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Coleção Estudos

Dirigida por I. Guinsburg Erich Auerbach

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MIMESIS
A REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE NA
LITERATURA OCIDENTAL

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E411 ipe de realiz.ação: Editora Perspectiva. ~ ~ EDITORA PERSPECTIVA
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1. A Cicatriz de Ulisses

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Os leitores da Odisséia lembrar-se-ão, sem dúvida, da bem


preparada e emocionante cena do canto XIX, quando Ulisses
regressa à casa e Euricléia, sua antiga ama, o reconhece por uma
cicatriz na coxa. O forasteiro havia granjeado a benevolência de
Penélope; atendendo a desejo de seu protegido, ela ordena à go-
vernanta que lave os pés do viandante fatigado, segundo é usual
nas velhas estórias como primeiro dever de hospitalidade. Euricléia
começa a procurar água e a misturar a água quente com a fria,
enqu;mto fala tristemente do senhor ausente, que poderia ter a
mesma idade do hóspede, que talvez também estivesse agora va-
gueando como um pobre forasteiro - nisto ela observa a assom-
brosa semelhança entre o hóspede e o ausente - ao mesmo tempo
Ulisses se lembra da cicatriz e se afasta para a escuridão, a fim de
ocultar, pelo menos de Penélope, o reconhecimento, já inevitável,
mas ainda indesejável para ele. Logo que a anciã apalpa a cicatriz,
deixa cair o pé na bacia, com alegre sobressalto; a água transbor-
da, ela quer prorromper em júbilo; com silenciosas palavras de
lisonja e de ameaça Ulisses a contém; ela cobra ânimo e reprime o
seu movimento. Penélope, cuja atenção tinha sido desviada do
acontecimento, graças à previdência de Atenéia, nada percebe.
2 MIMES IS A CICATRIZ DE ULISSES 3

~udo isto. é modelado com exatidão e reiatado com vagar. truído. com todo o seu elegante deleite, com a riqueza das suas
Num discurso direto, rx>rmenorizado e fluente, ambas as mulheres imagens idílicas, tende a ganhar o leitor totalmente para si, en-
dão a conhecer os seus sentimentos; não obstante tratar-se de quanto o ouve - a fazê-lo esquecer o que acontecera recentemente,
sentimentos, um rx>uco mesclados a considerações muito gerais dur~nte o lava-pés. O não preenchimento total do presente faz
acerca do destino dos homens, a ligação sintática entre as partes é parte de uma interrx>lação que aumenta a tensão mediante o
perfeitamente clara; nenhum contorno se confunde. Há, também, retardamento; é necessário que ela não aliene da consciência a
espaço e temrx> abundantes para a descrição bem o rdenada, uni- crise por cuja splução se deve esperar com tensão, para não
formemente iluminada, dos utensílios, das manipulações e dos destruir a suspensão do estado de espírito; a crise e a tensão
gestos, mostrando todas as articulações sintáticas; mesmo no dêvem ser mantidas, permanecer conscientes, num segundo plano.
dramático instante do reconhecimento não se deixa de comunicar Só que Homero, e teremos de voltar a isto, não conhece segundos
ao leitor que é com a mão direita que Ulisses pega a velha pelo planos. O que ele nos narra é sempre somente presente, e preen-
pescoço, para impedir-lhe que fale, enquanto a aproxima de si com che completamente a cena e a consciência do leitor. É o que
a outra mão. Claramente circunscritos, brilhante e uniformemente acontece na passagem citada. Quando a jovem Euridéia põe o
iluminados, homens e coisas estão estáticos ou em movimento, recém-nascido Ulisses no colo· do avô Autólico, após o banquete
dentro de um espaço perceptível; com não menor clareza, expres- (v. 401 ss.), a velha Euridéia, que rx>ucos versos antes tocara o pé
sos sem reservas, bem ordenados até nos momentos de emoção, do viandante, desaparece rx>r completo da cena e da nossa cons-
aparecem sentimentos e idéias. ciência.
Na minha reprodução do incidente, omiti até agora o con- Goethe e Schiller, que em fins de abril de 1797 se corresrx>n-
teúdo de toda uma série de versos que o interrompem pelo meio. diam, não especificamente sobre o episódio aqui em pauta, mas
São mais de setenta - o incidente em si compreende cerca de sobre o "elemento retardador" na rx>esia· homérica em geral,
quarenta versos antes e quarenta depois da interrupção. A inter- opunham-no diretamente ao princípio da "tensão" - termo esse
rupção, que oc.orre justamente no momento em que a governanta não propriamente utilizado, mas claramente aludido, quando o
reconhece a cicatriz, isto é, no momento da crise, descreve a processo retardador é rx>sto, como processo épico propriamente dito,
origem da cicatriz, um acidente dos temrx>s da juventude de em OIX>Sição ao trágico (cartas de 19, 21 e 22 de abril). O elemento
Ulisses, durante uma caça ao javali rx>r ocasião de urna visita ao retardador, o "avançar e retroceder" mediante interrx>lações, tam-
seu avô Autólico. Isto dá, antes de mais nada, motivo para infor- bém a mim parece estar, na poesia homérica, em contrarx>sição ao
mar o leitor acerca de Autólico, sua moradia, grau de parentesco, tenso impulso para uma meta. Decer_to Schiller tem razão quando
ç:aráter, e, de maneira tão rx>rmenorizada quão deliciosa, seu com- diz. que Homero descreve "meramente a tranquila existência e ação
rx>rtamento após o nascimento do neto; segue-se a visita de Ulis- das coisas segundo a sua natureza"; a sua finalidade estaria "pre-
ses, já adolescente; a saudação, o banquete de boas-vindas, o sono sente em cada um dos rx>ntos do seu movimento". Só que tanto
e o despertar, a saída matutina para a caça, o rastejo do animal a Schiller quanto Goethe, elevam o processo homérico à categoria de
luta, o ferimento de Ulisses rx>r uma presa, o curativo da ferida ' o lei da pcesia épica em geral, e as palavras de Schiller, acima citadas,
resta~lecimento, o regresso a Ítaca, o preocupado interrogatório devem vigorar para o rx>eta épico em geral, em contraste com o
dos pais; tudo é narrado, novamente, com perfeita conformação de trágico. Contudo há, tanto nos temrx>s antigos como nos modernos,
todas as coisas, não 'deixando nada no escuro e sem omitir ne- obras épicas significativas escritas sem qualquer '•elemento retar-
nhuma das articulações que as ligam entre si. E só derx>is o dador", no sentido de Schiller, ·mas de maneira claramente car-
~arrador retorna ao arx>sento de Penélope, e Euricléia, que tinha regada de tensão, obras que, sem dúvida, ''roubam a nossa liberda·
r~onhe~ido a cicatriz antes da interrupção, só agora, derx>is dela, de emocional '', o que Schiller quer conceder exclusivamente ao
deixa cair, assustada, o pé na bacia. rx>eta trágico. Além do mais, parece-me improvável e inverossímil
O primeiro pensamento que acode ao leitor moderno, de que q~e no processo citado da rx>esia homérica tenham tido papel
o que se pretende é aumentar a tensão, é, se não totalmente falso, preponderante as considerações estéticas ou mesmo um sentimento
pelo menos não decisivo para a explicação do processo homérico. estético do tipo admitido rx>r Goethe e Schiller. O efeito é, sem
Pois o elemento da tensão é muito débil nas poesias homéricas· dúvida, exatamente aquele por eles descrito, e daqui se deduz
elas .não se desti?am, em todo o seu estilo, a manter em suspens~ também, com efeito, o conceito do épico, que eles próprios, assim
o leitor ou ouvinte. Para tanto seria necessário, antes de mais como todos os escritore~ decisivamente influenciados pela Antigui-
nada, que o leitor não fosse "distendido" pelo meio que procura dade clássica possuem. Mas a verdadeira causa da impressão de
pô-lo em •'tensão'' - e é justamente isto o que acontece muito retardamento parece-me residir em outra coisa; precisamente , na
f~eqü1entemente; também no caso em apreço ocorre isto. O episó- necessidade do estilo homérico de não deixar nada do que é
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mencionado na penumbra ou inacabado.
4 MIMESIS A CICATRIZ DE ULISSES 5

A digressão acerca da origem da ci.catriz não se diferencia E este deSfile dos fenômenos ocorre no primeiro plano, isto é,
fundamentalmente dos muitos trechos onde urna personagem re- sempre em pleno ·presente espacial e temporal. Poder-se-ia acreditar
cém-introduzida, ou uma coisa ou um apetrecho que aparece pela que as muitas interpolações, o freqüente avançar e retroceder,
primeira vez, são descritos pormenorizadamente quanto à sua deveriam criar uma espécie de perspectiva ternporal e espacial; mas
espécie e origem, ainda que seja no auge de um combate; ou o. estilo homérico jamais dá esta impressão. A maneira pela qual é
daqueles outros onde se informa, acerca de um deus que aparece evitada esta impressão de perspectiva pode ser observada claramente
onde estivera recentemente, o que fizera por lá e por qual caminh~ no processo da introdução das interpolações, uma construção sintá-
chegara; até os próprios epítetos parecem-me ser atribuíveis, em tica que é familiar a todo leitor de Homero; utilizado em nosso
última análise, à mesma necessidade de exteriorização dos fenôme- trecho, é támbém encontrável em interpolações muito mais curtas.
nos. Aqui, é a cicatriz que aparece no decorrer da ação; e não é Apalavra "cicatriz" (v. 393) segue-se imediatamente uma oração
possível para o sentimento homérico deixá-la emergir simplesmente relativa ("que outrora um javali ... "), a qual se expande num
da escuridão de um passado obscuro; ela deve sair claramente à luz, amplo padntese sintático; neste introduz-se, inesperadamente, ~ma
e com ela, um pouco da juyentude do herói - da mesma maneira oração principal (v . .396: "um deus deu-lhe ... "), a qual vai se
que na fitada, quando o primeiro navio já arde e os mirmidões livrando silenciosamente da subordinação sintática, até que, com o
finalmente se dispõem a ajudar, há ainda tempo suficiente, não só verso 399 começa um novo presente, uma inserção também sinta-
para a magnífica comparação com os lobos, não só para a ordem dos ticamente' livre de novos conteúdos; ·este novo presente reina
bandos mirmidônicost mas tàmbém para a informação pormenori- sozinho até que, com o verso 467 ("esta era agora tocada pela
zada acerca da origem de alguns subalternos (l/tada, 16, 155 e ss.). É anciã.. .';), retoma-se aquilo que· antes se interrompera. É claro
claro que o efeito estético assim obtido deve ter sido logo notado e, que, em interpolações tão longas como a pre~ente, dificil.ment~
por conseguinte, conscientemente procurado, mas o mais primor- seria possível levar a cabo uma ordenação sintática; bem m~is ~áctl
dial deve residir no próprio impulso fundamental do estilo homéri- seria uma ordenação em perspectiva, dentro da ação pnncipal,
co: representar os fenômenos acabadam~nte, palpáveis e visíveis em mediante uma disposição dos conteúdos que tivesse isto em mira; se
todas as suas partes, claramente definidos em suas relações espaciais se apresentasse, por exemplo, a estória da cicatriz como lem?!ªn~a
e temporais. O mesmo ocorre com os processos psicológicos: de Ulisses tal como ela aparece neste momento na sua consc1enc1a,
também deles nada deve ficar oculto ou inexpresso. Sem reservas, isto teria ~ido muito fácil: teria sido necessário começar simples-
bem dispostos até nos momentos de paixão, as personagens de mente com a narração da cicatriz dois versos antes, quando da
~omero dão a conhecer o seu interior no seu discurso; o que não primeira menção da palavra ''cicatriz'' , onde já estão disponíveis
dizem aos outros, falam para si, de modo a que o leitor o saiba. os motivos "Ulisses" e " lembrança". Mas u~ tal processo
Acontecem muitas coisas espantosas nas poesias homéricas, mas subjetivo-perspectivista, que cria um primeiro e um segundo pla-
nunca tacitamente; Polifemo fala com Ulisses; este fala com os nos de modo que o presente se abra na direção das profundezas do
pretendentes, quando começa a matá-los; prolixamente, Heitor e ~do, é totalmente estranho ao estilo homéric~; ele. só conh~e o
Aquiles falam, antes e após a luta; e nenhum discurso é tão primeiro plano, só um presente uniformemente ilummad~, umfor-
carregado de medo ou de ira que nele faltem ou se desordenem os memente objetivo; e assim, a digressão começa só dois ver~
instrumentos da articulação lógica da língua. Isto é válido, natu- depois, quando Euricléia já descobriu a cicatriz - quando a po~sibt­
ralmente, não só para os discursos, mas para toda a apresentação. Os lidade da ordenação em perspectiva não mais existe, e a estóna da
diversos membros dos fenômenos são postos sempre em clara cicatriz toma-se um presente independente e pleno.
relação mútua; um número considerável de conjunções, advérbios, A singularidade do estilo homérico fica ainda ~ais ?ítida
partículas e outros instrumentos sintáticos, todos claramente deli- quando se lhe contrapõe um outro texto, igualmente antigo, igual-
mitados e sutilmente graduados na sua significação, deslindam as mente épico, surgido de um m~t~~ mun~o de formas ..Te~tarei a
personagens, as coisas e as partes dos acontecimentos entre si, e os comparação com o relato do sacnfte10 de Isaac, narração mte1ramen-
põem simultaneamente, em correlação mútua, ininterrupta e fluen- te redigida pelo assim chamado Eloista. Na versão King James, a
te; tal como os próprios fenômenos isolados, também as suas introdução vem assim traduzida: ''Depois disto, Deus provou
relações, os entrelaçamentos temporais, locais, causais, finais, con- Abraão. E disse-lhe: Abraão! - Eis-me aqui, respondeu ele. '' Já
secutivos, comparativos, concessivos, antitéticos e condicionais, este principio nos deixa perplexos, quando viemos de Homero.
vêm à luz perfeitamente acabados; de modo que há um desfile Onde estão os dois interlocutores? Isto não é dito. Mas o leitor sabe
ininterrupto, ritmicamente movimentado', dos fenômenos, sem que muito bem que normalmente não se acham no mesmo lugar
se mostre, em parte alguma, uma forma fragmentária ou só par- terreno, que um deles, Deus, deve vir de algum lugar, deve
cialmente ilumin~da, uma lacuna, uma fenda, um vislumbre de irromper de alguma altura ou proÍW)de.za no terreno, para falar com
profundezas inexploradas. Abraão. De onde vem ele, de onde se dirige a Abraão? Nada disto é
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dito. Ele não vem, como Zeus ou Posseidon, d3s Etiópias, onde se plano, Abraão, sua figura. prostrada ou ajoelhada, inclinando-se de
regozijara com um holocausto. Nada se diz, também, da causa que braços abertos ou olhando para o alto mas Deus não está ai: as
o movera a tentar Abraão tão terrivelmente. Ele não a discutira, palavras e os gestos .de Abraão dirigem-se para o interior da
como Zeus, com outros deuses, numa assembléia, em ordenado dis- imagem ou para o alto, para um lugar indefinido, escuro, em
curso; também não nos é comunicado o que ponderara no seu pró- nenhum caso para um lugar situado no primeiro plano, de onde a
prio coração; inesperada e enigmaticamente penetra na cena, chega- voz lhe chega.
do de altura ou profundeza desconhecidas e chama: "Abraão!" Após esta introdução, Deus dá a sua ordem, e tem início a
Dic-se-á que isto se explica a partir da singular noção divina dos narração propriamente dita. Todos a conhecem: sem interpolação
judeus, tão diferente da dos gregos. Isto é correto, mas não uma alguma, em poucas orações principais, cuja ligação sintática é
objeção. Pois, como se explica a noção judaica de Deus? Já o seu e!tremamente pobre, desenvolve-se a narração. Aqui seria impen-
primitivo Deus do deserto não contava com forma ou residência sável descrever um apetrecho que é utilizado, uma paisagem pela
fixas, e era solitário; sua falta de forma e residência e sua solidão qual se passa, os servos ou o burro que acompanham a comitiva, e
não só se reafirmaram, finalmente , na luta com os deuses do até mesmo, a ocasião em que foram adquiridos, sua origem , o
Oriente próximo, relativamente bem mais inteligíveis, mas também material de que são feiros; seu aspecto ou utilidade nunca poderiam
se desenvolveram de maneira mais intensa. A noção judaica de Deus ser descritos com admiração; eles nem suportam um adjetivo; são
não é somente causa, mas antes. sintoma do seu particúlar modo de servos, burro, lenha e faca, e nada mais, sem epítetos; têm de
ver e de representar. Isto fica ainda mais claro, quando nos cumprir a finalidade que Deus lhes indicara; o que mais eles são,
voltamos para o outro interlocutor, Abraão. Onde está ele? Não o forain ou serão permanece no escuro. Uma viagem é feita, pois
sabemos. Ele diz, contudo: "Eis-me aqlli" - mas a palavra Deus indicara o local onde se consumaria o sacrifício; mas nada é
hebraica significa algo assim como ''vede-me' ' ou, · como traduz dito acerca dessa viagem, a não ser que durara três dias, e mesmo isto
Gunkel, ''ouço' ' e, em qualquer caso, não quer indicar o lugar real é.expresso de forma enigmática: Abraão e sua comitiva partiram ''de
no qual Abraão se encontra, mas o seu lugar moral em relação a manhã cedo' ' e se dirigiram ao lugar do qual Deus lhes havia
Deus que o chamara: estou aqui, à espera das tuas ordens. Não é falado; ao terceiro dia elevou os olhos e viu o lugar de longe. O
comunicado, contudo, ónde ele se encontra praticamente, se em levantar dos olhos é o único gesto, é propriamente a única coisa que·
Beer-Sheba ou em outro lugar, se em casa ou ao ar livre. Não nos é dita acerca da viagem, e ainda que ele se justifique pelo fato
interessa ao narrador; o leitor não o fica sabendo, e também a de o local se encontrar num lugar elevado, aprofunda, pela sua
ocupação à qual se dedicava, quando Deus o chamou, fica ás própria singeleza, a impressão de vazio da caminhada; é como se,
escuras. Lembre-se, para bem perceber a diferença, que na visita de durante a viagem, Abraão não tivesse olhado nem para a direita
Hermes a Calipso.. onde a incumbência, a viagem, a chegàda· e a nem para a esquerda, como se tivesse reprimido todas as manifesta·
recepção do visitante, a situação e a ocupação da pessoa visitada, se ções vitais, assim como as dos companheiros, exceto o andar dos
estendem ao longo de muitos versos; e mesmo nos momentos em seus pés. Desta forma, a viagem é como um silencioso andar
que os deuses aparecem repentinamente só por breves instantes, através do indeterminado e do provisório, uma contenção do fôlego,
seja para auxiliar os seus favoritos, seja para confundir ou perder um acontecimento que não tem presente e que está alojado entre o
um dos seus odiados mortais, sempre é indicada claramente a sua que passou e o que vai acontecer, como uma duração não preenchi-
figura e, o mais das vezes, o meio da sua chegada e do seil da, que é, todavia, medida: três dias! Esses três dias reclamam a
desaparecimento. Aqui, porém, Deus aparece carente de forma (e, interpretação simbólica que mais tarde obtiveram. Começaram ' 'de
contudo, ''aparece''), de algum lugar, só ouvimos a sua voz, e esta manhã cedo''. Mas a que hora do terceiro dia levantou Abraão os·
não chama nada além do nome: sem adjetivo, sem atribuir à pessoa olhos e viu a sua meta? Não há no texto nada a respeito. Evidente·
interpelada um epíteto, como seria o caso em qualquer apóstrofe mente não ''tarde na noite'', pois restou-lhe, ao que parece, tempo
homérica. E também de Abraão nada é tornado sensivel, afora as suficiente para subir a montanha e preparar o sacrifício. Portanto,
palavras com que ele replica a Deus: Hinne-ni, "Eis-me aqui" - "de manhã cedo" não está empregado em função de uma demarca-
com o que, evidentemente, é sugerido um gesto extremamente ção temporal, mas em função de um significado moral; deve
'impressionante que exprime obediência e prontídão - CUJO acaba- exprimir o imediato, o pontual e a exatidão da obediência do
mento é deixado, contudo, ao leitor. Assim, nada dos interlocuto· desafortunado Abraão. Amarga é para ele a manhã em que sela ·o
res é manifesto, exceto as palavras, breves, abruptas, que se seu jumento, chama os servos e o filho Isaac e parte; mas ele
chocam duramente, sem preparação alguma; quando muito, a obedece, caminha até o terceiro dia, quando levanta os olhos e vê o
representação de um gesto de total entrega; tudo o mais fica no lugar. De onde vem, não o sabemos, mas a meta · é indicada
escuro. A isto ainda se junta o fato de os dois interlocutores não claramente: Jeruel, na terra de Moriá. Não foi estabelecido que
- -·-~- """" """""'n nl11nn: noclemos ima~inar, num primeiro lugar é este, ·pois é possivel que "Moriá" tenha sidó introduzido
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posteriormente como correção a uma outra palavra - mas, em carregando a lenha e Abraão, o fogo e a faca, "caminhavam".
todo caso, o local estava indicado; tratava-se, sem dúvida de um Isaac atreve-se a perguntar, hesitante, acerca da ovelha, e Abraão
lugar. de culto, ao qual deveria ser conferida uma co~agração dá a resposta que conhecemos. Ali repete· o· texto: "E ambos,
especial em conexão com a oferenda de Abraão. Do mesmo modo juntos, continuaram o seu caminho." Tudo permanece inexpresso.
que "de manhã cedo'' não tem a função de fixar uma delimitação Não é fácil, portanto, imaginar contrastes de estilo mais
tem"?ral, " .Jeruel, na terra '<ie Moriá" não~ fixa uma delimitação marcantes do que estes, que pertencem a textos igualmente antigos
espaaal, pois, em nenhum do.s dois casos, conhecemos o limite e épicos. De um lado, fenômenos aca)?ados, uniformemente ilumi-
oposto - do mesmo inodo que não sabemos a hora em que Abraão nados, definidos temporal e espacialmente, ligados entre si, sem
levantou os olhos nem o lugar de onde partiu - Jeruel importa não interstk:ios, num primeiro plano; pensamentos e sentimentos ex-
tanto como meta de uma viagem terrena, na sua relação geográfica pressos; acontecimentos que se desenvolvem com muito vagar e
com outros lugares, mas por sua especial eleição, por sua relação pouca tensão. Do outro lado, ·SÓ é acabado formalmente aquilo que
· com. Deus, que o determinara como ·cenário desta ação - pof isso nas manifestações interessa à meta d~ ação; o restante fica na
precisa ser nomeado. ·· escuridão. Os pontos culminantes e decisivos para a ação são os
Na narração apar~e uma terceira personagem importante, únicos a serem salientados; o que há entre eles é inconsistente;
Isaac. Enquanto Deus e Abraão, servos, burros e utensllios são tempo e espaço são indefinidos e precisam de interpretação; os
simplesmente chamados pelo nome, sem menção de qualidades ou pensamentos e os sentimentos permanecem inexpressos: só são
de qualquer outra especificação, Isaac obtém, uma vez, uma aposi- sugeridos pelo silêncio e por discursos fragmentários. O todo,
ção; Deus diz: ''.Toma teu filho, teu único filho a quem tanto dirigido com máxima e ininterrupta tensão para um destino e, por
amas, Isaac.'' Isto, contudo, não é uma cãracterização de Ísaac isso mesmo, muito mais unitário, permanece enigmático e carregado
C?mo pessoa fora da sua relação com o pai, e fora da narrativa; não de segundos ·planos. Acerca desta última expressão, quero· expri-
é um desvio, nem uma interrupç.ão descritiva, pois não se trata de mir-me com maior clareza, para que ela não seja mal compreen-
uma caracterização que delimite Isaac, que remeta à sua existência dida. Falei mais acima do estilo homérico como ~do de ''primeiro
como. um todo. Ele pode ser belo ou feio, inteligente ou tolo, alto plano", porque , apesar dos muitos saltos para trás ou para diante,
.ou. ba~~· atraen.te ou repulsivo - nada disto é dito. Só aquilo que deixa agir o que é narrado, em cada instante, como presente único e
deve ser conhecido a seu respeito aqui e agora, dentro dos limites puro, sem perspectiva . A observação do texto elolsta mostra-nos
da açãq, aparece iluminado - para salientar quão terrível { a que a expressão pode ser emprégada mais ampla e profundamente.
tentação de Abraão, e quão consciente é Deus desse fato. Obser- Evidencia-se que até a personagem individual pode ser apresentada
va-se com este exemplo antitético qual é a significação dos adjetivos como carregada de segundos planos: Deus sempre o é na Biblia,
descritivos e as digressões da poesia homérica; com a sua alusão ã pois não é, como Zeus, apreensível na sua presença; só "algo"
existência restante da personagem descrita, àquilo que não é total- dele aparece em cada caso, ele sempre se estende para as profundi-
mente apreen~ido pela situação, à sua existênda, por assim dizer, dades. Mas os próprios seres humanos dos relatos biblicos são mais
absoluta, eles impedem a concentração unilateral do leitor na crise ricps em segundoS' planos do que os homéricos; eles têm mai~
presente; impedem, mesmo no mais espantoso dos acontecimentos profundidade quanto ao tempo, ao destino e à consciência. Ainda
o surgimento de uma tensão opressiva: Mas no caso da oferenda d~ que estejam quase sempre envolvidos num acontecimento que os
Abraão, a tensão opressiva existe. O que Schiller queria reservar ocupa por completo, não se entregam a tal acontecimento a ponto
para o poeta trágico - roubar-nos a nossa liberdade de ânimo de perderem a permanente consciência do que lhes acontecera em
dirigir numa só direção e concentrar as nossas forças interiore~ outro tempo e em outro lugar; seus pensamentos e sentimentos têm
(Schiller diz "a nossa atividade") - é obtido neste relato bíblico mais camadas e silo mais intrincados. O modo de agir de Abraão
que, certamente, deve ser considerado épico. explica-se não só a partir daquilo que lhe acontece momentanea-
Enco?tramos ? mesmo contraste quando comparamos o em: mente ou do seu caráter (como o de Aquiles por sua ousadia e
prego do d~scurso direto. No relato biblico também se fala· mas ·0 orgulho, o de tnisses por sua astúcia e prudente previsão), mas a
discurso não tem, como em Homero, a função de manife~tar ou partir da sua história anterior. Ele se lembra, tem permanente
exte~orizar pensamentos. Antes pelo contrário: tem a intenção de consciência do que Deus lhe prometera e do que já cumprira -
alud1T a algo implícito, que permanece inexpresso. Deus dá a sua o seu interior está profundamente excitado, entre a indignação deses-
ordem em discurso direto, mas cala seus motivos e intenções. perada e a esperança confiante; a sua silenciosa obediência é rica em
Abraão, ao receber a ordem, emudece, e age da maneira que lhe camadas e em planos - é impossivel para as figuras homéricas,
fora ordenada. A conversa entre Abraão e Isaac no caminho ao cujo destino está univocamente determinado, e que acordam todo
local do sacriflcio não é senão uma interrupção do pesado silêncio e dia como se fosse o primeiro, cair em situações internas tão
serve apenas para tomá-lo mais opressivo. "Juntos os dois", Is;ac problemátiLaS. As suas emoções são violentas, convenhamos, mas
10 MIMESIS A CICATRIZ DE ULISSES 11

são também simples e irrompem de imediato. Quanta profundidade posteriores, orientadas no sentido do alegóric~, tentaram aplicar as
há, em _contraste, nos caracteres de Saul ou Cle Davi, quão intrinca- suas artes exegéticas também a Homero; mas lSSO a nada levou. Ele
das e ricas em planos são as relações humanas, como a de Davi e resiste a um tal tratamento. As interpretações são forçadas e
Abs~lã? ?U de Davi e Joab! Em Homero seria inimaginável uma estranhas, e não se cristalizam numa teoria unitária. As considera- .
mult1phc1dade de planos nas· situações psicológicas como a que é ções de caráter geral que se encontram ocasionalmente - em nosso
mais sugerida do que expressa na história da morte de Absalão e no episódio, por exemplo, o verso 360: "pois na desgraça os homens
seu epílogo (2 Sam. 18 e 19, do assim chamado javista). Trata-se logo envelhecem' ' - revelam uma trll!lqüila aceitação dos dados da
aqui não apenas de acontecim_entos psíquicos carregados de segundos• existência humana, ·porém não a necessidade de cismar sobre o
planos, de profundezas, talvez, abissais, mas também de um segtin- llSSunto, e menos ainda, um impulso apaixonado, seja de se levantar
do plano puramente espacial. Pois Davi está ausente do campo de c;ontra isto, seja de se submeter com abandono extático.
batalha; mas as irradiações da sua vontade e dos seus sentimentos Tudo isto é com~etamente diferente nos relatos biblicos. O
têm efeito constante, agem até sobre Joab que resiste e age sem encantamento sensorial não é a sua intenção, e se, não obstante,
consideração; na grandiosa cena com os dois emissários, tanto os têm úm efeito liastante vital também no campo sensorial, isto se
segundos planos espaciais quanto os psíquicos atingem uma expres- deve ao fato de que os sucessos éticos, religiosos, interiores, que são
são perfeita, sem que os últimos sejam expressos. Confronte-se com os únicos que lhes interessam, se concretizam no material sensivel
isto a maneira como Aquiles, que envia Pátroclo primeiro à da vida. Porém, a intenção religiosa condiciona uma exigência
descoberta e depois à luta, perde quase toda presença, enquanto não absoluta de verdade histórica. A história de Abraão e de lsaac não
a~arece materialmente. O mais importante, contudo, é a multipli- está melhor testificada do que a de Ulisses, Penélope e Euridéia;
odade de camadas dentro . de cada homem; isto é dificilmente ambas são lendárias. Só que o narrador biblico, ·o Elolsta, tinha de
encontrável em Homero, quando muito na forma da dúvida cons- acreditar na verdade objetiva da história da oferenda de Abraão - a
ciente entre dois possíveis modos de agir; em tudo o mais, a persistência das ordens sagradas da vida repousava na verdade desta
multiplicidade da vida psíquica mostra-se nele só na sucessão no história e de outras semelhantes. Tinha de acre~itar nela apaixona-
revezamento das. paixões; enquanto que os autores judeus co~se­ damente - ou então, deveria ser, como alguns exegetas ilumi?istas
guem exprimir as camadas simultaneamente sobrepostas da cons- admítiram ou, talvez, ainda admitem, um mentiroso consciente,
ciência e o conflito entre as mesmas. · não um mentiroso inofensivo como Homero, que mentia para
Os poemas homéricos, cuja cultura sensorial, linguística e agradar, mas um mentiroso polltico consciente das suas metas, que
sobretudo, sintática, parece ser tanto mais elaborada, são, contudo: mentia no interesse de uma pretensão á autoridade absoluta. Esta
na sua imagem do homem, relativamente simples; e também o são, visão iluminista parece-me psicologicamente absurda, mas 111esmo
em geral, na sua relação com a realidade da vida que descrevem. A se a levarmos em consideração, a relaç"ão entre o narrador l1tblico e
alegria pela existência sensível é tudo para eles, e a sua mais alta a verdade do seu relato permanece muito mais apaixonada, muito
intenção é apresentar-nos esta alegria. Entre lutas e paixões, aven· mais univocamente definida, do que a de Homer0. Tinha de
turas e perigos, mostram-nos caçadas e banquetes, palácios e escrever exatamente aquilo que lhe fosse exigido por sua fé na
choupa:ias de pastores, competições e lavatórios - para que obser- verdade da tradição, ou, do ponto de vista racionalista, por seu
~emos os heróis na sua maneira bem própria de viver e, com interesse na sua verossimilhança - seja como for, à sua fantasia
isto, nos alegremos ao vê-los gozando o seu presente saboroso, inventiva ou descritiva estava estreitamente delimitada. Sua ativi-
bem inserido em costumes, paisagens e necessidades quotidianas. E dade devia limitar-se a redigir de maneira efetiva a tradição devota.
eles nos encantam e cativam de tal maneira que realmente compar- O que ele produzia, portanto, não visava, imediatamente, à ''reali-
tilhamos o seu viver. Enquanto ouvimos ou lemos a sua estória dade'' - quando a atingia, isto era ainda um meio, nunca um fim
é-nos absolutamente indiferente saber que tudo não passa de lenda' -, mas à verdade. Ai de quem não acreditasse nela! Pode-se
que é tudo "mentira". A exprobração frequentemente Ievantad~ abrigar muito facilmente objeções histórico-criticas quanto à guerra
contra Homero de que ele seria um mentiroso nada tira da sua de Tróia e quanto aos errares de Ulisses, e ainda assim sentir, na
eficiência; ele não tem necessidade de fazer alarde da verdade his- leitura de Homero, o efeito que ele procurava; mas, quem não crê
tórica do seu relato, a sua realidade é bástante forte; emaranha-nos, na oferenda de Abraão não pode fazer do relato \jfblico o uso para o
apanha-nos em sua rede, e isto lhe basta. Neste mundo "real" qual foi destinado. É necessário ir mais longe ainda. A_pretensão de
existente por si mesmo, no qual somos introduzidos por encanto: verdade da Biblia é não só muito mais urgente_g!,!_e a de Homero,
não há. tampouco outro conteúdo a não ser ele próprio; os poemas mas chega a ser tirânica;_excl~Quer outra pretensão. O mundo
homéricos nada ocultam, neles ..não há nenhum ensinamento e dos relatos ºdãSSãgradas Escrituras não se contenta com a pretensão
nenhum segundo sentido oculto. É possível analisar Homero como de ser uma realidade historicamente verdadeira - pretende ser o
.
o tentamos aqui, mas não é posslvel interpretá-lo. Tendências ' único mundo verdadeiro, destinado ao dominio exclusivo. Qualquer
12 MIMESIS A CICATRIZ DE ULISSES 13

outro cenário, quaisquer outros desfechos ou ordens não têm Aneos, para o que o método exegético fornecia as b~ses.
direito algum a se apresentar independen'temente dele, e está escrito isto se toma impraticável, pela transformação demasiado
que todos eles, a história de toda a humanidade, se integrarão e se nda do meio ambiente e pelo despertar de uma consci~cia
subordinarão aos seus quadros. Os relatos das Sagradas Escrituras 1 a pretensão à autoridade corre perigo; o método exegético é
não procuram o nosso favor, como os de Homero, não nos lison- ~do e deixado de lado, os relatos bíblicos co~ve_rtem·se em
jeiam para nos agradar e encantar ---: o que querem é nos dominar, 11 lendas e a doutrina, desmembrada dos mes1:11os, torna-se
e se nos negamos a isto, e~tão somos rebeldes. Não se queira forma incorpórea que não ~ais penetra na realidade sensivel
objetar que isto é ir demasiado longe, que não é o relato, mas a que se volatiliza na exaltação pessoal. .
doutrina religiosa que aprésenta estas pretensões, pois os relatos Como conseqüência da pretensão à autoridade absoluta, o
justamente não são, como os de Homero, mera "realidade" narra- odo exegético estendeu-se também a outras tradições que não a
da. Neles encarnam-se doutrina e promessa indissoluvelmente fun- ka. Os poemas homéricos fornecem um co~p~exo de. aconte·
didas; precisamente por isso têm um caráter recôndito e obscuro, ntos preciso, espacial e tempo~almente delimitado; mdepen-
contêm um segundo sentido, oculto. Na história de Isaac· não é te dele, concebem-se tranquila e facilmente outros complexos
somente a intervenção de Deus no principio e no fim , mas também, teriores simultâneos e posteriores. O Velho Testa1nent~, porém ,
os elementos fatuais e psicológicos no seu interior que permanecem cce hlstória universal; começa com o prind~io dos tempos,
o~scuros, tocados apenas de leve, carregados de segundos planos; e porra a criação do mundo, e quer acabar com o 6m dos te~pos , co~
é Justamente por isso que não só precisam de investigação profunda ocumprimento da promessa, com a qual o mundo devera encontrar
e interpretação, mas até o exigem. Que Deus tente até o mais o acu fim. Tudo o mais que ainda acontece no mundo só ~e ~r.
piedoso da maneira mais ternvel, que a obediência incondicional 1prescntado como membro desta estrutura.; tu~o o q~e disto fica
seja a única atitude possivel perante Ele, mas que também a sua 11rndo conhecido, ou até interfere com a h1stóna dos Judeus,. ~eve
promessa seja inamovlvel, por mais que· as suas decisões pareçam l t'r embutido na estrutura, como parte constitutiva do plano divmo;
destinar-~e a produzir a dúvida e o desespero - estes são os r como isto também só é possível pela interpretação do novo
ensinamentos talvez mais importantes contidos na história de Isaac material afluente, a necessidade exegética se estende além dos
- mas, por sua causa, o texto fica tão pesado, tão carregado de umpos primitivos da realidade judeu-israelita: por exemplo, à
conteúdo, ele contém em si ainda tantas alusões acerca da essência história assíria, babilônica, persa, romana; a interpretação num
de Deus e da atitude do homem piedoso, que o crente se vê lll'lttido determinado tor~a-se um método geral de apreens~o da
motivado a se aprofundar uma e outra vez no texto e a procurar em realidade; o mundo estranho, penetrando constantemente como
todos os seus pormenores a luz que possa estar oculta. E como, de novo no horizonte e que, tal ·como se apresenta de forma imediata,
fato, há no texto tanta coisa obscura e inacabada, e como ele sabe que (' , em geral, totalmente impratichrel para o seu. uso no conte~o
Deus é um Deus oculto, o seu afã interpretativo encontra religioso judeu, deve ser interpretado de tal manetra que Sé encai.~e
sempre novo alimento. A doutrina e o zelo na procura da ilu- nele. Mas quase sempre isto repercute sobre o ~ontexto q~e care~e
minação estão indissoluvelmente ligados ao caráter do relato - de ampliação e de modificação. O trabalho .mt~rpretativo mais
este é mais do que mera " realidade" - e estão, naturalmente, em impressionante desta espécie ocorreu nos pnme1ros séculos d~
constante perigo de perder a própria realidade, como ocorreu logo Cristianismo como conseqilência da missão entre· pagãos, e fo1
que a interpretação atingiu tal grau de hipertrofia que chegou a realizado po; Paulo e pelos Pais da Igreja; eles re·interpre_taram
decompor o real. · toda a tradição judaica numa série de figuras a prognosticar a
Se, desta forma, o texto do relato bíblico necessita tanto de aparição de Cristo, 'e indicaram ao Império Romano o seu lugar
interpretação a partir do seu próprio conteúdo, sua pretensão à dentro do plano divino da salvação.. Portanto, enquanto, por um
autoridade absoluta leva-o ainda mais longe por este caminho. Pois lado, a realidade do Velho Testamento aparece como verdad~ plena,.
ele não quer nos fazer esquecer a nossa própr ia realidade durante com·pretensões à hegemonia, estas mes1?as pretensões o~ngam-~a
algumas horas, como Homero, mas suplantá-la; devemos inserir a uma constante modificação · interpretattv~ do seu própn.o conteu-
nossa própria vida no . seu mundo, sentirmo-nos membros da sua do· este sofre durante milênios um desenvolvimento constante e
estrutura histórico-universal. Isto se toma cada vez mais difícil à ati~o com a vida do homem na Europa. .
medida que o nosso mundo vitaJ se afasta do mundo das Escritur~ , Ã pretensão à universalidade histórica e a insistente relação
e se este mundo, apesar de tudo, mantém em pé a sua pretensão à que constantemente se redefine em conflitos - com um Deus
autoridade, é i~perioso que ele próprio se adapte, através de uma único, oculto, porém aparente, que dirige a história universal,
transformação interpretativa. Isto foi relativamente fácil por muito prometendo e exigindo, confere aos relatos do Velho Testamen~o
tempo; durante a Idade Média européia era poss~vel , ainda, repre· uma perspectiva totalmente diferente daquela que Homero ~er~a
sentar os acontecimentos l:ífblicos como sucessos quotidianos con- possuir. O Velho Testamento é incomparavelmente menos umtáno
14 MIMESIS 15
A CICATRIZ DE ULISSES

na sua composição do que os poemas homéricos, é mais evidente emente caracterlstico do que o jovem; pois só no decorrer de
mente feito de retalhos - mas cada · um deles Pertence a vida rica em lances de fortuna os homens se diferenciam até a
contexto histórico-universal e interpretativo da história universal. a caracterização; e o Velho Testamento nos oferece este cará-
Ainda que tenham recebido alguns elementos, dificilmente encai- de história das personalidades como modelagem daqueles que
xá".eis, ain?a assim estes são apreendidos pela interpretação; e us escolheu para o desempenho dos papéis exemplares. Duramen-
assim o leitor sente a cada instante a perspectiva religiosa e 11 envelhidas pelo seu desenvolvimento às vezes até a decomposi-
histórico-universal que confere a cada um dos relatos o seu sentido flo, elas apresentam um cunho individual que é totalmente estra-
e a sua meta globais. Quanto mais isolados e horizontalmente nho aos heróis homéricos. A est~, o tempo só pode afetar exte-
independentes são os relatos e os grupos de rel~tos, se comparados riormente, e mesmo isto é evidenciado o menos possível; em
com_ os da Ilíada e da Odisséia, tanto mais forte é a sua ligação contraste, as figuras do Velho Testamento estão constantemente
vertical comum que os mantém todos juntos sob um mesmo signo, lob a dura férula de Deus, que não só as criou e escolheu, mas
o que falta totalmente a Homero. Em cada uma das grandes figuras continua a modelá-las, dobrá-las e amassá-las, extraindo delas, sem
do Velho Testamento, desde Adão até os Profetas, encarna-se um cltstruir a sua essência, formas que a sua juventude dificilmente
momento da mencionada ligação vertical. Deus escolheu e moldou cltlxava prever. A objeção de que o histórico-vital do Velho Testa-
estas personagens para o fim da encarnação da sua essência e da sua mento surgiu, muitas vezes, da síntese de diversas perso~agens
vontade - mas a eleição e a modelagem não coincidem; esta última , lendárias, não nos atinge; pois esta síntese faz parte do surgime~to
realiza-se paulatinamente, de maneira histórica, durante a vida ' do texto. E quão mais ampla é a oscilação do pêndulo do seu destino
terrena dos escolhidos. Na história do sacrificio de Abraão vimos do que aquela dos heróis homéricos! Pois eles são os portadores da
como isto ocorre, que terrlveis provas envolve uma tal modelagem. vontade divina, e mesmo assim, são falfveis, sujeito$ a desgraça e
Daí decorre o fato de as grandes figuras do Velho Testamento humilhação - e em meio à desgraça e à _h~milhação manifes~a.-s:,
serem mais plenas de desenvolvimento, mais carregadas da sua 1través das suas ações e palavras, a sublimidade de Deus. D1fic1l-
própria história vital e mais cunhadas na sua individualidade do que mente um deles não sofre , como Adão, a mais profunda humilha-
os heróis homéricos. Aquiles e Ulisses são descritos magiiificamen- ção - e dificilmente um deles não é agraciado pela intervençã~ e
te, por meio de muitas e bem formadas palavras, carregam uma Inspiração pessoais de Deus. Humilhação e exaltação são muito
série de epuetos, suas emoções manifestam-se sem reservas nos mais profundas ou elevadas do que em Ho?1ero, .e, fundament~­
seus discursos e gestos - mas eles não têm desenvolvimento algum mente, andam sempre juntas. O pobre mendigo Uhsses,não é senao
e a história das suas vidas fica estabelecida univocamente. Os heróis um disfarce, mas Adão é real e totalmente expulso, Jaco é r:almen-
homéricos estão tão pouco apresentados no seu desenvolvimento te um fugitivo e José é realmente lançado num poço e , mais tarde,
presente e passado que, na sua maioria - Nestor , Agamemnon, realmente vendido como escravo. Mas a sua grandeza, que se eleva
Aquiles - aparecem com uma idade pré-fixada. O próprio Ulisses da própria humilhação, é próxima do sobre-humano e é, também,
que dá tanta margem a um desenvolvimento histórico-vital, graças um reflexo da grandeza divina. Percebe-se claramen~e c01?10 a
ao longo tempo narrado e aos muitos acontecimentos que nele amplidão da oscilação pendular está em relação com a mtens1da~e
ocorrem, quase nada mostra disso tudo. É claro que Telêmaco da história pessoal - justamente as situações extremas, nas qu~1s
cresceu enquanto isto, do mesmo modo que toda criança chega à somos abandonados ou lançados ao desespero extremo, nas quais,
adolescência; durante a digressão acerca da cicatriz, conta-se tam- além de toda medida, nos sentimos felizes ou exaltados, confe-
bém idilicamente a infância e adolescência de Ulisses. Mas Penélo- rem-nos, quando as superamos, um cunho ~ssoal que se r~o­
pe pouco mudou nesses vinte anos; no caso do próprio Ulisses o nhece como resultado de um intenso desenvolvimento, de uma nca
envelhecimento meramente físico é velado pelas repetidas interv;n- existência. E este caráter evolutivo confere.~ aliás, quase sempre aos
ções de Atenéia, que o faz aparecer velho, ou jovem, segundo o relatos do Velho Testamento um caráter histórico, mesmo nos
requer cada situação. Para além do fisico, nem sequer se faz alusão casos em que se trata de tradições meramente lendárias.
a outra coisa, e, no fundo, Ulisses é, quando regressa, exatamente o Homero permanece, com todo o seu assunto, no lendário,
mesmo que abandonara Ítaca duas décadas atrás. Mas, que cami- enquanto que o assunto do Velho Testamento, à medida que o
nho, que destino se interpõe entre o Jacó que obteve ardilosamente relato avança, aproxima-se cada vez mais do histórico; na narr~ção
a bênção do primogênito e o ancião cujo filho mais amado foi de Davi já predomina o relato histórico. Ali também. há .ª~da
despedaçado por uma fera - entre Davi, o harpista, perseguido muito de lendário, como, por exemplo, os relatos de Davi e Goltas;
pelo ciúme do seu senhor, e o velho rei, circundado de intrigas só que muito, a bem dizer o ess~ci'.11, cons~ste em coisas que os
apaixonadas, aquecido no seu leito por Abisai, a Sunamita, sem que narradores conhecem por expenênc1a própna ou através de tes-
ele a reconheça! O velho, de quem sabemos como chegou a ser o temunhos imediatos . Ora, na maioria dos casos, a diferença entre
que é, grava-se mais fortemente na nossa consciência, é mais lenda e história é, para o leitor um pouco experiente, fácil de
16 MIMES IS A CICATRIZ DE ULISSES 17

descobrir. Se é difícil distinguir, dentro de um relato histórico o empregar freqüentemente os mesmos. Escrever história é tão difícil
verdade~ro do falso ou do parcialmente iÍuminado, pois isto req~er que a maioria dos historiadores vê-se obrigada a fazer concessões à
uma cuidadosa formação histórico-filológica, é fácil, em geral, se- tknica do lendário. ·
parar a lenda da história. A sua estrutura é diferente. Mesmo E claro que uma boa parte dos livros de Samuel contém
quando a lenda não se denuncia imediatamente pela presença de história, e não lenda. Na rebelião de Absalão, ou nas cenas dos
elementos maravilhosos, pela repetição de motivos conhecidos, pelo óltimos dias da vida de Davi, o contraditório e o entrelaçamento
desleixo na localização espacial ou temporal, ou, por outras coisas dos motivos nos indiviâuos e na trama total tornar~~se tão
semelhantes, pode ser reconh~ida rapidamente, o mais das vezes, concretos que não se pode duvidar cio caráter autenttcamente
por sua estrutura. Desenvolve-se de i:naneira excessivamente linear. histórico do relato. Até que ponto possam ter sido desfigurados os
Tudo o que correr transversalmente, todo atrito, todo o restante acontecimentos por parcialidade isto é uma outra questão .que não
seCüiidáno, que se insinua nos acontecimentos e motivos princi~ nos interessa agora; de qualquer forma, aqui· começa a passagem ?º
pais, todo o indeciso, quebrado e vacilante, tudo o que confunde o lendàrio para o relato histórico. que f~lta totalmente nas poesias
claro curso da ação e a simples direção das personagens, tudo isSo é homéricas. Ora, as pessoas que redigiram as partes históricas dos
apagado. A história que presenciamos, ou que conhecemos através livros de Samuel são, em grande parte, as mesmas que redigiram
de testemunhos ,de contemporâneos, transcorre de maneira muito também as lendas mais antigas; além disso, sua peculiar concepção
menos uniforme, mais cheia de contradições e confusão; sÓ quando, ' religiosa do homem na história, concepção esta que p_retet_ldemos
numa zona determinada, ela já produziu resultados, podemos com a descrever acima, não os levava, de maneira alguma, á simplificação
sua ajuda, ordená-los de algum modo; e quantas vezes a ordem que lendária do acontecido; assim, não deixa de ser natural que, me~mo
assim achamos ter obtido, toma-se novamente duvidosa, quantas nas partes lendàrÍas do Velho Testamento, seja freqüente a apanção
vezes nos perguntamos se aqueles resultados não nos levaram a de estruturas históricas; naturalmente não no sentido de que a
uma ordenação demasiado simplista do originalmente acontecido! tradição seja examinada quanto à sua credibilidade de man~ira
A lenda on;lena o assunto de modo unívoco e decidido, destaca-O da' científico-critica· mas meramente de tal forma que não predomma
sua restante conexão com o mundo, de modo que este não pode no mundo lendàrio do Velho Testamento a tendência para a
intervir de maneira perturbadora; ela só conhece homens univo- harmonização aplainante do acontecido, para a simplificação dos
camente fixados, determinados por poucos e simples motivos cuja motivos e para a fixação estática dos caracteres, evitando conflitos,
integridade de sentimentos e ações não pode ser prejudicada. Na vacilações e desenvolvimento, como é próprio da estrutura lendàri.a.
lenda dos mártires, por exemplo, vemos como se enfrentam obsti- Abraão, Jacó ou até. Moisés, têm um efeito ma~s concreto
nados e f;máticos perseguidos e um perseguidor não menos teimoso e próximo e histórico do que as figuras do mundo homénc~>, não por
fanático; uma situação tão complicada, isto é, tão verdadeiramente estarem melhor descritos plasticamenté - pelo contrário - mas
histórica, como aquela em que se encontra o' 'perseguidor" Plinio, porque a variedade confusa, contraditória'. ric~ em ini~ições dos
na famosa carta que escreve a Trajano acerca dos cristãos, não pode 11contecimentos internos e externos que a h1stóna autêmtca mostra
ser usada em lenda alguma. E este caso ainda é relativamente não está desbotada na sua representação, mas está ainda nitidamen- ·
simples. Pense-se na história que nós mesmos estamos vivendo: te conservada. Isto depende, em primeiro lugar, da concepção
quem refletir sobre o procedin:iento dos indivíduos e dos grupos judaica do homem, mas também do fato de os redatores não ter:m
humanos no nascimento do nacional-socialismo da Alemanha, ou o sido bardos, mas historiadores, cuja idéia da estrutura da vida
procedimento dos diferentes povos e Estados antes e durante a atual humana se formara no campo do histórico. Com isto fica, também,
guerra (1942), sentirá como são dificilmente representáveis os muito claro de que forma, como consequência da unidade_ da
objetos históricos em geral, e como são impróprios para a lenda; o estrutura religiosa-vertical, não podia surgir uma divisão consciente
histórico contém em cada individuo uma pletora de motivos coo-. cios gêneros literários. Todos eles pertencem à mesma ordem ge_ral;
traditórios, em cada grupo uma vacilação e um tatear amblguo; só tudo o que não pudesse ser nela encaixado, ainda qu: f?5se median-
raramente (como agora, com a guerra) aparece uma situação fortui - te a interpretação, não tinha lugar algum. Aqui interessa-nos
tamente un'iVoca que pode ser descrita de maneira relativamente sobretudo como se dá, nos relatos dav1dicos, a transição impere~
simples, mas mesmo esta é subterraneamente graduada, e a s~a tlvel só reconhecível pela crítica cientifica posterior, do lendário
unívocidade está quase constantemente em perigo, e os motivos de para o histórico; e como, já no lendário, se apreende apaixonada-
todos os participantes têm tantas camadas que os slogans propagan- mente o problema da ordem e da interpretação do acontecer
disticos só chegam a ex.istir graças à mais grosseira simplificação - humano, um problema que, mais tarde, explode os limites da
o que tem como conseqüência que amigos e inimigos possam Historiografia, sufocando-a por inteiro na profecia. Assim, o Velho
18 MIMES IS A CICATRIZ DE ULISSES 19 1
1
1
Testamento, enquanto se ocupa do aconteter humano domin Israel-Judá deve ter sido de uma espécie mui~o difer~nte e mu~to 1

todos os três âmbitos: ~enda, relato histórico e teologia' histórica mais elementar do que nas próprias democracias arcaicas posteno- 1
1
exegética. rcs. 1
Com isto que acabamos de analisar relaciona-se també A historicidade e mobilidade social mais profundas dos textos 1
o fato de o texto grego parecer também mais limitado e mais elo Velho Testamento relacionam-se, finalmente, co~ mais u~a 1
estático com referência ao círculo das personagens atuantes e da su 2 óltima diferença significativa: delas surge um conceito de estilo 1
1
atividade política. No processo do reconhecimento, do qual parti- tlevado e de sublimídade diferente do de Homero . .Este certa~ente 1
·mos, aparece, além de Ulisses e de Penélope, a ama Euridéia, uma nllo receia 'inserir o quotidiano e realista no sublime e trágico; tal 1
escrava comprada outrora pelo pai de Ulisses, úierte. Tal como o fl'Ceio seria estnmho a seu estilo e inconciliável com ele. Vê~se no 1

pastor de porcos Eumeu, ela passóu a vida a serviço da familia dos nosso episódio da cicatriz, como a cena caseU:a ~~ la~a·pés, pm~ada 1
aprazivelmente, é entretecida na grande, s1gmficat1va e subhme 1
Laerte; tal como Eu:meu, está estreitamente unida ao seu destino
ama-os e compartilha os seus interesses e sentimentos. Mas nã~
1
cena da volta ao lar. Isto está longe, ainda, daquela regra da 1
possui vida nem sentimentos próprios mas só os dos seus senhores. 11Cparação dos estilos que mais tarde se imporia q~a;;e por c~mplet~, ·
Também Eum~u, não obstante ainda se lembre de ter nascido livre e que estabelecia que a descrição realista do quotidiano era mconc1-
~ pe~encer até a uma família nobre (fora roubado quando criança), lh\vel com o sublime, e só teria lugar no cômico ou, em todo caso,
Já nao t~m,. nem na prática, nem nos sentimentos, vida própria, cuidadosamente estilizado, ~o idilico. E contudo, Homero está ?1ais
estando mte1ramente atado à dos seus senhores. Estas duas perso- perto dela do que o Velho Testamento. Poi~ os gr~des e ~ublimes
nagens são, porém, as únicas que Homero anima para nós e que acontecimentos ocorrem nos poemas homéricos mmto mais exclu-
não pertencem á classe senhorial. Com isto .chega-se à consciência 1lva e inconfundivelmente entre os membros de uma classe senho-
de que a vida, nos poemas homéricos, só se desenvolve na classe rial· estes são muitos mais intatos na sua heróica sublimidade do
senhorial -:-- tudo o que porventura viva além dela só participa de que' as figuras do Velho Testamento, que podem ça.ir muito mais
n:iodo serviçal. A classe senhorial é ainda tão patriarcal, tão familia- . profundamente na sua dignidade - pense-se, ~r exempl<_>, em
nzada com as atividades quotidianas da vida econômica, que às Adão, Noé, Davi, Jó -; e, finalmente, o ·realismo caseiro, a
~ez.es se ~hega a esquecer seu caráter de classe. Só que ainda é representação da vida quotidiana, perman~cem sempre;_ en:i ~fome­
mco~n?1velme~te uma espécie de aristocracia feudal~ cujos ho- ro no idílico-pacifico - enquanto que, Já desde o pnnc1p10, nos
men~ dividem a vida entre a luta, a caça, as deliberações no mercado reÍatos do Velho Testamento, o sublime, trágico e probl~inático se
e os festins, enquanto as mulheres vigiam as criadas em cas~. Como formam justamente no caseiro e quotidiano: acontecimentos como
estrutura social, este mundo é totalmente imóvel; as lutas só 0 que ocorre entre Caim e Abel, entre Noé e seus filhos, entre
ocorrem entre diferentes grupos das classes senhoriais; de ·baixo, Abraão Sara e Hagar, entre Rebeca, Jacó e Esa~, e assim por
nada surge. Mesm,o quando se consideram os acontecimentos do diante 'não são ~oncebiveis no estilo homérico. Isto resulta do
modo fundamentalmente diferente ~orno se origin~~ os confl~t<_>s.
1

segundo canto da fitada , que terminam com o episódio de Térsites


c~mo sendo um movimento popular - e duvido que isto possa se; Nos relatos dó Velho Testamento, o sossego da auv1dade qu?t1d!a-
feito em sentido sociológico, pois trata-se de guerreiros de categoria na na casa, nos campos . e junto aos · rebanhos é constantemente
senatorial , portanto, de pessoas que são também membros da classe fiC>Cavado pelos ciúmes em torno à eleição e à prom~ss.a da ~ênção, e
senhorial , ainda que membros de condição inferior - o que estes M urgem complicações inconceb1veis para um herói homénc<_>· :ara
guerreiros demonstram diante do povo reunido não é senão sua c·~tes, é necessário um motivo palpável, claramente expnmivel,
própria falta de independência e incapacidade de terem iniciativa para que surjam conflito e inimizade, que resultam em luta aberta;
própria. Nos relatos patrísticos do Velho Testamento predomina, rnquanto que naqueles, o lento e constante fo~o dos ciúmes e a
também, a constituição patriarcal, mas como se trata de chêfes de ligação do doméstico com o espiritual, da bênção ~atema ~o~ a
fam.ílias isolados, nômades ou seminômades, o quadro social parece IH'nção divina, conduzem a uma impregnação da vida quot1d1ana
muito menos estável; não se sente a formação em classes. Logo l'om substância conflitiva e, frequentemente, ao seu envenenamen-
que, fin~ente, o povo aparece, isto é, após a salda do Egito, ele se to. A sublime intervenção de Deus age tão profundamente sobre o
faz sentlr s~mpre na sua mobilidade, amiúde bbrbulhando inquie- quotidiano que os dois campos do sublime e do quotidiano são não
tamente, e mtei:vém freqüentemente nos acontecimentos, s'eja co- apenas efetivamente inseparados mas , fundamentalmente,
mo um todo, seja como grupos isolados ou como personagens que Inseparáveis. .
se ~xpõem individualmente. As origens da profecia parecem estar Comparamos os dois textos e, ao · mesmo tempo, os do1s
~a mdomável espontaneidade polltico-religiosa do povo. Tem-se a t'lltilos que encarnam, para obter um ponto de partida para os
unpressão de que o movimento, em profundidade, do povo em nossos ensaios sobre a representação literária da realid~de na cu\tu·
20 MIMESIS 2. Fortunata
ra européia. Os dois estilos representam, na sua oposição, ti
básicos: por um lado, descrição modeladora, iluminação uniforme
ligação sem interstlcios, locução livre, predominância do prime&
plano, unívocidade, limitação quanto ao desenvolvimento históric
e quanto ao humanamente problemático; por outro lado, realce
certas partes e escurecimento de outras, falta de conexão, efeit
sugestivo do tácito, multiplicidade de planos, multivocidade e ne-
cessidade de interpretação, pretensão à universalidade histórica,
desenvolvimento da apresentação do devir histórico e aprofunda-
mento do problemático.
O realismo homérico não pode ser equiparado, certamente,
ao clássico-antigo em geral; pois a separação de estilos, que se
desenvolveu s6 mais tarde, não permitia, nos limites do sublime,
uma descrição tão minuciosamente acabada dos acontecimentos
quotidianos; sobretudo na tragédia não havia lugar para isto; além
disso, a cultura grega logo encontrou os fenômenos do desenvolvi-
mento histórico e da multiplicidade de camadas da problemática
humana e os atacou à sua maneira; no realismo romano aparecem,
finalmente, novas e peculiares maneiras de ver as coisas. Quando a
ocasião o exigir, trataremos das modificações posteriores da antiga
representaÇão da realidade; em geral, e apesàr destas últimas, as
tendênci3$ fundamentais do estilo homérico . por nós apontadas
vigoram até a mais tardia Antiguidade.
Uma vez que tomamos os dois estilos, o de Homero e o do
Velho Testamento, como pontos de partida, admitimo-los como
acabados, tal como se nos oferecem nos textos; fizeqios abstração de
tudo o que se refira às suas origens e deixam-OS, portanto, de lado a
questão de saber se as suas peculiaridades lhes pertencem original-
mente, ou se são atribuíveis, total ou parcialmente, a influ~ Non potui amplius quicquam gustare, sed conversus ad eum~
estranhas e quais seriam elas. A consideração desta questão não é ut quam p1urima exciperem, longe accersere. fab'1:las coep1
necessária nos limites da nossa intenção; poi..S foi em seu pleno :w:iscitarique, quae esset mulier illa, quae huc atque illuc discurreret.
desenvolvimento alcançado em seus primórdios que esses estilos Uxor inquit, Trimalchionis, Fortunata appellatur, qua~ ~um~os
exerceram sua iniluência constitutiva sobre a representação euro- modi~ metitur. Et modo, modo quid ~it? Ignoscet mihi ~emus
péia da ·realidade. tuu·s noluisses de manu illius panem acc1pere. Nunc, nec qu1d nec
quar~ 1 in caelum abiit et Trimalchionis topanta est. Ad sun_imao:i,
mero meridÍe si dixerit illi tenebras esse, credet. lpse n~1t qu~~
habeat, adeo saplutus est; sed haec lupatria pr~~idet omma et u 1
·Est sicca sobria bonorum cons1borum, est tamen
non p Utes. at
• '
rnalae linguae, pica pulvinaris. Quem amat, amat; quen_i ~on 3f1 •
non amat. lpse Trimalchio fundos ~a~t. ~ua m1lvt vo.ant,
entum in osuani illms cella plus tacet
nummorum n ummos · Arg b b
quam quisquam in fortunis habet. Familia vero babae. a ae, no~
mehercules puto decumam partem esse quae . d<;>mmum s~u
nove~it. Ad summam, quemvis existis babaecalis m rutae. foltu~
coniciet. Nec est quod putes illum quicquai:n emere . ?mma ?oi:n•
nascuntur: lana, credrae, piper, lacte galhnaceum s1 qua~1ens,
. . Ad. summam parum illi bona lana nascebatur; anetes a
invernes. • . cul · · lla
T arento emit, et eos culavit in gregem: .. Vides tot otras. nu

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