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Mestrado
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais
Banca Examinadora:
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AGRADECIMENTOS E DEDICATÓRIAS
A Vera Chaia, pela prestativa disposição, pela leitura atenta e pelos argutos
comentários, dosando na medida justa o respeito e a crítica.
A Oto, pelo apoio, pela colaboração, pela silenciosa, mas nem por isso menos
fundamental, atuação de bastidores, pelo empréstimo do computador e, mais que tudo, pela
compreensão que demonstrou nesse período conturbado.
À minha mãe, Hilda, cujo esforço me possibilitou chegar aqui, a meus irmãos e meu
avô. Um agradecimento especial à minha vozinha, D. Véia, cujo apoio foi total e fundamental
para a conclusão desse trabalho.
Agradeço ao prof. Leonel Itaussu Mello pela cessão de seu livro, a Betinho e Flora,
pelo empréstimo do computador, e à CNEC-Central, nas pessoas de Gilci e Lisete, pelo
empréstimo de material de consulta.
À memória de Maurício Tragtenberg, cuja orientação foi marcada pela coragem, pelo
respeito, pela integridade e por um incrível bom humor, qualidades atualmente tão raras e que
nos ajudam a acreditar, um pouco mais, no ser humano.
A Rago, inspirador efetivo do que há de justo e certo nesse trabalho, venho aqui prestar
contas de tantos acertos, de erros sem fim.
Sem a ajuda e o apoio de todas essas pessoas, este trabalho não poderia ser
concretizado e o resultado atual estaria bastante alterado.
SIGLAS
CB - Correio Braziliense
CN - Conjuntura Política Nacional: o Poder Executivo (obra de Golbery, resultado da
conferência na ESG de 1980)
DSN - Doutrina de Segurança Nacional
ESG - Escola Superior de Guerra
FSP - Folha de São Paulo
GB - Geopolítica do Brasil (obra de Golbery)
JT - Jornal da Tarde
OESP - O Estado de São Paulo
ON - Objetivo(s) Nacional(is)
ONA - Objetivo(s) Nacional(is) Atual(is)
ONP - Objetivo(s) Nacional(is) Permanente(s)
PE - Planejamento Estratégico (obra de Golbery)
SN - Segurança Nacional
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RESUMO
INTRODUÇÃO _____________________________________________________________ 10
Metodologia de Trabalho _______________________________________________________________________ 20
Estrutura da Dissertação _______________________________________________________________________ 21
INTRODUÇÃO
general Golbery do Couto e Silva 1 pertence a uma geração que, segundo Eliézer
***
Antes de proceder à análise do pensamento golberyano, consideramos importante nos
determos um pouco em um tema que, se não tratado desde já, poderá gerar dificuldades para o
perfeito entendimento deste trabalho e de seus objetivos. Esta é a questão da ideologia (a
polêmica começa já na sua definição).
O fenômeno ideológico tem provocado constantes e, por vezes, duras discussões entre
os que o tentam compreender. As conclusões não raro são contraditórias, mesmo as que
pretendem se filiar à mesma raiz, e o marxismo, longe de ser uma exceção, é o exemplo típico.
1
As referências biográficas do general constam do Apêndice. As referências bibliográficas completas das obras citadas
podem ser encontradas na Bibliografia.
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Podemos citar, como exemplo: o livro de Schilling, A Diplomacia do Itamaraty e a Geopolítica do General Golbery,
cujo objetivo é denunciar a influência de idéias como a do “satélite privilegiado”, a de Brasil-potência, fronteiras
ideológicas e outras nas relações com outros países da América do Sul e com os EUA. Outro exemplo: Golbery constitui-
se em um capítulo do livro A Geopolítica do Brasil e a Bacia do Prata, de Leonel Itaussu Mello, que discute os principais
temas gepolíticos sobre os quais se debruçou o general. Do mesmo autor, temos “Golbery Revisitado: da Abertura
Controlada à Democracia Tutelada”, um artigo que busca analisar mais detalhadamente a questão da assim chamada
“abertura democrática”. O general é, ainda, citado com maior ou menor destaque em livros que tratam da época da
ditadura e dos militares, especificamente, como em Eliézer Rizzo de Oliveira (Militares: Pensamento e Ação Política e As
Forças Armadas: Política e Ideologia no Brasil), Alfred Stepan (Os Militares e a Política), 1964: a Conquista do Estado,
de Dreifuss, entre outros. Manzini Covre busca fazer uma análise do pensamento de Golbery juntamente com o de outros
personagens importantes da ditadura, no livro A Fala dos Homens.
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O general publicou ainda o texto técnico O Tiro do Morteiro em 1939, além de um “tratado turístico” sobre Florença de
Outros Tempos, Itália Maravilhosa (1960), este com tiragem reduzida.
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De um modo geral, K. Marx é visto como importante influenciador do uso moderno do
termo ideologia. Há quase um consenso sobre a existência e significação de uma teoria da
ideologia em Marx. Esta é considerada geralmente como uma de suas maiores contribuições à
teoria social e à filosofia. Contudo, tal constatação relaciona-se com um desacordo quase total
sobre o conteúdo das contribuições marxianas.
A problemática sobre o tema se inicia do momento em que a filosofia passa a se
preocupar com elementos que, embora alheios ao campo das ciências naturais, poderiam
influenciá-las direta ou indiretamente. Surge, assim, eminentemente ligada às questões de
método que tinham por objetivo minorar ou eliminar as possibilidades de erro, altamente
prejudiciais à nascente burguesia e a suas pesquisas. (Essa tendência ao predomínio da
discussão metodológica se acirrou no decorrer dos séculos, e hoje se configura um predomínio
praticamente inquestionado da discussão gnosiológica.) “Desse modo, o interesse com relação
à problemática do conhecimento - e por decorrência pela ideologia - emerge na medida em
que, em um determinado momento histórico, o conhecimento verdadeiro é considerado como
conditio sine qua non para um determinado projeto científico e sociopolítico.” (Vaisman,
1989:400)
Historicamente, a ideologia foi vista das mais diversas formas possíveis. A grande
maioria dos que se debruçaram sobre o tema, porém, tem em comum o fato de considerar a
questão ideológica pelo viés gnosiológico. Percebemos essa parcialização como um grave
problema, tendo em vista que a ideologia está ligada não a questões metodológicas, mas a
questões essenciais relativas à totalidade do ser social, conforme veremos.
Louis Althusser foi talvez o mais radical dos responsáveis pela inclusão no campo
marxista de uma temática que parecia resolutiva em relação aos impasses que dominaram a
época anterior, especialmente da questão epistemológica. Contudo, o que se conclui de uma
análise do tema é que tal abordagem desfigura totalmente o pensamento de Marx,
“designadamente porque a obra marxiana é a negação explícita daquele parâmetro na
identificação da cientificidade, tendo sua própria arquitetônica reflexiva, por consonância,
natureza completamente distinta daquela suposta pelo epistemologismo”, uma vez que
baseada na ontologia (Chasin, 1995:338).
Esta discussão é fundamental para o estudo do fenômeno ideológico porque este
pensamento instaura “uma insuperável fissura entre os dois pólos constitutivos do ser social:
de um lado, ‘as formas sociais da individualidade’, ou seja, os indivíduos enquanto meros
suportes das estruturas’ e, de outro, ‘a subjetividade individual ou as posições subjetivas em
face do social’, constituída no interior do paradigma psicanalítico” (Vaisman, 1996:67). Esse
caminho escolhido por Althusser findou por radicalizar a determinação da questão ideológica
pelo critério gnosiológico.
Althusser baseia n’A Ideologia Alemã (que ele mesmo assevera não ser referência para
o estudo da ideologia, uma vez que tal obra “não é marxista”) a afirmação peremptória de que
“a ideologia não tem história”. Retomemos as palavras do próprio Marx:
Marx está destacando, portanto, que as ideologias não têm história no sentido de que
não possuem historicidade imanente, mas fazem parte da história humana como de produção
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da vida e das correspondentes formas de consciência. Ou seja, quer ressaltar a unidade do
processo histórico.
Nesse sentido, a via particular pela qual G. Lukács apreende o fenômeno ideológico
apresenta-se como a que melhor conseguiu captar a especificidade do fenômeno ideológico
em sua posição ontológica e, portanto, de acordo com a postura marxiana perante o problema
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.
Isso porque, para ele, em Marx a questão ideológica refere-se a uma “concepção de
uma história unitária da humanização do homem”, na qual a ideologia aparece totalmente
vinculada à própria dinâmica do ser social, de modo que ele, “ao examinar o problema da
ideologia, busca sistematicamente o nexo ontológico que este fenômeno possui em relação ao
ser social” (Vaisman, 1989:15). Ressalte-se esse ponto: inspirado em Marx, Lukács não
reconhece uma ruptura entre posições que se desenvolvem no interior da esfera econômica e
aquelas que se põem para além dela. Isso porque o caráter do ser social é estruturalmente
unitário - há uma unidade indissolúvel entre o ser e o saber do homem, ontologicamente
fundada: o homem precisa saber para atuar na natureza e satisfazer suas necessidades.
O homem é um ser que responde - ressalta Lukács; na medida em que o faz, ele próprio
elabora os problemas a que deverá, de acordo com as possibilidades sociohistóricas,
responder. Tais respostas podem, no momento subseqüente, se transmutar em outras
perguntas, de forma que tanto as perguntas quanto as respostas se alargam constante e
infinitamente, constituindo os vários graus que medeiam o aprimoramento e a
complexificação da atividade do homem.
Esse conjunto de perguntas e respostas, que enriquece e transforma o modo de ser e ir
sendo do homem, é portanto resultado de constantes opções que este é obrigado a fazer no
processo de construção de sua própria existencialidade. Assim, no trabalho e nas outras
esferas da atividade humana há em comum uma opção clara entre alternativas diferentes, o
que pressupõe um momento ideal, uma prévia ideação, de um instante em que se pára para
refletir sobre a melhor escolha a fazer. (Isso, obviamente, não implica um conhecimento
anterior e completo de todas as circunstâncias que serão afetadas pelas decisões tomadas;
embora concreto, o conhecimento é sempre e apenas aproximativo, e para efetivar as
finalidades a que se propõe tem de estar adequado aos processos objetivos sobre os quais
deverão incidir as decisões tomadas.)
Assim, a apreensão lukacsiana de ideologia tem por base a noção de homem como um
ser prático que age a partir de decisões entre alternativas, uma vez que não é abstratamente
independente das necessidades que a história lhe coloca. Na reação a tais necessidades,
emprega produtos espirituais que são constituídos em função destas mesmas necessidades, de
forma não linear.
Mais detalhadamente: para que as posições teleológicas ligadas de modo mais direto à
esfera econômica possam se efetivar, surgem posições teleológicas secundárias: “o processo
laborativo coloca aos homens tarefas que só podem ser cumpridas se elas forem
acompanhadas por posturas e afetividades adequadas à sua execução. Essa função
desempenhada pelas posições teleológicas secundárias é tanto mais fundamental, quanto mais
complexa for a divisão do trabalho” (Vaisman, 1989:413). Essas tomadas de decisão se
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Vaisman diz que a maioria das concepções a respeito da ideologia “por melhores que possam ser do ponto de vista
estritamente técnico, deixam a sensação de artificialidade conceitual e incompletude teórica, pois nem articulam e nem
integram a problemática geral da ideologia no contexto global da existência do homem e da sociedade. /.../ Além disso, as
referências a Marx /.../ são, na maioria das vezes, muito discutíveis”, já que se referem quase na totalidade à primeira parte
d´A Ideologia Alemã, obra em que Marx analisa especificamente os neo-hegelianos e os “verdadeiros socialistas”.
“Ideologia é aí, e não poderia ser outra coisa pela perspectiva de Marx, deformação e falsificação. Trata-se, no entanto,
não de uma teorização em geral do problema filosófico, mas da denúncia de conjuntos ideológicos concretos.” (Vaisman,
1989:15)
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diferenciam daquelas diretamente ligadas ao trabalho principalmente porque seu objeto não
é a natureza, mas outros homens; elas não pretendem, portanto, desencadear cadeias causais, e
sim modificar o comportamento dos homens, ou seja, desprender novas posições teleológicas.
Em síntese, a atuação do homem - seja no trabalho, seja extralaborativamente - tem
objetivos: desencadear uma cadeia causal (atividades diretamente ligadas ao trabalho) ou
provocar mudanças de comportamento nos próprios homens. Qualquer que seja, contudo, o
objeto sobre o qual age o ser humano, todas as suas atividades se caracterizam pela
inescapável tomada de decisões entre alternativas.
Para Lukács, é exatamente nesse âmbito - em que os homens dão respostas práticas ao
ambiente, objetivando resolver problemas que este lhes coloca nos vários níveis de sua
existência - que nasce e atua a ideologia. As respostas dadas pelos seres sociais “são mediadas
por algum tipo de produção espiritual, formando o conjunto das posições teleológicas
(excluído, aqui, o trabalho) onde a ideologia desempenha o papel de prévia-ideação. Ou seja, a
ideologia, em qualquer uma das suas formas, funciona como o momento ideal, que antecede o
desencadeamento da ação, nas posições teleológicas secundárias” (Vaisman, 1989:413).
Com isso, Lukács consegue ressaltar a especificidade do dado espiritual sem, contudo,
atribuir-lhe autonomia ou história imanentes, de vez que a produção de idéias “faz parte da
história humana global e é determinada ou suscitada, através de múltiplas mediações, pelo
modo como os homens produzem e reproduzem sua vida”. Assim, “o momento ideal das
posições teleológicas voltadas à prática social é constituído pelo conteúdo dessas produções
espirituais em sua função ideológica.” (Vaisman, 1996:107) E, no caso em tela, o caráter
instrumental é importante, tendo em vista que “a ideologia só tem existência social e que ela
se refere a um real específico, que é por ela pensado e sobre o qual atua” (Vaisman,
1996:108).
Portanto, para o filósofo húngaro, “As formas ideológicas são instrumentos pelos quais
são conscientizados e enfrentados os problemas que preenchem a cotidianeidade” (Lukács,
1987:II); ela está, dessa forma, umbilicalmente ligada às questões postas pelo aqui e
imediatamente. “Do ponto de vista ontológico, estamos, pois, diante do seguinte: o produzido
é determinado pela sua produção, o que significa que o ser da ideologia é determinado pela
sua produção, que é e só pode ser social. E, em termos gerais, portanto, ela está presente em
todas as ações humanas, enquanto orientação ideal.” (Vaisman, 1989:418) Ou seja, “onde
quer que se manifeste o ser social, há problemas a resolver e respostas que visam à solução
destes; é precisamente nesse processo que o fenômeno ideológico é gerado e tem seu campo
de operações.” (Vaisman, 1989:419) Assim, em sua posição ontológica, são inseparáveis em
qualquer nível de desenvolvimento ideologia e existência social.
Observe-se, porém, que, do momento em que a realidade humana passa a ser
inflexionada por um conflito social - que permeia todos os graus dessa realidade -, a ideologia
“passa a se manifestar como um instrumento ideal através do qual os homens e as classes se
engajam nas lutas sociais, em diversos planos e níveis” (Vaisman, 1989:419). Baseando-se em
Marx, Lukács dá então uma caracterização mais restrita de ideologia: “consiste no fato de que
os homens, com o auxílio da ideologia, trazem à consciência seus conflitos sociais, e por seu
meio combatem conflitos cuja base última é preciso procurar no desenvolvimento econômico”
(Lukács, 1989: XVIII). Nas palavras do próprio Marx, “A transformação da base econômica
altera, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura. Ao considerar tais alterações
é necessário distinguir entre a alteração material - que se pode comprovar de maneira
cientificamente rigorosa - das condições econômicas de produção, e as formas jurídicas,
políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os
homens tomam consciência deste conflito, levando-os à últimas conseqüências” (Apud
Vaisman, 1996:108).
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Não há contradição entre as acepções ampla e restrita de ideologia, que devem ser
entendidas quer como particularização e generalidade, quer como estágio, dimensão ou
momento de um fenômeno uno. Por outros termos, caracterizar de maneira ampla a função e a
gênese da ideologia, de acordo com Lukács, não contrasta com o reconhecer de que “o
problema de fundo, os homens que na sociedade travam conflitos, permaneça o ponto central,
mas agora sabemos que o horizonte social da ideologia não deve permanecer obrigatória e
exclusivamente limitado aos conflitos desse gênero” (Lukács, 1989:XVIII).
Note-se, ademais, que Lukács não procede a uma simplificação da questão da
consciência social, proclamando a pura identidade entre esta e a ideologia. “A ideologia,
sendo precisamente uma forma de consciência, não é absolutamente, em tudo e por tudo,
idêntica à consciência da realidade; ela, enquanto meio para dirimir os conflitos sociais, é algo
eminentemente dirigido à práxis e, portanto - naturalmente no quadro de sua especificidade -
participa também do caráter peculiar de toda práxis, ou seja, o de ser orientada acerca de uma
realidade a transformar” (Apud Vaisman, 1996:53).
Do mesmo modo, Mészáros destaca que a ideologia “é a consciência prática inevitável
das sociedades de classe”.
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Lukács ressalva “que a imensa maioria das ideologias se funda sobre premissas que não resistem a uma crítica
gnosiológica rigorosa, especialmente se dirigida sobre um longo período de tempo /.../. Mas isto significa que estamos
falando da crítica da falsa consciência. /.../ são muitas as realizações da falsa consciência que nunca se tornaram
ideologia”. O importante, destaca ele, é que “um estrato social veja-a (verdadeira ou falsa) como um meio adequado para
combater as próprias colisões sociais /.../. sua existência social é independente também do caráter moral dos motivos
utilizados na sua aplicação.” E cita, em seguida, um fragmento da Dissertação de Marx (“Não dominou, talvez, o antigo
Moloch? Não era, talvez, o Apolo délfico uma potência real na vida dos gregos?”), acrescentando que “Moloch e Apolo
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forma de ser, e sim uma função social; nenhuma manifestação espiritual, portanto, nasce
ideologia, mas pode apenas se transformar em ideologia, coisa que só se pode constatar pelo
critério onto-prático (verificando a função exercida por tal manifestação espiritual na realidade
humana efetiva).
Por ser bastante importante, vamos insistir um pouco mais nesse ponto. O fenômeno da
ideologia é, assim, analisado por Lukács por seu fundamento onto-prático, e não sob o critério
científico-gnosiológico - pois este conduz irremediavelmente a erro. Para Lukács, “a correção
ou a falsidade não bastam para fazer de uma opinião uma ideologia. Nem uma opinião
individual correta ou errônea, nem uma hipótese, uma teoria etc. científica correta ou errônea
são em si e por si uma ideologia: podem, somente, vir a sê-lo” (Lukács, 1989:V). Em outras
palavras, “exatamente ser ideologia não é uma qualidade fixa deste ou daquele produto
espiritual, mas, ao invés, por sua natureza ontológica é uma função social, não uma espécie de
ser” (Lukács, 1989:XVI). Todas as teorias podem funcionar, em determinado momento, como
consciência prática dos conflitos humanos, que os seres sociais tentam resolver através da luta.
E é por isso que, “em termos gnosiológicos, pode-se determinar se um produto espiritual é
falso ou verdadeiro, mas não se pode através disso determinar se ele pode ou não assumir
função ideológica” (Vaisman, 1996:112). Aqui, pois, a questão da falsa consciência assume
sua real estatura de - momento subordinado na análise do fenômeno ideológico.
Lukács exemplifica com as ciências naturais, lembrando “como a teoria de Galileu ou a
de Darwin se tornaram ideologia sem nenhuma relação direta ou necessária com a sua
essência teórica” (Lukács, 1989:XXI). Ademais, a filosofia mais profundamente
comprometida com a reprodução correta da realidade, a marxiana, em que “o direito unilateral
da razão especulativa interrogar o mundo é superado pela via de mão dupla de um patamar de
racionalidade em que o mundo também interroga a razão, e o faz na condição de raiz, de
condição de possibilidade da própria inteligibilidade” (Chasin, 1995:362), tornou-se a mais
alta produção ideológica da perspectiva do trabalho 6 . De outra parte, como ressalta Lukács,
são muitas as formulações da falsa consciência que não chegaram nunca a ser ideologia; de
igual modo, o que se torna ideologia não é idêntico à falsa consciência.
Por outro lado, o “apelo à autoridade da ciência”, como bem demonstrou Mészáros,
constitui-se numa das mais eficazes formas pelas quais a ideologia dominante apresenta seus
podem ser definidos como ‘estupidez’ do ponto de vista gnosiológico, mas na ontologia do ser social eles figuram como
potências - precisamente ideológicas - realmente operantes”. Um outro exemplo citado é a “parte socialista da teoria
ricardiana”, que chega a conclusões “formalmente falsas do ponto de vista econômico”; Engels já destacara, contudo,
sobre o mesmo assunto, que “uma coisa que é formalmente falsa para a economia pode, todavia, ser exata para a história
universal /.../. Sob a inexatidão econômica formal pode, portanto, ocultar-se um conteúdo econômico como nunca
verdadeiro.” (Lukács, 1989:XX e XXII).
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Vaisman destaca, com Lukács, que o marxismo, ao se reconhecer como ideologia - “como orientação para a ação” -, ao
contrário das teorias da “desideologização” auto-iludida e da pretensa “neutralidade axiológica” weberiana, “não omitiu
em nenhum momento a sua própria determinação social, o seu enraizamento de classe” (Vaisman, 1989:153) e, portanto,
não age como mistificador da realidade. Para Lukács, a recusa do falso dilema entre ideologia e ciência institui uma nova
relação entre filosofia e ciência, de crítica recíproca: “a ciência controla, em geral, ‘por baixo’, se as generalizações
ontológicas das sínteses filosóficas estão de acordo com o movimento efetivo do ser social, se não se distanciam deste na
estrada da abstração. De outro lado, a filosofia submete a ciência a uma permanente crítica ontológica ‘do alto’,
controlando continuamente até que ponto cada questão singular é discutida no plano do ser no seu lugar justo, no contexto
justo, do ponto de vista estrutural e dinâmico, se e até que ponto a imersão na riqueza das experiências singulares
concretas não torna confuso o conhecimento dos desenvolvimentos contraditórios e desiguais da totalidade do ser social,
mas, ao invés, o eleva e aprofunda” (apud Vaisman, 1989:155). Essa crítica recíproca e, mais ainda, a necessidade de
cientificidade do marxismo deriva da própria especificidade da revolução proletária, que “se indaga no ser e devir de si
mesma”. “Uma autocrítica dessa ordem só pode se verificar”, nas palavras de Vaisman, “na base de uma legítima
objetividade, donde a demanda ontológica da cientificidade” (Vaisman, 1989:158). Mészáros também ressalta que “a
‘ciência proletária’ de Marx /.../ representou a unidade dialética das aquisições teóricas e das determinações de valor que
era atingível nas condições sociohistóricas dadas” (Mészáros, 1996: 328). Löwy também destaca esse aspecto do
marxismo como altamente positivo e superior a outras ideologias.
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interesses e valores com uma roupagem pretensamente neutra e objetiva. Para Mészáros, a
“ilusão da autodeterminação ‘não-ideológica’ e da correspondente ‘neutralidade’ da ciência
/.../ não é em si um ‘erro’ ou uma ‘confusão’ que possam ser debelados por obra do
‘Iluminismo filosófico’ /.../. Antes, é uma ilusão necessária, com suas raízes firmemente
plantadas no solo social da produção de mercadorias e se reproduzindo constantemente sobre
essa base” (Mészáros, 1995:270). O mesmo aspecto fora já destacado por Lukács. Segundo
ele, é na arena em que as classes sociais combatem que “a ideologia adquire também o
significado pejorativo que se tornou, historicamente, tão importante. A inconciliabilidade
factual das ideologias em conflito entre si toma no curso da história as formas mais variadas:
podem apresentar-se como interpretações de tradições, de convicções religiosas, de teorias e
métodos científicos etc., mas se trata sempre, antes de tudo, de instrumentos de luta”, “no
interior da qual”, acrescenta Vaisman, “o falso, o ilegítimo, o fantasioso etc. é sempre a
ideologia do outro” (Vaisman, 1989:58).
Ter critérios gnosio-metodológicos como parâmetro para discussão dos fenômenos
ideológicos, com fizeram Althusser e seus seguidores, segundo Mészáros, é aceitar uma
estrutura de discurso que não só era favorável ao adversário ideológico como contribuía para
legitimar sua atividade, tudo isso resultando em “uma capitulação de facto ante uma falsa
problemática, trazendo consigo as conseqüências desorientadoras de uma concepção
completamente idealista da chamada ‘prática teórica’” (Mészáros, 1995:256).
Mészáros destaca que
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Outro ponto que queremos deixar desde já esclarecido é a percepção da ditadura militar
implantada em 64 como uma autocracia bonapartista.
As duas principais obras de Golbery foram escritas antes do último período militar, e
esse é um dos motivos pelos quais não pretendemos fazer um estudo histórico detalhado desta
época. Entretanto, uma comparação do pensamento do general com as realizações do governo
militar permite concluir por muitas coincidências. Obviamente, também havia discordâncias -
algumas maiores, outras menores; contudo, pela própria participação ativa do general Golbery
em vários dos governos pós-64, é coerente concluir que ele influenciou bastante o processo. E,
o que é mais importante, tal atuação histórica coaduna-se com os seus escritos.
Pelas características da atuação particular do general - que, insistimos, tem muito em
comum com a atuação mais geral dos próprios governos da ditadura e é consentânea com sua
própria teoria -, pudemos qualificar o produto de seu trabalho como ideologia bonapartista.
Diferentemente das formulações analíticas de cunho liberal, nas quais o fenômeno
bonapartista é concebido como procedimento político, superestrutural, da direita autoritária,
seguiremos a apreensão marxista do fenômeno. A categoria bonapartismo, como se sabe, foi
estudada por Marx principalmente n’O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte. Pensado
inicialmente para o caso francês de Napoleão III, o próprio Marx o estendeu à Alemanha
bismarckiana. Em ambos os países, o contexto histórico caracterizava-se pelo desenrolar de
momentos extremamente contraditórios e agudos: expansão e crise econômica, guerra civil e
internacional, repressão brutal e crescimento do movimento operário, explicitação e
intensificação da luta de classes. É nessa situação que o bonapartismo aparece como forma
específica de dominação político-econômica da contra-revolução em curso.
Ao estudar o fenômeno, Engels disse acreditar que “o bonapartismo é a verdadeira
religião da burguesia moderna”, pois “Vejo cada vez mais que a burguesia não foi feita para
reinar diretamente, por conseqüência /.../ uma semiditadura bonapartista torna-se a forma
normal” (Apud Rago, 1998:17). Seguindo essa linha, pensadores marxistas como Gramsci,
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Lênin e Trotsky passaram a utilizar a categoria de bonapartismo (ou cesarismo) como
recurso analítico, para além da referência a um caso histórico.
A categoria do bonapartismo refere-se, grosso modo, a um tipo de dominação burguesa
em que o poder político não é exercido diretamente pela burguesia, mas é delegado a uma
força militar, que o absolutiza. Com essa hipertrofia do executivo, o poder legislativo sofre
violenta repressão, até mesmo quanto à sua existência. Marx, referindo-se ao caso francês,
citava a “máquina de guerra nacional contra o trabalho” e acrescentava que, “Na sua
ininterrupta cruzada contra as massas produtoras, ela foi forçada, contudo, não só a investir o
executivo de poderes de repressão continuamente acrescidos mas, ao mesmo tempo, a
despojar a sua própria fortaleza parlamentar - a Assembléia Nacional - de todos os seus meios
de defesa, um após outro, contra o executivo” (Apud Rago, 1998: 16).
Manter a supremacia do capital sobre o trabalho, não obstante declarando-se a favor de
todas as classes sociais, continua Marx,
era a única forma de governo possível num tempo em que a burguesia já tinha
perdido a faculdade de governar a nação e a classe operária ainda a não tinha
adquirido. /.../ Sob seu domínio, a sociedade burguesa, liberta dos cuidados
políticos, atingiu um desenvolvimento inesperado até para ela própria. A sua
indústria e o seu comércio expandiram-se em dimensões colossais; a burla financeira
celebrou orgias cosmopolitas; a miséria das massas era contrabalançada por uma
exibição sem pudores da luxúria sumptuosa, meretrícia e degradante. (Apud Rago,
1998:16)
o que distingue o fenômeno bonapartista não é o fato de o Estado ter sido dotado de
uma maior ou menor capacidade superordenadora da sociedade. Isso não é
fundamental. O que é típico das situações bonapartistas é que a capacidade de
iniciativa da autoridade governamental fica, em grande parte, desligada das volições
específicas e imediatas das classes dominantes ou de qualquer de suas partes
componentes (Apud Rago, 1998:17).
Metodologia de Trabalho
Tendo como intenção original realizar uma leitura imanente dos textos do general
Golbery, esforçamo-nos por deslindar os nódulos centrais do seu pensamento. À leitura inicial
dos textos seguiu-se outra, em que foram destacados os conceitos e/ou temas mais recorrentes
e mais importantes nas tematizações do general. Ao depois, as diversas manifestações de
Golbery sobre cada um destes conceitos foram agrupadas em aproximadamente setenta
grandes temas - que iam de segurança nacional a dialética, de guerra fria a ciências, entre
muitos outros.
Em seguida, procedemos a uma reconstrução do ideário golberyano. Esta reconstrução
foi feita tema por tema, de modo que ficou de si mesma evidente a importância própria a cada
um deles. Alguns, pela menor relevância e em benefício da concisão, foram eliminados. A
maioria foi sendo rearticulada, já em sua dimensão efetiva, ao todo do pensamento do general.
Nessa altura do processo, preocupamo-nos em dar voz aos próprios escritos, explicitando
21
como os nódulos da ideologia golberyana se articulavam entre si. Buscamos nos pautar na
fidelidade - ainda que crítica - aos escritos do general.
Nosso trabalho mantém-se fortemente vinculado aos dois textos citados de Golbery,
mas muitos outros autores colaboraram (ainda que quando equivocados) para chegar ao
resultado final. A tese de Rago, A Ideologia 1964: os Gestores do Capital Atrófico, a
dissertação e a tese de Ester Vaisman, tratando do tema candente da ideologia, o estudo de
Maria Selma Rocha sobre a ESG e as reflexões de José Chasin acerca da realidade nacional e
da resolução metodológica marxiana foram aqueles que mais influenciaram nosso trabalho.
Estrutura da Dissertação
Desde os idos de 1977, Chasin, por sobre os ombros das teorizações excepcionais de
um Caio Prado Júnior, para citar apenas um exemplo, estudava como a formação histórico-
social brasileira se pôs por um caminho específico, que ele denominou via colonial de
24
objetivação do capitalismo 7 . São características deste caminho particular, entre outras, uma
estrutura agrária em que é decisiva a presença da grande propriedade de origem colonial, cuja
produção está voltada para o exterior; as modificações são realizadas “pelo alto”, conciliando
interesses, sem a participação do povo e excluindo as rupturas superadoras; o
desenvolvimento das forças produtivas é bem mais lento do que nos países clássicos como
França e Inglaterra e, ainda mais, a implantação e progressão do capitalismo industrial é ultra-
retardatária, sofrendo em seu desenvolvimento obstaculizações e refreamentos de todo tipo;
esse retardo histórico e esse desenvolvimento retraído aditam-se a um inacabamento de
classes, em que a burguesia deixa de realizar suas tarefas históricas e os trabalhadores
precisam tomar como suas as bandeiras que outrora estavam nas mãos da burguesia
revolucionária, como a democracia.
Como característica geral, podemos afirmar que a constituição do capitalismo industrial
brasileiro ocorreu ultra-retardatariamente, de forma lenta e sem entrar em contradição com a
velha ordem. Nosso capital, atrófico, porque incompleto e incompletável, em seu trânsito para
uma entificação verdadeiramente capitalista,
7
- Ver Chasin (1977); Chasin (1989).
25
institucionais, ou seja, uma fraco impulso intrínseco de diferenciação, aceleração constante
e universalização do crescimento industrial” (Fernandes, 1981:298). A esse respeito, registre-
se que o processo de entificação histórica do capital industrial no Brasil, durante toda a
primeira metade do século, não conseguiu ultrapassar o nível da incipiência. No final da
década de 70 não havia se completado, e a questão da produção de bens de capital ainda
estava na ordem do dia.
Mais detalhadamente, Florestan ressalta como característica de nosso processo de
constituição industrial uma “industrialização que se atrasa, indefinidamente, no tempo, que se
descola do desenvolvimento do mercado interno, da revolução agrária e da revolução urbana,
ou que se dá sem que tais processos adquiram certa velocidade e intensidade”, problemas cuja
tentativa de solução leva ao intervencionismo estatal e ao empuxo externo dos centros
dinâmicos capitalistas, de forma que “a revolução nacional continuaria a ser dimensionada
pela infausta conjugação orgânica de desenvolvimento desigual interno e dominação
imperialista externa”.
Por outro lado, a eclosão industrial continua submetida largamente ao velho modelo
dos ciclos econômicos, tão destrutivo para o desenvolvimento de uma economia capitalista
integrada. “Os surtos industriais e de crescimento econômico rápido expunham essas classes e
estratos de classe, arcaicos ou modernos, a uma intensa e incontrolável avidez por
‘oportunidades’ e ‘vantagens estratégicas’ novas”, dificultando a constituição de uma
organicidade e uma universalidade de interesses.
Essa ausência de organicidade compele as classes burguesas a se omitirem ou, mesmo,
a se anularem diante de certas tarefas práticas especificamente burguesas. Em outros termos,
da convergência artificial e necessariamente contingente de interesses “resulta um tipo
especial de impotência burguesa que faz convergir para o Estado nacional o núcleo do poder
de decisão e de atuação da burguesia. O que esta não pode fazer na esfera privada tenta
conseguir utilizando como sua base de ação estratégica, a maquinaria, os recursos e o poder do
Estado”.
Coutinho também salienta que, no Brasil, “O Estado foi sempre o protagonista desse
processo de modernização e a burguesia /.../ revelou, ao longo de praticamente toda a história
brasileira pós-30, que estava muito presa a seus interesses econômico-corporativos e incapaz
de chegar ao nível da consciência ético-política. /.../ [a] privatização do estado aqui assume
características patológicas (mesmo no sentido de um estado capitalista)” (Coutinho,
1967:142). “Sem o controle absoluto do poder, que as classes burguesas podem tirar da
constituição deste Estado”, acrescenta Florestan Fernandes, “seria inconcebível pensar-se
como eles conseguem apropriar-se, com tamanha segurança, da enorme parte que lhes cabe no
excedente econômico nacional; ou, ainda, como elas logram dissociar, quase a seu bel-prazer,
democracia, desenvolvimento e revolução nacional” (Fernandes, 1981:352).
A ausência de uma revolução democrático-burguesa impediu que a burguesia brasileira
forjasse uma identidade nacional e se projetasse para todas as classes sociais, dado que, não
estava dotada de “uma dinâmica própria que pudesse efetivamente representar os interesses
das demais categorias sociais” (Rago, 1998:17). Por outros termos, a burguesia brasileira, pela
sua estruturação histórica, não pode realizar seu papel de universalizante político “- não pode
se ver e assumir, na particularidade de seus interesses, como representante de todas as
categorias sociais, da sociedade em seu conjunto” (Chasin, 1982:11).
Essa é uma causa e, ao mesmo tempo, um efeito do que observou Carlos Nelson
Coutinho:
Na outra ponta, a esquerda deixou passar batido a crítica real das possibilidades de
uma democracia liberal, dada a forma particular de ser e ir sendo de nossos
proprietários na construção do capitalismo brasileiro. /.../ O pensamento conservador
pôs em tela, mesmo com seu filtro ideológico, a questão das condições de
possibilidade da democracia em nossa formação histórica. (Rago, 1998:268)
8
Capítulo II - As Bases do Pensamento Golberyano.
31
comum, pois está livre tanto das imposições formalistas do liberalismo quanto do
totalitarismo anulador da personalidade humana.
Por outro lado, Azevedo Amaral não concebia a possibilidade de durabilidade e
estabilidade a qualquer forma de governo que ignore o consentimento dos governados e a
importância da representação. Contudo, a representação política que apregoa distingue-se
daquela propugnada pelo liberalismo: era a substituição da “‘ficção igualitária’ do liberalismo
democrático pelo pronunciamento direto das ‘forças ativas’ da sociedade, organizadas
corporativamente, segundo interesses e preocupações profissionais” (Tótora, 1991:116).
Também no pensamento de Oliveira Vianna encontramos o antiliberalismo como a
pedra fundamental. A alternativa proposta baseia-se na defesa dos valores aristocráticos da
tradição brasileira e na pregação por um Estado forte e centralizado.
Oliveira Vianna percebia um descompasso entre o “Brasil real” e o “Brasil artificial”.
Embora sendo nossas elites republicanas adeptas do idealismo utópico, o liberalismo era
inviável em nosso país, um modelo exótico que desrespeita a imaturidade e formação
específica do povo brasileiro. O povo está despreparado e incapacitado para o regime
democrático. Os liberais, dessa forma, desrespeitavam a singularidade histórica do Brasil,
marcado pela debilidade do conjunto das classes sociais, amorfas e inorgânicas. “O Brasil não
possui uma sociedade liberal, mas ao contrário, parental, clânica, autoritária. Em
conseqüência, um sistema político liberal não apresentará desempenho apropriado, produzindo
resultados sempre opostos aos pretendidos pela doutrina. Além do mais, não há um caminho
natural pelo qual a sociedade brasileira possa progredir do estágio em que se encontra até
tornar-se liberal” (Apud Rago, 1998:275).
Na busca de compreender a especificidade brasileira, o pensamento conservador tinha
em comum a percepção do país como uma nação informe e profundamente dividida. O povo
inexistia organicamente, as elites estavam despreparadas e portanto a nação não estava à altura
das tarefas necessárias. Faz-se necessário formar elites para que intervenham decisivamente
no quadro nacional. A característica brasileira da solução pelo alto está justificada e
reafirmada. Preconiza-se um Estado forte e intervencionista, a constituição de uma
“democracia orgânica” em que as lutas de classe passassem ao largo. A intenção era que essa
democracia orgânica incorporasse os diversos estratos sociais, a fim de solidificar a sociedade
e harmonizar os interesses particulares. A paz social e a harmonização de classes é, assim,
recorrente nesse discurso.
Segundo Azevedo Amaral, no momento de uma crise histórica, é fundamental a
atuação das elites dirigentes, que, possuindo um projeto ideológico, estão capacitadas para
conduzir a coletividade à sua destinação nacional. As revoluções, dessa forma, promanam das
elites, que mobilizam as massas para alcançar seus fins. As massas são seres passíveis de
controle, mas, quando deixadas a seus próprios impulsos, acabam sendo irracionais.
uma união nacional nascida no interior de uma população consciente dos interesses
coletivos nacionais, que deveriam sempre preponderar sobre os interesses
individuais e particulares. Sua insistência quase obsessiva em relação à
solidariedade social era a contrapartida, de sua perspectiva, de uma realidade
histórica fortemente trabalhada por fatores naturais e sociais desagregadores, e na
qual preponderam os interesses individuais e particularistas de pessoas ou de grupos.
(Apud Rago, 1998:276)
Ressalte-se, pois, que o Estado autoritário azevediano tinha como função não apenas a
manutenção da ordem pela “harmonização das classes”, mas também a modernização do país.
“O Estado autoritário assume a função de coordenar e impulsionar o desenvolvimento
econômico, reduzindo os custos para a sociedade de um conflito social de ‘natureza
destrutiva’ /.../ para corrigir os excessos de liberalismo econômico, sem, contudo, eliminar o
valor da iniciativa individual” (Tótora, 1991:91).
Oliveira Vianna, por sua vez, não obstante traços ruralistas, abandonou qualquer
pregação por uma volta ao passado do patriarcalismo rural. Segundo Carvalho, “Conformou-
se com o fato de que o mundo moderno era o da indústria, do operário, das classes sociais. A
pergunta agora era como organizar este mundo dentro da utopia de uma sociedade harmônica,
incorporadora, cooperativa. O corporativismo, o sindicalismo, a legislação social vinham
trazer as respostas”. No caso brasileiro, estas políticas tinham a vantagem adicional de
“poupar ao país os dramas causados pela industrialização capitalista, ainda incipiente, e de
lançar-nos na direção de uma nova sociedade harmoniosa e, segundo ele, democrática”. A
condução do processo era considerada, entretanto, tarefa precípua do Estado, e “caberia até
mesmo forçar classes e categorias sociais a se organizarem, pois a organização seria a única
maneira de se exercer a cidadania no mundo moderno” (Apud Rago, 1998:279).
34
Justifica-se aí que, para ele, o intervencionismo estatal venha conter o
“supercapitalismo”, com seus graves e inevitáveis problemas sociais - a pobreza, a
concorrência generalizada etc. “Nesse sentido, o país precisaria ser preparado para sua
modernização controlada. Haveria que constituir um mercado nacional único, da mesma
forma, uma ‘democracia de opinião organizada’.” (Rago, 1998:279) Com tudo isso, a
intervenção do Estado serviria para diversificar a sociedade.
***
Da mesma forma que Oliveira Vianna, Alberto Torres percebia as elites brasileiras
como egoístas, desqualificadas por isso para a direção política. O despreparo das massas para
a participação política também é ressaltado por ele. Com isso, quer sublinhar, em suma, a
incapacidade estrutural destes dois grupos sociais, concebidos assim, genericamente, para
organizar a nação; é o próprio corpo social que não está à altura de nenhuma tarefa histórica
de vulto.
Tal despreparo patenteava-se no preconceito contra o planejamento, no transplante
acrítico de instituições políticas contrárias à nossa formação histórico-política e, ainda, na
ausência de métodos de investigação para uma investigação da realidade nacional, a fim de
conhecer efetivamente suas características e as possibilidades políticas daí advindas.
O estado de conflito armado, que era latente, agora é ativo e se agrava e se torna
permanente, pois o intervalo entre uma guerra e outra é semeado de lutas e revoltas
36
intestinas em grande número de países entre as diferentes camadas sociais, pondo
em risco a estabilidade e a existência dos Estados que não souberam, não puderam
ou não quiseram organizar-se fortemente (Apud Pereira, 1988:258).
E acrescenta, numa construção que poderia ser escrita por Golbery: “A luta de classe é,
hoje em dia, o expediente mais seguro e hábil para enfraquecer uma Nação, ativá-la à mercê
dos golpes do imperialismo tanto político e moral, quanto econômico e material” (Apud
Pereira, 1988:258)
E. von Ludendorff (que estava no comando das forças germânicas quando da derrota na
I Guerra) já havia tornado públicas, mais de uma década antes, suas idéias a respeito da guerra
total. Provavelmente foi sob sua influência que Góes Monteiro chama a atenção para o
alastramento do fator guerra para todos os campos da estrutura de uma nação, inclusive com a
noção de potencial nacional:
Assim sendo, as Forças Armadas deveriam estar fortalecidas para assegurar que
“nenhum outro elemento antagônico à sua finalidade possa ameaçar os fundamentos da
Pátria”. “Nestas condições, as forças militares nacionais têm que ser, naturalmente, forças
construtoras apoiando governos fortes, capazes de movimentar e dar nova estrutura à vida
nacional, porque só com a força é que se pode construir” (Apud Pereira, 1988:259).
Também o general Góes Monteiro criticava o liberalismo. Este era, para ele, “a fonte de
todos os males sociais e pátrios”, pois era moldado na exata medida para permitir a todos “a
liberdade de se encarniçarem na prática do mal contra o bem, aumentando o babelismo e as
complicações do problema da organização nacional” (Apud Pereira, 1988:258). Um dos
aspectos criticados do liberalismo era justamente a pluralidade partidária, “absurda pelo
caráter particularista que é expressão desses agrupamentos sem finalidade nacional e, por
conseguinte, organizados para atender quase exclusivamente a interesses de grupos, de
facções e de indivíduos e nunca aos interesses da nacionalidade” (Apud Pereira, 1988:259).
37
É admissível, como transição, o partido único, nacional, movimentado sempre no
sentido de engrandecer a Nação e não para satisfação dos interesses individuais. O
sistema representativo, pelo sufrágio universal e direto, pela maneira como é
aplicado no Brasil, será sempre uma irrisão e uma causa de degradação de costumes
políticos (Apud Pereira, 1988:259).
A força do Estado, necessária para a construção de uma nova estrutura para a vida
nacional, contrapunha-se com a fragmentação das organizações partidárias: “O Estado, tendo
o funcionamento dos seus órgãos sujeito às oscilações partidárias, se enfraquece, transige,
recua e não pode levar a efeito a sua obra em benefício da nacionalidade” (Apud Pereira,
1988:258). O mundo inteiro, assegura Góes Monteiro, comprova que o caminho a seguir em
termos econômicos é o “nacionalismo econômico, dirigido pelo Estado cada vez mais
fortalecido”. Ocorre que “A burguesia brasileira, porém, não quer compreender o estado de
necessidade que se criou para o mundo inteiro e não quer abdicar de certos privilégios em
benefício da nacionalidade. E persiste no desejo de reproduzir os erros com a adoção do
mesmo regime político, das mesmas normas e costumes que temos de abolir, por bem ou por
mal” (Apud Pereira, 1988:260).
Ao lado desse primeiro ponto, reiterado sempre - “O Estado deve intervir e regular toda
a vida coletiva e disciplinar a Nação” -, “Outro ponto radical é a educação do povo, sob o
tríplice aspecto: do desenvolvimento físico, moral e intelectual”, outra das exigências
contemporâneas que o Estado deve ter meios e autoridade para resolver. Nesse processo, a
base material é dada pela organização da produção e a base moral, uma mentalidade que
chamaríamos de tradição seletiva, “que aceite e aperfeiçoe o que é bom e saiba rejeitar o que é
mau”. É isso que, segundo Góes Monteiro, caracteriza o espírito nacional, ao qual se pode
atribuir a manutenção de nossa unidade lingüística, racial, religiosa “e sobretudo política”; é
tal espírito, ainda, que “poderá dirigir a evolução da nacionalidade, e dentro do imperativo que
se tem criado no transcurso da evolução da vida humana” (Apud Pereira, 1988:260).
Tão inovadoras e fortes foram tais idéias que vários autores atribuem a doutrina da
ESG a um simples resgate das idéias de Góes Monteiro 9 . Se não podemos cair numa
interpretação tão simplista, não podemos, por outro lado, desconsiderar a profunda influência
deste autor na confecção da DSN.
***
O conservadorismo brasileiro, como se sabe, influenciou decisivamente e por largo
espaço de tempo uma grande parcela da intelectualidade nacional. Sobejamente reivindicada,
em especial pelo conservadorismo militar, acabou esparramando seus influxos por outras
correntes, como o nacionalismo trabalhista, liderada pelo isebiano Guerreiro Ramos. Este via
Azevedo Amaral como o mais complexo e completo escritor dos anos 30.
Segundo Rago, a herança conservadora neste sociólogo baiano tem por base as
seguintes formulações: “1) há que traçar o itinerário de nossa história nacional por meio dos
traços que a singularizam; 2) a ausência do povo em nossa formação deriva de nossa extração
colonial, o que explica ao largo de sua existência a vacuidade da vida pública; 3) estas razões
históricas explicam a passividade do povo dada a ausência de um sentimento coletivo
9
É o caso de Wilson Martins, em História da Inteligência Brasileira, e também Edmundo Campos Coelho, na sua Em
Busca de Identidade: o Exército e a Política na Sociedade Brasileira. Selma Rocha contrapõe-se a essa tese:
“Reconhecemos, sem dúvida, que as concepções de Góes Monteiro foram apropriadas pelos militares da ESG, mesmo
porque as condições de formação dos oficiais, bem como suas publicações, garantiram que as idéias do general estivessem
vivas no imaginário militar. Todavia, nossa questão /.../ permanece: como os oficiais da ESG articularam, objetivamente,
tais pressupostos nos conceitos doutrinários nas décadas posteriores à fundação da instituição?” (Rocha, 1996:13).
38
nacional; 4) daí, a influência decisiva no plano político de nossos homens públicos.” (Rago,
1998:280)
As massas populares, também em sua visão, estão incapacitadas para o exercício da
vida política, em decorrência de nossa heterogeneidade social. Como em Oliveira Vianna, a
inexistência de sociabilidade orgânica e de tradições culturais sólidas permite à nobreza da
terra exercer o papel dirigente, excluindo o povo. Num país com tais características, uma elite
republicana transladou o liberalismo exótico, acabando por decair no “idealismo utópico”.
Ainda sob a inflexão viannista, Ramos propugnava um “idealismo orgânico”, engendrado na e
de acordo com a realidade histórico-social de nosso país. “A sua conclusão é clara: com a
fragmentação e dispersão das camadas sociais em nosso imenso território, não há como ter
articulação dessas partes, a não ser pela constituição de um denso mercado interno, um
sistema de transportes e comunicações consistentes. Sem isso, não pode haver povo.” (Rago,
1998:281)
Em meados da década de 50, para ele, havia surgido a categoria “povo”. Tal gestação
havia sido promovida pela constituição do mercado interno, configurado pela industrialização
acelerada, levada a cabo sob a égide estatal. Com isto, constituiu-se uma classe trabalhadora
moderna, capaz de criar instituições representativas (sindicais e previdenciárias), e uma
burguesia empreendedora interessada na viabilização do consumo interno.
Disto resultou uma solidariedade inédita, atingindo então a sociedade brasileira o
estágio da modernidade. Estava posta, pelo aparecimento da categoria povo, a possibilidade de
uma espessa aliança de classes, cujo fundamento estaria justamente no interesse socialmente
difundido de constituir um mercado interno e ampliar a produção de bens de capital. À
configuração concreta da nação com povo corresponderia uma “razão sociológica”,
contraposta à “razão científica” da vacuidade de motivações coletivas.
Com isso, o nacionalismo se tornava um fato sociológico, que tem a desempenhar um
papel revolucionário. Sua essência é justamente uma vindícia de nações cuja soberania social
permanecia inconquistada e que, pelo esforço de toda a comunidade nacional, pelejavam por
um desenvolvimento capitalista autônomo em relação aos grandes centros industriais. Por isto
a essência do nacionalismo é revolucionária: a autodeterminação nacional só pode ser
alcançada por meio da “luta, audácia e iniciativa” da nação. O nacionalismo representava o
instrumento para o impulsionamento da revolução industrial brasileira.
Há, portanto, uma atualização da herança, que é também orientada para uma vertente
democrática, em prol da edificação de um capitalismo autônomo, popular e nacional. Segundo
Guerreiro Ramos, “Os capitais estrangeiros controlados pelos trustes, ao entrarem num país,
não se conduzem num espaço econômico puro ou abstrato; ao contrário, afetam todo o sistema
social e, principalmente, fazem política, no sentido de assegurar cobertura institucional para os
seus interesses, necessariamente antinacionais.” (Apud Rago, 1998:282) Critica, assim, o na-
cionalismo ilusório, desnacionalizante, que acredita no capitalismo associado. Para ele,
somente uma revolução nacional poderia provocar uma mudança qualitativa no nosso estágio
histórico pois, no que se refere às nações novas, “Sua maioridade histórica exibe-se na aptidão
que revelam para libertar-se de posições caudatárias”.
De outra parte, “A SN não é abstrata. É sempre a segurança de uma nação tal como
existe concretamente, numa época determinada. Ora, atualmente, há um Brasil em caducidade
e um Brasil em estado nascente. De qual deles se trata de elaborar a política de SN?” (Apud
Rago, 1998:282) Ele mesmo responde: “A nossa SN não é a de um país economicamente
amorfo ou abstrato, mas a de um país que iniciou sua revolução burguesa. Por conseguinte, se
é inevitável que a SN tenha uma ideologia, essa ideologia só pode ser a da revolução industrial
brasileira em curso.” (Apud Rago, 1998:283)
39
Sobre o Estado, pensava ele: “A equação do desenvolvimento de um país como o
Brasil não pode resolver-se sem a interferência do Estado. Entregues à própria lógica, os
capitais privados não se comportam de acordo com as exigências de inversão de uma
economia em desenvolvimento.” E considerava contrários aos objetivos nacionais “todos os
fatores internos que contribuam para a formação de pressões psicossociais, políticas,
ideológicas, institucionais e econômicas tendentes a debilitar o capitalismo brasileiro” (Apud
Rago, 1998:283). Sua proposta: entender a lógica do mundo atual e alinhar-se com aqueles
países que apresentam a mesma ordem de problemas, a fim de compor uma ação conjunta. “O
divisor de águas estava posto: o ‘nacionalismo orgânico’ e o ‘nacionalismo utópico’ iriam se
enfrentar na questão da posição democrática e da posição autocrática” (Rago, 1998:283).
Procuraremos, abaixo, analisar essas características, ainda que sem entrar nas
complexidades da doutrina de segurança ou da própria criação da Escola.
O surgimento da ESG brasileira foi largamente condicionado pela conjuntura existente
ao final da Segunda Guerra. Lembre-se que, em 1947, eram anunciados a Doutrina Truman e
o Plano Marshall, marcando o início da guerra fria. Por meio da Doutrina, buscava-se afirmar
a liderança mundial dos Estados Unidos, pela ajuda econômica ao conjunto da Europa e apoio
aos povos livres, que contribuiriam para conter o expansionismo soviético. Paralelamente a
isso, ressaltava o perigo representado pelo “totalitarismo soviético” e conferia explicitamente
aos Estados Unidos o papel de guardiães da paz e da segurança mundial.
Por sua vez, o Plano Marshall propunha-se a demonstrar à Europa a maior viabilidade
de sua prosperidade econômica com a permanência do capitalismo, ao mesmo tempo em que
estabelecia bases militares e tratados de segurança em todo mundo. A Organização do Tratado
do Atlântico Norte (Otan) surgia em resposta à Agência de Informação dos Partidos
Comunistas e Operários (Kominform) e concretizou, diplomática e militarmente, a política de
segurança enunciada na Doutrina Truman.
Ainda no conjunto de modificações da época, aparece, pela derrocada do sistema
colonialista, o terceiro mundo, que passa a ser palco de disputas entre as duas potências, não
obstante tentativas de alguns desses países de desvincularem-se de ambos os blocos
contendores. A disputa por áreas de influência tornou-se fundamental para garantir a
sobrevivência dos respectivos projetos de sociedade que se confrontavam e para garantir a
segurança dos Estados. Nesse contexto, os EUA, simultaneamente, expandiram seu poder
imperial, a fim de estabelecer sua hegemonia no Ocidente, e tentaram universalizar sua
concepção de segurança.
40
O contexto brasileiro, como aponta Maria Selma Rocha, esteve duplamente mediado:
pela mudança de orientação da política externa dos EUA em direção a uma posição mais
ofensiva com relação à URSS, determinada por Truman (de que é exemplo o empenho no
desmonte das máquinas regionais criadas por F. D. Roosevelt -presidente dos EUA entre 1933
e 1945 -, temendo defecções pró-União Soviética, e a busca de controle pelos EUA do
comércio mundial de matérias primas) e pela resistência nacionalista a essa mesma política, de
que as discussões em torno das minas de urânio e tório, além da exploração do petróleo, são
exemplos.
Em 1947, o Brasil havia rompido relações diplomáticas com a URSS. Em 1948, foi
oficializado o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (Tiar), que determinava que
qualquer “agressão a uma nação americana vinda de uma potência não continental será
considerada como agressão a todas as demais nações americanas” (Apud Rocha, 1996:28). Por
outro lado, significativas inquietações em relação às definições doutrinárias e à prática das
Forças Armadas haviam surgido no corpo de oficiais da Força Expedicionária Brasileira
(FEB) na Itália, quando se verificou o contraste entre a capacidade operativa da FEB e a dos
militares americanos. De outra parte, “Muitos oficiais da FEB regressaram ao Brasil convictos
da necessidade de acelerar o desenvolvimento econômico. Do ponto de vista militar,
significaria promover o desenvolvimento da economia - abrindo-a inteiramente ao capital
estrangeiro, se necessário - como condição para o desenvolvimento do próprio aparelho
militar com vistas ao papel que o Brasil deveria desempenhar na defesa hemisférica.”
(Oliveira, 1988:235).
Golbery destacou ainda outro aspecto importante em relação à FEB:
A FEB não foi importante apenas por ter ido à Itália. Possivelmente ainda mais
importante, os membros da ESG foram aos EUA e viram em primeira mão uma
grande potência industrial e democrática. Eu também fui e sofri um grande impacto.
Para mim, era absolutamente visível que um país de livre empresa conseguira criar
uma grande potência industrial. (Apud Stepan, 1975, 176)
É, pois, necessário ressaltar que, ainda que o alinhamento com os EUA não fosse posto
em questão pelos militares brasileiros, estes, ao formarem a ESG, fizeram-no tomando como
referenciais as características de sua própria história. Como ressaltou Eliézer Rizzo de
Oliveira, “a ESG não foi e não é pura e simplesmente transplantada da experiência americana,
com a qual manteve uma dupla relação: uma inspiração inicial /.../; uma adaptação
diferenciadora, posto que as ‘elites civis’ /.../ foram procuradas, desde o início, para participar
da ESG” (Oliveira, 1988:237) 10 .
Sem querer delongar a discussão, cabe observar, em primeiro lugar, que se houvesse o
mero transplante, a ESG não poderia realizar seus objetivos de interferir objetivamente na
realidade nacional - que ela então não teria respeitado e à qual não se adaptaria. E, o que é
fundamental, antes da discussão sobre a existência e extensão da cópia ou não, há que indagar
a própria possibilidade de uma pura e simples transposição mimética de uma instituição em
contextos tão diferenciados como o do Brasil e o dos EUA. Seria muito difícil os oficiais
responsáveis pela criação da Escola não se “contaminarem” com a realidade nacional.
Dentre as muitas influências que a ESG sofreu, pode-se destacar a da teoria
organicista/evolucionista em suas concepções de Estado e sociedade, e, na questão da guerra
revolucionária, da doutrina militar francesa, dos postulados militares espanhóis nos anos 50 e
60. Houve ainda forte influência de concepções geopolíticas. No plano da experiência política,
os postulados referentes ao final da Segunda Guerra (como o papel histórico dos militares no
interior do Estado) ganharam relevância. Houve também influência das reflexões dos
cientistas políticos e militares norte-americanos, convencidos de que a existência de governos
fortes se constituiria em precondição do desenvolvimento e amadurecimento das sociedades
dos países dependentes, assim como da implantação da democracia no futuro. Os autores
considerados clássicos do marxismo também foram estudados, a fim de fundamentar a crítica
e a negação à luta de classes.
A ESG valeu-se ainda de outras ideologias conservadoras presentes na sociedade
brasileira e nas Forças Armadas, cuja influência foi acentuada na visão esguiana sobre Estado,
sociedade e nação, como também de outros matrizes teóricos em debate na época. Como
observou Rago, a relação da ESG com o pensamento conservador é estreita.
10
Ubiratan Borges de Macedo, membro do Corpo Permanente da ESG, também protestou contra a interpretação da cópia:
“Ao contrário do enunciado pelo padre Joseph Comblin em A Ideologia da Segurança Nacional (1977), que atribuiu a
uma cópia de doutrina americana o ensinamento esguiano - apesar de no mesmo livro não conseguir identificar essas
origens por citar quase sempre documentos brasileiros e não explicar as fundas divergências entre o National War College
e a ESG e as concordâncias versarem sobre temas óbvios de domínio comum; além de ingenuidades como ligar a
existência de um Conselho de Segurança Nacional à ideologia da ESG, aliás já previsto na Constituição de 1946, anterior
à ESG -, julgamos serem outras suas origens.” (Macedo, 1988:215).
42
descentralização na esfera política; a superioridade das elites dirigentes em face
do atraso cultural e despreparo político das classes subalternas; a preparação para a
modernização, conservando-se os valores tradicionais; o combate permanente ao
comunismo e à subversão interna; a transição “lenta e segura”, para uma nova
institucionalidade jurídico-política, necessária ao desenvolvimento econômico.
Ordem e progresso. Traduzindo na nova linguagem sorbonista: segurança e
desenvolvimento. (Rago, 1998:270)
A mediação de Góes Monteiro, por sua vez, “mais do que pessoal, na Doutrina,
representou antes o compediamento por um ilustre e autorizado chefe de idéias que a Missão
Militar Francesa difundira e a que se somou a tradicional função de poder moderador das
Forças Armadas, constante na tradição política brasileira” (Macedo, 1988:217). No entanto, a
existência “da ESG e de sua doutrina constituem um marco na história das Forças Armadas,
uma vez que projetam o Exército Brasileiro, no quadro das relações internacionais, como
agentes políticos dotados de identidade e objetivos específicos” (Rocha, 1996:16).
Quando da fundação da Escola, lembremos, nacionalmente, havia um crescente
processo de mobilização de amplos segmentos da sociedade e o conflito entre posições
nacionalistas e internacionalistas. A esquerda tomava o nacionalismo como uma junção de
luta de classes e afirmação nacional. As elites eram consideradas como inaptas para enfrentar
as novas necessidades conjunturais por concepções tão distintas como as altas patentes
militares e o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb, que funcionou entre 1955 e
1964).
Segundo depoimento de Cordeiro de Farias, ele foi encarregado de organizar no Brasil
uma escola única, que integrasse as três escolas norte-americanas. Nos EUA,
existia uma escola para tratar dos problemas da produção bélica, o Industrial
College, outra para formular estratégias, o War College, e uma terceira para integrar
as três forças. No Brasil, um país pobre e de poucos recursos, nós decidimos criar
um só estabelecimento para cobrir estas diferentes finalidades. Segundo esse
raciocínio, qual seria o objetivo principal da ESG? Criar lideranças civis e militares
para enfrentar a eventualidade de um novo estilo de guerra não mais circunscrita à
frente de batalha e ao palco de lutas, mas transformada em fato total /.../. Dentro
dessa orientação, os civis das mais diversas profissões precisarão estar prontos para
exercer papéis talvez até mais decisivos do que o dos militares na guerra. (Apud
Camargo e Góes, 1981:413-17)
são exatamente os valores que lhe conferem especificidade e prestígio. Também são
os valores critério da diferença entre doutrina, ciência e filosofia. Reafirmando a
superioridade da Doutrina, a ESG criticava a ciência, por um lado, pelo estatuto da
neutralidade que lhe era atribuído e, por outro, pelo princípio de indeterminação de
suas conclusões. Assim, exatamente por suas características específicas, a ciência
não permitiria que a prática estivesse sob seu domínio. Também a filosofia, reduzida
a um campo de conhecimento que não se ocupa da comprovação empírica de seus
postulados, foi descartada. (Rocha, 1996:51)
A ESG tem, como se pode notar, uma preocupação acentuada com questões de método,
para elaboração e difusão de sua doutrina. A concretização mesma do seu projeto político
dependia da apropriação do método através do qual, e só através do qual, a realidade pode ser
interpretada em sua totalidade.
Isso significa dizer que tudo aquilo que o método não pudesse apreender do real era
desconsiderado. Por via de conseqüência, os conceitos foram articulados entre si na forma de
um sistema fechado, formando um discurso circular. Foi a partir deste que a Escola considerou
a história e a própria realidade, selecionando e extraindo daí justamente aqueles elementos que
reafirmavam o próprio método e as proposições dele derivadas.
Por outro lado,
Guerra
Quando não se faz essa aproximação entre as duas, tendo por base a semelhança entre
fins e meios, política e guerra são vistas como técnicas antagônicas. Então, ao invés de
completarem-se, opõem-se. No caso da participação de um grupo militar na política, esta é
sacrificada “no que tem de essencial - a ductibilidade da ação, a manobra tática e a
manutenção do contato permanente com a massa” a uma errônea concepção do que seja a
guerra (Ferreira, 1984:582). Acaba-se pretendendo impor à sociedade o ethos burocrático -
disciplina, obediência -, de forma que as divergências são vistas como atentatórias.
Sociedade
11
Ubiratan Macedo afirma que “A influência do positivismo foi irrelevante na ESG, cingiu-se ao poder evocativo do lema
nacional. A teoria militar do positivismo exposta por Benjamin Constant é o oposto da que veio a prevalecer por mediação
de Góes Monteiro”. Da mesma forma, ele questiona teses como a de Schooyans, de que o integralismo fornecera os
aspectos doutrinários da doutrina esguiana. Para ele, a “função atribuída às elites [pela ESG] mostra o caráter não-
mobilizatório do modelo político esguiano, em contraste com o modelo mobilizador do integralismo” (Macedo,
1988:217).
48
ocupacionais, étnicos, religiosos e culturais, o que seria positivo na medida em
que cada um desses grupos, por suas “funções” específicas no “sistema social”,
criaria relações de complementaridade entre si, assegurando, dessa forma, a
sobrevivência e a evolução do todo social. Entretanto, o discurso omite tanto as
diferenças intragrupos - étnicos, religiosos, culturais e econômicos - como as
relativas às classes sociais. (Rocha, 1996:78).
A ESG via os grandes movimentos da história brasileira como manifestações das elites.
As dificuldades de comunicação, a extensão territorial e conjunturas propícias às resoluções
de cúpula são citados como explicação para isso, eximindo-se a população de uma apatia
imóvel. E os Manuais Básicos acentuavam mais:
Nação
A nação é definida pela ESG como produto da evolução natural das sociedades no
tempo e no espaço: nação é a sociedade já sedimentada, baseada em uma identidade coletiva.
Tal concepção de Nação, que inclui insuficiências internas, está bastante afim às do
nacionalismo conservador, o que é evidenciado ainda pela prioridade que cabe ao Estado
como materialização político-jurídica da Nação. Isso leva a uma violenta crítica ao liberalismo
e, subliminarmente, à democracia. Mas o nacionalismo da ESG ia além: “combinava de forma
peculiar a idéia de ‘colaboração’ externa em todos os planos da vida nacional com a de
soberania e autonomia da Nação” (Rocha, 1996:86).
Deveria haver coincidência de interesses entre a elite e a Nação: “Em verdade, a
coincidência entre as necessidades da Nação e das elites dirigentes manifestavam-se no
objetivo de promover o desenvolvimento capitalista, ressalvadas as possíveis diferenças
quanto à condução desse processo, devendo prevalecer a orientação do Estado sobre os
interesses particulares e momentâneos dos vários setores da burguesia” (Rocha, 1996:86). A
meta era transformar o País numa potência mundial 12 . Isso exigia que “recursos potenciais ou
efetivos do Brasil fossem colocados em estado de completa disposição aos fins hegemônicos,
fechando assim a possibilidade de integração comercial mais profunda em termos regionais
(do Brasil com a América Latina) ou com os países socialistas [sic]. Ora, os processos
reformistas de caráter nacionalista e os movimentos de caráter popular passam a configurar
obstáculos nesta nova ordem” (Oliveira, 1988:237).
O nacionalismo esguiano foi modelado pela oposição entre democracia e totalitarismo.
Esse é, como apontou Selma Rocha, um dos pontos vulneráveis da doutrina, uma vez que “ao
12
Segundo Selma Rocha, é necessário distinguir essa perspectiva da idéia de “nação civilizadora” do colonialismo e do
imperialismo, bem como da noção de superioridade das raças, rejeitada explicitamente.
50
definir a democracia, a Doutrina apresenta, ao mesmo tempo, dois modos de entendê-la: o
primeiro apoiado na idéia de que o poder e a soberania da Nação devem ter como fonte a
sociedade; e o segundo, que concebe a soberania e o poder como atributos do Estado, a quem
cabe, por meio de suas elites, construir intérpretes e executar a vontade da Nação” (Rocha,
1996:87). Assim, o conteúdo conservador desse nacionalismo vai além da vocação autoritária,
expressa no papel atribuído ao Estado e às elites, e ao papel instrumental da democracia. O
objetivo maior era transformar a Nação brasileira em potência capitalista e garantir o bem
comum e isso “condicionava a relação com os vários setores da sociedade”.
Estado
O Estado foi apresentado como tendo surgido natural e continuamente, dando origem à
Nação. “Esta, pela complexidade das relações que engendraria, assim como pelas exigências
ditadas para alcançar a ordem e o progresso, tornaria necessária a organização do aparelho
estatal.” (Rocha, 1996:90) População, território, soberania e governo - os elementos
constitutivos do Estado - são tomados como manifestações político-jurídicas dos elementos
naturais da Nação: o homem, a terra e as instituições.
Nesta visão homogeneizante de população, ainda que - baseando-se em elementos do
passado para conferir identidade comum no presente - a doutrina legitime a heterogeneidade e
a divisão de classes, nem mesmo assim aponta vínculos imediatos entre o Estado e a classe
dominante. Pela noção de soberania, que tem a pretensão de conferir uma autonomia mínima
ao Estado em relação à sociedade, prevalece a generalidade política. Esta autonomia é,
claramente, voltada ao desenvolvimento do capitalismo e à dominação burguesa, mas ainda
assim é considerada fundamental para refrear o impulso pelo lucro, que contém a
potencialidade de gerar desequilíbrios sociopolíticos atentadores à SN. A autonomia do
Estado é garantida pelo Poder Estatal, pelo monopólio dos meios coercitivos, que o distancia
da sociedade na medida em que o governo cedia a autoridade e os meios para impor-se e para
impor a ordem.
Selma Rocha observa que, ao contrário do que percebemos em Golbery, a semelhança
com Thomas Hobbes
Assim, a Nação se constitui, pela doutrina, no elo que confere legitimidade aos
conflitos interestatais e diferentes projetos de sociedade concorrentes na guerra fria. É dessa
forma que se justifica o envolvimento do conjunto da sociedade em busca da preservação do
Estado.
Segundo a ESG, o povo é o verdadeiro detentor da energia empregada para a realização
dos ON e do poder político, excluído o monopólio do mando. Este, nas democracias
representativas, é delegado aos governantes, para a realização do bem comum. Isso se dá por
meio do consenso, pela autenticidade das representações político-partidárias, pela constante
aferição dos interesses imanentes do povo e pela formulação de uma política que atenda aos
legítimos interesses nacionais. São considerados como fundamentos da democracia a
legitimidade do poder, a organização de um Estado de direito, a responsabilidade de
governantes e governados e o governo da maioria. Os protagonistas são o povo e a elite, com
atribuições distintas e complementares. Às elites cabe um poder hegemônico de interpretação
e implementação dos ON. Ao mesmo tempo, as elites devem incutir no povo objetivos por ela
definidos, a fim de garantir o aperfeiçoamento material ou espiritual da nação. Não há, na
doutrina, mecanismos inibidores de sua ação. São citados apenas os riscos de caos em caso de
descompasso entre as aspirações das elites e as nacionais. “Note-se que tanto o papel das elites
como os anseios e as aspirações da sociedade são definidos a priori, o que lhes confere caráter
formal e permanente, uma vez que não emergem de relações histórico-sociais específicas.”
(Rocha, 1996:93)
Participação e representação são também suportes desse conceito de democracia, ambas
tratadas no âmbito da pluralidade partidária, em que a participação do povo na vida política
nacional reduz-se à escolha de representantes. (A partir de 1974, o conceito de participação é
inserido na doutrina como fundamental, ao lado de segurança e desenvolvimento.) A
soberania da sociedade é, portanto, restrita, enquanto a do Estado é ampliada, mesmo porque
este é considerado legítimo representante da vontade geral da nação. O Estado de direito é
visto como resultado da necessidade de auto-redução do poder e pela divisão de poderes, mas
tais condições valem apenas para situações em que não se enxergam riscos à democracia e à
nação. Nas situações de exceção, a concentração ilimitada de poderes por parte do Estado
passa a ser considerada legítima.
Por outro lado,
Nenhum outro ON foi desenvolvido ou analisado na Doutrina da ESG até 1979, além
da dupla segurança-desenvolvimento. Desde 1949, a questão da segurança era tratada já nos
Princípios Fundamentais.
Quanto ao desenvolvimento, embora a doutrina só tenha realizado estudos na década
dos 60, os Princípios Fundamentais já anunciavam a importância do tema. Mas, até fins dos
anos 50, o tema foi tratado de forma genérica e imprecisa, apresentado apenas em relação à
segurança e com o objetivo de promover e garantir o bem-estar da Nação. Para a doutrina, são
indissociáveis os dois. “Quando a ESG, a partir de 1964, passou a dedicar-se aos estudos
relativos ao Desenvolvimento, o fez remetendo-se sempre ao problema da Segurança
Nacional, isto é, procurou estudar em que medida Segurança e Desenvolvimento
condicionam-se reciprocamente.” (Rocha, 1996:111) Inicialmente, insistiu-se na idéia de
mútua causalidade, contestada a partir de 1969, “porque considerou-se que o crescimento do
Desenvolvimento não implicaria necessariamente aumento das condições de segurança e vice-
versa. /.../ Por essa razão, o binômio Segurança-Desenvolvimento, em 1970, passou a ser
definido em termos de interdependência” (Rocha, 1996:112).
Via-se, então, que o próprio desenvolvimento poderia acarretar problemas de
segurança, como o despertar de crescentes expectativas. Mas sempre se ressalta a íntima
relação dos dois, que só são estudados em separado para efeito metodológico. A prioridade de
um ou de outro depende da conjuntura, mas as repercussões são sempre globais.
Podemos verificar, pelo exame da evolução dos conceitos, que até os anos 60, a
despeito das referências ao Desenvolvimento, o Objetivo Nacional [ON]
fundamental, definido pela ESG, foi a Segurança Nacional. Em torno desse objetivo
foram articulados os demais conceitos, o que levou a Doutrina a ser qualificada
tanto pela Escola, como pela literatura política que a analisou, como Doutrina de
Segurança Nacional. (Rocha, 1996:114)
53
Abordou-se, também, a relatividade da segurança, que para ser atingida demandaria
o sacrifício de necessidades sociais e nacionais, que gerariam fatores de insegurança. Ao
apresentar a concepção de segurança como instrumento de defesa do ocidente, a doutrina
buscava legitimá-la. Em relação à URSS, a ESG destacava que sua política de segurança se
referia ao Estado e não à nação, o que a deslegitimava. “A crítica, portanto, não se baseia na
idéia de maior intervenção do Estado na vida da Nação, mas sim na razão a partir da qual é
fundada: se na autoproteção do Estado ou na salvaguarda dos objetivos de toda a Nação.”
(Rocha, 1996:116) O alinhamento e engajamento no bloco ocidental não é vista como
imperativo, a partir de 1979, nem se aceita plenamente que seja um instrumento de realização
do projeto nacional. Afinal, como dizia o Manual Básico, “embora não represente um
imperativo universal, só um Poder Nacional preparado e aplicado por uma Estratégia Nacional
de Segurança preparado e aplicado por uma Estratégia Nacional de Segurança Externa
realista, oportuna e flexível representa efetivamente o alicerce da garantia necessária a uma
Nação” (Apud Rocha, 1996: 118).
Como bem destaca Selma Rocha,
Além disso, nos anos 60, a ESG passou a considerar em seus estudos a tensão norte-sul,
percebendo que a condição subdesenvolvida do Brasil engendrava problemas novos, relativos
à SN, que exigiam o envidar de esforços para sua superação. Quando da instituição do
primeiro governo militar, passou a estar no centro das preocupações da Escola o planejar o
desenvolvimento e o progresso da nação, o que reorientou definitivamente seus estudos. A
partir daí, o desenvolvimento, anteriormente tomado como parte da SN, passou a ser
compreendida como, ao lado deste, constituinte da política nacional. Nesse momento, definia-
se o segundo grande ON a ser expresso na doutrina.
Por meio desse ON, busca-se fazer aparecer a sociedade inteiramente engajada na
superação do subdesenvolvimento e na busca do progresso. Os países centrais apareciam
como o modelo de felicidade e bem-estar a ser alcançado, no que se refere à democracia e aos
direitos fundamentais do homem.
O poder nacional, segundo a ESG, é uno e indivisível. Duas decorrências disso: em
primeiro lugar, a subordinação do todo - o real - à sua parte política, uma vez que objetiva
engajar a nação no desenvolvimento e na segurança, preparando-a para a acirrada disputa pela
projeção nos quadros internacionais. Em segundo lugar, elide as diferenças sociais e outras
características internas ao país. A intenção é de fortalecer o Estado, visando a armá-lo para o
confronto ou competição com outros Estados. Assim, o poder não é considerado como relação
social e histórica em que as distintas classes fazem prevalecer seus interesses.
A divisão em político, psicossocial, econômico e militar vai de encontro ao ideário
liberal do equilíbrio entre os poderes republicanos. Essa divisão também faz um verdadeiro
balaio de gatos, na medida em que no político estão identificados os três poderes e os partidos;
54
no campo econômico, os três setores e a própria infra-estrutura; no campo psicossocial, a
moral, a comunicação social e a opinião pública; e no campo militar, os três poderes. Sendo
assim, é como se cada um dos componentes tivesse a mesma “quantidade” de poder diante da
Nação. “É rigorosamente verdadeiro, portanto, que, para fins de ‘quantificação’ da potência
do Poder Nacional, o Poder Legislativo é equivalente ao Poder Militar terrestre ou
aeroespacial, assim como os partidos políticos em relação à moral nacional” (Rocha,
1996:132). Contudo, apesar dessa equivalência entre os poderes, na doutrina o poder
executivo prevalece sobre os demais poderes, da mesma forma que o poder do Estado
prevalece sobre a sociedade.
Em verdade, todas as expressões do poder nacional estão sob direção do Estado e do
governo. Por via de conseqüência, a soberania do povo e a própria democracia passam a
pertencer ao campo da expressão política, dirigido pelo Estado. Em outros termos, as
liberdades individuais e a democracia têm sua manifestação regulada e limitada pela interação
entre as quatro expressões do poder nacional. Também está subentendida nesta lógica a
prevalência da expressão militar do poder nacional, em detrimento de sua expressão política -
dos partidos e dos três poderes.
Desenvolvimento
Geopolítica
Os estudos na área de geopolítica iniciaram-se em 1952. Essa área era tratada, então,
cautelosamente, tendo em vista a “má fama” da geopolítica, dado o seu aproveitamento pelo
nazi-fascismo, e a relativização de seus predicados pelo avanço tecnológico.
As definições dadas à geopolítica no decorrer dos anos 50 não se articulavam com a
DSN e caracterizavam-se por razoável grau de imprecisão e determinismo. À definição
57
incerta, somam-se a enorme abstração das diretrizes, que não esclarecem os nem os meios
necessários nem seus agentes viabilizadores.
Desde o início dedicada a servir ao Estado, a geopolítica orientou seus objetivos no
plano das relações internacionais, especialmente com sua idéia de que espaço é poder. Por
esse meio, tornou as relações internacionais como elemento de coesão e centralização da
nação e subordinou a sobrevivência própria e a do conjunto da sociedade ao sucesso ou
insucesso das ações estatais levadas a cabo nesse âmbito. Partia, portanto, de uma idéia de
Estado autonomizado em relação à sociedade, movido por interesses próprios mas, ao mesmo
tempo, identificado com o ideal de nação que supostamente representaria. As conseqüências
desse raciocínio são muito importantes: “as diferenças sociais foram diluídas no plano
ideológico e, no plano político, os conflitos subordinaram-se aos objetivos globais de domínio
de poder.” (Rocha, 1996:60)
Inoculando os conceitos geopolíticos difundidos na época, a ESG os articulou, a partir
de 1958, com os conceitos doutrinários elaborados. Essa interpenetração da geopolítica com
as questões militares refletia a preocupação com a garantia de sobrevivência do Estado-nação
diante das pressões e antagonismos manifestados internamente no país, mas cujo estímulo
encontrava-se no exterior. Aqui, as pretensões expansionistas dão lugar ao objetivo de garantir
a sobrevivência do Estado e afirmar a política nacional. Por outros termos,
Selma Rocha destaca que, não obstante a produção da ESG no que se refere à
geopolítica ser normalmente analisada tendo por base o pensamento geopolítico golberyano, a
influência deste, como comprova o exame dos manuais, não foi senão muito geral. A doutrina
considera a geopolítica como um dos fatores a ser considerados quando da atuação do Estado
com vistas a preservar a nação e alcançar os ON. Contudo, não vai além, deixando de indicar
as formas específicas pelas quais se daria essa apropriação.
A síntese das discussões da ESG foi expressa no Manual de 1975, por meio de três
idéias-força: “a posição geográfica das nações como um dos condicionantes das relações
internacionais; o espaço ou extensão territorial como característica geográfica que contribuiria
ou não para a eficiência das ações políticas” (Rocha, 1996:62). Não obstante, prepondera a
idéia de que o fortalecimento do poder nacional é determinante para a projeção da nação, mais
que os fatores geográficos. Estes fatores são importantes porque a integração nacional e
territorial (componentes dos ONP) constituem-se em elementos que caracterizam a Nação e
propiciam as condições de desenvolvimento das políticas de segurança e desenvolvimento.
O que se infere do estudo dos manuais é que a geopolítica é uma questão menor na
doutrina. A geopolítica é considerada por Maria Selma Rocha como um dos fundamentos da
doutrina devido ao “conteúdo ideológico das formulações relativas ao Estado, à Nação e à
perspectiva de sua projeção e hegemonia no plano internacional” (Rocha, 1996:64).
Uma das definições dadas à geopolítica é: “base científica da atuação política na luta de
vida ou de morte do Estado, pelo espaço vital”. Sendo assim, aponta Selma Rocha, embora
não esteja definido claramente o objeto de estudo, diz-se explicitamente que a função da
geopolítica é “subsidiar a ação do Estado em seus objetivos expansionistas. Nesse caso, a
58
Geopolítica constitui-se em instrumento de fortalecimento do Estado, o que traduz uma
política de poder e de sua expansão, concretizando um aspecto de sua política nacional”
(Rocha, 1996:58).
As pretensões expansionistas no mundo eram apresentadas como objetivos exclusivos
dos países comunistas, inspirando a elaboração do caráter global e total da guerra. Baseava-se,
assim, num diagnóstico parcial do panorama internacional. As alianças entre os países do
ocidente foram vistas como respostas às investidas do comunismo internacional. Segundo
Selma Rocha, a tensão Norte-Sul não é considerada para efeito de compreensão do caráter da
guerra contemporânea.
Golbery e a ESG
Era um grupo coeso, com muitas idéias em comum e que tinha por hábito longas
discussões em torno do Exército, do seu papel e organização e mesmo dos
problemas mais gerais do país. Nessas discussões, em que Golbery e Geisel se
destacavam, foram aprofundando suas afinidades /.../. “- Aí, nesse trabalho, nasceu o
embrião da Escola Superior de Guerra” - diz Sardenberg (Bones, 1978:19).
Em 1952, Golbery foi chefe de estudos da ESG. “As conferências que pronunciou na
época foram reunidas num livro intitulado Planejamento Estratégico, e hoje são consideradas
uma das principais fontes de ideologia da Escola Superior de Guerra e da Revolução de 64”
(Bones, 1978:19; ver também Stepan, 1975:136). A influência de Planejamento Estratégico é
muito maior “do que seus estudos geopolíticos, estes considerados com curiosidade e
simpatia, mas sem serem incorporados ao ideário oficial da Escola, ao contrário do sucedido
com o outro livro” (Macedo, 1988:217).
Os depoimentos de Golbery a respeito de sua participação na construção do ideário da
ESG exprimem o orgulho de que tenha sido a sua a geração a deixar substratos na ESG sobre
os quais outros estagiários construíram “Doutrina coerente e integradora” (PE:465).
Aqui senti, então, a trepidação contagiante da criatividade que inspirava esta Escola,
na elaboração original de uma Doutrina de Segurança Nacional novinha em folha,
59
autóctone de fato, por mais que em nada alheia ao que se formulava, justo
naquele mesmo momento, nos laboratórios estratégicos mais adiantados do mundo.
(PE:465; CN:3)
Sob a orientação de homens como Juarez Távora e Cordeiro de Farias - espírito
empolgado e visionário, um; inteligência pragmática e sutil, o outro -, mourejavam
lado a lado, horas a fio e até varando noites, militares como Ernesto Geisel,
Mamede, Herrera, Rodrigo Octávio e Dorval Reis, diplomatas /.../, técnicos /.../, ao
estímulo do convívio de estagiários da estatura de um Mário Pedrosa ou de um José
Honório Rodrigues, para não citar senão nomes de quem se viria a afastar de nós por
contingências dissociadoras naturais dos períodos dinâmicos das revoluções, sempre
apaixonantes e sempre dramáticas, quase nunca justas. (CN:3)
A
questão da insegurança - e, portanto, de seu contrário, a segurança - é absolutamente
fundamental para o pensamento do general Golbery. Podemos afirmar, sem sombra de
dúvida, que a quase integralidade da sua teoria baseia-se na questão primária do medo
advindo da insegurança.
O núcleo basilar sobre o qual se construtura a ideologia golberyana é justamente a
insegurança do homem diante de um mundo que não compreende e onde luta para sobreviver
- o “aturdimento profundo do espírito humano ante o mundo complexo e insondável que o
circunda e por vezes o sufoca e até mesmo o agride” (PE:11, grifo nosso).
Golbery esforça-se por expor a dramaticidade do Medo, adjetivando-o à abundância.
“Grande medo”, “medo cósmico”, “medo paralisante e tenaz” - mais que um sentimento, um
estado de espírito terrível que surge da “insegurança generalizada e crescente”, da “angústia
existencial” do homem diante do mundo. Assim, existir é sinônimo de viver sob o signo da
insegurança, pois “viver perigosamente” “é o próprio de toda a vida na natureza, é o próprio
do homem em meio da sociedade, é o próprio do Estado também nesse mundo que ainda o
circunda” (PE:403).
Patenteia-se aí, e o general não o disfarça, a influência de Hobbes - o “filósofo do
Grande Medo”. O homem é o lobo do homem. Ou, nas palavras do general, “É próprio da
natureza humana que cada um, usando seus argumentos, tenha sempre como pano de fundo
uma única preocupação /.../: ‘E como é que eu fico?’” (Revista Veja, 16/4/84) Assim, a
natureza do homem é a natureza própria do homem sob o capitalismo, egoística, mesquinha e
interesseira.
Hobbes é apontado por Golbery como o principal representante dessa corrente
filosófica que tem por base a questão da insegurança do homem no mundo. Tal corrente, diz
ele, continua a existir com toda força. Para ele, a diferença dos politólogos mais recentes
encontra-se no método, mas não na superação do medo fundamental - este ainda hoje persiste
e, por isso, domina a teoria dos novos pensadores.
O Estado soberano, surgido das fontes profundas do Medo para prover a segurança
individual e coletiva na Terra, passaria a afirmar sua vontade onipotente sobre os
destinos de todos os súditos que o haviam criado, assim mesmo, inigualável e
autárquico, mas, já agora, pela própria necessidade de um raciocínio lógico,
escorreito e severo, que o justificaria, de uma vez para sempre, contra todas as
críticas e contra quaisquer argumentações. E, assim, em Hobbes encontrariam, ao
seu inteiro dispor, os defensores do autoritarismo mais rigoroso - todos os déspotas
futuros, esclarecidos ou não; os senhores da guerra; os novos Césares, no tumulto de
suas ambições insofridas; as minorias usurpadoras e tirânicas - inteiramente
modelada, em linhas inflexíveis e rigorosas, a teoria que lhes absolveria os
desmandos e lhes encobriria os caprichos insanos, enquanto se pudessem manter,
pelo poder da coação, como governos de fato. (GB:7; PE:361)
Assim, surgido das “fontes profundas do medo”, de acordo com o “mito fascinante e
estranhamente crível do contrato social”, o Estado teria como função arbitrar conflitos
internos dos homens-lobo em disputa, a fim de que a segurança e a própria existência do todo
fosse garantida. O Estado seria, portanto, um árbitro imparcial com possibilidade de decidir
com sabedoria salomônica as divergências que ocorram no interior do grupo e que possam
ameaçar sua segurança e, portanto, sua existência.
Contraditoriamente, este pensamento acabou por fecundar teorias absolutamente
díspares - tanto o liberalismo quanto o totalitarismo. É por isso que, na tentativa de
compreender fenômenos de massa ocorridos na primeira metade do século - como o fascismo
e o nazismo, bem como o estalisnismo -, Golbery volta ao tema da insegurança fundamental.
Englobando sob a denominação totalitarismo aquelas ocorrências históricas inconfundíveis,
Golbery justifica seu aparecimento como já justificara o surgimento do Estado:
Assim, numa conjuntura “em que se debate, angustiado e como que perdido, o espírito
humano” (GB:15), a humanidade vê se “acrescer ao velho dilema entre Liberdade e Segurança
um colorido profundamente trágico”, com o surgimento de novas armas, e com o risco
iminente de perda da própria segurança por que se sacrificou a liberdade (GB:12). Fracassou a
busca de segurança com a cessão de poder ao Estado, nos primórdios do seu nascimento.
Agora, a equação tende a se repetir, em condições muito mais perigosas. Golbery, temeroso
62
desse resultado, evoca em Hobbes a “admirável construção lógica de sua monolítica
sistematização da política” mas adverte que, a despeito dessa “maravilha argumentativa”, a
liberdade deve ser preservada (GB:15).
Desta forma, não obstante critique eventuais “utilizações incorretas” da teoria
hobbesiana pelos déspotas, minorias tirânicas e novos césares, Golbery não questiona seus
fundamentos. Pelo contrário, como já dissemos, Hobbes é considerado por ele o melhor
intérprete da gênese estatal pela alienação de poderes em função do aumento da segurança.
Outro aspecto da mesma questão foi destacado por Oliveiros Ferreira: a influência patente de
Hobbes “é negada ou se pretende negar” por Golbery “talvez pelo fato de, insensivelmente,
transferir o esquema hobbesiano do plano individual, em que o autor do Leviatã situara o
problema /.../ para o do Estado, em que para Hobbes, o ‘grande Medo’ jamais poderia existir,
pois o Estado fora exatamente criado para trazer a paz aos homens” (Ferreira, 1984:585-586).
Além do mais, pode-se chamar o general de continuador do filósofo do medo, pelo qual
ele também se deixou dominar. Segundo Ferreira, é o temor de que a civilização cristã-
ocidental desapareça “que inspira o pensamento do gen. Golbery; e de tal forma se faz sentir a
presença desse elemento irracional nas páginas introdutórias que se poderia dizer que o
conceito de Segurança Nacional desenvolvido na Geopolítica do Brasil nele se baseia, embora
acuse Hobbes de haver-se deixado dominar pelo medo” (Ferreira, 1984:586). Deveríamos
acrescentar que esse temor também se refere a qualquer elemento atentatório à segurança do
Estado.
Outro dado interessante que reflete as bases da visão de mundo de Golbery são os
termos colocados do “velho dilema” liberdade versus segurança, como se outros aspectos não
fossem possíveis. É, note-se, uma inversão total do lema da burguesia revolucionária do
período iluminista: liberdade e igualdade. Os termos do seu dilema estão ambos sob a tutela
do Estado.
De outra parte, Golbery não chega a dar uma definição única, inequívoca, de Estado.
Ele dá algumas indicações no decorrer dos escritos, mas não chega às definições didáticas que
utiliza em outros momentos. Um dos indicativos mais sólidos são as metáforas biológicas,
bastante recorrentes quando fala do Estado e de seu processo de constituição e
desenvolvimento: “vida do Estado”, “organismo social”, “organismo político” e outras. Uma
das mais singulares metáforas biológicas é aquela em que fala da distensão e da centralização:
“como que pulsa, vivo, o coração do Estado, na seqüência interminável de diástoles e sístoles
- sujeita como tal a arritmias, isquemias e enfartes, bradi e taquicardias, quando não a
fibrilações altamente perigosas” (CN:21).
As mais claras acepções de Estado que se pode encontrar em Golbery são as
reproduzidas a seguir.
O general percebe o Estado, juntamente com as Nações e as Comunidades, como
“grupos secundários culturalmente organizados” “que, na escala dos conjuntos nacionais, se
vêm a dispor, como é de todos sabido, bem acima ainda dos chamados grupos primários e
quase primários”, “caracterizados que são estes por uma intimidade muito maior e um
coeficiente mais elevado de identificação simpática, próprios das relações face a face”
(GB:199-200).
Estado é, para Golbery, “um organismo político com existência real sobre uma dada
área e em um momento dado”, e “nada mais traduz que uma preponderância das forças
coesivas políticas, econômicas etc., sobre as forças desagregadoras de toda espécie (ou, pelo
menos, um equilíbrio mais ou menos estável entre essas forças opostas)” (PE:211). Impondo
seu poder sobre toda uma gama de fatores desagregadores, o Estado não se resume a um
aspecto político ou militar: “Na realidade, a vida do Estado é multiforme, estendendo-se-lhe a
ação promotora, controladora e inibitória ou coercitiva a campos vários e múltiplos setores,
63
todos interdependentes de fato e que mal se enquadram em qualquer das costumeiras
demarcações não mais que didáticas - campos político, econômico, psicossocial e militar, por
exemplo.” (GB:15; PE:476)
O Estado também pode ser coisas diversas de acordo com o objetivo que se pretende
alcançar. Utilizaremos, para exemplificar, a geopolítica e a geoestratégia, que atuam em
diferentes momentos do ser Estado: no âmbito da geopolítica (que só pode ser nacional, como
veremos em outro ponto), deve-se sempre visar “à sobrevivência do Estado como entidade
internacional dotada de um poder soberano, como organismo social em processo de
integração continuada, como nação próspera e prestigiada no mundo” (GB:169, grifos
nossos). Esses três aspectos, portanto, fariam parte do Estado-nação em sua noção mais ampla.
Já a geoestratégia nacional deve visar, segundo Golbery, “à segurança do Estado-
Nação”, portanto à instituição estatal e seus diversos órgãos. Já aqui percebe-se a opção de
Golbery em favor da segurança do Estado. Pois, ao fim e ao cabo, para ele “Os Estados são
realidades indiscutíveis e insofismáveis que atuam como unidade de poder no cenário
internacional” (PE:205). Mesmo as elites, ele as põe sob o domínio e a serviço da instituição
estatal. A sociedade como um todo está aí para servir ao Estado, organizada como nação, e
para além disso constitui uma abstração. Daí sua frase famosa: “Os povos são um mito: só
existem as nações, e a Nação é o Estado” (OESP, 6-8-76).
Para Golbery, desde o seu aparecimento, sempre foram os Estados que ditaram as
regras do jogo, no cenário internacional; internamente, é o Estado que realmente conhece os
objetivos da nação e não poupa esforços para atingi-los. Aqui, não há diferenciações internas
no grupo social organizado sob um Estado. De qualquer forma, tal situação permanece
atualmente, não obstante surgirem indícios, para ele claros, de novas formas que se
relacionarão no âmbito internacional num futuro mais ou menos próximo. Em suas palavras,
Desde que se formaram os primeiros Estados, sob a forma arcaica dos Estados-
Cidades que floresceram e brilharam no mundo da Antigüidade, ressurgindo, ao
depois, no terreno fulgurante do Renascimento europeu, desde os grandes impérios
fundados pela religião ou pela espada até os Estados-Nações que, ainda hoje, entre
nós se multiplicam, quando talvez já desponte, em formas embrionárias - a OEA, a
OTAN, a OTASE, de um lado, e, de outro lado, a URSS -, a estrutura multinacional
de amanhã, sempre foram os Estados, os verdadeiros protagonistas no cenário
internacional, como intérpretes e paladinos autorizados das aspirações e interesses
dos correspondentes grupos sociais. (GB:10; PE:365)
Também no que se refere às relações dos Estados entre si, a questão da insegurança é
fundamental. Como vimos, é a própria realidade que é insegura, provocadora: “ - viver
perigosamente. É que isso, afinal, é o próprio de toda a vida na natureza, é o próprio do
homem em meio da sociedade, é o próprio do Estado também nesse mundo que ainda o
circunda” (PE:403). Isso porque o Estado não está sozinho no mundo: enfrenta-se com outros
Estados num mundo de Estados-Nações “em sua trajetória prenhe de tremendos presságios,
desde que o Tratado de Vestfália lhes deu foros de protagonistas principais no palco da
História, primeiro européia, depois universal” (CN:19).
Cada um dos Estados criados pelo “raciocínio lógico e escorreito” dos homens tem
seus próprios interesses, muitas vezes contrapostos aos dos outros Estados - ou, o que é tão
grave quanto, muitas vezes coincidindo em seus objetivos. Por isso, cada um dos Estados se
bate com os outros, procurando fazer prevalecer interesses próprios. É aí que entra a
diplomacia. Mas, se esta falhar, os Estados não poderão hesitar em ir à guerra - vista por
Golbery como praticamente inevitável. Assim,
64
o fato primacial que vale considerar, no conjunto do panorama internacional, é
que cada Estado se move ao impulso potente de um núcleo de aspirações e
interesses, mais ou menos definidos com precisão num complexo hierárquico de
Objetivos.
Para os Estados Nações de nossos dias, são seus Objetivos Nacionais [ON].
Animado, assim, cada Estado por seus próprios Objetivos, e fundamentados estes
num código moral predominantemente egoísta, de admirar seria que não surgissem
antagonismos diversos, alguns de importância vital incontornável, entre certos
Estados, por quererem estes cousas opostas quando não, cada um para si, a mesma
cousa, nessa paisagem anárquica que continua a ser, a despeito de todos os esforços
despendidos milenarmente em tratados e ligas sempre pouco duráveis, a vida
internacional do planeta. (CN:11; PE:366-367)
Mas, no mundo dos Estados-Nações, estamos ainda numa fase feudal - urge bem
reconhecê-lo -, estruturando-se, atomisticamente, o poder em núcleos esparsos e
autônomos, numa primeira etapa de cristalização rudimentar, em que cada Estado se
defronta com os demais, tal como, em outras épocas, os barões e os senhores, em
seus domínios quase auto-suficientes, desafiavam-se mutuamente e levavam à luta
suas coortes heterogêneas e turbulentas de cavaleiros, de servos, de vassalos e
libertos. (CN:12; PE,:368)
Contudo, já se tem claros sinais de que virá por aí o superleviatã, o organismo político
multinacional que o próprio panorama internacional de guerra total exige. Da mesma
insegurança profunda que produz esse superestado, vêm também as “novas mitologias
totalitárias”, insidiosa ou explicitamente buscando convencer os indivíduos a renegar à sua
liberdade para conseguir mais segurança, como já vimos. Assim, se no plano interno, desperta,
“o Leviatã, adormecido por tantos séculos, ao som das novas mitologias totalitárias”, “as quais
incitam e buscam seduzir a Humanidade desvalida e temerosa ao escambo ominoso”, no plano
internacional,
a integração sempre crescente do grupo social que compõe a Nação, tanto sob o
ponto de vista político, como psicossocial e econômico, é também condição
fundamental da própria sobrevivência do Estado. Essa integração é um processo
social, permanente e dinâmico, que apresenta fases críticas de retrocesso e fases
positivas de recuperação mais ou menos acelerada, mas desconhece a estagnação
duradoura; uma ameaça de desintegração social, de cisão, de cisma no seio da
comunidade nacional é sempre um desafio dos mais sérios à própria sobrevivência
do Estado-Nação (GB:169).
O que se pode concluir do conceito de Estado de Golbery é que não passa de uma
generalização abstrata, a-histórica e informe. Formado pelo “estranhamente crível” mito do
contrato social e embasado em um “código moral”, animado por uma “consciência coletiva” e
cônscio dos interesses e aspirações “comuns” a todos os seus membros, que em tese
representa e que o apóiam, parece uma entidade espiritual intemporal e homogênea, cujos
únicos contrapontos são os interesses de outros Estados. A origem apontada para o Estado
busca justamente transmitir a idéia de que o Estado eliminou conflitos e diferenças sociais
mais sérias e representa os interesses de toda uma sociedade - ao invés de classes antagônicas,
o povo ou, como ele prefere, a nação. Os casos que demandariam a arbitragem “imparcial” do
Estado, parece, seriam exceção. Não há aqui, portanto, o conteúdo classista que permeia as
relações sociais no capitalismo - Golbery, aliás, evita furtivamente a identificação de seu
Estado com o capitalista -, de modo que os interesses econômicos contraditórios, as
divergências políticas, sociais, ideológicas internas a cada Estado desaparecem nesse todo em
que todos os interesses são pardos.
66
Tal o nacionalismo, por exemplo, apregoado, com tanto maior virulência quanto
maior desfaçatez, pelos comunistas de todos os matizes - o pseudonacionalismo que
disfarça a fria e inexorável lógica de seu internacionalismo imanente na metafísica
sibilina de uma dialética flutuante e acomodatícia, oportunista e cínica, o pseudona-
cionalismo que se reconhece e se proclama a si mesmo muito mais classista, afinal
do que propriamente nacionalista, o pseudonacionalismo que, na verdade é, antes de
tudo, muito mais partidarista e sectário do que até mesmo classista (GB:99).
Mas, Golbery vê outra questão em relação ao nacionalismo: para ele, no mundo atual,
“a solidariedade do cidadão ao organismo nacional a que pertence por seu nascimento e pela
sua formação cultural, que é um segundo nascimento” acaba relegada a segundo plano, em
função da dependência a grupos diversos. Desses grupos “não lhe é dado em todo caso
alienar-se”, complicando-se a situação porque “seus interesses e fins freqüentemente
divergem, quando não se demonstram antagônicos” (GB:20-21).
Por isso, segundo ele, é impossível não perceber “hoje quanto se vai quebrantando e
amolecendo já o espírito nacionalista em muitas áreas do globo, justamente naquelas onde
primeiro se manifestara ele”. É que, de tão “gasta”, a ideologia nacionalista aí “não mais
consegue galvanizar a dedicação do cidadão nem inspirar as massas desnorteadas e
descrentes”. Mas a condição de usada da ideologia nacionalista ganha um corpo mais material
a seguir, quando ele acrescenta que, “tais os óbices agora existentes, não mais se oferece,
atraente, a promessa de um futuro radiante nos quadros, tornados por demais restritos, de
nações combalidas, desesperançadas quase, amputadas muitas vezes” (GB:100-101).
Com a decadência do nacionalismo em seu local de origem, propõem-se novas
formulações ideológicas que o substituam: “ressurge um novo humanismo em folha; o
internacionalismo difunde-se; prega-se um pacifismo desfribante e abúlico”. De outro lado, de
par com o vislumbramento da “Idade Imperial” em que dominam superestados rodeados de
uma pletora de microestados, “Esbatem-se, ao mesmo tempo, as fronteiras; afirmam-se e
alargam-se alianças em novas formas de comunidade; prenuncia-se, talvez, o surgir de nações
rejuvenescidas, em bases territoriais bastante mais ampliadas” (GB:100-101).
Isso não quer dizer, porém, para Golbery que “seja de todo irremediável, ainda, a
tragédia atual desse nacionalismo, decadente e céptico, do Ocidente europeu”. Primeiro,
destaca ele, o “nacionalismo já presenciou e serviu até mesmo de inspiração e fanal e de
instrumento ideológico a coalescências semelhantes em épocas passadas, não tão remotas
assim”. Ademais, “para além de todas as fronteiras de um Ocidente que já começara, em
verdade, a descrer dela”, a ideologia nacionalista obtém “êxito sempre crescente” (GB:228).
Na África toda, na Ásia (Indonésia, Japão, China, Índia, sul e sudeste do continente), na
Oceania, seria justamente o nacionalismo o responsável pela contenção e posterior expulsão
do colonialismo: é a velha máxima de utilizar-se das armas do inimigo para melhor combatê-
lo; no caso, a arma é o nacionalismo. Dessa forma, naqueles cantos do mundo
É esse um dos momentos em que Golbery analisa a realidade para ver ali apenas o que
ele quer ver. Da mesma forma que olha para um mapa e vê um destino grandioso para o
Brasil, vê na América Latina um nacionalismo com as características acima. Se bem que ele
não apenas espera que este nacionalismo tenha os efeitos desejados: afinal, tal “nacionalismo
sadio” não deve pairar no ar, mas deverá “inspirar, motivar, permear toda elaboração política,
toda concepção estratégica, toda formulação geopolítica” (GB:100-101).
O nacionalismo sadio ajuda, pois, na constituição e engrandecimento da própria Nação.
E, de par com isto, o nacionalismo verdadeiro é a defesa do mundo ocidental cristão-
capitalista. O Brasil desenvolve um processo de subimperialismo ou de key-country 13 baseado
justamente na defesa desse tipo de nacionalismo.
Como Oliveiros Ferreira percebeu, a introdução do elemento antagonismo,
especialmente no nível internacional, é importante para a amarração da DSN, principalmente
diante do conceito de nação.
Em outro lugar, Oliveiros Ferreira também apreendeu o “drama íntimo” que perpassa a
ideologia golberyana: ser, ao mesmo tempo, nacionalista e estar votado à sobrevivência da
civilização ocidental. Golbery procura resolvê-lo proclamando um nacionalismo “que é toda a
nossa nobreza”, - mas não um nacionalismo simplesmente, e sim um nacionalismo
“amadurecido, realista e crítico”, conforme vimos, e que não se chocaria com a opção pelo
ocidente. Voltaremos a esse ponto.
13
Ver, a respeito, Covre (1983), Schilling (1981) e Mello (1997).
71
2 - O DILEMA IRRESOLVIDO DO CONSERVADORISMO BRASILEIRO:
ANTILIBERALISMO E DEFESA DA DEMOCRACIA
Golbery é antiliberal. Por diversas vezes, ao longo de seus escritos, ele o expressa
claramente. Vários outros pensadores conservadores brasileiros também eram antiliberais,
pois viam uma inadequação entre o liberalismo e a sociedade brasileira. Golbery é um dos que
vêem uma inadequação entre o liberalismo e o próprio mundo moderno. Para ele, o sistema
liberal está ultrapassado e pode, inclusive, ser responsabilizado por vários males que rondam a
sociedade atual. Palavras como “decadência”, “impotência”, “lentidão”, “tolerância”, “abulia”
e “desilusão” são freqüentemente associadas, por ele, ao liberalismo.
Como destacou Oliveiros Ferreira, a filiação a Hobbes já traduz o caráter antiliberal do
pensamento golberyano - “mas é um antiliberalismo de cunho conservador, e não
revolucionário” (Ferreira, 1984:586). Mas há que destacar a influência inegável do
conservadorismo brasileiro nessa percepção de fracasso do liberalismo, um dos pontos
centrais do pensamento golberyano.
Rejeitando tanto o liberalismo quanto o totalitarismo, Golbery acabará por propor uma
terceira via, como veremos. Mais ainda, é a noção de falência do liberalismo que explica o
ressurgimento das “ideologias totalitárias”, o que, por sua vez, está umbilicalmente ligado ao
antagonismo vital pelo qual, no seu entender, o mundo passava.
Diante da insegurança eterna e sempre crescente do homem em sociedade, uma das
mais fortes características que Golbery identifica no mundo atual, as mesmas idéias
hobbesianas que fecundaram o liberalismo acabaram alimentando as “modernas ideologias
políticas” totalitárias: pois foi o Medo que provocou “a rendição total da liberdade do
indivíduo em aras de um poder soberano, incontrastável e supremo” (GB:7), ao engendrar o
Estado, “para prover a segurança individual e coletiva na Terra” (GB:7; PE:361).
Ocorre, porém, que tal invenção não funcionou a contento. Pois, “extrapolando os
teoremas hobbeanos”, o liberalismo veio a diminuir o poder daquela criação onipotente e
autárquica. E, novamente, a humanidade vê-se diante do Medo, da insegurança eterna.
Novamente, parece encontrar-se na renúncia à liberdade e no fortalecimento das idéias
totalitárias (que são diferentes do simples aumento de força do Estado, como veremos) a
solução para seus problemas. Um acontecimento que se repete no plano internacional, com o
despontar do Estado-universal. (GB:9; PE:362-363)
Para Golbery, portanto, O “mundo decadente de um liberalismo impotente e exausto”
reclama outra solução para sua eterna insegurança (PE:115; GB:8). Os indivíduos tendem a
querer mais direitos, “além das simples e reconhecidamente vãs liberdades políticas” (grifo
nosso). Aliás, ainda nesse plano político, o liberalismo está sujeito a muitas outras críticas.
Golbery faz o seguinte retrato do mundo forjado pelo liberalismo:
Golbery não deixa também de criticar duramente o modo de ser do próprio capitalismo
imperialista, seus apologetas e
E reitera, ainda uma vez, que “ou a Democracia se renova e avigora ou irá sucumbir,
exangue de forças e de vontade, nos braços ásperos do cesarismo” (GB:21).
No outro extremo do gradiente de opções, ele vê o totalitarismo, a opção mais lógica,
diante da rejeição cabal que faz do liberalismo. No entanto, Golbery também o rejeita de
antemão. Tal rejeição tem por base a dissociação dos conceitos de liberalismo e de liberdade.
Se aquele é anêmico e irresponsável, esta é, no seu entender, parte indissociável da própria
natureza do ser humano.
Em outras palavras, rejeitar o liberalismo não significa, para ele, rejeitar também a
“Liberdade que é exigência essencial e impenhorável da condição humana” (GB:10; PE:364).
E, como a civilização ocidental tem grande apreço pelo homem, não pode rejeitar a liberdade
que é parte integrante da natureza humana: “A liberdade democrática é um valor inestimável
para a civilização do Ocidente, e renegá-la, em face do agressor totalitário, seria, no fundo,
confessar-se a priori vencido.” (GB:237)
Fundamentalmente, contudo, a liberdade não pode ser anulada ou rejeitada porque ela é
essencial para a manutenção da ordem e do progresso da sociedade. Além, pois, das prédicas
sobre a humanidade de cuja natureza a liberdade é parte integrante, seu caráter instrumental
deve ser considerado por quem quer que busque a segurança e o desenvolvimento social. E tão
importante Golbery considera esse fator que faz questão de frisar que, neste nosso mundo
convulsionado, só haverá “gerações efetivamente conscientes” se se “demonstrarem capazes
de decifrar esse tremendo complexo da Segurança Nacional”, solucionando-o “bravamente,
sem apostasias covardes e contra o ignorantismo criminoso ou a displicência abúlica” (PE:376
e 419).
Ele retoma outra vez a questão, enfatizando inicialmente o fundamento ético da
liberdade -“A liberdade do homem é, entretanto, valor eterno, pois que verdadeiro padrão de
humanidade” - para, em seguida, reiterar seu caráter instrumental: “Sua perda ou compressão
poderá resultar, sob sistemas de coercitiva concentração e rígida disciplina de esforços, num
progresso mais acentuado e mais amplo. Mas este acabará por exaurir-se de todo, com a
história em todas as suas seculares lições indefectivelmente proclama.” (PE:410)
Golbery explica esse aparente paradoxo por meio da lei dos rendimentos decrescentes,
segundo a qual segurança, liberdade e desenvolvimento, embora em campos opostos ou
diferenciados da vida social, mantêm entre si relações estreitas e interdependentes. Todos têm
de ser minimamente garantidos, pois dessa mínima garantia depende o equilíbrio do todo e,
portanto, o próprio desenvolvimento de cada um dos outros elementos. Assim ele o exprime:
Para Geisel as sociedades estão inseridas numa escala quanto à forma do regime
político. Esta escala é demarcada de um lado pelo totalitarismo e de outro pela
democracia. Um e outro são, em si mesmos, formas utópicas de organização
política, pois que inatingíveis, daí ele falar em “democracia relativa” ou em
“relatividade democrática”. Essas formas de governo, por sua vez, não são
determinadas exclusivamente no campo da política, mas pelo desenvolvimento
psicossocial, econômico e social de cada Nação. (Mathias, 1995:95)
Para Golbery, o grande problema com relação ao totalitarismo é que esse sistema teria
avançado para além do que seria recomendável na condução das vidas de cada indivíduo, com
controles sociais extremos. É aí, segundo Golbery, que se encontra a oposição entre
liberalismo e totalitarismo, que não se dá em termos de amplitude da ação estatal.
75
Mesmo que se confine - transitoriamente, por certo - a um setor apenas das
atividades nacionais, nem por isso o totalitário virá revestido de um caráter
propriamente democrático. (Além disso, a coexistência de setores planejados e
setores completamente livres é muito mais fácil de manter-se no âmbito de uma
sociedade democrática, a qual, em seu respeito essencial pelos direitos da
personalidade humana, tenderá sempre para uma prudente limitação do
intervencionismo estatal. Enquanto que, no sistema totalitário, a liberdade concedida
em qualquer setor acabará por traduzir-se, em curto prazo, num perigo ameaçador
para todo o sistema [PE:409].) /.../ o abismo em verdade existente entre tais sistemas
opostos se situa, de fato, nos métodos, por um e outro adotados, de controle social.
(PE:407, grifos nossos.)
Com essas características, Golbery ressalta que ocorrem crimes que nem a denúncia
nem a autocrítica nem as “desestalinizações aparatosas” poderão redimir jamais. Isso porque,
O contraponto desses crimes e desse enorme sacrifício do povo não pode ser negado:
76
Golbery está ciente, e não o esconde, de que o sistema democrático não está isento de
muitos dos problemas atribuídos ao totalitarismo. Porém, para ele, esses problemas não são,
aqui, ao contrário do que ocorre no totalitarismo, inerentes ao próprio sistema, mas
constituem-se em desvios ocasionais de percurso.
Segundo Oliveiros Ferreira, ao fim, Golbery sucumbe à antinomia autoposta
comunismo versus democracia e por isso torna-se incapaz de
Criariam, assim, neste, aos poucos, a viva consciência de que tais interesses e
aspirações eram, de fato, algo importante e superior, a ser atendido em permanência
e nunca, apenas, por ocasião de curtos e esporádicos períodos de guerra.
Defraudações sucessivas, o reiterado não cumprimento, impudente e imprudente, de
muitas promessas feitas acabariam por alimentar a convicção generalizada de um
direito do povo a influir também nas decisões mais importantes. Governo pelo
próprio povo e não apenas um governo em nome do povo, supostamente em seu
benefício. Completar-se-ia na prática a formulação democrática. (PE:394-395)
Assim, para o general, diante de um mundo que lhe exige novas características, “Ou a
Democracia se renova e avigora ou irá sucumbir, exangue de forças e de vontade, nos braços
ásperos do cesarismo” (GB:21). A democracia nos moldes liberais fracassou, e precisa ser
repensada, embora nunca de todo desprezada, uma vez que “Somente o regime democrático,
com sua nobre escala de valores sociais, permite, de fato, em plenitude uma expansão criadora
da personalidade humana e assegura, por via talvez mais longa e caprichosa sob certos
78
aspectos, um progresso efetivo da Civilização e do Homem. ‘Ad astra per aspera’...”
(PE:410). Além disso, continua ele, “a Democracia - como fórmula de organização política”,
juntamente com a ciência e o cristianismo, é o que caracteriza o próprio ocidente (GB:226).
Como seria essa democracia renovada, do ponto de vista golberyano?
Para Golbery, o fator essencial que está ligado à democracia não é a defesa das
liberdades, embora isso seja fundamental. Para ele, o essencial é a própria participação.
Esse fator, participação, é que dá legitimidade e força para o Estado tomar uma série
de decisões, às vezes contrárias aos interesses imediatos de quem decide. Pode-se dizer que a
democracia por ele proposta é uma democracia metodológica ou procedimental, no sentido de
que não importa muito o que é decidido, mas como isso é feito. Por isso, ao contrário da
estratégia - cuja base são antagonismos e antagonistas -, quem domina esse campo é a política,
a arte do possível:
Acredito, por outro lado, que a participação é indispensável, para que se possa,
realmente, conduzir certas ações que exigem sacrifícios (PE:501).
A respeito, observemos ainda que a Estratégia poderá pleitear certos sacrifícios e
restrições que, do ponto de vista mais amplo e superior da Política, sejam julgados
excessivos, quando não contraproducentes. /.../ entre o estilo de vida democrático,
com seu liberalismo mais ou menos generoso, sua tolerância pouco vigilante, suas
reações mais lentas aos perigos, de um lado, e, do outro, o regime autoritário muito
mais agressivo e pronto nas respostas - dilemas que se propõem, na verdade, entre a
Estratégia e a Política e encontram sua solução na maior hierarquia funcional que
esta última, de direito, lhe cabe. (PE:425 e 321-322)
Essa sua visão de democracia participativa fica muito clara quando da “abertura
democrática”, a auto-reforma do regime concertada por ele próprio 14 . Assim, segundo ele,
“para quem vê na democracia, muito mais ponderável e crítico, o fator participação, criador e
dinâmico, do que a plena garantia de liberdades, por mais fundamentais que sejam estas”,
prepondera a confiança de que a busca da democracia acabe por “despertar compreensões e
energias novas que venham a ajudar, decisivamente, o árduo esforço de saneamento e
recuperação que se vem, a duras penas, exercendo no campo econômico” (CN:31; PE:493). O
general Golbery frisava, inclusive, que cabia discutir o próprio termo “redemocratização”,
pois este não era, segundo ele, pertinente à história política do país que, em verdade, nunca
tinha conhecido uma autêntica democracia.
A democracia participativa golberyana difere essencialmente da democracia
participativa reivindicada por movimentos sociais e autores ligados à esquerda, pois, além de
instrumental, é essencialmente uma democracia partidária. E esta é uma precaução coerente
com o elitismo, o exclusivismo de seu pensamento, o qual está fundamentado na própria
exclusão estrutural das massas das decisões. Canalizar qualquer participação para o âmbito
14
Ver o capítulo “Golbery, o Estrategista da Auto-Reforma da Ditadura”.
79
partidário é, pois, concentrá-la aos limites estabelecidos pelo próprio sistema, e que,
portanto, não peitaria sua própria fundamentação. Novamente, apenas um exemplo do período
da auto-reforma do regime para aclarar sua posição:
Nós é que devemos procurar criar e desenvolver condições para que os partidos
possam desempenhar a atuação que lhes é própria - a mobilização política do povo.
Não sou pessimista quanto à possibilidade de Partidos eficientemente estruturados
/.../ poderem atrair a colaboração dos mais jovens e ajudá-los a se prepararem para o
exercício, no futuro, das lides políticas. Evidentemente, há vocações políticas em
todas as idades todas as vocações políticas, não só as de jovens, devem encaminhar-
se para os partidos políticos (PE:529, grifos nossos).
Democracia e liberalismo são, assim, duas faces de uma mesma moeda, estreitamente
interligados que estão, tendo por base a sociedade capitalista. Sendo assim,
Por mais que não se queira ou possa identificar linearmente liberalismo com
democracia, por mais que se procure reservar o primeiro para o âmbito da vida
privada e o segundo para o da vida pública, é impossível dissolver o nexo
fundamental entre ambos, que se revela precisamente pela clivagem entre público e
privado, em conseqüência do qual liberalismo e democracia são formas particulares
de liberdade - a primeira a viger no interior da vida privada e a segunda nas
fronteiras da vida pública. /.../ Ambas expressam uma certa universalidade, ou seja,
uma dada forma de ser-precisamente-assim da liberdade /.../ como exercitação do
egoísmo racional, o que significa ter por estabelecido que - o homem é objeto para o
próprio homem (Chasin, 1989:31).
Para Golbery, o exame consciencioso e profundo do conflito terrível pelo qual passa o
planeta fornece a chave interpretativa para que o ocidente descubra o mundo de amanhã, o
caminho que as sociedades seguirão no futuro. Nesse mundo cambiante, que é preciso
conhecer para agir devidamente, tal chave se conseguirá “pesquisando antes uniformidades
que discrepâncias, antes acordos que antagonismos”, “Apreciando, apenas em alguns de seus
aspectos mais extremados, esse conflito ideológico, tal como se manifesta, sobretudo, na
definição das atribuições e responsabilidades do Estado” (PE:18).
O general está ciente de que “é essa visão planificada do universo e da vida que, no
íntimo, faz temer a uns que o Estado, atuando desde posição dominante, venha a adquirir um
poder realmente incontrastável e faz com que os outros professem que tal posição é
indispensável a qualquer ação estatal eficiente e produtiva” (PE:20). Sua posição, de que o
Estado deve ser o agente de um planejamento democrático, estaria acima das outras
Assim sendo, observa o general gaúcho, a sociedade atual vê-se diante de um dilema
fundamental: anomia ou totalitarismo. Para ele, contudo, este é um falso dilema - ou, melhor
dito, é um dilema realmente existente apenas “se não formos capazes de formular, em termos
precisos e seguros, um planejamento democrático” (PE:22-23). Golbery sublinha que “o
vocábulo ‘planejamento’ desencadeia, desde logo, as mais cegas adesões ou motiva, ao
contrário, restrições veementes”, obscurecendo, em primeiro lugar, o fato de que “todo
sistema econômico pressupõe, por si mesmo, a existência de planos, individuais ou coletivos,
voluntários ou coercitivos, coerentes ou em competição” e, em segundo lugar, “que
planejamento e controle centralizado ou autoritário da economia e da sociedade não são, em
absoluto, conceitos que mutuamente se impliquem” (PE:252-253, grifos nossos).
Ele insiste em que o planejamento, ao contrário do que pregaria o liberalismo, não é
dispensável, antes ao contrário. Assim, opõe-se com veemência à liberalidade e à ausência
absoluta de controles sociais, o que virtualmente impediria qualquer ação coordenada - o
“ótimo de governo seria sempre o mínimo de governação” (PE:18-19). Observa que sem
controles os homens-lobo poderiam viver em grupo. “No planejamento democrático”, diz ele,
“sem dúvida, há controles também, nem se compreenderia qualquer planejamento ou ação
coordenada qualquer sem a previsão e a possibilidade da aplicação de adequados controles
sociais. Na verdade, sem controle social não haveria sequer sociedade” (PE:408).
Não é, pois, o planejamento ou a ação efetiva do Estado que contrapõem totalitarismo e
democracia. A questão está em como atua o Estado. Em suas palavras,
Planejamento democrático vem a ser, segundo o general - “Se não tivermos medo ao
espectro de Marx” - “um processo dialético, evoluindo sempre mediante a conciliação, em
plano superior, das teses e das antíteses que definem suas contradições imanentes” (PE:260).
Golbery vê o planejamento democrático “como síntese feliz daquela oposição dialética”, a
qual pode-se esperar que “abra uma nova era para a história da humanidade, a era de
planejamento, de liberdade e de justiça - eficácia e pleno rendimento para as atividades
humanas, ampla e livre extensão à personalidade individual e consciente de seus deveres
sociais” (PE:22-23).
Sob forte influência de Mannheim, Golbery propõe nada menos que a “transformação
da mentalidade do homem”, tendo em vista “a inadequação atual do pensamento linear,
mesmo sob a forma superior de uma corrente circular de causalidade”. Ele destaca que este
pensamento linear ou o pensamento auto-suficiente não deixa nunca de ser “uma nova forma
de robinsonada” que, em suas diversas áreas, “por mais útil que seja de fato como instrumento
de uma análise bem mais penetrante”, constrói modelos ultra-simplificados “sem dúvida
insuficientes para conduzir a ação” num mundo multifacetado cujas partes interdependentes
“não se podem enclausurar em setores estanques, sob pena de invalidarem-se e esterilizarem-
se afinal, incapazes de satisfazer o teste decisivo da ação” (PE:20).
Em substituição a tal pensamento linear, apresenta-se o pensamento planificado “como
tipo evoluído e único compatível com a sociedade moderna” (PE:20). Este planejamento
planificado implica, assim, “no abandono definitivo do conceito simplista da causalidade
linear e no reconhecimento da interação concomitante como o elo complexo e indissolúvel
que dá organicidade de fato às estruturas dinâmicas em perpétua evolução” (PE:89).
Se ainda desconfiarmos do planejamento estatal e “se quisermos, por prudência ou
timidez, restringir o mais possível o intervencionismo governamental - limitemo-nos ao
campo da Segurança Nacional”, com o que “estaremos largamente contribuindo” não só para
o desenvolvimento do país, mas também
83
para demonstrar insofismavelmente, num campo em que a intervenção estatal
plenamente se justifica, que o planejamento é de fato o único método de conduzir
com eficiência a política de uma nação, o caminho único para a libertação do
empirismo e do regime de improvisações dispendiosas e muitas vezes desonestas, o
meio seguro de coordenar vontades e congregar esforços na consecução de elevados
propósitos comuns (PE:25, grifos nossos).
O Que É Planejamento?
Por outro lado, ainda em decorrência das margens de erro do planejamento, impõe-se
“recorrer, tanto quanto possível, a índices numéricos” (PE:275). Assim, a quantificação é “um
instrumento eficaz facilitando a análise, as comparações, o entrosamento e a obediência às
limitações determinadas pelos fatores críticos de toda ordem” (PE:94-95). Indispensável em
qualquer planejamento, a quantificação vem “facilitar a comparação e escolha entre linhas de
ação alternativas”, “possibilitar o ajustamento entre objetivos parciais e políticas particulares”
e, ainda, “atender às necessidades posteriores de controle no decurso da execução dos próprios
planos elaborados” (PE:84), “permitindo, por comparação, a aferição do seu êxito ou
fracasso” (PE:276). Contudo, adverte o general, “o que realmente deve orientar o planejador
são os princípios gerais da Estratégia, dentre os quais o da concentração de esforços e o da
economia de meios - se é que se devam considerar distintos - assumem particular relevância”
(PE:94-95).
Assim, retomando os dois últimos pontos, o general resume:
Num campo tão vasto e assim tão complexo cujas verdadeiras leis e correlações
intrincadas nos escapam ainda, o princípio da segurança recomendará, por outro
87
lado, a prudência, em muitos, muitíssimos casos, de ações particulares de
“exploração”, antes de gizar uma estratégia definitiva a ser conduzida, a seguir,
como o máximo possível de vigor (PE:405).
O general salienta, por fim, a diferença entre “plano” e “planejamento”: enquanto este
Bem de acordo com a tradição conservadora brasileira, Golbery acredita que os atores
da história são as classes dominantes - ou, melhor dizendo, os estratos dirigentes das classes
dominantes, que ele denomina, ainda de acordo com aquela tradição, de “elite”. Contudo,
além da herança do conservadorismo, ele também sofre forte influência do pensamento de
Spengler e Toynbee, no que se refere a este assunto.
Já de início ele deixa claro o destinatário escolhido para o seu discurso, esperando que
suas contribuições sejam capazes “de servir, uma vez que se torne instrumento apurado, às
elites dirigentes do país” para que estas, aperfeiçoando e adaptando às contingências
brasileiras pela aplicação objetiva - “assim o esperamos e confiantes” - as técnicas de
planejamento que sugere, cumpram a “tarefa primordial que lhes cabe” - “garantir a todo custo
a Segurança Nacional nestes tempos dramáticos de tremenda e sem igual instabilidade do
mundo” (PE:219).
Está claro, portanto, que as elites é que são o condutor do processo, ao qual ele busca
oferecer instrumentos para que se ponha à altura das necessidades deste mundo
convulsionado. Isso porque constituem “grupos mais densos e superiormente equipados em
poderio e cultura” (GB:98). Como atestou depoimento de Walder de Góes, Golbery conferia
pouca importância ao “povo”, ao “restante” da sociedade. Sua visão elitista do mundo não
podia conceber a participação intensiva do que ele denominava “massa” no processo
decisório. Em sua teoria, o mundo parece girar por si só e a única interferência que sofre é da
atuação das elites, que têm o controle absoluto da história, desde que aceitem os desígnios
autopostos desta.
É por isso que “A política era vista por ele como um fenômeno quase autônomo. Um
sistema de relações entre interesses. O povo existe, é claro, e sua existência fornece à política
os limites do que é e do que não é admissível. Mas o povo é uma realidade distante e difusa”
(Góes, FSP, 19-9-87).
Como observou Oliveiros Ferreira, “A assepsia mental e o horror à demagogia”
pervertora do nacionalismo “fazem-no descrer das capacidades criadoras do povo”. O que se
percebe em sua exposição é que o povo “não é sujeito da história da Nação /.../ é tão-só o
objeto da ação estatal destinada a erguer, na dignidade e no realismo crítico, a grandeza do
Brasil” (Ferreira, 1984:597).
A identificação dos ON pelas elites repousa “em uma análise interpretativa dos
interesses e aspirações nacionais /.../, que motivam, em cada época histórica, toda
88
manifestação de um povo como Nação” (PE:27; PE:328). Isso não justifica, no entanto,
posições demagógicas, pois nem sempre o povo está consciente de seus interesses e pode até
tomar atitudes com resultados opostos aos desejados:
Por uma questão de formação, condeno aqueles que se apresentam como porta-vozes
infalíveis do povo. /.../ Se ouvir o que diz o povo é obrigação daqueles que se
interessam pelos destinos de um país, aceitar slogans pelo seu valor aparente já é
outra coisa. As manifestações populares devem ser analisadas e interpretadas em
profundidade, com realismo. (In Revista Veja, 16-5-84)
Numa nação como a brasileira, mal formada, em que as elites não têm uma unificação
de interesses e tampouco conseguem representar interesses universais da sociedade, em que os
trabalhadores também são atingidos pela incompletude estrutural das classes nacionais -
motivando a declaração de Golbery de que “brasileiro é de centro” -, a condução do processo
sociohistórico “só pode ser assumida pelo Príncipe com Virtú, que pelo ascetismo de sua
conduta, pela visão mais larga e fundamentada que tem dos problemas nacionais e pelo
descompromisso eleitoral com o povo, seja capaz de imprimir ao Estado, sem demagogia e
sem histeria, as diretrizes capazes de afirmá-lo como representante de uma Nação em busca de
seu destino” (Ferreira, 1984:598). Oliveiros Ferreira, como os próprios membros da Sorbonne,
via as Forças Armadas como esse príncipe 15 . Na verdade, elas agiram como imperador,
aquele, o bonapartista...
Como expressou o próprio Golbery, “as elites, a ‘minoria criadora’ cuja ‘vida inteira
deve ser uma incessante invenção’”, de acordo com a visão toynbeeana, têm originalmente,
“por seu poder carismático, pela persuasão, por força do processo econômico e automático da
‘mimesis’” teorizada por Toynbee, a capacidade de guiar “as massas na superação continuada
de obstáculos-estímulos sempre renovados, fazendo da adversidade a matriz fecunda do
progresso” (PE:168).
A elas cabe a importantíssima tarefa de interpretar os objetivos nacionais atuais (ONA)
- “formulação mais precisa” e contextualizada dos objetivos nacionais permanentes (ONP) -
que pairam na sociedade. Mais que isso, cabe-lhes ainda incutir nas massas inconscientes estes
mesmos objetivos, os quais não são capazes de perceber como seus. Nas palavras do general,
definir os ONA numa
formulação mais precisa e, em cada caso, objetiva, para cada fase da vida da nação
considerada, constitui, de si mesmo, obra política de sábia auscultação e
interpretação legítima do sentir e pensar de todo um povo. Obra que se completa, na
verdade, por uma ampla tarefa educativa, também, que cumpre às verdadeiras elites
representativas realizar, em profundidade, com perseverança, fé, dedicação.
(GB:101-102)
Ele repete a idéia em outra passagem: a capacidade da chamada elite dirigente “em
sensibilizar e atrair a massa, em arrastá-la docilmente sob sua liderança eficaz pela força
carismática que desperte e assegure o mecanismo mimético que Toynbee tão bem descreveu,
dá bem a medida real de seu poder criador”. Cabe-lhe fazê-lo buscando “traduzir os interesses
e aspirações, ainda informes, que flutuam imprecisos na alma popular ou indo mais além e se
15
Não se pode, contudo, radicalizar a analogia, pois que a Sorbonne sempre buscou dar às elites os elementos para que
estas agissem devidamente no quadro nacional, sem que os militares estivessem exclusiva e permanente na condução do
Estado.
89
empenhando, educativamente, para que o povo compreenda e sinta os seus verdadeiros
interesses e aspirações” (GB:10-11; PE:366).
Ressalte-se que tais tarefas só podem ser cumpridas pelas “verdadeiras elites
representativas”, que são também elas parte do povo. Dividem com este objetivos, que são
atingidos caso cada uma das forças sociais, elite e massa, cumpra suas funções - diferentes
mas complementares. Só assim se poderá atingir uma condição harmônica que Golbery
denomina - novamente tratando a História como algo transcendental - como “épocas
conscientes”.
Segundo o general, “‘épocas conscientes’ só poderão ser aquelas que bem se dêem
conta dos desafios decisivos que as defrontam, sendo assim capazes de um esforço conjugado
- elite e massas - na concepção e implemento das respostas mais adequadas a assegurar o
progresso da própria sociedade que integram” (GB:375 e 419). Para ele, o grande símbolo do
avanço conseguido pelas épocas conscientes é fato de a elite arrastar as massas, com o
consentimento destas, para uma era de atritos mínimos e harmonia. Assim, ao chegar ao
esforço conjugado elites-massas,
Para poder conduzir sua geração ao progresso, diz Golbery, ainda sob influência de
Toynbee, “as elites precisam ter desafios pela frente para que sejam capazes de manter a
criatividade na condução dos negócios do país. Elite, sem contestação, acaba perdendo
inteiramente o poder criador” (PE:307). É preciso, então, criatividade para dar as respostas
necessárias a cada época.
Não é, porém, o caso na sociedade atual. Pelo nível de abstração com que é tratado o
assunto, sem nenhuma referência a dados históricos (embora se possa inferir que ele se refere
à fase contra-revolucionária da burguesia), não fica claro o motivo, mas sabe-se que aquela
elite,
Como quer que seja, porém, buscando, realmente, essa elite ou minoria, traduzir os
interesses e aspirações, ainda informes, que flutuam imprecisos na alma popular ou
indo mais além e se empenhando, educativamente, para que o povo compreenda e
sinta os seus verdadeiros interesses e aspirações, tratando, maquiavélica ou
demagogicamente, de mistificar a massa para que adira a seus objetivos particulares
de elite ou coagindo-a tal - isso é, afinal, acessório. (GB:10-11; PE:366)
As elites não encontram, sendo assim, nenhum limite para sua ação egoísta - embora as
conseqüências sejam amplamente negativas.
Segundo nossa interpretação, tal displicência com as negatividades da falsa
universalização de interesses pode estar ligada à questão da mimesis. Isso quer dizer que o fato
de a elite generalizar a defesa de seus interesses para toda a sociedade pode redundar em que
eles realmente se tornem interesses sociais, num processo em que
Ele esclarece, então, a que ocidente estará se referindo e que levou Afonso Arinos a
criticar sua “visão mística do ocidente”:
Pois o único Ocidente que vale como um todo duradouro e coeso, o Ocidente que se
pode de fato distinguir, nitidamente, de tantas civilizações e culturas, dotado de uma
individualidade própria, original e marcadamente característica, é para nós o
Ocidente como ideal, o Ocidente como propósito, o Ocidente como programa.
(GB:225)
E se porventura algum dia “o Ocidente perder de todo aquele ideal, aquela fé que o
ampara, aquele propósito superior que o guia, terá, então, soçobrado de fato num ocaso
derradeiro e fatal” (GB:226-227).
Esse ocidente idealizado e místico não está isento de máculas, pois, “em nome daquele
ideal, se têm perpetrado crimes e realizado espoliações e fundado mesmo tiranias”. Mas,
observa Golbery, “esses crimes, essas espoliações, essas tiranias, se como tal são reconhecidas
e como tal estigmatizadas, afinal, é à luz daquele próprio ideal que conspurcam e, ao renegar,
reafirmam” (GB:225). A essa “corrente de ideal” que impulsiona a história do Ocidente estão
ligadas inclusive, embora a contragosto, aquelas forças que hoje o combatem ou lhe são
simplesmente apáticas. Segundo Golbery, estes são incapazes de vencê-la, “a não ser na
transitoriedade sempre fugaz de certos períodos retrógrados ou na circunscrita delimitação de
alguns núcleos reacionários”.
Esse ocidente, nosso século o veria ocidentalizar todo o planeta, “Pelo domínio muitas
vezes desumano e cruel ou pela criação de novas civilizações em remotas paragens desertas,
mas, sobretudo, pelo poder de fascinação de sua cultura tão bem sucedida” (GB:227).
Apoiado no “poderio esmagador de uma tecnologia surpreendente”, o ocidente impôs-se às
culturas exóticas, “mesmo as de longa tradição de vigorosa originalidade e de um rico passado
milenar” que, divididas entre a desconfiança natural e a admiração mimetizadora, viram-se
compelidas a “assimilar, o mais rapidamente possível, dessa civilização estranha, tudo o que
lhes permitisse reagir, no prazo mais curto, contra a lenta asfixia, a dominação brutal, o
deperecimento certo”. Usar as armas - técnicas, mas também ideológicas - do agressor para
melhor combatê-lo, foi a via possível para tais civilizações (GB:227).
No mundo atual, inflexionado por um conflito tremendo, apenas o ocidente está em
condições de antepor-se ao avanço comunista, “e terá de fazê-lo, a despeito da desconfiança
que sempre suscitarão quaisquer intervenções suas em virtude de um longo passado, não de
todo olvidado, de detestáveis práticas colonialistas”. E o terá de fazer, “sobretudo, porque
nisso estará envolvida, agora, a sua própria sobrevivência, muito mais do que simples
interesses materiais ou questões de prestígio” (GB:229).
O Ocidente está, assim, ameaçado. E o pior é que não é uma “ameaça concreta”, se
assim pudermos dizer, mas é como a realização de uma antiga profecia, de um destino trágico,
mesmo contra todos os esforços envidados em contrário. É novamente História impiedosa,
manipulando os cordéis dos homens - e das massas continentais e das civilizações
abstratamente consideradas - independentemente de sua vontade e de suas ações. Isso porque,
quando trata da civilização ocidental, Golbery, sob fortíssima influência de Spengler e
Toynbee, deixa entrever profundos laivos irracionalistas, que vêm se somar a sua já nossa
conhecida visão a-histórica da sociedade.
Como observou acuradamente Oliveiros Ferreira, “O medo de que a civilização cristã
desapareça inspira o pensamento do general Golbery; e de tal forma se faz sentir a presença
desse elemento irracional nas páginas preliminares, que se poderia dizer que o conceito de SN
desenvolvido na Geopolítica do Brasil se fundamenta nele” (Ferreira, 1984).
Em sua persistente pregação pelo convencimento do perigo do fim da civilização
ocidental, Golbery ajunta às teses da guerra fria as noções de declínio das civilizações de
Spengler e Toynbee.
94
Golbery começa pelo conceito de “cultura”, autonomizado em relação às sociedades.
Nisto, o general está sob a inspiração da “monumental doutrina vitalista de Spengler”, que
distinguiu bem das várias culturas que se têm sucedido na história da humanidade, a
idéia da Cultura, una e indivisível, “primofenômeno” de todas aquelas e que a todas
permeia e fundamenta e impulsiona como ideal supremo a atingir: E na curva
envolvente a todos os ciclos de evolução das culturas se poderá mesmo vislumbrar
um progresso definitivo da Humanidade (PE:167).
Em linguagem sibilina, Golbery pretende, mas não consegue, explicar como, segundo
Spengler, as culturas nascem “ao despertar vigoroso de uma nova alma coletiva na ‘proto-
espiritualidade’ eternamente infantil e pré-lógica da humanidade primitiva, unificando
gerações várias num gesto super-humano de afirmação” propriamente como organismos
supra-individuais “caracterizados por um símbolo potente de expressividade, uma filosofia,
um estilo e um ritmo de vida próprios que podem variar”. No decorrer de sua vida, crescem,
desenvolvem-se e se expandem “aos impulsos insopitáveis de seu élan vital”, até atingirem “a
máxima floração de sua maturidade barroca para declinar e morrer por fim, exauridas de
todos, aos embalos dos sonhos místicos de uma ‘segunda religiosidade’, encerrando assim o
ciclo inexorável de atualização de todas as suas imanentes possibilidades criadoras” (PE:166-
167).
Em sua evolução assim predeterminada, a “censura trágica” entre a primeira fase das
civilizações - chamada propriamente de “cultura” por ser
Nossa civilização ocidental está “talvez já ferida de morte, assustada e perplexa ante o
espetáculo histérico desta quadra agônica em que vivemos - verdadeiras tempestades de
impulsos inconscientes e bárbaros a sacudir, a galvanizar, a revolucionar as massas ainda
embrutecidas e mal despertas agora de seu sono milenar” (PE:13) e que, desta civilização
dominadora, “práticas e técnicas - não o espírito - buscaram e ainda buscam assimilar”, hoje se
rebelam mais ou menos abertamente ( PE:175). Ou seja: a civilização ocidental passa na
atualidade por um “período crítico de perturbações violentas” semelhante aos que “sempre
precederam o estabelecimento pela força de um Estado Universal, criado através de múltiplas
guerras, pelo último remanescente ainda vitorioso” (PE:172-173).
De fato, segundo Golbery, passamos já por muitas tentativas de implantação do
“Estado Universal”, entre as quais cita as guerras napoleônicas e os dois conflitos mundiais.
Isso para reafirmar seus temores de que, numa era atômica, ameaçam sobrevir conflitos ainda
mais mortíferos - motivo pelo qual “projeta-se e proclama-se e defende-se, já quase mesmo
sem fé, a criação de uma ‘comunidade de poder’, de um controle institucional supranacional,
de qualquer forma estável e não despótica de ordem universal” (PE:172-173).
Assim, conclui com Toynbee “que o Ocidente, depois de cercar o mundo por mais de
250 anos, agora se vê cercado por sua vez, na defensiva contra uma pressão concêntrica de
todos os lados, num mundo global e sem margens onde quem cerca é cercado” (PE:172-173).
96
Temos, então, Spengler e Toynbee apontando a ameaça do surgimento de um grande
Império Universal em que se aniquilará, por fim, a civilização ocidental (GB:22). Essa visão
vem se coadunar com teorias geopolíticas adotadas pelo general e que previam para logo o
surgimento do superleviatã.
Mas, destaca Golbery, existe “singular e ‘etérea’ possibilidade de salvação” para a
civilização cristã do Ocidente: justamente pela fé,
De seu lado, o Brasil, gestado “sob o signo da própria Cristandade”, resultante final da
transposição da cultura ocidental européia “para terras quase desertas e virgens onde não havia
cultura autóctone que lhe resistisse ou pudesse deturpar-lhe a essência”, embebido desde
sempre nas idéias e nas crenças ocidentais, “não poderia renegar jamais esse Ocidente em que
se criou desde o berço e cujos ideais democráticos e cristãos profundamente incorporou à sua
própria cultura” (GB:226-227).
A operação mental que o general Golbery pretende fazer - construir uma geopolítica
brasileira para auxiliar os Estados Unidos e o Ocidente a defender-se contra o
97
“imperialismo comunista de origem exótica” - é de difícil realização, porque
nega, de início, o fundamento mesmo do raciocínio geopolítico, que é a política de
poder e a afirmação do Poder Nacional desvinculado do contexto mais geral da
civilização em que se insere /.../ Geopolítica e o ecumenismo se excluem
logicamente - da mesma maneira que a construção do Poder Nacional e a
interdependência entre os que já assumiram responsabilidades na política
internacional e aqueles que para elas se preparam. A construção, note-se bem,
porque para os poderes nacionais já erigidos a interdependência é a forma histórica
da afirmação de sua hegemonia sobre os demais Estados. (Ferreira, 1984:596)
Como vimos, cada Estado mobiliza-se “ao impulso potente de um núcleo de aspirações
e interesses, mais ou menos definidos com precisão num complexo hierárquico do Objetivos”
que, para os Estados-Nações da atualidade, são seus objetivos nacionais (ON).
Aos ON Golbery atribui a pretensão de traduzir os interesses e as aspirações e todo o
grupo nacional, assim mesmo, indefinido, uno e indivisível. No tratamento dessa questão
aparecem também os laivos irracionalistas do pensamento do general. Temas como “instinto”,
“alma popular” ou “alma nacional”, “vontade coletiva” são aqui recorrentes e aditam-se ao a-
historicismo - ou, antes, anti-historicismo - de seu pensamento.
Segundo ele, a elaboração, para fins expositivos, dos ON “é, por assim dizer, instintiva
e resulta naturalmente do processo histórico através do qual o grupo adquire e plasma uma
consciência nacional” (PE:60-61 e GB:252).
O conjunto dos ON deve “constituir um sistema e ser, portanto: coerente, isto é, não
apresentar incompatibilidades quaisquer; econômico, vale dizer, sem redundâncias; e elegante,
de um manifesto valor estético” (PE:318 e 427). O problema da racionalidade na formulação
dos ON parece estar somente em sua apresentação, já que sua captura - ou, melhor dito,
interpretação - parece ser obra de alguma entidade ou atividade mística. Golbery insiste em
que os ON, especialmente os permanentes, não são criações especulativas, mas “se acham
imersos, com evidência maior ou menor, as mais das vezes apenas vislumbrados antes pelo
sentimento do que pela razão, nas aspirações sempre algo difusas da alma nacional, como
quer, aliás, que se entenda esta expressão” (PE:358, grifos nossos).
Outras formas de conhecê-los também passam pela intuição ou pela simples
formulação por algum membro inspirado da elite: “Não menos verdadeiro é, também, que pró-
homens do país, expoentes todos da própria nacionalidade e seus legítimos intérpretes -
realistas, uns e visionários, outros - poderiam já haver intuído ou formulado objetivos tão
fundamentais à vida nacional” (PE:358, grifos nossos).
Sem se deter mais na complexa e sibilina forma de interpretar ou formular os ON,
Golbery passa logo à etapa seguinte, julgando que, diante de objetivos tão fundamentais,
“reconhecê-los como tais, traduzi-los com acerto e precisão e anunciá-los como guias e
inspiração de toda ação política, eis o ato máximo de criatividade política, padrão do
verdadeiro estadista” (PE:358).
Golbery indica o Estado, e nele o governo, como o agente de suas transformações.
“Ora, se é certo que os ON só podem ser formulados em toda a sua clareza e adequação à
realidade a partir do Estado, também é verdade que não podem ser formulados pelo Estado,
enquanto unidade de decisão e ação com legalidade própria, mas apenas por aqueles que
compõem o núcleo do poder no Estado” (Ferreira, 1984:579).
98
Na verdade, para Golbery, a interpretação dos ON - que “pairam” ou “estão
plasmados” irracionalisticamente na alma popular, muita vez deles inconsciente - é tarefa da
“sagaz minoria dirigente”, que pode aí infiltrar, “sob racionalizações mais ou menos bem
urdidas”, seus próprios interesses pouco confessáveis, como já vimos (GB:11; PE:366). Por
isso, no processo de sua definição em termos precisos, “importa eliminar, tanto quanto
possível, as superestruturas ideológicas e as racionalizações mais ou menos especiosas com as
quais, freqüentemente, se mascaram as aspirações e interesses de fundo mais egoísta e caráter
mais agressivo” (PE:60-61 e GB:252). Os interesses divergentes são vistos aqui, como se pode
perceber, como mera questão metodológica, não como contraposição de fundo
socioeconômico.
A isso relaciona-se a exposição dos ON, que “é e deve ser encarada como uma obra de
arte”, de vez que “as obras de arte promovem o sentimento de identificação. E não é
indispensável que todos se sintam facilmente identificados com os Objetivos enunciados? Só
essa identificação dará ao plano o selo autêntico de uma autoridade inconteste” (PE:318 e
427).
A elite, especialmente a elite dirigente, não deverá, contudo, apenas “auscultar” a
“alma nacional”, como quer que se entenda esta expressão, em busca dos ON que nela estão
plasmados. É também a sua, como também já referido, uma fundamental tarefa pedagógica: o
esclarecer ou incutir na “alma popular” o reconhecimento dos ON como seus,
Tanto mais quanto menos consciente esteja o povo, esteja a Nação, de seu próprio
destino, não manifesto ainda, que se esconda indeciso no crepúsculo de um futuro
auroral. Mesmo porque, em circunstâncias tais, o papel magno do estadista será o de
criador que parte de um quase nada, por vigorosa - quase direi, sagrada - empatia
com a alma popular em seus impulsos menores, ainda sem clara afirmação no
âmago da vontade coletiva, e, captando-os ainda em seu estado nascente, dá-lhes
corpo coerente e conteúdo mais rico e com eles vem a inspirar, como que em
promissora autofecundação, o próprio povo, para catequizá-lo e mobilizá-lo ao
pragmatismo e dinamismo da ação efetiva. E esse é o líder verdadeiro, em seu
profetismo arrebatador e carismático, em quem o povo, a Nação toda acaba por
enxergar sua própria encarnação em moldes humanos. (PE:358, grifos nossos.)
16
Capítulo I - A Falsa Solução Esguiana.
100
No âmbito externo, “a manutenção do statu quo territorial na América do Sul,
contra quaisquer tendências revisionistas ou a formação de blocos regionais, políticos ou
simplesmente econômicos, que possam vir a constituir ameaça à própria paz do continente”
somava-se ao “robustecimento do prestígio nacional”, baseado no “princípio da igualdade
jurídica dos Estados, e a crescente projeção do país no exterior com vistas à salvaguarda eficaz
de seus próprios interesses e em benefício também da própria paz internacional” (GB:74-75).
Note-se, para finalizar, que “Os conceitos usados pela DSN (segurança, poder nacional,
estratégia, ON, fronteira ideológica, guerra ideológica, guerra subversiva etc.) foram tomados
emprestados da política internacional. Aplicados ao campo interno, levam à transformação do
adversário em inimigo” (Pereira, 1988:270). Assim, os objetivos que são diferentes dos
definidos pela elite são, desde já, vistos como contrários aos interesses nacionais, como vimos.
A formulação precisa e objetiva dos ONP para as várias etapas da vida de uma nação
constitui “obra política de sábia auscultação e interpretação legítima do sentir e pensar de todo
um povo”, “que se completa, na verdade, por uma ampla tarefa educativa, também, que
cumpre às verdadeiras elites representativas realizar, em profundidade, com perseverança, fé,
dedicação” (GB:101-102). A capacidade da chamada elite dirigente “em sensibilizar e atrair a
massa, em arrastá-la docilmente sob sua liderança eficaz pela força carismática que desperte e
assegure o mecanismo mimético que Toynbee tão bem descreveu, dá bem a medida real de
seu poder criador”. Cabe-lhe fazê-lo buscando “traduzir os interesses e aspirações, ainda
informes, que flutuam imprecisos na alma popular ou indo mais além e se empenhando,
educativamente, para que o povo compreenda e sinta os seus verdadeiros interesses e
aspirações” (GB:10-11; PE:366).
Isso porque os ON “admitem variações mais ou menos pronunciadas dentro de largos
períodos de tempo, segundo o grau de maturidade política alcançado pelo grupo nacional em
sua evolução cultural, econômica e social” (PE:60-61; GB:252).
Poder Nacional
102
A definição de Estado como uma “unidade de poder que se defronta com outras
unidades de poder presentes no mundo” torna fundamental a questão do poder.
De forma um tanto cínica, Golbery concorda em que possa - “e é mesmo um dever
moral imperativo” - haver um largo esforço para “salvar, pela humanização do Poder, o futuro
da democracia da humanidade” (PE:175). Contudo, relembra ele, “nesse mundo caótico em
que ainda vivem as nações na idade das cavernas, ‘o poder é a lei única por elas conhecida ou
respeitada”(PE:175). Ademais, acrescenta, não se pode esquecer nunca que “o conceito
fundamental da ciência social é o poder, da mesma forma que a energia é o conceito
fundamental da física”.
Em oposição ao liberalismo de Locke, “que só justificava o emprego da força contra a
força ilegal e injusta”, hoje ficou claro que “o poder é, por sua própria essência,
indefinidamente expansivo, não podendo deter-se senão ao chocar-se com outro poder mais
forte” (PE:175).
Nesta nossa “era perturbada”, em que domina “o signo materialista do poder e a trágica
tensão da insegurança não só política mas sobretudo econômica”, “justifica-se pois que toda
estratégia, como política de SN, se fundamente numa análise realista do que constitui o poder
da nação e cogite na aplicação, ao definir seus objetivos específicos e traçar as linhas mestras
do planejamento que lhe compete, de avaliar o poder dos Estados que dominam o panorama
mundial e dos que integram o quadro regional” (PE:175).
Não se deve, certamente, “desprezar as forças outras que atuam no cenário
internacional mais ou menos ponderavelmente em plano supranacional” (como grupos
econômicos organizados em trustes ou cartéis, as grandes instituições religiosas e filantrópicas
e também “as ideologias construtivas ou malsãs, que transcendem dos limites espaciais das
Nações”). Contudo, assevera Golbery, “uma vez que prevalece o sistema anárquico dos
múltiplos Estados-soberanos, a Nação é ainda forçosamente a unidade de poder no campo
internacional e, portanto, será na avaliação realista do poder das Nações que se fundamentará
a Estratégia, por mais idealistas que possam ser alguns dos objetivos por ela generosamente
visados” (PE:176).
Num mundo “em que impera absoluta a mais desnuda Realpolitik” e a própria nação
líder do mundo proclama o “melhoramento da posição relativa de poder” o “objetivo
primordial” da sua política exterior, destaca Golbery, “é preciso subsistir e é indispensável
agir e não há como agir nem mesmo como subsistir a não ser pelo poder. Sempre se negaram a
reconhecê-lo, a não ser demasiadamente tarde, todos os defensores da política de
apaziguamento” (PE:176). A estes, ele aponta a “trágica realidade de nossa época conturbada:
fora do Poder não há salvação” (PE:176).
Assim sendo, o general reitera,
As relações entre os Estados se expressam hoje, com clareza nunca igualada antes,
em múltiplas equações dimensionais de poder e o Poder é, por si mesmo, como
todos sabemos, um complexo que largamente extravasa do âmbito restrito das
Forças Armadas para o campo Psicossocial, o Político e, sobretudo, o Econômico
nesta fase histórica de alta mecanização e tecnicidade da guerra. (PE:24)
A verdade, porém, é que o Poder das Nações, como a própria Estratégia e a Guerra
Total, é, no fundo, indivisível, de modo que toda e qualquer discriminação em
formas distintas de Poder é realmente arbitrária, atendendo apenas a conveniência
sobretudo de ordem prática. /.../ Parece-nos, entretanto, que subsistirão sempre
vantagens didáticas, metodológicas e sobretudo de ordem prática naquela
discriminação. (PE:184)
É importante notar que o poder nacional é a “expressão antes de uma integração do que
propriamente de uma soma” daqueles fundamentos citados (PE:185). Golbery cita,
aprovativamente, a frase de Russell: “o poder, como a energia, está constantemente passando
de uma a outra de suas formas” (PE:187). E o general ressalta que “a despeito de não haver
uma forma de Poder que seja absolutamente superior às demais, a verdade é que sempre esta
ou aquela será melhor adaptada, e portanto mais eficaz, em determinadas circunstâncias e para
determinados fins” (PE:186).
Golbery esclarece ainda que as definições dadas referem-se ao âmbito da estratégia
(aquele em que se apresentam antagonismos), “por mais que se não obscureça, desde logo, a
presença decisiva de valores éticos e psíquicos - o moral do povo, sua mentalidade criadora
etc. - insuscetíveis, por certo, de qualquer mensuração acurada” (PE:380-381).
Ademais, adverte Golbery, “muito mais do que um agregado, uma soma impossível de
grandezas tão heterogêneas, trata-se aí de verdadeira integração de fatores, na qual a
consideração de cada um deles determina modificações, por vezes bruscas, dos coeficientes
que mereçam, por si sós, os demais” (PE:381). Assim sendo, por exemplo, “Certas
vulnerabilidades ou deficiências do caráter nacional podem, sem dúvida, anular quase as
promissoras vantagens de um riquíssimo território” (PE:381).
A integração do poder nacional mostra-se, segundo o general gaúcho, “como condição
fundamental à conduta de toda uma flexível estratégia de paz”.
E é esse poder, atuante desde o tempo de paz como trunfo decisivo e sustentáculo
real nas discussões diplomáticas, já desde então supervalorizado pela sombra
prestigiosa que sempre o acompanha, de um Potencial mais amplo, suscetível de
atualizar-se em prazo maior ou menor, que deverá ser transformado, orientado,
mobilizado para a eventualidade da guerra que se venha a concretizar, assumindo, a
105
partir de então, sua componente militar, exteriorizada nas Forças Armadas, o
papel dominante. (GB:12; PE:369)
Em outros termos, como “nem sempre dispõe o Estado de um poder nacional à altura
das responsabilidades decorrentes da guerra ou, nem mesmo, das que tenham sido assumidas
no período de paz”, “tratar-se-á, imperativamente, de fortalecer esse poder, desenvolvê-lo no
tempo devido e por todos os processos”, a fim que, “no balanço vital entre possibilidades e
necessidades, entre meios e fins, entre obrigações e recursos, não subsista um déficit fatal que
pressagie, para a Nação, a derrota e a servidão e a morte”. “Maximizar o Poder Nacional, em
face das exigências impostas pelo fantasma da guerra que já nos persegue - eis um dever a que
se não podem esquivar, de forma alguma, as Nações atentas ao futuro que de todas se avizinha
a passos tão agigantados.” (GB:12; PE:369)
Assim sendo, um dos pontos fundamentais do pensamento golberyano será, justamente,
o processo de fortalecimento do poder e do potencial nacionais, como veremos.
Potencial Nacional
À noção de poder nacional, Golbery ajunta a de potencial nacional que é, segundo ele,
“poder ‘em ser’ ou ‘potencial de poder’” (GB:156; PE:380-382). É, em outros termos, “aqui,
no domínio estratégico, o Potencial, um potencial de Poder, isto é, expressão apenas estimada
de um certo Poder futuro”, no qual “permanecerão incorporados todos os componentes
duradouros do Poder atual” (PE:387). Assim, um poder futuro “é sempre, afinal, emanação do
Potencial de hoje” (PE: 382).
A fim de elucidar a distinção entre poder e potencial, Golbery apela para “a ontologia
em seus conceitos fundamentais de existência, de potência, de ato e de operação (ação ou ato
segundo)”, concluindo que
se um ser em ato está em seu sentido pleno, manifestando-se pelo próprio ato
primário do ser (existência) e, mais ainda, de ser isto ou aquilo (essência), enquanto
que um ser em potência, ao contrário, não se pode manifestar, sendo apenas um
poder ser outra cousa, então o Potencial nada mais é realmente que o Poder em
Potência de ser poder futuro (PE:117-178).
Enquanto que
o Poder é realmente poder em ato ou poder atual, donde resulta desde logo a
impropriedade da expressão Potencial Atual, ontologicamente inadmissível. Dito em
outras palavras, o poder é sempre atual (existente) e ao mesmo tempo é potencial ou
capacidade de ser no futuro um poder diferente, o que possibilita a transformação do
poder atual em poder futuro mediante a atualização do potencial. (PE:177-178)
Expressão integrada dos meios de toda ordem /.../ susceptíveis de, em maior ou
menor prazo, serem transformados em poder, para fazer a guerra. O Potencial
considerado pela Estratégia é, assim, referido ao esforço máximo de que a Nação é
capaz para enfrentar determinado antagonismo. Corresponde ao que também é
denominado Potencial de Guerra. É o máximo de Poder Nacional futuro, bem
amarrado no tempo. (GB:156; PE:380-382)
Também aqui são admitidos, para fins de análise e planejamento, quatro expressões ou
fundamentos inter-relacionados, não obstante o caráter unificado do potencial nacional:
potencial político, potencial econômico, potencial militar e potencial psicossocial - “vale dizer
demográficos, étnicos, culturais, sociais e éticos - além dos fundamentos geográficos que a
todos os demais, por sua vez, condicionam mais ou menos estreitamente” (GB:156; PE:380-
382). Por esta sua qualidade de “integração de fatores dos mais diversos, o Potencial Nacional
não é redutível a quantificação” (PE:42).
Considerado a “verdadeira chave para a compreensão realista e fria da dinâmica
internacional”, o potencial nacional - mais até que o poder - apresenta o problema de sua
própria criação e fortalecimento. Com o advento da guerra fria, o potencial nacional “pesaria
realmente muito mais, nas ações continuadas e perseverantes de guerra fria, do que o próprio
Poder, tal como existente de fato, em dado momento, para ser logo prontamente superado”
(PE:397). Isso faz com que se pense,
Sem essa atuação decidida nesse sentido, a noção de potencial nacional tem “reduzida
significação prática”, “pois que muitos desses recursos perigarão permanecer eternamente
como potenciais inexplorados, como já bem o estão, afinal, aprendendo as nações que se
deixaram embalar, anos, décadas a fio, com as glórias fátuas do título, tão pomposo quanto
inexpressivo, de ‘país do futuro’” (PE:384). Do ponto de vista teórico, o conceito tem todo
cabimento, e Golbery o denomina de “potencial geopolítico”, a fim de ressaltar seu caráter
mais amplo, não estritamente estratégico.
Golbery esclarece que também no âmbito do potencial nacional, como do poder, rege a
lei dos rendimentos decrescentes e a do retardo cultural por modo que “os acréscimos em cada
setor, se não se refletirem ou forem acompanhados de um aumento também nos demais -
aumentos correspondentes /.../ - irão, mais e mais, se traduzindo em reforço cada vez menor
do Potencial em conjunto, até o ponto de verem de todo anuladas a sua significação e
influência” (PE:400).
107
Assim, o potencial deve ser fortalecido de forma global, num desenvolvimento
“nunca apenas econômico, mas desenvolvimento social em toda a sua amplitude, com
objetivos coordenados que se enquadrem, harmonicamente, para o fim último de elevar o
Potencial Nacional à altura das responsabilidades efetivas da Nação na quadra histórica que
vivemos” (PE:411-412).
Para o general, “Qualquer estudo menos superficial sobre o Poder Nacional deve pôr
em relevo todos e cada um dos aspectos a considerar na avaliação do Poder e do Potencial
estratégico das Nações”, quais sejam, seus elementos (espaço, homem e recursos), seus
fundamentos ou fatores (geográficos, políticos, psicossociais, econômicos e militares), suas
limitações (de ordem externa ou interna), bem como seus instrumentos de ação nos vários
campos (natureza, alcance e limitações próprias) (PE:181-182).
Mas, observa Golbery, nos dias que passam, a guerra é o fator dominante nas relações
internacionais, “em ato ou em potência”, e, por conseguinte, o potencial estratégico de um país
só pode ser definido “em relação ao ato da guerra, emprestando-lhe assim a expressão de
poder máximo com que a nação poderá atuar em circunstâncias determinadas” (PE:179). O
potencial de uma nação estrangeira, por exemplo, “só nos interessa avaliá-lo no quer permita,
não qualquer ação visando à consecução dos Objetivos por esta Nação considerados, mas sim
as que se oponham a nossos próprios objetivos ou pelos menos com eles interfiram” (PE:189).
Assim, como já observara Spykman, o poder das nações, por sua própria natureza, além de
necessariamente relativo (PE:181), é também subjetivo, um juízo de valor cujo único teste
realmente objetivo é a própria guerra (PE:182). De qualquer forma, Golbery sublinha, “a
superação de antagonismos, sejam externos sejam internos, reverte, pela melhoria da posição
relativa de poder, num caso, ou pela redução se não anulação de vulnerabilidades próprias, no
caso oposto, sempre em benefício do fortalecimento do Poder Nacional” (PE:33-34 e 330).
O general salienta a importância do fator tempo no que se refere à efetivação do
potencial; sendo assim, há que captar as dessemelhanças entre o “potencial disponível - o que
se espera quase seguramente poder mobilizar em tempo útil e a despeito do provável
adversário - e o Potencial total que exigirá para sua atualização um prazo mais ou menos
demorado.” (PE:179)
Também o fator espaço é importante, pois o potencial (e o poder) é sempre local, “ou
melhor dito, localizado, devendo-se reconhecer a existência indiscutível de centros de poder
ou bases, mais ou menos concentradas, de onde ele irradia em todas as direções /.../ tanto
dentro como fora da unidade política - o poder decresce sempre na razão inversa das
distâncias a que se aplica” (PE:180).
Não tendo o potencial disponível possibilidade de fazer frente “com satisfatória
probabilidade de êxito” à realização dos ONP, “impõe-se a redução destes à escala mais
modesta das possibilidades nacionais, sob a reserva de que futuras ampliações de tais
possibilidades, através da elevação ou fortalecimento do Potencial Nacional, deverão permitir
a paulatina expansão dos objetivos estratégicos reduzidos, inicialmente adotados” (PE:32 e
330).
Por outro lado, mesmo no campo interno, o tempo de paz se diferencia do estado de
guerra por um sem número de características inconfundíveis, desde a atmosfera
geral da vida nacional e o espírito que anima o povo, até a possibilidade aberta, no
último caso, ao Estado de impor medidas especiais de controle, de política, de
intervenção no domínio econômico que se não tolerariam, de forma alguma na paz.
(PE:35-36)
Assim, com certa dose de cinismo, Golbery assevera que “A guerra sempre serviu de
justificativa à ditadura, desde os tempos de Roma antiga. E o napoleonismo é da própria
dinâmica dos processos revolucionários profundos” (PE:23).
Para Golbery, “nessa faixa de indeterminação que mal separa a guerra da paz”, o que
caracteriza a guerra é exatamente pela entrada em ação da “força militar como instrumento
efetivo de violência física”, o que é imprescindível para seu planejamento e o estabelecimento
de prazos críticos, por exemplo. Nesta guerra, vista portanto “no seu sentido técnico, limitado
e preciso”, o objetivo é “alcançar, com a vitória sobre o adversário, a consecução de objetivos
estratégicos precisamente definidos”(PE:33 e 331). Sendo assim,
Vem acrescer-se à sua visão de guerra como quase inevitável a noção de que “a
conjuntura internacional, em cada período histórico, se caracteriza sempre pela manifestação
de um antagonismo dominante entre duas nações ou coligações de nações - um deles, o
‘grande perturbador’” (GB:159). Em suas palavras:
num ecúmeno plenamente solidário, normal é que, em cada período histórico, dentre
todos os antagonismos, atuais ou potenciais, que aí já se manifestem ou tendam a
manifestar-se, sempre um deles, por sua amplitude maior, sua dinâmica superior, a
importância dos centros de poder envolvidos e os interesses vitais que ameace ou
109
que mobilize, venha a caracterizar-se nitidamente como o antagonismo
dominante, dando colorido aos demais, arregimentando-os muitas vezes a seu
próprio serviço, quando não os contendo em estado apenas latente ou simplesmente
larvado, moldando-os, em suma, a todos, numa verdadeira bipolarização bem
definida, por temporária que seja, do campo todo de tensões sociais, em relação à
qual povo algum, espaço algum, interesse algum possa realmente alhear-se ou
guardar uma estrita neutralidade. (GB:186)
Mesmo de início, a guerra estritamente militar, levada a efeito apenas por exército e
esquadras em teatros de operações mais ou menos limitados - inteiramente a salvo,
portanto, as populações da retaguarda - eram guerras já de um novo caráter,
mobilizando aspirações e interesses nacionais às paixões mais densas e ardorosas do
povo. Que este se encontrasse, aqui e acolá, inteiramente iludido por uma hábil
propaganda a serviço de minorias predadoras, pouco importava no caso. O essencial
era a nova dimensão psicológica da guerra. (PE:395)
Esse potencial da guerra moderna não deixou de ser percebido pela burguesia em
ascensão, segundo Golbery:
E as novas minorias dirigentes, muito mais alertas, perceberam desde logo que
havia, solta, uma nova força, ultraperigosa se incontrolada, assustadora por seu
potencial de destruição - uma verdadeira bomba psicológica. Força natural que
normalmente só se apresentava, como a radioatividade, em reações moderadas,
dissipando-se sem graves riscos. Saber despertá-la quando julgado conveniente, a
seguir, orientando-a habilmente para os fins perseguidos, de novo encadeá-la depois
- viria a ser, portanto, a suma de uma arte de governo do Estado, para a qual governo
continuava sinônimo de exploração de toda uma comunidade em beneficio exclusivo
da própria minoria dirigente. (PE:394)
Foi esse novo caráter da guerra, como já vimos, um dos responsáveis pelo surgimento
da democracia. Pois, para o general gaúcho, a democracia surge porque as minorias dirigentes,
para utilizar-se da inovadora potencialidade bélica das paixões das massas, apresentam seus
interesses egoístas como se fossem interesses do povo inteiro. Este, pelo já conhecido
mecanismo da mimesis, apropria-se daqueles valores novos, vendo-os realmente como “algo
importante e superior, a ser atendido em permanência e nunca, apenas, por ocasião de curtos e
esporádicos períodos de guerra”. Não cumpridas as promessas feitas em troca da paixão das
massas, estas percebem um seu direito “a influir também nas decisões mais importantes”. E
assim, pela via tortuosa da guerra moderna, “Completar-se-ia na prática a formulação
democrática” (PE:394-395).
111
Mesmo essa guerra moderna, porém, não havia ainda chegado ao termo de seu
desenvolvimento, pois, de acordo com algum desígnio a-histórico ou transcendental
misterioso, “teria, naturalmente, de evoluir, ampliando o seu domínio e estendendo-se no
tempo, como guerra total primeiro, como guerra fria depois” (PE:395). Mas esta já é outra
história, que acompanharemos no próximo capítulo.
9 - GEOPOLÍTICA E ESTRATÉGIA
17
Em especial, Miyamoto (1981), Mello (1997) e Schilling (1981).
112
Daí que as diretrizes de uma geopolítica essencialmente brasileira, “da paz, criadora
e afirmativa” (GB:94), pretendam a integração e valorização espaciais, o expansionismo para
o interior e, também, de projeção pacífica no exterior, a contenção ao longo das linhas
fronteiriças, a participação na defesa da civilização ocidental, a colaboração com o mundo
subdesenvolvido de aquém e além-mar - “a que pertence ainda o Brasil e a que solidariza,
mais ou menos estreitamente, interesses e aspirações semelhantes, a par de ameaças da mesma
ordem e de origens idênticas” (GB:170) - e a segurança nacional (GB:137-138). “Seus
fundamentos se radicam, pois, na Geografia Política, mas seus propósitos se projetam
dinamicamente para o futuro.” (GB:33)
Para Golbery, “Ao lado de uma Geopolítica para a luta, para a defesa ou para o ataque,
subsiste e subsistirá sempre uma Geopolítica da paz, voltada para os valores muito mais altos
e generosos da solidariedade internacional, da comunhão voluntária dos povos, do progresso
incessante da civilização e da cultura” (GB:94). Esta geopolítica da paz deve estar voltada
também, com especial atenção, para a defesa da civilização ocidental.
Oliveiros Ferreira captou a contradição imanente nesse raciocínio. Como ele observou,
Estratégia
O âmbito estratégico, por mais amplo que venha a ser nas épocas de intranqüilidade
geral e ameaças onipresentes, é, pois, bem mais restrito sempre que o político. /.../
Resulta daí que a Política comanda sempre tanto a Estratégia quanto a Geopolítica, a
esta como colaboradora de suas próprias formulações, àquela como subordinada sua,
com missões definidas a cumprir num âmbito operacional mais reduzido. Da
primeira, ex-ante, acolhe e incorpora sugestões ou rejeita proposições; da segunda,
ex-post, ponderações apenas e restrições de maior ou menor severidade. (GB:102)
Com o surgimento da guerra fria, “a Estratégia avançaria, por sua vez, ainda mais sobre
o campo sempre destinado à Política, em particular à Política internacional”, pois evidenciou-
se o fato de que, “na paz como na guerra, as relações entre os Estados obedecem aos mesmos
princípios de ação e se conformam a tipos de manobras semelhantes, integrando, na verdade,
uma só arte - a de promover e assegurar os ON”, a despeito dos antagonismos, não só
exteriores como também internos - “haver-se-ia de reconhecê-lo outrossim, em face do papel
cada vez mais importante desempenhado, tanto na guerra propriamente dita, como na guerra
fria, pela quinta-coluna telecomandada do exterior” (GB:152). Assim, hoje, a estratégia
coincide plenamente com a própria política de segurança nacional.
N uma realidade, como a de hoje, convulsionada, são de tal ordem “os antagonismos
despertados e a variedade e importância das pressões correspondentes” que não deve
espantar que “o campo menor da Estratégia quase totalmente recubra o campo mais
amplo da Política”. Isso se dá por um
Como vimos, de acordo com o general Golbery, os Estados ainda se relacionam uns
com os outros de maneira direta, quase sempre bifrontal, com vassalagens bem definidas,
“estruturando-se, atomisticamente, o poder em núcleos esparsos e autônomos” (CN:12;
PE,:368). Contudo, se no quadro nacional desperta o Leviatã, “na moldura em contração de
um mundo já sem fronteiras que realmente separem” têm-se claros sinais do despontar do
Estado-Universal, organismo político multinacional que o próprio panorama internacional de
guerra total exige. “E esse que está por vir será o Leviatã supremo, o Superleviatã, senhor
absoluto e incontestável da Terra e do espírito humano” (GB:9; PE:362-363). “Abre-se a era
da história continental que Ratzel predissera” (GB:22).
Tais ilações baseiam-se na constatação da falência da Liga das Nações, “triste aborto de
um grande idealismo utópico”, e da ONU, que apenas criou “um palco incruento onde se
digladiam tenazmente nações inimigas e irreconciliáveis e onde ressoam as tensões violentas
que dissociam o mundo de nossos dias” (GB:20-21).
Sem nenhum organismo internacional que possa controlar a unidade de poder que é o
Estado - que só estaca, vimos, diante de um poder mais forte -, campeia no mundo a lei do
mais forte:
Os países fortes tornam-se cada vez mais fortes e os fracos, dia a dia, mais fracos; as
pequenas nações se vêem, da noite para o dia, reduzidas à condição de Estados
pigmeus e já se lhes profetiza abertamente um fim obscuro, sob a capa de iniludíveis
integrações regionais; a equação de poder do mundo simplifica-se a um reduzido
número de termos, e nela se chegam a perceber desde já apenas raras constelações
feudais de estados-barões rodeados de satélites e vassalos. (GB:22)
Diante de uma tal realidade, Golbery confessa não entender como “- a menos que
busque, por um mecanismo subconsciente de compensação, enganar-se a si mesmo e à
angústia da instabilidade a que deseja fugir -” os velhos sonhos de paz universal ainda tenham
116
defensores 18 . Afinal, ressalta ele, os ideais de “renúncia à guerra como instrumento da
política” “viram-se inteiramente ultrapassados pela realidade indiscutível dos fatos” (GB:20-
21). No salve-se-quem-puder em que se transformou nossa “era perturbada”, ele também não
pode conceber como ainda se acredite
Descartada, pois, por absolutamente impossível, a crença de que a justiça pode ser
conseguida pelos fóruns internacionais de conciliação de Estados egoístas, nesse momento,
em que a guerra fria dominava o cenário internacional, cada um dos Estados esbarrava com as
exigências objetivas da realidade internacional - mesmo que fosse contra seus próprios
valores. Golbery insiste: não se pode agir ignorando o quadro mundial, tendo em vista que
18
O ex-presidente Jânio Quadros, em cujo governo Golbery criou o Conselho de Segurança Nacional, assim se
pronunciava sobre seu ex-assessor: “As idéias dele me impressionavam. Teses que sustentei na política externa e interna
confundiam-se com as dele. Por exemplo, a idéia de que um país não tem amigos nem inimigos, tem interesses” (Apud
Bones, 1978:20, grifos nossos).
117
Vivemos num mundo em que “Os progressos surpreendentes da técnica e da
industrialização acelerada rompem, pela continuidade do ar e pela permeabilidade do éter, a
escala de todas as compartimentações espaciais, em que se educara o espírito moderno”
(GB:22). Esse “complexo de relações bipolares, triangulares e multipolares, de intensidade e
natureza variadíssimas, que envolvem cada Estado num emaranhado de tensões discordantes”,
já não se pode ignorá-lo “e confinar-se num recanto mais ou menos delimitado do globo”
(GB:22). “Hoje já não há mais confins nem desvãos nem terras-de-ninguém neste mundo que
dia a dia se encolhe.” (PE:29-30) “Não há mais lugar para ‘esplêndidos isolamentos’ - nem o
isolamento seria possível, nem, se o fosse, poderia aspirar a ser suportável, quanto mais a ser
esplêndido” (GB:144).
As exigências do cenário internacional são inescapáveis e aí estão, a impor a cada
Estado uma série de procedimentos garantes de sua existência e integridade. Segundo
Golbery, já pertence à história a era do expansionismo europeu, “otimista e descuidado, que
canalizava para plagas longínquas as ambições e a agressividades das Grandes Potências
imperialistas” (PE:29-30). Reitera o general que não estamos mais nos “tempos remansosos”
“em que as nações fracas e pobres de recursos podiam viver e prosperar até certo ponto
livremente”, de forma marginal em relação aos “antagonismos ferrenhos, mas especialmente
circunscritos, dos poderosos da época, sem que a fraqueza e o relativo pauperismo se
convertessem em danosas e agourentas vulnerabilidades ante agressores sempre dispostos a
explorá-las em seu benefício próprio” (PE:29-30).
Por isso, Golbery ataca o “neutralismo agressivo” dos Não-Alinhados como o
“indisfarçável antiamericanismo” da Terceira Via de Perón. Afinal, deixar de tomar uma
posição, num conflito em que a própria sobrevivência do mundo está em jogo, é um erro
grosseiro e potencialmente letal, mas antes de tudo falso. Pois, num mundo desta forma
constituído, “A estrutura íntima do Estado - estrutura política, econômica e social - vê-se
forçada, portanto, a amoldar-se às exigências e às limitações impostas pelo sistema vigente de
relações internacionais” (CN:23; PE:480). E, se às exigências dessa realidade ninguém pode
escapar, isso é especialmente válido para os Estados pobres.
Golbery sublinha que o mundo atual é resultado de duas revoluções industriais que lhe
alteraram “profundamente todos os padrões dimensionais, a escala toda do espaço e do tempo,
avizinhando as mais distantes paragens e pondo em íntimo contacto as mais apartadas
culturas” (GB:73). Este nosso mundo é, “hoje muito mais denso e, pois, muitíssimo mais
agitado por tensões e atritos de todas as dimensões e da mais variada natureza” (PE:378), um
“mundo cheio de contradições e de incoerências, mas, na verdade, um mundo só” (GB:186).
Vivemos hoje distantes da época em que a “compartimentação espacial da humanidade, assim
estanque, limitava quase sempre as tensões, impondo um campo bem definido e restrito aos
antagonismos que inevitavelmente surgissem” (GB:185). “Há muito que as civilizações ou
118
culturas deixaram de viver mais ou menos confinadas em universos distintos, com suas
amplas fronteiras” (GB:185).
Neste mundo atual, o isolamento constitui “uma simples utopia”, “à medida que os
padrões, tanto de espaço como de tempo, sofrem bruscas e impressionantes mutações,
reduzindo drasticamente as dimensões todas do planeta”, a ciência e a técnica assegurando
“meios de comunicação cada vez mais potentes, mais econômicos e de mais ampla e
incoercível difusão” (GB:200).
Para o general, “O símbolo de nossa era é bem o símbolo da integração, processo
solucionador por excelência de todos os antagonismos e que melhor convém ao espírito
faustiano do homem moderno, inimigo de todas as limitações” (PE:21). Assim, vão sendo
derrubadas todos os tipos de “barreiras isolacionistas” “que compartimentavam e
compartimentam ainda a grande fraternidade humana - as distâncias físicas e as distâncias
sociais, os obstáculos naturais e os estereótipos disjuntivos, os preconceitos de raça, de
cultura, de nacionalidade e riqueza, o artificialismo reacionário das cortinas de bambu e de
aço” (PE:16-17). E a força que as demolem vem “dos novos meios de comunicação adaptados
à ductilidade e fluidez das massas, pelo poder do mimetismo nunca de todo reprimível e pela
mobilidade social acelerada segundo ambas as dimensões - a horizontal e a vertical - da
estratificação da sociedade moderna”. “E o maior dinamismo que daí resulta nas relações entre
indivíduos, entre estamentos e classes, entre Estados nacionais, obriga a um contacto
nivelador cada vez mais estreito até mesmo os mais díspares modelos conceptuais ainda
subsistentes nas áreas mais longínquas do globo.” (PE:16-17)
Golbery vê este “processo interativo e acelerado” ampliado à Terra toda, prenunciando
uma espécie de aldeia global, “a alvorada de uma Weltanschauung realmente universal, uma
perspectiva ecumênica, uma comum axiologia, uma consciência verdadeiramente mundial,
servindo de amplo quadro em que se situem, e se integrem, e se espelhem as variedades
individuais, regionais ou grupais, como todo o colorido próprio de suas visões muito mais
particularistas” (PE:17). De fato, o general considera que o “processo acelerado de
massificação no seio da sociedade contemporânea” como talvez o fenômeno mais alarmante
da atualidade (PE:15).
No campo internacional, a questão do poder tornou-se fundamental, pois cada Estado é
uma unidade de poder que se defronta com outras unidades de poder presentes no mundo, uma
nação é um “simples átomo mais ou menos carregado de poder que é a energia fundamental a
animar todo o campo das relações internacionais” (GB:149). “As relações entre os Estados se
expressam hoje, com clareza nunca igualada antes, em múltiplas equações dimensionais de
poder e o Poder é, por si mesmo, como todos sabemos, um complexo que largamente
extravasa do âmbito restrito das forças armadas para o campo psicossocial, o político e,
sobretudo, o econômico nesta fase histórica de alta mecanização e tecnicidade da guerra.”
(PE:24)
É que, talvez, se esteja realmente a esboçar uma nova ordem para o mundo: senão -
praza aos céus evitá-lo! - o Império Universal, com sua paz ecumênica, mas seu
incontrastável e despótico cesarismo interior - a cristalização do poder em unidades
de larga base geográfica, verdadeiras panregiões de economia e organização social
superiormente equilibradas. (GB:215)
A guerra fria está na base de mais uma rodada do eterno retorno golberyano a Hobbes,
desta feita para explicar esta era louca em que “o constante e incansável afã de poder e mais
poder que não cessa senão com a morte”(PE:174) 19 .
Para além do extravasamento da guerra para outros campos pela guerra total, para
Golbery, fato “Muito menos espetacular, muito mais enervante” é o espraiamento da guerra
também no tempo, “levando a que se cunhasse o conceito de guerra fria” (PE:397) 20 . Esta
extensão do fenômeno da guerra pela “realidade insofismável da ‘guerra fria’”, além de “toda
a crueza despótica da política de poder” são, sem dúvida, “características lamentáveis, mas
não menos reais, da atual dinâmica das relações internacionais” e “estão a impor o
reconhecimento de um estado de emergência de alarmante gravidade a tocar, a rebater nos
mais distantes confins do planeta” (PE:23-24), constituem uma “realidade cambiante e
complexa, em que, a despeito de tudo, é preciso planejar e agir” (GB:94).
No contexto atual, dado o “maior entrelaçamento de interesses entre os povos todos da
Terra”, a manifestação de um antagonismo dominante entre dois blocos - “um deles, o ‘grande
perturbador’” - é palpável (GB:159). Nesta era de “emprego desenfreado da força bruta nas
relações internacionais”, na qual a busca “constante e incansável” de poder “não cessa senão
com a morte”, (PE:174), a guerra fria constitui a “única paz que realmente nos é dado
conhecer” (GB:236-237). E, por isso, hoje, “a insegurança do Homem”, “o dilema eterno que
o aflige, como animal social que é”, é mais acentuado e tem como opção, “unilateral e
paradoxalmente”, o “sacrifício completo da Liberdade em nome da Segurança individual e
coletiva” (GB:9).
A guerra fria evidenciou que a integração das expressões do poder nacional em um
instrumento único “não seria apenas exigência imposta pela crise mais ou menos duradoura de
uma guerra violenta, antes deveria subsistir e afirmar-se, permanentemente, como condição
fundamental à conduta de toda uma flexível estratégia de paz”. E, mais que isso, o Potencial
Nacional “pesaria realmente muito mais, nas ações continuadas e perseverantes de guerra fria,
do que o próprio Poder, tal como existente de fato, em dado momento, para ser logo
prontamente superado” (PE:397).
Nesta tal guerra, constata o general, ainda um pouco desnorteado, as Forças Armadas
desempenham apenas um “papel potencial”, “empregadas como ameaça permanente do
desencadeamento da guerra verdadeira”, “e participam de demonstrações, de intervenções
brancas, de simples ações de policiamento” (GB:236-237).
Mas o esforço, na guerra fria, vem exercido sempre em outros campos, ora no
econômico - pelo dumping, pelo boicote, pela ajuda econômica e financeira, pela
assistência técnica etc. - ora no psicossocial -, pela propaganda e contrapropaganda
incessantes, pela doutrinação, pela exacerbação de ressentimentos e dissensões, pela
ameaça e pelo terror - ora ainda no campo propriamente político, através da atuação
de partidos simpatizantes, de alianças partidárias de toda ordem, da quinta-coluna
19
Oliveiros Ferreira percebeu esse retorno, mas desconsiderou a importância, para o pensamento do general, da “voragem
avassalante” da guerra fria. Fora desse contexto, parece-nos impossível conceber a histeria discursiva do general acerca da
guerra total - permanente, onipresente, global, indivisível, apocalíptica e inevitável.
20
Segundo o general, estender a denominação “guerra” aos fenômenos da guerra fria - que são “manifestações mórbidas,
se o quisermos, mas do tempo de paz” (PE:34-35) - é mais pernicioso que benéfico.
120
sempre ativa, de toda a atividade preparatória dos golpes de Estado ou das
próprias insurreições. (GB:236-237)
Outra característica, ainda nesse sentido, é que “se o próprio da guerra fria é apresentá-
la sempre, de boa ou má-fé, como imputável unicamente ao antagonista, a guerra
propriamente dita cada vez mais escapa ao formalismo das prévias declarações de
hostilidades” (GB:207).
Vimos de ver como “o sentimento de solidariedade entre nações de uma dada região
qualquer será sempre tanto mais forte e resistente quanto mais sérias e prementes forem as
ameaças externas” (GB:175-176). Tal comentário dá abertura para a pregação acerca da
guerra fria e da opção pelo ocidente. Isso porque “o grau de sensibilidade das próprias nações
interessadas, em relação a essas agressões, disfarçadas talvez, talvez indiretas, se revestirá
sempre de importância capital” para a solidariedade regional (GB:175-176).
Por isso, Golbery não se cansa de repetir: “dúvidas não poderá haver de que o Ocidente
se acha ameaçado e ameaçado seriamente”, e em todos os seus recantos (GB:230). É um
conflito de “profundas raízes ideológicas” em que “o materialismo comunista do Oriente” e “a
civilização cristã do Ocidente” jogam “pelo domínio ou pela libertação do mundo” (GB:186-
187). Esse antagonismo dominante “arregimenta todo o planeta sob seu dinamismo
avassalante a que não podem, não poderão sequer escapar, nos momentos decisivos, os
propósitos mais reiterados e honestos de um neutralismo, afinal de contas, impotente e
obrigatoriamente oscilante” (GB:186-187).
Nesse conflito fatal, a vantagem imediata de ação está com o bloco comuno-soviético.
Isso porque, para o ocidente, “será muitíssimo mais difícil tomar a iniciativa de uma ofensiva
estratégica atômica, devido ao impacto psicológico altamente desfavorável em todo o resto do
mundo mais ou menos neutralista e oscilante” (GB:230). Outros elementos que dificultam a
tomada de iniciativa pelo ocidente - quer dizer, pelos Estados Unidos - dizem respeito à
“situação extremamente vulnerável de suas concentradas posições na Europa e, em menor
grau apenas, do próprio arsenal norte-americano”, à dificuldade maior, “nos regimes
democráticos, de controlar o derrotismo e o pânico” e aos “indiscutíveis efeitos
desmoralizantes de uma tal decisão numa sociedade educada nos princípios humanitários e
superiores de nossa ética cristã” (GB:230).
No que se refere ao armamento, também “nesse particular o Ocidente disporá ainda de
muito menor liberdade de ação” do que os comunistas: em primeiro lugar, terá dificuldades
maiores para “tomar qualquer iniciativa de ampliação da guerra ao nível atômico irrestrito”.
Em segundo lugar, porque se verá obrigado desde logo, dada “sua enorme inferioridade em
potencial humano e, pois, em número de Grandes Unidades terrestres”, a inserir numa guerra
geral armas diferentes das clássicas, a fim de “enfrentar a inundação por forças soviéticas
numerosas. Somente o emprego de armas e engenhos atômicos táticos lhe permitirá
compensar as esmagadoras vantagens do número de que se beneficiam os comunistas.”
(GB:232-233)
Por todos esses motivos, Golbery acredita que “o desencadeamento brutal de uma
guerra atômica irrestrita só possa surgir por decisão fria e calculista dos senhores absolutos do
Kremlin” (GB:230).
De outra parte, observa o general, a estratégia da guerra fria é necessariamente mundial,
envolve e busca envolver todo o planeta. A estratégia do bloco comuno-soviético é dúplice: “a
dos povos não-ocidentais, aos quais busca atrair para a sua órbita; e a do próprio mundo
ocidental, onde busca espalhar a cizânia, a desconfiança e o caos, enfraquecendo-o e
dissociando-o com a sua pregação antiamericanista, anticapitalista, anticristã, materialista e
demagógica.” Um exemplo desta última é a própria América do Sul da Argentina peronista
121
que à época encontrava-se, “também, sob a cínica ofensiva do comunismo desagregador e
pervicaz” (GB:237-238).
Também aqui as maiores desvantagens são ocidentais. Por um lado, porque lhe é mais
difícil que para os comunistas “variar bruscamente de atitude, sob pena de desprestígio à face
do mundo todo, quebra da boa vontade dos neutros, enfraquecimento de alianças duramente
conseguidas, restrições à própria unidade de vistas e de propósitos em seu seio” (GB:237). Por
outro lado, porque, o ocidente homogeneizado é “uma sociedade democrática, aberta à
infiltração da propaganda inimiga e que, respeitando a consciência do indivíduo e a dignidade
da pessoa humana, não pode reprimir com eficácia a atuação desagregadora da quinta-coluna
soviética, dos simpatizantes e dos teleguiados comunistas” (GB:237).
No caso de guerras localizadas - sejam as “guerras por procuração”, sejam aquelas em
que os grandes intervêm abertamente -, os comunistas têm maior liberdade de ação, porque
“podem empenhar facilmente seus satélites” “e lançar mão das famigeradas ‘forças de
voluntários’”, ao passo que “os EUA não terão outro remédio senão intervir às claras, com
suas próprias Forças Armadas, pondo em jogo todo o seu prestígio internacional e muitas
vezes enfrentando o perigo de dissensões com alguns de seus aliados menos interessados,
quando não mais temerosos” (GB:239).
A gravidade, multiformidade e onipresença das ameaças a que se expõe obrigaria o
ocidente a enquadrar em uma estratégia coerente e coordenada todos os Estados ocidentais.
Contudo, não obstante a “incontestável supremacia de que veio a desfrutar, pelo seu
inigualável poder econômico e militar, o grande país líder da América do Norte”, a
“experiência norte-americana, nesse particular, deixaria muito a desejar” - nem mesmo,
internamente, seu “esforço, altamente louvável e frutífero, de traçar e conduzir uma política
internacional acima dos partidos” logrou manter-se, “sem discrepâncias nem brechas, por
longo prazo” (GB:239).
Para a construturação de uma aliança ocidental, Golbery sublinha, há que atender a
certos interesses: em primeiro lugar, dos aliados e “só em menor escala, dos próprios neutros”,
a fim de que “chegasse o Ocidente, afinal, a um grau mínimo de concordância geral,
indispensável à existência verdadeira do que merecesse o nome de uma estratégia coletiva ou
coordenada de todo o mundo ocidental” (GB:239-140).
Mesmo que tal estratégia totalmente unificada não exista, Golbery ressalta que a
estratégia de contenção/isolamento constitui, de si, uma estratégia ocidental, “como um todo
bem definido e coerente, válida para todo o âmbito mundial e duradoura no tempo” (GB:240-
241).
E justifica que uma estratégia de repulsão seria “impraticável e suicida”, incorreria num
“crime injustificável e até contraproducente” se incentivasse a rebelião inútil de populações
indefesas sob uma tirania totalitarista disposta a tudo. Também não é possível, além do “mero
esforço de imaginação de alguns publicistas exaltados ou teóricos com os pés nas nuvens”, a
guerra preventiva, de vez que o ocidente não poderia desencadeá-la (GB:240-241).
De outra parte, reitera, no ocidente “o isolacionismo não mais seria capaz de captar o
apoio de um povo que, por duas vezes já, vira-se ludibriado por essa tese amolecedora e cujo
amadurecimento político se processara, aceleradamente, através das rudes e trágicas provações
de duas guerras totais no curto período de um quarto de século” (GB:240-241). Este
isolacionismo era reconhecido como impossível, mas não eliminava “anseios análogos de um
escapismo abúlico e cego, mascarado por vezes com racionalizações bem tecidas sobre a base
de frustrações e ressentimentos de um prestígio que se esvaía”, especialmente no caso da
França. Os países da Europa ocidental buscariam uma tão cômoda quanto ilusória terceira
posição, buscando tornar-se o fiel da balança no conflito dominante da época, “Como se o que
122
estivesse realmente em jogo fossem simples interesses particulares dos opulentos ianques
e não a questão vital da própria sobrevivência de todo o mundo do Ocidente!...” (GB:240-
241).
No combate ao comunismo totalizante, não deixariam de ocorrer “erros tremendos de
apreciação” (caso da China e dos supostos inofensivos “comunistas agrários”),
“tergiversações, injustificáveis retardos e até mesmo defecções de alguns” (conflito coreano),
“teimosias gloriosas mas inúteis” (Indochina) “ou nem mesmo gloriosas, nem úteis” (Argélia)
(GB:242-244). A tudo isso suplantaria, “Com centro no dinamogênico arsenal norte-
americano” (GB:186-187), “a original e fecunda concepção do Plano Marshall”, que
alcançaria enorme êxito acerca da “vital e fraterna solidariedade” do mundo capitalista e que
reestruturaria a Europa destroçada no pós-guerra; da mesma forma, “a vasta rede de sistemas
regionais de segurança coletiva” (Otan, Otase), a articulação de pactos múlti ou bilaterais,
“reforçados por compromissos solenes” (Doutrinas Truman e Eisenhower e a Resolução de
Taiwan), “seriam outros tantos passos decisivos na edificação paulatina de um dispositivo
estratégico, não só militar, mas também econômico e político, traduzindo o conceito básico de
contenção do comunismo, brilhantemente transformado em realidade palpável” (GB:242-244
e 186-187). E eis que “o mundo anticomunista se estrutura, contra a expansão soviética, pelas
Américas e Austrália, a África quase toda, a Europa ocidental e do Sul, além de amplas
cabeças-de-ponte na Ásia - a Turquia asiática, o Irã, o duplo Paquistão e a Tailândia”.
Enquanto que, de sua parte, “o mundo comuno-soviético, solidamente ancorado na URSS e na
grande China continental, transborda já a oeste por sobre os chamados satélites jungidos ao
Pacto de Varsóvia e, na fachada de leste, pela Coréia do norte e o Vietnã setentrional”
(GB:186-187), de olho ainda em outras regiões do mundo.
Olhando o mapa-múndi desde uma perspectiva geopolítica brasileira, Golbery distingue
um hemiciclo interior, num raio médio de 10.000 km da América do Sul, que abrange a
América do Norte, a África ocidental e a Antártida. Este é circundado por um hemiciclo
exterior, balizado, grosso modo, por um arco de 15.000 km de raio e que engloba a Eurásia, a
África Oriental, a Austrália e parte da Antártida. Para além desse hemiciclo exterior, ainda há
a China, Japão, Indonésia, Malásia e Filipinas.
Do hemiciclo interior não há a temer qualquer ameaça à nossa segurança, adverte
Golbery, em primeiro lugar pela ausência potencial de agressão, mas também pela presença
possante dos EUA, além da “zona psicológica de amortecimento” formada pela “comum
profissão de fé democrática e o ideal pan-americanista” (GB:80).
Golbery observa, olhando a história do século, que o hemiciclo exterior, ao contrário,
constitui “para a América do Sul, o hemiciclo perigoso, de onde lhe têm advindo, época trás
época, as ameaças mais graves, mais duradouras, continuadas e potentes” (GB:129-130). E
hoje, adverte, “vem-nos, mais uma vez, ameaças gravíssimas, arrimadas agora a todo um novo
e requintado arsenal de armas terrificantes que vão desde a sutil propaganda ideológica,
conduzida em moldes racionais e frios, até os modernos engenhos termonucleares, capazes de
inaugurar uma nunca vista guerra intercontinental” (GB:135-136).
No caso do Brasil, de acordo com o general, numa primeira fase de uma guerra geral do
ocidente contra o oriente, “por mais destruidores e tremendos que venham a ser” “os ataques
de intimidação ou de represália a que podemos ser submetidos”, “nunca deixarão de ser
esporádicos, intermitentes, localizados por certo e de curta duração”. “Somente o domínio,
pelos soviéticos, de importantes bases no litoral fronteiriço da África permitir-lhes-á atuar
decisivamente, em continuidade e potência combinadas, contra algum ponto do território
brasileiro”. Daí que o próprio destino do Brasil esteja em jogo “na grande batalha de
manutenção da invulnerabilidade de toda essa África atlântico-meridional a penetrações,
sobretudo, à radicação aí do poder soviético” (GB:136-137).
123
Por isso, assevera o general, o hemiciclo interior
dentre todas essas áreas, as vulneráveis, por falta de um potencial efetivo suficiente -
de que, a rigor, carecem todas - ao mesmo tempo que ausência de uma sólida
estrutura regional que possibilite e assegure a participação, eficaz e a tempo, do
poderio ocidental radicado aquém-oceano, quando não mesmo por escrúpulos ou
temores que se rotulam de um neutralismo as mais das vezes incoerente, abrem
largas brechas à infiltração solerte ou ao ataque violento - talvez muito mais
provavelmente à primeira do que ao segundo - o Oriente Médio tumultuado, a Índia
e o Sudeste asiático (GB:214).
Embora seus escritos sobre a guerra fria fossem dos anos 50, Golbery observaria,
posteriormente, que não careciam de atualização - muito embora observasse mudanças:
à maior definição em relação à bipolarização rígida e a agravação guerra fria “viria a suceder,
no primeiro qüinqüênio dos 60, uma fase nova, de guerra fria em diminuendo e de um
policentrismo”, tanto no ocidente como no oriente.
Contudo, argumenta o general, todas essas mudanças não são substanciais, de forma
que seu raciocínio passou por elas incólume. Isso porque, assevera, não se pode falar
propriamente do surgimento de uma multipolaridade, mas de um afrouxamento da
bipolarização. “O antagonismo entre o Ocidente cristão e o Oriente comunista domina ainda a
conjuntura mundial.” (GB:3-4) E o “mundo convulsionado e agônico de hoje” continua
vislumbrando “trágicas perspectivas”, “a despeito de quaisquer vislumbres de coexistência
pacífica de conciliação e entendimento que já se queriam, otimistamente, enxergar no longe-
perto do horizonte dos tempos” (PE:375-376 e 419).
Antes do surgimento da guerra total, o conceito que orientava a mobilização militar era
o de defesa nacional em guerra convencional, a defesa do território nacional contra agressões
externas. No início da I Guerra Mundial, persistia a idéia de que a guerra se resumia a embates
entre forças militares. Sendo assim, na preparação deste primeiro grande conflito mundial, os
126
militares se desaperceberam da mobilização industrial, e ainda mais da científica,
realizando apenas a mobilização militar.
No seu decorrer, contudo, a guerra terminou por evidenciar qualidades diferenciadas: o
quanto a revolução industrial pusera os povos em interdependência; a necessidade de amplos
recursos humanos e materiais etc. Com a estabilização das frentes de guerra,
o complexo atual da guerra mais valoriza ainda a importância dos fatores morais,
podendo-se vencer o adversário por meio de uma hábil propaganda, de uma hábil
atuação sobre a sua vontade de combater com os recursos materiais e intelectuais ora
disponíveis de atuação sobre as massas... É uma condição que favorece as potências
de maior pujança econômica (Magalhães, 1958:379).
127
A guerra torna-se, assim, guerra ampliada a todo o espaço territorial dos Estados,
absorvendo a totalidade dos esforços de que é capaz a Nação, redirecionando todas as
atividades para o objetivo da vitória, cobrando os mesmos sacrifícios e expondo aos mesmos
perigos soldados, civis, homens, mulheres e crianças “e obrigando à abdicação de liberdades
seculares e direitos custosamente adquiridos, em mãos do Estado, senhor todo-poderoso da
guerra”. Estendeu-se a toda a amplitude do espaço mundial, a todos os povos, “obscurecendo
a figura jurídica da neutralidade e equiparando beligerantes e não-beligerantes nas mesmas
provações, em um transbordamento máximo que desconhece quaisquer limitações espaciais”.
Mas, acima de tudo, “ampliou-se também na escala do tempo, incorporando em si mesma o
pré-guerra e o pós-guerra como simples manifestações atenuadas de seu dinamismo
avassalante - formas larvadas da guerra, mas no fundo guerra” (GB:24-25).
Registre-se a contradição entre a conceituação técnica da guerra (caracterizada pelo
emprego da violência), mais precisa, utilizada para o planejamento. A versão aqui apresentada
dispensa preocupações com a exatidão, pois seu objetivo é justamente o convencimento.
E assim é que a guerra extravasou de vez todos os limites que lhe foram anteriormente
impostos, tornando-se uma guerra total que, como a paz, é indivisível.
De guerra estritamente militar passou ela, assim, a guerra total, tanto econômica e
financeira e política e psicológica e científica como guerra de exércitos, esquadras e
aviações; de guerra total a guerra global; e de guerra global a guerra indivisível e -
por que não reconhecê-lo? - permanente. A “guerra branca” de Hitler ou a guerra
fria de Stálin substitui-se à paz e, na verdade, não se sabe já distinguir onde finda a
paz e onde começa a guerra (GB:24-25).
Guerra total é um conceito, pois, que busca traduzir o esparramar-se da guerra para
campos que anteriormente lhe eram alheios: para além do militar, o político, o psicossocial e o
econômico. Estaria, assim, o poder militar recolocado no seu justo papel “de um dos
instrumentos apenas com que a Nação faz a guerra e realiza seus planos estratégicos - o gume
cortante do Poder Nacional”. Avultou a importância de outros fatores, como o econômico -
dada “a necessidade crescente de forças militares cada vez mais numerosas e de padrão
técnico mais elevado” -, das “ações psicológicas, fundadas no reconhecimento do valor
incomensurável das forças morais na guerra”, a necessidade de “extrema versatilidade e
inigualável capacidade de vencer as distâncias e salvar obstáculos” e a própria diplomacia,
“chamada a prosseguir em suas manobras complicadas durante todo o período de guerra e não
apenas no período de paz e de tensão e nas negociações de pós-guerra, em íntima coordenação
sempre com as ações propriamente militares” (PE:397).
Ressalte-se, pois, o caráter subordinado da guerra em relação a fins outros, impostos
pela política nacional.
Apesar de ter sido reestruturada sua importância, o poder militar continua pesando
fortemente, devendo o Brasil em especial mantê-lo pronto para o caso de ser necessário:
128
O mundo é cada vez mais um só; está todo inter-relacionado; e temos visto não
uma guerra quente e contínua, mas episódios sucessivos que têm trazido, para nós,
prejuízos bastante importantes. Acho que, numa conjuntura como esta, que, se não é
de guerra, é de um clima de pré-guerra, a “expressão militar” terá que influir,
fortemente, em tudo o que trouxer decisão na área da política externa. /.../ hoje em
dia, há mesmo quem ache que o mundo está vivendo a terceira guerra mundial: daí o
papel militar avultar por demais no quadro internacional e, portanto, influenciar
muito de perto a política exterior dos países. Não temos, realmente, uma previsão de
emprego em curto prazo de forças armadas em nosso país, porém sabemos quer
precisamos estar preparados para viver uma conjuntura em que as forças armadas
terão, cada vez, presença maior em várias partes do mundo, com reflexos em todos
os outros países (PE:503).
extensão desta a todo o território amigo e inimigo, devido ao alcance aumentado dos
meios de agressão e à imperiosa integração do esforço nacional; transbordamento a
todos os campos /.../ e recurso a instrumentos de toda a ordem; tendência à guerra
global. Essa guerra total é, afinal, a guerra no seu máximo de violência e para ela o
campo militar é nitidamente dominante. (GB:157-158)
E a guerra moderna que se trava entre nações, mobilizando toda a força arrasadora,
todos os impulsos destruidores, todo o primarismo incontido da emotividade bárbara
das massas angustiadas e esporeadas à luta, expandindo-se, em crescendo, a todos os
setores de atividades, não mais a guerra de mercenários ou de profissionais
endurecidos, mas a guerra total que a todos envolve e que a todos oprime, guerra
política, econômica, psicossocial e não só militar, perdurando no tempo sob a forma
de guerra fria ou ampliando seu domínio no espaço como avassaladora onda
universal que não respeita nem os desertos saáricos, nem as alturas tibetanas, nem as
imensidades polares, vem acrescer ao velho dilema entre Liberdade e Segurança um
colorido profundamente trágico, quando as novas armas saídas, incessantemente,
dos laboratórios de pesquisa - as bombas atômicas, as superbombas de hidrogênio e
cobalto, os teleguiados de alcance intercontinental, os satélites artificiais que já
cruzam os céus, anunciando as plataformas giratórias do futuro de onde poderão ser
lançados ataques inopinados, demolidores e esquivos - passam a ameaçar a
humanidade inteira, em sua loucura coletiva, de aniquilamento e de morte. (GB:12;
PE:367-368)
“Então me disseram: importa que profetizes outra vez a muitos povos, e nações, e
línguas, e reis” (Apocalipse, 10:11), a fim de convencê-los dos deuses a serem adorados e dos
valores a serem abandonados. Se não o fizerem, haverá choro e ranger de dentes, e o homem
buscará a morte e não a encontrará - permanecendo em agônica expectativa.
Daí em o corolário da pregação, tão cuidadosamente preparado e que apresenta-se,
mesmo em sua totalização simplista, como absolutamente lógico.
Esta guerra total serve-se, por isso, de todo tipo de armas: as políticas (negociações
diplomáticas, pressões e intervenções, alianças e contra-alianças, acordos e tratados), as
econômicas (sanções, empréstimos e investimentos de capital, pressões cambiais, política
tarifária e discriminações comerciais, embargos, boicotes, dumping), as psicossociais mais
ainda (propaganda e contrapropaganda, persuasão ou intimidação pelo rádio e a imprensa,
chantagens, ameaças, terrorismo), conservando “as forças militares como um trunfo poderoso
que tanto vale hoje, fator catalítico indispensável, na mesa das discussões como nos campos
de batalha” (GB:24-25). E “a técnica galga o espaço exterior com seus sputiniks de agora, seus
vigias atentos de amanhã e suas plataformas de ataque de um futuro não remoto, e domestica e
controla as mais terrificantes explosões atômicas para entrega em domicílio do inimigo,
através de alcances intercontinentais cada vez mais ampliados” (GB:144).
Numa conjuntura em que a guerra entremeia a política interna e a política externa dos
Estados, transborda sobre toda a política nacional, confunde ações revolucionárias e
subversivas com as atividades propriamente militares, coloca em plano idêntico as ações
ofensivas e defensivas conduzidas no campo econômico ou no setor da propaganda e da
doutrinação, insiste o general, em que “a guerra invade a paz”, esta só pode ser percebida
como “condição humana de caráter permanente e normal” (GB:144).
130
Como destacou Oliveiros Ferreira, Golbery é, “ele próprio, criatura do ‘filósofo do
medo’”, o que em grande medida determina o tipo de guerra “que tem na imaginação”
(Ferreira, 1984:578). De todo modo, a redenção possível da humanidade maculada está em
entender devidamente o complexo tremendo da guerra e utilizar-se dos meios possíveis para
enfrentá-la. Somente quando estamos absolutamente conscientizados desse imperativo
inescapável é que vem a luz no fim do túnel:
Golbery ressalvava que “a grande probabilidade de que uma guerra geral, limitada do
ponto de vista atômico, degenere, em curto prazo, numa guerra nuclear irrestrita ou total”,
reiterando a ameaça permanente de “recíproca destruição total” dos contendores pela guerra
atômica, com seus perigos e “novos engenhos de difícil detenção”, “fará com que os riscos
nela envolvidos sejam quase iguais ao desta última”, especialmente numa “era de paridade
atômica e ampliação paulatina do número de potências nucleares”. “Objetivos limitados,
interesses secundários não compensarão os riscos tremendos de uma generalização e
totalização simultâneas da guerra.” (GB:234) Por isso, a possibilidade de sua ocorrência é
diminuta, dando espaço para “guerras atenuadas - localizadas ou limitadas”. De forma que
“probabilidade maior parece de fato apresentar, hoje, a guerra limitada, o conflito localizado e,
sobretudo, a agressão comunista indireta que capitaliza os descontentamentos locais, as
frustrações da miséria e da fome, os justos anseios nacionalistas, os ressentimentos e ódios
anticolonialistas” para provocar perturbação ou tomada ostensiva de domínio, seja por golpes
131
de Estado, “seja mediante uma longa e exaustiva guerra subversiva de terrorismo e de
guerrilhas” (GB:192-194).
Como, segundo Golbery, teriam demonstrado, recentemente, a Guerra da Coréia (na
década de 50, ocorreria ainda a guerra localizada na Indochina, e nos anos 60, a do Vietnã),
havia muito espaço para as guerras limitadas. Nessa disputa pela hegemonia - ou pelo
equilíbrio - entre os dois blocos, provavelmente serão utilizadas apenas armas convencionais,
se, “para ambos os partidos, os objetivos visados e os riscos envolvidos sejam, por sua própria
natureza, limitados também”. Nunca se deixará, contudo, de considerar o emprego de
engenhos atômicos; “não será mesmo impossível o recurso a ataques nucleares e
termonucleares de caráter estratégico, embora sempre circunscritos ao teatro de guerra
tacitamente aceito”(GB:234). Nesse caso,
Por outro lado, tais guerras localizadas trazem riscos incomensuráveis de descontrole
de seu desenvolvimento e o risco de perda de prestígio. A essa tensão nervosa insuportável
mantida nessas guerras, acrescenta-se o sério desgaste de forças. Por isso, conclui Golbery,
são mais vantajosas para o “bloco comuno-soviético”, “mais resistente no seu controle
ditatorial das populações”. São, pois,
uma arma inigualável com que experimentar, ora aqui, ora mais acolá, o dispositivo
defensivo mantido pelo Ocidente à custa de uma energia sobre-humana e de
inúmeras concessões a aliados exigentes e quase sempre desconfiados, em toda a sua
vasta periferia, e pôr à prova, principalmente, a determinação deste para a luta.
(GB:235)
Sendo assim, este tipo de guerra só se pode empreender “na periferia do próprio
domínio comunista e de preferência, por certo, onde haja satélites” (GB:235). “Em qualquer
dos casos, porém”, continua o general, haverá um elemento novo: o “da ‘guerra sob condições
atômicas’”, “o perigo sempre presente de que possa ela, a qualquer momento, degenerar em
um conflito atômico irrestrito”; nessas condições, “a dispersão maior das forças, alto grau de
132
auto-suficiência dos grupamentos de combate, a mobilidade e potência acrescida dos
momentos emprestarão características muito particulares” (GB:232).
Em artigo escrito em 1954, Golbery advertia que, “Hoje em dia, para toda Hipótese de
Guerra externa se deve considerar a ação de elementos quinta-colunistas no interior do país”,
ressaltando ainda que “O comunismo não escaparia, antes serve de modelo aprimorado, a essa
perigosa combinação de agressões externas e internas, simultâneas ou não” (PE:41).
Nos países subdesenvolvidos, por suas características específicas no que se refere a
vulnerabilidades, posição geopolítica e potencial de defesa, “o perigo é tanto mais premente
quanto menos violenta a forma de que se revista”, “muito mais urgente quanto às variantes
subversivas da guerra”. De forma que “A guerra localizada e a guerra geral são espectros
muito mais terríveis, em verdade, mas ainda se escondem nos desvãos de um futuro mais ou
menos hipotético. Não nos devem fazer esquecer, de forma alguma, os perigos mais
imediatos” (GB:238-239).
Os fenômenos da insurreição, da guerra social-revolucionária ou subversiva são vistas
portanto como uma das técnicas empregadas pelo “oriente agressor” - esta tendo a vantagem
de atuar “no interior do sistema defensivo do Ocidente”, possibilitando “a agressão indireta e
mesmo a distância, comandada do exterior”. Daí vêm a inspiração como também os “técnicos
da subversão”, além de “armas, dinheiro, propaganda e ameaças de toda natureza”. Outro tipo
de apoio é a presença ostensiva, “nas imediações, dos próprios tanques e aviões soviéticos ou
chineses”. “Nestas expressões da guerra fria”, destaca ele,
Naquela, as Forças Armadas regulares têm apenas um papel, as mais das vezes,
episódico ou, pelo menos, cedem primazia à ação dos guerrilheiros, dos sabotadores,
dos partisans, de um lado, e à repressão quase de caráter policial, de outro, a menos
que o conflito evolua, como tem acontecido freqüentemente, à medida que os
insurretos adquiram firme controle de certas porções do território conflagrado, para
a guerra do tipo convencional ou clássico, de proporções reduzidas (GB:236-237).
Para Golbery, no que se refere à conquista efetiva do território do Brasil, “esse colosso
imperial de nossos dias - e muito mais de um futuro que a passos largos se aproxima”
(GB:110), este é um processo que, ainda hoje, “já de há muito acalmada de todo aquela febril
agitação do desbravamento”, não está completo. Embora tenhamos ultrapassado o “tênue fio
litorâneo” e a “colonização periférica” do século XVI, “ainda assim nada mais fizemos que
ampliar a base de partida para exploração e assenhoreamento do interior brasileiro a escassos
500 km da orla oceânica” (GB:42).
Sua análise geopolítica do Brasil destaca “um notável adensamento demográfico
servido por trama rica de comunicações ferroviárias e rodoviárias” no triângulo Rio-São
Paulo-Belo Horizonte. Este é o núcleo central do Brasil, “seu verdadeiro coração” ou
heartland, que concentra a maior massa de população e de riquezas, com uma circulação
intensa, uma produção grande, onde situam-se as mais importantes indústrias de base. Ali, o
“dinamismo é mais poderoso e enérgico” (GB:43-44). No restante do país, existem apenas
dois núcleos ecumênicos e alguns escassos módulos de condensação geográfica, verdadeiras
ilhas de população, destacando-se em meio a um vasto deserto.
Sua conclusão é que, após 450 anos de história,
21
Os detalhes da análise do espaço e da posição (duas categorias geopolíticas de Ratzel) brasileiros em Golbery podem ser
encontrados em várias partes do GB; um resumo está em Mello (1997); Miyamoto (1981) trata também do assunto. A
categoria geopolítica de espaço estatal ou território é vista por Golbery não como meramente reduzida ao espaço físico: ele
pretende ter aí a visão do “espaço político em toda a sua plenitude”, incluindo extensão, forma e contextura; valor
estimado; base física mais ou menos compartimentada em regiões e sub-regiões naturais distintas; englobando zonas já
vivificadas pela ocupação efetiva de aglomerações humanas - o ecúmeno - como zonas mortas ou passivas;
compreendendo um núcleo central, núcleos secundários e marginais e o simples domínio; limites do território, as
fronteiras políticas e principalmente as fronteiras de civilização, zonas vitais, áreas críticas de produção e de circulação,
zonas-problemas. “É também o espaço econômico com todas as suas diferenciações regionais e, não menos, as regiões
culturais, as regiões étnicas, as regiões lingüísticas, sempre que for ocaso” (GB:34). A posição que a geopolítica estuda
também não se limita à “posição matemática, definida pelas coordenadas geográficas”, mas considera a situação no âmbito
mundial, no espaço regional e no relacionamento inter-regional; aprecia a acessibilidade às correntes internacionais do
tráfego; o grau de dependência em relação ao comércio exterior; a proximidade ou afastamento relativamente aos grandes
centros dinâmicos; intensidade de pressões externas; a maior ou menor continentalidade do espaço; distingue zonas de
fricção, atuais ou potenciais, com os espaços políticos circunvizinhos; o dinamismo da osmose fronteiriça e os caminhos
naturais de penetração; e eventualmente delimita plataformas de expansão dentro do território ou zonas de influência no
espaço exterior (GB:35). Mesmo que não de forma totalmente direta - “pois que o próprio fato local só pode ser bem
avaliado à vista de seu condicionamento externo” -, pode-se admitir que o estudo do espaço respeita à geopolítica aplicada
ao campo interno, com vistas à integração e valorização do território nacional, ao tempo em que a estimativa da posição
interessa mais à geopolítica relativa ao exterior, com vistas à defesa ou ataque, e cuja característica principal é a “projeção
do espaço nacional sobre os espaços circunvizinhos. E aí está porque a Geopolítica, se não fomenta os imperialismos, lhes
abre o caminho a sonhos de conquista, domínio e expansão territorial” (GB:35).
135
se vai ultimando, assim, aquela coincidência fundamental dos espaços físicos,
demográfico, econômico e político que ancora o poder no centro de base compacta,
possibilitando-lhe atuar dinamicamente e em potência. (GB:123)
E aí temos duas das idéias centrais da geopolítica golberyana: destino geopolítico (que,
como veremos, também se apresenta no campo externo ao Brasil) e que ele reitera sempre,
proclamando que “o grande heartland central, pelas suas simples e desnuda expressão espacial
e a posição superior que desfruta no conjunto como centro natural da estrutura inteira, traz
inscrito em si mesmo um destino imperial manifesto, tanto mais que o desbravador, o
povoador e, com ele, a civilização e a técnica todas viriam de terras remotas, através sempre
do Atlântico” (GB:114). A outra idéia é o expansionismo para o interior, sua propositura
final, conforme teremos oportunidade de ver.
Não obstante os muitos elementos negativos da avaliação, Golbery acredita que
Golbery destaca, veementemente, que o Brasil, dono de vasto território, “é hoje um país
territorialmente satisfeito”. Tendo, pois, seu espaço vital já conquistado, trata-se de ocupá-lo e
explorá-lo devidamente, o que contribuiria para superar a realidade do “profundo
desequilíbrio econômico e cultural entre as regiões de seus diversos quadrantes, os vários
brasis em que realmente se desdobra o panorama continental brasileiro”. Assim, reafirma,
nossa geopolítica, ao menos nesse momento histórico, deverá ser “ainda uma geopolítica de
expansionismo interior, de integração e valorização territoriais, sem quaisquer ressaibos de um
imperialismo além-fronteiras descabido e grotesco para quem dispõe, dentro de seu habitat, de
todo um território imenso a construir” (GB:169-170).
E, sob profunda influência viannista, conceitua seus dois brasis, formados pelo
ecúmeno (espaço valorizado efetivamente pela humanização), pouco mais que um terço do
país, “e a oeste, o simples domínio, o Brasil marginal, inexplorado em sua maior parte,
desvitalizado pela falta de gente e de energia criadora” (GB:43) - a deixa para a retomada a
proclamação de Mário Travassos: Para Oeste!,
A Evolução do Brasil
Como prenúncio dessa construção, Golbery analisa, há uma evolução favorável do país
em todos os campos.
“No setor demográfico, em particular, registra-se um crescimento quase explosivo da
população” (GB:72-73). Mesmo que persista o êxodo rural e as migrações internas sejam
descontroladas, esta “dinâmica migratória surpreendente e trepidante” e entrecruzada
(GB:110) vai vivificando e humanizando nosso território - “avança para o interior, lenta,
desordenada, irregular, mas constantemente, a vaga vitalizadora do povoamento” (GB:72-73),
“a atestar a ausência real de barreiras internas decisivas e a consolidar, mal ou bem, a própria
unidade nacional pela aculturação incessante e niveladora e a miscigenação indiscriminada”
(vista esta, portanto, como positiva para o forjamento da identidade nacional, ao contrário de
alguns pensadores conservadores do início do século) (GB:110).
“O que precisamos a todo custo quanto antes deter é o êxodo rural desordenado,
vinculando o homem à terra do interior pela pequena propriedade, reduzindo o retardo cultural
que opõe o sertão à cidade, e diversificando em base mais sólidas a nossa economia” 22
(CN:47; PE:497). Para que não se percam tais positividades, “É preciso evitar que cresça
desmesuradamente a população, sobretudo nas já grandes concentrações de pobreza, que
existem no país”, sobretudo por meio da educação e informação (PE:503).
No campo econômico, têm sido “ultrapassadas, embora nunca de todo, as formas pré-
capitalistas, a partir das mais rudimentares - a caça e a pesca primitivas, a simples coleta dos
frutos da terra, a lavoura itinerante e predatória com todo o seu complexo da queimada - /.../,
pastoreio extensivo e rude, /.../ amplos latifúndios de monocultura patriarcal baseada no
trabalho servil, mineração aventureira e ávida” (GB:71). Com isso, a sociedade brasileira vai-
se elevando a tipos estruturais mais modernos “pela industrialização intensiva, não confinada
aos meros bens de consumo mas alicerçada na grande indústria de base” e voltada à
constituição de um mercado interno de “grandes e inegáveis potencialidades amplas”, carente
de produtos de toda ordem. Bem assim, às possibilidades da concorrência no mercado
internacional, ainda que problemática no início (GB:71).
Pode-se visualizar, desse modo, a superação da situação semicolonial do Brasil, pela
superação das formas de produção semicoloniais:
22
É interessante notar que em nenhum momento, como atentou Ferreira, o general propõe a nacionalização da propriedade
- seria uma incoerência com seu pensamento, pois esta, para Golbery, está ligada necessariamente à supressão da
liberdade. Já o tipo de reforma agrária que propõe “aparece a seus olhos como indispensável à manutenção do equilíbrio
político no campo - indispensável, portanto, à SN” (Ferreira, 1984:589).
137
em ritmo embora ainda inferior ao que seria desejável, dependente sem dúvida, em
muito, de contribuições maciças do exterior, mas que apresenta já, de fato,
apreciável grau de autonomia em certas áreas progressistas de elevados índices de
poupança, amplas economias externas, forte propensão para investir; e, demais, um
indiscutível espírito imperialista, alerta e vigoroso, muitas vezes até mesmo
incontido e extravagante, que bem traduz uma herança duradoura daqueles
insuperáveis desbravadores de todo um continente intacto. (GB:109-110)
Soberania e Desenvolvimento
A ilusão necessária do bonapartismo era que os capitais externos seriam por nós
utilizados para conseguir autonomia. Com a ajuda externa, conseguiríamos assentar as bases
de nossa independência do exterior. Golbery tinha alguma consciência dessa contradição. Ele
mesmo retoma a frase de Washington: “Deveis sempre ter em vista que é loucura o esperar
uma nação favores desinteressados de outra; e que tudo quanto uma nação recebe como favor
terá de pagar mais tarde com uma parte da sua independência”.
A perda da soberania nacional foi uma das preocupações dos estagiários da ESG, em
1980. Inquietava-os especialmente a questão das transnacionais e seu domínio sobre certos
setores da economia. Golbery ponderava:
De forma que, concluía ele, “Se conseguirmos manter sob controle nacional - quer
dizer, inteiramente fora de pressões excessivas de centros de decisão exteriores - alguns dos
setores-chave da economia, teremos garantido a soberania do país” (PE:515). Além disso, a
140
permissão da entrada de capitais estrangeiros e empresas transnacionais era instrumental -
seu objetivo era dar-nos condições para andar com nossas próprias pernas.
Uma das implicações desta quadra mundial de interdependência entre os Estados,
afirmava o general, é a rediscussão do conceito de independência e de soberania. Afinal,
Se abre espaço para intervencionismos de todos os tipos, essa argumentação não sig-
nifica, contudo, para Golbery, que a soberania e a independência não sejam mais atributos
necessários ao Estado. Pelo contrário: apesar das já citadas indicações de que está por vir uma
nova ordem internacional, dominada por entidades multinacionais, a soberania ainda é uma
das mais claras exigências desse “organismo político” que é o Estado, e sem a qual não pode
sobreviver.
poderá bem ser destino seu recolher a herança de cultura de uma civilização
portentosa que se tenha esvaído na loucura da guerra, cumprindo-lhe então, por sua
vez, aquela missão histórica que tem cabido a muitos outros povos no evolver
impassível dos séculos, em que todos são /.../ “como corredores olímpicos passando
de mão em mão o facho luminoso da vida”. (PE:219)
Por esses mesmo trunfos, o mundo comunista lança olhares de cobiça para o litoral
brasileiro e para a Amazônia. Por isso, se alguma ameaça há a esses territórios, frise-se que
“não é bem tal ameaça motivada por ambições colonizadoras que aqui pensem encontrar uma
fonte de matérias-primas essenciais e, ao mesmo tempo, um mercado para seus produtos
manufaturados” (GB:51).
Para tal fim aí estaria a África, tradicional campo de luta dos imperialismos
colonialistas, muito mais próxima, menos rebelde por certo, rica de matérias-primas
valiosas e não protegida nem por um fosso tão respeitável como o Atlântico, nem
por interesses vitais de uma superpotência como os EUA. O que nos ameaça hoje,
como ontem, é uma ameaça não dirigida propriamente contra nós, mas sim
indiretamente contra os Estados Unidos da América, a qual, mesmo se a
entendermos subestimar /.../, nem por isso resulta insubsistente (GB:51).
negociar uma aliança bilateral mais expressiva que não só nos assegure os recursos
necessários para concorrermos substancialmente na segurança do Atlântico Sul e
defendermos, se for o caso, aquelas áreas brasileiras tão expostas a ameaças
extracontinentais, /.../ mas uma aliança que, por outro lado, traduza o
reconhecimento da real estatura do Brasil nesta parte do Oceano Atlântico, posto um
termo final a qualquer política bifronte e acomodatícia em relação a nosso país e à
Argentina, ambas nações, por exemplo, igualmente aquinhoadas, contra todas as
razões e todas as evidências, em armas de guerra naval. (GB:50-51)
142
Reconhecimento da real estatura do Brasil nessas paragens, principalmente em face
da Argentina, eis a exigência. Não é à-toa que os países da América do Sul realizem, não
obstante as desconfianças e litígios que os separam, uma “composição de interesses e uma
conjugação de esforços, quando se trate de satisfazer todas as ambições e todos os
ressentimentos à custa do vizinho exótico, rico demais hoje em virtude de seu imperialismo
prepotente, que nem pode aproveitar devidamente suas terras imensas e cuja vontade se julga
andar um tanto alquebrada pela contribuição em alta dose de sangue escravo inferior...”
(GB:53) E Golbery quer esquecer o “fato indiscutível”, por ele mesmo revelado: para os
norte-americanos, que tanto aprenderam “dos ingleses e de sua fria e calculadora política de
equilíbrio de poder”, interessa “justificar e manter e acentuar mesmo, se possível, uma
indiferenciação igualitária e niveladora desta paisagem sul-americana, afinal tão próxima e
onde não lhes será agradável contar, por certo, com vizinhos poderosos e talvez irrequietos”
(GB:175).
A soberania pode ser objeto, então, de escambo, desde que seja uma barganha leal.
Assim, conclui o general, “o direito de utilização de nosso território, seja para o que for, é um
direito exclusivo de nossa soberania que não devemos, de forma alguma, ceder por um prato
de lentilhas” (GB:52, grifos nossos). O equivalente para os trunfos geopolíticos brasileiros é
dado pela frase: “Também nós podemos invocar um ‘destino manifesto’, tanto mais quanto ele
não colide no Caribe com os de nossos irmãos maiores do norte...” (GB:52).
Estas são práticas velhas conhecidas e falidas. Neste caso, segundo o general, importa
dar “uma grande inconcussa demonstração da vitalidade e poder de criação do próprio regime
democrático, no rápido soerguimento de povos subdesenvolvidos a um nível elevado de bem-
estar, de riqueza e de progresso” (GB:248-249). Por meio desta “experiência em vasta escala,
indiscutível e inspiradora”, se patentearia para o mundo “que nesse regime, sem sacrifício das
liberdades públicas, sem opressão da personalidade humana, sem escravização nem trabalho
forçado nem campos de concentração nem massacres brutais, é possível romper o ciclo
deprimente do subdesenvolvimento econômico e levar um povo à plena realização de seus
destinos históricos” (GB:248-249). De maneira concludente e sugestiva, estaria atestado que
as críticas e os ataques contra o “capitalismo explorador e mesquinho, a rapinagem sem freio
das grandes empresas internacionais, a odiosa prepotência do imperialismo expropriador de
bens e escravizador de nações não mais se coadunariam, em verdade, com uma realidade
evolvida a planos muito mais altos de reconhecimento da solidariedade humana e do dever de
cooperação entre povos” (GB:248-249).
De forma que, adverte Golbery, um “desafio crucial” foi lançado às “próprias
convicções democráticas de todos os povos do Ocidente”, o que significa testar “sua
capacidade de sensibilizar e atrair, para a órbita de seu exemplo de vida” as novas nações do
sudeste asiático, a África recém-desperta e inclusive a América Latina, “ainda mais ou menos
indecisas todas, em sua imaturidade política, entre a formação política democrática e a
ideologia totalitária do marxismo” (PE:410).
E, ressalta ainda o general, “o ritmo do desenvolvimento” de cada país, relativamente
ao contexto internacional de que faz parte, “haverá sempre que atender, sob pena de trágica
insolvência, ao princípio capital da proporcionalidade do poder ao vulto das responsabilidades
e compromissos assumidos” (GB:108).
“Ora”, raciocina o general, “nenhuma experiência dessa ordem, mais veemente e mais
decisiva, se poderia levar a efeito do que a requerida, hoje, pela grave crise econômica e social
que sufoca e esteriliza os esforços desmesurados das populações latino-americanas” (GB:248-
249).
Mais resguardada de interferências por parte do bloco comunista, mais próxima dos
centros propulsores do dinamismo norte-americano, dotada de uma boa base
territorial e de imensas riquezas ainda quase inexploradas, dispondo de um potencial
demográfico e satisfatórios índices de mobilização para tarefas de reconstrução,
profundamente cristã, animada de ideais democráticos e criada no seio da própria
cultura ocidental, a América Latina /.../ constitui vasto e promissor campo para uma
tal experiência, generosa sem dúvida, mas também de alta significação para a
defesa dos postulados, dos valores, das crenças da civilização toda do Ocidente que,
atualmente, já se apresenta quase desnuda na sua esterilidade e na sua capacidade de
atração, ante a arremetida pertinaz e desagregadora da ideologia marxista.
Redimindo os povos irmãos desta América, o Ocidente redimiria, pela esperança, os
povos todos da Terra. E as sereias comunistas cantariam ao vento insensível suas
promessas blandiciosas... (GB:248-249, grifos nossos).
144
servir de intérprete fiel a anseios que bem é capaz de medir, com a certeza de
defender causa justa, em benefício da própria Civilização Ocidental cuja missão
capital, no momento, é a de oferecer, a todos esses povos desesperançados e
frustrados, uma alternativa mais risonha do que a apresentada pelo comunismo.
(GB:197-198)
Além do mais, “o Brasil, pelo prestígio de que já goza no continente e no mundo, pelas
suas variadas riquezas naturais, pelo seu elevado potencial humano e, além disso, pela sua
inigualável posição geopolítica ao largo do Atlântico Sul” tem importância toda especial para
as “imperiosas necessidades de defesa do Ocidente” e dispõe de todas as condições para
tornar-se um dos mais especiais locus de aplicação de uma espécie de plano Marshall latino-
americano em cujo espelho as nações subdesenvolvidas de todo o mundo podem-se mirar e
que redunde em um aumento do desenvolvimento latino-americano (GB:246). E, “uma vez
que integrante, com parcelas bem significativas de seu território e de sua população, de todas
as áreas geopolíticas do continente”, o desenvolvimento do Brasil teria reflexos imediatos no
conjunto da América do Sul (GB:135).
O Brasil se arvora, pois, em representante dos interesses de toda a América Latina e,
mais, de todos os povos subdesenvolvidos da Terra, como vimos. Estaria, em troca,
oferecendo às potências ocidentais os meios de que dispõe para a defesa do Ocidente. Seu
objetivo final, ao contrário do que absorveram alguns intérpretes (especialmente, a teoria do
sub-imperialismo), era tornar-se uma potência de nível mundial, pois apenas as potências
desse nível estão, e mesmo assim temporariamente, livres de grandes antagonismos. É
importante, pois, reter que a condição do país como “satélite”, “key country” etc. tinha um
caráter instrumental, um fim bem mais alto. Baste exemplificar com a citação abaixo:
Para uma dada nação qualquer, tal oscilação só virá a cessar, em verdade, quando,
pelo seu maior desenvolvimento e seu franco progresso, se haja ela distanciado tanto
das demais, que perigos e ameaças, nas circunvizinhança política, sejam afinal
completamente arredados por longo prazo, senão mesmo em definitivo. Em tal caso,
porém, a dinâmica das relações internacionais o que tem demonstrado é que essa
nação emergirá, propriamente, do círculo regional restrito em que dantes se afirmara
e crescera, passando a integrar agora outro mundo mais dilatado, dentro do qual - a
menos que ocupe, desde logo, singular posição pelo seu potencial efetivo - se verá
de novo submetida ao constante ritmo de uma mesma oscilação entre ameaças
próximas e perigos distantes, agora apenas ampliada numa escala maior. Só como
potência realmente mundial, poderá ela escapar, por algum tempo, a essa pendular
atração de seus primordiais interesses de SN. Mas, ainda assim, não esqueçamos
que a paz ecumênica nunca pôde durar indefinidamente (GB:170).
E será, pois, com uma nota de confiança nos destinos do Brasil que /.../ poderemos
concluir, salientando que, panregião em si mesmo, nosso país, capaz de articular,
sob sua liderança caracteristicamente democrática, as unidades muito menores e de
potencial bem mais reduzido que o cercam, está fadado não só a subsistir
galhardamente nesse mundo de amanhã em que tantas outras soberanias poderão vir
a soçobrar ou diluir-se, mas ainda a firmar-se, no contexto internacional, como
campeão das virtudes cristãs e dos inigualáveis padrões democráticos em que, a
despeito de passageiros repúdios, sempre desejou e desejará viver e progredir, para
engrandecer, por sua vez, a cultura da humanidade. (GB:215)
não basta uma decisão desde já assentada, com vistas a possíveis emergências
vindouras. A ação futura pede, necessariamente exige, a atividade presente,
prolongamento indispensável daquela. E, pois, deve o Brasil projetar-se desde já, no
cenário do mundo, o que, no entanto, só poderá realmente fazer, sem cair no ridículo
dos blefes, das chantagens e das simples bazófias, se assentar, definitivamente, com
coragem as grandes linhas de sua atuação posterior em fases de crises internacionais,
mais difíceis de prever, e assumir claramente responsabilidades e deveres perante
toda a humanidade. (GB:195)
Se o Brasil for capaz, em sua ação para projetar-se no cenário do mundo, de assentar
essas grandes linhas de sua ação posterior e assumir essas responsabilidades, “Se a isso nos
abalançarmos, se disso formos realmente capazes, atestando uma maturidade política que já
tanto tarda, então não só a ONU, não só a OEA, se nos oferecem como quadros naturais em
que exercer nossa capacidade de atuação, mas ainda outros campos estão aí a atrair nossa
esclarecida e construtiva intervenção.” (GB:195)
Estes campos seriam: em primeiro lugar, o mundo luso-brasileiro. “Portugal e suas
colônias ocupam, nesse mundo ao largo da América do Sul, situação invejável que nunca será
demais ressaltar”, e a defesa da segurança de suas colônias, além de significar também a nossa
segurança, é “uma responsabilidade portuguesa que devemos estar prontos a reconhecer e
assumir a qualquer momento, como nossa também” (GB:195-197). E o Brasil deve ajudar a
desenvolver esta “consciência por algo ainda difusa, de uma comunidade luso-brasileira /.../,
consciência essa que dia a dia só faz se afirmar, passados, de há muito os naturais
ressentimentos da própria campanha de independência e as desconfianças subseqüentes”
(GB:70).
Ampliando “a esfera de solidariedades que devemos conscientemente admitir”, “através
de laços embora menos apertados” (GB:195-197), “o sentimento de uma genuína identidade
cultural com o mundo latino e católico de além-mar” (GB:70), este “mundo católico, mais
vasto ainda”, constituindo “uma terceira esfera de nossa solidariedade internacional.” O quarto
arco seria o mundo subdesenvolvido, cujas dores o Brasil está em condições de sentir
(GB:195-197). E “eis aí quatro grandes amplas janelas que o Brasil encontra abertas, de par
em par, para o vasto universo ao largo de sua fachada atlântica” (GB:195).
A atuação nesses campos, porém, não pode fazer esquecer “o espírito do pan-
americanismo, alicerçado no reconhecimento de uma unidade continental que os perigos
externos ameaçadores desse nosso século conturbado põe, cada vez mais, na categoria das
realidades indiscutíveis”, e que triunfa diante “de inúmeras e graves divergências, de agudos
choques de interesses e dos receios, não de todo infundados, por certo, contra interferências
descabidas e prepotentes dos mais fortes” (GB:70).
No caso da América Latina, e da América do Sul em particular, cabe ao Brasil
“estreitar os laços de cooperação internacional, participando, ativa e generosamente, da
solução dos graves problemas com que se defrontam os povos das diversas áreas geopolíticas
internacionais de que participamos, em todas, com amplas parcelas de nosso território e
significativo contingente humano”(GB:94). (A Argentina, de sua parte, participa apenas de
uma das áreas geopolíticas do subcontinente, segundo Golbery.)
147
Será, pois, no quadro de uma “geopolítica da paz, criadora e afirmativa” que o
Brasil “em face de um planeta tumultuado, ainda mais, pela miséria e pela fome do que por
ambições expansionistas e de domínio que, aliás, existem de fato e não são, de forma alguma,
nem desprezíveis nem remotas”, assumirá o “papel que lhe cabe no concerto das nações em
prol da rendição de toda essa periferia econômico-social de que ainda participa” (GB:94).
No caso “de atuação sul-americana em paragens extracontinentais”, pondera,
deveremos nos conformar, natural e realisticamente, “a um papel de simples forças auxiliares
no conjunto operacional do ocidente - e, para isso, nos devemos conscienciosamente preparar”
(GB:194).
Porém, lembra o general, a América Latina não está imune a “ataques solertes”,
insurreições e guerras revolucionárias ditados pela insidiosa ideologia comunista, “tanto mais
de temer quanto mais perdure a estagnação econômica, a corrupção, a miséria, a ignorância e a
fome”. No caso dessa hipótese
mais permanente, mais premente, muito mais possível, não só não devemos contar
com qualquer apoio exterior, antes, tudo devemos fazer para que este venha a ser
inteiramente desnecessário, evidentemente, supérfluo e até mesmo injustificado, a
fim de que a ocupação estrangeira, sob pretextos quaisquer ou quaisquer razões, por
imponderáveis que sejam, não se torne o preço desmesurado de uma segurança que
não tenhamos sabido manter como homens. (GB:194)
Contra essa hipótese malsã, “impõe-se, sem tardança, prevenir as elites descuidadas,
egoístas e fartas, fortalecer as massas desprotegidas e inermes, ao calor desta sábia e nobre
cultura cristã que é a nossa, e sobre a base indispensável de um desenvolvimento industrial,
que não repudie, porém, os valores espirituais” (GB:194).
Diante disso, em prioridade decrescente, Golbery destaca como “diretrizes
indeclináveis” para uma geopolítica brasileira adequada “à atual época agitada e
cataclísmica”:
Em primeiro lugar, pois, deve o Brasil preparar-se, com os outros países da América
Latina, para acudir qualquer dos vizinhos, “na defesa de um inigualável patrimônio comum,
contra quaisquer investidas exóticas” (GB:194). Afora as já citadas, Golbery refere-se ainda à
participação brasileira
Assim, tudo leva a crer “que problemas novos de antagonismos surgirão”, que velhas
controvérsias “venham a ressurgir ao acicate de interesses reais, polarizem-se de fato as
tensões ainda imprecisas em zonas de fricção” atualmente “submersas no grande vazio do
indiferentismo bilateral” provocado pela distância e pelo deserto (GB:173).
De outra parte, não obstante os progressos apontados por Golbery nas nações latino-
americanas, os problemas socioeconômicos persistem, possibilitando aos comunistas a
tentativa de “penetrar na couraça pan-americana, mediante a exploração hábil e sempre
oportuna dos justos anseios de maior independência efetiva e nível de vida superior das
massas espoliadas e ainda quase indigentes do submundo subdesenvolvido da América”
(GB:130-131).
De forma que, para tais nações, seus problemas de segurança oscilam entre dois pólos:
por um lado, “perigos de origem extracontinental que, ao se manifestarem mais nítidos, mais
urgentes, reforçam a própria solidariedade de todo o hemisfério e fazem esquecer, quase de
todo, as preocupações relativas a sempre possíveis conflitos no interior do próprio continente”
(GB:170). E estes conflitos intracontinentais, reincidentes a cada amenização das ameaças
externas e conseqüente enfraquecimento da solidariedade continental.
Felizmente, na atual conjuntura conflituosa, “a ameaça de origem extracontinental
sobreleva, inegavelmente, a quaisquer outras, no exigir, de nossa parte, atenção redobrada e
um esforço deliberado e viril de segurança coletiva” (GB:176). Para isto contribui inclusive o
“descontentamento comum das nações sul-americanas, em face da mal disfarçada indiferença
atual dos EUA”, absorvidos estes nos atos que julgam decisivos para além do Atlântico e do
Pacífico, pois interessa aos latino-americanos pôr, no seu devido relevo, o caráter alarmante e
premente desse perigo de origem extracontinental remota, capaz, entretanto, de atuar a
distância com eficácia nunca vista” (GB:176-177).
150
23
Ver Schilling (1981) e Mello (1997).
152
A questão da segurança, como vimos, estrutura todo o pensamento de Golbery: em
verdade, por oposição à insegurança eterna do homem, é um dos seus pilares.
Segurança nacional é, na definição do general gaúcho, “o grau relativo de garantia que
o Estado proporciona à coletividade nacional, para a consecução e salvaguarda de seus
Objetivos, a despeito dos antagonismos internos ou externos, existentes ou presumíveis”
(GB:155-156).
No caso do Brasil atual, a SN estaria ameaçada - o que é uma ameaça à sua própria
existência. A esta também estariam condicionados o desenvolvimento e o progresso nacionais,
pois “Somente em segurança poderá alcançar o Brasil os supremos objetivos em que se
traduzem as aspirações e os anseios do povo e somente em segurança poderá mesmo
sobreviver a Nação, coesa, íntegra e próspera, num planeta que ambições desmedidas de
poderio e domínio ameaçam submergir num caos imprevisível ‘de sangue, de suor e de
lágrimas’.” (PE:219)
Num “mundo convulsionado e agônico” como o de hoje, na visão de Golbery, a SN
extrapolou em muito os círculos estreitos militares aos quais antes estava restrita antes do
advento da guerra total e
permeado aos poucos o domínio todo da política estatal, condicionando quando não
promovendo e determinando todo e qualquer planejamento, seja de ordem
econômica, seja de natureza social ou política, para não falar dos planos
propriamente militares, tanto de guerra como de paz. Nem de outra forma poderia
ocorrer, desde que a guerra deix[ou] de ser um hiato trágico num mundo de
tranqüilidade e de paz (GB:23).
Em outros termos, “A Estratégia, arte dantes reservada à maestria dos chefes militares
na condução de suas campanhas, tendo atingido a maioridade”, alçou-se “a planos muito mais
elevados, caracterizando-se, afinal, na aplicação como uma verdadeira política de SN”
(GB:25).
Que é, porém, e qual o elemento novo desta segurança nacional? A discrepância está,
justamente, na distância que separa defesa nacional de segurança nacional. “Preservar a
sobrevivência do Estado e a dos valores permanentes da Sociedade por ele representada são
condições de Segurança. Opor-se aos detratores daquelas condições é uma ação legítima de
Defesa.” (Paixão Neto, 1988:247). Ou, mais sumariamente: “A defesa é um ato. A segurança,
um estado. Ninguém vive, permanentemente, defendendo-se” (Brasil, 1983:36). Da mesma
forma que a insegurança, portanto, a segurança é um estado de espírito.
Essa percepção de uma nova característica pretendeu defender a entrada dos EUA na II
Guerra, uma vez que não havia ameaça real a seu território. Justificava-se que a guerra não
fosse um ato de defesa, mas como propriamente um estado, para resguardar a segurança da
nação não só no espaço, como também no tempo, contra qualquer ameaça, mesmo que
longínqua. É uma noção, portanto, que parte de pré-conceitos. Seu objetivo não é apreender
efetivamente a nova realidade, mas justificar um determinado posicionamento já existente
antes dele - não é, pois, um conceito que busque pensar a realidade, mas simplesmente
justificá-la.
Aquela preservação da sociedade e de seus valores constitui, justamente, o basilar
ONP. Sendo assim, política de SN é aquela que visa “a salvaguardar a consecução dos
objetivos vitais permanentes da Nação, contra quaisquer antagonismos”, “de modo a evitar a
guerra se possível for e empreendê-la, caso necessário, com as maiores probabilidades de
êxito” (PE:22). Note-se, pois, com Comblin, que “o culto da segurança só pode favorecer os
privilegiados e justificar o statu quo” - do momento em que pretende manter o que é e busca
153
obliterar os conflitos sociais, “paralisa qualquer mudança e põe-se a serviço dos
poderosos” (Comblin, 1980:229).
Uma vez que formulam e conhecem mais profundamente, além de ter os meios técnicos
para tal, o agente garantidor da SN são as elites que, aperfeiçoando e adaptando às
contingências brasileiras, pela aplicação objetiva, as técnicas de planejamento que Golbery
sugere, cumprirão - “assim o esperamos e confiantes” - a “tarefa primordial que lhes cabe”: -
“garantir a todo custo a Segurança Nacional nestes tempos dramáticos de tremenda e sem
igual instabilidade do mundo” (PE:219)
Os setores da elite que têm a obrigação de tomar as atitudes necessárias para que se
preserve a SN são aqueles que estão no controle do aparelho estatal.
A SN, “parâmetro inelutável”, exige uma inversão das prioridades usuais, impõe “o
ônus tremendo de uma economia visceralmente destrutiva aos anseios normais de
154
desenvolvimento e bem-estar que animam a todos os povos”, em especial os que estão
relegados a “padrões de vida pouco elevados ou inelásticos” (GB:12). É “um novo dilema - o
do Bem-Estar e da Segurança”, mais dramático porque “não há como fugir à necessidade de
sacrificar o Bem-Estar em proveito da Segurança, desde que esta se veja realmente ameaçada.
Os povos que se negaram a admiti-lo aprenderam, no pó da derrota, a lição merecida” (GB:14;
PE:369-370).
Não se pode, pois, deixar de planejar-se tendo em conta a questão da SN, pois este é
um condicionamento imposto pela própria realidade, independentemente das vontades, “é um
imperativo da hora que passa”. “Os sacrifícios que imponha, como verdadeiros prêmios de um
seguro contra a derrota, terão sua contrapartida efetiva na preservação atual e futura da
soberania nacional, na garantia da liberdade do povo e na certeza de que poderá ele livremente
eleger o estilo de vida que mais o seduzir.” (PE:24)
Mas Golbery faz uma ressalva, que o diferenciará, por fim, dos militares da linha dura:
os sacrifícios têm limites - há que ponderar nas doses do remédio amargo:
Por isso, diz ele, “gerações efetivamente conscientes”, são aquelas que se conseguem
compreender profundamente a questão da SN - e compreender quer dizer também solucionar
“bravamente, sem apostasias covardes e contra o ignorantismo criminoso ou a displicência
abúlica, os dilemas superiores do Bem-Estar em face da Segurança, do Progresso em face da
Segurança, da Segurança em face da Liberdade” (PE:376 e 419). Isso porque não se pode
indefinidamente exigir todo o esforço de uma sociedade sem lhe dar nada em troca. Ele vai
explicar isso com a famosa Lei dos Rendimentos Decrescentes:
Essa lei exige, pois, “o reconhecimento de que, relativamente a cada um dos campos
considerados” - ainda para setores dentro destes - “existe um mínimo irredutível de potencial
específico”, “de componente específica do Potencial - que, se não satisfeito, praticamente
anulará toda e qualquer significação de excedentes porventura existentes nos demais campos
ou setores” (PE:398). Em outros termos, ainda:
155
A segurança estrutura-se, pois não pode deixar de estruturar-se, sobre uma base
irredutível de bem-estar econômico e social, nível abaixo do qual se ofenderá a
própria capacidade de luta e de resistência da nação, incapacitando-a, afinal, para o
esforço continuado e violente que dela a guerra exigirá. Esta é bem um domínio em
que às forças morais cabe papel saliente, e não há moral de um povo que se possa
manter indene além de certos limites de exaustão e de desânimo. (GB:14; PE:370,
grifos nossos.)
Segurança e Desenvolvimento
Como percebeu Rago, o que se delineia, com tal projeto, é nada menos que a
“construção de uma democracia dos proprietários com a tutela permanente de um Estado
armado para conseguir um máximo de eficiência, tanto econômica, ideológica e militar”, o
que importaria também na aceleração do processo de modernização capitalista brasileiro,
“sincronizando todos os setores da vida social, por meio de uma ‘elite dirigente’ capacitada ao
projeto de ‘Grande Potência’”. “Assinala, pois, daí o seu vínculo com a tradição conservadora
no Brasil, a incapacidade da estruturação de uma sociedade industrial complexa sob o molde
do liberalismo.” (Rago, 1998:306)
Veremos mais detalhes ao tratar do planejamento do fortalecimento do potencial
nacional.
157
Além do fortalecimento do potencial nacional (de caráter geral, não específico, como
vimos), e da mobilização nacional (que se refere a uma determinada hipótese de guerra mais
provável), as atividades do planejamento da SN são exercidas em outros campos, referentes
especificamente “ao próprio planejamento da aplicação efetiva do Poder, na consecução, ou
simples salvaguarda que seja, dos ON” (PE:391-392). A política de SN recobre todos os
momentos da existência de uma nação, transmutando-se em três expressões intercambiantes:
158
uma estratégia da paz, uma estratégia de guerra e uma estratégia da guerra fria, menos
definida e incisiva e, portanto, bem mais complexa e ardilosa. Planejá-las, no tempo
apropriado para executá-las “com a máxima probabilidade de êxito - é imperativo que se não
poderá, de forma alguma, desafiar impunemente” (PE:391-392).
Em resumo, “Informação, em primeiro lugar - Fortalecimento do Potencial que se
transmude, se e quando necessário, em Mobilização Nacional - incansável Aplicação do
Poder, tanto na paz como na guerra - definem as três esferas do planejamento - da ação, sem
dúvida também - no campo necessariamente integrado da Segurança Nacional.” (PE:391-392)
No planejamento da SN A “complexidade intrincada do contexto social, indivisível de
fato e cerrado sobre si mesmo”, nas quais variáveis independentes não existem, “obriga a uma
seleção mais ou menos arbitrária das que se tomarão, no ponto de partida do planejamento,
como fatores dominantes hipoteticamente autônomos, sujeitando por isso mesmo todo o
processo a revisões subseqüentes” (PE:27 e 325).
Tendo como um dos fatores fundamentais os prazos críticos, as diversas fases e estudos
constituintes do planejamento da SN, embora possam ser feitos por grupos diferentes,
pertencem ao mesmo escalão governamental: o mais alto (PE:191-192). Daí a importância de
assegurar “a coordenação entre as ações estratégicas a planejar e desencadear nas diversas
áreas” e de “buscar estabelecer um perfeito entrosamento entre as ações estratégicas de
natureza diversa que aí se irão aplicar” (PE:193).
Uma avaliação do potencial de outros países - mesmo que bastante relativa e subjetiva -
“deverá permitir, através do conhecimento de seus elementos de força e de suas
vulnerabilidades, uma idéia do Potencial com que esse país poderá agir contrariamente a
nossos próprios Objetivos ou de forma a interferir desfavoravelmente com eles” (PE:197). Nas
nações aliadas, tal avaliação deve verificar a cooperação com nossos propósitos, “não
deixando por certo de haver, mesmo em tal caso, componentes desfavoráveis” (PE:197). Tal
avaliação terá como uma das conclusões a definição da característica estratégica ou não de
uma área, se “a área considerada, por sua significação estratégica, constitui ou não um campo
de aplicação efetivamente útil para uma ação ou ações estratégicas visando à consecução ou
pelo menos à salvaguarda dos ON” (PE:198).
Uma decisão-chave para o planejamento da SN é a fixação da hierarquia das hipóteses
de guerra. Esta deve ser feita, à luz dos ONP, verificando seu grau de perigo, “natureza e valor
relativo da ameaça que traduzem, sua origem e áreas de incidência, pelos móveis que parecem
animar as atividades do inimigo, pela significação da cooperação internacional com que
poderemos contar etc.”, “o grau de probabilidade de sua real efetivação” e os benefícios que
se esperam com a vitória” (PE:334-335).
O planejamento da SN também importa em que, à luz dos ON, se verifiquem os fatores
favoráveis e desfavoráveis a eles, se faça uma avaliação estratégica da conjuntura num estudo
objetivo, cuja finalidade é “formular juízos de valor sobre a realidade estratégica do momento
e sobre o sentido e ritmo de sua evolução, no tempo e no espaço” (PE:61; GB:253).
Em resumo,
Contudo, à resistência ao planejamento nos países periféricos vem se somar uma série
de problemas oriundos da própria situação de subdesenvolvimento. Por isso, Golbery
concorda com a afirmação de Lewis, segundo a qual “O planejamento é, ao mesmo tempo,
muito mais necessário e muito mais difícil nos países atrasados do que nos adiantados”
(PE:293). Por isso, “para nós, países subdesenvolvidos ou em etapa nitidamente retardada
ainda de nosso desenvolvimento - aquele planejamento assume aspectos de outra ordem que
importa sobretudo pôr em relevo” (PE:25). Isso é especialmente importante num país como o
Brasil, vasto agregado quase inorgânico de regiões de níveis de desenvolvimento muito
díspares.
Antes de mais, deve-se considerar que o “Planejamento para o desenvolvimento” “e
para o bem-estar nacionais” não está sob as mesmas “restrições impostas” “pela consideração
em primeiro plano do fator de segurança” (PE:98).
Nos países desenvolvidos, “Uma sólida estrutura econômica e social se oferece,
mediante simples reajustamentos, como base de mobilização já de todo existente, ao
planejamento de guerra cuja importância avulta, por conseguinte, de importância; o processo
de fortalecimento passa a desempenhar papel apenas secundário” (PE:271). “Para um país
plenamente desenvolvido que tenha a enfrentar antagonismos de pequena monta, o ciclo do
planejamento do fortalecimento do Potencial Nacional perderia muito de sua importância,
conforme já vimos; dentro dele, qualquer dos campos poderia, entretanto, vir a ser o
dominante.” (PE:93)
Nos países subdesenvolvidos, em contraposição, “nem sempre dispõe o Estado de um
Poder Nacional à altura das responsabilidades decorrentes da guerra ou, nem mesmo, das que
tenham sido assumidas no período de paz”. Por isso, em tais países, “tratar-se-á,
imperativamente, de fortalecer esse Poder, desenvolvê-lo no tempo devido e por todos os
processos, de modo que, no balanço vital entre possibilidades e necessidades, entre meios e
fins, entre obrigações e recursos, não subsista um déficit fatal que pressagie, para a Nação, a
derrota e a servidão e a morte” (PE:13 e 369). Nesses países subdesenvolvidos, ainda quando
24
Esta defesa golberyana do planejamento, somada à preocupação com a minoração das desigualdades sociais, levam
Manzini Covre a qualificar o capitalismo preconizado pelo general como “capitalismo social/capitalismo misto” (Covre,
1983:31).
161
o inimigo não se caracterize por um poder exorbitante, “o problema capital vem a ser,
sempre, o da criação da própria base de mobilização, através de um fortalecimento acelerado e
racional do Potencial, tais as exigências multiformes e imperiosas da guerra moderna”. Sendo
assim, e “Paradoxalmente, neste caso em que a guerra é muito mais perigosa, o planejamento
de guerra assume papel nitidamente subordinado” (PE:271). Nestes países, tendo em conta as
“próprias vulnerabilidades decorrentes de seu estado de subdesenvolvimento”, “os
antagonismos não só internos mas externos avultam sobremodo de importância, exigindo
pronto remédio àquelas fraquezas e colocando desde logo em primeiro plano a questão do
planejamento, no que objetive principalmente o fortalecimento do Potencial Nacional”
(PE:105).
Golbery continua destrinçando os objetivos do planejamento do fortalecimento do
potencial: “a superação, neutralização, redução ou pelo menos diferimento, por meios
pacíficos, dos antagonismos que se manifestem (ou ainda, preventivamente, dos que se prevê
possam vir a manifestar-se), tanto no âmbito interno, como no campo internacional, em
oposição aos ONP”. Isso sem que se tenha de sacrificar um ou mais ONA em função de
outros, e também garantindo uma futura ampliação dos ONA, “elevando-os a nível compatível
com os dos ONP” (PE:270). De outro lado, também quer garantir que, “ao cabo dos prazos
críticos admitidos”, poder-se-á contar “com as melhores condições possíveis para enfrentar a
guerra” (PE:270).
De fato, não se trata, nessa fase e mediante tal processo, de aumentar de imediato o
nível de Poder, muito menos o de sua expressão militar. O que em verdade se busca
é fortalecer as potencialidades bélicas, em geral, da Nação - entre estas, em maior ou
menor grau, mas nunca excessivamente, as militares também -, persistindo todas, em
sua grande parte, como potencialidades apenas, até que sobrevenha o momento em
que seja inevitável desencadear-se, afinal, o processo da mobilização [em face de
uma hipótese de guerra mais provável]. Dessa forma, poderão elas, em largo prazo,
162
concorrer igualmente para o progresso pacífico da Nação e para o bem-estar de
todo o povo, sem que deixem de estar presentes nas negociações diplomáticas, onde
de fato o que mais vale, em regra, não é o Poder atual e efetivo, mas sim o prestígio
alicerçado num Potencial que se faz praça, aliás, de possuir. (PE:384. A observação
entre colchetes é nossa.)
O mundo atual, marcado pela guerra fria e pela guerra total, caracteriza-se pelo
enfrentamento de poderes no cenário internacional. O Brasil tem muito a oferecer ao ocidente,
mas quer em troca ajuda para chegar a tornar-se o colosso do sul. Já muito temos evoluído
nesse sentido, e a cooperação estrangeira seria o atalho por onde chegaríamos mais
rapidamente ao nosso destino geopolítico. Esse é o nosso interesse ou objetivo nacional, e
desde já estamos cientes de que o preço do poder é a responsabilidade, principalmente na
manutenção da segurança nacional nossa, do nosso continente e da África “convulsionada e
caótica”. Não é tarefa pequena, admita-se.
Veremos, no próximo capítulo, como a ditadura falhou na tarefa bem mais simples de
garantir um desenvolvimento econômico que superasse as falhas de nossa estrutura
semicolonial. Cada vez mais longe da construção do Brasil-potência, os militares tiveram de
retirar-se do cenário.
165
1 - ABERTURA OU AUTO-REFORMA?
A
chamada “abertura democrática” pareceu basear-se em uma estratégia muito antiga,
que em inglês se denomina brinkmanship. Tomada em termos gerais, “trata-se da arte
ou da prática de levar uma situação perigosa ou uma confrontação até o limite do que
pode ser considerado seguro, para conseguir um determinado desfecho. Naturalmente, o alto
risco assumido tanto pode levar ao desastre como ao sucesso” (Werneck, OESP, 25-12-98).
Em sua acepção mais restrita, brinkmanship é “a tática de deliberadamente criar um risco
perceptível, e não completamente controlável, e deixar a situação fugir de certa forma ao
controle para intimidar o adversário, na expectativa de que este recue, temendo o pior”. Deixa-
se, assim, pairar a ameaça de ir às últimas conseqüências, ultrapassando o limite fatal e
arrastando o adversário consigo para o abismo.
“Para que a tática funcione a represália prometida não pode ser percebida como uma
certeza absoluta. Afinal, a eficácia da ameaça decorre da percepção de que quem a faz poderá
ser obrigado a cumpri-la, mesmo que, no último momento, isso seja contrário a seus melhores
interesses.” Portanto, um grau de incerteza é fundamental para a credibilidade do processo: é
como se o processo desencadeado não fosse totalmente controlável, envolvendo riscos de toda
ordem, tal qual “uma borda na extremidade de uma rampa inclinada e escorregadia. A ameaça
crível é a disposição de iniciar a descida da rampa, mesmo tendo em conta que cada
movimento na direção da borda envolve o risco de um escorregão fatal para ambas as partes”
(Werneck, OESP, 25-12-98).
Golbery disse algo muito parecido, com relação à estratégia, bem antes do processo de
auto-reforma do regime:
As transições em geral, na sua forma mais aparente, têm o caráter: uma realidade
esquiva e escorregadia, um tempo de indefinições, um momento em que um regime começou
a se esgotar, mas ainda não há outro perfeitamente consolidado.
Contudo, os estrategistas do regime que perceberam a necessidade de transição também
a conceberam como um processo totalmente controlável por eles próprios, bem de acordo com
sua visão de mundo conservadora e elitista. Como ressalta Leonel Itaussu Mello, “Concebida
fundamentalmente como relação amigo/inimigo ou como continuação da guerra por outros
166
meios, a política de distensão passou a ser planejada rigorosamente como uma operação de
estado-maior e executada segundo uma concepção estritamente militar” (Mello, 1989:209).
A realidade, porém, não se enquadrou exatamente nos planos dos estrategistas do
regime. Procuraremos abordar nesse capítulo, além do processo e do discurso, uma
comparação com o que foi previamente definido pelo governo 25 : o projeto, que vem a ser a
estratégia elaborada para o processo de distensão, “expressando as intenções e os limites de
uma ação nesta direção e comportando um grau bastante alto de voluntarismo por parte de
seus proponentes” (Mathias, 1995:23). O projeto tentaria, pois, em um contexto que implica
sempre algum grau de conflito, abarcar toda a problemática existente e dar-lhe respostas, a fim
de manter a realidade dentro do planejado. Ocorre, porém, que, o processo, “ainda que
impulsionado pelo projeto, muitas vezes foge ao controle porque toda mudança traz consigo
uma dinâmica autônoma que faz nascer novos horizontes” (Mathias, 1995:109)
Como se verá, não teremos a preocupação de encaixar o processo brasileiro de
transição em qualquer uma das classificações existentes 26 : nossa preocupação será apenas
reproduzir a realidade, do modo mais aproximado possível. Para tanto, vamos retomar
algumas reflexões de talhe ontológico já desenvolvidas no primeiro capítulo, sobre a
entificação social brasileira.
A esse respeito, relembremos, primeiramente, o fato de que ditaduras e milagres estão
entre as características mais profundas e dominantes de nossa formação sociohistórica: em
verdade, elas lhe explicitam o caráter essencial. Baste exemplificar reportando o período que
vai desde a ascensão de Vargas, via eleição, até o golpe de 64, no qual ocorreram os anos mais
democráticos e mais liberais de nossa história: um período extremamente curto, portanto, e, o
que é mais significativo, no qual a democracia foi diversas vezes gravemente ferida e ao fim
do qual veio a fenecer, sem conseguir desenvolver-se.
Há que atentar para a diferenciação fundamental: “Trata-se, pois, no Brasil de
conquistar a democracia, e não propriamente de reconquistá-la, visto que, até hoje, em termos
concretos não a conhecemos de forma duradoura e real, nem mesmo nos limites mais
acanhados do que se entende por democracia burguesa.” (Chasin, 1979:154)
A crise da época - que perpassou os governos Geisel e Figueiredo - iniciara-se, pelo
menos, no segundo semestre de 1973: era a crise do último “milagre”. Mais que isso, era o
fracasso de uma política econômica, e não simplesmente o desgaste ou esgotamento da
ditadura implantada em 1964. As principais características do “milagre” e da política
econômica da ditadura – cujo detalhamento não cabe no âmbito deste capítulo – são as
seguintes.
Em primeiro lugar, a produção nacional para consumo interno tem seu pólo
dinamizador sustentado na produção de bens de consumo duráveis, notadamente a indústria
automobilística. Centrar a produção em torno de bens de consumo duráveis significa, na
realidade de um país da periferia do capital, desde logo, eleger um mercado consumidor
privilegiado:
25
Lamounier foi dos primeiros a atentar para a diferença entre os dois níveis. Segundo ele, “De tanto falarmos nas artes do
general Golbery /.../, acabamos acreditando que o núcleo dirigente do regime militar detinha o completo controle sobre os
acontecimentos. Confundimos o discurso - sem dúvida dominante naquela época - de que tudo era meticulosamente
tramado no Palácio, com o processo real da redemocratização [sic], que era complexo e multiforme” (Lamounier,
1994:16).
26
Sobre o assunto, consultar Andrade (1997), Antunes (1984), Antunes (1988), Cardoso (1981), Chasin (1977, 1979,
1980, 1982, 1986a), D’Araujo e Castro (1997), Gutemberg (1994), Mathias (1995), Mello (1989), Rago Filho (1998),
Lamounier (1994) e Fernandes (1981), entre outros.
167
restrito, numericamente acanhado, mas suficientemente dimensionado para ser
apto a absorver a produção efetuada, e assim realizar a mais valia criada, e
precisamente a isto que se chamou de “pacto social com a classe média”. (Chasin,
1979:165)
Esse setor produtivo está em grande parte em mãos de estrangeiros, de modo que a
mais valia apropriada só se realiza nas suas remessas para o exterior, uma vez que, para que o
esquema funcione adequadamente nas condições de um país economicamente subordinado,
“são necessários o concurso dos dinheiros internacionais e a aplicação do arrocho salarial
sobre a grande massa dos trabalhadores. O primeiro aparece sob a forma de investimentos
diretos e muito especialmente de empréstimos. O arrocho preserva a existência da mão-de-
obra barata e faculta a produção de bens, ditos competitivos, para o mercado internacional.”
Há, ademais, que compreender o liame inseparável que une produção e distribuição,
esta determinada por aquela. Como ressaltava Marx, a produção é, também, distribuição das
relações sociais e dos instrumentos de produção e, na origem, a distribuição constitui um fator
de produção. De forma que a concentração de renda ocorrida com o “milagre” é decorrência
lógica e necessária da forma como estava organizada a produção - o “milagre” é
necessariamente excludente, a miséria que produz
Foi assim, pois, que o fim do “milagre” econômico acabou por gerar uma divisão nas
hostes de apoio ao governo entre os que propugnavam o desaquecimento econômico e os
beneficiários do período anterior, que se recusavam a abandonar seus privilégios. Por outro
lado, a ditadura havia conseguido o que era fundamental, naquele momento, para certas
169
parcelas dos setores dominantes: no campo econômico, permitira um período curto, mas
profícuo, de acumulação, financiada em grande medida pela superexploração da força de
trabalho; no campo político, desbaratara por longo tempo o movimento de massas e as
oposições.
Cabe aqui lembrar a expressão marxiana segundo a qual modificações na estrutura de
produção de um país tendem a provocar alterações também em seus aspectos políticos. Estes
são, portanto, essencialmente determinados, enquanto aqueles são determinantes. É no interior
de tal concepção que consideramos o estudo o fenômeno da “abertura”. Esta, como fenômeno
político, não pode ser vista, sob pena de deturpação teórica e desorientação prática, como
algo autônomo em relação à estrutura econômica.
Há que esclarecer, desde já, que não se trata de uma relação economicista, como
entendeu o marxismo vulgar e divulgaram os antimarxistas. Trata-se de reconhecer o primado
ontológico do fundamento econômico e entender a “autonomia relativa” do fenômeno político
“como nos clássicos, quando então já não se trata de autonomia, mas da indicação da não-
mecanicidade da relação, o que vale dizer da sua determinação enquanto vínculo essencial,
irremovível sob pena de desfiguração, que se objetiva num andamento constituinte
profusamente mediado.” (Chasin, 1977:147)
A essa discussão pode também ser agregada a que se refere à aparência e à essência de
um fenômeno. Ambos partes integrantes deste, não se confundem, mas mantêm sua particular
identidade. Para compreender verdadeiramente um fenômeno, há que romper a crosta de sua
aparência e capturar os nódulos essenciais que fazem o seu ser-precisamente-assim. “Dessa
maneira, o projeto de distensão não é mais autonomizado no político, livre das determinações
econômico-sociais, como sendo um caminho de mão única, próprio de uma liderança
carismática, cujo valor e presença histórica se balizam pelo desmantelamento da estrutura
repressiva” (Rago, 1998:256). Da mesma forma, não se pode esquecer que sociedade civil é
sinônimo de sociedade burguesa classista, sendo, portanto, impossível conceber o Estado
como algo separado das classes que o controlam e dominam 27 . O poder ditatorial não paira no
ar: sua sustentação está embasada nas classes burguesas nacionais e internacionais, que se
utilizaram da violência ditatorial como uma força produtiva, para aumentar seus lucros. Não é
à-toa, bem ao contrário, que a essência do regime era expressa no binômio segurança e
desenvolvimento: não se separava a forma bonapartista de poder da sua política econômica 28 .
Tal distinção, contudo, foi lamentavelmente esquecida na análise do processo de
“abertura”. Isso se deve a um fenômeno que tem ocupado todo o espaço possível no arsenal
ideológico das classes sociais brasileiras: o politicismo, irmão siamês do economicismo –
enquanto este opera determinações mecânicas e imediatas entre a estrutura econômica e a
superestrutura social, o politicismo realiza uma hipertrofia do político e passa a considerar
todo o real deste prisma reduzido. Ao fazê-lo, acaba por, inapelavelmente, descaracterizar
todo o conjunto estudado, inclusive a própria política. O resultado de tal operação é, por
conseqüência, “um objeto irreal, pois este resulta da bárbara amputação do ente concreto, que
sofre a perda de suas dimensões sociais, ideológicas e especialmente de suas relações e
fundamentos econômicos.” (Chasin, 1982:7)
O politicismo é assim definido:
27
Daí que seja um equívoco distinguir, no processo de “abertura”, uma liberalização e uma democratização, referindo uma
à sociedade civil e a outra à sociedade política, entidades inseparáveis constituidoras da sociedade burguesa.
28
Castelo Branco fez uma claríssima declaração a respeito: “Desenvolvimento e segurança, por sua vez, são ligados por
uma relação de mútua causalidade. De um lado, a verdadeira segurança pressupõe um processo de desenvolvimento, quer
econômico, quer social. /.../ De outro lado, o desenvolvimento econômico e social pressupõe um mínimo de segurança e
estabilidade das instituições. E não só das instituições políticas, que condicionam o nível e a eficiência dos investimentos
do Estado, mas também das instituições econômicas e jurídicas que, garantindo a estabilidade dos contratos e o direito de
propriedade, condicionam, de seu lado, o nível e a eficácia dos investimentos privados” (Apud Rago, 1998:147).
170
A raiz liberal desse procedimento é explícita, pois aqui a economia pertence à esfera do
privado, enquanto a política, formalmente estufada, é colocada no terreno da coisa pública.
Ao proceder dessa forma arbitrária, grosseira e simplificadora, acaba-se por perder a
concretude – e com ela a eficácia. Basear a própria atuação numa análise politicista da
realidade corresponde, portanto, a condenar-se à ineficácia e mesmo à impotência no plano
político, pois que os objetivos são limitados de antemão pelo estreito campo de atuação.
Já vimos que nossa burguesia, que sempre adotou como apropriado o liberalismo
econômico, nunca foi democrática. Assim somado à estreiteza da burguesia brasileira, o
politicismo traz como conseqüência, entre outras, que apenas a esfera política seja exibida ao
público como passível de “aperfeiçoamento”; o campo econômico, pelo contrário, é
considerado um tabu. De forma que, para a burguesia, “Desfeitas, pela crise do ‘milagre’, as
condições de sustentação da ditadura militar bonapartista, tratava-se de encaminhar o desenho
de outra forma de sustentar a mesma dominação.” (Chasin, 1982:10) Assim, operando
politicisticamente, pode-se passar de uma forma de poder a outra, conservando inalterada a
base que o engendra e anima. O politicismo, aqui, “atua como freio antecipado, que busca
desarmar previamente qualquer tentativa de rompimento deste espaço estrangulado e
amesquinhado” (Chasin, 1982:8).
“O ardil do politicismo surge, assim, como uma arma vital para a reprodução do
autocratismo burguês, forma recorrente do seu ser social limitado. Mecanismo que lhe permite
manipular as consciências oposicionistas, debilidade estrutural e força política que lhe
alimenta.” (Rago, 1998:18) Isso porque o regime distingue claramente entre discurso
econômico e discurso político e, quando considera de seu interesse, “abre” a questão política à
discussão. Mas não permite o questionamento à questão econômica, pelo que esquiva-se de
171
pôr a público esse assunto 29 . É essa uma das mais sutis vitórias da situação, pois é dessa
forma que ela “torna vitoriosa a sua política, ao passo que a oposição, brandindo
dominantemente o ‘político’, colhe a derrota em todas as ‘instâncias’.” (Chasin, 1977:145)
Assim, a ditadura abria para discussão o âmbito político. No que não improvisava –
desde os tempos de Castelo havia a expectativa de “institucionalizar os princípios de 64”.
Defensores da ditadura julgavam possível consolidar suas diretrizes globais sob a forma do
Estado de direito, restando a discutir o momento conveniente. Contudo, Estado de direito e
democracia não se confundem, e esta distinção fundamental as oposições obliteraram. Assim,
no momento em que propôs a “abertura”, o sistema levou de roldão toda a oposição, nesse seu
estratagema. À parte o reconhecimento de sua resistência e até momentos de valoroso
sacrifício, deve-se compreender que as oposições construíram uma história permeada de
equívocos, totalmente enredada na malha politicista. Patenteou-se, mais de uma vez, a
subsunção teórica das oposições, que estavam sob a hegemonia ideológica burguesa.
Ressalte-se que as dissensões internas às classes dominantes são normais numa tal
conjuntura. E elas ocorreram de tal forma que já não podiam ser escondidas do público. Racha
a base social da dominação burguesa em sua forma bonapartista, que até então atendia
plenamente aos interesses dos grupos dominantes. Aos poucos, “dá-se uma redução no teor e
no índice bonapartista do poder”. As diversas frações da burguesia, cada qual querendo abster-
se do pagamento do ônus da crise, vêm a público, “desejosas de manifestarem suas queixas e
decididas, agora, a buscarem ‘novas soluções’ - Abertura!” (Chasin, 1982:9)
Em resumo, tencionando obnubilar a falência ampla de sua política econômica, o
regime faz o possível para manter suas vigas mestras, ao mesmo tempo em que, “abrindo”,
busca socializar os ônus do desastre por ela mesma gerado. O governo amplia o espaço
político para esconder a inexistência de soluções econômicas.
À saída do Estado bonapartista, havia se completado a internacionalização da economia
brasileira, que, nas condições em que se deu, não era muito mais que o aprofundamento de sua
subsunção econômica. Nesse momento, concretaram-se definitivamente os limites de sua
acumulação industrial, afastando de vez qualquer possibilidade de autonomização do sistema
capitalista nacional. Agregue-se a isso a informação fundamental acerca da dispersão
ideológica da esquerda e lembre-se, ademais, que o próprio liberalismo encontrava-se, à
época, em refluxo.
É nessa conjuntura que se passa a discutir a sucessão de Geisel. Mais do que nunca, a
questão da produção de bens de produção e insumos básicos precisava ser resolvida. Mais do
que nunca, o Brasil se tornava arena de luta dos monopólios internacionais. E é esse momento
de crise que está no bojo da movimentação política, que é sua essência. A movimentação
política, além de seu caráter diversionista, também encobre decisões fundamentais para o país.
Por isso,
Não é, portanto, difícil entender por que a disputa pelo poder se manifesta desta vez
com particular intensidade, sendo cada uma das candidaturas afloradas o produto ou
a incorporação de tendências ou interesses que buscam impor suas conveniências e
soluções de vantagem. É isto que está em jogo, e não simplesmente futricas de
caserna. É guerra brava, envolvendo o país em suas estruturas fundamentais, onde o
ventilar do aspecto institucional, além de se prestar a dilações e mascaramentos, e
29
Mesmo um texto altamente politicista, como o de Suzeley Mathias, toca nesta questão: “Se a democracia supõe
liberdade, para Castelo Branco só pode existir liberdade se acompanhada de responsabilidade. /.../ A responsabilidade de
que fala Geisel, na verdade, nada mais é do que a tranqüilidade social. Somente pode existir democracia se for afastada
qualquer possibilidade de questionamento do modelo socioeconômico dado. O exercício da liberdade com
responsabilidade significa a adesão ao modelo econômico e maximização da produtividade do trabalho” (Mathias,
1995:96-97).
172
até mesmo a instrumento de jogo cênico para os olhos do grande público, que
esconde a batalha interna e oculta, para a qual estão centradas, para valer, todas as
baterias, pode ser também, quando considerado isolado e prioritariamente, utensílio
para encaminhar soluções econômicas subjacentes que antagonizam os interesses
das massas populares e ferem negativamente o encaminhamento adequado da
questão nacional. De modo que as forças dominantes, em todas as suas
componentes, disputam o jogo da “sucessão presidencial” preocupadas com o
conjunto dos problemas nacionais sabendo, no entanto, distinguir com precisão as
questões de base das complementares, empenhando-se, ao nível decisivo quanto às
equações relativas à política econômica (Chasin, 1979:169-170).
Mas não foi o regime o único a atuar contra os interesses nacionais – contra a busca
pela efetivação democrática. Também as oposições trataram de se apropriar dos movimentos
dos trabalhadores, já então desbaratados, e adequá-los aos seus interesses. Viam o movimento
como um perigo para a “abertura” e, sob a intenção de aparar arestas e evitar choques
frontais, intentaram primeiro conquistar eleições para depois cuidar da vida. Deixando para
depois a questão econômica e, conseqüentemente, afastando as massas, as oposições acabaram
por deixar para depois a democracia.
Com isso, “O aprimoramento das formas políticas significou concretamente a
manutenção da ditadura do grande capital.” (Rago, 1998:92) O que mais uma vez destaca
como a institucionalização da autocracia burguesa, expressão jurídica do politicismo, bem
como sua expressão armada, o bonapartismo, são formas de poder político de uma mesma
forma de capital. O politicismo é a sua essência. A burguesia brasileira, pela sua estruturação
histórica, não pode realizar seu papel de universalizante político, conciliando-se ou
subordinando-se permanentemente com aquelas classes que estão em seu nível ou acima dele
e mantendo com as subordinadas uma relação em que “a autocracia burguesa
institucionalizada é a forma da dominação burguesa em ‘tempos de paz’, [e] o bonapartismo é
sua forma em ‘tempos de guerra’” (Chasin, 1982:11).
174
2 - O MAGO DA AUTOCRACIA BONAPARTISTA
Golbery, como um intelectual orgânico de sua classe, foi quem melhor compreendeu a
necessidade de transição, elaborando toda uma teoria para justificá-la. Transformou-se, assim,
no ideólogo da auto-reforma.
Um dos principais agentes do processo de auto-reforma do regime e importante
interlocutor de Golbery, não obstante se situasse na outra ponta do regime, manifestava uma
grande admiração pelo general. Ulysses Guimarães dizia ter “o maior respeito pelo requintado
intelectual que foi o Golbery”, cujas “armações brilhantes se constituíram nos únicos desafios
políticos enfrentados pelo MDB durante a ditadura. As outras dificuldades que tivemos eram
com a força bruta, a violência física, com a norma jurídica pervertida, sem qualquer
criatividade” (Gutemberg, 1994:220). E acrescentava uma analogia:
Não tenho dúvidas, hoje, de que Golbery foi, realmente, o projetista da abertura,
ainda que essa não fosse possível de realizar sem a decisão política do general
Ernesto Geisel. Todos os testemunhos são unânimes: já nos tempos de Castello
Branco, ele, Golbery, defendia a distensão do regime como necessária e
indispensável. Seu raciocínio era direto e franco, como de hábito: a “cirurgia
revolucionária”, dizia, já produzira seus “efeitos necessários”, estava, pois, na hora
de se retornar à normalidade política, porque os governos autoritários não se
sustentam por si mesmos, só sobrevivem quando têm resultados sempre ótimos e
isso, advertia, era uma tarefa impossível de conseguir. (Bardawil, Senhor, 22-9-87)
Nos seus estertores, o governo Médici se incomodava com os efeitos sobre sua
imagem dos sinais liberalizantes exibidos diariamente pelos escritórios do Largo da
Misericórdia, no Rio, onde o general Geisel trabalhava na organização de seu futuro
governo, tendo como principal colaborador - seria melhor dizer parceiro - o general
Golbery do Couto e Silva, por quem o presidente Médici alimentava antiga apatia e
muitas mágoas pessoais. /.../ Ora, Médici presumia-se o responsável pela indicação
de Geisel e se considerava traído pela fixação tão antecipada desse contraste em que
passaria à história - como aconteceu - como chefe de um governo atrabiliário
enquanto Geisel seria o presidente que pôs fim à tortura e à censura. (Gutemberg,
1994:118)
Às suscetibilidades de Médici, ajunte-se o fato de ele ter sido ludibriado por Figueiredo
(chefe da Casa Militar de seu governo), a quem nunca perdoou por tê-lo enganado, em 1972,
no momento em que se organizava sua sucessão, dizendo que Geisel e Golbery haviam
rompido sua amizade. Foi graças a essa informação que ele indicou Geisel para seu governo,
pois sua inimizade com Golbery era antiga e conhecida 30 .
30
Geisel confirma essa história: “o Médici, ao longo da vida, sempre esteve ligado mais ou menos a nós. /.../ quando Costa
e Silva foi escolhido presidente, Médici foi indicado para o SNI e surgiu uma divergência entre ele e Golbery. Dizem, mas
não sei qual é o grau de verdade, que, quando eu estava para assumir a presidência, o Médici, conversando com
Figueiredo - que era seu chefe da Casa Militar - teria dito que achava que eu ia levar o Golbery para o meu governo e dar-
lhe uma função de destaque, mas que ele, Médici, não gostaria que isso ocorresse. Nessa ocasião, o Figueiredo teria
assegurado: “Não, o Geisel não vai levar o Golbery para o governo”. Seria uma afirmação inverídica. Quando se
constituiu o meu governo, o Golbery foi para a chefia da Casa Civil, e o Médici se zangou com o Figueiredo. Isto é o que
consta, é o que se diz, mas não dá para saber se tinha havido isso ou não. É evidente que eu não podia admitir que o
Médici quisesse interferir ou vetar um nome no meu governo. Era uma prerrogativa minha. O fato que consta sobre a
divergência entre o Figueiredo e o Médici é essa intriga” (D’Araujo e Castro, 1997:433). Ver, ainda: Bones, 1978:20 e
Gutemberg, 1994:145.
176
De qualquer forma, Geisel assume em 1974 e dá talhe “novo” à sua administração.
Seu governo procura avançar em termos políticos e econômicos; contudo, busca fazê-lo sem
se livrar das características essenciais da ditadura, como o famigerado AI-5. Tal contradição
aparente era resultado de uma estratégia que
procura impor à abertura política sua prescrição de ritmo - “lento, seguro e gradual”
-, mas precisa conviver com o que se convencionou chamar de “entulho autoritário”
e com a realidade do momento: já se haviam passado dez anos do golpe de 64 e os
primeiros cassados recobravam seus direitos políticos. /.../ O presidente, empolgado
com seu programa de desenvolvimento da infra-estrutura econômica, abre um
ambicioso leque de iniciativas modernizadoras, enquanto o general Golbery - seu
grande amigo, a quem entrega as operações da distensão política - convence a
sociedade de que são irreversíveis os avanços da abertura. (Gutemberg, 1994:136)
31
Golbery não cita explicitamente Juan Linz e sua explicação, então nova, da necessidade de abertura pela crise de
legitimidade. Assim, não temos condições de saber se houve (e qual o grau) de influência das teses de Linz no pensamento
golberyano.
177
Por isso, continuava o general, “quando começamos o governo Geisel, a verdade é
que a abertura já deveria ter sido feita”, idéia também defendida por Geisel e que voltava à
idéia castelista de que o “período de exceção” deveria ser o mais curto possível.
A gravíssima situação econômica por que o país passava, à época, justificava e
impunha, portanto, uma reforma, pelo menos para alguns setores governistas 32 . Isso porque a
sociedade, transformada numa imensa panela de pressão, e os trabalhadores em particular, sob
os efeitos nefastos do arrocho salarial, não aceitaria mais uma vez pagar o ônus da crise.
Golbery tinha clareza disso, como ficou exposto na citação acima. Ele sabia que não se pode
ter todo o poder o tempo inteiro, especialmente em momentos de crise.
Portanto, pela lógica, para alargar a base de apoio ao governo nesses momentos, é
necessário abrir o esquema de poder, já que, como estampava editorial da Folha, “Uma
distribuição racional dos sacrifícios e ônus da angustiante situação econômico-social em que
nos achamos só terá eficácia se for aceita pelos diferentes setores sociais, e para que seja
aceita é imprescindível que seja livremente negociada e democraticamente decidida” (FSP, 8-
8-81). E, afirma Golbery,
Tanto mais se faria isso imperioso, quanto fortes pressões continuariam advindo dos
outros campos: sob dramáticas ameaças de crise séria, em conseqüência de
renovados impulsos inflacionários e desequilíbrios irredutíveis no balanço de
pagamentos, cruelmente afetado pela multiplicação incessante do preço do petróleo
importado - o campo econômico; e sob tensões crescentes, sobretudo nas explosivas
periferias dos grandes centros populosos e nas zonas do interior mais perturbadas
por sucessivas calamidades climáticas - o campo psicossocial. (PE:486; CN:25)
O processo decisório é, então, o que está sendo posto na berlinda. Porém, também aqui
os militares reformistas impuseram limites claros quanto ao que podia e ao que não podia ser
decidido. E, desde logo, o que se “abriu” à participação foi o campo político, especialmente o
setor mais restrito da política partidário-institucional, enquanto que a essência econômica do
regime foi colocada como absolutamente fora de discussão. Busca-se uma legitimidade que
“já não se sustenta no campo material da decisão (o que se decide) e sim em sua forma (como
se decide)” (Offe apud Andrade, 1997:19). Isso não escapa a Golbery. Ele próprio destaca que
“vê na democracia, muito mais ponderável e crítico, o fator participação, criador e dinâmico,
do que a plena garantia de liberdades, por mais fundamentais que sejam estas”; é essa visão
que lhe dá plena confiança de que “o próprio processo de aperfeiçoamento democrático, ora
em curso, acabe por despertar compreensões e energias novas que venham a ajudar,
decisivamente, o árduo esforço de saneamento e recuperação que se vem, a duras penas,
exercendo no campo econômico” (CN:31; PE:492).
Andrade faz um destaque que julgamos fundamental: há, no interior do mesmo termo
“participação”, diversos conteúdos, diversas formas de concretização. A utilização do discurso
participacionista – não necessariamente da prática, mas esta inclusive, dependendo de como se
dá – traz, geralmente, um conteúdo simbólico que, politicamente, pode vir a ser bastante útil.
32
Andrade ressaltou que a diminuição do crescimento econômico coincidiu, em 1974, com a reorientação para aspectos
sociais das preocupações de órgãos como o Banco Mundial. Interligados esses dois fatores, ocorre nesse momento,
conforme Andrade, a substituição da DSN pela Doutrina de Integração Social. O país assiste ao surgimento de vários
órgãos de conotação “social”, a reorientação da política habitacional e o advento do desenvolvimento comunitário como
estratégia de atuação em relação aos problemas sociais. “Temas como descentralização e participação, que haviam estado
fora do dicionário político da ordem autoritária, passam a fazer parte dos planos e programas do governo, numa tentativa
de mudar o caráter das ações governamentais, revestindo-as de uma retórica que, até então, era parte do discurso das
oposições” (Andrade, 1997:46). Essa interpretação peca por dissociar da DSN seus dois pólos constitutivos: a segurança e
o desenvolvimento, que inclui a garantia de um mínimo de bem-estar social. Mas é importante destacar, como ela faz, a
ênfase maior dada aos problemas sociais a partir da decisão da “abertura”.
178
Desde a primeira metade dos anos 70, diz Andrade, “Como não havia recursos suficientes
para responder a toda a demanda por bens e serviços públicos, era preciso definir prioridades,
e isto era algo problemático, se feito à revelia da clientela, num momento em que se fazia
necessário criar bases seguras de legitimação da ação governamental” (Andrade, 1997:133).
De fato, assim que se permite a participação e a discussão de certos assuntos -
especialmente depois de uma fase em que isso era totalmente proibido - consegue-se a adesão
de amplos grupos antes oposicionistas, animados com o progresso e/ou preocupados com um
retrocesso. O conflito é substituído pela negociação, em um processo que é muito mais
vantajoso, se mantido sob controle, para o grupo que detém o poder.
De maneira que a abertura à participação, naquele momento, concretizada dentro dos
limites impostos pelas agências governamentais, traz muitas vantagens para o poder público.
De qualquer forma, em muitos Estados, “A ênfase na participação era a tônica desse novo
discurso, uma participação revestida de um conteúdo ético-humanista e, em certo sentido,
esvaziada de conteúdo político. /.../ A adoção desse novo discurso e dessas novas práticas não
significava uma mudança radical no perfil do sistema de poder” (Andrade, 1997:86-87). Isso
porque “O projeto de liberalização do regime autoritário, ao mesmo tempo em que era
reformista no que diz respeito à adoção de formas mais ‘modernas’ de atuação, sustentava-se
politicamente em bases conservadoras, alimentando-as e fortalecendo-as” (Andrade, 1997:57).
Cardoso destaca que hegemonia oligopólico-autoritária buscada contempla momentos
de verificação de vontades, dando à sociedade a ilusão de participação, mas mantendo “a
ordem acima de tudo, querida por todos, se possível: imposta na marra, se necessário. Ordem
com lei, por certo. /.../ o cidadão será respeitado (relativamente) e a ordem estabelecida será
mantida (absolutamente)” (Cardoso, 1981:11)
Mas Golbery não via, naquele momento, possibilidades de moderação no curto prazo.
Ele destaca que “o fato de a primeira lista de cassações ser curta e não incluir juízes do
Supremo Tribunal Federal” era encorajador. Mas, no geral, duvidava seriamente de que
políticas mais moderadas fossem adotadas logo. Pelo contrário, expressava um temor:
“Haverá mais cassações e talvez o Supremo Tribunal seja atingido, algo que Castelo sempre
impediu”, e a promessa de reconvocação do Congresso para março não era muito crível. “Na
opinião de Golbery, é muito significativo o fato de o AI-5 não especificar um tempo limite.
Castelo entendia que as limitações contribuem para a moderação, para o saneamento rápido e
o fim do período de exceção.” (Thuthill, OESP, 13-12-98)
A oposição do general ao AI-5, como se vê, não era baseada em princípios
democráticos ou humanitários. Baseava-se no temor de que a centralização excessiva gerasse
aqueles efeitos que sempre questionava.
Golbery baseia toda a sua tematização sobre a auto-reforma do regime na Lei dos
Rendimentos Decrescentes, que vimos com mais detalhe ao tratar especificamente da SN.
Bebendo na fonte de Turgot e dos marginalistas que lhe sucederam, Golbery transporta uma
teorização essencialmente econômica para o cenário político. Recordemo-la:
Não escapa a Golbery o grau de deturpação da história que essa visão parcial carrega.
A história é, para ele, passível de várias interpretações ou “recortes”, e ele se propõe a fazer o
recorte dele, embora admitindo que “longe estamos da conceituação muito mais rica e objetiva
da periodização histórica, na qual não deixaria de inserir-se esse dado a mais”. Assim, mesmo
admitindo a parcialidade de seu “recorte” histórico, Golbery o percebe como legítimo e
continua insistindo em que tais fases centralizadoras/descentralizadoras, longe de poderem ter
seu início e fim facilmente estabelecidos, na verdade têm uma “fluidez permanente e
incontrolável”. Por isso, somente lhe pode ser assinalado um clímax “dentro de uma faixa,
larga e difusa, de maximização” que, justamente por ser larga e difusa, não permite uma
segura e precisa avaliação axiológica: “como dizer-se que o processo, em seu conjunto, estará
mais adiantado hoje do que há um ano”, uma vez que ele envolve “campos diversos, aliás
maldefinidos e nunca estanques”, se não de forma relativa? (PE:477; CN:15-17)
Uma vez que “a vida do Estado é multiforme”, englobando vários campos e múltiplos
controles, pode-se conceber que tais campos apresentarão avanços e retardos uns em relação
aos outros: “o processo centralizador, tanto como o de descentralização, avançará - se avançar
- como que num movimento ondulatório - nunca progredindo linearmente, portanto - através
dos campos todos em que se veja, artificialmente embora, decomposta a realidade, de si
mesma íntegra e indivisível” (PE:478; CN:15).
Assim, pois, “Em dado momento, o processo de centralização (ou descentralização)
estará mais avançado, por exemplo, no campo político do que no campo econômico - ora
muito mais avançado, ora um pouco menos. E isso corresponde à noção de retardo cultural”
PE:479; CN:18). Segundo esse pensamento, o avanço de um campo em detrimento de outro
tem consigo um terrível poder de trazer o caos, que é a ruptura, ou no mínimo a freagem do
processo de avanço naquele primeiro campo.
Quase com as mesmas palavras, o que consideramos uma influência golberyana, o
presidente Geisel também se manifestou a esse respeito, ao realizar a
Golbery cita Geisel, para reiterar que nenhuma nação pode prescindir do planejamento
estatal. Mas este não pode, segundo o ex-presidente, ser pretexto para ditaduras.
Mas... História não pode parar e, por isso, se utiliza dos homens para realizar Seus
misteriosos desígnios. E também castiga aqueles que não obedecem ao Seu mandamento
número um: “Não se pode querer toda a força durante todo o tempo” (JT, 7-8-81).
188
Em meados da década de 70, talvez se haja atingido o máximo de centralização
político-administrativa. A partir de então, esforços conscientes do Governo Federal
somar-se-iam àquelas tensões freadoras, surgidas naturalmente no seio do próprio
sistema. A consciência do fenômeno já alarmante, por outro lado, iria contagiando
aos poucos as várias camadas da população, a partir de seus quadros dirigentes, e
despertando assim iniciativas, protestos e reações em favor de uma descentralização
que mal se esboçava então, mas, dia a dia, iria se afirmando. Nesse quadro, a
desburocratização seria uma bandeira natural. (PE:485; CN:24)
Ocorre, porém, que nem todos os homens têm consciência de que seus destinos estão
determinados por História. Há alguns que se prendem ao passado, aos velhos poderes e
ideologias. Se são pessoas que detêm o poder e acabam por tentar deter História, criam então a
situação que “se deve estigmatizar como ‘retardo cultural’ - o aceitar-se conscientemente
generalizações e progressos em face da evidência indiscutível e real, mas, em determinados
setores, continuar a apegar-se às fórmulas cediças e a conceitos obsoletos” (GB:167).
Um dos lados era, obviamente, o dos atingidos mais diretamente pela ditadura:
progressistas, comunistas, deputados cassados etc. Como destaca Rago, “não deve causar
estranheza a ferocidade com que a burguesia investiu contra o conjunto de propostas
englobadas como reformas de base que, de fato, mantinham-se perfeitamente no âmbito do
capitalismo, mas apontavam para a ruptura com seus traços mais gravosos para os
trabalhadores, implicando uma contraposição à subordinação imperialista e à organização
econômica interna que lhe correspondia.” (Rago, 1998:58) Esse era o lado dos “que se
alinharam no campo democrático, vislumbrando um capitalismo nacional autonomizado pela
ruptura com as economias centrais, e que objetivava a ampliação do mercado interno com a
elevação material da força de trabalho nacional e a estatização dos setores produtivos da infra-
estrutura, cujas maiores expressões foram justamente Brizola e Arraes.” (Rago, 1998:129)
Mas havia dentro do próprio grupo no poder uma camarilha que se pretendia
verdadeiramente revolucionária. Para este grupo, estava-se numa guerra: a “revolução
permanente” contra a “guerra subversiva”, também permanente. Essa guerra subversiva, por
ser ideológica, conseguia até infiltrar-se nas Forças Armadas, dividindo-as com suas
bandeiras, dentre as quais a “abertura”. Defender esse projeto seria, portanto, defender o ideal
do inimigo, renegar os ideais de 64 e instaurar o divisionismo nas Forças Armadas.
O governo Geisel via-se, assim, diante de dois tipos de oposição: aquela situada mais à
esquerda, que era crítica à “abertura” por seu caráter limitado, e a direita, que pretendia
representar a revolução permanente. Essas duas oposições, segundo o general, nem sempre
combatiam entre si. Muitas vezes, juntavam seus interesses em um combate unificado ao
governo. Golbery assim expressa essa duplicidade:
Golbery sempre procurou transferir para a política seu raciocínio de militar, idealizando
o projeto de auto-reforma como uma tarefa de estado-maior. E foi como militar que ele
imaginou uma estratégia: manter o inimigo separado, dividido, alternando pauladas em cada
grupo, mas também tentando cooptá-los por concessões a grupos menos radicalizados de cada
frente.
Daí a óbvia manobra que se oferecia ao Governo, em posição central e forte entre
dois grupos de opositores: mantê-los, sempre que possível, separados e alternar
ações de contenção, senão de contra-ataque, entre um e outro, garantindo, para si
mesmo, espaço de manobra cada vez maior e, pois, maior liberdade de ação para
concretização de cada um de seus próprios objetivos políticos, sem interferências
desastrosas ou perturbadoras. (PE:488; CN:27)
Para vencer as oposições, Golbery propugnava uma política que, acima de tudo,
apanhasse de surpresa a esquerda e a direita, deixando-as neutralizadas, na defensiva ou
acuadas e mantendo-se, sempre, a iniciativa política com o governo federal. Como ressaltou
Mello,
Essa assimilação reducionista da ação política à arte militar é conhecida /.../ ofensiva
estratégica, com o objetivo de romper as linhas inimigas, dividir e semear confusão
nas hostes adversárias /.../. Manobrando a partir de sua posição central, o governo
poderia manter divididos os partidos recém-formados e recorrer ao expediente de
“punições e recompensas” para, com maior liberdade e dentro de cada conjuntura
específica, cooptar os possíveis aliados e isolar o inimigo principal. (Mello,
1989:211-212)
Para cada paulada à direita, é preciso dar, também, uma paulada à esquerda. É
aquela história de não avançar de vez. O governo estava querendo abrir no centro.
Tinha de conter, ao mesmo tempo, a direita e a esquerda. /.../ Agora, o resultado da
eleição de 1974 veio mostrar, de fato, que já não se podia andar muito devagar,
porque aí significava colocar lenha na fogueira dos inimigos vitoriosos no pleito (Cf.
Senhor, 22-9-87).
As pauladas à direita e à esquerda deveriam, portanto, se alternar. Mas haveria que ter
dois cuidados: primeiro, que os ataques não ocorressem conjuntamente, a fim de que os
inimigos não tivessem oportunidade de se aliar. Segundo, que o ataque não fosse tão forte que
eliminasse o grupo atacado. Ambas as providências tinham de ser tomadas para que não se
formasse uma frente única de oposição. Os inimigos tinham de ser mantidos vivos, embora
fracos, para que se desgastassem mutuamente, não exigindo a intervenção tão freqüente e
desgastante do governo.
Esta será, por outro lado, essencial à criação de nova correlação das forças políticas,
seja no âmbito federal seja no panorama dos Estados federados, e de impulsos tais
que permitam promover, com êxito e oportunidade, o avanço paralelo da
descentralização também em campos bem mais resistentes como o econômico, por
exemplo. Até lá, espera-se que os principais obstáculos inerentes a este possam ter
sido removidos ou, pelo menos, superados. (CN:34-35)
Nesta quadra de indefinições que antecede o registro formal e definitivo dos vários
partidos políticos e, portanto, a reimplantação de novos liames eficazes de
fidelidade, a indisciplina pode bem atuar mais energicamente no campo da oposição,
já dissociada em vários partidos, desde que evitemos, de nossa parte, o exercício de
certos tipos de pressões que possam determinar contraproducentes efeitos de
aglutinação ante perigos comuns. Como se vê, o momento ainda é de instabilidade e
de preocupações múltiplas, requerendo ímpar mestria na condução política, boa dose
de tolerância e capacidade de negociação. (PE:492; CN:31)
Golbery vai ainda mais a fundo. “Na verdade, todos nós precisamos reeducar-nos para
a convivência democrática” (PE:494; CN:33), diz ele, detalhando em seguida as
“contribuições” nesse sentido que o governo pode dar em várias frentes, ressalvadas, é claro,
as advertências de cautela no trato com a oposição, para mantê-la dispersa, e de coesão nas
hostes governistas:
Assim, portanto, ao mesmo tempo em que pretendia abrir caminho no país para a
democracia, o governo Geisel recorria com freqüência, sem pudores, ao AI-5. Esse
movimento pendular se mostra, também, em outras situações. As cassações do início de 1975
são explicadas por Golbery como uma atitude tomada diante da reação do Exército ao
discurso de um deputado e a denúncias de que alguns foram eleitos por votos de comunistas.
As cassações eram necessárias, segundo ele, porque “precisávamos dar uma satisfação à
direita. /.../ Então, é preciso levar em conta isso, não propriamente como uma iniciativa do
governo, mas como uma contra-reação dele a uma reação que veio de fora” (Cf. Senhor, 22-9-
87).
Enquanto isso, no “setor crítico da economia”, onde se manifestam “resistências
bastante fortes” à liberalização (CN:25),
Mas não era contraditório liberalizar o regime e, dentro desse processo, abrir um setor
sensível como a imprensa, geralmente crítico ao governo, num momento tão difícil de
problemas econômicos, “a reclamarem, insistentes, por controles mais amplos e efetivos e,
pois, uma disciplina centralmente coordenada, com profundos reflexos em toda a estrutura
governamental e social”? A própria liberalização do regime não seria temerária, com o risco
de, abrindo-se uma brecha, desmoronar-se todo o sistema e fugir ao controle? Golbery
ponderou também esse aspecto, concluindo:
A busca de legitimidade pelo desempenho econômico é uma base volátil, frágil – uma
vez que um desempenho econômico ruim pode destruí-la, e um bom desempenho pode ser
considerado obrigação dos dirigentes.
Com o colapso, portanto, Geisel já não podia derivar dos êxitos econômicos a
legitimidade do regime. Por outro lado, o uso da repressão poderia ter efeito inverso ao
pretendido, reduzindo ainda mais a base de apoio. Portanto, segundo Mello, “só restava ao
regime a alternativa de forjar uma legitimidade duradoura a partir do espaço específico da
política” (Mello, 1989:203), com a retomada do projeto castelista. Assim, “A normalização
institucional, além de cumprir seu objetivo político cardeal, qual seja, a liberalização do
autoritarismo, funcionaria também como uma válvula de escape utilizada pelo regime para
enfrentar, inclusive, as agruras da recessão econômica e controlar as manifestações sociais de
193
insatisfação, sem recorrer à intensificação do emprego de métodos coercivos.” (Mello,
1989:204)
E, embora reitere diversas vezes e em várias ocasiões de que é necessário “abrir” o
regime e que a participação é muito mais necessária em momentos que exijam sacrifícios
econômicos (PE:478; CN:17), pelos motivos já expostos, Golbery não pretende em nenhum
momento renunciar ao controle desse processo liberalizante, pelo contrário, pretende mantê-lo
estritamente dentro do permitido 33 .
O campo em que se fazia mais claro o retardo e onde, segundo Golbery, surgiriam
primeiro reações, cuja oposição era mais fácil diante do “autoritarismo crescente e
indisfarçado” era justamente o campo político, sobretudo no setor específico da comunicação
social. Cabia, pois, tomar as medidas adequadas para evitar o “retardo cultural” deste ponto
em relação aos demais.
A solução seria impulsionar o campo político, a fim de liberar os eflúvios da sociedade
comprimida. E, nesse campo, especial atenção cabia à censura à imprensa, “de dificílimo,
quase impossível manejo, que se requeira ao mesmo tempo inteligente e eficaz” (PE:485;
CN:24). Essa questão era das que mais indignavam a opinião pública e daquelas que
angariavam os mais amplos e contundentes apoios. Estes, ao contrário do que ocorria em
outras áreas, acabavam trazendo avanços concretos para as oposições.
Por outro lado, medidas para atenuar ou extinguir a censura aos meios de comunicação
sofreriam poucas resistências, colhendo, pelo contrário, apoio variado e concreto. Estava
indicado o caminho de menor resistência a seguir, para dar andamento às reformas no campo
político. Por isso, a liberação da imprensa era prioritária para Golbery já desde as articulações
para a candidatura Geisel (as suas duas outras intenções originárias eram o fim da tortura e o
retorno da disciplina ao Exército), e ele se empenhou pessoalmente para tal tarefa, conforme
depoimento de Elio Gaspari 34 .
É, pois, pelo fim da censura que se inicia o processo de liberalização do regime.
Golbery falou a respeito na Conferência de 1980:
33
Segundo Elio Gaspari, Golbery teria retirado da publicação da Conferência de 1980 um trecho de trinta linhas. Não
conseguimos verificar a veracidade da informação, uma vez que a cópia da Conferência por nós retirada na Biblioteca do
Exército também não compreende o texto ausente do livro. O trecho retirado seria o seguinte: “Algumas valiosas regras de
ação poderão ser apontadas para uma manobra dessas, não tão simples como, aliás, possa parecer: 1) Cada par de ações
(contra a direita e contra a esquerda) deve desencadear-se em prazo curto, uma seguindo-se logo à outra, para que se crie a
convicção geral de sua solidariedade e se evidencie não estar o poder central agindo sob a influência de qualquer delas -
reforço de posição própria, independente; 2) intervalos entre pares solidários de ações devem ser dos mais variados,
garantindo-lhes efeitos de surpresa; 3) as seqüências esquerda-direita e direita-esquerda devem suceder-se sem qualquer
regularidade perceptível; 4) as ações devem ser as mais distantes possíveis entre si, quanto a seu espaço social de
aplicação, isto é, alvos preferenciais deverão ser as extremas da direita ou esquerda, permitindo-se aos elementos mais
moderados delas desvincularem-se; 5) não perder oportunidades de ação sempre que a esquerda ou a direita se excedam,
tanto mais quanto mais flagrantes sejam os seus excessos; 6) graduar as reações de modo a nunca enfraquecer
demasiadamente - quanto mais eliminar prematuramente - uma qualquer das extremas em reforço à outra, o que,
possivelmente, viria a ser comprometedor para a posição central e isenta do governo. Também aqui caberia salientar
algumas regras úteis para a condução da manobra. O momento não parece, entretanto, dos mais apropriados...”. (Cf.
Gaspari, Veja, 23-9-87. Ver também Couto e Silva, CN; Couto e Silva, 1980, Conferência T 202-80.)
34
“Armando-se para acabar com a censura, Golbery colecionava artigos vetados /.../. Armando-se para acabar com a
tortura, colecionava casos indiscutíveis. /.../ O retorno da disciplina aos quartéis, no entanto, ficou inteiramente a cargo de
Geisel. Golbery nunca se meteu nesse assunto, até mesmo porque seu nome era maldito no Exército, onde sempre fora
acusado de ‘besta’ por ler muito, de ‘politiqueiro’ por ter dirigido o SNI e de ‘corrupto’ por ter presidido a Dow Química,
subsidiária brasileira da multinacional do mesmo nome. ‘No Exército você não pode sair da média e eu saí, esse é o
preço’, dizia o general.” (Gaspari, Veja, 23-9-87).
194
Sob a ótica golberyana, assim, a abertura foi uma produção de racionalidade política
dos militares, motivada por interesses corporativos das Forças Armadas. O exercício
ostensivo do poder pelos militares levou a política para os quartéis. /.../ Quebrou-se
a unidade das Forças Armadas. /.../ Sair da política era necessário para refazer a
unidade perdida. Em especial, o envolvimento dos militares com a política promovia
o crescimento dos serviços secretos. Esses serviços tornaram-se autônomos e seus
homens adquiriam regalias e privilégios que incomodavam as forças militares.
(Góes, FSP, 19-9-87)
195
Por outro lado, observando a sociedade, Golbery percebia que a elite brasileira não
era nem um pouco democrática. Pelo contrário, tinha forte caráter antidemocrático. Ela não se
opunha ao regime em si, mas desgostava-se do fim do ciclo de acumulação e negava-se a
pagar o ônus do processo, além de pleitear a saída do Estado da economia. Segundo
testemunho do professor Walder de Góes, Golbery sabia que
De sua parte, Golbery não tinha a menor intenção de ir contra os interesses da elite, a
não ser no caso excepcional de esses interesses irem de encontro aos supremos ON. A auto-
reforma do regime não pretendia, de nenhuma maneira, revolucionar o andamento do setor
econômico. Sua intenção, pelo contrário, era mantê-lo, embora melhorado, pois seria esse
regime que impulsionaria o desenvolvimento do Brasil.
Quanto ao “povo”, ao restante da sociedade, Golbery lhe conferia pouca importância.
Sua visão elitista do mundo não podia conceber a participação intensiva do que ele
denominava “massa” no processo decisório. É como se o mundo girasse de forma autônoma e
aquele fenômeno do retardo cultural, por si só, criasse as reações na sociedade que podem
gerar a ruptura catastrófica. A única interferência que sofre é da atuação das elites, que têm o
controle absoluto da história, desde que aceitem os desígnios autopostos desta. É por isso que,
Listando os fatores que levaram os militares a aceitar a abertura política, ele colocou
as pressões da sociedade em último lugar. A política era vista por ele como um
fenômeno quase autônomo. Um sistema de relações entre interesses. O povo existe,
é claro, e sua existência fornece à política os limites do que é e do que não é
admissível. Mas o povo é uma realidade distante e difusa. (Góes, FSP, 19-9-87)
Foi com esse raciocínio que Golbery arregaçou a manga e atirou-se com
voluptuosidade de estrategista na coordenação do processo de auto-reforma do regime
bonapartista que havia no Brasil. Era um jogo que, certamente, muito lhe aprazia, embora
guardasse momentos amargos e ferozes opositores.
O artífice do projeto de reforma nem sempre podia fazer as coisas a seu gosto. Golbery
chegou a reclamar publicamente de certa lentidão na condução do processo por ele imaginado,
justificando: “O assessor é sempre mais afoito, até por natureza, porque a opinião dele vai ser
submetida a um crivo, não vai subsistir por si mesma. Portanto, ele tem mais liberdade. Eu me
lembro de que várias vezes, conversando com o presidente [Geisel], eu comentava que, no
tempo do Castelo, ele reclamava da lentidão nas decisões, mas agora, na cadeira do poder, ele
também demorava demais” (Cf. Senhor, 22-9-87). Embora reclamasse, Golbery compreendia
que, com tais atitudes, Geisel “Conseguiu um certo equilíbrio. E com isso até perdeu um certo
tempo. Mas, às vezes, tem de se trocar o tempo pelo valor da manobra” (Cf. Senhor, 22-9-87).
Além disso, segundo ele, Geisel teve de enfrentar problemas adicionais imprevistos:
Por outro lado, não foi apenas em relação ao tempo que o processo não andou como
queria Golbery. Ele passou por sérias derrotas no governo Geisel. “Chegou a preparar, ainda
em 1974, uma nota oficial, em que o governo admite que os dissidentes políticos
desaparecidos foram vítimas dos órgãos de repressão. Sua nota foi arquivada e substituída por
uma escalada contrária do ministro Armando Falcão” (JT, 7-8-81).
No entanto, qualquer balanço da correlação de forças no governo deve considerar que
ele “Desempenhou papel de indiscutível importância em episódios delicados do governo
Geisel: o afastamento do general Ednardo D’Ávila Melo do comando do II Exército, em São
Paulo; a demissão sumária do ministro Sylvio Frota e o célebre ‘Pacote de Abril’” (Senhor,
22-9-87), sagrando-se vencedor da batalha decisiva, a queda de Frota.
A campanha ultradireitista dos seguidores do ministro Sílvio Frota, que com isso
imaginava torná-lo sucessor natural de Geisel, consistia em denunciar o governo
como infiltrado de comunistas. /.../ numa imitação grotesca das ações de 1967, que
impuseram Costa e Silva a Castelo e que em 1973 impuseram o próprio Geisel a
Médici, procuravam intrigar Geisel com os militares para impedi-lo de fazer
Figueiredo seu sucessor. (Gutemberg, 1994:160)
Figueiredo havia trabalhado com Golbery por dez anos no Instituto de Pesquisas e
Estudos Políticos (Ipes) e viera a substituí-lo, escolhido por ele próprio, na chefia do SNI,
durante o governo Castelo. Para suceder a Geisel, Golbery havia inicialmente pensado em
Petrônio Portella ou Paulo Egydio. Mas, depois, voltou-se para a candidatura Figueiredo, que
“era um líder no Exército e no esquema de segurança - portanto, inatacável por esse lado. Mas
também era o filho de um exilado, que deveria ter sensibilidade para a abertura política,
calculou Golbery” (Bardawil, Senhor, 22-9-87). Assim, antes mesmo da posse de Figueiredo,
reconfirmado no cargo de chefe do Gabinete Civil da Presidência da República, Golbery já
tinha esboçado as etapas do cronograma de abertura.
Na Conferência na ESG, Golbery expunha os vários pontos que considerava
prioritários para atuação, no governo Figueiredo. Em primeiro lugar, como não podia deixar
de ser, a democracia e da descentralização/participação:
Com relação a este campo, Figueiredo foi escolhido, é bom que se esclareça, porque
formulou uma sumaríssima diretriz econômica, aglutinando em torno dela alguns setores. Os
ataques desfechados contra outras candidaturas militares não podem ser reduzidos a disputas
palacianas.
35
Os pontos seguintes eram: “ - expansão cultural do país tanto no setor das ciências e técnicas como no das artes, mais
solidamente estruturado o perfil nacional, indene, já então, a toda e qualquer forma de contatos e intercâmbio com outras
culturas de além-mar ou além-cordilheira; - maior projeção do país no exterior, não só na defesa realista e objetiva dos
interesses nacionais, mas ainda na promoção coletiva e solidária da paz e do progresso da humanidade.”
198
De modo que, à época, a proposta alinhada em torno de pouquíssimos itens
(desenvolvimento agrícola, desestatização, “irresolução” quanto ao setor nacional de
máquinas e equipamentos, o que significa resolução pela via externa) reuniu as
“esperanças possíveis” de um contingente significativo dos setores do capital, que
lhe entreabriu um crédito de confiança. Contudo, desde o princípio, parceiros outros
dos idos do “milagre” se viram ameaçados, quando não alijados, pois uma equação
unitária que contemplasse a todos, na nova fase de desenvolvimento pretendida, se
mostrou impossível de ser encontrada nas novas condições. /.../ Suficiente para
permitir a unção e levar ao poder, em meio às ásperas disputas que prosseguiam, a
plataforma tracejada, no entanto, precisava (e precisa) ir sendo convertida num
programa econômico completo e concreto de governo. Isto, todavia, até hoje não foi
alcançado. (Chasin, 1980:117)
No final, embora com alguns reparos e concessões, o projeto de Golbery foi vencedor.
A transição lerda, longa e limitada foi, além disso, ou antes por isso mesmo, gradual e segura
para o regime. Os próprios membros do governo tomaram muitas das decisões, algumas das
quais foram apresentadas como fato consumado à sociedade no interior de uma série de
medidas que passaram celebremente à história como o “Pacote de Abril”.
Hoje, é possível afirmar, sem medo de exagerar, que o processo de abertura política
no Brasil começou exatamente com esse pacote, sem dúvida o ato mais arbitrário da
história republicana. Mas, sem o pacote, o presidente Geisel não poderia demitir,
como demitiu, o general Sylvio Frota, nem impor às Forças Armadas e ao país a
candidatura do general Figueiredo. (Pesce, OESP, 7-8-81)
Dizem que os biônicos foram criados para assegurarmos a nossa maioria no Senado.
Esse realmente foi um dos objetivos, mas foi um objetivo menor. Sinceramente,
havia, também, e em muito maior escala, o desejo de melhorar o nível do Senado.
/.../ havia por aí um certo número de homens respeitáveis que seriam os candidatos
naturais aos cargos de senador biônico. Isso era um desejo mas, infelizmente, ele
acabou triturado pelas ambições pessoais e pelos acordos políticos nos Estados (Cf.
Senhor, 22-9-87).
Também se fixou ali a duração do mandato do próximo presidente. Apesar de não ser
propriamente um democrata, a fixação de um mandato de seis anos pretendia, segundo
Golbery, garantir em primeiro lugar o revezamento no poder. Para tal, era tão prejudicial um
tempo excessivo como um mandato muito curto. Em suas palavras,
Essa coisa dos seis anos de mandato estava muito ligada a nossa idéia de que não
deveria haver continuísmo. Um presidente querer 12 anos de poder, para nós,
parecia muito forte /.../, ao passo que quatro anos é muito pouco, justificaria a
200
tentativa continuísta. E cinco anos dá uma confusão danada porque não coincide
com as eleições para deputado” (Cf. Senhor, 22-9-87).
Suzeley Mathias avalia o Pacote de Abril e conclui que, com ele todos perderam:
Perdeu a oposição porque nem mesmo teve voz para protestar contra o fechamento
do Congresso, mostrando toda a sua impotência, e porque perdeu a oportunidade de
tentar negociar o que deveria ser a reforma política. Perdeu o governo porque
mostrou-se incapaz de mudar dentro das próprias regras por ele fixadas. Todavia, a
longo prazo, o “Pacote de Abril” mostrou sua importância ao garantir para Geisel
maior controle sobre o “público interno” e proporcionar-lhes fôlego para as reformas
políticas futuras /.../. A partir do “Pacote de Abril”, as reações contrárias ao governo
aumentaram em número e qualidade. Talvez ele nunca tenha estado tão longe da
sociedade como naquele momento. (Mathias, 1995:121-122)
36
A entrevista é de 1983, exato momento em que o governo havia perdido a maioria no Congresso.
37
A postura do governo, ao permitir a realização das eleições de 1974 como prometido, “pode ser explicada porque as
eleições visavam a mensurar o apoio ao governo e também porque ninguém acreditava em uma derrota da Arena. /.../
qualquer resultado beneficiaria o governo: o importante era a realização das eleições em clima de relativa liberdade para
funcionar como uma variável de legitimação do governo.” (Mathias, 1995:95) Além disso, o governo podia aferir suas
bases de apoio. No entanto, os opositores à direita do governo não se contentariam com vitórias eleitorais: queriam que o
projeto distensionista fosse abandonado. Assim, em setembro de 1976, vários organismos da sociedade civil foram
atingidos por atentados a bomba.
201
sua atuação e suas reivindicações. Golbery se referiu a esse fenômeno na Conferência de
1980:
Além do prejuízo óbvio para a estratégia governista, tal agrupamento frentista retirava a
discussão e a atuação do âmbito político, no qual a ditadura sempre fez questão de mantê-lo, a
fim de não ver questionado em nenhum momento o fundamento econômico do regime. Havia,
portanto, que desatar o nó górdio: implementar um projeto de abertura seguro, e ao mesmo
tempo emprestar credibilidade ao processo, numa conjuntura de avanço da oposição. É por
isso que os partidos, para Golbery, eram o verdadeiro canal de discussões da sociedade,
levando ao parlamento as várias disputas sociais intestinas e desativando o potencial de
ruptura caótica que um movimento social de massas como o “novo sindicalismo” poderia
engendrar 38 .
O mago do regime lamentava que outros meios de controle do movimento sindical
tivessem deixado de existir:
A idéia dos partidos como o campo “normal” de atuação política dos setores sociais é
reiterada em outra passagem: Golbery diz-se otimista “quanto à possibilidade de Partidos
eficientemente estruturados” atraírem os jovens “e ajudá-los a se prepararem para o exercício,
no futuro, das lides políticas”, complementando em seguida: “Evidentemente, há vocações
políticas em todas as idades e todas as vocações políticas, não só as de jovens, devem
encaminhar-se para os partidos políticos”. (PE:529) E não deixa dúvidas de quem seria o
agente condutor do processo que redundaria em partidos políticos mais autênticos, ao afirmar
que “Nós é que devemos procurar criar e desenvolver condições para que os partidos possam
desempenhar a atuação que lhes é própria - a mobilização política do povo”.
Suzeley Mathias atesta que esse também era, em geral, o pensamento do próprio
governo:
Golbery é mais explícito ainda quanto aos objetivos a alcançar, por meio do
multipartidarismo, mostrando que, para derrotar o inimigo, conhecê-lo bem ainda é o atalho a
seguir.
Golbery não deseja, porém, manter eternamente o pluripartidarismo. Mas também não
acredita que, no outro espectro das opções, estaria fatalmente a divisão da oposição como
estratégia levada a cabo pelo governo.
Ele rejeita, portanto, o monopólio eterno do poder pelo mesmo grupo da elite. Não que
rejeite a divisão do poder pela elite, como um todo; não, ele questiona tão-somente a
permanência no poder de um único grupo ou partido representante da elite. De acordo com
seu pensamento, a elite precisa de desafios constantes, pois do contrário perderia poder
criador, fundamental para a condução da Nação. É necessário, pois, a ascensão de novos
grupos ao depositário do poder, o Estado, para que a elite continue desempenhando seu papel
histórico diante das massas e em favor da Nação.
Por outro lado, porém, Golbery também não acredita que a qualidade da democracia se
faça pela quantidade de partidos políticos que disputam entre si o poder estatal. Embora
considere que, na conjuntura pela qual o país passava, o multipartidarismo fosse inevitável e
talvez imprescindível, baseava-se nos modelos britânico e americano para expressar o sistema
partidário que gostaria de ver implementado: não um ‘bipartidarismo imposto”, mas
204
um bipolarismo autêntico - um bipartidarismo na prática, que não seria um
regime de apenas dois partidos existentes por imposição legal, mas dois partidos
constituídos por um bipolarismo pragmático. De maneira que - não sei se estas
minhas notas possam parecer muito sibilinas - mas acho que nós saímos de
bipartidarismo para um pluripartidarismo como abertura, esperando-se venhamos a
implantar no país um bipolarismo pragmático. Quer dizer, não serão reconhecidos
somente dois partidos, mas, na prática, dois partidos é que funcionarão como
agentes de poder. Suponho que chegaremos aí a uma solução mais justa. (PE:510)
Mesmo quando defende o bipartidarismo como mais racional, Golbery o faz a fim de
conferir ao processo político a chamada legitimidade procedimental, em que importa menos o
que se decide do que o como se decide. A democracia restringe-se, aqui, a uma estreita
questão de método.
Poderíamos ajuntar aí, para fins de esclarecimento, as observações de outro ardoroso
defensor do bipartidarismo:
Pode-se concluir, portanto, que a importância que tinha a reforma partidária para o
governo advinha do fato de os partidos se tornarem uma forma de controle pois, como vimos,
no pensamento governista, o partido detém o monopólio da participação social, sendo-lhe
atribuída a função de bloquear a mobilização social. Os partidos isolam os radicalismos e os
limitam ao que é politicamente aceitável e seguro para o regime. Está, assim, claramente
delimitado o campo de ação permitida. Por outro lado, pelo que acompanhamos da fala
golberyana, a função do sistema partidário se detém aí: o partido não governa, serve apenas
para monopolizar a ação e despolitizar a participação social. No máximo, é consultado quando
de decisões drásticas, realizando-se acordos nas cúpulas que inibam o vazamento das
discussões para a massa da população. A “democracia” partidária proposta é, portanto, nada
205
mais que uma “democracia” de controle, instrumental, em que os diversos partidos
existentes legitimam o processo político.
Ferreira acrescenta um dado importante: os estrategistas do governo
Não podiam supor - porque supô-lo seria contrariar a visão liberal do mundo em que
se criaram - que a multiplicidade partidária, dada como uma das causas da fraqueza
da democracia brasileira, era conseqüência não de uma legislação eleitoral feita ao
sabor dos interesses privatistas (o que, até certo ponto, era verdade), mas,
fundamentalmente, da multiplicidade de visões segmentares do processo político, da
articulação meramente regional dos interesses socioeconômicos /.../ e da ausência de
uma classe politicamente organizada, isto é, organizatoriamente coesa, no conjunto
do território nacional (Ferreira, 1984:591).
A Revelação
Mas o fim do Ato famigerado não era um favor à oposição: para o governo Geisel, era
um incômodo espinho cravado na garganta:
Segundo Golbery, o AI-5 era tão insuportável para a oposição quanto desagradável
para o governo. /.../ Geisel considerava que o AI-5 era um bumerangue e ameaçava
sua própria autoridade civil de presidente da República.
Demolido o AI-5, raciocinava Golbery, desabaria também a grande série de
limitações à liberdade política, como o bipartidarismo. E acabariam os pretextos de
rebeldia, de todos os tipos, que a legislação revolucionária inspirava. Removida a
causa, cessam os efeitos. (Gutemberg, 1994:147)
Revela-se, aqui, pois, a intenção do sistema de poder de decretar o fim do AI-5 (o que
se consumou em fins de dezembro de 1978), o fim da censura à imprensa e o fim do
bipartidarismo, por meio da criação de uma estrutura pluripartidária, de apenas cinco partidos,
conforme veremos. Segundo Golbery, o governo ainda não sabia como fazê-lo, nem por meio
de que instrumento, mas ressaltava que o presidente estava empenhado e sem dúvida achariam
uma fórmula.
Continuando sua exposição explosiva a respeito da rearticulação das forças políticas
brasileiras, novamente aqui Golbery afirma que os partidos são o melhor meio de atuação
política do ponto de vista de quem está no poder, uma vez que podem “isolar os radicalismos
de esquerda ou direita e reduzi-los à sua real expressão político-eleitoral”. Ainda assim,
porém, o Estado, mesmo permitindo a organização livre, estaria, dessa forma, aparelhado com
salvaguardas suficientes para conter radicalismos à direita e à esquerda.
Toda a estratégia era baseada numa singela teoria sobre a aglutinação do universo da
sociedade em apenas cinco partidos. Eles brotariam de maneira natural, se
enquadrariam com facilidade numa legislação que exigisse uma representatividade
robusta - para evitar que surgissem partidos de aluguel, pequenos, sem significação -
e transformariam a abertura política num salto civilizatório e modernizador do
Estado brasileiro. As excentricidades, as tendências minoritárias e os acidentalismos
seriam absorvidos pelos partidos antes que chegassem às ruas. (Gutemberg,
1994:148-149)
De fato, não interessava ao governo abrir demais o leque partidário. A situação ideal,
conforme pensavam, seria a criação de quatro ou cinco partidos, e, ainda assim, o governo
manteria sua maioria no Congresso concentrada apenas em um, a fim de não ter de abrir o
governo, por meio de negociações, a outros grupos políticos. Fazia parte da mesma lógica a
pulverização da oposição em vários partidos, a fim de não se ver novamente diante de uma
frente do tipo do MDB.
Golbery detalhou, em seguida, sua idéia a respeito da pulverização da política nacional
nos cinco partidos que, achava ele, cobririam de ponta a ponta o gradiente ideológico-
programático da sociedade nacional. E tocou ainda em outro tabu do sistema, trazendo o tema
da anistia à arena. Segundo Gutemberg, as cassações sumárias de mandatos parlamentares,
207
com a perda de direitos políticos que os impedissem de voltar “pelos braços do povo”,
obedeciam a cálculos sobre a influência vital dos políticos. Para casos extremos, como o de
Brizola, admitia-se quinze anos sem direitos políticos. Embora não pedisse explicitamente
apoio - “Objetivamente, profetizava”, diz Gutemberg -, Golbery abria a discussão, propondo o
início imediato de “estudos cooperativos, realistas, sérios, considerando-se a conjuntura”, a
respeito das cassações, das quais “Algumas eram sabidamente injustas e infelizes. Não se
tratava de revogar decisões revolucionárias, mas desfazer as injustiças perfeitamente
corrigíveis. Daí, chegar-se-ia com naturalidade à anistia. O governo queria receber sugestões,
estava aberto a propostas construtivas e a discussões discretas.” (Gutemberg, 1994:149)
Em sua exposição, Golbery falava de decisões que já haviam sido tomadas por Geisel.
Com aquelas revelações, “Golbery transportava seus dois interlocutores, com quatro anos de
antecedência, para uma realidade brasileira que apenas se concretizaria a partir de 1979”,
especialmente pela Emenda n.º 11. Creditava ao presidente, e a ele unicamente, “o papel de
delegado solitário do poder revolucionário, que antes era partilhado pelos generais-presidentes
com os ministros militares, os altos comandos, o SNI e os grupos intermediários de pressão
militar, conhecidos como ‘o sistema’.” (Gutemberg, 1994:149) Geisel, isolando-se assim,
desautorizava falsos procônsules. Golbery, ao atribuir aquelas idéias e a disposição para
efetivá-las a uma terceira pessoa, mostrava “evidente e afetado excesso de modéstia. /.../ Ele
não era um mero anunciador daquelas maravilhas, mas o contra-regra que estaria nos
bastidores providenciando para que o mágico tivesse todo apoio no palco.” (Gutemberg,
1994:150)
O caráter absolutamente sigiloso da conversa havia sido acertado quando a reunião fora
marcada, por intermédio do marechal Cordeiro de Farias. Ulysses, sob o impacto daquelas
revelações fantásticas, disse ser desnecessária tal providência:
A realidade dos meses que se seguiram, porém, ficou devendo muito às promessas. De
fato, ocorreu justamente o contrário da liberalização prometida: um endurecimento do regime
militar, agudizado por dois contratempos: primeiro, uma recaída de Golbery que, sofrendo
conseqüências tardias do deslocamento da retina, voltaria a suas atividades apenas em agosto.
Segundo, uma declaração pesada de Ulysses Guimarães, redigida em resposta a críticas do
presidente Geisel, na qual comparava o regime brasileiro à ditadura de Idi Amim Dada, o que
irritou profundamente o presidente.
Cordeiro de Farias acreditava que Ulysses tivesse redigido aquela nota “de propósito,
para frustrar os planos que, a seu pedido, Golbery lhe havia exposto na esperança de obter sua
parceria como presidente do MDB”. Também era essa a opinião de Severo Gomes: para ele,
Ulysses temia que “a abertura política planejada por Golbery - se ocorresse como lhe fora
descrita - esvaziasse o MDB e seu próprio papel singular de patriarca da oposição. Ulysses
teria reagido ao que considerava ameaça aos seus planos pessoais de poder. Noutras palavras,
ele sabotara o projeto de Golbery.” (Gutemberg, 1994:153)
O fato é que, logo em seguida, o regime endureceu. Ulysses preferia, no entanto, não
considerar sua nota como responsável pelo endurecimento. Ele achava, pelo contrário, que
208
havia sido premonitória. De qualquer forma, em seguida o MDB foi marginalizado nas
discussões feitas com a sociedade civil, sendo novamente procurado apenas em março de
1977, quando Portella comunicou a Ulysses que estava credenciado pelo presidente Geisel a
iniciar amplo diálogo com a sociedade por intermédio das suas instituições e lideranças.
Realmente, Portella estabeleceu diálogo político com dezenas de lideranças da sociedade civil.
Conhecida como “missão Portella”, acabou tendo um papel precursor dos prodígios da
“Abertura”.
Essa missão é, segundo Cardoso, um dos dois estratagemas do regime: a “operação
encantamento”, que se refere à abertura do diálogo com a sociedade civil “à margem do
Congresso, dos partidos - mas também do Sistema -, e a ‘operação desbaratamento’, pela qual
os granadeiros do rei [Portella e Golbery] decapitaram, um a um, os generais rebeldes, fossem
ministros, chefes da casa militar ou simplesmente ex-qualquer coisa.” (Cardoso, 1981:5)
Em seguida, porém, novamente houve um endurecimento. Em 31 de março de 1977, o
Congresso rejeitava a reforma do Judiciário, primeira votação incerta a que o governo se
arriscara sem salvaguardas, deixando de recorrer ao ato institucional, mas também sem
negociar e sem conceder nada às oposições. Ato contínuo à derrota, o presidente Geisel voltou
a usar seus poderes excepcionais: determinou o recesso do Congresso e baixou o chamado
Pacote de Abril, um verdadeiro festival de emendas à Constituição e leis ordinárias.
Gutemberg destaca a violenta disputa interna em que estava, então, envolvido o
governo. Em 1977, o ex-senador Magalhães Pinto surpreendeu todo mundo, declarando-se
candidato à Presidência da República, embora fosse público que Figueiredo já havia sido
escolhido para o cargo mediante compromissos políticos assumidos em 1973, durante a
“Primeira Guerra Mundial” (conforme Heitor Aquino), a ascensão de Geisel. Mas a eleição de
Figueiredo se tornaria, justamente, a “Segunda Guerra Mundial”, com o surgimento da
candidatura de Magalhães Pinto. Afinal,
Para demonstrar seu “teorema da sístole e da diástole” /.../, Golbery citava episódios
da vida política brasileira dos últimos cinqüenta anos. Eram incidências tão
repetitivas, gerando tal naturalidade na aceitação fatalista pela sociedade que, para
revertê-las, era essencial ir além do apenas anedótico.
Justamente o que Golbery propunha. As lideranças responsáveis precisavam adotar
um ambicioso planejamento estratégico, de longo prazo, que estabelecesse
mecanismos de salvaguarda e garantisse a estabilidade. (Gutemberg, 1994:156-157)
Pode ser que a contradição se ponha não por uma convicção profunda, mas talvez pela
diferença do público ouvinte: os esguianos provavelmente eram muito mais resistentes à volta
do PCB à legalidade, diferentemente dos políticos.
Ainda de acordo com o depoimento de Ulysses a Gutemberg, Golbery passou em
seguida para o dedo anular:
E o poderoso partido centro, que é a posição de equilíbrio e poder, que deve ser
lastreado ideologicamente pelos liberais, mas para onde declinarão fatalmente os
governos que venham a se estabelecer, se quiserem dispor das garantias
democráticas. O perfil desse partido, por mais que se procure, se aproxima sempre
do velho PSD, sem o principal e grave defeito que tinha o pessedismo, que era o
descompromisso estratégico. /.../ Esse partido de centro-centro pode ter o papel do
Partido Liberal alemão. Para o lado que ele pender vai o poder. Pode ser para a
esquerda, pode ser para a direita, mas o preço dos liberais é o compromisso com o
equilíbrio e a estabilidade. (Gutemberg, 1994:164)
Para comandar esse partido de centro-liberal, o general pensava na sólida base mineira:
de Tancredo Neves a Magalhães Pinto, que receberiam o majoritário MDB fluminense de
Chagas Freitas.
Essa arrumação, imaginava Golbery, seria efetivada por meio da simples eliminação
legal do bipartidarismo imposto e artificial. Arena e MDB seriam eliminados, esvaziados por
uma grande diáspora rumo a partidos ideologicamente mais nítidos. Florestan Fernandes
observou bem um aspecto, geralmente negligenciado, da reforma partidária que, segundo ele,
“voltava-se para a criação de um partido alternativo da situação /.../ destinado a provocar uma
gradual desconcentração militar do regime” (Apud Antunes, 1984:28).
Outra medida a tomar seria liberar a troca de legenda pelos parlamentares e estimular as
lideranças partidárias para que pudessem impulsionar esses projetos. Contudo, ela nunca se
212
cumpriu, o que acabou por desgastar o bruxo junto a Figueiredo. Também contribuiu para
desprestigiá-lo e fortalecer seus críticos, como os generais Medeiros e Venturini.
Como conta Gutemberg, a primeira tentativa de induzir ao surgimento desse leque
partidário, por meio da Emenda Constitucional nº 11, em vigor a partir de janeiro de 1979, não
deu certo. É verdade que Golbery não esperou apenas que a lei desse resultado, devendo ter
tentado infiltrar pessoas nos lugares certos para provocar determinadas reações. Mas nem isso
lhe evitou o fracasso rotundo: o MDB acabou engordando com gente vinda da Arena, como
Teotônio Vilela.
Isso não estava nos planos de Golbery. Segundo Luís Nassif, o mistério fazia bem ao
“nebuloso” Golbery. “Não fosse o mistério, há muito a opinião pública teria tomado
conhecimento de que o estrategista infalível, o pensador capaz de esculpir a Nação, não
passava de invenção de uma certa imprensa.” (Nassif, FSP, maio/84) 39
Como essa primeira tentativa fracassou, Golbery resolveu induzir mais firmemente as
reações que queria. Assim, em novembro de 1979, decretou-se a extinção compulsória da
Arena e do MDB. As coisas pareciam andar melhor, então. O PP, de Tancredo e Magalhães
Pinto, ao qual logo aderiu Chagas Freitas, finalmente surgiu em 1980, diante do fato
consumado da extinção do MDB, e reunia governistas insatisfeitos e falsos oposicionistas.
Curiosamente, contudo, o PP mais enfraqueceu o PDS do que o MDB, pois recebeu sobretudo
adesões de governistas, com exceção de Minas e do Rio de Janeiro. Ulysses continuava
pregando que a luta contra a ditadura só terminaria com a Constituinte, e que a desagregação
do MDB seria fatal para o processo de democratização. Como observou Fernando Henrique
Cardoso, “O PMDB [é] frente que aspira a ser partido pelo que não une: a expectativa de ser
poder, sem poder dizer que poder será.” (Cardoso, 1981:7. A observação entre colchetes é
nossa.) O PMDB era, portanto, “uma frente policlassista, ainda sob hegemonia liberal, não
conseguiu ir além das propostas institucionais. Não foi capaz de forjar um programa
econômico e político que tivesse como eixo as aspirações das massas trabalhadoras.”
(Antunes, 1984:41)
O que seria “o PTB de Brizola virou partido-auxiliar do PDS, com Ivete e Jânio
Quadros” (Cardoso, 1981:7). A legenda perdeu de todo seu conteúdo reformista, rendendo-se
ao fisiologismo e às suas expressões caricatas, cujo apoio mais expressivo provavelmente
seria do lumpem proletariado e das classes médias atingidas pela crise. Era um partido para ser
aliado, nas horas de crise, do PDS. Despojado da legenda petebista, Brizola criou um partido
imprevisto e “o trabalhismo histórico renovado virou um PDT demasiadamente feito à medida
de um só líder para dar cabida à renovação pela base” (Cardoso, 1981:7). Assim, o PDT “sem
ter ganho a feição de partido, tem oscilado entre o politicismo das demais agremiações e um
reformismo que tem suas fontes no nacionalismo varguista”. (Antunes, 1984:41)
“Um dos temores do regime”, conforme percebeu argutamente Rago, “estava
concentrado na possibilidade de Brizola apresentar um projeto alternativo à plataforma
econômica desenvolvida no pós-64, tendo como base a orientação do ‘nacionalismo
exacerbado’.” (Rago, 1998:308) Assim, para quebrar o controle brizolista do trabalhismo -
Brizola era o melhor exemplo de tudo o que os militares quiseram erradicar da vida nacional
com o golpe de 64 - surgiu o PT, e “o que seria um forte movimento trabalhista novo virou um
PT demasiado principista para ser forte sindical e popularmente” (Cardoso, 1981:7). Segundo
Rago,
39
Ver também, a esse respeito, O Estado de São Paulo, 18 de maio de 1984.
213
poder para dividir o trabalhismo. Recorde-se a sua famosa previsão: a melhor
forma de destruir a liderança de Lula, o fundador do PT e a maior expressão do
“novo sindicalismo” do ABC, seria a sua transformação num político, amarrado à
lógica da política parlamentar, desatando-o do movimento de massas que ganhava
força. (Rago, 1998:308)
A imagem de feiticeiro que o regime atribuía ao general Golbery fazia com que os
militares, a começar por Figueiredo, esperassem que, com a extinção do
bipartidarismo, surgissem magicamente os cinco partidos previstos pelo chefe da
Casa Civil. Golbery era um intelectual, trabalhava com abstrações, mas seu “público
interno” fazia uma leitura objetiva e imediatista de cada um dos seus projetos. No
caso da reorganização partidária, o desapontamento foi total, sobretudo porque o
grande objetivo, terminar com o gigantismo do MDB, acabara produzindo um efeito
contrário. /.../ Os inimigos de Golbery, até então acuados, sentiram-se à vontade,
enquanto a oposição tomava a iniciativa. O governo, cumprindo o projeto de
abertura de Golbery - que consistia em “conceder”, “abrir mão”, devolver
generosamente à sociedade prerrogativas autoritárias, e com isso tornar-se
competitivo nas urnas -, passava por débil, fraco, incompetente. A impressão
generalizada era de que não concedia nem cedia, apenas liquidava seus poderes.
Essa situação, desmoralizante para a direita militar, irritava o presidente Figueiredo
e enfraquecia Golbery. (Gutemberg, 1994:248)
Assim sendo,
Embora Golbery fosse melhor estrategista do que operador político, ele pagaria pela
resistência da Arena em assumir e capitalizar as iniciativas do governo no sentido da
abertura política. A abertura planejada por Golbery era feita de encomenda para a
Arena e, obviamente, para esvaziar o partido da oposição, que, com o tempo, supe-
rava todos os obstáculos e estava em condições de usar em seu benefício as regras
do jogo político viciado estabelecido pelo regime militar a fim de se manter no
poder, fingindo que se submetia ao jogo democrático. (Gutemberg, 1994:140-141)
1 - A RENÚNCIA
N os primeiros dois anos do governo Figueiredo, Golbery teve uma influência grande,
que ia bem além de simplesmente conduzir a reforma da autocracia, que em si já era a
tarefa mais importante a que se propunha o governo. Seu amigo Mário Henrique
Simonsen foi indicado por ele para a Secretaria do Planejamento. Doutro lado, o presidente
ouvia atentamente suas orientações na relação tanto com a linha dura quanto com a oposição
mais à esquerda. “Figueiredo, lembre-se, afastou sistematicamente das promoções todos os
nomes da linha dura, inclusive o rubicundo general Coelho Neto, cuja promoção lhe fora
solicitada pelo próprio ministro do Exército, general Walter Pires. Além disso, Figueiredo
aceitou a anistia quase total imaginada por Petrônio Portella e tão criticada entre os colegas da
área de segurança” (Bardawil, 22-9-87).
Assim, de início tudo parecia correr mais ou menos como Golbery pensara, ao optar
pelo apoio a Figueiredo. Mas esse general não era Geisel. Da parte deste,
Figueiredo não tinha projeto político próprio: sua intenção era continuar a obra de seu
antecessor. Mas, apesar de tomar para si a tarefa da “abertura”, “Ao contrário de Geisel,
Figueiredo não aceitava seus conselhos de dar pauladas, também, à direita” (Bardawil,
Senhor, 22-9-87). Esse fato viria a provocar, em 1981, a saída de Golbery do governo.
Vários foram os motivos que contribuíram para a renúncia de Golbery.
Acompanharemos, a seguir, a imprensa da época, que reproduzia as informações e versões
variadas, às vezes desencontradas e, até, contraditórias.
216
Entre as causas da saída de Golbery inclui-se o resultado provável das eleições de
1982, pois “Golbery advogava uma reforma eleitoral mais abrangente para assegurar melhores
condições nas urnas aos candidatos pedessistas e, assim, preservar a posição no Colégio
Eleitoral que escolherá o sucessor do presidente Figueiredo, em 1984” (Lima, FSP, 12-8-81).
Já seu opositor, o ministro chefe do SNI, general Octávio de Medeiros, acreditava que o
governo não poderia assegurar essa maioria. De acordo com Medeiros e seu grupo, “o
ministro Golbery - a quem se responsabiliza pelo fracasso da operação de implosão do
bipartidarismo - provocou, com sua proposta de reformas eleitorais casuísticas, uma reação
incontrolável contra tudo que se identifique politicamente com o governo.” (FSP, 12-8-81)
Portanto, o desastre na implantação do multipartidarismo e as derrotas cada vez mais
freqüentes que o governo amargava nas urnas criou o ambiente para o avanço da direita,
comprovando “O axioma de que a liberdade ou existe plenamente ou não existe” (Gutemberg,
1994:248).
Assim, por um lado,
Outro motivo para a renúncia que veio somar-se a esse foi a nomeação do general
Coelho Neto, “inveterado caçador de comunistas”, para a chefia do gabinete do ministro do
Exército, com o que Golbery não teria concordado. “O fato representaria a rearticulação dos
militares politicamente duros e intransigentes, que o ministro Golbery desejaria marginalizar
do sistema.” (Manso, FSP, agosto-81) Ao reclamar com o presidente Figueiredo a respeito de
tal nomeação, Golbery teve responder o que faria se fosse ministro e não pudesse nomear seu
chefe de gabinete. Sua resposta veio sem titubear: “Pediria demissão, né?”
Também foi dito, na época, que havia uma aliança entre Delfim Neto, ministro do
Planejamento, e Octávio de Medeiros. Dois embates, vencidos por Delfim, teriam
desagradado a Golbery: primeiro, o aumento nas contribuições previdenciárias, de 8% para
10%. Segundo, a retirada do FGTS do funcionalismo público, sem que este fosse
compensado, como queria Golbery, com a introdução do 13º salário. Circulou, ainda, a versão
de que Golbery teria pretendido conseguir de Figueiredo a substituição de Delfim, Jair Soares
(ministro da Previdência) e Murilo Macedo (do Trabalho), mas não teve forças para fazê-lo.
Segundo as informações, a crise na previdência, que explodira como verdadeiro
escândalo, havia sido intencionalmente superestimada, “com o único objetivo de provocar um
confronto interno no coração do governo entre o grupo ‘aberturista’, empenhado em manter as
eleições de 82, e do setor ‘duro’” (Russo, FSP, 8-8-81). De fato, Golbery “havia manifestado
sua estranheza quanto à disparidade de cifras entregues ao presidente Figueiredo a respeito
dos ‘furos’ na Previdência Social. Golbery achava que o presidente da República devia, no
caso, admitir a divergência em questão, agindo contra os responsáveis pelo erro - os ministros
Jair Soares (Previdência) e Delfim Neto (Planejamento)” (Lima, FSP, 12-8-81).
Outras informações davam conta de que Golbery teria agido com extrema nobreza e
espírito de sacrifício, ao pedir demissão. Tê-lo-ia feito
Ainda outra versão para sua saída do governo veio em 1983, no Correio Braziliense.
De acordo com o jornal, Golbery já teria advertido Figueiredo, antes mesmo de tomar posse,
de que trabalharia apenas até 1981. “Foi somente para coordenar a transição entre os dois
tempos - Geisel e Figueiredo - que Golbery havia concordado em participar dos primeiros dois
anos do governo, até que completasse seus 70 anos, atingindo o ‘dead-line’ do projeto
pessoal” (Mota Neto, CB, 7-8-83). A derrota no episódio do Riocentro convenceu-o da hora
de deixar o governo, mas quis fazê-lo de forma matreira e engenhosa. Ele teria, então,
entregado a Figueiredo sua carta de demissão, guardando segredo porque achava que esta
carta “iria arrancar do chefe do governo o efeito demolidor que o documento de três meses
atrás [sobre o Riocentro] não havia conseguido” (Mota Neto, CB, 7-8-83). Contudo, de acordo
com essa versão, Figueiredo deixou vazar a demissão, tornando fato consumado sua saída do
governo.
De qualquer forma, o que se pode concluir de todas as informações acima é que
a crise que levara à demissão do general Golbery não era civil, como se
informava em Brasília, mas uma crise militar e, mais do que isso, uma crise
resultante do desentendimento de dois grupos militares e também do acúmulo
de várias crises que se sucederam nos últimos tempos, e que teriam começado
a “amadurecer” com o episódio do Riocentro (JT, 7-8-81).
Este foi, sem sombra de dúvida, o fator mais importante para a demissão do general.
Golbery já vinha reclamando atuação mais efetiva de Figueiredo na apuração e punição de
denúncias de tortura nos DOI-Codi e da participação de militares duros em atos terroristas
(explosão de bombas em bancas de jornal e, depois, na OAB). Essas reclamações recresceram
exponencialmente com o fracassado atentado ao Riocentro, quando bombas explodiram no
colo de um militar, durante as comemorações do Primeiro de Maio.
Tudo levava a crer que se preparava ali um atentado terrorista de enormes proporções.
Golbery queria a apuração efetiva dos fatos, mesmo que se comprovasse que era um atentado
e que envolvesse militares - do que, aliás, não tinha dúvidas.
Golbery, por sua vez, achava que era o momento, aliás já havia passado da hora, de dar
a paulada à direita. Por isso, assim que pôde se informar sobre o atentado e concluir que só
poderia ter sido feito por intermédio da área de segurança, Golbery chamou o líder do partido
do governo e conversou com ele longamente. Este foi dali direto para o Senado, onde
prometeu, em discurso, uma investigação cabal do episódio, “doa a quem doer”. Contudo, o
ministro Medeiros se opunha a isso e sua posição saiu vitoriosa.
Em 1987, depois da morte de Golbery, publicou-se que ele enviara a Figueiredo uma
carta, datada de 4 de julho de 1981, em que denunciava os DOI-Codi e pedia que sua estrutura
fosse desmantelada. No documento, já mencionado nos jornais da época, Golbery mostra que
não tinha dúvidas sobre a participação do pessoal da segurança no atentado do Riocentro. Ele
achava que, para manter a credibilidade, num momento em que esta era a moeda com que o
governo contava para negociar com as oposições, diante de uma dramática crise econômica,
haveria que tomar medidas punitivas exemplares aos autores do ataque. O general acreditava
que a repercussão imediata do atentado não se comparava ao que, futuramente, poderia
desencadear, uma vez que as oposições, temerosas de um retrocesso caso tivessem uma reação
mais dura, esperavam a campanha pelas eleições para depois, segundo o general, dirigir uma
saraivada de críticas ao governo pela sua inatividade diante daquele episódio.
A atitude que Golbery esperava do presidente era a extinção imediata e sem titubeios
dos DOI-Codi, que considerava infiltrados, senão dominados mesmo, pela minoria terrorista
que vivia em função da “revolução permanente” e cujo poder chegava aos mais altos escalões
do governo, numa menção ao general Medeiros e seus seguidores.
Abaixo, reproduzimos os principais pontos do texto de Golbery.
Tudo indica que o IPM /.../ substanciará as conclusões finais de ter havido
crime de competência da Justiça Militar /.../. As reações da opinião pública
/.../ foram, como se esperava, atenuadas pelo reconhecimento dos perigos
maiores de qualquer atitude radical, capaz de prejudicar o processo de
abertura democrática /.../. Não há por onde confiar em que, tornadas
irreversíveis as eleições e desencadeada a campanha política, não venham a
surgir ataques fortes, violentos e mesmo irresponsáveis contra o governo e as
autoridades, quanto à conduta seguida no episódio. E isso poderá levar /.../ a
situações de gravidade e conseqüências imprevisíveis. Daí convir - impor-se,
na verdade - que algo se faça desde já, com vistas a evitar ou atenuar tais
repercussões futuras. /.../ Verdade indiscutível é que um grupo radical,
minoritário apenas, irresponsável e adepto de práticas terroristas /.../ se não
219
dominou ou controla, pelo menos infiltra os “órgãos vulgarmente
chamados DOI-Codi” e, desde aí, a coberto dessas organizações e valendo-se,
assim, de grandes facilidades e larga soma de poder, desencadeou ações
terroristas múltiplas obedecendo a linhas hierárquicas distintas das legais e
legítimas e que se estendem não se sabe até que níveis superiores dos escalões
governamentais. /.../ [O] atentado frustrado coloca o governo e, infelizmente,
o próprio presidente - por mais que se tenha conseguido colocá-lo fora do
quadro decisório, apenas do ponto de vista exclusivamente formal - num
dilema inescapável: ou incapacidade de ação repressora, por falta de
autoridade efetiva, ou complacência e comprometimento de fato, em grau
maior ou menor, no intento terrorista, pelo menos em seu acobertamento. /.../
Ao que parece, ordem presidencial - presidencial porque só [são?] a imagem
e a autoridade do presidente que precisam ser resguardadas - para que sejam
logo extintos os “chamados DOI-Codi”, claramente, expressa e difundida,
sem estardalhaço, embora nem comportando justificativas /.../. Não se trata de
saber ou não saber a verdade verdadeira. Indiscutível, veemente, inegável é a
suspeição, evidente aos olhos de todos. (Apud Veja, 23-9-87)
Posteriormente, Figueiredo negou ter recebido tal carta confidencial, ressaltando que
Golbery nunca o procurou para conversar sobre a atuação dos DOI-Codi (FSP, 21-9-87).
Segundo o ex-presidente, foi ele próprio quem agastou Golbery, levando-o à demissão (FSP,
19-9-87), quando da nomeação do general Coelho Neto para a chefia do gabinete do ministro
do Exército. E quando mandou um deputado federal fazer um discurso dizendo que Guilherme
Romano, um amigo de Golbery que viveria falando em nome do presidente, não tinha poderes
para tal. Figueiredo disse, também, que “fez força” para apurar e punir os responsáveis pelo
atentado do Riocentro, mas não o pôde dada a indefinição da Justiça (FSP, 21-9-87).
De qualquer forma, o presidente, certamente, lamentou o atentado, se não por outros
motivos, pela repercussão puramente negativa que ele trazia para o governo. O episódio
provocou um desabafo público de Figueiredo: “Se a coisa foi do lado de lá, não poderia ser
mais inteligente. Se foi coisa do nosso lado, não poderia haver burrice maior” (Gutemberg,
1994:249).
O ex-presidente Geisel, que se punha ao lado de Golbery ao defender uma apuração
rigorosa do atentado, procura mostrar a situação em que Figueiredo se encontrava, no
momento:
O problema não foi apurado como deveria ser. Passaram a mão pela cabeça
dos culpados. Hoje em dia poucos são os que têm dúvidas. Golbery achava
que nós já estávamos suficientemente adiantados nessa questão da abertura na
tendência à normalização da vida no país, para podermos apurar direito.
Achava que tínhamos que apurar e tomar medidas para evitar, inclusive, a
reprodução futura de fatos semelhantes. Figueiredo, nessa hora, deve ter tido
um drama de consciência muito grande. Achou que era mais recomendável
ficar com a classe, ficar com os companheiros do Exército - se bem que não
com o Exército como um todo, porque acho que grande parte não aprovava
aquilo. (D’Araujo e Castro, 1997:437)
Portanto, por mais que tenha discordado e lamentado o atentado, Figueiredo mais não
fez, permitindo que os setores duros do governo agissem para acobertar responsabilidades.
220
Golbery, que já vinha acumulando desgostos, como vimos, não pôde compactuar com
omissão daquele tamanho. Discordava sinceramente da postura do governo e, além disso,
queria passar à história como artífice da “abertura” e diferenciar-se dos duros. Vendo que sua
posição não seria a do presidente Figueiredo, pediu demissão. A partir de então, perdeu toda
objetividade na condução da auto-reforma do regime; com a bomba do Riocentro, o governo
Figueiredo enlouqueceu politicamente 40 .
40
O depoimento do ex-presidente Geisel a esse respeito confirma o retrocesso: “Golbery deixou o governo por causa do
problema do Riocentro. Ele achava que Figueiredo tinha que mandar apurar direito o que tinha acontecido e punir os
responsáveis, isto é, ele tinha que enfrentar a área militar, ou a área radical que tinha atuado nesse episódio. O problema
do Riocentro era o fato em si. Com a abertura, deveria estar encerrado o problema da repressão. O Riocentro foi um
recrudescimento, uma nova explosão reacionária contra a abertura.” (D’Araujo e Castro, 1997:435)
221
A situação foi considerada ainda mais grave tendo em vista que, num “regime que
se abre sem democratizar o processo decisório” (Editorial FSP, 8-8-81), a sociedade civil,
excluída dos meandros do poder, não conhecia os reais motivos da saída - a não ser
superficialmente as divergências entre Golbery e o general Medeiros - e as mudanças que ela
traria. Assim, embora se soubesse que nenhum dos dois grupos que disputavam entre si o
governo era realmente democrata ou que alteraria o fundamento econômico da nação, havia de
escolher o que era menos ruim. Nem os duros nem os “aberturistas” aceitavam
Essa era uma posição bastante comum, no momento. Embora alguns tenham julgado
que ele “foi o artífice do retardamento estratégico” do processo de auto-reforma da ditadura
bonapartista, “Ou seja, desenvolveu uma tática para fazer a mais lenta das aberturas,
conservando o máximo de poder para o mesmo sistema que patrocinara o fechamento, na
etapa anterior” (Pereira, FSP, 8-8-81), até mesmo para os sindicatos a demissão, longe de ser
um alívio, foi considerada preocupante. “Às vezes um conservador moderno pode ser mais
perigoso do que progressistas primitivos, mas é certo que por aqui já não se fazem
conservadores modernos como antigamente” (Carta, Senhor, 28-7-87).
Algumas análises procuraram mostrar onde estava o equívoco de Golbery, que acabou
por determinar sua queda. Analistas militares consideraram que ele, embora dotado de alta
capacidade intelectual, cometeu um erro fundamental de avaliação.
Como apontou Mello, mesmo que Golbery tenha sido posteriormente derrotado nas
lutas palacianas, uma análise da Conferência de 1980 mostra que ele não se equivocou nos
cálculos da estratégia de “abertura”. Assim, mesmo que os setores radicais tenham persistido
durante o governo Figueiredo, buscando o solapamento da política de “abertura controlada” (o
que veio a causar a saída de Golbery do governo e o estancamento do processo),
Fernando Henrique Cardoso aponta que os cálculos do regime previam a vitória de uma
“democracia conservadora”, uma vitória “dentro deste regime” (Cardoso, 1981:7). Mathias
também aponta que
Contudo, há que ressaltar, o projeto sorbonista fundamental - o trânsito do país até seu
“destino geopolítico” de grande potência - foi um rotundo fracasso: ao final da ditadura
militar, a subsunção ao capital estrangeiro - que o grupo castelista acreditava ser fator de
desenvolvimento nacional - estava aprofundada, afastando mais ainda a possibilidade de
constituição de um capitalismo autônomo.
“Realmente, no governo, o poder vale no que é poder ‘para’. Ou seja: poder para criar
algo, para resolver algo, para contribuir com algo para o progresso do país”, disse Golbery,
aparentemente magoado porque lhe atribuem apego ao poder, acrescentando que “afastar-me
do poder sempre me foi fácil, graças a Deus” (Veja, 16-5-84).
Quando saiu do governo, Golbery voltou a atuar de sua maneira peculiar: nas sombras.
Seu gabinete no Banco Cidade era assiduamente freqüentado por altas figuras republicanas,
224
com as quais o general exercitava seus jogos prediletos: a coleta de informações e as
manobras políticas. Libertado dos limites que o poder impõe a seus servidores, ficava mais à
vontade para exercer sua virtuose de estrategista, embora não aparecesse no teatro de
operações ou na imprensa. De fato, não precisava disso: Golbery era avesso a entrevistas,
entre outros motivos, porque não lhe faltavam porta-vozes.
A última vez que tentou intervir mais ou menos abertamente em grandes questões
nacionais foi durante as discussões preparatórias para a eleição para a Presidência da
República, que se realizaria em 1982. Em entrevistas de grande repercussão a Júlio Bressane e
a Elio Gaspari, Golbery criticou veementemente o presidente Figueiredo. Sobre a propalada
intenção deste de esticar o próprio mandato, Golbery declarou: “o continuísmo é a doença
infantil da democracia brasileira e da democracia latino-americana” e, caso efetivado, estaria
“quebrando a melhor tradição da única boa tradição dos regimes autoritários militares. É a
receita da rotatividade. Vão quebrar os ossos, então, da única coisa que se mantém. /.../
Ninguém agüenta mais militar no governo, nem as Forças Armadas” (CB, 7-8-83).
Naquela conjuntura, o continuísmo era muito mais sério, tendo em vista que, para o
general gaúcho, Figueiredo não tinha mais saúde nem interesse para governar o país. E, ainda
neste tom, critica o “veto” de Figueiredo à candidatura Maluf, por concebê-lo como
coercitivo. Diz que, dessa forma, “ele rasga a única coisa que ficará para ele como imagem no
futuro: que ele abriu o país ao regime democrático” (CB, 7-8-83). De sua parte, Golbery foi
defensor ardoroso e ativo da candidatura Maluf.
A campanha das diretas foi, para ele, “um magnífico espetáculo de civismo”, marcada
pela “ordem mantida pela autodisciplina dos cidadãos”. O tom festivo e popular foi bastante
destacado pelo general naquelas “manifestações raras e empolgantes, com entusiasmo, alegria
e humor”. Esse era, para ele, o lado atraente das manifestações, que parece superior ao seu
conteúdo político (Veja, 16-5-84).
O aspecto negativo estava no emocionalismo agressivo, arrogante e perigoso que o
“slogan fácil” só acentuava, e o tom ameaçador, que substituía gradativamente o clima
festivo-emocional.
Fica-nos a pergunta: a “educação política” foi oferecida pela ditadura, por meio da
repressão? Assim sendo, essa seria mais uma das conquistas do regime, a ser registradas.
Outro problema: para Golbery, é “mistificação acintosa e propositada” (Veja, 16-5-84) a
exposição de bandeiras com símbolos comunistas e a presença de líderes de organizações
clandestinas nessas manifestações.
Golbery aceitava que o povo queria as diretas. Achava mesmo que eleições sempre
trazem vantagens: “favorecem a educação política paulatina da sociedade, dão maior respaldo
aos governantes e patrocinam a identificação dos novos dirigentes com os cidadãos” (Veja,
16-5-84), entre outras. Contudo, também trazem inconvenientes e riscos. Para ele, “Os
maiores riscos estão na demagogia embusteira, no oportunismo deslavado, no carisma
irresponsável, na exploração da boa fé e da ingenuidade do povo. Na verdade, tanto nas
eleições diretas como nas indiretas, as grandes decisões sempre são tomadas pelas cúpulas
225
políticas e a manipulação das bases sempre é intensa e malandra” (Veja, 16-5-84). Daí a
necessidade de tutela por meio de um grupo que se considerasse acima do pequeno mundo dos
interesses imediatamente políticos, que achasse que trabalhava apenas para atingir os ON.
Mesmo sendo as diretas um desejo da nação, Golbery recusava-se a apoiá-las
simplesmente para agradar ao povo. “Por uma questão de formação, condeno aqueles que se
apresentam como porta-vozes infalíveis do povo. /.../ Se ouvir o que diz o povo é obrigação
daqueles que se interessam pelos destinos de um país, aceitar slogans pelo seu valor aparente
já é outra coisa” (Veja, 16-5-84). Isso porque, de acordo com ele, “Muito mais do que ‘Diretas
Já’, /.../ o país precisa é de mudanças” (Veja, 16-5-84), principalmente no aspecto
socioeconômico. Mesmo se recusando a dar mais detalhes sobre o assunto, Golbery ressaltou
que foi por visualizar essa necessidade de mudanças substanciais que ele deixou o governo,
em 1981.
Para ele, a rejeição da emenda Dante de Oliveira representou a consolidação da
normalidade constitucional. Ele acreditava que a oposição como um todo saíra perdendo ao
final da campanha pelas diretas, “uma vez que se tornou evidente que eles iludiram o povo”
(Veja, 16-5-84).
De acordo com o professor Walder de Góes, que manteve longa conversa com Golbery,
em 1982, o general relativizava a importância do que estava escrito na Constituição. O
importante, para ele, é a dinâmica política, “funcionamento concreto da política. Se a norma
constitucional estiver de acordo com a dinâmica, ela funciona. Não estando de acordo, não
funciona” (Góes, FSP, 19-9-87). O interessante é que Golbery, desdenhando em 1984 dos que
acreditam no “impasse da sucessão”, afirmava que o verdadeiro impasse está “na circunstância
de que a grande maioria que deseja mudar as regras do jogo não dispõe dos dois terços dos
votos do Congresso necessários para qualquer mudança de prescrições constitucionais”(Veja,
16-5-84). Eram ainda as repercussões da decisão da Constituinte do Riacho Fundo.
Para ele, os impasses reais advinham das manobras da oposição para desbancar os
candidatos do PDS. Se, por um lado, a oposição “pretende mudar as regras do jogo para
conquistar o poder - o que, além de legítimo, vem sendo feito de forma sincera”, por outro
lado havia os que tentavam trapacear ao propor mudanças nas “regras do jogo a fim de afastar
Maluf e Andreazza, apresentando suas fórmulas como aperfeiçoamentos legislativos e
impessoais” (Veja, 16-5-84).
226
Uma dessas manobras seria a tentativa de admitir a chamada candidatura avulsa,
mecanismo que “representa pura e simplesmente a liquidação dos partidos políticos, que são
instrumentos essenciais à vida democrática” (Veja, 16-5-84). Outra manobra era a
reestruturação partidária, em que se incluía “o sonho da criação de um novo partido, para
desestabilizar o PDS e implodir o Colégio Eleitoral” (Veja, 16-5-84). Mais uma “manobra”
destacada por ele foi a investida contra o Colégio Eleitoral em favor da eleição indireta mas
pelo Congresso; isso era inócuo porque “o Colégio Eleitoral só pode morrer de uma forma e
somente uma: através da aprovação pelo Congresso de uma emenda constitucional” (Veja, 16-
5-84).
Como destacou J. A. Guilhon Albuquerque: “A estratégia alternativa, e que veio a ser
vencedora no Colégio Eleitoral de 1985, era de fato uma variante da distensão geiseliana, isto
é, consistia em uma coalizão entre os setores moderados e liberais do regime e os setores
‘confiáveis’ da oposição /.../ a eleição de Tancredo Neves /.../ representou uma espécie de
coroamento inesperado da distensão lenta, gradual e segura preconizada pelo general Geisel.”
(Apud Mello, 1987:220)
Golbery explicitou seu desejo de que a emenda Figueiredo não passasse, acrescentando
que, na verdade, trata-se de “diversas emendas, capeadas por uma só mensagem”. Destas,
“Dada a importância da matéria e as conseqüências funestas que poderá acarretar para o país”,
a mais condenável era a que permitia a reeleição do presidente e do vice, “sem que tenham
sequer de se desincompatibilizar”, mudança que “é, além de tudo, um evidente estímulo à
corrupção” (Veja, 16-5-84).
Sobre o mandato-tampão de dois anos, também proposto à época, Golbery disse que
“vem a ser um verdadeiro crime contra a nação. Estamos no meio de uma grave crise
econômica e financeira. Acrescente-se que temos uma dívida externa de difícil negociação,
sobretudo porque nos falta a perspectiva de tempo que dê a nossos credores a tranqüilidade
indispensável para esse tipo de conversações”. Para ele, “O que o Brasil precisa hoje não é de
presidente de menos, mas de mais presidente” (Veja, 16-5-84).
A importância do setor de informações era justificada por Golbery por ser o campo
estratégico de uma incerteza bastante grande. Diante disso,
Quando cria o SNI, em 1964, Golbery tem uma opinião bem clara: “‘Um serviço como
esse’, escreveu, ‘/.../ nunca deve assumir responsabilidades operacionais, sob pena de tornar-
se um observador diretamente ‘engajado’ no êxito da operação em si’” (Apud Gaspari, Veja,
23-9-87). Tão diferente ficou o órgão que o general desabafou, em 1981: “criei um monstro”.
Por essa época, aliás, Golbery passou a ser vigiado pelo SNI, que por sua vez era
também vigiado por ele. Assim, a cria passou a vigiar seu criador, que, por sua vez “vigiava o
SNI e capturava os papéis com o resultado da espionagem” (Gaspari, Veja, 23-9-87),
abastecendo-se de informações sobre desafetos e afetos, inclusive sobre ele próprio. (Foi,
assim, dos primeiros a saber da doença grave de Tancredo.)
Parece-me que estamos numa fase muito inicial ainda do processo de abertura
política para determinarmos, com maior objetividade, nesse dilema entre
parlamentarismo e presidencialismo. Não tenho predileção pelo
parlamentarismo. Acho que, de qualquer forma, é preciso haver um Executivo
forte, sobretudo num país como o Brasil, um país em desenvolvimento, um
país de território imenso e de problemas mil. Num ponto de vista ótimo, a
228
França tem mostrado que é possível a convivência entre o regime
parlamentarista e um executivo forte. Mas, francamente, não podemos
comparar o Brasil com a França. (PE:527)
Ainda nas mesmas notas, Golbery esclarece porque o voto distrital, a que era favorável
e que foi um dos assuntos discutidos pela Constituinte do Riacho Fundo, acabou sendo
deixado de lado:
o sistema alemão do voto distrital misto /.../ seria, a meu ver, uma experiência
interessante a fazer-se no país /.../; mas nós temos que pensar um pouco na
adoção dessa medida, porque toda a atuação do Governo deve ser muito
cuidadosa, para não dar motivos a uma reaglutinação das forças que hoje
constituem a oposição. Tudo precisa ser muito bem medido porque, se
adotarmos o voto distrital, se adotarmos uma série muito grande de outras
medidas, talvez com isso levemos à aglutinação desses partidos da minoria.
No momento, acho que a existência dos vários partidos é mais importante do
que o processo eleitoral (PE:519).
Golbery também deixa claro, em 1980, o que pensa da política: “A prática política é
exatamente buscar o acordo. Nós estamos muito falhos de prática nesse setor, devido a um
longo período em que isso não era necessário, mas, agora, devemos aproveitar todas as
oportunidades para fazê-lo” (PE:511-512). Por isso, afirmou aos estagiários da ESG que a
intenção do Legislativo de recuperar poderes levará a “uma afirmação do Poder Legislativo
nas suas prerrogativas próprias e nas suas atividades” e, sobretudo, “irá propiciar aquilo de
que no momento estamos mais necessitados, uma vez que o regime bipolar não oferecia
condições para tal: negociações políticas”. Mas, adverte, se a solução deve atender a parte
substancial dos desejos do Legislativo, deve satisfazer também ao que o Executivo considera
também prerrogativas para uma ação eficaz do governo” (PE:511-512). De qualquer forma,
sublinhava, “As negociações são inerentes à vida democrática e a conciliação é um objetivo
que sempre se deve buscar. Entretanto, pode camuflar artimanhas mais sutis, mesmo que tudo
se centre nos partidos e no Congresso, os foros mais adequados ao entendimento. O essencial
é separarmos aquilo que visa ao entendimento daquilo que é apenas esperteza” (Veja, 16-5-
84).
Embora destacasse que “as prerrogativas do Poder Legislativo, de início, não deverão
ser tão amplas quanto poderão ser daqui a algum tempo, à medida que o progresso
democrático for efetivando maiores resultados” (PE:511-512), Golbery também ressaltava
outros aspectos: primeiro, “um Estado de governo centralizado se acha, de fato, melhor
aparelhado para conduzir ações decisivas, bem coordenadas, no exterior” (CN:21). Ou, em
outros termos,
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ficam patentes, a quem se proponha, como nós, joeirar o ideário golberyano, algumas
características básicas.
Lembremos, primeiramente, como o general esteve na vanguarda de sua geração,
dando trato a questões que apenas nas décadas seguintes estariam na ordem do dia: a
especificidade e subordinação da estratégia à política, a tensão norte-sul ofuscada pela guerra
fria, os conflitos internos e a guerra revolucionária, a relação entre segurança e
desenvolvimento. Até mesmo na ESG, como vimos, essas questões só foram aparecendo e
ganhando soluções teóricas pretensamente mais acertadas (e mais próximas do ideário
golberyano) tempos depois de difundidas pelo general gaúcho.
Fica claro também que Golbery efetivamente conseguiu captar algumas determinadas
peculiaridades do mundo contemporâneo. Quando ele fala da rede mundial de comunicações,
do progresso da técnica, das relações internacionais como entrechoques de unidades de poder
- é quase como se estivesse falando dos dias atuais.
Mas tudo isso não é o mais relevante no pensamento do general.
Uma característica basilar do pensamento golberyano é o absoluto e inquestionado
comprometimento com o statu quo. Golbery parte da realidade tal qual ela existe, e se propõe
a modificar-lhe apenas, e no máximo, caracteres técnicos, sem nunca se pôr o
revolucionamento ou mesmo o questionamento do mundo tal como é. Se apreende muitas das
peculiaridades do mundo contemporâneo, se pensa a realidade atual, seu objetivo não é nunca
modificá-la - é justificá-la ou, mais precisamente, alterá-la no mesmo sentido, para que
funcione mais adequadamente aprimorá-la.
Essa tarefa é buscada com o auxílio de alguns recursos que se tornam outras
características do ideário golberyano. Uma delas é o ecletismo. As teorias mais díspares e
mesmo contraditórias são aqui mescladas, reelaboradas e externadas como explicação racional
e isenta de contradições. Aliás, poucos dos assuntos tratados por Golbery constituem
novidade. Assim, as previsões de Ratzel acerca do despertar da idade imperial ou do
superleviatã são aditadas às advertências spenglerianas sobre o cesarismo e às idéias de Estado
universal e paz ecumênica de Toynbee. Seus escritos sobre geopolítica, completamente
embrechados na realidade da guerra fria, pretendem unir as noções ratzelianas de espaço e
posição com as teorias do “coração do mundo” ou heartland de Mackinder e Haushofer e com
as idéias de Mahan e Spykman sobre o controle do espaço interno americano. O conceito de
“cordão sanitário” envolvendo e contendo o chamado “mundo comunista” é de Spykman. Na
geopolítica do Brasil, são retomadas as teorizações de Mário Travassos e, no campo das
relações internacionais, Golbery se declara discípulo de Delgado de Carvalho. Oliveira Vianna
era chamado mestre, como vimos, e assim muitos outros exemplos poderiam ser dados.
Ressalte-se, não se trata simplesmente de erudição, que também é inegável. São teorias
que guardam, entre si, amplas diferenças, contradições, visões de mundo divorciadas.
Ademais, Golbery transfere teorizações de um campo para outro sem maiores cuidados: é o
caso da lei econômica dos rendimentos decrescentes, cujo corolário, lembre-se, vem da teoria
do retardo cultural de Ogburn. Uma miscelânea tão grande de teorias, nem mesmo a
virtuosidade e a verve escrevinhadora do general poderia impunemente fazer. Notamos - outro
aspecto desse ecletismo - surpreendentes nuanças irracionalistas, de par com um racionalismo
tecnicista e a-dialético.
Consideremos, ainda, que todas essas teorias se juntam na ingente tarefa de convencer-
nos de uma simplista e radicalmente maniqueísta redução do mundo a entidades antagônicas e
da resolução dos problemas pela adesão a uma delas. Esta, porém, está também ela prenhe de
231
contradições que nem mesmo o fervoroso fanatismo ocidental de Golbery pode enevoar.
No que se refere a esse ponto, o general refere-se a questões primaciais (como deturpação dos
ON pela elite), mas não as destrinça, como se somente a franqueza de citá-las o livrassem da
obrigação de buscar soluções ou apresentar críticas mais detalhadas. É um limite, porém, que
não se refere simplesmente a uma deficiência teórico-metodológica do general ou a um
diversionismo cínico. A questão está posta não no campo da teoria, mas no campo da própria
realidade - e aqui ela continua irresolvida pelas categorias sociais dominantes deste país. O
solucionamento das contradições apresentadas passa necessariamente pela superação das
estruturais deficiências do capital atrófico.
O general Golbery qualifica-se o tempo inteiro como dialético, mas escapa-lhe a
percepção adequada da realidade por um motivo básico, além dos já citados: a necessidade
que traz no imo de eliminar toda contradição e seu desenlace, a transformação radical. As
contradições não são admitidas, toda a argumentação de Golbery, em quaisquer assuntos, vai
sempre no sentido de realizar uma atuação anterior à sua eclosão, de modo a impedi-las de vir
à tona. Caso se manifestem, as contradições devem ser eliminadas pelo entendimento mútuo -
não resolvidas propriamente, o que poderia implicar um conflito. Esse é um dos pontos
repisados pelo general gaúcho: as rupturas são potencialmente destruidoras. Toda mudança
deve-se dar pelo acordo, pela conciliação. Essa é, como vimos, uma característica da
miserável classe dominante brasileira, que segue à risca o velho adágio francês: é preciso que
tudo mudo para que tudo continue como está.
O custo da mudança sem transformação que Golbery prega é a contradição imanente e
incontornável entre bem-estar, condição necessária à segurança, e sua incoerência com a
lógica da formação social brasileira, excludente e tirânica. Sua pregação por um regime que
realize uma acumulação de capital, distribua a renda criada e ainda preserve as liberdades
públicas é inviável para o capital atrófico. Então, seu “incontornável sacrifício” do bem-estar à
segurança equivale nada menos que à superexploração da força de trabalho perpetrada pela
burguesia brasileira.
Contudo, a maior contradição do pensamento do general Golbery era muito mais ampla
que sua própria pessoa: dizia respeito à própria ideologia 64 e à sua ilusão socialmente
necessária de chegar ao desenvolvimento econômico e à autonomia pela cooperação
estrangeira e pela intervenção estatal. Lembre-se que esta questão pesou demasiadamente no
momento do golpe militar. Pois, se estava definido este como o caminho a seguir, processos
reformistas de caráter nacionalista e/ou popular tornavam-se muito logicamente obstáculos
para a realização do projeto consubstanciado na ideologia 64. É a busca por realizar as tarefas
econômicas abandonadas pela burguesia nacional, histórica e estruturalmente débil para impor
sua autonomia e cumprir suas tarefas históricas, mas que acaba encobrindo e justificando a
subsunção ao capital internacional monopolista.
E é assim que as teorias do general só a muito custo se aproximam da realidade
concreta e da história. A pauta da generalidade é sua essência, o preço a pagar pela opção
prévia pela conservação e o preço a pagar pelo ecletismo.
Assim mesmo, genérico, circular e autojustificatório, eclético e a-dialético, o discurso
golberyano logrou grande influência na realidade nacional.
De forma que fica explicitado que o ideário golberyano e a DSN são ideologias - e não
porque seus conceitos não têm cientificidade - é certo que não a têm -, mas porque têm uma
função social inegável: mantenedora de uma formação social de molde colonial, embora
tecnicamente avançada. A ideologia golberyana, consoante com a essencialidade da formação
nacional - excludência das massas e a dominação autocrática, para relembrar apenas duas -
está toda ela voltada à interferência prática na realidade, na tentativa de solucionar em
determinado sentido os conflitos que ali se dão.
232
A influência desse ideário na história brasileira é claramente perceptível. Em favor
da SN, suprimiu-se a institucionalização da autocracia burguesa e, com o recurso da força,
pelejou-se por reorientar e acelerar os rumos do crescimento industrial capitalista brasileiro.
Uma modernização conservadora pleiteada em clara associação com os interesses
multinacionais, mas alardeada e pretendida como importante fator para a soberania nacional e,
portanto, afiançadora, em conjunto com outros elementos, da tão sagrada SN do general
Golbery e do grande projeto da ideologia 64: a construção do Brasil-potência.
Esse projeto, ficou patente o seu fracasso. No apagar das luzes do bonapartismo, a
subordinação nacional em relação aos países do centro do capitalismo estava ainda mais
acentuado, o que se evidenciou na crise persistiu nas décadas seguintes. Rotundo fracasso do
regime para o qual o general Golbery buscou uma saída minimamente honrosa e, acima de
tudo, segura: a auto-reforma.
233
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Política e Estratégia (vol. VI nº 4). São Paulo, Convívio.
___________ (1988b) - “Aspectos Totalizantes da Doutrina de Segurança Nacional” in
Revista Política e Estratégia (vol. 6 nº 2). São Paulo, Convívio.
- PESCE, Enio (7-8-81) - “Golbery e a Abertura” in OESP.
- PICCHIA, Pedro del (10-6-81) - “Razões da Ausência do General Golbery” in FSP.
- PRADO JR., Caio (1987) - A Revolução Brasileira. São Paulo, Brasiliense.
- RAGO FILHO, Antônio (1998) - A Ideologia 1964: os Gestores do Capital Atrófico. Tese
de doutorado apresentada ao Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais - Puc-
SP, mimeo.
- ROCHA, Maria Selma (1996) - A Evolução dos Conceitos da Doutrina da Escola Superior
de Guerra nos Anos 70. Dissertação de mestrado apresentada à FFLCH da USP, mimeo.
- RUSSO, João (8-8-81) - “Crise para Criar Confronto” in FSP.
236
- SCHILLING, Paulo (1981) - O Expansionismo Brasileiro: a Geopolítica do General
Golbery e a Diplomacia do Itamaraty. São Paulo, Global.
- SOTERO, Paulo (13-12-98) - “Para Artífice do Golpe, Costa e Silva Foi Fraco” in OESP.
- SOUZA, Adão J. de (1978) - “Golbery Responde: o Senhor Foi Muito Duro Comigo” in
Coojornal. Porto Alegre.
- STEPAN, Alfred (1975) - Os Militares na Política. Rio de Janeiro, Artenova.
- TARCHOV, Valentina (1985) - “Geopolitica al Dia” in Revista Geosur 64/64, mimeo.
- TÓTORA, Silvana Maria C. (1991) - Azevedo Amaral e o Brasil Moderno. Dissertação de
mestrado apresentada à PUC-SP, mimeo.
- VAISMAN, Ester (1986) - O Problema da Ideologia na Ontologia de G. Lukács.
Dissertação de mestrado apresentada à UFMG, mimeo.
___________ (1989) - “A Ideologia e sua Determinação Ontológica” in Revista Ensaio 17/18.
São Paulo, Ensaio.
___________ (1996) A Determinação Marxiana da Ideologia. Tese de Doutorado
apresentada à Faculdade de Educação da UFMG, mimeo.
237
APÊNDICE
Cronologia
1911 - Golbery do Couto e Silva nasce, em 21 de agosto, na cidade de Rio Grande, Rio
Grande do Sul.
1927 - Ingressa na Escola Militar do Realengo, no então Distrito Federal do Rio de
Janeiro.
1930 - Declarado aspirante a Oficial da arma de infantaria, conquistando o primeiro
lugar em toda a sua turma de cadetes de todas as armas.
1932 - Servindo no 9º Regimento de Infantaria, participa das operações na Revolução
de 32.
1941 - Presta concurso de provas livres para admissão na Escola de Estado-Maior, em
que foi o único oficial aprovado. Ao pular turmas, por merecimento, travará contato com os
cadetes mais velhos, entre os quais Ernesto Geisel.
1944 - Segue para estágio no Exército norte-americano, no Fort Leavenworth, sendo
transferido depois para a Força Expedicionária Brasileira na Itália, como oficial de
informações.
1946 - Promovido a major (junho) e transferido para o Estado-Maior Geral (hoje
EMFA).
1947 - Nomeado membro da Missão Militar Brasileira de Instrução no Exército do
Paraguai, onde permanece por três anos.
1950 - É classificado no Estado-Maior do Exército, designado adjunto da Seção de
Informações.
1951 - Promovido a tenente-coronel.
1952 - Nomeado adjunto do Departamento de Estudos da Escola Superior de Guerra,
na divisão de Assuntos Internacionais, depois na Divisão Executiva. Aí, reencontrará Geisel.
No período em que ficará na ESG, proferirá as conferências que deram origem ao livro
Planejamento Estratégico, publicado em 1955.
1954 - Divulgado o Manifesto dos Coronéis, de que foi o redator (segundo Heitor
Herrera).
1955 - Tendo articulado, com a União Democrática Nacional, um movimento para
impedir a posse do presidente eleito Juscelino Kubitschek e seu vice, João Goulart, é punido
pelo ministro da Guerra, marechal Henrique Teixeira Lott, com oito dias de prisão. É
exonerado de suas funções na ESG e transferido para Belo Horizonte, numa jogada do
ministro da Guerra que espalhou pelo país os oficiais envolvidos na conspiração
(“novembrada”).
1956 - Promovido a coronel e transferido para o Estado-Maior do Exército, Seção de
Operações, Subseção de Doutrina.
1960 - Nomeado para o EMFA, como chefe da Seção de Operações.
1961 - Nomeado chefe de gabinete da Secretaria-Geral do Conselho de Segurança
Nacional do governo Jânio Quadros (fevereiro). Com a renúncia de Quadros (agosto), passa a
articular, com outros militares e civis, o impedimento da posse do vice João Goulart. Tem a
idéia de dar a Goulart a posse sob regime parlamentarista. Em setembro, com a posse de
Goulart, pede transferência para a reserva, sendo automaticamente promovido a general-de-
divisão (três estrelas, abaixo de general-de-exército). Passa a liderar o Instituto de Pesquisas e
Estudos Sociais (Ipes). Ali, monta um serviço de inteligência cujas informações serão
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posteriormente aproveitadas pelo governo Castelo Branco. Tinha agentes infiltrados nas
principais organizações de trabalhadores, estudantes e intelectuais. Estabelece ligações com ao
Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) e com o Movimento Anticomunista (MAC),
todos envolvidos em conspiração contra o governo.
1964 - Com o golpe e a ascensão de Castelo Branco à Presidência da República, é
nomeado chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), com status de ministro de Estado
(junho). Juntamente com Geisel, tem grande influência sobre o presidente.
1967 - Com a posse de Costa e Silva, do grupo da “linha dura”, sucedendo a Castelo
Branco, Golbery sai do governo e passa a trabalhar no Tribunal de Contas da União.
1969 - Aposenta-se e retira-se do serviço público. Passa a atuar como diretor e
conselheiro da filial brasileira da multinacional Dow Chemical.
1974 - Assume a chefia do Gabinete Civil do presidente Ernesto Geisel, com a função
precípua de realizar a distensão política.
1975 - Divulgada nota oficial do II Exército informando que o jornalista Wladimir
Herzog fora encontrado morto em uma das celas do DOI-Codi em São Paulo.
1976 - Divulgada nota oficial do II Exército informando que o operário João Manoel
Fiel Filho fora encontrado morto em uma das celas do DOI-Codi em São Paulo (19 de
janeiro). No mesmo dia, o presidente Geisel exonera o general Ednardo D’Ávila Melo do
comando do II Exército em São Paulo.
1977 - Rejeitado no Congresso o anteprojeto, elaborado pelo governo, para reforma do
Poder Judiciário (30 de março). O governo fecha o Congresso por 14 dias e baixa o Pacote de
Abril. Em outubro, o general Sylvio Frota, aspirante a candidato à Presidência da República, é
demitido por Geisel.
1978 - Greve dos metalúrgicos em São Bernardo do Campo projeta nacionalmente a
liderança de Luís Inácio da Silva, o Lula (maio). Em setembro, o Congresso aprova medidas
políticas propostas pelo governo: revogação do AI-5, restabelecimento do habeas-corpus para
crimes políticos, anistia aos cassados há mais de 10 anos, entre outras.
1979 - Golbery é reconfirmado no cargo de chefe do Gabinete Civil pelo novo
presidente João Batista de O. Figueiredo.
1981 - Por divergências com o presidente acerca da atuação em relação ao
recrudescimento do terrorismo de direita, sai do governo. Ingressa na diretoria do Banco
Cidade.
1987 - Morre, aos 76 anos, de insuficiência respiratória em decorrência de um câncer
no pulmão.