.
As mãos eram os órgãos cm que a sexualidade e a economia vitoria-
nas literalmente se tocavam. Como disse Robbins: "O que produz o
toque das mãos é o trabalho" 77• A atividade de tocar as crianças era tra-
balho, ainda que mal pago. Mas o que também produz o toque das mãos
é pagar pelo trabalho. A mão do senhor toca a da criada nu1n momento

76. Davidoff, ~class and Genáer... •, p. 41.


i7. Robbins, 'lhe Servanú Hand... , p. :o.

} 159
Couro imptrial

passageiro de intimidade física na troca de dinheiro, troca ritual que


confirma e garante a cada vez o domínio econômico do homem sobre o
corpo, o trabalho e o tempo da mulher. Ao mesmo tempo, porém, con-
firma sua dependência do trabalho dela. Como veremos, para Munby o
pagamento em dinheiro fazia parte da estrutura de sua vida sexual com
grande força.
Steven Marcus mostrou que "as imagens cm que a sexualidade era
representada na consciência eram extraídas da esfera da atividade socio-
econômica e estavam rdadouadas às preocupações e ansiedades sobre
problemas de acumulação, produção e gastos excessivos"78• Essa cone-
xão se dá cm parte porque, como sugeriu Foucault, faltava à classe mé-
dia um meio para definir-se como classe e, portanto, ela tinha de inven-
tá-lo. A sexualidade (a relação com o próprio corpo e com os corpos dos
outros) tornou-se a linguagem para expressar a relação com a classe (a
relação com o próprio trabalho e com o trabalho dos outros). Assim,
a classe média se definia como diferente da aristocracia e das classes
trabalhadoras, que gastavam, sexual e economicamente, sem moderação
e que preferiam não trabalhar. Ela se distinguia cm virn1de de sua con-
tenção sexual, sua monogamia (apenas para as mulheres, como obser-
vou Engels) e sua contenção econômica (ou frugalidade). Donde o po-
der excessivo da relação entre sexo e dinheiro nas mentes vitorianas.
Por volta do final do século XIX, tratados contra a sexualidade se refe-
rian1 especificamente à maneira como a masturbação interferia na capa-
cidade de trabalho dã ·pessoa. Em 1891, por exemplo, o Dr. Remondino
atacava o lamentável prepúcio cm sua History ojCircumcision e compa-
rava a circuncisão a um "bom seguro de vida" e a u111 "1nelhor investi-
mento de poupança", que promoveria maior capacidade de trabalho e
de poupança79 •

78. l'vlarcus, 7h, Othtr Victoria,u. .. ~ p. xiii.


79. Dr. P. C. Rcmondino, HiJtory ofCirrumciJion from th, Earlint Times to the Preunt (Lon-
dres, F. A. D:i.vis, 1891).

160
"ú\,!assa • t as criadas - 'Podtr t desejo na me/rópoü imptrial

CRUZAlvlENTOS PERIGOSOS
Abjeção de classe e de gênero

O homem casado pode chorar


E tropeçar nas trincheiras,
Pois as mulheres estão resolvidas
A vestir camisa e calças.
Canção popular dos anos 1850

Nas descrições de Munby, o avermelhado áspero e pesado das mãos das


mulheres é uma imagem que evoca a excitação e o intumescimento se-
xuais. As mãos estão intimamente relacionadas ao espetáculo do tra-
balho feminino que tanto prazer de voyeur lhe dava. i\1as, ao mesmo
tempo, o que o fascina nessas mãos é o que ele percebe como falta de
feminilidade: sua masculinidade. Ele registra uma e outra vez o primei-
ro momento ritual de seus encontros: "Eu olhava instintivamente para
suas mãos: eram quadradas e masculinas"80• Mais que isso, as mãos for-
tes, ásperas, machucadas, vermelhas e masculinas o faziam sentir-se, por
contraste, positivamente feminino. Num agosto, viajou de trem para
o Palácio de Cristal, para o aniversário de Forrester ("entre todas as
outras, a cena e momento para ver as classes trabalhadoras inglesas")81•
Lá, como sempre, foi cativado pela visão das "mãos sem luvas" de uma
jovem trabalhadora. Forjando uma desculpa para tomar sua mão na
dele, ele suspira com o choque do contraste: "Oh, companheiras de bai-
le, que amplidão de carne para pegar!" O que fascina Munby na cena é
precisamente a confusão dos papéis de gênero: "Sua mão direita, massa
f
l
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grande e vermelha, repousa sobre seu vestido claro; era muito ampla e
t
quadrada e grossa - tão grande, forte e áspera quanto a de um pedrei-
ro de um metro e oitenta[ ...] não tinha nada de feminino" 82 • Em con-
traste, a própria mão dele parecia "muito branca e pequena ao lado da

80. Munby, "Diary", in Hudson, lv/unby... , p. 70.


81. Idem, op. cit., p. 71.
82. Ibidem.

161
Couro imperial

dela" 8J. Em outra ocasião, ele nota como gn1pos de faxineiras retacas e
com os rostos pretos faziam com que uma tropa de homens cavalgando
com luvas perfeitas e ociosa arrogância parecessem positivamente femi-
ninos em contraste84•
Hudson foi o primeiro a notar a obsessão de Munby com o que con-
siderava os traços "masculinos" das trabalhadoras8S. Uma camponesa
maciça, sólida e de costas largas, "alta e forte como um homem", era uma
criatura digna de ser vista", exultava ele. Ele lamentava a moda que fazia
"efeminadas" as leiteiras. Comentaristas notaram seu interesse nas botas
masculinas usadas pelas trabalhadoras. Avidamente Munby anotava e1n
seu diário encontro com trabalhadoras em que ele se sentia deliciosa-
mente feminino. Numa viagem a Devon para observar mulheres que
escalavam rochedos com cordas para coletar mariscos, ele observou com
certo prazer: "Eu, o homem do grupo, fui deixado numa posição ridícu-
la; um espectador inútil desse vigoroso atletismo"86 • Noutra viagem à
costa para olhar as coletoras de mexilhões que revelavam seus "membros
dourados e nus", ele é isolado pela maré e, outra vez sem resistir, tem de
abandonar seu "orgulho masculino" para subir nas costas de uma forte
pescadora, que o carrega pela água. Em outra entrada no diário, ele re-
gistra ser resgatado da importunação de prostitutas por uma forte jovem
vendedora ambulante irlandesa. ••
As descrições de Munby dos traços "masculinizados" dessas mulhe-
res são tão insistentes que fica difícil lembrar que essas distinções de
trabalho com base··oó gênero eram invenções sociais recentes à época.
Era ainda um desenvolvimento relativamente recente nos relatos popu-
.
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{
lares e científicos definir como "assexuadas"as mulheres que faziam tra-
balho servil. l\.1as esses discursos eram cruciais para a vida de fantasia de
Munby, pois nessas mulheres ele podia desfrutar dos traços masculinos

83. Ibidem.
84. Idem, op. cir., p. 194.
S5. Idem, op. cit., p. 71.
86. Idc:m, op. c:it., p. 256.

162
"cJ\,lassa' tas criadas - P odtr t dtst}o na m t trdpoü imptrial

pelos quais ansiava sen1 pôr em perigo seu próprio sentido prescrito de
masculinidade.
Como sempre, era a transgressão do gênero que o fascinava. O que o
extasiava era o espetáculo dos limites ultrapassados - aquele momento
excitante cm que a mulher se confundia com o homem e o homem com
a mulher. O espetáculo voyeurístico do travestismo o prendia irremedia-
velmente. Ele viajou centenas de quilômetros pela Grã-Bretanha e pelo
continente à procura de trabalhadoras que se vestiam como homens. Foi
a Yorkshire para olhar a maneira como as pescadoras prendiam as saias
cm volta dos joelhos, improvisando calças. Em 1861, viajou 300 quilôme-
tros para Devon simplesmente para observar mulheres que recolhiam
mariscos com calças de algod~o. As mineiras de Wigan, que usavam
calças e mal eram distinguíveis de homens, exerciam uma atração irre-
sistível sobre ele.
Travestis ocupavam um lugar especial em sua vida. Ele pôs um anún-
cio no jornal procurando notícias de uma "marinheira" acerca de quem
tinha ouvido e ficou "extremamente excitado e desesp eradamente ansio -
so" a ponto de faltar ao trabalho, caso ela o chamasse87. Visitou uma
delegacia de polícia para assistir ao exame de uma criada de todo serviço
que viajava disfarçada de homem, fumava charutos e namorava sua se-
nhoria88. Viajou para Strood com um superintendente de polícia para
encontrar um "Richard" Bruce, mulher que usava roupas de homem,
trabalhara como estivadora, marinheira e balconista, vivia em alojamen-
tos masculinos e fora presa a caminho de Dover para trabalhar como
professor na França. Os diários registram em detalhe o choque de pra-
zer que esses exemplos de confusão de gênero sempre lhe provocavam.
Um jovem alto, em trajes das terras altas, com as pernas nuas dos joelhos
aos tornozelos (sempre fonte de excitação para Munby) acaba sendo
uma mulher. Um forte acrobata sem qualquer coisa de "fraco ou femini -
no" é uma menina (Figuras 2.5, 2.6) 89•

Si- Idem, op. cit., p. 85.


ES. Idem, op. cit., p. 110.
~9. Idem, op. cit., P· :54.
Couro imperial

F.

Figura1 2-5, 2.6 - O circo da ambivalbzâa de gênero.

Os acrobatas "semelhantes a macacos" sempre o atraían1 para os cir-


cos, onde, por pouco dinheiro, podia satisfazer seu voyeurismo conforta-
velmente e voltar para registrar o momento em seu diário: "A própria
Lizzie Fostcr estava vestida como um acrobata, de malha, com calça
justa enfeitada e um colete sem mangas; o cabelo arrumado como o de
uma mulher"9 º. Uma entrada de junho: "Fui ao circo[... ] para ver 'Elia';
uma criatura esplêndida, alta e bem feita, com grandes olhos brilhantes,
traços bonitos e cabelo escuro e abundante. Diz-se que é um homem
disfarçado"91• Ele obteve intenso prazer do espetáculo dessas meninas
"nuas e desprotegidas", com seus corpos enlaçados com os de homens
seminus, expostas aos olhos e binóculos dos espectadores9'. Também
ficou impressionado pela visão de homens travestidos e feminizados: "O
próprio homem, Leotard, era belo de ver; admiravelmente bem feito e

90. Ibidem.
91. Idem, op. cit., p. 175.
9:. Idem, op. cit., p. 286.
•c7vtassa• e as , riadas - <pqder e deseja na mttrópqfe imperial

proporcionado; braços, ombros e pernas musculosos; e tornozelos e pés


tão elegantes como os de uma dama" 9,.
Em certa ocasião, ele foi à Sala Egípcia para ver uma exibição de gê-
meos siameses. O espetáculo dos seres geminados evocava a dinâmica
subjacente a seu voyeurismo. Talvez a visão de um ser humano que "não
é completamente separado de todos os outros" tenha oferecido uma ana-
logia espontânea de sua própria identidade94 • Com a ambiguidade de
gênero em circunstâncias controladas (a exposição, o circo), ele podia
do1ninar as ambiguidades (Figuras 2.7, 2.8). Para l\ilunby, o atrativo ir-
resistível das trabalhadoras era que, ao observá-las, ele podia desfrutar
voyeuristicamente dos traços masculinos que desejava sem pôr em risco
seu senso socialmente prescrito de masculinidade95• O circo atraía l\llunby

Figuras 3.7. 3.8- Encenando a transgressão de gt nera.

93. Idem, op. cit., p. 97.


94. Idem, op. cit., p. 266.
'.
95. Ver Davidoff, "Class and Gender... •, p. 49.

1
Couro imp~rial

uma e outra vez, pois oferecia-lhe uma arena controlada (ela mesma no
limiar da sociedade) em que as perigosas ambiguidades de gênero po-
diam ser representadas e administradas pela troca de dinheiro. A troca ele '. '


dinheiro era um momento necessário na cena, pois, pela troca ritual
de dinheiro, a perigosa troca de gêneros podia ser contida. Munby dava
ritualmente a mulheres trabalhadoras um punhado de moedas, e a troca
confirmava sua fantasia de domínio econômico sobre um espetáculo que
de outra maneira poderia ter sido perigosamente emasculante.
O que quero dizer aqui é que era só por referência ao discurso da
degeneração e do trabalho das mulheres que Munby podia conferir às
1nulhercs trabalhadoras esses atributos "masculinos". Com o discurso
sobre a degeneração, quanto mais servil o trabalho pago que uma mu-
lher fazia, tanto mais ela seria masculinizada e assexuada; tanto mais
ela era uma raça à parte. Ao ~esmo tempo, a própria história psicodinâ-
mica de Munby oferece um relato sugestivo da dinâmica doméstica de
classe subjacente ao discurso da degeneração e da identificação de traba-
lhadoras brancas com os negros.

A AMB IG UIDADE S OC IAL


'•
E O DISCURSO S OBR E A RAÇA

A esta altura, surge a terceira dimensão, espontânea, na vida psíquica de


Munby: a equivalência de mulheres da classe trabalhadora com homens ·,
de outras raças que não a branca. Um desenho sem data do caderno
de esboços de Munby mostra d uas mulheres que se encaram de perfil
(.Figura 2.9).
Uma delas é uma dama, a outra, uma carvoeira, e cada uma delas
representa um tipo, um espécime de sua classe. lVIas a identidade de
classe de cada uma delas só é revelada por sua aparência exterior. Reve-
la-se, assim, que a identidade de classe é relacional e, portanto, aparece
aqui c_o1no uma invenção social escrita na linguagem das roupas e de
sinais físicos. Há duas razões por que as mulheres se encaram de perfil.
P rimeiro, na lógica dos relatos raciais da época, o perfil do rosto é o
símbolo mais eloquente da essência da "raça". Segundo, é necessário que

166
•cJWaua· tas cri11das - 'Podtr t dtstjo na mtlrdpolt imptrial

as mulheres se encarem, pois seus olhares se reconhecem e se confirmam


entre si como representantes de suas classes. O esboço revela com maior
clareza a reciprocidade da identidade através da economia do olhar. O
eu passa a existir pelo reconhecimento; mas, ao mesmo tempo (e contra
a metafisica hegeliana de consciências sem corpo), o esboço revela a
identidade de classe como produto de poder social desigual, conformado
e legitimado através dos rituais socialmente sancionados de deferência e
condescendência.

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Figura 2.9 - A racializafáO da difom;a dt dasst.

Há, porém, uma segunda dimensão no esboço. O que parece ser um


contraste principalmente de classe é representado como um contraste
mais fundamental de género. Dentro do léxico simbólico da sexualidade
vitoriana, a dama é um retrato de exagerada feminilidade. Seu perfil é
delicado e belo, seu cabelo (símbolo vitoriano d a sexualidade e de reali-
zação evolucionária), contido e penteado segundo a moda, suas saias,
elegantes e limpas. E la estende uma mão nua, branca e imperiosa. Em
Couro imp,rial

contraste, a carvoeira é o retrato da masculinidade. Veste uma jaqueta


masculina e calças rasgadas e sujas. A barra esfiapada da calça revela
tornozelos grossos e botas enormes. Seu perfil é pesado e escurecido por
baixo de um capuz sujo. Um torso maciço sustenta braços igualmente
maciços, e as mãos quadradas, muito maiores que as de sua equivalente
feminina, seguram a ferramenta de seu trabalho - uma fálka lata de
óleo que se projeta pouco abaixo de sua cintura e aponta para o meio do
corpo da dama.

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Figura 2.10 -Ahjerão: o Umíwl objeto FiKWa 2.u - O es/Joro de Boompin' Nelly,
do dtsefo. Eshofo de Munhy de 1i mamo uma mineira.
com a carwâra.

Consideremos agora outro esboço (Figura 2.10). Outra vez, duas fi-
guras se encaram. A figura à direita é uma carvoeira, sua aparência mui-
to semelhante à figura no esboço anterior. Outra vez, o rosto está escu-
recidQ e com um capuz, os ombros volumosos, sob um casaco masculino.
As grandes coxas, entreabertas, vestidas em calças de homem esfarrapa-
das, voltada para melhor mostrar o torso quadrado. lVlas à sua frente,
onde a dama do outro esboço ficava, agora est:i o próprio Munby. Em

168
ºú\l(assa • e as criadas - 'Poder e deujo na metrdpolt imperial

contraste com a figura "masculina" à sua frente, sua figura assume uma
aparência sutilmente feminina. Seu perfil é aquilino e pálido, nervoso e
"bem nascido". Sua mão, delicadamente afilada, como a da dama no
esboço anterior, está estendida e apoia-se suavemente no muro da ponte.
Seus pés, con10 os da dama, são menores que os da carvoeira e pontudos.
Sua aparência tem uma aura de fragilidade, uma vulnerabilidade quase
de inválido ao lado do volume pesado da carvoeira. A notável analogia
entre os dois esboços revela uma espontânea lógica do desejo. Em ter-
mos da forma e..xterior do corpo, Munby revela u,na identificaçao secre-
ta con1 a classe alta feminina em relação às masculinizadas mulheres da
classe trabalhadora.
Há outra dimensão visível nos esboços que não foi notada por ou-
tros comentadores. Ainda que a carvoeira seja a encarnação da ambi-
guidade de gênero, ela também representa um cruzamento racial, pois,
à parte sua "masculinidade", sua característica mais notável é sua "ne-
grit1.1de"96. Ela apresenta uma caricatura grotesca dos estigmas da dege-
neração racial: sua testa é achatada e curta; os brancos de seus olhos
encaran1 tudo g.rotescainentc de seu rosto preto; os lábios são artificial-
mente cheios <: pálidos. Seu pescoço afunda-se nos ombros; suas mãos
são simiescas, negras e improvavelmente grandes; as canelas são curtas.
O esboço de l\1unby de Boompin' Nelly revela estigmas semelhantes
~ (Figura 2.u). A figura é inteiramente negra; ela senta curvada e sorum-

bática, com os braços colossais apoiados nas enormes pernas, curtas e
afastadas.
0!1al é o significado desta terceira e insistente narrativa da raça?
l\llunby se refere muitas vezes à estranheza "racial" das mulheres da clas-
se trabalhadora. Ele toma nota especial das faxineiras "de rosto preto";
chama as mulheres de "boas coolies"97 , e se refere com frequência ao "tra-

96. Davidoff comentou sobre a equivalência das criadas com sujeira e poluição; a cquivalên·
eia de sujeira com negritude; e da negritude com sujeira, pecado, baix~a e fciura dentro
de uma longa tradição no Ocidente. E ela nota o simbolismo ampliado depois do século
XV1 com o continente negro e a escravidão. Mas há mais em jogo do que a simples evo-
cação de uma longa tradição simbólica. Op. cit., p. 44.

.. 97. Munby, "Oiary", in Hudson,Munby... , P· 174•
Couro imp~rial

balho negro" das trabalhadoras (Figuras 2.12, 2.20). Seu interesse insaci-
ável em inversões de gênero é incendiado quando ele aprende que na
África as mulheres são guerreiras, políticas e também trabalhadoras e
carregadoras de pesos98• Ele fica intrigado com as mulheres que, à época,
viviam disfarçando-se como menestréis negras e dava-lhes dinheiro por
sua coragem de escurecer o rosto (Figura 2.21)99. Assim, os perigosos
·•
cruzamentos de gênero e classe são negociados projetando sobre eles a
retórica da raça. Um dia, ele registra uma ida à Sociedade Geográfica
para ver um grande gorila empalhado e evoca a irresistível analogia entre
as trabalhadoras e os macacos: as mãos do gorila, de quatro a cinco po-
legadas de largura, lembram-lhe as mãos de Arnelia Banfield, uma cria-
da do campo, e de outras trabalhadoras que viu'ºº .

·.~......

..

'l

Figura 2.12 - Mulhnfálica com pá, raâalizada.

98. Idem, op. cit., p. 185.


99. Idem, op. cit., p. 157.
100. Idem, op. cit., p. 102.

.<

170
•c.7vtassa • e as criadas - 'Poder e desejo na metrópole imperial

- ...
Figura 2.r3 -A racializa;ão da Figura 2.r4 - Mulher defundição:
diftrm;a sexual o capuz como máscara-fttiche.

-- -

\
\ ,
\ .. \ 1

.........

Figuras 2.rj, 2.16- Rara como ftticht


Couro impaial

•'
Figura 2.20 - Rafa romo fttirhe

.....

Figuras 2.17, 2.r8, 2.19 - Rara romo fttiche

'
<

Figura 2.21 - Passando-se por negra. '


Esb{)(o de J\1/unby de uma menestrd de ma.

172
'cJ\'(assa· tas criadas - Podtr t dtstjo "ª mttrópolt imptrial

IMPERIALISMO E MINERAÇÃO

l\llulheres da classe trabalhadora, isto é, mulheres que eram pagas para


trabalhar, eran1 por isso vistas como se habitassem um espaço anacrô-
nico, encarnando uma regressão a um momento anterior do desenvol-
vimento racial. Subjacente a essa retórica de classe e raça, contudo, está
uma grande contradição da economia vitoriana: a transição de utn
industrialismo baseado na escravidão imperial para um imperialismo
industrial ua:;cado no trabalho assalariado.
Peter Fryer nos lembra que havia africanos na Grã-Bretanha antes
dos Ingleses1º 1• Sempre houve uma pequena, mas contínua, presença
negra na Grã-Bretanha. Essa presença aumentou depois da invasão do
Novo Mundo e da escravidão do Renascimento, de tal forma que, cm
!.
'
r6or, a Rainha Elizabeth se declarou "altamente desconcertada para
entender o grande número de negros e mouros que [ ...] se arrastaram
para esse domínio"1º 2 • De qualquer modo, a despeito de tal régia apre-
ensão, negros serviam como trombeteiros na corte, e damas de compa-
nhia da rainha se divertiam disfarçando-se de negras nos bailes de más-
carns. Ao final do século XVI, a posse de um escravo negro dava
• prestígio e glamour às familias nobres. No início do século XVII, pajens
e lavadeiras negras eram percebidas, ainda que em pequeno número,
como símbolos de status nas grandes mansões da nobreza inglesa. As-
sim, há uma analogia histórica entre os escravos negros de uma época
anterior e os trabalhadores domésticos do período vitoriano co1no sím-
bolos de status de classe.
A alvorada do sistema fabril e a consolidação do capitalismo britâ-
nico se fundavam no florescente comércio triangular em têxteis, escra-
vos, açúcar e especiarias. Como diz Hobsbawm: "QJiando dizemos in-
dustrialização, dizemos algodão. E quando dizemos algodão, dizemos

...

101. Pecer Fryer, Staying Powtr: 7he Hütory ofBlad:: People in Britain (Londres: Pluto Press,
1984), P· I.
102. Idem, op. cit., p. 10.

173
Couro imptrial

escravidão"103 • Entre 1630 e 1807, estima-se que 2,5 milhões de escravos


foram vendidos pelos mercadores de escravos britânicos. O comércio de
escravos era "o primeiro princípio e fundamento de todo o resto, o me-
canismo principal da máquina, que põe em movimento todas as en-
grenagens"'º•.
Ricos de repente, os plantadores voltavam à Grã-Bretanha com es-
,
cravos negros para exibir sua riqueza e prestígio, e o mesmo faziam al-
guns oficiais dos navios negreiros e até marinheiros, eventualmente.
Uma criança negra em libré vistosa e enfeitada era um emblema visível
de posses, poder e fortunas imperiais fabuladas. Por volta do século
XVIII, havia cerca de dez mil negros na Grã-Bretanha trabalhando
como pajens, valetes, lacaios, cocheiros, cozinheiros e criados'º>. As mu-
lheres eram cozinheiras, lavadeiras, costureiras e babás, e algumas eram
levadas à prostituição por -dificuldades econômicas. Outras lutavam
'
numa existência tenaz e precária como mendigas, cantoras de rua e mú- '
sicas, às vezes em roupas coloridas. E algumas africanas famosas, como
Saadjie Baadman, eram exibidas como aberrações'º6 •
Por essa época, as negras eram cada vez mais associadas a uma sexua-
lidade lasciva e sem freios. A associação entre negros e sexualidade vem
da Idade Média: a própria sex"Ualidade era chamada havia muito de "pe-
cado africano", e negros em mapas coloniais eram frequentemente re-
presentados com pênis exageradamente longos. Na própria Grã-Breta-
nha, a instituição ~~ escravatura tinha desaparecido por volta de 1790, ·'
não por qualquer desgosto moral dos britânicos, mas pelo sucesso da
continuada resistência negra. Além das fronteiras nacionais, o tráfico de
escravos britânico terminou e1n 1807 e a escravidão, em 1833. Nesse tem-

103. Hobsbawm, IndUJtry and Empirt, p. 36.


104. Idem, op. cit., p. 38.
105. Frycr, Staying P<rWer... , p. 72.
106. Ver Sander L. Gilman, Differmu and Pathology: Ster:otypu ofS,xuality, Rau and Mad-
mu (Ithaca: Comell Universicy Press, 1985), capítulo 3. Ver também Ben Shephard,
"Showbiz lmperialism: lhe Case oí Peter Lobengulat in John M. Mackenzie (org.),
Imp,rialúm and Popular Culturt (J\1anchcster: Manchester Univcrsicy Press, 1986),
pp. 94-112.

174
~ ·cJl,[aSJa· f as criad as - 'Podu t dntjo na mttrdpolt imperial

1
j
po, colonos e plantadores brancos manifestavam seus temores de per-
der o controle sobre a propriedade e o trabalho, num discurso obses-
sivo sobre a ameaça de manchas no sangue pelos casamentos mistos.
Esse temor à miscigenação nas colônias alimentava um discurso an-
I
1
sioso e vituperativo sobre a perigosa inclinação das mulheres brancas
pelos negros. Nos anos 1780,James Tobin observou a "estranha par-
cialidade que as ordens mais baixas de mulheres mostravam en1 rela-
ção a eles"'º7•
A associação que Munby fazia entre mulheres da classe trabalha-
dora e africanas estava, assim, longe de ser uma idiossincrasia. Ao
contrário, ele se apoia numa associação encontradiça e bem estabele-
cida que, por sua vez, se funda nos suportes econômicos da Revolu-
ção Industrial. O significado mais profundo da dimensão racial em
sua vida de fantasia pode ser mais bem explorada por referência às
mineiras de Wigan que o levavam a sair de Londres para vê-las tra-
L balhar, de calças e sujas, extraindo laboriosamente da terra o carvão
1
da Grã-Bretanha.

GÊNERO E MINERAÇÃO

Durante mais de 30 anos, Munby viajou para o Norte para ver as minei-
ras de Lancaster "em sua sujeira". Mas seu fervoroso interesse por essas
mulheres era mais que um capricho privado, pois. à medida que o século
avançava. as mineiras viravam o centro de um debate feroz sobre o tra-
balho e a sexualidade femininos. Mulheres tinham trabalhado nas minas
de carvão por séculos, na maioria das vezes como "extratoras" nos notó-
rios arreios e correntes com que puxavam as barricas de carvão através
de túneis estreitos e encharcados - em certos lugares carregando o car-
vão em cestos às costas, em escadas íngremes, até a superfície'º8• Em
1800, trabalhadores britânicos extraíam da terra 80% de todo o carvão, e

107. Frycr, Staying Powtr.. . , p. 161.


108. Angcla John, By tht Swtat of 1luir Br=: Womm Jfór~m at Vfrtman Coai Mines (Lon-
dres: Koutlcdgc, 1984), capítulo 1.

1 75
Couro imperial

muitos mineiros eram ainda mulheres. Então,em 1842,convergindo com


os esforços gerais para expulsar as mulheres da competição com os ho-
mens pelo trabalho assalariado, foi publicado o escandaloso Primeiro
Relatório da Comissão sobre o Emprego de Crianças nas Minas. Este
foi rapidamente seguido pela Lei de Regulamento das M inas de Car-
vão, que baniu as mulheres e meninas do trabalho subterrâneo. Mas,
durante o resto do século, as mulheres ainda trabalharam na superfície
das minas, quebrando e carregando o carvão com picaretas e pás, en-
chendo os vagões de trem, empurrando e esvaziando os pesados vagões
das minas.
As mulheres de Wigan exemplificam as contradições nas atitudes
vitorianas em relação ao trabalho das mulheres e põem em relevo o con-
flito entre a imagem da mulher ornamental e ociosa e a realidade do
trabalho manual feminino. No entanto, muito do ultraje em relação
ao espetáculo de mulheres de calças manejando picaretas e pás era hipó-
crita, pois o trabalho delas era às vezes mais extenuante e menos preju-
dicial do que outras ocupações. Uma jovem criada de todo serviço, por
exemplo, podia trabalhar horas mais longas e extenuantes carregando
baldes de água ou cestos de carvão por muitos lances de escadas, esva-
ziando baldes malcheirosos de água servida, esfregando, limpando e po-
lindo - todo o tempo isolada da familia e da comunidade, miseravel-
mente paga e quase sempre emocional e fisicamente à mercê dos homens
da casa. Mas trabalho doméstico, ainda que mais difícil e debilitante, era
trabalho domésticó; õculto na cozinha e no porão - afronta menos vi-
sível à emergente ideologia da ociosidade feminina. E, como esse não ••
era um campo de competição com os homens, não havia clamor por
essas mulheres.
Havia outras razões para a histeria sobre as mineiras. Embora a nova ·
economia industrial fosse construída sobre o algodão, sua energia vinha
do carvão. A mineração era obviamente central para o surgimento do
capitalismo. No início, o capitalismo foi financiado pelas minas de ouro
e prata da América Latina; agora era o carvão que alimentava o impe-
rialismo industrial. No entanto, a mineração era uma indústria contra-
ditória. Allan Sekula fez diversas obse::rvações muito importantes a esse
•c:i\1aJJa · tas criadas - Poder, du,jo na mttrópol, imperial

respcito' 09 • Ainda que a mineração fosse a principal força por trás da


acumulação primitiva da riqueza industrial, ela continuava a ser uma
indústria rural, localizada cm áreas re1notas e deliberadamente subde-
senvolvidas. A tecnologia da mineração antecipou o sistema fabril, mas
continuava, de qualquer maneira, como uma indústria manual, já bem
avançado o século XIX. Mas, embora manual, em nível simbólico tam-
bém representava "a forma prototípica da indústria". E, mais que qual-
quer outra prática, a mineração exemplificava "a dominação direta da
natureza, a extração de valor da natureza por meios alheios. A minera-
ção é a antítese simbólica da agricultura""º.
Ao mesmo tempo, numa tradição cultural que vinha do século XVII,
a mineração se tornou a metáfora do domínio científico e filosófico do
mundo'". Não é preciso dizer,embora Sekula seja indiferente ao gênero,
que a mineração também se tornou a metáfora do domínio sexual mas-
culino do mundo. Por todas essas razões, a mineração adquiriu uma
carga simbólica poderosa e, com o avanço do século, o espetáculo de
mulheres fortes, musculosas e encardidas trabalhando nessa indústria
vital e contraditória se tornou cada vez mais intolerável.
Como observa Sekula, "a cultura das comunidades mineiras é fre-
quentemente tanto militantemente proletária quanto rica no sentido da
continuidade rural e de resistência à disciplina industrial"112 • Para ade-
quar essa cultura rural rica, militante e rural à lógica da disciplina indus-
trial, o mundo da mineração tinha de ser racionalizado. E, para ser ra-
cionalizado, tinha de ser sistematicamente representado"l.

109. Allan Sekula, Photography Again11 tht Grain: E11ays and Photi, l~rh - 1973-1983
(Halifax: Press of rhe Nova Scoti:1 College of Art and Design. 1984), pp. 193-268.
110. Idem, op. cit., p. 204.
m. Ibidem.
112. Ibidem.
113. Ibide m.

1 77
Couro imp,rial

RAÇA E O POLICIAMENTO DO
TRABALHO FEM[NINO

Por essas razões, não é de surpreender, então, que os mineiros, particu-


larmente as mineiras, acabassem profundamente implicados no discurso
emergente sobre a degeneração racial. Depois dos anos 50, as narrativas
de raça e gênero elaboradas pelos cientistas raciais, poüticos, novelistas e
planejadores sociais ofereciam importante fonte de representação sim-
bólica a que se podia recorrer nos esforços para racionalizar e disciplinar
a indústria da mineração. Nos jornais, relatórios governamentais, relatos
pessoais e revistas, as mineiras eram representadas como uma raça "à
parte", vistas como párias raciais, historicamente abandonadas, isoladas
e primitivas. Cunning Bruce, parlamentar escocês, observou que o povo
1nineiro era "olhado como uma raça separada"'4 . O i'vforning Leaderdes-
crevia a "dura raça" que empurrava e manejava os vagões como "amazo-
li
nas industriais"ns_ Frances Hodgson Burnett falava de sua "existência
meio selvagem"n6• 7he Quarterly Review, ignorando o fato de que as
mulheres erarn mineiras há séculos, ventilou um hiperbólico espanto
diante do espetáculo dos novos espécimes raciais: "A terra parece ter ti-
rado de suas entranhas pela primeira vez outra raça para espantar-nos e
levar-nos à reflexão e à compreensão"117•
A visão das mineiras conjurou imagens ansiosas de degeneração ra-
cial e sexual, evocando um conjunto de associações entre mulheres, lou-
cura, abandono sexual e o irracional. Uma testemunha as descrevia como
"esquisitas criaturas escuras, figuras de mulher, vestidas metade como
homens e metade como mulheres, mergulhando aqui e ali, como que
envolvidas nalguma saturnal tumultuada"ª8• O trabalho das mulheres,
como antes, tornou-se a medida da posição dos mineiros na hierarquia

u4. Apud AngelaJohn, By tb, Sw,at ef1htir Bro-w... , p. 16.


115. Idem, op. cit., p. :18.
116. Idem, op. cit., p. 187.
n7. Idem, op. cit., p. 45.
118. Id.,m, op. cit., p. 27.
•,:Jl,tassa• tas (riadas - P odtr t dtujo na mttrópolt imperial

da "raça" britânica, e os marcava como atrasados nas regiões próximas da


degradação racial. Plummer descrevia o trabalho das mulheres de Wi-
gan como "uma espécie de trabalho que é um dos laços remanescentes
pelos quais nossa civilização atual se une a urn passado bárbaro"119• Ri-
chard Ayton, um dos primeiros a condenar as minas, apelou, cm tom um
tanto santarrão, à suposta elevação racial e à galanteria do homem britâ-
nico: "A estima pelas mulheres é um teste da civilização de um povo; e é
escandaloso, num país de homens galantes, vê-las sacrificadas à áspera
,.4 lida nas minas de carvão"'ªº. Porque as mulheres trabalhavam - forte e,
visivelmente, por dinheiro - os políticos fulminaram:

As costas e membros de suas próprias conterrâneas são quebrados e sua na-


tureza moral é corrompida por uma espécie de escravidão nas minas de car-
vão, mais degradante e licenciosa que qualquer que se dê entre servos e escra-
vos em qualquer parte do mundo que os fanáticos da empresa missionária
tenham descoberto para reivindicar dinheirom.

A relação entre o capitalismo industrial e o imperialismo se fez sentir


constantemente em analogias à escravidão e na linguagem dos explo-

I
y

•.
radores sociais. O Morning Chronicle descreve as descobertas da Comis-
são de Emprego de Crianças como um "livro de viagens a um remoto
país bárbaro"'".
De longe o maior ultraje era relativo à dessexualização das mulheres.
Como as minas representavam a dominação técnica e sexual da nature-
za e os mistérios da metalurgia e do dinheiro, a presença de mulheres
penetrando profundamente na terra, manejando enormes e fálicas pás
provocava grandes ansiedades sobre o desregramento de gênero. O fato
de que homens e mulheres trabalhassem juntos era um fato "bárbaro
demais para ser tolerado". Essa ansiedade estava metonímicamente in-

119. Apud Hiley, Victorian Worki.oig Uiimm .. . , p. 50.

j
110. Idem, op. cic., p. 31.
111. Idem, op. cit., p. 45.
1u. 17,e Morning Cl,ronicle, 7 de maio de 184%.

t 179
Couro impuial

corporada na extraordinária celeuma sobre as calças das mulheres. Para


trabalhar com maior conforto e de maneira mais eficiente, as mulheres
usavam calças rústicas de tecido preto, aventais listrados, camisas de co-
larinho desabotoado, casacos de homem e bonés de pala (Figura 2.22).
Aprovadoramente, Munby se refere a elas como "as belas de calças", mas
ele estava quase só em sua admiração. A maioria das testemunhas e vi-
sitantes abominava o "tipo desagradável de roupa masculina", os "imen-
cionáveis" que ameaçavam a fibra moral da nação"3• São abundantes os
exemplos de tiradas sobre o trabalho "que tirava absolutamente o sexo
das mulheres", tornando-as "profunda e asperamente não femininas"
(Figura 2.23). Ayton arengava contra "o deboche mais bestial" que preva-
lecia, da "indecência desavergonhada" de trajes e moral, as mulheres
"desprezando todos os tipos de repressão"'14•

Figura 2.22 - Mi,uira com afdlfra pd.

123. Apud Hiley, Victorian Ut>r.king ~mm ... , p. 180.


n4. Idem, op. dt., p. 30.

180
"cJ\l(assa• e as criadas - Poder r deujo na metrdpolr imperial

Figura 2.13 -./lmhiguidade de glnero.

Na maioria das vezes, os críticos atacavam a indústria ~m termos


morais, e não por simpatia com as condições de trabalho das mulheres.
A Comissão temia que essa ocupação "não feminina" levasse à "deterio-
ração do caráter"125• Testemunhando diante da Comissão Real de Agri-
cultura de 1867, um lavrador declarava que o trabalho no campo (a des-
peito de séculos de trabalho do tipo mais extenuante realizado por
mulheres no campo) "quase tiraria o sexo das mulheres, no vestir, na
maneira de andar, nos modos, no caráter, fazendo-as ásperas rústicas,
desajeitadas, masculinas", pois elas assim estariam inadequadas para seus
deveres no lar. Na verdade, ficou claro que as ansiedades sobre a licen-
ciosidade sexual e a degeneração da maternidade eram infundadas. A
maioria das trabalhadoras era solteira e abandonava o trabalho assalaria-
do ao casar. Parece antes que subjacente ao clamor barítono contra a li-

125. Ange!a John, By the Sweat of1htir Brow... , p. 190.

181
Couro imperial

cenciosidade sexual estava o temor da perda do controle patriarcal no lar


sobre os corpos, trabalho e dinheiro das jovcns126•

O IMPERIALISMO
E A MULTIDÃO URBANA

Nas últimas décadas do século XIX, a multidão urbana virou um fetiche


recorrente para os temores das classes dirigentes relativos à inquietação 'í
social e à militância das classes inferiores. À espreita na esplendorosa
metrópole, a multidão encarnava urna subclasse "selvagem" e perigosa
esperando para saltar sobre as classes proprietárias. Como encarnação
da atuação desviante, a multidão tornou-se o símbolo metonímico dos
desempregados e dos pobres desregrados, que eram associados aos cri-
minosos e aos loucos, que eram, por sua vez, associados às mulheres,
particularmente às prostitutas e alcoólatras, que eram por sua vez asso- ,i
ciadas às crianças, que eram associadas aos "primitivos" e ao domínio do
i1npério. A multidão degenerada ocupava uma perigosa zona liminar na
'
fronteira entre fábrica e família, trabalho e domesticidade, em que o
mundo público do poder dos proprietários e o mundo privado do deco-
ro familiar alcançavam seu limite conceitua!. Tendo escapado à discipli-
na do trabalho racional, a multidão era descrita como o paradigma da
atuação não natural - violentamente irracional, mas hipnoticamente
dúctil, selvagem e bestial, inerentcmente crintinosa e, acima de tudo,
feminina117•
Imagens de violência feminina enchem a imagem da multidão, a
despeito do fato de que as multidões urbanas em tumulto fossem predo-

126. A inquietação expressa pelos homens era também um índice da resistência das mulheres.
Havia relatos ansiosos de mulheres enfrentando homens, e fortes o suficiente para ven-
cer. As mulheres eram descritas como militantes e dadas ao pugilato, resistindo violen -
tamente à c.xpulsào das min~s. De fato,John observa que parte da razão por que se cri- r
!
ticav:i que as mulheres usassem roupas de homem era o fato de que essas roupas tornavam
mais fácil para elas, quando barradas das minas, escapar à detecção pela polícia e pelos
inspetores.
127. Ver Susanna Barrows, Distorting Mirnm: Visions ofthe Crowd in Late Nintltmth Cm-
tury Frunu (New I hvcn: Yale: Univc:rsity Prc:ss, 1981).

182
•v~lassa· e aI criadaI - 'Poda e deuj1> na murópole imperial

t
1
minantemente masculinas. O comportamento masculino na multidão,
l
dizia-se, copiava comportamento social típico de mulheres. Tarde, por
1
exemplo, via a "volubilidade" da multidão, sua revoltante "docilidade",
sua "credulidade", e seu "nervosismo" como definitivamente femininos.
"A multidão", insistia ele, "é feminina, mesmo quando é composta, como
é geralmente o caso, de homens"128• Na multidão, a masculinidade cai na
forma degenerada feminina da raça. Tomando feminina a multidão
masculina, a linguagem do gênero tornou-se um discurso regulador para
a administração da classe.
Ao mesmo tempo, porém, como mostrou Barrows, a imagem da
multidão feminina ameaçadora refletia a genuína paranoia masculina
sobre insurgentes demandas femininas por educação, sufrágio e traba-
füo. Barrows vê a multidão como uma condensação de temores, um
amálgama de paranoias, distorções e hipérboles: "Tais padrões de distor-
ção e hipérbole lembram o processo que Freud mais tarde descreveu
como central tanto para o comportamento neurótico quanto para o 'tra-
balho do sonho"'129. Como imagem liminar exemplar, a multidão entrou
no reino do fetiche.
A imagem da multidão era também uma resposta a ameaças muito
reais da subclasse. Os anos 1880 e 1890 foram marcados por ondas de
greves de estivadores, demonstrações de massa, ataques anarquistas e as
revoltas de Trafalgar Square. As filiações sindicais aumentaram e a Grã
Bretanha assistiu ao surgimento de um Partido Trabalhista indepen-
dente. A imagem fetiche da multidão como degenerada era uma medida
das ansiedades muito reais da classe dirigente em relação à resistência
popular, e também um elemento crucial para legitimar o policiamento
de comunidades da classe trabalhadora militante. Definida como para-
digma urbano do anacrônico espaço tornado feminino, a multidão podia
ser legitimamente submetida à ação do Estado e às tecnologias regula-
doras do progresso.

1i8. Idem, op. cit., p. 47·


119. Idem, op. cit., p. 192.

183
Couro imperial

Mas, se o espaço anacrônico da multidão urbana deve ser disciplina-


do, ele tinha antes de ser representado. Eram necessárias tecnologias de
representação para policiar as fronteiras instáveis entre o privado e o
público e para levantar, mapear e reunir centros de militãncia urbana em
territórios de contenção. Essas foram as décadas dos exploradores so-
ciais, quando homens de classe média e de alta classe média se aventu-
ravan1 na terra incog11ita das áreas da classe trabalhadora britãnica, com
a pose de exploradores em viagens a terras desconhecidas. Como disse
Godwin, esses homens se dispunham a "enfrentar os riscos da febre e
outros prejuízos para a saúde e ao contato de homens e mulheres muitas
vezes tão fora da lei quanto os árabes ou os kajfirl''3º. A partir de ima-
gens populares de viagens imperiais, esses exploradores urbanos volta-
vam de suas excursões urbanas com acumulação primitiva de "fatos" e
"estatísticas" sobre as "raças" que viviam em seu meio.
O discurso colonial era sistematicamente desenvolvido para mapear .
o espaço urbano numa geografia de poder e contenção. A analogia entre '

cortiço e colônia era incansavelmente invocada, e também a figura prin-


cipal do descobrimento imperial'3'. A Eclectic Review saudou o grande
explorador Henry Mayhew como tendo "viajado pelas desconhecidas

regiões de nossa metrópole e retornado com relatos completos sobre as
estranhas tribos de homens que se pode dizer que ele descobriu".
Certamente, uma geração anterior de escritores - John Holling-
shead, George G?.dwin, Charles Munby Smith e John Garwood - já
tinha forjado a analogia entre terras colonizadas e comunidades de clas-
se trabalhadora13:.Já cm 1829, Robert Southcy chamara Londres de "co-
ração de nosso sistema comercial, mas também viveiro da corrupção[... ]
lugar do intelecto e do império [ ...] mas também uma selva onde eles,

130. George Godwin, London ShadtrJJs, p. 1. Ver Peter J. Ke:iting, Tht Working Clasm in Vfrto-
rian Fiction (Nova York: Barnes and Noble, 1971), capitulo 2.
131. Ver Oeborah Epstcin Nord, *The Social Explorer as Anthropologist: Victori:in Tr:ivcl-
lers Among thc Urban Poor~, in \Villi:im Sharpe e Leonard Wallock {orgs.), Visioru oJ
tht Modem City: EHays in History, Art and Liuraturt (Nova York: Columbia Univcrsity
Prcss, 1983).
132. Ver Kcating, 77,, Worlâng Ct....,cs... , capítulo, 1 e •·
•vrwassa· e as criadas - Podtr < d,ujo na m<trópol, impuial

que vivem como bestas selvagens sobre seus semelhantes, encontram


presas e esconderijos"133•

EXPLORADORES URBANOS
Vigilância filantrópica

Em meio aos anos 1880, tomou forma uma nova era no "descobrimen-
to" do East End. Keating observa que os últimos "e:...-ploradoresn sociais
vitorianos diferiam dos e::scriton:s autcriures na "quase total ênfase nos
cortiços e nos trabalhadores do East Endn - e não em l\tlanchester,
'
digamos, ou em Liverpool'J•• Por que precisamente o East Em!? Outras
' áreas de Londres eram igualmente pobres e desesperadas, mas o East
End podia servir melhor em termos simbólicos. Espalhando-se através
t
'•
do Tâmisa, desembocando no mar, o East End era o canal para o impé-
rio - um espaço liminar, exótico, mas muito próximo, na cúspide da
indústria e do império.
Com base na narrativa do progresso imperial e nas jornadas para o
interior, jornalistas, assistentes sociais e romancistas viam os cortiços do
East End- na linguagem do império e da degeneração - como "pân-
tanos" e "selvas", "sombrasn, "pústulas e feridas malignas com que o cor-
po da sociedade é salpicado"'35• A densidade, tamanho e expansão dos
cortiços entrelaçados eram equiparados a selvas, e a linguagem da em-
presa missionária imperial era evocada para justificar sua invasão e sua
' sujeição ao progresso. Jornalistas e escritores que se aventuravam nos
cortiços eram vistos como missionários e colonizadores, trazendo luz à
escuridão incivilizada. A Edectic Review aplaudiu Mayhe\v, que desen-
terrou as estranhas fundações da sociedade e "as expôs à luz". Em 1890,
vVilliam Booth, fundador do Exército da Salvação, publicou um livro

• 133. Sir Robert Southey, Sir 1bomas More, or Colloquiu on the Progrm and Prosp<ets ofSodety
(Londres: Murray, 1829), p. 108.
134. Keating, 77,e u-órking C/ass,s... , p. 105.
135. George Godwin, Town Swamps and Social Bridg,s (Nova York: Humanities Press, 1972
(1S59)), p. 1.

185
Couro imperial

diretamente inspirado por ln Darkest A/rica, de Henry Morton Stanley,


e deu-lhe o título de ln Darkest England and the Way Out'36•
Prefigurando as paisagens coloniais de Conrad e a paisagem de A
Passage to ln dia, de Forster, os cortiços urbanos eram apresentados como
problemas epistemológicos - como mundos anacrônicos de privação e
irrealidade, zonas sem linguagem, história ou razão que só podiam ser
descritas por analogias negativas, em termos do que não eram. A es-
tranheza e densidade do espetáculo urbano resistia à compreensão do
olho empírico do intruso como um enigma resiste ao conhecimento.
Ali Sorts and Conditions ofMen, de vValter Bcsant, descreve os habitan-
tes do East End como não tendo instituições próprias, nem nobreza,
nem teatros - só podiam ser descritos por negativas. Como as pai-
sagens coloniais, os cortiços eram vistos como habitando um espaço
anacrônico, representando uma regressão temporal dentro da moder-
nidade industrial em um tempo além da memória. Habitado por pes-
soas sen1 capacidade ou razão original, o East End "tem pouca ou ne-
nhuma história"''7•
Contudo, esse colapso da história era menos um atributo das comu-
nidades desclassificadas do que um traço defensivo dos intrusos de clas-
se média, um sinal do fracasso da representação, negada e projetada nas
subclasses como condição de seu atavismo racial. A modernidade do
explorador de classe média era iluminada por contraste negativo com o
arcaísmo atávico da multidão urbana.
Ao mesmo tempo, as imagens da exploração imperial que cobriam
as excursões jornalísticas e os relatórios parlamentares ofereciam uma
tecnologia imaginária de vigilância que tanto exortava como justificava
a intervenção social. A apresentação dos cortiços como terra estrangeira
criava uma impressão de afastamento e distinção que justificava as via-
gens de esclarecimento e reforma dos tomadores de decisões. Se essas
áreas eram estranhas, não descobertas e não mapeadas, podiam ser re-

136. \Villiam Booth, ln Darkest England and the U11y Out (Londres: lnternational Headquar-
tcrs of thc Salvation Army, 1890).
l)i· \Valter Bcsant,A// Sorts and Conditions ofMm (No\'-a York: Harpcr, 1881), p. 18.

186
"úWaua· e as uiadas - 'Poder e deujo na metrópole imperial

presentadas e disciplinadas sem contestação. Como os espaços cm bran-


co dos mapas coloniais, as comunidades da classe trabalhadora pode-
riam - teoricamente - ser pesquisadas e mantidas sem competição da
parte da classe trabalhadora e dos militantes. A linguagem da desco-
berta era uma linguagem de negação e despossessão, roubando às clas-
ses descobertas a autoridade originária e negando a capacidade de re-
<Jresenrarern a si mesmas, bem como o poder de fazer história. As

l subclasses descobertas eram vistas como se tivessem passado a existir


apenas pelo olhar do descobridor, cuja visão geradora lhes concedia his-
~ória e linguagem - no preciso momento em que a classe trabalhadora
insistia cm assumir a posse militante de sua própria história.
1
A FOTOGRAFIA E O TEMPO PANÓPTICO

Uma fotografia é um segredo sobre um segredo. Qtanto


mais ela lhe diz, menos você sabe.
·!
Dianc Arbus
'
•\ Não foi por acaso que os quadros de Atget foram com-
parados com os de cenas de crimc. lVlas não é cada trecho
J de nossas cidades uma cena de um crime? Não oculta o
fotógrafo - descendente dos augures e sacerdotes -
culpa cm seus retratos?
1
\Valter Benjamin

1 Fabian explorou a tradição empírica ocidental, cm que "'visualizar' uma


l cultura ou sociedade se torna quase sinônimo de compreendê-la"98 . A
:1 tradição do empirismo científico formulada por John Locke tem como
um de seus princípios mais tenazes a noção de que"a percepção da men-
J
,I
l
'j
te é explicada de maneira mais adequada por palavras relacionadas à
visão"139. Como diz Fabian:

138. Johannes Fabian, Time and the Other: H=i Anthropclagy il1akes its Object (Nova York:
1 Columbia Univcrsity Prcss, 1983), p. 106.
·11 139. Apud idem, op. cit., P· 217.
.r
~

f
' ,~
Couro impaial

O objetivismo constitui o mundo social como um espetáculo apresentado a


um observador que assume um "ponto de vista"sobre a ação, que se põe à
parte para observá-la e, transferindo para o objeto os princípios de sua relação
com ele, que o concebe como uma totalidade destinada apenas ao conheci-
140
mento, cm que todas as interações são reduzidas a trocas simbólicas •

Esse elevado ponto de vista - a postura panóptica - é gozado por


aqueles em posições privilegiadas na estrutura social, aos quais o mundo
aparece como uni espetáculo, um palco, uma pi!rformnnre.
É uma característica da modernidade industrial investigar e simular
a experiência. Sob a modernidade, a experiência assumiu o caráter de
um espetáculo e a principal tecnologia da vigilância panóptica era a fo-
tografia. Como observa John Berger: "A velocidade com que os possíveis
usos da fotografia foram avaliados é certamente uma indicação da pro-
funda e central aplicabilidade da fotografia ao capitalismo industrial[ ...]
Marx atingiu a maturidade no ano da invenção da câmera"'4 '.
A câmera foi inventada em 1839. Três décadas mais tarde, continua
Berger,

a fotografia era usada para arquivos policiais, reportagens de guerra, reconhe- •


cimentos militares, pornografia, documentação enciclopédica, álbuns de fa- •
mília, cartões-postais, registros antropológicos (muitas vezes, como no caso
dos povos indígenas dos Estados Unidos,acompanhados por genocídio), mo-
ralização sentimental, provas inquisitivas (a assim chamada candid camera),
efeitos estéticos, noticias e retratos formais 14' .

A câmera incorpora a força panóptica da coleção, da exibição e da


disciplina. Como observa obliquamente Sekula: "Cada obra de arte fo-
tográfica tem oculto seu objetivo inverso nos arquivos da polícia"1•0 .
Como tecnologia de vigilância, a fotografia era central para a racionali-

140. Ibidem.
141. John Berger,About Loc~ing(Nova York: Pantheon, 1980), p. 48.
142. Idem, op. cit., p. 52.
143. Sckula, Photography Againsl the Gmin ..• , p. 79.

188
•cJWassa·, as criadas - Poda, d ,ujo na mrtrópolt imperial

zação do lazer e do tempo de trabalho da classe trabalhadora. Como tal,


estava associada àqueles outros fenômenos panópticos vitorianos - a
exposição, o museu, o zoológico, a galeria, o circo - que envolvem o
princípio fetichista da coleção e da exibição e a figura do tempo panorâ-
,e
rf·
mico como espetáculo mercantil.
~- É preciso não esquecer que a fotografia surgiu como tecnologia de
r., .
... vigilância dentro do contexto de uma economia global em desenvolvi-
' mento. Entre a fotografia e o imperialismo pode-se observar uma circu-
lação de noções. Emissários da burocracia imperial se dedicaram au ob-
jetivo explícito, ainda que aleatório, de reunir e ordenar a miríade de
economias mundiais numa única cultura mercantil. A fim de centralizar
o sistema mundial, aumentou a necessidade de uma moeda universal de
troca, à qual as culturas econômicas do mundo pudessem ser subordina-
das e reverentes. Ao mesmo tempo, era preciso um sistema centralizado
de comunicação cultural para disseminar o capital mercantil e a "verda-
de" do progresso tecnológico para um público mundial.
A fotografia oferecia o equivalente cultural de uma moeda universal.
Como o dinheiro, a fotografia prometia desde o início incorporar uma
linguagem universal. Como exultava uma reportagem de jornal: "[A fo-
tografia] é a primeira linguagem universal que se dirige a todos que
possuem visão e é entendida tanto no curso da civilização quanto na
caverna do selvagem"'«. Saudada por ter superado os confusos enigmas
da linguagem e por ser capaz de comunicar numa escala global através
da faculdade universal da visão, a fotografia deslocou a autoridade do
conhecimento universal da linguagem impressa para o espetáculo.
Se o anseio da câmera pela verdade se baseava na ciência da óptica,
seu efeito foi reordenar, de um golpe, as hierarquias da história mundial.
"Sua verdade a eleva além de toda linguagem, pintura ou poesia [ ...] A
linguagem pictórica do México, os hieróglifos do Egito são agora supe-
rados pela realidade"' 45• A perfeição tecnológica da câmera e sua capaci-
dade de replicar a realidade exatamente como ela é poderia, enfim, rele-

144. "The Daguerrcolitc", Daily Chrmid, (Cincinnati), vol. 1, 38 (17 de janeiro de 1840), p. 1.
145. lhidem.
Couro imperial

gar todas as linguagens do mundo ao museu da obsolescência, para


aguardarem, mudas, a análise esclarecedora da ciência ocidental. Com a
fotografia, o conhecimento ocidental e a autoridade ocidental viraram
sinônimos do real.

A FOTOGRAFIA E O PROGRESSO IMPERIAL

À ciência racial, a fotografia prometia fornecer um conhecimento "fac-


tual" mecânico e, portanto, objetivamente seguro sobre "tipos", "espéci-
mes" e "tribos" raciais. Em 1862, o British]ournal ofPhotography anuncia-
va: "A fotografia fornecerá um método excelente de determinar as
proporções médias dos crânios das diferentes raças de homens"146 • À
antropologia, a fotografia oferecia um sistema classificatório para regis-
trar a diversidade dos povos do mundo na Família universal do Homem.
À criminologia, a fotografia prometia capturar fisionomias "desviantes"
para detecção, encarceramento e disciplina. À ciência médica, a fotogra-
fia exibia a verdade do corpo doente e desordenado para controle eugê-
nico. Para a psicanálise clínica, a fotografia capturava a imagem corporal
da histeria feminina e a exibia para confirmar a autoridade da ciência
masculina sobre o corpo feminino no interesse da normalização clínica.
A fotografia também prometia deter a passagem do tempo. Como exal-
tou o fotógrafo Adrien Bonfils: "O progresso, grande frívolo, terá rapi-
damente trazido a destruição do que o próprio tempo respeitou [ ... ]
antes que este presente, que ainda é o passado, desapareça para sempre,
tentamos fixá-lo e imobilizá-lo numa série de vistas"' 4 7.
A fotografia, de qualquer maneira, constituía uma crise de valor en-
tre o agressivo empirismo da ciência, inclinado a alcançar um "inventá-
rio universal da aparência" (uma doutrina de externalidade) e a metafí-
sica romântica da verdade individual íntima (uma doutrina de
1.
internalidade). Outra vez, a contradição foi deslocada para o domínio '

146. Apud Sarah Graham Brown, lmag'1 ofJ~men: 1he Portrayal ofWomm in Photography of
the M idd/e-East, r860-r950 (Londres: Qya.rtet, 1988), p. 48.
147. Apud idem, op. cit. , p. 45.
•,:;wassa· tas ,riadas - 'Poda t drujo ,,a mttrlpolr imptrial

tornado feminino do império. A fotografia colonial, emoldurada como


estava pelas metáforas do conhecimento científico como penetração,
prometia buscar os interiores secretos do oriente feminizado e aí cap-
turar como superfície, na imagem do corpo da mulher do harém, a ver-
dade do mundo148•
O oriente era fcminizado de várias maneiras: como mãe, sedutora
malvada, aberração licenciosa, produtora da vida.Jules i\llichelet via o
oriente como "útero do mundo"149• Os seguidores de Saint Simon viam
uma jornada ao Egito como "não mais uma viagem ao oriente, mas
uma viagem cm direção à mulhcr"150• Edward Said observa: "Há uma
associação quase uniforme entre o oriente e o sexo, tecida por todas as
experiências orientais de Flaubert, excitantes ou desapontadoras''•s•.
Na arena feminizada do império, a câmera oferecia a promessa deli-
rante de resolver as permanentes contradições da modernidade indus-
trial: domesticidade e império, privado e público, superfície e interior,
metafísica e empirismo, mão e máquina, cativas como espetáculo numa
única imagem.
Na imagem colonial, contudo, essas contradições podiam ser incor-
poradas, mas não resolvidas. A fotografia colonial (especialmente na
forma produzida em massa do cartão-postal} é contraditória no efeito.
Ao prometer capturar a história num golpe de vista e oferecer a aparên-
cia do mundo como ele é, a câmera prolifera ironicamente o mundo. Em
lugar de produzir um catálogo finito do real, a fotografia expande o ter-
ritório da superfície do real ao infinito. A câmera, assim, leva a moder-
nidade imperial cada vez mais profundamente ao consumismo. Donde
o valor intensamente fetichista investido na fotografia colonial.
Na metrópole, o estúdio fotográfico comercial tornou-se o espaço
urbano para mediar essas contradições e para produzir em massa o es-
petáculo imperial para consumo popular.1V1as a própria tecnologia vol-

148. Ver 1\1aJek Allouilla, 7hr Colonial Harem (l'vlinncapolis: Minnesota Press, 1986).
149. Apud Brown, lmagu ofWomm ... , p. 7.
150. Ibidem.
151. So.id, Orimlalism (Nov:i. York: Vintage, 1978), p. 17.
Couro imperial

cada a reproduzir como naturais as distinções sociais entre metrópole e


império, privado e público, trabalho e lazer, e a distribuir essas imagens
como mercadorias naturais era também, paradoxalmente, a forma que
viria a confundir essas distinções.
Nos anos 1860, a fotografia era negócio dos grandes. Estúdios foto-
gráficos floresciam com impressionante popularidade. As fotos eram
baratas e o negócio de vendê-las explodiu. Pelo meio da década, o nü-
mero de fotos produzidas chegava a milhões'5'. As pessoas, com maior
frequência as mulheres, posava111 diante de fundos artificiais, muitas vc·· ,•
..
zes exóticos e incongruentes em relação ao mundo da pessoa, mas de
qualquer maneira expressivos das fantasias imperiais de controle sobre o
espaço, a paisagem e o interior.
No estúdio fotográfico, o tempo exótico era reproduzido corno espe-
táculo exótico, como tempo panóptico. Languidamente inclinada contra
uma paisagem das pirâmides, ou de palmeiras, ou próxima a uma coluna
grega, a pessoa parecia habitar sutilmente uma zona temporal diferente.
Em cartões-postais coloniais, ícones primitivos e reüquias atávicas eram
arranjados em volta das pessoas que posavam para significar metonimi-
camentc uma relação anacrônica com o tempo tecnológico da moderni-
dade. No cartão-postal colonial, o tempo é reorganizado como espetá-
culo; pela coreografia dos ícones, a história é organizada numa única
narrativa linear do progresso. A fotografia se tornou servidora do pro-
gresso imperial.
O estúdio fotográfico, porém, era também um espaço contraditório,
habitando, como habitava, os limiares do privado e do público, do arte-
sanato e da indústria, do comércio e da arte, <la domesticidade e do im-
pério. No labor de tornar naturais essas distinções e de reproduzi-las
tecnicamente para consumo de massas, o estúdio fotográfico as exibia ao
mesmo tempo como artificio, invenção e teatro extravagantes. Os fotó-
grafos se apoiavam pesadamente em acessórios, decorações exóticas e
elaboradas telas de fundo. Nesses interiores domésticos, a nova classe 't

média posava contra cenas públicas laboriosamente encenadas do impé-


,

152. Hüey, Vi,tarian I.V,,rking U'c,mm . . . , p. 63.


"cJ'll(aua· e as criadas - Poder e desej o na m etróp ole imperial

rio. Ao mesmo tempo, retratos domésticos, imagens pornográficas e


imagens íntimas eram produzidos em massa para consumo público -
em cartões-postais, jornais, revistas, quadros de avisos, pôsteres e, mais
tarde, em propaganda. O espetáculo mercantil, atravessando constante-
mente do privado ao público, começou a solapar as próprias distinções
que pretendia sustentar como naturais. No capítulo 4, exploro esse pro-
cesso em maior detalhe cm minha discussão do surgimento histórico da
.1, propaganda imperial. A situação não é estática, porém, pois, ao ultrapas-
sar a fronteira entre privado e público e encenar a contradição como
.l. espetáculo, o espetáculo mercantil oferece a esperança perpetuamente
adiada de resolver a contradição, atraindo o espectador cada vez mais ao
consumismo.
A fotografia era uma tecnologia tanto de representação quanto de
poder. Maxine du Camp, que acompanhou Flaubcrt ao Egito e à Pa-
lestina ern 1848 e 1849, numa das viagens fotográficas mais conhecidas,
conta explicitamente a violência inerente à relação fotográfica: "Eu disse
a ele [urna pessoa relutante em posar] que o tubo de latão da lente que
se projetava da câmera era um canhão, que vomitaria uma salva de tiros
se ele tivesse a infelicidade de se mover - uma história que o imobi-
lizou imediatamente"153 • Outro fotógrafo colonial explicitou o uso cal-
culado da força do fetiche da câmera: "Eu frequentemente gozava da
reputação de ser um bruxo perigoso, e minha câmera era considerada
um instrumento obscuro e misterioso que, combinado com meu olhar
natural ou sobrenaturalmente aguçado, me dava o poder de enxergar
através de rochas e montanhas, de penetrar nas próprias almas das pes-
soas e de produ:zir retratos miraculosos por alguma arte do mal"1' 4 • A
imobilidade da pessoa que posava oculta sob a superfície da fotografia a
violência do encontro colonial. Com isso em mente, podemos voltar a
Munby uma vez mais.

153. Apud Brown,lmagesojfl1'mm... , p.36.


154. Apud idem, op. cit., p. 60.

· 193

,.
Couro imptrial

O IMPERIALI SMO E "o INSPETOR "

Nos anos 1870, em suas andanças compulsivas pelas ruas de Londres,


Munby começou a notar as pequenas lojas de revistas e vi trines de fotó-
grafos que se espalhavam por toda Londres, exibindo uma riqueza de
imagens chama tivas de trabalhadoras e trabalhadores. Até então, lVIunby
tivera o hábito de iJustrar seus relatos sobre trabalhadoras com esboços
a bico de pena, que levava para seus aposentos para saborear em priva-
cidade libidinosa. A fotografia prometia a Munby novas oportunidades
para suas necessidades de voyeur e, com a intenção de reunir um arquivo
pessoal das classes femininas, ele resolveu começar uma coleção fotográ-
fica. Ao longo dos anos, sua coleção aumentou para mais de 600 foto-
grafias e sobrevive como um dos maiores arquivos fotográficos sobre
mulheres vitorianas.
À parte de verbos de viagem ("fui", "passei" e "empreendi"), os verbos
que aparecem repetida e ritualmente nos diários de Munby são verbos
de vigilância: "observei", "vi" e "olhei''. Não por nada, as mulheres de
Wigan apelidaram o intrometido que viajava centenas de milhas para
visitá-las de "O inspetor" (Figura 2.24).
Munbyvisitava estúdios fotográficos na busca incansável de fotogra-
fias rudes e realistas de trabalhadoras. Ele visitava a Academia Real e as
exposições anuais da Sociedade Fotográfica de Londres e queixava-se
frequentemente da falta de imagens de "fortes" mulheres de "mãos aver-
melhadas"'55. Ele pedia aos porteiros dos fotógrafos que abordassem
mulheres de passagem e as persuadissem a posar cm troca de algumas
moedas. O arranjo dos corpos das mulheres diante da lente da câmera,
o espetáculo do desconforto e do embaraço delas, o toque de mãos no
momento de pagar, sua posse das imagens na privacidade de seu quarto
masculino - tudo isso oferecia a ele uma intimidade voycurista simula-
da com as trabalhadoras de que ele não dispunha por qualquer outro
meio. Mais que qualquer outra coisa, a fotografia permitia a Munby a
ilusão voyeurista de penetrar os espaços proibidos da vida da mulher da

155. Hiley, Yictoriun U~rkirrg ll'cmicn ... , p. 66.

194
•,J\,fassa· tas criadas - 'Poder e deujo na metrópole imperial

classe trabalhadora, mas de maneira que não comprometia seu controle


sobre o perigoso cruzamento de classe, raça e gênero.

Figura 2. 24 - "O inspetar": Munby com uma mineira de Wigan.

Qyal é a relação de poder entre o fotógrafo e a pessoa que posa para


ele? Nota-se no voyeurismo de Munby o prazer do controle adiado.
Com a câmera, seu voyeurismo alcançou o elevado prazer do domínio
técnico sobre as mulheres. Seus relatos no diário sobre as sessões foto-
gráficas revelam uma fantasia de onipotência sádica sobre as mulheres
que posavam para seu prazer. Numa ocasião, a seu pedido, o porteiro do
fotógrafo conseguiu persuadir uma preocupada e relutante servente a

195
Couro imptrial

subir a escada para posar. A ocasião revela uma inversão da identidade


de gênero e um prazer sádico subjacente a seu controle da inversão. Ele
registra a mulher pisando os degraus "como um camponês", onde, para
sua alegria, duas chapeleiras observam "sua rústica irmã masculina'' com
surpresa e desagrado. l\1unby a arruma - mantendo cuidadosamente as
luvas - com os fortes pés dela diante do corpo e observa com deleite o
contraste entre ela e as outras duas mulheres e implicitamente com ele
mesmo. Mais revelador, registra o desconforto dela cm posar como "uma
punição [ ... ] pior que um dia de trabalho"'56• Ao ser paga, ela se afasta
marchando "à maneira rude de homem [ ...]"'S7. Como sempre, Munby
finge inocência cm seus empreendimentos, mas os outros não estão con-
vencidos de suas intenções puramente sociológicas. Nessa ocasião, a ló-
gica pornográfica de seu prazer não escapa ao porteiro, que, em sussur-
ros, lhe oferece uma mulher "com suas roupas levantadas". Um senhor
esfarrapado também se aproxima dele com a oferta de uma dançarina ou
artista, mas Munby ostenta ofendido desinteresse e, mais tarde, tenta
imaginar por que seu desejo de fotografar uma servente produziria esses
"resultados ofensivos".
Hannah Cullwick, como centro de sua vida voyeurística de fantasia,
foi logo trazida para a lente da câmera e Munby notou com prazer sua
aparente submissão às mãos dele: "Com que meiguice ela se submeteu a
posar, presenciadas a manipulação e a discussão; examinada a aspereza
de suas mãos e encontrada a melhor maneira de mostrá-las!"1ss. Cullwi-
ck se vestia para se~· fotografada como "donzela rural", como criada de
todo serviço "carregando baldes de água suja", "esfregando degraus",
como "dama de classe média", como "anjo", como "escravo", e como um
cavalheiro. Mas no capítulo 3 argumentarei que a natureza contraditória
do fetiche oculta uma lição. A despeito das grandiosas ilusões de Munby
sobre a "submissão" de Cullwick, a encenação do fetiche fotográfico
tinha significados muito diferentes para eles. O valor do fetiche era

156. Apud Hudson, Munby... , p. 117. -


157. Apud idem, op. cit., p. 11S.
158. Apud idem, op. cit., p. 72.
•,JWassa· ( as criadas - <J)od(r ( dn4o na m ftrópole imp f r ial

contraditório, e as tentativas de Cullwick de manipular seus cenários,


longe de submissas, revelam uma narrativa alternativa da atuação e po-
der femininos.
·" Pela fotografia, Munby se embalava na fantasia ilusória de admi-
nistrar - como espetáculo - as perigosas contradições que marcaram
sua identidade na infância. De sua posição panóptica como voyeur,
1V1unby transformava as contradições dominantes de seu tempo - entre
privado e público, trabalho e lazer, império e metrópole - num circo de
imagens onde ele era tanto mestre de cerimônias quanto espectador
privilegiado. Na realidade ele não podia controlar essas dimensões: nem
sua família nem sua classe social desculpariam seu casamento com
,. Cullwick, de modo que as contradições entre sua mãe e sua babá nunca
; poderiam ser resolvidas publicamente na figura da esposa. Em lugar
disso, ele criou um mundo fetiche privado em que podia controlar tais
contradições como espetáculos. Assim, l\ilunby chegou à ilusão de do-
mínio sobre as mulheres, e também sobre a dimensão feminina de sua
própria identidade, através de dois meios essenciais: controle VO)'eurista
do espetáculo (domínio pornográfico) e dinheiro (domínio econômico).
O prazer de Munby é, assim, o prazer do exibidor. O valor de exibição
da fotografia tornou-se um estoque privado de capital imaginário que
ele entesourava em segredo.
A lógica do voyeurismo e, portanto, parte da lógica da imaginação
pornográfica se funda originalmente na p erda do controle. O prazer sur-
ge de do1ninar na fantasia uma situação que é fundainentalmente pe-
rigosa e ameaçadora. Se uma restrição ao prazer sexual provoca ansie-
dade e perda de força, o prazer do voyeurismo envolve a deliberada e
controlada reencenação da perda e seu subsequente domínio. O voyeu-
., rismo dramatiza a violação de um limiar: o buraco da fechadura, aja-
• nela, a abertura da câmera. O voyeurismo reconhece uma barreira ao
prazer, um limite ao poder e então transgride o limite, reclamando o
poder num proibido excesso de prazer. Na verdade, o fato de que um ato
é proibido o torna prazenteiro. Em uma palavra, a barreira (o medo) é
intrínseca e necessária à estrutura do prazer. Donde o prazer repetitivo
e perpetuamente adiado do voyeurismo.

197
Couro imperial

As fotografias de Cullwick tiradas por Munby revelam um arquivo


de nostalgia. Allan Sekula disse que a experiência da fotografia varia
entre "nostalgia, horror e um sentido avassalador do exotismo do pas-
sado"159. Todos esses elementos estão presentes nas fotografias de Munby.
Suas fotografias evocam a nostalgia histórica pelo ocaso do trabalho
manual feminino e, assim, do domínio aristocrático sobre as serviçais.
Ele olha para as mulheres corno se fossem uma espécie em extinção, que
logo desaparecerão da face da terra: "eu as olhava com especial interesse:
pois sabia que elas seriam as últimas das mulheres carboníferas; das
donzelas Brynhildas de calças dos campos de carvão de Wigan, que
usam roupas de homem e são fortes, para fazer trabalho de homens"160 .
As fotografias revelam nostalgia do domínio completo do corpo femini-
no no mundo em extinção da escravidão imperial. Ao mesmo tempo,
evocam a nostalgia pessoal pelo mundo perdido de Munby, da identida-
de simbólica com sua babá e, assim, a nostalgia pelas dimensões femini-
nas reprimidas de sua própria identidade.
A evocação do fetiche ocorre numa "área de sentimento limitada de
um lado pela nostalgia e, de outro, pela histeria"161 . A capacidade social-
mente sancionada de Munby de administrar as contradições de sua
identidade através do voyeurismo e do dinheiro lhe permitiram prote-
ger-se de suas perigosas implicações; mas houve ocasiões em que ele
..
perdeu o controle _e mergulhou em distúrbios emocionais.
Seu diário registra, por exemplo, sua fúria impotente quando viu cm
1he Pictorial Worlduma fotografia de mineiras de Wigan no trabalho. A
visão o atingiu "de uma vez só": "Q_µe direito tinha esse artista de invadir
minha propriedade, de exibir minhas heroínas assim e talvez mandar
pessoas para vê-las e prejudicá-las, ou tentar 'rebaixá-las'?". Aqui, a rela-
ção entre espetáculo e competição entre homens realizada por meio do
corpo feminino está plenamente manifesta. Parece pouco plausível que
a intensidade da reação de Munby derivasse simplesmente de un1 cuida-

159. Seku!a, PhotographyAgainst the Grain . .. , p. 199.


160. Hiley, Viaorian Wor'king Uf>men ... , p. 72.
161. Sekula, Phr,tographyAgaiml the Grain ... , p. 72 .
•,J\1assa·, as triadas - 'Poda t dtstjo na mttrépol, impaial

do altruísta com o bem-estar das mulheres, como sugere Hiley. Sua per-
rurbação ao ver que suas "heroínas" eram vistas e exibidas por outros
homens revela a profundidade de sua necessidade emocional de manter
um monopólio de poder visual sobre o espetáculo de mulheres no traba-
lho. Além disso, a linguagem que ele usa ("invadir minha propriedade")
trai o fato de que a posse das mulheres no trabalho através de uma fan-
,. tasmagoria do espetáculo estava associada em sua vida de fantasia com
<
a posse de um privilégio anacrônico de classe - um privilégio masculi-
'
no que lhe dava participação honorária nas altas classes senhoriais. A
imagem da "invasão" de uma propriedade senhorial revela uma lógica da

1 posse e do poder de classe proprietária, mantidos pelo controle voyeu-


rístico do corpo feminino no trabalho. Aqui, fundem-se duas ordens
econômicas contraditórias (a mansão e a mina, servas e trabalhadoras
assalariadas).
A câmera permite que l\llunby se situe na intersecção de dois mun-
dos, atravessando as fronteiras de raça, classe e gênero de um modo que
nenhum outro meio permitia. Ao mesmo tempo, a descrição que Munby
faz das mulheres como "heroínas" revela o papel delas como objetos
fictícios num cenário de classe alta cujo autor é somente ele. Em suma,
seu poder de controlar o espetáculo do corpo feminino no trabalho é um
substituto voyeurista do controle econômico e psicológico.
"O deleite do poeta urbano", escreve Benjamin, "é o a1nor - não
à primeira vista, 1nas à ultima vista. É um adeus para sempre que
coincide no poema com o momento do encantamento". Assim, para
Munby a fotografia era um adeus para sempre a un1 mundo perdido
de trabalho feminino capturado e mantido no momento do encanta-
mento congelado. A fotografia representava o fetiche do amor urba-
no à última vista.

1 99
3
Couro imperial
Raça, travestismo e o culto da domesticidade

Esposa e empregada são iguais, só se


distinguem no nome.
Lady Chudlcigh

..
í:
t'
A esposa tornou-se a chefe das criadas.
Fricdrich Engels

EM MAIO de 1854, aos 25 anos, Arthur Munby parou uma criada na rua
(Figura 3.1). O encontro foi tão casual como todos os que aconteciam
nas andanças de Munby, mas a mulher estava destinada a se tornar sua
companheira de toda a vida e esposa. Q1ase imediatamente, Hannah
Cullwick e Arthur Munby passaram a viver um intenso e clandestino
caso de amor que durou pelo resto de suas vidas. Depois de 19 anos,
casaram-se em segredo, embora tivessem vivido na mesma casa por ape-
nas quatro anos e ainda assim, na aparência, como patrão e empregada.
Tanto Cullwick como Munby registram cm seus diários que desde o
começo se sentiram destinados um ao outro'. Num certo sentido, não foi
por acaso que a criada e o advogado se encontraram na rua. Na multidão
promíscua - esse elemento permanentemente à beira da confusão so-
cial - as classes se misturam, estranhos se tocam, homens e mulheres se
encontram e se desencontram. Como escreve Benjamin: "Uma rua, uma

1. Cullwick escreve que, antes de rncontrar Munby, Deus lhe mostrara a face dele (de
Munby) numa visão de fogo. Munby também estava exultante: ~Em :6 de maio de 1854,
ela me foi trazida ... por quem trotLXC Eva para Adão". Liz Stanley, 7he Diaries ofHannah
Cullwfrk: Victorian J\1aidJer,t;ant (New Brunswick: Rutgers University Prcss, 1984), p. 1.
Munby, "Diary", in Derek Hudson, ,Wunby, i\1/an of Two WorldJ; 7he Lifa and Diariu of
ArthurJ J\,1unby 18n-19m (Cambridge: G2mbit, 1974), p. 76.

"'
201
Couro imperial

conflagração ou um acidente de trânsito reúnem pessoas que não se


definem em termos de classe"•. Cullwick e lVlunby se alimentavam da
multidão, colocando sua estranha vida de fantasia nas margens dos limi-
tes sociais - raça e gênero, trabalho pago e não pago, domesticidade e
i1npério. Seu senso de destino, além disso, dá testemunho da força social
dos éditos vitorianos que eles tão escandalosamente desprezavam cm
privado e tão decorosamente afirmavam em público. Ao mesmo tempo,
o encontro casual e proibido por ultrapassar os limites sociais se revela
um tema recorrente no fetichismo doméstico e racial que estrutura suas
vidas e de fato, estrutura a sociedade vitoriana como um todo.

Figura 3.1 - Hannah Cu/(wick.

'

2. \Valter Benjamin, Charles Bauddairc a Lyric Poet in lhe Era efHigh Capitalism (Londres:
i...
Verso, 1973), p. 6z.

202
Couro impaial - <J?.gça, trawstismo e o culto da domtsticidade

·,
F

Figura 3.2 -A pulseira de u,rava. Figura 3.3 - O fttfrhiimo exibido.

z
'

,,

, ..• Figura 3.4 - Nada a mar a não Figura 3.5- Cullwick na faxina .
" -- ser s= grilhõu.
11,

.
"'•J

203
C()uro imptrial

Figura 3.6 - Cu/h:,ick Figura3.7-Tra1:tslismo de classe.


disfarrada dt dama.

Figura 3.8 - Cullwick disfarrada Figum3.9 -Travestismo dt gênero:


dt trabalhadl'Jra n,ral. Cullwick como homtm.

204
C()uro imperial - 'Rara, trawstismo t o culto da domtsticidad,

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Figura 3.10 - Cullwick como anjo. Figura 3.rr - Travestismo de rara t


glnn-o: Cullvicl. como escravo.

Leonore Davidoff evoca de maneira vívida os jogos e rituais fetichis-


tas que Cullwick e Munby encenavam para seu mútuo prazer quando
juntos e reviviam em seus diários quando separados3• Munby retirou
mais tarde de seus diários os detalhes do "treinamento" que afirma ter
dado a Cullwick, mas sabemos que ela se dirigia a ele pelo título impe-
,, rial de "Massa"• e que usava uma "pulseira de escrava" no pulso e uma

3. Leonorc Davidolf, "Class and gcndcr in Victorian England", in Judith l. Newton, Mary
P. Ryan e Judith R. \-Valkowitz (orgs.), Stx and Class in Womtns H istory (Londres: Rout·
lcdgc & Kcgan Paul, 1983), pp. 16·71. Ver também o CJ(cclcntc trabalho de Davidolf a
respeito das relações domésticas cm "Abovc and Bclow Stairs", New Soâ,ty 26 (1973),
pp. 181· 3, e "Mastcrcd for Life: Scrvant and Wife in Vic1orian and Edwardian England",
Journal ofSocial History 7 (1974), pp. 406-28. Estou cm dívida, neste tcJCto, com o trabalho
de Davidoff e também com seu trabalho pioneiro cm colaboração com Catherine Hall,
Family Fortuna: Mm and Womtn ofthe Englisl,Middlt Class, 178o•r850 (Londres e Chicago:
Hutchinson e Chicago Univcrsity Pcess, 1987).
• N. do 1~: Forma abreviada de "Mastcc• (senhor, patrão).

. 205
Couro imptrial

corrente em volta do pescoço (cuja chave ficava cm poder de Munby)


como prova de sua "servidão" (Figuras 3.2-3.4). Sabemos que ela se ajoe-
lhava, lambia-lhe as botas e lhe lavava os pés para confessar seu amor e
servidão 4 • Ela posou para muitas fotografias: como a trabalhadora que
era "na fa.'Cina"; disfarçada como dama de alta classe; como jovem cam-
ponesa, homem, anjo, escravo e, "quase nua" e enegrecida da cabeça aos
pés, como limpador de chaminés (Figuras 3.5-3.11).
Qyando se casaram em segredo, 19 anos mais tarde, Hannah disfar-
çou-se de dama de alta classe e viajou com Munby pela Europa. De
volta a Londres, daria um jeito de esfregar, teatralmente ajoelhada, a
entrada da casa enquanto Munby andava pela rua a balançar langui-
damente sua bengala (Figura 3.12). Ele ia à pensão na qual ela trabalha-
va para ser servido por ela como se fossem estranhos, para depois en-
contrá-la nas colinas próximas, saboreando em segredo entre beijos e
risadas o conhecimento da ligação proibida. ~ando viviam em casas
próximas, Cullwick frequentemente visitava Munby em roupas de faxi-
na, depois de um exaustivo dia de trabalho, com as roupas úmidas e su-
jas, o rosto deliberadamente escurecido com graxa de sapatos, as mãos
vermelhas e ásperas, apenas para aparecer mais tarde na mesma noite
vestida como dama de alta classe em limpa elegância. Passavam horas
divertidas lembrando a provação do trabalho dela e contando e recon-
tando ritualisticamente a incrível quantidade de botas que ela limpava.
Num par de ocasiões na casa de seu outro empregador, Cullwick tirava
toda a roupa, com exceção de uma venda nos olhos, e trepava pela cha-
miné, onde se enrodilhava "como um cachorro" na fuligem morna, sabo-
reando a sensação mais tarde em seu diário, para deleite de Munby. Seu
diário revela (o dele não) que ela também o erguia em seus grandes bra-
ços musculosos, embalando-o e "ninando-o" como a uma criança.
,,

4. Munby era admirador de Ruskin, e as ideias ·de Carlyle a respeito da elevação moral pela ..1
servidão tomaram-se a base do que ele via como seu ~treinamento" de Cullwick nas lições
de submissão doméstica (ainda que ele não tivesse nenhuma intenção de aplicar os prin •
eipios de Carlyle a si mesmo).
...

206
Couro imptrial - 'R,e;a, lra vtslismo to culto da domulicidadt

,Figura 3.r: - O limiar perigoso: txióição do fttirht da sujeira.

No correr dos anos, Cullwick escreveu um diário volumoso, primeiro


a instâncias de Munby, mais tarde por razões próprias mais complexas,
em que narrou o regime diário de seu trabalho doméstico e de sua curio-
sa vida com Munby. Os diários de ambos revelam, embora de maneira
diferente, um envolvimento profundo e mútuo numa variedade de ritu-
ais fetichistas: escravo/senhor, servidão/disciplina, fetichismos de mão,
pé e botina, rituais de lavagem, infantilismo, travestismo e um fascínio
mútuo e profundo pela sujeira. Os roteiros de sua vida de fantasia eram
fi.mdarnentalmente uma transgressão teatral das iconografias vitorianas
de domesticidade e raça, e seus rituais fetichistas tomavam forma em
torno da afinidade crucial, mas oculta, entre o trabalho da mulher e o
império. No que segue, argumentarei que seu fetichismo habitava as
margens de uma dupla rejeição da sociedade vitoriana dominante: nega-
ção do valor do trabalho doméstico feminino na metrópole industrial e
desvalorização do trabalho colonizado na cultura que caía sob o violen-
to domínio imperial. O!ial é o significado dos rituais de Cullwick e
Couro imperial

l\1unby, fazendo parte como fazem do mundo do fetiche? E, especifi-


camente, qual é a relação entre fetichismo, domesticidade e império?
A definição freudiana do fetiche atribui normalidade privilegiada à
hetcrossex-ualidade masculina e à cena da castração. Desejo explorar o
fetichismo como um fenômeno mais complexo e historicamente diver-
so, que não pode ser reduzido a uma única narrativa masculina e sexual
de suas origens. Qµcro desafiar a primazia do falo no âmbito do feti-
chis1no e abrir as teorias freudiana e lacaniana do fetichismo a uma
história mais complexa e variada em que a classe e a raça desempenham
um papel tão formador quanto o gênero.
A principal contradição que anima o fetichismo de Cullwick e Mun-
hy é, sugiro, a dicotomia histórica entre o trabalho pago da mulher e
seu trabalho não pago em casa - sobredeterminada pelas contradições
do racismo imperial e ncgo~_iada pelas iconografias fetichistas de escra-
vo e senhor, sujeira e limpeza, rituais de reconhecimento e travestismo.
Em contraste com a ideia do fetichismo como reserva tipicamente
masculina, Cullwick assu1ne o seu lugar entre as incontáveis mulheres
para as quais o fetichismo era uma tentativa - ambígua, contraditória
e nem sempre bem-sucedida - de negociar os limites do poder de
maneira que resultasse em algo mais do que simples lições sobre domí-
nio e submissão.
O fetiche, que vive no limite entre o social e o psicológico, põe em
relevo a irrelevância de separar os domínios da psicanálise e da história
social. 1'anto a psicanálise como o marxismo se formaram em torno
da ideia do fetichismo como uma regressão primitiva e a rejeição do
valor social do trabalho doméstico, e é, portanto, apropriado que as in-
clinações fetichistas de uma obscura criada nos obriguem a começar
a renegociar uma vez mais a relação entre a psicanálise e a história so- ..
cial, a agência das mulheres e o poder masculino, a domesticidade e o
mercado.
O que segue é menos uma tentativa de recuperar empiricamente o
passado do que uma tentativa de intervir estrategicamente em narrati-
vas históricas de raça e de fetichismo, de domesticidade e império, de
n1odo a pôr em questão não só a força histórica dessas relações na ln-

208
Couro imperial - <R.g,a, trava/ismo , o culto da domtJli<idadt

glaterra vitoriana, mas também suas implicações que continuam ern


nosso te1npo.
t.
;_.
SEM PIGMALIÃO
Agente ambíguo

Tanto Munby quanto seu biógrafo Derck 1-Iudson descrevem Cullwick


como uma marionete rústica, embora encantadora, um ser-curioso trei-
nado, vestido e controlado por seu "l\1assa", tropeçando em seus desajei-
tados movimentos teatrais para satisfazer a vontade deles. Anos depois,
IV!unby diria que fora ele que ensinara a Cullwick o trabalho servil:
"treinando-a e ensinando-lhe" os "(trabalhos) mais baixos e servis", ini-
ciando-a na subserviência e nas indecorosas degradações de seu amor6 •
Qyando Cullwick se recusou a "entrar na sociedade" como sua esposa,
Munby lamentou que ela se tivesse adaptado bem demais ao "trei-
namento" e se casado para sempre com o trabalho servil. Cullwick é
vista de maneira semelhante por Hudson como pouco mais que o "pro-
duto do treinamento (dado por Munby) a ela sobre os meios da salvação
pela lida diária"7• Em consequência, Hudson acha que os diários e cartas
de Cullwick não merecem "mais que uma breve olhada"8• Até Leonore
Davidoff, num excelente ensaio, apresenta um retrato parcial da relação
entre eles e vê Munby como o mestre de cerimônias da vida de Cull-
wick, o empresário e coreógrafo de seus rituais, Svengali de seu Trilby.
E assim, Hudson e Davidoff se tornam cúmplices da visão autocon-
gratulatória do próprio Munby que se vê como Pigmalião, esculpindo
como se o fizesse na pedra os valores de Cullwick e instilando nela uma
"devoção ao trabalho servil". "De muitas maneiras", escreve Davidoff,

5. Hudson reconhece que os diários de Munby são tanto dela quanto dele, m:ts, n:1 sequên·
eia, ignor:1 os dela e, de fato, apaga a pers~ctiva de Cullwick.
~- 6. Munby, "Diary", 19 de julho de 1894. Apud Stanley, Diariu ofHannah Cullwick ... , p. u.
Jl,,lunby tirou as descrições desses "treinamentos" de seus diários.
7. Dcrek Hudson, Munby... , p. 70.
.
fj; 8. Idem, op. cit., p. 4.

209
Couro impuial

"Hannah foi, de fato, uma criatura de sua fantasia"9 • Na visão de Da-


vidoff, a relação deles era dirigida "nos termos dele e, em última análise,
a um preço muito alto". "Tudo acontece", escreve ela, "pela vontade do
protagonista de classe média, que cria a situação e constrói a trans-
formação"'º. Uma vez mais, a criada desaparece da narrativa de classe
média".
Numa excelente introdução aos diários de Cullwick, Liz Stanley pro-
testa contra esses retratos condescendentes e pejorativos de Cullwick.
Aceitar apenas o lado Ivlunby do assunto, vendo Cullwick como não
mais que a criação de Munby, nos faz correr o risco de aceitar "o pensa-
mento vitoriano classista e sexista como urn reflexo acurado do mundo
social como ele realmente era". Ao contrário, diz ela, os escritos de
Munby "são frequentemente desmentidos pela realidade da experiên-
cià'11. Eles são certamente desmentidos pelas perspectivas frequen-
temente contrastantes de Culhvick. Há em seu diário e no de Munby
ampla evidência, se os lemos a contrapelo, de que Cullwick inventou
tantos cenários e concebeu tantos roteiros como o próprio Munby. É
também claro que ela teve muito prazer e ganhou algum poder fazendo-
o, a despeito da óbvia desvantagem de sua situação. Longe de limitar-se
a ser uma trabalhadora braçal passiva, ela protegia teimosa e firmemente
seus próprios interesses e resistia a Munby quando suas necessidades
entravam em conflito com as dele. O retrato crítico de Cullwick como
uma triste mulher sem valor e objeto de brincadeiras abusivas apenas
serve para anulai"o autorrespeito e a atuação que ela lutou tanto e tão
teimosamente para preservar, cm circunstâncias extremamente limita-
das. De fato, a supressão da resistência de Cullwick, durante toda sua
vida, à limitação produz uma triste ironia, pois poder-se-ia dizer que o

9. Davidoff, "Class and gcnder... ", p. 58.


10. Idem, op. cit., p. 38, 40.
11. Vale a pena observar que todos esses criticos tr:ita m Munby como adulto, referindo-se a
ele como Munby, ao passo que Cullwick é infantilizada, sendo-lhe negado estatuto social
pleno quando a referem apenas como "Hannah".
n. Stanley, Diaries o.fHannah Cullwi<J: .. . , p. u.

210
Couro imperial - %;a, trav ntismo e o culto d a domesticidade

projeto que animava sua vida obscura e árdua era o projeto do reconhe-
cimento social do trabalho doméstico feminino.
Certamente não foi Munby que iniciou Cullwick no ambíguo valor
do orgulho no labor da classe trabalhadora, pois a mãe dela e sua comu-
., nidade de trabalhadores, a igreja, a escola de caridade, o vilarejo e 1\
mansão próxima já tinham conformado os fundamentos de sua identi-
dade e de suas atitudes para com o trabalho. Considerar Munby como o
único e original formador da identidade seria capitular a uma fantasia
vitoriana dominante na classe média: a fantasia da supervisão e do con-
i trole masculinos e filantrópicos sobre a vida das mulheres da classe tra-
balhadora. A relação de Cullwick com l\1unby era inevitavelmente in-
formada pela discrepância entre seu considerável poder dentro da relação
e sua impotência social fora dela, discrepância que Munby não deixava
... de explorar quando podia.
Não quero, porém, dar a impressão de que a relação de Cullwick com
Munby era de igualdade libertária e de poder mútuo; tal noção não se
s·Jstenta. Estou, antes, interessada na questão mais difícil - que tipo de
atuação é possível em situações de desigualdade social extrema. A vida de
Cullwick expressa uma forte determinação de negociar o poder numa
circunstância de grandes limitações, de maneira que levantam questões
não em relação a suas relações entre gêneros e entre classes com l\tlunby,
mas também sobre suas relações entre gêneros e entre classes com suas
• empregadoras. Dentro das casas, o peso desigual do trabalho das mulhe-
.!
res, as recriminações mútuas, o assédio de classe e as rebeliões de classe
1 tinham lugar dentro de uma combinação de afastamentos de classe e
1

J intimidades de gênero. Em poucas palavras, um dos principais interesses


deste capítulo é explorar a tensão estratégica entre as limitações sociais
... e a atuação social.
No que segue, quero questionar uma tendência feminista a ver as
mulheres como vítimas não ambíguas, tendência essa que iguala atuação
e contexto, corpo e situação, anulando, assim, a possibilidade de recusa
es.tratégica. Desse ponto de vista, Cullwick seria reduzida a uma serviçal
vitimizada, exibida como representação da degradação feminina e do
domínio masculino. Se ela não foi uma vítima não ambígua, porém, ela

2II
Couro imperial

também não foi uma heroína não ambígua da revolta feminina. Suas
circunstâncias eram constantemente duras e a colocavam em desvanta-
gem; e no entanto, dentro delas, ela se dedicou a uma permanente nego-
ciação de poder, pondo cm questão as verdades binárias de dominação e
resistência, vítima e opressor. Qyc dizer da atuação e dos desejos de
Cullwick nesses curiosos rituais?
A infância de Hannah Cullwick foi a história comum de uma meni-
na destinada por toda a vida ao serviço nas casas dominantes da Grã-
Bretanha. :Filha de uma criada e de mn scleiro, nasceu cm 26 de rnaio de
1833, na vila de Shifnal, cm Shropshire. Sua mãe, Martha Cullwick, tra-
balhava para a senhora do 1-Iall e seu pai trabalhava nos estábulos. Seus
pais serviam, portanto, ao mundo cm extinção da antiga nobreza, cm
que o poder era investido em terras, e as classes sem terra se relaciona-
vam às classes senhoriais por códigos ancestrais de dever, lealdade e pa-
ternalismo. Embora Cullwick viesse a morrer na vila em que nasceu, em
9 de julho de 1909, passou sua vida como criada entre as propriedades
rurais senhoriais e as casa!. urbanas da elite manufatureira em Londres e
Margate'3 • Nos estaleiros imperiais, nos bancos mercantis, nas fábricas e ·,
moinhos, o poder era investido como capital e nos extensos saques do
império, e a classe trabalhadora se relacionava com os novos senhores
através da dinâmica pouco confiável do nexo do dinheiro. A vida de
Cullwick saltava do mundo decadente da nobreza ao mundo ascenden-
te da manufatura industrial e, embora sua infância tenha sido co1num
em quase todos os aspectos, sua vida atravessaria algumas das mais pro-
fundas fissuras da era vitoriana.
Nascida numa cabana rústica em Shropshire, Cullwick passou a
maior parte de sua vida nas cidades, trabalhando como encarregada dos
urinóis numa estalagem, como empregada num berçário, empregada na
cozinha, ajudante de cozinha e faxineira, e uma estranha camponesa nas
enormes casas decadentes da elite vitoriana urbana. No apogeu da "mu-
lher desocupada", ela se tornou musculosa com o trabalho braçal. Desti-
nada pela classe a casar com um trabalhador, casou cm vez disso com um


13. Idem, op. cit., p . : . {
,,,,
!f
2.12.
Couro imperial - 'lv!ta, trawstismo e o ,ulto da domtstfridade

membro da burocracia da classe média alta. Como mulher de advogado,


Cullwick podia ter "entrado na sociedade", mas preferiu viver como
criada en1 meio à sua própria classe, passando muito pouco tempo com
seu marido. Numa época em que os serviços da esposa não tinham valor
econômico, insistia cm que o marido lhe pagasse um salário mensal.
• Numa época em que a maioria das mulheres dedicava dois terços da
:ri· ..
w· vida a criar filhos, ela não os teve. Qyando a maioria das mulheres da
/,!,
época era analfabeta, ela era capaz de ler e escrever e deixou 17 diários,
!,,,... .
. que oferecem detalhes íntimos dos feitos hercúleos de sua lida domés
tica. Sua vida foi comum e sua morte não provocou impacto, mas retros-
r. p(!ctivamentc seus diários oferecem um testemunho incomum e impor-
tante da vida de uma criada vitoriana. Os diários de Cullwick são um
.
.•. testemunho "da última geração de mulheres que fizeram trabalho braçal
. pesado em grande proporção'''4 •
.
! ..
Em 1851 Cullwick viajou para Londres com seus patrões; os ritmos

,.i
•., ... de sua vida seguiam a lógica de classe de suas migrações sazonais'S. Em
Londres, uma visão no fogo lhe mostrou o rosto de Munby. Em 1854, ela
voltou a Londres, onde Munby se aproximou dela na rua. Quando vol-

r.-
f 14. Idem, op. cit., p. I. Para interpretações a respeito do tnbalho das mulheres e da relação
entre o trabalho das mulheres e o desenvolvimento econômico, ver Davidoff e Hall, Fa-
i--
,1~. mily Fortunn ..; Patrícia Branc2, U'omm in Europe Since I759 (Londres: Croom Hclm,
:·, 1978); Joan \V. Scott e Louise Tilly, U'omm, H'ork and Family (Nova York: Holt, Rcin-
hardt and \.Vinston,1978); Sally Alcxander, "\.Vomcn's \Vork in Nineteenth-Cen111ry
London: A S111dy of the Years 1820-1850", in Julict Mitchell e Ann Oakley (eds.), 1he
Rights and Wrongs of U'omm (Harmondsworth: Penguin, 1976); Sandra Burman (org.),
Fit U'orkfar U'omm (Nova York= St. Martin's Press, 1979); Barb:a.n Taylor, "The Mcn are
as Bad as Thcir .l'vlasters ... : Socialism, Fcminism and Sexual Antagonism in the London
Tailoring Tradc in the 183o's•, in Newton, Ryan e Walkowitt (orgs.). S,x and Class... ,
pp. 187-220; Christine Dclphy, Clou to Homt: A tl1aterialist Analysú ofWommí Oppression,
trad. Diana Leonard (Amherst: University of Massachusetts Press, 1984); e Angcla John,
By the Sweat of1htir B=: U'omm Workers at Vi<torian Coai !vlints (Londres: Routledge,
1984).
15. Munby se formou no Trinity College, Cambridge, cm 1851, no mesmo ano em que
.- Cullwick chegou a Londres, e se hospedou no Lincoln's lnn cm junho. Nos cinco anos
-·. seguintes ele viveu cm pensões e a seguir ocupou as peças do primeiro piso de Fig Trcc
Court, 6, cm Tcmple, cm 1857, onde viveu atê sua morte. Em 2 de janeiro de 1859, Munby
começou a trabalhar no escrit6rio da Comissão Edcsiástic2.

.,'

213
Couro imptrial

tou novamente no ano seguinte, encontrou alojamento num quarto pe-


queno e frio: "Ali Massa voltou a me ver e foi ali que pela primeira vez
escureci meu rosto com óleo e chumbo"'6• I nstigado por Cullwick, o casal
começava sua carreira de vida de fetichismo doméstico e raci;tl e logo
depois Cullwick começou a escrever o primeiro de seus 17 diários.

NADA A USAR A NÃO SER OS SEUS GRILHÕES


Sadomasoquismo (S/l\11) e poder doméstico

Cullwick e l\'lunby encheram suas vidas com a parafernália teatral do


SIM: botas, correntes, cadeados, couro, vendas, correias, roupas, rotei-
ros e fotografias - algumas quase pornográficas. Seus jogos incluíam
uma variedade de rin1ais fetichistas: travestismo, acorrentamento, feti -
chismos de pés e de couro, fetichismo de mãos, rituais de lavagem,
infantilismo, bestialismo e voyeurismo. As primeiras transformações
cm torno das quais giraram seus jogos de fantasia eram as principais
transformações do imperialismo industrial: classe (criada cm senhora),
raça (mulher branca cm escrava negra), gênero (mulher cm homem),
economia (terra em cidade) e idade (adulta em bebê), transformações
que derivavam simultaneamente do culto da domesticidade e do culto
do império.
Como observa Liz Stanley: "Correntes, lambeção de botas e escure-
cimento para m~.l~or mostrar o rebabcamento do escravo cm relação ao
senhor não são apenas imagens de servidão num sentido convencional e
por vezes religioso; são também imagens repletas de sobretons sadoma-
soquistas e so..'Uais,.17• l\1as ela logo rejeita "a utilidade ou propriedade de
rotular tal relação de sadomasoquista"18 • Pois, argumenta, enquanto as
pessoas em cenários S/.NI podem mudar de papéis, vemos "que a qual-
quer momento aquele que é o 'senhor' tem poder, e o que é 'escravo' não
tem". Como Cullwick não era nem impotente nem escravizada, nesse

16. Stanley, Diariu ofHannah Cu/1"-'Jick .•• , p. 40.


17. Idem, op. cit., p. :4.
18. Idem, op. cit., p.15.
Couro imptrial - '1vJça, trawstismo t o culto da domaticidadt
F•

•..
~

r, sentido "convencional", mas, ao contrário, era "forte, teimosa, indepen-


r dente, segura e competente", o termo sadomasoquismo, diz Stanley, não
tem utilidade para entender os jogos de poder de Cullwick e iVIunby'9,
Stanley também rejeita o SIM como não mais que a imposição
retrospectiva de imagens e terminologias do presente sobre o passado.
Mas não foi por acaso que a subcultura histórica do S/l\1 surgiu na
Europa por volta do fim do século XVIII, com a emergência do imperia-
lismo em sua moderna forma industrial. Como indica Foucault, o S/lVI
(que não é simplesmente sinônimo de cn1cldade e brutalidade) é uma
subcultura ritual altamente organizada que "apareceu precisamente ao
final do século XVIII" - algumas décadas antes do nascimento de
Cullwick e de Munby'º. Estudiosos da raça na era vitoriana tardia
demonizaram o S/Nl como a psicopatologia do indivíduo atávico, uma
falha do sangue e um estigma da carne11• As "ciências" do homem -
filosofia, marxismo, antropologia, psicanálise - procuraram conter as
irrupções do fetichismo projetando-o numa zona inventada de "dege-
neração", concebendo-o como uma regressão no tempo histórico para a
pré-história da degradação racial, a degeneração da raça inscrita na pa-
tologia da alma. O SIM, porém, é menos uma falha biológica, ou uma
expressão patológica da natural agressão masculina e da natural passivi-
f dade feminina, do que uma subcultura organizada e formada em torno
1 . do exercício ritual do risco social e da transformação social. Como teatro
' de conversão, o SIM reverte e transforma os significados sociais que
' ' toma emprestados.
Afirmar que no S/Nl "quem quer que seja o 'senhor' tem poder e
• .. quem quer que seja o escravo não o tem" é tomar o teatro pela realidade;
-l
.. 19. Ibidem .
•1
1 \; :o. Michcl Foucault, Madnm and Cit,iliuition (Londres: Rout!edge, 1993 [1961)). Oliero en-
l fatizar que, por SIM, me refiro à subcultura do SIM consensual, recíproco, e não a abuso
1 ..
.,. ~
involuntário. Estou também ciente de que esses não são extremos absolutos, mas antes um
conti11uum, e que algumas relações se dão nos limiares da zona do lusco-fusc~ entre eles.
·..~·-·-..-
r: :
{41· 2:. Para uma análise detalhada do SIM, ver meu ensaio sobre Sli\-t e poder de gênero, "Maid
1~ to order: commercial SIM :rnd gendcr powcr", in Pamcla Church Gibson e Roma Gib-
!~ son (orgs.), Dirty Lool:.s (Londres: British Film Institutc, 1y93), PP· 2or31.
~
"º !l'

215
Couro impaial

é fazer o mundo andar para frente. A economia do S/l\1, no entanto, é a


economia da conversão: de senhor em escravo, de adulto cm criança, de
poder cm submissão, de homem cm mulher, de dor em prazer, de huma-
no em animal c, de novo, ao contrário. O S/l\1, como diz Foucault, "cons-
titui urna das maiores conversões da imaginação ocidental: a dcsrazão
transformada cm delírios do coração"••. O SIM é o teatro da transforma-
ção: ele "faz o mundo andar para trás" 2J.
O S/l\1 consensual (a organização coletiva do fetichismo) insiste em
exibir o "primitivo" (escravo, criança, mulher) como um personagem no
tempo histórico da modernidade. O S&il desempenha o ''irracional pri-
mitivo" como entrecho dramático; urna performance teatral comunitária
no seio da razão ocidental. A parafernália do S/l\l (botas, chicotes, cor-
rentes, uniformes) é a parafernália do poder do Estado, a punição públi-
ca convertida cm prazer privado. O S/l\1 faz o poder social andar para
trás, encenando visível e ultrajantemente a hierarquia, a diferença c o
poder, o irracional, o êxtase ou a alienação do corpo, colocando essas
ideias no centro dn razão ocidental. O SIM, assim, revela a lógica im-
perial do individualismo e o recusa enquanto destino, embora cm última
análise não se furte ao encanto de seu próprio círculo mágico.
Donde o paradoxo do S&I. De um lado, o SIM exibe uma obediência
escravizada às convenções do poder. Em sua reverência ao ritual formal,
é a mais cerimonial e decorosa das práticas. O S/l\1 é alto teatro: "bela-
mente adaptado ª !l_simbolismo"14• Como teatro, o S/l\1 torna empresta-
da a decoração, os objetos e vestimentas (algemas, correntes, cordas,
vendas) e suas cenas (quartos de dormir, cozinhas, masmorras, conven-
tos, prisões, império) das culturas cotidianas do poder. Ao mesmo tem-
po, com sua ênfase exagerada nas vestimentas, roteiro e cena, o S/l\1 re-
vela que a ordem social não é natural, é roteirizada e inventada.

22. Foucault, J\lfadnm and Ci1.1ilization, p. 124 .


23. E rving Goffman, Frame Analysis {Nova York: Harper 2lld Row, 1974), p. 36.
24. Paul H . Gcbhard, "Sadomasochism", in Tho mas \Vcinbcrg e G. 'rV. Lcvi Kamcl, S and i',1:
S111dit1 in Sadoma10<hism (Buffalo: Promclhcus lloolu, 1983), p. 39.

216
,.. Couro imptrial - 'Rgça, trawstism~ to tu/to da domtsticidadt

Para a ciência vitoriana, a natureza era a senhora e a garantia do po-


der. Assim, para Krafft-Ebing, o S/NI encena a agressão sexual "natural"
do macho e a passividade sexual "natural" da fêmea: "essa força sádica é
desenvolvida pela vergonha e pela modéstia naturais da mulher em rela-
;, ção aos modos agressivos do macho[ ...] a vitória final do homem dá a
ela uma intensa e refinada satisfação"•s. O ultraje do S/NI, porém, é pre-
cisamente sua hostilidade à ideia da natureza como guardiã do poder
social. Com o máximo de artifício e frivolidade, o S&l se recusa a ler o
poder como destino ou natureza e inverte <le rnaneira uluajanle os édi-
tos sacramentais do poder e do abandono. Como o S/1\,I é o exercício
teatral da contradição social, ele é antinatureza de maneira autocons-
ciente, não no sentido de que viola o direito natural, mas no sentido de
que nega a existência de um direito natural em primeiro lugar. O S/NI
apresenta o poder social como sancionado, não pela natureza, nem pelo
destino, nem por Deus, mas pelo artifício e pela convenção e, assim, ra-
dicalmente aberto à mudança histórica. O S/1\1 zomba da ordem social
com sua provocativa confissão de que os éditos do poder são reversíveis.
Como tal, é um fenômeno radicalmente histórico.

s/M E O CULTO DA DOMESTICIDADE

O poder que Cullwick exerceu sobre Munby por toda a vida residia cm
seu talento teatral para a conversão e sua capacidade de fazer o mundo
andar para trás: mudar de criada para senhora, de esposa para escrava, de
ama para mãe, de mulher branca para homem negro. Ela era a combina-
ção perfeita, a "abençoada anomalia" que permitiu a Munby encenar em
seu próprio teatro privado de transformação os proféticos antigos con-
trastes de gênero e classe que o deixavam tanto perplexo quanto encan-
tado. Munby registra sua primeira visão dela cm seu diário:

Uma jovem camponesa, ela era, uma servente de cozinha [ ... ] Uma criatura
alta e eret~, com passos leves e firmes e pone nobre: seu rosto tinha os traços

25. Richard von Krafft-Ebing, vFrom Psychopathia Stxualu", in idem, op. cit.. p. 27.

217
Couro impuial

e expressão de uma dama bem-nascida, embora a compleição fosse averme-


lhada e rústica, e os olhos azuis inocentes e infantis: seus braços e mãos nuas
\
eram grandes e fortes e rosados até as unhas: mas eram belos [...] Uma jovem
camponesa forte e dada ao trabalho duro, com as marcas do trabalho e da
servidão espalhadas nela inteira; mas dotada de uma graça e bele-za, uma in-
teligência óbvia, que seria adequada a uma dama de alta estirpe. Eu sonhara
e procurara tal combinação, mas nunca a vi, exceto nela"16 •

Para l\il unby, Cullwick era o modelo da ambiguidade: uma jovem


camponesa que andava pelas ruas da cidade, uma servente na forma de
uma dama. Levava as marcas do trabalho, mas com graça aristocrática.
Era ao mesmo tempo inocente e ciente do mundo. Era uma criança,
mas forte con10 um homem. Ao fazer o papel tanto <la serviçal quanto
da dama, da mulher como do homem, Cullwick oferecia a Munbv a .
promessa delirante de incorporar em uma só pessoa a mãe e a enfer-
meira, a mulher e o homem, que tanto o excitavam. "Qye eu possa", es-
creveu, "pelo menos aplicar algumas de minhas teorias nessa terna cria-
da: que eu encontre paz e conforto no amor de mãe e cm outro tão
diferente"1 7. A forte atração que Cullwick exercia sobre Munby era seu
talento em desempenhar "tão bem cada papel". Ele a lembra sentada
depois da labuta de um dia, "elegante cm seda preta e com a cabeça co-
berta ( ... ] pois não é uma criada durante o dia e uma dama à noite? E
desempenha cada um dos papéis tão bem, que às vezes parece incapaz
do outro?" 28• "Num momento ela é o próprio padrão da faxineira da
cozinha, desajeitada e forte, trabalhando entre suor e sujeira". No ins-
tante seguinte, ela se transforma "na perfeita imagem da dama elegante
e serena [Figuras 3.13, 3.14]"29 •

26. Munby, "Di:uy-, 26 de maio de 185,4, in Hudson, 1"1u11by.. . , p. 15.


27. Ide!11, op. ci1., p. 70. Robert L. Stevenson, do mesmo modo, assim chamava sua bah:í:
"Minha segunda mãe, minha primeira esposa/ O anjo de minha primeira infinci:i", in
Janet A dam Smith(org.), Cc/luud Poems ( Londres: Rupert-Hart D avis, 1951), p. 361.
iS. Hudson, Nlunby.•. , p.329.
i9. Idem, op. cit., p. 108.

2 18
Couro imptrial - 'Raça, trawstismo to culto da domtsticidadt

Figura3.13- Cu/lwick lavando o chão.

Cullwick oferecia a Munby a ilusão do controle sobre as contradi-


ções que constituíam sua identidade. Ele admirava sua força musculosa
e sua "hombridade" que lhe permitiam sentir-se, em contraste, delicio-
samente "fêm ea", mas de tal modo que não ameaçasse sua precária e
compulsória masculinidadclº. E, cedendo à fantasia de que era senhor
de suas cerimônias, Munby cedia ao que John Berger chamou de "Ten-
tação de Pigmalião" - o desejo (infantil) de conformar a vida de outro
ser segundo os ditados de nossos desejos. Mas como o "domínio" de
Munby sobre Cullwick não era n1ais do que a dádiva teatral que ela lhe
dava, que ela podia retirar a qualquer momento (e de fato o fez), e como
as contradições que o afligiam eram contradições sociais que não pode-
riam ser resolvidas o âmbito pessoal, a cena do fetiche estava destinada
a se repetir mais e mais vezes.

30. As tentativas de Munby cm poS2r como um homem d a classe trabalh~dota for~m poucas
e recebidas com muita hilaridade por parte de Cullwick.

2 19
Couro imperial

Figura 3 .14 - Cullwick como dama.

O SIM é um teatro de signos. Munby não podia evitar seu fascínio


pelos signos visíveis e escritos da domesticidade de Cullwick. A repre-
sentação da domesticidade como alegoria social e imperial o mantinham
preso. Obcecado com a escrita, Munby exigia que, quando Cullwick não
pudesse aparecer fisicamente no "signo" de sua sujeira, lhe mandasse
signos verbais na forma de seus diários. E Cullwick, por sua vez, rapida-
mente aprendeu a usar seu diário e suas apresentações teatrais para ma-
nipular os desejos de Munby e manter controle sobre ele.
De fato, não era tanto a realidade do trabalho feminino que cativava
Munby, mas a represenlafão do trabalho: o trabalho como espetáculo,
(
como fotografia, como linguagem, como diário, como esboço, como ro-
teiro, como parafernália teatral da domesticidade: vassouras, baldes, sa-
bão, sujeira - fetiches que não podem, em minha opinião, ser reduzidos
a uma simples lógica fálica. Em seu teatro de conversão, objetos domés-
ticos mundanos pass:un a ser investidos de grande poder fetichista, como
signos ambivalentes da subordinação doméstica e do poder doméstico.
Por que a enfase nos signos?

220
Couro impaial - 'R.J:ra, trawstismo t o tu/to da domutiddadt

Como teatro de signos, o SIM oferece controle temporário sobre o


risco social. Ao projetar e controlar o enquadrament~ da representação,
cm outras palavras, o quadro de controle - o diário, a câmera, a cena
teatral-, o ator encena a delirante perda de controle numa situação de
controle extremo. Para Munby, a perda do controle e a confusão do limi-
te social eram 1nediadas por uma preocupação excessiva com o controle.
Ele dependia profundamente dos quadros de controle, através dos quais
manipulava a encenação do risco social. Manipular o quadro de contro-
le - a fotografia, o esquete, o diário, o roteiro, o circo e, em particular, a
troca de dinheiro - era indispensável para sua sensação de domínio
sobre o que de outra maneira apresentaria ambiguidades terríveis.
O SIM é assombrado pela memória. Ao reinventar a memória do
trauma e ao encenar a perda de controle numa siruação que em realida-
de é de excessivo controle, o ator ganha poder simbólico sobre a perigo-
sa memória. O S&I permite um triunfo delirante sobre a memória e, a
partir desse triunfo, um excesso orgásmico de prazer. Mas, como o triun-
fo sobre a me1nória é teatral e simbólico, po r mais intensamente sentido
que seja na carne, a resolução é sempre adiada. Por essa razão, a memória
(a cena) retorna para perpérua reencenação, e a repetição compulsiva
surge como princípio fundamental da estruturação do S/1\1.
Uma tendência do feminismo tem sido demonizar o SIM heterosse-
xual como exercício sancionado da dominação masculina sobre as mu-
lheres. "O sadomasoquismo é o autorrebaixamento em todos os níveis
que torna as mulheres incapazes de executar objetivos verdadeiramente
feministas"1'. lVlas, com maior frequência, a culrura S/l'vI revela o oposto:
"No mundo sadomasoquista, não há nada de 'anormal' em um m acho
que seja passivo ou submisso. De fato, a passividade masculina é de lon-
ge o fenômeno mais comum"31• Não é então de surpreender que Munby
fosse o que é, na fala comum, chamado de "infantilista", adorando, como

31. Robin Ruth Linden et ai. (orgs.), Again11 Sadomaso,hism: A Radi,al Ftminist Analyrú
(São Francisco: Frog in the \Vell, 1982), p. 28.
32. Homens vsubordinados" frequentemente têm um papel cm enredos feitos a partir da
"degradação~ da domesticidade feminina: varrer compulsiv-:amcnte, limpar, lavar, sob o
impacto de insultos e cahlnias verbais. Algumas dominadoi:a., rcm seus "bichinhos de

221
Couro impuial

adorava, ser banhado por Culhvick, erguido em seus braços fortes, em-
balado e atraído a seu colo farto como um bebê33• Talvez nesses encon-
tros Munby conseguisse render-se em delírio à memória de seu desam-
paro nos braços da primeira ama, ao prazer voyeurista do espetáculo de
unia trabalhadora a cuidar de seu corpo passivo e ao reconhecimento
proibido do poder social da mulher da classe trabalhadora.
A contradição de Nlunby era depender de mulheres da classe traba-
lhadora, que a sociedade estigmatizava como subservientes. Ao reco-
nhecer ritualmente Cullwick (como fez com sua babá) como social-
mente poderosa, ele podia reconhecer sua identificação infantil proibida
com mulheres poderosas, particularmente as da classe trabalhadora. Seu
fetiche de lavar os pés era um ritual de expiação que simbolicamente o
absolvia da culpa e da "sujeira", permitindo-lhe ao mesmo tempo ceder
ao espetáculo voycurista e proibido do trabalho e do poder das mulheres.
De qualquer forma, o reconhecimento do trabalho doméstico comova-
lioso era socialmente tabu e tinha de ser mediado e controlado por ro-
teiros cuidadosamente arranjados.
Em certa ocasião, por exemplo, Cullwick convidou Munby a visitá-la
en1 seu local de trabalho. Uma vez lá, ele mergulhou num estado de agi-
tação e aflição extrema. "Vê-la cm pé numa sala íntima em suas roupas
de criada e saber que ela é uma criada, e que o piano, os livros, os quadros
pertenciam à sua patroa[... ] isso eu não pude suportar"34• Ver Cullwick f

cm seu local de trabalho forçou Munby a reconhecer que em realidade


ele não controlava a vida dela, e muito ~enos era seu dono. Em outra
ocasião, ele se surpreendeu ao visitá-la no trabalho e ver quão verdadei-
ramente imunda e exausta ela estava. O que o aborreceu nas duas oca-
siões foi o colapso de seu quadro de controle e, assim, a perda de sua

estimação" que comumente fazem seu serviço doméstico. Ver Anne McClimock, "Maid
to order.. .", pp. 207-31.
33. O fetichismo infantil de Munby é comum no S~1: "Há toda uma área de comportamen-
to desviante, chamada de 'bebezice', na qual o cliente gosta de vestir um pijama, sugar
uma boneca gigante ou um de seus seios e ser embalado". Allegra Taylor, Prostitutioit:
What sLove Got lo Do t:.1ith lt? (Londres: Oprima, 1991), p. 39.
34. Hudson, Nlunby.. . , p. 116.

222
Couro impuial - ~ ça, traw llismo , o ,ulto d a dom,11itidad,

ilusão de domínio da cena. Ver Cullwick no trabalho era uma lembran-


ça forçada de que outra mulher pagava o salário dela e lhe dava ordens.
Da mesma forma que se sentiu ultrajado ao ver um jornalista fotogra-
fando "suas" miniaturas de mulheres, a visão de Cullwick no trabalho
• roubou a Munby sua ilusão de que controlava o perigoso cenário, e vio-
lentamente o precipitou numa crise.
A troca de papéis é uma característica comum do S/I\·I e, cm suas
reuniões secretas de espetáculo, Cullwick e l\tlunby frequentemente tro-
cavam de papéis. A maior parte do S/I\11 é menos "desejo de infligir dor",
como disse Freud, do q ue a organização teatral do risco soâa/JS_ Contra
as perccpções populares, g rande parte do S/M não envolve qualquer dor.
Suas violações rituais são menos violações da carne do que encenações
simbólicas de memórias de violações do eu, violações que podem assu-
mir miríades de formas. Como dizem \iVeinberg e Kamcl, "cenários de
SIM são produzidos voluntária e cooperativam ente; e o mais frequente é
:l encenação das fantasias do (a) masoquista"J 6 • Nluitos fetichistas S/I\tl
dizem que de fato é o "de baixo" que decém o controle.
H avclock Ellis observa que boa parte do SIM é m otivado por amor.
Longe de ser um exercício tirânico de uma vontade sobre outra, o SIM
ê tipicamente colaboração, envolvendo cuidadosos rituais de iniciação,
uma escrupulosa definição de limites e uma constante confirmação de
1. reciprocidade que pode vincular os participantes nu111 êxtase de interde-
pendência: abandono no momento mesmo da d ependência. l\ilas como
o SIM envolve a negociação de fronteiras perigosas, qualquer violação
do roteiro está eivada de riscos, enquanto a fidelidade mútua à comhi-
nação cria uma intimidade de tipo muito intenso. Se o controle se perde
em qualquer ponto, ou há transgressão das regras do j ogo, qualquer dos
parceiros pode entrar em pânico. Donde a importância e prevalência do
mteiro no S/lVI consensual.

JS· Freud, 1hrce Essays on tht 1h,ory ofSa:uality (Nova York: Basic Books, t962), p. 23.
36. Wcinbcrg e Lcvi K:imcl, S and Nl, p. 2 0.

223
Couro impuiaf

A PULSEIRA DE ES C RAVA
Recusa da abjeção

Durante anos, Cullwick usou uma "pulseira de escrava" de couro imunda


e uma corrente com cadeado cm volta do pescoço. Sua razão original
para a pulseira, diz ela, era apoiar o pulso depois de um deslocamentoJ7•
Mais tarde passou a usá-la como "signo" de seu amor e servidão a Munby.
Uma vez em que insistiu cm usar a pulseira ao servir o jantar, permitin-
do que fosse vista em seu pulso pelos convidados, a patroa ordenou-lhe
que a tirasse. Cullwick recusou-se a obedecer e foi demitida na mesma
hora, preferindo, como orgulhosamente registra em seu diário, perder o
emprego a tirar "o signo de que sou urna serviçal e pertenço ao Massa"38•
O que di~er da pulseira de escrava de Cullwick, já que ela faz parte da
zona do fetiche?
O fetiche incorpora uma crise do significado social. Na pulseira de
escrava de Cullwick convergem três das contradições formadoras da era
vitoriana: entre trabalho escravo e trabalho assalariado; entre o domínio
privado da domesticidade e o domínio público do mercado; e entre a
metrópole e o império. No fetiche da pulseira de escrava, raça, classe e
gênero se sobrepõem e mutuamente se contradizem; a pulseira de escra-
va, como a maioria dos fetiches, é sobredeterrninada.
A transgressão de Cullwick foi usar num jantar (teatro do consumo
da classe média e do lazer feminino) o signo proibido do trabalho das
mulheres. Cullwick pôs escandalosamente cm crise a relação incomen-
surável entre a doutrina vitoriana de que as mulheres não deveriam tra-
balhar em busca de lucro e o signo visível do trabalho doméstico femi-
nino: o ténue e ilícito cheiro da cozinha, a mancha da água suja, a marca
do trabalho no couro imperial. Cullwick ofendeu a convenção exibindo,
por sua própria vontade teimosa, a evidência pública da sujeira domés-
tica das mulheres, banida por decreto vitoriano para cozinha e fundos,
celeiro e sótão - a arquitetura do não visto. Ao se recusar a tirar a pul-

37. Stanley, Diaries ofHanna/J CuflwicJ:.. . , p. 307.


38. Hudson, Munby... , p. 184.

224
Couro imperial - 'R8ra, tra11nrismo e o cult~ da dom euiddade

seira, Cullwick estava recusando a abjeção social de seu trabalho e sujei-


ra doméstica (Figura 3.15).

Figura 3.r5- Exióição desafiadora.

Para Culhvick, o fetiche da pulseira de escrava especificava o reconhe-


cimento do valor social. A ideia do trabalho oculto é fund amental para
a análise marxista do fetiche da mercadoria. A ideia da fixação traumá-
tica numa experiência intensa é fundamental para a noção psicanalítica
do fetiche sexual. As duas ideias se fundem na pulseira de escrava. Numa
observação importante, William Pietz nota que o fetichismo surge mui-
tas vezes a partir de uma crise que "reúne e fixa em intensidade singular-
mente ressonante e unificada um evento irrepetível (permanente na me-
mória), um objeto particular e um espaço localizado~. Paradoxalmente,
esse momento de crise, por sua "degradação cm relação a qualquer có-
digo reconhecível de valor", se torna "um momento de valor infinito"39.

39. \Villiam Pictt, "lhe problem of the fetish, II", Res 13 (Prim:iven, 1987), p. 34.

225
Couro impu ial

A morte da mãe de Cullwick foi precisamente um momento irrepetível;


o espaço localizado foi o espaço arquitetônico da domesticidade de clas-
se alta; e o objeto particular foi o fetiche imperial da pulseira de escrava.
Aqui a crise envolve o corpo da mãe, mas não da maneira que Freud
previu.
Aos 14 anos, trabalhando fora de casa como babá, Cullwick foi cha-
mada sem qualquer aviso e informada sem rodeios de que seus pais ti-
nham morrido de doença algumas semanas antes. D eixada a chorar so-
zinha no chão onde caíra e vendo recusada a licença para voltar para casa
e ajudar seus irmãos e irmãs órfãos, Cullwick sentiu que a morte de sua
amada mãe tirava todo o valor de sua vida: "Parecia que minha dedica-
ção à vida e ao trabalho tinham sumido". A crise assumiu a forma de
fetiche, pois a violência do encontro fortui to com a morte e a recusa dos
patrões ao seu luto marcar.l!fl uma ruptura radical com a história e com
a comunidade, custando-lhe não só a família, mas também o valor sim-
bólico do trabalho e seu senso de controle sobre a própria vida. A morte
da mãe a atirou a uma intensa colisão com o poder da família de classe
alta de subjugar seu valor às necessidades dela. "Não acredito que [supe-
rarei isso]. Nunca mais brincarei ou jogarei bola no jardim"40 • D aí em
diante, sua mãe será representada pelo esforço da memória: "tento so-
nhar com seu fantasma".
Com a pulseira de escrava, Cullwick fez da memória um objeto re-
petível. Em todas as suas fo tografias ela posa de tal maneira a exibir a
pulseira de escrava ao máximo. Como todos os fetiches, a pulseira de
escrava era contraditória, incorporando o poder da classe alta de escra-
vizá-la, ao mesmo tempo em que exibia sua determinação de reivindicar
o valor de seu trabalho e da memória de sua mãe. No "lugar marcado" de
seu pulso, ferido pelo trauma do trabalho, ela transformou a servidão
nurn sinal secreto de autoafirmação. Exibindo deliberadamente a pulsei-
ra num jantar ela reafirmava sua independência e seu direito a contratar
trabalho como lhe aprouvesse. Dispensando o emprego, afirmou seu di-

40. Stanley, Diarics ofHur1r1uh CullwicJ. .•• , p. 37.

226
Couro imperial - 'J?.eça, travtstismo t o ,ulto da áomtstitidadt

reito de controlar o próprio corpo e seu próprio trabalho. Ligando-se a


Munby como sua "escrava" simbólica, assumiu o controle, no domínio
simbólico, da falta de controle no domínio social. Sua recusa inflexível e
·• inteiramente independente em retirar a pulseira revelava, além disso,
que ela a valorizava apenas como símbolo do poder sobre o qual tinha
controle cm última análise. Mais importante, exibindo seu pulso sujo de
trabalho, rejeitava o estigma da vergonha ligado ao trabalho doméstico4 '.
Se o culto vitoriano da domesticidade destituía seu trabalho de reconhe-
cimento social, ela teimosamente exibia as mãos em público para mos-
1
trar seu valor econômico: "minhas mãos e meus braços são meu chefes,
t cc,m que ganho minha vida"•i:.
A ligação fetichista de Culhvick com sua pulseira de escrava expres-
sava, sugiro, uma tentativa de reinventar a memória do valor de sua mãe
aos olhos da classe alta. A subestimação de seu trabalho pela classe alta
encontrava sua antítese em sua própria superestimação desse trabalho.
.,
Sua pulseira de escrava e sua profunda dedicação ao trabalho doméstico
• incorporavam \lma determinação comp\llsiva de manter sob controle, a
"·...
, qualquer custo físico, o âmbito do trabalho ao qual estava subordinada.
)· As experiências interculturais marcadas pelo fetiche se fundem na
-,. pulseira de escrava: nas relações triangulares na escravidão como base do
capitalismo mercantil; no trabalho assalariado como base do capitalismo
industrial; e no trabalho doméstico, como base do patriarcado. Usando
" de maneira flagrante em seu corpo o couro-fetiche do trabalho forçado,
Cullwick punha cm questão a separação liberal entre público e privado,
...
,
insistindo em exibir seu trabalho, sua sujeira, seu valor no lar: esse espa-
·l ço supostamente além do trabalho escravo e do trabalho assalariado. Ao
exibir sua sujeira como valor, ela desmentia a desaprovação do trabalho
das mulheres e o controle racional da classe média sobre a sujeira e a
desordem.

41. Como Cullwick anota, ~Nunca encontrei uma criada que não tivesse vergonha do traba·
lho sujo". Stanley, Diarits ofHannah Cullwitk.. . , p. 96.
42. Idem, op. cit., p. 76.
Couro imperial

Figura J· 16 -A paraftmdlia do Figura 3.17 - Oftti<he da sujeira.


ftti<hismo domisti<o.

O FETICHE DA SUJEIRA

A principal objeção dos empregadores de Cullwick à pulseira era sua


sujeira. Os rituais de Cullwick e Munby - a limpeza dos pés e das bo-
tas, os rituais de Íavagem, o desejo voycurista de Munby de ver Cullwick
em "sua sujeira", ·O -"enegrecimento" deliberado de Cullwick, as foto-
grafias, a pulseira - eram organizados de maneira complexa, mas repe-
titiva cm torno do fetiche vitoriano da sujeira (Figuras 3.16-3.18). Por
que a sujeira exercia tal fascínio compulsivo sobre suas imaginações, as-
sim como sobre a era vitoriana como um todo?
Nada é inerentemente sujo: a sujeira exprime uma relação ao valor
social e à desordem social. A sujeira, como sugere Mary Douglas, é o que
transgride a barreira social43 • Uma vassoura no armário da cozinha não

43. Mary Douglas, Purity and Danger (Londres: Routledge e Kegan Paul, r966). Ver também
Davidoff, "The Rationalitation ofHouscwork", in Diana Leonard e Shcila Allen (orgs.),
S,xual Di.,isions Jv...isiuJ (B:isingstoke: MacMillan, 1991), p. 63.

228
Couro impaial - <J?.s,a, travutismo e o culto da domtstiddadc

é suja, mas o é se estiver sobre a cama. O se.xo com o cônjuge não é sujo,
mas convencionalmente o mesmo ato com uma prostituta o é. Na cultu-
ra vitoriana, a iconografia da sujeira tornou-se profundamente integrada
no policiamento e na transgressão das barreiras sociais.

Figura 3.;8 - Domtstiâdadc ,omo n:wirão.

A sujeira é o que sobra depois que o valor de troca foi extraído. Na


cultura vitoriana, a relação corporal com a sujeira exprimia uma relação
social com o trabalho. A classe média masculina - procurando desman-
telar o corpo aristocrático e o regime aristocrático de legitimidade -
passou a distinguir-se como cJasse de duas maneiras: ganhava sua vida
(ao contrário da aristocracia) e tinha propriedade (ao contrário da classe
., operária). Diferentemente da classe operária, porém, seus membros, es-
pecialmente os femininos, não podiam carregar em seus corpos a evi-
dência visível do trabalho manual. A sujeira era um escândalo vitoriano
porque era a evidência excedente do trabalho manual, o resíduo visível
que teimosamente permanecia depois que o processo da racionalidade
industrial tinha feito sua parte. A sujeira é a contraparte da mercadoria;
Couro imp uial

algo é sujo precisamente porque destituído de valor comercial, ou porque


transgride o mercado comercial "normal". A sujeira é por definição inú-
til, porque é aquilo que fica fora do mercado.
Se, como observou Marx, o fetichismo da mercadoria exibe com os-
tentação a supereslimação da troca comercial como princípio fi.mdamcntal
da comunidade social, então a obsessão vitoriana com a sujeira configura
uma dialética: a subestimação fetichizada do trabalho humano. Espalhada
nas calças, nos rostos, nas mãos e aventais, a sujeira era o traço marcante
da classe trabalhadora e do trabalho feminino, evidência indecorosa de
que a produção fundamental da riqueza industrial e imperial estava nas
mãos e nos corpos da classe trabalhadora, das mulheres e dos colonos. A
sujeira, como todos os fetiches, assim, expressa uma crise de valores, pois
contradiz o ditado liberal de que a riqueza social é criada pelos princí-
pios racionais abstratos do. mercado e não pelo trabalho. Por essa razão,
a sujeira vitoriana entrara no domínio simbólico do fetichismo com
grande força.
À medida que o século XIX avançava, a iconografia da sujeira tornou-
se uma poética de vigilância, exibindo para a polícia os limites entre a
sexualidade "normal" e a "suja", entre o trabalho "normal" e o "sujo", entre
o dinheiro "normal" e o "sujo". O sexo sujo - masturbação, prostituição,
sexualidade lésbica e gay, as hostes das "perversões" vitorianas - trans-
gredia a economia libidinal da reprodução heterossexual controlada pe-
los homens dentro de relações sexuais conjugais (sexo limpo que tem
valor). De maneir·a·semelhante, o dinheiro "sujo"- associado a prostitu-
tas,judeus,jogadores, ladrões - transgredia a economia fiscal do merca-
do de trocas controlado pelos homens (dinheiro limpo que tem valor).
Como as prostitutas e as mineiras, as criadas domésticas ficavam no pe-
rigoso limiar do trabalho normal, do dinheiro normal e da sexualidade
normal, e vieram a ser representadas na iconografia da "poluição", da
"desordem", das "pragas", do "contágio moral" e da "degeneração" racial.
Aqui surge um aspecto crucial do imperialismo vitoriano. A relação
entre a economia "normal"do casamento heterossexual e a economia "nor-
mal" da troca capitalista era legitimada e tornada natural por referência a
um terceiro termo: a invenção <la zona "anormal" do primitivo e do irra-

230
Couro imperial - 'R.!Jra, trawstismo e o culto da domutitidade

... ,
cional. O dinheiro, o trabalho e a sexualidade eram vistos como relacio-
,
nados entre si pela analogia negativa com o domínio da diferença racial
..
,.,1
e do império. Assim, contradições históricas internas ao liberalismo im-
.
i!ll perial (as distinções entre público e privado; trabalho pago e trabalho não
',t -~. •:\, pago; a formação do proprietário masculino individual e a negação de que
escravos, mulheres e colonizados fossem "indivíduos capazes de posse";
tntre o racional e o irracional) eram contidas pelo deslocamento a um ter-
1 ceiro termo: o termo "raça". Distinções de classe e de gênero foram des-
l ,.

J
~· locadas e representadas como diferenças raciais naturais no tempo e no
espaço: a diferença entre o presente "iluminado" e o passado "primitivo".
1 A pulseira de escrava de Cullwick incorpora traços tanto da memó-
1 ria pessoal como da histórica: seu próprio trabalho subjugado e o traba-
lho escravo sobre o qual o capital industrial se assentava. Na segunda
metade do século XVII, os negros trazidos para a Grã-Bretanha pelos
traficantes, mercadores e donos de fazendas viviam espalhados pela In-
glaterra, mas se concentravam principalmente cm Londres. No início do
1 ·. , '
século XVIII, Londres e Bristol eram movimentados portos de escravos,
e continuaram ainda por cem anos a amealhar enonnes lucros do trans-
.l porte criminoso e da venda de seres humanos. Na Grã-Bretanha, a pos-
1 se de um escravo negro se tornou emblema da nova riqueza imperial e
! anúncios com gritos e alaridos à procura de escravos fugidos mostram
l que eles eran1 "habitualmente obrigados a usar coleiras de metal rebita-
das ao redor de seus pescoços. Feitos de bronze, cobre ou prata, os cola-
res eram em geral inscritos com o nome do dono, suas iniciais, armas ou
1 outros símbolos"44 • No cortejo do Lorde Prefeito, festival anual dos ca-
1 pitalistas mercantis de Londres, os negros eram obrigados a vestir rou-
t pagens opulentas e esses colares-fetiche, exibindo em demonstrações

i públicas de suntuário excesso a riqueza da metrópole imperial e o traba-


lho forçado sobre o qual se erguia o capitalismo mercantil.

1
f H· Pcter Fryer, Staying Power: 1he History ofBladt People in Britain (Londres: Pluto Press,
l 1984). Os signos comerciais das rabacarias e das pensões frequentemente mostravam nc·
.1 • gros como signos de fetiche do comércio com seres humanos.. Escravos negros de famílias
! com títulos [de nobreza) eram usualmente exibidos com vestes vistosas, joias, rendas e
~l roupas enfeitadas.

;t
.f.R,,.
J .. {g
231
Couro impaial

Aqui, o colar de escravo incorpora urna contradição entre a exibição


extravagante de escravos negros por seu valor e a negação total do valor
de suas vidas e trabalho. O colar de escrava de Cullwick, como fetiche,
incorporava, assim, uma dupla negação: o repúdio histórico tanto do
trabalho escravo quanto do trabalho das mulheres de classe trabalhado-
ra enquanto fundamento do poder industrial moderno. A pulseira de
escravo e o colar de correntes traziam para o lar burguês a memória do
império - correntes, cinturões e escravidão - no momento preciso em
que a economia industrial se transformava de um mercado de escravos
num mercado de salários. A pulseira-fetiche de escrava encena, assim, a
história do capital industrial assombrada pela traumática e inarredável
memória da escravidão imperial.

Sf"fv1 E RITUAIS DE RECONHECIMENTO

O SIM desempenha o fracasso da ideia iluminista da autonomia indivi-


dual, encenando teatralmente a dinâmica da interdependência na busca
do prazer pessoal. lVlas o S&l não é meramente um drama existencial
hegeliano atemporal entre o Eu e o Outro, o Ser e o Nada. Ele é, ao con-
trário, urna subcultura histórica que retira sua lógica simbólica das
contradições sociais em mudança. ~al é a lógica social do prazer de
,.
Cullwick no SIM doméstico? "O desejo de submissão", escreve Kamel,
1 •
"representa uma transposição peculiar do desejo de reconheci1nento"4s.
Se Cullwick deu licença a Munby para negociar as contradições de clas-
se e gênero, 1\1unby deu a Cullwick o ritual de reconhecimento do valor
do trabalho dela, o que ela sempre desejou.
~ando menina, a identidade de Cullwick surgiu através de um para-
doxo. Por uma obscura economia de afirmação social por autonegação e
os éditos de rebaixamento de classe, ela aprendeu muito cedo que só seria
recompensada se negasse a si mcsma46 • Desempenhando rituais de obe-

45. Wcinbecg e Karncl, S and M, p. 56.


46. ~comecei a trabalhar muito cedo - antes de realmente entender o significado disso - e,
na escola da Assistência Social, aprendi a fazer as mesuras para as senhoras e cavalheiro;

232
Couro impaial - <J?.era, travutismo r o "'''º da domtsticidad,

diência institucionais e sancionados, cortejando e curvando-se diante


dos bem-nascidos, obteve afirmação através de sua autonegação. A ne-
cessidade de reconhecimento pela classe alta entrou em sua identidade
com a força de uma contradição inarredável4 i.
Cullwick herdou um perigoso paradoxo. Sua primeira fonte de auto-
estima era o reconhecimento como trabalhadora. Isso significava ser
obediente, resistente, independente e capaz de economia - mas, por
decreto vitoriano, apenas se permanecesse invisível. O trabalho domésti-
co configurava da maneira mais profunda sua autoestima e as fronteiras
entre ela mesma e os outros - as mulheres em particular48• E no entan-
to os feitos extraordinários de seu trabalho doméstico eram pública e
ritualmente desprezados - como trabalho sujo, trabalho sc1n valor
'• social. Sua querida mãe trabalhadora - a primeira a atribuir reconhe-
cimento e limites a seu eu - era socialmente desprezada como servil e
inferior, digna de vergonha. Cullwick sabia muito bem o quanto as mu-
lheres de classe alta dependiam de seu trabalho: "A srta. M. estava exi-
gente e quase guinchando, e no entanto tão pequenina e frágil. Parecia
difícil ser assim provocada por ela e ser paciente e dócil com algué1n que
cu quase poderia esmagar com uma mão e eu tão mais alta que ela[ ...] e

e me parecia inteiramente natural pensar neles como absolutammtt acima das classes
bai.xas e que era nosso lugar cumprimentar e ficar ao seu dispor". Stanley, Diarits ofHan-
nah Cu/lwi,k ... , p. 35.
47. Qyando ela trabalha,·a fora de casa, algumas de suas primeiras lições sobre identidade
{;· eram lições de afirmação via grandes feitos de trabalho: "Ela (Mrs Phillips) sempre me
:.,li;
°41; elogia depois de cu ter limpado o chão de tijolos vermelhos com minhas mãos e de joe-
,,
lhos e ter escovado as enormes mesas brancas na cozinha. Eu p0dia limpar a sala de
jantar e o longo ha/1 de entrada e os degraus da porta e tudo isso antes do café da manhã".
Idem, op. cit., p. 74.
48. Seu motivo para trabalhar tinha sido, em primeiro lugar, agradar sua mãe. Cullwick ado-
rava sua mãe e vivia para ela, autossacrificando-se e trabalhando duro para agradá-la:
"Estava pensando como vou trabalhar e fazê-la feliz, pois ela terá todo o meu dinheiro".
Idem, op. cit., p. 82. O dinheiro que ela ganhou com trabalho duro conquistou o amor de
sua mãe e a compensou da angústia da separação. Dinheiro era o signo oculto d~ reco-
nhecimento da classe alta; ao voltar para casa, ela trocou esse simbolo pela aprovação
aberta de sua mãe.

2 33
Couro imperial

eu também tinha p ena dela"49 • E no entanto essas mulheres desampara-


das lhe negavam constantemente o mágico ingrediente do reconheci-
mento social.
Culhvick gastava muito de sua energia no que poderia ser chamado
de rituais de reconhecimento para a classe alta. Curvando-se e fazendo
mesuras, tomando afetadamente o chapéu de um homem, baixando te-
atralmente os olhos e a voz, deixando a sala de costas, ajoelhando-se
po.ra tirar os sapatos de seu senhor, deixando-se pisar pelas mulheres de
classe alta - todas eram p erfonnances rituais em que Cullwick reconhe-
cia formalmente aqueles que lhe pagavam para que o fizesse. Sua pre-
sença ritualizada era, assim, um elemento necessário na identidade de
classe de seus empregadores; e no entanto, em contraste, o reconheci-
mento social de sua força era sempre adiado. "De certa forma eu nunca
fui muito elogiada no serviço", observa com tristeza50• Pode-se chamar o
projeto que animava sua vida de projeto de reconhecimento, no exato
momento cm que o trabalho manual feminino era afastado da vista.
Cullwick insiste repetidamente em que gosta do trabalho e gosta de
ser da classe trabalhadora: "para a liberdade e a verdadeira humildade
não há nada como ser uma empregada de todo serviço"s1 . Seu diário
contém inúmeras passagens como as seguintes: "O verão avançava e cu
trabalhava e gostava disso" 52 • "Eu gosto da vida que levo - trabalhando
aqui e encontrando M. no domingo, quando posso"sJ. Também prefere o
trabalho físico, qu~ onera sua enorme força e lhe dá um sentido de reali-
zação: "Frequentemente limpava as escadas dela e sacudia os tapetes no
pátio e realmente gosto mais disso do que de fazer o rol". O trabalho,
,
1
49. Jdcm, op. cit., p. 89. •
~
50. "Gosto de estar so-z:inha cm minha cozinha e no meu trabalho". Idem, op. cit., pp. 43-4. 1
"Porque não me parece certo ter uma criada,já que quero lavar e faur o trabalho pesado
cu mesma". Idem, op. cit., pp. -i9, 74.
51. Idem, op. cit., p. 143. Seus diários mostram claramente que ela trabalhava para satisfazer
sua necessidade de valor interior. Q!lando a empregada da senhora lhe perguntou: "Han-
nah, por que você trabalha tanto?", ela respondeu: "Eu disse que o fazia de fato por gosto".
Jde m, op. cit., p. 47. ·
51. Idem, op. cit., p. 48.
53. Idem, op. dt, p. 170.

2 34
Couro imptrial - 'R.f!ra, travtstismo t o culto da domaticidad,

especialmente o trabalho visível, era uma exibição de força, e sua capaci-


dade de realizar coisas impressionantes a enche de prazer. Ela tem orgu-
lho desmedido de sua destreza muscular e gosta de levantar l\.1unby e
outros homens para exibir sua força: "eu posso erguer meu senhor e
carregá-lo quase como se fosse uma criança"s-a. "Eu o levantei com facili-
dade e o carreguei e então ele me levantou e disse que cu era pesada -
l eu peso quase 70 quilos"55.1Vledia seu corpo habitualmente para provar
1 seu valor - uma imitação irônica do discurso vitoriano da degeneração
1 e do fetiche da mensuração. "l\lleu braço ten113 polegadas e¾ de circunfe-
! rência no músculo", escreve orgulhosa, "e minha mão, 4 polegadas e 1neia
't
de largura"S6 • Ern mais de uma ocasião, porém, a imensa carga de traba-
lho chegava a ser demais, mesn10 para ela: "Levantei e cheguei na co-
1
l zinha miserável e fiquei doente de ver tanta sujeira e trabalho pesado"57•
i :r: Cullwick era levada à indignação impotente quando suas patroas se
1 . recusavam a reconhecer seus feitos amazônicos: "Fiz tudo o que podia
·!' ]?. para mostrar que gosto de trabalho sujo e pesado, mas lVlrs. Bishop
.
·r.
,, nunca ficava satisfeita e eu também não"S3•
~\1...
~
.!',' Qyando lVliss Margaret deu suas ordens, começou pelo trabalho e se disse
·j 1.. surpreendida de que tudo não tivesse sido feito melhor. Eu disse: "Bem, se-
.11
,j:,,,
I•
nhora, saiba a senhora ou não, trabalhei muito dwo [...] uma quinzena é o
~t. -
mesmo que nada para limpar uma casa grande como esta[ ...] Nunca traba-
.·1'·'
.,~" lhei tão duro e nunca farei tanto para ninguém mais"[...] Ela não disse mais
... nada, mas me deixou doente de desapontamentoS9 •
~~~

l Para Cullwick, o reconhecimento de classe parece importar mais que


\ o de gênero, pondo em questão algumas teorias feministas de que só os

1
.. 54. Idem, op. cit., p. 16i.

l 55. Idem, op. cit., p. 124. Urna noite, volr.indo pasa casa, ela é abordada por três cavalheiros
bcbados que a insultam e tcnt:im aproveitar-se dela, mas ela, por sua vez, os repele e

l
ameaça ataci-los.
56. Idem, op. cit., p.n7.
57. Idem, op. cit., p. 171.
58. Ibidem.
59· Idem, op. eit., P· 173.
Couro impaial

homens são os donos do olhar. Com exceção de Munby, ela raramente


menciona seus patrões. Nas raras ocasiões em que mulheres de classe
alta reconheciam sua força, ela irradia um orgulho especial: "Ela disse
'que braços você tem!' E eu disse 'é sim, senhora, cu sou muito forte e me
.)
fez bem buscar a cerveja no vento estimulante [ ...] Voltei com a minha
cerveja e me senti bem sendo notada[ ...] E meus braços pareciam gran- j
des e vermelhos e reconheço que pesava uns 70 quilos"6o. .'
O poder que decorre de ser o espetáculo para o olhar do outro é um
poder ambíguo. Permite que se internalize o olhar do voyeur e participe
do gozo vicário de seu poder. Mas também alimenta uma dependência
correspondente daquele que é dotado do privilégio social da aprovação.
As feministas fizeram análises refinadas da prerrogativa masculina do
olhar e, no entanto, há evidência de que as n1ulheres de classe alta ti-
nham esse privilégio na vida de Cullwick. Ela se lembra de ter limpado
a lareira enquanto as senhoritas Knights observavam de maneira voyeu-
rista: "A que estava na cama me chamou e derramou água na minha mão
preta para passar na lareira, e assim ficou satisfeita". A água na mão rea-
lizou uma limpeza batismal e a exclusão do rebaixamento de classe ("ela
ficou satisfeita"), dando a Cullwick um de seus sonhados momentos de 'J
reconhecimento: ''A senhorita Júlia gostava de me ver limpar e depois
varrer. Dizia que achava muito interessante ver-me limpar a pintura de
modo tão completo"6'. Seu anelo pelo reconhecimento de classe é miti-
gado. Ao mesmo tempo, registrar tais momentos no diário renova seu
.j
poder sobre Munbj,. ·
No teatro privado do S/1\tl doméstico, Munby concedia a Cullwick,
j
repetida e ritualmente, o raro e sonhado reconhecimento de seu traba-
lho: "pois ele estava e e$fá interessado em meu trabalho"6 '. Munby fi-
gurava como testemunha oficial de seu valor doméstico oculto: "Eu es-
crevia contando tudo a cle"63 • Nesses momentos, porém, transpira uma

60. Idem, op. cit., p. 64.


6r. Idem, op. cit., p. 46.
62. Idem, op. cit., p. 79·
6.3. Idem, op. cit., p. 179.
[ouro imperial - '¾ra, tra'lltstismo , o mito da domtsticidadt

curiosa metamorfose. Ao ler o diário mais tarde, Munby é colocado num


papel estranhamente feminino, ocupando o mesmo lugar de voyeur do
espetáculo proibido do trabalho de Culhvick ocupado por suas patroas,
precisamente aquela associação feminina que tanto o inflamava e encan-
tava. Em seus rituais fetichistas com Ivlunby, Cullwick repetia a cena,
mas convertia os termos. Ao pretejar ostensivamente o rosto, ao esfregar
gra.xa nas mãos, deixando-se fotografar "em sua sujeira", Cullwick con-
vertia a cena do repúdio na cena da exibição teatral.

AMBIGUIDADES DA DEPENDÊNCIA
;

Não é possível exagerar a influência do Cristianismo sobre a vida-feti-


che de Cullwick. O Cristianismo oferecia a Cullwick a esperança do
reconhecimento posterior: Deus via seu trabalho, Deus reconhecia seu
valor. Rebaixando-se na lida, exaltava a si mesma aos olhos do Senhor.
Trabalhando, acumulava capital espiritual, guardando u1n estoque de
valor excedente no céu. A economia do Cristianismo é a economia da
conversão: os de baLxo exaltados, os de cin1a rebaixados6•. Como o Cris-
tianismo, o S/lvl realiza o paradoxo do sofrimento redentor e, como o
Cristianismo, toma forma em torno da lógica masoquista da transcen-
dência através da mortificação da carne. Pelo autorrebaixamento, o espí-
rito se liberta num êxtase de abandono. O SIM compartilha com o Cris-
tianismo uma iconografia teatral da punição e da expiação: rituais de
lavagem, agrilhoamento, flagelação, ferimentos no corpo e tortura sim-
bólica. Tanto no SIM como no Cristianismo o desejo terreno obtém
estrito pagamento numa economia de sofrimento e prazer.
Os rituais de lavagem do casal, sugiro, permitiam a Munby exercitar
seu fetichismo das mãos - observando as mãos enegrecidas, "masculi-
nas", tocarem, esfregarem e massagearem suas extremidades masculinas.
Eram rituais de purificação, um perdão da culpa e da transgressão. Esses

64. C'Jllwick praticava a humildade menos porque significasse submissão do que porque
significava força. "Ouvi o senhor Bellow dizer uma vez num sermão", escreve ela, "que
humildad, era força". Idem, np. cit., p. 66.

2 37
Couro impaial

rituais de lavagem eram encenados por Cullwick como uma apropriação


da pompa cristã, e lhe ofereciam um adiantamento delirante de seu cré-
dito espiritual - um sabor roubado do que seria sua exaltação no além.
Para ambos, esses rituais fetichi stas exprimem uma troca de prazer por
poder muito mais complexa do que revelam as oposições fáceis entre
vítima e opressor.
Para Culhvick, suas exibições teatrais de submissão eram um modo
de negociar poder sobre Munby, e também um meio de obter controle
sobre sua própria impotência social. Ela via claramente sua "escravização"
con10 mais cerimonial que real - um oferecimento simbólico feito a
Munby do qual podia retirar-se a qualquer momento. Seus diários mos-
tram-na determinada a ser senhora de seu teatro de submissão, e reagia
com fúria espantosa quando Munby tinha a temeridade de sugerir que
ela realmente era sua escrava ou a tratava como se realmente fosse uma
serviçal. Culhvick defendia com ferocidade seu direito de controlar todas
suas exibições teatrais de humildade, mesmo com outros patrões. Não
tolerava injustiça dos patrões, mostrando sua irritação quando alguém se
atrevia a sugerir que controlava a cena: "A senhorita M. disse que era a
melhor juíza daquilo, e eu disse 'Não, senhora, a senhora não pode falar
do meu trabalho tão bem como eu'. Suponho que ela percebeu meu tem-
peramento forte, como eu percebi o dela, pois ela disse 'Hannah, você
está esquecendo seu lugar'. Eu disse 'Não senhora, não estou"'65• Munby
tan1bém era objeto de sua ira quando tentava "brincar" com sua paciên-
cia: "É como se o rêss·entimento e o orgulho crescessem dentro de mim
e não me deixassem falar nem ser agradável e boa como quero ser"66•
Mesmo assim, Munby gostava de se permitir a fantasia de que só ele
era o senhor de seus jogos, uma arrogância que se tornou uma fonte
de conflito entre eles por toda a vida. l\lluitas vezes ele tentava insistir no
controle completo sobre CuUwick, e ela sempre resistia. Um desses de-
sentendimentos quase levou ao rompimento definitivo. Cullwick estava
nos aposentos de Munby trabalhando como sua governanta e não sabia

65. Idem, op. dt., p. 164.


66. Idem, op. cit., p.176.

238
Couro imptrial - 'Rgça, travtst ism o e o culto dtJ domestfrida de

que um menino estava na escada. Então, quando Munby insistiu que ela
0 chamasse de "Senhor", e subiu para tocar a campainha para chamá-la,
ela explodiu em füria contra a violação dele das regras e a mudança uni-
lateral do roteiro. "Eu pensei: Bem isso de fato é uma exibição, e voei
pela escada co1n minha fúria no máximo grau, e Munby começou a
questionar-me por não chamá-lo de 'Senhor', pois o menino estava ven-
do [ ...] De modo que eu estava encolerizada". lVlunby tinha dessacrali-
.. zado seus rituais secretos, violando brutalmente os limites entre o teatro
':j,
e a realidade e confundindo a submissão cerimonial de Cullwick com
uma submissão real. O encanto mágico foi quebrado e Cullwick o ame-
açou com un1 ultimato: ~Disse-lhe que se me provocasse outra vez desse
jeito cu o deixaria, fosse casada ou não, pois não ligo para isso".
O trágico paradoxo da vida de Cullwick, entretanto, era que Munby
lhe concedia o tão desejado reconhecimento do valor de classe trabalha-
.l dora, mas apenas em privado. Escolher o reconhecimento público como
sua esposa (como ele queria) significava negar sua capacidade de traba-
lho, perdendo sua mobilidade social e barganhando sua independência
de espírito. Cullwick nunca escapou a esse paradoxo social, que podia
ser negociado, mas nunca resolvido individualmente. Dessa maneira, o
SIM leva ao limite a promessa liberal da resolução social pela agência
individual.
Para entender melhor o sentido do fetichismo de Cullwick, é neces-
sário explorar o contexto social cm que encontrava significado e contra
o qual se colocava com teimosa recusa. Esse contexto foi a invenção
histórica do labor do lazer e da empregada invisível.

O TRABALHO DO LAZER
'
. As mulheres sempre trabalharam - nem sempre traba-
.. lharam por salário.

Sophonsiba Beckenridge
.;g
.
..
'ti•
•t;
.." . Num século obcecado com o trabalho da mulher, surgiu a ideia da mu-
~
"i lher ociosa. O lugar-comum mostra a vida da mulher vitoriana como
}

2 39
Couro imperial

un1a orgia de ócio. Nalgum ponto no século XVIII, diz a estória, a roca
e o fuso foram tirados de suas mãos e todos os intensos labores do sécu-
lo anterior - a confecção de velas e de sabão, a feitura de roupas e de
chapéus, o trançado de palha e o croché de rendas, a separação de lãs e
de linho, os trabalhos com o leite e as galinhas - foram removidos pas-
so a passo para as manufaturas67. Ao final do século XVIII, escreve Wan-
da Ncff, "o triunfo da mulher inútil era completo"65. Roubada de seu
trabalho produtivo, a mulher de classe média se tornou adequada, é o
que se diz, apenas a um lugar ornamental na socicdadc69 • Ali, lindamen · ,j
1
te envolta pelo suave perfume das aquarelas e bordados leves, ela vivia 1
apenas para adornar a ambição mundana do marido, o fabricante, o ban- 1
queiro urbano, o armador70• Abrigada depois do casamento num ninho
de conforto, ela simplesmente trocara a inutilidade temporária pela per-
manente7'. Encerrada em seµ "frio sepulcro de vergonha", a virgem na
sala íntima enrubescia à vista das pernas de mesa e se retraía aos prazeres
do corpo. Seu sonolento torpor era apenas roçado por indisposições his-
téricas, por desfalecimentos e por um sem-número de criados enfado-
nhos7•. Frígida, neurastênica ou ornamental; murchando na estufa da

67. Vianda Fraiken Neff, Vi,torian Workir.g 11-ómm: An Hútorfral and Liurary St11dy of
Womm in British Industries and Proftssions, r8J2-1850 (Nova York: Columbia University
Press, 1929).
68. Idem, op. cit., p. 186.
69. "Expulsa dos laticínios, du confecções, dos estoques, das destilarias, do galinheiro, da
horta e do pomar", 'éorôo diz Margarctta Grcy, ela fechou as portas ao trabalho social e
foi para o andar superior pelo resto do século, para descansar l:inguidamente nos sofás,
com uma arrogância surda. Apud PearsaU, p. 97.
70. Neff, Victorian 11-órking Womm ... , p. 187. Seu dever, se lembrarmos o famoso e perrurba- ,.
dor ensaio de Ruskin, era simplesmente "ajudar na ordenação, no conforto e no adorno
da casa". "Ofqueens ga.rdens", in E. T. Cook e A. D. O. \.Vedderburn (orgs.), 1he Compüte
11-órks ofJohn Ruskin (Londres: 190:-1912, vol. 18), p. 12:.
71. Baldwin Brown exortava 1s mulheres a confortar seus homens "cansados pelo mundo"
num lar que fosse "como um pedaço do céu, ilumin:ido, sereno, calmo, alegre, num mun·
do não celestial". Young Mm and Maidms: A Pastoralfor the Times (Londres: Hodder e
Stoughton, 1871) PP· 38-9.
72. E. P. Hood, 1he Age and lts Ari:hituts: Tm Chapter, 011 the Englirh peoplt, in R,lation te the
Times (Londres: 1850, 1852), apud \.Valter Houghton, 1he Victorian Frame ofNtind (New
Haven: Yale Univcrsity Press, 1957), p. 354.
Couro imperial - 'R.g{a, trawstismo e o culto da domesticidade

domesticidade vitoriana; terrivelmente preocupada com ninharias; dada


à irracionalidade e à histeria; definhando de tédio; incapaz de constân-
cia, decisão ou estatura, a mulher de classe média era, até recentemente,
consistentemente menosprezada, e sua vida, como observa Patrícia
Branca, era considerada como um "feixe de trivialidades".
Nesse momento nasciam o que Nancy Armstrong chama de "ho-
mc1n econômico" e "mulher doméstica"n. Segregado na ética da pureza,

o "anjo na casa" de Coventry Patmore parecia flutuar numa esfera sepa-
rada74. No tumulto do mercado comercial, o ho1m:111 econômico parecia
> jogar seu destino como o ator público e o autor da história: "acima de
tudo o fazedor, o criador, o descobridor, o defensor". A mulher domés-
tica foi adequada a seu destino como doce preservadora e confortadora,
veículo e salvaguarda da tradição. Até a década de 1970, a maioria dos
críticos simplesmente repetiu literalmente esse retrato fictício da flor
esmagada da feminilidade de classe média, tomando os escritores vito-
rianos ao pé da letra e aceitando seus retratos como documentários 75•

73. Nancy Armstrong, "The R.isc of thc Domestic \,Voman", in Nancy Armstrong e Leonard
Tenncnhousc (orgs.), 1he ldeology ofConduct: Essayr in Liurature and tlu H irtory ef S.:-
xuality (Londres: Methuen, 1987).
74. O lar, conforme imaginado pela evocação exemplar e rósea de Ruskin, tornou-se "o lugar
da paz, o abrigo, não apenas de tod1 injúria, mas de todo terror, dúvida e facciosismo". O
abraço fortificado do "muro coberto de rosas· de Ruskin era uma barricada par.a o coração
contra os ruídos violentos e sanguinolentos do comércio. Reclusa nesse "lugar sagrado,
um templo de vestais", a verdadeira feminilidade oferecia "um centro de ordem, o bils:t-
mo contra a angústia e o espelho da beleza". Além do muro da domesticidade, "a grama
selvagem que se estende ateá o horizonte esti partida pela agonia <los homens e marcada
pela trilha de seu sangue vital". "Ofqueens gardens", pp. 60, 72, 76.
•] 75. Netf, Vi.torian ~rking ~mm... , p. 187. Neff resume a visão dominante: "A prática do
[ ócio feminino espalhou-se pela classe média até que o trabalho se tornasse uma infelici-
dade e uma desgraça para as mulheres". Sir Charles Pctrie a acompanha obedientemente,
f. ainda que não se tenh:t dado ao trabalho de citar sua fonte: "O fato de um homem man-

r
•·
ter suas mulheres no ócio tornou-se o sinal da sua importância ... O exemplo espalhou-se
pela classe média até que o trabalho se tornasse uma infelicidade e uma desgr.iça para :ts
mu'.hercs". Petrie conclui: "Poucos aspectos da sociedade moderna estão tão bem docu-
mentados quanto a mulher da classe média do século XL'C, assunto este bastante traba-
lhado pela ficção contemporânea... A heroína vitoriana é quase um produto-padrão". 1he
Vfrtorians (Nova York: Longmans, 1961). O influente Pro1p,rity a11d Parmthood apenas
Couro impuia!

Por décadas, portanto, supôs-se que o signo visível da dona de casa


vitoriana de classe média fosse o do lazerí 6 • Tinha a mesma amplitude a
suposição de que a "típica" mulher de classe média era deixada livre para
gozar de seu conspícuo lazer pelo emprego de pelo menos três criados
domésticos cm seu larn. Por suposição comum, um lar típico de classe
média não estava completo sem pelo menos três domésticas pagas 78•
Mas Patrícia Branca, somando os salários médios de cozinheira, copeira, e
l
arrumadeira ou ama, calcula que a renda familiar requerida para empre- ;,;;
gar essa "trindade necessária" se encontrava apenas na ínfima elite de
classe alta e média alta. A maioria das mulheres de classe média (urna
ampla categoria em constante mudança, ainda em formação) teria de se
contentar em ter, na melhor das hipóteses, uma única menina inexpe-
riente cuja vida daria possivelmente uma crônica de trabalho intermi-
nável e salário lamentáveF~. As mulheres dos pequenos comerciantes, ~
,;

expandiu a ideia de que a própria formação da identidade da classe média dependeu da


cópia da parafemáli:1 de status da classe alta, no centro da qual estava a "mulher ociosa", e
foi seguido nisso por um critico após o outro. J. A. Banks, Prospn-ity and Parmthood: A
Study ofFamily Planning Among the Victorian A1iddle Classes (Londres: Routledge, 1954).
76. "O estilo de vida da senhora burguesa", como diz Jeffrcy Weeks, "foi obtido às custas de
uma ampla classe de empregados".Jeffrey '1Veeks, Sex, Politict and Society: 'lhe Regufation
ofSexuality Sinu r8oo (Londres: Longman, 1981), p.40. A manutenção de empregado~ foi
vista por muitos historiadores como a fonte principal da identidade da classe média. Em
1899, Seebohm Rowtrec usou ":1 manutenção ou n:io de empregados domésticos" como
linha divisória entre "as classes trabalhadoras e aquelas de um escalão mais alto". Apud
Pamcla Horn, 'lhe Riu and Fali ofthe Victorian Sen,ant (Stroud: Alan Sutton, 1986), p.17.
Como dizia a esposa de um cirurgião inglês: "Não devo fazer o trabalho doméstico ou
levar o bebê para pissear: cu perderia status. Precisamos manrer uma empregada". Idem,
op. cit., p. rS.J. F. C . Harrison concorda que manrer empregados "estava no prôprio cora-
ção da ideia de classe".
77. Em 1975, Patricia Branca começou a questionar a imagem da mulher de classe média
como "uma estranha peça de museu", reduzida a alvo da crítica ou a objeto de uma sim-
patia benevolente. Analisando criticamente manuais de economia doméstica, de c02inha,
de cuidados com as crianças e ele cuidados com :1 casa, Branca começou a levantar ques-
tões a respeito da verossimilhança da mulher ociosa da ficção e da autoridade das referên-
cias das fontes dos críticos. Patrícia Branca, Silmt Siun-h~o,i: /ll!iddle-da.st H'omm ir. Vic-
torian Home (Londres: Croom Hclm, 1975).
78. Idem, op. cit., p. 1S6.
79. Na Last Chronicle ofBarut, de Anthony Trollopc, a família luta para conservar um~ em-
pregada enquanto seus tapetes estão cm frangalhos e a mobília quebrada.
Couro imptrial- 'R,e;a, trawllismo c o culto da domcsticidadc

escreventes, merceeiros e encanadores teriam de se contentar com os


serviços de uma empregada para n1do. Talvez as mulheres dos profissio-
nais pudessem contar com os serviços de duas criadas pagas, enquanto
os médicos, clérigos, gerentes de bancos e empreendedores de sucesso
poderiam, ao final do período vitoriano, empregar três80• Pode-se afir-
mar que na realidade não e.xistiam nem a típica dama burguesa nem a
1
l , típica criada doméstica. Nluito pouca atenção foi dada à discrepância
1 entre os retratos vitorianos de mulheres (em sua maioria de alta classe
j

1 ~+ média) e a miríade de situações domésticas medianas que assumiam


forma contraditória ao longo do século81 •
Embora historiadores contemporâneos tenham observado o valor
simbólico da classe das empregadas na formação da identidade da classe
média, poucos reconheceram o valor econômico da classe das empregadas
domésticas como trabalho62 • O que estou sugerindo é que - com exce-
ção da ínfima elite verdadeiramente apta ao lazer - o ócio era rnenos
um regime de inércia imposto às mofinas esposas e filhas da classe mé-
,·. •''l• dia do que um laborioso e demorado papel característico desempenhado

l ~•.
, ..... por mulheres que queriam pertencer à classe "respeitável". Para a maio-
.'·r ria das mulheres cujos maridos ou pais não podiam pagar criadagem
suficiente para o ócio genuíno, o trabalho doméstico tinha de ser acom-
panhado pelo esforço sem precedente histórico de tornar invisível cada
<
sinal desse trabalho. A limpeza e o gerenciamento de suas grandes casas
construídas de maneira ineficiente exigiam un1a imensa quantidade de
"..
1 '
'i
1 80. Integrantes privilegiados da alta classe média, tais r.omo grandes fo~endeiros ou párocos
e reitores importantes, podiam ter a seu serviço um cocheiro ou um jardineiro, uma cozi-
1
1
nheira, uma babá e uma dupla de cmpre~das domésticas, ao passo que as classes que
tradicionalmente mantinham cmprc~dos, a aristocracia e os grandes proprietários de
''
1 terra, frequentemente tinham um "c.xército" de servidores, tão grande quanto "uma pe-
1 quena vila". Branca, Siltnt Sistcrhood.. . , p. 20.

'•. 81. Ver Davidoff e Hall, Family Fortuncs.. .


, S• E. P. Thompson, por c.xemplo, observa que, com exceção do trabalho agrícola, o trabalho
domésóco era a categoria que agrupava a maioria das mulheres; no entanto ele não dá
qualquer atenção à história e às condições desse trabalho. Tht MaA:ing ofthe EngliJh Working
ClaH (Nova York: Vintage, 1966). Ver a excelente crítica de Joan Scott à política de gêne-
ro de Thompson cm Scott, Gmdcr and thc Politics ofHistory (Nova York Columhia Uni-
versity Press, 1988), capítulo 4 .

2 43
Couro impuial

trabalho e energia da maioria das mulheres comuns. Mas a vocação de


dona de casa era precisamente ocultar esse trabalho.
A posição de dona de casa se tornou uma carreira em atos invisíveis.
A vocação de uma esposa era não só criar uma família limpa e produtiva,
mas também assegurar a habilidosa ocultação de cada sinal de seu traba-
lho. Sua vida se desenvolvia em torno do imperativo contraditório de
trabalhar e tornar invisível esse trabalho. Seu sucesso como esposa de-
pendia de sua habilidade na arte de ao mesmo tempo trabalhar e parecer
não trabalhar. Seu jogo de salão - o momento ritual de aparecer fresca,
calma e ociosa diante do olhar do marido, pai e visitantes - era uma
performance teatral de lazer, a negação cerimonial de seu trabalho. Para a
maioria das mulheres das ainda desorganizadas classes médias, sugiro, o
ócio era menos uma ausência de trabalho do que um trabalho de lazer.
A arquitetura das casas de classe média girava em torno desse para-
doxo. A sala de estar marcava o limiar entre o privado e o público, ser-
vindo como espaço doméstico para a espetacular metamorfose (pública)
do trabalho feminino em lazer feminino. A lida matinal atendia ao re-
quisito de ser vista - ociosa e despida dos sinais indicadores de traba-
lho. Como zona limítrofe, a sala de estar também se tornou o espaço
doméstico de exibição do fetichismo da mercadoria. A sala servia para
exibir ostensivamente os "melhores" objetos d a família: o valor de uso foi
transformado em valor de exibição. Em casas de baixa classe média, a
ansiosa exibição de "boa" prata, "boa" porcelana e "bons" móveis (merca-
dorias com valor de exibição mais que de uso) escassamente ocultavam
o custo, o excesso de trabalho e a ansiedade subjacentes ao espetáculo
mercantil do lazer feminino e da capacidade de compra masculina. Uma
dona de casa fresca e bonita à cabeceira da mesa negava as horas de
trabalho ansiosas e suadas - cozinhar, limpar e polir - mesmo com a
ajuda de uma criada com excesso de trabalho. O dilema dessas mulheres
era que quanto mais convincente fosse sua performance do trabalho do
lazer, maior era seu prestígio. l.Vlas esse prestígio era conquistado não
pelo próprio ócio, mas por uma laboriosa imitação do ócio.
Certamente o que importava não era o espetáculo do lazer cm si
mesmo, mas a subestimação do trabalho feminino que o espetáculo ai-

Couro imp(rial - 'R.gça, trawstismo f o culto da dom(Uicidad(

cançava83 • Daí o fetiche vitoriano das mãos, pois as mãos podiam de-
nunciar traços de trabalho feminino de modo mais visível que um aven-
tal lavável ou luvas descartáveis. As donas de casa eram aconselhadas a
esfregar as mãos à noite com toucinho e a usar luvas na cama para evitar
manchas de gordura nos lençóis, imperativo que revelava o embaraço
tão fundamental con1 o trabalho feminino que tinha de continuar mes-
mo durante o sono.

A CRIADA INVISÍVEL

É claro que o maior peso do apagamento do trabalho doméstico recaía


sobre as criadas. O trabalho do lazer da dona de casa correspondia ao
trabalho da invisibilidade da criada. As criadas tinham ordem de se man-
ter fora da vista, fazendo o trabalho mais sujo antes da alvorada ou tarde
da noite,escondendo-se dos patrõcs,ficando no labirinto das entradas dos
fundos, ficando, a todo custo, fora da vista. Se tivessem que aparecer dian-
te dos seus "superiores" para atender à campainha dos senhores ou abrir a
porta para algum visitante, eram obrigadas a trocar-se instantaneamente,
deixando as roupas sujas de trabalho e vestindo roupas limpas, brancas e
frescas - uma metamorfose ritual que era um ensaio da demorada trans-
ferência do trabalho doméstico do dominio do visto para o do não visto4 .
O fetiche das roupas limpas é indicador do esforço sistemático de tirar de
vista quaisquer traços visíveis do trabalho doméstico. As luvas brancas da
governanta, o avental branco da criada, as mangas brancas da ama eram
emblemas da contradição entre o trabalho feminino pago e o trabalho fe-
minino não pago (Figuras 3.19-3.21). Ao mesmo tempo, a miríade de fer-
ramentas e tecnologias do trabalho - baldes, vassouras, escovas, cestos,
ferros, utensílios de cozinha etc. - era cuidadosamente mantida fora de
vista. Embora a oficina do alfaiate e a ferraria fossem visivelmente indi-

83. Aqui poderíamos questionar a ideia de lrigaray da mímica como resistência. Isso pode ser
o caso, às ve-zcs, como pode não ser. ·
84. Isso era um exaustivo agravante para trabalhadoras sobrecarregad:is e uma fonte comum
de queixa. Davidoff, "C)a$$ ;aml gcndc, ...", p. 54.

2 45
Couro imptrial

cadoras do trabalho, o trabalho doméstico das mulheres foi objeto de um


dos atos de desaparecimento mais bem-sucedidos da história moderna85•

Fipra 3.19 - O ato do dtsapartcimmto do traóa/ho.

Figura ; .:zo - O fetiche da Órancura. Fig11ra ;.:zr - O culto da limpa.a.

85 . A própria definição de "senhora" inclufa seu distanciamento do lucro. "Uma senhora[ ... ]
não deve trabalhar por lucro ou se envolver com qualquer ocupação comandada pelo di-
nheiro". ·As ocupações de mulher~ cnvolvid3S cm qualquer negócio ou profiss:io [ .. . ]
devem ser claramente explicitadas. Nenhum registro deve ser feito no caso de esposas,
filhas ou outraS parcntes envolvidas inteiramente com os deveres domésticos cm casa".
Apud Sandra Burman, Fir Worifar Wómtn, p. 67.
Couro imperial - 'Rg;a. travntismo e o culto da domesticidade

O trabalho do lazer da esposa e o trabalho da invisibilidade da criada


seriam para negar e esconder dentro da formação da classe média o valor
econômico do trabalho feminino. As criadas se tornaram, assim, a cor-
porificação de uma contradição central dentro da formação industrial
'
moderna. A separação entre o público e o privado foi alcançada apenas
pagando às mulheres da classe trabalhadora pelo trabalho doméstico
que as esposas poderiam fazer de graça. O trabalho das criadas era in-
dispensável ao processo de transformar a capacidade de trabalho das es-
posas no poder polftico dos maridos. Mas a figura da criada paga punha
constantemente em perigo a separação "natural" entre a casa privada e o
rnercado público. Cruzando cm silêncio as fronteiras entre o privado e o
público, entre a casa e o mercado, entre a classe trabalhadora e a classe
média, as criadas traziam para a casa de classe média o bafejo do merca-
do, o cheiro do dinheiro. As trabalhadoras domésticas, assim, corporifi-
cavam uma dupla crise no valor histórico: aquela entre o trabalho pago
dos homens e o trabalho não pago das mulheres e a outra entre a econo-
mia da servidão feudal e a economia industrial do salário.
Não é de surpreender que as criadas nos lares vitorianos viessem a ser
1 representadas por imagens de desordem, contágio, doença, conflito, fú-
i ria e culpa. Por essa razão, sugiro, o espaço doméstico se tornou racia-
i1 lizado, à medida que houve apelo à retórica da degeneração para disci-
1 plinar e conter o espetáculo indecoroso do trabalho pago das mulheres.

1
•1
1
O PRIVADO, O PÚBLICO
E O FETICHE DAS BOTINAS

l
1
1
Se Munby tinha o fetiche das mãos, Cullwick tinha o fetiche das boti-
nas (Figura 3.22). Não fica claro quando ela começou a contar botinas
'l com Munby, mas, numa passagem de uma terça-feira, 31 de julho de
1860, lê-se: "Este é o último dia de julho. Engraxei 83 pares de botinas".
'1
As passagens são abundantes: "Tivemos uma boa tarde e somamos as
i botinas". Ao longo dos anos, Cullwick engraxou uma quantidade im-
. . pressionante de botinas. "Engraxei 63 pares de botinas no mês passado" .
O utra passagem: "E• ngraxe1· 66 pares este mes
• e 937 este ano" . E outra:

247
Couro imperial

"Este mês foram 95 pares de botinas". Outra ainda: "Isso é o mínimo por
3 ou 4 anos, devo ter engraxado mais de mil por ano"86• E Cullwick fazia
esse trabalho sem ser vista, antes que a família acordasse. Qyando estava
com Munby, convertia o trabalho da invisibilidade num teatro de exibi-
ção, transformando o que Barthes chama de "obsessão enumerativa", e o
fetiche da limpeza num delírio do coração87.

Figura 3.:n - Ofetiche das óotinas.

É lugar-comum notar o surgimento histórico da distinção entre o


público e o privac!.q_ !1º século XIX. No entanto, a separação, ainda que
decisiva, não aconteceu do dia para a noite, nem naturalmente. Ao final
do século XVII, novas formas de dinheiro extraídas das minas e fazendas
imperiais tinham começado a inundar a agricultura e a indústria feudais
e, ao longo do século seguinte, armadores, industriais, banqueiros e pro-
fissionais, encorajados pelo lucro imperial, começaram a definir novas
formas de dominação legítima fora da elite familiar tradicional88• Ove-

86. Stanley, Diaries ofHannab Cullwidt., pp. no, 116,147.


87. Roland Banhes, Sade, Fourier, Loyola (Nova York: Farrar,Sta.rus and Giroux, 1976).
88. H. Pcrkin, 1he Origin ofModern English Soâtty, 1780-188o(Londrcs: Routlcdgc & Kcgan
Paul, 1969}.
Couro imperial - 'R,g;a, travestismo to wlto da domrsticidadt
,.

lho sistema feudal baseado em laços de parentesco, guildas fraternais e


descendência patrilinear - isto é, na família patriarcal proprietária de
terras - foi substituído por um sistema comercial baseado em relações
não familiares, embora ainda firmemente patriarcais.
Não havia lei que impedisse que os novos homens do comércio abris-
sem caminho para os mais altos escalões do poder social, o que gradual-
mente fizeram. Não havia tampouco lei que impedisse que as mulheres
desses homens também chegassem a algum poder. Mas estas não o fize-
ram. Como observa Catherine Hall: "Num nível, a exclusão das mulhe-
res de classe média do mundo público da política não é surpreenden-
• te"89. As barreiras tradicionais contra a participação das mulheres na
política eram muitas e, assim, as mulheres nunca tiveram papel muito
ativo na esfera política. Mas, como também observa Hall, isso também
valia para os homens de classe média. Por que os homens de classe mé-
'• dia lograram alcançar o poder e as mulheres não?
•• O processo da definição do espaço político público como masculino
e não feminino não aconteceu simplesmente "por acaso"9º. Enquanto
achavam seus meios de acesso ao poder, os novos profissionais e comer-
ciantes deliberadamente excluíam as mulheres de classe média dos clu-
bes e tabernas, das lojas maçônicas e das organizações financeiras, das
salas comerciais dos pubs, das reuniões e dos encontros políticos, da Câ-
mara dos Produtores, das eleições legislativas e das universidades; em
suma, de todas as instituições do poder público, que foram por isso mes-
mo definidas con10 espaços exclusivamente masculinos9'. Desde o início,
a distinção entre o privado e o público (concebida como um fato decor-
renJe do progresso natural) foi resultado de um regime sistemático de

89. Catherine Hall, "Private Persons Versus Public Someoncs: Class, Gender and Politics in
.. England, 1780-1950, in Tcrry Lowcll (org.), British Ftminist 1hought: A Rtader (Oxford:
·• Basil Blad..-wcll, 1990), p. 52.
90. Hall, "Private Persons...•, p. 52.
91. 1':r:i 1832, o prefixo "masculino" foi pela primeira vez inserido na legislação sobre o voto,

rf; · "tornando claro algo que sempre tinha sido suposto anteriormente: que, ao nomear os
proprietários como os que tinham direito a ~·oto, tratava-se de homens com propriedades,
i não de mulheres". Ibidem.
Couro imperial

deslocamento e desapropriação, não só das mulheres, mas também dos


homens europeus sem propriedades.
No século XIX, aconteceu uma grande transformação quando os ho-
mens de classe média remodelaram o espaço urbano para separar, como
se fosse natural, a domesticidade da indústria, o mercado da família.
Lenta, mas firmemente, os industriais mudaram suas casas para longe
das fábricas, os comerciantes deixaram de morar no segundo andar de
..
suas lojas, os banqueiros montaram casas bancárias separadas e nasceram
os subúrbios. A aprovação dos Company Acts de 1856-1862 finalmente
libertou o comércio do parentesco e a separação histórica entre o domí-
nio público dos negócios, e o domínio privado da domesticidade passou
a existir de fato. Pela primeira ve-z, as relações políticas (dos homens)
foram completamente libertadas das restrições do parentesco, criando,
como se por direito natural,-as esferas separadas do homem econômico
e da mulher doméstica. Pelo menos na ideologia, as casas da classe média
vitoriana passaram a ser emblemas de uma esfera distinta naturalmente
separada do comércio público e, por isso, além dos princípios abstratos
do mercado e da economia liberal e do regime de racionalidade.
l\1as não se deu atenção suficiente à transformação das casas durante
esse período e ao importante papel que o culto da domesticidade de-
sempenhou na formação da incipiente classe média. E há considerável
evidência de que as mulheres estavam central, ainda que contraditoria-
mente, implicadas__n_o surgimento da racionalidade liberal. Davidoff ar-
gumentou de maneira brilhante que o século XIX foi palco não só da
crescente racionalização do trabalho nas fábricas, mas também da cres-
cente racionalização do regime doméstico92 • Se as mulheres, assim como
os primeiros operários fabris, foram as primeiras a serem postas sob o
domínio da racionalidade no mercado, elas também foram as primeiras
a participar da racionalização do lar. Entretanto, excluídas do poder pú-
blico pela teoria liberal clássica masculina, assim como por determina-
ções legais e econômicas, as mulheres tinham uma relação difícil e con-
traditória com a racionalização da domesticidade.

92. Lconorc Davidoff, MThc Rationalization of Houscwork", pp. 59·94.

250
Couro impuial - 'R,era, /ra(latismo r o culto dJ domaticidadc

A RACIONALIZAÇÃO DA DOl\llESTICIDADE

Nancy Armstrong argumentou que os livros de conduta e manuais do-


mésticos do século XVIII revelam uma contradição de proporções histó-
ricas. Os livros eram escritos como se se dirigissem a um amplo conjun-
1 to de leitores com objetivos sociais consistentes - uma classe média
1 que ainda não existia. O novo gênero de livro de conduta feminino, diz
ela, implicava "a presença <lt: uma classe média unificada num momento
em que outras representações do mundo social sugerem que tal classe
1 não existia"93• O que isso sugere é que as mulheres desempenhavam um
i
papel muito mais importante na formação da identidade da classe mé-
1 dia do que o que lhes tem sido atribuído. O culto da domesticidade foi
l crucial na medida em que ajudou a moldar a identidade de uma grande
l
classe de pessoas (até então separadas} com claras filiações, fronteiras
1 bem estabelecidas e valores separados - organizando-as em torno dos
valores domésticos maiores da monogamia, da poupança, da ordem, da
••
acumulação, da classificação, da quantificação e da regul_ação - os valo-
res da racionalidade liberal através dos quais as desunidas classes médias
moldaram o aparecimento de uma identidade única de classe.
O que era específico da racionalidade, na forma que assumiu no sé-
culo XlX, era sua dedicação exclusiva aos princípios da acumulação de
capital para a expansão comercial94 • A expansão plena do comércio im-
1 perial não seria possível sem sistemas elaborados de contabilidade racio-
1
nal - levantamentos, mapas, medição e quantificação - organizados,
l I
cm torno do meio absuatu <lo dinheiro, na ciência global da superfície.

l Em meados do século XIX, o domínio doméstico, em vez de ser abstra-


ído do mercado racional, tornou-se uma arena indispensável para a cria-

93. Armsrrong, "The Risc of the Domestic Woman", pp. 96-qr.


')4. Max \.Vebcr, 1hr Protcstant E1l,ir and tl,c Spirit ofCapitalism (Londres: Unwin University
Books, 1971), p. 335. Apud D avidoff, "Thc Rationaliz:uion of Housework". As ,·irrudes da
economia doméstica racionalizada remontam à moral.idade do cultivo e da criação roma-
.nas e aparecem outra vez no monastidsmo europeu e, de no,·o, cm tratados puritanos e
n:in conformistas. Como di7. \,Veber, "A Reforma tirou o a~c1i>mo cristão e seus hábitos
metódicos dos monastérios e os colocou a serviço da ,ida ativa no mundo".
Couro imperial

ção, alimentação e incorporação desses valores. O culto da racionalidade


industrial e o culto da domesticidade formavam uma aliança crucial,
ainda que oculta.
A determinação da classe média cm identificar a felicidade com a
ordem racional e a clara marcação de fronteiras se manifestavam cm
regras precisas não só para a composição da esfera pública, mas também
para a do espaço doméstico95• Arranjos domiciliares aconteceram grada-
tivamente envoltos numa geometria de cx"trema separação e especializa-
ção que passou a disciplinar todos os aspectos da vida cotidiana. O es-
paço doméstico era concebido como uma hierarquia de fronteiras
especializadas e distintas que precisavam de policiamento constante e
escrupuloso.
As fronteiras espaciais foram sendo reordenadas à medida que o
grande salão comum medieval era substituído por peças menores e es-
pecializadas. Em meados do século XIX, o que Barthes chamou de "pra-
zer sensual na classificação" dominava o espaço doméstico - na rorula-
ção das garrafas, na cuidadosa marcação de lençóis e roupas, na
manutenção escrupulosa dos livros de visitas, na mensuração meticulosa
da comida, na estrita anotação nos livros de contas96• Utensílios, tecno-
logias e horários especializados foram desenvolvidos para diferentes es-
tágios da preparação da comida e do ato de comer. O fetiche da mensu-
ração racional levou a um aumento no uso de pesos e medidas. A
comida era servida obedecendo a horários rígidos, anunciados pelo to-
que de campainhas. Em lugar da mistura do doce e do salgado e do
quente e do frio outrora apresentados a um só tempo, as refeições pas-
saram a seguir estritas regras de sequência, cada prato seguindo o ante-
rior com o decoro apropriado ao progresso linear e racional.
O espaço doméstico foi progressivamente disciplinado pela arruma-
ção e ordenamento obsessivos de móveis e ornamentos. O tempo foi
racionalizado: a carga de trabalho dos empregados e os roteiros diários
das c.rianças seguiam rotinas e horários estritos. A rotina da limpeza foi

95. Davidoff e Hall, Family For/untl...


96. Banhes, Sade, Fourier, Loyola, p. 3.
Couro impaial - 'R.E;a, travatismo, o cult~ da domatfridad,

dividida em calendários cada vez mais racionalizados e rígidos: lavar


roupas na segunda, passar a ferro na terça, polir os móveis na quarta, e
assim por diante. O próprio dia doméstico era medido em unidades
mecânicas, marcadas pelo toque dos relógios e o soar meticuloso das
._, campainhas. O relógio presidia a vida do lar, representando com perfei-
·" ção o fetiche vitoriano da medida, da ordem e da fronteira9i. Em suma,
0 culto da domesticidade se tornara uma arena crucial para a racionali-
zação da identidade e dos valores da classe média em formação.
Sabemos muito pouco sobre o papel do trabalho, das atitudes, da atua-
ção e dos dilemas das mulheres nesse processo. Sabemos ainda menos
sobre a maneira como as mulheres da classe trabalhadora negociavam o
culto da domesticidade e a racionalização do lar, se opunham a eles ou
'.: deles se apropriavam. Os diários de Cullwick, sugiro, oferecem uma vi-
...... são rara e importante dessas dinâmicas, mais valiosa ainda porque expri-
··-~·l'~i:
~-
me uma perspectiva da classe trabalhadora. Se, como me parece, uma
função central da racionalidade liberal e do culto da domesticidade era
negar o valor social e econômico do trabalho doméstico e manual das
,. mulheres, os diários de Cullwick fornecem o notável registro da rei-
'' terada tentativa, por parte de uma mulher da classe trabalhadora, de
negociar a racionalização do trabalho doméstico e acomodar-se a ela,
r '
sem deixar de fazer precisamente aquilo que o racionalismo liberal proi-
bia: insistir teimosamente no visível valor social e econômico de sua
capacidade de trabalho. Os escritos de Cullwick e seus rituais fetichistas
revelam cm vinhetas e indícios algumas das contradições críticas que
levam o discurso da racionalidade e o culto da domesticidade a seu limi-
te conceituai. De fato, seus diários revelam que o fetichismo, longe de
ser a antítese do racionalismo e do progresso como incansavelmente
denunciado, passou a informar o culto doméstico da racionalidade como
sua lógica central. Como, então, dar conta dos rituais de contagem de
Cullwick?

97. Um ditado popular expressava de forma eloquente a contaminação do tempo doméstico


pelas medidas racionais e pelo capitalismo: "Perdidos ontem, em algum momento entre
o nascer e o põe do soVDuas horas de ouro, cada uma com 60 minutos de diamantes·.

2 53
Couro imptrial

A DOMESTICIDADE E O FETICHE
DA CONTAGEM DE BOTINAS

É adequado que Cullwick tenha registrado sua vida e trabalho nmn diá-
rio, que é o gênero literário apropriado à lógica do individualismo linear
e racional e à ideia de progresso. No diário, o progresso é visto como o
desenvolvimento linear e medido do individuo privado98 • No entanto,
ele também é testemunha de uma contradição, pois o diário, possivel-
mente a mais privada das formas literárias, deu origem no século XVIII
à novela, a mais pública das formas literárias. O diário de Cullwick não
é exceção, pois foi escrito como documento privado, mas destinado a ser
lido por Munby. De fato, o diário de Cullwick como um todo é plena-
mente expressivo da irracionalidade fetichista que deu forma ao culto da
domesticidade pela classe média.
Se o diário como gênero se dedica à ideia do indivíduo, a sintaxe dos
primeiros diários de Cullwick é testemunho de um sumiço: falta o sobe-
rano "cu" da subjetividade individual. Suas frases truncadas e mutiladas
são empurradas pela incansável repetição de verbos de limpeza e traba-
lho, sua subjetividade engolfada pelo regime dos objetos. Um dia típico
de seu diário de um sábado, 14 de julho de 1860, aparece assim:

Abri os postigos e acendi o fogão. Sacudi minhas coisas cheias de fuligem e


esvaziei o depósito. Varri e tirei o pó dos quartos e da sala. Acendi a lareira e
preparei o desjejum. Limpei 2 pares de botinas. Fiz as camas e esvaziei os
penicos. Limpei e lavei as coisas do desjejum. Limpei o tampo do fogão;
limpei as facas e preparei o almoço. Limpei tudo. Limpei a cozinha; esvaziei
um cesto. Levei duas galinhas para a senhora Brewer e trouxe o recado. Fiz
uma torta e escolhi e estripei dois patos e os assei. Ajoelhada, limpei os de-
graus e lajes. Limpei as calçadas da rua também ajoelhada. Lavei a roupa. De
joelhos, limpei a despensa e esfreguei as mesas. Esfreguei os caminhos à vol-

98. O diário surgiu no século XVIII, ordenando o tempo não mais de acordo com o ritmo
:agrícola do sol e da lua, ou com rituais de colheita e de estações do ano, mas conforme as
regras mecanicamente mensuradas da indústria racional.

2 54
rr·
~
,. '
't
,fl,

Couro imptria/ - 'R.aça, trawstismo e o culto da domesticidade

..
i• ., ta da casa e limpei os peitoris das janelas. Preparei o chá das 9 para o patrão
e a senhora Warwick em meus trapos, mas Ann o levou. De joelhos, limpei o
'l
1
chão do banheiro e do corredor e da lavanderia. Dei banho no cachorro e
limpei as pias. Preparei o jantar para que Ann o servisse, pois estava muito
1
·i
suja e cansada para subir. Tomei banho e fui para a cama sem me sentir pior
que ontem9 9•
l,
Nos diários de Cullwick, o inescapável imperativo de limpar e orde-
.,
nar os objetos - sapatos, peitoris, facas, calçamento, armários, pratos,
,!.
1 ..,.• panelas, mesas, janelas, chãos, copos - consome as energias de sua vida
num infinito de repetição sem progresso ou perfeição. Isso é o que 1\ilarx
chamou de fetichismo da mercadoria: a forma social central da econo-
mia industrial através da qual a relação social entre pessoas se metamor-
l foseia numa relação entre coisas. O domínio doméstico, longe de ser a
i
i antítese da racionalidade industrial, se revela como inteiramente estru-
l
turado pelo fetichismo da mercadoria.
.1
, O trabalho doméstico é uma semiótica da manutenção de fronteiras .
Limpar não é inerentemente significativo; cria um significado pela de-
·' marcação de fronteiras. O trabalho doméstico cria valor social, separan-
k '
do a sujeira da higiene, a ordem da desordem, o sentido da confusão. A
classe média estava preocupada com a clara demarcação do limite, e a
.
1

ansiedade em relação à confusão dos limites - em particular, entre o


privado e o público - deu lugar a um intenso fetiche da limpeza e a
uma preocupação fetichista com aquilo que o antropólogo Victor Tur-
.1 ...
ner chama de objetos liminares, ou de fronteira. As empregadas gasta-
l
vam boa parte de seu tempo limpando objetos de fronteira - maçanetas,
1

i peitoris, degraus, calçadas, cortinas e corrimãos - não porque esses ob-

l. t
1'
jetos fossem especialmente sujos, mas porque esfregá-los e poli-los ritu-
almente mantinha a fronteira entre o privado e o público e dava a esses
objetos um valor de exibição enquanto marcadores de classe.1\ilaçanetas
'! resplandecentes, cortinas recém-lavadas, peitoris impecáveis e calçadas
1 ' •
"' l 1 """"
:•.·. •
bem esfregadas - os objetos incertos no limiar entre o privado e o pú-

99. Stanley, Diaries ofH annah CullwicJ:, p. 91.

2 55
Couro imperial

blico, entre o de cima e o de baixo - exprimiam vividamente afrontei-


ra entre o lar de classe média e o mercado público'00 •
O fetiche de classe média da pureza das fronteiras aparecia numa
fixação peculiarmente intensa na limpeza das botinas (Figuras 3.23, 3.24).
As botinas são objetos li minares, carregando traços das ruas, dos campos
e dos mercados para dentro de interiores polidos, confundindo o público
com o privado, o trabalho com o lazer, a limpeza com a sujeira e, assim,
adquirindo um poder fetichista especial. Por essa razão, as criadas rece-
biam a tarefa especial de manter os sapatos dos patrões escrupulosa-
mente limpos. Ao mesmo tempo, tinham de fazer os rituais de purifica-
ção sem serem vistas, antes que as pessoas acordassem.
Cullwick e Munby parecem ter passado muitos serões contando e
recontando o nún1ero extraordinário de botinas que ela limpava, num
recorrente fetiche ritualístico que se prolongou por muitos anos. Nesses
rituais de conversão, o trabalho de invisibilidade de Cullwick é conver-
tido cm reconhecimento, sua exaustão em lazer, a negação cm atuação E
o que é mais importante, l\tlunby age como testemunha oficial de seus
enormes trabalhos negados. Em tais momentos de delicioso reconheci-
mento, o "eu" da ação reaparece e a identidade dela toma forma em
torno do ritual de reconhecimento'º'. Ao lamber as botinas dele, além
disso, como fez um par de vezes, ela transformava o trabalho secreto da
limpeza das botinas numa exibição ultrajante.
Por outro lado, um paradoxo destrutivo se faz presente. O mais no-
tável na diferença entre a racionalização do mercado e a racionalização
do trabalho doméstico é que este último é racionalizado para tornar
invisível o trabalho das mulheres negando, assim, seu valor econômico.
A racionalização do trabalho doméstico no século XIX envolveu maci-

100, Davidoff e Hall, FamilyForlunts ... , p. 382.


101. Às ve1:es, pan surpresa deles, Culhvick se oferecia para limpar as botas de outros homens
em público: "Posso limpar seus pés, se nhor?", pcrgunt:1.Y:1 ela. "Eu me ajoelhava para
mostrar-lhe que estava pronla a fazê-lo.. , ele pareceu bem surpreendido comigo e disse
'sim, eu gostaria'. E nquanto cu limpava, ele me olhava como se mal pudc.sse acreditu cm
seus olhos". Stanley, Diarits ofHannah Cullwi,J, p. 65. Mais uma ,·c1:, Cullwick tnn sfor-
ma trabalho p roibido cm espetáculo público, encontrando valor na degradação.
Couro imptrial - ~fª• trawstismo t o culto da domtsticidadt

ços gastos de esforço que não foram quantificados nem calculados, dado
que tal trabalho tinha de ser excluído, tanto quanto possível, do mercado
racional.

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fk •.
'
~-'

.
.. ,.
.,:....

Figura 3.23 - O fatichc da mercadoria botina.

Figura 3.24 - Oculto da pureza dasfronteiras.

A cada mês, a cada ano, a contagem de botinas de Cullwick começa


outra vez - do número um. Não há progresso no trabalho doméstico,
só repetição. Assim, por um l~do, o fetiche das botinas demanda o reco-
nhecimento do valor do trabalho; por outro, encena dramaticamente o
fracasso do progresso doméstico. O fetiche das botinas revela uma obe-

2 57
Couro imptrial

diência cega à forma racional, ao mesmo tempo em que exibe flagrante-


mente a lógica fetichista do próprio racionalismo. A domesticidade vi-
toriana ao mesmo tempo incorpora e desmente o mito iluminista do
progresso racional. Não é, pois, de surpreender que os criados e os obje-
tos liminares da servidão doméstica - botinas, aventais, vassouras, sa-
bão - se tornem portadores de tamanho poder fetichista.

O TRAVE ST ISM O E O
FETIC HI SM O FEMININO

Uma pessoa sem roupas é uma pessoa sem linguagem.


Provérbio da África ocidental

O grande poder de Cu.lhvick sobre ~1unby se assentava em seu talento


teatral para a conversão. Ao longo dos anos, ela revelou uma notável
capacidade de adotar diferentes identidades sociais e diferentes roupas.
Como criada, em su a profissão e orgulho encenar como naturais os ritos
e exibições teatrais do status de classe média alta e de classe média. Num
momento, ela estava de joelhos esfregando chãos e armários sujos, seus
fortes braços imundos de água e gordura; no momento seguinte, lá esta-
va ela, de branco fresco e seco, para atender afetadamente à porta ou ao
chamado de sua patroa. N um momento, da erguia e carregava seus co-
legas criados cm volta da mesa cm frolLxos de risos, ou transportava
pesada bagagem, baldes de água quente ou sacos de carvão escada acima,
de três em três degraus; no momento seguinte se curvava diante dos
"superiores", numa mímica de servilismo e em exagerados ritos de hu-
mildade requeridos de sua situação.
Em seu relacionamento com Munby, ela transformava sua habilida-
de na mímica da criada em grande teatro e fonte de considerável poder.
Travcstia-se de dama de alta classe, camponesa ou criado. Vestia-se de
escravo, limpador de chaminés, anjo e ajudante, e ia ao fotógrafo para ser
retratada com essas fantasias. Cortava o cabelo e vestia-se de homem e
viajava pela Europa com l'vlunby como seu criado. Depois que se casa-
ram, traves tia-se d e dama de classe alta e outra vez vi:ijava com Munby
(ouro imperial - %;a, trawstismo t o culto da iomtsticidadt

pela Europa, desta vez como sua mulher. Munby .ficava encantado com
"seu talento no desempenho de cada um desses papéis".
Com seu talento excepcional para as ambiguidades da identidade,
Cullwick faz parte das incontáveis mulheres que, ocultas e clandestinas,
se travcstem e que - segundo os éditos da tradição psicanalítica - não
existem. Robert Stoller proclama firmemente que não existe a "1nulher
travesti": "o travestismo fetichista" nas mulheres é "tão raro que é quase
1
ine.xistente". Ao contrário de Freud, Stoller diz que as mulheres "não
1
>
~
têm o fetiche da roupa", elas simplesmente querem ser homens, desejo
'. perfeitamente naturaPº'. O travestismo feminino não pode ser admitido
na casa da perversão, pois poria em questão a centralidade do falo como
objeto do fetiche cm torno do qual se supõe que o travestismo se orga-
t nize. No entanto, Cullwick se travestiu ao longo de toda a vida, sem que
l ;,- seu fetichismo se organizasse em torno dos traumas da identidade fálica
t• ... nem da transferência erótica (critico essa teoria freudiana em outro lu-

1
r: -(.;
\i
gar), mas sim em torno das contradições históricas do trabalho das mu-
(•
lheres e da iconografia do império - correntes, enegrecimento, sujeira,

l1
1
.l
'i1
~
~·,-
~~~
mupas, botinas, baldes, água e escovas. Embora Cullwick bem possa ter
derivado prazer erótico de seu fetichismo, entender seus rituais de tra-
vestismo e do fetiche como uma erótica da cena da castração só serviria
para reduzir sua vida a uma narrativa machista do interesse sexual. Em
1 ~
1 ~
' . lugar disso, sugiro que seu fetichismo era uma tentativa contínua de
negociar os perigos à espreita na ocultação vitoriana do trabalho das
1
_li' mulheres.
'
O travestisn10 não é só um fetiche pessoal, ele é também um fenô-
meno histórico. O que se poderia chamar de pânico suntuário (pânico
limítrofe em relação à roupa) irrompe com maior intensidade em pe-
ríodos de turbulência social. No início do período moderno, as leis sun-
tuárias na Europa e na Grã-Bretanha ganharam forma em torno das
reviravoltas no dinheiro e no status social engendradas pelo imperia-

102. Robert J. Stoller, Oburoing the Erotic lmagination (Ncw Haven: Yale University Press,
1985), P· 155.

2 59
Couro imperial

lismo 1º3. Como as especiarias produzidas pelos escravos das fazendas e a


prata e outros metais preciosos produzidos pelos escravos das minas en-
gendravam novas possibilidades de consumo e excedente mercantis,
novas formas de dinheiro e de consumo - não mais dependentes da
terra e do poder aristocrático - começaram a interferir nas velhas for- ·:.
\
1nas de distinção política. Essas mudanças levaram à promulgação de ..,l
leis sunn1árias em toda a Europa, restringindo "o uso de certas peles,
.
tecidos e estilos a membros de classes sociais e econômicas, ordens ou
·""
'estados' particulares'''º•. A roupa se tornou central para o controle das
fronteiras sociais, marcando "distinções de riqueza e posição visíveis e
acima de tudo legíveis dentro de uma sociedade que passava por mu-
danças que ameaçavam até mesmo fazer desaparecer as distinções so-
ciais"'º5. O desmantelamento do regime aristocrático envolvia, cm parte,
o desmantelamento do corpo aristocrático como teatro de exibição sun-
tuária e sexual.
As leis suntuárias procuraram regular as fronteiras sociais regulando
a legibilidade social da roupa 1º6 • Mas as leis suntuárias contêm um para- ,
doxo interno, pois o fato de que a classe e a posição são legíveis pelo
vestir, ou não vestir, "panos de ouro, seda ou púrpura" revela a natureza
inventada da distinção social, tornando visíveis tanto as origens quanto
a legitimidade de posição e poder. As peças de pano colorido que são os
emblemas legíveis de posição estão também permanentemente sujeitas
ao desarranjo e ª? roubo simbólico. Por essa razão, a figura do travesti

103. Marjorie Garber, Vcstd Intn-ests: Cross-Drming and Cultural Authority (Nova York:
Routledge, 1991), p. 21. Como ela observa (embora não discuta a relação com o império):
"o termo 'suntuário' está relacionado com ,onsumption (consumpção, definhamento) -
perda de saúde por aqueles cuja classe ou outra designação social faz com que sua exibi-
ção pareça transgrcssora".
104. Idem, op. cit., p. 25.
105. Idem, op. cit., p. 26.
106. '\,Villiam Jerdan (org.), "lhe Rutland Papcr.(, Camdm Soâety Publications, n• 22, p. 247.
Apud Garbcr, VtJud Intn-ests.. .• p. 26.

260
Couro imperial - '!{era, trawstismo t o ,ulto da domtstitidadt

passa a ser investida de um grande poder subversivo. Como diz Marjorie


Garber em seu livro pioneiro, o travesti é "a figura que desorganiza"'º7.
Garber historia brilhantemente o modo como "o espectro do traves-
tismo, a intervenção estranha do travesti, marcou e, de fato, sobredeter-
.l
f., minou o espaço de ansiedade a respeito de identidades fixas e mutáveis,
de subjetividades permutáveis ou ausentes"1º 8• Garber recusa-se a aceitar
a visão tradicional do travestismo como uma patologia médica ou uma
anomalia biológica - a crise do travesti, argumenta ela, representa a
"crise mesma da categoria"'°".Dessa maneira, Garber nos estimula a ver
os travestis em seus próprios termos, não como um sexo ou como um
..•. gênero, mas como apresentação da própria ambiguidade; nem como
t.
t,. "sexo mesclado", mas sim como a corporificação e representação da con-

~·~
,.< •
1
tradição social. O travesti habita o limiar da distinção en1 categorias,
..~~-. desafiando "noções fáceis de binarismo e pondo em questão as catego-
-·~.'.
:· rias de 'fêmea' e 'macho"'11º. Garber se posiciona, assim, contra a teoria do
travestismo como um progresso narrativo, que tentaria descobrir uma
identidade desejada "real", seja "masculina" ou "feminina", por trás da
máscara do travesti. Para ela, ao contrário, o travesti não é equivalente a
.. um ou outro sexo mas é, antes, a figura que habita as fronteiras nas quais
as oposições são perpetuamente descompostas, desorganizadas e sub-
vertidas.
Não obstante, ela própria, ao universalizar todos os travestismos
como uma "figura que desorganiza" e, ao universalizar todos os fetiches
como falos ("o falo é o fetiche, o fetiche é o falo"), não pode, cm última
.,. análise, explicar teoricamente a riqueza da diversidade que suas próprias
histórias revelam. No ãmbito da rígida moldura lacaniana à qual ela
,. aloca todos os travestismos, a diversidade, a ambiguidade e a diferença

1u7. Idem, op. cit., p. 70.


108. Idem, op. cit. , p. 32.
109. Idem, op. cit., p. 17.
no. Idem, op. cit., p. 10. Garber argumenta persuasivamente que críticos do travestismo, como
Elaine Showalter, Stephen Greenblatt, Sandra Gilbert e Susan Gubar, tenderam, de ma-
nc,ras diferentes, a "partir do transcxual como travestiwbuscando uma identidade de gê·
nero verdadeiro. por baixo da m;lscua do travesti.

2.61
Couro imptrial

paradoxalmente se perdem e cada travesti se torna, no nível teórico, um


clone de todos os outros. Sua obediente aceitação de uma única gênese
narrativa da ambiguidade fálica reduz a rica diversidade que ela historia
tão bem a un1a economia abstrata de um. Assim, Garber é incapaz de
dar conta, teoricamente, das distinções entre práticas subversivas, con-
servadoras ou radicais de travestismo e fetichismo. A diversidade desa-
parece na perpétua recorrência da "cena originária" única.
No mundo de lusco-fusco da ambiguidade do travestismo, Cullwick
situava seu poder e seu prazer naquela zona liminar na qual as fronteiras
se esfumam. Seu talento para a fantasia, o disfarce e a improvisação não
era apenas urna farsa teatral; era, antes, um profundo envolvimento com
os éditos sociais que circunscreviam brutalmente sua vida.
Cullwick celebrava as liberdades peculiares da ambiguidade mais do
que a rigidez de uma identidade. Travestis raramente buscam a segu-
rança de uma imitação perfeita; eles desejam, sim, essa interessante in-
corporação que despreza o disfarce completo: "alguma coisa legível, um
pé muito grande, um gesto sutil ou um timbre específico de voz"'". As-
sim, quando Cullwick se disfarça e é fotografada como uma "senhora",
suas mãos sujas e calosas e sua pulseira suja permanecem visíveis, de
maneira não plausível sobre sua saia rodada e limpa. Sua insistente exi-
bição das mãos e da pulseira recusa o apagamento histórico do trabalho
das mulheres. Exibindo cm público o signo tabu do trabalho privado das
mulheres, ela põe cm questão a naturalização das categorias de trabalho
sujo ou trabalho limpo, mulheres sujas ou mulheres limpas, insistindo
em que podia "passar-se tão bem por uma ou por outra", dado que am-
bas eram invenções.
É extremamente importante enfatizar que Cullwick exibia transfor-
mações de raça e classe tanto quanto de gênero. Travcstida de "escravo",
ela posava nua da cintura para cima, mostrando de maneira visível seus
braços "masculinos" e seus ombros largos. Mas, ainda que pareça bem
masculina, um exame mais acurado da leve curva de seus seios, meio
escondidos nas sombras, sugere outras possibilidades. E, no quadro

111. Idem, op. cit., p. 149.

262
Couro impaial - 'F.gra , traw stismo e o culto da dom u ti.:idade

"Rosetti" (colorido à mão para Munby pelo próprio Rosetti, que decla-
rou estar certo de que se tratava de uma "senhora"), a corrente de escra-
1 va é visível e incongruente em seu colo delicado.
Travestir-se tornou-se tão comum para Cullwick que ela escreveu
..' em seu diário: "Chego a me esquecer se estou vestida como un1a se-
~ ,,,.. nhora ou com meu avental e vestido de algodão na rua"m. Gautier
' apanha belamente o estado liminar habitado pelo travestismo, numa
·i descrição que bem poderia ter sido escrita por Cullwick: "Eu mal me
!
le1nbrava, cm longos intervalos, de que era mulher; [ ... ] na verdade,
l
' não pertenço realmente a nenhum sexo [ ...] Pertenço a um terceiro
•f sexo, um sexo à parte, que ainda não tem nome"113• De maneira aná-
1 loga, Cullwick escreve a respeito de seu gênero nas casas da elite: "Eu
l
era o homem da casa".
• ;
1 Na viagem de Munby e Cullwick à Europa como marido e mulher,
} -·
i ·'
'), ela saiu de Temple, onde vivia como a criada de Munby, com seu velho
1 boné preto e as roupas de trabalho, mudando completamente de roupa
i cm Folkstone. Lá, no porto, onde as fronteiras da alfândega nacional
1
permitiam a ·transgressão segura das convenções de classe, Cullwick
~·.,:•
1
~ vestiu seu "chapéu de feltro e plumas de penas de galo e um véu". O
chapéu ornamental e seu broche eram os signos necessários, visíveis,
:, -~ do lazer e da riqueza de classe, e o véu era tanto uma insígnia da pro-
:1~~
.,. priedade masculina da sexualidade feminina quanto uma proteção
1 .. ~-·,
~, contra o tempo (isto é, a desgraça de classe e raça de uma pele queimada
1 ••
,e>• pelo sol). Voltando da Europa, ela vestiu suas roupas antigas: "Guardei
·t "•. minhas melhores roupas e vesti as minhas próprias outra vez - vesti-
1 do sujo de algodão e avental e meu boné". Suas transformações eram
\
.i inteiramente convincentes: "Não fui notada chegando ou saindo de
•i Temple"11•.

~1

·Í
~ :i-
~..,. 112. Stanley, Diaries ofHannah Cullw ick., p. :1.74.
,.
113. Apud G arber, Vested lnurms, PP· 3:1.9-30.
114. Stanley, Diaries ofHannah Cu/h.;.,ic/c, p. ~GG.
Couro imptrial

"TÃO PROTEGI DA"


Casamento e resistência

Já não há mais escravos legais, com exceção das do-


nas de casa.
J. S. lVlill

O travestismo sinalizava a recusa de Cullwick aos papéis sociais limita-


dos que lhe foram destinados. Vestida de homem, ela pôde viajar pela
Europa corn Munby sem ser questionada. Vestida como mulher da clas-
se trabalhadora, ela entrava livremente cm bares e teatros de revista, di-
vertindo-se com lazeres da classe trabalhadora que eram proibidos às
mulheres de "respeito". Ela podia andar pela rua depois de escurecer sem
medo de perda de reputação ou de ameaças. Por outro lado, vestida como
urna senhora, ela podia apreciar o llLxo e a aventura de hotéis, lugares de
férias e viagens turísticas aos quais as mulheres trabalhadoras não ti- ,
nham acesso.
Por essa razão, Cullwick temia a perspectiva de se casar com Munby
e, durante algum tempo, recusou enfaticamente a insistência dele para
que ela aparecesse em público como sua esposa. Se, como argumenta
Christine Delphy, para a maioria das mulheres "o casamento é um con-
trato de trabalho não remunerado", o teimoso desejo de independência <

de Cullwick expressava-se numa poderosa resistência, baseada cm prin-


cípios, ao casamento"5• Já que o "laço externo" do contrato legal amea-
çava transformá-la numa escrava real de Munby, Cullwick achava a
!
perspectiva de casamento inaceitável. Se, por u1n lado, ela chamava
J
Munby de "Massa" e parecia concordar simbolicamente com o dito de '. i
Rousseau de que o marido deveria ser "senhor por toda a vida", por ou- d

tro, há suficiente evidência de que ela via o "senhorio" de Munby como


puramente teatral116 • Por essa razão, repugnava-lhe a ideia de casar com

115. Christine Delphy, Close ta Homé.. . , p. 92.


116. Jean Jacques Rousseau, Emilt, cr on Education, 1r:1d. A. Bloom (No\'a York: Basic Books,
1979), P· 404.
C"ur() imperial - '7?.eça, travntism() ~ "cu//() da d"mrsticidad~

Munby e entrar para a "boa" sociedade como sua esposa. Qyando Munby
decidiu que já era mais que tempo de eles casarem, Cullwick não escon-
deu seu desgosto com isso e só consentiu quando as circunstâncias tor-
naram a ideia inevitável117• Ela tinha uma profunda resistência em mu-
dar-se para a casa de Munby e, depois de quatro anos infelizes e solitários
sob o mesmo teto, ela mudou-se outra vez, contra a vontade dele, para
continuar sua relação mais em seus termos do que nos dele. O casamen-
to, com sua aparente permanente fixação da identidade heterosse.xual,
parecia-lhe insuportavelmente limitador: "É parecido demais com ser
uma mulher', queixou-se ela.
A pulseira de escrava de Cullwick torna visível a convergência trian-
gular, histórica, entre esposa, criada e escrava. Uma longa e triste relação
existe entre esposas e escravos. Como Engels observou, o termo "família"
deriva de famulus, que quer dizer escravo118• O estatuto das mulheres
enquanto indivíduos entrou na teoria liberal clássica como um dilema
central. Para que as mulheres, como os escravos e as crianças, tivessem
negados seus direitos à liberdade e à propriedade, um trabalho ideol6gi-
co precisava ser feito. A solução está na distinção entre público e priva-
do. Os teóricos liberais clássicos definiram como político o direito de
estabelecer contratos na esfera pública, mas definiram a relação conjugal
como pertinente ao âmbito da natureza e, assim, além do contrato..A
soberania doméstica do marido sobre a mulher, e portanto, a exclusão
das mulheres do individualismo possessivo, foi justificada como deriva-
da da lei natural, não da lei poütica"9•
Assim, quando Munby se alegra que Cullwick tenha sido trazida a
ele "por quem trouxe Eva para Adão", ele fala na linguagem apropriada
dos teóricos liberais clássicos. Para Locke, a soberania de Adão em rela-

117. Stanley, Diaries efHannah CullwicJ:., p. 188.


118. Na tradição greco-romana, a familia era, por definição, a comunidade extensa de pessoas
sobre as quais o paterfamilias tinha jurisdição soberana, detendo direito de vida, proprie-
d1de e trabalho da esposa, escra,·os e crianças. A comparação entre esposas e escravos
continuou a ser feita depois do final do século X\,11..Mary Astell dizia que todas "as
mulheres nascem escrav-~•.
119. Pateman, 77,, s,,,ual Contra", p. 51.

3 265
Couro impaial

ção a Eva "tinha um fundamento na natureza""º. Em seu "Primeiro


Tratado", Locke argumenta que a submissão natural de Eva é tal que
"cada marido deve ordenar as coisas privadas que digam respeito a sua
família como proprietário dos bens e terras existentes e estabelecer a sua
vontade acima da de sua mulher cm todas as coisas de seu interesse co-
mumm. Para Pufendorf, no entanto, o direito conjugal, ainda que ade-
quado "à condição da natureza humana", deve ser assegurado "ou pelo
seu consentimento ou por uma guerra justa". Mas, como para Pufendorf
"a coisa mais natural" é que o casamento ocorra com boa vontade, os
direitos conjugais do marido se originam da "sujeição voluntária" da es-
posa ao "vínculo desigual" do casamento111 •

Carol Pateman observa que dessas redefinições da lei do contrato
emerge um paradoxo: as mulheres são por natureza tornadas incapazes
de fazer contratos como iguais com os homens sob a lei política Gá que
as mulheres são naturalmente subordinadas); no entanto, as mulheres
podem e devem fazer contratos de casamento (já que o casamento
deveria ser visto como uma questão de consentimento, não de coer-
ção). Por meio desses debates, a teoria liberal estabeleceu uma distinção
ideológica entre a liberdade individual e o direito a fazer contratos na
esfera política, e a recusa do direito a tal estatuto político na esfera
doméstica, conjugal. Assim, como diz Pateman, o casamento perma-
neceu uma anomalia legal que "mantém um estatuto natural mesmo
na sociedade civil""3•
A distinção inventada entre a esfera "natural" da família e a esfera
"política" da sociedade civil em indispensável à formação da identidade
masculina de classe média porque foi utilizada para restringir a noção
liberal de individualidade soberana aos homens europeus com descen-
dência e herança. Com o álibi da natureza imperial, mulheres, escravos,
servos e os colonizados poderiam ser excluídos da individualidade li-

uo. Apud idem, op. cit., p. 5!.


111. Idem, op. cit. • p. 53·
122. Idem, op. cit., p. 51.
123. ldem, op. cit., p. SS·

266
Couro imprrial - 7v!,a, tra1:utismo r o culto da domrst icidadc

••
.1 beral. A emergência do indivíduo liberal racional configurou-se, assim,
14 em torno da reinvenção da esfera doméstica com um âmbito de submis-
tj são natural, assim como o âmbito do "primitivo" era o da submissão ra-
'(
l
cial natural. Domesticidade e império se fundem como um elemento

1 necessário na formação da imaginação liberal.
A pulseira de escrava de Cullwick era a corporificação dessas contra-
i
l dições. A submissão verbal, voluntária, da esposa ("Aceito") representa
,i
• uma exibição cerimonial de hegemonia, pois a mulher entra "volunta-
riamente" numa relação social de desigualdade com seu m arido, o que
,,• •1
lhe dá, desde então, o direito legal de coerção sobre ela. Em suma, o
contrato da esposa é um contrato da hegemonia para a coerção"•. A
pulseira de escrava de Cullwick expõe uma contradição fundamental da
teoria liberal clássica: as mulheres são naturalmente como escravos e,
assim, não podem fazer contratos, mas as mulheres devem fazer contratos
de modo a tornarem-se esposas e, portanto, abdicarem de seu direito a
fazer contratos.
Cullwick rejeitou amargamente a sugestão benevolente de Munby
1
de que ela deveria ser grata a ele por desposá-la: "Antes que os visitantes
1 ' chegassem, Munby me mostrou uma certidão que tinha comprado -
uma certidão de casamento - para mim e para ele e disse 'Isto não
prova o quanto a amo e o que você diz a respeito disso?' Disse-lhe que
não tinha nada a dizer sobre isso, mas esperava que ele nunca se arrepen-
desse disso, nem cu. Ainda que eu parecesse serena e tenha dito tão
pouco, realmente acredito no que disse. Eu tne importava muito, mui-
to pouco com a certidão ou em ser casada"' 25• Ela não iria tolerar a ideia
condescendente de Munby sobre seu casamento -como um prêmio para

u4. Legalmente, as esposas eum classificadas junco com criminosos, idiotas e menores. Pela
lei, a propriedade pessoal de uma mulher passa,-a intcir~mcnte para seu marido. Legal-
mente ele poderia d ispor dcb da maneira que quisesse. Ele poderia não deixar nad:i p:ir:i
sua espos:i ou filhos cm seu testamento. Se o m:irido morresse sem test:imento, a esposa
recebia, no melhor dos c:isos, apenas a metade. Se :i mulher morresse sem 1cs1amen10,
toda sua propriedade fic.av:i com ele. Uma esposa não podia fazer contratos, a não ser
como agenre do marido. Assim, pela lei, o casamento era equivalente ao roubo legalizado
e sistemático.
n5, Stanley, Diaries ofHannah Cullw icl,., p. 253.
'l
1
'
''
'l
i.:r:1
!&,4 • ~ ,
Couro imperial

mim pois não quero nenhum prêmio",e ficou profundamente ressentida


com a realidade social da certidão de casamento como sendo um "laço
externo": "Parece que odeio a palavra casamento neste sentido"126•
O casamento de Cullwick com Munby foi em quase todos os aspec-
tos um acúmulo de transgressões. Ao insistir em receber pagamento
dele por seus serviços, ao ser contratada para trabalhar fora como qui-
sesse, ao manter seu próprio dinheiro (ainda que pedisse a Munby que
cuidasse dele), Cullwick colocou-se contra os éditos fundamentais das
leis conjugais vitorianas. De fato, silenciosa e teimosamente, ela pôs em
prática aquilo pelo que as feministas lutaram durante o resto do século:
o direito de controlar seu corpo, seu trabalho, seu dinheiro e sua liberda-
de reprodutiva, o que é ainda mais notável e lhe dá mais autoridade pelo
fato de que isso ocorreu no contexto de uma enorme falta de autoridade
social das mulheres (Figura-3.25).

Figura 3.25- Cullwi,k nofinal de sua vida.

126. Ibidem. A rejeição de Cullwick ao "laço externo" do casamento ecoa asperamente nas
palavras de &xana, de Daniel Defoe, cuja heroína proclama: "A própria Naturez.a do
Contrato de Casamento era, em suma, nada mais do que abrir mão da Liberdade, da Pro-
priedade, da Autoridade, e de tudo, para o Homem, e a Mulher era, de fato, apenas uma
Mulher para sempre, isto é, uma Escrava". Apud Patcman, Th~ Se,,ual Con/racl, p. 120.
Couro imptrial - ~ ra, travestismo e o culto da domesticidade

Vivendo como a "escrava simbólica" de l\1unby e, de fato, fazendo o


que queria, Cullwick negociou um grau de poder que de outra maneira
seria quase impossível. Vivendo independente de uma unidade domés-
tica conjugal, ela evitou o contrato de um casamento que a tornaria le-
galmente submissa a um homem da classe trabalhadora. "Decidi que era
melhor e mais seguro ser escrava de um cavalheiro, e não esposa e igual
de qualquer homem comum•n;_Seu casamento com l'vlunby permane-
ceu um caso puramente oficioso, e ela nunca abriu mão de seu nome de
nascimento. E, mais importante, ao recusar-se a viver abertamente como
esposa, Cullwick evitou ter filhos; parece claro que ela não desejava ser
mãe. Ao contrário, ela comenta apiedada a respeito de uma prima: "Fi-
quei feliz por não ser mãe de un1a pequena família como ela [... ] pois,
apesar de ser natural, dá muito trabalho e depois que eles crescem, em
geral muita ansiedade"t: 6•
Cullwick não suportaria o tédio e a dependência de ser uma esposa
nem os sacrifícios que acompanham a maternidade: "Ah, Ellen - a
' música é agradável e a poltrona é agradável, mas, mais do que estar com
os parentes ou vestida como eles e tudo isso, prefiro 50 vezes estar preta
com a limpeza das chaminés. E, entre os dois, o que dura mais e o que é
mais sólido e um prazer real?" Ela preferia a liberdade do "andar de bai-

t,.
xo" e com frequência elogiava a liberdade de mobilidade pública que seu
baixo estatuto lhe propiciava: "Posso trabalhar co1n calma. Posso sair e
voltar quando quero [ ... ] todos os anos cm que caminhei por Londres
1· ninguém nunca me faltou com o respeito, e não creio que o façam , se
você estiver vestida com simplicidade e estiver na rua tratando de seus
próprios assuntos"129•
Dessa maneira complexa, o âmbito do fetichismo foi para Cullwick
uma arena de contestação e de negociação. Ela reivindicou o direito de
manipular os signos teatrais de rebaLxamento de modo a recusar a legi-
timidade de seu valor como natureza. Longe de ver o casamento como

127. Stanley, Diariu ofHannah Cullwi&, p. 273.


12S. Idem, op. cit., p. 23S.
129. Idem, op. cit., p. 181.
Couro imptrial

presente do progresso, ela recusou a "grande ideia do século XIX" ao


escolher o valor de seu trabalho por oposição ao tédio acolchoado e
à servidão do casamento. Recusando-se a trocar a sua força desordei-
ra de classe trabalhadora pelas rédeas da respeitabilidade, ela se ador-
nou com seus próprios grilhões simbólicos e colocou cm questão, de
modo dramático, a narrativa vitoriana de progresso e a família hu-
mana heterossexual.

270
-.•
ft ·'...
t.
'1
~
4
.! Psicanálise, raça e fetichismo feminino
if
É terrível temer a magia que você
il
1
desdenhosamente investiga - recolher
folclore para a Royal Society com a crença
l viva nos Poderes da Escuridão.
Rudyard Kipling

Se pudéssemos emancipar-nos das influências turvas dos


costumes [ ...] veríamos tantas tribos de adoradores do
fetiche nas ruas de Londres e Paris como ouvimos dizer
das costas da África.
Samuel Taylor Coleridge

EM 1760, um filósofo francês, Charles de Brosses, cunhou o termo


1 fttishisme para "religião primitiva"1 • Em 1867, Marx tomou o termo "feti-
chismo da mercadoria" e a ideia da magia primitiva para expressar a
1
l forma social central da economia industrial moderna•. Em 1905, Freud

l transferiu o tern10 "fetiche" para o domínio das "perversões" eróticas3• As


"ciências do homem" - filosofia, marxismo e psicanálise - tomaram
forma cm torno da invenção do fetiche primitivo. Religião (ordenamen-
1
1
1. Charles de Brosscs, Du cufle des dfruxftti,hes, ou parai/ele de l'ancimne rdigion de /'Egypu
1
j
ave.- la religion attudle de Nigritie(Gencbra, 1760). Ver o brilhante relato de \Nilliam Pictz
sobre o "sinistro fedigree~ do termo "fetiche" cm "lhe Problcm of thc Fctish, I", /u;?
(Primavera, 1985), pp. 5-17. Tenho uma grande dívida para com a análise de Pien do feti-
chismo desenvolvida neste e cm seus artigos seguintes, "The Problcm of the Fetish, II,"
Res 13 (Primavera, 1987), pp. 23-46; e "lhe Problcm of the Fctish, 111a", Res 16 (Outono,
1988), pp. 105-24.
1
2. Karl Marx, Capital, vol. 1. Ver Robert C. Tucker (org.), 1he Marx-Engels Reader (Nova
1
1
York: \V. '\V. Norton, 1978), pp. 319-29.
! 3. Sigmund Freud, "Thrcc Essays on the lheory of Scxuality", in James Strachcy (trad. e
1 org.), 'lhe Standard Edition ofthe Complete Psychologital íV,,rh ofSigmund Freud (Londres:
Hogarth Prcss, 1901-1905, vol. Vil), pp. 153-5, 171. Alfrcd Binet foi o primeiro a pôr em
circulação o fetichismo sexual cm "Lc Fetischismc dans l'amour", in Etudes de psychologie
cxtcrimcnlalc (Paris: Octa,-c Doin, 1888).
Cqurq impuial

to do tempo e do transcendente), dinheiro (ordenamento da economia)


e sexualidade (ordenamento do corpo) foram arranjados em torno da
ideia social do fetichismo racial, deslocando o que a imaginação moder-
na não podia incorporar para o domínio inventado do primitivo. O im-
perialismo retornou para assombrar o empreendimento da modernidade
como sua lógica oculta, mas central.
"O desviante erótico não é o único fetiche que conhecemos. Pense-
mos no primitivo", diz \tVilliam Pietz4 • lVlas isso pode ser dito de outra
maneira: ao inventar o primitivo, a ideia do desvio na Europa passou a
servir uma forma peculiarmente moderna de disciplina sociais. A inven-
ção do fetichismo racial tornou-se central para o regime de vigilância
sexual, enquanto o policiamento do fetichismo sexual passou a ser cen-
tral para o policiamento das "classes perigosas/ tanto na Europa como
nas colônias. Povos colonizados eram vistos corno desviantes sexuais, en-
quanto os desviantes de gênero eram vistos corno desviantes raciais. Os
"adoradores do fetiche" nas colônias e os fetichistas sexuais nas metró-
poles imperiais eram vistos como a evidência viva e visível da degenera-
ção evolucionária. Identificados como sub-raças atávicas dentro da raça
humana, os fetichistas eram vistos, com grande frequência, como habi-
tando um espaço anacrônico no tempo linear do progresso evolucioná-
rio, garantindo e justificando conquista e controle. Dessa maneira, o dis-
curso imperial sobre o fetichismo virou uma disciplina de contenção.
Como observa Freud: "Segundo algumas autoridades[ ... ] o elemento
agressivo do instinto sexual é em realidade uma relíquia de desejos cani-
bais"6. De acordo com Freud, fetiches eróticos eram "com alguma justiça
assemelhados aos fetiches cm que os selvagens acreditam que seus deu- .
.."
~

4. \.Yilliam Pietz, "lhe Historical Semantics of Fctishism: A Phenomenological lntroduc·


tion'", manuscrito não publicado.
5. Jonathan Dollimorc observa que perversão originalmente significava pecados religiosos
e e·spiriruais, e não foi associada a sexualidade por muitos séculos. Jonathan Dollimore,
Sexual Dissidmct: Augustine fq Wilde, Freud /q Foucault (Oxford: Clarcndon Press, 1991),
p.n7.
6. Freud, 1hre~ Essays in the 1heqry efSexuality, p.159.
Psicandliu, raça t fatichismo fmzinino

ses estão incorporados"7. Mas Freud foi também o primeiro a definir


sistematicamente o fetichismo como uma questão apenas de sexualidade
(masculina)8 • Como observa Naomi Schor: "É um artigo de fé em Freud
e nos freudianos que o fetichismo é a perversão masculina por exce-
lência. A literatura psicanalítica tradicional sobre o assunto afirma repe-
tidamente que não há fetichistas femininas; o fetichismo feminino é, na
retórica da psicanálise, um oximoro"9 • •

No cenário freudiano clássico, as mulheres são reduzidas a uma fun-


ção menor - na melhor das hipóteses como notas de rodapé, e depois
esquecidas. Lacan (que poderia pelo menos ter lembrado Joana D 'Arc, a
-t~,, travesti mais famosa da França) segue Freud ao declarar firmemente "a
..
,. ausência das mulheres no fetichismo"'º. Christian Met"L tardiamente ex-
ri• pressa seu desconforto com o fato de a teoria de Freud restringir-se aos
meninos, mas acaba repetindo o lugar-comum de que "os casos clínicos
registrados são em sua maioria masculinos"". Robert Stoller concorda:
"O fetichismo é a norma para os homens, não para as mulheres"11• Homr
Bhabha, num ensaio de outra maneira importante e sutil, da mesma
forma menciona em rodapé seu desconforto de que "o corpo neste texto
é masculino"'3• Mas procede à análise do conhecimento simbólico e do

7· Idem, op. cit., PP· 154-5.


8. Idem, "Fctichism", 1he Standard Edilion of tht Compltle Psy<hologfral tt&rks of Sigmund
Freud (1963 (1927), vol. XXI), pp. 149-57. Mais tarde, Freud se contr.adiria: "Todas as mu-
lheres são fetichistas em relação a roupas".

.,.,'
< 9. Naomi Schor, "Female Fetishism: lhe Case of George Sand", in Susan R. Suleiman
(org.), 1ht Female Body in Western Cullurt(Boston: Harvard University Press, 1986), p. 365.
10. Ja:ques Lacan, ·Guiding 1<.ema.rks for a Congress on Femininc Scxuality", in Juliet
Mitchell e Jacqueline Rose (orgs.), trad. Rose, Feminine Sexualily:Jacques Úl<an and lhe
,,- E,ole Freudimnt (Nova York: Macmillan, 1982), p. 96.
11. Christian Metz, 1he lmaginary Signijier (Bloomington: Indiana University Press, 1985),
p.84.
12. Robert J. Stoller, Oóseroing rhe Erotit lmagination (Ncw Haven: Yale University Press,
1985), P· 35·
13. Homi K. Bhabha, "lhe Other Qyestion", Srreen 24, 6 (nov.-dcz., 1983), p. 18. Bhabha vê o
fetichismo como envolvendo a relação com a castração e, assim, adia "a questão da relação
das mulheres com a castração e o acesso ao simbólico· até desenvolver "suas implicações
para o discurso coloniaj".
Couro impaial

fetichismo do discurso colonial como se fossem neutros em relação ao


gênero. Bhabha não atenta para a possibilidade de que trazer a mulher
de volta ao corpo do texto possa pôr radicalmente cm questão a teoria
lacaniana do fetichismo fálico e a própria cena da castração'•.
A negação do fetichismo feminino (o próprio gesto fetichista) é me-
nos uma descrição acurada que uma necessidade teórica que serve para
rejeitar a existência de uma atuação sexual fen1inina, exceto nos termos
prescritos pelos homens. l\1ulheres como Hannah Cullwick não podem
ser admitidas na cena do fetichismo freudiano e lacaniano (a despeito ..
da riqueza de evidência em contrário), pois reconhecer o fetichismo fe-
minino desafiaria radicalmente a centralidade magistral do falo e da
cena da castração. Como Lacan não pode dar conta do fetichismo femi-
nino e reter o falocentrismo de sua teoria, o fetichismo feminino não
pode existir. Se as mulher~s fossem admitidas provisoriamente no feti-
chismo, não seria como portadoras de seus próprios e insistentes desejos,
mas cm termos estritamente masculinos, como mímicas do desejo mas-
culino. Brevemente e de má vontade, Lac:m admite lésbicas na cena fá-
lica evocando o velho mito homofóbico da "fantasia do homem como
testemunha invisível" e a "naturalidade com que tais mulheres apelam
para sua qualidade de ser homens"'5•
Sugiro, em lugar disso, que o fetichismo feminino desloca a centra-
lidade do falo e ostenta a presença e a legitimidade de uma multiplici-
dade de prazeres, necessidades e contradições que não podem ser redu-
zidas ao "desejo de preservar o falo" 16• No mínimo, o fetichismo
feminino põe em questão a economia lacaniana do um: o decreto de que
exista apenas um tropo do desejo ao qual as mulheres devem prestar
homenagem, e não uma miríade de desejos concorrentes subordinados
pela violência social e pelo édito masculino. A fixação lacaniana no falo

14. Bhabha segue Freud ao ler ·o objeto fetiche como substituto do pênis da mãe" e "a cena
do fetichismo" como uma reativação da "ansiedade da castr:1ção e da diferença sexual".
"lhe Other ~e.stion", p. 26.
15. Lacan, "Guiding Remarks ... ", p. 97.
16. Idem, op. cit., p. 96.
Psicandliu, ra;a e fetichismo feminin o

~
e a cena primitiva da castração exibem em si mesmas uma nostalgia fe-
tichista por um único mito masculino de origem e uma rejeição feti-
'
' chista da diferença.
Não estou convencida, além disso, de que as mulheres possam ser
·I simplesmente adicionadas à teoria fálica, como disseram certas femi-
l nistas, pois o fetichismo feminino desafia radicalmente a autoridade da
! cena da castração. Ademais, a teoria fálica reduz o fetichismo a uma
l
1
poética privilegiada da diferença sexual e não admite classe ou raça co-
mo categorias crucial1nente formativas. Não vejo o fetichismo racial
i
• como derivando de uma relação sobredeterminada com a cena da cas-
' tração. Reduzir o fetichismo racial ao drama fálico arrisca achatar as
1
1 hierarquias da diferença social, relegando, assim, raça e classe ao st,ztus
.ll secundário ao longo de uma corrente de significação primariamente se-
1

xual. Não estou convencida de que fetiches racistas, nacionalistas e pa-


1 ". ,
trióticos (bandeiras, coroas, mapas, suásticas e assim por diante) possam
.1r ', . ser tornados equivalentes à negação da ansiedade da castração masculi-
1
.. na, exceto pela lógica mais intencionalmente racista e machista. A feti-
1 i:
J chização racista da pele branca, a fetichização negra das correntes de
l .f·
.l
l
,.
'
ouro, a fetichização das dominadoras negras, lésbicas travestidas de ho-
mens, a fetichização das bandeiras nacionais, o fetichismo escravo, o
1

1 travestismo de classe, fetiches como piercings de mamilos e bronze
! no travestismo masculino - essa miríade de diferentes exposições de
l' '
ambiguidade não pode ser incluída numa única categoria de desejo sem
grande perda de sutileza teórica e de complexidade histórica.
l Em lugar disso, defendo un1a investigação renovada que abra o feti-
chismo a uma história mais complexa e variada em que as hierarquias
'
1
J de raça e de classe teriam um papel tão formador como o da sexua-
! lidade, Sublinho apenas que pôr em questão a ficção lacaniana do falo
i como princípio organizador do fetichismo não implica de nenhuma
1
maneira uma rejeição da psicanálise. Apelo, antes, a uma investigação
1 mutuamente transformadora das relações de rejeição entre a psicanálise
1
e a história social. Seguindo Freud, o fetichismo foi relegado primeiro
J
-
.·1 .. ao reino "privado" do espaço doméstico (convencionalmente, o domínio

.l da psicanálise), enquanto o fetichismo da mercadoria foi · relegado ao

~
l
~

_l ... . ~-h• -~
~•.
Couro imp(rial

reino "público" do espaço do mercado (convencionalmente, o domínio


da história social masculina). Desejo contestar o cordon sanitaire entre
psicanálise e história e explorar o fetichismo como encenação histórica
da própria ambiguidade.
Longe de ser meramente substitutos do falo, os fetiches podem ser
vistos como deslocamentos para um objeto (ou pessoa) de contradições
que o indivíduo não pode resolver no nível pessoal. Essas contradições
podem ter-se originado como contradições sociais, mas são vividas com
profunda intensidade na imaginação e na carne. O fetiche, assim, está
no cruzamento entre psicanálise e história social, situado no limiar entre
memória pessoal e memória histórica. O fetiche marca uma crise no
significado social como encarnação de uma irresolução impossível. A
contradição é deslocada e encarnada no objeto-fetiche, que está, assim,
destinado a recorrer com repetição compulsiva. Donde o poder aparente
do fetiche de encantar o fetichista. Ao deslocar o poder para o fetiche, e
então manipular o fetiche, o indivíduo ganha controle simbólico sobre o
que de outra maneira seriam ambiguidades terrificantes. Por essa razão,
o fetiche pode ser chamado de objeto apaixonado.
Fetiches podem assumir miríades de formas e brotar de uma varie-
dade de contradições sociais. Não resolvem conflitos de valor, mas antes
encarnam em um objeto o fracasso da resolução. Os fetiches são, assim, 1
assombrados tanto pela memória pessoal como pela memória histórica
e podem ser vistos como estruturados por traços recorrentes, ainda que
não necessariamente universais: uma contradição social experimentada
num nível intensamente pessoal; o deslocamento da contradição para •
um objeto ou pessoa, que se torna a encarnação da crise de valor; o in-
vestimento de intensa paixão (erótica ou não) no objeto-fetiche; e are-
corrência repetitiva e muitas vezes ritual do objeto-fetiche na cena da
memória pessoal ou da memória histórica. Como objetos simbólicos
compostos, os fetiches, assim, encarnam a coincidência traumática não
só das memórias individuais, mas também das memórias históricas
mant~das em contradição.
Não sendo um substituto universalmente fálico, o fetiche pode ser
qualquer objeto sob o sol. De fato, mercadores e escritores europeus es-
Psicandliu, ra;a t fttichismo ftminino

creveram copiosamente sobre a promiscuidade dos fetiches africanos,


que podiam ser animais, plantas, montanhas, pedras, penas ou cacos de
cerâmica17• A recusa da estreita cena do universalismo fálico permite que
abramos o fetichismo a genealogias mais poderosas e intrincadas
que podem incluir tanto insights psicanalíticos (negação, investimento
emocional etc.) quanto narrativas historicamente nuançadas de diferen-
ça e diversidade cultural. Como os começos nunca são absolutos, a lei-
tura do fetichismo como simultaneamente histórico e psicanalítico per-
, . turba a suposição redutiva da universalidade fálica e faz surgirem
possibilidades mais ricas de análise cultural.

FETICHISMO E IMPERIALISMO

A inclinação que se manifestaria num negro da Costa do


Ouro num museu de poderosos e monstruosos fetiches
poderia levar um inglês a colecionar selos raros ou ben-
.. galas estranhas.
Edward 8. Tylor

O discurso ocidental sobre o fetichismo já tinha pelo menos quatro sé-


1 culos antes que o falo fosse identificado como seu princípio organizador
·i-
, central'8• Como observa Pietz: "Universalistas em psicologia subsumem
:
o fetichis1no numa tendência supostamente universal a privilegiar o
simbolismo fálico [ ... ] A concepção de que a referência em última ins-
tância do fetiche é o falo foi articulada apenas no fim do século XIX"19•
O termo "fetiche" deriva da palavra medieval portuguesa feitiço, que sig-
nificava bruxaria ou arte mágica. Como mostra Pietz, o mais antigo
discurso europeu sobre o fetichismo se referia a bruxaria e à denúncia

~-1'1
.. 17. Ver William Bosman, in John Ralph Willis (org.), A Ntw and Aauratt Dtsmption oftht
Coast oj Guinea (Londres: Cass, 1967), p. 376. G. \V. Hegel notou com desaprovação:
"pode ser um animal, uma árvore, uma pedra ou uma figura de m:tdeira". 'lhe Philosophy
ofHistory, trad. J. Sibrec (Nova York: Dover, 1956), p. 94.
18. Ver Pietz, "The Problem of the Fetish, I", pp. 5-17.
19. Idem, op. eit., p. 6.

2 77
Couro impaial

clerical de ilícitos rituais populares e ilícita sexualidade feminina. No


fim da Idade Média, o clero católico usava o termo para condenar os
encantamentos e artes mágicas praticados pelo populacho inquieto e
também para disciplinar a sexualidade feminina descontrolada. No co-
meço, então, o termo estava associado a um excesso de atuação feminina
ilícita sobre a autoridade natural e corporal, diferentemente da inscrição
freudiana do fetichismo associada com uma falta feminina. Embora os
começos nunca sejam absolutos, a leitura do fetiche como fenômeno
histórico perturba a suposição da universalidade.
Se o discurso medieval sobre o feitiço estava associado a uma discipli-
na do corpo e à denúncia de ritos populares ilícitos, no século XV o
termo tinha invadido o domínio do império. Exploradores portugueses
negociando ao longo da costa ocidental da África usavam o termo "fei-
tiço" para descrever os misteriosos amuletos e objetos rituais preferidos
pelos povos africanos que encontravam em suas viagens. A partir de ,
feitiço, desenvolveu-se o termo híbrido Jetilso e, à medida que o poder
marítimo se deslocava para o Norte, para os holandeses, ingleses e fran-
ceses, o termo fetisso também se deslocou, entrando na üngua inglesa cm
1625. O fttisso tomou forma no contexto de uma economia global emer-
gente, mediando o instável tráfico de bens e símbolos ao longo das áreas
costeiras africanas onde incompatíveis sistemas de valores europeus e
africanos se encontravam.
Numa série de observações brilhantes, Pict-z argumenta que a ideia
do fetiche surgiu 'é õmo problema histórico nos espaços interculturais
habitados da costa ocidental da África nos séculos XVI e XVII. Como
diz Pietz, o fetiche não era "apropriado para a cultura africana ocidental
nem para a europeia cristã" 2º. Ao contrário, ele derivou do encontro
abrupto de dois mundos radicalmente heterogêneos durante a era do
capitalismo mercantil e da escravidão. O fetiche surgiu nos espaços in-
terculturais habitados, criados ao longo da costa ocidental da África pe-
las novas relações comerciais entre duas culturas tão radicalmente dife-
rentes a ponto de serem quase incompreensíveis entre si. Essas áreas

20. Idem, "Thc Problcm of thc Fctish, 11," p. 24.


<Psicandlist, rafa t fttichismo ftminino

costeiras seriam para "traduzir e transvalorizar objetos entre sistemas


sociais radicalmente diferentes" e eram "trianguladas entre os sistemas
feudais cristãos, os africanos fundados em linhagens e os capitalistas
mercantis"". Nesse espaço triangulado, o fetichismo surgiu como uma
apresentação criativa de uma situação sem precedentes, passando a exis-
.. tir historicamel.1õtc ao lado da forma mercantil à medida que se definia
contra dois tipos radicalmente diferentes de sociedade não capitalista: a
_} cristandade feudal e a africana fundada na troca entre linhagens.
. ·,
q O fetiche encarna o problema do valor social contraditório. À medi-
1 da que a cultura mercantil da Europa começava a encontrar uma base
1
1 política nos séculos XVII e XVIII, um novo universo ele valor tinha de
ser desenvolvido para acomodar e legitimar a nova economia mercantil.
1
.
i
Além disso, esse universo de valor tinha de ser definido não só em opo-
' sição à autoridade do catolicismo feudal, o clero e a aristocracia medie-
1
1 vais, mas também contra as autoridades alternativas de miríades de cul-
1
niras não ocidentais com que os negociantes mercantis interagiam.
1 O problema do valor surgiu de forma intensa desde o começo das
•l1 viagens europeias à África. Como diz Pietz, o enigma do valor era um
. •l tema persistente cm encontros ao longo da costa da Guiné. O mercador
J
'
1 veneziano Alvise da Cadamosto, que viajou ao Senegal ao final dos anos
i 1450, escreveu dos negros da Gâmbia: "O ouro é muito valorizado por
1 eles [... ] n1as eles o negociam barato, aceitando cm troca artigos de pe-
1 queno valor a nossos olhos"". O dilema central para os dois lados era

..1 envolver-se em relações econômicas e culturais recíprocas com povos


cujos sistemas de valor era1n radicalmente diferentes - mas que não
'
1 podiam ser simplesmente postos de lado - retendo ao mesmo tempo
~t 1
r
um sentido de seu próprio valor cultural como inerentementc legítimo.
' A perturbação psíquica, econômica e histórica levantada por essa crise
l do valor foi projetada sobre o fetiche como a quintessência do objeto-
problema. Tanto para os africanos quanto para os europeus, o fetiche se
.·1t f;,.
·'•-~
21. Idem, "lhe Problcm of the Fetish, It p. 6.
22. Apud Mary Kín~lcy, f~1f African StuditS (Londres: Macmiilan, 1899), p. 234.
Couro impuial

tornou o terreno simbólico em que o enigma do valor podia ser negocia-


do e contestado.
Pietz dá o exemplo dos pesos-ouro akan. Em resposta ao impacto
dos europeus à procura de ouro sobre o comércio, o pó de ouro passou a
circular pela economia akan como medida e estoque de valor. Mas os
akan também usavam o peso-ouro como encantamentos e amuletos, usa-
dos no corpo para trazer boa sorte e saúde. Os dois sistemas de valor -
o valor mercantil europeu e o valor social indígena - se encarnavam
simultaneamente no mesmo objeto.
Em grande parte do pensamento iluminista, a ideia do fetichismo se
espalhava com força insistente e organizadora - como paradigma re-
corrente para o que o Iluminismo não era. Para Rousseau, a devoção ao
fetiche marcava um estágio infantil do desenvolvimento humano antes
que se desenvolvessem distinções e entendimentos sutis 23 • Para Kant, o
fetichismo exemplificava erros de causalidade lógica, contra os 9uais o
pensamento racional podia ser traçado14• Para Lineu, os princípios orga-
nizadores da vida social africana crarn o capricho e uma tendência feti-
chista à adesão arbitrária15 • Para de Brosscs, os povos que usavam o fe-
tiche acabavam devotos dos próprios objetos em lugar de vê-los como
emanações de uma ordem natural racional. Para Hegel, a cultura feti-
chista da África habitava aquele momento abandonado imediatamente
anterior ao surgimento da história propriamente dita26•
Para esses homens, as terras-fetiche da África encarnavam um uni-
verso necessário de erros contra os quais o Iluminismo podia medir seu
progresso: erros de lógica, de raciocínio analítico, de julgamento esté-

23. Jean Jacques Rousseiu, Emil, (Londres: J. M. Dent, 1974). ,


24 . lmmanucl K:mt, Oburoations tm th, Fuling ofth, B,autiful and th, Sublimt, trad.John T.
Goldthwait (Berkeley: University of California Press, 1964).
25. Carolus Linnaeus, A Gm,ral Sysum ofNatur, 7hrough th, 1hru Grond Kingdoms ofAni-
mais, Veg,tablu and Minerais, vol. I (Londres, 1806). Ver 1ambém Richard H. Popkin,
"lhe Philosophical Basis ofEightecnth•Cenrury Racism", in Harold E. Pagliaro (org.),
Studies in Eightunth-Century Culture: Racfrm in the Eighumth Cmtury (Clevcland: Cape
\-Vestem Reserve, 1973).
26. Hegel, 71,e Phi/osophy oflíistory.

280
Psica11álist, rara e fttichismo feminino

tico, de progresso econômico e de legitimidade poütica. Dessa maneira,


o fetichismo era principalmente um discurso sobre conflitos culturais
-.-.. de valores, que permitiam aos europeus duas coisas. Primeiro, eles po-
-·. diam levar as culturas não familiares e não explicáveis do mundo para
um universo sistemático de valor negativo; segundo, podiam representar
esse universo como desviante e, assim, subestimá-lo e negá-lo. Con-
tra esse universo falho e atrasado do erro, o Iluminismo assumia forma
iluminada. Desse modo, o discurso sobre o fetichismo permitia que os
pensadores iluministas inventassem novas fronteiras entre o tempo da
modernidade e o espaço anacrônico, tornando-se no processo um ele-
mcn:o formador do projeto iluminista.
Em meados do século XIX, o fetichismo dos povos colonizados era
um tropo estabelecido nos escritos antropológicos e nos de viagens. Os
clássicos da antropologia vitoriana - 7he Worship ofAnimais and Plants,
,· de J. F. McLennan, 7he Origino f Civilization, de John Lubbock, e Pri-
I•
mitive Culture, de Edward B. Tylor - viam as religiões fetichistas como
marcando os primeiros estágios, primitivos, do progresso evolutivo 2 7.
Para Tylor, o hábito africano ocidental de ver os objetos do mundo
como conjuntos de forças sobrenaturais testemunhava a "lógica limi-
tada do bárbaro", que, por sua vez marcava o inferior desenvolvimento
evolutivo dos africanos 28• Nas últimas décadas do século, porém, com a
expansão do comércio e dos interesses territoriais imperiais, o fetichis-
mo ingressou num discurso expansionista. O fetichismo não marcava
mais outros povos meramente como presas da loucura idólatra e de cos-
tumes pagãos; ele era visto como obstáculo direto das forças progressis-
tas de mercado e assinalava esses grupos para intervenção e conquista
imperial direta.

27. J. F. McLcnnan, "Thc Worship of Animais and Plants-, Fortnightly RroiNJJ 6 e 7 (1869-
187o);John Lubbock, 77,e Origin ofCiviliUJtion and the Primitif.Je ConditiOII oji\1an (Lon-
dres, 1870); Edward B. Tylor, Primitit:e Culture: &uard1<1 into tl:e Drodopmmt of My-
th~logy, Philosophy, &ligion, l.Anguage, Art and Cu1tom (Londres: John l\,lurray, 1871).
28, Idem, op. cit., vol. u, PP· 144-5.
Couro imperial

O fetichismo se tornara um escândalo vitoriano, em parte porque


recusava flagrantemente a ideia de tempo e progresso lineares' 9 • O feti-
che - incorporando, como incorpora, contradição, repetição, atuação e
tempo múltiplos - exemplifica o tempo repetível: tempo sem progresso.
E ao denunciar outras culturas do fetiche como se habitassem um mo-
mento prévio na história do progresso, os pensadores vitorianos revela-
vam inconscientemente suas inclinações fetichistas. O Grande lVIapa da
Humanidade era um paradoxo, pois pintava o mundo como feito de
tempos diversos que coexistem no mesmo globo geográfico. Em outras
palavras, as anacrônicas terras-fetiche além da Europa coexistiam no
mesmo tempo - tempo de relógio - como modernidade imperial. Ver
o mundo como habitando simultaneamente diferentes dimensões do
ten1po evocava precisamente a noção fetichista de um tempo descontí-
nuo e múltiplo que o Iluminismo afirmava ter transcendido e que se
entregara violentamente a reordenar num regime global linear e em
continuidade hierárquica. Por essa razão, o próprio mappa mrmdi colo-
nial ocorria ritualmente como fetiche.
O antropólogo vitoriano Tylor captura o encanto do fetiche para a
modernidade imperial numa forte imagem: MÉ tão penetrante a influên-
cia, que o europeu na África está disposto a pegá-la do negro e ele mes-
mo, como diz o ditado, 'se toma negro'. Assim mesmo, o viajante, ao ver
seu companheiro branco que dorme, pode perceber num relance alguma
garra ou osso ou qualquer coisa de feitiçaria secretamente em torno do
pescoço dele"Jº. O mapa do mundo colonial multicolorido encantava a
Europa e se tornou seu fetiche. O s homens imperiais dormiam com ele
sob seus travesseiros, assegurando ilusões de grandeza e sonhos de con-
quista. Os europeus carregavam o colorido mapa mundial como um en-
cantamento em zonas desconhecidas para se manterem protegidos da

29. Para uma excelente análise d o fetichismo vitoriano, ,-cr D avid Simpson, FniJh ism and
lmagination: D i<J.em, lvldville, Conrad(Baltimore:Johns Hopkins Universicy Prcss, 1982),
especialmente o c:2pírulo 1. Ver também Alasdair Pcttingcr, "Vv'hy Fctish?", New For-
matiom 19 (1993), pp. 83-93, pan uma discussão de raça e as teorias do fetichismo do sé·
culo XIX.
30. Tylor, Primitivt Cultuu... , vol. 11, p. 45.

282
Psicar.dliu, rara t fttichismo feminino

~
l decadência e da fúria dos africanos e garantirem o espírito do progresso.
Proprietários burgueses o penduravam nas paredes. Missionários e ex-
l ~
ploradores empreendiam jornadas inexplicáveis atraídos por seus espa-
.•
j

ços em branco e, em 1884, na Conferência de Berlim, um grupo de eu-


1
ropeus sentou-se em torno de um brilhante mapa da África e dividiu o
·}
r,
continente entre eles.
!
1 Com isso em mente, podemos retomar à teoria psicanalítica do fetiche.
t

.)
i FREUD E A NEGAÇÃO DO
FETICHISMO FEMININO

'.'los anos 1880, Alfred Binet marcou uma mudança crítica no discurso
antropológico sobre o fetichismo, ao transferir o termo "fetiche" para
dpos de "perversão" sexual. O termo "fetichismo", pensava ele, era bem
adequado para certas formas de desvio sexual, em que "a adoração do
'
~
selvagem ou negro por ossos de peixe ou seixos brilhantes" seria substi-
n1ída pela "adoração sexual" de objetos inanimados, como as toucas de
.l
dormir ou os saltos altos3'. Com Binet, ocorreu uma transição crítica à
l
1 medida que o fetichismo virou um termo comutador, mediando entre
1

t raça e sexualidade, colônia e metrópole. Seguindo a adoção do termo


1
por Freud como crucial para a análise das "perversões", testemunha-se,
\ ao mesmo tempo, uma mudança disciplinar, pois o discurso sobre o fe-
l
1
tichismo se afasta da antropologia e do estudo da religião - isto é, para
longe do reino inventado da natureza imperial - em direção da psica-
nálise e da cultura metropolitana.
.t Como o "artigo de fé" freudiano passou a excluir tanto as mulheres
i como a raça da história ocidental recente do fetichismo? Apoiado em
histórias de caso psicanalíticas masculinas, Freud explica que o fetiche é
um "substituto do pênis"- um pênis substituto criado no inconsciente
1 do menino para compensar "o pênis da mulher (da mãe) em que o me-
t nino uma vez acreditou e - por razões que nos são familiares - não

-1
·1
31, ,\lfrcd Binet, "Lc Fctischismc dans l'amour", p. 3.

J
-
I .,
4'1·
Couro imp,rial

quer abandonar"3>. Para Freud, a cena primal do fetichismo envolve uma


ilusão no reino do espetáculo: o menino se recusa a abandonar a crença
no pênis da mãe, o que a tornaria equivalente ao modelo masculino
universal do corpo humano. O espetáculo da dissemelhança da mulher,
segundo Freud, deixa o menino horrorizado com a possibilidade de sua
própria castração. O fetiche é, então, um objeto de compromisso: o me-
nino mantém a crença no pênis materno, "mas também a abandona;
durante o conflito entre o peso n1orto da percepção indesejável e a força
do desejo oposto, constrói-se um compromisso"33 • Segundo Freud, o
menino nega o que ele (não) viu até mais tarde, quando ameaçado de
castração pela mão punitiva do pai, que proíbe a masturbação. A cena •'
anterior de medo é len1brada e com ela um objeto (cabelo, sapatilha, ren-
l
l 1
da) que estava originalmente perto dos genitais femininos mutilados e nos l.
quais os olhos desviados do menino apavorado pousaram por acidente. .1
Daí em diante, enquanto o fetiche for mantido em mente, a mulher
mutilada pode ser restaurada à sua inteireza imaginária. Entretanto, a
presença do fetiche é uma lembrança constante da natureza ilusória de
sua inteireza. Freud acreditava que o fetichismo, assim, continha uma
"aversão aos genitais femininos reais", abandonados de todo e substi-
tuídos por "alguma outra parte do corpo como objeto do desejo - um
seio, um pé, uma trança"34• O fetiche se torna tanto "um memorial per-
manente" do horror da castração, encarnado não no homem mas na mu-
lher, quanto um "símbolo de triunfo" e salvaguarda contra a ameaça de
castração3S.
Aqui, o valor exaltado do fetiche mascara a recusa do menino em
aceitar a mulher como não equivalente a ele mesmo: uma superestimação
do objeto substituto compensa uma subestimação dos genitais das mu- -· . ,.
lheres. Através do fetiche, a diferença sexual das mulheres é convertida , .,
,.

32. Freud, "Fetishism", in Philip Rieff(org.), Sexuality and tht Psyehology ofLoflt (Nova York:
Collier, 1963 [1927]), PP· 152-3.
33. Idem, op. cit., p. 153.
34. Ibidem.
35. Ibidem.
'Psicandliu, raça , fetichismo ftminino

à moeda simbólica masculina para que o menino mantenha a crença no


valor universal do modelo masculino. O fetiche, assim, aparece como o
"memorial permanente" da ruptura da equivalência na forma humana.
Mas Freud não explica por que o objeto-fetiche deve ser lido como
um substituto do pênis (ausente) da mãe e não, digamos, como substi-
tuto dos seios (ausentes) do pai. De fato, a lógica pela qual Freud privi-
legia o pênis no cenário do fetichismo é ela mesma fetichista. Para Freud,
o fetichismo envolve o desejo do menino pela unidade primai quando
arm.::açadu pdo espetáculo da diferença das mulheres, que é então nega-
da pela fixação num objeto substituto. A teoria de Freud, porém, está
implicada na mesma lógica. Ela situa o fetichismo na fantasia primai da
,, castração, assim negando e deslocando a diferença de gênero e fixando-
.:.-
se num único e privilegiado objeto-fetiche, o pênis. A diferença das mu-
lheres é negada e deformada como falta.
Por um lado, Freud concebe a obsessão fetichista como ilusão, a su-
perestimação de um objeto substituto para compensar os subestimados
,, genitais femininos. Mas ele também parece aceitar, como verdade per-
cebida, o horror e ameaça de castração que está situada nos verdadeiros
genitais femininos; ele tende, assim, a simpatizar com a ilusão fetichis-
tal6. Como observa Linda Williams:

Como o cenário da visão de Freud afirma uma autoevidcnte "verdade" perce-


., bida da falta feminina, sua própria explicação se origina num reconhecimen-
to fetichista equivocado de uma coisa sensual, seguido pela criação de um
substiruto compensatório, o fetiche. É como se Freud confiasse na visão feti-
chista qu:mrto inicialmente considera a diferença sexual da mulher como fal

36. "Provavelmente nenhum ser humano masculino é poupado do temor da castração diante
da visão dos genitais femininos. Por que alguns se tomam homossexuais como conse-
~- quência dessa impressão, enquanto outros se defendem criando um fetiche, e a grande
maioria a supera, francamente não somos capazes de explicar". Idem, op. cit., pp. 154-5.
Ver a brilhante crítica de Linda \ViUiams sobre as teorias freudiana e marxista do feti-
chismo cm Hard Cor,: PMUtr. Pltasurc and tlJt Frm:r.y oftht Visible (Berkeley: University
ofCalifomia Press, 1989), p. 105 e capítulo 4,
Couro impuial

ta, mas desconfiasse da capacid:ide de o fetiche resolver o problema da "ver-


dade" que confronta37.

D e acordo com Freud, além disso, a ansiedade da castração não ir-


rompe num único momento originário no tempo. O menino herda a
ameaça da castração só depois que viu os genitais femininos, dos quais
ele é tragicamente lembrado quando o pai o ameaça com punição. As-
sim, a castração masculina permanece como um potencial simbólico,
uma ameaça perpetuamente adiada, mais que um destino anatômico
reaP 8• Para a menina, contudo, a castração aparece como sua condição
anatômica natural. A tarefa da menina pequena é apenas perceber a
verdade de sua carne, que, quando chega o tempo certo, a atinge "como
um relâmpago"39• Desse modo, como observou Kaja Silverman, Freud
toma todo cuidado para restringir o cenário da castração à falta femini-
na: "surpreendemo-nos pela sua insistência, sua recusa em reconhecer
qualquer falta, exceto aquela ligada aos genitais femininos"•º.
Urna economia do mais de um, que podemos chamar de identidade
pela diferença, é substituída por uma economia masculina do um, identi-
dade pela negação. Em Speculum ofthe Other Woman, L uce lrigaray argu-
menta que a economia masculina ocidental depende de uma regra de
visibilidade que só pode teorizar a mulher como falta, ausência e nada41 •
Se os homens concebem as mulheres como versões castradas de si mes-
mos, diz ela, é por causa de um "buraco" fundamental, um ponto cego na
visão significante dós homens que apenas pode ver o desejo das mulheres
somente como desejo pelo pênis e do pênis. A fobia do "nada a ser visto"

37. Idem, op. cit., p. 105.


38. ~Não é senão mais tarde, quando alguma ameaça de castração o domina, que a observação
se toma importante para ele". Freud, "Some Psychical Consequcnces of thc Anatomical
Distinction Betwecn thc Sexcs·, in Standard Edition, vol. XJV (1915), p. 19.
39. Ibidem.
40. Kaja Silvcrman, 1he  íou.slic Jvlirror: 7ht Female Voiu in Psychoanalysis and Cinema
(Bloomington: Indiana Uni\·ersity Prcss, 1988),-p. 14-
41. Lucc lrigaray, Sptculum oftht Other ll11man, trad. Gilliin C. Gill (lthica: Comcll Univer-
sity Prcss, 19!16), PP. 46 -9.
Psicaná liu, rara t fetichismo ftmin in o

da mulher é em realidade o medo masculino de que as mulheres possam


não ter a inveja do falo que os homens presumem que temos - que
temos, em outras palavras, desejos diferentes4 ' .
Para Freud, ajoelhado diante da economia do um, há uma só libido,
a que não se pode atribuir uma sex1.1alidade específica. Como ele a vê,
uma vez que o "universal" pode ser prontamente visto como sinônimo
do "masculino", ela p_o de ser justificadamente dita "masculina", enquanto
a justaposição "libido feminina" "não tem qualquer justificativa"43 • Se a
.•, menina é o mesmo que o menino, isso a faz um menino, e não vice-
•1
versa: "somos obrigados a reconhecer que a menina é um homem pe-
'
l queno"44. Se sua atividade masturbatória é como a do menino, isso faz
de seu clitóris um "equivalente do pênis", e não o contrário 4s. Freud teria
feito bem em lembrar um de seus insights sobre o fetichismo. Como
observou Tim lVlitchell, o idólatra esqueceu alguma coisa: seu próprio
ato de projeção, do qual deve ser lembrado pela memória e pela cons-
1
l ciência histórica46 .
Nem todos os teóricos da psicanálise têm seguido a fé de Freud no
.1 fetiche como compensação do falo materno. Para alguns, como observa
l
Janine Chasseguet-Smirgel, "a ansiedade da separação e a incapacidade
1 de renunciar à identificação primária com a mãe estão no coração do
l'
• problema do fetichismo"4 i. Para Weissmann, o principal alvo do feti-
l chista não é o prazer genital, mas uma tentativa de superar a ansiedade
i da separação introjetando o bom objeto como substituto do bom seio.
.1
1 42. Assim, para lrigaray, a negação da sexualidade feminina é a negação de que algo diferen·
1 te (uma mulher) é necessário p:ira a reprodução, a procri, ç'lo cio filho com o mesmo
i nome do pai.
l 43. Freud, "Femininity", in Frtud on m,mm, p. 131.
1. 44. Idem, op. cit., p. 347.
45. Ibidem.
46. T im !'vlitchell, l conology: lmagt, 1êxt, l dtology (Chicago: University of Chicago Press,
1986), p. 84.
47. Janine Chasseguet-Smirgd, Crtatit,ity and Pervtnion (Nova York: W . \V. Norton &
Company, 1985), p. 83. Chasseguet-Smirgcl nota que a observação clinica não sustenta
a afirmação de Freud de que o fetiche poupa o fetichista de se tomar um homossexual
(p. 80). Sou grata a Steven Marcus por me alertar para esse material.

287
Couro imperial

Aqui, como Wcissmann o diz de maneira adequada, o fetiche "não é


só um objeto, mas uma identificação"45 • De modo semelhante, \iVulff
vê o fetiche como ligado ao seio da mãe como origem do falo, en-
quanto Sperling argumenta que o fetiche pode representar todo o
corpo da mãe 49• De maneira um pouco diferente, Chasseguet-Smirgel
afirma que o fetiche habita um universo mágico e artístico, um "mun-
do maravilhoso e estranho", onde sentimentos de perda e morte são
aliviados por uma "negação do pênis genital do pai" e por um foco no
falo analSº.
Em minha visão, esses argumentos são valiosos para abrir as cenas do
fetichismo para genealogias mais diversas que a cena da castração. l\1as
também elas supõem tipicamente u1n homem fetichista: "O fetiche
condensa todos os elementos que separam um filho de sua mãe"S'. Além
disso, a abordagem puramer:ite psicanalítica, focada seja na cena da cas-
tração ou em traumas pré-genitais, por sua dependência em etiologias
individuais (exemplificadas pelos estudos de caso), é impedida de expli-
car plenamente o surgimento, em certos períodos históricos, de uma
variedade de modas culturais fetichistas: fetiches coletivos ou de grupo
(Coca-Cola, PVC, suásticas); fetiches raciais e nacionais (bandeiras, ma-
pas, coroas, comidas e flores nacionais, e assim por diante); ou fetiches
adquiridos pelos indivíduos mais adiante em suas vidas. No último ca-
pítulo deste livro,.exploro, por exemplo, os fetichismos da cultura nacio-
nal: as bandeiras, carrinhos, mapas, roupas e graças do espetáculo
nacional - fetiches que não podem, acredito, encontrar uma única ex-
plicação originária do desenvolvimento psíquico individual. Por en-
1

48. P. Weissmann, "Some Aspects ofScxual Activity in a Fctishist", 1he Plychoanalytic Quar-
il
urly 32 (1957), PP· 374-92.
49. M. vVultf, "Fetishism and Object-Choice in Early Childhood", 1he Psychoanalytic Quar- 1
~

urly 15 (1946), pp. 450-71; M. Spcrling, "Fetishism in Children", 1he Psychoanalytic ....
Qúarterly 32 (1950), pp. 374-92. Ver também D. vV. \.Yinnicott, "Transitional Objccts and
Transitional Phenomena", 17u /nternational]ournal ofPsr.hoanalysis 34 (1953), pp. 89-97.
50. Chasseguct-Smirgel, Creatiflity and Perwrsion, pp. 81, 87, 3S.
·-
51. Idem, op. cit., p. 87.

288
Psfranáliu, rara t j(lfrhismo ftminino

quanto, porém, minha atenção imediata se volta para a teoria freudiana/


lacaniana, tradição que teve e tem a influência mais profunda sobre as
teorias feministas.

LACAN E A NEGAÇÃO DA
ATUAÇÃO DAS MULHERES

Seguindo Freud, Lacan proclama "a ausência do fetichismo nas mu-


lheres." Qy.al é a lógica dessa segunda negação? Nos textos de Lacan,
as mulheres estão condenadas a habitar a zona sem língua do Imagi-
nário. A nós é negada a cidadania no Simbólico, somos exiladas dos
arquivos e enciclopédias, dos textos sagrados e álgebras, dos alfas e
ômegas da história. Se as mulheres chegam a falar, é com línguas
masculinas, como ventríloquas do desejo fálico. Se olhamos, é com
olhar masculino. Desse modo, a visão de Lacan tem uma estranha
' afinidade com o discurso do século XIX sobre a degeneração, que
1• concebia as mulheres como privadas de linguagem, exiladas da razão

,.. e habitando propriamente a pré-história da raça. Para Lacan, como
para o discurso da degeneração, a diferença das mulheres é vista
• como cronológica; habitamos um espaço anterior na história temporal
I
•. linear do eu simbólico (masculino). O espaço pré-edipiano (o espaço
da domesticidade) é naturalizado ao ser concebido como espaço ana-
crônico: fora do tempo e anterior à história simbólica. A relação his-
toricamente engendrada das mulheres com o poder é representada
como uma relação formalmente diferente com o tempo: o próprio ges-
to imperial.
Segundo Lacan, as mulheres não habitam a história propriamente
dita. Mantemos uma relação preposicional com a história. Somos pré-
edipianas e pré-simbólicas, ameaçando permanentemente o macho sim-
bólico com nossas caras pintadas e cabelos difíceis. Mas nessa teoria
..',. somos incapazes de realmente perturbar qualquer coisa. Exatamente
como, no discurso imperial, os homens brancos eram os únicos herdei-
ros da grande narrativa do progresso histórico, no discurso lacaniano, os
homens são os únicos herdeiros do Simbólico. Enquanto o discurso da

;
Couro impaial

degeneração inventou a natureza imperial para sublinhar a diferença


racial, de classe e de gênero, Lacan inventa a majestade inefável do
"significante fálico" que governa toda diferença social, um universal
estrutural, imutável e inevitável.
No esquema de Lacan, às mulheres é designada a posição de vítima,
cifra, conjunto vazio - sem poder, sem língua, sem sexo. Inevitavel-
mente identificadas com o reino do Outro, as mulheres são as portado-
ras e guardiãs da distância e da diferença, mas nunca as agentes e inven-
toras d a possibilidade social. Precisamente por essa razão, podemos ser
objetos do fetichismo, mas nunca seus sujeitos. Permanecer no imaginá-
rio é ficar psicótica, a condição da louca, cabelo selvagem. M as se a
mulher é o Outro, como se pode começar a falar (como mulher) de
diferentes relações de poder entre mulheres, para não mencionar aque-
las dentre mulheres com poder social e homens sem poder social?
Quando falamos e agimos como mulheres diferentes, a dicotomia Eu/
Outro começa a cambalear, e as relações com o Outro se tornam rela-
ções com outros.
Lacan partilha com o discurso imperial a imagem da mulher como
enigma. Com frequência, os coloniais representaram a paisagem colo-
nizada como feminina, não passível de conhecimento nem de represen-
tação. A ssim também na teoria lacaniana, o feminino é uma ausência
não representável produzida por um desejo fálico que funda a economia
significante através da exclusão. As mulheres se tornam o Continente
Negro, o enigma da esfinge - imagens exóticas e implicitamente racis-
tas extraídas de uma iconografia africanista. Construir as mulheres e os
povos colonizados como enigma ("a questão feminin a," "a questão na-
tiva") permite que os privilegiados europeus respondam ao enigma em
termos de seus próprios interesses.
H á uma estranha afinidade entre a visão lacaniana das mulheres
como não representáveis e a narrativa imperial que relegava as mulhe-
res e_os colonizados ao reino do não representável, do pré- histórico, ao
Continente Negro. Então, encontramos em algumas apropriações fe-
ministas de Lacan uma glamourização da mulher como primitiva. Para
Cixous: "A voz cm cada mulher [ ...] torna-se o eco d a canção primeva
Psi<a,:d/iu, rara e fetichismo feminir.o

que ela alguma vez ouviu"s•. Ouvimos na "voz da mãe[... ] uma canção
diante da lei, diante do momento em que alento foi dividido pelo sim-
bólico"53. A natureza enigmática das mulheres é mantida como descri-
tivamente válida; só que agora o valor é invertido: "O Continente Ne-
gro não é negro nem inescrutável"H. A voz da mãe é "a mais profunda,
antiga e adorável das visitações"55• Mas a força política das metáforas
dos enigmas, charadas e continentes negros - herdadas que são do
discurso vitoriano da degeneração - não está aberta a questionamen-
tos. Se, no discurso imperial, as mulheres eram inferiores porque atá-
1 vicas, aqui elas são superiores porque atávicas. De qualquer maneira, a
1
1 ,, simples inversão de valor mantém intacta a analogia entre mulheres e
l colonizados como pré-históricos. Conceber as mulheres como enigmá-
l
ticas alienígenas do pré-edipiano, porém, não é menos reacionário do
1 que ver os povos colonizados como atrasos atávicos para a pré-história
da raça.
A narrativa do desenvolvimento e o conceito de télos também são
fundamentais para Lacan. Anseios frustrados, insatisfação e falta en-
contram sentido apenas cm relação à crença no essencial (ainda que
tütil) télos do desejo. O conceito de télos não é mais marcado em qual-
quer outro lugar do que nas tentativas de Lacan de negar o fetichismo
feminino. Assim como Freud não podia permitir que a sexualidade do
clitóris existisse além da puberdade (pois assim a sexualidade feminina
escaparia ao télos da reprodução heterossexual e à. primazia do prazer
genital masculino), assim também Lacan não pode permitir que o feti-
chismo feminino exista. "Como foi efetivamente demonstrado", procla-
l
•:J
l . ~
ma, "que o motivo imaginário para a maioria das perversões masculinas
é o desejo de preservar o falo que envolvia o sujeito na mãe", e como o

'

.{ 52. 1-lclene Cixous, "lhe Laugh of Nlcdusa", in Sncja Guncw (org.), A Feminitt Reader in
,.;i<
:9!
.•. ;;;~ Knowldge (Londres: Routlcdgc, 1991), p. 25.
';,'· --~, SJ· Idem, op. cit., p. 27.
54. Idem, op. cit., p. 228.
55. Idem, op. cit., p. 34.
Couro imptrial

fetichismo é "o caso virtualmente manifesto desse desejo", o fetichismo


deve estar ausente nas mulheres56•
À virada da página, contudo, Lacan é forçado a admitir que o feti-
chismo não está ausente nas mulheres, mas ele tenta salvar o drama
fálico de duas maneiras. Primeiro, ele identifica o fetichismo feminino
apenas com as lésbicas. Segundo, num gesto profundamente homofó-
bico, Lacan define as lésbicas como heterossexuais "desapontadas". "A
homossexualidade feminina", anuncia grandiosamente Lacan, "segue-
se a um desapontamento que reforça o lado da demanda por amor".1 7_
Mas o próprio conceito de desapontamento em Lacan, como o de sus-
pensão [arrest] cm Freud, só tem sentido em relação a uma crença
anterior no télos normativo do desejo heterossexual, cm que se é pri-
meiro desapontada e depois se volta ao lesbianismo. O uso do termo
"perversão" por Lacan ("afastar-se de") em si mesmo implica um desen-
volvimento heterossexual a partir do qual o objeto feminino se volta,
dando uma guinada em desapontamento para a "máscara" e "exibição
viril" do desejo lésbico.
Daí a suposição de perda e de sacrifício na visão de Lacan da sexua-
lidade lésbica: a lésbica escolhe outras mulheres "ao preço de seu próprio
sexo"58 • Podemos compreender a so.-ualidade de uma lésbica como exi- ....
r
gindo "um preço", o sacrifício "de seu próprio sexo", apenas se supuser-
mos que a sexualidade feminina é genericamente heterossexual cm pri-
meiro lugar. Laca_i:i parece incapaz de entreter a ideia de que uma lésbica
pode escolher outras mulheres para celebrar e expandir sua sexualidade,
pois admitir tal possibilidade seria endossar a recusa da heterossexua-
lidade como a única opção social viável e subverter a ficçao de um falo
governando todo o desejo. A negação do fetichismo feminino por La-
can, exceto por desapontamento e perda lésbica, nega outra vez a dife-
rença feminina (as mulheres como agentes de desejos diferentes) ao re-
escrever a afirmação ativa das mulheres pelas lésbicas como uma rejeição

56. Lacan, ~Guiding Rcmarks ... ", p. 96.


57. Idem op. cit., p. 85.
58. Idem, op. cit., p, 97·
'Psicandlise, rara e fetichismo feminino

.;

negativa e desapontada dos homens. Assim, a lésbica se torna uma aber-


ração heterossexual que não foi capaz de aceitar seu papel social como
objeto do desejo masculino59 •
Além disso, ao falar da "naturalidade", como ele diz, "com que tais
·, mulheres apelam à sua qualidade de serem homens" como mais uma
prova do privilégio inevitável do significante fálico, Lacan solapa (ins-
crevendo-a como natural) a assunção historicamente estratégica, sub-
versiva e longe de universal de algumas lésbicas com trajes e cortes de
,.
fi
,.
cabelo masculinos, subversão que, longe de duplicar a hctcross~7.1alida-
de numa inevitável "inveja do desejo" feminina, oferece uma exibição
.t teatral da falta de naturalidade e construção dos códigos heterossexuais.
Em última análise, como Judith Butler diz de K.risteva, a explicação de
~
~- Lacan sobre a sexualidade lésbica "nos diz mais a respeito das fantasias
,t..
..
·,
J.
que uma cultura heterossexual temerosa produz para defender-se contra
k suas próprias possibilidades homossexuais do que sobre a própria expe-
riência lésbica"6 º.
Jonathan Dollimore afirma que, como resultado, "a ameaça do per-
verso continua irredutivelmente inscrita na psicanálise"61 • O que Dolli-
more chama de "a posição potencialmente ridícula que a psicanálise
,t passa a ocupar em suas tentativas repetidas de 'explicar' a homossexua-
lidade como uma série de soluções 'falhas' do complexo de Édipo" em si
mesma ameaça empurrar a ideia do complexo de Édipo "para a incon-
sistência e até mesmo o absurdo" 6'. "A perversão prova a anulação da

59. Certamente, de Freud a Lacan, de lrigaray a Gallop, dar conta das histórias da identida-
de lésbica e gay não foi um ponto forte da psicanálise - dos dúbios comentários de lri-
garay sobre a identidade gay à neg.tiva e homofóbica desconfiança que Gallop tem dos
gay,~ "desconfio dos homens homossexuais", admire Gallop, "porque eles preferem os
homens às mulheres, c:.~atamente como fazem nossas instituições sociais e políticas".
Gallop aqui define a identidade gay cm termos negativos, ou seja, como uma rejeição às
mulheres, e não como uma identificação positiva com os homens, em modos que não
podem ser simplesmente equiparados à predominância heterossexual masculina.
60. Judith Butlcr, Gmder Trouble: Ftminism and lhe Subwrsion ofldmtiry {Nova York: Rouc-
ledgc, 1990), p. 87.
61. Dollimore, Sexual Disridmu. .. , p. 173.
i 62. Idem, op. cit., p. 197.

.,.
293
Couro impaial

teoria que a contém"61 • Dollimore argumenta, em minha opinião, de


. que o que e, visto
. persuasiva,
manerra . _,, apresenta "um
como "perversao
desafio não só para a lei de Édipo, mas pua todo o drama de Édipo
enquanto teoria"64• O fetiche volta a ameaçar as próprias fundações da
teoria que o contém.

A REINVENÇÃO DO PAI

Em 1938, Lacan proclamava (contra Engels) que as origens da cultura


estão dentro da "família paternalista", e pranteava a extinção da "imago
paterna" no mundo à sua volta65• Ao longo das décadas seguintes, Lacan
empreendeu um esforço contínuo para reinventar a "imago paterna" no
nível da teoria psicanalítica, dentro dos muros institucionais da acade-
mia e da clínica. Pode-se chamar esse projeto de reinvenção do pai e da
Familia do Homem.
Como Jacqueline Rose observou astutamente, "o coração da polêmi-
ca (de Lacan)" é precisamente uma tentativa de enfrentar a feminização
da psicanálise que, desde Freud, enfatizava a importância das "frustra-
ções derivadas da mãe" e, consequentemente, negligenciava o papel do
"complexo de castração baseado na repressão paterna"66• Em sua ficção
do falo, Lacan tinha em mente uma narrativa de todo mais paterna.
Como Freud, Lacan autoriza essa reinvenção da "família paternalis-
ta'' apelando para uma única narrativa, masculina, das origens - a ame-
aça paterna da castração - que ele retira da antropologia do século XIX.
Para Lacan, o deslocamento universal (isto é, masculino) em direção ao
pai, que engendra o Simbólico, é inaugurada pela proibição do pai con-
tra o incesto. Lacan segue Freud e Lévi-Strauss (que segue os antropó-

63. Ibidem.
64. Idem, op. cit., p. 198.
65. Lacan, -La Familie", in Henry \Vollon (org.), Encydcpldiefranraiu, vol. 8. Republicada
como ÚJ Comple:asfarr.iliaux dans la formation d, f'individu: Essai d'analyu d'une.fJnc-
tion en psychana!yu (Paris: Bavarin, 1984).
66. Mitchcll e Rose, frminint Scxuality ... , p. Ji·

294
'Psicandliu, raça t fttfrhismo ftminino

logos do século XIX) ao afirmar que foi "o pacto da lei primordial [ ...]
que a castração devia ser a punição do incesto". Para Lacan, é um impe-
rativo cultural (fundado na "lei primordial") que o abraço mãe-filho seja
cortado67• Mas, qual é a base desse imperativo universal, que Lacan afir-
ma mas não justifica teoricamente - apelando apenas para a "lei pri-
mordial"? O movimento de Lacan é crucial para sua teoria, pois a dife-
rença social é aí engendrada. Mas considero sua estória implausível por
.
1
.

diversas razões.
·-i• -~ O cenário da castração de Lacan postula a intervenção paterna con-
tra o incesto como universal cultural. Às mulheres é negada a atuação
social: son10s vistas como desprovidas de motivação para desmamar ou
impedir o incesto, sem interesse social em levar as crianças à separação,
sem papel na ajuda a eles para negociarem a intricada dinâmica da in-
terdependência, e sem qualquer capacidade para fazer qualquer dessas
coisas. No entanto, a atividade de supervisionar a dialética da interde-
pendência é precisamente o que constitui a divisão do trabalho entre os
gêneros nas culturas ocidentais e muitas outras além delas. Não há lugar
na estreita casa de Lacan para as mulheres como agentes sociais, nem
para que as mães e os filhos se reconheçam gradualmente entre si como
semelhantes e dissemelhantes, tanto desejados como desejosos (da iden-
tidade pela diferença) de maneiras não redutíveis a uma única, rígida e
castradora lógica fálica (identidade pela negação)68•
O argun1ento de Lacan supõe urna família universal de faz de con-
ta, vivendo à parte, cm que nem vizinho nem enfermeira, policial ou
padre, atravessa o limiar para interromper o abraço mãe-filho até que
o "nome do pai" lança seu viril édito de diferença. A clássica familia de
Lacan é uma herança de classe média do século XIX. Mas a identidade
passa a existir através de uma comunidade mais ampla do que o lar
familiar, e a sagrada trindade amada pela psicanálise ocidental está

67. Idem, op. cit., p. 38. Como diz Rose: "A dualidade da relação entre mãe e filho deve ser
rompida [ ...] Na narrativa de Lacan, o falo representa esse momento de ruptura. Ele re·
fere mãe e filho àquela dimensão do simbólico que é figurada pelo lugar do pai".
68. Ver Irigaray, Sp«ulum efth, Other Woman, P· 36.

2 95
Couro impaial

longe de ser a norma global69 . A ideia de uma única, notável "ruptura"


engendrada pelo "nome do pai" é uma ficção teórica, inventada para
assegurar ao pai um papel mais grandioso no momentoso drama da
criação dos filhos do que a sociedade ocidental contemporânea lhe
atribui. Assim, sugiro, Lacan, como Freud, participa da negação feti-
chista (subestimação) da intervenção ativa das mulheres na identidade
do filho e na superestimação fetichista da proibição sexual masculina
como momento dominante e decisivo na inauguração do eu social.
Lacan insiste em que a ruptura iniciante entre mãe e filho é insti-
tuída pela força simbólica da "Lei do Pai", que está investida no Nome
do Pai. Para Lacan, o nome do pai é equivalente a todo o reino simbó-
lico, à própria cultura. Mas então a cultura masculina dominante se
torna, de um só golpe, sinônimo de toda cultura. Ser o falo no texto de
Lacan é encontrar o sentido apenas através da lógica da lei paterna; é ser
inteiramente contido nos termos do falocentrismo.
No mínimo, questiono a dependência lacaniana de categorias singu-
1ares: "o P a1.", "a L e1.,,, "a M-ae", "o Fa1o". ror
n que h a· apenas uma marca
formal do desejo, por mais internamente contraditória que seja? Ao ar-
gumentar no singular, Lacan apaga a possibilidade teórica de símbolos
do desejo múltiplos, contraditórios e historicamente cambiantes. E o
que é mais importante, não há lugar, sob o soberano Nome do Pai de
Lacan para uma investigação histórica de por que não há um patriar-
cado, mas muitos. Comprometido com a economia do um, o Nome do
Pai de Lacan não pode dar conta, seja descritiva ou analiticamente, das
contradições e desequilíbrios históricos de poder entre os homens; nem
pode dar conta da história dos poderes masculinos não investidos em
metáforas de paternidade; nem das relações hierárquicas entre os pais e
o Estado - uma relação de particular importância histórica para os
negros, colonizados e outros homens não emancipados. QJ.ando Lacan
apaga a história da competição entre patriarcados, ele privilegia uma
única narrativa das origens e nega conflitos de poder entre narrativas

69. Frantz Fanon, Black Skin, White Masl:.s, trad. Charles Lam Markmann (Londres: Pluto
Prcss, 1986), p. 63.
"Psicandliu, ra;a, fttichism o ftminino

concorrentes da autoridade de gênero, de raça e de classe. Na verdade,


Lacan é curiosamente indiferente quanto a explicar as instituições de
violência que deram ao falo e ao patronímico seu poder político em
primeiro lugar; talvez porque tal explicação possa demandar um envolvi-
mento mais desafiador com a história social do que ele deseja assumir.
Os lacanianos afirmam que Lacan vê o significante fálico corno in-
ternamente ambivalente, como a marca e garantia da própria ambiva-
.....·.
(
lência. Mas eu sugiro que, ao organizar todas as contradições sob o signo
~:

J:- do mesmo, Lacan efetivamente subsume toda diferença e torna as con-


tradições dóceis sob a soberania universal do falo, ratificando o cssencia-
lismo mesmo que afirma solapar. Como diz adequadamente Dollimore:
"Na teoria de Lacan, a dialética é menos um processo que uma fixação
energizada permanentemente assombrada pela perda"70 •
Sugiro, de fato, que Lacan inventou a ideia do "Pai" como um uni-
versal precisamente porque a soberania de uma única imago paterna do-
minante foi ameaçada pelo menos de três maneiras: pela crítica femi-
nista do patriarcado; pelas objeções do Terceiro Mundo a uma ordem
global centrada numa única autoridade ocidental; e pelo fato de que as
t
estruturas dos Estados burocráticos ocidentais não são mais diretamen-
•.
te dependentes de metáforas da paternidade para distribuir, administrar
e justificar o poder masculino. A burocracia estatal não organiza direta-
mente seu regime legitimador através de uma só patria potes/as (ícone
., político da monarquia). A psicanálise lacaniana é, sugiro, uma tentativa
de retaguarda de salvar a potência da Lei do Pai como abstração no
momento mesmo em que ela está desaparecendo como força política7'.
Novamente, o gesto é fetichista, rejeitando e ocultando, sob a unidade
; artificial de um único patriarcado universal, aquelas diferenças que po-
dem pôr em questão o próprio conceito da Lei ocidental do Pai.

70. Dollimore, Sexual Dissidmct... , p. 63.


71. Como diz Guy Hocquenghem: •Num momento em que a indi,idualização capitalista
está solapando a família privando-a de suas funções sociais essenciais, o complexo de
Édipo representa a intemalizaçio da instituição da família~. Apud Dollimore, Sexual
Dissidmu... , p. 208.
Couro impuial

A imago paterna reinventada por Lacan carrega a marca anacrônica


de um patriarcado familiar monoteísta. Em muitos aspectos, a narra-
tiva de Lacan ensaia uma ~eda secular e trágica, a Lei do Pai expan-
dindo o comando do exílio primordial do Éden (mas desta vez sem
redenção). Sua imaginação trinitária - o Real impossível (como Deus),
a queda a partir do Imaginário através do drama edipiano, o trabalho
terreno do Simbólico, juntamente com sua fixação quase teológica
nu ma família trinitária - oferece uma réplica filosófica trágica da nar-
rativa judaico-cristã. No ritual do nascimento masculino do batismo
cristão, uma parteira clerical inicia a alma na cidadania da Igreja. De
maneira semelhante, cm Lacan, o menino entra no Simbólico através
do estágio do espelho batismal apenas se deixar para trás o Imaginário
materno. Ambos são rituais de nascimento masculinos e fetichistas que
deslocam o poder de criação dos filhos das mulheres. O édito de Lacan,
"não há coisas senão as palavras", também ecoa a noção judaico-cristã
do mundo como alegoria linguística: "No começo era o verbo e o verbo
se fez carne".
Na trágica ontologia de Lacan, é claro, a alegoria perdeu seu autor.
Entretanto, atuação, violência, poder e desejo são deslocados para "o sig-
no" como sua propriedade, sua atuação ("a violência da letra"). Isso en-
volve um deslocamento fetichista para categorias simbólicas formais de
atividade que são propriamente as atividades das comunidades huma-
nas - comunidades que são sempre constituídas cm e pela represen-
tação, 1nas não são· redutíveis apenas à linguagem. Segundo Lacan, o
indivíduo está sujeito a leis estruturais que derivam menos de relações
sociais e econômicas entre comunidades que de relações formais entre
símbolos. Como observou Marx, a relação entre pessoas passa a ser vis-
ta como relação entre coisas.
Judith Butler argumentou que a narrativa lacaniana garante a des-
crição como uma ontologia trágica e que é "ideologicamente suspeita"
por permanecer casada a uma "romantização ou, de fato, a uma ideali-
zação religiosa do fracassp, da humildade e limitação diante da Lei" 7º.

72. Butlcr, Gmder Tro11ble... , p. 56.


'Psicandliu, rara t fttichismo /tminino

"A figura da lei paterna como a autoridade inevitável e irreconhecível


diante da qual o sujeito sexuado está destinado a fracassar deve ser lida
tanto para o impulso teológico que a motiva quanto para a crítica da
teologia que aponta para além dela"n.

LACAN E A ATUAÇÃO FE~tlNISTA

A questão central para as feministas é estratégica. Se o significante fá-


lico é inatingível e ele mesmo significa apenas falta de ser, seria possível
romper o princípio ordenador do Simbólico? Porque o falo é simples-
.
1 mente um significante de diferença, ele não tem poder inerente cm si
mesmo; deriva seu poder de sua relação (velada) com instituições mas-
culinas de poder e sua relação meramente metafórica com o pênis. O
próprio pênis não tem poder, mas é investido de potência simbólica ape-
nas cm virtude do privilégio social prévio dos homens. Em suma, o falo
é poderoso não por simbolizar o pênis (o que ele faz e não faz), mas
porque é o signo do poder social masculino que se origina alhures. No
1
1 entanto, esse "alhures" é perpetuamente adiado.
!
O melhor que Lacan pode fazer é repetir, tautologicamente, que os
1 homens têm poder porque têm uma relação privilegiada com o falo e
l
t
1
que o falo tem poder porque é o signo do poder masculino. Pareceria
i . seguir-se logicamente daí que as mulheres podem reconhecer o poder

l
1
do falo, apenas se antes confrontarmos as instituições que o investem de
poder - instituições que se sobrepõem ao lar familiar privatizado, mas
também se situam além dele e, assim, fora do alcance teórico da psica-
nálise em sua forma atual. Em nenhum lugar Lacan investiga a história

l 1 '
social do privilégio masculino, e nunca sugere que tal investigação deva
ser empreendida. Em vez disso, entramos num círculo de tautologia em
1 que a explicação é suposta na descrição e um relato histórico do poder

l masculino é perpetuamente adiado, quando não completamente evita-

jí do. Lacan confere ao poder masculino o aspecto de um destino natural

73. Idem, op. dt., p. 57.

2 99
Couro imperial

e inevitável; em consequência, dei.xa de dar conta do que tenta explicar:


o engendramento social da diferença.
A lealdade de l\!Iitchell ao falo como objeto privilegiado de nossa
atenção limita o feminismo a uma identificação negativa de nossa impo-
tência, a nossa posição como "negatividade", e não como uma exploração
de nossos poderes acima e além das genuflexões forçadas diante do re-
gime fálico. Sugiro que é só reconhecendo nosso poder, bem como nos-
sa impotência, que podemos desenvolver estratégias de mudança.
Para Rose, o in:.ight <lt: Lacan é sua insist€ncia em que o falo é um
"impostor". ~1as oferece Lacan uma rota de saída do reino do falso mo-
narca? No máximo podemos reconhecer a natureza fictícia do falo, mas .l
ela é, adaptando a expressão de Wallace Stevens, uma "ficção necessária" )
.1
sem a qual a função simbólica não pode acontecer. A fraude do falo está
crucial e inevitavelmente implicada na estrutura mesma da própria fun-
ção simbólica. Daí a "insolubilidade" da subordinação das mulheres para
Lacan. As mulheres podem ser simbolicamente submetidas e não real-
mente inferiores, mas, para Lacan, a sujeição das mulheres está ainda
"inscrita numa ordem de troca da qual ela é o objeto". Aí, Lacan diz
acabrunhado, reside "o caráter fundamentalmente confiitivo e, cu diria,
insolúvel, da posição da mulher"74•
Porque as mulheres têm uma relação permanentemente inadequada
com a ordem fálica que preside ao Simbólico universal, estamos conde-
nadas a continuar inscritas como objetos na ordem da troca. Segundo
Lacan, não podemos superar a ordem da troca, "uma vez que a ordem
simbólica literalmente a submete, a transcende". As mulheres nunca po-
dem intervir nessa ordem transcendente; na verdade, nem os homens.
Há "algo intransponível" em nossa sujeição. A psicanálise lacaniana,
portanto, não pode desafiar a subordinação das mulheres precisamente
porque ela constantemente reproduz as mulheres como inerente e in-
variavelmente subordinadas, destinadas a residir permanentemente sob
o falso domínio do falo impostor. Reconhecer que o falo é impostor, po-
rém, não basta para urna teoria feminista do poder de gênero, pois nun-

74. Apud Mitchcll e Rose. Frminine Sexuality... , p. 45.

300
Psfrandliu, rara e fetfrhismo feminino

ca é oferecida uma alternativa; de fato, a possibilidade de uma alterna-


tiva é explicitamente negada. A poütica de Lacan, em última análise, é
profundamente conservadora e pessimista e incapaz de teorizar as es-
tratégias feministas de mudança.

O FEMINISMO E O FETICHISMO FEMININO


r. . .
lí Algumas feministas tentaram recentemente expandir o romance fami-
,,.l~... liar lacaniano para incluir o fetichismo feminino. No entanto, também

~,
F
elas não abandonaram ou ameaçaram a narrativa iniciante da castração.
Seguindo Freud, Kofman observou que
(
...,· como não pode haver fetiche sem um compromisso entre castração e sua
~.t..- negação e porque a cisão fetichista[ ...] sempre supõe duas posições, o fetiche
(.'

~, não pode em qualquer sentido ser um simples Ersatz do pênis; se houvesse


realmente uma decisão em favor de uma das duas posições, não haveria mais
necessidade de construir um fcticheiS.

·,·
O fetiche é, assim, a incorporação, cm um objeto, de duas posições:
"castração ou sua negação". Para Kofman, como para Freud, o fetiche é
.. um "compromisso indecidível". No entanto, o compromisso freudiano
..-:
parece ordenado a oscilar entre essas duas (e apenas duas) opções deci-
didamente fixas. A indecidibilidade está, assim, decisivamente contida e
disciplinada, reduzida a uma economia masculina do fetiche: castração
(do que parece un1 pênis decididamente carnal) ou sua negação.
Seguindo Kofman, Schor afirma que a fascinação do fetichismo para
as mulheres é a "indecidibilidade" que ele oferece. "Se tomarmos como
.. um dos marcos do fetichismo a cisão no ego (lchspaltung) de que o feti-
che dá testemunho, então é possível falar[ ...] de fetichismo fcminino"76•
Ao encenar a oscilação do fetiche entre reconhecimento da castração e

75. Sarah Kofman, 7lu Enigma ofWoman: l¼man in Freud's Writings, trad. Catherine Porter
{lthaca: Comcll Univcrsity Prcss, 1980), p. iJ·
76. Schor, "Femalc Fetishism ...", p. i6.

JOI
Couro imperial

sua negação, as mulheres se recusam a ficar em um ou outro lado da


ameaça de castração. Mas isso não parece melhorar as coisas. Primeiro,
se o fetiche é um objeto de compromisso, sua indecidibilidade é preci-
samente seu fascínio também para os homens. Segundo, como as mu-
lheres na verdade não sentem o medo da castração, o investimento libi-
dinal no fetiche continua cercado de mistério, se não francamente
inexplicável. Embora as mulheres sejam admitidas como extras no dra-
ma masc:ulino, a própria cena central da castração continua intacta.
Marjorie Garber, seguindo a senda de Schor, mas ainda lendo o ro-
teiro de Lacan, separa o pênis ("o objeto anatômico") do falo ("a marca
estruturante do desejo"), de tal maneira que o falo é meramente "um
acessório de palco, um objeto destacável" a ser exibido no teatro do feti-
chismo. "Ninguém tem o falo". Como Schor, Garber lê o fetiche como
"uma figura da indecidibilidade da castração [ ...] um signo ao mesmo
,
tempo de sua falta e de seu acobertamento"n. Assim, "o fetiche é o falo;

o falo é o fetiche". O fetichismo feminino é invisível, sugere Garber, "por-
que coincide com o que foi estabelecido como narural ou normal - que
a mulher faça fetiche do falo no homem" 78 • l\'las, se o falo não é o pênis,
qual é o Itatus da expressão "no homem"? •Negar o fetichismo femini-
no", diz Garber, "é estabelecer um desejo feminino do falo no corpo do
homem como natura/"'19. Mesmo se lermos aqui o falo como "a marca
do desejo", o referencial anatômico ao pênis está implícito, se não for
incscapável. E o que é mais importante, para Garber todo1 os fetiches são
fetiches fálicos: "F~tichismo fálico - quer dizer, fetichismo"8º. Mas
nessa t:mtologia de identidade ("o fetiche é o falo, o falo é o fetiche")
todos os fetiches são reduzidos a uma única narrativa de desenvolvi-
mento e à mesma economia libidinal da única cena recorrente81 • O índi-

7i· Marjoric Garbcr, Ytsttd lntrrem: Cros1-Drming and Cultural Anxiety (Nov,. York: Rout-
lcdgc, 1992), p. 121.
78. Idem, op. cit., p. 125.
79. I bidem.
80. Ibidem.
81. Idem, op. cit., p. nr.

302
Psicandliu, raça t fttichi11n,; ftminino

ce de Garber revela prontamente sua erudição lacaniana: há 31 entradas


para o falo e 24 para o pênis, mas nenhuma para seios, clitóris ou vagina.
A falta do fetichismo do seio num livro sobre travestismo é notável,
• ..,.
lt
quando se considera o papel proeminente que os sutiãs e os seios (pos-
11 tiços ou não) desempenham no travestismo de muitos homens, para não
( .
,
i
,>
i falar de seu papel no fetichismo feminino. De fato, o anedoticarnente
l maravilhoso livro pioneiro de Garber oferece ampla evidência que con-
'
tradiz seu próprio dito teórico de que o fetiche é sempre o falo.
~ l
Ainda que Garber reduza todo fetichismo e todo travesrismo ao que
ela chama de "crise na categoria", os poucos exemplos de travestismo
r:icial que reúne parecem solapar a cena fálica e o superinvestimento
na metáfora da castração. Se a figura do travesti é a figura da pertur-
bação, Garber arrisca reduzir o travestismo racial a uma função secun-
l dária da perturbação sexual: "O paradoxo do homem negro na América
(do Norte] como simultaneamente um signo de potência sexual e um
signo de emasculação ou castração"82• Aqui a mulher negra habita aque-
1
1 le lugar nenhum tão eloquentemente resumido no titulo: "Todas as mu-
lheres são brancas. Todos os homens são negros. l'vlas alguns de nós são
.
coraJOSos ".
·i
Os fetiches podem não ser sempre perturbadores ou transgressores e
e
podem ser mobilizados para diversos fins políticos - alguns progressis-
~ "
~ tas, alguns subversivos, alguns profundamente reacionários. Ninguém
·l:!-
compreendeu o poder sedutor do espetáculo fetichista melhor do que

1
'
!
1
:i: Hitler. A classe média masculina vitoriana não foi impedida por sua
inclinação a rituais de flagelação de barrar os rituais fetichistas de outras
culturas. Fetiches como o triângulo rosa podem ser exibidos para fins
11 ..' políticos divergentes, alguns mais indecidíveis do que outros. Em lugar
de reunir essas diferenças sob o signo redutor do falo, conviria abri-las a
t diferentes genealogias.
!
,\
Embora o fetiche seja um objeto de compromisso, ele não envolve

. ·tl
necessariamente apenas duas opções. Os fetiches podem envolver con-
tradiç?es trianguladas, ou mais de três. Diferentes padrões de consumo
f
82. Idem, op. cit., p. 27r.

3°3
Couro imperial

ou formas de fechamento político violento podem efetivamente conter


o poder perturbador ou indecidível do fetiche. Fetiches masculinos
brancos podem soar diferentes dos ilícitos fetiches negros ou femininos.
Considerável rigor e sutileza se perderiam se todos os fetiches forem
reduzidos ao magistral falo: fetiches orais, como as chupetas usadas por
homens cm algumas formas de fetichismo; fetiches de seios, como al-
guns sutiãs; fetiches imperiais, como pulseiras de escravos ou chicotes;
fetiches de couro ou borracha; fetiches nacionais, como bandeiras, cores
de times ou mascotes esportivas; fetiches políticos, como coroas ou bra-
sões; fetiches religiosos, como crucifixos ou água benta; fetiches de au-
toridade, como uniformes e algemas.
Em lugar de reunir todos esses variados fetiches numa única cena
primai, seria melhor abrir a genealogia do fetichismo a explicações his-
toricamente mais frutíferas. .e teoricamente mais sutis. Os fetiches de
outras culturas poderiam então não ter mais de ajoelhar-se diante das
narrativas mestras do romance familiar ocidental. Como os fetiches en-
volvem o deslocamento de uma série de contradições sociais para obje-
tos de paixão, desafiam a redução a um único trauma originário ou à
psicopatologia do sujeito individual. De fato, o fetichismo poderia tor-
nar-se a cena teórica de uma nova investigação das contestadas relações
entre imperialismo e domesticidade, desejo e fetichismo da mercadoria,
psicanálise e histqria social - quando menos porque o próprio fetiche
incorpora o fracasso de uma só narrativa de origens.
PARTE 2

,
ENGANOS MUTUOS

':'

.
~
'

~

..
5
O império do sabonete
Racismo mercantil e propaganda imperial

Sabão é civilização.
Slogan da Unilever

~lestre: Nossa, está tão limpo.


'
Zangado: Há trabalho sujo em ação.
·1 Branca de Neve e os sete anões

.i SABÃO E CIVILIZAÇÃO

,,
• No coM EÇO do século XIX, o sabão era um item escasso e monótono, e
o ato de lavar, na melhor das hipóteses, superficial. Poucas décadas de-
. ~
pois, a manufatura do sabão tinha-se expandido num comércio imperial:
,
os rituais vitorianos de limpeza eram anunciados globalmente como o
sinal divino da superioridade evolutiva da Grã-Bretanha, e o sabão era
JJ .C"I

'
r

investido de mágicos poderes de fetiche. A saga do sabão capturou a


afinidade oculta entre domesticidade e império e incorporava uma crise
triangulada no valor: a subestimação do trabalho feminino no domínio
doméstico, a superestimação da mercadoria no mercado industrial e a
negação das economias colonizadas na arena do império. O sabão entrou
no reino do fetichismo vitoriano com efeito espetacular, não obstante o
fato de que os homens vitorianos promoviam o sabão como ícone da
racionalidade não fetichista.
Tanto o culto da domesticidade quanto o novo imperialismo encon-
traram no sabão tuna forma mediadora exemplar. Os valores emergentes
da classe média - monogamia (sexo "limpo", que tem valor), capital
industrial (dinheiro "limpo", que tem valor), cristandade ("ser lavado no
sangue do cordeiro") e a missão civilizadora imperial ("lavar e vestir o
selvagem") - podem ser todos maravilhosamente incorporados numa

3o7
Couro imptrial

única mercadoria doméstica. A propaganda do sabão, cm particular a


campanha do sabão Pears, assumiu sua posição na vanguarda da nova
cultura mercantil da Grã-Bretanha e de sua missão civilizadora.
No século XVIII, a mercadoria era pouco mais que um objeto mun-
dano a ser comprado e usado - nas palavras de Marx, "uma coisa tri-
vial"'. Ao final do século XIX, porém, a mercadoria tinha assumido seu
lugar privilegiado não só como forma fundamental da nova economia
industrial, mas também como forma fundamental de um novo sistem?.
cultural de representação do valor social'. Surgiram bancos e bolsas de
valores para administrar as benesses do capital imperial. Surgiram pro-
fissões para administrar os bens que despencavam febrilmente das ma-
nufaturas. O espaço doméstico da classe média estava abarrotado como
1 \
nunca de móveis, relógios, espelhos, quadros, animais empalhados, or- l
. ·,

namentos, armas e uma miríade de bugigangas. Os novelistas vitorianos


davam testemunho da estranha proliferação de mercadorias que pare-
·-1 !~

ciam ter vida própria, e navios enormes carregados de ninharias e ber- d


loques faziam seu comércio entre os marcados coloniais da África, do .·J•
Oriente e das Américas1• .1
A nova economia criou um alvoroço não só das coisas, mas também ;}
•·,

dos signos. Como afumou Thomas Richards, se todas essas novas mer- .1
cadorias tinham de ser administradas, seria preciso encontrar um siste- i ..
ma unificado de representação cultural. Richards mostra como, em 1851, í
a Grande Exposição no Palácio de Cristal serviu como monumento a f
un1a nova forma de consumo: "O que a primeira exposição anunciava
com tamanha intimidade era a completa transformação da vida coletiva 1
1
e privada num espaço para a exibição espetacular das mercadorias"4 • 1
1r . . .
,
•'1
1
1. Karl Marx, "Commodity Fctishism", in Capital (Nova York: Vintage Books, 1977, vol. 1),
p. 163. 1l
2. Ver a excelente análise de Thomas Richards, 1ht Commodity Culturt ofVictorian Britain:
,1dvtrtising and Spmadt, 1851-1914 (Londres: Verso, 1990), especialmente a Introdução e J
o capírulo 1. 1
!
3. Ver a análise de David Simpson sobre o fetichismo nos romances cm Fttishism and Ima-
~ ·..
4.
gination: Did:em, Nfdvilfe, Conrad (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1982).
R.ich~rds, 1he Commt>dity Cullure... , p, 72.
.l. -··
i;,

308
O imptrio do sabonu, - 'l{etísmo m,rcantil, propaganda impuial

Como um "laboratório semiótico da teoria do valor trabalho", a Expo-


sição 1\.1undial mostrou de uma vez por todas que o sistema capitalista
não só tinha criado uma forma dominante de troca, mas também estava
no processo de criar uma forma dominante de representação que a
acompanhasse: o panorama voyeurista do excedente como espetáculo.
Ao exibir mercadorias não só como coisas, mas também como sistema
organizado de imagens, a Exposição Mundial ajudava a dar forma "a
uma nova espécie de ser, o consumidor, e a uma nova espécie de ideo-
logia, o consumismo">. Nascia o consumo cm massa do espetáculo da
mercadoria.
A propaganda vitoriana revela, porém, um paradoxo, pois, como for-
..• ma cultural a quem fora atribuída a defesa e o marketing exterior dessas
., distinções fundadoras da classe média - entre privado e público, traba-
lho pago e não pago - , a propaganda desde a saída também começou a
confundir essas distinções. A propaganda trouxe os signos íntimos da
domesticidade (crianças no banho, homens se barbeando, mulheres cm
.,. corpetes, empregadas levando o drinque da noite) para o domínio pú-
blico, colando cenas de domesticidade cm muros, ônibus, vi trines e qua-
dros de anúncios. Ao mesmo tempo, levava cenas do império a cada
canto do lar, imprimindo imagens da conquista colonial em cai..xas de
sabão, caixas de fósforos, latas de biscoitos, garrafas de uísque, latas
de chá e barras de chocolate. Traficando promíscuamente através dos
limiares do público e do privado, a propaganda começou a subverter
uma das distinções fundamentais do capital mercantil, ainda que este
apenas começasse a existir.
Desde o princípio, além disso, a propaganda vitoriana Lomuu forma
explícita em torno da reinvenção da diferença racial. O kitsch mercantil
tornou possível, como nunca antes, o marketing de massa do império
como sistema organizado de imagens e atitudes. O sabão florescia não
:• só porque criara e preenchera um vazio espetacular no mercado domés-
' tico, mas também porque, corno mercadoria doméstica barata e portátil,

5. Idem, op. cit., p. 5.


Couro impaial

podia persuasivamente mediar a poética vitoriana da higiene racial e do


progresso imperial.
O racismo mercantil se distinguiu do racismo científico por sua ca-
pacidade de expandir-se para além da elite letrada e proprietária através
do marketing do espetáculo da mercadoria. Se, desde os anos 1850, o ra-
cismo científico saturou as revistas antropológicas, científicas e médicas,
e os livros de viagens e romances, essas formas culturais eram ainda limi-
tadas p or classe e inacessíveis à maioria dos vitorianos, que não tinham
os meios nem a educação para ler ta] material. O kitsch imperial como
espetáculo do consumidor, em contraste, podia empacotar, mercadejar e
distribuir o racismo evolucionista numa escala até então inimaginável.
Nenhuma forma preexistente de racismo organizado fora capaz de al-
cançar massa tão grande e diferenciada do povo. Assim, enquanto as
mercadorias domésticas era.m mercadejadas através de um apelo ao ja-
cobinismo imperial, o próprio jacobinismo mercantil ajudou a reinven-
tar e manter a unidade nacional britânica cm face da crescente compe-
tição imperial e da resistência colonial. O culto da domesticidade passou
a ser indispensável para a consolidação da identidade nacional britânica,
e no centro do culto doméstico estava a simples barra de sabão6 •
No entanto, o sabão não tem história social. Como ele pertence pro-
positadamente ao reino feminino da domesticidade, o sabão é visto
como além da história e além da política propriamente dita7. Iniciar uma
história social do sabão, então, é recusar-se, cm parte, a aceitar o apa-
gamento do valor doméstico das mulheres sob o capitalismo imperial.

6. Em 1889, um anúncio do sabão Sunlight mostrava a figura feminizada do nacionalismo


britãnico, Brita1111ia, sobre uma colina e exibindo a P. T. Bamum, o famoso administrador
e empresário do circo do espetáculo mercantil, uma enorme fábrica de sabão Su11/igl1t que
se estendia ~ frente deles. Orgulhosamente, Britannia proclama que a manufatura do
sabão Sunlight é •o maior espc1:iculo da Terra#. Ver a excelente 2n:llise de Jennifer Wickc
sobre P. T. Bamum cm Adv"tiling Fi(fion: Literatur~, Advutiummt and Soâal Rmdi11g
(Nova York: Columbia University Press, 1988).
7. Ver Timothy Burkc, -Np.macira Th:11 I Loved': Commoditization, Consumption and
the Social History of Soap in Zimbabwe", 1Ju Soánies ofSouthun A/rira;,, thc rif• and
20'1 Cmturia: Colluted Scminar Paf'"1, n• 42, ,•oi. 17 (Londres: Insli1u1c of Common-
wealth Srudics, 1992), pp. 195-216.

JIO
O implrilJ d1J saór,nete - '7?.acismo mercantil e propaganda imperial

Não se pode esquecer, além disso, que a história das tentativas europeias
de impor uma economia mercantil às culturas africanas é também a
história das diversas tentativas africanas de recusar ou de transformar
. ' o fetichismo mercantil europeu de modo a satisfazer suas necessidades.
'
1 . A história do sabão revela que o fetichismo, longe de ser uma propensão
t ·- quintessencial africana, como afirmava a antropologia do século XIX,
fj era central para a modernidade industrial, habitando e mediando as
incertas zonas liminares entre domesticidade e indústria, metrópole e
império.
!

l SABÃO E O ESPETÁCULO MERCANTIL
1

l
1 Antes do fim do século XIX, a lavagem das roupas de vestir e de cama
era feita na maior parte dos lares apenas uma ou duas vezes por ano em
1 grandes reuniões comunais, usualmente em público em regatos ou rios8•
l' ·"'
~anto a lavar o corpo, pouco tinha mudado desde os tempos em que a
1 ~'(.
Rainha Elizabcth I se distinguia pela frequência com que se lavava: "re-
1
l gularmente a cada mês, precisasse ou não"9 • Nos anos 1890, porém, as
.
' vendas de sabão estouraram, os vitorianos consumiam 260 mil toneladas
l 1
de sabão por ano, e a propaganda surgira como forma cultural central do
( ;:
1 • capitalismo mercantil'º.
•! ~ Antes de 1851, a propaganda praticamente não existia. Como forma
l
l comercial, era em geral vista como confissão de fraqueza, uma espécie de
lamentável último recurso. A maioria dos anúncios se limitava a peque-
l nos avisos nos jornais, panfletos baratos e cartazes. Em meados do sécu-

l
1
S. Leonorc Davidoít e Catherine Hall, Family Fortunes: /11/m and Hómm of the English
J\1idd!t Class (Londres: Routledge, 199i).
9. David T. A. Lindsey e Geoffrey C. Bamber, SMp-Making. Past and Prnmt, 1876-1976
(Nottingham: Gerard Brothers Ltd., 1985), p. 34.
10. Idem, op. cit., p. 38. Quão profundamente a relação entre sabão e propaganda acabou
misturada na memória popular se vê cm expressões como "nap opera" [equivalente :1
nossas novelas de rádio ou TV]. Para histórias de propaganda, ver também Blanche
B. EUiott, A Hist1Jry ofEnglish Advertísing (Londres: Business Publications Ltd., 1962); e
T. R. Nevctt, //dvertising in Britain: A Hútory (Londres: l lcinc:111ann, 1982).

Jll
Couro imptrial

lo, entretanto, os fabricantes de sabão foram pioneiros no uso da propa-


ganda ilustrada como parte central da política do negócio.
O ímpeto inicial para a propaganda do sabão veio do lado do impé-
rio. Com o florescimento do algodão imperial nas plantações escravistas
veio o excedente de peças baratas de algodão, ao lado do crescente poder
de compra de uma classe média que pela primeira vez podia consumir
tais bens cm grandes quantidades. De modo semelhante, as fontes ba-
ratas de óleo de palma, coco e sementes de algodão se multiplicavam nas
planta',=ôt:s impt:riais da África Ocidental, da Malásia, Ceilão, Fiji e
Nova Guiné. À medida que rápidas mudanças na tecnologia de fabrica-
ção do sabão aconteciam na Grã-Bretanha depois do meio do século,
surgia a perspectiva de um grande mercado doméstico de sabonetes, que
até então tinham sido um llLxo só acessível à classe mais alta.
A competição econômica com os Estados Unidos e com a Alemanha
criou a necessidade de uma promoção mais agressiva dos produtos bri-
tânicos e levou às primeiras inovações na propaganda. Em 1884, ano da
Conferência de Berlim, foi vendido o primeiro sabonete embalado sob
uma marca. Esse pequeno evento significou uma grande transformação
no capitalismo, quando a competição imperial fez surgir os monopólios. (

Daí em diante, itens anteriormente indistinguíveis entre si (sabão ven-


dido simplesmente como sabão) passariam a ser comercializados por sua
marca corporativa (Pears, Monkey Brand etc.). O sabão veio a ser uma
das primeiras mercadorias a registrar a mudança histórica de miríades
de pequenas companhias aos grandes monopólios imperiais. Nos anos
1870, centenas de pequenas fábricas de sabão comercializavam o novo
negócio da higiene, mas no fim do século, o comércio era monopolizado
por dez grandes companhias. ·l
A fim de administrar o grande show do sabão, surgiu uma nova espé-
cie de publicitários agressivamente empreendedores, dedicados a bene- ·1
ficiar cada produto caseiro com um halo radiante de encanto imperial e
de potência racial. O agente de propaganda, como o burocrata, desem- ·1
penhava um papel vital na expansão imperial do comércio e.xterior. Os -~ .
propagandistas chamavam a si mesmos de "construtores do império" e ...
se exaltavam com "a responsabilidade da missão histórica imperial".

312
O implr io do sabonete - 'R.f!dsmo mtr,anr il, prtJpaganda imptrial

Disse um: "Ainda mais que o sentimento, o comércio une as porções


separadas no oceano do império. Qyem quer que aumente os interesses
comerciais reforça todo o tecido do império"". O sabão foi creditado não
só pela salvação moral e econômica da "grande sujeira" britânica, mas
também pela encarnação mágica do ingrediente espiritual da própria
missão imperial.
Num anúncio do sabão Pears, por exemplo, um negro varredor de
carvão e implicitamente racializado segura nas mãos um objeto oculto,
que brilha. Luminosa por sua própria radiação interna, a simples barra
de sabão brilha como um fetiche, pulsando magicamente com ilumina-
ção espiritual e grandeza imperial, prometendo aquecer as mãos e os
corações dos trabalhadores em todo o globo11• A marca Pears, em parti-
..
• cular, veio a ser intimamente associada com uma natureza purificada
i:-'
1..
magicamente limpa da indústria poluente (gatinhos saltitantes, cachor-
t ros fiéis, crianças enfeitadas de flores) e uma classe trabalhadora purifi-
cada magicamente limpa do trabalho poluente (empregadas sorridentes
ern engomados aventais brancos, meninas de rostos rosados e ajudantes
de cozinha esfregados)'3•
De qualquer maneira, a obsessão vitoriana com o algodão e a limpe-
za não era simplesmente um reflexo mecânico do e.xcedente econômico.
Se o imperialismo extraía grande quantidade de algodão barato e óleos
para sabão do trabalho colonial forçado, o fascínio da classe média vito-
riana com corpos limpos e brancos e roupas limpas e brancas derivava
não só da exploração desenfreada da economia imperial, mas também
dos domínios do ritual e do fetiche.
O sabão não floresceu quando a efervescência imperial estava no
..{ pico. Ele surgiu comercialmente numa era de crise iminente e calamida-
de social, servindo para preservar, através do ritual fetichista, as frontei-

.. 11. Apud Diana e Gcoffrcy H indlcy, Adwrtising in J/'i(forian England, 1837-1901 (L ondres:
v\':1yland, 1972), p. 117.
~.: 12. Mikc D cmpsey (org.), B11bbl,s: Early Ad'IJ(rtising ArrfrtJm P,ars Lrd. (Londres: Fontana,

i 1978).
IJ. Laurcl Bradlcy, "From Eden to Empirc: John Evcrett Millais' Chcrry Ripe", Vi(forian
Srr,dits 34, • {t99,), pp, 179· 203. Ver também .l'vlid,~cl Dcmpscy, Ba/J/Jl,s...

313
Couro impaial

ras incertas de identidade de classe, gênero e raça numa ordem social


que se sentia ameaçada pelos fétidos eflúvios dos cortiços, a fumaça das
indústrias, a agitação social, sublevação econômica, competição imperial
e resistência anticolonial. O sabão prometia a salvação e a regeneração
espiritual através do consumo de mercadorias, um regime de higiene
doméstica que poderia restaurar a potência ameaçada do corpo poütico
e da raça imperiais.

A CAMPANHA DA PEARS

Em 1789, Andrew Pears, filho de fazendeiro, deixou sua aldeia de Meva-


gissey, em Cornish, para abrir uma barbearia em Londres, seguindo a
tendência de migração demográfica do campo para a cidade e o movi-
mento econômico da terra para o comércio. Em sua loja, Pears fazia e
vendia os pós, cremes e dentifrícios usados pelos ricos para assegurar a
pureza alabastrina de sua aparência. Para a elite, uma pele queimada de
sol por trabalho manual era o estigma visível não só da classe obrigada a
trabalhar à intempérie para ganhar a vida, mas também de raças remotas
marcadas pelo desfavor divino. Desde o início, o sabão tomou forma
como tecnologia de purificação social, inextricavelmente ligado à semió-
tica do racismo imperial e enegrecimento da classe.
Em 1838, Andrew Pears se aposentou e deixou a firma nas mãos de
seu neto, Francis. A seu tempo, a filha de Francis, Mary, casou-se com
Thomas J. Barratt,'quc se tornou sócio de Francis e assumiu o jogo de
modelar mn mercado de classe média para o sabonete transparente.
Barratt revolucionou a Pears planejando uma série de brilhantes cam-
panhas de propaganda. Inaugurando uma nova era da propaganda, ele
ganhou fama duradoura, na iconografia familiar da descendência mas-
culina, como "pai da propaganda". O sabão encontrou, assim, seu destino
industrial pela mediação do parentesco doméstico e a preocupação pe-
culiarmente vitoriana com o patrimônio.
Através de uma série de expedientes e inovações que situaram a Pears
no centro da cultur(I mercantil britânica que surgia, Barratt mostrou um
perfoito entendimento do fetichismo que estrutura toda propaganda.

314
O implrio do sabo,uu - 'R.gdsmo mer,antil, propaganda imperial

Importando um quarto de milhão de moedas de cêntimo francesas,


Barratt as fez estampar com o nome Pears e as pôs em circulação -
gesto que ligava maravilhosamente o valor de troca com o nome ela
marca corporativa. O expediente funcionou admiravelmente, trazendo
muita publicidade para o Pears e tal alarde público que um Ato do Par-
lamento foi passado declarando ilegais todas as moedas estrangeiras. As
fronteiras da moeda nacional se fechavam em torno da doméstica barra
de sabão.
Georg Lukács observa que a mercadoria está no limiar entre cultura
e comércio, confundindo as fronteiras supostamente sacrossantas entre
estética e economia, dinheiro e arte. Em meados dos anos 1880, Barratt
projetou urna peça de impressionante transgressão cultural que exem-
plifica o insight de Lukács e fixou a fama do Pears. Barratt comprou o
. quadro Bubbles [Bolhas] (originalmente intitulado A Child's 1'Vorld [O
t mundo de uma criança]), de Sir John Everett Millais, e inseriu nele uma
l~ ),
barra de sabão gravada com a totêmica palavra Pears. De um só golpe,
ele transformou a obra de arte do pintor mais conhecido da Grã-Breta-
1
, 1 ' nha numa mercadoria produzida cm massa associada na visão do pú-
{
blico ao Pear/- 4 • Ao mesmo tempo, reproduzindo cm massa o quadro
1
.· corno cartaz, Barratt tirou a arte do domínio da propriedade privada da
t! õi.
elite e a levou para o domínio de massas do espetáculo mercantil'5•
.. Na propaganda, o eixo da posse se desloca para o eixo do espetáculo.
l • A principal contribuição da propaganda para a cultura da modernidade
1
.l .
1
foi a descoberta de que, manipulando o espaço semiótico cm torno da
mercadoria,o inconsciente de um espaço público também podia ser ma-

l{
l ~
nipulado. A grande inovação de .liarratt foi investir enormes somas de
dinheiro na criação de um espaço estético cm torno de uma mercadoria.
O desenvolvimento da tecnologia do cartaz e da impressão tornou pos-

l
14. Barratt gastou 2.200 libras no quadro e 30 mil libras na produção cm massa de milhões
de reproduções individuais do quadro. Nos anos 1880, Pean gastava entre 300 mil e 400
mil libras só cm propaganda.
15. Furioso com a poluição do sacrossanto reino da arte pela economia, o mundo da arte

..
·1 I~·
~
atacou lVlillais (publicamente e não cm pri\-ado) por traficar no sórdido mundo do co-
mércio.
,
..
315
Couro imp~rial

sível a reprodução en1 massa de tal espaço cm torno da imagem de uma


mercadoria16 •
Na propaganda, aquilo que é rejeitado pela racionalidade industrial
(ambivalência, sensualidade, azar, causalidade imprevisível, tempo múl-
tiplo) é projetado no espaço da imagem co1no repositório do proibido.
A propaganda se funda cm fluxos subterrâneos de desejo e tabu, 1nani- -~
pulando o investimento do dinheiro excedente. A distinção da Pears,

rapidament~ emulada por várias outras fabricantes de sabão, inclusive
Moukey BraT1d e Sunlight, e por incuntávci:; anunciantes, era inve:;tir o
espaço estético em torno da mercadoria doméstica do culto comercial
·:! :
do império. ;
I
O IMPÉRIO DO LAR
A racialização da domesticidade
..
t
• 1

O sabão

<2!iatro fetiches aparecem ritualmente na propaganda do sabão: o pró-


prio sabão, roupas brancas (especialmente aventais), espelhos e macacos.
Um anúncio típico do Pears mostra uma criança negra e uma branca
juntas no banheiro (Figura 5.1). O banheiro vitoriano é o santuário mais
íntimo da higiene doméstica e, por extensão, o templo privado da rege-
neração pública. O sacramento do sabão oferece uma alegoria de refor-
ma, pela qual a purificação do corpo doméstico vira uma metáfora da
regeneração do corpo político. Nesse anúncio particular, o menino negro
e:;tá :;entado no banho, com os olhos esbugalhados para a água como
se fosse um elemento estranho. O menino branco, com um avental
branco - fetiche familiar de pureza doméstica - se inclina benevolen-
te sobre seu irmão "inferior", abençoando-o com o precioso talismã do
progresso racial. O mágico fetiche do sabão promete que a mercadoria
pode regenerar a Família do Homem lavando da pele o estigma da de-
generação racial e de classe.

16. Ver Jennifc:r Wicke,.lldwrtising Fiaion ...• p. 70.

316
O império do saóonue - 'R.gcismo mer,antil t propaganda imperial

,,,.
:;•
..,..
~

Figura 5.r - Ra;a t o wlto da domesticidade.

A propaganda de sabão oferece uma alegoria do progresso imperial


como espetáculo. Nesse anúncio, o lugar imperial que chamo de tempo
·,
panóptico (o progresso consumido como espetáculo a partir de um
ponto de invisibilidade privilegiada) entra no domínio da mercadoria.
No segundo quadro, logo abaixo, o menino negro saiu do banho e o
' menino branco mostra-lhe seu olhar surpreendido no espelho. O corpo
r.' do menino negro se tornou magicamente branco, mas seu rosto -
para os vitorianos o lugar da individualidade e da autoconsciência ra-
'.'
•,
cional - continua teimosamente negro. O 1ncnino branco aparece,
assim, como agente da história e o herdeiro masculino do progresso,
mostrando o reflexo de seu irmão "inferior" no espelho europeu da au-
toconsciência. No espelho vitoriano, o menino negro testemunha seu
destino predeterminado de metamorfose imperial, mas continua um
.. híbrido racial passivo, parte branco, parte negro, levado à beira da ci-
vilização pelos fetiches mercantis gêmeos do sabão e do espelho. O
anúncio exibe um elemento crucial da cultura mercantil vitoriana
tardia: a transformação metafórica do tempo imperial em esparo de

317
Couro imperial

consumo - o progresso imperial consumido num relance como espe-


táculo doméstico.

O macaco

A metamorfose do tempo imperial em espaço doméstico é captada da


maneira mais vívida pela campanha de propaganda do sabão Monkey
Brand. Durante os anos 1880, a paisagem urbana da Grã-Bretanha vito-
riana estava abarrotada da imagem do macaco fetiche desse sabão. O
macaco com sua frigideira e uma barra de sabão estava pendurado em
toda p arte, cm tapumes e ônibus, cm muros e vitrines, promovendo o "I

sabão que prometia eliminar magicamente o trabalho doméstico: "Sem


pó, sem sujeira, sem trabalho". O sabão Monkey Brand prometia não só
regenerar a raça, mas também apagar magicamente o espetáculo impró-
prio d o trabalho manual das mulheres.

Figura 5.2 - O l!SJ>aro ana.rõnico: limiar dl! domutiddade e mercado.

318
O implrio do sabonue - 'R.gâsmo mercantil e propaganda impaial

Num anúncio exemplar, o macaco fetiche do sabão senta-se de per-


nas cruzadas na soleira de uma porta, limiar entre a domesticidade pri-
vada e o comércio público - a encarnação do espaço anacrônico (J:"'i-
gura 5.2). Vestido como um ajudante de realejo num esfarrapado terno,
camisa branca e gravata, mas com improváveis mãos e pés humanos, o
macaco estende uma frigideira para receber a esmola dos passantes. No
capacho à sua frente, aparece uma grande barra de sabão, acompanhada
de um placar onde se lê: ".lvleu próprio trabalho". Sob todos os aspectos,
o macaco é um híbrido: não inteiramente macaco, não inteiramente
humano; parte pedinte, parte cavalheiro; parte artista, parte publicitá-
rio. A criatura habita a fronteira ambivalente entre selva e cidade, pri-
vado e público, o doméstico e o comercial, e oferece como seu trabalho
manual um fetiche que é tanto arte quanto mercadoria.
Os macacos habitam o discurso ocidental nos extremos do limite
social, marcando o lugar de uma contradição do valor social. Como ar-
j gumentou Donna Haraway: "o corpo primata, como parte do corpo da
''( natureza, pode ser lido como um mapa do poder"1i. A primatologia,
..
: í
1
j
insiste Haraway, é um discurso ocidental [ ...] uma ordem política que
! funciona pela negociação dos limites alcançados pelo ordenamento
'l
.l das diferenças"18 • Na iconografia vitoriana, a recorrência ritual da figura
' i' do macaco é eloquente de uma crise no valor, donde a ansiedade com
.
1
i' ...... !J.,
't
a possível ruptura das fronteiras. O corpo primata se tornou um espaço
simbólico de reordenamento e policiamento dos limites entre os hu-
j
manos e a natureza, mulheres e homens, famüia e política, império e
metrópole.
O imperialismo símio também se ocupa do problema da represenca-
ção da mudança social. Projetando a história (e não o destino, ou a von-
tade de Deus) sobre o teatro da natureza, a primatologia fez da natureza
o álibi da violência política e pôs nas mãos da "ciência racional" a auto-
1 I

1
l'
; 17. Donna Haraway, Prima/e Yisions: Gmder, Ra,e and Nature in the World ifModem Sâen,e
(Londres: Routledgc, 1989), p. 10.
,s. Ibidem.
Couro imperial

ridade para sancionar e legitimar a mudança social. Aqui, "a cena das
origens", argumenta Haraway, "não é o berço da civilização, mas o berço
da cultura [ ...] a origem mesma do social, especialmente no ícone carre-
gado de sentido da familia"'9 .A primatologia surge como um teatro para
negociar os perigosos limites entre a família (enquanto natural e femi-
nina) e o poder (enquanto político e masculino).
O aparecimento de macacos na propaganda de sabão assinala um
dilema: como representar a domesticidade sem representar mulheres no tra-
balho. A casa vitoriana de classe média se estruturava em torno da con-
tradição fundamental entre o trabalho doméstico pago e o não pago das
mulheres. Como as mulheres eram afastadas do trabalho pago em mi-
nas, fábricas, lojas e negócios para o trabalho não pago no lar, o trabalho
doméstico se tornou economicamente subestimado, e a definição de
classe média sobre a feminil.idade figurava a mulher "apropriada" como
a que não trabalhava por ganhos. Ao mesmo tempo, um cordão de iso-
lamento de degeneração racial era lançado em torno daquelas mulheres
que trabalhavam pública e visivelmente por dinheiro. O que não podia
ser incorporado na formação industrial (o valor econômico doméstico
das mulheres) era relegado para o domínio inventado do primitivo, e
assim, disciplinado e contido.
Os macacos, em particular, eram utilizados para legitimar os limites
, ' .
sociais co1no éditos da natureza. Fetiches divididos entre a natureza e a
cultura, os macacos eram vistos como aliados das classes perigosas: os
pobres andarilhos: os famintos irlandeses, os judeus, as prostitutas, os
negros empobrecidos, a classe trabalhadora, os criminosos, os insanos, as
mineiras e empregadas domésticas, todos "simiescos", que eram vistos
coletivamente como habitando o limiar da degeneração racial. O!iando
Charles K.ingsley visitou a Irlanda, por exemplo, lamentou: "Estou as-
sombrado pelos chimpanzés que vi ao longo de centenas de milhas de
um campo horrível [ ...] Mas ver chimpanzés brancos é terrível; se fos-

t? Id.-m, op. cit., pp. 10-1.

320
O império do saóoneu - 'R.g<ismo mer,a11til e propaganda imperial

sem negros, não se sentiria tanto, mas suas peles, exceto onde queimadas
pela exposição, eram tão brancas como as nossas":º.
No anúncio da Monkey Brand, a assinatura do macaco no trabalho
("Meu próprio trabalho") assinala uma dupla negação. O sabão é mas-
culinizado, figurado como produto masculino, enquanto o trabalho (cm
sua maioria feminino) dos trabalhadores nas enormes fábricas insalu-
bres é negado. Ao mes1no tempo, o trabalho de transformação social na
limpeza e esfrega de pias, panelas e pratos, de pisos e corredores do es-
paço do1néstico vitoriano desaparece - redefinido con10 espaço ana-
crônico, primitivo e bestial. As criadas desaparecem e no lugar delas
aparece um híbrido masculino fantasma. Assim, a domesticidade -
vista como a esfera mais afastada do mercado e do tumulto masculino
do império - toma forma em torno das ideias inventadas do primitivo
e do fetiche da mercadoria.
Na cultura vitoriana, o macaco era um ícone da metamorfose, servin-
do perfeitamente ao papel liminar do sabão em mediar as tran:;forma··
ções da natureza (sujeira, lixo e desordem) em cultura (Limpeza. raciona-
lidade e indústria). Como todos os fetiches, o macaco é uma imagem
' contraditória, encarnando a esperança do progresso imperial pelo co-
'
mércio e ao mesmo tempo fazendo visíveis os profundos temores vi-
,.
I torianos em relação à militância urbana e à desordem colonial. O sabão-
macaco tornou-se emblema do progresso industrial e da evolução
imperial, encarnando a dupla promessa de que a natureza podia ser
redimida pelo capital consumidor e que o capital consumidor podia
ser garantido pela lei natural. Ao mesmo tempo, porém, o sabão-macaco
era eloquente do grau em que o fetichismo estrutura a racionalidade
industrial.

20 Charles Kingsley, carta à sua mulher, 4 de julho, 1860, in Charlu Kingsley: His Letters and
Memories ofHis Lift, Francis E. Kingslcy (org.) (Londres: Henry S. King & Co., 1877), p.
107. Ver também Richard Keamey (org.), 'lhe lrish. Mind (Dublin: \-Volfhound Press,
1985); L. P. Curtis Jr., Anglo-Saxom and Ct:!ts: A Study ofAnti-lrish Prejudiu in Vfrtorian
England {Bridgcport: Confcrcnce on British Srudics of Univcrsity of Bridgcport, 1968);
and Seamus Dcanc, "Civilians and Barbarians", lrelandr Fidd Day (Londres: Hutchin·
son, 1985), pp. 33-42.

321
Couro imperial

O espelho

Na maioria dos anúncios da Monkey Brand, o macaco segura uma frigi-


deira, que é também um espelho. Num anúncio semelhante do sabão
Broolu, uma beleza feminina clássica está de pé com os brancos braços à
mostra e vestida de branco, sua pele e roupas como epítomes do valor de
exibição da pureza sexual e do lazer doméstico, enquanto da cornucópia
que ela segura flui um grotesco eflúvio de anjinhos fantasmas. Cada fe-
tiche híbrido encarna a dupla imagem vitoriana da mulher como "anjo .
)

na sala, macaca no quarto", bem como da iconografia racial do progresso


evolutivo de macaco a anjo. O tempo histórico, novamente, é captado
como espetáculo doméstico, misteriosamente refletido no fetiche da fri-
gideira/espelho.
Nesse anúncio, o sabão_Brooke oferece uma alquimia do progresso
econômico, prometendo fazer "cobre parecer ouro". Ao mesmo tempo, a
ideia iluminista de um tempo linear e racional que leva à perfeição an-
gélica encontra uma antítese no outro tempo do trabalho doméstico,
regido pelos mistérios da sujeira, da desordem e do tempo não progres-
sivo do fetiche. Irrompendo nas margens da moldura racional, o anúncio
exibe as consequências irracionais da ideia de progresso. O espelho/fri-
gideira, como todos os fetiches, expressa visivelmente uma crise no valor,
mas não pode resolvê-la. Pode apenas encarnar a contradição, congelada
como espetáculo mercantil, atraindo o espectador cada vez mais para o
consumismo.
Os espelhos brilham e cintilam na propaganda de sabão, como cm
geral na cultura do kitsch imperial. Nos lares da classe média vitoriana,
as criadas lustravam e poliam cada superfície de metal e de madeira até
o brilho de um espelho. Trincos, suportes de lâmpadas, corrimãos, me-
sas e cadeiras, espelhos e relógios, facas e garfos, chaleiras e panelas, sa-
patos e botas, tudo era polido até brilhar, refletindo em sua superfície
outros objetos-espelho, uma infinidade de cristalinos espelhos dentro de
espelhos, até que o interior da casa fosse todo composto de superfícies
brilhantes, um labirinto de reflexos. O espelho virou a epítome do feti-
chismo da mercadoria: apagando tanto os signos elo trabalho doméstico

322
O implrio do sabomu - '"R.gdsmo mercantil e propaganda imperial

quanto as origens industriais das mercadorias domésticas. No mundo


doméstico dos espelhos, os objetos se multiplicam sem intervenção hu-
mana aparente numa promíscua economia de autogeração.
Por que a atenção à superfície e ao reflexo? O polimento era dedica-
do, e1n parte, ao policiamento dos limites entre o privado e o público,
removendo qualquer traço do trabalho, substituindo a evidência desor-
denada das trabalhadoras pela substituição da superfície como verniz, o
..l espetáculo da mercadoria con10 superfície, a casa arrumada como teatro
'
- : ~r
de limpas superfícies para exibição de mercadorias. O espelho/ merca-
l ,
doria devolve o valor do objeto como exibição, espetáculo a ser consu-
mido, admirado e exposto por sua capacidade de encarnar um duplo
valor: o valor de mercado do homem e o status de exibição da mulher. A
casa existia para exibir a feminilidade como portadora apenas de valor
de exibição, além do mercado e, portanto, por decreto natural, além do
t
poder político.
Um anúncio do creme para móveis Stephensan mostra uma criada
. ,.
impecável, de quatro, sorrindo de um chão tão limpo que espelha seu
reflexo. O creme garante "não exibir marcas de dedos". Um sabão supe-
rior não deve deixar manchas denunciadoras, nenhuma impressão de
trabalho feminino. Enquanto as criadas vitorianas perdiam a indivi-
dualidade nos nomes genéricos que seus empregadores lhes impunham,
também o sabão apagava as marcas do trabalho das mulheres na história
da classe média.

A DOMESTICAÇÃO DO IMPÉRIO

Por volta do fim do século, um fluxo de quinquilharias invadira as casas


vitorianas. Heróis coloniais e cenas coloniais eram enaltecidos numa
série de mercadorias domésticas, de caixas de leite a garrafas de molho,
de latas de tabaco a garrafas de uísque, de biscoitos variados a pasta de
dentes, de caixas de balas a fermento em pó11 • Fetiches nacionais tradi-

21 Durante a Guerra dos Bôeres, as forças britânicas foram vistas como tendo sido valente·
,ncntc rcfor-.adas pela farinha de milho Johnston, pelo uísque Pattison e pelo chocol:ttc

32 3
Couro imperial

cionais como a bandeira, Britannia,John Buli e o agressivo leão eram


dispostos numa celebração reformada do espetáculo imperial (Figu-
ras 5.3-5.5). O império era visto como defendido por lronclad Porpoi-
se Bootlaccs [Cordões de sapato do boto] e sabão Sons of the Empire
[Filhos do império], enquanto Henry Morton Stanley acudiu ao res-
gate do Emin de Pasha abarrotado de enormes caixas de biscoitos
Huntley and Palmers.
A propaganda vitoriana tardia apresentava uma vista da África con-
quistada pelas mercadorias domésticas 21 • Na bruxuleante lanterna má-
gica do desejo imperial, chás, biscoitos, tabaco, latas de cacau e, acima de

Figura 5.3 - Britannia e a domesticidade. Figura 5.4 - Impmalismo nacional.

ao leite Fryc. Ver Robert Opie, Trading on tlu British lmage (Middlesex: Penguin, 1985),
para uma excelente colcçio de imagens de propaganda.
22 Num capitulo brilhante, Richards explora como a convicção imperial do explorador e
escritor Henry Mocton Stanley, de que ele tinha a missão de civilizar os africanos ensi-
nando-lhes o valor das mercadorias, *revela o grande papel que os imperialistas atribuíam
à mercadoria na propulsão e justificação da luta pela África". Richards, 1lu Commodity
Cultun... , p. UJ,

32 4
O império do sabontlt - 'Rgcismo mtr<antil t propaganda imptrial

f'.
t
.
1'
I'•
t,~,.
t;,.,
1,.
e:. Figura 5.5 - Fetichismo nacional
f.

rudo, sabão, vão à praia em margens distantes, marcham através das


selvas, subjugam levantes, restauram a ordem e escrevem a inevitável
lenda do progresso comercial na paisagem colonial. Num anúncio dos
biscoitos 1-/untley and Palmers, um grupo de homens coloniais senta no
meio de uma selva de engradados de biscoitos, tomando chá (Figura
5.6). Em direção a eles avança, hierática e aparentemente infindável,
uma procissão de elefantes carregados com mais biscoitos e coloniais,
,,. trazendo a hora do chá para o coração da selva. O criado nesse anúncio,
"
(
como na maioria dos outros, é um homem. Duas coisas acontecem cm
.. tais imagens: as mulheres desaparecem do império e os colonizados são
feminizados por sua associação com o serviço doméstico.
,' .
Imagens liminares de oceanos, praias e litorais são repetidas cm
'.. anúncios de limpeza da época. Um anúncio exemplar do alvejante Chlo-
rinol Soda mostra três meninos numa caixa de soda velejando nurn oce-
ano fantasma banhado pela radiação da alvorada imperial (Figura 5.7).
Numa cena nas cores vermelha, azul e branca da Union Jadi [bandeira
inglesa], dois meninos negros orgulhosamente seguram no alto suas cai-
xas de Chlorinol. Um terceiro menino, o híbrido racial familiar dos
anúncios de limpeza, presumivelmente já aplicou o alvejante, pois sua
pele aparece cm branco fantasmal. Na vela vermelha que repete o ver-

1
f
' 325
Couro impaial

melho da caixa de alvejante lê-se a legenda da pretensa redenção comer-


cial dos povos negros na arena do império: "Usaremos o Chlorinol e se-
remos como o negro branco".

Figura 5.6 - O chá chega à selva.

Figura 5.7- Ttmpo panóptico:progrtsso racial num rdanu.

O anúncio exemplifica vividamente a lição de Marx segundo a qual


a mística do fetiche da mercadoria reside não em seu valor de uso, mas
em seu valor de troca e em sua potência como signo: "Na medida em
O impâio do sabon,u - 'l(ecismo m,rrantil t propaganda impuial

que [a mercadoria] é um valor em uso, não há nada misterioso em rela-


ção a ela". Para os três meninos nus, o alvejante de roupas é menos que
útil. Em lugar disso, o agente branqueador promete uma alquimia de
elevação racial pelo contato histórico com a cultura mercantil. O poder
transformador da missão civilizadora está estampado na vela da caixa-
bote como caráter objetivo da própria mercadoria.
Mais que um mero símbolo do progresso imperial, a mercadoria do-
méstica se torna agente da própria história. A mercadoria, abstraída do
contexto social e do trabalho humano, faz o trabalho civilizador do im-
pério, enquanto a mudança radical é figurada como mágica, sem proces-
so ou atuação social. Donde a proliferação de anúncios mostrando má-
gica (Figura 5.8). De maneira semelhante, anúncios de limpeza, como o
do Chlorinol, prenunciam o "antes e depois" dos anúncios de beleza do
século XX, gênero crucial dirigido amplamente às mulheres, cm que o
poder invocador do produto para a alquimia da mudança é tudo o que
reside entre o "antes e depois" temporal da transformação corporal das
mulheres.


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Figura 5.8-A mdgica mer,antil e o desapar"imento do trabalho ftmin ino.

32 7
(ouro impaial

O anúncio do Ch!orinol expõe uma divisão do trabalho por raça e


gênero. O progresso imperial de criança negra a "negro branco" é con-
sumido como espetáculo mercantil - como tempo panóptico. O satis-
feito e híbrido "negro branco" segura literalmente o leme da história e
direciona a mudança social, enquanto a alvorada da civilização banha
seu ccnho iluminado. As crianças negras têm valor de exibição si1nples-
mcnte como consumidores potenciais da mercadoria, presentes apenas
para manter a promessa do comércio capitalista e representar quão lon-
ge evoluiu o 111cuino branco - na iconografia do racismo vitoriano, a
condição da "selvageria" é idêntica à condição da infância. Como as mu-
lheres brancas, os africanos (tanto homens como mulheres) são figura-
dos não como agentes históricos, mas como molduras para a mercado-
ria, valorizados só para exibição. As trabalhadoras, tanto negras como
brancas, que gastaram tanta energia para alvejar os lençóis, camisas, ba-
bados, aventais, punhos e colarinhos das roupas imperiais, não aparecem
nunca. É importante notar que, na propaganda vitoriana, as mulheres
negras são raramente apresentadas como consumidoras de mercadorias,
pois, no saber imperial, elas estão muito atrás dos homens para serem
agentes da história. A domesticidade imperial, portanto, é uma domes- ,;
ticidade sem mulheres.
No anúncio do Chlorinol, a criação de valor social pelas mulheres
através do trabalho doméstico é deslocada para a mercadoria como po-
der próprio desta, inscrito cm modo de fetiche nos corpos dos meninos
como mctamorfóºse· mágica da carne. Ao mesmo tempo, a subjugação
militar, a coerção cultural e o banditismo econômico são transformados
cm processos domésticos benignos, tão naturais e saudáveis como o ato
de lavar. As manchas do passado desagradavelmente complexo e tenaz
da África e a inconveniência de valores econômicos e culturais alterna-
tivos são lavadas como a sujeira (Figura 5.7).
Incapazes de por si mesmos engendrar a mudança real, os homens
africanos figuram apenas como "mímicos", tomando emprestada a ex-
pressão melancólica de V. S: Naipaul, destinados simplesmente a maca-
quear a épica marcha branca do progresso cm direção ao autoconheci-
mento. Privados dos brancos trajes da divindade imperial, os meninos
.,
O implrio do saho,ute - w.ecismo mtr(antil t propaganda imptria/

do Chlorinol parecem tomar o fetiche literalmente, contentes em alvejar


suas peles. No entanto, esses anúncios revelam que, longe de ser uma
propensão africana, a fé no fetichismo era uma fé fundamental para o
pró?rio capitalismo.

O MITO DO PRIMEIRO CONTATO

Na virada do século, os anúncios de sabão encarnavam vividamente a


esperança de que a mercadoria, por si só, independentemente de seu
valor de uso, poderia converter outras culturas à "civilização". Os anún-
cios de sabão também encarnavam o que pode ser chamado de o mito do
primt!iro contato: a esperança de capturar, como espetáculo, o momento
puro do contato original fixado para sempre na superficie atemporal da
imagem. Em outro anúncio do Pears, um homem negro está sozinho
numa praia, examinando uma barra de sabão que pegou de um engrada-
do trazido de um naufrágio (Figura 5.9). O reclame anuncia nada menos
que "O nascimento da civili1.ação". A civilização nasce, implica n ima-
gem, no momento do primeiro contato com a mercadoria ocidental.
Simplesmente por tocar o objeto mágico, o homem africano é inspirado
pela história. Tem lugar uma metamorfose épica, quando o homem ca-
çador-coletor (o homem anacrônico) evolui instantaneamente para o
homem consumidor. Ao mesmo tempo, o objeto mágico produz uma
transformaç ão de gênero, pois o consumo do sabão doméstico é raciali-
zado como um ritual masculino de nascimento, com a mercadoria em
.
... forma de ovo como fértil talismã da mudança. Como as mulheres não

podem ser reconhecidas como agentes da história, é necessário que um
homem, e não uma mulher, seja o beneficiário histórico da coisa mágica,
} e que o nascimento do homem ocorra na praia e não no lar13•

23. Como observa Richards: "Cem anos antes, o na,io ao largo tcr· s:-ia preparado para es-
cravizar fisicamente o africano como objeto de troca; aqui, o objeto é incorpor:1-lo à ór-
bita da troca. Nos dois casos, esse momento liminar postula que o capitalismo depende
do mu ndo não capitalista, pois a superprodução endêmica do sistema capitalista só pode
continuar mandando mercadorias para áreas li minares, onde, p resumivelmente, seu v:uor
1
1, nio ser:i imediatamente :lpreciado". lochards, 77,, Commodity Culrurt.. . , p. 140.
,•·

'
32 9
Couro imptrial

Figura 5.9 - O mito do priwuiro contato.

Seguindo a iconografia racista da degeneração de gênero dos ho-


mens africanos, o homem é sutilmente fcminizado por seu papel como
exibição histórica. Sua vistosa pluma representa o que os vitorianos gos-
tavam de acreditar que eram as predileções fetichistas, femininas e de
gosto duvidoso dos homens africanos para decorar seus corpos. Thomas
Carlyle, em sua longa cogitação sobre as roupas, Sartor Resartus, observa,
por exemplo: "O primeiro desejo espiritual de um homem bárbaro é a
Decoração, como de fato ainda vemos entre as classes bárbaras em na-
ções civilizadas"••. As feministas exploraram como, na iconografia da
modernidade, os corpos das mulheres são exibidos para consumo visual,
mas pouco se disse sobre como, na iconografia imperial, os homens ne-
gros aparecem como espetáculos de exibição de mercadorias. Se, nas

24. Thomas Carlylc, Sarlor Resartus, in 1lu IVorh of1homas Carlyle (Londres: Chapman and
Hall, 1896-1899, vol. l), p. 30.

33º
O império do saóonrtt - 'R,ecismo mtr<antil, propaganda imperial

cenas situadas no lar vitoriano, as criadas são racializadas e retratadas


como molduras para exibição da mercadoria, em cenas de propaganda
situadas nas colônias, os homens africanos são Jeminizados e retratados
como molduras para a exibição das mercadorias. As mulheres africanas,
cm contraste, são tornadas virtualmente invisíveis. Suposições essencia-
listas sobre um "olhar masculino" universal debcam de lado muitas com-
plexidades históricas importantes.
Marx observou como, sob o capitalismo "o valor de troca de uma
mercadoria assuine uma existência independente"'5• Por volta do final
do século XIX, a própria mercadoria desaparece de muitos anúncios, e a
~
• assinatura corporativa, como encarnação do puro valor de troca no capi-
talismo monopolista, acha uma existência independente. Outro anúncio
do Pears mostra um grupo de dervbces sudaneses desgrenhados que se
• espantam diante de uma legenda cavada em branco na face da monta-
t•
• nha: o SABÃO PEARS É o MELHOR (Figura 5.10). A importância do anún-
! cio, como nota Richards, é sua representação da mercadoria como meio
1 mágico capaz de reforçar e ampliar o poder britânico no mundo colo-
!
t nial, mesmo sem o entendimento racional dos mesmerizados sudane-
1 ses,6. O que o anúncio revela propriamente é a própria fé fetichista dos
1• coloniais na magia das marcas para forjar o poder causal do império.
! ~ Num anúncio similar, as letras BOVRIL marcham corajosamente sobre
t1 um mapa colonial da África do Sul - o progresso imperial consumido
como espetáculo, como tempo panóptico (Figura 5.11). Numa ideia pro-
i1 mocional inspirada, a palavra foi reconhecida como designando os avan-
ços militares de Lorde Roberts através do país, reunindo, co1no se deter-
1
minado pela natureza, as lições simultâneas da dominação colonial e do
progresso da mercadoria. Nesse anúncio, o mapa colonial entra explici-
, tamente no reino do espetáculo mercantil.

25. l'vlarx, "Theories of Sucplus Value", apud G. A. Cohen, Karl 1\ltarx'; 1heory ofHistory: A
Diffrrenu (Princcton: Princcton Univcrsity Press, 1978), pp. 124-5.
26. Rkhards, 7he Cgmmgdity C:,/ture... , PP· 122-;.

33 1
Couro imperial

Figura 5.ro -A marca conquistadora.

THE EVENT THE YEAR.

.- How Lord Roberts wrote BOVRIL.


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n,.;. •••~••,- e. • . 1 e-• tt - _... ~ J ~ • .; •...:.,, •t Deffil,. . ...." " • •lh--'! ,,_... •
•• f • -, / lh"-'4-4 t.&.. M•I. Muu• '--"-tWC..
w._,.._. ~ 1&.e ~ ; . . .. 11.., 11-u~.. tL.t P.t_ , :. U.. s;.11 ......._ 11.. C... i. d,. ltk~-. ., ,_ .,._ ..
7.t ;,. lwU t...ld, _ . ••~lt •• ....__U,.uJ • i...,.... L,J.

Figura 5.rr - O progresso imperial como cspctd,ulo mercantil.

A poética da limpeza é uma poética da disciplina social. Rituais de


purificação preparam o corpo como campo de sentido, organizando flu-
xos de valor através do eu e da comunidade e demarcando limites entre

332
O implrio do saóonete - 'R.gdsmo mer,antil e propaga11da imperial

uma e outra comunidade. Rituais de purificação, todavia, podem tam-


bém ser regimes de violência e contenção. Povos que têm o poder de
invalidar os rituais de limites de outros povos demonstram, assim, a ca-
pacidade de impor violentamente sua cultura aos outros. Viajantes colo-
niais, comerciantes, missionários e burocratas censuravam constante-
mente a suposta ausência, na cultura africana, de uma "vida doméstica
apropriada", particularmente a suposta falta de higiene dos africanos 27•
l\1as a inscrição dos africanos como sujos e não domesticados, longe de
ser uma descrição acurada das culturas africanas, servia para legitimar a
violenta imposição dos valores culturais e econômicos dos imperialistas,
com a intenção de purificar e, assim, subjugar o sujo corpo africano e
impor-lhe os valores culturais e de mercado mais úteis à economia mer-
cantil imperial. O mito das mercadorias imperiais arribando às praias
nativas, para serem aí bem-vindas por estupefatos nativos, apaga da me-
mória a longa e intrincada história da troca comercial dos europeus com
os africanos e a longa e intrincada história da resistência africana à co-
lonização e à Europa. O ritual doméstico se tornou uma tecnologia da
disciplina e da expropriação.
O ponto fundamental não está simplesmente nas contradições for-
mais que estruturam os fetiches, mas também na questão historicamen-
te mais exigente de como certos grupos têm sucesso, pela coerção ou
hegemonia, em excluir a ambivalência que o fetichismo encarna impon-

27. Mas sabão de óleo de palma fora feito e usado durante século, na África Ocidental e
equatorial. Em Travds in Hfst Afrfra, Mary Kingslcy registra o costume de escavar ba-
nhos profundos na terra, enchendo-os com água ferve me e ervas fragrantcs, com lu.xuo-
sas coberturas de argila úmida. No sul da África, esse sabão não era muito usado, mas
lamas, scivas e cascas de árvores eram processadas como cosméticos, e arbustos conheci·
dos como "moitas de sabão" eram usados na limp~a. Mary H. Kingslcy, Travds in West
·' AJrfra (Londres: MacmiUan, 1899). Atividades dos homens tswanas como caça e guerra
,
\ eram elaboradamente preparadas e reguladas pelo tabu. "Em cada caso", como escrevem
Jean e John Comaroff, "os participantes se encontra,-am fora dos limites da aldeia, vesti-
dos e armados para o combate, e eram sujeitos a uma cuidadosa lavagem ritual (go foka
marumo)". Jean e John Comasoff, O/R=e/ation and Reuo/ution: Chrútianity, Co/onia/úm
a,rd Comci;umm in S,uth Afrfra (Chicago: University of Chicago Press, 1991, vol. 1), p.
164. Em geral, as pessoas passav:im cremes, lustravam e poliam seus corpos com uma
variedade de óleos, ocres rosados, gorduras animais e argílu coloridas.

,, 333
Couro impuial

do seu sistema econômico e cultural sobre os outros18 . O imperialismo


cultural não significa que as contradições sejam permanentemente re-
solvidas, nem que não possam ser usadas contra os próprios coloniais.
De qualquer maneira, parece importante reconhecer que o que foi alar-
deado por alguns como a indecidibilidade permanente dos signos cultu-
rais também pode ser violenta e decisivamente rejeitado pela força mili-
tar superior ou pelo domínio hegemônico.

FETICHI SM O NA ZONA CO NT ESTADA

Escritores iluministas e vitorianos frequentemente imaginavam o en-


contro colonial como a jornada da mente (masculina) europeia racional
através de um espaço liminar (oceano, selva ou deserto) povoado por
híbridos (sereias e monstros) para uma zona pré-histórica de dervixes, I

canibais e adoradores do fetiche. Robinson Crusoé, em uma das primei-


ras expressões novclísticas da ideia, situa as terras cristãs longe daquelas
cujos povos "se prostram diante de troncos e pedras, adorando monstros,
elefantes, animais de formas horríveis e estátuas, ou imagens de mons-
tros"19. A mente iluminista teria transcendido a adoração do fetiche e
podia olhar com indulgência aqueles ainda encantados pelos poderes
mágicos de "troncos e pedras". l\llas, como aponta Mitchell, "a magia
mais profunda do fetiche da mercadoria é a negação de que exista qual-
quer magia nela"'º· Não obstante os protestos coloniais, uma fé decidi-

28. Pan uma excelente c.xploração da hegemonia colonial no Sul d:i Africa, ver Jean e John
Comaroff, ~H omc-:-.ifade H egcmony: Modemity, Domcsticity and Colonialism in South
Africa~, in Karen H ansen (org.), Encounlcn W ith DomcJlicity (Ncw Brunswick: Rutgers
Univcrsity Press, 1992), PP· 37-74.
29. Daniel Dcfoe, 71,, Farther Ad--.xnf'Jres ofR ohinnn Crus«, in 7hc Shal:cspcarc Hcad Edition o/
thc Nowls and Stlmd Writings ofDanid Dif«. (O xford: Basil 81:ickwell, 1927-1928, v::,l, 3),
p.177.
30. Para uma excelente análise do fetichismo da mcrc:ldoria, ver \.V. J. T. Micchell, Í(onology:
lmagc, Tcxt, Idcology (C hicago: Univcrsity of Chicago Prcss, 1986), p. 193. Ver também
;
\Volfg2ng Frin H 3ug, Critique ofCommodity Atsthrtüs: Appcaranu, Scxuality andAiwr-
tising in C;,pitaliJt Sodtty, trad. Robert Bock (M inncapolis; University of Minnesota
Prcss, 1986). Ver o ensaio bibliogrifico de Catherine Gallagher cm Critidsm 19, 2 (1987),

334
O impirio do sabonlft - ~cismo mucantil e propaganda impuial

damente fetichista nos poderes mágicos da mercadoria estava subjacen-


te a boa parte da missão civilizadora colonial.
Ao contrário do mito do primeiro contato encarnado nos anúncios
vitorianos, os africanos vinham negociando com os europeus havia sé-
culos quando da chegada dos vitorianos britânicos. Intrincadas redes de
··t comércio se espalhavam pela África Ocidental e do Norte, com comple-
.l
! xos assentamentos interculturais e longa história de negociações e tro-
'1
!
cas, esporadicamente interrompidas por violentos conflitos e conquistas.
t Como observou John Barbot, o comerciante e escritor do século XVII, a
·i 1 respeito do comércio na Costa do Ouro: "Os negros da Costa do Ouro,
tendo comerciado com os europeus desde o século XIV, são muito habi-
lidosos sobre a natureza e as qualidades próprias de todos os objetos e
mercadoria ali vendidos"3'. Relatos de viagens no século XVIII revelam,
! ademais, que os navios europeus que faziam comércio com a África
! ,-
eram frequentemente carregados não com mercadorias "úteis", mas com
quinquilharias, bugigangas, contas, espelhos e poções "medicinais"32 • Em
listas de comércio do século XVII aparecem, ao lado do sal, conhaque,
tecidos e ferro, itens como anéis de latão, pérolas falsas, pequenas contas
de vidro, espelhos, pequenos sinos, falsos cristais, conchas, panos bri-
lhantes, botões de vidro, pequenas cornetas, amuletos e braceletes33• Os
coloniais incorriam pesadamente na noção de que, carregando esses na-
vios com ninharias e balangandãs através dos mares, estavam satisfazen-
do os gostos ingênuos e primitivos dos africanos. As listas de tráfego
mercante revelam, porém, que no seu retorno os navios europeus vi-
nham carregados não só de pó de ouro e óleo de palma, mas tambén1 de

pp. 133-42. Sobre o caráter ritual das mercadorias, ver Arjun Appadurai (org.), 71,e Social
Lifa of 1bings: Comm~dities in Cultural Penputive (Cambridge: Cambridge Univcrsity
Press, 1986). Ver também Sut Jhally, 1bt Codts of/ldçertising: Fetishism and the Politi,al
Economy ofí\1,aning in th, Comumer Society (Londres: Roudedge, 1990); e, para a lingua-
l ,'.., ~
gem da mcrcantilização, ver Judith \-Villiamson, Decoding /ldçertiummts: ldeology and
,.;..'l Meaning itt /ldwrtising (Londres: Marian Boyars, 1978).
.,,
·C"..; ••
31. Apud Masy H. IGngsley, Traveis in Wut ///rica, p. 622.
·i 32. Simpson, Fetishism and lmagination. .. , p. 29.
33. "Tradc Goods Used in thc Early Trade with Africa as Givcn by Barbot and Other \1/ritcrs
of thc Scvcntccnth Ccntury", in IGngsley, Trtw,I, in ~,1 Afrita, pp. 6u- 25.

335
Couro imptrial

presas de elefantes, dentes de hipopótamos, penas de avestruz, cera de


abelhas, couros de animais e bolsas de almíscarH. A absoluta mercantili-
zação da humanidade e a genuflexão colonial diante do fetiche do lucro
era revelada da maneira mais grotesca na listagem indiscriminada de
escravos en1 meio às ninharias e bugigangas.
Ao definir as trocas econômicas e crenças rituais de outras culturas
como "irracionais" e "fetichistas", os coloniais tentavam rejeitá-las como
sistemas legítimos. A enorme quantidade de trabalho que entrava no
trnnsporlc <lt: carrt:gamentos de bugigangas para as colônias tinha menos
a ver com a propriedade de tais objetos em relação às culturas africanas
J
do que com a sistemática subestimação desses sistemas diante do capi- 1

talismo mercantil e dos valores de mercado nas metrópoles europeias. !



Evidências também sugerem que os comerciantes europeus, embora
negando vigorosamente seu próprio fetichismo e projetando tais incli- 1
nações "primitivas" sobre as mulheres, africanos e crianças, levavam
muito a sério seus próprios fetiches "racionais"35• Segundo muitos re-
latos, o império parece ter sido muito fortalecido pelo maravilhoso feti-
che do Sal de Fruta Eno. Se o Pears era encarregado de limpar o corpo
por fora, Eno era encarregado da "limpeza" interna. Mais que isso, po-
!
dia-se confiar que a pureza interna garantida por Eno assegurava a po-
tência masculina na arena da guerra. Como atestava um colonial: "Du- .f
t
rante a guerra afegã, acredito piamente que vencemos em Kandahar 1
porque todos to1namos grande quantidade de Sal de Fruta Eno e che-
gamos aptos a derrubar meia dúzia de Ayub K.hans"36 . Ele não era o 1'
único a recomendar fortemente a força de Eno na restauração da supre- 1
1
rnacia branca. O comandante A.J. Lofrus, hidrógrafo de Sua Majestade 1 :,
i ..(
'i .'
34. Idem, op. cit., p. 614. 1
1 ·•
35. O fetichismo foi definido muitas vezes como uma predileção infantil. Em Typu, de Hcr·
man Mclvillc,o herói descreve as pedras-fetiche das pessoas como "diversões infantis[...}
co_mo aquelas cm que um grupo de crianças brinc:i com bonecas e casinhas". The North- 1
1
wcstern-Newberry Edition, Harrison Ha}'ford, Hershel Parker e G. Thomas Tansclle
(or~.). 1l;e W6tings ofHerman i\1dvi!le (Evanston: Northwestern University Prcss; Chi·
1
cago: The Ncwberry Libnry, 1968), pp. 47·77.
36. D. e G. Hindle)\ Adwrtising in Vi,t~rian England.. . , p. 99. 1 J

(
~
336
O império do sabo,uu - ~cismo mercantil t propaganda impuial

Siamesa,jurava nunca se aventurar na selva sem urna lata de Eno. Hou-


ve só uma ocasião, disse ele, durante quatro anos de expedições impe-
riais, em que um m embro de seu grupo caiu com febre: "e isso aconteceu
depois que nosso suprimento de Sal de Fruta acabou"J7•
O fetichismo virou um espaço intercultural em que os dois lados do
encontro parecem ter ocasionalmente tentado manipular um e outro,
cada um imitando o que imaginava ser o fetiche específico do outro.
No ~ênia, Joseph Thomson posou grandiosamente como feiticeiro
brauço conjunm<lo um elaborado artificio com uma lata de Eno para
t
suposta edificação dos l\1asai: "Tomando meu sextante", registra ele ale-
1(
,, gremente,

e calçando um par de luvas de couro de cabra - que tinha acidentalmente


comigo e que impressionaram enormemente os nativos - examinei atenta-
mente o conteúdo [ ...] aprontando um pouco de Sal de Fruta Eno, e cantei
,. ur.ta fórmula - algo sobre "Três Garrafas Azuis" - sobre ele. l'v[inha voz
[ ...] funcionou como a de um feiticeiro. Minhas preparações completas e
Brahim pronto com uma arma, lancei o Sal na mistura; simultaneamente, a
' arma foi disparada e ferveu e espumou o ácido carbônico[... ] os chefes com
medo e tremendo o provam quando ccssa38•

Divertindo-se à grande, a imaginadas expensas dos Masai, Thomson


revela sua própria fé na forç a de seus fe tiches (luvas como fetiche de
lazer de classe, sextante e arma como fetiche da tecnologia científica e
Eno como fetiche de pureza doméstica) para enganar os Masai. "Mais
divertida", porém, como nota Hindlcy, é a própria ingenuidade de
Thomson, pois o ponto central da história é que, "para persuadir os Ma-
sai a tomarem seu remédio desconhecido, Thomson montou um show
em que o famoso sal de fruta só mostrou seus efeitos 'mágicos"'J9 • A
força de Eno como fetiche doméstico foi eloquentemente resumida por

37. Idem, op. cit., p. 98.


38. I bidem.
39. Ibidem.

337
Couro imptrial

um general, que escreveu agradecendo a J.\,lr. Eno por seu bom pó: "Bên-
çãos a seu Sal de Fruta", escreveu ele, "acredito que não seja profano
dizê-lo, mas juro por ele. Ali fica a estimada garrafa sobre a minha larei-
ra, meu pequeno ídolo - em casa meu deus do lar, no exterior, meu
vadc-n1écum"•º. Os fabricantes de Eno ficaram tão satisfeitos com essa
dedicação plena a seu pequeno fetiche que a adotaram como bordão
promocional regular. Daí em diante, Eno passou a ser anunciado pelo
slogan: "Em casa, meu deus do lar, no exterior, meu vade-mécum".
No encontro colonial, os africanos adotaram uma variedade de estra-
tégias para enfrentar as tentativas coloniais de subavaliar suas economias.
Entre essas estratégias, as mais frequentes eram a mímica, a apropriação,
a reavaliação e a violência. Os coloniais censuravam rancorosamente o
hábito africano de sair com o que não lhes pertencia, hábito que era
visto não como uma form_a de protesto, nem como uma recusa das no-
ções europeias de propriedade e de valor de troca, n1as como uma inca-
pacidade primitiva de compreender o valor de uma economia "racional"
de mercado. Barbot, por exemplo, descreve os Ekets como

o mais exasperante dos povos com que tínhamos que lidar [ ...] O pobre Sa-
wyer teve enormes dificuldades; as pessoas tinham uma ideia de que podiam
fazer o que quisessem com o encarregado da fábrica e frequentemente saíam
com os bens sem pagar por eles, ao que Sawyer naturalmente se opunha, e
isso geralmente acabava em luta livre, e minha gente às vezes levava a pior''.

Richards nota como Henry Morton Stanley, igualmente, não podia


fazer com que os africanos (que ele via primeiro como carregadores de
mercadorias ocidentais) compreendessem que ele dotava os bens que
eles carregavam de um valor de troca abstrato à parte de seu valor de uso.
Como a esses bens "falta qualquer papel social concreto nos costumes,
diretivas e tabus de suas vidas tribais, os carregadores estão deixando-os

40. Idem, op. cit., p. 99·


41. Kingslcy, Traveis i11 U~st Afrfra, p. S94-

338
O império do sabomu - '7?.!cismo mu,antil e propaganda imperial

cair sempre, descartando-os, colocando-os em lugares errados ou indo


embora com eles. Indignado, Stanley chama a isso de roubo" 4:.
Desde o início, o fetichismo envolveu uma contestação intercultural
eivada de ambiguidade, erros de comunicação e violência. Os coloniais
eram propensos a ter ataques de fúria quando os africanos se recusavam
a mostrar o devido respeito a suas bandeiras, coroas, a seus mapas, reló-
gios, armas e sabões. Stanley, por exemplo, registra ter executado três
carregadores africanos por terem removido rifles, embora admita que os
condenados não entendiam o valor dos rifles ou o princípio pelo qual
tinham sido condenados à morte43• Outros carregadores foram execu-
tados por infrações como deixar cair bens nos rios.
1 Anedotas também revelam quão rapidamente a fúria colonial ex-

l
i ~
plodia quando os africanos deixavam de mostrar espanto diante das es-
tranhas bugigangas que os coloniais lhes ofereciam, pois não demorou
1 muito para que a curiosidade e a tolerância dos não europeus virasse
derrisão e desprezo. Na Austrália, Cook censurava a ingrata recusa dos
habitantes locais em reconhecerem o valor das bugigangas que lhes
trouxera: "Alguns dos nativos não abriam mão de um porco, a menos
que recebessem um machado em troca; mas pregos e contas e outras ni-
nharias, que, durante nossas viagens anteriores, tinham tanta circulação
na ilha, eram agora tão desprezados que poucos se dignavam até mesmo
a olhar para cles" 44 •
i'
, De Bougainville também lembra como um nativo das i\ilolucas,
quando recebia "um lenço, um espelho ou outra quinquilharia [ ... ] ria
-;
dos presentes e não os admirava. Ele parecia conhecer os europeus"45•
Como observa Simpson: "O lenço é um atributo da 'civilização,' uma
ferramenta para fazer desaparecer o desagradável suor da testa, a descar-

.,.
42. Richards, 1he Commodity Culture.. . , p. n5.
43. Ibidem.
44. James Cook, A Voyag, to the Paâjic Ouan, Undn-tak.en by the Comma!'d ofHir Majesty,far
1\!Jaking DiJ,0•11eries in the Nurthern Hemisphn-e (Londres: James Cook, 1784, vol. 2), p. 10.
•' 45. Lewis de Bougainvillc, A J'oyag, Round th, World, P,rfarmed by th, Ordn- of His i'vtost
.. Chrütian lv!ajuty, in th, Y,crs q66, 1767, q68, q69, trad. John Rcinhold Forstcr (Lon-
Jrcs, 1772), !'· 360.

339
Couro imptrial

ga nasal dos climas frios e talvez as lágrimas da emoção excessiva". O


lenço branco também era (como as luvas brancas) o ícone vitoriano da
pureza doméstica e do apagamento dos sinais do trabalho. A recusa do
molucano ao lenço e ao espelho exprimia uma franca recusa a dois dos
principais ícones do consumismo vitoriano de classe média46•
Em alguns casos, formas elaboradas de mímica foram criadas pelos
africanos para manter o controle do comércio. Como observaram os
Comaroff, os Tlhaping, os Tswana do sul, tendo obtido contas para si
mesmos, tentaram impedir os europeus de aventurarem-se mais para o
interior, fazendo a mímica dos estereótipos europeus da selvageria negra
e retratando seus vizinhos como "homens de hábitos ferozes", bárbaros I
demais para misturarem-se com eles•7•
l
Na zona imperial contestada, fetiches encarnavam conflitos no do- 1
1nínio do valor e eram eloquentes de uma recusa africana contínua a
aceitar as mercadorias europeias e os rituais de limites nos termos dos t
coloniais. A saga do sabão e o culto da domesticidade demonstram vivi-
damente que o fetichismo não era original nem do capitalismo indus-
trial nen1 das economias pré-coloniais, mas era desde o início a encarna-
ção e marca de um encontro incongruente e violento.

'i

46. Barbot admite que os africanos da costa ocidental "sofreram com tanta frequência impo·
sições dos europeus, que, cm eras anteriores, não tiven.m escrúpulos cm enganá-los na
qualidade, no peso e nas medidas dos bens que, no principio, recebiam contentes, porque,
diziam, nunca passaria por seus pensamentos que os homens brancos[... ] eram baL~os a
ponto de abusar de sua credulidade [ ... ) e examinavam peça por peça e muito de perto
toda nossa mercadoria". Não demorou muito para que os africanos inventassem seus
próprios subterrugios pua enganar os europeus e ganhar na troca. Pelo relato de Barbot,
eles enchiam com madeira pela metade os barris de óleo, acresccntav:im :igua e ervas ao
óleo, para ·que fermenrasse e, assim, enchiam os barris com a metade do óleo. Kingsley,
Traveis in West A/rira, p. 582.
47. Jean e John L. Coma.roff, O/RnNlation and R«>0lution ... , p. 166.
6
A família branca do homem
O discurso colonial e a
reinvenção do patriarcado

ATÉ os anos 1860, a África do Sul era, do ponto de vista imperial, um


posto remoto de escassa atração. Em 1867, porém, uma criança africâner
encontrou por acaso o primeiro diamante sul-africano. A descoberta
dos campos de diamante levou de uma só vez "essa região das mais es-
tagnadas" para o turbilhão do moderno capitalismo imperial e "uma ter-
ra que assistira a navios cheios de imigrantes para a Austrália e a Nova
Zelândia, que a deixavam de lado, via levas de homens caírem em suas
ondas, atravessando o país para as minas"'.
,,-
Entre os recém-chegados estava 1-lenry Rider Haggard, um obscuro

jovem de 19 anos que, após alguns anos de pouco notáveis serviços na
administração colonial, voltou à Grã-Bretanha para tornar-se o nove-
lista de mais espetacular sucesso de seu tempo 2 • Em 1885, poucos meses
depois da divisão da África entre os "senhores da humanidade" em Ber-
lim, Haggard publicou As minas do rei Salomão, vendendo instantanea-

r. C. W. De Kiewet,A History ofSouthA/ri<a: S°'ia! and Economi<(Londres: Oxford Uni·


versity Press, 1941), p. n9.
2. Haggard esteve na África do Sul de 1875 a 1881. Em 1876 ele levantou pessoalmente a
bandeira britânica sobre o rebelado T ransva:al.

341
Couro imperial

mente mais que todos os seus contemporâneos3• She apareceu logo de-
pois, em 1887, em meio a uma turbulenta fanfarra de aplausos. <2!tase da
noite para o dia, o jovem obscuro se tornara autor de incomparável
sucesso e renome'.
As minas do rei Salomão lidava intimamente com eventos na África
do Sul depois da descoberta dos diarnantes e, depois, do ouro: especifi-
camente do reordenamento da sexualidade das mulheres e do trabalho
na África e da derivação do trabalho masculino negro para as minas. A
história ilumina não só as relações entre a metrópole imperial e as colô-
nias, mas também a reformulação das relações de gênero na África do
Sul, quando o capitalismo nascente penetrava a região e perturbava re-
lações de poder já contestadas dentro dos assentamentos. A despeito do
recente reconhecimento de que alguns dos conflitos mais importantes
do século XIX ocorreram s.obre a economia dos assentamentos africa-
nos; em sua maior parte a história do trabalho feminino e da resistência
das mulheres foi relegada às laterais da história. Como as mulheres eram
as principais fazendeiras, elas eram as principais produtoras da vida, cio
trabalho e da comida na era pré-colonial5• Seu trabalho era, assim, isola-
damente, o recurso mais valorizado no país, afora a própria terra. No
entanto, sabemos muito pouco sobre como as sociedades pré-coloniais
foram capazes de subordinar o trabalho feminino e igualmente pouco
sobre as mudanças decorrentes, nessas sociedades, da conquista colonial
e da penetração do capital mercantil e minerador.

3. Henry Rider Haggard, King Solomon's Mines (Londres: Signct, 1965). As refcréncias adi-
ciona.is a essa edição são citadas no texto pelo número da página.
4. King Solomon's Minei foi reimpresso quatro vezes nos primeiros três meses, vendeu Jt mil
cópias no primeiro ano e nunca ficou fora do mercado desde sua publicação. She também
foi um hrst-u/ler instantãneo e foi traduzido para mais de 20 línguas, tendo-se tornado
diversos filmes e peças de teatro e uma ópera. T1mbém nio ficou fora de mercado na
Grã-Bretanha no século passado. Elia Shohat discute as versões cinematográficas dos
dois romances cm "Gcnder and the Culture of Empire: Toward a Feminist Ethnography
oí'the Cinema", Quarterly RevirJJ ofFilm and Vídeo 13, 1-3 (Primavera, 1991), PP· 45-84.
5. Ver Jeff Guy, "Gender Opprcssion in Southem African Precapitalist Socicties", in
Chcrryl \iValkcr (org.), IJ.ómm and Gender in Southern A/ri<a to 1945 (Londres: David
Philip, 1990), pp. 33-47.

342
e.,'/família bran<a do homem - O discurso ,olonial e a reinv en,4o do patriar,ado

As minas do rei Salomão oferece um olhar pouco usual sobre algumas


dinâmicas fundamentais daquele conflito. A novela era em parte uma
tentativa de negociar contradições no esforço colonial de disciplinar a
sexualidade e o trabalho feminino, tanto na metrópole europeia quanto
nas colônias. Os conflitos entre o poder gerador masculino e feminino e
entre domesticidade e imperialismo eram não só temas obsessivos da
obra de 1-laggard, mas também as preocupações dominantes de seu tem-
po. Boa parte do fascínio da escrita de Haggard para os homens vitoria-
nos era que ele exibia seus fantasmas do poder patriarcal na arena do
império, evocando, assim, a relação espontânea entre o poder da classe
média e da alta classe média na metrópole e o controle do trabalho fe-
i minino negro nas colônias. Desse modo,As minas do râ Salomão torna-
se mais do que uma curiosidade vitoriana; cm lugar disso, traz para a luz
l algumas das contradições fundamentais do projeto imperial e também
1 das tentativas africanas de resistir a ele.
! No que segue, exploro como 1-Iaggard - como membro da adminis-
tração colonial c como escritor - procurou resolver essas contradições
numa narrativa que assume a forma de uma jornada, começando com
uma mitologia de degeneração de raça e gênero, reinventando a Família
do Homem no berço do império, e culminando na regeneração da auto-
ridade do pai branco sob a forma histórica do cavalheiro da alta classe
média inglesa. Em outras palavras, exploro o reordenamento do traba-
lho negro e da família negra e argumento que esse reordenamento foi
legitimado por dois discursos principais da época: o discurso do pro-
gresso e da degeneração; e a tradição inventada do pai branco à testa da
global Familia do Homem. É crucial, porém, que esses discursos não
sejam vistos como imposições monolíticas sobre um povo infeliz. Ainda
menos como meros reflexos funcionais das necessidades coloniais do
Estado. Antes, os próprios discursos foram a todo momento competi-
ções pelo poder social - tanto formado pelas respostas africanas ao
Estado usurpador quanto como produto do poder colonial.

343
Couro impaial

A DECADÊNCIA DA FAMÍLIA DO HOMEM


Uma narrativa biográfica

Haggard nasceu em 1856, num dos poucos roteiros escritos para um ho-
men1 de sua classe. Filho de uma mãe colonial criada na Índia britânica
e de um conservador de Norfolk, da nobreza rural, sua vida e obra to-
mam forma significativa a partir das contradições incorporadas em seus
pais: o enfraquecimento da antiga hierarquia do campo com o desloca-
mento do poder nacional para o setor manufatureiro e a ascensão do
novo imperialismo. Chegou à idade adulta durante a grande depressão
dos anos 1870 - era que viu as calamidades da pobreza industrial e a
megalomania do novo imperialismo. Suspenso entre uma classe em de-
clínio e o imperialismo ascendente, Haggard estava, sob 1nuitos aspec-
tos, especialmente bem colocado para produzir, como produziu, as nar-
rativas de degeneração e regeneração masculina que viriam a se tornar
os romances mais lidos de seu tempo.
"Conservador ao extremo", o pai de Haggard, o squire William Mcy-
l
bohm Haggard, "reinava cm Bradenham como um rei", vivendo da terra
à moda patriarcal da antiga hierarquia - o último de sua família a assim
viver6• Haggard herdou do pai seu próprio "senso dinástico": "deixar um
filho e terras para que ele herdasse, perpetuar seu nome eram suas fortes
prcdisposições"7. Mas as relações entre a geração, o nome e a herança de
terra entre os mc~bros do sexo masculino eram particularmente abor-
recidas para Haggard - aborrecimento que ele compartilhava com toda
u1na geração de homens de alta classe média no período vitoriano tar-
dio. Haggard era um dos filhos mais jovens, deserdado da posição pa-
triarcal pelas rígidas leis da primogenitura. Seu próprio füho,Jock, viria
a morrer na juventude, para tristeza do pai. Haggard começou a escrever
nos anos 1880, quando a ideia das origens paternas - instituindo o po-
der masculino no topo da família - se tornava cada vez mais problemá-
tica. Fervente adepto das ambições dinásticas de sua familia e de sua

6. Henry Ridcr Haggard, Days ofMy Lift (Londres: Longmans Grecn & Co., 1926), p. 24.
7. Lilhs Rider Haggard, 7h, C/ca/,; 7bat 1 L,ji (Londr~•= Hodd~r & Stoughton, 19sr), p. 16.

344
e,/[familia branca do homem - O disn,rso colonial, a reinven,do do patriarcado

classe, mas frustrado nessas ambições pela mudança histórica, Haggard


consolou-se com o único recurso de que dispunha um homem de sua
geração: jogar com os anacrônicos fantasmas de poder patriarcal de clas-
se na arena do império. Poderíamos chamar o projeto que consumiu sua
vida e obra de restauração do pai e da Familia do Homem.
A poética da autoria masculina não é só uma poética da criatividade,
mas uma poética da posse e do controle sobre a questão da posteridade.
Ela envolve a produção de uma hierarquia de poder. No caso de Hag-
gard, a constelação de imagens de-paternidade, sucessão e hierarquia que
informa a ideia de autoria era particularmente complicada e sugestiva.
Frustrado em suas ambições como filho e como pai, tornou-se um "acu-
mulador" e "fundador", ao perfilhar um espantoso corpo de letras - 42
romances, 12 novelas, ro obras de não ficção e uma autobiografia em dois
volumes. Teve, assim, sucesso na perpetuação do nome masculino da
família - não pelo meio da terra ou da sucessão de herdeiros mascu-
;
linos, mas pela autoria. "É por isso que eu serei lembrado", declarou
\
Haggard 8• Surge, então, uma anomalia. Acontece que ele derivou seu
talento literário e, portanto, sua capacidade de propagar o sobrenome
masculino, não de seu pai, mas de sua mãe. Segundo seu próprio relato,
sua mãe, Elia Doveton Haggard, "tinha consideráveis dons para uma
' ...'
<
carreira literária [ ...] Se as circunstâncias tivessem permitido, estou se-

•.' guro de que teria feito seu nome". Contudo, acrescentou com aprovação,
sua vida foi "toda amor e autossacrifício"9 • Foi, portanto, adequado que
I-Iaggard expiasse a culpa que certamente sentia por usurpar sua autori-
dade geradora publicando, um ano depois da morte da mãe, um volume
' '
r em memória de sua obra intitulado A vida e sua autora. Em suma, a au-
, toridade e continuidade do sobrenome familiar masculino e a herança
;.
', masculina da propriedade foram garantidas a expensas da repressão: a
repressão da mãe como fonte de vida e autoridade.
A ansiedade quase patológica de Haggard em relação à autoridade
geradora feminina está subjacente à maior parte de sua obra. Mas pare-

8. Henry Rider Haggard, Days ofMy Lift, p. 64.


9. Idem, op. c:it., P· 46.

345
Couro impuial

ce ter derivado muito de sua intensidade tanto de contradições de classe


quanto das de gênero. Sabemos que Haggard lembrava que uma babá
inescrupulosa costumava aterrorizá-lo para que lhe obedecesse usando
uma "infame boneca de trapo" de "aspecto horrível," olhos de botão e
cabelo de lã preta - as ansiedades raciais são também claras'º. Haggard
chamava a boneca de "Aquela a que se deve obedecer", e esse símbolo
fetiche de autoridade sinistra e inexplicável, feminina e de classe traba-
lhadora, o assomhraria até ele ser compelido a proteger-se com um ato
de exorcismo ideológico em She.
De fato, Graharn Greene lembra que foi As minas do rei Salomâo que
o levou, aos 19 anos, a estudar a lista de indicações do Colonial Ojfice e a
envolver-se no serviço colonial. Lembrando essa influência, ele retoma
a paranoia que cobre a figura de Gagool: "Não esperava ela por mim nos
sonhos toda noite, na passagem pelo armário de roupas, perto da porta
do berçário?" Foi o "incurável fascínio" de Gagool, seu crânio nu e ama-
relado e seu escalpo enrugado que o atraiu a Serra Leoa, e que ele lem-
bra quando cai com febre na Libéria.
A espantosa popularidade de As minas do rei Salomão levou Sandra
Gilbert a perguntar: "O que, afinal, preocupava tanto Rlder Haggard a
ponto de levá-lo a criar essa fantasia extraordinariamente complexa so-
bre Ela e seu Reino em apenas seis semanas vulcânicas? Por que milha-
res e milhares de ingleses respondem a essa estória que parece um sonho
d'Ela com tanto f~rvor como se narrasse os próprios sonhos deles?"" Se,
como afirma Gilbert, o carisma do livro vinha de sua exploração de três
preocupações do ~éculo XIX - a "Nova l\ilulher", o Egito e o espiritua-
lismo - , certamente muito da compulsão de Haggard para criar sua
"afirmação cerimonial da autoridade fálicâ também derivava de sua in-
capacidade de resolver uma contradição que marcou sua época e sua
classe: a presença, dentro da familia, da trabalhadora doméstica".

10. Idem, op. cit., p. 36.


II. Sandra Gilbcrt, ~Ridcr Haggard·s Hcart of Darkncss•, Partisan Re-o1iew J (1983), p.1.
12. Idem, op. cit., p. 44.
e.Afamília bra11ca do homem - O discurso , olonial e a rei11ven;4o do patriar<ado

Pelo menos uma das dinâmicas subjacentes ao medo que Haggard


tem da autoridade geradora feminina derivava de sua incapacidade de
resolver a duplicação de classe e de gênero que formava a família de alta
classe média. Para Haggard, assim como para muitos outros, as contra-
dições entre a ideologia do ócio feminino e a realidade do trabalho ma-
nual feminino, entre o trabalho doméstico pago e o não pago, entre a
sexualidade da "madona" de porcelana de Dresdcn e a "puta" da classe
• trabalhadora, entre a invenção da inferioridade feminina e a experiência
do poder feminino, estavam mais vívida e perigosamente encarnadas na
presença viva, dentro da família de alta classe média, da criada domésti-
ca.As minas do rei Salomão foi, em grande parte, sugiro, uma tentativa de
resolver a duplicação de classe e de gênero na metrópole, estabelecida
pelos conflitos sobre o trabalho e a sexualidade feminina nas colônias.

l DEGENERAÇÃO
1 -
A crise das origens

Haggard partilhava, com sua cultura vitoriana de alta classe média, de


uma preocupação de intensidade incomum com as origens. Mas, para
evidente desconforto de sua filha e biógrafa, a linhagem familiar regis-
trada não parecia inteiramente "sadia". O "malfadado sangue" de sua
bisavó judia-russa tinha transmitido à linhagem de Haggard "mais que
um traço de instabilidade mental"13• A "falha de sangue" judia, feminina,
era denunciada nos estigmas do nariz comprido, das maçãs do rosto al-
tas e dos olhos puxados - lembretes herdados da debilidade que fluía
nas veias da família14• Mas se a "mancha no sangue" era evocada dentro
de uma bem estabelecida poética da raça e da degeneração, os registros
familiares também sugerem que a ansiedade subjacente à reputação de
infância de Haggard como um tolo degenerado era mais uma ansiedade
propriamente de classe.

13. Lilias Rider Haggard, 77,e Cload, 7hat l Lift, p. 24.


14. Idem, op. dt., P· 25.

347
Couro imptrial

Chegando em oitavo lugar entre dez crianças e atingindo a adoles-


cência no momento da queda no valor da terra, Haggard era, aos olhos
da sua família, o emblema vivo da possível decadência anunciada pelo
sangue ruim. O pai de Haggard desprezava amargamente o filho mais
jovem como "apto somente a ser u1n verdureiro" e previa que sua obtusi-
dade mental encontraria melhor situação entre as ordens mais baixas1s.
Diante dos decadentes recursos da família e em vista da falta de pers-
;
pectivas de Haggard, próximo do fim de uma robusta fila de meninos, o
pai resolveu que Haggard, o único dos sete filhos, não receberia uma
.1 J
. .'
educação em escola pública. Ele foi, cm lugar disso, mandado para a
lpswich Grammar School, depois para um tutor em Londres, e então para j
r
o preceptor, Scoones. Muito já se disse da precoce degeneração de Ha- t
ggard - ele mesmo, sua família, seus biógrafos e críticos-, talvez por- i•
que a narrativa de sua degeneração precoce se tenha tornado elemento .,_-.!1j
crítico no que acabaria por se tornar um desempenho inegavelmente de '
sucesso na restauração do paterfamilias. Na época, seu desempenho só
poderia ter lugar na arena do império.
Nos debates públicos e políticos do final do século XIX, a superflui-
dez de homens e mulheres era vista como uma doença e um contágio no
corpo político nacional que podia ser contrabalançado pela extração do
mau fluido e seu depósito nas colônias. Ao mesmo tempo, boa parte
desse interesse na emigração colonial aparecia dentro da imagem da fa-
mília. Não poucos entre os "problemáticos da sociedade", co1no Hag-
gard os chamavà: vinham da pequena nobreza decadente e das classes
altas. Se J. A. Froude, historiador e ensaísta vitoriano, tinha confiança
em que a pequena nobreza como sistema de ordem social, posse da terra
e herança patri~near masculina era "tão segura como a sucessão das es-
tações," seu discurso cm sua defesa, pronunciado diante da Instituição
Filosófica cm 1876, traía pelo menos uma intuição da calamidade imi-
nente16. Mas parece que a fé de Froude na segurança da pequena nobre-
za estava menos na garantia da natureza do que na reconfortante pre-
J .·
. 1.
15. Idem, op. cit., pp. 23, ::.5-7.
16. J. A. Froudc, Shr;rt Studits orr Great Subjt<ts (Londres: Longmans, 1890). l.
·"
c.Afam(/ia bran,a do homem - O diuurso (o/onial ta rtin'!ltn(do do patriar,ado

sença das colônias britânicas à espera. Nas colônias, urgia Froude, "está
a verdadeira solução para a questão britânica das terras [ ...] O lar do
camponês francês é a França[ ...] O lar do escocês ou do inglês é o glo-
bo inteiro"17• Como ele via a questão, as antigas ordens patriarcais britâ-
nicas podiam ser protegidas do descontentamento civil exportando os
descontentes para as colônias:

Vós que estais descontentes com o que chamais de posição dependente em


casa, ide para a Austrália, para o Canadá, para a Nova Zelândia ou para a
África do Sul. Trabalhai lá para vós mesmos. Amealhai fortuna[ ...] Voltai, se
quiserdes, como homens ricos depois de 20 anos. Comprai propriedade para
vós mesmos [ ...] Povoai essas terras, povoai qualquer parte de qualquer de
nossas colônias, a partir dos filhos mais jovens que se quci.xam de que não há
lugar para eles em casa[...] Espalhai-vos lá e em todo lugar. Tomai posse da
ilimitada herança que vos aguarda18•

,. A relação entre a herança e as colônias não era uma metáfora ociosa,


..
:

mas traía uma conexão social muito real entre a crise da terra e a solução
imperialista.
'
),
Nos anais da família Haggard a mancha do sangue da degeneração
era vista como se manifestando numa liberdade global de ir e vir - um
desvio geográfico. Como filho retardado, Haggard assumiu seu lugar no
roteiro vitoriano, escrito para os filhos mais jovens ou menos aquinhoa-
dos de boas famílias, para a prole masculina do clero e para os números
crescentes de desempregados e dos pobres urbanos. Esses eram os ho-
mens que Froude rotulava de "boêmios dos quatro continentes". Hannah
Arendt os chamou de "homens supérfluos" - a mixórdia de homens e
mulheres excedentes aos quais a Grã-Bretanha que se industrializava
não podia oferecer um lugar.
De fato, Haggard estava destinado a tornar-se um exemplo n1uito
bom da espécie de inglês que Froudc urgia que fossem embora e povoas-

17. Idem, op. cit., p. 289.


18. Idem, op. c:it., p . .308.

349
Couro impuia{

sem a terra. Em 1875, o pai de Haggard escreveu a seu vizinho, Sir Henry
Buhver, recém-indicado vice-governador de Natal e pediu a ele que acei-
tasse o jovem Haggard em seu serviço. Bulwer concordou, e H aggard,
então com 19 anos, partiu, em agosto de 1875, como um obscuro membro
da equipe de Bulwcr para a Colônia do Cabo.

A REGE N ERAÇÃO DA FAMÍLIA DO HOM El'vl


Uma narra tiva imperial

Embora Haggard fosse medíocre e deserdado na Grã-Bretanha, assim


que pisou em solo sul-africano ascendeu imediatamente à elite branca
mais exclusiva da terra. Sua indicação para a administração colonial não
era superior à do mordomo da família quase exclusivamente masculina
de burocratas brancos em Pietermaritsburg, Natal. Mas como ajudante
geral de Sir Henry Bulwer, encarregado de controlar a "política de cham-
panha e xerez" da administração da pequena banda e da cavalaria de
Natal, seu prestígio e autoestima aumentaram cnormcmcnte'9 • Discre-
tamente apoiado no cotovelo da máxima autoridade branca em Natal,
ele estava longe do infeliz tonto de Scoones. D e fato, um jornal local
anunciou a chegada de um "Mr. Waggart" à Cidade do Cabo.
A chegada regeneradora de Haggard à África do Sul é iluminadora
a esse respeito, pois a reviravolta em sua carreira encena um momento
crítico na cultura vitoriana tardia: a transição, que Said identifica, de fi-
liação para afiliação. A redenção de Haggard no serviço colonial exem-
plifica vividamente essa transição da filiação fracassada dentro da man-
são familiar feudal - essencialmente um fracasso da reprodução de
classe - para afiliação à burocracia colonial. Através da afiliação à ad-
ministração colonial, ele foi explicitamente compensado de sua perda de
lugar na família patriarcal proprietária e ganhou ainda um pai substituto
na figura de Theophilus Shepstone, administrador de Qtestões Nativas
de Natal. Nesse particular, Haggard era um representante de um mo-

19. Henry R.idcr H:aggud, Days ofMy Lifa, p. 36.

35º
<./1fam flia branca do hom( m - O d iuur10 colonial ( a rtin v mçáo do patriarcado

menta específico na cultura imperial, em que a autoridade quase anacrô-


nica da família feudal cm decadência, investida de seus sancionados ri-
tuais de ordem e subordinação, era deslocada para as colônias e
reinventada dentro da nova ordem da administração colonial.
Esse deslocamento faz surgir um paradoxo. Testemunha-se nas colô-
nias um estranho efeito de sombras do estado da família na Grã-Breta-
!• . nha. George Orwell alguma vez descreveu acidamentc a classe dirigente
•i britânica como "uma família com os membros errados no controle" .
! Apoiado na figura já estabelecida da degeneração orgânica, ele tinha
i uma visão da Grã-Bretanha dirigida por uma família decrépita de "tios
irresponsáveis e tias acamadas"'º . No entanto, como nota Williams, o
que Orwell lamentava não era tanto a existência de uma família diri-
gente, mas antes sua decadente capacidade. f\ imagem da família como
-~ modelo da ordem social tinha tanto poder sobre a imaginação de Orwell
que ele não podia descartá-la em favor de noções como classe, e só con-
1 seguia exprimir seu incômodo em termos de decadência biológica. Ao
l mesmo tempo, para Orwell, uma família dirigida por tios irresponsáveis
1 ? e tias acamadas era uma família patológica, pois o pai não era visto em
l -- nenhum lugar. Não pareceu digno de nota, tanto para Orwell quanto
para Williams, que a imagem também não inclui uma mãe.
ll Aqui se faz sentir uma relação importante. Orwell via o grupo social
de onde vinha, as grandes famílias do serviço do governo, "rebaixadas
em importância pelo crescimento da burocracia centralizada e pelas
11 companhias comerciais monopolistas"". O fracasso da ideia de filiação
1
1
dentro das grandes famílias proprietárias e das do serviço derivava em
1
parte do crescimento da burocracia imperial, que não só usurpou a fim-
ção social das famílias do serviço, deslocando o poder administrativo
para além da rede da família, mas também solapou seriamente a imagem
do paterfamilias patriarcal como maior poder originário. Mas, se o po-

20 . "G eorge Orwcll", in S. Orwcll e I. A ngus (orgs.), 'llu Coll(Cf(d Essays, Journalism and
Leturs of George Orw d l (Londres: Scckcr and \Varburg, 1968, vol. u ), p. 6j.
21. Raymond \Villiams, George Or-..::dL· A Colüctiun of Criti.al E ssays (Englcwood Cliffs:
Prentke H:ill, 1975), p. 20.

351
Couro imperial

der da burocracia derrubou o patriarca como imagem de poder n1ascu-


lino centralizado e individual, presencia-se nas colônias a reinvenção da
tradição da paternidade, deslocada para a burocracia colonial como uma
autoridade substituta e restaurada. Em outras palavras, a figura do pater
familias era mais fortemente abraçada nas colônias no exato momento
en1 que desaparecia da metrópole europeia. A colônia tornou-se a últi-
1
ma oportunidade de restaurar a autoridade política da paternidade, e
t
não é, portanto, surpreendente que se encontrem suas expressões mais 1
• 1
intensas na administração colonial, o próprio lugar que a ameaçava. .1
• a.
Tampouco é surpreendente que a reinvenção do patriarca nas colônias i

i
tenha assumido uma forma patológica.

REGENERAÇÃO PATRIARCAL l
As minas do rei Salomão
J
Allan Qyatermain - cavalheiro, caçador, negociante, lutador e minera-
dor (que recebeu, não acidentalmente, o nome de um pai substituto que
acolheu Haggard quando jovem) - começou a escrever "a estória mais
estranha" que conhecia por razões profiláticas, como ato de higiene bio-
lógica. Como um maldito leão machucou sua perna, ele está prostrado
em Durban com dor e é incapaz de se mover. Escrever o livro aliviará
um pouco da frustração de sua impotência - o levará de volta à saúde
e à virilidade. Depois, ele o enviará a seu filho, que está estudando num
hospital em Londres para ser médico, e é, portanto, obrigado a gastar
boa parte do tempo cortando corpos. Qi1atermain pretende que sua
aventura imperial sopre "um pouco de vida nas coisas" para seu menino,
Harry, que, como resultado, estará mais apto a seguir a tecnologia da
cura, a tarefa da higiene nacional, a restauração da raça. O livro será,
assim, uma narrativa tripla da recuperação imperial, abraçando três domí-
nios e movendo-se de um a outro em certa ordem privilegiada: do corpo
físico do patriarca branco restaurado nas colônias para o laço familiar
com o filho médico na Grã-Bretanha para o corpo político nacional. Ao
mesmo tempo, a narrativa revela que a regeneração da Grã-Bretanha
na era vitoriana tardia dependia do reordenamento do trabalho nas co-

35 2
e.Afamília branca do homem - O discurso colonial e a reinv enrão do patriarcado

lônias, nesse caso, a tentativa de reconstrução da nação zulu através do


controle da força reprodutiva e de trabalho das mulheres.
A tarefa da restauração patriarcal que motiva a narração da jornada
às minas do rei Salomão encontra seu análogo na motivação da própria
jornada ficcional. Qyatermain, o Capitão Good e Sir Henry Curtis par-
tem para as minas primeiramente para encontrar o irmão mais novo de
Sir Henry, Neville. Deixado sem uma profissão e sem dinheiro quando
seu pai morreu sem testamento, Neville brigou com seu irmão e partiu
para a África do Sul em busca de fortuna - pequena mímica da fuga de
muitos da aflita pequena nobreza para as colônias. No fim da novela,
··1:
r"'. Ncvillc é achado na selva, vestido de peles ern frangalhos, com a barba
....:f,.
~
•' '
crescida e a perna esmagada num acidente - retrato vivo da degene-
f: ração e virilidade ferida que se imaginava ameaçar a raça branca quando
. .
..
abandonada por longo tempo na "selva" racial. Assim, tanto no âmbito
. da narração quanto no da estória narrada, o relato é iniciado através de
~~
'':L uma dupla crise da sucessão masculina e se completa com a regeneração
' • dos rotos laços familiares, prometendo, assim, a continuidade, por tênue
que seja, do patriarcado fundado na terra.
·-.·• l'v1as, con10 sói acontecer, o romance familiar de Haggard sobre pais,
~

' filhos e irmãos que se regeneram mutuamente na aventura imperial tem


como premissa o reordenamento de outra familia: a sucessão da família
real kukuana. Esse reordenamento requer a morte da "mãe- bruxa" Ga-
gool. Só com sua morte o controle feminino da geração será abortado e
será restaurado o "legítimo" rei, sob a égide dos regenerados "pais" bran-
cos, que levarão os diamantes para restaurar a pequena nobreza da terra
na Grã-Bretanha.
.' Em As minas do rei Salomão, encontramos as duas teorias do desen-
volvimento racial humano a que aludi no capítulo 1. Ambas são inti-
mamente dependentes entre si e ambas são elaboradas_dentro da metá-
fora da família. De um lado, a narrativa apresenta a decadência histórica
a partir da paternidade branca ("Egípcia") para uma degenerescência
negra primordial encarnada na mãe negra. Do outro, a narrativa apre-
senta a história do progresso familiar da humanidade desde o "filho"
nativo degenerado até o pai branco adulto. Haggard partilhava da noção

353
Couro imperial

popular de que a civilização, enquanto incorporada pelos coloniais, era


perigosa para o africano que, "por intelecto e por natureza [ ...] está uns
cinco séculos atrasado [ ...] Pareceria que a civilização, quando aplicada
às raças negras, produz efeitos diametralmente opostos àqueles a que
estamos acostumados nas nações brancas: ela rebaixa antes de poder
elevar". E o mais importante, o princípio dinâmico que anima a hierar-
quia da degeneração da raça e do gênero, transformando uma descrição
estática de rebai.xamcnto numa narrativa de progresso histórico, é o
princípio da conquista imperial.

A FEMINIZAÇÃO DAS "TERRAS VAZIAS"

A jornada às minas do rei Salomão é uma gênese de ordem racial e se-


xual. A jornada às origens, como diz Pierre Macherey, "não é um modo
de mostrar o absoluto ou o começo, mas um modo de determinar a gê-
nese da ordem, da sucessão"". Donna Haraway observou que o safári
colonial era uma espécie de minissociedadc de viagens, um ícone do
empreendimento inteiro do imperialismo plenamente expressivo de sua
divisão do trabalho racial e sexual13• É, portanto, adequado que o grupo
de Qyatermain consista de três cavalheiros brancos; um "cavalheiro~
zulu (keshla [sic] ou "homem anelado"), que, no entanto, está uns 500
anos atrasado em relação aos brancos; três "meninos" zulus, ainda no
estado de "infância" nativa cm relação aos brancos; e o racialmentc de-
generado hotentotc, Ventvogel. Assim partimos com a Família do I-Io-
mem cm seu lugar, plenamente expressiva das divisões fixas de classe e
raça, com as mulheres inteiramente reprimidas - hierarquia racial ade-
quada para reinventar a gênese da espécie.
Fiel ao tropo do espaço anacrônico, a jornada para o interior, como
quase todas as jornadas coloniais, é figurada como uma jornada para

22. Pierre lVlachcrey, A 1heory of Literary Production (Londres: Routlc:dgc & Kcgan Paul,
1978), p. 265.
23. Donna Harawa); Primate Visi&m: Groder, Race and Nature in the World ofModenr Scimu
(Lom.ln:s: Routlcdgc, 1989), p. s••

354
e.Afam(/ia branca do homem - O discurso colonial< a rân f.lm rdo do patriarcado

frente no espaço, mas para trás no tempo. À medida que os homens


avançam, entram nas perigosas zonas da degeneração racial. Ao entrar
nas terras das febres e da mosca tsé-tsé, os homens deixam seus animais
doentes e continuam a pé. À beira do escaldante deserto que se estende
entre eles e as montanhas azuis de Salomão, atravessam as terras-limite
da patologia. Ao pisar no deserto, pisam na zona da pré-história. Sua
jornada através da planície sem dono traça uma regressão evolutiva da
virilidade adulta para a paisagem primordial de sol e sede, inóspita para
tudo, menos para a vida de insetos. Fiéis à narrativa de recapitulação que
t subjaz à jornada, os homens vão descartando lentamente sua humanida-
1 de. O sol suga seu sangue; eles cambaleiam como crianças incapazes de
1
andar e escapam da n1orte apenas cavando um buraco-útero na terra,
onde se enterram.
1 Ventvogel entra aqui cm seu elemento racial próprio. "Como hoten-
tote" e, portanto, intocado pelo sol, seus instintos "alimentados pela sel-
va" despertam e ele fareja o ar "como um velho impala macho". Com
exclamações guturais, ele anda cm círculos e fareja a "poça de água ruim"
l. (p. 39). Seguindo outra vez a narrativa da recapitulação, a degeneração

l-. racial adulta até o estado primitivo do "hotentote" é acompanhada pela


degeneração sexual até a condição "feminina," e ambos os estados são
acompanhados pela degeneração linguística a um estado infantil de
impotência pré-verbal. Como já vimos no mapa, a "poça de água ntim"
1 ,'
representa a cabeça feminina corrompida. Nesse ponto, exatamente no
·•, perigoso limiar da raça, o lugar da pré-história se mistura com o lugar
feminino. A paisagem fica repentinamente feminizada - o céu se rubo-
·• riza como uma moça, a lua se ergue lânguida e, no c..xato momento em
½,; que Ventvogel fareja a água ruim, os homens pousam seus olhos pela
'' primeira vez nos Seios de Sheba.
+.
• 'l Aqui, a narrativa pré-escrita da degeneração racial, sexual e linguísti-
....
' ., ca é confirmada. À visão das montanhas "com a forma exata dos seios de
uma mulher", seus picos nevados "correspondendo c..xatamentc aos ma-
• milos de um seio feminino", Qyatermain mergulha na condição de
humanidade reduzida e da degeneração linguística características do es-
tad o "hotcntotc"/f,cminino.
· · Ele "nao- pode d escrever" o que viu:
· "Fal ta-

355
Couro impaial

n1e a linguagem [ ... ] Descrever a grandeza da vista completa é demais


para minha capacidade" (pp. 38, 39). Essa crise de representação é um
momento ritual na narrativa colonial pela qual a terra colonizada se
eleva em toda sua impossibilidade de ser representada, ameaçando des-
virilizar o invasor: "Estou impotente mesmo diante de sua n1emória".
Mas isso é um subterfúgio, um fingimento da mesma ordem de escrever
"canibais" no mapa colonial, pois Qyatermain contén1 o poder de erup-
ção da fêmea negra inscrevendo-a na narrativa da degeneração racial.
Qyando os homens deixam as planícies da pré-história e escalam os
Seios de Sheba, a debilidade racial de Ventvogel começa a aparecer.
"Como a maioria dos hotentotes", ele não pode resistir ao frio e congela
até a morte na caverna no mamilo de Sheba, demonstrando-se inepto
para acompanhar os outros homens em sua jornada rumo à restauração
da origem paterna. Ao mesmo tempo, sua 1norte revela uma falha histó-
rica anterior. Na caverna onde Ventvogel morreu, eles encontram, em
posição fetal, os restos do esqueleto congelado de um negociante portu-
guês, José da Silvestre. Esses restos são um memento da inadequação
racial e de classe da primeira onda de invasores coloniais nesses lugares
e, portanto, da superior aptidão evolutiva da pequena nobreza britânica >

em relação ao comerciante português. Para inscrever esse momento linü-
nar de sucessão na história, Qyatermain toma a "rude pena" de Da Sil-
vestre, o "osso fendido" significando controle e a posse: "Ela está à minha
frente quando escrevo - às vezes assino meu nome com ela" (p. 45).
Sobre os Seios de Sheba, os homens voltam à história. Monarcas de
tudo o que registram, seu ato proprietário de ver se inscreve na terra••.
Deixando Ventvogel e a zona sem língua da pré-história, eles entram
novamente na linguagem. Mas esse momento não é um momento de
origem, 1nas antes o começo de um retorno e regressão histórica, pois a
jornada já foi feita. Como observou Macherey, a jornada colonial ''não
pode ser uma exploração no sentido estrito da palavra, mas apenas o ,li . ·-
24. Ver a fina análise de Mary Louise Pratt sobre esse tropo cm Imperial Eyu:Travd Writi11g
and Tranuulturation (Nov:a York Routledge, 1991).
cA/amf/ia bran,a do homem - O diuurso colonial e a reinven;átJ do patriar~ado

descobrimento, a recuperação de um conhecimento já completo"1 s. A


paisagem diante deles não é originária - não pode encontrar seu prin-
cípio de orden1 nela mesma. "A paisagem se estendia diante de nós como
um mapa", escrito com a história da Europa. Os picos das montanhas
são "como os Alpes"; a estrada de Salomão parece de início com "uma
espécie de via romana", depois, como são Gotardo, na Suíça. A paisagem
não é propriamente africana, porque já está sujeita à conquista. Um dos
túneis pelos quais os homens passam é escavado como escultura antiga,
"belíssima", e representa uma cena inteira de batalha com um comboio
de cativos conduzidos ao longe. Assim, "a jornada [ ...] é exibida como
tendo acontecido inelutavelmente antes ... Explorar é seguir, quer dizer,
cobrir uma vez mais, sob novas condições, um caminho na realidade
já coberto[...] A conquista só é possível porque já foi realizada" 26 •
As observações de Macherey são importantes porque, se a narrativa
das origens é, em termos próprios, a gênese de uma ordem e de uma
,.
' hierarquia e, se a ordem que os homens brancos pretendem impor é a da
colonização e dos primeiros estágios da acumulação primitiva de capital,
então sua conquista só encontra legitimidade em virtude do fato de que
a ela já tivera lugar num momento anterior da história. O rei Salomão,
que Haggard considerava branco,já tinha provado seu direito de titular
.. do tesouro das minas e já tinha escavado sua estrada na terra. Tudo o que
-:·:
.· tinha de ser feito para aceder o tesouro era uma demonstração de seme-
• lhança familiar. Uma poética da herança de sangue tinha de ser escrita
e, através dela, os cavalheiros brancos podiam tornar-se herdeiros legí-
I
timos das riquezas.

O ESPAÇO ANACRÔNICO

Assim, como a terra cm que habitam, descobriu-se que os k.uk.uanas não


são um povo originário. Eles são o povo de quem o personagem Evans
falou: descendentes degenerados de uma antiga civilização "há muito
;

25. Machcrcy,A theory ofLiterary Prcduction, p. 183.


. 26. Ibidem.
,
•'
357
Couro impt ria/

tempo caída na barbárie". Seus ancestrais tinha1n descido das "grandes


terras" do norte, identificadas como o Egito pelos traços das "esculturas
semelhantes às egípcias" que marcam o terreno como assinaturas. Esse
povo original era branco, seguindo a crença popular da época de Hag-
gard de que a civilização egípcia, berço da humanidade, não era real-
mente africana. Possuidores das artes da mineração, construção de es-
tradas, estatuária e escrita, e do conhecimento do valor dos diamantes,
esses nômades construíram uma cidade e puseram a trabalhar a servil
raça negra que vivia perto dos campos de diainautc. Ü:; kukuanas, mis- '
tura racial híbrida, estão perdidos na amnésia racial, tendo esquecido
suas augustas origens e as artes que fluíram deles e estão agora simples-
mente reduzidos à proteção do tesouro e à limpeza das estradas. Mas
não estão completamente rebaixados. Fiéis às pseudocientíficas narrati-
vas da raça, as mulheres (tipicamente consideradas os elementos mais
"conservadores" retendo os traços ancestrais por mais tempo que os ho-
mens) revelam traços fisiológicos eloquentes de sua ancestralidade
branca perdida - certa dignidade no porte, seus lábios "não desagrada-
velmente grossos", seu cabelo "mais cacheado que lanudo", e uma admi-
ração atávica pela "brancura de neve" da pele de Deus (p. 58). Esses tra-
ços atávicos de uma raça fundadora superior os elevam, assim somos
informados, acima dos zulus de Natal. À diferença dos zulus, que, nos
dizem, são um ramo ainda mais degenerado dos kukuanas, eles não se
instalam próximos do solo, de cócoras, mas sentam-se em bancos, recor-
rente medida de dignidade racial nas narrativas de viagens da época.
Afirma-se de uma vez a metáfora familiar de recapitulação. O rei
Twala descende de um patriarca con1 o corrupto 11orm:: genérico Kafa.
lnfadoos, irmão do rei Twala, descreve a si mesmo como "quase criança",
criança racial privada tanto ·da memória histórica de seus precursores
como do valor dos diamantes e do ouro, que são para ele meras ninharias
infantis, "pedras brilhantes, belos brinquedos". Além disso, a família real
kukuana é ela própria perigosamente degenerada - oferecendo um es-
petáculo de desordem familiar enlouquecida. Nos traços do rei Twala .
'
lê-se a degeneração da raça. Ele é a encarnação negra dos putativos sig-
nos da decadência, excessivamente gordo, repulsivamente feio, de nariz
\ )

_)

'
e./[famflia bran,a de hemtm - O discurse ,elenial ~ a u inv~n;4e de patriar,ade

chato, caolho, "cruel e sensual ao máximo" (p. 64). Sua degeneração se


manifesta mais claramente em sua sensualidade indiscriminada. É um
polígamo. "Marido de mil mulheres", seu acesso a elas é descontrolado;
sua família carrega todas as marcas de transgressão e falhas, e a terra
geme sob seus "caminhos vermelhos" (pp. 53, 69).
A família real kukuana é sob todos os aspectos uma família corrom-
pida. Significativamente, o princípio da desordem da corrupção familiar
é feminino. É imediatamente aparente que o reino de Twala é ilegítimo,
a corrupção fundada sobre uma presunção feminina - a tentativa da
mãe de controlar a questão da geração e da descendência. Nascido como
o gêmeo 1nais fraco, signo de decadência orgânica, aos olhos de Hag-
gard, Twala usurpou o lugar de seu irmão legítimo, com a conivência da
mãe. Segundo o conhecimento etnográfico e popular da época, que Hag-
gard certamente conhecia, os nguni tinham o hábito de matar o segundo
,. gêmeo a nascer. O que parece ter-se apossado da imaginação de Hag-
gard nesse aspecto era a ameaça que os gêmeos pareciam exercer para a
vida do pai. Como observa A. T. Bryant, acreditava-se que "se ambos os
gêmeos vivessem, o pai certan1ente morreria" 27• Explica Josiah Tyler: "Se
nasciam gêmeos, um era imediatamente destruído para que o pai não
. •·
. ' morresse"28• "Esse assunto dos gêmeos", como Bryant o chama, servia
aos interesses de Haggard como uma perigosa ameaça à continuidade
patriarcal. Com a ajuda de Gagool, a isanusi (curandeira) e mãe de Twa-
la, Twala assumiu o posto de rei, cm flagrante violação dos costumes do
povo. Em suma, a interferência feminina na sucessão da herança mascu-
lina mergulhara a terra no caos.

A lVIÃE ARCAICA
Abjeção colonial

Não é de surpreender que a isanusi, Gagool, represente o nadir da dege-


neração. A descrição que Haggard faz dela, eloquente de uma profunda

27. A. T. Bryanr, O/dm Times in Zululand and Natal (Londres: Longmans, 1929), p. 640.
28. J. Tylcr, Fqrty YcarsAm~ng thc Zulus (Cape Town: Struik, 1971), p. 104.

359
Couro imp(rial

ansiedade racial e sexual, é um catálogo prático dos estigmas de baixeza


associados às mulheres africanas. Gagool é tão velha que quase deixa de
ser humana. No entanto, sua idade representa uma regressão, voltando
no tempo até um ponto em que o humano se torna bestial. Uma "enn1-
gada figura simicsca", ela perdeu o porte ereto do adulto e se arrasta cm
quatro patas. Tudo nela é simiesco: a fenda da boca; o queLxo prognata;
seu crânio nu, amarelo e projetado; suas profundas rugas amareladas;
seus negros olhos cintilantes; suas garras. Sua regressão racial à bestiali-
dade recapitula a regressão familiar à infância: ela "não é maior [ ... ] que
uma criança de um ano" (p. 67). A regressão se completa quando, depois
de seu anúncio profético da superioridade racial dos brancos, ela cai em
espumantes convulsões, a condição de insanidade patológica associada
mais de perto às mulheres.
.,
Mas seu conhecimento sobrenatural põe os homens inteiramente
sob seu poder. Seu mero toque durante o "farejar das bruxas" é equiva-
lente a uma castração ritual. Uma vez tocado, um homem "enrijeceu os
membros como se estivessem paralisados, e seus dedos, dos quais caíra a
lança, ficaram moles, corno os de u,n morto recente" (p. 75). Repetida e
ritualmente invocada por sua isanusi feminina como a "mãe, velha mãe"
da terra, ela detém todo o poder de vida e morte. O que parece ter hor-
rorizado Haggard foram as consequências mortais do poder da geração
feminina para os homens. "Qyal é o destino do homem nascido de mu-
lher?", entoa a multidão. "Morte!" é a resposta. Para completar, "ela e só
ela conhece o segr~do das 'Três Bruxasm (p. 113). O último ponto é im-
portante para a clara impressão que dá das fontes sobredeterminadas da
profunda ansiedade de Haggard, em que a paranoia psicossexual, racial
e de classe se funde com um conhecimento espontâneo de que o segredo
..
da produção ela riqueza mineral na África do Sul e, portanto, da espera- ·'·

da regeneração da Grã-Bretanha estava, de fato, na geradora força de ..


, ...
trabalho das mulheres. ·í

Para Haggard, ademais, o conhecimento sobrenatural de Gagool pa-


rece lembrar a autoridade alternativa das médiuns nas sessões londrinas
a que assistiu e que o enervaram a ponto de fazê-lo desistir de compare-
cer. Como indica Gilbert, a obscura corrente de misticismo que fluiu ao

360
cA/amília bran<a do homem - O diuurso <olonial e a rânflenrão do pa1riar<ad1J

longo do ocaso do século XIX, culminando na publicação de Isis Unvei-


led [Isis desvelada], de Madame Blavatsky, reforçava possibilidades inte-
lectuais alternativas de condução e má condução feminina. Não foi por
acidente que Haggard encarnou essa terrível possibilidade na isanusi
africana. Documentos coloniais são eloquentes da dificuldade com que
... os administradores homens viam as isanusis africanas, que eram pre-
dominantemente mulheres. As minas do rei Salomão é um elaborado es-
forço paranoico de afastar a misrura da mãe criada da classe trabalha-
dora e mulher negra, através <lt: uma narrativa disciplinadora da força
reprodutiva feminina.

O FETICHISMO DA MERCADORIA
E O RITUAL DO NASCIMENTO lVIASCULINO

Irrompe mna crise sobre a herança na família real, e uma rivalidade de


sangue entre irmãos chega ao clíma.x numa batalha. Revela-se que Um-
bopa, que apoia sua legitimidade reconhecendo a "paternidade" racial
dos ingleses, carrega nas costas a marca de uma cobra, fetiche que indi-
caria seu direito ao trono. Depois da batalha, os homens brancos acer-
tam a crise de legitimidade com uma cerimônia de posse do monarca,
que põe Umbopa à testa da nação sob duas condições: que ele reconhe-
ça o patrimônio racial deles nos diamantes e que jure vassalagem a qua-
i'
tro éditos que fundamentalmente restringem o acesso do monarca ao
'
trabalho das mulheres. Antes, Twala justificara o sacrifício das mulheres
cm termos da continuidade da casa masculina: "É assim a profecia de
meu povo: 'Se o rei não oferecer o sacrifício de uma bela jovem no dia
da dança das donzelas aos antigos que se sentam e observam das mon-
tanhas, ele cairá e, com ele, sua casa'". Em outras palavras, a casa do pai
depende do controle ritual das mulheres; se esse poder for interrompido,
e com ele o controle das isanusis, o poder do monarca kukuana sení se-
';
(
veramente restrito. A novela conclui com um esforço narrativo extraor-
dinário para legitimar o reordenamento da autoridade geradora na ci-
dade negra e o desvio das riquezas excedentes para os bolsos dos
cavalheiros brancos.
Couro impaial

Só Gagool conhece a entrada secreta para as minas, imagem psicos-


sexual que dispensa comentários. A entrada da estreita passagem é guar-
dada por enormes colossos fenícios nus. Sobre a porta da câmara do
tesouro os homens leem seu patrimônio racial, o título para a proprieda-
de dos diamantes: "Paramos e demos estrepitosas gargalhadas sobre as
gemas que tinham sido encontradas para nós há milhares de anos e guar-
dadas para nós pelo capataz de Salomão morto há muito tempo[ ...] Nos
as tínhamos" (p. 129). Em outras palavras, o patrimônio é uma herança
encontrada com base na semelhança racial de familia com os "brancos"
egípcios. Não por acaso, o patrimônio está inscrito cm hebreu. Haggard
partilhava da noção comum de que os "zulus se parecem com os judeus
nos costumes". "A origem dos zulus é um mistério, ninguém sabe de
onde eles vêm, ou quem foram seus predecessores, mas acredita-se que
eles provenham de linhagem árabe, e muitas de suas cerimônias e costu-
mes se parecem com as dos judeus"29• O antissemitismo de I-Iaggard,
com sua antipatia pelos capitalistas das minas e sua convicção de que o
imperialismo devia ficar nas mãos da nobreza proprietária de terras, co-
locava os judeus numa região de atraso racial, que eles partilhavam com
os zulus. (Em She aparecem vários estigmas simiescos que se conside-
rava partilhados entre judeus e africanos). Ao mesmo tempo, o trabalho

necessário dos escavadores negros para extrair os diamantes fica invi-
sível. Assim se completa o primeiro princípio de repressão.
Imediatamente depois, a mãe Gagool é esmagada por uma rocha e se
afirma um momento ritual na narrativa colonial masculina. Co1n a mor-
te da mãe, os homens são reduzidos a urna condição de infância. Eles
são mergulhados na escuridão e forçados a se arrastar sobre as mãos e os
joelhos. "Toda humanidade parecia ter-nos abandonado" (p. 131). O que
segue é uma extraordinária fantasia do nascimento masculino, que cul-
mina na regeneração da humanidade branca. Com grande dificuldade,
os homens acham a entrada para a passagem de volta da mina. Depois

29. Rider Haggard, C~tywayo and HiJ White Neighboun (Londres: Trubncr & Co., 1882),
P· 53·
cAfamflia branca do hom~m - O discurso colonial~ a rtinwnr4o do pa1riarcado

de horas de trabalho e esforço agonizantes, eles finalmente saem do tú-


nel escuro e tombam de cabeça, cobertos de sangue e lama, gritando de
alegria, incapazes de andar, mas banhados na luminosidade rosada do
alvorecer.
Há uma nota final a essa estória. Numa explosão de frenesi anal
antes de dei.xar o útero/túmulo, Quatermain enche os bolsos de diaman-
tes - diamantes tão grandes como "ovos de pomban. Esses ovos de
pomba são símbolos férteis de duas novas ordens reprodutivas. D e acor-
do com esta narrativa fantasmática de regeneração patriarcal branca, os
homens brancos dão à luz a nova ordem econômica do capitalismo im-
perial minerador, enquanto reprimem o trabalho dos homens neg ros e
ao mesmo tempo põem o processo nas mãos da pequena nobreza. Eles
alcançaram uma nova forma de reprodução humana, um nascimento
masculino autóctone que anula a mãe. Finalmente, os ovos de pomba se
tornam os meios de regenerar a pequena nobreza decadente, pois per-
mitem que Qyatcrmain, como o próprio Haggard, volte à Grã-Breta-
nha e compre as terras de uma propriedade. A ssim, a aventura do capi-
talismo imperial restaura o cavalheiro com terras à testa da Família do
Homem - que continua, no entanto, uma família patológica, pois ain-
da não admite uma mãe.
Dessa maneira, A s minas do rei Salomão concebe a reinvenção do pa-
triarcado imperial branco através de uma poética racial e de gênero legi-
timadora. Inventa um patriarca branco regenerado que institui e con-
trola um rei subserviente e racialmente atrasado, que assegurará a
superioridade racial dos brancos e seu título patrimonial aos diamantes.
Ele reorganiza a produção e a reprodução dentro da família negra, usur-
pando o controle ilimitado do chefe sobre a vida e o trabalho das mu-
lheres. E nega violentamente o princípio da força geradora (tanto pro-
dutiva quanto reprodutiva) das mulheres negras. Nlas esse campeão de
vendas vitoriano poderia ficar simplesmente como uma excentricidade
ficcional, se não fosse pelo fato de que é sintomático de tendências fun-
damentais que surgiam na cultura de conquista da época.
Couro imptrial

A I NVENÇÃO D E TRADI Ç Õ ES
Pais brancos e reis negros

Natal, onde Haggard se achava em 1875, era uma das menos promissoras
das colônias britânicas. Sem nenhuma matéria-prima vital para exportar
e a centenas de quilômetros dos mercados da Cidade do Cabo, era po-
bre, isolada e vulnerável. Durante os primeiros anos do século XIX, a l
área assistira a muita turbulência e desgraça quando chefes locais rivali-
zavam e se contrapunham por terras e poder, sob a pressão de recursos
j,.
ambientais que escasseavam. Entre 1816 e 1828, o líder zulu Shaka tinha
construído, a partir dos levantes, um formidável reino militar que atraiu l
1
1
para sua ó rbita muitos clãs menores, destruindo o resto num grande
efeito dominó de ruptura (o mftcane). Nos anos 1830, pequenos bandos 1
de bôeres nômades invadiram essa zona esvaziada. Os britânicos, con- 1
tudo, tinham recebido de Shaka a garantia de terras na costa e se eriça- 1
vam com a perspectiva de que Port Natal caísse nas mãos hostis dos
Voorlrek.kc:rs [pioneiros). C hamarll.m às pressas tropas do Cabo e arreba-
taram Natal dos bôeres cm 1843. No entanto, os britânicos relutavam em
perder os próprios bôeres, pois precisavam assentamentos mais densos
para contrabalançar a presença potencialmente esmagadora dos zulus
com que lindavam ao norte (fonte primária, com o Zimbábue, da Ku-
kuanaland de Haggard). Os britânicos ofereceram aos bôeres enormes
fazendas sem consultar os nativos africanos, mas muitos bôeres preferi-
ram viajar para o interior uma vez mais, tornando-se proprietários au-
sentes ou vendendo suas terras a especuladores. Enormes áreas de terra
cm Natal eram deixadas incultas e abandonadas, mas fechadas a assen-
tamentos. Este era o paradoxo que assolava os fazendeiros brancos de
Natal: escassez de terra num vasto país de milhares de acres e escassez
de trabalho numa terrn povoada por milhares de africanos.
Depois da descoberta de diamantes em 1867 e de ouro em 1884, o
paradoxo se aprofundou, à medida que o trabalho negro partiu para os
campos de mineração e melhores salários do interior. Em 1882, H aggard,
em seu primeiro texto publicado, Cetywayo and H is White Neighbours
[Cecywayo e seus vizinhos brancos], chll.mou a esse paradoxo "enigma
<:.Afam(/ia branca do homtm - O discurso colonial ta rtinWnfdO do patriarcado

não resolvido do futuro, a Q!iestão Nativa"3º. É esse enigma que As mi-


nas do rei Salomão tenta resolver, revelando no processo que os proble-
mas da terra e do trabalho estão enraizados na questão fundamental de
quem controlaria o trabalho das mulheres - questão debatida em vá-
rios níveis: entre mulheres e homens negros dentro das terras zulu, entre
os homens negros e entre os colonos brancos e os homens negros.
l\1uitos dos elementos do drama familiar zulu estão presentes em As
minas do rei Salomão. Em 1856 tinha estourado uma crise sobre o her-
deiro lc.-:gal <lo rei zulu, Mpandc, luta que prefigurava a crise da sucessão
masculina encenada na novela. Como na estória de Haggard, a sangrenta
rivalidade entre os filhos de Mpande, Cetshwayo e Mbulazi, atingiu o
clímax numa batalha em 1856; o relato da batalha real por uma testemu-
nha ocular forneceu a Haggard muitos dos detalhes que veio a usar na
cena da batalha no romance. A descrição que Haggard faz do degenera-
do rei usurpador, Twala, evoca as imagens racistas de Cetshwayo como
., um monstro parecido com um gorila nos jornais populares ilustrados .
Tanto no romance quanto em seu correspondente histórico, além disso,
os homens brancos interferem na crise da herança masculina e se arro-
gam os poderes de patria potes/as branca. Isso lhes confere a autoridade
para dar posse àquele que, acreditam, será um monarca negro subser-
viente cm termos favoráveis ao Estado colonial.
' Na situação histórica, Cetshwayo foi o vencedor e Shepstone visitou
''
.•. a corte zulu para dar-lhe as bênçãos oficiais cm 1861. Contudo, em vez
das boas vidas adulatórias que esperava, Shepstone, como os heróis de
Haggard, escapou da morte por pouco. De qualquer modo, as partes se
reconciliaram e, em sc.-:tc.-:n1bro de 1873, Shepstone encenou uma pomposa
cerimônia de reconhecimento da monarquia que só ele mesmo levou a
sério. Cetshwayo foi proclamado rei com pompa e cerimônia inventadas
por Shepstone especialmente para a ocasião. Shepstone via a si n1esmo

30. Idem, op. cit., p. 281. Ver também Jeff Guy, 7ht Datruction iftht Zulu KingdtJm (Johanncs-
burgo: Ravan Press, 1982); e H. Slater, -lhe Changing Panem ofEconomic Relations in
Rural Natal, 1838-1914~, in Shula l\1arks e A. Atmore (orgs.), Economy and Society in Pr~-
lndustrial SouthAfrica (Londres: Longmans, 1980).

...
Couro impuial

grandiosamente "em pé no lugar do pai de Cetshwayo e assim represen-


tando a nação" e enunciou quatro artigos que via como necessários para
pôr fim à "contínua carnificina que obscurece a história de Natal". Esses
artigos são notavelmente semelhantes aos artigos de controle que os
heróis de Haggard demandariam cm As minas do rei Salomão.
Shepstone sentia claramente que tinha sido instituído como pai fun-
dador nominal da nação zulu, e ele mesmo e H aggard fizeram bastante
alarde retórico sobre seu novo status como pai dos zulus. Todavia, a co-
roação não foi simplesmente um capricho de Shcpstone, mas uma ré-
plica sintomática das tradições inventadas de posse monárquica que os
coloniais cnct:navam por toda a África britânica. No que Tercncc Ranger
chamou de "tradição inventada da 'Monarquia imperial"' os colonos -
na falta de um corpo único de ritual legitimador - ofereceram aos afri-
canos uma fantástica mornice de realeza de veludos e lantejoulas que
tinha escassa semelhança com a realidade poütica da monarquia britâ-
nica3'. Na Grã-Bretanha, o rnonarca tinha-se reduzido a uma figura ce-
rimonial. Os centros de poder político estavam alhures, nos escritório~
dos magnatas industriais, nos corredores do parlamento, nos estaleiros e
usinas. Nas colônias africanas, a figura do rei se pôs de pé e passeou
outra vez pelo exterior. A ideologia anacrônica da monarquia imperial
tornou-se um amplo culto administrativo, cheio de invenção e vaidade,
das quais a coroação de Cetshwayo por Shepstonc (como a de Umbopa
por Haggard) era sintomática.
Ranger apela para "a 'teologia' de uma monarquia onisciente, onipo-
tente e onipresente [ ...]representada para os africanos como quase o
único ingrediente da ideologia imperial"J1 • Ele negligencia, assim, aque-

31. Terence Ranger, "The lnvencion ofTradi1ion in Colonial Africa•, in Eric Hobsbiwm
e Terence Ranger (orgs.), 7h~ /twmtion ofTradition (Cambridge: Cambridge Univcrsity
Press, 1983). Ver também David Cannadine, "lhe Contoct, Perfonnance and Meaniog of
R.irua!: lhe British Monarchy :rnd the 'lnvention ofTradition', 1820- 1977", in Hobsbawm
e Ranger, 7h, Inw,.1ion of Traditi,m. Para uma excelente e.~ploração da invenção da
tradição zulu, ver Shula Marks, 1he Ambiguitiu ofDcptndPlu: Class, Nationalism and tht
State in Twmtieth Ctntury Natal (Johannesburgo: Ravan Press, 1986).
32. Ranger, "The lnv-,ntion ofTr:adition ... ", p. 211.

366
e.Afam(lia branca do homt111 - O diuurso colonial e a rtinvt11;4o do patriarcado

1e que era o mais autorizado e influente dos rituais inventados nas colô-
nias: o patriarca ou pater familias proprietário. Em termos de impacto
político, ademais, o mais significativo era a nova hierarquia inventada
entre o "pai" branco e o rei negro.
Nos documentos coloniais, por exemplo, Shcpstone é referido com
insistência ritual como "o pai" de Natal. Sir Henry Bulwer o chamava de
"um dos primeiros pais das colônias - o próprio Nestor da colônia"JJ.
Os negros se dirigiam a Shepstone (o que sem dúvida correspondia à
sua fantasia) como som/Jewu, que, como diz Jeff Guy, "não obstante mui-
ta especulação sobre seu significado, na linha do 'poderoso caçador', é
uma palavra de origem sesoto que quer dizer 'pai da brancura"'.l-4. Como
o próprio Shepstone, Haggard entendeu que o nome carregava a impli-
cação totalmente infundada de que os zulus viam Shepstone como o
potentado originário do próprio povo negro: Shepstone seria "por exce-
lência seu grande chefe e 'pai' branco". Numa mensagem para Loben-
gula, chefe dos Ndebele, Shepstone anunciava portentosamente: "O
vice-governador de Natal é olhado como o pai de todos""·
Shepstone levava o título de pai e tudo o que decorria dele cm ter-
mos de autoridade política era muito sério, não só como título, mas
como prática política e administrativa que teve sérias consequências
para a história da África do Sul. Basta um exemplo entre muitos. Nos
anos 1850, ele e o bispo Colenso de Natal, antes de sua famosa briga,
inventaram uma trama megalomaníaca para resolver a "questão nativa"
fundando um Reino Negro (como a Kukuana/andde Haggard) ao sul de
Natal, sobre o qual exerceriam autocraticamente o poder como patriar-
cas fundadores - cada um encarnando, respectivamente, os poderes
absolutos de "pai da igreja" e "pai do Estado". Numa carta aos membros
da igreja da Inglaterra, Colenso afirmava ser chamado de soku/e/eka (pai
do surgimento) e de soóantu (pai do povo). Para não ser superado, Sheps-

33. Apud Ruth E. Gordon, Shepstone: 1Ju Rol, of th, Family in the History of South Afrita,
1820 -1890 (Cidade do Cabo: Balkcma, 1968), p. 309.
34. Guy, 1he De1tru,tion ofthe Z11lu Kingdom, p. 51(n).
3S· Ride, 1falQr.lrd, Day1 ofMy Lift, p. 9.
Couro imptrial

tone seria o "pai da brancura". Os dois homens se arrogavam (como os


heróis de Haggard) todos os poderes da geração e sucessão masculinas.
Seus papéis não ficariam aquém do de geradores da civilização e regene-
radores da antiga Família do Homem.
Shepstonc manipulou e inventou tradições de pais e reis, dando a
impressão de compromisso com certos costumes dos chefes zulus, mas
retinha para si o status superior de pai - a n1esma solução aos patriar-
cados em conflito que a estória de H aggard ensaia. Assim, Shepstone se
apoiava em uma ideologia de paternidade divina como predeterminada
e natural, fonte fundadora de toda autoridade. O rei negro, por outro
lado, era sua reprodução simbólica, mortal, investido de autoridade ape-
nas cm virtude de sua mímica do poder originário do pai.
Por essas razões, sugiro, a reinvenção d os pais e dos reis na África do
Sul pode ser vista como uma tentativa d e mediar várias contradições:
entre a burocracia imperial e a pequena nobreza proprietária decaden-
te; entre o patriarcado colonial dirigente e os patriarcados pré-capita-
listas nativos; e, por último, mas mais significativamente, entre as mu-
lheres e homens de todas as raças. Chegamos aqui à última e mais
importante dinâmica subjacente tanto â estória de H aggard quanto à
emergente economia do Estado colonial.

A INVENÇÃO DA OCI OS IDADE

A poütica de Sh·epstone se baseava numa dara percepção do precário


equilíbrio de poder em Natal e na Z ululãndia. Ele sabia que a frágil
colônia não podia permitir-se antagonizar os zulus e que lhe faltavam a
força militar e as finanças para expulsar os negros de suas terras e levá-
los ao trabalho assalariado. Como perguntava com pesar o missionário
Henry CaUaway: "Como poderiam 8 mil brancos espalhados num imen-
so território obrigar 200 mil homens de cor a trabalhar contra a vontade
dcl~s?"J 6 • Desse enigma surgiu o discurso excepcionalmente injurioso da
degenerada "ociosidade" dos negros. De todos os estigmas da degenera-

36. H enry Callaway, A Nltmoir, lV[. S. Bcnharn, org. ( Lond=, 1896), P· 88.
c.lfJam(/ia bran,a do homem - O discurso ,olonial e a rânflert;á? do patriar,ado

ção inventados pelos colonos para distinguir-se dos africanos, o mais


incansavelmente invocado era a ociosidade: o mesmo estigma da indig-
nidade racial que Haggard via como marca da degeneração dos kukuana
e da perda de seu direito aos diamantes.
É raro encontrar qualquer relato de viagem, memória de colono ou
documento etnográfico sem passar por um coro de reclamações sobre a
indolência, ociosidade ou torpor dos nati,·os, que, afirmavam os colonos,
preferiam intrigas e lutas, vagabundagem e lascívia à indústria. A obser-
vaiyão do Capitão Ludlow ao visitar a Missão Umvoti é típica: ..O pai de
família acocorado no jardim, preguiçosamente fumava seu cachimbo...
É divertido olhar um deles fingindo trabalhar"3i. Haggard via o ódio
racial dos brancos como enraizado nessa teimosa abstração do trabalho
africano: "O homem branco médio [ ...] detesta o negro e o olha como
um preguiçoso que não serve para nada, que deveria trabalhar para ele,
mas não o fará"38•
A ideia de ociosidade não era descritivamente acurada sobre os tra-
balhadores fazendeiros negros, nem nova. Os colonos levaram com eles
para a África do Sul o resíduo de 300 anos de discurso britânico que
associava pobreza a indolência. Começando no século XVI na Grã-Bre-
tanha, surgira um intrincado discurso sobre a ociosidade não só para
traçar distinções entre classes trabalhadoras, mas também para sancio-
nar e impor a disciplina social, para legitimar o roubo de terras e para
alterar hábitos de trabalho. Depois de 1575, os desempregados e os po-
bres refratários, por exemplo, não eram mais banidos para fora dos mu-
ros das cidades, mas detidos nas "casas de correção", onde eram tratados
cumo recurso para atender às necessidades das crescentes manufaturas.
Isolando a inquietação e prendendo os desesperados durante as crises de
desemprego, as casas de confinamento, frequentemente ligadas a ma-
nufaturas e fornecendo-lhes trabalho, também ensinavam novos hábitos
e formas de trabalho. Parece que muitos dos presos dessas casas de cor-
reção eram mulheres, o que sugere que essas casas eram instituições li-

37. \ V, R. Ludlow, Zululand and Cety-.:JOJ'I) (Londres: Sumpkin, i\Ianha.11, 1682), p. 18.
38. Ridcr Haggard, Cetywayo, p. 57.
Couro imptri11/

minares, mediando a transferência gradual do trabalho produtivo da


família para a fábrica.
O discurso da ociosidade é, falando propriamente, um discurso sobre
o trabalho - usado para distinguir entre o trabalho desejável e o inde-
sejável. A pressão para trabalhar era, mais precisamente, pressão para
alterar hábitos tradicionais de trabalho. Durante a revolução das terras e
a guerra às cabanas no século XVIII, os relatórios do Conselho Oficial
de Agricultura da época elogiavam os cercamentos de terras por tirarem
a independência <las ordens mais baixas, assim forçando os trabalhado-
res a trabalhar todos os dias do ano. Ao mesmo tempo, o discurso sobre
a ociosidade é também um registro da resistência do trabalho, resistên-
cia então censurada como torpeza e indolência.
O s colonos tomavam emprestados e emendavam os discursos britâ-
nicos e formulavam recla':Ilações nas mesmas imagens de degeneração,
misturando a ameaça e a irracionalidade dos animais, comuns às descri-
ções europeias das classes perigosas urbanas. O missionário Aldin Grout
escrevia a James K.itchenham: "Eles veem nossas ferramentas e nosso
trabalho, mas raramente fazem uma pergunta sobre as primeiras ou ex-
pressam o desejo de fazer o segundo". Lady Barker opinava: "É uma
ideia nova e revolucionária para um negro que ele tenha que fazer qual-
quer trabalho". Com o que James Bryce concordava: "O homem negro é
um sujeito preguiçoso que gosta mais de falar e de dormir do que do
exercício físico contínuo, e induzi-lo ao trabalho é a maior dificuldade
de que se queixam os donos de minas na África do Sul.
Mas os criadores africanos diferiam marcadamente do proletariado
britânico dcscnraiza<lo e miserável que os colonos conheciam. Os afri-
canos ainda gozavam de alguma autossuficiência e eram, no geral, fa-
zendeiros melhores que os intrusos brancosl9. Como observa Slater,
"muitos brancos de fato passaram a depender dos produtos agrícolas
africanos até para sua subsistência"•º. O destino dos colonos era cons-

39. Patrick Harrics, "Plantation.s, Pa.sscs and Prolct:irians: L:ibor and thc Colorual St:1tc in
Ninctccnth Ccntury Natal•,fournal ofSoutlum Afrfran Studi,113, 2, p. 375.
40. Slatcr, "lhe Changing Pattems .. . •. p. 156.
vffamília óranca do homrm - O discurso co/,nial ta rti11<1m(4o do patriarendo

tantemente ameaçado pela autossuficiência dos fazendeiros negros.


Qyeixas da indolência negra eram frequentemente queixas sobre há-
bitos diferentes de trabalho. Se negros aceitavam salário para trabalhar
para brancos, era relutante ou brevemente, para ganhar dinheiro, com-
prar armas ou gado, e depois voltar para casa. Assim, o discurso sobre a
ociosidade não era um discurso monoütico imposto a um povo infeliz.
Ele era antes um campo de contestação, marcado pela teimosa recusa
dos africanos em alterar seus hábitos de trabalho, assim como pelos con-
flitos nas comunidades brancas.
l\tlais importante: o ataque aos hábitos africanos de trabalho, sugiro,
era no fundo um ataque à poligamia e às mulheres fazendeiras: a dinâ-
mica fundamental subjacente tanto às i\llinas do rei Salomão quanto à
poütica nativa de Natal. A questão, duramente contestada durante déca-
!
das, era sobre quem se beneficiaria do trabalho das mulheres.

! CASAMENTO, DONZELAS E MINAS


1 .
.1 Não é preciso procurar muito longe para ver que a raiz do problema do
trabalho negro estava no papel das mulheres na produção. Qyando
Froude visitou Natal, ele notou severamente: "O governo não fará os
negros trabalharem". E logo chegou às causas do problema. A "indolên-
cia masculina", via ele, enraizava-se lamentável, mas inevitavelmente nos
"detest áveis sistemas de poligamia e escravidão feminina".

Meu anfitrião fala muito e amargamente eh questão negra. Se os negros tra-


balhassem, ele triplicaria seus lucros[...] É um problema intrincado. Aqui em
Natal há perto de 400 mil nativos [...] Podem ter quanta terra quiserem para
se assentar. São poügamos e tratam suas mulheres como escravas, enquanto
eles mesmos são ociosos ou coisa pior•'.

1'l Missionários e colonos exprcssavarn sua repugnância à poligamia cm


tom moral, colocando-a firmemente no discurso da degeneração racial.

41. Froude, Short Studits, PP· 370-1.

371
Couro imptrial

A prática da poligamia era considerada uma marca nos homens africa-


nos, como Haggard marcara o rei T·wala, pela qual eles chafurdavam nas
profundezas do abandono sexual: o "pecado africano". No entanto, do-
cumentos coloniais revelam prontamente que o ataque à poligamia era
um ataque aos hábitos africanos de trabalho, os quais sonegavam aos
ressentidos fazendeiros o trabalho dos negros e das negras. O trabalho
excedente que o homem negro controlava através de suas esposas era
visto como uma ameaça direta e mortal aos lucros dos colonos. Qµei-
xava-se o governador Pine: "Como pode um inglês com um só par de
mãos competir com um nativo que tem de 5 a 2 0 mulheres escravas?"-1.1.
De modo parecido, o conhecimento de Haggard da força produtiva das
l
l
mulheres anima seu medo de Gagool cm A s minas do rei Salomão.
Em Natal, as negras se tornaram o campo no qual os brancos comba-
tiam os negros pelo controle das terras e do trabalho delas. Como mos-
trou Guy, as sociedades pré-capitalistas do Sul da África dependiam do
controle da força de trabalho, mais que do controle sobre os produtos. A
unidade fundamental da sociedade zulu era o lar (11muzi, imizi), onde
um único h omem (umnumzana) tinha autoridade sobre sua esposa ou
esposas, seus filhos, gado, jardins e pastos. Cada lar era mais ou menos
independente, com as mulheres cuidando da terra confiada ao chefe do
clã. Cada mulher trabalhava em seus próprios campos, vivendo com seus
filhos numa casa separada, que levava o nome dela. Uma estrita divisão
do trabalho por g~nero prevalecia, e as mulheres faziam a maior parte do
trabalho agrícola e doméstico - capina, plantio, colheita e cuidado das
plantas, construção e cuichdo da casa, confecção de implementos e rou-
pas, cozinha e criação dos filhos. O s homens lavravam a terra nos primei-
ros estágios, faziam alguns dos implementos e cuidavam do gado. Em
suma, o lar se baseava numa exploração sistemática do trabalho das
mulheres e na transformação desse trabalho cm poder político e social
masculino.

4 2. Apud H .J. Simons.Aftiran Hi,mm : 1htir Lexal Status in SouthAfrira (Ev:inston: North·
wcstcrn Univcnity Prcss, 1968), p. 2 1.

372
cÁfamília bran,a do hom,m - O diuurso ,olonial, a rcin v,nçâo do patriarcado

O meio simbólico d e transformação do trabalho da mulher no


poder do homem era o ukulobolo, ou o casamento. Um novo lar era
formado quando um homem obtinha permissão para deLxar as barra-
cas reais, ou o lar de seu pai, para casar com uma mulher de um clã
diferente. O casamento era formalizado pela transferência de lobo/o
do novo marido para o pai da mulher, geralmente na forma de gado.
Os colonos menosprezavam esse sistema,julgando-o baixo e comer-
cial; mas ele era antes uma troca cerimonial que garantia a transfe-
rência do trabalho e da sexualidade da mulher. Se ela não produzisse
os filhos ou o trabalho esperados, o gado seria reduzido em quanti-

fr.

dade, ou devolvido, caso em que o casamento seria dissolvido. Ao
mesmo tempo, o gado podia ser retido, se o novo marido maltratasse
J. sua mulher. De qualquer forma, a sociedade não era igualitária, e a
~' maioria dos lares tinha só uma ou duas esposas. O poder na forma de
gado e esposas era concentrado nas faixas mais altas das linhagens
dos chefes, e estes distribuíam o poder hierarquia abaixo para seus
filhos e seguidores leais. O lobo/o era, assim, uma troca simbólica,
mais do que comercial, pelo qual a força de trabalho das mulheres era
incorporada em rebanh os de gado e trocada entre homens ao longo
do tempo e do espaço.
Ao mesmo tempo, é muito significativo que o t.rabalho das mulheres
tenha liberado os h omens para lutar no Exército zulu. A relação entre o
trabalho das mulheres e a força militar zulu é crucial. Nos lares familia-
res, as mulheres forneciam um excedente de alimentos para elas e para
os homens nos acampamentos. A distribuição desigual das mulheres
permitia que o poder masculino fosse ordenado hierarquicamente, den-
tro de uma arena de competição masculina, pelo recurso básico da força
ele trabalho. Assim, quem quer que controlasse a regulação do casamento
controlaria a base de poder da economia. A classe dominante era com-
posta de homens acima da idade de casar, e a classe subordinada, de
mulheres e crianças. Guy chama isso de "uma clivagem fundamental tão
profunda que poderia ser chamada de clivagem de classe", mas a divisão
r fundame~tal era de gênero, pois um filho h omem podia deixar a classe
subordinada com certa idade, quando se casasse com uma mulher, isto é,

'

373
Couro imptrial

entrando numa divisão do trabalho por gênero, em que ele exploraria a


força de trabalho da mulher.
Em Cetywayo, Haggard dedicou bastante espaço à poligamia, que ele
reconhecia ocupando o centro do poder zulu. Numa metáfora que ex-
pressava muito bem a relação entre poder matrimonial e militar, aconse-
lhava: "Prive-os de suas tropas de criados na forma de esposas e force-os,
assim, a assumir um trabalho honesto como o restante da humanida-
de"·43. Alterar a circulação das mulheres era, assim, o mesmo que cortar a
jugular do poder masculino zulu.
Na verdade, essa abordagem era precisamente a política de Shepsto-
ne. Diante a füria dos colonos fazendeiros, Shepstone seguiu obstinada-
mente uma política de segregação, administração e conciliação. Nas re-
servas, repartidas de modo infame como eram, os negros podiam ter
acesso à terra sob as "leis C(?Stumeiras" (assim como os kukuanas na es-
tória de Haggard). O lar comum devia ser mantido, dado que a resistên-
cia às mudanças na poligamia encontrava tenaz resistência dos negros.
Mas a família seria gradualmente modificada, desviando os lucros do
trabalho feminino do lar para o tesouro colonial, na forma de impostos
de moradia e de casamento.
Sabendo que uma cabal proibição da poligamia não funcionaria, tan-
to Shepstone como Haggard apoiavam o imposto de moradia. Esse im-
posto era, de fato, um imposto sobre as esposas e, portanto, a maneira
mais segura de empurrar os africanos ao trabalho assalariado. Ao legislar
o controle das taxas do imposto de moradia ao longo dos anos, a admi-
nistração de Shepstone tentou tirar o controle do tráfico de trabalho
feminino das mãos dos m:~os, enquanto os levava ao trabalho nas fa-
zendas e minas dos brancos. Isso criava uma restrição administrativa
sobre a poligamia, fazendo ainda da força de trabalho feminina uma
considerável fonte de renda para o decadente tesouro. O imposto sobre
o trabalho das mulheres de fato se tornaria a principal fonte de renda
para o Estado. Significativamente, o que esse fato revela é que não havia
objeção a explorar o casamento e o trabalho das mulheres enquanto

43. Ridcr Haggud, Cn)~.::ayc, p. 5z.

374
<:./{Jam(/ia branta do homrm - O diuurso tolonial r a rrin'Cltnção do patriarcado

transação comercial, desde que os brancos, e não os negros, se benefi-


ciassem disso. Ao mesmo tempo, para administrar esse processo gradual
de fricção cultural, seriam indicados chefes dóceis para implementá-lo e
supervisioná-lo.
Em 1876, porém, a situação mudou abruptamente. A descoberta de
diamantes marcou uma nova iniciativa imperial no Sul da África, quan-
do Lorde Carnarvon, secretário do Estado britânico para as colônias,
projetou um esquema para confederar a África do Sul. Shepstonc rece-
beu a responsabilidade de anexar o Transvaal, e foi o próprio I-Iaggard
que desfraldou a bandeira britânica sobre uma relutante república bôer
naquele ano. A anexação rompeu o precário equilíbrio entre os bôeres,
Natal e os zulus, e pôs em movimento uma série de acontecimentos que
levaram inexoravelmente à invasão da Zululândia. Tanto Shepstone
quanto Haggard deploraram a invasão, na medida em que ela era, cm
:ermos práticos, intempestiva e destinada ao desastre. Estavam conven-
cidos de que a maneira mais segura de controlar a terra e o trabalho da
.t\.frica do Sul cm a segregação, o controle indireto através de chefes se-
lecionados e o desvio regulado do trabalho das reservas para a economia
do Estado.
De fato, a estória fantástica de Haggard é fiel ao plano político de
Shepstone para a Zululândia - Kukuana/and deveria permanecer terri-
torialmente separada, mas efetivamente uma "colônia negra" de Natal,
enquanto um líder negro obediente que aceitava o patrimônio racial dos
brancos era instalado. Fiel à poütica segregacionista de Shepstone, aos
brancos não seria permitido estabelecer-se ali. Ao mesmo tempo, fiel
às lealdades de classe de Haggard - embora não ao resultado da his-
tória - o butim das minas ficaria nas mãos da pequena nobreza pro-
prietária, e não nas dos capitalistas mineradores. Finalmente, o trabalho
das mulheres negras ficou oculto na história, tornado invisível quando
Gagool foi esmagada pela rocha.
Dessa maneira, As minas do rei Salomão dá forma à reinvenção do
patriarcado imperial branco através da legitimação de políticas raciais e
de gênero. A obra afuma um patriarca branco no controle de um rei
negro subserviente, que garante a superioridade racial branca e o direito

375
Couro ímp~rial

aos diamantes. Ela reorganiza a produção e a reprodução dentro da fa-


mília negra, usurpando o controle do chefe sobre a vida e o trabalho das
mulheres. Ao mesmo tempo, nega violentamente a força sexual e de
trabalho das mulheres africanas.
Na verdade, a obsessão vitoriana com a descoberta e os mapas do
tesouro é um exemplo vivo do fetichismo da mercadoria - a negação da
origem do dinheiro no trabalho. A descoberta do tesouro implica que o
ouro e os diamantes estão ali simplesmente para serem encontrados, ne-
gando, assim, o trabalho de escavação da terra e o contestado direito de
propriedade. No fetiche do tesouro, o ouro gera a si mesmo - exata-
mente como na estória de Haggard os homens geram a si mesmos na
mina-útero.
Assim, a narrativa da regeneração fálica é assegurada pelo controle
das mulheres na arena do império. O saque das terras e dos minérios é
legitimado através do desaparecimento da mãe a da reinvenção do pa-
triarcado branco dentro do abraço orgânico da regenerada Família do
Homem. É apenas adequado, portanto, que Haggard tenha sido ele
mesmo capaz (pela fantástica recepção britânica à sua história de re·
gcneração fálica e racial) de comprar a propriedade de que tinha sido
deserdado.
7
Olive Schreiner
Os limites do feminismo colonial

A VIDA de Olive Schreiner foi notável pelo paradoxo. Nascida em 1855


de pais missionários num canto obscuro da África do Sul colonial, con-
sagrou-se a uma recusa apaixonada do império e de Deus. Aos 8 anos,
mostrou os punhos aos céus e renegou a igreja. Ainda que filha do impé-
rio, devotou sua vida e escritos a lutar pelos despossuídos, estimulando
os bôeres contra os britânicos durante a Guerra dos Bôe_res (1899-1902)
e os africanos contra ambos. Instruída na disciplina e no decoro e des-
tinada desde a infância à vida doméstica, desconsiderou o decreto pa-
rental e vitoriano, tornando-se feminista, escritora reconhecida e uma
das intelectuais mais influentes de seu tempo'.

1. Para material biográfico primário sobre Schreiner, utilizei a excelente biografia de


Ruth First e Ann Scott, OliveSrhrciner(Nova York: Schocken Books, 1980); Samuel C .
Cronwright-Schreiner, 1be Lift of Oli-ve S<hrciner (Londres: Unwin, 1914); Johannes
Meintjes, O/foe Schreiner: Por/rail of a SouIh African 1$1,man (Johannesburgo, 1965); e
Zclda Friedlandcr, Until lhe Hear/ Changes: A Garland for 0/ive Schrciner (Cidade do
Cabo, 1967). Ver também Nadine Gordimer, *The Prison-Housc ofColonialism, Review
of Ruth First and Ann Scott's O/iv e Schrcine,~, Times Literary Supplemenl, Lond1es,
1980. Ver também a resenha critica de Susan Gardner da biografia de Ruth First e Ann
Scott, *No Story, No Script, Only the Struggle: Fi.rst and Scott's O/ive Schreiner", Hecale
7, 1 (1981), pp. 40-61. Para as cartas de Schreiner, \'er S. C. Cronwright-Schreiner (org.),
'lhe Lelltrs of Olive Schreiner, 1876-1920 (Londres: Unwin, 1924), e Richard Rive, Oli'IJt
S,hreinu: Lnurs, 1871-1899 (Oxford: Oxford University Press. 1988).

377
Couro imp~rial

A vida de Schreiner abrangeu o auge do colonialismo mineiro sul-


africano, o surgimento e a decadência do império industrial vitoriano e
a deflagração da I Guerra :Nlundial. Migrando continuamente ent:e a
África do Sul colonial e a Grã-Bretanha fi11 de síêde, ela estava numa
excelente posição para testemunhar - como fez cm suas novelas, en-
saios, escritos políticos e ativismo - os principais tumultos de seu tem-
po: a descoberta dos minerais preciosos na África do Sul, as crises do
industrialismo vitoriano tardio, os levantes socialistas e feministas do
fim do século, a Guerra dos Bôcres e a grande conflagração europeia da
I Guerra Mundial. Seus livros foram escritos, como ela disse, "com san-
gue"; constituíam uma vida inteira de denúncia apaixonada da injustiça
social nas colônias e na Grã-Bretanha e uma feroz defesa dos despossuí-
dos: africanos e bôeres, prostitutas e judeus, mulheres e homens da classe
trabalhadora. Nesse aspecto; Schreiner era excepcional cm seu tempo.
Aos 15 anos, Schreiner juntou-se à confusa corrida aos campos de
diamante, onde, entre as tendas, bordéis e barracos de zinco do }./ew
Rush, testemunhou cm primeira mão as convulsões do capitalismo colo-
nial. Viajando para a Grã- Bretanha cm 1881, viu nas fétidas favelas e
cortiços do East End as calamidades do industrialismo vitoriano tardio.
A publicação na Grã-Bretanha de sua novela 7he Story of an African
Farm [A estória de uma fazenda africana] granjeou-lhe fama instantâ-
nea, a admiração de alguns dos grandes luminares de seu tempo e a dis-
tinção de ser a prim~ira escritora colonial a ser amplamente aclamada na
Grã-Bretanha.
Em 1889, Schrciner voltou à África do Sul como celebridade, mas
imediatamente elevou sua voz solitária contra o crescimento do jacobi-
nismo britânico, condenando publicamente as incursões de Jameson e
os sangrentos espancamentos de Rhodcs cm Mashonaland. N os jornais
e palanques, ela censurava publicamente a violência britânica contra os
africâneres durante a Guerra dos Bôeres e a clandestina irmandade de
sangue entre o capitalismo minerador e o nacionalismo africâner que
proliferou logo depois. Os britânicos a internaram durante a guerra por
suas simpatias bôeres e, por sua vez, os africâneres a vilificaram depois
por seu apoio aos africanos.
0/iv ~ Jchuinu - Os limita dr, f~minismtJ coltJnial

A vida e os escritos de Schreiner foram atravessados por contradi-


ções. Solitária por temperamento, ela era comensal de celebridades. An-
siosa por reconhecimento, afastava-se da publicidade quando a tinha.
Insistindo no direito das mulheres ao prazer sexual, sofria tormentos ao
confrontar seus próprios e urgentes desejos. Divergindo de seu mundo
imperial, era às vezes a mais colonial das escritoras. Surpreendentemen-
te avançada em seu antirracismo e análise política, caía ocasionalmente
nos estereótipos raciais mais comuns. Respeitando a monogamia, espe-
rou até os 40 anos para casar. Depois de encontrar "o homem perfeito",
escolheu passar a maior parte de sua vida de casada longe do marido.
Assombrada pela saudade do lar, perambulava de continente em conti-
nente, da fazenda à cidade, incapaz de fixar-se. E ra uma radical política,
mas não se alinhava a nenhum partido. Pacifista beligerante, apoiou os
.-• bôeres em sua luta armada contra os britânicos e o Congresso Nacional
Africano, quando surgiu, em 1912.
Explorando com grande paixão e integridade o que significava ser ao
mesmo tempo colonizada e colonizadora num mundo vitoriano e afri-
cano, Schreiner levou ao limite algumas das contradições críticas do im-
perialismo, o que nos permite e.xplorar alguns dos persistentes conflitos
entre raça e gênero, poder e resistência que assolam nossos tempos.

O COLONIAL ISMO DOMÉSTICO


E A MISSÃO CIVIL IZAD ORA

Schreiner nasceu em 24 de março de 1855, de uma mãe inglesa ni'io con-


formista e de um pai alemão luterano, numa casa de chão de terra batida,
numa missão chamada Wittebergen, numa remota reserva africana na
fronteira de Basutoland (hoje, Lesoto). O conjunto mínimo de constru-
ções ficava solitário no deserto, açoitado por trovões, pela ventania e por
um sol abrasador como uma danação. Os vizinhos mais próximos eram
os amafingo, sotho e poucos sobreviventes /woisan. A agência dos correios
mais próxima ficava a 160 quilômetros.
Em 1837 - ano em que a rainha Vitória ascendeu ao trono - Re-
bccca Lyndall casou-se com Gottlob Schreiner. Nascida na suave

379
Couro imptrial

sobriedade de um presbitério não conformista de Yorkshire, a mãe de


Olive, Rebecca, fora cuidadosamente preparada para seu destino como
ornamento da carreira de um homem de classe média. Como convinha
a uma filha do clero, recebeu o afetado ensino próprio de sua classe:
francês e italiano, canto, desenho e um generoso acesso a livros. Cul-
tivada e brilhante, queria ser médica, mas, menina, sua educação pre-
tendia fazê-la decorativa e não prática, e as portas da universidade e do
hospital estavam fechadas para ela. Em seu próprio relato, a casa de
seus pais era um triste lugar de carnes frias e catecismo, pecadores e
salmos. Destinada à sonolência "indiferente e semidesperta" do ca-
samento e da maternidade burgueses, vislumbrou no império a radian-
te esperança de fuga•. Em um dos serviços de seu pai, encontrou um
jovem missionário alemão, Gottlob Schreiner e logo concordou em ca-
sar-se com ele. Três semanas depois do casamento, viajaram para a
África do Sul.
Os Schreiners assumiram seu lugar numa narrativa imperial que já
tinha dois séculos. No século XIX, quando os nômades brancos avança-
vam constantemente para o leste e para o norte, a terra ficou escassa,
e111 parte cm razão de seu sistema imprevidente de cultivo e criação, e

explodiram tensões em relação ao gado e à água, irrompendo atritos e


guerras ao longo das fronteiras. Qyando os britânicos tomaram o Cabo
cm 1806, a maioria dos colonos era holandesa, de modo que o governo
britânico patrocinou a chegada de milhares de novos colonos nos anos
1820, para estimular a agricultura e aumentar a presença britânica nas
fronteiras. Foi ao longo dessas fronteiras que os missionários se assen-
taram, para servir como amortecedores entre os coloniais e os africanos,
;
e foi ali, num assentamento k.hoikhoi no Cabo oriental que os pais de
Olive Schreiner tiveram sua primeira missãol.

2. Çronwright-Schreiner, 1hr Ltt!trs ofOlivt Schuintr. Referências adicionais a esse texto


serão citadas como LtlltTS.
3. Para um excclénte relato da poütica e da cultura missionárias, ver Jean e John Comaroff.
Of Rrvdation and Rtwlu1io11: Christianity, ColMialism and Comciousntll iTI South /1/rira
(Chicago: Univcrsity ofChicago Prcss, 1991).

380
0/iw Jchreintr - Os limiltl d<J ftminism<J C<Jl<Jnial

A vida de Rebecca ali refutou em quase todos os detalhes o estereó-


tipo da pétala desbotada e murcha da feminilidade vitoriana: a ideolo-
gia burguesa que sua filha mais tarde denunciaria apaixonadamente em
seus escritos. Ao mesmo tempo, sua vida testemunha as sutis traições
tanto do império quanto do culto d a domesticidade. Durante o casa-
,. mento, o ministro arrancara bruscamente a grinalda do chapéu de Re-
becca. A frivolidade das flores era imprópria para a mulher de um mis-
sionário, e a repreensão do clérigo anunciava uma vida destituída de
confortos e acessórios. Na chegada à África do Sul, as ilusões do im-
pério também foram rudemente arrebatadas aos Schreiners. Desde o
momento da chegada ao Cabo assolado pelos ventos, até sua morte
como rancorosa e destituída inválida num convento, a vida de Rebecca
foi uma inclemente sucessão de infortúnios.
Sob todos os aspectos, Gottlob Schreiner, o pai de Olive, pecou ape-
nas por falta de ambição. Filho de um sapateiro alemão, deixara o ofício
lJ, de remendão aos 18 anos e decidiu atender ao apelo missionário. Depois
de um começo pouco promissor, foi ordenado pela Socied ade Missio-
nária de Londres, então a maior instituição evangélica disseminando
suas mercadorias espirituais na arena do império. Gottlob chegou à
África do SuJ em 1837, o mesmo ano da Grande Jornada, e assumiu um
lugar entre "os homens supérfluos", como os chamou Haggard, a mistu-
ra imperial de pobres desempregados, os mais jovens ou ilegítimos fi-
lhos do clero e pequenos nobres decadentes, para os quais a Europa que
se industrializava não tinha lugar.
Nada no contexto de Rebecca poderia tê-la preparado para as tarefas
que a aguardavam. Durante décadas, ela e Gottlob perambularain de
missão cm missão, amontoados cm vagões de gado através dos escal-
dantes desertos da fronteira com sua grande família. Abatida pelo desa-
pontamento e pela pobreza, pelos riscos naturais e pela ira dos africa-
nos, a única resposta de Rebecca foi o fan atismo e seu único consolo, a
promessa sempre adiada do céu.
Rebccca dirigia seu lar na missão com ferocidade constante. Grávida
durante a maior parte das duas décadas, tinha u filhos quando Olive
chegou. D ois meninos morreram na infância e, imediatamente antes do
Couro impaial

nascimento de Oüve, morreu um terceiro. Rebecca só encontrava con-


solo andando de um lado para outro no cemitério d a igreja até o nasci-
mento de Oüve. Num réquiem macabro, Schreiner foi nomeada em
h omenagem aos três irmãos mortos: Olivc Emilie Albertina Schreiner.
Sua identidade, assim, tomou a primeira forma em torno de uma mágoa
feminina e do luto por uma identidade masculina perdida.
Em Rebecca, o fanatismo da missão civilizadora mascarava uma se-
vera crise de identidade social, e seu descenso de classe representava em
miniatura uma crise mais geral na legitimidade do poder colonial. Sem
os d ivertimentos de classe, como o rroquet, o críquete e as bandas, Re-
becca só podia distinguir-se dos africanos e dos bôercs por um racismo
escancarado, um puritanismo sexual inflexível, uma dieta de autoncga-
ção e um regime de culpa. Schreiner descreveu o descenso de classe de
sua mãe, na linguagem da mercadoria doméstica, assemelhando-a a um
grande piano fechado e equivocadamente "utilizado como urna mesa
comum de sala de jantar"4 •
Mais que Gottlob, Rebecca se via como o anjo vingador de um Deus
punitivo. I-lá evidências de que ela abusava dos filhos, açoitando-os fu-
riosamente pela menor falta. As crianças eram proibidas de falar holan-
dês, pois o inglês era o idioma dos racialmente eleitos, e as fronteiras da
diferença racial deviam ser violentamente policiadas. A mais antiga das
m emórias de Schreiner foi a de receber 50 chibatadas da mãe aos 5 anos
por pendurar-se num trinco de porta e usar uma palavra tabu cm ho-
landês. A incomensurável injustiça dos espancamentos foi a principal
razão que a fez tornar-se uma livre-pensadora e, aos oito anos, sem
qualquer precedente ou exemplo, recusar o credo de seus pais e recusar-
se a ir à igreja. Schreiner aprendeu a lição da violência doméstica e, com
ela, "um a amarga rebelião indescritível" contra "Deus e o homem". Dai
em diante, sentir-se-ia sempre uma exilada e uma pária.

4. Cronwright-Schreincr, 7he Lifa ofOlit:e Sd;reiner. As demais referências a esse texto serão
citacus como L ift.
Oliw Jrhrd,ur - Os limius do f~minismo rolonial

COLONIALISMO E AMBIGUIDADE DE GÊNERO

A identidade passa a existir através da comunidade, e desde o início as


primeiras relações de Schreiner com sua família foram moldadas por
\lma obscura economia de identidade feminina através da negação.
Como Cullwick, ela aprendeu muito jovem que só seria premiada com
o amor de sua mãe se negasse a si mesma. Como consequência, caiu no
dilema de obter afirmação apenas por uma negação ritual do eu, a triste
lógica do masoquismo cristão que deixou marcas em sua vida até muito
tempo depois que ela rejeitou o dogma cristão. Longe de ser um refúgio
sagrado, o domínio doméstico encerrava apenas martírio e deslealdade.
A identidade de Schreiner foi construída em torno de uma tortuosa
lógica de rebelião de gênero e culpa, autonomia e punição. O prazer do
corpo, ela aprendeu, podia ser inexplicavelmente respondido por uma
' dor aniquiladora. A transgressão do limiar da domesticidade provocava
uma retribuição violenta e reinava uma aliança infeliz entre palavras
proibidas e poder. Ela descobriu na linguagem o poder mágico de con-
jurar do nada o milagre da aprovação de sua mãe. A feitiçaria do escrever
prometia um projeto radical de autojustificação e autonomia. Mas a lin-
guagem era também o reino do perigo, pois as palavras estavam sempre
ligadas à transgressão. A transgressão oferecia a tênue esperança de au-
tonomia e a potência da autocriação, mas também a ameaçava com a
catástrofe da negação, de si mesma ou do outro. Na linguagem, os li-
mites do si- mesmo eram permanentemente ambíguos, e as palavras po-
diam provocar, como ela bem sabia, a pronta aniquilação ela rejeição e da
:
retribuição, um sentido que formou profundamente suas relações com o
público. Além disso, seu irmão Will a espiava, e então recontava suas
1: estórias no jantar da família como se fossem dele. A apropriação mas-
! 1
culina da linguagem levou Schreiner a convulsões de raiva e a imbuiu de
um sentido precoce da narração de estórias como uma competição de
gêneros sobre a autoria e a autoridade.
Negociar os limites entre privado e público, identidade e diferença,
desejo e punição, o eu e o outro, tornou-se uma atividade de toda a vida,
eivada de perigos. Se o culto da domesticidade encarregava as mulheres
Couro impuial

em particular com a manutenção dos limites entre privado e público,


domesticidade e império, casamento e mercado, todos os escritos de
Schreiner testemunham o custo punitivo que isso tinha para as mulhe-
res. Em toda sua escrita presidem imagens liminares: vestíbulos e jane-
las, praias e leitos de morte, meio-dia e meia-noite. Caracteristicamente,
sua imaginação se prendia aos perigosos limites entre domesticidade e
selva, amor e autonomia, obediência e escândalo.
Criados e visitantes ficavam chocados pelo estranho espetáculo de
Schreiner, menina ainda, andando febrilmente de um lado para o outro
na varanda, com o cabelo desarrumado, as mãos fechadas às costas, mur-
murando estórias para si mesma - numa pequena mímica das andan-
ças de sua mãe no cemitério antes de dar à luz. Ali na varanda, o limiar
entre domesticidade e império, Schreiner deu início ao projeto radical
de inventar a identidade através da narrativa. Ao longo de sua vida, ela
repetiu esse movimento, levando vizinhos e senhorios à distração com
seu incansável andar. De fato, andar para frente e para trás entre os ex-
tremos parece ter sido a atividade essencial da vida de Schreiner.
D esde a mais tenra idade, Schreiner oscilava entre uma visão agnós-
tica d o "horrível universo" como caprichoso e cego e uma crença oposta
numa "verdade" universal dirigindo o destino dos planetas. Incapaz, en-
quanto criança, de resolver os dilemas que a assolavam, Schreiner passou
a ser afligida por fobias, sentindo sua incapacidade de resolver os para-
doxos com a força de uma tristeza inconsolável. Ela ficava acordada de
noite, chorando, e ·então se escondia embaixo da cama, com o rosto para
baixo no chão frio durante horas, paralisada de medo. Encontrou alívio
da "agonia em pensar que não havia o Além" apenas mordendo e maltra-
tando as mãos e batendo a cabeça na parede até a insensibilidade5. Es-
colada no sacrifício, foi um dia ao deserto para pedir a Deus uma respos-
ta final, evento que recriou em A estória de uma fazenda africana. N um
altar de 12 pedras achatadas, ofereceu uma costeleta gorda de cordeiro e,

5. L(lters, p. 56. Para uma análise detalhada das ideias filosóficas de Schreiner, ver Joyce A. .,
Bcrkman, 71,e Healing [,,,agination ofOliw Schreinrr (?vlassachusetts, 1989), e idem, "Thc

Nurturant Fant:isics ofOlive Schreiner•, Frontitrs 2,3 (19n), pp. 8-17.
0/iw J,hrtintr - Oi limita do feminismo colonial

no calor do sacrifício, esperou pelo fogo de Deus. Mas a conflagração


nunca ocorreu e, num paroxismo de descrença, ela cobriu seu corpo de
estrume. No momento mesmo em que abandonava a cristandade, ela
encenou a lógica masoquista da própria cristandade, mortificando o cor-
po num apelo desesperado por salvação da morte da alma. Infligindo
punição a si mesma, ela esvaziava o poder de sua mãe de puni-la e, ao
mesmo tempo, autorizava seus próprios motins propositais.
Seus "desesperados rompantes" de fúria e confusão eram um protesto
histérico contra sua situação inacf':irávcl como mulher. Desde extre-
mamente cedo, Schreiner via seu sofrimento como uma questão de gê-
l1 nero: "Qyando cu era menina - uma criança, sentia essa terrível amar-
gura na alma, porque cu era mulher" 6 • A principal força de sua recusa do
~
mundo colonial vinha de um sentido profundo de exílio feminino, e

r muito de sua motivação a escrever derivava de seu desejo de inventar


uma comunidade alternativa, além d as armadilhas da domesticidade co-
lonial. Para Schreiner, a invenção da fronteira entre privado e público,
- tão importante para a manutenção do poder colonial da classe média,
trazia apenas frustração e ultraje.
A infância de Schreiner foi marcada por um senso de solidão que só
podia ser aliviado pela fuga à fantasia e pela autonomia da autocriação.
Como menina, ela estava destinada a viver em exílio político e econômi-
co dentro de sua privilegiada cultura branca. Como exclama Lyndall em
A estória de umafazenda africana: "Nascer mulher é nascer marcada. Para
o homem, o mundo grita 'Trabalhe!' Para a mulher, ele diz: 'Pareça"'7. A
imagem de Lyndall como uma menina sentada à janela, seu rosto pálido
encostado no vidro, simboliza as invisíveis hacreiras que se interpõem
entre as mulheres e o mundo. Sua tentativa furiosa e fracassada para
estilhaçar o vidro da janela e abrir os teimosos postigos testemunha a
..
triste percepção de Schreiner sobre as barreiras diante do poder das mu-
lheres. Se o colonialismo doméstico fazia fetiche do vidro como ícone

6. Úlltn, 27 jun., 1908.

7. Olive Schreiner (sob o pseudônimo de Ralph lron), 1lu Story af an Afri,an Farm: A
Ntt:1tl (Londres: Hutchinson, 1910), p. 43.
Couro imptrial

do avanço espiritual e do conhecimento racional como penetração, para


Schreiner (assim como para Charlotte e Emily Bronte) o vidro da jane-
la simbolizava os limites frequentemente fatais do poder feminino. Para
essas mulheres, o vidro tornou-se um símbolo não de progresso, mas de
mutilação feminina, frustração doméstica e traição.
Incapaz de achar saídas para a história social de sua solidão, ela se re-
fugiou na vocação solitária da linguagem. Nos livros, vislumbrava a possi-
bilidade delirante de que sua solidão não era a aflição de uma condenada
infiel, mas, ao contrário, a marca <le uma comunidade de visionários e
buscadores da verdade. O!iando sua fam ilia vivia perto de Cradock, uma
das cidades-guarnição ao longo da fronteira norte, Schreiner podia vague-
ar livremente pela biblioteca local, liberdade de que não dispunham mui-
tas 1neninas brancas de seu tempo, nem mulheres e homens africanos.
A sensação de exílio ª? longo da vida de Schreiner era em grande
medida o resultado da alienação social do intruso colonial numa terra es-
tranha. Como colonial branca, ela estava alienada dos africanos à sua vol-
ta. Sua blasfêmia e descrença a tinham alienado de sua família. Sua cultu-
ra colonial amesquinhada não reconhecia e menos ainda alimentava sua
inteligência ou sua força. Apesar disso, a vida colonial deu a Schreiner,
como criança branca, maior liberdade fisica do que tinha a maioria das
meninas britânicas de sua classe e época. Escapando com facilidade das
africanas supercxploradas e de sua distraída mãe, ela encontrou no deser-
to a esperança de redenção dos limites de sua situação.
Além da missão sepulcral se estendia uma terra imensa e quente de
cactos e areia vermelha, rochas achatadas e espinhosas árvores aromá-
ticas, onde os únicos sons eram os bali<lus das ovelhas e a tosse dos babuí-
nos nos rochedos. Nesse lugar amado de mimosas e miragens, Schreiner
passeava sozinha com suas confusões sob uma catedral azul de céu. Aí
desenvolveu seu talento precoce para a introspecção: "Em tal silêncio",
escreveu mais tarde, "só se podia pensar e pensar". A natureza a batizou
com uma nova divindade: considerando as gotas de cristal da planta de
gelo e os rastos do leopardo na areia, buscando o enigma das origens nos
fósseis e n as veias escarlates de um coração de avestruz, passou a ler na
natureza os ocultos hieróglifos de Deus.

386
0/ivt Jehrdntr - 01 limita do ftmini1mo eolonia/

Nascida em linhagem colonial, Schreiner herdou uma Bíblia e urna


cultura europeia fora de lugar na lústória africana de seu amado Karoo.
Com sua renúncia à Bíblia, perdeu para sempre o diálogo da prece e her-
dou em seu lugar um sentido de exílio e solidão. Mas era incapaz de aban-
donar todo consolo e projetou na imperturbável imensidão de céu e deser-
to a silhueta metafísica da religião perdida. O s brotos da samambaia, a
trilha das formigas na areia, o leve passo do suricate, tudo oferecia uma
alegoria alternativa de Deus. Se o trovejante D eus masculino da Bíblia
perdera sua voz, esta aparecia agora através de uma natureza feminina. A
nan.1re-1,a a levou para perto "daquela sutil simpatia que une todas as coisas
e dá às pedras e rochas uma fala que até nós podemos entender"'.
A grande e estranha beleza do Karoo deu a Schreiner o alívio perma-
nente de um consolo metafísico: "O universo é Uno e vive!"9 • Uma visão
monista do cosmos anima toda sua escrita de uma fé mística na "unida-
de de todas as coisas"'º. Em sua alegoria favorita, 1he Ruined Chapei [A
capela cm ruínas], um anjo de Deus expõe uma alma humana a um ho-
mem descrente. O homem descobre "numa ínfima gota" o universo in-
teiro, a natureza íntima das estrelas, líquens, cristais, os dedos esticados
das crianças. Fitando a alma completamente nua, ele estremece e mur-
mura: "É Deus"". Em A eJlória de umafazenda africana, Waldo move as
mãos "como se as estivesse lavando ao Sol". Assim, também Schreiner
encontrou a absolvição de sua descrença no sacramento do Sol.
O sacramento do Sol de Schreiner, porém, a cegou para o tom colo-
nial de seu monismo metafísico. O vasto deserto lhe deu o campo me-
tafísico para sua fome de infinito, mas também ocultou a história muito
real do saque colonial que lhe deu acesso privilegiado a essa imensidão.
Não havia nada de infinito no Karoo; ele era cortado pelas cercas da
intrusão colonial, leis de terra coloniais, a história de espoliação e desor-
dem colonial. O ceticismo teológico de Schrciner seria sempre tem-
perado por uma fé mística na divindade do cosmos. !Vias sua fé foi ob-

8. Idem, op. cir., p. 65.


9. Idem, op. cir., p. 113.
10. Idem, op. cir., p. 76.
11. Idem, Stori,1, Drtams andAlltgorits (Londres: Unwin, 1913).
Couro imptrial

tida ao custo de ignorar durante algum tempo a história do colonialismo.


Nas rapsódias de Schreiner sobre o infinito, era fácil esquecer que ela
andava sobre terra saqueada.
As hesitações de infância de Schreiner poderiam ter sido menos de-
cisivas, se não tivessem sido sobredeterminadas pelas crises e contra-
dições de sua situação colonial. A vida de seu pai foi marginal em todos
os sentidos. Como alemão, Gottlob era u1n estrangeiro tanto para os
britânicos quanto para os holandeses. Como colonial, era estrangeiro
para os africanos. Os fazendeiros brancos se ressentiam amargamente
pelo treinamento que ele dava aos africanos em habilidades industriais,
pois os nativos, pensavam eles, eram predestinados a não ser mais que
lenhadores e carregadores de água. Embora Gottlob fosse membro ho•
norário da elite branca, a ficção da superioridade racial era desmentida
por sua falta de talento para qualquer ocupação e a consequente pobreza
e desgraça crônicas de sua família.
Contra o culto do colonialismo doméstico, a família de Schrciner
vivia escassamente melhor que os relativamente prósperos fazendeiros
africanos à sua volta. Contra o dogma patriarcal, sua mãe era o poder
dominante no lar. Contra o dogma cristão, a fé de seus pais era premia·
da apenas com "desastre e mais desastre, e problemas". A Família do
H omem vitoriana era uma piada e um fracasso. Considerando tudo, a
evidência da vida de Schreincr não podia admitir tun evangelismo fácil,
e o fracasso do império em manter sua promessa alimentou nela um
pessimismo precoce.
Nessa época, a narrativa familiar ganhou forma cm torno da desgra-
ça do pai colonial. Oscilando de missão em missão, Gottlob Schreiner
foi acossado pelo fracasso e por perturbações econômicas. Em 18651 o
ano em que sua irmã menor, EUie, morreu ainda bebê, depois de várfas
demissões e censuras, ele foi finalmente expulso do ministério por in-
fringir a proibição do comércio. Depois de 27 anos de trabalho missio-
nário, o envelhecido e inepto pregador tentou estabelecer-se no comér-
cio. Em lombo de cavalo pelo país, vendia ovos, couros, café e pimenta
para os africanos, mas uma após outra suas lojas fracassavam e, assolado
por dívidas, rendeu-se aos crcJores e mergulhou no desamparo. A fa-

388
0/iw J<hreiner - Os limites do feminismo ,oltmial

mília se espalhou. Rcbecca e Gottlob passaram o resto de suas vidas


dependendo da caridade dos filhos. Olive foi mandada para seu irmão
mais velho, Theo, diretor de escola em Cradock, sob cuja tirânica tutela
sua vida virou um "inferno na terra". Theo a imbuiu de um sentido dura-
douro de seu intelecto como deformação e como crime: "Ele voltava as
costas de modo tão acintoso quando eu começava a pensar"n. Por essa
época, Schrciner começou a escrever.
Desde o princípio, a raça era uma dimensão agudamente ambígua de
sua precoce rebelião. Schreiner escava presa nun1 paradoxo que nunca
.• viria a resolver completamente. Seu monismo místico aliviava sua soli-
dão e sensação de exílio, mas divergia da história da diferença de raça e
gênero que formou sua experiência. Seu panteísmo, apesar de toda sua
integridade emocional, era uma abstração metafísica. Como abstração,
servia para ocultar e, assim, ratificar os verdadeiros desequilíbrios em
poder social à sua volta. A presença mais perturbadora desses desequilí-
brios aparece e~ sua obra sobre a duplicação racial da figura da mãe.

RAÇA E A MÃE DUPLICAD A

Schreiner jurava que nunca tivera mãe, mas de fato várias figuras de mãe
estavam presentes cm sua infância. Há um momento ritual em quase
todos os escritos de Schreiner em que uma criança em frenético deses-
pero é interpelada e acalmada pela natureza. O deus da natureza de
:,
Schreincr, porém, não é um deus masculino, mas é consistentemente
• J
feminizado. Desejo sublinhar, contudo, que essa natureza feminina é
também branca e anglicizada. Nas alegorias e novela:; <lc Schreincr, a
natureza é uma projeção de um princípio feminino branco, figurado
como uma mãe de vestes longas que se inclina sobre a criança e acaricia
seus cabelos desarrumados.
A relutância inicial de Schrciner cm olhar d iretamente para a políti-
ca da raça aparece mais vivida e problematicamente na figura da hostil,
ameaçadora e antipática hotentote (Khoikhoi) à ~spreita em muitas de

u. Ltflers, P· 97.
Couro imptriaf

suas estórias'3• Mais que nada, era à presença nas sombras das mulheres
africanas em casa que Schreiner devia qualquer sentido de privilégio
que tivesse. l.\tlas essa presença era paradoxal. Algumas das experiências
de Schreiner sobre os limites do poder estavam nas mãos de negras pu-
nitivas. Como criança branca, tinha poder racial potencial sobre as tra-
balhadoras africanas em sua casa; mas essas mulheres possuíam um po-
der terrível e secreto de julgá-la e puni-la. A estória de uma fazenda
africana, o "Prelúdio" a From Man to Man [De homem para homem) e
muitas das primeiras estórias de Schreiner são assombradas pela figura
da "velha aia" zangada, uma reflexão, ainda que oblíqua e negada, à resis-
tência doméstica e ao ressentimento das mulheres africanas - resistên-
cia e ambiguidade que põem radicalmente em questão a ânsia monística
de Schreiner por uma unidade humanística e, mais tarde, uma solidarie-
dade feminista universal.
Qyase sem exceção, as negras na ficção de Schreiner são criadas. Na
História de uma Fazenda Africana, as negras passam como sombras fugi-
dias pela vida dos brancos, sem nome e sem identidade. A noção de que
podem ter vida própria não aparece. No "Prelúdio" de De homem para
homem, a africana é chamada simplesmente Velha A.ia. Ela não tem
nome; carrega apenas uma categoria de trabalho (aia) e a identidade da
servidão. Na ficção de Schreiner, a negra fica no limiar da domesticidade
como figura de i!ltensa ambivalência.
Para Schreiner, como para a maioria dos coloniais, as africanas ser-
vem principalmente como marcos de limites. Sua principal função de
trabalho é fazer trabalhos de limites. Elas param nos limiares, janelas e
muros, abrindo e fechando portas: "A Velha Aia abriu a porta"'4 • No
"Prelúdio", a criança branca pede à criada africana para sair. "O trinco

13. Para análise das atitudes de Schrcincr sobre raça e/ou imperialismo, ver Carol Barash,
"Vi.rilc Womanhood: Olivc Shrcincr's Narrativcs of a l\•lastcr Racc", m,man's S111dits
lnurnational Forum 9, 4 (1986);}. Bcrkman, O/i'CJt Sdm:iner: F~miniJm on ·t ht Frontier(St.
Albans, VT: Edcn Prcss \.Vomcn's Publicacíons, 1979);John Van Zyl, "Rhodcs and Clive
Schrcincr~, Contrast 21 (1969); e Chcrry \.Vilhclm, "Olive Schrcincr: Child of Q\:ccn
Victoria, Storics, Drcams and Allcgorics•, English ir. A/rica 6, 2 (1979), pp. 63-9.
14. Olivc Schrcincr, From i\1an to Man (Londres: Vingo Prer$, 19S9[19~6]), p. 68.

390
Oliw Jchrântr - Os limitts do feminismo colonial

era alto demais para ela. A mulher a deixou sair"1s. As negras atendem os
rituais coloniais e domésticos de limites, separando o dia da noite, a or-
dem da desordem e a vida da morte. Esfregam as varandas, limpam as
janelas, lavam as roupas, recebem os que chegam e em geral medeiam o
t
tráfico entre coloniais e entre africanos e coloniais, marcando com sua
r presença e mantendo com seu trabalho os novos limites inventados en-
l .•
\
tre privado e público, familia e mercado, raça e raça.
1 No "Prelúdio", a Velha Aia, mais que a mãe branca, policia as banei-
' . ras entre negro e branco, garantindo a diferença racial e o decoro: "Des-
i1 ce do muro, menina! Vocé vai ficar queimada como um negro antes que
sua mãe se levante da cama. Ponha seu boné!"16• Numa curiosa reversão
do dogma colonial, as africanas presidem à missão civilizadora e ao cul-
to da domesticidade: "E lave seu rosto e arrume o cabelo [... ] e diga a
1',1ietjie que lhe ponha um vestido limpo e um avental branco"'7• Num
nível simbólico, as estórias de Schrciner expressam o reconhecimento
espontâneo de que as africanas detêm as chaves do poder doméstico dos
brancos: "A VeU1a Aia trancou a porta e guardou a chave no bolso"18 • No
entanto, como Freud, Schreiner nunca traz esse insight para fruição fic-
cional ou teórica. Em lugar disso, desloca sua irritação com o culto da
domesticidade para as criadas negras.
Por que as figuras das africanas têm tal ambivalência para Schreiner?
Em seus escritos políticos e em seu ativismo mais maduros, Schreiner era
notável por seu antirracismo e cm sua simpatia pelos negros, mas cm sua
ficção os africanos são frequentemente enigmas. Especialmente aos
olhos de suas crianças brancas ficcionais, as mulheres africanas assu-
mem um aspecto de autoridade vingativa. De homem para hom em retrata
a Velha A.ia, e não a "pequena" mãe inglesa, como a sinistra figura da
proibição doméstica: "A Velha Aia[... ] a sacudiu pelo ombro. O que vo-
cê está fazendo aqui? Não podia ver que, se a porta estava trancada, você
t não deveria ter entrado? [ ... ] Você é uma criança má e desobediente". A

15. Idem, op. cit., p. 27.


16. Ide m, op. cic., pp. 59-60.
17. Idem, op. cit., p. 42..
18. Idem, op. cit., p. 34.

391
Couro imptrial

"pequena mãe", ao contrário, é gentil e afável. O pai branco, para todos


os fins e propósitos, é uma figura ausente.
Na ficção de Schreiner, testemunha-se um deslocamento e uma
dupla negação. A mãe da própria Schreiner, como atesta a evidência,
era fria e punitiva, chegada a ataques de fúria e ao que seu marido cha-
mava de "inflamação do cérebro". Contra o decreto patriarcal, ela, e não
Gottlob, detinha a autoridade na familia. Tendo tido 12 filhos em 24
anos, sofria de aguda privação doméstica, vivendo sem conforto, muita5
vezes sem instalações sanitárias, às vezes até sem uma casa. Mesmo
quando encontraram alívio temporário em vVittebcrgen, onde nasceu
Olive, Rcbecca se curvava sob um regime esmagador de trabalho do-
méstico: caiar os quartos; costurar roupas, con:inas e lençóis; fazer sapa-
tos; cozinhar; varrer e limpar; plantar verduras e criar os filhos, enquanto
engravidava a cada dois anos. Para os Schreiners, o culto da domes-
ticidade era uma deslealdade e uma desgraça, e seu lar, um lugar de raiva
contida.
Boa parte da inspiração dos escritos de Schreiner parece brotar de
um desejo de redimir a mutilação da vida de sua mãe. Tanto Rebekah,
em De homem para homem, quanto Lyndall, em A estória de uma fazenda
africana, recebem o nome a partir de sua mãe. Como diz Antoinette cm
Wide Sargasso Sea [Grande mar de sargaços],de Jean Rhys: "Nomes fa-
zem diferença". Nomes refletem as obscuras relações de poder entre o eu
e a sociedade, e os nomes das mulheres refletem a medida cm que nosso
status na sociedade· é relacional, mediado por nossa relação social com os
homens: primeiro .º pai, depois o m:irido. Aos 16 anos, Schrciner mudou
sumariamente de nome. Ela fora chamada de Emily desde o nascimen-
to, mas insistiu que devia ser chamada de Olive desde então. Schreiner
associava "Olive" à família de sua mãe, e sua mudança voluntária de
nome expressava a nova determinação de que ela é que construiria sua
própria identidade. Mais tarde, quando casou, Schreiner recusou ceder a
autonomia feminina no nome e insistiu em que Cronwright, o marido,
assumisse o nome dela, que ela manteria. A escolha do nome da mãe e a
•'
denominação das personagens expressavam uma intensa identificação
com a história e o poder frustrado de sua mãe. Mas a redenção da figura

392
0/ive J,breiner - Os limitts d1J fem inismlJ col1Jnia/

da mãe (branca) constituiu paradoxos muito reais, cuja principal di-


mensão era a raça.
Em sua ficção, Schreiner divide o ambíguo poder da mãe tanto para
amar quanto para punir, e o projeta em três figuras distintas, que tomam
seu significado histórico a partir da hierarquia colonial: a boa mãe ingle-
sa, a repulsiva bôer Tannie e a figura da mãe substituta da sinistra babá
negra. À diferença da mãe da própria Schreiner, a mãe inglesa é uma
figura imaculada, amorosa e suave. Em A estória de umafazenda africana,
em que não há propriamente uma mãe, tant (tia) Sannie é uma paródia
grosseira do poder punitivo das mulheres. É revelador, aqui, que a figura
ela feminilidade punitiva é africâner e não inglesa. Schreiner, assim, ad-
i! ministra o dilema da deslealdade feminina projetando-a quer na figura
._
.
',. da degenerada bôer (um estereótipo racista britânico a que mais tarde
"::;;.
ela se oporá veementemente), quer na hostil, mas distanciada figura da
mulher africana. Em outras palavras, em sua ficção Schreiner redime a
ideia da mãe branca, mas apenas à custa das mulheres negras.
Sua redenção da mãe branca é conquistada a expensas de uma du-
pla negação: negação da memória histórica da füria de sua própria mãe
e negação da atuação das mulheres negras - além de sua subserviên-
cia, isto é, da lógica da narrativa colonial. No "Prelúdio", o desespero
da criança branca diante da morte de sua irmã recém-nascida é proje-
., tado para longe da mãe branca e sobre a babá negra, como princípio da

diferença e da morte. "Você a está matando como a outra!", grita Re-
bekah. "Rebekah voltou os olhos para a Velha Aia e a encarou[ ... ] 'Eu
,>
a odeio tanto!', disse"19.
,_
RAÇA, MÍMICA E A ABJEÇÃO DAS MULHERES NEGRAS

Podemos adicionar outra dimensão. No capítulo 2, argumentei que


Munby, como muitos homens vitorianos, administrava as divisões
de classe do trabalho doméstico projetando-as no domínio inventado
da raça. Como é que, nas colônias, a divisão racial do trabalho domés-

19. Idem, op. cit., p. 71.

393
Couro impaial

tico, sobredeterminada pela classe, aparece na identidade de uma


criança branca? Se, como argumento, a identidade da classe média vi-
toriana assumiu forma em torno do trabalho abjeto das mulheres da
classe trabalhadora (repudiadas, mas indispensáveis), nas colônias as
contradições da identidade eram profundamente fraturadas pela raça.
As crianças brancas - alimentadas, atendidas, acariciadas e punidas
por criadas e babás negras - recebem a memória do poder das mulhe-
res neg ras como uma herança ambígua. Parte da primeira identidade
da criança branca é estrururada cm torno da força e da autoridade, por
restrita que seja, da figura da m ãe negra. Chegando à adolescência,
porém, as crianças brancas são obrigadas, por decreto colonial, a afas-
tar-se da identificação com as mulheres africanas, com as quais foram
tão íntimas, e assim também, de aspectos significativos de sua própria
identidade. As mulheres negras passam a formar o abjeto limite inter-
no da identidade da criança branca: rejeitadas, mas constitutivas. No
processo, aparecem alguns sintomas mórbidos.
O retrato ficcional que Schreiner traça das mulheres negras revela
um reconhecimento não resolvido da fúria e da força delas, e também de
memórias ressentidas do poder que essas mulheres tinham sobre ela.
Mais tarde, Schreiner confessou a Havelock Ellis sua repugnância fóbi-
ca a comer diante de estranhos. No "Prelúdio", Rebekah também é ator-
mentada pelas mulheres negras que a olham de seus cantos com firme e
forte desaprovação enquanto ela come. As negras, zombeteiras e insul-
tantes, têm um terrível poder de objetivar e negar a identidade da crian-
ça branca: "Falavam dela como se ela fosse um muro de pedra. 'Olhem
para ela [ ...]', disse a criada negra, 'como ela come! Está tentando devo-
rar a colher [ ... ]'. Ela se ressentia de que falassem dela" 2º. Na ficção de
Schreiner, a A.ia zangada "lança uma longa sombra escura na parede"".
O poder das mulheres negras é um segredo colonial. A vida domés-
tica colonial se desenrola cm torno desse segredo, como sua temível for-
ma interior. Deslocada e negada, sua pressão é de qualquer forma sen-

20. Idem, op. cit., p. 66.


21. Idem, op. cit., p. 73.

394
Oliw Jc/Jr,inu - Os limitn do J,minismo colonial

tida em todo lugar, administrada através de múltiplos rituais de negação


e rebaixamento, cheios de constrangimento. A força invisível das mu-
lheres negras exerce pressão sobre as vidas brancas de tal forma que a
energia requerida para negá-la assume a forma de neurose. Trabalhando
durante o dia para manter o culto branco da domesticidade, à noite as
mulheres negras são relegadas para ínfimas casas de fundos (.khayas) sem
água, esgoto, aquecimento ou luz. As intimidades furtivas entre as mu-
lheres negras e as crianças brancas de que estão encarregadas; as ligações
proibidas entre as mulheres negras e seus empregadores brancos; as re-
lações carregadas de acrimônia, de tensa intimidade, desconfiança, con-
descendência, amizades ocasionais e subserviência forçada que dão for-
ma às relações entre as africanas e suas senhoras brancas garantem que
o lar colonial seja uma zona de contestação de aguda ambivalência.
Schreiner não dá a suas personagens africanas atuação fora da narra-
tiva colonial. As criadas e os criados negros são figuras-reflexo, lançando
luz ou sombra sobre os brancos, sua imaginação inteiramente absorvida
no drama colonial, assistindo às idas e vindas dos brancos, testemunhan-
do suas cenas, mas nunca agindo por sua própria conta. Não têm vida
familiar própria; suas casas são barracos sombrios no limite da domesti-
cidade, marcando os limites do espaço colonial. Suas genealogias são
rotas; seus nomes, como o de seus filhos, lhes são roubados. Facilitam o
enredo, mas apenas como veículos, não como agentes.
A semidomesticada Griet, com sua anágua amarela e sua mímica de
palhaça, encarna o sentido semiformado de Schrcincr sobre a miríade
de formas de resistência das mulheres africanas. Luce lrigaray foi a pri-
meira a sugerir que a mímica poderia ser uma forma de vingança das
mulheres. Com seu "pequeno rosto marrom-amarelado de silvícola, com
um toque de hotentote", com seu vestido amarelo e modos desaver-
gonhados, Griet serve em parte como uma encarnação paródica da mí-
mica doméstica: "dando pretensas ordens às criadas negras", ou berran-
do, "cobrindo o rosto com o avental [... ] mas espiando pelo lado do
avental por vezes para ver o efeito de seu lamento"..,. Em sua campanha

n. Idem, op. cit., pp. 106- 15.

395
Couro imptrial

de ódio contra a mulher branca, Verônica, Griet declara urna pequena


guerra de tumulto doméstico, estragando a comida com excesso de sal,
pondo sapos no banho, derrubando xícaras, cortando as plantas do jar-
dim pela raiz, "servindo a Verônica o prato lascado na hora do chá e a
faca mais cega no jantar,e [ ... ] pondo uma gota de aloé no café"11 •
1
N as casas coloniais, as mulheres fazem uma miríade desses pequenos
atos de recusa: em operações-tartaruga, surrupiando ou estragando co- 1 ~-
mida, escondendo ohjetos, lascando pratos, ralhando com as crianças ou '.
•l
punindo-as, revelando segredos domésticos, cm atos sem conta de vin- 1 1•
gança que seus empregadores identificam como preguiça, inabilidade,
incompetência, tagarelice e roubo. Em seu simpático retrato dos ritos de 1.
rebelião de Griet, Schreiner demonstra uma fina compreensão das ocul-
tas recusas domésticas das mulheres, mas a resistência de Griet é contida
e diminuída por seu status infantil, sua incapacidade de mudar qualquer
i:
coisa e seu precoce desaparecimento do texto. Se Griet transforma o f
colonialismo doméstico numa paródia, ela ainda permanece como um 1
triste testemunho da necessidade de cautela contra fazer brilhar lírica-
mente o poder subversivo da mímica e da hibridez. 1
1
Embora D e homem para homem seja uma ardente denúncia do traiço- 1
eiro culto d a domesticidade, Schreiner parece movida apenas por seu l'
impacto sobre as mulheres brancas. O s fundamentos coloniais do traba- 1
1
lho escravo e da condenação das mulheres africanas ao serviço domés-
tico nos lares de suas heroínas brancas passam despercebidos. Até mes-
1
mo as origens familiares de Griet estão enterradas num comentário 1•
marginal. Uma das poucas africanas que ganha um nome, a pequena e 1
trêfega Khoikhoi, "fora pouco antes recebida de sua mãe bêbeda em 1
troca de um par de sapatos e uma garrafa de vinho"••. A despeito da
'!
1 1
forte indignação de Schreiner pelo fato de que "todas as mulheres te- l
nham seu valor cm moedas", o envolvimento íntimo das irmãs brancas
com o trabalho infantil escravo passa sem ser notado e nunca entra no
l1 -••
foco literário como um dilema moral para o feminismo. l-.
23. Idem, op. cit., p. 127.
24. Idem, op. cit., p. 104.
·.
Olive J,hrâner - Os limius do feminismo ,olonial

É claro que se pode argumentar que essa percepção anacrônica pou-


co serviria, considerando o contexto colonial em que Schreiner escreveu.
Mas vale a pena observar que sua denúncia angustiada da mercantiliza-
ção das mulheres brancas na prostituição e no casamento não se estende
à mercantilização doméstica das mulheres africanas pelas mesmas mu-
lheres brancas que escapam à sua censura literária.
E o que pensa Schreiner da maternidade negra? A despeito de sua
preocupação com os sacramentos sacrificiais da maternidade, Schreiner
arranja seus roteiros de tal maneira que as duas crianças negras que são
nomeadas estão afastadas de suas (bêbedas, descuidadas ou de outra ma-
neira ineptas) mães negras e nas mãos de gentis mulheres brancas. Griet
passa pelo roteiro como uma fadinha perdida, aparentemente intocada
por sua coação dramática ao trabalho e por sua separação da mãe, ser-
vindo meramente como veículo para entretenimento do leitor e compai-
xão pelas heroínas brancas.
Se a narrativa colonial masculina é fatalmente corrupta, Schreincr
parece sugerir que a civilização pode ser redimida pelo gracioso sacri-
fício da maternidade branca. E não há espaço para as mães negras cm
sua ficção; passado seu papel de providenciar filhos para o enredo, elas
desaparecem sem deixar traços. A mãe branca, parece, pode redimir a
infância africana, mas só a expensas da mãe negra. Qµando Rebekah
adota o fruto mestiço do adultério de seu marido com a criada negra
deles, a mãe negra (que bem poderia ter-se ressentido do roubo de sua
criança pela mulher branca de seu amante branco) é convenientemente
retratada como antipática, indiferente e maliciosa e pode ser deLxada de
lado sem arrependimento. A mulher mestiça põe flagrantemente em
;
questão a "pureza" das oposições de negro e branco''. Assim, a adoção
por Rcbekah da filha ilegítima de seu marido é concebida para iluminar
sua generosidade espiritual; ela ensina essa "filha", a chamá-la de "pa-
troa". A origem da criança é um segredo de família - para a criança,
,.

25. Gloria Anzaldua obsen-a que "o ponto focal ou fulcro, aquele espaço cm que fica a mcs·
t,ça, é onde os fenômenos tendem a colidir". "La Concicncia de La Mestiza", Bordn-lan-
dv'La Front=, São Francisco: Spinstcrs, Aunt Lute, 1987, p. So.

397
Couro imp,rial

para seu pai branco e para suas meia-irmãs e seus meio-irmãos. A casa,
como a narrativa, se desenvolve em tomo da negação da mãe negra, e a
ideia do maternal é atravessada pela raça.
Apesar da veemente crítica de Schreiner à ideologia da família espo-
sada pela classe média, a maternidade branca em D e homem para homem
é retoricamente construída como a norma. No processo, as mulheres ne-
gras são suprimidas. Essa supressão cria um paradoxo permanente, pois
fratura o monismo de Schreiner e sua ânsia por um feminismo universal.
A repressão das mulheres africanas perturba o texto, surgindo novamen-
te na narrativa como um excesso, na forma não resolvida da fúria das
mulheres africanas. Nas figuras liminares e furiosas das mulheres afri-
canas, o feminismo de Schreiner encontra seu limite estético e poütico.

MINAS, MERCADO E CASAMENTO

No semiautobiográfico "Prelúdio", escrito anos depois, num lampejo de


intuição, encontramos quase todos os temas obsessivos cm torno dos
quais se desenvolverá a escrita de Schreiner. Uma "mãezinha" geme na
agonia do parto. Abandonada no calor de um jardim da missão, uma
criança descobre sua cabeça sob o sol abrasador e toma o caminho de
um lugar secreto no deserto, onde, numa pequena alegoria do trabalho
de criação da mãe, ela constrói uma pequena casa de pedra. Ali, espera
por uma visita que nunca chega. Esse é um momento quase ritual na
narrativa colonial, no· qual um eu solitário se senta no deserto à espera
da comunhão. Priv:i.da de resposta, ela junta os dedos na forma de um
rato e se projeta num outro eu, confundindo os limites da carne e do
símbolo, do cu e do outro e, nesse comércio com a criatividade, recupera
o momento perdido. Voltando a casa, a criança atravessa um limite proi-
bido, entra por uma janela fechada e encontra uma criança dormindo
num quarto fresco e sombrio. Com cuidado para não acordar a criança,
ela lhç oferece suas dádivas: um abecedário, uma pedra, uma agulha de
prata com linha, um busto da rainha Vitória e um chocolate. Desse
modo, ela devolve simbolicamente à sua irmã os elementos sagrados
roubados às mulheres: a escrita, a história, o trabalho criativo, o poder
Oliw Jrhrâ,ur - Os limita do ftminismo colonial

poütico e o prazer sensual. Mas a dádiva é abortada, pois seu sono junto
à irmã é interrompido pela furiosa "Velha Aia", implacável parteira da
morte e da diferença, que a repreende pela transgressão e observa que o
bebê está morto. Voltando ao deserto, a menina se deita à sombra de
uma árvore, embalando nos braços um livro em lugar de um bebê, e
mergulha numa série de sonhos dentro de sonhos em que a eterna sime-
tria do cosmos e sua unidade com a natureza lhe são revelados. Da casa,
vem o choro de um recém-nascido.
Nessa pequena parábola de criatividade feminina, encontram-se
muitos dos temas que preocuparão Schreiner: sua sensação de exílio da
comunidade social redimido pela revelação de unidade cósmica, a inter-
dependência das mulheres, o fluido deslizamento entre os papéis de mãe
e filha, a associação alegórica entre escrita e parto, sua projeção do prin-
cípio da diferença sobre a fúria d as mulheres africanas e sua concepção
da escrita como um projeto radical de autocriação e autojustificação.
Nesse exato momento, quando Schreiner começava a tarefa de toda
a vidn de construir sua própria identidade, começava a forjar-se uma
nova economia na África do Sul. Não é, assim, surpreendente que as
contradições de sua sociedade entrassem em sua vida e escritos com
força irresistível.

•. Em 1871, a mulher de um capataz, durante um piquenique, topou com


um diamante, revelando de um só golpe o mais rico depósito de dia-
mantes azuis do mundo. A descoberta detonou o New Rush e, em pou-
cos meses, milhares de frenéticos escavadores faziam um enorme buraco
na encosta nua da colina. Ao lado do buraco, nascia uma cidade chama-
da Kimberlcy. Na cidade surgiu um pequeno cartel de ambiciosos capi-
talistas brancos correndo pelo controle d as riquezas. A partir do cartel,
formou-se a De Beers Consolidated Mines Company, corporação monolí-
tica destinada a controlar dois terços das reservas mundiais de diaman-
tes. Um dos mais brilhantes e ambiciosos desses homens era CecilJohn
.. -
Rhodes, filho de um paswr da Inglaterra e futuro primeiro-ministro do

399
Couro impuial

Cabo, que resumiu o espírito da época ao dizer: "Anexaria as estrelas, se


pudesse".
Em 1872, Olive Schreiner, destinada a se tornar uma das mais famo.-
sas e agressivas antagonistas de Rhodes,juntou-se a seus irmãos na con-
fusa corrida pelos diamantes. À beira do barulhento buraco escancarado,
entre os escavadores negros e seus supervisores brancos, Schreiner teste-
munhou o começo de um novo e cataclísmico regime econômico na
África do Sul.
Aqueles que eram chamados de "cavadores" não eram nada disso.
O s cavadores eram brancos, mas não cavavam: os homens que na rea-
lidade cavavam eram negros. Ao mesmo tempo, negava-se violenta-
mente aos africanos a posse dos diamantes que tirassem da terra. Foi
rapidamente posta em vigor pelos invasores brancos uma lei: a ne-
nhum africano seria perm~tido possuir, comprar ou vender um único
diamante.
A Grã-Bretanha, até então indiferente à região, marcou rapidamente
a chefia suprema sobre o território, e o vice-governador Keate, de Natal,
supostamente adjudicando entre as reivindicações rivais de bôercs e
africanos pela terra, concedeu as terras a um homem tratável, de ascen-
dência khoi, chamado Witbooi. De imediato, este requereu e obteve a
cidadania britânica e, a partir disso, os campos de diamantes passaram
imediata e convenientemente a mãos britânicas. Nos campos ele dia-
mantes em 1872, cm meio ao ruído e ao tumulto da nova história, Schrei-
ner começou a escrever a sério. Tinha 17 anos.
A partir dessa época, Schreiner passou a ser atormentada por inces-
santes ataques de asma. Espancada quando criança por falar fora de
hora, incapaz quando adolescente de discutir religião, política ou filoso-
fia dentro da família e incapaz de falar a qualquer pessoa sobre umn
obscura calamidade sexual que lhe sobreveio na época, seu fôlego vol-
tou-se para dentro, enganado e estrangulado como suas palavras. Em
certo sentido, a asma ofereceu a Schreiner um meio de dar voz à sua j •

falta de voz. Uma forma de protesto simbólico, sua asma era uma espécie 1.
de grito convulsivo de socorro. De fato, Schreiner sempre expressaria
frustração co,u a incapacidade de as pessoas interpretarem sua doença.
i.
1
400


Oliflt Jchrtina - Os limitu do ftminismo colonial

alegoricamente: "É tanto minha mente como meu corpo"' 6 • A doença


aparece de maneira saliente em suas novelas, mas não são mencionadas
razões médicas: doenças são questões emocionais, protestos físicos con-
tra conflitos insolúveis. Arfando e ofegando por ar, exibindo fisicamente
seu sufoco e perda de voz numa voz de "foles enferrujados", ela tentava
1. dar voz à sua incapacidade de falar. Uma mulher sem amor, escreveu ela,
só podia viver uma vida "semiasfuciada"'7•
A asma era uma doença rica de significados paradoxais. Ela dava a
'· Schreíner um n10Livo de mobilidade e também uma escusa pelo fra-
casso. Dava também a ela poder sobre pessoas quando aparecia mais
vulnerável. Assim que uma relação se tornava sufocante, a asma lhe
permitia fazer as malas e partir. A asma a absolvia do pecado feminino
da autossuficiência, permitindo-lhe punir-se e, assim, esvaziar a pu-
nição dos outros.

ABJEÇÃO BRANCA
A governanta como marco de fronteira

Vivendo entre as tendas e barracos em 1872, Schreiner começou a escre-


ver Vndine [Ondina], uma ardente refutação das decisões coloniais mas-
culinas e um esforço contorcido de reinventar o escopo da identidade
feminina num mundo mal administrado pelos homens.
Ondina, filha de uma devota família bôer, é assolada, como Schrei-
ner, pela descrença precoce e sofre, como Schreiner, a aflição do estigma
social por sua temeridade e por seus modos de menina levada. Mi-
litantemente "pouco fe1uinina", ela se recusa a ajoelhar-se diante das
convenções ou credos e zomba seguidamente dos dogmas e decoro de
sua família. Esquece de usar o boné sob o sol ardente, arriscando escu-
recer a pele - um mau sinal de transgressão de raça e gênero. Com-

26. lmers, p. 102. Para uma excelente análise da história fundada no gênero da doença e da
loucura, ver Elaine Showalter, 7ht Female Malady: H~n:en, 1\1adnm and English Culture:
r830-r~o (Nova York: Panthcon; Londres: Vingo, 1989).
27. Apud Jane Graves, "Prefácio a Oli,-c Schreiner~, in ~man and labcr (Londres: Vingo
Prcss, 1978).

401
Couro imperial

porta-se de modo pouco próprio ao resgatar seu macaco, Sócrates, tre-


pando numa árvore, num ensaio alegórico do esforço permanente de
Schreiner para resgatar o direito das mulheres à inteligência natural e à
liberdade do corpo. Mas se Ondina é uma defesa da rebelião feminina,
a narrativa também carrega o testemunho dos trágicos limites dessa
revolta e inicia o tema permanente de Schreincr do impasse entre o
amor e a autonomia.
Nos campos de diamantes, Ondina descobre ser vítima de uma peri-
gosa e..'Cdusão. Como os africanos, é barrada da luta dos homens pelos
diamantes e da economia do capitalismo minerador. Negados seus di-
reitos ao trabalho, à terra e ao lucro, olhando para as proibidas profun-
dezas da mina, ela lamenta: "Se tivesse nascido homem, podia lançar
fora o casaco e pôr-se imediatamente a trabalhar, carregando os inter-
mináveis baldes de ferro e _rolos de corda"'8 • Daí em diante, ela sabe que
o dinheiro, a autonomia pública e o poder sexual são reservados aos
homens brancos, e o que lhe cabe é a dependência e a servidão, má saú-
de e tristeza, e sua única profissão é a vocação do matrimônio.
Encontramos aqui uma vez mais o tema obsessivo cm torno do qual
gira a escrita de Schreiner: "Todas as mulheres têm seu valor em moc-
das"'9. Ao longo de sua vida, Schreiner respondeu ao tráfico matrimo-
nial de mulheres e aos ritos da d ependência doméstica com aversão e
temor. Insistia em que a domesticidade era mercantilização e o casa-
mento era um mercado. Como dizia: "o destino não invejável das mu-
lheres e dos quadros de serem comprados e vendidos por homens"y,. O
único acesso de Ondina ao capital é vicário: trocando seu corpo com o
desgracioso pai de Albert Dlair, sob a condição de que ele obtenha uma
considerável quantia em dinheiro, ela é seduzida e traída pela falsa espe-
rança de matrimônio e termina sua vida prometida apenas à tristeza.
Se Ondina responde negativamente, o livro prefigura a necessidade
de uma revolta mais incendiária, inimaginável naquele momento. Em

28. Olivc Schrciner. Undinc (Londres: Bcnn, 1929), p. 34.


29. Idem, op. cit., p. 38.
30. Idem, op. cit., p. 73.
Oliw J chrtinu - Os limitu do f~minismo colonial

Ondina, Schreiner se mostrava indiferente à questão racial dos lucros e


diamantes expropriados.A rebelião de Ondina não é igualada por qual-
quer outra rebelião radical de raça ou de classe, e seu entendimento de
sua própria situação social permanece fadado ao fracasso. Frustrada por
sua incapacidade de expressar a verdade de sua situação, Schreiner de-
nunciou o livro como incompleto e mais tarde pediu a Havelock Ellis
para que fosse queimado.
A própri~ Schreiner estava destinada à do1nesticidade. Não podendo
'' chegar ao púlpito de seu pai nem ao pódio político de seus irmãos, e
como não havia marido iminente, Schreincr trabalhou como governan-
t ta dos 15 aos 22 anos, cm casas coloniais. Sua experiência no serviço do-
méstico deu forma significativa a seu feminismo posterior, e uma com-
preensão aguda da contradição entre trabalho pago e não pago anima
JVoman and Labor [Mulher e trabalho].
Como escreveu l\llary Poovey, a governanta vitoriana era "como a
mãe de classe média no trabalho que fazia, mas era tanto mulher como
homem da classe trabalhadora no salário que ganhava"3'. Ela era neces-
sária para manter o ideal doméstico da monogamia ociosa, mas também
ameaçava destruí-lo. Para evitar a divisão de suas lealdades, tinha que ser
solteira. Mas uma mulher solteira era uma afronta à natureza: tentação
para os homens, ameaça para as mulheres, perigo para si mesma. Em
ligação íntima com aqueles de quem cuidava, era obrigada a parecer as-
sexuada. Como uma senhora sem ser uma, como uma criada sem ser
uma criada, ela era encarregada de controlar as contradições da esfera
doméstica como se fossem fatos da natureza. Não é de surpreender que
a governanta fosse geralmente percebida como um problema socialP.

31. Mary Poovcy, Unevm DnJtlopmmts: Th~ ld~ologi,al Uórk of Gmd" in Mid- Victorian
England(Chicago: University ofChicago Press, 1988), p. 127.
32. Num belo ensaio sobre Jane Eyrc e a governanta, Poovcy observa que a percepção gene-
ralizada de que as governantas eram um "problema· en desproporcional cm relação tanto
às dificuldades que elas enfrentavam quanto ao pequeno número de mulheres afetadas.
Ainda que certamente consideráveis, as aflições das governantas eram muito menores
que as das criadas de cl:i..sse trabalhodon, que recebiam rnuito mcrrus atenção e simpatia.
Ibidem.
Couro imp~rial

Nas colônias, para adicionar uma questão, a engomada governanta


branca ficava entre as miseravelmente pagas mulheres negras e as privi-
legiadas, mas não pagas, esposas brancas, mediando agudas diferenças
sociais dentro de uma identidade comum de trabalho. Na família colo-
nial, as fraturas na cena doméstica se tornavam severas.
A governanta colonial era em todos os sentidos uma criatura liminar.
Aquinhoada com uma educação, não tinha oportunidade de usá-la. Ra-
ciaJmentc parte d a elite branca, era na realidade membro da classe do~
criados. Era protegida pelo privilégio racial, mas não pela segurança
econômica. Alojava-se entre os criados negros, mas não com eles. Era
paga pelo trabalho que a dona de casa branca fazia de graça. Tudo con-
siderado, a governanta branca encarnava algumas das contradições mais
duradouras da economia colonial do trabalho feminino. Nesse sentido,a
governanta branca, como .a criada africana, é uma figura abjeta: rejei-
tada, mas necessária, fronteira e limite do colonialismo doméstico. Mas
a abjeção histórica das governantas brancas é diferente da abjeção das
mulheres negras, de forma a pôr e1n questão qualquer apelo à abjeção
como constante universal.
Em março de 1875, aos 20 anos, Schreiner assumiu uma posição como
governanta na família Fouche, numa remota fazenda no Karoo chamada
Klein Ganna H oek. Ali morou num quarto de chão de terra batida sob
o telhado da cozinha, lavando-se na água fria de um córrego próximo. O
telhado de seu quarto tinha goteiras, e ela se sentava sob um guarda-
chuva, rabiscand~ e anotando, e foi nesse lugar, nas horas roubadas e
exaustas depois do trabalho, que escreveu a maior parte do que viria a ser
chamado de A estória de uma fazenda africana.

O FRACAS S O DA FAMÍLIA DO HOMEM

A estória de umafazenda africana é uma formidável denúncia da trindade


profana de império, família e Deus - as três grandiosas ilusões que ti-
nham exaltado a infância de Schreiner com seu brilho e que vieram a
tornar-se as desleais figuras de seu desespero. A visão que anima o livro
é o fracasso do culto do progresso e da Fam ília do Homem em cumprir
0/ivt J,hrúnu - Os limius do feminismo ,olonial

suas promessas, e a significação radical do livro está na convicção de


Schreiner de que uma crítica da violência do colonialismo também im-
plica uma crítica da domesticidade e da instituição do casamento.
Desde o princípio, a fazenda colonial é vista como patológica. A fa-
mília colonial está cm desordem. Esse fracasso é aparente cm todo lugar.
O pai branco desapareceu, pairando como uma imagem obsoleta na fi-
gura de Otto, o supervisor alemão qubcotesco e sonhador, modelado so-
bre o próprio pai de Schreiner, e que morre logo, incapaz de legar ao
futuro o patrimônio da autoridade paterna ou de redlmir a história. Não
há mãe. O lar é chefiado por uma tia animalesca e monstruosa, tant
Sannie, deformação do poder materno. Lyndall é órfa, Waldo, um filho
deserdado. Embora Schreiner não faça uma crítica explicita da proprie-
dade branca da fazenda, é claro que não haverá herdeiro colonial legíti-
mo no futuro. O movimento do enredo é fuga: da casa patriarcal e da
economia da agricultura colonial. Waldo foge para a costa e Lyndall,
para as minas, mas o destino último é a morte. Nem o casamento, nem
o império, nem Deus podem redimir a narrativa colonial.
À história de umafazenda africana começa, como muitas das alegorias
de Schreiner, sob uma lua de meia- noite, símbolo complexo de incerta
meia-luz de transcendência. A lua promete, mas não assegura a reden-
ção, lançando sua sinistra claridade sobre a fazenda de avestruzes, que
repousa no sono. Waldo, filho do infeliz Otto, está acordado, banhado de
solidão, escutando com horror o tique-taque do relógio. O relógio é um
motivo repetido nas histórias de Schreiner: quase todas as crianças de
Schreiner ficam deitadas no escuro, fascinadas de medo do metrônomo
do relógio, medindo o tempo com a morte: "Eternidade; eternidade;
Morra! Morra! Morra!"33•
Para Schreiner, o relógio é um fetiche grotesco do progresso indus-
trial vitoriano: mecânico, mundano, mortal. Se os homens vitorianos
exaltavam o fetiche redentor do tempo do relógio, para Schreiner, o sino
missionário dobra anunciando a morte; o relógio, como a tabuada, a
antiga aritmética, a gramática latina, oferece apenas a fria álgebra da

33. Schrcincr, 7he Story efan Afriean Farm, p. 48.


Couro imperial

razão. Para Schreiner, o fetiche colonial do tempo e do progresso racio-


nal é uma aberração macabra do espírito. A alma, porém, "tem suas pró-
prias razões; períodos não encontrados em qualquer calendário". A luta
singular da novela de Schreiner, de fato a luta de boa parte da vida de
Schreiner, é encontrar um calendário da alma alternativo e redentor.

ALEGORIA FEMININA NAS RUÍNAS DA HISTÓRIA

.;.
Não é surpreendente que Schreiner tenha preferido a forma literária da !'.",
alegoria. Todos os seus escritos são alegorias: "Não posso me expressar
senão cm minha própria linguagem de parábolas"J.1. Todas as suas tra-
mas são interrompidas por alegorias, parábolas e sonhos que cintilam
suas incertezas cristalinas como prismas, refratando temas e imagens
em múltiplas direções e dispçrsando seus raios irregulares obliquamente
através do progresso linear da trama. Desde o começo, Schreiner queria
que sua escrita imitasse a imprevisível desordem e a imprecisão da vida:
"o método da vida que todos nós levamos. Aqui, nada pode ser profeti-
zado. I-Iá estranhas idas e vindas de pés. As pessoas aparecem, agem e
reagem entre si e passam"Js_
Waldo, como Schreiner, é afligido pela insônia da alma. Para Waldo,
como para todos os alegoristas, o mundo é a palavra feita carne: "Nunca
pareceu que as pedras falavam coro você?". No começo era o Verbo e a
natureza é o livro de Deus, inscrição divina destinada a ser lida por vi-
sionários e poetas. A· natureza é o "segredo aberto". As pegadas fósseis
de grandes aves, os esqueletos de peixes, os filamentos de uma teia de
arnnha são alegorias cm minialura de uma realidade invariável que ani-
ma todas as coisas: "Todos os fatos verdadeiros da natureza ou do mun-
do estão relacionados". Sob o olhar do alegorista, as múltiplas e variadas
formas da vida se dissolvem numa forma de existência singular e multi-
colorida: a árvore de espinhos esboçada contra um céu invernal tem a
mesma forma que o desenho dos cristais numa rocha, que tem a mesma

34· Lift, P· 1 07.


35. Schrciner, 1he Story ofa,: //fri<a,1 Farm, p. 94.
Oli1u J chuintr - 01 limita do ftminismo colonial

forma que os pequeninos chifres do besouro. Também o corpo humano


é um hieróglifo, oferecendo pistas e insinuações de significado divino. A
unidade subjacente de todas as coisas é revelada nessa bela semelhança
de formas: "Como se relacionam essas coisas que permitem união tão
profunda entre clas?"16•
Para Waldo, os livros, como a natureza, revelam "a presença de D eus".
Os livros oferecem a delirante promessa imperial de conhecer os últi-
mos segredos do mundo: "Por que os cristais crescem em formas tão
belas, por que o raio é atraído pelo ferro, por que os negros são negros".
Os livros oferecem a Waldo, como ofereceram a Schreiner, um refúgio
do abandono do cosmos e o castigo da solidão; os livros revelam homens
e mulheres para os quais não só as pedras apelavam imperativamente,
"O que somos e como viemos? Compreende-nos e conhece- nos", mas
para quem "as muito antigas relações entre homem e homem [ ...] não
podem ser detidas e esquecidas [ ...] Assim ele não estava só, só"17•
No entanto, como insinuou Walter Benjamin, a alegoria é sempre
ensombrecida por seu lado escuro38 • A visão alegórica é garantida por
uma fé oculta em que a relação entre palavras e coisas é cosm icamente
ordenada. Mas o projeto alegórico é inerentemente ambíguo. Alegoria
tem sua origem etimológica nas palavras gregas a/los e agoreuei: falar em
público de outras coisas ou de coisas secretas. A força da alegoria é pre-
cisamente essa ação dupla; ela fala aos escolhidos de verdades secretas e
as esconde dos profanos. Todas as alegorias envolvem a duplicação e até
mesmo a multiplicação de um texto por outro. "A arte", como disse
Schreiner, "diz mais do que diz". Mas a alegoria, como resultado, é para-
doxal e perigosa, sua ambiguidade sempre ameaçando sabotar sua inte-
ligibilidade. Q!iando tant Sannie acha o livro de economia poütica de
Waldo, sua preciosa "algaravia" lhe é ininteligível, e ela o joga no fogo.

36. Idem, op. cit., p. 128.


37. Idem, op. cit., p. 78.
38. Walter Benjamin, 1bt Origim of Gtrman Tragic Dra,r.a. Tr.ad. John Osborne (Londres:
Ncw Lcft Books, i9n).
Couro impaial

Daí a qualidade trágica da alegoria. "As palavras são coisas muito po-
bres"39. Oblíqua e estranhamente incompleta, com sua origem na exegese,
a alegoria tanto estimula como frustra o desejo pelo significado original.
As palavras são as emissárias sagradas da verdade, mas nunca são inteira-
. mente adequadas ao que carregam e, assim, tanto iluminam como obscu-
recem o significado: "Se cu digo que numa pedra, na madeira, nos pensa-
mentos de meu cérebro, nos corpúsculos de uma gota de sangue sob meu
microscópio, numa locomotiva que passa correndo no deserto, eu vejo
D eus, não estarei obscurecendo a opinião com palavras?"40 •
A alegoria, ademais, está no ângulo da memória e do esquecimento;
apontando para além dela mesma, para uma história originária que a
cada momento ameaça desaparecer. Nas palavras de Walter Benjamin:
"Uma apreciação da transitoriedade das coisas e uma preocupação de
resgatá-las para a eternidade é um dos impulsos mais fortes nas alego-
rias"•'. Aqui chegamos diretamente a uma das motivações centrais da
escrita de Schreiner: o desejo de resgatar do esquecimento a história, a
carne e a linguagem - seu grito por "não dci.'<ar a coisa morrer!". A
linguagem era uma resposta apaixonada ao intolerável enigma da morte
e do inevitável processo de dissolução e decadência. A alegoria ofere-
cia a Schreiner a esperança de que a linguagem pudesse redimir a ma-
téria - como ela acreditava quando criança, falando durante dias no
túmulo de sua irmãzinha. Daí o fascínio inteiramente mod ernista de
Schreiner com ruínas, com os mortos respirando, com os enterrados vi-
vos. Como Lyndall-obscrva sombriamente na estória de uma fazenda
africana: "Nem tudo o que está enterrado está morto".
Mas para Waldo, "debatendo-se diante do mistério inescrutável", tais
insinuações de imortalidade são repetidamente postas em perigo pela
catastrófica possibilidade de que tudo seja ilusão: "Sem D eus! Em ne-
nhum lugar!". Andando trôpego e cm andrajos pelo deserto, ele perscru-
ta o céu e a areia teimosos à procura de sinais de Deus, ansiando por "um
indício do inexoravelmente Silencioso". Aqui Waldo reencena um mo-

39. LetterJ, p. 64.


,10,l.ift, p. 176.
41 . Benjamin, Origins ofGtrman Tragi< Drama, p. S7•
0/ive Jrhrdner - Os limites do feminismo rolonial

mento recorrente e quase ritual nas narrativas coloniais, em que o eu


solitário, abalado diante de uma paisagem inexpressável, exclama "Este
eu, o que é?". "Por um instante, nossa imaginação a avalia; torcemo-nos
e retorcemo-nos, tentamos fazer uma alegoria [ ... ] Então, repentina-
mente, uma aversão: somos mentirosos e hipócritas". O homem no púl-
.. pito mente! O hinário com fecho de metal mente! Escorre sangue das
folhas da Bíblia; as pedras não fazem ouvir a voz de Deus.
A crise de Waldo, que Schreiner concebe como a crise existencial da
alma universal, é propriamente uma crise de legitimidade colonial.
A angústia da finitude que assolava Schreiner é uma dificuldade pecu-
liarmente colonial. O intruso colonial que não pode encontrar palavras
que se adaptem à paisagem está num mundo que de repente ficou em
silêncio. O esforço de dar voz a uma paisagem que é percebida como
indizível, porque habita uma história diferente, cria uma profunda
confusão, uma espécie de pânico, que só pode ser mantido à distância
adotando as medidas defensivas mais extremas. Uma cultura colonial,
.. como disse Dan Jacobson, "é u ma cultura que não tem memória"..~. Se-
parado da metrópole e arrogantemente ignorante da cultura nativa,
afastado de toda tradição, o colonial está à deriva num tempo destituído
de história. A alegoria, para Schreiner, expressava a esperança de recu-
perar a história e a vontade de recordar; era um estratagema contra o
esquecimento. E ao mesmo tempo, sua fé imperial em que um específico
significado universal anima o mundo, cm que os raios de uma "simpli-
cidade nua" impregnam a paisagem colonial de forma inteligível tam-
1. bém confirma a medida em que, apesar de si mesma, ela ainda era uma
esi.:rítora colonial43 •

CRUZAMENTOS DUPLOS/ TRA IÇ ÕE S


•l A metrópole imperial
'
Durante 7 anos Schreiner trabalhou como governanta em lares colo-

' niais. Então, em 1881, deixou a África do Sul pela Inglaterra, para rea-

42. Dan Jacobson, "Introdução", in Schrcincr, Story ofan /1/riran Farm, p. 3.


43. L,ttm, p. •39·
Couro imperial

lizar seu antigo desejo de ser médica. Desde a infância ela partilhava a
frustrada ambição de sua mãe de estudar medicina: "Não posso lembrar
um tempo em que era tão pequena que isso não estivesse em meu co-
ração". Como criança, no deserto, ela dissecava os corações púrpura de
avestruzes e de ovelhas, revelando seus centros sagrados "com uma
sensação de surpresa próxima do ê.xtase". Os rendados filamentos escar-
lates e as misteriosas câmaras de sangue insinuavam o infinito e a espe-
rança alegórica de que "No centro de todas as coisas há um Cor2.ção
Poderoso"_....
Se parte da ambição de Schreiner de se tornar médica derivava de
seu desejo imperial de penetrar no coração do universo, ela também
derivava de uma determinação obstinada de resgatar a vida frustrada de
sua mãe. Assim, Schreiner assumiu seu lugar na tentativa histórica
das mulheres de retomar a habilidade tradicionalmente feminina da
cura, tão violentamente arrancada delas nos séculos precedentes. A me-
dicina oferecia a Schreiner a esperança de reconciliar o conflito entre
seu "impulso" imperial e (convencionalmente) masculino "de abarcar o
infinito" e as atividades (convencionalmente) femininas do dever, do ser-
viço e da compaixão,.s. Tornar-se médica, esperava ela, podia satisfazer
sua "fome pelo conhecimento ex:ato das coisas como elas são"•6 e ao
mesmo tempo resgatá-la da culpa pela sua inteligência: "A vida de mé-
dico é a mais perfeita das vidas; ela satisfaz a ânsia de saber e também a
ânsia de servir"47.
Na África do Sul, contudo, a profissão médica era zelosamente fe-
chada para as mulheres e para os negros. Na Grã-Bretanha, uma fa-
culdade de medicina tinha recentemente aberto as portas para as mu-
lheres brancas, de modo que, em 1881, com 26 anos, Schreiner inverteu
a trajetória de vida de sua mãe e viajou de volta à metrópole, levando
com ela seus dois manuscritos completos: Ondina e A estória de uma fa-

44. Schrcincr, The Story ofan Afriran Farm, p. 98.


45. Idem, op. cit., p. 91.
46. Idem, From Manto il1an, p. 85.
47. Leucrs, p. 145.

410
Oliw Jchrânu - Os limius do Fminismo colonial

zenda africana, e uma obra inacabada intitulada Saints and Sinners [San-
tos e pecadores].
Os anos que Schreiner passou na Inglaterra (1881-1899) foram anos
n1omentosos. Crises sociais de grande proporção reverberavam através
do país e de suas colônias. Avultava a crise das terras, quando o poder
econômico passava da antiga nobreza para as mãos de industriais e mag-
natas das minas. Vastas fortunas industriais eram feitas nos grandes es-
taleiros e nas enfumaçaclas usinas, enquanto o desemprego em massa e
as greves, as doenças da pobreza e a Grande Depressão assinalavam uma
crise profunda nas relações de classe. O primeiro partido socialista, a
Demorratic Federation [Federação Democrática], foi formado em 1881, o
ano em que Schreiner chegou à Grã-Bretanha.
A crise de classe foi acompanhada por uma crise aguda nas relações
de gênero. l\ilulheres amotinadas se reuniam e assediavam as portas do
privilégio masculino. Durante décadas, mulheres da classe trabalhadora
militaram por direitos e condições de trabalho mais justas. Agora, mu-
lheres de classe média clamavam por melhor educação, o direito ao traba-
lho pago e o direito à cidadania. O Married Women's PropertyAct [Lei da
Propriedade das Mulheres Casadas) foi aprovado em 1882, o Guardian-
ship ofInfants Act [Lei da Guarda das Crianças), em 1886, e as mulheres
obtiveram o direito ao divórcio na França em 1884. A "nova mulher"
tornou-se para muitos homens uma figura profundamente temida e
desprezada, emblemática do caos social e do desgovcrno 48 • A própria
masculinidade era contestada, com a descoberta do bordel masculino de
Cleveland em 1889, o ju1g:imento de Oscar Wilde cm 1895 e a patologi-
zação da homossexualidade. Os homens da classe dirigente reagiram
revoltando-se em Cambridge contra a aceitação de mulheres na irman-
,"
dade e votando por grande maioria cm Oxford contra a admissão de

1, 48. Sobre a "nova mulher", ver Elaine Showalter, Stxual Anarchy, Gender and Culture at tht
Fin dt Sildt (Londres: Viking, 1990}, capírulo 3. Sobre Schrcincr e a no,-a mulher, ver
Linda Dowling, ~Thc Dccadcnt and thc Ncw Woman in thc 189o's", Ninntmth Cq1tury
Fiction 33 (mar., 1979), PP· 434-53; Sandra M. Gilbcrt e Susan C ubar, Stxchanges (New
Havcn: Yale Univcrsiry Prcss, 1989); e idem, No Mn,r's Land (New Havcn: Yale Univer·
siry Prcss, 1986}.

411
Couro imperial

mulheres para o bacharelado em 1896. A polícia jogou seus cavalos con-


tra as sufragistas, que foram presas, espancadas e violentamente alimen-
tadas à força nas prisões. Gladstone se opôs à emenda à Refarm Bill [Lei
da Reforma], que teria garantido o sufrágio às mulheres, e a cidadania
ficaria como letra morta até 1905.
As calamidades metropolitanas eram completadas por crises nas co-
lônias: rebeliões esporádicas e inquietação agrária crônica na Irlanda, os
levantes no Caribe, as consequências da rebelião de 1857 na Índia e a
infame derrota do General Gordon por um fundamentalista islâmico
cm Cartum em 1885. A Grande Depressão coincidiu, não acidentalmen-
te, com a emergência do novo imperialismo. Em x886, descobriu-se ouro
na África do Sul. No mesmo ano, os chefes dos poderes europeus senta-
ram-se à mesa em Berlim e dividiram a África entre eles; nenhum líder
africano estava presente.
Em 1883, A estória de uma fazenda africana foi publicada sob o pseu-
dônimo de Ralph Iron, e alcançou aclamação imediata. A obscura go-
vernanta colonial tornou-se uma das intelectuais mais procuradas de seu
tempo. Gladstone enviou suas congratulações; George .Nloore e Oscar
Wilde estavam ansiosos por encontrá-la; Edward Aveling resenhou fa-
voravelmente o livro em Progress-, R.ider Haggard colocou-o entre os
mais significativos da época; Sir Charles Dilke, o político, comparou-o
ao Pilgrims Progress e uma trabalhadora de Lancashire exaltou sua im-
portância para as mulheres: "Acho que há centenas de mulheres que
pensam assim, más.não podem dizê-lo, mas ela pôde dizer o que senti-
mos". Hugh Walpole declarou que o livro marcava uma era "como pou-
cos outros"49 •
Schreiner logo foi convidada a entrar no cfrculo de elite do lvfen and
Womens Club [Clube de Homens e Mulheres]. Karl Pearson, famoso
eugenista e entusiasta do império, fundara o clube cm 1885, inspirado, ao
que parece, por ambições tanto matrimoniais quanto científicas, para
reunir à sua volta um grupo de intelectuais socialistas e feministas. O
objetivo do clube era discutir, sem emoção e sem pudores, as grandes

49. Ftrst e Scon, Oli't•t Srhrdnrr, p. 198.


O/ive Jchreiner - Os limitu do fm,inismo colonial

questões sexuais da época: prostituição e pornografia, casamento e mo-


nogamia e, acima de tudo, a constrangedora e inevitável "questão da
mulher". As mulheres do clube eram, em sua maioria, filantropas e re-
formistas de classe média, solteiras, reservadas e ligeiramente intimida-
das pelos homens dominantes. Os homens eram tipos de Oxford, em
seus casacos de tweed, que se moviam facilmente entre os enclaves dos
clubes aristocráticos e a boemia radical d a vanguarda londrina. O clube
era elitista em sua atmosfera . O cheiro de charutos e de vinho do porto
!' e o perfume evanescente da filantropia pairavam em suas discussões, a
,, despeito da agenda revolucionária e dos tópicos escandalosos. No deco-
l roso cenário vitoriano, com suas pretensões a sobriedade racional, os
gestos exagerados e a voz extravagante de Schreiner, seus olhos brilhan-

í tes e tiradas apaixonadas inquietavam algumas das sócias mais adorna-


das e bem penteadas que, em privado, a apadrinhavam por sua origem
colonial, tendo vivido tempo demais entre aquelas "naturezas rústicas e
brutais". Ela as chamava de "um bando de mulheres velhas que odiavam
,. os homcns"50•
A linguagem privilegiada do clube era o darwinismo. O objetivo era
descobrir a natureza precisa e cientifica do papel das mulheres no avan-
ço evolutivo da raça e pôr os assustadores levantes feministas sob a vigi-
lância e orientação masculinas. O femini smo era visto como criado da
evolução, necessário, mas perigosamente volúvel. A vocação apropriada
das mulheres era prestar serviços à espécie, os direitos secundários em
relação aos deveres: "Devemos primeiro [ ... ] estabelecer[ ... ] qual seria o
efeito d a emancipação delas sobre sua função de reprodução da raça
antes de falar de seus direitos", proclamou Pearson grandiosarncnteS'.

50. Letters, p. 76.


51. Ver a excelente anál ise do Clube de H omens e .Mulheres de Judith \Valkowin cm City of
'' Dreadful Ddight: Na"atit:ts ofStxual Dangrr in latt Vittorian London (Londres: Virago
Press, 1992), pp. 135-69. Ver também Showaltcr, Sexual Anarchy, pp. 47-58; Bctty Fr:idkin,
"Olive Schrcincr and Karl Pcarson", Quarltrly Bullttin ofSouthA/ri<an Lihrary 31, 4 Qun.,
1977), pp. 8J-93; Fradkin, "Havelock EUis e Olive Schrciner's 'Grego!'}' Rose-, Texas
0

Quarlrrly 21, J (1978), pp. t45-53; Sheila Jeffrcys, 1}u Spinster and Hrr Ennnits: Ftminism
and Stxualiry, 1880-1930 (Londres: Pa.ndora, 1985); Kevlcs D aniel, ln lht Na= ofEugmics:
Gmetirs and tht Uus ofH11man /1,rcdity (Nova York: Knopf. 1985).
Couro imperial

Schreiner, não acostumada à reserva vitoriana, foi rápida na crítica à


condescendência e às inconsistências de Pearson. As mulheres, como
observou corretamente Schreiner, eram vistas pelos membros do clube
masculino como objetos e não como sujeitos do estudo, enquanto que a
sexualidade masculina era um dado natural. A insistência masculina na
linguagem e na "verdade revelada" da ciência encobria as imprecisões
dos próprios homens, seus interesses e desejos inconscientes. Da mesma
forma, C harlotte W ilson repreendeu Pearson diretamente por sua es-
tranha suposição de que a luxúria d as mulheres era menor que a dos
homens. A castidade das mulheres, argumentava ela, era uma "dura ba-
talha", imposta pela sociedade masculina e vencida apenas à custa de
grande esforço. M as a franca independência mental de Schreiner não a
impediu d e désenvolver um a igualmente franca, mas calamitosa paixão
por Pearson. Indiferente, na opinião geral, Pearson se esforçava por
manter sua fixação com a sexualidade feminina sob a proteção da pre-
tensão científica. Obcecado pela sobrevivência da raça e sarcasticamente
desdenhoso das "bonecas consumidoras" da classe média, ele advogava
publicamente o poder sexual feminino, mas era claramente intimidado
na realidade por mulheres apaixonadamente sexuais e intelectuais. A
relação de Schreiner com Pearson tornou-se cada vez mais instável; ele
rejeitava os avanços dela com frieza característica, e ela deixou o clube
emocionalmente perturbada.
De qualquer forma, o clube ofereceu a Schreiner uma arena sem pre-
cedentes para o enriquecimento e a expansão de suas ideias sobre a sexua-
lidade e o trabalho das mulheres. Durante esses anos, da escreveu muitos
dos sonhos e alegorias que viriam a ser publicados em Stories, Dreams and
Allegories [Estórias,sonhos e alegorias].Ao mesmo tempo, também traba-
lhava quase continuamente em De homem para homem, a novela em que
deu forma ficcional à dupla obsessão sobre a qual gira boa parte de sua
escrita: casamento e prostituição. Esse era o livro de seu coração: "Eu o
amo mais do que amo qualquer coisa no mundo, mais do que qualquer
lugar ou pessoa"si. Dedicado _à sua irmãzinha morta e mais tarde à sua

52. Letters, p. 256.


Oliw Jcbrtintr - Os limius do ftminismo colonial

própria filha morta, De homem para homem é uma homenagem apaixonada


às mulheres. "O livro mais feminino jamais escrito", como diz Schreiner, a
novela é "a história de uma prostituta e de uma mulher casada que ama
outro homem e cujo marido é sensual e infiel""·

O PROGRE SSO E A FAMÍLIA DO HOMEM

Situado entre a África do Sul colonial e Londres, De homem p ara homem


é uma resposta radical aos princípios orientadores da sociedade vitoria-
na tardia e colonial: o dar.vinismo evolucionista, a ideologia imperial da
degeneração racial e de gênero e a instituição burguesa do duplo padrão
sexual. O centro temático do livro é a relação dialética entre a mo noga-
mia ("apenas para as mulheres", como disse Engels) e a prostituição
(apenas para os homens). Nesse relato ficcional de duas irmãs, uma pre-
sa a um casamento infeliz com um sedutor indiferente, a outra, uma
prostituta, Schreiner recusa firmemente a dicotomia vitoriana entre a
dona de casa tipo Madona e a puta. Para Schreiner, como para Engels, o
comércio matrimonial dos corpos de mulheres era a "prostituição mais
crassa", e o casamento sem amor, "o tráfico mais sujo que desonra o
mundo"54• Ao mesmo tempo, a prostituição era uma fonte de desespero
e raiva incessantes para ela. O ultraje singular era que as profissões do
casamento e d a prostituição eram quase as únicas profissões disponíveis
para a maioria das mulheres.
Nascida na beleza luxuriante e no torpor de uma fazenda colonial
do Cabo e sempre à procura de conhecimento do mundo, Rcbekah sú
pôde escapar à inércia da vida colonial de seus pais através do casamen-
to. Na Cidade do Cabo, seu marido se envolve numa sequência de casos
amorosos com a criada africana, com atrizes, com escolares com espi-
nhas no rosto e com respeitáveis matronas. Rebekah é proibida de ir a
baUes e festas, para não descobrir a infidelidade do marido e tentar fa-
zer o mesmo. A novela é uma denúncia incandescente e eivada de tris-

53. L,uen, p. 139.


54. Schrcine r, 1ht Story ofan A/ritan Farm, p. 91.
Couro imperial

reza da tradição letal do duplo padrão sexual. Baby Bertie, irmã de Re-
bekah, é seduzida por seu amado tutor, que imediatamente foge para a
Europa e, quando confessa o fato a seu noivo, é sumariamente abando-
nada outra vez. Como cm A estória de uma fazenda africana, o movi-
mento da ação é a fuga da família e d as limitações sociais. Bertie escapa
p ara a casa da irmã na Cidade do Cabo, onde se torna a bela predileta
da sociedade até que uma ciumenta socialilr! revela sua vergonha ao
mundo. Posta no ostracismo e desprezada, vai "iver com um judeu rico, . :!.
que monta um apartamento para ela antes de jogá-la na rua para uma 1·~
t~
vida na prostituição. 1.
De homem para homtm condena amargamente a sufocação do intelecto
feminino no casamento. Emparedada na casa matrimonial, Rebekah é
enclausurada no seu ínfimo estúdio; seus escritos minguam a uma suces-
são de fragmentos e esboços. Amortecida no torpor da maternidade, ela é
condenada ao solilóquio. Negligenciada e só, caminhando febrilmente cm
seu estúdio abafado, ela expõe o mesmo credo de monismo cósmico que
sustentou Schreíner no vazio ateísmo do desespero: "Rcbckah sou eu; não
sei mais quem é quem"ss_ No capítulo alegórico central, Rebekah funciona
como ventríloqua do desafio de Schreiner à "velha concepção cristã" do
universo como criação de uma única "vontade individual" masculina, ca-
prichosa e violenta, capaz de reduzir ao nada as "tiras e retalhos e partes
desconexas" d a existência. Recusando-se a ser a imaginação de uma única
mente masculina, Rebekah oferece uma visão alternativa da unidade cós-
mica: o brilho na pena de um pássaro, a inclinação dos planetas, as cores
do arco-íris num cristal - tudo isso participa da grande vida universal. O
prisma lança luz ao sol; o fóssil ilumina a estrutura da mão que o segura.
Cada fragmento é uma minúscula alegoria da verdade inteira, enigmática,
mas transpirando significado.
Chegamos então aqui ao paradoxo familiar na visão de Schreiner.
Rebekah encontra consolo fantasmagórico para sua alienação social
projetando a esperança da comunhão metafísica no "grande e pulsante
todo, sempre em interação", do universo. O problema da comunidade

55. Ltuers, p. 92.


Oliw J,hrtintr - Os limius do J,minismo colonial

social é, assim, adiado e sua labuta histórica de gênero é apresentada


como condição universal da alma humana. O livro coloca o casamento
como um problema social, então desloca o dilema da comunidade femi-
nina para o reino metafísico. Em consequência, não há solução social
para o problema do casamento.
A crítica de Schrcincr à instituição vitoriana do matrimônio era fun -
damentalmente econômica. Em sua concepção, o casamento cm sua
forma presente era uma "relíquia bárbara do passado", mas ela sempre
ficava desconcertada quando as pessoas a criticavam como defensora do
amor livre ou da promiscuidade radical. Ao contrário, protestava ela,
desde os 13 anos ela sustentava a posição de que o único ideal era "a
união mental e física perfeita por toda a vida de um homem com uma
mulher". O verdadeiro casamento - uma coisa sagrada e imortal- era
uma monogamia mutuamente contratada. "Nenhum tipo de relaciona-
·- mento sexual pode ser bom e puro senão o casamento"56• Os aspectos
,,
~
legais e cerimoniais do casamento não passavam de "mera bagatela"57• O
verdadeiro casamento era uma questão de mútua realização mental, es-
piritual e erótica. Mas a instituição vitoriana do casamento não era mais
que uma entrega simbólica e contratual dos direitos sexuais, de proprie-
:,
dade e de trabalho de uma mulher a um homem. Como resultado, ele
era profundamente inconsistente com a liberdade das mulheres, e a pró-
pria Schreiner temia que nunca pudesse casar-se sob tal sistema: "Para
viver, preciso ser livre".
A questão fundamental era econômica. Um verdadeiro casamento, "o
mais santo, o mais orgânico, o sacramento mais importante da vida",
deveria ser inteiramente "independente de considerações monetárias".
"A mulher deve ser monetariamente absoluta e inteiramente indepen-
dente do homem"58• Sem independência econômica, as mulheres não te-
riam poder nem forma de reparação. Aqui, Schreiner foi além da emer-
gente crítica feminista do casamento, que tendia a focar a exploração

56. Lclltn, p. 83.


57. Lettcrs, p. u6.
58. L,11,rs, p. 178.
Couro imptrial

sexual e emocional. Diferentemente da maioria das feministas vitoria-


nas, que vinham de confortáveis lares de classe média, o contexto de
classe da própria Schreiner era tão contraditório, e sua situação econô-
mica, tão precária, que ela estava mais atenta que a maioria ao fato de
que a verdadeira questão era "o poder de compra sexual do homem".
Schreiner denunciava com veemência a escassez de opções profissio-
nais à disposição das mulheres fora do casamento. A os que afirmavam
que as mulheres eram livres para decidir não se casar, ela respondia como
Lyndall e111 A estdria de umafaunda africana: "Sim - e um gato jogado
numa lagoa é livre para sentar na barrica até morrer". Lyndall, que recu-
sa casar-se sem amor verdadeiro, é forçada a passar camisas de homem
con10 punição até morrer de fome . Aos que argumentavam que as mu-
lheres não queriam independência, ela respondia: "Se o pássaro gosta da
gaiola e de seu açúcar e não a deixará, por que manter a porta fechada
com tanto cuidado?".
Ao mesmo tempo, Schreiner estava quase sozinha entre suas contem-
porâneas ao insistir que as necessidades sexuais das mulheres eram tão
fortes e urgentes quanto as dos homens. Os desejos das mulheres eram
rendados e espartilhados, plissados e cortados, enquanto os homens ti-
nham acesso privilegiado à prostituição, ao mercado matrimonial e ao
duplo padrão. Para uma mulher, diferentemente do homem, o sexo pré-
marital ou adúlte_ro era cercado de perigos. Num mundo sem contracep-
ção confiável ou legal e aborto seguro, "o caráter de uma mulher é como
uma teia de aranha"59 • Se uma mulher trocasse sua virgindade fora do
contrato matrimonial, seria vista por Deus e pelo mundo como tendo
desperdiçado para sempre seu crédito moral e social. Tendo perdido a
virgindade, Bertie não tinha ao que recorrer senão a tornar-se uma "mu-
lher teúda e manteúda", lânguida em opulento conforto, entre almofadas
e candelabros vermelhos, gatos e fitas ornamentais do apartamento do
judeu, inclinada ao tédio e às crises de choro. O impulso radical do livro,
contudo, é que o confinamento luxuoso de Bertie e a solidão martirizada
de Rebckah são meramente tipos diferentes de prostituição. De fato, a

59. Sch.rc:incr, From Mar. lo M an. p. 267.


Olfot Jchrtintr - Os limitu do ftminismo colonial

estranha e rica gargalhada de Bertie no final sugere um destino mais


livre e vital que o tédio sufocante do calabouço de veludo de sua irmã.
O segundo tema de D e homem para homem é a prostituição. "Todos
os outros assuntos me parecem pequenos comparados com assuntos de
sexo, e a prostituição é seu ponto central mais agõnico"6o. A prostituição
foi por toda a vida de Schreiner um motivo de fascínio e horror. Ela se
identificava muito profundamente com as próprias prostitutas. Num
certo nível, elas figuravam para ela como uma projeção de sua própria
culpa sexual: ela claramente sentia que se prostituíra com Gau, e seu
retrato ficcional do ostracismo social de Bertie e sua frenética fuga da
vergonha foi uma tentativa semiautobiográfica de exorcizar o trauma
dos próprios sentimentos de ostracismo de Schreiner que se seguiu ao
fiasco com Gau. A novela oferece, portanto, algum insight nos incessan-
tes padrões de fuga da própria Schreiner.
Mas é uma marca de Schreiner que, quase a única de suas contem-
porâneas, ela dá à prostituição uma história social. De homem para ho-
mem é uma maciça recusa do estereótipo vitoriano dominante sobre a
prostituição como falha genética, como regressão atávica e como pato-
logia racial do corpo político. Schreiner situa historicamente a prosti-
tuição ao lado da instituição do casamento monogâmico e do fetiche da
virgindade. "O homem com a grande bolsa" tem o poder de compra; as
mulheres são levadas pelas dificuldades econômicas a trocar seus servi-
ços sexuais por lucro.
Em sua obsessão com a prostiruição, Schreiner era bem vitoriana.
Até os anoi; 1850, a tolerância generalizada com a prostituição se refletia
na ausência de qualquer legislação que a reprimisse. lVIas daí em diante,
um discurso sobre a sexualidade e as doenças venéreas entrou acalorada-
mente no debate parlamentar e passou a ser informado por construções
de raça, gênero e imperialismo. Nos anos 1860, os notórios Contagious
Diuases Acts [Leis das Doenças Contagiosas] foram aprovados e só fo-
ram rejeitados depois de uma avalanche nacional de protestos. As leis
tinham por objetivo menos abolir a prostituição do que pôr o controle

60. LetUrt, p. 156,


Couro imptrial

do trabalho do sexo nas mãos do Estado masculino. O impulso inicial


veio dos golpes recentes na autoestima masculina na arena do império.
O argumento era o de que a verdadeira ameaça à bravura e à potência do
Exército nacional residia na ameaça sifiütica que as prostitutas suposta-
mente representavam para a higiene genital dos homens. Se as mulheres
que trabalhavam nas cidades com quartéis pudessem ser forçadas a ser
examinadas e isoladas, a pureza do Exército e de respeitáveis clientes de
classe média seria assegurada. As leis davam, portanto, à polícia o direi-
to de impor à força o exame, registro e prisão de mulheres da classe
trabalhadora supostamente trabalhando como prostitutas cm deter-
minadas cidades com quartéis ou postos navais. Ao mesmo tempo, a
regulação do comportamento sexual servia como meio de policiar a po-
pulação de classe trabalhadora como um todo.
Em 1885, poucos anos depois que Schreiner chegou à Grã-Bretanha,
W. T. Stead incendiava Londres com suas lúgubres revelações sobre
prostituição infantil, publicadas como "The Maiden Tribute of Modem
Babylon" [O tributo cm virgens da moderna Babilônia]61• As histórias
de Stead sobre miseráveis virgens ludibriadas por lascivos aristocratas
deu às mulheres de classe média uma linguagem para expressar pela
primeira vez as angústias, as frustrações e os secretos terrores sexuais do
casamento vitoriano. Como resultado, a prostituta tornou-se a projeção
das ansiedades e da hipocrisia da classe m édia. As vozes, a vida, os mo-
tivos e os poderes das prostitutas mesmas eram dci.xados de lado na
eletrizante tormenta do ultraje e voyeurismo da classe média.
Schreiner era bem vitoriana quando as prostitutas figuravam em seus
1
escritos como objetos de pesar e de raiva. Como muitas vitorianas, ela
não tinha conhecimento das vidas reais d as prostitutas, e sua identifica-
ção com elas, por intensa e sincera que fosse, servia como projeção de
seu próprio sentido muito real de exploração e vulnerabilidade sexual.
Como a maioria das vitorianas, ela via a prostituição como reflexo das

61. Ver a análise de Walkowitz de •Toe Maiden Tribute", in City ofDr,adful Ddight, capíru-
los 3 e 4.

420
0/i~t Jthrti,ur - Os limita do ftminismo tolonial

necessidades sexuais masculinas, e nunca lhe ocorreu que o trabalho do


,. sexo podia ser também uma forma de resistência ao controle patriarcal
na família e no casamento, bem como à decadência econômica e à imo-
bilidade social. Para muitas mulheres, a prostituição era preferível ao
casamento e expressava uma firme recusa precisamente ao "parasitismo
·,
., sexual" que Schreiner condenava no casamento de conveniência.
Certamente, Schreiner nunca foi capaz de resolver satisfatoriamente
as tensões entre seu entendimento feminista e socialista, de um lado, e
sua fé spenccriana na unidade e no projeto cósmico que governava o
universo, de outro. Pelo restante de sua vida, Schreiner carregou o ma-
nuscrito de De homem para homem com ela, trabalhando e retrabalhando
o livro notável, incapaz de completá-lo ou de abandoná-lo. Da mesma
forma que carregava o pequeno caixão branco de seu bebê morto, inca-
paz de confiá-lo à terra, ela também não conseguia confiar ao público
"esse produto muito amado de sua mente madura"ó•. A conclusão lhe
escapava e ela morreu com a obra inacabada. Apropriadamente, o escan-
daloso livro inacabado foi publicado postumamente, pois, como diz
Lyndall em A estória de uma fazenda africana: "Podemos dizer aos mor-
.
,.,
tos o que não podemos dizer aos vivos".
Em meados de 1889, Schreiner decidiu voltar à África do Sul. Em
1886, foi descoberto ouro no Transvaal. Um ano antes, Rhodes formara
a Dt Beers Consolidated Mines Company e cm 1889 recebeu autorização
,,· do governo imperial para operar na Rodésia. Em outubro do mesmo
ano, Schrciner partia para a África do Sul.

MULHER E TRABALHO

O país estava à beira da guerra, embora poucos além de Schreiner o


percebessem. Ela se estabeleceu na cidade isolada de Matjesfontein. Lá,
criou o hábito de encontrar políticos cm viagem na plataforma da esta-
ção para profundas conversas antes da partida do trem. Também lá co-
meçou uma série de artigos brilhantes e proféticos sobre a vida política

62. Lift, p. 94.

421
Couro imptrial

da África do Sul, mais tarde reunidos em 'Ihoughts on SouthAfrica (Pen-


samentos sobre a África do Sul]. Em 1892, Schreiner conheceu Samuel
C. Cronwright, fazendeiro e antigo membro do Parlamento do Cabo e
casou-se com ele dois anos depois. Ele era presumido e pedante, um
perfeito colonial. Schreiner era claramente a figura dominante, obrigan-
do Cronwright a deixar sua amada fazenda e mudar-se para K.imbcrlcy
por causa da asma que a afligia. Em 1895, aos 40 anos, ela deu à luz seu
desejado bebê. A menina só viveu até o amanhecer, para o pesar inesgo-
tável de roda sua vida.
A morte do bebê coincidiu com a crise nacional. A agitação africâner
contra as manobras britânicas no Transvaal aumentava. Schreiner e
Cronwright denunciaram publicamente a irmandade Afrikaner Bond
[Partido Africãner] e condenaram a política africana de expropriação de
Rhodes, política brutal bei:n resumida em sua própria e franca declara-
ção: "Prefiro a terra aos nativos". Schreincr se opôs veementemente à
Lei dos Açoites, apoiada por Rhodes: "Edward", escreveu ela a Edward
Carpenter, "você não imagina como estão mal as coisas neste país; chi-
coteamos nossos negros ate: a morte, e a riqueza é o único fim e objetivo
possível da vida"6J.
Em 1895 ela e o marido escreveram 'lhe Political Situation [A situação
política] - um documento profético que clamava, ainda que sem efeito,
contra o "pequeno e poderoso corpo de homens reunidos em grupos e
cartéis" que rapidamente punham "suas mãos sobre a riqueza mineral do
país". Em 1899, Schreincr publicou seu panfleto contra a guerra,An En-
glish South African's Vitw oflhe l#ir [Visão sul-africana inglesa da guer-
ra] e pronunciou discursos como parte do movimento de protesto das
mulheres no Cabo.
Schreiner fez o que pôde para alertar o público na Grã-Bretanha e
na África do Sul para a calamidade iminente. l\ilandou telegramas, deu
entrevistas, foi a congressos contra a anexação e sofreu um ataque do
coração por causa da pressão. Durante a guerra, em congressos de mu-
lheres, protestou veementemente contra o incêndio das fazendas bôercs

63. Ltlltrs, p. 236.


0/iw Jthuintr - Os limittS do ftminismo tolonial

pelos ingleses e contra os infames campos de concentração em que os


ingleses empilhavam as mulheres e crianças africâneres. Por todos os
relatos, Schreiner era uma oradora incendiária - quando falava, segun-
do um relato, "transfigurava-se numa chama".
O centro de sua grande coletânea, Pensamentos sobre a África do Sul, é
uma firme defesa dos bôeres. Tendo vivido entre os africâneres como
governanta, "aprendera a amá-los", particularmente a mulher bôer, que
era "a verdadeira cidadela de seu povo"64. Ela expressava sua admiração
pelas mulheres bôeres na linguagem do movimento internacional das
mulheres, elogiando sua força e trabalho árduo e instando-as a não
abandonarem seus chicotes de carroça e seus gorros brancos em favor
dos bastões de croquet e chapéus floridos: "A m edida das mulheres é,
afinal, a medida da força e do poder de resistência de qualquer povo"65.
Embora os bôeres, ela escreveu, tenham sido cortados do Iluminismo,
eles também foram intocados pelo "deus do comércio". Em seus elogios
dos bôeres, Schreiner recusava o estereótipo britânico dominante dos
.. africâneres como uma raça decaída, preguiçosa e degenerada, mas seus
argumentos sofriam de uma falha fundamental. Em sua fidelidade sen-
timental aos sitiados bôcres, ela representava a guerra como uma luta
entre duas culturas brancas, e a questão fundamental da reivindicação
africana à terra e aos minerais foi, naquele momento, ignorada. Os afri-
câneres eram ferozes racistas, e suas práticas de trabalho eram em geral
apavorantes. M as Schreiner não foi crítica das repúblicas bôeres até de-
1
pois da guerra, quando os viu chegarem ao poder e sentiu que não pre-
' cisavam mais de sua defesa: "Agora, os hôeres estão por cima"66•
Enquanto a guerra abalava o país, Schreiner escreveu sua grande
obra, Woman and Labor [Mulher e trabalho]. Ela começara um livro
sobre a "Q,!lestão feminina" em sua juventude, a despeito de sua distân-
cia de qualquer inspiração feminista. Motivada apenas por seu próprio
sentido precoce do trabalho de gênero, ela se impôs a tarefa de revelar as

6-1. Schrcincr, 1houghts or. South Ajrita (Londres: Unwin, 1923), p. 79.
65. Idem, op. cit., p. 26.
66. Lttttrs, p. 243.

413
Couro imptrial

pistas históricas da "agonia oculta" de sua vida. Nas décadas que se se-
guiram, trabalhou continuamente nesse monumental "livro do sexo", até
1888, quando faltava completar apenas a última parte.
A primeira observação a fazer sobre o "livro do sexo" é a clara imo-
déstia de sua abrangência. Como Origin ofthe Family, Priva/e Property
and the Sta/e (Origem da família, da propriedade privada e do Estado],
de Engels, o livro era francamente audacioso em sua tentativa de abarcar
a totalidade da história humana num grandioso esquema global. To-
mando de empréstimo sua forma do romance de formação e da narra-
tiva de evolução, o livro tentava fazer a crônica do desdobramento épico
da condição histórica mundial das mulheres. Começando na pré-histó-
ria, a narrativa traçava a trôpega ascensão da humanidade, desde a vis-
cosa noite ameboide, através de tumultuados séculos, até o ruído e brilho
do industrialismo.
A segunda característica a notar sobre o "livro do sexo" de Schreiner
é que quase nada dele sobrevive. A introdução a Mulher e trabalho é um
réquiem truncado ao trabalho perdido e aos anos perdidos. Em 1899,
Schreiner deixou Johannesburgo por causa de sua saúde frágil. D ois
meses mais tarde, estourou a guerra entre os ingleses e os bôeres, e a lei
marcial a confinou à colônia. Em sua ausência, soldados britânicos inva-
diram sua casa, arrombaram as gavetas de sua mesa e fizeram uma fo-
gueira no centro da peça com todos os seus papéis. O!tando ela voltou,
a grande obra intelectual de sua vida estava transformada cm cinzas que
se desfaziam ao simples toque. Ela não tinha cópia.
Meses mais tarde, internada pelos britânicos por seus sentimentos
pró-bôeres numa casa na periferia de uma cidade, cercada por guardas
armados e uma alta cerca de arame farpado, proibido seu acesso a mate-
rial de leitura ou a notícias, Schreiner resolutamente forçou seu pensa-
mento para "longe do horror do mundo [ ... ] a se ocupar de uma questão
abstrata" e reescreveu de memória um capítulo do livro, que tinha origi-
nalmente 12. Publicado como 1vlulher e trabalho em 19n, o capítulo era
um fragmento do monumento original, mas foi saudado por muitas fe-
ministas importantes de sua geração como a ~Bíblia do Movimento das
Mulheres". • •
Olivt J<hrântr - Os limitts do ftminismo ,olonial

... As circunstâncias da escritura de lvlulher e trabalho testemunham de


maneira clara e trágica o centro mesmo de seu argumento. Incompleto
•;
e mutilado, radical e incendiário e, acima de tudo, firme e triunfante-
mente rebelde, o livro é uma alegoria cm miniatura de sua vida. Conde-
nada a trabalhar no escuro, proibida de relacionar-se com o mundo pú-
.f
blico das notícias e da história, cercada pela tecnologia masculina da
I'
violência, a vida de Schreiner e seu trabalho estavam sujeitos à violência
desfiguradora dos imperativos masculinos.
O ponto fundamental do livro é dar ao trabalho e à sujeição das mu-
lheres uma história social. Schreiner desmonta a noção popular segundo
a qual a sujeição das mulheres seria universal, natural e inevitável. As
histórias sobre a exclusão das mulheres do poder e de sua revolta são his-
tóricas e políticas: as lições do gênero não estão escritas desde sempre no
sangue. Ademais, as mulheres têm poder e resistem; não são as sofredo-
ras mudas e passivas da vitimização. .Nlas os efeitos e o potencial de re-
sistência assumem formas diferentes em diferentes momentos sociais e
são formados pelas condições da época.
Para Schreiner, consultando volumes antigos e modernos de biologia
e de ciência, medicina e botânica, a lição da evolução era que as "relações
sexuais podem assumir qualquer forma sobre a terra". Na maioria das
espécies, afirmou ela, a forma feminina supera a masculina no tamanho
e muitas vezes na natureza predatória. E os cuidados com a prole não
são inerentemente femininos na natureza. Contra a noção vitoriana do-
minante que via no homem caçador o arauto da história, Schreiner deu
atuação às mulheres, citando a mãe que dá vida e que, carregando crian-
ça e alimento, se manteve ereta para levar a história à frente. Ainda as-
sim, Schreiner nunca abandonou o manto evolucionista. Em sua con-
cepção, a guarda do progresso está a cargo da "velha lVlãe natureza, que
atua como árbitro". Surge aqui a conhecida contradição: ela ridiculariza
a antiga oposição entre a cultura masculina e a natureza feminina, mas
então reinventa a história e a faz ser presidida por uma força feminina
natural e benéfica.
Mulher e trabalho tem sido lembrado pela análise de Schreiner do
trabalho das mulheres e da condição do "parasitismo sexual" a que mui-
Couro impaial

tas mulheres estavam então condenadas. O modo fundamental do livro


é o imperativo: "Dá- nos o trabalho e o treinamento adequado para tra-
balhar!"67. Schreiner demandava que todo trabalho fosse aberto para as
mulheres, e que as mulheres reivindicassem seu antigo poder econômi-
co. Daí cm diante, não havia fruto no jardim do conhecimento que as
mulheres não estivessem determinadas a comer. "Do assento do juiz ao
do legislador; do armário do estadista ao escritório do comerciante; do
laboratório do químico à torre do astrônomo, não há posto ou forma de
labuta para a qual não pretendamos tornar-nos aptas"68• Além disso, ao
contrário do dogma vitoriano, as mulheres sempre trabalharam: "Carpi-
mos a terra, colhemos o grão, construímos o lar, tecemos as roupas, mo-
delamos os vasos de barro"69 • No hoje famoso slogan do movimento fe-
minista: "As mulheres sempre trabalharam; nem sempre trabalhamos
por salário". Como herboristas e botânicas, as mulheres foram as "pri-
meiras médicas da raça". Como mães, carregaram a raça nos ombros.
Mas, à medida que a sociedade progredia em qualificação técnica, escre-
veu ela, os homens já não passavam a vida inteira lutando e voltavam da
caçada para invadir o domínio das mulheres. As rocas foram quebradas,
as enxadas e pedras de afiar foram tiradas das mãos das mulheres, desa-
pareceram as rosadas leiteiras. "O antigo campo de trabalho" das mulhe-
res encolheu e elas foram condenadas a um "parasitismo sexual" passivo
e incessante cm relação aos homens.
Há pontos, contudo, em que o sentido de Schreiner da atuação his-
tórica é incerto. Ela não questiona a divisão de gênero no trabalho entre
caça e agricultura, nem fornece uma teoria sistemática da mudança his-
tórica. Não dá uma razão por que os homens pudessem querer tirar o
controle econômico das mulheres, nem por que foram capazes de fazê-
lo. Além de uma vaga noção spenceriana de progresso inevitável, falta a
Schreiner uma teoria do conflito de gêneros e uma teoria da mudança
histórica.

67. Schreiner, JJi,man and Labcr (Londres: Vingo Prcss, 1978), p. 33.
68. Idem, op. cit., p. 96.
69. Idem, np. cit., p. 34.

426
0/iw Jchrtintr - Os limittJ do feminismo colonial

A.inda assim, o desafio radical de Schreiner era opor-se à doutrina


das esferas separadas e à emergente imagem vitoriana da mulher ociosa.
Ela denunciou os hipócritas vitorianos de classe média que se opunham
ao trabalho assalariado das mulheres por causa de seu papel como "mães
divinas", mas que não se angustiavam pela "mulher que, de quatro, e a
dez pences por dia, esfregava o chão dos prédios públicos". Para o ho-
mem vitoriano, observou ela, "essa posição quadrúpede é verdadeira-
mente feminina"iº. Tais homens não se perturbavam com a velha mula
de carga que lhes levava o chá na cama, mas sim com a médica de certa
renda que passava a noite fumando e lendo. O insight de Schreiner aqui
diz respeito à hipocrisia de classe contida na objeção ao trabalho das
mulheres: os homens só queriam as mulheres exiladas dos domínios
mais prestigiosos, poderosos e lucrativos do trabalho. Como exclama
Lyndall em A estória de uma fazenda africana, "quando queremos ser
médicas, advogadas, legisladoras, qualquer coisa menos mulas de carga
mal pagas, eles dizem: Não".
A furiosa indignação de Schrcincr também era dirigida contra as
iniquidades sistemáticas da recompensa das mulheres pelo "trabalho
igual, igualmente bem realizado". Ela era pouco comum entre as femi-
; nistas por seu reconhecimento, nascido das contradições de seu próprio
contexto de classe, de que a ociosidade das mulheres de classe média
dependia do vasto trabalho invisível das mulheres da classe trabalhado-
ra, tanto negras como brancas. "O trabalho doméstico, muitas vezes o
mais cansativo e interminável dos conhecidos por qualquer setor da raça
humana, não é adequadamente reconhecido nem recompensado".
Ela também foi excepcional em sua insistência de que as necessida-
des sexuais das mulheres eram tão poderosas como as dos homens. Mas
aqui também os argumentos de Schreiner são ambíguos, pois ela de-
plora a desolação do celibato, rnas também vê o sexo como um sacra-
mento sagrado, só recebido de maneira apropriada no amor monogâ-
mico. ~1as, num mundo a que faltava qualquer coisa próxima de uma
confiável contracepção; onde o aborto era um último recurso terrível e

70. lJcm, op. ele., p.57.


Couro imprrial

frequentemente fatal; onde a perda da virgindade fora do casamento


carregava, como ela bem sabia, um estigma social catastrófico, Schreiner
sabia que as mulheres estavam condenadas a uma situação social cujo
controle sexual não podiam assumir. As condições materiais não esta-
vam ainda maduras para uma transformação fundamental das relações
sexuais. Schreiner, de fato, nunca condena a família heterossexual mo-
nogâmica. Sua visão da homossexualidade masculina não era mais es-
clarecida que o retrato prevalente da perversão e da patologia, e parece
não haver registro de qualquer interesse de sua parte no lesbianismo.
A distinção especial de Schreiner, todavia, está na extraordinária
compreensão antecipada da política africana, desenvolvida nesse perío-
do. No entanto, a despeito do brilhantismo de seus ensaios políticos, eles
continuam a ser a parte mais negligenciada de toda a sua obra - negli-
gência que sem dúvida deriva dos próprios etnocentrismo e racismo que
ela tentou desafiar.

A ÁFRJCA DO SUL E A QUESTÃO DO TRABALHO

Durante essas décadas na África do Sul, Schrciner formulou uma visão


que era só dela: a de que a questão do trabalho e a "questão nativa" eram
inseparáveis. Sua análise da raça se fundava numa análise de classe e ela
via as questões africana e da terra como extensões da "questão do traba-
lho na Europa", apenas profundamente complicada pela raça. ~ase só,
ela reconhecia que ·a questão fundamental era a terra: a fim de entender
os problemas políticos da África do Sul, "o primeiro pré- requisito é uma •,
clara compreensão de sua terra".
Com frequência, as visões de Schreiner sobre os africanos são tingi-
das por uma piedade condescendente e protetora. Em suas análises po-
..,
j

líticas, contudo, ela estava muitas vezes à frente de seu tempo.Já em 1891 ·i,;:
ela previra alguma forma de união entre os vários estados e chegou a
antecipar a data, 1910 - errando exatamente por cinco meses. Ela pre-
viu que o país estava "fadado a tornar-se livre, independente, republica-
no e com governo próprio", apenas décadas antes que a África do Sul se
tornasse de fato uma república, ainda que racialmente exclusiva. De ma-

.µ8
Olive JclJrântr - Os limitn do feminismo colonial

neira mais profunda, argumentou que soluções tais como territórios se-
parados para os diferentes povos sul-africanos eram impensáveis, ades-
peito do fato de que a solução do bantustão seria sistematicamen te
posta cm prática apenas depois de 1948. Ela reconhecia os africanos
"como os fazedores de nossa riqueza", e deplorava que eles fossem rele-
gados a reservas e favelas. Salientou a indivisibilidade política de todos
os povos sul-africanos, antecipando por décadas a posição não racial do
Congresso Nacional Africano. De fato, ela argumentava que o laço dis-
tintivo que unia todos os sul-africanos "é nossa própria 111istura .racial
f
. (Pensamentos sobre a África do Sul). Reconhecia o problema de uma clas-
•.•
se trabalhadora racialmente dividida, que mesmo o Partido Comunista
Sul- Africano não percebia na década de 1920, quando os trabalhadores

t brancos se mobilizavam sob o slogan "Trabalhadores unidos por uma


África do Sul branca".
Schreiner previu, além disso, que chegaria o dia em que o futuro do
mundo estaria nas mãos das nações norte-americana e russa. Ela se opu-
r
nha veementemente, ao mesmo tempo, ao virulento antissemitismo que
contaminava boa parte d a cultura sul-africana e insistia na necessid ade
de reconhecer a valiosa contribuição do povo judeu para o mundo. Ela
também se antecipou em deplorar o massacre sem sentido da vida selva-
gem african a e em clamar pela conservação e por reservas de vida sel-
vagem ("Our Wasteland in Mashonaland" [Nossa terra devastada em
Mashonaland]).
Crédito e distinção duradouros de Schreiner derivam também do
fato de que ela era tanto uma ativista quanto uma escritora política. Nos
últimos anos de sua vida, lutou para pôr cm prática sua visão da igual<la-
de racial e de gênero dentro do ativismo poütico do movimento sufra-
gista internacional. A Liga pela Emancipação das Mulheres a saud ava
como o gênio do movimento sufragista da África do Sul. Ela tinha
contato próximo com o movimento sufragista inglês através de amigas
;
radicais como Constance Lytton e E mmeline Lawrence. Também con-
tribui para seu crédito que só ela insistia em que a emancipaç~o não
podia ser vista apenas como uma questão de gênero. Estava plenamente
ciente de que a questão era também de classe e de raça. <2!iando a Liga
Couro imperial

pela Emancipação das Mulheres, grupo branco de classe média, se recu-


sou a demandar o direito ao voto sem distinções raciais, ela se demitiu
em veemente protesto, em 1913 - ano da notória Lei da Terra, pela qual
os sul-africanos negros foram aquinhoados com miseráveis 13% da terra
mais arruinada, árida e devastada do país.
De fato, cm todos os seus escritos e na ação política, Schreiner levou
as contradições do colonialismo e da situação das mulheres sob o colo-
nialismo à beira mesmo da transformação histórica. Como ela própria
bem sabia, porém, a transformação social é uma questão coletiva e ne-
nhum visionário isolado é capaz de inaugurar uma nova era. Talvez
nenhuma epígrafe seja mais adequada do que estas linhas de Antonio
Gramsci: "O antigo está morrendo e o novo não pode nascer; nesse in-
terregno surge grande diversidade de sintomas mórbidos"7'.
Schreincr deixou a África do Sul cm direção ao continente em 1913,
um ano depois da formação do Congresso Nacional Africano, e viajava
pela Alemanha quando o sombrio cataclismo da Primeira Guerra Mun-
dial atingiu o globo. Em 1920, voltou à África do Sul, um ano depois do
Tratado de Versalhes. Ela morreu como vivera, num quarto de pensão
entre várias casas, sozinha, um livro contra o peito, e a pena ainda firme
nas mãos, os olhos firmemente abertos para a escuridão à sua volta.

71. Antonio Gramsci, Prúon Nottbooks, apud Nadine Gordimer,/u6,,} Ptoplt (Londres: Pen-
guin, 1981), p. 1.

430
PARTE 3

•'

O DESMANTELAMENTO
DA CASA DO SENHOR
• 8
O escândalo da hibridez
•,

A resistência das negras


e a ambiguidade narrativa

Defender a mera tolerância da diferença entre as mulhe-


res é o reformismo mais grosseiro. É uma negação total
da função criativa da diferença em nossas vidas. A dife-
rença não deve ser meramente tolerada, mas vista como
um fundo de polaridades necessárias entre as quais nossa
criatividade pode cintilar como uma dialética. Só então a
necessidade da interdependência deixa de ser ameaçado-
ra. Só nessa interdependência de forças diferentes, reco-
.! nhecidas e iguais pode o poder de buscar novos modos
de estar no mundo gerar tanto a coragem quanto o apoio
para agir onde não h:i privilégios.
' Audre Lorde

No DIA depois do Natal durante o "ano de fogo" da África do Sul, quando


o levante de Soweto de 1976 ainda sacudia o país, uma negra a que chama-
remos de "Poppie Nongena", ainda que esse não seja seu verdadeiro nome,
chegou à porta de ElsaJoubert, escritora e mãe africâner branca. Nonge-
na estava muito perturbada. O lugar de que fugira estava tumulruado.
Vigilantes conservadores armados pela polícia promoviam desordens, e
milhares de pessoas tinham fugido para o mato e para áreas vizinhas. A
polícia estava à procura do irmão de Nongena, acusado de assassinato, e
ela passara a noite amontoada com seus filhos nas moitas açoitadas pelos
ventos dos Cape Flats (planície arenosa na periferia da Cidade do Cabo).
Enquanto as vilas ardiam, a própria Joubert estava para sair de férias
com a familia. Durante algum tempo, andara à procura de um tópico
para u1n novo livro. Durante os agitados dias da rebelião, a ideia de es-
crever alguma coisa sobre os bantustões a tinha levado a escritórios, clíni-

433
Couro impuial

cas e hospitais, escolas e igrejas, entrevistando e observando, mas nada a


atingiu com a mesma força da história de Nongena. Então, as duas mu-
lheres chegaram a um acordo. Joubert transcreveria e editaria a história
d e vida de Nongena e, se o livro vendesse, os rendimentos serian1 divi-
didos igualmente entre elas. Nongena precisava de dinheiro para uma
casa e a estimativa prudente de Joubert de aproximadamente dois mil
rands foi uma sorte não imaginada. Num período de seis meses, Nonge-
na voltou três vezes por semana para contar sua história numa série de
entrevistas gravadas. A história surgiu em retalhos e fragmentos, reu-
nidos pela memória incansável e extraordinária de Nongena. Dois anos
depois, foi publicada em africâner sob o título de Die Swe,:fare van
Poppie Nongena. Traduzido pela própria Joubcrt, o livro apareceu em
inglês, em 1980, como 1he Long]ourney ofPoppie Nongena [A longa jor-
nada de Poppie Nongena] ~ virou uma sensação da noite para o dia'.

O ESCÂNDALO DA HIBRIDEZ

Sob muitos aspectos, é um livro escandaloso. Nada similar tinha jamais


aparecido na África do Sul. Primeiro, é um escândalo político, pois fala da
vida de uma negra muito pobre, dizendo de sua infância de favela em
favela, do trabalho infantil numa indústria de peixe de propriedade de um
branco, do casamento relutante, dos nascimentos e abortos de seus filhos
na intempérie, da infinidade de trabalho para famílias brancas, da saúde
do marido prejudicada pela pobreza e pela fadiga, da violência doméstica
de homens desesperançados entregues à bebida, do aperto das leis de
salvo-conduto para mulheres, das batidas policiais e dos despejos, das
recusas a sair, das ignomínias e provações nos escritórios de salvo-condu-
to, da remoção forçada para a desolação do bantustão Ciskei, do retomo
proibido, da obstinada perseverança, das lealdades e sobrevivências das
famílias e, finalmente, da rebelião nacional de 1976, "a revolta dos filhos".

1 Elsa Joubert, Poppit Nongma (Londres: Coronet, 1981). Referências adicionais a essa edi-
ção são citadas no texto pelo número d2 p:lgina.

434
O tscdndalo da hibridtz - cA raistlncia das ncgras , a ambiguidad, narrativa

Se o livro é um escândalo político, também é um escândalo literário.


Todas as histórias de gênese são histórias de poder político e toda publi-
cação envolve uma delegação de autoridade. Edward Said observa que a
própria palavra "autor" deriva da mesma raiz etimológica de "autori-
dade" e é acompanhada de fortes noções de engendramento, domínio e
propriedade. A entrada na autobiografia, particularmente, é vista como
entrada na autoridade da autorrepresentação. A narrativa de uma negra
muito pobre que toma posse de sua história através do privilegiado san-
tuário masculino do mundo editorial sul-africano foi um escândalo em
si mesma. Ao mesmo tempo, o livro pisoteia grande número de expec-
tativas estéticas. Simultaneamente autobiografia, biografia, romance e
história oral, a narrativa também não é nada disso; é uma anomalia ge-
nérica. Além disso, como colaboração de duas mulheres, escarnece da
noção ocidental do engendramento individual da narrativa. Finalmente,
é uma colaboração feminina através dos limites proibidos da raça, ainda
que decididamente problemática. Assim, a refratária substância política
do livro, seu nascimento no violento cadinho da revolta, sua dupla e
contraditória autoria feminina, sua violação dos limites estéticos, raciais,
de gênero e de classe, tudo isso representou um flagrante desafio a mui-
tas certezas masculinas brancas.
No entanto, o livro foi recebido por uma ovação na comunidade
branca. Ganhou os três maiores prêmios literários numa semana, foi
reimpresso três vezes cm seis meses e foi logo traduzido para o inglês,
francês, espanhol e alemão - recepção espantosa para qualquer livro
em africâner, para não falar num livro de duas mulheres. Rapport, um
jornal dominical africâner, serializou a narrativa inteira, como também
o fizeram algumas revistas inglesas femininas brancas. Ministros do ga-
binete conservador o leram; líderes empresariais o leram; donas de casa
e professores o leram. Bem mais de ccn1 resenhas, artigos, cartas e re-
portagens o discutiram e analisaram. O livro nunca foi banido. A maio-
ria dos leitores e críticos negros o aplaudiu. 1V1as, em sua maioria, a es-
querda branca o ignorou. O que significa esse paradoxo?
A característica mais notável dos artigos e resenhas que inunda-
ram os jornais e revistas foi a unânime estridência com que o livro foi

435
Couro imperial

declarado apolítico. N um artigo importante, David Sch alkwyk reuniu


uma amostra das resenhas que proclamaram com insistência a falta
de política no livro'. Ofereço um resumo de alguns comentários: "O li-
vro de Elsa Joubert não é político nunca", declarou Maureen Pithey, do
Cape Times. "Sua honestidade é apolítica", aprovou Lynne Burger, do
Eastern Province H era/d. "O livro não é, além disso, uma acusação polí-
tica", apressou-se em assegurar aos leitores Audrey Blignaut. "A política
não entra", concordou Colin Melville, do The Star 3• Abundam outros
exemplos. f) .
Todavia, a unanimidade dessas resenhas está eivada de inconsistên-
cias. D e tun lado, Audrey Blignaut podia citar o caráter literário do livro
como evidência de que ele "não é uma acusação política". Como ele diz,
o livro "não é um relato sociológico. É uma obra literária". De outro lado,
uma carta ao Die Burgff oferece como evidência exatamente a posição l
oposta. O livro é apolítico não porque é literário, mas porque não o é.
Ele é "um relato bem objetivo e não um romance"'. D esejo recusar a
caiação nacional da narrativa como apolítica explorando a contraditória
política d e recepção do livro e a ambígua política da colaboração femi-
nina através dos limites das diferenças de raça e de classe.

A AMBIGUIDADE CAIADA
A política da recepção

O pecado mortal da crítica não é tanto ter uma ideologia


como silenciar sobre o fato de tê-la.
Ruland Barthcs

A recepção pública de Poppie Nongena como apolítico tinha sua própria
lógica política. A separação entre política e literatura é uma separação po-

2. David Schalkwyk, "Thc Flight from Politics: An Analysis of thc Rcccption of Poppi, f
N ongm a".]ournal oJSouthrrn Afrüan Studies n, 2 (abr., 1986), PP· 183-95.
3. 1he Cap, Times, 7 ago., 1980. Eastrrn PrtxJinu Hera/d, 17 ,br., 1979. Die Buld, 20 nov., 1978
(tsad. Schalkwyk); 1he Star, 1• out., 1980.
4. 1ht Star, 1• out., 1980; D ie Burgrr, 16 j2n., 1979.

436
O t/((/ndalo da hi/,ridtz - cA ruillinda das negras ta amhiguidadt narrativa

lítica com uma história social real. Como observou Raymond vVilliams,
a fuga para o esteticismo está "acima de tudo relacionada a uma versão
da sociedade: não uma consciência estética, mas uma consciência social
disfarçada em que as conexões e envolvimentos reais com os outros pode-
riam ser plausivelmentc deLxados de lado e então, com efeito, ratifica-
das"s. Na África do Sul, a clivagem entre poütica e literatura assumiu
uma forma peculiarmente paradoxal, e é desses paradoxos que surge a
recepção anômala de Poppie Nongena.
O que o romancista sul-africano Andre Brink chamou de "singular
tropicalidade" de Poppie Nongena surgiu em parte do fato de que "o gru-
po de pessoas no centro da história não é apenas de africâneres falando
xhosa, mas de fato referindo-se a si mesmos como africâneres"6 • Ampie
Coet2ee, ele mesmo africâner, observou que a maioria dos resenhistas
africâneres deu importância ao livro antes e acima de tudo porque ele
estava escrito não em inglês ou num idioma africano, mas em afrikaans.
O Cape Times concordou: "Nesse livro, os africâneres negros falam em
suas próprias vozes autênticas[ ...] Poppie Nongena [ ... ] nasceu africâ-
ner"7. De fato, para Joubert, que não conhecia ünguas africanas, o fato
de que ela e Nongena compartilhavam o afrikaans como primeira língua
foi a condição que possibilitou o livro. "Elsa Joubert destaca que Poppie
fala africâner e como, através dela, se tornou familiar ao africâner falado
pelos negros africâneres"8• No entanto, como colaboração em africâner
entre uma mulher negra e uma branca, o livro escorrega um tanto nas
linhas mais profundas do nacionalismo africâner.
Nunca foi fácil ignorar ou descartar um livro africâner, por mais
1
~, aborrecido que fosse. A língua africâner carrega uma potência quase
r. mística na mente africâner. Como discuto com mais detalhes no capí-
tulo 9, depois da Guerra dos Bôeres (1899-1902), os restos destroçados

5. Raymond Williams, G,~, Orw,/1 (Nova York, 1971), p. 56.


6. Rappcrt, 3 dez,., 1978.
7. Tht Cape Timu, 6 dez., 1978.
8. Rapporl, 3 dez., 1978.

437
Couro impuial

das ensanguentadas comunidades bõeres tinham de ser forjados numa


contraculrura nacional para sobreviver no novo Estado capitalista bri-
tânico9. Nas primeiras décadas do século:XX, uma renovada üngua afri-
câner tornou-se a língua nacional unificadora para uma irmandade
branca de amargurados fazendeiros e trabalhadores; para uma pequena
burguesia; e para uma pequena e ambiciosa clique de capitalistas. Nessa
sociedade, o escritor na língua africâner fica numa posição ambígua.
Escritoras africâneres como Joubert são vistas como parteiras da "alma
nacional'', e ganham um poder pouco comum. Venerado e temido, o
escritor africâner tem grande importância social e certa imunidade po-
lítica. Um d os escritores africâneres mais importantes, Andre Brink,
pôde comentar nos anos 1960, ao fim de uma década de banimentos,
detenções, censura, assassinatos e suicídios de escritores negros: "O es-
critor africâner ( ...] ainda tem o incômodo saber de que, embora as au-
toridades o detestem, nenhuma medida oficial pode ser tomada (ainda)
contra um livro africâner"'º.
H á uma segunda dimensão. O fato de que o africâner foi também a
primeira língua de um par de milhões de assim chamadas pessoas negras
permaneceria como um incômodo espinho na carne do nacionalismo
af ricâner. Em 1976, a comunidade negra rejeitou com clara veemência
um decreto segundo o qual matemática e as ciências sociais seriam en-
sinadas cm africâner. Poucos anos depois, os nacionalistas fariam sua
mais ambiciosa e fatal tentativa de atrair para seu campo alguns dos
assim chamados homens negros de idioma africàner. Assim, um livro
em que uma mulher xhosa e sua fragmentada família fala m africâner

9. A criação desse público africãner demandava a inve:tção consciente de uma linguagem


impressa singular, de uma imprensa popular, de uma populaç~o letrada e de: um:1 classe
íntclecrual ativa. Como mostrou Isabel H ofmeyr, o taalórouging (movimento da lingua·
gem) do inicio do século XX representou prccis:unente essa invenção, remontando a mi-
ríade de vernáculos bõercs numa só lingua :úricàner identificivel e expurgando-a de suas
associações de classe trabalhadora e rural. Durante os anos 1960, com o poder nas mios
africineres, um monumento desarad3.1Tlente f.ilico ; üngua afrid.ner foi erguido como
testemunho da potência geradora da linguagem.
ro . Andre Brink, Wri1ing in a S1au ofSi<g< (Nova York: Sumn,it Boola, 1983), p. 36.

438
O acàndalo da hibrida:. - r.A raistincia das 111gras , a ambiguidad, narrati11a

con10 sua primeira língua não podia ser simplesmente lançado ao fogo.
Ao contrário, uma tarefa muito mais difícil de desinfecção política teria
que ser realizada.
Começou então por todo o país um esforço de higiene nacionalista
branco. As poucas vozes que tentaram investigar a complexa e ambígua
política do livro foram afogadas sob o oba-oba unânime que proclamava
que o livro não tinha nada de política, que ele era universal, que lidava
com "questões de família" e, portanto, estava alc:m dos campos da polí-
tica e da história propriamente ditas. Ao mesmo tempo, estava à mão
um discurso crítico bem estabelecido que definia a grande literatura
como apolítica. Na prevalente estética liberal sul-africana branca, base-
ada nas universidades e revistas literárias brancas, a política era vista
como uma atividade suja,feita de polêmicas partidárias venais e de pan-
fletagem, e eivada de preconceitos, autointeresse, lugares-comuns e
mundanidade. A grande literatura, ao contrário, era vista como trans-
cendendo o quotidiano medíocre, habitando um inescrutável domínio
hermético de verdades essenciais e atemporais. Obras de arte que encar-
nam essas verdades são dádivas de gênios individuais e exemplificam
uma unidade de visão, uma totalidade de experiênàa, valores imanentes
e universais, ironia de tom, complexidade de forma, sensibilidade culta e
\
discriminação moral, acima das platitudes de dogmas políticos. Era as-
sim a familiar estética liberal herdada pelos acadêmicos brancos treina-
dos na escola de Leavis.
Não se deve esquecer que a separação h istórica entre literatura e po-
lítica começou, na história ocidental, quando gr.mdc número de mu-
lheres começou a ler e escrever. Qyando "a massa danada de escrevinha-
doras", na expressão azeda de Nathaniel H awthorne, entrou no domínio
literário público, a literatura foi definida como separada da política. De
modo similar, quando os países colonizados chegaram à independência,
depois da Primeira Guerra Mundial, e quando número significativo de
homens e mulheres negros entrou nas universidades, insistindo em de-
finir urna alternativa à sagrada subjetividade masculina branca; precisa-
mente nesse momento soou o réquiem sobre o assunto. No momento
preciso cm que vozes não emancipadas clamavam impetuosamente pelo

439
Couro imptrial

privilégio de definir sua própria identidade e autoridade, "o autor" foi


declarado morto.
l\llais importante para meus propósitos foi o argumento de que Pop-
pie Nongena seria apolítico porque cuidava principalmente da tentativa
de uma mulher de manter sua família unida. Se a política tinha sido
separada da arte, tinha sido também separada da familia. Como disse
um jornal, o livro seria apolítico porque as pessoas nele descritas preten-
dem apenas "obter um salvo-conduto e manter a família unida de algu-
ma maneira"". D esse ponto de vista, a família parece habitar uma esfera
à parte da política organizada e da história. Assim, a resistência das mu-
lheres à política do bantustão, aos salvo-condutos, à violência doméstica
e à pilhagem de seu trabalho podia ser deixada de lado, pois estava além
do campo próprio da política organizada e além do domínio da história.
Naquele que deve ser um dos comentários mais risíveis sobre o livro até
hoje, Die Burger declarou que o livro era apolítico porque "os problemas
de Poppie são problemas humanos gerais, são universais"u.
.J
O problema de ser menor aos olhos da lei, sob tutela permanente de
um parente masculino; o problema de ser mandada embora de casa por
ocasião do casamento e de partir para o estranho bantustão do marido,
muitas vezes a centenas de quilômetros; o problema de não ter direitos
de residência sem a assinatura de um parente masculino; o problema de
carregar os bebês, dar à luz e criar filhos sob as circunstâncias mais peri-
gosas, todos esses_são problemas não enfrentados por homens ou mu-
lheres brancos. Nem mesmo por homens negros. Longe de serem uni-
versais, são problemas enfrentados apenas pelas mulheres negras e foram
inscritos nos estatutos sul-africanos em momentos históricos identificá-
veis. Só com os esforços mais contorcionistas eles poderiam ser caiados
como os dilemas universais da "tragédia grega"13•
Pode-se argumentar que o ato de cumplicidade mais perturbador
com a recepção do livro foi a insistência da própria Joubert de que o li-

n. 11,e Cape Timrs, 6 dez., 1978.


12. Carta a Dfr Burgn, 16 jan., 1979, tr:id. Schalkwyk.
13. Carta a 1hr Argui, 14 mar., 1978.

440
O tmJnda/r, da hibridt: - cA rtsistlnâa das mgras ta amhiguidade narrativa

vro era apolítico. Ela foi amplamente citada chamando-o de nada mais
que "uma estória de puro interesse humano"4 . "A questão é que", justi-
fica ela, "não é um livro político. Eu o escrevi porque era um tema que
me interessava. Eu queria mostrar a pessoa como ser humano. E é até aí
que vai meu interesse". Na manchete Die Oosterlig assegura, satisfeito, a
seus leitores: "Política não é sua motivação", como se livrasse Joubert de
alguma sórdida contravenção'5• Uma e outra vez, grandes jornais trom-
beteavam a evidência da intenção autoral (o que, podemos imaginar,

f
..
pensaria Nongena?). Não podemos descartar as prevaricações de Juu-
bert como o cuidado de um autor por medo em relação à sua vida ou
arte. Ao contrário de Nongena, ela não corria perigo imaginável. Em vez
disso, sua vida como mulher e mãe lhe emprestava uma afinidade de
gênero e uma empatia muito genuína por Nongena, mas o lugar recen-
temente adquirido no mundo da intelligentsia masculina branca subli-
nhava sua lealdade a urna ideologia de distanciamento estético da polí-
tica. Ela podia ir até ali, mas não podia ir adiante.
A posição contraditória de Joubert também derivou da crise geral da
intelligentsia liberal. Como argumento com mais detalhes no capítulo 9,
durante os anos 1970 testemunhamos, pela primeira vez na África do
Sul, uma procura dos escritores negros por parte dos escritores e críticos
brancos, que tentavam tomar emprestada a autenticidade dos escritores
• negros para compensar sua própria legitimidade em baixa. O privilégio
da educação pode alimentar uma sensação de isolamento e de falta de
representatividade - aguçada até a urgência pela rebelião de Soweto.
Falar através da voz dos que estão fora do poder torna-se, em parte, uma
forma de diminuir a marginalização do privilégio.
A caiação pública de Poppie Nongena como apolítico surgiu, então, a
partir das maneiras pelas quais as contradições do momento se fundi-
'\
t
ram e se forjaram mutuamente: as lealdades conflitantes de gênero e de
classe de Joubert; a peculiar imunidade do escritor africâner; as contra-
dições no interior do nacionalismo africãner; a rejeição negra dos afri-

14. Rand Daily Mail, 4 jan., 1979.


15. Dit Oosterlig, 9 mar., 1979.
Couro impaial

câneres; a posição ambígua do intelectual liberal; a separação histórica m


••
entre o domínio da política e o da estética; e a definição histórica da
familia e da mulher como fora da política propriamente dita.
Marnea Lazreg, feminista argelina, escrevendo sobre o poder da in-
terpretação, tem a dizer o seguinte: "Uma feminista engajada no ato de
representar mulheres que pertencem a uma culrura, grupo étnico, raça
ou classe social diferentes dos seus exerce certo poder sobre elas, o poder
da interpretação. ].\ias esse poder é peculiar. Ele é tomado de emprésti-
mo da sociedade como um todo, que é centrada no homem"16 • Desejo
explorar as relações de poder interpretativo e narrativo que se d ão entre
J oubert e Nongena e o farei explorando a controvertida política da au-
tobiografia e da história oral. Quais são as relações de poder entre uma
mulher sul-africana negra e outra branca quando uma narrativa oral é
transcrita, seletivamente editada e publicada? Ao explorar essa questão,
estou ciente de que também eu estou inevitável e problematicamente
implicada na política da interpretação. Nas páginas que se seguem, de-
sejo explorar as implicações dessa contradição para o feminismo, contra-
dição que entra no livro inicialmente como um enigma de gênero.

RAÇA E A DUPLICAÇÃO DA S ORIGE NS

Duque: E qual é a história dela?


Viola: Um vazio, meu senhor.
Shakespeare

Forma é poder.
H obbes

A recepção d e Poppie Nongena é eloquente na medida em que um texto


é um evento em disputa. Ler é uma prática dinâmica que se dá no tem-
p o e assume a forma de uma relação entre o texto e as lealdades de
classe, ·raça e gênero de diferentes leitores; suas diferentes histórias edu-

16. Ivlarnca Lazrcg, •Fcminism and Oitfcrcncc: Thc Pcrils ofvVriting :LS a \-Voman on Women
in Algcria", Frminist Studia 4, 1 (191111), pp. 81-107.
O tscJ11da/q da hióridt:: - ui rtsilftnâa das negras t a amhigu idadt narrati-ua

cacionais, culturais e pessoais; e suas diferentes expectativas e hábitos de


pensamento. Textos literários são eventos históricos, que diferem de ou-
tros eventos na medida em que são organizados de acordo com critérios
estéticos e outros. Cada texto é desse modo uma situação em andamento.
A despeito do aplauso unânime à falta de política de Poppie Nongena,
os críticos ficaram contrariados por sua incapacidade de enfiar o livro no
leito procustiano da tradição masculina. Pouco depois da publicação da
narrativa, surgiu uma pequena controvérsia numa revista literária afri-
câner sobre seu estilo. O crítico africâner Gerrit Olivier atacou Joubert
por seu confuso modo narrativo e seu estilo rela.xado, desigual e frag-
mentado. Richard Rive, um crítico negro, respondeu acusando Olivier
de mesquinharia, de traficar na trivialidade e de lidar com sutilezas de
forma quando o que importava era a força política do livro'7. As críticas
de impropriedade formai de Olivier são críticas que têm sido atiradas às
cabeças das mulheres por bastante tempo: a falta de uma voz narrativa
central, a falta de fecho, a falta de delicadeza formal e de acabamento. A
defesa de Rive, por outro lado, descarta a forma narrativa do livro como
uma irrelevância estética e, assim, repete a clivagem entre política e es-
tética. Recuso ambas as posições e argumento que o modo narrativo do
livro é inseparável de seus interesses sociais e políticos.
Do que então chamar esse texto? É um romance? Uma autobiogra-
fia? Uma biografia? Uma história oral? Uma autobiografia oral? Sua
qualidade camaleônica causou perplexidade nos leitores. Foi reclamado
pela ficção e foi chamado de "novela humana", "novela religiosa", "no-
vela" com uma "perspectiva revolucionária" e "literatura propria1rn::nte
dita"18• Foi também reclamado pela não ficção: definido como "relato
sóbrio", "boa reportagem", "baseado apenas cm fatos"'9• Andrc Brink
propôs um compromisso e tomou emprestado o termo faction de N or-

17. Jean Marquard, "Poppie", English Studits in A/rira 28 (1985), pp. 135-41.
18. 1ht Sowttan, 18 jul., 1981. Dit Bu ld, 2 2 mar., 1979. Dit Oggmó!ad, 28 fev., 1979. RappMt, 3
dez., 1978.
19. Sobrecapa da edição de 1980 de pqppit Nongma; Sunday Tim,s, 3 dc,e., 1978. Rapport, 14
fev., 1979.

443
Couro imp~rial

man I\1ailer - rótulo sumariamente rejeitado por Jean Marquard por


insinuar inautenticidade. "Faction", escreve lvlarquard, é "uma mistura
(como o nome sugere) de 'fato' e 'ficção', enquanto que Poppie não se
afasta da 'verdade' (definida na versão de Poppie) em qualquer etapa[ ... )
A novela é então de um tipo documental":º.
As contradições no status do livro são mais visíveis onde elas são mais
vigorosamente reprimidas: na capa e na página do copyright. Como se o
espet:kulo de uma mulher negra e uma branca colaborarem através de
raça e classe fosse por demais impróprio, nenhum editor publicou o livro
como narrativa coletiva, nem deu a Nongena o status de coautora. A
história foi comercializada como uma novela escrita por Joubert sobre
Nongena. Exceto por um prefácio lamentavelmente inadequado e facil-
mente descartado, o crucial papel gerador de Nongena é inteiramente
apagado, e ela está contida no título como nada mais que a criatura fic-
tícia de Joubert. Os leitores podem ser desculpados por suporem (como
muitos supõem) que ~ ongena é uma ficção novelistica de Joubert. De
fato, na esquerda masculina branca esta foi muitas vezes dada como a
razão para descartar o livro como a fabricação suspeita de uma mulher
branca, ainda que bem intencionada.
A narrativa é eivada de contradições. Paradoxalmente, a afirmação
que Joubert faz da autenticidade de "seu romance" envolve apagar seu
papel como romancista. Seu "romance", afirma ela, é autêntico porque
não é mais que um registro factualmente acurado da história da vida da
própria Nongena: "Eu me mantive fora da história, usei-a como uma
espécie de espelho da rcalidade".Joubert também declara: "Eu logo sou-
be: nem livro de viagem, nem alegoria, mas a verdade nua, a história da
vida dessa mulher. Esse era o ponto para onde meu estudo, minha pes-
quisa, minhas viagens em meu próprio país me estavam levando"". Se o

20. Marquard, -Poppie", p. 117.


21. Ibidem. Elsa Joubcrt, in M.J. Daymond,J. U.Jacobs e Margaret Lenta (orgs.), Momm-
lum: On Rrunl SouthAfritan Writing (Pictcrmarittburg: Uni\1:rsity ofNatal Press, 1984),
p. 60.

444
O tsc4ndalo da hibridt::. - <.A rt1i1tlncia das ntgras ta aml,ig11idadt narrativa

livro "não é uma alegoria, mas a verdade nua", com base em que J oubert
chama o livro de romance e reivindica o status de única autora?
O uso, por Joubert, da metáfora aristotélica da arte como superfície
mimética da verdade da vida e da imagem de si mesma como mera-
mente segurando o "espelho" para a "realidade" da vida de Nongcna evi-
''
$ ta as questões poüticas e estéticas levantadas por suas próprias inter-
venções editoriais e por isso obscurece a ambígua política de colaboração
feminina em que a narrativa está inscrita e pela qual está visivelmente
marcada.
Além disso, as alegações de Joubert são contraditórias. Ela insiste em
que não é nada mais que um refletor mimético, entregando a verdade
nua da autêntica voz falada de Nongena sem mediação ou intrusão. lVIas,
•\
quando ela quer defender a falta de política do livro, arroga-se o privilé-
gio da intenção autoral. Essa contradição aparece mais notavelmente na
página dos direitos. No prefácio de Joubert se lê: "Este romance seba-
seia na história real de uma negra vivendo hoje na África do Sul. Apenas
seu nome, Poppie Rachel Nongena, nascida matati, é inventado. Os
fatos me foram relatados não só pela própria Poppic, mas por pessoas de
sua famüia imediata".
Essa nota e os direitos na mesma página estão, assim, em desacordo.
O prefácio atesta a falta de invenção de Joubert. Mas os direitos assegu-
ram seu título legal à narrativa como sua única criadora. Chamar a nar-
rativa de romance é elevar as expectativas de um tratamento ficcional ou
inventivo dos fatos . l\llas Joubert afirma que seu "romance" se baseia
apenas nos "fatos" de uma história de vida real. "Apenas seu nome, Pop-
pie Rachel Nongena, nascida matati, é invcnlado". Pode a invenção de
um nome tornar uma história de vida uma obra de ficção? No mesmo
diapasão, que decreto de arrogância branca permite que Joubert reivin-
dique para si mesma o status gerador de autora? Qie conceito de pro-
priedade da narrativa lhe dá o direito ao poder exclusivo do copyright,
quando a narrativa é manifestamente e de todas as maneiras a produção
'
coletiva de duas mulheres? De fato, a ideia da propriedade textual indi-
vidual (conceito que surgiu no século XVIII, quando escritores pela pri-
meira vez se acharam capazes de ganhar a vida com a venda de seus li-

445
Couro impuial

vros ao público) assinala uma contradição histórica geral dentro da


cultura sul- africana - entre uma noção decididamente imperialista de
autoridade textual individual e noções nativas de cultura comunitária
que envolvem um sentido de criatividade dispersa.
Nongena em verdade insistiu num pseudônimo, presumivelmente
por m edo por ela mesma e por sua família.Joubcrt manteve cm segredo
o nome verdadeiro e a identidade de Nongena, a despeito de ser caçada
por entrevistadores e jornalistas internacionais desejosos de divulgar sua
identidade. Ainda assim, teria sido perfeitamente factível publicar a nar-
rativa como colaboração. Em lugar disso, o desaparecimento da identi-
dade e do nome de Nongena, em contraste com o acesso instantâneo de
Joubert a um nome literário internacional, testemunha os desequilíbrios
de poder racial e de classe entre as duas mulheres e suas respectivas e
diferentes relações com o Es~ado. Ao publicar essa complicada narrativa
como o romance de uma mulher branca sobre uma mulher negra, o es-
cândalo da colaboração feminina entre raças é silenciado, a hierarquia é
restaurada e os limites, retraçados. A capa e a página dos direitos são,
assim, plenamente expressivas das políticas de excisão e amnésia que
assinalaram a extraordinária recepção do livro como um todo.
Descartar a narrativa como romance apolítico de uma mulher branca
é, portanto, ser cúmplice na política conservadora que deu forma à pu-
blicação e à recepção do livro e concordar com o apagamento do papel
gerador de Nongena. Tal apagamento do que Abcna Busia chamou de
"corpo ameaçado" da· mulher negra esvazia qualquer discussão séria das
questões teóricas, políticas e culturais profundamente problemáticas que
o livro levanta.
A comercialização do livro como romance é diretamente contradita-
do pela própria narrativa, profundamente marcada pela geração coletiva,
bem como pelos sinais textuais dos desequilíbrios de poder racial e so-
cial que regem a colaboração. D o que devemos chamar esse texto? Como
Poppie Nongena parece ser a história da vida de urna mulher tal como
contada por ela mesma,cle é sob muitos aspectos urna autobiografia oral
transcrita. Mas a narr-ativa não observa o "pacto autobiográfico" de Phi-
lippe L ejeune entre a identidade do "eu" falante, a personagem principal
O nuJndalo da hibridez. - uf rnistincia dai negra1 e a ambiguidade narrativa

e o autor.22. Ele retém a te.xtura pessoal e os idiomas da voz de Nongena


em primeira pessoa, mas é também uma coisa impressa, mediada pelas
intervenções editoriais de Joubert e por uma segunda voz narrativa.
Nem pode ele simplesmente ser subsumido sob a categoria de biografia.
Como biógrafa, Jouberc verificou uma e muitas vezes cada detalhe da
história da vida de Nongena; ela viajou para cada lugar mencionado na
história, entrevistando, sempre que possível, todas as pessoas menciona-
das e falando, quando possível, com os p arentes de Nongena. Mas, ao
contrário da maioria dos biógrafos, ela lia constantemente a narrativa
para Nongena, que a corrigia e sugeria mudanças e revisões. Além disso,
diferentemente de outras biografias, pelo menos um terço da narrativa
está na primeira pessoa. O que fazer a respeito desse texto paradoxal?
Qyais são as políticas de autoria feminina e quais são as políticas de raça
e gênero quando mulheres colaboram, através dos limites da raça, a par-
tir de posições de poder desiguais? Se vamos examinar os paradoxos da
ambígua política do livro, precisamos explorar o status do texto enquan-
to narrativa cn1 colaboração.

ESCOVAR A HISTÓRIA A CONTRAPELO

Jean Marquard observou que Poppie Nongena é alguns anos anterior ao


surgimento na África do Sul do que tem sido chamado de "história vista
de baixo", "história do povo" e "história oral". No entanto, em g rande
parte por causa das origens do livro nas relações de gênero e da política
de sua comercialização e recepção, ele não recebeu a atenção séria como
testemunho oral que formas posteriores de história oral receberam.
Na África do Sul, a "nova história" surgiu como resposta ao maciço
crescimento do ativismo extraparlamentar, nos sindicatos independentes
e em organizações comunitárias mobilizados no país inteiro cm torno
das questões dos aluguéis, transportes, moradia e educação. A nova his-
tória tomou pelo menos três direções. D e um lado, histórias acadêmicas

22. Philippe Lcjcunc, L'Autobiographit m Franu (Paris: Armand Colin, 1971), postcriormcn-
Lc modificado c m Pau autobi,graphi9ue (Paris: Scuil, 1976).

447
Couro i111ptrial

politicamente radicais e com base empírica exploraram tópicos como a


ascensão e decadência do campesinato africano, a construção do prole-
tariado negro, as diferentes histórias dos zulu, xhosa, pedi e assim por
diante. Essas histórias foram escritas por acadêmicos brancos altamente
treinados para um público acadêmico especializado. De outro lado, h is-
tórias como aquelas produzidas pelo Grupo de História do Trabalho;
livretos ilustrados em inglês, zulu e xhosa; Learn and Teach [Aprenda e
ensine], e outros, escritos para um público popular de massas por inte-
lectuais ou ativistas comunitários comprometidos em colocar seu treina-
mento e conhecimento a serviço das comunidades. Finalmente, há his-
tórias produzidas por não acadêmicos, trabalhadores e estudantes para
publicações de trabalhadores e jornaizinhos comunitários como Fosatu
Worker News e Izwi Lase Township, e também representações da história
em quadrinhos, que tentam colocar a escrita e leitura da história nas
mãos das próprias comunidades.
A história oral, tanto na África do Sul como em outros lugares, ofe-
recia a delirante promessa de escovar a história a contrapelo, na frase fa-
mosa de Walter Benjamin. Prometia restaurar as vidas ordinárias e vívi-
das daqueles que cncilhavam os cavalos coloniais, que martelavam os
trilhos das ferrovias e escavavam os diamantes, que davam banho nas
crianças dos colonos e cozinhavam as refeições. A história oral prometia
uma história mais democrática. Como diz Paul Thompson: "Ela devolve
às pessoas que fizeram e experimentaram a história, através de suas pró-
prias palavras, um lugar central"1 J. Novas áreas da vida social, como his-
tórias de familias e de relações domésticas de poder, a miríade de formas
d a cultura popular, ou a dinâmica de grupos sociais informais como co-
munidades de assentados e bares ilegais - até então secretos, objetos de
tabu, ou negligenciados - eram abertas à história pública.
A história oral não é simplesmente uma nova técnica de recuperação
do passado cm sua pureza. Antes, sugere uma nova teoria da representa-

23. Paul Thompson, "History and Communit)'~. in David K. D unaway e \.Yilla K. Baurr.
(org,.), Oral Hutr>ry: An Interdisciplinory.Anthology(Nashvillc: Amcrican Association for
Statc and Local H istory, 1984), p. 39.
O eudndalo da hibridn. - cA roirténcia das ntgras t a ambiguidadt narrativa

ção da história. A história é produzida tanto por mineiros, prostitutas,


mães, trabalhadores do campo quanto pelos heróis da escrita da história;
mas não só isso: o registro da história é tanto o resultado de uma luta
quanto o lugar da própria luta. Sem dúvida, a história oral é potencial-
mente uma tecnologia para reproduzir a memória política, uma tecno-
logia acessível pela primeira vez aos silenciados, aos inaudíveis, aos não
emancipados: mulheres, a classe trabalhadora, as pessoas comuns. Mas
as próprias histórias orais não são necessariamente progressistas, como
também não o são todos os usos que podem ser feitos pelas narrntiva.<;
orais, como exemplifica a recepção de Poppie Nongena. A representação
da história, inclusive da história oral, é ela mesma um evento histórico
contestado. A coleta e preservação da memória humana é menos uma
técnica de aumento da exatidão histórica do que uma nova tecnologia,
contestada, de poder histórico.
A exatidão cm história é um género. O empiricismo é um modo de
ordenar a experiência passada segundo certas convenções retóricas e dis-
ciplinares. A procura pelo passado "real" é tão utópica quando a procura
de Alice pelo coelho branco, que olha rapidamente o relógio antes de
desaparecer. A história está sempre arrasada. A história oral empírica, se
definida como o esforço "de simplesmente coletar e preservar memórias
humanas"1 4, é um modo de taxidermia histórica, uma tecnologia para
reproduzir eventos passados numa estagnação permanente de seme-
lhança com a vida. O empiricismo privilegia a ideia da história como
uma série de eventos puros e recuperáveis, noção que só pode ser entre-
tida pela despolitização radical da dinâmica do poder subjacente às ati-
vidades do fazc::r história. Como disse Frantz Fanon, "A objetividade,
para o nativo, é sempre dirigida contra ele"•s. A história oral também
pode ocultar uma poética da nostalgia. Em sua forma empírica, a histó-
ria oral realiza o desejo nostálgico de representar a história inteira, de
preservar, de embalsamar: é uma poütica da reprodução. Ela representa

24. Samuel Hand, "Some \.Yords on Oral Histories", in idem, op. cit., p. 52.
25. Frantt Fanon, 'Tht Wrttthtd oftht Enrth (Nova York: Grove Press, 1963), p. 77.

449
Couro impuial

o desejo agressivo de completude e coerência histórica que caracteriza


todos os arquivos. O arquivo oral pode, assim, tornar-se um instrumen-
to poütico para a burocratização de vidas de trabalho, servindo como
monumento visível ao poder da burocracia como sistema de ordena-
mento do conhecimento e de delegação de autoridade.
A produção da história oral é uma tecnologia de poder sob contesta-
ção e, enquanto tal, não pode ser isolada do contexto de poder em que
surge. A h istória oral envolve a reprodução tecnológica das memórias
das pessoa::;; a vida instável do inconsciente; as deformações, evasões e
repressões da memória, do desejo, da projeção, trauma, inveja, raiva, pra-
zer. E ssas obscuras lógicas não podem ser descartadas por um mero ato
de vontade como aborrecidas impurezas d a história oral, mas devem ser
integradas na história oral como parte central do processo. Não há his-
tória oral inocente de seleçã~, viés, evasão e interpretação. Os desequilí-
brios muito reais de poder continuam nos contextos correntes. Histórias
orais muitas vezes perpetuam a hierarquia entre trabalho mental e ma-
nual das sociedades das quais surgem: a hierarquia que organiza aqueles
que trabalham e falam diferentemente dos que pensam e escrevem. Em
muitas histórias orais, a autoria múltipla da narrativa é afogada pela
autoridad e executiva e coreográfica do "historiador". O narrador oral se
torna o Trilby de Svengali, ao aceno e chamado do mestre de cerimô-
nias, dando prestígio e glamour ao nome profissional do historiador, sem
beneficiar-se o mínimo.
Na capa, embalagem e apresentação de Poppie Nongena, Nongena é
sem dúvida apresentada como o trilby para o Svengali deJoubert. Non-
gcna é aprescnlada como a criatura ficcional de Joubert, e a maioria das
pessoas que não sabem das circunstâncias da produção do livro o lê
como um romance de mulher branca e o rejeita como suspeito por isso
mesmo. Contudo, aceitar isso assim é aceitar a lamentável política de
caiação da publicação do livro e concordar com o apagamento da au-
torid ade criativa de Nongena. D e fato, a própria narrativa expressa
uma hierarquia d e relações muito mais complexa do que a embalagem
sugere, e muito do grande valor e interesse do livro está no modo como
esses cambiantes desequilib rios de poder - os paradoxos e as ambi-

45º
O ewJndalo da hil,ridtr. - :A rnistintia das ntgras t a arn!,iguidadt narrativa

guidades que surgem de sua dupla autoria, as contradições entre as


duas mulheres em relação ao apartheid - são integrados à textura da
própria narrativa.

RAÇA, GÊNERO E AUTOBIOGRAFIA

Teresa de Lauretis argumenta que propor a questão do gênero como


decorrente de uma diferença sexual fundamental entre homens e mu-
lheres, ou, em termos mais abstratos, de efeitos discursivos e de signifi-
cação (da diferença, onde ~mulher" vem a figurar como diferença mesmo),
tem o efeito de universalizar a oposição de gênero e tornar impossível a
articulação das d iferenças entre as mulheres e dentro delas. Ela ela.m a
em lugar disso p or um "sujeito certamente constituído pelo gênero, mas
não só pela diferença sexual; antes, através de linguagens e representa-
ções culturais; como sujeitos engendrados na experiência de raça e clas-
se, assim como nas relações sexuais; um sujeito, portanto, não unificado,
mas múltiplo, e não tanto dividido quanto contraditado"16• O gênero é,
assim, a representação de relações sociais que estão mudando: "Ele apre-
senta um indivíduo por uma classe"17• O "sujeito do feminismo" é, por-
tanto, "um sujeito cuja definição e concepção está em andamento" e que
não pode ser encontrado só nas identidades, n1as antes na política de
formas alternativas, sociais, políticas e comunicativas, cm práticas polí-
ticas de autorrepresentação que iluminem a "construção múltipla e con-
traditória da subjetividade":•.
De modo semelhante, Biddy Martin escreve sobre "recentes escritos
autobiográficos que trabalham contra concepções de identidade eviden-
temente homogêneas", escritos em que o lesbianismo, por exemplo, vem
a figurar como algo diferente de uma autoidentificação totalizante e

16. Teresa de Laurctis, Technologia ofGmdn: Essays on 1luory, Fi/m and Fiaion (Blooming-
ton: Indiana Universicy Prcss, 1987), pp. 1- 2 .
1.7. Idem, op. cit., p. 5.
28. I bidem.

45 1
Couro j,,1paial

também como não exclusivamente psicológico•9• O apelo aqui é às aná-


lises instirucionais do poder social e culrural mais que a um foco apenas
na identidade. A importância desses pontos é que eles nos permitem
examinar as narrativas das mulheres no contexto de teorias e da política
de transformação social mais do que numa psicologia ou numa poética
apolítica da identidade.
Uma identidade singular (seja de gênero, raça, classe ou preferência •
seÀ'llal) não pode garantir correção política. A atuação feminista deve ser
procurada não numa psicologia homogênea apenas da identidade (a
vida feminina de uma lésbica, de uma mulher negra, de uma mulher da
classe trabalhadora), mas através de uma política de organização e de
uma estratégia que leve em consideração a miríade de diferenças e leal-
dades que atravessam a vida das mulheres com paixões conflitantes. Es-
creve Audre Lorde:

Como feminista lésbica negra confortável com os muitos ingredientes dife-


rentes de minha identidade e como mulher dedicada à liberdade racial e se-
xual cm relação à opressão, acho que sou constantemente estimulada a ptLxar
algum aspecto de mim mesma e apresentá-lo com um todo significativo,
eclipsando ou negando as outras partes do eu. l\1as essa é uma maneira des-
trutiva e fragmentada de viver3°.

O feminismo deve entrar onde surgem e se entrecruzam essas leal-


dades conflitantes sob circunstâncias históricas especificas. Podemos,
assim, evitar a redução da política a uma poética da carne, uma erótica
do poder que misteriosamente transcende a diferença histórica, que por
si mesma mascara diferenças de poder entre mulheres e similaridades de
poder e falta de poder entre mulheres e homens (de raça, classe e nação
diferentes).

29. Biddy Martin, "Lesbian l dentity and Autobiographical Differencc[sr, in Bella Brodski
e Celeste Scbenke (orgs.), LifdLinu: 1heorizing Wommi /lutohiography (Ithaca: Comell
Unive rsity Press, 1988),p. 81.
30. Audrc Lorde, "Age, R:i:e, Class and Scx: \Voman Rcdcfining Differcncc", in Sisur Out-
sider: Essays and Spuch,s (Trum:msburg: The Crossing Prcss, 1984), pp. 120-1.

45 2
O rsc4ndalo da hibridt::. - cA rtsistln<ia das ntgras r a ambiguidade narratfoa

Na África do Sul sabe-se muito pouco sobre como mulheres comuns


como N ongena e.xperimentaram as rupturas e mudanças no apartheid, e
sabe-se menos a.inda sobre como as mulheres resistiram a essas mudan-
ças e se engajaram em competições pelo poder1'. Narrativas orais como
a de Nongcna têm, assim, grande importância cm expressar, por oblíqua
ou mediada que seja a forma , algum insight nas múltiplas experiências
ocultas das mulheres. Ao mesmo tempo, tais narrativas apresentam pro-
fu ndos desafios para diversas teorias ocidentais sobre a formação do eu,
a autoridade narrativa e a identidac.lt: social.
Na história do Ocidente, a autobiografia é o gênero associado mais
de perto com a ideia da força da autoidentidade, mctonimicamente ex-
pressa na assinatura: o emblema de un1a identidade singular, irrepetível
,. e autônoma, criada num só movimento da pena metafórica11• Tipica-
'.
mente, a autobiografia masculina ocidental, em sua forma dominante,
foi vista como o heroico desdobramento de uma única mente. Como diz
James Olney: "O eu separado é o motivo mesmo da criação"33•

31. Uma exceção importante t Chcryl Walkcr, Womrn and & sistanrr in South A/rira (Lon-
d:es: Onyx Press, 1982). Ver também Jo Bcul, Shireen H assim e Alison Todcs, "A Bit
0:1 the Sidc? Gendcr Struggles in Toe Politics ofTransformation in South Africa", Ftmi-

niJt Rrvin.u 33 (Outono, 1989). Frene G inwala, •ANC Womcn: Thcir Strcngth in the
Struggle", J¼rk in Progms 45 (no·,.-dcz., 1986), pp. n - 4.Jacklyn Cock, iWaids and Madams
(Johannesburgo: Ravan, 1980); e Mamphcla Ramphc:lc e Emile Boonzaaicr, "Toe Posi-
tion of African Womcn: Race and Gcndcr in South Africa", in Boonzaaier e J. Sharp
(orgs.), South .11/riran Krywords (Cidade do C abo: D a\id Philip, 1988), pp. 153-66.
32. Ver Sandra Gilhcrt e Susan Gubtr, 1he Madwoma11 in lhe Attic: 1ht i~ma11 IVriter and tht
Nineuenrh Cenrury LiJcru,y lmaginatúm (Ncw H avcn: Yale U nivcrsity P~ss. 1979), c-:apí-
tulo 1, para a metáfora de escrever como poder fálico.
33. George Gusdorf, tido como o primeiro especialista da teoria autohiográ.fica, chama a
autobiogra_fia de uma "apologética e uma teodiccia do ser indi\idual", e fala da afinidade
da autobiografia com os espelhos venezianos com fundo de prat,: dai cm diante o texto·
espelho refleti ria a imagem oarcisístic:a do cu. Ver Gusdorf, "Conditions and Limits of
Autobiography", i n J ames Olncy (org.), Autobiography: Essays 1heorttical and Criticai
(Princeton: Princcton Univcrsicy Prcss, 1980), pp. 32, 39. Olncy define o autobiógrafo
como um cu (masculino) separado e singular. O autobiógrafo "está cercado e isolado por
sua p rópria consciência, que swgiu de uma hereditariedade singular e de uma singular
experiê ncia". Mttaphors of Stlfi 1hr Mtaning of Autobiography (Princeton: Princeton
University Pr~ss, t972), pp. 22-3.

453
Couro imperial

Argumenta-se, com frequência, que a ascensão da autobiografia es-


teve relacionada com a evolução histórica do indivíduo (macho, ociden-
tal) autoconscientc durante o Renascimento. Gusdorf, por exemplo,
toma o florescimento da admiração depois da revolução copernicana
diante do destino individual do eu (masculino) como evidência do flo-
rescimento evolutivo da raça europeia para a autoconsciência. De seu
ponto de vista, outras culturas que não despertaram para a autobiografia
não despertaram pa.ra a hlstória propriamente dita. Caindo sob o longo
espectro da ideia de progresso, Gusdorf a.firma que os "primitivos" (sem
autobiografia e temerosos de sua imagem no espelho) estão atrasados
em relação ao "filho" ocidental "da civilização" e, assim, revelam que ain-
da não emergiram do "arcabouço mítico dos ensinamentos tradicionais
[ ... ] para o perigoso domínio da história"34 • Sua afirmação é explicita-
mente masculina e imperialista: "Pareceria que a autobiografia não deve
ser encontrada fora de nossa área cultural; dir-se-ia que ela expressa uma
preocupação peculiar ao homem ocidental, preocupação que tem sido
útil na conquista sistemática do universo"Js. Contudo, como observa
Leila Ahmcd, "a autobiografia é uma forma conhecida de há muito nas
letras islâmico-árabes" (exemplos prévios aos ocidentais aparecem já no
ano IIII a.D.). A a.firmação de Gusdorf é, "pelo menos em relação à civi-
lização islâmica e árabe, simplesmente incorreta"36 •
De fato, o que 9usdorf retrata como um grandioso despertar para a
"aventura autônoma" do eu do indivíduo pode ser visto, cm lugar disso,
como o surgimento ·histórico da ideologia do individualismo possessivo.
Essa ideologia serviu a uma nova classe de comerciantes ávida por de-
safiar os modos tradicionais de legitimidade investidos no papado
medieval, na monarquia e na aristocracia dona das terras. O individua-
lismo possessivo foi uma retórica do eu inventada por certos homens e
definida a expensas da autonomia e da liberdade de outros grupos sem

34. Cusdorf, "Conditions and Limits of Autobiography", pp. 29, 30, 33.
35. Ide m, op. cit., p. 29. 1
36. Lcila Ahmcd, "Bctwccn Two Worlds: 'Ihc Formation of a Turn-of-thc Ccntury Egyp-
tian Fcminist-, in Brodski e Schcnkc, LifvLinL<. . .• p. 54.

454
O n,tJndalo da hihridn. - e.A ruistlnd a das ntgras, a amhiguidad, narrativa

poder, mais n otavelmente as mulheres, mas certamente incluindo tam-


bém homens.
À s mulheres raramente foi permitido partilhar as delícias da "aven-
tura autônoma" do cu individual de Gusdorf; as invenções femininas do
cu foram tipicamente sujeitas às cuidadosas e violentas amnésias da tra-
dição masculina37. Além disso, diversas feministas argumentaram recen-
temente que as muitas autobiografias escritas por mulheres ao longo dos
séculos são diferentes daquelas escritas por homens38 • A s autobiografias
de mulheres, argumenta-se, como regra geral não se prostram diante da
teologia do indivíduo centrado nem da ideia de um todo cronológico,
tendendo, ao contrário, a ser irregulares, anedóticas, fissuradas e polifô-
nicas39. lVlary I\1ason mostrou como, em muitas autobiografias femini-
nas, a identidade única do eu falante se estilhaça na múltipla fluidez da
identificação. A despeito de suas muitas variações, diz ela, autobiografias
femininas tipicamente apresentam o eu como identidade atravts da re-

37. Nos Estados Unidos, como observa Carolyn H eilbrun, só 3 partir de 1980 os críticos
masculinos se deram ao trabilllo de falar das inúmeras autobiografias de mulheres que
existem. Carolyn G. Heilbrun, "Women•s Aurobiographical 'Writings: New Forms", Prou
Studiu 8, 2 (ser., 1985), p. 14. A coletânea de 19So de James Olncy, por exemplo, dedica um
soliruio ensaio a autobiografias de mulheres, enquanto foram 15 os dedicados a autobio-
grafias masculinas. O relato de Paul Fusscl das autobiografias sobre a Primeira Guerra
Mundial não menciona uma única autobiografia feminina, embora por urna estimativa
houvesse pelo menos 30 relatos femininos subst:mciais da guerr:a. Ver Lidwien Heerkens,
"Becoming Lives: English Women's Aurobiographies of rhe 193o's", dissertaçio de mes -
trado, University of Leicester, 1984.
38. Mary Mason, por exemplo, :úinna: *Não encontramos nu ltuwbiogranas de mulheres os
padrões estabelecidos pelos dois autobiógrafos masculinos prototípicos, Agostinho e
Rousseau; e, inversamente, homens escritores nunca tomam os modelos arquetípicos de
Julian, Maigerey Kemp, Margaret Cave ndish e Anne Bndstreet•. "The Othe r Voice:
Autobiographics ofWomen Writers", in Olncy,Autohiography, p. 210.
39. Estellc C. Jelinek (org.), Womtni Autohiography: E1say1 in Crit friJm (Bloomington:
Indiana University Press, 1980), p. 17. Nem as autobiografia.s de mulheres florescem
nos pontos altos da história masculina - revoluções, batalhas e levantes nacionais - ,
• mas crescem segundo as mudanças de clima de outras histórias. Tipicamente, as autobio-
grafias masculinas reinventam as vidas de líderes militares, estadistas e figuns públicas,
enquanto, como C onway observa, não há modelos para a narrativ2 feminina de vidas
políticas de sucesso, nem modelos para a admissão pública da ambição, nem para os es-
tágios ~apropriados• de uma carreira.

455
Cour11 imptrial

lação40 • Essa relação não é de dependência ou de dominação, mas antes


de reconhecimento, pelo qual a manifestação do eu surge pela identifica-
ção com algum outro, que pode ser pessoa, família ou comunidade41 • A
identidade é, assim, representada como nascendo através da comunida-
de, e não como a heroica individual do cu que se desdobra na solidão.
Eu diria, contudo, que a fluidez, a instabilidade, a falta de cronologia
e: a transversalidade que de fato caracterizam textos como Poppie Nonge-
na não podem ser entendidas em termos de uma teoria universal de uma
tcritureféminine que surge de uma poética da carne, nem cm termos de
insurgência libidinal pré-edípica e do eu feminin o liberto, como argu-
mentam algumas feministas ocidentais••. Ao contrário, Poppie Nongenn
oferece certo número de desafios às suposições curocêntricas desta úl-
tima teoria.
Algumas feministas têm sido céticas em relação à ideia de uma gine-
se feminina universal, temendo que ela corresse o risco de ser fatalmen-
te essencialista, formalista e utópicaH. Há un1 perigo muito real em ba-
tizar certos textos com a água benta de um novo privilégio feminino,
apagando variações históricas e culturais e subsumindo a multiplicidade
das vidas femininas numa única visão privilegiada e branca e de classe

4 0. Mason, "lhe Other Voice ... •, p. 210.


41. Ibidem.
42. Críticas feministas fr.incesas, como Julia Kristev:a, Luce lrig:ll':lye Hclene Cbcous, distin·
guem na escrita <hs mulheres, de diferentes maneiras, um resíduo corporal de prazeres e
rebeliões insurgentes, que foge o.os éditos r.uln,r::ais e irrompe amotinado no discurso se-
miótico: desregrado, gestual, rítmico, repetitivo, oral, pré-edípico e sem limites. Ver Julia
Kristeva, MOscíllations", Luce Irigaray, "Ce Scxe qui n'en est pas un", e Hclene Cbc-
ous, "Sorties", in E laine Marks e Isabelle de Courtivron (trads. e orgs.), Nrw French
F(minisms: An Anth11/11gy (Amherst: Universiry ofMass;chusetts Prcss, 1980).
43. Ann Rosalind Jones, "\.Vriting the Body: Toward an Undcrstanding of l'Ecrit:ure Femi-
nine". in E laine Showalter (org.), 1h, N('W Fcminist Crititism. Essays on l~mcn, Liura-
/urt, 1hcory {Nov:a York: Pantheon, 1985). A noção de uma icriturt fam inint liberta esti
presa nos próprios opostos binários a que se opõe - preservando a ideia dualista do l
homem como racional, solipsista e centrado; e a mulher como orgânica, cósmica, rítmica '
e liberta-, mas invertendo os valores. O elogio de uma linguagem feminina da anatomia
é sinistramente próximo dos ancestrais dogmas masculinos que idolatram a mulher en·
quanto corpo, naturcz:i, irracionalidade, empatia e abnegação.
O e1t4ndala da hibridez - c,I{ ruistlncia das negras t a ambiguidade ,,arrati11 a

média. A categoria umulher" é uma construção social, e as rupturas visí-


veis nas narrativas de mulheres expressam rupturas cm experiência so-
cial. Diferenças narrativas são eloquentes não sobre o desígnio e o des-
tino anatômico, mas sobre as dificuldades cotidianas que as mulheres
experimentam ao negociar suas vidas cm torno da forma magistral do cu
masculinoH.
Vale notar que muitas das características das autobiografias que fo-
ram definidas como femininas são compartilhadas por autobiografias
escritas por pessoas de cor, homens e mulheres, e por hom1:m; da classe
trabalhadora. Assim, a afirmação de Mason de que não encontramos em
lugar nenhum autobiografias de homens que exibam as características
de textos femininos só vale para a tradição privilegiada dos europeus
poderosos. Susan Stanford Friedman observou que a identidade comu-
nitária frequentemente marca as autobiografias tanto de mulheres como
de minorias 45 • Passa a ser importante, portanto, não falar de autobio-
grafias em termos de essências ou de experiência: "autobiografia de mu-
lherc;", uautobiografia lésbica", "autobiografia negra". A identidade não
é uma essência que possa ser destilada e revelada num simples gênero ou
categoria. Tais termos tornam muito difícil articular diferenças entre
membros de diferentes comunidades ou dentro das próprias comuni-
dades. A identidade é construída socialmente, e homens negros, por
exemplo, compartilhando muitas das condições de privação e rejeição
enfrentadas por mulheres brancas, mostram comparáveis dificuldades
ao negociar seu caminho cm relação às convenções privilegiadas do cu
sancionado.

f 44. Ann Jones pergunta, por exemplo, se as mulheres negras, que foram marginalizadas de
r
1 rr.uitas maneiras difen:ntes que as mulhen:s brancas, cxperimenum o corpo e a lingua-
1 gem como as mulheres brancas. A que mulheres será permitido es::re,-cr o novo corpo? O
i
~
que a ideia de reformular o mundo :através d:i jauissanu semiótica da p:1favr3 escrita sig-
nificará para mulheres de culturas orais, para mulheres que estão ficando cegas fazendo

t mfrrochips, para mulheres sem acesso ao abono ou à contracepção, para os milhões de


mulheres genitalmente mutiladas em todo o mundo? "Writing the Body...", p. 371.
45. Susan Stanford Friedman, "Wornan's Autobiographical Sclvcs: Theory and Pracrice", in
Shari Benstock (org.), 1ht Privou Sdf: 1heory and Praaiu in fl~mmj Autobiograph~al
Writings (Chapei Hill: Univcrsity ofNorth Carolin<>. P~ss, 1988). p. 38.
1
~
;

l 457
Couro imperial

Nellie MacKay observa que "em todos os aspectos de sua criação, as


primeiras autobiografias negras alteraram os termos de produção da
autobiografia ocidental tal como definidos pela cultura dominante"46 •
Audre Lorde, a afro-caribenha/nova-iorquina, escritora e poeta lésbica,
sugere no título de seu livro Zami: A New Spelling oflvly Name [Zami:
uma nova escrita de meu nome] a inadequação fundamental do termo
"autobiografia" e das convenções ocidentais do eu para narrar a vida de
mulheres negras 47 • Ela chama Zami de "biomitografia" e, assim, convida
o leitor a uma nova relação com a ideia de história de vida. O neolo-
gismo "biomitografia" atrai uma série de ricas glosas. Mitografia afasta,
de um só golpe, qualquer nostalgia da exatidão autobiográfica. Ao mes-
mo tempo, o termo sugere vida através da mitografia, a vida do futuro
nascido da reformulação coletiva do passado. Além disso, o que o termo
"biomitografia" dei.xa de fora é tão significativo quanto o que ele inclui.
A recusa de Lorde em empregar o prefixo "auto" como único sinal im-
perioso do cu expressa uma recusa em propor-se como a única voz ge-
radora e com autoridade no texto. Em lugar disso, sua história de vida é
a vida coletiva e transcrita de uma comunidade de mulheres - não
tanto o registro perfeito do passado quanto uma estratégia de sobrevi-
vência da comunidade.

A POLÍTICA DO GÊNERO
E A IDENTIDADE SOCIAL

A primeira palavra de Poppie Nongena é "nós." Abrir o livro é perceber


imediatamente uma ausência - desapareceu o centrado e unívoco "eu"
da autobiografia masculina canônica. O livro começa assim:

46. Nellie MacKay, "Racc, Gcnder and Culrunl Context in Zora Nealc Hurston's Dust Trah
on a Roaã, in Brodski e Schenkc, Life/Lints... , p. r76.
47. Audre Lorde, Z ami: A Nr-w Sprlling of My Name (N0\"3 York: Crossing Press, 1981),
p. r39.
O u,dndalo da hi/Jridn:. - vi rtsistlnda das ntgra, ta am/Jiguidad, 11arrativa

Nós somos xhosa, de Cordonia, diz Poppie. Minha mãe costumava nos con-
tar de nossa bisavó Kappie, uma velha rica que apascentava suas cabras nas
colinas deste lado de Ca.rnarvon [... ] Ela contou à nossa mãe sobre os velhos
tempos [ ... ] Nós vimos os bõercs vindo a cavalo, ela disse [... ) E então Jaan-
tjie foi com eles[ ... ] Jaantjie, pega os cavalos e foge,gritou o bôer quando viu
os soldados ingleses [ ...] mas então, velha - assim ele veio e contou à nossa
bisavó Kappie - seu filho estava morto (p. u).

D esde o começo, o livro nega ao leitor um ponto de observação pri-


vilegiado, um centro que o volúvel "eu" da autobiografia permitia. Ao
abrir o livro, ouvimos uma polifonia de vozes femininas, as reverbera-
ções ancestrais de bisavós, avós e mães se misturando, se redobrando e
ecoando quase indistintamente. A voz de quem registra a história cerca
a voz de Nongena; Nongena, falando no presente narrativo, lembra a
voz de sua mãe, que por sua vez lembrava a voz da bisavó Kappie, que
lembrava as palavras dos bôeres e do homem que veio dizer-lhe que seu
filho estava morto, há muito tempo, nos dias dos levantes das guerras
dos brancos. Poppie Nongena difere, nesse aspecto, das autobiografias da
escola da missão negra na década de 1960, que geralmente abrem com o
"eu" da identidade individual masculina, ainda que em conflito 48• Em
Poppie Nongena a história de vida não flui a partir de um momento ori-
ginário no nascimento do indivíduo. O nascimento de Nongena é anun-
ciado obliquamente, cm terceira pessoa, só depois que a comunidade
maior de mulheres que formaram sua identidade foi identificada: "A
quarta criança de Lena foi levada a Ouma Hannie, que a chamou de
Poppit:" (p. 13).

•8. Tanto a autobiografia de Es'kia l\lphahlcle quanto a de Bloke Modisane tentam, de


maneiras diferentes, rcinvenr:ir uma trajetória do cu compatível com a noção liberal do
cu (mascuHno, branco) individw.1. Ambos fracassam; suas autobiografias terminam com
o abandono de suas familias e a fug:i para o exílio. De nenhuma maneira essa era ncccs·
sariamcnte a escolha mais f:icil: mas foi uma escolha düada cm parte por sua herança da
escola da missão, suas posições de classe como homens educados e a herança traiçoeira
do liberalismo ocidcnt:i.t que não cumpriu o que lhes prometia. Ver Ezckicl Mphahlclc,
Down Suond Awnu, (Londres: Faber, 1959); Bloke Modi~ane. Biame J\1e on Hi11ory
{Cidade do Cabo: A. D. Donker. 1986).

459
Couro imptrial

A s páginas de abertu.ra da narrativa de Nongena são eloquentes ao


mostrar a não naturalidade da identidade individual. Desde o começo, a
construção da identidade como coletiva entra como forma na experiên-
cia do leitor da narrativa. A memória oral de Poppie Nongena, transmi-
tida através da linha materna, lembra o que o Estado apagaria: a obsti-
nada memória coletiva da abundância pré-colonial, quando a rica bisavó
Kappie apascentava suas cabras nas colinas do Karoo. l\tlas depois da
virada do século, a fam ília de Nongena, como milhões de outros sul-
africanos negros, foi expulsa d a terra pelos ruinosos impostos sobre a
terra e as choupanas. Golpeados pela Guerra dos Bôeres, perdendo seus
rebanhos por causa de doenças e seus homens, na guerra dos brancos,
foram reduzidos a trabalhadores migrantes, sem terras e sem direitos,
indo de favela em favela, vendendo seu trabalho por ninharias nas fa-
zendas brancas e portos de pesca.
Os filhos de O uma Hannie se espalharam - um nas fazendas, um
para a guerra dos brancos - , e a trajetória fragmentada do restante da
família seguiu a inexorável lógica econômica da fe rrovia que interligava
os portos pesqueiros no Atlântico, o porto mercantil na Cidade do Cabo
e as minas no interior. Era uma família em transição, suspensa entre a
memória da abundância da autonomia pastoril e a miséria do trabalho
assalariado. Nas contradições dessa transição, surgiram diferentes for-
mas sociais de identidade.
As primeiras páginas de Poppie Nongena são uma confusão desnorte-
ante de non1cs de familia, lugares e relações de parentesco. Vozes se
misturam, se separam e se misturam novamente com outras vozes.
A dificuldade da leitura passa a espelhar a luta singular para manter a
família reunida. Luta-se para lembrar quem é ca.da um, para identificar
quem está falando, para lembrar em que lugar eles estão vivendo agora.
Somos constantemente obrigados a voltar-nos para a genealogia femi-
nina no começo do livro como guia e somos, assim, a cada momento
lembrados de que a identidade familiar e a social são construções traba-
lhosas. O que mantém a comunidade de identidade unida é o t~abalho
da memória oral, carregada pela tenaz vontade fe minina de lembrar e de
falar. A memória oral é uma recusa ao desmembramc:nto da história,
O tm1ndalo da hihridtz - cA usisthuia das negras t a amhigllidadt narrativa

.
t um laborioso sopro de vida. A memória, nas palavras de Don Mattera, é
~ uma arma49• É um instrumento contra o esquecimento, uma estratégia
de sobrevivência.

i~
1
A permeável construção coletiva da identidade em Poppie Nongena é
marcada de maneira mais visível pela ausência de aspas para distinguir
uma voz da outra. À medida que a narrativa avança, o leitor é convidado
a ajustar-se rapidamente à algaravia de vozes e de identidades narrativas.
A identidade passa a ser experimentada como uma constante reformu-
lação dos limites do eu; de faro, !:'assa a ser vista como o resultado cam-
biante da experiência comunitária mais que de qualquer singularidade
do ser. Para continuar a ler, somos obrigados a abandonar a nostalgia
libeml por uma perspectiva centrada e soberana presidindo a consciên-
1 cia. De fato, somos convidados a ceder a uma noção alternativa de iden-
••f
1
tidade recíproca, relacional e instável. Essa metamorfose instável dos
l
r limites é muito diferente da identidade fraturada e desmanchada do
pós-modernismo ocidental, que tem como contorno uma nostalgia trá-
gica pelo humanista individual centrado. Em Poppie Nongena, a identi-
dade é vivida como comunitária, dinâmica e cambiante, mais que como
fraturada, imóvel e solitária. Os limites do cu são permeáveis e estão
constantemente abertos à mudança histórica. Desse modo, a narrativa
oferece certo número de desafios às teorias hegemônicas da narrativa e
da identidade autobiográficas.

A INVENÇÃO DA FAMÍLIA

Desde o inicio, a narrativa de Nongena torna insustentável qualquer


ideia de que a identidade é uma categoria natural. Obedecendo à tradi-
ção, todas as filhas de Ouma Hannie foram casadas à força, inclusive a
mãe de Nongena, Lena: "essa era a maneira como os pais costumavam
fazer naqueles tempos. Minha mãe não queria meu pai" (p. 12). lVlachine
Matati pagou o dote a Ouma H annie, foi pai de quatro filhos, abando-

49. D on M:mcr2, M,mory is th, Wtapon ( Nova York: Bcacon, 1988).


Couro i mpaial

nou a família, foi à guerra e nunca mais foi visto. "Ele nunca cuidou de
meus filhos como um pai deveria ter cuidado, disse [Lena] a Ouma
Hannie. Não tenho lágrimas para verter por Machine Matati" (p. 33).
Machine Matati não foi exceção. Estima-se que durante as primeiras
décadas do século XX, três quartos de todos os homens negros viviam
afastados de suas famílias por mais de meio ano, levados por ambição
por terras, pobreza, impostos e desespero para as vilas e cidades. Mas as
consequências para as mulheres, desse maciço desmembramento de suas
familias, foram contraditórias.
Por um lado, a estrutura do trabalho dentro dos lares negros permitiu
que as mulheres resistissem à proletarização por períodos mais longos
que os homens. Como elas eram as agricultoras tradicionais, podiam
continuar teimosamente a trabalhar a terra e a lutar por suas comunida-
des, enquanto os homens se. espalhavam para vender seu trabalho nos
mercados. As mulheres continuaram independentes do eixo da formação
capitalista por períodos mais longos e, assim, foram capazes de maior
militância e recusa.Assim foi que as mulheres, e não os homens, tiveram
sucesso na recusa dos salvo-condutos em 191350• Ao mesmo tempo, con-
tudo, as negras sustentaram os esforços de suas familias para sobreviver
e sofreram mais intimamente as crueldades da pobreza, da fome e das
doenças, do desemprego, da desnutrição e das mortes das crianças no
campo. O s homens podiam aparecer brevemente, no máximo uma vez
por ano, ficar por um par de semanas e então desaparecer, quem sabe por
anos, quem sabe para sempre. Mas na ausência dos homens, as mulheres
ficaram m ais autônomas e mais autossuficientes. Foi assim na família de
Poppie Nongena.
Na narrativa, O uma Hannie preside, como uma matriarca em trapos,
os casamentos e nascimentos de seus filhos e netos, assumindo os netos
e criando-os como criara seus filhos. Lena, mãe de Nongena, é forçada
a trabalhar para uma familia branca numa cidade a mais de cem quilô-

50. Ver J ulia '..Vells, "Why '1Vomcn Rcbcl: A Compantivc Scudy ofSouth African Womcn's
Rcsistancc in Blocmfontcin (1913) and Johanncsburg (1958) ",journal ofSouthtrn Afrfran
Studiu 10, 1 (1984) , PP· ss-70.
O tu6ndalo da hibridn. - ui rnistlnâa das ntgras e a ambiguidade narrativa

metros, de tal modo que Nongena e seus irmãos vivem com a avó, entre
os galinheiros e as ruas arenosas das favelas, vendendo de tudo e lavando
roupas para os brancos. Ouma H annie "é muito estrita com os filhos"
(p. r4); é ela a autoridade na familia. Ela decide os casamentos, controla
as cerimônias do dote e recebe os dotes pelos casamentos das filhas.
A fam ília de Nongena torna-se constantemente um lugar de briga e
divisões, tanto dentro da familia em relação ao trabalho doméstico das
mulheres quanto entre a família e o Estado. Os limites da família mudam
sem cessar; as relações de parentesco são fluidas. É uma família sem pais
e não há mãe natural. "Nós amávamos Ouma, mais do que a nossa mãe",
diz Nongena (p. 17). A identidade da maternidade é múltipla e cambian-
te - como é o caso da maioria dos sul-africanos. Como diz Johanna
Masilela sobre as crianças a seu cargo: "Elas me tomavam como sua
verdadeira mãe. Porque não conheciam suas mães. Costumavam ver
suas mães no fim da tarde. Eu era a mãe delas"5'. Qyando O uma Hannie
assume um emprego doméstico cm que dorme no emprego com uma
família branca, Nongcna e seus irmãos são alocados com parentes em
lugares diferentes. Qyando a mãe de Nongena acaba voltando para ten-
tar reunir a família, seu filho, Mosie, "chamava Hessie de mãe porque
vivera com ela muito tempo" (p. 36); e Lena ralha com Poppie: "E agora,
você não conhece seu irmão, ali está Mosie"(p. 35). A ideia de uma famí-
lia nuclear natural, chefiada por um só homem, perde toda a caracterís-
tica e se esfacela no mundo. Avós são mães; primas são irmãs; irmãos são
esquecidos; não há pai; as mães são estranhas e depois mães outra vez.
J untos e sep arados, a familia de Nongena anda de cidade em cid:uie -
então se assenta brevemente em Lambert's Bay, no gelado Atlântico,
onde todos vendem seu trabalho à indústria do peixe.
A fluidez ou multiplicidade da identidade nascida dessa situação não
representa uma mutilação ou deformação da identidade. Antes, é elo-
quente de uma capacid ade resistente e flexível de atravessar os limites

51. ~Lec me Make History Please': lhe Story of Johanna Masilcla, Childminder", in
Belinda Bouoli (org.}, Clasi, Community and Conjlict (Johannesburgo: Ravan Press,
1987), p. 472 •
Couro impuial

incertos entre o eu e a comunidade. A fluidez e a reciprocidade da iden-


tidade narrativa na história, a mistura e a divisão de vozes, surgem, por-
tanto, não da inépcia formal nem de algumajouissance do corpo femi-
nino, mas de uma situação social cm que a identidade é experimentada
con10 recíproca, estruturada e coletiva. A identidade surge de uma co-
munidade de experiência mais que de uma unidade transcendental do
ser. As mudanças e deslizamentos narrativos manifestam essa reciproci-
dade e fluidez da identidade coletiva.
Podemos aqui invocar de passagem a obra de Nancy Chodorow, que
argumenta que os padrões culturais na criação dos filhos fazem surgir
diferentes experiências de limites cm homens e mulheres. Em lares onde
as mulheres são as principais guardas, as ..meninas passam a definir a si
mesmas como contínuas aos outros; sua experiência do eu contém limi-
tes do ego mais flexíveis ou permeáveis. Os meninos passam a definir-se
como mais separados e distintos, com maior sentido de rígidos limites e
diferenciação do cgo"51. Segundo Chodorow, a menina jovem passa a
experimentar um sentido do "cu em relação"SJ. Embora Chodorow sem
dúvida não preste atenção suficiente a variações culturais nas relações
familiares, ela se afasta de maneira significativa das teorias da diferença
arquetípica de gênero ao localizar diferentes experiências de limites nas
estruturas sociais históricas e, portanto, mutáveis da criação de filhos e
das divisões domésticas do trabalho.
Ainda assim, a polifonia de identidades da narrativa não revela uma
utópica democracia da narração da história. A história não exprime o
desaparecimento do poder, mas sua redistribuição sob disputa. A iden-
tidade não transcende o poder; ela passa a existir através da incessante
disputa e resulta numa dispersão e num realinhamento do poder, e não
em seu desaparecimento.
Esse realinhamento do poder está visivelmente expresso na genealo-
gia matrilinear que aparece no frontispício, uma árvore familiar rein-

52. Nancy Chodorow, 1he &production of Mothmng: Psy,hoanalysis and lhe S«iclogy o/
Ctnder (Berkeley: Univcnity ofCalifomia Prcss, 1978), p. 169.

53. Ibidem.
O tscàndalo da hibridtz - cA raistlnda das ntgras t a ambiguiáadt narrativa

ventada que ostenta no topo uma única matriarca e considera a descen-


dência pela linha feminina. As genealogias são apresentadas menos
como registros acurados de relações familiares do que como registros de
•'
poder político. Geralmente, são os vencedores que registram a história e
f inscrevem suas genealogias; geralmente, essas genealogias são masculi-
í
; nas. As páginas de abertura de Poppie Nongena, entretanto, consideram
a história através da linha feminina de avós e mães, dispersando a auto-
ridade numa comunidade feminina e, assim, figurando um engendra-
mento diferente da hierarquia e uma noção diferente de quem é autor da
história. A reinvenção da genealogia é resumida no nome xhosa de Non-
gena: "Ntombizodumo, que significa menina nascida de uma linha de
grandes mulheres" (p. 13). A consideração da genealogia da familia se-
guindo a linha da mãe marca o início de uma nova disputa pelo poder
familiar e histórico.
A dispersão e realinhamento do poder feminino são manifestados da
maneira mais vívida na dispersão e no realinhamento da autoridade
da voz narrativa. Muito do interesse da narrativa está no esmaecimento
das distinções entre "verdade" e "ficção", "autobiografia" e "biografia",
"romance" e "história oral". Uma autobiografia convencionalmente eleva
as expectativas de que o cu que conta a história e o autor da autobiogra-
fia são, pelo menos referencialmente, o mesmo. l\1as, como vimos, o "eu"
da história de Nongena e o "Joubert" dos direitos autorais não são idên-
ticos. Além disso, há pelo menos três narradoras no que é essencialmen-
te um relato coletivo. Nongena fala na primeira pessoa da maneira ime-
diata da história contada oralmente, como se registrada verbatim
durante a entrevista: "Ah! Chiando chovia tínhamos que tirar os sapatos
[ ...] Ah! Mas era tão triste estar de volta em minha casa outra vez" (pp.
80, 168). Em algumas ocasiões, sua voz que fala evoca explicitamente a
presença de Joubert como entrevistadora e ouvinte, explicando palavras
ou costumes xhosa ou africânercs que ela sabe que não são conhecidos
por Joubert: "Grootma significa irmã de sua 1nãe que é mais velha que
sua mãe, e kleinma é sua irmã mais moça" (p. 12). Às vezes, seus comen-
tários mostram vestígios das perguntas de Joubert: "A que horas come-
çávamos a trabalhar? Era quando os barcos chegavam" (p. 50). Assim, a
Couro imperial

ignorância cultural de Joubert e o contexto dialógico e público do come-


ço da narrativa estão inscritos no texto.
A segunda narradora não é idêntica à voz entrevistadora de Joubert,
mas funciona em certo sentido como uma narradora onisciente: "Na-
queles anos, 1966, 19671 a polícia era muito quente, diz Poppie". Mas essa
narradora intermediária não é sempre, cm termos estritos, uma narrado-
ra onisciente, pois funciona por vezes como um eco da voz entrevistado-
ra de Joubert, sem confundir-se com ela. "O s três filhos de Lena tam-
bém tinham nomes ingleses. Phiüp, Stanley e Wilson. Talvez tenha sido
Machine Matati, de Mafelcing, que foi à guerra pelos ingleses, que esco-
lheu esses nomes. Não, diz Poppie, não em só nosso pai que era educado,
nossa mãe também tinha alguma educação". As três primeiras frases
poderiam ser ou a voz do testemunho de Nongena ou a da narradora
intermediária, mas, por causa da sintaxe pouco comum, inclinam-se
para a voz de Nongena. A terceira frase ("Talvez tenha sido Machine
Matati [ ... ]") é um eco narrativo oblíquo de uma pergunta de Joubert,
mas não é registrada verbatim como sua fala direta. Em outros momen-
tos, a narradora intermediária enquadra as vozes de outros membros da
família de Nongena, tomadas das entrevistas de Joubert e não de Non-
gena: "É demais para Poppie, diz Lena, trabalhar na fábrica e cuidar dos
irmãos e da avó. Ela ainda não tem 15 anos (p. 60) [ ...] Desperdicei meu
tempo na escola católica, diz Mosie mais tarde" (p. 40).
Na narrativa essas vozes se misturam e se alternam rapidamente,
às vezes de maneira indistinguível, às vezes separando-se e tornando-se
relativamente distintas, mas sem ser nunca assinaladas por aspas.
Às vezes as vozes se misn1ram numa única frase; às vezes vadiam rapi-
damente de frase a frase ou de parágrafo a parágrafo. Às vezes a narra-
dora muda sem aviso da primeira para a terceira pessoa num mesmo
parágrafo:

Eu deixei de t.r abalhar para o l\ilr. Pullcns por causa do bebê e então tinha que
ficar cm casa e cuidar dele. A criança mamava no peito e é difícil entregar
uma criança que mama para outra pessoa cuidar. Esse filho era só quatro
meses mais novo que o último filho de minha mãe, sua filha chamada Geor-
O tudndalo da hibridtz - cA rtsisllncia das Mgras ta ambiguidade narrati'lla

gina, que ainda chamamos de Bebê. O filho de Poppie nasceu em casa. Uma
enfermeira distrital xhosa, Bam, a ajudou. Foi uma menina e foi batizada
como Rose na Igreja da Santa Cruz. Seu nome xhosa era Nomvula, que quer
dizer criança nascida no dia cm que choveu.

As três primeiras frases estão obviamente na primeira pessoa, a quar-


ta muda abruptamente para a terceira, assim como a quinta, mas as duas
últimas podiam ser qualquer em uma. Frequentemente, a narrativa m uda
de ponto de vista sem aviso, de parágrafo a parágrafo. Um parágrafo em
terceira pessoa começa: "Qyando Poppie ficou grande demais" (p. 15), e
é seguido sem aviso ou identificação por um parágrafo na voz da primei-
ra pessoa de Nongena: "Nossa casa era feita de canas e argila" (p. 15). Em
certos momentos críticos a narrativa muda para a segunda pessoa: "Tens
que chorar. Tu o levas tão a peito" (p. 73). Com menor frequência, surge
um narrador intermediário que foi alternativamente chamado de "dis-
curso indireto livre" e "monólogo narrado", forma transicional da narra-
tiva que oscila entre a p rimeira e a terceira pessoa: "Ela não confiava
nesta terra; ela parecia escura e úmida" (p. 198). "Poppie era agora uma
menina crescida" (p. 26). Aqui os indicadores do tempo presente ("nes-
ta", "agora") marcam o narrador como não idêntico a um narrador onis-
ciente, antes colorido pelo ponto de vista da voz na primeira pessoa54•
Além disso, os tempos deslizam constante e imprevisivclmcnte ao
longo da narrativa. Às vezes a primeira pessoa está no passado: "Eu es-
tava com medo das pessoas estranhas e não olhei muito em volta" (p. 78).
Às vezes, ela está no presente: "Não posso me mexer, meus pés são de
pedra. Vejo seu sangue na estrada, mas não consigo fazer nada" (p. 128).
Outras vezes, os tempos mudam no meio da frase: "Era um lugar horrí-
vel, não estou acostumada com casas assim" (p. 78).
A falta de aspas ao longo da narrativa dá ao leitor a grande responsa-
bilidade de fazer rápidos ajustes de identidade e tempo. As aspas teste-

54. Ver Ann Banficld, "Thc Formal Cohcrcncc of Rcprcscntcd Spccch and Thought", PTL·
A journalfar Dcscriptiw Poclics and 1Juory of Litn-aturc J (1978), pp. 289·314; e Dorri1
Cohn, "Narra1cd Monologue: Dcfinition of a Functional Stylc", Comparaliw Litnatur,
14, l (1966), PP· 97-112.
Couro imptrial

munham uma ideologia da linguagem como propriedade individual.


Como marcadores do texto, cercam e protegem certos arranjos de pala-
vras como propriedade de um único falante. A linguagem entre o terre-
no do individualismo possessivo e da identidade distinta. Em contraste,
Poppie Nongena, antes de encarnar identidades isoladas e separadas, nos
convida a experimentar a narração através de um contínuo de vozes e
identidades dinâmicas e coletivas, que são, em certos momentos, distin-
tas e, em outros, inseparáveis. Mais que tudo, a narrativa está profunda-
mente inscrita por suas condições de produção orais e dialógicas e pelas
flutuações de pessoa e de tempo que caracterizam a memória oral. Em
lugar de um estilo individual único, estabelece o que Jameson chamou
de uma "retórica interpessoal" coletivass.
A narrativa começou como narrativa oral, e memória oral é desde o
início colaborativa e de muitas línguas. Além disso, as condições sob as
quais a história de Nongena veio a existir eram públicas, performativas
e dialógicas. A forma narrativa não é, portanto, expressão de uma cons-
ciência danificada, nem marca da inépcia estética feminina. Assim, se
quisermos compreender a confusão e reinvenção dos limites narrativos e
de identidade em Poppie Nongena, devemos situar a narrativa nas condi-
ções sociais em que surgiu, particularmente nas formas fragmentadas da
vida familiar e comunitária. A instabilidade narrativa testemunha o as-
salto do Estado às comunidades negras e não é sinal de inépcia formal,
como afirmou Olivier, nem uma irrelevância formal, como queria Rive.
Nem podem as rupturas narrativas ser vistas simplesmente como vívidas
indicações de umajoui.r.sancearquetipica e pré-edipiana da palavra, como
querem algumas teorias literárias feministas ocidentais. As rupturas e
reinvenções dos limites narrativos antes coincidem com as rupturas e
reinvenções da comunidade negra, nascendo das condições sociais da
época. A originalidade da narrativa revela uma identidade resistente,
dinâmica, multiforme e coletiva, exprimindo em sua obstinada reinven-
ção da identidade coletiva uma tenaz recusa ao rompimento.

55. Ver Doris Sommer, MNot Just a Pcrsonal Story: \ ·Vomcn's T,11imonio1 and thc Plural
Self", in Brodski e Schenke (orgs.), Lifc/Linu ... , p. nS.
O ,mJndalo da hibridrz - cA raistlncia das 11,gras , a ambiguidad, narrativa

} "ESSE ASSUNTO DO SALVO-CONDUTO"


! Casamento e a lei do salvo- conduto
'

1 As rupturas narrativas em Poppie Nongena testemunham em parte a co-


i lisão de duas economias cm sua casa de família. Nessas casas, padrões
Ã
• residuais de força e de divisão do trabalho sobreviveram desde a econo-
mia doméstica pré-colonial, e existem ao lado da - e em contradição
com - a economia industrial do trabalho doméstico assalariado. Os
lares são rompidos por um conflito de gênero dentro <la economia do-
méstica sobre o trabalho das mulheres e por um sobredeterminado con-
flito racial, de classe e de gênero, entre o lar como comunidade dinâmica
e a condição do apartheid. Dessa forma, a economia do lar permanecia
paradoxal para as mulheres, pois era tanto o lugar da resistência da co-
munidade ao Estado quanto o lugar do conflito interno de gênero entre
homens e mulheres - em relação ao trabalho, à comida, à sexualidade e
ao poder. As casas das famílias são, assim, situações em disputa. Como

i argumenta H eidi Hartman, a família é muito menos uma unidade social


com interesses compartilhados do qué um "lócus de luta"- uma cam-
biante constelação de poder que assume diferentes formas em diferentes
f momentos sociaisS6 •

i
'
Na África do Sul, a identidade social das mulheres é mediada pela
relação de casamento. O casamento de Nongena é uma cerimônia li-
minar, uma metamorfose que assume forma simbólica na troca riruali-
zada das roupas. A passagem simbólica para outras roupas marca urna
passagem econômica - a transferência do trabalho de Nongena da fa-
milia de sua mãe para o marido e, através dele, para sua familia [do
marido]S7• "Você sabe que não casou só com o homem, você casou em
sua família (p. 72) [ ...] Eles esperam que você trabalhe para eles" (p. 74).
I
56. Heidi H artman, *The Family :as the Locus of Gender, Class and Political Struggle: The
Example of Housework", Signs 6, 3 (1981), PP· 366-94.
57. A submissão do trabalho feminino aos homen.s e anciãos na cerimônia do casamento está
consagrada num provérbio zulu que resume o significado simbólico da mudança de rou-
pas: a!tuqhala-qhala /ablui ilidwaba - nenhuma mulher hostil jamais derrotou uma saia
cc couro.
Couro imp,rial

Para Nongena, o casamento é fundamentalmente, na expressão de


Christine Delphy, "um contrato de trabalho não pago"58• A instabilidade
e situação intermediária de sua nova identidade dentro da relação mari-
tal é e..xpressa na própria narrativa por rápidas mudanças de ponto de
vista. Nesse ponto tradicional, a narrativa começa a deslizar de maneira
incerta entre a narração onisciente distanciada, a primeira e a segunda
pessoas, modo liminar suspenso entre o eu e o ela que surge aqui pela
primeira vez.
Tão logo Nongena se casa com !:itone, seu status legal muda irrevo-
gavelmente. Sua identidade individual é suprimida; daí cm diante seu
status civil é secundário, relacional e mediado, submetido por lei ao de
seu marido. Esse status dependente é expresso da maneira mais calami-
tosa em sua relação com as leis do salvo-conduto. Ao mesmo tempo, a
determinação de Nongena <;ie manter seu casamento e sua família unida
representa uma longa recusa do sistema de trabalho migrante no qual se
baseava o apartheid. Assim, os esforços das mulheres para manter unidas
suas familias não podem ser descartados como "antissociais" ou conser-
vadores em qualquer sentido mais simplesS9.

58. Como argumentou Christine Dclphy, a classe de uma mulher casada é tipicamente defi·
nida não por sua relação <eonómfra com a produção, mas por sua relação S<Xial com seu
marido: •A relação das mulheres com a classe é indireta: mediada pela relação de casa-
mento". Assim, para as mulheres o casamento é fundament;ilmente a entrada numa •re-
lação de trabalhoR:·o casamemo é a instituição pcb qual trab:ilho gratuito é extorquido
de uma categoria particul:ir da populaç~o, as mulheres-esposas". O casamento é a i:isti-
tuição que legaliza a apropriação doméstica do trabalho das mulheres. C/ou to Hom,: À
ll1at"ialist Analysú efWomm~ Opprmion. Trad. e org. Diana Leonard (Amherst: Univcr-
sicy of Massachusetts Press, r984), pp. 68, 87, 63, n-
59· Como disseram Kum-Kum Bhavnani e Margaret Coulson: "No contexto <la opressão
racista, as famílias negras sio frequentemente não 'antissociaisº no sentido usado por
Barrei e Mclntosh, mu podem tornar-se não só uma base para a solidariedade como
também a luta contra o racismo". "Transforming Socialist Feminism: The Challenge of
Racism", Funinist RNiinJJ 13 (jun., 1986), p. 89. De nodo simil:tr, Valerie Amos e Prati-
bh~ Parmar observam que as negras tem relações muiro diferentes com a previdência,
a imigração, as escolas e a polícia. "Challenging Imperial Feminism", Ftminist R~•inJJ
17 (1984), p. 5. Nem todas as casas de família são iguais aos olhos da lei. Ver também
Barret e Mclntosh, "Ethnocentrism and Socialist·Feminist Theory", Ftminist Rrr;i,w
20 (r984).

470
O tsetfodalo da hibridtz - cA ruistln,ia das n,gra, , a ambiguidadt narrativa

Esses eram os turbulentos anos da década de 1950. O partido nacio-


nalista chegou triunfante ao poder em 1948 e começou a sistematizar o
sistema dos bantustões. Pelas leis de terras de 1913 e 1936, escassos 13%
das terras mais áridas e dilapidadas foram alocadas aos sul-africanos
negros, embora eles atingissem 75% da população. Os bantustões eram
81 trechos de terra espalhados, parcelados ao longo de linhas "nacionais"
inventadas em dez assim chamadas "pátrias independentes"6o. O sistema
de trabalho migrante do apartheid depende de uma divisão do trabalho
por gênero em que a maioria das mulheres, definidas na notória termi-
nologia oficial como os "apêndices supérfluos" dos homens, são confina-
das nos bantustões e barradas à força da econotnia assalariada ou aceitas
apenas sob condições de risco.
Já cm 1913, o Estado resolveu emitir salvo-condutos para as mulheres
negras, que responderam com uma fúria tão inesperada, veemente e
organizada que a ideia foi abandonada e não seria tocada novamente
durante quatro décadas. Nos anos 1930, foram aprovadas leis que proi-
biam a entrada de uma mulher numa cidade, a menos que ela fosse
certificada como esposa ou filha de um homem que tivesse trabalhado
na área continuamente por dois anos6 '. Em 1937, mesmo a esposa ou
filha de um residente legal só poderia ser certificada se pudesse com-
provar dispor de casa e, como a habitação tinha sido deliberadamente
congelada, tal prova se tornou virtualmente impossível. Em 1952, foi
feita a primeira tentativa de controlar as mulheres. Foram principal-
mente as mulheres que enfrentaram o trauma sem precedentes de pri-
sões constantes, remoções forçadas, despejos e bani1m::ncos. Como disse
Nongena: "Estavam interessados em pegar as mulheres" (p. 88). A recu-
sa em sair por parte das mulheres foi enfrentada com violência policial

6o. Aqui vivem aproxim2d2mente ll milhões de pessoas, 2 maioria mulheres e crianças, em


condições de privação dificcis de descrever. O eufemismo "pátria nacional" tem, alêm
disso, a função de fornecer uma linguagem de legitimação fundada num discurso inven-
tado sobre a familia.
61. Ver Josene Cole, Cronroath: Th, Politia ofRiform and Reppmsion, 1976-1986 (Johannes-
burgo: Ravan Prc.«, 1987) pua um importante rel11to do. política das comunidades de
mulheres assentadas no Cabo.

471
Couro imptrial

constante. As mulheres foram presas, amontoadas em trens e ônibus,


suas frágeis casas d e papelão e de zinco, esmagadas. A própria N ongena
foi apanhada pela polícia.
A estratégia fundamental do Estado era fechar o cerco sobre as famí-
lias negras. A política do trabalho migrante era em seu núcleo uma po-
lítica cm relação à familia e ao controle da reprodução e divisão do tra-
balho dentro da família. As intenções do Estado eram rombudas e
sucintas: "A política deste governo é reduzir o número de familias negras
no Cabo ocidental"62 • O conflito fundamental se dava em relação ao
controle do trabalho "excedente" e reprodutivo das mulheres.
A instituição do casamento se tornou uma arma direta de controle
estatal. O direito de qualquer mulher permanecer numa área urbana
tornava-se dependente de um parente homem, e a consequência do ca-
samento para uma mulher como Nongena era muitas vezes catastrófica.
Embora ela tivesse nascido no Cabo e ali vivido toda sua vida, ela era
agora, aos olhos da lei, o "apêndice supérfluo" do marido e só podia per-
manecer no Cabo se ele tivesse um emprego e uma casa para abrigá-la.
Sem atender a essas condições, ela seria sumariamente enviada para o
bantustão ao qual seu marido tinha sido alocado.
O casamento de Nongena faz dela uma estrangeira perpétua em sua
própria parte do país - privada de todos os direitos de residência. Du-
rante cinco anos; nas horas exaustas do tempo livre do trabalho domés-
tico, Nongena vai aos escritórios de salvo-condutos pedir uma autori-
zação para ficar, esperando ônibus, ficando, pesada de gravidez, em filas,
apelando, negociando com os burocratas brancos, conseguindo talvez
uma semana num momento, voltando uma semana mais tarde, então
um mês, então sete dias, então dois meses, então nada, então voltando

6z. S. A. Rogers, apud Cole, Crossroads, p. 7. A poli1ica pan limilar a presença africana, como
se desdobrou entre 1962 e 1969, tc,·c uma dupla estratégia dirigida espcdficamcn1c ~s
mulheres: não seriam construidas mais casas, e o trabalho das mulheres seria tornado
virtualmente impossível. Entre 1966 e 1976 foram construidas menos de 4 mil casas. E m
1974 o (orwelliano) Departamento de Desenvolvimento Comunitário estimou cm 40 mil
a falta de casas apeou par.i a popubç:io de cor. Ncua época, a presença de assentados
disparou: cm 1974 havia estimados 37 acampamentos apenas na península.

472
r,·.
.•
O tSUJndalo da hibridn: - vi usistlncia das n egras e a ambiguidad~ narrati-ua

outra vez, os pés gastos, arrastando-se para casa pelos matos escuros e
assustadores, trêmula de fadiga, com papéis talvez para mais uma sema-
na, então talvez um mês, ou apenas alguns dias. Seus anos se medem
segundo o calendário caprichoso e despótico do carimbo do burocrata
branco. "As datas, gravadas nos regos do carimbo, são giradas por um

r
1
movimento de seus dedos" (p. 184). Cada viagem de ônibus com sucesso,
cada carimbo novo é mais um rito de desafio, mais um ato de recusa.
Durante sete anos, depois dez, ela afirma sua obstinada recusa ao

r decreto até que, no final dos anos 1960, lhe dizem para deixar a cidade,
sem recurso possível. Em 1964, num ato de crueldade indescritível, são
! feitas emendas à Lei das Áreas Urbanas e Trabalho Bantu, que tornam
virtualmente impossível para uma mulher qualificar-se para o direito de
permanecer numa área urbana. Não era mais permitido que esposas e
filhas dos homens residentes ficassem, a menos que também elas esti-
i
' vessem trabalhando legalmente. F. S. Steyn, representante de Kempton
Park, afirmou a posição de maneira direta: "Não queremos a mulher
bantu aqui simplesmente como auxiliar da capacidade procriativa da
população bantu".
A vida passou a ser uma corrida para esconder-se. Nongena e outras
mulheres se escondem debaixo de cam as ou em banheiros e guarda-rou-
pas, ou nas matas, até que a polícia se vá. Finalmente, a autorização de
Nongena é picada em pedaços e jogada sobre ela. Grávida de nove me-
ses, Nongena cede, dá à luz, é esterilizada, e concorda em partir para o
acampamento Mdantsane, um lugar nu e estéril em Ciskei, ainda vazio,
onde lhe é alocada uma casa de uma peça de cimento bruto, sem forro,
sem água, nem eletricidade, a 20 quilômetros de ônibus da cidade bran-
ca de East London.
Nesse ponto da narrativa, os paradoxos da relação de Nongena com
sua família se tornam arriscados. Seu senso de identidade, sempre incx-
tricável de sua relação com a comunidade, começa a se deslindar. Seu
isolamento se torna um martírio privado, não visto nem reconhecido, e
• a narrativa registra sua crise de percepção e a apresentação do cu em
tempos misturados, repentinas mudanças inesperadas, deslizamentos de
pessoa e mistura de vozes.

473
Couro imprrial

Nongena embarca numa tentativa cada vez mais desesperada e inútil


de proteger sua família dispersa da conflagração que está prestes a se
abater sobre o país. Finalmente, durante o tumulto da revolta de Soweto,
que atingiu todo o país, o "ano de fogo, ano de cinzas", ela descobre que
sua situação é também uma situação nacional. Pela primeira vez, seu
senso de comunidade se estende para além de sua própria família: "Qye
o teto da meta cubra todo o local, que todo o local se torne uma meta"
(p. 353). Finalmente, ela admite que "a revolta dos filhos" é inevitável: "E
se meus filhos têm de ser levados para essa coisa, então isso é o que eles
nasceram para fazer. E quem pode tirar de seu caminho aquilo para o
que eles nasceram?" (p. 355).
A obstinad a presença de mulheres fora dos bantustões representa um
desafio político flagrante e constante aos fu ndamentos do apartheíd. Por
essa razão, as lutas das mulheres por moradia, aluguéis, salvo-condutos e
famílias não podem ser afastadas, corno são muitas vezes, como "ques-
tões de mulheres" ou "questões de família" apolíticas. A criação, pelas
mulheres, das proibidas comunidades de assentados, sua recusa cm
abandonar os filhos , os homens e as famílias, assinala uma recusa pro-
funda em dobrar-se ao poder do Estado, um ato maciço de resistência
política, escrito de maneira desordenada, mas indelével na testa da Áfri-
ca do Sul branca.

A MEMÓRIA É A ARMA

A narrativa de Poppie Nongena talvez possa ser considerada próxima


dos testimonios latino-americanos. Num importante artigo, Doris Som-
mcr argumenta que o "testemunho", uma vida contada a um jornalista
ou antropólogo por razões políticas, não pode ser simplesmente subsu-
mido sob a categoria de autobiografia e ela identificou certo número de
características distintivas que lembram Poppit Nongena63 • A caracterís-
tica mais saliente do "testemunho", nota ela, é "um implícito e às vezes

63. Sommer, "Not}ust a Pasunal Story.. . •, p. 118.

474
O twJndalo da hihridt:. - cA rtsistlnâa das ntgras t a amhiguidade narrativa

e."<plícito 'sujeito plural', mais que o sujeito singular que associamos com
a autobiografia tradicional". Como é o caso de Poppie Nongena, "a sin-
gularidade" do narrador "alcança sua identidade como extensão do cole-
tivo". No entanto, a voz plural é plural não no sentido de falar pelo todo,
ou representar o todo, mas no sentido de que não pode ser ouvida fora
de sua relação com as comunidades (no caso de Nongena, a familia, a
igreja e, finalmente, a revolução nacional). O leitor é, assim, convidado a
participar numa re<le de relações que se estende a partir de todos os
centros e através de muitas dimensões do tempo.
O "testemunho" é sempre dialógico e público, com um cu coletivo e
não individual. Como na narrativa de Nongena, os "testemunhos" visi-
velmente apresentam uma encenação da diferença social cm que um
escriba privilegiado registra o testamento oral do não privilegiado. "Tes-
temunhos" têm, assim, uma qualidade oral e performática que outras
autobiografias não têm, carregando a marca das vozes dos dois que fa-
lam, a natureza dupla da escrita e a autoridade dispersa da voz. "Pois, à
diferença do momento privado e solitário da escrita autobiográfica, os
"testemunhos" são eventos públicos". Na mesma direção, "os 'testemu-
nhos' estão relacionados ao texto da luta[ ...] [e] são escritos de posições
interpessoais étnicas e de classe".
Por causa da natureza coletiva e pública d a narrativa "testemunhal",
a identificação do leitor com a persona narrativa é sempre desviada. Em
Poppie Nongena, a rápida oscilação de pessoa e voz impede uma identi-
ficação fácil com qualquer perspectiva singular. A relação de Nongena
com seus prováveis leitores é inevitavelmente problemática, envolvendo,
como envolve, transgressões de afinidades de classe, de raça e de gênero,
para não falar de idioma e de país. N ão é remotamente imaginável uma
simples unanimidade de leitores, e a narrativa reconhece seu desequilí-
b rio histórico com sua recusa a ceder um único ponto da identidade.
Com efeito, essa técnica solicita o leitor a entrar em colaboração com a
história coletiva. O leitor é convidado a estender a comunidade histórica
e essa extensão não é simplesmente abraçar uma dada comunidade, mas
envolve participação ativa, o trabalho de identificação e, acima de tudo,
escolhas d ificeis sobre a política de transformação social.

475
Co,,,o impu ial

Tivesse Joubert dispensado a narradora intermediária e deLxado a


narrativa inteiramente na primeira pessoa, ela teria efetivamente apaga-
do uma dimensão crucial da condição de produção da narrativa, ocul-
tando suas próprias intervenções e seleções, e disfarçando-se de uma
amanuense mais inocente e passiva do que ela é na realidade - embora
ela tente isso no prefácio que se autocontradiz. A narrativa como ela é se
revela profundamente paradoxal no começo, na produção e na recepção.
E la preserva sua natureza de dupla produção de maneira mais visível do
que muitas outras histórias que procuram diminuir ou inteiramente
apagar as intervenções e seleções do historiador oral. A relação entre as
duas mulheres é inegavelmente uma relação de poder racial e imperial,
cruzada e contraditada pela empatia e pela identificação baseadas no
gênero, na língua compartilhada e na maternidade. D esejar apagar a voz
de Joubert e ansiar pela voz não mediada de Nongena é anelar por uma
noção ocidental anacrônica de pureza individual e de singularidade cria-
tiva. Podemos lamentar que nos seja recusada a identificação com um
único eu, mas através dessa recusa somos convidados a uma noção in-
teiramente diferente de identidade, comunidade, força narrativa e mu-
dança política.
Embora pareça que Nongena é a que mais fala, de fato só 30% do
livro é sua própria voz; o resto compreende a reprodução das vozes da
família por Nongena e o registro de Joubert de suas entrevistas orais
com esses familiares, tudo orquestrado pela narração de Joubert. Até
certo ponto, a desigualdade inerente à orquestração virtuosística de Jou-
bert da história de Nongena é contrabalançada pelo registro textual das
próprias perguntas de Joubert que revelam a ignorância dela. H á mo-
mentos na narrativa em que Nongena corrige suposições ou perguntas
de Joubert: esses momentos não são deixados de lado como tantas vezes
acontece em história oral. A constante mudança de vozes na narrativa
nos nega a identificação com uma só voz. Em nenhum momento podem
os leitores poderosos assumir uma identificação fácil com Nongena, es-
quecendo, assim, seu próprio privilégio numa identificação catártica
com a voz de quem não tem poder. O desequilíbrio de poder entre as
duas mulheres marca a narrativa, e o leitor é obrigado, como consequên-
O tscdndalo da hi/,ridtz - vf rttistln<ia das n,gras ta amhiguidad, narratit:a

eia, a experimentar o desconforto desses desequilibrios como experiência


central da própria leitura e a estar consciente a cada momento das con-
tradições subjacentes ao processo de colaboração narrativa. A ninguém,
nem mesmo a Joubert, é permitida uma perspectiva finalmente privile-
giada. Nega-se, assim, ao leitor uma perspectiva organizadora consola-
dora e ele é forçado a ceder a um sentido de que toda narrativa e toda
história surgem de uma comunidade de esforços e de construção social,
que é formada por relações desiguais de poder.
A maioria das histórias orais não registra essas contradições; elas
apagam as intervenções editoriais do historiador e preservam a "voz" do
narrador cm pureza artificia!, enquanto o historiador invisível detém a
autoridade executiva. Em contraste, os desequilíbrios entre Nongena e
Joubert são inscritos na própria narrativa, tornando-se parte integral da
..
• experiência de leitura e, portanto, evitando a política de ocultação que
!
em geral opera em histórias orais empíricas. Os desequilíbrios estão fla-
grantemente lá, inevitáveis, contraditórios e insolúveis, insistindo na
disputa interpretativa e na análise política. Além disso, a narrativa resis-
te a qualquer esforço de imaginar que os desequilt'brios entre as duas
mulheres poderiam ser resolvidos por uma redistribuição mais equita-
tiva da identidade puramente narrativa. Antes, a incerteza de seu fi nal
reconhece, enfim, que a transformação narrativa tem que ter uma cor-
respondência na completa transformação social.
A própria narrativa não pode ser a única ferramenta para transfor-
n1ar a casa do senhor. Ao contrário, o contexto social e político do en-
gendramento da narrativa tem que ser amplamente transformado: uma
transformação política radical e ativa. As políticas <la 1nemória e da au-
toria estão inextricavelmente envolvidas com a política do poder insti-
tucional cm todas as suas formas: casas de familia, trabalho doméstico,
educação, publicação e recepção. A história é uma série de fabulações
sociais se1n as quais não podemos passar. É uma prática inventiva, mas
não serve qualquer invenção. Pois é o futuro, e não o passado, que está
em jogo na disputa sobr_e quais n1emórias sobreviverão.
..

477
... ,
9
"Azikwelwa" (não vamos embarcar)
Resistência cultural nas décadas desesperadas

No contexto colonial, o colono só termina seu trabalho


de treinar o nativo quando este admite em alto e bom
som a supremacia dos valores do homem branco. No pe-
ríodo da descolonização, as massas colonizadas zombam
desses valores, insultam-nos e vomitam-nos. ·
Frantz Fanon

NA MANHÃ invernal de 16 de junho de 1976, 15 mil crianças negras m ar-


charam para o Orlando Stadium em Soweto, carregando slogans dese-
nhados nas costas de seus cadernos escolares. As crianças foram paradas
pela poücia armada, que abriu fogo, e Hcctor Peterson, de 13 anos, se
tornou a primeira de centenas d e crianças de escola que seriam atingi-
das pela polícia nos meses que se seguiram. Se, quase duas décadas de-
pois, o significado do "ano de fogo" de Soweto ainda está em disputa',
ele começou dessa maneira com uma exibição simbólica de desprezo
pelos valores não palatáveis da educação bantu, com uma rejeição públi-
ca da "cultura da desnutrição" com que os negros tinham sido alimenta-
dos:. A provocação local para a marcha de Orlando foi uma decisão de
que as crianças negras aprendessem aritmética e estudos sociais em

1. Surgiram pelo menos trés :m:\lisc:s gerais do levante de Sowcto: em•olvimento mais pro-
fundo do CNA na comunidade; tensões no sistema educacional, desemprego e rccess:lo
com maior militância industrial derivando das greves do início da década; e o surgimen-
to da ideologia da ~consciência Negra". Ver Tom Lodge, Bla,k PolítiCJ in South Afri<a
Sínu r945 (Johannesburgo: Longmans, 1983), pp. 321-62.
2. Ver M. K. Malcfanc, •lhe Sun \.Vill Rise': Rcview of thc Allah Poccs at thc I'vlarkct
Theatrc, Johanncsburgo", Stajfrider (iun.-jul., 1980), reeditado in Michael Chapman.
SoweffJ Poetry (Johannesbwgo, 1981), p. 91.

479
Couro impuial

africâner - a língua do ministro do gabinete branco, do soldado, do


funcionário do salvo-conduto, do guarda d a prisão e do policial. Mas a
marcha de Soweto provinha de queixas mais profundas do que aulas cm
africâner, e o ano calamitoso que passou não só levou a repensar a resis-
tência política negra, mas visivelmente iluminou os aspectos culturais
d a coerção e da revolta.
A desfiguração dos cadernos escolares e a quebra da hierarquia esco-
lar pressagiavam uma rebelião nacional de proporções incomuns. A re-
volta se espalhou pelo país, de comunidade em comunidade, em greves,
boicotes e barricadas nas ruas. Ela representou em parte o clímax de
uma longa luta entre os intrusos britânicos e os africâneres pelo con-
trole sobre um povo negro que não o queria. Ao mesmo tempo, era um
claro signo da contestação da cultura, uma declaração aberta por parte
dos negros de que o valor <:ultural, longe de flutuar fora do alcance no
além transcendental, seria defendido com barricadas de pneus, salas de
aula vazias e organização precoce.
Depois d e Sowcto, apareceram por todo o país novas formas ele cria-
ção artística. Grupos de poesia floresceram nos distritos negros, criando
formas poéticas que eram, pelos padrões trad icionais, não literárias e
incendiárias, escritas num inglês "massacrado", formalmente deselegan-
tes e politicamente indiscretas. No entanto, a nova poesia alcançou um
público muito mais amplo na África do Sul do que costumava alcançar
antes, colócando uma perturbadora ameaça à legitimidade da estética
dos colonos brancos em solo sul-africano e fazendo surgir um debate
de intensidade incomum sobre a natureza do valor estético e sua relação
com o que, cm termos amplos, poderia ser chamado de política.
O sinal mais visível da nova poesia de Soweto foi o lançamento da
revista Staifrider em 1978, pela Ravan Press. Um staifrider é o nome
distrital para alguém que - numa imitação da tripulação dos trens -
aborda, no último minuto, os perigosos trens que levam os trabalhado-
res para a cidade branca, arrancando caronas, subindo no teto ou pen-
durado nas laterais dos vagões superlotados. Um poeta staifrider, como
explicou o editorial do primeiro número, é uma "espécie de malandro",
um herege que fica nun1 ângulo agudo em relação à lei oficial e às con-
r

"Azikwclwa• (ndo vamos tmbar,ar) - '7v.sistt11cia ,ultural nas dt,adas datsptradas


1
f
• vcnçõesl. Tenaz e precário, em desacordo com o decreto estatal, um po-

1 eta negro torna-se "um portador móvel e pouco respeitável de informa-
(· ções"4. Acima de tudo, um poeta stajfrider é figurado como parte de um
tf grupo em movimento, destinado a chegar repentinamente no meio dos
!' centros urbanos brancos.
r Desde o começo, Staffrider escarneceu de quase todo o decoro da
autoridade sacerdotal. Feroz contestação dos padrões poéticos brancos,
:
l a revista exibia uma estética de desafio e coletivismo calculados. Seu
t
i conteúdo e formato literários - um mosaico de poemas, fotogr:-afias,

• artigos, figuras, história oral e contos - desafiavam o prestígio do "li-
terário", e seus métodos de criação e distribuição revolucionaram a pu-
blicação periódica na África do Sul.
1 Stajfrider era literatura com pressa. Em parte por causa do nervoso
(
~ clima de vigüãncia e banimentos pós-Soweto, não dava o nome de seus
r.
editores e deixava a responsabilidade pela rápida distribuição nas mãos
',,t de grupos comunitários e pequenas lojas. Stajfrider precisava ser uma re-
vista "que se movesse com muita rapidez sem atrair muita atenção para
si mesma [ ...] uma contradição em termos das publicações normais"S.
Cuidadosamente igualitária desde o início, a revista pretendia divulgar o
trabalho do número crescente de poetas em todo o país que escreviam
coletivamente e fazer isso de maneira a permitir que os próprios grupos
artísticos escolhessem os poemas a serem publicados. Em outras pala-
vras, a política editorial e o conteúdo estavam também nas mãos dos

3. "About Stajfridn" (editnrbl), Staffrider 1 (ma.io-jun., 1878), reeditado in idem, op. cít.,
p.125.
4. Michael Kirkwood, apud Ursula A. Bamctt, A Jruion of Order: /1 Study af Biar/;; South
African Litrraturt in English, 1914-1980 (Amherst:The Univcrsity ofMassachusetts Prcss,
1983), P· 37·
5. Nick Visscr, wStajfridrr-. An lnfonnal Discussion': lntcrview with Michael Kirkwood",
English in A/rira 7 (set., 1980 ), reeditado in Chapman, StX1Jtto Ponry, p. 129. Stajfridtr foi
conccbid:i cm 1977 dur:mte discussões com grupos como o Grupo de Artes Mpumul:inga.
Um dos mais conhecidos entre esses grupos, os Escritores Mcdupc, com mais de 200
membros, levara lei turas de pocsit às escolas e comunidades e foi imedi aramente banido
cm outubro de 1977, juntamente com a Organização dos Estudantes Sul-Africanos, a
Convenção dos Negrns e outras organi~açõcs da Consciência Negra.
Couro impuial

leitores e escritores, além da editora. Como explicou Mike K.irkwood,


diretor da Ravan Press, "Ninguém queria o tipo de política editorial
vinda de cima: 'Nós temos uma política. Nós temos padrões. Se você se
adapta a essa política e atinge esses padrões, nós o publicaremos"'6 •
Não foi surpresa que o Estado se tivesse ofendido e banisse o primei-
ro número - a Diretoria de Publicações justificando suas ações com
base cm que alguns dos poemas solapavam "a autoridade e imagem da
polícia"7. Nem era só o Estado que mostrava seu desagrado. Membros
do establishmt:nl literário branco ficaram irritados pelo surgimento de
uma revista que descaradamente anunciava: "Os padrões não são de
ouro nem essenciais: são feitos segundo as demandas que diferentes so-
ciedades fazem a seus escritores e segundo as respostas que os escritores
dão a essas demandas"1. A poesia de Sowcto tornou-se, como resultado,
lugar de um acirrado deba~e sobre o valor da cultura negra e a política
da estética negra, não só na academia branca e nas editoras brancas, mas
também nas salas de aula e nas universidades negras, nos salões comu-
nitários, grupos de poesia e lares privados. Estava em jogo se os valores
estéticos poderiam ainda ser vistos como emanando do próprio texto,
imanência transcendental de alguma forma distante da esqualidez da
política e da "vergonha do ideológico". Na África do Sul, como em ou-
tros lugares, embora talvez de maneira mais flagrante, a questão do valor
ficou emaranhada com a história do Estado e do poder institucional; a
história das casas editoras e das revistas; as histórias públicas e privadas
de intelectuais, professores, escritores e evangelistas negros e brancos; e
a relação cambiante entre a classe intermediária negra e os poetas traba-
lhadores e orais - os iimbongi xhosa ou os migrantes likheleke sotho, "as
pessoas de eloquência"9 • Foram evocadas questões de educação e público
e, com elas, a possibilidade de que o valor não fosse uma propriedade

6. Visser, "Stajfrider... -.
7. Stajfrider (maio-jun., 1978), apud Bamett, A Vision ofOrder. .. , p. 38.
8. Stalfrider (jul.-ago., 1978), apud ibidem.
9. Ver David 8 . Coplan, ln Tuwmhip Tonight! South Afrúai Blacl. City Music and 1healer
(Londres: Longm:m, 1985).
"Azikwelw:i • (ndo 11amos tmbar,ar) - 'R!,sistlruia ,ultural nas dl,adas dtstsperadas

essencial do texto, mas uma relação social entre uma obra e seu público,
constituída e não revelada e endossada ou ultrapassada por sucessivas
ordens de poder.

A DÉCADA FABULOSA

Foi uma alegria recitar e ouvir


a grandeza de Shakespeare [ ...]
A palavra ou frase ou linha falada
era a coisa, dane-se a dialética.
Es'kia Nlphahlelc

A primeira geração inteira de escritores negros em inglês foi a dos escri-


tores de Sophiato,vn nos anos 1950, anos que Lewis Nkosi apelidou de
"década fabulosa"'º. Sophjatown era um subúrbio livre próximo ao cora-
ção daJohannesburgo branca onde os negros ainda podiam ser proprie-
tários de terras. Pobre e muito violento, uma confusão de ruas esburacadas
e barracos, Sophiatown era ao mesmo tempo uma genuína comunidade
onde o verdadeiro espírito de vizinhança e os enormes Exércitos das
ruas permitiam à polícia apenas uma segurança precária. Abarrotada por
variados grupos sociais, era hospitaleira tanto para o desafio militante
quanto para os sonhos de classe média, atraindo a elite do espetáculo
negro e do submundo poütico a seus shebuns [bares] e clubes de jazz, e
tornando-se, como disse o escritor Nat Nakasa, "o único lugar onde es-
critores e aspirantes a escritores africanos jamais viveram cm proximi-
dade, quase como uma comunidade"". Do exilio, Miriam Tlaü dava voz
a uma saudade da Sophiatown perdida, que sobreviveria apenas mais
alguns anos antes que os nacionalistas a destruíssem: "Sophiatown. A
amada Sophiatown. Como estudantes, costumávamos referir-nos a ela

10.Lewis Nkosi, "The F:ibulous Decade·, in Homt and Exile and Other Stl"tions (Londres:
Longman, 1983), PP· 3-24-
u. Um shtbun é um b2r Ucg21, genlmcntc: dirigido por uma mulher, que vende bcbid:u al-
coólicas para negros.
Co11ro impuial

orgulhosamente como 'o centro da metrópole' [... ] Os melhores músi-


cos, mestres, educadores, cantores, artistas, médicos, advogados, pasto-
res" vinham de lá".
Na década de 1950, Sophiatown se tornou o centro para uma geração
vital e animada de escritores negros. Em 1951, poucos anos depois da
chegada dos nacionalistas ao poder, Drum [Tambor], primeira revista
para escrita negra em inglês, foi lançada com fundos de Jim Bailey, filho
de Sir Abe Bailey, o milionário do ouro e das corridas de cavalo. Ao lado
da folha mimeografada Orlando Voice [A voz de Orlando], Drum virou
o alto-falante de escritores como Nkosi, Nakasa, Can Themba, Todd
Matshilciza, Es'l<la Mphahlcle, Casey Motsisi, Henry Nxumalo e Blokc
Modisane, que produziram uma enorme quantidade de ficção, autobio-
grafia, poesia e jornalismo. Com essa inundação chegou uma nova esté-
tica e uma nova poütica de. valor. Drum "vinha chegando a um real re-
nascimento literário [ ... ] As pessoas realmente escreviam furiosamente
[ ... ] Era um novo tipo de inglês que estava sendo escrito. Significativa-
mente, era o negro escrevendo para o negro. Não se dirigia aos brancos.
Falava uma linguagem que seria entendida por seu próprio povo"'3•
Ainda assim, se a escrita de Sophiatown exibia um "novo tipo de
inglês", este era cheio de ambivalências em relação às augustas relíquias
de uma tradição europeia branca, ainda sobrevivendo nas escolas. Edu-
cados cm sua maior parte cm escolas religiosas dirigidas por ingleses e
ainda vacilando com dificuldade entre as palavras da cultura negra e da
e
branca, os escritores intelectuais negros dessa época ainda podiam ro-
çar ombros, a despeito do opróbrio oficial, com alguns brancos, cm sua
maioria liberais e ingleses. Essa situação ambígua, que separa inteira-
mente esses escritores da geração posterior de Soweto, deixou marca no
trabalho deles e em suas noções de valor estético. O paradoxo dominan-
te de sua sin1ação era de que a estética que eles esposavam com paixão e
dificuldade era formada não só por seus próprios desejos, mas também

12. l\'liriam Tlali, Muriel ai Mttropolitan (Johan nesburgo: Ravan Prcss, 1975), p. 70.
13. N . Chab:tni Mang2n)i. -The Early Years·: lntel'icw wich Es'kia Mphchlcle", Stajfridtr
(se t.-out., 1980), reeditado in Chipman, St>Wtlo Ponry, p.•p .
'Azikwclwa • ( ndo vamos tmbar, ar) - 'R.!sisttnda cultural nas dt,adas daaptradas

pelo fato de que a intelligentsia de Sophiatown se tornara nesse momen-


to o campo de batalha em que os ingleses e os africâneres lutavam pela
influência sobre os valores culturais da classe intermediária negra.
Nas culturas colonizadas nem sempre a violência é analfabeta. N as
colônias, como sabia Frantz Fanon, o policial e o soldado, por sua pre-
sença imediata, "mantêm contato com o nativo e o aconselham, por
meio das coronhas de seus rifles e do napalm, a ficar quieto". Essas mes-
mas colônias também precisam dos cuidadosos esquadrões de professo-
res de moral, de conselheiros e agentes infiltrados parn persuadir os co-
lonizados a admitir a legitimidade e "universalidade" dos valores dos
dirigcntes14• O mando pela pólvora e pelo chicote é misturado com for-
mas de indução cultural que criam uma atmosfera de deferência e cum-
plicidade, aliviando enormemen te o peso do policiamento. Como resul-

~
tado, surge uma cumplicidade dividida entre os senhores da humanidade
r
t e a elite colonizada. O intelectual colonizado, "pulverizado pela cultura
colonial", passa a desempenhar um papel distinto na vida de seu povo'5 •
l\a África do Sul, a cultura persuasiva durante o período colonial foi
a dos colonos britânicos que, depois de emancipar os escravos cm 1834,
começou a treinar, nas escolas das missões e nas igrejas, uma pequena
elite negra para viajar ao exterior como evangelistas, catequizadores e
vendedores dos modos de vida europeus' 6 • O s africâneres foram força-
dos por sua derrota durante a guerra a ajoelhar-se diante da mesma
cultura britânica, mas logo começaram sua longa recusa numa cruzada
nacionalista que acabaram por vencer politicamente em 1948 e conti-
nuaram a lutar culturalmente por ela ao longo da década de 1950. Como
resultado, a situação do intelectual e artista negro tornou-se ainda mais
complicada, pois britânicos e africâneres, cm seu longo conflito sobre

q. Frnntz Fanon, 7ht Wrttrh,d ofth, Earth. Tr:id. Constancc Farrington (Londres: Penguin,
1963), PP· 33-4.
15. Idem, op. cit., p. 47.
16. Ver Baruch Hirson, Ytar of Firr, Ytar ofA sh: 7h, Srr.JJtto Rroolt, Rootr of a Rtvolution?
(L ondres: Zed Prcss, 1979), capítulo t .
Couro impaial

terra e trabalho, também competiam zelosamente pelo controle sobre a •


cultura negra.
A o longo dos anos, a luta entre os britânicos e os africâneres pela
influência sobre a vida e os valores dos negros assumiria formas diferen-
tes, mas relacionadas, num tango de abraços e recuos mútuos. Esse con-
flito continuado tornou anômala a situação do intelectual negro. Nasci-
do de pais negros, mas ensinado e assalariado pelos ingleses, saturado da
cultura branca, mas barrado na entrada, desprezando os africâneres, res-
peitando o c:ipital inglês branco, muitas vezes conhecendo Shakespeare,
m as não a üngua de seu povo, amando o distrito, mas identificando-se
com o mundo do espírito, o escritor negro educado à maneira ocidental
aprendeu a viver em mais de um nível social ao mesmo tempo e, em
desequilíbrio perpétuo, criou uma forma de escrita que era dividida con-
tra ela mesm a.
A poütica de valor que surgiu era dividida e contraditória. N akasa,
jornalista de Drum e do Go/den City Post, primeiro jornalista negro do
Rand Daily 1V/ail e um dos primeiros entre os "perdidos" a deixar o país
para o exílio, chamava a si mesmo ironicamente de "nativo de lugar ne-
nhum" e perguntava "Qyem sou eu? Onde me encaixo no esquema sul-
africano das coisas? Qyem é o meu povo?"'7• Ftlho de um pondo, não
conhecia o povo de seu pai. C riado falando zulu, jogou fora a üngua de
sua m ãe como inadequada à época. Mphahlele, educado antes que a Lei
da Educação Bantu de 1953 levasse à devastação de um sistema escolar
negro já decadente;·é um testemunho semelhante da posição paradoxal
de sua geração. A biblioteca do internato de Johanncsburgo que ele fre-
quentara em 1935 oferecera a ele o vislumbre de uma esperança do mun-
do da cultura branca magicamente protegida da "vulgaridade e esquali-
dez, da sujeira e do cheiro da vida na favela" de Marabastad, sua locação
negra em Pretória'8 • A poesia, que seus professores ingleses lhe ensina-

17. Nat Nalusa, "\-Vriting in South Africa~, 7l;e C/assic 1, 1 (1963), p. n, reeditado in Chap·
man, Soweto Poetry, p. J7·
18. Es'lcia Mphahlclc, "My E.-q,cricncc as a \oVritcr-, in ~ I.J. Daymond,J. U.Jacobs e Mar·
garct Lenta (orgs.), M , mmtum: 011 Reuni South African Writing (Pictcnnarinburg; N~-
ta! Univcrsity Prcss, 19S4), p. 75.
"A1ikwclwa • (nlJo t1amos embarcar) - 'R.!_sistlnria cultural nas dlradas dnespaadas

ram que "devia ser sobre árvores, pássaros e os elementos", oferecia-lhe


um "refugio na oficina da mente" cm relação aos barracos de lata enfer-
rujada e das ruas imundas de fezes de crianças e, como não havia nin-
guém a quem um aprendiz de escritor negro pudesse recorrer para con-
selhos, aprendeu a "(escrever] versos cm um livro, por assim dizer", um
livro branco'9 •
Escrevendo na inebriante atmosfera do humanismo liberal do pós-
guerra, antes que Sharpcville tornas!'.e impossível sustentar esses valores,
os escritores de Sophiatown tentaram juntar os valores estéticos desses
dois mundos incongruentes: a vitalidade da vida nos distritos e a glamo-
rosa, embora mesquinha, fascinação da cultura branca que podiam vis-
lumbrar, mas não compreender: "o bar ilegal e a soirée de H oughton"'º.
Para Nakasa, o culto do bar ilegal deu à escrita seu pique e substância,
mas ele sentia falta das "técnicas de Houghton" para dar graça à escrita
negra com a "disciplina"formal que lhe faltava". No entanto, a distinção
entre o pulso dionisíaco da vida negra e a disciplina apoünea da forma
branca era conhecida, embebida de uma tradição europeia pronta. Pro-
vavelmente mais que qualquer outro escritor negro da época, o gosto de
Nkosi pela escrita negra era azedado por sua fidelidade aos padrões lite-
rários europeus; medido por esses padrões, a cena negra, em seu modo
de ver, carecia desesperadamente "de qualquer talento significativo e
complexo" 21 • Ele zombava da "confusão sem fim" das tentativas de inte-
lectuais africanos de reformular uma imagem deles mesmos a partir de
suas culturas devastadas'1• O mais lamentável, no que lhe dizia respeito,
era a inclinação antinatural africana de misturar arte e política, que pro-

19. Idem, op. cit., p. 76.


20. Chapman, "Introdução~, in S=rto P0<try, p. 16. H oughton é um dos luxuosos subúrbios
brancos de Johanncsburgo. Em Biame Me on Hútory (1963; rccdi1ado cm Nova York: Simon
:md Schustcr, 1986), Blokc Modisanc admite que tinha desejado aceitação "no pais cm que
nasci; e em algum canto do quarto escuro, sussurro o desejo real: quero ser aceito na socie-
dade branca. Quero escutar Ra.:hmaninov, Beethoven, Bartok e Stravinsky", p. 35.
21. Nakasa, "Writing in South Africa-, p. 37.
:n. Nkosi, Home and Exile. . . , p. 37.
23. Nkosi, •White on Black", Obsa-wr, 1• abr., 1962, p. 46.
Couro impaial

duzia tristes híbridos genéricos: "o fato jornalístico apresentando-se de


maneira ultrajante como literatura imaginativa"l-1.
Sitiados desse modo por conflitos de lealdades e de valor estético;
teoricamente obedientes à clivagem entre arte e política, mas esperan-
çosos de que a corte multirracial de artistas liberais negros e brancos
"poderia romper o muro do apartheid" 2 s; menosprezando a cultura tra-
dicional, mas fascinados pela vida distrital, os primeiros escritores da
Drum formulavam suas descrições das atrocidades nas fazendas, da dis-
sensão nos distritos e da vida na prisão num estilo que era muitas vezes
exagerado, com a "imagem grandiosa ao modo de Shakespeare"16• Os-
tentando um proposital distanciamento sardõnico, esses escritores cm
sua maioria consideravam os movimentos nacionalistas africanos de
maneira divertida e eram, por sua vez, vistos com receio. Íntimos do
capital mineiro inglês e cortejados pelos liberais ingleses, entretecendo
sua política com "cheese-cake, crime, animais, bebês"17, em nenhum mo-
mento, como aponta David Rabkin, os escritores da Drum se dedicaram
ao escrutínio do sistema de trabalho migrante ou das condições dos
trabalhadores africanos das minas28 •

24. Ver lvlbulclo Mumane, in Daymond,Jacobs e Lenta (orgs.), Jlt/omentum, p. 302. O tabu
sedoso das mulheres brancas de Johannesburgo tomou-,e, pelo menos p:lt:l Nkosi, o
butim prometido da colaboração com os liberais brancos contra o Estado nacionalista, e
quando ele finalmente chegou a ·desprcur sutilmente os sul-africanos brnncos", foi a
renúncia às mulheres brancas que mais o fez sofrer: "A imagem da beleza da mulher
branca é uma imagem que faz soar com frequência a caw registndora ela psique negra.
De qualquer modo, nús sabemos qui.o f:ucinantcs as mulheres d:1 classe dirigente sempre
demonstraram ser para os aspirantes a revolucionários, tanto negros como brancos"
(Ho,n~ and Exilt, pp. 23, 150). No nexo monetário da psique de Nkosi, aspirantes a revo•
lucionários eram aparentemente estritamente homens, e a revolução era uma luta mani-
queísta entre raças de homens tendo como espólio a belc-za feminina branca - o incan·
sável e magnifico papel das mulheres negras na resistc!ncia não encontrou lugar.
25. Ver Robert Mshengu l<,.Y;111agh. 1h~atrt and Cultural Strugglt in So11tlJ /lfrica (Londres:
Zed Books, 1985), p. 62.
26. l'vlphahlcle, "My Expcrieoce.. .", p. 79.
27. Idem, op. cit., p. 60.
28. Ver David Rabk.in, • Drum Magazine (1951-1961) and the \iVorks of Black South African
Writers Associated \Vith lt", tese de doutorado, University of Leeds, 1975, p. 57.
ªAzikwclwa " (t111o vamos tmbar,ar) - 'R.!_sistinâa ,ultural nas düadas dntspaadas

Embora Mphahlele tivesse chamado Drum de "um jornal proletário


real", isso só era verdade parcialmente, pois a estética dos escritores de
Sophiatown era em toda aparência o estilo da heroica individual:9. Em
Home and Exile [Pátria e exílio], Nkosi lembra com saudade que tanto
na vida pessoal como na estética "devemos supostamente exibir um
estilo intelectual singular"1º. Para Nkosi, como para Nakasa, era a pro-
messa liberal de admissão gradual à "nova e excitante boemia" dos par-
tidos suburbanos multirraciais de Johannesburgo que dava à vida e à
escrita grande parte de seu sabor3'. Nakasa ansiava por uma experiência
"comum" ou universal mais que por uma experiência negra, por uma
unidade de visão estética sem cor e por uma culn1ra que emanasse "de
um ponto central na estrutura social"1•. Mas a fascinante boemia de
Houghton como ponto irradiador de uma visão artística central e uni-
versal era um sonho de glamour que o Estado começou a empurrar cada
vez mais para fora de alcance.
,. Mais ou menos nessa época, os nacionalistas começaram a afrouxar
•r.
1 o aperto de mãos dos liberais brancos e negros, brandindo "um dedo de
~ guerra fria aos patrocinadores brancos"13 de leituras de poesia, música e
f: teatro multirraciais e barrando escritores como Nkosi, Nakasa e Mo-
t. disane dos palácios de espetáculos brancos. Em Biame Me on History
j
r
< [Culpe a mim na história] , Modisane declarou seu desespero porque, à
medida que seus amigos brancos deLxavam gradualmente de convidá-lo
a suas casas e de visitá-lo cm Sophiatown, a África do Sul "começou a
morrer" para ele34• O Estado fez uma piada da miragem de uma visão
1
l
artística universal, mas Nakasa, por exemplo, não conseguiu livrar-se do
constrangimento cultural herdado porque Mvirtualmcnte tudo o que era
-•

29. Manganyi, "Entrc,;sra com Es·kia Mphahlclc", p. .µ.


30. Nkosi, Homt and Exilt ... , p. 9.
31. Idem, op. cit., p. 17.
32. Nak.asa, "Writing in South Afri~a•, p. 37.
33. Mphahlclc, Down Suond.Avmut (Londres, 1959), p. 182.
34, :Vlodisanc:, Bium, M, on Hútory, p. S7•
Couro impaial

sul-africano era sempre sinônimo de mediocridade"35 • Em 1964, ele se


juntou à fila constante de escritores que iam para o exílio, onde mais
tarde se rendeu a contradições insuportáveis de sua posição e se atirou
da janela de um arranha-céu em Nova York.
Além do alcance das escolas das missões e dos jornais e revistas de
propriedade de ingleses, porém, uma cultura negra rica e polifônica -
arte oral, musicais e teatro nos distritos,jazz e danças sul-africanas, ma-
rabi, kwela e mbaqanga [três tipos de música que misturam jazz com
ritmos locais] - se sustentava e se renovava em condições de consi-
derável dificuldade. O pioneiro ln Township Tonight [Hoje à noite no
bairro], de David Coplan, rende um tributo aos músicos, poetas dança-
rinos, atores e comediantes que, nas igrejas, bares ilegais, salões de dança
e conjuntos residenciais das minas da África do Sul urbana, deram a
forma inicial a uma cultura nacional. Baseados em tradições de apresen-
tação de todo o subcontinente, os africanos tinham trazido para as cida-
des dos diamantes e do ouro (eDiamini, Kimberley, e eGo/i, Joanesburgo)
uma herança de intrincadas culturas rurais a partir da qual um popula-
cho proletário urbano vivendo "de sua esperteza nas sombras e barracos
das locações cada vez mais povoadas" criou com o passar do tempo "es-
tilos híbridos de sobrevivência cultural"J6•
Trabalhadores migrantes sotho, por exemplo, caminhando ou via-
jando de ónibus centenas de quilômetros para as cidades e minas, basea-
vam-se em formas tradicionais de poesia de exaltação Iotho (/ithoJ.o)
para modelar um genero moderno de apresentação oral, Iejela (plural
liftla), que de alguma maneira conciliava as intratáveis contradições en-
tre casa e minal7• Uma liminar poesia oral, anômala, adaptada aos bares
ilegais da cidade e às aldeias, a sefela faz surgir, talvez inevitavelmente,

35. Na.lusa, ªWriting in South Afric:a·, p. 36.


36. Ver Coplan, ln TDWn.ship Tonight!...
37. A aprescnt:ição lifda é uma competição pública durante a qual dois ou mais poetas (/ikk-
leú, ªpessoas eloquentes") exibem os critérios desejados para sua arte: grande cloquênéa,
originalidade de figuras e metáforas, padrão musical, aptidão de elementos de formula
doados ou tomados de empréstimo e reformulação da experiência comp2rtilhada de for-
ma cstiti~-

490
•Azikwelwa • {ndo vamos ~mbartar) - 'Rtsisttnda t ul1u r11/ na1 dtcadas d~usperadas

corno terna principal da narrativa, a viagem e elaboradas imagens limi-


nares como o trem:

Louco com cintos de ferro,


Dentro de sua boca [fornalha], um vermelho feroz,
Seu olho [lâmpada] é ofuscante,
Trilhos de trem batem chocalhando, [vagões] engatados,
As chocalhantes juntas dos trilhos cantam,
''ielele-ielelc!"
E le partiu como se fosse nos jogar para fora
O trem pôs fogo aos campos da pobre tcrr:i dos bôcres,
O s coelhos assados vivos cm seus buracos38 •

A exclusão e o desprezo dessas formas de culrura urbana emergente


tanto dentro da comunidade branca como da negra são em si mesmos
atos de exclusão política e uma parte crucial da política de avaliação.Tal
exclusão alimenta um sentido enganoso da representatividade da escrita
de Sophiatown cm suas manifestações autoconscientes mais "literárias",
bem como uma indiferença crítica para com o pouco compreendido
tráfico de influência entre essas formas e os poemas compostos para
serem impressos. Seria útil comparar, por exemplo, dois poemas publi-
cados por Sol Plaatje, em 1920, que indicam a luta de duas tradições
incomensuráveis que gradualmente viriam a infundir-se e influenciar-se
mutuamente ao longo dos anos.

Nio me fale dos confortos do lar,


Fale-me dos vales onde vagam os antílopes;
D ê-me os bastões de caça e as armadilhas
Na selva crepuscular;
Devolv-cl-me os alegres dias de nossa primeira felicidade
Longe da confusão de sua cidade,

3S. Molcfi Motsoahae, "Madman with iron bdts". Devo a rcferéncia a Copl:m, "lntcrprctive
Consciousness~.

491
Couro imptrial

E seremos jovens outra vez - sim:


A doce l\llhudi e eu;9 •

. A autoconsciente eloquência literária do poema, a complicada sub-


missão aos padrões métricos e à rima importados e o implausível clichê
literário oferecem um curioso contraste com a seguinte invocação de
uma fonte lírica alternativa, que se baseia, ainda que de maneira incom-
pleta, em padrões orais de repetição e paralelismo, encantamento e in-
terjeição:

Ainda, guarda e alimenta o duende,


Especialmente o duende peludo;
Yebo! Yebo!
Ele vai mostrar como fazer mágica com varas
E assim vamos dispersar e matar nossos inimigos,
Então ninguém nos fará mal
Enquanto usamos esse maravilhoso encantamento;
Yebo! Ycbo!
Viva o duende cabeludo
Viva, viva.
Yebo! Yebo!
Yebo! Yebo!40

Todavia, se o glamour de Sophiato,vn como "o lugar dos gângsteres,


políticos e intelectuais refinados" satisfazia principalmente uma pequena
clique de intelectuais e escritores relativamente privilegiados4', esse gla-
mour lançava seus raios e sua influência sobre uma geração inteira, e o
Estado logo se voltaria para esse grupo de escritores, para destruí-lo 41•

39. Solomon Tshckisho Plaatjc, "Sweet Mhudi and I", in i\1/hudi: an Epic of South African
NatÍ't,'t Lift a Hundrtd Y,ars Ago (Lovedale: The Lovedale Press, 1933); reeditado in Tim
Couzcns e Essop Patcl (orgs.), 7h, Return of tht Amasi Bird: Black South African Pottry,
1891-1981 (Johannesburgo: Ravan Prcss, 1982), pp. 49-50.
40. Plaatje, "Song", reeditado in idem, op. cit., p. 45.
41. Nakasa, "\,Vriting in South Africa", p. 5.
42. Ver Lodge, Blacl: Politiu. .. , p. 95.

49 2
•Azikwclwa • {não vamos tmbar,ar) - <J?.!sistlnda cultural nas düadas dtstsptradas

O clima político dos anos 1950 era turbulento. O partido Nacional


triunfara em 1948 e agora se dispunha à insistente implementação de um
apartbeid moderno. A resistência negra à Lei de Supressão do Comu-
nismo, de 1950, à classificação racial segundo a Lei de Registro da Popu-
lação, ao apartheid menor nos trens, aos salvo-condutos e às múltiplas
indignidades e castigos explodiu na Campanha de Desafio em 1952, na
resistência organizada de maior sucesso que o CNA (Congresso Nacio-
nal Africano - o partido dos negros) jamais realizaria, e essa resistência
foi enfrentada com a firme violência da ira nacionalista.
A política nacionalista de segregação "tribal" nos bantustões estava
agora cm andamento e, em parte para impedir que os negros urbanos se
identificassem de maneira muito íntima com o ambiente urbano e seus
valores, em parte para arrancar pela raiz o que, com algum acerto, sentiam
que eram os celeiros da resistência nos subúrbios livres, e em parte ainda
para firmar os tacões do controle estatal sobre o trabalho migrante, os
nacionalistas começaram a arrasar os distritos negros livres. O primeiro
e mais famoso a ser destruído foi Sophiatown.

A DESTRUIÇÃO DE SOPHIATO\VN
E A DÉCADA DESESPERADA

À noite você vê outro sonho


r
Branco e monstruoso;
Caindo do céu da terra,
• Caiando seu próprio sonho negro.
i
Mafika Gwala

Em 9 de fevereiro de 1955, oito caminhões e 2 mil policiais armados


entraram em Sophiatown para começar as evicções forçadas para So-
weto, que durariam, apesar da frágil e fútil resistência, seis anos43• Ao
t
t longo da década seguinte, em todo o país, a demolição dos "pontos ne-
1
L gros" e a remoção das pessoas para lúgubres distritos cercados de grades
é
~

43. Ver idem, op. cit., cap. 4.

493
Couro imptrial

..
iriam satisfazer o sonho frio do estado de controle absolutamente racio-
nal. Arquitetos brancos foram informados de que o layout dos distritos
negros deveria obedecer a princípios que assegurassem a máxima vi-
gilância e o máximo controle: as estradas tinham de ser suficientemente
largas para permitir que os tanques Sara,en dessem a volta; as casas ti-
nham de ser alinhadas de tal maneira que tiroteios entre elas não fossem
impedidos«. Ao mesmo tempo, as casas e estradas da arte negra come-
çaram a ser policiadas com a mesma vigilância, e a situação do artista
negro começou a mudar sutilmente.
Em 1953, a educação negra foi tirada do controle provincial e ampla-
mente britânico e posta nas mãos do Departamento Nacional de As-
suntos Nativos. Num discurso diante do Senado em junho de 1954, H. F.
Verwoerd, arquiteto dessas remoções culturais e projetista gráfico do
novo layout da vida artística da África do Sul negra, foi bem franco so-
bre os objetivos da Lei Educacional Bantu: "Os nativos serão ensinados
desde a infância a perceber que a igualdade com os europeus não é para
eles[... ] Não há lugar para ele [o bantu] acima do nível de cercas formas
de trabalho"•s. Daí cm diante, os negros teriam escolas, programas, pro-
fessores, idiomas e valores "etnicamente" separados. Em 1959, a Lei da
Extensão da Educação Universitária dividiu os diferentes grupos étni-
cos por diferentes universidades. A Lei Educacional Bantu, como ades-
truição de Sophiatown, foi um evento crucial na história da cultura ne-
gra não simplesmente porque começou a transferência da educação
negra do controle hegemónico inglês para as mãos mais flagrantemente
coercitivas dos nacionalistas africâneres, mas também porque ameaçava
a aliança entre os liberais negros e brancos e mandava os artistas negros
educados por brancos de volta para suas comunidades. Mais negros pas-
sariam agora a receber uma escolaridade propositalmente empobrecida,
com o efeito de nivelar parte da diferença entre a ínfima elite educada e

44- Ver Hirson, Year o.fFire, Year o.fAsh... , p. 184.


45. Hcndrik F. Vcrwocrd, Policy of thc l\1inistcr of Nativc Affairs, 7 jun., r954, Verwotrd
Sprnlu: Spuchu 19-18-1966, in A. N . Pcb.cr (org.} (Johanncsburgo:Tatê:lbcrg, 1966).

494
ºA ú kwclwa • ( 11 áo 11amos t mhartar) - "R!,sistl 11cia , ultur.1/ nas ditadas dnnptradas

o vasto populacho analfabeto que existia antes. Daí para frente, os ne-
gros estariam sujeitos mais eficientemente que nunca ao que Malefanc
chama de política calculada de "má nutrição cultural". Essa política teria
um efeito marcante sobre a literatura negra e traria mudanças significa-
tivas a noções de valor estético.
Em 1960, a campanha contra a Lei do Salvo-Conduto do Congresso
Pan- Africanista (PAC, sigla em inglês) terminou em calamidade cm
Sharpeville. O C NA e o PAC foram banidos e ambos os movimentos de
resistência passaram à clandestinidade ou ao exílio. A destruição de So-
phiatown prenunciava o quase total desaparecimento da escrita pública
negra nos anos 1960 quando o Estado flexionou inteiramente seus mús-
culos numa década de banimentos, prisões e tortura, esmagando as últi-
mas ilusões de uma reforma liberal. Banimentos, exílio e morte estran-
gularam toda uma geração de escritores e começou o "longo silêncio"
dos anos 1960. Esse silêncio foi de certa maneira mais aparente do que
real, pois já foi observado que, em termos do puro volume, se escreveu
mais poesia durante os anos 1960 do que durante os 1950, embora essa
poesia só viesse a ser publicada mais tarde 46• A Lei de Publicações e
Espetáculos (1963) estendeu a censura estatal legal aos assuntos culturais
dentro do país e, em 1966, a maioria dos escritores negros que já tinham
saído para o exílio foi listada sob a Lei de Supressão do Comunismo,
ainda que a maioria deles fosse liberal de um ou de outro tipo: Matshi-
kiza, Themba, M odisane, Mphahlele, Nkosi, Cosmo Pieterse e Mazisi
Kunene. ~arenta e seis autores foram amordaçados pela Gazeta Go-
vernamental Extraordinária de 1ll de abril de 1966, que proibiu a leitura,
reprodução, impressão, publicação ou disseminação de qualquer discur-
so, elocução, escrita ou pronunciamento dos banidos. No exílio, Themba
e Arthur Nortje seguiram Nakasa no suicídio.
Contudo, o efeito sobre a escrita negra não foi somente deletério.
Em 1963, o mesmo ano em que Nelson Mandela foi banido para Rob-
ben Island, uma revista literária negra chamada 1he Classic abriu cn1

46. Ve r C ouzcns e Patcl, 1lu R tturn ofl ht /lmaJi B ird.. •, p. 10 .

495
Couro imptrial

Johannesburgo. Foi nomead a não em honra de um patrimônio de exce-


lência consagrada no cânone clássico branco, mas, irônica e anticanoni-
camente, por causa da lavanderia 7he Classic, atrás da qual a revista co-
meçou, num bar ilegal. The Classic,editada por Nakasa antes de seu exílio
voluntário, começou a publicar os primeiros poetas de Soweto.
Sharpeville e suas consequências anunciaram um período de calcula-
da recusa às normas e padrões canônicos brancos. A estética liberal sul-
africana, ela mesma nunca inteira ou acabada e já pressionada por sua
distância das tradições europeias, começou a se desgastar e a se revelar.
A maioria dos poetas brancos ingleses, cada ve-z mais privada do poder
cultural, se confortava em seu isolamento com a fé contraditória de que
a voz poética solitária era também o eloquente alto-falante da verdade
universal - fé cada vez menos sustentável, pois os escritores negros
educados não só se afastavam da definição branca do universal como se
situavam, nesse ponto, com certa dificuldade dentro de suas próprias '
comunidades. Durante esse período, teve lugar uma marcante mudança
nos valores estéticos, à medida que a literatura negra se tornava mais
radical e polarizada.
Os poetas da geração posterior à Lei Educacional Bantu tinham de
começar do zero. Seus predecessores escavam no exílio e o trabalho de-
les, silenciado. Como escreveu Tlali em "ln Search of Books" [À procura
dos livros], "Eles d izem que os escritores aprendem de seus predeces-
sores. Quando procurei freneticamente pelos meus, não havia nada além
de um vazio. O quê.tinha acontecido com todos os escritos de que mi-
nha mãe tinha falado?"~7• Mas a Lei Educacional Banru, zelosamente
protegendo os negros das facilidades da cultura europeia, tinha prestado
à escrita negra um serviço involuntário, pois os escritores de Soweto dos
anos 1970 contornaram muitos dos conflitos de fidelidade cultural que
assolaram a geração de Sophiatown. Carlos Fuentes falou para o escritor
norte-americano do problema de repelir os fantasmas da tradição euro-

47. Tlali, ~ln Search o f Books", Srar, 30 jul., 1980; rec:dir.ado in Chapman, StXJJtto Pottry,
p.46.
"Azi kwelwa • (ndo "amos tmbar,ar) - <J?.!sisllntia ,ultural nas dl,adas dtusptradas

pcia, "pendurados nos candelabros e chocalhando os pratos"•8 • De modo


similar, os poetas sul-africanos brancos, despejados pela lústória, gasta-
ram décadas franzindo seus cenhos sobre sua complexa relação com
uma tradição europeia que era e que não era a deles. Os poetas de So-
wcto, privados de Donnc, Milton, Wordsworth, Eliot, não tinham tais
fantasmas de que se livrar.
A geração pré-Soweto, nutrida no que agora parece uma eloquência
artificialmente literária, sofreu uma espécie diferente de má nutrição cul-
tural. Sipho Sepauua, por exemplo, "criada com Shakespeare, Dickens,
Lawrence, Keats e outros grandes ingleses", inveja a ignorância dos po-
etas de Soweto em relação à tradição ocidental: "Eu teria gostado de ter
sido alimentada com MphahJele, La Guma, Themba, Nkosi. Eu teria
gostado de pôr minhas mãos na "füria sem compensação" de Richard
vVright,James Baldwin, LeRoiJones [ ...] Parece que meu vazio, minha
falta de raízes, minha cegueira é que supostamente me mantêm no meu
lugar" 49 • Ao mesmo tempo, dentro do país, o movimento da Consciência
Negra começou a abalar a longa tranquilidade dos anos 1960.
1 A poesia de Soweto nasceu no berço da Consciência Negra e tem de
!
f ser vista dentro desse meio. A Consciência Negra começou, em termos
1' gerais, como movimento de campus em 1968 e durou quase uma década,
l

i• 1
até o banimento, depois de Soweto, de todas as organizações da Cons-
ciência Negra em outubro de 1977. Mobilizando estudantes negros em
torno do chamado à união da cor e do slogan "Negro, você está por sua
r\ conta", a Consciência Negra era nesse estágio o sonho da pequena bur-
t guesia neg ra urbana e de elite, um movimento de estudantes, profissio-
1
nais, intelectuais, artistas e uns poucos membros do cleroSº. Em 1972, a

'
"
Organização dos Estudantes Sul-Africanos tentou saltar o fosso entre
a elite intelectual e as pessoas da comunidade negra e em 1972 formou

t
tr 48. Carlos Fucntes, "The fut ofF1ction LXVUI", Paris R"'iew 23 (198r), p.149.
1 49. Sipho Scpamla, "The Black \Vriter in South Africa Today: Problcms and Dilemmas",
t JV~ Classic 3 (1976); reeditado in Chapman, S()Wt/o P~try, p. n6.
50. Ver Hirson, Ytar ofFirt, Ytar ofAth... , pp. 60- 114; Lodge, Blad, Po/itics... , 321-62.

497
Couro imptrial

a Convenção do Povo Negro num esforço de dar à Consciência Negra


um alcance nacional. l\llas o apelo à comunidade era incerto e contradi-
tório e, em parte porque os laços que estendeu aos trabalhadores orga-
nizados eram sempre frágeis, nunca chegou à organização de massa.
A questão dos valores culturais assumiu o centro da cena à medida
que as campanhas literárias, o teatro negro e as leituras de poesia eram
fomentados na crença de que o nacionalismo cultural era o caminho
para o nacionalismo poütico. Como era imperativo livrar-se das normas
e valores brancos canônicos, os brancos tinham Je:: ser barrados e todos
os valores brancos tinham de ser enfrentados e substituídos. Como dis-
se Steve Biko, "A cultura negra [ ... ] implica liberdade de nossa parte
para inovar sem recorrer a valores brancos"51• Politicamente, a primeira
Consciência Negra era reformista e não radical, uma mistura de mode-
rados, cristãos anticomunistas, liberais e empresários negros. Era croni-
camente masculina em sua orientação (clamando pela "restauração da
masculinidade negra"), sem uma análise de classe ou de gênero e forte-
mente antimarxista: "Não somos um movimento de confrontação, mas
um movimento de introspecção">'.
Como consequência, o movimento da Consciência Negra tem sido
censurado por ser politicamente ingênuo e teoricamente inconsistente,
por colocar sua fé numa alma negra fora do tempo e no crescimento
pessoal do indivíduo. l\llas ao mesmo tempo, como disse o poeta Mafika
Gwala: "Havia vigilância cm todo lugar. Parecia que ler e os tópicos cul-
turais eram as únicas coisas que nos sustcntavam"s3_ Numa época em que
muitas organizações políticas e pessoas estavam sendo anuladas, a poe-

51. Stcvc Biko, "Black Consciousness and thc Qycst fora Truc Humanity", in Basil Moore
(org.), Blark 7htology: 1lu South Afriran Voiu (Londm: C. Hurst and Co., 1973), p. 45. Ver
também Biko, 1 Writt What 1 Likt (Londres: H cinemann, 1979); e "White Racism tnd
Black Consciousncss•, in Hcndrik W. v:an der Mcrwc e David \.Yclsh (orgs.), Studtnt
Ptr1~rtivt:1 on South A/rira (Cidade do Cabo: David Philip, 1972), pp. 190-202.
52. Drake Koka, apud •Jnsidc South Africa: A Ncw Black Movcment is Formed", S<ehaba 7
(t973), P· 5·
53. Jlvlafika Gwala, "Writing as a Cultural \1/capon", in Daymond, Jacobs e Lenta (orgs.),
lvlomtntum, p. 37.
"Azikwelwa • (ndo ,c,amo1 embarcar) - 'R.!_1i1tlncia cultural nas dlcada1 daaperada1

sia negra ajudou a reviver e manter a resistência à culnua branca. "A me-
ditação estava sendo substituída por um entendimento da esperançâS4 •
Além disso, como os nacionalistas colocavam cunhas e mais cunhas en-
tre os assim chamados diferentes grupos étnicos, a Consciência Negra e
o ressurgimento dos valores culturais negros abarcavam todos os grupos
em luta, incluindo os assim chamados de cor, indianos e asiáticos, dentro
do termo "negro". Apesar de todas as suas limitações indiscutíveis, que
ficaram mais visíveis e custosas durante a revolta de Soweto, a Consciên-
cia Negra forneceu um apelo à união, uma incitação poderosa e neces-
sária. Como disse o escritor Essop Patcl: "Consciência Negra deu o
ímpeto inicial na rejeição da arte como uma indulgência estética. Quan-
do o poeta negro se livrou das convenções literárias eurocêntricas, ele
ficou livre para criar no contexto de uma consciência nacional. O ponto
de partida do poeta negro foi a articulação da experiência negrass.

LANÇANDO MALDIÇÕE S
A n ova poesia de Soweto

e, quando se espera que eu cante,


eu lanço maldições.
Zinjiva Winston Nkondo

A poesia negra flore sceu nessa época, tornando-se o que Gwala chamou
de uma "excursão em busca da identidadc"56• Não é de surpreender que
a primeira poesia de Soweto compartilhasse muitos dos dilemas do mo-
vimento da Consciência Negra. Um de seus problemas, e não o menor,
é que era escrita, embora sob protesto, em inglês, com um público bran-
co privilegiado em mente e, assim, carregava o sutil ônus de ter que se
restringir para a imprensa liberal.

54. Idem, op. cit., p. 40.


55. Patcl, •Towards Revolutionary Poetry", in Daymond,Jacobs e Lenta (orgs.), il,1omentum,
P· 85.
56. Gwala, "Writing as a Cultural Wcapon•, p. 38.

499
Couro imperial

O s poderes estabelecidos da literatura em inglês começavam a escu-


tar os poetas negros sem muita atenção. Os poetas brancos tinham vol-
tado de suas solitárias caminhadas pelo deserto à procura de raízes e
escreviam agora, com certo constrangimento, sobre negros afiando suas
pangas (facões) na cabana. Em 1971, Lioncl Abrahams fez uma jogada
editorial e publicou Sounds ofa Cowhide Drum [Sons de um tambor de
couro de vaca], fenomenal sucesso de Oswald l\iltshali, iniciando ao
mesmo tempo um agitado debate sobre o valor da poesia negra e provo-
cando alguns críticos brancos a acessos de julgamento discriminatório
que chegavam às raias da incivilidade57•
Até os anos 1970, o cânone britânico branco e quase exclusivamente
masculino fora perturbado apenas por ligeiras diferenças internas sobre
valores nas universidades de língua inglesa, ficando todos plenamente
na tradição de Leavis. Em 1959, a Oxford University Press pôde publicar
A Book ofSouthAfrican Verse [Livro de poesia sul-africana], que apresen-
tava 32 escritores brancos, quatro escritoras brancas e nenhum negro de
qualquer sexo. Até os anos 1970, a fé estética liberal dominante - cm
criatividade individual, valores literários imanentes e universais, unidade
de visão, inteireza de experiência, complexidade de forma, discriminação
moral refinada não tocada por platitudes políticas, ironia, gosto, sensibi-
lidade culta e plenitude formal da obra de arte - tinha sido em sua
maior parte isolada da experiência negra pela educação segregada, pela
severa censura de textos, pelo banimento de escritores e pelo bloqueio
da distribuição.
Dos anos 1970 em diante, porém, liberais brancos começaram a cor-
tejar poetas negros, tendo ao mesmo tempo em que defender as doutri-

57. Algumas das razões pua a mudança cultural e para o sucesso do livro de Mcshali -
o primeiro livro de poemas escrito por :alguém, negro ou br.inco, a dar lucro - residem
no interesse externo n:i. África à medida que uma nação african:i. após outr.i ganhava
independência. Mas é uma das obstinadas idiossincrasias da descolonização o faco de
que, quando a Europa abandonava o solo africano, começava :i. luca pela África - com
as editoras ocidentais disputando escritores negros. Dentro da África do Sul, alguns li·
ber:ús brancos, levados lentamente à inconsequcnci:i, decidiram incorporar-se ao pro·
testo negro.

500
·Aúkwclwa • {não vamo, tmbauar) - 'R.!,1i1tinda cultural na, dlcada1 daaptrada 1

nas liberais dominantes nas universidades de língua inglesa no nível da


ideologia, num fluxo sem precedentes de entrevistas, debates, artigos,
conferências e assim por diante. Em outras palavras, se alguma poesia
negra fosse seletivamente admitida no cânone, deveria poder ser mos-
trado desde o início que ela exibia certos valores requeridos que, por
sua vez, tinham que ser anunciados aos gritos sem trair a natureza sele-
tiva e interessada desses valores. A primeira fase de reforma do cânone
começou, assim, com sua expansão circunspecta incluindo alguns textos
negro:; previamente ignorados, mas que agora se revelava exibirem cer-
tas características compartilhadas com a já existente tradição branca.
O seminal Sounds oJ a Cowhide Drum de lVltshali, por exemplo, foi
recebido com aplausos calorosos por sua exibição de alguns traços favo-
ri tos da tradição de Leavis. Mtshali foi elogiado por sua voz irônica e
individual cm linhas como:

É glorioso este mundo,


o mundo que sustenta o homem
como um,1 larva numa carcaça.

Ele foi louvado pela força de seu sentimento, por sua energia moral,
pela liberação da imaginação e pela originalidade de suas imagens con-
cretas num poema como "Sunset" [Pôr do Sol]:

O sol girou
como uma moeda lançada.
rodopiou no céu cerúleo,
retiniu no horizonte,
caiu na ranhura,
e estouraram luzes de neon
piscando "Expirou o tempo",
como num parquímetro.

ouem

501
Couro impaial

o novilho recém-nascido
é como pão assado no forno
soltando vapor sob uma cobertura de celofanc:58 •

O prefácio embevecido de Nadine Gordimer à primeira edição invo-


cava Blake e Auden. O!-iando l\iltshali foi reprovado por não estar à al-
tura, porém, foi por sua falta de complexidade formal e intelectual, sua
incapacidade de mesclar forma e conteúdo e os louvores do passado
africano, que lhe custaram a "universalidade".
Mtshali estava naquele momento da disputa em que a hegemonia
inglesa estava relutantemente cedendo à coerção nacionalista. Seus pais
eram professores numa escola de missão católica, onde ele recebera uma
formação inglesa completa. Ivlas a Lei Educacional Banru lhe negara
entrada numa universidade branca e, recusando-se a ir à universidade
negra a que fora alocado, ele t~~balhava como mensageiro quando Sounds
ofa Cowhide Drum foi publicado. Alojado como estava entre a elite in-
telectual, a classe intermediária negra e o meio da Consciência Negra
cm geral, ele foi criticado pelos poetas mais radicais da geração posterior
de Sowcto por banhar-se cm reverência romântica pelas "relíquias in-
temporais" de seu passado, como no poema que dá título ao livro:

Eu sou o tambor em sua alma que dorme,


feito do couro preto de uma vaca do sacrificio.
Eu sou o espírito de seus ancestrais59•

Para Mtshali, a tarefa do poeta era imortali2ar "os escombros de mi-


nha cultura estilhaçada" e reclamar a "existência e a civilização atempo-
ral" da África do Sul pré-colonial, idílio atemporal que outros afirmam
nunca ter existido6o. Ao mesmo tempo, suas imagens terríveis do bebê

58. Oswald .l'vhshali, "High and Low", "Sunsct", "A Ncwly·Born Calf", Sounds ofa Cowhidt
Drum (Londres: Oxford Univcrsity Prc.ss, 1972), pp. 28, :4, 13.
59. Idem, op. cir., p. 78.
60. Idem, "Black Poctry in Southern Africa: \ Vhat it l\,leans·, Islut: .li Quartt-rly Journal of
.llfri.aniit Opinion 6 (19i6), reeditado in Chapman, Sow,10 Po,1ry, p. 107.

502
"Azikwclwa • (n4o t1amo1 t m/,arcar) - 'R.!,sistincia cultural nas dtcadas dtusptradas

ensanguentado dilacerado pelos vira-latas do distrito, da lavadeira cale-


jada, do bêbedo com o vômito escorrendo, eram temperadas por uma
nostalgia do campo e - como os críticos notaram aliviados - com
uma mensagem crítica, mas essencialmente cristã. O público liberal de
Mtshali estava disposto à crítica do Estado nacionalista, para o qual
deslocava sua própria impotência e dúvidas, m as, firmemente situado
dentro das instituições do Estado e, sem nenhuma esperança autêntica
no futuro, n ão estava pronto para derrubá-lo.
Num período d e máximo desemprego e com uma firme barragem de
greves, teve início uma inundação de fóruns e conferências culturais - o
Conselho de ~featro de Natal (Tecon), a Conferência da Saso sobre
Criatividade e Desenvolvimento Negro (1972), A Convenção do Renas-
cimento Negro em Hammanskraal (1974). Apareceu grande quantidade
de coleções de poesia negra e a maioria foi sumariamente banida: Zulu
Poems [Poemas zulus] (1970), de Kunene, My Name is A/rica [lVIeu nome
é África] (1971) e Seven South African Poets [Sete poetas sul-africanos]
(1971), de Kereopetsc Kgositsile, Cry Rage [Grite ódioJ (1972), de James
Matthews e Gladys Thomas, Yakhal'inkomo (1972), de Mongane Serote,
e To Whom lt May Concem: An Anthology ofBlack South African Poetry
[A quem interessar possa: uma antologia de poesia negra sul-africana]
(1973). Hostil, apaixonada e bem além dos padrões estéticos aceitos, a
nova poesia de Soweto era uma descrição destemperada, barulhenta,
muitas vezes alucinada do "terrível dosscl de pesadelos" que lançava sua
sombra sobre a vida no gueto:

Eles roubaram o barítono


Minha mulher come o osso da própria cabeça
Ela espreme uma sobrancelha de pedra na colher
As crianças podem sugar a lua semelhante a uma teta61•

D e maneira mais significativa, como a nova poesia absorvia liberal-


mente ritmos de jazz e de dança, americanismos negros, vernáculo dos

61. Anônimo, •·Jhcy T ook Him Aw,-y~, Staffrid" (mar., 1978).


(ouro imptrial

distritos e os aspectos gestuais, musicais e presenciais das tradições orais,


noções como integridade do texto e do teste do tempo tornaram-se cada
vez mais irrelevantes. Boa parte dessa poesia transicional era ainda es-
crita para ser impressa, mas começava a mostrar sinais de um iminente
abandono e destruição do texto:

Saio clandestinamente
e volto em negra fúria
0---m! Ohhhmmmm! 0-hhhhhhmmmmmmm!!!6'

Você me pegou homem branco! l\lleem wanna ge aot Fuc


Pschwee e ep boobooduboo~oodubllll
Livros negros,
Carne sangue palavras merdarrrr Haai,
Amém 61 •

A recusa dos poetas negros em ver a poesia no sentido de Coleridge


como aquilo que contém "em si mesmo" a razão por que ela é assim e não
de outra maneira ecoava também as poderosas tradições, ainda que cm
luta, da poesia oral dentro da cultura negra. Na poesia oral africana o foco
está na apresentação em seu contexto social, na função da apresentação
na sociedade, chegando quase a excluir a transmissão do texto no tempo.

O poeta serve como mediador entre o dirigente e o dirigido, como um inci-


tador, um formador de opinião, um crítico social. Ele não se ocupa apenas em
fazer a crônica dos feitos e qualidades dos ancestrais de seus contemporâneos,
ele também responde poeticamente às circunstâncias sociais e poüticas dian-
te dele no momento de sua apresentação64 •

62. Gwala,]o/'iinl:om'J (Johanncsbwgo: Ad Donker, 19n), p. 68.


63. Monganc Scrotc, "Blac:k Bclls", Yakha/'inl:om'J (Johanncsburgo: Rcnostcr, 1972), p. 52.
64. Jcff Opland, "lhe lsolation of 1he Xhosa Oral Poct", in Landcg White e Tim Couzcns
(orgs.), Littraturt and S«itty in Soutb Afri,a (Nova York, 1984), pp. 175-7.
"A-iikwclwa • {não vamos tmbarcar) - 'R.!,sistincia cultural nas dlcadas dtstspuadas

Os padrões de valor imanente dos críticos brancos, por terem escassa


semelhança com as tradições do izibongo e Ntsomi xhosa, do lithok.o e
seftla sotho, e também a incapacidade de esses críticos reconhecerem a
presença de tais influências orais na poesia contemporânea os deixaram
mal equipados para julgar os próprios poemas ou seus papéis e contextos
sociais6S. Ignorantes das intrincadas tradições de repetição e paralelismo
que valem na poesia oral, os críticos brancos em mais de uma ocasião
depreciaram a poesia negra por cair no clichê e na imagem repetitiva.
Além disso, como observaram Ursula Barnett e outros,"frequentemente
encontramos nas imagens da poesia negra um complicado sistema de
símbolos que opera cm vários níveis e requer um conhecimento de his-
tória, mito e lenda"66• Baseada nas poderosas tradições orais de simbiose
de tema e apresentação, de participação enérgica do público e de con-
cepções do poeta como historiador lírico e comentador político, a poesia
negra preparava, como disse Tony Emmett, o estudo dela mesma "em
seus próprios termos e é à luz das facetas oral, política e comunitária da
poesia negra a que provavelmente se fará a crítica mais penetrante"67,
"Hell, well, Heaven" [O Inferno, bem, o Céu], de Serote, por exem-
plo, lembra a pulsação da repetição segmentada de acordes básicos da
música marabi, compartilhando sua "predisposição para o impiedoso
ukelele de duas ou três cordas":

Eu não sei onde eu estive,


Mas, irmão,
Eu sei que estou chegando.

65. Ver Ruth Finncg:rn, Oral Lit<ralure in Afrúa (Oxford; Oxford Univcrsity Prcss, 1970);
Harold Schcub, 7Ju Xhosa Ntsomi (Oxford: Oxford Univcrsity Prcss, 1975); Elizabcth
Gunncr, "Songs of Innoccncc and Expcricncc: Womcn as Composcrs and Pcrformcrs
of lzibongo, Zulu Praisc Poctry", Rtuarch in African Littraturt 10 (1979), pp. i39· 6r,
Mbulclo Mzamanc, ~Thc Uses ofTr:idition:il Oral Forms in Black South African Litc•
raturc•, in White e Couuns, Littratur~ and Socitty.. . , pp.147-60; e Coplan, ln Township
Tonight!... e ªlntcrprctivc Consciousncss•.
66. B:unctt,A Vision ofOrdtr. .. , p. ~3-
6-J. Tony Emmctt, "Oral, Political and Communal Aspccts ofTownship Poctry in thc Mid-
Scvcntics-, English in A/riu, 6 (mar., 1979), r<:cditado in Chapm1n, Sow~to Pcury, p. 183.

5o5
Couro imperial

'
Eu não sei onde eu estive,
Mas,i.rmão,
Eu sei que ouvi o chamado69 •

Os versos revelam tanto a influência do gospel quanto da mak.waya,


música de coral desenvolvida por africanos educados nas missões a partir
de canções populares norte-americanas e europeias e de elementos tradi-
cionais africanos½. A influência musical do jazz dos distritos é temática
e rilmicamente fundamental para grande parte da poesia de Soweto:

Ivlãe,
quando eu ouço jazz, não é lazer,
é uma operação da alma70 •

.
E sses traços musicais evocavam os mundos provocadores e restaura-
dores das danças marabi, dos clubes dejazz,dos bares ilegais e dos tea-
tros, e anunciavam a natureza cada vez mais comunitária e ligada à
performance da poesia negra:

Pr'o alto e pr'o alto


num cavalo selvagem de jazz
galopamos numa rede
de notas azuis
entregando a mensagem:
H omens, Irmãos, Gigantes!"7'.

Celebração provocativa do amargo banimento da cor, a poesia de


Soweto despertou no Estado uma vingança precisa. Embora o poeta

68. Scro tc, "Hcll, wcll, 1-lcavcn", Yakha/'inltomo, p. 16.


69. D. K. Rycroft, "Melodie Impons and Expons: A Byproduct of Rccording in Souó
Afric~•, Bulletin of the British lnstitute ofRr,orded Sound (1956); apud Coplan, in Town-
ship Tonight!..., p. 106.
70. Gwala, "Words to a Mothcr", Staifridrr (maio-jun., 1978).
71. Muh:ili, "Riding on thc Raiubow", in Sounds ofa C()Whide Drum, p. 26.

506
ºAzikwclw:i. • (ndo vamos tmbarcar) - 'lv,sistincia cultural nas ditadas dtusptradas

inglês D ouglas Livingstonc tivesse confiança em que a poesia "certa-


mente não mudará o mundo",o Estado não pretendia dar lugar ao azaril.
O ministro d a Justiça, Jimmy Kruger, falou de maneira agourenta de
poemas "que matam" e respondeu na mesma moedan. Muitas coleções
foram suprimidas e alguns poetas foram detidos. Mthuli Shezi, drama-
turgo e vice-diretor da Convenção do Povo Negro cm 1972, morreu
depois de ser empurrado para debaixo de um trem numa disputa forjada
com um funcionário da ferrovia.
Em 1974, o domínio colonial português na África entrou em colapso.
Na África do Sul, uma demonstração de apoio da vitoriosa Frelimo de
'.\1oçambique foi proibida e nove lideres receberam longas sentenças.
Gwala lembra que no mesmo ano a Universidade d a Cidade do Cabo
sediou uma conferência sobre a nova poesia negra, convidando-o e a ou-
tros poetas negros para levar "a poesia negra ao território dos homens
brancos"74• Discutindo por telefone com Onkgopotse Tiro sobre se de-
via aceitar o convite, Gwala brincou com ele. Nesse mesmo dia, Tiro foi
morto pela explosão de uma bomba enviada por correio pelo Estado
sul-africano e, quando Gwala soube disso, desistiu da conferência. Seu
gesto pessoal expressa uma mudança geral de direção, pois a Consciência
Negra passou a ignorar o liberalismo branco. Os fios gastos da cultura
sul-africana começaram a ceder à medida que a Consciência Negra se
esforçava com mais insistência do que antes. Mtshali deu voz a essa mu-
dança: "Uma vez eu pensei que podia evangelizar e converter os brancos
[... ] Mas [...] agora me dedico a inspirar meus companheiros negros [...]
a procurar sua verdadeira identidade como um só grupo sólido"75•

7:. Douglas L ivingstonc, "Thc Poctry of Mtsh:i.li, Scrotc, Scp:i.mla and Othcrs in English:
Notes Towards :i. Criticai Evaluation•, New Classic 3 (1976); reeditado in Ch:ipman,
Sow,to Pottry, p. 160.
73- Jimmy Krugcr, 7h, Star, 14 sct., 1977, apud Emmc1t, "Oral, Political and Commu nal As-
pccts ofTownship Pocuy...•, p. 176.
74. Gwala, "\,Vriting as II Cultural \Vcapon", p. 43.
75. Barnctt, "lntcrvicw with Oswald Mtshali", World Literaturt Writttn in Englúh n (1?7.3);
reeditado in Chapman, SIX:Xto P,,ttry, p. 100.

5o7
Couro impaial

A procura da identidade como grupo sólido colocou diante dos inte-


lectuais uma escolha semelhante àquela esboçada por Antonio Gramsci:
em momentos críticos, intelectuais tradicionais, indiretamente ligados
ao sistema, mas considerando-se independentes, têm que decidir se se
unem à classe revolucionária ascendente como intelectuais orgânicos.
Nas palavras de G,vala:

O propósito aqui hoje é examinar se o intelectual decide manter um status


superior ou se ele está pronto a afastar-se do papel de ser o portador da cul-
tura oficial branca. É aqui que temos de aceitar e promover a verdade de que
não podemos falar de Solidariedade Negra fora da identidade de classe. Por-
que, como disse nosso irmão negro, só a elite é assolada pelo problema da
identidade. Não a massa do povo negro. O povo negro comum nunca teve
razões para preocupar-se com a negritude. Em primeiro lugar, eles nunca se
encontraram fora ou acima de.seu contexto como ncgros. lVlas o estudante, o
intelectual, o teólogo são aqueles que passam por educação estrangeira e assi-
milam valores éticos estrangeiros; ma.is tarde, quando comparados com a re-
alidade da situação negra, isso os aliena de seu povo16 •

Ao mesmo tempo, o tema da identidade de grupo é complicado por


outras questões, além do problema das relações de classe entre o escritor
educado e "a massa do povo negro", pois já e visível que a avassaladora
sub-representação das mulheres na poesia e nos debates levanta sérias
discussões sobre edu~ação, atitudes comunitárias, acesso a canais de pu-
blicação, status público e mobilidade nas comunidades, conflitos de in-
teresses de gêneros e poder, e assim por diante, tais como a_,;suntos que
têm um peso crucial sobre a questão do valor, assim com o qualquer
"questão exclusivamente estética"n .

76. Gwal?, "Towards thc Pracrical Manifcstation of Black Consciousncss", in T. Thoahlanc


(org.), Blad~ &naissanu: Paf><N/rom tht Blad, Rmaissanu Conwntion (Johanncsburgo:
Ravan Prcss, 1975), p. 31.
77. Há poucos trabalhos sobre a posição específica das poetas negras. Ver Liz Gunncr, "Songs
oflnnoccncc and Expcricncc".

508
•A?:ikwelwa • (ndo vamos tmbar,ar) - 'R.!sistintia cultural nas ditadas d,usp,radas

POESIA DE PERFORMANCE E
RESISTÊNCIA DA COMUNIDADE

Deixemos que tussam suas pequenas tossidelas


acadêmicas.
Richard Rivc

O!tando James Matthews e Gladys Thomas lançaram Cry Rage [Grite


ódio], "os críticos uivaram como hienas. Não era poesia, e.xclamavam"78 •
A profusão da poesia negra não podia, contudo, ser ignorada; nem po-
dia ser espremida para ajustar-se aos requisitos canônicos. Ela começa-
va a representar uma desconfortável ameaça não só para alguns dos
valores mais reverenciados da estética estabelecida, mas também para a
ideia mesma do próprio cânone. Os críticos começaram a expressar
mais suas queixas: os poetas negros estavam maltratando todas as pro-
priedades da língua inglesa, sacrificando o decoro formal pela "névoa
vermelha da ânsia de vingança"i9 e pelo "'rá-tá-tá' das metralhadoras"
do protesto8º. Como diria Alan Paton, "um escritor é, quase sempre,
uma criatura privada"81, ao passo que os escritores negros, seduzidos
pela "categoria portentosamente concebida 'negrom, tendem cronica-
mente ao "pensamento de grupo"82• Livingstone sentia que os negros
teriam muita dificuldade em sobreviver "à dura geleira do tempo" e que
teriam problemas em qualificar-se para "a mais dura definição de um
poeta [ ... ] aquele que está morto há mais de cem anos e uma de suas
obras ainda é lida" - definição de fato dura para as poetas negras8l.

78. James M:itthews, in Daymond,Jacobs e Lenta (orgs.), /\llommltlm, p. 73.


79. Lioncl Abraharns, "Politic:u Vision of a Poct", Rand Daily Mail, 17 jun., 1974; reeditado
in Chapman, S()'Wtfo Po,try, p. 74.
80. Living1tone, ~The Pocuy ofMtshali. .. •, p. 160.
81. Alan Paron, in Daymond,Jacobs e Lenta (orgs.), Nfommtum, p. 90.
82. Abrahams, "Black Expericncc into English Verse: A Sun·cy of Local African Poctry,
1960-1970", New Nation 3 (fcv., 1970), reeditado in Chapman, Suwcto Pottry, pp. 138-9.
83. Livingston.,, "Thc Poet.ry of Mtsh:ui ... ", p. 157.
Couro impuial

E stas eram as quatro acusações feitas à escrita negra nos anos 1970:
sacrifício das regras intrínsecas da arre em nome de fins politicos, inép-
cia formal, perda de expressão e originalidade individuais e, portanto,
sacrifício da longevidade.
Em resposta, Gwala perguntava, "As perguntas pululam. Perguntas
como: Qµe direito moral tem o acadêmico de julgar meu estilo de es-
crita? Qµe diretriz, além da cultura de dominação, ele aplicou?"84 • Não
querendo ceder terreno na luta pelo "comando" da língua inglesa, os
críticos brancos apimentaram suas resenhas da poesia negra com minú-
cias sobre lapsos formais, "má" gramática e a decadência dos padrões. Os
poetas negros replicaram que "nunca houve urna coisa tal como a língua
pura"•s, e Sepamla afirmou: "Se a situação requer um inglês quebrado ou
'assassinado', p or Deus, devemos fazer exatamente isso"86• As escara-
muças críticas sobre graças .gramaticais ocultavam o problema muito
mais sério sobre quem tinha o direito de policiar a cultura dos distritos.
A poesia negra zombava de fato, de maneira muito consciente, das no-
ções estabelecidas de elegância formal: os poetas formavam seus p:ó-
prios preceitos a partir de formas de falar dos distritos desconhecidas e,
portanto, enervantes para os críticos brancos. A poesia negra era muitas
vezes uma mistura lubrida de inglês, tsotsitaa/ 87 e americanismos negros,
com toques das línguas sul-africanas negras:

Era uma vez uma era bundu


havia discriminação mlungu
como resultado de maumba separada88

84. Gwala, in Daymond,Jacobs e Lenta (orgs.), M ommtum, p. 48.


85. Idem, op. cit., p. 43.
86. Sepamla, "The Black \Vrirer... •, p. 117.
87. Tsollitaal é um dialeto africano urbano falado por todos os proletirios africanos, espe-
cialmente pelos jovens membros das gangucs de rua. Coplan argumenta que /Jofli é uma
corruptela do termo norre-americano z.oot $uit, ln Tou•Mhip Tonight!..., p. 271.
88. Mothobi Mutloatse, "Bundu Bulldours", apud Chapman, Sow~to Po~try, p. 170. Mluniu
significa "homem hranco"; maumh11 oignilica "merda".

510
•Azikwclwa • (ndo 11amo1 tmbaNar) - 'R!_sillbrcia ,ultural nas düadas d,usptradas

A língua oficial branca era desprezada, insultada e invertida: "Dom-


pas [Seu passe] é dom [estúpido] para passá-lo/Seu presente de Natal: 72
horas" 89.
Poetas negros também suspeitavam da afirmação de Paton de que a
política destruía a soberania das "regras" intrínsecas "da arte"9º. O poe-
ma de Frankie Ntsu kaDitshego/Dube "Os guetos" afirma figurativa-
mente que a posição apolítica é em si mesma um ato político:

Aqueles que dizem que não são fumantes estão errados


O lugar é poluído com fumaça de
Chaminés
Caminhões
Hipopótamos
Camuflagem de armas
fumadores de maconha
e pneus queimados
Não fumantes também são fumantcs! 9 '

De mais de uma maneira, a poesia negra desafiava seriamente a ideia


de que o poema era uma criação livre,julgada excelente, se obedecesse às
regras imanentes que vinham de dentro da arte. Para os poetas negros, a
noção do cânone como patrimônio da excelência, transmitida pelas mais
belas mentes de geração em geração, incólume através da história, se tor-
nava indefensável pelas circunstâncias mesmas em que estavam vivendo.
Em seu poema "lbe Marblc Eye", [O olho de vidro], Mtshali parodiava
~ plenin.ide formal da obra de arte que habitava o mausoléu da t1aJi~ão:

O olho de vidro
é um ornamento
friamente burilado por um artesão

89. Anônimo, "lt's Paati to Bc Black", Stajfridtr (mar., 1978). Dompas se refere aos odiados
passes (salvo-co ndutos); dom é a pala,-n africiner para estúpido.
so. Paton, in Momtntum, p. 89.
1;11. Frankle Ntsu kaDitshegolDubc, "lhe Ghettocs· , Stajfridtr (jul.-ago., 1979).

511
Couro imperial

para preencher uma cavidade vazia


como um cadáver preenche um caixão91 •

Dadas as condições da vida no distrito, o poema não podia mais


pretender a mímica do acabamento polido de uma urna feita com es-
mero ou o toque de joia de um ícone. Gwala era um dos que clamava por
"uma arte do não atrativo"93 e N. Chabani Manganyi afirmava que a
"imagem unificada" sancionada pela tradição literária era uma indulgên-
cia imperdoável9~. Contra a afirmação lugar-comum de Paton de que o
protesto danificaria a fina filigrana formal da obra de arte, esses poetas
declaravam que o valor maior de sua poesia não era ontológico nem
formal, era estratégico. A mudança estratégica, e não o teste do tempo,
tornava-se o princípio reiterado. "Em nossa língua do gueto não pode
haver nada fixo. As palavras que usamos pertencem a certos períodos de
nossa história. Elas vêm, assumem novos sentidos, e ficam de ladonci.1_
Gwala também não se impressionava com a atração pela imortalidade.
A publicação não era o único objetivo: "O que importava era a palavra
falada. Se ela estivesse oculta entre os colchões ou fosse comida pelos
ratos, era outra história"9 6•
Significativamente, os t raços performáticos, gestuais e dramáticos
em muito dessa poesia evidenciavam sua gradual transformação de um
fenômeno "literário" impresso em uma pe,:formance, de texto cm evento,
repleta de traços teatrais, gestuais e orais:

Logo eles estão de volta


Chegando como maiores batalhões negros
com cenhos bíceps cérebros
marchando no solo ubranco~: phara-phara-phara!

91. Mtshali, Sounds ofa Crx.uhide Drum, p. 78.


93. Gwala, "Towards a National Thcatrc-, SouthAfriran Ourlool:. (ago., t973); 2pud Ch2pman,
Sowcto Pocuy, Introdução, p. 11.
94. Ibid em.
95. Gwala, .. Writing as a Cultural \Vc2pon-, p. 48.
96. Idem, op. cit., p. 37.
•Azikwclwa· (ndo 11amos embarcar) - 'Iv,sistinâa wltural nas dtcadas dtuspuadas

E o policial kwela-kwe/a:

"Esses bantus são como mosc.i.s insistentes:


1 Vocc:ffr-ff-ffrrr com a ruína!.,
~ E os vê outra vez! 97
f
1
Grande parte da nova poesia de Soweto testemunha o que Raymond
Williams descreveu como "a verdadeira crise na teoria cultural" de nosso
1
K' tempo, isto é, o conflito "entre [a] visão da obra de arte como objeto e a
•• visão alternativa da arte como prática"93• Para a maioria dos poetas ne-
gros, e há exceções, o valor estético não é imanente nem genético, mas
antes o que Terry Eagleton chamou de "transitivo", isto é, "valor para
alguém numa situação particular[ ... ] É sempre cultural e historicamente
cspecífico"99 • Apoiando, ainda que independentemente, muitos dos ar-
gumentos teóricos sobre o valor na obra de críticos ocidentais como
Eagleton, Catherine Belsey, Tony Burnett, Stuart Hall, Paul Lauter,
Francis Mulhern, Barbara Herrnstein Smith e Jane Tompk.ins'00, os poe-
tas de Soweto afirmavam que o cânone literário é menos um mausoléu

97. Anónimo, "I t ·s Paati to Be Black". Kwda-kwela é o nome distrital dos grandes camburões
da policia. Ver Coplan, l n Township Tonight!..., pp. 157-60, para as origens do termo.
Doom é um inseticida cm spray.
98. Raymond \.Villiams, Probl,ms in MaterialiJm and Culturt (Londres: Verso, 1980), pp. 47-8.
99. Terry Eagleton e Pe1er Fuller, "lhe Question ofValue: A Discussion", New Left Rt1Jiew
1~2 (nov. -dcz., 1983), p. 77·
100.Ver, por exemplo, Eagleton, "Acsthetics and Politics", Nroi Left Rroiew 107 Qan.-fev.,
1978), pp. 21-34; Criticiim and [de,fogy: A Study in Nlarxist Literary 7hcury (Londres: Ncw
L<:ft Books, 1978); e "Criticism and Poütics: The Work ofRaymond Williams",N,w úft
Rt1Jitw 95 Qan.-fcv., 1976), pp. 3-23; Tony Bcnnctt, Fonr.aliJm 11nd i\1ancism ( Londres:
Methucn e Co., 1979), e "l\<larxism and Popular Fiction", Literature and Popular HiJtory 7
(1981), pp.138-65; Stuart H all, "Cultural Studies: Two Paradigms", in Bcnnett ct ai. (orgs.),
Culture, Id,ology and Social Process: A Rtadtr (Londres Methuen, 1981), pp. 19·3r, 8:1.rbua
Herrnstein Smith, "Contingencics ofValue", Critita! lnquiry 10 (1983), pp. 1-36, e "FL,ccd
Marks and Variablc Constancics: A Parable of Litcnry Valuc", Po,tics Today 1 (Outono,
1979), pp. 7-31; Paul Lautcr, "History and thc Canon", Scâal Ttxt u {Outono, 1985),
pp. 94-101; Francis Mulhcm. "Marxism in Liter.ary Criticism", N,w úft Rroiro, l08
(mar.-abr., 1979), pp. n-Sr, e Petcr \.Yiddowson, ~Litcrary Valuc'and thc Rcconstruction
ofCriticism", Litm1t11re and HiJ:ory 6 (Outono, 1980), pp.139-50.
Couro imperial

L
• 1
de verdades duradouras, menos uma coisa, que uma prática social desi-
\
gual e dando cambalhotas, cercada pela contestaçào, dissensão e os inte-
resses do poder.
Acossada pela censura, por acesso estritamente restrito a canais co-
merciais de publicação e pelo perigo de identificação e subsequente as-
sédio e, tendo herdado as tradições comunitárias, a poesia negra de So-
weto começou a mostrar a destruição calculada do texto'º'. Mais e mais,
a poesia negra era feita para um público ouvinte negro, mais que para
um público leitor alc:m-mar, de modo a criar formas poéticas menos
vulneráveis à censura e mais fáceis de memorizar, a palavra falada se
espalhando com maior rapidez, mais amplamente e mais esquivamente
que os textos impressos. A poesia fugiu das revistas literárias e passou a
ser apresentada cada vez mais em leituras de massa, demonstrações da
Frente Democrática Unida,_funerais, memoriais, festas de garagem, en-
contros comunitários e concertos musicais, às vezes com acompanha-
mento de flautas e tambores, a partir de tradições orais e mímica.
Mbulelo Mzamane observa que muitos poetas negros, embora des-
conhecidos pelos sul-africanos brancos, tinham muitos seguidores em
Soweto, Tcmbisa e Kwa-Thema'º'. Desprezando o prestigio do literário,
essa "poesia tornada teatro", transitória, imediata, estratégica, amada e
popular, derruba a questão essencialista do "que constitui boa literatura"
e insiste cm que ela seja recolocada em termos de quão boa ela é, para
quem, e quando ela é boa e por quê. Tenaz cm face de grande aflição,
cautelosa diante de algumas das demandas mais moderadas da primeira
Consciência Negra, politicamente mais radical, mas assolada por pro-
blemas de gênero, cnfrc::ucando a cada momento as dificuldades e re-

101. Os aspectos pcrformativo e popular dessa poesia a distinguem da desconstrução pós·


modernista do texto no Ocidente.
102. Ver Mbulclo Mzamanc, "Literature and Policies among Biades in South Africa", New
Classiu 5 (1978), reeditido in Chapman, Sowno Poetry, p. 156. Ver também Liz Gunner, "A
Dying Tradition? Aírican Literature in a Contemporary Comext", SO(ial Dynamia 12
(2) 1986, pp. 31-8, e Ari Sius, "Traditions of Poctry in Natal", in L iz Gunner (org.), Poli-
ticJ and Performanu in South Africa: 7heatrc, Poetry and Song (Johanncsburgo: Wirs. Uni-
versity Press, r994).A2ikdwa (não vamos mais viajar) é um slogan que expressa a recusa
do povo em viajar no transporte público durante os boicotes :> ônibus e trens.
•Azikwclwa • (n4o 'IJamos ,mbar<ar) - "R.!_sistlncia cultural nas ditadas ducsperadas

compensas de suas múltiplas tradições, a transicional poesia negra sul-


africana se via diante de consideráveis desafios formais e sociais.
Depois dos anos 1970, os poetas negros não tinham mais apenas a
intenção de dessacralizar aquelas normas ocidentais que sentiam inváli-
das, vomitando-as e insultando-as; estavam também engajados na tarefa
necessariamente mais dificil, mas mais positiva, de formular valores poé-
ticos defensáveis não só em termos de oposição e resistência aos valores
lfl brancos. Forç:indo a poesia e a crítica a se afastarem do círculo mágico
do valor imanente, para a história e para a poütica, em que os critérios
de julgamento ficam permanentemente à espera de resolução, os poetas
negros dos anos 1980 já não se contentavam cm roubar viagens impu-
dentes nos perigosos trens da tradição branca. Em lugar disso, expres-
savam cada vez mais uma recusa coletiva em viajar até que os trens lhes
pertencessem: azikwelwa, não vamos embarcar.
IO

Adeus ao paraíso futuro


Nacionalismo, gênero e raça

As tribos da Confederação dos Pés Pretos, que vivem no


que agora é conhecido como a fronteira entre os Estados
U nidos e o Canadã, fugi ndo para o Norte depob de um
ataque, observaram, admiradas, quando os soldados do
E xército norte-americano pararam de repente, como por
mágica. Fugindo para o Sul, viram 1 mesma coisa acon-
tecer, quando a polícia montada do Canadá fez uma pa-
rada abrupta. Eles passaram a chamar essa linha invisível
d e "linha do feiticeiro".
Sharon O'Brien

Tonos os nacionalismos têm gênero, rodos são inventados e todos são


perigosos - não perigosos no sentido de Eric H obsbaw1n de que te-
nham de ser combatidos, mas no sentido de que representam relações
com o poder político e com as tecnologias d a violência'. O nacionalismo,
como observou Ernest G ellner, inventa nações onde elas não existem, e as
nações mais modernas, apesar de seu apelo a um passado augusto e ime-
morial, são de invenção recente'. Benedict Anderson observa, no entan-
to, que G eUner tende a associar invenção com falsidade, e não com o
1
imaginário e o criativo. Anderson vê as nações, na sua famosa frase,
t como "comunidades imaginadas" - no sentido de que elas são sistemas
t
r de representação cultural nos quais as pessoas imaginam uma experiên-
cia compartilhada de identificação com uma comunidade mais ampla3•

lr 1.

2.
Ver a crítica de Eric Hobsbawm sobre o nacionalismo cm NatiMJ and Natfonalism Sinu
1780 (Cambridge: Cambridge Univcrsity Prcss, 1990).
Erncsr GcUncr, 1hought and Céange (Londres: \.Vcidcnfdd and Nicholson, 1964) e Na-

l
tions and Nationalism (Oxford: Blackwcll, 1983).
3. Ben~di.:t Andcnon, lm11gin,d ComM11niliu (Londre•: Verso, 1983. 1991), p. 6.

1 517
Couro imptrial

A ssim, as nações não são simplesmente uma fantasmagoria das mentes,


mas práticas históricas nas quais a diferença social é tanto inventada
como representada. Como resultado, o nacionalismo se torna radical-
mente constitutivo das identidades do povo através de contestações so-
ciais, frequentemente violentas e sempre marcadas pelo gênero. Mas, se
a natureza inventada do nacionalismo ganhou ampla circulação teórica,
as explorações do gênero em relação ao imaginário nacional permanece-
ram escassas.
Todas as nações dependem da construção vigorosa do gênero. A pe-
sar de vários investimentos ideológicos nacionalistas sobre a unidade
popular, historicamente as nações chegaram a uma institucionalização
singular d a diftren;a de gênero. Nenhuma nação no mundo dá a homens
e mulheres o mesmo acesso aos direitos e recursos do E stado-nação. Em
vez de expressarem uma essência orgânica de povos imemoriais, as na-
ções são sistemas contestados da representação cultural que limitam e
legitimam o acesso das pessoas aos recursos do Estado- nação. Mas, com
a exceção notável de Frantz Fanon, os teóricos m:i.sculinos raramente
exploraram o quanto o nacionalismo está implicado no poder de gênero.
Assim, como observou Cynthia Entoe, os nacionalismos "tipicamente
irromperam da memória, da humilhação e da esperança masculinas"~.
G eorge Santayana, por exemplo, expressa uma visão masculina bem
estabelecida: "Nosso nacionalismo é como nossa relação com as mulhe-
res: muito imbricada na nossa natureza moral para poder ser honra-
damente modificada e muito incidental para valer a pena modificar". A
frase de Santayana não poderia ser dita por uma mulher,já que seu "nós"
nacional é n1asculino, e sua cidadania masculina está simbolicamente
para a nação assim como um homem está para uma mulher. As neces-
sidades da nação não apenas são identificadas com as frustrações e aspi-
rações dos homens, mas a representação do poder nacional masculino
depende da constn1ção a priori da diferença de género.

4. Cynthia Enloe, BananCJ, B,a,ha ar.d Basa: Mal:ing Fa11inÍJI Stnst oflntrrnational Politi:1
(Berkeley: Univcrsity ofCalifornia Prc,ss, 1989}, p. 4-1.

518
cAdrus ao paraúo futuro - ~dona/ismo, glntro r ra;a

Para Gellner, a própria definição de nação repousa no reconheci-


mento masculino da identidade: "Os homens são da mesma nação se, e
apenas se, se reconhecem como pertencendo à mesma nação"5• Para
Etienne Balibar, tal reconhecimento se alinha, inevitavelmente, com a
noção de uma "raça" estruturada em torno da transmissão do poder e da
propriedade masculinos: "A nação deve alinhar-se, espiritual e fisica-
mente, ou carnalmente, com a 'raça', o 'patrimônio' (grifo nosso) a ser
protegido ele toda a degradação". Até Fanon, que cm outros mo1m:ntos
se expressou de maneira diferente, escreve: "O olhar que o nativo dirige
ao colonizador é um olhar de desejo [ ...] de sentar à sua mesa, de dormir
na sua cama, se possível, com sua esposa. O colonizado é um homem
invejoso"6 • Para Fanon, tanto o colonizado como o colonizador são, sem
pestanejar, homens, e a agonia maniqueísta da descolonização acontece
sobre a territorialidade do espaço doméstico feminino.
Frequentemente, nos nacionalismos masculinos, a diferença de gê-
nero entre homens e mulheres serve para definir simbolicamente os li-
r.litcs da diferença e do poder nacional entre os homens (Figuras 10.1,
10.2). Excluídas da ação direta como cidadãs nacionais, as mulheres são

simbolicamente incorporadas na política nacional como suas fronteiras


e seus limites metafóricos: "Meninas de Singapura, vocês podem voar bem
alto". As mulheres são tipicamente construídas como símbolos da nação
(Figura 10.3), mas a elas é negada qualquer relação direta com a atuação
nacional. Como Ellekc Boehmcr observa em seu ensaio instigante, a
"pátria materna" do nacionalismo masculino" não significa o "lar"e a "ori-
gem" para ::is mulheres7. Boehmer observa que o papel mas1.:ulino no
cenário nacional.ista é tipicamente "metonímico", isto é, os homens são
contíguos uns com os outros e com o conjunto nacional. As mulheres,

5. Ccllncr, 1hought and Changr, p.117.


6. Fanon, 1he Wrrtchcd of the Earth. Trad. Constancc Farrington (Londres: Pcguin, 1963),
p. 30.
7. Ellckc Bochmcr, "Storics ofWomcn and Mothcrs: Ccndcr and Nationalism in thc Ear-
ly Fiction of Flora Nw.i.pa". in Sushcila N~<ta (org.), /l,fo1J,,.,/a11ds: B lacJ: m ,m,mi Writing
from A/rira, th, Caribbtan and S011th Asia (Londres: lhe Women's Prcss, 1991), p. 5.
Couro imptrial

Figura 10.1 - O aperto dt mãos do comlrcio imperial.

Figura 10.2 -A mulher como marca dasfronltiras nacionais.

520
c.Adtul ao paraflo jtJturo -:J(gcionaliJmo, gtnao t raça
li
1

'
l

!
1'
!

Figura 10.3 - O gbla-o como sUJlmldculo do narionaliJmo.

por contraste, aparecem "num papel metafórico ou simbólicon8• Mas é


importante notar que nem todos os homens têm o privilégio da conti-
guidade política na comunidade nacional.
Numa contribuição importante, Nira Yuval-Davis e Floya Anthias
identificam cinco maneiras pelas quais a mulheres foram implicadas no
nacionalismo:

8. Idem, op. cit., p. 6.

521
~

Couro impuial

- como reprodutoras biológicas dos membros das coletividades na-


cionais;
- como reprodutoras das fronteiras dos grupos nacionais (por restri-
ções sobre relações sexuais ou maritais);
- como transmissoras ativas e produtoras da cultura nacional;
- como significantes simbólicos da diferença nacional;
- como participantes ativas d as lutas nacionais9 •
O nacionalismo é, assim, constituído desde o começo como um d is-
curso de gênero e não pode ser entendido sem uma teoria do poder do
gênero. Apesar disso, as teorias do nacionalismo mostram um duplo
desmentido. Se os teóricos masculinos são tipicamente indiferentes à
atribuição de gênero às nações, as análises feministas do nacionalismo
foram lamentavelmente poucas e escassas. As feministas brancas, espe-
cialmente, d emoraram a reconhecer o nacionalismo como um tópico
feminista. Na maior parte do feminismo ocidental, socialista, como ob-
servam Yuval-Davis e Anthias, "os temas da etnicidade e da nacionali-
dade tenderam a ser ignorados"'º.
Uma teoria feminista do nacionalismo, em termos estratégicos, de-
veria: (1) investigar a formação de gênero das teorias masculinas sancio-
nadas; (2) tornar historicamente visível a participação cultural e política
das mulheres nas formações nacionais; (J) colocar as instituições nacio-
nalistas numa relação crítica com outras estrururas sociais e instituições
e (4) prestar muita atenção às estrun1ras de poder racial, étnico e de
classe que continuam ã envenenar formas privilegiadas de femini smo.

A FAMÍLIA NACIONAL DO HOME l\11


Uma genealogia domé stica

Um paradoxo habita o centro da maior parte das narrativas nacionais.


As nações são frequentemente expressas pela iconografia do espaço do-

9. Nira Yuval-Davis e Floya Anthias (orgs.), Womm -Nation-State (Lo ndres: lVIacmillan,
P· 7·
1 989),

ro. Idem, op. cit. p. 1.

522
<.Adtus ao parafso futuro - $',(gtionalismo, glntro traça

méstico e familiar. O termo "nação" deriva de natio: nascer. Falamos das


nações como "mãe pátria" ou "'solo pátrio". Os estrangeiros "adotam" pa-
íses diferentes dos seus e se naturalizam na "'família" nacional. Falamos
da "Família das Nações", da "terra natal" e de "terras nativas". Na Ingla-
terra as questões de imigração são tratadas pelo Home Office [equiva-
lente ao Ministério do Interior] ; nos Estados Unidos, o presidente e sua
esposa são chamados de Primeira Família. \iVinnie Mandela era até há
pouco tempo, antes de cair cm desgraça, honrada como "l\llãe da Nação"
pela África do Sul. Desse modo, a despeito de sua miríade de diferenças,
as nações são simbolicamente expressas por genealogias domésticas. No
entanto, como argumentei nos capítulos anteriores deste livro, desde
meados do século XIX, pelo menos no Ocidente, a família ela mesma
tem sido vista como a antítese da história.
O tropo familiar é importante para o nacionalismo em pelo menos
dois aspectos. Primeiro, oferece uma figura "natural" para sancionar a
hierarquia nacio nal no âmbito de uma putativa unidade orgânica de in-
teresses. Segundo, oferece um tropo "natural" para expressar o tempo
nacional. Depois de 1859 e do advento do darwinismo social, a narrativa
nacional britânica emergente se estruturou cada vez mais em torno
-1!.
da imagem da Família evoluída do H omem. A familia ofereceu uma
figura metafórica indispensável através da qual as diferenças nacionais
pudessem ser definidas numa única gênese narrativa histórica. No en-
tanto, surgiu um curioso paradoxo. A família como metáfora oferecia
u1na única gênese narrativa para a história nacional enquanto que, ao
mesmo tempo, a família como instituirão foi ~svaziada de história e ex-
cluída do poder nacional.A família tornou-se, ao mesmo tempo, tanto a
.figura organizadora da história nacional quanto sua antítese.
No decorrer do século XIX, as funções sociais das grandes famílias de
funcionários do governo foram exibidas nas burocracias nacionais, en-
quanto a imagem da familia foi projetada nesses nacionalismos como
sua sombra, sua forma naturalizada. Uma vez que a subordinação da
mulher ao homem e da criança ao adulto era vista como um fato narural,
as hierarquias no interior da nação puderam ser expressas em termos
familiares para garantir a diferença social como uma categoria da natu-

52 3
Couro imperial

reza. A expressão metafórica da hierarquia social como natural e fami-


liar - a "famüia nacional", a "família das nações", global, a colônia como
"uma fan1ília de crianças negras comandada por um pai branco" - de-
pendia, assim, da naturalização anterior da subordinação social de mu-
lheres e crianças na esfera doméstica.
Na Europa moderna, a cidadania é a representação legal das relações
de uma pessoa com os direitos e recursos do Estado-nação. Mas a con-
cepção putativamente universalista da cidadania nacional se torna ins-
tável quando vista a partir da posição da mulher. Na Europa pós-Re-
volução Francesa, as mulheres foram diretamente incorporadas no
Estado-nação, não diretamente como cidadãs, mas apenas indireta-
mente, através dos homens, como membros dependentes da famüia no
direito privado e no direito público. O Código Napoleónico foi o pri-
meiro estatuto moderno a decretar que a nacionalidade da esposa de-
veria acompanhar a do marido, um exemplo que outros países europeus
seguiram rapidamente. A relação política das mulheres com a nação foi,
assim, submersa por uma relação social com um homem através do casa-
mento. Para as mulheres, a cidadania era mediada pela relação de casa-
mento no interior da familia. Este capítulo trata diretamente das conse-
quências para as mulheres dessa atribuição desigual de gênero da
cidadania nacional.

ATRIBUINDO GÊNERO AO
TEl'vtPO NACIONAL

Vários críticos seguiram Tom Nairn, que chamou a nação de "o Jano
moderno"u. Para Nairn,a nação se define como uma figura contraditória
do tempo: um rosto voltado para a névoa primordial do passado, o outro
voltado para um futuro infinito. Deniz Kandiyoti expressa com clareza
essa contradição temporal: "[O nacionalismo] apresenta-se tanto como
um pr(?jeto moderno que dissolve e transforma ligações tradicionais em
favor d e novas identidades, quanto como um reflexo dos autênticos va-

11. Tom N:tim, 1lu Brtak-upoJBritain (Londrc~: Ncw Lcft Books, 1977).
cAdtus ao paraíso futuro - ~cionali1mo, glntro t ra;a

lores culturais colhidos das profundezas de um passado comum presu-


midow12. Bhabha, seguindo Nairn e Anderson, escreve: "As nações, como
as narrativas, perdem suas origens nos mitos do tempo e apenas perce-
bem inteiramente seu horizonte com o olho da mente"'3• Bhabha e An-
derson tomam aqui emprestada a percepção crucial de Walter Benjamin
sobre o paradoxo temporal da modernidade. Para Benjamin, uma carac-
terística central do capitalismo industrial do século XIX era "o uso de
imagens arcaicas para identificar o que era h istoricamente novo sobre a
'natureza' das mercadorias"'•. Na percepção de Benjamin, o mapeamento
do Progresso depende da invenção sistemátic~ de imagens de tempos
arcaicos para identificar o que é historicamente novo a respeito do pro-
gresso nacional iluminista. Anderson, assim, pode perguntar: "E se su-
pusermos que a 'Antiguidade' foi, numa certa conjuntura histórica, a
consequência necessária da 'novidade'?"'S.
O que é menos frequentemente observado, no entanto, é que a ano-
malia temporal no interior do nacionalismo - oscilando entre a nostal-
gia pelo passado e o descarte impaciente, progressivo, do passado - é
tipicamente resolvida pela expressão da contradição na representação do
tempo como uma divisão natural de gênero. As mulheres são representa-
das como o corp0 atávico e autêntico da tradição nacional (inertes, com
os olhos voltados para trás e naturais), encarnando o princípio conser-
vador de continuidade do nacionalismo. Os homens, por contrnste, re-
presentam o agente progressista da modernidade nacional (olhando
para frente, potentes e históricos), encarnando o princípio, progressista
ou revolucionário, de descontinuidade do nacionalismo. A relação anô-
f: mala do nacionalismo com o tempo é, assim, tratada como uma relação
natural com o gênero.
f

1
t 11. Dcni:z; K:mdyoti, ~ldcntity and lts Discontcnts: \Vomcn and thc Nation", Milltnnium:
r• foumal ofl nt=ational Studiu, to, J (1991), p. 431.

í 13. H omi K. Bhabha (org.), Nation and Narration (Londres: Roudcdgc, 1991), p. 1.
14. Susan Buck-Morss, 'Iht Dialutis ofSuing: m,lur Bmjamin and tht /lr,adu Proj,u (C:irn-
bridgc: MIT Prcss, 1990), p. 67.

1 15. Idem, op. cit., p. xiv.


Couro imptrial

No século XIX, os evolucionistas sociais secularizaram o tempo e o


puseram à disposição do projeto nacional, imperial. O eixo do tempo,
como argumento mais detalhadamente no capítulo 1, foi projetado sobre
o eixo do espaço, e a história tornou-se global. Assim, não apenas o es-
paço natural, mas também o tempo histórico foram coletados, medidos
e mapeados numa ciência global das superficies. No processo, a história,
especialmente a história n acional e imperial, assumiu o caráter de es-
petáculo.
A secularização do tempo tem uma tripla significação para o naciona-
lismo. Primeiro, expressa na Árvore da Família global evoluída, a descon-
tinuidade entre as nações do mundo adquiriu uma aparência ordenada
no interior de uma única narrativa originária, europeia e hierárquica.
Segundo, a história nacional é vista como naturalmente teleológica, um
processo orgânico de crescimento para cima,com a nação europeia como
apogeu do progresso do mundo. Terceiro, as descontinuidades inconve-
nientes são ordenadas e subordinadas numa estrutura hierárquica do
tempo ramificada - o progresso de nações "racialmente" diferentes ma-
peado nos ramos da árvore, con1 as "nações menos importantes", desti-
nadas, pela natureza, a ficar penduradas nos galhos mais baixos.
O tempo nacional é, assim, não apenas reculariz.ado, ele é também
domesticado. O evolucionismo social e a antropologia deram à política
nacional um conc~ito de tempo natural como familiar. Na imagem da
Árvore d a Família, o progresso da evolução foi representado como
uma série de tipos de famüia anatomicamente distintos, organizados
numa procissão linear, desde a "infância" das raças "primitivas" até a "ida-
de adulta" iluminista do nacionalismo imperial europeu. Mudanças
nacionais violentas assumem o caráter de um espetáculo evoluindo sob
a rubrica organizadora da família. A fusão da árvore racial evolucionária
com a família com gênero na Árvore da Família do I-lomem ofereceu ao
racismo científico uma imagem simultaneamente racial e de gênero, atra-
vés da qual ele podia popularizar a ideia de progresso nacional linear.
A emergente narrativa nacional britânica deu gênero ao tempo defi-
nindo as mulheres (assim como os colonizados e a classe trabalhadora)
como inerentemente atávicas - repositório conservador do arcaísn10
c.Adtus ao paraíso futuro - :J(gcionalismo, glnuo t ra;a

nacional. As mulheres não eram vistas como parte da história, mas, tal
qual os povos colonizados, como parte de um tempo permanentemente
anterior no â.m bito da nação moderna. Os homens brancos, de classe
média, ao contrário, eram vistos como a corporificação de agentes avan-
çados do progresso nacional. Assim, a imagem da nacional Família do
Homem revela um persistente paradoxo. O progresso nacional (con-
vencionalmente o domínio inventado do espaço público masculino) era
expresso como familiar, ao passo que a própria família (convencional-
mente o domínio do privado, do espaço feminino) era vista como além
da história.
Podemos dizer, a esta altura, que uma narrativa única da nação segu-
ramente não existe. Grupos diferentes (gêneros, classes, etnias, gerações
e assim por diante) não vivem a miríade de formações nacionais da mes-
ma maneira. Os nacionalismos são inventados, representados e con-
sumidos cm modos que não seguem um modelo universal. A negação
claramente curocêntrica dos nacionalismos do Terceiro Mundo, feita
por Hobsbawm, merece pelo menos urna crítica continuada. Num gesto
de deslavada condescendência, Hobsbawm denomina a Europa corno o
"lar original" do nacionalismo, ao passo que "todos os movimentos anti-
imperialistas de alguma significação" são jogados sem cerimônia em três
categorias: mímica da Europa, xenofobia antiocidental e "talento natu-
ral das tribos guerreiras"16• À guisa de contraste, pode ser útil voltar a
esta altura à análise bem diferente, ainda que problemática, de Frantz
Fanon sobre gênero e a formação nacional.

FANON E A ATUAÇÃO DE GÊNERO

No que diz respeito aos teóricos masculinos do nacionalismo, Fanon é


exemplar, não apenas por reconhecer o gênero como uma dimensão for-
mativa do nacionalismo, mas também por reconhecer - e imediata-
mente rechaçar - a metáfora ocidental da nação como uma família.
"Existem conexões íntimas", diz ele em Black Skin, J,Vhite Masks [Pele

16. Hobsbawm, Nations and Na/ionalism ... , p. 151.


Couro imperial

negra, máscaras brancas], "entre a estrutura da família e a estrutura da


nação"'7• Recusando, no entanto, ser conivente com a noção da metáfora
familiar como natural e normativa, Fanon, ao invés disso, a entende
como uma projeção cultural ("as características da família são projetadas
no meio social") que tem consequências muito diferentes para famílias
situadas de maneira discrepante na hierarquia colonial's. "Uma criança
negra normal, tendo sido criada por uma fam ília normal, se tornará
anormal ao menor contato com o mundo dos brancos"'9 •
O desafio da percepção de Fanon tem três aspectos. Ele põe radical-
mente ern questão a naturalização do nacionalismo como uma genealo-
gia doméstica. Ao mesmo tempo, ele vê a normalidade familiar como
um produto do poder social - de fato, da violência social. É notável
como Fanon reconhece, nesse texto inicial, como a violência militar e a
autoridade de um Estado ct:ntralizado se aproveitam da domesticação
do poder de gênero na família e a ampliam: "A militarização e a centra-
lização da autoridade num país automaticamente provocam o ressurgi-
mento da autoridade do ptli"'º.
Talvez uma das ideias mais provocativas de Fanon seja sua contesta-
ção de qualquer relação fácil de identidade entre a psicodinâmica do
inconsciente e a psicodinâmica da vida política. A audácia de sua per-
cepção é o que permite que nos perguntemos se a psicodinâmica do
poder colonial e da subversão anticolonial pode ser interpretada através
do uso (sem mediações) dos mesmos conceitos e técnicas usadas para
interpretar a psicodinâmica do inconsciente. Se a família não é uma
"miniatura da nação", são as projeções metafóricas da vida familiar (di-
gamos, a "Lei do Pai", de Lacan) adequadas para compreender o poder •
colonial e anticolonial? O próprio Fanon parece responder que não. As
relações entre o inconsciente individual e a vida política não podem ser,
argumento eu, nem separadas uma da outra, nem reduzidas uma à outra.

17. Frantz Fanon, Blark Skin, White Nla1ks (Londres: Pluto Prcss, 1986), p. 141.
r8. ldcm, op. cit., p. 142.
19. Idem, op. cit., p. 143.
20. Idem, op. cit., pp. 141-3.
e.Adeus ao paralso futu ro - :J(scionalismo, gtnuo e ra;a

Elas, ao contrário, incluem cruzamentos e mediações dinâmicos, trans-


formando cada uma delas, reciprocamente e de maneira não linear, e não
duplicando uma relação de analogia estrutural.
M esmo cm Pele negra, máscaras brancas, o texto mais psicológico de
Fanon, ele insiste cm que a alienação racial é um "processo duplo"".
Primeiro, ele "implica um reconhecimento imediato das realidades so-
ciais e econômicas". Depois, implica a "internalização" da inferioridade.
Em outras palavras, a alienação racial não é apenas "uma questão indi-
vidual", mas envolve também o que Fanon chama de "sóc:io-diagnósti-
cd'11. Reduzir Fanon a uma pura psicanálise formal, ou a um puro mar-
xismo estrutural, arrisca deixar de lado precisamente as tensões
sugestivas (JUC animam, a meu ver, os elementos mais subversivos de seu
trabalho. Em nenhum lugar essas tensões estão mais presentes do que
na sua tentativa de exploração das relações de gênero com a atuação
nacional.
1 Gênero percorre o trabalho de Fanon como uma fissura múltipla,
l
~ dividindo e deslocando o "delírio maniqueísta" ao qual ele retorna repe-
t
~ tidamente. Para Fanon, o conflito colonial parece, à primeira vista, ser
t. profundamente maniqueísta. Em Peles negras, máscaras brancas, ele vê o
espaço colonial "dividido em dois campos: o branco e o negro" 23• O!,iase
uma década mais tarde, escrevendo sobre o cadinho da resistência arge-
lina, em The Wretched ofthe Earth [ Os condenados da Terra], Fanon mais
uma vez vê o nacionalismo anticolonial nascendo do violento mani-
queísmo de um mundo colonial "partido em dois", suas fronteiras ocu-
padas por acampamentos militares e delegacias de policia'~. O espaço
colonial é divi<lido por uma geografia patológica do poder, separando a
cidadela iluminada e bem alimentada dos colonizadores da casbah fa-
minta e entulhada: "Este inundo [ ...] cortado ao meio é habitado por

21. Idem, op. cit., p. 13.


:2. Ibidem.
23. Idem, op. cit., p. 10.
24. F:i.non, 1lu Wretched ofthe Earth, p.19.

{
Couro impuial

..
duas espécies diferentes"15 • Como comenta Edward Said: "Todo o tra-
balho de Fanon deriva dessa observação maniqueísta e fisicamente situ-
ada, posta em marcha, por assim dizer, pela violência dos nativos, uma
força que pretendia cruzar a barreira entre brancos e não brancos"16 • No
entanto o decisivo (hiaroscuro da raça é, cm quase todos os aspectos,
posto cm questão pelos cruzamentos de gênero.
O conflito maniqueísta de Fanon parece, à primeira vista, ser funda-
mentalmente masculino: "Não pode haver dúvida de que o Outro real
para o homem branco é e continuará a ser o homem negro". Como es-
creve H omi Bhabha: "O desejo colonial é articulado sempre em relação
ao lugar do Outro'' 17• M as as angustiadas reflexões de Fanon sobre raça
e sexualidade mostram que "o desejo colonial" não é o mesmo para ho-
mens e mulheres: "Uma vez que ele é o senhor, e mais simplesmente o
macho, o homem branco pode permitir-se a luxúria de dormir com
qualquer mulher [ ...] M as, quando uma mulher branca aceita um ho-
mem negro, automaticamente surge um aspecto romântico. Trata-se de
dar, não de se apropriar"18• Deixando de lado, por ora, a cumplicidade
de Fanon com o estereótipo da mulher, mais romântica do que sexual-
mente inclinada, dando ao invés de receber, Fanon abre a discussão da
raça para a problemática da sexualidade, que revela emaranhados mais
intrincados do que uma mera duplicação do "Outro do Eu". O mani-
queísmo psicológico de Pele negra, más(araJ bran(as, e o maniqueísmo
mais político de Os (ondenados da Terra são persistentemente torcidos
por gênero de tal maneira a destruir radicalmente a dialética binária.
Para Fanon, a inveja do homem negro toma a forma de uma fantasia
de deslocamento territorial: "A fantasia do nativo é precisamente ocupar
o lugar do senhor" 19• Essa fantasia pode ser chamada de uma política de
substituição. Fanon sabe, no entanto, que a relação com a mulher branca

25. Idem, op. cit., p. 30.


26. Edward Said, Culture and lmperialism (Londres: Chatto and \Vindus, 1993), p. 326.
27. Bhabha, "Introdução a Fanon", Bla,l: Sl,;in, White l\llasl:s, p. i.-,:.
28. Fanon, Bla,k Skin, White M a.riu, p. 46.
29. Idem, op. cit., p. 46.

53º
e.Adeus ao paraíso futuro - J\(erionalismo, glnero e rafa

é muito diferente: "Qyando minhas mãos inquietas acariciam esses seios


brancos, elas pegam a civilização e a dignidade brancas e as tornam mi-
nhas"3º. A mulher branca é apanhada, possuída e mantida, não como um
ato de substituifão, rnas con10 um ato de apropriafáo. Fanon, no entanto,
não faz uma elaboração explícita dessa distinção crítica entre uma polí-
tica de substituição e uma política de apropriação, numa teoria do poder
de gênero.
Como Bhabha observa asrutamente, Pele negra, máscaras brancas,
de Fanon, está repleto da "pressão palpável da divisão e do deslocamen-
to" - embora gênero seja uma forma de divisão do eu que o próprio
Bhabha se recusa a cxplorar3'. Bhabha quer que acreditemos que "o uso
por Fanon da palavra 'homem' cm geral conota uma qualidade fenome-
.• nológica da humanidade, incluindo homens e mulheres"J>. Mas essa
' afirmação não encontra respaldo nos textos de Fanon. Tennos virtual-
mente genen ,. cos como "o negro" ou "o nativo . ,, - s1ntat1camente
. . -
nao
marcados por gênero - são quase sempre imediatamente marcados
contextualmente como masculinos: "As pessoas às vezes se espantam
com o fato de que o nativo, em vez de dar um vestido à esposa, compra
um rádio transistor"33; "[...] o negro que quer ir para a cama com uma
branca"34; " [ ••• ] o negro que é visto como símbolo do pênis"35. A categoria
genérica "nativo" não inclui as mulheres; as mulheres são meramente pos-
suídas pelos nativos como um apêndice: "Qyando o nativo é torturado,
quando sua esposa é morta ou estuprada, ele não se queixa a ninguém"36 .
Para Fanon, os homens colonizados habitam "dois lugares ao mesmo
tempo". Se é assim, quantos lugares as mulheres colonizadas habitam?
Certamente, o texto de Bhabha não é um deles. Exceto por uma apari-

30. Idem, op. cit., p. 63.


31. Bhabha, •i ntrodução a Fanon", p. ix.
32, Idem, op. cit. p. xxvi.
33. Fanon, Bta,k Ski,1, White 1\1asb, p. 81.
34. Idem, op. cit., p. 16.
35. Idem, op. cit., p. 159.
36. Idem, op. cit., p. 92.

53 1
•.

Couro imptrial

ção rápida em um parágrafo, as mulheres perseguem a análise de Bha-


bha como sombras excluídas - adiadas, deslocadas, e deslembradas.
Bhabha conclui sua meditação eloquente sobre Fanon com a questão
geral: "Como o mundo humano pode viver a sua diferença? Como pode
um ser humano viver como Outro?"17• No entanto, logo em seguida a
seu prólogo aparece uma nota peculiar. Nela, Bhabha anuncia, sem se
desculpar, que "a questão crucial" das mulheres de cor "vai muito além
do escopo" d e seu prólogo. No entanto, seu escopo, como ele mesmo
insiste, é delimitado pela questão da humanidade: "Como o mundo hu-
mano pode viver a sua diferença? Como pode um ser humano viver
como Outro?". Aparentemente, a questão da mulher negra está além da
questão da diferença humana, e Bhabha se contenta simplesmente em
"notar a importância do problema" e deixar isso como está. A nota tar-
dia de Bhabha sobre gênero aparece depois de sua assinarura autoral,
depois da data desse ensaio, fora da teoria. Se, de fato, "a questão da
urgência é também um estado de emergência", fica a questão sobre se o
estado nacional de urgência é também um estado de emergência para
as mulheres 38 •
Colocar "a questão do sujeito" ("O que quer um homem? O que quer
um homem negro?"), ao mesmo tempo adiando uma teoria de gênero,
supõe que a subjetividade é neutra cm relação a gênerol9 • Do limbo do
pensamento masculino a po1teriori, no entanto, o gênero retorna para
desafiar a questão masculina, não como "falta" femi nina, mas como esse
excesso que o "outro" masculino do Eu não pode admitir nem comple-
tamente eliminar. Ess:i suposição talvez seja mais evidente nas notáveis
meditações de Fanon sobre gênero na revolução nacional.
Pelo menos dois conceitos sobre os agentes nacionais e sua aruação
moldam a visão de Fanon. Seu projeto anticolonial está dividido entre
uma visão hegeliana do colonizador e do colonizado presos num confli-
to de vida ou morte e uma visão mais complexa e instável sobre os agen-

37. Bhabha, ~Introdução a Fanon". p. n,·.


38. Idem, op. cit. p. xi.
39. Ibidem.

53 2
cAdeus ao para(so futuro - :;J\(Ecionalismo, giMro t ra;a

tes e sua atuação. E sses paradigmas se friccionam uns contra os outros


em seu trabalho, fazendo com que surjam inúmeras fissuras internas.
Essas fissuras aparecem mais visivelmente na sua análise de gênero como
uma categoria do poder social.
Por um lado, Fanon se inspira numa metafisica hegeliana do agente
herdada, principalmente, de Jean-Paul Sartre e da acade,nia francesa.
Nessa visão, o nacionalismo anticolonial irrompe violenta e irrevoga-
velmente na história como contrapartida lógica do poder colonial. Esse
nacionalismo é, como diz Edward Said, "cadenciado e tensionado do
começo ao fim pelas ênfases e inflexões da liberação"•º. É uma liberação,
além disso, estruturalmente garantida, imanente à lógica binária da dia-
lética maniqueísta. Tal metafísica, como bem diz Terry Eagleton, fala
sobre "a completa autorrealização de um sujeito unitário conhecido
como o povo"''. Não obstante, os agentes nacionais privilegiados são
homens urbanos, de vanguarda, e violentos. A natureza progressiva da
violência é preordenada e sancionada pela lógica estrutural d o progresso
hegeliano.
Esse tipo de nacionalismo pode ser chamado de nacionalismo anteci-
patório. Eagleton o chama de nacionalismo "no modo subjuntivo", uma
utopia prematura que "se apega instintivamente a um futuro, projetan-
i do-se por um ato de vontade ou de imaginação para além das estruturas
políticas de compromisso do presente"''. N o entanto, ironicamente, o
nacionalismo anteeipatório frequentemente alega legitimidade apelan-
1 do justamente para a augusta figura do progresso inevitável, herdada das
!
sociedades ocidentais que quer desmantelar.
:
f, Juntamente com esse nacionalismo maniqueísta, mecânico, surge,
tl no entanto, uma visão mais aberta e estrategicamente difícil sobre os
agentes nacionais. Esse nacionalismo não provém do maquinário ine-
f

l 40. Said, Cultur, and lmptrialism, p. 89.


41. Terry E agleton, "Nationalism, lrony and Commitmcnt~, in Tcrrry Eaglcton, Frcdric
Jameson e Edward Said, Naliong/um, Colonialúm and Liltratur, {i'vlinncapolis, Univcr-
sity ofMi nncsota Prcss, 1990), p. 18.
42. Jdcm, op. cit., p. 25.

533
,:

Couro impuial

xorável da dialética hegeliana, mas das circunstâncias confusas e não


normativas do ativismo do próprio Fanon, tanto como das lições fre-
quentemente desencorajadoras das revoluções anticoloniais que o pre-
cederam. Desse ponto de vista, os agentes são múltiplos, e não unitá-
rios, imprevisíveis, e não imanentes, privados de garantias dialéticas e
animados por uma relação instável e não linear com o tempo. Não há
um encontro marcado, previsto, com a vitória; não há um único sujeito
nacional indivisível; nenhuma lógica histórica imanente. O projeto na-
cional deve ser laboriosamente e, às vezes, catastroficamente, inventado,
com resultados imprevisíveis. O tempo é disperso e os agentes são he-
terogêneos. Aqui, nos interstícios instáveis e escorregadios entre narra-
tivas nacionais conflituosas, as mulheres como agentes nacionais sur-
gem de maneira incerta.
Em A/geria Unveiled [A.Argélia se desvela], Fanon imita rctorica-
mente - apenas para refutar - o antigo sonho de conquista colonial
do Ocidente como uma erótica do estupro. Perante as alucinações do
império, a mulher argelina é vista como a carne viva do corpo nacional,
desvelada e exposta ao ataque lascivo do homem colonial, revelando
"peça por peça, a carne exposta da Argélia"43• Nesse ensaio notável,
Fanon reconhece a atribuição colonial de gênero às mulheres como me-
diadoras simbólicas, as marcadoras de fronteiras de um conflito que é
fundamentalmente masculino. A mulher argelina é "uma intermediária
entre forças obscuras e o grupo"44 • A jovem mulher argelina[... ] estabe-
lece um vínculo", éséreve ele•s.
Fanon entende, de maneira brilhante, como o colonialismo impõe a
si mesmo uma domesticafáO da colônia, reordenando o trabalho e a eco-
nomia sexual do povo, de modo a desviar o poder das mulheres para as
mãos coloniais e romper o poder patriarcal do homem colonizado. Fa-
non imita retoricamente o pensamento colonial: "Se queremos destruir

43. Fr:intt Fanon, "Algeria Unveiled", in A Dying Coloninlism. Trad. Haakon Chevalier
{Nova York: Groovc Press, 1965), p. .µ.
44. Idem, op. cit., p. 37.
45. Idem. op. cir.• p. SJ•

534
c.Ãdtus ao para(so futuro -:J(gcionalismo, g~ntro t raça

a estrutura da sociedade argelina, sua capacidade de resistência, devemos


conquistar primeiro as mulheres"~6 • Sua percepção aqui é que a dinâmi-
ca do poder colonial é fundamentalmente, ainda que não só, a dinâmica
do gênero. "Foi, assim, a situação da mulher que foi tomada como tema
de ação"• 7• No entanto, no seu trabalho como um todo, Fanon não con-
seguiu pôr essas percepções num foco teórico.
~ l uito antes de Andcrson, Fanon reconheceu que as comunidades
nacionais são inventadas. Ele também reconheceu o poder do naciona-
lismo como uma poütica visual, mais visivelmente corporificada no po-
der de os costumes suntuários fabricarem um sentido de unidade nacio-
nal: "É primeiro por seus adornos que os tipos sociais se tornam
conhecidos"~8 • Além disso, F anon percebe que o nacionalismo, como
uma política de visibilidade, tem implicações diferentes para homens e
mulheres. Já que, para os nacionalistas homens, as mulheres servem de
marcas visíveis da homogeneidade nacional, elas estão sujeitas a uma
disciplina especialmente vigilante e violenta. D aí a intensa e emotiva
política das roupas.
No entanto, uma curiosa ruptura surge no texto de Fanon em relação
à questão da atuação das mulheres. Inicialmente, Fanon reconhece o
sentido histórico do véu, sujeito a mudanças e subversões mais sutis. O s
colonialistas tentaram, desde o começo, atribuir traição à atuação das
mulheres argelinas, fingindo resgatá-las do controle sádico dos homens
argelinos. Mas, como Fanon sabe, a farsa colonial de dar poder às mu-
lheres, tirando-lhes o véu, era meramente um ardil para obter "poder real
sobre os homens"49 • Mimetizando a farsa colonial, as mulheres argelinas
militantes começaram a tirar o véu deliberadamente. Acreditando em
seu próprio ardil, os colonialistas a princípio interpretaram mal as mu-
lheres argelinas sem véu, tomando-as como peças "monetárias" circulan-
do entre a rasbah e a cidade branca, vendo nelas a cunhagem visível da

46. Idem, op. cit., pp. 37-8.


47. Idem, op. cit., p. 38.
48. Idem, op. cit., p. 35.
49. Idem, op. cit., p. 39.

535
Couro imptrial

conversão cultural50• Para os Fidai, porém, as mulheres militantes eram


"seu arsenal", uma técnica de contrainfiltração e duplicidade para pe-
netrar no corpo do inimigo com as armas da morte.
Fanon está tão ansioso por negar a fantasia colonial, que ele se recu-
sa a atribuir qualquer papel anterior ao véu na dinâmica de gênero da
sociedade argelina. Tendo recusado o desejo colonial de investir o véu de
um sentido essencialista (signo da servidão das mulheres), ele precisa
fazer uma ginástica verbal para insistir na inocência semiótica do véu na
sociedade argelina. O véu, escreve ele, era "anteriormente apenas um
1i
elemento inerte da configuração cultural nativa"5'. O véu perde de re- r
pente sua mutabilidade histórica e se torna um elemento "inerte", fixo,
na cultura argelina: "um elemento indiferenciado num todo homogê-
neo"s•. Fanon nega "o dinamismo histórico do véu" e bane sua intrincada ..t
história para um pé de página, de onde, no entanto, ele desloca o texto
principal com a força insistente da autodivisão e da negação53•
As ideias de Fanon a respeito da an1ação das mulheres se expressam
através de uma série de contradições. Onde começa a atuação das mu-
lheres para Fanon? Ele se esforça para mostrar que a militância das
mulheres não precedeu a revolução nacional. As mulheres argelinas não
são agentes automotivados, nem têm histórias ou revoltas anteriores em
que se inspirar. Sua iniciação na revolução é aprendida, mas não é apren-
dida com outras mulheres ou com outras sociedades, nem é transferida
de maneira análoga à das queixas feministas locais. A missão revolucio-
nária "não tem apreiidizado nem cartilha"H. A mulher argelina aprende
"sua missão revolucionária instintivamcnte"SS. Esta não é, no entanto,
uma teoria da espontaneidade feminina, já que as mulheres aprendem
sua militância apenas a convite dos homens. Antes do levante nacional,

t
50. Idem, op. cit., p. 42.
51. Idem, op. cit., p. 46.
5i. Idem, op. cit., p. 47. ,
53· Idem, op. cit., p. 63.
54· Idem, op. cit., p. 50.
55· Ibidem.

536
cAdtus ao paraúo futuro - :Jl&cionalismo, glntro, ra;a
•1
!
1
( a atuação das mulheres era nula, vazia, inerte, como o véu. Aqui, Fanon
t tropeça não apenas no estereótipo das mulheres como privadas de mo-
t
1
: tivação histórica, mas também recorre, de maneira não característica
nele, a uma imagem reprodutiva do nascimento natural: "É um autênti-
co nascimento em estado puro"S 6 •
f Por que as mulheres foram convidadas a participar da revolução?
t
Fanon recorre de pronto ao determinismo mecânico. A ferocidade da
I
r guerra era tamanha, a urgência tão grande, que a pura necessidade estru-

i. tural abstrata ditou esse movimento: "A engrenagem revolucionária ti-
r
i nha assumido grandes proporções; o mecanismo estava girando veloz-
f mente. A máquina tinha de ser afetada"S 7• A militância feminina, em
' suma, é apenas um subproduto da atuação masculina e da necessidade
1
estrutural da guerra. O problema da atuação das mulheres, levantado de
f
~
modo tão brilhante como uma questão, é abruptamente encerrado.
Assim, para Fanon, a atuação das mulheres se dá por designação. Ela
aparece, não como uma relação política direta com a revolução, mas
como uma relação mediada, domesticada, com um homem: "De início,
as mulheres casadas foram contatadas. l\llais tarde, viúvas ou mulheres
divorciadas foram dcsignadas"ss. A relação primária das mulheres com a
revolução é definida como doméstica. Mas a domesticidade, aqui, tam-
bém constitui uma relação de posse. O militante, no começo, era obriga-
do a manter "sua mulher" em "completa ignorância"59• Como agentes
designadas, além disso, as mulheres não se comprometiam: "É relativa-
rnentc fácil comprometer-se [...] A questão é um pouco mais difícil
quando se trata de designar alguém"60• Fanon não considera a possibili-
dade de as mulheres se comprometerem com a ação. Ele lida, assim, com
a atuação das mulheres recorrendo a quadros contraditórios: o nasci-
mento autêntico e instintivo do fervor nacionalista; a lógica mecânica da

56. Ibidem.
57. Idem, op. cit., p. 48.
58. Idem, op. cit., p. 51.
59. Idem, op. cit., p. 48.
60. Idem, op. cit., p, 49.

537
-~
Couro imp,ria/

necessidade revolucionária; a designação masculina. Desse modo, a pos-


sibilidade da atuação feminina autônoma nunca é levantada.
Depois de ter contido a militância feminina desse modo, Fanon
aplaude as mulheres pela sua "constância, autocontrole e sucesso exem-
plares"61. Apesar disso, sua descrição das mulheres está cheia de símiles
e metáforas instrumentais. As mulheres não são mulheres, são "peixe";
elas são "o farol e o barômetro do grupo", as "mulheres-arsenal" dos
Fidai61 • De maneira reveladora, Fanon recorre a uma imagem curiosa-
mente erotizada da sexualidade militarizada. Levando as pistolas, armas
e granadas dos homens sob suas saias, "a mulher argelina penetra mais
fundo na carne da revolução" 6J. A mulher argelina, aqui, não é uma ví-
tima de estupro, mas uma estupradora masculinizada. Como se, p ara
conter a ameaça de emasculação das mulheres armadas - em seu peri-
goso cruzamento - , Fanon masculinizasse a militante feminina, trans-
formando-a num substituto fálico, destacado do corpo masculino, mas
p ermanecendo, ainda, como a "mulher-arsenal" do homem. E, mais re-
velador ainda, Fanon descreve a mulher fálica penetrando na carne da
"revolução", não na carne dos coloniais. Essa estranha imagem sugere
um medo irrefreável da emasculação, uma ameaça de que as mulheres
armadas pudessem representar uma emasculação fatal dos homens arge-
linos. Uma curiosa instabilidade do poder de gênero é efetuada aqui,
quando as mulheres são figuradas como masculinizadas e a revolução
masculina é penetrada.
A visão de Fanori do papel político da família argelina no levante
nacional, analogamente, se expressa através da contradição. Tendo mos-
trado, de maneira brilhante, como a família constitui o primeiro terreno
do ataque colonial, Fanon tenta reapropriar-se dele como uma arena de
resistência nacionalista. No entanto, as implicações mais amplas da poli-
tização da vida familiar são resolutamente naturalizadas depois da revo-
lução. Tendo reconhecido que as mulheres "constituíram durante muito

61. Idem, op. cit., p. 54.


6i. Idem, op. ci1., pp. 54, 58.
63. Idem, op. e i1., p. s~-

538
vfdtus ao paraíso futuro - :Jt<:Ecionalismo, glntro t ra;a

tempo a força fundamental dos ocupados", Fanon reluta em reconhecer


qualquer conflito de gênero ou queixa feminista no interior da família
antes da luta anticolonial, ou depois da revolução nacional4 . Ainda que
ele admita que, por um lado, "na família argelina, a menina está sempre
um passo atrás do menino", ele rapidamente insiste que ela é colocada
nessa posição "sem ser humilhada ou negligenciada"65• Embora as pala-
vras masculinas sejam a "Lei", as mulheres submetem-se "voluntaria-
mente" a "uma forma de existênc:i:i. limitada em seu alcance"66•
A revolução abalou "a velha segurança paterna", de modo que o pai
não sabe mais "como manter seu equilíbrio", e a mulher "dei..xou de ser
l um complemento para o homem"67• É notável, além disso, que cm sua
t análise da família, a categoria "mãe" não exista. A liberação das mulheres
f.' é inteiramente creditada à liberação nacional e é apenas no âmbito do
nacionalismo que as mulheres "entram na história". Anteriormente ao
nacionalismo, as mulheres não tinham história, não tinham resistência,
não tinham atuação independente68 • E,já que a revolução nacional auto-
maticamente revolucionou a família, o conflito de gênero naturalmente
desaparece depois da revolução. A atuação feminista, então, é contida
pela atuação nacional e subordinada a ela, e a familia heterossexual é
preservada como a "verdade" da sociedade - sua forma orgânica e au-
têntica. A familia passa por uma revolução, elevada a um alto plano
através de uma visão hegeliana da transcendência, mas a força de rup-
tura do gênero é firmemente contida: "A família emergiu reforçada dessa
prova"69 • A militância das mulheres é contida na moldura pós-revolu-
cionária da familia reformada e heterossexual, como a imagem natural
da vida nacional.

Ó4· Idem, op. cit., p. 66.


65. Idem , op. ci1., p. 105.
66. Idem, op. ci1., p. 66.
67. Idem, op. cil., p. 109.
68. Idem, op. ci1.• p. 107.
69. Idem, op. c.i t., p. 116.

539
Couro imperial

No período pós- revolucionário, além disso, a tenacidade "da autori-


dade inquestionável e maciça "do pai não é colocada como uma das
"ciladas" da consciência nacionaliO. A dialética maniqueísta - como ge-
radora de uma atuação inercntemente resistente - parece não se aplicar
a gênero. Profundamente relutante corno ele parece ser em perceber a
atuação das mulheres à parte da atuação nacional, Fanon não prevê o
grau de cooptação e controle das mulheres, empreendido pela FLN
(Frente de Libertação Nacional), que as tornaria inequivocamente su-
bordinadas depois da vitória da revolução.
Uma pesquisa feminista sobre a diferença nacional, por contraste,
levaria cm conta a dinâmica social e o contexto histórico das lutas nacio-
nais; sua mobilização estratégica de forças populares; suas inúmeras e
variadas trajetórias; e sua relação com outras instituições sociais. Faría-
mos bem em desenvolver uma genealogia, teoricamente mais complexa
e estrategicamente mais sutil, dos nacionalismos.
Com essas observações teóricas em mente, volto-me agora para as
relações paradoxais entre as construções inventada, da família e da nação
e cm como elas se definiram na África do Sul, nas relações contraditórias,
tanto das mulheres brancas quanto das negras, com as genealogias na-
cionais em competição. Na África do Sul, certamente, os nacionalismos
africâncr e africano em competição tiveram trajetórias distintas e sobre-
postas, com consequências muito diferentes para as mulheres.

o · NACIONALISMO COMO
ESPETÁCULO FETICHISTA

Até 1860, a Inglaterra tinha pouco interesse por sua colônia não promis-
sora da ponta sul da África. Apenas a partir d a descoberta dos diaman-
tes (1867) e do ouro (1886) a Unionjack [a bandeira inglesa] e os casacos
vermelhos [soldados ingleses] foram enviados para lá com algum senti-
do real de missão imperial. Mas, rapidamente, as necessidades das minas
por trabalho ~arato e um Estado centralizador colidiram com os inte-

70. Idem, op. cit., p. 115.


c/{deus ao paraíso futuro - ~(ionalismo, glntro , raça

resses tradicionais dos fazendeiros e no meio dessas contradições, no


conflito para controlar a terra e o trabalho africanos, explodiu a guerra
anglo-bôer entre 1899 e 1902.
O nacionalismo africàner era uma doutrina de crise. Depois de sua
derrota pelos ingleses, os sangrentos remanescentes das dispersas comu-
nidades bôeres tiveram de forjar uma nova contraculrura, se quisessem
sobreviver no Estado capitalista emergente. Desde o começo, essa con-
tracultura tinha um claro componente de classe. Qyando os generais
bôeres e os capitalistas britâ1ücos juraram irmandade de sangue na
União de 1910, a legião de "brancos pobres" maltrapilhos, com pouca ou
nenhuma perspectiva, os modestos empregados de escritório e do co-
mércio, pequenos fazendeiros e professores pobres, os intelectuais e a
pequena burguesia, todos precários no novo Estado, começaram a iden-
tificar a si mesmos como a vanguarda de um novo reino africâner, os
emissários escolhidos de um povo nacionali'.
No entanto, os africâneres não tinham uma identidade monolítica,
para começar, nenhum objetivo histórico, e nenhuma linguagem unifi-
cada. Eles eram um povo desunido, disperso, falando uma mistura de
holandês e dialetos locais, entremeados pelas línguas de escravos nguni
e khoisan - desprezada como k.ombuistaal (linguagem da cozinha) dos
empregados domésticos, escravos e mulheres. Assim, os africâneres tive-
ram, literalmente, de inventar a si mesmos. A nova comunidade in-
ventada do povo requeria a criação consciente de um idioma único, im-
presso, de uma imprensa popular e de uma literatura para o povo. Ao
mesmo tempo, a invenção da tradição requeria uma classe de interme-
diários culturais e de criadores de imagens para criar a invenção. O "mo-
vimento linguístico" do início do século XX, uma en."Cllrrada de poemas,
revistas, jornais, novelas e inúmeros eventos culturais, providenciou tal

71. Par.i relatos sobre a constituição da sociedade afridncr, ver Dunbar T. Moodic, 1he Riu
ofAfrilumerdom: Power, Aparthtid, and the Afrikaner Civil &ligion (Berkeley: Univcrsity
of Califomia Press, 1975), e Dan O' McMa, Vo/1.uapitalilme: Class, Capi1al and ldtology in
the Dewlopmml ofAfriianer NationaliJm 1934-19,tS (Cambrigc: Cambridge Univcrsity
Press, 1983).

1
1
Couro imperial

invenção, adequando os inúmeros dialetos bôeres a um idioma único e


identificável como afrikaans. Nas primeiras décadas do século XX, como
mostrou de maneira brilhante Isabel Hofmeyer, um trabalho elaborado
de "regeneração" foi levado a cabo, e a desprezada hotnotstaal (idioma
hotentote) foi renovada, expurgada de sua associação "degenerada" com
o rural e elevada ao estaruto de augusta língua- mãe do povo africâner.
Em 1918, o afrikaans recebeu o reconhecimento legal como língua71•
A o mesmo tempo, a invenção da tradição africâner tinha um claro
co mponente de gênero. Em 1918, um pequeno grupo clandestino de ho-
mens africâneres criou uma sociedade secreta com a expressa missão de
ganhar a lealdade de africâneres desanimados e de estimular o poder dos
negócios dos homens brancos. A pequena irmandade branca rapida-
mente cresceu e se tornou uma máfia secreta nacional, que veio a exercer
um enorme poder sobre todos. os aspectos da política nacionalistan. O
viés de gênero da sociedade, como tudo que se relacionava com os afri-
câneres, é claramente resumido em seu nome: o Broederbond (a Irman-
dade dos Homens). Dali em diante, o nacionalismo africâner seria sinô-
nimo de interesses masculinos brancos, aspirações masculinas brancas e
política masculina branca. De fato, num esforço recente de programar
seu poder decrescente, o Broederbond decidiu admitir os assim chamados
falantes de cor do a.frikaans na irmandade. Todas as mulheres, no en-
tanto, continuam de _fora.
Na volumosa historiografia africâner, a história do p ovo é organizada
em torno de uma narrativa nacional masculina expressa como uma jor-
nada imperial às terras vazias. Como discuti com mais detalhes no capí-
tulo 1 , o mito das terras vazias é simultaneamente o mito das terras vir-
gens - levando a um duplo apagamento. Mas as terras vazias são, de
fato, povoadas, e, assim, a contradição é, mais uma vez, contida pela in-

72. Isabel H ofmeyer, "Building a Nation from \Vords: Afribans Language, Lite ranire and
Ethnic ldenrity, 1902-19!4", in Shula .M:irks e Stanley Tnpido (orgs.), 1Ju Politics 11/
Rau, Class and Nationalism in Twmti~th Cmtury Soutlt A/rica (Londres: Longmans,
1987), p. 105.
· 73. Ver Dunbar .Moodic, '/lg Riu of//frikanudom ... , e Dan O'l\llea.ra, 1~/hllapitalism~ ...

542
cAd~11s ao paraíso /11turo - :J(gcionalismo, gtnero ~ rara

venção de um espaço anacrônico. A jornada colonial é e.'<pressa como se


desenrolando no espaço geográfico, mas para trás no tempo racial e de
gênero, cm direção a uma zona pré- histórica de degeneração linguística,
racial e de gênero. No coração do continente, um conflito histórico é
representado quando os africanos degenerados "falsamente" reclamam a
propriedade da terra. Um conflito militar divinamente organizado bati-
za a nação, num ritual de nascimento masculino, que concede aos ho-
mens brancos o patrimônio da terra e da história. A nação branca emer-
ge como a progênie da história m asculina através do motor do esforço
militar. Não obstante, no centro do evangelho imperial está a figura con-
traditória da volksmoeder, a mãe da nação.

' INVENTANDO O ARCAICO


A Tweede Trek (Segunda Jornada)

O emblema que anima a historiografia africâner é a Grande Jornada,


e cada jornada é expressa como uma famíl ia, liderada por um único
patriarca épico, homem. Em 1938, duas décadas depois do reconheci-
mento do afrikaans como língua, uma extravagância épica da tradição
inventada inflamou a terra dos africâneres com um delírio de paixão
nacionalista. Chamado de Tweede Trek (Segunda Jornada), ou de Eeu-
fees (Centenário), o evento celebrava o primeiro motim - a Grande
Jornada - cm 1838 contra as leis britânicas e contra a libertação dos
escravos. O Centenário comemorava também o massacre bôer dos zu-
lus na Batalha do Rio Sangrento. Nove réplicas de carroças da jornada
foram construídas - um vívido exemplo da reinvenção do arcaico
para sancionar a modernidade. Cada carroça era literalmente batiza-
da e nomeada em homenagem a um dos homens da Jornada. Nenhu-
ma carroça recebeu nome de mulher, embora uma fo sse generica-
mente chamada de Vrou em Moeder (esposa e mãe). Essa carroça,
rangendo através do país, simbolizava a relação indireta da mulher
com a nação - mediada por sua relação social com homens, sua
identidade nacional consistindo de seus serviços e sacrifíc ios não pa-
gos, por via do marido, para o povo.

543
Couro impuiol

Cada carroça se tornou o microcosmo da sociedade colonial corno


um todo: o patriarca com o chicote, a cavalo, os empregados negros a pé
ao lado, a mãe branca e as crianças reclusas na carroça - os bonés bran-
cos e engomados das mulheres significavam a pureza da raça, a rendição
decorosa de sua sexualidade ao patriarca e a invisibilidade do trabalho
feminino (Figura 10.4).

Figura ro.4 -A familia bran,a do honum.

As carroças seguiram por diferentes rotas da Cidade do Cabo até


Pretória, espalhando em sua rota uma orgia de pompa nacional e engol-
fando o país num espetáculo de tradição inventada e de fetiche ri.tua!
que durou quatro meses (Figuras 10.5-10.10). No caminho, os homens
brancos deixaram crescer a barba e as mulheres brancas usaram toucas
ancestrais. Grandes multidões se reuniam para saudar os que passavam.
~ando as carroças passavam pelas cidades, bebês recebiam o nome dos
heróis da Jornada, assim como estradas e edifícios públicos. Não poucas
meninâs receberam os nomes improváveis, mas favoritos populares de
Eeufesia (Centenária) e Ossewania (de ossewa, carro de bois).As crianças
subiam nas carroças para esfregar a graxa dos eixos em seus lenços. A

544
cAdtu1 ao para fio futuro - ~cionalismo, glntro t ,a,a

marcha terminou em Pretória numa maratona espetacular, com tons do


Terceiro Reich, liderada por milhares de escoteiros africâneres seguran-
do tochas acesas.

Figura 10.5- Gintro t ftti,hts nacionais.

[ Figura ro.6 - O mito das u"aJ t1azias.

545
Couro impuial

Figura ro. 7 ~ A dit1is4o racial do traóalho.

Figura ro.8- lnt1~ntando o arraico.

O primeiro ponto a respeito da Tweede Trek. é que ela inventou as


tradições nacionalistas brancas e celebrou a unidade onde não havia
nenhuma unidade antes, criando a ilusão de uma identidade coletiva
vfdtus ao para{sr, futuro - .J<Edr,nalismo, gtr.tro t ra;a

pela via da exibição política de um espetáculo vicário. O segundo ponto


é que os nacionalistas adotaram essa manobra dos nazistas. A Tweede
Trek foi inspirada não só pelo credo nazista de Blut und Boden [Sangue
e terra], mas também por um novo estilo político: a política de Nurem-
berg do símbolo fetiche e da persuasão cultural.
';
Na nossa época, a coletividade nacional é vivida principalmente
através do espetáculo. Aqui me afasto de Anderson, que vê o naciona-
lismo como emergindo primariamente da tecnologia de Gutenberg do
capitalismo impresso. Anderson negligencia o fato de que o capital da
imprensa foi, até pouco tempo, acessível a uma elite letrada relativa-
mente pequena. De fato, sugiro que o poder singular do nacionalismo
desde o final do século XJX foi sua capacidade de organizar um sentido
de unidade popular, coletiva, através de espetáculos da mercadoria, na-
cionais e de massa.
Argumento, assim, que o nacionalismo habita o reino do fetichismo.
A despeito do compromisso do nacionalismo europeu com a ideia de
Estado-nação como encarnação do progresso nacional, o nacionalis-
mo foi experimentado e transmitido principalmente através do feti-
;;
chismo - precisamente a forma que o Iluminismo denegria como an-
'
títese da razão. Frequentemente, o nacionalismo se define através da
organização visível, ritual, de objetos-fetiche - bandeiras, uniformes,
logotipos, mapas, hinos, flores nacionais, culinárias e arquiteturas na-
cionais, além da organização de espetáculos-fetiche coletivos - no es-
porte, na exibição militar, nas paradas de massa, nas variadas formas da
cultura popular, e assim por diante (Figura 10.9). Longe de serem ícones
puramente fálicos, os fetiches encarnam crises de valor social, proje-
tados e corporificados no que se pode chamar de objetos de paixão.
Muita pesquisa ainda precisa ser feita a respeito dos modos como as
mulheres consomem, recusam ou negociam os rituais fetichistas mas-
culinos do espetáculo nacional. ·

547
Couro imperial

O Eeufees foi, por qualquer critério, um triunfo de gestão do fetiche,


desde as insígnias de flores, tochas flamejantes e canções patrióticas até
discursos incendiários, vestimentas arcaicas e a coreografia do espetá-
culo de massa e, visível em todas as partes, o fetiche da carroça. Mais do
que qualquer outra coisa, o Eeufees mostrou até que ponto o nacio-
nalismo é uma exibição teatral da comunidade inventada: o Eeufees foi
um esforço calculado e autoconsciente da parte do Broederbond de negar
as inúmeras tensões regionais, de gênero e de classe que a ameaçavam.
Como uma exibição fetichista da diferença, ele foi notavelmente bem-
sucedido, já que o êxito da Tweede Trek, ao mobilizar um sentimento
da coletividade branca dos africãneres que não existia antes, foi crucial,
ainda que não único, para a triunfal chegada dos nacionalistas ao poder
em 194874•
No entanto, como observam .Albert Grundlingh e Hilary Sapice, os
historiadores têm demonstrado pouco interesse em explicar a enorme
euforia emocional provocada por celebrações, tendendo, cm lugar disso,
a apoiar a mitificação dos africânercs como increntementc atávicos e
temperamentalmente75 dados a rituais antropológicos estranhos. Como
Grundlingh e Sapice sugerem, certamente "foi a insegurança econômica
[ ...] que tornou os africâneres suscetíveis aos atrativos culturais e políti-
cos da 'segunda jornada"'16 • A ideia da jornada simbólica tinha-se origi-
nado entre os trab~adores africâneres da estrada de ferro, recentemen-
te urbanizados, que tinham boas razões para achar que sua posição era
precária no novo Estado don1inado pelos ingleses. Mais do que isso, os
falantes do afrikaans, profissionais e pequeno-burgueses intelectuais, in-
seguros e dispersos -· - professores, funcionários do governo, advogados,

74. O grau de negação das divisões do uuftes no :imbico da populaç:lo branca tornou-se
manifesto cm 198S quando, durante o período mais intenso do Estado de Emergência,
duas jornadas ( Treks) competidoras se enfrentaram, cada uma patrocinada por dois par-
tidos nacionalistas rivais, br:incos e acirr:idamcntc opostos um ao outro.
75. Albert Grundlingh e Hilary Sapirc, "From Fcvcrish Fcstiv:il to Repctitivc Rirual? Thc
Changing Forruncs of the Great Trek Mythology in an lndustrializing South Africa,
1938-1988". SouthAfriran Hilt<Jrica!Journal 21 (1989), pp.19-37.
76. Idem, op. cit., p. :4.
c.AdeuJ ao paraf10 futuro - :J(g<ionali1mo, glnuo , raça

membros do clero, escritores e acadêmicos - abraçaram rapidamente e


com fervor sua vocação para coreografar a jornada simbólica, com toda
a preeminência e prestigio renovados que acompanhavam seu estatuto
de intermediários culturais, imbuídos da missão de unificar o povo.
Não obstante, a Segunda Jornada não foi apenas a consequência de
uma melodramática insegurança étnica e de divisão de classe. Grund-
lingh e Sapire observam que havia mitologias rivais - o socialismo e o
"sul-africanismo" sendo as mais evidentes - que desejavam ganhar as
lealdades dos brancos pobres. A Segunda Jornada, no entanto, teve van-
tagens consideráveis. Para os africâneres desorientados e desanimados
que tinham tão recentemente feito a jornada das áreas rurais para as
minas, a estrada de ferro e os extenuantes trabalhos da África do Sul
urbana, a Segunda Jornada oferecia um amálgama simbólico potente de
tempos separados, capturando num único espetáculo fetichista a con-
fluência impossível do moderno e do arcaico, do deslocamento recente e
da migração ancestral.
Mais do que mostrar uma cerimônia atávica, voltada para trás, dos
cultos ancestrais, a Segunda Jornada pode ser lida como um ato exem-
plar da modernidade: uma exibição teatral da percepção de Benjamin
sobre a evocação de imagens arcaicas para identificar o que é novo na
modernidade. Fotografias da Eeuftes capturam vividamente a duplica-
ção do tempo consecutivo nessa evocação do arcaico, com as anacrônicas
carroças misturadas com os automóveis e as mulheres com lwppies [tou-
cas] brancas misturadas com a multidão urbana moderna. Diferente-
mente do socialismo, assim, a Segunda Jornada podia evocar um resso-
nante arquivo da memória popular e uma iconografia espetacular do
trabalho e da resistência históricos, oferecendo não apenas a dimensão
histórica necessária para a invenção nacional, mas também um palco
teatral para a representação coletiva dos traumas e privações do desloca-
mento industrial.
A Tweede Trek dramatizou também uma crise na poética do tempo
histórico. O carro de boi corporificava duas noções distin~as de tempo.
Representava, primeiro, o tempo linear do progresso imperial, figurado
como uma jornada para frente, feita através do espaço da paisagem, obe-

549
Couro imptrial

cliente ao télos que se desenvolvia como avanço racial e mapeamento do


espaço mensurável. Em segundo lugar, incorporava no mesmo objeto-
fetiche da carroça uma noção diferente do tempo não linear e recor-
rente: o evento divinamente preestabelecido, mais uma vez ensaiado na
zona da natureza histórica. Para os africâneres recentemente urbaniza-
dos, essas duas figuras cm conflito sobrepostas - o tempo pastoral, cí-
clico (o tempo da nostalgia rural) e o tempo industrial, moderno (o
tempo do simulacro mecânico e da repetição) - eram maravilhosa-
mente encarnadas no ícone único do carro de boi.
Qyando passavam pelas cidades, as carroças eram dirigidas sobre ci-
1nento fresco para perpetuar seus rastros, petrificando a história como
um fóssil urbano - exemplificando a compulsão moderna de colecionar
o tempo na forma de um objeto; história como palimpsesto: "de tal ma-
neira que", como disse Theoqor Adorno, "o que é natural emerge como
um signo da história, e a história, onde ela aparece como mais histórica,
aparece como um signo da natureza"n.
A Tweede Trek tinha outra vantagem. Tom Nairn observou, no con-
texto britânico: "A mobilização devia ser feita cm torno do que estava lá;
e o dilema centrava-se no fato de que não havia nada lá - nenhuma das
instituições econômicas e políticas da modernidade. As classes médias,
portanto, tinham de funcionar via uma cultura sentimental suficiente-
mente acessível ao~ estratos mais baixos, agora chamados à luta"78• Não
tendo o controle das instituições da modernidade, os africânercs se mo-
bilizaram através dá única instituição com a qual tinham intimidade e
sobre a qual ainda mantinham um controle precário: a família. Não ape-
nas grande parte da cultura popular e da cultura sentimental da Grande
Jornada era criada através da familia, como sua iconografia central e
unidade épica social era familiar. Talvez isso também ajude a explicar o
entusiasmo com o qual as mulheres africânercs participaram da pompa
nacional que em breve as excluiria do poder.

77. Thcodor Adorno, Ges11mmdt, S,hriftm, vol. 1, pp. 360-r. Apud Susan Buck-Morss, 1lu
DialuliJ ofSuing... , p. 59.
78. Tom Nairn, 17,c Brcal:-up o/Brituin, p. 340.

55°
e.Adeus ao para(so futuro - :í'(gcionalismo, glnero e raça

Figura ro.9 -Mulheres como marcadoras dasfronttiras raciais.

Figura 10.10 - Ritual dasfronteiras nacionais.

551
(ouro impfrial

Desde o início, como o Eeuftes testemunha, o nacionalismo africâner


dependia não apenas de construções poderosas da diferença racial, mas
também de construções poderosas da diferença de gênero. Prevalecia
uma divisão racial e de gênero da criação nacional na qual os homens
brancos eram vistos como a encarnação dos agentes políticos e econô-
micos do povo, ao passo que as mulheres eram as mantenedoras (não
pagas) da tradição e da missão moral e espiritual do povo. Essa divisão
do trabalho por gênero é resumida no evangelho colonial da família e no
ícone principal da volksmoeder (mãe da nação). Nas fotografias do Ge-
denkboek [álbum comemorativo] (Figuras 10.3-10.9), as mulheres servem
como marcadoras de fronteiras, visivelmente sustentando os signos-fe-
tiche da diferença nacional e visivelmente encarnando a iconografia da
pureza de raça e de gênero. Suas toucas brancas engomadas e seus vesti-
dos brancos criavam um nítido chiaroscuro de diferença de gênero em
contraste com as sombrias roupas negras dos homens. As legendas das
fotografias saúdam as mulheres, ao modo da iconografia vitoriana da
limpeza, pureza e fecundidade maternal, como as guardiãs da nação.
No entanto, a volksmoeder é menos um fato biológico do que uma
categoria social. Tampouco é uma ideologia imposta a qualquer custo a
infelizes mulheres vítimas. É, antes, uma ideologia cambiante, dinâmica,
repleta de paradoxos, sob constante contestação por.parte de homens e
de mulheres, e constantemente adaptada às pressões advindas da resis-
tência africana e do conflito entre os colonialistas africâneres e os impe-
rialistas britânicos. ··- ·

A INVENÇÃO DA VOLKSMOEDER

A guerra anglo-bôer (fundamentalmente, uma guerra a respeito da terra


e do trabalho africanos) foi, em muitos aspectos, uma guerra travada
contra as mulheres bôeres. Num esforço para quebrar a resistência bôer,
os ingl_eses queimaram as fazendas e as terras e reuniram milhares de ..
'
m_u lheres e crianças cm campos de concentração nos quais 25 mil mulhe-
res e crianças morreram de fome, de sofrimento e de doenças. No en-
tanto, depois da guerra, o poder político das intrépidas mulheres bôeres

552
e.Adeus ao para(so futuro - :J(ecio11alismo, gl11ero e rara

foi calado e transformado. Em 1913, três anos após a União, um Vroue-


monument (monumento às mulheres) foi construído como homenagem
às mulheres vítimas da guerra. O monumento tomou a forma de um
~írculo doméstico, no qual as mulheres estão chorando com seus filhos.
O papel marcial das mulheres como lutadoras e fazendeiras foi ex-
purgado de seu potencial militarmente indecoroso e substituído pela
figura da mãe que se lamenta com bebês nos braços. O monumento não
fi..xava as mulheres africâneres como poüticas ou militantes, mas como
sofredoras, estoicas e sacrificadasi9 • A falta de poder das mulhere:; não se
expressava como a política da diferença de gênero, nascida da relação
ambígua das mulheres coloniais com a dominação imperial, mas como
emblemática falta de poder nacional {isto é, masculina). Ao retratar sim-
bolicamente a nação africâner como uma mulher chorosa, o embaraço
dos homens poderosos com a derrota militar podia ser esquecido, e a
memória dos esforços vitais das mulheres durante a guerra podia ser
varrida através de imagens femininas de lágrimas e perda maternal.
O ícone da vo/ksmoeder é paradoxal. Reconhece, por um lado, o poder
da maternidade {branca); por outro, é uma iconografia retrospectiva de
concenção de gênero, contendo o poder amotinado das mulheres no in-
terior de uma iconografia de serviço doméstico. Definidas como vítimas
chorosas, as mulheres como ativistas são deixadas de lado e sua falta de
poder é acentuada.
No entanto, nas primeiras décadas daquele século, como mostra
1-lofmeyer, as mulheres tiveram um papel crucial na invenção da socie-
dade africâner. A unidade doméstica familiar era vista como o último
bastião fora do controle inglês, e o poder cultural da maternidade afri-
câner foi mobilizado a serviço da construção branca da nação. O afri-
kaans foi uma língua profundamente modelada pelo trabalho das mu-
lheres, no âmbito da economia da unidade doméstica. "Não é à toa",
observa Hofmeyer, "que ela era chamada de 'língua-mãem.

79. Ver Elsabic Brink,"Man-madc \Vomcn: Gendcr,C!ass and thc ldcologyofthc Volksmoc·
der~, in C. \Valker (org.), ll&mm and Gmder in SouthtTn A/rica to I9-15 (Londres: James
Currcy, 1990), PP· 273-92.

553
Couro imperial

No nacionalismo africâner, a maternidade é um conceito político sob


constante contestação. É importante enfatizar isso por duas razões.
Apagar a atuação histórica das mulheres africâneres também apaga sua
cumplicidade nos anais do apartheid. As mulheres brancas não eram
chorosas espectadoras da história do apartheid, 1nas participantes ativas,
n-\esmo que decididamente sem poder, na invenção da identidade afri-
câner. E, como tais, eram cúmplices em mostrar o poder da maternidade
no exercício e na legitimação da dominação branca. Certamente o aces-
so das mulheres brancas a qualquer poder político formal foi ciumenta e
brutalmente negado, mas isso era compensado por sua autoridade limi-
tada na unidade doméstica. Agarrando-se a esse pequeno poder, elas
estiveram implicadas no racismo que permeia o nacionalismo africâner.
Por essa razão, as mulheres negras da África do Sul suspeitavam, com
razão, de qualquer suposição fácil de um sofrimento, universal e essen-
cial, compartilhado por todas as mulheres. As mulheres brancas são co-
lonizadas e colonizadoras, ambiguamente cúmplices na história da ocu-
pação da África.

"ADEUS AO PARAÍSO FUTURO"


Gênero e o CNA [Congresso Nacional Africano]

O nacionalismo africano tem mais ou menos a mesma história clássica


do nacionalismo africâner. Forjado na encruzilhada da violência impe-
rial, do capitalismo minerador e da rápida industrialização, o nacionalis-
mo africano foi, como sua contrapartida africâner, produto de un1a rein-
venção consciente, da instituição de uma nova coletividade política por
agentes políticos e culturais específicos. lVlas seus componentes raciais e
de gênero foram muito diferentes, e o nacionalismo africano percorreria
sua própria trajetória ao longo do século.
Em 1910, a União Sul-Africana foi constituída, unindo as quatro
frágeis províncias sob uma única legislatura. No entanto, na convenção
"nacional" nem um negro sequer estava presente. Uma barreira de cor
bania os africanos do trabalho especializado e o direito ao voto era ne-
gado a todos, exceto a uns poucos. Assim, cm 1912, homens africanos

554
c./fdtui ao para fio futuro - :J(e<iona/iuno, glnero t ra;a

vieram de toda a África do Sul até Bloemfontein para protestar contra


uma União na qual nenhuma pessoa negra tinha voz. Nessa reunião, foi
fundado o Congresso Nacional de Nativos Sul-Africanos (CNNSA),
que em seguida se tornaria o Congresso Nacional Africano (CNA).
No início, o CNA, como o nacionalismo africâncr, tinha uma frágil
base de classe. Vindos do diminuto grupo de intelectuais e da pequena
burguesia, seus membros eram, em sua maioria, professores e clérigos
educados nas missões, pequenos negociantes e comerciantes, os ho-
mens-mímicos que Fanon descrevia como "emJX>eirados com a cultura
colonial". Como mostra Tom Lodge, eles eram urbanos, antitribais e
pró-assimilação, querendo uma completa participação civil no império
'
.:.
britânico, e não o confronto ou uma mudança radical 8º. Ainda que Lod-
ge não mencione isso, eram também homens em sua grande maioria.
"· Nos primeiros 30 anos do CNA, a relação das mulheres negras com o
nacionalismo foi estruturada cm torno de uma contradição: sua exclusão
como integrantes poüticos com plenos direitos no CNA contrastava
com seu crescente ativismo nas bases. Como Frene Ginwala argumen-
tou, a resistência das mulheres era definida de baixo para cima8 '. En-
quanto a linguagem do CNA era a linguagem inclusiva da unidade na-
cional, o Congresso era, de fato, exclusivo e hierárquico, tendo nas suas
fileiras uma "casa alta" de chefes (que protegiam a autoridade patriarcal
tradicional através da descendência e da filiação), uma "casa baixa" de
representantes eleitos (todos homens) e um executivo (sempre homem).
Indianos e os assim chamados homens de cor eram excluídos da asso-
ciação plena. Esposas dos membros masculinos podiam associar-se
como "membros auxiliares", rnas não podiam ser representantes políticas
formais, nem votar. Seu papel subordinado, de prestar serviço ao nacio-
nalismo, era resumido no rascunho da constiruição do CNNSA (depois
CNA), que apresentava o papel político das mulheres no nacionalismo
como mediado pelas relações de casamento e como réplica dos papéis

80. Ver Tom Lodge, ~Charters from the Past: the African Narional Congrcss and its Hisro-
riographical Tradiúons", Radical H iJtory Rroiew 46/7 (1990), pp. 161-9.
81. Frene Glnwala, /lgtnda, 8 (1990), PP· n-93.

555
Couro imptrial

domésticos das esposas no casamento: "Todas as esposas dos membros


[ ... ] devem ipso facto tornar-se membros auxiliares [ ...] Será tarefa de !
todos os membros auxiliares oferecer abrigo adequado e receber os de-
legados do Congresso".
Em 1913, o Estado branco achou por bem impor salvo-condutos às
mulheres, num esforço para coibir sua migração para as cidades. Numa
resposta indignada, centenas de mulheres marcharam em rebelião em
Bloemfontein para devolver seus salvo-condutos e, por sua temeridade,
tiveram um embate direto com a ira do Estado, uma série de detenções,
prisões e trabalho forçado. A insurgência das mulheres alarmou tanto o
Estado branco quanto não poucos homens africanos. Não obstante, o
clin1a de militância levou à criação da Liga das Mulheres Bantu do
Congresso Nacional Africano, iniciada em 1918, e recrutando principal-
mente, mas não só, pessoas da diminuta elite cristã educada. Assim, des-
de o início, a participação organizada das mulheres no nacionalismo
africano nasceu menos de um convite dos homens do que de sua própria
politização na resistência à violência dos decretos do Estado.
Nessa época, no entanto, a militância potencial das mulheres era emu-
decida e sua atuação política era domesticada pela linguagem do serviço
e da subordinação familiares. O trabalho voluntário das mulheres era
aprovado desde que servisse aos interesses da "nação" (masculina), e a
identidade política d!1s mulheres era vista como meramente auxiliar e de
apoio. Como disse o Presidente Semc: "Nenhum movimento nacional
pode ser forte, a meriós que as mulheres sejam voluntárias e ofereçam
seL1s serviços à nação". Não obstante, a missão nacional das mulheres
ainda era trivializada e domesticada, definida como a de "oferecer abrigo
e recepção para os membros ou delegados". Por insistência das próprias
mulheres, o CNA autorizou as mulheres a serem sócias plenas e a terem
o direito de voto cm 1943. Foi preciso esperar 31 anos.
Depois da Lei das Áreas Urbanas, de 1937, que restringiu severamen-
te os movimentos das mulheres, surgiu uma nova urgência nas vozes das
mulheres, a favor de uma organização nacional mais militante e explici-
tamente política. "Nós mulheres não podemos mais ficar na retaguarda
e nos ocupar apenas com as questões domésticas e esportivas. Chegou a

556
c.,l{deus ao parafso futuro - :J(gcionalismo, gtnero ~ rara

hora de as mulheres entrarem na arena política e se irmanarem com seus


homens na luta"8>. Em 1943, o CNA decidiu que uma Liga das lVlulheres
deveria ser constituída, ainda que persistissem as tensões entre as exi-
gências das mulheres por mais autonomia e as ansiedades dos homens a
respeito da perda do controle.
No entanto, durante os turbulentos anos 1950, a Liga das lVlulheres
do CNA prosperou. Essa foi a década da Campanha do Desafio, da
Carta da Liberdade, do Congresso da Aliança e da Federação das Mu-
lheres Sul-Africanas. Em 1956, milhares de mulheres marcharam sobre
Pretória para protestar, mais uma vez, contra os salvo-condutos para as
mulheres, e a Carta das l\11ulhcrcs foi criada, exigindo redistribuição da
terra; benefícios para os trabalhadores e direitos sindicais; subsídios
de alimentação e de moradia; abolição do trabalho infantil; educação
universal; direito ao voto; e igualdade de direitos com os homens na
propriedade, no casamento e na custódia dos filhos. Raramente se re-
gistra que essa carta precedeu a Carta da Liberdade e inspirou muito
do seu conteúdo.
Tanto no âmbito do nacionalismo africano, como na sua contrapar-
tida africâner, a atuação das mulheres tinha sido formulada sob a ideo-
logia dominante da maternidade. Winnie lV1andela tinha sido, há tem-
pos, saudada como a "l\tlãe da Nação", e a cantora Miriam Makeba é
reverenciada como Ma Africa [l\.1ãc África]. No entanto, as ideologias
de 1natcrnidade do nacionalismo do CNA e dos africâneres diferem em
aspectos importantes83• A maternidade é menos a quintessência bioló-
gica e universal do feminino do que uma categoria social sob constante
contestação. As mulheres africanas abraçaram, modificaram e transfor-
maram essa ideologia de muitas maneiras, trabalhando estrategicamente
no interior da ideologia tradicional para justificar uma militância pública
não tradicional. Além disso, diferentemente das mulheres africâneres, as

82. J. Mpama, Umubmzi, 26 jun., 1937.


83. Ver Deborah Gaitskcll e Elainc Unrerhalter, "Mothers of thc Nation: A Comparativc
Analysis of Nation, Racc and Motherhood in Afrikancr Nationalism an thc African
National Congress", in Nira Yuval-Davis e Floya Anthias (org.), Womm-Nation-Stau.

557
Couro ímpuíal

mulheres africanas apelaram para uma imagem racialmente inclusiva


da maternidade em suas campanhas para constituir uma aliança não
racial com as mulheres brancas. Num panfleto de 1958, a Federação das
Mulheres Sul-Africanas exortava as mulheres brancas: "Em nome da
humanidade, como mulher e como mãe, você pode tolerar isso?" Em
1986, Albertina Sisulu apelava, com impaciência, às mulheres brancas:
"Uma mãe é uma mãe, negra ou branca. Levante-se e junte -se a outras
mulheres".

VOICE OF WOMEN

Figura IO.ll -A mãe milita11le.

N o d ecorrer das décadas, as nacionalistas africanas, diferentemente


de suas confrades africãnercs, transformaram a ideologia da maternida-
de, inculcando nela um crescente aspecto de insurreição e identificando-
se cada vez mais como as "mães da revolução". Desde os anos 1970, os
ritos femini nos locais de desafio foram ampliados cm escala nacional
nos boicotes de aluguéis e ônibus, na organização de acampamentos de
sem-terra, em greves, nos protestos contra o esrupro e em ativismo co-
munitário de todos os tipos. Mesmo sob o Estado de Emergência, as
mulheres a1npliaram sua militãncia, insistindo não apenas no seu direito

558
eAdtus ao paraíso futu ro -:Jl(gtionalismo, gltttro traça

a atuação p oütica, mas também no seu direito de acesso às tecnologias


da violência (Figura 10.11).
A relação das mulheres negras com o nacionalismo, assim, passou
por mudanças históricas significativas ao longo dos anos. No início, a
representação formal foi negada às mulheres: seu trabalho voluntário
foi, então, posto a serviço da revolução nacional. Gradualmente, como
resultado da insistência das próprias mulheres, a necessidade da partici-
pação plena das mulheres no movimento de liberação nacional foi reco-
nhecida, mas sua emancipação ainda era vista como a de "ajudantes" da
revolução nacional. Não obstante, o grau em que esse reconhecimento
formal encontrará uma forma poütica e institucional ainda está para ser
visto (Figura 10.12).
~t

Figura 10.11-At ajudanus da Unidadt Nacional:


Quando chtgard o uu ltmpot

559
Couro imptrial

FEMINISMO E NACIONALISMO

Durante muitas décadas as mulheres africanas não quiseram saber de


falar a respeito da emancipação feminina fora dos termos do movimen-
to de liberação nacional 84 • Nos anos 1960 e 1970, as mulheres negras,
compreensivelmente, eram refratárias ao feminismo de classe média que
estava surgindo, gaguejante e irregularmente, nas universidades brancas
e nos subúrbios. As mulheres africanas, justificadamente, levantavam a
sobrancelha ceticamente para um feminismo branco que se vangloriava
de dar voz a um companheirismo universal no sofrimento. Ao mesmo
tempo, a posição das mulheres no interior do movimento nacionalista
ainda era precária, e as mulheres não podiam da.r-se ao lmco de hostilizar
os homens tão acuados e relutantes cm ceder os poucos poderes patriar-
cais que ainda detinham.
Em anos recentes, no entanto, surgiu um discurso africano diferente
sobre o feminismo, com as mulheres negras exigindo o direito de mo-
delar os termos do nacionalismo feminista de modo a levar cm conta
suas próprias necessidades e sua situação85• Em 2 de maio de 1990, a
Executiva Nacional do CNA lançou uma histórica Proclamação sobre a
Emancipação das Mulheres, que afirmava diretamente: "A experiência
de outras sociedades mostrou que a emancipação das mulheres não é um
subproduto da luta pela democracia, da liberação nacional ou do socia-
lismo. Ela tem de ser enfrentada no âmbito de nossa própria organi-
zação, o movimento êlémocrãtico das massas, e na sociedade como um
todo". O documento não tem precedentes, na medida cm que: põe are-
sistência das mulheres sul-africanas num contexto internacional; atribui
un1a atuação histórica independente ao feminismo; e declara, no pacote,

s.. A delegação do CNA na Conferencia de Nairóbi sobre Mulheres cm 1985 decl:arou: "Se-
ria um suicídio declararmos a adoç:1.o de ideias feministas. Nosso inimigo é o sistema e
não podemos gastar nossas energias com a questão das mulheres".
s;. Num seminário sobre "Feminismo e Liberação N:acionar, reunido pela Scçio Feminina
do C:-.IA em Londres, em 1989, uma representante do Congresso dos Jovens da África do
Sul declarou: "Como é bom ver que o feminismo foi finalmente aceito como uma escola
de pcmamentu lc~itima nas nossas luta, e não é visto como uma idcologh cstnngcira~.

560
e.Adeus ao para(so futuro - :J(ecionalismo, género e rafa

que "todas as leis, costumes, tradições e práticas que discriminam as


mulheres devem ser definidas como inconstitucionais". Se o CNA for
fiel a esse documento, virtualmente todas as práticas existentes na vida
legal, política e social da África do Sul se tornarão inconstitucionais.
Alguns meses mais tarde, cm 17 de junho de 1990, as líderes da Seção
das l'vlulhcres do CNA, que tinham recentemente voltado do exílio, in-
sistiram na validade estratégica da noção de femini smo: "O feminismo
tem sido mal interpretado na maioria dos países do Terceiro Mundo
[...] não há nada de errado com o feminismo. Ele é tão progressista 011
reacionário como o nacionalismo. O nacionalismo pode ser progressista
ou reacionário. Não nos livramos do termo 'nacionalismo'. E o mesmo
ocorre com o feminismo". Elas acreditavam que o feminismo podia ser
adaptado às necessidades e aos interesses locais.
No entanto, algumas incertezas bem reais sobre as mulheres per-
manecem. Até agora, não foram aprofundadas as análises teóricas e es-
tratégicas das diferenças de gênero na África do Sul. Houve pouca re-
flexão estratégica sobre como, por exemplo, transformar as relações de
trabalho no âmbito das unidades domésticas - e :is mulheres não é
dada a mesma visibilidade política que aos homens. Num Congresso
dos Sindicatos da África do Sul, as mulheres sindicalizadas chamaram a
atenção para o assédio sexual nos sindicatos, mas sua demanda foi pron-
tamente posta de lado por sindicalistas homens, como um sintoma de-
cadente do "feminismo imperialista burguês". Ativistas lésbicas e gays
foram, do mesmo modo, condenados por apoiar estilos de vida que não
são mais do que importações ofensivas do império96•
Não há apenas um feminismo, assim como não há apenas um pa-
triarcado. O feminismo é imperialista quando põe os interesses e as ne-
cessidades das mulheres privilegiadas dos países imperialistas acima das
necessidades locais de mulheres e homens sem poder, usando o privilé-
gio patriarcal. Na última década as mulheres negras foram firmes ao

86. Ver o importa.nrc livro sobre a história, a política e a cultura da ,ida lésbica e gay na
África do Sul, de Edwin Cameron e Mark Gev1sscr (orgs.), Dtjiant Dt1irt: Gay and
lesbian Lives in SouthÁfri<a (NOVll York: Routledgc, 1994).

561
Couro impuial

desafiar feministas privilegiadas que não reconhecem seu próprio poder


racial e de classe. Num artigo importante, Chandra Mohanty desafia a
apropriação das lutas das mulheres negras pelas brancas, especialmente
através da categoria "Mulheres do Terceiro Mundo", como um sujeito
vitimizado singular, monolítico e paradigmático87•
A denúncia de todos os feminismos como imperialistas, no entanto,
apaga da memória as longas histórias de resistência das mulheres a pa-
triarcados locais e imperialistas. Como observa Kumari Jayawardena,
vários motins de mulheres em todo o mundo são anteriores ao femi-
nismo ocidental ou aconteceram sem qualquer contato com o feminis-
mo ocidental88 • Além disso, se todos os feminismos forem desprezados
como uma patologia do Ocidente, existe um perigo real de que as femi-
nistas brancas, ocidentais, permaneçam hegemónicas, pela simples razão
de que tais mulheres têm, con:iparativamente, acesso privilegiado à pu-
blicação, à 1nídia internacional, à educação e ao dinheiro. Boa parte des-
se tipo de feminismo pode bem ser inapropriado para mulheres vivendo
cm situações muito diferentes. Ao invés disso, as mulheres negras estão
reclamando o direito de definir um feminismo que se adapte aos seus
próprios mundos. A contribuição específica do feminismo nacionalista
tem sido sua insistência em relacionar as lutas feministas com outros
movimentos de liberação.
Com muita frequência os homens nacionalistas condenaram o femi-
nismo como divisionista, conclamando as mulheres a segurar suas lín-
guas até depois da revolução. O feminismo, no entanto, é un1a resposta
política ao conflito de gênero, não sua causa. Insistir no silêncio sobre o
conflito de gênero, quando ele já existe, é acobertar e, portanto, ratificar,
a falta de poder das mulheres. Pedir que as mulheres esperem até depois
da revolução é meramente uma estratégia para adiar as den1andas das
mulheres. Isso não apenas esconde o fato de que os nacionalismos são,

87. Chandra T. Mohanty, "Under Westem Eyes: Feminist Scholarship and Colonial Dii-
coursés", in Chandra T. Mohanty, Ann Russo e Lourdes Torres (orgs.), 1hird Worid
Wómm and th, Politics ifFeminism (Bloomington: Indiana University Press, t99t), p. 52.
88. Kumari,Jayawardena. F,minism and Nationalism in the1hird Hí,rld (Londres: Zed Pres;,
1986).

562 .
vfdeus ao paraíso futuro -:J(gcionalismo, gln,ro , raça

desde o começo, constituídos como poder de gênero, mas também que,


como as lições da história internacional mostram, as mulheres que não
obtêm o poder de se organizar durante a luta não conseguirão poder
para se organizar após a luta. Se o nacionalismo não se transforma por
meio de uma análise do poder de gênero, o Estado-nação se tornará um
depositário das esperanças, das aspirações e dos privilégios masculinos
(Figura 10.13).

Figura 10.13 -Adeus ao paraísofaturo.

Com muita frequência, as portas da tradição estão fechadas para as


mulheres. No entanto, as tradições são tanto a consequência como o
registro de lutas poüticas passadas, e também lugares de lutas presentes.
Numa revolução nacionalista, homens e mulheres devem ter o poder de
decidir quais são as tradições que estão ultrapassadas, quais devem ser
transformadas e quais devem ser preservadas. Os homens nacionalistas
frequentemente argumentam que o colonialismo ou o capitalismo cau-
saram a ruína das mulheres e que o patriarcado é apenas um primo em
segundo grau desagradável, destinado a desaparecer assi111 que o vilão
Couro imperial

real 1norra. No entanto, em nenhuma parte, uma revolução nacionalista


ou socialista trotLxe uma revolução feminista como consequência. Em
muitos países nacionalistas ou socialistas, os interesses das mulheres são,
no melhor dos casos, tratados de maneira cosmética e, no pior, alvo de
deboche. Se as mulheres passaram a fazer o trabalho dos homens, os
homens não passaram a compartilhar o trabalho das mulheres. Em ne-
nhum lugar se permitiu que o feminismo por si próprio fosse mais do
que a empregada do nacionalismo.
Assim, uma questão crucial para o nacionalismo progressista conti-
nua a ser: podemos manter a iconografia da família como a figura de
unidade nacional, ou devemos desenvolver uma iconografia alternativa,
radical?

O GÊNERO E A ." NOVA ÁFRICA DO SUL"

Recentemente, "a nova África do Sul" foi saudada com tanto entusiasmo
como "a nova ordem mundial" - e ambas com pouca razão. Assustado
com o declínio da economia e com a continuada bravura do Movimen-
to Democrático de Massa, o astucioso primeiro-ministro sul-africano,
F. W. de Klerk, orquestrou a saída de Nelson Mandela da prisão e can-
celou o banimento do CNA. Agora, as elites do CNA sentam-se cm
torno de mesas enceradas cortando as cartas do futuro com os naciona-
listas de Klcrk.
No entanto, parà ..muitos sul-africanos negros pouca coisa mudou.
Como o romance de Lauretta Ngcobo a respeito das mulheres negras
no sistema migratório sugere, seja qual for o futuro da África do Sul,
para milhões de pessoas muito pouco vai mudar, especialmente no caso
das mulheres. O primeiro romance importante da Á.frica do Sul, And
1hey Didn't Die [E eles não morreram], sobre "pessoas descartáveis", é
uma denúncia pungente do sistema migratório e um bom aviso contra a
proclaIT1ação da morte do apartheid. Cobrindo os anos entre o massacre
de Sharpcville em 1960 e o Estado de Emergência dos anos 1980, o ro-
mance aborda duas questões ainda não tratadas: a vida nas áreas rurais
esquecidas e a política da maternidade.
cAdtus a, paraíso faturo - :NJ:donalismo, glnuo t raça

Filha de uma mãe rural e de um pai migrante, como a própria Ngco-


bo,Jezile nasceu nos campos mortíferos de um bantustão. Terrivelmente
quente no verão, mortalmente fria no inverno, a reserva negra de Siga-
geni fica no longo corredor que desce das montanhas nevadas de
Drakensberg. Um vale amplo, sombrio, coberto de palhoças de barro e
barracos, a terra arruinada está sobrecarregada de gente, de gado e de
cabras, e já não pode dar suporte às necessidades básicas da vida. No
verão, as babosas sangram nas colinas e o calor incendeia e retorce as
plantações. No inverno, o vento desce cortante pelo corredor, atinge os
finos vestidos de algodão das mulheres e ataca as manadas trêmulas. Os
homens de Sigageni gastam suas vidas a centenas de quilômetros dali,
nos barracos de trabalhadores das cidades brancas. As mulheres de Si-
gageni gastam suas vidas esperando. As mulheres são especialistas na
espera - dos maridos, da chuva, das crianças por nascer. Enquanto re-
colhem esterco para o fogo, elas esperam; enquanto aram a terra endu-
recida, elas esperam. Elas esperam enquanto criam os filhos e envelhe-
cem. Elas sentam na poeira, de olho na estrada que pode trazer-lhes um
marido, um pacote de roupas de criança, o cheque de um salário.
Em 1960, as mulheres de Sigageni pararam de esperar. Primeiro,
queimando seus salvo-condutos, depois, tocando fogo à casa de um ne-
gro traidor, as mulheres deram início a uma lenta conflagração que
eventualmente as levou à prisão e envolveu toda a comunidade numa
guerra. O romance árido de Ngcobo lida com a ideia sem precedentes de
que a maternidade é uma questão poütica. Para as mulheres no bantus-
tão, as crianças são a sua segurança: um seguro da carne, trazendo os
maridos, quem sabe, de volta das cidades uma vez por ano e passando
pela via dolorosa das reservas.
And 1hey Didn't Die relata as dificuldades antes não contadas de mu-
lheres apanhadas entre o costume, a lei branca e o sistema migratório.
Boa p arte da força do romance está no talento de Ngcobo para a com-
plexidade, para as nuanças, e na sua recusa dos dogmas. Se, para Je-zile,
as crianças são a promessa de uma recompensa, para sua amiga Zenzile,
morrendo de fome e solitária em sua cabana de terra, cada nova criança
é uma calamidade da carne. Zenzile morre de parto, fantasmagorica-
Couro impuial

mente magra, tendo sido abandonada pelo marido, Mthebe, por causa
das mulheres de lábios rubros da cidade.
A filha tão esperada de Jezile, S'naye ("nós a temos") nasce finalmente
num quarto de hospital apelidado de "açougue" pelas enfermeiras bran-
cas. Seu marido, Siyalo, é despedido por causa das atividades poUticas da
mulher e é permanentemente excluído da África do Sul industrial e
condenado a voltar para a mortífera reserva. Qyando Jezile e as mulhe-
res de Sigageni são levadas à prisão, Siyalo e sua mãe lutam para manter
viva S'naye, que estava morrendo de inanição. Uma das mais pungentes
seções do livro registra a angustiante separação de bebês, que estavam
sendo amamentados, de suas mães presas, e sua inanição posterior. A
prisão não significa apenas sofrimento e estupro, mas também a volta
para bebês com barrigas inchadas e membros esqueléticos. Levado ao
desespero pela visão de seu bel?ê morrendo, Siyalo rouba leite dos fartos
úberes da vaca do fazendeiro branco. Um pastor negro o delata e ele é
condenado a dez anos d e prisão pelo que a corte branca vê como um ato
político para fomentar a anarquia ntral.
Alguns dos momentos mais sombrios e bravos do romance tratam d1
política da sexualidade feminina. A esquerda, seja branca, seja negra,
teve a tendência a negar um lugar na política ao corpo feminino. En-
quanto os homens podem encontrar alívio nas cidades, os tormentos
sexuais das mulheres sozinhas - "os desejos diários, as tentações sem-
pre presentes e a desgraça como consequência"- são geralmente igno-
rados. O!tando, depois de cumprir sua pena,Jezile viaja para Bloemfon-
tein para trabalhar como empregada doméstica, a visão de pêssegos
amarelos inchados a mergulha num delírio de desejos inadmissíveis. Sob
as duras leis do costume, uma gravidez por adultério é tão catastrófica
para as mulheres quanto a infertilidade. Em Bloemfontein, o emprega-
dor branco de Jezile a estupra; ela dá à luz uma criança de pele clara e
volta para Sigageni. Ivlas sua sogra, MaBiyela, guardiã dos costumes, vê
o estupro e a criança branca como um crime da carne feminina e expul-
sa Jezile. O!tando Siyalo volta da prisão, ele se recusa a vê-la.
And 7hey Didn't Die explora o que acontece quando as mulheres co-
meçam a fazer perguntas: sobre o gado e a tern, sobre o poder das mu-

566
cAdeus ao paraíso futu ro -:J(ecionalismo, gburo e ra;a

lheres, sobre a tradição, sobre a violência, sobre sexo. Quando, no final,


Jezile mata um policial branco por tentar estuprar sua filha, o livro per-
gunta o que acontece quando as mulheres tomam as armas da vingança
em suas próprias mãos. A violação da lei do homem branco deixa Jczile
livre para violar a lei do costume e ela finalmente enfrenta Siyalo e lhe
conta como seu filho pálido nasceu.
Na análise final,And7hey Didn't Die pergunta a todos os sul-africa-
nos: O que vai acontecer com as mulheres das á.reas rurais? "Nós, as
mulheres das áreas rurais, precisamos saber por que estamos aqui en-
quanto nossos maridos estão lá; por que morremos de fome se a África
do Sul é um país tão grande e rico, e o que pode acontecer conosco se
continuarmos a fazer essas perguntas". Bem, se o wdocumento branco" de
·, Klerk se efetivar e as leis de terras forem descartadas, diz-se que não
haverá nada que impeça os africanos de comprar propriedades à beira-
mar, de mudar-se para casas que sejam imitações de vilas espanholas, ou
de construir piscinas no seu quintal. Nada, exceto a pobreza terminal.
Entrementes, não se está tomando qualquer providência a respeito dos
milhões de pessoas já condenadas ao esquecimento nos bantustões. A
Carta da Liberdade promete que a terra pertencerá aos que nela traba-
lham. Já que, na África do Sul, as mulheres fazem a maior parte do
plantio, a terra será dada a elas? Ou, como em muitos outros países de-
pois da independência, os direitos de propriedade, a tecnologia, os em-
préstimos e a ajuda serão dados aos homens? ~ando essas questões
forem respondidas, talvez possamos começar a falar sobre uma nova
África do Sul.
Os avisos prescientes de Frantz Fanon contra as ciladas da consciên-
cia nacional nunca foram mais urgentes do que agora. Para Fanon, o
nacionalismo dá uma expressão vital à memória popular e é estrategica-
mente essencial para mobilizar o povo. Ao mesmo tempo, ninguém ti-
nha mais consciência do que ele dos riscos subsequentes de projetar uma
negação fetichista da diferença numa "vontade coletiva" conveniente-
mente.abstrata. Na África do Sul, para usar a frase de Fanon, a transfor-
mação nacional "não é mais um paraíso futuro". No entanto, a atual si-
tuação sublinha com uma especial relevância as frases do famoso filme
Couro impaial

de Giles Pontecorvo sobre a guerra nacional de libertação da Argélia,


The Battle ofAlgiers [A Batalha da Argélia]: "É difícil começar uma re-
volução, e mais difícil sustentá-la. Mas é mais tarde, quando vencemos,
que as verdadeiras dificuldades começam".

Figura ro.r4 - Mulh" sozinha troltsta contra tropas que «upam sua cidade com
'Udculos militares chamados de "hipop6tamos•. Soweto,jul., r985.

FiKun:r ro.rs - Partitipantu de um fon"al desafiam a poliria, em Tqwnship, r986.

568
Pós-escrito
O anjo do progresso

E Seu rosto se volta para o passado [ ... ] O anjo


gostaria de ficar, acordar os mortos e
reconstituir o que tinha sido esmagado.
Mas uma tempestade está vindo do
Paraíso; ela apanhou suas asas com tal
violcncia que o anjo não pode miis fechá-las.
E ssa tempestade o impele irresistivelmente
para o futuro, para o qual ele está de costas, e
a pilha de destroços ante ele cresce até o céu.
Essa tempestade é o que chamamos de progresso.
vValter Benjamin

CoMo EXPLICAR a curiosa proliferação das palavras com o prefixo "pós"


na vida intelectual dos últimos anos, não apenas nas universidades, mas
nas colunas dos jornais e nos lábios dos mandachuvas da mídia? Pelo
menos no caso de pós-colonialiJmo, parte da causa é sua a_ceitação aca-
dêmica. Ainda que se admita que ela seja mais uma palavra politica-
1nente correta, o pós-colonialismo, pode-se argumentar, é mais palatá-
vel e soa menos estrangeiro para reitores céticos do que "Estudos sobre
o Terceiro lVlundo". E também tem um tom menos acusatório do que
"Estudos sobre o neocolonialismo," digamos, ou "Lutancio contras dois
colonialismos". É mais global, e menos obsoleto, do que "Estudos sobre
a Commonwealth". O termo se aproveita, além disso, do incrível sucesso
de mercado do termo "pós-modernismo". Como rubrica organizadora
de um campo emergente dos estudos disciplinares e arquivo de conhe-
cimento, o termo "pós-colonialismo" torna possível a comercialização
de toda uma nova geração de seminários, artigos, livros e cursos. O
entusiasmo com as palavras que contêm "pós", no entanto, tem ramifi-
cações que vão além dos corredores da universidade. O encantamento
Couro impuial

recorrente, quase ritual, do prefixo pós é um sintoma, creio eu, de uma


crise global nas ideologias do futuro, particularmente da ideologia do
progresso.
A primeira mudança sobre a ideia de progresso veio com a abrupta
mudança na política dos Estados Unidos em relação ao Terceiro Mun-
do, nos anos 1980. Levados pelo seu "grande salto econômico para fren-
te" (mais uma vez, espaço é tempo), nos anos 1950, os E stados Unidos
tiveram poder para insistir, globalmente, que outros países só poderiam
progredir se seguissem o seu caminho de prosperidade através do con-
sumismo de massas. O "l\1anifcsto não comunista" de W. W. Rostow
previa que as nações chamadas de países em desenvolvimento deveriam
passar por estágios similares de desenvolvimento para sair da pobreza
marcada pelo tradicionalismo: por meio de uma modernização indus-
trializada, supervisionada pelos. Estados Unidos, pelo Banco Mundial e
pelo Fundo Monetário Internacional, até a prosperidade do consumo de
massas. Não obstante, com exceção do "milagre" japonês e dos Quatro
Tigres (Taiwan, Singapura, Hong Kong e Coreia do Sul), a ampla maio-
ria da população do mundo, desde 1940, ficou ainda mais para trás do
consumismo estabelecido pelo Ocidente'.
Então, em 1979 (a segunda crise do petróleo) e 1982 (a crise no lvlé-
xico), a economia mundial começou a quebrar. Cada vez mais, ficava
claro que os Estados Unidos não estavarn destinados a ser o único poder
econômico do futuro. Acuados por suas dívidas fenomenais e crescente-
mente acicatados pelas ·sombras gêmeas do Japão e da Alemanha, os
Estados Unidos sumariamente abandonaram a doutrina do progresso e
do desenvolvimento globais. Ourante a era Reagan, os Estados Unidos
criaram, em vez disso, uma política de assédio de dívidas sobre os países
pobres, enfatizada pela competição agressiva de mercado com eles, de-
fendida por ataques esporádicos de gangsterismo militar, como cm Gra-
nada e no Panamá. A horrível guerra no Golfo Pérsico serviu apenas
para sublinhar esse ponto.

1. Ver Giovanni Arrighi, "World lncomc Incqualitics and thc Fururc of Socialism", New
Lift J«.,;..,.,,, 189 (sct.·ouc., 1991), p. 40.

57°
'Pd1-ncri10 - O anjo do progus10

Para muitos dos países pobres, a mudança da poütica norte-ameri-


cana significou de uma hora para a outra o abandono do mágico pro-
gresso capitalista e a acomodação de uma posição crônica de fragili-
dade na hierarquia global. Daí em diante, eles podiam apenas aspirar a
apertar o cinto, pagar suas dívidas e manter algum crédito. Em 1974, a
relação dívida-serviço da África era de manejáveis 4.6%. Treze anos
depois, ela tinha subido para 25%. lVIas o colapso do modelo de pro-
gresso dos Estados Unidos significara também, para muitos regimes, o
colapso da legitimidade de suas poüticas nacionais no contc."<to de pâ-
nico da crise econômica mundial, de uma calamidade ecológica e de
um crescente desespero popular. Talvez uma das razões, pelo menos,
para o crescente apelo do fundamentalismo islâmico seja o fracasso de
outros modelos de progresso, capitalistas ou comunistas. Como um
alto funcionário Líbio, o major Abdel-Salam Jalloud declarou, a res-
peito do destino da FIS [Frente Islâmica da Salvação] na Argélia: "Não
é possível voltar atrás. A FIS tem um encontro marcado com a história;
não vamos perdê-lo"•.
Surgiu um padrão monotonamente único. A despeito do retraimen-
to das bandeiras coloniais nos anos 1950, o imperialismo econômico
renovado assegurou que os Estados Unidos e os antigos poderes colo-
niais europeus se tomassem mais ricos, ao passo que, com uma pequena
exceção, suas ex-colônias se tornavam mais pobres3• Na África, antes da
descolonização, os projetos do Banco l'vlundial apoiavam consistente-
mente as economias coloniais. Depois da descolonização formal, e ao
contrário da afirmada "neutralidade" tr.cnica e do mito de sua cspeciali·

i. 7h~ Guardian, 14 jan., 1992, p. 9·


3. O sistema monetário internacional, criado na Conferencia de Brctton \.Voods cm 19H,
excluiu a África (ainda coloni:iJ) e a maioria do que é hoje chamado Terceiro Mundo, e
tinha dois objetivos: a reconstrução da Europa d epois da Segunda Guerra Mundial e a
expansão e manutenção (especialmente depois da descolonização) do comércio interna-
cional no interesse dos poderes coloniais e dos Estados Unidos. O presidente e o vice-
diretor executivo do Banco Mundial são sempre norte-americanos, enquanto que, por
tradição, o diretor executivo é europeu. Ver Cheryl Payer, 7he Debt Trap: 'lhe lnto-nt1-
1ional Monetary Fund and 1he 11,ird World (No~-a York: Monthly Rcview, 1974), e idem,
1ht World Banl: A Critital Analysil (Nova York: Monthly Rcview, 1981).

571
Cou ro imptrial

zação, os projetos favoreceram, agressivamente, o refinamento e a mo-


dernização da extração de excedentes, a exportação de alimentos e os
projetos de larga escala que favoreciam os que apostavam alto. Desse
modo, favoreceram cartéis e operadores internacionais e asseguraram
que os lucros fossem para os cofres das corporações multinacionais. Em
1986, a África perdeu 19 bilhões de dólares apenas com a queda dos pre-
ços. Em 1988 e 1989, o total do pagamento das dívidas do Terceiro Mun-
do com os Estados Unidos foi de 100 bilhões de dólares 4• Ao mesmo
tempo, como Fanon previra, as cleptocracias do Terceiro Mundo, as oli-
garquias e os senhores da guerra tinham-se aliado para explorar o siste-
ma. Para proteger esses interesses, as diminutas elites masculinas dos
países em desenvolvimento gastaram quase 2,4 trilhões de dólares nos
seus serviços militares entre 1960 e 1987,quase duas vezes a soma da toda
a dívida do Terceiro Mundo>. Agora, depois da "década desesperada" de
1980·, em termos de dívidas, escassez e desestabilização, a maior parte
dos países do Terceiro Mundo está mais pobre do que uma década an-
tes6. Vinte e oito milhões de africanos enfrentam a fome e, em países
como M oçambique, Etiópia, Zaire e Sudão, as economias simplesmente
vieram abaixo.
O mito do desenvolvimento dos Estados Unidos teve um impacto
penoso nas ecologias globais. Em 1989, o Banco Ivlundial destinou 225
bilhões de dólares aos países mais pobres, com a condição de que esses
países, por sua vez, suportassem o purgatório dos "ajustes estruturais",

4 Robin Broad,John Cav:anagh e \ 1Valden Bello, "Susr:linable Developmenr in the 199o's",


in Chcster Harrm:m e Pedro Vilanova (orgs.), Paradigms LoJJ: 1ht Post Cold War Era.
5. Idem, op. cit., p. 100. O s cálculos são baseados nos números de Ruth Lcger Silvard, ffilrld
lvlilitary and Sccia/ E xpendittrrei 1989 (Washington DC: World Priorilies, 1989), p. 6. Uns
poucos países socíalisras africanos, como Angola e Moçambique, tentaram driblar os
engodos do Banco Mundial e do FMI, até que a mi administraçio econômica nacional e
as pressões regionais da Áfra do Sul os forçaram a submete r-se.
6. O Banco M undial concluiu que "quinze países africanos pioraram numa série de catego·
rias econômicas depois dos programas de ajuste cstrurural (...] Um csrudo do Banco
Mundi:11 mostrou que os países cm desenvolvi mento endividados tiveram, sob os progra·
mas de ajuste estrutural, um comportamento pior que o dos países que nlo recebiam
nada". Broad, Cav:anagh e Bcllo, "Sustainablc Dcvclopmcnr... ·, p. 96.

572
'Pds-tscrito - O anjo do progrtsso

exportassem seu caminho para o progresso, cortassem gastos governa-


mentais na educação e nos serviços sociais (atingindo mais cruelmente
as mulheres), desvalorizassem suas moedas, removessem barreiras co-
merciais e destruíssem suas florestas para pagar as dívidas7• Sob a égide
financeira dos Estados Unidos (e, agora, do Japão), e cm nome do conto
de fadas do crescimento ilimitado da tecnologia e do capital, o Banco
Mundial promoveu um desastre ecológico após o outro: o programa
Tran.smigrasi [Programa de Transferência de Populações de Áreas Den-
samente Povoadas] na Indonésia, o programa Grande Carajás de ex-
tração exaustiva das minas de minério de ferro na Amazônia, e hi tam-
bém a represa do Tucuruvi, que promoveu o desmatamento, e assim por
diante. O programa Polo-Noroeste no Brasil rasgou uma autoestrada
pavimentada através da Amazônia, atraindo interesses pela madeira, pe-
las minas e pela criação de gado para a região de maneira tão calamitosa
que em maio de 1987 até o presidente do Banco Mundial, Barber Cona-
ble, confessou que achava a devastação "grave"8•
Os Qilatro Tigres "milagrosos" pagaram pelo progresso com a paisa-
gcm devastada por água envenenada, solo tóxico, montanhas destruídas
e mares de corais mortos. No "milagre" de Taiwan, estima-se que 20%
das terras aráveis do país estejam poluídas por lixo industrial e que 30%
das plantações de arroz estejam contaminadas em níveis inseguros por
metais pesados, mercúrio e cádmio9 • Um relatório do Banco Mundial
concluiu sombriamente, em 1989, que os programas de ajuste teriam
como consequência que "as pessoas abaixo da linha da pobreza provavel-
mente sofrerão um dano irreparável na saúde, na nutrição e na educa-
ção"'º. Agora o Japão, com sua fome insaciável por madeira e recursos
primários, é o maior doador estrangeiro de ajuda, no valor de 10 bilhões

7. Ver Susan George, "Managing lhe Glob:tl 1-louse: Redcfining Economics", in Jcremy
Lcggct (org.), Global Warming:17,t Grunptau &port (Oxford: Oxford Univcrsity Prcss,
1990).
8. Barbcr Conablc, discurso no World Rcsources lnstitute, Washington DC, 5 maio, 1987.
Apud G. Hancock. 77,, Lords ojPowrty (Londres: l\llacmillan, 1989), p. 131.
9. Broad, Cavanagh e Bello, "Sustainable Devclopment.. .", p. 91.
ro. Idem, op, cit., p. 95.

573
Couro impaial

de dólares. Em suma, a estrada para o progresso do Banco lVIundial e do


FMI se comprovou ser o que Susan G eorge chamou de "um destino pior
que a dívida".
Para compor o quadro, o colapso do mito americano do progresso foi
rapidamente seguido pelo colapso da União Soviética, que arrastou con-
sigo u ma completa narrativa senhorial do progresso comunista. O zi-
gue-zague do progresso hegeliano-marxista, administrado por uma eco-
n omia comandada pela burocracia, se baseava na suposição de que a
União Soviética chegaria inevitavelmente a seu destino. A queda do im-
pério soviético significou, para muitos, a perda de uma relação privile-
giada com a história, com o desenvolvimento épico de um progresso li-
near, ainda que espasmódico, e com ela também a promessa de que a
economia burocrática comunista pudesse um dia ultrapassar os Estados
Unidos na oferta de abundância de consumo para todos. E m conse-
q uência, houve também certa perda da certeza política no papel inevitá-
vel da classe trabalhadora industrial, masculina (e branca) como agente
privilegiado da história. Se a buroc.racia da União Soviética veio abaixo,
não foi sob o peso da mobilização industrial, popular, mas antes sob o
peso duplo de sua corrupção econômica e gastos militares insanos. Não
se deve perder de vista a ironia de que às economias ascendentes do Ja-
pão e da Alemanha tivesse sido historicamente negado o peso insupor-
tável da corrida armamentista. Assim, e a despeito do fato de que os
homens se estão matando uns aos outros por todo o globo, cada vez com
maior dedicação, hoúvê certa perda de fé no militarismo masculino
como garantia inevitável do progresso histórico. Além disso, pela pri-
meira vez na história, a ideia de progresso industrial impulsionado pelo
desenvolvimento tecnocrático está-se deparando com os limites dos re-
cursos naturais do mundo.
Ironicamente, a última zona da terra a aderir à ideologia iluminista
do desenvolvimento capitalista pode ser a que agora é controlada por
Boris Yeltsin e seus aliados. O mundo assistiu ao atônito Yeltsin e seus
companheir<:>s d e viagem se afastarem confusamente da estrada férrea
d a economia sob o comando centralizador comunista e chegarem, aos
. trancos e barrancos, à estrada capitalista da descentralização, não mais

574
'Pds-tscrito - O anjo do progrtrso

alimentados pela dialética como motor e garantia do progresso, mas pela


competição escancarada e pela louca mercantilização. Não importa se
esse desvio vai provavelmente levar a um desastre em escala comparável
à fome que se seguiu à revolução bolchevista original, nem que a fera
que emerge do caos não seja o capitalismo ocidental, mas uma forma
particularmente horrenda de fascismo.
Tanto para o comunismo como para o capitalismo, o progresso era
uma jornada para frente e o início de um retomo; como em todas as nar-
rativas de progresso, viajar cm sua estrada era percorrer, mais uma vez,
uma estrada já percorrida. A metáfora da "estrada" ou da "estrada de
ferro" garantia que o progresso era um fato. A jornada era possível por-
que a estrada já havia sido feita (por Deus, pela dialética, pelo Weltgâst,
pela ironia da história, pela lei do mercado, pelo materialismo cientí-
fico). Como Hegel decretou, o progresso no âmbito da história era pos-
sível porque ele já havia sido realizado no âmbito da verdade. lVIas agora,
se a coruja de Minerva já levantou voo, há uma dúvida geral sobre se ela
vai voltar.
O colapso das teleologias de progresso, tanto comunista quanto ca-
pitalista, resultou numa crise duplicada e sobredeterminada das imagens
do futuro. A situação global incerta produziu uma sensação generalizada
de abandono histórico, da qual a prevalência das palavras com o prefixo
"pós", apocalíptico e fixando o tempo, é apenas um sintoma. O vendaval
do progresso atingiu tanto comunistas quanto capitalistas. Agora o ven-
to amainou e o anjo com as asas arqueadas medita sobre os destroços a
seus pés. Nessa calmaria do "fim da história", o milênio chegou muito
cedo e o ar parece carregado de sinais.
Francis Fukuyama declarou que a história está morta. O capitalismo,
diz ele, venceu o grande conflito hegeliano com o comunismo, e agora é
"pós-histórico". Os países do Terceiro Mundo fi cam para trás na zona
"histórica" na qual as questões são resolvidas pela força11• Longe do "fim
da história" e do triunfo do capitalismo consumista dos Estados Unidos,
no entanto, a nova ordem do dia mais provavelmente será a competição

11 . Frincls Fukuy:ima, "Forgct Inq- History is Dcad", 7ht Guardian, 12 ago., 1990, p. 3.

575
Couro impuial

multipolarizada pelas quatro regiões atualmente decisivas: o Japão, os


Estados Unidos, a Europa fortalecida e o Oriente Médio. O comércio
.•
de armas continuará, com os feiticeiros militares industriais do Armage-
don voltando sua atenção dos cenários da G uerra Fria para múltiplas e
dispersas guerras de atrito, empreendidas pelo Exército mercenário dos
;
Estados Unidos e de outros aliados e pagas pelo Japão e pela Alemanha.
Dentro dos E stados Unidos, com o desaparecimento do comunismo 1
internacional como razão para o militarismo, novos inimigos serão en-
contrados: a guerra às drogas, o terrorismo internacional, o Japão, as fe-
ministas, as hordas politicamente corretas e os radicais profissionais, os
trabalhadores sem documentos, lésbicas e gays, e qualquer quantidade de "
alvos étnicos internacionais.
Por essa razão, há certa urgência na necessidade de teorias inovado-
ras da história e da memória popular, particularmente da memória da
mídia. Perguntar-se que termo único poderia adequadamente substituir
"pós-colonialismo", por exemplo, coloca a questão de repensar a situação
global como uma multiplitidad~ de poderes e histórias que não podem
ser obedientemente agrupadas sob a bandeira de um único termo teóri-
·co, seja feminismo, marxismo ou pós-colonialismo. Tampouco a inter-
ven ção na história significa levantar, outra vez, o manto do progresso ou
a pena de ganso do empiricismo. C omo observou Fanon, "para o nativo,
a objetividade está sempre contra ele". P recisamos, cm vez disso, de uma
proliferação de teorias e estratégias historicamente nuançadas, que pos-
sa levar- nos a um engajamento mais efetivo nas poüticas de afiliação e
nas calamitosas decisões atuais do poder. Sem uma renovada vontade de
intervir no que é inaceitável, vemo-nos diante da perspectiva de ficar
atolados num espaço historicamente vazio no qual nossa única orienta-
ção é encontrada ao olharmos, perplexos, para a época que está atrás de
nós, num presente perpétuo marcado apenas como "pós".
Lista de ilustrações

Figura A.t -A situação da terra.Autorização: Amereon, Ltd., Box uoo,


r.ilattituck. NY u95:i_ _ __ _ _ _ _ __ _ __ ·- - - -·· -16
Figura 1.1 - Pornotrópico: As mulheres como marcadoras dos limites
do império. Fonte e autorização: British Museum ....·-············-··-··············...·........-..._..• 50
Figura 1.2 - Domesticidade imperial. Fonte: MtClurt's Maga:int, 13,
maio-out., 1899. Autorização: British Library --- ·-- --········-60
Figuras: 1.3, 1.4: Fonte e autorização: Robert Opie Collection
Figura t.3 - Domesticando o império_ ___ __ ···-·-- -·········-·-65
Figura 1.4 - A identidade nacional britinica assume a forma imperiaL ·--· -65
Figura 1.5 - Inventando o progresso: a árvore racial familiar. Fonte: Paolo
Mantegazza, Physiognomy and Exprtssion, PIates :i and 4 (Londres:
Walter Scott, 1890/r904), pp. 31:i, 314. Autorização: British Library -···-··-·--· 68
Fig1Jra 1.6 - Inventando a Família do Homem. Fonte: Artista desconhecido
in E. Haeckcl, Dit Naturli,ht Schõpfungsguchichtt, 1902. Autorização:
British Library....- - - - - -- -- --
Figura 1.7 -Tempo panóptico: o progresso consumido num golpe de vista.
Fonte:]. C. Nott and Gliddon, Typts c?f1Wankind(Ftladélfia: Lippincott,
Gramb and Co., 1854), p. 458. Autorização: British Library................-······················•-·7º
Figura 1.8 - Espaço anacrónico: a invenção do arcaico. Fonte: P,mch, LXXXI,
31 dez., 1881, p. 307. Autorização: British Library_ _ _ ---·---······-·-····-- 7:i
Figura 1.9 - Ivlensuração racial como ótica da verdade. Fonte: flarper's JVukiy,
vol. XX, 1041 (9 dez., 1876)- - - - - - - - -- - -- -- ········--·· 89
Figura 1.10 - "Calibãs celtas". Fonte: Puck, vol. X, 258 (15 fev., 1882), p. 378 ___ 92

577
Couro impuial

Figura 1.u - Homens africanos tornados femininos. Fonte: Allen F.


Gardiner, Narrative ofa Journey to the zq,;/11 Co11ntry in So11th Afri,a
(Pietermaritzburg: Shuter and Shooter, 1836), frontispício.
Autorização: British Librarr---····-·-···········-···--······· ·····----···- ·························95
Figura 1.12 - Mulher militante como degenerada. Fonte: Richard Francis
Burton,A Mission to Gele/e (Londres: Tinsley Brothers, 1864).
Autorização: British Library.............·-········-·····-···--·-···········-······-···········································.......95
Figura 1.13 - A mulher trabalhadora como degenerada. Fonte: 1he Diary
ofHenry Francis Fynn, ed.James Stuart (Pietermaritzburg: Shuter f•

and Shooter, 1950). Autorização: Shuter and Shooter _ _ _ ··········......................... 97


Hgura 1.14 - O progresso global consumido num golpe de vista. Fonte: Henry
Mayhew and George Cruikshank, 1851, or the Adventures ofMr and lvlrs
Sanboys 1heir Son and Daughter, Who Came Up to London to Enjoy 1hemselves
and See the Great Exhibitio,1 (Nova York: Stringer and Townsend, 1851).
Autorização: British Library .....................................................-............................................................... 99
Figuras: 1.15-1.17: Fonte e autorização: Roben Opie Collection
Figura 1.15 - O fetichlsmo da mercadoria toma..se global.._..........................................101
Figura 1.16 - O imperialismo coberto de açúcar...........................................- ........_.............. 102
Figura 1.17 - O império dos fetiches .................................................................................................. 103
Fi~'1lra 2.1 - O encanto da ambiguidade de gênero. Fonte e autorização:
Munby Archivc, Master and Fellows ofTrinity College, Cambridge...- .............. 125
Figura 2.2 - O espetáculo voyeurístico do trabalho feminino bruto. Fonte e
autorização: Munby Archive, l'vlaster and Fellows ofTrinity
College, Carnbridge.....- ..·..·····-···················..········........_.... ....................................·-·····r22
Figura 2.3 - O arquivo vivente do trabalho feminino. Fonte e autorização:
l'vlunby Archive, Master and Fellows ofTrinity College, Cambridge................... 126
Figura 2.4 - A sinistra duplicação do gênero pela classe. Fonte: John Tenniel,
Pun,h, XLV, 4 jul., 1863, p. 5. Autorização: British Library..- ..........................................156
Figuras: 2.5-3.18: Fonte e autorização: Munby Archive, Master and Fellows
ofTrinity College, Cambridge
Figuras 2.5, 2.6 - O circo da ambivalência de gênero _ ...................................................... 164
Figuras 2.7, 2.8 - Encenando a transgressão de gênero ____ ·······..····..................165
Figura 2.9 - A racialização da diferença de classe .................................................................. 167
Figura 2.10 - Abjeção: o temível objeto do desejo ................................................................ 168
Figura 2.11 - O esboço de Boompin' Nelly, uma mineira .................................................... 168
Figura 2.12 - Mulher fálica com pá, racializada ............_.. _ _ _.................................. 170
Figura 2.13-A racialização da diferença sexual.................. _ __ ___ .:.................. 171
Figura 2.14 - Mulher de fundição: o capuz como máscara-fetiche ........................... 171
r

,(jsta dt ilustraç6ts

Figuras 2.t5, 2.r6 - Raça como fetiche _ _ _ _ _ _._ _ __ _ _ _ _ 169


Figuras 2.r7- 2.20 - Raça como fetiche .._ ...............·-·-····.......................................................... I72
Figura 2.u - Passando-se por negta-••·-·--···--- ...........·-···-- -I72
Figura 2.22 - Mineira com a fálica pá.......................................................................................... r8o
Figura 2.23 -Ambiguidade de gênero .•_ ..........._ ..................................................................... r8r
Figura 2.24 - "O inspetor": Munby com uma mineira de Wigan .........- ................ 195
Figura 3.1 - Hannah Cullwick................- ....- ..... _............_ _ _ __ _ ................. 202
Figura 3.2 - A pulseira de cscrava _ _ _ __ _ _ _ _ _ _ __ ..........- 203
Hgura 3.3 - O fetichismo cxibido....._ .......- .....- ...- ........- ............·-···.............- .............. 203
Figura 3.4 - Nada a usar a não ser seus grilhões .....- - - - - - - .........- .....203
Figura 3.5 - Cullwick na faxina .-......_......- .......................................................................................203
Figura 3.6 - Cullwick disfarçada de dama ..........- ....... _ _ _ .................- ................... 204
Figura 3.7 -Travc:stismo de classe- - - - · · - ···-··--····............- .............................. 204
Figura 3.8 - Cullwick disfarçada de trabalhadora rural _.............................................. 204
Figura 3.9 - Travestismo de gênero: Cullwick como homc:m_.. _. ___......._ 204
Figura 3.10 - Cullwick como anjo ........- ...................................................................................... 205
Figura 3.n - Travestismo de raça e gênero: Cullwick como escravo ...................205
Figura 3.12 - O limiar perigoso: cxlblção do fetiche da sujeira....................................207
Figura 3.r3 - Cullwick hlvando o chão-...................................................-.................................... 219
Figura 3.r4 - Cullwick como dama. - - - -· - - - - --·-..· - - -220
Figura 3.15 - Exibição desafiadora- -·..·- -- -- - -·-..···...-..................._ ..... 225
Figura 3.16 -A parafemilia do fetichismo doméstic.,__ _ _ __ ....- ...··-···228
Figura 3.17 - O fetiche da sujeira.....- ..- ....- ........._._..................................................... 228
Figura 3.18 - Domesticidade como exibição __...........- -.... _......._ ............................... 228
Figuras: 3.19-3.21: Fonte e autorização: Robert Opie Collection
Figura 3.19 - O ato do desaparecimento do trabalho ..- -................- ................ 246
Figura 3 . 20 - O fcüdtc da brancura- · - - - · - - - - - - ·-·--...........246
Figura 3.21 - O culto da limpeza....- ......- ....- ............._ .......................-................................ 246
Figura 3.22 - O fetiche das botinas. Fonte e: autorização: Munby Archive,
Mastc:r and Fc:llows ofTrinity College, Cambridge............................................................. 248
Figura 3.23 - O fetiche da mercadoria botina. Fonte: ref.: COPY ú3or,
Londres: Public Record Office. Autorização: Public Record Office ....................... 257
Figura 3.24 - O culto da pureza das fronteiras. Fonte e autorização:
Robert Opie Collection.__._ __ ._ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ ..... 257
Figura 3.25 - Cullwick no finaJ de sua vida. Fonte e autorização:
Munby Archive, l.Vlastc:r and Fcllows ofTrinity College, Cambridge................... 268

579
~.
Couro imptrial

Figura 5.1 - Raça e o culto da domesticidade. Fonte e autorização:


A. & F. Pears Ltd. ___.._.__...._ _._ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _317

Figura 5.2 - O espaço anacrônico: limiar de domesticidade e mercado.


Domínio público.-...........- ...· - - - - - - - - - - - - - - - - -............317
Figuras: 5.3-5.6: Fonte e autorização: Robert Opie Collection
Figura 5.3 - Britannia e a domesticidade- -..-·..·- -..·--..- ....- ...................- ....... 324
Figura 5.4 - Imperialismo nacional ..._....... _ _ _ _............................................................. 324
Figura 5.5 - Fetichismo nacional ....·-·- - ·· 325
Vigura 5.6 - O chá chega à selva. ....- -...- ..-·..·-..- ............._ 326
,
Figura 5.7 - Tempo panóptico: progresso racial num relance. Fonte: ref.:
COPY 1/264 1 Public Record Office. Autorização: Public Rc:co rd Office ..............326
Figura 5.8 - A mágica mercantil e o desaparecimento do trabalho feminino.
Fonte: rcf.: COPY i/144 PT 1 1 P ublic Record Officc. Autorização:
Public Rccord Office. - - -..·..-·-·-·.. ·- - · · · - - · - - - - ·........· --···.. J'7
Figura 5.9 - O mito do primeiro contato. Fonte e autorização:
A.l!t. F. Pcars Ltd .................- ......._.... · ..- ...· - - · - - -JJO
Figura 5.10 - A marca conquistadora. Fonte e autorização: A.&F Pears Ltd........ 332
Figura 5.11 - O progresso imperial como espetáculo mercantil. Fonte: sem
informações no livro original ................................................................................................................... 332
Figura 10.1 - O aperto de mãos do comércio imperial. Fonte e autorização:
Robert Opie Collection...................- ............... _ _ __ _ .........- ...· - -........................520
Figura 10.2 - A mulher como marca das fronteiras nacionais. Fonte:
ref.: 1/x70. Autorização: Public Rccord Office_.........................._._...........................- ..........520
Figura 10.3 - O gênero como sustentáculo do nacionalismo. Fonte e l
autorização: Robert Opie Collection ....................-.......................................................................... 521
Figura 1:>.4 -A familia branca g_o homem. Fonte: H .J . Kloppcr,
Gtdmkboek, Etufus: r838-1939, Nasionale Pers (Cape Town:
Nasionale Pers, 1940). Autorização: Nasionale Pers.__..__ .._.._._..........- ..........544
Figura 10.5 - Gênero e fetiches nacionais. Fonte e autorização: Die Burg"_..........545
Figura 10.6 - O mito das terras vazias. Fonte: H .J. K.loppcr, Gedmkóoek.
Eeujus: r838-1939, Nasionalc Pers (Cape Town: Nasionale Pers, 1940).
Autorização: Nasionale Pers.. _..... _ _ _ _ _ _ _ _ .._ ..............- ...............545
Figuras: 10.71 10.8: Fonte e autorização: Die Burg"
Figura 10.7 - A divisão racial do trabalho ............-···-·.........- ...............- ..........._......_ .....546
Figura 10.8 - I nventando o arcaico .......................................-............................................................546
Figura ro.9 - Mulheres como marcadoras das fronteiras raciais. Fonte:
H .J. Klopper, Gtdmkboel:, Etuftu: r838..1939, Nasionale Pcrs (Cape Town:
Nasionale Pers, 1940). Autorização: Nasionalc Pcrs .........- -.. - - - - . .. .... 551
fJsta de ilustraf6ts

Figura 10.10 - Ritual das fronteiras nacionais. Fonte: H .J. Kloppcr,


Gtdenkboek, Eeuftu: 1838- 1939, Nasionale Pers (Cape Town:
Nasionale Pers, 1940). Autorização: Nasionale Pers - - --··-····"·····55l
Figura 10.u -A mãe militante. Fonte: Voice ofWomen, African National
Congress. Auto rização: African Nacional Congress.-- .--...- ........... _._...................558
Figura 10.12 - As ajudantes da Unidade Nacional: quando chegará o
seu tempo? Fonte: Don McPhce. Autorização: The Guarditm ..................................... 559
Figura 10.13 - Adeus ao paraíso futu.ro. Fonte: Pax 1\ilagwua, Afrapix.
Autorização: Agenda: A journal About 1Vomen and Gende,; 20, 1994, p. ro ........... 563
Figuras: 10.14, 10.15: Fonte e autorização: IDAF {Intemational
Defense & Aid Fund for Southern África) Figura ro.14 - Mulher
sozinha protesta contra tropas que ocupam sua cidade com veículos
militares chamados de Mhipopótamos". Soweto,jul., 1985 ................................................568
Figura 10.15 - Participantes de um funeral denfiam a policia, cm
Township, 1986 ........................- · - - - - - - - - - · - · - - - -....- ............._568

581
T

.,'
'

' 1

.,
;

Indice

A africânercs (povo): nacionalismo, 541-43,


abjeção: colonial, 359-61; das negras 554; jornadas dos, 543-52, 548074
africanas, 393-8; a psicanálise e, u8-22 alegoria, 'lhe Story ofna African Farm [A
abjeção de gênero, classe e, rlír-6 estória de uma fazenda africana] de
abjetos, povos, 119 Schrciner como, 406-9
África: comércio pré-vitoriano com a, alegoria feminina: A estória de uma
335-6, 340046; culto da domesticidade faunda africana de Schreincr como,
na, 39; falta de limpeza percebida na, 406-9
333, 333027, fetichismo na, 2n, 279-80, Ali Sorts and Conditions of/Vim (Besant),
281; relação dívida-serviço da, 571-72 186
África do Sul: colonialismo britânico ambiguidade de gênero, 125
na, 364-8; comparação de mulheres ambiguidade social, raça e, 166-72
negras e brancas, 121; cultura negra ambivalência colonial, na era vitoriana,
na, 490; descoberta de diamantes
103-9
na, 341,342,364; descoberro. de ouro
na, 342; gênero e a nova, 564-8; ambivalência de gênero, descobrimento
nacionalismo na, 40; priVllção de imperial e, 49-54
mulheres e crianças na, 47m60; And Thry Didr.'t Die [E eles não
questão do trabalho e, 428-30; morreram) (Ngcobo), 564-8
relações de gênero na, 342 Anderson, Bcncdict, sobre o
africãncr (língua): 'lhe Longfcurnry of nacionalismo, 517,525,547
Poppit Nongma [A longa jornada de anjo do progresso, pós-colonialismo e o,
i
f
Poppie Nongena] publicado cm, 434,
435; prevalência e.orno língua, 437-9,
15-40
Anthias, Floya, sobre mulheres e
1
43809 nacionalismo, 521-22
1
r'

1
1
r
Couro impuial

antissemitismo: de Haggard, 362; 1he Battle ofAlgin-s [A Baulha da


oposição de Schreiner ao, 419 Argélia) (filme), 568
apartheid, efeito sobre as mulhere.s, 453 Baudelaire, Charles, 133-4; memória da
Appiah, K. Anthony, 25ru7, 3m25 babá de, 133
"A Argélia se desvela" (Fanon), 534-40 Beddoe,John, médico, Índice de
Negritude, 90
Armstrong, Nancy, 141, 14m73, 251, 25m93
Benjamin, Walter, 448; sobre a alegoria,
árvore da familia, 526; degeneração e,
407-8; sobre o capitalismo industrial,
85-90; racial, 69
525; conceito de jldntur de, 131, 132
Árvore da Familia do Homem, 67, 68,
69,526
Bentham,Je rcmy, o Panóptico de, 99 ..
Bcrgcr,John, sobre a fotografia, 188
atu:ição de gênero, Fanon e, 527-40
Bcsant, \,Valter, Ali Sor/J and Conditions
Auerbach, Nina, 1he Hilman and lhe
Demon, 153-4, 154-5
oflvfen, 186
Bhabha, Homi: sobre a ambivalência
autobiogr:úi:i(s): 1he LongJourney of
colonial, 104-9; sobre Fanon, 530-32;
Poppie Nongma [A longa jornada de
sobre o fetichismo, 173-4, 273ru3,
Poppie Nongena] como, 434,453, 456,
174014; sobre naçõc,,525
474; de mulheres, 453033, 455037-9; o
"Prelúdio" de Schreiner como, 398; Bilco, Steve, sobre a cultura negra, 498
raça, gênero e, 451-58 biomitografia, definição de, 458
azikwelwa, 479-515, 514nro2 BlacA: SJ:in, White Mash [Pele negra,
m;l.scaras brancas J(Fanon), 517-32
B Blamt Me on History [Culpe a mim na
históri:i] ~ lodisane), 489
Baartman, Saartjie, como espécime de
fêmea anacrônica, 74, 74"49 Bochmcr, Elleke, sobre o nacionalismo,
babi(s): de Churchill, 139, 139036, 140; 519
efeito sobre a homogeneidade da A BooJ. ofSouth African Vtru [Livro
familia, 150063; de Freud, 132-3; de de poesia suJ-afrie1na) (Oxford
Haggard, 346; de homens fa,no_sç,s, Univcrsity Prcss), 500
131-3, 139036, 2r8n2r, importância na Booth, William, ln Darkesl England and
memória masculina vitoriana, 136-40, th, JVay Out, 185-6
159, 139035; de Munby, 128-30, 135, 197, botln:lS, Íctid ,e de, de Cullwick, :07, :47-
218, 122; poder da, 138-40, 140-2 50, 154-8, 256ruor
Bacon, Francis, 46 Bovril, propaganda, 331,332
Balibar, Etienne, sobre a nação, 519 Branca, Patrícia, sobre as mulheres
Banco Mundial, 570,571, 57m3, 572, vitorianas de classe média, 242,
57205-6, 573,574 242077
bantustões, 429,433, 434,440,474,565, brancura, como etnia, 15016
56r, segregação tribal nos, 493 Brink. Andre, sobre Pcppie Nongma I

Bamett, Ursula, sobre a poesia negra, 505 como "faction~, +u-4


Barratt, Thomas J., papel na propaganda Broca, Paul, estudos raciais anatômicos
do sabão Pcars, 314-5 de, 87
Índia

Brooke's, propaganda do sabão, 322 ciclorama, como fenómeno vitoriano,


Buck-l'vlorss, Susan, 29022, 691144, 100, 691144, 98-100
101098, 525014, 550077 cidades, mulheres trabalhadoras
Bulwer, Henry, 350, 36r, Haggard como vitorianas das, 123-99
assistente de, 350 cinema, metáforas imperiais de gênero
Butler,Judith, sobre Lacan, 298 no, 57032
circo, o fascínio de Munby pelas pessoas
do, 165-6
c Ci.xous, Hclene, sobre mulheres como
Calibãs Celtas, como "negros brancos",
primevas, 290
90-98
classe; abjeção de gênero e, 161-66; raça,
Campanha de Desafio (1952), 493
gênero e, 19-27
capitalismo, imperialismo e, 179
classe média, comparação da classe
Carby, Hazcl, 23, 2308 trabalhadora com, 137030
Carlyle, Thomas, 82, 20604, 330 classe trabalhador:i: compar:ição com
carroças, das jornadas africãneres, 543-6 a classe média, 137030; estereótipos
casamento: na África do Sul, vitorianos da, 93, 96
importãncia para a identidade social classes degeneradas, 80059
das mulheres, 469-74, 470058; a The Classic (revista literária negra), 495-6
instit1.1ição vitoriana do, 267nt24, 268,
Código Napoleónico, 524
417,419,420; opiniões de Schrciner
sobre, 415, 417-8 colar de escrava, usado por Cullwick, 206,
232,263
categorias articuladas, gênero, raça e
classe como, 19-27 Colombo, Cristóvão, a fantasia de seios
de, 43, 48, 51
catolicismo, a exposição de Freud ao, por
,ua babá, 144 colonialismo, mulheres e, 2106, 21-22,
2207, 58
cent,rios S&l, 215020. Ver tambim ritual
fetichista senhor/escravo; da relação Comaroff,Jean e John, 64040, 333027,
de Cullwick e Munby, 214-23 334n28,340,38on3
Cetshwayo (rei Zulu), 365,366 Comissão de Emprego de Crianças
(1842), 176, 179, 181
Cetywayo and His White Nâghbours
[Cetywayo e seus vizinhos brancos] Comi$SãO Real de Agricultura (1867), 181
(Haggard), 364,374 Company Acts de 1856-1862, 250
Chasseguct-Smirgel,Janine, sobre o Congresso dos Sindicatos da África do
fetichismo, 287 Sul, 561
Chlorinol, propaganda do alvejante, Congresso Nacional Africano (CNA),
325-9 379,429,493,495; Liga das .Mulheres
Chodorow, Nancy, sobre criação de filhos Bantu do, 556; primeiros anos
e matemidade, 140037, 464 do, 555-6; "Proclamação sobre a
Emancipação das lvlulheres", 560-1;
Churchill, Winston, a babá de, 139,
questões femininas e, 560084, n85
139036, 140
Couro imperial

Congresso Nacional de Nativos Cry Rage [Grite ódio] (1\-Iatthews e


Sul-Africanos (CNNSA), como Thomas), 503,509
precursor do Congresso Kacional Cullwick, Hannah, 383; aliança
Africano, 555 interclasses com 1\-lunby, 40, 123,
Congresso Pan-Africanista (PAC, sigla 201-70; casamento com 1\-lunby,
em inglês), 495 264-70; diários, 40, 201, 206-7, 210,
Conrad,Joseph, 186, 46n12; Htart o/ 220,224, 234-5, 247, 254-5; fotografias
DarJ:.ness [Coração das trevas], de l\1unby de, 198; juventude, 211-
no-1 2, 226-7, 232-3; relação de poder
doméstico com Munby, 210-1, 214-
Consciência Negra na África do Sul,
217, travesrismo de, 204, 205; valore.s
movimento da, 48m5, 497-9, 502,507,
de classe trabalhadora de, 233-7, 238-9
514
culto da domesticidade: na África,
Conselho de Teatro de Natal (Tecon),
39, 63; na era vitoriana, 63, 64, 227,
503
253; importância para o mercado
Contagious Diseases À(ls [Leis das industrial e para a empresa imperial,
Doenças Contagiosas] (anos 1860), 20, 250-1, 307,310; ritual fetichista
419-20 senhor/escravo e, 217-23; travestismo
Convenção do Povo Negro (1972), 49$ e, 201-70
Convenção do Renascimento Negro em cultura negra, na África do Sul, 490
Hammanskraal (1974), 503 ..
Cook,James, coment:irios sobre os D .
nativos australianos, 339
Darwin, Charles: A origem das esplcits, 1.•
Coplan, David, ln Township Tonight 66, 84J16T, teoria como panorama da
[Hoje à noite no bairro], 490 evolução, 69144 ..;\
cor da pele, preocupação vitoriana com, Darwinismo, 67, 78, So, 413,415,523
91, 93
da Silvestre,José, 15, 17, 19
criadas domésticas: nas casas vitorianas,
Davidoff, Leonorc: sobre criadas
136-7, 151-5, 137n30, 242n76, 243080;
domésticas, 169n96, 20503; sobre
difíceis condições de trabalho, 175-6;
Cullwick, 205, 209
equivalência com sujeira e poluição,
169n96; estereótipos vitorianos, 91-3; Dt Bttrs Consolidattd A1ines Company,
invisibilidade do trabalho, 2,un82, 399,421
245-T, poder comparado ao das degeneração: a árvore da família e, 85-90;
esposas vitorianas não assalariadas, na família Haggard, 347-50; Gagool
154; valor econõmico como trabalho, como exemplo de,359-61; visões
243 vitorianas da, 80-5, 247
cristianismo: papel na vida de Cullwick, degeneração de gênero, como forma de
23r, significado do batismo no, 56, dominação social, n
298 degeneração racial, 75, 76-T, como forma
"cromatismo", 38n34 de dominação social, n
Cronwright, Samuel C., o casamento de degeneração sexual, 941191; temida, nas
Schreiner com, 422 mulheres mineiras, 178, 181

586
Índia

De homem para homem [From Man lo Enloc, Cynthia, sobre o nacionalismo, 518
Man ] (Schrciner), 390, 396,398,414, Eno, Sal de Fruta, como fetiche colonial,
415; enredo de, 4t5-2t 336-8
de Klerk, F. W., 564,567 era vitoriana: espaço anacrônico da,
de Laurct.is, Teresa, sobre gcnero, 45t 71-75; fronteiras rígidas na, 61;
diamantes, campos de, da África do Sul, humanos anacrônicos na, 58;
341, 34:2, 364,375,399,400,540 propagandas de mercadorias na,
60-1
diários: de Cullwick, 40, 201 1 206-8,
209n5, 110, 220, u4, 234-6, 247,253; de escravos, na Inglaterra medieval e
Munby, 124, r35, 2..,,, 2o?ns vitoriana, 173-5, 231-2
Dilke, Chades, 4n escritores de Sophiatown, 483-93
dinheiro, raça, sexualidade e, 15-40 espaço anacrônico: como conceito
na era vitoriana, 71-75, 319; o
doença, história fundada no gênero,
deslocamento dos povos indígenas
401016
para, 57-8, 72; A Exposição
Dollimorc,Jonathan: sobre Lacan, 297, lVlundial (1851) como corporificação
sobre a perversão, 27205; sobre a do, 98-103; da massa urbana, 183-4;
psicanálise, 293 minas do rei Salomão, As e, 357-9;
domesticidade: culto da. Ver culto da as mulheres da classe trabalhadora
domesticidade; racionalização da, como habitantes do, 173
251-3; racismo da mercadoria e, 59-66 espelho, como fetiche, 60-1, 316· 7, 322·3,
dona de casa, atividades da, na era 340
vitoriana, 244, 245 espetáculo do lazer, na cena doméstica
"Dora", como paciente de Freud, 15m66 vitoriana, 239-45
Douglas, Mary, 49, 49018, u8, 228, u8043 espetáculo mercantil: a feira mundial
Drum [Tambor] (revista sul-africana), como, 101098; imperialismo como,
484, 486, 488-9 98-103, 332; sabão e, 311-4
du Camp, Maxine, sobre a fotografia, 193 espetáculos de consumo, na era vitoriana,
62
Estado Htbrido (exposição), :27-8
E
A estória de uma fazenda africana [ 1he
Eagleton, Tcrry: sobre o nacionalismo,
Story ofnn African Farm] (Schreiner),
533; sobre valor estético, 513
378, 384-5,387, 390, 392-3, 404-9, 410-
Easl End: seus habitantes na Londres 1, 418, -42r, 427
vitoriana, 185
•Eu= Ela", equação na teoria da
Édipo, teoria de Freud, 141, 142-3, 145, 150, identificaçâo de Freud, 147-9, 151
152, 293-4
exploradores urbanos, nos anos 1880
Ellis, Havelock: Schreiner e, 394,403 vitorianos, 185-7
1he Empire 1-Vriles Back (Ashcroft et aJ.), Exposição Mundial (Londres, 1851),
31 como espetáculo mercantil, 98-103,
Engels, Friedrich, sobre a família da 309
humanidade, 75-7
Couro imperial

F fetiche de infantilismo, de Munby, 221, -~


Fabian,Johannes: sobre o objetivismo, 221033
187-8; Time and lhe Other: H ow fetiches racistas, 275
Anthropology Mnlm Iu Objects, 66 fetichismo: definição, 336035;
fartion , definição, 443-4 imperialismo e, 2n·83; origens
falo, significado lacaniano do, 296-7, 299, da palavra, 271, 2n·8; racial. Ver
300 fetichismo racial; vitoriano, 282019;
na zona contestada,334-40
família: na o-adição g rega e romana,
265nuB; invenção da, 461-8; paradoxo fetichismo da mercadoria, 225, 230, 255,
,...
I

d a, 78-80 271,326, 334030; ritual d o nascimento


m asculino e,361-3
..
:i.
Família do Homem, 18, 69, 71, 76, 97,
98, 270, 343; decadência e fracasso fetichismo de mãos: de Munby, 158, 161,
da, 344-7, 404-6; nacional, 522-4, 170, 214, 237, 24T, na era vito riana, 245
527; registro fotográfico da, 190; fetichismo feminino: feminismo e, 301-4;
reinvenção da, 150-3, 316,368,376 psicanálise e, 271-304
Fanon, Frantz, 40,449, 485, 518-9, 567, fetichis mo racial, travestism o, hibridez
572; A/geria Unveiled [A Argélia se e, 109-15
desvela), 534 -40; atuação de gênero e, flánnir. Arthur J\llunby como, 131-6; o
527-40; Blac/1. Skin, White Maslts (Pele enigma das origens de classe e, 134-6
negra, máscaras brancas), 527-33; 1Jx
Flaubcrt, Gusravc, 193
Wretcbed ofthe Earth [ Os condenados
da Terra), 529 Fliess, Wilhelm, correspondência de
Freud com, 141, 42, 144-5, 148
"O fantasma no espelho" (charge de
Tennicl), 156-8 Forster, E. M ., A Passag, to India, 186
fotografia; na era vito riana, 62, 78; de ..,
feminilidade, imagem vitoriana •
duplicada, 153-8 mulheres da classe trabalhadora por
Munby, 194-99; tempo panóptico e,
feminino, a identificação de Freud com
187-90; de trabalhadoras vitorianas,
o, 147-9
124
feminismo: fetichismo feminino e;, 301-4;
Foucault, Michcl, sobre o fetiche senhor/
das mulheres negras, 452; relação com
e Scra\,-O, 215-6
classe, raça, trabalho e din heiro, 24;
c.lc Sclu-cincc, 4 21 Frente de Libertação Nacional Argelina
fctiche(s): de Cullwick e l\ilunby, 207-8;
(FLt'l), 540
definição freudiana de, 208; espelho Freud, Sigmund: identificação com o
como, 60- 1, 316-7, 312-3, 340; função, feminino, 147-9; In1erpreta;áo dos
176; luz como, 61; macacos como,318- sonhos, 148; O mal-atar na rivili%11{áo,
11; pulseira de escrava como, 224-7, 118; memó rias da babá, 131-3, 138, 140-
raça com o, 171; roupa branca como, 4, 145-7, 148-9; negação do fetichismo
59, 60-1, 104,145,316,340; sabão feminino por, 283-9; psicanálise
como, 60-1, 104, 316-8 tradicional de, 120, 140; sobre os
genitais femininos, 74, 284-5; teoria
fe tiche da sujeira: de Cullwick e Munby,
do fetichismo, 108,259, 271, 272-5, 278,
107,210, 12.7-8, 237; da era vitoriana,
285036, 2871147, 301; Totem e tabu, u8
228-32

588
Índict

Friedman, Susan Stanford, sobre Gilroy, Paul, sobre a cultura popular


autobiografias de mulheres, 457 negra,2014
fronteira norte-americana, gênero na, Ginwala, Frene, sobre o Congresso
Nacional Africano, 555
57º3 2
Froude,J. A.: sobre a nobreza vitoriana, Gladstone, William E., 412
348-9; sobre o ócio do africano negro, Goldm City Post (jornal da África do
3;1 Sul), 486
Fryer, Peter, sobre os negros na Grã- Gordimer, Nadine, 502
Bretanha, 2004 Gould, Stephen J., 85069, 88, 94089
Fuences, Carlos, 496 Governantas: intimidades sexuais com
Fukuyama, Francis, sobre história e as crianças, 138n31; na era vitoriana,
capitalismo, 575 403032
Fundo Monetário l ntemacional, 570,574 Gramsci, Antonio, sobre os intelectuais,
508
G Grande Depressão, na Inglaterra (1880),
Gagool ("mãe-bruxa" cm As minas do rei 411-2
Salomão), 15, 17-8, 346, 353, 359-63, Grande Jornada, dos africâneres, 543-52
372,375 Greene, Graharn, sobre As minas do rei
Gallop,Jane, sobre a babá e a Salomão de Haggard, 346
l:omogeneidadc da família, 15on63 Grundlingh, Albert, sobre a Segunda
Galton, Francis, estudos raciais Jornada dos afric:ãneres, 548-9
anatômicos de, 87 Guardianship oflnfants Act [Lei da
Garber, Marjorie: sobre o fetichismo Guarda das Crianças) (1886), 4u
fálico, 302-3; sobre o travestismo, 261- Gubar, Susan, 1he 1\.1adwoman in the
2; Vested Inurests, u2, 26omo3 Attic, 153
Ga:uta Govtrnammtal Extraordinária S!;1erra anglo-bôer (1899-1902), 323021,
(1966), a repressão dos escritores 3n,424,437-8,485,541,552-3
africanos negros pela, 495 "Os guetos" (Ntsu kaDitshego/Dube), 511
Gellncr, Ernest, sobre o nacionalismo, Gusdorf, George, sobre a autobiografia,
517,519 453033, 454-5
gênero: identidade social e, 458-61; Gwala, l\tlafika, sobre a cultura e a
imperialismo e, 2004; nacionalismo, identidade negras, 498,499, 507-8,
raça e, 517-68; raça, autobiografia e,
510,512
451-8; raça, classe e, 19-27
geografia militante, 46m2
H
Gibbons, Lukc, sobre o mapa de
brinquedo colonial vitoriano, 102-3 Haeckcl, Ernst, a teoria da recapitulação
de, 88, 88075, 076
Gilbert, Sandra: sobre Haggard, 346; 1he
Haggard, Henry Rider, 89,381; na África
.Madwoman in the Attic, 153
do Sul, 341, 350-7, 364-8, 369,374,375,
Gilman, Sander, 73-4, 74048, 81, 96095, 376; como assistente de Bulwer, 350;
174mo6
- ,-

c()Ur() imperial

Cetywayo and His White Neighb()urs Huntley and Palmers, propaganda dos
[ Cetywayo e seus vizinhos brancos], biscoitos, 325
364,374; juventude, 344-50; mapa
de, 15-9, 43, 48, 51, 52; As minas d() rei
Salomão [King Solomon's Mines], 15,
I
27, 40, 341-3, 34204, 346-7, 352-63, 365, identidade social, gênero e, 458-61
366,371,372; sobre Schrciner, 412; She, imperialismo: como aspecto da
34204; A vida e sua autora, 345 modernidade ocidental, 20; din:lmica
Hall, Catherine, 20503, 243081, 249, 31m8 de gênero do, 20, 2004, 21, 36;
Haraway, Donna, sobre a primatologia, como espetáculo mercantil, 98-103;
319-20 fetichismo e, 277-83; genealogias
do, 43-122; Grande Depressão e,
Harrison,John Fletcher Clews, sobre a 412; mulheres como marcadoras de
classe média, 137030 fronteiras do, 47-9; multidão urbana
Heart ofDarlmess [Coração das trevas) e, 182-5; os papéis dos grupos de
(Conrad), 110-1 poder no, 38; como tema de As minas
Hegel, G. W. F., 73, 277m7, 532-4, 539, do rei Sal()m/Jo, 15; vitoriano, 230
574,575 ln Darlust Africa (Stanley), 186
Heilbrun, Carolyn, sobre a autobiografia, · 1n Darlust England and the Way Out
455037 (800th), 186
"Hell, well, Heaven" [ O Inferno, bem, o industrialização, na Inglaterra vitoriana,
Céu) (Serote), 505 75
hibridez: o escândalo da, na África do "ln Search ofBooks" [À procura dos
Sul, 433-6; travestismo, fetichismo livros] (Tiali), 496
racial e, 109-15 lnterpretapão dos sonhos (Freud), 148
história oral: Poppie Nongena como, 453, ln Trr..:mship Tonight [Hoje à noite no
476-7, na África do Sul, 448-50 bairro) (Coplan), 490
Hobsbawm, Eric, sobre o nacionalismo, invisibilidade, do trabalho doméstico
517,5 27 vitoriano, 243-5, 245-7, 248
Hocquenghem, Guy, sobre capit;i,fümo e lrigaray, Luce: sobre mímica de gênero,
família, 2971171 .,,.
1,

104-5, 107-9, 108, 245083, 395; sobre


/-fome and Exile [Pátria e exílioJ (Nkosi), patrimônio,55; Speculum ofthe Other
489 Wóman, 286, 187042
homens: africanos. Ver homens africanos; irlandeses, estereótipos vitorianos dos,
nomeação como garantia de 9o-3
paternidade pelos, 55 isanusis (mulheres africanas), 361
homens africanos, femini7,ação dos, 94,
95
J
homossexualidade, 285036, 293059; na
África do Sul,56m86 Jayawardena, Kumari, sobre motins de
mulheres, 562
hooks, bell, 23, 2309, 25, 25m5
Jones, Garcth Stedman, Outcast London,
Hulme, Peter, 49023, 50 81

59º
Índiu

jornadas, dos africãneres, 5.t3-52, 548074 Lei da Educação Bantu (1953), 486, 494,
Joubert, Elsa: como escritora, 433; 7he 496,502
Long]oumey of Poppie Nongma [A Lei da Extensão da Educação
longa jornada de Poppie 1'ongena] Universit:iria (1959), 494
(transcrito e craduzido por Joubert), Lei das Ár~s Urbanas e Trabalho Bantu
433-4, 440-7, 450,459-n (1964). 473,556
judeu(s): antigo membro da família Lei de Publicações e Espetáculos (r963),
Haggard como, 34T, estereótipos
Lei de Registro d a População (Africa do
vitorianos dos, 93; posições de
Sul), 493
H aggard a respeito dos, 362; posi~o
de Schrci ncr sobre a conu il,ui<;ão Lei d e Reguhunento das Ivl inas de
dos, 429 Carvão (1842), 176
Lei de Supressão do Comunismo (r950),
493,495
K
leis de salvo-conduto, na África do Sul,
Kandiyoti, D cniz, sobre o nacionalismo,
469-74, 495
524
Leis de terras (África do Sul, 1913, r936),
Kaplan, Cora, 24, 24n12
430,471
Kgositsile, Kereope_tse, 1\1y Namt is /lfrica
lésbicas. Vn- também homossexualidade;
[Meu nome é Africa], 503
fetichismo feminino e, 192-3
Kim (Kipling), nr, u5-8
Liga das M ulheres Bantu, do Congresso
• K.ingsley, Charles, sobre os irlandeses, 320 Nacional Africano, 556
.
~ Kipling, Rudyard, Kim, 1u, 115-8 Liga pela Emancipação das l\i[ulheres,
Kofman, Sarah, sobre o fetich.ismo,3o r 429-30
Krafft-Ebing, Richard von, sobre o limpeza; em povos africanos, 333027, a
: fetiche senhor/escravo, 217 obsessão vitoriana pela, 311,313, 332-3
••. Kristeva,Julla, sobre a abjeção, 118-9 Lineu, Carl, Systema Natura, 62, 66, 74
Kruger, J immy, supressão da poesia negra Livingstone, Douglas, sobre poesia, 507
por,507 "livro do sexo", Mulher t trabalho [Woma11
Kunene, Maizisi, 495; Zu/u Potms and Labor] de Schreiner como, 424
[Poemas zulu s),503 Lloyd, D avid, 91, 9m83
Locke,John, 265-6
L Lodge, Tom,sobre o Congresso Nacional
Lacan,Jacques, 109, n2, u4, 261, 295067, Africano, 555
atuação feminista e, 299·301; negação 7ht Long Joumry ofPoppit Nongma [A
do fetichismo feminino por, 189-94; longa jornada de Poppie Nongena)
\ reinvenção da familia parernallsra (transcrito e traduzido por Joubcrt),
por, 294-9; teoria do fetichismo, 208, 434, 441-7, 450, 458-77; recepção
273, 274. 275; pública de, 436-42
Lazreg, l'vlarnea, sobre interpretação Lombroso, Ccsuc, estudos raciais
feminista, 442 anatômicos, 87

59[
Couro imptrial

Lorde, Audre: sobre o feminismo lésbico l\1atshikiza, Todd, 484, 495


negro, 452; Zami: A New Spelling of i\·latthews,James, Gritem a faria (com
My Name [Zami: uma nova escrita Thomas), 503,509
de meu nome], 458 Mayhew, Henry, sobre as classes
loucura, história fundada no gênero, degeneradas, 80059
4omi6 fl.-len and íVomms Club [Clube de
Lukács, Georg, sobre propaganda de Homens e Mulheres), Schrcincr
mercadorias, 315 como membro do, 412
luz, como fetiche, 61 menino negro, na propaganda de sabão,
316-7
J\11 l'vlercer, Kobena, :25ru7, 104, 1040102
macaco, como fetiche, 318-21 mestiçagem, visão vitoriana da, 84
lVlachercy, Pierre, sobre As minas do rei metrópole, mulheres trabalhadoras
Salomão, 356-7 vitorianas da, 1:23-99
1he Madwoman in the Attic (GUbert e militante, geografia, 46012
Gubar), 153 mímica: colonial, 103-18; de gênero, 104-5,
mães, cm famílias vitorianas de classe 109, no; como resistência, 245083
alta, 139-40, 152 mímica colonial, na era vitoriana, 103-9
Mailer, Norrnan,faction de, 443-4 mímica de gênero, 104-5, 109, no, 395,
•,'
Makeba, l'vliriam, 557 245083
O mal-erlar na âvi/iz.a;ão (Freud), 118 As minas do rei Salomão [King Solomon's
Mines] (Haggard), 15, 27, 40, 341-3,
iVlandcla, Nelson, 495,564
34204, 346-7, 352-63, 365,366,371,372;
!Vlandela, Winnie, 523,557 argumento de, 352·63
l'vlanganyi, N. Chabani, 512 mineiras, mulheres como, 163, 175-82
"Manifesto não comunista" (Rostow), 570 mineiras de Wigan, 175-82; o fascínio de
maniqueísmo, 529,530,533,540 Munby por, 163, 1j5-6, 180, 194, 195
Mantegazza, "A Árvore Morfológica das mineração na Africa do Sul, 402
Raças Humanas", 68 mitografia, definição de, 458
"lhe Marble Eyc" [O olho de vidro] Modisane, Bloke, 4591148, 484, 487020,
(M:shali), 5n 495; Biame 1Wt on History [Culpe a
Marquard,Jean, sobre Poppie Nongena, mim na história],489
444,447 Mohanty, Chandra T., "Mulheres do
Married H~mens Property Act [Lei da Terceiro l'vlundo" de, 562
Propriedade das l\,1ulheres Casadas] Monkry Brand (marca de sabão), 312,316,
(1882), 411 318,321
Martin, Biddy, sobre a autobiografia, 451 monogamia: valor doméstico da, 251;
l.vlarx, Karl, 298,308; o fetichismo da posição de Schreiner sobre, 379
mercadoria de, 225, 230, 255, 271,326, Monty Python (programa de TV), n5
331 l'vloorc, George, 412
marxismo, 120, ao8, 225, 271,574,576

592
Índiu

Morton, Samuel G., estudos sobre mulheres carvoeiras, esboços de Munby


crânios, 87Jl74 de, 167-72
Motsisi, Cascy, 484 mulheres da classe trabalhadora:
Mphahlele, Es'kia, 459048, 484,486,489, comparadas com pessoas negras,
169-70, 175; fotografias e interesse de
495
lVIunby pelas, 123-99, 112
Mtshali, Oswald: "The Marble Eye" [O
olho de vidro), 5n; como poeta, 500- mulheres de cor: feminismo das, 562;
3, 5or, Sounds ofa Cowhide Drum visão vitoriana das, 84; escritos sobre
[Sons de um tambor de couro de e das, 457"44
vaca), 500, 500057, 501; "Sunsct" [Pôr mulheres negras. Vn' também mulheres
do Sol),501 africanas; visões sobre a sexualidade
Mulher e trabalho [ fVoman and Labor] das, 73-4, 174
(Schreiner), 403, 423-8 "iVlulheres do Terceiro lVlundo", 562
mulheres. Vtr tamhtm mulheres da multidão degenerada, 201-2; como
classe trabalhadora; acesso desigual imagem na Inglaterra do século XIX,
aos direitos e recursos nacionais, 182-5
34; africanas. Vtr mulheres Munby, Arthur J.: aliança interclasse
africanas; autobiografias de, 451-8; com Hannah Cullwick, 40, 123, 196-
colonialismo e, 2106, 21-22, 22n7, 7, 201-70; arquivos fotográficos de,
58; na era vitoriana, ócio, 157, 212, 194-99; casamento com Cullwick,
239-45, 14m75, 427; estereótipos 164-70; fascínio pelas trabalhadoras
vitorianos de classe média, 128-9; vitorianas, 124-7, 130-6, 166-71, 194-
imperialismo e, 21-2; invisibilidade 99; fetiche de infantilismo de, 22r,
do trabalho das, 244-5, 245, 259; 122033; fetiche de mãos de, 158, 161,
como marcadoras das fronteiras do 170; fetiche de travestismo de, 163-4;
império, 47-9; como mineiras, 163, como "Inspetor", 194-99;juventude,
175-82, 1820126; negras. Vtr mulheres 128-30; memórias da babá de, 128-30,
negras; ócio das. Vtr ócio; papel 135, 136, 197, 122
no Congresso Nacional Africano,
My Name is A/rica [Meu nome é África]
556-7; como parte da multidão
(Kgositsile), 503
degenerada, 182-3; trabalho das, 75,
320, 327, 411 -8, 469n5r, trabalho pago Mzamane, Mbuelo, sobre a popularidade
e não pago das, 320,347; na tradição da poesia negra, 514
pornotrópica, 45
mulheres africanas, 342, 471060; abjeção N
das, 393-8; casamento das, 469-74; nacionalismo: africãner, 378,438, 441;
efeitos do apartheid sobre, 453; na feminismo e, 560-4; como espetáculo
ficção de Schreiner, 390-1, 394- fetichista, 540-3; gênero, raça e, 51r68
8; Gagool como representação
Naipaul, V. S., 318
degenerada das, 359-60; nacionalismo
e, 559-60; papel na produção, 371-6, Naim, Tom: sobre a Segunda Jornada
56T, resistência das, 433-77 dos africânercs, 550; sobre nações,
524-5
mulheres brancas, estereótipos vitorianos
das, 93, 96 Nakasa,483,484,486,487,489,495

593
Couro impuia/

negros: comparação vitoriana com Panóptico, na Exposição Mundial


..
macacos, 94n92, 96093; como (Londres, 18.51), 99-100 :
desviantes de gênero, 77, na Parker, Ken, 31n25
Inglaterra medieval e vitoriana, t73-
Parmar, Pratibha, 23, 23010, 15nt7, 470059
4, 231, 23m44; mulheres da classe
trabalhadoras comparadas a, 166-72, A Passage to lndia (Fonter), 186
175 Parei, E$$Op, sobre a Conscicncia Negra,
"negros brancos", Calib:is Celtas como, 499
90-98 Pateman, Carol, sobre contratos de
New Rush [Nova Corrida], pelos casamento, 266
diamarnc, sul-:>.fricanos, 399 Paton, Alan, sobre escritores negros, 509,
Nkosi, 483,484, 48802 4, 489, 49.Si Home 511, 512
an d Exile [Pátria e exílio], 489 patriarcado, reinvenção africana do, 39,
Nome do Pai, de Lacan, 296 37.S
Nortje, Arthur, 495 Pears, propaganda do sabão, 59-61, 308,
Ntsu kaDitshego/Dube, Frankie, ~os 312, 314-7, 331
guetos", 511 Pearson, Karl, como fundador do Clube
de Homens e Mulheres, 412-4
Nxumalo, He.nry, 484
Pemammtos sobre II Áfrira do Sul
[ 1houghts on South A/rira]
o (Schreiner), 412, 423, "29
ócio: conspíc uo, das mulheres Petric, Charles, sobre mulheres
vitorianas de classe alta, 157, 212, vitorianas, 2,pn75
239-45, 24m75, 427; dos negros sul-
Pietene, Cosmo, 495
africanos, 368-71
Pietz, William, sobre o fetichismo, 272,
Ondina [ Undine] (Schreiner), 401-3
277-8,279-80
ordem e medida, fetiche vitoriano por,
Plaatjc, Sol, poemas de, 491
151-3
Plint, Thomas, sobre a classe criminosa
Orimtalismo (Said), 2004, 35, 191
vitoriana, 82
Origem das espiriu (Darwin), 66, 8;~67
poder e desejo, na metrópole vitoriana,
Orlando Voice [A voz de Orlando] (revista 123-99 •.: .
sul-africana), 484
poesia de exaltação sotho, 490
Orwell, George, sobre a classe dirigente
poesia de perfórmanu, de negros sul-
britãnica, 3.51
africanos, 509-15
ouro, da África do Sul, 342,364,540
poesia de Soweto, •80-2, 496-515
Outras/ J,ondon (Jones), 81
poesia negra, 509-15. Ver tamhlm poesia
de performance, poesia de Soweto.
p
poligamia, dos negros africanos, 371,372,
pai, reinvenção do, 294-9 374
Palácio de Cristal (Londres), Exposição 1he Politfral Situation [A situação
Jl:lundial no (1851), 98-100 política) (Schreiner), 422

594
Índia

Pontecorvo, Giles, 1he Battle ofAlgier1 [A R


Batalha da Asgélia] (filme), 568
raça: ambiguidade social e, 166-72;
Poppie Nongena, 40, 433-4. *r tambim como categoria, 25017; dinheiro,
Joubert. sexualidade e, 15-40; duplicação das
pornotrópicos, 43-7 origens e,442-7; como fetiche, 171;
pós (prefixo), 30, 32,570 gênero, autobiografia e, 451-8; gênero,
classe e, 19-27; gênero, nacionalismo
pós-colonialismo, 32027, 38035, 569,
e, 517-68; mãe duplicada e, 389-93;
576; o anjo do progresso e, 15-40;
policiamento do trabalho feminino e,
desenvolvimento global desigual,
178-82; visão poligenista da, 86n7r
32-4; dinâmica de gênero do, 20;
literatura recente sobre, 30-2; pós- racismo da mercadoria: domesticidade e,
modernismo e, 31025 59-66; propaganda imperial e, 307-40
Pratt, l\-lary Louise, 56, 561131 Ra,:d Daily i\,fail (jornal sul-africano),
Nakasa como primeiro jornalista
"Prelúdio" (Sehrciner), 390,393
negro do, 486
primeiro contato, mito do, 329-34
Ranger, Terencc, sobre o colonialismo
Primitive Cultur,t (Tylor), 281 bri tànico na África do Sul, 366
"Proclamação sobre a Emancipação das Ravan Press, 480, 482
Mulheres", pelo Congresso Nacional
Renascimento, geografia militante do, 45
Africano, 560-1
resistência, prostituição como forma de,
propaganda: na era vitoriana, 59-60, 62, 421
78; imperial, racismo mercantil e,
307-40 revolta de Sowcto (1976), 474,479, 479nr
propaganda imperial, racismo mercantil Rhodes, Ceei! John, 399,421
e,307-40 Richasds, Thomas, sobre a Exposição
propaganda de sabão: fetiches na, 316-8, Mundial {1851), 308
328-9, 334030; na era vitoriana, 59-62, rituais de lavagem, de Cullwick e l\tlunby,
307-40, 310116, 3nmo, 315m4 237-8
prostituição, posições de Schrciner sobre, ritual fetichista senhor/escravo: de
415, 419-21 Cullwick e 1\-lunby, 207-8, 214-5,
prostitutas, estereótipos vitorianos, 93, 96 232, 236-r, culto da domesticidade e,
217-23
psicanálise: abjeção e, 118-22; fetichismo
e, 208; fetichismo feminino e, 271- rirual do nascimento masculino,
304; negação da classe e, 144-7 fetichismo da mercadoria e, 361-3
psicanálise situada, abjeção e, uS-22 Robbins, Bruce, 137030, 152, 158073
Pufendorf, sobre direitos conjugais, 266 Rose, Jacquclinc, sobre Lacan, 294,300
pulseira de escrava, usada por Cullwick, Rostow, 'liV. \.V., "Manifesto não
203,224-7,262,265,267 comunista", 570
roupas brancas, como fetiche vitoriano,
59, 60-1, 104, 245,316,340
Q
Ruskin,John, sobre o las, 2401170, 24m74
"questão da mulher", 413

595
-..
;,

~
Couro impuial .....
'h

s Dreams andAllegories [Estórias,


sonhos e alcgorias),414
sabão, como fetiche vitoriano, 60-1, 104,
307,313, 316-8 Schreiner, Rcbecca Lyndall, 379-80, 381-
sadomasoquismo. Ver ritual fetichista 2, 389,391
senhor/escravo; cenários S&I. Scott,Joan, 24, 24011, 38, 39036, 213n14,
Said, Edward: sobre a etimologia de 243082
"autor", 435; sobre filiação e afiliação, Sedgwick, Eve, 35, 35031
78-9, 350; sobre nacionalismo, 533; Segunda Jornada, dos africâncres, 543-52
Orientalismo, 1on4, 35, 191 Seios de Sheba (picos de montanhas em
Saints anti Sinners [S<\ntos e pecadores) As minas do r,i Salomão), 15, t7, 43,
(Schteincr), 4n 355-6
Sant:iyana, George, sobre o n:idonalismo, Sekula, Allan: sobre mineração, 176-7;
518 sobre fotografia, 188, 198
Sapire, Hilary, sobre a Segunda Jornada Sepamla, Sipho, 497, 510
dos africâneres, 548-9 Serotc, Mongane, "Hcll, well, Heaven"
Sartre, J can-Paul, 533 (O Inferno, bem, o Céu], 505;
Saso, Conferência sobre Criatividade e Yakhal'inkomo, 503
Desenvolvimento Negro (1972), 503 servidão/disciplina, fetiche ritual de, de
Schor, 1'aomi, sobre fetichismo, 273, Cullwick e Munby, 207, 214-7
301-i Setltn South African Poets (Sete poetas
Schreincr, Gottlob, 379-80, 381, 388-9, sul-africanos] (Kgositsile), 503
392 sexualidade: apresentação vitoriana
Schreincr, Olive, 40, 377-430; casamento à, pelas criadas domésticas, 138,
de, 4zz; De homem para homem 138031, 140-4, 152; implícita, no
[From Manto Man),390,396,398, mapa de Haggard, 17t das mulheres,
414, 415-11; doença, 400-1, 422; An posições de Schreiner sobre, 427-8;
English South African's Viro, ofthe das mulheres negras, 74, 174; visão
War[Visão sul-africana inglesa da vitoriana, 114
guerra], 411; como escritor:i, 389-99; sexualidade feminina: sexualidade
A estória de umafaunda africana [1he cütoridiana, 74
Story ofan African Fann ], 378, 384-5, Shaw, r.eorge Bernard. memórias da
387,390, 392-3, 404-9, 410-1, 418,421, mãe,140
427; como governanta, 403-4, 409;
identidade feminina de, 383-6; na Sht (Haggard), 34204
Inglaterra, 409-15; juventude, 377-9, Shepstone, Theophilus: como pai
383-8; Mulher e trabalho [ Woman and substituto de Haggard, 350; o reino
Labor], 403, 413-8; Ondina [ Undine], Zulu e, 365-8, 374-5
401-3, 410; Pensamentos sobre a África Sommer, Doris, sobre testemunhos, 474
do Sul [1houghts on SouthAfrica], Sophiatown, destruição de, 493-9
422,423, 429; 7ht Political Situation
Sounds of.a C=hide Drum [Sons de um
[A situação política], 422; "Prelúdio",
tambor de couro de vaca] (Mtshali),
390,391,393; Saints and Sinner1
.[S:mtos e pecadores), 4n; Stori.n , 500,501
Índia

Soweto, poesia de, 480-2, 496-515 testemunho, Poppit Nongena como, 474-5
Specu!um ofthe Other Woman (lrigaray), Themba, Can, 484,495
286 Thomas, Gladys, Gritem a faria (com
Spivak, Gayatri, 24mo, 38, 38n34, 91, 109 rvlathews), 503,509
Sta.ffrider (revista sul-africana), 480-1 Thomson,Joseph, sobre as virrudes do sal
Stanley, Henry l\forton, 324022; ln de fruta Eno, 337
DarJ:est A/rica, 186; punição de Tiro, Onkgopotse, morte de, 507
africanos por, 339 Tlali, lVliriam, 483; "ln Search of Books"
StarJey, Liz, sobre a relação Cullwick- [À procura dos livros], 496
Munhy, no, 214-5 Toüm e tahu {Freud), uS
Stead, "V. T., "lhe Ma.iden Tribute of To Whom lt May Conurn: An Anthology
Modem Babylon" (O tributo cm of BlacJ: Southllfrican Poetry (A
virgens da moderna Babilónia], 420 quem interessar possa: uma antologia
Stepan, Nancy, 8m6o, 86071, 94090 de poesia negra sul-africana), 503
Stephenson, propaganda do creme para travestismo, 303, 26muo; de Cullwick,
móveis, 323 203-5, 207, 208, 214, 258-64; culto da
domesticidade e, 201-70; o fascínio
Stemberger, Dolf, sobre o panorama
de lVlunby pelo, 163-4; fetichismo
vitoriano, 69044
feminino e, 258-63; hibridez,
Stoler, Ann, 2105, 83, 83n65 fetichismo racial e, 109-15
Storin, DrMms and Allegories [Estórias, travestismo, Garbcr sobre o, 303
sonhos e alegorias) (Schreiner), 414
Três Bruxas, no mapa de Haggard, 17-8
suadouros, confecção de roupas na
Trinity College (Cambridge): anos de
Londres vitoriana, 157
lvlunby no, 130,131; Arquivo Ivlunby
Sunlight, sabão, 316 no, 124
"Sunset" [Pôr do Sol) (rvltshali), 501 troea no casamento, na culrura africana,373
Systema Natura (Lineu), 62 Trollopc, Anthony, 242079
Turner, Victor, 49,49019, 255
T Twude TreJ:, dos africâneres, 543-52
Taussig, Michael, 45m2 Tylor, Edward B.: sobre o fetichismo,
tempo panóptico: Exposição :Mundial 281-2; Primiti'Ue Cu/fure, 281
(1851) como encarnação do, 98-103;
fotografia e, 187-90; história global
vista em, 60, 66-71; pós-colonialismo V
e, 31 van der Stract,Jan, gravura de, 49-51, 52
teoria da recapirulação, de Haeckel, 88, Vênus hotentote, 74049
88n75, n76 Vespúcio, Amêrico, 50-1, 52, 54
Terceiro Mundo, dívida e pobreza dos Ylsted lnterests (G:uber), n2
países do, 572 A vida e ma autora (Haggard), 345
território virgem, 48; mapeamento do, 54- vo!J:.smoeder, invenção da, 552-4
7; mito do, 57-9 voyeurismo, de l'vfunby. 194-7, 198-9

597
1

Couro imptrial

vV
..
Yeltsin, Boris, 574
vValpole, Hugh, 412 Young, Robert, 33n28, 9m84, 102n99,
vVildc, Oscar, 4n, 412 1:1

Williams, Linda, sobre a teoria do Yuval-Oavis, Ni1a, sobre mulheres e


fetichismo de Freud, 285 nacionalismo, 521-2
\,Villiams, Raymond, sobre poesia, 513
\,Vi!ls, Claire, 91, 9m84, 92 z
1he Woman and the Demon (Auerbach), Zami: A New Sptl!ing ofMy Name
153-4 [Zami: uma nova escrita de meu
1he Wretched ofthe Earth [Os condenados nome) (Lorde), 458
da Terra] (Fanon), 529 Zola, Emile, memórias da babá, 133
Z11/11 Poems [Poemas -zulus) (Kuncnc),
y 5o3
Yakhal'inkomo (Scrotc), 503 Zulus, colonialismo inglês e, 364 -76

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Raç•. gcncro e scxu.lidadc no cmb•« colonial

J Autor• Annc McClintock

Tuduçlo Plínio Ocnczicn

Anincntc ,tcnico de dircçlo Josi Emílio M•io,ino


1 Coord:n•dor editorial Ricudo lim•
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Sccretiria editorial Eva Mui• Mo.schio
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.•' Sccrcúrio gráfico
Prcparaçio dos origiruis
Ednilson Trucio
Gr.ui• M.ui.t Q~g)iar•

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R~visjo Edmé-a Gucia Nch·a
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A=oria de projeco gráfico Nceri,o Design
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i Tipologia Adobe Culon Pro
i Número de pigirus 600

Imagem de capa
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ESTA OBRA FOI IMPRESSA SA CRÁFICA ASSAHI


PAR.A A EDITORA DA UNICAMP EM ACOSTO Df: 1010.
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Coordenador Geral da U niversidadc


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Comissão Editorial da coleção Géneros & Feminismos


MARIZ-' CoRRÊA (coord.) - ADRIANA P1sc1TELLI
INÊS JoEKES - Juuo Assis SIMÕES - .MARCARETH loP2S
SERCIO CARRARA - YARO BuRIAN JUNIOR

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