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A elite camarária e o governo da cidade leviatã nos dias da Praieira (Recife, 1849)

Quando o professor Wellingtom me congratulou com o convite para participar desta


mesa, apresentei um título provisório que harmonizasse a minha especialidade de estudo
e a Praieira. Pensei de pronto: O governo camarário e a cidade leviatã nos dias da
Praieira (Recife, 1849). Pois bem, após retomar velhos papeis, um ou outro escrito
autoral, livros sobre o tema e documentos em um pequeno acervo particular, e procurar
tecer um roteiro para falar sobre a temática, precisei adequar o tema, e, já pedindo licença
ao público, gostaria de falar panoramicamente sobre “A elite camarária e o governo da
cidade leviatã nos dias da Praieira (Recife, 1849)”. A mudança é necessária, pois se eu
me fiar no desdobramento do primeiro enunciado provavelmente me distanciarei
decepcionantemente e ainda mais do debate sobre o evento em apreço em seus 170
anos de rememoração. Apesar desse meu esforço inicial e de minha boa intenção, advirto
aos caros ouvintes, não me arrisco a dizer que vou tratar propriamente da Rebelião, mas
que ela tangenciará a minha fala.
Já me contrariando e entrando nos eventos do movimento em apreço, “no dia 7 de
novembro de 1848, em Olinda, às 10 horas da noite, o delegado [daquele termo] e
coronel de legião da Guarda Nacional, José Joaquim de Almeida Guedes, e o
subdelegado da freguesia da Sé e tenente-coronel do 1º batalhão, João Paulo Ferreira,
iniciaram o movimento praieiro fazendo marchar em direção a Igarassu o batalhão que o
segundo comandava. Iam juntar-se às forças que Manuel Pereira de Morais, senhor de
engenho Inhamã, e homem de grande prestígio na zona Norte da província, poderia
mobilizar”.1
Nas leituras de Amaro Quintas, uma precipitação, pois, ao que parece, o dia 19
daquele mês era o aguardado para se deflagrar a rebelião.2 Conjecturas à parte, o fato é
que naquele dia, conforme observara Jerônimo Martiniano Figueira de Mello, “a facção
praieira resolve[u] lançar mão das armas e resistir ao Governo Provincial”. 3 O ápice do
rebento para a população da capital pernambucana foi, sem dúvida, o dia 2 de fevereiro
do ano seguinte, quando as forças rebeldes intencionaram tomar o Recife de assalto.
Nas palavras do velho Félix, “a coluna do sul, comandada por Borges da Fonseca, quase
que não encontrou resistência na força que os esperava por aquele lado”. Igual sorte não

1 QUINTAS, Amaro. O sentido social da Revolução Praieira. 6ª ed. Recife: Editora Massangana, 1982, p.
139.
2 QUINTAS, 1982, p. 138
3 MELO, Jerônimo Martiniano Figueira de. Crônicas da Rebelião Praieira, 1848 e 1849. Brasília: Senado

Federal, 1978, p. 26.


1
teve a do norte, “comandada por Nunes Machado, entrando pela Soledade, encontrou
força tão respeitável que não lhe foi possível ganhar terreno [...]. Nessa ocasião o
Desembargador entendeu sair à rua, para animar a sua gente. É quando uma bala
certeira afasta para sempre o grande patriota da companhia dos seus amigos”.4
Ainda pedindo licença para citar outro gigante, Mário Márcio de A. Santos, “de
súbito tudo parecia transfigurar-se. As calçadas escaldavam, as águas barrentas dos rios
se tornavam rubras, o ar mais pesado, quase irrespirável. Nas vielas estreitas e sombrias,
nos adros das igrejas, nas ruas do comércio, sentia-se uma atmosfera carregada de
ameaças, de desespero e esperança, algo diverso e, no entanto, familiar. O observador
menos atento haveria de perceber como as pessoas se comportavam, os cochichos nas
esquinas, os aglomerados nas ruas do Colégio, do Crespo e no Largo do Erário. O
processo insurrecional começa a se propagar”.5
Este ambiente de suspeição, levado às vias de fatos, punha em suspensão as
almas dos recifenses, mas aquilo não era coisa única do momento. O mesmo Félix, citado
anteriormente, havia testemunhado que em 1847 “o povo do Recife sublevou-se [...]
contra os portugueses, do que resultaram algumas mortes e muita pancadaria”. 6 Portanto,
os enredos produtores da Praieira estavam inseridos em um contexto mais amplo do qual
não podemos nem queremos dar conta aqui. Porém, alguns dos seus aspectos
contextuais diziam respeito à elite camarária e ao governo da cidade leviatã.
Logo, o meu interesse por ela se dá dentro de um panorama maior de
caracterização da sociedade, do espaço público e das práticas políticas vivenciadas no
Recife do período. Temática ampla e não vencida nesta fala, nem o se eu o quisesse,
repito. Mas, em outras palavras, como tenho especial interesse pelo estudo da instituição
camarária, sua elite e atuação no município em sua tênue linha relacional com a realidade
local, os eventos político-sociais de então perpassam minha leitura. Nesse sentido, e em
minha interpretação, a cidade apresenta-se como sereia e leviatã. Estes dois
personagens míticos são tomados, assim, como alegorias representativas daquele
espaço, sua gente e os eventos neles sucedidos na primeira metade do século XIX.
A sereia é aquela criatura híbrida, meio-mulher e meio-peixe, mencionada na
literatura ou lenda dos homens do mar como figura atraente, bela, encantadora...
Portanto, ao falarmos em cidade sereia, consideramos os seus aparentes pontos positivos

4 FREYRE, Gilberto. O velho Félix e suas “Memórias de um Cavalcanti”. Recife: FUNDAJ, Editora
Massangana, 1989, p. 16.
5 SANTOS, Mário Márcio de A. Um homem contra o Império: Antônio Borges da Fonseca. João Pessoa:

Conselho Estadual de Cultura, A União Editora, 1994, p. 162.


6 FREYRE, 1989, p. 10.

2
que poderiam locupletar o escol da elite governante de bônus e ônus em sua miríade de
atividades, ou acercar a vida das pessoas de sonhos e possibilidades.
O leviatã, por seu turno, é o temível mostro marinho, lendário nos escritos bíblicos,
causador de destruição e apavorador de corações. Ao tomarmos a figura da cidade
leviatã desejamos entrever seus pontos negativos e seus perigos, aspectos estes
igualmente configurantes do ente municipal e circuitador da existência dos indivíduos que
ali viviam ou transitavam.
Queremos, portanto, dizer que naqueles tempos a cidade tinha lá o seu lado
positivo, vantajoso e atrativo, mas também estava carregada de características ditas
“negativas”, pois, más qualidades também lhes eram inerentes. Em suma, como dissera o
professor Wellington, tratava-se de uma cidade que escravizava, mas que também
libertava, nos múltiplos e amplos sentidos dos termos.
Os aspectos da cidade, observados sob a lente do olhar da elite dirigente ou de
reclamantes da época, que caracterizo didaticamente como leviatã, englobam o município
em números: demografia e geografia, as três agendas do viver urbano, a saber: a do
mercado, a do construtivo e a do sanitário e os perigos da cidade: as chamadas
(des)ordens político-sociais. A Praieira, como os demais eventos congêneres do período,
compôs o coro deste último espectro leviatã que atribuímos ao universo citadino recifense
de então. Isto é, se tomarmos o discurso da ordem e entendermos as ditas (des)ordens
político-sociais como constitutivas do ente municipal em negativo, aquele evento de 1849
se insere nesse bojo caracterizador da cidade leviatã.
Portanto, em si mesmo, o início, os participantes, as motivações e desdobramentos
do evento/movimento em tela não são precisamente objeto de nosso interesse. Mas vale
pensar que o conjunto dos fatos em torno dele era de implicações diretas da realidade
social vigente. Isso nos interessa. Em outras palavras, e já voltando para a historicidade
dos fatos, os reclames dos representantes da praia em torno da demissão de Antônio
Pinto Chichorro da Gama, presidente da província de Pernambuco e ligado ao partido
liberal, substituído temporariamente por Manoel de Souza Teixeira (também liberal), mas
depois por Vicente Pires da Mota, do partido Conservador, em abril de 1848, não tinha
primordialmente ou necessariamente implicações direta sobre a realidade social. Ou seja,
fazia parte do teatro político à época, tendo inicialmente um impacto retórico e de
pressão/reação política. O desdobramento de dita oposição em um engajamento
reacionário e/ou revolucionário é que poderia trazer convulsões sociais com revés direto
sobre o cotidiano citadino, portanto, adentrando nos domínios da governança municipal.

3
Além do ápice do confronto das tropas da ordem com as do rebento revoltoso no
afã de tomarem o governo provincial, percorrendo as estreitas ruas da cidade, realizando
um verdadeiro faroeste caboclo, varejando as casas dos moradores, pondo em povorosa
as famílias que não se refugiaram em suas chácaras suburbanas, a praieira aflorou mais
do que querelas e desarranjos políticos, evidenciou a emergência de diversificados
grupos sociais reclamando ou buscando construir direitos até então a eles negados ou
inexistentes. A peculiaridade da força de um turbilhão popular no movimento praieiro,
conforme observara Joaquim Nabuco, trazia um componente a mais para a preocupação
das elites dominantes. Mas igualmente não se tratava de uma conjuntura específica do
movimento ou do momento.
De 1828 a 1855 o município do Recife pulou de sete freguesias para dez, sendo
quatro delas urbanas e as outras seis rurais, nesse segundo momento. No mesmo
intervalo de tempo, o salto populacional foi 67,7 % (de 38.159 para 63.993), 25.834 novas
almas, 65% das quais viviam na cidade propriamente dita, ou seja, nos três bairros
centrais: Recife, Santo Antônio e Boa Vista. O perfil dessa gente era majoritariamente de
livres ou forros: 74% contra os 26% de escravizados, e a escravidão caracteristicamente
urbana, pois pouco mais de 62% da categoria escrava convivia nos bairros centrais.7
As demandas e vícios da agenda urbana acompanharam esse ritmo demográfico.
Só para citarmos um exemplo, um censo da época contabilizou para o Recife seiscentas
e setenta e duas lojas em 1828, 65% eram de secos e molhados e 35% eram
classificadas como tavernas. Estas últimas contabilizavam a percentagem de 78,3% na
cidade contra 21,7% nos arrabaldes. Diferentemente dos armazéns de secos e molhados,
as tavernas podiam ser encontradas em várias partes do município, ofertando bebidas e
gênero alimentício a granel, o que, no conjunto, tornava-as bem populares. Nesse
sentido, elas tinham uma função social para a subsistência e divertimento da gente que
delas se serviam8.
Bem, isso deveria ser contado apenas como aspectos da cidade sereia. Contudo,
em muitos contextos do Recife do século XIX, aquelas casas comerciais não eram vistas
com bons olhos. Inicialmente, elas eram associadas aos portugueses, donos de uma
significativa parcela do ramo do comércio a retalho, tidos como gatunos e usurpadores de
empregos dos pernambucanos, portanto, inimigos da pátria. Tanto o era que um

7Dados consolidados a partir de FIGUEIRA DE MELLO, 1852; RELATÓRIO, 1856.


8Seguindo uma tradição bem arraigada em Portugal. LOUSADA, Maria Alexandre. Sobre a alimentação
popular urbana no início do século XIX: tabernas e casas de pasto lisboetas. In: SERRÃO, José Vicente;
PINHEIRO, Magda A.; FERREIRA, Mª Fátima S. M. (Orgs.). Desenvolvimento econômico e mudança
social. Portugal nos últimos dois séculos. Homenagem a Miriam Halpern Pereira, Lisboa, ICS. 2009, pp.
227-248.
4
português ou um amigo partidário dele comumente poderia ser xingado com o título de
taverneiro, epíteto depreciativo e reconhecidamente notado pelos contemporâneos 9. Em
segundo e principal lugar, aquele era um comércio “democrático”, pois servia para a
utilidade de todas as classes de pessoas, brancas ou pretas, livres ou escravizadas, ricas
ou pobres. Os grupos menos favorecidos socialmente eram os que ali se faziam mais
presentes, levando alguns coetâneos tidos mais sisudos a estigmatizarem a taberna como
um lugar supostamente promíscuo e ávido por toda a sorte de vícios e más artes10.
Era comum ali se reunir pessoas para tomar vinho ou aguardente, comer petiscos,
fazer batucada e se confraternizar em meio a muitas cantigas e vozerias, portanto, um
lugar de divertimentos. Nesse enredo, se embriagavam, faziam algazarras e se metiam
em malquerenças e confusão, aperreando alguns cidadãos e ocupando as autoridades,
logo, encenando aquele como um lugar de perigo e confusão. Ainda que nem sempre
aprontassem façanhas ilícitas ou desordens, o simples ajuntamento daquela estirpe social
já causava ojeriza a determinados grupos na cidade, gerando reclamações em presença
dos representantes da lei ou denúncia e avisos nos periódicos da época.
Sobre o tema, o juiz de paz da freguesia de Santo Antônio, Félix José Tavares de
Lira, advertia os taverneiros sobre a estada e a bebedeira de cativos nas tavernas após o
toque do sino, informando ser aquilo um desrespeito às posturas policiais da Câmara.
Especialmente porque o ajuntamento e a ingestão de bebidas vinham acompanhados de
(abre aspas) “danças e ações desonestas, palavras indecorosas e obscenas, algazarra, e
por [eles] assentarem e deitarem pelas ruas com proibição do transito público o que
tendem (sic) a provocar o sossego publico, decência e bons costumes” (fecha aspas)11.
Noutro caso, um anônimo dizia: “cada taberna nesta cidade é um quilombo de negros, e
cada taberneiro, com poucas exceções, um malunguinho” que a eles se associam,
franqueando-lhes fiadas todas e quantas bebidas querem, consentindo jogos e guardando
os furtos que fazem. Outra autoridade policial testemunhava um dos possíveis

9 Cf.: FELDMAN, Ariel. Guerra aos extremos: polarização política em Pernambuco e a defesa do princípio
de soberania nacional (1829-1831). Almanack, Guarulhos , n. 7, p. 39-58, June 2014 . Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2236-46332014000100039&lng=en&nrm=iso>.
Acesso em: 06/04/2017; LUSTOSA, Isabel. Notícias de Paris: a abdicação de Carlos X e o Brasil. In:
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 176 (466): 61-86, jan./mar.
2015, p. 8. Disponível em: https://ihgb.org.br/revista-eletronica/artigos-466/item/108119-noticias-de-paris-a-
abdicacao-de-carlos-x-e-o-brasil.html. Acessado em: 06/04/2017; CÂMARA, Bruno Augusto Dornelas. O
“retalho” do comércio: a política partidária, a comunidade portuguesa e a nacionalização do comércio a
retalho, Pernambuco 1830/1870. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2013.
10 Os estigmas em torno de algumas dessas casas, como os botequins, eram objetos de censura e controle

social, como bem analisou Sidney Chalhoub para o Rio de Janeiro na belle époque. CHALHOUB, Sidney.
Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. 2ª Ed.
Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2001.
11 BN. HEMEROTECA DIGITAL. DP, n.º 97, 06/05/1829, p. 386, c. 2.

5
desdobramentos dessas folganças, dizendo ter prendido o pardo José Manuel e o branco
Joaquim José dos Santos Vital por estarem tarde da noite em grande alarido em uma
taverna, sendo aquilo uma prática costumeira dos dois, cujo remédio naquele momento só
podia ser a detenção.12
A primeira narrativa partiu de uma autoridade para a população de sua freguesia e
se referia às pessoas em situação de cativeiro; a segunda, uma denúncia de um cidadão
para o juiz de paz, mencionando pessoas de cor, sem, contudo, sinalizar explicitamente
as suas condições de escravizadas ou livres. Ambas apresentavam a taverna como ponto
de atração da mais baixa ralé da população reunida ali sob o consentimento do taberneiro
para práticas contrárias à boa ordem e em prejuízo do sossego público. Já no segundo
caso, um anúncio de prisão de indivíduos não negros nem escravizados, mas livres
acusados de reincidência na baderna e desassossego público, segundo argumento da
ordem.
Apesar de não entrar em detalhe, esses casos nos fazem conjecturar que para
aqueles denunciados a taverna servia como lugar de folganças, onde se podia extravasar
a alegria, gastar as energias em meio ao tropel e batuques nas altas horas da noite até a
bebedeira entorpecer os sentidos e fazer afogar as mágoas. Deixar-se inebriar pelas
bebidas espirituosas e ensurdecer pelos gritos e soar de tambores até perder o tino,
quando não provocava mal à própria saúde ou à integridade física e mental alheia, nem
algum tipo de crime de monta, quase sempre incomodava os brios dos mais sensíveis da
comunidade, gerando reclames contra as autoridades e queixas até de cunho político,
coisa nada positiva para qualquer dos envolvidos.
Ora, esse quadro só tendia a evoluir, pois a população crescia acompanhada do
aumento das casas comerciais, principalmente as especializadas em animar as almas ao
calor do álcool e batuque. No ano de 1845, por exemplo, o total das casas de negócios do
Recife já chegava a 1.778, das quais 437 eram tavernas,13 indicando que tal negócio
prosperou bastante, chegando a crescer 86%14. Ou seja, baseado nesses dados,
podemos inferir que, no mínimo, o consumo de bebida e a folia das batucadas também

12 BN. HEMEROTECA DIGITAL. DP, n. 50, 04/05/1831, p. 201, c. 1; n. 101, 11/05/1841, p. 2, c. 1.


13 Conferir nos anexos: TABELA: Casas públicas existentes no termo da cidade do Recife que estão sujeitas
ao imposto denominado do banco - 1845. BN. HEMEROTECA DIGITAL. DP, n. 290, 29/12/1845, p. 1, c. 2.
14 A contagem arrola todo o tipo de lojas e armazéns ditos comerciais da cidade e seu termo, incluindo, por

exemplo, cocheiras e cavalariças, botica e casas de drogas, livrarias e caldeireiros, só para ficarmos nestes.
Ou seja, tipos que não parecem se adequar a secos ou molhados. Contudo, se contarmos da listagem o
número de lojas que parecem ser desse tipo, o total não chegava aos 740. Ainda assim, um número
considerável em relação aos 437 do ano de 1828. Outrossim, não é possível fazer a comparação com maior
certeza, pois não sabemos o que o recenseador de 1828 considerou como casas de secos e como
molhados.
6
aumentaram no município, portanto, maiores possibilidades de perturbações públicas e
desordens sociais, pelo menos nas impressões dos coetâneos.
Em grande medida, parte daquelas casas comerciais registradas na tabela estava
relacionada à alimentação básica e divertimento das pessoas, portanto, é possível
concluir que a oferta de tais serviços aumentou. Isso pode não ter surtido um impacto
muito relevante do ponto de vista da ampliação da oferta e do barateamento de produtos,
haja vista dito crescimento acompanhar o ritmo do avanço demográfico e espacial no
município, mas, em termos de aumento das problemáticas inerentes a esse processo,
certamente passou a exigir não só mais esforço das autoridades, como também a
necessidade de maior capacidade de enfrentamento para com as demandas novas e em
maior quantidade advindas desse proliferar de lojas, especialmente as tavernas e
botequins.
Enfim, as lojas de secos, molhados e tavernas pensavam na qualidade de vida dos
habitantes do município, ora como postos de abastecimento de alimento e bebidas
espirituosas para subsistência de uns, ora como ponto de ajuntamento para distração e
alegrias de alguns, mas que por vezes atingindo o sossego de muitos outros. E, em tudo
isso, a municipalidade não estava alheia. Apesar de muitos dos problemas dados
naqueles lugares serem casos para os aparatos policiais resolverem, o tema ocupou
vários momentos legislativos da casa camarária e gerou inúmeras posturas policiais com
fito de regularizar, fiscalizar e coibir ditos ajuntamentos e seus vícios lá vivenciados15.
Inevitavelmente, os vereadores tomavam nota daqueles fatos, seja por se darem em seus
quintais de moradias ou de trabalho, seja por ressoarem de muitos jornais e das bocas
dos habitantes da cidade, e, entre demandas e ações, iam demarcando os limites de seu
governo.
As tavernas, ou lojas afins, como botequins e vendas (por vezes elas se
confundiam, tornando-se a mesma coisa), também estavam relacionadas aos
divertimentos na cidade, conforme sublinhamos acima. Estes, apesar de sua qualidade a
princípio não ser ou parecer ser maléfica, também podiam trazer transtornos à ordem
social e política. Em tempos de festas, as coisas se avolumavam com mais fervor, pois as
ruas viravam verdadeiras tavernas, por assim dizer, pois eram tomadas com muitos
batuques, vozerias e farsas públicas, para utilizar a expressão de Clarissa Nunes Maia 16.
Mas não somente isso. Como salientou Lídia Rafaela, no Brasil imperial, inúmeras eram

15Sobre os temas das posturas camarárias, cf.: SOUZA, 2012a, pp. 167-171.
16MAIA, Clarissa Nunes. Sambas, batuques, vozerias e farsas públicas: o controle social sobre os
escravos em Pernambuco no século XIX (1850-1888). São Paulo: Annablume, 2008.
7
as motivações para as festas, sendo estas seguidas por vários tipos de festejos, os quais
nem sempre vinham apenas acompanhados de comemorações e alegrias, mas também
de algazarras, confusões, brigas, violência, acidentes, insultos, roubos, assaltos e etc.
Isso incomodava o público mais refinado e requeria maior atenção das autoridades17,
inclusive das municipais, também responsáveis por promover e manter a tranquilidade e
segurança dos habitantes da cidade.
Nessa incursão narrativo-analítica, é possível dizer que o quadro demográfico em
expansão no Recife não só compunha certo lado leviatã do município, como também o
potencializava. Pois gerava mais demandas, o que acabava por agravar os problemas
referentes à agenda urbana. É importante considerar a relação entre o crescimento
populacional e a multiplicação de bocas para alimentar, portanto, mais mercado para
regular e fiscalizar, assim como era preciso regular os ajuntamentos e planejar melhor os
divertimentos públicos e a promoção de festas, por exemplo. Ademais, se havia mais
pessoas, era necessário um maior o numero de casas, logo, maiores problemáticas
construtivas apareciam seguidas do agravamento das questões sanitárias.
Estes aspectos contextuais fomentaram da Praieira. Pois, para além dos embates
políticos, conflitos de classes lhe foram inerentes, conforme arremataremos logo mais.
Onde a municipalidade entra nesta história? Segundo a Lei de 1º de outubro de 1828, que
deu forma às Câmaras Municipais, marcou suas atribuições e o processo para a sua
eleição, competia às municipalidades o “governo econômico local”, um conjunto de
atribuições administrativas que contemplava: “urbanismo em geral e obras públicas;
saúde; assistência social; polícia ‘social’; proteção ao trabalho e à propriedade”,
contribuindo diretamente para a promoção e manutenção da tranquilidade, segurança,
saúde e comodidade dos habitantes, com o asseio, segurança, elegância e regularidade
externa dos edifícios e ruas das povoações, só para citar alguns.18
Logo, se não identificamos uma relação direta entre essa ou aquela peculiaridade
governativa dos vereadores do Recife com o movimento praieiro, nem prol nem contra,
observamos que, nos limites de suas atribuições, competia à elite camarária buscar
imprimir uma ordem civilizada por meio de uma pedagogia da instrução e da
normatização do espaço público e do cotidiano dos habitantes do município que, entre

17 SANTOS, Lídia Rafaela Nascimento dos. Das festas aos botequins: organização e controle dos
divertimentos no Recife (1822-1850). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de
Pernambuco, CFCH. Programa de Pós Graduação em História, Recife, 2011. Especialmente o tópico 2.3:
tempo, trabalho e divertimento, e o 3.2: Espaços perigosos: casa de jogos, vendas, tabernas e botequins.
18 TORRES, João Camillo de Oliveira. A democracia coroada: teoria política do Império do Brasil. Rio de

Janeiro: Livraria José Olímpio Editora, 1957, pp. 422, 432; Lei de 1º de outubro de 1828. Dá nova forma às
Câmaras Municipais, marca suas atribuições, e o processo para a sua eleição, e dos Juízes de Paz. In:
COLEÇÃO das Leis do Império do Brasil de 1828. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1878.
8
outras coisas, viabilizasse o apaziguamento social, a tranquilidade e harmonização dos
habitantes do município. Como exemplo disso, podemos citar a os debates e organização
de um novo código de postura municipais iniciado em 19 de fevereiro de 1847, a pedido
do vereador João Rodolfo Barata de Almeida.19 Este, foi aprovado interinamente pelo
presidente provincial, em 1848, e encaminhado para apreciação dos deputados no
mesmo ano.20 Seu debate e aprovação ocorreram pari passu ao rebento e derrocada da
Praieira,21 sem que houvesse grandes percalços ou controvérsias nesse trâmite, o que
sugere certa unidade e procedimentos em comum inerentes aos interesses das elites em
prol da ordem em Pernambuco. Entendemos, assim, que as medidas legais camarárias
poderiam contribuir para que situações limites como a Praieira não chegassem a vias de
fatos.
Nesse sentido, o estado de coisas que levou a conflagração da praieira circuitava a
governança local e a elite camarária, especialmente por ser esta pertencente a outras
tantas elites provinciais (ou seja, elite de elites econômica, policial, societária, familiar,
entre outros) e tendo alguns dos seus membros participados diretamente do rebento
citado ou de seu aplacamento, conforme veremos. Mas além da possibilidade do
engajamento de membros da elite camarária no enfrentamento ou como participante de
levantes armados, haja vista seus vínculos relacionais, familiares, clientelares com a
ordem vigente ou com setores dominantes junto aos grupos políticos sublevados (dentro
dessa perspectiva de que a elite camarária era uma elite de elites), cumpria também à
municipalidade oitocentista zelar pela ordem estabelecida, assim como também das
necessidades emergentes da população local, devendo contribuir para algum tipo de
melhoria da cidade e sua gente. Logo, alguns temas caros à Praieira eram igualmente
pesados à municipalidade.

19 Em resposta ao presidente da província sobre uma representação dirigida por José Januário Alves e
outros habitantes do lugar do Capunga à Assembleia Legislativa Provincial, a municipalidade disse estar
“discutindo um corpo de posturas para substituir a todas as disposições municipais que atualmente
existem”, só após esse proceder é que poderia dar o referido parecer. APEJE. CM, n. 25. Ofício de
02/03/1847.
20 APEJE. CM, Recife, n. 28 – 1848. Ofícios de 21/06, 07/08/, 09/09 e 20/09/1848; BN. Hemeroteca Digital.

DP, n. 165, 28/07/1848, p. 1, cc. 1-2; n. 237, 25/10/1848, p. 2, c. 3.


21 A proposta para a primeira discussão do código foi dada na sessão da Assembleia Provincial no dia 11 de

abril de 1849, sendo aprovado sem debate no dia 23 daquele mês. Voltando à mesa, passou por uma
segunda e terceira discussão, foi debatido e emendado, concluindo-se sua aprovação e redação final em
09/06 do mesmo ano. No mês em que o código aprovado e veio a lume na imprensa, iniciava-se o
julgamento dos réus presos por participarem do ataque praieiro à capital, enquanto que ao sul da província
reiniciava-se a batalha contra as forças de Pedro Ivo, um dos líderes do movimento. Em novembro daquele
ano ocorreria a dispersão das forças rebelde e prisão da liderança remanescente. Rusgas, nas chamadas
“guerras das matas”, ainda ocorriam em princípios de 1850 sob o comando do mesmo Pedro Ivo, preso
somente em 1851, vindo a falecer em sua fuga clandestina para a Europa. Cf.: BN. Hemeroteca Digital. DP,
n. 170, 03/08/1849, pp. 1-2, cc. 1-4, 1-2; n. 171, 04/08/1849, pp. 1-2, cc. 1-4, 1; MARSON, 2009, pp. 121-
124; ANDRADE, 2000, p. 149.
9
Destarte, além de instituição estabelecedora de uma ordem vigente e de
dominação de uma classe sobre outra, a municipalidade era um espaço de
representatividade, recepcionamentos de reclames populares e atendimento de
demandas sociais, muitas vezes de maneira enviesada e a contragosto de seus membros
em suas intenções e ações governativas. Pois, no contexto em tela, os “cidadãos
passaram a integrar o jogo político e a Câmara [municipal] viu-se forçada a renovar seu
diálogo com as forças locais, pois não podia mais agir como uma corporação que
distribuía entre os seus membros os papeis de poder sobre a população”. 22 Como diria
Thompson, isso “significa o término de qualquer noção de exclusividade, de política como
reserva de uma elite hereditária ou de um grupo proprietário”.23
Mas quando as contradições sociais alavancavam manifestações daquele naipe,
apontando para transformações em processo, e a ordem desejada fugia da alçada
daquela instituição, o caráter de elite de elites de seus membros poderia se desdobrar em
ações conjuntas com as demais forças dominantes para reprimir a “soberba popular”,
apaziguar os ânimos, restabelecer o status quo ante pela via da força e da ação sumária.
Nesse sentido, identificamos alguns camaristas que arvoraram o partido da ordem
em combate direto à Praieira e obtiveram como dividendos positivos honrarias reais após
debelado o evento. Foi o caso de Rodolfo João Barata de Almeida que foi Cavaleiro,
Cavaleiro da Ordem de Cristo.24 O seu caso é emblemático, pois, quando as
manifestações liberais voltaram a alvorecer no ano de 1829 em Pernambuco, ele se
posicionou do lado do rebento da “República dos Afogados”. Mas, já em 1848, quando
despontou a insurgência liberal mais radical, ele aderiu às medidas das forças da
legalidade das quais era membro e enfrentou os revoltosos como tenente-coronel da
Guarda Nacional. Ou seja, a sua interpretação da conjuntura governativa, da estrutura de
poder e dos meandros para nele estar e dele galgar vantagens reorientou seu
posicionamento político-ideológico, atando-o à ordem governativa vigente.25
Igual escolha recaiu sobre outros quatro liberais: os irmãos Antônio e Francisco
Carneiro Machado Rios, sendo o primeiro congratulado como oficial da Ordem da Rosa,
e, este último, após ter sido ferido no combate nas ruas do Recife em 02 de fevereiro, foi
feito Cavaleiro do Cruzeiro e recebeu pensão de 1:200$000 réis anuais; Manoel de Souza

22 CAMPOS; VELLASCO, 2011, pp. 387.


23 THOMPSON, 1987a, p. 20.
24 BN. Hemeroteca Digital. Jornal do Recife, n. 167, 25/07/1882, p. 2, c. 5.
25 No contexto do levante da Praieira, um jornal do Rio de Janeiro chamava ele de honrado Subdelegado de

Santo Antônio. Nesse mesmo período ele era Tenente-coronel e ajudava a pacificar a cidade no início das
desordens de 1848. BN. Hemeroteca Digital. DP, n. 142, 28/06/1848, Suplemento, p. 5, cc. 1-2; Diário do
Rio de Janeiro, n. 7841, 12/07/1848, p. 1, cc. 2-3.
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Teixeira, presidente da província que substituiu Antônio Pinto Chichorro da Gama em
1848, recebeu o título de barão de Beberibe; e, Joaquim Vilella de Castro Tavares, feito
oficial da Rosa. Outros três nomes também engrossaram esse coro: Francisco Mamede
de Almeida, feito Cavaleiro da Rosa, e Joaquim Lúcio Monteiro da Franca, Comendador
da Rosa, ambos identificados como conservadores; e, José Pires Ferreira, oficial da
Rosa.26 Todos eles arvoraram a bandeira contra os revoltosos da Praia, inclusive tendo
antes defendido tendências semelhantes. Mas, compreendendo os quadros da política em
consolidação, optaram por se alinhar ao governo imperial. Escolhendo, portanto, o lado
vitorioso e recebendo os louros inerentes à adesão.
Verificamos também que nem todos os com passagens pela municipalidade
tiveram conta a ver com a repressão no calor do levante. O conservador Bernardo José
Martins Pereira, por exemplo, foi chamado posteriormente para participar no julgamento
dos envolvidos na Praieira, em 1849.27 Também houve casos de ex-camaristas que
aderiram às forças rebeldes, logrando prisão: Francisco Ludgero da Paz, Antônio Ricardo
do Rego, Jacinto Moreira Severiano da Cunha e Felipe Neri Ferreira.28
Enfim, para arrematar minha fala, temos em resumo que entre 1844 e 1849,
ocorreram cerca de sete violentas manifestações de rua, principalmente contra a
comunidade portuguesa envolvida no comércio a retalho do Recife. De fecha-fecha e
mata-mata marinheiros até a chamada Revolução Praieira, a cidade se viu novamente
assombrada por sangrentos conflitos. A historiografia mais tradicional sobre o tema29 dá
conta de certos “sentidos”, motivações e resultados dos distúrbios ocorridos, citando,
nesse contexto, os grupos políticos envolvidos em disputas partidárias e posicionamentos
ideológicos, assim como dos causos de vozerias anárquicas e ameaçadoras, os saques a
lojas, as perseguições e pancadarias, escaramuças armadas e mortes, coisas que
impunham de imediato o medo e a preocupação com a subversão da ordem. Já as
interpretações mais recentes destacam naqueles eventos a adesão pronunciada de

26 MELLO, 1978, pp. 370, 375, 391-394.


27 BN. Hemeroteca Digital. BN. HEMEROTECA DIGITAL. DP, n. 87, 23/04/1829, p. 346, cc. 1-2; n. 69,
29/03/1833, p. 1, c. 1; O Cruzeiro, n. 131, 20/10/1829, p. 524, cc. 1-2; Diário Novo, n. 98, 14/05/1844, p. 3-4,
cc. 2-3, 1; Correio da Tarde, RJ, n. 485, 06/09/1849, pp. 2-3, cc. 2-4, 1; O Brasil, n. 1512, 05/10/1849, p. 4,
c. 3.
28 MELLO, Jerônimo Martiniano Figueira de. Autos do inquérito da Revolução Praieira, 1848-1849.

Brasília: Senado Federal, 1979, pp. 142-143, 146.


29 ANDRADE, Manuel Correia de. Brasil: Realidade e Utopia. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2000.

CARNEIRO, Edison, A Insurreição Praieira (1848-9), Rio de Janeiro, Conquista, 1960; MELLO, Jerônimo
Martiniano Figueira de. Crônica da Rebelião Praieira, 1848-1849. 2. Ed. Brasília: Senado Federal, 1978;
MELLO, Jerônimo Martiniano Figueira de. Autos do inquérito da Revolução Praieira, 1848-1849. Brasília:
Senado Federal, 1979; MELO, General Rego. Rebelião Praieira. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1899;
NABUCO, Joaquim, Um estadista do Império; Nabuco de Araújo, sua vida, sua opiniões, sua época,
São Paulo, Ed. Nacional, 2a ed., vol.1, 1936, p. 68-75 (1a ed., 1896); QUINTAS, Amaro. O sentido social
da Revolução Praieira. Recife: Massangana/Fundaj, 1982.
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“novos atores oriundos de grupos sociais que até então eram considerados politicamente
‘subalternos’, normalmente alijados de qualquer articulação formal com o poder”, assim
como enfatizam que elas foram além da mera disputa oligárquica, catalisando “inúmeras
insatisfações da população pobre livre, premida entre a escravidão e o desemprego”.30
Dadas em sua maioria em contextos eleitorais, tais manifestações tinham um claro
sentido de disputa política entre facções das elites locais pelas posições de mando
vigentes. Mas também envolveram trabalhadores urbanos desejosos da nacionalização
do comércio a retalho, bandeira esta que unificava de conservadores a liberais radicais. A
insurreição Praieira teria sido o ápice dessas manifestações de muitas faces e grupos de
distintos calibres sociais. Iniciada no campo, com a Guerra dos Moraes, em 1848, ela
seria a luta dos senhores de engenho pelo poder político local, provincial e imperial,
figurados nas funções representativas das Câmaras Municipais, na Assembleia Provincial,
na Câmara dos Deputados e na dos Senadores, e tendo lastro de apoio clientelar
principalmente através dos comandos da polícia civil e Guarda Nacional, na justiça de paz
e outros cargos burocrático-administrativos; Já na cidade, em 1849, além de proprietários,
burocratas e profissionais liberais com igual interesse, ela também seria encabeçada por
liderança e populares, grupos pertencentes às classes subalternas, mas que também
participaram com reivindicações mais práticas e de resultados mais imediatos.31
Envolvendo questões políticas bem amplas, após o fim do “quinquênio liberal” no
Império e a deposição de seu governo na província, a Praieira fora um embate em que
facções da elite local fizeram uso da luta armada “para derrubar um governo provincial e
tentar impor a vontade do grupo sobre os interesses políticos mais amplos do governo
imperial”.32 Em todo esse contexto, os liberais da Praia, reconhecendo o potencial da
plebe exaltada, tentaram manejar aquela força, considerando algumas das suas
reivindicações mais plausíveis. Abria-se uma via pela qual mesmo a massa dos excluídos
passava a ter certo peso na escolha das lideranças e nos processos de condução ou
ação governativa, ainda que de maneira indireta, através da participação em levantes, das
pressões e violências em dias de eleições e nas artes e demandas cotidianas.33

30 CÂMARA, Bruno Augusto Dornelas. O Recife e os motins antilusitanos nos anos que antecederam a
Insurreição Praieira: o aprendizado do protesto popular e outras variações. In: SILVA, Wellington Barbosa
da. (Org.). Uma cidade, várias histórias: o Recife no século XIX. Recife: Ed. Bagaço, 2012, p. 104;
MARSON, Izabel Andrade. Revolução Praieira: Resistência liberal à hegemonia conservadora em
Pernambuco e no Império (1842-1849). São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2009; CARVALHO,
Marcus Joaquim Maciel de; CÂMARA, Bruno Augusto Dornelas. A Insurreição Praieira. Almanak
Braziliense, n. 8, novembro, 2008, p. 7; MARSON, Izabel Andrade. O Império do Progresso: a Revolução
Praieira (1842-1855). São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
31 CARVALHO, 2009, pp. 171-174.
32 CARVALHO, 2009, p. 175.
33 CÂMARA, 2012, p. 124; SOUZA, 2012a.

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A Praieira teve seu ocaso no Recife no mesmo ano de 1849. Ela encerraria o ciclo
das manifestações liberais na província, sendo a sua repressão um marco da
consolidação do Império do Brasil. Em todos aqueles eventos sediciosos, para além das
mudanças de governos e dos supostos “vazios” de poder que os contextualizavam, os
problemas políticos e socioeconômicos fomentavam uma dura realidade que premia a
população pobre, assim como os grupos melhor estabelecidos, pois se viam imergidos em
instabilidade de toda a sorte. O reflexo disso em nível local era ainda mais patente, pois
atingia o cotidiano e assanhava os ânimos e demandas das pessoas, mexia com a ordem
das coisas, desestabilizava as relações clientelares, acirrava os conflitos e a procura por
proteção e um lugar ao sol.
A historiografia a respeito demonstrou que o homem ordinário, mais do que
expectador bestializado e passivo, participou ativamente dos processos em curso,
inclusive nos momentos decisivos de escolha de suas lideranças políticas. O que também
indica os limites das relações clientelares face à “formação de lideranças populares
capazes de intermediar as relações entre a haute politique partidária e os interesses
imediatos dos trabalhadores livres pobres urbanos”. Ou seja, os grupos subalternos
compreenderam os meandros desses processos, dele participando em prol também dos
seus próprios interesses, agindo muitas vezes pelo avesso do desejo dos grupos
dominantes a fim de lograrem algumas das suas demandas cotidianas.34
As insurreições, os protestos, as lutas armadas, desordens, enfim, os movimentos
político-sociais do Recife oitocentista revelam não só o lado leviatã da cidade e os atritos
e interesses facciosos das elites dominantes ambicionando o poder e a manutenção do
status quo. Elas também sugerem a ponta do iceberg das forças sociais em ebulição, da
busca pela subsistência das classes menos favorecidas num mundo escravista e
excludente, das rupturas e transformações sociais em processo.
Nesse contexto, os homens da câmara municipal, enquanto elite camarária e em
seu exercício governativo, atrelaram-se ao projeto das elites imperiais no zelo pela
normatização e civilização para o estabelecimento de uma ordem desejada e a
manutenção do status quo... Enquanto elites de elites, por outro lado, houve cisão entre
diversos membros do grupo com passagem pela casa local: uns aderiram ao
estabelechiment; outros, pela rebeldia, buscaram acessar seus postos de mando. Entre

34CARVALHO, Marcus Joaquim Maciel de. Os nomes da Revolução: lideranças populares na Insurreição
Praieira, Recife, 1848-1849. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 23, n. 45, 2003, pp. 209-238;
CAVALCANTI JUNIOR, Manoel Nunes. “Praieiros”, “Guabirus” e “Populaça”: As eleições gerais de 1844
no Recife. Dissertação (Mestrado em História), CFCH, UFPE, 2001.
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eles, ressoava a voz rouca das ruas, as ações do homem ordinário em busca de melhores
condições de vida a circuitar as relações de dominação então vigentes.
Para concluir, faço minha as palavras de Potiguar Matos: “a Praia, mais do que um
acontecimento do passado, é uma convocação do presente. De certo modo, todos nós
somos praieiros ao levantarmos a bandeira do nacionalismo, sem abandonar as
trincheiras da justiça social e da luta contra privilégios econômicos. A flâmula tombada
das mãos de Nunes Machado, na tragédia da Soledade, espera nossa audácia para voltar
a se desdobrar no espaço anunciando o futuro que tarda. A Praia continua”.35

35MATOS, Potiguar. O Recife e as revoluções libertárias. In: ARQUIVO PÚBLICO ESTADUAL DE


PERNAMBUCO. Um tempo do Recife. Recife: Ed. Universitária, 1978, p. 387.
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