Sunteți pe pagina 1din 18

OMAR RIBEIRO THOMAZ

“Raça”,
nação
Este ensaio foi escrito a partir de
uma pesquisa mais ampla que,
desde 2001, conta com o apoio
da Fapesp. Nos últimos anos, e
em diferentes etapas da pesquisa,
contei também com o apoio da
Faepex (Unicamp) e da Fundação
Ford. Agradeço os comentários e

e status:
o entusiasmo de Lilia Schwarcz e
Sérgio Costa. Este texto, como
outros, não teria sido escrito sem a
interlocução constante de Sebastião
Nascimento.

histórias de
guerra
e “relações
raciais” em
Moçambique
OMAR RIBEIRO
THOMAZ é professor da
Unicamp, pesquisador do
Centro Brasileiro de Análise
e Planejamento e autor
de Ecos do Atlântico Sul.
Representações sobre o
Terceiro Império Português
(Editora da UFRJ).
E
I

m abril de 1992, o jornalista moçam-


bicano Machado da Graça respondeu,
no jornal Notícias de Maputo, à missiva que
sucedeu o debate no qual se reuniu com outros
intelectuais e políticos, como Leite de Vasconce-
los e Domingos Arouca. Tudo indica que o clima
que dominou o debate foi tenso: de um lado,
aqueles que, como Machado da Graça e Leite de
Vasconcelos, situavam-se num espectro políti-
co próximo ao Partido Frelimo1; de outro, o dr.
Domingos Arouca que, já na altura da transição
para a independência, procurou ser uma alterna-
tiva à frente liderada por Samora Machel, e que
naquele momento fazia parte do grupo que pro-
curava institucionalizar uma oposição ao partido
no poder, antes mesmo dos tratados de paz de
outubro de 1992 (Graça, 1996). O autor da mis-
siva, sr. Nhamite, em críticas aos simpatizantes
da Frelimo, questionou a relação dos cidadãos
de raça branca com o último conflito armado que
afligira o país. Teriam os senhores passado por
situações de nomadismo e fuga aos massacres,
abandonado suas casas e dormido no topo das
árvores? Não seria um privilégio a exclusão dos
brancos do serviço militar obrigatório?
1 Frente de Libertação de Mo-
Às duas questões, Machado da Graça respon- çambique. Protagonista da
guerra de libertação nacional
de com contundência. Não apenas os brancos (1964-74), assume o poder
em 1975 como partido único.
tiveram seus lares preservados ou foram poupa- A partir do início dos anos
90, transforma-se no principal
dos de uma ameaça física evidente, mas todos partido do país no processo
de consolidação do sistema
multipartidário.
aqueles que permaneceram nos centros urbanos.
2 Resistência Nacional Moçam-
Como sabemos, a fúria dos bandidos armados, bicana. Protagonista da guerra
de desestabilização do governo
logo identificados como guerrilheiros da Rena- da Frelimo estabelecido após a
independência, seus membros
foram inicialmente conhecidos
mo2, atingiu fundamentalmente as áreas rurais, como bandidos armados ou
matxangas. Desde os tratados
onde vivem cerca de 70% da população. Os mo- de paz de 1992, a Renamo
transformou-se no principal
çambicanos brancos, assim como boa parte dos partido político da oposição.

indianos e mestiços, habitavam normalmente os


254 REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 252-268, dezembro/fevereiro 2005-2006
núcleos urbanos, tendo sido, assim, pou- II
pados da faceta mais tenebrosa da guerra,
mas não das múltiplas carências dela resul-
tantes: “[…] quando em Maputo se comia Moçambique é um país de esmagado-
só repolho, em minha casa era repolho que ra maioria negra. Não estamos, contudo,
se comia, e, por vezes, nem isso” (Graça, diante de uma realidade homogênea, e uma
1996, p. 47). imensa diversidade expressa por referência
No que diz respeito ao serviço militar a língua, religião ou terra de origem marca
obrigatório, Machado da Graça afirma: o dia-a-dia dos moçambicanos. Fiquemos
por ora com uma clivagem que se sobrepõe
“A questão foi esclarecida há cerca de dois a todas as demais, aquela que distancia o
anos pelo presidente Chissano que declarou universo rural do urbano.
publicamente que o fato de brancos, india- A Tabela 1 procura discriminar o grupo
nos e mestiços não fazerem o serviço militar somático (termo usado no censo em Mo-
obrigatório não é porque a isso fujam, é çambique e que faz referência a “raça”) e
porque foi uma decisão do Comitê Central origem por área de residência. Os negros
da Frelimo. Foi segregação racial por falta constituem 99% da população total do
de confiança. Recordo-me de ter escrito, país, 99,5% da população rural e 97,6% da
aqui há uns anos, um artigo precisamente a urbana. Mistos, brancos e indianos estão,
reivindicar o direito de pessoas de todas as assim, concentrados fundamentalmente em
raças poderem servir nas forças armadas” áreas urbanas: se 0,1% da população rural
(Graça, 1996, p. 48). é mista, a presença estatística de brancos e
indianos fora das cidades é nula.
A distribuição desigual dos sofrimentos Se olhamos para as principais línguas
ao longo da recente guerra civil, bem como faladas no país (Tabela 2), damo-nos conta
a situação aparentemente privilegiada de da dimensão da clivagem existente entre o
determinadas minorias demográficas, são mundo rural e o mundo urbano3. Estima-se
temas que interferem constantemente no que cerca de 6,5% do total de moçambicanos
debate em torno dos critérios que devem tenham o português como língua materna,
definir aqueles que são os verdadeiros os quais correspondem a 17% do total dos
moçambicanos. O que para o missivista que habitam em zonas urbanas, e apenas 2%
seria um privilégio – a exclusão de bran- dos que se encontram na área rural. Com
cos, indianos e mestiços do serviço militar exceção dos falantes do xichangana, há um
obrigatório – para Machado da Graça, na- flagrante desequilíbrio do peso das línguas
cionalista convicto, consistiria sobretudo nacionais diante do português na relação
em discriminação, conseqüência da falta de urbano/rural, e o fato de 18,4% da população
confiança que os não-negros despertariam urbana do país ter como primeira língua o
na maioria negra do país: a suspeita, dolo- xichangana indica não apenas a existência
rosa para muitos, de que as minorias seriam de grandes cidades no sul do país, como
potenciais traidores do corpo nacional. Maputo, Matola e Xai-Xai, mas também
O que este ensaio pretende explorar são a predominância dos falantes dessa língua
as relações existentes entre raça, tempo entre os quadros preferenciais do Estado.
(história), espaço (urbano versus rural) Atentar para a principal língua falada
e a idéia de nação. Tal objetivo exige o escancara a ruptura entre o espaço do mato
enfrentamento de um universo freqüen- ou da machamba e o espaço urbano. 26,1%
temente denominado de relações raciais, dos habitantes das zonas urbanas declaram
convidando o leitor a suspender aquilo que ter como principal língua de comunicação 3 As línguas foram designadas
entende por “relação” e por “raça” com o português, enquanto esse número alcança segundo o padrão definido
pelo Núcleo de Estudos de
o propósito de se aproximar aos sentidos a cifra de 1,4% para os habitantes da zona Línguas Moçambicanas (Ne-
que esses termos ganham na realidade rural. Para o xichangana, o desequilíbrio limo), lígado à Universidade
Eduardo Mondlane (cf. Firmino,
moçambicana. se reproduz. É evidente: Maputo funciona 2002).

REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 252-268, dezembro/fevereiro 2005-2006 255


TABELA 1

População (%)
Grupo somático
Área de residência
e origem
Total Urbana Rural
Negro 99 97,6 99,5
Misto 0,45 1,4 0,1
Branco 0,08 0,2 0
Indiano 0,08 0,3 0
Outros 0,03 0,1 0
Desconhecidos 0,4 0,4 0,4

Nota: percentual calculado sobre o total de 15.278.400 habitantes, dos quais 4.454.900 na área urbana
e 10.823.500 na área rural.
Fonte: II Recenseamento Geral da População e Habitação, 1997, Instituto Nacional de Estatística (Tho-
maz & Caccia-Bava, 2001, p. 33).

como pólo de atração para os demais grupos do português como língua de comunicação
lingüísticos do país. Assim, é mais fácil um veicular.
falante de emakuwa dirigir-se para Maputo Não há dados relacionando grupo so-
do que um changana se deslocar para o norte mático e língua, mas podemos afirmar que
do país; enquanto um makuwa em Maputo a totalidade dos brancos moçambicanos
muito provavelmente acabe por aprender tem como primeira língua o português. Os
xichangana, um changana no norte fará uso indianos, bons conhecedores do português

TABELA 2

População (%)
Língua materna Língua falada
Língua
Área de residência Área de residência
Total Urbana Rural Total Urbana Rural
Português 6,5 17,0 2,0 8,8 26,1 1,4
Emakuwa 26,3 16,8 29,6 26,1 17,0 29,9
Xichangana 11,4 18,4 9,0 11,3 16,6 9,0
Elomwe 7,9 3,5 9,7 7,6 2,8 9,7
Cisena 7,0 6,3 7,3 6,8 5,6 7,3
Echuwabo 6,3 4,0 7,3 5,8 2,5 7,1

Outras línguas
33,0 32,0 33,5 32,0 27,5 33,9
moçambicanas

Outras línguas
0,4 0,6 0,3 0,3 0,4 0,3
estrangeiras

Nenhuma 0,1 0,1 0,1 0,1 0,1 0,1


Desconhecida 1,3 1,3 1,3 1,3 1,4 1,3

Nota: percentual calculado sobre o total de 12.536.800 habitantes, dos quais 3.757.700 na área urbana e 8.779.100 na área rural.
Fonte: II Recenseamento Geral da População e Habitação, 1997, INE (Thomaz & Caccia-Bava, 2001, p. 35).

256 REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 252-268, dezembro/fevereiro 2005-2006


e muito freqüentemente de alguma língua com um propósito revolucionário de um
nacional, teriam como língua materna “outra conjunto de atributos anteriormente asso-
língua estrangeira” – no caso, o híndi, o ciados à civilização.
urdu ou o gujarate. O trabalho de José Teixeira é revelador.
Os dados apresentados são indicativos de Quando no norte do país, entre os makuwas,
uma imensa fronteira que separa o mundo percebeu que o termo mkunya (branco; plu-
urbano do mundo rural: se os negros são ral akunya) era usado concomitantemente
maioria da população, no campo ou na para se referir a ele mesmo – antropólogo
cidade, o fato é que minorias decisivas no português, branco e estrangeiro – e aos ele-
universo social moçambicano, como os mentos da administração estatal e agentes
brancos, os mistos e os indianos, se fazem do partido Frelimo. Segundo Teixeira (2004,
presentes fundamentalmente na cidade. É p. 314), “essa denominação é aplicável a
na cidade que o português aparece como todos os indivíduos que sejam associáveis
língua materna de uma parte significativa à posse ou usufruto de símbolos corres-
da população e como língua veicular de pondentes a uma posição social urbana de
um número ainda maior de pessoas. Das algum relevo estatutário e/ou econômico.
línguas nacionais, se o emakuwa é o idioma A extensão do termo branco fá-lo cobrir
mais falado – e se faz presente não apenas um universo associável ao poder, um eixo
no campo mas em importantes cidades do urbano, estatal e monetarizado”. E mais,
norte do país –, o xichangana se destaca se, como lembra Teixeira e foi observado
por seu caráter também urbano, revelando por mim em Inhambane5 e por Peter Fry
a importância da deslocada capital no extre- (2000) no Chimoio, uma das clivagens a
mo sul do país e a sobre-representação dos separar os brancos dos pretos é o uso ou não
changanas em posições-chave da sociedade da feitiçaria, a permanência no mato pode
4 No final do século XIX, nota
Mouzinho de Albuquerque
e da política moçambicanas. transformar brancos em grandes feiticeiros, (1934, p. 67): “Os pretos
da Zambézia chamam mu-
O termo nativo para “branco” é extensivo os ma-guerra (Teixeira, 2004, p. 319). zungo (senhor) aos brancos
a todos aqueles que ostentem hábitos civi- A idéia de raça negra deve ser revista, e geralmente dão a mesma
denominação a todos os ho-
lizados: ao lado dos brancos e dos mistos, não apenas em função da sua fragmentação mens de chapéu, mesmo que
sejam pretos, como sucede por
os negros que se expressem adequadamente em etnias associadas em grande medida à exemplo com Ignácio de Jesus
em português e atuem como os citadinos profusão lingüística6, mas também como Xavier da Chicoa, uns Araújos
Lobos do Panhame e Romão de
são denominados pelos camponeses de conseqüência da aproximação entre todos Jesus Maria do Marral”.
mulungos, se no sul, e muzungos, quando aqueles que ostentem hábitos outrora as- 5 Em todos os relatos recolhidos
caminhamos rumo ao norte do país4. Mu- similados à civilização, mas na atualidade por mim entre indivíduos de
língua gitonga e xitshwa, na pro-
lungo ou muzungo são termos indicativos conectados a uma maior ou menor familia- víncia de Inhambane, um dos
grandes elementos a diferenciar
de uma posição social que se sobrepõem e ridade com o universo urbano. brancos e pretos era a suposta
incorporam a referência ao grupo somáti- De certa forma, podemos afirmar que imunidade dos primeiros ao
feitiço e sua ignorância quanto
co. Se todos os brancos são mulungos, aos uma grande oposição é característica do uni- à manipulação do mundo
dos espíritos. Saliente-se que
negros cabe esta possibilidade, pois uma verso de “relações raciais” em Moçambique tais afirmações nunca foram
minoria desde o período colonial podia se nos dias que correm, a qual foi construída e realizadas no sentido de afirmar
alguma sorte de superioridade
enquadrar na categoria de assimilado, a qual consolidada ao longo do período colonial: à dos pretos diante dos brancos,
não foi efetivamente superada no período oposição central existente entre “brancos” muito pelo contrário: os brancos
não fariam uso da magia e
pós-independência. E se o assimilado, ao versus “pretos”, sucederam-se outras, civili- seriam imunes ao feitiço em
função de sua superioridade.
longo de toda a história colonial, consistia zados versus selvagens, assimilados versus
6 Como lembra Firmino (2002,
em um negro que se aproximava efetiva- indígenas, citadinos versus camponeses. No p. 110), a língua constitui um
mente no núcleo do poder – sem se con- período colonial, a oposição traduzia um po- fator crucial na definição da
identidade étnica. A definição
fundir com ele –, nos anos que sucederam der político e econômico real, concentrado de fronteiras lingüísticas não
à independência passou a ocupar um lugar em portadores de uma distância simbólica significa, contudo, universos de
comunicação intransponíveis.
decisivo no funcionamento do aparelho de em relação ao continente africano; no pe- Geralmente, os moçambicanos
falam mais de uma língua
um Estado que não apenas adotou o portu- ríodo pós-colonial, e progressivamente, o autóctone, as quais podem ser
guês como língua oficial mas, no interior de poder político foi efetivamente transferido reunidas em grandes grupos
que favorecem a intercomuni-
um projeto marxista-leninista, apropriou-se para as mãos dos autóctones. No entanto, cação.

REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 252-268, dezembro/fevereiro 2005-2006 257


Período colonial

Poder Tutela
Brancos (metropolitanos e naturais) Pretos (autóctones)
Sujeitos da assimilação Objetos da assimilação
Civilizados (brancos e pretos assimilados) Indígenas (pretos)
Cidade Campo

Período pós-colonial

Poder estatal Poder local


Pretos (mulungos) Pretos
Citadinos (pretos) Camponeses
Estruturas Povo
Sujeitos do desenvolvimento Objetos do desenvolvimento

7 Por administração indireta


entendemos uma forma de
estruturação de poder colonial a oposição citadino versus camponês não Durante boa parte do período colonial
que incorpora e fixa as dife- fez mais que repor as anteriores. português, constituíam um grupo evidente-
renças entre os grupos étnicos
africanos, a qual foi aplicada Todos os demais grupos existentes em mente incômodo. O novo sistema colonial
com matizes em todas as colô-
nias africanas. Grosso modo,
Moçambique no período colonial – indianos, se impõe, por toda a África, a partir de uma
o poder local era exercido por mistos, gregos, chineses – se enquadravam linha de cor extremamente rigorosa, e em
uma “autoridade tradicional”,
que contava com o apoio do no pólo desenhado acima, distanciando-se, Moçambique esse processo não foi distin-
representante do Estado colo- evidentemente, do pólo da tutela, mas nem to. Como nos mostra Mahmood Mamdani
nial. Os indígenas eram, assim,
concomitantemente, atrelados a sempre sendo plenamente incorporados no (1996), a criação de duas classes políticas
um sistema jurídico definido por
sua pertença étnica, submetidos pólo do poder. Sobre os gregos e chineses de indivíduos – cidadãos de um lado, nas
a uma “autoridade tradicional” não me deterei neste texto, pois são co- cidades, e súditos de outro, no campo – foi
e presos a um determinado terri-
tório rural (Mamdani, 1996). munidades que fazem parte da memória: conseqüência da administração indireta im-
8 O antigo regime não foi poucas centenas de remanescentes ficaram posta à maioria nativa7. E esse processo se
responsável pela formação em Moçambique após a independência, deu, em grande medida, em meio a conflitos
de colônias no continente
africano como nas Américas e concentrados em poucos núcleos. Mistos e que percorreram distintas colônias africanas
no Caribe. Com exceção da
presença boer no extremo sul indianos, contudo, fazem parte da realidade e que implicaram a exclusão sistemática de
do continente, os assentamen- presente do país e, na atualidade, como no uma minoria de funcionários negros e mes-
tos europeus reduziam-se a
alguns milhares de indivíduos período colonial, introduzem um princípio tiços que há muito mantinham uma relação
distribuídos entre pequenos
núcleos urbanos em ambas
de desordem no quadro descrito acima. de compromisso com o legado europeu do
as costas (atlântica e índica), antigo sistema colonial8. No caso de centros
feiras e presídios – enclaves,
em suma, sempre submetidos urbanos como Lourenço Marques, Inham-
à hegemonia africana do
bane, Quelimane e a Ilha de Moçambique,
III
entorno, e geralmente atrelados
a atividades comerciais, em famílias fiéis à bandeira portuguesa e à pos-
especial o tráfico de escravos.
Ao longo de séculos, forma- sibilidade de civilização dos indígenas, na
ram-se sociedades crioulas Os classificados como mistos reúnem sua maioria mestiças, foram assim alijadas
marcadas fortemente pela
mestiçagem – núcleos como cerca de 0,45% da população total do país e, das estruturas de poder erguidas pelo novo
Saint Louis (Senegal), Ajudá
(Benin), Luanda e Benguela como indica a Tabela 1, estão concentrados sistema colonial. Se não estavam subme-
(Angola), Quelimane e Ilha de nas cidades, perfazendo 1,4% do total da tidas ao sistema de administração indireta,
Moçambique (Moçambique),
ou os arquipélagos atlânticos população urbana e apenas 0,1% da popu- foram completamente afastadas da própria
de Cabo Verde e São Tomé e
Príncipe. As elites locais nesses
lação rural. Se é evidente que são poucos estrutura de poder e, sobretudo, da função
enclaves eram geralmente numericamente (superiores, contudo, ao de sujeitos de qualquer tipo de processo de
mestiças e a possibilidade de
sua reprodução com o grupo número total de brancos moçambicanos), incorporação da massa nativa.
estava diretamente atrelada sua importância social não pode ser obli- O novo sistema colonial seria construído
aos laços que mantinham com
os centros europeus. terada. a partir de uma linha de cor que deplorava

258 REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 252-268, dezembro/fevereiro 2005-2006


qualquer forma de mestiçagem. Antigas colonial10 – tinha seu correspondente na
famílias mistas, como os Albasini, os Pott humilhação cotidiana dispensada aos mistos
ou os Fornazini, ver-se-iam assim numa situ- e assimilados11.
ação paradoxal: de um lado, identificavam-
se com a língua e a cultura portuguesas; de “Éramos muitos irmãos. Eu era mais clari-
outro, eram marginalizadas pelos portadores nha, e não costumava ter problemas. Mas
da civilização e cultura que admiravam. Es- meus irmãos… tinha um irmão muito escu-
sas famílias – conhecidas como tradicionais ro, muito mesmo. Ele era sempre barrado na
nos dias que correm – não foram alheias ao porta do cinema, ou impedido de se sentar 9 Em “Notas sobre os Judeus
processo descrito por Leo Spitzer (2001) no elétrico.” como Participantes de uma
Relação entre Estabelecidos
para as famílias Zweig, na Áustria, Rebou- – Outsiders”, Norbert Elias
(2001, p. 135) afirma: “Cultu-
ças, no Brasil, e May, na África Ocidental: “Quando fui contratada para trabalhar no ralmente muito ligado à tradição
viveram na pele os paradoxos da assimila- banco, fui a primeira mista. Alguns colegas, alemã, eu pertencia pela estrutu-
ra de minha personalidade a um
ção. Acreditavam que qualquer forma de nem me olhavam.” grupo minoritário desprezado.
[…] Embora estivesse isento
superação estaria ligada à assimilação ao de seu sinal distintivo mais
ambiente cultural e civilizacional europeu; Considerados cidadãos portugueses do manifesto, a religião, o destino
singular desta minoria – além
no entanto, a expansão colonial contempo- ponto de vista legal, mistos e assimilados disso perseguida e oprimida
rânea se faz em meio à consolidação das dificilmente podiam ascender na socieda- há séculos –, isto é, o destino
social do grupo exprimia-se
teorias raciais, que condenavam os grupos de colonial. Os cargos altos e médios da de maneira evidente tanto em
meu comportamento como na
humanos a sua herança biológica. Nesse burocracia estatal estavam reservados aos consciência que eu tinha de
processo, as famílias tradicionais mistas de brancos, assim como algumas categorias mim mesmo e no meu pensa-
mento. Mais tarde, incluí muitos
Lourenço Marques e outros núcleos urbanos profissionais, como os trabalhadores dos aspectos dessas experiências
em uma teoria sociológica,
transformam-se, no dizer de Norbert Elias caminhos de ferro. A dinâmica associativista a teoria das relações entre
(2000), em outsiders9: grupo social formado da sociedade urbana moçambicana, que grupos estabelecidos e grupos
outsiders. O problema dos ju-
a partir de um conjunto de processos sociais tinha que conviver com os limites impostos deus alemães era efetivamente
que acaba por lhe atribuir a condição de pelo fascismo salazarista, é reveladora das um problema de relações entre
grupos estabelecidos e grupos
inferioridade. fronteiras raciais existentes na colônia: os outsiders. Como muitos outros
grupos outsiders, os judeus
O historiador moçambicano José Mo- brancos metropolitanos organizavam clu- estavam excluídos, na Ale-
reira (1997) faz uma descrição preciosa dos bes e associações em grande medida em manha imperial, de toda uma
série de promoções sociais.
dilemas impostos a essas famílias mistas e função de sua adscrição profissional ou Existem muitos paralelos a
essa solidariedade dos grupos
assimiladas a partir da análise da atuação de sua origem regional metropolitana; os estabelecidos face aos outsiders
de João Albasini, em particular por meio brancos nascidos em Moçambique criaram e à exclusão desses últimos de
inúmeras situações reservadas
dos seus textos publicados nas primeiras a associação dos “naturais”; os mistos, o aos estabelecidos, à sua exclu-
décadas do século XX em O Brado Afri- grêmio africano; e os pretos assimilados, são das chances de poder que
elas oferecem”.
cano. Seu apego à monarquia lusitana ex- o instituto negrófilo…12.
10 O que Mandani (1996) definiu
pressava seu desprezo pelas promessas de O lusotropicalismo, com seu elogio à como “despotismo descentrali-
zado”.
uma república que, proclamada em 1910, mestiçagem, foi incorporado tardiamente
tentava dinamizar um processo colonial que como ideologia oficial (cf. Castelo, 1999; 11 Os indígenas que demonstras-
sem um conhecimento consi-
implicava a construção de fronteiras raciais Thomaz, 2002) e nunca alcançou, efetiva- derável da língua e da cultura
portuguesas podiam solicitar o
institucionais entre grupos humanos. mente, o universo social: os mistos, longe estatuto de “assimilados”, esta-
Tive a oportunidade de entrevistar de representarem um grupo dinâmico e riam livres dos trabalhos força-
dos, mas ver-se-iam obrigados
membros idosos de famílias tradicionais sujeitos de ascensão social, ocupavam os ao pagamento de impostos
em papel-moeda. O processo
de Maputo que possuíam lembranças vivas cargos médios e intermediários da limitada de assimilação era, contudo,
dos anos que sucederam à consolidação do sociedade colonial e urbana moçambicana. extremamente difícil, em grande
medida em função dos limites
Estado colonial em Moçambique, instituído Seu acesso aos estudos fez com que de do próprio Estado colonial. Em
1945, a população assimilada
em 1930, na esteira do Estado Novo fascista suas fileiras saíssem importantes vozes a de Moçambique era de apenas
de Salazar. Todos foram unânimes em afir- dar origem a discursos em torno da singu- 1.845 indivíduos, e em 1955,
era de 4.554 almas (Newitt,
mar que o tratamento violento dispensado laridade nacional moçambicana. Contudo, 1997, p. 441).
aos indígenas – submetidos a trabalhos a fronteira social não os separava somente 12 Para a gênese do associativismo
forçados e à estrutura de poder local de dos brancos, mas também dos pretos, que em Moçambique e sua relação
com o nativismo, ver: Rocha,
régulos legitimados pelo administrador os olhavam com desconfiança. Tal des- 2002.

REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 252-268, dezembro/fevereiro 2005-2006 259


confiança reproduziu-se no período pós- Saliente-se que sua presença entre os
colonial, e as famílias mistas, hoje como séculos XVII e XIX não se configurava
no período colonial, constituem ainda um no mesmo formato que na atualidade. Na
grupo social outsider. Ostentam hábitos e altura, indianos hindus, católicos (goeses)
costumes que os aproximam da elite negra e os muitas vezes denominados de mouros
urbana moçambicana e dos brancos, mas – indianos muçulmanos – faziam-se sentir,
não são nem negros nem brancos. Pequena sobretudo, a partir da distribuição de agentes
classe média, vêem suas possibilidades de entre os portos – Ilha de Moçambique, Rio
ascensão no mundo da política restritas de Sena, Quelimane, Beira e Inhambane – e
pelo fato de o país se afirmar mais e mais o interior. Donos de cantinas e armazéns,
como terra de pretos – “Portugal, terra freqüentemente amasiados com africanas,
de brancos, Moçambique, terra de pretos, os indianos acabam por se encarregar da
Brasil, terra de mulatos”, foi-me dito mais distribuição de produtos entre as empresas
de uma vez. Quando se expõem no frágil indianas, francesas, alemãs, inglesas, holan-
debate público nacional, correm o risco de desas e portuguesas que passam a disputar
ver sua moçambicanidade questionada: os fluxos comerciais na região. Entre finais
“mulato não tem bandeira”. do XVIII e primeiras décadas do XIX, se o
fluxo de oleaginosas e algodão e também de
ferro e ouro era controlado pelos indianos,
o comércio de escravos para o Brasil e para
IV os arquipélagos índicos estava nas mãos das
casas de Marselha, de uma elite crioula e
Interpretar a presença indiana em Mo- de senhores luso-brasileiros.
çambique no período contemporâneo exige A consolidação colonial portuguesa na
um rápido mergulho em sua história, que região far-se-á assim em meio a conflitos
nos dará boas pistas para pensarmos os pa- que opunham os novos colonizadores aos
radoxos que suscita sua reprodução como Estados-conquista africanos e aos senhores
grupo em diferentes países do continente e senhoras do tráfico de escravos. Mas a
– em especial, Quênia, Tanzânia, Uganda, África Oriental Portuguesa ver-se-á às vol-
Zâmbia, Zimbábue, Moçambique e África tas com outra sorte de conflitos: aqueles que
do Sul. De entrada, uma advertência: não opunham os novos interesses lusitanos ao
estamos diante de um grupo homogêneo, controle efetivo que os indianos exerciam
e os genericamente denominados “in- sobre as rotas comerciais que conectavam
dianos” ou “asiáticos” são divididos em a costa ao interior. À pacificação dos cha-
subgrupos perfeitamente percebidos pela mados indígenas se sobrepõe a necessidade
população local. urgente de neutralizar o grande capital india-
Encontramos registros da presença india- no, enraizado na região pela profundidade
na na costa moçambicana já nos séculos XVI temporal, extensão geográfica e, sobretudo,
e XVII (cf. Dias, 1992; 1998). Se pensamos em função de alianças e cumplicidades com
em regiões onde a presença portuguesa é as populações nativas13. E se as guerras
no mínimo contínua desde o século XVII, serviram para submeter efetivamente os
tais como a Ilha de Moçambique, a região indígenas destruindo suas lideranças (parte
da Zambézia e Inhambane, deparamo-nos das quais posteriormente incorporadas na
com um universo de relações que acabaram administração indireta), o conflito entre a
por opor os súditos do rei de Portugal aos administração portuguesa, os colonos e os
distintos núcleos indianos que, apesar de es- indianos não apenas reproduzirá tensões
tratégicos agentes comerciais, responsáveis seculares, como ganhará novos significados
pela circulação de todo tipo de mercadoria e ao longo do período colonial.
13 Sobre os indianos no final do monopolistas do apreciado tecido da região Tensões seculares porque tratava-se de
século XIX e primeiras décadas do Gujarate, em geral não eram considerados competição tenaz por rotas comerciais. Em
do século XX, ver: Leite, 1996;
Zamparoni, 2000. como fiéis vassalos da coroa. seu momento genético, o regime português

260 REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 252-268, dezembro/fevereiro 2005-2006


em Moçambique (e o britânico no Quênia, relativa tolerância com relação à presença
e o alemão na Tanganica) depara-se com indiana acabou por obedecer, embora não
o que podemos chamar de “colonialismos exclusivamente, a uma sorte de razão prá-
concorrentes”: efetivamente, os indianos, tica. Incapaz de evitá-los, ou substituí-los,
hindus e muçulmanos, controlavam, ao lado e reconhecendo sua necessidade, o melhor
dos árabes, importantes rotas comerciais, será incorporá-los.
as quais representavam a possibilidade de Em todo caso, nesse enfretamento que
riqueza para a frágil burguesia mercantil podemos denominar de colonialismos
portuguesa. Uma indústria incipiente por- concorrentes, os europeus levariam a me-
tuguesa era responsável pela produção de lhor: no fim do século XIX, a burguesia
têxteis de baixa qualidade, de enlatados, européia foi capaz de construir eficazes
azeite de oliva e alguns vinhos que não instrumentos de pressão junto ao Estado,
encontravam mercado na Europa ou no no sentido de fazer valer seus interesses
Brasil. E se o “vinho para preto” exigiu na África, transformando-os em interesses
uma atividade repressiva brutal por parte nacionais. Os indianos, se controlavam flu-
do Estado colonial no sentido de desati- xos comerciais, conferiam outros sentidos
var alambiques e produções caseiras de à terra de origem e de destino, entre outras
destilados e fermentados, o tecido – e, em coisas por estarem submetidos às diretrizes
menor medida, os enlatados – demandava do império britânico. Enfrentaram, enfim,
um confronto direto com os comerciantes constrangimentos de natureza política, mais
indianos (cf. Capela, 1973; 1975). do que dificuldades de inserção no universo
Mas o desafio dos comerciantes indianos capitalista dos grandes impérios, ao qual
extrapolava uma pauta de produção e mesmo se adaptaram bem, ajudando a construí-lo
de comercialização. Empresas portuguesas e a mantê-lo.
poderiam impor uma restrição física aos Seja como for, e como fica evidente no
indianos e beneficiar-se da importação dos relatório de Mouzinho de Albuquerque, a
seus produtos e das taxas alfandegárias desconfiança diante do comerciante indiano
resultantes. A grande questão era espacial: está na gênese do colonialismo português
os indianos já estavam distribuídos pelo naquela região da África Oriental:
interior do país no momento anterior à
conquista. Ao lado de comerciantes ára- “Mais sóbrios que o italiano, mais astutos
bes (em grande medida concentrados no que o levantino, mais onzeneiros e ava-
norte de Moçambique), possuíam pontos rentos que o próprio judeu e, no que toca a
comerciais nos locais mais distantes e eram internarem-se por países inexplorados, tão
responsáveis pelo escoamento da produção persistentes como o mais destemido saxô-
camponesa para a costa. Trata-se, portanto, nio, o mouro e o baneane da Índia, sempre
de uma questão de ocupação espacial: os humildes e trêmulos diante de brancos e
indianos não só estavam no mato, como pretos, vão, com artigos avariados, com
estavam dispostos a ali continuar. O mesmo álcool semivenenoso, vendidos com lucros
não podemos dizer quanto aos europeus, ínfimos e medidas falsas, à caça das libras
reticentes a se estabelecerem no sertão, em que andam espalhadas por essa África
grande medida inóspito nas décadas que su- imensa, fazendo escravatura onde lha to-
cederam à conquista. Assim, o colonialismo leram, contrabandeando o que podem, e
português ver-se-á às voltas com a neces- sempre sorridentes e curvados em salames,
sidade de se aliar ao comerciante indiano sempre gananciosos e ávidos de ouro que
no sentido de garantir a formação territorial mandam para o Industão” (Albuquerque,
de Moçambique. Da mesma forma que a 1934, p. 103).
administração indireta foi conseqüência de
uma somatória de fatores que teve como Voltemos à incorporação dos indianos
conseqüência a incorporação da autoridade no contexto colonial moçambicano. O novo
nativa, investida de novos significados, a sistema colonial, em Moçambique e por

REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 252-268, dezembro/fevereiro 2005-2006 261


toda a parte, fundava-se, como já vimos, a
partir de uma oposição básica entre negros
nativos e brancos colonizadores que, com
raras exceções, não romperam seus laços
com a metrópole colonial, muito pelo con-
trário: afirmavam-na continuamente, pois
se tratava do nexo que lhes conferia uma
situação de extraordinário poder. Os brancos
europeus foram transformados em sujeitos
da civilização, o que no contexto português
se traduzia na afirmação de seu potencial
assimilador, pedra-de-toque ideológica
do colonialismo português na África (cf.
Thomaz, 2002). O nativo africano, negro
e rural, era o objeto da assimilação, a qual,
por outro lado, deveria ocorrer lentamente,
garantindo desse modo a reprodução do
próprio sistema colonial. Como já procu-
rei indicar, assimilados e mistos passam a
desempenhar um papel tenso no interior
do sistema e constituem, com toda a cer-
teza, uma versão colonial dos outsiders de
Elias (2000): beneficiados pelas benesses
do mundo urbano e colonial, não estavam
sujeitos ao trabalho compulsório; contudo,
representavam quase que um arremedo
de uma civilização que se queria branca e
européia, e que impunha travas brutais a
sua ascensão social. Concomitantemente,
eram o produto mais acabado do projeto
colonial português.
Aos indianos não coube a mesma sorte,
pois não eram nem sujeito, nem objeto,
nem produto da assimilação. Não eram
indígenas, mas tampouco eram metropoli-
tanos, e mais: na prática, e simbolicamente,
constituíam o nexo entre a cidade e o mato,
não estando integrados em nenhuma dessas
esferas plenamente.
Da perspectiva das populações indianas
hindus, a grande transformação, entre finais
do século XIX e início do XX, se dá no que
diz respeito ao padrão de organização fami-
liar. Durante séculos, a costa oriental foi o
espaço de atuação de comerciantes indianos
do sexo masculino, que se amasiavam com
africanas gerando uma prole mestiça, mas
que voltavam ao Gujarate no momento de
contrair matrimônio, levando parte de seu
patrimônio consigo e deixando o restante
com sua família africana. Se o final do século

262 REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 252-268, dezembro/fevereiro 2005-2006


XIX e início do XX representou a tentativa do Estado da Índia Portuguesa pela Índia
por parte dos portugueses de romper o do- de Nerhu, em dezembro de 1961. Nesse
mínio indiano na região – sobretudo porque momento, os indianos muçulmanos afirmam
o apreciado tecido do Gujarate exercia uma definitivamente um laço de suposta origem
competição avassaladora em relação ao com o Paquistão, ao tempo que os hindus
têxtil português –, o controle do interior e a originários dos enclaves portugueses, Goa,
criação e higienização dos centros urbanos Damão e Diu, se colocam sob a bandeira da
e vilarejos representaram a possibilidade metrópole colonial. Em dezembro de 1961,
de estabelecimento de núcleos familiares os demais, cerca de 20.000 hindus espalha-
indianos, a mulher se deslocando para a dos por todo o país, foram concentrados em
região e favorecendo o estabelecimento e o campos. Considerados potenciais traidores
enraizamento das casas, as quais passaram e estrangeiros (embora boa parte tivesse
a desempenhar um papel crucial na repro- nascido na colônia), receberam, em maio de
dução de sua presença em Moçambique no 1962, um ultimato: teriam três meses para
período colonial e pós-colonial. abandonar Moçambique14. A formação de
Grosso modo, e a partir das informações uma identidade portuguesa entre as famílias
recolhidas em Inhambane, o período colo- indianas hindus originárias de Goa, Damão
nial foi marcado por uma certa prosperidade. e Diu está, com toda a certeza, associada
Entre o início do século e a década de 1960, a esse conturbado período, em que ser
boa parte das casas comerciais indianas se confundido com um indiano da Índia de
consolidou por todo o país, estabelecendo Nerhu, os antigos british indians, poderia
uma relação de competição discreta com ser fatal e resultar na perda dos seus bens
os portugueses, mantendo seus laços com e na expulsão.
a Índia original e estendendo-os para outras Dessa forma, Salazar antecipou-se em
regiões do hinterland africano. Fazem parte uma década a outra expulsão, aquela pro-
da memória dos membros da coletividade movida por Idi Amin Dada em Uganda, que,
as viagens ao Indostão, geralmente associa- entre agosto e outubro de 1972, obrigou os
das a dinâmicas familiares e a turbulências cerca de 80.000 indianos a abandonarem o
políticas que, por outro lado, tiveram um país15. Até os dias de hoje, as turbulências
profundo impacto nas redefinições identi- vividas pelos indianos na antiga África
tárias das distintas comunidades indianas Oriental Britânica – Quênia, Uganda, Tan-
existentes na colônia. Para os indianos, o ganica e Zanzibar – são lembradas uma e
tempo-colônia se subdivide a partir de cli- outra vez pelos indianos remanescentes
vagens internas e externas a Moçambique em Moçambique como um indicativo de
que dificilmente fariam sentido para os sua vulnerabilidade. O desastre que resul-
outros grupos da colônia. tou da expulsão dos indianos de Uganda é
Assim, a dupla independência da Índia também lembrado como forma de afirmar a
e do Paquistão em 1947 teve um profundo sua necessidade na região, como fica claro
impacto na configuração de uma grande no depoimento abaixo recolhido junto a um
coletividade que passa a ser denominada indiano hindu de Inhambane:
de asiática, subdividida entre hindus e
muçulmanos, crescentemente associa- “A expulsão dos nossos de Uganda foi ter-
dos à formação desses novos Estados no rível. Não só eles perderam tudo, Uganda
subcontinente. Curiosamente, e até onde também. As lojas foram divididas entre os
pudemos perceber, a mobilização dos in- africanos que não sabiam como as abastecer,
dianos na África do Sul e no Quênia, com e não sabiam o preço das coisas. O vendedor
a formação do Congresso Nacional Indiano, perguntava o preço aos clientes, ou confun- 14 Sobre a expulsão dos indianos
hindus de Moçambique no pe-
nesses países, sob o impacto da figura de dia a marcação do peso com o preço. Um ríodo salazarista, ver: Thomaz
Gandhi, teve um efeito nulo entre os in- desastre. Os africanos não sabem o valor & Nascimento, 2005.

dianos hindus de Moçambique. O mesmo das coisas, o indiano sabe. Os africanos 15 Sobre a expulsão dos indianos
de Uganda, ver: Thomaz &
não podemos dizer da invasão e anexação também não sabem o câmbio: quando foram Nascimento, 2004.

REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 252-268, dezembro/fevereiro 2005-2006 263


embora, Amin mandou imprimir dinheiro
e mais dinheiro, e ninguém o sabia trocar
V
por libras ou dólares”.
Falar de “relações raciais” em Moçam-
O início do tempo-Samora é vivido com bique nos coloca, sem sombra de dúvida,
ansiedade por membros da coletividade que, no contexto regional. Para todos aqueles
em grande medida, permanece no país. A habitantes das regiões central e sul do país, as
possibilidade de se estabelecer em Portugal referências aos brancos que se encontram do
– metrópole empobrecida e convulsionada outro lado da fronteira são constantes. Far-
também por uma revolução – não era nada meiros brancos no Zimbábue (anglófonos)
clara. Ir para onde? Por outro lado, muitos ou os boers na África do Sul (afrikaans) se
se beneficiaram com a saída dos brancos, fazem continuamente presentes no cotidiano
portugueses e gregos, e fizeram-se com dos moçambicanos, que desde a segunda
suas propriedades e lojas. Ao contrário de metade do século XIX encontram nos
Amin, ou de Kenyata, Samora ofereceu territórios então controlados pelo império
garantias aos indianos para permanecerem britânico trabalho e alguma remuneração.
no país, muito provavelmente ciente de sua O trabalho clássico coordenado por Ruth
importância no sistema de abastecimento First sobre os mineiros moçambicanos
e da necessidade de manter as trocas entre (Centro de Estudos Africanos, 1998) deixa
o mato e a cidade. claro, a partir de depoimentos e da coleta de
Mas o período Samora não foi fácil. canções de trabalho, o vínculo secular dos
Tiveram que se dobrar ao sistema de par- habitantes do sul de Moçambique com as
tido único e à tentativa de construção de terras sul-africanas. Diante da expectativa
uma economia pretensamente planificada; do trabalho forçado sem remuneração na
tinham que competir com as Lojas do Povo e colônia sob domínio português, a ida para
se inserir num sistema centralizado de distri- as minas e as farmes da África do Sul e da
buição de produtos, bem como se submeter Rodésia do Sul (atual Zimbábue) constituía
às restrições ao crédito e à posse de divisas a única possibilidade de qualquer forma de
estrangeiras. Nesse período, era freqüente acumulação.
a suspeita de que os indianos estocavam Na atualidade, os boers constituem uma
produtos tendo em vista a especulação ou presença constante no sul de Moçambique,
possuíam secretamente divisas. quando os moçambicanos fazem referência
Na atualidade, a visibilidade de india- aos duros anos passados nas minas ou nas
nos, muçulmanos e hindus em atividades farmes, quando pensam na possibilida-
comerciais e o enriquecimento de parte de de trabalhar ou encontrar parentes na
dos membros dessas comunidades con- África do Sul, quando fazem referência
vertem-nos freqüentemente em objeto de ao desenvolvimento do país vizinho, ou
desconfiança e mesmo de acusações de ainda no cotidiano marcado pela presença
fetiçaria (em especial os muçulmanos)16. sul-africana, na forma de investidores ou
Sobre eles pesa a desconfiança de partici- turistas. Os mais velhos fazem referência
pação em toda a sorte de atividades ilíci- aos pidgis usados nas minas ou nas farmes
tas, do tráfico de drogas e armas à evasão em suas relações com os patrões brancos, o
de divisas. Hoje, como antes, são vistos chilapalapa ou o funacalô. Línguas absolu-
como corpos estranhos àquele universo tamente limitadas ao universo do trabalho e
político: então inimigos dos portugueses, pontuadas por imperativos que lembram a
ora transformados em inimigos da nação. impossibilidade de relações afetivas entre
Constantemente representados como fo- brancos e negros…
rasteiros, diante da massa autóctone, ne- As constantes narrativas sobre os boers
gra, os indianos, denunciados por sua cor e ingleses nos revelam que, da perspectiva
16 Sobre os indianos e as acusa- marrom, agarram-se de forma paradoxal dos moçambicanos negros, os brancos cons-
ções de feitiçaria, ver: Thomaz,
2004. a essas terras. tituem um grupo marcado por uma imensa

264 REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 252-268, dezembro/fevereiro 2005-2006


diversidade. Portugueses, boers e ingleses boers não tinham, em princípio, nenhum
constituem grupos percebidos como dife- tipo de ideal assimilacionista, ou seja, não
rentes, e os três grupos nos remetem à tem- fazia muito sentido encorajar um negro a
poralidade colonial, o tempo-colônia. Nas conhecer bem qualquer língua européia; de
regiões do Chimoio e Inhambane, aqueles outro, os administradores britânicos viam
que tiveram experiências nas farmes rodesia- o seu soldo aumentar consideravelmente
nas ou nas minas sul-africanas são unânimes se demonstravam aprendizagem da língua
em reconhecer o retorno financeiro de seu nativa. Assim me relatou um antigo admi-
trabalho. Boers e rodesianos valorizavam o nistrador colonial português:
trabalho manual, pagavam por ele. E mais:
os boers, aos gritos ou não, chegam mesmo “No início dos anos 40, trabalhei no Milan-
a trabalhar lado a lado com os africanos nas ge, ao pé da fronteira com a Niassalândia
fazendas. Do lado português, só sobravam (atual Malaui). A Niassalândia era um bem
os gritos e os trabalhos forçados. da coroa, um protetorado, não uma colônia.
Assim, as representações em torno do Os indígenas seguiam sua vida. Tínhamos
segregacionismo britânico e do apartheid boas relações com os administradores in-
sul-africano não são necessariamente pon- gleses, pois tentávamos solucionar muitos
tuadas pela condenação moral ou pela dor problemas com os indígenas entre nós, sem
provocada pela discriminação. Pelo menos, ter que entrar em contato com Lourenço
não mais do que as lembranças do próprio Marques ou Blantyre. Eles viviam muito
colonialismo português na região. Na me- melhor que nós, ganhavam muito mais.
mória dos mais velhos, em diversas regiões Nós não ganhávamos quase nada. E eles
de Moçambique sob o domínio português, o falavam a língua dos indígenas. Eu não,
trabalho forçado constitui a lembrança mais os administradores portugueses não. Se
marcante. Do lado britânico ou boer, tínha- eles aprendessem a língua dos indígenas,
mos segregação e gritos, mas a valorização ganhavam mais. Em Moçambique não, e
do trabalho manual na forma de dinheiro; do mais: mudavam-nos de lugar a cada dois
lado português, apenas segregação e gritos. anos, o que tornava impossível o aprendi-
O apartheid sul-africano e o segregacionis- zado da língua”.
mo rodesiano não são mais impressionantes
do que o segregacionismo à portuguesa:
nos três casos, os brancos promovem uma
separação física com relação aos não-bran- VI
cos e situam-se no pólo do poder; no caso
sul-africano, mais de um trabalhador com Em Moçambique, raça, nação, ocupa-
quem conversei salientou suas vantagens, ção, status e poder estão intrinsecamente
entre elas o fato de o apartheid possuir re- conectados. A herança biológica suposta
gras claras: “Lá sabíamos onde podíamos na idéia de raça deve-se enfrentar à história
e onde não podíamos ir, o que podíamos colonial e pós-colonial dos povos moçam-
fazer ou não; em Moçambique, sabíamos, bicanos e nos processos que deram origem
mas nem sempre era claro, e era mais fácil, a um intenso debate cotidiano em torno da
assim, levar uma bofetada”. nação. Uma das justificativas ideológicas
A origem nacional dos brancos – se que serviu de base para a expansão imperial
britânico, boer ou português – é crucial européia entre finais do século XIX e início
para compreendermos as suas relações com do século XX foi a idéia de “raça” – a que
a maioria negra do país. Muitas vezes, o atrelava homens e mulheres ao seu patrimô-
conhecimento da língua nativa – condição nio genético e transformava o livre-arbítrio
para uma maior aproximação com os habi- e a própria noção de liberdade numa ilusão.
tantes das zonas rurais – era mais freqüente Paradoxalmente, o imperialismo pautava
entre os anglófonos e os boers do que entre sua prática em torno ao projeto de elevação
os portugueses. De um lado, anglófonos e civilizacional da massa nativa. Assim, de um

REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 252-268, dezembro/fevereiro 2005-2006 265


lado pretendia-se sistematizar e conservar dos moçambicanos, pelo menos em algu-
o patrimônio cultural autóctone, e atar os mas regiões do país. Assim, falar sobre a
indígenas aos desígnios de sua “raça”; de guerra é também falar sobre os boers e os
outro, uma parte diminuta dos nativos era anglófonos, sobre os brancos do outro lado
devidamente incorporada (de forma subal- da fronteira. Aqueles que bombardearam os
terna) no universo cultural do colonizador subúrbios do Chimoio procurando atingir os
europeu. A estes últimos, coube a elaboração guerrilheiros do movimento de libertação
de projetos nacionais que procurou recons- zimbabuano e acabaram por matar deze-
truir uma identidade com a grande massa nas de moçambicanos; ou aqueles que, da
indígena – subdividida em uma infinidade mesma forma, bombardearam a cidade de
de grupos étnicos ao longo do processo Matola, atrás dos militantes do Congresso
colonial – a partir da apropriação de uma Nacional Africano. Parte das histórias faz
noção criada no bojo do próprio sistema ainda referência aos seqüestros de crianças
colonial, “raça”, doravante associada ao moçambicanas pelas forças sul-africanas,
núcleo do poder legítimo por meio de sua logo devolvidas como guerrilheiros da
associação com a idéia de autoctonia. A Renamo, ou ainda à origem do material
associação entre raça, autoctonia e nação bélico usado pelos bandidos armados: ar-
ganha, em Moçambique, um tom particular mas e uniformes do exército sul-africano.
na medida em que é a guerra que a articula. Esses brancos são, assim, representados
A história e o debate em torno da nação como parte do conflito, mas na forma de
fazem contínua referência à experiência inimigos externos.
de cada um dos grupos ao longo da guerra Sobre os portugueses, não há muito a
civil que, entre finais dos anos 70 e 1992, dizer: a esmagadora maioria fugiu nos anos
devastou o país e afetou a vida de todos os que sucederam à independência do país. O
moçambicanos. E neste último item, e como que, sim, é certo é que, para muitos, essa
uma consideração final, procurarei atar, por fuga foi precipitada e, em grande medida,
meio de narrativas em torno da guerra, pelo deveria ter sido evitada. Se sua participação
menos parte dos múltiplos fios estendidos maior ou menor na guerra não é objeto de
nesse labirinto moçambicano. reflexão por parte da população17, associar
Todos os moçambicanos viram-se dura os bandidos armados a grupos saudosos do
e tragicamente envolvidos numa guerra que período colonial é relativamente freqüente,
direta ou indiretamente comprometeu a vida sobretudo ali onde antigos régulos passaram
de mais de um milhão de indivíduos em a garantir o suprimento de jovens para as
pouco mais de uma década. Na atualidade, fileiras da Renamo (Geffray, 1990). No
histórias de guerra constituem um dos temas entanto, os portugueses são… portugue-
preferidos dos moçambicanos: todos têm ses, e o retorno contemporâneo de alguns
algo a contar. No entanto, a distribuição milhares se dá sempre em meio a formas
dos sofrimentos não foi igualitária e, como mais ou menos explícitas de diferenciação
ficou claro no início deste ensaio, suspei- da nacionalidade moçambicana diante da
tas e acusações em torno de experiências portuguesa. Estamos diante de um conjun-
de guerra acabam por definir o lugar que to de situações cotidianas que por vezes
cada um desses grupos ocupa nas narrativas anunciam tensão e conflito, pois parte dos
sobre a nação. portugueses que ora retornam deixou o
Boers e ingleses são evidentemente país na altura da independência ou nos
considerados como elementos externos anos que a sucederam, em geral temendo
17 O mesmo não podemos dizer ao corpo nacional, mas não estão ausentes as privações da guerra e da revolução. Seu
quanto a determinadas inter-
pretações acadêmicas, que
da guerra. Para além do fato de parte das distanciamento da nação ao longo da guerra
enfatizam o apoio dos antigos interpretações acadêmicas da guerra enfa- é suficiente para transformá-los definitiva-
colonos aos guerrilheiros da
Renamo, sobretudo daqueles tizar a agressão externa da Rodésia de Ian mente em estrangeiros.
que se estebeleceram na África Smith e da África do Sul do apartheid, a É justamente sua relação com a guerra
do Sul e na Rodésia (Minter,
1998). agressão estrangeira faz parte da memória que diferencia os portugueses daqueles

266 REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 252-268, dezembro/fevereiro 2005-2006


ter compartilhado esse sofrimento, e mais,
atrever-se a elaborar uma versão do porquê
do seu sofrimento específico, constitui, em
meio a outras manifestações, uma afirmação
visceral de nacionalidade. Nós somos deste
país, ficamos aqui, sofremos como todo
mundo19. Trata-se de uma afirmação deses-
perada e simbólica que não ganha, contudo,
caráter político. Encontramo-nos diante
de narrativas da precariedade: os indianos
brancos que assumiram a nacionalidade lembram constantemente a vulnerabilidade
moçambicana e permaneceram no país. Tal que caracteriza a sua situação. Ao lado de
como Machado da Graça, todos lembram- uma situação econômica bastante instável,
se dos duros anos de “repolho e carapau”, devem conviver com narrativas que vêm de
das filas que faziam lado a lado com todos todos os lados e que afirmam a sua condição
os demais moçambicanos para conseguir de forasteiros.
qualquer produto. Sobre eles paira, contudo,
uma suspeita. Podem ser moçambicanos, •••
sim, mas não são autênticos. Afinal, esta-
mos num país de pretos, e aos pretos cabe Fragmentação. Assim convém inter-
governar e decidir o seu destino. Impõe-se pretar esse universo que, por comodismo,
aí outra clivagem, aquela que separa o podemos denominar de relações raciais em
universo urbano do rural e, mais uma vez, Moçambique. Ao contrário do ocorrido em
as histórias de guerra sugerem fronteiras, muitos contextos pós-coloniais do Novo
pois os que permaneceram nas cidades Mundo, na América Latina em geral, e no
– todos os brancos moçambicanos, assim Brasil em particular, não há um esforço
como boa parte dos mistos – não viveram de síntese ou um modelo de superação. A
a face mais dura da guerra, não permane- herança colonial se expressa em Moçam-
ceram dias ou semanas no mato comendo bique, e em outros países africanos, na
raízes, não foram obrigados a matar seus forma de exclusão. O pertencimento a um
familiares e se juntar às tropas da Renamo determinado grupo definido em função da
ou foram vítimas da “operação produção” raça interpela o jogo social mais amplo
ou da “operação sem camisa”18. – posição social, cultura, língua, estatuto,
Com relação aos indianos, deparamo- ocupação profissional, local de residência,
nos novamente com suspeitas de seu não origem – e converge rumo à afirmação da
pertencimento pleno ao país, por suposta- autoctonia. No passado, o ser autóctone de-
mente não terem sofrido como os negros finia sua distância com relação ao núcleo de 18 A “operação produção” foi de-
sencadeada no final de 1982 e
os duros anos da guerra civil. No entanto, poder e sua exclusão do aparato institucional foi responsável pela evacuação
são os mesmos indianos que se opõem a colonial; na atualidade, define os que são ou de milhares de indivíduos
(entre 50.000 e 100.000)
esse processo de exclusão em suas his- não membros plenos do corpo nacional. As dos centros urbanos para os
tórias de guerra, aquelas que lembram histórias de guerra, contadas ainda tempos campos de colonização no
Niassa. Esses indivíduos eram
os indianos assassinados, seqüestrados, depois de seu fim, sugerem a pertença sim- acusados de serem malandros
ou desocupados. A “operação
mortos de fome no meio do mato; ou bem bólica e real de uns a uma nação construída sem camisa” afetou sobretudo
de mulheres violadas muitas vezes pelos em meio a um conflito que ainda resiste a a cidade da Beira e consistia
no recrutamento forçado de
matxangas e que tiveram filhos com os interpretações generalizadoras. Constituem, jovens, muitas vezes menores
de idade, por parte da Frelimo.
bandidos. Insistir em narrativas da guerra contudo, um campo de debate, pois mino- Há notícias de alguns brancos
constitui uma busca de reconhecimento. De rias exluídas simbolicamente da nação se vítimas da operação produção,
mas não da operação sem
quê? De pertencimento ao corpo da nação. agarram a suas histórias, também forjadas camisa (Thomaz, 2005).
Nesse processo, e diante de uma África na guerra, para interpretar o seu passado e 19 Sobre a interpretação dos
que se afirma negra, uma África para os afirmar a sua decisão de fazer parte de um indianos hindus de Inhambane
da guerra civil, ver: Thomaz &
africanos legítimos, afirmar repetidamente país que ajudaram a construir. Nascimento, 2004.

REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 252-268, dezembro/fevereiro 2005-2006 267


BIBLIOGRAFIA

ALBUQUERQUE, Mouzinho de. Moçambique 1896 – 1898. Lisboa, Agência Geral das Colônias, 1934.
ANTUNES, L. F. A Companhia dos Baneanes de Diu em Moçambique (1686-1777). Dissertação de mestrado. Lisboa,
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, 1992.
________. Dias. “Os Mercadores Baneanes Guzarates no Comércio e a Navegação da Costa Oriental Africana (s.
XVIII)”, in Actas do Seminário: Moçambique – Navegações, Comércio e Técnicas. Lisboa, Comissão Nacional para
as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998, pp. 67-94.
BASTOS, Susana Pereira & BASTOS, Gabriel Pereira. “Diu, Mozambique et Lisbonne: Histoire Sociale et Stratégies
Identitaires dans la Diaspora des Hindous-gujaratis”, in Lusotopie, 2000, pp. 399-422.
CAPELA, José. O Vinho para o Preto. Porto, Afrontamento, 1973.
________. A Burguesia Mercantil do Porto e as Colônias. Porto, Afrontamento, 1975.
CASTELO, Cláudia. O Modo Português de Estar no Mundo. Porto, Afrontamento, 1999.
CENTRO DE ESTUDOS AFRICANOS. O Mineiro Moçambicano. Um Estudo sobre a Exportação de Mão-de-obra de Inham-
bane. Maputo, Universidade Eduardo Mondlane, 1998.
ELIAS, Norbert & SCOTSON, John L. Os Estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000.
ELIAS, Norbert. “Notas sobre os Judeus como Participantes de uma Relação Estabelecidos – Outsiders”, in Norbert
Elias por Ele Mesmo. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001, pp. 134-43.
FIRMINO, Gregório. A “Questão Lingüística” na África Pós-colonial: o Caso do Português e das Línguas Autóctones em
Moçambique. Maputo, Promédia, 2002.
FRY, Peter: “O Espírito Santo contra o Feitiço e os Espíritos Revoltados: ‘Civilização’ e ‘Tradição’ em Moçambique”, in
Mana. Estudos de Antropologia Social, no 6-2, outubro de 2000, pp. 65-96.
GEFFRAY, Christian. La Cause des Armes: Anthropologie de Guerre Contemporaine au Mozambique. Paris, Karthala, 1990.
GRAÇA, Machado: “Não Basta de Veneno?”, in Até Ficar Rouco. Maputo, Ndjira, 1996, pp. 45-9.
LEITE, Joana Pereira. “Em Torno da Presença Indiana em Moçambique – Século XIX e Primeiras Décadas da Época
Colonial”, in IV Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, mimeo., 1996.
MAMDANI, Mahmood. Citizen and Subject: Contemporary Africa and the Legacy of Late Colonialism. Princeton, Princ-
eton University Press, 1996.
MINTER, Willian. Os Contras do Apartheid. As Raízes da Guerra em Angola e Moçambique. Maputo, Arquivo Histórico
de Moçambique, 1998.
MOREIRA, José. Os Assimilados, João Albasini e as Eleições, 1900-1922. Maputo, Arquivo Histórico de Moçambique, 1997.
NEWITT, Malyn. História de Moçambique. Lisboa, Europa-América, 1997.
ROCHA, Aurélio. Associativismo e Nativismo em Moçambique: Contribuição para o Estudo das Origens do Nacionalismo
Moçambicano (1900-1940). Maputo, Promédia, 2002.
SPITZER, Leo. Vidas de Entremeio. Rio de Janeiro, Editora da Uerj, 2001.
TEIXEIRA, José Pimentel: “Ma-tuga no Mato: os ‘Portugueses’ em Discursos Rurais Moçambicanos”, in Clara Carvalho & João
de Pina Cabral. A Persistência da História. Passado e Contemporaneidade em África. Lisboa, ICS, 2004, pp. 307-42.
THOMAZ, Omar Ribeiro. Ecos do Atlântico Sul. Representações sobre o Terceiro Império Português. Rio de Janeiro,
Editora da UFRJ, 2002.
_______. “Entre Inimigos e Traidores: Suspeitas e Acusações no Processo de Formação Nacional no Sul de Moçam-
bique”, in Travessias, no 4-5, 2004, pp. 269-88.
_______. “Traidores e Vadios: a Construção Social do Inimigo e sua Territorialização. Campos de Trabalho e Reedu-
cação em Moçambique ao Longo do Período Socialista”. São Paulo, 2005, mimeo.
THOMAZ, Omar Ribeiro & CACCIA-BAVA, Emiliano. “Moçambique em Movimento: Dados Quantitativos”, in Peter Fry
(org.). Moçambique Ensaios. Rio de Janeiro, Editora da UFRJ, 2001, pp. 21-58.
THOMAZ, Omar Ribeiro & NASCIMENTO, Sebastião. “Narratives de la Precarietat: la Construcció Social del Foraster:
Indis a Uganda i a Moçambic”. Barccelona, 2004, mimeo.
THOMAZ, Omar Ribeiro & NASCIMENTO, Sebastião. “O Retorno dos que Jamais Partiram: os Campos de Concentração
e a Expulsão dos Hindus de Moçambique. 1961-1962”. Berlim/Maputo, 2005, mimeo.
ZAMPARONI, Valdemir. “Monhés, Baneanes, Chinas e Afro-maometanos. Colonialismo e Racismo em Lourenço
Marques, Moçambique, 1890-1940”, in Lusotopie, 2000, pp. 191-222.

268 REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 252-268, dezembro/fevereiro 2005-2006


verissimo

REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 252-268, dezembro/fevereiro 2005-2006 269

S-ar putea să vă placă și