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Vimos que Aristóteles elabora, nos livros VII e VIII, além de alguns momentos do livro XII, um
conceito de substância segundo o qual ser substância, no sentido mais próprio do termo, significa
ser um composto de matéria e forma. Somente o composto é separado, tem existência separada, não
é “em nada”, sendo o subjacente de suas determinações. E, se podemos falar “em separado” de
forma e matéria, obtendo inclusive suas descrições próprias, trata-se apenas de separar no lógos o
que é inseparável de fato. Matéria e forma só são haplôs quando concorrem para o ser do composto,
sendo separáveis quando da análise desse composto, que existe anteriormente a tal abstração e dela
independe. E esses dois elementos permanecerão em colaboração para que o composto venha a ser
um individual separado com determinações, que possa, ao mesmo tempo, conter características
captáveis pelo lógos de modo a se tornarem, nesse mesmo lógos, objetos de tratamento
universalizado. Também é essa colaboração intrínseca ao composto que permite explicar a geração,
movimento e corrupção das substâncias sensíveis, pois forma e matéria interagem, e essa interação
se exibe no movimento mesmo que define a phýsis, a natureza. Os objetos naturais possuem em si
próprios seu princípio de mudança, diferente do que acontece na técnica. O capítulo 4 do livro V
trata dos diversos sentidos de “natureza”, e todos eles estão intimamente associados às noções de
substância, matéria e forma, finalizando-se: “Do que se disse fica claro que a natureza, em seu
sentido originário e fundamental, é a substância das coisas que possuem o princípio de movimento
em si mesmas e por sua essência; com efeito, a matéria só é dita natureza porque é capaz de receber
esse princípio, e a geração e o crescimento só porque são movimentos que derivam desse mesmo
princípio. E esse princípio do movimento dos seres naturais, que de algum modo é imanente a eles,
ou é em potência (dýnamis) ou é em ato (entelékheia)” (1015a13-19).
As noções de ato e potência, como se vê, são de grande importância para compreender os processos
naturais. Ao contrário dos objetos da tékhne, que não possuem em si o princípio de movimento –
uma pilha de madeira, areia e pedras não se transforma em casa, se um construtor não a modificar -,
as coisas que são “por natureza” se transformam espontaneamente, “naturalmente”, podemos dizer,
naquilo que nos é dado conhecer em seu “o que é”, naquilo que o lógos extrai das formas que nelas
se encontram. Já sabíamos que essa “naturalidade” da transformação das substâncias naturais, de
seu movimento, kínesis, se explicava pelas noções de ato e potência: “E as coisas constituídas pela
natureza comportam-se de modo semelhante às produzidas pela arte. A semente opera de modo
semelhante ao artífice: de fato, ela possui a forma (tò eidos) em potência (dýnamis)” (1034a33-35).
Vejamos então as principais características desse par de conceitos para o que aqui nos interessa,
tentando constatar a importância de que gozam na doutrina aristotélica da substância, analisando
principalmente, mas não exclusivamente, o livro IX.
Ler 1045b27-1046a4. O livro se abre inserindo a análise de ser em potência e em ato no estudo do
conceito de substância, evocando o sentido primeiro de ser que esta representa. Observe-se que,
após fazer referência a outros sentidos de ser, o sentido de ser em potência e ato é comentado como
ser “segundo a atividade(érgon)”. Trata-se então de pensar, agora, o ser em seu sentido pleno,
quando em “atividade”. Érgon é um termo tomado ao vocabulário comum, e significa também
“ação”, “função”, “trabalho”. A análise dos sentidos de ser em potência e ato nos coloca diante do
ser substancial em “ação” – em movimento.
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Define-se a seguir potência em seu “sentido primeiro”, “potência passiva” e “potência ativa”. Esta
última concepção será associada á noção de matéria – ler 1046a19-28. A matéria, já sabíamos, é
“em potência” um ser determinado. Podemos agora inferir que a matéria possui “potência de sofrer
a ação”, e talvez tenhamos aí duas formas distintas de dizer o mesmo. Parte das mudanças por que
passam as substâncias sensíveis serão determinações que sofre o subjacente como matéria, que
então possui a potência de sofrê-las – ler também XII, 1069b2-20.
Sobre o conceito de ato, ler 1047a30-b. Esta passagem faz uma importante, mas nem sempre clara,
associação entre enérgeia e entelékheia. Ambos os termos se costumam traduzir por “ato”. E há
uma associação com movimento, kínesis. As duas expressões são muito próximas e caberia um
estudo mais aprofundado de suas relações, mas o que aqui importa é que se trata de compreender o
movimento por meio de ambas.
Talvez se compreenda melhor com a passagem de 1048a25-b9. “Ato” é o ser acabado, e está para a
potência como a obra pronta para a obra inacabada. Observe-se o final da passagem, que estabelece
uma simetria ou analogia entre o movimento que atualiza uma potência e uma substância em
relação à sua matéria. O movimento na matéria é uma atualização de potências, que a substância
enquanto forma realiza no composto.
Aristóteles entende que certas dificuldades se resolvem se operamos com os pares forma/matéria e
ato/potência. Ler 1045a20-25. Em face do problema “por que o homem é um e não muitos”, surgido
porque a doutrina platônica da participação o transforma em “animal, mais bípede”, tornando-o não
um, mas múltiplo, Aristóteles diagnostica que o problema se resolve se falamos de forma e matéria,
ato e potência. Estamos no final do livro VIII, tratando, portanto, do tema da substância e da
possibilidade de sua unidade. As linhas finais do livro, ainda no contexto da passagem acima,
arrematam com a importância do par ato/potência, como que apontando para a necessidade da
análise do livro seguinte e, mais uma vez, mostrando como esse par comparece para resolver o
problema da unidade e da multiplicidade – digamos também: do movimento como algo que não
compromete a unidade. Ler 1045b20-22.