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A DEFENSORIA
PÚBLICA DOS ESTADOS
E O ACESSO À JUSTIÇA
VOLUME II
A DEFENSORIA PÚBLICA
DOS ESTADOS E O ACESSO
À JUSTIÇA
SUMÁRIO
07 APRESENTAÇÃO
Marcelo Veiga (Secretário de Reforma do Judiciário)
09 INTRODUÇÃO
Nilton Leonel Arnecke Maria
Marcelo Veiga
Secretário de Reforma do Judiciário
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INTRODUÇÃO
Nilton Leonel Arnecke Maria1
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A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
a atuação desta como forma de contenção do poder punitivo estatal sobre as garantias
dos cidadãos hipossuficientes, a partir da ótica do garantismo penal.
O artigo da Defensora Pública do Rio Grande do Sul, Angelita Maria Maders, anali-
sa o acesso amplo à justiça como forma de viabilizar a redução das desigualdades sociais
e da pobreza extrema no Brasil, ressaltando o papel da Defensoria Pública de seus agen-
tes para efetivação daquele direito humano, em razão de sua importância para a proteção
e a garantia dos demais direitos fundamentais.
Já Arion Escorsin de Godoy, Defensor Público do Rio Grande do Sul, aborda a per-
tinência e as múltiplas formas de atuação da Defensoria na promoção do saneamento
básico como instrumento de tutela do meio ambiente sadio e como veículo concretizador
de direitos fundamentais das mais diversas gerações, em tutela das populações social e
economicamente vulneráveis.
O Defensor Público do Pará Arthur Corrêa da Silva Neto afirma a legitimação ex-
traordinária da Defensoria Pública na tutela individual de pessoas pertencentes a grupos
sociais vulneráveis, apontando que em face do princípio constitucional da assistência
jurídica integral e a aplicação da teoria dos poderes implícitos, quando a Constituição
dá um fim a um órgão , ela igualmente lhe dá os meios para realização da sua finalidade.
Caio Jesus Granduque José, integrante da Defensoria Pública de São Paulo, analisa
o processo de reinvenção do acesso à justiça promovido pela Defensoria Pública daquele
estado juntamente com os novos movimentos sociais, no que o autor denomina contexto
da transição paradigmática anticapitalista e descolonial.
Christiane Neves Procópio Malard, Defensora Pública do Estado de Minas Gerais,
igualmente reitera o fortalecimento da Defensoria Pública enquanto único caminho para
a efetividade do acesso á justiça pelo cidadão carente de recursos.
O artigo dos Defensores Públicos Daniel Guimarães Zveibil, Gustavo Augusto
Soares dos Reis e Gustavo Octaviano Diniz Junqueira, do Estado de São Paulo, aborda
questões de interesse histórico, econômico, ético e político, que justificam a necessária
separação legal entre Defensores Públicos e a Ordem dos Advogados do Brasil, como ga-
rantia de autonomia do serviço público de assistência jurídica gratuita contra interesses
eventualmente conflitantes.
Daniela Maria Marques Azevedo, do Estado da Bahia, em sua pesquisa, discute a
mediação de conflito familiar como método auocompositivo para coesão social, retratan-
do o antagonismo entre a crise do sistema judicial em vigor e a tendência neoconstitucio-
nalista, que exige, por intermédio da interpretação constitucional, a eficácia do direito
fundamental ao acesso à justiça célere e eficaz no Estado Democrático de Direito.
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Introdução
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A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
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DEFENSORIA PÚBLICA: GARANTISMO PENAL E EFETIVIDADE DOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA, DO
CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA.
Abstract: This article aims to clarify the importance of criminal garantismo to contain
the state’s punitive power, as well as relate strengthening public defender with the
effectiveness of fundamental rights of the presumption of innocence, adversarial and
legal defense. Strengthening the Ombudsman institution is critical to the state’s punitive
power does not go on guarantees hyposufficient citizens.
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A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
1. INTRODUÇÃO
A Carta Republicana brasileira de 1988 recomendou que o Estado colocasse o ser hu-
mano como prioridade no momento da construção de políticas públicas, motivo pelo qual,
o legislador constituinte elencou a dignidade da pessoa humana como um dos fundamen-
tos da República Federativa do Brasil, conforme dispõe o artigo 1º, inciso III, da CF/88.
A opção por prestigiar o ser humano dotado de personalidade jurídica representou uma
mudança de paradigma jurídico constitucional, tendo em vista que nas Constituições pre-
téritas, a Estrutura do Estado e o patrimônio gozavam de primazia sobre os demais aspec-
tos da dignidade e da personalidade humana. Portanto, a partir da Carta Republicana de
1988, a dignidade da pessoa humana se transformou em um postulado normativo orienta-
dor do intérprete no momento das colisões entre os direitos fundamentais.
A doutrina define a dignidade da pessoa humana da seguinte forma:
Dignidade da pessoa humana: regra matriz dos direitos fundamentais, [...] e que
pode ser definido como o núcleo essencial do constitucionalismo moderno. As-
sim, diante de colisões, a dignidade servirá para orientar as necessárias soluções
de conflitos. ( LENZA, 2011, p.1153)
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Defensoria Pública: garantismo penal e efetividade dos direitos
fundamentais da presunção de inocência, do contraditório e da ampla defesa.
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A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
Portanto, a interpretação conjunta dos artigos 1º, inciso III, 3º, inciso III, 5º, inciso
LXXIV, e artigo 134 a Constituição da República de 1988, autoriza-nos a afirmar que a De-
fensoria Pública foi alçada à condição de órgão responsável por efetivar a dignidade da
pessoa humana, tendo em vista que a prestação de assistência jurídica integral e gratuita
aos excluídos da sociedade possibilita a redução das desigualdades sociais, bem como a
integração social dos setores desfavorecidos da sociedade.
O garantismo penal é um sistema filosófico e jurídico que tem por objetivo conter
o poder punitivo estatal através da observância dos direitos e garantias fundamentais
que tutelam o direito de liberdade do cidadão.
Nesse contexto, observa-se o ensinamento da doutrina:
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Defensoria Pública: garantismo penal e efetividade dos direitos
fundamentais da presunção de inocência, do contraditório e da ampla defesa.
1) Não há pena sem crime; 2) Não há crime sem lei; 3) Não há lei penal sem neces-
sidade; 4) Não há necessidade sem ofensa; 5) Não há ofensa sem ação; 6) Não há
ação sem culpa; 7) Não há culpa sem processo; 8)Não há processo sem acusação;
9) Não há acusação sem provas e 10 ) Não há provas sem defesa. ( Trechos sele-
cionados pela Professora Alice Bianchini, extraídos da obra FERRAJOLI, Luigi.
Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2ª Ed. São Paulo: RT, 2006).
O sistema processual está sustentado por cinco princípios básicos [...] 1º Juris-
dicionalidade [...] Também representa a exclusividade do poder jurisdicional,
direito ao juiz natural, independência da magistratura e exclusiva submissão à
lei. [...] 2º Separação das atividades de julgar e acusar [...] Configura o Ministé-
rio Público como agente exclusivo da acusação, garantindo a imparcialidade do
juiz e submetendo a sua atuação à prévia invocação por meio da ação penal [...]
3º Presunção de inocência [...] É o princípio reitor do processo penal garantista
e, em última análise, podemos verificar a qualidade de um sistema processual
através de seu nível de observância [...] 4º Contraditório e direito de defesa [...]
É um método de confrontação da prova e comprovação da verdade [...] 5º Fun-
damentação das decisões judiciais [...] Só a fundamentação permite avaliar se
a racionalidade da decisão predominou sobre o poder. ( LOPES JÚNIOR, Aury.
Fundamento da existência do Processo Penal: Instrumentalidade Constitucio-
nal. Material da 2ª aula da Disciplina Teoria do Garantismo Penal, ministra-
da no Curso de Especialização Televirtual em Ciências Penais – Universidade
Anhanguera- Uniderp/ REDE LFG)
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Defensoria Pública: garantismo penal e efetividade dos direitos
fundamentais da presunção de inocência, do contraditório e da ampla defesa.
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A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
vista sob uma ótica técnico-jurídica, como regra de julgamento a ser utilizada
sempre que houver dúvida sobre fato relevante para a decisão do processo. Para
a imposição de uma sentença condenatória, é necessário provar, além de qual-
quer dúvida razoável, a culpa do acusado. [...] Por fim, a presunção de inocência
funciona como uma regra de tratamento do acusado ao longo do processo, não
permitindo que ele seja equiparado ao culpado. São manifestações claras deste
último sentido da presunção de inocência a vedação de prisões processuais au-
tomáticas ou obrigatórias. ( BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Capítulo
1. Garantias Processuais e o Sistema Acusatório. Obra: Direito Processual Penal.
Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, t. l. p. 1-36. Material da 4ª aula da Disciplina Teoria
do Garantismo Penal, ministrada no Curso de Pós-Graduação Lato Sensu Tele-
presencial e Virtual em Ciências Penais- Uniderp/REDE LFG)
Por sua vez, a feição externa do princípio da presunção de inocência exige que se
ponha um limite na exploração abusiva da imagem do acusado e do fato criminoso, ten-
do em vista que, o julgamento social antecipado, e o preconceito em relação ao acusado
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Defensoria Pública: garantismo penal e efetividade dos direitos
fundamentais da presunção de inocência, do contraditório e da ampla defesa.
antes da formação da culpa, acarreta um ônus a ser suportado por ele quando da sua
reinserção na sociedade após o término da instrução processual.
Sobre a dimensão externa da presunção de inocência, é possível extrair a seguinte
lição doutrinária:
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Defensoria Pública: garantismo penal e efetividade dos direitos
fundamentais da presunção de inocência, do contraditório e da ampla defesa.
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A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
A defensoria pública atua na efetivação da ampla defesa dos seus assistidos, seja
no momento da defesa técnica, caracterizado pela elaboração de peças jurídicas e na
participação dos atos processuais, ou mesmo no momento da autodefesa do acusado, por
meio da orientação sobre as consequências processuais de cada comportamento adotado
durante a instrução processual.
Destarte, observa-se que defensoria pública efetivamente estruturada é funda-
mental para resguardar os princípios fundamentais que estruturam o processo penal,
tendo em vista que poderá atuar efetivamente no respeito irrestrito aos princípios da
presunção de inocência, do contraditório e da ampla defesa dos seus assistidos, confe-
rindo uma correlação de forças com o órgão acusatório, resultando em uma medida de
extrema importância para coibir o poder punitivo estatal.
Assim, cabe ao Estado construir políticas públicas destinadas a aparelhar as De-
fensorias Públicas, a fim de que ela possa exercer a sua missão constitucional de forma
equilibrada com o seu aparelho acusatório. Portanto, somente quando tivermos uma
Defensoria Pública nacionalmente organizada, efetivamente estruturada e fortalecida
orçamentariamente haverá um sistema garantista efetivo, caracterizado pela existência
do processo penal democrático.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por fim, pode-se afirmar que a Defensoria Pública é a instituição do sistema de jus-
tiça responsável por efetivar o fundamento da dignidade da pessoa humana, e de cum-
prir o objetivo republicano de reduzir as desigualdades sociais por meio da prestação de
assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados.
No mesmo sentido, conclui-se que o garantismo penal é o sistema filosófico jurídi-
co que tem por objetivo limitar o poder punitivo estatal por meio da efetivação dos direi-
tos fundamentais. Dentro desse contexto, é possível arrematar que a Defensoria Pública
atua como o órgão do sistema de justiça responsável por conter a pretensão acusatória
estatal, por meio da efetivação dos princípios estruturantes do sistema processual penal,
representados pela presunção de inocência, do contraditório e da ampla defesa.
Portanto, o fortalecimento da instituição Defensoria Pública é fundamental para
que não hajam injustiças motivadas pela falta de atuação de um Defensor Público no
Processo Penal, o que se verifica, entre outras circunstâncias, na prescrição de crimes,
na situação de presos condenados cumprindo pena por mais tempo do que fixado nas
sentenças, ou na duração de prisões cautelares por prazos desproporcionais.
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Defensoria Pública: garantismo penal e efetividade dos direitos
fundamentais da presunção de inocência, do contraditório e da ampla defesa.
4. REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 15. Ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2013. RT Legislação.
BRASIL. Código de Processo Penal. 15. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. RT
Legislação.
GRAU, Eros Roberto. Sobre a prestação jurisdicional. Direito Penal. São Paulo: Malhei-
ros,2010.
COSTA, Elder Lisbôa Ferreira da. Direito Criminal Constitucional: uma visão sociológi-
ca e humanística.Belém: Paka-Tatu, 2012.
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 9ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2012. ALEN-
CAR, Rosmar Rodrigues; TÁVORA, Nestor. Direito Processual Penal. 5ª Ed. Salvador:Po-
divm, 2011.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 13. Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2011. LIMA, Re-
nato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Volume I. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Impetus,
2012.
ALVES, Cléber Francisco Alves; PIMENTA, Marília Gonçalves. Acesso à Justiça em preto
e branco: Retratos institucionais da Defensoria Pública. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2004.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 15 Ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
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A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
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ACESSO À JUSTIÇA NO BRASIL: O PAPEL DA DEFENSORIA
PÚBLICA NA REDUÇÃO DAS DESIGUALDADES SOCIAIS E DA
POBREZA EXTREMA
Resumo: O presente artigo analisa o acesso à justiça como uma forma de viabilizar a redução
das desigualdades sociais e da pobreza extrema no Brasil. Na primeira parte, trata da
questão da pobreza como um problema fundamental, que está na raiz das instituições,
repercutindo em diferentes setores da vida social. Na segunda, aborda o acesso à justiça
como um direito humano, definido também como um direito charneira em razão de
sua importância para a proteção dos demais direitos, com um significado mais amplo,
de acesso à uma ordem jurídica justa. Na terceira parte, é analisada a possibilidade
de redução da exclusão e das desigualdades sociais, bem como da pobreza por meio
do acesso amplo e irrestrito de todos à justiça, sem distinção. O estudo foi realizado
considerando o complexo contexto atual, no qual os exercitores do Direito, dentre eles a
Defensoria Pública e seus agentes, possuem um importante papel e responsabilidade para
a efetivação dos direitos. Utilizou-se o método bibliográfico para o estudo, que apresenta
como conclusão a viabilidade de se reduzir a exclusão e as desigualdades sociais além de
minimizar a pobreza por meio do acesso à justiça.
3. Defensora Pública do Estado na Comarca de Santo Ângelo/RS, Professora do Mestrado em Direito da URI,
bem como dos cursos de graduação em Direito da URI e da UNIJUÍ, Mestre em Gestão, Desenvolvimento e
Cidadania pela Unijuí e Doutora em Direito pela Universidade de Osnabrück, (Alemanha), membro do grupo
de pesquisa “Tutela dos Direitos e sua Efetividade”, registrado no CNPq e sustentação da linha de pesquisa
Cidadania e novas formas de solução de conflitos, do Mestrado em Direito da URI Santo Ângelo, coordena-
dora do grupo de pesquisa “o pensamento complexo e os novos direitos”, do Mestrado em Direito da URI
Santo Ângelo; orientadora da pesquisa “Direitos humanos, cidadania e a consolidação dos direitos sociais:
estudos sob a ótica do constitucionalismo contemporâneo e da teoria da complexidade de Edgar Morin”;
membro do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul. e-mail:
angmaders@dpe.rs.gov.br
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A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
Abstract: This paper analyzes the access to justice as a way to enable the reduction of
social inequalities and extreme poverty in Brazil. The first part addresses the issue of
poverty as a fundamental problem, which is at the root of the institutions, resulting
in different sectors of social life. In the second, addresses access to justice as a human
right, also defined as a right because of its pivotal importance to the protection of other
rights, with a broader meaning, access to a fair legal system. The third section analyzes
the possibility of reducing social exclusion and inequality and poverty through the wide
and unrestricted access to justice for all without distinction. The study was carried
out considering the complex current context, in which legal operators, including the
Public Defense and his staff have an important role and responsibility in the realization
of rights. We used the method to study literature, which presents as a conclusion the
feasibility of reducing of exclusion and social inequality and minimize poverty through
access to justice.
Keywords: access to justice - human rights – Public Defense – reducing social inequality
and poverty
INTRODUÇÃO
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Acesso à Justiça no Brasil: o papel da defensoria pública na redução das desigualdades sociais e da pobreza extrema
complexidade das relações sociais, que geram cada vez mais conflitos. Não se pode dei-
xar de mencionar, contudo, que, embora se tenha evoluído consideravelmente na última
década para viabilizar o acesso à justiça a todos, ainda existe um grande número de pes-
soas que sequer conhece os seus direitos e os meios disponíveis para sua proteção.
Neste artigo, o acesso à justiça será tratado com um direito humano que viabiliza
o gozo dos demais direitos humanos e, consequentemente, tem possibilidade de reduzir
a desigualdade e a exclusão sociais. Antes, porém, de se tratar do acesso à justiça, neces-
sário abordar a questão da pobreza no Brasil, que é considerada um de seus problemas
fundamentais, por estar na raiz das instituições, repercutindo em diferentes setores da
vida social e, portanto, necessitar ser reduzida urgentemente. Assim sendo, o texto segue
dividido em três partes. Na primeira, a pobreza é trabalhada como um problema funda-
mental e como tal deve ser tratada para se combater a desigualdade social e reduzir a
pobreza extrema. Na segunda, analisa-se o acesso à justiça como um direito humano de
primeira geração e, portanto, destinado a todos para se obter mais igualdade social. Na
terceira e última parte, defende-se a tese de que deve haver uma atuação conjunta entre
Estado e sociedade para diminuir a pobreza e as diferentes formas de exclusão social, o
que pode ocorrer também com a garantia efetiva e integral do acesso à justiça, o que pode
ocorrer com a participação cada vez mais ativa da Defensoria Pública, por meio de seus
agentes, que, assim como produtores de perplexidades, assumem desafios e contribuem
para a formação dos sujeitos.
4. Nesse sentido já se manifestou Santos ao referir que “o exercício de nossas perplexidades é fundamental
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A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
pois trabalham com e em benefício da parcela menos favorecida da população. Com suas
ações, estão, constantemente, lembrando diferentes setores do Poder Público acerca de
suas obrigações e exigindo seu cumprimento.
O sistema jurídico também é sensível à questão da pobreza. A Constituição Federal
de 1988, além de adotar o modelo de Estado Democrático de Direito, instituiu um sistema
de direitos fundamentais, normatizando na ordem jurídica interna os direitos humanos,
extensíveis a todos. Nesse sentido, o artigo 5º da Constituição de Outubro contempla ex-
pressamente os direitos da Declaração da Organização das Nações Unidas - ONU e ainda
refere, em seu parágrafo 2º, que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não
excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos Estados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
A Constituição Federal é, portanto, o roteiro a ser seguido pelos dirigentes do País
e por todos os atores sociais. Embora ela seja chamada de dirigente e possuir normas de
natureza programática, nela estão definidas as competências de cada função de poder na
concretização dos objetivos da República Federativa do Brasil.
No que se refere à erradicação da pobreza e à redução das desigualdades sociais
especificamente, estas foram elevadas à condição de objetivos do Estado Democrático de
Direito brasileiro no artigo 3º, III, da CF, cuja obrigação de perseguir é comum a todos.
Em busca de sua concretização, foi elaborada a Emenda Constitucional nº 67/2010, pror-
rogando, por tempo indeterminado, o prazo de vigência do Fundo de Combate e Erradi-
cação da Pobreza referido no caput do art. 79 do ADCT e, igualmente, o prazo de vigência
da Lei Complementar nº 111, de 6 de julho de 2001, que “Dispõe sobre o Fundo de Combate
e Erradicação da Pobreza, na forma prevista nos arts. 79, 80 e 81 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias”. Além disso, no dia 18 de agosto de 2011, foi lançado o Plano
Brasil sem Miséria, na sede do Governo de São Paulo, como uma das principais metas da
Presidente da República, o que é citado aqui a título de exemplo, pois muito se fala de um
pacto para transformar a triste realidade social.
Os programas criados nessa seara, todavia, não esclarecem acerca de que pobreza
estão tratando, levando a crer que seja a pobreza extrema a de caráter econômico. Mas
a pobreza pode ter diferentes significados, de modo que não pode ser reduzida apenas
ao aspecto econômico, como carência de bens materiais. Embora ela normalmente seja
entendida como um estado de escassez do necessário à vida, sinônimo de penúria, in-
digência ou da característica do pobre, espera-se que esse não seja o único enfoque das
políticas governamentais a serem desenvolvidas para a erradicação da pobreza, já que a
para identificar os desafios a que merece a pena responder. Afinal todas as perplexidades e desafios resu-
mem-se num só: em condições de aceleração da história como as que hoje vivemos é possível pôr a realidade
no seu lugar sem correr o risco de criar conceitos e teorias fora do lugar? (SANTOS, 1995, p. 22).
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Acesso à Justiça no Brasil: o papel da defensoria pública na redução das desigualdades sociais e da pobreza extrema
noção de pobreza não afasta outros fatores de necessidade, como é o caso do analfabetis-
mo, da doença, da privação de capacidades, da falta de informação, da falta de acesso aos
serviços públicos, dentre eles o acesso à justiça, tido como um direito charneira, por meio
do qual se pode proteger outros direitos.
É necessário ter presente, ainda, que erradicar a pobreza, em seus diferentes signi-
ficados, implica acabar com a exclusão social, o que parece um projeto ambicioso. Nesse
sentido, de se considerar que erradicar, ou arrancar pela raiz, é uma meta de tamanha
envergadura, ainda mais se consideradas as diversas facetas da pobreza e o grau de sua
incidência no País, que pode ser tida como uma ilusão. Quer-se acreditar, contudo, que
tal fim seja possível, que quem tem interesse tenha capacidade para mudar o mundo.
Tudo isso, porque não se deve perder a visão do horizonte e acabar com a esperança de
um mundo melhor, já que a constatação de uma aparente impossibilidade gera uma per-
plexidade produtiva e, portanto, desafios.
Questiona-se, então, se seria possível eliminar a pobreza no futuro. Cre-se que não.
Trata-se de uma aporia, pois uma das formas de pobreza sempre haverá de existir. Uma
provável saída na luta contra os problemas fundamentais como a pobreza e a redução da
desigualdade social seria, então, a utopia, que, de acordo com Santos,
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A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
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Acesso à Justiça no Brasil: o papel da defensoria pública na redução das desigualdades sociais e da pobreza extrema
Em um sentido mais amplo e moderno, são considerados direitos dos cidadãos, previstos
na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Mas, os direitos do homem diferen-
ciam-se, segundo Lima Filho, dos direitos do cidadão, em virtude de os primeiros perten-
cerem ao homem considerado como tal, enquanto que os segundos seriam titularizados
pelo homem enquanto ser social. Para o referido autor, ao compará-los aos direitos fun-
damentais, estes seriam aqueles “institucionalmente garantidos e limitados no espaço
e no tempo”, reconhecidos como tal pelas autoridades que editam as normas jurídicas,
tanto em âmbito interno como no plano internacional. (LIMA FILHO, 2003, p. 146)
Os direitos humanos não seriam, portanto, criação do Estado, mas decorrentes
de exigências universais, com validade para todos os povos em todos os tempos, sendo o
fundamento de sua vigência a consciência ético-coletiva da comunidade. (LIMA FILHO,
2003, p. 146). Já o conceito de justiça, extraído da expressão “acesso à justiça”, pode ser
resumido com algumas de suas características principais: equidade e imparcialidade, as
quais devem estar presentes no acesso à justiça para a proteção dos direitos humanos.
Tangencialmente ao conceito de acesso à justiça, ele é considerado um direito na-
tural, um valor inerente ao ser humano por sua própria natureza. Ele tem sido gradativa-
mente reconhecido como direito individual e social de natureza fundamental, ou seja, “o
mais básico dos direitos humanos.” (LIMA FILHO, 2003, p. 149). Por ser o acesso à justiça
um direito humano consagrado nos principais documentos internacionais deve ser, nos
mesmos moldes dos demais direitos humanos, viabilizado a todos. Em assim sendo, será
possível buscar-se perante o sistema judicial a proteção de direitos ameaçados, violados
ou não efetivados pelo Executivo ou Legislativo, como efetivamente vem ocorrendo na
área sanitária, habitacional e educacional, por meio de ações individuais e coletivas, mui-
tas delas propostas pela Defensoria Pública.
Em âmbito internacional, o acesso à justiça ganhou reconhecimento como direito
humano em 1950, por meio da Convenção Europeia de Direitos Humanos, mais precisa-
mente no artigo 6º, inciso I, que dispunha que todo ser humano tem direito à prestação
jurisdicional em um prazo razoável. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos,
conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, desde 1969 também refere-se ao acesso
à justiça como um direito humano. Outro documento internacional que dispõe sobre o
tema é a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, que, no artigo VIII, dis-
põe: “Toda pessoa tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes, remédio
efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela
Constituição ou pela lei.” Ele também aparece previsto no artigo 14 do Pacto Internacio-
nal de Direitos Civis e Políticos da ONU ao dispor:
Todas as pessoas são iguais ante os tribunais e cortes de justiça. Toda pessoa terá
direito a que a sua causa seja apreciada com equidade e publicamente por um
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A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um
prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial,
estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal for-
mulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de
natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer natureza.
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Acesso à Justiça no Brasil: o papel da defensoria pública na redução das desigualdades sociais e da pobreza extrema
para assegurar os demais direitos humanos, o Estado deve voltar-se para o fortalecimen-
to e para a universalização dos modos necessários ao acesso à justiça, pois este somen-
te terá sentido “quando sua reivindicação abrange(r) a totalidade da condição humana”
(MAHEU, 1975, p. 23), já que uma atmosfera de violência, de desigualdade sócio-econô-
mica, de diferentes formas de pobreza paira sempre onde a riqueza social é partilhada
injusta e desigualmente. A desigualdade ocasiona dissenções, que acabam por ensejar a
necessidade de composição de conflitos, já que “À revolta dos que nada possuem corres-
ponde a má-consciência dos possuidores, expressando-se uns e outros através de ideolo-
gias opostas, buscando os primeiros a superação do status quo e os segundos sua manu-
tenção.” (AZEVEDO, 1983, p. 35)
Por isso, a compreensão do pleno significado do acesso à justiça não se limita à
existência de leis e procedimentos formais que preveem a possibilidade hipotética de
acesso ao sistema judicial para composição dos litígios. É necessário, para construir uma
sociedade verdadeiramente livre, em que impere a paz, que os sistemas de administração
da justiça assumam a existência de uma maior complexidade das relações e manejem as
formalidades com especialização técnica sem se esquecer da realidade. É indispensável,
também, a divisão da riqueza social por meio de uma política humanista, que abranja a
totalidade das pessoas. Mas essa não é a única solução, já que a ela estão ligados outros
fatores,
[…] dentre os quais avulta a existência efetiva de uma livre troca de informações,
vale dizer, do sistema político aberto, de um padrão pelo menos razoável de edu-
cação dos cidadãos, da honestidade de propósito dos representantes do povo,
em todos os seus escalões e níveis, e da liberdade de opinião e crítica dos atos
por estes praticados, como condição da elaboração de juízos políticos corretos,
capazes de conduzir à realização da justiça. (AZEVEDO, 1983, p. 36)
Inúmeros são os obstáculos para que o acesso à justiça não seja privilégio de uma
minoria, os quais são de natureza econômica, social e cultural. Por isso, a ideia de justiça
projeta-se nas relações interpessoais, mas advém do interior dos indivíduos, da reflexão
que eles fazem ao se identificar com seu semelhante, não apenas de acordo com uma
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A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
A igualdade dos cidadãos perante a lei passou a ser confrontada com a desigual-
dade da lei perante os cidadãos, uma confrontação que em breve se transformou
num vasto campo de análise sociológico e de inovação social centrado na questão
do acesso diferencial ao direito e à justiça por parte das diferentes classes e estra-
tos sociais.(SANTOS, 1995, p. 165)
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Acesso à Justiça no Brasil: o papel da defensoria pública na redução das desigualdades sociais e da pobreza extrema
É, pois, impossível falar do acesso à justiça sem mencionar que ele é insuscetível
de contingenciamento, pois o Estado tem obrigação de remover os obstáculos a sua ga-
rantia e prover os meios para sua concretização em favor dos sujeitos. Por isso, também
não se pode falar de acesso à justiça sem falar do sujeito, já que para ele se destina e so-
mente por ele se justifica. Ao se tratar do sujeito, de se tê-lo como um sujeito de direitos,
consciente de seu papel como ator social, o que influencia, por sua vez, não somente o
progresso do País, mas a própria justiça.
A bibliografia demonstra que, quando se buscou investigar os obstáculos à justiça
por parte das classes populares, constatou-se que os mesmos eram de ordem econômica,
social e cultural. A justiça penal era conhecida e alcançada a todos, em sua maioria aos
pobres, mas a civil, por ser cara para as pessoas em geral, tornava-se mais cara ainda
para aqueles economicamente mais débeis, o que se agrava com a lentidão processual e o
próprio desconhecimento acerca de seus direitos. Parece que o Estado esqueceu que na
justiça civil é onde se busca uma justiça real ou potencial para reparar uma situação por
vezes provocada pelo próprio Estado.
A falta de informação acerca dos direitos mais elementares é uma dessas barrei-
ras e ainda ocorre no cenário brasileiro, o que, aliado à descrença no sistema de justiça
vigente, enseja um descrédito na própria construção da democracia. As desigualdades
econômicas, por sua vez, não têm influenciado somente o padrão financeiro das pesso-
as, mas também o social e o cultural. Consequentemente, pessoas com menos recursos
financeiros conhecem menos os seus direitos e, portanto, não reconhecem os problemas
jurídicos que as afetam. Se ignoram seus direitos, também não conhecem as possibilida-
des de reparação jurídica. Isso se constata sobremaneira nas relações de consumo, por
exemplo. Outro problema é que, por vezes, os sujeitos conhecem os direitos, sabem onde
buscar a solução para seu problema jurídico, mas hesitam em fazê-lo por desconfiança
no sistema, seja por parte do serviço judicial, seja por acreditarem que os serviços ad-
vocatícios prestados aos pobres pelo Estado é inferior em qualidade àquele prestado às
classes de maiores recursos por advogados particulares.
A discriminação social no acesso à justiça é, portanto, mais complexa do que se
imagina, haja vista esses “condicionantes sociais e culturais resultantes de processos de
socialização e de interiorização de valores dominantes muito difíceis de transformar.”
(SANTOS, 1995, p. 171)
Por isso, não basta investir para vencer os obstáculos econômicos do acesso à jus-
tiça, mas deve-se investir para vencer os obstáculos sociais e culturais com a educação
jurídica dos cidadãos, com a conscientização sobre seus direitos, prestando assistência
jurídica considerando os problemas coletivos das classes economicamente subordina-
das. Deve haver a democratização do Direito e da sociedade e a administração da justiça
37
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
38
Acesso à Justiça no Brasil: o papel da defensoria pública na redução das desigualdades sociais e da pobreza extrema
dos dativos, o que gera um custo mais elevado para os cofres públicos com o pagamento
de honorários.
É sabido que a implementação dos direitos sociais, mormente os relativos à ali-
mentação, moradia, saúde, educação seja uma das ações aptas no combate à pobreza,
e que algumas reformas já foram realizadas nesse sentido, a exemplo da ampliação e
extensão dos benefícios e direitos sociais (1ª geração de mudanças), assim como a racio-
nalização e redistribuição dos recursos gastos na área social (2ª geração de mudanças).
Muito resta a ser feito para melhorar os serviços sociais destinados à perfectibilização
das reformas anteriores, tornando, inclusive, a justiça mais acessível a todos, o que cons-
tituiria uma 3ª geração de mudanças.
Deveras, embora os índices de pobreza extrema demonstrem que o percentual da
população vivendo nessas condições está sendo reduzido, ainda existe um quadro de de-
sigualdade e de exclusão social que necessita ser enfrentado. Em razão da lentidão ou da
falta de iniciativas concretas e adequadas por parte do Executivo e do Legislativo, a busca
de soluções para a omissão na área sanitária, educacional, habitacional acaba acontecen-
do por meio da atuação do Judiciário e isso somente é possível para aqueles que dispõem
de efetivo acesso à justiça.
Nesse sentido, o trabalho dos Defensores Públicos para a implementação de servi-
ços públicos de qualidade para todos, seja por meio de ações judiciais individuais, como
também por meio da tutela coletiva é de fundamental importância na luta contra a po-
breza. Eles estão sempre a recordar os dirigentes, os administradores públicos acerca
dos problemas fundamentais e a identificá-los, independentemente das dificuldades que
enfrentam, tanto para sua identificação, como para a solução que devem ser a eles pro-
postas, por ser esta a missão institucional na proteção dos direitos humanos.5 Apesar das
dificuldades, inclusive estruturais, no âmbito de seu agir, os Defensores Púbicos posicio-
nam-se e não se furtam ao tratamento dos problemas fundamentais dos que aportam ao
atendimento e o fazem conhecendo os limites do conhecimento e aceitando a diversida-
de de opiniões e os conflitos dela advindos.
Ocorre, porém, que a judicialização dos conflitos decorrentes da não realização
dos direitos sociais, dos direitos humanos não é a solução para todos os problemas e tam-
bém não é a única, já que ensejará um outro, o agravamento da crise da administração
5. Art. 3º-A. São objetivos da Defensoria Pública:(Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009).
I – a primazia da dignidade da pessoa humana e a redução das desigualdades sociais; (Incluído pela Lei
Complementar nº 132, de 2009).
II – a afirmação do Estado Democrático de Direito; (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009).
III – a prevalência e efetividade dos direitos humanos; e (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009).
IV – a garantia dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório. (Incluído pela Lei Comple-
mentar nº 132, de 2009).
39
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
da justiça. Mas não se pode desperdiçar armas nessa batalha contra a pobreza, e o acesso
à justiça é uma delas, porque, como já dizia Amartya Sen, prêmio nobel de economia, “as
pessoas em primeiro lugar”.
Assim, mesmo sabedores das limitações do acesso à justiça na luta contra a re-
dução das desigualdades sociais e da pobreza, os Defensores Públicos estão cientes da
essencialidade de sua atuação para a melhoria das condições de vida dos destinatários
de seus serviços, em especial porque têm investido também em outras formas de justiça,
viabilizando às partes a conciliação e a mediação. A essencialidade de sua atuação está,
também, na construção do sujeito, uma vez que os Defensores Públicos são multiplicado-
res de informação acerca dos direitos, bem como de sua proteção frente às arbitrarieda-
des do poder econômico, o que enseja a libertação das pessoas e a tomada de consciência
destas com relação ao seu papel no mundo, o que, por si só, é uma grande conquista no
combate à pobreza e às desigualdades sociais.
Outrossim, mesmo após seis décadas da aprovação da Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, em dezembro de 1948, pela Assembleia das Nações Unidas, para
não se mencionar outros documentos que a antecederam, ainda muito resta a se fazer
para a consecução dos direitos humanos, inclusive do acesso à justiça, tanto em nível
internacional como nacional, mormente dos direitos da maioria oprimida pela pobreza,
a começar pela dificuldade desses para acessar os mecanismos disponíveis para a reali-
zação da justiça.
O problema atual dos direitos humanos reside no abismo existente entre a sua
declaração formal e a sua proteção e extensão efetivas em favor de todos os seres huma-
nos, pois, mesmo que os debates atuais tratem da universalidade dos direitos humanos,
deve-se ter em conta a especificidade cultural e ideológica ocidental que se oculta em sua
origem histórica. Mas, quando se reconhecem as diferenças e se procura a compatibili-
dade entre as diferentes concepções, tem-se a possibilidade de um envolvimento mútuo
entre culturas também diferentes, o que caracteriza um processo multicultural, ou seja,
uma dinâmica intercultural.
Ao se voltar tal aspecto à questão do acesso à justiça tem-se que este não pode equi-
valer ao mero acesso aos meios judiciais formais, mas, à uma ordem jurídica justa, de-
mocrática, que considere a diversidade, respeite a diferença, e onde as decisões sejam
pautadas na interpretação da norma legal de acordo com a realidade cultural. O reconhe-
cimento da diferença e das peculiaridades de cada ator social é indispensável à criação
de condições de participação social sem discriminações e submissão de uns pelos outros.
Também é necessária uma política de promoção da dignidade humana, respeitando a mul-
tiplicidade de diferenças e especificidade cultural e histórica de cada povo, inclusive com
relação à concepção de dignidade humana. Ainda, é preciso identificar as formas de dis-
criminação e violação dos direitos humanos para denunciá-los, levando em consideração
40
Acesso à Justiça no Brasil: o papel da defensoria pública na redução das desigualdades sociais e da pobreza extrema
A realidade demonstra que parte do que o Estado não está fazendo para a proteção
dos direitos humanos tem sido alvo de promoção e defesa por diversas redes de movi-
mentos sociais, universidades e ONGs, o que vem a redesenhar os contornos do conceito
de cidadania e de justiça social. Parece que o sistema judicial estatal esqueceu que tem de
assumir sua responsabilidade na solução dos problemas fundamentais, pois eles foram
causados por diferentes formas de injustiça ao longo do desenvolvimento da sociedade.
Para tanto, deve levar a sério os direitos sociais e econômicos para fazer justiça sócio-e-
conômica, o que também é uma questão de direitos humanos, os quais, segundo Santos,
devem ser tratados de acordo com uma visão contra-hegemônica,
[…] que pratique a indivisibilidade dos direitos humanos, que permita a coexis-
tência entre direitos individuais e direitos coletivos, que se paute tanto pelo di-
reito à igualdade como pelo direito ao reconhecimento da diferença, e, sobretu-
do, que não se auto-contemple em proclamações tão exaltantes quanto vazias, de
direitos fundamentais, que normalmente, de pouco servem àqueles que vivem
na margem da sobrevivência em contacto permanente com a desnutrição e a vio-
lência. Uma concepção contra-hegemônica dos direitos humanos tem de enfren-
tar a situação dos desempregados e dos trabalhadores precários, dos campone-
ses sem-terra, dos indígenas espoliados, das vítimas de despejos, das mulheres
violentadas, das crianças e adolescentes abandonadas, dos pensionistas pobres.
É adoptando esta concepção que o sistema judicial assumirá a sua quota-parte
de responsabilidade na execução das políticas sociais. (SANTOS, 2008, p. 35)
41
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
por ser justiça dos últimos; o direito é direito de todos somente quando come-
çar a ser respeitado a partir dos condenados da terra; a vida é garantida a to-
dos, unicamente quando se inicia sua promoção e defesa a partir dos forçados
a morrer antes do tempo. Se, de saída, excluímos a todos estes e começamos
a vivenciar os direitos humanos a partir de classes beneficiadas pela ordem
vigente, então, sim, parcializamos a questão universal dos direitos humanos.
A forma de criarmos uma universalidade concreta é partirmos dos excluídos e
marginalizados e a partir deles abrirmo-nos a todos os demais. (In: CORREA,
2000, p. 201-202)
Nessa esteira, para efetivamente garantir-se o acesso à justiça e a proteção dos di-
reitos humanos, o jurista deve ter sensibilidade para o social, para encarar os problemas
jurídicos dele oriundos e dar-lhes uma solução adequada aos valores que deve realizar.
O juiz tem de decidir com justiça, mesmo que isso signifique decidir contrariamente ao
direito positivo, uma vez que o legislador jamais pretendeu que a norma jurídica fosse
indiferente às contingências sociais, pois seu valor se afere pela aplicação prática, pelas
possibilidades de responder às exigências de justiça, auxiliando os fracos e constrangen-
do os poderosos à sua obediência. O processo judicial não pode ser um fim em si mesmo,
mas o meio posto à disposição das partes para a composição dos litígios. O jurista deve
possuir a confiança social, lutar para que o processo seja apenas um meio para aplicar e
descobrir o Direito mais adequado ao caso concreto.
Por tudo isso, o Judiciário tem papel de relevante importância no modelo do Es-
tado e da sociedade, tendo em vista ser encarado como meio de garantia dos direitos
fundamentais. Ele é imprescindível para dar eficácia à democracia constitucional, já que
a função jurisdicional representa a passagem da barbárie à civilização e à segurança ju-
rídica. Mas não basta a existência de uma Constituição ou Declaração de Direitos para
a garantia e resguardo dos interesses do povo. Uma Constituição cidadã em um Estado
forte se faz com uma Constituição forte, onde haja respeito e confiança em suas nor-
mas, na sua observância por todos. Para tanto, além de haver uma Constituição formal,
deve haver o elemento subjetivo, ou seja, o “sentimento de constituição, que se traduz na
emoção e na confiança política do povo em relação aos fundamentos segundo os quais
ele pretende viver para realizar os seus ideais de justiça [...].” (ROCHA, 1998, p. 15). Na fé
42
Acesso à Justiça no Brasil: o papel da defensoria pública na redução das desigualdades sociais e da pobreza extrema
que o povo deposita em sua Constituição é que se pode manter um sistema democrático
e preservar-se os direitos dos cidadãos.
A ordem constitucional deve, então, prevalecer para garantia dos direitos huma-
nos e fundamentais, mesmo quando em ponderação com os limites materiais e huma-
nos, bem como de recursos, o que é constantemente arguido pelo Poder Público como
obstáculo à prestação de serviços públicos de qualidade e com equidade a todos, pois o
bem maior que se encontra em jogo tem a ver com a própria proteção da dignidade hu-
mana. Questões de ordem econômica, política, devem, portanto, ceder ante a relevância
do bem jurídico que se visa a proteger com a garantia do acesso à justiça e, por sua vez,
com o ingresso de ações judiciais individuais ou coletivas que são propostas para promo-
ver o direito dos cidadãos, pena de desmerecimento da própria cidadania e, por sua vez,
da democracia.
Quando assume a forma democrática, o Estado de Direito objetiva a igualdade de
maneira a não somente limitar a ação estatal para evitar abusos, mas para transformar a
comunidade. A lei, no Estado Democrático de Direito, não deve ser tida com um caráter
de sanção ou promoção, mas de reestruturação das relações sociais. Por isso se diz que o
Estado Democrático de Direito agrega novas características ao núcleo liberal acrescido
da questão social, pois visa a efetivar a igualdade substancial dos cidadãos, garantindo-
lhes condições mínimas de vida, o que somente pode ser alcançado, por vezes, por meio
de demandas judiciais, como é o caso da garantia do direito à saúde, à moradia, à educa-
ção. Também dá valia ao projeto de solidariedade, de caráter comunitário, onde o perso-
nagem principal é a coletividade difusa. A lei, por sua vez, é mecanismo de transforma-
ção social, de modo a manter o espaço vital da humanidade. E, em assim sendo, o Estado
Democrático de Direito é um “plus normativo” em relação ao Estado liberal e ao Estado
social, pois impõe ao ordenamento jurídico e à ação estatal o conteúdo de transformação
da realidade, baseado na constitucionalidade, em um sistema de direitos fundamentais
individuais e coletivos, na igualdade, na legalidade e na justiça social.
No Estado Democrático de Direito, como visto, há um aumento dos direitos e,
principalmente, uma transformação no conteúdo deste para a promoção da sociedade
e da democracia, voltada ao caso concreto, de modo a sair do formalismo jurídico para
a concepção material de justiça, para tornar-se um Estado de Direito substancial. Com
isso, no entanto, desloca-se grande esfera de tensão social do Executivo para o Judiciário,
que acaba tendo de interferir para garantir a efetividade dos direitos constitucionalmen-
te previstos e a própria democracia e seus fundamentos, como vem ocorrendo no Brasil
no que se refere ao direito à saúde, à educação, à moradia, por exemplo.
O Estado, após uma longa evolução histórica, assumiu uma postura mais ativa
e protetiva para a garantia da igualdade substancial e dos direitos sociais. Ocorre que,
mesmo no século XXI, muitas delas existem apenas no âmbito teórico, o que enseja o
43
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
44
Acesso à Justiça no Brasil: o papel da defensoria pública na redução das desigualdades sociais e da pobreza extrema
CONCLUSÃO
45
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
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48
SOBRE A ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA NA INDUÇÃO
POLÍTICA PARA IMPLEMENTAÇÃO DO SANEAMENTO BÁSICO
Arion Escorsin de Godoy6
Domingos Barroso da Costa7
Abstract: Ascertain the relevance and the multiple forms of activity of the Public Defender
in promoting sanitation as a means of protection of the environment healthy and as
a vehicle for concretizing fundamental rights of several generations in protection of
socially and economically vulnerable populations.
6. Defensor Público no Estado do Rio Grande do Sul. Titular da 8ª Defensoria Pública de Caxias do Sul. In-
tegra o Núcleo de Defesa Ambiental da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul. Bacharel em
Direito pela Universidade Estadual de Ponta Grossa/PR. Especialista em Direito Urbanístico pela Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais. Mestrando em Direito Ambiental e Novos Direitos pela Universidade
de Caxias do Sul.
7. Defensor Público no Estado do Rio Grande do Sul. Titular da 6ª Defensoria Pública de Caxias do Sul. In-
tegra o Núcleo de Defesa em Execução Penal e o Conselho Editorial da Revista da Defensoria Pública do Es-
tado do Rio Grande do Sul. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Especialista em
Criminologia e Direito Público. Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
49
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
1. CONTEXTUALIZAÇÃO
50
Sobre a Atuação da Defensoria Pública na Indução Política para Implementação do Saneamento Básico
51
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
A assistência, agora denominada jurídica, passa então a ser tratada de forma am-
pla, abrangendo não só a gratuidade da justiça, (isenção de custas processuais)
52
Sobre a Atuação da Defensoria Pública na Indução Política para Implementação do Saneamento Básico
As “possibilidades das partes” como ficou demonstrado por uma recente linha de
pesquisa, de crescente importância, é ponto central quando se cogita da denega-
ção ou garantia de acesso efetivo. […]
Pessoas ou organizações que possuam recursos financeiros consideráveis a
serem utilizados têm vantagens óbvias ao propor ou defender demandas. Em
primeiro lugar, elas podem pagar para litigar. Podem, além disso, suportar as
delongas do litígio. Cada uma dessas capacidades, em mãos de uma única das
partes, pode ser uma arma poderosa [...]
53
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
54
Sobre a Atuação da Defensoria Pública na Indução Política para Implementação do Saneamento Básico
Desse modo, mostra-se conveniente que a Defensoria Pública, em sua nova roupa-
gem e imbuída de suas históricas funções, dirija suas forças e foco também para atuações
que promovam concomitantemente a efetivação de variados feixes de direitos. É o caso,
em nossa análise, do saneamento básico.
O saneamento básico, em termos legais, vem tratado na Lei Federal 11.445 de 2007
e é definido, em seu artigo 3º, do seguinte modo:
55
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
[…] o conjunto de medidas que tem por objetivo preservar ou modificar as condi-
ções do ambiente, com a finalidade de promover condições ambientais adequa-
das à população, promovendo equilíbrio ambiental e reduzindo ou eliminando
riscos ambientais à saúde da população (MOTA, 2010, p. 240).
No plano internacional, a Organização das Nações Unidas (2010), em 2010, por sua
Assembleia Geral, reconheceu a água e o saneamento como direitos humanos essenciais,
sendo que mais de 2,6 bilhões de pessoas em todo o mundo não contam com saneamento e
quase um bilhão veem-se privadas de acesso a água de origem segura quanto à potabilidade.
Apenas para ilustrar a notória relevância do saneamento básico e seus reflexos em
saúde pública, valemo-nos de interessante dissertação subscrita por Lúcio Marcelo Fa-
ria Murja (2009), mestre em Ecologia Aplicada pela Universidade de São Paulo. Em seu
trabalho, o pesquisador tomou por campo a cidade de Lins/SP, comparando os óbitos
ocorridos na Santa Casa de Misericórdia daquela cidade entre 1975 e 2005, com cortes
decenais, os quais tivessem como causa doenças de veiculação hídrica. Apontando que a
universalização do serviço de tratamento de água e esgoto no município deu-se em 1997,
o pesquisador constatou que, no período examinado, a proporção de internações por do-
enças de veiculação hídrica caiu de 2,97% do total para 0,96%, à medida que se ampliava
o acesso ao saneamento. Em termos numéricos absolutos, verificou-se a redução da or-
dem de 670,73% no período enfocado. Destaque-se, por oportuno, que apenas os casos de
internação hospitalar foram considerados, sendo óbvia a existência de uma cifra negra,
relacionada aos muitos outros que podem ter sido resolvidos em atendimento domiciliar
(programa saúde da família) ou nos postos de saúde, que são modos de assistência médica
bastante difundidos, especialmente nos últimos anos (MURJA, 2009, p. 131).
Mas não é só. Outro ponto de máxima relevância abordado no estudo em questão
diz respeito ao custo do investimento, tomando-se por referencial a população de Lins no
ano de 2005. A partir desses parâmetros, constatou-se que a universalização do serviço
de tratamento de água e esgoto custou R$ 744,08 por habitante, o que equivalia a cerca de
sete dias de internação na Santa Casa daquela cidade – ao preço de R$ 150,00 por dia, à
época –, sendo, pois, evidente a vantagem alcançada com o investimento no saneamento
56
Sobre a Atuação da Defensoria Pública na Indução Política para Implementação do Saneamento Básico
básico (MURJA, 2009, p. 132). Ainda sob o enfoque econômico, há interessante compara-
ção que revela que o custo das 275 internações havidas em 1975, as quais ocuparam 2.254
leitos, seria suficiente para garantir o acesso de 5.409 pessoas à água e ao esgoto tratados
(MURJA, 2009, p. 132).
Por fim, o pesquisador faz questão de ressaltar que os benefícios alcançados a par-
tir da universalização do saneamento básico não podem ser resumidos àqueles econo-
micamente quantificáveis, sendo imensuráveis as vantagens obtidas no concernente às
melhorias na qualidade de vida, bem estar por ausência de moléstias, longevidade, des-
poluição ambiental etc (MURJA, 2009, p. 133).
Posto isso, cabe agora frisar a relação estreita que une ausência de saneamento
básico à causa histórica de criação da Defensoria Pública, qual seja, o atendimento aos
economicamente vulneráveis. Veja-se que:
[…] saúde ambiental é a parte da saúde pública que engloba os problemas resul-
tantes dos efeitos que o ambiente exerce sobre o bem-estar físico, social e mental
57
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
Ou seja,
Enfim, o cenário descrito revela “que o trato dos problemas ambientais nas cida-
des […] é tanto uma tarefa de natureza ambiental como social” (IANNI, 1999, p. 101).
Nesse contexto é que se entrelaçam a degradação ambiental enquanto fato, a pro-
teção jurídica do meio ambiente e os direitos fundamentais, que, apesar de tutelados
pelo Direito, restam sistematicamente violados em realidade. Isso porque é irrefutável
a assertiva que “a existência (e não apenas a dignidade) humana encontra-se ameaça-
da pela crise ambiental” (SARLET; FENSTERSEIFER, 2012, p. 34). Justamente por isso,
“considerando a insuficiência dos direitos de liberdade e mesmo dos direitos sociais, o
reconhecimento de um direito fundamental ao meio ambiente (ou à proteção ambiental)
constitui aspecto central da agenda político-jurídica contemporânea. Nesse contexto,
consoante pontua Perez Luño, a incidência direta do ambiente na existência humana
(sua transcendência para o seu desenvolvimento ou mesmo possibilidade) é o que jus-
tifica a sua inclusão no estatuto dos direitos fundamentais, considerando o ambiente
como todo o conjunto de condições externas que conformam o contexto da vida humana”
(SARLET; FENSTERSEIFER, 2012, p. 36).
58
Sobre a Atuação da Defensoria Pública na Indução Política para Implementação do Saneamento Básico
[...] Presentes os requisitos do artigo 273 do CPC, deve ser mantida a decisão
que concedeu a tutela antecipada. Havendo prova de que a água fornecida pela
CORSAN ao Município de Campina das Missões, à primeira análise, não possui
potabilidade, tendo sido atestada a presença de coliforme, conforme amostra re-
alizada SISAGUA, prudente a determinação de análise da água a cada quinzena
no prazo de 12 meses, a ser realizada pela CORSAN, conforme a decisão agrava-
da, a fim de evitar danos à saúde à população local, bem como a divulgação pelo
Município, mensalmente, do resumo da ação e das análises feitas, dando ciên-
cia aos munícipes acerca da qualidade da água fornecida, fiscalizando a coleta
e a análise da água pela empresa concessionária. Indevida a pretensão de que
as medidas determinadas para cumprimento pelo ente público sejam efetivadas
somente após o trânsito em julgado da ação, considerando-se que tais medidas
59
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
60
Sobre a Atuação da Defensoria Pública na Indução Política para Implementação do Saneamento Básico
6. CONCLUSÃO
Portanto, nesse contexto de violação ao meio ambiente com graves reflexos so-
ciais – como ilustramos a propósito do saneamento básico –, mostra-se imprescindível
e salutar a intervenção da Defensoria Pública. Trata-se de um pensar crítico e adiante,
de uma reflexão estratégica a partir de uma visão ampliada sobre complexos problemas.
Afinal, de nada adianta inflacionar o já esgotado Judiciário com ações que visam compe-
lir o Poder Público ao fornecimento de medicamentos e se esquecer de buscar as causas
do adoecimento da população, que direta ou remotamente se vinculam, por exemplo,
à poluição atmosférica não controlada ou às omissões estatais no que concerne ao tra-
tamento do esgoto despejado em rios cercados – sempre – por famílias em situação de
vulnerabilidade social.
Como destacado no início, embora não exista restrição quanto à legitimação da
Defensoria Pública para o ajuizamento de ações civis públicas, certo é que o foco de atu-
ação institucional deve conciliar, na maior medida possível, sua (da Defensoria Pública)
razão de ser com a nova roupagem que lhe foi conferida – exigida – pelo sistema legal.
Posto isso, emerge a necessidade de investimentos institucionais na ampliação do
acesso ao saneamento básico como pauta prioritária para a concretização dos direitos
fundamentais – de toda e qualquer dimensão –, prometidos pelo nosso Constituinte.
61
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
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Sobre a Atuação da Defensoria Pública na Indução Política para Implementação do Saneamento Básico
Organização das Nações Unidas. Resolution adopted by the General Assembly about
the human right to water and sanitation. Disponível em <http://www.un.org/ga/search/
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ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva
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63
LEGITIMAÇÃO EXTRAORDINÁRIA NA TUTELA INDIVIDUAL DE
PESSOAS QUE COMPONHAM GRUPOS SOCIAIS VULNERÁVEIS: A
ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA
Abstract: The representatives of the Public Defender Office in the day-to-day actions of
their encounter cases, notably involving people that make vulnerable social groups in
which these are at risk, and thus have no civil capacity or someone who represents them.
In these instances the Public Defender, although the case was urgent had to forward it
to the Public Prosecutor for this Union body to act as a substitute procedural, even under
the imminent danger of the time lapse of bureaucratic process the right that could be
health or life perish. The present work aims to expose, through a doctrinal and legislative
research, which according to the arts. 5 °, LXXIV and 134 of the Constitution of 1988, at
8. Deverá o autor, para uniformização dos trabalhos colocar um currículo resumido em nota de rodapé.
65
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
the constitutional level, respectively, in the face of the principle of full legal assistance
and application of the theory of implied powers whereby when the Constitution puts an
end for a Union body, it also gives you the means to do so, as well, by providing the art.
4 °, X and XI of LC n. 80/94, plus the LC n. 132/2009, the Public Defender’s Office as an
institution through its members acting in legitimacy can promote extraordinary claims
people who do not have legal capacity and not have anyone to represent them, granting
them their rights
1. INTRODUÇÃO
66
Legitimação Extraordinária na Tutela Individual de Pessoas que
Componham Grupos Sociais Vulneráveis: a atuação da Defensoria Pública
Mister assentar que o foco deste trabalho será trazer luzes para a possibilidade de
atuação da Defensoria Pública como Instituição em legitimação extraordinária na tutela
individual para as pessoas que componham grupos vulneráveis.
Noutro plano, esses novos objetivos do órgão estão promovendo uma perspectiva
de nova conformação, por isso a consolidação de reformas constitucionais que garantam
ao órgão sua necessária autonomia, permitirá o pleno desempenho com independência
funcional dos membros da carreira, tendo como corolário a efetivação dos direitos do
cidadão e da sociedade.
Destarte, é neste quadrante que se faz possível a atuação da Defensoria Pública
em legitimação extraordinária na tutela individual das pessoas que componham grupos
sociais vulneráveis.
Salienta-se que esta atuação em legitimação extraordinária só se dará quando a
pessoa destinatária da atuação estiver sem capacidade civil e mesmo sem ninguém que a
represente, portanto em total situação de vulnerabilidade.
Vale assinalar, que esta forma de atuar do órgão prevista no art. 4°, X e XI, da LC
n. 80/94, inserida pelas alterações promovidas pela LC n. 132/2009, já podiam ser extra-
ídas dos arts. 5°, LXXIV e 134 da Constituição Federal de 1988, os quais respectivamente
viabilizam a aplicação do princípio da assistência jurídica integral e da teoria dos pode-
res implícitos a permitir que a Instituição pudesse atuar naquelas ocasiões mencionadas
acima.
Antes de desenvolver os contornos da atuação da Defensoria Pública em legitima-
ção extraordinária se explanará acerca das novas atribuições e o fortalecimento do ór-
gão tendo como consequência a maior proteção jurídica do cidadão e da sociedade, bem
assim será analisado por quanto necessário o conceito, o histórico e o fundamento da
legitimação extraordinária.
Como poderá ser observado o trabalho aqui exposto para além de dogmático é
eminentemente pragmático na medida em que tem aplicação em diversas situações que
se apresentam na atuação do Defensor Público.
Destarte, os argumentos que serão declinados tem o condão de otimizar a atuação
dos membros da Defensoria Pública e no mesmo passo garantir com mais presteza o
exercício dos direitos daquelas pessoas que nem sabem que os possuem.
Noutro norte, vale mencionar que o trabalho se utilizou de pesquisa doutrinaria
e legislativa, notadamente de artigo jurídico escrito por este signatário, para a Revista
Jurídica Consulex, ano XIV, N° 327, 1° de setembro de 2010, Brasília, p. 54-56 com o títu-
lo “Legitimação Extraordinária na Tutela Individual da Criança e do Adolescente”, bem
assim na tese também escrita pelo autor e aprovada no XXIII Congresso da Associação
67
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
68
Legitimação Extraordinária na Tutela Individual de Pessoas que
Componham Grupos Sociais Vulneráveis: a atuação da Defensoria Pública
Porém as disposições que tratam do parquet delineiam melhor sua autonomia ad-
ministrativa.
Já no plano das Defensorias o delineamento é trazido na lei nacional, Lei Comple-
mentar n. 80/94, com as alterações da LC n. 132/2009.
Não obstante, quanto ao Ministério Público todos são uníssonos em dizer que é
órgão autônomo não pertencente ao Poder Executivo e a nenhum outro poder, tendo sua
natureza jurídica de função essencial à justiça.
Porém, mesmo após a Emenda Constitucional n. 45/2004, as vozes da doutrina e
jurisprudência, mais recentemente a súmula 421, do STJ manifesta como sendo a Defen-
soria Pública instituição pertencente ao Poder Executivo.
Espera-se, que como o reforço da manifestação legislativa pela promulgação da
Emenda Constitucional n. 74/2013, que supre lacuna anterior a qual não possuía sentido,
confere a autonomia já entregue às Defensorias Públicas dos Estados para a Defensoria
Pública da União e do Distrito Federal.
Contudo, contrariamente aquelas vozes acima suscitada, entendo estarem os que
pensam daquele modo, equivocados, haja vista que as bases, que sustentam poder dizer-
se o órgão do Ministério Público como não incorporado dentro do Executivo, estarem
previstas no âmbito normativo-constitucional da Defensoria Pública, quais sejam auto-
nomia funcional, administrativa e financeira.
Sendo certo, porém, que na realidade fática atual as disposições constitucionais
acima relacionadas no que tange às Defensorias Públicas vem sofrendo da síndrome
da inefetividade constitucional, ou seja, não vem sendo observadas, mesmo em face da
constatação de o órgão não possuir percentual fixo previsto na Lei de Responsabilidade
Fiscal (LRF – LC 101/2000, Art. 20, I e II), para despesa com pessoal diante da receita cor-
rente líquida do ente, inclusive valendo salientar ter havido no final do ano de 2012, veto
presidencial a projeto de lei aprovado na unanimidade pelas duas casas do Congresso
Nacional a preencher a lacuna ainda existente no ordenamento jurídico.
Referida consideração é de suma importância, pois a sua não implementação vem
tornando o sistema incongruente, considerando que os órgãos defensoriais em muitas
vezes necessitam demandar contra o próprio Estado-Executivo.
Com a consolidação do instrumento da tutela coletiva (Lei 7.347/85, art. 5, II) e a
atuação em demandas individuais de reflexo coletivo (LC n. 80/94, art. 4°, X e XI; e Lei
7.210/84 – LEP, arts. 61, VIII, 81-A e 81-B), isto se tornou mais evidente, tendo em vista que
as ingerências possíveis de ocorrerem são facilmente perceptíveis.
69
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
70
Legitimação Extraordinária na Tutela Individual de Pessoas que
Componham Grupos Sociais Vulneráveis: a atuação da Defensoria Pública
Essa regra tem por objetivo a garantia de que não se exporá o indivíduo a uma
situação da qual ele não quer tomar parte e, ainda, de que o indivíduo tem a li-
berdade de participar do processo que julga ter interesse seu” (Didier Jr. Fredier
e Zaneti Jr. Hermes. Curso de Direito Processual Civil – Processo Coletivo. 4 ed.
Salvador: JusPODIUM, 2009, v. 4, pág. 196).
71
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
O citado vínculo jurídico especial que Humberto Teodoro Júnior menciona capaz
de permitir a atuação do substituto processual, é valorado pelo legislador, conforme aci-
ma observado.
Portanto, dentro dessa concepção liberal alinhavada na lei adjetiva brasileira se
tem como fundamento do instituto a valoração feita pelo legislador, a qual cria um vin-
culo jurídico especial entre substituto e substituído.
72
Legitimação Extraordinária na Tutela Individual de Pessoas que
Componham Grupos Sociais Vulneráveis: a atuação da Defensoria Pública
mesmo órgão dos meios necessários a realização dos fins que lhe foram atribuídos” (MS
26.547 – MC/DF Rel. Min. Celso de Mello, j. 23.05.2007) (LENZA, Pedro. Direito Constitu-
cional Esquematizado, 11. ed., rev. atual. e ampl. São Paulo: Método, 2011, p. 156) eviden-
cia mais ainda que a Defensoria Pública para garantir o direito dos seus assistidos pode
como instituição utilizar-se dos mais diversos meios para tal desiderato.
No mesmo sentido Uadi Lamego Bulos (BULOS, Uadi Lamego. Constituição Fede-
ral Anotada. 9 ed., ver. e atual. até a EC n.° 57/2008. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 1156) cita
decisão do Superior Tribunal de Justiça aplicando a referida teoria e de forma diretamen-
te direcionada à Defensoria Pública, nos seguintes termos:
De todo modo, o art. 4º, incs. X e XI, da LC nº. 80/94, com as alterações da LC
132/2009, Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública, enfatizam e são esclarecedores
no sentido da viabilidade da atuação da Defensoria Pública, como substituto processual.
Outrossim, vale consignar, que a missão institucional da Defensoria Pública foi
repaginada, conforme dispõe o artigo 1º, da LC 80/94, alterada pela LC 132/09:
Destarte, a sua forma de atuação também deve ser reinterpretada, inclusive o pa-
recer da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, que pode se
entender como mens legis, da Lei Complementar n. 132/2009, assinala o seguinte:
Assim de acordo com o artigo 1º do Projeto a Defensoria passa a ser definida como ‘expres-
são e instrumento do regime democrático’. Ela fica expressamente legitimada ‘a promover
a mais ampla defesa dos direitos fundamentais’, sendo admissíveis ‘todas as espécies de
ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela’, como não poderia deixar de ser,
tendo em vista o pré-falado princípio da assistência jurídica integral.” (Parecer CCJC do
Senado Federal, relator: Antônio Carlos Valadares, II – Análise, pág. 08-09).
73
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
Nesse diapasão, por exemplo, a Defensoria Pública como instituição pode propor
ação de destituição do poder familiar ou qualquer outra ação em defesa de criança ou
adolescente, com o fito de lhe garantir a proteção integral, mencionada no art. 1°, do Es-
tatuto da Criança e do Adolescente, bem como na Convenção sobre os Direitos da Crian-
ça (1989).
Da mesma forma, pode ainda ajuizar as mais diversas ações com o fito de assegu-
rar o direito do idoso, das pessoas com deficiência, mulheres vítima de violência domés-
tica e familiar e de indivíduos que componham outros grupos sociais vulneráveis.
Corroborando com o acima asseverado é o texto do art. 4º, X e XI, da LC nº. 80/94
com as alterações da LC 132/2009, Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública, que as-
sim dispõe:
Toda inovação legislativa de início pode causar impacto, porém não se pode deixar
que os benefícios trazidos pela nova lei se esvaziem.
O novel diploma legal expressa sem dúvida uma mudança de paradigma, diante da
expansão das atribuições da Defensoria Pública, para lhe permitir não só uma atuação
como de regra acontecia, ou seja, representando o titular do direito material, lhe dando
voz no processo, para agora possibilitar, quando necessário, o exercício da legitimação
extraordinária.
Isto implica um avanço significativo na garantia dos direitos da criança e do
adolescente e demais sistemas de garantia de direitos, pois, por vezes, existem casos
na vida profissional de um Defensor Público em que não há pessoas com capacidade
civil para representar os sujeitos de direitos acima declinados, mas, se faz urgente a
atuação, sob pena do perecimento do direito, o qual poderá ser, por exemplo, a vida, a
saúde, entre outros.
74
Legitimação Extraordinária na Tutela Individual de Pessoas que
Componham Grupos Sociais Vulneráveis: a atuação da Defensoria Pública
Na tutela de criança e adolescente a disposição do art. 201, inc. III, do ECA, o art. 2º,
§ 5º, da Lei 8.560/92, assim como na tutela do idoso, art. 74, II e III, da Lei n. 10.741/2003
– Estatuto do Idoso, só reconhecia ao Ministério Público a mencionada atuação como
substituto processual, ocorre que, por muitas vezes, casos que ensejassem essa forma de
proceder por primeiro poderia chegar à Defensoria Pública, e o Defensor Público só tinha
como opção o encaminhamento ao Órgão Ministerial.
Contudo, tomando como exemplo uma demanda que envolvesse perigo para
criança ou adolescente a comunicação entre os órgãos poderia representar um lapso de
tempo irremediável, podendo significar um risco ainda maior para aquele ser humano
em desenvolvimento como em uma circunstância de determinada criança se encontrar
exposta ao consumo de drogas pela sua mãe ou mesmo um paciente inconsciente em
uma maca de corredor de hospital que o Defensor Público identifique em inspeção no
estabelecimento, entre outros exemplos de igual natureza.
Nesses casos, a Defensoria Pública é mais um órgão apto a pleitear os direitos dos
mais vulneráveis em legitimação extraordinária, o que a lei fez foi fortalecer a atuação
dos Órgãos Defensoriais.
Por oportuno, não se pode olvidar o entendimento de que tal permissão já se podia
extrair do próprio texto constitucional como acima foi explicitado.
Na Ação de Destituição do Poder Familiar, processo n. 0001549-83.2009.814.0070,
em que figurou como parte no pólo ativo Defensoria Pública do Estado do Pará e no Pólo
passivo F.S.P., o Juiz da 1ª Vara da Infância e Juventude da Comarca de Abaetetuba, após
a exposição dos motivos acima declinados deferiu o processamento do feito e a liminar
de suspensão do poder familiar, entendendo que consoante o advento das alterações na
Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública a instituição é legitimada para atuar como
substituto processual na defesa da criança e do adolescente.
5. CONCLUSÃO
75
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
REFERÊNCIAS:
76
Legitimação Extraordinária na Tutela Individual de Pessoas que
Componham Grupos Sociais Vulneráveis: a atuação da Defensoria Pública
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77
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 41ª ed. Rio de Janei-
ro: Forense, 2004.
78
REINVENTAR O ACESSO À JUSTIÇA EM TEMPOS DE TRANSIÇÃO
PARADIGMÁTICA: NOTAS SOBRE O PAPEL DA DEFENSORIA
PÚBLICA DE SÃO PAULO E DOS NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS NA
DESCOLONIZAÇÃO DA JUSTIÇA NO BRASIL
Abstract: The paper aims to discuss the process of reinvention of Justice Access promoted
by Public Defender of São Paulo with the new social movements inside the context of
descolonial and anticapitalist paradigmatic transition.
Keywords: Justice Access; Public Defender of São Paulo; Social Movements; Postcolonial
thought; descolonial Justice.
9. Defensor Público do Estado de São Paulo. Doutorando em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Univer-
sidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).
79
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
10. Cf. HARVEY, David; ZIZEK, Slavoj; et. al. Occuupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas. São
Paulo: Boitempo: 2012.
11. Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 10.ed. São
Paulo: Cortez, 2005. p. 77.
80
Reinventar o Acesso à Justiça em Tempos de Transição Paradigmática: notas sobre o papel da
Defensoria Pública de São Paulo e dos novos movimentos sociais na descolonização da justiça no Brasil
12. Não obstante renomados filósofos, como, por exemplo, Alain Badiou e Slavoj Zizek continuam a defender
a “hipótese comunista” como a alternativa à crise do sistema-mundo capitalista. Confira, a este respeito:
BADIOU, Alain; ZIZEK, Slavoj. L´idée du communisme. Clamecy: 2010. Na leitura de Maldonado-Torres,
Zizek “... representa a mais alta expressão da angústia das raízes que caracterizou o projeto esquerdista na
Europa e também nos EUA. A sua busca de raízes não é totalmente diferente da de Heidegger. À semelhança
deste, na obra de Zizek está presente uma crítica extrema à modernidade ocidental e, simultaneamente,
uma tentativa de salvar o Ocidente. A diferença reside no facto de Heidegger se ter voltado para o fascismo
e o germanocentrismo, enquanto Zizek recupera o marxismo, o eurocentrismo e uma versão ortodoxa do
cristianismo ocidental”. MALDONADO-TORRES, Nelson. A topologia do ser a geopolítica do conhecimento.
Modernidade, império e colonialidade. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (org).
Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. p. 428.
13. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1989. p. 149-150.
81
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
Assim, fervilham lutas de movimentos sociais para superação das explorações de-
correntes de outras mais-valias ou dimensões de injustiça, para além da clássica mais-
valia econômica desvelada genialmente por Karl Marx, dentre as quais se destacam a
mais-valia ou injustiça racial, étnico-cultural, sexual, cognitiva, ambiental e histórica.14
As injustiças cometidas pelo exercício de micropoderes ocorrem sob o manto dos
regimes políticos democráticos de cariz liberal,15 de maneira que o fascismo estatal, de
que se lançou mão o capitalismo para garantir com violência e autoritarismo sua hege-
monia em alguns países europeus no início do século XX, cede espaço ao fascismo so-
cial,16 ou seja, o “fascismo de leão” dá lugar ao “fascismo de raposa”, consoante a feliz
metáfora do filósofo Michel Onfray.17
Daí porque, tornam-se obsoletas e pouco eficazes as tentativas de resistência às
dominações capilarizadas nas redes de poderes micrológicas levadas a cabo pelos velhos
movimentos sociais com programas políticos emancipatórios, na medida em que o fas-
cismo pluralista demanda uma resistência plural e descontínua, encenada por múltiplos
sujeitos, interligados em redes de contra-poderes, o que talvez explique a insurgência e o
protagonismo dos novos movimentos sociais na arena pública do debate político.
Evidentemente, os papéis, os propósitos e as ações desses novos movimentos so-
ciais variam em conformidade com os contextos histórico-geopolíticos em que estão
inseridos. Nessa esteira, não obstante a globalização hegemônica, decorrente do desen-
14. Cf. SANTOS, op. cit., 2005, p. 260. Cf. SANTOS, Boaventura. Para uma revolução democrática da justiça.
2.ed. São Paulo: Cortez, 2008. p. 34. “A novidade maior dos NMS [novos movimentos sociais] reside em que
constituem tanto uma crítica da regulação social capitalista, como uma crítica da emancipação social socia-
lista tal como ela foi defendida pelo marxismo. Ao identificar novas formas de opressão que extravasam das
relações de produção e nem sequer são específicas delas, como sejam a guerra, a poluição, o machismo, o
racismo ou o produtivismo, e ao advogar um novo paradigma social menos assente na riqueza e no bem-es-
tar material do que na cultura e na qualidade de vida, os NMSs denunciam, com uma radicalidade sem pre-
cedentes, os excessos de regulação da modernidade. Tais excessos atingem, não só o modo como se trabalha
e produz, mas também o modo como se descansa e vive; a pobreza e as assimetrias das relações sociais são
a outra face da alienação e do desequilíbrio interior dos indivíduos; e, finalmente, essas formas de opressão
não atingem especificamente uma classe social e sim grupos sociais transclassistas ou mesmo a sociedade no
seu todo”. SANTOS, op. cit., 2005, p. 258.
15. Não é sem razão que o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial condicionam a alguns países a
liberação de recursos financeiros à adoção do modelo ocidental de democracia liberal representativa. Aliás,
as recentes intervenções militares dos Estados Unidos da América no Afeganistão e no Iraque foram justifi-
cadas também pela ausência desse regime político nestes países.
16. “Não se trata do regresso ao fascismo dos anos trinta e quarenta do século passado. Ao contrário deste úl-
timo, não se trata de um regime político, mas antes de um regime social e civilizacional. Em vez de sacrificar
a democracia às exigências do capitalismo, promove a democracia até o ponto de não ser necessário, nem
sequer conveniente, sacrificar a democracia para promover o capitalismo. Trata-se, pois, de um fascismo
pluralista e, por isso, de uma forma de fascismo que nunca existiu”. SANTOS, Boaventura de Sousa. A gra-
mática do tempo: para uma nova cultura política. 3.ed. São Paulo: Cortez, 2006. p. 333.
17. Cf. ONFRAY, Michel. A potência de existir. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 127-129.
82
Reinventar o Acesso à Justiça em Tempos de Transição Paradigmática: notas sobre o papel da
Defensoria Pública de São Paulo e dos novos movimentos sociais na descolonização da justiça no Brasil
18. A título de exemplo, não se encontram nos países do Norte movimentos de trabalhadores rurais sem-ter-
ra, movimentos indígenas e movimentos quilombolas.
19. O sociólogo peruano Aníbal Quijano explica que “a colonialidade é um dos elementos constitutivos e espe-
cíficos do padrão mundial do poder capitalista. Sustenta-se na imposição de uma classificação racial/étnica
da população do mundo como pedra angular do referido padrão de poder e opera em cada um dos planos,
meios e dimensões, materiais e subjetivos, da existência social quotidiana e da escala societal. Origina-se e
mundializa-se a partir da América. Com a constituição da América (latina), no mesmo momento e no mesmo
movimento históricos, o emergente poder capitalista torna-se mundial, os seus centros hegemônicos locali-
zam-se nas zonas situadas sobre o Atlântico – que depois se identificarão como Europa – e como eixos cen-
trais do seu novo padrão de dominação estabelecem-se também a colonialidade e a modernidade. Em pouco
tempo, com a América (latina) o capitalismo torna-se mundial, eurocentrado, e a colonialidade e modernida-
de instalam-se associadas como eixos constitutivos do seu específico padrão de poder, até hoje.” QUIJANO,
Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria
Paula (org). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. p. 84-85.
20. Cf. SANTOS, op. cit., 2006, p. 28. “Colonialidade é um conceito diferente de, ainda que vinculado a, Colo-
nialismo. Este último refere-se estritamente a uma estrutura de dominação/exploração onde o controle da
autoridade política, dos recursos de produção e do trabalho de uma população determinada domina outra
de diferente identidade e cujas sedes centrais estão, além disso, localizadas noutra jurisdição. Mas nem sem-
pre, nem necessariamente, implica relações racistas de poder. O colonialismo é, obviamente, mais antigo,
enquanto a Colonialidade tem vindo a provar, nos últimos 500 anos, ser mais profunda e duradoira que o co-
lonialismo. Mas foi, sem dúvida, engendrada dentro daquele e, mais ainda, sem ele não poderia ser imposta
na intersubjetividade do mundo tão enraizado e prolongado”. Ibid., p. 84.
83
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
84
Reinventar o Acesso à Justiça em Tempos de Transição Paradigmática: notas sobre o papel da
Defensoria Pública de São Paulo e dos novos movimentos sociais na descolonização da justiça no Brasil
A luta dos novos movimentos sociais do Sul relaciona-se, muitas vezes, à resistên-
cia ante as opressões e injustiças de classe, raça, etnia, gênero, etc, resultantes da lógica
de apropriação/violência, que perdura nesses territórios e se universalizam em todo o
sistema-mundo. Graças a elas o projeto sócio-cultural da Modernidade constituiu-se e
desenvolveu-se capitalista e colonial; somente com a superação delas, a transição para-
digmática poderá ser anticapitalista e descolonial. Não é das menores, pois, a responsa-
bilidade dos novos movimentos sociais.
24. Cf. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie. Porto Alegre: Sérgio An-
tonio Fabris, 1988. p. 15 e ss.
25. Cf. Ibid. p. 11.
85
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
entidades conveniadas, dentre as quais a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), pouco
conseguiu avançar na superação de obstáculos para a realização efetiva de justiça para o
“bloco social dos oprimidos” do estado,26 constituído por grupos vulneráveis vitimizados
por opressões históricas em razão da classe social, raça, gênero, opção sexual, etnia, etc.
Com efeito, o acesso à justiça no Estado de São Paulo limitava-se à assistência ju-
diciária, ou seja, à defesa em processos criminais e propositura de demandas judiciais,
invariavelmente em busca de tutela de interesses individuais, nos foros e tribunais, sem
qualquer prestação de orientação jurídica, resolução extrajudicial de conflitos, atua-
ção conjunta com movimentos sociais populares, absorção de pleitos jurídico-políticos
emancipatórios da sociedade civil organizada e muito menos educação em direitos para
garantir o empoderamento das pessoas e o exercício da cidadania nos mais variados es-
paços sociais.27
Tratava-se, pois, de um serviço assistencial, percebido não raras vezes pelos pró-
prios prestadores e usuários como caritativo, impotente para a realização de direitos
humanos e, por conseguinte, fazer resistência às relações de poder colonizadoras, por-
quanto era vinculado ao Poder Executivo - que, não raras vezes, reforçava (e continua a
reforçar!) por meio de suas políticas públicas e atuação de agentes estatais as injustiças
históricas de que são vítimas os grupos sociais subalternos -, restringia-se ao espaço es-
tatal, olvidando-se a produção jurígena para além do Estado (fenômeno do pluralismo
jurídico) e reproduzia a cultura liberal-normativista do positivismo jurídico, com todos
os seus vícios e mitos, essenciais para a manutenção do status quo.
Esse problema não passou despercebido pelos novos movimentos sociais e entida-
des da sociedade civil organizada que lutam por direitos no estado, na medida em que
mais de 400 (quatrocentos) deles passaram a integrar em 2002 o Movimento pela Criação
da Defensoria Pública no Estado de São Paulo (MDPESP).28
26. DUSSEL, op. cit., p. 159.
27. De acordo com a tipologia das assessorias jurídicas traçada pelo Prof. Celso Campilongo, o serviço de
assistência jurídica prestada pela Procuradoria do Estado em parceria com as entidades convenentes, com
destaque para a OAB, era “tradicional”, ao passo que os “serviços inovadores”, com declarado propósito de
transformação social, ficavam a cargo da advocacia popular e de alguns núcleos de assessoria jurídica po-
pular. Cf. CAMPILONGO, Celso Fernandes. Assistência jurídica e advocacia popular: serviços legais em São
Bernardo do Campo. In: O Direito na Sociedade Complexa. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 17-49. Sobre o perfil
da advocacia popular no Brasil, conferir: JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Los abogados populares: em busca
de uma identidad. El Otro Derecho. nº 26-27. ILSA, Bogotá: 2002. Disponível online em: http://ilsa.org.co:81/
biblioteca/dwnlds/od/elotrdr026-27/elotrdr026-27-09.pdf.
28. Cf. HADDAD, Eneida Gonçalves de Macedo. Os desígnios do Estado e a criação da Defensoria Pública
do Estado de São Paulo. In: HADDAD, Eneida Gonçalves de Macedo (org). A Defensoria Pública do Estado
de São Paulo: por um acesso democrático à justiça. São Paulo: Letras jurídicas, 2011. p. 26. “Os movimen-
tos sociais têm exercido papel importante na ampliação do acesso à justiça. As teorias a eles referentes são
produtos de mudanças históricas. Conforme Maria da Glória Gohn, os movimentos sociais na contempora-
neidade inserem-se na crise da modernidade e na emergência de novas racionalidades. (...) Gohn classifica
86
Reinventar o Acesso à Justiça em Tempos de Transição Paradigmática: notas sobre o papel da
Defensoria Pública de São Paulo e dos novos movimentos sociais na descolonização da justiça no Brasil
os movimentos sociais atuais em movimentos identitários (“os que lutam por direitos sociais, econômicos,
políticos e culturais, nos quais podem ser incluídas as lutas das mulheres, dos idosos, dos afro-descendentes,
dentre outros”), movimentos voltados à melhoria das condições de vida e de trabalho, no meio urbano ou
rural (“que demandam acesso e condições para terra, moradia, alimentação, educação, saúde, transportes,
lazer, emprego, salário etc.) e, finalmente, movimentos globais ou globalizantes. (...) Foi possível constatar
que, através de práticas voltadas à melhoria, modernização e transformação do sistema de justiça brasileiro,
os serviços disponibilizados pela Defensoria Pública paulista contemplam as reivindicações dos movimentos
identitários e dos que lutam por melhores condições de vida e de trabalho”. Ibid., p. 30.
29. Para além de todos órgãos de execução, os Núcleos Especializados, dentre os quais, o Núcleo de Cida-
dania e Direitos Humanos, o Núcleo dos Direitos da Mulher, o Núcleo da Infância e Juventude, o Núcleo de
combate à Discriminação, o Núcleo dos Direitos do Idoso e da Pessoa com Deficiência, o Núcleo de defesa do
Consumidor e o Núcleo de Situação Carcerária, possuem papel fundamental na atuação articulada com os
movimentos sociais na luta contra essas injustiças.
30. Sobre a construção da identidade de uma “Defensoria Pública Popular”, conferir texto do professor Antô-
nio Alberto Machado: http://blogs.lemos.net/machado/2011/08/19/defensoria-publica-popular/.
31. Os destinatários dos serviços da Defensoria Pública compreendem os “subintegrados”, na terminologia
do professor Marcelo Neves: “... os sobreintegrados têm acesso aos direitos (e, portanto, às vias e garantias ju-
rídicas), sem se vincularem efetivamente aos deveres e às responsabilidades impostas pelo sistema jurídico;
87
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
pelo Poder Judiciário dessas históricas relações assimétricas de poder, a Defensoria Pú-
blica deverá atuar para além do espaço estatal de produção jurígena oficial, difundindo
e cultivando uma nova cultura jurídica, que reconheça a complexidade, dinamicidade e
multidimensionalidade do fenômeno jurídico,32 em diálogo permanente com os movi-
mentos sociais e entidades da sociedade civil organizada.
Se os mecanismos de exercício de poder encontram-se não só no aparelho estatal,
mas também à margem, ao largo e abaixo do Estado, as vulnerações de dimensões da dig-
nidade humana e, com elas, as violações de direitos humanos fundamentais, terão de ser
combatidas a fim de se realizar o acesso à justiça também fora da arena judicial, através
da construção de garantias não-jurídicas, que devem conviver com as tradicionais ga-
rantias jurídicas estatais e as não tanto convencionais garantias jurídicas não-estatais.33
Nessa esteira, constatado o fenômeno do pluralismo jurídico, de acordo com o
qual há manifestações jurídicas com eficácia social para além do direito oficial estatal,
a Defensoria Pública deve empreender esforços para que a regulação jurídica trans-es-
tatal se realize de forma emancipatória, comunitário-participativa e radicalmente de-
mocrática.34
Evidentemente, a “justiça de rotina”,35 por meio da qual se realizam demandas judi-
ciais de direito de família e direito civil, tais como ações de divórcio, alimentos, interdição,
os subintegrados, ao contrário, não dispõem de acesso aos direitos, às vias e garantias jurídicas, embora per-
maneçam rigorosamente subordinados aos deveres, às responsabilidades e às penas privativas de liberdade”.
NEVES, Marcelo. Entre Themis e Leviatã: uma relação difícil: o Estado Democrático de Direito a partir e
além de Luhmann e Habermas. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 253.
32. Nas lições do professor Antônio Alberto Machado, “... o direito é um fenômeno multidimensional, inte-
grado por fatores sociais, políticos, econômicos, culturais e normativos. Aqui o fator normativo surge apenas
como epifenômeno da realidade ôntica do direito, não a sua única manifestação, num reconhecimento de
que o ‘ser’ jurídico resulta mesmo de uma composição complexa e multifacetada, com uma dimensão formal
(norma) e outra substantiva (sócio-econômica-política e cultural)”. MACHADO, Antônio Alberto. Ensino ju-
rídico e mudança social. Franca: Unesp, 2005. p. 66.
33. Trata-se da proposta de David Sánchez Rubio, professor da Universidade de Sevilha: Cf. SÁNCHEZ RU-
BIO, David. Encantos y desencantos de los derechos humanos: de emancipaciones, liberaciones y domina-
ciones. Barcelona: Icaria. p. 38-39. Nessa esteira, a Defensoria Pública realiza anualmente o “Curso de for-
mação de defensores populares”, objetivando-se sensibilizar e empoderar lideranças comunitárias para a
realização de direitos humanos a partir de garantias não-jurídicas.
34. “As experiências e as práticas cotidianas dos movimentos sociais acabam redefinindo, sob os liames
do pluralismo político e jurídico comunitário-participativo, um espaço ampliado que minimiza o papel do
‘institucional/oficial/formal’ e exige uma ‘participação’ autêntica e constante no poder societário, quer na
tomada e controle de decisões, quer na produção legislativa ou da resolução dos conflitos. Por conseguinte,
a ‘participação’ propicia que a comunidade atuante decida e estabeleça os critérios do que seja ‘legal’, ‘jurí-
dico’ e ‘justo’, levando em conta sua realidade concreta e sua concepção valorativa de mundo”. WOLKMER,
Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito. 3.ed. São Paulo: Alfa-o-
mega, 2001. p. 339.
35. SANTOS, op. cit., 2008, p. 29.
88
Reinventar o Acesso à Justiça em Tempos de Transição Paradigmática: notas sobre o papel da
Defensoria Pública de São Paulo e dos novos movimentos sociais na descolonização da justiça no Brasil
possessórias, reparações de danos e obrigações em geral, dentre outras, assim como de-
fesas em processos criminais, é fundamental para o acesso à justiça dos destinatários do
serviço.
A grande novidade na reinvenção do acesso à justiça se encontra no que ora deno-
minamos “justiça descolonial”, ou seja, aquela que supera relações assimétricas do poder
colonial, fundadas em opressões de classe, raça, gênero, dentre outras, funcionais para a
reprodução do sistema capitalista, de sorte a resistir ao fascismo social ou “fascismo de
raposa” que estamos vivendo.
Para realizá-la e, por conseguinte, reinventar o acesso à justiça, é fundamental a
proximidade da Defensoria Pública paulista com os movimentos sociais negro, dos tra-
balhadores rurais sem-terra, indígena, quilombola, feminista, GLBT (gays, lésbicas, bis-
sexuais e transexuais), ambientalista, de moradia, da população em situação de rua, das
pessoas com deficiência, das mães do cárcere, etc.36
São, portanto, os vitimizados, herdeiros daqueles com cujo sangue e suor o Brasil
se fez, triturando-os em “moinhos de gastar gente”, conforme Darcy Ribeiro, que devem
nortear a caminhada institucional na busca pela justiça e construção de uma sociedade
solidária.37
36. Em que pese o curto período de existência, a Defensoria Pública paulista já promoveu ações desco-
lonizadoras, questionando, às vezes com êxito na seara judicial, injustiças historicamente vividas por
grupos sociais representados por alguns desses movimentos sociais. Dentre as atuações mais recentes,
circunscritas do final do ano de 2011 aos dias que correm, estão a luta pelo direito à moradia no caso “Pi-
nheirinho” em São José dos Campos, a proteção da população em situação de rua na “Operação sufoco”
na região da “crackolândia” na cidade de São Paulo, a defesa das presas gravídicas que estavam sendo
obrigadas a dar à luz algemadas também na capital, a luta pelo direito à terra, identidade e memória
das comunidades quilombolas na região de Registro no Vale do Ribeira e a resistência contra a crimi-
nalização da pobreza, pela garantia da liberdade da população em situação de rua na cidade de Franca,
acusada de incorrer em contravenção penal de vadiagem e impedida de ocupar o espaço público. Para
um diagnóstico positivo e elogioso da instituição, conferir: CASARA, Rubens. Indignados: o exemplo da
Defensoria Pública de São Paulo. Disponível em: http://naopassarao.blogspot.com.br/2012/02/indigna-
dos-o-exemplo-da-defensoria.html.
37. “Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros
somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se con-
jugaram para fazer de nós a gente sentida e a sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também
somos. Descendentes de escravos e senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada
e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo
exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto da nossa fúria.
A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma
e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade
brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos. Ela, porém, provo-
cando crescente indignação nos dará forças, amanhã, para conter os possessos e criar aqui uma sociedade
solidária”. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2.ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 1995. p. 120.
89
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
A função da Defensoria Pública nesse processo é criar espaços para que esses viti-
mizados, subintegrados ou subalternos possam falar e ser ouvidos,38 ainda que em pro-
cessos judiciais, com cujas linguagens, tradicionalmente, erigem-se novos obstáculos
para o acesso à justiça. Deve a Defensoria Pública criar condições para que mulheres,
crianças, índios, negros, homossexuais, encarcerados, pessoas com deficiência, idosos e
sem-direitos em geral toquem os sinos quando se deva anunciar aos quatros cantos do
mundo que a justiça esteja sendo assassinada.39
CONCLUSÕES
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
38. Cf. SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar?. Trad. Sandra Regina Goulart Almeida et. al.
Belo Horizonte: UFMG, 2010.
39. Cf. SARAMAGO, José. Da justiça à democracia, passando pelos sinos. Disponível em: http://www.revista-
forum.com.br/conteudo/detalhe_materia.php?codMateria=1960.
40. No “outro mundo possível” haverá um dever fundamental, o dever de amar sem medida, e será incluído
no rol de crimes contra a humanidade o delito de amoricídio, cujo tipo penal disporá: “Amar sem amor. Pena:
cem anos de compaixão”.
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Reinventar o Acesso à Justiça em Tempos de Transição Paradigmática: notas sobre o papel da
Defensoria Pública de São Paulo e dos novos movimentos sociais na descolonização da justiça no Brasil
HARVEY, David; ZIZEK, Slavoj; et. al. Occuupy: movimentos de protesto que tomaram as
ruas. São Paulo: Boitempo: 2012
NEVES, Marcelo. Entre Themis e Leviatã: uma relação difícil: o Estado Democrático de
Direito a partir e além de Luhmann e Habermas. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2.ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
91
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a
uma ecologia de saberes. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula
(org). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.
_______. Para uma revolução democrática da justiça. 2.ed. São Paulo: Cortez, 2008.
_______. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3.ed. São Paulo: Cortez,
2006.
_______. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 10.ed. São Paulo:
Cortez, 2005.
SARAMAGO, José. Da justiça à democracia, passando pelos sinos. Disponível em: http://
www.revistaforum.com.br/conteudo/detalhe_materia.php?codMateria=1960.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar?. Trad. Sandra Regina Goulart Al-
meida et. al. Belo Horizonte: UFMG, 2010.
92
DEFENSORIA PÚBLICA FORTALECIDA: ÚNICO CAMINHO PARA A
EFETIVIDADE DO ACESSO À JUSTIÇA PELO CARENTE DE RECURSOS
Resumo: A partir de uma análise histórica dos Direitos Fundamentais, visa o presente
trabalho contextualizar os direitos à defesa, à assistência jurídica integral e gratuita e
ao acesso à justiça no âmbito da justiça brasileira, de modo a verificar como o Estado
tem assegurado ao hipossuficiente a garantia do acesso à justiça, e mais especificamente,
através da Defensoria Pública enquanto instrumento de garantia do efetivo exercício dos
direitos fundamentais.
Abstract:
From a historical analysis of Fundamental Rights, the present paper aims to con-
textualize defense rights, free legal aid and access to justice within the Brazilian justice,
in order to check whether the state has assured poorer workers access to justice, and
more specifically, through the Public Defender’s Office as an instrument for ensuring the
effective exercise of fundamental rights.
41. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais e em Comércio Exterior pela Faculdade
de Ciências Gerenciais – UMA; Pós-graduada em Direito da Empresa e da Economia pela FGV; Pós-graduada
em Direito Processual pela PUC-Minas; Pós-graduada em Gestão Pública pela Fundação João Pinheiro; De-
fensora Pública atualmente exercendo o cargo de Chefe de Gabinete da DPMG
93
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
1. INTRODUÇÃO
Objetiva o presente trabalho, a partir de uma análise histórica dos Direitos Fun-
damentais, contextualizar os direitos à defesa, à assistência jurídica integral e gratuita e
ao acesso à justiça (CF, art. 5º, inc. LV, LXXIV, e XXXV), no âmbito da justiça brasileira, e
se propõe a verificar se o Estado tem assegurado ao hipossuficiente a garantia do acesso
à justiça, mais especificamente, através da Defensoria Pública (CF, art. 134), enquanto
instrumento de garantia do efetivo exercício dos direitos fundamentais, notadamente
aqueles sociais e diretamente relacionados às ações estatais positivas.
Procura-se, também, enfatizar a importância do livre acesso ao Poder Judiciário
por aqueles mais necessitados, como uma das mais relevantes garantias de efetivação
dos direitos sociais, prevista, inclusive, na Constituição da República.
Ao mesmo tempo, busca-se refletir sobre as limitações que as Defensorias Públicas
enfrentam na prática, ao tentarem concretizar o acesso à justiça pelo mais pobre.
2. TERMINOLOGIA
A primeira questão que se levanta com respeito à Teoria dos Direitos Fundamen-
tais é se as expressões direitos humanos, direitos do homem e direitos fundamentais podem ser
usadas indiferentemente.
Nota-se o emprego mais freqüente de direitos humanos e direitos do homem entre au-
tores anglo-americanos e latinos, enquanto a expressão direitos fundamentais parece ficar
circunscrita à preferência dos publicistas alemães, “como designativos de certas posições
ou situações jurídicas básicas dos indivíduos perante o Estado ou como autolimitação
do poder soberano estatal em benefício de determinadas esferas de interesse privado”
(SAMPAIO, 2004, p.08).
A partir da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, restringiu-se a
expressão direitos humanos ora ao plano filosófico, ora a sua dimensão internacional, sen-
do os direitos válidos para todos os povos ou para o homem, independente do contexto
social, reconhecidos em vários documentos internacionais.
Os direitos fundamentais são aqueles juridicamente válidos em um determinado or-
denamento jurídico (dimensão nacional dos direitos humanos).
A multiplicidade terminológica ocorre no Brasil, em que a Constituição de 1988,
ao mesmo tempo adota o título Dos Direitos e Garantias Fundamentais, no art. 4º, II, defi-
ne como princípio das relações internacionais a prevalência dos direitos humanos, quando
94
Defensoria Pública Fortalecida: único caminho para a efetividade do acesso à justiça pelo carente de recursos
elenca as cláusulas pétreas refere-se aos direitos e garantias individuais (art. 60, parágrafo
4º, IV) e quando trata dos princípios sensíveis fala em “direitos da pessoa humana” (art.
34, VII, b).
Para José Afonso da Silva, há complementaridade das terminologias, “empregan-
do o termo direitos fundamentais do homem para significar tanto os direitos fundamentais da
pessoa humana quanto os direitos humanos fundamentais” (SAMPAIO, 2004, p. 21; AFONSO
DA SILVA, 1992, p.164).
Nesse contexto, apesar da importância da precisão lingüística para a Teoria do
Direito, percebe-se que os mais renomados constitucionalistas modernos adotam as ex-
pressões indistintamente, a despeito da tendência em se preferir utilizar a expressão di-
reitos fundamentais.
Com relação aos direitos fundamentais, Carl Schmitt estabeleceu dois critérios
formais de caracterização: pelo primeiro, designa como direitos fundamentais todos os
direitos ou garantias nomeados e especificados no instrumento constitucional; pelo se-
gundo, os direitos fundamentais são aqueles que receberam da Constituição um grau
mais elevado de garantia ou de segurança, sendo imutáveis ou pelo menos de mudança
dificultada.
Já do ponto de vista material, os direitos fundamentais, segundo Schmitt, variam
conforme a ideologia, a modalidade de Estado, a espécie de valores e princípios que a
Constituição consagra. Em suma, cada Estado tem seus direitos fundamentais específi-
cos. (BONAVIDES, 2009, p. 561).
Nesse passo, no plano histórico, especificamente após a Segunda Guerra Mundial,
destaca-se que a ciência jurídica passou por uma profunda transformação, repercutindo
numa nova fase denominada “Neoconstitucionalismo” (ou neopositivismo, pós-positi-
vismo ou positivismo reconstruído), criando, assim, uma nova visão da ciência jurídica,
a qual refletiu em todos os demais ramos do Direito.
Dentre as principais características desse neoconstitucionalismo, tem-se, em pri-
meiro, o reconhecimento da força normativa da Constituição, e, em segundo, a consa-
gração da Teoria dos Princípios, pela qual o princípio se enquadra hoje como espécie
de norma, princípios esses que se referem a direitos individuais (isto é, que conferem
direitos fundamentais prima facie), mas também aqueles que têm como objeto interesses
coletivos (ALEXY, 2008, p.135-139).
95
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
96
Defensoria Pública Fortalecida: único caminho para a efetividade do acesso à justiça pelo carente de recursos
carentes de recursos (CF, art. 5º, inc. LXXIV e XXXV), através da Defensoria Pública,
vêm sendo observados e concretizados a contento pelo Poder Público, como colocados na
Constituição e na legislação infraconstitucional, especialmente a processual civil.
97
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
98
Defensoria Pública Fortalecida: único caminho para a efetividade do acesso à justiça pelo carente de recursos
Para tanto, antes de tudo, é necessário situar o livre acesso ao Judiciário como uma
das mais importantes garantias dos direitos fundamentais.
99
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
processuais são “as disposições que visam assegurar a efetividade dos direitos materiais e
das garantias normais, cercando, por sua vez, sua aplicação de garantias; sendo exem-
plos, as garantias do processo, como o da ampla defesa, a instrução contraditória, etc”
(GRECCO FILHO, 1989, p. 39).
Assim, a garantia de proteção judicial constitui a “garantia das garantias constitu-
cionais” e esta “há de ser eficaz, sob pena de haver denegação de jurisdição” (SILVA, 1997,
p. 183).
Relativamente aos direitos fundamentais, estes merecem, nos ordenamentos jurí-
dicos em geral, uma garantia reforçada. Conforme Marc Carrillo, a força normativa das
normas constitucionais que asseguram direitos fundamentais e liberdades públicas é
plena, pois é exigível diretamente ante juízes e tribunais (CARRILLO, 1995, p. 33).
Tal garantia reforçada não contempla apenas as garantias formais, mas deve se
estender também às garantias processuais ou instrumentais, dentre as quais destaca-se
a de permitir ao cidadão o livre acesso ao Poder Judiciário.
100
Defensoria Pública Fortalecida: único caminho para a efetividade do acesso à justiça pelo carente de recursos
mundial, que pode, graficamente, se resumir em três fases (ou ondas) distintas, nas quais
se incluem a preocupação com a assistência jurídica integral e gratuita para os pobres, a
tutela dos interesses coletivos e difusos e as reformas dos códigos existentes em função
da necessidade de um enfoque de justiça mais efetiva.
Por outro lado, existem três tipos de obstáculos à Justiça: econômicos, sociais e
culturais.
Relativamente aos obstáculos sociais e culturais, releva destacar que, moderna-
mente, tem se entendido da insuficiência da tradicional assistência judiciária, que se
limita ao apoio judiciário, assim compreendido o patrocínio gratuito e a dispensa das
despesas processuais, mas abrange hoje toda a assistência jurídica pré-processual, a co-
meçar pela informação, com a correlata tomada de consciência, passando pela orienta-
ção jurídica (complementada, quando necessário, por outros tipos de orientação), pelo
encaminhamento aos órgãos competentes e culminando finalmente, na assistência judi-
ciária propriamente dita.
Quanto aos obstáculos econômicos, estes atingem aos desfavorecidos de forma
tripla:
Embora a assistência jurídica aos necessitados existisse desde a Idade Média, foi
no século XX que esta se elevou à garantia constitucional em inúmeros países, tornan-
do-se importante instrumento de viabilização e democratização do acesso ao Judiciário.
101
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
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Defensoria Pública Fortalecida: único caminho para a efetividade do acesso à justiça pelo carente de recursos
Todo o contexto social delineado linhas atrás leva à conclusão de que não se pode
esperar mais para atender aos mandamentos constitucionais. Induvidoso é que a defesa
dos pobres deve ser igual à de seus adversários.
Infelizmente, os nossos Tribunais e os demais Poderes têm interpretado o direi-
to à assistência jurídica integral e gratuita de forma bastante restritiva e desconectada
com as normas constitucionais, constituindo-se tais interpretações como, talvez, um dos
mais importantes obstáculos atuais ao livre acesso à justiça.
Na verdade, ao se dificultar a assistência jurídica integral e gratuita completa, su-
ficiente e eficaz se está aceitando grave violação ao direito de acesso e ao direito de ação
do cidadão brasileiro.
No Brasil, verifica-se que o então Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva
destacou o fortalecimento da Defensoria Pública na abertura do Ano do Judiciário 2010,
em solenidade realizada no Supremo Tribunal Federal, e, na ocasião, enfatizou os resul-
tados da implementação do II Pacto Republicano firmado entre os Três Poderes, em abril
de 2009.
Enfatizou o Presidente em entrevista divulgada por inúmeros jornais em circula-
ção em 01/02/2010:
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A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
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Defensoria Pública Fortalecida: único caminho para a efetividade do acesso à justiça pelo carente de recursos
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A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
9. CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
ALEXY, R. O modelo de regras e princípios. In: Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo:
Malheiros, 2008, p. 135-139.
106
Defensoria Pública Fortalecida: único caminho para a efetividade do acesso à justiça pelo carente de recursos
CANOTILHO, J.J. Constituição da República Portuguesa Anotada. 2. ed. São Paulo: Coimbra,
1984.
CAPELLETTI, M.; GARTH, B. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor,
1998, p.13.
CARRILLO, M. La tutela de los derechos fundamentales por los Tribunales ordinários. In:
Boletín Oficial del Estado. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1995, p. 33.
ROCHA, J. Albuquerque. Estudos sobre o Poder Judiciário. São Paulo: Malheiros Editores, p. 60.
SAMPAIO, Jal. Uma proposta de consenso terminológico. In: Direitos Fundamentais. Belo
Horizonte: Del Rey, 2004, p. 08.
WATANABE, Kazuo. Acesso à Justiça e Sociedade Moderna. In: Participação e Processo. Rio
de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1988, p.128.
107
CONSTITUCIONALIDADE DA CAPACIDADE POSTULATÓRIA
AUTÔNOMA DO DEFENSOR PÚBLICO: FUNDAMENTOS E
IMPORTÂNCIA À DEFESA DE DIREITOS HUMANOS42
42. O presente artigo, no propósito de atender exigências editoriais do CONDEGE, é uma versão reduzida
da publicação original; seja por ter sido retirado um capítulo histórico da OAB, seja por ter havido partes do
texto principal lançadas em notas de rodapé. A publicação original é esta que segue: ZVEIBIL, Daniel Gui-
marães; REIS, Gustavo Augusto Soares dos; JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. Constitucionalidade da
capacidade postulatória autônoma do Defensor Público: fundamentos e importância para a defesa dos direi-
tos humanos. In: RÉ, Alusísio Iunes Monti Ruggeri; REIS, Gustavo Augusto Soares dos Reis (Organizadores).
Temas aprofundados da Defensoria Pública. Vol. 02. Salvador: Juspodivm. 2014, p. 97-132.
43. Defensor Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito Processual pela USP. Membro do IBDP. Pre-
sidente da Comissão de Prerrogativas 2010-2011 da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
44. Defensor Público do Estado de São Paulo. Assessor Jurídico e Parlamentar da Defensoria Pública-Geral
do Estado de São Paulo (desde 2010).
45. Defensor Público do Estado de São Paulo. Doutor em Direito pela PUC-SP.
109
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
Resumo: A ideia de escrever o presente texto surgiu quando a Lei Complementar 80/94 foi
alterada pela Lei Complementar 132/09, autorizando o Defensor Público a exercer suas
funções independentemente de registro na Ordem dos Advogados do Brasil. Nesta linha,
o presente artigo visa demonstrar a base constitucional dessa mudança legal abordando
também questões de interesse histórico, econômico, ético, e político, que justificam a
necessária separação legal entre defensores públicos e a Ordem dos Advogados do Brasil
como uma garantia de autonomia do serviço público de assistência jurídica gratuita
contra interesses eventualmente conflitantes.
Abstract: The idea of writing this text arose when came into effect the amendment 132/09
(changing the act 80/94), which authorizes Public Defender to practice law regardless of
license of the Brazilian Bar Association. In this sense, this article seeks to demonstrate the
constitutional basis of this legal change also addressing issues of historical, economical,
ethical, and political, which justify the necessary separation between public defenders
and the Brazilian Bar Association as a guarantee of autonomy of public legal aid against
eventually conflicting interests.
A LC n.º 132/09 incluiu, no art. 4.º da Lei Orgânica nacional da Defensoria Pública (LC
n.º 80/94), previsão de capacidade postulatória autônoma ao Defensor Público, isto é, no
plano infraconstitucional a capacidade postulatória do Defensor Público expressamente
110
Constitucionalidade da Capacidade Postulatória Autônoma do
Defensor Público: fundamentos e importância à defesa de direitos humanos
46. LC 80/94, art. 4.º, § 6.º: “A capacidade postulatória do Defensor Público decorre exclusivamente de sua nomeação e
posse no cargo público.”
47. LCP, art. 47: “Exercer profissão ou atividade econômica ou anunciar que a exerce, sem preencher as condições a que
por lei está subordinado o seu exercício: pena – prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa, de quinhentos mil
réis a cinco contos de réis.”
48. Esta ação direta de inconstitucionalidade foi autuada sob o n.º 4636, e a relatoria é do Ministro Gilmar
Mendes. Confira no sítio digital do STF: <www.stf.jus.br>.
111
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
49. Confira inteiro teor de dois ricos pareceres assinados respectivamente pelo Professor Celso Antonio Ban-
deira de Mello (este no sítio digital da APADEP, Associação Paulista de Defensores Públicos, em: <http://
www.apadep.org.br/artigos/Parecer%20Bandeira%20de%20%20Melo.pdf/view>), e pelo Professor André
Ramos Tavares (na página da ANADEP, Associação Nacional dos Defensores Públicos:<http://www.anadep.
org.br/wtksite/grm/envio/1409/P_DEFENSORIA_Andre_Ramos_Tavares.pdf>).
50. É o que a 2.ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu: “De se recordar, em
adendo, que os arts. 133 e 134 da Constituição da República prevêem em paralelo a Advocacia e a Defensoria Pública como
instituições essenciais à Justiça, não atrelando o exercício da segunda à habilitação para o exercício da primeira” (TJSP.
2.ª Câmara de Direito Privado. Apelação n.º 0016223-20.2009.8.26.0032 (990.10.550904-5). Rel. Des. Fábio Ta-
bosa. Julgamento em 03 de maio de 2011, acórdão registrado sob n.º 03536706. Disponível no sítio digital do
TJSP (<www.tjsp.jus.br>) ou na revista digital Consultor Jurídico: <http://www.conjur.com.br/2011-mai-18/
tj-sp-reconhece-atuacao-defensores-publicos-nao-inscritos-oab>.
51. Sobre a autonomia constitucional da Defensoria Pública, confira: ALVES, Cleber Francisco. Justiça para
112
Constitucionalidade da Capacidade Postulatória Autônoma do
Defensor Público: fundamentos e importância à defesa de direitos humanos
todos: assistência jurídica gratuita nos Estados Unidos, na França e no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2006, item “5.4.1” (A Defensoria Pública como Instituição Estatal autônoma desvinculada dos demais Po-
deres do Estado), p. 306 e seguintes; por coincidir com a do Ministério Público, confira também: MAZZILI,
Hugo Nigro. Regime Jurídico do Ministério Público. 6.ª edição. São Paulo: Saraiva, p. 146.
52. “(...) ao contrário do alegado pelos requeridos, a norma inscrita no supratranscrito artigo 134, § 2º, da Constituição
Federal é autoaplicável e de eficácia imediata, haja vista ser a Defensoria Pública um instrumento de efetivação dos direi-
tos humanos. 12. De fato, o papel da Defensoria Pública como instrumento de afirmação da dignidade humana, através
da garantia do acesso ao Poder Judiciário, é relevante e fundamental à construção de um verdadeiro Estado Democrático
de Direito, daí porque possui eficácia imediata a norma que assegura a autonomia da Instituição. 13. Isso significa que
a vinculação da Defensoria Pública a qualquer outra estrutura do Estado se revela inconstitucional, na medida em que
impede o pleno exercício de suas funções institucionais, dentre as quais se inclui a possibilidade de, com vistas a garantir os
direitos dos cidadãos, agir com liberdade contra o próprio Poder Públic”o STF – Tribunal Pleno – ADI 3569-0 – Relator
Ministro Sepúlveda Pertence – publicado no Diário da Justiça em 11/05/2007 – disponível no sítio digital do
STF: <www.stf.jus.br> – votação unânime. A propósito, exemplo proveniente dos Estados Unidos da América
e noticiado por Mauro Cappelleti e Bryant Garth dá conta de que “após uma disputa legislativa muito difícil, en-
volvendo um veto presidencial, é que a Legal Services Corporation tornou-se independente de influência governamen-
tal direta” – antes disso, o trabalho desta agência americana encontrava dificuldades muito maiores devido à
dependência de apoio governamental para atividades políticas que, muitas vezes, miravam contra o próprio
governo. Este pequeno exemplo, dentre tantos outros que existem na vida real, é suficiente para demonstrar
o escorreito raciocínio da Suprema Corta brasileira que julgou ser absolutamente imprescindível a autono-
mia do órgão constitucional a que se atribui a prestação de serviço de assistência jurídica integral e gratuita.
53. Sobre esse tema, convidamos o leitor para a leitura do artigo de Gustavo Octaviano Diniz Junqueira e
Gustavo Augusto Soares dos Reis, O novo desenho constitucional da Defensoria Pública: autonomia, Revista
dos Tribunais, n. 920, Ano 101, São Paulo, Junho, 2012.
113
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
114
Constitucionalidade da Capacidade Postulatória Autônoma do
Defensor Público: fundamentos e importância à defesa de direitos humanos
previsto pelo ordenamento jurídico. E no caso, ela decorre justamente das atribuições
institucionais impostas pela CF8856.
Em síntese, portanto, este § 6º do artigo 4º da Lei Complementar 80/94 surge como
desdobramento lógico da autonomia constitucional da Defensoria Pública. Igualmente
a esta conclusão chegou o constitucionalista André Ramos Tavares, conforme trecho que
extraímos de seu engenhoso parecer sobre o tema57
Ainda no âmbito jurídico, alguns setores da Ordem, no entanto, alegam que pre-
valece sobre este § 6.º a disposição do § 1.º do art. 3.º do Estatuto da Advocacia, da qual
pretendem o vínculo hierárquico do Defensor Público junto à Ordem dos Advogados do
Brasil58.
Ora, de plano concluímos que este § 1.º do art. 3.º do Estatuto da Advocacia é to-
talmente incompatível com a autonomia constitucional da Defensoria Pública, e esta
incompatibilidade vertical torna nula a disposição infraconstitucional em relação à De-
fensoria Pública – já o dissemos: não existe autonomia da Instituição se seus membros
forem subordinados hierarquicamente a outra. De qualquer modo, acrescente-se a isto
que a emenda constitucional n.º 45/2004 manteve a indispensabilidade de lei comple-
mentar para regulamentar a organização da Defensoria Pública em todas as esferas de
56. Notas acerca da capacidade postulatória do Ministério Público, In: Temas atuais do Ministério Público
– a atuação do Parquet nos 20 anos da Constituição Federal, 2ª edição, Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2010, p.
228 e 230. Vale mencionar que o autor cita e critica posição doutrinária (minoritária) de Adriano Perácio de
Paula, para quem quando o Ministério Público pretende propor ação de natureza cível, faz-se necessário que
ele seja representado por advogado, haja vista que a CF88 teria conferido capacidade postulatória ao órgão
ministerial apenas em matéria penal!
57. Confira o parecer na página da ANADEP, Associação Nacional dos Defensores Públicos, em: <http://www.
anadep.org.br/wtksite/grm/envio/1409/P_DEFENSORIA_Andre_Ramos_Tavares.pdf>).
“(...) § 50 É necessário reconhecer que o art. 4.º, § 6.º, da LC 80/94, na redação atribuída pela LC 132/09, desvincula a
Defensoria Pública da Ordem dos Advogados do Brasil. Em síntese, e em termos pedagógicos, promove um movimento
abertamente emancipatório em relação à OAB, e à necessidade de inscrição no quadro de profissionais desta última, para
fins de concessão de capacidade postulatória aos integrantes da Defensoria Pública, consolidando e efetivando a Cons-
tituição do Brasil, no que tange ao conteúdo, alcance e teleologia do art. 134 [da CF88]. (...) § 53 O Ministério Público,
assim como ocorre com a Defensoria Pública, detém capacidade postulatória autônoma e imediata, em razão de sua
essencialidade para a função jurisdicional do Estado, plasmada no art. 127, da CB.”
58. Lei n.º 8.906/94, art. 3.º, § 1.º: “O exercício da atividade de advocacia no território brasileiro e a denominação de
advogado são privativos dos inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). § 1º Exercem atividade de advocacia, su-
jeitando-se ao regime desta lei, além do regime próprio a que se subordinem, os integrantes da Advocacia-Geral da União,
da Procuradoria da Fazenda Nacional, da Defensoria Pública e das Procuradorias e Consultorias Jurídicas dos Estados,
do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas entidades de administração indireta e fundacional.”
115
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
nossa Federação, conforme § 1.º do art. 134. E o art. 61, § 1.º, II, “d”, de nossa Constituição
prescreve ser de iniciativa privativa do Presidente da República lei complementar que
organize a Defensoria Pública em qualquer dessas esferas. Portanto, segundo a ordem
constitucional vigente, não bastasse a autonomia constitucional da Defensoria para
afastar exigência de vínculo administrativo do Defensor Público à insigne Ordem, não
competiria jamais à lei ordinária que instituiu o Estatuto da Advocacia, de iniciativa do
deputado federal Ulisses Guimarães (PL 2938/92), dispor sobre temas que se referem à
organização de Defensoria Pública.
59. In verbis: “Art. 26. O candidato, no momento da inscrição, deve possuir registro na Ordem dos Advogados do Brasil,
ressalvada a situação dos proibidos de obtê-la, e comprovar, no mínimo, dois anos de prática forense, devendo indicar sua
opção por uma das unidades da federação onde houver vaga.”
60. Nem se diga que o § 2.º do art. 26 da LC 80/94 – cuja redação é: “Os candidatos proibidos de inscrição na Ordem
dos Advogados do Brasil comprovarão o registro até a posse no cargo de Defensor Público” – supostamente obrigue o
Defensor Público a permanecer vinculado à respeitável Ordem. Ora, o § 2.º do art. 26 da LC
116
Constitucionalidade da Capacidade Postulatória Autônoma do
Defensor Público: fundamentos e importância à defesa de direitos humanos
Vale ressaltar que nossa posição converge com a de Celso Antonio Bandeira de
Mello, que em notável parecer afirma categoricamente não existir contradição entre a
concessão legal de capacidade postulatória autônoma (§ 6.º, do art. 4.º da LC 80/94) e a
exigência de inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil para fins de inscrição no con-
curso público, a ser demonstrada até a posse (art. 26 e 71 da mesma LC 80/94, e no Estado
de São Paulo art. 97, I da LC estadual 988/06) 61.
Finalmente, por respeito ao debate, para quem não se convencer sobre a plena har-
monia jurídica apontada deve levar em conta que o § 6.º do art. 4.º da LC 80/94 é posterior
ao caput do art. 26 deste mesmo diploma (e o mesmo se diga quanto ao § 2.º deste art. 26),
incidindo, deste modo, a regra inevitável da lei posterior revogar a anterior (lex posterior
derogat priori).
Alguns setores da Ordem querem fazer crer, ainda, que existiria um suposto
monopólio da capacidade postulatória pertencente aos Advogados. O que não é verda-
de, porque Promotores de Justiça possuem inegável capacidade postulatória, Delega-
dos de Polícia também – estes ao requererem mandados de busca e apreensão, ou de
prisão cautelar, por exemplo – e o próprio cidadão em diversos campos: habeas corpus,
reclamações trabalhistas, etc. Importa ressaltar que este entendimento é comungado
por André Ramos Tavares, conforme trecho que extraímos do já mencionado parecer
sobre o tema62
61. Judiciosamente, esclarece o eminente Professor que “não é critério aceitável de hermenêutica presumir que um
artigo desmente o contido em outro no mesmo texto. Assim, a intelecção correta é a de que ambos estão reportados a coisas
diversas. Ou seja: um deles, o que demanda inscrição na OAB, está volvido a um requisito de capacidade profissional,
aptidão técnica, a ser demonstrada no instante da admissão, feito o que, está cumprido o necessário. O segundo deles,
confere capacidade postulatória e faz depender tão só, ou seja ‘exclusivamente’, como ali está dito, à nomeação e posse
no cargo. Donde, para atuar em juízo (ou extrajudicialmente) na defesa dos interesses a seu cargo, o Defensor Público
nada mais necessita senão estar investido nas funções que lhe correspondem. Ou seja: não necessita permanecer inscrito
na OAB.” Confira inteiro teor do parecer no sítio digital da APADEP (Associação Paulista de Defensores Pú-
blicos), em: <http://www.apadep.org.br/artigos/Parecer%20Bandeira%20de%20%20Melo.pdf/view>; nossa
transcrição com destaques no original. Vale a pena mencionar um didático exemplo citado pelo eminente
jurista: “7. Não são raras no Direito as hipóteses em que é exigido um determinado requisito para a constituição de
uma certa situação, mas não o é para a persistência dela. Assim, para que alguém ingresse em certos cargos públicos
(como os de policial militar por exemplo) exige-se uma determinada compleição corporal e uma certa aptidão física, mas
não é exigido que as mantenha ao longo do tempo. Para aceder à posição de Professor Titular, demandam-se provas de
que possua uma aptidão didática em um certo nível, mas a perda deste nível ao longo do tempo não implica na destituição
do cargo. Para que a mulher adote o sobrenome do marido cumpre que se case com ele, mas se vier a se separar nem por
isto perderá automaticamente tal sobrenome. No passado exigia-se para a doção de uma criança que o adotante tivesse o
‘status’ de casado, mas não era requerido que para a mantença da adoção persistisse nessa situação.”
62. “§ 33 (...) a afirmação de que a LC 80/94, em seu art. 4.º, § 6.º, viola o art. 133 da CB, não é consistente com a Consti-
tuição e com a sua compreensão pela Corte Máxima, pois nesta cláusula constitucional não se pode pretender erigir norma
que imponha a capacidade postulatória aos inscritos no quadro de profissionais da OAB Confira o parecer na página
da ANADEP, Associação Nacional dos Defensores Públicos, em: <http://www.anadep.org.br/wtksite/grm/
envio/1409/P_DEFENSORIA_Andre_Ramos_Tavares.pdf>).
117
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
É este o direito vigente básico que, a bem dos necessitados, dá concretude à auto-
nomia do serviço público de assistência jurídica integral e gratuita; uma autonomia que
é abonada por resolução da Organização dos Estados Americanos (OEA)63.
118
Constitucionalidade da Capacidade Postulatória Autônoma do
Defensor Público: fundamentos e importância à defesa de direitos humanos
Prefeituras são apontadas para tal mister –, sob o argumento de que isto seria “o melhor
para os necessitados” por ampliar o atendimento jurídico gratuito. Ora, esta medida re-
tornaria ao modelo amador e caótico que precedeu a Constituição de 1988, voltando o
necessitado a ser “de todos” no discurso porém “de ninguém” na prática. Sem falar que
este retrocesso impediria o crescimento efetivo da Defensoria Pública, já que passaria
a ser substituída por alternativas imediatistas e com forte apelo político para seus pro-
pagandistas: todavia, muito longe de fazerem frente à prestação gratuita de assistên-
cia jurídica integral, e isto só pelo fato das “promissoras” alternativas não possuírem as
mesmas garantias institucionais da Defensoria Pública e nem as garantias do cargo de
Defensor Público.
Diante do que até aqui expusemos, é justo indagarmos: por qual motivo o serviço
público de assistência jurídica integral e gratuita também deve se emancipar da insigne
Ordem?
65. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução: Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre:
Fabris, 1988, p. 38/39.
119
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
66. MESSITTE, Peter. Assistência Judiciária no Brasil: uma pequena história. Revista dos Tribunais, ano 57,
volume 392, junho de 1968, p. 403.
67. Cf.: ALVES, Cleber Francisco. Justiça para todos..., cit., item “5.2.1”, p. 241/244.
68. CHIOVENDA, Giuseppe. Del gratuito patrocínio. In: aggi di Diritto Processuale Civile (1894-1937)P. Vo-
lume Terzo. Milano: Giuffrè, 1993, p. 408/409, tradução livre.
69. CAPPELLETTI, Mauro. Pobreza e Justiça. In: rocesso e Ideologia. Vol. I. Tradução e notas Prof. Dr. Elício
de Cresci Sobrinho. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008, p. 204.
120
Constitucionalidade da Capacidade Postulatória Autônoma do
Defensor Público: fundamentos e importância à defesa de direitos humanos
70. Neste sentido veja ????????? “Em síntese”, esclarece ele, “a) os colegas donos de rendosas bancas, constituídas em
sua maioria de clientes abastados e socialmente destacados, consideravam – e por certo existem ainda os que assim con-
sideram – impossível e até mesmo inconcebível, agrupar ou ‘misturar’ mesmo que eventual e esporadicamente, o cliente
humilde, roto e mal cheiroso, com o poderoso, bem paramentado e perfumado; b) outros, por seu turno, limitavam-se à
afirmativa de que o eventual necessitado não era... tão necessitado assim: muito embora, as indicações só merecessem
a nossa chancela, após rigoroso levantamento efetuado junto às autoridades e órgãos respectivos, a respeito das condi-
ções sociais, empregatícias, financeiras, econômicas e patrimoniais do futuro beneficiário.” Tais recusas infundadas,
segundo Borba, resultava no fato desproporcional de que “meia dúzia de abnegados e verdadeiros gladiadores do
direito – e isto também em outras comarcas – suportava estoicamente a missão de assistir aos necessitados”.
71. BORGES, Luis Carlos. OAB versus assistência judiciária. São Paulo: Livraria Ghignone Editora, 1980, p.
11/16.
72. Ibidem, p. 22.
73. SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. 3.ª edição. São Paulo: Cortez,
2011, p. 50, nota “02”.
121
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
Este pequeno quadro desenhado no item anterior, por mais que queiramos evitar,
força-nos a focalizar nossas lentes também pelo filtro da ciência econômica (e não só
político-jurídica), mesmo que rapidamente. Fica claro o seguinte: a falta de Defensoria Pú-
blica deixa os necessitados à mercê de falha de mercado conhecida por falta de incentivo (ou falha de
incentivo), e que dimana do princípio da racionalidade hedonista, que é incompatível no
caso de suprimento de bens coletivos. Neste sentido, em economia se costuma explicar
que num regime de mercado os agentes econômicos preferem bens individualizáveis aos
bens coletivos, porque nos coletivos acaba-se investindo e os benefícios, porém, extra-
vasam para outros destinatários; ou em outras palavras, o agente econômico não pode
excluir outros beneficiários do investimento74. Portanto, o princípio hedonista, “se aplica-
do coerentemente pelos agentes econômicos, levá-los-á, invariavelmente, a esconder sua preferência
pelos bens coletivos, justamente pelo fato de não poderem ser excluídos de sua utilização, caso tais
bens venham a ser produzidos.”75
Sendo assim, uma economia fundada apenas no mercado (isto é, com pouca ou
mínima intervenção do Estado) tenderá a discriminar fortemente os bens coletivos e a
exagerar na produção de bens exclusivos.”76 Na mesma linha, terá muitos Advogados par-
ticulares, muitos da mais alta excelência, mas uma deficiente assistência jurídica dirigi-
da aos necessitados.
Este modo de enxergar a questão, como veremos, causa a abertura de uma dimen-
são impactante e praticamente inexplorada no campo da ética profissional.
Em clássico estudo de ética jurídica comparada, acentuam Hazard e Dondi que
“a necessidade econômica de ser eficiente de forma competitiva é sobremodo preocupante para os
74. É o que explica Fábio Nusdeo, doutor em Economia e livre-docente em Direito econômico pela USP, Pro-
fessor Titular da mesma Universidade na Faculdade de Direito´: “Os bens coletivos são aqueles aptos ao atendi-
mento simultâneo das necessidades de um grupo ou coletividade para os quais não vigora o princípio da exclusão no ato
de seu uso ou do seu consumo. Contrariamente, no caso dos bens exclusivos, o fato de alguém deles se utilizar exclui, ipso
facto, dessa mesma utilização outro ou outros consumidores. O exemplo mais absoluto de um bem coletivo, como já apon-
tado, é a defesa nacional. Com efeito, a proteção que ela traz a um cidadão é exatamente igual àquela proporcionada a
qualquer outro membro da coletividade. Da mesma maneira, vários motoristas podem se servir simultaneamente de uma
estrada, sem que qualquer deles exclua os demais.” (NUSDEO, Fábio. Curso de Economia: introdução ao Direito
Econômico. 4.ª edição. São Paulo: RT, 2005, cap. 7, item “7.6”, p. 163).
75. Ibidem, cap. 7, item “7.6”, p. 163/164.
76. “Terá, assim” – exemplifica Fábio Nusdeo – “muitos carros, mas poucas linhas de metrô ou um deficiente
transporte coletivo; terá muitas fábricas, mas poucos aparelhos antipoluentes – o ar puro é um bem coletivo:
maior pureza para uns, não significa menor pureza para outros –; terá médicos particulares mas uma defi-
ciente higiene pública e assim por diante.Ibidem, loc. cit.
122
Constitucionalidade da Capacidade Postulatória Autônoma do
Defensor Público: fundamentos e importância à defesa de direitos humanos
“Um Advogado que não aceite o desafio de ser eficiente corre o risco de perder a clientela. Um
Advogado que aceita esse desafio automaticamente dá a entender que a representação jurí-
dica é um bem de consumo e que a justiça pode ser comprada. A noção de que justiça possa
ser mensurada por algum padrão econômico contradiz a ideia de que ela é invendável.”77
Ou seja, por mais alta que se seja a consciência e a dignidade da classe dos Advo-
gados – como bem colocou Chiovenda – é inegável que a pressão do regime de mercado
é inclemente sobre o sistema de Justiça, por incidir com muita intensidade sobre uma
classe de profissionais liberais que vivem neste regime e são responsáveis por grande
parcela de provocação do Judiciário.
Claro que, como bem pontuam Hazard e Dondi, é possível, sim, o ideal de justiça
ser abraçado pelos Advogados – com o que estamos plenamente de acordo. Basta no-
tarmos que o preâmbulo do Código de Ética da advocacia, pautando-se nos exemplos
de grandes Advogados de nossa história e do estrangeiro (Rui Barbosa, Sobral Pinto,
Evaristo de Moraes, Clarence Darrow, Lachaud, etc.), estimula como conduta necessá-
ria do Advogado “exercer a advocacia com o indispensável senso profissional, mas também com
desprendimento, jamais permitindo que o anseio de ganho material sobreleve à finalidade social
do seu trabalho”.
Porém, a despeito de a advocacia exigir o desprendimento como dever profissio-
nal, não bastassem dificuldades próprias de um rigoroso regime de mercado a prejudi-
carem o atendimento do necessitado, é fato existirem restrições éticas da advocacia que,
não obstante visarem preservar o ideal de justiça moderando a difícil e ingrata competi-
ção de mercado, revelam-se incompatíveis com as necessidades do atendimento jurídico
de pobres e outros vulneráveis. Dentre alguns exemplos, um bastante interessante diz
respeito à regulamentação em torno de publicidade e oferecimento de serviços, a fim
de se evitar angariamento ou captação de causas78. No Brasil, Paulo Lôbo relata-nos, a
propósito, que
77. HAZARD JR., Geoffrey C.; DONDI, Angelo. Ética jurídica: um estudo comparativo. Tradução Luiz Gonza-
ga de Carvalho Neto; revisão da tradução Lenita Ananias do Nascimento. São Paulo: WMF Martins Fontes,
2011, cap. 08, p. 360.
78. Ibidem, cap. 08, p. 360/361.
123
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
dá-se sempre de modo prejudicial à dignidade da profissão, seja quando o Advogado se ofe-
rece diretamente ao cliente em ambientes sociais, autopromovendo-se, seja quando critica
o desempenho de colega que esteja com o patrocínio de alguma causa, seja, ainda, quando
se utiliza dos meios de comunicação social para manifestações habituais sobre assuntos
jurídicos.”79
Deste modo, se é verdade que as salutares restrições éticas que dizem respeito a
este último exemplo – de publicidade e oferecimento de serviços advocatícios – preten-
dem evitar o aniquiliamento do senso de justiça num ambiente de mercado de altíssima
competitividade, por outro lado, em relação ao necessitado, tais restrições formam um dos
quadros mais reveladores da insuficiência da advocacia privada para que o acesso à justiça do ne-
cessitado se concretize – insuficiência que se estende, portanto, ao sistema judicare. Neste
sentido, tecendo considerações sobre o tema de oferecimento de serviços e outros adja-
centes, a certa altura Hazard e Dondi admitem que “a proibição do oferecimento de serviços
não é obstáculo para uma clientela mais sofisticada e bem relacionada, pois em geral ela tem capa-
cidade de encontrar um Advogado quando precisa.”80 Mas é um grande obstáculo, pela razão
contrária, ao menos abastados, aos humildes e cujas relações sejam compatíveis à sua
condição social mais difícil. Basta notarmos que há muito tempo a doutrina reconhece
que constitui obstáculo fundamental ao necessitado reconhecer a existência de um di-
reito juridicamente exigível para acessar a Justiça, especialmente para os mais pobres e
outros vulneráveis81.
E quem trabalha com esta faixa de população sabe que é impossível dar combate
efetivo a este obstáculo por meio de anúncios de serviços profissionais “moderados” e “dis-
cretos”, com finalidade exclusivamente informativa, nos termos do Código de Ética advo-
catício. Sendo assim: qual é a lógica de um Defensor Público ser obrigado a subordinar-se
à hierarquia da Ordem se, a todo o momento, para bem se desincumbir de suas funções
institucionais, é obrigado a ignorar o Código de Ética da advocacia privada especialmente
quanto a questões ligadas ao regime de mercado? Isto porque não mencionamos ainda a
equivocada proibição que acontece em São Paulo com relação à advocacia pro Bono, e que
tem sido alvo de críticas contundentes – e corretas – por grandes nomes da advocacia atu-
al82. E sem falar que há inúmeras questões éticas que são próprias e específicas de quem
ocupa cargo público deste jaez, como garantias de independência funcional, inamovibili-
dade, estabilidade, irredutibilidade de vencimentos (ou de subsídios), etc.
79. LÔBO, Paulo. Estatuto da Advocacia e da OAB. 5.ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010, comentário ao art. 34,
IV, p. 204.
80. HAZARD JR., Geoffrey C.; DONDI, Angelo. Ética jurídica..., cit., cap. 08, p. 362.
81. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso..., cit., p. 23.
82. Cf. no sítio digital da Revista Consultor Jurídico, a matéria “Advogados se voltam contra Resolução ‘pro
bono’ da OAB-SP”: <http://www.conjur.com.br/2013-fev-23/grandes-nomes-advocacia-voltam-resolucao-
-pro-bono-oab-sp>, acesso em 23 de fevereiro de 2013.
124
Constitucionalidade da Capacidade Postulatória Autônoma do
Defensor Público: fundamentos e importância à defesa de direitos humanos
Seguindo esta linha, a educação em direitos dirigida ao necessitado é algo que pela
força irresistível dos fatos deve ir muito além dos anúncios “moderados” e “discretos” im-
postos pelo Código de Ética da advocacia: deve valer-se de todos os meios de comunicação,
quantas vezes forem necessárias, como televisão, rádio, internet, mídia impressa em perió-
dicos, com todas as ferramentas úteis para a assimilação do destinatário, e indicando todos
os endereços, telefones e documentos necessários para a defesa de seus direitos. O exercí-
cio da educação em direitos exige, ademais, que a Defensoria Pública, pelos seus membros,
não espere e vá atrás destes muitos esquecidos para esclarecê-los quanto à sua condição de
sujeito de direitos e deveres e o que tal condição significa para sua vida cotidiana83.
Este trabalho hercúleo, que nunca seria atendido de modo minimamente adequa-
do pela falha de incentivo no rigoroso e competitivo regime de mercado dos Advogados
profissionais liberais – ainda que o Código de Ética da advocacia incite o desprendimen-
to no exercício profissional –, demanda a presença do Defensor Público em lugares nos
quais, normalmente, jazem esquecidos seres humanos que simplesmente deixaram de
ser vistos como tais: todo o tipo de estabelecimento de custódia do Estado, Casas-Abrigo,
comunidades totalmente desestruturadas e às vezes até exploradas inescrupulosamente
pelo poder econômico, setores dos grandes centros urbanos em que se reúnem pessoas
pelo consumo de drogas e vivem numa sociedade apartada, e assim por diante. E alguém
tem dúvida – perguntamos novamente – de que esta dificílima tarefa seria possível de ser
realizada com atividade “moderada” e “discreta”? Passivamente aguardando o destinatá-
rio do serviço jurídico?
Em suma, a publicidade moderada e discreta é requisito ético extremamente cor-
reto e nobre, todavia – e este é o ponto crucial – construído e aplicável a uma profissão
liberal que se insere num severo regime de mercado.
Esta postura do Defensor Público, pelo que vimos até aqui, está de acordo com as
exigências dos necessitados e justifica em boa medida a indispensável autonomia cons-
titucional da Defensoria Pública. Uma autonomia que, pelo contexto esposado até aqui,
mostra-se reflexo do inevitável e natural descolamento de suas funções institucionais do
espírito da insigne Ordem dos Advogados do Brasil, esta que, segundo Nelson Saldanha,
é de conotação “essencialmente liberal”84.
83. Sobre da atribuição institucional da Defensoria acerca da educação em direitos, confira: Educação em
direitos e Defensoria Pública: reflexões a partir da Lei Complementar n. 132/09, In: Temas aprofundados da
Defensoria Pública, org.: Aluísio Iunes Monti Ruggeri Ré, Juspodium, Bahia, 2013.
84. SALDANHA, Nelson. A OAB e sua trajetória. Recife, 1982, p. 16.
125
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
E isto nos leva a concluir, inelutavelmente, forçados pela imposição irresistível dos
fatos, que os Defensores Públicos devem se pautar por um sentido ético distinto dos Advogados.
Um sentido ético que, ressaltamos cuidadosamente, não é melhor ou pior em relação
aos Advogados bem como aos demais atores do sistema de Justiça, mas simplesmente mais
apropriado às funções institucionais da Defensoria Pública. Um sentido ético que diz respeito
ao exercício das funções institucionais da Defensoria Pública, e que encarne, verdadeira-
mente, “o estratégico ponto de convergência entre o constitucionalismo liberal e social” menciona-
do pelo Supremo Tribunal Federal em momento de sublime inspiração85.
Sendo assim, no cosmos do atual sistema de justiça devemos notar que a Defenso-
ria Pública representa a superação de uma organização voltada para o atendimento do
necessitado crassamente falha por ser acéfala e responsável pela pulverização deste aten-
dimento tanto na esfera pública como na privada; isto é, assim como ninguém toma con-
ta da carne num churrasco em que todo mundo é churrasqueiro, na organização extinta
pela ordem constitucional de 1988 o necessitado era responsabilidade de todos, mas, na
prática, acabava sendo de ninguém.
85. STF, Tribunal Pleno, ADIn 4246-Pará, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 26 de maio de 2011, DJE em
30 de agosto de 2011, disponível também no sítio digital do STF: <www.stf.jus.br>.
86. BOBBIO, Norberto. Presente e futuro dos direitos do homem. In: A era dos direitos. Apresentação Celso
Lafer. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 58/59.
87. Ibidem, p. 59.
88. Ibidem, p. 43.
126
Constitucionalidade da Capacidade Postulatória Autônoma do
Defensor Público: fundamentos e importância à defesa de direitos humanos
“grande parte dos serviços dos Advogados hoje em dia e certamente a maioria dos serviços
jurídicos prestados pela prática privada do direito dedicam-se às causas das empresas e
dos ricos, entre estes os empregadores e os locadores”, e concluem: “(...) a não ser entre os
críticos sociais, há pouco debate sobre a importância política e constitucional do fato de os
Advogados trabalharem principalmente para as empresas e os interesses empresariais.” 89
127
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
Porém, a demonstração cabal desta necessária cisão é reforçada pelo problema pú-
blico e notório de excesso de Advogados no mercado de trabalho – o que obriga alguns
setores da Ordem fazerem prevalecer muito mais a atribuição legal de sindicato de classe
em defesa do mercado de trabalho91, em detrimento de sua outra nobre atribuição legal
de defender “a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos huma-
nos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e
pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas.”92
Não é de hoje em nosso país que se notou o inevitável embate entre os interesses
corporativos da Ordem representando parcela de Advogados e o interesse público de se
criar quadros de Defensores Públicos, ou sua ampliação onde existisse Defensoria. Cal-
mon de Passos, a propósito, narra que na 9.ª Conferência Nacional de Advogados, ocorri-
da em 1981, pôde observar que se concluiu pela solução do problema de acesso à Justiça da
maioria excluída preferencialmente mediante remuneração dos Advogados livremente
escolhidos pelos assistidos, ou que lhes forem designados pelos juízes, e deixando em
segundo plano a criação de cargos de Defensores Públicos. Por este ponto de vista, o sau-
doso jurista baiano advertiu que esta disputa entre parcela da advocacia privada e a De-
fensoria Pública já tinha como pano de fundo “o grave problema profissional dos Advogados
brasileiros.” Dizia ele, então: “Há excesso de Escolas de Direito e excesso de bacharéis em direito
para um mercado exíguo.”93
Neste contexto, quanto mais o mercado se distorce pelo desconfortável ambiente
formado por excesso de Advogados e sem que haja o correspondente aumento de traba-
lho para que todos possam exercer dignamente a profissão, gradualmente vai tornando
irredutível a oposição entre o interesse público da profissão do Advogado e o interesse privado
deste profissional em lutar pela sua própria sobrevivência. Razão pela qual surgem em alguns
setores da Ordem pressões contrárias ao crescimento da Defensoria, pois num quadro
90. Lei n.º 8.906/94, art. 44: “A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), serviço público, dotada de personalidade jurídica
e forma federativa, tem por finalidade: I - defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os
direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aper-
feiçoamento da cultura e das instituições jurídicas; II - promover, com exclusividade, a representação, a defesa, a seleção e
a disciplina dos advogados em toda a República Federativa do Brasil.”
91. Lei n.º 8.906/94, art. 44, II: “A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), serviço público, dotada de personalidade
jurídica e forma federativa, tem por finalidade: (...) II - promover, com exclusividade, a representação, a defesa, a seleção
e a disciplina dos advogados em toda a República Federativa do Brasil.”
92. Lei n.º 8.906/94, art. 44, I.
93. PASSOS, José Joaquim Calmon de Passos. O problema do acesso à justiça no Brasil. In: Revista de Proces-
so, n.º 39, jul-set, 1985, p. 84.
128
Constitucionalidade da Capacidade Postulatória Autônoma do
Defensor Público: fundamentos e importância à defesa de direitos humanos
específico como este a expansão do órgão público agrava a escassez de trabalho para uma
parcela da advocacia particular que depende da assistência judiciária para sobreviver.
Em razão deste quadro avulta o vivo interesse na manutenção de Defensores Pú-
blicos subordinados à hierarquia da Ordem dos Advogados do Brasil: e o que explica, por
sinal, setores do Conselho Federal sustentarem pela petição inicial da mencionada ação
direta de inconstitucionalidade que “os Defensores Públicos, no âmbito da Ordem, sujeitam-se
à fiscalização ético-disciplinar. No âmbito da Defensoria Pública, onde detêm cargos, sujeitam-se à
fiscalização funcional. São duas fiscalizações distintas: uma feita em prol da sociedade, a da Ordem;
outra feita em prol da pessoa jurídica que remunera os associados da demandante, por ela mesma.”
É um argumento que beira a galhofa ao olvidar propositalmente o fato da Lei Orgâ-
nica da Defensoria Pública (LC 80/94) prever Corregedorias-Gerais para fiscalização éti-
co-disciplinar do Defensor Público, e sempre levando em consideração as faltas discipli-
nares e punições previstas neste mesmo diploma: previsões consequentes da autonomia
da Defensoria Pública. Ademais, do ponto de vista estritamente lógico, se o argumento
do Conselho Federal da Ordem tivesse uma vírgula de verdade exigiria também: (1) a su-
jeição de membros da Magistratura e do Ministério Público ao Tribunal de Ética da OAB
para uma “fiscalização feita em prol da sociedade”; bem como (2) sujeitaria Advogados
a controle ético-disciplinar a ser realizado pelo Estado, uma vez que seriam também os
Advogados supostamente incapazes de se fiscalizarem eticamente pela falta de isenção,
e o Estado, então, supostamente realizaria uma fiscalização “em prol da sociedade”. Mas,
obviamente, ninguém ousaria chegar a estas absurdas e esdrúxulas conclusões ante a
autonomia de Judiciário, Ministério Público e Ordem, causando-nos surpresa que seto-
res do Conselho Federal da Ordem cheguem a este ponto quando falam de Defensoria
Pública, perdendo a noção do conjunto, de tudo.
94. GUEIROS, Nehemias. A Advocacia e o seu Estatuto. São Paulo: Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1964, p. 21.
129
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
apresentada pela OAB de São Paulo contra os Defensores Públicos paulistas identifica-
dos com inscrição na Ordem cancelada.
A referida disposição legal citada por Nehemias foi mantida com outra redação
no atual Estatuto dos Advogados95, e por conta desta relação a contribuição financeira
possui esta exata natureza, tanto que “o pagamento da contribuição anual à OAB isenta os ins-
critos nos seus quadros do pagamento obrigatório de contribuição sindical”96. Note-se bem: não
há nada de errado nesta natureza sindical da Ordem, pois como muito bem justificado
pelo eminente líder da advocacia que modernizou o Estatuto revogado de 1963, a sindica-
lização “constitui prerrogativa integrada na Declaração Universal dos Direitos do Homem (art. 23,
alínea 4), ademais de ser direito assegurado pela Constituição (art. 159)”97.
O problema é que a Ordem, mais ainda quando está na função de sindicato e em
atrito com a Defensoria Pública, não possui absolutamente nenhuma afinidade institu-
cional necessária para falar em nome de qualquer Defensor Público: basta que se observe
os exemplos que arrolamos no começo deste item, entre os quais se inclui a represen-
tação criminal contra Defensores Públicos paulistas que observaram o § 6.º do art. 4.º
da LC n.º 80/94; exemplos que comprovam o inconciliável choque de interesses em de-
terminados assuntos entre Ordem e Defensoria, tornando insuportável a submissão de
Advogados à Corregedoria da Defensoria Pública (teoricamente falando), bem como a
submissão de Defensores Públicos ao Tribunal de Ética da OAB (o que acontece na vida
real, infelizmente).
Este contexto faz ressaltar a situação esdrúxula, beirando o ridículo, do Defensor
Público além de ser subordinado hierarquicamente à Ordem – o que inclui o Defensor
Público-Geral e Conselheiros da Defensoria – ser, ademais, obrigado a pagar uma contri-
buição de natureza sindical à Ordem.
Para melancolia do bom senso, alguns setores da Ordem ousam ao ponto de pro-
palarem a falsa ideia de que os Defensores Públicos desvinculados da Ordem – por ob-
servarem o § 6.º do art. 4.º da LC n.º 80/94 – estariam dando vazão ao interesse egoístico
de pouparem suas finanças pessoais em detrimento da contribuição anual de natureza
sindical. Mas, como se vê, não é este o ponto: o ponto é que a Ordem possui assuntos
totalmente inconciliáveis com a Defensoria Pública, não aceitando a autonomia consti-
tucional plena da Defensoria, e lida com tais assuntos utilizando duramente sua função
sindical contra a própria Defensoria e seus membros, sem abrir mão de exigir dos Defen-
sores Públicos a contribuição financeira de natureza sindical.
130
Constitucionalidade da Capacidade Postulatória Autônoma do
Defensor Público: fundamentos e importância à defesa de direitos humanos
Por sinal, é este o motivo de julgarmos totalmente inaceitável que qualquer De-
fensoria Pública use dinheiro público para honrar contribuições sindicais anuais, sem
defenderem a autonomia constitucional da Instituição. Este dinheiro público deve ser
utilizado para melhorias estruturais da Defensoria Pública, e jamais para acrescentar
subsídio financeiro a uma Instituição – nobilíssima, sem dúvida – mas que também pos-
sui natureza sindical e alguns interesses totalmente inconciliáveis à Defensoria Pública:
todos estes interesses defendidos com unhas e dentes por alguns setores da Ordem ao
exercerem duramente a função sindical.
131
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
Como se vê, quando se quer forçar o vínculo de Defensores Públicos aos quadros
da Ordem coloca-se em risco não só a autonomia constitucional da Defensoria Pública,
mas igualmente à da Ordem.
O mencionado § 1.º do art. 44 do Estatuto da Advocacia – “A OAB não mantém com
órgãos da Administração Pública qualquer vínculo funcional ou hierárquico.” – tem sua grande
razão de ser: sabemos que não foram poucos os regimes autoritários, como os regimes do
Nacional-Socialismo e também do Facismo, que absorveram a Ordem submetendo pro-
fissionais liberais a trabalharem no sistema de Justiça de acordo com os princípios nor-
teadores da Ditadura implantada. Portanto, este dispositivo do Estatuto da Advocacia é,
sem dúvida, expressão concreta da cláusula constitucional que nos impõe a vigência de
um Estado democrático de direito101, importando tudo isso numa Ordem dos Advogados
constitucionalmente autônoma.
Hoje, politicamente, a Ordem é muito poderosa; mas nunca se sabe o dia do ama-
nhã: eis aí o perigo de se obrigar Defensores Públicos a serem subordinados à hierarquia
da Ordem. Na prática, é um precedente que viola a inolvidável lição de que a advocacia
é incompatível com qualquer atividade, função ou cargo público que reduza a indepen-
dência profissional. E em perspectiva, este precedente é nefasto e perigosíssimo porque
em eventuais períodos autoritários – afinal, o futuro a Deus pertence – o poder arbitrário
pode pretextá-lo para escravizar uma Instituição que, por natureza, é desvinculada do
Estado; e tal natureza é tão poderosa que prescinde de norma constitucional expressa
para impor juridicamente esta realidade.
Para o bem da cidadania, é imprescindível que a autonomia da Ordem seja prote-
gida contra o desejo de alguns setores da Ordem que, neste específico assunto, contra-
dizem o magno papel da Ordem na queda do Regime Militar e na restauração da demo-
cracia brasileira.
Neste passo, não podemos deixar de mencionar que a Ordem possui um papel fun-
damental para a defesa das liberdades públicas, e isto se viu especialmente pela coragem
e determinação de uma nata de Advogados que sempre se rebela nos momentos mais
sombrios de nossa história, especialmente nos regimes do Estado Novo e da Ditadura Mi-
litar, enquanto diversas outras porções da sociedade encolhiam-se assustadas; na frase
132
Constitucionalidade da Capacidade Postulatória Autônoma do
Defensor Público: fundamentos e importância à defesa de direitos humanos
lapidar de Evandro Lins e Silva, “é nos momentos de supressão das liberdades que se agiganta o
papel do Advogado”102. Nestes momentos de fechamento político é o Advogado, é o profis-
sional liberal, quem naturalmente lidera a luta contra o arbítrio estatal pois que livre de
peias do Estado.
Todavia, é necessário também considerar que os fatos da vida evoluíram, e a De-
fensoria Pública, ator do sistema de Justiça em âmbito constitucional desde 1988, tam-
bém é merecedora de respeito e de idêntica autonomia devido à idêntica essencialidade.
A Defensoria foi criada especificamente para a tarefa dificílima de incluir nos sistemas
político e jurídico de nosso país o mar dos desassistidos. E a criação da Defensoria Públi-
ca, este novo ator no sistema de Justiça, em nada deve diminuir a Ordem ou os demais atores
do sistema de Justiça: pelo contrário, uma vez que fortalece a família do sistema de Justiça
como um todo. Ademais, não podemos olvidar que cada ator do sistema de Justiça possui
o seu determinado papel constitucional, sendo essa pluralidade vital para a defesa plural
e mais ampla dos direitos humanos.
Assim, é da pluralidade dos atores do sistema de Justiça – especialmente das fun-
ções essenciais à Justiça – que se pode albergar um espectro mais amplo de defesa dos
direitos humanos. Não podemos ignorar este paralelismo evidente. E a constitucionali-
zação da Defensoria Pública, portanto, possui um significado enorme à maior proteção
dos direitos humanos em nosso país.
Por todo o exposto, não temos dúvida alguma de que a autonomia da capacidade
postulatória do Defensor Público, enquanto desdobramento natural e lógico da autono-
mia constitucional da Defensoria Pública, afasta definitivamente até mesmo a hipótese
de facultatividade da vinculação dos Defensores Públicos com a insigne Ordem: porque
tal facultatividade corresponderia a uma suposta facultatividade da autonomia consti-
tucional do serviço público de assistência jurídica integral e gratuita. E esta autonomia,
pelo magno e profundo significado que ostenta, deve ser obrigatória e inegociável: um prin-
cípio jurídico estruturante e insuprimível da Defensoria Pública.
E há sempre preços a serem pagos por dever de coerência. Por exemplo, afirmar
que defensor público não é advogado é ter de admitir que, hoje, um defensor público não
tem a possibilidade de concorrer ao quinto constitucional.
102. LINS E SILVA, Evandro. Arca dos guardados: vultos e momentos nos caminhos da vida. Rio de Janeiro:
Civilização brasileira, 1995, p. 276.
133
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
Até que haja justa e necessária reforma constitucional103, o art. 94 da CF88 torna o
quinto constitucional um “oligopólio” de membros do Ministério Público e de Advoga-
dos, e se Defensor Público não pode ser considerado Advogado, logo, hoje não poderia
ingressar nos Tribunais por meio do quinto constitucional104.
A nosso ver, porém, se fixamos a diferença entre Advogado e Defensor Público –
não obstante originarem-se historicamente de tronco comum –, a compreensão de tudo
que expusemos no presente escrito torna claro que a autonomia constitucional da De-
fensoria Pública não pode ser facultativa, uma vez que constitui dever jurídico de âmbito
constitucional. O preço teria de ser pago. Assim, partindo da premissa de que Defensores
Públicos não devem ser considerados Advogados, é importante iniciarmos a reflexão de
que a autonomia constitucional da Defensoria Pública não pode ser sujeitada a interesses
pessoais de Defensores Públicos que eventualmente se valham de benefícios concedidos
pela Ordem (planos de saúde, descontos nas aquisições de obras jurídicas, abertura de
crédito facilitada, etc), nem sujeitada a interesses políticos locais. Em uma palavra, é pre-
ciso que as Defensorias Públicas assumam sua autonomia constitucional integralmente.
Quando na petição inicial da Adin 4636 o Conselho Federal da OAB afirma que,
segundo a natureza das coisas, defensor público é advogado, devemos ter em mente que
até mesmo – e por diversas razões, sobretudo históricas – entre alguns defensores públi-
cos tal qualidade é admitida105. É que as mentalidades levam algum tempo para muda-
rem, daí não podermos ser tão rigorosos com quem sustenta ideias – a nosso ver – ultra-
passadas.
103. Nesse exato sentido, tramita na Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda Constitucional n.
488/2010, de autoria do deputado Sérgio Barradas Carneiro, do Partido dos Trabalhadores da Bahia.
104. Devemos observar que se esse “oligopólio” dos membros do Ministério Público e dos advogados ao quin-
to constitucional exclui os defensores públicos, por não serem advogados, pelo mesmo raciocínio deveria
excluir os integrantes da Advocacia Pública. O fato é que se no início do século XXI é possível constatar um
início de discussão sobre se defensor público é advogado – disso decorrendo a impossibilidade de concorrên-
cia ao quinto constitucional –, o mesmo não se dá no bojo da Advocacia Pública, o que vale um estudo sobre
as razões que levam os membros dessa função essencial à Justiça a não se mobilizarem para se destacar da
Advocacia privada. De qualquer forma, também não existe um movimento plenamente unificado nas ideias
no âmbito da Defensoria Pública no Brasil, e uma pesquisa poderia facilmente demonstrar que nos mais
diversos pontos desse país continental inúmeros defensores públicos devem, por exemplo, fazer parte de
diretorias e conselhos da Ordem dos Advogados do Brasil.
105. Nesse sentido, o defensor público gaúcho Fábio Luís Mariani de Souza – em obra de inegável qualidade
e de leitura obrigatória – procura sustentar que ao defensor público deve ser permitido advogar em causa
própria porque seria “(...) demasiado severo proibir um advogado de advogar (...)”. A Defensoria Pública e o
acesso à justiça penal. Porto Alegre: Núria Fabris, 2011, p. 182.
134
Constitucionalidade da Capacidade Postulatória Autônoma do
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138
A MEDIAÇÃO DE CONFLITO FAMILIAR: ACESSO À JUSTIÇA
CÉLERE E EFICAZ
Daniela Maria Marques Azevedo106
Resumo: O presente artigo aborda o tema: “A mediação de conflito familiar: acesso à justiça célere
e eficaz”, onde se retrata o antagonismo entre a crise do sistema judicial em vigor e a tendência
neoconstitucionalista, que exige, através da interpretação constitucional, a eficácia do direito
fundamental ao acesso à justiça célere e eficaz no Estado Democrático de Direito. Destarte, traz à
tona a necessidade da utilização de método autocompositivo adequado de solução de conflito como
elemento integrador da Justiça para a coesão social. Nesse trilhar, estuda a mediação, através do
conceito, inclusive diferenciando-a da conciliação, bem como natureza jurídica, fundamento,
objeto, objetivo, princípios, procedimentos, métodos, etapas e o papel do mediador. Ressalta-se a
importância da mediação, principalmente, na seara familiar como instrumento para a consecução da
cidadania e pacificação social, demonstrando a imprescindibilidade do diálogo de várias disciplinas
e, consequentemente, do suporte da equipe multidisciplinar na sessão de mediação familiar. Por
conseguinte, destacam-se as existências do Núcleo de Mediação Familiar da Defensoria Pública do
Estado da Bahia e também do Núcleo de Apoio Psicossocial da predita Instituição, consubstanciada
numa pesquisa de campo, realizada no lapso temporal de três anos. Por derradeiro, assevera a
necessidade de mudança do paradigma social, integrando a cultura da mediação no seio social, por
intermédio dos meios de comunicação, efetivação de políticas públicas, ensino nas universidades,
realização de cursos e congressos, enfim pelo incentivo da prática mediadora entre os cidadãos.
Abstract: This article discusses the topic: “The mediation of family conflict: access to
justice expeditiously and effectively”, which depicts the antagonism between the crisis
of the judical system in place and the neoconstitutionalism tendency, which requires,
through constitutional interpretation, the effectiveness of fundamental right to access
to justice expeditiously and effectively in a Democratic State of law. Thus, brings up the
necessity to use the right self compostive method to solve the conflict as an integrator
of Justice for social cohesion. In this tread, studying mediation, through the concept,
106. Defensora Pública do Estado da Bahia, ex-Coordenadora do Núcleo de Mediação Familiar da Defensoria
Pública do Estado da Bahia. Especialista em Direito do Estado, em nível de pós-graduação “latu sensu”, pela
Faculdade Baiana de Direito. Especialista em nível de pós-graduação “latu sensu”, pela Escola de Magistrados
da Bahia (EMAB). daniela.azevedo@defensoria.ba.gov.br.
139
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
1. INTRODUÇÃO
107. Fraveto aduz que: ” O Brasil enfrenta problemas de difícil equação dentro da lógica e do respeito ao aces-
so à justiça. Há um pressuposto notório de que os modelos tradicionais encontra-se significamente esgota-
dos para uma resposta eficaz ao universo maior e cada vez mais complexo de conflitos sociais.” FRAVETO,
Rogério. Redes de Mediação: um Novo paradigma à Pacificação dos Conflitos. Disponível em: <http://portal.
mj.gov.br/main.asp?Team=%7B2C6FA354-9062-4927-9767- DE925A5EA180%7 D>. Acesso: 27. 05. 2012.
140
A Mediação de Conflito Familiar: acesso à justiça
108. ANDRIGHI, Nancy; FOLEY Gláucia Falsarella. Sistema multiportas: o Judiciário e o consenso. Disponí-
vel em: <http://portal.mj.gov.br/main.asp?Team=%7B2C6FA354-9062-4927-9767- DE925A5EA180%7D>. Data
de acesso 27.05.2012.
141
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
ineficácia das suas decisões. Por isso, a predita crise da Justiça ocupa espaço crescente na
agenda política, acadêmica e dos meios de comunicação.
Seguindo esta entoação, Marcelo Vieira de Campos declara:
Por conseguinte, a rapidez à resolução pelas partes, aliada ao baixo custo e bani-
mento do excesso de formalidade representam progressos reais dos quais não se pode
renunciar.
Diante da mencionada crise, a solução adequada da controvérsia é necessária para
que o sistema deixe de estar sobrecarregado e possa aplicar os escassos recursos dispo-
níveis naquelas demandas que realmente exijam sua atuação. Nesta senda, é importante
buscar a administração dos conflitos, através de procedimentos, que busquem a resolu-
ção das querelas pelas próprias partes, como ocorre na mediação.
Este trabalho almeja pesquisar uma política pública de justiça, que deva ter como
objetivo favorecer ao cidadão, visando o seu bem-estar social, mediante a facilitação do
acesso a um procedimento resolutivo de litígio mais efetivo e, por conseguinte, propor-
cionando uma tutela jurídica com menor custo.
109. CAMPOS, Marcelo Vieira de. Não basta a justiça ser célere, precisa ser acessível. Disponível em:<http://
portal.mj.gov.br/main.asp?View={597BC4FE-7844-402D-BC4B-06C93AF009F0>.Acesso:24.07.12.
142
A Mediação de Conflito Familiar: acesso à justiça
Haja vista, a partir da citada Carta Magna110, com o aumento das normatizações das
garantias constitucionais em conjunto com a formação de uma sociedade multifacetada,
cujos membros são ainda despreparados para resolverem os seus conflitos interpessoais,
já que possuem dificuldades de se comunicar111, criou-se um ambiente apropriado para a
atual crise da prestação jurisdicional.
Destarte, a Justiça Mediadora, ao buscar a solução dos conflitos pelas partes, não
atende apenas aos reclamos da funcionalidade e eficiência do aparelho jurisdicional, pois
o acesso aos Direitos não deve ter apenas o escopo jurídico, mas, principalmente, o esco-
po social.
Igualmente, revela-se o fundamento social das vias mediadoras, que consiste na
sua função de pacificação social. Esta, geralmente, não é alcançada apenas pela sentença
judicial, que se limita a ditar autoritariamente a regra para o caso concreto, e que, na
grande maioria dos casos, não é aceita de bom grado pelo vencido, o qual contra ela in-
surge-se com todos os meios possíveis de recurso.
Além do mais, o pronunciamento judicial decisivo limita-se a solucionar a parcela
da lide levada a juízo, por isso, não pacifica a lide sociológica, em regra mais ampla, da
qual a decisão emergiu como simples ponta do iceberg. Neste cenário, é possível ainda de-
sencadear outros inúmeros conflitos, como também agravar os problemas já existentes,
criando, assim, uma escalada do conflito.
Por essa razão, salienta-se que a Justiça tradicional volta-se para o passado, en-
quanto a Justiça consensual dirige-se para o futuro, posto que esta previne e apazigua
situações de tensões e rupturas relacionais.
O fato é que com as grandes transições que ocorrem no mundo como: avanços
tecnológicos, violência e globalização, fazem-se necessário que o Direito também evolua,
com a finalidade de adaptar-se às mutações sociais, mantendo a sua função precípua de
assegurar a justiça em todas as suas nuances.
Diante deste contexto, não só os operadores do direito, mas também membros da
sociedade entendem que o modelo conservador do processo litigioso atual, o monopólio
110. Uadi Lammêgo Bulos ensina acerca das características da Carta de 1988: “previu princípios fundamen-
tais, ao contrário das constituições pregressas, que não demarcaram, logo no introito, as garantias do ho-
mem e da sociedade.” BULOS, Uadi Lammêgo. Direito Constitucional ao alcance de todos. 3ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2011, p. 116.
111. Acerca do despreparo dos cidadãos, Daniel Carneiro assevera: “O Brasil é constituído por uma sociedade
extremamente desigual, permeada por ignorância e com sua estrutura educacional deficitária.” CARNEIRO,
Daniel Carneiro. A mediação de conflitos como instrumento de acesso à justiça e incentivo à cidadania.
Disponível em: < http://jus.com.br/revista/texto/17698/a-mediacaode-conflitos-como-instrumento-de-a-
cesso-a-justica-e-incentivo-a-cidadania>. Acesso: 27.07.12.
143
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
estatal, situação em que o Estado substitui a vontade dos cidadãos, não é o melhor instru-
mento para a efetivação dos direitos constitucionais.
Assim, na procura pelo efetivo acesso à justiça, caminha-se na direção dos meios
adequados de resolução de controvérsias, como a mediação, oportunidade em que os ci-
dadãos manifestam as suas vontades, restaurando a capacidade emancipatória, por in-
termédio da autogestão de seus conflitos.
Portanto, é notório que o método contencioso da controvérsia não é o mais apro-
priado para certos tipos de conflito, como o familiar, em que se faz necessário observar os
problemas estruturais do relacionamento que estão à base da litigiosidade. E, em razão
deste panorama, promover aos cidadãos o acesso à Justiça, através de meios adequados
para a solução de conflito, é um grande desafio, mas a sua realização é imprescindível
para a efetivação da cidadania e pacificação social, através da coesão social.
Todavia, ressalte-se que para tentar compreender a atual conjuntura jurídica bra-
sileira convém afirmar que, mundialmente, o neoconstitucionalismo112 produziu efeitos
a partir da 2ª Guerra Mundial, mas no Brasil surtiu suas consequências a partir da Cons-
tituição Federal de 1988.
Segundo o nobre professor, Luís Roberto Barroso, o conceito de neoconstituciona-
lismo significa:
112. Uadi Lammêgo Bulos ensina sobre Neoconstitucionalismo: “A fase que estamos vivendo é a do constitu-
cionalismo contemporâneo, que equivale ao neoconstitucionalismo, marcada pela existência de documen-
tos constitucionais amplos, analíticos, extensos, a exemplo da Constituição brasileira de 1988.”BULOS, Uadi
Lammêgo. Direito Constitucional ao alcance de todos. 3.ed. São Paulo:Saraiva, 2011, p.88.
113. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo os Conceitos fundamentais
e a construção do novo modelo. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 266.
114. Sobre a constitucionalização do Direito Privado Pedro Lenza ensina: “Avançado, por outro lado, mo-
dernamente, sobretudo em razão da evidenciação de novos direitos e das transformações do Estado (...),
cada vez mais se percebe uma forte influência do direito constitucional sobre o direito privado (...). ” “Essa
situação, qual seja, a superação da rígida dicotomia entre o público e o privado, fica mais evidente diante
144
A Mediação de Conflito Familiar: acesso à justiça
Nos últimos anos, todavia, ganhou curso generalizado uma distinção qualitativa
ou estrutural entre regra e princípio, que veio a se tornar um dos pilares da mo-
derna dogmática constitucional, indispensável para a superação do positivismo
legalista, onde as normas se cingiam a regras jurídicas. A Constituição passa a
ser encarada como um sistema aberto de princípios e regras, permeável a valores
jurídicos suprapositivos, no qual as ideias de justiça e de realização dos direitos
fundamentais desempenham um papel central. A mudança de paradigma nessa
matéria deve especial tributo às concepções de Ronald Dworkin e aos desenvolvi-
mentos a ela dados por Robert Alexy. A conjunção das ideias desses dois autores
convencional na matéria116.
da tendência de descodificação do direito civil, evoluindo da concentração das relações privadas na codi-
ficação civil para surgimento de vários microssistemas(...)”. “Todos esses microssistemas encontram o seu
fundamento na Constituição Federal, norma de validade de todo o sistema, passando o direito civil por um
processo de despatrimonialização”. LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 12. ed. São Paulo:
Saraiva, 2008, p. 2-3.
115. Para Uadi Lammêgo Bulos interpretação ou exegese constitucional é: “ato de descortinar o sentido, sig-
nificado e alcance de normas constitucionais, tomando como base métodos, princípios e técnicas científicas
de exegeses desenvolvidas pela hermenêutica.”. BULOS, Uadi Lammêgo. Direito Constitucional ao alcance
de todos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 155.
116. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição, 2006, p. 257.
117. Para Uadi Lammêgo Bulos eficácia constitucional é: “a capacidade de as normas supremas do Estado
produzirem efeitos, os quais variam em grau e profundidade.” “ eficácia constitucional = potencialidade =
capacidade das constituições gerarem efeitos.” BULOS, Uadi.
145
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
Neste patamar, o Direito delineia uma transição, posto que, em algumas hipóte-
ses, desformaliza conceitos e procedimentos rígidos, com a finalidade de promover jus-
tiça, operacionalizando, assim, os direitos fundamentais.
Nota-se, portanto, que o neoconstitucionalismo e a interpretação constitucional
são hábeis instrumentos para a consecução da eficácia dos preceitos constitucionais,
como o direito ao acesso à justiça célere e eficaz, nos moldes do art.5º, LXXVIII da Cons-
tituição Federal de 1988.
146
A Mediação de Conflito Familiar: acesso à justiça
começo da conscientização das pessoas dos seus direitos. Em seguida, pela circunstância
do texto constitucional ter criado novos direitos, introduzidos novas ações e ampliado à
legitimação ativa para tutela de interesses.
Adequado, neste momento, é ressaltar que o acesso à Justiça não se confunde com
acesso ao Judiciário, porque àquele não significa apenas levar as querelas dos usuários
ao Poder Judiciário, mas, realmente, inserir socialmente os cidadãos, que estão excluídos
pela hipossuficiência financeira, informativa ou técnica do sistema judicial vigente.
Válida é a lição de Watanabe citado por Pedro Lenza:
A problemática do acesso à Justiça não pode ser estudada nos acanhados limites
do acesso aos órgãos judiciais já existentes. Não se trata apenas de possibilitar o
acesso à Justiça enquanto instituição estatal, e sim de viabilizar o acesso à ordem
jurídica justa121
direito nem sempre dispõem de habilidades específicas para a condução de processos de construção do con-
senso. Ao contrário, o que se verifica, em geral, é a aplicação de técnicas excessivamente persuasivas, com-
prometendo a qualidade dos acordos obtidos. Nesse contexto, ainda, que o sistema de justiça se esforce em
modernizar os seus recursos humanos, materiais, normativos e tecnológicos-, a dinâmica da explosão de liti-
giosidade ocorrida nas últimas décadas no Brasil continuará apresentando uma curva ascendente em muito
superior à relativa aos avanços obtidos. ANDRIGHI, Nancy; FOLEY, Gláucia Falsarella. Sistema multiportas:
o Judiciário e o consenso Disponível em: < http://portal.mj.gov.br/main.asp?Team=%7B2C6FA354-9062-4927-
9767-DE925A5EA180%7D>. Data de acesso 27.05.2012.
121. LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 12ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 614.
122. A respeito do tema Marcelo Vieira de Campos: “Paralelamente, e dando seguimento à reforma deflagra-
da com a Emenda Constitucional 45/2004, avanços normativos relevantes vêm sendo alcançados, a exemplo
dos 21 projetos de lei aprovados no âmbito do “ II Pacto Republicano de Estado por um sistema de Justiça
mais acessível, ágil e efetivo”, compromisso assinado, em 2009, entre os chefes dos três poderes. Vale lem-
brar, nesse contexto, que foram aprovadas leis importantes como a Lei complementar 132/2009, segundo a
qual a Defensoria Pública pode se organizar em núcleos ou núcleos especializados, priorizando as regiões
com maiores índices de exclusão social e adensamento populacional.” CAMPOS, Marcelo Vieira de. Não bas-
ta a Justiça ser
célere, precisa ser acessível. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/main.asp?Team=%7B2C6FA354-9062-
4927-9767-DE925A5EA180%7D>. Data de acesso 27.05.2012.
147
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
123. Uadi Lammêgo Bulos ensina sobre acesso à Justiça célere: “ Pelo princípio da razoável duração do pro-
cesso, as autoridades jurisdicionais e administrativas devem exercer suas atribuições com rapidez, presteza
e segurança(...).”. BULOS, Uadi.
124. “Em 2009 o Judiciário Estadual brasileiro recebeu 18,7 milhões de ações, apenas 67 mil a mais do que en-
trou no ano anterior”. “A taxa de congestionamento geral da Justiça estadual é de 73%. Na primeira instância,
a proporção sobe para 80%. (...)”. “O estoque global de ações não julgadas na justiça estadual cresceu”.
125. CAMPOS, Marcelo Vieira de. Não basta a Justiça ser célere, precisa ser acessível. Disponível em: <http://
portal.mj.gov.br/main.asp?Team=%7B2C6FA354-9062-4927-9767-DE925A5EA180%7. D>. Data de acesso
27.05.2012.
126. CNJ. Justiça em números Justiça Estadual - TJ Bahia dados atualizados em 16/05/2011. http://www.cnj.
jus.br/relatorio. interativo/mapa/estadual/tjba.htm.
127. G1. Número de divórcios no Brasil é o maior desde 1984, diz IBGE. Disponível em:<http://g1.globo.com/
brasil/noticia/2011/11/numero-de-divorcios-no-brasil-e-o-maior-desde-1984-diz ibge.html>. Data de acesso
30/11/2011.
148
A Mediação de Conflito Familiar: acesso à justiça
pesquisa relata que a elevação decorre do término da exigência do lapso temporal para a
dissolução do casamento, bem como pela aceitação do divórcio pela sociedade nacional.
O aludido estudo demonstra ainda o aumento dos divórcios consensuais, que re-
presentaram 75,2% dos divórcios, como também o aumento da guarda compartilhada
dos filhos menores entre os divorciandos, passando de 2,7% em 2000 para 5,5% em 2010.
A prestação jurídica, desde que respeitando os direitos constitucionais, é um impor-
tante artefato de cumprimento do princípio da dignidade da pessoa humana e cidadania.
Diante do exposto, ficou comprovada a necessidade de construir procedimentos
adequados de solução de controvérsia, a fim de equacionar a deficiência do sistema de
justiça conservador. Nesse diapasão, os autores José Luiz Morais e Anarita Araújo Silvei-
ra citados por Rozane da Rosa Cachapuz ensinam acerca da mediação como instrumento
de efetivação do acesso à justiça:
Esse pensar cria fórmulas renomadas no contexto atual, onde observamos que,
embora se recorra aos tribunais de forma irracional, por vivermos numa socie-
dade de cultura essencialmente litigiosa, existe uma quantidade considerável
de conflitos que poderiam ser perfeitamente resolvidos pelas próprias partes ou
com a ajuda de um terceiro. Esses mecanismos alternativos, entre os quais se
cita a mediação, colocam-se ao lado do tradicional processo judicial como uma
opção que visa descongestionar os tribunais e reduzir o custo e a demora dos
procedimentos: estimular a participação da comunidade na resolução dos con-
flitos, e facilitar o acesso à justiça, já que, por vezes, muitos conflitos ficam sem
resolução porque as vias de obtenção são complicadas e custosas, e as partes não
têm alternativas disponíveis a não ser, quem sabe, recorrer à força128.
No entanto, existem outros meios de solução dos conflitos, que são denominados
de equivalentes jurisdicionais129. É propício, portanto, indicar a existência de duas espé-
cies de equivalentes jurisdicionais, a saber: heterocomposição e autocomposição.
A heterocomposição significa a solução de conflito por intermédio de um terceiro.
Como exemplo de forma heterocompositiva, existem a jurisdição (tutela jurisdicional)130
e a arbitragem131.
128. CACHAPUZ, Rozane da Rosa. Mediação nos conflitos &Direito de Família. Curitiba: Juruá, 2011, p.17.
129. Na lição de Fredie Didier Júnior, os equivalentes jurisdicionais são as formas de solução de conflito, autori-
zadas pelo ordenamento jurídico, em que não há exercício da jurisdição estatal. DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso
de direito processual civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento. Salvador: JusPodivm, 2007, p.68.
130. Segundo Fredie Didier, “A jurisdição é a realização do direito em uma situação concreta, por meio de
terceiro imparcial.” DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil: teoria geral do processo e
processo de conhecimento. Salvador: Jus Podium, 2007, p.65.
131. Para Fredie Didier arbitragem: “É técnica de solução de conflitos mediante a qual os conflitantes buscam
em uma terceira pessoa, de sua confiança, (...).” “A arbitragem, no Brasil, é regulamentada pela lei Federal n.
149
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
A palavra mediação tem origem do latim mediare denota dividir ao meio. Mediatio133
denota intercessão. Eis o conceito de mediação, segundo Petrônio Calmon134:
9307/96.”l DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil: teoria geral do processo e processo de
conhecimento. Salvador: Jus Podivm, 2007, p.70.
132. CALMON, Petrônio. Fundamentos da Mediação e da Conciliação. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 84.
133. CACHAPUZ, Rozane da Rosa. Mediação nos conflitos &Direito de Família. Curitiba: Juruá, 2011, p. 24.
134. CALMON, Petrônio. Fundamentos da Mediação e da Conciliação. Rio de Janeiro: Forense, 2007, 119.
135. Nancy Andrighi e Gláucia FalsarellaFoley lecionam: “ Por essa técnica, as partes constroem, em comu-
nhão, uma solução que atenda as suas reais necessidades. O mediador não julga, não sugere nem aconselha.
O seu papel é o de facilitar que a comunhão seja ( re) estabelecida, sob uma lógica cooperativa, e não adversa-
rial”.ANDRIGHI, Nancy; FOLEY, Gláucia Falsarella. Sistema multiportas: o Judiciário e o consenso Disponí-
vel em: < http://portal.mj.gov.br/main.asp?Team=%7B2C6FA354-9062-4927-9767-DE 925A5EA180%7D>. Data
de acesso 27.05.2012.
150
A Mediação de Conflito Familiar: acesso à justiça
Este instituto deve ser utilizado como praxe não adversarial de solução dos lití-
gios interpessoais e reais dos cidadãos. Destarte, a mediação configura-se como um meio
adequado para resolver a contenda de forma construtiva, arrimada na escuta e participa-
ção neutra de um terceiro, a fim de que seja garantida a legitimidade do procedimento.
A diferença entre mediação e conciliação vai além da terminologia dos dois institu-
tos. Guiando-se por alguns critérios distintivos, a saber: vínculos, finalidades e métodos136.
Por ser comum a confusão entre conciliação e mediação, é imprescindível a realiza-
ção da distinção entre os aludidos institutos, a fim de que os cidadãos possam escolher137.
Constata-se, de plano, que, por intermédio da mediação, o conceito de Justiça sig-
nifica a consciência da situação fática e jurídica das partes da altercação em que estão
envolvidas, produzindo, dessa forma, um resultado satisfatório.
Na mediação138 de conflitos, encontra-se presente um terceiro, mediador, que con-
tribui para o restabelecimento ou manutenção da comunicação entre as partes para que
as mesmas, através da análise de uma nova visão sobre a situação litigiosa, cheguem à
solução do problema que gerou a contenda. Neste enfoque, o mediador age como facili-
tador da resolução da controvérsia. Logo, é construída uma autocontenção do problema
pelas partes.
Na lição de Hebe Signori Gonçalves e Eduardo Ponte Brandão, a mediação deve
ter como foco mais o diálogo dos mediandos do que apenas a celebração do acordo139. Já
na conciliação, existe um terceiro, conciliador, que direciona as partes na elaboração do
acordo, sem observar a causa originária da lide, restando, desta sorte, cristalina a natu-
reza impositiva deste instituto.
A respeito da dessemelhança da conciliação e mediação, o autor Haim Grunspun
citado por Rozane da Rosa Cachapuz ensina:
136. CALMON, Petrônio. Fundamentos da Mediação e da Conciliação. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 111.
137. RIOS, Luana. Diferenças entre mediação e conciliação. Revista Voz Cidadã. Atuação Extrajudicial: Ensi-
nar, Previnir, Mediar e Conciliar. Maio de 2012, ano 01, nº 01, p. 19.
138. Para Fredie Didier Júnior. “Mediação significa: “Mediação é uma técnica não estatal de solução de con-
flitos, pela qual um terceiro se coloca entre os contendores e tenta conduzi-los à solução autocomposta.”
“ Trata-se de técnica para catalisar autocomposição” JUNIOR. Fredie Didier. Curso de Direito Processual
Civil. Salvador: JusPodivm, 2007, p. 70.
139. GONÇALVES, Hebe Signorini; BRANDÃO, Eduardo Ponte. Psicologia Jurídica no Brasil. 2. ed. Rio de
Janeiro: Nau Editora, 2005, p.84.
151
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
pode usar de seus conhecimentos profissionais, nas opiniões que emite. O juiz
sabe que foi o acordo possível e homologa o acordo. O poder, a autoridade e o
domínio aparecem e por isso se mantêm entre as partes separadas mais ressen-
timentos e ideias de vingança, e novos conflitos judiciais voltam às cortes. Na
mediação, o terceiro, imparcial, não opina, não sugere nem decide pelas partes.
O mediador está proibido por seu código de ética de usar seus conhecimentos
profissionais especializados como os de advogado ou psicólogo, por exemplo,
para influir na decisão. A mediação, além do acordo, visa à melhora das relações
entre os pais separados e a comunicação em benefício dos filhos140.
Juan Carlos Vezzulla citado por Caetano Lagrasta Neto realiza também uma breve
diferenciação da conciliação e mediação141:
Mais próxima do Poder Judiciário, a conciliação, visto que uma das grandes di-
ferenças entre esta e a mediação reside na existência ou não de relacionamento
entre as partes (ou seja, relações em que as partes desejam manter o relaciona-
mento). A sua existência exige um trabalho de mediação e a sua ausência ou a
existência de simples relacionamentos circunstanciais sem desejo de continua-
ção ou aprofundamento (...).
Outro aspecto relevante de distinção entre os dois institutos é a natureza das rela-
ções conflituosas, porque na mediação o objeto é a relação continuada, como as deman-
das familiares e de vizinhança, enquanto na conciliação o objeto é a relação eventual,
situações esporádicas, que não se ocupam com a manutenção dos vínculos.
Diante do exposto, entende-se que, embora almejem a consensualidade, a media-
ção e a conciliação possuem nuances específicas que as distinguem. Da análise da pri-
meira, depreende-se que a sua natureza jurídica é contratual, visto que o mencionado
instituto é formado por todos os elementos essenciais de um contrato, a saber: soberania
da vontade das partes; a criação, a modificação ou extinção de direitos; objeto lícito e não
defeso de lei.
Tal entendimento é confirmado por Adolfo Braga Neto citado por Rozane da Rosa
Cachapuz, que opina o seguinte acerca do tema: “… duas ou mais vontades orientadas
para um fim comum de produzir consequências jurídicas, extinguindo ou criando di-
reitos”142.
140. CACHAPUZ, Rozane da Rosa. Mediação nos conflitos &Direito de Família. Curitiba: Juruá, 2011, p.19.
141. GRINOVER, Ada Pelegrini; WATANABE, Kazuo e LAGRASTA NETO, Caetano. Mediação e Gerencia-
mento do Processo: revolução na prestação jurisdicional. São Paulo: Atlas, 2007, p. 12.
142. CACHAPUZ, Rozane da Rosa. Mediação nos conflitos &Direito de Família. Curitiba: Juruá, 2011, p. 35.
152
A Mediação de Conflito Familiar: acesso à justiça
Sendo assim, o mediador deve sempre ter o discurso positivo, evitando ou aniqui-
lando o ruído de comunicação entre os mediandos, propiciando, o devido acesso à justiça
às partes.
Por sua vez, o objeto precípuo da mediação é a relação interpessoal real conflituo-
sa, que repercute no convívio social. Em razão disso, há uma tentativa de preservação dos
relacionamentos continuados.
Acerca da preservação das relações continuadas, Petrônio Calmon afirma:
143. Sobre o tema trata Jean François-Six citado por Gustavo Andrade: “Este “agir comunicacional” de que
fala Habermas é um lugar intermediário (...), um espaço terceiro entre duas partes que permite aos cidadãos
cooperar na criação, dia a dia, da democracia...” ANDRADE, Gustavo. Mediação familiar. In: ALBUQUER-
QUE, Fabíola Santos; EHRHARDT JR., Marcos; OLIVEIRA, Catarina Almeida de (Coord.). Famílias no direito
contemporâneo: estudos em homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo. Salvador: Jus Podivm, 2010. p. 499.
144. SPENGLER, Marcos; Fabiana, LUCAS, Doglas Cesar. Justiça Restaurativa e Mediação. Políticas no Tra-
tamento dos Conflitos Sociais, Rio Grande do Sul: Editora Unijuí, 2011, p. 91.
145. CALMON, Petrônio. Fundamentos da Mediação e da Conciliação. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
153
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
146. SPENGLER, Marcos; Fabiana, LUCAS, Doglas Cesar. Justiça Restaurativa e Mediação. Políticas no Tra-
tamento dos Conflitos Sociais, Rio Grande do Sul: Editora Unijuí, 2011, p. 346
147. Ibid., p. 342.
148. SILVA, Denise Maria Perissinida. Mediação e Guarda Compartilhada: conquistas para a família. Curiti-
ba: Juruá, 2001, p. 309.
149. Sobre o tema asseveram Nancy Andrighi e Gláucia Falsarella Foley: “Além de efetiva na resolução de lití-
gios, a mediação confere sentido positivo ao conflito, pois patrocina o diálogo respeitoso entre as diferenças;
(...); a coesão social e, com ela, a diminuição de violência.” Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/main.
asp?Team=%7B2C6FA354-9062-4927-9767- DE925A5EA180%7D>. Data de acesso 27.05.2012.
150. CALMON, Petrônio. Fundamentos da Mediação e da Conciliação. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 122.
151. Equipe Mediare. A Mediação: Código de Ética dos Mediadores. Disponível em: <http://www.mediare.
com.br/05mediac_codetica.htm>. Data de acesso 12.03.10, elaborado por Adolfo Braga Neto, Ângela Oliveira,
Ângela Volpi, Murilo Reis, Regina Maria C. Michelon, Ronald Caputo, Tânia Almeida e Tânia Pita.
154
A Mediação de Conflito Familiar: acesso à justiça
155
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
5. MEDIAÇÃO FAMILIAR
O conceito de família pode ser analisado sob duas acepções: ampla e restrita. No
primeiro sentido, a família é o conjunto de todas as pessoas, ligadas pelos laços
do parentesco, com descendência comum, englobando, também, os afins – tios,
152. Para Fredie mediador é: “... o mediador é um profissional qualificado que tenta fazer com que os próprios
litigantes descubram as causas do problema e tentem removê-las.” DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de direito
processual civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento. Salvador: Jus Podivm, 2007, p. 70.
156
A Mediação de Conflito Familiar: acesso à justiça
Defronte da ampliação do conceito atual das famílias, surge uma nova espécie de-
las merecedora de análise especial, que é a Família Eudemonista, conceituada por Maria
Berenice Dias da seguinte forma:
Surgiu um novo nome para essa nova tendência de identificar a família pelo seu
envolvimento afetivo: família eudemonista, que busca a felicidade individual vi-
vendo um processo de emancipação de seus membros. O eudemonismo é a dou-
trina que enfatiza o sentido de busca pelo sujeito de sua felicidade. A absorção
da família, deslocando-o da instituição para o sujeito, como se infere da primeira
parte do § 8º do art. 226 da CF: o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de
cada um dos componentes que a integram. A possibilidade de buscar formas de reali-
zação pessoal e gratificação profissional é a maneira que as pessoas encontram
de viver, convertendo-se em seres socialmente úteis, pois ninguém mais deseja e
ninguém mais pode ficar confinado à mesa familiar154.
153. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, 15ª. Ed. São Paulo: Atlas, 2004, pag. 704 e 706.
154. DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das Famílias. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p55.
155. COORDENADORIA DE EDITORIA E IMPRENSA – STJ, Confira reportagem especial sobre alienação
parental,Disponívelem:<http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.tex-
to=104338&tmp.area_anterior=44&tmp.argumento_pesquisa=media%E7%E3o> Acesso em 27/03/2011.
157
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
Neste cenário, a Justiça deve recorrer a diversas ciências, a saber: antropologia, so-
ciologia, psicologia, serviço social, psicanálise e o direito, a fim de procurar auxílio para a
consecução da sua finalidade precípua que é a pacificação social.
Neste diapasão, o anteprojeto de lei do Instituto Brasileiro de Direito Processual e
Escola Nacional da Magistratura157 normatiza que em questão familiar será necessária a
co-mediação, que consiste na participação, além do mediador, do psicólogo, psiquiatra
ou assistente social na sessão de mediação.
O psicólogo, profissional da equipe multidisciplinar, possui a atribuição de restau-
rar a comunicação entre os mediandos, através do empoderamento destes, devolvendo,
desta maneira, às partes a competência para produzir a própria solução do conflito.
Neste trilhar, o psicólogo identifica as questões emocionais das partes e dos seus
familiares e, quando necessário, realiza o encaminhamento deles para a rede, como
156. GRINOVER, Ada Pelegrini; WATANABE, Kazuo e LAGRASTA NETO, Caetano. Mediação e Gerencia-
mento do Processo: revolução na prestação jurisdicional. São Paulo: Atlas, 2007, p. 50.
157. Instituto Brasileiro de Direito Processual. Projeto de lei sobre a mediação e outros meios de pacificação.
Disponível em:<http://www.pailegal.net/mediacao/558>. Data de acesso 28.07.2012.
158
A Mediação de Conflito Familiar: acesso à justiça
Dessa forma, o assistente social possui um arcabouço técnico para suavizar e des-
vendar as situações antagônicas existentes entre as partes, ou seja, auxilia o descortina-
mento do conflito relacional, propiciando o êxito da mediação.
Observa-se que a mediação, através da sua interdisciplinaridade, é um meio de
participação social, por intermédio do reconhecimento do mediando de si mesmo e do
outro como ser humano nas relações interpessoais.
Assim, em relação à mediação familiar, cabe à equipe interdisciplinar possibilitar
às famílias a autoria do final da querela, mediante a transformação do litígio e reestrutu-
ração do convívio dos membros familiares.
Vislumbra-se que a mediação familiar, cuja essência é interdisciplinar, por inter-
médio de sua justiça participativa, exercita uma ótica restaurativa, elevando os valores
humanos, pois foca o ser humano em todas as suas nuances.
159
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
160. Art. 7º – São funções da Defensoria Pública, dentre outras: I – prestar assistência e orientação jurídica e
integral e gratuita aos necessitados, priorizando a solução extrajudicial dos litígios (..);
161. Art. 4º - São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras: II – promover, prioritariamente,
a solução extrajudicial dos litígios, visando à composição entre as pessoas em conflito de interesses, por meio
de mediação, conciliação, arbitragem e demias técnicas de composição e administração de conflitos;
162. O art. 4º, § 4º. São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras:
(…) §4º O instrumento de transação, mediação ou conciliação referendado pelo Defensor Público valerá como
título executivo extrajudicial, inclusive quando celebrado com a pessoa jurídica de direito público.
163. MARLENE MENDES. Oficina da Defensoria capacita pais sobre Alienação Parental. Disponível em:
<http://www.defensoria.ba.gov.br/portal/index.php?site=1&modulo=eva_conteudo&co_cod=5364>. Acesso
em 27/03/2012.
164. ANA VÍRGINIA VIVALVA. Defensores promovem oficina para famílias na Casa de Justiça e Cidadania,
160
A Mediação de Conflito Familiar: acesso à justiça
disponívelem:<http://www.defensoria.ba.gov.br/portal/index.php?site=1&modulo=eva_conteudo&co_
cod=7073>. Acesso em 27/03/2012.
165. DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DA BAHIA. Núcleo de Mediação da Defensoria já prestou cerca de
20 mil atendimentos, disponível em http://dpba. jusbrasil.com.br/noticias/2919438/nucleo-de-mediacao-da-
defensoria-ja-prestou-cerca-de-20-mil-atendimentos. Acesso em 27/06/2012.
161
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
162
A Mediação de Conflito Familiar: acesso à justiça
REFERÊNCIAS
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CACHAPUZ, Rozane da Rosa. Mediação nos conflitos & Direito de Família. Curitiba:
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DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das Famílias. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tri-
bunais, 2011.
DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil: teoria geral do processo e
processo de conhecimento. Salvador: Jus Podium, 2007.
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
LIMA. Frederico Rodrigues Viana de. Defensoria Pública. Salvador: Jus Podium. 2010.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 15 ed. São Paulo: Atlas S.A, 2004.
163
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
SILVA, Denise Maria Perissini da. Mediação e Guarda Compartilhada: conquistas para a
família. Curitiba: Juruá, 2001.
164
A LEGITIMAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA NO MICROSSISTEMA
DA TUTELA DOS DIREITOS COLETIVOS
Felipe Kirchner166
Jaderson Paluchowski167
Abstract: This study aims to examine the role of Public Defender in the transindividual
rights protection system, as being legitimized to the entry of collective action for the
protection of diffuse rights, stricto sensu collective and homogeneous individual. More
specifically, this paper aims to investigate the peculiarities of the performance of the
institution in the qualified procedure that has to ensure access to justice, which is the
constitutional vocation of the Public Defender and its agents today’s mission.
166. Mestre em Direito Privado pela UFRGS; Defensor Público do Estado do Rio Grande do Sul; Subdefensor
Público-Geral para Assuntos Jurídicos da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul; Presidente do
Conselho Estadual de Defesa do Consumidor do Estado do Rio Grande do Sul (CEDECON); Professor Uni-
versitário na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
167. Defensor Público do Estado do Rio Grande do Sul; Membro do Núcleo de Defesa do Consumidor e de
Tutelas Coletivas da DPE/RS (NUDECONTU)
165
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
INTRODUÇÃO
168. O presente ensaio deriva de uma construção de pensamento iniciada no âmbito da Defensoria Público
do Estado do Rio Grande so Sul, especialmente pela seu Núcleo de Defesa do Consumidor e de Tutelas Cole-
tivas (NUDECONTU), em parte já declinada em ensaio anterior: KIRCHNER; CONSALTER, 2010.
169. Não obstante a doutrina fomente uma celeuma terminológica, o presente ensaio adotará a expressão
Ação Coletiva como gênero que tem como espécies as mais variadas ações que visam à tutela transindividual
de direitos, tais como a Ação Coletiva de Consumo, a Ação Civil Pública, o Mandado de Segurança Coletivo
e a Ação Popular, todas reguladas pelas normas que compõem o chamado Microssistema da Tutela dos Direitos
Coletivos, o qual será objeto de exame na primeira parte deste estudo, no item “A legitimação da Defensoria
Pública no sistema legislativo”. No plano terminológico, ainda cabe mencionar que a expressão “Ação Ci-
vil Pública” historicamente foi cunhada para diferenciar esta espécie da “Ação Penal Pública” proposta pelo
Ministério Público, tendo em vista a pretensão monopolista desta Instituição quando da edição da Lei n.º
7.347/85. Nesse sentido: GRINOVER 2008.
170. Nesse sentido o artigo publicado pelos Promotores Karin Sohne Genz e Julio Cesar Finger (GENZ, FIN-
GER, 2010).
171. Regra com a redação dada pela Lei n.º 11.448/07.
166
A Legitimação da Defensoria Pública no Microssistema da Tutela dos Direitos Coletivos
172. Ademais, não são raras as hipóteses em que o direito tutelado somente pode ser plenamente concretiza-
do pela via da ação coletiva. Isso se verifica não apenas na tutela dos direitos difusos, mas também quando o
dano causado aos sujeitos individualmente considerados acaba por não justificar economicamente o ingres-
so de uma ação judicial individual – na hipótese dos custos do processo superarem o retorno econômico que
o indivíduo obterá com a sentença de procedência –, muito embora a verificação do dano coletivo denote a
imprescindibilidade da tutela pela via transindividual (incremento do dano quando observada a coletividade
de indivíduos vítimas). Exemplificativamente, este é o caso das ações coletivas ajuizadas pelo NUDECONTU-
DPE/RS questionando a cobrança da taxa de emissão dos boletos bancários por diversas instituições finan-
ceiras e a ilegalidade do repasse do PIS e da COFINS pelas fornecedoras de energia elétrica e de telefonia.
Nestas o valor do dano tutelado se mostrava individualmente irrelevante, porém o dano coletivo se revela
economicamente vultoso,
173. SOUSA, 2012, p. 218. Leciona o autor: “Percebe-se assim que a Defensoria Pública não tem sequer a fa-
culdade de atuar na área dos direitos coletivos. Tem o dever. Trata-se de um imperativo de adequação e
eficiência. Por outro lado, a denegação do acesso a tal mister representaria a condenação da instituição, com
reflexos diretos nos seus assistidos, a uma atuação de segunda classe, privada das vias processuais mais mo-
dernas e eficazes. Reincidiríamos na lógica formal — e amarga — da célebre “Justice is open to all, like the Ritz
Hotel”. Portanto, violentamente inconstitucional, isto sim, seria a privação da legitimidade. Com efeito, de
que instituição “essencial” (art. 134, caput) e de que assistência “integral” (art. 5º, LXXIV) estaríamos falando
se a Defensoria ficasse impossibilitada de defender em juízo os direitos coletivos da sua imensa clientela?
Mais grave ainda: um cerceamento tamanho, atingindo exatamente a instituição voltada para a defesa dos
necessitados, teria o endosso do Estado Social instaurado pela Constituição de 1988? Evidentemente que
não. Pela legislação brasileira, como se sabe, é farto o rol dos legitimados para as ações coletivas. À vista
disso, e considerando que a esmagadora maioria da população é necessitada — em um país que sempre foi
segregador do ponto de vista social e ainda hoje é marcado por assombrosas desigualdades —, como poderia
restar sem legitimidade justamente a Defensoria?”
167
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
174. Nesse sentido o art. 1º, da Lei Complementar n.º 80/94: “A Defensoria Pública é instituição permanente,
essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime demo-
crático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os
graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessi-
tados, assim considerados na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal.” No II Diagnóstico
da Defensoria Pública no Brasil, promovido em 2006 pelo Ministério da Justiça e pelo Programa das Nações
Unidas pelo Desenvolvimento, o então Ministro Marcio Thomaz Bastos refere que “as instituições sólidas
são os instrumentos que as democracias têm para se realizar enquanto tais. E as democracias, para abando-
narem o rótulo de democracias formais, se tornando verdadeiras democracias de massas, devem construir
instituições que consigam garantir a todos, sem discriminações, os direitos previstos nas constituições de-
mocraticamente escritas. (...) Não mais podemos nos preocupar só com o Estado Julgador e com o Estado
Acusador, em detrimento do Estado Defensor” (BRASIL, 2010).
175. Clèmerson Merlin Clève adverte que “não basta haver Judiciário; é necessário haver Judiciário que de-
cida. Não basta haver decisão judicial; é necessário haver decisão judicial justa. Não basta haver decisão
judicial justa; é necessário que o povo tenha acesso à decisão judicial justa. O acesso à decisão judicial cons-
titui importante questão política. Não há verdadeiro Estado Democrático de Direito quando o cidadão não
consegue, por inúmeras razões, provocar a tutela jurisdicional” (CLÈVE, 1993, p. 50-51).
176. A temática proposta passa pelo equacionamento da tentativa de estabelecer uma pertinência temática,
legado do pensamento individual-liberalista que tenta limitar o acesso do cidadão à defesa coletiva de seus
direitos, com a atual tendência mundial de flexibilização do pressuposto de legitimidade.
168
A Legitimação da Defensoria Pública no Microssistema da Tutela dos Direitos Coletivos
177. O recorte deste capítulo se dá na inserção da Instituição no Estado Democrático de Direito sob o viés
da garantia do acesso à justiça. Contudo, vale ressaltar que a Lei Complementar n.º 132/09 promoveu uma
verdadeira reestruturação não apenas na organização interna das Defensorias Públicas, mas também da
estrutura do Estado Brasileiro. Nesse contexto, a Defensoria Pública restou reafirmada como instituição
permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, com a incumbência não apenas de orientar juridi-
camente os hipossuficientes organizacionais de forma integral e gratuita (em consonância com os artigos
5º, inciso LXXIV e 134, da CRFB/88), no âmbito individual e coletivo, mas também de promover os Direitos
Humanos, trazendo ao lume o nascimento do Estado Defensor (que olha, acolhe, entende e defende o ci-
dadão), em detrimento da figura secular do Estado Acusador. Porém, mais relevante é que a Defensoria
Pública resta posicionada como “expressão e instrumento do regime democrático” (artigo 1º). Esta é uma atribuição
fundamental. Não apenas pelo novo status concedido à Instituição (em termos de uma Teoria de Estado),
mas principalmente porque determina à Defensoria Pública a defesa do regime democrático nos âmbitos
individual e coletivo (artigo 3º).
169
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
formal dos direitos, o acesso à justiça não se apresentava como sendo uma problemática sig-
nificativa. Já no período do Estado Social ganha prevalência a atuação do Poder Executivo,
uma vez que a sociedade passou a exigir medidas concretas do “governo” para a concretiza-
ção dos direitos sociais já positivados nas Cartas constitucionais (ex. saúde, educação, tra-
balho, lazer, moradia, segurança, etc.). No entanto, no contexto de um Estado Democrático
de Direito, o protagonismo se volta ao Poder Judiciário e, consequentemente, as Instituições
autônomas que participam do sistema de justiça, como é o caso da Defensoria Pública.178
A razão desta virada centra-se na insuficiência das políticas públicas instituídas
pelo Poder Executivo e na inserção da realização de uma justiça substantiva no conteú-
do normativo teleológico dos textos constitucionais, do que é um ótimo exemplo o viés
programático da nossa Carta Magna de 1988 que, sem sombra de dúvidas, agregou ao
discurso político (e jurídico) um componente revolucionário de transformação do status
quo nacional,179 o que se coaduna com o caráter naturalmente ideológico da atuação da
Defensoria Pública. Essas circunstâncias levaram os Poderes e as Instituições ligadas à
administração da justiça a desempenharem um papel atuante na concretização das po-
líticas públicas, o que encurtou severamente as fronteiras entre a Política e o Direito,180
redundando no que foi chamado de movimento de judicialização da política (desloca-
mento do centro de decisão dos Poderes Legislativo e Executivo para o plano da jurisdi-
ção constitucional). Como a jurisdição assume o papel de efetivador do “estado de bem
estar social” (tem direitos efetivos apenas quem consegue acessar a justiça), a questão do
acesso efetivo aos Tribunais torna-se importante para a caracterização de uma verdadei-
ra democracia, ganhando enorme relevância, portanto, a viabilização do acesso à justiça.
A partir da segunda metade do Século XX a questão central do Direito se deslocou
da preocupação com a efetivação de direitos para a efetividade da tutela prestada pelo
Estado,181 passando o direito a ser visto não mais pela ótica dos seus “produtores”, mas
178. Importante mencionar que, juntamente com a Defensoria Pública, ocupam a condição de essencialidade
à administração da justiça a atividade do Ministério Público (artigo 127), da Advocacia Privada (artigo 133)
e da Advocacia Pública, ainda que sem a expressa referência nos artigos 131 e 132 da Constituição Federal.
179. Nesse sentido a regra constitucional do artigo 1º, inciso III, que institui como fundamento de nosso Esta-
do Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana, bem como as previsões do artigo 3º, o qual institui
os seguintes objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (conteúdo finalístico): a construção
de uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia do desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza,
da marginalização e das desigualdades sociais e regionais; e a promoção do bem de todos.
180. A separação entre a Política e a Economia atende ao postulado liberal da divisão entre os espaços público
e privado, o que se coaduna com o pressuposto da divisão dos poderes estatais. Os pressupostos do libe-
ralismo obviamente alcançaram o Direito, redundando nas seguintes premissas de natureza nitidamente
ideológica: aplicação do sistema por meio da vertente racionalista e mediante processos de mera subsunção
(método dedutivo); construção do ordenamento exclusivamente por meio da edição de leis estatais cogentes,
gerais e abstratas; crença na completude e neutralidade do Direito; e visão abstrata do sujeito de direito, o
que restou conjugado com uma aplicação exclusiva do paradigma da igualdade formal.
181. Em face desta problemática, Norberto Bobbio declinou a célebre máxima de que “o problema fundamental
em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los” (BOBBIO, 1992, p. 24-25).
170
A Legitimação da Defensoria Pública no Microssistema da Tutela dos Direitos Coletivos
sim pela perspectiva dos “consumidores” dos serviços jurisdicionais (principalmente dos
“necessitados”, na dicção constitucional).182
A inclusão da Defensoria Pública como ente legitimado para a propositura das
Ações Coletivas se insere no irrefreável movimento de acesso à justiça, conforme atesta
Mauro Capelletti. Destacando as ondas renovatórias da sistemática processual civil, se percebe
que no Brasil o movimento voltado ao acesso à justiça iniciou com o instituto da justiça
gratuita pela Lei n.º 1.060/50 (mero direito à gratuidade das custas e despesas processu-
ais) até a consolidação dos sistemas de assistência.183 O primeiro destes é a assistência ju-
diciária, que compreende as diversas organizações estatais e paraestatais que garantem
a indicação de advogados aos pobres (ex. serviços de assistência universitários e convê-
nios com a Ordem dos Advogados do Brasil), sistema que foi sucedido pela assistência ju-
rídica, que abarca a atividade anterior, mas agrega serviços jurídicos não relacionados ao
processo (ex. orientação e composição extrajudicial de conflitos, educação em direitos,
etc). Porém, este primeiro movimento renovador somente se conclui com a consolida-
ção da chamada assistência jurídica integral,184 havida com a criação da Defensoria Pública,
182. No que concerne a dificuldade dos “necessitados” acessarem a jurisdição, Boaventura dos Santos Souza
refere que as populações de baixa renda hesitam mais que as classes economicamente abastadas em recorrer
aos tribunais. As razões apontadas pelo sociólogo português são a desconfiança em relação aos serviços ad-
vocatícios que eram prestados por profissionais com pouca experiência e mal remunerados (fator superado
com o recente processo de estruturação das Defensorias Públicas no Brasil), uma situação generalizada de
dependência e insegurança que produz o temor de represálias ao ato de recorrer-se aos tribunais (algo muito
comum no Brasil no que concerne à Justiça Trabalhista, onde os empregados possuem o temor de não mais
conseguirem emprego após processarem seus antigos empregadores) e o fato de que o reconhecimento do
problema como jurídico e o desejo de recorrer aos tribunais para resolvê-lo não seria suficiente para que a
iniciativa de fato seja tomada (SOUZA, 1994).
183. Como será percebido, os sistemas de assistência se sobrepõem, no sentido de que o florescimento de
uma forma mais nova e eficiente (ex. assistência jurídica integral pela Defensoria Pública) não acaba total-
mente com os sistemas anteriores (assistência judiciária e jurídica), que continuam existindo dentro de uma
perspectiva limitada. Nesses termos, a figura do advogado dativo – hoje admissível apenas nas situações em
que a Defensoria Pública não se encontra estruturada, em razão do monopólio da assistência jurídica inte-
gral exercida pela Defensoria Pública, por força do artigo 4º, parágrafo 5º, da Lei Complementar 80/94, e do
princípio do defensor público natural, previsto no art. 4º-A, inciso IV, da mesma legislação – garante apenas o
acesso ao Poder Judiciário, enquanto o Defensor Público garante ao seu assistido, e à sociedade representada
coletivamente, o mais amplo acesso à justiça. Vislumbrando o processo criminal, Luigi Ferrajoli refere que a
defesa dativa e o gratuito patrocínio não passam de “simulacros de defesa”, visto que “inidônea a garantir efetivi-
dade ao direito de defesa”, razão pela qual deve-se reconhecer “o caráter de direito fundamental e, assim, universal do
direito de defesa: cuja atuação, justamente porque se trata de um direito fundamental, não pode ser confiada à lógica de
mercado como se fosse um direito patrimonial” (FERRAJOLI, 2009).
184. Da simples análise deste desenvolvimento histórico é facilmente perceptível que o instituto da justiça
gratuita não é sinônimo do instituto da assistência jurídica integral. Enquanto aquele está focado em questões
econômicas e pecuniárias, este certamente não está exclusivamente matizado por estes vetores. É por esta
razão que, oportunamente se irá defender – no tópico “A resignificação dos conceitos de hipossuficiência e
necessidade por meio da dimensão existencial e normativa dos termos” – que a assistência jurídica integral
não deve ser prestada apenas aos necessitados de recursos financeiros, mas a todos os necessitados organi-
zacionais (vulneráveis sob o ponto de vista cultural, social, técnico, étnico, etc.).
171
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
185. É preciso reconhecer que a Defensoria Pública, como o irmão mais novo do sistema de justiça, ainda se
encontra em fase de estruturação e consolidação. Como se sabe, não são raras as situações regionais onde há
uma insuperável dificuldade material na atuação da Instituição, pelas mais diversas razões: número insufi-
ciente de agentes, ausência de quadro de apoio operacional, falta de materiais de trabalho, dificuldades em
concretizar a autonomia administrativa e orçamentária, dentre outros fatores.
186. Nesse contexto, a garantia fundamental do acesso à justiça ganha contornos mais abrangentes. Como se
sabe, esse valor constitucional possui dois significados. O primeiro, mais restrito e difundido, entende o acesso
ao Poder Judiciário como sendo a garantia constitucional de que “a lei não excluirá da apreciação do judiciário lesão
ou ameaça de direito” (artigo 5º, XXXV). Já o segundo, mais amplo e abrangente, entende o acesso à justiça como
o alcance a uma determinada ordem de valores constitucionais e fundamentais, paradigma adotado pelas De-
fensorias Públicas. Assim, o problema ora em exame não se restringe ao acesso, mas também à efetividade da
justiça, abarcando não apenas o mencionado acesso do cidadão ao Judiciário, mas também (e, quiçá, princi-
palmente) a qualidade material e temporal de “saída do Judiciário” (o que compreende problemáticas como a
duração razoável do processo, a efetividade das tutelas, etc.). É especialmente em razão deste entendimento
que a Defensoria Pública, na condição de ente legitimado, vem privilegiando a via coletiva para a resolução dos
conflitos sociais que chegam as suas portas. A questão da efetividade da tutela jurisdicional é tratada, discutida
e planejada em cada ação coletiva interposta pelo NUDECONTU, onde se procura fazer requerimentos, já na
petição inicial, de determinadas medidas de efetivação do julgado, na fase de conhecimento, visando tornar
desnecessário o ingresso futuro de procedimentos individuais de liquidação e execução de sentença. Este é um
tema que extrapola os estreitos limites deste ensaio, mas que devido a sua fundamental importância prática e a
complexidade teórica subjacente, certamente merece ser tratado em uma pesquisa de maior fôlego.
187. Apenas para exemplificar, o Núcleo de Defesa do Consumidor e Tutelas Coletivas (NUDECONTU) da
DPE/RS ingressou com ações coletivas de consumo contra as principais instituições financeiras do país, tendo
como objeto a aplicação dos índices de correção dos planos Bresser, Verão, Collor I e Collor II. Esta iniciativa
– que visava indiretamente a interrupção do prazo prescricional que estava alcançando os direitos individuais
dos consumidores que não conseguiram acessar a justiça – redundou na criação do chamado Projeto Poupan-
ça pelo Poder Judiciário. Segundo cálculos deste, as ações coletivas da Defensoria Pública substituíram (na-
quele momento) 24.000 ações individuais e 100.000 recursos que seriam ajuizados no Estado do Rio Grande
do Sul sobre o tema, o que comprova a eficiência e a necessidade desta espécie de tutela processual.
172
A Legitimação da Defensoria Pública no Microssistema da Tutela dos Direitos Coletivos
173
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
fundamentais e maior proteção possível aos interesses lesados. Contudo, a teoria pode ser erroneamente
utilizada para restringir a proteção coletiva, em desacordo com a axiologia constitucional. Exemplo desta
nefasta situação ocorre quando se pretende restringir a abrangência da tutela coletiva mediante a aplicação
da regra do artigo 16 da LACP (competência territorial do órgão prolator), quando se trata de Ação Coletiva
de Consumo, regulada exclusivamente pelo CDC, que em seu artigo 103 determina a eficácia erga omnes (ou
ultra partes) das decisões judiciais. Outro exemplo desta situação se deu no julgamento do REsp 1.070.896, que
aplicou o prazo quinquenal estabelecido no artigo 21 da Lei 4.717/65 (Lei da Ação Popular) para a ação civil
pública, prejudicando milhões de consumidores brasileiros na questão dos expurgos inflacionários.
191. GADAMER, 005, p. 406-407; GADAMER, 2004, p. 131; GRAU, 2003, p. 31, 87-88, 91 e 105; LARENZ, 1989, p.
163, 292 e 333; ESSER, 1983, p. 1; HESSE, 1998, p. 62.
192. Karl Larenz refere que as disposições “não estão desligadas umas das outras, mas estão numa conexão
multímoda uma com as outras” (LARENZ, 1989, p. 531). Canaris, por sua vez, evidencia que “só a ordenação
sistemática permite entender a norma questionada não apenas como fenômeno isolado, mas como parte de um todo”
(CANARIS, 1989, p. 156). Bobbio põe em relevo o fato de que as diretrizes normativas “nunca existem iso-
ladamente, mas sempre em um contexto de normas com relações particulares entre si (...) sendo evidente
que uma norma jurídica não se encontra jamais só, mas está ligada a outras normas com as quais forma um
sistema normativo” (BOBBIO, 1997, p. 19-21).
193. PFEIFFER, 1999, p. 54; FERNANDES, 1995, p. 96; SOARES, 2002, p. 69.
194. Devido à anterior existência de fonte normativa para a legitimidade é que José Augusto Garcia defende a
natureza meramente declaratória da Lei n.º 11.448/07, e não constitutiva. SOUSA, 2008, p. 190 e 234.
195. Nesse sentido: REsp 555.111-RJ, Relator Ministro Castro Filho, STJ, Terceira Turma, julgado em 05.09.2006.
174
A Legitimação da Defensoria Pública no Microssistema da Tutela dos Direitos Coletivos
os efeitos da visão solidarista196 do Direito sobre a atuação da Defensoria Pública, José Au-
gusto Garcia de Sousa sinteza, com maestria, os efeitos provocados pela aludida modifi-
cação legislativa: “Mais do que simplesmente alterar disposições específicas, a Lei Complementar
132/09 significou a superação definitiva da idade individualista da Defensoria.”197 Sem descurar
das importantes menções à tutela coletiva nos artigos 1º e 106-A, cabe mencionar a previ-
são do artigo 4º, incisos VII, VIII, X e XI, da Lei Complementar nº 80/94.
No atual estágio socionormativo é inequívoca a tendência de ampliação dos le-
gitimados para o ingresso de ações coletivas, a fim de garantir uma maior proteção à
coletividade tutelada, o que redunda, consequentemente, na inequívoca necessidade de
manutenção da legitimação irrestrita da Defensoria Pública para todas as espécies de
direitos coletivos.
Muito embora possa se entender que no plano processual a defesa dos direitos
metaindividuais admita duas espécies de tutela, quais sejam, a tutela de direitos coletivos
(coletivos na essência, pois o próprio direito tutelado é supraindividual) e a tutela coletiva
de direitos (coletivos apenas na forma, pois a tutela trata coletivamente direitos indivi-
duais),198 o Código de Defesa do Consumidor optou por uma classificação tripartida de
direitos coletivos lato sensu: difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneos.199
196. Sobre o Princípio da Solidariedade, leciona Maria Celina Bodin de Moraes: “A expressa referência à soli-
dariedade, feita pelo legislador constituinte, longe de representar um vago programa político ou algum tipo
de retoricismo, estabelece um princípio jurídico inovador em nosso ordenamento, a ser levado em conta não
só no momento da elaboração da legislação ordinária e na execução das políticas públicas, mas também nos
momentos de interpretação-aplicação do Direito, por seus operadores e demais destinatários, isto é, pelos
membros todos da sociedade.” (MORAES, 2013.)
197. SOUSA, 2012, p. 199.
198. ZAVASCKI, 2006, p. 39-43.
199. Em uma rápida explanação, os direitos difusos são transindividuais, com natureza indivisível (a lesão e a
satisfação afetam todos os possíveis titulares) e indeterminação absoluta dos titulares, pois a ligação entre
estes decorre de mera circunstância de fato. Já os direitos coletivos stricto sensu também são transindividuais
e indivisíveis, mas se verifica uma determinação relativa dos titulares, pois a ligação entre estes, ou com a
parte contrária, decorre de uma relação jurídica-base (os titulares formam um grupo, categoria ou classe
de pessoas). Por fim, os interesses individuais homogêneos, embora detenham natureza individual (é possível
a identificação dos sujeitos) e sejam divisíveis (a lesão e a satisfação variam conforme os titulares), decor-
rem de uma “origem comum”, e foram inseridos por opção do legislador na esfera de proteção dos direitos
coletivos “com a finalidade única e exclusiva de possibilitar a proteção coletiva (molecular) de direitos individuais com
dimensão coletiva (em massa)” (GIDI, Antonio. Apud DIDIER JUNIOR; ZANETI JUNIOR, 2007, p. 76). Como
todas as espécies de direitos são tuteladas pelas mesmas espécies de ações, a maior importância do enqua-
dramento conceitual está na configuração da coisa julgada. Determina o art. 103, do CDC, que nos direitos
difusos (efeitos erga omnes) e coletivos stricto sensu (efeitos ultra partes) a coisa julgada só se forma quando há
esgotamento das provas (secundum eventum probationis) – a improcedência da demanda por insuficiência de
provas não gera coisa julgada material –, enquanto nos direitos individuais homogêneos (efeitos erga omnes)
a coisa julgada só se forma quando a demanda for julgada procedente (secundum eventum litis). Sobre o trema:
MANCUSO, 2004; ALMEIDA, 2003.
175
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
200. Como refere Erich Danz, “a vida real ri, um dia e outro, da previsão do legislador”. DANZ, 1955, p. 130-131.
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A Legitimação da Defensoria Pública no Microssistema da Tutela dos Direitos Coletivos
201. AI 70034602201, Relator Desembargador Carlos Roberto Lofego Canibal, 1ª Câmara Cível. TJRS, j. em
19.05.2010. O contexto processual – no qual o Ministério Público local lançou manifestação opinando pela ile-
gitimidade ativa da Defensoria Pública, requerendo a extinção do processo sem resolução de mérito, com a
consequente revogação das medidas liminares deferidas, que garantiam a possibilidade de futura reparação
dos danos, do que inequivocamente adviria enorme prejuízo à coletividade – levou o Egrégio TJRS a assim se
posicionar no julgamento deste precedente: “Apenas chamo a atenção para o fato de que o órgão do MP, no presente
recurso, sequer pede, alternativamente, para assumir a titularidade da Ação Civil Pública, muito embora refira a sua
legitimidade exclusiva para tanto, além da pessoa jurídica interessada; ao contrário, pede a extinção da lide sem resolução
de mérito, quando os fatos narrados na inicial dão indícios de prática de ato de improbidade administrativa na Associação
dos Pais e Amigos dos Excepcionais, o que, por certo, se confirmado, é bastante grave. Vale dizer: o órgão do Ministério
Público não agiu, quando deveria tê-lo feito, e tenta calar quem efetivamente o fez.”
202. MAZZILLI, 2006, p. 122. Nesse sentido o disposto no art. 110 do Código de Defesa do Consumidor, que
incluiu, no artigo 1º, da Lei n.º 7.347/85, inciso legitimando a defesa de “qualquer outro interesse difuso ou coletivo”,
o que parece não ter sido revogado pela Medida Provisória n.º 2.180-35/01, seja pela questão hierárquica dos di-
plomas, seja pela flagrante inconstitucionalidade da aludida Medida Provisória, que flagrantemente desatende
ao requisito da urgência, rompendo com o pacto federativo e com as atribuições do Poder Legislativo. Assim,
os mais variados assuntos podem ser veiculados por intermédio de ação coletiva, o que ocorre, exemplificativa-
mente, com o direito dos idosos e dos portadores de deficiência física, com questões envolvendo a moralidade
administrativa e os atos atentatórios à probidade na administração (ações de improbidade administrativa).
203. Levando-se em conta os limites subjetivos da coisa julgada, estabelecidos pelo artigo 472 do Código de
Processo Civil, a diferença deste enquadramento reside no fato de que enquanto a decisão proferida em
demanda que tenha por objeto direitos difusos e individuais homogêneos atingirá todos os jurisdicionados,
a decisão proferida em demanda que tenha por objeto interesses coletivos stricto sensu atingirá as partes do
processo e mais terceiros determinados, quais sejam, os titulares que formam o grupo, categoria ou classe de
pessoas vinculadas pela relação jurídica-base.
177
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
estabelece que a sentença proferida em Ação Civil Pública “fará coisa julgada erga omnes,
nos limites da competência territorial do órgão prolator”. Ocorre que este dispositivo consubs-
tancia graves erronias do ponto de vista da melhor técnica jurídica.
Primeiro, porque a abrangência da coisa julgada é determinada pela extensão do
pedido do autor, e não pela competência do órgão julgador, conforme estabelece o prin-
cípio da correlação ou da congruência (artigos 128 e 460 do Código de Processo Civil), o
qual estabelece a conexão entre o pedido formulado pelo autor, a causa de pedir que lhe
dá substrato e a sentença a ser proferida na demanda.
Segundo, porque resta impossível avocar a regra do artigo 16 da Lei n.º 7.347/85
para fins de limitação da eficácia do provimento jurisdicional, em razão da distinção
conceitual entre “eficácia” e “coisa julgada”.204 Ocorre que a regra restritiva em exame,
ao impor limitação territorial à coisa julgada, não alcança os efeitos que propriamente
emanam da sentença. Nesse sentido a jurisprudência do Egrégio STJ, muito embora não
se desconheça a existência de divergência nesta Corte Superior:
178
A Legitimação da Defensoria Pública no Microssistema da Tutela dos Direitos Coletivos
179
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
180
A Legitimação da Defensoria Pública no Microssistema da Tutela dos Direitos Coletivos
213. Embora se considere a insuficiência do brocardo in claris cessat (non fit) interpretatio (FERREIRA DE AL-
MEIDA, 2005, p. 140), deve-se reconhecer que o sentido literal possível de uma disposição normativa surge
como limite à interpretação (base semântica possível de significação), detendo uma dupla missão: é ponto
de partida para a indagação do sentido e traça, ao mesmo tempo, os limites da atividade interpretativa (LA-
RENZ, 1989, p. 387). O primado do texto indica que uma exegese que não se situe no âmbito do sentido literal
possível da norma já não é propriamente interpretação, mas, sim, modificação de sentido, o que foge à com-
petência do operador jurídico (LARENZ, 1989, p. 387-388, 444, 517-518). Este equívoco parece ocorrer quando
se pretende a limitação da legitimidade em ação movida com base no artigo 82, III, da Lei n.º 8.078/90 e
do artigo 5º, II, da Lei n.º 7.347/85. Por mais que se pretenda uma análise sistemática (e, portanto, consti-
tucional) do ordenamento, não se pode ignorar que o legislador em nenhum momento aportou requisitos
limitadores para o ingresso da demanda coletiva pela Defensoria Pública. Cabe enfatizar que aqui não se
está defendendo que a utilização irrestrita da concepção metodológica liberal e cartesiana da interpretação
literal, mas sim que o resultado da atividade hermenêutica deve se situar, ao menos, nos marcos de sentido
(possíveis) postos pelo legislador.
181
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
“insuficiência de recursos” (artigos 5º, LXXIV e 134, da CRFB/88), bem como da designa-
ção legal de “hipossuficiência” (artigo 4º, VII, da Lei Complementar n.º 80/94), à dimen-
são econômica do indivíduo, devendo-se alcançar o correto significado hermenêutico
das expressões por intermédio de uma análise existencial (fática, concreta e situada) da
pessoa humana e de sua existência sociocultural.
Mister se faz consignar, por absolutamente relevante, que a Constituição Federal
em nenhum momento, ao disciplinar os termos “necessidade” e “insuficiência de recur-
sos” em seus artigos 5º, LXXIV e 134, os restringe ao viés econômico. Assim, a Carta Mag-
na jamais refere que a atuação da Defensoria Pública está condicionada à orientação dos
“necessitados economicamente” ou daqueles que apresentarem “insuficiência de recur-
sos econômicos”. Como mandamento constitucional fundamental (artigos 5º, LXXIV), a
Constituição determina apenas que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita
(por intermédio da Defensoria Pública) aos que comprovarem insuficiência de recursos”. Pon-
to. O mesmo ocorre quando a Constituição Federal, em seu artigo 134, dispõe que à De-
fensoria Pública incumbe “a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados”.
A inexistência de limitação expressa ao viés econômico parece inequívoca do ponto de
vista hermenêutico.
Adentrando na análise do viés interpretativo, cabe destacar que o fato da Consti-
tuição Federal não restringir expressamente os conceitos de “necessidade” e “insuficiên-
cia de recursos” ao plano econômico não deriva de um “esquecimento” ou “omissão” do
legislador constituinte. Em verdade, se trata de uma deliberada demonstração de que
tais conceitos alcançaram a “necessidade” derivada da “insuficiência de recursos” mate-
riais, culturais, sociais, técnicos, étnicos, etc. Ou seja, a Constituição inequivocamente
determina (ou ao menos permite) a aplicação da noção de hipossuficiência organiza-
cional. Nesse sentido o entendimento da Ilustre Professora Ada Pellegrini Grinover, ao
assim se manifestar em Parecer referente a legitimidade da DPE, juntado à ADin 3.943:
182
A Legitimação da Defensoria Pública no Microssistema da Tutela dos Direitos Coletivos
familiar e social. Restringir o que não foi restringido pelo constituinte é diminuir a força
normativa de nosso texto constitucional.
A defesa da existência da restrição ao plano econômico deriva de uma equivocada
e tendenciosa leitura do sistema jurídico a partir da Lei 1.060/50, a qual adota o para-
digma econômico por estar historicamente condicionada ao sistema da justiça gratuita,
garantidor apenas do direito à gratuidade das custas e despesas processuais. Contudo, a
atuação da Defensoria Pública contempla e concretiza a assistência jurídica integral, a qual
certamente não se encontra restrita apenas à proteção dos desvalidos econômicos214 –
fruto da concepção meramente individualista que prevalecia no século XIX – ainda mais
quando hoje a Instituição está legal e institucionalmente compromissada com a proteção
dos Direitos Humanos215.
Dito isso, fica a questão: onde achar elementos para a consubstanciação do conteú-
do dos conceitos abertos de “necessidade” e “insuficiência de recursos” (artigos 5º, LXXIV
e 134, da CRFB/88), bem como da designação legal de “hipossuficiência” (artigo 4º, VII,
da Lei Complementar n.º 80/94)? Certamente se terá fundamento sólido ao se recorrer às
normativas internacionais216 e ao novo sistema de proteção instituído pela Lei Comple-
mentar n.º 132/09, paradigmas que estão sendo utilizados pelos Tribunais Superiores.217
Quanto ao sistema internacional, não se teria melhor parâmetro do que o docu-
mento intitulado “100 Regras de Brasília sobre Acesso à Justiça das Pessoas em condição
de Vulnerabilidade”, pois além de se constituir em normativa específica sobre o tema
em exame, foi editada de forma unanime pelo Poder Judiciário durante a XIV edição da
Conferência Judicial Ibero-Americana, o que denota o seu caráter de isenção com relação
à fala situada deste ensaio. Nos itens 3 e 4 se encontra o conceito das pessoas em situação
de vulnerabilidade, verbis:
214. Como visto anteriormente – no tópico “O acesso à justiça e o protagonismo da Defensoria Pública no
Estado Democrático de Direito” –, da análise deste desenvolvimento histórico é facilmente perceptível que
o instituto da justiça gratuita não é sinônimo do instituto da assistência jurídica integral. Enquanto aquele
está focado em questões econômicas e pecuniárias, este certamente não está.
215. SOUSA, 2012, p. 201. Novamente vale reproduzir a lição do eminente Defensor Público carioca: “Além
de ser a entidade que presta advocacia aos pobres, consolida-se para a Defensoria o papel de uma grande
agência nacional de promoção da cidadania e dos direitos humanos, voltada para quem mais necessita de
cidadania e direitos humanos. Desmancha-se de vez o exacerbado individualismo que sempre acompanhou
os caminhos da instituição, passando a prevalecer filosofia bem mais solidarista.”
216. A busca pelos ensinamentos das diretrizes internacionais visa alcançar um paradigma consensual em
termos mundiais, bem com um viés externo à visão da Defensoria Pública e de seu sistema normativo.
217. O conceito de hipossuficiência organizacional e de hipervulnerabilidade é adotado nos seguintes jul-
gados: REsp 931.513 (Relator para Acórdão Ministro Herman Benjamin, 1ª Seção, STJ, j. em 25/11/2009, DJe
27/09/2010) e AI 70034602201( Relator Desembargador Carlos Roberto Lofego Canibal, 1ª Câmara Cível.
TJRS, j. em 19.05.2010).
183
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
218. Cabe anunciar os trabalhos da Comissão de Adequação dos Critérios de Atendimento da Defensoria Pú-
blica do Estado do Rio Grande do Sul – composta pelo autor e pelas colegas Alessandra Quines Cruz, Claudia
Aparecida de Camargo Barros e Patrícia Kettermann –, visando incorporar o paradigma da hipossuficiência
organizacional nas normativas internas de atendimento desta Instituição, com trabalhos já entregues á de-
liberação do Conselho Superior da Instituição.
219. Cabe salientar que, muito embora os atendimentos individuais realizados pela Defensoria Pública ainda
esteja matizado pelo critério de renda, o paradigma de atuação pela vulnerabilidade do indivíduo tutelado
não é estranho a atuação institucional. Exemplo disso é a assistência da Defensoria Pública na hipótese de
ausência de defesa no processo criminal e o atendimento à mulher vítima violência doméstica, mandamento
do artigo 28, da Lei n.º 11.340/06 (Lei Maria da Penha).
184
A Legitimação da Defensoria Pública no Microssistema da Tutela dos Direitos Coletivos
Pública atende a sua missão de promoção dos Direitos Humanos e a dimensão existen-
cial e normativa dos termos constitucionais aqui examinados.
Superando a seara hermenêutica, sinala-se que a relevância da verificação da hi-
possuficiência/necessidade econômica, por parte da Defensoria Pública, se dá apenas
nas fases de liquidação e/ou execução individual da decisão coletiva. O fato de haver in-
divíduos economicamente hipersuficientes a serem abstratamente beneficiados com a
ação coletiva promovida pela Instituição não retira a sua legitimidade, porquanto a De-
fensoria Pública apenas deixará de ingressar, posteriormente, com as ações individuais
de liquidação e/ou execução do julgado coletivo para aqueles que não demonstrarem a
necessidade econômica. E isso não gera nenhuma espécie de contradição na atuação da
Instituição. Ocorre que o viés econômico é trabalhado pela Defensoria Pública apenas
na defesa individual, e isso quando não se tratar de atendimento protetivo de grupos
vulneráveis (artigo 4º, inciso XI, da LC 80/94), em que as condições econômicas, após o
marco legal instituído pela Lei Complementar 132/09, não devem ser avaliadas para fins
de atendimento.
A regra do artigo 4º, inciso VII, da Lei Complementar n.º 80/94, de forma expressa,
direciona esta análise exclusivamente para o momento do “resultado da demanda”. Assim,
sem sombra de dúvida, somente há relevância da verificação da “hipossuficiência” e “ne-
cessidade” econômica dos indivíduos (análise individual do conflito coletivo) nas fases de
liquidação e/ou execução individual da decisão coletiva, quando então a Defensoria Pú-
blica deixará de assistir os indivíduos considerados “hipersuficientes” economicamente,
os quais poderão levar adiante os seus direitos individuais, garantidos pela decisão cole-
tiva, por meio da atuação de seus advogados particulares.220
A jurisprudência brasileira é pacífica nesse sentido. O Ministro Teori Zavascki, no
voto vista proferido no REsp 912.849/RS,221 elucidou definitivamente a questão, sendo re-
levante destacar duas de suas observações. A primeira, galgada no princípio da máxima
efetividade da Constituição, foi a de que os dispositivos da Lei Complementar 80/94222
“conferem à Defensoria Pública legitimação ativa ampla no plano jurisdicional, tanto sob o aspecto
material, quanto no instrumental.” Ademais, admitindo a existência de uma limitação subje-
tiva derivada dos conceitos constitucionais de “necessidade” (art. 134) e “insuficiência de
recursos” (art. 5º, LXXIV) – embora não tenha havido posicionamento pela restrição da
220. Cumpre referir que também a classe da advocacia privada se beneficia com a legitimação da Defen-
soria Pública para a tutela transindividual. Nas demandas de massa os advogados particulares poderão se
aproveitar da decisão coletiva para liquidar ou executar diretamente os direitos de seus clientes, evitando o
ajuizamento de um custoso e demorado procedimento de conhecimento.
221. REsp 912.849/RS, Relator Ministro José Delgado, STJ, Primeira Turma, julgado em 26/02/2008, DJe
28/04/2008.
222. Na oportunidade o julgador examinava o artigo 4º, inciso XI, da Lei Complementar 80/94, antes das
alterações promovidas pela Lei Complementar 132/09.
185
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
223. O julgado supramencionado deriva da Apelação Cível 70014404784 do E. TJRS (AC 70014404784, Relator
Desembargador Araken de Assis, Quarta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Julgado em 12/04/2006).
224. FREITAS, 2002, p. 174.
225. LARENZ, 1989, p. 531; CANARIS, 1989, p. 156; BOBBIO, 1997, p. 19-21. No julgamento da AC 70024048456
(Relatora Desembargadora Isabel de Borba Lucas, 14ª Câmara Cível, TJRS, j. em 12.06.2008) o TJRS concluiu
que as “disposições legais relacionadas com os direitos constitucional, obrigacional e de proteção às relações de consumo
(...) devem ser interpretadas de forma sistemática” (...) “não me parece correta a aplicação pura e simples dessa regra
especial, sem o seu confronto e interpretação sistemática com os princípios constitucionais, de direito obrigacional e de pro-
teção ao consumidor, mormente porque ao Juiz cumpre interpretar e aplicar de forma integrada as normas legais vigentes,
assegurando a ampla defesa, do contraditório e o devido processo legal.”
226. De qualquer forma, cabe considerar que, no caso dos direitos difusos, a hipossuficiência é absolutamente
presumida, pois dentre toda a coletividade sempre haverá hipossuficientes econômicos ou organizacionais.
186
A Legitimação da Defensoria Pública no Microssistema da Tutela dos Direitos Coletivos
Não se pode desconhecer a tendência cada vez mais acentuada em todo mundo,
no sentido de facilitar o acesso à Justiça, desimpedindo-o de obstáculos de or-
dem patrimonial. Portanto, se atuação da Defensoria Pública ficar limitada, pela
vedação (ou limitação) ao uso da ação civil pública, a parcela da população que
não tiver condições de arcar com os custos do processo não terá acesso pleno ao
Judiciário, direito constitucionalmente garantido.230
227. A possibilidade exigida na norma fica no plano da total potência, sem a necessidade de produção de
prova específica, exigência que, ao demandar identificação individual, seria estranha à tramitação da lide
coletiva.
228. Salvo melhor juízo, entendimento diverso importa em direta afronta à lei federal (sistematicidade das
regras do artigo 4º, VII, da Lei Complementar n.º 80/94, artigo 82, III, da Lei n.º 8.078/90 e artigo 5º, II, da Lei
n.º 7.347/85), além de desconsiderar a relevância social do direito posto em causa e o entendimento consoli-
dado dos Tribunais Estaduais e Superiores.
229. RÉ, 2009. No mesmo sentido o voto do Ministro Teori Zavascki no REsp 912.849/RS (Relator Ministro
José Delgado, STJ, Primeira Turma, julgado em 26/02/2008, DJe 28/04/2008).
230. Voto no REsp 555.111-RJ (Relator Ministro Castro Filho, STJ, Terceira Turma, julgado em 05.09.2006).
No mesmo sentido: GOMES JÚNIOR, 2007, p. 138. É clara a vertente ampliativa da jurisprudência, conforme
se infere, exemplificativamente, dos seguintes julgados: AR 497-BA, Relator Ministro Garcia Vieira, STJ, 1ª
Seção, julgado j. em 12/08/1998; REsp 31.150-SP, Relator Ministro Ari Pargendler, STJ, 2ª Turma, julgado em
20/05/1996; REsp 332.879/SP, Relatora Ministra Eliana Calmon, STJ, 2ª Turma, julgado em 17/12/2002.
187
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
231. Adin-MC 558-8, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, STF, Pleno, DJ de 26.03.93. O pedido de suspensão
liminar do artigo questionado, em sede de medida cautelar, foi indeferido. A ação ainda pende de julgamento
final.
232. Nesse viés, importante mencionar os dizeres do Ministro Celso de Mello na ADI 2.903 (Plenário do STF,
DJE de 19.9.2008): “a Defensoria Pública não pode (e não deve) ser tratada de modo inconsequente pelo Poder Público,
pois a proteção jurisdicional de milhões de pessoas – carentes e desassistidas –, que sofrem inaceitável processo de exclusão
jurídica e social, depende da adequada organização e da efetiva institucionalização desse órgão do Estado. De nada va-
lerão os direitos e de nenhum significado revestir-se-ão as liberdades, se os fundamentos em que eles se apoiam – além de
desrespeitados pelo Poder Público ou transgredidos por particulares – também deixarem de contar com o suporte e o apoio
de um aparato institucional, como aquele proporcionado pela Defensoria Pública.” E parece impossível não reconhe-
cer que a real “proteção jurisdicional de milhões de pessoas”, que dependem dos serviços da Defensoria Pública,
passa pela consolidação da legitimação coletiva da Instituição. Não existe outra via possível para a tutela dos
direitos em uma sociedade de massa.
233. REsp nº 555.111⁄RJ, Relator Ministro Castro Filho, STJ, 3ª Turma, DJ de 18⁄12⁄2006.
234. REsp 912.849/RS, Relator Ministro José Delgado, Primeira Turma, julgado em 26/02/2008, DJe
28/04/2008.
235. Apelação Cível n.º 70014404784, Relator Desembargador Araken de Assis, TJRS, Quarta Câmara Cível,
Julgado em 12/04/2006.
236. Embargos Infringentes n.º 70029303153, Relator Desembargador Leo Lima, Terceiro Grupo de Câmaras
Cíveis, TJRS, julgado em 15/05/2009.
237. AI 70034602201, Relator Desembargador Carlos Roberto Lofego Canibal, 1ª Câmara Cível. TJRS, j. em
19.05.2010.
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A Legitimação da Defensoria Pública no Microssistema da Tutela dos Direitos Coletivos
CONCLUSÃO
189
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
previstas neste artigo não impede a de terceiros, nas mesmas hipóteses, segundo o disposto nesta
Constituição e na lei.”
Quarto, o próprio sistema constitucional indica a legitimação. Primeiramente
quando elenca como garantia fundamental o acesso à justiça “integral” (artigo 5º, LXXIV),
concretizado por meio da Defensoria Pública (artigo 134),241 porquanto integralidade im-
plica no permissivo de utilização de todos os instrumentos processuais capazes de pro-
teger os direitos e interesses dos representados.242 Também a axiologia constitucional
reforça a legitimação coletiva da Instituição, por força dos princípios da maior eficácia
possível das garantias fundamentais e da maior proteção possível aos interesses lesados.
E como o reconhecimento da legitimidade da Defensoria Pública já está incorporada ao
patrimônio jurídico nacional (legal e jurisprudencialmente), não pode ser suprimida ou
restringida, mas apenas ampliada, por força do princípio do não-retrocesso social.
Quinto, os princípios da não-taxatividade e da máxima amplitude da tutela jurisdicional
coletiva sepultam a pretensão de restringir a legitimação da Defensoria Pública aos di-
reitos individuais homogêneos. A importância prática dessa constatação não pode ser
desprezada, tanto porque há uma impossibilidade de classificação absoluta dos direi-
tos (zona cinzenta na classificação dos direitos coletivos), quanto porque a ação coletiva
pode abranger várias categorias de direitos.
Sexto, no curso da tramitação da ADIn n.º 3.943 há uma ampla participação demo-
crática (amicus curiae) opinando pela legitimação irrestrita da Defensoria Pública. Nesse
sentido as manifestações do Congresso Nacional, da Presidência da República e da Advo-
cacia Geral da União, para limitar essa análise ao rol dos poderes constituídos.
Deste contexto, parece impossível não concordar com a Professora Ada Pellegrini
Grinover, que em parecer lançado na própria ADIn n.º 3.943, assim se posiciona:
241. No mesmo sentido o artigo 4º, § 5º, da Lei Complementar 80/94: “A assistência jurídica integral e gratuita
custeada ou fornecida pelo Estado será exercida pela Defensoria Pública.”
242. Se a natureza fundamental do acesso à justiça, sob o prisma individual, já está consolidada em nosso
sistema constitucional e nas cortes internacionais, aqui poder-se-ia falar no acesso à justiça pelo viés coleti-
vo também como direito fundamental. Embora a questão extrapole os limites deste ensaio, merecendo um
estudo de maior fôlego, cumpre salientar que em nosso ordenamento a garantia do acesso à justiça (incisos
XXXV e LXXIV, do artigo 5º, da CRFB/88) está no capítulo “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”. Esta
nomenclatura, englobando o viés coletivo, não é acidental, ainda mais quando considerado que na Constitui-
ção de 1967 o capítulo detinha a seguinte denominação “Dos Direitos e Garantias Individuais”.
243. GRINOVER, 2008.
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A Legitimação da Defensoria Pública no Microssistema da Tutela dos Direitos Coletivos
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195
ACESSO À JUSTIÇA COLETIVA ATRAVÉS DA LEGITIMAÇÃO
CONGLOBANTE DA DEFENSORIA PÚBLICA
Flávio Antonio de Oliveira244
Resumo: O presente artigo tem por objetivo defender a legitimidade ativa conglobante da
Defensoria Pública para a tutela coletiva ampla, sem limitações temáticas que possam
obstar a atuação plena dessa instituição em prol da efetivação de direitos e garantias
fundamentais em juízo. Para tanto, o estudo em testilha constrói-se com embasamento
na exegese global do ordenamento jurídico pátrio à luz dos princípios da máxima
efetividade das normas constitucionais e do acesso à justiça: verdadeiros vetores de
racionalização interpretativa na elucidação do tema.
Abstract: This article aims to defend conglobante active legitimacy of the Public Defender
for the broad collective protection without thematic constraints that may prevent the full
performance of this institution towards the realization of rights and guarantees in court.
Thus, the study builds testilha with global basis in exegesis of legal parental rights in light
of the principles of maximum effectiveness of constitutional norms and access to justice:
true vectors interpretive rationalization in the elucidation of the subject.
244. Defensor Público Estadual em Mato Grosso do Sul. Especialista em Direito Processual Constitucional
pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).
197
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
1. INTRODUÇÃO
245. Lei nº 7.347/85 - Art. 5o Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar: II - a Defensoria
Pública (Redação dada pela Lei nº 11.448, de 2007).
198
Acesso à Justiça Coletiva Através da Legitimação Conglobante da Defensoria Pública
Sem fazer qualquer censura ao valoroso Ministério Público brasileiro, que através
de sua Associação Nacional pretendeu no Supremo Tribunal Federal ceifar a legitimida-
de da Defensoria Pública para a propositura de Ação Civil Pública, é digno de nota expor
que na Constituição da República de 1967 o Ministério Público não tinha elenco de atri-
buições institucionais constitucionalizadas, pois eram estas relegadas à sua legislação
orgânica, sendo que tal Instituição somente em 1981, através da então Lei Complementar
Federal nº 40/81 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público), previu em seu artigo 3º,
inciso III, a sua legitimação para a Ação Civil Pública como função institucional, havendo
sucessão desta previsão na Lei 7.347 de 1985 para a defesa da coletividade acerca de tais
valores, isto é, antes do advento da Constituição da República de 1.988. Vale dizer que o
Ministério Público já tinha atribuição para propor Ações Civis Públicas antes da promul-
gação da atual Constituição Federal.
Mutatis Mutandis, qual o fundamento de objetar que a Defensoria Pública embora
sem expressa positivação de rol de atribuições institucionais na Constituição de 1.988 te-
nha legitimidade para a Ação Civil Pública, se ela, em 2007, foi incluída pela Lei 11.448/07
no rol dos legitimados na própria Lei da Ação Civil Pública, bem como se a Lei Comple-
mentar Federal nº 132/2009 que é a Lei Orgânica Nacional da Defensoria também tenha
previsto a legitimação da Defensoria Pública para promover a defesa da tutela coletiva
através da Ação Civil Pública?
A legitimação concorrente para a Ação Civil Pública é a vertente que certamente
representaria higidamente a vontade maciça da população brasileira e, portanto, legi-
timaria politicamente a opção dos representantes eleitos pela população que em duas
felizes oportunidades através de quórum qualificado de Lei Complementar (LACP e LCF
132/09) elencaram a Defensoria Pública como instituição legitimada a substituir proces-
sualmente a coletividade na busca da resolução dos conflitos pertinentes por intermédio
da Ação Civil Pública.
A máxima efetividade constitucional estimula e exige uma constante fiscalização
acerca do atendimento e efetivação dos direitos fundamentais, seja pelos poderes públi-
cos, seja pela iniciativa privada, nesta seara, quanto mais legitimados houver, melhor, já
que o controle pela observância aos direitos fundamentais por toda a sociedade é uma
árdua tarefa que se revela muito extremada para uma instituição só.
A efetivação dos direitos fundamentais de forma coletiva se revela mais consen-
tânea à Ação Civil Pública, porquanto, restringir a legitimação para esta modalidade de
instrumento jurídico vai de encontro ao princípio constitucional do acesso à justiça.
199
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
246. FENSTERSEIFER, Tiago. Defensoria Pública, Acesso à Justiça e Justiça Ambiental, São Paulo, RT, 2011, p. 114.
247. NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 8. ed. São Paulo: RT, 2004, p. 137.)
200
Acesso à Justiça Coletiva Através da Legitimação Conglobante da Defensoria Pública
248. Código de Processo Civil - Art. 6º: “Ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo
quando autorizado por lei”.
249. MOREIRA, José Carlos Barbosa. A ação popular do direito brasileiro como instrumento de tutela jurisdicional
dos chamados interesses difusos. In: Temas de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 1977. p. 110-123, p. 111,
nota 1.
250. ZANETI JUNIOR, Hermes. A legitimação conglobante nas ações coletivas: a substituição processual decorrente do
ordenamento jurídico. Dourados, MS, ano 2, n. 3, p. 101-116, jan./jun.2010.
201
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
É hialino que em relação à tutela coletiva o ordenamento jurídico almeja uma legi-
timação para agir desvinculada da titularidade do direito. Contudo, a teoria da legitima-
ção autônoma para a condução do processo visa primordialmente rechaçar a substitui-
ção processual autônoma de determinados legitimados em prol da tutela coletiva.
A respeito da aplicabilidade da teoria da legitimação autônoma para a condução do
processo, Hermes Zaneti Júnior assevera que:
(...) Portanto, por sua vez, também inadequado demonstra-se o instituto do di-
reito de conduzir o processo (Prozebführungsbefgnis). A legitimação autônoma
(direito de conduzir o processo) é uma busca alternativa ao intrincado e muitas
vezes fugidio à lógica forma instituto da substituição processual, resguardadas
as diferenças entre os sistemas252, é compreensível dentro da chamada legitimação
251. NERY JÚNIOR, Nelson. Código de Processo Civil Comentado, 5. ed. São Paulo: RT, 2001, p. 1866.
252. “Já Chiovenda falava em substituição processual (sostituzione processuale) unindo o Prozesstandschaft
de Kohler, com o Prozebführungsrecht de Hellwig, em um único conceito. O essencial ao conceito de subs-
tituição processual, em Chiovenda, é o fato de que alguém age por outro sem ser o seu representante no
processo, ou seja, age em nome próprio. CHIOVENDA, Giuseppe. Principii di diritto processuale civile. 3º ed.
Roma: s. ed, 1923. p. 596-597. (nota nº 1, § 36). Apud ZANETI JUNIOR, Hermes. A legitimação conglobante nas
ações coletivas: a substituição processual decorrente do ordenamento jurídico.
202
Acesso à Justiça Coletiva Através da Legitimação Conglobante da Defensoria Pública
253. “Conforme ARMELIN: “(...) verifica-se que apenas uma concepção mais restrita da legitimidade ad cau-
sam ensejou tal elaboração, uma vez que, ontologicamente, não se distinguem o Prozebführungsrecht e a legiti-
midade extraordinária, centrada na substituição processual.” (ARMELIN, Donaldo. Legitimidade para agir no
direito processual brasileiro. P. 115). Apud ZANETI JUNIOR, Hermes. A legitimação conglobante nas ações coletivas: a
substituição processual decorrente do ordenamento jurídico.
254. LEONEL, Ricardo de Barros, Manual do Processo Coletivo. São Paulo: RT, 2002, p. 158.
255. DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p.362.
203
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
204
Acesso à Justiça Coletiva Através da Legitimação Conglobante da Defensoria Pública
É curial notar que a Lei Complementar Federal nº 132/2009 que alterou substan-
cialmente a Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública (Lei Complementar Federal nº
80/94), em seu artigo 4º estipulou como funções institucionais da Defensoria a promoção
de ação civil pública e de todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada
tutela dos direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos quando o resultado da
demanda puder beneficiar grupo de pessoas hipossuficientes, bem como a promoção da
mais ampla defesa dos direitos fundamentais dos necessitados, abrangendo seus direi-
tos individuais, coletivos, sociais, econômicos, culturais e ambientais, sendo para tanto
admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela.
Com efeito, a análise deste dispositivo permite facilmente constatar que a Ação
Civil Pública pode ser proposta pela Defensoria Pública relativamente a qualquer tema,
já que é inegável que sempre haverá em um juízo perfunctório uma possibilidade de efei-
tos reflexos benéficos ao menos a um grupo de hipossuficientes; salientando-se que não
existe só hipossuficiencia econômica, como também a hipossuficiencia técnica que ge-
ralmente a maioria das pessoas possui.
A tutela coletiva abarca os chamados direitos essencialmente coletivos, que com-
preendem os difusos e os coletivos propriamente ditos previstos nos incisos I e II do
parágrafo único do artigo 81 do Código de Defesa do Consumidor, bem como os direitos
de natureza coletiva pela forma como são tutelados, consubstanciando-se nos direitos
individuais homogêneos, com previsão no inciso III do supracitado diploma legal.
A tutela dos interesses difusos apenas coletivamente pode se efetivar em razão da
indivisibilidade do seu objeto, o que impossibilita mensurar eventual porção de direito
cabível a cada interessado.
O viés da solidariedade é o alicerce da legitimidade da Defensoria Pública na atua-
ção coletiva, pois o princípio da solidariedade está positivado como objetivo fundamental
da República em sua respectiva Constituição256, revelando a Defensoria Pública como a
instituição estatal mais apta a servir de instrumento para tentar - de forma irrestrita -
promover a redução da pobreza e da marginalização, bem como a redução das desigual-
dades sociais e regionais e em última instância, a promoção do bem de todos, em suma,
essencialmente promover a dignidade do ser humano, já que o princípio que protege a
dignidade da pessoa humana é a pedra fundamental e objeto maior da instituição.
É fácil conceber que os direitos difusos podem ser de interesse de pessoas com
hipossuficiência econômica ou sem ela, mas todas interessadas no bem comum e na
256. Art. 3º, I – Constitui objetivo fundamental da República “a construção de uma sociedade livre, justa e so-
lidária”. Dentre os demais objetivos da República, estão: a erradicação da pobreza e da marginalização, bem
como a redução das desigualdades sociais e regionais (inciso III), e a promoção do bem de todos, “sem precon-
ceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (inciso IV).
205
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
redução das desigualdades sociais e regionais, ou seja, a Defensoria Pública pode legiti-
mamente defender os direitos coletivos de modo geral, irrestritamente. Ademais, não é
só a vulnerabilidade econômica que poderia autorizar tal ato, há outras espécies de vul-
nerabilidade, tal como a técnica.
A teoria da legitimação extraordinária conglobante para a tutela coletiva se jus-
tifica mormente considerando que o artigo 82 da Lei 8.072/90 (Código de Defesa do
Consumidor), não prevê expressamente a Defensoria Pública como legitimada para a
defesa coletiva dos direitos dos consumidores, embora fosse possível incluí-la no inciso
III do referido artigo, já que a Defensoria Pública é um órgão da Administração Pública
sem personalidade jurídica e segundo sua Lei Orgânica Nacional (Lei Complementar nº
132/09), destinada à defesa dos interesses e direitos decorrentes da relação de consumo.
Aliás, neste diapasão confira-se o aresto colacionado abaixo:
A Lei 7.347/1985, com as alterações introduzidas pela Lei 11.448/2007, não ofere-
ceu qualquer restrição a legitimidade outorgada à Defensoria Pública no tocante
às ações coletivas. Na verdade, pelo que se depreende do texto da norma, foi ela
legitimada a agir, em substituição, independentemente da natureza do direito
transindividual ou individual coletivo a ser questionado. (...). Aliás, o E. Superior
Tribunal de Justiça vem se “posicionando no sentido de que, nos termos do art.
5o, II, da Lei n° 7.347/85 (com a redação dada pela Lei n° 11.448/07), a Defensoria
Pública tem legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar em ações
206
Acesso à Justiça Coletiva Através da Legitimação Conglobante da Defensoria Pública
civis coletivas que buscam auferir responsabilidade por danos causados ao meio-
-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, históri-
co, turístico e paisagístico e dá outras providências” (REsp 912849/RS, Relator(a)
Ministro JOSÉ DELGADO (1105) Órgão Julgador TI - PRIMEIRA TURMA Data do
Julgamento 26/02/2008 Data da Publicação/Fonte DJ 28.04.2008 p. 1, no mesmo
sentido RESP 555111-RJeREsp 181580/SP).
207
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
208
Acesso à Justiça Coletiva Através da Legitimação Conglobante da Defensoria Pública
a matéria objeto da ação e a sua finalidade institucional que seria defender as prerroga-
tivas da classe de advogados.
A propósito, realçando o cabimento da Ação Civil Pública por parte da OAB é de
se atentar que o art. 103, inc. VII, da Constituição da República de 1988, confere legiti-
midade ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil para a propositura de
Ação Direta de Inconstitucionalidade, instrumento que engloba a defesa de interesses
metaindividuais.
Neste ínterim, feliz a lição do doutrinador Paulo Luiz Netto Lôbo, que prelecionou
o seguinte:
209
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
É certo que o artigo 134 da Constituição Federal - aliás, o único que trata da De-
fensoria Pública enquanto carreira em status constitucional -, prevê que o exercício das
atribuições dos membros desta carreira seja em prol dos necessitados. A este respeito
convém refletir: qual o conceito de necessitados falando-se em tutela coletiva, excetuada
a pertinente a direitos individuais homogêneos?
Antes de se posicionar propriamente sobre a concepção de quem se amolda na cate-
goria necessitado em uma ação coletiva, faz-se mister vislumbrar que no Brasil, embora o
governo federal classifique classe média como toda família que tem renda familiar mensal
entre R$ 1.064 e R$ 4.561 e em que pese a FGV – Fundação Getúlio Vargas classificar a classe
C como a representada por famílias com renda entre R$ 1.734 e R$ 7.475, cujos modelos são
criticados pela amplitude demasiada dentro de uma mesma classe social, revelando não
homogeneidade, segundo dados obtidos perante o GEU – Grupo de Estudos Urbanos257,
que propõe o modelo de classes sociais estratificadas em A, B1 e B2, C1, C2 e C3 e D e E, é
importante notar que no atendimento individual perante as Defensorias Públicas do país,
o critério de atendimento gravita em torno de renda familiar entre três a cinco salários
mínimos, podendo se flexibilizar um pouco este critério mediante a comprovação de dívi-
das e restrição de bens por passivo fundado em obrigações não supérfluas.
Ocorre que na concepção do GEU – Grupo de Estudos Urbanos, as classes D e E,
as quais compreendem 37,9% da população, possuem renda de até R$1.627,00 e a clas-
se C3, que compreende 29,1% da população, aufere renda entre R$1.628,00 a R$2.441,00,
enquanto que a classe C2, que atinge 11,7% da população, galga renda entre R$2.442,00
a R$4.882,00. Nesta linha de raciocínio, somando-se as classes D e E e C3, teremos um
contingente populacional nacional de necessitados da ordem de mais de 69% da popula-
ção, sem considerar provável parte do contingente da classe C2 que também fazem jus
à assistência judiciária gratuita e integral, quando então o contingente de necessitados
passará de 70% da população que teriam direito à assistência judiciária gratuita e inte-
gral outorgada pelo Estado através da Defensoria Pública.
Após esse enfoque estatístico, o qual não foi possível ser evitado, é preciso com-
preender que a tutela coletiva, salvo a dos direitos individuais homogêneos, inevitavel-
mente abrangerá um contexto populacional maior de tutelados/necessitados dentro do
aspecto de hipossuficiência que autorizaria a representação pela Defensoria Pública em
comparação com os supostamente não necessitados. Por outro viés, se mais de 70% da
população se insere dentro dos critérios de hipossuficiência que seriam exigidos para
257. Notícia – Fim da polêmica sobre as classes sociais. (GEU – Grupo de Estudos Urbanos). Disponível em <http://
www.geu.com.br/news/fim-da-polemica-sobre-as-classes-sociais> Acesso em: 14-08-2013.
210
Acesso à Justiça Coletiva Através da Legitimação Conglobante da Defensoria Pública
CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS
ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito Processual Coletivo Brasileiro, São Paulo, Editora
Saraiva, 2003, p. 572.
211
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
FENSTERSEIFER, Tiago. Defensoria Pública, Acesso à Justiça e Justiça Ambiental, São Paulo,
Editora RT, 2011, p. 118. Obra coletiva: Direito Ambiental e as Funções Essenciais à Justi-
ça. Coordenadores: Antônio Herman Benjamin e Guilherme José Purvin de Figueiredo.
LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do Processo Coletivo. São Paulo: Editora RT, 2002, p.
158.
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Comentários ao Estatuto da Advocacia. 2. ed. Brasília: Editora Bra-
sília Jurídica, 1996, p. 203.
NERY JR., Nelson. Código de Processo Civil Comentado, 5. ed. São Paulo: Editora RT, 2001,
p. 1.866.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. A ação popular do direito brasileiro como instrumento de tutela
jurisdicional dos chamados interesses difusos. In: Temas de Direito Processual Civil. São Pau-
lo: Saraiva, 1977. p. 110-123, p. 111, nota 1.
ZANETI JR., Hermes. A legitimação conglobante nas ações coletivas: a substituição processual
decorrente do ordenamento jurídico. Dourados, MS, ano 2, n. 3, p. 101-116, jan./jun.2010.
212
A DEFENSORIA PÚBLICA E O ACESSO À JUSTIÇA: PERSPECTIVAS
PARA O ESTADO DE SANTA CATARINA NA EXECUÇÃO PENAL
Resumo: O presente artigo tem como objetivo realizar uma análise do papel da Defensoria
Pública na tutela dos direitos fundamentais em face dos necessitados advindos da
execução penal com ênfase na recém-instituída Defensoria Pública do Estado de
Santa Catarina. Para tanto, insere-se a assistência jurídica no âmbito do contexto
constitucional, realizando uma análise do acesso à justiça e da Defensoria Pública
dentro do constitucionalismo, para então, verificar a função primordial desempenhada
pela Defensoria Pública na execução penal, especialmente em face da Lei 12.313/10. Por
fim, traça-se um histórico de constituição da Defensoria Pública de Santa Catarina,
objetivando a projeção de perspectivas no que tange a execução penal.
Abstract: This paper aims to conduct an analysis of the role of the Ombudsman in the
protection of fundamental rights in the face of the need arising from the criminal
enforcement with an emphasis on newly established State Public Defender of Santa
Catarina. Therefore, it falls to legal assistance under the constitutional context, performing
an analysis of access to justice and constitutionalism within the Public Defender, and then,
verify the primary role played by the Public Defender in criminal enforcement, especially in
the face of the Law 12.313/10. Finally, we draw a history of creation of the Public Defender of
Santa Catarina, aiming to project prospects regarding criminal enforcement.
258. Defensora Pública do Estado de Santa Catarina. Mestre em Direito pela Puc Minas. Mestre em Estudos
Literários pela UFMG. Professora de Direito Constitucional do Curso de Especialização em Direito Público
da Puc Minas Virtual. Licenciada em Letras pela UFMG.
213
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por objetivo fazer uma análise em torno da efetividade dos
direitos fundamentais, especialmente no que tange ao acesso à Justiça dos necessitados
da execução penal, com ênfase no Estado de Santa Catarina.
Sabe-se que o sistema prisional brasileiro se encontra numa situação de difícil ad-
ministração, uma que vez que há uma busca por novas vagas no sistema carcerário em
face do modelo de repressão penal adotado. Segundo relatório realizado pela ONU, em
2013, há mais de 550 mil pessoas presas o Brasil, sendo que, desse universo, 217 mil pes-
soas estão presas preventivamente.260
Neste modelo repressivo, o papel da Defensoria Pública como garantidora de di-
reitos fundamentais torna-se essencial, especialmente pelo fato de que a grande parte
das pessoas que estão no sistema penitenciário brasileiro é provinda de uma classe não
privilegiada da sociedade, podendo-se dizer de uma classe marginalizada.
Poder-se-ia afirmar, diante deste contexto, que a Defensoria Pública é instituição
essencial à função jurisdicional e à garantia do Estado Democrático de Direito, prestan-
do assistência jurídica aos necessitados, e mais ainda o é quando se trata daqueles que
se encontram no sistema penitenciário. É ela a instituição capaz de resguardar direitos
fundamentais e lutar por sua efetividade quando se está no ambiente de cárcere.
Neste sentido, visualizando o ser humano na sua condição de mais extrema vulne-
rabilidade, que é a do cumprimento da pena nos cárceres brasileiros, é que se pode de-
notar que a ausência da Defensoria Pública pode colocar esse indivíduo numa condição
mais subumana. Isso porque a inexistência de defesa, sem a presença de uma Instituição
que exerça capacidade postulatória abrangente, podendo, inclusive propor ações coleti-
vas, como por exemplo, as ações civis públicas, torna o cumprimento da pena, que per-
passa por um procedimento judicializado, algo cruel e inquisitorial. Em consequência,
259. Reflexão de Boaventura de Sousa Santos na obra intitulada: Para uma revolução democrática da justiça. São
Paulo: Cortez, 2007, p.46.
260. Disponível em: http://www.onu.org.br/grupo-de-trabalho-sobre-detencao-arbitraria-declaracao-apos-
-a-conclusao-de-sua-visita-ao-brasil-18-a-28-marco-de-2013/ Acesso em 06/08/13
214
A Defensoria Pública e o Acesso à Justiça: perspectivas para o estado de Santa Catarina na execução penal
215
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
262. Na reflexão de José Adércio Leite Sampaio: “A história da primeira metade do século XIX é fundamen-
talmente burguesa. O resto do resto mencionado no capítulo precedente vivia à sombra e exploração dos
industriais e agricultores. (...)O discurso liberal não vislumbrava nenhum problema na mão invisível, senão
a distinção entre os efetivamente necessitados por não apresentarem condições físicas para trabalhar e os
oportunistas, ´os mendigos de profissão´. Aos vagabundos, estes reincidentes, restava a prisão e a forca; aos
desamparados pela sorte, as Workhouses e os Hospitales Génerales, mistos de asilo e trabalho forçado.” (2010,
p. 195).
263. Disponível em: http://www.dpu.gov.br/pdf/artigos/artigo_alexandre.pdf Acesso em 26/07/2013
216
A Defensoria Pública e o Acesso à Justiça: perspectivas para o estado de Santa Catarina na execução penal
“De fato, o direito ao acesso efetivo tem sido progressivamente reconhecido como
sendo de importância capital entre os novos direitos individuais e sociais, uma vez que
a titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua
efetiva reivindicação. O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como requisito fun-
damental - o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igua-
litário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos.” (2002, p.5).
217
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
218
A Defensoria Pública e o Acesso à Justiça: perspectivas para o estado de Santa Catarina na execução penal
Art. 2º Sem prejuízo dos preceitos estabelecidos na Lei Orgânica do Distrito Fe-
deral, aplicam-se à Defensoria Pública do Distrito Federal os mesmos princípios
e regras que, nos termos da Constituição Federal, regem as Defensorias Públicas
dos Estados.
Art. 3º O Congresso Nacional e a Câmara Legislativa do Distrito Federal, ime-
diatamente após a promulgação desta Emenda Constitucional e de acordo com
suas competências, instalarão comissões especiais destinadas a elaborar, em 60
(sessenta) dias, os projetos de lei necessários à adequação da legislação infra-
constitucional à matéria nela tratada.
264. Boaventura de Sousa Santos faz uma reflexão sobre a democratização da justiça no Brasil destacando,
dentre outras medidas importantes, a criação das Defensorias Públicas. Neste sentido, o autor afirma: “De-
fendo que as defensorias públicas devem ser estimuladas. Esse estímulo depende que se faça uma análise
crítica e séria de suas deficiências. Assim, por exemplo, deve-se ter atenção a alguns pontos problemáticos
do funcionamento das defensorias públicas brasileiras, diagnosticados em estudos recentes (...).” (2007, p.
47). Dentre as deficiências, o autor destaca: números insuficientes de membros nas Defensorias Públicas dos
estados e também da União, consequentemente, há pouca cobertura do serviço diante das inúmeras comar-
cas existentes. Além disso, os serviços são, em regra, menos abrangentes nas unidades da Federação com os
piores indicadores sociais. Soma-se a isso o fato de não haver grande experiência no âmbito da tutela coletiva
e de acesso ao sistema interamericano de direitos humanos.
219
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
de Santa Catarina, como abaixo se verá. E mais ainda quando se verifica a importância
desta instituição na consagração de direitos dos necessitados, especialmente na seara da
execução penal.
O sistema de execução de pena no Brasil é muito mais complexo do que prevê a lei.
Neste sentido, o Direito ultrapassa qualquer legalidade. Apesar de ser pautada na legali-
dade, está-se diante de um contexto e de pessoas. E essas pessoas, que estão no universo
da execução penal, especialmente os reeducandos, na sua grande maioria, encontram-se
na condição de necessitados.
Numa análise mais aprofundada, Aluisio Iunes Monti Ruggeri Ré afirma que: “Em
parte, o sistema penal cumpre esta função, fazendo-o mediante a criminalização seletiva
dos marginalizados, para conter os demais” (2013, p.310-311).265 Ligia Mori Madeira, em
estudo a respeito da reinserção social de ex-presidiários, afirma que o egresso do siste-
ma prisional brasileiro, na sua maioria, é provindo das classes que estão efetivamente à
265. O autor ainda vai além ao afirmar: “Hoje, notamos que a condenação é banalizada, processos mal ins-
truídos são julgados, restrições à ampla defesa são toleradas, na grande parte das vezes, à custa dos direitos
fundamentais de negros e miseráveis.” (RÉ, 2013, p.353).
220
A Defensoria Pública e o Acesso à Justiça: perspectivas para o estado de Santa Catarina na execução penal
margem da sociedade. No mesmo sentido, Alda Zaluar (1994) leciona que a autoria de um
crime, de fato, é verificada em face da classe oriunda do agente, sendo que aos pobres
resta apenas um número de identificação e as impressões digitais na polícia; e que não se
encontra na condição de sujeito, mas a de assujeitado à vigilância do Estado.
É neste pano de fundo que o papel da Defensoria Pública se torna vital na execução
da pena. Não que nos demais momentos do processo penal – ou demais áreas - não seja
também relevante, mas é no momento da execução penal que ela se mostra imprescindível.
Nas palavras de Rodrigo Tadeu Bedoni:
Mais que uma definição técnica, o autor supracitado complementa a análise di-
zendo:
“ A par das atribuições acima, a Defensoria Pública tem a missão salutar de pro-
mover o adequado andamento do processo de execução da pena ou medida de
segurança, pois a ´sensação´ das pessoas que estão cumprindo a sanção estatal,
por vezes, é a de total abandono processual.” (2013, p.469).
221
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
Além disso, dispõe a referida lei que fora dos estabelecimentos penais, serão imple-
mentados Núcleos Especializados da Defensoria Pública para a prestação de assistência
jurídica integral e gratuita ao reeducandos, sentenciados em liberdade, egressos e seus
familiares necessitados. Tais previsões são indispensáveis para o exercício deste mister.
No âmbito da implantação dos Núcleos Especializados, eles se tornam órgãos funda-
mentais na prestação dessa função essencial à justiça, por serem constituídos de Defenso-
res Públicos atuantes na execução penal, vivenciando o quotidiano da execução no sistema
brasileiro tanto prisional quanto judicial, devido às particularidades dessa área de atuação.
A Lei 12.313/10 dispõe ainda que a Defensoria Pública é um órgão da execução pe-
nal, assim como os demais, tais como: o Juízo da Execução, o Ministério Público, o Conse-
lho Penitenciário, o Conselho da Comunidade, dentre outros. Nas palavras de Guilherme
de Souza Nucci:
“A Defensoria Pública: constituída pela Lei 12.313/10 como órgão da execução pe-
nal, além de possuir várias atribuições em relação aos interesses dos sentencia-
dos hipossuficientes, é natural esteja presente em todos os presídios, com amplo
apoio dos Governos Estaduais, conferindo-lhes a estrutura necessária para exer-
cer o seu mister.” (2013, p.197).
222
A Defensoria Pública e o Acesso à Justiça: perspectivas para o estado de Santa Catarina na execução penal
de unificação das penas, detração e remição de pena, instauração dos incidentes de exces-
so ou desvio de execução, bem como a aplicação de medida de segurança e sua revogação,
substituição da pena por medida de segurança, especialmente, a progressão de regimes,
conversão de penas, suspensão condicional da pena, livramento condicional, comutação e
indulto, autorização de saídas temporárias, interposição de recursos, dentre outros.
Interessante que este rol de atribuições, apesar de extenso, é meramente exempli-
ficativo, como informa Nucci:
Dessa forma, a LEP, com a Lei 12.313/10, ganhou contornos diferentes, ressaltando
o papel da Defensoria Pública como instituição essencial na execução penal, de forma
bastante abrangente, compreendendo não somente a função de atuação em prol dos re-
educandos, abrangendo recursos, requerimento de benefícios, defesas nos incidentes de
regressão, como também de fiscalização das unidades prisionais, podendo também ins-
taurar incidentes de excesso ou desvio na execução.
Portanto, a lei fixa parâmetros importantes para a atuação da Defensoria Pública
no âmbito da execução penal e esta instituição vem crescendo no sentido de ampliar sua
atuação, envolvendo também uma proteção de direitos fundamentais por meio da tutela
coletiva, fazendo uso de ações civis públicas, bem como de habeas corpus coletivo, de modo
a buscar a implementação de diversos direitos dos reeducandos em busca da consagra-
ção essencialmente do princípio da dignidade da pessoa humana.
Não há, pois, como negar que a Defensoria Pública se torna uma instituição impor-
tante no que se refere à execução penal, como dito, pois neste momento de cumprimento
da pena há que se observar, cada vez mais, os princípios constitucionais processuais e os
direitos fundamentais como um todo.
223
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
224
A Defensoria Pública e o Acesso à Justiça: perspectivas para o estado de Santa Catarina na execução penal
com a presença do então Ministro de Estado da Justiça, José Eduardo Cardozo, e do Go-
vernador de Estado, Raimundo Colombo. A previsão legal, é que a Defensoria Pública se
estabelecesse em 21 cidades. Porém, no primeiro momento, devido ao número pequeno
de Defensores Públicos nomeados, foram estabelecidos os seguintes núcleos: Florianó-
polis (sede), Itajaí, Joinville, Lages, Blumenau, Criciúma e Chapecó. Na sede, foram lota-
dos quinze Defensores e os demais núcleos foram constituídos de cinco Defensores cada
qual.
O momento da posse também marcou o iniciou do Mutirão de Execução Penal
realizado pela Força Nacional da Defensoria Pública. Dessa forma, os novos Defensores
Públicos já foram convocados a participarem do mutirão de execução penal, entrando em
exercício desde então, e atuando conjuntamente com os Defensores Públicos de outros
estados e da União.
Dessa forma, a experiência inicial dos novos Defensores Públicos do Estado deu-se
na atuação da execução penal, em face da necessidade de se verificar, no Estado de Santa
Catarina, como se encontrava a execução penal e as unidades prisionais, especialmente
pelo fato de inexistir até então a instituição Defensoria Pública.
Após essa experiência inicial e realizado o curso de formação, os novos Defenso-
res Públicos, lotados em seus respectivos núcleos, deram uma ênfase na execução penal,
contemplando, em cada um destes a referida área de atuação. Assim, mesmo em poucos
números para infinitas demandas, os primeiros Defensores Públicos do Estado de Santa
Catarina, diante da prioridade da execução penal, incorporaram-na como diretriz.267
267. No dia 20 de agosto de 2013 mais quinze Defensores Públicos do Estado de Santa Catarina tomaram
posse, compondo, assim, os sessenta cargos de Defensores Públicos estaduais. A perspectiva é de que sejam
criados mais cargos públicos de Defensores Públicos, por meio de lei, para que haja estruturação e também
a ampliação da instituição, de modo a garantir efetivamente acesso à Justiça aos necessitados de Santa Ca-
tarina.
225
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
processuais. Além disso, ressaltam-se as teses da Defensoria Pública catarinense que es-
tão sendo construídas neste momento de atuação, dialogando com teses desenvolvidas
por outras Defensorias Públicas atuantes no Brasil, e contribuindo para a evolução da
jurisprudência dos tribunais.
No âmbito das unidades prisionais, a presença constante do Defensor Público
constitui passo importante para a efetividade de direitos fundamentais, pois, neste con-
tato, é possível verificar a estrutura das unidades prisionais, as condições de funciona-
mento, identificar possíveis irregularidades, realizar contato direto com os reeducandos
em busca de uma melhoria de atendimento de suas necessidades dentro da unidade pri-
sional, bem como no processo de execução penal.
Tudo isso se torna de extrema necessidade, especialmente tendo em vista os úl-
timos dados relatados pelo Ministério da Justiça sobre o Estado de Santa Catarina, por
meio do InfoPen, de dezembro de 2012, cuja população carcerária crescente encontrava-
se em torno de 16.623 presos.268 Destes, 6.236 reeducandos estavam no regime fechado,
3.414 no regime semiaberto, 2.052 no regime aberto, 125 na medida de segurança me-
diante internação e 4.484 como presos provisórios, do total de 9.806 vagas no sistema
prisional.269 Do universo de estabelecimentos prisionais, o relatório aponta 48 unidades,
sendo que 7 delas são Penitenciárias, sendo 38 cadeias públicas e apenas um hospital de
custódia.
Portanto, os desafios são inúmeros por parte dos Defensores Públicos do Estado
de Santa Catarina, mas estes se mostram muito obstinados em cumprir seus mister, de
modo a garantir os direitos fundamentais dessas pessoas necessitadas e que estão nos
cárceres catarinenses.
Por tudo isso, o estabelecimento da Defensoria Pública corrobora pela afirmação
de um Estado Democrático de Direito, objetivando o resguardo de princípios essenciais
ao ser humano, consagrados constitucionalmente, tais como: acesso à justiça, princípio
da presunção de inocência, princípios da ampla defesa, do contraditório e do devido pro-
cesso legal, dentre outros.O desafio maior encontra-se na estruturação da própria Defen-
soria Pública catarinense para que se possa conseguir alcançar uma maior abrangência
no atendimento das unidades prisionais do estado, assegurando atendimento mais per-
sonalizado e com qualidade. Neste aspecto, o relatório apresentado pela ONU reafirma a
268. Conforme reportagem realizada pela Folha de São Paulo, em 18/02/13, a população carcerária do estado
de Santa Catarina cresceu de maneira vertiginosa na última década, aumentando em torno de 164% de 2003
a 2012, enquanto que a população cresceu apenas 13,8% no mesmo período: http://www1.folha.uol.com.br/
cotidiano/1232304-numero-de-presos-em-sc-explode-em-uma-decada.shtml Acesso em 13/08/13.
269. Disponível em http://portal.mj.gov.br/main.asp?View=%7BD574E9CE-3C7D-437A-A5B6-22166AD2E896%
7D&Team=¶ms=itemID=%7BC37B2AE9-4C68-4006-8B16-24D28407509C%7D;&UIPartUID=%7B2868B
A3C-1C72-4347-BE11-A26F70F4CB26%7D Acesso em 13/08/13.
226
A Defensoria Pública e o Acesso à Justiça: perspectivas para o estado de Santa Catarina na execução penal
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
270. Sobre o relatório, trecho do comunicado no site da ONU, cujo conteúdo compreende justamente o papel
da Defensoria Pública no Brasil: “O problema com o acesso à justiça para os detidos tem sido agravado pela
falta grave e, por vezes, inexistência de assistência jurídica efetiva. Uma queixa comum ouvida de todas as
partes entrevistadas, incluindo os membros do Judiciário, foi a de que não há defensores públicos suficientes
ou assistência jurídica disponível para atender aqueles que estão em detenção. A maioria dos que estão na
prisão são homens jovens e negros de famílias pobres e que não podem pagar advogados privados. O Grupo
de Trabalho observou que, em geral, a maioria das pessoas em desvantagem no sistema de justiça crimi-
nal, inclusive adolescentes e mulheres, eram pobres e não podiam pagar os meios para uma defesa jurídica
adequada.A sobrecarga de trabalho dos defensores públicos também é um problema crítico. Os defensores
públicos que prestam assistência jurídica gratuita pode ter de lidar com até 800 casos ao mesmo tempo.
Isso impactou negativamente o direito de um detento à igualdade e julgamento justo. Mesmo em Estados
onde há um sistema de defensoria pública, muitas vezes as áreas rurais ou do interior não têm defensores
públicos atendendo as pessoas em detenção.” Disponível em: http://www.onu.org.br/grupo-de-trabalho-so-
bre-detencao-arbitraria-declaracao-apos-a-conclusao-de-sua-visita-ao-brasil-18-a-28-marco-de-2013/ Aces-
so em 06/08/13
227
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
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IPartUID=%7B2868BA3C-1C72-4347-BE11-A26F70F4CB26%7D Acesso em 13/08/13.
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228
CONTRADITÓRIO JUDICIAL: UMA PROPOSTA DE HUMANIZAÇÃO
DO CONFLITO DECORRENTE DO CORTE DE ENERGIA ELÉTRICA EM
QUE A INADIMPLÊNCIA DECORREU DA HIPOSSUFICIÊNCIA DO
CONSUMIDOR
271. Defensor Público Estadual, especialista em Direito Público pela Universidade Anhanguera-Uniderp–
MS, mestrando pela Universidade Federal do Maranhão, professor de Direito Público, ex-membro da Co-
missão de Direitos Humanos – CONDEGE.
229
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
1. INTRODUÇÃO
2. DELIMITAÇÃO DO OBJETO
230
Contraditório Judicial: uma proposta de humanização do conflito decorrente do corte
de energia elétrica em que a inadimplência decorreu da hipossuficiência do consumidor
Assim, são considerados inadmissíveis os cortes que afetem a prestação de outros ser-
viços públicos igualmente essenciais, a exemplo dos que se verificam em hospitais, em
postos de saúde, em escolas etc272. O fundamento utilizado é extraído do próprio art. 6º,
§3º, II, da Lei de nº 8.987/1995, no que este determina a observância do interesse público
quando a interrupção do serviço decorra de inadimplemento do usuário.
Do mesmo modo, os cortes de energia elétrica quando o procedimento de apuração
de infração consistente em fraude no medidor é realizado de forma unilateral pela con-
cessionária, sem a participação pelo consumidor orientado por defesa técnica, também
são repelidos pela jurisprudência do aludido Tribunal273. São ainda repudiados os cortes
em se tratando de consumidor que necessita da prestação do serviço para tratamento
domiciliar de enfermidade que reclame a existência aparelhos elétricos. O fundamento,
neste caso, é o direito fundamental à integridade física e à saúde. Por fim, também não é
aceito o corte como mecanismo de cobrança de débito antigos274.
A princípio, em todos os demais casos aqui não excepcionados é admitido, de acor-
do com a Jurisprudência do STJ, a interrupção do fornecimento de energia elétrica por
inadimplemento atual do usuário. Embora com alguma divergência entre turmas nos
primeiros julgados, a orientação assumiu contornos gerais com um precedente julgado
sob a forma de Recurso Especial (nº 363943-MG/2004) pela 1ª Seção deste Tribunal resul-
tante de mandado de segurança impetrado na origem por consumidora hipossuficiente
que reclamava a continuidade do serviço, não obstante o inadimplemento em que se que-
dara havia seis meses.
Por este julgado, foram jogados em vala comum diferentes classes de consumido-
res, desde aqueles com poder econômico suficiente para adimplir suas obrigações e que
não o fazem por pura negligência até o indivíduo que se encontra em grave estado de
miserabilidade. Aliás, esse era o caso da impetrante do writ que gerou a controvérsia, de-
sempregada há vários meses e cuidando da mãe, paralítica. A questão, além de complexa,
apresenta contornos que precisam ser melhor aprofundados segundo as especificidades
do caso concreto e consoante parâmetros da Teoria Geral do Direitos Humanos Funda-
mentais, sobretudo no que esta diz com a afirmação do postulado da dignidade humana
e com a concretização do projeto de justiça social preconizado pelo Constituinte de 1988.
Diversas decisões judiciais, a exemplo da referida acima prolatada pelo STJ, colocam-se
na contramão desses parâmetros. Resulta exatamente desse descompasso a motivação
para elaboração do presente trabalho, que se deterá especificamente na (im)possibilida-
272. RECURSO ESPECIAL Nº 848.784 - RJ (2006/0103580-0). Neste julgado, a ilustre Ministra Eliana Calmon
empreende significativa incursão acerca dos conceitos de serviço público essenciais e não-essenciais bem
como sobre o respectivo sistema remuneratório.
273. Por todos cite-se: RECURSO ESPECIAL Nº 1.284.741 - SP (2011/0234070-4).
274. AgRg no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 116.567 - RS (2011/0271885-3).
231
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
232
Contraditório Judicial: uma proposta de humanização do conflito decorrente do corte
de energia elétrica em que a inadimplência decorreu da hipossuficiência do consumidor
275. Gustavo Binenbojm (2008, p. 65), em feliz síntese acerca da constitucionalização do direito, esclare-
ce que ela “não se esgota na mera disciplina, em sede constitucional, de questões outrora reguladas exclu-
sivamente pelo legislador ordinário. Ele [o processo de constitucionalização do direito] implica, mais que
isso, o reconhecimento de que toda a legislação infraconstitucional tem de ser interpretada e aplicada à
luz da Constituição, que deve tornar-se uma verdadeira bússola, a guiar o intérprete no equacionamento
de qualquer questão jurídica. Tal concepção, que vem sendo rotulada como neoconstitucionalismo, impõe
aos juristas a tarefa de revisitar os conceitos de suas disciplinas, para submetê-los a uma releitura, a partir
da ótica constitucional. Trata-se de realizar uma verdadeira filtragem do direito, de modo a interpretar os
seus institutos, buscando-se não só evitar conflitos com a Lei Maior, mas também potencializar os valores e
objetivos que esta consagra”. Grifos do autor.
276. Entre o Poder Concedente e o consumidor, Cintra do Amaral (2002) sustenta a existência de duas rela-
ções jurídicas distintas: uma por ele denominada de relação jurídica de serviço público, estabelecida entre
Poder Concedente – Concessionária – Consumidor, regida e pautada por normas do direito público; e outra,
233
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
Exatamente por isso, uma correta apreensão do problema permite reconhecer que
a responsabilidade pela prestação de um serviço público, como o de energia elétrica, não
se exaure na relação de consumo concessionária/consumidor, porquanto, tanto será pos-
sível que o próprio Estado preste o serviço ao cidadão, caso em que a responsabilidade
é direta, como também que o faça através de terceiros/ delegatários, caso em que a res-
ponsabilidade, embora indireta e subsidiária, ainda persiste. Evidentemente, a atividade
estatal neste setor não se encerra com a lavratura do contrato de concessão consequente
à realização de licitação. Muito além disso, pela dicção constitucional, ao Estado cabe
acompanhar através do poder de fiscalização (poder de polícia e hierárquico) o desempe-
nho de toda a atividade, adotar providências que promovam o amplo acesso de todos ao
serviço público essencial bem como criar as condições fáticas e jurídicas para reparação
de danos decorrentes de sua má prestação, daí a inviabilidade de adoção de soluções sim-
plistas que descurem dos variados interesses em questão. O direito de acesso do cidadão
ao serviço público essencial de energia elétrica é oponível, portanto, não apenas e direta-
mente ao concessionário, mas também ao Estado.
234
Contraditório Judicial: uma proposta de humanização do conflito decorrente do corte
de energia elétrica em que a inadimplência decorreu da hipossuficiência do consumidor
278. Em interessante julgado, o Supremo Tribunal Federal reconhece a necessidade de observância das nor-
mas programáticas, ARE 639337 AgR / SP - SÃO PAULO.
235
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
236
Contraditório Judicial: uma proposta de humanização do conflito decorrente do corte
de energia elétrica em que a inadimplência decorreu da hipossuficiência do consumidor
individual de cada um, o mínimo, pelo menos um mínimo, a todos deve ser assegurado
pelo Estado pela sua simples condição de humanidade. Discussão mais acurada acerca
do mínimo existencial e de seus limites, evidentemente, escapa aos estreitos limites
da presente cogitação. Entretanto, adota-se para o que se pretende a concepção de ne-
cessidades humanas básicas para exercício da autonomia (GONÇALVES, 2011, p. 186),
a saber, saúde preventiva e curativa, ensino básico, trabalho com remuneração digna,
moradia, previdência social, assistência social, alimentação adequada e assistência ju-
rídica pública.
Inafastável, nos parece, a inclusão, neste rol, do acesso ao serviço público es-
sencial de energia elétrica. Ninguém dúvida que a vida moderna, a do século XXI, seja
no campo seja na cidade, reclama o acesso à energia elétrica. Ainda que se encontre
alguma dificuldade para reconhecer neste acesso um direito autônomo com contornos
próprios, segundo assim entendemos, haver-se-á de admitir que a sua inexistência (ou
inacessibilidade) torna muito difícil falar-se em dignidade humana em sua acepção
material, substantiva. A energia, tanto quanto o serviço de água encanada e de sane-
amento básico, em dias atuais, é condição material para exercício pleno do direito à
saúde, à alimentação e à segurança, enfim, para uma existência digna. A lei ordinária
federal de nº 7.783, de 28 de junho de 1989, art. 10, traz importante baliza para definição
do que pode ser considerado serviço público essencial, assim entendidos como aqueles
indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade. No pará-
grafo único do art. 11, essa mesma lei conceitua as necessidades inadiáveis como sendo
aquelas que, se não atendidas, colocam em perigo iminente a sobrevivência, a saúde
ou a segurança da população. Não resta dúvidas de que o serviço de energia elétrica é
hoje essencial num contexto de vida contemporânea. Neste sentido é o magistério de
Marçal Justen Filho (2005, p. 480) para quem serviço público é um conjunto de ações
estatais regidas pelo direito público voltadas especificamente à satisfação de direitos
fundamentais.
Ainda que não se compreenda o acesso ao serviço de energia elétrica como um
direito autônomo, haver-se-á de nele reconhecer uma condição material para concreti-
zação da dignidade humana. Assim, nas hipóteses em que o inadimplemento decorra de
motivos relacionados a hipossuficiência econômica do destinatário, a solução haverá de
resultar do cotejamento entre os interesses meramente patrimoniais da empresa con-
cessionária de serviço público, de um lado, e, de outro, o princípio-fundamento da digni-
dade humana cuja concretização depende, entre outros, da prestação do serviço público
essencial de energia elétrica, além, é claro, do próprio direito ao serviço de energia elé-
trica. É justamente o acesso a esse serviço essencial para uma existência digna que entra
em colisão com o dispositivo da Lei de Serviços Públicos (Lei de nº 8.987/1995) que prevê
a possibilidade de corte em se tratando de inadimplemento do usuário.
237
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
238
Contraditório Judicial: uma proposta de humanização do conflito decorrente do corte
de energia elétrica em que a inadimplência decorreu da hipossuficiência do consumidor
279. Já Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin, atualmente Ministro no STJ, na mesma obra
(2007, p. 378), salienta que: “Energia e água são consideradas, hoje, direito humano inalienável. Como já
se posicionou a jurisprudência constitucional de outros países democráticos (por exemplo, África do Sul),
todo ser humano faz jus a uma quantidade mínima de água e energia, como serviços essenciais que são.
Assim, o corte de água e energia, em especial para a população carente, pode, se não resguardado esse per-
centual básico, necessário à sobrevivência com um mínimo de dignidade, infringir um direito fundamental”.
280. O parágrafo único desse mesmo dispositivo é igualmente elucidativo, ao asseverar que mesmo intentada
a ação, somente após o seu trânsito em julgado será possível a interrupção dos serviços por ela concessionária
239
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
Por outro lado, causa perplexidade a expressão utilizada pela Lei para designar a
pessoa inadimplente – usuário. É de se perguntar: ao assim se referir a Lei se reportava ao
consumidor, em especial à pessoa física que utiliza a energia para fins residenciais? Te-
mos defendido que mesmo o óbvio, em países com longo histórico de violação de direitos
humanos como o nosso, precisa ser dito. É que ao tempo da publicação desta Lei estava
em plena vigência e com larga aplicação o Código de Defesa do Consumidor, em que a
categoria consumidor já era definida com grande margem de segurança. Em magisté-
rio bastante interessante, o parecerista Antonio Carlos Cintra do Amaral (2002) sustenta
que usuário e consumidor não são as mesmas figuras jurídicas. O primeiro ostentaria
um direito a um serviço adequado tanto em face da concessionária quanto do Poder Con-
cedente cujo núcleo essencial seria regido pelo Direito Público; o segundo, o consumi-
dor, teria direito apenas em face da concessionária, a existência do Estado nesta relação
manifestaria cunho estritamente fiscalizatório e a regência ficaria a cargo do específico
direito do consumidor. Para fundamentar seu ponto de vista, o Doutrinador colaciona
dispositivo da Emenda Constitucional de nº 19/1998 (art. 27), em que, em plena vigência
do CDC, é determinado ao Congresso Nacional a edição de Lei de Defesa do Usuário de
Serviço Público. De fato, numa interpretação possível: ou usuário e consumidor são a
mesma figura jurídica e a disposição do legislador é absurda, ou são sujeitos jurídicos
distintos a atrair, para aquele, regramento particularizado. Reforça ainda essa tese o fato
de que a Lei de nº 9.791/1999, ao acrescentar o art. 7º-A à Lei de Serviços Públicos (Lei de
nº 8.987/1999), estabeleceu expressamente que as seis opções de data de pagamento de
faturas devem ser ofertadas pelas concessionárias tanto ao usuário quanto ao consumi-
dor. Claro, portanto, que da dicção da lei não são eles a mesma figura. A prevalecer esse
entendimento, que nos parece acertado, toda e qualquer interrupção do fornecimento
de energia elétrica decorrente de inadimplemento do consumidor seria ilegal, pela razão
óbvia de inexistência de previsão legal neste sentido281.
Cogitemos, porém, que ao tratar do usuário a Lei de Serviços Públicos tenha pre-
tendido abranger também o consumidor. A solução ainda assim não pode ser outra. É
que ao suscitar a possibilidade de interrupção do fornecimento do serviço em razão do
inadimplemento, a Lei não pretendeu açambarcar as situações concretas em que a causa
deste seja a condição, temporária ou não, de miserabilidade do usuário. E nem poderia,
afinal a escassez de recursos financeiros coloca o indivíduo em verdadeiro estado de ne-
cessidade, não sendo possível exigir qualquer outra conduta que não a de prover alimen-
tação e saúde, estricto sensu282. O estado de pobreza não é algo que deva ser agravado ou
prestados. Naturalmente que se assim o é na relação com a parte mais poderosa (Poder Concedente) assim
também o haverá de ser com a parte mais frágil da relação, o usuário.
281. Observe-se que o art. 7º, caput, desta Lei atrai expressamente a incidência do Código de Defesa do Con-
sumidor também para as relações estabelecidas com os usuários, certamente o fez com a finalidade de regra-
mento provisório, até que a legislação específica para o usuário seja editada.
282. Neste sentido, vide a Lei de nº 11.445/2007.
240
Contraditório Judicial: uma proposta de humanização do conflito decorrente do corte
de energia elétrica em que a inadimplência decorreu da hipossuficiência do consumidor
241
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
283. Em belíssima tese, Gustavo Binenbojm leciona: “Note-se bem: não se nega a existência de um conceito
de interesse público, como conjunto de ‘interesses gerais que a sociedade comete ao Estado para que ele os
satisfaça, através da ação política juridicamente embasada (a dicção do Direito) e através de ação jurídica
politicamente fundada (a execução administrativa ou judicial do Direito). O que se está a afirmar é que o
interesse público comporta, desde a sua configuração constitucional, uma imbricação de interesses difusos da
coletividade e interesses individuais e particulares, não se podendo estabelecer a prevalência teórica e ante-
cipada de uns sobre outros. Com efeito, a aferição do interesse prevalecente em dado confronto de interesses
é procedimento que reconduz o administrador público à interpretação do sistema de ponderações estabelecido
pela Constituição e na lei, e, via de regra, obriga-o a realizar o seu próprio juízo ponderativo, guiado pelo
dever da proporcionalidade” (2008, p. 105). A este respeito vide também Daniel Sarmento (2006, p.267-325).
242
Contraditório Judicial: uma proposta de humanização do conflito decorrente do corte
de energia elétrica em que a inadimplência decorreu da hipossuficiência do consumidor
Ora, como muito bem identificado por Cláudia Lima Marques na citação aludida,
o corte no serviço de energia elétrica não tem outra finalidade senão compelir o consu-
midor a adimplir suas dívidas perante a concessionária. O objetivo não é a extinção do
contrato, mas seu adimplemento284. Se assim o é, a pergunta formulada no julgado não
apenas perde relevância como o próprio sentido. A questão não está em saber se é “lícito
ao vendedor de energia elétrica cortar o fornecimento deste bem, quando o consumidor
hipossuficiente deixa de pagar o respectivo preço”. A pergunta pertinente passa a ser ou-
tra: é este o meio, do ponto de vista do ordenamento jurídico brasileiro, mais adequado
para cobrança de débitos decorrentes da prestação do serviço de energia elétrica? Ou ain-
da: a medida administrativa de corte bem como a previsão legislativa respectiva resistem
ao exame da proporcionalidade?
Num Estado Democrático de Direito toda e qualquer restrição a um direito huma-
no fundamental, ancorada na Constituição, deve ser realizada a partir do sopesamento
das circunstâncias fáticas e normativas incidentes ao caso concreto. É justamente a pro-
porcionalidade, enquanto técnica de solução de conflitos/colisões, que permitirá, ao apli-
cador do Direito, o alcance da justa medida, isto é, da restrição que, sem aniquilar o nú-
cleo essencial de um direito285, efetive em maior extensão um outro igualmente presente
e em oposição no caso concreto. Reside, pois, na proporcionalidade a calibração adequa-
da entre o princípio majoritário – princípio democrático – e as garantias contra-majori-
tárias – os direitos humanos fundamentais. Para tanto, são apresentadas pela moderna
dogmática do Direito três fases a serem observadas quando da imposição de alguma me-
dida restritiva de direito. Na primeira, é verificado se o meio proposto é idôneo à promo-
ção do fim perseguido; na segunda, é considerada a necessidade da medida, indaga-se
se a medida restritiva é de fato indispensável; por fim, na terceira fase, é verificado se os
fins colimados justificam a restrição imposta a um determinado direito fundamental286.
Submetendo a previsão normativa (art. 6º da LSP) – e mesmo o ato administrativo
da concessionária – que possibilita o corte, ao crivo da proporcionalidade, verifica-se que
284. Para o STJ o corte não gera nenhum tipo de constrangimento. O conhecimento mais próximo da socie-
dade e das aflições das camadas mais desfavorecidas descortina uma realidade bem mais dura. O corte de-
nuncia a todos a situação de miserabilidade porque passa a família inadimplente e de forma extremamente
grosseira faz saltar aos olhos da vizinhança o drama social daquele núcleo familiar.
285. Sem que se pretenda aqui avançar na interessante discussão acerca do que seria o “núcleo essencial dos
direitos fundamentais”, saliente-se apenas que com essa expressão se pretende que um mínimo de eficácia
seja mantida ainda que incidente e inafastável uma restrição constitucionalmente admitida.
286. Lecionando acerca do tema, esclarece Humberto Ávilia (2011, p. 174-175): “O exame da proporcionalidade
aplica-se sempre que houver um medida concreta destinada a realizar uma finalidade. Nesse caso devem ser
analisadas as possibilidades de a medida levar à realização da finalidade (exame de adequação), de a medida
ser a menos restritiva aos direitos envolvidos dentre aquelas que poderiam ter sido utilizadas para atingir a
finalidade (exame da necessidade) e de a finalidade pública ser tão valorosa que justifique tamanha restrição
(exame da proporcionalidade em sentido estrito)”.
243
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
287. Por honestidade, diga-se que não é raro se deparar com casos em que o profissional da Defensoria, e de
outros ramos do Sistema de Justiça, talvez constatando que a via do debate judicial é tão mais longa quanto
penosa para o assistido, retira do próprio bolso o valor necessário ao adimplemento da fatura de energia
elétrica daquele que mal tem o que comer.
244
Contraditório Judicial: uma proposta de humanização do conflito decorrente do corte
de energia elétrica em que a inadimplência decorreu da hipossuficiência do consumidor
É a esse interesse que a lei chamou de “interesse público”? Não, definitivamente não é
para chancela de tais violações que se presta o Direito288. A resposta nos conduz à veda-
ção ao corte condensada no art. 42, do CDC, que impede, na cobrança de débitos, meios
que coloquem o consumidor em situações de constrangimento ou de ameaça ou que lhe
exponham ao ridículo. Caminha-se, nesta perspectiva, para humanização do conflito em
torno do fornecimento de energia elétrica.
288. A proporcionalidade, desenvolvida sobretudo pela doutrina e pela jurisprudência constitucional alemãs,
com base na construção prussiana setecentista de proporcionalidade no Polizeirecht, especialmente na aplica-
ção de pena e no exercício do poder de polícia, é regra hoje inspirada tanto no conceito de Estado de Direito,
quanto na estrutura ou essência dos direitos fundamentais, orientada para solução de conflitos de direitos.
Essa regra é desdobrada em três máximas: de adequação ou instrumentalidade (Geeignetheit, Tauglichkeit),
entendida como aptidão, em tese, para o meio escolhido pelo legislador promover ou produzir o resulta-
do pretendido; de necessidade (Erforderlichkeit, Notwendigkeit), que obriga a um prévio exame dos meios
disponíveis, de modo a se optar por aquele menos gravoso ou mais benéfico (Gebot dês mildesten Mittels) ao
direito restringido, importando na imprescindibilidade e infungibilidade do meio escolhido; e proporcio-
nalidade em sentido estrito (Abwägung, Propostionalität), que demanda do legislador um sopesamento de
importância entre os direitos, bens, valores ou interesses em conflito (ALEXY, 1993:111 et seq.). (destacou-se)
(SAMPAIO, 2003, p. 62.)
289. Tratando do princípio da proibição de retrocesso, esclarece Cláudia Maria da Costa Gonçalves (2011, p.
199): “É importante lembrar que o princípio em tela é, acima de tudo, um avanço na busca de patamares mais
justos e dignos de vida material. Justifica-se. A proibição de retrocesso impede que direitos sociais já disciplina-
dos e garantidos pela legislação infraconstitucional e implementados através de ações e programas de políti-
cas sociais sejam, ao alvedrio dos poderes públicos, extintos configurando o vácuo do direito. Grifos da autora.
245
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
Para garantir indistintamente o acesso aos padrões atuais de uma vida digna, ao
Estado incumbe duas ordens de ações: uma de viés não-intervencionista; e, outra, de
cunho notadamente prestativo. De fato, tanto os direitos fundamentais tradicionalmen-
te chamados “de defesa” quanto os “de prestações” manifestam-se na realidade concre-
ta sob as faces tanto de um “direito a ações” como um “direito a não-intervenções”, daí
porque se dizer que sua divisão é muito mais didática do que efetivamente estrutural
(ALEXY, 2008, p. 280 e sgs.). Assim se verifica com o direito de acesso ao serviço público
essencial de energia elétrica,enquanto feixe de posições jurídicas que não apenas devem
ser protegidas como potencializadas em máxima eficácia (ALEXY, 193-208).
Numa dimensão negativa, essas posições garantem ao seu titular que ações esta-
tais ou de particulares não embaracem ou dificultem a plena fruição do serviço público
essencial. Eventual restrição a essa posição jurídica fundamental haverá de ser validada
pela Constituição e efetivada sob o postulado da proporcionalidade segundo os parâme-
tros já mencionados.
Numa dimensão positiva, de prestação, elas impõem ao Estado, seja diretamente
seja através de seus agentes delegatários, a promoção ampla de acesso e de garantia de
continuidade do serviço público essencial. É dessa dimensão que resulta a relação adrede
desconsiderada – Poder Concedente e cidadão.
Essa concepção de acesso à energia elétrica, parece-nos, mais consentânea com o
sistema constitucional brasileiro, na medida em que permite a publicização do conflito
em torno da inadimplência quando decorrente da hipossuficiência. É bem verdade, que
ainda que se entendesse tratar-se de conflito eminentemente privado, cuja solução seria
construída exclusivamente sob a égide das “leis de mercado”, pautados pelo exercício
pleno e consciente da autonomia dos sujeitos envolvidos (que muito bem se insere na
lógica neo-liberal, infelizmente ainda prevalecente no Direito), haver-se-ia de reconhe-
cer a incidência das disposições constitucionais que estabelecem os princípios gerais da
ordem econômica, mormente quando estes, no caput do art. 170, estabelecem os seus
fundamentos – valorização do trabalho humano e livre iniciativa – e os seus objetivos – a
todos garantir uma existência digna, conforme os ditames de justiça social.
Entretanto, é imperioso reconhecer-lhe a natureza pública, por se tratar de ques-
tão a que o Estado precisa assumir a cota de responsabilidade que lhe compete na efe-
tivação do projeto de justiça social preconizado pelo Constituinte de 1988. A incidência
do interesse público, no presente caso, somente pode indicar a necessária pertinência
subjetiva do Estado neste tipo de relação jurídica de modo a garantir não a supremacia
absoluta e apriorística do interesse público, mas o resguardo das condições materiais
mínimas de uma existência digna. Não se olvide que é o Estado o titular do serviço, é ele
portanto o sujeito passivo primeiro da relação jurídica consistente no direito do indiví-
duo de ter acesso ao serviço público essencial. Antes do concessionário, mero delegatário
246
Contraditório Judicial: uma proposta de humanização do conflito decorrente do corte
de energia elétrica em que a inadimplência decorreu da hipossuficiência do consumidor
290. Tratando ressaltando que a Constituição brasileira, além de garantidoras de direitos fundamentais,
é também uma constituição social, esclarece Daniel Sarmento (2006, p. 286): “Na Consituição brasileira, a
igualdade não é só um limite, mas antes uma meta a ser perseguida pelo Estado, justificadora de enérgicas
políticas públicas de cunho redistributivo, que podem gerar forte impacto sobre direitos patrimoniais de
particulares. A solidariedade também deixa de ser apenas uma virtude altruística, promovida por pontuais
ações filantrópicas, convertendo-se em princípio constitucional, capaz de gerar direitos e obrigações inclusi-
ve na esfera privada, e de fundamentar restrições proporcionais às liberdades individuais”.
247
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
fraca da relação jurídica e – mais ainda – se se trata de direitos disponíveis – não é razoá-
vel exigir a manutenção da prestação de um serviço ao inadimplente. A hipótese, porém,
tratada neste trabalho é bem diferente. Trata-se da efetivação de um direito fundamental
de acesso a um serviço que é condição necessária para uma existência digna. O que se
pretende não é a consolidação da inadimplência. A presença do Estado no pólo passi-
vo da demanda, seja promovida pelo concessionário seja pelo consumidor, ainda que a
título de denunciação à lide, possibilitará que este arque com o custeio da manutenção
de um serviço público mínimo, de modo a garantir o funcionamento de uma residência
parcamente mobiliada de eletrodomésticos, “benemerência” que do ponto de vista cons-
titucional constitui seu impostergável dever.
Do mesmo modo, resta superado também o argumento de predição utilizado pelo
STJ de que a inadimplência do consumidor em estado de miserabilidade levaria a uma
reação em cadeia na qual ninguém mais pagaria a conta de luz e, em pouco tempo, a con-
cessionária iria à falência e restaria comprometida toda a prestação do serviço público
essencial. É curioso perceber que o julgado, nem mesmo no voto do Relator, aponta, em
elementos processuais, as razões de seu convencimento acerca do risco de falência da
empresa. É de se dizer, não há a prova [pelo menos não se indicou a folha dos autos] de
que alguém já tenha deixado de pagar energia porque o vizinho é beneficiado por algum
programa social, ou simplesmente tenha deixado de pagar a conta. E mais grave. Não
há qualquer indicação no julgado do quantum de perdas da concessionária em razão de
inadimplência do consumidor de baixa renda, isto é, não são apresentados dados, esta-
tísticas e planilhas indicativas do quanto efetivamente significa essa inadimplência para
o orçamento da concessionária. Que a inadimplência gera um ônus econômico à empre-
sa, não resta dúvida. Mas qual a relevância desse ônus? O que ele significa em termos de
comprometimento financeiro da entidade? Não estaria ele englobado pela estimativa de
perda e risco utilizado na elaboração da tarifa pela qual todos pagam?291 Esses elementos
não deveriam ser provados pela concessionária durante o processo?292
Ademais, a pertinência subjetiva do Estado brasileiro na demanda em torno do
acesso ao serviço básico de energia elétrica faz superar o argumento de manutenção do
equilíbrio econômico-financeiro, tantas vezes levantado como óbice à proibição do corte
unilateral. É que a aludida equivalência é oponível ao Estado – Poder Concedente – e
não ao particular, sobretudo aquele em condição de miserabilidade. Trata-se cláusula
291. Fabrício Bolzan (2008, p. 178-179) levanta ainda interessante argumento segundo o qual o corte unilate-
ral viola a vedação de que a responsabilidade pelo débito restrinja-se ao devedor. Com o corte não apenas o
devedor, mas toda a família é privada do serviço público essencial. O Ministro José Delgado, no julgado do
RE 363.943-MG, em voto-vista divergente, menciona ainda a possibilidade de a concessionária valer-se de
contrato de seguro para precaver-se de eventuais prejuízos decorrentes da inadimplência.
292. Naturalmente a via eleita para manifestação do interesse da consumidora no julgado referência neste
trabalho é por demais estreita para fins probatórios. Entretanto, mesmo em outros processo em que esta
restrição processual não existe o entendimento foi mantido, a exemplo do RESP 596320/2006.
248
Contraditório Judicial: uma proposta de humanização do conflito decorrente do corte
de energia elétrica em que a inadimplência decorreu da hipossuficiência do consumidor
específica do contrato de concessão e que, naturalmente, deve ser observada pelo Estado,
assumindo a responsabilidade que lhe compete e arcando com os custos da manutenção
de um serviço mínimo que garanta a dignidade de uma família hipossuficiente.
No Estado do Maranhão, o Programa Viva Luz garante a gratuidade do forneci-
mento de energia elétrica para aqueles consumidores cujo faturamento residencial não
ultrapasse 50 kWh mensais293. A União, por sua vez, também possui programa específico
voltado para consumidores de baixa renda294. Aludidas ações, entretanto, não exaurem a
responsabilidade do Estado brasileiro, seja porque nem sempre a pessoa hipossuficiente
tem acesso a essa informação seja porque a concessionária raras vezes observa que a
inclusão nelas decorra de um dado objetivo: consumo abaixo dos limites fixados na leis
concessivas do benefício.
Ademais, a leitura cumulativa de vários meses, defeitos técnicos no medidor, ins-
talações elétricas internas da residência em condições precárias podem apontar para
um consumo irreal fazendo com que o consumidor hipossuficiente seja excluído do
rol de beneficiado pelo programa. A licitude da cobrança também constitui interesse
público porque deve velar o Estado, fiscalizando os meios de cobrança utilizados pela
concessionária.
Em verdade, o corte, na solução aqui proposta, continua possível, porém, por vias
muito mais seguras e democráticas, o que humaniza o conflito em torno do fornecimen-
to de energia elétrica e impede a perpetuação de ilegalidades. Como lembra Ferrajoli
(2011, p. 108), em lição de extraordinária beleza, a satisfação (observância e promoção)
de direitos fundamentais (inclusive sociais básicos ligados à sobrevivência - acrescenta-
mos, como o é o de energia elétrica) é também condição para efetivação da paz, tanto no
plano interno quanto internacional, a que se reporta a Declaração Universal dos Direitos
Humanos de 1948.
É chegada a hora de reconhecer neste conflito a existência de direito titularizado
pelo cidadão beneficiário do serviço essencial e de “convidar” o Estado brasileiro a de-
sempenhar seu papel na construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º CF).
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Historicamente, poucos têm sido os avanços realizados pelo Estado brasileiro para
promoção da igualdade do ponto de vista material. Os gigantescos fossos sociais, ainda
249
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
8. REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008.
AMARAL, Antonio Carlos Cintra do. Distinção entre usuário do serviço público e consu-
midor.
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Serviços Públicos e Direitos Fundamentais (2006, p. 26).
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Organizadores Daniel Sarmento e Flávio Galdino, Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídi-
cos. 12ª Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2011.
250
Contraditório Judicial: uma proposta de humanização do conflito decorrente do corte
de energia elétrica em que a inadimplência decorreu da hipossuficiência do consumidor
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 14ª Ed. Rio de
Janeiro: Ed. Lúmen Júris Editora, 2009.
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Dignidade da pessoa humana: o princípio dos prin-
cípios constitucionais. In: Direitos fundamentais: estudos em homenagem ao professor
Ricardo Lobo Torres. Organizadores Daniel Sarmento e Flávio Galdino, Rio de Janeiro:
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FERRAJOLI, Luigi. Por uma teoria dos direitos e dos bens fundamentais. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2011.
HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1991.
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 1ª Ed. Paraná: Ed. Saraiva,
2005.
251
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 15ª Ed. São Paulo:
Ed. Malheiros Editores, 2002.
NUNES , Luis Antonio Rizzatto. Curso de Direito do Consumidor: com exercícios. 4ª Ed.
São Paulo: Saraiva, 2009.
PINTO, Antonio Luis de Toledo; WINDT, Márcia Cristina Vaz dos Santos; CÉSPEDES,
Lívia. Vade Mecum: Código civil. 10ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
252
O MODELO INQUISITÓRIO E O DIREITO PENAL DO INIMIGO
NA EXECUÇÃO DA PENA E AS INCONSTITUCIONALIDADES
DO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO. A FUGA DO CÁRCERE:
DIREITO DO APENADO OU FALTA GRAVE?
Abstract: This article focuses on the implementation of custodial sentence and in the
unconstitutionality of the brazilian prison system that are reflected in the inquisitorial
process model and in the form of treatment given to the prisoner that conforms to the
concept of “criminal law of the enemy,” which has caused uprising and escapes and thus
the hardening of the regime of imprisonment. It finally concludes that in the violation of
fundamental rights provided constitutionally, the fugue must be justified, transmuting
the misconduct to the right of the convict to revolt against illegal actions of the State, in
rescuing their human dignity.
Keywords: Inquisitorial model. Criminal Law of the Enemy. Prison System. Escape.
Sumário: o autor deve inserir sumário de acordo com as normas técnicas, numerando
cada um dos pontos abordados.
253
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
1. INTRODUÇÃO
254
O Modelo Inquisitório e o Direito Penal do Inimigo na Execução da Pena e as Inconstitucionalidades
do Sistema Prisional Brasileiro. A Fuga do Cárcere: Direito do Apenado ou Falta Grave?
ao devido processo legal, previsto constitucionalmente (art. 5º, LIV e LV, da CF/88). Este
problema é recorrente em todo o país, consoante relatórios do Conselho Nacional de Jus-
tiça – CNJ.
Recebida a guia de recolhimento pelo Juízo da Execução Penal, este ordena que
se instaure o respectivo processo, determinando, de ofício, ou inquisitorialmente, que o
apenado seja avaliado por Comissão Técnica de Classificação e, em muitos casos, que se
proceda ao exame criminológico.
Outra evidência do modelo inquisitório expressa-se no Art. 9o-A da Lei de Execu-
ção Penal, alterado pela Lei nº 12.654/12. Este dispositivo determina que os condenados
por crime praticado, dolosamente, com violência de natureza grave contra pessoa, ou por
qualquer dos crimes previstos na Lei nº 8.072/90 (Crimes Hediondos) sejam submetidos,
obrigatoriamente, à identificação do perfil genético, mediante extração de DNA - ácido
desoxirribonucleico, por técnica adequada e indolor.
Tal procedimento, ainda que invasivo da intimidade do apenado e, portanto, viola-
dor do direito fundamental expresso no art. 5º, X da Carta de 1988, não comporta insur-
reição por parte daquele.
De outro modo, o juiz da execução e até o próprio diretor do estabelecimento pri-
sional pode determinar a transferência dos presos a total revelia destes. Ademais, os dire-
tores das casas penais, em nome da disciplina, podem impor sanções administrativas aos
presos, que vão desde o isolamento e suspensão de visita da família e amigos, até mesmo
à proibição de banho de sol. Estes procedimentos não dão margem ao contraditório, o
que novamente faz sobressair o modelo ou sistema inquisitório na execução da pena.
Sob esse aspecto, também serão estudadas mais adiante as incongruências do Re-
gime Disciplinar Diferenciado (RDD) com a ordem Constitucional, que apontam para a
“perversa lógica do Direito Penal do Inimigo”.
Neste ponto, faz-se necessário relembrar as feições do modelo inquisitório e suas
origens, para, ao fim, deixar evidenciados seus influxos em nossos dias, sobretudo em
sede de execução da pena privativa da liberdade.
Pode-se afirmar inicialmente que em um sistema processual acusatório tem-se a
nota da publicidade, bem como da imparcialidade do juiz, uma vez que a gestão da prova
encontra-se sob a responsabilidade das partes. Por outro lado, a investigação sigilosa e a
quebra da imparcialidade, caracterizada pela dupla função de acusar e julgar, definem de
forma geral o sistema processual inquisitório, de matiz autoritário.
Outro traço distintivo e importante para se definir um sistema processual penal
entre acusatório e inquisitorial é a forma de obtenção da verdade, ou seja, os modos e os
procedimentos utilizados na sua produção.
255
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
256
O Modelo Inquisitório e o Direito Penal do Inimigo na Execução da Pena e as Inconstitucionalidades
do Sistema Prisional Brasileiro. A Fuga do Cárcere: Direito do Apenado ou Falta Grave?
E o que dizer da mutabilidade das decisões em sede de execução penal, que não vin-
culam as partes, sendo plenamente voláteis. Noutras palavras, as decisões proferidas no
curso da execução da pena podem, a qualquer momento, alterar as anteriores, ainda que
para prejudicar o condenado (decisão “in pejus”). É o que se verifica quando da regressão
de regime, perda de dias remidos, revogação de livramento condicional, dentre outros.
Com a separação entre Estado e Igreja, o crime deixa de ser a violação do divino e
passa a representar a prática de uma conduta anteriormente vedada por lei, princípio da
anterioridade da lei penal. Surge a modernidade e a codificação, com o que se esperava a
superação do sistema inquisitório pelo acusatório. No entanto, não foi isso que ocorreu.
Na realidade, o que houve foi apenas uma mudança de conceitos, tendo sido Deus subs-
tituído pelo saber (o bem), e satã pela ignorância (o mal), o que se conclui que “...a idade
média não terminou e está longe de terminar.”
De fato, o cárcere brasileiro lembra as masmorras da idade média, e o procedimen-
to judicial de execução penal nos remete ao modelo inquisitorial dos tempos do medievo.
257
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
Dessa maneira, diante das reiteradas violações aos direitos humanos dos presos, que
rotineiramente são objeto de notícias nos meios de comunicação e que podem ser facil-
mente observadas em uma simples visita carcerária, ou por meio de relatórios do Conselho
Nacional de Justiça, disponíveis no sítio do CNJ, inevitável o questionamento sobre a legi-
timidade da intervenção estatal no que diz respeito ao exercício do ius puniendi, uma vez
que, além das funções que regularmente são atribuídas às penas, vale dizer, a repressiva e a
preventiva, o Estado parece querer vingar-se do infrator, ignorando que este é possuidor de
uma característica indissociável da sua pessoa, qual seja a sua dignidade humana.
Um exemplo de completa violação à dignidade da pessoa humana pode ser con-
sultado no relatório de inspeção carcerária realizada pelo Conselho Nacional de Justiça,
em fevereiro de 2011, no Presídio Regional da cidade de Cajazeiras, no Estado da Paraíba.
Conforme consta do relatório, este presídio não possui rede de água encanada, o que faz
com que a água seja muitas vezes retirada com carros pipas de um açude, que é o mesmo
que recebe o esgoto gerado pela prisão.
Noutro giro, a Constituição Federal de 1988 garante a individualização da pena
(art. 5.º, XLVI, 1ª parte, da Constituição Federal). O mencionado dispositivo enuncia que
“a lei regulará a individualização da pena”, sendo certo que por meio dela se alcança o
postulado básico de justiça, partindo-se do entendimento de que os seres humanos não
são iguais, e que cada um traz consigo características que os tornam singulares. Desse
modo, é certo que os condenados não podem ser submetidos ao mesmo programa de
execução penal.
A individualização da pena evidencia-se nas três fases através das quais o Estado
exerce o seu poder de punir, quais sejam a legislativa, a judicial e a de execução.
No plano legislativo, verifica-se a aplicação do princípio em estudo quando, por
exemplo, o legislador prevê diferentes sanções conforme a gravidade do delito, circuns-
tâncias agravantes e atenuantes da pena, assim como as suas causas de diminuição ou
aumento. Consiste, portanto, na individualização em abstrato.
Na fase judicial, o princípio da individualização da pena tem aplicabilidade quan-
do o juiz, observando o art. 59 do Código Penal, ou seja, atendendo à culpabilidade, à con-
duta social, aos antecedentes e à personalidade do agente, aos motivos, circunstâncias e
consequências do crime, assim como ao comportamento da vítima, busca estabelecer a
pena adequada e suficiente para reprovar e prevenir o crime.
Já com relação à terceira fase, que consiste na execução da pena, o princípio encon-
tra-se evidenciado basicamente nos artigos 5.º e 6.º da Lei n.º 7.210, de 11 de julho de 1984,
os quais preceituam que os condenados serão classificados segundo seus antecedentes e
personalidade e que uma comissão técnica elaborará programa individualizador da pena
privativa de liberdade a cada preso condenado ou provisório.
258
O Modelo Inquisitório e o Direito Penal do Inimigo na Execução da Pena e as Inconstitucionalidades
do Sistema Prisional Brasileiro. A Fuga do Cárcere: Direito do Apenado ou Falta Grave?
Com isso, tendo em conta que a pena deve ser proporcional à conduta praticada,
bem como pelo fato de que esta deve ter um caráter ressocializador, a fim de dissuadir o
agente da prática de novos delitos, verifica-se ser imprescindível a separação dos conde-
nados conforme os critérios enunciados pela lei, situação esta que se não for observada,
poderá ocasionar um processo de dessocialização do preso, a exemplo daquele que não
era contumaz na prática de crime e agora pode vir a ser, ou daquele que havia cometido
delito de pequena gravidade e agora pode vir a praticar infrações graves.
Um dos obstáculos mais relevantes no que diz respeito à individualização da pena,
sem dúvida, consiste na superlotação dos estabelecimentos prisionais.
O contraditório é princípio previsto de forma expressa no art. 5.º, LV, da Consti-
tuição Federal, o qual dispõe que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo,
e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios
e recursos a ela inerentes”.
A violação ao princípio do contraditório, quando leva ao encarceramento do indi-
víduo por mais tempo que o devido, corroendo o seu tempo de vida como forma de pu-
nição, enseja danos irreparáveis à pessoa do preso, consistindo em um dos mais graves
atentados ao sentimento de justiça.
A fim de exemplificar os danos irreparáveis decorrentes da violação à garan-
tia do contraditório, cite-se o caso do apenado R.G.G.S, nos autos do processo nº
00206650820098140401, em trâmite na 1ª Vara de Execuções Penais de Belém, que, ne-
cessitando fazer tratamento urgente para operar a visão direita, e, diante da falta de as-
sistência à saúde no estabelecimento prisional onde se encontrava, fugiu na data de 10 de
junho de 2010, tendo sido recapturado em 01 de dezembro do mesmo ano, quando ainda
esperava pela realização da cirurgia. A audiência de justificação para a fuga, que possi-
bilitaria ao preso exercer a garantia do contraditório, ocorreu após um ano e três meses
da recaptura, em 06 de março de 2012, quando o preso já havia perdido completamente
a visão do olho direito.
Também insculpido no art. 5.º, LV, da Constituição Federal, o princípio da ampla
defesa consiste em garantir ao réu ou condenado o direito à defesa técnica e à autodefe-
sa, a fim de que estes possam fazer uso de todos os instrumentos capazes de defendê-los
das alegações contrárias aos seus interesses.
A execução penal no Brasil, na forma como é realizada, inviabiliza o exercício da
ampla defesa por parte dos encarcerados. Isso porque dentro dos estabelecimentos pri-
sionais, o indivíduo encontra-se em tamanha situação de hipossuficiência e vulnerabi-
lidade que, não raras vezes, acaba sendo injustiçado diante da prática de condutas de
outros presos.
259
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
260
O Modelo Inquisitório e o Direito Penal do Inimigo na Execução da Pena e as Inconstitucionalidades
do Sistema Prisional Brasileiro. A Fuga do Cárcere: Direito do Apenado ou Falta Grave?
261
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
262
O Modelo Inquisitório e o Direito Penal do Inimigo na Execução da Pena e as Inconstitucionalidades
do Sistema Prisional Brasileiro. A Fuga do Cárcere: Direito do Apenado ou Falta Grave?
Diz ainda o §1º do art. 52 da LEP que o regime disciplinar diferenciado também po-
derá abrigar presos provisórios ou condenados, nacionais ou estrangeiros, que apresen-
tem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade e no
§2º que estará igualmente sujeito ao regime disciplinar diferenciado o preso provisório
ou o condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação,
a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando.
Nota-se que o confinamento do preso por até 360 dias, com direito apenas 02 duas
horas/dia de banho de sol configura pena cruel, vedada constitucionalmente (art.5º, XL-
VII, “e” da CF/88). Dessa maneira, o RDD:
Verifica-se que as disposições vigentes do art. 52, §1 e §2º da LEP abrigam expres-
sões vagas e de conteúdo demasiadamente aberto, do tipo “alto risco para a ordem e a se-
gurança do estabelecimento penal”, “alto risco para a sociedade”, “fundadas suspeitas de
envolvimento ou participação do preso”, que dão margem à excessiva discricionariedade
por parte da autoridade penitenciária e ao juiz. Estes, desse modo, selecionam ao seu
próprio talante quem é o “inimigo”, submetendo-o ao RDD. Tais verificações reforçam
a ideia da impossibilidade de contenção do Estado de Polícia, ao se admitir um “direi-
to penal do inimigo”, em total violação às garantias insculpidas no texto Constitucional
Brasileiro.
Não há como negar que a fórmula do RDD para execução da pena diferencia os
apenados segundo suas características, se suspeitos ou não de participação em organi-
zações criminosas, fato este que gera a confirmação de um direito de execução penal
destinado ao inimigo e não ao cidadão, pois a proposta do RDD não conta com a ressocia-
lização da pessoa presa, o que fere de imediato os direitos fundamentais do ser humano,
sendo, portanto, incompatível com o Estado de Direito que se pretende salvaguardar.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Forçoso afirmar que o sistema inquisitório sobrevive nos tempos de hoje. O pro-
cesso de execução penal é a prova disso, porquanto dentre tudo que já foi explanado nes-
te trabalho, acresce-se o fato de que o apenado está sujeito a uma dupla ingerência, do
263
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
264
O Modelo Inquisitório e o Direito Penal do Inimigo na Execução da Pena e as Inconstitucionalidades
do Sistema Prisional Brasileiro. A Fuga do Cárcere: Direito do Apenado ou Falta Grave?
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266
A DEFENSORIA PÚBLICA COMO INSTRUMENTO PARA
EFETIVAÇÃO DOS OBJETIVOS FUNDAMENTAIS DA REPÚBLICA
FEDERATIVA DO BRASIL ATRAVÉS DO ACESSO À JUSTIÇA
Juliana do Val Ribeiro296
Abstract: The present study intents to analyze, without to exhaust the subject, the
institution of the Ombudsman from the standpoint given by the Constitution, specially
296. Defensora Pública do Estado de São Paulo Mestranda em Direito Constitucional pela PUC-SP Deve ser
inserido em nota de rodapé o currículo da autora
267
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
1. INTRODUÇÃO
268
A Defensoria Pública Como Instrumento para Efetivação dos Objetivos
Fundamentais da República Federativa do Brasil Através do Acesso à Justiça
297. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. Disponível em http://
www.mundojuridico.adv.br
298. Curso de Direto Constitucional Contemporâneo. P. 203
299. A Essência da Constituição. p. 37.
269
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
que deverão ser concretizados pelo poder público a fim de se garantir verdadeira demo-
cracia e justiça social aos brasileiros.300
Em seu art. 1º estão elencados, de forma expressa, os seus fundamentos, afirman-
do ter sido adotado o Estado o regime Democrático301 de Direito, que se funda na sobe-
rania, na cidadania, na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais do trabalho, na
livre iniciativa e no pluralismo político.
Fábio Konder Comparato, ao analisar o conceito de fundamento afirma:
“na linguagem filosófica, o termo fundamento designa o que serve de base ao ser,
ao conhecer, ou ao decidir. Fundamento é, pois, a causa ou razão de algo (ratio
essendi, ratio cognoscendi, ratio decidendi). Assim, para Aristóteles, é a subs-
tancia a razão do ser específico de determinado ente. Para Descartes, o cogito é
o critério da certeza do ato de conhecimento. Para Kant, o imperativo hipotético
é a razão de toda decisão técnica e o imperativo categórico, o supremo princípio
da moralidade.”302
Um dos princípios que está consagrado no art. 1º e possui íntima relação com o
presente trabalho, é o que dispõe ser a cidadania um dos fundamentos da República.
300. Estes entendidos como todos os residentes no Brasil, não se exigindo a condição de cidadão.
301. Nas palavras de Moacir Gadotti in Perspectivas atuais da educação, “a democracia fundamenta-se em três
direitos: direitos civis, como: segurança e locomoção; direitos sociais, como: trabalho, salário justo, saúde,
educação, habitação, etc.; direitos políticos, como: liberdade de expressão, de voto, de participação em parti-
dos políticos e sindicatos, etc.” p. 75
302. Rumo à Justiça. P. 41
303. Os quatorze princípios. Revista da OAB-SP, 93ª subseção de Pinheiros. P. 18
270
A Defensoria Pública Como Instrumento para Efetivação dos Objetivos
Fundamentais da República Federativa do Brasil Através do Acesso à Justiça
Por sua vez, José Afonso da Silva leciona sobre este mesmo sentido:
271
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
E continua:
Para tanto, para alcance dos objetivos fundamentais e consequentemente para re-
alização dos fundamentos da República, previu a Constituição extenso rol de direitos
fundamentais em seu art. 5º, mas não só neste artigo, bem como direitos sociais, prin-
cipalmente em seu art. 6º que deverão ser implementados pelo Estado a fim de conferir
efetividade a estes objetivos fundamentais e realizar por completo os fundamentos da
República.
Mas, imperioso se faz lembrar que estas normas constitucionais, que traçam ob-
jetivos, metas e conferem direitos sociais, têm natureza programática, ou seja, ditam re-
gras que demandam atuação infraconstitucional para materialização do preceito norma-
tivo, o que de certa forma esbarra no preceito já analisado, previsto no art. 5º, §1º da CR
que confere aplicabilidade imediata aos dispositivos referentes a direitos fundamentais.
272
A Defensoria Pública Como Instrumento para Efetivação dos Objetivos
Fundamentais da República Federativa do Brasil Através do Acesso à Justiça
“A Constituição é expressa sobre o assunto, quando estatui que “as normas de-
finidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata” (§1º do
art. 5º). Mas certo é que isso não resolve todas as questões, porque a Constitui-
ção mesma faz depender de legislação ulterior a aplicabilidade de algumas nor-
mas definidoras de direitos sociais, enquadrados dentre os fundamentais. Por
regra, as normas que consubstanciam os direitos fundamentais democráticos e
individuais são de aplicabilidade imediata, enquanto as que definem os direitos
econômicos e socais tendem a sê-lo também na Constituição vigente, mas algu-
mas – especialmente as que mencionam uma lei integradora – são de eficácia
limitada, de princípios dirigentes e aplicabilidade indireta, mas são tão jurídicas
como as outras e exercem relevante função, porque, quanto mais se aperfeiçoam
e adquirem eficácia mais ampla, mais se tornam garantias da democracia e do
efetivo exercício dos demais direitos fundamentais.” 309
“Então, em face dessas normas, que valor tem o disposto no §1º do art. 5º, que
declara todas de aplicação imediata? Em primeiro lugar significa que eles são
aplicáveis até onde possam, até onde as instituições ofereçam condições para
seu atendimento. Em segundo lugar, significa que o Poder Judiciário, sendo in-
vocado a propósito de uma situação concreta nelas garantida, não pode deixar
de aplicá-las, conferindo ao interessado o direito reclamado, segundo as insti-
tuições existentes.”310
Deve-se notar, então, que é preciso que seja conferida a maior eficácia possível
a estes dispositivos constitucionais e às demais normas sociais, sob pena de se negar
273
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
274
A Defensoria Pública Como Instrumento para Efetivação dos Objetivos
Fundamentais da República Federativa do Brasil Através do Acesso à Justiça
275
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
É aqui que também atua fortemente a Defensoria Pública pela luta pela efetivação
dos direitos sociais, pela inclusão social das pessoas hipossuficientes e pela garantia de
276
A Defensoria Pública Como Instrumento para Efetivação dos Objetivos
Fundamentais da República Federativa do Brasil Através do Acesso à Justiça
Não é demais recordar e deixar claro que o homem possui valores intrínsecos ao
seu ser e deve ser o fim a que tudo tende, não podendo ser meio, ou instrumento para
nenhuma realização, experimentação ou preocupação.
277
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
Desse modo Emanuel Kant, ao incluir em uma das cinco formas do imperativo
categórico construiu a seguinte fórmula:
“age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na de qual-
quer outro, sempre e simultaneamente como um fim e nunca apenas como um
meio.”’319
Desta forma, a dignidade da pessoa humana deve servir de base para todas as in-
terpretações normativas e criações legislativas, sempre em vista de proporcionar maior
segurança, comodidade, justiça e felicidade ao ser humano, que deve ser o fim a que to-
das as ações tendem, e não objeto, sem valor, sem proteção, sem dignidade.
Neste sentido, ante a verdadeira primazia do princípio da dignidade da pessoa
humana, tem-se que o homem deve representar o centro, o alvo da maior preocupação e
atenção governamental e do próprio corpo social, não podendo ser instrumento nem ter
seu livre-arbítrio mitigado ou excluído.
Pode-se considerar então que a Defensoria Pública, enquanto instituição garanti-
dora do direito fundamental à assistência jurídica destina-se precipuamente a defender
o ser humano desprovido de capacidade econômica em sua dignidade mais básica, lutan-
do diuturnamente pela concretização dos primados da Constituição.
Juntamente com esta perspectiva de atuação da Defensoria Pública na luta pela re-
alização da dignidade da pessoa humana, tem-se que a Defensoria também atua colabo-
rando para a máxima efetivação dos direitos fundamentais, de tal forma que o legislador,
também destinatário deste mister de efetivação dos direitos fundamentais, se vinculou à
exigibilidade de criação desta instituição, para que sua função precípua possa ser exerci-
da com integralidade e concretude.
Portanto, a Defensoria Pública é instituição intimamente ligada ao ideal de Estado
Democrático e Social de Direito, Estado este em que é reconhecida a exigência de todas
as pessoas políticas se submeter aos ditames constitucionais e legais, garantindo a par-
ticipação do povo nas decisões políticas bem como externando amplo rol de direitos e
garantias individuais e coletivas, assumindo elevado papel de promoção social.
CONCLUSÃO
278
A Defensoria Pública Como Instrumento para Efetivação dos Objetivos
Fundamentais da República Federativa do Brasil Através do Acesso à Justiça
O rol de direitos que devem ser observados é extenso e complexo, sendo certo que o
acesso à justiça é garantia para que as previsões saiam do papel e comecem a fazer parte
da realidade da população por todo o mundo.
No Brasil, a Constituição da República de 1988, considerada como Constituição
Cidadã, assumiu importante papel na efetivação material dos direitos humanos, vez que,
considerando os objetivos fundamentais e os fundamentos da República previstos ex-
pressamente no texto constitucional, o Estado é o ente político responsável pela concre-
tização dos direitos, inclusive os sociais.
O acesso à justiça é instrumento essencialmente democrático, que atua para levar
justiça e dar realidade às previsões em abstrato. É, também, uma garantia para que seja
preservada a instituição “Estado Democrático de Direito”.
Emmanuel Kant, ao afirmar que “duas coisas enchem minha mente de crescente
admiração e respeito, o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim”, corrobora
com a idéia de um dever individual e também social, decorrente da lei moral que existe
em cada um de nós, de lutar para que a justiça seja acessível ao maior número de pessoas
possível.
A luta é ainda necessária, mas o embasamento teórico por detrás do presente es-
tudo representa um terreno fértil para novas conquistas e concretizações. O importante
é não desistir.
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283
A SAÚDE DA POPULAÇÃO NEGRA: POLÍTICAS AFIRMATIVAS -
CONSCIÊNCIA CULTURAL E SOCIAL PARA DIRIMIR O PRECONCEITO
VELADO
Abstract: The present work aims to demonstrate the peculiar aspects of the health of the
black population , establishing a comparative relative to whites . Makes an analysis of the
fundamental right to access to health care for blacks , indicating that the veiled prejudice
and lack of guidance and policy to ensure the various fundamental rights and guarantees
expire by effectively discriminating this population . Due to this lack of cultural awareness
of civil society , institutions and public bodies generally associated with the particularities
of the body of black citizens - which is sometimes carries more serious and invasive than
those affecting white citizen diseases - there is clear commitment to the health of that
race / ethnicity . Presents the need for affirmative action in favor of the black citizen and
320. Defensora Pública Dirigente do Núcleo de Defesa da Saúde Da Defensoria Pública do Estado do Rio
Grande do Sul.
285
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
essential priority of equal treatment before the cordial racism faced . Finally , suggestions
for facilitating the black health citizen / patient access , are presented with dignity .
1. INTRODUÇÃO
A proposta tem como objetivo tratar do tema apresentado diante dos conhecimen-
tos adquiridos sobre a saúde, ou melhor, a falta de, quando se trata da população negra. É
indiscutível que a saúde é Direito Social Fundamental de todo e qualquer cidadão, inde-
pendentemente de sua raça/etnia, contudo, em se tratando de pacientes negros - quando
buscam o acesso à justiça já estão enfermos -, descobre-se um abismo entre o tratamento
dispensado à população branca em comparativo à população negra. O SUS (Sistema Úni-
co de Saúde), embora modelo enquanto legislação, é deficitário para todos. Todavia, em
se tratando de negros, é ainda mais ineficaz, pois o preconceito velado e a ausência de
consciência cultural e social privam o cidadão negro de informações e orientações sim-
ples que o impedem, inclusive, de conhecer o próprio Sistema de Saúde. Nesse contexto,
o acesso aos medicamentos constantes nos Protocolos Clínicos do Ministério da Saúde e
a tratamentos dispensados pela rede pública de saúde não estão ao alcance da população
negra. Da mesma forma, em virtude dos motivos elencados, o cidadão negro desconhece,
por completo, o seu direito de ter acesso à Justiça para buscar um tratamento eficaz a sua
nosologia, que lhe garanta uma vida livre de doenças e bem-estar físico, psíquico e social,
dentre outros direitos e garantias fundamentais que possibilitem o alcance da dignidade
humana do cidadão negro.
A escolha do tema é crucial diante das dificuldades encontradas pelos hipossufi-
cientes negros em obter acesso aos serviços de saúde de forma digna, já que, dependendo
do Sistema Único de Saúde, esbarram não só na burocracia, mas, também, na falta de
286
A Saúde da População Negra: políticas afirmativas - consciência cultural e social para dirimir o preconceito velado
2. DESENVOLVIMENTO
321. Seminário Estadual de Políticas Afirmativas em Saúde da População Negra e Participação Popular em
Defesa do SUS: Dignidade Humana, Igualdade de Sujeitos de Direitos no SUS. 19 e 20 de julho de 2010. Au-
ditório do Ministério Público Estadual.
287
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
faziam parte da plateia no evento não tinham qualquer conhecimento sobre a possibili-
dade de procurarem a Defensoria Pública para obter o tratamento à saúde de que neces-
sitam, através de encaminhamentos adequados ao sistema de saúde e o acesso à Justiça,
quando necessário322.
Após as explicações fornecidas sobre a Instituição- existência de Defensores Pú-
blicos com atuação na área para encaminhamentos ao sistema de saúde e ingresso de
ações individuais e, também, acerca do Núcleo de Defesa da Saúde, que possui um foco
macro em relação aos cidadãos/pacientes, incluindo atuação e resoluções extrajudiciais
que beneficiam a coletividade-, vislumbrou-se um crescimento evidente no atendimento
de cidadãos negros, podendo-se afirmar o acréscimo considerável da procura diária, na
área da saúde.
Desnecessário mencionar a importância da Defensoria Pública, bem como sua
previsão constitucional e infraconstitucional, como Instituição essencial à função juris-
dicional do Estado na defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial e na orientação
jurídica aos hipossuficientes e/ou vulneráveis323.
Contudo, é prioritário ressaltar que a Instituição Defensoria Pública tem o dever
de prestar assistência aos cidadãos que necessitam do acesso à saúde: direito prioritá-
rio e incondicional. E essa assistência, no vasto campo de atuação da Instituição, não se
resume aos necessitados em função de situação econômica menos favorecida. Impende
afirmar que a atuação se dá para os cidadãos hipossuficientes, no conceito lato da expres-
são, dos vulneráveis, como é o réu, no processo criminal, o adolescente em conflito com a
lei, por serem a parte mais fraca no processo, independentemente da situação financeira.
Em matéria de saúde, a hipossuficiência e a vulnerabilidade estão caracterizadas na
posição de enfermo do cidadão paciente, uma vez que, quando busca a Defensoria Públi-
ca, já está desprovido de saúde, sendo, portanto, a parte mais vulnerável, frente ao Siste-
ma de Saúde, pela desinformação e burocracia, e ao Poder Público, na relação processual.
Portanto, a Instituição Defensoria Pública, por intermédio de seus agentes, busca
administrativa e/ou judicialmente garantir a efetiva prestação do direito à saúde ao cida-
dão/paciente que dela necessita.
Isso porque o Sistema Único de Saúde, na prática, não cumpre com suas próprias
normas, sendo deficitário, não somente com a população negra, mas com todas as raças/
etnias, ou seja, com o cidadão em geral. Inobstante o Sistema Único de Saúde ser con-
322. A Defensoria Pública no Contexto das Políticas Afirmativas: A Saúde da População Negra. Palestrante:
Dra. Paula Pinto de Souza, in Seminário Estadual de Políticas Afirmativas em Saúde da População Negra e
Participação Popular em Defesa do SUS: Dignidade Humana, Igualdade de Sujeitos de Direitos no SUS. 19
de julho de 2010. Auditório do Ministério Público Estadual.
323. Lei Complementar Nº 132, de 7 de Outubro de 2009, art. 1º, art. 4º inciso I, II e XI
288
A Saúde da População Negra: políticas afirmativas - consciência cultural e social para dirimir o preconceito velado
siderado modelo em matéria de saúde pública, verifica-se que não vem cumprindo com
os ditames constitucionais, especialmente o disposto no Artigo 6º da Constituição da
República Federativa do Brasil (CRFB), acarretando a ineficiência das políticas públicas
existentes e na crescente judicialização, pela inexistência de política pública ou demora
na prestação do serviço já existente.
Para demonstrar a importância constitucional desse ‘super direito’, cabível mencio-
nar que a saúde também é considerada direito público subjetivo de todo cidadão, nos ter-
mos do artigo 196 da CRFB/88. Pelo conteúdo da norma, o direito constitucional à saúde
é oponível ao Estado lato sensu, sendo exigível a prestação desse direito pelo ente público.
Ambas as normas referidas são de eficácia plena e de aplicabilidade imediata,
diante do que preceitua o artigo 5º, parágrafo primeiro, da CRFB/88.
Contudo, o Poder Executivo lato sensu (entes federados, União, estados e muni-
cípios) e seus respectivos gestores, em que pese afirmarem compromissos com a saúde
da população negra e do cidadão em geral, costumam alegar, em discursos e na defesa,
nos processos judiciais, o Princípio da Reserva do Possível em razão da escassez de seus
recursos econômicos.
Esse argumento do Princípio da Reserva do Possível, segundo Professor e Magis-
trado gaúcho Ingo Sarlet324, é “uma alegação vazia”. Isso se justifica, pois, ressalvado o que
apontam os governantes, há várias fontes para subsidiar o orçamento para a saúde. Além
do orçamento previsto na Emenda 29, a qual prevê que, no mínimo, os Estados Membros
devem destinar 12% para saúde, e os Municípios, 15%, há também a previsão Constitucio-
nal do financiamento da Seguridade Social, afora outros aportes que poderiam surgir de
repasses de verbas de propaganda governamental e do Programa Pré-Sal. E, mais recen-
temente a aprovação pela Câmara que destina 25% dos royalties do petróleo para a saúde.
De acordo com informativo do Tribunal de Contas do Distrito Federal, datado de
15/09/2009, intitulado “Verba da Saúde paga almoço de preso e fardas”, o nosso Esta-
do, em toda a Federação, ficou em último lugar na destinação de verbas para saúde, que
deveriam ser de, no mínimo, 12%. Levando em consideração os desvios referidos, o Rio
Grande do Sul investiu apenas 3,75% em tal direito fundamental.
Por isso, a proposta de Lei de Responsabilidade Sanitária deve ser aprovada e san-
cionada com a maior brevidade possível, a fim de responsabilizar os maus gestores que
não cumprem com o mínimo de orçamento a ser destinado ao Sistema Único de Saúde.
Esses dados corroboram a afirmação de que a desatualização das políticas públi-
cas não se deve, exclusivamente, pela falta de orçamento. Ousaria-se dizer que é falta de
324. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal
de 1988. 7 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p.45.
289
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
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A Saúde da População Negra: políticas afirmativas - consciência cultural e social para dirimir o preconceito velado
325. BRASIL, Constituição da República Federativa do, 1988, art. 3º, inc. IV.
326. Para uma análise adequada das condições sociais e da saúde da população negra, é preciso ainda con-
siderar a grave e insistente questão do racismo no Brasil, persistente mesmo após uma série de conquistas
institucionais, devido ao seu elevado grau de entranhamento na cultura brasileira. O racismo se reafirma
no dia-a-dia pela linguagem comum, se mantém e se alimenta pela tradição e pela cultura, influencia a vida,
o funcionamento das instituições e também as relações entre as pessoas; é condição histórica e traz consi-
go o preconceito e a discriminação, afetando a população negra de todas as camadas sociais, residente na
área urbana ou rural e, de forma dupla, as mulheres negras, também vitimadas pelo machismo e pelos pre-
conceitos do gênero, o que agrava as vulnerabilidades a que está exposto este segmento. Do ponto de vista
institucional – que envolve as políticas, os programas e as relações interpessoais - deve-se considerar que as
instituições comprometem sua atuação quando deixam de oferecer um serviço qualificado às pessoas em
função de sua origem étnico-racial, cor da pele ou cultura. Esse comprometimento é resultante do racismo
institucional. O racismo institucional constitui-se na produção sistemática da segregação étnico-racial, nos
processos institucionais. Manifesta-se por meio de normas, práticas e comportamentos discriminatórias
adotados no cotidiano de trabalho, resultantes de ignorância, falta de atenção, preconceitos ou estereótipos
racistas. Em qualquer caso, sempre coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos discriminados em situação
de desvantagem no acesso a benefícios gerados pela ação das instituições.
A politica Nacional de Saúde Integral da População Negra, Secretaria Especial de Políticas de Promoção de
Igualdade Racial, Ministério da Saúde, Brasília, 2009, p. 19/20.
327. IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios.
Síntese dos Indicadores de 2009. Rio de Janeiro: IBGE; 2010 [acesso em 14 ago 2013]. Disponível em: http://
www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2009/pnad_sintese_2009.pdf
291
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
Ainda, segundo dados do Censo 2010 elaborado pelo IBGE328, as diferenças apre-
sentadas pela raça negra como características epidemiológicas, demográficas, socioeco-
nômicas, acesso a serviços, dentre outros demonstra a perpetuação nas desigualdades
sociais.
328. IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios.
Síntese dos Indicadores de 2009. Rio de Janeiro: IBGE; 2010 [acesso em 14 ago 2013]. Disponível em: http://
www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2009/pnad_sintese_2009.pdf
329. Tragtenberg, Marcelo Henrique Romano (Doutor e Professor do Departamento de Física da Universida-
de Federal de Santa Catarina): Um Olhar de Branco Sobre Ações Afirmativas. Artigo Publicado em 23/11/2007,
na Revista Saúde – Rio (Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil do Estado do Rio de Janeiro) na Seção:
Promoção: Saúde da População Negra.
330. Descabível nominá-los, até porque já se tornou um costume.
292
A Saúde da População Negra: políticas afirmativas - consciência cultural e social para dirimir o preconceito velado
uma posição de verdadeira desigualdade, pois, se, efetivamente, negros e brancos fossem
iguais, desnecessário seria a instituição de Estatuto com tal nomenclatura.
De qualquer forma, a referida legislação institui políticas afirmativas e tenta, de
alguma forma, a inclusão do cidadão negro em vários segmentos, em particular, priori-
zando a participação da população negra no contexto das instituições. Ainda, no que con-
cerne ao texto de Lei, interessante colacionar algumas considerações feitas por Defensor
Público do Estado do Espírito Santo331, acerca da legislação.
E, em seguimento às considerações apresentadas pelo Defensor Público do Estado
do Espírito Santo332, pertinente transcrever-se algumas impressões acerca da História
do povo negro e das dificuldades pretéritas e ainda hoje presentes que esta população
enfrenta, demonstrando a importância da Defensoria Pública no resguardo dos direitos
desses cidadãos:
331. No Art. 55 do Estatuto da Igualdade Racial propositadamente reside o acesso à tutela coletiva da popula-
ção negra. Pela sua reluzente redação, a apreciação judicial das lesões e das ameaças de lesão aos interesses
da população negra decorrentes de situações de desigualdade étnica, far-se-á, entre outros instrumentos,
pela via da ação civil pública, disciplinada na Lei 7.347/85. Acrescentando novo parágrafo 2º, ao Art. 13, da
Lei 7.347/85, o Estatuto das Raças estabelece que havendo acordo ou condenação com fundamento em dano
causado por ato de discriminação étnica, a prestação em dinheiro reverterá diretamente a um fundo que
deverá ser utilizado para ações de promoção da igualdade étnica, conforme definição do Conselho Nacional
de Promoção da Igualdade Racial, na hipótese de dano de extensão nacional, ou dos Conselhos de Promoção
de Igualdade Racial estaduais ou locais, nas hipóteses de danos com limite regional ou local, respectivamen-
te. A ação civil pública visando a tutela jurisdicional da população negra brasileira expressamente prevista
na nova legislação vai, assim, ao encontro dos anseios da Convenção Internacional Sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação Racial, que, em seu Art. 2º, letra d, proclama que seus países signatários
devem, por todos os meios apropriados - inclusive, se as circunstâncias o exigirem, com medidas legislati-
vas - proibir a discriminação racial praticada por quaisquer pessoas, grupos ou organizações, pondo-lhe um
fim, através de remédios processuais eficazes perante os tribunais nacionais.(Amaral, Carlos Eduardo Rios.
Defensor Público do Estado do Espírito Santo. Notícia via email em 01/08/2010).
332. In Amaral, Carlos Eduardo Rios. Defensor Público do Estado do Espírito Santo. Notícia via email em
01/08/2010)
293
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
294
A Saúde da População Negra: políticas afirmativas - consciência cultural e social para dirimir o preconceito velado
cuja doença é de caráter mais gravoso, como o faz com o branco, pode esse cidadão negro
procurar a Defensoria Pública para ingressar com a ação judicial competente.
Ainda, segundo pesquisas realizadas em sites sobre a saúde dos negros, esta ten-
dência brasileira de não assumir o preconceito se reflete em hospitais públicos e par-
ticulares do nosso país, onde o negro já é discriminado antes de nascer. As gestantes
negras têm menos cuidados médicos do que as brancas. Isso significa receber menos
anestesia no parto normal, receber menos explicação sobre o aleitamento materno,
cuidados com o recém-nascido, sinais do parto, pré-natal, alimentação adequada, en-
tre outras coisas.
Conforme dados do Censo Demográfico de 2000 elaborado pelo IBGE (Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística), consta o evidente prejuízo à população negra, que
já sofre um decréscimo em seu atendimento antes mesmo de nascer.333
O Relatório Saúde Brasil 2005: uma análise da situação da saúde apresenta infor-
mações e análises discriminadas segundo raça, cor e etnia, enfocando assistência pré-na-
tal, tipo de parto, baixo peso ao nascer e análise dos dados referentes ao nascimento, in-
cluindo morbimortalidade materno-infantil, em âmbito nacional e regional. Esse estudo
identificou uma proporção de 2% de nascimentos na faixa etária materna de 10 a 14 anos
entre as indígenas, o dobro da média nacional. Considerando as mães entre 15 a 19 anos,
constatou-se uma proporção de nascidos vivos da cor branca de 19%. Entre os nascidos
vivos negros, a porcentagem de nascimentos provenientes de mães adolescentes de 15 a
19 anos foi de 29%, portanto, 1,7 vez maior que a de nascidos vivos brancos. Verificou-se
ainda que 625 das mães de nascidos brancos referiram ter passado por sete ou mais con-
sultas pré-natal. Para as mães de nascidos indígenas, o percentual foi de 27% e para mães
de nascidos pardos, 37%. O cenário referente à prematuridade e à mortalidade infantil
também apresenta uma disparidade quando relacionado a raça, cor e etnia. A maior por-
centagem de nascidos vivos prematuros (gestação menos de 37 semanas) foi registrada
nos recém nascidos indígenas e pretos, ambos com 7%. Os menores percentuais de recém
nascidos prematuros foram observados entre os nascidos amarelos e pardos, ambos com
6%. O relatório destaca os dados referentes as crianças menores de cinco anos. O risco
de uma criança preta ou parda morrer antes dos cinco anos por causas infecciosas e pa-
rasitárias é 60% maior do que o de uma criança branca. Também o risco de morte por
desnutrição apresenta diferenças alarmantes, sendo 90% maior entre as crianças pretas
e pardas que entre brancas.
333. A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, Secretaria Especial de Políticas de Promoção
de Igualdade Racial, Ministério da Saúde, Brasília, 2009, p. 19/20.
295
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
Filhos de mães negras têm maior risco de adoecer e morrer.A expectativa média
de vida da população branca é de 72 anos, enquanto que a da população negra é
de 65 anos (sete anos menor).
334. Lamarca G, Vettore M. A nova composição racial brasileira segundo o Censo 2010 [Internet]. Rio de
Janeiro: Portal DSS Brasil; 2012 Jan 21 [acesso em 15 de ago 2013]. Disponível em: http://cmdss2011.org/si-
te/?p=8005&preview=true
335. FIBGE. Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, In censo de 1980.
296
A Saúde da População Negra: políticas afirmativas - consciência cultural e social para dirimir o preconceito velado
336. A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, Secretaria Especial de Políticas de Promoção
de Igualdade Racial, Ministério da Saúde, Brasília, 2009, p. 19/20.
337. DOENÇA FALCIFORME: A Doença Falciforme é uma alteração genética, caracterizada por um tipo de
hemoglobina mutante designada por hemoglobina S (ou Hb S) que provoca a distorção dos eritrócitos, fazen-
do-os tomar a forma de “foice” ou “meia-lua”. O termo doença falciforme define as hemoglobinopatias nas
quais pelos menos uma das hemoglobinas mutantes é a Hb S. As doenças falciformes mais frequentes são a
anemia falciforme (ou Hb SS), a S talassemia ou microdrepanocitose e as duplas heterozigoses Hb SC e Hb SD. Os
portadores de doença falciforme podem apresentar sintomatologia importante e graves complicações. A Hb
S tem uma característica química especial que em situações de ausência ou diminuição da tensão de oxigê-
nio provoca a sua polimerização, alterando drasticamente a morfologia do eritrócito que adquire a forma
de foice. Estes eritrócitos falcizados dificultam a circulação sanguínea provocando vasooclusão e infarto na
área afetada. Consequentemente, esses problemas resultam em isquemia, dor, necrose e disfunções, bem
como danos permanentes aos tecidos e órgãos além da hemólise crônica. Como se sabe, a Hb S teve origem
no continente africano, a sua introdução no Brasil ocorreu notadamente durante o período da escravidão.
Dados da triagem Nacional sinalizam 3.500 nascidos por ano com a doença falciforme. (Rio Grande do Sul,
Secretaria Estadual da Saúde. Departamento de Ações em Saúde. Manual de condutas básicas na doença
falciforme. Porto Alegre: DAS, 2008, p. 5, 7 e 9)
338. DEFICIÊNCIA EM GLICOSE -6-fosfato desidrogenase (G6PD): é uma doença hereditária recessiva liga-
da ao cromossomo x que, frequentemente, desencadeia uma anemia hemolítica. A desidrogenase é um tipo
de enzimas oxidorredutases catalizadoras da transferência de iões hidrogênio e um par de electrões de um
substrato, que é então oxidado, para uma molécula aceitadora, que é então reduzida (normalmente o NAD ou
uma coenzima flavínica). Disponível em, http://www.anvisa.gov.br, site ANVISA pesquisado em 24/07/2010.
339. FOLICULITE: é uma infecção dos folículos pilosos causadas por bactérias do tipo estafilococos. A invasão
bacteriana pode ocorrer espontaneamente ou favorecida pelo excesso de umidade ou suor, raspagem dos
pelos ou depilação. Atinge crianças e adultos podendo surgir em qualquer localização onde existam pelos,
sendo frequente na área da barba (homens) e na virilha (mulheres). Geralmente tratada com antibióticos
locais. Disponível em, http://www.anvisa.gov.br, site ANVISA pesquisado em 24/07/2010.
297
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
340. HIPERTENSÃO ARTERIAL: é uma doença definida pela persistência de níveis de pressão arterial acima
de 135mmHg de pressão sistólica e 85 mmHg de diastólica. A hipertensão eleva em quatro vezes o risco de
acidente vascular cerebral e de seis vezes o de insuficiência cardíaca. O risco de lesão cardiovascular, entre-
tanto, começa a aumentar a partir de níveis mais baixos, ao redor de 115/75mmHg, e o rico dobra a cada 20/10
mmHg de aumento da pressão. É quase sempre assintomática ou ologosintomática mas, se deixada evoluir
naturalmente, a doença desencadeia, indiciosamente, alterações vasculares em órgãos vitais, sobretudo no
coração (hipertrofia, insuficiência cardíaca, caronariopatia), cérebro (acidente vascular cerebral) rins (dis-
função progressiva), olhos (retinopatia hipertensiva) e vasos (aneurisma, dissecção). (Pedroso, Enio Roberto
Pietra, Reynaldo Gomes de. Blackbook – Clínica Médica, Belo Horizonte, Blackbook Editora, 2007, p. 258.)
341. DIABETES MELLITUS: é um conjunto de doenças metabólicas que provocam hiperglicemia por defici-
ência insulina. Essa deficiência pode ser absoluta, por baixa produção, ou relativa devido a resistência pe-
riférica a insulina. A forma mais frequente da doença, tipo II ou diabete mellitus do adulto é uma doença
crônica, silenciosa no início, responsável por uma série de consequências e complicações. As complicações
cardiovasculares e cerebrovasculares são as mais graves e contribuem para mais da metade dos casos de
infarto agudo do miocárdio, dois terços dos casos de acidente vascular cerebral além de insuficiência renal,
doença vascular periférica e cegueira. Pelo menos um quarto dos pacientes não sabem que são diabéticos e,
sem tratamento, evoluirão, inexoravelmente para as complicações graves e irreversíveis da doença. Muitos
morrem de uma complicação cardiovascular ou cerebrovascular da doença antes do diagnóstico. (Pedroso,
Enio Roberto Pietra, Reynaldo Gomes de. Blackbook – Clínica Médica, Belo Horizonte, Blackbook Editora,
2007,p. 518.)
342. INSUFICIÊNCIA RENAL CRÔNICA: É a síndrome que ocorre quando a função renal deteriora rapida-
mente até um nível que impede a homeostase normal. Ocorre horas após um fator deflagador que diminua
a perfusão renal (IRA pré-renal) ou que produza uma lesão renal parenquimatosa aguda (IRA renal) ou que
provoque obstrução urinária (IRA pós renal). Os casos de disfunção renal pré renal podem ser revertidos
rapidamente antes que ocorra uma lesão renal significativa ou evolua para necrose tubular aguda. (Pedroso,
Enio Roberto Pietra, Reynaldo Gomes de. Blackbook – Clínica Médica, Belo Horizonte, Blackbook Editora,
2007,p. 499)
343. A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, Secretaria Especial de Políticas de Promoção
de Igualdade Racial, Ministério da Saúde, Brasília, 2009, p. 19/20.
298
A Saúde da População Negra: políticas afirmativas - consciência cultural e social para dirimir o preconceito velado
morrer por tuberculose que as pessoas brancas(...)A análise dos dados também
permitiu as seguintes constatações: as mulheres negras grávidas morrem mais
de causas maternas, a exemplo da hipertensão própria da gravidez, que as bran-
cas; as crianças negras morrem mais por doenças infecciosas e desnutrição; e,
nas faixas etárias mais jovens, os negros morrem mais que os brancos.
344. Lamarca G, Vettore M. A nova composição racial brasileira segundo o Censo 2010 [Internet]. Rio de
Janeiro: Portal DSS Brasil; 2012 Jan 21 [acesso em 15 de ago 2013]. Disponível em: http://cmdss2011.org/si-
te/?p=8005&preview=true
299
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
O relatório Saúde Brasil 2005: uma análise da situação da saúde apresenta infor-
mações e análises discriminadas segundo raça, cor e etnia. Os dados do censo
contribuem para conferir maior visibilidade às iniquidades que atingem a po-
pulação negra. Assim, no setor da educação, enquanto entre brasileiros a taxa de
analfabetismo era de 12,4%, em 2001, entre os negros, a proporção era de 18,2%
e, entre os brancos, de 7,7%. Em média, a população branca estudava 6,9 anos e a
negra, 4,7 anos. No Sudeste, onde se encontra a maior média de anos de estudo
do conjunto – 6,7 anos -, os negros estudavam, em média, 2,1 anos menos que os
brancos. No que se refere a pobreza, outros estudos revelam que os negros cor-
respondem a cerca de 65% da população pobre e 70% da população extremamente
pobre, embora representem 45% da população brasileira. Os brancos por sua vez,
são 54% da população total, mas somente 35% dos pobres e 30% dos extremamen-
te pobres. O baixo nível de renda, tanto individual quanto domiciliar per capita,
restringe liberdades individuais e sociais dos sujeitos, fazendo com que todo o
seu entorno seja deficiente, desgastante e gerador de doença. Em 2001, mais de
32 milhões de negros com renda de até ½ salário mínimo eram potencialmente
345. A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, Secretaria Especial de Políticas de Promoção
de Igualdade Racial, Ministério da Saúde, Brasília, 2009, p. 19/20.
300
A Saúde da População Negra: políticas afirmativas - consciência cultural e social para dirimir o preconceito velado
Urge, pois, que sejam minimizados esses diferenciais negativos em relação à po-
pulação negra, quando comparados à branca, uma vez que, de alguma forma, a ausência
de acessibilidade aos serviços mais básicos também acaba por interferir e agravar a saú-
de do cidadão negro.
Os dados apresentados neste artigo demonstram o quão discriminado é o negro
diante da escassa ou ausente efetividade dos direitos e garantias fundamentais. Lembra-
se que tais direitos e garantias são, de fato, mais efetivos à população branca, embora
também deficitários. De qualquer sorte, a consequência deste disparate é o empobreci-
mento financeiro e cultural do cidadão negro, que certamente fica à margem do acesso
digno ao direito fundamental à saúde.
346. Políticas afirmativas são definidas como: ação afirmativa, ação positiva, discriminação positiva ou polí-
ticas compensatórias. No contexto do artigo as políticas afirmativas consistem em condutas ativas que visem
a oferecer aos grupos discriminados e excluídos um tratamento diferenciado para compensar as desvanta-
gens devidas à situação de vítimas do racismo.
347. A política Nacional de Saúde Integral da População Negra, Secretaria Especial de Políticas de Promoção
de Igualdade Racial, Ministério da Saúde, Brasília, 2009, p. 19/20.
301
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
Inclusão dos temas Racismo e Saúde da População Negra nos processos de for-
mação e educação dos trabalhadores da saúde e no exercício do controle social na
saúde;Ampliação e fortalecimento da participação do Movimento Social Negro
nas instâncias de controle social das políticas de saúde, em consonância com os
princípios da gestão participativa do SUS, adotados no Pacto pela Saúde;Incen-
tivo à produção do conhecimento científico e tecnológico em saúde da população
negra;Promoção do reconhecimento dos saberes e práticas populares de saúde,
incluindo aqueles preservados pelas religiões de matrizes africanas;Implemen-
tação do processo de monitoramento e avaliação das ações pertinentes ao com-
bate ao racismo e à redução das desigualdades étnico-raciais no campo da saúde
nas distintas esferas de governo;Desenvolvimento de processos de informação,
348. A política Nacional de Saúde Integral da População Negra, Secretaria Especial de Políticas de Promoção
de Igualdade Racial, Ministério da Saúde, Brasília, 2009, p. 21/22.
302
A Saúde da População Negra: políticas afirmativas - consciência cultural e social para dirimir o preconceito velado
349. “(...)DO DIREITO À SAÚDE Art. 6o O direito à saúde da população negra será garantido pelo poder públi-
co mediante políticas universais, sociais e econômicas destinadas à redução do risco de doenças e de outros
agravos. § 1o O acesso universal e igualitário ao Sistema Único de Saúde (SUS) para promoção, proteção e re-
cuperação da saúde da população negra será de responsabilidade dos órgãos e instituições públicas federais,
estaduais, distritais e municipais, da administração direta e indireta. § 2o O poder público garantirá que o
segmento da população negra vinculado aos seguros privados de saúde seja tratado sem discriminação. Art.
7o O conjunto de ações de saúde voltadas à população negra constitui a Política Nacional de Saúde Integral
da População Negra, organizada de acordo com as diretrizes abaixo especificadas: I - ampliação e fortale-
cimento da participação de lideranças dos movimentos sociais em defesa da saúde da população negra nas
instâncias de participação e controle social do SUS; II - produção de conhecimento científico e tecnológico
em saúde da população negra; III - desenvolvimento de processos de informação, comunicação e educação
para contribuir com a redução das vulnerabilidades da população negra. Art. 8o Constituem objetivos da Po-
lítica Nacional de Saúde Integral da População Negra: I - a promoção da saúde integral da população negra,
priorizando a redução das desigualdades étnicas e o combate à discriminação nas instituições e serviços do
SUS; II - a melhoria da qualidade dos sistemas de informação do SUS no que tange à coleta, ao processamen-
to e à análise dos dados desagregados por cor, etnia e gênero; III - o fomento à realização de estudos e pes-
quisas sobre racismo e saúde da população negra; IV - a inclusão do conteúdo da saúde da população negra
nos processos de formação e educação permanente dos trabalhadores da saúde; V - a inclusão da temática
saúde da população negra nos processos de formação política das lideranças de movimentos sociais para
o exercício da participação e controle social no SUS. Parágrafo único. Os moradores das comunidades de
303
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
remanescentes de quilombos serão beneficiários de incentivos específicos para a garantia do direito à saúde,
incluindo melhorias nas condições ambientais, no saneamento básico, na segurança alimentar e nutricional
e na atenção integral à saúde.(...)”.
350. Amaral, Carlos Eduardo Rios. Defensor Público do Estado do Espírito Santo. Notícia via email em
01/08/2010.
304
A Saúde da População Negra: políticas afirmativas - consciência cultural e social para dirimir o preconceito velado
351. Pnud et al. Política Nacional de saúde da população negra: uma questão de equidade. Documento resul-
tante do Workshop Interagencial de Saúde da População Negra, 6, 7, dez., 2001. Brasília.
305
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
5. CONCLUSÃO
306
A Saúde da População Negra: políticas afirmativas - consciência cultural e social para dirimir o preconceito velado
negra nos órgãos de administração da saúde, bem como no que diz respeito ao repasse de
verbas para a saúde do cidadão negro e à adoção de políticas afirmativas que priorizem o
atendimento do negro que necessitar do Sistema Único de Saúde.
No que tange à informação e à orientação imprescindível à atuação adequada do
servidor que atua na área da saúde para que atenda ao cidadão negro e saiba encaminhá-
-lo ao local certo, de acordo com a sua necessidade, a fim de evitar que os cidadãos fiquem
desorientados, deslocando-se a vários locais sem obter o acesso à saúde de que precisam.
Urge, ainda, a capacitação dos profissionais da área da saúde no atendimento dos
cidadãos/pacientes.
Enfim, estabelecer parceria, acessibilidade e termos de cooperação entre Muni-
cípio, Estado, Secretaria Municipal e Estadual de Saúde, Defensoria Pública e demais
órgãos públicos, na tentativa de solucionar ou melhorar o acesso aos serviços de saúde
do cidadão negro, administrativamente, o que seria mais rápido para o paciente e menos
oneroso e mais prático ao poder público.
Soluções e possibilidades existem, algumas independem da vontade do adminis-
trador e das instituições, mas há algumas que podem ser tentadas, desde que haja comu-
nicabilidade entre os Órgãos, a fim de resguardar o direito fundamental à saúde e propi-
ciar, com rapidez e eficácia, o acesso aos serviços de saúde pelo cidadão, em especial da
população negra, que clama por um atendimento igualitário, já deficitário do SUS, mas
ainda mais inoperante para esta raça, diante da já dita discriminação racial velada, o que
depende de políticas afirmativas.
De qualquer forma, somente condutas ativas e de compensação não são suficien-
tes para resolução da deficiência e do preconceito cordial velado que afligem a população
negra. Conforme mencionado em capítulo próprio deste artigo, é mais prudente e iguali-
tário iniciar-se com um conjunto de políticas públicas educativas, de consciência cultural
e social global de inclusão do cidadão negro, a fim de garantir-lhe uma vida digna, livre
de doenças, com um bem-estar físico, psíquico e social e com acessibilidade igualitária a
todos os direitos e garantias fundamentais.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
307
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
PEDROSO, Enio Roberto Pietra, Reynaldo Gomes de. Blackbook – Clínica Médica, Belo
Horizonte, Blackbook Editora, 2007.
Lei 8.080, de 19 de setembro de 1990. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 de dez, 1990.
Lei nº 10.678, de 23 de maio de 2003. Diário Oficial da União, Brasília, 26 mai., 2003.
Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Estatuto da Igualdade Racial. Diário Ofi-
cial da União, Brasília, 21 jul., 2010.
Lei nº 12.401, de 28 de abril de 2011. Altera a Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990. Diário
Oficial da União, Brasília, 29 abril, 2011.
308
A Saúde da População Negra: políticas afirmativas - consciência cultural e social para dirimir o preconceito velado
AMARAL, Carlos Eduardo Rios. Defensor Público do Estado do Espírito Santo. (Notícia
via email em 01/08/2010).
PNUD et al. Política Nacional de saúde da população negra: uma questão de equidade.
Documento resultante do Workshop Interagencial de Saúde da População Negra, 6, 7,
dez., 2001. Brasília.
309
NOVOS CAMINHOS TRAÇADOS PARA A CONCRETIZAÇÃO DO
DIREITO DE ACESSO À JUSTIÇA: A RELAÇÃO ENTRE DEFENSORIA
PÚBLICA E MOVIMENTOS SOCIAIS SERÁ UM CAMINHO?
Rivana Barreto Ricarte de Oliveira352
Resumo: A discussão sobre o acesso à justiça ganha força na medida em que a sociedade
contemporânea presencia a solidificação de um protagonismo do sistema judicial,
através da mudança de atuação deste poder frente às novas conflituosidades trazidas
pelos movimentos sociais. O artigo aborda esta questão trazendo à tona reflexão sobre
a relação entre a Defensoria Pública e os Movimentos Sociais, analisando se Defensoria
Pública está comprometida com a solução destas demandas.
Abstract: The discussion about access to justice gains strength at the time that
contemporary society presences the solidification of the judicial system’s role, through
the changing of this power shift’s performance forward to new conflicts brought by social
movements. The article addresses this issue surfacing reflection on the relationship
between the Public Defender Institution and the Social Movements, analyzing whether
the Public Defender is committed to the solution of these demands.
352. Defensora Pública do Estado do Acre (2002). Mestra em Direitos Humanos pela Universidade Federal da
Paraíba (2012). Aluna especial do programa de Doutorado em Direito da Universidade de São Paulo. Especia-
lista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Universidade Cândido Mendes- RJ (2006). Graduada
em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (2001).
311
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
353. É importante esclarecer que, na medida em que o ensaio se concentra na situação do acesso à justiça
na sociedade contemporânea, quando se menciona movimentos sociais fala-se dos movimentos sobre a base
teórica dos Novos Movimentos Sociais (TNMS) que se origina a partir de mudanças ocorridas em grandes es-
calas com redes diárias e estruturas organizacionais voltadas a novos tipos de queixas, tais quais as questões
relativas ao meio ambiente, a mulher, o consumo, ao negro, ao indígena, entre outras.
354. A apresentação dos conceitos hermenêutica de bloqueio, hermenêutica de legitimação e hermenêutica
reflexiva é debatida por CAMPILONGO (2010, p. 45-49) fazendo menção a ideias propostas por Tércio Sam-
paio na obra Interpretação e estudos da Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 1990, p. 12.
312
Novos Caminhos Traçados para a Concretização do Direito de Acesso à Justiça:
a relação entre Defensoria Pública e movimentos sociais será um caminho?
313
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
Nos dias de hoje, o Poder Judiciário alcançou um protagonismo que, para além do
político, se assenta na ideia de que as sociedades estão calcadas no primado do Direito
(SANTOS, 2011), e que para o funcionamento do atual modelo de desenvolvimento ba-
seado nas regras de mercado e nos contratos privados, é necessário um sistema judicial
eficaz e independente.
Como aduz Santos (2011), o atual protagonismo do sistema judicial prescinde de gran-
des investimentos, seja na dignificação das profissões jurídicas e judiciárias, seja em criação
de modelos que tornem o sistema judiciário mais eficiente, nas reformas processuais ou na
formação de magistrados e funcionários. Além disso, ele ocorre por razões diversificadas,
observando-se (i) a posição e o nível de desenvolvimento do país no sistema mundial, (ii)
bem como as diferentes culturas jurídicas, (iii) além da questão específica da corrupção.
Ocorre que o fato do Poder Judiciário ter se tornado uma arena importante para
os Movimentos Sociais imprime a busca pela ampliação da discussão de como estes Mo-
vimentos Sociais concretizam eficazmente o acesso à justiça e esta análise, sem dúvida,
refletirá no sucesso ou não deste protagonismo judicial.
Na medida em que se busca um sistema jurídico moderno e igualitário que preten-
da garantir - e não apenas proclamar - os direitos de todos, o direito de acesso à justiça se
torna condição fundamental para o exercício da cidadania, concretização dos direitos e,
portanto, uma das bases do regime democrático.
Também no Brasil, após a CF/88, houve uma ampliação do rol de direitos, aumen-
tando a expectativa dos cidadãos de os verem cumpridos, fomentada pela maior credi-
bilidade do uso da via judicial. O Judiciário ganhou, com isso, “[...] um destaque cada vez
maior tanto no debate político e institucional quanto na mídia”. (CAMPILONGO, 2010,
p. 30). Ocorreu, portanto, uma substituição do sistema da administração pública pelo sis-
tema judicial, com o fito de tornar real essa prestação social. Verificou-se, pois, um “[...]
deslocamento de legitimidade do Estado: do poder executivo e do poder legislativo, para
o poder judiciário” (SANTOS, 2011, p 30), esperando que este resolva os problemas que o
sistema político não consegue.
Os Movimentos Sociais sempre levantam a bandeira de um direito, pois o tema do
protesto, na generalidade das vezes, envolve um direito. A questão seria analisar como os
Movimentos Sociais utilizam os conflitos e se valem do direito, e como o direito trata do
conflito e do Movimento Social.
Urge-se, portanto, questionar: a existência dos Movimentos Sociais propicia maior
democracia? Qual a melhor forma das demandas propostas pelos Movimentos Sociais
obterem acesso ao Poder Judiciário? Em que medida a Defensoria Pública esta apta a
lidar com os conflitos trazidos pelos Movimentos Sociais? A Defensoria Pública está com-
prometida com a solução destas demandas?
314
Novos Caminhos Traçados para a Concretização do Direito de Acesso à Justiça:
a relação entre Defensoria Pública e movimentos sociais será um caminho?
315
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
316
Novos Caminhos Traçados para a Concretização do Direito de Acesso à Justiça:
a relação entre Defensoria Pública e movimentos sociais será um caminho?
[...] as cortes não são a única forma de solução de conflitos a ser considerada e...
qualquer regulamentação processual, inclusive a criação ou encorajamento de
alternativas ao sistema judiciário formal, tem um efeito importante sobre a for-
ma como opera a lei substantiva – com que frequência ela é executada, em bene-
fício de quem e com que impacto social. (CAPPELLETTI e GARTH, 1988, p. 12-13).
317
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
355. A “procura suprimida” de acordo com Santos é aquela formada pelos cidadãos que, apesar da consciência
pelos direitos, sentem-se impotentes para reivindicá-los. Ele explica que a difusão do acesso à justiça através
de reformas legislativas e processuais implementadas até aqui é, apenas, a ponta do iceberg que representa
a procura potencial (formada pelos cidadãos que são atingidos pelas reformas processuais), mas há uma pro-
cura suprimida que não foi alcançada. Para o autor, apenas considerando esta procura suprimida é que se
alcança uma revolução democrática da justiça. (SANTOS, 2011, p. 37).
356. Praticar a sociologia das ausências significa fazer uma “[...] investigação que visa demonstrar que o
que não existe é, na verdade, activamente produzido como não existente, isto é, como uma alternativa não-
creditível ao que existe. (...) O objectivo da sociologia das ausências é transformar objectos impossíveis em
possíveis, e com base neles transformar ausências em presenças”. (SANTOS, 2008, p. 102). Para uma melhor
compreensão do que significa sociologia das ausências ler SANTOS, Boaventura Souza. Uma sociologia das
ausências e uma sociologia das emergências. In: SANTOS, Boaventura Souza. A gramática do tempo: para uma nova
cultura política. São Paulo: Cortez, 2008, p. 93-136.
318
Novos Caminhos Traçados para a Concretização do Direito de Acesso à Justiça:
a relação entre Defensoria Pública e movimentos sociais será um caminho?
No entanto, como revela Santos, as atividades da Defensoria Pública “[...] estão per-
manentemente ameaçadas por um risco de afunilamento” (SANTOS, 2011, p.54) na medi-
da em que as deficiências estruturais compromete significativamente o serviço prestado.
De fato, justamente a instituição encarregada de garantir à imensa maioria da po-
pulação, o acesso ao sistema de justiça é a que menos recebe atenção dos poderes públicos.
Comparando os números da Defensoria Pública com as demais instituições públicas en-
volvidas no sistema, percebe-se esta discrepância.
Levantamentos oficiais mais recentes, publicados no III Diagnóstico da Defensoria
Pública357, realizado no ano de 2009, pelo Ministério da Justiça, dão conta de que o nú-
mero de magistrados e membros do ministério público supera o dobro do número de
Defensores Públicos.
Além disso, desequilíbrios econômicos e administrativos entre as instituições
também acarretam prejuízos à implementação do papel constitucional da Defensoria
Pública, principalmente na atuação em casos de grande interesse coletivo e que levam a
grandes repercussões no universo macrojurídico.
Alcançar a democratização do acesso à justiça, perpaça, portanto, em fornecer
meios eficazes para exercer o acesso à justiça em todos os níveis e para os diversos tipos
de atores (individuais e coletivos) e para os diversos tipos de demandas (seja de educação
jurídica e reconhecimento dos direitos, seja de ingresso efetivo nas cortes de justiça). De
algum modo, portanto, o investimento no fortalecimento da Defensoria Pública leva a
democratização deste acesso.
Após ter sido apresentado papel esperado e exigido pelo Poder Judiciário na socie-
dade contemporânea e se discutido caminhos para uma revolução democrática no direi-
to ao acesso à justiça, será feita uma breve análise da relação entre Movimentos Sociais e
Defensoria Pública, tomando como base de que esta seria um novo caminho traçado para
a concretização do acesso à justiça.
357. O Ministério da Justiça, através da Secretaria de Reforma do Judiciário confeccionou em 2009 o III Diag-
nóstico das Defensorias Públicas no Brasil contendo o resultado de pesquisa com dados das mais diversas espé-
cies sobre todas as Defensorias Públicas, abrangendo os anos de 2006, 2007 e 2008, incluindo, ainda, alguns
dados parciais referentes ao ano de 2009, o que permitirá a visualização das transformações ocorridas na
Instituição nesse lapso temporal. Tudo isso como forma de reunir em um único instrumento, informações
que subsidiem a realização de políticas públicas para fortalecimento da instituição. (BRASIL, 2009).
319
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
320
Novos Caminhos Traçados para a Concretização do Direito de Acesso à Justiça:
a relação entre Defensoria Pública e movimentos sociais será um caminho?
que maneira o caminho futuro a ser utilizado pela Defensoria Pública na execução destas
ações não seja de interesse meramente autopromocional. Isto é, a Defensoria Pública está
comprometida com os Movimentos Sociais ou ela se vale da força do Movimento Social
para ganhar notoriedade política e alcançar, tão somente, o seu próprio desenvolvimento
administrativo e financeiro com o fim de solucionar os seus problemas estruturais? Ou,
de fato, os Movimentos Sociais encontram, em sua relação com a Defensoria Pública, um
mecanismo que traduz a confiança que necessitam para se arriscarem no conflito?
Outra mudança legislativa importante para abrir o caminho entre a relação da
Defensoria Pública com os Movimentos Sociais foi a Lei Complementar 132/2009, que
alterou significativamente a Lei Complementar n. 80/1994 (Lei Orgânica Nacional da
Defensoria Pública), e, de forma inédita, considerando as demais carreiras jurídicas de
Estado, instituiu a figura Ouvidor-Geral Externo358, sendo uma de suas funções promover o
intercâmbio com a sociedade civil. Ou seja, os Movimentos Sociais foram, agora, trazidos
para dentro da Defensoria Pública em nível legislativo institucional.
Estabelecidos estes pontos em que a legislação firmou aproximação entre a Defen-
soria Publica e os Movimentos Sociais, discutem-se os questionamentos propostos no
início deste ensaio: (i) em que medida a Defensoria Pública esta apta para lidar com os
conflitos trazidos pelos movimentos sociais? (ii) A Defensoria Pública está comprometi-
da com a solução destas demandas? (iii) Quais os pontos negativos e positivos advindos
da relação entre Defensoria Pública e Movimentos Sociais?
O surgimento destes pontos de reflexão parte de dois enfoques: primeiro, de um
olhar cético da autora quanto ao fato de que a instituição do Ministério Público ter sido
calcada na Constituição de 1988 para ser aquela que defenderia a sociedade em toda sua
amplitude, mas, ao que parece, ao menos no que diz respeito ao âmbito estadual, na me-
dida em que a promotoria pública foi crescendo e se fortalecendo, foi deixando de lado
este tipo de tutela coletiva que gerava impacto negativo contra o Estado. Assim, sendo a
Defensoria Pública instrumento por excelência da promoção do acesso à justiça, como
trabalhar para que ela não sofra o mesmo padecimento vivido pelo Ministério Público
daqui há alguns anos? Como conjugar o crescimento e a estruturação administrativa e
financeira da instituição com o não abandono destas demandas de grande vulto? Como
crescer sem perder sua essência?
358. Lei Complementar 80/94: “Art. 105-A. A Ouvidoria-Geral é órgão auxiliar da Defensoria Pública do Esta-
do, de promoção da qualidade dos serviços prestados pela Instituição. (...) Art. 105-B. O Ouvidor-Geral será
escolhido pelo Conselho Superior, dentre cidadãos de reputação ilibada, não integrante da Carreira, indica-
dos em lista tríplice formada pela sociedade civil, para mandato de 2 (dois) anos, permitida 1 (uma) recon-
dução. (...) Art. 105-C. À Ouvidoria-Geral compete: V – promover atividades de intercâmbio com a sociedade
civil; VI – estabelecer meios de comunicação direta entre a Defensoria Pública e a sociedade, para receber
sugestões e reclamações, adotando as providências pertinentes e informando o resultado aos interessados;
VII – contribuir para a disseminação das formas de participação popular no acompanhamento e na fiscali-
zação da prestação dos serviços realizados pela Defensoria Pública.” (grifos nossos).
321
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
Neste ponto, pode-se afirmar que há, sem dúvida, a prestação de benefícios recí-
procos entre Movimentos Sociais e Defensoria Pública. Ou seja, parafraseando a com-
paração feita por Campilongo (2012, p. 96-100), haveria um duplo intercâmbio entre os
Movimentos Sociais e a Defensoria Pública.
A Defensoria Pública esta apta a oferecer aos movimentos sociais a credibilidade
de seu papel institucional de promotora do acesso à justiça, conforme estabelecido no
art. 134 da Constituição de 1988.
No âmbito do acesso aos Tribunais, a Defensoria Pública transforma o debate pro-
posto em demanda judicial, promovendo a entrada do Movimento Social nas cortes de jus-
tiça. O debate dentro do sistema jurídico lida com filtros mais exigentes do que o debate
promovido pelos Movimentos Sociais no sistema político, como, por exemplo, a legitimida-
de para ação/agasalho processual, e tudo isso pode dificultar o encaminhamento do confli-
to ao tribunal. Assim, utilizando de sua especialidade e conhecimento técnico, a Defensoria
Pública pode assegurar mecanismos jurídicos necessários para a demanda em juízo.
No âmbito do acesso aos benefícios jurídicos de uma forma geral, a Defensoria
Pública pode fornecer orientação jurídica qualificada, mobilizando canais de divulgação
organizada da demanda social pretendida e atuando, ainda, como conciliadora em situ-
ações de conflito.
Os Movimentos Sociais, por sua vez, garantem o crescimento social da Defensoria
Pública, fortalecem a constituição da importância da instituição, confere-lhe a notorie-
dade por vezes necessária para que ocorra o reconhecimento político de sua importância
e, assim, indiretamente, se alcancem maiores possibilidades de investimento.
É como se a demanda apresentada pelos Movimentos Sociais implicasse numa
ampliação dos horizontes da Defensoria Pública, forçando que a instituição melhor se
organize e se especialize para acolher esta demanda, passando a atuar mais incisivamen-
te em casos mais complexos que resultam, muitas vezes, em impactos de transformações
sociais bem mais profundos e extensos do que simples processos individuais.
O segundo ponto que fez levantar esta reflexão foi a utilização da situação demons-
trada por Campilongo (2011) na pesquisa Assistência Jurídica Popular: serviços legais em São
Bernardo do Campo, que compara os dois grupos prestadores de assistência jurídica na
cidade de São Bernardo do Campo, em São Paulo, ali denominados serviços legais tra-
dicionais, exercidos pela OAB, e serviços legais inovadores, exercidos gratuitamente por
advogados do sindicato.
Tomando como referência a análise feita sob a situação de São Bernardo, hipoteti-
camente, compara-se o serviço legal tradicional como aquele exercido pelas Defensorias
Públicas, e o serviço legal inovador como aquele exercido pelos Movimentos Sociais.
322
Novos Caminhos Traçados para a Concretização do Direito de Acesso à Justiça:
a relação entre Defensoria Pública e movimentos sociais será um caminho?
359. Segundo dados do III Diagnóstico das Defensorias Públicas no Brasil (2009) quanto ao perfil do De-
fensor Público: “A maioria é formada em Universidades Privadas, sendo que entre os Defensores Públicos
da União, 59,17% se formou após 2001. entre os Defensores Públicos da União, 53,75% possui especialização
e entre os Defensores Públicos das unidades da federação, 50,34% possuem. Uma parcela significativa dos
Defensores Públicos está fazendo curso de especialização. no entanto, as proporções são muito diferentes
entre as unidades da federação”. (BRASIL, 2009, p.264).
360. Ainda, conforme dados do III Diagnóstico das Defensorias Públicas no Brasil (2009) quanto a atuação
da Defensoria Pública: “As Defensorias Públicas atenderam 42,72% das comarcas. As unidades da federação
pertencentes às classes com IDH baixo atenderam 34,99% das comarcas, os de IDH médio baixo atenderam
15,55%, os de IDH médio alto atenderam 22% e os do alto atenderam 27,45%. A maioria das Defensorias Públi-
cas atua em todas as áreas. as áreas de regularização fundiária, Direitos Humanos e Direitos coletivos foram
as áreas com menor número de Defensoria Públicas atuantes”. (BRASIL, 2009, p. 260).
323
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
Não se pode dizer o que é mais relevante. Tanto a consciência dos direitos in-
dividuais presentes nas demandas da OAB361 quanto a consciência do direitos
coletivos notada pelo Sindicato362 reforçam o mesmo fenômeno, ou seja, setores
da base pirâmide social – que compõem parte significativa da clientela – ganham
“talvez pela primeira vez, consciência dos seus direitos, de serem cidadãos”.
(CAMPILONGO, 2011, p. 44).
Do exposto até aqui, inevitável concluir que, para além das dificuldades apresenta-
das, a união da Defensoria Pública e dos Movimentos Sociais através de ações conjuntas
pode, desta maneira, aumentar o espaço de manifestação democrática de construção de
cidadania.
Entretanto, seguindo com a reflexão já proposta, é necessário analisar até que
ponto a Defensoria Pública está apta para lidar com os conflitos trazidos pelos Movi-
mentos Sociais e como garantir o comprometimento da instituição com a solução destas
demandas.
Os Movimentos Sociais levantam, em sua maioria, demandas cuja solução exige
não apenas uma decisão judicial, busca-se, como dito, transformação da sociedade e isto
implica impactos na área política, econômica e social. O direito, no seu sentido estri-
tamente dogmático-legalista, muitas vezes, está aquém destas questões demandadas, o
que exige, então, a construção de um constante trabalho de ampliação dos horizontes
jurídicos.
Como mencionado anteriormente, é relevante que se encontre confiança nas ins-
tituições que serão porta de acesso a estas demandas. Assim, para que a relação entre
Defensoria Pública e Movimentos Sociais se solidifique como um novo caminho a ser
traçado para a concretização do acesso à justiça, a Defensoria Pública necessita construir
esta credibilidade institucional junto aos Movimentos Sociais.
A instituição, o Defensor Público, não pode substituir o interesse do Movimento
Social, isto é, não pode querer dizer o que é ou não direito (até porque muitas vezes o
direito pretendido pelos Movimentos Sociais exige que seja paulatinamente construído),
“[...] não pode arrogar-se a posição de condutor da clientela” (CAMPILONGO, 2011, p.
46). Ela tem que ser um canal de compreensão da vontade do Movimento Social, ou seja,
conhecer o anseio da sociedade e a partir deste, aliar o seu conhecimento e experiência
em uma relação de coordenação. Para ser instrumento de confiança, a Defensoria Pú-
blica não pode tentar exercer qualquer papel hierárquico, mas deve caminhar junto à
sociedade civil.
361. Leia-se OAB como Defensoria Pública, conforme a linha de raciocínio apresentada neste ensaio.
362. Leia-se Sindicato como Movimentos Sociais, conforme a linha de raciocínio apresentada neste ensaio.
324
Novos Caminhos Traçados para a Concretização do Direito de Acesso à Justiça:
a relação entre Defensoria Pública e movimentos sociais será um caminho?
Após uma breve análise quanto aos novos caminhos traçados para a concretização
do direito de acesso à justiça, pode-se concluir que a relação entre Defensoria Pública e
Movimentos Sociais é um dos caminhos mais promissores a este direito.
Inegável que a sociedade de hoje não pode fechar os olhos para as novas deman-
das sociais que surgem em diferentes pontos e sob diferentes conflitos, e o direito, por
sua vez, sendo um produto desta sociedade, é afetado direta e profundamente com estas
mudanças.
Por mais que o Poder Judiciário venha se tornando um palco para as demandas
dos Movimentos Sociais, e que isto importe em seu desenvolvimento das mais variadas
325
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
maneiras, é necessário que se conjugue mais eficazmente serviços legais alternativos que
promovam a difusão e empoderamento dos direitos, criando maneiras de construção de
uma cultura jurídica democrática e de busca de soluções que impactem o desenvolvimen-
to social.
Um olhar crítico ao papel da Defensoria Pública na sociedade contemporânea não
visa reduzir a importância desta instituição democrática, mas sim pode levar a questio-
namentos de como efetivar concretamente o direito de acesso à justiça por parte dos Mo-
vimentos Sociais e, a partir daí, alcançar tanto o fortalecimento da instituição como dos
Movimentos Sociais. Ou seja, a ligação entre Movimentos Sociais e Defensoria Pública
refletirá resultados positivos na medida em que cada um deles, exercendo seu papel indi-
vidual: um articulando grupos organizados, pessoas e segmentos os mais diferenciados,
e o outro, transformando estas demandas em ações judiciais e extrajudiciais plenamente
realizáveis, mas ambos na intenção única de não apenas revelar o teor dos principais pro-
blemas sociais presentes no Brasil, mas de produzir modificações do processo de cons-
trução e desenvolvimento da sociedade.
Neste sentido, parafraseando Santos (2011), a Defensoria Pública deve assumir sua
quota-parte de responsabilidade na promoção das demandas trazidas pelos Movimentos
Sociais, trabalhando conjuntamente com eles, sob pena de se ver premida pelo seguinte
dilema: (i) não assumindo sua quota-parte de responsabilidade continuará sendo inde-
pendente do ponto de vista corporativista, mas será cada vez mais irrelevante tanto so-
cial como politicamente; (ii) em assumindo, aumentará o nível de tensão e conflito, tanto
internamente quanto com os outros Poderes.
Cada vez mais, a Defensoria Pública deve sair do isolamento em busca da articula-
ção com os Movimentos Sociais de modo a garantir uma transformação efetiva no acesso
à justiça, na medida em que, ao invés de esperar que a população encontre o caminho
da Defensoria Pública como porta de acesso à justiça, a Defensoria Pública, plenamente
articulada, saia em busca da população, optando por uma concepção contra-hegemônica
de direitos.
Na verdade, o que se pretende com esta reflexão é apontar que o caminho a ser
seguido pelas Defensorias Públicas não pode ser o caminho da tradição arcaica de ins-
tituições jurídicas presas ao dogmatismo e legalismo, muito pelo contrário, o caminho
deve ser aquele já assinalado por Cappelletti e Garth (1988) quando afirmam que aliar a
assessoria jurídica a outras medidas é a melhor proposta de reforma para o problema da
representação e defesa eficiente dos interesses difusos.
O problema da concretização do direito ao acesso à justiça como visto, não está
mais no texto escrito, não passa por questões de simples mudanças legislativas, mas
na maneira como os instrumentos existentes são efetivados. Assistência jurídica não
326
Novos Caminhos Traçados para a Concretização do Direito de Acesso à Justiça:
a relação entre Defensoria Pública e movimentos sociais será um caminho?
significa apenas representação perante os Tribunais, mas, também, auxílio para tornar
as pessoas mais ativamente participantes das decisões básicas que afetem suas vidas.
A relação entre Defensoria Pública e Movimentos Sociais, ainda que em estágio
de desenvolvimento, delineia-se como um dos caminhos mais eficazes para a concreta
promoção do acesso à justiça.
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A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
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SANTOS, Boaventura Souza. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Pau-
lo: Cortez, 2008.
_____. Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo: Cortez, 2011.
328
DEFENSORIA PÚBLICA, INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DO
ACESSO UNIVERSAL E INTEGRAL À JUSTIÇA; INSTITUIÇÃO
ESSENCIAL AO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Rodrigo Zoccal Rosa363
363. natural de São Paulo, é formado pela Faculdade de Direito de Bauru-SP e especialista em Direito Penal
e Processo Penal. Aprovado, em 2003, no XIII Concurso público de provas e títulos, ingressou na Defensoria
Pública de Mato Grosso do Sul, onde atuou em diversas comarcas do Estado, estando, atualmente titular da
1ª. Defensoria Pública de Caarapó, com atribuição nas áreas cível, criminal, júri, execução penal e infância e
juventude. Defensor Público de 2ª. entrância, lecionou por três anos na Universidade Estadual de Mato Gros-
so do Sul, (UEMS), nas cadeiras Direito Civil, Filosofia do Direito e História do Direito. É, também, repre-
sentante titular da Defensoria Pública Geral do Estado do Mato Grosso do Sul junto ao CONDEGE (Conselho
Nacional dos Defensores Públicos Gerais) na Comissão da Infância e Juventude; membro representante da
Defensoria Pública Geral do Estado do Mato Grosso do Sul, como membro titular, do Comitê Gestor Estadual
para a Erradicação do Sub-registro Civil de Nascimento e Ampliação do Acesso à Documentação Básica de
Mato Grosso do Sul (CEERASD/MS); foi, ainda, membro da Comissão de elaboração do regimento interno
do Comitê Gestor Estadual para a Erradicação do Sub-registro Civil de Nascimento e Ampliação do Acesso à
Documentação Básica de Mato Grosso do Sul e membro integrante da Comissão Especial para elaboração e
estruturação administrativa e funcional da Escola Superior da Defensoria Pública do Estado do Mato Grosso
do Sul. Por fim, foi nomeado pelo Conselho Nacional dos Defensores Públicos Gerais, para função de Se-
cretário Executivo na Comissão da Infância e Juventude, biênio 2011/2013. É, atualmente, representante da
Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso do Sul junto à UNICEF.
329
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
Assim, a Defensoria Pública, Instituição essencial nesta nova ótica constitucional de uni-
versalização da Justiça tem fundamental papel no fortalecimento do Estado Democrático
de Direito, sendo, por isso, premente sua isonomia, no mais amplo espectro, com as de-
mais instituições atuantes no âmbito jurídico.
Abstract: In this paper, we argue the importance of the Public Defender as a tool for the
real and full access to justice those who, economically disadvantaged, have no conditions
to provide the costs and burdens of justiciability of disputes.
The universal access to justice must be real and not merely formal way. This step is that
the Citizen Constitution of 1988 called for in article 134, the Public Defender’s Office as
an institution essential to the jurisdictional function of the State. This, responsible for
legal guidance and advocacy at all levels, the needy, providing, these full and free legal
assistance pursuant to subparagraph LXXIV, Article 5. The Federal Constitution.
Thus, the Public Defender, essential institution in this new constitutional perspective of
universal justice is fundamental in strengthening the democratic rule of law and is the-
refore pressing their equality in the broader spectrum, with other institutions working
in the legal framework.
330
Defensoria Pública, Instrumento de Efetivação do Acesso Universal e
Integral à Justiça; Instituição Essencial ao Estado Democrático De Direito.
364. Artigo 134: A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe
a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV.
331
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
332
Defensoria Pública, Instrumento de Efetivação do Acesso Universal e
Integral à Justiça; Instituição Essencial ao Estado Democrático De Direito.
de Segurança Pública com Cidadania), com ações como “Assistência Jurídica Integral ao
Preso e seus Familiares”, “Efetivação da Lei Maria da Penha” e “Justiça Comunitária”.
A importância da Defensoria Pública para a construção de uma sociedade mais
justa e igualitária foi reconhecida pela sociedade e pelas entidades públicas e privadas
ao término da I Conferência Nacional de Segurança Pública realizada neste ano, na qual
foram aprovadas diretrizes de fortalecimento da Defensoria como instrumento viabili-
zador do acesso universal à justiça e à defesa dos hipossuficientes.
Nesse contexto, o III Diagnóstico da Defensoria Pública torna-se instrumento
fundamental para avaliar os avanços da Instituição e mapear os obstáculos a serem en-
frentados.
Os dados técnicos desse estudo se consubstanciam também em importante instru-
mento para sensibilizar os Estados de toda federação sobre a premente necessidade de
maiores investimentos e da ampliação dos quadros de Defensores Públicos366.”
Termina, a introdução do, então, Ministro de Estado da Justiça, Tarso Genro, no
Diagnóstico, com as seguintes palavras:
366. III Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil. Ministério da Justiça. Brasil. 2009.
367. Op cit.
368. Filho. Manoel Gonçalves Ferreira. Aspectos do Direito Constitucional Contemporâneo.
333
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
334
Defensoria Pública, Instrumento de Efetivação do Acesso Universal e
Integral à Justiça; Instituição Essencial ao Estado Democrático De Direito.
335
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
que organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e pres-
creve normas gerais para sua organização nos Estados.
Com as conquistas vêm, também, as atribuições. O rol de atuação legal da Defen-
soria Pública tem aumentado, exigindo, deste modo, maior e melhor estrutura funcional,
que passa, necessariamente, pela posse, por concurso público de provas e títulos, de um
número crescente de defensores públicos, locação e aquisição de imóveis para abrigar
as Defensorias Públicas, muitas delas especializadas, como as Defensorias da infância e
juventude, cíveis, criminais, de atendimento ao consumidor, de atendimento de mulhe-
res vítimas de violência doméstica, dentre tantas outras, além da estruturação material
e tecnológica.
Analisando historicamente, a Defensoria Pública tem “nascimento” recente, com a
Constituição Federal de 1988, conquanto, em alguns Estados da Federação, como o Esta-
do do Mato Grosso do Sul, a mesma já existia quando do advento da Constituição Cidadã,
ainda que com outra nomenclatura.
Os avanços têm sido evidentes, porém de modo desproporcional entre os Estados
do Brasil e em descompasso com o vultoso crescimento de demandas que chegam às
Defensorias dos Estados.
Por razões tais, fazem-se urgentes maiores investimentos e a efetivação da auto-
nomia financeira, legalmente consagrada para que possa, enfim, a Defensoria Pública,
realizar sua verdadeira função social: a assistência jurídica irrestrita e efetiva aos consi-
derados hipossuficientes.
336
Defensoria Pública, Instrumento de Efetivação do Acesso Universal e
Integral à Justiça; Instituição Essencial ao Estado Democrático De Direito.
“Lei 8.742, de 30‑11‑2005, do Estado do Rio Grande do Norte, que ‘dispõe sobre
a contratação temporária de advogados para o exercício da função de defensor
público, no âmbito da Defensoria Pública do Estado’. A Defensoria Pública se
revela como instrumento de democratização do acesso às instâncias judiciárias,
337
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
Nesta mesma seara, o Ministro Celso de Mello, expõe que: “A Defensoria Pública,
enquanto instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, qualifi-
ca‑se como instrumento de concretização dos direitos e das liberdades de que são titu-
lares as pessoas carentes e necessitadas. É por essa razão que a Defensoria Pública não
pode (e não deve) ser tratada de modo inconsequente pelo Poder Público, pois a proteção
jurisdicional de milhões de pessoas – carentes e desassistidas –, que sofrem inaceitável
processo de exclusão jurídica e social, depende da adequada organização e da efetiva ins-
titucionalização desse órgão do Estado. De nada valerão os direitos e de nenhum signi-
ficado revestir‑se‑ão as liberdades, se os fundamentos em que eles se apoiam – além de
desrespeitados pelo Poder Público ou transgredidos por particulares – também deixarem
de contar com o suporte e o apoio de um aparato institucional, como aquele proporcio-
nado pela Defensoria Pública, cuja função precípua, por efeito de sua própria vocação
constitucional (...), consiste em dar efetividade e expressão concreta, inclusive mediante
acesso do lesado à jurisdição do Estado, a esses mesmos direitos, quando titularizados
por pessoas necessitadas, que são as reais destinatárias tanto da norma inscrita no art.
5º, LXXIV, quanto do preceito consubstanciado no art. 134, ambos da CR. Direito a ter
direitos: uma prerrogativa básica, que se qualifica como fator de viabilização dos demais
direitos e liberdades – Direito essencial que assiste a qualquer pessoa, especialmente
àquelas que nada têm e de que tudo necessitam. Prerrogativa fundamental que põe em
evidência – Cuidando‑se de pessoas necessitadas (...) – A significativa importância jurí-
dico‑institucional e político‑social da Defensoria Pública.376”
Com criação da Defensoria Pública pelos Estados, as atribuições de atendimento
e assistência judicial e extrajudicial do hipossuficiente, de modo individual passa a ser
exclusiva da Defensoria Pública e de seu órgão de atuação, qual seja, do Defensor Público,
sendo concorrente, na atuação coletiva.
O artigo Art. 1º, da Lei Complementar 80/94, expressamente prevê que “a De-
fensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado,
375. (ADI 3.700, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 15‑10‑2008, Plenário, DJE de 6‑3‑2009.)
376. (ADI 2.903, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 1º‑12‑2005, Plenário, DJE de 19‑9‑2008.)
338
Defensoria Pública, Instrumento de Efetivação do Acesso Universal e
Integral à Justiça; Instituição Essencial ao Estado Democrático De Direito.
Ainda:
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A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
340
Defensoria Pública, Instrumento de Efetivação do Acesso Universal e
Integral à Justiça; Instituição Essencial ao Estado Democrático De Direito.
Neste diapasão, na medida em que há evolução social novos anseios e novos con-
flitos de interesses surgem.
Como modo de pacificação social, o direito, enquanto conjunto de normas regu-
ladoras do convívio em sociedade, deve, também, evoluir e se desenvolver para melhor
solução destes anseios e pacificação dos conflitos.
É a partir da Revolução Francesa, em 1789, que a idéia dos direitos humanos tomou
dimensão, passando a, historicamente, ser visto e analisado em diversas “gerações”.
Como resultado da reação da população contra a ingerência e opressão desta pelo
Estado, surgiram os chamados “Direitos Humanos de Primeira Geração”. Para estes, há o
dever de um não-fazer, de abstenção do Estado, frente a alguns direitos, como liberdade.
Passou-se a entender o direito de liberdade como regra a qualquer cidadão e não mera
concessão do Estado.
Os de segunda geração, ao contrário, surgiram da necessidade de que o Estado
atue, atenuando as desigualdades acentuadas, em grande parte, pela Revolução Indus-
trial. O Estado deve, então, efetivar a igualdade, até então formal, promovendo e reco-
nhecendo direitos como de assistência, de cultura e outros denominados direitos sociais.
É nesta fase da história evolutiva do direito que surge a mentalidade jurídica de
interesses de dimensão coletiva.
Há autores que afirmam a existência, hoje, de Direitos Humanos e quinta geração,
como o Direito à Paz.
Assim, para se compreender a verdadeira função finalística do Direito Coletivo
que não raras vezes, tutela direitos ligados direta e essencialmente à vida, saúde, consu-
mo, educação e cidadania de pessoas marginalizadas e desprovidas economicamente, é
oportuno não se olvidar de que esta população, à margem do poder de consumo capitalis-
ta, é, também, segregada do exercício dos direitos fundamentais à sua condição humana.
São estes seres humanos que são cotidianamente atendidos nas Defensorias Pú-
bicas do Brasil; são estes que procuram abrigo no seio desta Instituição que nasceu para
acolhê-los e provê-los, tirando-os da margem jurídica e, porque não, social.
A visão para aqueles que vêem e atuam no Direito Coletivo deve ser macro, cole-
tiva, agregadora, democrática e histórica. Nesta óptica, não há espaço para a ilegitimi-
dade ativa da Defensoria Pública, como algumas teses parciais contrariamente preten-
dem, para a propositura de ações desta natureza, seja pela expressa disposição legal,
seja pelo reflexo ontológico de tais direitos que se unem, congruentemente, aos Direitos
Humanos e garantias fundamentais dos quais, historicamente, os excluídos não pos-
suem direito.
341
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
4. CONCLUSÃO.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
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Defensoria Pública, Instrumento de Efetivação do Acesso Universal e
Integral à Justiça; Instituição Essencial ao Estado Democrático De Direito.
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NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 4.ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Fo-
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343
A ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA COMO INSTRUMENTO DE
APLICAÇÃO DAS GARANTIAS PROCESSUAIS PENAIS
Vinícius Paulo Mesquita378
Resumo: O presente artigo busca analisar, à luz da teoria geral do garantismo, o papel
exercido pela Defensoria Pública enquanto instituição pública autônoma destinada
à promoção dos Direitos Humanos e como um instrumento de aplicação e respeito às
garantias processuais penais, em especial o direito ao devido processo legal, nele incluídas
as cláusulas do contraditório e da ampla defesa. Sua abordagem percorre sucintamente
as acepções do termo garantismo penal e as funções institucionais típicas e atípicas
da Defensoria Pública, com o foco voltado ao patrocínio da defesa do réu no processo
penal, à luz da Constituição Federal, leis infraconstitucionais e tratados internacionais
de Direitos Humanos.
Abstract: This article seeks to examine, in the light of the general theory of guaranteeism,
the role played by the Public Defender’s Office as an autonomous public institution for the
promotion of human rights and as an instrument to implement and respect the criminal
procedural guarantees, in particular the right to due process legal clauses included
therein and the adversarial legal defense. His approach goes briefly the meanings of the
term guaranteeism criminal and institutional functions typical and atypical of the Public
Defender’s Office, with the focus on sponsoring the defense of the accused in criminal
proceedings in the light of the Constitution, laws and international treaties of Human
Rights.
378. Ex-Professor Substituto de Direito Processual Civil e Direito Processual Penal da Fa-
culdade de Direito da UFJF; Foi Procurador do Município de Juiz de Fora e Delegado de
Polícia no Estado de Minas Gerais. Atualmente é Defensor Público no Estado de Minas
Gerais, em atuação na Defensoria Cível, Fazendária e Direitos Coletivos da comarca de
Ipatinga/MG. é professor de Direito Processual Civil e Direito do Consumidor na Facul-
dade Pitágoras de Ipatinga e em vários cursos preparatórios para concursos públicos e
OAB nos Estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro. Autor do livro “Processo Civil – Teoria
e Questões Comentadas”, publicado pela editora Ferreira.
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A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
1. INTRODUÇÃO
Processo devido é aquele processo que respeita todas as garantias materiais e pro-
cessuais, de modo a entregar ao jurisdicionado uma prestação célere, justa e adequada.
O devido processo legal deve garantir decisões formais e materialmente legais e justas.
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A Atuação da Defensoria Pública como Instrumento de Aplicação das Garantias Processuais Penais
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A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
“Ao estabelecer o princípio da proteção judiciária, dispondo que ‘a lei não exclui-
rá da apreciação do Pode Judiciário lesão ou ameaça a direito’ (art. 5º, XXXV, da
CF), a Constituição eleva a nível constitucional os direitos de ação e de defesa,
face e verso da mesma medalha. E mais: dá conteúdo a esses direitos, pois não se
limita a permitir o acesso aos tribunais, mas assegura também, ao longo de todo
o iter procedimental, aquele conjunto de garantias constitucionais que, de um
lado, tutelam as partes quanto ao exercício de suas faculdades e poderes proces-
suais e, do outro, são indispensáveis ao correto exercício da jurisdição: trata-se
das garantias do devido processo legal (art. 5º, LIV, da CF).
Passando a especificar analiticamente tais garantias, a Constituição assegura
aos litigantes e aos acusados em geral o contraditório e a ampla defesa, com os
meios e recursos a ela inerentes (art. 5º, LV, da CF). Defesa e contraditório estão
indissoluvelmente ligados, porquanto é do contraditório (visto em seu primeiro
momento, da informação) que brota o exercício da defesa; mas é essa – como
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A Atuação da Defensoria Pública como Instrumento de Aplicação das Garantias Processuais Penais
Art. 5º (...)
LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que com-
provarem insuficiência de recursos;
Em seu clássico ensaio sobre o acesso à justiça, Mauro Cappelletti e Brian Garth
identificaram a garantia do acesso à justiça pelos pobres como a primeira e mais impor-
tante renovação a ser implementada pelos Estados para efetivar plenamente o princípio
do acesso à justiça.
“Os primeiros esforços importantes para incrementar o acesso à justiça nos paí-
ses ocidentais concentraram-se, muito adequadamente, em proporcionais servi-
ços jurídicos para os pobres.” (GARTH, Bryant; CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à
Justiça. trad. Ellen Gracie Northfleet. Sérgio Antônio Fabris Editor. Porto Alegre,
1998. p.p. 31/32.)
No Brasil, como se verifica pela redação do art. 134 da Carta Política, o patrocínio
desta garantia cabe a uma Instituição Autônoma:
349
A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
Como mencionado, para ser considerado devido, o processo penal deve observar
uma série de garantias. A fiel observância destas garantias processuais penais forma
uma das bases da teoria do garantismo penal.
Quem melhor estruturou e definiu o conceito e extensão de “garantismo penal” foi
Luigi Ferrajoli, que em Direito e Razão indica que o termo garantismo compreende três
acepções distintas: um modelo normativo de direito, uma teoria jurídica onde vigência e
validade apresentam-se como categorias jurídicas diversas e, por fim, uma filosofia polí-
tica que exige do Direito e do Estado justificação externa.
350
A Atuação da Defensoria Pública como Instrumento de Aplicação das Garantias Processuais Penais
“Dentro dessa íntima relação entre o Direito Penal e o processo penal, deve-se
apontar que ao atual modelo de Estado Democrático de Direito, corresponde um
processo penal igualmente constitucional e democrático. Só um processo penal
que, em garantia dos direitos do imputado, minimize os espaços impróprios da
discricionariedade judicial pode oferecer um sólido fundamento para a indepen-
dência da magistratura e ao seu papel de controle da legalidade do poder”. (LO-
PES JUNIOR, Aury. Fundamento da Existência do Processo Penal: Instrumen-
talidade Constitucional. Material da 2ª aula da Disciplina Teoria do Garantismo
Penal, ministrada no Curso de Especialização TeleVirtual em Ciências Penais –
Universidade Anhanguera-Uniderp|REDE LFG.)
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A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
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A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
cesso legal, que inclui obviamente a plena defesa técnica, e sabendo que o Estado assu-
miu para si o monopólio da função jurisdicional, é preciso reconhecer que o Estado deve
assumir a obrigação de propiciar, a qualquer pessoa acusada criminalmente, uma defesa
técnica efetiva, desempenhada por profissional legalmente habilitado para tanto.
Esta obrigação, a despeito da ausência de previsão no texto constitucional, encon-
tra amparo no art. 261 do Código de Processo Penal Brasileiro:
Art. 261. Nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou
julgado sem defensor.
Parágrafo único. A defesa técnica, quando realizada por defensor público ou
dativo, será sempre exercida através de manifestação fundamentada. (Incluído
pela Lei nº 10.792, de 1º.12.2003)
E de maneira ainda mais abrangente e clara, ganha expressa previsão no art. 8º, 2,
“e” da Convenção Americana de Direitos Humanos380:
380. Vale registrar que, segundo orientação do STF (RE 466.343, 349.703 e HC 87.585 e 92.566), os Tratados
Internacionais de Direitos Humanos celebrados pelo Brasil, anteriores à EC 45/04 ou que não tenham sido
ratificados pelo quórum qualificado das emendas constitucionais possuem status normativo de norma supra
legal. Este o caso da Convenção Americana, mais conhecida como Pacto de San Jose da Costa Rica.
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A Atuação da Defensoria Pública como Instrumento de Aplicação das Garantias Processuais Penais
Art. 3º-A. São objetivos da Defensoria Pública: (Incluído pela Lei Complementar
nº 132, de 2009).
I – a primazia da dignidade da pessoa humana e a redução das desigualdades
sociais; (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009).
II – a afirmação do Estado Democrático de Direito; (Incluído pela Lei Comple-
mentar nº 132, de 2009).
III – a prevalência e efetividade dos direitos humanos; e (Incluído pela Lei Com-
plementar nº 132, de 2009).
IV – a garantia dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditó-
rio. (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009).
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A Defensoria Pública dos Estados e o Acesso à Justiça
3. CONCLUSÃO
Após tudo que fora visto, podemos concluir que, diante de um processo que coloca
em jogo um dos mais caros direitos do homem – a liberdade – o acusado é visto por todos
como um delinquente à margem da sociedade, um ser repugnante que deve receber a
mais dura das reprimendas, de modo a retirá-lo do convívio dos “civilizados”.
Em meados do século passado, Carnelutti já havia percebido esta realidade e es-
creveu que:
“Pode haver uma forma mais expressiva de incivilidade do que considerar uma
pessoa como uma coisa? Lamentavelmente, é isso o que acontece nove, entre dez
vezes no processo penal. Na melhor das hipóteses, aqueles que as pessoas veem
trancafiados nas jaulas dos tribunais, como animais de um jardim zoológico, são
considerados como pessoas fictícias, não como seres humanos partícipes de uma
triste realidade. Se alguém os considera humanos, os vê como seres de uma raça
inferior, de um mundo estranho ao seu.” (CARNELUTTI, Francesco. As misérias
do processo penal. Servanda. Campinas: 2012, p.p. 13/14.)
“Dotado dos mesmos poderes da acusação pública sobre a polícia judiciária e ha-
bilitado à coleta das contraprovas, ele garantiria todavia uma efetiva paridade
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A Atuação da Defensoria Pública como Instrumento de Aplicação das Garantias Processuais Penais
Portanto, o acesso de todo acusado à Defensoria Pública deve ser visto como uma
alternativa ao próprio acesso à justiça, privilegiando os princípios processuais-consti-
tucionais, assegurando a obediência ao devido processo legal e às garantias processuais
penais.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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