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Num dos primeiros contatos com discussões feministas, o mais comum é a troca de relatos
e experiências que tivemos ao longo da nossa vida, geralmente eventos traumáticos,
recorrente e comuns na vida de várias mulheres por mais plurais que sejamos e foi assim
que eu consegui a maioria dos relatos, alguns partindo de uma conversa despretensiosa
sobre situações que ambas já passaram e outras partindo de uma abordagem mais técnica,
explicitando desde o início que se tratava de uma entrevista e que esse material teria uma
finalidade para um trabalho científico.
Numa dessas rodas de conversa eu conheci Sofka, e ao ter conhecimento sobre o meu
projeto de pesquisa aceitou contribuir com dois relatos que julgou importantes para
registro. No primeiro relato, ela possuía apenas 16 anos de idade e o namorado, que vamos
chamar de Júnior, apenas 17. O namoro durou de maio de 2011 até setembro de 2012, por
ter sido representante do Piauí no PJB (Parlamento Jovem do Brasil) em 2011, teve
oportunidades de entrar na Universidade Federal do Piauí mais cedo, eram grandes
conquistas que não eram valorizadas. O relacionamento começou de uma forma amigável
e sem conflitos, ele também era bolsista e recebia R$300 como estagiário, mas metade
desse dinheiro era dado a sua mãe para colaborar com os gastos domésticos, não sobrando
quase nada para uso pessoal. Muitos dos seus gastos ficavam desfalcados, pedindo assim,
ajuda financeira à Sofka, que a princípio ajudava de bom grado, com o decorrer do tempo,
essa “ajuda” tomou um teor de obrigatoriedade, gastos com transporte, roupas e
equipamentos de treino para MMA tornaram-se muito custosos ao ponto de não sobrar
nada para o uso pessoal da própria Sofka. Quando reclamava, Junior dizia que esse era o
seu papel, já que ele o amava. Ao ingressar na UFPI, no curso de Ciências Sociais, o
Junior ficou muito animado e alegou que a partir daquele momento as coisas iriam
melhorar para ambos, a princípio não ficou muito claro o porquê. Logo no primeiro
período, Sofka conseguiu bolsa PIBID de R$400 + proventos que conseguia dando aulas
e corrigindo trabalhos acadêmicos, criou uma conta bancária e dois cartões de crédito
com bandeiras diferentes, mas com limite único de R$350, um dos cartões foi solicitado
que ficasse com o Junior, para casos de emergência e Sofka cedeu. Na primeira fatura, a
conta já estava estourada, ao reclamar do gasto indevido em seu cartão, o Junior contra
argumenta ofendendo-a por conta do seu sobrepeso, indagando que ela deveria se sentir
agradecida por ele ainda estar com ela naquelas condições, sofrendo bullying tanto do
namorado, quanto dos amigos dele, sempre frisando que não passava de uma brincadeira
e que não havia motivos para irritação. Sempre que Sofka reclamava das piadas e dos
comportamentos do Junior e de seus amigos, o namorado saia em defesa dos amigos e
desqualificava as reclamações da Sofka, alegando que era exagero aquela reação ou
simplesmente para parar com a “encheção de saco”, Sofka sempre se calava no final.
1.2 – Da
No início da relação, ele já alertava que era um homem muito ocupado, pois tinha uma
grande carga de trabalho de desenho e com o filho, que passava uma ou outra tarde com
ele. Sofka interpretou isso como uma mensagem indireta de que não era pra se verem com
tanta frequência e se possível não em locais públicos, de fato, Sofka relata que eles mal
iam ao sushi da esquina juntos, seu companheiro aparentava ter uma preocupação
exagerada com a discrição. No Piauí, há um evento chamado “Salve Rainha” no qual
Sofka fazia parte, se trata de uma tecnologia social de conservação do patrimônio público
em Teresina, eram promovidos comemorações temáticas com arte e música para
conscientizar a população sobre a importância da história e dos artistas piauienses. Neste
evento, uma moça chamada Maria inicia uma discussão e procura por Sofka no evento,
Júnior tenta separar as duas e interromper qualquer forma de contato ou diálogo, Sofka
descobre que a Maria na verdade era um ex-namorada de Junior e permaneceram pelo
menos três meses juntos, no tempo que mantinham relacionamento, Maria pedia dinheiro
ao Junior para custear um tratamento de saúde e ele concordou, custeou seu tratamento
por alguns meses. No fim, Maria não estava doente e eles terminaram. Já no
relacionamento entre Sofka e Junior, Maria chegou a procura-lo para pedir o retorno do
relacionamento, pediu para que ele se afastasse de Sofka pois ainda estava muito
apaixonada. Essa foi somente a primeira dor de cabeça que Sofka teria que enfrentar, a
segunda era a ex-mulher do seu namorado, que vivia na casa dele, dormia, postava fotos
nas redes sociais – assim como várias outras ex-namoradas-, enquanto ela mesma, na
posição de namorada era proibida de fazê-lo, além de ser absurdamente ciumenta e ter
proibido que Sofka se aproximasse do filho do casal, determinando que a criança ficasse
apenas pela manhã com o pai, duas vezes na semana, o que deixou Anderson
extremamente irritado, culpando Sofka pelo ocorrido, diversas vezes a ex-mulher de
Anderson acusou Sofka de ter batido em seu filho, sem nenhuma prova, mas Sofka nunca
respondeu à altura e acabava concordando, para não provocar mais brigas, era mais fácil
do que bater de frente com ele e ser colocada mais uma vez como a louca da história.
Sempre que Sofka reclamava das proibições e restrições que Anderson imputava no
relacionamento era acusada de ser inexperiente e infantil, a pouca experiência de vida não
lhe permitia que reconhecesse ver a relação de amizade que ele mantinha com as ex-
namoradas. A Maria estava sempre presente em várias situação da vida do Anderson,
junto com as outras ex,e havia um esforço enorme da parte de Anderson para mantê-las
próximas e unidas enquanto convites da própria namorada eram frequentemente
rejeitados, principalmente se fossem públicos.
No sexo, Sofka era liberal, apesar de ter alguns fetiches que não aceitava, como se vestir
de forma infantilizada, chamar o companheiro de “papai” durante o sexo ou simular
resistência diante de um suposto estupro, qualquer crítica ou reclamação a respeito disso
era contra argumentado com a imaturidade e falta de experiência, colocada por Anderson
como o principal problema do relacionamento deles. Toda reação negativa dele diante um
pedido de Sofka era responsabilidade dela. Dizia que “fica difícil dizer sim pra você se
quando quero algo novo e saudável para nós, você vem com essas baboseiras
feministas”. O desrespeito com os desejos e preferências sexuais de Sofka não pararam
aí, era frequente ser acordada sendo penetrada por Anderson enquanto dormia, sem
consentimento, com ele forçando sexo anal e ejaculando em cima dela. Sempre que
reclamava, novamente surgia a argumentação da falta de experiência, da “pouca idade” e
que um dia ela ia gostar de tudo isso.
O fim do relacionamento foi inevitável, a situação já estava ficando insuportável. Ele
atribuiu o rompimento à inexperiência. Passado uma semana, reataram, com a condição
de que Sofka extinguisse qualquer “baboseira feminista” e aceitasse de bom grado a
presença das ex-namoradas de Anderson na sua vida. Sofka aceitou, mas romperam
novamente e não reataram mais. A partir daí, ocorreram uma série de situações em que
Anderson pedia perdão, pedia pra conversar e quando tinha seus pedidos negados tornava
a atacar Sofka como imatura. Após o término, Anderson também se empenhou em um
comportamento de difamação, atribuindo unilateralmente ao fracasso da relação à
inexperiência de Sofka, que também ganhou a fama de desequilibrada.
Após o término com Anderson, Sofka cogitou suicídio e só não o fez por que sua mãe de
santo lhe acolheu e confortou, neste momento Sofka se aproxima da umbanda, onde segue
fiel à religião até hoje.
1.3 – Motoristas de Uber e assédio sexual
Em uma segunda ocasião, dessa vez à luz do dia e em seu local de trabalho, onde oferece
pizza aos transeuntes, Maeve é abordada por um sujeito que aparenta estar alcoolizado e
já chega invadindo o seu espaço pessoal, botando a mão em sua cintura, o desconforto é
imediato e ela repreende, “com licença, você está sendo invasivo” e tira a mão do sujeito
em torno da sua cintura. Foi o suficiente para a situação ficar mais tensa, um segundo
homem que estava em companhia do sujeito se exalta, sai em defesa do amigo e acusa
Maeve de estar louca e apavorada sem nenhum motivo aparente, que não precisava agir
daquela forma pois ela não seria estuprada e se fosse pra acreditar “nesses contos da
internet” ela ia ficar doida. Apesar da situação de tensão ter tomado proporções a ponto
de fazer terceiros pararem suas atividades para acompanhar a trama, ninguém fez
absolutamente nada. Maeve recolheu a sua caixa de isopor onde armazenava as pizzas e
foi embora, se sentindo completamente impotente e constrangida.
Paula resolveu desligar-se da empresa por que ficava muito nervosa só de pensar que João
ia chegar a qualquer momento, perdeu a oportunidade de contratação à longo prazo, mas
julga ter sido melhor assim do que permanecer em um ambiente adoecedor.
Iara, estudante secundarista, na época com 16 anos, ocorrido em 2008, relata sua
experiência ao embarcar sozinha em uma viagem de táxi de volta para sua casa, após
passar a tarde com as amigas no São Luís Shopping. Iara pegou o táxi no próprio táxi e
se acomoda no banco do passageiro, ao lado do motorista que inicia a corrida sem ligar o
taxímetro. O motorista inicial uma conversa cordial com Iara que relata não ter percebido
malícia no seu comportamento, ao chegar em casa, sem saber quanto tinha dado a corrida,
o taxista pergunta-lhe “quanto ela estava disposta a pagar”, sem entender o teor da
pergunta Iara permanece em silêncio, interrompida somente pela chegada de sua avó ao
carro com a carteira na mão se prontificando a pagar a corrida. Iara despede-se sem falar
nada ao motorista, entra em casa e em particular relata o que tinha acontecido para a sua
mãe, que fica indignada com a ingenuidade da filha e a “exposição desnecessária ao
perigo”.
Ela ficou indignada mas comigo e não com o motorista, eu pensei até que fosse me bater!
Ela falava coisas como ‘não se senta no banco da frente sozinha, tu não assiste televisão?
Todo dia tem notícia de mulher sendo estuprada por aí, nunca mais faça isso!’ Mas ela
mesma nunca me orientou em qual lugar é o ideal ou mais seguro pra voltar sozinha, é
uma coisa que ela já esperava que eu soubesse, que eu tivesse adivinhado.
Não houve nenhuma denúncia formal sobre assédio, apenas repreensão contra o
comportamento ingênuo de Iara em relação à sua própria segurança. Na época, a mãe de
Iara não permitiu que a filha voltasse sozinha pra casa, por carona ou táxi, até que a filha
se comprometesse e “jurasse de pés juntos” que iria prestar mais atenção a esses detalhes.
Aconselhando e alertando as amigas da filha, todas na mesma faixa etária.
Laissa se desvencilha rapidamente e vai o mais rápido que pode ao banheiro. Convém
pontuar, que Laíssa é diagnosticada com TOC – Transtorno Obsessivo Compulsivo, ou
seja, há uma aversão muito grande em relação ao toque de qualquer outra pessoa que não
possua intimidade ou que não lhe peça permissão para fazer contato físico. Algumas horas
depois do ocorrido, a face de Laíssa ainda formigava no local onde o professor tinha
tocado, Laissa estava tão nervosa e descontrolada com o ocorrido que quase urinou em si
mesma, sem conseguir tirar da cabeça o que tinha lhe ocorrido. Laissa decidiu não assistir
mais a aula deste professor há meses, mesmo tendo como consequência a defasagem pela
falta do conteúdo ministrado. O professor, além de tudo, é casado.
Manuela tinha 19 anos e tinha acabo de ter um bebê, a relação com o seu cônjuge era
conflituosa. Daniel era alcóolatra e num dos seus acessos de raiva, lhe agrediu
fisicamente. Manuela morava na casa da sogra, que tentou lhe ajudar, mas não fazia muita
coisa por se tratar do próprio filho, havia uma espécie de defesa e minimização das suas
agressões, mas não impedia Manuela de tomar a iniciativa de acionar os próprios
familiares (Seu pai, sua prima e um amigo). Eles não podiam fazer muita coisa e possuíam
uma influência limitada na situação do casal, a situação costumava ficar conflituosamente
estável.
Alguns meses depois Manuela se separa e sai da casa da sogra. Atualmente Manuela
trabalha como recepcionista de uma Clínica de Odontologia, não chegou a efetuar uma
denúncia forma contra as agressões sofridas, mas cortou vínculos com Daniel ao
conseguir independência financeira.
Daniel procurou Manuela inúmeras vezes parar pedir para reatar o relacionamento,
dizendo-se arrependido, inclusive no local de trabalho da Manuela, o que desencadeou
mais conflito entre os dois e funcionários da clínica, já que Daniel costumava aparecer
alcoolizada e mostrava-se sempre agressivo nessas ocasiões. Manuela relata que por
muitas vezes se sentiu confusa a respeito do que fazer, seu sentimento por Daniel ainda
era muito forte, mas o medo de que ele pudesse mata-la ou usar a sua filho como vingança
também era.
“Eu tenho muito medo do que pode acontecer se eu voltar e sei que ninguém vai me
ajudar, como não fizeram antes. Eu queria retomar os meus estudos, mas agora eu não
posso porque tenho filha pra criar, ele sempre joga isso na minha cara, a minha mãe
também me cobra. Eu sinto saudades da época que a gente namorava, ele era muito
romântico mas sempre que bebia ficava agressivo, já me tratou mal na frente dos amigos
e eu relevava por causa da bebida, os amigos dele me falavam a mesma coisa, que isso
era “coisa de bêbado”, e minha única saída era aceitar, eu me sentia muito infeliz por
isso.