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[verso da guarda]
FERNANDO OLIVEIRA:
UM HUMANISTA GENIAL
(pelos 500 anos do seu nascimento)
[verso da folha de rosto]
António Tavares (Coord.)

FERNANDO OLIVEIRA: UM
HUMANISTA GENIAL
(pelos 500 anos do seu nascimento)

UA EDITORA | AVEIRO
2018
Título: Fernando Oliveira: um humanista genial (pelos 500
anos do seu nascimento)
Autor: António Tavares

Direitos reservados por Ua Editora, 2018.

UA Editora
Campus Universitário, Av. da Universidade
3810-193 Aveiro

Projeto Gráfico Equipe UA Editora


Revisão Tainá Amado

2.ª Edição, Junho de 2018


ISBN: 978-972-789-xxx-x
Depósito legal: xxxxxx/18

Impressão e acabamento:
Copyfast
ÍNDICE

I Vida e obra 9
Texto 1 11
Autor(es)
Texto 2 57
Autor(es)
II O filólogo 103
Gramáticas portuguesas de quinhentos no quadro 105
do humanismo europeu
Carlos Assunção; Maria Helena Santos
Texto 2 151
Autor(es)
III O historiador 191
Texto 1 193
Autor(es)
Texto 2 233
Autor(es)
IV O marinheiro 273
Texto 1 275
Autor(es)
Texto 2 315
Autor(es)
[verso do índice]
I.
Vida e obra
[verso]
Gramáticas portuguesas de quinhentos
no quadro do humanismo europeu
Carlos Assunção
cassunca@utad.pt
Maria Helena Santos
hpessoa@utad.pt
UTAD
Resumo
Pretende-se com este texto fazer a contextualização
do aparecimento das primeiras gramáticas da língua
portuguesa. Num primeiro momento, far-se-á um
breve excurso sobre o quadro humanista europeu
coevo desses textos metalinguísticos; num segundo
momento, apresentar-se-á uma sumária descrição de
alguns aspetos das obras gramaticais de Fernão de
Oliveira e de João de Barros considerados relevantes.
Palavras-chave: variação; mudança.

Abstract
With this text we intend to contextualize the
emergence of the first grammars of the Portuguese
language. First of all we will depict the framework of
European humanism that surrounded those
metalinguistic texts. Secondly, we will present a brief
description of some of the most important features of
the grammars of Fernão de Oliveira and João de
Barros.
Keywords: variation; change

[105]
Todas cousas têm seu tempo: e os ociosos o perdem.
Fernão de Oliveira, Grammatica da lingoagem portuguesa (1536).

1. Conjuntamente com a Reforma, o Renascimento


pode ser perspetivado como sendo o alicerce em que
assenta o complexo edifício intelectual moderno. Com
efeito, a Reforma, associada ao Renascimento[,]
concorreu para realçar a importância do humanismo
intelectual, uma vez que o homem passou a estar no
centro do universo, centralizando também o interesse
científico e artístico.
O movimento renascentista também coincidiu
com a expansão da Europa para os vários continentes,
iniciada pelos países ibéricos e alargada,
posteriormente, aos nórdicos, o que deu origem ao
conhecimento de novos povos, novas culturas e,
decorrentemente, novas línguas. Foi este contacto
com idiomas novos que despertou no homem europeu
o instinto de investigação linguística, o que resultou
na afirmação das línguas vernáculas frente às clássicas

[106]
e no estudo comparativo entre os sistemas
gramaticais daquelas e das recém-descobertas.
O conhecimento de novas línguas, decorrente
da expansão dos povos europeus, colocou, por um
lado, problemas de comunicabilidade, mas, por outro,
acelerou o estudo interlinguístico, resultando na
proliferação de dicionários e de sistematizações
gramaticais, destinadas a aprender a ler e a escrever.
Apesar de o conhecimento europeu do árabe e
do hebreu remontar aos séculos VII e VIII, devido à
expansão do poderio árabe, o seu aprofundamento
ocorreu na época renascentista. Como consequência
deste interesse dedicado à língua do Antigo
Testamento, surgiram algumas gramáticas hebraicas,
destacando-se a de Johann Reuchlin. O conhecimento
europeu do árabe e do hebreu, conjuntamente com a
descoberta das línguas exóticas, abriu caminho para
que a ênfase dos estudos linguísticos se deslocasse das
línguas clássicas para as vernáculas, as quais foram
objeto de um estudo científico pormenorizado.
[107]
Não será, contudo, demais insistir na ideia de
que os gramáticos quinhentistas aspiravam dar à sua
língua a regularidade e a sistematização que os
Alexandrinos tinham conferido ao grego e os
gramáticos da época imperial ao latim. Com isto,
visavam atribuir às línguas vulgares a dignidade e o
prestígio proclamados nas «apologias», nos
«louvores» e nas «defesas».
Esse prestígio e essa dignidade são diretamente
proporcionais ao rigor e à exatidão da codificação das
realidades gramaticais[,] e daqui deriva a
preocupação primordial dos gramáticos renascentistas
com a fonética, a fonologia e a ortografia. O objetivo é
estabelecer princípios gerais de ordem prática,
rejeitando as subtilezas da especulação medieval, já
que tinham no horizonte a tarefa de regularizar a
anarquia que dominava o uso da língua e da
ortografia.
Portanto, regular o uso da língua vulgar era, no
início do século XVI, a grande finalidade da
[108]
gramática. É que a língua é vista como a «alma» de
cada povo e, neste sentido, a consciência linguística
anda a par da consciência nacional ou imperial.
Com o Renascimento ressurgindo na Europa
Ocidental o gosto pelas coisas da Hélade, também os
humanistas começaram a imitar a atitude mental dos
Gregos (cf. Assunção, 1997b: 66). Assim, entre a
gramática concebida durante a Idade Média como
disciplina do Trivium e a gramática renascentista,
disciplina que já fazia parte dos estudos menores1,

1 Os jesuítas engendraram, ao longo da segunda metade do século XVI,


um sistema didático que visava formar o aluno/mestre em língua
latina. Na verdade, a versão definitiva da Ratio Studiorum é
promulgada em 1599 pelo padre Acquaviva, mas é o resultado de
experiências pedagógicas levadas a cabo, durante cerca de 50 anos,
nos colégios que os jesuítas tinham espalhados pelo mundo. Este
método pedagógico orientará a organização e atividade dos colégios
da Companhia de Jesus durante os séculos XVII e XVIII, exercerá
grande influência sobre outros colégios e sistemas educativos, e
grande parte da aristocracia intelectual europeia destes dois séculos
acha-se ligada a esta obra educativa, como René Descartes, Molière,
Alphonse de Lamartine, Miguel de Cervantes, Pedro Calderón de la
Barca, Félix Lope de Vega, Torquato Tasso, Prospero Lambertini
(papa Bento XIV), António Vieira e João de Lucena. Ora, o curriculum
humanista da Ratio Studiorum preconizava a obtenção de níveis de
excelência nas cinco classes em que estava estruturado: expressão bela
e elegante na gramática (inferior, média e superior); expressão clara e
correta nas humanidades; e expressão enérgica e persuasiva na
[109]
verifica-se uma diferença muito importante: na Idade
Média, a disciplina omnipresente, ligada à retórica e
subsidiária da lógica e da dialética, era a gramática
latina; pelo contrário, no Renascimento, a gramática,
como observação da linguagem, deixa de ser
necessariamente latina e passa a incidir sobre as
realidades das línguas vernáculas (cf. Buescu, 1978:
14).
Os humanistas, em geral, consideram, em
relação às línguas românicas, da mesma forma que em
relação ao latim corrompido, que não há meio de
fundar uma gramática sobre a língua vulgar,
demasiado incerta e demasiado pesada; eles não creem
que seja possível regulá-la e estudá-la metodicamente.

retórica. Como se vê, a competência gramatical obtida nas primeiras


três classes capacitava os alunos para a leitura dos bons autores. Nas
classes da gramática, aprendiam-se todas as regras da gramática do
padre Manuel Álvares, que se dividia em três partes, e, daí, a
existência de três classes (cf. Franca, 1952: 53-56).
A gramática de Manuel Álvares foi publicada em 1572 e é uma obra
basilar da história da gramática em Portugal. Estudaram o latim por
ela milhares ou talvez milhões de jovens em todo o mundo, incluindo
nomes ilustres das letras portuguesas e estrangeiras, como, por
exemplo, James Joyce (1882-1941) (cf. Assunção, 1997a: 46-47).
[110]
Mas, por outro lado, um pequeno número de
estudiosos admite a possibilidade de constituir um
código da linguagem vulgar, a qual, para eles, tem
regras próprias.
A este último grupo, podemos ligar já Flavio
Biondo (1388-1463), que teve o mérito de ser o
primeiro a reconhecer a possibilidade de uma
gramática do vulgar. Também Cristoforo Landino,
Francesco Filelfo e Leon Battista Alberti partilham
logo depois as suas ideias (cf. Trabalza, 1963: 19 e
44). Ciro Trabalza afirma que o célebre tratado de
Dante Alighieri De Vulgari Eloquentia, do qual não
nos resta mais que um fragmento, deve ter dado já
algumas regras gramaticais. Considera que, embora
este tratado seja sobretudo uma arte poética, que visa
ensinar o uso artístico da língua, possui, ao mesmo
tempo, elementos que provam que Dante Alighieri
tinha presente no espírito uma gramática regular da
língua vulgar e, por isso, Ciro Trabalza aponta o
autor da Divina comédia como o fundador da
[111]
gramática italiana2. Mas Louis Kukenheim não
concorda com a posição de Ciro Trabalza,
argumentando da seguinte forma:

Il y a de sérieuses raisons pour mettre en doute


cette assertion: Dante prétend qu’en dehors du latin
qui s’apprenait par les règles, il existait une infinité de
langues qui s’apprenaient sans règles, mais qui se
fondaient uniquement sur l’imitation instinctive des
pères par les enfants; il définit même la langue
vulgaire par opposition à la grammaire, c’est-à-dire au
latin, qui a des règles fixes (Kukenheim, 1974: 88).

A primeira gramática italiana que chegou até


nós é anterior a 1945 e é de um autor anónimo,
segundo vários investigadores; segundo outros, a
autoria é atribuída a Lourenço de Médicis. Intitula-se
Regole della lingua florentina e baseia-se na língua
falada em Florença. No entanto, este método empírico
encontrou poucos seguidores, pois constata-se que as
gramáticas italianas que[,] entretanto[,] foram

2 «Sicché l’Alighieri (...) ci si presenta, anche a stare a quel poco che ne


scrisse, come il fondatore della grammatica italiana.» (Trabalza, 1963:
30).
[112]
surgindo não têm por base a língua falada, mas a
língua escrita de Dante Alighieri, Francesco Petrarca
e Boccaccio, que usaram o toscano nas suas obras.
Em 1525, Pietro Bembo escreveu em Veneza
Prose della volgar lingua, em que propõe a fala de
Florença como língua comum de toda a Itália. Mas
Bembo formula o princípio de que uma língua que não
tenha autor não pode chamar-se língua3.
No final do século XVI (1584), este método da
crença dogmática na autoridade dos autores clássicos
italianos é suavizado por Leonardo Salviati, que
preconiza que [não] é preciso tirar as regras dos
escritores antigos, mas, para a prática da língua, é
preciso tentar seguir a voz do povo4.

3 «Ma questa ragionare per avventura, e questo favellare tuttavia non è


lingua: perciocchè non si può dire, che sai veramente lingua alcuna
favella, che non ha scrittore.» (Bembo, 1927: 159).
4 «... l’antichità, per nostro avviso, sarà quasi sempre più sicura. Ned è
però questo, che ora affermiamo, a ciò che dianzi affermmamo, della
pratica del favellare, punto contrario, o distante: cioè, che chi può
farlo, cerchi d’apprender (la lingua) dalla voce del Popolo.» (Salviati,
1809: II - 148).

[113]
Em França, no princípio do século XVI, não
havia obras gramaticais de grande autoridade. Assim,
o primeiro que tentou fixar as regras gramaticais da
língua francesa foi um estrangeiro, Jean Palsgrave,
que publicou, em 1530, Lesclarcissement de la Langue
francoise. Jacques Dubois seguiu-o pouco tempo
depois, em 1531, com a obra In linguam Gallicam
Isagoge, na qual escreve em latim sobre gramática
francesa.
Em Inglaterra, a primeira gramática impressa
só aparece em 1586. No entanto, a gramática
manuscrita escrita por William Lily foi homenageada
pelo rei Henrique VIII, em 1540, e recomendada para
as escolas, em função de sobrevalorizar a vertente
prático-didática, seguindo a tradição gramatical
representada por Prisciano, e descurar a especulação
filosófica.
O Renascimento incutiu nos povos da Europa a
ideia de que os Gregos, tendo regulamentado bem a
sua língua, tinham-na introduzido em Roma, e que os
[114]
Romanos, por seu turno, tinham imposto o seu idioma
aos povos vencidos. Por isso mesmo[,] os gramáticos
renascentistas admitiam que uma língua bem
codificada é um excelente meio de expansão nacional
e estavam convencidos de que o povo que melhor
tivesse fixado a sua língua teria uma vantagem
considerável sobre os povos vizinhos. Assim se
explica que as obras gramaticais desta época estejam
imbuídas de sentimentos imperialistas e que os
príncipes da Renascença tenham encorajado
decisivamente a codificação definitiva da língua
nacional. Não podemos esquecer que a ciência
política, cujo expoente máximo é O Príncipe, de
Nicolau Maquiavel, dedicado a Lourenço de Médicis,
acaba de renascer por volta de 1500. A questão da
língua vulgar mereceu a atenção dos diplomatas, pois
eles admitem que o poder absoluto do príncipe, a
unidade da religião e a unidade da língua são as
condições essenciais para que o povo seja um.

[115]
Deste ideário renascentista, comunga Antonio
de Nebrija, fervoroso patriota, que empreendeu a
codificação do vulgar espanhol, com a sua Gramática
de la Lengua Castellana (1492), concluindo esta tarefa
de forma notável. Graças ao génio gramatical de
Antonio de Nebrija, a Espanha é o primeiro país a ter
a sua gramática nacional5. Aliás, o próprio autor toma
consciência do caráter inovador desta sua empresa
quando, no prólogo dedicado à rainha D. Isabel, diz o
seguinte:

...io quise echar la primera piedra, e hazer en


nuestra lengua lo que Zenodoto en la griega e Crates
en la latina; los cuales, aun que fueron vencidos de los
que después dellos escrivieron, a lo menos fue aquella

5 A este propósito, registamos a seguinte objeção de Louis Kukenheim:


«il convient cependant de faire trois restrictions: d’abord que les
Regole grammaticali della lingua fiorentina peuvent être d’une date
antérieure à Nebrija; ensuite que les grammaires espagnoles qui ont
suivi celle de Nebrija datent d’après 1535, enfin que l’auteur de la
Gramática de la Lengua Castellana a étudié en Italie et que ce pays lui
a revelé tout ce qui était à faire dans sa patrie.» (Kukenheim, 1974:
214).
[116]
su gloria, e será nuestra, que fuemos los primeros
inventores de obra tan necessaria (Nebrija, 1992: 97)6.

Ora, os gramáticos portugueses do


Renascimento inserem-se no movimento cultural
europeu do século XVI e basta reparar nas datas em
que foram publicadas as suas obras gramaticais para
concluir que elas se situam precisamente no momento
do florescimento linguístico-filológico da época
renascentista. Significa isto que elas andam a par das
tentativas dos gramáticos italianos, castelhanos e
franceses.

2. A sensibilização, no sentido de estudar a conexão


existente entre a escrita de uma palavra e a respetiva
pronúncia, partiu dos gramáticos italianos, já que
foram os primeiros a utilizar novas letras para
distinguir as vogais abertas das fechadas. Nesta linha,

6 Todas as citações que fazemos da Gramática de la Lengua Castellana


são retiradas da edição de 1992, da Fundación Antonio de Nebrija,
com introdução e notas de Miguel Ángel Esparza e Ramón
Sarmiento.

[117]
os autores das gramáticas das línguas vernáculas
refletiram sobre as transformações fonéticas que,
partindo do latim, deram origem às línguas
novilatinas e as causas que lhe preexistem. Todo este
trabalho investigativo resultou numa reabilitação das
línguas romances, pois comprovou-se que estas não
equivaliam, como durante o período medieval se
pensava, a uma degeneralização do latim, mas eram
descendentes ilustres que mereciam o reconhecimento
da comunidade linguística internacional.
Paralelamente a esta intensa investigação
desenvolvida no continente europeu, verifica-se, no
chamado «Novo Mundo», a publicação das primeiras
gramáticas. Com efeito, a primeira gramática
ameríndia, o tarascano, editou-se em 1558,
inaugurando uma crescente produção gramatical.
É digno de registo o trabalho levado a cabo
pelos missionários, uma vez que, ao se radicarem nos
territórios recém-descobertos e monopolizarem a
instrução escolar, contribuíram para o
[118]
desenvolvimento da ciência linguística. Acresce
referir que também viajaram pela Ásia Meridional e
pelo Médio Oriente, onde contactaram com línguas
que acusavam diferenças significativas em relação às
clássicas, o que favoreceu a análise interlinguística e,
simultaneamente, propiciou um conhecimento mais
profundo dos idiomas existentes à escala mundial. É
esta atividade missionária, associada ao alargamento
das rotas comerciais, que preexiste ao estudo
comparativo entre as línguas da China e as da Europa
Ocidental, que culminou com a descoberta de
diferenças significativas entre ambos os idiomas. O
conhecimento europeu do sistema de escrita chinesa e
das línguas exóticas abriu novos horizontes à
investigação linguística, na medida em que revelou
um conjunto de línguas que diferiam
significativamente das estudadas pela tradição
ocidental. A este respeito, Amadeu Torres observa o
seguinte:

[119]
A troca mútua de experiências redunda sempre
em prol do comum, quando criteriosamente
conduzida. A língua portuguesa é disso o mais cabal
testemunho. Subsidiária de contributos variadíssimos
de tantas línguas do mundo que se lhe depararam nas
rotas da expansão e da actividade missionária, ela
mudou muito e não mudou nada, pois é a mesma de D.
Dinis, de Camões, de Eça ou de Pessoa; a mesma na
Europa, na América, na África, na Ásia e na Oceânia
(Torres, 1998: 77).

O sentimento crescente de consciência


patriótica, que irradiava um pouco por toda a Europa
motivou uma dignificação das línguas nacionais, as
quais ganharam o estatuto de instrumento apropriado
para o processo de codificação dos estudos eruditos,
arrefecendo, deste modo, o interesse veicular das
línguas clássicas. Esta tendência é acompanhada pelos
gramáticos portugueses, pois dotaram «a língua
portuguesa de um estatuto que até então não possuía,
tornando-se numa língua da comunicação num espaço
privilegiado de expressão.» (Assunção, 1997b: 83).
O exacerbado sentimento patriótico que
carateriza o espírito renascentista repercute-se no

[120]
plano linguístico, culminando na apologia da língua
nacional. Neste âmbito, os textos de natureza
encomiástica, como o Diálogo em louvor da nossa
linguagem, de João de Barros, procuram responder a
este crescente patriotismo linguístico, já antecipado
pelo rei D. Duarte, por forma a combater um certo
bilinguismo que se encontrava enraizado no seio da
comunidade culta.
Com efeito, devido a circunstancialismos vários,
como o casamento entre reis portugueses e princesas
castelhanas ou o intercâmbio entre humanistas
peninsulares, a língua castelhana concorria com a
portuguesa nos escritos literários, disso são exemplo
alguns textos de Gil Vicente e de Luís de Camões. No
universo erudito quinhentista, ao lado dos que
exaltavam a língua nacional, coexistiam os que a
marginalizavam, considerando-a imprópria para
transmitir todas as formas de pensamento. Por este

[121]
motivo, os textos encomiásticos,7 ao apresentarem a
língua portuguesa como meio privilegiado de
expressão do sentimento patriótico, destinavam-se à
sua exaltação e defesa frente ao castelhano. Aliás, esta
apologia da língua nacional em relação às
estrangeiras não é uma caraterística inédita dos
homens renascentistas: já os antigos Gregos, ao
rotularem as outras línguas de «bárbaras», exaltavam
o seu meio de comunicação verbal.
Claro está que também a gramática portuguesa
renascentista tem como fontes principais Prisciano e
Donato, os grammatici antiqui (como acontece, por
exemplo, com a Gramática de la Lengua Castellana, de
Antonio de Nebrija), e Alexandre de Villedieu. Aliás,
não podia ser de outra forma, pois, a fazer fé em
estudos de diversos investigadores, de Carolina
Michaëlis, passando por José Mattoso e, mais

7 Estes textos podem ser considerados paragramaticais, uma vez que,


não integrando a gramática propriamente dita, servem de suporte
teórico à criação da gramática das línguas vulgares (cf. Buescu, 1978:
50).
[122]
recentemente, Telmo Verdelho, a produção
gramatical portuguesa anterior a meados do século
XIV é bastante reduzida.
Sendo assim, a consciência de língua (que
começa a ser utilizada pelo povo) que a língua
portuguesa foi ganhando cresceu alicerçada sobretudo
na Ars Grammatica, de Donato, nas Institutiones
Grammaticae, de Prisciano, e, mais tarde, no
Doctrinale, de Alexandre de Villedieu. A este
propósito, deve dizer-se que, para se saber quais os
gramáticos latinos mais conhecidos dos mestres
portugueses, muito contribuiu a publicação do
Catálogo dos Códices Alcobacenses, pela Biblioteca
Nacional de Portugal, e o conhecimento dos
manuscritos de Kenelm Digby.
Keit Percival8 acrescenta que certas correntes
na tradição gramatical na Europa meridional
(Provença e norte de Itália), que coexistiram em parte

[123]
com o desenvolvimento da gramática modista na
Alemanha e no norte de França, são relevantes para a
teoria gramatical renascentista. Segundo ele, esta
versão meridional da tradição gramatical ocidental, ao
florescer nos séculos XIII e XIV, proporcionou
fundamentação teórica às produções gramaticais
humanistas do século XV. Este autor acaba por
afirmar que a teoria linguística renascentista tem as
suas origens numa tradição escrita gramatical e
lexicografica que emerge na Itália e na Provença do
século XI e se desenvolveu até um determinado grau,
independentemente da tradição setentrional
representada pelos tratados modistas e pelas
gramáticas em verso (o Doctrinale de Villedieu e o
Graecismo de Evenrardo de Betúnia).
A gramática portuguesa renascentista surge
como ponto de chegada de todo este processo
evolutivo como uma tomada de consciência da
necessidade e da urgência de que a aprendizagem do
Português se fizesse por uma gramática portuguesa.
[124]
Para que isso acontecesse, muito contribuiram as
cópias manuscrita, que apareceram no final do século
XV, das Regulae Grammaticales (1414) de Guarino
Verona e os Rudimenta Grammatices de Nicolau
Perotti que são, a nosso ver, os grandes motores da
renovação gramatical portuguesa. Ao mesmo tempo,
vão surgindo também na literatura algumas
manifestações contra o predomínio da cultura latina
como, por exemplo, D. Duarte que, no Leal
Conselheiro, recomenda «grande cuidado e parcimónia
na adopção de palavras da língua latina», contendo
esta obra um capítulo intitulado «Da maneira pera
bem tornar algũa leytura em nossa lynguagem» onde
resume algumas regras de tradução, destacando-se
entre elas a recomendação expressa à fidelidade do
texto, a utilização de palavras estritamente
portuguesas, não alatinadas, o respeito ao decoro,
além das exigências de clareza, elegância e concisão.
(cf. Vasconcelos, 1929: 863).

[125]
É neste contexto que surgem as obras
gramaticais dos quatro gramáticos portugueses
quinhentistas: a Gramática da linguagem portuguesa
(1356) de Fernão de Oliveira; a Gramática da língua
portuguesa (1540) de João de Barros; as Regras que
ensinam a maneira de escrever e a ortografia da língua
portuguesa (1574) de Pêro de Magalhães de Gândavo e
a Ortografia e origem da língua portuguesa (1576) de
Duarte Nunes de Leão. Faremos breves considerações
sobre os dois primeiros.
Em 1536 vem a lume a primeira edição da
Grammatica da lingoagem portuguesa, da lavra de
Fernão de Oliveira, o primeiro gramático da
lusofonia, que se adianta, assim, a Pierre la Ramée
(Petrus Ramus), autor de Gramere (1562): «A
gramática de Fernão de Oliveira9 (1536) foi a primeira
que se publicou em português; foi a primeira que se
publicou do português e de um português; foi a

9 As breves considerações aportadas nas duas páginas seguintes


encontram-se em Torres e Assunção in Oliveira, 2000: 18-20.
[126]
primeira que se publicou do Português e em
Portugal» (Nogueira, 1933: 7).
Não pode reputar-se adversa a fortuna em
relação a esta obra. As suas seis edições colocam-na à
frente das de João de Barros, Pero de Magalhães de
Gândavo e Duarte Nunes de Leão para só nos
restringirmos ao quadrunvirato de gramáticos
vernáculos quinhentistas. De facto, se a Gândavo
honestam sobremaneira as três edições do séc. XVI
(1574, 1590, 1592), esperou delongadamenle até
meados do séc. XX pelas outras três, uma das quais
na Alemanha. Quanto a João de Barros, cuja
Gramática, como se sabe, abrange quatro secções,
repa-re-se: a Cartinha conta três edições, além da
separata em 1539; a Gramática, secção nuclear do
conjunto, quatro; o Diálogo em louvor da nossa
linguagem, cinco; o Diálogo da viciosa vergonha, três, o
que tudo somado não equivale sequer a quatro edições
completas. De Duarte Nunes de Leão as edições
cifram-se em três para a Ortografia e quatro para a
[127]
Origem. Sem insinuar confrontação de méritos
reservada para outro trabalho, desta muda acareação
ressalta a posição dianteira para a Gramática da
linguagem portuguesa em face de Barros e de Duarte
Nunes, posição essa que no concernente à distribuição
mais regular das edições (1536, 1871, 1936, 1954,
1975, 1981 e 2000) se mantém diante da de
Magalhães de Gândavo.
Diferentemente das gramáticas do
Renascimento e das de Nebrija e João de Barros, a de
Fernão de Oliveira omite a quarta parte dedicada à
retórica, embora aluda de passagem a qualquer coisa
com ela relacionada, como a prosódia e as dicções
figuradas. As outras três são constituídas pela
fonética/fonologia e ortografia, com observações
interessantíssimas; pela morfologia, na qual das oito
categorias tradicionais são tratados o artigo, o nome,
certos pronomes e advérbios, e os verbos; e pela
sintaxe ou construção.

[128]
A articulação das vogais e consoantes, precisada
com aproximações eventuais ao castelhano, latim,
grego, hebraico e árabe; divergência entre a prolação
dos sons e a sua imagem grafémica; centro silábico e
ditongos; acentos e suas normas; ortografia e
evolução; cuidado na intromissão de estrangeirismos
e sua mais capaz adaptação — são informações
argutas «que se não podem desprezar», como acentua
Sá Nogueira.
As palavras ou dicções primitivas, compostas,
derivadas; os arcaísmos e neologismos; o valor
semântico dos prefixos; as declinações ou flexões
nominais e verbais; a evolução semântica dos
vocábulos — eis os principais temas morfológicos.
A sintaxe resume-se a página e meia, menos
cinco páginas do que em João de Barros. Mas nada de
admirar. A sintaxe foi desde sempre a secção menor
das gramáticas. A de Prisciano consagrou-lhe tão-
somente os três últimos livros, de entre 18; a de Port–
Royal tão afamada, vinda a lume em 1660, 124 anos
[129]
depois da de Oliveira, três páginas, porque as duas
seguintes já dizem respeito às figuras. Tal
metodologia, vulgar durante tantos séculos,
resultante da aceitação pacífica da prioridade da
palavra sobre a frase, radica no Crátilo de Platão e na
análise proposicional aristotélica. Nas gramáticas
modernas, a prioridade cabe geralmente à frase, no
que aliás já Humboldt, Cassirer e os modernos
matemáticos lógicos haviam reparado, ponto de vista
agora em discussão e reanálise pelo gramaticalismo
transfrástico ou teoria do texto.
Claro que em Fernando de Oliveira se
desejariam naturalmente maior desenvolvimento dos
temas, melhor distribuição, sistematização mais
apurada. O próprio autor estava absolutamente
cônscio das deficiências, tanto que por cinco vezes se
descontenta e roga desculpa delas prometendo e
reprometendo falar mais largamente em outra obra
(cf. Oliveira, 2000: 133[54]), porque nesta não
fazemos mais que apontar os princípios da gramática
[130]
que temos na nossa língua (cf. Oliveira, 2000:
152[73]); e quanto à sintaxe e ao estilo e suas
particularidades — insiste — se tratará a seu tempo,
em outra obra maior que desta matéria espero fazer
(cf. Oliveira, 2000: 113[34]). Promessas e nada mais,
na aparência; mas no fundo uma situação de lucidez
perante a complexidade de um objecto que, afora o
mais que intelectualmente julgamos lhe não
minguava, requeria disponibilidade e calma, requisitos
com que nessa ou em ocasiões próximas a vida
certamente o não favorecia.
Fernão de Oliveira é o criador da filologia
portuguesa e, na opinião de Coseriu,
merece um lugar de considerável destaque na
história da linguística românica e na da
linguística em geral. Ele é, depois de Nebrija, um
dos gramáticos mais originais, em certo sentido o
mais original, e, antes de Rhys e de G. Bartoli, o
mais importante foneticista da Renascença na
România. As suas ideias na lexicologia e naquilo
que hoje se chama ‘sociolinguística’ são notáveis e
a sua contribuição para o tratamento funcional

[131]
das línguas na linguística descritiva é a de um
grande precursor (Oliveira, 2000: 60).

O valor de Oliveira está precisamente na área


da fonética e o impulso para a descrição do português
lhe veio certamente da Gramática Castellana de
António de Nebrija, para além das diversas obras
sobre ortografia espanhola que apareceram na época
em que se encontrava em Espanha, mas adianta:

Oliveira supera, contudo, todos, mesmo Nebrija,


pela agudeza das suas observações, pela
minuciosidade e pelo carácter sistemático da sua
descrição dos sons portugueses. (Oliveira, 2000: 34).

Veja-se, por exemplo, o que diz, no capítulo VI,


sobre a articulação das vogais e consoantes, a
identificação que faz da divergência entre a prolação
(pronunciação, unidade fónica) dos sons e a sua
imagem grafemica (representação gráfica
correspondente):

[132]
Letra é figura de voz. Estas dividimos em
consoantes e vogaes. As vogaes têm em si voz; e as
consoantes não, senão junto com as vogaes (...).
As figuras destas letras chamam os gregos
caracteres; e os latinos notas. E nós lhe podemos
chamar sinaes. Os quaes hão de ser tantos como as
pronunciações e que os latinos chamam elementos; e
nós as podemos interpretar fundamentos das vozes e
escritura.
Diz Antonio de Nebrissa que temos na Espanha
somente as letras latinas. Mas porque é verdade que
são tantas e taes as letras como as vozes, nós diremos
que de nós aos latinos há hi muita diferença nas letras,
porque também a temos nas vozes (Oliveira, 2000: 89-
90).

E, no capítulo VII, precisando com


aproximação a outras línguas, refere:

E assi é verdade que os gregos com os latinos, e


os hebraicos com os arabigos, e nós com os
castelhanos que somos mais vezinhos concorremos
muitas vezes em hũas mesmas vozes e letras.
E contudo não tanto que não fique alghũa
particularidade a cada hum por si: hũa só voz e com as
mesmas letras, e a nós e aos castelhanos guerra e
papel. E, no pronunciar, quem não sintirá a diferença
que temos, porque elles escondem-se e nós abrimos
mais a boca? (Oliveira, 2000: 91).

[133]
A obra talvez mais representativa do espírito
renascentista que Barros nos transmitiu é de cariz
pedagogico-didáctico: a Gramática da Língua
Portuguesa (1540). Aliás, o humanismo de pendor
linguístico, que pode observar-se também nas suas
Décadas, percorre quatro obras diversas que, unidas
pela finalidade pedagógica, se aglutinam numa mesma
obra. Na verdade, a Cartinha para aprender a ler
(1539), o Diálogo da Viciosa Vergonha (1540), a
Gramática da Língua Portuguesa, que inclui o Diálogo
em Louvor da nossa linguagem (1540), formam um
conjunto pedagógico-didático em busca da
necessidade de um método.
Pode deduzir-se que a Gramática da Língua
Portuguesa era para Fernão de Barros fundamental
mas não há dúvida de que o seu projecto gramatical
estava cimentado em materiais que o autor achava
necessários à consecução do seu programa pedagógico
de aprendizagem da Língua Portuguesa: a Cartinha
como primeiro livro, a Gramática seria um segundo
[134]
livro, o Diálogo da Viciosa Vergonha funciona na
perspectiva de que o educador deve ensinar não só as
letras mas também as normas da boa conduta, o
Diálogo em Louvor da nossa linguagem contém um
conjunto de reflexões que ajudam a esclarecer as
ideias linguísticas e gramaticais do autor,
especulações que o propositado carácter
marcadamente normativo da Gramática não podia
contemplar.
O contacto entre o Português e as línguas do
Oriente Asiático, motivado pela mundividência
epocal, resultou na interinfluência linguística. Perante
esta nova realidade, João de Barros, contrariando o
espírito da «grammatica speculativa» medieval, não
resiste ao impulso de comparar alguns fenómenos
linguísticos orientais com os das línguas que fazem
parte da tradição ocidental. Este esboço rudimentar
de uma atitude comparativista, impregnada de
pioneirismo, que se desenvolve no sec. XVII, antecipa
o Comparativismo Linguístico do século XIX,
[135]
apresentando-se como uma consequência prática do
encontro de novos povos e novas culturas.
Portanto, o estudo de lexemas e expressões
idiomáticas diferenciadas constitui uma prova
palpável de que os nossos gramáticos quinhentistas,
diferentemente dos autores clássicos gregos, embora
sobrevalorizando o seu instrumento de verbalização,
se interessaram por outras línguas. Este interesse por
outras formas linguísticas não obstou a que Barros se
enquadrasse no movimento europeu de reabilitação
das línguas vernaculares, ou seja, da mesma forma
que os seus congéneres românicos, procurou
sistematizar o idioma materno, investindo-o de um
maior prestígio e dignificação. É claro que esse
prestígio linguístico, tão reclamado pelos gramáticos
quinhentistas, se enraíza no processo de
normativização e codificação das realidades
gramaticais. É à luz deste primado linguístico, que se
compreende a vertente prática omnipresente na teoria
gramatical de João de Barros.
[136]
No entanto, apesar de manter uma certa
equidistância entre o português e o latim, resultante
da apologia da língua materna, não rejeita a filiação
gramatical do idioma pátrio, isto é, a língua-mãe é
perspectivada como «ponto de referência, como
modelo de codificação gramatical e como fonte de
empréstimos vocabulares» (Barros, 1971: 43), pois
exorta os seus contemporâneos a subsidiarem a língua
materna com importações vocabulares latinas.
Em conformidade com o exposto, a doutrina
gramatical de Barros evidencia fenómenos
linguísticos que constituem paralelos aproximativos
do latim, mas realça, sobretudo, as assimetrias que
individualizam o Português em relação à língua do
Lácio. Com efeito, o uso alternado do pronome
pessoal nós, equivalente aos portugueses, e eles,
correspondente aos latinos, traduz a dicotomia entre
os fenómenos linguísticos latinos e as formas
«aportuguesadas»: «Nós não temos estes vérbos (que

[137]
os latinos têm). (...) Temos máis este vérbo (h)ei (h)ás
(...)» (Barros, 1971: 93).
A reflexão sobre as línguas «exóticas» reveste-
se de grande importância, pois indicia uma atitude
que podemos classificar como comparativista (cf.
Barros, 1971: 71). De facto, Barros ao confrontar o
português com as novas línguas, avalia positivamente
a permuta vocabular e admite uma reciprocidade
enriquecedora da língua nacional.(cf. Barros, 1971:
71).
Na obra de Barros, também se insinuam
informações relativas ao bilinguismo literário, entre o
português e o castelhano, que marca o panorama
linguístico quinhentista. Nesta linha, O Diálogo em
louvor da nossa linguagem, ao veicular uma apologia da
língua portuguesa, assume-se, conjuntamente com a
sua gramática, como uma resposta concreta que visa
ultrapassar essa rivalidade linguística, com privilégio,
como é óbvio, para o idioma materno, a fim de

[138]
possibilitar a sua afirmação no quadro de bilinguismo
apontado.
Os gramáticos renascentistas das línguas
vulgares usaram o método constrastivo com uma
quase permanente referência à língua latina. No
entanto, parece-nos abusivo considerar que as suas
gramáticas sejam gramáticas latinas. Pelo contrário, o
método fundamentado na comparação linguística é
utilizado para constatar aspectos comuns e específicos
a cada uma das línguas consideradas (latim-
português). Acresce, ainda, que o fervor patriótico da
época da Renascença, que é possível apreciar nos dois
gramáticos, explica a preocupação de emancipar as
línguas nacionais a partir da ortografia, na ânsia de
fixar os sons próprios de cada língua.
E, se é verdade que Nebrija, genericamente,
considera que as letras próprias do castelhano são as
que mantêm a originária pronunciação latina, Fernão
Oliveira representa um caso à parte, pois descreve um
sistema fonético/fonológico, para o português,
[139]
autónomo, que lhe confere, neste aspecto, na opinião
autorizada de Coseriu, o estatuto de gramático
renascentista mais original de toda a România (cf.
Oliveira, 2000: 60).
Não é por acaso que os aspectos relativos à
fonética e à ortografia constituem o conteúdo fulcral
da primeira gramática do português, ocupando vinte e
quatro dos cinquenta parágrafos que a integram, ao
contrário de João de Barros, que, seguindo a tradição
dos gramáticos latinos, assente no legado das
Institutiones Grammaticae de Prisciano, dá primazia à
descrição das partes orationis.
Na verdade Barros apresenta a classificação das
oito partes da oração de Prisciano, acrescentando o
artigo que não existia em latim, e divergindo,
claramente, de Nebrija, neste ponto, pois, o mestre
salamantino estabelece um esquema de dez classes de
palavras para o castelhano, identificando o gerúndio e
o nome participial infinito como classes autónomas, e

[140]
integrando a interjeição no advérbio, seguindo
Dionísio da Trácia.
Barros coloca no topo da hierarquia das classes
de palavras o nome e o verbo, os dois reis da
linguagem, mas não explica a posição ocupada pelas
outras dicções na escala hierárquica até porque não se
refere explicitamente à divisão das dicções em
flexionadas e não flexionadas, critério que permitiu a
Prisciano estabelecer a sequência do seu sistema
classificatório.
Esta sequência das partes da oração resultam
igualmente distinta da apresentada por Nebrija na
Gramática Castellana. Isto leva-nos a concluir que, se é
incontornável que, em alguns passos da Gramática da
língua portuguesa, João de Barros segue quase à risca
Nebrissa, nos parece igualmente irrefutável que, no
que concerne à Etimologia, esta divergência resulta
fundamental pois é por demais evidente que cada um
dos autores enveredou por um esquema classificatório
das partes da oração bem diferenciado.
[141]
Outra ilação que nos ocorre mencionar é o
imperativo pedagógico que os dois gramáticos
ibéricos abraçam na elaboração dos seus estudos
gramaticais. No entanto, enquanto Nebrija foi capaz
de unir na sua obra, com notável equilíbrio, as
componentes filológica e especulativa, na Gramática
da língua portuguesa há uma quase completa ausência
de reflexão teórica que nos permita identificar as
ideias do autor sobre a linguagem. Na verdade,
Barros contempla apenas a componente filológica,
resumindo-se o seu compêndio a um conjunto de
preceitos, que não tem em linha de conta a
consideração da gramática como ciência mas apenas
como arte (ars), destinado aos meninos do Reino que
têm a língua portuguesa como mãe e às pessoas dos
povos conquistados que percorrem milhares de léguas
para a aprenderem.
Aqui está uma possível explicação para o
carácter pouco discurssivo do estilo usado na
descrição das partes da oração por parte de João de
[142]
Barros. Aliás parece que o gramático tinha
precisamente a preocupação de ser pouco exaustivo
nas suas exposições, ou seja, tendo em conta aqueles a
quem destina a gramática, o seu objectivo seria o de
apresentar apenas os preceitos e exemplos essenciais,
relativo a cada uma das classes de palavras. Isto
mesmo pode verificar-se na forma repetitiva com
termina diversos segmentos da sua descrição
morfológica: «estes bástem pera exemplo deles» (Barros,
1971: 306); «Éstas bástem por exemplo» (Barros, 1971:
308); «estes bástem pera exemplo» (Barros, 1971: 311);
«ante sejamos bréve que prolixo» (Barros, 1971: 345).
No entanto, esta intenção premeditada não pode
servir para explicar incompreensíveis omissões na
sistematização das partes da oração, como é o caso do
particípio e da conjunção, embora esta seja tratada
sumariamente na sintaxe. De qualquer forma, pese
embora a justeza de algumas das críticas que
permitiram identificar aspectos menos conseguidos na
gramática de João de Barros, não pode deixar de
[143]
referir-se a preocupação demonstrada em captar a
realidade linguística e idiomática da língua por parte
de um homem entregue à constante preocupação com
o seu ensino, bem patente no conjunto formado pela
Gramática, pela Cartinha e pelos dois Diálogos, e que
transparece até na obra Ásia, que o notabilizou como
historiador.10 Além de que a gramática de João de
Barros representa um significativo impulso para o
desenvolvimento da perspectiva filológica do
humanismo em Portugal e não podemos esquecer-nos
de que esta perspectiva irá ser dominante nos estudos
linguísticos dos gramáticos vindouros, pelo menos até
ao século XVIII.

3. Os gramáticos que abordamos mas também os


ortógrafos portugueses renascentistas colocaram a
10 Baseando-se em diversas passagens das Décadas, Maria Leonor
Carvalhão Buescu afirma: «Afigura-se notável que, no decorrer das
Décadas, Barros muitas vezes se «esqueça» da História para se
embrenhar em reflexões gramaticais e linguísticas de muito interesse
e que, num estudo sistemático e exaustivo, poderiam ser vistas como
um conjunto de nótulas de uma gramática comparativa nascente» (cf.
Barros, 1971: 13).
[144]
língua portuguesa, à semelhança do que fizera Nebrija
para a língua castelhana, no centro da história do
homem português e da sua cultura. Colocaram todo o
seu empenho em aumentar a glória e a honra do povo
português ao fazerem a apologia da sua língua e em
aumentarem o prestígio internacional da língua
portuguesa através de um programa de acção baseado
num conjunto amplo de publicações, e em exigir a
tentativa de padronização, de normalização da língua.
Vão utilizar avant la letre parâmetros da mais
moderna planificação linguística, que, hoje, a nosso
ver, ainda está por fazer. Juntamente com os
conquistadores e sobretudo com os missionários
impõem a língua portuguesa aos povos conquistados,
que falavam línguas exóticas, e usam-na como
instrumento de evangelização e ao conseguiram
elevá-la a língua internacional de cultura, na acepção
de que os novos povos conquistados e as relações que
se criaram com os povos vizinhos implicaram não só o
seu uso como o seu conhecimento.
[145]
Para concluir diremos que os gramáticos portugueses
do renascimento ajudaram à formação de conceitos
fundamentais para a linguística moderna, factos que
Coseriu, Woll e outros estudiosos valorizam mas que
muitos investigadores da historiografia linguística
europeia ainda não reconheceram.

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[151]
[152]

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