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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE GOIÁS (UEG)

CÂMPUS PORANGATU
CURSO DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS

MATHEUS LUCIO DOS REIS SILVA

“MELHOR VIVER AQUI NA ROÇA COM O MÍNIMO DO QUE VIVER NA CIDADE”:


AS (RE)SIGNIFICAÇÕES DO CAMPESINATO NO ASSENTAMENTO SALVADOR
ALLENDE (PORANGATU-GO).

PORANGATU
2018
1

MATHEUS LUCIO DOS REIS SILVA

“MELHOR VIVER AQUI NA ROÇA COM O MÍNIMO DO QUE VIVER NA CIDADE”:


AS (RE)SIGNIFICAÇÕES DO CAMPESINATO NO ASSENTAMENTO SALVADOR
ALLENDE (PORANGATU-GO).

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


ao curso de Ciências Biológicas do Campus de
Porangatu, como requisito parcial para
obtenção do título de licenciado em Ciências
Biológicas.

Orientadora: Prof. Me. Vanessa Costa dos


Santos

Porangatu
2018
2

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE GOIÁS (UEG)


CÂMPUS DE PORANGATU
TERMO DE APROVAÇÃO

“MELHOR VIVER AQUI NA ROÇA COM O MÍNIMO DO QUE VIVER NA CIDADE”:


AS (RE)SIGNIFICAÇÕES DO CAMPESINATO NO ASSENTAMENTO SALVADOR
ALLENDE (PORANGATU-GO).

Concluinte

__________________________________________

Trabalho de Curso (TC) apresentado à banca examinadora


em 26/11/2018. Constituída pelos professores

Prof. Me Vanessa Costa dos Santos – Orientadora / UEG

Prof. Dra. Ellen Fensterseifer Woortmann – Membro / UNB

Prof. Dr. Edson Batista da Silva – Membro / UEG

Prof. Me. Lucimar Marques da Costa Garção – Membro / UEG

Porangatu/GO
Dez./2018
3

SILVA, Matheus Lucio dos Reis


“Melhor Viver Aqui a Roça com o Mínimo do que Viver na Cidade”: As
(Re)Significações do Campesinato no Assentamento Salvador Allende (Porangatu-
Go).

Monografia – Ciências Biológicas


Porangatu: UEG, 2018.
Orientadora: Prof. Me. Vanessa Costa dos Santos
1. Campesinato – 2. Assentamento Salvador Allende – 3. Norte de Goiás –
4. Etnografia
4

Desenho gentilmente realizado por Wendia Monteiro dos Santos.


5

AGRADECIMENTOS

A todos os funcionários administrativos e colegas de vários cursos que


possibilitaram conversas, aprendizados e reflexões que me levaram a diversas
problematizações sobre a universidade, sobre a educação, sobre a sociedade e
sobre a vida. Agradeço grandemente cada um dos professores que participaram do
meu processo de aprendizagem, seja diretamente através de aulas, como também
de maneira indireta com conversas as quais pude retirar dúvidas, aprender novas
ideias e pela satisfação de criar novas amizades que acredito serem duradouras, o
professores que serei carrega um pedaço de cada um de vocês, obrigado por
participarem de minha construção.
Não posso deixar de destacar toda minha satisfação e agradecimento a
todos os companheiros do assentamento Salvador Allende que me acolheram e
ampararam neste caminho. Gostaria de destacar meus especiais agradecimentos a
Guicelma, Washington e Emanuela, pelo acolhimento em sua casa e por dividir
comigo sua comida, sem vocês esta pesquisa não existiria, espero poder um dia
retribuir.
Por fim, meus eternos agradecimentos a minha Mãe: minha guerreira,
companheira e professora da vida. Jamais conseguirei retribuir todo o amor e
carinho que recebi e recebo, todo o incentivo ao estudo que me foi dado é a
resposta para a pessoa que sou, és o meu grande exemplo e admiração, te amo
muito.
6

RESUMO

O Norte de Goiás localiza importantes processos campesinos, com destaque para


movimentos de conquista e luta pela terra e também pelas grandes barreiras na
concretização dos modos de fazer destes sujeitos. Neste devir, assentamentos
surgem e com eles se revelam preconceitos e a alteridade. Se como disse Lévi-
Strauss (1962, p. 26) “enquanto as maneiras de ser ou de agir de certos homens
forem problemas para outros homens, haverá lugar para uma reflexão sobre essas
diferenças”, o objetivo geral deste trabalho etnográfico, é descrever como é a
maneira de viver, de um modo geral, no assentamento Salvador Allende localizado
na Cidade de Porangatu, no Norte de Goiás, e quais são precisamente os veículos
através dos quais esta maneira de viver se manifesta. Para isto realizei seis meses
de visita ao campo, dos quais três meses inicias foram para visitas de
reconhecimento, onde não realizei nenhuma leitura teórica pois gostaria de ser
primeiramente imergido, e os três meses finais de realização das entrevistas e uma
observação mais específica a partir do que foi assimilado na visita de
reconhecimento e também mediante a realização das leituras bibliográficas. Ao
decorrer da pesquisa observei um conjunto de regras e valores próprios que
produziam práxis específicas, denominando de campesinato, conforme Ellen e Klaas
Woortmann, trato-a como uma ordem moral. Esta ordem moral se revelou de grande
importância para entender os significados (re) produzidos pelos assentados. Para
além disso, revela parte da trajetória campesina brasileira, que hoje vivencia a
modificação de modos de fazer historicamente institucionalizados frente a um
Capital englobante, desta forma, novas práxis são (re)significadas e
consequentemente também sua ordem moral.

Palavras-chave: Campesinato; Assentamento Salvador Allende; Norte de Goiás;


Etnografia.
7

SUMÁRIO

LISTA DE IMAGENS .................................................................................................. 7


LISTA DE ANEXOS .................................................................................................... 8
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 9
CAPÍTULO 1 - NORTE DE GOIÁS: ENTRE A ESPERANÇA E O CHUMBO ......... 15
1.1 - MARCHA PARA O OESTE ............................................................................... 15
1.2 - EXPLORAÇÃO CAMPONESA: O MOVIMENTO CAMPESINO NO NORTE DE
GOIÁS ....................................................................................................................... 17
1.3 - ASSENTAR-SE NO NORTE DE GOIÁS ........................................................... 20

CAPÍTULO 2 - LUTAR E RESISTIR: TRAJETOS E (RE) CONSTRUÇÕES ........... 23


2.1 - O ASSENTADO ENQUANTO SUJEITO HISTÓRICO ...................................... 23
2.2 - A ENTRADA NOS MOVIMENTOS DE RETORNO A TERRA: A CONSTRUÇÃO
DO “ASSENTADO” ................................................................................................... 30

CAPÍTULO 3 - ARTES DE FAZER: A MÉTIS CAMPONESA NO ASSENTAMENTO


.................................................................................................................................. 45
3.1 - ARTES DE FAZER: TÁTICAS COTIDIANAS .................................................... 48
3.1.1 - Modos de fazer nas criações ........................................................................ 57
3.1.2 - Modos de fazer na agricultura ........................................................................ 67
3.1.3 - Produzir espaços: artes de fazer .................................................................... 87
3.2 - PLANTAR, COLHER, COMER: NOVOS DESAFIOS ....................................... 91

CAPÍTULO 4 - CAMPESINATO COMO MATRIZ COGNITIVA ................................ 98


4.1 - CAMPESINATO COMO CULTURA VALORATIVA ......................................... 100
(DES)CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................... 116
ANEXO 1 - ASSENTAMENTOS NO NORTE DE GOIÁS ....................................... 119
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 122
7

LISTA DE IMAGEM

Imagem 1 - Córrego atravessando a estrada ............................................................ 55


Imagem 2 - Produção do queijo ............................................................................... 58
Imagem 3 - Assentada produzindo do queijo ............................................................ 59
Imagem 4 - Chamando o gado ................................................................................. 60
Imagem 5 - Chamando o gado para comer .............................................................. 61
Imagem 6 - Assentada alimentando o gado ............................................................. 62
Imagem 7 - Represa de uma das parcelas .............................................................. 65
Imagem 8 - Milho secando no fogão a lenha ........................................................... 73
Imagem 9 - Plantação de mandioca ao lado de uma plantação de milho já colhido
em um dos quintais .................................................................................................. 75
Imagem 10 - Produção de canteiros ........................................................................ 76
Imagem 11 - Conserva de jurubeba a esquerda e conserva de gueiroba a direita. .. 77
Imagem 12 - Preparo do urucum para venda ........................................................... 78
Imagem 13 - Produção de um chá para remédio ..................................................... 79
Imagem 14 - Esquema dos canteiros frutíferos/madeireiros. .................................... 81
Imagem 15 - Legenda para o esquema dos canteiros frutíferos/madeireiros. .......... 81
Imagem 16 - Esquema dos canteiros para hortaliça. ................................................ 85
Imagem 17 - Produção dos canteiros e mamões colhidos no dia ............................. 86
Imagem 18 - Desenho da parcela feito pela assentada C ........................................ 88
Imagem 19 - Desenho da parcela feito pela assentada B ........................................ 88
Imagem 20 - Desenho da parcela feito pelo assentado A ........................................ 89
Imagem 21 - Desenho da parcela feito pela assentada E ........................................ 90
8

LISTA DE ANEXO

ANEXO 1 - ASSENTAMENTOS NO NORTE DE GOIÁS ....................................... 119


9

INTRODUÇÃO

O objetivo geral deste trabalho etnográfico, seguindo os caminhos


apontados por Geertz (1997, p. 106), é descrever como é a maneira de viver, de um
modo geral, no assentamento Salvador Allende localizado na Cidade de Porangatu,
no Norte de Goiás e quais são precisamente os veículos através dos quais esta
maneira de viver se manifesta. Para isto, a análise dos seus modos de fazer se
constitui importante para revelar as lógicas, regras e valores que os implicam.
Se como problematiza Almeida (2007), há uma “morte do campesinato”,
entendida como o fim das sociedades agrário-camponesas e dos “universais
sociológicos” 1 , temos o nascimento das “narrativas agrárias” 2 . Isto acompanha o
fluxo teórico que as ciências sociais têm tomado recentemente, tendo as macro
teorias e os universais sociológicos cada vez mais perdido sua força discursiva,
tendo assim uma maior frequência de pesquisas que tratam sobre narrativas mais
delimitadas e específicas3.
É neste caminho que Pelá & Mendonça (2010, p. 54) seguem para utilizarem
seu conceito de Povos Cerradeiros, uma vez que para eles:
Povos Cerradeiros se referem aos sujeitos sociais trabalhadores/produtores
que historicamente viveram nas áreas de cerrado e constituíram formas de
uso da terra a partir das diferenciações naturais-sociais experienciando
formas materiais e imateriais de trabalho, que denotam relações sociais de
produção muito próprias e em acordo com as condições ambientais,
resultando em múltiplas práticas socioculturais.

Povos Cerradeiros, portanto, trata-se de uma delimitação do conceito de


campesinidade ao espaço Cerrado, apontando as especificidades que este implica
nas práxis campesinas, pois, os aspectos climáticos, geológicos e biológicos são
fundantes nas mesmas. Neste processo de delimitação, naturalmente surgem as
fronteiras, as quais Sampaio (2008), seguindo a mesma ideia do conceito de Martins
(1997, p. 162), entende não somente como uma ideia sobre questões geográficas e
econômicas, mas sobretudo abordando os conflitos sociais. Por isto “o conflito social
seja o ponto mais valioso para se descrever e se explicar a fronteira no Brasil (p. 6)”.

1 Por universais sociológicos entende-se a tentativa de generalizar conceitos e/ou teorias,


na tentativa de criar um tecido social comum a todos os sujeitos.
2 Estas narrativas referem-se aos novos modelos teórico-conceituais que tratam de uma

abordagem microssociologia, distinguindo diferentes narrativas.


3 Oliveira (1995) também aborda esta temática ao falar sobre a crise dos modelos

explicativos na antropologia.
10

Se são os conflitos sociais que melhor identificam as fronteiras, o Norte de


Goiás historicamente marcado pelo coronelismo 4 e pelo sangue campesino 5 ,
demonstram que o conflito agrário é latente nesta região, dada a recente data dos
eventos. Além disso, outro processo se configura de extrema importância para a
concretude da escolha desta pesquisa: o preconceito existente nesta região para
com os ditos “sem-terra”.
Tal preconceito parece fazer parte de uma construção social que se faz
latente no meio social. De “bando de preguiçosos” até “eles recebem um salário
mensal do governo” as histórias espalham-se e mais do que isto, se tornam
narrativas que fundam um imaginário popular e que naturaliza um estereótipo de
alteridade. Lévi-Strauss (1962, p. 26) diz que “enquanto as maneiras de ser ou de
agir de certos homens forem problemas para outros homens, haverá lugar para uma
reflexão sobre essas diferenças”.
Enquanto objeto de pesquisa, o Norte de Goiás permite observar não um
retrato do passado agrário, uma vez que as condições são completamente
diferentes, mas sim entender as modificações que este conflito sofreu ao longo de
sua trajetória, marcando mais um capítulo neste longo e importante processo
campesino brasileiro.
Portanto, nesta fronteira do conflito agrário que agora continua por meio de
outras causas: como a legitimação de uma determinada posição social, temos o
estabelecimento de pontos distintos. Dito isto, optei por enquanto pesquisador que
problematiza identidade e cultura, realizar um estudo de caso, não para levar a
sociedade uma resposta final, mas para fomentar o diálogo.
Ao iniciar a pesquisa optei por primeiramente realizar uma visita de
reconhecimento, não realizando nenhuma leitura teórica sobre assentamento ou
campesinato, para que a vivência me guiasse neste processo. Deste modo, após o
terceiro mês pude melhor definir pontos comuns e iniciei as leituras teóricas,
buscando conceitos que melhor poderiam traduzir aquilo que abstraí da visita de
reconhecimento. Neste caminho, o conceito de matriz cognitiva camponesa 6 e os

4 Como leitura sobre o coronelismo no Norte goiano sugiro Palacín (1990), no qual fala
sobre o extremo Norte, referente a região que hoje pertence a Tocantins
5 Sugiro a leitura de Sampaio (2003 e 2014) que realiza uma retomada histórica dos

processos de enfrentamento entre posseiros e grileiros.


6 Ellen e Klass Woortmann (1997b, p. 2-3).
11

conceitos de modos e artes de fazer7 aliado com a trajetória do campesino e suas


transformações históricas 8 , além de reflexões sobre o processo histórico de
ocupação e desenvolvimento do Norte goiano, foram indispensáveis para o
desenvolvimento desta pesquisa.
A escolha do assentamento se deu pelo contato já estabelecido com uma
das assentadas através da implementação dos canteiros agroflorestais de sua
parcela. Através desta assentada pude estabelecer novos contatos com outros
moradores, uma vez que me hospedei em sua casa durante a realização de toda a
pesquisa, além disso, ela participava da minha primeira visita com os demais
assentados, facilitando, portanto, o estabelecimento de contato. Ademais, é
necessário explicar que as visitas a campo tiveram duração de seis meses, no qual
ocorreram em grande parte aos finais de semana, em intervalos quinzenais,
havendo somente algumas visitas que ocorreram no meio de semana e em feriados.
Dentre as famílias visitadas, aquela ao qual me hospedei foi a que tive a maior parte
do contato. Para preservar a identidade dos participantes da pesquisa, seus nomes
foram substituídos por letras.
A utilização da fotografia realizada nesta pesquisa concorda com Dorea
(2009) em que “se por um lado a fotografia é a cada dia mais utilizada nos trabalhos
antropológicos, por outro sua potencialidade como algo além da ilustração e de uma
técnica de interação com o Outro é pouco explorada”. Deste modo, a fotografia aqui
mais do que apresentar uma imagem procura também falar com e através dela, para
isto as fotos utilizadas foram produzidas de duas maneiras diferentes: em primeiro
momento deixei uma câmera com uma família para que ela tirasse fotos de seu dia a
dia com o objetivo de contar-me o que é ser um assentado através das fotos, em um
segundo momento as fotos foram tiradas por mim onde procuro retratar o cotidiano
ali vivenciado.
Neste caminho, a etnografia se configura como a metodologia escolhida
para a produção de dados, uma vez que possibilita ao pesquisador o contato direto
para com o sujeito pesquisado. Geertz (2017, p. 4) aponta que é o esforço
intelectual a principal metodologia do etnógrafo, portanto, estabelecer relações,
selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos e

7Certeau (2014).
8Brandão (1981), Woortmann (2006 e 2013), E. e K. Woortmann (1997a e 1997b) e
Woortmann (1990).
12

manter um diário são importantes técnicas e processos para o seu desenvolvimento.


Como nos aponta Malinowski (1997, p. 25), procuro realizar uma abordagem ao qual
procure formar um todo coerente, para isto trato de diferentes aspectos dos modos
de fazer destes assentados.
É neste sentido que Geertz (2017, p.4-5), mediante Gilbert Ryle, aponta para
uma “descrição densa”, apresentando a piscadela 9 como um exemplo deste
processo que procura entender que cada ação possui uma justificativa em si. Assim,
a descrição densa implica necessariamente participação, isto porque
o que o etnógrafo enfrenta, de fato (...) é uma multiplicidade de estruturas
conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às
outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que
ele tem de, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar.
(GEERTZ, 2017, p. 7).

É fundamental que haja um contato estritamente estabelecido e participante,


mas não que o etnógrafo deva tornar-se um “nativo”, mas sim observar e analisar
sua weltanschauung10, a partir daquilo que lhe é oferecido. Oliveira (1996) aponta
em seu artigo que ouvir, olhar e escrever constitui-se fundamental para o
estabelecimento de uma boa etnografia.
Geertz (2017, p. 15) salienta ainda três características da descrição
etnográfica: primeiramente “ela é interpretativa”, ou seja, é o pesquisador
interpretando o sujeito, realizando – ou pelo menos tentando – uma descrição densa
do mesmo; ademais, “o que a etnografia interpreta é o fluxo do discurso social”; e
por fim, “a interpretação envolvida consiste em tentar salvar o “dito” num tal discurso
da sua possibilidade de extinguir-se e fixa-la em formas pesquisáveis”.
É apoiado, portanto, nestas características, que a presente pesquisa se fixa,
uma vez que procura, através da vivência no assentamento Salvador Allende, refletir
sobre como os assentados veem as coisas e como eles entendem o mundo de suas
vidas, como nos aponta MICHEELSEN (2015, p. 200). Salientando o caráter
transitório desta análise, procuro “tentar salvar o “dito” num tal discurso da sua

9 Para Geertz (1995, p.5-6), em síntese, a piscadela trata de reconhecer que entre o simples

ato de dois ou mais sujeitos trocarem piscadelas há diversas razões, motivos e circunstâncias
intrínsecas a situação apresentada e que fundamentam tais ações, mas que precisam ser
contextualizadas e significadas para de fato entender os motivos e os simbolismos de tal ação.
10 Na dificuldade de realizar uma tradução que continue o sentido original da palavra, optei

por continuar o texto, entretanto, podemos aproximar seu significado como um “conjunto ordenado
de valores, impressões, sentimentos e concepções de natureza intuitiva, anteriores à reflexão, a
respeito da época ou do mundo em que se vive; cosmovisão, mundividência” ou como a “visão pré-
lógica da realidade” (HOUAISS, 2009).
13

possibilidade de extinguir-se e fixá-la em formas pesquisáveis” (GEERTZ 1995,


p.15). Possibilitando assim, como aponta Demo (1995), conduzir o debate, para
levantar discussões e sofrer críticas, portanto, esta pesquisa não se compreende
como um ponto final, mas como o início de um caminho etnográfico.
Ainda, tendo em Geertz (2017, p. 70) “primeiro apreender e depois
apresentar”, e com Malinowski (1976, p. 31-32)
Ao lado da objetividade científica, o antropólogo também deve, por vezes,
deixar de lado a câmera fotográfica, o caderno e o lápis e participar
pessoalmente do que está acontecendo. Ele pode tomar parte dos jogos
dos nativos, acompanhá-los em suas visitas e passeios, ou sentar-se com
eles, ouvindo e participando das conversas (...) Esses mergulhos na vida
nativa (...) sempre me deram a impressão de permitir uma compreensão
mais fácil e transparente do comportamento nativo e de sua maneira de ser
em todos os tipos de transações sociais.

Durante as visitas realizadas, participei efetivamente das atividades


cotidianas dos assentados, entendendo que o saber “técnico” é parte muito
importante dos modos de fazer, tal participação teve como objetivo melhor entender
os significados deste saber.
É mister salientar que, em prática, isto possibilitou que fosse possível, em
alguma escala, que o horizonte do outro, sua weltanschauung, pudesse ser
incorporada à minha. Oliveira (1995, p. 223) classifica isto como fusão de horizontes,
entendendo, em sua perspectiva que para isto não é necessário abdicar de sua
própria weltanschauung, uma vez que “seu esforço será sempre o de traduzir o
discurso do Outro nos termos do próprio discurso de sua disciplina”, ou seja, ao final
do processo é preciso transformar o horizonte apreendido em linguagem acadêmica.
Sendo, portanto, uma pesquisa qualitativa, em especial um estudo
etnográfico, para a obtenção de dados foram realizadas observações participantes
com registro em diário de campo, realização de fotografias, gravações de áudio e
entrevistas semiestruturadas.
Além disso, outro meio para síntese de dados foi a produção de mapas das
parcelas realizados pelos próprios assentados entrevistados, deste modo, como
aponta Lévi-Strauss (2008, p. 330), ao falar sobre “as correlações que podem existir
entre a configuração espacial dos grupos e as propriedades formais que dependem
dos outros aspectos de sua vida social”, assim “numerosos documentos atestam a
realidade e a importância de tais correlações, principalmente no que concerne, de
um lado, à estrutura social, e de outro, à configuração espacial das construções
humanas”. Deste modo, pretendo utilizar tais mapas para demonstrar que a
14

organização espacial possui sua lógica e assim também fala sobre a identidade e
práxis campesinas.
Os dados sintetizados pelas entrevistas e diários de campo foram utilizados
para a realização de análises com a triangulação de dados primários, secundários e
teoria, recolhidos e utilizados para o estudo de caso.
Para que isto se concretizasse a pesquisa foi dividida em alguns capítulos,
cada um se constitui como um objetivo específico desta pesquisa, representando
assim as camadas as quais julguei necessária para entender a construção de
significado destes assentados.
Desta maneira, no primeiro deles procuro refletir sobre a construção
histórica dos movimentos campesinos no Norte de Goiás, especialmente entender o
processo histórico de ocupação destas terras e os conflitos agrários que se
desencadearam, além disso também refletir sobre a reforma agrária e os
assentamentos no Norte de Goiás.
No segundo capítulo, procuro analisar o assentado enquanto sujeito
histórico, antes e depois de sua busca pelo retorno a terra. Refletindo as
historicidades dos sujeitos ali assentados, suas origens, sua trajetória para adquirir
aquela terra e o campesinato como componente destes processos.
No terceiro capítulo irei descrever as artes de fazer como métis camponesa
no assentamento, considerando as mudanças históricas que aí ocorreram,
produzindo importantes modificações em suas práxis.
No quarto capítulo irei problematizar o campesinato como ordem moral
produtora de práxis, entendendo que esta possui valores e que estes se configuram
como produtores de práxis cotidianas, além de produzirem significações partilhadas,
levando assim a uma (re) produção identitária.
Por fim, entendo que cada um destes capítulos permite ao leitor entender as
principais camadas produtoras de significações para os assentados. Cada uma com
sua devida importância, retirar uma destas camadas também é modificar as
significações, por isto para entender a weltanschauung dos assentados é preciso
conhecer sua trajetória.
15

CAPÍTULO 1 - NORTE DE GOIÁS: ENTRE A ESPERANÇA E O CHUMBO

1.1 - MARCHA PARA O OESTE11

Cada lugar possui em sua história marcas que registram momentos vividos
tomando forma discursiva. Falar sobre Goiás é vivenciar a conquista deste território
por meio de lágrimas, suor e sangue derramado. Ao início deste processo, mais
especificamente no século XVIII a mineração de ouro se tornou um dos principais
meios de ocupação demográfica do estado, território este ocupado anteriormente
por indígenas. Neste processo, os conflitos foram inevitáveis e cruéis, levando a
dizimação de grande quantidade de nativos.
A atividade mineradora, durante os primeiros anos, foi bastante árdua. Os
descobridores abriram caminhos e estradas, vasculharam rios e montanhas,
desviaram correntes de água e desmataram diversas regiões. Rechaçaram
índios, exploraram e povoaram o imenso território goiano (PÁDUA, 2007, p.
624).

Mais do que explorar o ouro, a conquista do território e o sentimento


nacionalista moviam os sujeitos neste projeto nacional. Neste momento, a criação de
imagens nacionais e regionais foram sintetizadas, se tornando significações comuns.
Assim denominados de bandeirantes, pioneiros, desbravadores, roceiros da
vanguarda, soldados sem farda e heróis do sertão (SILVA, 2013, p. 60), mais do que
compartilhar uma imagem heroica, estes construíram um discurso nacionalista,
tendo a conquista e descoberta do território nacional como meio de realização. Em
contrapartida, se no século XVIII os bandeirantes são entendidos como heróis por
desbravar a mata desconhecida e expulsar os indígenas, estes últimos tiveram outro
tipo de construção nacional: o atrasado e preguiçoso.
Já o século XX, todos estes processos anteriores iniciam uma extensiva
política de deslocamento, criada para expandir o território do Capital, assim, durante
o governo de Vargas, na “Primeira Marcha para o Oeste”, temos uma política de
colonização e imigração para a região Centro Oeste.
Naquela época, com a construção de uma nova capital para o estado de
Goiás, houve significativos aumentos na agropecuária, o que proporcionou um
aumento da população rural no estado. Realizando parte do propósito do governo

11Sugiro a leitura de LIMA FILHO, Manuel Ferreira. Pioneiros da Marcha para o Oeste:

memória e identidade na fronteira do médio Araguaia. Brasília, UnB, 1998. Tese de Doutorado.
Tese de Doutorado em Antropologia Social.
16

nacional: ocupar regiões “despovoadas” e com isto criar novos trajetos para
possibilitar uma ampliação do tráfego e comunicação nacional.
Assim, em 1933 a construção da nova capital em Campinas (CHAUL, 1988,
apud PÁDUA, 2007), teve como intenção procurar terras mais férteis e um melhor
posicionamento estratégico e geográfico. Para realizar a construção da mesma, a
verba
veio primeiramente de empréstimos feitos pelo Governo Federal, que tinha
como interesse ter a nova capital como centro absorvedor de mercadorias
das várias regiões do Estado, repassando-as e interligando-as
economicamente às regiões urbano-industriais do país. Os primeiros
empréstimos, totalizando cerca de 15 mil contos de réis, foram conseguidos
no primeiro qüinqüênio dos anos de 1930 (PÁDUA, 2007, p. 628).

O que demonstra o grande interesse nacional no desenvolvimento desta


região, tendo em São Paulo grande apoio financeiro. Principiado a construção de
Goiânia, têm-se o estabelecimento do processo de transição demográfica do meio
rural para o meio urbano.
Goiânia, ao representar uma nova possibilidade geográfica no interior do
país, foi palco de elevada imigração desde seus primeiros anos de
existência. O atrativo real para o surto imigratório foi a existência de largas
faixas de terras férteis e matas – até então inexploradas – na área de
abrangência da nova capital. Uma zona de rico potencial agrícola,
conhecida como Mato Grosso de Goiás, começou a ser explorada em
função da construção de Goiânia. A edificação da nova capital, desse modo,
ao ensejar correntes imigratórias foi responsável pelo lançamento de
germes de transformação nas estruturas tradicionais do Estado. Suas terras
foram paulatinamente sendo conhecidas, tornando-se cativante opção para
assentamento dos imigrantes rurais que passaram a se movimentar pelo
campo brasileiro. A propaganda oficial dos anos 1930, ressaltando em nível
nacional as possibilidades econômicas de Goiás, colaborou para que
imigrantes de outros Estados, principalmente a partir de 1935, ocupassem
as adjacências da nova capital e penetrassem nas florestas virgens da zona
do Mato Grosso de Goiás (PÁDUA, 2007, p. 629).

Aliado com projetos federais de ampliação da expansão agrícola, surge a


Colônia Agrícola Nacional de Goiás (CANG), localizada na região que hoje pertence
a Ceres-GO. Possuindo terras “inabitadas” e extremamente férteis, denominada
naquela época por Mato Grosso Goiano. Com a intenção de assentar colonos, a
CANG atingiu quase trinta mil habitantes em 1950. Sua intenção era levar o Capital
para o Norte, isto porque, com a construção de Goiânia o processo capitalista12
concentrou-se na região Centro-Sul, criando uma incongruência entre o Centro-Sul,
altamente desenvolvido e em rápida expansão demográfica, para com o Norte,

12 Entendido aqui por estradas, lojas, industrias e outros agentes de mobilização e

ampliação do capital.
17

pouco povoado e de pouco Capital investido. Portanto, mais do que assentar


colonos, a CANG tinha como propósito migrar o Capital para o Norte e assim ampliar
as redes de comércio.
Entretanto, tal expansão teve impacto somente para atingir o Médio-Norte,
região hoje pertencente ao atual Norte de Goiás. Sendo isto um dos ingredientes
que culminaram na produção de um sentimento de exclusão por parte dos
moradores do Extremo Norte que mais tarde, em 1988, culminaria na divisão do
território goiano e formação do estado de Tocantins.
Realizado a construção de Goiânia e dada a implementação e conseguinte
fixação da CANG, outro fator realizou uma grande transformação na estrutura
goiana: a construção de Brasília. A mudança da capital federal, iniciada em meados
dos anos 1950, produziu outro movimento migracional, político e econômico para o
Estado de Goiás, conhecido como a “Segunda Marcha para o Oeste” realizada no
governo de Juscelino Kubitschek.
Ao final da Primeira Marcha, Goiânia tinha 74% da população vivendo no
meio urbano, após o início da construção de Brasília este número aumentou,
resultando em um crescente êxodo rural, provocado pelo aumento da oferta de
emprego nas cidades, em especial para a construção civil e por uma diminuição das
condições de sobrevivência no campo (BRANDÃO, 1981).
Além disso, a construção da rodovia BR 153 realizou a ampliação de
variados centros urbanos. Com isto, vilas e cidades localizados à sua margem,
tiveram um grande desenvolvimento proporcionado pelo aumento do tráfego nesta
que se tornou a principal rodovia do país.

1.2 - EXPLORAÇÃO CAMPONESA: O MOVIMENTO CAMPESINO NO NORTE DE


GOIÁS

Com o rádio sendo o principal meio de comunicação daquela época, este foi
muito utilizado como o veículo de extensas propagandas, nas quais ofereciam terras
para os trabalhadores rurais. Carneiro (1988, p.80, apud Sampaio 2003, p. 34),
exemplifica algumas delas: “Lavrador sem terra, venha para Goiás, trabalhar na sua
terra doada pelo governo”; “Lavrador que não tem terra deve vir para Goiás, só não
vem quem não quer trabalhar e ter o que é seu”.
Tendo o alvo destas propagandas a migração para a Colônia Agrícola
Nacional de Goiás, houve um grande êxito na impulsão da migração nacional desta
18

região. Todos os estados vizinhos, inclusive alguns mais distantes como os sulistas,
paulistas e nordestinos tiveram em Ceres-GO seu destino. Demonstrando que este
local central do mapa brasileiro, naquele momento, tornou-se o principal centro das
atenções e investimentos nacionais.
Segundo Pessoa (2013, p. 355), em 1943 havia um total de novecentos
habitantes na CANG. Já em 1946 a população estava em oito mil, sendo que destes:
“60% da população residente na colônia era constituída de mineiros, 20% de
goianos e os 20% restantes eram de camponeses oriundos de outros estados,
principalmente de São Paulo e até de estados do Norte e Nordeste (p. 356)”.
Ainda segundo Pessoa (2013, p. 357), “em 1950, foram colhidas vinte e
cinco mil e duzentas toneladas de arroz, mil quinhentas e trinta de milho e três mil e
oitenta de feijão”. Em 1947 a produção de milho foi de trinta mil toneladas, tal
redução produtiva se explica pela inserção de outras culturas de produção como a
cana-de-açúcar, a mandioca e o algodão (DAYRELL, 1974, apud PESSOA, 2013, p.
358). Além disso, houve grande produção de café e pouca utilização da pecuária,
especialmente pelas dificuldades de deslocamento para chegar até a região13.
Entretanto, tais terras não estavam somente sob os olhares dos sujeitos
sem-terra. Borba (2015, p. 346) também aponta que “a criação da CANG valorizou
as propriedades fundiárias da região e despertou a cobiça de fazendeiros que
passaram a se apropriar de parte das terras destinadas à colonização, assim como
das glebas circunvizinhas à colônia”.
Devido ao grande contingente populacional, a colônia não conseguia abrigar
todos aqueles que chegavam, deste modo, iniciou-se a migração para o Norte,
região pertencente ao Sertão de Amaro Leite. Almeida (2016) em sua dissertação
discute tal região que, em sua análise, carece de outros trabalhos historiográficos.
Ela discute ainda que os indígenas se constituíram como um grande problema para
o povoamento desta região, uma vez que eles realizavam grande resistência, por
isto várias bandeiras foram realizadas contra os indígenas (p. 17). No terceiro
capítulo de sua dissertação, Almeida também discute a “política de colonização
militar, que se baseava na ocupação e no controle territorial, visando a defesa das
fronteiras do Império (internas e externas) pela ocupação dessas áreas por paisanos

13 Estes dados foram fornecidos durante uma entrevista realizada no assentamento

Salvador Allende durante a realização desta pesquisa, isto porque um dos proprietários foi morador
da Colônia, migrando para lá enquanto criança, vindo do nordeste.
19

e militares a partir de 1850 (p. 20)”. Ou seja, esta região, desde antes da CANG,
esteve marcada por conflitos, em especial contra os indígenas.
Se a região do Sertão de Amaro Leite vivia intenso conflito em 1850, a partir
de 1950, iniciou-se a migração para tal região, uma vez que a CANG se encontrava
com sua lotação estabelecida. Com indígenas já massacrados e expulsos
(ALMEIDA, 2016), a intenção da migração para esta região era procurar terras
devolutas para viver. Borba (2015), que no título de seu trabalho realiza uma grande
síntese de todo o processo migratório para esta região, aponta que o Norte de Goiás
representava uma terra de esperança, conflitos e frustrações.
Deste modo, naquele período o Médio Norte de Goiás desempenhou um
grande papel de esperança para os sujeitos, sendo possível encontrar terras em
boas qualidades, semelhantes às de Ceres-GO. Assim, com o acesso restrito das
terras na colônia agrícola e dado a grande demanda, a migração para o Norte do
Estado começou a aumentar. Sendo que, segundo Borba (2015, p. 347), “grande
parte desse contingente vinha do Sul de Goiás, de Minas Gerais e do Nordeste.”
Os modos de trabalho neste período variavam entre a parceria14 (72,4%), a
posse 15 (20,8%) e o trabalhado assalariado 16 (2,4%), além de outras formas de
trabalho (4,4%) (BORBA, 2015, p. 350-351). Outro importante aspecto deste
processo, foram
As experiências vividas pelos camponeses, antes de chegarem ao Norte de
Goiás, eram baseadas num forte mecanismo de dominação, no qual a
violência, o descumprimento e/ou ausência de leis, além da privação da
terra, cumpriam um importante papel na sujeição e coação desses sujeitos
(Borba, 2015, p. 350).

Isto desempenha um grande impacto sobre os posseiros que chegavam


nestas regiões, uma vez que com o coronelismo ali instalado, bastante repressivo,
submetiam os posseiros a péssimas condições de trabalho. Isto se inicia com a
chegada de grandes proprietários/fazendeiros, estes realizavam a apropriação de
grandes quantidades de terras, obrigando os posseiros a realizarem o trabalho para
eles, num complexo mecanismo de domínio através de dívidas para com o

14 Sistema em que era obrigatório ceder metade da produção ao proprietário que arrendava
a terra.
15 Sistema no qual os sujeitos fixavam-se em terras devolutas e produziam e trabalhavam
para si.
16 Sistema onde o proprietário contrata o sujeito para a realização de um trabalho, podendo

ser pago com dinheiro ou outras formas.


20

fazendeiro, desta forma, com altos juros o sujeito não conseguia quitar a dívida e era
explorado permanentemente.
Situações como essas eram comuns na vida dos camponeses brasileiros.
Mesmo que o trabalhador tivesse noção de que aquelas relações eram
injustas e que o fazendeiro manipulava o real valor das suas dívidas,
impossibilitando de pagá-las, era difícil romper com as relações de
dependência devido ao poder pessoal do fazendeiro (BORBA, 2015, p.
352).

Se esta situação impossibilitava a aquisição da terra, com a construção de


Brasília, a partir da década de 50 outro processo entra para produzir grandes
conflitos na região: a grilagem. Para isto, Sampaio (2003) em sua dissertação A
História da Resistência dos Posseiros de Porangatu-GO (1940-1964), analisa
importantes conflitos do Norte do estado, em especial na cidade de Porangatu,
Trombas e Formoso. Destacando a resistência dos posseiros frente a expropriação
de suas terras.
Sampaio (2003, p. 56) dá o devido destaque para o grileiro, como um agente
importante para entender a expropriação dos posseiros e dos movimentos agrários
nesta região. Com técnicas de adulteração de documentos em cartórios e a
falsificação de títulos de posses por meio de falsos herdeiros, aliado com influências
políticas, judiciais e policiais, os grileiros17 falsificavam o título de posse das terras,
desta maneira tinham a posse ilegal das terras, expulsando os posseiros, legítimos
donos das terras.
Sampaio (2003) ilustra o grande conflito e massacre realizado em
Porangatu-GO, onde muito sangue camponês foi derramado, não obstante em
Trombas e Formoso também houve grandes conflitos, sendo um reconhecido
nacionalmente no início do Regime Militar, em 1964, que terminou na tortura e morte
de camponeses, tendo em José Porfírio o principal líder deste movimento.

1.3 - ASSENTAR-SE NO NORTE DE GOIÁS

No Brasil, a iniciação da tentativa de reforma agrária ocorreu de forma


tardia, tendo uma estrutura fundiária altamente conservadora e historicamente
autoritária. Ela surgiu como um processo que prometia alterar tal conjectura, além de
produzir alimentos para a mesa nacional brasileira, entendendo que ao gerar renda

17 Este nome faz referência com o método utilizado por eles, onde colocavam documentos

falsos em caixa com grilos para que estes ficassem com uma aparência de velho, na tentativa de
legitima a falsa “posse” anterior da terra.
21

para as famílias beneficiadas seria possível combater a miséria e a fome do campo.


Não obstante, também ampliar a produção alimentícia interna, uma vez que os
grandes latifúndios possuem o destino de suas produções, em sua grande maioria,
para a exportação.
Em 2013, no Brasil, havia cerca de 1.200.000 famílias assentadas em 8.982
Projetos de Assentamentos em uma área de 87.882.173 ha, de acordo com
os dados contidos nas planilhas “Área Incorporada ao Programa de
Reforma Agrária” e “Famílias Assentadas”, disponibilizadas no sítio do
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária -INCRA (2013) (GOSH
et al., 2013).

Ainda segundo Gosh et al (2013), no estado de Goiás há no total


quatrocentos e cinco Projetos de Assentamentos, tendo aproximadamente cinte e
quatro mil famílias assentadas, em cento e cinco municípios. O Norte de Goiás conta
com noventa e nove assentamentos, respectivamente cinco mil quatrocentas e
quarenta e oito famílias assentadas, é a região do estado com o maior número de
assentamentos (INCRA). É possível refletir sobre este dado sob duas perspectivas:
em primeiro lugar, como apresentado anteriormente, a grilagem de terras foi muito
presente nesta região, deste modo, uma grande quantidade de terra se concentrou
na posse de poucos indivíduos, dessa forma, a improdutividade destas propriedades
acabara por se tornar um fato, dado a dificuldade de administrar, com equidade,
toda a quantidade de terra possuinte.
O segundo ponto de reflexão se dá pela qualidade das terras do Norte,
possuindo majoritariamente argissolos e latossolos como os principais tipos de solos
(com exceção da região circundante ao Araguaia que possui solos de alta
qualidade), possuem altas concentrações de alumínio, baixa matéria orgânica e
baixo pH, tornando-o extremamente ácido (RIBEIRO & WALTER, 2008). Por isto,
estas terras possuem uma baixa produtividade na agricultura, exceto se realizado
uma correção do solo com a utilização de calcário, para assim equilibrar as
concentrações de alumínio e, consequentemente, também o pH.
Deste modo, estas terras possuem um baixo valor de mercado, uma vez que
para produzir é necessário investir em processos de correção, além disso, esta
região também possui um problema hídrico, sendo que cisternas e, mais
recentemente, os poços são fundamentais para a realização das funções
necessárias.
É possível problematizar que, se por um lado estas características
possibilitam assentar uma maior quantidade de famílias, por outro lado fazer com
22

que estas famílias se realizem nestas terras se torna um desafio, e sem apoio
externo a complexidade aumenta.
Assim, grande parte dos assentamentos consumados na região tiveram
seus acampamentos, focos de luta, na região Centro-Sul, havendo uma importante
imigração de goianos para a região Norte. Entretanto, não houve um importante
aproveitamento deste fluxo migratório para a economia desta região, uma vez que
mal assistidas pelos órgãos competentes, estes assentamentos não conseguem se
desenvolver e assim despojar todo o seu potencial econômico no meio urbano.
Segundo Gosh et al. (2013), “dos 405 assentamentos rurais de Goiás, cento
e dez estão localizados em municípios com mais de duzentos mil hectares de área
de pastagem, sendo que cinte e dois se localizam nos municípios com mais de
quatrocentos mil hectares de área de pastagem”. O Norte do Estado possui grande
parte destes municípios com extensas áreas de pastagem e/ou um rebanho efetivo
maior.
Assim constatou-se que dos 405 assentamentos rurais de Goiás, 51
assentamentos se localizam em municípios com plantios de soja e milho
grão acima de 50 mil hectares, 110 assentamentos estão localizados em
municípios com mais de 200 mil hectares de área de pastagem e 66
projetos em municípios com mais de 80 % das propriedades menores que
100 hectares.
Dessa forma, a maior parte dos assentamentos de Goiás se localiza fora
das principais regiões produtoras de commodities, o que sugere que a
reforma agrária em Goiás, vem sendo desenvolvida preferencialmente longe
dos eixos econômicos do Estado, deslocando a luta pela terra para regiões
menos desenvolvidas economicamente (GOSH ET AL, 2013).

Isto indica que, se por um lado a intenção é expandir a frente colonizadora e,


portanto, para isto é necessário ir para regiões menos povoadas, por outro lado, isto
limita também as ações e benefícios que os assentados receberiam por estar
próximos a grandes centros. Corporificando-se na fala de uma assentada que, ao
perguntar sobre a possibilidade de seu retorno para Goiânia, responde que
“gostaria, mas não pra cidade porque já estou velha e não tenho estudo, mas queria
ir pro campo perto de Goiânia, porque lá tem para quem eu vender meus produtos
que plantar”18 . Assim, estar longe das regiões de grande mercado implica numa
limitação do mercado local sobre estes sujeitos.

18 Entrevista concedida no dia 11 de março de 2018, pela assentada A.


23

CAPÍTULO 2 - LUTAR E RESISTIR: TRAJETOS E (RE) CONSTRUÇÕES

A busca pela terra e sua resistência de permanecer demonstram para além


uma simples resiliência, mais do que isto implica vivências que moldaram o sujeito e
produzindo a resistência enquanto práxis. Desta maneira, antes de ser um
assentado se vivencia outras práticas, situações e contextos que o levam até ao
assentamento, sendo esta trajetória o corpus principal deste capítulo.
Se historicamente o camponês sofreu diferentes formas de modificações,
seja no seu processo de classificação ou organização de suas práxis, grande parte
destas vieram por meio de repressões e conflitos. Neste capítulo, pretendi discutir a
posição do assentado enquanto sujeito historicamente construído, ou com outras
palavras problematizar sua historicidade, entendendo que reconhecer sua trajetória
permite melhor compreendê-lo.
Desta forma, no primeiro momento, problematizei sobre a vida dos
assentados, antes do processo de entrada no movimento pela aquisição da terra,
para assim discutir suas origens e revelar como os levaram até a busca ao acesso à
terra. Já no segundo momento, problematizei a entrada desses sujeitos ao
movimento de aquisição da terra, até o momento em que eles, enfim, adentram em
suas parcelas, refletindo sobre os processos inerentes a essa etapa.

2.1 - O ASSENTADO ENQUANTO SUJEITO HISTÓRICO

Para conduzir esta reflexão, é mister indicar que as entrevistas realizadas


com os assentados e os diários de campo produzidos por mim constituem-se como
a linha condutora desta pesquisa. Assim, iniciarei falando da trajetória histórica dos
sujeitos do assentamento Salvador Allende em Porangatu-GO, posicionando-os
historicamente.
Para ampliar a perspectiva sobre estes sujeitos, alguns dados se constituem
de grande valia. Segundo a FUNDATER19 (2015, p. 4), 63% dos moradores deste
assentamento sempre moraram no campo, já 33% trabalharam parte do tempo na
cidade e apenas 4% nunca haviam trabalhado no campo.
Esses dados indicam que a vivência no campo representa 96% dos sujeitos
desse assentamento. Isto pode ser confirmado a partir das falas que, em geral, filhos

19 Fundação de Desenvolvimento, Assistência Técnica e Extensão Rural de Goiás


24

de “peões”20, nasceram e cresceram na roça. Uma parcela destes sujeitos, durante a


adolescência ou início da vida adulta, migram para a cidade para buscar estudo e/ou
trabalho.
Vale ressaltar que há uma dessincronia entre os dados da FUNDATER e as
histórias narradas durante as entrevistas, especialmente porque a maioria dos
assentados entrevistados ilustram terem vivido um período de suas vidas na cidade.
Revelando que para alguns o período vivido na cidade não contabiliza como uma
vivência no meio urbano, mas sim, como passagem, deste modo, os poucos anos ali
vivido tinham a função de realizar seu objetivo maior: retornar para o campo. Desta
forma, o tempo vivido na cidade é mais considerado uma ponte para o retorno ao
campo, do que propriamente uma vivência urbana.
(Re)Olhar o passado, quase sempre revela um trecho histórico narrado nas
memórias vivas. Uma das assentadas relata que nasceu no meio rural, nas regiões
próximas de Goiânia, seus pais eram peões e, por isso, trabalhavam para
fazendeiros executando ações no controle e manejo do gado, além de realizar
também o plantio para seus patrões. Diz ainda, que possui cinco irmãos e para seu
pai realizar a subsistência da família naquele período ele
escolhia uma mata distante, desmatava e plantava escondido do dono das
terras, assim ele fazia a roça de milho, arroz, feijão, abóbora e os filhos
eram responsáveis por colher, esta era a forma de sustento da família,
porque o dinheiro que recebia era pouco (ASSENTADA A).

Quando perguntada sobre o motivo de seu pai plantar escondido, ela diz que
o dono das terras não permitia que ele plantasse para si. O que representa grande
parte da realidade daquele período, uma vez que o estado de Goiás possuiu grande
migração nacional, em especial, com importante influência do capital paulista, onde
os mesmos realizavam a compra de extensas quantidades de terras e colocavam
“peões” para administrar seus bens.
Isto também é refletido por Brandão (1981) em seu livro Plantar Colher
Comer, no qual retrata a trajetória do lavrador do campo para a cidade, analisando
como tal trajetória, aliado com outros processos, principalmente como a
modernização do campo influenciou em sua alimentação, degradando-a.
Brandão (1981, p. 73) ao transcrever uma entrevista, diz:
Eu tiro por mim. Esse ano eu quis fazer uma horta. Nem a semente de
abóbora eu não tive. De forma que a gente não consegue alimentar bem.
Nós temos n arroz e feijão. Eu lembro, de primeiro a gente puxava era

20 Sujeitos que trabalham e moram na terra de grandes proprietários de terra.


25

carrão de abóbora pra porco, e hoje a gente não consegue ter uma verdura
porque é difícil a gente fazer até uma horta. Então a gente fica com a
alimentação fraca, porque a carne de gado não tem. Lá um dia tem carninha
de porco e, tirando isso, um arroz com feijão. Agora, o que eu acho difícil é,
como dizem, ter um jeito de ganhar a parte alimentar, e no começo de cada
ano a crise dobra. A gente às vezes não tem verdura assim, toda qualidade
de verdura. A mandioca faz muita fartura e de mandioca faz muitas outras
coisas. E a gente não tem nada disso decido a terra, porque a terra é dos
fazendeiros. Agora, os fazendeiros dá pra gente arar a terra e plantar essas
coisas? Eles não dão. [...] porque a terra é arada e não pode ocupar terra
com essas coisas.

Se a terra arada, que será utilizada para plantar capim, não pode ser
utilizada pelo peão para plantar sua comida, existia também outro fator que limitava
tal plantio: o medo do fazendeiro de perder sua terra através do usucapião instituído
no Estatuto da Terra de 1964. Impedir que o peão plantasse em sua terra, indica
também a ambição de ampliar os lucros, fato relatado por Brandão (1981), no qual a
“ambição” estaria desconstruindo a relação historicamente estabelecida entre o peão
e o proprietário.
-Eu nasci no campo, né, eu nasci em Mossâmedes. Nós somos uma família
de nove irmãos, a maioria nasceu no campo e a vida nossa foi trabalho no
campo. Eu sai de Mossâmedes novinha, não tinha nem 1 ano. Meu pai e
minha mãe trabalhava na terra dos outros, o motivo de ter ido embora eu
não sei, porque era muito nova. Aí compramos uma terra em Iporá, de lá
pra Redenção, de Redenção pra Araguaína e de lá pra trindade, andando
igual cigano. Aí ficou no Trindade, mas sempre trabalhando no campo,
morava na cidade, mas sempre trabalhando no campo, saia 3 horas, 4
horas de caminhão boia fria neh, e trabalhava no campo. E casei, casei não,
enrolei, e fui morar no campo denovo, e assim essa minha vida foi só roça.
- Até casar foi trabalhando na fazenda de outra pessoa?
-É, era. Quando casei também era trabalhando na terra dos outros, na
realidade, onde eu to morando, terra minha é essa aqui.
(ASSENTADA B)

A instabilidade do camponês é um assunto presente nas histórias dos


assentados. Narrar sua vida, quase sempre, remete a mudanças constantes,
especialmente, porque sua casa possui ligação direta com o trabalho, deste modo, a
cada novo trabalho muda-se de casa e as plantações precisam ser refeitas.
Como narra o livro de Brandão (1981), a família de uma das assentadas do
Salvador Allende é oriunda da migração realizada em Mossâmedes. Brandão aponta
que com a chegada das novas tecnologias houve uma diminuição da oferta de
emprego no meio rural, inviabilizando, portanto, o trabalho no campo. Não restou
alternativa ao lavrador, agora para realizar o trabalho de vários homens o dono das
terras necessitava de somente um que operasse o maquinário. Sem estudo e,
portanto, incapaz de operar máquinas, coube ao lavrador migrar para a cidade, em
26

especial cidades maiores, próximo a grandes centros urbanos, em busca de


empregos precários, isto porque as cidades pequenas tinham como função servir de
localidade próxima do local de trabalho: as fazendas. Se estas não mais ofertassem
emprego, tais cidades deixavam de possuir uma finalidade para este homem do
campo, uma vez que a oferta de outros empregos e serviços era baixa.
Migrando então para os grandes centros, cabia ao camponês e sua família
morar nos setores periféricos, se expondo, portanto, a uma maior criminalidade e
violência. Não obstante, com o pouco estudo, tal camponês ainda era vítima de
exploração no trabalho e em outras situações, ademais, com um baixo salário e, em
média muitos filhos, a alimentação era a primeira etapa a ser afetada, sofrendo
importantes cortes, resultando em um prejuízo na alimentação destas famílias.
Quando perguntada sobre a oportunidade de vender sua parcela no
assentamento e retornar para Goiânia, uma assentada me responde:
Eu teria, assim, pra cidade não, mas pro campo sim, porque tá muito
perigoso, e viver na cidade é muito difícil, na minha idade eu não vou
arrumar trabalho mais, não tenho um ensino bom, não sou formada, talvez
se fosse até conseguiria algo bom. Eu sou obrigada a ficar no campo pra
garantir minha aposentadoria e do [marido]. Pra isso tem que comprovar
que ficou no campo, por isso eu me filiei na cooperativa, porque lá vai me
ajudar a comprovar nas notas, porque quando vou deixar o alimento lá, ela
me dá a nota fiscal (ASSENTADA A).

Para melhor entender suas historicidades, pedi que comparassem sua


infância com sua vivência de hoje em dia, solicitando que fizessem uma comparação
com suas memórias de infância para com seus tempos presentes:
O preconceito não mudou, quando nos vivíamos lá, era um estado de
miséria muito grande, porque quem tinha 6 filhos, não tinha nem cama pra
dormir, alimentar esse tanto de criança com o salário mínimo da época...
então era olhado com muito preconceito pelo fazendeiro da época, pelas
pessoas da cidade. Hoje eu acho que estou muito bem, mesmo que a casa
não seja muito boa, que dependemos das coisas do governo ainda, mesmo
assim, acho que estou muito bem, encaminhamos bem na vida, devido
como nós vivíamos lá atrás, mas a sociedade continua olhando com
preconceito, porque ainda estou na classe do pobre. Estou 10 vezes
melhor, porque tenho onde viver o resto da vida, tenho onde cair morta,
porque devagar a gente vai conquistando, acredito nisso, percorrendo o
caminho correto. Naquela época, quem vinha para trabalhar nas fazendas
dos outros não podia plantar nem criar nenhum animal, era trabalho
escravo.

As pessoas achavam que eram tristes antes, mas na realidade elas eram
felizes, tinha fartura de comida de amigos, não tinha televisão, mas tinha
essas coisas, sempre muita fartura de comida. Se quer ter muito, hoje em
dia.

Eles ouviam o rádio, naquela época só tinha radio, a conversa do rádio.


Quem estava na roça, estava isolado das notícias, do que acontecia. Como
27

o regime militar, nem sabíamos que estava acontecendo. Não fomos


diretamente afetados na roça. Meu pai fez até a 4 série, minha mãe era
analfabeta, então ele era quem mandava, era o governo da casa, todo
mundo obedecia. Nós não íamos na cidade, fazíamos compra nas vendas,
que são botecos no meio do mato, andávamos uns 30 km a pé e
chegávamos lá. La tinha um basicão: cachaça, café, açúcar, arroz, feijão,
fumo de rolo. Nos comprávamos só o básico: açúcar, arroz nós
plantávamos, café nos colhíamos de meia com os outros.
(ASSENTADA A)

Perguntada o que é meia ela disse: “meia é: você colhe, seca e ensaca,
metade era do dono e metade nossa”. Atualmente o sistema de meia é pouco
utilizado, porque há uma maior individualização dos sujeitos, aspecto este que será
posteriormente abordado no próximo capítulo.
A fartura de comida parece ser um aspecto muito presente na memória
destes sujeitos, como salienta Brandão (1981) não havia muita variedade de comida,
mas havia muita fartura na pouca variedade, desse modo, “na roça, se come o que
tem” salienta-me uma assenta. A produção determina o que haverá no prato, lógica
esta que sofreu algumas mudanças, isto porque, mesmo que a produção do quintal
ainda determine muito daquilo que será ofertado na alimentação, o ato de plantar
sua comida não é mais praticado, desta forma, o básico arroz e feijão é comprado,
sendo, portanto, a plantação de quintal, somente um complemento sazonal à
refeição.
Ainda sobre a fartura, uma assentada disse:
Antigamente, eu me lembro assim, até certo tempo, a gente morava na
fazenda, a gente tinha bastante coisa, quer dizer, a gente não comprava um
óleo, uma mistura, era raramente uma carne, comprava mais era o açúcar,
esses trem que não produzia, então naquela época, o custo de vida podia
ser mais caro, mais era mais fácil pra quem morava na zona rural, porque
eu me lembro que a gente morava em fazenda dos outros, nem era nossa,
mais a gente sempre tinha, meu pai fazia as tuia, você já ouviu falar em
tuia? As tuia sempre tava cheia de feijão, era saco e saco de feijão e arroz,
sempre tinha muito, hoje é raro você ver uma casa que tem, você chega e
tem saco de feijão, de arroz pra passar o ano, milho na palha, hoje é raro
você ver isso, hoje o povo já colhe lá na colhedeira e já sai tudo pra venda
né, então assim, antigamente a gente via isso muito, eu fui criada assim,
meu pai quando matava um porco, sempre tinha aquele porco de carne e
aquele de banha, então a gente nunca ficava sem, e tinha mandioca,
galinha, gado, né, sempre não tava comprando esses trem. Arroz e feijão,
meu pai tinha vez que abria assim pra colocar mais saco, hoje você não vê
mais isso, é raro chegar numa casa que tem. Pra mim aquela época era
muito mais fácil, apesar de o povo falar que era mais difícil, até pra criar um
filho era mais fácil, num tinha o tanto de coisa que tem hoje, ai fala assim:
“hoje evoluiu, tem muita coisa boa”, mas tem muita coisa ruim, muito mais,
no meu ponto de ver. No tempo que trabalhava o dia inteiro pra trocar o dia
num litro de banha, mas também naquele tempo cê tinha vizim, hoje você
não pode falar que tem vizinho, ele fica te vigiando pra você sair e ele
roubar, acontece muito isso, naquela época, eu lembro, as porta nem tinha
chave, era tramela, passava a faca e fechava, saia e chegava os trem tava
28

tudo quietim, não tinha esse tanto de roubo, não. Vou limpar o pasto,
juntava aquele tanto de homem e limpava o pasto, faz isso hoje pra ver se
funciona, não funciona gente! Então pra mim, naquela época, era mais fácil,
hoje tá mais difícil, hoje você não pode confiar, sai pra ir ali e fica
imaginando que só vai acontecer coisa ruim, pra você plantar hoje tem
muito mais praga, a terra tá mais fraca, num é que tá ruim, tá mais fraca, o
povo derrubou muito, os bicho muitas vezes ataca, que nem papagaio ataca
as plantação, num é? Tem que comer ué, o povo tá derrubando tudo, tem
que comer ué, hoje tá mais difícil (ASSENTADA B).

Se as farturas não são mais presentes, os mutirões ou - como era


comumente chamado em Goiás - traições não mais existe entre os assentados e
também na região como me informaram. Como relatado em entrevista por alguns
assentados: Mutirão é o ato de se reunir para realizar um serviço nas terras de
alguém, após o serviço há a comida e também tradicionalmente o “forró”, nome dado
para a festa. Traição se trata do mesmo ato, só que aquele que irá receber o serviço
não sabe da oferta e, portanto, é denominado de traição, pelo desconhecimento
daquele que irá receber o serviço. Não há uma separação objetiva entre os dois, isto
porque o mutirão também pode ser organizado sem o conhecimento daquele que irá
receber o serviço, em geral, como disseram alguns assentados, em Goiás a
denominação traição é mais comumente utilizada.
Se por um lado, a tecnologia da atualidade em muito auxilia o camponês,
seja pelo acesso a televisão, pelo acesso à internet, além também da geladeira,
forno, lâmpada, todos viabilizados do acesso a energia; por outro, houve uma
completa mudança nas relações com a alimentação destes camponeses. Cabe aqui,
somente entender que, para esses sujeitos, ao comparar sua situação presente com
seu passado, há um consenso de uma notável mudança em seus modos de
produção e para além destes.
Para finalizar esta reflexão, é preciso problematizar aquele que é um dos
pontos mais importantes para se pensar o processo histórico do assentado: sua
vivência na cidade. Saliento esta parte, pois, a meu ver, é aqui que se têm o início
de um processo que culmina na busca deste sujeito pelo acesso à terra.
A vivência na cidade, permite a estes sujeitos, nascidos e criados na roça,
ter a experiência de comparação entre estes dois modos de vidas: o rural e o
urbano. Se por um lado, o fato de ser nascido e criado na roça faz com que este
sujeito desconheça ou não domine os modus operandi da cidade, por outro, este
momento serve como uma reafirmação deste sujeito, é aqui que sua identidade
camponesa desabrocha e ganha corpus, isto porque, sua pouca ou ausente relação
29

para com a cidade permite refletir que este sistema de funcionamento parece não
lhe agradar.
Assim, quando perguntei sobre seu período na cidade, as respostas
elucidavam melhor esta relação, como podemos observar nesta fala:
Oh, eu sou meio bicho do mato, eu gosto muito de roça, gosto muito de
fazenda, não gosto muito de cidade não, sou meio perturbada com barulho,
então assim, não foi muito bom não, mas também eu comecei a mexer com
feira e graças a Deus chegou essa oportunidade e fui embora, não pensei
duas vezes não. A gente quando mora na cidade, não tem uma casa
própria, acho que a maior prioridade hoje dum ser humano é ter uma casa
pra morar, quando surgiu essa oportunidade eu num pensei muito não, ah...
fui embora. Não me arrependi até hoje não, com toda dificuldade que nóis já
passou, num me arrependi não, hoje tem minha casa, como diz os outros,
não é aquela casa, mas é a que eu tenho, é minha, se eu adoecer não
preciso me preocupar, então to feliz (ASSENTADA B).

Esta preocupação com a habitação se faz presente na fala de outra


assentada, anteriormente citado: “Estou dez vezes melhor, porque tenho onde viver
o resto da vida, tenho onde cair morta (ASSENTADA A)”. A habitação torna-se um
aspecto muito importante durante a vivência da cidade, algo muito citado é a
vivência de aluguel. Conquistar, enfim, sua habitação possibilita ao sujeito sair do
aluguel, deste modo, alguns assentados que não se encontravam completamente
satisfeitos no inicio do processo disseram que o fato de ter sua terra e sair do
aluguel já significava muito inicialmente.
Além disso, para outros, o período na cidade significava, em verdade,
somente uma preparação, isto porque, parte do excedente ali conquistado seria
destinado para comprar uma terra e posteriormente retornar para o campo. Entre
aqueles que disseram não querer ir para o assentamento no início do processo, hoje
contam que são muito felizes em sua terra, ressaltado o aspecto positivo de estarem
ali.
Não obstante, ir para a cidade também representa a caminhada pela busca
por melhores condições. Assim, a trajetória migratória em busca por estudo e
trabalho, no início da adolescência, também se repete nas falas de alguns. Além
disso, era comum que estes, ao migrarem para a cidade, morassem de favor na
casa de seus patrões, onde executavam serviços gerais de limpeza e estudando no
contra turno.
Outro morador do assentamento (ASSENTADO I) relata que havia vindo do
Ceará com dez anos para viver na CANG. Segundo ele, a propaganda para vir para
esta região era muito grande e seus pais vieram em busca de melhores condições,
30

visto que suas terras no Ceará eram ruins. Depois de migrar de Ceres-GO até Santa
Tereza-GO, vivendo um período de tempo nas cidades que ficam localizadas entre
as duas, teve conhecimento de um lote para venda no assentamento e assim
realizou a compra com todas as economias restantes que dispunha. Hoje é um dos
mais velhos do assentamento e está em atividade, ao conversarmos ele declara seu
amor pela roça, dizendo que seu desejo era sempre retornar para a mesma.
Analisar a historicidade dos sujeitos permite entender suas escolhas, estas
que se fundamentam em uma tradição advinda pela vivência familiar, que se faz viva
nas memórias, como uma indicação das ações a serem tomadas no presente.

2.2 - A ENTRADA NOS MOVIMENTOS DE RETORNO A TERRA: A CONSTRUÇÃO


DO “ASSENTADO”.

Se por um lado, conhecer a trajetória do sujeito em busca por sua terra


propicia um melhor entendimento de suas “artes de fazer” (CERTEAU, 2014), por
outro, é a entrada e o processo vivenciado dentro dos movimentos sociais que
finaliza o molde identitário destes sujeitos que, a posteriori, tornar-se-iam
assentados.
Para entender o significado que possuem de um assentamento, perguntei:
“o que é um assentamento?”
Um assentamento é um grupo de família, né, que tem aptidão pra trabalhar
no campo, porque quem mora na cidade, gosta da cidade, não vai morar
aqui. Deveria ser um espelho pro pessoal da cidade, deveria de não ter
preconceito, mas deveria de ser um espelho, porque tudo que nóis produz
aqui é tudo que vai pra cidade, né (ASSENTADA B).

Assentamento é como uma comunidade qualquer, só que somos


autossustentáveis aqui (ASSENTADO E).

Em outra oportunidade, perguntei para a assentada A qual a diferença entre


um assentado e um fazendeiro, ela riu e respondeu: “eu sou um lixo perto do
fazendeiro”. Perguntei então o que é ser um fazendeiro: “fazendeiro é quem produz
muito, que tem muito dinheiro, que é um grande produtor”. Um assentado “é aquele
que tem pra subsistência, que tem pouco, neste momento”, outra assentada
acrescenta: “tem a luta (ASSENTADA D)”. Sobre a diferença entre um assentado e
um produtor pequeno, um agricultor familiar ela disse: “não, porque nós temos as
mesmas dificuldades, as dificuldades que nós passamos aqui, eles passam lá
(ASSENTADA A).”
31

O primeiro contato com a cidade, quase sempre, despertou um sentimento


de inadequação. A dura jornada de trabalho e o pouco dinheiro para sustento não
propiciava prospectiva de melhoras no meio urbano. Em meio a este cenário, as
boas lembranças de infância, da fartura de comida e de amizades sempre nortearam
o desejo de retorno a este que é entendido não como um estado material, mas uma
condição subjetiva.
Aliado a isto, a partir dos anos 2000, os movimentos sociais agrários
tornaram-se latentes, tendo grande destaque na luta e conquista da terra, como o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) e, em Goiás, a Federação
dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Goiás (FETAEG). A Comissão
Pastoral da Terra (CPT), mesmo não sendo um movimento social, teve importante
participação junto aos movimentos sociais.
Silva (2003, p. 18) transcreve um texto ao qual encontrou escrito em uma
caderneta na primeira das Marcha dos Sem Terra a Brasília que participou:
Pessoas advindas de Norte a Sul, de Leste a Oeste. Simples. Alguns dos
quais conduzem os poucos pertences que possuem dentro de “capangas”.
Os seus rostos são surrados, apresentam cores que parecem vir da força
da composição do ferro: apressadamente avermelhados. Não só rostos mas
também os cabelos declaram o efeito do sol; eles dialogam com o sol
através de seus corpos. As ruas do tempo que brotam de suas faces,
demonstram a vida dura que levam. Beira de estrada, beira de rios, beira de
praças. Gritos, cantigas, caminhadas: marcha. Pele marcada pelo cansaço,
pelo suor, pela labuta, pela vida. Imagens na televisão. Pés descalços. Pés
achinelados. Reuniões e discussões. Aplausos e punhos esquerdos
erguidos. Vivas de Antônios à Antônios Conselheiros, de Carlos à Carlos
Mariguella, de Marias, Joanas, Santas, gente de toda cor e muito Vivas.
Cantam, sorriem, resistem.

Tais marchas possuem grande significado para os assentados


entrevistados. Este evento sempre esteve presente em suas falas, demonstrando
um caráter identitário e mobilizador, latente nestes eventos. Além disso, os “gritos de
guerra” também participam como forte elemento identitário. Sobre isto, a
entrevistada relata que “ergue-se o punho esquerdo, sempre o esquerdo, com a mão
fechada e diz: MST, essa luta é pra você! (ASSENTADA A)”. O punho esquerdo
simboliza o ideal político ao qual defendem e lutam.
As histórias de ingresso no movimento variam:
Quando eu fiquei sabendo eu morava em Trindade, mexia com feira, e aí
uma ex-cunhada minha me ligou e falou que tinha um acampamento, que
tava montando um acampamento e que a terra sairia em 3 meses. Eu era
louca pra voltar pra roça, meus irmãos não queria, minha mãe já tinha
separado do meu pai, não ia, e hoje tem um irmão meu que mora nos EUA
e foi eu e ele fazer a inscrição, nóis foi lá e fez a inscrição aí no dia que
abriu o acampamento foi dia 24 de março de 2004. (ASSENTADA B)
32

Entretanto, para realizar o processo, como me informam os assentados, é


necessário fazer a inscrição em algum acampamento já existente ou montar seu
próprio acampamento. Uma das entrevistadas (ASSENTADA A) disse que durante o
governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) era mais difícil este
processo de inscrição, uma vez que era demorado, mas que com a entrada do
governo Lula, o processo se tornou mais fácil.
Ao perguntar sobre como é o processo para adquirir a terra:
Funciona assim, eu posso hoje ir no município onde eu vou abrir um
acampamento e ai vou lá no INCRA, escolho uma sigla, um nome e
cadastro, essa é a bandeira que eu vou levantar, então eu levanto, faço um
acampamento, e aí eu começo a fazer um levantamento das fazendas que
eu acho que não é produtiva. Fazenda que fica ali parada, não planta
lavoura, as vezes fica vazia, não tem boi né, que o pessoal não tá fazendo
nada, as vezes fazenda endividada, levo pro INCRA (ASSENTADA B).

As bandeiras são os movimentos sociais à frente dos acampamentos,


possuindo grande influência no processo, posto que atuam agilizando o andamento
no período burocrático de papeladas, na ocupação ou na agilização dos processos
depois da chegada na terra, como a divisão das parcelas e o estabelecimento de
rede elétrica.
Ao perguntar sobre as diferenças entre os diferentes movimentos sociais,
uma entrevistada diz que: “Olha, tudo do mesmo jeito, todos tem a mesma política,
só muda o nome do movimento (ASSENTADA A)”, por outro lado, outra entrevista
diz que: “a diferença, é que o MST é mais forte né, em questão de luta, as vezes ele
consegue mais coisas por causa da luta (ASSENTADA D)”. O assentamento
Salvador Allende teve como bandeira o MST, entretanto, atualmente, existem
moradores que se filiaram a outros movimentos sociais.
O período de acampamento é sempre recordado pelos assentados como um
momento de celebração e união fortes.
No acampamento tem uma grande vantagem: nós somos muito unidos,
quando chega na terra é que vai definir quem é quem. Lá a participação de
todos é grande, porque tem a empolgação de ganhar a terra. Lá nos
organizamos pela ata, de acordo com a ordem de chegada e os interesses
de cada um, assim quando alguém tem muito interesse, organizamos para
agilizar para esta pessoa. Então quando é liberado um assentamento, é
preciso ver quem está primeiro na ata, e daqueles que querem ir, por
ordem, é preciso ver quem tem condições, quem tem conhecimento do
local, a vontade (ASSENTADA A).

- Acampamento não acontece nada de ruim não, acampamento todo mundo


é unido, se ocê não tiver um arroz pra comer, o outro vai lá e te leva,
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acampamento é a mio coisa que tem. Assentamento é que é dificuldade,


quando divide as parcelas,
- Porque?
- É porque, o acampamento, a diferença de acampamento pra
assentamento é a seguinte: no acampamento se, vamos supor, der uma
briga aqui, junta todo mundo aqui e separar aquela briga, não tem sabe, se
tem uma pessoa passando dificuldade, junta todo mundo, pega um pouquim
dali, um pouquim daqui e a pessoa não tem dificuldade, se falta um remédio
o povo ajuda, é um povo unido. Quando plantava, todo mundo é unido e
aqui depois que entra pra cá, não tem união mais, aí o povo acha que ficou
rico (ASSENTADA B).

Antigamente a gente confiava muito, quando nóis tava acampado, a gente


chegava na direção, e outra a gente só ia fazer uma ocupação se a gente
confiava um no outro, porque senão ninguém ia. E hoje eu quero ver, dou
minha cara pra bater se sentar um grupo de gente e falar: vamos invadir a
fazenda o seu Zé Coelho amanhã, quero ver quem vai falar que vai, porque
ninguém confia no outro é desorganizado, entendeu? Mas nós só
adquirimos isso aqui, porque tinha quem tinha peito e coragem com
confiança, ocê é minhas costas e eu sou suas costas, então pronto, é assim
que funcionava lá quando nóis sentava, nóis ia em tal lugar e ia e graças a
deus, hoje nóis tá na terra porquê? Por causa disso, pela luta que nós
fizemos (ASSENTADO E).

Esta união também retratada na obra de Silva (2003), em pesquisa realizada


em alguns assentamentos da cidade de Goiás-GO, além de ilustrar as afetividades
que o movimento propicia, também mostra outro lado da ética camponesa: a
partilha. Em entrevista, o assentado G diz que durante o acampamento em Goiânia,
todos os moradores recebiam uma cesta básica da CONAB, ele e sua esposa
tinham trabalho e deste modo doavam sua cesta para outra família dentro do
acampamento ao qual possuía muitos filhos, uma vez que a cesta básica “não era
boa, não era farturenta”.
As boas lembranças da união do acampamento, não escondem também os
desgostos com o processo que, por vezes, pode ser desgastante e desmotivador. A
assentada C conta que, quando estava no acampamento Palmares, acabou
desistindo da vaga, sendo que somente mais tarde, quando a terra já havia saído,
optou por efetuar a compra da vaga de um dos pretendentes, para assim obter
acesso a uma parcela. O motivo da desistência, ainda durante o acampamento, é
que, segundo ela, os dirigentes do movimento solicitavam que ficassem até muito
tarde no acampamento, além de solicitarem muitas outras atribuições, o que acabou
desanimando-a por não conseguir realizar o que era pedido.
Além disso, outro obstáculo é a demora para saída da terra:
Vou falar a verdade pra você, porque fica naquele jogo de cintura lá na
hora: “vai sair uma fazenda... vai sair depois de amanhã”, coisa que você
tem gasto, é sofrido esse processo. O INCRA vai vir, vai conversar com o
fazendo, vai avaliar se a fazenda dele é improdutiva ou não. Se der
34

improdutiva, o INCRA vai entrar com um processo de desapropriação, se o


fazendeiro provar que a fazenda dele é produtiva ai entra com o processo
de parar a desapropriação, nisso vai nada nada 5 anos, tem fazenda que
tem 10, 5 anos que tá na briga, nenhum ganhou, ai depende do governo
querer comprar, porque tem fazenda que pode ser vendida e o governo não
tem interesse em comprar. Fazenda se for de terra muito boa, o governo
não tem interesse de comprar porque é caro, é melhor pro governo comprar
terra ruim, mais barato, pra por muita gente. Porque quando a fazenda não
é produtiva o cara pede lá em cima, o INCRA oferece a metade no
processo, ele já tá vendendo a fazenda bem. Quem paga o pato? Nóis! Nóis
vem pra cá e não produz, nóis tem que calcariar, fazer cerca, e se não
produz, o povo fala: nossa mais é preguiçoso, quer terra pra que? Não faz
nada! É ou não é? Você num já ouviu isso? (ASSENTADA B).

No assentamento Salvador Allende, houve dois acampamentos principais


que tiveram acesso às terras: o acampamento localizado entre Santa Tereza-GO e
Porangatu-GO, e o acampamento Palmares de Campestre-GO, próximo de Goiânia.
Este último é muito recordado pelos ex-participantes, em primeiro lugar destacando
seu tamanho, que em média, de acordo com os números relatados, chegam a duas
mil e oitocentas famílias.
Uma das assentadas que teve maior tempo de espera no movimento,
aproximadamente um ano e oito meses, conta sua trajetória até o acampamento
Palmares:
Montaram lá no Campestre, aí ela me levou e peguei e fui no dia 23, no dia
24 eu tava dentro do acampamento, nóis ficou lá, era quase 1000 famílias,
era muita gente. Aí nóis ocupou lá duas fazendas lá na região, aí depois
duma tal reserva do assentamento Canudos. Depois do assentamento
Canudos, nóis fomos pro, falava Saloba, um rio que tem lá, indo pro Varjão,
entre Aragoiania e Varjão, desse acampamento lá aí eu sai de lá quando
tava, era pra ir pra esse acampamento, aí eu saí, porque tava grávida desse
meu menino mais novo, quando voltei eles já tava na fazenda Bicuda, onde
hoje é o assentamento Palmares e nosso acampamento era acampamento
Palmares (ASSENTADA B).

O momento de ocupação de uma fazenda sempre é muito delicado e


exaustivo. O assentado G diz que para que o INCRA escolha a fazenda para iniciar
a apuração da mesma, sobre a produtividade, é necessário ocupa-la, caso contrário
o processo não acontece, deste modo, os acampados não tem outra escolha,
precisam ocupar as terras. Neste meio termo, sem conhecer os motivos de tais
práticas, para os donos das terras se trata de uma invasão e, portanto, um roubo.
Isto, ao longo da história, levou a diversos conflitos e tragédias, visto que a
repressão do Estado é forte, aliado com as repressões praticadas pelos donos das
terras. Sobre a ocupação:
Quando a gente entra numa fazenda a primeira coisa que a gente procurava
era o comandante. Nunca entrou em uma fazenda sem procurar ele, se
entrou na prefeitura o comandante sabia que entrava, se vai entrar na
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fazenda de fulano o comandante sabe, não adianta pensar assim, não


adianta sair daqui e ocupar a fazenda do zé coelho sem o comandante
saber não, vai tomar tiro lá, a primeira coisa que tem que saber é a
delegação, num é assim que funciona? Vamos supor, você vai entrar na
UEG hoje, o comandante tem que saber, tem guarda lá, você vai tomar um
tiro, de lá o comandante já avisou: oh, vai entrar um pessoal. Você acha que
se o comandante não souber vai entrar no INCRA? La é federal, se não
quiser não entra não (ASSENTADO E).

Quando pergunto se nesse processo de vinda para a terra, já houve


problemas quanto a seleção dos escolhidos, uma assentada diz que:
Já houve muitos, tudo dá problema, as vezes a pessoa quer ir mas não é
possível, ai ela fica chateada, é preciso ver a ordem do cadastro. Todos
aqui estávamos no mesmo acampamento, lá nós não nos conhecíamos, só
quando chegamos é que passamos a nos conhecer. No nosso
assentamento, não foi necessário invadir a terra, isso porque o INCRA já
havia efetuado a compra dela, como pagamento de dívida, nesse caso, ele
comprou ela e nós viemos. Assim, fica a concorrência dos movimentos,
quem chegasse primeiro pegava (ASSENTADA A).

Deste modo, no processo vivido no assentamento Salvador Allende não foi


necessário realizar uma ocupação, uma vez que o Estado havia recebido como
pagamento de dívida. Este processo de venda e compra das terras pelo INCRA é
objeto de outras pesquisas, como a de Oliveira (2012), retratando que na região no
entorno de Brasília, foi realizado a venda de muitas fazendas durante o governo do
Fernando Henrique, no qual o INCRA realizava a compra das terras com um valor
acima de mercado, desta forma, em alguns casos este valor se tornava muito acima
do comercializado, por isto, para o proprietário se tratava de um grande lucro pois
eram terras pouco produtivas.
Transcreverei aqui algumas respostas obtidas sobre a chegada no
assentamento, perguntados sobre o processo de advento para a terra:
Quando recebemos o fomento 1 não tem nada construído, chegamos na
terra só com as malas nas costas, e ficamos todos acampados na cede, aí
contratamos uma equipe técnica para separar as parcelas (lote de cada
um), porque o INCRA falou que ia enrolar para mandar a equipe deles, ai só
tem 1 equipe pra fazer isso em Goiás, iria demorar 4 anos, aí decidimos
pagar uma equipe (ASSENTADA A).

Saiu duas terras na época, saiu a Cristo Rei, no município de São Miguel, e
saiu a Rio Pintado, pra lá do Planalto e eu não quis ir pra nenhum. Aí saiu
denovo, lá em Bom Jardim, o pessoal foi lá olhar era só areia, aí saiu essa,
nóis veio olhar, nóis não, o pessoal veio olhar. Não... a terra é
assim...assim, até na época diz que o pessoal tava fazendo pesquisa nela
pra minério, aí como não deu, vendeu pro INCRA, aí nóis veio pra cá, no dia
que nóis chegou aqui era 104 famílias, nessa fazenda aqui era pra ser
assentado 104 famílias, nóis veio ficou 1 ano e pouco no pré-assentamento
né, lá perto da sede. Pagamos pra medir, pagamos pra fincar os marco
tudo, ajudamo, trabalhamo, mas nóis tinha uns dirigentes aqui que não era
nada legal não, aí tava proibindo nóis de entrar nas parcela. Aí enfrentou
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muita dificuldade, não foi fácil tá aqui hoje não, muita gente mandada
embora, muita gente sendo humilhada, aconteceu muita coisa ruim
(ASSENTADA B).

Tem assentamento mais velho que nós aqui e não tem moradia, aqui gastou
muito, mas dentro de um ano nóis tava dentro da parcela e com dois anos
nóis tava com casa, moradia e energia. E tem assentamento que até hoje tá
debaixo da barraca e sem energia. A gente só consegue as coisas com
dinheiro na frente (ASSENTADO E).

No Salvador Allende, comparado com outros assentamentos da região, a


realização das divisões das parcelas, os créditos iniciais e o acesso à energia
ocorreram de maneira muito rápida, segundo os assentados, proporcionado pelo
dirigente do MST que morou por um tempo no assentamento.
Outro importante processo, durante o pré-assentamento, é a escolha do
nome do assentamento, sobre isto:
Nós sempre damos o nome de um militante que morreu na luta, é uma
política de todos os movimentos sociais, o nosso aqui: Salvador Allende, foi
um presidente que ajudou na luta da reforma agrária. Tanto no Brasil como
em outros países, e por isso resolvemos dar este nome. A escolheu ocorreu
quando estávamos aqui, enquanto realizávamos o PDA. O PDA é a
demarcação da terra, o líder do estado e do assentamento começam a
decidir os nomes, no entanto, foi tão rápido o processo de vir para cá, e
como ninguém havia colocado este nome no Brasil, foi que, de última hora,
escolheram este nome. Mas normalmente isto é decidido com as famílias.
Os outros aqui da região foram todos decididos com as famílias, temos, por
exemplo, o José de Castro, ele foi um homem que liderou um grupo de
pessoas em que os fazendeiros, na região de Uruaçu, na época de coronel,
chegava e tomava mesmo as terras dos outros, então ele liderou pequenos
proprietários para matar esse pessoal, pouco tempo depois ele morreu, ai
nós homenageamos ele. Em Novo Planalto, tem o Sepé Tiarajú, o índio que
morreu na luta defendendo seus direitos. Tem o Santa Dica, que foi uma
mulher muito especial, em que era naquele lugar de águas frias... como
era... perto de Goiânia... um ponto turístico de Goiás... Pirenópolis!! É
aquela que falava que as terras do Brasil não tinham dono, o dono é quem
está produzindo nela, ela liderou muitas lutas lá, era muito espiritualizada,
se conta muita história dela: “Ela era presa direto, o delegado direto prendia
e batia nela, e ela ajudava muita gente, todo tipo de gente, e ela era meio
espírita, ela dizia, quem conviveu muito com ela, que ela tinha uma ligação
com Deus, toda vez que ela era presa ela dizia: vai vir uma pessoa desse e
deste jeito para me tirar, e passava tantas horas e aparecia uma pessoa do
jeito que ela dizia e ia e tirava ela, passado um tempo, e o delegado
cansando disso, resolveu furar os olhos dela, ele dizia: Você não vai ver
mais nada. Mas ela dizia: não... vai vir uma pessoa deste e desse jeito para
me tirar daqui, mesmo eu não podendo ver, mas aí devido tanto maus tratos
e perseguição ela morreu”. É sempre assim, homenageamos pessoas que
morreram na luta, na mesma causa, com o mesmo objetivo, no Rio Grande
do Sul nós temos o Che, por aqui também. O próximo que vamos colocar é
um da Marisa [ex-primeira-dama da república], já conversei com algumas
lideranças aqui, vamos homenagear ela, no próximo assentamento será ela
(ASSENTADA A).

Quando uma terra é escolhida e os sujeitos sem-terra chegam na mesma,


eles montam um acampamento o qual é denominado de pré-assentamento.
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Segundo a assentada A, havia uma filosofia durante este período: “fale muito de si,
pois irão conviver muito tempo juntos”. Assim, neste momento, a recomendação era
que dialogassem muito para formar maiores amizades, uma vez que, no
acampamento anterior, grande parte dos sujeitos que foram distribuídos para
aquelas terras não se conheciam, devido a grande quantidade de famílias, por isto
era importante que houvesse uma maior inteiração.
Durante o acampamento, foram realizadas plantações coletivas de arroz e
milho, tendo o maquinário disponibilizado pela prefeitura para a realização do
serviço. A assentada B conta que, nesse período, “homens e mulheres trabalharam
iguais no campo”, foi laborioso. As festas eram comuns e os encontros para as
reuniões das coordenações eram frequentes, tendo nessas as futuras ações e
planos eram decididos, existindo, para isto, uma coordenação para cada área
específica como tesouraria, produção, cultura e outras.
A assentada A, que já foi coordenadora de produção, relata que era
responsável pela melhora da qualidade da produção de todos os assentamentos do
Norte de Goiás. Para isto, visitou todos os assentamentos desta região que tinham o
MST como bandeira. Conta ainda que, nesta região todos os assentamentos
visitados estavam na mesma situação, salientando que seu assentamento se
encontrava em uma situação melhor que a dos outros. “Mais ou menos meio que
tudo parecido, assentamento acho que só muda o nome, geralmente nóis tá sempre
conversando, os problemas é sempre os mesmos (ASSENTADA B)”.
- Até pouco tempo através tinha esse trabalho de coordenador da produção,
em que eu tinha que coordenador a produção dos assentamentos aqui da
região, as lavouras, quem coordenava era eu e uma amiga nossa.
Incentivávamos as pessoas a produzir a plantar, fazíamos cursos sobre
cada cultura. Esses cursos, alguns eram financiados pelo movimento,
outros eram de graça pelo SEBRAI, SENAR. Assim, todos os
assentamentos da região Norte até Novo Planalto eu visitei, dando palestra,
conhecendo.
- Teve algum que você visitou que era organizado?
-Não, o mais organizado que tinha era o nosso e o do Antônio Conselheiro,
porque o Antônio Conselheiro é um assentamento de uma família só, é
bom, mas também tem as desvantagens dos desentendimentos. Mas
quando não tem relações, e ocorre uma briga feia, as vezes é preciso
intervir.
-Já ocorreu de dar alguma briga feia?
-Já, por isso que temos políticas internas, temos um estatuto para seguir: se
brigou que machucou, matou, estuprou, nós expulsamos do assentamento
ou do acampamento. Temos um padrão de ordem, não temos droga, não
temos prostituição, mesmo que tenha, não pode ter, igual na sociedade
mesmo.
(ASSENTADA A)
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O MST proporcionava muitos cursos para melhorar a produtividade dos


assentamentos, sendo função do coordenador de produção levar o conhecimento
adiante para os demais assentamentos. Aliás, o MST oferecia cursos ainda no
acampamento Palmares sobre filosofia, agropecuária, condições climáticas da
região, sobre a luta de classe. A assentada A me mostrou um documento que
guarda consigo até hoje, trata-se do cronograma e de textos disponibilizados na
Reunião da Coordenação Estadual do MST-GO, ocorrido de 31 de março a 04 de
abril de 2008 no assentamento Palmares. Neste cronograma, as atividades variam
desde o entendimento da organicidade interna do movimento até discussões sobre o
socialismo e homenagens a antigos companheiros de luta. Os textos
disponibilizados falam sobre a luta de classes e sobre novas legislações que
afetavam os assentamentos.
A continuação da luta pela conquista da terra é outro importante aspecto do
movimento social, pois como várias vezes diziam alguns entrevistados: “a luta não
pode parar”. Deste modo, aqueles que já foram assentados precisam continuar a
luta, auxiliando outros acampamentos a conseguir suas terras, tal auxílio varia desde
ajuda alimentícia, a instruções dos procedimentos a serem tomados e também no
momento da ocupação da terra escolhida, sendo neste último caso crucial a
participação de quantos puderem para unir forças.
O modelo adotado para a divisão das parcelas no assentamento Salvador
Allende possui uma importante diferença para com os demais assentamentos: ele é
feito no modelo de “raio de rol” ou de “fatia de pizza” como alguns disseram. “Ele é
estreito na entrada e largo no fundo (ASSENTADO G)”. Tal modelo tem duas
justificativas, segundo os entrevistados, em primeiro lugar, trata-se de uma
experiência do INCRA para observar e analisar a utilização de tal modelo, que é
pioneiro no Estado de Goiás. Em segundo lugar, este modelo foi utilizado para
aprimorar a utilização das áreas coletivas, que também são pouco praticadas, como
salienta o assentado K “são pouquíssimos assentamentos que tem área coletiva”.
Entretanto, ambas as práticas falharam segundo os assentados, isto porque,
com o corte das parcelas em raio de sol
você gasta dez vezes mais que você tinha que gastar pra cercar a parcela,
aí fica aquele lote finim, comprido. Você ia gastar, vamos supor, sete bolos
de arame pra cercar uma terra, aí você gasta quatorze, então assim,
funciona nisso e briga, mais nada (ASSENTADA B).
39

O aumento no custo com a cerca e arame são as principais reclamações


deste formato. Além disso, para o assentado G, a distribuição do pasto também é
afetada, uma vez que a entrada do lote é muito fina e ao fundo é muito larga,
proporciona uma maior dificuldade no manejo do gado.
Ainda, as áreas coletivas formadas por causa do formato das parcelas
também falharam, deste modo, como salienta o entrevistado: “foi ruim o raio de sol
porque perdeu terra pra área comunitária (ASSENTADO G)”. O principal motivo
apresentado pelos assentados, para a falha das áreas coletivas, foi a falta de união.
Os dirigentes quiseram assim, nóis queria quadrado burro, que é os lotes
individual, cada um ia ficar com o seu, se quiser plantar. Mas aí eles
bateram o pé, cada lote tirou um alqueiro de terra, pra plantar, só que a
maioria das terras, a metade da terra é pedra, aí a área coletiva você planta
o que, em cima de pedra? Tem duas áreas ai de 11 alqueiro e não faz nada,
tem duas áreas de 9 alqueiro e acontece a mesma coisa, tem uma de 7 e
uma de 6, que não vira nada, dessas áreas, só tem duas áreas que são
fechadas: a da área 1 essa da 6 aqui e a da 5, o resto é tudo aberto e briga,
é só briga que tem (ASSENTADA B).

Não teve união para fazer dar certo [sobre as áreas coletivas]
(ASSENTADO G).

Ao mesmo tempo, o assentado E ilustra que o motivo da falha das áreas


coletivas é que “na linguagem do INCRA, ia servir pra nos unir melhor, acabou
sendo um transtorno, porque a cabeça de cada um pensa uma coisa”, ou seja, cada
um possui seu modo de tratar o gado e realizar agricultura. Os assentados B e E
relatam que tais áreas, no passado, já foram utilizadas para plantio coletivo, mas
que não obtiveram grandes resultado.
Desta forma, houve duas formas de manejo destas áreas, sendo a primeira
separar a área retirando a parcela individual de cada um, isto porque, “as áreas
coletivas são do nosso lote (ASSENTADO E), deste modo, a parte das áreas
coletivas pertencentes a cada um foi acrescida a sua parcela e separada por cerca.
A outra forma de manejo foi a livre utilização da área coletiva pelos moradores,
deste modo, cada morador daquela área pode utilizá-la como bem entender, sendo
que, geralmente, utilizam para o pasto do gado, com a finalidade de preservar os
pastos de sua parcela.
Se a união é um aspecto relevante nas falas dos assentados, isto implica
que, sua falta representa um caráter importante, demonstrando haver um grande
valor na união e que sua perca, portanto, representa uma carência no seu sistema
de intercomunicação, sendo este crucial para o bom desenvolvimento das atividades
40

campesinas, em especial no assentamento. Deste modo, como salienta o assentado


E: “há muitos anos atrás a gente era muito unido, que pra fazer as coisas a gente
tinha uma boa união e boa conduta. Agora hoje em dia você fala assim: fulano faz
assim: Ah, vou fazer não”.
A assentada C diz que a corrupção e a ganância são importantes fatores
que levaram a falta de união. Já a assentada A, complementa dizendo que:
Olha, uma vez fizemos uma pesquisa com o MST e a CUTE: No Centro
Oeste é muito difícil unir as pessoas pro trabalho, nós não sabemos porque,
já fizemos vários estudos, reunimos o pessoal e ainda não descobrimos.
Porque, no Sul isso é fácil, cada grupo tem sua cooperativa, mas no Centro
Oeste não tá fácil, no Mato Grosso também da mesma forma.

Recentemente, um episódio representou grande importância no


assentamento, trata-se da invasão de uma área coletiva por sujeitos que
procuravam um pedaço de terra para viver. A alegação era de que as áreas
coletivas estavam improdutivas e, portanto, para garantir o real uso da terra nos
assentamentos, seria necessário ocupá-las. Gerando revolta por grande parte dos
assentados, que prontamente atuaram contra a invasão, expulsando-os. Isto leva a
refletir sobre os limites e fronteiras do assentamento. Sobre, uma entrevistada conta
que:
A injustiça, perseguição, uma pessoa de fora achar que tem direito ou uma
pessoa que deixou de fazer algumas coisas e vai perder a terra, não vamos
deixar que tirem ela depois da luta, vamos nos unir e ir lá defender,
tomamos as dores do outro pra si. Uma vez aqui, a pessoa que se diz
dirigente, nós temos as áreas coletivas aqui que usamos para colocar gado,
aí ela foi no INCRA e disse que não usamos as áreas, porque o gado esta
lá pastando. Aí ela foi na cidade e chamou um grupo de pessoas pra ocupar
nossas terras, tem uns 2 a 3 anos, aí eles ocuparam. As terras são nossas,
nós lutamos por elas, temos uma história de luta pra conquistar a terra, não
vamos deixar que tome o que foi nosso, se quiser tomar, que tome de um
grande latifundiário. Aí reunimos todos e fomos lá neles e dissemos: ou
você sai por bem, ou sai por mal. Aí todos saíram com medo, alguns
chamaram a polícia, com medo de ser linchado, mas se fosse preciso íamos
linchar mesmo, pra defender o que é nosso. Nem o governo entra aqui e tira
o que é nosso, porque nós lutamos, nós conquistamos, e é o que está
escrito lá no código, na lei da reforma agrária. Igual nosso grito de guerra:
“Ocupar e resistir” ... até a morte. Jamais vamos permitir que alguém seja
injustiçado, se, por exemplo, quase não vamos na casa um do outro, mas
se tiver um problema lá que ela precise de todos nós, todos nós vamos pra
lá. Quando acontece algum incêndio, uma tragédia em alguma casa, se
alguém morre, estamos lá pra dar apoio, ajuda financeira, por mais parece
que não somos unidos, mas numa hora de dificuldade somos unidos.

A luta é a palavra mais recorrente e, portanto, o aspecto mais importante no


processo de construção do sujeito enquanto assentado. Há duas maneiras de
contextualizá-la a partir das falas: 1) referindo-se as dificuldades do processo de
41

conquista da terra, seja na burocracia que atrasa as ações e situações ao qual os


assentados enfrentam em seu período de acampamento; 2) como meio da
repressão, seja do Estado ou dos fazendeiros, além de outras situações que estes
lidem, por vezes, em seu cotidiano com o preconceito na sociedade.
Para melhor analisar, começarei pelas dificuldades do processo de
conquista da terra. A luta é um grande formador de redes de significações comuns,
sendo assim, ao falar sobre a demora do INCRA e do Governo, sobre morar na lona
e passar fome, estes compartilham uma significação produzida em sua
individualidade, mas que pela generalização desta vivência, torna-se um significado
compartilhado e, portanto, comum. Assim, ao assistir um documentário21, aliado com
as falas que dispunha gravadas em minha memória auditiva, pude então obter
imagens do “morar na lona” e devo acrescentar que, a partir disto, a construção de
uma significação chega até a emoção, uma vez que, a situação ao qual tais sujeitos
são colocados demonstra o estado de vulnerabilidade ao qual encontravam-se.
A espera pela terra é um momento de esperança, representa a
concretização dos desejos camponeses presentes nestes sujeitos. Assentar-se,
mais do que ter acesso a posse da terra, é poder realizar-se enquanto sujeito, é
concretizar-se, firmar-se, reafirmar seus desejos. Retornar a terra é poder atingir seu
estado de virtude22 e para isto é necessário a Luta.
Luta é a palavra mais vezes repetida nas falas dos sujeitos que foram
assentados, diferentemente daqueles moradores que compraram a terra quando já
finalizado o processo. Vivenciar o acampamento é uma experiência única, que
molda e constrói sujeitos, pois, compartilhar um litro de arroz com seu colega que
está passando dificuldades, cria uma forte conexão entre os sujeitos. Não à atoa a
perca desta conexão é tão sentida pelos assentados, visto que, foi a união que
produziu uma identidade construída na luta, no compartilhamento de dores,
frustrações, credos, esperanças, de comidas e de água. “Resistir e ocupar” é o
grande lema destes sujeitos no seu processo de ocupação; já “lutar e resistir” tornar-
se o grande significador e significante de todo o processo. É na luta e na resistência
que estes sujeitos constroem seus caminhos e sonhos, assim, a luta e resistência
constitui-se como o mais forte caráter identitário dentre aqueles que foram

21
Sobre isto, eu recomendo o documentário disponibilizado na internet chamado Raiz Forte
(https://www.youtube.com/watch?v=IJoGaWbonmw), no qual retrata o processo de ocupação e seu
movimento adjacente.
22 ARISTÓTELES, 2008, p. 35
42

assentados e que, assim, participaram efetivamente do processo de conquista da


terra.
Vai ser uma luta grande, mas nóis não pode desistir, se lutamos até agora
pra pegar nossa terra, temos que continuar lutando para estar nela [grifo
meu] (ASSENTADO E).

Como nosso lema é resistir, é preciso resistir e se unir (ASSENTADA D).

Nós estamos na esperança que mude o governo e mude as coisas, porque


eu penso assim: Se não houver luta, não tem conquista, sabe, eu tenho
essa certeza dentro de mim, e em tudo na vida, em conseguir um trabalho,
qualquer sentido da vida, pra nós então muito maior, porque se a gente não
for lá, dar a cara a tapa, uma bala de borracha, a gente não pega a terra,
tudo é uma luta, mesmo que tem um papel lá, uma constituição dizendo que
você tem direito a isso e aquilo outro [grifo meu] (ASSENTADA A).

Como salienta a assentada A, “a luta não pode acabar”, ao referir-se com o


auxílio nos processos para que novos assentamentos surjam. A luta não é só a luta
de cada um em seu processo, ela é a luta do camponês pelo acesso à terra,
historicamente restringido, desta forma, ela também representa os movimentos
sociais de conquista por tal direito. Assim, ao se referir que para denominar o nome
de um assentamento escolhe-se “pessoas que morreram na luta (ASSENTADA A)”,
é o reconhecimento pela causa nobre, a morte honrada, é o reconhecimento
honroso daqueles que lutaram e morreram pela virtude. Não por outro motivo, a
denominação de companheiro é utilizada pelos assentados, para referir-se a outros
colegas participantes do movimento.
O segundo contexto para a conceitualização da luta é quando se refere à
repressão do Estado e dos fazendeiros, e em especial o preconceito sofrido pelos
assentados. Tal repressão fica muito presente nas falas dos assentados, uma vez
que os tiros de bala de borracha, cacetes, bombas de efeito moral, gases
lacrimogênios e agressões por parte dos agentes do Estado representam um
importante aspecto das ocupações, que, por vezes, é contrastado com a “bala do
fazendeiro”, armado com a clara intenção de matar qualquer ocupante de suas
terras, vistos por eles como invasores e, portanto, dignos de morte. Entretanto,
historicamente, o Estado também já atirou para matar, como retratado em outros
episódios da iconografia campesina brasileira.
Assim, como aborda Martins (1997, p. 159 apud, Sampaio 2008, p. 7) “a
bala de tiro não atravessa só o espaço entre ele e a vítima. Atravessa a distância
histórica entre os seus mundos, que é o que os separa”. Demarcando, por meio
disto, fronteiras que coexistem. Em seu texto, Sampaio demarca os posseiros frente
43

aos grileiros, nesta pesquisa demarco os assentados frente ao Estado e a


sociedade.
Não obstante, quando pergunto aos assentados se estes já sofreram
preconceito tive as seguintes respostas:
Não dá pra generalizar, lógico que tem, a maioria das escolas,
principalmente do município, é preconceituosa, e não deveria, porque o
maior percentual de aluno é da zona rural, mas infelizmente é. Na Mara
Móveis, uma vez fui lá pra comprar, nem me lembro bem, eles falaram que
não tinha interesse de mexer com sem-terra, eu falei: eu num sou sem-
terra, eu tenho a terra, “não, nóis não tem o interesse de vender”. Não
abriram [crediário] porque o endereço é a zona rural e eles só abrem pra
cidade, porque não tinha interesse de mexer com sem-terra. Já sofri
preconceito em posto de saúde, tem uns atendentes que é muito bom, teve
uma mulher que quase me bateu, porque simplesmente cheguei e fiquei
sentada esperando pra ser atendida no dentista. Já sofri em lojas, você vai
comprar, eles tratam a gente mal, mas uma loja que eu sempre comprei e
me trataram igual foi a Amoreto, a só colchões, nem procuro outra loja, mas
tem as lojas ali, que são mesmo, mercado até que não, mais foi em loja e
escola (ASSENTADA B).

Na escola nos chamavam de pé vermelho, dá roça, colocavam apelidos na


gente porque éramos de assentamento (ASSENTADO F).

Assentamento é bom, não é ruim, estudar isso mais a fundo, pra eles não
ficar hostilizando a gente. Na eleição eles aparecem aí, com uma política
linda, mas eu já falei na cara deles: vocês precisam estudar, saber quem
somos nós, saber o que é a reforma agrária no Brasil, pra vocês
compreender melhor e realizar um trabalho mais digno. Mas isso é falta de
inteligência, porque vocês estão deixando de ser um município bem
desenvolvido por ignorância de vocês. Você pode perguntar ao dono do
Pacheco [supermercado], pergunta ele o que era ele antes dos
assentamentos, era pequenininho, ele só vendia para os assentamentos, na
fichinha, dava até 30 dias para pagar, deu crediário, então ele vendia,
vendeu tanto que teve condições financeiras de abrir um maior, e continua
do mesmo jeito, vendendo pra nós. Nós não queremos que deem as coisas
de graça pra nós, só queremos maquinário, semente, as ferramentas pra
trabalhar, porque ninguém aqui quer nada de graça, ninguém é tão idiota,
todos tem caráter (ASSENTADA A).

Além disso, a assentada A retrata que o principal problema no início do


assentamento era o crediário, haja visto que as lojas não queriam criá-los por
duvidar do pagamento dos mesmos. Para tentar burlar isto, ela conta que tanto no
Facebook, quanto nos crediários das lojas ela intitula-se como produtora rural, ao
invés de assentada, e que isto de fato diminui o preconceito sofrido. Em geral, tal
este começa, como diz os assentados, quando, ao falar com eles, o indivíduo
denomina-os de “sem-terra”, desta forma, ser um “sem-terra” ganha aspecto
pejorativo, principalmente porque construiu-se uma imagem destes como vândalos,
ociosos e bandidos, pois roubam outras terras.
44

Os assentados retratam ainda que, no Norte de Goiás isto é muito marcante,


assim, enunciam o Norte goiano como preconceituoso para com os assentados,
começando pelos prefeitos que “parecem não gostar dos assentados (ASSENTADA
C)”. A assentada A diz que, nos assentamentos do Sul de Goiás a situação é
diferente: “Lá a prefeitura compra os produtos dos assentados e vem na porta da
casa buscar, com uma Kombi”, diz ainda que em algumas cidades o prefeito compra
até mais de 30% dos alimentos da merenda nos assentamentos, havendo, com isto,
uma grande garantia de renda para estas famílias. Além disso, ela conta que “no
Norte de Goiás é diferente”, retratando que em todas as cidades do Norte, grande
parte das prefeituras não realizam a compra dos 30% dos alimentos da merenda
com os agricultores familiares.
Quando perguntei sobre a situação do uso das máquinas, ela conta que, no
Sul do estado o acesso não é completamente livre, no entanto, que a situação é
melhor que no Norte: “Eu acho que eles [prefeitos] nos querem ver derrotados”.
Perguntei se havia uma diferença entre as pessoas do Norte e as do Sul de Goiás,
ela ri e diz: “Você vai me desculpar Matheus, mas tem muita diferença, lá as
pessoas se ajudavam, havia uma relação melhor, aqui é muito diferente, menos
amigável”. Quando pergunto de onde vem o alimento da merenda ela responde: “eu
já fiz uma pesquisa, vem dos sacolões” e completa “eu já falei pra entrarmos na
justiça, mas...” finalizando com uma expressão de que esta é uma luta difícil de ser
vencida.
Desta maneira, expor os sentidos, os caminhos e o contexto da vivência dos
assentados, elucida sobre os motivos de suas decisões e escolhas. Trilhar as
trajetórias históricas e sociais de suas ações permitem melhor entender suas práxis,
objeto do capítulo seguinte.
45

CAPÍTULO 3 - ARTES DE FAZER: A MÉTIS CAMPONESA NO ASSENTAMENTO

Se como diz uma assentada, “um assentamento é um grupo de famílias, que


tem aptidão pra trabalhar no campo (ASSENTADA B)”, esta aptidão para trabalhar
no campo é um importante fator que o diferencia para com o sujeito urbano.
Dito isto é preciso primeiro refletir sobre o que é aptidão. Se recorrermos a
seu significado primeiramente, a palavra pode ter o sentido de “disposição inata ou
adquirida para determinada coisa; ou como série de requisitos necessários ao
exercício de determinada atividade, função” (HOUAISS, 2009).
Pensemos nestes dois sentidos primeiramente: a) uma disposição inata ou
adquirida para determinada coisa; partirei da hipótese inicial de que se trata de uma
disposição adquirida, entendendo que seja uma continuidade de uma pratica cultural
anteriormente construída e que hoje também é ressignificada, assim resta perguntar:
como tal sujeito adquire-a?
Para responder esta pergunta, creio eu, seja necessário refletir sobre um
importante momento em que esta aptidão se afirma, tendo os assentados como
ponto de análise. Refleti anteriormente que a vivência na cidade gera, no sujeito que
sempre viveu no campo, um momento em que ele ou (re)afirma-se como sujeito
camponês ou ele reconstrói-se como sujeito urbano. No caso dos assentados, há
uma (re)afirmação de sua campesinidade, pois ele se reconhece como altero a
matriz cognitiva urbana, ou seja, ao modus operandi urbano. Desta maneira, é como
se o sujeito dissesse, através desta afirmação, que possui uma melhor aptidão para
o trabalho no campo.
No outro sentido, b) como série de requisitos necessários ao exercício de
determinada atividade; podemos pensar que a aptidão aqui se trata de obtenção
e/ou do acesso aos requisitos que possibilitem ao sujeito realizar o exercício de
determinada atividade de maneira plena. Deste modo, poderíamos problematizar
isto sob dois olhares: 1- o assentamento possibilita ao exercício de determinada
atividade e 2- o assentamento possibilita, entretanto, não sua realização plena, uma
vez que estes camponeses se encontram em uma situação mais precária se
comparado com outros camponeses.
Assim, tal aptidão leva-nos a problematizar a campesinidade destes
assentados, aqui entendida como “ordem moral” (WOORTMANN, 1990), tendo por
sua vez uma “matriz cognitiva camponesa” (K. & E. WOORTMANN, 1997, p. 1).
46

Compartilho de Woortmann (1990, p. 12) a intenção de tratar o camponês, neste


caso o assentado, não como um “pequeno produtor”, ou seja, a partir de uma
perspectiva econômica, mas sim tentar uma interpretação subjetiva, entendendo que
este trabalho se configura como minha análise da subjetividade camponesa dos
mesmos. Assim, entendo a economia camponesa como oeconomia e não como
economics, com isto, procuro afirmar que a oeconomia aqui é entendida como
gestão de uma casa doméstica, como administração e não como bem material de
valor-de-uso, mas como uso enquanto valor.
Reconheço que no assentamento, alguns dos moradores que ali foram
assentados entendiam seu lote somente como uma perspectiva economics, ou seja,
como valor-de-uso, estes que já venderam suas terras e como dizem os assentados,
viam-na como “moeda de troca”. Entretanto, esta pesquisa se refere dos moradores
que ainda continuam no assentamento. Mesmo que, por vezes, procuram
alternativas em mudar, não porque veem sua terra como moeda de troca, mas sim,
porque não visualizam meios de “cultivarem-se” ali, de se reafirmarem como
camponeses naquele local.
Neste caso, parto do princípio de que há um saber camponês capaz de
possibilitar a oeconomia destes sujeitos. Assim, discutirei as “artes de fazer”,
entendendo-a na perspectiva de Certeau (2014), no qual problematiza que na
invenção diária do cotidiano há artes de fazer, estas constituídas de modos fazer,
portanto, as estas são os saberes, os sistemas de práticas, de espaços, processos
de trabalho, além das formas de organização da mesma, seja internamente ou de
um olhar coletivo. Ademais, as artes de fazer são aquilo que possibilita aos sujeitos
atingir as condições de reprodução social, o que nos leva, novamente, para a matriz
cognitiva camponesa.
Se as práticas destes sujeitos são sistematizadas para sempre otimizar seus
processos, com a finalidade de aproximar-se do ideal objetivado, estas (re)
produzem “modelos de saber, de conhecimento da natureza, uma espécie de ciência
do concreto” (K. & E. WOORTMAN, 1997, p. 2). Sendo, portanto, responsáveis por
(re)construir os significados simbólicos que permeiam as relações dos sujeitos para
com os espaços, e também com a organização social e do imaginário que estes
possuem (K. & E. WOORTMAN, 1997, p. 2).
47

Digo (re)produzem, porque, como posteriormente discutirei, eles produzem


significados, mas também o reproduzem, sendo isto fundamental no modus operandi
camponês: a transmissão de saberes dentro da família.
Tudo isto, enfim, faz parte de uma métis camponesa, deste modo,
entendendo-a como Certeau (2014, p. 146). Por métis, quero referir a uma
inteligência prática,
um saber que tem por forma a duração de sua aquisição e a coleção
intermináveis dos seus conhecimentos particulares. Questão de idade,
dizem os textos: à “irreflexão da juventude” eles opõem “a experiência do
ancião”. Este saber se faz de muitos momentos e de muitas coisas
heterogêneas. Não tem enunciado geral e abstrato, nem lugar próprio. É
uma memória, cujos conhecimentos não se podem separar dos tempos de
sua aquisição e vão desfiando as suas singularidades. Instruída por muitos
acontecimentos onde circula sem possuí-los (cada um deles é passado,
perda de lugar, mas brilho de tempo), ela suputa e prevê também “as vias
múltiplas do futuro” combinando as particularidades antecedentes ou
possíveis. Assim se introduz uma duração na relação de forças, capaz de
modifica-la. A métis aponta com efeito para um tempo acumulado, que lhe é
favorável, contra uma composição de lugar, que lhe é desfavorável. Mas a
sua memória continua escondida (não tem lugar que se possa precisar), até
o instante em que se revela, no “momento oportuno”, de maneira ainda
temporal embora contrária ao ato de se refugiar na duração. O resplendor
dessa memória brilha na ocasião.

A métis configura-se como os conhecimentos adquiridos pelo sujeito e como


muito bem aponta Certeau, tem por função aprimorar o tempo e reduzir os esforços.
Para isto, ela possui uma estreita relação com a memória, sendo esta última a porta-
voz da métis, assim podemos problematizá-la como importante na dualidade cidade-
campo enfrentada pelo assentado durante sua vivência no meio urbano. É por
possuir uma métis, uma memória que permite aprimorar sua vida no campo e não há
aplicabilidade desta no meio urbano que implica em sua escolha de retorno à terra.
Isto exemplifica-se nas memórias vivas que estes sujeitos possuem de seu
passado, e digo memórias vivas, pois, mais do que simples imagens que (re)passam
em suas mentes, elas criam códigos nos corpos (CERTEAU, 2014, p. 218-219), que
marcam suas corporeidades e subjetividades no tempo presente, vivas nos olhos de
quem contam e que afloram nas mentes de quem escuta, assim, inscreve-se adiante
a história passada, (re)contada e (re)vivida, ela ganha corpus e se insere novamente
no outrem. Não por outro motivo, mesmo que os filhos não tenham vivenciado as
lutas do período de acampamento com tamanha intensidade como os pais, não por
isto ela deixe de ter tamanho significado nas falas dos filhos dos assentados, é na
48

narratividade (CERTEAU, 2014, p. 132-133) que eles (re)produzem significações


comuns.

3.1 - ARTES DE FAZER: TÁTICAS COTIDIANAS

Neste continuum, o sujeito quando se assenta em sua terra pode colocar em


práxis sua métis, desempenhando táticas que o possibilitem fixar-se ali. É neste
sentido, que pretendo aqui refletir como o cotidiano revela as artes de fazer do
sujeito e, mais do que isto, revela as regras e lógicas de sua matriz cognitiva. É no
cotidiano que o sujeito se consolida e, portanto, será o cotidiano aqui
problematizado.
Para auxiliar nesta reflexão, Certeau (2014, p. 93-95) oferece-nos uma
conceitualização de tática ao qual pode fornecer um caminho teórico de reflexão.
Entendendo-a como ações as quais são realizadas fora do tabuleiro de domínio,
resultando assim na “arte de dar golpes no campo do outro”, assim práticas
cotidianas como falar, escrever, fazer compras ou preparar a comida constituem-se
como táticas, uma vez que para existirem são, em verdade, conhecimentos
adquiridos e acumulados ao longo de longínquas gerações, as quais permitiu ao não
possuidor do tabuleiro, ao sujeito ordinário 23 , produzir golpes que permitissem o
aperfeiçoamento dos resultados (CERTEAU, 2014, p. 46).
Aliás, outro importante conceito que Certeau (2014, p. 71-74) ilustra é o de
golpe, entendendo como a arte de burlar as regras do contrato social, modificar o
jogo, as peças, afim obter um resultado mais próximo do ideal ou desejo. No
assentamento, ao explicar o que seria o conceito de golpe, uma das assentadas diz-
me que “golpe então é o jogo de cintura”. Deste modo, o jogo de cintura possibilita
modificar uma situação indesejada, criar novos caminhos.
Se o cotidiano foi, e continua sendo, inventado por nós, é na práxis diária
que se constrói caminhos previsíveis, aos quais costumeiramente chamamos de
rotina, que quer dizer sobre uma previsibilidade de nossas ações, fazendo com que
o gasto energético seja menor, e, portanto, gera um melhor resultado na relação
custo x benefício, aqui entendidos não somente de uma perspectiva econômica, mas
também como práxis subjetivas.

23 Certeau, 2014, p. 59-61


49

Como primeiro exemplo, retomarei uma situação retratada anteriormente


quando uma entrevistada narra que seu pai plantava a roça em uma mata escondido
de seus patrões. A história campesina, quase sempre, foi uma história de golpes.
Sempre subjugado entre os grandes latifundiários, foi necessário estabelecer táticas
que permitissem permanecer no jogo. Desta forma, plantar a roça escondido revela
uma quebra das regras, para que assim fosse possível alimentar sua família e,
portanto, sobreviver naquele local. Quase sempre, a história campesina revela
táticas de sobrevivência, ilustrando um ataque contra estes sujeitos vistos como
“bichos”, como relata uma das assentadas.
Quando perguntei sobre os programas governamentais de compra dos
produtos produzidos para a merenda escolar: Programa Aquisição de Alimentos
(PAA) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), uma assentada diz-me
que:
Funcionava sim, inclusive no governo da Dilma, após o impeachment tais
programas foram afetados. No final de dezembro ele (prefeito) lançou um
edital, convocando para uma reunião, dizendo que iria pagar, no entanto
não deu em nada, a Maria Jaci disse que ele não queria mexer com isso, já
cansei de falar com ele. Parece que o prefeito não quer que a gente cresça,
cê entendeu? Eu pesquisei e tem amigos meus que tem terra em Itaberaí,
Campestre e Palmeiras e os governos de lá pagam direito. Somente aqui
em Porangatu que ele não quer pagar, com um tanto de assentamento aqui.
Sei que nem todos trabalham, mas isto ocorre em todo lugar, nem todos
trabalham direito, mas digamos, que em um assentamento 50 famílias
produzem e entregam pra merenda, não tá gerando uma renda? Um
progresso pro município? Até gostaria de perguntar pra ele: Que visão de
progresso pro município ele tem? Por que a medida que eu crescer eu vou
ajudar outros a crescer, se eu tiver dinheiro eu vou comprar uma roupa, um
sapato, vou gerar imposto e renda pro município, irei comer mais, aumentar
as vendas no mercado, então isto é uma coisa que vai gerando renda pro
município, se eu estou ganhando o município também está, uma mão lava a
outra. Não consigo entender a visão destes governantes, porque eu que sou
taxada de uma pobre ignorante vejo isso? (ASSENTADA A)

Para o assentado, por vezes se gera um sentimento de que a lei não


funciona acompanhado de revolta e frustração: “se for abrir a pasta aqui e for ler pra
você o tanto de direito que um assentado tem, de fundo perdido que ele tem, você
fica doido, porque é dinheiro demais, mas pra você pegar não é fácil, te garanto que
não é fácil (ASSENTADO E)”.
Se por um lado a lei não funciona ou funciona para outros, os assentados
possuem uma determinada comunhão de uma perspectiva política, entre todos os
entrevistados não há dúvidas em dizer que o governo do PT representou grande
impacto positivo em suas vidas:
50

- No tempo do PT, foi a época que nóis, baixa renda, teve direito de comprar
uma casa, uma moto, um carro, os nossos filhos ir pra faculdade, estudar
em um colégio melhorzinho, porque até então não existia isso, ter uma
televisão, um telefone, porque telefone era só uma coisa de rico antes do
PT.
- E como ficou a situação depois do impeachment da Dilma?
- Muita diferença (risos), quando tirou a Dilma de lá, vou te dar dois
exemplos, tempo da chuva e tempo da seca, tirou a Dilma tava no tempo da
chuva, entrou o Michel foi lá pros últimos tempos da seca, daquelas do mais
terrível, ficou claro a diferença neh? [risos] (ASSENTADA B).

Assim, os programas de auxílio possibilitam uma melhora na condição


destes sujeitos. No assentamento, havia dois programas de auxílio: o Bolsa Família
e o Bolsa Verde, sendo o primeiro para incentivar o estudo dos filhos e o segundo
para incentivar a preservação da vegetação cerradeira nativa. A bolsa verde
somente uma pessoa no assentamento tinha sido contemplada, sendo de 300 reais
a cada três meses, mas que foi cortada após o impeachment, como relata a
beneficiada.
Mais do que a simples defesa política, por trás deste apoio há um sistema
antigo de troca de favores, no qual aquele que te ajuda merece também receber
ajuda, trata-se, portanto, de um reconhecimento. Este reconhecimento de favores
constitui-se como um dos golpes camponeses: a troca de favores de tempo de
serviço possibilita uma maior união e leva a um fortalecimento entre os iguais.
Tal reconhecimento acontece, mais comumente, no campo, através dos
mutirões e da troca de tempo de serviço, ambos são poucos praticados no
assentamento, revelando uma alteração na lógica clássica campesina 24. Em geral,
no assentamento a troca de serviço acontece por pagamento: seja em dinheiro, o
modo mais comum, ou por troca de produtos, sendo este último praticado somente
em alguns casos em que não há dinheiro para pagar o serviço.
Aliás, grande parte das negociações entre assentados ocorre via pagamento
por dinheiro, isto, creio eu, vem de encontro com a transformação realizada no modo
de produção destes camponeses, as quais discutirei posteriormente, no qual o
alimento não é mais produzido, mas sim comprado. Isto significa que para alimentar
sua família o camponês precisa comprar os básicos de sua refeição: arroz, feijão e
carne, sendo agora somente os complementos plantados.
Nesta situação, o assentado modifica as relações anteriormente
estabelecidas no campo, não para quebrar a tradição num grito revolucionário ou de

24 Por lógica clássica, refiro-me por aquela praticada por seus pais
51

ruptura para com a cultura anteriormente praticada, mas sim como uma modificação
necessária para a sobrevida do movimento.
A troca de produtos, mesmo que pouco praticada, também possui uma
lógica de funcionamento, denominada de gambira pela assentada A, trata-se de uma
troca de produtos, seja como valor de pagamento de dívida – onde tive relatos de
pagamento de dívida com ovos- ou também pela troca de um produto em outro –
onde tive relatos de troca de porcos em outros produtos, assim como também a
troca de bananas por queijo.
A gambira é um mercado informal, o estabelecimento de valores para troca
é de acordo com o valor do produto se caso fosse vendido. Desta forma, R$ 10,00
de banana equivalem aos mesmos R$ 10,00 de queijo. Há também trocas realizadas
sem este aferimento quantitativo, onde ambas as partes avaliam a proposta
oferecida e se parecer vantajoso é efetuado o negócio.
Houve relatos durante as entrevistas de fim de negociações devido as
desvantagens que a troca oferecia, nestes casos além do fim da negociação há
também a perca de confiança no outro, implicando na diminuição ou até mesmo no
fim das negociações entre os sujeitos. Há, portanto, uma ética a se seguir regendo
as negociações e seus processos.
Todos os entrevistados declararam que, pelos menos em algum momento,
tiveram que realizar outro serviço, que não seja do manejo da terra, das criações e
dos produtos produzidos para complementar a renda. Isto resulta na saída do sujeito
do assentamento para buscar trabalho em outro lugar. As finalidades podem variar
desde a necessidade de ampliar o orçamento para uma determinada compra ou
pagamento de dívida, até a necessidade de obter dinheiro pela não possibilidade de
o produzir pelo trabalho na terra.
Dentre os serviços relatados, os que mais se repetem são a busca por
trabalhos de pedreiro, pintor, servente, peão e reparador de cerca. Sendo que os
três primeiros se realizam quase que exclusivamente na cidade e os dois últimos no
campo, sendo, inclusive, realizado para outros assentados.
Pedreiro, pintor e servente são serviços basais no meio urbano, em geral
desgastantes, que obrigam os sujeitos a deslocar-se para a cidade, para longe de
suas famílias. Em certa ocasião, durante uma entrevista, ao a assentada A dizer-me
que seu marido havia ido para Goiânia trabalhar, sua expressão e seu tom de voz
revelavam a tristeza em dar a notícia, dizendo que “infelizmente tem que ir né
52

Matheus, só aqui não dá”. Isto demonstra que tal deslocamento para complementar
a renda revela a infelicidade da ação, demonstrando que há um valor menor no
outro trabalho realizado, isto porque o trabalho desempenhado na cidade é para o
outro, já o desempenhado em sua terra é seu. Além disso, o trabalho
desempenhado na cidade não contribui, diretamente para a realização de sua ordem
moral, sua virtude, assim, em seu máximo ele contribui para fornecer uma
quantidade de dinheiro que permita aproximar-se do ideal desejado.
Os serviços de peão e reparador de cerca, mesmo que realizados fora de
sua terra, possuem um valor diferente daquele realizado na cidade. Ao falar sobre
estes trabalhos, não parecia haver um sentido de prejuízo presente quanto ao falar
dos serviços de pintor, pedreiro e servente. O assentado G disse que costumava
fazer muitos serviços fora para complementar a renda, um dos principais era fazer
cerca, no entanto ele diz que hoje em dia é muito pouco realizado esse serviço,
sendo realizado somente dentro do assentamento atualmente, mas que no início da
vinda para o assentamento, quando ele tinha moto, havia um grupo de dez homens
que faziam o serviço lá no “Barreiro”, nas fazendas da região. O assentado G conta
ainda que não tinha moto, assim o deslocamento era o mais difícil, uma vez que o
gasto com gasolina no carro é maior. Seu ganho era de R$14,00 reais por lasca,
como trabalhavam em dez pessoas o trabalho possuía a seguinte organização: seis
pessoas cavando e quatro pessoas colocando e aprumando, depois passava-se o
fio. Entretanto, hoje em dia, os fazendeiros só fazem reparos nas cercas, não
querem mais gastar trocando por uma nova, o que resultou na diminuição da
quantidade de serviço.
O motivo para estes trabalhos não serem visualizados com prejuízo, se dá
pela aproximação com sua ordem moral, uma vez que estes serviços efetivam o
conhecimento prático adquirido nesta vivência. Desta maneira, a prática deste
conhecimento proporciona uma aproximação com sua ordem moral, diferentemente
do serviço de pedreiro. Assim, mesmo que o sujeito esteja trabalhando para o outro,
ainda há uma continuidade de sua ordem moral.
Além disso, outros serviços também aparecem como complementador de
renda, durante o carnaval uma das famílias entrevistadas realizou a venda daquilo
que foi apelidado de “drincolé”, trata-se de um suco de frutas com pinga. Todas
estas formas de complementação de renda representam as táticas que estes
53

sujeitos realizam na tentativa de modificar sua realidade para melhorar suas


condições.
“Você tem coragem de bater lá no presidente do sindicato e bater dois dedim
de prosa com ele? (ASSENTADO E)”. Outro golpe realizado pelos mesmos são os
diálogos, a prosa, como comumente chamam. Estes momentos, mais do que uma
simples conversa, representam também a troca de saberes e informações que
possibilita modificar a situação em que se encontram. Para que a prosa obtenha seu
resultado é necessário que pelo menos uma das partes tenha uma informação
relevante, assim, os métodos de obtenção da informação e conhecimento são
importantes:
É proibido morar na área coletiva, ela foi feita pra produzir, você pode fechar
seu alqueiro, não dá um alqueiro não, você pode ir lá e fechar o seu,
trabalhar da sua maneira, igual ele [homem do INCRA] falou: Oh, porque
vocês não fecha o de vocês e trabalha igual sua maneira. Porque eu sou da
Paraíba, lá na Paraíba, noís fecha o gado e a roça é aberta, aqui no Goiás é
diferenciado, então tudo bem, pode fechar, mas não pode morar. Na
individual tudo bem, posso colocar 50 casas aqui, porque quem manda sou
eu, quem tá com titular. Na área coletiva tem vários titular, tudo que vai
fazer lá tem que discutir, até hoje tudo que foi feito lá eu levei pra discutir,
tudo a gente sente e discute. Pra ajudar a gente tem que entender da
reforma agrária (ASSENTADO E).

Assim, é necessário conhecimento teórico para possibilitar a mudança da


situação. Para que alguém ajude o outro, o conhecimento é fundamental. Os cursos,
a televisão e a internet25 desempenham importantes papéis nos modos de fazer nas
criações e agricultura e também nas questões burocráticas do INCRA.
Assim, se a troca de informação pelo diálogo possibilita (re)criar caminhos
de ações, é na união dos sujeitos que as táticas se tornam fortalecidas. Como nas
memórias dos tempos de criança, é na união dos mutirões que o trabalho se executa
de maneira mais rápida e eficiente, com um maior alcance,
Uma ação que no passado foi executada pelos assentados, mas que hoje
não é praticada é a caixinha, sendo sua finalidade a possibilidade de financiar a
viagem de alguém para assim solucionar algum problema que aflige os assentados.
Para isto, cada mês cada um dos moradores realizavam uma contribuição e quando
necessário esta tornava-se o fundo onde estes poderiam utilizar para financiar o

25 Com destaque para o WhatsApp e sua ampliação na comunicação, sendo que uma das

entrevistadas possuía contato direto com um líder do MST e, portanto, possibilitava um


esclarecimento pelo diálogo ali conduzido.
54

trajeto daquele que iria resolver o(s) problema(s), geralmente o dirigente do


assentamento.
Aliás, o trajeto é muito importante na vivência do assentado, sendo a estrada
o local comum de livre circulação de todos. Com estradas em péssimas condições e
pouco cuidadas pelo governo local, os assentados reclamam das condições as quais
precisam enfrentar, relatando que frequentemente os automóveis sofrem danos por
causa das condições. Além disso, há outras situações que perpassa o problema das
estradas, como as condições naturais, pois durante o período de chuva já houve
caso de uma das pontes ser destruída, o que obrigou os assentados a utilizar outra
rota de acesso.
Para Certeau (2014, p. 165-166), o trajeto é como dar golpes, onde há uma
frequente (re)criação de táticas. Assim, durante o período chuvoso, os assentados e
qualquer outro que trafegue pela estrada irá enfrentar grandes poças de água em
que frequentemente atola carros e motos, além de córregos que perpassam a
estrada e que por vezes inviabilizam a travessia em veículos pequenos. Já durante a
seca a grande quantidade de areia e de costelas26 torna o trajeto difícil e arriscado,
sendo muitos acidentes relatados pela queda de motociclistas e de choques pela
falta de atrito ocasionando a derrapagem.
Deste modo, a observação do local é muito importante para que os mapas e
trajetos sejam analisados. Certa vez, o morador K ao visitar uma assentada disse
que ao ver o “rastro” da moto na estrada achou que não encontraria ninguém em
casa, pensando que isto representaria que a mesma teria saído. Indicando que a
observação do espaço é muito importante e que possui uma significação/linguagem
própria, informando o sujeito sobre acontecimentos. Tais “pegadas” fornecem pistas
de ações, e estando atento para isto o sujeito pode (re)criar táticas, ações, assim
como, em outro caso, ao ver um rastro de cobra um dos assentados disse-me para
tomar cuidado pois haveria passado uma cobra ali recentemente.

26 Denominação para ondulações provocadas pelo vento nas estradas.


55

Imagem 1 - Córrego atravessando a estrada


Fonte: Foto tirada em visita a campo

Dominar esta linguagem requer uma métis duradoura. A observação do


tempo e da natureza permite ao sujeito antecipar-se e prever caminhos a tomar.
Assim, quando perguntei se foi escolhido um mês para iniciar as construções das
casas nas respectivas parcelas, a assentada A diz que: “o dinheiro saiu em
novembro, por causa da chuva as construções iniciaram em março-abril”. A falta
desta métis é relata, por alguns entrevistados, como uma das problemáticas do
assentamento: “colocar gente sem conhecimento nas terras não dá certo
(ASSENTADO E)”.
A visão da natureza também é diferente daqueles que moram na cidade.
Com uma dependência direta da mesma, eles são os primeiros a sentirem qualquer
56

variação nas relações ecológicas. Deste modo, quando pergunto para a assentada B
como ela vê a natureza ela responde que:
- Gente, nóis e aí eu me incluo também, se nóis aprendesse a conviver com
a natureza e aprendesse a respeitar o espaço dela, nóis vivia mil vez
melhor. O negócio é que hoje o homem, eu falo assim num modo geral, eles
acha que tudo ele pode, mas não pode tudo, e não é assim. O que que tá
acontecendo, tudo que tá acontecendo de ruim, é por causa de falta de
respeito nosso mesmo, então assim se nóis não derrubasse tanto, a onça ia
vir aqui? Num ia né, ia ter o espaço dela pra andar, tinha o catitu, a paca, a
cutia, todos os bicho lá, a onça mata só os bicho, mais se nóis mata os
bicho tudo dela comer ela tem que comer quem? ela vai atacar o ser
humano, vai atacar a vaca, o bezerro, então assim, acho que o ser humano
tinha que respeitar mais a natureza, porque tudo que nóis tem de bom é a
natureza gente.
- E sobre a chuva?
- Menas chuva, muito mais calor e as coisas seca muito rápido, gente quem
não vê que esse trem tá funcionando mal? Nóis tinha que, o povo tinha que
parar e oh, tem alguma coisa errada aí! Mais não vê, enquanto você planta
uma árvore tem outro que derruba dez. A vizinha fechou a reserva e eu
também, de minha parte não tiro um palito de fosforo lá de dentro. Quando
nóis mudou pra cá, a água dessa represa era linda, você via os peixe
nadando, aí nóis mudamos, fez as parcelas a primeira coisa que meu
vizinho fez foi tacar o trator pra dentro da mina, furou um poção, queria
fazer uma represona, aí essa mina secou, aí não corre água mais, nóis
tentamo preservar, porque eu pretendo ainda ver essa água correndo ali
denovo, porque a gente tem que aprender a cuidar mais, preservar mais.

A métis possui tamanha importância que, em uma das famílias entrevistadas


é a esposa que foi nascida e criada na roça, sendo o marido nascido e criado na
cidade. Deste modo, é ela a detentora do saber e assim, sempre que perguntado
sobre alguma práxis desenvolvida ele indicava que perguntasse para sua esposa.
Ela é, portanto, a dona do saber e isto implica em sua autoridade dentro de casa,
conquistada pelo domínio do saber.
As criações e a agricultura são os principais meios de produção e da métis
camponesa. Entretanto, como destacou-me a assentada C: “todos são diferentes,
cada morador é diferente um do outro”, assim, também nos modos de fazer tais
diferenças afloram-se.
Tendo isto, abordarei as variedades de práticas presentes no assentamento,
apontando para a diversidade de práxis campesinas, cada qual com sua matriz de
aprendizagem. Indicando ainda um “saber fazer” adequado como apontam.
Devido esta importância, irei discutir os modos de fazer nas criações e na
agricultura, entendendo que isto participa de um conjunto de práxis herdadas e
ressignificadas que possibilitam ao camponês sobreviver no campo, através de
57

táticas adequadas e como diz o assentado G: “na fazenda está sempre fazendo
algo”.

3.1.1 - Modos de fazer nas criações

A criação de animais é uma atividade bastante consolidada na história


humana, sendo o Brasil um dos grandes produtores de carne bovina e frango no
mundo. Isto significa também, e dado o tamanho continental do país, que há uma
diversidade de práticas e modos de fazer nas criações de animais
Algumas dessas diferenças, por vezes, propiciam a criação de um modus
regional. Como disse o assentado E: “eu sou da Paraíba, lá na Paraíba, noís fecha o
gado e a roça é aberta, aqui no Goiás é diferenciado”. Ao discutir os modos de fazer
nas criações no assentamento Salvador Allende, pretendo problematizar dois
pontos: a) descrever as práticas mais comumente praticadas entre os assentados, b)
refletir sobre o processo de aquisição de tal prática.
Deste modo, as criações praticadas no assentamento envolvem como
principais animais o gado bovino, suínos, aves e peixes. Sendo que destes, o gado
bovino e as aves são os principais, representando grande parte da renda econômica
do assentamento.
Segundo dados da Fundater (2015, p. 10), a venda de produtos do lote
representa a segunda maior fonte de renda no assentamento, ficando atrás de
aposentadoria e pensões.
Venda de produtos do lote é a segunda principal fonte contribuidora para a
formação da renda das UFs do PA. Os produtos mais comumente
produzidos e comercializados por esses agricultores em seus lotes são as
aves, o leite e seus derivados e farinha/polvilho [...]. A principal forma de
comercialização desses produtos é a venda para atravessador

Durante a produção destes dados, há três anos, havia no assentamento


associações produtoras de aves. Deste modo, quantitativamente, a venda de aves
apresentava-se em 19 unidades familiares, leite e derivados em 9 unidades, sendo
que a farinha/polvilho estava presente em 8 unidades. Entretanto, estas associações
não mais existiam e assim a produção de aves diminuiu, ocorrendo somente para a
subsistência da família em sua grande maioria e com venda de alguns poucos
excedentes, já o leite e seus derivados tornou-se “o principal produto comercializado
no assentamento” (ASSENTADA C).
58

Isto se explica por dois motivos: 1) o fim das associações, que forneciam um
crédito inicial para compra dos materiais para a construção de galinheiros. Sendo
que sobre estas o assentado E diz que:
A gente tentou uma associação, derramou pro canto. Eu tentei essa
associação, aquele negócio, associação, nunca traz benefício pra ninguém,
só prejuízo, inclusive desunião. A associação não foi pra frente por causa
de que falta de união, em primeiro lugar, não tinha um pra nóis tá buscando
algum recurso pra base que tava, então o pessoal vai se deslocando,
dinheiro não tinha.

Dado o fim das associações, houve a instalação de mais um tanque


armazenador de leite no assentamento, aumentando assim a possibilidade de
produzir o leite em maior quantidade. Resultando, portanto, em uma ampliação da
produção leiteira no assentamento.

Imagem 2 – Produção do queijo


Fonte: Foto tirada por mim durante visita

Sobre os derivados do leite, estes são pouco produzidos para venda, sendo
sua produção, em grande maioria, destinada para consumo próprio ou em alguns
casos de excedente destinados para a venda. A assentada C, em uma das visitas
que realizei, estava a produzir o queijo, disse-me que o lucro obtido do leite era
muito baixo, não compensando assim sua venda, acrescentando ainda que estava
produzindo porque havia ganhado o leite e assim não teria nenhum prejuízo.
59

Entretanto, diz que mesmo assim sua produção para venda não compensaria, sendo
utilizado para o consumo.
Além do queijo, também há a produção de requeijão, considerado mais
trabalhoso de se fazer. Este é pouco produzido, sendo que, durante o período de
visita somente a assentada M havia produzido. A mesma vendia alguns queijos e
requeijões na cidade anteriormente, mas que hoje não realiza tal “esforço”, pelo
pouco lucro e muito trabalho. Ainda vendia alguns queijos e requeijões no
assentamento por encomenda.

Imagem 3 - Assentada produzindo do queijo


Fonte: Foto tirada por mim durante visita

Se, portanto, esta produção produz pouco lucro, o que justifica sua prática?
Silva (2003, p. 176) aponta para uma justificativa:
[...] alguns camponeses, no assentamento, fazem queijo por recriação
cultural da identidade, uma forma de voltar ao exercício de uma atividade
60

aprendida no “passado” e não pelo valor que o mesmo possa ter como
lucro. Fazer queijo, não tem, portanto, se configurado uma atividade
“lucrativa” para as famílias dos assentados.

Este aspecto identitário pode representar uma justificativa para a


continuidade de tal prática. Mais do que fazer para ganhar dinheiro, a prática de
fazer o queijo e o requeijão representa o prazer de produzir determinado produto,
como em uma retomada da memória passada.
Se a produção de leite aumentou, consequentemente a quantidade de gado
também. Os cuidados com o gado representam uma das bases fundamentais. O
rebanho é, em geral, responsável pela maioria da renda anual e assim precisa
receber grande atenção para evitar prejuízos e instabilidade.
A própria relação com o gado é estabelecida de maneira diferente, sendo
que o gado leiteiro ou o gado das crianças possuem nomes próprios e representam
animais de estimação, isto porque, como são gados que permaneceram muito
tempo com a família, há a criação de uma afetividade específica. Diferentemente do
gado de corte, uma vez que, ao estiver no momento adequado este será destinado
para a venda.

Imagem 4 - Chamando o gado


Fonte: Foto tirada por mim em visita a campo

Assim, tal relação afetuosa cria um vínculo com o animal, ao chamar o gado
para alimentá-lo com a ração, há um chamado particular, sendo que ao ouvi-lo
imediatamente o gado corre para se alimentar. Estes chamados, em geral, são
61

reproduzidos como os mesmos que o sujeito tenha ouvido anteriormente, seja pelos
pais ou por alguém ao qual o sujeito conviveu e apreendeu.

Imagem 5 - Chamando o gado para comer


Fonte: Foto tirada por mim durante visita

Além disso, há uma especificidade de cada um para com o trato do gado. O


assentado L, ao preparar a ração, misturou 1/3 do saco de quirela de milho com
quatro sacos pequenos de sal. Já os assentados A e G, utilizam uma menor
quantidade de sal em seus preparos, sendo que “o gado come o sal na medida que
tem vontade, na quantidade certa, e caso você não coloque o sal, o gado aparece
na casa dando sinais de que quer comê-lo (ASSENTADA A)”. Desta forma, há o
estabelecimento de uma linguagem entre o sujeito e o animal, no qual por um lado o
gado reconhece o chamado da alimentação e o sujeito reconhece o pedido por
comida.
62

Imagem 6 - Assentada alimentando o gado


Fonte: foto tirada por mim durante visita

O assentado E, considerado um dos maiores produtores de leite do


assentamento, conta que aos dezoito anos foi gerente de uma fazenda no Pará.
Durante sua experiência, as fazendas não possuíam cerca, o gado era criado solto.
Demarcando assim as diferentes maneiras de se criar gado, atualmente ele cria seu
gado à “moda goiana”, ou seja, fechado por cercas.
O trato com doença e machucados também são importantes componentes
dos modos de fazer. Como informa o assentado E, antigamente, ninguém vacinava
o gado, não era necessário. Além disso, as “bicheiras”, eram curadas, em sua
grande maioria, com rezas e benzas feitas pelos antigos, ou quando o sujeito
dispunha de uma melhor situação ele realizava a compra de medicamentos.
Ainda fazendo uma comparação dos diferentes tempos, o assentado E diz
que as vacas e bois estão precoces, ou seja, com um rápido desenvolvimento, o que
permite a possibilidade de aumento na produção de cria, e consequentemente de
leite. Segundo ele, a intenção é aumentar a arrecadação de dinheiro, diminuindo o
intervalo das produções. Entretanto, como ele próprio salienta, isso acarretou em um
enfraquecimento do gado, que agora necessita de remédios e outros cuidados que
só podem ser adquiridos pela compra nos centros urbanos.
63

A prática de aluguel de pasto é muito comum no assentamento, sendo, em


unidades familiares, a prática pecuária mais realizada. O aluguel é efetuado
principalmente por: outros assentados que possuem cabeças de gado e terras
insuficientes e fazendeiros da região, sendo que os mesmos são os principais
alugadores. O contrato de aluguel, quase sempre, é feito de maneira informal, ou
seja, sem um documento legal, fornecendo uma renda fixa mensal, que varia de
acordo com o contrato firmado, além disso, variando de acordo com o contrato no
momento que o gado é vendido o pagamento é interrompido, até que outros sejam
colocados. Já para outros tipos de contrato o pagamento continua, além disso o
pagamento pode ser combinado por cabeça na terra ou por um valor fixo,
independentemente da quantidade.
Estas variações e informalidades, aliado com outros fatores fazem com que
alguns assentados optem por não realizar o aluguel, como conta a assentada B:
- Não alugo, peguei dois anos seguidos gado pra tirar cria, não acho que
seja vantajoso alugar pasto não
- Porque?
- Porque o seguinte, eu alugo o pasto o pessoal quer pagar sempre o menor
preço que tem na região, porque é sem-terra né, eu já ouvi isso... num sei o
que sem-terra... então é o menor preço da região.
- Quanto se paga normalmente?
- A gente ouve falar de quarenta, trinta e cinco, eles querem pagar quinze,
dez... então já vê que é uma dificuldade, quando nóis chegou aqui nóis
alugava, depois eu falei: não. Eu prefiro que nem, eu peguei um gado pra
tirar cria, vou tirar e tiro o gado com a cria, vendo, se precisar pego denovo,
é meu meio de vida.

Para todos os contratos aos quais tive conhecimento, o aluguel do pasto


estava com o valor baixo do mercado, isto implicando que não seja considerado
vantajoso para alguns assentados.
Além disso, para tratar o gado é muito importante ter acesso à água, para
isto a construção de represas é uma importante saída para lidar com esta situação.
Segundo dados da Fundater (2015, p. 14), vinte e quatro unidades familiares
dispõem de represas, além disso também há cisternas e poços.
Nas unidades que dispõem de represas, o gado vai até elas para beber
água, caso contrário é necessário criar mecanismos para levar a água até eles. No
caso de falta, como ocorre com a assentada H, que não possuía represa nem
nenhuma fonte de água em sua terra ela buscava água para dar para os porcos e
galinhas com um carrinho, assim, ia até o rio e buscava para tratar os animais, o que
muito dificultava a realização do trabalho.
64

Um dos problemas destacado sobre as represas é a não preservação das


nascentes, consequentemente ocasionando na perca de cursos de água. Assim,
para evitar que isto aconteça seria necessário cercar as nascentes e plantar à sua
volta, como havia dito a assentada A.
Quando nóis mudou pra cá, a água dessa represa era linda, você via os
peixe nadando, aí nóis mudamos, fez as parcelas a primeira coisa que meu
vizinho fez foi tacar o trator pra dentro da mina, furou um poção, queria
fazer uma represona, aí essa mina secou, aí não corre água mais, nóis
tentamo preservar, porque eu pretendo ainda ver essa água correndo ali
denovo, porque a gente tem que aprender a cuidar mais, preservar mais
(ASSENTADA B).

Além de ter por função fornecer água, as represas também possuem peixes
que são utilizados pelos assentados como alimento. Certa vez, durante um encontro
de alguns assentados, a assentada H brinca dizendo que tem uma trilha até a
represa da assentada A, e que todos os assentados vão lá pescar. Além de servir de
alimento, os peixes também realizam a limpeza das represas, sendo, portanto, muito
utilizados até mesmo em caixas onde é colocado água para o gado, pois assim “não
deixam dar larva de mosquito da dengue (ASSENTADA C)”.
Se por um lado o cuidado com a natureza é importante, por outro as onças,
presentes no local, por vezes, representam uma ameaça para o gado. Entretanto,
nunca ouvi dos assentados algo que representasse a onça como uma inimiga, ao
contrário, eles realizam sua defesa:
se nóis não derrubasse tanto, a onça ia vir aqui? Num ia né, ia ter o espaço
dela pra andar, tinha o catitu, a paca, a cutia, todos os bicho lá, a onça mata
só os bicho, mais se nóis mata os bicho tudo dela comer ela tem que comer
quem ? Ela vai atacar o ser humano, vai atacar a vaca, o bezerro, então
assim, acho que o ser humano tinha que respeitar mais a natureza, porque
tudo que nóis tem de bom é a natureza gente.

Se o gado demanda uma grande quantidade de trabalho por aqueles que o


possuem, as aves e porcos, por outra via, demandam menos. Atualmente, criadas
soltas nos terreiros, as aves alimentam-se com o que encontram, não sendo
necessário nenhum trato específico com as mesmas. Já os porcos, todos fechados
no chiqueiro, alimentam-se dos restos da comida, do soro produzido na feitura do
queijo, dos restos da mandioca da produção de farinha e polvilho, ou seja, com as
“sobras”.
65

Imagem 7 - Represa de uma das parcelas


Fonte: Foto tirada por mim durante visita

Há também outras formas de proceder, sendo que a assentada C aluga seu


chiqueiro para o assentado N, assim ele utiliza para colocar seus porcos, cabendo a
dona do chiqueiro colocar comida e cuidar dos mesmos. O assentado N disse que
utiliza proteína de soja com quirela de milho e resto de comida na alimentação diária
dos porcos, e que deu um pouco de ração de crescimento quando eram mais novos.
Ao mostrar-me um porco colocado após a ração de crescimento acabar ele destaca
a diferença que ela proporciona, sendo que aquele que tinha recebido a ração
apresentava um desenvolvimento melhor do que o outro.
Ao conversarmos sobre raças de porcos, ele diz que não gosta da raça
barcé pois ela produz muita gordura e menos carne, indicando que havia porcos de
carne e outros pra gordura, como também indicam Brandão (1981) e E. & K.
Woortmann (1997a). A assentada B também diz que “meu pai quando matava um
porco, sempre tinha aquele porco de carne e aquele de banha”. Deste modo, a
escolha da raça do porco também possui uma lógica, justificada pelo produto final
que pretende ser obtido.
O assentado O também estava realizando o aluguel de seu chiqueiro para
uma pessoa da cidade, que uma vez por semana trazia a comida e o assentado
seria responsável por alimentar o porco. Neste caso, o aluguel não seria pago em
dinheiro, mas com a própria carne do porco, em uma espécie de criação na meia.
66

Se por um lado, estas são as diversas práticas existentes; por outro, é


importante problematizar a matriz de origem deste saber. Se como aponta Certeau
(2014), as táticas são adquiridas ao longo do decorrer do tempo, sua transmissão é
outra importante parte do processo, uma vez que fornecer ao filho melhores
subsídios garante a continuidade das táticas aprendidas.
Ao conversar com os assentados é possível distinguir duas formas de
apreensão de seus modos de fazer: a) herdadas e b) adquiridos. Dentre os modos
de fazer herdados, estes o são através do conhecimento adquirido pela vivência e
observação da forma de manejo dos pais e/ou outros sujeitos que o ensinaram como
proceder. Já os modos de fazer adquiridos, são aqueles aprendidos pelo sujeito
através de seu contato com a internet, com a televisão, pelas conversas, ou
qualquer outra forma de compartilhamento do conhecimento e que realize uma
(re)significação de suas práticas, ou seja, ressignificam praticas já existentes ou
também produzem novas.
O assentado E conta que para realizar o plantio inicial eles realizaram um
estudo para saber como seria realizado a correção do solo. Segundo o estudo, seria
necessárias seis toneladas de calcário por alqueiro, sendo que esta correção de solo
duraria de seis a sete anos, além disto também seria necessário adubar a terra para
que o capim cresça com qualidade. Este modo de fazer foi produzido e significado a
partir de um estudo realizado em sua terra, desta forma, representa um
conhecimento adquirido, que (re)significou sua práxis, pois sem este estudo o
mesmo teria realizado a correção de maneira diferente, como havia aprendido com
seus pais.
Já em outro caso, este mesmo assentado ao falar sobre a produção de leite
e dos diferentes usos que as variadas raças de bovinos possuem ilustra os modos
de fazer herdados, seja dos modos de fazer de seu pai, como também da fazenda
em que foi trabalhar quando adolescente, o qual também considera seus patrões
como pai e mãe pela ajuda recebida. Este conhecimento herdado é o mesmo do
praticado atualmente, podendo haver pequenas alterações, seja pelos fatores
limitantes das condições em que está, seja pelas modificações de práticas através
da ressignificação das mesmas. Entretanto, para que isto aconteça, não é suficiente
que seja dito que é melhor, é necessário que este se prove na realidade.
67

3.1.2 - Modos de fazer na agricultura

A agricultura e as criações são duas práticas complementares, sendo em


grande parte tal integração o sucesso das táticas camponesas. Se como disse a
assentada C “é preciso saber fazer no campo”, é fundamental saber fazer agricultura
na história camponesa.
A agricultura foi a primeira síntese da cultura humana, através dela tornamo-
nos sedentários e passamos a cultivar para sobreviver, sendo neste sentido a
primeira origem da palavra cultura.
Seguindo a mesma ideia anteriormente utilizada para expor sobre a as
criações, pretendo problematizar os modos de fazer na agricultura no assentamento
Salvador Allende. Primeiro, irei realizar uma descrição de algumas práticas
utilizadas pelos assentados; e posteriormente, discorrer sobre a origem destas
práticas, que serão, em sua grande parte do mesmo sistema de aquisição ou herda.
Dito isto, é preciso primeiramente salientar que, como dito anteriormente,
cada um no assentamento é diferente e, portanto, possui diferentes práticas. A
intenção aqui não é catalogar todas as diferentes práticas, mas elencar àquelas que
mais repetem ou que possuem alguma importância por mim destacada no processo.
Alguns produtos são os mais plantados pelos assentados como o milho, a
mandioca, o mamão, a goiaba, a banana, a abóbora, o limão, a gueiroba e a
pimenta. Como é possível observar, todos são complementos e tempero, não há
nenhum plantio de arroz ou feijão para abastecimento anual, todo o arroz e feijão
utilizados na alimentação diária são comprados.
Desta forma, sendo os principais produtos da mesa alimentar, é necessário
possuir dinheiro para compra-los, dito isto, é preciso gerar renda e dado as
diferentes condições existentes no assentamento, cada um possui seu próprio “jogo
de cintura”.
Assim, compartilhar a informação é uma crucial característica desenvolvida
pelos camponeses, pois, repassar o que aprendeu além de possibilitar uma melhora
para o companheiro, também garante o retorno da informação, criando um sistema
de troca de informações vantajoso.
Deste modo, a união é um aspecto importante, e que historicamente na
agricultura possui grande valor. Os mutirões, seja para roçar para pasto ou roçar
68

para realizar algum plantio constituiu-se de valor exponencial, possibilitando ampliar


e melhorar a atuação do trabalho campesino.
Mutirão é quando as pessoas se juntam para fazer alguma coisa, quando eu
era criança tinha muito mutirão, pra tudo: pra fazer comida quando ia casar,
pra roçar pasto, pra plantar, pra colher, pra fazer forró, pra fazer cerca. As
pessoas achavam que eram tristes antes, mas na realidade elas eram
felizes, tinha fartura de comida e de amigos, não tinha televisão, mas tinha
essas coisas, sempre muita fartura de comida. Se quer ter muito, hoje em
dia (ASSENTADA A).

Em primeiro lugar quero destacar aqui uma diferenciação entre os diferentes


tipos de chão trabalhado, que segue a mesma lógica apresentada por Woortmann
(2018) onde têm-se a roça-pasto-mato. Assim como diz a entrevistada:
- O que é roça?
- Roça é onde se planta
- O quintal é uma roça?
- Não, é diferente
- E se por exemplo plantassem milho em uma área maior?
- Nesse caso eu ia dizer assim pros meus filhos “busca o milho lá na roça”
- O que é o pasto?
- É o local onde dá o capim, a pastagem pro gado.
- O que é o mato?
- É o local onde há as arvores de maior porte, que nem a matinha ali.
(ASSENTADA A)

Para mais aprofundar irei primeiro contextualizar a matinha, citada acima.


Ela representa a reserva legal, a entrevistada em questão deixa uma área bem
maior da prevista por lei, sendo que ela diz ser necessário preservar a natureza,
incluindo os animais.
Assim, em primeiro momento é possível definir a matinha ou mato ou mata
nativa como a terra ainda não trabalhada pelo homem, não domesticada por ele,
mas que possui aqui um grande valor, uma vez que manter a mata é crucial para
realizar um equilíbrio das ações humanas, deste modo, a mata representando a
natureza virgem se faz de importante valor para estes assentados, sendo que, os
moradores que compraram posteriormente as terras são citados pejorativamente
como destruidores das mesmas. Ao andarmos por uma trilha que cruza parcelas, o
assentado G mostra o desmatamento realizado para ampliar a área de capim e
relata os efeitos negativos que isto representa, dado que preserva a nascente de
sua represa. Além disso, ao andarmos pela mata o assentado destaca a humidade
que esta possui, em contraste com a área desmata que ficava exposta ao Sol e,
portanto, estava bem quente e seca.
69

Além disso, o mato também pode ser as plantas invasoras do quintal, sendo
estas plantas que não foram plantadas e que não possuem nenhuma função
aparente. Assim, uma planta que não foi plantada e que nasceu no quintal, mas que
possui uma função é deixada, mas caso não possua ela é o mato de quintal e será
capinada, portanto, retirada.
Outra importante diferenciação se dá entre a roça e o quintal, isto porque
nem toda área domesticada pelo trabalho do homem denomina-se roça. Havendo,
portanto, uma distinção, assim por quintal entende-se a plantação realizada aos
arredores27 da casa. Já a roça é definida como uma grande área de plantio, podendo
ser de monocultura de milho, sorgo, arroz e etc., ou também consorciação de
algumas espécies.
De toda forma, a classificação é pelo tamanho da área de plantio e não
necessariamente do produto em si. Assim, em minha primeira visita, ao colhermos o
milho para fazer pamonha, fui informado que este estaria no quintal e não na roça,
desta forma, não é a plantação de milho uma roça, mas sim o local, as condições e
o tamanho do plantio, que determinam ser uma roça.
Já por pasto se entende como o local destinado para o plantio do capim e,
portanto, local do e para o gado. Sendo que, em todas as parcelas visitadas, de
acordo com os assentados, não havia nenhuma roça no assentamento, sendo a
principal área de trabalho do homem o pasto para o gado.
O quintal representa, no momento, o local da agricultura de fato. Isto porque,
as roças, em geral, são produzidas em arrendamentos. A assentada A me disse que
arrendar é “quando você planta nas terras de outro e 20% da plantação fica pros
donos da terra como pagamento”, ela complementa dizendo que “ele [dono da
fazenda] fornece todo o maquinário pra você utilizar, inclusive quando o Zé Coelho 28
arrendou pra nós o meu marido dirigiu o trator, mas caso algo estrague é você que
tem que arrumar, a responsabilidade é sua”.
O arrendamento possibilita ao assentado ter acesso ao maquinário do dono
da terra, desta forma, facilita o processo de produção. Entretanto, fazia algum tempo
que o Zé Coelho não arrendava para alguém do assentamento. As suas terras
ocupam grande parte da margem da estrada que leva ao assentamento, durante o

27 Sendo mais comum nos fundos e lado da casa, entretanto, havia alguns quintais também
localizados à frente da casa.
28 O Zé Coelho é considerado pelos entrevistados um dos maiores fazendeiros da região de

Porangatu-GO e até mesmo do Norte do estado.


70

período da visita de campo pude observar que em suas terras são realizadas o
plantio de soja e que após serem colhidas o arrendatário planta capim e/ou sorgo
que será utilizado pelo dono das terras, como informa o assentado N.
Esta prática assemelha-se a ilustrada por Brandão (1981), em que o
camponês depois de realizar o plantio da roça necessita plantar capim para o dono
da terra para servir de pasto do gado. O que posteriormente, para aumentar o
espaço do pasto passou a proibir a plantação da roça e assim levou a migração para
a cidade ou como fazia o pai da assentada A, ao plantio escondido.
Além disso, o uso da água é um importante fator quando se fala de
agricultura, uma vez que sem água é impossível plantar. Desta forma, há duas
maneiras de realizar o plantio, uma periódica, aproveitando a água proveniente da
chuva e outra constante, utilizando irrigação, entretanto necessita de maquinário
específico para realizar tal processo como a bomba, mangueira e aspersor. Por não
dispor de verba para realizar tais investimentos, os assentados possuem duas
alternativas, a primeira é plantar no período “das águas” ou utilizar um balde e
realizar a irrigação manual e individual, o que demanda muito tempo de mão de
obra. Geralmente, a água utilizada nestes trabalhos provem das caixas de água,
cisternas e represas.
Para otimizar o uso da água, alguns assentados focalizam a água utilizada
na cozinha e outras pias, além do chuveiro, para o quintal, favorecendo assim a
disponibilidade de água neste local. Entretanto, como salienta a assentada C, “tem
um problema, essa água com açúcar e comida assim atraí formiga e onde tem
formiga do pulgão”.
O controle das pragas é um importante modo de fazer da agricultura
campesina. Caso a praga não seja controlada, esta pode arruinar toda a plantação
realizada e assim gerar um imenso prejuízo para, deste modo é importante “saber
lidar com a terra, com a falta de água, com as plantas (ASSENTADA C)”
Quando perguntei se as desistências foram pelas dificuldades apresentadas
a assentada A disse que:
Foi isso que aconteceu com aqueles que vendeu, eles vendeu porque não
teve força suficiente pra encarar a dificuldade, porque não viu com bons
olhos a terra que tem, eu não consigo mais plantar pra vender, planto
pra subsistência, alugo o gado, e compro uma roupa, melhor viver aqui na
roça com o mínimo do que viver na cidade, porque ali talvez não consiga
emprego e moradia, e o dinheiro que vendo aqui, talvez não consigo
comprar uma casa lá. Aqui no campo você tem uma vida melhor, respira um
ar melhor, uma água de qualidade, tudo isso soma, to longe da cidade. As
71

vezes minhas irmãs falam para minha filha: “porque você não vem pra
cidade, está perdendo tempo aí”. Não está perdendo tempo sabe, isso aqui
é dela, se não quiser estudar mais, não estuda, mas eu quero que ela
estuda, aqui ela não está perdendo, essa é a casa dela, a herança dela, pra
eu passar pros meus filhos e netos. Também não acho, que quem está na
cidade está perdendo (Grifos meus).

A dificuldade dos assentados na agricultura ilustra-se em suas consecutivas


tentativas de gerar renda na cidade. Quando decidem levar seus produtos como
conserva de pequi, farinha de mandioca e conserva de pimenta para a cidade
voltam, muitas vezes, com nenhuma venda. Para evitar um prejuízo maior, estas
vindas na cidade para vender produtos costumam ser acompanhadas com a
necessidade de realizar uma compra ou outra atividade, desta forma, o prejuízo é
diminuído.
Além disso, dentre os principais produtos produzidos: farinha de mandioca,
pimenta em conserva, banana e mamão, há uma considerável dificuldade de vender
estes produtos na feira local, com exceção da banana e do mamão, que possuem
uma rápida venda, os outros produtos são pouco procurados, em especial, como a
assentada A relata: “na feira há uma certa freguesia, se compra naquele que se
costuma comprar”. Expondo seus produtos somente em alguns fins de semana,
desta maneira, sem semanalmente estarem lá, é mais difícil formar uma freguesia.
Não obstante há outro problema, o tipo de farinha: “tem a farinha goiana e a
nordestina, a goiana é fina, que é a que fazemos, já a nordestina é mais grossa,
essa eu não sei fazer (ASSENTADA A)”. Há na feira de Porangatu-GO uma
preferência pela farinha nordestina, sendo esta pouco feita no assentamento, desta
forma, o tipo de produto produzido não é do agrado dos fregueses locais,
dificultando, portanto, a venda.
Deste modo, se a ida para a cidade para vender os produtos não compensa,
é com os atravessadores que estes realizam o comércio, como salienta os dados da
Fundater (2015, p. 10) onde “a principal forma de comercialização desses produtos é
a venda para atravessador”, este que costuma comprar os produtos com um valor
muito abaixo de mercado para assim poder revender na cidade e obter o lucro,
fazendo com que o lucro do produtor, no caso os assentados, seja muito pequeno.
Além desse, outro recurso muito utilizado é a venda de casa em casa. Para
isto, um grupo de assentados se reúnem e produzem um determinado produto, feito
isto, um destes ficará encarregado de ir à cidade vende-lo. A assentada H é
72

considerada por todos a melhor vendedora do assentamento, esta fama faz com que
ela fique encarregada de realizar a grande maioria das vendas. Neste sistema há
outra forma de negociação, na qual o dono da mercadoria a deixa em alguma venda
ou mercado e assim esta ficará na prateleira para ser vendido, caso seja, divide-se o
lucro entre o dono do produto e o dono do mercado/venda; ou em outro caso o dono
do produto já vende diretamente para o dono do mercado. O primeiro caso costuma
acontecer quando há uma amizade já estabelecida entre ambas as partes, levando
assim o estabelecimento da confiança.
O PRONAF poderia representar uma verba de empreendimento destes
assentados, entretanto, devido problemas burocráticos com os papéis das escrituras
das terras houve um atraso para estarem aptos a receber o financiamento, e quando
enfim estavam aptos depois do impeachment o PRONAF teve sua verba reduzida e
assim não foi possível realizar o empréstimo.
Mesmo sem investimentos, os assentados já realizaram plantios da roça
comunitária, ainda durante o período de pré-assentamento. Na ocasião, o prefeito
enviou maquinário e insumos para a realização do plantio da roça de arroz e milho,
sendo ao final dividido entre os assentados a produção. Depois de divididas as
parcelas, nas áreas coletivas, também houve plantio coletivo em algumas áreas,
sendo também de arroz e milho, posteriormente não houve mais nenhum plantio
coletivo ou individual de nenhuma roça.
Dentro de suas parcelas, cada assentado atua à sua maneira, desta forma,
é possível observar os diferentes tratamentos que cada um realiza com suas
plantações, seja com a realização de canteiros suspensos ou plantados no chão, a
produção do quintal possui muita influência no cotidiano das assentadas. Seja para
a colheita dos temperos usados na comida ou até mesmo para a preparação dos
remédios caseiros, o quintal participa do cotidiano assentado. Até mesmo por isso, a
razão de estar nas imediações da casa é para facilitar seu acesso.
Dito isto, durante o período “das águas”, o milho é o principal produto
plantado, neste período há uma grande produção de derivados como: curau,
pamonha, massas de milho, milho cozido, assado e refogado. Todos estes preparos
participam da mesa alimentar, não obstante, também é utilizado para alimentação
dos animais, seja o milho inteiro ou somente os restos da cozinha: o miolo da
espiga. Outra prática com o milho é secá-lo para que as sementes sejam guardadas,
pois, deixa-las na própria planta para secar deixa-as expostas ao ataque de
73

pássaros. As palhas e restos do milho são aproveitados como adubo para as plantas
ou criações.
Há também modos de fazer específicos com o milho, quando auxiliei na
colheita para a realização da pamonha foi explicado que a espiga de milho estava
pronta para o plantio “quando os cabelos dele estiverem secos (ASSENTADA A)”,
referindo-se a uma parte da espiga. Durante a colheita foi advertido que o mato
estava alto, podendo ser perigoso encontrar ali uma cobra, pois gostava de ficar
nestes lugares.

Imagem 8 - Milho secando no fogão a lenha


Fonte: Foto tirada por mim durante visita

A mandioca é o principal produto plantado no assentamento, pela facilidade


da mão de obra, uma vez que ela não exige muitos cuidados, pela durabilidade e
multiplicidades de uso que ela proporciona. Se colhida no tempo correto ela compõe
à mesa na forma cozida, caso colhida depois de um ano ela pode ser utilizada para
fabricação de farinha e polvilho. Durante a fabricação tanto da farinha quanto do
74

polvilho, seus restos são utilizados como adubo para as plantas ou como alimento
para os porcos ou aves, caso o assentado tenha.
Para evidenciar a importância da mandioca e sua grande utilização, ao
referir-se que um assentado pouco trabalhava em sua parcela, uma das assentadas
disse que “nem mandioca na terra ele plantou”. O único problema enfrentado no
plantio de mandioca são os cupins, que à medida que a mandioca fica mais velha
pode ser atacada por eles, resultando assim em algumas percas na produção.
A pimenta representa outra importante plantação dos quintais, muito
utilizada como tempero na comida ela possui outras finalidades. Dentre elas, temos
a produção de conservas para venda ou utilização, produção de temperos com sal
também para venda ou utilização, além de também protegerem do “mal olhado”.
Assim, quando alguém olha ou toca para a pimenta desejando o mal ou com inveja
esta murcha e morre. Deste modo, ela também atua como um indicador dos
vizinhos, pois, caso estes toquem ou olham para a pimenta e esta murcha após a
visita é um sinal de que a mesma esta desejando o mal e, portanto, se fica alerta
com esta pessoa.
A qualidade mais plantada é a malagueta, isto ocorre devido “ela ser a mais
procurada pra compra (ASSENTADA A)”. Desta forma, é a principal qualidade
plantada, sendo a pimenta de cheiro muito utilizada nos temperos caseiros.
Existem plantas que além de serem utilizadas como alimento desempenham
também papel medicinal como a semente e folha do quiabo, babosa, noni, urucum,
açafrão, limão, amora. Outros como o boldo possui uso estritamente medicinal, não
sendo utilizado como alimento.
75

Imagem 9 - Plantação de mandioca ao lado de uma plantação de milho já colhida em um dos


quintais.
Fonte: Foto tirada por uma das assentadas

O noni, plantado em somente uma unidade familiar possui um efeito


emagrecedor, sendo por esta finalidade adquirido na época, pois a assentada tinha
a intenção de vender o fruto, devido seu alto valor de mercado. Ela me diz que viu
na internet que era um fruto quente, mas que dava em lugar frio, perguntando se eu
saberia explicar isto. Mostrando que a classificação frio-quente, ilustrada por E. & K.
Woortmann (1997a), também se faz presente aqui, entretanto, nos 6 meses de
pesquisa a campo foi a única referência a tal classificação, representando assim ser
um esquema já pouco utilizado, tendo por base o tempo convivido durante a
pesquisa.
76

Imagem: 10 - Produção de canteiros


Fonte: Foto tirada por uma assentada

O extrativismo é outra prática de importante destaque no assentamento, não


porque é muito praticado, ao contrário poucos o fazem, entretanto, representa uma
tradicional forma de manejo, uma vez que para produção de renda é extraído
diretamente do mato os produtos, podendo ser ou não modificados. Desta forma, a
coleta de pequi, baru, camarguinho, murici, caju, mangaba, buriti, jatobá, cagaita,
bocaiúva e outros frutos, e suas respectivas vendas ou preparos representa grande
parte da renda destes moradores, desta forma, aliado com a venda de outras
conservas, estes assentados garantem a maioria de sua venda anual. A assentada
H é a principal praticante deste extrativismo, aliado com suas parceiras de coleta e
produção, em sua unidade não há água para produção de outras culturas e também
para as criações, desta forma, esta foi a melhor alternativa por ela adotada para
golpear sua realidade.
77

Imagem 11 - Conserva de jurubeba a esquerda e conserva de gueiroba a direita.


Fonte: Foto tirada por mim durante visita

Em um dos momentos de encontro entre assentados, C e H conversavam


sobre o óleo de mamona sendo que relatam ter uma receita para fabricação do óleo
de mamona, dizendo que sua mãe já fazia o uso, no entanto, a receita só foi obtida
agora. A assentada H acrescentou ainda que sua mãe utilizava para passar no
cordão umbilical do bebê depois de sete dias de nascido, acrescentando ainda que
“os mais velhos eram supersticiosos”, para argumentar isto ela utilizou-se de um
exemplo prático: quando ficou grávida, a médica receitou um remédio e pediu que
ela não passasse mais nada no cordão umbilical, ao chegar em casa sua mãe
prontificou a passar algo, ela retrucou dizendo a orientação da médica, sua mãe
então disse: “olha aqui, minha mãe sempre fez isso, eu fiz isso com todos os meus
filhos e todos estão vivos”, com isto, o procedimento foi realizado, não sabendo as
ervas que sua mãe utilizara naquela mistura. Ela narra ainda de uma doença que
sua mãe dizia: “quando dava sete dias de nascido, minha mãe fechava a porta e as
janelas, ninguém iria visitar, por causa da doença dos sete dias, uma vez uma
mulher levou sua filha (recém nascida) e minha mãe só de olhar falou: olha ela está
com uma doença que médico nenhum pode curar eu posso benzer ela. E assim ela
o fez, no sétimo dia, por 7 semanas ela benzeu o filho da mulher”. Havia ainda,
78

segundo a assentada H, a utilização da prata, “minha mãe dizia que na casa ou na


área, onde tivesse um lugar que o sol passasse era para colocar a moeda ali
tampando, depois você tirava a moeda e colocava no umbigo do bebê”.

Imagem 12 - Preparo do urucum para venda


Fonte: Foto tirada por mim durante visita

O armazenamento dos alimentos é feito em geladeira ou freezer para algo


perecível ou em saco para os não perecíveis, que costumam ficar dentro das casas.
A assentada A diz que no início do assentamento as colheitas eram guardadas em
sacos em um rancho de palha, construído especificamente para este fim e que era
comum encontrar ratos nestes ranchos, desta forma, o armazenamento de
sementes e grãos começou a ser realizado dentro de casa, pois possibilita um maior
controle.
Os produtos colhidos também são utilizados, como retratado anteriormente,
como produtos de troca, desta forma, a banana, a mandioca, o milho, a gueiroba, o
camarguinho constituem-se um importante meio de troca para com outros produtos
como queijo e ovos, em geral, de produtos advindos das criações.
79

Imagem 13 - Produção de um chá para remédio


Fonte: Foto tirada por mim durante visita

Outro importante meio de produção do assentamento são os canteiros


agroflorestais realizados pelas assentadas A e C, novamente sua importância não
se dá pela quantidade de praticantes, dado que somente as duas praticam, mas sim
pela lógica de produção. Uma vez que procura produzir sem a utilização de venenos
e adubos químicos, somente com adubos naturais, em especial as folhas e fezes
dos bovinos (esterco). A lógica deste processo é consorciar diferentes qualidades de
plantas em um pequeno espaço, utilizando um modo específico de consórcio que
observa os diferentes níveis de estrato ocupado pelas plantas a fim de produzir
desde hortaliças até frutas e madeira, amplificando o resultado obtido.
Sobre os canteiros gostaria de salientar que mais do que simplesmente
faze-lo, há de fato uma arte de fazer com regras, formas e lógica própria, sendo
assim, necessita de treino para poder pratica-la com maestria.
Esta análise surge através da participação que tive ao auxiliar o assentado
G a fazer um canteiro onde seria realizado um plantio de pimenta consorciado com
outras espécies. Dada a contextualização para a primeira observação trago a
dificuldade do manuseio da enxada, que mesmo para G que estava acostumado
com o trabalho representou grande esforço, sendo a bolha de sangue de minha mão
advinda da pouca prática com a ferramenta, o que faz ter a ciência de que os vários
calos nas mão de G representavam as várias bolhas do passado.
Ao me ensinar a fazer os canteiros ele disse: “você deixa 30 cm
aproximadamente do canteiro anterior e faz o canteiro com 1 metro de largura”. Para
fazer o canteiro era necessário, com a enxada, perfurar 20 cm aproximadamente o
80

chão, para demarcar as margens do canteiro, repete-se este processo nos próximos
1,5 metros até que retoma ao início e inicia a perfuração da terra, para que seja
descompactada, quebrando os pedaços maiores que estão compactos, tornando-a
assim macia, para melhorar o enraizamento da planta.
Durante a realização do processo ele chamou a atenção por duas vezes: na
primeira ao avançar no canteiro, meus pés ficavam em cima do local onde
anteriormente havia perfurado, sendo errado porque ao pisar eu ia comprimindo
novamente a terra anteriormente trabalhada, desta forma, como instruído por ele o
canteiro deveria ficar entre minhas pernas 29 . No segundo momento em que fui
advertido, foi quando no meio do canteiro, estava deixando-o torto. Depois de
terminado o canteiro, a esposa dele observou e salientou que este ainda estava
torno, advertindo que por causa disto os canteiros seguintes também ficariam.
Isto demonstra que há uma lógica própria e específica para fazer os
canteiros, como demonstrarei a seguir:
Primeiramente, há uma distinção entre dois modos de canteiro: 1) um
sistema de canteiros que tem como produto final a produção frutífera/madeireira; 2)
um sistema de canteiros que tem como produto final a produção de hortaliça e
temperos. Nestes dois casos, o critério de escolha para qual sistema utilizar para
realizar a produção dos canteiros dá-se pelo produto final que pretende obter. Isto
porque, no sistema 1, pela prioridade ser dada para as árvores de maior porte,
depois que estas adquirem um determinado extrato arbóreo, ou seja, depois que
possuem um determinado tamanho adequado, o sombreamento irá impossibilitar
que plantas de baixo extrato possam sobreviver adequadamente. Deste modo, para
aprimorar os resultados optou-se por realizar dois sistemas de canteiros diferentes,
cada um procurando aumentar a produtividade na finalidade desejada. Em meio a
isto, ainda no canteiro 1, como veremos a seguir, até que estas plantas adquiram um
extrato adequado, será realizado o consorciamento das mesmas com outras plantas,
a fim de potencializar o uso do canteiro, dinamizar a produção e ampliar resultados.

29 G contou-me que ele aprendeu isto com o instrutor do MAIS, durante a implementação

dos canteiros agroflorestais em sua parcela.


81

Imagem 14 - Esquema dos canteiros frutíferos/madeireiros.

Imagem 15 - Legenda para o esquema dos canteiros frutíferos/madeireiros

Dado o esquema e sua legenda, segue as regras que o constituem. Assim,


entre cada um dos ícones apresentados há um espaçamento de um metro, nesta
ordem temos: a banana, a mandioca e pepino/maxixe, mandioca, mandioca e
pepino/maxixe, uma frutífera, uma planta do cerrado30, a mandioca e pepino/maxixe,
a mandioca e pepino/maxixe, a mandioca e pepino/maxixe, a mandioca, banana, a
mandioca, a mandioca, a mandioca, a mandioca, o mamão, a mandioca, uma
frutífera, a mandioca e pepino/maxixe, a mandioca e pepino/maxixe, a mandioca e
pepino/maxixe, a mandioca, o mamão, uma frutífera, a mandioca e pepino/maxixe, a
mandioca e pepino/maxixe, a mandioca e pepino/maxixe, a banana.
Como é possível observar, dado o espaçamento há uma distância entre uma
frutífera e outra de aproximadamente 4 a 5 metros. Cada planta possui uma função
dentro deste sistema, as bananeiras, além de produzirem seus frutos são plantadas
no início e fim para servirem como barreiras de proteção contra o vento, devido sua
alta densidade foliar, além disso, por possuir um rápido brotamento, realizado a
colheita de seu primeiro cacho ela é derrubada, cortada e utilizada como adubo no

30 Na legenda está descrita como cerrado, uma vez que ao descrever-me qual planta seria,

a assentada disse-me: “é uma planta do cerrado”, podendo ser frutífera, madeireira ou medicinal,
podendo ser de estrato alto ou baixo, variando conforme a necessidade.
82

próprio canteiro, ao realizar a derrubada outro broto, denominada de filha, irá


desenvolver-se e continuar o ciclo. Com o passar de muitos anos/ciclos e também
com a possibilidade do desenvolvimento de doenças, pode acontecer a retirada
completada da bananeira para evitar que a doença se espalhe, neste caso de poda
bruta, outra bananeira será plantada no lugar para ter sua função cumprida.
Seguido da banana, a mandioca, principal produto produzido, possui grande
importância no sistema. Em primeiro lugar, tal importância dá-se pelo produto, que
possui muitas utilizações e necessita de poucos cuidados, desta maneira, dentro dos
complementos para as refeições é o principal alimento, além de ser o principal
produto para a feitoria de farinha e polvilho: os principais produtos da agricultura do
assentamento, sendo as conservas e temperos vindos logo em seguida. Além da
função de produzir alimento, a mandioca, o pepino e o maxixe31, são importantes
para o aproveitamento do espaçamento necessário entre uma frutífera e outra,
portanto, suas funções são realizar um aumento da produtividade com um
aprimoramento do espaço.
Continuando, as frutíferas, o componente principal deste esquema tem por
função produzir frutos(as), seja para a comercialização como também para o
consumo. É preciso aqui realizar dois importantes adendos: 1) refere-se a
diferenciação entre as frutíferas e as bananeiras, neste caso, a diferença dá-se pela
função dupla que a bananeira realiza: barreira contra o vento, para proteger as
árvores frutíferas e também, devido seu rápido ciclo, sua utilização como adubo,
nestes casos, as frutíferas não possuem estas características e, portanto, realizam
funções diferentes, mesmo que o fruto da bananeira seja de grande importância
para a alimentação e, principalmente, economia dos assentados produtores da

31 Nestes casos, o pepino e o maxixe, cumprem a mesma função do sistema que a


mandioca: contribuir para que o espaçamento entre as frutíferas seja produtivo, entretanto, a
justificativa para a utilização destes é diferente. Enquanto a mandioca não possui muita exigência de
recursos, estes necessitam de maiores atenções, com exceção do maxixe que é adaptado ao cerrado
e portanto é justificado sua escolha por também não necessitar de grande mão de obra, entretanto,
comercialmente o maxixe não possui muita venda, diferente do pepino que possui uma maior saída,
mas que necessita de maiores cuidados, especialmente durante a seca. Neste caso, é comum a
alternância entre os dois: no período da seca preferencialmente utiliza-se o maxixe, já durante o
período chuvoso preferencia-se o pepino, isto configura-se como uma saída uma vez que não há
tecnologia de sistema de irrigação, desta maneira, sendo realizada manualmente, amplia a mão de
obra. Entretanto, durante o último mês de visita a campo, a assentada A havia recebido uma grande
encomenda de pepino para entregar para a prefeitura, desta maneira, realizou o plantio somente de
pepinos e tem realizado a irrigação manual até que as chuvas cheguem. Além disso, pode-se optar
por deixar a mandioca na terra por mais de 1 ano, nestes casos ela será utilizada para a produção de
farinha e polvilho, não mais servindo para o consumo; neste caso, os assentados têm enfrentado
dificuldades, uma vez que os cupins quase sempre provocam danos na mandioca.
83

mesma. 2) outro fator importante dá-se por uma possível substituição das frutíferas
por madeireiras, neste caso, planta-se uma espécie que terá como produto final não
os frutos, mas sim a madeira. Como salienta-me a assentada A, ela não optou por
realizar o plantio de madeireiras uma vez que sua terra possui muitas árvores que
ainda poderem ser extraídas, mas que, em caso de necessidade está é a realização
a ser feita, ao falar sobre o plantio de eucalipto e outras árvores madeireiras por
outros assentados, que dado seu longínquo período até que esteja no ponto de corte
demora aproximadamente sete a doze anos, variando conforme a espécie.
Já uma planta do cerrado, possui um sentido complementar para a escolha
da frutífera, como é possível observar na ilustração ela está a somente um metro da
frutífera, neste caso que parece ser um choque de estratos é explicado pela escolha
a ser feita da frutífera utilizada. Neste caso, há três possibilidades: na primeira
planta-se uma madeireira do cerrado, na segunda planta-se alguma planta
medicinal, na terceira planta-se alguma frutífera do cerrado. Nestes casos, para a
primeira opção – a mais comum- planta-se uma madeireira logo após a frutífera, não
havendo a interferência desta última na madeireira, isto porque, a madeireira do
cerrado é adaptada para crescer na sombra, neste caso, mesmo com o
sombreamento da frutífera esta irá sobressair e desenvolver. Para a segunda opção,
ao optar por alguma planta medicinal do cerrado, a frutífera não irá atrapalhar pois
quase sempre se trata de uma planta com ciclo mais rápido, este caso não foi
observado, mesmo sendo relatado sua possibilidade. Para a terceira opção, também
não observada, utiliza-se uma frutífera do cerrado, que quase sempre possui um
longo período até que desenvolva frutos, além disso, o principal motivo para não ser
utilizada dá-se por sua grande distribuição no assentamento, além disso, estas são
plantadas, quase sempre, fora dos canteiros, dado sua capacidade de sobreviver
sem uma terra fértil, entretanto, esta opção foi também relatada.
Por fim, o mamão assim como a banana, possui grande importância para a
produção de frutos, sendo juntamente com a banana os mais vendidos/trocados,
além também de representar grande importância para a produção de matéria
orgânica/adubo, uma vez que dado seu ciclo rápido, depois da segunda, terceira ou
quarta colheita, variando conforme a produtividade aparente da espécie, há sua
retirada e consequente corta para a deposição no canteiro, servindo como adubo.
Dado a explicação das regras que compõe este sistema, é preciso agora
abordar algumas possíveis lacunas, a primeira delas dá-se sobre quais frutíferas
84

utiliza-se? Dentre minhas observações, a goiaba, o limão, e tamarindo são as


principais espécies de longo prazo utilizadas, também observei que em alguns
canteiros estas poderiam ser substituídas pelo mamão, neste caso, os canteiros
teriam o mamão como principal produto produzido. Deste modo, posso sintetizar que
a principal regra para a escolha das frutíferas dá-se pela demanda, sendo está
analisada não conforme um pedido momentâneo, mas como uma demanda a longo
prazo, neste caso, após sucessivos anos onde havia uma grande saída para o
mamão e a banana, houve uma especiação destes sistemas de canteiros, os quais
optaram por ter tais produtos, aliado a mandioca, como principais. Não obstante, há
goiaba, limão, tamarindo e outras frutíferas plantadas, entretanto, estas possuem
mais uma função de produção para consumo, do que para venda, mesmo que
momentaneamente haja tais oportunidades. Em um caso especial, a manga não
possui bom desenvolvimento em grande parte do assentamento, desta maneira, há
pouquíssimas mangueiras desenvolvidas no assentamento, não se sabe exatamente
a causa, mas suspeita-se que cupins realizam o dano, desta maneira, há uma
grande demanda dos próprios assentados em querer plantar a manga, entretanto
não é possível dada as condições.
Outra possível lacuna dá-se pela não utilização da abóbora, este que
aparenta ser um produto com grande rentabilidade, uso para consumo e pouco
manejo, neste caso, assim como na mangueira, há um problema com
desenvolvimento da abóbora, sendo que a produção, quase sempre, é
extremamente reduzida, pouco atendendo a própria demanda alimentícia da família,
neste caso, também é um produto muito valioso para os assentados, mas que dada
as condições do solo ou de outro fator desconhecido, não é possível produzir.
Assim, a demanda ao longo do tempo, juntamente com as condições de água,
temperatura, solo, patógenos são as principais variáveis para a escolha das
espécies utilizadas, aliado também com o conhecimento historicamente carregado.
Por fim, outra lacuna dá-se sobre a produtividade deste sistema.
Primeiramente, é preciso destacar que este sistema foi analisado a partir do
realizado pela assentada A, em sua parcela. Cada parcela possui sistemas
diferentes, entretanto, a rotatividade, aliado com a diversidade de espécies,
juntamente com a demanda da produção constitui as regras fundamentais de todos
eles. Em exemplo, há sistemas focados para a produção de gueirobas, desta
maneira, procura atender uma determinada demanda de produção; já na assentada
85

C o sistema por ela realizado aproxima-se muito do sistema utilizado pela assentada
A. Em todos os casos há uma agroecologia em práxis, uma vez que em nenhuma
das parcelas por mim visitada observei a utilização de venenos e adubos químicos
como parte do sistema, seu uso, quase sempre estava associado ao controle do
mato, mas longe dos sistemas (ao redor da casa por exemplo), nos canteiros, o
controle dos matos dá-se pelo uso da enxada.
Sobre o sistema dos canteiros para hortaliça, vale dizer que possuem as
mesmas regras anteriores, mudando aqui o produto final e, portanto, as espécies
escolhidas.

Imagem 16 - Esquema dos canteiros para hortaliça.

Primeiramente, é preciso acrescentar que o triângulo neste esquema


representa a pimenta. Neste caso, há uma diferença para com o sistema de canteiro
anterior, neste caso há fileiras de canteiro únicas, como é o caso para a couve, o
cheiro verde, a cebolinha e a pimenta.
Em meio a isto, há um canteiro consorciado, tendo uma frutífera, mandiocas
(3 s), pimenta, mandiocas (4), pimenta, mandiocas (3), frutífera, mandiocas (4),
pimenta, frutífera, mandiocas (6) e frutífera. Observa-se que no final entre uma
frutífera e outra há um maior número de mandioca, isto é necessário para preservar
o espaçamento mínimo entre as frutíferas. A justificativa para este consorciamento
nos canteiros para hortaliça, não se dá por sua importância na produção, mas
somente por indicar uma rotatividade de solo. Neste caso, nos locais onde
implementa-se os sistemas de hortaliça, posteriormente transformar-se-á em um
sistema frutífero, resultando em um descanso do solo, uma vez que até lá houve
uma intenção produção de hortaliça. Desta maneira, observa-se a realização de uma
rotação de solo, este que ao transformar-se-á sombreado pelo frutífero não terá
condições de produção hortaliça, culminando neste descanso, que posteriormente
86

pode resultar na derrubada das árvores para o plantio, mas que dado a juventude do
uso da terra pelos assentados, seriam necessárias algumas décadas para tais
condições. Isto portanto, representa a produção de uma mata pelos assentados, ou
seja, através do trabalho destes sujeitos, produz-se uma área de não trabalho,
preservada, mas que, será de grande retorno para o mesmo uma vez que constitui-
se como uma mata de comida, de frutas, esta é, portanto, o ponto central da
agrofloresta, que direta ou indiretamente é praticada pelos assentados, uns
realizando em maior intensidade outros em menos.

Imagem 17 - Produção dos canteiros e mamões colhidos no dia


Fonte: Foto tirada por uma assentada.

Durante as últimas semanas de visita a campo, a assenta A conta, com


felicidade, que começaria a vender produtos para a prefeitura para entregar para a
merenda escolar, com isto, iria iniciar os preparativos da plantação. Neste mesmo
caso a assentada B disse que:
- Eu sobrevivo de um pouco de cada coisa que vou fazendo, já mexi com
farinha, já fiz muita farinha, já entreguei pra Conab, já vendi em
supermercado em Porangatu, graças a Deus, já vendi muita galinha, muito
ovo, gado, bezerro, por exemplo, to fazendo porvilho, com uma outra mulher
de outra parcela, assim a pessoa não pode ter: “ah, mas é difícil”, não pode
ficar esperando né, apareceu a oportunidade eu vou atrás, tem que ter um
meio de vida, aí minha renda é essa, eu trabalho aqui, faço uma faxina
numa fazenda vizinha, faço aqui dentro mesmo porvilho, farinha.
- Vende ou já vendeu para o PAA e/ou PNAE?
87

- Já vendi pra PAA e PNAE, mas o PNAE eu não vendo mais porque
demora muito pra pagar, tive uma dificuldade muito grande pra receber. Ele
paga melhor, mas demora demais, agora o PAA não, várias pessoas aqui
que vendeu, paga em dia sabe... Sempre no fim do mês você pode contar
certeza, o PAA é maravilhoso, se o PNAE funcionasse eu vendia pros dois,
pro PNAE já vendi 200 kg de farinha e demorou 1 ano pra receber, o PAA
tudo que vendi, com 30 dias que entreguei eu recebia.

E assim, a agricultura segue praticada no assentamento somente para


subsistência das necessidades básicas cotidianas, com pouca oferta de renda se
comparado com a pecuária. Deste modo, em geral, nas parcelas em que há
produção de leite, a agricultura é muito pouco praticada, pela grande mão de obra
que exige e pelo pouco retorno que ela oferta. Outro obstáculo são os baixos preços
que a prefeitura ofereceu para a compra destes produtos, sendo que, para alguns
produtos há bons preços e para outros os valores são abaixo dos ofertados no
mercado, representando uma grande desvalorização da agricultura camponesa dos
assentamentos.

3.1.3 - Produzir espaços: artes de fazer

Depois de apresentar os modos de fazer no plantio e no trato aos animais,


irei destacar como o espaço de sua parcela é administrado para realizar tais
saberes. Para isto, pedi que alguns assentados desenhassem suas parcelas, os
quais irei apresentar e discutir em seguida:
88

Imagem 18 - Desenho da parcela feito pela assentada C

Imagem 19 - Desenho da parcela feito pela assentada B


89

Imagem 20 - Desenho da parcela feito pela assentada A


90

Imagem 21 - Desenho da parcela feito pelo assentado E

Podemos observar alguns traços em comum: Casa; Quintal; Mata ou


Reserva; Pasto; Plantação. Como dito anteriormente, cada uma desta categorias
91

possui significados e funções diferentes, sendo que a administração do espaço


possui uma lógica comum.
O quintal, como é possível observar, é próximo a casa, em seus arredores
dada sua função. A água também é um importante aspecto para estes sujeitos, uma
vez que sem esta nada seria possível ali, por isto representar algo que a simbolize
marca sua importância. Além disso, sempre está diretamente ligada ao pasto, para
fornecer água para o gado. Já o pasto, sempre é a maior parte da parcela, dada sua
primazia de importância, uma vez que é a principal fonte de renda dos assentados.
Já a mata/reserva, também destacada em todos os casos, indica esta
ligação com a natureza, em especial na sua preservação. É possível demarcarmos o
quintal-pasto-mato, como sendo os principais espaços do trabalho campesino
praticado pelos assentados. Incluo a mata pois, preservar a natureza não
interferindo diretamente possibilita outras formas de trabalhos como a extração de
maneira, frutas e para assegurar que haja terra fértil, em um último caso, e também
para contribuir com a preservação da natureza, pois a falta de equilíbrio e
preservação afeta diretamente todas as práticas anteriores.
Esta organização comum imprime a matriz cognitiva camponesa, ou seja,
demarca que na construção dos diferentes espaços há regras comuns, as quais
todos utilizam para produzir seus espaços. Desta forma, a comparação da
construção e administração dos espaços permite observar as regras e valores do
campesinato atuando na produção do espaço camponês.

3.2 - PLANTAR, COLHER, COMER: NOVOS DESAFIOS

Como o título informa, este subcapítulo constitui-se como uma tentativa de


aplicar os caminhos apontados no livro Plantar Colher Comer de Carlos Rodrigues
Brandão (1981), desta forma, quero realizar uma análise destes assentados a partir
dos seus modos de plantar, colher e comer, e principalmente, a partir de uma
comparação para com os modos apresentados no livro de Brandão refletir sobre as
principais modificações realizadas.
Faz-se salientar que, tal análise não será prolixa, entretanto mesmo com
uma discussão inicial entendo tais dados de grande valor para refletir o campesinato
no assentamento, em especial, como os novos desafios de plantar, colher e comer
impactam para a produção da campesinidade enquanto ordem moral neste local.
92

A agricultura, como dito anteriormente, é a base principal do campesinato,


da práxis camponesa, e se, portanto, esta sofreu uma drástica transformação, este
também foi diretamente influenciado. Ao contar as histórias de criança, dos tempos
antigos na fazenda, é possível marcar dois tempos distintos: o passado e o
presente. Se o passado é lembrado como o tempo da fartura de comida 32 e
amizades, o presente é marcado pela perca deste estado de fartura e amizades,
que, em verdade, refere-se mais a um estado de espírito, do que propriamente um
estado material.
Tal fato se intensifica ao falar sobre a perca da união e as consequentes
dificuldades para alimentar-se:
Antigamente eu me lembro assim, até certo tempo eu me lembro, a gente
morava na fazenda, a gente tinha bastante coisa, quer dizer, a gente não
comprava um óleo, uma mistura era raramente, uma carne, comprava mais
era o açúcar, esses trem que não produzia. Então naquela época, o custo
de vida podia ser mais caro, mais era mais fácil pra quem morava na zona
rural, porque eu me lembro que a gente morava em fazenda dos outros,
nem era nossa, mais a gente sempre tinha, meu pai fazia as tuia, você já
ouviu falar em tuia? As tuia sempre tava cheia de feijão, era saco e saco de
feijão e arroz, sempre tinha muito, hoje é raro você ver uma casa que tem,
você chega e tem saco de feijão, de arroz pra passar o ano, milho na palha,
hoje é raro você ver isso, hoje o povo já colhe lá na colhedeira e já sai tudo
pra venda né. Então assim, antigamente a gente via isso muito, eu fui criada
assim: meu pai quando matava um porco, sempre tinha aquele porco de
carne e aquele de banha, então a gente nunca ficava sem, e tinha
mandioca, galinha, gado, né. Sempre não tava comprando esses trem:
arroz e feijão, meu pai tinha vez que abria assim pra colocar mais saco, hoje
você não vê mais isso, é raro chegar numa casa que tem. Pra mim aquela
época era muito mais fácil, apesar de o povo falar que era mais difícil, até
pra criar um filho era mais fácil, num tinha o tanto de coisa que tem hoje, aí
fala assim: hoje evoluiu, tem muita coisa boa. Mas tem muita coisa ruim,
muito mais, no meu ponto de ver. No tempo que trabalhava o dia inteiro pra
trocar o dia num litro de banha, mas também naquele tempo cê tinha vizim,
hoje você não pode falar que tem vizinho, ele fica te vigiando pra você sair e
ele [roubar], acontece muito isso, naquela época eu lembro as porta nem
tinha chave, era tramela, passava a faca e fechava, saia e chegava os trem
tava tudo quietim, não tinha esse tanto de roubo não. Vou limpar o pasto,
juntava aquele tanto de homem e limpava o pasto, faz isso hoje pra ver se
funciona, não funciona gente, então pra mim naquela época era mais fácil,
hoje tá mais difícil, hoje você não pode confiar, sai pra ir ali e fica
imaginando que só vai acontecer coisa ruim. Pra você plantar hoje tem
muito mais praga, a terra tá mais fraca, num é que tá ruim, tá mais fraca, o
povo derrubou muito, os bicho muitas vezes ataca, que nem papagaio ataca
as plantação, num é... tem que comer ué, o povo tá derrubando tudo, tem
que comer ué, hoje tá mais difícil (ASSENTADA B).

Nós não íamos na cidade, fazíamos compra nas vendas, que são botecos
no meio do mato, andávamos uns 30 km a pé e chegávamos lá. La tinha um

32 Este estado de fartura de comida reflete mais para a comida como linguagem
(WOORTMANN, 2013). Assim quando E. Woortmann (2018), aponta no seu texto O sítio camponês,
tal linguagem produz práxis específicas, revelando assim a lógica e a simbólica destes saberes
tradicionais (WOORTMANN, 2006).
93

basicão: cachaça, café, açúcar, arroz, feijão, fumo de rolo. Nos


comprávamos só o básico: açúcar, arroz nós plantávamos, café nos
colhíamos de meia com os outros. quando eu era criança tinha muito
mutirão, pra tudo, pra fazer comida quando ia casar, pra roçar pasto, pra
plantar, pra colher, pra fazer forró, pra fazer cerca. as pessoas achavam
que eram tristes antes, mas na realidade elas eram felizes, tinha fartura de
comida de amigos, não tinha televisão, mas tinha essas coisas, sempre
muita fartura de comida. Se quer ter muito hoje em dia (ASSENTADA A).

As histórias narradas variam para cada especificidade de cada um possui,


entretanto, a diminuição do estado de fartura sempre é presente, se fazendo vivo
como uma ferida que deixou e ainda deixa marcas. Como códigos inscritos em seus
corpos 33 , modificam até mesmo suas perspectivas e mudam ações. Isto porque,
tendo como comparação estes dois tempos: passado e presente, o camponês olha
seu estado atual como uma degradação e, portanto, procura retornar a seu estado
anterior: a fartura.
Realizar a fartura, neste momento, requer um grande domínio de técnicas e
maquinários aos quais estes não possuem. Realizar-se como campesinos está cada
vez mais difícil, e os assentados resistem em meio a tais dificuldades.
Resistir implica a luta e é esta a característica principal do plantio, colheita e
alimentação destes sujeitos. Segundo dados da Fundater (2015, p. 6):
Quando os beneficiários foram questionados a respeito de onde vem os
alimentos consumidos pelos moradores do lote, 37 % das famílias disseram
que a maior parte dos alimentos é produzida no lote e pouca coisa é
comprada fora; 59 % disseram que poucas coisas são produzidas no lote e
a maior parte é comprada fora e 4 % disseram que os alimentos são
totalmente adquiridos fora do lote.

Mediante estes dados irei refletir sobre do que se trata alimentos produzidos
no lote e alimentos comprados. Ao realizar as visitas, todos os assentados
entrevistados afirmaram não produzir arroz e feijão, além disso disseram que,
mediante seu conhecimento, nenhum outro assentado realiza tal produção.
Ainda segundo dados da Fundater (2015, p. 7) os alimentos que os
assentados disseram sempre possuir para alimentação são: arroz e feijão (quarenta
e oito famílias), carnes (trinta e nove famílias), verdura (trinta e um famílias),
legumes (trinta e nove famílias), massas (vinte famílias), bebidas (trinta e duas
famílias) e sobremesa (oito famílias). Assim podemos destacar o arroz e feijão,
carnes, verduras e legumes como os principais produtos alimentícios do
assentamento.

33 Certeau (2014, p. 218-219)


94

Agora comparando os dados apresentados, o arroz, feijão e carne de vaca34


não são plantados para consumo no assentamento, todos são comprados nos
respectivos mercados e açougues da cidade ou na venda do assentamento. Não
obstante, algumas verduras e legumes também são compradas, dado a não
possibilidade de plantio. Certa vez, ao elencar o que teria no almoço uma assentada
disse: “comida na roça é com o que tem”, complementando ao dizer que o bolo que
havia feito de manhã teria utilizado maizena ao invés de farinha de trigo, pois a
mesma tinha acabado, depois disse que quando era criança haviam épocas que a
comida era abóbora com leite ou leite com mandioca e açúcar, dizendo que eles
comiam o que tinha disponível, pois ir na venda para comprar comida era uma
atividade rara, dado que a alimentação era de acordo com o plantio, com a produção
ali existente.
Se comida na roça é com o que tem, aquilo que é disponibilizado para
comer, advindo do quintal e/ou roça e/ou mato e/ou criações é somente os
complementos: mandioca, abóbora, banana, cará, milho, pimenta, cebolinha, couve,
camarguinho, pequi, mamão, limão, gueiroba, batata doce, caju, derivados do leite,
ovos, frango35 e carne de porco.
Ainda segundo dados da Fundater (2015, p. 7), 43% das unidades familiares
do assentamento responderam que realizam café da manhã, almoço, lanche da
tarde e janta, já 47% responderam que realizam café da manhã, almoço e janta,
outros 4% responderam que realizam café da manhã, almoço e lanche da tarde,
outros também 4% disseram que realizam somente almoço e janta e outros 2%
afirmaram realizar somente almoço.
Desta forma, ao destrinchar a alimentação temos que o café da manhã,
almoço e janta, no total, representa o principal modo de refeição do assentamento,
sendo que o lanche da tarde ficou reservado, também com grande porcentagem,
mas restrito somente a este grupo.
Tido isto, alguns alimentos são destinados a refeições específicas como a
mandioca, pimenta, cebolinha, couve, camarguinho, pequi, gueiroba, cará, frango e

34 É a principal fonte de carne utilizada para alimentação, também não é produzida no


assentamento para consumo próprio, com raras exceções.
35 Aqui preciso realizar um adendo, a carne de frango é pouco comprada pelos assentados

de outros assentados, uma vez que o frango ali produzido será considerado caipira e, portanto, mais
caro, neste caso é mais barato comprar o frango de granja congelado nos supermercados do que
adquirir um frango caipira, assim um frango caipira de 25-30 reais possibilita a compra de dois
frangos de granja médios de 12 a 13 reais aproximadamente.
95

carne de porco que são exclusivamente destinados as refeições mais


pesadas/importantes como almoço e janta. O café da manha e/ou lanche da tarde
são aqui considerados como secundários, sendo mais leves, possuindo o mamão,
goiaba, manga, outras frutas sazonais, derivados do leite e bolos como exclusivos
destes.
Entretanto alguns alimentos podem fazer-se presente tanto no café da
manhã/lanche da tarde como também no almoço: como a banana, tendo na banana
da terra a espécie utilizada no almoço, em geral frita; a batata doce, que foi retratada
já ter sido consumida cozida com leite; a abóbora, que também foi retratada
consumida cozida com leite; e as frutas e frutos como limão, goiaba, caju, manga e
outras que podem ser consumidos(as) em natura no café da manhã/lanche ou como
sucos tanto no café da manhã/lanche ou almoço.
Na casa que fiquei hospedado havia café da manhã, almoço, lanche da
tarde e janta. Entretanto, o lanche da tarde, por vezes, não se fazia necessário ou
presente, e como informaram-me, dentre todas as refeições o lanche da tarde era o
menos importante.
Come-se o que tem disponível, entretanto, alguns itens são indispensáveis.
Desta forma, no café da manhã temos o café como o principal alimento ofertado na
mesa, para complementá-lo têm-se algum bolo/biscoito ou outro alimento
manufaturado comprado ou produzido por eles. Já no almoço, o principal alimento
ofertado é o arroz, feijão e alguma carne, sendo que as verduras e/ou legumes eram
complementos nem sempre presentes, variando conforme aquilo que foi produzido e
ou, por vezes, comprado. Para o lanche da tarde, a lógica é a mesma do café da
manhã, sendo que, em geral, aquilo que foi ofertado no café da manhã, retorna à
mesa no lanche da tarde. Por fim, a janta possui a mesma lógica do almoço, sendo
que, em geral, a janta constitui-se como a finalização do consumo produzido no
almoço36, em outros casos é feito uma nova janta, seguindo os mesmos princípios.
Finalizado esta primeira parte, em que descrevo, de modo sucinto, a
alimentação ali praticada, irei refletir sobre os modos de fazer e os novos desafios
que estes envolvem.

36 Não denominarei aqui tal finalização do consumo produzido no almoço como “resto” do

almoço, uma vez que o “resto do almoço” é aquilo destinado para os animais: cachorros, gatos,
porcos e aves, ou seja, aquilo que não é de consumo humano.
96

Como dito, os principais produtos da mesa alimentar são comprados: o


arroz, feijão, grande parte das carnes, farinha de trigo e maizena para os bolos e/ou
outros produtos derivados destes e, por fim, o café. Isto significa que para realizar
suas principais refeições é indispensável compra-los, ocasionando assim a
necessidade de possuir dinheiro. Como a assentada A e B salientam, a compra nas
vendas era somente para aquilo que não era produzido ali, sendo o açúcar, o sal, o
óleo e, por vezes, algumas carnes os produtos comprados. Desta forma, o dinheiro
não representava uma necessidade de tamanha importância para estes sujeitos,
uma vez que a troca também era muito praticada, assim como a prestação de
favores como a doação de comida caso fosse pedida.
Comprar o principal da comida e produzir o secundário significa aumentar a
importância do dinheiro, e mais do que isto, faz com que o dinheiro seja fundamental
para a subsistência deste campesino. Portanto, gerar renda tem um aumento de
importância, é preciso fazer dinheiro para sobreviver, e dado as dificuldades em
gerar renda enfrentada pelos assentados, a alimentação, é de fato muito impactada.
Não somente isto, também indica uma mudança no trabalho desempenhado
por tal campesino, isto porque, somente viver de suas produções é para poucos
sujeitos do assentamento, que em geral são os que compraram as terras ali e,
portanto, possuem geração de renda fora do assentamento, sendo suas terras
somente local de investimento ou para aqueles que foram assentados mas que
dispunham de uma certa quantia de dinheiro anterior a vinda e desta forma puderam
investir na terra.
Assim, a alimentação destes assentados revela seu deslocamento para a
cidade com a finalidade de complementar renda e assim poder comprar seus
alimentos. A diminuição da fartura implica em um incômodo, sendo um sentimento
próximo da derrota ou vergonha, uma vez que implica no deslocamento de sua terra
e na consequente não possibilidade de viver somente da mesma, como uma falha
na realização da campesinidade, uma ruptura de sua matriz cognitiva camponesa e
ordem moral.
Saliento aqui que isto não significa, de maneira óbvia, em uma derrota no
sentido estrito da palavra, destes assentados, ao contrário, isto demarca a
resistência, uma vez que eles sobrevivem pela resistência, na luta diária para
manter-se campesinos, pois, seria “mais fácil” mudar-se para a cidade, como alguns
disseram-me, entretanto, é no campo que estes querem estar. Muitos desistiram
97

frente as dificuldades, que são várias, entretanto, aos que ficaram, a resistência e
insistência são latentes.
Eu não consigo mais plantar pra vender, planto pra subsistência, alugo o
gado e compro uma roupa, melhor viver aqui na roça com o mínimo do que
viver na cidade, porque ali talvez não consiga emprego e moradia, e o
dinheiro que vendo aqui, talvez não consigo comprar uma casa lá. Aqui no
campo você tem uma vida melhor, respira um ar melhor, uma água de
qualidade, tudo isso soma, to longe da cidade (ASSENTADA A).

Para isto novas táticas são criadas, novos caminhos são trilhados. Brandão
(1981) aponta em seu texto para o deslocamento do campo para a cidade dos
camponeses de Mossâmedes e em sua respectiva precarização através da
modernização do campo e consequente impossibilidade de praticar-se como
campesinos no âmbito urbano.
A linha que marca o passado e presente destes assentados, demarca
também uma mudança brusca nos modos de plantar, colher e comer, cada vez mais
precário, restou ao campesino submeter-se a algumas regras, entretanto, seu
campesinato, sua ordem moral permanece viva. É preciso acrescentar o dinheiro e
suas formas de obtê-lo dentro da lógica da matriz cognitiva camponesa, viver
somente da terra e do trabalho no campo não mais faz parte do presente e vivência
campesina destes assentados. Talvez, por isto, relembrar sua infância e os modos
ali vividos seja também um ato de resistência, que ilustra a condição precária em
que se encontram e assim torna-se o combustível para resistir em meio à luta
vivenciada em seu cotidiano.
98

CAPÍTULO 4 - CAMPESINATO COMO MATRIZ COGNITIVA

Até aqui, seguimos um caminho que se inicia com o entendimento do Norte


goiano, procurando refletir sobre como a Marcha para o Oeste e a consequente
migração para o Norte de Goiás produziram movimentos campesinos sui generis.
Além de demarcar fluxos de espaço, indicam as diásporas provocadas pelas
fronteiras (SAMPAIO, 2008, p. 1), estas últimas entendidas a partir de sua Íntima
relação com os conflitos. Por isto os assentamentos no Norte de Goiás constroem
uma importante página da história do campesinato brasileiro.
Após procurar sintetizar este processo campesino do Norte do estado, reflito
sobre o processo histórico no qual os assentados estão inseridos. Considerando que
os significados e símbolos são construídos através da dicotomia vivida entre campo-
cidade, produzidos durante sua vivência no campo - ainda na infância e
adolescência; e na cidade - início da vida adulta, em especial, como a migração de
um lugar para outro, juntamente com o choque dos modos de fazer, levaram tais
sujeitos a optarem por retornar a terra. Assim, este retorno a terra se configura como
uma problemática central, por isto responder à pergunta: porque eles retornaram?
Foi um dos focos iniciais desta pesquisa.
Após a finalização das visitas de reconhecimento, que ocorreram nos três
meses iniciais, pude considerar que para encontrar tal resposta necessitaria localizar
um conceito que pudesse abarcar a construção de valores e regras, entendendo-as
enquanto sintetizadoras de práxis. Isto porque, como procurei apontar no segundo
capítulo, seus modos de fazer acarretam uma lógica específica, que realizava um
determinado contraste com a lógica do modus operandi urbano, no qual fui e estou
inserido. Desta maneira, suas ações, por vezes, ganham até mesmo aparência “não
lógica”, estranha, para um sujeito outrem urbanizado que as observe.
É preciso aqui destacar que, ao chegar no assentamento, eu não estava
livre de informações dos mesmos. Nascido em uma sociedade de forte tradição
pecuarista (a cidade de Porangatu no Norte goiano), os assentados sempre foram
objeto de discussão, quase sempre, de uma maneira difamatória.
Optei por não realizar nenhuma leitura sobre um assentamento e os
assentados até finalizar as visitas de reconhecimento. Isto se deu a fins de não
repetir o mesmo comportamento ao qual visualizava na sociedade: construir uma
ideia de um sujeito sem de fato conhece-lo, mesmo que tal construção viesse de
99

textos acadêmicos, optei por deixar que o contato com eles me guiasse na
elaboração e reconhecimento de significados dos mesmos. Conviver, conversar e
participar de seus cotidianos seria o caminho para tal abordagem.
A partir da vivência, se constrói símbolos, significados, que por sua vez
produzem uma concepção de mundo, por isto, a fala do assentado carrega sua
cosmovisão (FLORES, 2012, p. 143). Trazê-la ao texto é fornecer ao leitor a
possibilidade de digerir esta alteridade, cabendo a mim ampliar e melhor significar as
concepções, elaborar estruturas de significações para aquilo que não é explicitado
na fala.
Desta maneira, em comunhão com Geertz, pretendi descrever, a partir do
meu olhar, o mundo no qual os assentados vivem, como eles o veem e também
como eles constroem significados, desta maneira, procurei fazer sentido do que
ouvi, vi e participei (MICHEELSEN, 2016, p. 200 e 202). Por isto, o terceiro capítulo
é uma descrição das práticas, de como veem e como fazem.
Estes princípios são definidos por E. & K. Woortmann (1997b, p. 7-8) como
matriz cognitiva camponesa, na qual
pode ser concebida, de outro modo, como parte do que Bourdieu define
como “habitus”, que resulta de práticas historicamente engendradas, que
por sua vez organiza essas práticas, reproduzindo a estrutura. O habitus por
conseguinte, tende à assegurar sua própria constância e sua própria defesa
contra a mudança descaracterizadora. Através da seleção distingue entre
as informações novas – a serem incorporadas pelo grupo- e aquelas a
serem rejeitadas, em caso de exposição fortuita ou forçada, informações
essas capazes de colocar em questão a informação acumulada.

E. & K. Woortmann estão analisando sitiantes sergipanos, da década de 80,


neste caso para além das relações entre os homens e destes para com a natureza,
os autores acrescentam a relação do homem para com Deus, também indissociável
da matriz cognitiva camponesa analisada.
Mesmo que não se trate do mesmo grupo societário entendo, a partir de
Levi-Strauss (1986, p. 39-40), que mesmo na diferença é possível comparar tais
grupos, uma vez que “consiste numa multiplicidade de traços, dos quais alguns são
comuns, embora em graus diversos, às culturas vizinhas, ou afastadas”. Além disso,
nesta comparação não acontece entre duas culturas de um mesmo período, estas
estão separadas pela história, pelo tempo, e justamente, este é um grande motor de
modificações culturais.
100

Desta maneira, entendo que a ordem moral destes sujeitos se configura


enquanto construção contemporânea da matriz cognitiva camponesa, que se
modifica conforme o tempo histórico e de acordo com o ambiente ao qual está
localizado. Neste devir, para além de regras de plantio, consorciamentos de plantas,
cuidados com o solo, tais práxis revelam um fluxo cultural que ilustram processos
que os produziram, ou seja, as flutuações do habitus ocorrem por meio de
justificativas.
Desta maneira, ao falar sobre uma interpretação subjetiva não a defino
enquanto o acesso a uma “estrutura” de pensar, mas somente de entender os
significados que estão em contexto, mas que não aparecem de maneira objetiva,
óbvia, trata-se de um conhecer o outro. Além disso, também é preciso destacar que
a matriz cognitiva camponesa não é aqui entendida enquanto uma estrutura, não se
trata de uma abordagem estruturalista, em verdade, a matriz cognitiva camponesa é
um conjunto de significações comuns, que compartilham valores, regras, normas,
modos de fazer, mas que não significa prender o indivíduo à mesma. Assim, esta
pesquisa trata de observar que houve uma intensa modificação nos modos de fazer
dos assentados para com seus pais, muito presente na dicotomia passado-presente,
entretanto, alguns valores, regras, significados permaneceram ou foram
ressignificados, desta maneira, trata-se de entender este contexto de mudança.

4.1 - CAMPESINATO COMO CULTURA VALORATIVA

Sendo uma ordem moral, o campesinato é, portanto, um conjunto de


valores, podendo ser individuais ou coletivos (compartilhados); sendo estes,
norteadores das relações sociais, como também da conduta destes sujeitos. Assim,
reflito-a enquanto um aspecto cultural hierarquizado e, por este fim, dotado de
caráter valorativo.
IsSo implica que, enquanto ordem moral, é preciso procurar praticá-la,
sendo nem sempre possível, ou pelo menos não em sua totalidade. Desta maneira,
problematizo-a no sentido de virtude. Aristóteles, ao dissertar sobre a virtude, disse
que:
As coisas que temos de aprender antes de fazer, aprendemo-las fazendo-as
- por exemplo, os homens se tornam construtores construindo, e se tornam
citaristas tocando cítara; da mesma forma, tornamo-nos justos praticando
atos justos, moderados agindo moderadamente, e corajosos agindo
corajosamente. Essa asserção é confirmada pelo que acontece nas
101

cidades, pois os legisladores formam os cidadãos habituando-os a fazerem


o bem; esta é a intenção de todos os legisladores; os que não a põem
corretamente em prática falham em seu objetivo, e é sob este aspecto que a
boa constituição difere da má (ARISTÓTELES, 1985, p. 35-36).

Silveira (2000, p. 4), realizando uma análise da perspectiva de Aristóteles diz


que “o objetivo de nossa vida é alcançar a felicidade. Para alcançarmos a felicidade,
precisamos viver racionalmente, e viver racionalmente significa viver segundo a
virtude”. É neste sentido o qual pretendo justificar o uso da virtude para
compreender a campesinidade, e acredito que alguns fatos permitem problematizar
tal justificativa.
Destaco o Cerrado enquanto um local sintetizador de práxis específicas,
uma vez que existem problemáticas inerentes para tal região. Neste caminho Pelá e
Mendonça tratam tal perspectiva, conceituando de Povos Cerradeiros, os sujeitos
viventes deste local, são
sujeitos sociais trabalhadores/produtores que historicamente viveram nas
áreas de Cerrado e constituíram formas de uso da terra a partir das
diferenciações naturais-sociais experienciando formas materiais e imateriais
de trabalho, que denotam relações sociais de produção muito próprias e em
acordo com as condições ambientais, resultando em múltiplas práticas
socioculturais. (2010, p. 54)

Há dois tipos de moradores no assentamento: aqueles que foram


assentados e que, portanto, estão desde o início do processo de aquisição da terra;
e há aqueles que adquiriam/compraram a terra posterior ao processo de
assentamento.
Há diferenças e similaridades entre os dois grupos, sendo os primeiros
Povos Cerradeiros, campesinos e que tiveram, na experiência do processo de
ingressão no movimento social e na luta pelo acesso à terra , uma construção
própria de teias de significações (GEERTZ, 2017, p. 4) singulares; já o segundo
grupo, também são Povos Cerradeiros, nem sempre campesinos, mas com a
ausência da experiência do processo de ingressão no movimento social e na luta
pelo acesso à terra, uma vez que realizaram a compra/aquisição da mesma
transpassado todo o processo. Desta forma, não compartilham de algumas teias de
significações, possuindo uma relação mais econômica com a terra, salvo exceções.
Dado esta delimitação, irei abordar, preferencialmente, o primeiro grupo.
Para isto, pude perceber que a melhor maneira de observar uma ordem moral é
102

quando esta é questionada ou impossibilitada37, assim, a moral de um sujeito torna-


se extrínseca em dadas situações. Por isto, o Norte de Goiás possibilita uma análise
do campesinato destes sujeitos. Preconceitos, limitações políticas, limitações sociais
e limitações naturais fazem ou fizeram parte da história de vida destes assentados,
assim, como muitos relataram, houve muitas desistências devido tais situações.
Se por um lado, esta matriz cognitiva é construída por uma relação prática,
seja pela administração dos espaços, dos conhecimentos para a realização das
atividades do trabalho; também atua na construção de significados simbólicos, que
serão utilizados pelo assentado na sua organização social e de seu imaginário,
produzindo sua cosmovisão (E. & K. WOORTMANN, 1997b).
Desta maneira, ao migrar para a cidade, estes sujeitos perceberam que seu
saber é diferente do saber urbano, suas construções simbólicas são distintas, há
valores diferentes, enquanto o saber urbano atende aos valores do Capital quanto
valor, o saber rural técnico é produzido pelo campesinato, sendo, portanto, sua
ordem moral.
Sentindo-se deslocado, não pertencente, altero, estes sujeitos procuram
alternativas de retornar para onde seu saber é realizado. Desta maneira, para além
de prover as necessidades básicas, o salário que os assentados recebiam no
período que moravam na cidade, tinha por função também realizar uma poupança
para enfim poder realizar a compra de sua terra.
Aqui, é preciso salientar que para que este saber concretize-se alguns
elementos são fundamentais, pois todos os significados derivam dos valores que
estes aspectos realizam dentro da construção da ordem moral. Woortmann (1990, p.
23) aponta a terra-trabalho-família como tais elementos nucleantes, em especial,
sua interrelação, desta maneira, não é possível falar sobre a terra e não falar sobre
o trabalho, assim como não é possível falar sobre o trabalho sem falar sobre a
família.
O processo de trabalho faz-se, de um lado, a partir de uma idealização da
natureza. Em outros termos, não existe uma natureza em si, mas uma
natureza cognitiva e simbolicamente apreendida. De outro lado, ele se faz
no interior de um processo de relações sociais que transforma a natureza.
Para entendermos a construção do roçado, precisamos conhecer tanto o
modelo cultural quanto o processo histórico da sociedade, pois não existe
uma natureza independente dos homens: ao longo do tempo a natureza é

37
Sahlins (1972, p. 139) denomina isto de crise reveladora, no seu estudo esta crise deu-se
pela ocultação de uma real condição para não cumprir sua obrigação social, já aqui esta crise é o
inverso, pois dá-se quando os assentados querem cumprir sua função social, mas não possuem
condições reais para isto.
103

transformada, inclusive pelo próprio processo de trabalho. Transforma-se


também o acesso a ela e são recriadas categorias sociais específicas (E. &
K. WOORTMANN, 1997a, p. 10).

Nas imagens 9, 10 e 17, fotos tiradas por uma família de assentados, é


possível visualizar a produção dos canteiros, as plantações do quintal e a colheita
dos produtos em um retrato da família. Estas imagens são importantes pois ao
deixar a câmera pedi que retratassem o que é ser um assentado pelas fotos. Assim,
o trabalho-terra-família são diretamente representados. Tendo na produção dos
canteiros a significação do trabalho; na foto retratando as plantações observamos a
terra trabalhada pelo homem, ou seja, a utilização da terra e sua respectiva posse
pelo trabalho; como também no retrato da família juntamente com a colheita, ao
fundo dos canteiros, local de trabalho, retratando a família como alicerce que torna a
terra em local de trabalho.
Neste processo de recriação de categorias sociais específicas, dado as
transformações históricas e culturais existentes, estas categorias nucleantes
sofreram importantes modificações. Aqui, a comparação desta modificação
expressa-se nas falas dos assentados ao retratar o seu passado e o agora, mais
especificamente, como era com seus pais e como eles estão.
Refletir sobre os motivos que levam os assentados a grifarem esta
modificação nos faz retornar para o caráter valorativo do campesinato, ou seja, da
ordem moral. Por isto, a reprodução social destes sujeitos necessita de tais valores.
Por conseguinte, alterá-los significa modificar a própria reprodução social, mais
especificamente sua função e estrutura social38
A terra é uma importante categoria do campesinato dos assentados. Além
de constituir-se como o espaço de realização do trabalho campesino, ela também é
o local onde o saber é atuante. Silva (2008), em sua tese, apresenta o campesinato
remanescente nos centros urbanos, em pequenas vilas que mesmo estando fora da
terra/espaço rural, modificam seus modos de fazer para continuar a pratica-lo.
Entretanto, mesmo que realizado nos quintais, o chão é onde o saber camponês
pode ter a possibilidade de transformar a natureza e aplicar seu saber.
Se a terra para os sitiantes sergipanos de Woortmann (1990, p. 18) é
propriedade de Deus, para os assentados, a terra também é propriedade de Deus,
ou seja, pertencente originalmente a todos, entretanto é controlada pelos homens.

38 Aqui entendidos próximos aos conceitos de Radcliffe-Brown (1973a e 1973b)


104

Nisto constitui-se o fundamento para os movimentos sociais de busca da reforma


agrária, cujo lema: “a terra é de todos”, sendo dada por Deus, mas que tomado
pelos homens.
Ainda, para os sitiantes, “é-se dono, não por se ter comprado a terra, mas
por tê-la trabalhado” (WOORTMANN, 1990, p. 28). Ao falarem sobre seus pais,
percebe-se que naquele período esta também era a regra, uma vez que sendo
peões, estes moravam no local em que trabalhavam, deste modo, a posse da terra
era diretamente relacionada com o trabalho. Já no caso dos assentados, este
princípio continua, o que garante a posse da terra é a luta. Neste processo, uma
terra só pode ser desapropriada para formar um assentamento caso esta seja
improdutiva, ou seja, caso não esteja produzindo, desta maneira, o trabalho da terra
garante a posse.
Podemos dizer que há dois modos para o ser dono da terra: a) torna-se
dono da terra por ter lutado; b) através da legitimação jurídica. Para o primeiro caso,
quando ouve uma invasão de outros movimentos sociais no assentamento, para
ocupar as áreas coletivas, os assentados referem-se a tais parcelas/terra enquanto
donos, mesmo que estas não estejam de fato em atividade, estas são deles por
terem “lutado por elas, pela conquista”. Neste último caso, torna-se dono quando há
um registro em cartório.
Sendo o assentamento a representação/personificação da terra enquanto
valor, identifico quatro conceitos de assentamento: 1) como local de realização do
desejo de retorno a terra; 2) enquanto marca viva, troféu da luta pela terra; 3) local
de trabalho e vivência de cada família; 4) onde realiza-se o pai de família.
Primeiro, o assentamento como local de realização do desejo de retorno a
terra, porque entendo que ao se assentar, este cumpre seu desejo de retorno a
terra, tornando-se o ponto inicial do processo, desta maneira, destaco este modo de
significar o assentamento pelos assentados, como ponto de partida da realização de
sua virtude/moral.
Segundo, o assentamento enquanto marca viva, troféu da luta pela terra. Eu
diferencio este do primeiro pois, no primeiro o assentamento é o local de realização,
já neste caso ele funciona enquanto um troféu, ou seja, neste sentido tem a função
de relembrar a luta, as dificuldades, os obstáculos, funcionando como um
incentivador ou ao contrário, como é o caso de sujeitos que participaram de todo o
processo do pré-assentamento mas não foram assentados. Ao conversar com eles,
105

o assentamento era uma marca viva do processo de luta e perca, assim ao falar
sobre o assentamento o sujeito expunha a frustração, raiva e decepção. Desta
maneira, o assentamento atua enquanto uma marca viva de seu processo, uma
memória.
Terceiro, enquanto o local de trabalho e vivência de cada família, aqui o
assentamento torna-se uma comunidade (ASSENTADO E), na qual diversas
famílias vivem e trabalham, cada um a sua maneira, entretanto havendo uma
comunicação, uma junção entre as mesmas, a qual será posteriormente detalhado.
Quarto, onde o pai de família se realiza havendo, portanto uma junção entre
terra e família. Desta maneira:
Se a produção é central para a reprodução, e se é pelo trabalho que se
constrói a família, é pelo saber “técnico” que ela se faz e é o controle sobre
esse saber que faz a hierarquia do grupo doméstico. Exerce-se o poder
porque se detém o saber. Na hierarquia da unidade produtiva, o pai de
família (no plano público) governa a família porque governa a produção;
governa o processo de trabalho porque “domina” o saber. O saber “técnico”
é, portanto, fundamental para a reprodução da estrutura social (E. & K.
WOORTMANN, 1997a, p. 12).

O pai de família, é o indivíduo que detém o saber fazer, o saber “técnico”, e


que, desta maneira, constitui-se como o líder do grupo doméstico. Assim, há uma
construção de hierarquia familiar, no assentamento, há mulheres pai de família,
homens pai de família e também homem e mulher pai de família conjuntos.
Grande parte desta modificação se dá pelas modificações que a sociedade
tem realizado com relação a hierarquia de gênero. Assim, houve uma modificação
da construção hierárquica do pai de família, mesmo que sua função continue. É
possível visualizar isto, por exemplo, em uma das famílias, na ocasião de uma
pergunta sobre um método de produção ou sobre os modos de fazer, era orientado
a perguntar à mãe. Além disso, também observei famílias onde há um
compartilhamento da função entre marido e mulher, no qual há uma alternância
hierárquica, justificada pelos conhecimentos que cada um possui. Deste modo, em
determinado trabalho, se a mulher possui o saber fazer, direcionará os modos de
fazer, já se em outro trabalho o homem possui, então ele direcionará como proceder.
Foi possível identificar três concepções de família: 1) aqueles que moram na
casa; 2) os que possuem mesma descendência; 3) família enquanto companheiros
de luta.
106

Na primeira, são os indivíduos que vivem na mesma casa; já na segunda, se


dá por descendência, como no caso da “família dos bombas”, sendo um conjunto de
famílias, na primeira concepção, que moram na mesma área e que possuem mesma
descendência, neste caso, é comum sintetiza-los como “os bomba”, ou seja,
representá-los como um só, uma família, mesmo que cada um trabalhe em sua
individualidade, havendo alguma comunhão de trabalho; já na terceira concepção de
família, enquanto companheiros de luta, trata-se do reconhecimento de igualdade
para com os outros assentados que participaram e ao mesmo tempo auxiliaram-no a
conquistar sua terra e, portanto, possibilitou que cada um realiza-se. Desta maneira,
como os assentados disseram, caso alguém ali adoecesse ou ficasse impossibilitado
de trabalhar, todos iriam ajudá-lo, ou quando dizem que: “parece que somos
desunidos, mas se alguém precisar todos ajudam”; neste sentido, mesmo que trate
de outra parcela, ou seja, outra terra, ainda assim há um deslocamento para auxiliar,
mesmo que ao final do trabalho não se receba nada em troca.
Se assim como Woortmann (1990, p. 31) diz que “sítio e família são termos
polissêmicos e paralelos, mas cuja polissemia “unifica” categorias de espaço e
parentesco”, também digo que assentamento e família carregam este mesmo
sentido.
Como diz Mendras (1976, apud Woortmann, 1990, p. 33), “a comunidade é a
capsula protetora do campesinato”; portanto, a comunidade representada pelos
“companheiros” também é protetora do campesinato do assentamento, isto se
evidencia quando, ao falar sobre a saída de outros companheiros, a assentada A diz
que isto é ruim e que contribuiu para a piora da situação dos mesmos, uma vez que,
unidos pela mesma ordem moral, por princípios, valores comuns, a produção
identitária permite o estabelecimento e ampliação da família, ampliando assim a
capacidade de ação dos assentados que constantemente sofrem por não disporem
de condições reais de sua realização.
Para isto, é preciso delimitar dois tipos de categorias: dentro/de fora e
companheiro/não companheiro. Para os primeiros, de dentro é aquele que mora no
assentamento; e de fora, são aqueles que não moram. Já por companheiro,
entende-se aquele que compartilha de princípios, valores, modos de fazer, etc, e por
não companheiro é aquele que não há um compartilhamento destes. Desta maneira,
um sujeito pode ser de dentro e não companheiro ou de fora e companheiro; para a
classificação de fato trata-se dos interesses pessoas de cada um, no qual somente
107

pude observar os critérios para o estabelecimento destas categorias, além disto, por
vezes, pode haver tamanha alteridade entre dois sujeitos que ambos considerem o
outro como de fora, ou seja, mesmo morando no assentamento, este pode ser
considerado como de fora, não pertencente.
Também há um reconhecimento do outro enquanto família/companheiro,
que se relaciona com a percepção da terra comunal, ou seja, os frutos das árvores
do assentamento não pertencem aos proprietários da parcela, são de todos, com
exceção para aquilo que adveio pelo trabalho. Neste caso, pertence a quem
trabalhou/plantou, desta maneira, para colher caju de um cajueiro não é preciso
pedir autorização, mas para colher a pimenta, couve e etc., já se faz necessário.
Neste sentido, o trabalho enquanto valor, completa o valor família, pois é
através deste que a família se faz enquanto tal. Em exemplo anteriormente citado,
quando uma assentada me disse que seu marido havia ido trabalhar fora com
tristeza, mesmo que este dinheiro ganho pelo assalariamento signifique o sustento
desta família naquele momento, ela ilustra que, mesmo estando na posse da terra, a
família não pode realizar-se pelo trabalho, ou melhor dizendo, pelo trabalho na terra.
Desta maneira, o assalariamento do pai de família tem por função evitar a ruptura do
campesinato, sendo que, esta situação constitui-se análoga a uma situação
vexatória, pois expõe o pai de família, indicando que este não conseguiu cumprir sua
função social, dentro de sua moral.
Woortmann (1990, p. 25-27), retrata tal condição nos engenhos, que a
classificam como humilhação, sujeição e cativeiro. Desta forma, é possível realizar
algumas classificações quanto ao trabalho: a) trabalhar para si; b) trabalhar para
outro.
No caso a) trabalhar para si, indica que o trabalho deste campesino será
realizado para ele mesmo, ou seja, em sua terra, no qual além do controle da
produção, tem domínio sobre o tempo. Já no caso b) trabalhar para o outro, pode
ser dividido de duas maneiras: 1) trabalhar para outro sem realizar sua ordem moral;
2) trabalhar para outro realizando sua ordem moral. Ou seja, para o primeiro caso, o
assentado trabalha para outro, assalaria-se, e realiza um trabalho no qual não
contribui, diretamente, para a realização de seus valores, por exemplo trabalhar
como pedreiro no meio urbano, além de retirar o controle sobre sua produção e do
seu tempo, seu trabalho não põem em prática seus valores, ao contrário, quase
108

sempre não existe possibilidade de realiza-los39. Já para o segundo caso (quase


sempre realizado no meio rural, principalmente para os fazendeiros 40 ), quando o
assentado trabalha, se assalaria e continua realizando sua ordem moral, perdendo o
domínio sobre sua produção e tempo, entretanto, realiza uma função que compactua
com seus valores, como consertar uma cerca, capinar, auxiliar no trato do gado ou
outro animal, cortar lenha, em todos estes casos, o sujeito realiza modos de fazer os
quais tem pleno domínio, além disso, mesmo que a produção não seja direcionada
para ele, realizar tais práticas permite aprimorar suas próprias práxis, pois, o
ambiente de trabalho campesino é um constante fluxo de troca de informações, uma
vez que trabalhar e prosear é parte da arte de fazer do trabalho campesino, ou seja,
o ritmo do trabalho, aliado em como os sujeitos se comportam durante a realização é
diferente do modus operandi que um trabalhador urbano realiza, mesmo que haja
aproximações, em uma empresa seria observado com estranheza se houvesse
repetidas pausas durante o serviço para contar causos, prosear, mas para os
campesinos, este modo de ser é parte da “essência” de fazer.
Neste caminho, os assentados que dispõem de melhores condições
financeiras, por vezes, realizam o assalariamento de outros assentados, nestes
casos, como aponta Woortmann (1990, p. 27), isto significa o assalariamento de
terceiros para poupar a família, ou seja, é o pai de família que não conseguindo
sozinho realizar determinada função, preserva sua família do desgaste para manter
a hierarquia familiar, trata-se, portanto, da realização do valor família pelo trabalho
assalariado de terceiros.
Assalariar-se constitui um sentimento de humilhação quando forçado a
realiza-lo periodicamente, caso isto torne-se permanente é visto como
comportamento precário. Durante uma visita, ao dizer que “alguns nasceram pra ser
peão, só sabe trabalhar pros outros”, a assentada revela-me que assalariar-se
permanentemente é sujeitar-se, prender-se em um cativeiro, ou seja, é perder a
autonomia do tempo e da produção, sendo, portanto, visto como não virtuoso, uma
posição de pouco prestígio entre os pares.

39 Durante uma entrevista, a assentada B celebra que “Graças a Deus quando morou na
cidade trabalhava na feira”, isto mostra que para este trabalho que aproxima-se com os modos de
fazer campesinos, o trabalho na cidade que aproxima-se de tais valores é reconhecido como bom
trabalho.
40 A categoria fazendeiros como apresentada no capítulo anterior é distinta, pois estes

sujeitos seguem os valores e regras do Capital e não do campesinato.


109

Outra maneira de trabalho é a ajuda, nestes casos não é denominado


trabalho, mas referido como “diária” ou “ajuda”, sendo categorias distintas daquelas
de trabalho anteriormente enumeradas. Isto porque, a “ajuda” é um reconhecimento
de iguais, assim, o aluguel da mão de obra do outro é realizado pelo reconhecimento
do trabalho (aqui entendido enquanto esforço, dedicação, boa execução, dominação
de técnicas) e da confiança, por outro lado é também possibilitar uma ajuda ao
amigo pagando seu serviço. Neste caso, que aparenta também ser um
assalariamento do trabalho, a diferenciação se dá em dois aspectos: o pagamento
pode ser através da troca ou outra forma que não exclusivamente monetária, além
de que este tipo de trabalho oferece um domínio sobre o tempo para quem irá
realizar a ajuda. Desta maneira, o sujeito pode ajudar/fazer a diária ao amigo, e
deixar para concluir no dia seguinte porque necessita ir na cidade resolver algum
problema, ou seja, há uma camaradagem envolvida, diferentemente das outras
formas de trabalho que envolve formalidade, neste caso, a principal característica é
a informalidade, um acordo de “compadres”, ou seja, a “ajuda” não segue apenas as
leis do mercado, mas principalmente as regras morais.
Woortmann (1990, p. 35) aponta que entre os sitiantes sergipanos, este tipo
de trabalho, costuma ser pago com comida. Mesmo que aconteça casos em que é
pago com comida como banana, ovos, queijo, carne (raramente), é preferível que se
pague com dinheiro no assentamento. Isto não é um assalariamento estrito, mas sim
uma outra maneira de pagar com comida, isto porque, se no assentamento não há
produção de arroz, feijão e carne, não é possível pagar com a comida em si, neste
caso, o pagamento é com o próprio dinheiro, que na cidade ganha valor equivalente,
por isto a comida como pagamento dos sitiantes sergipanos é no assentamento
equivalente em dar dinheiro para comprar comida.
Além disso, a “troca de tempo de serviço” se constitui também em uma
categoria diferente, em exemplo da realização de uma pamonhada: O dono da casa
convida algumas pessoas para a realização da mesma, há diferentes funções para
serem cumpridas: a) descascar o milho; b) debulhar e bater no liquidificador ou
ralar 41 ; c) temperar a massa; d) buscar a lenha; e) cortar o queijo; f) fazer o
‘envelope’ com a palha; g) colocar a massa; h) fechar a pamonha; i) cuidar do fogo;
j) lavar as vasilhas utilizadas.

41 Há diferentes modos de fazer pamonha.


110

Nestes processos, ocorre uma diferenciação quanto a quem irá realizar cada
etapa, deste modo, percebo duas diferenças iniciais: primeiramente, quanto ao
gênero; segundo, de acordo com o caráter geracional. Assim, para o primeiro caso,
como se trata de um processo de preparar o alimento, tradicionalmente pertencente
ao ambiente feminino, as mulheres costumam ficar com alguma destas etapas, já os
homens costumam buscar lenha, cuidar do fogo, ou realizar alguma etapa do
processo do preparo, como o caso em que o marido realizou o tempero da massa,
pois, segundo sua esposa: “ele tem um tempero bom”. Já no segundo caso, quando
este ocorre, em que uma criança ou adolescente participa do processo, esta recebe
alguma função simples, como cortar o queijo, pegar vasilhas ou outros itens, não
participando efetivamente do processo, uma vez que ainda não domina o saber
fazer. Em todo este processo de preparo, a “prosa” é parte do trabalho, não existe
trabalho sem prosa, podendo ter a função de provocar o riso, compartilhar
informação, modos de fazer, mas principalmente produzir a “fartura de amizade”.
Este tipo de troca de tempo de serviço costuma gerar uma corrente, na qual
cada um realiza um convite para algum evento em sua casa e aqueles convidados
necessitam, posteriormente, também realizar outro convite, com a finalidade de
fortalecer os laços e assim produzir a fartura de amizade, retratado ao falar do
“tempo de seus pais” ou “antigamente”, além disso, ao relatarem que hoje em dia há
uma diminuição desta fartura de amizades, indica que ela possui uma função
importante dentro do campesinato.
Woortmann (1990, p. 16) ao falar sobre o campesinato diz que:
O modelo que imagino lida, portanto, com seres históricos e não deve dar
margem a reificações. Ele é também histórico na medida em que a
passagem de uma ordem moral para uma ordem econômica é,
efetivamente, um processo multissecular por onde passa todo o mundo
ocidental e já antevisto por Aristóteles quando este descobre a economia,
na feliz expressão de Polanyi (1975). Trata-se de uma grande revolução em
toda a cosmologia ocidental, epitomizada, talvez, na “revolução newtoniana"
(Burti, 1983) Passa-se de uma ordem de primazia da lei dos homens para a
primazia da lei das coisas; de um universo relacional para um universo
atomizado; da sociedade para a economia.

Desta maneira, esta ordem moral também está inserida dentro do fluxo
cultural, este influenciado por diversas variáveis. Ao apontar para modificação
cosmológica que atomiza a sociedade, ele refere-se desde ao funcionamento do
sistema político-econômico capitalista, até ao desenvolvimento da ciência, no qual “o
capitalismo subordina, porém não organiza o campesinato” (TAUSSIG, 1983, apud
111

E. & K. WOORTMANN, 1997b, p. 8). Os modos de fazer, portanto, recebem novas


fronteiras, limites e delimitações, cabendo aos campesinos ressignificarem-se a
partir disto.
Desta maneira, é possível observar a atomização e secularização nos
modos de fazer destes sujeitos, enquanto tais fronteiras e delimitações, as quais não
necessariamente significa que se trata de uma imposição, no qual por exemplo: o
uso de variadas mídias para pesquisar remédios, outros modos de fazer, clima e
etc., que alteram tradições42 não significa que houve uma imposição destas sobre os
sujeitos, mas partindo de sua escolha, assim incorporadas ao seu habitus pela
escolha/necessidade levando, portanto, a uma (re)construção de suas tradições.
Não obstante, a individualidade dita pelos assentados como algo ruim, no
qual “hoje é cada um por si” e “ninguém se ajuda mais” indica que, mesmo sendo
praticado desta maneira, incorporado nos modos de fazer, os assentados observam
como contrário a sua moralidade, demarcando a existência desta delimitação e
fronteira que, por vezes, é visualizada como algo não mais passível de ser
transpassado.
Esta “descontinuidade construída intencionalmente” (WOORTMANN, 1990,
p. 19), tem por objetivo permitir que a ordem moral possa sobreviver as novas
delimitações, sendo uma “interrupção estratégica do tempo da tradição para
restaurar a tradição e, com ela, a continuidade em outro momento futuro (p.19)”.
Assim, para o assentado o futuro é a volta ao passado, ou melhor dizendo, para
atingir sua ordem moral, é preciso tentar retornar ao “passado”, para a fartura de
comida e amizade, para práticas que lhes façam de fato campesinos, fazendo a
terra-trabalho-família enquanto sua linguagem.
Desta maneira, a ajuda praticada pelos assentados, que se assemelha ao
ajuri retratado por Woortmann (1990, p. 35) para os sitiantes sergipanos, possui uma
modificação quanto a suas regras. Se no ajuri os sitiantes não envolviam dinheiro
pois este contraria a moral, na ajuda dos assentados não é o dinheiro que realiza tal
prática, mas sim o controle sobre o tempo do companheiro, resultando em um
enfraquecimento da amizade, pois, significaria no fim do reconhecimento de
igualdade entre os pares.

42 Como no caso anteriormente citado onde a assentada H questiona sua mãe sobre uma

receita caseira, demonstrando que o saber do médico, científico, era melhor que o senso comum de
sua mãe.
112

Ainda em seu texto, Woortmann (1990, p. 36) ilustra que em algumas


comunidades amazônicas e em uma aldeia camponesa da ilha de Nisos, no mar
Egeu, o dinheiro é obrigatório, desta maneira, não se trata do dinheiro em si, mas o
modo como cada cultura o representa. Assim sendo, para os assentados o dinheiro
representa também a comida, sendo a moeda de troca equivalente, ou seja, caso o
quilo do arroz custe vinte reais ou quatro quilos de feijão, receber vinte reais pela
ajuda, significa também receber um quilo de arroz ou quatro quilos de feijão.
Isto caracteriza-se enquanto troca, que é diferente do assalariamento, pois
uma ajuda realizada para um companheiro por oitenta reais não é a mesma coisa
que um serviço realizado na cidade por oitenta reais, mesmo que os valores
monetários sejam iguais, estes são moralmente diferentes, pois os oitenta reais
vindos da ajuda é uma troca, trata-se, portanto, de uma linguagem, esta que
perpassa a família-trabalho-terra, instituindo-os enquanto espaço moral.
Assim, o negócio se constitui enquanto uma espécie de negação da
moralidade, desta maneira, mesmo que este aspecto esteja em ressignificação,
quando alguns assentados ao se referir ao comércio que existe dentro do
assentamento de maneira pejorativa, há uma indicação deste sentido, ou em outro
exemplo: Durante uma visita, ao acabar os ovos, eu e o assentado G saímos para
comprar mais, então ele disse que “é preciso levar o dinheiro, ninguém faz fiado no
assentamento”. Nestes casos, quando a regra do Capital adentra o assentamento,
este não é visto como algo positivo.
A feira por outro lado, se constitui como o local onde é permitido que as leis
do Capital adentrem os modos de fazer, uma vez que esta se localiza na cidade,
mas realizar o negócio seguindo as mesmas regras no assentamento, é visto de
maneira diferente, mesmo que estes existam. Assim, negócio e trabalho, mesmo
que contraditórios, são complementares, havendo uma certa delimitação de espaço.
Desta maneira, o negócio é a negação da reciprocidade (WOORTMANN,
1990, p. 41), sendo de um lado a negação do campesinato, mas também uma tática
que permite sua continuidade. No caso dos assentados, talvez, o mais importante é
refletir para o valor que o dinheiro possui, não há nenhum problema vender um
produto por dinheiro, mas não vender fiado, em verdade, se constitui um problema,
pois nega a reciprocidade e igualdade para com o outro, como apontam ao
retratarem que algumas lojas da cidade não vendiam fiado, assim, quando algum
assentado o faz, se trata de um uma negação da igualdade do outro, negando,
113

portanto, a ordem moral. Por isto, estas ambiguidades para tratar o negócio,
demonstram seu caráter histórico e culturalmente construído.
Face a estas questões envolvendo as ambiguidades do negócio e trabalho,
o controle do tempo é parte fundamental da autonomia campesina. Desta maneira,
quando estes sujeitos perdem o controle do tempo estes são impossibilitados de
serem agricultores plenos, ou seja, se o assentado se assalaria no período que seria
destinado para a realização de um plantio, não é possível praticar a agricultura em
sua terra.
Neste caso o pai de família não consegue se realizar enquanto valor,
influenciando na realização da terra e do trabalho enquanto modos de fazer éticos.
Isto coloca alguns assentados em condição “fraca” de sua campesinidade,
identificado quando este não consegue cumprir suas próprias regras e valores.
Tal situação não é algo que se inicia agora, conforme nos relatos
anteriormente transcritos, ao falar sobre as condições de seus pais, os assentados
demonstram que a perca da autonomia do trabalho se realiza já há algum tempo,
como no caso da assentada A em que seu pai plantava a roça escondido. Desta
maneira, as condições objetivas as quais alguns assentados se encontram os
enquadram em uma espécie de cativeiro, retirando sua autonomia de trabalho, pois
necessita vende-la para sobreviver. Por isto, novas táticas e golpes (CERTEAU,
2014) necessitam ser utilizadas pelos mesmos para tentar modificar tal situação.
A área coletiva do assentamento falha, pois não consegue englobar
diferentes pais de família em um mesmo espaço, ou seja, não é possível haver mais
de um pai de família atuando no mesmo lugar 43 , ou como relata um assentado:
“mais de uma cabeça no mesmo lugar não dá certo, cada um quer ir para um canto”.
Assim, parte da individualidade do assentamento também se dá pelo
respeito da posição do pai, ou seja, de que cada um gerencie seu tempo e seu
trabalho como preferir sendo uma regra muito importante para a realização da moral.
Quando o pai não consegue se realizar, a terra e o trabalho também são afetados,
ferindo diretamente a ordem moral, igualmente quando os assentados não
encontram condições objetivas para realizar tais funções, estes sentem-se
diretamente falhos, assim como alguém que deseja profundamente ser honesto e se

43 Quando retratei que havia o pai de família alternado, este funciona da seguinte maneira:
ora o pai e outrora a mãe realizavam a função de pai de família alternadamente, não ao mesmo
tempo, somente havendo uma troca da hierarquia conforme a necessidade e o reconhecimento do
saber “técnico”.
114

encontra praticando uma ação desonesta, esta ruptura deixa marcas perceptíveis
nas falas destes sujeitos.
Dada estas condições, poderia o leitor perguntar: os assentados são
campesinos, ou seja, possuem de fato esta ordem moral? Acredito, que os dados
até aqui confirmam isso. Sua luta para retornar a terra e sua resistência para
permanecer indicam que esta condição, mesmo que degradada, implica na
realização ou na tentativa de realização desta ordem moral. Devido os eventos
serem recentes, alguns aspectos quanto a transmissão da terra e quanto ao caráter
geracional que são inerentes da reprodução da família não podem ser observados,
uma vez que não há mais que uma geração na terra.
Entretanto, é possível tecer algumas considerações sobre estas questões,
primeiramente há uma modificação quanto a função do filho, isto porque, como
conta a assentada A, quando seu pai plantava a roça, os filhos eram responsáveis
por cuidar/trabalhar na mesma, além disso havia outros trabalhos no campo para
serem realizados. O estudo, principalmente pela dificuldade ao acesso a escola, não
era parte da função de uma criança e adolescente, sendo que, quase sempre, era
preferível que este trabalhasse do que estudasse.
Contudo, a partir da possibilidade e acesso à escola eles a visualizaram
como importante, deste modo, face sua vivência no meio urbano, estes sujeitos
realizaram uma inversão da função que as crianças e adolescentes realizam. Agora,
ao invés de obrigatoriamente trabalharem, o estudo deve ser prioridade/obrigação,
mesmo que estes possam, e quase sempre o fazem, trabalhar auxiliando seus pais,
ainda assim o foco deve ser o estudo. No assentamento, como relata o assentado F,
filho de outro assentado, quando adolescente, seu pai chamava para auxiliar, o qual
ele denominava “aprender a fazer”, mas não obrigava a realização do mesmo,
assim, cabia a escolha de ir ou não aprender a fazer.
Outro efeito recorrente é a migração dos filhos, se para os pais a luta pela
posse da terra possui um significado de aquisição do patrimônio, para os filhos isto
não possui o mesmo significado, mesmo que se reconheça como patrimônio dos
pais, estes não necessariamente veem-no como seus, desta maneira, a migração
dos filhos para a cidade ao atingirem determinada idade costuma ser a regra, sendo
muito pouco o número de filhos adultos que permaneceram no assentamento. Vários
fatores atuam nestes casos: a própria influência dos pais para que isto de fato
aconteça, influência do acesso as novas mídias, influência da escola, influência dos
115

novos desejos sociais e etc. O mais importante aqui é entender que há uma
mudança da função do filho e que, quase sempre estes herdeiros se recusam a
herdar.
A própria reintegração a sociedade global em transformação, realiza no filho
uma “descoberta do outro, de uma alteridade não-tradicional de novos valores,
estabelecendo, com isso, o estranhamento de seu próprio universo e sua
desnaturalização” (WOORTMANN, 1990, p. 56). Isto revela também não somente
para os filhos destes assentados, como também seus irmãos que, em sua grande
maioria, optaram por viver na cidade e não retornar para a terra, como podemos
observar nesta fala que irei transcrever novamente:
Aqui no campo você tem uma vida melhor, respira um ar melhor, uma água
de qualidade, tudo isso soma, to longe da cidade. As vezes minhas irmãs
falam para minha filha: porque você não vem pra cidade, está perdendo
tempo aí. Não está perdendo tempo sabe, isso aqui é dela, se não quiser
estudar mais, não estuda, mas eu quero que ela estuda, aqui ela não está
perdendo, essa é a casa dela, a herança dela, pra eu passar pros meus
filhos e netos. Também não acho, que quem está na cidade está perdendo
(ASSENTADA A).

A quebra de regras e valores instala mudanças graduais na estrutura do


valor família, agora cada estrutura familiar é um objeto individual do campesinato,
“cada um aqui é diferente” diz a assentada C. Entretanto, preserva-se alguns valores
comuns, até mesmo com sujeitos “distantes”: quando a assentada A diz que se
sente em igualdade para com o produtor familiar; além disso a luta pela terra cria
uma identidade para com os outros assentados, formando teias de significações.
Contudo, organizacionalmente cada família é um corpo individual, funcionalmente
particular; esta foi uma tática de sobrevivência para situar-se na era da
individualização, aplicando assim o desafio de aprender a lidar com esta diferença
dos modos de fazer, como a não existência do mutirão como parte destes modos.
Woortmann (1990, p. 56) salienta que Goiás sempre foi individualizado pelo forte
fluxo do Capital no campo, desta maneira, quando a assentada A relata que o
INCRA já realizou um estudo para tentar entender porque as áreas coletivas não
funcionam e porque há esta desunião entre os assentados, parte desta resposta
presumo ser respondida pela conformação destes campesinos para se enquadrarem
neste processo de individualização: individualizar-se para (sobre)viver.
116

(DES)CONSIDERAÇÕES FINAIS

A palavra precarização vem do latim precarìus que significa alheio, estranho;


passageiro. Há, atualmente, diferentes significados e atribuições para a palavra
precário. Aqui, pretendo discorrer sobre a precarização do assentado, salientando
que me refiro ao assentamento pesquisado, entendendo que por precarização quero
dizer: que está em más condições e não cumpre a contento seus propósitos,
deficiente. Assim, pretendo discorrer sobre a não possibilidade de tais assentados
realizarem-se enquanto campesinos, o que, por este fato, configura, portanto, sua
precarização.
Em primeiro plano, é prefiro, novamente, elencar quais são as más
condições aos quais os assentados enfrentam, para assim problematizar como isto
impede a realização de seus propósitos.
Desta forma, as terras em qualidade não excepcionais para o plantio, e que
obrigatoriamente necessitam de uma correção, implicando assim em um
investimento, deste solo, prejudicam tanto a agricultura quanto a pecuária, os dois
principais setores de sustento destes campesinos. As terras menos produtivas
compradas pelo governo, aliado com a falta de verba dos assentados impossibilitam
praticar uma agricultura com melhores rendimentos, sendo a pecuária afetada
menos, uma vez que não é necessário tanto insumo para que o capim seja plantado
e manejado.
Dito isto, as falhas dos governos em fornecer programas que integrem os
assentados ao sistema comercial e assim auxilie na produção de renda para os
mesmos, configura-se como outro obstáculo salientado pelos assentados. A
ausência ou o não cumprimento da legislação para estes sujeitos soma para que
sua situação agrave.
A mudança nos modos de plantar, colher e comer os alimentos é outra
importante fatia deste estado de precarização, sendo uma consequência dos fatores
anteriores. Comprar seu alimento aumenta a necessidade de possuir dinheiro, sendo
que, em consequência, isto direciona o assentado para a cidade ou para outros
trabalhos fora de sua parcela, diminuindo o tempo deste para aplicar nos modos de
fazer próprios, em sua terra. Com menos tempo para seu próprio trabalho na terra, o
acesso à mesma não diminui deste sujeito as ações da vida urbana.
117

Deste modo, quero aqui salientar o aspecto mais importante, mais do que a
precarização do trabalho deste sujeito, falo de uma precarização moral. E. & K.
Woortman (1997a) falam sobre a integração entre terra-trabalho-família, e que ao
falar sobre o trabalho o campesino fala de si. Desta forma, mas do que falar sobre
seu trabalho, de uma perspectiva economics, pretendo falar de sua vida, e o
trabalho é um importante componente dela. Sua ordem moral, sua virtude,
necessitam do trabalho no campo para concretizar-se, desta forma, o trabalho na
cidade implica em um não cumprimento de seus propósitos, sendo, por isto, uma
prática deficiente, pois, não permite o alcance de seu ideal.
Desta forma, a resistência e a luta são tão marcantes tanto nas falas quanto
nas atitudes. É na resistência que o assentado pode continuar a trilhar os caminhos
de seus ideais, ao contrário ele entrega-se, cai. Em um ditado comum, Jesus foi
tentado pelo diabo no deserto e resistiu à todas, entendo tal ditado como algo que
melhor elucida a força da resistência destes assentados: resistir para não se
entregar.
Nesta pesquisa, procurei compreender o campesinato como produtor de
categorias de apreensão. Terra-Trabalho-Família são, portanto, aspectos fundantes
da ordem moral destes sujeitos, revelando que, para além do objeto próprio há
outros significados invisíveis aos olhos alheios.
Se a justificativa desta pesquisa se dá por um contexto de preconceito
construído e recorrente, esta pesquisa procura contextualizar o leitor, tentando
inseri-lo dentro da matriz cognitiva camponesa, para assim melhor compreender os
motivos e porquês de determinadas ações.
Longe de se considerar acabado, compreendemos aqui um ponto de partida.
Ao entender a cultura como produto de significados, problematizo também, a partir
disto, o Norte goiano como um produtor de significados sui generis, uma vez que
nossa história campesina é latente. Cavalos, carroças, criação de bois e vacas como
parte da iconografia comum, indicam que este campesinato ainda se encontra em
modificação, em ressignificação dentro dos centros urbanos.
Muitas problemáticas novas surgiram ao final desta pesquisa, nestes
caminhos, entendo que seja relevante uma futura pesquisa que trate sobre a
produção identitária e cultural dos filhos destes assentados, nesta relação dupla
entre a vivência da escola no meio urbano e a vivência do assentamento no meio
118

rural, em como o campesinato é (re)significado nestas crianças e adolescentes, para


assim entender as novas modificações destas categorias.
Portanto, não procurei aqui dar a resposta para o preconceito, dizendo o que
e como deveria ser feito; entretanto, acredito que o conhecimento do outro leva ao
respeito, pois entende-se os motivos, razões, valores e regras, contribuindo para a
problematização.
119

Anexo 1 -Assentamentos no Norte de Goiás.

Municípios Assentamento Famílias


Amaralina Ferrão I 39
Zebulândia 36
Imperatriz 07
Água Fria 144
Plinio de Arruda Sampaio 198
Bonópolis Joaquim D’eça 95
Geraldo Garcia 25
Salete Strozak 34
Anita Mantuano 17
Campinaçu Vale do Bijuí 116
Campinorte Iracema 93
Crixás Antonio Tavares 33
Carlos Lamarca 4
Arlindo José Maria 11
12 de Outubro 17
Alírio Correia (recente) 85
Vitor Manoel 64
Chico Mendes (recente) 180
08 de Março (em criação 0
Formoso Jalyson José Veronez 19
Mara Rosa Santa Maria 15
Josué e Calebe 30
Minaçu Água Quente 43
Roberto Martins Melo 85
Dom Roriz 99
Noite Negra 88
Mucambão 40
Céu Azul 20
São Salvador 163
Montividiu do Norte Pai Eterno 37
José Porfírio 30
Boa Vista do Norte 30
João Rufino da Sila 19
Santa Fe 58
São Pedro do Norte 39
Floriano Cardoso dos Santos 139
Joia da Mata 14
Ana Terra 26
Mata Azul 43
Santa Julia 164
Curral de Pedra 28
Dona Hilda 34
Mundo novo Santa Marta 459
São Manoel 57
Escarlate 40
Mutunópolis Joaquim Santana 10
120

Samurai 57
Feliciano de Freitas 10
Pablo Neruda 13
Mutun 20
Emílio Zapata 12
Niquelândia Conceição 58
José Martí 35
Julião Ribeiro 17
Engenho do Bom Sucesso 31
Santa Rita do Broeiro 18
Aranha 24
Rio Vermelho 59
Acaba Vida 59
Água Limpa 23
Salto para o Futuro 30
Água Forra (em criação) 00
Nova Crixás Cantoneiras 47
Santa Maria do Crixás-assu 45
São Judas 50
Lagoa Jenipapo 42
Florestan Fernandes 55
Tarumã 26
Novo Planalto Camilo Torres 56
Roseli Nunes 34
Sepeti de Araújo 26
Pontal do Araguaia 86
Antonio Conselheiro 26
Porangatu Salvador Allende 61
Santa Tereza 72
Deus me deu 27
Pioneira 70
Padre Josimo 46
Santa dica 96
Paulo Gomes da Silva Filho Doide 23
Josué de Castro 27
Fernando Silva 92
Irmã Dorothy 66
Santa Terezinha de Morada do Sol 20
Goiás Vitória da União 16
São Miguel do Araguaia São José 45
Umuarama 119
Campo alegre 124
Rio Araguaia 93
Gustavo Martins 55
Lageado 18
Vasco de Araújo 171
Trombas José Ribeiro da Silva 33
Uirapuru Bacuri 54
Mãe Maria 36
Uruaçu José Vítor da Silva 35
121

Sebastião Rosa da Paz 23


Benedito de Almeida Campos 20
São Lourenço 20

Fonte: INCRA
122

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