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12 de setembro de 2013
Em seu seminário Mais, ainda, Lacan faz a seguinte advertência: “o corpo, ele devia
deslumbrá-los mais”. A princípio endereçada aos frequentadores do seu seminário,
tal censura é também endereçada a cada um de nós e, de certo modo, à civilização.
Há uma exceção, porém: não estava endereçada a Georges Bataille, pois este, mais
do que ninguém, poderia ser nomeado como o pensador do corpo. É provável que
ninguém tenha levado a tal radicalidade a pergunta que coloca em questão tanto o
homem como singularidade quanto o homem como categoria universal: o que fazer
com este corpo que somos?
Se Lacan faz a sua advertência, Bataille também faz a sua, ressaltando que o
movimento de sua obra não incorre no furor especialista da ciência. Ao contrário,
adota perspectivas cambiantes, não se negando, inclusive, a abordar seus temas pelo
lado de dentro: “Se meus leitores se interessavam pelo erotismo […] de um ponto de
vista especializado, não tinham o que fazer com este livro”. Num aparente paradoxo,
justo por recusar o ponto de vista do especialista, ele sabe que a parte não tem
menos importância do que o todo, uma vez que “só o que há é universo inacabado”.
Assim, interrogando o corpo erótico como excesso, como dispêndio improdutivo,
pretende colocar em perspectiva a “unidade do espírito humano”.
Fusão mortal
Do ser em queda, somos levados àquilo que, ao mesmo tempo que é ultrapassado
pelo erotismo, é também a sua chave: a reprodução. A aposta na imanência é radical,
o ser começa quando começa o corpo, entendido como instaurador do abismo que
separa um homem de outro homem, o que nos condena a uma solidão absoluta cujo
império cessa apenas com princípio de outro, o império da morte: “Cada ser é
distinto de todos os outros. Seu nascimento, sua morte e os acontecimentos de sua
vida podem ter para os outros algum interesse, mas ele é o único interessado
diretamente. Ele só nasce. Ele só morre. Entre um ser e outro, há um abismo”. Esse
abismo receberá o nome de descontinuidade – os termos descontinuidade e
continuidade são as chaves para compreensão daquilo que o erotismo põe em jogo.
No caso dos humanos (um dentre outros seres sexuados), apenas no nível das
células reprodutivas, a morte coincide com o nascimento de um novo ser. O embrião
é o resultado da fusão mortal (oposta à divisão mortal dos seres unicelulares) entre
o óvulo e o espermatozóide, esses “dois pequenos seres descontínuos”. Desse modo,
na origem da vida está a origem do abismo, a origem da solidão do ser descontínuo
que somos: o embrião surge a partir dos cadáveres de dois outros seres
descontínuos, o óvulo e o espermatozóide.
É preciso, no entanto, passarmos do espermatozóide ao homem, do óvulo à mulher,
para entender que a radicalidade de nossa solidão coloca e é colocada em jogo pelo
que Bataille chama de erotismo. Fazendo isso, entenderemos porque o homem é um
animal-paradoxo, antônimo de si mesmo “e livre para se assemelhar a tudo que não
é ele no universo”.
Encontro no abismo
Não, não é assim. A morte não irá separá-los. A morte irá colocar fim à
descontinuidade entre esses dois seres que se sorriram no bar, sem instaurar
qualquer tipo de continuidade ou de suspensão do abismo que os separa. Então…
Então que há o erotismo dos corpos, que é quando os humanos se “cansam de ser a
cabeça e a razão do universo” e, transgredindo o interdito, o impossível, fazem do
abismo uma possibilidade precária de encontro dos seres, precária porque tal
encontro não destruirá a descontinuidade, seus corpos não serão dissolvidos um no
outro. Do que Bataille está falando?
Esse homem e essa mulher são, cada um, estruturas fechadas, corpos fechados. Eles
se apaixonam e, então, querem violar o corpo um do outro, abri-lo. Tiram a roupa,
eis a primeira violação, a violência erótica se põe em jogo com a liberação das
aberturas e aperturas dos corpos. O ato decisivo é o de tirar a roupa, ele promove o
obsceno, a transgressão do impossível que promoverá o encontro – ainda que
precário.
Neste ponto, pedimos licença para um pequeno desvio. Ana Vicentini, em seu livro A
metáfora paterna na psicanálise e na literatura, nos ensina que no teatro grego
antigo havia uma divisão espacial entre a skené, lugar onde os atores trocavam de
roupa para representar outro personagem, e o proskénion (o proscênio), onde
ocorria a encenação visível à plateia no theatron (lugar de onde se vê). Entretanto,
há um terceiro lugar, ou um não-lugar, que Vicentini propõe chamar de opíso
skénion, o atrás da cena, ou o ob-sceno: espaço das coisas impossíveis ou proibidas
de serem encenadas (assassinatos, sacrifícios, suicídios, adultérios, incesto – aquilo
que poderia ser de mau gosto, ou mesmo traumático), em oposição ao proskénion,
lugar das ações não só possíveis mas que, necessariamente deveriam ser encenadas.
Retornando de nosso desvio, digamos que a roupa é o biombo móvel que se porta a
fim de interditar a encenação visível das regiões secretas do corpo, seus buracos e
aclives obscenos, impossíveis ou inaceitáveis no proskénion “das formas de vida
social regulares, que fundam a ordem descontínua das individualidades definidas
que somos”, isoladas umas das outras por um abismo. Suspenso o biombo das
roupas, dois corpos se invadem, primeiro por intermédio dos olhos, depois
utilizando o resto do corpo, ou melhor, o corpo inteiro: “A nudez se opõe ao estado
fechado, ou seja, ao estado da existência descontínua”. A nudez é, portanto, a
realização relativa da destruição dos contornos do ser, ou, dizendo de outro modo, a
realização parcial da impossível continuidade entre um ser e outro, pois a total
continuidade equivaleria à destruição dos seres envolvidos na cena erótica.
Assim, a nudez faz com que os corpos se abram “à continuidade através dos canais
secretos que nos dão o sentimento de obscenidade”. A obscenidade equivale ao
erotismo que perturba e desordena a “posse da individualidade duradoura e
afirmada”. O império da descontinuidade, da solidão abismal que separa um
indivíduo do outro, é abalado pelo movimento erótico. Chegamos, então, ao grande
paradoxo do espírito humano.
Economia ao avesso
A parte maldita, escrito em 1949, é uma espécie não de continuação, mas de
desdobramento e desenvolvimento do breve ensaio de 1933, “A noção de dispêndio”.
Ou, inversamente, podemos dizer que o último é uma versão prévia e condensada do
primeiro. Ambos conformam um conjunto que, à primeira vista, pode ser tomado
como um livro de economia política. Mas não é. Expliquemos. Assim como Freud,
pretendendo com Totem e tabu escrever uma obra relevante à antropologia,
realizou um fato uma obra fundamental para a compreensão da função paterna na
constituição do psiquismo, George Bataille, ao pretender escrever um livro de
economia política, estabeleceu bases sólidas para pensar, em 1957, o conceito de
erotismo (conforme vimos anteriormente) como chave compreensiva da totalidade
(inacabada) do espírito humano.
Portanto, o leitor terá em mãos não um novo livro de economia política, mas um
consistente e provocador volume em que Bataille instaura a noção de “dispêndio
improdutivo” como fundamento do campo do humano. Tal noção de inutilidade,
engendrada pelo gasto, pela perda (de energia, de dinheiro etc.), efetuada de modo
ativo, e não por acidente, se confunde com a própria noção de erotismo
desenvolvida oito anos depois em O erotismo.
Bataille divide a atividade humana em dois campos; o gasto improdutivo, mais tarde
um equivalente do erotismo, localiza-se no segundo campo.
Por fim, ressaltamos que a parte maldita é constituída de uma parte teórica (que
ocupa quase metade do livro) e de quatro partes constituídas da articulação entre
teoria e “dados históricos”. Como esclarece o autor, o livro pretende abordar
questões gerais de economia de modo sumário, pois haveria um segundo volume,
que desenvolveria as questões sumariadas neste. Todavia, no lugar deste segundo
volume, Bataille escreveu, justamente, O erotismo, confirmando a impressão de sua
incursão por uma economia ao avesso, uma que aponta a produção e a acumulação
como secundárias com relação ao desperdício. Retroagindo a partir da leitura de O
erotismo, podemos afirmar que, mais do que qualquer outra coisa, Bataille visava
encontrar um campo de articulação de todas as questões fundamentais da
experiência e do espírito humanos. Esse campo é o do erotismo, o do corpo como
dispêndio improdutivo, exuberância, soberania dos excessos sobre toda forma social
de constituição de uma vida moderada, isto é, lamentável.