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Alma e

Sangue
Uma discussão teológica

Charton Baggio Scheneider


Reginaldo Eugênio Ramos Teodoro
Alma e Sangue
“Poucas dualidades têm movido tanto o ser humano quanto a vida e a morte.” Jung assim
descreve em sua “Psicologia e religião”1 o que entende ser um dos pontos focais da existência
e retoma um tema que, anos antes, Freud havia tratado como um dos “traumas essenciais” do
humano, o nascimento. Freud e Melanie Klein realizaram toda uma teorização sobre o papel
desse “trauma” na psiquê humana. Alguns críticos questionam, porém, o termo “trauma”, visto
que, se é algo comum a todos, não é propriamente um trauma, mas uma condição, uma situação
inevitável. Ademais dessas discussões, o tema de vida e morte (imperativo de vida e morte)
ganhou bastante relevância nas últimas décadas com o desenvolvimento da bioética,
particularmente após a Shoah (Holocausto), os julgamentos de Nuremberg e o desenvolvimento
das questões relativas aos direitos humanos. Porém, alguns problemas práticos ainda são
relevantes, como a definição do que é propriamente “vida” (o que traz implicações relevantes
na questão do aborto, por exemplo) e do que é “morte” (implicando em questões relativas ao
suporte avançado de vida, eutanásia e outras questões afins). Cabe ressaltar a relevância desse
tema desde o ponto de vista evolutivo, exponenciadas por uma vida curta com 3 décadas de
expectativa de vida como era então. Implícita a essas questões apontadas acima está o
“problema da alma”. Chama-se assim a discussão filosófica e teológica clássica relativa à
essência da vida e sua permanência ou não após a morte. Mais ainda: há um conceito na teologia
judaico que trata de a alma ser imanente ao sangue, de ser sangue. Que significa isto? Até que
ponto essa questão e o problema da alma imbricam-se? Há pontos em que a ciência possa
oferecer alguma luz a respeito? Ou a teologia pode oferecer algum insight sobre o que a
sociedade moderna entende?

Este estudo busca abordar o que significa uma possível identidade de sangue e alma. Alguns
pontos históricos são relevantes, bem como uma contextualização que permitirá conduzir o
tema, desde um ponto de vista amplo.

Transcendência, complexos de idealização, vida e morte

Com certeza, na História, um dos elementos formadores das sociedades, tribos e demais
agremiações foi a relevância do tema de vida e morte, assim como da transcendência e da
existência de algo além daquilo que pode ser apreendido pelos sentidos. Sem pretendermos
esgotar o tema, à frente apontamos alguns dados relevantes.

No Código de Hamurabi, do século XVIII aEC., além de questões morais relativas ao bem e o mal,
punições ante crimes e outras regulações, está presente um retrato da sociedade babilônica de
então. Essas 281 leis e regulamentos, condensadas em um monólito, foram encontradas em
1901, no atual Irã, pelo expedicionário francês Jacques de Morgan. No Código, ademais desses
regulamentos, está implícita uma conjunção social bastante organizada e certos valores morais
relevantes, dentre os quais a regra de Talião (“olho por olho, dente por dente”)2, o reflexo na
sociedade de uma organização moral transcendente e outros aspectos relativos ao povo

1
Jung, Carl Gustav, Psychologie et religion, Paris, 1958.
2
Do latim “lex talionis”. Composto de “lex” (lei) e “talionis”, de “talio”, significando “como tal ou idêntico”.
babilônico3. Registros anteriores, porém, mostram que o tema da transcendência remonta há
muitos séculos antes. Sacrifícios de sangue já eram presentes nessa civilização.

Por incrível que possa parecer, o tema da sexualidade e da transcendência são mais próximos
do que o senso comum poderia supor. De fato, várias estátuas pré-históricas, com proporções
grotescas, porém em miniaturas, foram encontradas em diversos recantos históricos. Uma
delas, a chamada “Vênus de Willendorf” remonta a 28000 a 25000 anos aEC. Observe uma foto
da estátua a seguir.

Figura 1 - Fotografia do diorito do Código de Hamurabi, presente no Museu do Louvre.

As características desproporcionais seriam um complexo de


idealização, ou seja, para uma sociedade rupestre, caçadora e
coletora, uma figura com mamas, vulva e abdome
proeminentes representariam bem-estar e fertilidade.
Complexos de idealização são desvios propositais das
proporções com o intuito de promover um determinado senso
estético ou certo comportamento específico. Parece estranho,
porém, a mente humana está programada para reagir a
determinados estímulos neurocognitivos de forma particular.
Assim, por exemplo, a estátua “David” de Michelangelo, não
apresenta proporções realistas, sendo impossível
fisiologicamente, seja pelo tamanho do abdome acima da
cintura (o que implicaria na ausência de algumas das costelas
móveis e a última imóvel), além da contração muscular dorso-
frontal simultânea e de diversos grupamentos musculares de

Figura 2 - Vênus de Willendorf.

3
PRADO, A. O., Código de Hamurabi, Lei das XII Tábuas, Manual dos inquisidores, Lei do. Talião. São Paulo:
Conceito Editorial, 2004.
antagonistas e agonistas4 ao mesmo tempo, algo impossível ao ser humano, porém, de alguma
forma, é mais apelativa que uma estátua que seguisse exatamente as proporções humanas.

É interessante como a simples visualização de estátuas proporcionais não promove grande


aumento de atividade da área cognitiva relacionada ao bem-estar, ao passo que a visualização
de estátuas, como a do David e da Vênus de Willendorf, promovem um incremento significativo
de atividade cortical, especialmente no córtex cingulado anterior, e liberação de endorfina nos
chamados núcleos da base5. A própria arte exerce esse efeito em alguma medida, porém isso é
maximizado quando são distorcidas levemente as proporções6. De fato, muitos teóricos
sugerem que a Vênus de Willendorf, com toda sua corpulência, além da referência à fertilidade,
dado extremamente importante para aquela sociedade, ela poderia ser um símbolo, carregando
consigo um senso transcendente com relação ao objeto. Nesse caso, o símbolo seria uma
espécie de amuleto, que não somente seria referente ao bem-estar, fertilidade e sexualidade,
mas possivelmente fizessem parte de rituais de fertilidade, inclusive pela conformação das
pedras encontradas no sítio arqueológico em que fora achada. Esse indicativo de rituais
simbólicos e de imagens relativas a complexos de idealização pode ser encontrada em outros
sítios arqueológicos, como nas representações de caça pintadas nas cavernas paleolíticas de
Lascaux, Chauvet-Pont-d’Arc e Altamira, dentre outras. No caso das pinturas de caça,
possivelmente se tratavam de uma forma de dominar a natureza, sendo o animal pintado um
símbolo da caça bem-sucedida e da própria subsistência.

Esse senso intrínseco pode ser chamado de complexos de idealização porque traduzem uma
forma idealizada de ver a natureza ou aspectos desta. Esse senso está firmado sobre um
reconhecimento de padrões que compõem a estrutura da crença. De fato, a crença é um dos
aspectos fundamentais da psiquê humana. A crença e o reconhecimento de padrões é o que
criam a superstição, mas, evolutivamente, permitem um reconhecimento ambiental necessário
para sobreviver em situações adversas. A própria religião, fé e transcendência são fundadas
sobre esse senso cognitivo. Assim, de forma sucinta, os complexos de idealização são a base
para a transcendência e o fenômeno religioso, além de serem a base para a arte e diversas outras
manifestações humanas relevantes7.

A transcendência, por sua vez, é uma das respostas ao imperativo da vida e morte, referido
acima. A importância do tema da vida e da morte é tamanha que o ser humano naturalmente
desenvolveu várias respostas a ela, seja com religiões, ideologias e mesmo conjuntos
estruturados não-religiosos. Esta afirmação pode parecer estranha, ainda mais falando-se de um
texto teológico, mas essa é a base biológica, estrutural, para a religião, seja ela revelada ou não.
Cabe, ademais, uma estruturação científica junto com a discussão propriamente teológica,

4
Agonistas são músculos que promovem um certo movimento, como os bíceps do membro superior.
Antagonistas são aqueles que se opõem a um dado movimento, como o tríceps, com relação ao bíceps.
5
Endorfina, entre diversas funções, está relacionada a sensações de prazer, plenitude e satisfação, não
apenas sexual, mas a tudo que seja prazeroso de alguma forma.
6
Para uma discussão completa sobre o tema das distorções proporcionais e de complexos de idealização,
veja FENICI, M. The biocultural emergence of mindreading: integrating cognitive archaeology and human
development. J. Cult. Cogn. Sci., Springer Nature. Singapore: 2017. Além disso, o Naturhistorisches
Museum de Viena apresenta outras peças similares de outros locais.
7
Vide LIPTON, B. H., A Biologia da Crença. Butterfly Editora. São Paulo: 2007. Para uma discussão
detalhada sobre a crença e o funcionamento cognitivo, erros cognitivos, superstição, complexos de
idealização e outros temas muito ricos, vide SHERMER, M. Cérebro e Crença. JSN. São Paulo: 2012.
inclusive porque não há oposição necessária ou absoluta entre essas duas instâncias tão
importantes para o ser humano8.

Figura 3 - Pintura na Caverna de Lascaux. Possivelmente um complexo de idealização relacionado à presença do eu.

De fato, a atribuição de um significado a um significante, de significado a um símbolo, é uma das


maiores evoluções da humanidade. É a base da linguagem, da arte e das demais representações
que eternizam nossa presença no tempo (veja a Figura 3). Essa atribuição e significados é uma
forma basal e primária de transcendência. A história da religião, Religionswissenschaft, é uma
ciência que busca explorar, sem viés de julgamento, como o fenômeno religioso é desenvolvido
em diferentes sociedades. Um dos pontos mais interessantes da Religionwissenchaft é mostrar,
de forma tão evidente, a universalidade do pensamento transcendente. A transcendência e a
simbolização são marcas do ser humano. Nesse contexto, caro leitor, tenha isso em mente como
base para a exploração propriamente teológica a seguir, que buscará destrinchar do que se trata
essa identificação alma-sangue.

Muito do que há no contexto bíblico, particularmente no mundo ocidental, acabou por ser
entendido e modificado em face de alguns conceitos tardios, particularmente cristãos.

Um dos muitos exemplos é a palavra “fé”. Muito embora a palavra “emunah” seja bastante
utilizada no contexto judaico para esse conceito, no Tanakh, em hebraico, encontram-se duas
palavras, ambas traduzidas como “fé”. “Aman” é uma delas, dando ênfase à firmeza, ao estado
de algo certo e indubitável. Deste termo deriva “Amen”9. O outro termo é “batah” que significa
confiança. Quando usadas como verbo, a tradução é inconstante, sendo traduzida ora como
confiar, ora como crer e ora como esperar. Compare Tehilim (Salmos) 4:5, 25:2 e 55:23.
“Emunah”, por sua vez, tem mais a ver com perseverança, constância. Este termo é, em geral,
preferido e promove uma diferenciação do entendimento do que é fé para a cristandade. A fé,
no contexto judaico, não quer dizer uma fé cega, mas a perseverança no conhecer e a confiança,

8
Muito embora seja algo controverso.
9
Vide Devarim (Deuteronômio), 27:15-26.
com firmeza. Para ter uma compreensão mais completa do que trata o Tanakh, é necessária
uma exegese que passe por um estudo linguístico e analítico do hebraico.

Figura 4 - Outra pintura na Caverna de Lascaux, relacionada à caça e sobrevivência.

A maior parte das informações tanákhicas são de ordem simbólica10. Assim, enquanto a
revelação divina é prática, a cada experiência vivida, o povo judaico dá nomes ao Eterno
conforme o aspecto ou o significado da realidade que a transcende. Vide Bereshit (Gênesis) 12:1-
9, 17:1-8 e 18:28. Desta forma, é possível entender o nível simbólico envolvido na conceituação
e enunciação de termos e atributos identificados com a Divindade, a saber: (El) Elion, Adonai, El
Shaddai, Elohim, etc. A transcendência envolvida em cada termo é apropriadamente
evidenciada em um nível mais prático e inteligível pelos seres humanos.

Observe que é nesse contexto que há uma enunciação que, a princípio, pode soar estranha ao
ouvido do homem moderno. Veja Vaicra (Levítico) 17:10-14; Bereshit 9:4; Vaicra 3:17, 7:26 e
19:26 e Álef Shemuel (I Samuel) 14:33. Estes são alguns exemplos do núcleo do tema em
discussão neste texto, ou seja, que “a vida de uma criatura está no sangue (...) porquanto é o
sangue que fará expiação pela alma” (Vaicra 17:10-14).

A palavra “nefesh”, nesse contexto traduzida por “alma”, traz uma dificuldade intrínseca porque
não há um termo que resuma todos os sentidos constante no termo em hebraico. Na filosofia
ocidental, particularmente na tradição grega e cristã, há uma dualidade intrínseca, representada
na anteposição entre corpo e alma, como coisas distintas, sendo que alma representaria a

10
Símbolo entendido como acima apontado, ou seja, com múltiplos níveis de significado, não sendo,
necessária e exclusivamente, literal
essência do ser, númeno (noumenon11, não perceptível diretamente pelos sentidos), ao passo
que corpo seria os fenômenos (phainomenon12), perceptíveis pelos sentidos. Na cultura
hebraica, tal oposição ou anteposição não existe. No Tanakh, demonstra-se uma relação
intrínseca e estreita entre corpo e alma, entre sangue e alma. Outro ponto interessante é a
sinédoque (um tipo de metonímia, no caso, ao tomar uma coisa pela parte ou atributo) presente
em “derramar sangue” e “perder a vida”, como em Bereshit 9:6. Compare com Shemot (Êxodo)
21:12 e seguintes. Também há a sinédoque de culpa pela morte pela culpa pelo sangue, como
em Vaicra 17:4, Bereshit 42:22, Bamidbar 35:33 e Shemot 22:2-3.

Em outras partes, também é tecida relação com outras partes internas do corpo, como o
coração, e a alma. Veja Mishle Shlomo (Provérbios) 2:10; Devarim 6:5 e 4:29; e Dibre Hayamim
(II Crônicas) 15:12. O sequenciamento de partes e o paralelismo, na linguagem tanákhica, é uma
forma de ressaltar o conteúdo, um tipo de figura de linguagem típica. O paralelismo em si não
anula o sentido simbólico de cada parte, mas soma níveis de conteúdo paralelos e mutuamente
somados. Assim, coração, alma, sangue, forças são somados mutuamente, não apenas
representando instâncias do eu, mas como um todo completamente comprometido com o
sentido das passagens referidas.

Além disso, é interessante notar que, sendo os rins órgãos pouco acessíveis, mais profundos,
estes órgãos sejam tomados como sinédoque para o mais íntimo do ser, como em Tehilim 16:7
e 73:21, Job 16:13. Em outras citações, o coração exerce a mesma função, como em Yirmeyahu
(Jeremias) 11:20, 17:10 e 20:12. Em Tehilim 16:7, é interessante que o conselho, tendo atuado
tão profundamente, seja identificado com rins. Em Yirmeyahu 12:2, “estás perto da boca, mas
longe dos (seus) rins”, observe a identificação de essência do ser ou do mais profundo do ser
com rins. Assim como com sangue, portanto, outras partes internas do corpo são usadas como
sinédoque do ser.

E mais: não apenas como sinédoque simbólica, propriamente, mas, como faz parte das mitzvot,
é algo prático, cotidiano, especialmente nas mitzvot relativas à alimentação. Assim, transpõem-
se os conceitos para identificar com o sentido propriamente de identificação do ser/alma e
sangue. Ademais, na questão sacrificial, o sangue desempenhava um importante papel
expiatório (veja Vaicra 17:11). Impor as mãos sobre o animal sacrificial (holocausto) expiava as
contravenções, como em uma transmissão que era comum desde Moshe (veja Bamidbar 27).
Assim, também, sangue aspergido no altar e gordura queimada (Helev ou pedher, como em
Vaicra 1:8-12 e 8:20, gordura interna, com tecido conjuntivo que recobre os órgãos internos)
traziam vida ao homem. Além disso, já era conhecida pelos hebreus a importância fundamental
do sangue para a vida13, sendo tais elementos textuais formas de ressaltar a importância desse
elemento e sua identificação com o eu.

Essas sinédoques são uma forma muito original e estranha ao pensamento ocidental. Na
filosofia ocidental, a alma era objeto de estudo de uma das partes da filosofia denominada de
psicologia14, ou estudo da alma, que tratava dessa parte do ser em contraposição ao corpo ou
fenômenos do ser compostos em uma dualidade que permanece até hoje no pensamento
ocidental. Um dos textos fundamentais relativos a isso é o chamado Mito da Caverna ou Estória

11
“Vοούμενoν” ou “Ding an Sich” (Coisa em si).
12
“Φαινόμενον”.
13
Vide STRONG, A. H. Teologia Sistemática. Ed. Hagnos, São Paulo: 2003.
14
Muito embora tenha o mesmo nome da psicologia moderna, esta não é propriamente algo com o
mesmo enfoque, metodologia ou finalidade. A psicologia filosófica é um antepassado distante da
psicologia moderna e é mais relacionada com a metafísica.
da Caverna, presente no livro “A República” de Platão. Nessa passagem, Platão discute a respeito
de que o percebido pelos sentidos não corresponde à realidade, sendo essas percepções
sensórias (fenômenos) como sombras na parede de uma caverna. Imagina-se, então, um grupo
de homens presos de forma a que somente pudessem observar o fundo da caverna, local que
veriam a vida toda. Com o tempo, esses homens passariam a acreditar que aquelas sombras
correspondiam à realidade, sendo a realidade aquilo que viam. Um dos homens consegue soltar-
se e, ao sair da caverna e recuperar-se da temporária cegueira que a claridade lhe causou, pôde
ele ver que as sombras eram apenas resultado da luz que batia nos animais e pessoas, sendo
projetadas no fundo da caverna. Quando o homem volta, impelido pelo que vira a contar aos
demais a “verdade”, matam-no, porque seria loucura supor que algo pudesse ser real que não
aquilo que viam no fundo da caverna. Ora, esse problema da essência e dos fenômenos
(sombras) é chamado de problema da alma. A solução judaica é bastante original e única, porque
mesmo no cristianismo, altamente influenciado pela filosofia grega, a dualidade de pensamento
sobrepõe-se à visão de unicidade absoluta. De fato, é interessante observar que mesmo a
unicidade absoluta divina (veja Devarim 6:4-9) foi substituída por uma visão trinitária, similar à
visão egípcia. Interessante, ainda, que seitas com visão unitária, dentro do cristianismo, foram,
gradualmente, sendo expurgadas e desacreditadas, como o modalismo, arianismo e outros, nos
tempos pré-nicenos, antes do Concílio de Niceia (século IV EC.).

Voltando ao tema do sangue, particularmente do ponto de vista científico moderno, esse tecido
corpóreo é composto por plasma (com sais, açúcares e outros elementos importantes) e
elementos figurados ou células diversas, como leucócitos (células de defesa), hemácias (glóbulos
vermelhos, que realizam o transporte de gases, como o oxigênio e gás carbônico) e plaquetas
(responsáveis pela coagulação e estancamento de hemorragias ou sangramentos em geral).
Além disso, o sangue é fundamental para a manutenção da pressão arterial, pressão esta
responsável pela capacidade de perfusão do sistema nervoso central, isto é, a capacidade de
fornecer suprimento de energia e oxigênio ao cérebro e demais elementos do sistema nervoso.
O sangue ainda contém anticorpos e complemento, responsáveis pela defesa contra infecções.
O sangue é um elemento fundamental à vida, sendo fato conhecido que perdas importantes
desse tecido eram incompatíveis com a vida.

Hipócrates (460-370 aEC), pai da medicina ocidental, falava de um estado de equilíbrio15 de


humores, líquidos internos que não apenas exerciam funções básicas ao ser humano, mas que
determinavam certas características do comportamento. A teoria humorista permaneceu até o
século XVII. Identificavam-se quatro humores: sangue, fleuma, bile amarela e bile negra.
Procediam, respectivamente, do coração, sistema respiratório, fígado e baço. As doenças seriam
decorrentes de desequilíbrios desses humores, assim como as características psicológicas mais
populares e emotivas (sanguíneas), serenas ou indiferentes (fleumáticas), coléricas e
melancólicas. Desde o século XVII, a teoria humoral caiu em desuso, especialmente após a
descoberta de como funciona o sistema cardiovascular, que a medula óssea produz o sangue e
que a personalidade nada tem a ver com baço, por exemplo. Tanto que, mesmo sem baço, as
pessoas ainda desenvolvem depressão ou, mesmo com um sistema respiratório normal, as
pessoas ainda podem ficar nervosas ou coléricas. Porém, o interessante é observar como havia
um insight a respeito da importância do sangue e demais humores na constituição do ser. Na
medicina tradicional chinesa, além dos campos energéticos e algumas teorias bastantes distintas
das praticadas no ocidente, há um respeito primordial ao sangue, elemento que teria
importância fundamental para a constituição do que se é, representando mais do que apenas

15
Homeostase.
um outro tecido corpóreo. Não é difícil tecer uma correlação entre a identidade do eu e esses
elementos citados – algo muito próximo ao que propõem o Tanakh.

É importante destacar que “Sangue” é “Dam16”, da mesma raiz que promove a edição da palavra
“Adam17”, além de também estar relacionada a “Adamá18” (terra, solo, pó). A humanidade
(Adam) e a terra (Adamá) estão ligadas na constituição do Bereshit. Assim é possível ver,
portanto, mais um nível de significado por trás da simbologia presente em Bereshit 9:4, “a alma
de qualquer coisa vivente está no sangue”. Além disso, em Bereshit 1:26, após o plural
majestático (Elohim), usa-se o termo “demuth19” (semelhança) que deriva de “dam”. A
descendência de uma família, relacionada ao “dam” que seria comum aos pais e filhos, é da
mesma ordem que a constituição do homem, compreendido como da mesma família do Eterno,
participante de Sua herança, o que é muito bonito. Cabe destacar que sacrifícios de sangue eram
presentes na época do I Templo (século X aEC.) e no templo reconstruído após a volta da
Babilônia (século VI aEC.).

Alma, por sua vez, tradicionalmente na cultura judaica, pode ser entendida em cinco esferas ou
níveis intrínsecos, a saber: Nefesh, Ruach, Neshama, Chaya e Yechida.

Nefesh corresponde ao nível mais basal da relação do corpo físico com o mundo físico, o mundo
de Asyia20. Essa percepção não é passiva apenas. Nefesh é a força vital que promove essa
percepção e está intimamente ligada à relação de corpo e alma. Quando o Eterno cria Adam,
sopra Nefesh nele (Bereshit 2:7). Cabalisticamente, este nível corresponde a “kabalat ol malchut
shamayim”, conhecimento ou observância ao chamado do Eterno. Ruach é um plano superior,
correspondente ao mundo de Yetzira. As manifestações principais de Ruach são as emoções,
como as sefirot de chesed a yesod. Este nível está relacionado ao amor “de coração” nutrido
pelo Eterno. Neshama está ligado ao entendimento primário ou intelectual21, nutrido nas
manifestações de energia divina de Beriya, sendo a sefira bina sua correspondente22. Chaya é
um nível acima, sendo que, enquanto Neshama usa de compreensão intelectual para a
percepção divina, no nível de Chaya, a comunhão com o Eterno transcende os mundos. Chaya
tem a ver com o amor divino23 e conhecimento da verdade intrínseca das coisas. Yechida
corresponde ao nível da alma chamado de “Adam Kadmon” que reflete a luz infinita original (Or
Ein Sof), sendo em sua essência um elemento natural e fundamentalmente ligado ao Eterno.
Este é o nível mais profundo da alma.

Alma e sangue são, portanto, mais ligados que o senso comum pode supor. Os insights daí
decorrentes são excelentes para uma reflexão e meditação. Inclusive a respeito de tanto
significado pode estar implícito na solicitação de Job de que seu sangue não fosse esquecido24.

16
‫דַּ ם‬
17
‫אָ דָ ם‬
18
‫אֲדָ מָ ה‬
19
Em geral, demuth pode vir ou não acompanhado de tselem (imagem, representação).
20
Mundo da ação.
21
Job 32:8.
22
Reuta D’liba. Vide Zohar 2:93.
23
Vide Devarim 6:5.
24
Job 16:18.
Conclusão

Assim, espera-se que esteja claro não somente o aspecto de literalidade entendido na
correlação de sangue e alma, dentro do entendimento judaico, mas, também, que, mesmo com
um entendimento mais racionalista, um complexo de idealização relativo ao símbolo de sangue
e alma contém rico material para o entendimento do ponto de vista judaico. Espera-se que o
entendimento de símbolo possa dar suporte a uma análise mais acurada e mais fluente para o
homem moderno no que tange a esse tema. Demonstrou-se de forma evidente conceitos como
o de transcendência que fundamentam toda a questão e, assim, espera-se que a identificação
entre alma e sangue possa não ser tão estranha aos olhos do homem moderno.

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