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UNIVERSIDADE COMUNITÁRIA DA REGIÃO DE CHAPECÓ

Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito

Pedro Luiz Volkweis Filho

A LEGITIMAÇÃO DA HARMONIA COERCITIVA NOS


PROCESSOS DE LICENCIAMENTO AMBIENTAL: O CASO
DA UHE BARRA GRANDE

Chapecó – SC, março de 2017


UNIVERSIDADE COMUNITÁRIA DA REGIÃO DE CHAPECÓ
Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito

A LEGITIMAÇÃO DA HARMONIA COERCITIVA NOS


PROCESSOS DE LICENCIAMENTO AMBIENTAL: O CASO
DA UHE BARRA GRANDE

Pedro Luiz Volkweis Filho

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação Stricto Sensu em Direito (Mestrado
Acadêmico) da Universidade Comunitária da
Região de Chapecó - UNOCHAPECÓ, como
requisito parcial à obtenção do título de Mestre
em Direito, sob a orientação da Prof a. Dra.
Arlene Anélia Renk.

Chapecó – SC, março de 2017


Ficha catalográfica

Volkweis Filho, Pedro Luiz


V921L A legitimação da harmonia coercitiva nos processos de
licenciamento ambiental : o caso da UHE Barra Grande / Pedro Luiz
Volkweis Filho. 2017.
175 p. : il.

Orientadora: Profª. Drª. Arlene Anélia Renk


Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Comunitária
da Região de Chapecó, 2017
Inclui bibliografias

1. Usina Hidrelétrica Barra Grande. 2. Licenças ambientais.


3. Usinas hidrelétricas. I. Renk, Arlene Anélia. II. Título.

CDD 23 -- 344.046

Catalogação elaborada por Daniele Lopes CRB 14/989


iii
iv

DEDICATÓRIA

Ao meu pai, que – à sua maneira –


ensinou sobre o respeito e admiração à
força do Rio Uruguai.
v

AGRADECIMENTOS

Primeiramente, agradeço à minha orientadora, Dra. Arlene Renk, por toda a


sabedoria transmitida, através de muito tempo e empenho dedicados durante toda a
jornada do Mestrado e da realização desta Dissertação.

No mesmo sentido, agradeço aos valiosos apontamentos realizados pelos


membros da banca de qualificação, Dra. Silvana Winckler e Dr. Humberto Jose da
Rocha.

Em seguida, agradeço à Unochapecó pela generosa oferta da bolsa de estudos


integral, sem a qual a realização de toda esta jornada seria inviável; juntamente,
estendo o agradecimento aos demais professores e profissionais da Instituição.

Ao final, agradeço a minha esposa pelo apoio e compreensão exercidos


durante a etapa do mestrado, bem como minha família pelas oportunidades ofertadas
durante a vida, que ao final convergiram para a realização desta etapa.
vi

RESUMO

VOLKWEIS FILHO, P. L. A legitimação da harmonia coercitiva nos processos de


licenciamento ambiental: o caso da UHE Barra Grande. Dissertação (Mestrado).
Universidade Comunitária da Região de Chapecó. 2017. 174 p.
Esta pesquisa apresenta uma análise acerca da atuação dos agentes envolvidos no
conflito presente no processo de licenciamento ambiental da UHE Barra Grande,
Construída no leito do rio Pelotas entre os municípios de Anita Garibaldi (SC) e Pinhal
da Serra (RS). O cenário ao redor dos processos de licenciamentos ambientais das
grandes obras de energia elétrica ventila o conflito, onde encontram-se de um lado os
interessados no andamento do projeto e da obra – firmados em critérios
fundamentalmente econômicos – e do outro lado encontram-se os agentes que
vislumbram em seus interesses grandes perdas com a forma em que os processos de
licenciamento são conduzidos. Estes conflitos têm sua base nos anseios do homem
sobre o uso, acesso e a preservação dos recursos naturais, normalmente envolvendo
grupos que possuem o interesse de explorar de forma intensa e com finalidade
mercantil certo recurso natural, em face de grupos que almejam a preservação, o uso
para subsistência, a preservação de elementos imateriais, entre outros. Assim, o
problema da pesquisa reside no potencial malefício que pode causar a coerção dos
agentes dominantes nos processos de harmonização dos conflitos presentes nos
processos de licenciamento ambiental dos empreendimentos hidrelétricos. O objetivo
é analisar o processo de legitimidade atribuído à ação da harmonia coercitiva no
processo de licenciamento ambiental do empreendimento citado. Para compreender
as ações dos agentes envolvidos, escolhe-se a teoria dos campos do sociólogo
francês Pierre Bourdieu (1930-2002). A pesquisa – no tocante a sua finalidade – é
voltada para a forma empírica, eis que se relaciona com o levantamento de certos
dados com o intuito de comprovar aquilo que se persegue na questão da pesquisa. O
procedimento adotado é caráter descritivo, buscando determinar o objeto da pesquisa
por meio de levantamento de dados através da pesquisa bibliográfica, que procura
explicar um problema a partir de referências teóricas publicadas em artigos, livros,
dissertações e teses. Há um certo grau nesta pesquisa do método exploratório,
principalmente no que tange à análise dos documentos presentes nos processos de
licenciamento ambiental. O método utilizado por esta pesquisa é de natureza
qualitativa. A pesquisa busca contribuir no sentido de identificar o fenômeno da
harmonia coercitiva como mais um elemento alimentador do cenário da injustiça
ambiental, eis que, inserido nos processos de licenciamento ambiental (destarte
possuir uma roupagem benéfica), é um elemento causador de desiquilíbrio na balança
do Direito – pendendo de forma negativa para a parte mais hipossuficiente da relação
– se transmutando em uma ferramenta sonegadora de direitos.
Palavras-chave: licenciamento ambiental; conflitos socioambientais; direito ambiental.
vii

ABSTRACT

VOLKWEIS FILHO, P. L. The legitimation of coercive harmony in environmental


licensing processes: the case of Barra Grande HPP. Dissertation (Master Degree).
Universidade Comunitária da Região de Chapecó. 2017, 174 p.
The research presents an analysis about agents acting involved in environmental
licensing process of Barra Grande Hydroelectric Power Plant, built in Pelotas river bed,
between the cities of Anita Garibaldi (SC) and Pinhal da Serra (RS). The scenario
around the environmental licensing processes of large electric power buildings is
conflicting, where, on one side, are agentes interested in project’s development -
based on economic criteria – and, on the otherside, are agents who see large losses
in the way that licensing processes are conducted. These conflicts are based on
man's yearnings in natural resources use, access and preservation, usually involving
groups that have interest on exploring a natural resource in an intense and
commercial way against groups that aim at immaterial elements preservation and use
for subsistence. The research problem lies in potential harm that can cause dominant
agents coercion in harmonization processes of conflicts present in environmental
licensing processes of hydroelectric projects. The objective is analyze the process of
legitimacy attributed to coercive harmony action on mentioned HPP environmental
licensing process. To understand the actions of involved agentes, the research uses
the field theory of the French sociologist Pierre Bourdieu (1930-2002). The research -
in terms of its purpose - is focused on empirical form, which is related to collect
certain data in order to prove what is pursued in research question. The adopted
procedure is descriptive, seeking to determine the reserach object by data collection
through bibliographic research, which seeks to explain a problem from theoretical
references published in articles, books, dissertations and theses. It’s have some
degree of research exploratory method, especially regarding to documents analysis
present in environmental licensing processes. The method used by this research is
qualitative. The research seeks to contribute on identifying coercive harmony
phenomenon on one more element that feeds environment injustice scenario, hence
inserted in environmental licensing processes causes the hanging in a negative way
to most hypersufficient part of the relationship - becoming a tool to erase rights.
Keywords: environmental licensing; socioenvironmental conflicts; environmental law.
viii

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Mapa dos principais AHEs do Rio Uruguai e seus afluentes no Estado de
Santa Catarina. ......................................................................................................... 70
Figura 2 – Principais empreendimentos hidrelétricos na bacia do Rio Uruguai......... 71
Figura 3 – Edificações da UHE Barra Grande........................................................... 89
Figura 4 – Descrição das edificações da UHE Barra Grande .................................. 90
Figura 5 – Municípios atingidos pelo reservatório da UHE Barra Grande. ................ 91
Figura 6 – Florestas de araucárias existentes na área de influência direta do
reservatório da UHE Barra Grande. .......................................................................... 97
ix

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Consumo de eletricidade na rede por classe .......................................... 63


Tabela 2 – Relação de empreendimentos geradores de energia elétrica por tipo de
fonte geradora. .......................................................................................................... 64
Tabela 3 – Fases do licenciamento ambiental. ......................................................... 83
Tabela 4 – Cronologia das etapas da Licença Prévia. .............................................. 92
Tabela 5 – Cronologia das etapas da Licença de Instalação. ................................... 93
Tabela 6 – Cronologia das etapas da Licença de Operação. .................................... 94
x

LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 – Evolução da autoprodução de energia elétrica ....................................... 64


Gráfico 2 – Acréscimo anual da capacidade de geração por tipo de fonte. .............. 67
xi

LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

ACP – Ação Civil Pública

ADR – Alternative Dispute Resolution

AGU – Advocacia Geral da União

AHE – Aproveitamento Hidrelétrico

AMISTA - Associação Mista dos Atingidos pela Barragem da Foz do Chapecó

ANEEL – Agência Nacional de Energia Elétrica

APAM – Associação para a Preservação do Meio Ambiente

APP – Área de Preservação Permanente

BAESA – Energética Barra Grande S/A

BIG – Banco de Informações de Geração

COHID – Coordenação de Energia

CONAMA - Conselho Nacional do Meio Ambiente

CPT – Comissão Pastoral da Terra

CUT – Central Única dos Trabalhadores

CRAB – Comissão Regional de Atingidos por Barragens

CPT – Comissão Pastoral da Terra

DILIC – Diretoria de Licenciamento Ambiental

EIA – Estudo de Impacto Ambiental

ELETROSUL – Centrais Elétricas do Sul S.A

ENERSUL – Comitê de Estudos Energéticos da Região Sul

FAPES - Fundação Alto Uruguai para Pesquisa e o Ensino Superior

FATMA - Fundação do Meio Ambiente

ha - Hectare

IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais


Renováveis
xii

km – Quilometro

km² – Quilometro quadrado

LI – Licença de Instalação

LO – Licença de Operação

LP – Licença Prévia

m – Metro

MAB – Movimento dos atingidos por barragens

MMA – Ministério do Meio Ambiente

MME – Ministério de Minas e Energia

MPF – Ministério Público Federal

MW – Megawatt

ONG – Organização não governamental

PAC – Programa de Aceleração do Crescimento

PGR – Procuradoria Geral da República

RIMA – Relatório de Impactos Ambientais

SISLIC - Sistema de Licenciamento Ambiental Federal

TAC – Termo de Ajustamento de Conduta

TCU – Tribunal de Contas da União

TRF4 – Tribunal Regional Federal da 4ª Região

TWh – Terawatt-hora

UFPR – Universidade Federal do Paraná

UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro

UHE – Usina Hidrelétrica

UNOCHAPECÓ – Universidade Comunitária da Região de Chapecó


xiii

SUMÁRIO
LISTA DE FIGURAS ................................................................................ viii
LISTA DE TABELAS .................................................................................. ix
LISTA DE GRÁFICOS ............................................................................... x
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS .................................................... xi
1. INTRODUÇÃO ..................................................................................... 15
2. A ESTRATÉGIA DA HARMONIA COERCITIVA E A TEORIA DOS
CAMPOS DE PIERRE BOURDIEU ......................................................... 24
2.1. A solução alternativa dos conflitos de interesses: a estratégia da
harmonia coercitiva .................................................................................. 24

2.2. O conceito de campo....................................................................... 29

2.3. Os campos específicos ................................................................... 38

2.3.1. O campo jurídico ........................................................................... 38

2.3.2. O campo político ........................................................................... 43

2.3.3. O campo econômico ..................................................................... 47

2.4. O conceito de habitus ...................................................................... 52

2.5. O poder e a violência simbólica ....................................................... 56

3. O SETOR ELÉTRICO NACIONAL, O CENÁRIO DE CONFLITOS E O


PROCESSO DE LICENCIAMENTO AMBIENTAL ................................... 59
3.1. O setor da geração elétrica no brasil e a importância da
hidroeletricidade....................................................................................... 62

3.2. O aproveitamento hidrelétrico da bacia do Rio Uruguai, o cenário dos


conflitos e a gênese do licenciamento ambiental ..................................... 68

3.3. O processo de licenciamento ambiental ........................................... 80

4. A UHE BARRA GRANDE E O CAMPO NO PROCESSO DE


LICENCIAMENTO AMBIENTAL .............................................................. 87
4.1. Identificação e características do empreendimento .......................... 87

4.2. Informações e detalhes do processo de licenciamento ambiental .... 91


14

4.3. O equívoco no EIA-RIMA sobre a fauna diretamente afetada pelo


empreendimento e a deflagração do conflito no processo de licenciamento
ambiental ................................................................................................. 94

4.4. A atuação dos campos no licenciamento da UHE Barra Grande: a


legitimação dos interesses e a harmonização do conflito ........................ 99

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................... 113


6. REFERÊNCIAS ................................................................................. 117
ANEXOS ................................................................................................ 123
15

1. INTRODUÇÃO

A eletricidade é um fenômeno natural que, dominado pelo homem, se tornou


um bem indispensável na sua vida contemporânea, iluminando as noites e
possibilitando o funcionamento de um sem-fim de equipamentos.

Devido a sua importância, o nível de consumo de eletricidade tem registrado,


no decorres dos anos, taxas de crescimento positivas, onde a universalização do
acesso à energia elétrica – juntamente com as crises do petróleo da década de 1970
– direcionam a busca por outras fontes de produção de energia, incluindo nesta
missão as formas de produção de eletricidade.

Por sua vez, o Brasil produz energia elétrica de variadas fontes, destacando-se
as formas hidráulicas e térmicas. As usinas hidrelétricas, que aproveitam a força das
correntezas dos rios, são alternativas que garantem uma alta capacidade de geração
a um custo financeiro baixo, atrelado à um suposto menor impacto ambiental imediato
que as alternativas que utilizam combustíveis fósseis ou produzidos pelo homem.

A preferência pelas hidrelétricas em solo nacional é um fato de longa história,


onde as políticas utilizadas pelo setor energético são articuladas nos ideais de
desenvolvimento e modernidade. Para suprir a demanda crescente – ocasionada
pelos fatores de industrialização e urbanização – tais empreendimentos ganham
especial destaque, calçados na existência de um grande potencial energético dos rios
que atravessam o país, bem como na imagem de viabilidade econômica e
sustentabilidade ambiental destas obras.

Todavia, este cenário é permeado por extensas e exaustivas batalhas entre as


populações atingidas, os movimentos sociais derivados destes confrontos e as
entidades de defesa do meio ambiente, em face dos responsáveis pelo
empreendimento e pelo Estado, eis que tais obras causam grandes impactos sobre a
natureza afetada, bem como sobre as comunidades atingidas por estas.

Conjuntamente com os movimentos nacionais, emergiu na comunidade


internacional a crescente preocupação acerca dos impactos ambientais e sociais
ocasionados pelas grandes obras de infraestrutura energética, acarretando a
existência de diversas imposições por parte dos organismos financeiros internacionais
para concessão de empréstimos bancários, a exemplo do Banco Mundial no final da
década de 1980.
16

No Brasil, tal situação determinou a criação de diversos aparatos estatais para


a regulação, coordenação, análise e fiscalização dos processos de licenciamento
ambientais. Neste sentido, o processo de licenciamento ambiental é o principal
mecanismo de controle estatal em termos de fiscalização ambiental preventiva.

Desde a metade da década de 1980, todas as obras de geração de energia


elétrica necessitam obter a aprovação dos órgãos estatais. Ao passo que estes tipos
de obras possuem alta complexidade, o mesmo ocorre com os seus processos de
licenciamento ambiental, que desde o início são alvos de críticas por parte dos
agentes envolvidos.

Assim, o cenário ao redor dos processos de licenciamentos ambientais das


grandes obras de energia elétrica ventila o conflito, onde encontram-se de um lado os
interessados no andamento do projeto e da obra – firmados em critérios
fundamentalmente econômicos – e do outro lado encontram-se os agentes que
vislumbram em seus interesses grandes perdas com a forma em que os processos de
licenciamento são conduzidos.

A respeito dos aspectos nos conflitos existentes em processos de


licenciamento ambiental entre as partes envolvidas de que trata esta pesquisa, toma-
se como locus de estudo o caso ocorrido pela construção de uma usina hidrelétrica
localizada na bacia do Rio Uruguai: a Usina Hidrelétrica UHE Barra Grande.

Construída no leito do rio Pelotas – um dos formadores do Rio Uruguai em sua


junção com o Rio Canoas à jusante – entre os municípios de Anita Garibaldi (SC) e
Pinhal da Serra (RS), a UHE Barra Grande tem potência instalada de 708 MW. Com
uma parte dos R$ 1,4 bilhões investidos na obra financiados pelo BNDES, o início de
sua construção ocorreu em 2001 e tomou o total de 52 meses para sua finalização,
entrando em operação em novembro de 2005.

A escolha desta obra não é aleatória. Além do caráter regional, eis que se
encontra em distância próxima e na bacia do rio que banha a cidade de Chapecó, esta
obra possui uma peculiaridade no que tange ao seu processo de licenciamento
ambiental: a legitimação de um processo de harmonia coercitiva entre as partes
conflitantes, onde as estratégias utilizadas pelos empreendedores acabam por
conquistar seus interesses em detrimento dos direitos ambientais que são sonegados.
17

O conflito é inerente das sociedades humanas e ocorre em todas as suas


formas, o que por sua vez implica na aceitação de que a situação conflitiva não é um
elemento desabonador, pois a existência de tendências divergentes dentro de um
mesmo grupo social é praticamente absoluta; desta forma, o conflito entre os
dualismos se faz necessário para a convergência da sociedade para um caminho
unitário (SIMMEL, 2011).

Sendo os recursos naturais indispensáveis para a vida humana na Terra, no


atual século os conflitos socioambientais, tema desta pesquisa, têm ocorrido com
maior relevância. Estes conflitos têm sua base nos anseios do homem sobre o uso,
acesso e a preservação dos recursos naturais, normalmente envolvendo grupos que
possuem o interesse de explorar de forma intensa e com finalidade mercantil certo
recurso natural, em face de grupos que almejam a preservação, o uso para
subsistência, a preservação de elementos imateriais, entre outros.

O choque entre os interesses acima descrito muito se assemelha com os


estudos de Thompson (1987) sobre os conflitos oriundos pela criação da Lei Negra
na Inglaterra dos séculos XVII e XVIII. Ademais, outro fator que prepondera nas
ocorrências de situações conflituosas entre as populações atingidas e os interessados
pelo desenvolvimento do projeto hidrelétrico também se assemelham com os estudos
de Thompson (1991) sobre os efeitos das imposições advindas da Revolução
Industrial nas populações rurais e interioranas.

Desta forma, o conflito reside na busca da concretização dos diferentes


interesses pelos agentes envolvidos. De um lado, os empreendedores perseguem a
construção das hidrelétricas da forma mais eficiente, ou seja, com a minimização dos
custos e a maximização da produtividade de seus investimentos. Do outro lado, os
agentes que se sentem atingidos pelo empreendimento buscam o reconhecimento de
seus direitos, sejam de ordem ambiental, econômica ou social.

Nesta seara, a busca pela convergência na unidade do cenário conflituoso tem


ocorrido por vias alternativas, com mecanismos de resolução de forma tangencial aos
tribunais. As técnicas de harmonização são sistemas de resolução alternativas de
conflitos e oferecem consideráveis vantagens, todavia possuem suas críticas.

Nader (1994), ao conceituar a teoria da harmonia coercitiva, aponta críticas em


relação às consequências danosas dos métodos alternativos de resolução de
18

conflitos, tornando-se uma forma de controle poderoso, geradora de desequilíbrios no


poder dos agentes e de sonegação de direitos.

Assim, o problema da pesquisa reside no potencial malefício que pode causar


a coerção dos agentes dominantes nos processos de harmonização dos conflitos
presentes nos processos de licenciamento ambiental dos empreendimentos
hidrelétricos, onde a suposta harmonização desvirtua a sua principal função – a
implantação do empreendimento em consonante respeito dos direitos relativos ao
meio ambiente, bem como aos de ordem social – para se tornar uma ferramenta
legitimadora do controle e da consecução dos interesses dos agentes dominantes.

Esta pesquisa se justifica, primeiramente, pela relevância do tema escolhido


em sua abrangência regional, eis que os conflitos por empreendimentos hidrelétricos
ocorrem em significativa quantidade na região Oeste de Santa Catarina, bem como
na Região Sudoeste do Paraná e Noroeste do Rio Grande do Sul, onde o grande
potencial de geração hidrelétrico disponível na bacia hidrográfica do Rio Uruguai
aumenta o interesse dos empreendedores e das autoridades públicas em explorar
esta região.

A pretensão da pesquisa em identificar, analisar e compreender a ocorrência e


legitimidade do fenômeno da harmonia coercitiva, que se instaura de maneira
nebulosa – porém intencional – nos processos de licenciamento ambiental sagra-se
importante pelo fato deste elemento ter o poder de comprometer a real função do
licenciamento ambiental, detentor de extrema importância para a manutenção do meio
ambiente, já fragilizado pela ação humana.

Desta forma, a pesquisa busca contribuir no sentido de identificar o fenômeno


da harmonia coercitiva como mais um elemento alimentador do cenário da injustiça
ambiental, eis que – inserido nos processos de licenciamento ambiental (destarte
possuir uma roupagem benéfica) – é um elemento causador de desiquilíbrio na
balança do Direito, pendendo de forma negativa para a parte mais hipossuficiente da
relação e se transmutando em uma ferramenta sonegadora de direitos.

Tendo em vista o acima apresentado, tem-se como objetivo geral analisar o


processo de legitimidade atribuído à ação da harmonia coercitiva no processo de
licenciamento ambiental do empreendimento hidrelétrico UHE Barra Grande.
19

Como objetivos específicos, o primeiro é identificar as características e


informações do empreendimento contidos no processo de licenciamento ambiental.
Já o segundo objetivo especifico é levantar as informações referentes à cronologia e
aos documentos das etapas do licenciamento ambiental do empreendimento
escolhido. Por seguinte, o próximo objetivo específico é identificar a atuação dos
campos de Bourdieu nas etapas do processo de licenciamento ambiental que
determinam a legitimação da harmonia coercitiva neste processo.

Para a fundamentação teórica do presente trabalho, escolhe-se a consagrada


– e polêmica – teoria dos campos do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002).
Conforme Aponta Sckell (2016) o autor é raramente mencionado nas pesquisas em
Direito, especialmente no que tange a análise do comportamento e da reprodução
social dos agentes. Todavia, a teoria dos campos é uma ferramenta de grande
capacidade para a compreensão, pelos juristas, de certos fenômenos sociais que
ocorrem na produção jurídica, pois permite elucidar

[...] o modo pelo qual tanto as mais altas instituições político-jurídicas


bem como as forças sociais difusas originam mudanças jurídico-
sociais: o direito resulta de relações de força entre os próprios juristas
(entre os “teóricos” e os “profissionais da prática jurídica”), assim como
entre os juristas e seus mandatários (ou entre aqueles que oferecem
proteção jurídica e aqueles que precisam dela) (SCKELL, 2016, p.
158).

Ainda, faz-se o importante destaque dos conceitos que dão suporte à teoria dos
campos de Bourdieu, elucidando-se o conceito de habitus e os conceitos de poder e
violência simbólica.

Desta forma, a pesquisa se incursiona nas principais obras do citado autor


(1989, 2003, 2004, 2005, 2011 e 2014) para levantar os importantes conceitos de sua
teoria, eis que Bourdieu nunca escreveu um código ou manual acerca destas, tendo
optado por proferir seus pensamentos através dos diversos estudos acerca do
comportamento social humano que realizou durante a sua extensa carreira
acadêmica. Ainda, busca-se suporte interpretativo destas teorias nas principais
publicações em doutrinas e periódicos de Azevedo (2011), Catani (2004, 2011) Miguel
(2015), Setton (2002), Sckell (2016) e Thiry-Cherqyes (2006), entre outros.

Em relação aos principais autores que deram suporte à esta pesquisa, além
dos já citados acima, destacam-se as obras relativas ao cenário dos conflitos
existentes no case ambiental nacional, em especial àquelas que se dedicam ao setor
20

energético brasileiro, bem como as obras que apontam os danos de diversas ordens,
ocasionados pelos empreendimentos hidrelétricos erguidos em nosso país.

Para tanto, busca-se subsídio nas obras de Benincá (2011), Bermann (1991,
2007), Dal Magro, Renk, Franco (2015), Do Valle (2005), Hofmann (2015), Prochnow
(2005), Reis (1998, 2007) Renk, Winckler (2015), Rocha (2012, 2015), Rothman
(2008), Tessler (2005), entre outras.

Ainda, destaca-se que a pesquisa está intimamente correlacionada com as


demais publicações já realizadas pelos pesquisadores da Unochapecó que falam
sobre o tema correlato, onde os demais programas de pós-graduação (Mestrado em
Ciências Ambientais e Mestrado Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais) também
estudam os impactos sociais e ambientais do modelo de hidronegócio brasileiro.

Quanto ao referencial metodológico desta pesquisa, assevera Barros (2012)


que o conhecimento é uma atividade que pode ser considerada teórica – prática ou
prática – teórica, eis que uma vertente pode orientar a outra em qualquer das direções.
O conhecimento em sua forma científica é um aperfeiçoamento sustentado por um
procedimento metódico. Assim, a pesquisa racional, com sustentação cientifica, deve
obedecer a critérios pré-estabelecidos por um corpo de normas procedimentais que
possuem aplicação generalizada.

A pesquisa cientifica é, para o citado autor, “[...] o produto de uma investigação,


cujo objetivo é resolver problemas e solucionar dúvidas, mediante a utilização de
procedimentos científicos”. Desta forma, se faz necessário para o correto andamento
da pesquisa delimitar as estratégias metodológicas.

Utilizando o que preceitua Barros (2012), esta pesquisa – no tocante a sua


finalidade – é voltada para a forma empírica, eis que se relaciona com o levantamento
de certos dados com o intuito de comprovar aquilo que se persegue na questão da
pesquisa.

Em relação ao procedimento adotado, ela possui um caráter descritivo,


buscando determinar o objeto da pesquisa por meio de levantamento de dados
através da pesquisa bibliográfica.

Segundo Cervo e Bervian (2002, p. 65), “A pesquisa bibliográfica procura


explicar um problema a partir de referências teóricas publicadas em artigos, livros,
dissertações e teses”. É através da investigação nos mais variados textos disponíveis,
21

como doutrinas, artigos, dissertações, teses, documentos, entre outros, que


encontram a explanação das teorias edificantes da pesquisa, bem como os dados
necessários para a melhor elucidação do problema.

Ainda, há um certo grau nesta pesquisa do método exploratório, principalmente


no que tange à análise dos documentos presentes nos processos de licenciamento
ambiental. Segundo preceituam Cervo e Bervian (2002, p. 63)

A pesquisa exploratória, designada por alguns autores como pesquisa


quase cientifica ou não cientifica, é normalmente o passo inicial no
processo de pesquisa pela experiência e um auxílio que traz a
formulação de hipóteses significativas para posteriores pesquisas. A
pesquisa exploratória não requer a elaboração de hipóteses a serem
testadas no trabalho, restringindo-se a definir objetivos e buscar mais
informações sobre determinado assunto de estudo. Tais estudos têm
por objetivo familiarizar-se com o fenômeno ou obter uma nova
percepção dele e descobrir novas idéias.

O método utilizado por esta pesquisa é de natureza qualitativa, que é aquela


onde o pesquisador formula as alegações de conhecimento e constrói a teoria
baseado em perspectivas construtivas de significados de experiências individuais,
sociais ou históricas, bem como perspectivas reivindicatórias ou participatórias, que
envolvem questões políticas ou colaborativas. Neste método, utiliza-se como
estratégia investigativa as narrações, fenômenos, etnografias, estudos embasados na
teoria ou na realidade, sendo que o pesquisador coleta dados emergentes de forma
aberta, objetivando desenvolver o tema a partir destes dados (CRESWELL, 2007, p.
35).

Obteve-se os dados relativos ao processo de licenciamento ambiental do


empreendimento selecionado como estudo através do website do IBAMA – Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – através do
Sistema de Licenciamento Ambiental – SISLIC.

O referido sistema encontra-se aberto a pesquisa e obtenção de dados e


documentos para qualquer usuário da internet, sendo desnecessário requerer ao
citado órgão qualquer tipo de cadastramento ou permissão de acesso.

Para tanto, pesquisa-se o empreendimento pelo seu nome e o sistema


redireciona automaticamente para um diretório, contendo todas as informações
presentes no processo de licenciamento ambiental que constam na base de dados do
22

órgão responsável, bem como os documentos originados por este e inseridos no


processo, devidamente digitalizados.

Por se tratar de empreendimento já pesquisado por outros acadêmicos,


também se obteve alguns dados através das demais pesquisas, indicadas no
referencial teórico.

Ainda, a pesquisa utilizou informações oriundas dos websites de outros órgãos


públicos, como os dados de informação de geração de energia disponibilizados pela
ANEEL e os dados relativos à responsabilidade empresarial presentes no sistema
informatizado da Receita Federal do Brasil.

Desta forma, a pesquisa divide-se em três capítulos. O primeiro – denominado


de A estratégia da harmonia coercitiva e a teoria dos campos de Pierre Bourdieu
aborda os conceitos pertinentes da teoria da harmonização coercitiva, proposta por
Nader, bem como da teoria dos campos de Bourdieu.

Primeiramente, faz-se uma abordagem acerca dos conceitos de legalidade e


legitimidade, bem como a conceituação da teoria da harmonia coercitiva. Após, busca-
se a elucidação do conceito de campo, a descrição dos três campos (jurídico, político
e econômico) atuantes nos processos de licenciamento ambiental em estudo, bem
como nos conceitos de habitus e do poder e da violência simbólicos.

A seguir, encontra-se o segundo capítulo, denominado O setor elétrico


nacional, o cenário de conflitos e o processo de licenciamento ambiental, que aborda,
em primeiro momento, um panorama do status do setor elétrico brasileiro e do sistema
de licenciamento ambiental dos empreendimentos hidrelétricos.

Num segundo momento relatam-se os principais momentos do cenário


conflituoso que se opera em torno deste universo, desde os conflitos por implantação
de empreendimentos hidrelétricos e das celeumas existentes nos processos de
licenciamento ambiental, buscando-se a conexão destes acontecimentos com a teoria
proposta nesta pesquisa.

Já o terceiro capítulo denomina-se A UHE Barra Grande e o campo no processo


de licenciamento ambiental. Se constitui, primeiramente, da análise das informações
e características do empreendimento citado, abordando as informações constantes
no processo de licenciamento ambiental.
23

A sua segunda parte é a análise da atuação dos campos de Bourdieu nos


acontecimentos do processo de licenciamento ambiental do empreendimento
escolhido, com especial enfoque na ocorrência de uma fraude no processo de
licenciamento que fora legitimada – e harmonizada – por uma atuação dos agentes
interessados na consecução do empreendimento, ocasionando ao final a derrubada
de uma floresta protegida por lei para a conclusão das obras e o funcionamento da
usina.

Ao final, encontram-se as considerações finais, onde faz-se um balanço de todo


o desenvolvimento da pesquisa, abordando as opiniões acerca dos resultados desta.
24

2. A ESTRATÉGIA DA HARMONIA COERCITIVA E A TEORIA DOS


CAMPOS DE PIERRE BOURDIEU

Este capítulo objetiva a abordagem do aparato teórico desta pesquisa. Em


primeiro lugar, cuida-se de abordar os conceitos nucleares do tema proposto,
iniciando a discussão acerca do conceito de conflito e dos elementos da legalidade e
da legitimidade.

A seguir, incursiona-se pelo conceito da harmonia coercitiva, tema que ganha


relevância através das lições da antropóloga Laura Nader, sem deixar de registrar o
aporte necessário para a compreensão dos sistemas de resolução alternativas de
conflitos.

Por último, a pesquisa adentra no universo da teoria dos campos de Pierre


Bourdieu, abordando o conceito de campo e dos campos específicos que esta
pesquisa se orienta, bem como os conceitos acessórios explanados pelo sociólogo
francês.

2.1. A solução alternativa dos conflitos de interesses: a estratégia da


harmonia coercitiva

Conforme descreve Rocha (2012, p. 43) os agentes envolvidos na instalação


de uma hidrelétrica estão engajados em projetos políticos distintos (neoliberal versus
democrático-participativo) e quando interagem formam uma espécie de rede social,
tendo por base um processo social amplo com visões econômicas, políticas e jurídicas
distintas.

Ademais, assevera o autor (2012, p. 44-45) que o elemento principal que


mantém a rede social envolta nas construções de hidrelétricas é a sua natureza
conflitiva, onde se caracteriza uma espécie de competição onde o foco não são os
agentes em si, mas sim o objeto da disputa.

O conflito presente neste cenário é a atividade emanada do choque de


interesses entre os agentes envolvidos, onde a convergência de suas ações (na busca
pela concretização de seus interesses) leva a possíveis consequências plenamente
distintas. Desta forma, é natural o empenho dos agentes envolvidos pela retomada ao
25

status de paz e a cessação da situação conflituosa, chegando-se ao um estado de


harmonia.

Neste sentido, é importante destacar que o conflito presente neste cenário não
é, per si, algo taxativamente negativo, pois faz parte de um elemento inerente à
existência da própria sociedade. Alcântara Júnior (2005), ao estudar Simmel, aponta
que o citado autor “[...] parte da premissa de que o conflito se reproduz junto às ações
interativas e relacionais sociais, ou seja, em todas aquelas produzidas no interior da
sociedade”.

Conforme preceitua Simmel (2011), o conflito é “[...] destinado a resolver


dualismos divergentes, é uma maneira de conseguir algum tipo de unidade [...]”, ou
seja, no universo das interações sociais, é imperioso denotar que existem
determinados grupos de agentes – com tendências distintas – e em determinado
momento estes se confrontam1.

Warat (2011, p. 308) leciona que o Direito, como regulador da vida em


sociedade, detém a possibilidade, através de métodos coercitivos de lidar com os
conflitos de diversas formas, assumindo “[...] o monopólio da violência legítima e
condenando ou punindo as outras manifestações da violência”.

Assim, as partes que se engajam em um conflito – e almejam colocar em jogo


as suas divergências – também buscam a convergência destes esforços para a
solução de suas diferenças. Todavia, é mister destacar que os litigantes tendem a
obedecer aos termos do consenso se este está revestido pela força da legalidade e
da legitimidade, possuindo assim poder de coerção sobre aqueles que não respeitam
os termos da avença.

Bonavides (2000) tece que o conceito de legalidade “exprime basicamente a


observância das leis, isto é, o procedimento da autoridade em consonância estrita
com o direito estabelecido”. Em seguida, o citado autor escreve que a legitimidade
“[...] é a legalidade acrescida de sua valoração. É o critério que se busca menos para

1Ademais, Simmel (2011) escreve que as tensões conflitivas são elementares para a existência da
sociedade, eis que “[...] como o universo precisa de ‘amor e ódio’, isto é, de forças atrativas e repulsivas,
a fim de dispor de qualquer forma, do mesmo modo, a sociedade, também, para atingir uma forma
determinada, precisa de alguma razão quantitativa de harmonia e desarmonia, de associação e de
concorrência, de tendências favoráveis e desfavoráveis”.
26

compreender e aplicar do que para aceitar ou negar a adequação do poder às


situações da vida social que ele é chamado a disciplinar”.

Já Habermas (1997, p. 214) contrapõe o que Weber preconiza no que tange ao


tema da legalidade e da legitimidade, eis que o segundo prega um exercício de poder
do Direito completamente livre dos caráteres morais.

Preconiza o autor que nas sociedades ocidentais, com forte influência do Direito
Alemão, o caráter legítimo que advém do princípio da legalidade “[...] implica a fé numa
legalidade destituída das certezas coletivas da religião e da metafísica e apoiada, de
certa forma, na ‘racionalidade do direito’ [...]”. Todavia, afirma Habermas que tal
situação não se configura na realidade, pois o “[...] poder exercido nas formas do
direito positivo deve a sua legitimidade a um conteúdo moral implícito nas qualidades
formais do direito”.

Em sentido análogo preceitua Bobbio (1998, p. 674) sobre o tema, elencando


que “[...] costuma-se falar em Legalidade quando se trata do exercício do poder e em
legitimidade quando se trata de sua qualidade legal [...]”. Desta forma, a legalidade de
um ato se refere ao seu exercício nas formas ordenadas pela lei escrita ou moralmente
aceita, enquanto a legitimidade “[...] consiste na presença, em uma parcela
significativa da população, de um grau de consenso capaz de assegurar a obediência
[...] de maneira que seja reconhecido como legítimo, transformando a obediência em
adesão”.

Assim, a solução de um conflito alcança a sua eficiência máxima quando se


encontram presentes os dois elementos acima abordados, ou seja, a convergência
dos interesses litigantes deve estar balizada pelas formas determinadas em lei, o que
por sua vez confere a maior qualidade legal possível ao consenso alcançado,
tornando-o legítimo e adesivo.

Todavia, nos conflitos relativos à empreendimentos hidrelétricos é assente que


o Estado e os empreendedores buscam a maximização dos resultados de seus
investimentos, fato que implica em ultrapassar algumas barreiras da legalidade.
Assim, é comum que estes persigam formas alternativas para legitimar alguns de seus
atos – ilegais ou moralmente desafiadores – no cenário conflituoso em que estão
engajados, o que consequentemente traz o consenso e a adesão de seus desafetos.
27

Uma forma que o Direito tem dado ênfase e tomou corpo nas últimas décadas
se dá por uma via alternativa àquela imposta pela lei (procedimento judicial
contencioso). Martín (2011, p. 317) escreve que as técnicas alternativas de resolução
de conflitos, originadas no Direito Anglo-Saxão estadunidense, buscam mecanismos
para resolver disputas de forma tangencial aos tribunais, mediante meios não judiciais.
Estas técnicas, pondera a autora, foram estendendo-se de forma gradual em todo o
Planeta, atuando desde a mediação de causas civis à proteção do meio ambiente.

Entendidas como métodos de harmonização, as técnicas de resolução


alternativas de conflitos – através da negociação, conciliação e mediação – permeiam
as mais diversas causas, pessoais ou sociais. Estes métodos oferecem consideráveis
vantagens, como a celeridade e a flexibilidade, tendo em vista a desnecessidade do
mediador e das partes sucumbirem à legislação dos tribunais e seus incontáveis
entraves, bem como a liberdade de acordarem soluções não se encontram prefixadas
na lei e de se fazer justiça em cada caso, segundo as suas peculiaridades. Ademais,
pugnam pela economia e maximização da justiça, pois os custos de litigar no sistema
formal são notavelmente maiores que nos processos negociais e são mais justos nas
decisões, pois a resolução depende do que as partes acordem (Martín, 2011, p. 323).

A mesma autora alerta (2011, p. 324) que estes métodos também possuem
suas críticas, como

[...] o desequilíbrio de poder entre as partes, pois a maioria dos


conflitos abrange pessoas com posições econômicas diferentes, o que
acaba por influir na parte com menor poder por falta de recursos;
também o problema de representação, pois às vezes estes
mecanismos pressupõem indivíduos atuando por si mesmos e outros
mediante advogados ou representantes; e inclusive grupos e
organizações assinam acordos que não são os que melhor atenderiam
os interesses de seus clientes, subordinados, etc.

É neste cenário crítico que Nader (1994) vem explicitar a teoria da harmonia
coercitiva, através da conclusão de seus estudos sobre o funcionamento das técnicas
de pacificação em três ambientes distintos: em primeiro lugar, nas situações de
controle cultural ou da pacificação no primeiro contato entre colonizadores e
colonizados; em segundo lugar, durante o período de criação e utilização da ADR2
como parte de uma política de pacificação em resposta aos movimentos da década

2 Sigla em inglês para Alternative Dispute Resolution – Resolução Alternativa de Disputa.


28

de 60 nos Estados Unidos; e no cenário internacional com a migração das mesmas


técnicas da ADR para lidar com as disputas internacionais relacionadas a rios.

Elenca a autora que os estudos sobre conflito e pacificação têm se concentrado


em examinar e teorizar a disputa, em detrimento que não se dispõe de teorias
completas sobre os significados da harmonia. Os estudos sobre a harmonia
estiveram, por muitos anos, elencados ao procedimento do conflito como um fato
consumado – somente existia a harmonia porque havia o conflito. Ao mudar os
conceitos do conflito, onde os estilos de disputa são um componente das ideologias
políticas – impostos ou difundidos – ficou mais evidente que a harmonia e a
controvérsia são ideologias paralelas.

Quando da análise das técnicas de pacificação inseridas pelos colonizadores


na América e Ásia, a autora conclui que o modelo legal de harmonia tenha sido
introduzido pelos impérios e seus missionários, inicialmente como instrumento de
pacificação. Depois estes instrumentos passaram a funcionar, em relação aos nativos,
como instrumentos de restrição da intromissão do poder externo.

A introdução da moralidade cristã em populações da Nova Guiné, por exemplo,


afetou o processo de disputas entre os nativos, reestruturando suas culturas e
sistemas organizacionais. A harmonia coercitiva, através da inserção dos preceitos
cristãos no cotidiano dos nativos, concorreu para silenciar os povos que falavam ou
agiam de forma intensa, pacificando os clãs guerreiros e proibindo a violência nas
relações interpessoais. Ao comparar a situação acima exposta com a promoção de
técnicas arbitrais pela Coroa Britânica na Índia, a autora escreve que é “[...] altamente
provável que a ideologia da harmonia faça parte do sistema de controle hegemônico
que se espalhou pelo mundo todo com a colonização política européia e a
evangelização cristã” (NADER, 1994, p. 3).

Em relação à investida da ADR nos Estados Unidos durante a década de 1960,


a autora descreve que, dadas as lutas por direitos civis, de consumo, ambientais,
gênero e imigração, bem como o lançamento de severas críticas as leis e a eficiência
dos tribunais, o país mudou sua preocupação com a justiça para uma preocupação
com a harmonia e a eficiência. Neste seio se iniciou o discurso por uma justiça que
promovesse o acordo, substituindo o litígio pela harmonia e o consenso, a solução de
vencer ou vencer. Desde políticos de direita a empresas cansadas de pagar altas
quantias por honorários advocatícios, a ADR contaminou o sistema de confrontos
29

desta época. Nos anos seguintes, várias políticas de harmonização foram


implementadas nos mais diversos setores da sociedade ianque, reforçados num ideal
de civilidade e pacificação.

Todavia, Nader (1994) aponta críticas em relação às consequências danosas


do mencionado sistema. Primeiramente, a obrigatoriedade da mediação pode ser
descrita como uma ferramenta de controle do discurso e da expressão, ou seja, acaba
por se tornar uma alternativa falha, eis que impõe o mesmo problema do sistema
judicial. Ademais, a mediação/negociação pode ser vista como algo destruidor de
direitos, isto porque, ao forçar os acordos e os compromissos, aniquila as
possibilidades de discussão do passado3. Ademais, a obrigatoriedade da mediação
limita a liberdade, elimina opções de procedimentos e remove a proteção da
igualdade. Outro fator negativo que a autora pondera é o caráter secreto das
mediações, onde normalmente não costuma haver o registro completo das
negociações e tampouco ocorrem prestações de contas, isto pela regulamentação
limitada do procedimento.

Para exemplificar o conceito da harmonia coercitiva, Nader (1994) elenca que,


ao estudar os casos internacionais envolvendo disputas entre países por rios, enfatiza
que a negociação sempre logrou mais êxito para os países mais ricos do que se
tivessem levando ou cumprido estas demandas através do Tribunal Internacional.
Comenta também que a trajetória da substituição dos modelos judiciais por modelos
de pacificação alternativa evidencia que a harmonia não é um procedimento benigno,
ou seja, “[...] a harmonia coerciva das três últimas décadas foi uma forma de controle
poderoso, exatamente devido à aceitação geral da harmonia como benigna. A história
das condições que determinam as preferências na solução das disputas são
‘compromissos móveis’ geralmente envolvendo desequilíbrios no poder”.

2.2. O conceito de campo

A relação entre os indivíduos e a sociedade em que estes se inserem é


considerado como um dos temas nucleares das ciências humanas. Esta relação
peculiar inunda-a com características únicas em face das demais, o que por sua vez

3Ou seja, afoga-se toda a discussão sobre o conflito alvo da mediação, acelerando o processo de
esquecimento da situação conflituosa.
30

faz seus estudiosos proferirem as mais diversas reflexões; consequentemente, estas


reflexões nem sempre são consonantes, gerando diversas controvérsias.

Na situação atual das diferentes sociedades, é um tanto difícil não precisar que
as relações sociais estão permeadas por um dinamismo nunca antes alcançado. Isso
se deve, primariamente, aos efeitos da globalização iniciada no século XX que, além
de reinventar os cenários econômicos, proporcionou a aproximação dos indivíduos,
bem como a compressão dos espaços e dos tempos sociais.

Neste sentido, o Direito está intrinsicamente enraizado como parte ativa na


regulação das dinâmicas sociais, sendo um importante elemento compositor das
relações sociais.

É presente na maioria dos sistemas de análise das relações sociais (o que inclui
o estudo do Direito como um de seus elementos), principalmente no que tange as
formas de reprodução das sociedades, o uso de disposições antagônicas,
contraditórias.

A análise do Direito sob tais enfoques acaba o distanciando de suas ligações


com as relações sociais, onde é o lugar em que a aplicação deste encontra residência.
Assim, a busca pela reaproximação do Direito com as relações sociais faz-se
importante para melhor compreende-lo, atravessando os limites das formas usuais.

Para tanto, esta pesquisa debruça-se sobre os aparatos sociológicos de Pierre


Bourdieu. O sociólogo francês, nascido em 1930 e falecido em 2002, é conhecido
pelos trabalhos de relevo marcante, onde para a área do Direito suas contribuições se
direcionam ao rompimento do formalismo e do estruturalismo, abrindo caminhos e
fornecendo ferramentas para os operadores do Direito expandirem a análise desta
ciência em conjunto com os elementos de ordem social. O rompimento destes
sistemas possibilita reler o Direito – e compreende-lo de forma alternativa – imergindo
a análise no universo das relações que compõem a sociedade.

A busca de Bourdieu em seus estudos com relação ao Direito abarca a


superação pelas antinomias acima citadas. Durante a década de 1960, época em que
apresentou suas primeiras obras de destaque, duas escolas opositoras se
destacavam no ambiente intelectual da França.

A primeira é estruturalismo, que aponta as ações dos agentes na sociedade


totalmente fundadas pelo que a própria estrutura social determina. A segunda é “[...]
31

a filosofia da consciência, baseada em um subjetivismo radical – como na


fenomenologia e no existencialismo –, que reduzia tudo ao problema da experiência
pura do agente” (CONSTANTINO, ALVES NETO, 2014).

Segundo os citados autores, Bourdieu busca em sua teoria, por considerar que
as duas abordagens acima citadas são insuficientes, uma síntese entre ambas,
elaborando ao final a teoria da prática ou da ação social, que se aprofunda na relação
entre o agente e a sociedade, mais precisamente entre as estruturas sociais – de
ordem objetiva – e as disposições individuais, eminentemente subjetivas. Esta síntese
se expressa em Bourdieu pelo diálogo travado entre a interiorização da exterioridade
– a influência das estruturas externas sobre a subjetividade individual – e a
exteriorização da interioridade, ou seja, a contribuição dos elementos interiores dos
indivíduos para reforçar e manter as estruturas sociais em sua devida situação.

Assim, a sociologia de Bourdieu – rotulada de sociologia da reprodução –


evidencia a existência de uma perpetuação cíclica do modelo em que as sociedades
se comportam, eis que a estrutura social existente formata o interior do indivíduo; este,
consequentemente, acaba por estruturar a sociedade em que está inserido,
completando o ciclo de manutenção do status da sociedade.

Apontam Constantino e Alves Neto (2014) que, na visão de Bourdieu, a


sociedade é estruturada com determinadas instituições e ferramentas “[...] que tendem
a fazer com os indivíduos não apenas as reproduzam, mas reproduzam também a
própria condição de dominância e subordinação no campo social”.

Uma destas instituições é o próprio Direito que, segundo Sckell (2016, p. 1), é
visto por Bourdieu “[...] acima de tudo como um instrumento de reprodução social que
não teria muito a contribuir para a emancipação social [...]”, onde o próprio elenca que
os seus operadores – os juristas – tratam-se de verdadeiros guardiões da hipocrisia
coletiva.

Para Skell (2016) a incursão da sociologia de Bourdieu no Direito é um


importante mecanismo para a pesquisa, eis que ao ultrapassar as antinomias citadas
o analista pode se atentar para os aspectos sociais da produção jurídica, ou seja, a
intenção de analisar e compreender o Direito a partir da teoria dos campos trata-se de
uma alternativa de entender como socialmente este se produz e se legitima, sem a
32

incumbência de submeter a discussão pelo debate científico dominante, redutor da


compreensão do próprio Direito (BOURDIEU, 1989, p. 209).

O conceito de campo é um dos pilares estruturantes da obra de Bourdieu. Ao


trilhar o caminho para superar o embate entre o subjetivo e o objetivo, o autor criou
uma espécie de relação suplementar – com finalidade mediadora – entre o sistema
das posições objetivas impostas pelo meio social e as disposições subjetivas
presentes nos indivíduos e coletividades.

A elaboração da teoria geral dos campos de Bourdieu recebe franca influência


do que Weber conceituou em outros domínios, como na esfera econômica. A
observação do trabalho de Weber proporcionou ao francês se deparar com
propriedades gerais e válidas para diversos campos (ARAUJO; ALVES; CRUZ, 2009,
p. 35).

Neste sentido, Bourdieu (2003, p. 119-126) elenca que que a teoria dos campos
se constrói a partir de generalizações, eis que ao empreender o estudo de um campo
específico descobrem-se novas características específicas que podem ser entendidas
como fundamentais para a análise e reconhecimento da estrutura e da
operacionalidade de outros campos. Destaca o autor que inexiste um campo
fundamental, como é a esfera econômica para Weber: é na existência das situações
igualmente encontradas em certos campos – como o da política e o da religião – que
se vislumbra um projeto de uma teoria geral dos campos.

Assim, o campo pode ser definido, de forma geral, como um espaço estruturado
de posições dos agentes, onde estes, separados entre dominantes e dominados,
confrontam-se pela obtenção e manutenção de determinados postos. É um espaço
hierarquizado, onde os agentes disputam esta relação de dominação, conforme o
histórico dos embates anteriores, com quotas diferenciadas de capital, bem como de
posições sociais (BOURDIEU, 1989, p. 64-73).

A luta que ocorre dentro do campo se dá de forma desigual entre os dominantes


e os dominados, que concorrem pela “[...] informação, pelo poder de decisão, de
barganha, de formar opinião, de visões de mundo, e em disputa para impor a leitura e
perspectiva consideradas legítimas dos eventos que afetam o mercado” (RENK,
WINCKLER, 2015, p. 179).
33

Inserindo a teoria dos campos para o cenário em que esta pesquisa atua, é de
direta percepção que os agentes dominantes se transmutam na figura do Estado – em
nível de Governo Federal – e dos grandes grupos de capitais aplicados à construção
civil e ao mercado de geração e comercialização de energia, dispondo estes de
grandes quantidades de capitais e ocupando posições sociais privilegiadas.

Em contrapartida, os agentes dominados neste campo são os grupos de


agentes atingidos – direta ou indiretamente – pelas consequências danosas que o
empreendimento desencadeia no meio ambiente e social, o que implica em incluir
além das comunidades ribeirinhas deslocadas pela formação do lago e da construção
das estruturas civis da usina4.

Desta forma, aplicar a noção de campo de Bourdieu implica em substituir o


conceito de sociedade, isto porque uma sociedade diferenciada não está integrada
por funções sistêmicas; de forma inversa, constitui-se de um conjunto de microcosmos
sociais, onde cada um destes espaços é detentor de uma autonomia relativa,
impregnados com lógicas e possibilidades próprias e específicas, bem como
interesses e disputas irredutíveis ao funcionamento de outros campos (CATANI, 2011,
p. 192).

Assim, entende-se que a estrutura do campo é concebida na forma de um jogo


incessante no qual os agentes participam disputando posições e conquistas
específicas, onde suas estruturas resultam das diferenciações existentes na
sociedade, bem como da forma de ser e do conhecimento do mundo. São as relações
de força na relação entre os agentes – desde os indivíduos per si e os grupos – e as
instituições que lutam pela hegemonia da autoridade, que por sua vez outorga o poder
a determinado agente de ditar as regras e de apontar a repartição do capital específico
de cada campo (BOURDIEU, 2003, p. 120-121).

Sendo os campos dotados de mecanismos próprios e propriedades


particulares, vislumbra-se a existência dos mais variados tipos de campos, como o
econômico, político, religioso, literário, jurídico, científico, entre outros, onde todos
estes microcosmos autônomos estão inseridos no interior de um mundo social.

4 Cita-se, por exemplo, o impacto ocasionado nas estruturas sociais e econômicas dos municípios
atingidos, que nem sempre são positivas.
34

Frisa Thiry-Cherques (2006, p. 36-37) que os campos, além das características


próprias, possuem propriedades universais, isto é, presentes em todos os campos.
Além do habitus específico, que é tratado a seguir, os campos possuem uma estrutura
– doxa – também chamado de opinião consensual, bem como o nomos, que são as
leis que o regem e que regulam a luta pela dominação do campo:

O conceito de doxa substitui, dando maior clareza e precisão, o que a


teoria marxista, principalmente a partir de Althusser, denomina
“ideologia”, como “falsa consciência” [...] A doxa é aquilo sobre o que
todos os agentes estão de acordo [...] A doxa contempla tudo aquilo
que é admitido como “sendo assim mesmo”: os sistemas de
classificação, o que é interessante ou não, o que é demandado ou não
[...] Já o nomos congrega as leis gerais, invariantes, de funcionamento
do campo. A evolução das sociedades faz com que surjam novos
campos, em um processo de diferenciação continuado. Todo campo,
como produto histórico, tem um nomos distinto.

Já em relação aos interesses dos agentes postos nos jogos existentes num
determinado campo, o mesmo autor elucida que Bourdieu os denomina de capital,
alertando que este capital vai além do sentido de bens econômicos, abarcando
também um conjunto de bens culturais, sociais, simbólicos, entre outros.

O capital cultural compreende o conhecimento, as habilidades, as informações


correspondentes ao conjunto de qualificações intelectuais, produzidas e transmitidas
pela família e pelas instituições escolares. Sua existência se dá, de forma geral, sob
três aspectos: o estado incorporado, através de disposição durável do corpo, como a
forma de se apresentar em público; o estado objetivo, pela acumulação de bens
culturais e o estado institucionalizado, outorgado pelas instituições, como os títulos
acadêmicos. Já o capital social é correspondente ao conjunto de permissões sociais,
como as redes de relacionamentos e de contatos. Por sua vez, o capital simbólico é
ao conjunto de rituais de reconhecimento social, compreendendo o prestígio, a honra,
entre outros, sendo esta forma de capital o extrato final dos capitais acima elencados
(THIRY-CHERQUES, 2006, p. 39).

O capital específico ao campo é desigualmente distribuído e acumulado, o que


motiva os agentes que buscam a sua posse na elaboração de estratégias de luta.
Todas as lutas travadas no campo giram em torno da situação de distribuição e posse
de determinados capitais, onde de um lado se encontram aqueles que pretendem
assumir posições e, de outro, aqueles que desejam mantê-las. De forma geral os
35

neófitos disputam, dentro das regras estabelecidas pelo nomos e pela doxa, a posição
onde se encontram os agentes dominantes.

A admissão de um neófito em um determinado campo se correlaciona de forma


direta com os investimentos necessários de capital que este deve realizar, onde este
também deve conhecer as suas regras e admiti-las como legítimas.

No caso em estudo pode-se relacionar que os neófitos são, num primeiro


momento, os agentes atingidos pelo empreendimento, onde estes – com limitada
quantidade de capital disponível – buscam acumular mais capital para competir com
os agentes dominantes, através de associação – como o MAB – com os demais
agentes em que se encontram no mesmo nível no campo.

Já os agentes dominantes, possuidores de grandes quantidades de capital


econômico e político, utilizam agentes representantes, altamente especializados nas
regras e ideologias (nomos e doxa) do campo, tornando-os também agentes que
possuem grandes quantidades de capital específico para atuar e manter a
superioridade de seus mandantes no campo. Ribeiro (1992, 2011) conceitua estes
agentes de bichos-de-obra, descrevendo-os como

[...] indivíduos que entram no circuito migratório dos grandes projetos


e nele passam a viver permanentemente durante sua vida
economicamente ativa [...] o bicho-de-obra arquétipico é nascido e
criado em acampamentos de grandes obras pelo mundo afora, e
encara esses circuitos e acampamentos como definidores de sua
identidade”.

O autor aponta que estes indivíduos aderem aos grandes projetos e fazem
deles os seus projetos durante o período de vida economicamente ativo. São
trabalhadores especializados, vinculados permanentemente ao circuito migratório das
obras. Muitos desses nasceram e foram criados nos acampamentos dos
empreendimentos, de modo a considera-los como elementos constitutivos de sua
identidade.

Na construção da UHE Binacional de Yaceretá (Argentina e Paraguai) houve a


figura clássica do migrante transnacional como bicho-de-obra; já no caso em questão
a constituição deste agente é primariamente nacional, resultante da experiência
acumulada pela elite gerencial em empreendimentos hidrelétricos e da migração em
acompanhamento às empresas construtoras. A experiência constrói o habitus do
empregador/negociador que está à frente nos momentos de negociação. Quanto
36

maior a experiência do administrador local, maior a probabilidade de impor a sua visão


e di-visão de projeto com as partes em conflito.

Pode-se dizer ainda que estes bichos fazem parte do topo da pirâmide e há
clivagem étnica em relação à base, composta de trabalhadores de menor qualificação
técnica. Afirma o autor que, em relação a estes últimos trabalhadores, gozam de maior
liberdade e sofrem menor vigilância e cerceamento.

Os agentes acima destacados se utilizam das mais variadas estratégias que


lhes permitem manter e galgar posições, bem como conquistar mais capital, em uma
luta que pode ser explícita ou simbólica e que coloca em jogo os interesses na
manutenção do status quo – a reprodução – pelos dominantes, em face dos interesses
de alteração da reprodução no campo pelos dominados.

Se tratando de um bem incorporado agente como sua forma de existência no


campo, a transferência de seus capitais acumulados de um determinado campo para
outro é, em regra, possível, mas na maioria das situações a validade destes capitais
se limitam ao próprio campo onde foram investidos ou produzidos.

Neste sentido, os campos não se vislumbram como sistemas plenamente


isolados, ou seja, possuem uma autonomia relativa. As pressões externas fazem com
que os campos se interpenetrem e se relacionem. A variação da autonomia relativa
ocorre de acordo a variação positiva ou negativa das forças internas do campo que o
legitimam. Assim, um determinado campo está mais sujeito às pressões externas e
aos poderes temporais se este é menos autônomo em relação à estas situações
(MONTAGNER; MONTAGNER, 2011, p. 261).

Thiry-Cherques (2006, p. 40-41) exemplifica a relatividade desta autonomia


através da relação entre o campo escolar e o campo social, onde os classifica de
distintos, porém não independentes, pois o primeiro – possuindo sua própria
reprodução – é o campo onde emergem os trabalhadores e os intelectuais, ou seja,
os agentes do campo social. Assim, a produção cultural produzida no primeiro pode
influenciar a hierarquia simbólica, o capital e o habitus no segundo, chegando à
conclusão que os campos “[...] são articulados entre si, não só pela interpenetração
dos efeitos dos conflitos, mas pela contaminação das idéias, que criam homologias”.

Ao final, faz-se imprescindível trazer a pesquisa de Catani (2011, p. 193), onde


este coloca de forma sistemática os principais elementos invariáveis, ou seja, aqueles
37

que são comumente encontrados em todos os campos e desta forma servem como
alicerce para identificar das características gerais dos campos:

1 – Um campo é um microcosmo incluído no macrocosmo constituído


pelo espaço social (nacional) global;
2 – Cada campo possui regras do jogo e desafios específicos,
irredutíveis às regras do jogo ou aos desafios de outros campos (o que
faz “correr” um matemático – e a maneira como “corre” – nada tem a
ver com o que faz “correr” – e a maneira como “corre” – um industrial
ou um grande costureiro);
3 – Um campo é um “sistema” ou um “espaço” estruturado de
posições;
4 – Esse espaço é um espaço de lutas entre os diferentes agentes que
ocupam as diversas posições;
5 – As lutas dão-se em torno da apropriação de um capital específico
do campo (o monopólio do capital específico legítimo) e/ou da
redefinição daquele capital;
6 – O capital é desigualmente distribuído dentro do campo e existem,
portanto, dominantes e dominados;
7 – A distribuição desigual do capital determina a estrutura do campo,
que é, portanto, definida pelo estado de uma relação de força histórica
entre as forças (agentes, instituições) em presença no campo;
8 – As estratégias dos agentes são entendidas se as relacionarmos
com suas posições no campo;
9 – Entre as estratégias invariantes, pode-se ressaltar a oposição
entre as estratégias de conservação e as estratégias de subversão (o
estado da relação de força existente). As primeiras são mais
frequentemente as dos dominantes e as segundas, as dos dominados
(e, entre estes, mais particularmente, dos “últimos a chegar”). Essa
oposição pode tomar a forma de um conflito entre ‘antigos’ e
‘modernos’, “ortodoxos’ e ‘heterodoxos” (...);
10 – Em luta uns contra os outros, os agentes de um campo têm pelo
menos interesse em que o campo exista e, portanto, mantêm uma
“cumplicidade objetiva” para além das lutas que os opõem;
11 – Logo, os interesses sociais são sempre específicos de cada
campo e não se reduzem ao interesse de tipo econômico;
12 – A cada campo corresponde um habitus (sistema de disposições
incorporadas) próprio do campo (por exemplo, o habitus da filologia ou
o habitus do pugilismo). Apenas quem tiver incorporado o habitus
próprio do campo tem condições de jogar o jogo e de acreditar na
importância desse jogo;
13 – Cada agente do campo é caracterizado por sua trajetória social,
seu habitus e sua posição no campo;
14 – Um campo possui uma autonomia relativa; as lutas que nele
ocorrem têm uma lógica interna, mas o seu resultado nas lutas
(econômicas, sociais, políticas...) externas ao campo pesa fortemente
sobre a questão das relações de força internas.
38

2.3. Os campos específicos

A teoria dos campos possibilita a análise das mais variadas formações sociais,
pois é plenamente possível substituir o conceito de sociedade com a aplicação do que
preconizou Bourdieu.

Ao inserir este conceito num determinado setor da sociedade, pode-se extrair


uma considerável quantidade de informações e peculiaridades inerentes ao campo
específico e almejado.

Tendo em vista a vasta quantidade de campos presentes na sociedade atual,


faz-se necessário filtrar aqueles campos que mais se correlatam com esta pesquisa.
Assim, procede-se a análise de três campos – o jurídico, o político e o econômico –
que estão fortemente atrelados aos processos de licenciamento ambiental ora
investigados.

2.3.1. O campo jurídico

Ao adentrar nos estudos para o estabelecimento de uma teoria adequada da


prática, Bourdieu se debruçou na década de 1980 sobre os estudos do campo jurídico.

Segundo Sckell (2016, p. 162) à época dos estudos sobre o campo jurídico, o
sociólogo percebeu que este era ignorado pelos estudiosos formalistas e
instrumentalistas. Desta forma, ele desenvolveu uma análise reflexiva e crítica do
direito, permitindo analisar o seu efeito na sociedade, sem que este sujeitasse a sua
teoria da prática social.

Conforme Bourdieu (1989, p. 212) descreve, no campo jurídico ocorre a “[...]


concorrência pelo monopólio do direito de dizer o Direito”, onde os agentes investidos
de competência social e técnica confrontam-se para tal conquista. A competência
destes agentes é a aptidão – carregada de um status – para interpretar um vasto
arcabouço de textos que consagram a visão legítima e justa do mundo social.

O campo jurídico é um espaço social permeado pelas instituições, normas e


agentes que interpretam e aplicam o direito, dizem o direito da forma mais correta,
justa. Como ocorre nos demais campos, há uma tendência natural desta ação do
campo jurídico se tornar um monopólio daqueles que o ingressam. Assim, há dentro
deste campo uma completa – e complexa – estrutura que organiza de forma
39

hierárquica todo o corpo técnico envolvido na produção, interpretação e aplicação do


direito, bem como todas as instituições envolvidas nesta relação e sua relação com
os demais campos no campo de poder social.

Neste sentido, destaca-se que o campo jurídico – através do fenômeno da


judicialização – possui a competência de interferir nos atos dos outros poderes
independentes: o executivo e o legislativo. Conforme preceitua Vallinder (1994), o
poder judiciário – ao revisar e anular/reformar as decisões do legislativo e executivo –
expande sua cobertura de atuação para outros espaços da sociedade que, a priori,
não fazem parte do campo jurídico, inflando ainda mais a sua capacidade de
interferência nos demais campos constituintes da sociedade5.

Ademais, a legitimidade do campo jurídico necessita apresentar um aspecto de


neutralidade e autonomia em face das pressões externas dos outros campos, o que
desencadeia a construção de um habitus bastante específico.

Este é o discurso jurídico, que é produzido a partir do habitus, de forma


linguística, existente no campo jurídico. O discurso jurídico possui uma característica
de estilo, o que acarreta a determinada propensão do agente inserido no campo
expressar-se de forma pré-moldada, possuindo assim uma competência técnica e
social para usá-las em situações determinadas dentro do campo. Sckell (2016, p. 162)
reforça esta ideia, elencando que

Apenas aquele que tem uma certa competência – neste caso, uma
competência jurídica – e interesse pelo jogo pode participar: temos de
acreditar no jogo e também aceitar que ele realmente merece ser
jogado, o que constitui a ilusão. Bourdieu encontra nesse aspecto o
paradoxo da força do direito e remonta à teoria da magia de Marcel
Mauss: a magia só funciona em um campo, em um espaço de crença,
em que os agentes são socializados de forma a acreditar que vale a
pena jogar o jogo.

Em relação aos elementos que determinam as condições do jogo


desempenhado dentro do campo jurídico, Azevedo (2011, p. 31) elucida que tanto as
condições internas ou externas influenciam o jogo jurídico, onde Bourdieu prega que

5 Tal situação pode ser interpretada como uma afronta ao princípio da separação dos poderes
constitucionalmente constituídos, eis que o Judiciário interfere diretamente nas competências privativas
(atividades-fim) do executivo e do legislativo. Todavia, a atual constituição do Brasil prevê, em seu art.
2º, a independência harmônica entre os três poderes, o que se traduz na prerrogativa dos poderes
possuírem mecanismos de controle entre eles, realçando a eficácia do princípio de checks and
balances (freios e contrapesos).
40

é indispensável pensar de forma alternativa em relação à posição dominante no


debate científico, ou seja, é necessário escapar da visão estritamente
internalista/formalista e da visão externalista/instrumentalista do Direito.

Segundo o autor, a visão internalista pode ser compreendida pela famosa


Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, que esquece as coações e pressões sociais
que intervêm na gestação da citada teoria. Já a visão externalista é própria do
marxismo estruturalista, eis que ignora a estrutura dos sistemas simbólicos e a forma
específica do discurso jurídico.

O ponto de vista internalista toma como absoluta a autonomia da forma jurídica


em relação ao mundo social, o que acarreta para a Ciência Jurídica conceber e se
apropriar do Direito como um sistema autônomo e fechado, onde somente a própria
dinâmica interna do Direito pode ser utilizada para compreender seu desenvolvimento.
Já na visão externalista, o Direito é tão somente o reflexo das relações de força
existentes pelas quais as determinações econômicas se expressam, bem como os
interesses dos grupos sociais dominantes, transformando-se o Direito num
instrumento de dominação.

Desta forma, Bourdieu (1989, p. 211) alterna os sistemas acima apresentados,


elencando que as práticas e os discursos jurídicos são o resultado do funcionamento
do campo jurídico, onde sua lógica de operação é determinada em dois fatores.

O primeiro fator ocorre através das relações de força específicas que compõem
a sua estrutura e orientam as lutas de concorrência e os conflitos de competência6. Já
o segundo fator advém da lógica interna emanada das obras jurídicas – a codificação
– eis que estas delimitam os ambientes de possibilidades e de soluções jurídicas7.

Para Azevedo (2011, p. 32) é assente que Bourdieu, ao analisar ambas as


posturas, aponta que estas não percebem a existência de um universo social

6 Sckell (2016, p. 162) escreve que ocorrem dois tipos de relações de força entre os juristas: “[...] no
campo jurídico, praticantes e teóricos se encontram em uma relação de concorrência e, ao mesmo
tempo, de complementaridade. Essas relações de força estão intimamente ligadas àquelas entre os
profissionais do direito e os leigos. As complementaridades entre os juristas são mais fortes que suas
diferenças, e assim eles se diferenciam dos leigos. Ao mesmo tempo, certo grupo de juristas se
identifica com determinado grupo social; tendo em conta os interesses desse grupo social, o grupo de
juristas que com ele se identifica procura mudar o direito”.
7 Sckell (2016, p. 162) aduz que “O segundo fator do campo jurídico analisado por Bourdieu é a lógica
interna do trabalho jurídico: o direito é codificado. Essa codificação gerará os efeitos de racionalização,
universalização e normalização. Isso leva Bourdieu a comparar o jurista a um profeta (referência a
Weber), a um poeta e a um artista (referência a Kantorowicz)”.
41

parcialmente independente às situações externas, onde há a produção e o uso da


autoridade jurídica, “[...] forma por excelência da violência simbólica legítima, cujo
monopólio pertence ao Estado e que pode servir-se do exercício da força física”8.

Quanto ao fator das relações de força específicas que compõem a estrutura e


orientam as lutas de concorrência e os conflitos de competência do campo jurídico,
Sckell (2016, p. 163) elucida que o primeiro conflito ocorre no embate entre juristas
teóricos e praticantes, onde as relações de força se caracterizam pela existência de
um antagonismo e complementaridade.

Segundo a autora, os teóricos são aqueles dedicados ao ensino e à pesquisa;


já os práticos são aqueles que representam clientes. O antagonismo se observa
quando os dois lados disputam o monopólio da interpretação da lei, onde os teóricos
miram a elaboração da doutrina jurídica, enquanto os práticos procedem as análises
práticas dos seus casos particulares.

Bourdieu traça uma análise dos sistemas jurídicos ocidentais distintos – o


direito anglo-saxônico e seu common law e o sistema ítalo-franco-germânico do civil
law. Na tradição anglo-americana, fortemente baseada nas letras jurisprudências, os
praticantes do direito predominam, eis que o conhecimento jurídico é obtido na prática
forense, através do que se emanam dos próprios julgados. Já no outro sistema, os
teóricos têm mais poder, como no caso Francês, onde os formados pela Escola
Nacional de Administração possuem poder considerável na gestão pública, ou como
no sistema racionalista e universalista do regramento alemão, escrito por seus juristas
teóricos (BOURDIEU, 1989, p. 219-221).

Ademais, Sckell (2016, p. 164) elucida que há nesta relação o caráter de


complementaridade, que por sua vez é responsável pela inovação do sistema jurídico.
Aduz a autora que os teóricos concebem o direito como um sistema coerente e tendem
a encerrá-lo de uma forma rígida. Já os praticantes do direito, orientando-se pelas
situações particulares concretas, acabam por renovar o sistema.

8 O autor (2011, p. 31) elenca que “Para Weber, o sentido em que se desenvolvem as qualidades
formais do Direito está condicionado diretamente pelas relações internas ao Direito, ou seja, a
particularidade do círculo de pessoas que por profissão estão em condições de influenciar a maneira
de dizer o Direito, ao lado da influência indireta que tem sua origem nas condições econômicas e
sociais, ou seja, nas relações externas”.
42

Assim, ocorre um processo cíclico renovável, onde os teóricos, através da


racionalização e formalização, absorvem as inovações dos praticantes ao sistema
jurídico. Ao final, seus trabalhos conferem legitimidades recíprocas, eis que garantem
mutuamente que as práticas de ambos grupos não sejam arbitrárias.

O segundo fator de relação de força é aquele decorrente entre o descompasso


apresentado entre especialistas do direito e os seus clientes profanos. Segundo Sckell
(2016, p. 164) existe um “[...] descompasso entre a compreensão cotidiana dos
mandantes, de um lado, e o ponto de vista profissional dos juristas, de outro”.

Através do discurso jurídico, o especialista transforma problemas comuns em


problemas jurídicos, que fogem da esfera de conhecimento do mundano. Através da
violência simbólica (abaixo descrita), o especialista obtém reconhecimento pelo
desconhecimento, onde as proposições e normas, que são “[...] dependentes da
posição e dos interesses de quem as formula no campo jurídico, aparecem como se
fossem justificadas por uma autoridade transcendente” (SCKELL, 2016, p. 164).

A situação das relações de força acima apresentada é fortemente calçada no


que o trabalho jurídico do campo produz: a codificação. Segundo Bourdieu (2004, p.
102-103) o Direito se constitui de um sistema com normas autônomas, lógicas e
coerentes, o que resulta numa sistematização produtora de coerência e racionalidade,
ou seja, a codificação produz a racionalização, a universalização e a normalização.

Para explicar o efeito de racionalização, Sckell escreve que Bourdieu se


debruça nas escritas weberianas, onde a racionalidade formal – oposta à
racionalidade material – produz clareza em face dos costumes. Assim, a racionalidade
formal cria uma ilusão transcendental, pois parece que o ordenamento jurídico –
fundado na lógica positiva da ciência e da moral – é plenamente autônomo e
independente de quaisquer relações de poder, sendo a codificação capaz de possuir
um reconhecimento universal (SCKELL, 2016, p. 164-165).

Adiante, explica Azevedo (2011, p. 32) que a universalização jurídica é a


fórmula primordial das estratégias de legitimação dos agentes do campo para exercer
a dominação particular,

[...] recorrendo a um princípio universal mediante a referência a uma


regra, que permite que o interesse em disputa substancie-se em
desinteresse, ou em termos de um interesse geral ou comum, que
despojado de toda referência filosófico-moral, seria o fruto do poder
43

agregado daqueles setores suficientemente influentes para definir


problemas, constituí-los como tais e impor suas próprias soluções.

Bourdieu analisa – além dos efeitos de racionalização e de universalização da


codificação acima descritos – como ocorre a produção do efeito da normalização, que
deriva da universalização, criadora da representação oficial do mundo social. Com o
direito posto em funcionamento, a regularidade dos acontecimentos torna-se
corriqueira e desta forma a normalidade dos fatos torna-se a normalidade do Direito.
Assim, os fatos que se afastam da normalidade imposta pela codificação revestem-se
de anormalidade (SCKELL, 2016, p. 169).

2.3.2. O campo político

Segundo Bourdieu (2011, p. 195) a noção do campo político permite construir


de maneira rigorosa a realidade política ou o jogo político. Dentro da teoria dos
campos já elucidada, este se caracteriza também como um microcosmo, uma fração
do mundo social, com certa autonomia relativa em relação ao grande mundo social.
Como os demais campos, encontra-se no político uma grande quantidade de
propriedades que estão presentes no espaço global, contudo esses fenômenos se
revestem no campo político de uma forma particular.

O conceito de campo político evidencia as práticas excludentes e


manipuladoras dos padrões de comportamento que são notados no seio da esfera
política das sociedades atuais.

Ao entender o funcionamento de todo o cenário político através da teoria dos


campos de Bourdieu, possibilita-se ao analista se desvencilhar de um conceito
imposto naturalmente no que tange ao funcionamento da máquina política, ou seja,
de que o ingresso de agentes pertencentes aos grupos hierarquicamente inferiores
nas cadeiras decisórias “[...] implica uma mudança da lógica dessas esferas e de que
a criação de novos espaços de participação e/ou representação, em paralelo às
instituições tradicionais, gera uma nova dinâmica, ‘descontaminada’ dos antigos
‘vícios’” (MIGUEL, 2015, p. 198).

Fernandes (2006, p. 77) escreve que o campo político se define “[...] em relação
aos acontecimentos que ocorrem no interior do mundo dos profissionais chamados
políticos”. Como nos demais campos, os meios de acesso à participação política estão
44

distribuídos de forma desigual na sociedade, emergindo condições sociais particulares


para a constituição da competência social e técnica do agente que possui a intenção
de ingressar na participação política.

Assevera Bourdieu (2011, p. 195) que para adentrar na política, de forma


análoga a quem deseja ingressar na religião, o agente deve operar em si uma
conversão9. Na maioria das vezes tal situação não se apresenta visível, pois ela é
tacitamente imposta ao neófito, sendo que o descumpridor das regras do jogo é
sancionado com a alcunha do fracasso ou, gravosamente, a exclusão do campo.
Assim, a conversão torna-se uma lei específica do campo, sendo também uma forma
de avaliação e, eventualmente, de exclusão.

Sendo os meios de acesso à participação política desigualmente distribuídos,


a concentração do capital político acaba por repousar nas mãos de uma parcela
restrita de agentes.

Neste sentido, são aqueles que se encontram apossados em maior quantidade


dos instrumentos materiais e culturais necessários à participação na política que tem
à disposição mais quantidade de capital político. Bourdieu elucida que, em especial,
existem dois capitais que determinam a situação acima exposta, sendo eles o tempo
livre e o capital cultural:

Há, portanto, condições sociais de possibilidade de acesso a esse


microcosmo, como, por exemplo, o tempo livre: a primeira acumulação
de capital político é característica de pessoas dotadas de um
excedente econômico que lhes possibilita subtrair-se às atividades
produtivas, o que lhes permite colocar-se na posição de porta-voz.
Além do tempo livre, há este outro fator que é a educação
(BOURDIEU, 2011, p. 196).

Sendo um campo, existem tanto um habitus particular bem como um capital


específico. Fernandes (2006, p. 80) aduz que o habitus do político se compõe de uma
preparação específica, onde se faz necessário para o agente possuir uma
determinada quantidade de saberes específicos e capacidades especiais, como o
domínio da linguística e da retórica pertencente ao campo, bem como um certo nível
de domínio prático da lógica que permeia o campo político.

9 O autor assevera que a conversão obriga o agente, de forma tácita, a eximir-se de certos atos
incompatíveis com sua dignidade, sob pena de escândalo.
45

Em relação ao capital específico do campo político, o autor acima citado


escreve que este é uma forma de capital simbólico, firmado na crença e no
reconhecimento, bem como no que Bourdieu (1980) especifica como o capital social10.
Assim, o agente político possui a sua força política presente na confiança que um
grupo deposita nele, constituindo num valor que se sustenta na representação, na
opinião e crença daqueles que investem sua atenção para determinado agente 11.

Tendo por base que a honra é o principal elemento do capital de um político,


existem diversas situações que ameaçam a crença e a confiança dos profanos sobre
o agente profissional, como as suspeitas, calúnias e escândalos. Esta instabilidade,
segundo Bourdieu, acaba por fazer com que os agentes do campo político fiquem
corriqueiramente na alça de mira da opinião pública:

É algo que os profanos às vezes intuem. Eles mantêm uma


desconfiança em relação à delegação política, desconfiança que se
baseia nesse sentimento de que as pessoas que jogam esse jogo que
chamamos de política têm entre si uma espécie de cumplicidade
fundamental, prévia a seu desacordo. Podemos mesmo dizer que, em
decorrência de pertencerem ao campo, elas têm interesses em sua
perpetuação, e esses interesses podem ser apresentados como a
expressão dos interesses dos cidadãos que lhes deram a delegação
para representá-los (BOURDIEU, 2011, p. 198).

Assim, o profissional da política é compelido, através do poder simbólico que


possui, a demonstrar a sua visão de mundo àqueles que a ele estão coniventemente
submetidos, seja pela transformação ou pela confirmação. O capital simbólico trata-
se, portanto, de um poder carregado de um tom de mágica, isto porque aqueles que
estão a sujeitos creem cegamente que ele existe, o que é muito parecido com a
perspectiva weberiana do poder político, que o vê como uma probabilidade e uma
crença (FERNANDES, 2006, p. 78).

Em relação ao sistema de distribuição do capital político dos agentes, Bourdieu


(2011, p. 204) escreve que a sua posição hierárquica dentro do partido, bem como do

10Segundo o autor (1980, p. 2), “O capital social é o conjunto de recursos atuais ou potenciais que
estão ligadas à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizados de
convivência ou reconhecimento; ou, em outras palavras, a pertença a um grupo, a partir de um conjunto
de agentes que não são apenas dotados com propriedades comuns [...]”.
11Higgins (2005, p. 33) escreve que o capital social sob o enfoque de Coleman “[...] consiste em todos
aqueles elementos de uma estrutura social que cumprem a função de servir como recursos para que
os atores individuais atinjam suas metas e satisfaçam seus interesses”.
46

peso que o agente tem dentro de seu partido, determinam de forma primária qual é
montante que cada agente recebe.

O autor assevera que na atualidade os partidos se comportam como espécies


de bancos dos capitais políticos, onde seus mandantes atuam como banqueiros,
controlando a disposição do capital político aos agentes que naquele partido o
procuram. Tal situação tem se tornado, segundo o sociólogo, mais frequente, eis que
o campo político tem se tornado cada vez mais “[...] burocratizado, burocrático,
garantido e autenticado burocraticamente pela burocracia de um partido”.

Importante frisar uma particularidade apresentada na análise do campo político


feito por Bourdieu (2011, p. 203). O campo político, assim como os outros campos,
não pode atingir uma completa autonomia, mas este campo específico sofre um
limitador muito importante, que é o recurso do sufrágio universal.

Esta ferramenta é dada aos leigos, mormente denominados de profanos, que


no jogo do campo político se encontram desmunidos dos poderes específicos do
campo. Assim, os profanos determinam, em intervalos regulares, os caminhos do jogo
de lutas desenvolvidas entre os agentes profissionais no campo.

Assim, assevera Fernandes (2006, p. 70) que ocorre no campo político uma
ruptura entre os profissionais e os profanos, incidindo assim no campo uma divisão
entre os dominantes e os opositores no interior do campo, o que acarreta no
desenrolar do jogo pela luta do monopólio do Estado12.

Bourdieu também alerta sobre a influência da mídia, principalmente pela


inserção do jornalismo político, como um fato causador de uma das transformações
mais importantes da política nos tempos atuais. Segundo o autor, os jornalistas
especialistas em política e os pesquisadores de opinião, que eram tão somente
espectadores do campo político, tornaram-se agentes protagonistas (BOURDIEU,
2011, p. 201-202).

12 “As lutas políticas são lutas entre responsáveis políticos, mas nessas lutas os adversários, que
competem pelo monopólio da manipulação legítima dos bens políticos, têm um objeto comum em
disputa, o poder sobre o Estado (que em certa medida põe fim à luta política, visto que as verdades de
Estado são verdades transpolíticas, pelo menos oficialmente). As lutas pelo monopólio do princípio
legítimo de visão e de divisão do mundo social opõem pessoas dotadas de poderes desiguais”
(BOURDIEU, 2011, p. 203).
47

Esse protagonismo da mídia na política se dá pela própria peculiaridade do


capital político, eis que se trata de um capital fortemente ligado à reputação e
notoriedade do agente. Como o mais importante sistema de publicidade, a televisão
transformou pessoas “[...] que só eram conhecidas pelas reuniões eleitorais nos pátios
das escolas” em grandes personalidades que “[...]têm seus rostos conhecidos por todo
mundo”. Assim, finaliza o autor dizendo que “O capital político é, portanto, uma
espécie de capital de reputação, um capital simbólico ligado à maneira de ser
conhecido” (BOURDIEU, 2011, p. 204). Ao final, a atividade prioritária desenvolvida
pelos agentes políticos tem a função de manutenção do status do campo, pois
reproduzem o aparelho político ao que estão inseridos e com isso reproduzem os
agentes políticos. Sendo a atividade política um universo onde o simbólico é
primordial, é lógico pensar que as forças políticas são simbólicas.

2.3.3. O campo econômico

A análise de Bourdieu sobre o campo econômico é resultante de uma série de


pesquisas empíricas debruçadas sobre mercado da construção civil na França no final
da década de 1990, onde o autor sistematiza os princípios do campo ora analisado.

O autor (2005, p. 17), tomando por base de seus estudos o mercado das casas
próprias em seu país, elenca que o campo econômico é um produto derivado de uma
construção social dupla, encartado nos pressupostos da oferta e da demanda.

Para Raud (2007, p. 209) Bourdieu reconhece que a existência da esfera


econômica – denominada por ele de esfera das trocas de mercado – é um dos
elementos que constituiu o campo econômico, o microcosmo que possui e obedece
aos seus próprios regramentos, onde o cálculo dos lucros individuais dos agentes é
visto como o princípio diretor para a determinação das estratégias de ação dos
agentes dominantes13.

O cálculo dos lucros individuais dos agentes é, para Bourdieu (2005, p. 22-23),
o que distingue o campo econômico dos outros campos, eis que as condutas e as

13 O autor alerta que a esfera das trocas de mercado é um conceito em evolução progressiva, que
ultrapassou o antigo modelo das trocas domésticas (orientadas pelas obrigações sociais e/ou
familiares) e atualmente se firma no seu nomos específico, de que negócios são negócios, o que por si
consagrada ao conceito do cálculo dos lucros individuais (interesse econômico) a visão dominante do
campo econômico (BOURDIEU, 2005, p. 19).
48

ações violentas dos agentes se revestem de maior brutalidade e possuem como


finalidade a busca aberta da maximização do lucro material individual. Assim, o
interesse econômico, como qualquer outro tipo de interesse,

[...] é apenas a forma específica que reveste o illusio, o investimento


no jogo econômico, quando o campo é apreendido por agentes
dotados das disposições adequadas, porque adquiridas em e por uma
experiência precoce e prolongada das necessidades do campo [...] As
disposições econômicas mais fundamentais, como necessidades,
preferências e propensões – ao trabalho, à poupança, ao
investimento, etc. – não são exógenas, isto é, dependentes de uma
natureza humana universal, mas endógenas e dependentes de uma
história, que é aquela mesma do cosmo econômico onde elas são
exigidas e recompensadas.

Ao classificar os agentes dominantes presentes no campo – os produtores –


Bourdieu (2005, p. 23-24) frisa que eles constroem a estrutura do campo a partir da
transformação que ocorre por suas presenças e ações e pelas consequências dos
conflitos de força entre as empresas presentes no campo, havendo uma forte
hierarquização entre os concorrentes.

Já em relação aos consumidores, o autor revela que a inércia é seu principal


elemento e a sua interação ativa com o campo é mínima. Esta situação conduz a um
comportamento geralmente direcionado pelos efeitos que o campo nestes exerce, ou
seja, os dominados são influenciados com plena força pelo poder simbólico utilizado
pelos produtores.

Assim, os conflitos de força são travados e medidos pela quantidade e formas


do capital específico que os agentes dispõem, onde os dominantes controlam o campo
econômico na proporção pela qual possuem o domínio, determinado pelo tamanho e
importância do seu capital disponível. A força correlata de um determinado agente é
diretamente conectada às diferentes espécies e quantidades de recursos que este
dispõe, ou seja, o volume e a estrutura do capital possuído, que se expressa de
variadas formas, como o capital financeiro, cultural, tecnológico, jurídico,
organizacional, comercial e simbólico14. (BOURDIEU, 2005, p. 24-25)

14 O autor define sumariamente os seguintes capitas específicos dos agentes inseridos no campo
econômico: “O capital financeiro é o domínio direto ou indireto (por intermédio do acesso aos bancos)
de recursos financeiros que são a condição principal (com o tempo) da acumulação e da conservação
de todas as outras espécies de capital. O capital tecnológico é o portifólio de recursos científicos
(potencial de pesquisa) ou técnicos diferenciais (procedimentos, atitudes, rotinas e competências
únicas e coerentes, capazes de diminuir a despesa em mão-de-obra ou em capital, ou de aumentar o
rendimento) susceptíveis de serem implementados na concepção e na fabricação dos produtos. O
49

Ainda, é importante apontar que o sujeito das ações econômicas – o agente


inserido no campo econômico – não se adentra neste desprovido de certo capital
simbólico, isto porque as estratégias econômicas não ocorrem de forma isolada. A
inserção do agente econômico decorre do seu próprio coletivo que o influencia, sendo
as estratégias econômicas geralmente conectadas num sistema complexo de
estratégias de reprodução, profundamente enraizadas na história de cada um dos
agentes responsáveis por elas (BOURDIEU, 2005, p. 18).

Como acima citado, a estrutura da distribuição do capital determina a estrutura


do campo e as relações de força entre os agentes dominantes. Assim, a distribuição
desigual dos capitais (característico de qualquer campo) também determina a quem
pertence controle de determinados capitais que são capazes de permitir o controle
sobre o campo. Assim, este controle exerce um efeito estrutural quando modifica as
hierarquias do campo, bem como a eficiência das demais espécies de capital
acumulados pelos produtores (BOURDIEU, 2005, p. 25-26).

Segundo Raud (2007, p. 211) esta disposição de capital em forma desigual


implica em firmar que ocorrem relações de dominação no seio do campo econômico,
ou seja, é visível que existe uma hierarquia bem definida entre os produtores, existindo
empresas dominantes e dominadas, o que “[...] rompe com a teoria econômica na qual
só interagem atores iguais, ao menos nos modelos de concorrência pura e perfeita, e
tem o mérito de destacar a dimensão política do mercado”.

Neste sentido, Bourdieu (2005, p. 39-40) destaca que a presença da figura


Estatal neste cenário contribui para a alteração da distribuição do capital, através de
um protagonismo pujante do Estado na construção dos determinadores da oferta e da
demanda.

Em relação à demanda, o Estado age através do apontamento das disposições


e das necessidades individuais, o que no ramo da construção civil se dá pela
capacidade da máquina pública em definir a atribuição dos seus recursos para o citado

capital comercial (equipe de venda) deriva do controle de redes de distribuição (armazenagem e


transporte) e de serviços de marketing e pós-venda. O capital simbólico reside no controle de recursos
simbólicos baseados sobre o conhecimento e o reconhecimento, como a imagem da marca (goodwill
investment), a fidelidade à marca (brand loyalty), etc.; poder que funciona como uma forma de crédito,
ele supõe a confiança ou a crença dos que lhe estão submetidos porque estão dispostos a atribuir
crédito (é este poder simbólico que invocam Keynes, quando afirma que uma injeção de dinheiro
funciona se os agentes crêem que ela funciona, e a teoria das bolhas especulativas)”.
50

mercado através das normas jurídicas, ou seja, onde, de qual forma (e para quem) os
benefícios estatais à construção e habitação são aplicados.

Já a manipulação da oferta pelo Estado se dá através das políticas adotadas


no que tange aos termos para a obtenção de crédito pelos produtores, o que por sua
vez define para as condições de acesso destes ao mercado e a suas posições dentro
estrutura do campo econômico.

No caso apresentado, o Estado age no campo econômico através da


regulação, disposição e fiscalização das concessões de exploração dos potenciais
hidrelétricos inventariados pela própria Administração Pública. Ainda, o Estado age
nos indicadores da oferta e demanda através da oferta de concessão dos
empréstimos bancários – em sua grande maioria através de bancos públicos –
necessários para os grandes grupos econômicos ligados à construção civil e ao
hidronegócio construírem os empreendimentos hidrelétricos15. Assim,

[...] o Estado influencia fortemente as relações de força existentes


entre os agentes no campo econômico. As empresas dominadas
tentam mobilizar seu capital social (suas redes de relações) para
pressionar o Estado a modificar as regras do jogo num sentido que
lhes seja mais favorável. O Estado participa também da construção da
demanda por meio da produção dos sistemas de preferências
individuais e da atribuição dos recursos necessários (RAUD, 2007, p.
214).

Desta forma, elenca Bourdieu que a distribuição desigual dos capitais e a


estruturação do campo contribuem de forma direta para assegurar a reprodução
(manutenção) do status do campo econômico pela imposição de barreiras de entrada,
isto pelo resultado da “[...] desvantagem permanente que os novos que entram devem
enfrentar, ou do custo de exploração que eles devem quitar”. Esta situação, segundo
o autor, contribui para que o campo tenha uma estabilidade estrutural, bem como
fornece aos agentes dominantes uma possibilidade de prever e calcular o futuro do
campo16 (BOURDIEU, 2005, p. 27-28).

15Sem contar na participação do próprio ente estatal na formação do capital (financeiro) nestes
empreendimentos, através dos projetos de PPP (Participação Público-Privada) e das Sociedades de
Propósito Específico (SPEs).
16 Para Raud (2007, p. 212) “[...] o mercado de Bourdieu consiste num jogo temporariamente
estabilizado, cujas regras são provisoriamente respeitadas. Nesse quadro, a dominação de uma
empresa reside em essência na sua capacidade de impor às outras sua própria definição do jogo”.
51

Todavia, alerta Raud (2007, p. 213) que Bourdieu aponta que o campo
econômico também é dinâmico, apesar de sua insistência quanto à estática do
fenômeno da reprodução neste campo.

Nesse cenário, Bourdieu (2005, p. 36-39) aponta que os dominantes do campo


econômico contribuem de forma direta para a alteração das diretrizes do próprio
campo, atraídos pelas oportunidades de lucro ofertadas pelo campo em relação a
outros campos. Com isso, estes trabalham ativamente para fomentar o crescimento
da demanda em geral, através de técnicas para atrair novos consumidores, novas
formas e intensidades de usos dos produtos que oferecem, o que por consequência
acarreta importantes benefícios, eis que o aumento é geralmente proporcional à
participação de cada agente dominante no mercado.

Ademais, as forças do campo guiam os agentes dominantes para utilizarem as


estratégias possíveis com o objetivo de aumentar sua dominação, que são
alimentandas pelo capital simbólico do qual os agentes dispõem e que, ao final,
proporciona a estes a obtenção do sucesso, intimidando seus concorrentes e
dissuadindo-os de contra-atacar.

Ainda, frisa Bourdieu (2005, p. 39-40) que a intervenção do Estado acima


explanada – exercida primariamente através do direito e do campo jurídico – é injetada
no seio da competição entre os produtores, que “[...] assume freqüentemente a forma
de uma competição para o poder sobre o poder do Estado, – notadamente, sobre o
poder de regulamentação e sobre os direitos de propriedade [...]”.

Desta forma, os agentes utilizam seus capitais disponíveis para exercer


pressões sobre o Estado, com o intuito de alternar as regras do campo. Esta situação,
que pode ser exercida por todos os jogadores presentes no campo, vem a possibilitar
que outros capitais menos importantes alterem seus status e tenham novo valor,
convertendo o jogo e favorecendo àqueles que pressionaram pela mudança das
regras. Vislumbra-se, portanto, que “[...] o Estado não é somente o regulador
encarregado de manter a ordem e a confiança, e de regular os mercados, nem o
árbitro encarregado de ‘controlar’ as empresas e suas interações, como é visto
tradicionalmente”.
52

2.4. O conceito de habitus

No sistema das práticas sociais concebidas por Bourdieu, os agentes inseridos


nos campos são corpos que se encontram em ação constante, interagindo com toda
a estrutura que os envolve. Devido ao constrangimento que o campo impõe aos que
nele estão presentes, surge um questionamento em relação ao limite da liberdade de
ação dos agentes dentro do campo, bem como qual é o principal fator que impõe tal
limitação nestas ações.

Assim, o debate da prática social mira – de forma antípoda e simplificadora –


para precisar se o agente possui margens de liberdade absolutas na sua ação ou é a
sociedade, especificamente pela sua estrutura social, capaz de determinar suas ações
individuais.

Neste sentido, o senso comum leva a pensar que a relação entre o agente e a
sociedade/estrutura se baseia em critérios dualistas ou antagonistas, como regra
versus obediência, por exemplo.

Conforme assevera Sckell (2016, p. 158-159) o pensamento dualista e seus


diversos antagonismos nas ciências jurídicas, como direito-ciência versus direito-
ideologia e formalismo versus instrumentalismo perturbavam Bourdieu, que buscava
a superação deste pensamento para possibilitar a análise da reprodução e da ação
do discurso jurídico sobre os agentes, vencendo assim a visão legalista dos
antropólogos, que determinam a prática social como um produto da obediência ao
ordenamento jurídico.

Ademais, a autora cita que Bourdieu está consoante com Weber no que tange
a rejeição do legalismo como explicação da prática social. Todavia, o primeiro se
distancia do segundo no que concerne a influência dos interesses particulares no
legalismo, apontando o Francês que os agentes somente obedecem ao ordenamento
quando o interesse em o obedecer é maior que o interesse em desobedecê-lo.

Diante do acima exposto, o pensamento dele diferencia-se dos legalistas na


antropologia e de Weber na sociologia – além do ordenamento e do cálculo racional
– elencando que o direcionamento dos comportamentos dos agentes dentro de uma
53

determinada sociedade se explica por outros princípios geradores das práticas


sociais, o que o autor vem a denominar de habitus17.

O habitus, dentro da teoria da prática social de Bourdieu, é um conceito que


tem o intuito de desclassificar os antagonismos primários presentes no conhecimento
científico e no senso comum e que nos levam a pensar na ação humana de forma
dual:

O conceito de habitus tem por função inicial romper com a filosofia


cartesiana da consciência e desprender-se, ao mesmo tempo, da
alternativa ruinosa entre o mecanismo e o finalismo, isto é, entre a
determinação por causas e a determinação por razões; ou, ainda,
entre o individualismo dito metodológico e o que se chama às vezes
(nos “individualistas”) de holismo, oposição apenas parcialmente
sábia, que é somente a forma eufemisada da alternativa – talvez a
mais potente da ordem política – entre o individualismo ou o
liberalismo, que considera o indivíduo como última unidade elementar
autônoma, e o coletivismo ou o socialismo, visto como concedendo a
primazia ao coletivo (BOURDIEU, 2005, p. 47).

Assim, o habitus pode ser definido como um sistema de disposições para a


ação do agente no meio social, sendo uma noção de mediação entre a estrutura e o
agente, buscando-se incorporar os mais variados graus de liberdade e determinismo
encontrados nas ações dos agentes inseridos em relações sociais.

Tais disposições se constituem de estruturas estruturadas tendentes a


funcionarem como estruturas estruturantes, ou seja, princípios geradores e
estruturadores das práticas sociais e das representações, que podem ser
objetivamente regradas sem que sejam o produto de obediência de regras, tampouco
objetivamente adaptadas para uma finalidade. Ainda, frisa o autor que não é
necessário “[...] que se tenha necessidade da projeção consciente deste fim ou do
domínio das operações para atingi-lo, mas sendo, ao mesmo tempo, coletivamente

17 Segundo Setton (2002) “[...] Bourdieu retoma o conceito de habitus segundo uma ótica original. Ou
seja, aproveitando-se das reflexões de Panofsky sobre a relação de afinidade entre a arte gótica e o
pensamento escolástico, Bourdieu propõe um problema sociológico. Não basta postular a
comparabilidade das diferentes esferas do social. É necessário definir as condições, os princípios que
tornam essa comparação possível [...] Segundo Bourdieu, Panofsky não se limitou a observar a
correspondência entre imagem e idéias de um período, mas afirmou que tal semelhança derivaria, teria
seu princípio, em uma educação (socialização) sistemática apropriada de maneira inconsciente e
difusa. Segundo as palavras do autor, as semelhanças têm seu princípio na instituição escolar,
investida da função de transmitir conscientemente e em certa medida inconscientemete ou, de modo
mais preciso, de produzir indivíduos dotados do sistema de esquemas inconscientes (ou
profundamente internalizados), o qual constitui sua cultura, ou melhor, seu habitus [...]”.
54

orquestradas sem serem o produto da ação organizadora de um maestro” (CATANI,


2004, p. 4).

Sob a ótica de uma estrutura estruturante, o habitus tem o condão de produzir


ações nos indivíduos, sendo ele determinado de forma simultânea pelas condições
históricas e sociais. É um produto de estratégias desprovido de uma finalidade
explícita, baseada em um conhecimento racional das condições objetivas
(BOURDIEU, 2004, p. 24-27).

As estratégias das ações dos agentes não se produzem por uma determinação
mecânica, todavia possuem uma forma de ajuste objetivamente condicionado às
diversas situações sociais:

No entanto, o habitus nada tem de um princípio mecânico de ação ou,


mais exatamente, de reação (à maneira de um arco reflexo). Ele é
espontaneidade condicionada e limitada. Ele é este princípio
autônomo que faz com que a ação não seja simplesmente uma reação
imediata a uma realidade bruta, mas uma réplica “inteligente” a um
aspecto ativamente selecionado do real: ligado a uma história cheia
de um futuro provável, ele é a inércia, rastro de sua trajetória passada,
que os agentes opõem às forças imediatas do campo, e que faz com
que suas estratégias não possam ser deduzidas diretamente nem da
posição nem da situação imediatas (BOURDIEU, 2005, p. 48).

Quanto a replicação condicionada pela espontaneidade que o habitus


proporciona, o autor assevera que o estímulo puro não é o elemento gerador, ou seja,
a replicação é uma resposta do agente aos aspectos da realidade, através de sua
apreensão de determinados estímulos de forma seletiva, partidária e parcial. Nas
palavras do autor, o habitus advém de “[...] uma ação que se pode, sem contradição,
chamar ao mesmo tempo de determinada e espontânea, já que é determinada por
estímulos condicionais e convencionais, que existem como tais apenas para um
agente disposto e apto a percebê-los” (BOURDIEU, 2005, p. 48).

Bourdieu procura explicar – com o conceito de habitus – além do sistema de


incorporação de coerções sociais nos agentes. Tal conceito não é tão somente um
princípio de ação, sendo também princípio de competências adquiridas e de cognição,
com uma carga de conhecimento desprovida de consciência e de uma
intencionalidade ingênua (SCKELL, 2016, p. 160).

Ainda, elucida a autora que se trata de um sistema esquemático adquirido pelo


agente, funcionando com categorias racionais práticas de percepção e apreciação,
55

classificação e organização da sua ação, o que cria neste uma formatação mental
para internalizar a ordem social ao qual está submetido18.

Em se tratando de um sistema que age sobre o agente, é perceptível que há


um fluxo de duas vias entre este e a sociedade, ou seja, ocorre tanto uma
interiorização dos elementos externos no agente, bem como exteriorização dos
elementos internos deste na sociedade.

Neste sentido, o habitus capta o modus da sociedade (campo) depositar nas


pessoas suas coerções sob diversas formas, como as disposições duráveis e as
capacidades treinadas, bem como os modos de pensar, agir e sentir; em sentido
oposto, capta as reações dos agentes às coerções que o meio social determina.

Miguel (2015, p. 204) demonstra esta relação entre campo e habitus ao


descrever que, para um agente ingressar num campo determinado, tal admissão
depende da disposição deste para jogar o jogo conforme as regras que dele são
peculiares, ou seja, deve o agente interiorizar o habitus próprio do espaço social em
questão.

Setton (2002, p. 65) complementa elencando que esta relação de


interdependência entre o conceito de habitus e campo é essencial para o seu pleno
entendimento. Ao fugir dos determinismos das práticas, conforme elencado acima,
cria-se a suposição desta relação de duplo sentido entre o habitus individual de cada
agente e a estrutura de um campo onde este se insere. Sob este ponto de vista, a
autora aponta que “[...] as ações, comportamentos, escolhas ou aspirações individuais
não derivam de cálculos ou planejamentos, são antes produtos da relação entre um
habitus e as pressões e estímulos de uma conjuntura”.

O habitus, portanto, constrói-se no processo de socialização do agente com o


meio social ao qual está inserido, sendo este um processo que nunca se extingue no

18 Neste sentido escreve Thiry-Cherques (2006) que “O habitus constitui a nossa maneira de perceber,
julgar e valorizar o mundo e conforma a nossa forma de agir, corporal e materialmente. É composto:
pelo ethos, os valores em estado prático, não-consciente, que regem a moral cotidiana (diferente da
ética, a forma teórica, argumentada, explicitada e codificada da moral, o ethos é um conjunto
sistemático de disposições morais, de princípios práticos); pelo héxis, os princípios interiorizados pelo
corpo: posturas, expressões corporais, uma aptidão corporal que não é dada pela natureza, mas
adquirida [...]; e pelo eidos, um modo de pensar específico, apreensão intelectual da realidade [...], que
é princípio de uma construção da realidade fundada em uma crença pré-reflexiva no valor indiscutível
nos instrumentos de construção e nos objetos construídos [...]”.
56

decorrer da vida e se dá de forma irregular, ante a mutação que a própria sociedade


sofre.

Tal conceito serve como um mediador para o agente inserido num determinado
campo, sendo que as diretrizes são determinadas em função da relação entre os dois
conceitos através da socialização e da individualização, onde o primeiro prende-se ao
fato de que as ações e juízos do agente são oriundos da coerção imposta pela
sociedade, sendo partilhadas por todos aqueles inseridos nas mesmas condições; já
a individuação remete a ideia da singularidade da trajetória de cada agente no mundo
e que influencia na singularidade da interiorização dos esquemas impostos pelo
campo.

2.5. O poder e a violência simbólica

O conceito de poder simbólico, dentro do universo sociológico de Pierre


Bourdieu, é de fundamental importância para entender o funcionamento da teoria dos
campos. O poder simbólico decorre dos instrumentos que os agentes possuem e
utilizam, ou seja, os capitais específicos disponíveis.

Este poder se denomina como simbólico advém do fato que seu exercício – e
consequentemente sua recepção – se dá de uma forma imperceptível, onde os
agentes não têm consciência da influência deste poder sobre seus atos.

Bourdieu (1989, p. 11-12) elucida que os agentes das mais variadas posições
sociais estão envolvidos em uma disputa propriamente simbólica, com o intuito de
escrever as definições da sociedade baseados nos interesses próprios e

[...] imporem o campo das tomadas de posições ideológicas


reproduzindo em forma transfigurada o campo das posições sociais.
Elas podem conduzir esta luta quer diretamente, nos conflitos
simbólicos da vida quotidiana, quer por produção, por meio da luta
travada por especialistas da produção simbólica (...) e na qual está em
jogo o monopólio da violência simbólica legítima (cf. Weber), quer
dizer, do poder de impor – e mesmo de inculcar – instrumentos de
conhecimento e de expressão (taxonomias) arbitrários – embora
ignorados como tais – da realidade social.

Assim, vislumbra-se que o poder simbólico é um instrumento a disposição dos


agentes dominantes e por estes utilizado para impor aos dominados uma determinada
visão e compreensão do mundo social, onde a sua força se mede a partir das
57

capacidades dos agentes dominantes em ocultar a origem histórica e a arbitrariedade


deste poder.

Neste sentido, o uso do poder simbólico acaba – com o transcurso do tempo –


conferindo uma fundamentação lógica a todas as visões e compreensões impostas
por este poder, garantindo assim uma aparência natural e racional da estrutura de
imposição/dominação19.

Com o passar do tempo e da atuação do poder simbólico sobre os agentes, as


atribuições arbitrariamente impostas pelos dominantes se transmutam, ao passo que
gradualmente tornam-se percebidas pelos dominados como se naturais fossem, ou
seja, são recepcionados como atribuições previamente existentes e imprescindíveis
para o funcionamento da sociedade.

Este aspecto de naturalização das imposições arbitrárias é o que Bourdieu


denomina de efeito simbólico de desconhecimento, sendo o principal elemento da
força do poder simbólico, tratando-se de um

[...] poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer


crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo,
a ação sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que
permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou
econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce
se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário. (...) O que faz
o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a
ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e
daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da
competência das palavras (BOURDIEU, 1989, p. 14-15).

Miguel (2015, p. 201) assevera que a aceitação da dominação como legítima é


condicionada ao reconhecimento, pelos dominados, da superioridade que possuem
os dominantes, onde o embasamento deste processo de naturalização das relações
de dominação ocorre à medida em que se atribuem qualidades especiais aos
ocupantes de posições privilegiadas; ao passo que o inverso também ocorre, ou seja,
a introdução de debilitantes das capacidades dos dominados.

Neste sentido Bourdieu (2003, p. 121) afirma, baseando-se no conceito de


Weber, que a dominação pode ser vista como doce e mascarada, pois é exercida pelo

19 Bourdieu (2014, p. 225-226) aduz que as relações de força onde se utiliza o poder simbólico são
oriundas de relações de comunicação, onde é perceptível que o dominado conhece e reconhece os
atos de dominação contra eles praticados, ou seja, este executa as ordens oriundas do dominante
conhecendo e reconhecendo esta situação.
58

dominante com a plena aceitação daquele em que é exercida. Esta relação de


dominação entre os agentes mandantes e mandados, travada pelo monopólio do
poder de controle e dos capitais de um campo específico, denomina-se de violência
simbólica20, ou seja, a imposição da autoridade legitimada daqueles que possuem
hierarquias superiores em face daqueles que pretendem galgar posições.

Segundo Bourdieu (1989, p. 12) esta dominação se constitui de atos implícitos,


camuflados e sutis, onde a aceitação como natural pelo agente dominado se constituiu
de uma verdade violência contra ele e que, ao mesmo tempo, é o que sustenta a
existência desta dominação, eis que a naturalização das disposições que tornam os
dominados cúmplices são também a consequência do desconhecimento da
dominação praticada pelos dominantes.

Assim, a violência simbólica torna-se legítima dentro de um campo, tornando-


se parte vital do sistema que regula e funciona as suas atividades, onde a sua prática
proporciona ganhos de capital para os agentes dominantes.

20 Para Sckell (2016, p. 164) “A violência simbólica consiste em obter ‘reconhecimento pelo
desconhecimento’: proposições e normas, dependentes da posição e dos interesses de quem as
formula no campo jurídico, aparecem como se fossem justificadas por uma autoridade transcendente.
A universalização ou a desistorização tem um efeito de legitimação [...]”.
59

3. O SETOR ELÉTRICO NACIONAL, O CENÁRIO DE CONFLITOS E O


PROCESSO DE LICENCIAMENTO AMBIENTAL

A eletricidade, como um fenômeno da natureza, passou a ser dominado pelas


mãos humanas e progressivamente se tornou uma forma de energia que movimenta
as mais variadas máquinas inventadas pelo homem, sendo uma das principais
ferramentas para os avanços conquistados durante a Segunda Revolução Industrial,
onde seu uso como uma forma de energia controlável teve início, até os dias atuais.

A facilidade de transporte da eletricidade e seu baixo índice de perda energética


durante conversões a tornam uma das formas de energia mais vantajosa para a
humanidade. De forma inegável, a energia elétrica é um bem indispensável na vida
contemporânea. Desde a iluminação das noites ao funcionamento de um sem-fim de
aparatos utilizados pelo homem, a manipulação desta forma de energia e seu uso nos
equipamentos torna a vida humana menos penosa.

Por ser um dos principais elementos alimentadores da evolução da tecnologia


e do crescimento demográfico presenciado nos últimos três séculos, seu nível de
consumo tem crescido de forma muito rápida em nível mundial. O ser humano não
consegue mais viver sem iluminação artificial, tampouco abandonar todos os
equipamentos abastecidos com eletricidade que fazem parte dos afazeres diários. Em
suma, a energia elétrica é dos pilares da vida contemporânea.

A disposição de energia elétrica para o povo é um importante fator de


estabilidade e capacidade de uma nação, bem como um determinante elemento para
o desenvolvimento econômico e social de um país que necessita buscar – à medida
da necessidade de produção presente e futura – todas as formas possíveis de
geração.

Conforme assevera Locatelli (2014, p. 85) “Ao longo do século XX,


particularmente, os rios foram vistos como fontes para energia, irrigação e transporte,
ou mesmo como forma rápida e aparentemente barata de se livrar do lixo e do esgoto
[...]”. Neste sentido, o autor leciona que a busca pela geração de eletricidade nos rios
– a hidroeletricidade – é firmemente tratada no binômio desenvolvimento versus água,
ou seja, os rios e as barragens.

O processo de modernização do País, com a sua consequente inserção no


processo contemporâneo de globalização econômica, ocorre através de uma visão
60

hegemônica, calcada no jargão do desenvolvimento e progresso. Estas obras


hidrelétricas atingem comunidades rurais, onde seus habitantes são destituídos do
meio ambiente onde asseguraram, através de várias gerações, a manutenção e a
reprodução de seus modos de vida. Assim, as autoras apontam que os
empreendimentos hidrelétricos são fontes de injustiças ambientais, “[...] uma vez que
os custos dos impactos socioambientais recaem sobre as comunidades atingidas,
sem que elas sejam, de fato, consideradas sujeitos ativos no processo de decisão
acerca dos significados, destinos e usos dos recursos naturais ali existentes”
(ZHOURI; LASCHEFSKI; PAIVA, 2005).

A história21 do setor energético brasileiro se inicia na proclamação da República


onde, de forma tímida, as primeiras companhias – em sua maioria de capital
estrangeiro – instalaram as primeiras usinas e linhas de transmissão.

O cenário toma corpo, de fato, a partir do período do Estado Novo, onde o país
implementou sua primeira política energética, impulsionada pelo início da
industrialização nacional, onde “A política de industrialização e nacionalismo de
Vargas atingiu em cheio o setor da energia, [...] pois o processo de industrialização
brasileiro tinha na disponibilidade de energia um dos obstáculos a serem superados
[...]” (MORAIS, 2013, p. 61-62).

Durante esta época, mais precisamente em 1934, o governo de Vargas


promulga o Código de Águas – Decreto 24.643, de 10 de julho de 1934 – que
estabelece pela primeira vez um ordenamento jurídico para o uso das águas, bem
como para a produção e fornecimento de energia elétrica. É a partir deste marco que
pode ser vislumbrada a posição de que os recursos naturais pertenciam ao Estado e
poderiam ser exploradas através de concessões.

Após o ano de 1964 eclode a fase onde o Estado, administrado pelos militares,
interveio de forma direta e ativa sobre o setor energético, sendo que neste período

21 Benincá (2011, p. 29-31) enumera em quatro as fases vivenciadas pelo setor: “Em linhas gerais, a
história do setor energético brasileiro pode ser dividida em quatro períodos: (I) da Proclamação da
República (1889) à Revolução de 1930 - quando a economia brasileira se caracterizava pela produção
primário-exportadora e a energia estava baseada em fontes vegetais; (II) de 1930 a 1945 - quando o
país deu seus primeiros passos rumo à estruturação de uma política energética, o que ocorreu em
função do início do processo de industrialização [...] (III) de 1945 ao final ela década de 1980 - fase
marcada pela intervenção direta do Estado sobre o setor energético. [...] A quarta (IV) fase inicia-se na
década de 1990 e se prolonga até nossos dias, quando se consubstancia o Plano Nacional de Energia
Elétrica baseado na implantação de grandes hidrelétricas e se aprofunda o modelo neoliberal associado
ao processo de privatização do setor elétrico”.
61

foram criadas uma série de companhias estatais, como a CHESF, CEEE, CEMIG,
Furnas, ELETROBRÁS, ELETROSUL, entre outras. Cumpre destacar que nesta
época ocorreu o famoso período do milagre econômico que, aliado às crises do
petróleo da década de 1970, geraram alta demanda por energia, estimulando o
governo a concretizar a maior quantidade possível de projetos energéticos (MORAIS,
2013, p. 62-63).

Este modelo econômico adotado pelo regime militar previu o crescimento


econômico do país através “[...] da modernização e expansão territorial, da
territorialização das grandes indústrias [...] e da construção de grandes obras, como a
rodovia transamazônica e as gigantes hidrelétricas Itaipu, Sobradinho e Tucuruí”
(ROTHMAN, 2008, p. 20-21).

Sob esta ideologia, os grandes investimentos em obras implementados pelos


governos militares alavancaram, em grande parte, o crescimento da infraestrutura
brasileira. O setor elétrico, neste cenário, passou por um processo de forte
nacionalização e estatização, pautado num sistema de desenvolvimento energético
nas variadas fontes disponíveis da época (MORAIS, 2013, p. 11).

A transição da década de 1980 para a seguinte marcou uma nova problemática


nas construções de empreendimentos hidrelétricos. A crise vivida nesta década,
conhecida popularmente como a década perdida, trouxe severas consequências para
a indústria estatal, com o advento das políticas neoliberais e a privatização dos
grandes setores de serviços públicos.

Esta nova fase, em relação ao setor energético, compreendida no início na


década de 1990 até a atualidade, iniciou-se com o Programa Nacional de
Desestatização – PND, onde o setor energético passou, gradativamente, ao controle
de corporações transnacionais, tendo este programa de privatização se estendendo
durante toda a década de 1990 até o final do governo FHC.

A chegada do século XXI e da governança petista em nada alteraram o quadro


de desenvolvimento e progresso capitaneado pelo Estado e demais interessados na
exploração hidrelétrica: muito pelo contrário, eis que um dos pilares do PAC –
Programa de Aceleração de Crescimento – dos governos de Lula e Dilma residiam na
grossa oferta de crédito para a consecução de grandes obras de infraestrutura,
62

destacando-se neste bolo22 como a terceira maior destinação de verbas do citado


programa.

3.1. O setor da geração elétrica no brasil e a importância da


hidroeletricidade

A universalização do acesso à energia elétrica, juntamente com as crises do


petróleo da década de 1970, direcionaram as sociedades contemporâneas a buscar
por outras fontes de produção de energia. Para atingir o fornecimento em um nível
cada vez mais universal, faz-se necessário construir obras para geração e distribuição
de eletricidade, sendo estas, normalmente, empreendimentos de larga escala, em
todos os sentidos. As forças das águas, dos ventos ou a energia do sol, bem como os
recursos fósseis e cultivados, estão entre os elementos usados para a geração de
energia elétrica. Por meio dos mais diversos mecanismos transformadores buscam-
se outras formas de energia, seja em fenômenos naturais ou por elementos
manipulados pelo homem.

Antes de adentrar na análise dos indicadores relativos à geração de energia


elétrica no país, faz-se mister apontar os dados relativos ao consumo deste bem.
Segundo o Plano Decenal de Expansão de Energia 2024 (BRASIL, 2015, p. 44) a
projeção do consumo de energia elétrica na rede23, entre 2014 e 2024, apresentará
uma taxa média de crescimento na ordem de 3,9% ao ano, atingindo ao final do
período citado o importe de 692 TWh anuais.

Separando o consumo por classe, o relatório citado (BRASIL, 2015, p. 44)


elenca, para o mesmo decênio, que comércio é o setor “[...] que apresenta maior
expansão, seguida pela classe residencial”. Por sua vez, o setor industrial tenderá a
reduzir “[...] a sua participação no consumo de energia na rede, apresentando taxa de
crescimento inferior à média”. A tabela abaixo traduz os quantitativos de consumo de
energia elétrica por classe, bem como o horizonte de crescimento até o ano de 2024.

22 Conforme escreve Locatelli (2014, p. 104) “No PAC I, entre 2007 e 2010, dos R$ 503,9 bilhões de
investimentos em infraestrutura previstos, R$ 65,9 bilhões seriam alocados em geração (13,1%) e R$
12,5 bilhões em transmissão (2,5%) de energia elétrica. Ou seja, a área de energia elétrica é a terceira
mais importante dos planos de investimento do governo federal, atrás apenas das áreas de petróleo
(35% do montante previsto) e habitação (21%)”.
23 Exclui-se dos dados apresentados os valores relativos à autoprodução de energia elétrica.
63

Tabela 1 – Consumo de eletricidade na rede por classe

Fonte: BRASIL, 2015, p. 44.

Evidencia-se que o setor industrial ainda é o maior consumidor de energia


elétrica no Brasil, respondendo pela fração de 36,13% em 2015, 34,90% em 2019 e
34,61% em 2024 do consumo total na rede24. Todavia, uma importante ressalva deve
ser exposta em relação aos presentes dados, eis que levam a crer que ocorrerá uma
diminuição no consumo de energia elétrica pelo setor industrial.

Ocorre que estes dados, como descrito acima, não levam em consideração a
parcela de energia consumida que é gerada pelos sistemas autoprodutivos, onde o
próprio relatório elenca que

Importa destacar aqui a relevância, para a projeção do consumo de


energia elétrica na rede, das premissas de autoprodução, uma vez que
se trata de parcela do consumo total de eletricidade que não
demandará investimento para a expansão do parque de geração e de
transmissão do sistema elétrico brasileiro (BRASIL, 2015, p. 45).

Neste sentido, o documento destaca que a autoprodução de energia elétrica se


expandirá na taxa de 6,2%, ao ano, até o ano de 2024 (maior que a taxa de expansão
do consumo presente na rede), sendo que os principais responsáveis por este
crescimento – conforme a tabela a seguir – são os setores industriais que mais
demandam energia elétrica: siderurgia, petroquímica e papel e celulose, bem como
as indústrias sucroalcooleiras e de alimentos e bebidas.

24O setor residencial responde pelas frações de 28,74% em 2015, 29,07% em 2019 e 28,49% em 2024.
Já o setor comercial as frações de consumo são de 19,59% em 2015, 20,31% em 2019 e 21,35% em
2024.
64

Gráfico 1 – Evolução da autoprodução de energia elétrica

Fonte: BRASIL, 2015, p. 46.

No que tange à produção de energia elétrica, o Brasil possui variadas fontes.


Conforme se extrai do BIG25 da ANEEL, 4.648 empreendimentos em operação no solo
nacional possuem, em janeiro de 2017, 150.654 MW de potência instalada. A tabela
a seguir aponta a quantidade de empreendimentos geradores de eletricidade e a
potência somada de cada grupo, conforme o tipo de fonte geradora utilizada:

Tabela 2 – Relação de empreendimentos geradores de energia elétrica por tipo de fonte geradora.

Fonte: ANEEL, 2017.

25Disponível em: http://www2.aneel.gov.br/aplicacoes/capacidadebrasil/capacidadebrasil.cfm. Acesso


em: 13 jan. 2017.
65

Destacam-se neste cenário duas fontes de energia: A hidráulica e a térmica. A


força hidráulica provém do curso dos rios, onde o fluxo das águas é o combustível da
geração de eletricidade26. Já a fonte térmica é obtida da queima de elementos a
disposição do homem no planeta, seja da extração direta destes do meio ambiente,
como os combustíveis fósseis, bem como elementos cultivados ou manipulados pelas
mãos humanas, como a biomassa ou gases combustíveis obtidos de outros
elementos.

Somando os três tipos de empreendimentos que utilizam a fonte hidráulica para


geração, atualmente 64,65% (97.407 MW) da matriz energética elétrica produzida no
Brasil, na ordem 147.505 MW, é proveniente das forças dos rios. Para tanto, existem
1.243 empreendimentos hidrelétricos construídos e em operação, sendo 219 UHEs27,
442 PCHs28 e 582 CGHs29, onde a grande parcela de produção oriunda da fonte
hidráulica deriva dos grandes empreendimentos – UHEs – na ordem de 94,44% do
total produzido com esta fonte.

As fontes térmicas respondem, atualmente, com a ordem de 27,28% (41.099


MW) da potência elétrica gerada no país, através de 2.948 empreendimentos
instalados e licenciados para operação. A potência restante é produzida através de
fontes reconhecidamente antagônicas: as mais renováveis – as usinas fotovoltaicas e
as eólicas – na ordem de 6,75% da potência total em 455 empreendimentos, bem
como as duas usinas nucleares (Angra 1 e 2) que participam com o importe de 1,32%
da potência total gerada no país.

Desta forma, resta assente a preferência pelas hidrelétricas no Brasil. Tal fato
na política brasileira, em relação ao setor energético, ganhou ênfase com o regime

26 As usinas hidrelétricas aproveitam a força gerada da diferença de altitude entre dois pontos de um
rio e são alternativas que garantem uma alta capacidade de geração a um custo financeiro baixo, bem
como com um suposto menor impacto ambiental imediato que as alternativas que utilizam combustíveis
fósseis ou produzidos pelo homem. As obras de uma usina hidrelétrica incluem o desvio do curso do
rio e a formação do reservatório. A água do rio movimenta as turbinas que estão ligadas a geradores,
possibilitando a conversão da energia mecânica em elétrica.
27UHE - Usina Hidrelétrica de Energia – é toda usina hidrelétrica cuja capacidade instalada seja
superior a 30 MW e que possua reservatório maior que 3 km²
28 PCH - Pequena Central Hidrelétrica - é toda usina hidrelétrica de pequeno porte cuja capacidade
instalada seja compreendida na faixa de 1 MW até 30 MW e cuja área do reservatório não seja maior
que 3 km².
29 CGH - Central Geradora Hidrelétrica - unidade geradora de energia com potencial hidráulico igual ou
inferior a 1 MW, normalmente construída com barramento para a finalidade de desvio (sem a formação
de reservatório) em rio com acidente natural que impede a subida de peixes.
66

militar, a partir do final da década de 60, embasada na propaganda de


desenvolvimento e modernidade. Nesta política, para suprir a demanda crescente
ocasionada pela onda de industrialização e urbanização no país, as grandes obras
hidrelétricas ganharam especial destaque, calçadas na existência de um grande
potencial energético dos rios que atravessam o país, bem como na imagem de
viabilidade econômica e sustentabilidade ambiental destas obras (ROTHMAN, 2008).

Atualmente, a política nacional para a expansão da geração de energia elétrica


tem voltado suas atenções para o cenário de integração com os demais países latino-
americanos. Conforme se denota do Plano Decenal de Expansão de Energia 2024
(BRASIL, 2015, p. 74) “[...] o governo brasileiro, através de suas empresas, vem
realizando acordos e participando de estudos em países das Américas Central e do
Sul”. Cita o documento que tal integração proporciona “[...] diversos benefícios para
ambas as partes [...]” em aspectos ambientais, sociais e econômicos, bem como,
elenca que

Apenas 25% da capacidade hidráulica dos países que fazem fronteira


com o Brasil foi aproveitada. A associação a esses países se verifica,
predominantemente, com fontes renováveis de geração de energia e
de baixo custo, como é o caso das hidrelétricas.

Em relação ao cenário nacional, o citado plano contempla uma expansão da


oferta de energia elétrica – do ano de 2015 até o ano de 2024 – na ordem de 55% em
relação ao cenário do ano de 2014, onde a potência instalada total era de 132.878
MW (BRASIL, 2015, p. 76-82). A tabela a seguir elucida qual é o tipo de fonte de
geração que corresponderá, anualmente, o acréscimo à geração de eletricidade no
país:
67

Gráfico 2 – Acréscimo anual da capacidade de geração por tipo de fonte.

Fonte: BRASIL, 2015, p. 84.

Quanto à expansão pela fonte de geração hidrelétrica, o estudo contempla


projetos já contratados, bem como aqueles em que os estudos estão em fase de
conclusão. Ao total, foram listados 22 empreendimentos de UHEs para o cenário de
expansão até o ano de 2024, com capacidade de geração na ordem de 28.349 MW,
aumentando a capacidade de geração hidráulica da ordem dos atuais 90.000 MW
para 117.000 MW até 2024. A região Norte será a maior responsável pela expansão
hidrelétrica, devido à entrada em operação de grandes empreendimentos, como a
UHE Belo Monte, que teve sua operação iniciada em abril de 2016 (BRASIL, 2015, p.
85-86).

Diante dos dados apresentados, evidencia-se que o cenário de expansão futura


para a fonte de geração hidráulica entra em declínio a partir do ano de 201930,
momento no qual as outras fontes renováveis31e as térmicas tomam o protagonismo,

30 O relatório elenca (BRASIL, 2015, p. V) que a projeção até o ano de 2024 da matriz energética
brasileira desencadeia “[...] um processo de diversificação da matriz de energia elétrica, que embora
ainda predominantemente baseada em energia hidráulica, apresenta um crescimento expressivo de
outras fontes renováveis”.
31 O estudo aborda, neste quesito, as usinas termelétricas à biomassa, PCHs, eólicas e solares.
68

o que se deve ao fato do avançado estágio de exploração32 dos potenciais


hidrelétricos brasileiros33.

Assim, não é assustador o fato que a política energética brasileira mude sua
atenção para os países vizinhos, eis que estes – conforme asseverado acima – pouco
exploram seus potenciais hidrelétricos, tornando-os atrativos locais de investimentos
para o mercado hídrico.

3.2. O aproveitamento hidrelétrico da bacia do Rio Uruguai, o


cenário dos conflitos e a gênese do licenciamento ambiental

A escolha do local para a construção de uma hidrelétrica não é um


acontecimento jogado à sorte ou desbalizado de critérios objetivos. Os especialistas
na área de geração de energia efetuam uma série de estudos, normalmente em toda
a extensão de um rio, para apontar em quais localidades do curso d’água estudado
se obterá a maior quantidade de geração de energia elétrica com a construção de
uma usina, denominando estes lugares de Aproveitamento Hidrelétrico – AHE.
Quando o rio e/ou sua a bacia hidrográfica é estudado e há o apontamento de diversos
locais de AHE, chega-se a um relatório denominado de Inventário Hidrelétrico.

A bacia hidrográfica do Rio Uruguai possui grande potencial para geração de


energia hidrelétrica devido à disposição geográfica do local, eis que possui relevo
acidentado, com a presença de grandes vales e serras no leito do rio e seus afluentes.

Sua bacia encontra-se dentro da grande bacia hidrográfica do Prata34 e o curso


do rio se estende pelos territórios da Argentina, do Uruguai e Brasil, ocupando uma
área de 384.000 km², onde 176.000 km² são situados em território brasileiro; desta

32O que se refere como estágio avançado de exploração do potencial de geração de energia elétrica
pela fonte hidráulica pode ser aplicado às regiões Sul e Sudeste, eis que as demais regiões do Brasil
ainda possuem grandes potenciais ainda não explorados. Tal situação se evidencia quando, ao analisar
as futuras UHEs previstas no PDE 2024 (BRASIL, 2015, p. 85), a ordem de 26.345 MW provirão de
usinas instaladas nas regiões Norte, Nordeste e Centro Oeste do Brasil, ou seja, 92,93% dos 28.349
MW previstos como acréscimo na capacidade de geração por UHEs.
33 Sem contar os demais entraves que o mercado hídrico elenca, como o próprio processo de
licenciamento ambiental, o que é analisado a seguir.
34 A Bacia do Prata cobre área de aproximadamente de 3.100.000 km² e se assenta nos territórios do
Paraguai, Uruguai, Argentina, Bolívia e Brasil, sendo formada por três principais rios: Paraná, Paraguai
e Uruguai. O estuário formado na junção dos rios Paraná e Uruguai (entre Argentina e Uruguai) possui
256 km de extensão, sendo o maior estuário do planeta. Disponível em:
http://riosvivos.org.br/agua/bacia-do-rio-da-prata/. Acesso em: 17 fev. 2016.
69

área, 46.000km² são no Estado de Santa Catarina e 130.000 km² no Estado do rio
Grande do Sul35.

Segundo Boamar (2003, p. 1), durante os anos de 1966 a 1969 ocorreram os


primeiros estudos direcionados para identificar os aproveitamentos hidrelétricos da
bacia do rio Uruguai. Os estudos iniciais ficaram a cargo da ENERSUL – Comitê de
Estudos Energéticos da Região Sul – que realizou o inventário da região Sul do país,
abrangendo as bacias hidrográficas dos três Estados.

Os estudos de inventário, segundo o citado autor, foram supervisionados por


um consórcio Canadense-Americano-Brasileiro – CANAMBRA. O Governo Federal
continuou a aprofundar os estudos – através da estatal ELETROSUL – até o ano de
1979, quando concluiu a revisão do primeiro inventário hidrelétrico da bacia do Rio
Uruguai, apontando a possibilidade de vinte e dois AHEs dentro dos limites territoriais
nacionais. Os primeiros aproveitamentos que receberam autorização para construção,
no início da década de 1980, foram os locais onde se encontram as UHEs de
Machadinho e Itá.

A figura abaixo, datada de 1992 e de autoria da ELETROSUL, aponta os


principais aproveitamentos do Rio Uruguai – e de seus dois formadores, os rios
Canoas e Pelotas – onde já se vislumbra a existência do aproveitamento da UHE
Barra Grande.

35 Disponível em: www.aneel.gov.br/area.cfm?id_area=111. Acesso em: 17 fev. 2016.


70

Figura 1 – Mapa dos principais AHEs do Rio Uruguai e seus afluentes no Estado de Santa Catarina.

Fonte: VIANA, 2003.

Até o ano de 2006, segundo Paim e Ortiz (2006), foram catalogados locais de
aproveitamento hidrelétrico para a instalação de trinta36 UHEs em toda a bacia do Rio
Uruguai. A figura a seguir ilustra a situação atual dos principais empreendimentos já

36Segundo o citado guia, estes são os AHEs inventariados (independentemente de sua fase de
construção): Barra do Pessegueiro, São Roque, Garibaldi, Campos Novos, Passo da Cadeia, Pai
Querê, Barra Grande, Machadinho, Itá, Monjolinho, Passo Fundo, Aparecida, Abelardo da Luz, São
Domingos, Quebra-Queixo, Gabiroba, Bom Jesus, Xanxerê, Voltão Novo, Foz do Chapecozinho, Nova
Erechim, Foz do Chapecó, Itapiranga, Roncador, Complexo Hidrelétrico Garabi (Garabi, São Javier e
Santa Rosa), Passo São João, São José, São Pedro/Monte Caseiros, Salto Grande e Fray Bentos.
71

edificados e em projeção na bacia do Rio Uruguai, apontando também aqueles


presentes em seus dois formadores, os rios Canoas e Pelotas37.

Figura 2 – Principais empreendimentos hidrelétricos na bacia do Rio Uruguai.

Fonte: HÜFFNER, ENGEL, 2011. Editado por VOLKWEIS FILHO.

Segundo Boamar (2003, p. XVIII), a bacia do rio Uruguai transformou-se no


final do século XX e início do século XXI em um imenso canteiro de obras, tornando-
se um campo aberto de conflitos econômicos e sociais. A história conta com dois
lados, onde é possível averiguar uma série de benefícios transitórios, como os
empregos e o aumento do fluxo de capital nos municípios atingidos pelo
empreendimento durante a construção do parque hidrelétrico, bem como verificaram-
se ganhos permanentes, tais como a compensação financeira por geração de energia
elétrica e o turismo. Por outro lado, diversos problemas sociais e econômicos, bem
como os danos ambientais, são ocasionados pelo processo de implantação e pela
própria hidrelétrica nas regiões.

Acselrad (2005, p. 8) leciona que os conflitos ambientais ocorrem por um


desajuste “[...] no interior do arranjo espacial de atividades de uma localidade, região

37Atualmente, encontram-se devidamente funcionais na bacia do rio Uruguai as UHEs de Quebra-


Queixo – Rio Chapecó (2003); Monjolinho – Rio Passo Fundo (2009); São José e Passo São João –
Rio Ijuí (2011 e 2012), bem como a vasta quantidade de PCHs construídas em seus afluentes.
72

ou país: a continuidade de um tipo de ocupação do território vê-se ameaçada pela


maneira como outras atividades, espacialmente conexas, são desenvolvidas”.

Nas margens dos rios normalmente há povoamento humano, eis que oferecem
uma forma de subsistência há muito aproveitada pelos habitantes deste mundo.
Ademais, o caráter de sustentabilidade destes empreendimentos há muito tempo já
fora desmascarado por um incontável número de estudos das mais diversas áreas
das ciências, onde já se levantou uma gama de problemas ambientais gerados por
usinas hidrelétricas.

Baseadas em um modelo de desenvolvimento aliado aos interesses do


capitalismo nacional e internacional – os principais demandantes por energia elétrica
e os mais interessados na execução das grandes obras de infraestrutura para
produção e distribuição de energia e equipamentos do setor – tais obras causam
grandes impactos sobre a natureza afetada, bem como sobre as comunidades
atingidas por estas.

Seminotti (2013, p. 75-79) relata que os primeiros movimentos das populações


atingidas, tendo em vista a incapacidade do governo na gestão das políticas agrícolas
para a pequena propriedade, bem como a decisão deste em construir uma escadaria
de barragens no leito do Rio Uruguai – inicialmente com as usinas de Itá e Machadinho
– advieram de uma situação de “[...] preocupação e mobilização dos pequenos
agricultores em defesa de sua propriedade, abrindo caminho para a constituição de
um campo de lutas em torno de várias outras necessidades do meio rural”.

Um dos fatores que iniciou a reação dos agricultores possivelmente atingidos


surge do afastamento e da falta de diálogo das entidades governamentais com a
população futuramente atingida, ocasionando um temor nestas pessoas, tanto pelo
medo de perder suas propriedades sem o devido ressarcimento, bem como o
desconhecimento sobre os impactos que os projetos hidroelétricos causariam.

Vislumbra-se que o conflito gerado pelo choque entre os interesses muito se


assemelha – guardando-se as devidas proporções à situação social de cada época –
com os eventos conflituosos estudados Thompson (1987), por consequência da
criação da Lei Negra38, entre os florestanos ingleses (comunidades ribeirinhas) e os

38 Em suma, a citada lei tornou crime, na Inglaterra dos séculos XVII e XVIII, invadir e retirar frutos das
florestas comunais que à época eram de propriedade da coroa e da nobreza britânica.
73

grandes proprietários de terras (Estado e empreendedores), tornando crime práticas


econômicas que representavam a sobrevivência de famílias inteiras que dependiam
dos produtos das florestas (o direito de propriedade e posse das terras ribeirinhas e
do livre acesso aos rios).

Ademais, outro fator que prepondera nas ocorrências de situações conflituosas


entre as populações atingidas e os interessados pelo desenvolvimento do projeto
hidrelétrico, que muito se assemelham com os estudos de Thompson (1991) sobre os
efeitos da regulação do tempo nas comunidades inglesas em consequência das
imposições advindas da Revolução Industrial, reside nas profundas alterações
provocadas pela invasão do modus operandi dos empreendedores hidrelétricos no
tecido social das comunidades atingidas, onde o status quo destas pessoas é
completamente desconstruído em um compasso frenético, desde a ocorrência das
primeiras ações dos responsáveis pela obra até a implementação das outras etapas
da construção do empreendimento.

Neste sentido, os colonos e os empresários do setor hidrelétrico partilham o


mesmo eixo sincrônico, todavia vivenciam diferentes concepções em relação ao
tempo de tempo, onde o tempo da lógica empresarial é – em tese – abstrato, tal qual
previsto por Weber (2014) como um dos pilares do capitalismo.

O tempo do empreendedor coaduna e estrutura-se na ossatura da burocracia,


do planejamento, dos ditames tecnocráticos, traduzível em análises estatísticas,
elementos preponderantes para o cálculo dos teres e haveres de empresas e
corporações a curto e longo prazos e forja-se, igualmente, na lógica da racionalidade
ocidental, tal qual estudam Goody (2012) e Weber (2014), inculcando um modo
próprio de pensar, uma previsibilidade de investimentos, ganhos e vantagens.

Ocorre que esta lógica de tempo – do empreendedor – foge à compreensão


dos atingidos – agricultores e pescadores artesanais – servindo como um dos
elementos para aprofundar a clivagem de heteronomia destes últimos.

A categoria de tempo estudada por Thompson (1991), conforme mencionado


acima, não se trata de categoria autônoma, se comparada ao caso em análise. Ela é
construída e move-se no interior das comunidades rurais, imbricada nas demais
categorias, a exemplo da sociabilidade rural, do ciclo agrário, da distribuição das
tarefas no interior do grupo familiar e ao longo do dia ou da semana.
74

No universo dos atingidos, a padronização do tempo social é ditada em sua


primazia pelas lidas rurais, não incidindo o cálculo abstrato do relógio, embora se
valham deste para determinadas atividades da vida social, havendo assim um tempo
naturalizado.

Thompson (1991, p. 271) explicita que, mesmo na contemporaneidade, persiste


a notação de tempo nas sociedades agrícolas pelas tarefas, onde o autor propõe três
questões a respeito destas. A primeira consiste na compreensão de que esta
modalidade de percepção é mais humanamente compreensível comparada ao
trabalho de horário marcado. Em segundo lugar, ocorre uma aparente
indissociabilidade entre vida e o trabalho na comunidade rural.

Por último, aqueles que vivem sob a marcação do tempo-relógio consideram


os agricultores perdulários. Cumpre destacar que esta assertiva encontra, no caso em
análise, sentidos disputados, como nos questionamentos dirigidos aos trabalhadores
assalariados de terem folgas e férias remuneradas, o que não se encontra entre
agricultores. Se o século XVIII, estudado por Thompson, encontrava a ação
legitimadora, também os agricultores do século XXI encontram e constroem a sua.

Conforme descrito no subcapítulo 2.1, as partes envolvidas estão engajadas –


a priori – em projetos políticos distintos: o neoliberal e o democrático-participativo. Na
perspectiva neoliberal, a primazia do mercado e da economia orienta a vida e a
atuação da sociedade, sendo este o projeto que orienta as ações por parte dos
empreendedores, formados pelos consórcios entre o Estado e empresas de capital
privado.

No universo do projeto democrático-participativo, a participação da sociedade


nos processos de decisão assume um papel central, sendo vista como instrumento da
construção de uma maior igualdade e cidadania, onde se articulariam demandas
específicas de cada grupo social e da sociedade em seu conjunto. Na questão das
hidrelétricas, este projeto é representado principalmente pelo MAB, no sentido de
contestação ao projeto hidrelétrico.

Em relação ao projeto democrático-participativo, faz-se necessário tecer alguns


comentários em relação a própria democracia, eis seu estudo é permeado pela
controvérsia isto pela falta de consenso sobre suas qualidades e defeitos. A
controvérsia normalmente é ligada à comparação de regimes de governo, todavia,
75

tendo em vista a intenção dos autores em reformular as premissas individualistas e


coletivas apresentadas no passado, o debate expandiu. Assevera Marques (2008, p.
58) que

A revisão da teoria democrática deveria emergir com base em critérios


de participação política que não se resumam ao ato de votar,
realizando uma repolitização global da prática social, criando novas
oportunidades para o exercício de novas formas de democracia e de
cidadania, transformando relações de poder em relações de
autoridade partilhada, nos diferentes espaços de interação social,
pressupondo, assim, novos critérios democráticos para avaliar as
diferentes formas de participação política e, com isso, valorizar a idéia
da igualdade sem inalterabilidade, da diferença, da autonomia e da
solidariedade.

A crítica ao modelo liberal de democracia (liberdade, igualdade e fraternidade)


tem sua premissa na concepção de sujeito adotada na modernidade, onde o direito
de igual respeito e consideração exige uma esfera pública com caráter pluralista,
apoiando o respeito recíproco e simétrico às diferenças. A coletividade, na perspectiva
moderna é caracterizada por sua diversidade e mobilidade, com uma visível
possibilidade de autotransformação e amadurecimento. Assim, a discussão sobre a
democracia atual se coloca na revisão da subjetividade moderna, devendo esta ser
“[...] descentralizada e desconstruída, não com base na anulação da ação humana
(especialmente a do coletivo), que deixaria a democracia rendida aos caprichos do
mercado, mas com a exposição do agente humano ao outro, com o qual estabelece
uma relação de questionamento [...]” (MARQUES, 2008, p. 56).

Neste sentido, escreve Zhouri (2008, p. 98) que as políticas públicas atuais,
firmadas nos ideais neoliberais de desenvolvimento, alteraram o arranjo do cenário
entre meio ambiente e desenvolvimento, onde o primeiro é fortemente apresentado à
sociedade como uma barreira ao segundo. Isto se dá, principalmente, pela “[...]
incongruência entre os avanços no que concerne aos arranjos institucionais, normas
e leis do país em torno da questão ambiental e do atraso relativo à esfera das suas
implementações”. Há, segundo a autora, um descompasso das políticas econômicas
atuais, que estão fortemente baseadas na crença do desenvolvimento como real fator
de crescimento econômico39.

39
A autora assevera também (2008, p. 98) que “Além das peculiaridades do contexto nacional, contudo,
faz-se necessário compreender essa dinâmica conflituosa do ponto de vista da inserção do país na
economia mundial e nos ideais de governança global em vigor”.
76

Santos (2010) elenca que se faz necessário, no sistema liberal em que a


humanidade se encontra, trabalhar de forma compatível as duas subjetividades
existentes: a coletiva do Estado centralizador e a atomizada dos cidadãos autônomos
e livres. A tensão entre estas duas subjetividades e a regulação da sociedade é ditada
pelo princípio da cidadania, que limita os poderes Estatais de um lado e universaliza
as particularidades dos sujeitos de outro.

Assevera Marques (2008) que a cidadania é formada por direitos e deveres e


enriquece as possibilidades da subjetividade dos sujeitos envolvidos, o que, em
contrapartida, torna a relação entre cidadania e subjetividade um tanto complexa. Pelo
fato desses direitos e deveres possuírem caráter geral, reduz a individualidade dos
sujeitos a um patamar universal.

Ademais, elenca a autora que a exclusão dos indivíduos e grupos no sistema


jurídico-político, atacando a universalidade da cidadania, acabam por degenerar as
diferenças étnicas e culturais das pessoas, em processos destrutivos entre os distintos
grupos. Desta forma, a inclusão dos diferentes grupos sociais é elencada como um
universalismo relativo, exigindo respeito mútuo das diferenças. A justiça como uma
forma de igualdade demanda uma ordem baseada no respeito recíproco às diferenças
de grupos e indivíduos.

Todavia, como elenca Santos (2010), a crise do Estado provedor transformou


o desenvolvimento da cidadania. Este movimento da cidadania emergiu da vitória da
subjetividade individual sobre a cidadania atomizada, consequente do afastamento da
população com os seus representantes, que deixaram ouvir e atender os anseios e
necessidades destes, pois já se encontravam reféns dos interesses corporativos.

No contexto nacional, este afastamento do povo com seus representantes,


emergindo um novo cenário de lutas sociais por liberdades democráticas e
reivindicações, fica caracterizado no período do regime militar de 1964, onde os
movimentos organizados da sociedade se contrapunham ao governo militar e suas
consequências econômicas, políticas e sociais. Nesta época foi evidente que o Estado
não solucionava as demandas, bem como dava vida aos conflitos com grupos, sendo
que os partidos políticos em nada expressavam no sentindo de canalizar ou
representar interesses e demandas durante o período autoritário. Esta função cabia,
“[...] à medida que o poder público se omitia, aos movimentos sociais e movimentos
77

organizados da sociedade que manifestavam necessidades e direitos não atendidos”


(HERNÁNDEZ, 2006, p. 27).

As transformações sociais das últimas duas décadas trouxeram à tona novos


movimentos sociais que afirmam a superioridade da subjetividade sobre a cidadania.
Novos grupos sociais desenvolveram lutas de emancipação pessoal, social e cultural,
onde suas identidades e práticas conduziram à reformulação das relações sociais. As
lutas destes grupos pautam-se pela democracia participativa como uma forma de
organização inseridas no seio da sociedade civil, onde sua constituição inclui formas
de ação social pelo controle do sistema político e cultural, bem como modos de
transformação e participação cotidiana da reprodução societária. Ocorre uma
politização da subjetividade, da identidade e dos processos de identificação
(MARQUES, 2008). Santos (2004, p. 30-31) expõe que como uma forma de poder,

[...] a globalização neoliberal não se limita a submeter ao mercado um


número crescente de interacções, nem a aumentar a taxa de
exploração dos trabalhadores [...] veio mostrar, com acrescida e brutal
clareza, que a exploração está ligada a muitas outras formas de
opressão que afectam mulheres, minorias étnicas, povos indígenas,
camponeses, desempregados, trabalhadores do sector informal,
imigrantes legais e ilegais, subclasses de guetos urbanos,
homossexuais e lésbicas, crianças e jovens sem futuro digno. Todas
essas formas de poder e opressão criam exclusão. Não se pode
atribuir a uma delas, em abstracto, ou às práticas que lhe resistem,
qualquer reivindicação de “um outro mundo possível” [...] no entanto,
não basta a igualdade como ideal emancipatório. A igualdade,
entendida como equivalência entre o mesmo, acaba por excluir o que
é diferente. Tudo que é homogêneo no início tende a converter-se
mais tarde em violência excludente [...] Aqui reside a base para a
opção em favor da democracia participativa, enquanto princípio
regulador da emancipação social, em detrimento de modelos fechados
como o socialismo de Estado.

Zen (2007, p. 30-31) escreve que o enfraquecimento da ditadura militar e a


consequente redemocratização do país tiveram uma grande parcela de atuação dos
processos de mobilização e participação popular em formas inéditas – onde se inclui
os movimentos de atingidos por barragens – de associativismo no final de década de
1970 e início da década seguinte, que juntamente das grandes greves operárias,
protagonizaram uma espécie de novo sindicalismo. Esta época ocorreu a criação de
associações de moradores, comunidades eclesiais de base; movimentos de gênero e
raça, defesa ambiental, ocupação de terras, entre outros. Estes grupos, conforme o
mesmo autor (2007, p. 32) “[...] enfatizam as relações pessoais, questionam as
78

relações objetivas e subjetivas de autoridade, possuem orientações comunitárias e


organização horizontal”.

Em relação à temática do meio ambiente nos conflitos existentes pelos grandes


empreendimentos hidrelétricos, é notório apontar que o alagamento das áreas para a
construção e operação de empreendimentos hidrelétricos custa um elevado preço
para o meio ambiente e as sociedades.

Conforme se extrai do relatório final da Comissão Mundial de Barragens, o


século XX apreciou a retirada de aproximadamente 80 milhões de pessoas de suas
residências e localidades para a construção de barragens, bem os danos em espécies
de peixes de água doce que encontram-se cada vez mais ameaçadas, além da
considerável porcentagem das áreas de florestas que desapareceram e da diminuição
da capacidade dos ecossistemas aquáticos produzirem muitos dos bens e serviços
dos quais as sociedades dependem (WORLD COMMISSION ON DAMS, 2000).

Neste sentido, assevera Verdum (2005) que a temática ambiental emerge no


cenário nacional a partir da década de 1970, fruto das mobilizações sociais que
exaram “[...] os primeiros paradigmas frente às degradações ambientais que afetam a
sociedade e os ecossistemas do país”.

Todavia, pondera o autor que a questão ambiental remete à estratégia de


concentração dos recursos públicos para a esfera Federal – com o intuito de
desenvolver o país – tornando-o o grande financiador das grandes obras de
infraestrutura

[...] a partir dos anos de 1930. Neste período estabelece-se uma


abertura crescente aos investimentos internacionais que buscam
consolidar uma política para tornar o país num grande exportador de
produtos agrícolas de interesse ao mercado consumidor externo.
Associado a esta perspectiva aplica-se uma política de investimentos
industriais que incorpora o ideal da modernidade, este forjado nos
referenciais dos denominados “países desenvolvidos”.

Conforme escreve Locatelli (2014, p. 86) a contraposição à ideologia


desenvolvimentista começa a florescer a partir dos anos 70 com a articulação de
movimentos anti-barragens em nível internacional, destacando – além do Brasil
países como Índia e Tailândia. Além desta emergência em nível local, escreve o autor
que se criaram nesta época organizações como a International Committee on Dams
79

e a Rivers and People, bem como a criação da World Commission on Dams no final
da década de 1990.

No Brasil – movimentados pelos atingidos e pelas entidades de defesa dos


direitos ambientais, coletivos e religiosas – os protestos ganharam força no decorrer
da década de 1970 e 1980. As confrontações eram intensas e levaram a criação de
organizações de nível regional, como a Comissão Regional de Atingidos por
Barragens (CRAB) que, ao início da década de 1990, formaram o MAB – Movimento
dos Atingidos por Barragens – em nível nacional e hoje integra o MAR – Movimento
dos Atingidos por Represas, em âmbito internacional.

Conjuntamente com os movimentos nacionais, emergiu na comunidade


internacional a crescente preocupação acerca dos impactos ambientais e sociais
ocasionados pelas grandes obras de infraestrutura energética, o que ocasionou o
início de imposições dos organismos financeiros internacionais para concessão de
empréstimos bancários, a exemplo do Banco Mundial que “[...] criou um Departamento
de Meio Ambiente e adotou exigências e critérios para a elaboração de estudos de
impactos ambientais como condição para o financiamento de projetos [...]”
(ROTHMAN, 2008. p. 22-23).

Tal situação influenciou a criação de diversos aparatos estatais para a


regulação, coordenação, análise e fiscalização dos processos de licenciamento
ambientais, bem como a criação de leis e regulamentos específicos no que tange a
construção e liberação para funcionamento de empreendimentos que possuam
potencial capacidade de causarem danos de ordem ambiental e social.

Em relação aos empreendimentos hidrelétricos, a necessidade de avaliação


prévia dos impactos se originou, em parte, da discussão e do enfrentamento das
populações atingidas – amparadas por instituições de defesa do meio ambiente e de
fins assistenciais – em face dos empreendedores estatais e privados, bem como pelas
imposições dos organismos financeiros internacionais para concessão de
empréstimos bancários (ROTHMAN, 2008. p. 22-23).

Este processo histórico influenciou – sob a égide da Lei da Política Nacional do


Meio Ambiente e do CONAMA – a criação e o aperfeiçoamento de regulamentos
específicos para o controle socioambiental dos impactos causados pelas hidrelétricas.
80

3.3. O processo de licenciamento ambiental

O licenciamento ambiental40, principal mecanismo de controle estatal em


termos de fiscalização ambiental preventiva, é um procedimento de cunho
administrativo, controlado pela Administração Pública em seus diferentes entes
(União, Estados, Municípios e Distrito Federal).

Deriva-se de uma imposição legal, objetivando a preservação da qualidade


ambiental e social no País. Segundo a Cartilha de Licenciamento Ambiental,
elaborada pelo Tribunal de Contas da União, o licenciamento ambiental é um

[...] instrumento de gestão instituído pela Política Nacional do Meio


Ambiente, de utilização compartilhada entre a União e os Estados da
federação, o Distrito Federal e os Municípios em conformidade com as
respectivas competências, objetiva regular as atividades e
empreendimentos que utilizam os recursos naturais e podem causar
degradação ambiental no local onde se encontram instalados
(BRASIL, 2004).

Todas as obras de geração de energia elétrica necessitam obter a aprovação


dos órgãos estatais no que tange às modificações de ordem ambiental e social que
estas inserem no meio ao qual são implantadas. Ao mesmo passo que estes tipos de
obras possuem alta complexidade, o mesmo ocorre com os seus processos de
licenciamento ambiental, que desde o início são alvos de críticas por parte dos
agentes envolvidos. Segundo Hofmann (2015)

[...] o licenciamento ambiental se tornou um dos temas mais


controvertidos e menos compreendidos do país. Critica-se tudo no
processo de licenciamento: a demora injustificada, as exigências
burocráticas excessivas, as decisões pouco fundamentadas, a
insensatez desenvolvimentista de empreendedores, a contaminação
ideológica do processo. O que ainda não se compreendeu com clareza
– ou, ao menos, não se expressou com precisão – é a raiz do
problema.

Em sentido análogo, escreve Acselrad (2005, p. 7) que o processo de


liberalização da economia brasileira ocorrido a partir da década de 1990 enfraqueceu
a responsabilidade ambiental do Estado, onde os simpatizantes das premissas liberais

40 O inciso I do art. 1º da Resolução n° 237 de 19 de dezembro de 1997 do CONAMA conceitua o


licenciamento ambiental da seguinte forma: “Procedimento administrativo pelo qual o órgão ambiental
competente licencia a localização, instalação, ampliação e a operação de empreendimentos e
atividades utilizadoras de recursos ambientais, consideradas efetiva ou potencialmente poluidoras; ou
aquelas que, sob qualquer forma, possam causar degradação ambiental, considerando as disposições
legais e regulamentares e as normas técnicas aplicáveis ao caso”.
81

“[...] exigiam um Estado mínimo e ‘enxuto’, atacavam o sistema de licenciamento


ambiental por ser ‘lento’, atribuindo-lhe a responsabilidade pela falta de empregos no
país [...]”.

O licenciamento ambiental deriva de uma obrigação imposta pela legislação


brasileira, para a instalação e funcionamento de qualquer empreendimento ou
atividade em que se averigue – durante as etapas construtivas e operacionais – que
utilize recursos naturais e/ou que possua potencial capacidade poluidora ou
degradadora do meio ambiente.

Trata-se de um procedimento de caráter administrativo, realizado por distintos


órgãos públicos ambientais das esferas federal, estadual ou municipal, conforme
preconiza a Lei Federal nº 6.938 de 31 de agosto de 1981 – Lei da Política Nacional
do Meio Ambiente.

O licenciamento ambiental é, dentro do sistema proposto pela citada lei, um


dos instrumentos à disposição dos agentes públicos para alcançar os objetivos de “[...]
preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando
assegurar, no País, condições ao desenvolvimento socioeconômico, aos interesses
da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana [...]” 41.

Durante o processo de licenciamento ambiental, o órgão responsável avalia


todos os impactos causados pelo empreendimento, como seu potencial e/ou
capacidade de gerar resíduos poluentes gasosos, líquidos ou sólidos, ruídos e
potencial de riscos durante seu funcionamento, bem como os impactos no meio
ambiente causados pelo processo de instalação e ocupação do empreendimento
avaliado.

O CONAMA - Conselho Nacional do Meio Ambiente – é um conselho de nível


federal incumbido de assessorar, estudar e propor ao Poder Executivo Federal o
direcionamento das políticas governamentais de exploração do meio ambiente sob a
ótica de preservação dos recursos naturais. Ademais, cabe ao órgão criar normas e
determinar padrões compatíveis com o meio ambiente ecologicamente equilibrado e
essencial à sadia qualidade de vida, o que este faz por meio de resoluções42.

41 Art. 1º da Lei Federal 6.938/1981.


42 http://www.mma.gov.br/port/conama/
82

A primeira Resolução que faz menção direta aos empreendimentos


hidrelétricos emanada do citado Conselho é a de número 001, de 23 de janeiro de
1986 e se refere à definição, critérios e responsabilidades concernentes aos Estudos
de Avaliação de Impacto Ambiental nos empreendimentos modificadores do meio
ambiente43.

No ano seguinte, a Resolução número 006 de 16 de setembro de 1987


contempla o marco regulatório do processo administrativo de licenciamento ambiental
dos empreendimentos hidrelétricos de grande porte.

Em se tratando de empreendimentos que a União tem interesse direto, o órgão


competente para a tramitação do processo de licenciamento das hidrelétricas de
grande porte é o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis – IBAMA.

Conforme se extrai da referida Resolução, o processo de licenciamento


ambiental de empreendimentos hidrelétricos constitui-se de três grandes etapas
distintas: Licenciamento Prévio (LP), Licenciamento de Instalação (LI) e
Licenciamento de Operação (LO)44, conforme resume a tabela abaixo.

43Conforme determina o Art. 2º (incisos VI, VII e XI) da citada Resolução, as linhas de transmissão de
energia elétrica com diferença de potencial elétrico (DDP) superiores à 230kV, as barragens para fins
hidrelétricos com aproveitamento superior a 10MW e as usinas de geração de eletricidade (de qualquer
fonte) com capacidade também superior a 10MW necessitam elaborar e apresentar à autoridade
ambiental competente os respectivos EIA e RIMA.
44 Art. 4º da Res. 006/1987 CONAMA: “Na hipótese dos empreendimentos de aproveitamento
hidroelétrico, respeitadas as peculiaridades de cada caso, a Licença Prévia (LP) deverá ser requerida
no início do estudo de viabilidade da Usina; a Licença de Instalação (LI) deverá ser obtida antes da
realização da Licitação para construção do empreendimento e a Licença de Operação (LO) deverá ser
obtida antes do fechamento da barragem”.
83

Tabela 3 – Fases do licenciamento ambiental.

Fonte: BRASIL, 2004.

Em termos técnicos, A LP é requerida ao órgão licenciador durante a etapa que


contempla a parte dos estudos de viabilidade do empreendimento. Assim, nesta etapa
verifica-se a viabilidade ambiental do projeto, bem como apontam-se considerações e
correções necessárias para o devido desenvolvimento da obra e a consequente
obtenção das demais aprovações (FEITOSA, LIMA, FAGUNDES, 2004).

Segundo a Cartilha de Licenciamento Ambiental do TCU (BRASIL, 2004, p. 13)


a LP prévia possui relevância constitucional, pois atende o princípio da precaução 45,
elencando o órgão citado que é nessa fase que:

1 – Levanta-se os impactos ambientais e sociais prováveis do


empreendimento;

2 – Avalia-se tais impactos, no que tange à magnitude e abrangência;

3 – Formulam-se medidas que, uma vez implementadas, serão


capazes de eliminar ou atenuar os impactos;

4 – Ouvem-se os órgãos ambientais das esferas competentes, bem


como os órgãos e entidades setoriais, em cuja área de atuação se
situa o empreendimento;

5 – Discute-se com a comunidade (caso haja audiência pública) os


impactos ambientais e respectivas medidas mitigadoras e

6 – Toma-se a decisão a respeito da viabilidade ambiental do


empreendimento, levando em conta a sua localização e seus

45 Inciso IV do art. 225 da Constituição Federal de 1988.


84

prováveis impactos, em confronto com as medidas mitigadoras dos


impactos ambientais e sociais.

Com a licença prévia devidamente chancelada, as autoras elucidam que ocorre


a outorga da LI, onde o órgão ambiental permite o início da fase executiva do
empreendimento, que possui prazo definido, através de um cronograma estabelecido
no projeto de execução da obra e que não pode ultrapassar seis anos. Importante
destacar que, para os empreendimentos hidrelétricos, o art. 4º da Resolução 006/1987
determina que a LI somente será concedida àquele que for o vencedor do certame
licitatório para a construção do empreendimento e a consequente operação deste.
Conforme aponta a Cartilha de Licenciamento Ambiental do TCU (BRASIL, 2004, p.
14) a outorga desta licença acarreta os seguintes efeitos:

1 – Autoriza o empreendedor a iniciar as obras;

2 – Ratifica as especificações constantes dos planos, programas e


projetos ambientais, seus detalhamentos e respectivos cronogramas
de implementação;

3 – Estabelece medidas de controle ambiental, com vistas a garantir


que a fase de implantação do empreendimento obedecerá aos
padrões de qualidade ambiental estabelecidos em lei ou
regulamentos;

4 – Fixa as condicionantes da licença (medidas mitigadoras);

5 – Determina que, em descumprimento das condicionantes na forma


estabelecida, a licença poderá ser suspensa ou cancelada.

Após o período de execução do projeto e concretização do empreendimento,


as autoras apontam que o interessado solicita a LO com a intenção de obter a
autorização estatal para o início do funcionamento da hidrelétrica. Esta concessão
somente é fornecida após minuciosa análise por parte do órgão ambiental para
verificar se todas as exigências impostas pelo projeto aprovado na LP e LI foram
cumpridas ao longo de sua construção, possuindo três características essenciais:

1 – É concedida após a verificação, pelo órgão ambiental, do efetivo


cumprimento das condicionantes estabelecidas nas licenças
anteriores (prévia e de instalação);

2 – Contém as medidas de controle ambiental (padrões ambientais)


que servirão de limite para o funcionamento do empreendimento ou
atividade; e

3 – Especifica as condicionantes determinadas para a operação do


empreendimento, cujo cumprimento é obrigatório sob pena de
suspensão ou cancelamento da operação (BRASIL, 2004, p 14).
85

Todavia, é cediço que os empreendimentos hidrelétricos não estão isentos de


impactos de outras ordens, eis que ocorre uma complexa série de modificações nas
sociedades atingidas pela obra, desde o canteiro de obras, as edificações
necessárias, bem como a inundação de áreas pelo barramento das águas, gerando
problemas de realocação/indenização das populações atingidas46.

Assim, os atingidos pelo empreendimento hidrelétrico também possuem


interesse, relacionando-se em diferentes intensidades com as etapas do processo de
licenciamento ambiental, relação esta que ocorre de formas diferenciadas para cada
etapa deste processo.

Segundo Rocha (2012, p. 66) durante a etapa de licenciamento prévio ocorrem


as demonstrações – e os primeiros debates – para os interessados pela obra, onde
se apresentam as vantagens e desvantagens desta para a região de implantação da
futura usina. Tais ações são efetivadas, segundo o autor, por mediadores
especificamente designados, que possuem a importante função de identificar estes
interessados e correlacionar seus respectivos projetos políticos, ou seja, uma
verdadeira etapa de análise do campo que está prestes a se formar. Isto significa dizer
que, durante a etapa do licenciamento prévio, a formação de um campo específico
ainda não se concretiza.

A formação de um campo em torno dos conflitos de interesses sobre a obra


começa a ganhar contornos com a aproximação da emissão da licença de instalação,
eis que as discussões em torno do projeto hidrelétrico – ainda envoltas por aspectos
gerais e coletivos – gradativamente se transmutam pela entrada dos interesses e
projetos individuais, ocasionando uma alteração do nível das discussões sobre as
condições enfrentadas pelos agentes atingidos sobre seus destinos (ROCHA, 2012,
p. 67).

Por último, assevera o citado autor que a emissão da licença de operação


encaminha tão somente o processo de instalação de uma hidrelétrica para o seu
estágio final, pois a situação dos atingidos pelo empreendimento não é finalizada com

46Os estudos sobre os impactos de ordem socioambiental por construção de hidrelétricas são vastos
na literatura nacional, destacando as obras de Bermann (1991, 2007); Reis (1998, 2007); Rothman
(2008); Dal Magro, Renk, Franco (2015), entre outros.
86

o início da operação da usina, tampouco com as indenizações ou remanejamento dos


agentes envolvidos (ROCHA, 2012, p 68).
87

4. A UHE BARRA GRANDE E O CAMPO NO PROCESSO DE


LICENCIAMENTO AMBIENTAL

Relativamente ao processo de licenciamento ambiental da UHE Barra Grande,


sua análise sob o enfoque da teoria dos campos de Bourdieu se dá sobre a situação
de um equívoco – tardiamente constatado pelo órgão ambiental – sobre uma grande
área de florestas nativas originais e em estado de regeneração primário e secundário
que foram suprimidas do estudo de impacto ambiental, onde sua prévia constatação
não permitiria a continuidade da construção do empreendimento.

Com o argumento da insaciável necessidade de desenvolvimento econômico e


do fato consumado, os agentes interessados na concretização do empreendimento –
Estado e empreendedores – firmaram um acordo, autorizando o enchimento do
reservatório e o afogamento de uma floresta que dificilmente poderá ser recuperada.

4.1. Identificação e características do empreendimento

Antes de adentrar na análise do processo de licenciamento da Usina


Hidrelétrica de Barra Grande, faz-se necessário situar geograficamente o
empreendimento e descrever os principais indicadores e características gerais do
empreendimento.

Atualmente, todas as informações referentes aos processos de licenciamento


ambiental dos empreendimentos que foram ou estão sujeitos a esta aprovação estatal
estão disponíveis no website do IBAMA, através do portal de informações do Sistema
de Licenciamento Ambiental Federal – SISLIC47.

Ao pesquisar no citado sistema – através do campo de pesquisa nome do


empreendimento – com a assertiva UHE Barra Grande obtém-se a relação de todos
os documentos produzidos pelo órgão federal durante o processo de licenciamento,
bem como os documentos obrigatórios a constar neste processo, produzidos pelos
empreendedores.

Conforme se extrai do documento de Identificação do Empreendimento


(IBAMA, 2016a), a UHE Barra Grande teve seu processo de licenciamento ambiental

47 Endereço eletrônico do SISLIC - https://www.ibama.gov.br/licenciamento/.


88

autuado sob número 02001.000201/98-46. Este procedimento é de responsabilidade,


dentro da estrutura organizacional do IBAMA, do COHID – Coordenação de Energia,
setor diretamente vinculado à DILIC – Diretoria de Licenciamento Ambiental, que é
repartição máxima da pasta de licenciamento ambiental, situada em Brasília.

O empreendedor responsável informado é a BAESA – Energética Barra Grande


S/A, vencedora do certame licitatório para a obtenção da LI e responsável pela
construção do empreendimento e pela outorga da Licença de Operação.

O consórcio BAESA – Energética Barra Grande S.A. é formado por diversas


empresas atuantes no setor da construção civil e energia. As cotas sociais são
divididas entre as empresas Barra Grande S.A. (25%), Alcoa Alumínio S.A. (42,18%),
DME Energética Ltda. (8,82%), Camargo Corrêa Cimentos S.A. (9%) e Companhia
Brasileira de Alumínio – CBA, pertencente ao grupo Votorantim (15%) (PAIM, ORTIZ,
2006, p. 29). Em pesquisa ao website da Receita Federal do Brasil, constata-se que
seus atuais Diretores são os Srs. Peter Eric Volf e Rogerio Gonçalves Pizeta48.

A localização geográfica do empreendimento da UHE Barra Grande


compreende-se em duas áreas distintas: a parte ocupada pelo dique de barramento
do rio e as benfeitorias da casa de máquinas, subestação e prédios acessórios, bem
como a grande área tomada pelo alagamento do leito do rio Pelotas.

Em relação aos dados específicos da usina, esta é cadastrada na ANEEL sob


código 485000062330581 e seu modelo de operação é por regime de acumulação49,

48Segundo Reportagem de periódico de circulação local Correio dos Lagos, do Município de Anita
Garibaldi, “Os engenheiros Peter Eric Volf e Rogério Pizeta são os mais novos Diretores da BAESA.
Eles assumiram as novas funções no dia 9 de maio, em substituição a Carlos Alberto Bezerra de
Miranda e Juliano Natal, ambos protagonistas de um belo trabalho à frente da empresa, a quem a
BAESA agradece imensamente pela dedicação e competência. Com experiência de vários anos em
empresas do setor elétrico, Eric e Pizeta assumem os cargos com a intenção de fortalecer a atuação
da BAESA na região de abrangência da Usina Hidrelétrica Barra Grande e consolidar o bom trabalho
realizado. Formado em Engenharia Mecânica pela UNESP (Universidade do Estado de São Paulo),
com MBA em Gestão de Processos e Comércio Exterior, Peter Eric Volf vai ocupar o cargo de Diretor
Superintendente da BAESA e da Enercan. Já Rogério Pizeta, Gerente de Engenharia e Projetos da
Alcoa Alumínio S/A, acionista majoritária da BAESA, passa a acumular o cargo de Diretor da BAESA”.
Disponível em: http://www.adjorisc. com.br/jornais/correiodoslagos/on-line/variedades/baesa-tem-
novos-diretores-1.1900694. Acesso em: 02 nov. 2016.
49Segundo ELETROBRAS (2010) “A usina hidrelétrica com reservatório de acumulação, também
conhecida como usina com reservatório ou de regularização, dispõe de reservatório com grande
capacidade de armazenar água, fazendo isso nos períodos úmidos, chuvosos, para poder utilizar a
água acumulada nos períodos secos. Dependendo da quantidade de água que o reservatório acumule,
as suas reservas podem ser utilizadas durante meses ou anos, o que é conhecido como capacidade
de regularização mensal, anual ou plurianual”.
89

possuindo potência máxima instalada de 708 MW, extraída de três turbinas e unidades
geradoras.

Quanto as informações específicas do dique de barramento do rio, anota o


documento que este tem o comprimento horizontal de 665 m e uma altura de crista
(distância entre os pontos verticais limítrofes da construção) de 185 m.

O eixo da barragem atravessa o Rio Pelotas, assentando sua construção à


norte no território do Município de Anita Garibaldi, em Santa Catarina; ao Sul, a obra
é acostada ao território do Município de Pinhal da Serra, no Estado do Rio Grande do
Sul.

Escrevem os empreendedores que “A Usina Hidrelétrica Barra Grande é uma


obra imponente, erguida com a inteligência e o esforço do homem somados à precisão
e à grandiosidade da Engenharia”. Conforme se denota na fotografia abaixo, as
edificações possuem dimensões generosas e as alterações realizadas no meio
ambiente são admiráveis.

Figura 3 - Edificações da UHE Barra Grande.

Fonte: BAESA, 2010.


90

Segundo Prochnow (2005, p. 6) a localidade de Barra Grande, situada no vale


do rio Pelotas, formador da divisa geográfica dos Estados Santa Catarina e Rio
Grande do Sul, possui um relevo pitoresco que “[...] traça belíssimos desenhos na
paisagem formando uma calha de rio com declives acentuados, cobertos ora por uma
exuberante floresta com araucárias, ora por campos nativos, ora por propriedades
agrícolas que lá se implantaram ao longo do tempo”.

A figura a seguir, obtida através do aplicativo Google Earth Pro®, retrata o


posicionamento e as formas das edificações da Usina, compreendidas no dique de
barramento, a casa de máquinas, o vertedouro e a subestação elétrica:

Figura 4 - Descrição das edificações da UHE Barra Grande.

Fonte: GOOGLE®, 2016. Editado por VOLKWEIS FILHO.

O reservatório formado pelo barramento do rio ocupa a extensão do rio Pelotas,


acima do dique de barramento, em 130 km. Nesta extensão, ocupa a área de 94 km²
do leito do rio e opera – sob o citado regime de acumulação – com uma quota mínima
prevista na altitude (em relação ao nível do mar) de 617 m e máxima de 647 m,
gerando uma profundidade média de reservatório em aproximados 100 m.

Ainda, frisa o documento que o reservatório atinge os territórios dos seguintes


municípios: Anita Garibaldi, Campo Belo Do Sul, Capão Alto, Cerro Negro e Lages no
91

Estado de Santa Catarina; Bom Jesus, Esmeralda, Pinhal da Serra e Vacaria no


Estado do Rio Grande do Sul. Por último, consta no documento os principais rios
afluentes a montante do barramento: Rio Vacas Gordas, Rio Limitão, Rio Lava-Tudo,
Rio leão, Rio Socorro, Rio Santana e Rio dos Touros.

O mapa abaixo indica quais Municípios, dos dois Estados citados, foram
atingidos em seus territórios pelo reservatório do empreendimento analisado:

Figura 5 – Municípios atingidos pelo reservatório da UHE Barra Grande.

Fonte: RUPPENTHAL, 2013. Editado por VOLKWEIS FILHO.

4.2. Informações e detalhes do processo de licenciamento


ambiental

Conforme explanado acima, o processo de licenciamento ambiental possui uma


cronologia de etapas determinada pelas resoluções expedidas pelo CONAMA. De
forma ampla, o processo de licenciamento compreende as fases da Licença Prévia,
Licença de Instalação e Licença de Operação – LP, LI e LO.

Contudo, tais fases possuem diversas etapas internas, onde o responsável por
cumpri-las deve apresentar uma série de documentos e exigências requisitadas pelo
órgão ambiental, com o intuito de satisfazer todas as determinações legais para cada
etapa do processo de licenciamento ambiental do empreendimento.
92

O sistema SISLIC do IBAMA, utilizado para a obtenção dos dados analisados


e demonstrados, apresenta o documento de informações do processo (IBAMA,
2016b).

Consta no campo Situação Atual deste documento que o empreendimento está


em regularidade em relação ao processo de licenciamento ambiental, eis que teve sua
LO retificada, conforme se analisa a seguir.

Em relação à cronologia das etapas pertinentes para a obtenção da Licença


Prévia, observa-se no citado documento as seguintes fases:

Tabela 4 – Cronologia das etapas da Licença Prévia.


Data Evento

21/01/1998 Solicitação da Licença Prévia

15/12/1998 Entrada de estudo do Relatório de Impacto Ambiental

10/06/1999 Realização de Audiência Pública em Anita Garibaldi-SC

11/06/1999 Realização de Audiência Pública em Vacaria-RS

15/09/1999 Requisição de Estudos Complementares

13/11/1999 Entrega dos Estudos Complementares

15/12/1999 Emissão da Licença Prévia, registrada sob número LP 059/1999

23/02/2001 Emissão da Renovação da Licença Prévia, registrada sob número


RLP 059/1999

31/07/2006 Realização de vistoria nos municípios de Anita Garibaldi - SC, Capão


Alto - SC, Campo Belo do Sul - SC, Pinhal da Serra - RS e Esmeralda
- RS.
Fonte: IBAMA, 2016b. Editado por VOLKWEIS FILHO.

Quanto ao cumprimento das exigências necessárias para a obtenção da


Licença de Instalação, o processo possui as seguintes fases inscritas no documento
analisado:
93

Tabela 5 – Cronologia das etapas da Licença de Instalação.


Data Evento

01/03/2001 Solicitação de Licença de Instalação

01/03/2001 Entrada de estudo do Projeto Básico Ambiental – PBA

27/06/2001 Emissão de Licença de Instalação, registrada sob número LI 129/2001

13/07/2001 Emissão de Autorização de Supressão Vegetal - ASV 020/2001

14/07/2002 Emissão de Renovação da Autorização de Supressão Vegetal - RASV


020/2001

15/09/2004 Emissão de Autorização de Supressão Vegetal - ASV 012/2004

22/09/2004 Emissão de Renovação da Autorização de Supressão Vegetal - RASV


020/2001

08/11/2005 Conclusão da Análise de Abrangência do Plano Básico Ambiental –


PBA

13/09/2016 Emissão de Autorização de Supressão Vegetal - ASV 1144/2016


Fonte: IBAMA, 2016b. Editado por VOLKWEIS FILHO.

Em seguida, observa-se o andamento cronológico dos procedimentos


atendidos pelo empreendedor para a etapa de obtenção da Licença de Operação.

A LO é notadamente uma fase do processo de licenciamento ambiental com


movimentação mais constante em relação às outras, eis que esta Licença é
condicionada a termo definido, sendo recorrente a prática de especificações de
condicionantes pelo órgão ambiental responsável ao empreendedor para a outorga
desta Licença.

Ademais, este caráter de vigência temporal da LO a torna uma fase sem


encerramento se comparada às demais, eis que, ao término de cada lapso temporal
concedido para a operação do empreendimento, reinicia-se o processo de obtenção
de uma nova Licença de Operação. Abaixo, anotam-se as etapas já registradas desta
fase:
94

Tabela 6 – Cronologia das etapas da Licença de Operação.


Data Evento

04/07/2005 Emissão de Licença de Operação, registrada sob número LO


447/2005

15/09/2005 Emissão de Renovação da Autorização de Supressão Vegetal - RASV


012/2004

22/11/2005 Emissão de Retificação da Autorização de Supressão Vegetal - Ret


ASV 012/2004

05/12/2005 Complementação Estudo Ambiental

04/01/2008 Emissão da Renovação da Licença de Operação, registrada sob


número RLO 447/2005

16/04/2012 Emissão de Autorização de Supressão Vegetal - ASV 655/2012

18/06/2012 Emissão de Autorização de Captura, Coleta e Transporte de Material


Biológio - ABio 093/2012

20/09/2012 Emissão da Retificação da Renovação da Licença de Operação,


registrada sob número Ret RLO 447/2005

29/05/2013 Emissão da Retificação da Autorização de Captura, Coleta e


Transporte de Material Biológio - Ret ABio 093/2012

26/03/2014 Emissão da Renovação da Licença de Operação, registrada sob


número - RLO 447/2005

01/04/2014 Emissão da Retificação da Renovação da Licença de Operação,


registrada sob número - Ret RLO 447/2005

16/07/2015 Emissão da Renovação da Autorização de Captura, Coleta e


Transporte de Material Biológio - RABio 093/2012

Sem data Realização de Audiência Pública


Fonte: IBAMA, 2016b. Editado por VOLKWEIS FILHO.

4.3. O equívoco no EIA-RIMA sobre a fauna diretamente afetada


pelo empreendimento e a deflagração do conflito no processo de
licenciamento ambiental

O cerne do imbróglio ocorrido no processo de licenciamento da UHE Barra


Grande reside em uma série de vícios no procedimento de licenciamento ambiental e,
95

principalmente, em uma omissão no Estudo de Impacto Ambiental no que tange à


uma grande área de florestas de araucárias protegida por lei.

Tal situação fora descoberta pelos movimentos sociais defensores do meio


ambiente ao tempo que as obras da usina se encontravam em estágio avançando, o
que por sua vez se tornou uma das justificativas principais para legitimar o equívoco
e a ilegalidade apurados.

Antes de adentrar na análise dos documentos e fatos que desencadearam o


conflito objeto desta pesquisa, faz-se importante tecer os devidos comentários acerca
da importância para o cenário ambiental da área de florestas suprimidas dos
documentos oficiais.

Segundo o que se extrai do website do MMA, é estimado que no bioma da Mata


Atlântica existem aproximadamente 20.000 espécies de vegetais, sendo
aproximadamente 35% das espécies existentes em solo nacional e muitas destas
espécies são endêmicas (único local de sua existência) e ameaçadas de extinção.
Assim, “Essa riqueza é maior que a de alguns continentes (17.000 espécies na
América do Norte e 12.500 na Europa) e por isso a região da Mata Atlântica é
altamente prioritária para a conservação da biodiversidade mundial”50.

Ainda, o citado ministério elenca que, além da importância em biodiversidade,


a população brasileira estabelecida neste bioma é de aproximadamente 120 milhões
de pessoas, onde são gerados aproximadamente 70% do PIB nacional em sua área
de abrangência.

A Mata Atlântica, atualmente, recebe status legal privilegiado, eis que há


legislação específica para a sua proteção e manuseio desde o nível constitucional,
conforme determina o §4º do art. 225 da Constituição Federal de 198851.

50 Disponível em http://www.mma.gov.br/biomas/mata-atlantica. Acesso em 11 jan. 2017.


51Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do
povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
[...]
§ 4º A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e
a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições
que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.
96

Todavia, este dispositivo constitucional restou carente de regulação específica


por dezoito anos, eis que a regulação imposta pelo texto constitucional somente fora
publicada no ano de 2006, ou seja, um ano após a emissão da LO e a entrada em
operação da UHE Barra Grande52.

Prochnow (2005, p. 08) escreve que o território do Estado de Santa Catarina


está totalmente inserido no bioma da Mata Atlântica, sendo que a porção de 85% era
coberta por formações florestais. Nesta fração, o importe de 42,5% era constituída de
Florestas Ombrófilas Mistas, também conhecidas como as florestas de araucárias,
sendo tal formação vegetal a preponderante no bioma estadual. Todavia, pondera a
autora que a situação atual destas florestas é crítica, onde

Os reflexos da excessiva e irracional exploração das principais


espécies arbóreas são evidentes em toda a área de abrangência da
Floresta Ombrófila Mista. A fisionomia característica anteriormente
predominante foi substituída, em sua maior parte, por pastagens e
reflorestamentos homogêneos com espécies exóticas. Os raros
remanescentes florestais, que juntos perfazem apenas entre 1 e 2%
da área original no Estado (PROCHNOW, 2005, p. 08).

Ademais, a autora escreve que as florestas que ainda se encontram em pé no


estado catarinense estão em porções fragmentadas e em propriedades privadas, o
que não garante uma eficaz regeneração e uma adequada conservação.

Ainda, a autora (2005, p. 09) elenca que estudos realizados pelo MMA em 2002
e 2003 detectaram “ [...] considerável avanço nos processos de recuperação natural,
com expansão das capoeiras que tipificam estágios iniciais e médios de regeneração,
especialmente nas áreas montanhosas do Estado”. Tais estudos revelaram também
que áreas relevantes (superiores a 2.000 ha) para a conservação do ecossistema
citado foram identificadas no noroeste de Santa Catarina (nas áreas dos municípios
de Abelardo Luz, Ponte Serrada e Água Doce), bem como em áreas do vale do rio
Pelotas, local da instalação da UHE Barra Grande53.

52A lei nº 11.428, de 22 de dezembro de 2006, “Dispõe sobre a utilização e proteção da vegetação
nativa do Bioma Mata Atlântica, e dá outras providências”. Necessitando de regulação específica, fora
editado e publicado o Decreto nº 6.660, de 21 de novembro de 2008, que “Regulamenta dispositivos
da Lei no 11.428, de 22 de dezembro de 2006, que dispõe sobre a utilização e proteção da vegetação
nativa do Bioma Mata Atlântica”, ou seja, o arcabouço legal para a proteção do bioma da Mata Atlântica
somente restou completo vinte anos após a promulgação da atual Constituição brasileira.
53 Ainda, a autora revela que “Em 2001, uma pesquisa realizada pelo Centro de Ciências Agrárias da
Universidade Federal de Santa Catarina, ao comparar populações de Araucaria angustifolia do vale do
rio Pelotas com as de outros três remanescentes do Estado, encontrou aí o maior índice de
97

Figura 6 – Florestas de araucárias existentes na área de influência direta do reservatório da UHE


Barra Grande.

Fonte: PROCHNOW, 2005.

Já o RIMA do empreendimento estudado (ENGEVIX, 1998, p. 21) aponta que


os trabalhos de campo para a obtenção dos dados relativos aos ecossistemas
diretamente afetados pelo empreendimento “[...] não objetivaram realizar um
levantamento da biota presente na região, mas mediante uma análise de bioindicação
[...]”, sendo que a flora fora identificada “[...] com auxílio da literatura específica
associada a entrevistas a moradores da região [...]”, bem como pela utilização de
aerofotografias e imagens obtidas por satélites, ou seja, os estudos relativos à fauna
se mostram demasiadamente incompletos, eis que não houve a realização de
levantamento in loco dos dados relativos a biota futuramente afetada pelo
empreendimento.

Desta forma, o relatório elucida que “A maior parte da área a ser encoberta é
constituída de pequenas culturas, capoeiras marginais baixas e campos com
arvoredos esparsos [...]”, incluindo a existência de araucárias nestas áreas,
concluindo o estudo que “A formação dominante na área a ser inundada pelo
empreendimento é a de capoeirões que representam níveis iniciais e, ocasionalmente,
intermediários de regeneração da Floresta de Araucária [...]” (ENGEVIX, 1998, p. 22).

Conforme se extrai da petição inicial (Anexo 1) da Ação Civil Pública impetrada


pelos órgãos de defesa do meio ambiente – o caso em análise no item seguinte –

heterozigozidade, ou seja, de variabilidade genética – uma verdadeira relíquia biológica, considerando


a condição atual de todo o ecossistema” (PROCHNOW, 2005, p. 09).
98

resta plausível que informações contidas no RIMA dão conta de uma área inundada
com significância ambiental diminuta no que tange à cobertura vegetal diretamente
afetada, eis que era composta, em sua maioria, por áreas de florestas em estágio
inicial de recuperação, bem como a ação humana era altamente presente na área
citada, isto pela elevada ocorrência de pastagens e áreas de agricultura54.

Com a obra praticamente concluída, os litigantes escrevem que o


empreendedor, necessitando requerer a emissão da LO ao IBAMA para iniciar o
enchimento do reservatório e consequentemente gerar energia, necessitaram
apresentar o Programa de Limpeza da Bacia de Acumulação, um projeto executivo de
limpeza e desmatamento da área a ser inundada55.

Em seguida, aponta a petição que a BAESA contratou empresa especializada


para a confecção projeto, sendo que neste momento “[...] a equipe técnica teve de ir
a campo para fazer um levantamento mais detalhado da vegetação existente, de
forma a poder mensurar os recursos financeiros, humanos e tecnológicos que seriam
necessários [...]”, gerando ao final um relatório que demonstrou a realidade da
vegetação existente na área de afetação direta pelo reservatório: mais da metade
desta área era composta por vegetação primária em ótimo estado de preservação e
por vegetação secundária, em estágio avançado de regeneração. Assim, destaca
Prochnow (2005, p. 6-7) que

Na verdade, o Rima apresentado havia reduzido a cobertura florestal


primária da área a ser alagada de 2.077 para 702 hectares, a área de
floresta em estágio avançado de regeneração - tratada no documento
como um “capoeirão” – de 2.158 para 860 hectares e a área de floresta
em estágios médio e inicial de regeneração - tratada apenas como
“capoeira” – de 2.415 hectares para apenas 830 hectares. Além disso,
não fazia menção clara sobre os campos naturais, que estão
presentes em mais de 1.000 hectares.

Desta forma, não restou outra alternativa aos movimentos de defesa do meio
ambiente – tendo em vista o cenário acima apresentado e a situação que se

54Conforme consta no RIMA (ENGEVIX, 1998, p. 21), a assertiva dos profissionais responsáveis pelo
estudo, baseada nas imagens aéreas e de satélites, mostra que “[...] a primeira imagem que temos é
a de um mosaico, ou uma grande tapeçaria. De fato, a organização atual da vegetação com domínio
de pastagens limpas e variações de matas que chegam até florestas marginais relativamente bem
conservadas leva a este padrão”.
55Conforme escrevem os peticionantes, “Esse desmatamento é necessário para evitar a eutrofização
do reservatório, já que a matéria orgânica – madeira, folhas, raízes – inundada começa logo a se
decompor, pois morre pela falta de oxigênio, e isso causa sérios problemas para a qualidade da água”.
99

desenrolava nos bastidores do IBAMA/MPF e nos altos escalões do Governo Federal


– senão judicializar o conflito de interesses acima apresentado, que é o objeto de
análise a seguir.

4.4. A atuação dos campos no licenciamento da UHE Barra


Grande: a legitimação dos interesses e a harmonização do conflito

A escolha como escopo de análise do processo de licenciamento ambiental da


UHE Barra Grande não é guiada pela aleatoriedade ou por critérios alheios a pesquisa
ora alçada.

O primeiro contato do pesquisador com o caso ora estudado adveio de uma


valiosa sugestão emanada pela orientadora. Com o início de trajeto da pesquisa sobre
o empreendimento, os passos percorridos revelam de forma estrondosa – porém
aveludada – as nuances existentes no processo e que são fruto de uma atuação do
jogo dos campos.

O desenvolvimento das práticas, voltadas a concretizar os interesses dos


agentes dominantes, são claramente percebidas quando se analisa a série de
acontecimentos que se converteram em um dos episódios mais vertentes no que
tange ao uso do jogo de forças presentes nos campos da teoria de Bourdieu, para ao
final legitimar um processo permeado de equívocos que levaram ao afogamento de
uma considerável área de florestas protegidas por lei.

Para tanto, a análise se debruça sobre o capítulo de livro escrito por Do Valle
(2005), que é um relato e uma crítica pessoal dos acontecimentos e aspectos
ocorridos no preâmbulo e no decurso da Ação Civil Pública n. 2004.72.00.013781-9,
impetrada por duas ONGs com o afã de impedir a derrubada da floresta de araucárias
negligenciada pelo EIA-RIMA que estudou todo o entorno da área de implantação da
UHE Barra Grande.

O desencadeamento da Ação Civil Pública citada e as demais ações a seguir


apontadas ocorreram no ano de 2004, em período antecedente à emissão da Licença
de Operação.

Os agentes inseridos neste campo são assim identificados: As autoras da ação


principal são as ONGs Rede de Organizações Não Governamentais da Mata Atlântica
100

(RMA) e a Federação de Entidades Ecologistas Catarinenses (FEEC); do outro lado


encontram-se como réus o IBAMA e o consórcio responsável pela construção e
operação da obra, o Consórcio BAESA S/A. Resta evidente que os agentes inseridos
no jogo de lutas do campo estão bem definidos.

Os movimentos sociais, representantes dos interesses de preservação do meio


ambiente, se identificam como uma forma de expressão dos agentes dominados deste
campo. As suas existências derivam de uma necessidade dos agentes dominados
acumularem mais capital pela ação da associação, o que por consequência permite a
eles disputarem o jogo do campo com maiores possibilidades de vitória.

Do outro lado encontram-se os agentes dominadores do campo. O


empreendedor atua diretamente e utiliza todos os capitais a sua disposição para a
consecução dos seus objetivos.

Já o Estado atua de forma peculiar ao caso apresentado, sendo primariamente


representado pelo órgão de licenciamento ambiental – IBAMA. A medida que outros
campos se inter-relacionam com o campo analisado, outros órgãos estatais emergem
e atuam com seus capitais para convergir os interesses almejados.

Segundo Do Valle (2005, p. 15) os fatos e documentos se coadunam num


evidente caso de confronto entre paradigmas, onde um dos lados era preenchido
pelos interesses de concluir e iniciar a operação de uma grande obra de infraestrutura,
objetivada “[...] a alavancar investimentos de grandes grupos empresariais privados”,
ao passo que no lado estava em jogo “[...] um dos mais importantes remanescentes
de um dos ecossistemas mais ameaçados do país” que encontrava-se a momentos
de ser extinto e submergido nas águas do reservatório da UHE Barra Grande.

Neste início, já é possível vislumbrar uma clara atuação dos campos no


processo de licenciamento ambiental através de seus agentes, utilizando de seus
capitais específicos, conforme se elucida a seguir.

Com o cenário ora apresentado no item anterior, elucida Do Valle (2005, p. 15)
que a sua primeira função foi pesquisar o comportamento dos dois principais agentes
responsáveis pelo processo de licenciamento ambiental e da defesa destes interesses
– IBAMA e o MPF, sendo que o primeiro se encontrava em situação delicada, pois era
alvo constante de ataques pelos diversos agentes interessados no processo de
101

licenciamento ambiental em questão, alegando estes, principalmente, a elevada mora


no andamento do trâmite56.

Segundo Hofmann (2015) os processos de licenciamento ambiental


executados pelo IBAMA são frequentemente associados como um entrave ao
desenvolvimento do país, eis que normalmente possuem longa duração de trâmite,
proporcional à dimensão da obra ora em averiguação.

Esta associação, segundo a autora, advém de diferentes agentes, como os


escritórios de projetos, construtoras, agentes políticos diretamente beneficiados pelos
royalties que recebem suas Administrações, até a agentes indiretamente vinculados
ao empreendimento, como as associações das classes envolvidas nos processos de
licenciamento e agentes políticos de alto escalão, representantes dos interesses das
coletividades envolvidas57.

Todavia, Do Valle (2005, p. 15) escreve que, ao averiguar a situação do citado


órgão, confrontou-se com uma situação inusitada, eis que este “[...] demonstrava boa
vontade para consertar os erros do passado” através da busca de uma solução com
a BAESA para conciliar o erro averiguado, fato que já era noticiado pela mídia como
uma resolução da grande problemática do entrave ao desenvolvimento nacional
causado pelo moroso processo de licenciamento ambiental.

No mesmo sentido caminhava a atuação do Ministério Público Federal – já


ciente do acontecimento – que preparava, através da Procuradoria Federal de Lages,
uma minuta para a celebração de um Termo de Ajustamento de Conduta (o
famigerado TAC) entre o IBAMA e a BAESA para a liberação da Licença de Operação,
colocando pá-de-cal sobre a situação.

Escreve o autor que, diante dos fatos levantados e da situação desenhada, a


única saída foi buscar o Poder Judiciário para garantir a tutela de um direito coletivo
que estava a vias de ser negociado por aqueles que eram os responsáveis pela sua
salvaguarda. O desenho de cenário, segundo o autor, se constituiu até então de uma
forma

56É necessário destacar que a comunicação (através das mídias) também é um agente promotor desta
associação, conforme observa Do Valle (2005, p. 15) no caso ora estudado.
57À título de ilustração, Hofmann (2015) escreve que o Banco Mundial, em estudo datado de 2008,
enumera dezesseis gargalos nos processos de licenciamento ambiental, onde a grande maioria se
coaduna com as reclamações expostas por outros agentes interessados.
102

[....] inusitada: havia uma obra instalada com base numa fraude, num
processo juridicamente nulo, que ameaçava destruir um ecossistema
de importância incontestável, cuja história era de conhecimento
público, mas os órgãos competentes (Ministério do Meio Ambiente,
Ministério das Minas e Energia, IBAMA e Ministério Público Federal)
ao invés de atacá-lo, estavam prestes a chancelá-lo (DO VALLE,
2005, p. 16).

Até então, fica evidente a atuação dos agentes dominantes (IBAMA e MPF
como agentes estatais e a BAESA, ora empreendedora) onde cada um deles atua
com os melhores capitais disponíveis de seus campos específicos, ou seja, o IBAMA
e o MPF através das suas capacidades específicas do campo jurídico e a BAESA
através de todos os capitais disponíveis, principalmente daqueles que possui nos
campos econômico e político.

Neste sentido, o primeiro órgão possui seus capitais baseados na sua


capacidade de ser o responsável por dizer o direito nos processos de licenciamento
ambiental; já o segundo órgão, legalmente investido dos poderes de salvaguardar os
direitos coletivos, tem o poder de negociar, mediante compensações, uma afronta a
determinado direito, através dos termos de ajuste de condutas.

Por sua vez, os capitais utilizados pelo empreendedor encontram-se presentes


em todos os campos em que este atua, seja no campo judicial ou político, mas
principalmente pelos capitais que este dispõe no campo econômico, pois detém
determinada parcela de controle do campo em proporção do seu capital disponível, o
que por sua vez acaba por exercer pressões sobre o Estado (que também tem
interesse econômico no empreendimento) para alterar as regras do campo e favorecer
a obtenção dos seus interesses.

Seguindo a análise do caso em estudo, chega-se à fase onde o conflito é


remetido ao Poder Judiciário, através da protocolização de uma Ação Civil Pública –
ACP58.

Conforme consulta ao website do Tribunal da 4ª Seção da Justiça Federal,


figuram como autoras na ACP as seguintes associações: Rede de Organizações Não-
Governamentais da Mata Atlântica (RMA), Federação das Entidades Ecologistas de
Santa Catarina (FEEC), Fundação do Meio Ambiente (FATMA), Associação de
Proteção ao Meio Ambiente de Cianorte (APROMAC), Associação de Preservação do

58 Regulada pela Lei Federal 7.347, de 24 de julho de 1985.


103

Meio Ambiente do Alto Vale do Itajaí (APREMAVI), Núcleo Amigos da Terra Brasil
(NAT), Ambiental Acqua Bios e a Coalisão Internacional da Vida Silvestre
(IWC/Brasil). Já no Banco dos réus encontram-se o IBAMA, a BAESA e a União
Federal.

Atualmente o citado processo encontra-se em baixa definitiva, pois se tratava


de processo do tipo físico, migrando para o sistema eletrônico no ano de 201159, que
até o momento encontra-se pendente para julgamento no Superior Tribunal de Justiça,
tendo em vista que as autoras interpuseram Recursos Especiais ao citado Tribunal.

Quando do ingresso desta ação, Do Valle (2005, p. 16) expressa que não
vislumbrava qualquer possibilidade de não obter a tutela pretendida – a paralização
da construção da UHE Barra Grande e a manutenção da floresta de araucárias – pois
a ilegalidade evidenciada no EIA-RIMA era incontroversa para os olhos do Judiciário,
pois não se tratava de “[...] complexas questões de direito ambiental ou imbricadas
teses de biologia da conservação [...] mas sim conceitos muito simples de direito
administrativo e normas muitos claras de direito ambiental”.

Todavia, o autor relata uma certa angústia da atuação que o Poder Judiciário
poderia desempenhar no caso estudado, isto em virtude da existência do fantasma
que paira sobre os fundamentos judiciais decisivos em casos correlatos.

Este fantasma que assombra o Direito como um todo recebe o nome de teoria
do fato consumado. É comumente utilizado para justificar a impossibilidade de
retroceder uma situação já existente (a construção de um empreendimento, quase
finalizado, de vultoso consumo de recursos financeiros e naturais) em face de outra
situação que supostamente pode ser compensada (uma floresta pode ser cultivada
em outro local, afinal). Neste sentido, o autor aponta que

Nosso país é pródigo em exemplos de casos de afronta à lei que


depois, revestidos com a roupagem do “fato consumado”, são alçados
à categoria de fatos imutáveis que demandariam regularização. É
assim com a sonegação de impostos, com a ocupação privada de
espaços públicos, com o desrespeito às leis de zoneamento urbano
[...] O fato consumado sempre foi utilizado como uma forma quase
jurídica de burlar a lei, pois não faltam advogados que lançam mão de
argumentações fatalistas para justificar uma exceção à aplicação da
lei, ou seja, a construção de uma couraça que impede que o

59 Registrada no TRF4 sob número 5003502-55.2011.4.04.7200.


104

Ordenamento Jurídico seja válido para aquele caso (DO VALLE, 2005,
p. 16).

Esta teoria tem sido aplicada, normalmente, quando ocorre um choque


temporal entre a ação preventiva e a duração do objeto sem sofrer o dano, potencial
ou real.

As situações jurídicas onde incide esta teoria decorrem do lapso moroso entre
a possível efetivação de uma medida protetiva e a ocorrência do dano. Em se tratando
dos processos de construção de hidrelétricas, a teoria do fato consumado é
largamente utilizada pelos empreendedores e pelas autoridades públicas como
argumento validador das atividades ilegais ocorridas antes, durante ou depois do
processo construtivo. Assim, o transgressor da norma pratica o ato que lhe
interessava e, quando submetido ao julgamento desta infração, a lide é extinta por
perda do objeto ou objeto prejudicado.

Tessler (2005) elenca que a morosidade do Judiciário é o principal fator que


desencadeia a ocorrência da consumação dos fatos e à revelia da lei impera nestas
situações. Ademais, a autora elenca que o fato consumado se trata de uma maneira
peculiar de se responder à passagem do tempo, onde se torna mais conveniente que
o que já ocorreu não seja desfeito, oferecendo assim uma solução socialmente
aceitável.

Assim, esta aponta que a famigerada teoria é “[...] fruto direto da incapacidade
do Judiciário de entregar em tempo útil e hábil uma solução”, onde a sua utilização
como um fundamento de decisão é um comodismo para o Juiz, eis que o exime do
dever de efetivamente decidir a lide. Ainda, a autora frisa que esta teoria opera em
consonância com a inexorabilidade do fator tempo

[...] Na tensão dos valores, feita a hierarquização axiológica, prevalece


o fato consumado, pois não convém seja modificado sob pena de
afrontar valores, justamente a segurança jurídica e a paz social. Feito
o percurso pela jurisprudência, conclui-se que, sob o manto branco do
fato consumado, a jurisprudência tem albergado duas situações: a) o
fato irreversível, isto é, o que não pode mais ser modificado por
situação de fato e induz à perda de objeto do processo; b) o fato não-
irreversível, mas que, na política Judiciária, não convém seja revertido
por consideração de segurança jurídica.

No caso do setor elétrico, assevera Bermann (2007) que a teoria do fato


consumado tem prevalecido em muitos empreendimentos, ao passo que se promove
uma hidrelétrica como uma fonte de energia limpa e barata, bem como firmam-se as
105

premissas do interesse público – desenvolvimento econômico e progresso – do outro


lado ocorrem uma série de violações aos direitos das populações atingidas, bem como
direitos de ordem difusa e coletiva, como o direito ao meio ambiente.

O fato consumado, nestes casos, acaba por se tornar forma quase jurídica de
transgredir o ordenamento jurídico, calçados no argumento fatalista para justificar uma
exceção à aplicação da lei, acabando por tornar legítimo o descumprimento da lei e a
usurpação de direitos.

No caso estudado, o fator tempo foi basilar para fundamentar o fato consumado
em face da ilegalidade evidenciada. Do Valle (2005, p. 17) escreve que, entre o
decurso da interposição da ACP e a primeira decisão judicial, ocorreu a oposição de
um Termo de Compromisso (outra denominação para o TAC), assinado entre o
empreendedor (BAESA) e a União, representado pelos Ministérios do Meio Ambiente
(MMA) e de Minas e Energia (MME), bem como pela Advocacia Geral da União (AGU),
IBAMA e o MPF.

O referido documento (Anexo 2) possui como objeto principal “[...] a definição


de compromissos que assumem as Partes para execução de ações que possibilitem
a continuidade do processo de licenciamento ambiental do Aproveitamento
Hidrelétrico de Barra Grande”, dando ênfase à necessidade da retirada de parte da
vegetação existente na área em que o reservatório atingiu.

Para a oposição do acordo entabulado entre os agentes citados, estes


enumeraram uma extensa lista de considerações, que se transmutam em evidentes
marcos da atuação dos agentes dominantes do campo para impor a harmonização do
conflito.

De um lado, o documento elenca que é objetivo de todos a manutenção do


meio ambiente equilibrado, sendo competência do Poder Público defende-lo e
preserva-lo, conforme determina a Constituição de 198860. Ainda, as partes
concordam que

[...] não foi devidamente contemplada, no Estudo de Impacto


Ambiental disponibilizado à época da licitação para concessão do AHE
Barra Grande, nem observados nas vistorias realizadas pelos órgãos
ambientais responsáveis pelo licenciamento, a existência de

60Caput do Art. 225 da CF/1988: Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem
de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à
coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
106

remanescentes de floresta ombrófila mista primária e em avançado


estágio de regeneração na área de inundação do reservatório da
usina.

Vislumbra-se que os órgãos “[...] responsáveis por propor políticas e normas,


bem como definir estratégias, visando à sustentabilidade ambiental [...]” e “[...]
proceder ao licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades com
significativo impacto ambiental em âmbito nacional e regional [...]” tornam confessa a
existência da irregularidade apontada pelos movimentos sociais, conforme explanado
acima.

Todavia, os mesmos órgãos concordam que é “[...] do interesse público a


conclusão do aproveitamento hidrelétrico denominado Barra Grande [...] cuja
concessão já foi outorgada [...]”, sendo que o empreendimento é imprescindível para
a “[...] expansão da geração de energia elétrica do País, uma vez atendidos os
requisitos de cunho ambiental” e a sua paralisação não se coadunava com os
interesses públicos ou privados, tendo em vista a avançada fase de construção da
obra.

Em seguida, restam estipulados os compromissos assumidos pelas partes


(BAESA, IBAMA, MME e MMA) que, segundo Do Valle (2005, p. 17) foram “[...]
medidas pseudo compensatórias e mitigadoras [...]”, traduzindo-se o documento numa
forma de os órgãos envolvidos outorgarem a autorização para a operação do
empreendimento e encerrarem as discussões existentes.

De forma surpreendente para o autor, o Poder Judiciário atuou – em seu


primeiro ato processual – de forma contrária aos interesses dos agentes dominantes
do campo, fato que não era esperado pelos agentes dominados, pois temiam que a
atuação do magistrado seria influenciada pelas “[...] pressões de todas as partes [...]”,
ou seja, pela força dos poderes simbólicos dos agentes dominantes do campo,
principalmente no que tange os poderes dos capitais presentes no campo político,
pois neste processo estavam envolvidos “[...] funcionários dos altos escalões do
governo federal [...]”.

Quando se trata da atuação do campo jurídico sobre a sua atividade principal,


é comum que a sua forma se modifique ao passo em que ocorre o afastamento da
causa do epicentro do conflito. Enquanto presente na justiça local, a atuação do
campo jurídico tende a se apresentar de forma mais propensa à absorver as atuações
107

do campo específico do conflito, o que normalmente se traduz em decisões mais


sensíveis à atuação dos agentes inseridos no campo específico.

A partir do momento em que o processo judicial se desloca (e


consequentemente se afasta do local do conflito) percebe-se que o campo jurídico
adquire uma autonomia maior em relação aos movimentos dos agentes presentes no
campo específico do conflito; todavia, as pressões exercidas pelos demais campos –
como o político e o econômico – podem influenciar de forma mais específica a atuação
do campo jurídico, eis que os capitais específicos deste campo possuem graduações
de força sensivelmente maiores ao passo em que o processo sobe de escalão na
hierarquia dos tribunais.

Assim, a decisão inicial do magistrado, datada de 26/10/2004, se traduz na


atuação do campo jurídico com visível influência das pressões locais exercidas pelo
campo do conflito, expressando com firmeza o seu poder de dizer o direito, bem como
faz uma importante ponderação que desconstrói a teoria do fato consumado quando
elenca que as premissas de irreversibilidade do andamento das obras da usina e da
indispensabilidade do suprimento de energia elétrica que esta proporciona não
possuem maior força que o direito ao meio ambiente – bem de uso comum do povo –
que a Constituição Federal determina.

A entrada do campo jurídico – e da força do direto no campo do licenciamento


ambiental – restou por ativar uma batalha neste campo, travada a partir de agora pelos
agentes dominantes e dominados pela busca da legitimação de seus interesses.

Conforme mostram os relatos de Do Valle (2005, p. 17), a escolha dos lados


em que cada agente pretendeu legitimar seus interesses no campo jurídico formado
tomou posição bem definida, “[...] onde todos os órgãos públicos federais se aliaram
à empresa privada para lutar contra as ONGs”.

Neste sentido, o autor aponta que a AGU interpôs uma série de recursos em
face da decisão acima citada, visando a retomada da supressão da vegetação e a
liberação da Licença de Operação, estabelecendo um caos no processo judicial.

Com a distribuição dos recursos à diferentes câmaras do TRF4, ocorreram


duas decisões que cassaram a liminar concedida em favor dos movimentos sociais e
que permitiram a derrubada da vegetação.
108

Do Valle (2005, p. 18-19) escreve que a decisão tomada pelo Desembargador


se fundamenta – apesar do reconhecido equívoco “[...] quanto à descrição da
qualidade da vegetação a ser suprimida [...]” – em tão somente na afirmação ativa de
um agente do alto escalão da PGR, afirmando este “[...] que o MPF participou
ativamente da elaboração do acordo” e isto

[...] faz com que se dê ao acordo firmado a mais absoluta presunção


de defesa do meio ambiente. De resto, impõe-se observar que a
construção da hidrelétrica já implicou gastos públicos de monta e que
seu funcionamento se revela indispensável ao desenvolvimento da
ordem econômica. Assim, as medidas compensatórias firmadas no
acordo celebrado, atendem a um projeto de conciliação entre o
desenvolvimento e a proteção do meio ambiente.

Já a segunda decisão, tomada por outra câmara, limitou-se em acompanhar a


primeira para não recair em redundância. Curiosamente, aponta o autor que o
Desembargador emitente da primeira decisão optou – em data brevemente posterior
– rever seu posicionamento.

Desta forma, este considerou que a questão à ele apresentada – destarte se


tratar de uma obra com vultosos gastos, possuía um “[...] complexo conflito de
interesses no qual ressaltam acusações sérias de que no EIA a empresa Engevix
omitiu dados de extrema relevância [...]”, existindo para ele latentes incoerências
sobre a validade das licenças concedidas pelo IBAMA.

Diante do quadro apresentado, resolveu o magistrado “[...] tentar uma terceira


via na busca do equilíbrio e da sensatez [...]”, designando uma tentativa de conciliação
– entre as partes e restaurando os efeitos suspensivos da ordem judicial do
magistrado de primeiro grau.

O que relata Do Valle (2005, p. 19) acerca dos fatos ocorridos na audiência de
conciliação proporciona mais uma visão da atuação dos agentes, inseridos em seus
campos, para harmonizar coercitivamente o conflito. Segundo o autor, confrontaram-
se diretamente no ato “[...] representantes do alto escalão dos órgãos públicos
envolvidos, representantes da direção da BAESA e os diretores da RMA e FEEC,
todos com seus respectivos advogados [...]”, onde os interesses dos agentes
dominantes era cristalino – chancelar de forma definitiva as propostas compensadoras
contidas no Termo de Compromisso citado – argumentando estes em “[...] uníssono
de que o Termo de Compromisso resolvia tudo, de forma que não haveria mais
109

problemas [...]”. Ainda, o autor relata uma surpreendente justificativa emanada pelos
representantes do MPF, elencando estes que

[...] a culpa de tudo era da sociedade civil organizada, que não teria
aparecido no ‘momento oportuno’ para denunciar os graves erros que
ninguém negava. Segundo esse raciocínio, culpados não são as
empresas que elaboraram um EIA/Rima fraudulento, que iniciaram um
empreendimento sem averiguar o que havia na região que iriam
destruir, mas sim as ONGs que levaram ao Judiciário o caso.

Ademais, os argumentos exarados pelos demais agentes do Poder Público


presentes ao ato conciliatório continuaram no sentido da imediata necessidade de
início da supressão da vegetação e da liberação da operação da UHE Barra Grande,
firmando estes o indissociável conceito do interesse público de sua consecução.

Ao final, o autor escreve que a audiência restou inexitosa – eis que ambas
partes não cederam em suas propostas – e os efeitos suspensivos foram revogados,
retomando o processo de supressão da vegetação e de finalização do
empreendimento.

Assim, o IBAMA emitiu na data de 04 de julho de 2005 a Licença de Operação


447/2005 (Anexo 3), com validade de um ano. Consta no documento que sua validade
(e posterior renovação) se condiciona ao atendimento de seis determinações gerais e
setenta e seis determinações especificas.

A usina, por sua vez, teve sua operação iniciada na data de 01 de novembro
de 2005, quando fora alimentada com as águas do Rio Pelotas a primeira unidade
geradora, em sequência as outras duas unidades foram postas à geração em
01/02/2006 e 01/05/2006, respectivamente61. Quanto ao imbróglio judicial analisado,
somente em fevereiro de 2007 a Justiça Federal retoma o andamento da lide e profere
a primeira decisão (Anexo 4).

Vislumbra-se que o objeto inicial perseguido pelos agentes dominados não é


mais o mesmo, eis que o magistrado elenca que “[...] pretendem os autores a
reparação dos danos causados ao meio ambiente, em função da construção da Usina
Hidrelétrica de Barra Grande”, ou seja, o fato ilegal analisado encontra-se

61 Conforme informações disponíveis no Observatório Sócio-Ambiental de Barragens da UFRJ.


Disponível em: http://www.observabarragem.ippur.ufrj.br/barragens/23/barra-grande. Acesso em: 12
out. 2016.
110

devidamente consumado pelo enchimento do reservatório e o funcionamento do


empreendimento. (Grifou-se)

Entretanto, o juiz faz importante esclarecimento quanto ao conteúdo e aos


efeitos pretendidos pelo Termo de Compromisso já citado ao escrever que, destarte a
sua produção ser de autoria do “[...] competente e diligente Procurador da República
e pela equipe técnica de reconhecida competência [...]”, tal status não afasta o Poder
Judiciário de vigiar a sua efetivação e tampouco ilide o direito de ação das partes
litigantes.

Desta forma, o magistrado concede o pedido de judicialização do Termo de


Compromisso com o claro fito de fiscalizar o cumprimento dos compromissos firmados
pelos acordantes, recolocando o processo de licenciamento ambiental, novamente,
sob a égide da atuação do campo jurídico.

Em seguida, determina à BAESA e ao IBAMA que comprovem o cumprimento


das condicionantes presentes na LO 447/2005 e no próprio Termo avaliado (impondo
pesadas multas pecuniárias pelo eventual descumprimento).

Ainda, a decisão obriga a concessionária efetuar depósito judicial no importe


de R$ 21.000.000,00 (vinte e um milhões de reais), valor que fora estipulado no Termo
de Compromisso como o limite máximo a ser despendido por esta, para a aquisição
da equivalência da área de terras cerne do conflito.

Com o acatamento das ordens por parte do IBAMA e da BAESA, o magistrado


resolve por conhecer a realidade ocular dos fatos – que somente conhecia através
dos documentos constantes nos autos do processo – agendando uma
vistoria/inspeção judicial ao empreendimento, bem como aos assentamentos de
realocação de atingidos e demais instalações construídas para compensar os danos
de ordem ambiental e social causados pelo empreendimento.

Após a realização da vistoria (na data de 16 de outubro de 2007), onde o


magistrado fora acompanhado por representantes e autoridades das autoras e das
rés no processo em análise, emite o douto julgador o Termo Circunstanciado de
Inspeção Judicial (Anexo 5). Aos olhos (e ouvidos) do juiz, o empreendimento revela
duas situações bem distintas no que tange às ações compensatórias da
concessionária.
111

De um lado, observa-se que as medidas de ordem social e econômica tomadas


pelos empreendedores nos procedimentos de reassentamento e indenização das
populações atingidas logram êxito. Tal fato se traduz no relato de um atingido –
representante do MAB – que fora reassentado em RRC62 implantado pela
empreendedora63:

Foi realizada entrevista com o Sr. Roni Gragoso [...] tendo este
relatado que: o tamanho da terra que recebeu está sendo suficiente
para o cultivo de subsistência e que teve uma boa safra no último ano;
o título de propriedade deve ser fornecido em trinta dias; as condições
gerais das famílias reassentadas melhorou e, com a implantação dos
equipamentos sociais, a vida vai ficar ainda melhor. Questionado
acerca das dificuldades enfrentadas pelas famílias ou deficiências do
local relatou que apenas tomou conhecimento que um morador
reclamou da demarcação do seu imóvel.

O magistrado pondera – ao visitar as instalações da usina e do barramento –


que a obra se constitui de uma genial conquista de engenharia, mas que também
evidencia “[...] potencial de impacto ambiental em diversos aspectos e dimensões;
pelas inúmeras externalidades negativas; pela grande alteração gerada não só no
ambiente paisagístico, mas também no ecossistema como um todo que nunca mais
será o mesmo”. Todavia, o julgador se impressiona – chegando a grifar em sua
decisão – que é de salutar destaque “[...] a generosidade da natureza, a qual com
sua riqueza hídrica impar coloca à disposição um enorme potencial energético [...]
muito bem explorada economicamente pelos empreendedores [...]” permitindo uma
eficiente geração de energia elétrica para milhões de pessoas. (Grifo do autor)

Todavia, a inspeção fluvial revela ao juiz que o empreendedor não logra êxito
nas medidas de compensação ambiental do entorno do reservatório, justificando este
que o atual ambiente da APP não é propício para sua recomposição, elencando
motivos de ordem ambiental e social, tendo em vista que a ocupação do entorno pela
atividade pecuária prejudica os trabalhos de replantio das araucárias. Assim, o
magistrado alerta que “[...] é fundamental que seja efetivada uma revisão completa na

62 Reassentamento Rural Coletivo


63No mesmo sentido, relata o magistrado a aprovação – quanto às ações da BAESA – de outro atingido,
optante da indenização por Carta de Crédito: “[...] na visita foi entrevistado um beneficiário (Sr. Leonildo
Petry) com o valor da carta de crédito, o qual relatou que ficou muito satisfeito com a compensação
social e que as demais famílias que optaram por esta forma de indenização também estão contentes,
principalmente aquelas que souberam utilizar o dinheiro. No local estava presente o presidente da
Associação Comunidades Vila Petry (Sr. Paulo César Pinheiro) o qual também fez elogios ao apoio
geral recebido da BAESA [...]”.
112

metodologia utilizada [...] especialmente considerando a presença de espécies


invasoras e outros obstáculos e desafios encontrados e relatados no local”.

Por último, o magistrado vistoria e aprova as instalações e funcionamento do


núcleo de apoio ao salvamento da fauna e flora, um dos compromissos assumidos
pela empreendedora no Termo de Compromisso concernente à compensação da
floresta de araucárias afogada pelo reservatório.

Ao final, o documento aponta que fora apresentado aos interessados, por meio
de audiência conciliatória64, os relatórios de prestação de contas das medidas
implementadas pela BAESA e IBAMA constantes no Termo de Compromisso, abrindo
vistas às partes para impugnarem os fatos ali narrados.

Passados dois anos da inspeção e audiência realizadas, ocorre a publicação


da sentença terminativa do processo analisado (Anexo 6). Em primeiro lugar, resta
evidente para o julgador que os dados apresentados no EIA-RIMA do
empreendimento “[...] são absolutamente divergentes dos que foram coletados para o
estabelecimento do ‘programa de limpeza da bacia de acumulação’, pois mais de 70%
da área a ser inundada é ‘composta por florestas de alta significância ambiental’ [...]”,
sendo tal fato incontroverso para o IBAMA e BAESA (e os outros órgãos citados).

Tendo em vista a celebração do Termo de Compromisso, o magistrado conclui


que “[...] a ação, conforme havia sido proposta, efetivamente perdeu o seu objeto [...]”,
pois o acordo assinado coloca fim à irregularidade das licenças concedidas pelo
IBAMA, inviabilizando o mérito da ação pela completa ausência de litígio a julgar.

Assim, a harmonização do conflito, pelo acordo, torna-se juridicamente


oficializada – e legítima.

64Consta na Sentença (Anexo 6) que a conciliação restou parcialmente exitosa, onde fora determinada
à BAESA oito compromissos, sendo a sua maioria a reafirmação dos compromissos já assumidos no
passado, seja pelas condicionantes da LO 447/2005 (Anexo 3) e do Termo de Compromisso (Anexo
2).
113

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O universo em que esta pesquisa se debruça – os conflitos socioambientais


decorrentes da implantação de empreendimentos hidrelétricos – foi concebido com a
devassa da modernidade e de seus atores, que brindaram a humanidade com o
controle sobre a energia elétrica e a tornaram um bem indispensável na vida
contemporânea.

Cumpre destacar que a premissa inicial desta pesquisa em relação ao conflito


não é sua classificação plenamente negativa, eis que não há como separar o conflito
da existência das sociedades: o conflito é imprescindível para encontrar-se a solução.

O conflito do universo hidrelétrico “[...] eclode quando o sentido e a utilização


de um espaço ambiental por um determinado grupo ocorrem em detrimento dos
significados e usos que outros segmentos sociais possam fazer de seu território [...]”,
tornando-se geradores de injustiças ambientais, eis que ocasionam riscos e danos
irreparáveis nos agentes mais vulneráveis da sociedade (ZHOURI; LASCHEFSKI;
PEREIRA, 2005, p. 18).

O desenrolar deste conflito tem como objetivo principal a busca da


concretização dos diferentes interesses pelos agentes envolvidos, onde os
empreendedores e demais interessados no empreendimento perseguem a construção
das hidrelétricas da forma mais eficiente, ou seja, com a minimização dos custos e a
maximização da produtividade de seus investimentos.

As premissas de desenvolvimento e modernidade são o alicerce da investida


do setor elétrico. Os interessados pela consecução destes empreendimentos vendem
o seu peixe pela existência do grande potencial energético dos rios brasileiros, bem
como na imagem de viabilidade econômica e sustentabilidade ambiental destas obras,
já derrubadas há tempos pela academia.

Do outro lado, os agentes que se sentem atingidos pelo empreendimento


buscam o reconhecimento de seus direitos, sejam de ordem ambiental, econômica ou
social.

Quando as partes que se engajam em um conflito e expõem suas divergências


para chegar ao consenso, a tendência de obedecer aos termos do acordo cresce na
mesma proporção em que os termos da avença se revestem pela força da legalidade
114

e da legitimidade, possuindo assim poder de coerção sobre aqueles que não o


respeitam.

Todavia, as asas do neoliberalismo e dos capitais – e as premissas do


desenvolvimento – pairam sobre os conflitos relativos à empreendimentos
hidrelétricos, onde os principais agentes interessados – Estado e empreendedores –
tendem a ultrapassar as barreiras da legalidade para aumentar a eficiência de seus
investimentos.

Ultrapassar esta barreira implica em possíveis prejuízos potencialmente


irreversíveis para estes agentes. Assim, lançam mão de estratégias para conferir
legalidade aos seus atos e consequentemente tornando-os legítimos, destarte serem
ilegais ou moralmente desafiadores. Assim, cria-se novamente o consenso,
acarretando a adesão de seus desafetos.

É neste sentido que se apresenta a harmonização coercitiva do conflito


presente no processo de licenciamento ambiental da UHE Barra Grande. Resta claro
que as práticas realizadas pelos agentes dominantes, através do uso de seus capitais
no campo jurídico – com visível influência de ações oriundas dos campos político e
econômico – foram voltadas para concretizar seus interesses.

Ademais, registra-se que o fenômeno da harmonia coercitiva no caso


apresentado, além de se apresentar como um mecanismo alimentador do cenário da
injustiça ambiental, é um elemento que está inserido no arcabouço da adequação
ambiental, constituído de “[...] um verdadeiro paradigma, inserido na visão
desenvolvimentista que, ao apostar na ‘modernização ecológica’, motiva ações
políticas que atribuem ao mercado ‘a capacidade institucional de resolver a
degradação ambiental’ (ACSELRAD, 2004a, p. 23 apud ZHOURI; LASCHEFSKI;
PEREIRA, 2005, p. 17). Este paradigma, segundo as autoras, vai de encontro à todas
as premissas e ações que pugnam pela existência sustentável da humanidade.

A série de acontecimentos presentes no imbróglio do processo de


licenciamento ambiental mostra com eficácia o uso do jogo de forças presentes nos
campos da teoria de Bourdieu, que ao final legitimaram um processo permeado de
equívocos.

O Direito é um dos reguladores da vida em sociedade, sendo um dos


mecanismos capazes de solucionar os conflitos de diversas formas. Através de
115

métodos harmônicos ou coercitivos, o Direito – nas mãos de seus operadores – é o


detentor do monopólio da violência legítima e regulador das dinâmicas da sociedade,
sendo um importante elemento compositor das relações sociais.

Ao utilizar a teoria dos campos de Pierre Bourdieu para a análise do caso


apresentado, busca-se evidenciar para o universo do Direito que as ações dos
agentes presentes no conflito selecionado extrapolam o universo dualista do certo
versus errado desta ciência, pois a sociologia de Bourdieu evidencia que a estrutura
social e a subjetividade dos agentes nela inseridos formatam-se mutualmente, ou seja,
a sociedade molda o indivíduo que, por sua vez, acaba por estruturar a sociedade em
que está inserido, completando o ciclo de manutenção do status da sociedade.

Ao especificar e utilizar o conceito de campo jurídico no caso apresentado,


resta visível que as instituições e agentes que interpretam e aplicam o direito (MPF,
AGU e TRF4) tomaram para si o monopólio de dizer o direito da forma mais correta,
em pleno acordo com o empreendedor e o Estado (Na figura do IBAMA, MME e MMA),
onde o acordo entabulado transformou uma ilegalidade confessa e irrecuperável (o
afogamento da floresta de araucárias) em uma situação legalizada e legítima
(liberação da LO e autorização da supressão da vegetação). Para tanto, o campo
jurídico utilizou-se de seu habitus específico – o discurso jurídico – através da
famigerada teoria do fato consumado, que ao final fora um dos fatores preponderantes
para a legitimação das ilegalidades cometidas no processo de licenciamento
ambiental.

No que tange os movimentos do campo político no caso estudado, fica assente


que os profissionais deste campo (BAESA, MME e MMA) utilizaram seus capitais
específicos para, através do poder simbólico que possuem, imporem aos agentes
envolvidos os seus desejos com o intuito de direcionar a solução do conflito em
consonância com os seus interesses institucionais, eis que o acordo por eles assinado
elucida que a consecução do empreendimento era do interesse público, sendo
imprescindível para a expansão da geração de energia elétrica do país e a sua
paralisação não se coadunava com os interesses públicos ou privados.

O campo econômico é o que menos se apresenta de forma visível no case,


mas ao mesmo tempo é o campo que atua de forma mais difusa nos demais campos
e, ao mesmo tempo, a atuação dos agentes nos outros campos servem ao principal
propósito do campo econômico: a maximização dos lucros individuais.
116

A atuação dos agentes dominantes no campo econômico é o alicerce oculto da


figura do desenvolvimento. Os capitais específicos deste campo que os agentes
possuem influenciam de forma direta as estratégias por eles utilizadas em outros
campos.

Assim, esta pesquisa aponta que a legitimação da harmonização do conflito


ocorrido no processo de licenciamento ambiental da UHE Barra Grande é fruto do
funcionamento da própria sociedade e a sua dinâmica, onde os diversos agentes nela
inseridos buscam – pelos meios e métodos que possuem nos diversos campos em
que estão inseridos – eliminar as situações conflituosas e restabelecer a ordem, para
assim dar seguimento aos seus projetos e interesses individuais.

Para o Direito, implica em apontar que o seu funcionamento é permeado pelas


ações da sociedade em uma via dúplice, onde a força do direito – através do campo
jurídico – age diretamente sobre o comportamento social que, em resposta reflexiva,
molda o funcionamento do campo jurídico.
117

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ANEXOS

Anexo 1 – Petição inicial da ACP Nº 2004.72.00.0137819/SC (PROCHNOW,


2005).

Anexo 2 – Termo de Compromisso firmando entre MME, MMA, Ibama, MPF,


AGU e BAESA (PROCHNOW, 2005).

Anexo 3 – Licença de Operação n. 477/2005 IBAMA.

Anexo 4 – Decisão interlocutória nos autos da ACP Nº 2004.72.00.0137819/SC

Anexo 5 – Ata de inspeção judicial na ACP Nº 2004.72.00.0137819/SC.

Anexo 6 – Sentença nos autos da ACP Nº 2004.72.00.0137819/SC.


124

Anexo 1
125
126
127
128
129
130
131
132
133
134

Anexo 2
135
136
137
138
139
140

Anexo 3
141
142
143
144
145
146
147
148
149

Anexo 4
150
151
152
153
154

Anexo 5
155
156
157
158
159

Anexo 6
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161
162
163
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