ideias esvoaçam contra as grades da nossa cabeça há tanto tempo… Quando adiamos todos os dias, todas as horas, a sua libertação…
Todos os dias, os “demónios do tempo” têm ganho
as suas batalhas, fazendo com que não seja agora, já!
O “demónio da preguiça” é o mais forte, o que nos
faz adiar e trocar o que devemos fazer por coisas fúteis, inúteis e sem sentido. Todos os dias, ele e os seus “amigos” tentaram e conseguiram impedir-me de ter tempo para libertar as minhas ideias aprisionadas.
O “demónio do medo” é outro dos mais fortes: ele
faz-nos sentir a insegurança de partilhar com os outros o nosso espaço, os nossos pensamentos, as nossas palavras. Está sempre a sussurrar aos nossos ouvidos: “…vão rir-se de ti… ninguém vai dar importância… podes dar erros… não sabes escrever… não vais conseguir… há muito quem escreva melhor…”. Com estas palavras enganosas, enfraquece a nossa vontade e vence-nos sem esforço, só porque lhe damos ouvidos.
Outro desses energúmenos é a distração. Esta não é
um “demónio” isolado, é uma “Legião”. O computador, esse mesmo instrumento que uso para libertar estas palavras, tem sido a minha cela e a minha masmorra em demasiadas horas e dias da minha vida. Foi, demasiadas vezes, a porta de entrada dessa legião de distrações onde nos perdemos e deixamos de ser donos do nosso pensamento, tornando-nos escravos não sei bem de quê. Nesse caso, o demónio sou eu, porque não usei devidamente aquilo que não passa de um instrumento. A minha sede de distração é a causa de tanta perda de tempo…
O trabalho, não sendo algo de “mau”, também tem
sido desculpa para adiar o que hoje começo. Uma falsa desculpa, eu sei. Muitas vezes me meti em trabalhos – passo a expressão – porque queria manter a minha cabeça ocupada com outras coisas, para calar esta voz que oiço há tanto tempo a gritar: escreve!
De toda esta guerra, depois de tantas batalhas
perdidas, cheguei a uma conclusão: se tantos são os obstáculos, tantas são as forças que me tentam demover, então é importante e é bom o que quero dizer. Se há forças que não querem ver as minhas palavras em liberdade, é porque, na verdade, têm medo de as ouvir, ou de as ver a esvoaçar em livros e jamais presas na minha cabeça. Têm medo que outros, se revoltem e libertem também as suas palavras, como tantos o fizeram antes com coragem.
A justiça impõe-se. Hoje tomei uma decisão: não
adiar mais a libertação das palavras. Vou juntar-me ao grupo de homens e mulheres das “palavras livres”. Todos os dias, vou dedicar algum do meu tempo livre a ganhar esta luta. Tenho que libertar o próprio tempo das garras desses “demónios”, esses “ladrões do tempo”. E começarei justamente por aqui: o que nos rouba o tempo ou aquilo em que desperdiçamos o nosso tempo. I O Tempo
“O tempo é uma ilusão:
O passado é apenas memória O futuro é imaginação E o presente é este instante Que passa por nós Entre aquilo que já foi E aquilo que há de vir.”
Estas palavras não lhe saiam da cabeça. Desde
aquele dia em que se perdera no meio do Alvão… Aquela estranha tempestade… Aquela casa entre os rochedos… Aquele velho, misterioso pastor de sonhos e de nuvens… Ainda hoje não sabia se tinha sido um sonho…
Mas ele tinha aquele pedaço de papel, qual
pergaminho inexplicável e recordava-se, agora com uma certa nostalgia daquela estranha experiência…
Tudo estava agitado entre as penedias. O vento
corria como se não houvesse amanhã, enquanto fustigava giestas e torgas com bátegas de neve e invernia. As nuvens, empurradas nesta marcha, corriam em novelos de cinza escuro. O dia, já a esmorecer, anunciava uma noite de pesadelo.
Só um louco se atreveria a palmilhar aquele calvário
frio e escuro. A serra do Alvão conseguia ser assustadora na fúria dos elementos, mas não deixava de manifestar uma beleza agreste e selvagem, como se os rochedos fossem almas de primordiais guerreiros, erguidos contra as lanças do tempo. O murmúrio entoado pela vegetação desgrenhada ao vento, apesar de sinistro, tinha algo de transcendente no seu canto.
Logo depois de ter almoçado, longe daquele cenário
assustadoramente transcendental, recebera um pedido de assistência técnica no parque eólico. Como engenheiro eletrotécnico, era bem pago para cuidar daquela floresta de gigantes quixotescos a esbracejar dia e noite numa luta incessante para cortar o vento com as suas enormes espadas brancas.
Desta feita era a torre cinco parecia ter adormecido.
Nem sinal no sistema de telemetria e supervisão online. Entrou na sua pick-up e seguiu de Vila Real, pela estrada de Lamas d’Olo chegando à barragem do Alvão, quase no cimo da serra.
Naquela tarde de fins de outono apetecia-lhe ficar ali
a recordar os longos passeios e encontros, embalados pelo sereno borbulhar da rebentação nas rochas graníticas da margem. Mas logo se despediu desse lugar, com todas as recordações afundadas sob as águas do tempo. Voltou à direita, deixou o asfalto e embrenhou-se nas serranias, por uma estrada de terra batida a serpentear entre pinheiros, penedos e lama.
Algo de estranho se passava por cima da sua cabeça.
O que há uns minutos parecia uma tarde soalheira e convidativa, enchia-se de sombras escuras e ameaçadoras, em correria contra a montanha. Aquele lugar era um mundo à parte, com uma personalidade própria e um temperamento imprevisível. Nunca se sabia com o que se podia contar. Era melhor despachar-se, a coisa estava a ficar feia. À medida que subia, o céu carregava-se de nuvens em correria endiabrada. Quando chegou ao centro de comando controlo dos aerogeradores, as primeiras gotas de chuva caiam já no para-brisas. Estacionou à entrada e saiu apressado pelos empurrões do vento. Acedeu ao edifício pela entrada de serviço, da qual, por obrigação das suas funções, guardava uma cópia da chave.
Todo o complexo era automatizado e podia ser
gerido de casa com um simples portátil e acesso à rede. Contudo, em períodos regulares e situações pontuais era imperioso certificar-se pessoalmente que tudo estava a rodar em condições. Esta era uma dessas situações. Um aerogerador não podia simplesmente evaporar-se, devia ser alguma falha nos aparelhos de medição. Mas, tanto quanto os seus olhos podiam ver, estava tudo funcional, à exceção daquela torre. Onde era suposto aparecerem os valores medidos pelos instrumentos da torre, apenas uma única palavra: “desconhecido”.
Lá fora, um nevoeiro agreste tinha conquistado a
serra. Por mais desagradável que isso lhe parecesse, tinha de ir ao local e averiguar a situação.
Eram quatro horas da tarde e parecia noite. Nem
com a iluminação do veículo conseguia ver mais que uma nesga de terreno à sua frente. A via de acesso, apesar de recente, acusava os embates das intempéries extremas. Aqui e além, alguns buracos de charcos e pedregulhos arrastados faziam abanar a carrinha. Mesmo em terra plana, os abanões continuavam, desta feita causados pelo vento, cada vez mais agitado.
Perdera de vista o edifício do centro há já uns bons
dez minutos. Aliás, com aquele tempo bastou-lhe afastar-se algumas dezenas de metros perder qualquer referência de localização. Devia estar agora a uns 3 km mas parecia perdido. Tinha já passado quatro das torres, mas naquelas condições, não tinha mais de 10 metros de visibilidade. Para cúmulo da situação, parecia estar muito mais frio lá fora, a julgar pelo vapor que se colava aos vidros adensando ainda mais o nevoeiro.
Então o inesperado aconteceu… Uma súbita
escuridão vinda do poente envolveu tudo ao seu redor numa noite repentina e avassaladora. Os uivos de vento carregaram no ar o veículo que conduzia, durante o que pareceu uma eternidade. Talvez dez segundos de voo, se assim lhe podemos chamar, deixaram-no totalmente desorientado. A sua última lembrança consciente foi de um estrondo descomunal, o estilhaçar de vidros e a chapa a amolgar entre gemidos férreos, enquanto se sentia rolar como uma bola de bowling.
Quanto tempo passaria? Não podia calcular…
acordou com a água a bater-lhe na cara, em chicotadas geladas que invadiam o que restava do habitáculo por uma frincha poucos centímetros na porta amolgada do seu lado. Tremia com o frio e com a adrenalina do medo que ainda lhe corria nas veias. Tentou verificar o quanto estava inteiro. Podia mexer-se bem, não fosse o cinto de segurança que o constrangia. À medida que recuperava a consciência da sua situação percebia porque tinha alguma dificuldade em movimentar-se: estava tudo ao contrário, devia ter capotado algumas vezes naquele carrocel de vento. Destravou o cinto de segurança quase pelo tato, já que o lusco-fusco daquele anoitecer não lhe permitia usar os olhos, ainda atordoado pelos recentes acontecimentos. Embateu com a cabeça no tejadilho amolgado e pareceu-lhe ver um relâmpago, apenas na sua cabeça. Seria irónico não ter sofrido um arranhão com o seu acidentado voo e partir agora o pescoço ao tirar o cinto de segurança. Teve sorte, apenas arranhou a testa.
A porta não abria, deformada pelo choque da queda.
A custo, empurrou com os pés o vidro lateral até ele estilhaçar sob a força das suas pernas. Deslizou para fora dos destroços, sem se aperceber muito bem do local onde tinha caído. Meio tonto, conseguiu erguer-se e dar uns passos cambaleantes. Só então se apercebeu da sua sorte: o veículo terminou a sua atribulada aterragem a escassos centímetros da beira de um rochedo cuja altura não conseguia avaliar naquele exato momento porque apenas vislumbrava os primeiros metros do que podia muito bem ser um abismo.
E agora? Passar a noite naquele lugar e naquelas
condições seria um suicídio por hipotermia. Tinha de alcançar o centro de controlo e pedir ajuda via rádio, já que o seu telemóvel se tinha praticamente desintegrado na centrifugação da queda e a comunicação da carrinha estava tudo menos operacional.
Primeiro tentou localizar a via de acesso do parque
eólico. Apercebeu-se que o incidente o tinha feito descer uma boa centena de metros desde a espinha dorsal do monte onde circulara. Caminhava com extremo cuidado, entre aquilo que lhe pareciam garras cortantes. Os incêndios, que tinham lavrado naquele local há dois anos, tinham deixado as carcaças carbonizadas das torgas ainda enraizadas, com ramos partidos e duros que podiam perfurar qualquer parte do corpo com a facilidade de um sabre de guerra. Os tojos que, entretanto, cresceram das cinzas revelavam toda a aspereza dos seus espinhos. Mesmo com cuidado, não evitou alguns arranhões e cortes superficiais enquanto se esforçava por perceber o terreno que pisava. Sabia apenas que estava a subir no meio da noite que caía.
Após alguns minutos na sua caminhada ascendente
encontrou um caminho. Não era a via de acesso que desejava. A adaptação dos seus olhos à fraca luminosidade que restava do dia permitiu-lhe ver o que parecia um daqueles caminhos primitivos, com sulcos das rodas de incontáveis carros de bois. Decidiu seguir por ali, havia de chegar a algum lugar. Afinal era para isso que os caminhos serviam.
Do pouco que lhe era dado ver, não conseguia
reconhecer aquele caminho que parecia saído do nada. Por entre vultos de névoa e penedias, já mal conseguia ver. Caminhou durante o que lhe pareceram horas naquela via dolorosa. Na verdade, só um louco se atreveria a palmilhar aquele calvário frio e escuro. Esse frio que crescia dentro e fora de si.
Pareceu-lhe sentir flocos de neve a bater na cara.
Não os podia ver, mas sentia-os como agulhas geladas. Buscava uma luz, um sinal de civilização algures na distância, mas nem sinal das luzes de sinalização aérea das torres eólicas. Parecia que toda a luz artificial se havia extinguido com o sopro do vento.
Por fim, uma luz trémula pareceu materializar-se no
seu horizonte visual. Parecia estar a umas centenas de metros. À medida que se aproximava, os contornos de uma janela tomavam forma. Diria tratar-se de uma janela iluminada pelo fogo de uma lareira e o que pareciam ser algumas velas. Um pequeno casebre encaixado entre duas rochas mais altas, com tradicional telhado de colmo, tão típico das aldeias serranas. Não se lembrava de alguma vez ter conhecido aquele sítio, mas também nunca havia seguido aquele caminho. Tudo parecia de outro tempo. De qualquer das formas sentia o calor a crescer dentro dele à medida que se aproximava, como se a fogueira o aquecesse à distância. A mente humana é na verdade muito poderosa. Até as suas forças pareciam multiplicar-se na ânsia de chegar, bater à porta e pedir ajuda. Se o deixassem, pernoitaria ali até ao amanhecer. Sim, porque alguém estaria de certeza a aquecer-se à frente daquela fogueira…
A poucos metros da casa começou a sentir que algo
lhe perturbava a visão, como se a janela iluminada pela chama da fogueira se transformasse num caleidoscópio de múltiplos reflexos em simetrias estranhas. Uma tremura nas pernas quase o fez ajoelhar-se antes de chegar à porta de madeira velha e meio carcomida pelo tempo. Conseguiu extrair de dentro de si, como do mais profundo dos poços, uma única palavra: “Ajudem-me!”. Enquanto se agarrava ao batente da porta desfaleceu e caiu prostrado… Sentia-se agora mais confortável enquanto tentava despertar. O calor aconchegante fê-lo pensar que iria acordar em casa e descobrir que o pesadelo tinha terminado. Mas ao abrir os olhos percebeu que não era a sua casa. Estava deitado num escano de madeira, embrulhado numa grossa manta de lã, em frente a uma lareira quase primitiva com dois pequenos potes de ferro. Ergueu-se em sobressalto, ansioso por perceber como fora ali parar, e o que significava exatamente “ali”.
– O senhor está melhor?
A voz surpreendeu-o como se viesse de um dos
rochedos que ladeavam a casa e lhe serviam de parede. O homem aparentava ser já idoso, com barba grisalha de palmo e meio e cabelo branco pelos ombros, com se de lã de ovelha se tratasse. Não era calvo, de rosto longo e preenchido de rugas profundas gravadas nas faces e na testa como sulcos rochosos.
Alex parecia ter perdido a voz de tão surpreendido.
Mas afinal não esperava ele encontrar alguém que o ajudasse? Porque estava então surpreendido?
– Tem de comer. Está muito fraco…
O velho apontava para uma mesa de madeira tão
rugosa quanto o seu próprio rosto. Sobre a mesa um prato de barro preto cheio de sopa bem cheirosa, que devia ter saído daquele pote ainda a borbulhar fumarolas junto das chamas da lareira. A colher, também de loiça, apesar de limpa, parecia tirada de uma escavação arqueológica diretamente para mesa. Sentou-se e provou o melhor dos manjares que um rei poderia desejar. A sopa, simples e saborosa, parecia-lhe divinal. Em colheradas ruidosas sorveu o conteúdo do prato num abrir e fechar de olhos.
Havia algo de profundamente paternal e bondoso
naquele homem, quase como se sempre o tivesse conhecido e cuidado dele. Alex rompeu as correntes que lhe pareciam prender as palavras dentro da boca para dizer “Obrigado! Estava muito Bom”. Um agradecimento que lhe saía da mesma profundidade de onde viera o pedido de ajuda que fizera do lado de fora da porta.
– Ora essa! Enquanto está por comer chega sempre
para mais um. – Disse, com um sorriso bonacheiro, o velho ainda sem nome. Sim, devia ter um nome, mas ainda não o conhecia.
– Quem é o senhor? Para eu saber a quem estou a
agradecer.
A pergunta de Alex ficou no ar durante uns segundos,
como o sopro de vapor que saía do pote da sopa.
– Nomes são palavras que nos fazem lembrar
pessoas. Não adianta dizer-lhe um nome se não conhecer a pessoa que o usa.
Mas que raio de resposta tão desconcertante… E, ao
mesmo tempo, sábia. Estava perante alguém bastante dado a filosofias. Só esperava que não fosse um louco perdido na montanha. Bem, afinal, tinha-o ajudado, tinha-lhe oferecido do melhor da sua humilde habitação. Há algo de louco nessa atitude? Se calhar não estava habituado a receber muitas visitas e não queria falar de si. Resolveu mudar de estratégia. – Eu chamo-me Alexandre, moro na cidade e trabalho no parque eólico. Tive um acidente, não sei bem como… Quando ia inspecionar um dos geradores. Agora a minha carrinha está de rodas para o ar no meio da serra, sem comunicações e eu, quase por milagre, estou aqui não sei bem onde, mas bem…
Em traços muito gerais, este era o quadro da
situação mais breve que lhe podia pintar. Achou que seria mais sensato dar-se a conhecer e abrir a porta da sua pessoa, já que o velhote lhe tinha aberto primeiro a porta da sua casa.
– Alexandre? Esse é um nome que muitos
escolheram para os seus filhos. Muitos foram grandes homens…
Estava cada vez mais intrigado. Aquele homem da
serra parecia muito culto para quem habitava longe de tudo.
– Vive aqui há muito tempo? Nunca me lembro ter
avistado esta casa.
Alex tentou indagar, com muito receio de levar com
mais uma resposta imprevisível. Só então reparou que o velho não tinha relógio algum, nem no pulso, nem em sítio qualquer da sua habitação rochosa. Também não conseguiu descortinar um calendário. O homem parecia viver alheado do tempo.
A resposta, tal como esperava, nunca apressada,
seguiu o mesmo padrão das anteriores, num misto de desconcerto e sabedoria milenar. – Tempo? A vida de uma pessoa não se mede em tempo. Isso é para os que querem controlar a vida. Mas não podemos controlá-la, sabe? Ela puxa-nos para a existência, empurra-nos e leva-nos sempre para a frente, mesmo quando só vemos noite escura, mesmo quando parece que não há saída…
– Perdoe a minha curiosidade, mas então, o que faz
aqui entre estes montes?
Alex começava a gostar da sensação de
imprevisibilidade, surpresa e descoberta deste diálogo. O velho era como o tempo da montanha, sempre inesperado.
– Vivo! Simplesmente. Mas creio que se refere àquilo
a que me dedico. Sou pastor.
A primeira parte da resposta fê-lo pensar que,
realmente, andamos tão ocupados a fazer tantas coisas que nos esquecemos simplesmente de viver. A segunda parte da resposta também o deixou curioso. Alex conhecia bem o cheiro dos rebanhos. Quando criança conhecera os pastores da aldeia dos seus pais, Cravelas. Correra muitas vezes pela encosta nascente do Alvão, ao ritmo dos chocalhos de cabritos e ovelhas. O cheiro, por vezes não muito agradável, estava alegremente associado a correrias e saltos entre giestas e urzes floridas, a jogar às escondidas e às batalhas dos castelos imaginários da sua infância. Recordou-se com felicidade desses momentos, mas, o cheiro dos rebanhos não o sentiu em lado nenhum, nem no velho nem na casa, nem mesmo antes de entrar naquele lugar. – Sei o que está a pensar… – Desta vez nem tinha esperado pela pergunta – Onde estão as minhas ovelhas? Onde está o meu rebanho?
Sim, era realmente isso. Todo o pastor tem um
rebanho que recolhe pela noitinha no redil, junto da sua casa, mas nem um balido se ouvia. Só faltava o homem dizer que eram ovelhas imaginárias. Pelo rumo que a conversa estava a tomar não se admiraria nada com uma resposta dessas.
– Tenho dois rebanhos, sabia? – A resposta era tanto
interrogativa como enigmática. Após uma pausa de alguns segundos continuou – Um está lá fora, no céu… O outro está aqui, sempre comigo.
Agora a conversa estava mesmo a tomar contornos
surreais, para não dizer irracionais. Não cabia em si de curiosidade por saber o que ia sair dali. Das duas uma, ou o velho era louco, ou era poeta e estava a usar alguma espécie de sentido figurado. Por uma questão de respeito por quem lhe havia salvado a vida, decidiu inclinar-se mais para a segunda hipótese. De alguma forma, as palavras que escutava não pareciam totalmente descabidas, dependendo do que viesse a seguir.
– O primeiro rebanho, o do céu, é feito de nuvens. O
segundo é feito de sonhos…
Definitivamente, só podia ser poeta. A falar daquela
maneira não podia levar à letra todas as palavras que escutava da boca do homem. Porém, o queixo caído de Alex denunciou o seu profundo espanto e incapacidade de questionar uma resposta que voava para os reinos da fantasia. Sonhos e fantasias não se questionam, são simplesmente o que são. Podem ter uma lógica transparente e clara como a água de uma nascente ou ser tão irreais que desafiam o pensador mais arrojado. São simplesmente livres, simplesmente sonhos. Esta situação encaixava-se perfeitamente na segunda categoria.
– Surpreendido? Não sou um pastor comum…
escolhi os meus rebanhos quando era ainda criança. Olhava para o alto da serra e via, tantas vezes, pequenas nuvens brancas a percorrer as encostas. Queria um rebanho assim. Um rebanho que os lobos não pudessem comer. Um rebanho sempre renovado, com ovelhas negras e brancas, mansas e bravias. Um rebanho que tanto percorria languidamente o verde dos vales e dos ribeiros como saltava alegre sobre os montes mais altos. Um rebanho que dá a lã mais branca, quando chegam os dias de inverno e dá de beber aos campos nos dias sedentos de verão. Um rebanho que pode cobrir o céu, percorrer o mundo inteiro, mas que acaba sempre por voltar.
Os olhos do velho pareciam cintilar como estrelas,
enquanto falava das suas ovelhas celestes. Transpirava um misto de felicidade e de loucura nas suas palavras. Mas, o entusiasmo era o de uma criança sonhadora. Alex recordou- se dos seus sonhos e aventuras de criança. Onde estavam? Tinha-os esquecido durante tanto tempo que julgava terem morrido. Aquele homem, ali, na sua frente, aparentemente velho, parecia uma criança a sonhar e a saltar rochedos com a agilidade de um cabrito. Podia sentir a felicidade e o entusiasmo da vida a irradiar dele como o calor que a fogueira irradiava das chamas. E ele, Alex, sentia-se mais como as cinzas, inerte e absorvido em tanta coisa sem sentido… será que ainda existia dentro dele uma réstia de brasa incandescente, perdida nos escolhos da sua vida. Sentia falta de redescobrir a vida com os olhos de uma criança. Seria irónico se o fizesse pelas palavras e pelo entusiasmo de alguém de devia ter, pelo menos, mais trinta anos que ele.
– E o segundo rebanho, o dos sonhos?
– Esse é ainda maior, mas cabe todo dentro de mim.
Por vezes, quando aparece alguém, deixo fugir algumas ovelhas em palavras que parecem loucas. É engraçado vê-las a saltar. Mesmo agora, estou a ver as que saíram pela minha boca e andam à volta da sua cabeça, à espera que as deixe entrar. Algumas já saltam lá dentro. Acho que estão a partir a loiça toda, a rebentar com as correntes e as cercas que prendem e limitam a imaginação. Sim, porque o seu pasto, de esperança e vontade, cresce nos prados da imaginação. Se a imaginação se tornar um deserto, de que se alimentará o rebanho dos sonhos? Se os sonhos morrerem dentro de nós como poderemos saber que estamos vivos. Não seremos muito diferentes daquelas rochas que estão aqui ao nosso lado. Na verdade, sem sonhos, teríamos menos vida que elas.
Não conseguiu assimilar verdadeiramente o que
ouvia. Ele, como muitos dos que se dizem adultos, tinha deixado morrer o seu rebanho de sonhos. Uma após outra, todas as suas ovelhas tinham morrido no matadouro da rotina, famintas de imaginação, sedentas esperança no futuro. Na atualidade não era mais que um androide programado que obedecia sem alternativa e cumpria instruções sem questionar. Estava totalmente embrenhado num estilo de vida que, no fundo, não lhe permitia viver. Onde estava a sua liberdade? Tinha desaparecido quando esqueceu os seus sonhos… O mais assustador desta situação era o entorpecimento da sua consciência. Parecia anestesiado, apático, amorfo… Sem vida... Por algum motivo, a mulher se tinha separado dele e levado o filho de ambos, com apenas cinco anos. Já lá iam dois anos, desde que tinham chegado à conclusão de não existir futuro para eles enquanto família… Ela partiu para a Suíça com o pequeno Paulo, inconsolável pela separação do pai. Agora, Alex descobria que as lágrimas que choramos são, na verdade, o sangue dos sonhos quando morrem. A maior tristeza é sentir um sonho morrer. Muito maior ainda, quando esse sonho é partilhado e dá origem uma nova vida, que se alimentava desse sonho.
– Porque chora?
Alex pareceu acordar sobressaltado. As lágrimas
corriam-lhe pela cara como orvalho nas folhas das árvores. Há mais de um ano que não chorava. Sempre o educaram para esconder as lágrimas como sinais de fraqueza. Mas os que afastam as lágrimas são os verdadeiros cobardes. Os que choram são muito mais corajosos. Agora que chorava, sentia- se mais forte do que antes. O que escutara fazia todo o sentido do mundo. O que descobrira fazia mais sentido ainda. Sentiu que poderia ir muito mais longe. Ainda podia sonhar… – Choro porque descobri que matei e deixei matar os meus sonhos… Choro porque não posso viver sem eles.
– Essas lágrimas podem fazer a esperança renascer.
Como a chuva das minhas nuvens reverdece os pastos das montanhas, essas pequenas gotas transportam sementes dos sonhos que ao cair as geraram. As ovelhas das minhas palavras partiram a cerca que prendia a sua imaginação. Quando se viu livre, a imaginação fugiu para o lago da memória e bebeu das recordações de um passado em que os sonhos ainda existiam. O resto é consigo. Eu escolhi este caminho e encontrei o meu rebanho de nuvens. Aqui em cima estou mais perto delas e sou feliz. Muitos dirão que sou louco. Mas louco é não viver e não descobrir nada de novo todos os dias.
Se estivesse algures nos himalaias diria ter-se
encontrado com o Dalai Lama. Parecia uma torrente de sabedoria que o inundava até transbordar.
– Agora acho que devia tomar este chá quentinho e
dormir mais um pouco para de manhã voltar ao seu caminho. Mas, antes de dormir, quero dizer-lhe só mais uma coisa. – Aproximando-se de Alex, o velho disse-lhe, em jeito de segredo – Cuidado com os lobos que devoram os sonhos. Eles já o atacaram uma vez. As pessoas sem sonhos são mais fáceis de controlar. Os poderosos do mundo querem criar uma multidão de pessoas sem sonhos, sem esperança, sem fé. Porque só assim têm poder sobre o mundo. Mas o importante da vida não é o poder. A vida de um homem mede-se pela extensão dos sonhos que realizou e pelos sonhos que semeou na vida dos outros. Eu estou a fazer a minha parte. É preciso que faça a sua…
Alex bebericava o chá, do qual não distinguia o suave
sabor, enquanto digeria aquele aviso que agora fazia pleno sentido. Era ao mesmo tempo um aviso e um empurrão. Precisava daquele momento para reencontrar o caminho da sua vida.
Sentou-se de novo no escano de madeira e
contemplou as chamas da fogueira.
– Vá, agora durma… Um novo dia vai
começar…
Sentiu um peso crescente nas pálpebras que
acabaram por fechar-se depois de algumas piscadelas dormentes. Tinha a cabeça a fervilhar. Parecia-lhe ver as ovelhas de nuvem a saltar no alto da serra. Não que precisasse de contar carneirinhos para adormecer porque já dormia a sono solto.
Acordou com o sol a bater-lhe na cara, mesmo de
frente. Olhou para cima e viu apenas o céu azul. Onde estava a casa e o velho? Restava apenas ele. Mas sentia-se confortável. Ainda estava enrolado na manta de lã. Entre duas pedras, fumegava um carvão da fogueira que recordava. Mas a casa não estava lá. Ficou desconcertado com a mistura de sonho e realidade. Levantou-se e percebeu que tinha dormido encostado a uma rocha côncava que o resguardara contra a intempérie. Mas, se tudo o resto tinha desaparecido e poderia muito bem ter sido fruto da sua imaginação, a manta de lã continuava à volta dele, a protegê- lo do frio da manhã.
Viu ao longe, para sul, uma das torres eólicas e
reconheceu o caminho a seguir. Começava a dar os primeiros passos para se afastar dali quando avistou, debaixo de uma pedra não maior que a sua mão, uma ponta de papel acastanhado tempo. Levantou a pedra e leu as palavras nele escritas a carvão:
“Guarde essa manta consigo. Foi feita com a lã das
minhas ovelhas. É um presente. Os sonhos são tão verdadeiros como tudo na vida.”