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Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa

Uma avaliação de dois anos de aplicação da


Lei Tutelar Educativa

Boaventura de Sousa Santos


Director Científico

Conceição Gomes (coord.)


Catarina Trincão
Jorge Almeida
Madalena Duarte
Paula Fernando

Equipa de Investigação

Fátima Sousa
Rita Silva
Susana Baptista
Taciana Peão Lopes

OBSERVATÓRIO PERMANENTE DA JUSTIÇA PORTUGUESA

CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS

F AC U L D AD E D E E C O N O M I A

UNIVERSIDADE DE COIMBRA

2004
Índice
Agradecimentos ........................................................................................................................ XIX
Introdução geral ...................................................................................................................... XXIII

Capítulo I

Os jovens, o crime e a justiça

Introdução .....................................................................................................................................1
1. A delinquência e a criminalidade juvenil: uma breve abordagem teórica ..............................3
2. Alguns factores explicativos da delinquência juvenil de hoje: a importância do contexto
e das instituições socializadoras ..........................................................................................11
A delinquência como fenómeno urbano ........................................................................13
Família e Escola: instâncias de controlo social..............................................................14
3. Os jovens e a (sua) justiça: prevenir, controlar e punir ........................................................22
3. 1. Alguns estudos sobre a justiça dos jovens que praticam factos qualificados como
crime...............................................................................................................................22
3. 2. Prevenção: agir a montante do problema...................................................................37
3. 3. O controlo formal da delinquência juvenil (controlar e punir): os modelos da
justiça de crianças e jovens ...........................................................................................40

Capítulo II

A justiça juvenil no Direito Internacional

Introdução ...................................................................................................................................53
1. A ONU e o direito internacional das crianças e jovens ........................................................56
1. 1. A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças............................56
O conceito de criança e a idade da imputabilidade penal na Convenção......................57
Os princípios de direito internacional quanto aos direitos das crianças.........................59
O artigo 40.º da Convenção e a justiça juvenil ..............................................................60
Entre a justiça penal e a justiça de crianças e jovens: os modelos previstos na
Convenção ....................................................................................................................61
1. 2. Outros instrumentos de direito internacional público relevantes em matéria de
justiça juvenil ..................................................................................................................62
1. 2. 1. As Regras de Beijing ............................................................................................63
1. 2. 2. Os Princípios Orientadores de Riade...................................................................67
1. 2. 3. As Regras para a Protecção de Menores Privados de Liberdade.......................68
2. O Direito Europeu .................................................................................................................70
2. 1. O Conselho da Europa e a delinquência juvenil.........................................................70
2. 1. 1. A Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos das Crianças .................71
II Índice

2. 1. 2. A Recomendação (87) 20.................................................................................... 72


2. 1. 3. A Recomendação (88) 6...................................................................................... 74
2. 1. 4. A Recomendação (00) 20.................................................................................... 75
2. 1. 5. A Recomendação (01) 1532................................................................................ 76
2. 1. 6. A Recomendação (03) 20.................................................................................... 79
2. 2. A União Europeia e a delinquência juvenil ................................................................ 81
2. 2. 1. As necessidades e as iniciativas preventivas do século XXI .............................. 82
A Rede Europeia de Prevenção da Criminalidade.........................................................88
Os Programas de prevenção da criminalidade ..............................................................89
As necessidades actuais ...............................................................................................90

Capítulo III

A reforma da justiça juvenil em Espanha:

apresentação da lei e brevíssima reflexão sobre a sua aplicação

Introdução................................................................................................................................... 93
1. A reforma do direito de crianças e jovens em Espanha: Ley Orgánica Reguladora de la
Responsabilidad Penal de los Menores............................................................................... 93
1. 1. A evolução histórica do direito de crianças e jovens em Espanha............................ 93
1. 2. O actual direito de crianças e jovens em Espanha.................................................... 96
1. 2. 1. Os princípios gerais ............................................................................................. 96
1. 2. 2. A competência e o âmbito de aplicação da LORPM........................................... 98
A competência ...............................................................................................................98
O âmbito de aplicação ...................................................................................................99
1. 2. 3. As medidas aplicáveis aos jovens..................................................................... 100
Internamento em regime fechado ................................................................................100
Internamento em regime semiaberto ...........................................................................101
Internamento em regime aberto...................................................................................101
Internamento terapêutico .............................................................................................101
Tratamento ambulatório ...............................................................................................102
Assistência num centro de dia .....................................................................................102
Permanência em casa ou em centro durante o fim-de-semana...................................103
Liberdade vigiada.........................................................................................................103
Convivência com outra pessoa, família ou grupo educativo ........................................104
Trabalho a favor da comunidade .................................................................................105
Realização de tarefas sócio-educativas.......................................................................105
Admoestação ...............................................................................................................106
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa III

Privação da autorização para conduzir ciclomotores ou veículos com motor, ou do


direito de obter tal autorização ou das licenças administrativas para caça ou para
uso de qualquer tipo de arma ......................................................................................106
Inabilitação absoluta ....................................................................................................107
1. 2. 4. A proposta e a escolha da medida.....................................................................108
1. 2. 5. Situações de concurso, de infracções continuadas e de aplicação de várias
medidas .................................................................................................................110
Concurso de infracções ...............................................................................................110
Infracções continuadas e com pluralidade de vítimas .................................................110
Imposição de várias medidas ......................................................................................111
1. 2. 6. A modificação da medida: anulação, redução, suspensão e substituição.........111
1. 2. 7. A execução das medidas ...................................................................................112
Regras para a execução das medidas ........................................................................113
A execução das medidas privativas de liberdade ........................................................114
As relações com o mundo exterior ..............................................................................115
Segurança e ordem .....................................................................................................115
Regime disciplinar .......................................................................................................116
1. 2. 8. A polícia face à delinquência juvenil ..................................................................117
2. Brevíssima reflexão sobre a aplicação da LORPM – Ley Orgánica Reguladora de la
Responsabilidad Penal de los Menores .............................................................................117
2. 1. O regime do internamento fechado – uma medida sempre controversa .................118
2. 2. A insuficiência de orçamento para aplicação da lei: uma luta entre o Estado
central e as regiões autónomas ...................................................................................119
2. 3. As medidas aplicadas pelos tribunais ao abrigo da LORPM....................................120
2. 4. A mediação no âmbito da justiça juvenil...................................................................125

Capítulo IV

O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

Introdução .................................................................................................................................127
1. Da Lei de Protecção à Infância à Organização Tutelar de Menores..................................127
2. O impacto da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças na
Organização Tutelar de Menores .......................................................................................136
3. O processo de reforma da Justiça Juvenil: os relatórios (Ministério da Justiça
/Ministério do Trabalho e da Solidariedade).......................................................................140
4. A preparação para a entrada em vigor da Lei Tutelar Educativa.......................................151
5. A Lei Tutelar Educativa: parte integrante de um Novo Direito das Crianças e Jovens......154
6. Princípios Constitucionais e a Lei Tutelar Educativa..........................................................155
7. O Regime Jurídico da Lei Tutelar Educativa: Breve descrição ..........................................156
7. 1. A entrada em vigor do novo regime..........................................................................156
7. 2. O âmbito de aplicação ..............................................................................................158
IV Índice

7. 3. As regras de competência ....................................................................................... 159


7. 4. As regras de conexão de processos........................................................................ 162
7. 5. As medidas cautelares............................................................................................. 162
7. 6. As medidas tutelares educativas ............................................................................. 164
7. 7. O Processo Tutelar Educativo: suas fases .............................................................. 170
7. 7. 1. A fase de inquérito............................................................................................. 171
7. 7. 2. A fase jurisdicional............................................................................................. 176
Da aplicação de medidas tutelares educativas ............................................................183
7. 7. 3. A fase de recurso............................................................................................... 185
7. 7. 4. A fase de execução das medidas tutelares educativas .................................... 186
A revisão das medidas tutelares educativas ................................................................189
8. O Decreto-Lei n.º 323-D/2000, de 20 de Dezembro: o Regulamento Geral e Disciplinar
dos Centros Educativos ..................................................................................................... 192
9. O Decreto-Lei n.º 204-A/2001, de 26 de Julho: a nova Lei Orgânica do Instituto de
Reinserção Social .............................................................................................................. 196

Capítulo V

Entre dois olhares: a Lei Tutelar Educativa à luz dos dados oficiais e de
um estudo efectuado nos tribunais de família e menores de Lisboa e
Coimbra

Introdução................................................................................................................................. 199

Secção I – A Lei Tutelar Educativa à luz dos dados oficiais disponíveis ........................ 200
1. O movimento dos processos tutelares educativos ............................................................ 203
1. 1. O movimento processual na fase do inquérito......................................................... 203
1. 2. O movimento processual na fase jurisdicional......................................................... 206
2. Os jovens enquanto sujeitos do novo processo jurisdicional ............................................ 210
2. 1. O sexo, a idade e a nacionalidade dos jovens ........................................................ 210
2. 2. A situação e a residência do jovem ......................................................................... 213
2. 3. O grau de instrução e a situação perante o trabalho dos jovens ............................ 217
3. O processo tutelar educativo ............................................................................................. 219
3. 1. Os mobilizadores do processo tutelar educativo ..................................................... 219
3. 2. A suspensão do processo por parte do MP............................................................. 220
3. 3. A mediação .............................................................................................................. 221
3. 4. Perícias sobre a personalidade do jovem................................................................ 223
3. 5. Factos praticados pelo jovem qualificados como crime........................................... 224
3. 6. A duração do processo tutelar ................................................................................. 229
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa V

3. 7. A aplicação de medidas e a sua revisão ..................................................................231


4. A aplicação das medidas tutelares educativas...................................................................233
4. 1. As medidas tutelares aplicadas ................................................................................233
4. 2. Momento processual da aplicação da medida .........................................................235
4. 3. As medidas tutelares aplicadas em relação ao sexo e à idade do jovem................238
4. 4. As medidas aplicadas considerando os cinco tipos de factos qualificados como
crime mais representativos ..........................................................................................242

Secção II – Os tribunais de família e menores de Lisboa e Coimbra: duas realidades


de uma mesma justiça? ...................................................................................................244
1. Os jovens ............................................................................................................................245
1. 1. O sexo, a idade e a nacionalidade dos jovens .........................................................245
1. 2. A orfandade, a situação e a residência do jovem.....................................................248
1. 3. O grau de instrução e a situação perante o trabalho dos jovens .............................249
1. 4. Processos anteriores ................................................................................................252
2. O processo tutelar educativo ..............................................................................................255
2. 1. Os mobilizadores do processo tutelar educativo ......................................................255
2. 2. O acompanhamento do jovem por advogados.........................................................256
2. 3. Factos praticados pelo jovem qualificados como crime ...........................................259
2. 3. 1. Factos ocasionais e plúrimos .............................................................................259
2. 3. 2. Os tipos de factos qualificados como crime.......................................................263
2. 4. A duração do processo tutelar ..................................................................................271
3. As medidas tutelares educativas aplicadas........................................................................275

Capítulo VI

O processo tutelar educativo: a mesma lei e práticas judiciais muito


distintas – análise do discurso dos actores judiciais

Introdução .................................................................................................................................279
1. As questões levantadas pelos olhares dos actores do processo tutelar educativo ...........280
1. 1. O Processo de Promoção e Protecção e o Processo Tutelar Educativo: duas
intervenções distintas para duas situações diferenciadas...........................................280
1. 1. 1. A ratio legis da LTE e da LPCJP........................................................................280
1. 1. 2. O consenso na bondade da diferenciação de respostas ...................................282
1. 1. 3. O dissenso na aplicação da lei: a aplicação das medidas tutelares
educativas para compensar a “falha” da lei de promoção e protecção ................285
1. 1. 4. As causas da subversão do sistema: da mentalidade dos magistrados à falta
de estruturas da Segurança Social .......................................................................288
1. 1. 5. A desadequação das medidas da LTE e da LPCJP às situações de
comportamentos desviantes não criminais ...........................................................292
VI Índice

1. 1. 6. A difícil articulação entre o processo de promoção e protecção e o processo


tutelar educativo.................................................................................................... 295
1. 1. 7. A interdependência entre os níveis de eficácia do processo de promoção e
de protecção no processo tutelar educativo ......................................................... 297
1. 2. Regras de conexão, separação e apensação de processos: a mesma lei,
práticas judiciais muito diferentes................................................................................ 300
1. 3. Uniformização de procedimentos: “cada cabeça sua sentença” ou um problema
de clarificação legal? ................................................................................................... 308
1. 3. 1. Da (ir)relevância da desistência de queixa........................................................ 309
1. 3. 2. Do (não) desconto da medida cautelar na medida tutelar educativa................ 318
1. 3. 3. Do cúmulo ou da acumulação de medidas tutelares educativas ...................... 323
1. 3. 4. Do internamento em regime de semiaberto, por período de um a quatro fins-
de-semana ............................................................................................................ 324
1. 3. 5. A difícil uniformização de procedimentos: a falta de jurisprudência, a
hierarquia do MP e as vantagens da livre interpretação e a incompreensão dos
cidadãos face a soluções diferentes para a mesma situação .............................. 326
1. 4. Tribunais de família e menores e tribunais constituídos em tribunais de família e
menores: um problema de formação e especialização dos magistrados judiciais e
do Ministério Público ................................................................................................... 329
1. 5. Os mecanismos de diversão: uma aceitação positiva ............................................. 338
1. 6. O instituto da mediação: os primeiros passos ......................................................... 343
1. 7. O defensor do jovem: um avanço ............................................................................ 348
1. 7. 1. A presença do advogado nas audições: (in)dispensável? ................................ 349
1. 7. 2. A formação dos advogados: também, ainda, os primeiros passos................... 351
1. 7. 3. O papel do defensor: um “papel” ainda em construção .................................... 355
1. 7. 4. A prestação ou a passividade dos defensores no processo ............................. 362

Capítulo VII

As medidas tutelares não institucionais: as dificuldades em encontrar


respostas adequadas

Introdução................................................................................................................................. 365
1. As medidas não institucionais na LTE e as funções do Instituto de Reinserção Social ... 366
1. 1. Admoestação ........................................................................................................... 368
1. 2. Privação do direito de conduzir................................................................................ 368
1. 3. Reparação ao ofendido............................................................................................ 369
1. 4. Imposição de regras de conduta.............................................................................. 370
1. 5. Frequência de programas formativos ...................................................................... 370
1. 6. Imposição de obrigações ......................................................................................... 371
1. 7. Prestações económicas ou tarefas a favor da comunidade .................................... 372
1. 8. A Medida de Acompanhamento Educativo.............................................................. 377
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa VII

1. 8. 1. Articulação com outras medidas ........................................................................380


2. A revisão das medidas tutelares educativas não institucionais .........................................382
3. As medidas tutelares educativas não institucionais: alguns indicadores estatísticos........383
3. 1. Caracterização das medidas não institucionais em execução em 31 de
Dezembro de 2003.......................................................................................................389
4. A execução de medidas tutelares não institucionais: a análise de dois estudos de caso .390
4. 1. Caracterização sociológica dos jovens.....................................................................391
4. 1. 1. O sexo dos jovens ..............................................................................................391
4. 1. 2. A idade dos jovens .............................................................................................392
4. 1. 3. A situação do jovem (com quem vive) ...............................................................394
4. 1. 4. Residência dos jovens .......................................................................................395
4. 1. 5. Escolaridade.......................................................................................................396
4. 1. 6. Nacionalidade.....................................................................................................398
4. 1. 7. Jovens sujeitos a processo de promoção e protecção anterior.........................399
4. 1. 8. Jovens sujeitos a processo tutelar educativo anterior .......................................400
4. 1. 9. Análise de relatórios sociais: predominância de famílias desestruturadas........401
4. 2. Os jovens e os factos qualificados como crime cometidos ......................................405
4. 3. Medidas Aplicadas....................................................................................................418
4. 3. 1. As medidas tutelares educativas não institucionais mais significativas.............421
4. 3. 2. As medidas propostas pelo IRS e a sua aceitação, em regra, pelo MP e pelo
Juiz.........................................................................................................................423
4. 4. Os tempos da justiça tutelar .....................................................................................427
5. A execução de medidas tutelares não institucionais: o olhar e o discurso dos
operadores..........................................................................................................................429
5. 1. A regulamentação das medidas tutelares educativas não institucionais: uma
necessidade? ...............................................................................................................429
5. 2. As práticas e os problemas na execução das medidas não institucionais...............434
5. 2. 1. A medida de acompanhamento educativo.........................................................434
5. 2. 2. A medida de tarefas a favor da comunidade .....................................................443
5. 2. 3. Imposição de obrigações ...................................................................................448
5. 2. 4. Imposição de regras de conduta ........................................................................454
5. 2. 5. Programas formativos ........................................................................................455
5. 2. 6. Reparação ao ofendido ......................................................................................458
5. 2. 7. Admoestação......................................................................................................460
5. 3. A Articulação do IRS com outras entidades na execução de medidas tutelares
não institucionais..........................................................................................................460
5. 3. 1. A articulação com a família do jovem.................................................................461
5. 3. 2. Articulação com os tribunais ..............................................................................467
5. 3. 3. Outras articulações necessárias: antes e depois da execução da medida .......471
VIII Índice

Capítulo VIII

As medidas tutelares educativas institucionais: entre a “contenção” e a


“educação para o direito”

Introdução................................................................................................................................. 477
1. As competências legais e a visão institucional do IRS no âmbito das medidas
institucionais....................................................................................................................... 478
1. 1. As competências do IRS.......................................................................................... 478
1. 2. A caracterização geral dos centros educativos ....................................................... 479
Equipa de Programas ..................................................................................................484
Equipa Técnica e Residencial......................................................................................484
2. As medidas tutelares educativas de internamento e os regimes de execução................. 486
2. 1. Regime Aberto ......................................................................................................... 487
2. 2. Regime Semiaberto ................................................................................................. 488
2. 3. Regime Fechado ...................................................................................................... 489
3. A organização da intervenção educativa........................................................................... 490
3. 1. Os instrumentos fundamentais da intervenção........................................................ 491
3. 1. 1. O Projecto de Intervenção Educativa ................................................................ 492
Estrutura-base do Projecto de Intervenção Educativa .................................................493
3. 1. 2. O PIE: as fases de intervenção nos centros educativos ................................... 497
A fase de acolhimento: a “Fase Regressiva” e a “Fase de Entrada”............................500
A “Fase Progressiva 1” ................................................................................................501
A “Fase Progressiva 2” ................................................................................................502
A “Fase de Saída”........................................................................................................503
3. 1. 3. O Regulamento Interno ..................................................................................... 504
3. 1. 4. O Projecto Educativo Pessoal ........................................................................... 505
3. 2. Os instrumentos auxiliares da intervenção .............................................................. 507
3. 3. Os programas educativos e terapêuticos ................................................................ 508
3. 3. 1. A formação escolar em Centro Educativo ......................................................... 508
Princípios orientadores da formação escolar ...............................................................510
Resultados escolares de jovens em centros educativos em 2001/2002......................513
3. 3. 2. A orientação vocacional e a formação pré-profissional em Centro Educativo.. 513
Os centros educativos e as ofertas de formação pré-profissional e despiste
vocacional ....................................................................................................................515
Resultados da avaliação das acções de formação pré-profissional e de despiste
vocacional de jovens em centros educativos em 2001/2002 .......................................518
3. 3. 3. Os programas terapêuticos e de educação para a saúde ................................ 520
3. 4. Os relatórios de execução da medida de internamento .......................................... 521
3. 5. O regime disciplinar ................................................................................................. 522
3. 6. A articulação dos centros educativos com outras entidades................................... 524
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa IX

Educação.....................................................................................................................525
Saúde ..........................................................................................................................526
Saúde mental...............................................................................................................527
Centro Protocolar de Formação Profissional para o Sector da Justiça........................528
Instituto de Emprego e de Formação Profissional .......................................................528
Outras articulações dos centros educativos ................................................................529
3. 7. O “Internamento como verdadeira oportunidade de mudança” no Centro
Educativo da Bela Vista ...............................................................................................529
4. Caracterização da situação e dos jovens internados nos centros educativos...................533
4. 1. Os internamentos, segundo o IRS (2001 a 2003) ....................................................533
Subtotal Masculino ......................................................................................................541
Subtotal Feminino........................................................................................................541
Total.............................................................................................................................541
4. 2. Os estudos de caso: o Centro Educativo da Bela Vista e o Centro Educativo dos
Olivais...........................................................................................................................542
4. 2. 1. Introdução e nota metodológica .........................................................................542
4. 2. 2. A caracterização sociológica dos jovens internados..........................................544
A idade ........................................................................................................................544
A nacionalidade ...........................................................................................................547
A área de residência....................................................................................................547
A situação familiar .......................................................................................................549
A situação escolar e/ou profissional ............................................................................551
O grau de escolaridade ...............................................................................................552
4. 2. 3. Outras intervenções judiciais conhecidas ..........................................................555
Processos de Promoção e Protecção..........................................................................555
Outros Processos Tutelares Educativos......................................................................556
4. 2. 4. A situação jurídica dos jovens............................................................................557
Medidas tutelares educativas de internamento ...........................................................558
A duração das medidas tutelares de internamento aplicadas .....................................559
Medidas cautelares de guarda em Centro Educativo ..................................................560
Os jovens a cumprirem medidas tutelares educativas antes sujeitos a medidas
cautelares de guarda ...................................................................................................561
A duração das medidas cautelares de guarda em Centro Educativo ..........................561
Internamento para realização de perícia sobre a personalidade .................................562
4. 2. 5. Os factos qualificados como crime.....................................................................562
Os factos praticados ....................................................................................................562
O número de factos qualificados como crime ..............................................................566
Os regimes de execução de internamento ..................................................................568
4. 2. 6. Análise dos tempos da execução das medidas de internamento......................574
Dos factos ao acolhimento em Centro Educativo ........................................................574
Do acolhimento ao envio do PEP para o Tribunal .......................................................575
X Índice

Do acolhimento ao 1.º relatório de execução de internamento....................................576


4. 2. 7. A revisão das medidas de internamento ........................................................... 576
4. 2. 8. Análise de dois casos: a “visão” dos processos de jovens sujeitos a medida
de internamento .................................................................................................... 577
Relato do Caso 1: Regime semiaberto ........................................................................577
Relato do Caso 2: Regime fechado .............................................................................582
Análise / comparação ..................................................................................................583
5. A lei e a prática das medidas executadas em centros educativos .................................... 584
5. 1. A visão de um psicólogo sobre o internamento em regime fechado ....................... 584
5. 2. A visão crítica do IRS: a lei, a prática judiciária e a falta de meios ......................... 587
5. 3. As opiniões e os olhares dos actores – análise do discurso ................................... 590
5. 3. 1. Um quase consenso à volta da LTE e das medidas tutelares .......................... 590
5. 3. 2. Uma perversão: as medidas de internamento aplicadas por necessidades
sociais ................................................................................................................... 591
A falha do sistema de protecção faz crescer o recurso à justiça tutelar ......................592
5. 3. 3. A localização dos centros educativos: a possível em 2001 .............................. 594
5. 3. 4. Os regimes de execução do internamento........................................................ 597
O regime aberto: uma aplicação em crescimento e uma “porta para o exterior” .........597
O internamento em regime fechado: a controvérsia sobre a sua necessidade............598
5. 3. 5. O internamento em fins-de-semana: o dissenso total....................................... 600
5. 3. 6. A medida cautelar não conta para a duração da medida definitiva? ................ 602
5. 3. 7. Os tribunais têm práticas muito diferenciadas na aplicação de medidas ......... 605
5. 3. 8. A operacionalização da “educação para o direito” e a formação do Projecto
de Intervenção Educativa ..................................................................................... 606
A área escolar..............................................................................................................614
A formação pré-profissional: em busca de um modelo ................................................616
O Centro Protocolar da Justiça (CPJ) e o Instituto de Emprego e Formação
Profissional ..................................................................................................................620
O regime disciplinar é muito formal: educar é poder “castigar” de imediato? ..............621
5. 3. 9. As carências na área da saúde ......................................................................... 623
A saúde mental ............................................................................................................624
5. 3. 10. A formação dos técnicos ................................................................................ 627
5. 3. 11. A escassez de articulações............................................................................ 628
A família .......................................................................................................................631
A presença de magistrados nos centros educativos....................................................632
Os advogados dos jovens internados ..........................................................................635
5. 3. 12. O pós-internamento: a falta de estruturas para o dia seguinte...................... 636
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa XI

Capítulo IX

Conclusões e propostas

Conclusões................................................................................................................................643
Propostas de reforma................................................................................................................689

Referências bibliográficas .........................................................................................................699


Índice de Quadros

Capítulo III

A reforma da justiça juvenil em Espanha:

apresentação da lei e brevíssima reflexão sobre a sua aplicação

Quadro III.1 – Medidas aplicadas ao abrigo da LORPM em 2001 - Espanha..........................121


Quadro III.2 – Medidas tutelares educativas aplicadas em 2001 – Portugal............................122

Capítulo V

Entre dois olhares: a Lei Tutelar Educativa à luz dos dados oficiais e de
um estudo efectuado nos tribunais de família e menores de Lisboa e
Coimbra

Quadro V.1 – Residência dos jovens (2001-2002) ...................................................................215


Quadro V.2 – Residência das crianças e jovens: Distritos de Lisboa e Porto (2001-2002) .....216
Quadro V.3 – Factos qualificados como crime: 10 tipos mais representativos (2001-2002) ...225
Quadro V.4 – Factos qualificados como crime agrupado (2001-2002) ....................................226
Quadro V.5 – Factos qualificados como crime por sexo (2001-2002)......................................227
Quadro V.6 – Cinco tipos de factos qualificados como crime por idade (2001-2002)..............228
Quadro V.7 – Duração dos processos tutelares (2001-2002) ..................................................230
Quadro V.8 – Revisão da medida aplicada (2001-2002)..........................................................232
Quadro V.9 – Medidas tutelares aplicadas (2001-2002) ..........................................................234
Quadro V.10 – Medidas aplicadas a jovens por sexo (2001-2002)..........................................239
Quadro V.11 – Medidas aplicadas a jovens por idade (2001-2002).........................................240
Quadro V.12 – Regimes de internamento aplicados a jovens por idade (2001-2002).............241
Quadro V.13 – Medidas aplicadas considerando os cinco tipos de factos qualificados como
crime mais representativos (2001-2002) ............................................................................242
Quadro V.14 – Grau de instrução dos jovens por idade...........................................................250
Quadro V.15 – Idade dos jovens por condição perante o trabalho ..........................................252
Quadro V.16 – Factos qualificados como crime .......................................................................264
Quadro V.17 – Duração dos processos tutelares educativos...................................................272
Quadro V.18 – Duração dos processos tutelares educativos...................................................273
Quadro V.19 – Medidas tutelares aplicadas .............................................................................276
Quadro V.20 – Regime de internamento em Centro Educativo ...............................................277
XIV Índice

Capítulo VII

As medidas tutelares não institucionais: as dificuldades em encontrar


respostas adequadas

Quadro VII.1 – Projecto Educativo Pessoal (PEP) .................................................................. 382


Quadro VII.2 – Nacionalidade do jovem................................................................................... 398
Quadro VII.3 – Jovens que tiveram algum processo de promoção e protecção ..................... 399
Quadro VII.4 – Jovens com outros processos no âmbito da Lei Tutelar Educativa ................ 400
Quadro VII.5 – Medidas tutelares não institucionais................................................................ 419

Capítulo VIII

As medidas tutelares educativas institucionais: entre a “contenção” e a


“educação para o direito”

Quadro VIII.1 – Lotação dos centros educativos em 31/12/2003 ............................................ 535


Quadro VIII. 2 – Jovens internados em 31/12/2003 segundo a situação jurídica e o regime
de execução....................................................................................................................... 537
Quadro VIII. 3 – Jovens internados, em 31/12/2003 segundo o motivo da intervenção (tipo
de ilícitos penais dominantes)............................................................................................ 538
Quadro VIII.4 – Duração das medidas de internamento em 30/04/2003................................. 540
Quadro VIII.5 – Duração das medidas cautelares de guarda – 30/04/2003............................ 541
Quadro VIII.6 – Duração das medidas de internamento por regime de execução .................. 542
Quadro VIII.7 – Área de residência antes do internamento ..................................................... 548
Quadro VIII.8 – Medidas tutelares educativas e cautelares de guarda ................................... 559
Quadro VIII.9 – Distribuição da totalidade dos factos praticados por educando, por situação
de internamento e por regime de execução – Centro Educativo dos Olivais.................... 563
Quadro VIII.10 – Distribuição da totalidade dos factos praticados por educando, por
situação de internamento e por regime de execução – Centro Educativo da Bela Vista.. 564
Quadro VIII.11 – Categorias de factos qualificados como crime – os 2 centros educativos ... 566
Quadro VIII.12 – Crimes ocasionais e plúrimos nos centros educativos dos Olivais e da
Bela Vista ........................................................................................................................... 568
Índice de gráficos e figuras

Capítulo IV

O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

Mapa IV.1 – Localização dos Tribunais de Família e Menores ................................................160


Fase de Inquérito ......................................................................................................................181
Fase Jurisdicional......................................................................................................................182

Capítulo V

Entre dois olhares: a Lei Tutelar Educativa à luz dos dados oficiais e de
um estudo efectuado nos tribunais de família e menores de Lisboa e
Coimbra

Gráfico V.1 – Movimento processual – Inquérito 2001-2002....................................................203


Gráfico V.2 – Causas de extinção dos inquéritos tutelares educativos 2001-2002 .................205
Gráfico V.3 – Processos tutelares educativos pendentes, entrados e findos (2001-2002)......207
Gráfico V.4 – Motivos de extinção dos processos tutelares educativos...................................208
Gráfico V.5 – Sexo dos jovens..................................................................................................210
Gráfico V.6 – Idade dos jovens (2001-2002) ............................................................................211
Gráfico V.7 – Nacionalidade dos jovens (2001-2002) ..............................................................212
Gráfico V.8 – Situação dos jovens (2001-2002) .......................................................................214
Gráfico V.9 – Grau de instrução dos jovens .............................................................................217
Gráfico V.10 – Condição perante o trabalho dos jovens (2001-2002)......................................218
Gráfico V.11 – Mobilizadores do processo tutelar educativo (2001-2002) ...............................220
Gráfico V.12 – Processos suspensos pelo Ministério Público que chegaram à fase
jurisdicional (2001-2002) ....................................................................................................221
Gráfico V.13 – Recurso à mediação (2001-2002) ....................................................................222
Gráfico V.14 – Perícias sobre a personalidade do menor (2001-2002) ...................................223
Gráfico V.15 – Casos de aplicação e de revisão da medida aplicada (2001-2002).................232
Gráfico V.16 – Medidas aplicadas na audiência preliminar e na audiência de julgamento
(2001)..................................................................................................................................236
Gráfico V.17 – Medidas aplicadas na audiência preliminar e na audiência de julgamento
(2002)..................................................................................................................................236
Gráfico V.18 – Idade dos jovens ...............................................................................................246
Gráfico V.19 – Nacionalidade dos menores .............................................................................247
Gráfico V.20 – Situação dos menores ......................................................................................248
XVI Índice

Gráfico V.21 – Grau de instrução dos menores....................................................................... 249


Gráfico V.22 – Condição perante o trabalho dos jovens.......................................................... 251
Gráfico V.23 – Processos tutelares educativos e/ou de promoção e protecção anteriores .... 253
Gráfico V.24 – Mobilizadores do processo tutelar educativo ................................................... 255
Gráfico V.25 – A escolha de Advogado ................................................................................... 257
Gráfico V.26 – Quem defende o jovem: Advogado estagiário ou Advogado?......................... 258
Gráfico V.27 – Número de factos qualificados como crime, relativo a cada jovem, constante
nos requerimentos de abertura da fase jurisdicional ......................................................... 260
Gráfico V.28 – Percentagem de factos ocasionais ou de factos plúrimos por jovem .............. 261
Gráfico V.29 – Factos ocasionais ou plúrimos por grau de escolaridade Coimbra ................. 262
Gráfico V.30 – Factos ocasionais ou plúrimos por grau de escolaridade Lisboa .................... 263
Gráfico V.31 – Factos qualificados como crime agrupado (Coimbra - Lisboa)........................ 266
Gráfico V.32 – Factos qualificados como crime por grau de escolaridade Coimbra ............... 267
Gráfico V.33 – Factos qualificados como crime por grau de escolaridade Lisboa .................. 268
Gráfico V.34 – Factos qualificados como crime por jovem com processo de promoção e
protecção e/ou outro processo tutelar educativo anterior Coimbra................................... 269
Gráfico V.35 – Factos qualificados como crime por jovem com processo de promoção e
protecção e/ou outro processo tutelar educativo anterior Lisboa...................................... 270

Capítulo VII

As medidas tutelares não institucionais: as dificuldades em encontrar


respostas adequadas

Gráfico VII.1 – Medidas tutelares educativas não institucionais executadas pelo IRS (2001) 384
Gráfico VII.2 – Medidas tutelares educativas não institucionais executadas pelo IRS (2002) 385
Gráfico VII.3 – Medidas tutelares educativas não institucionais executadas pelo IRS, por
Direcção Regional (2002) .................................................................................................. 386
Gráfico VII.4 – Medidas tutelares educativas não institucionais executadas pelo IRS (2003) 387
Gráfico VII.5 – Medidas tutelares educativas não institucionais executadas pelo IRS, por
Delegação Regional (2003) ............................................................................................... 388
Gráfico VII.6 – Medidas tutelares educativas não institucionais em execução pelo IRS em
31 de Dezembro de 2003 .................................................................................................. 389
Gráfico VII.7 – Sexo dos jovens ............................................................................................... 391
Gráfico VII.8 – Idade do jovem à data dos factos .................................................................... 393
Gráfico VII.9 – Idade do jovem à data da aplicação da medida .............................................. 394
Gráfico VII.10 – Situação do jovem.......................................................................................... 395
Gráfico VII.11 – Grau de escolaridade do jovem antes da intervenção................................... 396
Gráfico VII.12 – Situação do jovem antes da intervenção ....................................................... 397
Gráfico VII.13 – Denúncia do facto qualificado como crime feita por (Centro) ........................ 406
Gráfico VII.14 – Denúncia do facto qualificado como crime feita por (Lisboa e Vale do Tejo) 407
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa XVII

Gráfico VII.15 – Distribuição dos factos qualificados como crime por tipo (Centro).................408
Gráfico VII.16 – Distribuição de factos qualificados como crime por tipo (Lisboa e Vale do
Tejo)....................................................................................................................................409
Gráfico VII.17 – Distribuição da criminalidade (agregada) .......................................................410
Gráfico VII.18 – Número de factos qualificados como crime cometidos pelo mesmo jovem ...411
Gráfico VII.19 – Número de factos qualificados como crime cometidos pelo jovem................413
Gráfico VII.20 – Medida tutelar educativa não institucional simples (mais significativa)..........421
Gráfico VII.21 – MP segue sugestão do IRS ............................................................................424
Gráfico VII.22 – Juiz segue a proposta do MP .........................................................................426
Gráfico VII.23 – Tempo decorrido desde os factos até à abertura do processo ......................427
Gráfico VII.24 – Tempo decorrido entre o pedido do relatório social pelo TFM e o seu envio
pelo IRS ..............................................................................................................................428

Capítulo VIII

As medidas tutelares educativas institucionais: entre a “contenção” e a


“educação para o direito”

Mapa VIII.1 – Localização dos Centros Educativos e classificação por regimes de


execução.............................................................................................................................482
Gráfico VIII.1 – Idade à data dos factos (centros educativos dos Olivais e da Bela Vista) ......545
Gráfico VIII.2 – Idade à data do internamento ..........................................................................546
Gráfico VIII.3 – Situação antes da intervenção em Centro Educativo......................................550
Gráfico VIII.4 – Situação escolar e/ou profissional antes da intervenção.................................552
Gráfico VIII.5 – Grau de escolaridade antes da intervenção ....................................................553
Gráfico VIII.6 – Grau de escolaridade / Idade de internamento - Centro Educativo dos
Olivais .................................................................................................................................554
Gráfico VIII.7 – Grau de escolaridade / Idade de internamento - Centro Educativo da Bela
Vista ....................................................................................................................................554
Gráfico VIII.8 – Existência de Processos de Promoção e Protecção .......................................556
Gráfico VIII.9 – Outros processos no âmbito da Lei Tutelar Educativa ....................................557
Agradecimentos

O trabalho que se apresenta neste relatório foi desenvolvido no Centro de


Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra no
âmbito do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa. É um dos vários
projectos de investigação previstos, para o período de 2001 a 2004, no contrato
assinado entre o Centro de Estudos Sociais e o Ministério da Justiça, destinado
a actualizar e a desenvolver a investigação sócio-jurídica sobre os tribunais e
sobre a aplicação do direito na sociedade portuguesa.

O objecto central deste estudo é trazer para o debate os principais


problemas que se colocam na aplicação e execução do novo Direito Tutelar
Educativo.

Para a sua execução, contámos com a colaboração e as ideias de


senhores magistrados, advogados, responsáveis e técnicos do Instituto de
Reinserção Social, em especial dos centros educativos e das equipas junto dos
tribunais de família e menores onde fizemos trabalho de campo, e de outros
operadores ligados a esta problemática.

Um especial agradecimento é devido à Dra. Maria Clara Albino,


Presidente do Instituto de Reinserção Social (IRS); à Dra. Dulce Rocha,
Presidente da Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em
Risco; ao Dr. Fernando Tordo, Presidente do Centro Protocolar de Formação
para o Sector da Justiça; aos Senhores Magistrados Judiciais, Drs. José Sousa
Pinto, Olga Maciel e Paulo Correia; aos Senhores Magistrados do Ministério
Público, Joana Marques Vidal e José António de Carvalho; aos senhores
Advogados, Drs. Isabel Cunha Gil e José Augusto Ferreira da Silva; e à
Senhora Dra. Ana Maria Rodrigues, em representação do Director da
Delegação do Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social de
Coimbra, que, com generosidade, prescindiram do seu tempo para virem
debater connosco, num painel, algumas questões sobre a aplicação da nova
Lei Tutelar Educativa.
XX Agradecimentos

Agradecemos, também, o tempo, a disponibilidade, a documentação


cedida, mas, sobretudo, os importantes contributos para este trabalho que nos
foram dados nas entrevistas que realizámos com os Senhores Magistrados
Judiciais, Drs. Helena Bolieiro, Maria Ermelinda Carneiro, Paula Cristina
Guerreiro, Paulo Correia, Paulo Guerra e Teresa Sá Lopes; com os Senhores
Magistrados do Ministério Público, Drs. Fernando Queiroz, Isabel Jordão,
Lucília Gago, Maria Olímpia Pimentel, Pedro Branquinho e Teixeira de Sousa;
bem como, no âmbito do IRS, com os Senhores Drs. José Ricardo Nunes e
Paula Guimarães, Vice-Presidentes desse Instituto, com o Dr. Branco Mendes,
Director Regional de Lisboa e Vale do Tejo, com o Dr. Joaquim Fernandes,
Director Regional do Centro; com o Senhor Dr. Rogério Canhões, Director do
Centro Educativo Navarro de Paiva, bem como com as Senhoras Dras. Carla
Delgado, Edite Abreu, José Martins Carlos, Ofélia Borges e Rita Matos, desse
Centro Educativo; e com as Dras. Paula Barreiros e Sandra Borba, do Centro
Educativo Padre António de Oliveira

Agradecemos, ainda, a disponibilidade de todo o corpo dirigente, técnico


e administrativo do Instituto de Reinserção Social, designadamente aos
Senhores Drs. Albina Sousa Rosa, Ana Diogo, Cristina Carvalho, Eugénia Lé,
Eva Fernandes, Fátima Araújo, Fátima Lacerda, João Paulo Vaz, Natália
Colaço, Susana Castela, e Viana.

Pelo contributo essencial para a nossa investigação, não podemos deixar


de fazer um agradecimento aos Senhores magistrados e funcionários dos
tribunais, dirigentes e técnicos dos centros educativos e das equipas do IRS,
onde realizámos trabalho de campo. Assim, agradecemos de forma especial
aos Senhores magistrados, secretários e funcionários dos Tribunais de Família
e Menores de Coimbra e de Lisboa; à Senhora Dra. Cecília Campos,
Coordenadora da Equipa do IRS junto do Tribunal de Família e Menores de
Coimbra, e aos técnicos da equipa, Senhoras Dras. Júlia Silva, Lurdes Matias,
Manuela Ferreira, Margarida Faria e Teresa Miller; à Senhora Dra. Filomena
Nobre, Coordenadora da Equipa do IRS junto do Tribunal de Família e
Menores de Lisboa e aos técnicos dessa equipa; aos Senhores Director e
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa XXI

Subdirectora do Centro Educativo da Bela Vista, Dr. Marcos Marinheiro e Dra.


Carolina Garcia; à Senhora Dra. Ana Maria Matos, Directora do Centro
Educativo dos Olivais, bem como aos Senhores Drs. Amadeu Baptista, Isabel
Campos e Susana Matos, daquele Centro Educativo.

Agradecemos, ainda, ao Gabinete de Política Legislativa e Planeamento


do Ministério da Justiça a pronta colaboração, sempre que solicitada,
designadamente na disponibilização de dados estatísticos.

Um agradecimento especial é devido ao Senhor Dr. João Pedroso que,


com a sua experiência e conhecimento nestas matérias, nos ajudou a definir o
objecto e âmbito da investigação, bem como a formular as propostas que
apresentamos.

Por último, agradecemos aos Drs. Salomé Gouveia, Patrícia Branco,


Liliana Simões e Pedro Abreu, pela sua colaboração na execução do relatório.
Introdução geral

As transformações ocorridas na sociedade, com a emergência de novas


formas de criminalidade juvenil, e nas estruturas do Estado, bem como a
publicação de um conjunto de instrumentos de direito internacional sobre os
direitos das crianças e sobre a administração da justiça juvenil determinaram
alterações significativas nas respostas dos Estados, quer à situação das
crianças e jovens em perigo, quer à questão da criminalidade juvenil. Essas
respostas podem ser mais ou menos condicionadas pela combinação, num
determinado momento conjuntural, de um conjunto complexo de diferentes
forças e factores sociais. Por exemplo, no caso português, a mediatização de
alguns casos de criminalidade juvenil em finais da década de noventa
constituiu um factor decisivo para a aceleração do processo de reforma do
Direito dos Menores.

Face às muitas posições que defendiam a caducidade do modelo de


justiça juvenil previsto na Organização Tutelar de Menores, quer no âmbito
legislativo, quer no âmbito da aplicação e execução das normas jurídicas, e em
consonância com um conjunto de directrizes emanadas de instrumentos de
direito internacional, que Portugal ratificou, o Governo português iniciou, em
1996, um processo de reforma de todo o sistema tutelar de menores, que
distinguisse situações de risco, carência social ou de para-delinquência de
outras relacionadas com a prática de crimes, mas que, neste último caso,
respeitassem os direitos fundamentais dos cidadãos menores.

Com esse objectivo, e depois de um processo que decorreu durante


alguns anos e envolveu várias comissões, foi aprovada legislação sobre
protecção de crianças e jovens em perigo (Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro);
relativa aos processos tutelares cíveis (Lei n.º 133/99, de 28 de Agosto) e, pela
Lei n.º 166/99, de 14 de Setembro, a actual Lei Tutelar Educativa. A avaliação
desta última lei constitui o objecto central deste projecto de investigação.

Apesar de publicada em 1999, a sua entrada em vigor foi precedida da


publicação de legislação que regulamentasse a criação, organização,
XXIV Introdução geral

competência e funcionamento dos centros educativos e que aprovasse o seu


regulamento geral e disciplinar, o que determinou que a nova lei só viesse a
entrar em vigor em 1 de Janeiro de 2001, mais de um ano depois da sua
publicação. Trata-se, portanto, de uma lei com um período de vigência de
pouco mais de três anos.

Para alguns, esta circunstância poderá ser considerada como um factor


que aconselharia a dilação da sua avaliação. Não foi essa, contudo, a posição
do Governo, através do Ministério da Justiça, que a quis avaliar, nem é aquela
que, no âmbito do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa,
consideramos defensável. Nesta avaliação não está em causa a matriz, os
princípios ou os objectivos da lei. Para uma avaliação dessa natureza seria, por
certo, necessário um período de vigência mais longo. O que se pretende neste
estudo é, tão só, mapear e analisar eventuais problemas ou bloqueios
condicionantes da eficácia da reforma.

No âmbito do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa temos


vindo a defender que as principais reformas introduzidas no ordenamento
jurídico deveriam prever um período experimental e serem devidamente
monitorizadas e avaliadas. Só assim se podem conhecer os desajustamentos
ou bloqueios que a aplicação e execução da reforma fazem emergir, muitos
deles facilmente evitáveis desde que rapidamente conhecidos e solucionados.
A sua resolução atempada evita a “rotinização” de efeitos indesejáveis e
mesmo perversos, ajudando a diminuir e, em muitos casos, a eliminar as
disjunções existentes entre os princípios e objectivos normativos e a sua
prática.

O paradigma do novo Direito dos Menores não está, assim, em causa,


neste estudo. Pelo contrário, o que pretendemos é dar conta de um conjunto de
problemas e bloqueios de carácter normativo, cultural ou organizacional que, à
luz da nossa investigação, são determinantes para as disjunções existentes
entre os princípios orientadores e os objectivos que enformam a reforma do
Direito dos Menores, em especial, a nova Lei Tutelar Educativa e a sua
concretização prática.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa XXV

Muitos dos aspectos da nova reforma tutelar já estão suficientemente


“consolidados” para, com segurança, se propor a sua alteração. Outros há,
como veremos, ao longo dos vários capítulos, relativamente aos quais apenas
poderemos identificar alguns problemas que, a manterem-se, devem ser
rapidamente solucionados. Esta limitação se, nalguns aspectos, pode resultar
do escasso período de tempo de vigência da lei, para outros, resulta,
sobretudo, da ausência de avaliação do Direito dos Menores globalmente
considerado. Na verdade, a avaliação da Lei Tutelar Educativa não pode ser
dissociada da avaliação da Lei de Promoção e Protecção das Crianças e
Jovens em Perigo, como, aliás, é opinião de muitos operadores entrevistados.
Há problemas identificados, quer a montante, quer a jusante do processo
tutelar educativo, cuja solução depende de um eficaz funcionamento daquela
lei, bem como da existência, na prática, de fortes mecanismos de articulação
entre o sistema tutelar educativo e o sistema de promoção e protecção.

Metodologia

A recolha de dados do estudo que agora se apresenta neste relatório foi


feita com recurso a métodos quantitativos e qualitativos e foi, simultaneamente,
intensiva e extensiva. Compreendeu, desde logo, a recolha e tratamento de
legislação - quer no âmbito do Direito Internacional, quer, naturalmente, no
âmbito nacional - de doutrina, de estudos e outros documentos sobre
delinquência juvenil. Ainda que de forma breve, considerámos importante trazer
para o debate alguma informação no âmbito da experiência comparada.
Interessou-nos, em particular, o caso espanhol por ser um país com uma
tradição jurídica próxima do nosso e com uma recente reforma sobre esta
matéria.

A análise da aplicação da lei começou por ser feita com recurso à base de
dados das estatísticas oficiais da jurisdição tutelar do Gabinete de Política
Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça. Analisamos o volume de
processos pendentes, entrados e findos durante os anos de 2001 e 2002,
XXVI Introdução geral

assim como os motivos que determinaram o fim, quer dos inquéritos, quer dos
processos tutelares educativos que chegaram à fase jurisdicional. A análise
destes dados permite-nos, ainda, conhecer outras características da justiça de
menores, designadamente quem mobiliza o processo, quais os factos
qualificados como crime predominantemente praticados pelos jovens, qual a
duração do processo tutelar educativo na fase jurisdicional, qual a percentagem
de revisão das medidas aplicadas e em que sentido é efectuada essa revisão,
quais as medidas tutelares educativas mais aplicadas e qual o perfil social dos
jovens sujeitos desses processos.

Os dados estatísticos foram, ainda, importantes na avaliação da fase de


execução da lei. Neste caso, recorremos a dados do Instituto de Reinserção
Social (IRS) que nos permitiram ter uma visão global do universo de medidas
em execução pelo IRS.

Com o objectivo de tornar possível uma análise sociológica mais fina da


aplicação da Lei Tutelar Educativa procedemos à recolha de um conjunto de
dados dos processos - considerámos as mesmas variáveis avaliadas na
análise estatística a nível nacional - que se encontravam na fase jurisdicional
nos Tribunais de Família e Menores de Lisboa e de Coimbra: um tribunal
situado num contexto hiperurbano e outro numa cidade de média dimensão. A
análise incidiu sobre uma amostra aleatória de cerca de 55% dos processos
entrados na fase jurisdicional, em cada um daqueles tribunais, entre 2001 e
2003, considerando, quer os processos que já tinham uma decisão em primeira
instância, quer os que se encontravam ainda pendentes. A análise destes
dados permite-nos, considerando as variáveis acima identificadas, aquilatar
das diferenças entre os dois tribunais analisados. Permite-nos, ainda, avaliar o
desempenho dos advogados no processo tutelar educativo.

Com objectivo semelhante para a fase de execução, quer das medidas de


internamento, quer das medidas não institucionais, analisámos, através de uma
amostra aleatória de cerca de 50%, os processos individuais dos jovens a
quem foi aplicada uma medida em dois centros educativos- o Centro Educativo
da Bela Vista (Lisboa) e o Centro Educativo dos Olivais (Coimbra)- e nas
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa XXVII

equipas de família e menores do IRS correspondentes. Esta análise tem um


duplo objectivo: conhecer o perfil social e “criminal” dos jovens a quem foi
aplicada uma medida, bem como o seu enquadramento sócio-familiar; e quais
os objectivos e as estratégias definidas e executadas tendo em vista o
cumprimento do fim último da Lei Tutelar Educativa: “a educação do menor
para o direito”.

Para complementar a nossa análise era fundamental ouvir os operadores


directamente envolvidos nesta questão. Para tal, realizámos várias entrevistas
semi-estruturadas com magistrados judiciais e do Ministério Público, dirigentes,
coordenadores e técnicos do IRS. Com o objectivo de promover uma discussão
mais alargada realizámos, ainda, um painel com magistrados judiciais e do
Ministério Público, advogados e representantes de instituições como a
Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Risco, o Instituto de
Reinserção Social, o Instituto da Solidariedade e Segurança Social e o Centro
Protocolar de Formação para o Sector da Justiça. Este painel, com a
autorização de todos os participantes, foi integralmente gravado e
posteriormente transcrito. As transcrições, depois de ligeiramente revistas,
foram enviadas para eventuais correcções a cada um dos intervenientes. A sua
publicação inclui todas as correcções que os próprios entenderam fazer. Neste
relatório incluem-se alguns excertos dessas entrevistas e desse painel de
modo a que pudéssemos caracterizar o olhar e o discurso dos operadores
sobre esta temática.

Apresentação do Relatório

Este relatório é composto por um volume e um anexo. O relatório está


dividido em nove capítulos. No primeiro capítulo, fazemos uma breve
abordagem teórica do fenómeno da delinquência juvenil. Nesta abordagem
consideramos dois vectores principais: a importância do contexto social e das
instituições socializadoras como factores explicativos da delinquência juvenil e
os seus modelos formais de prevenção e controlo.
XXVIII Introdução geral

No Capítulo II, procedemos a uma análise do direito internacional em


matéria de justiça de menores, dando conta dos principais instrumentos
jurídicos e das acções desenvolvidas no âmbito das Nações Unidas e do
Conselho da Europa. Terminamos este Capítulo com uma análise das acções
mais relevantes desenvolvidas pelas instituições da União Europeia em matéria
de criminalidade juvenil.

No Capítulo III, lançamos um breve olhar sobre o novo Direito de Menores


em Espanha, analisando a Ley Orgánica Reguladora de la Responsabilidad
Penal de los Menores e a sua aplicação.

A evolução do Direito dos Menores em Portugal no último século é


traçada no Capítulo IV, destacando-se as principais características do regime
jurídico da Lei Tutelar Educativa.

No Capítulo V, analisamos a aplicação da Lei Tutelar Educativa pelos


tribunais de família e menores à luz das estatísticas oficiais do Gabinete de
Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça e dos dados
recolhidos pelo Observatório Permanente da Justiça Portuguesa nos Tribunais
de Família e Menores de Lisboa e de Coimbra.

Como já referimos, a reforma do Direito de Menores, globalmente


considerada, pretendeu imprimir uma mudança de orientação normativa e,
consequentemente, de prática, neste âmbito do direito. No Capitulo VI
procuramos trazer para o debate a visão dos operadores que trabalham
directamente com estas questões (magistrados judiciais e do Ministério Público
(MP), advogados e técnicos do Instituto de Reinserção Social (IRS) e da
Segurança Social), ressaltando as disjunções entre os objectivos da lei e sua
aplicação prática.

Os Capítulos VII e VIII dizem respeito à fase de execução da lei. No


Capítulo VII, centramos a nossa análise na execução das medidas não
institucionais dando conta, para cada medida, dos principais problemas
identificados na sua execução. Análise semelhante é feita no Capítulo VIII para
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa XXIX

a medida tutelar educativa institucional, distinguindo-se nela os regimes de


internamento aberto, semiaberto e fechado. Em ambos os capítulos são
apresentados estudos de caso.

O Capítulo IX inicia-se com as conclusões da análise efectuada nos


capítulos anteriores. À luz dessas conclusões apresentamos um conjunto de
propostas que consideramos fundamentais para melhorar o desempenho da
Lei Tutelar Educativa.

O volume em anexo corresponde à transcrição na íntegra do debate do


painel. Todas as identificações dos intervenientes são ocultadas em
publicação. A identificação faz-se apenas pela menção da letra P seguida de
um número atribuído a cada um dos participantes em função da ordem da sua
primeira intervenção no painel.
Capítulo I

Os jovens, o crime e a justiça

Introdução

As transformações sociais, económicas, políticas, tecnológicas, entre


outras, vividas nas últimas décadas nas sociedades contemporâneas,
evidenciam a incerteza e o risco que governam os nossos dias. Embora toda a
sociedade tenha que lidar com essa incerteza, há grupos mais frágeis que
ficam especialmente vulneráveis a essas mudanças no tecido social. As
crianças e os jovens constituem um desses grupos, sobretudo quando estão
inseridos num contexto social marcado pela mudança na composição do
núcleo e das dinâmicas familiares, pelo desemprego, pelo alcoolismo, pela
toxicodependência e pelo crime. Para vários autores, a juventude é o espelho
da sociedade e, consequentemente, todos os problemas sociais se reflectem
de imediato nos jovens, levando a que estes sejam avassalados por um vazio
psicossocial e cultural e por uma falta de referências e valores para a sua
existência (Queloz, 1994).

Em Portugal, nos finais da década de noventa, e em boa medida devido a


alguns casos mediáticos de criminalidade juvenil, começou a surgir uma
preocupação crescente com o fenómeno da delinquência juvenil. Imagens
violentas veiculadas diariamente pelos media levaram a que o cidadão comum
sentisse que podia estar sujeito a agressões permanentes, aumentando o seu
sentimento de insegurança. A mediatização deste fenómeno contribuiu para
que, de acordo com Maria João Carvalho (2000), a opinião pública em Portugal
começasse a acreditar que a sociedade actual é, de facto, mais violenta que as
2 Capítulo I – Os Jovens, o crime e a justiça

que lhe antecederam levando, consequentemente, a uma diminuição da


capacidade de tolerância perante comportamentos desviantes e delinquentes1.

Este sentimento de insegurança fomentado pelos media, “ascendeu à


categoria de preocupação nacional em todos os países industrializados”
(Lourenço, 1998: 51). Analisando a criminalidade cometida por jovens na União
Europeia, a Presidência da União Europeia considera que esta se caracteriza,
em termos gerais, pelo aumento do número de factos violentos cometidos por
jovens (sendo muita desta violência gratuita); pela existência de grupos de
jovens delinquentes um pouco por todos os Estados-membros; pelo aumento
do número de práticas reincidentes; pelo aumento do número de jovens do
sexo feminino envolvidas em práticas delituosas; pela diminuição do nível
etário dos jovens delinquentes; pelo acentuar das ligações entre delinquência
juvenil, consumo e tráfico de drogas, e criminalidade de adultos; pelo aumento
da gravidade dos actos de violência racial e xenófoba; e pelo facto de muitos
dos factos qualificados como crime praticados por jovens terem como vítimas
outros jovens, o que leva a que sejam os jovens os mais expostos à violência
da delinquência juvenil (Figueiredo, 2001a). Olhando para este cenário, importa
reflectir sobre a relação entre os jovens, a delinquência e a justiça.

1
Os dados relativos a esta questão parecem não ser consensuais e registam uma tendência
diferente consoante a natureza da criminalidade. Com efeito, se os dados da Polícia Judiciária,
que investiga a criminalidade mais grave, evidenciam um rejuvenescimento dos autores do
crime, no que se refere aos dados da GNR e da PSP, o escalão que pode ser conotado com a
delinquência juvenil - actos praticados por menores de 16 anos - vai diminuindo de 1993 a
1996 e tem uma maior incidência nas Áreas Metropolitanas, sobretudo na de Lisboa (Lourenço,
1998: 56-57). Em 2000, um relatório da Procuradoria-geral da República demonstrava que os
actos criminosos praticados por menores não têm vindo a aumentar. Em sentido contrário, o
Relatório de Segurança Interna, referente a 2000, refere que a delinquência juvenil assume um
papel cada vez mais importante na pequena criminalidade, tendo tido uma evolução crescente
nos últimos anos.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 3

1. A delinquência e a criminalidade juvenil: uma breve abordagem


teórica

Os problemas relacionados com as crianças e jovens foram objecto de


diversos estudos, nomeadamente nos domínios da criminologia, da sociologia
e da psicologia. Parte desses estudos abordam, de forma directa ou indirecta, o
fenómeno da criminalidade e da delinquência juvenil, bem como o papel da
comunidade na prevenção desse fenómeno.

O estudo da delinquência juvenil2 começou a desenhar-se no início do


século XIX, chegando esta a constituir-se como área privilegiada de actuação
estatal em diversos países europeus e nos EUA.

As teorias culturalistas apareceram nos EUA na década de 20 com a


“Escola de Chicago”, como resultado da proliferação de fenómenos, ditos
urbanos, como os bairros problemáticos e os gangs de adolescentes. As
teorias culturalistas abordam a questão da delinquência através da aquisição,
por parte dos indivíduos, de um sistema de valores, ou seja, é a aquisição de
uma dada cultura que vai determinar os seus comportamentos: se os sistemas
de valores adquiridos são favoráveis à delinquência, os indivíduos tornar-se-ão
delinquentes; se, pelo contrário, os sistemas de valores são hostis à
delinquência os indivíduos não se tornarão delinquentes. Há várias teorias que
se inserem nas teorias clássicas culturalistas e que importa aqui mencionar.

A teoria da associação diferencial de Sutherland é a principal teoria


“clássica” da sociologia da delinquência. Esta teoria desenvolve dois princípios.
O primeiro é o princípio da aprendizagem que defende que o comportamento
criminal é apreendido, ou seja, é o resultado da aprendizagem que se verifica
no quadro de pequenos grupos íntimos que transmitem técnicas que permitem
realizar actos delinquentes. O segundo princípio é o da associação diferencial
que diz que: “uma pessoa torna-se delinquente devido a um excesso de

2
Para a abordagem destes estudos, seguimos de perto Fillieule, 2001.
4 Capítulo I – Os Jovens, o crime e a justiça

definições favoráveis à violação da lei” (Fillieule, 2001). Quanto mais a


associação a um certo grupo é frequente, durável e intensa, mais o julgamento
desse grupo sobre a delinquência pesará na determinação do comportamento
do indivíduo.

As teorias da tensão defendem a ideia que os delinquentes potenciais são


colocados em situações onde são submetidos a fortes contradições. Essas
forças contraditórias criam um conflito interior (uma tensão) cuja resolução
implica que o indivíduo adopte um comportamento delinquente. A delinquência
é definida não apenas como uma simples série de actos efectuados por um
indivíduo, mas como um verdadeiro papel no sentido da teoria
estrutural-funcionalista.

As teorias mistas, cujo autor mais célebre é Cohen, operam uma síntese
entre as teorias culturais e as teorias da tensão. Estas teorias admitem que a
delinquência juvenil constitui uma subcultura e que essa se transmite no seio
de gangs delinquentes, dos membros mais velhos para os mais novos.
Admitem, também, que a delinquência tem a sua fonte numa “tensão”, num
problema de ajustamento sofrido pelo futuro ou pelo potencial delinquente.

A teoria da rotulagem (estigmatização) considera que as formas de


reacção social não são eficazes para combater a delinquência, uma vez que
são elas próprias que possibilitam o aparecimento da delinquência. Esta teoria
focaliza-se na reacção social, isto é, nas reacções dos familiares do
delinquente, da instituição judiciária ou do público em geral, aos actos
delinquentes praticados pelo indivíduo. O enfoque é, portanto, nos processos
pelos quais as pessoas são definidas pelos outros como desviantes.

Embora sofrendo várias críticas, foram aqueles quadros teóricos que


predominaram na década de 50, estando os sociólogos da delinquência
sobretudo mobilizados para explicar a constituição dos gangs de adolescentes
nos bairros pobres das grandes cidades.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 5

A partir de 1960 surgem várias críticas ao paradigma culturalista,


preconizadas, entre outros, por David Matza. Para este autor existe uma
subcultura da delinquência mas não uma subcultura delinquente. David Matza
mostra que as teorias culturalistas repousam sobre duas hipóteses: (1) os
valores do delinquente estão em oposição directa com os do não-delinquente;
(2) o delinquente age de acordo com os seus valores. Cada uma destas
hipóteses pode ser posta em causa, uma vez que, para Matza, é possível que
o delinquente tenha os mesmos valores que os outros e aja de acordo com os
valores comuns. Para este autor é necessário distinguir entre “subcultura
delinquente” e “subcultura de oposição”, sendo esta última definida como um
sistema de valores anti-conformistas que é reivindicado pelos grupos
minoritários. Quando os indivíduos aderem a uma “subcultura de oposição” e
são apanhados pela polícia no quadro das suas actividades desviantes, eles
continuam a reclamar o seu próprio sistema de valores e consideram a prisão
injusta. Numa “subcultura delinquente” a reacção do jovem delinquente quando
é preso, também é pautada pela indignação porque acredita que é acusado
injustamente. No entanto, a sua reacção demonstra implicitamente que ele
aceita que os actos delinquentes de que é acusado sejam punidos, afirmando
sempre que é inocente e que não os cometeu.

A década de 60 representa, assim, um importante marco nos estudos da


delinquência. Em primeiro lugar, o recurso a novas metodologias contribui para
o aparecimento de novos eixos de análise nesta matéria: os chamados
inquéritos auto-revelados, através dos quais os adolescentes revelam a
natureza e a frequência dos seus eventuais actos delinquentes e as sondagens
de vitimação, que consistem em estudar uma amostra representativa da
população questionando-a sobre quais foram os actos delinquentes de que
foram vítimas durante um determinado período de tempo. Em segundo lugar,
os países ocidentais confrontam-se com uma explosão das diversas formas de
delinquência. O facto de esta explosão surgir durante um período de
crescimento económico, com um baixo nível de desemprego e com uma
tendência para diminuição das desigualdades sócio-económicas, levou a que
as teorias tradicionais se tornassem desadequadas. É neste contexto que a
6 Capítulo I – Os Jovens, o crime e a justiça

teoria do controlo social atinge o seu auge. Esta teoria funda-se na ideia de
que, uma vez que todo o indivíduo é um potencial delinquente - basta ceder à
tentação -, não é a delinquência que precisa de ser explicada, mas sim a sua
ausência. De acordo com esta teoria, cujo principal autor é Travis Hirschi, um
indivíduo torna-se delinquente se os laços que o ligam a outros membros da
sociedade, nomeadamente a família e a escola, estão enfraquecidos ou
quebrados. Quando um indivíduo está nessa situação (“sem controlo”) os
obstáculos que o poderiam impedir de realizar um acto delinquente estão
excluídos. Só resta agora o cálculo racional que o pode incitar a respeitar as
leis e as regras morais. Mas como a acção delinquente permite obter certas
gratificações mais rápida e facilmente que o respeito pelas leis, a racionalidade
instrumental pode levar o indivíduo a cometer actos delinquentes. A
delinquência pode, deste modo, surgir logo que o “laço” que liga o indivíduo à
sociedade se afrouxa ou quebra.

Ainda na década de 60, surge um outro paradigma explicativo: o


paradigma multifactorial, que se funda na análise empírica de grupos de
delinquentes ou adolescentes. Essas observações permitem evidenciar uma
multiplicidade de variáveis (biológicas, psicológicas e sociais) que se
relacionam com a delinquência e podem constituir factores explicativos. O
paradigma multifactorial procura explicar a sucessão de fases de delinquência
na vida de um indivíduo e, para isso, apoia-se no conceito de “carreiras
delinquentes”. “Carreira delinquente” consiste na sequência longitudinal de
infracções cometidas por um delinquente que tem uma taxa de delinquência
detectável durante um certo período, o que não significa que esse indivíduo
faça da delinquência uma profissão. Como variáveis descritivas deste conceito
temos a participação e frequência (podem ser medidas através de dados
oficiais ou a partir de inquéritos de auto-revelação); o início da carreira
delinquente (idade em que é cometido o primeiro acto delinquente); o fim
(idade em que é cometido o último acto delinquente); e a duração da carreira.
Estas variáveis são importantes porque permitem saber quais os factores que
permitem um aumento ou uma diminuição da duração da carreira.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 7

Na década de 70, desenvolve-se um novo paradigma explicativo, o


paradigma da acção (fundado sobre a análise da acção delinquente). Trazendo
consigo a noção de “actor racional”, este paradigma procura explicar o enigma
da explosão da delinquência não através da motivação do delinquente (que foi
o principal sujeito do estudo das teorias culturalistas), mas pela multiplicação
das ocasiões de delinquência. As concepções preventivas são renovadas pelo
desenvolvimento de técnicas de prevenção situacional. Um dos autores deste
paradigma é Maurice Cusson que elaborou uma tipologia dos objectivos da
acção delinquente. Para este autor, a acção delinquente consiste em cometer
um delito para manifestar energia e para ter a sensação de viver intensamente.
A actividade delinquente não é, neste caso, um meio em vista de outro fim,
como um roubo, mas é, ela própria, o fim. O prazer que provoca ao seu autor é
intrínseco aos próprios actos. É o prazer de viver momentos intensos numa
“sucessão rápida de episódios excitantes”. Para Cusson, os delinquentes, mais
que os outros, precisam de sensações fortes, pois as actividades delinquentes
opõem-se às actividades rotineiras sem risco e que visam um benefício no
longo prazo. Este autor introduz, também, o conceito de apropriação, isto é,
roubar para aproveitar o bem do outro; de agressão, que pode ser utilitária,
defensiva ou vingativa; e de dominação, ou seja, cometer um delito para obter
supremacia sobre alguém. Defende, ainda, que qualquer um dos fins é
escolhido porque as oportunidades legítimas são poucas. Quanto maiores são
as oportunidades legitimas que se oferecem a qualquer um, menos tendência
haverá para escolher uma actividade delinquente, e contrariamente, quanto
maiores são as oportunidades criminais que se oferecem a alguém, mais
tendência haverá para escolher uma actividade delinquente (Fillieule, 2001).

Nos anos 80, a teoria do vidro partido conduz ao aparecimento de novas


formas de intervenção policial baseadas na prisão e na aplicação restrita das
leis, mas principalmente na manutenção de uma ordem de proximidade
destinadas a evitar espirais de deterioração (Fillieule, 2001).
8 Capítulo I – Os Jovens, o crime e a justiça

Nos dias de hoje, a problemática da delinquência permanece, sobretudo,


associada ao conceito de desvio social3, que é um conceito amplo e complexo
e, por isso, de difícil definição. Podemos dizer que o desvio “aplica-se às
condutas individuais ou colectivas que transgridem as normas de uma dada
sociedade, ou de um grupo. Refere-se à ausência ou falha de conformidade
face às normas ou obrigações sociais” (Ferreira, 1995: 459). Assim, se “o
desvio é constituído por uma transgressão a uma norma social”, a delinquência
“é uma forma particular ou um sub-conjunto do desvio” que “é constituída por
uma infracção a uma norma penal” (Queloz, 1994).

São várias as perspectivas teóricas sobre os diferentes tipos de


delinquência juvenil e mesmo sobre a definição desse conceito, o que
demonstra que este está longe de ser um conceito homogéneo. Como refere
Maria João Leote de Carvalho, seguindo na esteira de Binder4, há três grandes
categorias explicativas do fenómeno de delinquência juvenil: uma primeira que
engloba as sustentadas pela opinião pública, reflexo de crenças sobre a
natureza humana e ordem social na qual cada indivíduo está inserido; uma
segunda que abarca as explicações produzidas pelas autoridades como
políticas de controlo legal; e, por fim, uma terceira categoria que compreende
explicações teóricas decorrentes de investigações por parte de cientistas
sociais (2002: 37).

Referimos, de seguida, algumas definições de delinquência juvenil desde


finais dos anos 80.

Dickes e Hausman (1986) propõem uma definição abrangente de


delinquência que abarca todos os comportamentos problemáticos que se
manifestam no decurso da transição dos jovens para a vida adulta, isto é,

3
Giddens alerta-nos que, uma vez que a vida em sociedade é constituída por normas, qualquer
um de nós pode, em qualquer momento, transgredir uma norma. Refere, ainda, que “aquilo que
é visto como «desviante» pode variar ao longo do tempo e do espaço. O que é definido como
comportamento «normal» num determinado contexto cultural pode ser rotulado como
«desviante» noutro contexto” (1998: 28).
4
Ver Binder, Arnold (1987). “An historical and theoretical introduction” in QUAY, Herbert (ed.),
Delinquency and crime, current theories. New York: Cambridge University Press, pp. 149, 198.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 9

“comportamentos de quebra das condutas sociais convencionais que o


indivíduo manifesta decorrentes de um processo de socialização juvenil”
(Carvalho, 2002: 37). De acordo com esta definição, as infracções legais são
apenas uma parte da totalidade desses comportamentos.

Para Emler e Reicher, a delinquência não decorre de carências


cognitivas, sociais ou morais, mas sim de uma relação de confronto com a
autoridade legal. Durante a adolescência acciona-se uma nova fase da relação
entre o indivíduo e a ordem institucional, sendo no decorrer desta fase que
alguns adolescentes se orientam para uma rejeição da regulação social formal
em proveito de uma gestão informal dos laços sociais. A percepção negativa
dos representantes da autoridade formal e as condutas delinquentes são dois
fenómenos que traduzem a preferência por uma gestão informal das relações
sociais. Desenvolver uma reputação delinquente seria, portanto, uma escolha
deliberada, podendo constituir um critério de pertença a um grupo, um meio de
impressionar os pares ou de se fazer respeitar (Bégue, 2000).

Sebastien Roché (2000), por seu lado, avança uma definição de


delinquência juvenil que combina três factores: acção, intenção e reacção. No
que se refere à acção, o autor diz-nos que a realização de um acto depende da
existência física de um alvo e da sua acessibilidade que se verifica na sua
existência, na sua exposição e na sua vulnerabilidade.

O segundo factor refere-se à intenção apoiada numa motivação. De


acordo com esta perspectiva, não se realizam actos contra a vontade da
pessoa, ou seja, não temos todos os dias de roubar ou agredir. Para este autor,
a questão do acesso aos alvos é fundamental para a motivação e a acção
delinquente. A emergência e consolidação da classe média provocaram
grandes alterações no estilo de vida, aumentando fortemente o consumo dos
bens. Os veículos difundiram-se, os domicílios encheram-se de objectos de
valor, os circuitos de distribuição mudaram da mercearia para o supermercado,
isto é, os alvos multiplicaram-se estando cada vez menos protegidos, tal como
as vítimas potenciais (cada vez mais apetrechadas de livros de cheques e
cartões de crédito). A motivação do jovem pode também estar relacionada com
10 Capítulo I – Os Jovens, o crime e a justiça

a função dos laços humanos, especialmente da família, na sua vida – as


gratificações ligadas à realização de um acto podem ser materiais mas também
podem ser simbólicas, como quando a acção se liga ao prestígio, ao
reconhecimento do sucesso num grupo ou face a um público maior. Surge
aqui, por exemplo, o conceito de “cultura de rua”, que favorece as práticas
delinquentes.

O terceiro factor mencionado por este autor é a reacção, que pode


consistir numa sanção, numa reprovação simples ou numa acção de
prevenção. O resultado da transformação das intenções em acções pode,
ainda, depender da reacção social ao acto praticado, em especial por parte da
família e da escola, os dois pilares da socialização.

Pedro Moura Ferreira defende que é “um erro assumir que a maior parte
dos delinquentes são diferentes dos não-delinquentes” (1997: 917), até porque,
como mostram os inquéritos de delinquência auto-revelada, a adolescência é
caracterizada por um estado que não é nem de dependência absoluta nem de
responsabilidade completa, é um continuum entre a liberdade e o controlo.
Assim, “para a maior parte, a delinquência é, quando muito, uma experiência
esporádica e transitória e nunca um modo de vida” (Ferreira, 1997: 917). Deste
modo, o autor caracteriza a delinquência juvenil recorrendo a duas imagens: a
de delinquente subsocializado e a de delinquente socializado. O conceito de
delinquente subsocializado resulta das teorias do controlo social que apontam
como causa da delinquência a ausência de laços fortes entre o indivíduo e a
sociedade, nomeadamente no que se refere às relações com os outros e com
as instituições convencionais e à crença na legitimidade da ordem legal. A
manutenção destes laços inibe as práticas delinquentes uma vez que assegura
um controlo externo e interno do indivíduo, diminuindo as possibilidades de
este cair na delinquência (Ferreira 1997: 918).

No delinquente socializado a delinquência explica-se pela aprendizagem


de comportamentos socialmente desviantes através da exposição às acções
dos outros, isto é, o jovem toma essas acções como modelos para as suas
próprias acções. Esta exposição a comportamentos delinquentes é mais
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 11

comum em populações mais vulneráveis a sentimentos de frustração e de


injustiça pelo facto de não terem acesso legítimo a objectivos e oportunidades
culturalmente determinados. A existência desses sentimentos leva à rejeição
dos objectivos convencionais da sociedade e ao envolvimento com meios
ilegítimos de os obter (Ferreira 1997: 918-919).

Também para o psicólogo Eduardo Sá, a problemática da delinquência


juvenil não pode ser confundida com um diagnóstico clínico. Considera que,
“são raras as vezes em que se fala das circunstâncias traumáticas a que estes
jovens foram sendo expostos, em consequência das famílias sem qualidades
onde cresceram, e dos ambientes onde terão vivido múltiplos episódios de
violência e de maus-tratos cumulativos” (2002: 64).

2. Alguns factores explicativos da delinquência juvenil de hoje: a


importância do contexto e das instituições socializadoras

Decorre do que já se deixou dito no ponto anterior que a delinquência


juvenil dificilmente pode ser analisada como se de uma categoria fechada se
tratasse. Qualquer abordagem à delinquência juvenil procura ter em conta o
contexto social em que o jovem está inserido, bem como as dificuldades que
afectam o percurso da criança ou jovem. Com efeito, embora não exista uma
única explicação para o facto do jovem ter comportamentos delinquentes,
vários autores defendem que estes se prendem, hoje, na grande maioria dos
casos, “com os espaços e com as dinâmicas sociais onde se [vêm] a
desenrolar, no seio de comunidades fragmentadas e onde as instituições
tradicionais de controlo social, designadamente a família e a escola, se vêem
sem grande eficácia sendo, também elas, alvos preferenciais dessa mesma
violência no que são acusadas de disfuncionamentos de diversa ordem”
(Carvalho, 2000: 36).

É nesta esteira que várias abordagens sociológicas seguem, enfatizando


os laços sociais, económicos e culturais, como estando intimamente ligados
12 Capítulo I – Os Jovens, o crime e a justiça

com a problemática da delinquência juvenil: Paugam (1991) fala de dinâmica


de desqualificação social; Barel (1984) refere a sociedade do vazio; Duvignand
(1986) aborda a questão das zonas de marginalidade invisível; Bolle de Bal,
fala em sociedades estilhaçadas que conduzem uma série de
desenlaçamentos ontológicos, psicológicos, sociais e culturais. Por outro lado,
estudos efectuados nos subúrbios franceses (Dubert e Lapeyrronnie, 1995) e
Suíços (Friburgo, 1991) concluem que a exclusão se configura como uma
questão central, e que duas problemáticas se acumulam: o desatar de laços
com a família, a escola, a formação profissional e o trabalho e uma situação
global de precariedade social, económica, cultural e identitária. A experiência
de “zona” (área de encontro e estadia de jovens) compreende-se como uma
estratégia de inserção face ao isolamento, do recuo face à sociedade global, de
contestação e revolta.

Walgrave (1994), que efectuou estudos sobre jovens oriundos de meios


precários e violentos sublinha o conceito de vulnerabilidade social, noção
estrutural e interaccionista, que evoca as situações de risco que podem ocorrer
entre indivíduos e grupos, geralmente minoritários, nos seus contactos com as
instituições sociais oficiais: escola, segurança social, justiça penal, etc.

Também de acordo com as conclusões de um seminário promovido pela


Presidência da União Europeia, a análise dos factores da delinquência juvenil
na Europa tem que ter em consideração, entre outros, a “relação entre a
delinquência juvenil e o crescimento urbanístico desordenado, sobretudo nas
periferias dos grandes centros urbanos”; “a relação entre a delinquência dos
menores e a exclusão social, económica e cultural, num contexto de
sociedades de elevados padrões de consumo e de ascensão e sucesso social”;
“a relação entre a delinquência juvenil e os movimentos migratórios, com as
correspondentes desadaptações sociais”; e “as fragilidades das instâncias
tradicionais de socialização (...) perante os primeiros sintomas de desvio social
e as suas dificuldades em transmitir valores fundamentais” (Figueiredo, 2001a).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 13

A delinquência como fenómeno urbano

A delinquência juvenil tem sido vista como um fenómeno essencialmente


urbano5. A desertificação dos centros das cidades aliada à desindustrialização
e ao envelhecimento demográfico levou ao crescimento desregulado das
periferias fazendo emergir uma nova realidade que é a das
“cidades-dormitório”. Nesta nova realidade crescem problemas sociais como a
pobreza, o desemprego e a proliferação de situações de economia subterrânea
que conduzem à exclusão social (Carvalho, 2000: 34-35).

Walgrave (1994) defende que a cidade com as suas zonas comerciais e


recreativas é bastante atractiva para os jovens que estão a desenvolver a sua
independência, potenciando o aparecimento de subculturas juvenis. Com o
claro objectivo de afirmarem a sua identidade, os jovens criam lugares de
encontro, canais de comunicação, expressões e códigos que não são
controlados por influências externas. A rejeição à conformidade é tolerada e até
apreciada. Estas novas vivências dos jovens potenciam a delinquência,
também ela potenciada pela existência de um grande conjunto de potenciais
alvos de vandalismo, furtos, roubos e factos mais ou menos violentos. Estes
factores fazem com que seja nas cidades que se verificam as maiores taxas de
delinquência juvenil, em especial em alguns bairros. Como sublinha Maria João
Carvalho, o facto de certos bairros estarem próximos de linhas férreas,
auto-estradas, depósitos ou equipamentos sociais, são factores que aumentam
a exclusão social, situação agravada quando se deixa para segundo plano a
construção de equipamentos básicos de saúde, educação e lazer para as
populações desses bairros (2000: 39). Quando construídos, a rápida

5
Tal não significa que não exista delinquência juvenil no meio rural ou, tão pouco, que esta não
seja revestida de uma complexidade que mereça ser estudada. No entanto, sabemos que a
delinquência juvenil que ocorre no meio rural é menos visível. Por um lado, porque este meio
tem uma grande capacidade de inclusão dos seus membros que apresentam, ocasionalmente,
um comportamento desviante, conseguindo, as instâncias socializadoras exercer um controlo
mais eficaz. Por outro lado, a grande maioria dos estudos sobre delinquência juvenil debruça-
se sobre a delinquência urbana porque é esta que é susceptível de colocar em causa a
insegurança da maioria dos cidadãos, havendo uma maior necessidade de criar e de dotar de
eficácia instâncias formais de controlo nas áreas urbanas.
14 Capítulo I – Os Jovens, o crime e a justiça

degradação dos equipamentos e a sua baixa qualidade contribui para que


estes sejam objecto de vandalização, nomeadamente através de vidros
partidos e graffitis, por parte dos jovens e dos seus grupos de pertença numa
luta pela apropriação do território (Carvalho, 2000: 40).

O facto de muitos destes espaços estarem votados à marginalização por


serem identificados com guetos e comunidades de imigrantes, leva,
igualmente, a que a sua população residente seja objecto de racismo e
segregação.

O próprio espaço exterior ao bairro passa a ser alvo de cobiça por parte
destes jovens que crêem ser possível nesse espaço satisfazerem de forma
mais imediata as suas necessidades. Assim, nas palavras de Maria João
Carvalho, “a imagem do espaço onde se reside contribui, de forma significativa,
para a construção de uma identidade social; se a imagem que o exterior tem de
um determinado local é depreciativa, essa adjectivação estende-se aos seus
residentes promovendo fenómenos de estigmatização que condicionam (...) os
processos de interacção social no reforço de situações de marginalização,
exclusão e desviância” (2000: 40-41).

Família e Escola: instâncias de controlo social

Também o controlo social exercido pelas instituições socializadoras


típicas – a família e a escola6 - é insuficiente perante a complexidade e
tamanho da cidade. Para Pedro Moura Ferreira, a centralidade que a família e
a escola ganham na problemática em torno da delinquência juvenil “nasce da
nossa convicção de que a delinquência é produto da incapacidade dessas duas
estruturas de socialização de levarem, em muitos casos, a bom termo as

6
Alguns autores referem ainda a influência dos media, considerando que a “televisão, cinema,
rádio e a música têm profundos efeitos no desenvolvimento da juventude. Antes de
estabelecerem o seu próprio sistema de valores e estarem aptos a fazerem as suas opções
éticas os jovens são sujeitos a uma promoção agressiva da violência como um aceitável e,
muitas vezes desejável, modo de vida” (Cabral, 1998: 90).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 15

responsabilidades e os deveres que socialmente lhes competem realizar (...). A


falta de acompanhamento e de supervisão ao longo do desenvolvimento infantil
e juvenil justifica o aparecimento de comportamentos que muito se afastam
daqueles que aos nossos olhos exprimem o conceito ideal de infância e de
juventude” (1997: 913).

Se é verdade que a família é uma instituição que tem sofrido várias


alterações ao longo do tempo, também é sabido que “se há instituição que se
tem adaptado às diferentes formas de viver em sociedade, demonstrando a
plasticidade e a flexibilidade das suas formas de organização, ela é certamente
a família” (Almeida, 1994: 117). A família funciona, para muitos, como um lugar
de bem-estar e de realização pessoal. No entanto, as relações familiares
apresentam, também, cada vez mais, um lado menos explícito onde se
escondem histórias de negligência, desresponsabilização paterna, violência
psicológica e física e de abuso sexual. São vários os estudos que consideram
que as disfunções familiares contribuem directamente para a delinquência
juvenil.

De acordo com as teorias do controlo social, a relação entre pais e filhos


é fundamental para compreender as causas da delinquência juvenil.
Considera-se que “a influência protectora da família em relação à delinquência
estrutura-se em torno de três dimensões: a supervisão familiar, a identificação
com os pais e a comunicação íntima. A maior sensibilidade em relação às
preocupações e às orientações dos pais aumenta a probabilidade de a criança
levar em consideração essas preocupações e orientações quando se debate
com a possibilidade de vir a cometer um acto delinquente. Os laços familiares
inibem ou controlam a delinquência, porque o adolescente não quer pôr em
causa as relações positivas que mantém com os pais” (Ferreira, 1997: 920).
Quando a estrutura familiar se dissolve ou sofre alterações, o seu poder de
influência e supervisão sobre o comportamento dos jovens diminui
consideravelmente, podendo estes, mais facilmente, optar por comportamentos
desviantes.
16 Capítulo I – Os Jovens, o crime e a justiça

Para Sebatien Roché (2000), os valores veiculados no meio familiar têm


uma ligação com o comportamento das crianças, sendo os pais um dos pilares
da sua socialização, as figuras da identificação (positiva ou negativa) e uma
fonte de afecto. A este respeito, um estudo efectuado por West e Farrington
demonstrou que “na gama dos comportamentos dos pais, a atitude e a
disciplina materna estão mais estreitamente associadas à delinquência do que
a atitude e a disciplina paterna ou o conflito dos pais” (apud Groenseth, 1991:
128), embora também se tenha constatado que “os pais cruéis, passivos ou
negligentes foram tão nocivos como as mães cruéis, passivas ou negligentes”
(1991: 127). Esta não é, no entanto, a conclusão de um outro estudo, realizado
por McCord,7 que indica que os maus pais são um pouco menos nocivos do
que as más mães (idem).

Deste modo, alguns autores defendem que se pode falar de diferentes


tipos e graus de delinquência consoante as situações familiares em que o
jovem se encontra inserido. Quando, por exemplo, surgem actos mais graves
de delinquência juvenil na classe média, estes podem ter origem numa
situação familiar conflituosa resultante de uma disciplina paterna demasiado
severa e restritiva imposta ao adolescente (Groenseth, 1991:134-135).

Um outro tipo de delinquência produz-se em todas as classes e culturas e


resulta mais de uma frustração afectiva do que de uma repressão autoritária.
Esta delinquência pode ir desde comportamentos marginais e relacionados
com o consumo de droga até à verdadeira violência. Quando, nestes contextos
familiares, a delinquência não surge, pode dever-se a três ordens de razões:
porque os conflitos e descontinuidades são menos graves do que o habitual;
porque o seu efeito criminógeno é combatido pela vigilância da sociedade; ou
porque nenhum comportamento delinquente a que o jovem se poderia associar
existe ao seu alcance (idem).

7
Sobre estes estudos ver Groenseth (1991).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 17

Naturalmente que a falta de vigilância ou a falta de afecto familiar são


factores mais visíveis e gravosos em contextos sócio-económicos mais
vulneráveis. Alguns estudos demonstram que quando os jovens da classe
média são delinquentes têm menos probabilidades de serem apanhados pela
polícia e condenados, uma vez que estão melhor integrados numa comunidade
que respeita a lei. Como fazem parte das redes sociais, os pais são capazes de
exercer um controlo colectivo evitando o recurso à polícia. Todos estes factores
contribuem para prevenir ou, pelo menos, conter a delinquência, aliados ao
facto de que estas famílias dispõem de recursos económicos e materiais que
lhes permitem melhorar a integração dos jovens na família, nas actividades de
tempos livres e no ensino.

Se a família é importante na socialização primária devido à intensidade


com que reforça as orientações e práticas que promovem a interiorização dos
controlos e asseguram a conformidade, este controlo começa a escapar à
família a partir da socialização secundária. A partir deste momento aumenta a
exposição à influência que as relações e acções dos outros têm nos
comportamentos dos adolescentes e jovens, sendo também esta uma das
razões para o aparecimento da delinquência. O contacto com subculturas que
rejeitam a escola pode anular ou neutralizar as orientações incutidas pela
família na socialização primária levando ao aparecimento de comportamentos
delinquentes. A escola, ao proporcionar identificações e integrações positivas,
reforça as orientações tradicionais, mesmo naqueles jovens em que a família
não cumpriu o seu papel na socialização primária (Ferreira, 1997: 923-924).

A universalização do sistema de ensino e o aumento dos níveis de


escolaridade obrigatória têm contribuído para democratizar o acesso à escola,
aos saberes e às oportunidades de vida que permitam uma mobilidade social
ascendente e uma integração social completa. A escola é vista, mesmo, com
uma instituição capaz de corrigir desigualdades sociais e ausência de controlo
familiar.

Contudo, como muitos autores reconhecem, este papel da escola nem


sempre é cumprido e o mau funcionamento escolar tem consequências na
18 Capítulo I – Os Jovens, o crime e a justiça

aprendizagem e integração social por parte dos jovens, podendo mesmo levar
à delinquência ou, pelo menos, não evitando que esta surja.

Identificámos três tendências na literatura clássica sobre a relação entre a


delinquência juvenil e a escola. Uma primeira interpreta o disfuncionamento
escolar como um sinal de dissociabilidade mais global e profunda. A segunda
considera a má escolaridade e a delinquência como duas situações “normais”
das classes sociais inferiores. Para esta posição, a escola é considerada uma
instituição de manipulação e controlo e a adaptação à sociedade dominante
forçada. A terceira tendência, inspirada em concepções interaccionistas,
considera que a má escolaridade tem lugar numa cadeia marginalizante de
significados e interacções, sendo que a delinquência é uma das manifestações
mais características desta posição marginal (Walgrave, 1991: 160-161).

Para Walgrave, a escola exerce influência sobre os jovens,


nomeadamente através do conteúdo da matéria ensinada – latente e
manifesta8 – e da estrutura hierárquica de classe e da escola, sobretudo em
três níveis: cultural, político e criminológico. Ao nível cultural, a escola transmite
as normas, as crenças e os valores da cultura da classe dominante na
sociedade, contribuindo, desse modo, para que os alunos reproduzam os
valores dominantes na sociedade (Walgrave, 1991: 173). Ao nível político, a
escola incita as crianças e jovens ao conformismo uma vez que “opera ao
mesmo tempo em favor da conservação e da confirmação da estrutura
político-económica existente, das suas instituições e das relações
socioeconómicas. O sistema político é apresentado como uma necessidade no
interesse de todos; a harmonia e a paz parecem asseguradas; os conflitos
eventuais provêm de marginais que apenas visam os seus interesses pessoais”
(idem). Por fim, a escola tem influências a um nível mais estritamente
criminológico, uma vez que condiciona “as representações e as atitudes para

8
De acordo com Walgrave, existe a matéria manifesta que é aquela que se pode ler nos
manuais, o que é dito abertamente, as regras oficiais, e existe a matéria latente que é menos
directa: as rotinas de todos os dias, as pressuposições não exprimidas que estão na base da
intervenção escolar (1991: 174).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 19

com as normas sociais, as transgressões e os transgressores de normas, os


sistemas de controlo, etc...” (idem). O papel activo da escola na formação das
atitudes e comportamentos face à criminalidade e à justiça verifica-se no facto
de a escola não fornecer conhecimentos neutros e objectivos nem ensinar
valores e normas naturais ou evidentes; a escola desperta o interesse dos
alunos para determinadas imagens, estereótipos, crenças e atitudes que estão
conformes com a cultura dominante e que favorecem a manutenção das
estruturas e relações socio-económicas e políticas existentes (idem, 1991: 175-
176). No entanto, tal como acontece com a família, nem sempre a influência da
escola é eficaz, por diversas razões.

Uma delas é, sem dúvida, o insucesso escolar, causa e consequência


dessa ineficácia. No seu estudo, Elliot e Voss, que seguiram 2 617 estudantes
de 8 escolas durante 5 anos, demonstraram precisamente que os maus
resultados escolares parecem ser um bom indicador da delinquência futura e
do abandono prematuro da escola (apud Walgrave, 1991: 178). De acordo com
a teoria do controlo social, os laços que se criam entre os jovens, a escola e os
professores, o grau de empenho em relação aos objectivos educacionais, o
tempo gasto na realização dos trabalhos de casa, a percepção da importância
do currículo académico, correlacionam-se negativamente com as práticas
delinquentes (Ferreira, 1997: 922). No entanto, a escola, por ter um modelo
muitas vezes demasiado rígido, não consegue atrair o interesse de certos
jovens, levando a que estes se mostrem desinteressados e obtenham maus
resultados escolares. Uma razão para esse fracasso assenta na
“homogeneidade opressiva do modelo de adaptação apresentado, por um lado,
e na heterogeneidade da preparação, dos interesses e das necessidades dos
alunos, por outro” (Walgrave, 1991: 187). O adolescente começa
progressivamente a não gostar da escola, a rejeitar a autoridade escolar e a
mostrar-se progressivamente desinteressado por todas as actividades
escolares, libertando-se do controlo que a escola exercia sobre ele e abrindo
espaço para que cometa actos delinquentes, não por frustração, mas para se
divertir (Hirschi apud Fillieule, 2001). Esta situação é particularmente
preocupante para as crianças e jovens de classes sociais inferiores que não
20 Capítulo I – Os Jovens, o crime e a justiça

encontram na escola satisfação nem para as suas necessidades, nem


tão-pouco para os seus interesses:

“Vários estudos mostraram, com efeito, que as normas, os valores,


os modos de organização e a linguagem predominantes no mundo
escolar transportam consigo uma determinada marca de classe, que
os tornam mais próximos dos padrões culturais das classes médias
e superiores do que das classes populares. Por isso, enquanto para
as crianças oriundas das classes favorecidas a escola é um mundo
onde estão relativamente à vontade, que é familiar, na medida em
que representa uma experiência de continuidade com o meio cultural
de que são provenientes, para as crianças oriundas das classes
populares ela é, muitas vezes, um universo estranho que não se
domina e com o qual se entre em ruptura” (Almeida, 1994: 125).

A escola acaba por se assumir como um espaço onde experimentam


apenas frustrações e fracassos, falhando, tal como a família, na sua vertente
socializadora. É, pois, um espaço onde se reflectem as frustrações criadas
noutros ambientes, designadamente o familiar. É isto que nos demonstra um
estudo de José Castro sobre a socialização das crianças de rua:

“A socialização familiar não preparou estas crianças para as regras


vigentes no sistema escolar. A ausência de controlo e afecto
familiares e os hábitos adquiridos na rua, onde permanecem muito
tempo por sua conta, ou sob a supervisão de irmãos pouco mais
velhos, torna-lhes penoso serem dóceis e bem comportados, como
esperam os professores, acatarem a disciplina, cumprirem horários
e, até, estarem atentos e manterem uma presença continuada nas
salas de aula, condições exigidas pelas regras elementares da
escola” (1999: 57).

Por outro lado, este fracasso escolar contribui, frequentemente, para que
a própria escola seja uma produtora de rótulos estigmatizantes, uma vez que
os alunos que experimentam o fracasso escolar são, muitas vezes,
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 21

estigmatizados por esse fracasso. Nesse sentido, João Ferreira de Almeida


considera que, “é a própria instituição escolar que está a criar condições para o
sucesso dos [alunos das classes mais escolarizadas] e o insucesso dos [alunos
oriundos dos meios populares], os quais, à medida que vão sentindo
dificuldades de aprendizagem, vão interiorizando, muitas vezes, uma imagem
negativa de si próprios, que só diminui ainda mais as possibilidades objectivas
de alcançarem resultados positivos” (Almeida, 1994: 125). Para Walgrave, esta
estigmatização “amplifica socialmente a importância do fracasso escolar: de
uma contra-performance isolada conclui-se pela incapacidade global da
pessoa; de uma indisciplina escolar por uma inadaptação social total. É aí que
a escola desempenha um papel activo no processo de marginalização social de
certos alunos. É aí também que se encontra o cerne de um desvio
perseverante” (Walgrave, 1991: 188).

A escola é, ainda, o local privilegiado para a formação de grupos etários


homogéneos, com representações e interesses comuns que constituem a
subcultura juvenil que pode, muitas vezes, ser de rejeição ou oposição à
escola.

Pedro Moura Ferreira afirma que esta “rejeição e a alienação em relação


à escola conduziam anteriormente a que muitos jovens optassem pelo seu
abandono e procurassem uma rápida integração na vasta força de trabalho
pouco ou nada qualificada. O alongamento da escolaridade obrigatória e a
diminuição desses postos de trabalho fecharam essa saída e fizeram com que
muitos desses jovens mergulhassem em subculturas cujas orientações não
estão voltadas para os aspectos convencionais da adolescência. A constituição
dessas subculturas é facilitada pela presença de problemas, tais como o
insucesso escolar o fraco desempenho escolar ou a presença de sentimentos
de frustração e de alienação em relação ao quotidiano e aos enquadramentos
escolares” (Ferreira, 1997: 923). Os grupos de jovens ficam, assim, expostos a
esta “subcultura de rejeição escolar” que pode ser uma importante via para a
emergência da delinquência.
22 Capítulo I – Os Jovens, o crime e a justiça

A notória importância destas subculturas na vida dos adolescentes leva a


que algumas correntes teóricas, nomeadamente a teoria do controlo social, nas
palavras de Hirschi, considere que, para além daquelas duas instâncias
socializadoras, também os amigos desempenham uma importante função de
controlo social9. Em primeiro lugar, porque a convivência com amigos
delinquentes pode, como já vimos, pouco a pouco arrastar o jovem adolescente
para a delinquência, ainda que, inicialmente, este não tendesse a enveredar
por esse caminho. Esta explicação é, aliás, uma das mais recorrentemente
utilizadas na sociedade: se um determinado jovem caiu na delinquência é
porque tem más companhias. Em segundo lugar, porque os delinquentes têm
tendência a formarem grupos constituídos por indivíduos com experiências
comuns e que, por isso, apreciam a convivência uns com os outros (Fillieule,
2001: 124).

3. Os jovens e a (sua) justiça: prevenir, controlar e punir

3. 1. Alguns estudos sobre a justiça dos jovens que praticam factos


qualificados como crime

Numa sociedade são vários os instrumentos para promover a


conformidade às normas e valores vigentes tentando, assim, controlar
comportamentos desviantes. Num sentido restrito, o controlo social implica
vigiar e punir. Prevê um conjunto de mecanismos de orientação da acção
individual e de sanções que reforçam, positiva ou negativamente, o
comportamento e que tem como objectivo adaptar os comportamentos às
normas sociais. O controlo liga-se ao desvio e tem, relativamente ao indivíduo,
uma intervenção externa e a posteriori.

9
Este é, no entanto, um dos aspectos mais criticados da teoria de Hirschi, pois segundo o
modelo de associação diferencial, o grupo de pares constitui uma parte privilegiada que
favorece a iniciação a práticas delinquentes e a aprendizagem colectiva de atitudes
desfavoráveis à autoridade legal (Bégue, 2000).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 23

Num sentido mais amplo, o controlo social tem, também, uma dimensão
interna e antecipadora. A socialização e a interiorização das normas e valores
culturais garantem, parcialmente, o controlo da sociedade sobre os indivíduos.
Nesse sentido, o controlo social é o conjunto dos mecanismos de socialização,
vigilância e sanção do comportamento. O controlo social passa, assim, também
a ser exercido pelo direito10.

O aparente fracasso das estruturas de socialização tradicionais,


designadamente a família e a escola, e o aparecimento de comportamentos
desviantes levaram à necessidade de intervenção de outras instituições de
controlo social no processo educativo dos adolescentes e jovens (Ferreira,
1997: 913). Estas instituições inserem-se no sistema de justiça juvenil.

Tal como a delinquência juvenil é alvo de múltiplas definições e


interpretações, também a relação dos jovens e crianças com a justiça é objecto
de múltiplos olhares. Em consonância com a evolução das explicações
apontadas para a delinquência juvenil, também a justiça de crianças e jovens
tem conhecido evoluções, resultado, em grande parte, de um crescente
interesse por parte de cientistas sociais.

De entre os estudos conhecidos11, importa citar os efectuados por Wilkins


(1958), Thomas (1977), Farrington et al. (1978) e Bursik (1983), que concluem
que as diversas medidas que o Tribunal de Menores aplica não têm como
consequência a diminuição da propensão do jovem a transgredir a norma legal.
Como razões apontam a influência de determinadas variáveis, tais como a
idade na primeira intervenção tutelar, o tipo de infracção, o tipo de medida
aplicada e sua execução, o tempo de permanência em instituições, o número
de detenções prévias, o consumo de droga, a escolarização, o sexo, a etnia, e
a classe social e sua ligação com variáveis sócio-demográficas.

10
Sobre a relação dos jovens com o direito ver Costa-Lascoux, Jacqueline (2001).
11
No elenco destes estudos, seguimos de perto Pedroso e Fonseca, 1999.
24 Capítulo I – Os Jovens, o crime e a justiça

Breuvart et al. realizaram, em 1974, um estudo sobre o funcionamento


das instituições de protecção judiciária à infância e adolescência que, apesar
de ter, inicialmente, como objectivo apenas a avaliação da eficácia do aparelho
institucional francês, veio a assumir uma perspectiva criminológica que
englobou, por um lado, o estudo das “carreiras” criminais dos sujeitos não
readaptados e o estudo dos tipos de intervenção relativos aos «tipos de
delinquente». O estudo concluiu pela importância determinante da intervenção
judiciária, mas também que, relativamente a uma proporção importante de
sujeitos (20%), a intervenção judiciária se mostrou ineficaz, crescendo com a
idade a tendência delituosa qualitativa e qualitativamente. O estudo destaca,
ainda, que escolha entre a prossecução da actividade criminal ou o
compromisso num processo de reinserção social é particularmente importante
entre os 18 e os 20 anos (apud, Pedroso e Fonseca, 1999: 135).

São, também, de referir, na década de 70, dois estudos de Leblanc. Um


primeiro, de 1976, aborda a questão da “delinquência escondida” e a
“delinquência aparente”. O autor começou por estudar a delinquência
escondida dos jovens com idades compreendidas entre os 12 e os 18 anos,
analisando diversas variáveis como, por exemplo, a idade, o sexo, o estatuto
social e a sua evolução no decurso de um determinado período de tempo. Num
segundo momento, analisou as transformações que incidem sobre o fenómeno
da delinquência escondida à medida que os actos passam a ser conhecidos
das instâncias de controlo social. Um segundo estudo, de 1978, analisou o
desenvolvimento da delinquência na adolescência face ao desenvolvimento
psicossocial ocorrido no período da adolescência.

Ainda na década de 70, Leomant (1977) apresentou um estudo sobre


jovens delinquentes com 16 e 17 anos de idade. Nesse estudo, o autor
construiu uma articulação teórica, com base em dados empíricos, baseada no
pressuposto de que “a lógica que rege a relação entre a delinquência (desvio) e
a justiça de crianças e jovens (instância de controlo social) é inseparável dos
processos de reprodução social” (apud, Pedroso e Fonseca, 1999: 133).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 25

Na década de 80, Amie et Garapon (1987) concluíram, analisando a


justiça de crianças e jovens em França, que o funcionamento destas jurisdições
permite identificar dois pólos, à volta dos quais se estruturam as suas práticas:
por um lado, a imposição autoritária/coactiva e, por outro, a negociação. Justiça
negociada quando em sede de protecção de crianças em perigo; justiça
coactiva em relação às crianças e jovens que praticam factos qualificados
como crime.

Dois estudos espanhóis merecem também, aqui, algum destaque.

Em Espanha, Giménez-Salinas (1981) realizou no Tribunal Tutelar de


Barcelona um estudo que abrangeu 4 256 crianças e jovens que praticaram
factos qualificados como crime nos anos de 1975 a 1976, analisando variáveis
como o sexo, conduta ou delito, medida e reincidência, com o objectivo de
estabelecer uma correlação entre a natureza da infracção cometida e a medida
educativa adoptada pelo Tribunal tutelar. Este estudo permitiu retirar algumas
conclusões importantes. Uma primeira conclusão foi a de que a legislação dos
Tribunais Tutelares de Menores (TTM), de 11 de Junho de 1948, estava
dominada por um critério paternalista e moralizador. Apesar dos princípios de
“protecção do menor” e de “necessidade de tutela”, os tribunais entendiam que
o jovem não era titular de direitos, privando-o das mais elementares garantias
características de um Estado de Direito. Também se concluiu que a
competência dos TTM abarca a noção ampla de “delinquência”, na qual se
inclui, quer a prática de factos qualificados como crimes, quer todos os casos
de jovens que se dedicam à mendicidade, vadiagem, libertinagem, prostituição.
A aplicação arbitrária deste critério, mostrou ser necessário distinguir de um
modo claro entre “menor delinquente” e “menor necessitado” de apoio social ou
protecção, sem que esta distinção signifique que um e outro recebam a ajuda e
o cuidado que precisam, nem que o primeiro deva ser tratado de um modo
mais repressivo. Uma terceira conclusão foi a de que as medidas da Lei dos
Tribunais Tutelares de Menores (LTTM) se caracterizavam pelo princípio da
educabilidade, aferido unicamente à sua personalidade. Por outro lado, a
liberdade de critério do juiz na escolha da medida mais conveniente e por
26 Capítulo I – Os Jovens, o crime e a justiça

tempo indeterminado, significava, por vezes, que o juiz decidia unicamente de


acordo com a sua moral e os seus critérios, que podiam não coincidir com as
necessidades da criança. Verificou-se, também, que, no período analisado,
apesar das suas potencialidades, não se aplicou nenhuma medida de “libertad
vigilada” (acompanhamento educativo) com o fundamento da inexistência de
“delegados” para a execução da medida. Quanto aos centros para
internamento de crianças e jovens, havia a consciência da sua ineficácia e da
sua falta de meios, estando, porém, condenados à contradição entre o que
eram e o que deveriam ser, dado que o Tribunal, devido a uma complexidade
de razões, não intervinha no seu melhoramento efectivo. Considerando os
centros existentes em Barcelona, os seus recursos económicos e o número de
pessoal especializado, concluiu-se que aqueles se limitavam a acolher as
crianças e jovens. Assim, a grande conclusão deste estudo foi a de que, de
facto, a actuação do sistema tutelar educativo se revelava ineficaz face à
delinquência, não conseguindo conter o desenvolvimento de “carreiras”
delinquentes nos jovens.

Cea D’Ancona (1992) efectuou um estudo semelhante relativamente ao


Tribunal Tutelar de Madrid, concluindo, também, pela ineficácia da sua
intervenção, aferida pelo desenvolvimento das “carreiras” criminais dos jovens
sujeitos a intervenção. Este estudo revelou que cerca de 41% dos jovens que
foram objecto de intervenção deixaram de estar sob a tutela do Tribunal por
manifestarem boa conduta ou readaptação. Contudo, segundo o mesmo
estudo, a maioria destes “êxitos” deveram-se a outras razões: características
pessoais, ambientais ou delituosas do jovem, que levaram o Tribunal a não
entender ser conveniente a aplicação de alguma das medidas existentes; o
Tribunal não tinha provas suficientes que culpassem o jovem dos factos
denunciados; o julgamento não se chegava a celebrar por não comparência do
jovem, por se encontrar em paradeiro desconhecido ou outro; ou o Tribunal
julgava que o caso não era da sua competência e decidia passar o processo a
outro Tribunal Tutelar ou a outra jurisdição.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 27

Também a análise da reincidência punha em causa a eficácia


reeducadora e de reinserção social das medidas aplicadas pela jurisdição
tutelar. A autora procurou, igualmente, caracterizar o jovem “seleccionado” pelo
Tribunal de Menores. Já num estudo anterior (1981), a autora tinha definido
criança-tipo sujeita a processos tutelares no Tribunal como sendo proveniente
de famílias deterioradas com relações conflituosas, de baixos recursos
económicos e de baixo nível cultural e profissional, habitando em residências
pequenas, com problemas de saneamento e infra-estruturas em bairros
desorganizados e excluídos. Procurando definir a criança-tipo do Tribunal
Tutelar de Madrid, a autora identificou as seguintes variáveis sociológicas. Em
primeiro lugar, havia uma clara predominância de jovens do sexo masculino. A
população feminina era de apenas 26%. As jovens do sexo feminino eram
acusadas de insubmissão paterna e conduta irregular e os do sexo masculino
de factos qualificados como crimes contra a propriedade (roubo ou furto). No
que se refere à idade, vemos que eram principalmente jovens do sexo feminino
de 14-15 anos e que os do sexo masculino tinham uma predominância nas
idades mais baixas. A maioria era de nacionalidade espanhola e de etnia paya,
todavia tinha aumentado o número de jovens ciganos, principalmente
mulheres. A família cigana, contrariamente à paya, raramente denuncia os
seus próprios filhos por conduta irregular ou insubmissão paterna. Não
possuíam qualquer tipo de deficiências de ordem psíquica ou sensorial.
Também não se encontrou uma percentagem elevada de toxicodependentes
entre a população estudada. No que concerne ao grau de escolaridade, 77%
dos jovens não tinha escolarização. O nível de alfabetização das jovens do
sexo feminino era maior que o dos jovens do sexo masculino apesar de, entre
elas, o analfabetismo ser superior. Os jovens estudados não tinham, em geral,
qualquer tipo de actividade, laboral ou escolar, passando a maior parte do
tempo na rua em situação geral de abandono. A maioria dos jovens vivia com
os seus progenitores - família nuclear. A possibilidade do menor não viver com
os pais devido a separação, divórcio ou falecimento destes aumenta com a
idade dos jovens. Pertenciam a famílias numerosas sendo o jovem um dos
membros mais novos da família. A maior parte das mães trabalhava em casa,
28 Capítulo I – Os Jovens, o crime e a justiça

exercendo, as restantes, uma actividade laboral remunerada de carácter


temporário relacionada com serviços domésticos e limpezas. Quanto à
dimensão socioespacial, constatava-se que a delinquência estava concentrada
nos bairros dormitório, nos de transição, nos bairros com grandes espaços
livres e instáveis e também nos núcleos industriais.

Em Portugal, para além dos estudos que Eliana Gersão vem fazendo
desde os anos sessenta sobre as crianças que praticam factos qualificados
como crime, só muito recentemente, Martinez (1996), Santos Castro (1997) e
João Sebastião (1998) estudaram grupos de crianças que vivem sozinhos e na
rua, com comportamentos desviantes e dedicando-se à prática de “crimes”.

Amaro (1989) e Ana Nunes de Almeida (1995) estudaram as situações de


maus tratos às crianças em Portugal. Concluíram, em síntese, que há uma
ligação estreita entre tipos de maus-tratos e os contextos familiares e sociais
envolventes; que, embora os maus-tratos sejam transversais aos diferentes
grupos sociais, as formas que assumem são específicas de uns e outros; que
há sinais reveladores da indesejabilidade destas crianças juntos dos pais; que
a visibilidade daquela varia ao longo do ciclo de vida familiar; que a idade e o
desenvolvimento psico-motor são as únicas características da criança que se
salientam na discriminação dos tipos de mau trato de que é vítima; e que é
especialmente significativo que o sexo ou o comportamento não tenham
qualquer impacto nessa distinção.

Também Moura Ferreira et al (1993), analisaram a evolução da


delinquência e criminalidade dos jovens em Portugal, elaborando uma
caracterização sociográfica da população juvenil que entra em contacto com o
sistema penal.

Mais recentemente, Maria João Leote de Carvalho (2002) procurou


identificar, analisar e compreender como é que se relacionam os factores
individuais, familiares e sociais assinalados pelos mecanismos de controlo
formal nos percursos de vida e nos contextos de socialização dos jovens que
se encontravam em colocação institucional num Colégio de Acolhimento,
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 29

Educação e Formação (CAEF) do Instituto de Reinserção Social no sistema de


justiça tutelar de crianças e jovens. A autora procedeu a uma caracterização
sociográfica das crianças e jovens internados no colégio analisado. A
população estudada (masculina) tinha uma média de 15,6 anos. No que se
refere à etnia, 36,4% eram descendentes de imigrantes de origem africana,
4,5% eram de origem cigana, 59,1% de origem europeia não ciganos. Nos
jovens de origem africana predominavam os cabo-verdianos, os angolanos,
moçambicanos e, por último, os guineenses. Dos jovens internados 22,7%
possuíam nacionalidade estrangeira, embora alguns deles tivessem já nascido
em Portugal.

No que diz respeito à zona de origem, destacava-se a Área Metropolitana


de Lisboa seguida pela do Porto. Estes jovens eram oriundos ou residiam em
zonas do litoral sendo os valores das zonas do interior muito pouco
significativos.

Verificou-se, também, que 13,6% dos jovens não possuía qualquer


suporte próximo de membros da família biológica, 34,1% estavam com os dois
progenitores e cerca de 1/3 dos jovens tinham uma família monoparental.
Daqueles que não tinham suporte familiar, 5/6 encontravam-se em instituições
e apenas um jovem numa família de acolhimento, o que parece indiciar a
prevalência na aplicação de medidas de colocação institucional em detrimento
de outras opções. Em 34,1% dos casos não existia contacto entre o jovem e o
pai, 34,1% tinha uma relação conflitual e 11,4% uma relação indiferente
quando o pai estava presente. Os dados mostram grande perturbação nos
processos de vinculação do jovem à pessoa que dele cuidou nos primeiros
anos de vida, elementos considerados decisivos para a construção e
desenvolvimento equilibrado da personalidade da criança e do jovem.

A maioria dos jovens era oriunda de grupos domésticos numerosos (com


seis ou mais elementos) aquando da primeira intervenção tutelar, o que
propiciava situações de grande precariedade económica (79,5%), alcoolismo
(73%), violência doméstica (59,1%), condutas desviantes que não implicavam
necessariamente crime (por exemplo, mendicidade e prostituição),
30 Capítulo I – Os Jovens, o crime e a justiça

toxicodependência e práticas criminais ou delinquentes. Quanto à relação do


jovem com a família depois da sua entrada no colégio, 68,2% apenas recebiam
a visita da família uma vez (31,8%), outros nunca (36,4%).

Como refere a autora, no seguimento de vários estudos sobre


delinquência juvenil, a falta de modelos de identificação capazes de
proporcionar um desenvolvimento psicossocial equilibrado leva os jovens a
uma autonomia demasiado cedo, escondendo uma rejeição precoce. A
qualidade dos laços familiares entre pais e filhos, na ausência de relações
próximas e intensas, tende a criar condições que colocam o jovem numa
situação de maior vulnerabilidade perante as influências desviantes do meio; a
família deixa de ser uma motivação para a conformação às normas e regras
sociais. Por seu lado, analisando a escolaridade destes jovens, constatou-se
que, antes da institucionalização, 47,7% mantinham a matrícula numa escola,
50% tinham abandonado precocemente o sistema de ensino e 2,3% nunca
tinham estado matriculados na escola.

No que diz respeito à situação jurídica do jovem, 50% foram alvo da


primeira intervenção tutelar quando tinham entre 11 e 13 anos e 36,4% com 14
a 15 anos, o que mostra que a prática de comportamentos desviantes ou
delinquentes se inicia logo na primeira fase da adolescência. A colocação em
CAEF foi a medida mais aplicada na primeira intervenção tutelar do jovem
(56,8%), o que leva a pensar que a capacidade de resposta do sistema de
justiça e de outros sistemas ligados à prevenção da delinquência seja
insuficiente face ao número de jovens que são identificados pelos mecanismos
de controlo formal. Na vigência da OTM, jovens vítimas e jovens que
praticavam factos qualificados como crime estavam, assim, colocados num
mesmo colégio: 75% dos jovens ligados à prática de infracções “criminais”,
enquanto que 18% tinham sido vítimas e não tinham nenhum sinal de práticas
desviantes.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 31

Outro estudo sobre delinquência juvenil, elaborado em 1998, foi o


Relatório do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa sobre A Justiça
de crianças e jovens: as crianças entre o risco e o crime12. A investigação
realizada no âmbito do Observatório centrou-se, num primeiro momento, na
análise da evolução da jurisdição de crianças e jovens ao longo dos últimos
cinquenta anos e, num segundo momento, na realização de estudos de caso,
que permitiram elaborar uma caracterização sócio-económica das crianças e
dos jovens e realizar uma primeira abordagem à questão do efeito produzido
pela acção dos Tribunais de Menores, determinando se conseguiam cumprir a
sua função de atenuar/eliminar o efeito de determinados factores de risco para
o desenvolvimento equilibrado das crianças e jovens e impedir o surgimento ou
a persistência de comportamentos reveladores de “inadaptação social” e, em
especial, da prática de “crimes” (Pedroso et al, 1998).

Neste estudo verificou-se que a evolução da justiça de crianças e jovens


ao longo de 54 anos (de 1942 a 1996) caracterizou-se por dois pontos de
ruptura. O primeiro, no início dos anos sessenta, a partir do qual os Tribunais
de Menores passaram a intervir, sobretudo, em situações de crianças e jovens
que praticam factos qualificados pela lei penal como crime. O segundo, nos
finais dos anos oitenta, em que, apesar do crescimento da visibilidade
mediática da criminalidade juvenil, a justiça de crianças e jovens era chamada
a intervir, essencialmente, no âmbito de crianças em risco, designadamente
maus-tratos, negligência e abandono.

Procedeu-se, ainda, a uma análise da criminalidade juvenil que chegava a


Tribunal, a partir da articulação de três níveis diferentes de observação da
realidade (estatísticas nacionais e estudos de caso no Tribunal de Menores de
Lisboa e no Tribunal de Família e Menores de Coimbra), tendo-se chegado a
algumas conclusões. Uma primeira conclusão foi a de que o número de casos
de crianças e jovens que praticavam factos qualificados como crime e que
chegavam ao Tribunal de Menores estava a diminuir, representando, em 1996,

12
Seguimos de perto Pedroso et al, 1998 e Pedroso e Fonseca, 1999.
32 Capítulo I – Os Jovens, o crime e a justiça

metade dos processos findos relativamente a crianças em risco. Quanto ao tipo


de criminalidade, constatou-se que os factos qualificados como crime
praticados por crianças e jovens até aos 16 anos concentravam-se nos crimes
contra a propriedade, com especial incidência no crime de furto simples, muitas
vezes com o claro objectivo de satisfazer as necessidades do jovem (comida,
roupa, jogos) ou para vender e realizar dinheiro (peças de automóvel,
electrodomésticos). Nestes casos de pequena criminalidade, a intervenção da
justiça de crianças e jovens privilegiava a aplicação de medidas tutelares não
institucionais. Não obstante, verificou-se uma estabilidade da aplicação da
medida de internamento em estabelecimento de reeducação, que era, contudo,
proporcionalmente mais aplicada a crianças e jovens do sexo feminino.

Também este estudo procurou retratar sociologicamente as crianças e


jovens que eram objecto de processos na justiça de crianças e jovens. A
imagem obtida revelou-se muito diferente consoante a análise atendesse a
todo o universo ou focasse exclusivamente as situações em que os jovens
praticavam reiteradamente actos qualificados pela lei como crimes.

No primeiro “olhar”, verificou-se que as crianças e jovens do sexo


masculino predominavam na justiça de crianças e jovens (80%). Nas situações
de crianças em risco, surgiam maioritariamente crianças até aos 10 anos,
enquanto nas crianças e jovens que praticavam factos qualificados como crime
a idade preponderante era a de 14 e 15 anos. Neste retrato, as crianças e
jovens que contactavam com a justiça de crianças e jovens por terem praticado
factos qualificados como crime tinham grandes semelhanças com aqueles que
foram tipificados pelos estudos atrás mencionados, designadamente o de
Gimenéz-Salinas (1981) e o de Cea d´Ancona (1992): em ambos os contextos,
predominavam os jovens do sexo masculino de 14 e 15 anos, com a análise
dos padrões sócio-económicos familiares a revelar uma clara predominância
daqueles cujo pai tinha um estatuto profissional por conta de outrem,
destacando-se a situação de reformados ou funcionários públicos e de mãe
doméstica. Viviam em casas ou apartamentos pequenos para o número de
pessoas do agregado familiar (Pedroso e Fonseca, 1999: 160-163).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 33

No segundo “olhar”, com enfoque numa amostra de crianças e jovens que


contactaram com a justiça de crianças e jovens e persistiram na prática de
factos qualificados como crime após os 18 anos e, consequentemente,
transpuseram a porta da justiça penal, verificou-se que representam 6% do
universo de jovens que, tendo sido sujeito a processo tutelar no Tribunal de
Menores de Lisboa, eram, à data da recolha, penalmente imputáveis. A
caracterização sociográfica destes jovens aponta para uma grande maioria de
jovens do sexo masculino, sem a escolaridade primária, que se encontravam
inseridos em agregados familiares numerosos (mais de 6 pessoas),
monoparentais ou reconstituídos, que habitavam em bairros periféricos da
Grande Lisboa e que se caracterizavam por situações económicas precárias.
Eram jovens que, no decurso do seu processo de socialização, estiveram
expostos a diversos factores de risco, com especial incidência na violência
doméstica, prática de crimes, alcoolismo e toxicodependência no seio da
família. Embora todos estes jovens tivessem tido contacto com o Tribunal de
Menores de Lisboa pela prática de actos qualificados pela lei como crime ou
como desviantes às normas sociais dominantes, o Tribunal absteve-se de
intervir, não aplicando medidas ou não conseguindo a sua execução num
número significativo de situações. Como referem Pedroso e Fonseca, “a
intervenção da justiça de crianças e jovens, independentemente dos bloqueios
existentes à melhoria do seu desempenho (…) consegue dar resposta, em
tempo(s) e modo(s) que necessitam de vir a ser estudados, à maioria das
situações de crianças e jovens em risco ou que praticam crimes de menor
gravidade e que têm laços familiares e sociais menos frágeis, mas revela-se
incapaz de lidar com crianças e jovens que praticam crimes e estejam expostas
a situações de extrema vulnerabilidade social” (1999: 163).

Esta conclusão, vai, aliás, ao encontro dos estudos já referidos de


Breuvart et al. (1974) e de Cea D’Ancona (1992) sobre o funcionamento,
respectivamente, do sistema de justiça juvenil francês e espanhol, nos quais se
conclui que “para aquelas crianças e jovens que vivem em contextos de
acentuada vulnerabilidade social e, desde cedo, manifestam comportamentos
desviantes, o contacto com o Tribunal de Menores, neste momento, é apenas
34 Capítulo I – Os Jovens, o crime e a justiça

uma ponte de passagem para uma vida adulta marcada, igualmente, pela
prática de crimes” (idem).

Em 2004 foi publicado um estudo realizado, entre Maio de 2002 e Abril de


2004, pela Fundação da Juventude, sobre Violência Juvenil: Histórias e
Percursos. Este estudo que incide sobre a realidade portuguesa, escocesa e
espanhola, pretendeu, sobretudo, “conhecer as histórias de vida de jovens
colocados em instituições de internamento e, em particular, as suas
experiências nestas instituições”. A opção pela restrição da amostra a jovens
internados em centros educativos surgiu porque os investigadores
consideraram que o ingresso em Centros Educativos procura operar uma
ruptura com o mundo habitual destes jovens. Enquanto instituições totais, “elas
produzem, através das suas práticas e procedimentos, alterações significativas
na identidade dos indivíduos aí colocados, quer em termos da representação
que estes detêm de si próprios e das suas práticas, quer da representação que
os outros - os amigos, família, a sociedade em geral - detêm deles” (2004:
165). O estudo demonstra que, embora essa modificação seja, precisamente,
um dos objectivos pretendidos pela criação dos centros educativos, os
resultados obtidos não coincidem necessariamente com aqueles que são
formalmente definidos. Até porque, como refere Becker (1973), rotular
publicamente alguém como "desviante" pode levar a que sejam postos em
acção diversos mecanismos que conspiram para moldar a pessoa à imagem
que as pessoas têm dela, contribuindo para a solidificação de tal trajectória.

Os dados estatísticos recolhidos neste estudo permitiram chegar a


algumas conclusões acerca da realidade da delinquência juvenil e da justiça de
crianças e jovens naqueles países. Em Portugal, verificou-se que, não só os
processos judiciais referentes a jovens constituem uma percentagem muito
pequena do total de processos entrados no sistema judicial, como também que,
ao contrário do que é frequentemente veiculado pela opinião pública, não se
verificou, no período considerado, um aumento do número de processos tendo
na sua base situações de infracção penal, tendo, aliás, registado um
decréscimo assinalável (61,8%, em 1948; 45,6%, em 2000). A realidade
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 35

escocesa é, neste aspecto, similar: os jovens envolvidos em actos criminosos


constituem uma percentagem muito pequena da população infantil do país e o
número de acusações manteve-se estável ao longo dos últimos dez anos. As
estatísticas mostram, assim, que a criminalidade juvenil parece não estar a
aumentar na Escócia. Em Espanha a situação é um pouco diferente. As
estatísticas referentes à década de 90 reflectem um incremento na taxa de
criminalidade entre os jovens, com excepção de 1997, ano em que o número
de detenções de jovens diminuiu em relação ao ano anterior. Em 2001, foram
detidos 22 906 jovens entre os 14 e os 18 anos, o que equivale a 10,5% do
total de detidos em Espanha durante esse ano.

No que se refere ao tipo de facto qualificado como crime cometido, os


cenários são bastante semelhantes. Em Portugal, predomina a pequena
“criminalidade”, pois os factos qualificados como crimes contra o património,
que são os mais representativos da delinquência juvenil, tendem a confinar-se
a furtos simples e a danos e os crimes contra as pessoas são,
fundamentalmente, ofensas corporais simples ou privilegiadas. O facto das
medidas impostas serem, na sua maioria, medidas não institucionais, também
espelham essa realidade. Recentemente, aliás, “e como consequência das
alterações ocorridas na filosofia de base da intervenção estatal junto dos
menores, que enfatiza a vertente educativa e reabilitadora em detrimento da
punitiva, temos assistido a um decréscimo do recurso às medidas institucionais
e a uma crescente utilização das medidas consideradas educativas e
reabilitadoras, como o acompanhamento educativo" (2004: 168). Embora o
número de factos qualificados como crimes respeitantes a estupefacientes e
substâncias psicotrópicas seja bastante residual se comparado com outros
tipos de “crime”, parece-nos ser importante referir que se tem registado um
aumento do número de jovens “acusados” principalmente pelo consumo destas
substâncias em Portugal.

Em Espanha também sobressaem os factos qualificados como crimes


contra o património, em particular os roubos (com recurso à força ou sem
intimidação). A percentagem dos factos qualificados como crimes contra as
36 Capítulo I – Os Jovens, o crime e a justiça

pessoas ronda os 34%, tal como acontece com os relacionados com o tráfico
de estupefacientes. As medidas adoptadas neste país no ano de 2001
reflectem a tendência para o papel educativo e reabilitador assumido pelo
Estado. A liberdade vigiada é a medida adoptada com mais frequência (44%),
emergindo de forma crescente a opção pela prestação de serviços à
comunidade (21 %).

Já no caso escocês parece existir uma recente tendência política para


abordagens mais duras e mais punitivas no âmbito da criminalidade juvenil
que, segundo o estudo, é fruto de um sentimento generalizado de insegurança
impulsionado, quer pelos media, quer pelo actual clima social deste país. De
referir, no entanto, que, apesar da ideia disseminada na opinião pública, as
estatísticas escocesas não apontam para um acréscimo da criminalidade
juvenil. Um Projecto de Lei para Comportamentos Anti-Sociais está
actualmente em estudo e inclui referências à imposição de ordens judiciais por
comportamentos anti-sociais a jovens com menos de 16 anos e de ordens
judiciais civis aos seus pais, exigindo que estes actuem na defesa dos
interesses e bem-estar dos respectivos filhos.

Com base nos dados estatísticos e histórias de vida, o estudo faz um


conjunto de recomendações. Uma delas é a de que é fundamental a
colaboração das escolas, não só na prevenção, como também, na tentativa de
evitar que estes jovens ingressem em dinâmicas de delinquência, ou na
tentativa de os recuperar.

Considerando que existe um “subaproveitamento" da lei e das medidas


alternativas que ela oferece para tentar travar a construção de carreiras
delinquentes, os autores recomendam uma maior aposta nesse tipo de
medidas, designadamente na prestação de serviços à comunidade - como
parece estar presente, de resto, no caso da Espanha.

O estudo considerou, ainda, que os centros educativos, nos moldes em


que funcionam, “mais parecem «depósitos» temporários de jovens do que
verdadeiramente agências vocacionadas para a sua «recuperação» e cujos
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 37

resultados, ainda para mais, não parecem ser alvo de avaliação objectiva”
(2004: 168). Deste modo, é recomendada a criação de mecanismos mais
eficazes que permitissem a transição entre os Centros e a vida "real", ajudando
os jovens a procurar alternativas e facultando-lhes recursos adequados. Isso
exigiria, todavia, “um trabalho integrado entre os profissionais dos Centros, os
técnicos de serviço social e outras organizações presentes nos bairros de onde
provêm os próprios jovens, o que não se afigura muito fácil quando se procura
que estes se distanciem geograficamente dos seus espaços de residência
habituais, ignorando que de futuro aí regressarão e que é, muito
provavelmente, aí que terão que decidir a sua trajectória de vida” (idem)

As produções teóricas e empíricas que têm vindo a ser produzidas no


âmbito da justiça de crianças e jovens, têm, como vimos, incidido na eficácia
das instâncias formais de controlo da delinquência juvenil. Considera-se que é
função do Estado atacar este problema em duas frentes, sob pena de qualquer
uma delas, agindo isoladamente, se tornar ineficaz. Por um lado, agir de modo
pro-activo com vista à prevenção da delinquência juvenil e inserção dos jovens
que potencialmente se encontram a caminho da marginalidade e exclusão. Por
outro, agir reactivamente de forma a oferecer à sociedade segurança e aplicar
aos jovens que praticam factos qualificados como crime medidas tutelares.

3. 2. Prevenção: agir a montante do problema

A sociologia do desvio e a criminologia interaccionista têm considerado


que as instâncias de controlo, nomeadamente os tribunais, são altamente
selectivas só “apanhando”, em regra, aqueles jovens, ou que praticam factos
qualificados como crimes, ou que são negligenciados ou que foram vítimas de
maus-tratos, pertencentes aos grupos sociais mais desfavorecidos e, por isso,
enfatizam a necessidade de prevenção como um eixo fundamental numa
abordagem integrada de combate à delinquência juvenil.
38 Capítulo I – Os Jovens, o crime e a justiça

De acordo com a Presidência da União Europeia (Figueiredo, 2001a),


qualquer resposta que surja no combate à delinquência juvenil tem de ter
sempre em conta o respeito e promoção pelos Direitos Humanos e os Direitos
das Crianças, os interesses dos jovens e as suas necessidades educativas e
de inserção social, mas também os interesses das vítimas e a protecção da
sociedade. Defende-se, ainda, que as respostas para a delinquência juvenil só
são possíveis através de uma intervenção pluridisciplinar com uma abordagem
integrada, de natureza preventiva, assistencial e judiciária possibilitando uma
melhor compreensão do fenómeno com vista à execução de programas de
prevenção.

Vários autores defendem que a prevenção de comportamentos


desviantes não deve ter como fim o desaparecimento do fenómeno da
delinquência juvenil, mas deve compreendê-lo e explicá-lo partindo do contexto
social, pois a delinquência é um processo que se desenvolve num tempo longo
e o desvio é o resultado de uma sucessão de experiências sociais do desviado
explicáveis no contexto global da sua vivência. De acordo com João Figueiredo
(2001c), a prevenção da delinquência “tem de ser baseada no conhecimento
dos problemas criminais, dos factores de risco e de protecção e das medidas
preventivas dos primeiros e de suporte dos segundos”. Para além disso, as
intervenções sobre esta questão devem ser concebidas tendo em conta os
factores de risco na vida do menor e devem ser multidisciplinares e
desenvolvidas a nível local, embora com apoio nacional, e integradas num
contexto europeu.

A prevenção da delinquência exige, assim, a definição de políticas que


tentem compreender o contexto sócio-económico do menor, os seus saberes,
formal e informalmente adquiridos, de forma a que este também possa
participar13 num processo de desenvolvimento pessoal e social. Nesta
articulação têm, necessariamente, de surgir mecanismos que envolvam a

13
Para vários autores, qualquer política de prevenção deve envolver o menor na resolução dos
seus próprios problemas, seguindo o princípio do “ajuda-te a ti mesmo” (Hollstein, 1991: 113).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 39

esfera pública e privada, o Estado e a comunidade. A prevenção, sendo uma


responsabilidade do Estado e da Sociedade, implica que outras instituições,
como a Segurança Social, autarquias, serviços de saúde, serviços de
educação e outras entidades da sociedade civil, participem no combate à
delinquência juvenil, sobretudo numa fase mais a montante, oferecendo ao
jovem respostas escolares, de formação pessoal, profissional, de ocupação de
tempos livres, entre outras, isto é, actuando também no seu contexto
sócio-económico de origem14.

14
Em Portugal existem alguns programas e associações que agem neste sentido, assumindo,
inclusive, o papel de mediadores sociais e comunitários dos conflitos. Podemos referir, a título
de exemplo, três projectos muito diferentes, mas igualmente importantes: a Associação Cultural
Moinho da Juventude, o Programa Escolhas e o Programa Escola Segura. A Associação
Cultural Moinho da Juventude, na Amadora, surgiu no início dos anos 80 e as suas actividades
desenvolvem-se a nível social, cultural e económico, envolvendo crianças, jovens e adultos.
Sendo acreditada como Centro de Formação pelo INOFOR, realizou, entre 1996 e 1998, um
curso de mediadores, com obtenção do 9º ano de escolaridade. No âmbito deste projecto,
foram estabelecidos contactos junto do Ministério da Educação no sentido de concretizar, em
termos institucionais, a presença efectiva dos mediadores numa área pouco explorada em
Portugal, as escolas, cabendo àquelas estabelecer a ponte entre a Escola, a Família e a
Comunidade, fundamental, sobretudo, quando falamos de comunidades imigrantes e culturas
minoritárias. Sabendo-se do papel fundamental da escola, nem sempre concretizado, como já
vimos, na prevenção da delinquência juvenil, o seu carácter massificador e a falta de
flexibilidade que esta, por vezes, assume ao lidar com a diferença, o papel do mediador torna-
se fundamental.
O Programa Escolhas, Programa de Prevenção da Criminalidade e Inserção dos Jovens,
aprovado mediante a Resolução do Conselho de Ministros n.º 4/2001, de 9 de Janeiro (com a
rectificação n.º 3-E/2001, de 31 de Janeiro), visava “em articulação com as medidas de política
social global e as medidas universais, formular medidas políticas selectivas para jovens que
vivem em bairros vulneráveis dos distritos de Lisboa, Porto e Setúbal, de modo a aproximá-los
de medidas de formação pessoal, escolar e profissional, que evitem a sua entrada no mundo
da prática de crimes” (Preâmbulo). Com o objectivo de prevenir a criminalidade nos bairros
seleccionados, este Programa procurava “dinamizar parcerias de serviços públicos e das
comunidades dos bairros seleccionados, de modo a desenvolver as áreas estratégicas de
intervenção de mediação social, de ocupação de tempos livres e de participação da
comunidade, de modo a possibilitar a valorização da formação escolar e profissional e da
formação parental dos jovens, de modo a evitar que venham a dedicar-se à prática de factos
que a lei penal qualifica como crime” e “articular a sua acção com as comissões de protecção
de menores e outras parcerias existentes no local”(Preâmbulo).
Embora o término deste programa estivesse previsto para 31 de Dezembro de 2003, a
Resolução do Conselho de Ministros n.º 60/2004, de 30 de Abril, procedeu à sua renovação.
Como referido nesse documento, o “Governo, consciente da importância e da existência de
condições que permitam continuar a intervir, articulando iniciativas das diversas entidades e
agentes locais, junto dos jovens provindos de contextos sócio-económicos mais desfavoráveis
e problemáticos, entende dever dar continuidade às acções que têm vindo a ser desenvolvidas
no âmbito do Programa Escolhas, dando-lhe claramente um novo impulso e dinâmica, tendo
em conta a experiência anterior” (Preâmbulo). Com esta resolução, alargou-se o âmbito
territorial do Programa Escolhas e definiu-se como objectivos, desde Maio do ano corrente, a
“promoção da integração social das crianças e dos jovens dos bairros mais vulneráveis,
40 Capítulo I – Os Jovens, o crime e a justiça

Quanto ao controlo formal da delinquência, bem como a sua punição,


cabe apenas ao Estado, como veremos no ponto seguinte.

3. 3. O controlo formal da delinquência juvenil (controlar e punir): os


modelos da justiça de crianças e jovens

Como vimos, têm sido numerosos os estudos sobre o controlo formal da


delinquência juvenil. Para além de procederem a uma avaliação dos
mecanismos de controlo, estes estudos vão indicando caminhos no sentido de
como o Estado e a sociedade se devem organizar para controlar e punir a
delinquência. As produções teóricas e empíricas que têm vindo a ser
produzidas no âmbito da justiça de crianças e jovens têm, deste modo,
contribuído para uma evolução dos próprios modelos de justiças nos vários
países.

incluindo daqueles que estiverem sujeitos a medidas de promoção e protecção ou a medidas


tutelares educativas”; a “formação pessoal e social, escolar e profissional e parental, com a
criação de condições para o acesso a estes valores das crianças e jovens”; e o
“desenvolvimento nas crianças e nos jovens, filhos ou familiares de imigrantes, de um sentido
de pertença e filiação à sociedade de acolhimento para que estes, sem terem que abdicar do
essencial da cultura e das tradições da sua família, se desenvolvam em igualdade de
circunstâncias com qualquer criança ou jovem pertencente à comunidade portuguesa” (artigo
2.º).
De referir, ainda, um outro programa, o Programa Escola Segura, que, embora assuma
contornos muito diferentes dos dois projectos descritos, tem vindo a ser apontado como um
importante instrumento na prevenção da delinquência juvenil. O Programa Escola Segura é
uma iniciativa conjunta do Ministério da Administração Interna com o Ministério da Educação
que, visando garantir a tranquilidade e seguranças necessárias para o normal desenvolvimento
das actividades escolares, tem como objectivos “combater, dentro e fora das escolas, os
roubos, as agressões, os atentados ao pudor e os danos sobre a população escolar e os seus
bens”; “evitar, ou minimizar, o tráfico e o consumo de drogas nas escolas”; “impedir actos de
vandalismo e furtos sobre o património escolar”; “impedir a entrada ilícita de estranhos nas
Escolas” (Moura, 2003: 316). Para a prossecução destes objectivos, as acções policiais
levadas a cabo são a vigilância das escolas e das áreas envolventes, o policiamento dos
percursos habituais de acesso às escolas e as acções de sensibilização junto dos alunos para
as questões da segurança . No entanto, como alerta Rui Filipe de Moura, é necessário atender
aos comportamentos desviantes de alguns estudantes nessas escolas e “tentar perceber qual
a envolvente familiar, a personalidade e o meio ambiente social em que os estudantes vivem,
para poder intervir de uma forma mais decisiva. Não são raros os casos em que a origem do
comportamento desviante está no seio da família, ou na própria personalidade do indivíduo, o
que leva a que os agentes policiais tenham que abordar a situação de formas variadíssimas”,
normalmente envolvendo colegas, a escola e a família (2003, 397). Apenas em casos extremos
é solicitado ao Tribunal para acompanhar ou colmatar a situação.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 41

Em Portugal, tal como em muitos outros países, a intervenção estatal em


relação aos jovens vem-se debatendo com a discussão em torno da opção por
um modelo adequado de intervenção, afirmando-se os “menores delinquentes”
e os “menores em perigo”, desde o início do século XX, como uma
preocupação autónoma do direito e dos tribunais, generalizando-se a ideia que
ao Estado cumpre intervir na sua “protecção, educação e correcção” (Pedroso,
1998: 24). Com o surgimento do Estado-Providência nos países centrais, e a
sua nova forma política de Estado, esta preocupação é assumida, de acordo
com Boaventura de Sousa Santos et al. (1996: 24), pelo Direito e pelos
tribunais, em consonância e como consequência do impacto das várias
transformações operadas no contexto do judiciário. Desta forma, a protecção
das crianças negligenciadas e a educação e correcção dos jovens que
praticam factos qualificados como crime, passaram a surgir no âmbito das
funções instrumentais dos tribunais15, designadamente de controlo social e de
resolução de litígios (Santos et al., 1996: 51-52).

Em geral, a justiça de crianças e jovens tem-se apresentado com uma


natureza dual, dada a existência de dois modelos de intervenção: o modelo de
protecção e o modelo de justiça.

O modelo de protecção considera que a criança não é responsável pelos


seus actos, mas vítima das circunstâncias, pelo que não deve ser punida. O
modelo defende que o comportamento criminal está ligado a limitações sociais,
económicas e físicas e que, por isso, qualquer intervenção do Estado não deve
ter como objectivo punir o delinquente em particular, mas ser um atenuante a
essas limitações (Tutt, 1991), isto é, a intervenção a fazer deve ser orientada
pelas necessidades e não pelo facto praticado. Gonçalves define este modelo
como sendo “o sistema de intervenção estadual segundo o qual todo o
menor-problema (numa situação desviante em relação aos padrões de

15
De acordo com Santos et al, os tribunais desempenham nas sociedades contemporâneas
três tipos de funções primordiais: funções instrumentais, funções políticas e funções
simbólicas. No que se refere especificamente às funções instrumentais, estas são as
seguintes: resolução de litígios, controlo social, administração e criação de direito (1996: 51-
42 Capítulo I – Os Jovens, o crime e a justiça

normalidade da vida e desenvolvimento no tecido social) é uma pessoa


carecida de protecção e assistência” (1999: 114). Neste modelo, o menor é
encarado sob a perspectiva da compaixão, ou seja, é “vítima dos eufemismos
da reeducação e das medidas de segurança que, na prática, traduzem o
castigo e as penas e legitimam privações da liberdade sem processo, sem
garantias e, sobretudo, sem um tempo definido de duração” (Gonçalves, 1999:
114). Os actos praticados pelo menor, e tipificados na lei penal, são relegados
para segundo plano, uma vez que são considerados “sintomas de inadaptação”
(Moura, 2000: 112). O modelo de protecção caracteriza-se, fundamentalmente,
pelos seguintes aspectos: equiparação quanto à forma de processo e às
medidas aplicáveis entre crianças delinquentes e crianças que se encontrem
em situações vistas como socialmente indesejáveis ou em risco; processo
informal, conduzido em regra pelo juiz, com escassas garantias e visando
quase exclusivamente apurar a personalidade do menor e as suas condições
sócio-familiares (a observação é um ponto fundamental deste modelo); e livre
aplicação e livre revisão, pelo juiz, de medidas de protecção, de assistência
e/ou educação, de duração indeterminada (Moura, 2000).

Na segunda metade do século XX foi dada uma nova visibilidade aos


direitos das pessoas, surgindo importantes documentos internacionais nesta
matéria. Diversos países adoptaram, também, legislação que reconhecia os
direitos específicos das pessoas particularmente vulneráveis, nomeadamente
em função da idade. Esta alteração do contexto social levou à denúncia de
abusos a que estavam sujeitos jovens que não beneficiavam de qualquer
protecção processual. Muitos jovens estavam sujeitos a medidas de duração
indeterminada e a opinião pública foi sensibilizada para estas questões, não
hesitando em pôr em causa a eficácia de métodos de reabilitação utilizados
para evitar a reincidência. Foi, deste modo, posta em causa a filosofia do
modelo de protecção, constatando-se uma insuficiência flagrante de recursos
para assegurar um tratamento adequado aos jovens delinquentes16.

52).
16
Um outro elemento abalou as bases do modelo de protecção. O Supremo Tribunal dos
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 43

Concluiu-se, por fim, que os jovens não recebiam nem tratamento eficaz nem
sanções dissuasoras para combater o seu comportamento criminal
(D’Amours, 2000: 95-115).

O modelo de justiça foi progressivamente elaborado nos anos 70


realçando, não as necessidades específicas do jovem delinquente, mas sim o
acto que este praticara. O jovem deve assumir a responsabilidade das suas
escolhas e das suas atitudes e a sanção aplicada deve ser proporcional à
gravidade do delito cometido. Este modelo pretende potenciar a protecção da
sociedade sobre as necessidades do menor, tomando o comportamento
delituoso como uma escolha pessoal influenciada pela ocasião. De acordo com
este modelo, se o comportamento delituoso é uma resposta racional a
determinadas situações, então deve-se responsabilizar o indivíduo pelas suas
acções (Tutt, 1991). A intervenção, por parte deste modelo, processa-se no
âmbito do chamado “direito penal dos pequeninos”, onde é fixado um limite
etário que oscila entre os 12 e os 14 anos para aferir da responsabilidade penal
do menor17; distingue as crianças em risco ou com dificuldades de
adaptabilidade social das crianças que praticam factos qualificados como
crime; e apresenta um processo de natureza desformalizada que salvaguarda
as garantias de defesa essenciais do menor e as medidas aplicáveis, dando
prioridade à função educativa (Rodrigues, 1997: 369-372). De acordo com
Anabela Rodrigues, “as tendências actuais de recuperação da via jurídico-
penal frente à preventiva assistencial têm a sua motivação profunda no
aumento da insegurança dos cidadãos e no crescimento da delinquência
juvenil. A isto acresce a desconfiança sobre a eficácia dos trabalhadores
sociais em ordem à prevenção e tratamento da delinquência juvenil” (1997:
471).

Estados Unidos colocou em causa, em três decisões, o modelo de protecção, determinando a


aplicação de um certo número de regras de procedimento: deveria haver uma audição do
jovem; este deveria ter a assistência de um advogado; e deveria ter-se conhecimento dos
relatórios que o juiz detinha sobre o jovem (D’Amours, 2000: 95-115).
17
Anabela Rodrigues denomina esta responsabilidade penal de “meia imputabilidade” ou de
“imputabilidade diminuída”.
44 Capítulo I – Os Jovens, o crime e a justiça

O debate sobre a legitimidade e a capacidade de intervenção judicial, no


que toca especialmente ao problema da juventude e da delinquência, num
momento de crise do Estado Providência e do reflexo desta no judiciário, levou
ao surgimento de um conjunto de críticas em diversos sistemas jurídicos, a
partir da década de oitenta, e à discussão em torno da opção entre o modelo
de justiça (em que se privilegia a defesa da sociedade e o respeito dos direitos,
liberdades e garantias dos jovens) e o modelo de protecção (em que se
privilegia a intervenção do Estado na defesa do interesse do menor sem que
lhe seja formalmente reconhecido o direito ao contraditório). Enquanto alguns
autores mais conservadores, invocando o aparente crescimento da
“delinquência juvenil” e a insegurança dos cidadãos, apontam ao sistema de
protecção a sua benevolência, defendendo um modelo de justiça aplicável aos
jovens onde estes possam estar sujeitos a penas criminais, através da criação
de medidas destinadas à diminuição da imputabilidade penal e da aplicação do
direito penal de adultos, outros têm vindo a criticar os “excessos” e o
“tratamento desigual” do sistema de justiça no que se refere a crianças
oriundas das classes pobres18.

Com efeito, são várias as críticas apontadas a um modelo e a outro.


Quanto ao modelo de justiça, as críticas assentam no facto de se caracterizar
como um processo marcadamente punitivo e, como tal, estigmatizador do
menor. Como defende Anabela Rodrigues, “estes modelos surgem, por vezes
«travestidos» de educativos. Mas (...) não se pode separar um procedimento
criminal das suas consequências estigmatizadoras, ainda que se colorem as
sanções de educativas” (1997: 372). A mesma autora acrescenta que “a fuga
ao «corredor da delinquência» é praticamente impossível, quando se sabe que
a alternativa à pena atenuada é apenas a pena em sentido estrito e aquilo que
o menor «é» passa indiscutivelmente para segundo plano, numa abordagem
em que a defesa da sociedade é considerada (...) como primeiro valor a

18
Segundo Eliana Gersão (1997: 3), “na prática, só às crianças e aos adolescentes das
famílias mais pobres e desorganizadas são aplicadas medidas, nomeadamente de
internamento; os das classes mais favorecidas estão praticamente imunes a uma intervenção
judiciária sensível, mesmo que cometam infracções graves”.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 45

assegurar (...). Com efeito, ao pretender defender os direitos do menor, «corre-


se o risco de que se chegue, ao fim e ao cabo, à sua mera repressão penal”
(idem).

No que toca ao modelo de protecção, se bem que, por um lado, afasta o


menor dos mecanismos penais previstos para os adultos, por outro congrega
um conjunto de factores que são alvos de fortes críticas. Uma primeira crítica
prende-se com a enorme flexibilidade no processo de escolha e aplicação da
medida. Como refere Souto de Moura, “as medidas são indeterminadas na sua
duração e a sua livre modificabilidade é a regra” (2000: 112). Uma outra crítica
prende-se com a falta de garantias processuais dos jovens, dos seus pais e
dos seus representantes. Uma terceira crítica refere-se à “falta de medidas
protectivas com exequibilidade prática” e, relacionado com esta, a aplicação
excessiva de medidas de internamento (Rodrigues, 1997: 362). Também a
finalidade maximalista e protectora do modelo conduz, por um lado, a uma
intervenção bastante selectiva, visto que as medidas aplicadas são
maioritariamente determinadas pelas necessidades familiares e sociais do
menor19 e não tanto pelos factos por si praticados, e, por outro lado, leva a
intervenções desproporcionais tanto na duração como na intensidade20. O facto
de se entender que a aplicação de uma medida visa mais a prevenção de
futuros crimes do que a resposta ao facto praticado conduz ao “alastramento
da rede de controlo”, estendendo-se um controlo judiciário de cunho parapenal
a crianças que se encontram em situações de “irregularidade social”21, mas que
não constituem crimes, ou ainda à consideração das crianças como
inadaptadas ou em “risco”, uma vez que, numa perspectiva criminológica
tradicional, essas situações são entendidas como prenunciadoras de uma
futura carreira criminal. O que acontece, na prática, é que se encaminham

19
Pode-se afirmar que o lema do modelo de protecção é “educar o menor em substituição da
família” (Gersão, 1997: 3).
20
A medida-padrão aplicada aos casos que requeiram intervenção é o internamento numa
“instituição total” que tem a duração necessária à “readaptação social” do menor (Gersão,
1997: 4).
21
Situações de irregularidade social são, por exemplo, a mendicidade, a vadiagem, o
comportamento sexual inadequado.
46 Capítulo I – Os Jovens, o crime e a justiça

“para a «justiça» menores que não deveriam ter qualquer contacto com ela -
menores em risco” (Rodrigues, 1997: 367-368). Este modelo parece
secundarizar os direitos fundamentais do menor, tornando-se ineficaz num
quadro de crise do Estado Providência. No limite, o modelo de protecção “(…)
radica numa perspectiva empobrecedora da personalidade. Uma perspectiva
que vê no menor apenas um cidadão em potência, que o segrega do
ordenamento jurídico a pretexto de melhor o proteger, que o guarda à vista de
um Estado-tutor que, não podendo, pela natureza das coisas, substituir-se ao
meio familiar, cria um arsenal de meios paliativos que, em muitos casos, mais
não fazem que vigiar burocraticamente o seu crescimento” (Exposição de
motivos da Lei n.º 166/99, de 14 de Dezembro, que aprovou a Lei Tutelar
Educativa).

Importa, no entanto, sublinhar que, na maioria das ordens jurídicas, estes


modelos não se apresentam como modelos puros, relevando as suas
características de forma diferente de sistema para sistema e atendendo,
obviamente, às especificidades sociais e jurídicas de cada país.

É assim que a justiça de crianças e jovens tem vindo, por exemplo, nos
últimos tempos, em muitos Estados, a dirigir um apelo à comunidade, como
forma de superação da crise do Estado Providência e com o objectivo de criar
parcerias entre o Estado e a comunidade de forma a estabelecer redes de
desenvolvimento social (Pedroso, 1998: 26). Embora a intervenção da
comunidade seja defendida por muitos, outros há, tal como Foucault (1975),
que consideram que este apelo à intervenção comunitária pode ter uma
vertente não desejada, na medida em que o controlo comunitário poderá
comportar, em si, o efeito de alastramento da rede de controlo social, quanto à
sua dimensão e ao estreitamento das suas malhas, com uma intensidade de
filtragem mais baixa, que abrangerá sobretudo os grupos e as pessoas com
menor poder social (apud Pedroso, 1998: 26-27).

Como veremos no Capítulo II, seguindo na esteira de alguns documentos


internacionais nesta matéria, nomeadamente a Convenção das Nações Unidas
sobre os Direitos das Crianças, que defendem que o desenvolvimento da
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 47

criança implica a realização dos seus direitos sociais, culturais, económicos e


civis, alguns autores afirmam que o centro do discurso da justiça de crianças e
jovens deve passar da questão da protecção da infância (menor em perigo ou
agente de infracção criminal) para a questão da protecção e da promoção dos
direitos das crianças e dos jovens (Queloz, 1991: 40). Este é um modelo de
justiça emancipadora acompanhado de uma verdadeira pedagogia da
responsabilidade social que pressuporia a tomada em consideração da vítima,
o respeito pelos seus direitos e a abertura do sistema penal à participação da
comunidade, com a participação do menor na intervenção judicial ou social
proposta (idem: 52).

Queloz (1991) defende, assim, a construção de um “modelo


participativo/democrático” dos actores sociais na justiça de crianças e jovens,
que tivesse subjacente uma concepção global de responsabilidade e
solidariedade social dos Direitos do Homem, da Criança e do Jovem.
Consequentemente, uma justiça de crianças e jovens em construção deveria
atender a um justo equilíbrio entre a redução de danos provocados pela
criminalidade e limitação dos efeitos perversos da luta contra esta
criminalidade, implicando uma política social pro-activa que encorajasse a
autonomia e a participação das crianças e dos jovens nos vários domínios da
vida em sociedade, procurando evitar a sua marginalização e,
consequentemente, comportamentos marginais daí resultantes (Queloz, 1991:
53-55). A justiça de crianças e jovens é ilustrativa de uma coexistência de
entendimentos meramente regulatórios com movimentos emancipatórios. Os
primeiros atendem, sobretudo, à função de controlo social que cabe ao direito
exercer; os segundos defendem a construção de uma cidadania das crianças e
dos jovens, através da qual a sociedade seja capaz de definir novas relações
humanas, “como uma forma redutora de conflitos sociais” (Queloz, 1991;
Pedroso, 1998).

Reconhece-se que, em relação à organização da justiça de crianças e


jovens face à questão da delinquência juvenil, “parece conveniente que o
sistema se revele flexível, dotado de medidas múltiplas e diversificadas; a
48 Capítulo I – Os Jovens, o crime e a justiça

aplicação de medidas de internamento é uma solução de último recurso; e


reconhece-se à comunidade um papel importante na aplicação de medidas
alternativas à institucionalização” (Gonçalves, 1999: 125).

Começou, assim, a desenvolver-se um outro modelo de justiça, um


modelo alternativo, que se apresenta como uma terceira via, não somente
como um sistema “bifurcado puro de justiça”, mas que “harmonize em si a
salvaguarda dos direitos do menor – o que conferirá legitimidade à intervenção
– e a satisfação das expectativas comunitárias em relação aos jovens
infractores – o que conferirá eficácia à intervenção” (Rodrigues, 1997: 373).
Para Gonçalves, esta terceira via deverá ser “capaz de reduzir o paternalismo
existente, privilegiar a clareza e a transparência e, no contraponto, a maior
autonomia hoje reconhecida aos jovens (traduzida na afirmação do direito de
ser não apenas protegido, mas também sujeito do seu próprio destino),
chamá-los a uma responsabilidade maior nas suas relações de alteridade,
perante os outros e a sociedade” (1999: 126). Um sistema como este deverá
assentar na atribuição aos jovens das mesmas garantias constitucionais,
processuais e penais dos adultos mas, também, aproveitar as virtudes do
modelo de protecção, especialmente o seu carácter educativo e a consideração
dos “interesses das crianças” ao longo do processo de aplicação e execução
das medidas. Só assim se conseguirá dar cumprimento “ao dever que ao
Estado incumbe de garantir o pleno gozo e exercício dos direitos fundamentais
à liberdade e à autodeterminação, [de que é titular o menor] e à educação e
manutenção dos filhos, titulados pelos seus progenitores (…); ao dever que ao
Estado incumbe de proteger a infância e a juventude, nomeadamente a
formação do poder de autodeterminação do menor (…); ao dever que ao
Estado incumbe de proteger a paz social e os bens jurídicos essenciais da
comunidade (…); e ao dever que ao Estado incumbe de atacar precocemente o
início de carreiras criminosas (…)” (Comissão para a Reforma do Sistema de
Execução de Penas e Medidas, 1999: 75).

Alguns autores advertem, no entanto, que os aspectos positivos do


modelo de protecção – natureza educativa e interesses das crianças – devem
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 49

ser vistos com particular acuidade, a fim de que da sua utilização não resulte a
corrupção dos princípios subjacentes a uma nova filosofia. Nesse sentido,
Eliana Gersão (1997: 4) considera que a “natureza educativa e interesses das
crianças devem ser encarados com seriedade – lembrando que, sob a capa da
«educação do menor», se tem dado guarida, ao longo dos tempos e um pouco
por toda a parte, tanto a medidas vagas de simples controlo, desprovidas de
real conteúdo, como a práticas de internamento opressivas e violadoras dos
mais elementares direitos das crianças – e reelaborados à luz do nosso
tempo”22.

Um novo direito de crianças e jovens deve, deste modo, assentar “numa


concepção de promoção dos direitos sociais, culturais, económicos e civis das
crianças e jovens, procurando um equilíbrio entre esses direitos, os dos seus
representantes legais e os bens jurídicos essenciais da comunidade, bem
como entre a privacidade das crianças e suas famílias e a legitimidade da
intervenção do Estado e da comunidade. O direito de crianças e jovens, seja
tutelar educativo de crianças que praticam factos qualificados como crime ou
de protecção de crianças em risco, tem como objectivo permitir que o menor
venha a ser um actor social, superadas que sejam as situações que o levaram
à prática de um crime e/ou o colocaram numa situação de risco” (Pedroso,
1998: 29).

Na verdade, o direito de crianças e jovens não pode ser visto como algo
composto por compartimentos estanques, em que a dimensão assistencial e a
dimensão educativa se encontram fechadas em si mesmas. Ou seja, não pode
assumir-se como um direito meramente de protecção uno que trate da mesma
forma crianças em risco e crianças que praticam factos qualificados como
crime, mas também não deve dividir-se num regime puro dual composto, por
um lado, por um direito de protecção de natureza exclusivamente civil e, por
outro, por um direito tutelar educativo sucedâneo de um direito penal de

22
Alguns autores têm questionado se o modelo de protecção tem constituído “um direito para
menores sem penas ou penas para menores sem direito” (Walgrave, 1992: 175).
50 Capítulo I – Os Jovens, o crime e a justiça

crianças e jovens. Como refere Anabela Rodrigues, “a realidade é muito mais


complexa (...) e não se podem criar divisões artificiais”, o que implica que seja
necessário “colocar à disposição do juiz, para análise das situações, variados e
multifacetados meios e, em qualquer caso, proceder à sua abordagem
pluridisciplinar” (1997: 386).

Também para Souto de Moura, o novo sistema tutelar educativo “(...)


tenta conciliar um princípio incontornável de subtracção do menor ao sistema
penal e por aí se aproxima do «sistema de protecção», com uma disciplina
mais garantística do ponto de vista processual e com uma estratégia
responsabilizante, com o que cobra alguma similitude com o modelo de justiça
penal. Sistema «tutelar», porque atende aos imperativos de protecção da
infância e juventude a cargo do Estado, constitucionalmente consagrados.
Sistema «educativo», no sentido de que com ele se pretende conquistar o
jovem para o respeito pelas normas, prevenindo-se ulteriores infracções, assim
se jogando a própria segurança da comunidade” (2000: 114).

Esta pluridisciplinaridade e articulação abrem espaço à participação da


comunidade:

“O problema da delinquência juvenil é com certeza um problema


jurídico, mas é antes de mais um problema eminentemente social,
por isso é necessário uma maior implicação de toda a sociedade,
potenciando alternativas comunitárias. É necessária uma mudança
de atitude da comunidade e das instituições sociais relativamente ao
problema da delinquência, pois não se pode esquecer que a maior
parte dos infractores pertencem (não por acaso) às classes sociais
mais desfavorecidas e desprotegidas, com graves carências
psíquicas, afectivas e sociais. É preciso dar-lhes meios que
respondam às suas necessidades protectivas, preventivas e
educativas” (Rodrigues, 1997: 378).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 51

Esta articulação e legitimação da intervenção da comunidade, com o


Tribunal, podem ser visíveis, sobretudo, ao nível da execução das medidas
tutelar educativas alternativas à institucionalização.

Deste modo, o sucesso deste novo modelo que se pretende inovador e


alternativo, “depende da articulação entre o direito tutelar educativo ou de
educação social e direito de protecção e promoção dos direitos das crianças
em risco. A superação dos modelos de protecção e de justiça do direito de
crianças e jovens, que se procura, assim o exige. Só esta articulação, na
procura da cidadania das crianças, impedirá que estas duas vertentes do
direito de crianças e jovens caiam, por um lado, em intervenções paternalistas
e não-legitimadas e, por outro lado, em «procedimentos» e «medidas»
exclusivamente de controlo social” (Pedroso, 1998: 32).

Ora, é para este modelo que têm caminhado a maioria dos


Estados-membros da União Europeia. O sistema sancionatório vigente na
maioria dos Estados-membros da União Europeia caracteriza-se,
essencialmente, por dar prevalência a medidas de conteúdo reparador, do
ofendido ou da comunidade, como o trabalho a favor da comunidade, e a
medidas de conteúdo probatório e educativo, cumpridas na comunidade,
procurando aplicar-se medidas detentivas somente nos casos mais graves de
delinquência juvenil (Figueiredo, 2001a). Para além destas tendências comuns,
considera-se, ainda, importante que, na aplicação de uma medida a um menor
delinquente, se tenha em conta os seguintes aspectos: a adesão do menor ao
cumprimento da medida e a intervenção individualizada, respeitando as
características de cada menor; os factores de risco de reincidência na
preparação de programas adaptados às necessidades do menor; a celeridade
do processo judiciário; a primazia dos aspectos e conteúdos pedagógicos na
aplicação de qualquer medida; e a importância crescente dos programas de
mediação (idem). Todos estes aspectos reúnem um sólido consenso entre os
Estados-membros, podendo-se, assim, falar de uma perspectiva europeia
sobre as questões que devem ser tomadas em consideração na resposta à
delinquência. Esta perspectiva europeia considera, ainda, fundamental, “uma
52 Capítulo I – Os Jovens, o crime e a justiça

abordagem integrada, que tenha em conta uma forte vertente preventiva,


desenvolvida em articulação com as políticas sociais, designadamente as de
juventude e de desenvolvimento urbano” (idem).
Capítulo II

A justiça juvenil no Direito Internacional

Introdução

Na primeira metade do século XX assistiu-se a uma tomada de


consciência internacional sobre a necessidade de criação de regras no âmbito
do direito das crianças e jovens, independentes das normas jurídicas
destinadas aos adultos, bem como sobre a necessidade protectora do Estado
(Rodrigues, 1997). A primeira referência que se encontra a “direitos da criança”
num texto jurídico internacional data de 1924, quando a Assembleia da
Sociedade das Nações adoptou uma resolução a endossar a Declaração dos
Direitos da Criança promulgada em 1923 pelo Conselho da União Internacional
de Protecção à Infância, uma organização de carácter não-governamental
(Albuquerque, 2000). Após a Segunda Grande Guerra, em 1946, o Conselho
Económico e Social das Nações Unidas recomendou a adopção da Declaração
de 1924, a qual viria a ser conhecida por Declaração de Genebra sobre os
Direitos da Criança, por forma a atrair a atenção do mundo para os problemas
das crianças23. Nesse ano, o Conselho Económico e Social criou o Fundo de
Emergência das Nações Unidas para as Crianças (UNICEF).

Posteriormente, em 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas,


adoptou a Declaração Universal dos Direitos do Homem, que consistiu no
primeiro documento internacional a enunciar direitos de natureza civil, política,
económica, social e cultural de que todos os seres humanos devem beneficiar.
No artigo 25.º era referido que a maternidade e a infância “têm direito a ajuda e
a assitência especiais”.

23
A Declaração de Genebra continha cinco princípios, relacionados com o bem-estar das
crianças, o seu normal desenvolvimento, a alimentação, a saúde e a protecção contra a
exploração (Sottomayor, 2003: 12).
54 Capítulo II – A justiça juvenil no Direito Internacional

Estes instrumentos internacionais, de cariz não vinculativo, fundavam o


direito das crianças na necessidade de protecção e de cuidados especiais.

Mais tarde, inscreveram-se referências directas aos direitos das crianças


em instrumentos jurídicos como a Declaração dos Direitos da Criança,
adoptada em 1959 pela Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) e que
durante largos anos constituiu o enquadramento para os direitos das
crianças24; no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, de 196625;
e no Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, de
1966.

Além da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, o Pacto


das Nações Unidas de 1966, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem,
de 1950, e a Carta Social Europeia, de 1961, consagram especial protecção ao
direito das crianças, associando esse direito de protecção à necessidade de
assegurar o direito das crianças ao seu desenvolvimento, ao qual estão
indissociavelmente ligados um conjunto de direitos civis, económicos e sociais.

A Assembleia Geral das Nações Unidas proclamou 1979 como o Ano


Internacional da Criança, com o fim de promover os direitos das crianças e de
consciencializar o mundo para as especiais necessidades da criança e para a
urgência de melhorar a sua situação. No âmbito desse Ano Internacional, a
Polónia apresentou o projecto de uma Convenção das Nações Unidas sobre os
Direitos da Criança26.

24
Como refere Maria Clara Sottomayor, na Declaração de 1959 das Nações Unidas “a criança
era vista como objecto de preocupação e de uma política social de protecção, mas não como
uma pessoa autónoma, capaz de decidir o seu próprio destino” (Sottomayor, 2003: 12).
25
Por exemplo, o artigo 10.º, n.º 2, alínea b) deste Pacto prevê a separação entre jovens e
adultos que cometam crimes, e o artigo 14.º, n.º 4, estabelece a necessidade de adoptar
procedimentos adequados à idade dos jovens, tendo em vista a sua reabilitação.
26
A Polónia apresentou esse projecto para que fosse adoptado em 1979, no Ano Internacional
da Criança. O projecto seguia de perto a Declaração de 1959, não tendo obtido reacções muito
favoráveis. Em 1979 a Comissão dos Direitos do Homem decidiu submeter a proposta a uma
análise cuidadosa. Para o efeito, foi criado um Grupo de Trabalho de Composição Ilimitada
sobre a Questão de uma Convenção acerca dos Direitos da Criança. Todos os Estados
membros da Comissão dos Direitos do Homem podiam participar no Grupo de Trabalho, assim
como “observadores” dos demais Estados membros das Nações Unidas. Estava aberta a
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 55

Em 1989, a concepção da infância como sendo um período que necessita


de protecção e de cuidados especiais, foi objecto de alterações, através da
Convenção sobre os Direitos da Criança. De facto, a Convenção sobre os
Direitos da Criança de 1989 foi um instrumento internacional que “reconheceu
à criança capacidade de auto-determinação e direito a participar e a ser ouvida
em todos os processos que lhe digam respeito” (Sottomayor, 2003: 12).

A partir da década de oitenta, começaram, assim, a operar-se, ainda que


de forma lenta, alterações muito significativas no âmbito da administração da
justiça juvenil, reconhecendo-se a necessidade de separar o tratamento dos
factos qualificados como crimes cometidos por jovens dos crimes praticados
por adultos. Este movimento reformador procurou adoptar políticas de inserção
social em detrimento das tradicionais políticas de institucionalização; distinguir
a criminalidade da delinquência juvenil; separar as formas de intervenção
relativas a jovens agentes de infracções e a crianças carecidas de protecção e
assistência por serem vítimas de maus tratos ou de situações de abandono.

Com a implementação, em diversos países, de sistemas de justiça penal


diferenciados para os jovens e para os adultos, tornou-se imperativa uma
tomada de posição a nível internacional que permitisse a construção de linhas
de orientação para as ordens jurídicas nacionais.

Nas décadas de 80 e 90, assistiu-se, pois, a uma nova tomada de


consciência internacional quanto à especificidade dos direitos das crianças,
que resultou no aparecimento de importantes documentos da ONU e de
instituições europeias, assim como na criação de leis em vários países, que se
tornariam, também, textos de referência sobre a acção social no quadro da
delinquência juvenil.

participação nas discussões do Grupo de Trabalho a Organizações intergovernamentais e não-


governamentais. Entre 1980 e 1987, o Grupo de Trabalho reuniu-se anualmente e, aquando do
10.º aniversário do Ano Internacional da Criança, em 1989, a Convenção foi então adoptada
56 Capítulo II – A justiça juvenil no Direito Internacional

1. A ONU e o direito internacional das crianças e jovens

1. 1. A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das


Crianças

Como já referimos, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da


Criança iniciou uma nova fase no direito internacional das crianças, pelo que
merece uma referência especial.

A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança foi


adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de
1989 (data do trigésimo aniversário da Declaração dos Direitos da Criança) e
foi aberta à assinatura e ratificação ou acessão em Nova Iorque, em 26 de
Janeiro de 1990, tendo entrado em vigor em 2 de Setembro de 1990. Até à
presente data, a Convenção foi ratificada por mais de 190 Estados, o que a
torna o instrumento de direito internacional ratificado por maior número de
Estados, tendo o processo de ratificação sido quase universal27. Portugal
ratificou a Convenção em 12 de Setembro de 1990, através do Decreto do
Presidente da República n.º 49/9028.

A principal diferença entre a Convenção, de 1989, e a Declaração dos


Direitos da Criança, de 1959, reside na circunstância da Convenção tornar os
Estados-parte juridicamente responsáveis pela realização dos direitos da
criança e pelas acções que levem a cabo, enquanto que a adopção da
Declaração implica meras obrigações de carácter moral (Albuquerque, 2000:
33). Cada Estado-parte da Convenção tem de apresentar, periodicamente, um

pela Assembleia Geral das Nações Unidas (Albuquerque, 2000: 29).


27
Como é sabido, é aceite a aposição de reservas ou declarações, pelos estados partes, a
instrumentos de direito internacional. No âmbito da Convenção, tal possibilidade foi utilizada
por 68 Estados, que formularam reservas ou declarações interpretativas à Convenção, algumas
das quais consideradas violadoras do artigo 51.º. Portugal, aquando da ratificação, não emitiu
qualquer reserva ou declaração interpretativa à Convenção.
28
A Convenção foi publicada no Diário da República, 1ª Série, n.º 211, de 12 de Setembro de
1990.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 57

relatório sobre a aplicação daquela ao Comité de Peritos dos Direitos da


Criança29.

Esta Convenção das Nações Unidas procede a uma abordagem integrada


dos direitos da criança ao reconhecer que o desenvolvimento pleno da criança
implica a realização dos seus direitos sociais, culturais, económicos e civis,
procurando um equilíbrio entre os direitos das crianças e os dos seus
responsáveis legais, concedendo àquelas o direito genérico de participar nas
decisões que lhes dizem respeito. Para tanto, incute aos Estados-partes, como
vimos, a responsabilidade jurídica pela prossecução dos direitos das crianças.

O conceito de criança e a idade da imputabilidade penal na


Convenção

O âmbito de aplicação da Convenção é delimitado pelo artigo 1.º, aí se


definindo o conceito de criança: “(….) criança é todo o ser humano menor de
18 anos, salvo se, nos termos da lei que lhe for aplicável, atingir a maioridade
mais cedo”.

Reconhecendo a disparidade nas legislações nacionais relativamente à


delimitação da fronteira entre a idade menor, idade adulta e idade da
responsabilidade penal, a Convenção sobre os Direitos da Criança
estabeleceu, pois, um limite etário máximo, de 18 anos, ressalvando a
possibilidade de aplicação das leis nacionais no caso concreto.

29
De acordo com o artigo 43.º da Convenção, o Comité dos Direitos da Criança tem por função
examinar os progressos realizados pelos Estados-parte no cumprimento das obrigações que
lhe cabem e é composto por dez peritos de alta autoridade moral e de reconhecida
competência no domínio abrangido pela Convenção, eleitos por escrutínio secreto de entre
uma lista de candidatos designados por Estados Partes, podendo cada país designar um perito
de entre os seus nacionais. O texto da Convenção prevê, ainda, no artigo 45.º, a possibilidade
de Agências das Nações Unidas, incluindo a UNICEF e outros organismos competentes,
poderem contribuir com a sua experiência para o processo de monitorização e de
implementação das directrizes da Convenção.
58 Capítulo II – A justiça juvenil no Direito Internacional

Esta noção de criança baseada na idade assume uma relevância


essencial no contexto da justiça juvenil, uma vez que a idade é condição
fundamental para aferir a responsabilidade criminal. Apesar da Convenção não
se referir explicitamente à questão da imputabilidade penal, impõe aos Estados
signatários a obrigação de promover o estabelecimento de uma idade mínima
abaixo da qual se presume que a criança não tem capacidade para infringir a
lei penal (artigo 40.º, n.º 3, alínea b)). O estabelecimento deste mínimo legal é,
contudo, discricionário, atendendo às diferenças existentes nos vários sistemas
jurídicos na fixação do limite etário mínimo30.

A construção do conceito de criança no direito internacional, relacionado


directa ou indirectamente com a idade, é considerado por alguns autores como
artificial, na medida em que pode conduzir a arbitrariedades no preenchimento
dos seus limites etários inferiores ou superiores. São, de facto, várias as
expressões utilizadas, como criança, jovem, adolescente ou menor, sendo o
termo mais frequentemente associado ao conceito de criança o de menoridade,
em oposição ao de maioridade, traduzindo a ideia de que a criança é um ser
incompleto, incapaz de se determinar e de agir com vista à satisfação dos seus
interesses. No quadro da administração da justiça juvenil, porém, o termo
menor não coincide necessariamente com o conceito de criança31.

30
No entanto, parece resultar da combinação entre as Regras de Beijing e as da Convenção
que um limite etário mínimo deverá estar intimamente relacionado com o estádio de
desenvolvimento e de maturidade da criança. Nesse sentido, a Convenção sugere a criação de
sistemas de justiça especiais para as crianças de idade inferior a 18 anos que pratiquem
crimes, que estejam em conformidade, quer com a protecção dos direitos humanos, quer com a
protecção das garantias processuais da criança, mas que sejam distintos dos sistemas penais
aplicáveis aos adultos.
31
Por exemplo, nas Regras de Beijing que adiante analisaremos, o significado da expressão
“menor” está relacionado com o tipo de sistema penal a aplicar. Assim, nos termos da Regra
2.2 a), menor “é qualquer criança ou jovem que, em relação ao sistema jurídico considerado,
pode ser punido por um delito, de forma diferente da de um adulto”. A definição, em termos
concretos, do conteúdo da expressão cabe, no entanto, a cada sistema jurídico nacional, de
forma a respeitar os sistemas económicos, jurídicos, políticos e culturais de cada Estado-parte
o que, se por um lado tem a vantagem de permitir a aplicação destas regras a um grande leque
de ordens jurídicas, traz, por outro lado, a desvantagem de uma definição circular. A Regra 4.1,
relativa à idade da responsabilidade penal acrescenta que esta “não deve ser fixada num nível
demasiado baixo”, por razões de falta de maturidade.
Por pressão de algumas organizações não governamentais, a definição do conceito de
menor foi, entretanto, concretizada no decorrer do processo de elaboração das Regras das
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 59

Os princípios de direito internacional quanto aos direitos das


crianças

Após a enunciação do conceito de criança, os artigos 2.º, 3.º, 6.º e 12.º da


Convenção elencam os grandes princípios orientadores: o princípio da não
discriminação (artigo 2.º), o princípio da salvaguarda do interesse superior da
criança (artigo 3.º), o princípio do direito à vida, à sobrevivência e ao
desenvolvimento (artigo 6.º) e o princípio da livre expressão das crianças
(artigo 12.º).

Importa realçar a forma como, no artigo 6.º, n.º 2, a Convenção se refere


ao conceito amplo de direitos de sobrevivência e desenvolvimento da criança
querendo abranger a protecção de uma multiplicidade de direitos civis e
políticos, económicos, sociais e culturais32. Por outro lado, a Convenção elege
um princípio orientador que deverá nortear a actuação dos Estados na defesa
intransigente da dignidade da criança: o princípio do interesse superior da
criança. Significa isto que, nos termos do artigo 3.º da Convenção, o interesse
superior da criança será o princípio orientador de todas as acções relativas à
infância levadas a cabo, quer por instituições de solidariedade privadas ou
públicas, quer por autoridades administrativas ou autoridades legislativas, quer,
ainda, por tribunais. Diga-se, aliás, que este princípio, desde que foi incluído na
Declaração dos Direitos da Criança de 1959, é reconhecido como princípio de
interpretação, assumindo particular importância na definição do conjunto de
preceitos que regulam a articulação entre a acção do Estado, da sociedade civil
e da família, directa ou indirectamente, e a forma como tal articulação se

Nações Unidas para a Protecção dos Jovens Privados de Liberdade, de acordo com as quais
menor “é qualquer pessoa que tenha menos de 18 anos (…)”, acrescentando, nos termos do
preceituado no artigo 11.º, alínea a), que “(…) a idade limite abaixo da qual não deve ser
permitido privar uma criança de liberdade deve ser fixada por lei”.
32
O artigo 6.º, n.º 2 da Convenção determina que os Estados parte assegurem, na máxima
medida possível, a sobrevivência e o desenvolvimento da criança. Note-se, todavia, que este
princípio é temperado pelo princípio da reserva do possível, na medida em que, face aos
direitos económicos, sociais e culturais, os Estados apenas se comprometem a tomar as
medidas legislativas, administrativas e/ou outras no limite máximo dos seus recursos
disponíveis e, se necessário, no quadro da cooperação internacional.
60 Capítulo II – A justiça juvenil no Direito Internacional

reflecte no âmbito dos sistemas nacionais de protecção e promoção dos


direitos das crianças em perigo e das crianças em conflito com a lei33.

O artigo 40.º da Convenção e a justiça juvenil

O artigo 40.º da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das


Crianças é dedicado, especialmente, à justiça juvenil. Segundo o artigo 40.º,
n.º1, aos Estados-parte cabe reconhecer:

“à criança suspeita, acusada ou que se reconheceu ter infringido a


lei penal o direito a um tratamento capaz de favorecer o seu sentido
de dignidade e valor, reforçar o seu respeito pelos direitos do
homem e as liberdades fundamentais de terceiros e que tenha em
conta a sua idade e a necessidade de facilitar a sua reintegração
social e o assumir de um papel construtivo no seio da sociedade”.

Partindo deste preceito, o artigo 40.º enumera, como já referimos, um


conjunto de obrigações que os Estados-parte devem cumprir
escrupulosamente no que toca à justiça de crianças e jovens, designadamente
a necessidade de promoverem a criação de leis, de processos, de autoridades
e de instituições dirigidas especificamente a crianças suspeitas ou
reconhecidas como tendo infringido a lei penal. Para a concretização desta
directriz, a Convenção determina, por um lado, “o estabelecimento de uma
idade mínima abaixo da qual se presume que as crianças não têm capacidade
para infringir a lei penal”, no artigo 40.º, n.º 3, a), e, por outro, o princípio de
recurso ao Tribunal como ultima ratio, no artigo 40.º, n.º 3, b).

Por sua vez, o n.º 2, do artigo 40.º, faz referência a um conjunto de


garantias processuais que as leis nacionais devem prever, designadamente, o
princípio de presunção da inocência; o direito a que a causa seja examinada de

33
Cf. artigos 5.º, 9.º, 18.º, 19.º, 20.º, 25.º em matéria de crianças em perigo e artigo 40.º
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 61

forma célere por uma autoridade competente, independente e imparcial ou por


um Tribunal, de forma equitativa e na presença de um defensor; o direito a
interrogar ou fazer interrogar testemunhas de acusação e a obter a
comparência e o interrogatório das testemunhas de defesa em condições de
igualdade; e o direito a recorrer da decisão e das medidas impostas na
sequência daquela.

Por fim, o n.º 4 do artigo 40.º, sugere aos Estados-partes, com o fim de
proporcionar à criança um tratamento adequado ao seu bem-estar e
proporcional à infracção e à sua situação, a criação de um conjunto de
disposições relativas à assistência, orientação e controlo, conselhos, regime de
prova, colocação familiar, programas de educação geral e profissional, bem
como outras soluções alternativas às medidas de institucionalização.

Entre a justiça penal e a justiça de crianças e jovens: os modelos


previstos na Convenção

A questão da opção pelo modelo de justiça a aplicar aos jovens que


cometem crimes constituiu uma preocupação fundamental da Convenção,
defendida nas formas de intervenção relativas a jovens agentes de crimes e a
crianças carecidas de protecção e assistência. É esta a ideia que resulta dos
artigos 19.º e 40.º da Convenção. Nos termos do artigo 19.º, n.º 1, cabe aos
Estados-parte tomarem “todas as medidas legislativas, administrativas, sociais
e educativas adequadas à protecção da criança contra todas as formas de
violência física ou mental, dano ou sevícia, abandono ou tratamento negligente,
maus tratos ou exploração, incluindo a violência sexual, enquanto se encontrar
sob a guarda de seus pais ou de um deles, dos representantes legais ou de
qualquer outra pessoa a cuja guarda haja sido confiada”. Por seu turno, o artigo
40.º estabelece, como já referimos, um conjunto de regras que devem estar

relativamente a crianças em conflito com a lei.


62 Capítulo II – A justiça juvenil no Direito Internacional

subjacentes à administração da justiça juvenil, prevendo um conjunto de


garantias processuais que devem assistir a qualquer jovem infractor.

Resulta, também, das disposições constantes da Convenção,


designadamente do artigo 37.º, a) e b), a ultima ratio para institucionalização,
privação da liberdade e proibição de aplicação da pena de morte ou da prisão
perpétua a crianças de idade inferior a 18 anos.

Esta nova abordagem dos direitos da criança tem como objectivo reforçar
a posição legal do jovem enquanto sujeito de direitos e deveres, englobando,
quer as suas garantias jurídicas, quer as suas necessidades e expectativas,
limitar ao mínimo a aplicação de medidas privativas da liberdade e, ao mesmo
tempo, responsabilizar os jovens.

No que respeita às garantias substantivas, são ressaltados os princípios


da culpa, da legalidade e da humanidade. O princípio da culpa assenta no facto
de não poder haver pena sem culpa e de não poderem ser aplicadas penas
que ultrapassem a medida da culpa. Nestes termos, o artigo 40, n.º 2, alínea i)
da Convenção consagra a presunção de inocência dos jovens suspeitos ou
acusados de terem cometido uma infracção penal até que “a sua culpabilidade
tenha sido legalmente estabelecida”. O princípio da legalidade (nullum crime,
nulla poena sine lege) está plasmado nos artigos 37.º, alínea b) e 40.º, n.º 2,
alínea a).

1. 2. Outros instrumentos de direito internacional público relevantes


em matéria de justiça juvenil

No contexto do direito internacional público existe, a par da Convenção


das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças, um leque de instrumentos
que foram estabelecendo regras importantes face à justiça juvenil. São eles as
Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de
Menores - Regras de Beijing - recomendadas pelo Sétimo Congresso das
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 63

Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamento de Delinquentes,


em 1985; as Directrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência
Juvenil - Princípios Orientadores de Riade; e as Regras das Nações Unidas
para a Protecção dos Jovens Privados de Liberdade, ambas recomendadas
pelo Oitavo Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o
Tratamento de Delinquentes, em 199034.

Estas normas constituem um importante marco jurídico na garantia do


respeito pela dignidade da criança, pela consideração da sua idade e pela
protecção específica de que deve beneficiar quando envolvida com o sistema
de administração da justiça.

1. 2. 1. As Regras de Beijing

As Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça


de Menores, conhecidas como Regras de Beijing, constituem um instrumento
de direito internacional dedicado à justiça juvenil. Tais regras foram adoptadas
pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1985, através da Resolução n.º
40/33, no seguimento da importância atribuída à Declaração dos Direitos das

34
Em termos gerais, também as Regras Mínimas para a Elaboração de Medidas não Privativas
da Liberdade (“Regras de Tóquio”), adoptadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas na
Resolução n.º 45/110, de 14 de Dezembro de 1990, vieram enunciar um conjunto de princípios
com o objectivo dos Estados membros introduzirem “medidas não privativas de liberdade para
proporcionar outras opções a fim de reduzir o recurso às penas de prisão e racionalizar as
políticas de justiça penal, tendo em consideração o respeito dos direitos humanos, as
exigências da justiça social e as necessidades de reinserção dos delinquentes” (Regra 1.5).
Para a concretização deste objectivo, os Estados membros deverão encorajar a colectividade a
participar mais no processo da justiça penal, especialmente, no tratamento e reinserção do
delinquente e tentar conciliar, através da aplicação destas regras, os direitos dos delinquentes,
os direitos das vítimas e as preocupações da sociedade relativas à segurança pública e à
prevenção do crime. A aplicação de medidas não privativas de liberdade obedece ao princípio
da intervenção mínima e respeita os esforços de despenalização e descriminalização. Por outro
lado, a decisão de aplicação deste tipo de medidas reveste-se de particulares garantias
jurídicas e funda-se em critérios, definidos por lei, relativos à natureza e gravidade da infracção,
à personalidade e antecedentes do delinquente, ao objectivo da condenação e aos direitos das
vítimas. A aplicação destas regras não exclui, contudo, segundo a cláusula de protecção da
Regra 4.1, a aplicação das Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da
Justiça de Menores.
64 Capítulo II – A justiça juvenil no Direito Internacional

Crianças e do reconhecimento, a nível internacional, da necessidade de rever e


modificar as legislações, as políticas e as práticas nacionais no que dizia
respeito à justiça juvenil. A Resolução veio recomendar aos Estados-membro a
adequação das suas políticas nacionais ao conteúdo das Regras Mínimas
propostas, com o fim de, por um lado, “promover o bem-estar do menor e
reduzir a necessidade de intervenção da lei e tratar de forma eficaz, equitativa
e humanitária o jovem em conflito com a lei”, e de, por outro lado, desenvolver
e sistematizar os serviços de Justiça Juvenil, em especial os métodos, modos
de actuação e atitudes dos funcionários que trabalham nesses serviços (cf.
Orientações Fundamentais das Regras de Beijing).

As Regras de Beijing estão divididas em seis partes: princípios gerais;


princípios subjacentes à investigação e procedimento; julgamento e decisão;
regras sobre o tratamento em meio aberto; regras sobre o tratamento em
instituição; e regras sobre investigação, planificação, formulação de políticas e
avaliação.

Na primeira parte, as regras gerais enunciadas delimitam o campo de


aplicação e extensão deste instrumento e referem os objectivos da Justiça
Juvenil, aos quais subjazem os princípios da protecção social dos jovens e da
proporcionalidade das sanções.

As Regras de Beijing dirigem-se, assim, ao tratamento de delinquentes


juvenis, ou seja, de “qualquer criança ou jovem acusado de ter cometido um
delito ou considerado culpado de ter cometido um delito” (Regra 2.2 alínea c)).
A definição de jovem é-nos dada na alínea a) da Regra 2.2: “qualquer criança
ou jovem que, em relação ao sistema jurídico considerado, pode ser punido por
um delito, de forma diferente da de um adulto”. Considera-se que os limites de
idade relevantes dependem, expressamente, de cada sistema jurídico, o que,
por sua vez, faz com que a noção de jovem, neste âmbito, se aplique
indistintamente a “qualquer criança ou jovem que, em relação ao sistema
jurídico considerado, pode ser punido por um delito, de forma diferente da de
um adulto”. Assim, a Regra 4, referente à idade de responsabilidade penal,
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 65

apenas estabelece que a responsabilidade penal “não deve ser fixada a um


nível demasiado baixo, tendo em conta os problemas de maturidade afectiva,
psicológica e intelectual”.

A Regra 3 estende o âmbito de aplicação das disposições deste


instrumento aos chamados “delitos de status”, ou seja, a comportamentos
específicos que não são punidos quando praticados por adultos35 (Epifânio e
Farinha, 1997: 35). No caso dos menores, este alargamento encontra o seu
fundamento na procura de um sistema mais justo, mais equitativo e mais
humano para os jovens que, de algum modo, entrem em conflito com a lei.

A Regra 7 enumera um conjunto de direitos e garantias de natureza


processual que deverão assistir o menor em todas as fases do processo: “a
presunção de inocência, o direito de ser notificado das acusações, o direito de
não responder, o direito à assistência judiciária, o direito à presença dos pais
ou tutor, o direito de interrogar e confrontar as testemunhas e o direito ao
recurso”. A Regra 8, refere-se à protecção da vida privada do menor, no
sentido de assegurar a não publicação de informações que conduzam à
identificação de um delinquente juvenil e, consequentemente, à sua
estigmatização.

Entre os princípios relativos ao julgamento e à decisão, é de salientar o


princípio segundo o qual a privação da liberdade é a ultima ratio, ou seja, a
aplicação de medidas institucionais a um menor pressupõe a prática de um
facto grave que implique violência contra outra pessoa ou a reincidência
noutros crimes graves e a inexistência, para o caso concreto, de outra solução
adequada (Regra 17.1.c)). Por outro lado, segundo a Regra 19.1, “a colocação
de um menor em instituição é sempre uma medida de último recurso, e a sua
duração deve ser tão breve quanto possível”.

35
Exemplos deste tipo de delitos são o absentismo escolar, a indisciplina escolar e familiar, a
embriaguez pública, etc.
66 Capítulo II – A justiça juvenil no Direito Internacional

Deve, ainda, sublinhar-se o incentivo dado pelas Regras de Beijing ao


recurso a meios extrajudiciais na Regra 11.1: “Sempre que possível tentar-se-á
tratar o caso dos delinquentes juvenis evitando o recurso a um processo
judicial perante a autoridade competente”, acrescentando que “a polícia, o
Ministério Público e os outros organismos que se ocupem de casos de
delinquência juvenil poderão lidar com eles discricionariamente, evitando o
recurso ao formalismo processual penal estabelecido”, designadamente poderá
ser feito o encaminhamento para serviços comunitários ou outros competentes,
desde que haja consentimento do menor, dos seus pais ou tutor, de forma a
evitar o formalismo judicial e a consequente estigmatização.

No que toca à aplicação de medidas, a autoridade competente pode


decretar, nos termos da Regra 18.1, as seguintes medidas, “a fim de evitar,
tanto quanto possível, o internamento numa instituição”: a) medidas de
protecção, orientação e vigilância; b) regime de prova; c) medidas de prestação
de serviços à comunidade; d) multas, indemnização e restituição; e) tratamento
intermédio e outras medidas de tratamento; f) participação em grupos de
aconselhamento e outras actividades semelhantes; g) colocação em família
idónea, em centro comunitário ou outro estabelecimento; h) outras medidas
relevantes. Desta Regra ressalta a importância do papel da comunidade na
aplicação de medidas alternativas e da reeducação baseada na acção
comunitária.

A Regra 22.1 versa sobre a necessidade de formação profissional, de


formação permanente, isto é, e de formação apropriada de “todas as pessoas
encarregadas de assuntos referentes a menores”.

Merece, ainda, destaque a importância que estas regras conferem ao


papel da família, designadamente a Regra 18.2, ao exigir que os filhos não
sejam separados dos pais senão em último recurso, no seguimento do que é
afirmado no Pacto Internacional relativo aos Direitos Económicos, Sociais e
Culturais, ou seja, de que “a família é o elemento natural e fundamental da
sociedade”.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 67

1. 2. 2. Os Princípios Orientadores de Riade

Os Princípios Orientadores das Nações Unidas para a Prevenção da


Delinquência Juvenil, conhecidos por Princípios de Riade, foram adoptados e
proclamados pela Assembleia Geral das Nações Unidas na Resolução n.º
45/112, de 14 de Dezembro de 1990.

Os Princípios de Riade sublinham a importância da adopção de medidas


progressivas de prevenção da delinquência juvenil e da elaboração de medidas
que evitem criminalizar e penalizar um jovem por um comportamento que não
cause danos sérios ao seu desenvolvimento ou que prejudique terceiros. Desta
forma, os Estados-membro são exortados a criar os serviços e programas de
base comunitária para a prevenção da delinquência juvenil, tendo sempre
presente que os organismos formais de controlo social só devem ser utilizados
como instrumento de último recurso, como determina o Princípio 6.º.

No que toca aos princípios de prevenção geral previstos salienta-se,


designadamente, a necessidade de “estreita cooperação interdisciplinar entre
os Governos nacionais, estaduais, provinciais e locais, com envolvimento do
sector privado, cidadãos representativos da comunidade em causa e de
organismos responsáveis pelas questões de trabalho, protecção à criança,
saúde, educação social, aplicação das leis, assim como, instâncias judiciais
para o desenvolvimento de acções concertadas para prevenir a delinquência
juvenil” (princípio 9.º, alínea g)); e “a participação da juventude nas políticas e
processos de prevenção da delinquência, incluindo o recurso a meios da
comunidade, auto-ajuda juvenil, e programas de indemnização e assistência às
vítimas” (princípio 9.º, alínea h)).

É também referido, no Princípio 10.º, que deve ser dispensada especial


importância “às políticas preventivas que facilitem uma socialização e
integração bem sucedida de todas as crianças e jovens, em especial através
da família, da comunidade, dos grupos de jovens, das escolas, da formação
profissional e do mundo do trabalho, assim como através de organizações de
voluntários”, bem como deve ser respeitado “o desenvolvimento pessoal
68 Capítulo II – A justiça juvenil no Direito Internacional

próprio das crianças e dos jovens, devendo estes ser integralmente aceites
como parceiros iguais nos processos de socialização e integração”.

Os Princípios Orientadores de Riade, ao abordarem o processo de


socialização, fazem referências expressas ao papel da família, da educação,
da comunidade e dos meios de comunicação social.

No contexto de uma política social, as entidades governamentais deverão


atribuir especial destaque à promoção de planos e programas destinados aos
jovens mediante a criação de “fundos suficientes e outros recursos para o
financiamento de serviços, instalações e pessoal necessários em matéria de
cuidados médicos e mentais adequados, alimentação, habitação e outros
serviços relevantes, incluindo a prevenção do abuso de drogas e de álcool e o
tratamento dos toxicómanos, velando para que estes fundos revertam
efectivamente a favor dos jovens” (princípio 45.º).

De entre as regras enumeradas para a legislação e administração da


Justiça de Menores, é também de realçar o princípio 56.º, relativo à adopção
de legislação adequada que assegure que “(….) qualquer conduta não
considerada ou penalizada como crime, se cometida por um adulto, não seja
penalizada se cometida por um jovem”.

1. 2. 3. As Regras para a Protecção de Menores Privados de


Liberdade

As Regras das Nações Unidas para a Protecção de Menores Privados de


Liberdade, adoptadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas na Resolução
45/113, de 14 de Dezembro de 1990, declaram que “a privação de liberdade de
um menor deve ser uma medida de último recurso e pelo período mínimo
necessário e deve ser limitada a casos excepcionais” (artigo 2.º).

Estas Regras que agora analisamos, visam estabelecer “um conjunto de


regras mínimas aceitáveis pelas Nações Unidas (...), compatíveis com os
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 69

direitos fundamentais, tendo em vista combater os efeitos nocivos de qualquer


tipo de detenção e promover a integração na sociedade” (artigo 3.º).

Um dos princípios plasmados neste documento, é relativo à forma como


deve decorrer a privação da liberdade, sendo referido que os menores “devem
poder exercer uma actividade útil e seguir programas que mantenham e
reforcem a sua saúde e o respeito por si próprios, favorecendo o seu sentido
de responsabilidade e encorajando-os a adoptar atitudes e adquirir
conhecimentos que os auxiliarão no desenvolvimento do seu potencial como
membros da sociedade” (artigo 12.º).

No que diz respeito aos estabelecimentos destinados a acolher jovens


privados de liberdade, o artigo 30.º refere que estes “devem ser
descentralizados e de um tamanho que facilite o acesso e o contacto entre os
menores e as suas famílias. Devem ser criados estabelecimentos de detenção
de pequena escala e integrados no ambiente social, económico e cultural da
comunidade”.

Uma das divisões das Regras em análise, é relativa ao regresso à


comunidade. Nessa secção é referido, no artigo 79.º que os jovens “devem
beneficiar de medidas destinadas a auxiliá-los no seu regresso à sociedade, à
vida familiar, à educação ou emprego, depois da libertação. Com este fim
devem ser concebidos procedimentos, que incluem a libertação antecipada e a
realização de estágios”. O artigo seguinte acrescenta que devem existir
serviços “para auxiliar os menores a reintegrarem-se na sociedade e para
diminuir os preconceitos contra eles”.

Quanto ao pessoal afecto aos estabelecimentos de detenção, as Regras


terminam, referindo que o pessoal “deve procurar minimizar qualquer diferença
entre a vida dentro e fora da instituição de detenção que tenda a diminuir o
respeito devido à dignidade do menor como ser humano” (artigo 87.º, f)).

Com efeito, é amplamente reconhecido que os jovens privados de


liberdade são altamente vulneráveis aos maus tratos e à violação dos seus
70 Capítulo II – A justiça juvenil no Direito Internacional

direitos A prática demonstra que muitos sistemas não diferenciam adultos e


jovens nos vários estádios da administração da justiça, o que resulta na
detenção de muitos jovens em prisões ou em outros estabelecimentos
juntamente com adultos. Ora, dada a sua alta vulnerabilidade, os jovens
privados de liberdade requerem uma atenção e protecção especiais, devendo
os seus direitos e bem-estar ser garantidos durante e depois do período em
que estão privados de liberdade, devendo ser equacionado o seu processo de
reintegração na sociedade.

2. O Direito Europeu

As instituições europeias têm, também, demonstrado interesse pela área


dos direitos das crianças, o que é visível através dos diversos documentos que
as mesmas têm criado, como de seguida se verá.

2. 1. O Conselho da Europa e a delinquência juvenil

No âmbito do Conselho da Europa, foi adoptado um amplo leque de


Resoluções, Recomendações e Convenções em matéria de protecção e
promoção dos direitos das crianças. Como referimos de forma breve, também a
Carta Social Europeia, de 1961, ratificada por Portugal em 1991, considera que
“as crianças e os adolescentes tem direito a uma protecção especial contra os
perigos físicos e morais a que se encontrem expostos”. De um modo geral, os
instrumentos jurídicos do Conselho da Europa versam sobre os direitos
consagrados na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança,
de 1989.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 71

2. 1. 1. A Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos das


Crianças

Em 25 de Janeiro de 1996, a Convenção Europeia sobre o Exercício dos


Direitos das Crianças foi aberta à assinatura dos Estados-membro do Conselho
da Europa e dos Estados não membros que participaram na sua elaboração,
tendo entrado em vigor em 1 de Julho de 2000. Esta Convenção versa sobre
os interesses superiores das crianças, contendo medidas processuais que
permitem às crianças fazer valer os seus direitos, prevendo a constituição de
um Comité Permanente e visando regular o exercício dos direitos das crianças
consagrados na Convenção das Nações Unidas.

Como se pode ler no preâmbulo: “considerando que o objectivo do


Conselho da Europa é o de alcançar maior unidade entre os seus membros
(...), tendo em atenção que a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos
da Criança requer que os Estado parte adoptem todas as medidas legislativas,
administrativas e outras adequadas à implementação dos direitos consagrados
na Convenção (...), considerando que as crianças devem ter a oportunidade de
exercer os seus direitos, em particular no âmbito de procedimentos de família
que os afectem (...), reconhecendo a importância da autoridade parental na
protecção e promoção dos direitos das crianças, mas considerando que,
sempre que necessário, os Estados devem intervir nessa protecção e
promoção (...), é adoptada esta Convenção cujo objecto é o de promover os
direitos das crianças, atribuindo-lhes direitos procedimentais e facilitando-lhes o
exercício desses direitos ao assegurar que as crianças são informadas e
autorizadas a participar nos procedimentos no âmbito das acções judiciais em
matéria de família”.

A Convenção prevê medidas com vista à promoção dos direitos das


crianças envolvidas em processos judiciais, de foro familiar, designadamente
processos relativos à guarda de crianças, sua residência, direito de visita,
estabelecimento ou impugnação da paternidade, adopção, tutela e protecção
contra tratamentos cruéis e degradantes. As medidas processuais para
72 Capítulo II – A justiça juvenil no Direito Internacional

observar diversos deveres, para promover o exercício dos direitos das


crianças, nos termos da Convenção, são, entre outras, o direito de ser
informado e de exprimir a sua opinião e de requerer a designação de um
representante especial. Quando estão em causa direitos das crianças, as
autoridades judiciárias e os representantes dos menores devem ter especiais
cuidados e zelar pela celeridade dos processos, nos termos da Convenção.
Entre as medidas recomendadas, é incentivado o recurso a mediação e a
outros métodos de resolução de conflitos, a apoio judicial e aconselhamento
jurídico para a representação de crianças e aplicação de outros instrumentos
internacionais relativos à protecção de crianças e suas famílias.

Como refere Clara Sottomayor, a Convenção Europeia de 1996 “não


consiste numa enumeração dos direitos das crianças, mas num programa de
promoção dos direitos das crianças à informação e à participação nos
processos que a afectem, por exemplo, a fixação de residência e o direito de
visita, prevendo-se, ainda o direito da criança nomear um representante
sempre que os seus interesses estejam em conflito com os interesses dos pais”
(Sottomayor, 2003: 12). O Conselho da Europa assumiu, assim, com esta
Convenção, de carácter sobretudo processual, uma posição de instância
regional com vocação para promover a uniformidade jurídica entre os seus
Estados membros, em matéria de direitos das crianças.

2. 1. 2. A Recomendação (87) 20

Um dos mais importantes instrumentos jurídicos do Conselho da Europa


no que diz respeito à promoção e protecção dos direitos das crianças em
conflito com a lei, é a Recomendação (87) 20 do Comité de Ministros, sobre
“Reacções Sociais à Delinquência Juvenil”, adoptada em 17 de Setembro de
1987. Esta Recomendação consagra, num primeiro nível, a importância
privilegiada das acções de prevenção da delinquência juvenil, através de
políticas sociais de apoio às crianças e aos jovens, favorecendo a sua
integração social. Relativamente a menores que praticaram crimes, a
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 73

Recomendação estabelece, com o necessário respeito pelos direitos do menor,


a natureza prioritária das medidas de diversão, de desjudicialização e
mediação, de modo a evitar que os menores entrem no sistema de justiça
criminal.

Outras preocupações da Recomendação são garantir uma justiça de


menores mais rápida, para que possa desempenhar uma acção educativa
eficaz; evitar que os menores sejam remetidos para a jurisdição de adultos,
devendo ser julgados por tribunais de competência especializada; excluir a
detenção preventiva, salvo em circunstâncias muito graves; reforçar a posição
legal dos menores ao longo de todo o processo; garantir que todas as pessoas
que intervém ao longo do processo (polícias, advogados, magistrados,
trabalhadores da área social) têm formação especializada em direito de
menores e delinquência juvenil; e assegurar a confidencialidade. A
Recomendação (87) 20, ao reconhecer também estes direitos, estabelece a
obrigatoriedade dos Governos dos Estados-membro reverem, se necessário,
as suas leis e práticas no sentido de reforçarem as garantias processuais e
prevê, ainda, o direito das crianças e jovens poderem contraditar os resultados
dos exames de personalidade ou dos inquéritos sociais realizados por decisão
do Tribunal e de se pronunciarem e pedirem a revisão das medidas que o
Tribunal lhes pretenda aplicar.

A Recomendação encoraja os Estados para que as intervenções ocorram,


de preferência, no meio natural de vida dos menores, com respeito pelo seu
direito à educação, pela sua personalidade e de modo a favorecer o seu
desenvolvimento. No caso de ser necessário o internamento em Centro
Educativo, de acordo com a Recomendação, é fundamental diversificar a
intervenção dentro das instituições, de forma a adaptá-las à idade, às
dificuldades e ao meio de origem dos jovens; criar estabelecimentos de
pequenas dimensões, bem integrados no meio sócio-económico e cultural
envolvente; zelar para que a privação de liberdade seja limitada ao mínimo
possível; e que sejam incentivadas as relações familiares. Uma das
74 Capítulo II – A justiça juvenil no Direito Internacional

orientações do documento é no sentido de ser dada preferência às medidas


que visem a inserção social.

2. 1. 3. A Recomendação (88) 6

Outra importante Recomendação foi adoptada, em 18 de Abril de 1988,


pelo Comité de Ministros do Conselho da Europa. Trata-se da Recomendação
(88) 6 sobre “Reacções Sociais ao Comportamento Delinquente dos Jovens de
Famílias Migrantes”. Este instrumento recomenda a necessidade dos Estados
prevenirem comportamentos delinquentes dos jovens migrantes,
designadamente dos jovens de segunda geração, oferecendo-lhes as
possibilidades dos autóctones para se integrarem no seu país de residência. A
prevenção, de acordo com a Recomendação, passará por promover o acesso
dos jovens a todas as instituições sociais disponíveis, de forma a que possam
adquirir uma posição social equivalente à dos demais jovens, começando por
aceder à nacionalidade do país de residência. A Recomendação prevê, ainda,
a necessidade de assegurar que os serviços de polícia adoptem atitudes não
discriminatórias para com tais jovens, considerando-se que deve existir um
número suficiente de polícias com formação especializada sobre os valores
culturais e as normas de comportamento dos vários grupos étnicos com os
quais contactam. Outro aspecto considerado nesta Recomendação prende-se
com a necessidade de garantir que os jovens migrantes beneficiem, tal como
os jovens autóctones, de medidas de desjudicialização inovadoras, como a
mediação. No âmbito da intervenção, a Recomendação alerta para que não se
proceda a explicações culturais, de forma automática e simplista, baseadas em
conflitos de ordem cultural e recomenda que seja evitada a colocação de
jovens da mesma origem na mesma instituição.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 75

2. 1. 4. A Recomendação (00) 20

Em 6 de Outubro de 2000 foi adoptada a Recomendação (00) 20, sobre


“O papel da intervenção psicossocial precoce na prevenção dos
comportamentos criminais”. Esta Recomendação surgiu em virtude do Comité
de Ministros estar consciente da crescente inquietude suscitada pelo aumento
da delinquência juvenil, mais violenta, e por a delinquência precoce ser
susceptível de conduzir a comportamentos criminais graves e persistentes e ter
início em faixas etárias cada vez mais baixas. Assim, a Assembleia Geral
recomendou aos governos dos Estados-membro a introdução de estratégias
nacionais de intervenção psicossocial precoce com o objectivo de prevenir os
comportamentos criminais ou encorajar o desenvolvimento das estratégias que
existem, com o fim de combater o crime em geral.

De acordo com o artigo 1.º da Recomendação, esses programas de


intervenção psicossocial deveriam ser elaborados de forma a responder melhor
aos interesses das crianças, das famílias e da sociedade e em conformidade
com a legislação existente. Tais programas deviam incluir, nos termos dos
artigos 2.º e 3.º, medidas orientadas para os factores de risco como a
hiperactividade, a negligência e violência de que a criança foi objecto, o mau
aproveitamento escolar, a discriminação racial, o desemprego de longa
duração dos pais, a prostituição juvenil e a mendicidade36.

A Recomendação, no artigo 11.º, sugere que sejam tomadas medidas


legislativas, ou outras, com o fim de implementar programas de intervenção
precoce para prevenir comportamentos criminais. O artigo 18.º acrescenta que,
para alargar a base de conhecimentos existentes, deveriam ser canalizados
fundos para a realização de projectos de investigação sobre a natureza e

36
Do artigo 4.º resulta que as medidas com o fim de promover os factores de protecção deviam
ser dirigidas, designadamente, ao reforço das competências sociais e cognitivas, aos valores e
atitudes favoráveis; a uma vida familiar orientada por princípios claros, coerentes e desprovida
de autoritarismo; a um ambiente escolar que conceda a todos os jovens oportunidades de
sucesso; e ligações à comunidade local. O documento em análise, em suma, recomenda a
tomada de medidas legislativas ou outras que prevejam programas de intervenção precoce
76 Capítulo II – A justiça juvenil no Direito Internacional

âmbito dos comportamentos criminais, sobre os factores de risco e de


protecção relacionados com o aparecimento desses comportamentos e a
avaliação científica da relação custo/eficácia das intervenções com o objectivo
de os prevenir. Por fim, a Recomendação incentiva, no artigo 19.º, a
cooperação internacional sobre os conhecimentos existentes em relação às
causas de aparecimento de comportamentos criminais.

2. 1. 5. A Recomendação (01) 1532

Outro importante documento do Conselho da Europa é a Recomendação


(01) 1532 sobre “Uma política Social Dinâmica em Favor das Crianças e
Adolescentes em Meio Urbano”, adoptada pela Assembleia Parlamentar em 24
de Setembro de 2001. Esta Recomendação surgiu devido à preocupação da
Assembleia Parlamentar pelo comportamento, cada vez mais anti-social, dos
jovens em meio urbano, bem como devido à ghetização dos arredores das
grandes cidades. Porém, como é referido, os fenómenos de mal-estar dos
jovens em meio urbano devem ser analisados num contexto mais lato de
mutações sociais e económicas rápidas, fontes de extrema pobreza para
numerosas famílias e crianças na Europa: o desemprego, a pobreza, a
violência entre os adultos, a falta de espírito comunitário e de solidariedade são
alguns dos elementos que têm efeitos nos comportamentos dos jovens em
meio urbano. A violência dos jovens, como a Recomendação descreve no
ponto 5, representa, com frequência, uma forma de contestação e de afirmação
e constitui um fenómeno que não pode ser analisado isoladamente, mas antes
ser considerado como um bom indicador do mal-estar, da intolerância, do medo
e da violência dos adultos. Tal violência assume diferentes formas: pode ser
dirigida contra o próprio, ter lugar no seio de grupos ou pode ter como alvo a
sociedade em sentido lato.

para prevenir os comportamentos criminais.


Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 77

A Recomendação, em relação aos menores delinquentes, exorta os


Estados-membro a introduzirem outras formas de regulação de litígios, quer
alternativas aos processos judiciais, quer alternativas a medidas detentivas,
defendendo-se a tomada de medidas a nível da comunidade, medidas não
judiciais e alternativas à privação de liberdade de jovens.

A ideia de que a resposta à violência dos jovens se deve situar, não na


repressão ou na sanção, mas sim na prevenção junto de crianças
desfavorecidas e em perigo, o mais cedo possível, é reforçada pela
Recomendação, defendendo, assim, uma política social dinâmica que
contemple medidas preventivas a favor de todos os menores em perigo. Para o
efeito é necessária uma reorientação da vontade política, introduzindo medidas
pluridisciplinares que transmitam aos jovens experiências positivas de vida, o
conhecimento dos valores democráticos e civis, que favoreçam a criatividade, a
solidariedade e a participação positiva na vida em comunidade. A Assembleia
Parlamentar reconhece, ainda, que a resposta ao mal-estar dos jovens em
meio urbano passa necessariamente por uma acção concertada entre os
diversos parceiros locais e nacionais e por uma troca de experiências entre
países.

A anteceder a Recomendação (01) 1532, a Comissão para as Questões


Sociais, de Saúde e da Família do Conselho da Europa elaborou um relatório
no qual se encontra o Projecto de Recomendação. O Relatório exprime as
preocupações da Assembleia, pelas situações de violência das crianças e de
delinquência juvenil, pela detenção e circulação de armas e de droga,
designadamente nos estabelecimentos escolares, pelo número de crianças de
rua, pelo aumento preocupante de doenças entre os jovens, pelo
desaparecimento do espírito cívico e ausência de participação na vida política,
pela ausência de perspectivas e pelo mal-estar dos jovens dos arredores das
grandes cidades.

No Relatório lê-se que considerar os jovens delinquentes, apenas como


tal, leva a ignorar os fortes factores de risco que conduzem os menores, desde
78 Capítulo II – A justiça juvenil no Direito Internacional

tenra idade, a tais comportamentos. O aumento das taxas de desemprego e de


pobreza, bem como a falência ou precariedade dos sistemas de protecção
social têm fortes repercussões nas famílias, colocando muitos menores em
situação de perigo. Considera-se, assim, que se os Estados não tomarem
medidas face a estes factores que marginalizam numerosas famílias e as suas
crianças e as impedem de participar na vida social e democrática, gerações de
crianças continuarão a ser alvo de desigualdades sociais crescentes. A própria
estrutura de ordenação das cidades modernas, não responde, em geral, às
necessidades dos menores no que diz respeito às actividades lúdicas e de
lazer, o que provoca o aumento precoce da delinquência.

No ponto relativo à criminalidade e violência, o Relatório refere que na


Europa ocidental os dados indicam que as taxas de delinquência juvenil são
estáveis, sobretudo quanto a delitos contra o património, encontrando-se, no
entanto, cada vez mais jovens do sexo feminino ligadas a delitos com violência,
apesar dos números serem baixos e reflectirem a relativa invisibilidade das
jovens do sexo feminino nos sistemas judiciários juvenis. Contudo, nos países
da Europa central e oriental, a taxa de criminalidade subiu em flecha, tendo
também aumentado a delinquência juvenil. Um facto preocupante é que os
jovens cometem cada vez mais delitos com violência, por vezes, munidos de
armas.

A grande maioria dos sistemas judiciários europeus manifesta


preocupação pelo número de crianças delinquentes detidas em instituições,
devido à aplicação de uma pena ou em detenção provisória. Por outro lado, em
diversos países teme-se o provável aumento do número de crianças de rua,
devido à recessão económica e social, à ausência de recursos materiais e de
pessoal qualificado, ao encerramento de grandes instituições públicas sem que
outro tipo de assistência tenha surgido, devido à incapacidade de pôr em
marcha políticas e medidas que permitam dar resposta às necessidades e às
aspirações das crianças de rua, e ao aumento possível do número de crianças
deslocadas em consequência de conflitos como no caso dos Balcãs.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 79

De acordo com o Relatório, uma política social dinâmica, baseada na


Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, deve, também,
reconhecer as importantes diferenças que existem entre os sexos. É dado o
exemplo das medidas de luta contra a criminalidade e a delinquência,
concebidas para reagirem aos comportamentos dos jovens do sexo masculino.
Ora, uma política social activa deve ter em conta a diferença entre as vivências
dos jovens de ambos os sexos.

O Relatório incentiva, ainda, a adopção de programas de prevenção


precoce, implicando a colectividade e as autoridades locais na prevenção da
criminalidade, no desenvolvimento de medidas não judiciárias para os
delinquentes e na emergência de soluções locais alternativas à detenção de
jovens. Reconhece-se, em toda a Europa, que as instituições de justiça juvenil
não poderão solucionar todos os problemas que se colocam aos jovens
delinquentes ou em risco de se tornarem em tal. Há, por isso, que adoptar
programas que ataquem os factores que estão na origem dos comportamentos
delinquentes dos jovens. Tais programas não visam apenas a redução da
delinquência, pretendem também assegurar que as crianças tenham
experiências positivas de vida, ambientes social e psicologicamente sãos que
os preparem para a vida adulta. Nesse sentido, a educação e a escola têm um
papel essencial na preparação dos jovens para uma vida adulta equilibrada,
preparando-os para a entrada no mercado de trabalho, inculcando-lhes os
valores de respeito pelo outro e pela diversidade cultural, desenvolvendo a
noção de cidadania democrática. Os programas de prevenção são tidos como
eficazes a longo prazo, constituindo um importante elemento de reconstrução
social.

2. 1. 6. A Recomendação (03) 20

A Recomendação R (03) 20, adoptada pelo Comité de Ministros em


Setembro de 2003, versa sobre os novos modos de tratamento da delinquência
juvenil e sobre o papel da justiça juvenil.
80 Capítulo II – A justiça juvenil no Direito Internacional

Para efeitos desta Recomendação, o termo menor designa os jovens que,


tendo atingido a idade da responsabilidade penal, não tenham ainda alcançado
a maioridade, com a ressalva de pessoas de idade imediatamente inferior ou
superior aos limites referidos, por a idade da maioridade legal não coincidir,
necessariamente, com a idade da maturidade, poderem estar englobadas pela
Recomendação, razão pela qual os jovens adultos delinquentes deveriam
beneficiar de certas respostas idênticas à dos jovens delinquentes. Assim,
deveria ser possível aplicar, aos jovens adultos de menos de 21 anos, o
mesmo tratamento dispensado aos adolescentes, no caso de o juiz entender
que um determinado jovem não se encontra num grau de maturidade
equiparável ao dos adultos.

Este documento recomenda que os principais objectivos da justiça juvenil


e das medidas àquela associadas sejam a prevenção da para-delinquência e
da reincidência, a (re)socialização e a (re)inserção dos delinquentes e as
necessidade e interesses das vítimas.

A Recomendação considera que a justiça juvenil deve ser considerada


como uma parte de uma estratégia mais vasta de prevenção da delinquência
juvenil, apoiada em estruturas de proximidade, tendo em conta todo o contexto
do jovem, quer familiar, escolar, de vizinhança e de grupos de pares, devendo
os recursos ser sobretudo canalizados para a luta contra as infracções graves,
as infracções com violência, as infracções repetidas e aquelas associadas a
consumos de droga e álcool.

De acordo com a perspectiva vertida nesta Recomendação, devem ser


criadas medidas mais adaptadas e eficazes para prevenir a para-delinquência
e a reincidência de jovens de minorias étnicas, de grupos de jovens que não
tenham, ainda, atingido a idade da responsabilidade penal.

Com o objectivo de lutar contra as infracções graves, violentas ou


repetidas praticadas por jovens, a Recomendação exorta os Estados ao
desenvolvimento de um maior leque de medidas e de sanções inovadoras e
mais eficazes aplicadas na comunidade, que tenham em conta as
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 81

necessidades do delinquente. O grau de culpabilidade devia estar relacionado


com a idade e com a maturidade, devendo ser estabelecida uma
correspondência entre o estádio de desenvolvimento da responsabilidade
individual do jovem e a aplicação das medidas.

Outra orientação prende-se com a conveniência em encorajar os pais ou


tutores a tomarem consciência das suas responsabilidades relativamente aos
delitos praticados pelos jovens, devendo, designadamente, estar presentes nas
audiências judiciais e, caso se justifique, serem submetidos a
acompanhamento psicossocial, a receberem formação sobre o exercício das
responsabilidades parentais ou a controlarem a assiduidade escolar do jovem.

Quanto ao processo judicial, recomenda-se a fixação de prazos curtos


nas diversas fases processuais, de forma a reagir com a maior celeridade
possível à delinquência juvenil. No que diz respeito às medidas cautelares de
internamento, não deveriam decorrer mais de seis meses até ao julgamento e,
sempre que possível, deveriam ser encontradas outras soluções para além do
internamento, como a colocação junto de famílias de acolhimento.

As orientações fornecidas pela Recomendação vão no sentido de serem


concebidas, coordenadas e implementadas respostas múltiplas pelos principais
actores públicos, como polícias, autoridades judiciárias, serviços de protecção
da infância, educação, emprego, saúde e habitação, e o sector privado e
associativo.

2. 2. A União Europeia e a delinquência juvenil

Vejamos, agora, a actividade recente das instituições da União Europeia


no âmbito da criminalidade juvenil.
82 Capítulo II – A justiça juvenil no Direito Internacional

Ao nível da União Europeia, até 1999, as políticas de prevenção da


criminalidade haviam estado quase exclusivamente orientadas para a
prevenção da criminalidade organizada37. O Tratado de Amesterdão de 1999,
fala expressamente nas actividades de prevenção da criminalidade no âmbito
da União Europeia tiveram, então, a sua base jurídica. De facto, este Tratado
elegeu a prevenção da criminalidade como um dos meios para “facultar aos
cidadãos um elevado nível de protecção num espaço de liberdade, segurança
e justiça” (artigo 29.º).

No mesmo ano, o Conselho Europeu de Tampere, que versou sobre a


criação de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça na União
Europeia, veio confirmar a importância do desenvolvimento de políticas
efectivas de prevenção da criminalidade. Nas Conclusões do Conselho
Europeu de Tampere foi feita expressa referência à necessidade de se criarem
políticas de prevenção da criminalidade, a implementar na União Europeia
através do reforço da rede de autoridades nacionais competentes, bem como
da cooperação entre organismos nacionais especializados nesta área. De
Tampere resultou, em 1999, que tal cooperação, antes de mais, poderia ter
como prioridades a delinquência juvenil, a criminalidade em meio urbano e a
criminalidade associada à droga.

2. 2. 1. As necessidades e as iniciativas preventivas do século XXI

No primeiro semestre de 2000, no âmbito da Presidência portuguesa da


União Europeia, teve lugar, no Algarve, a Conferência de Alto Nível sobre
Prevenção da Criminalidade, na qual foram retomadas as conclusões do
Conselho Europeu de Tampere e houve a tentativa de desenhar a definição de
uma estratégia europeia contra a criminalidade.

37
Quer o Plano de Acção Contra a Criminalidade Organizada, de 1997, quer o Plano de Acção
de Viena, de 1998, versavam sobre medidas no domínio da prevenção da criminalidade
organizada (Eur-Lex, 2004).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 83

No segundo semestre de 2000, já sob a Presidência francesa da União


Europeia, foi realizado o seminário sobre “A Justiça de Menores na Europa”.
Nessa ocasião, foram relembrados os programas e as iniciativas desenvolvidas
para a juventude, no quadro da Europa, tendo sido então partilhada informação
sobre as respostas dos Estados-membro aos problemas levantados pela
delinquência juvenil. Uma das primeiras análises foi no sentido de que,
“embora comungando valores iguais ou muito próximos, os conceitos usados
nos diferentes países, as especificidades naturais da organização interna dos
respectivos sistemas jurídicos, as categorias utilizadas, dificultam a construção
de uma linguagem comum, e, por vezes, o próprio entendimento rigoroso das
mensagens transmitidas”, o que implica que, “se, porventura, é necessário
instaurar uma nova cultura na luta contra a delinquência, é importante que
exista uma linguagem comum face a este problema”, como conclui João
Figueiredo (2001a), o relator das Conclusões do Seminário.

Nessas Conclusões, o relator procedeu à caracterização da delinquência


juvenil na Europa38, começando por referir que “não é possível fazer um retrato
rigoroso e uniforme que transmita a situação existente, em matéria de
delinquência juvenil, em toda a Europa: há variações em função de países e
regiões e as informações estatísticas e qualitativas que é possível obter não
permitem que se faça tal retrato, neste momento” (2001a). Apresentou,
contudo, algumas características a ter em conta, como já se referiu no primeiro
capítulo, como o aumento, entre os jovens, do número de crimes praticados
com violência, sendo muita desta violência gratuita, o que levava a questionar o
mal-estar que lhe estaria subjacente; o fenómeno dos grupos de jovens
delinquentes, ainda que com débil organização, registado em vários Estados; o
aumento de práticas reincidentes e plurireincidentes, apesar de limitadas a um
pequeno número de jovens; o maior envolvimento de jovens do sexo feminino,
quer através da sua participação em grupos de delinquentes, quer na prática

38
Antes de apresentar as conclusões dos debates sobre a delinquência juvenil, João
Figueiredo (2001a) apresentou dois dados (ainda sem rigor estatístico): a grande maioria dos
jovens da União Europeia não cometia crimes e a maioria dos crimes praticados por jovens
84 Capítulo II – A justiça juvenil no Direito Internacional

de crimes violentos; a diminuição do nível etário dos jovens delinquentes; a


relação, em alguns Estados membros, entre a delinquência juvenil, o consumo
e tráfico de drogas e a criminalidade dos adultos; a prática de actos de
violência racial e xenófoba frequentemente com grande gravidade; e a
constatação de que muitos dos crimes praticados por jovens tinham como
vítimas outros jovens, o que permitia afirmar que estes estavam mais expostos
à violência da delinquência juvenil.

Foram apresentados, de seguida, os contributos dos Estados-membro


para a compreensão do fenómeno da delinquência juvenil, com o intuito de
melhor responder ao problema. Como referimos no Capítulo anterior, as
conclusões do Seminário, que incluem esses contributos, foram as seguintes: a
delinquência juvenil é, sobretudo, um fenómeno urbano, existindo uma relação
estreita entre a delinquência juvenil e o crescimento urbanístico desordenado,
especialmente nas periferias das grandes cidades; uma forte relação entre
delinquência juvenil e exclusão social, económica e cultural; há uma relação
entre a delinquência juvenil e os movimentos migratórios, com as
desadaptações sociais associadas; verifica-se um aumento das fragilidades
das instâncias tradicionais de socialização, designadamente da família e da
escola, face aos primeiros sintomas de desvio social, às dificuldades em
transmitir valores fundamentais sociais e, também, à relação existente entre a
prática de crimes e a existência de problemas de foro psiquiátrico e de
consumo de álcool. Foi, também, referida a atenção dispensada pela
comunicação social à delinquência juvenil, dada a forte mediatização que
aquela comporta, e a contribuição que essa atitude dos media tem para o
aumento do sentimento de insegurança na sociedade.

As respostas à delinquência juvenil que resultaram do Seminário sobre A


Justiça de Menores na Europa foram as seguintes:

eram pouco graves.


Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 85

Em primeiro lugar, a luta contra a delinquência juvenil tem que respeitar e


promover os Direitos Humanos e os Direitos da Criança, tal como estão
vertidos nos instrumentos jurídicos internacionais que os Estados-membro
subscreveram, devendo ter presentes os interesses dos jovens, as suas
necessidades educativas e de inserção social, a consideração dos interesses
das vítimas e a protecção da sociedade.

Em segundo lugar as respostas à delinquência juvenil requerem uma


abordagem integrada, de cariz preventivo, assistencial, policial e judiciário, não
constituindo apenas tarefa das entidades policiais e judiciárias.

É, também, fundamental uma intervenção pluridisciplinar que receba


contributos das diversas disciplinas científicas, de modo a ser compreendido o
fenómeno da delinquência juvenil e a elaboração e execução de programas e
de decisões mais adequados, quer para a prevenção primária, quer para a
reincidência.

Em quarto lugar é essencial uma articulação e coordenação sistemáticas


entre todas as entidades que intervêm.

Considera-se, ainda, que as estratégias de prevenção devem ser


conduzidas por grande número de actores e devem permitir uma intervenção
precoce, que detecte os primeiros factores de risco, devendo ter uma base
local e inserir-se em estratégias globais de desenvolvimento social e
urbanístico eficazes para contrariarem a exclusão social e a marginalização
urbana, o desemprego, a falta de oportunidades de educação e o absentismo
escolar, desempenhando o sistema educativo e os de formação profissional e
emprego um papel essencial na prevenção da delinquência juvenil.

Verificou-se que a evolução da delinquência juvenil tem levado alguns


Estados-membro a realizarem ou a prepararem reformas do direito de crianças
e jovens, sendo muito distintas as soluções encontradas, mas sempre com
uma perspectiva pedagógica, reparadora e reintegradora.
86 Capítulo II – A justiça juvenil no Direito Internacional

Constatou-se que as diferenças entre os Estados existem até ao nível das


idades da menoridade e da maioridade penal e da sua correspondência, ou
não, com a maioridade civil.

Existem, também, diferenças entre os Estados-membro quanto ao


sistema de medidas aplicáveis a jovens, contudo, é possível assinalar uma
tendência comum em todos os países da União Europeia na prioridade dada a
medidas de conteúdo reparador, do ofendido ou da comunidade - como é o
caso das tarefas a favor da comunidade - na prioridade atribuída a medidas de
conteúdo probatório e educativo, executadas na comunidade e na reserva de
medidas detentivas para os casos mais graves.

Do Seminário resultou, ainda, que as medidas aplicadas a jovens


delinquentes têm um cariz educativo, para prevenção da reincidência e para a
reinserção social, ainda que tenham cariz sancionatório.

Parece também ser fundamental obter a adesão do jovem ao


cumprimento da medida, havendo medidas que pressupõem tal adesão, para a
sua concretização;

Para o sucesso do cumprimento da medida, é essencial, segundo o


Seminário, uma intervenção individualizada, que tenha em conta as
características de cada jovem.

Uma outra resposta à delinquência juvenil vai no sentido de os factores de


risco da reincidência serem previstos aquando da preparação de programas
adaptados às necessidades do jovem.

Para o efeito pedagógico da medida é fundamental a celeridade do


processo judiciário de decisão, devendo também estar salvaguardados os
direitos e as garantias do jovem.

Por fim, entende-se que as experiências de desjudicialização e os


mecanismos de mediação, quer no âmbito do processo judicial quer fora dele,
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 87

são soluções tidas como importantes para evitar ou para minorar o contacto do
jovem com os sistemas de justiça.

Após a referência a estas respostas à delinquência juvenil, João


Figueiredo conclui que, nesta matéria, “apesar de todas as diferenças de
abordagem a nível conceptual geral, de modalidades de reacções e de
execução das mesmas, existe um sólido consenso nos Estados da União
Europeia que permite afirmar a existência de uma perspectiva europeia nas
respostas a dar à delinquência juvenil e que favorece um modelo integrado de
intervenção que combine aspectos pedagógicos, sancionatórios, reparadores e
reintegradores, rejeitando falsos dilemas repressivos/reeducativos ou
repressivos/pedagógicos”, havendo consenso também sobre a primazia a
atribuir aos conteúdos pedagógicos, ao apoio a mecanismos de mediação, ao
incentivo a prestações de carácter reparador na comunidade, sendo as
medidas detentivas consideradas a última solução a adoptar e destacada a
importância a atribuir a programas preventivos (Figueiredo, 2001a).

Resultou, ainda, do Seminário, a necessidade de ser iniciado um caminho


comum de fixação de regras mínimas que inspirem e orientem a aproximação
dos vários sistemas jurídicos europeus e que dê consistência à perspectiva
europeia de tratamento da delinquência juvenil.

Com o fim de garantir a continuidade do caminho já iniciado, foi então


tomada a iniciativa de criação de uma Rede Europeia de Prevenção da
Criminalidade, designadamente orientada para a delinquência juvenil, iniciativa
esta inserida nas conclusões do Conselho Europeu de Tampere, em 1999, e na
Conferência de Alto Nível realizada no início de 2000. Por ocasião do
Seminário foi, ainda, proposta a criação de um Observatório Europeu sobre a
Delinquência Juvenil.
88 Capítulo II – A justiça juvenil no Direito Internacional

A Rede Europeia de Prevenção da Criminalidade

A Rede Europeia de Prevenção da Criminalidade (REPC) foi criada por


decisão do Conselho, em Maio de 2001, tendo por objectivo a contribuição para
o desenvolvimento dos diferentes aspectos da prevenção da criminalidade a
nível da União e o apoio de acções de prevenção da criminalidade a nível local
e nacional. Os domínios da delinquência juvenil, da criminalidade em meio
urbano e da criminalidade associada à droga constituem as áreas prioritárias
desta Rede. A REPC, que reúne uma vez por semestre por convocação da
Presidência em exercício do Conselho, tem os seguintes objectivos: facilitar a
colaboração, os contactos e a troca de informações e de experiências; analisar
as acções existentes no âmbito da prevenção da criminalidade; definir os
principais domínios de colaboração e organizar anualmente a entrega do
Prémio Europeu de Prevenção da Criminalidade39; organizar conferências
seminários e encontros; reforçar a cooperação com os países candidatos e
apresentar, todos os anos, ao Conselho um relatório sobre as actividades
desenvolvidas. A REPC estabeleceu, entretanto, relações de cooperação com
o Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, de Lisboa (Jornal
Oficial, 2001).

De acordo com a comunicação da Comissão ao Conselho e ao


Parlamento Europeu – Prevenção da Criminalidade da União Europeia40 - o
Jornal Oficial da União Europeia, a REPC tem obtido resultados positivos, pois,
desde 2001, data da sua criação, representantes e peritos dos Estados-
membro realizam reuniões com regularidade, para troca de experiências e
definição de estratégias comuns e de prioridades de actuação e de

39
O Prémio Europeu de Prevenção da Criminalidade, existente desde 1997, deve-se a uma
iniciativa dos Países-Baixos, da Bélgica e do Reino Unido, com o objectivo de proporcionar um
incentivo aos intervenientes no âmbito da prevenção da criminalidade. Todos os anos são
seleccionados os dois melhores projectos de prevenção da criminalidade. Em 2003 este prémio
foi atribuído ao Programa de Prevenção da Criminalidade e Inserção dos Jovens criado em
Portugal em 2001, denominado “Programa Escolhas”.
40
Cf. Jornal Oficial da União Europeia, n.º C92, de 16 de Abril de 2004.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 89

investigação, a partir de programas anuais. Foi iniciada, entretanto, a


elaboração de um inventário de políticas de prevenção com resultados
positivos. Em 2004 está a ser preparada a aplicação de estudos sobre temas
como a delinquência juvenil. Contudo, a REPC, de acordo com a Comunicação
acima referida, debate-se também com algumas dificuldades, designadamente
relacionadas com o facto das suas potencialidades “não poderem ser
plenamente exploradas enquanto todos os Estados-Membros não se tiverem
comprometido a adoptar formalmente e a aplicar políticas gerais de prevenção
da criminalidade a nível nacional”, pois enquanto isso não se verificar, “subsiste
o risco de as actividades da Rede, por mais úteis que sejam, permanecerem
parcialmente isoladas, sem um seguimento adequado a nível da prática
nacional de prevenção da criminalidade nos Estados-Membros”.

Os Programas de prevenção da criminalidade

No âmbito da prevenção da criminalidade, a União Europeia adoptou, em


2001, o programa Hipócrates e, em 2002, o programa AGIS, com vista ao co-
financiamento de projectos de cooperação entre Estados membros.

O programa Hipócrates, criado por um período de dois anos (2001 e


2002), visava a promoção e a cooperação entre todas as organizações
públicas e privadas dos Estados da União com participação na prevenção da
criminalidade. As prioridades deste programa na prevenção geral da
criminalidade baseavam-se nos três temas prioritários identificados pelo
Conselho Europeu de Tampere, entre os quais figurava a delinquência juvenil.
Em 2002 o programa Hipócrates foi substituído pelo programa AGIS, que visa a
cooperação policial e judiciária em matéria penal, tendo sido, em 2003, co-
financiados projectos relativos à delinquência juvenil.

No Sexto Programa-Quadro da União Europeia (2002-2006) no domínio


da IDT (Investigação e Desenvolvimento Tecnológico) foi introduzido um tema
de investigação sobre a prevenção da criminalidade. Tal investigação visa
90 Capítulo II – A justiça juvenil no Direito Internacional

identificar instrumentos comuns para avaliar a dimensão e a natureza da


criminalidade de massa, para analisar as estratégias de redução da
criminalidade e para apreciar as ameaças a longo prazo.

As necessidades actuais

Em Março de 2004, a Comissão da União Europeia apresentou ao


Conselho e ao Parlamento a comunicação sobre “Prevenção da Criminalidade
na União Europeia”, na qual é enfatizada a responsabilidade que incumbe aos
Estados-membro no âmbito da prevenção, sobretudo porque a delinquência
juvenil e a criminalidade em meio urbano e a associada à droga apresentam
uma forte dimensão local, no que se refere à sua ocorrência. Nessa
comunicação é referido que a criminalidade de massa - ou criminalidade não
organizada – , que engloba a delinquência juvenil, a criminalidade em meio
urbano e a criminalidade associada à droga - constitui “a principal fonte de
preocupação dos cidadãos europeus” e “o primeiro passo que os jovens dão
antes de participarem em formas de criminalidade mais graves, incluindo a
criminalidade organizada. Desta forma, o investimento na prevenção da
criminalidade de massa contribuiria também para reduzir a criminalidade mais
grave” (Jornal Oficial, 2004). Assim, a prevenção de tal criminalidade deveria
constituir uma área política de pleno direito na União Europeia. Para reforçar
esta ideia, foram apresentados exemplos que demonstram que a prevenção da
criminalidade pode, de facto, funcionar41. Defende-se, assim, que a prevenção

41
Um dos casos relatados dá conta que “iniciativas bem documentadas e avaliadas, destinadas
aos jovens na faixa etária dos 10-16 anos, permitem concluir que programas eficazes de
desenvolvimento e de intervenção precoce produzem benefícios significativos a longo prazo.
Conclui-se, decorridos 16 anos, que o risco de prisão para os participantes no programa era
claramente inferior ao dos participantes no grupo de controlo”; outro caso relata um programa
desenvolvido nos Estados Unidos, nos anos 70, o programa pré-escolar Perry, que previa
classes pré-escolares de desenvolvimento para crianças entre os 3 e os 4 anos de idade,
oriundas de famílias de baixos rendimentos, classes essas associadas a visitas domiciliárias
realizadas pelos técnicos. Ora, constatou-se, mais tarde, que os participantes no programa,
quando jovens e adultos, apresentavam taxas de prisão bastante mais baixas e taxas de
sucesso escolar mais elevadas. Este programa, para além destes bons resultados, teve
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 91

da criminalidade de massa constitui um instrumento político relativamente


recente, mas potencialmente eficaz para a redução da criminalidade. Para
proporcionar uma prevenção mais eficaz da criminalidade em toda a União, a
Comissão entende ser essencial que os Estados-membro envolvam as
autoridades na primeira linha do desenvolvimento dessas políticas, que tenham
políticas nacionais de prevenção da criminalidade e que respeitem as normas
reconhecidas internacionalmente.

também uma avaliação positiva quanto à análise de custos-benefícios (Jornal Oficial, n.º C92,
de 16 de Abril de 2004).
Capítulo III

A reforma da justiça juvenil em Espanha:

apresentação da lei e brevíssima reflexão sobre a sua


aplicação

Introdução

No capítulo anterior procedemos à análise do direito internacional, dando


especial ênfase às normas e acções desenvolvidas no âmbito do Conselho da
Europa e da União Europeia, relativamente à criminalidade juvenil.

Tendo em vista o nosso objecto de estudo – avaliação da aplicação da


nova Lei Tutelar Educativa – lançaremos, neste capítulo, um breve olhar sobre
o novo direito de crianças e jovens em Espanha. Justifica-se esta análise por
ser, no contexto da experiência comparada, um país com características
jurídicas comuns e próximas das de Portugal e com uma recente reforma sobre
esta matéria. Daremos conta, em primeiro lugar, da nova legislação, concluindo
o capítulo com uma brevíssima e fragmentária reflexão sobre a aplicação da
referida lei (Ley Orgánica Reguladora de la Responsabilidad Penal de los
Menores).

1. A reforma do direito de crianças e jovens em Espanha: Ley


Orgánica Reguladora de la Responsabilidad Penal de los Menores

1. 1. A evolução histórica do direito de crianças e jovens em


Espanha

No século XIV surgiu em Espanha a figura do Padre de Órfãos, que tinha


como função amparar e proteger os jovens vagabundos e ociosos, órfãos e
94 Capítulo III - A reforma da justiça juvenil em Espanha

desprotegidos encaminhando-os para a Casa Común, onde aprenderiam um


ofício. No início do século XX a justiça de crianças e jovens, em Espanha,
previa os “hospícios” para os órfãos e vagabundos e as prisões para os jovens
que infringiam a lei penal. Os sucessivos Códigos Penais, desde 1822,
restringiram a aplicação da lei penal a determinadas idades e circunstâncias.
Em 1920 foi criado o primeiro Tribunal Tutelar de Menores e no Código Penal
de 1928 foi fixada nos 16 anos a idade a partir da qual os jovens passariam a
ter responsabilidade penal (D’Ancona, 1992).

Em 1948, o Decreto de 11 de Junho, aprovou o Texto Refundido de la Ley


de Tribunales Tutelares de Menores, a qual foi inspirada nos princípios da lei
de bases de 3 de Agosto de 1918.

Em 1985 a Ley Orgánica del Poder Judicial criou os Tribunais de


Menores, em substituição dos antigos Tribunales Tutelares de Menores.

Até 1992, foi o Decreto de 1948 que regulou o sistema de justiça juvenil.
O Texto Refundido de 1948 continha uma série de medidas de segurança,
como reacções do Estado ao jovem infractor, medidas que eram aplicadas não
apenas como respostas à prática de delitos mas também a certos estados
considerados de perigosidade social.

Aquela lei foi alvo de duras críticas doutrinais e, com a entrada em vigor
da Constituição, o sistema revelou-se insustentável, pois considerava-se que
colocava em causa os mais elementares direitos e garantias do jovem e que
representava um atentado contra os princípios do Estado de Direito social e
democrático. Foram levantadas várias questões de inconstitucionalidade,
promovidas por juízes de menores, sobretudo a partir de 1991, levando a
várias decisões de inconstitucionalidade, salientando-se a sentença do Tribunal
Constitucional 36/1991, de 14 de Fevereiro, que declarou inconstitucional uma
norma daquele documento legal. Como consequência dessa sentença, em 5 de
Junho de 1992 entrou em vigor a Ley Orgánica 4/92, que revogou o anterior
regime legal.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 95

A Ley Orgánica 4/92 apresentou algumas novidades. A principal dizia


respeito ao estabelecimento de uma separação clara entre as questões de
justiça juvenil e as de protecção de crianças e jovens, passando a justiça
juvenil a estar sob a alçada do sistema judicial criminal. De entre as alterações
introduzidas, destacamos as seguintes: a ampliação do leque de medidas
aplicáveis42; as medidas passaram a ser impostas apenas como consequência
da prática de factos tipificados na lei penal; passaram a ter um prazo de
duração máximo, que não podia exceder dois anos; passou a haver notas de
flexibilidade, possibilidade de revisão, limitação temporal; e a execução das
medidas passou a estar a cargo de entidades públicas competentes,
seleccionadas tendo em conta o interesse do jovem.

Na Exposição de Motivos da Ley Orgánica 4/92, o legislador esclarecia


que o critério da escolha das medidas devia ser, precisamente, o interesse do
jovem e que o aplicador se devia nortear pelo princípio da intervenção mínima.

Em relação ao anterior sistema, a Ley Orgánica 4/92 representou um


grande avanço, tendo sido criado para os jovens um procedimento penal
paralelo ao dos adultos, com garantias idênticas às do processo penal.
Contudo, apesar de a lei ter como objectivo central o interesse do jovem, houve
quem considerasse que foi construído um modelo “penal” com todas as
vantagens mas também com inconvenientes, que decorriam, sobretudo, da
conversão das medidas, pretensamente educativas, em penas, e do processo
educativo, em processo penal. Uma importante novidade desta lei foi a
atribuição, ao Ministério Público, de um papel fundamental que, para além de
dirigir a investigação dos factos atribuídos ao jovem e de ter o monopólio do
exercício da acção penal nesta matéria, tinha, também, uma função de
protecção de crianças e jovens, passando a ser o garante dos seus direitos.

42
A Lei 4/92 previa as seguintes medidas: admoestação, internamento de um a três
fins-de-semana, liberdade vigiada, acolhimento por outra pessoa ou núcleo familiar, privação
do direito de conduzir ciclomotores ou veículos com motor, prestação de serviços em benefício
da comunidade, tratamento ambulatório ou entrada num centro terapêutico e internamento.
96 Capítulo III - A reforma da justiça juvenil em Espanha

A Ley Orgánica 4/92 foi, contudo, como se referiu, objecto de várias


críticas. Por um lado, os partidários do sistema repressivo mostravam-se
satisfeitos por o jovem ser inserido num verdadeiro processo penal, frente a um
juiz (inserido em jurisdição ordinária, como exige a Constituição de Espanha,
mas especializada, como recomendam as Regras de Beijing, como vimos no
capítulo anterior), por ter um advogado defensor e por gozar de todas as
garantias penais e processuais de que historicamente havia estado sempre
excluído. Também as medidas aplicadas com limites, que se assemelham às
penas, e com conteúdo flexível constituíam uma boa solução para o jovem. Por
outro lado, os defensores da não utilização do Direito Penal no âmbito da
justiça juvenil repudiavam o sistema que sentava as crianças e os jovens no
banco dos réus, invocando o princípio da intervenção mínima e a
impossibilidade de prosseguir o interesse do jovem com a rigidez do processo
penal.

Neste contexto estava, pois, instalada a necessidade de proceder à


reforma da Ley Orgánica 4/92, o que veio a acontecer através da Ley Orgánica
5/2000, de 12 de Janeiro.

1. 2. O actual direito de crianças e jovens em Espanha

1. 2. 1. Os princípios gerais

A Ley Orgánica 5/2000, de 12 de Janeiro - Ley Orgánica Reguladora de la


Responsabilidad Penal de los Menores (LORPM) - tem como princípios
orientadores o superior interesse das crianças e jovens, as garantias do
ordenamento constitucional e as normas de direito internacional, em especial a
Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, de 1989.

Na Exposição de Motivos da Ley Orgánica 5/2000, o legislador elencou os


princípios, critérios e orientações subjacentes à LORPM. Esses princípios são
os seguintes: a natureza formalmente penal, mas materialmente
sancionatório-educativa do procedimento e das medidas aplicáveis aos jovens
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 97

infractores43; o reconhecimento expresso de todas as garantias que decorrem


do respeito pelos direitos constitucionais e pelas especiais exigências do
interesse do jovem44; a diferenciação de diversas faixas etárias com diferentes
efeitos processuais e sancionadores45; a flexibilidade na adopção e execução
das medidas aconselhadas para as circunstâncias do caso concreto46; a
competência das entidades das Comunidades Autónomas relacionadas com a
reforma e com a protecção de crianças e jovens para a execução das medidas
impostas na sentença; o controlo judicial da execução47; a especial incidência
na reparação do dano causado e na conciliação do delinquente com a vítima; e
a fixação de um sistema célere para o ressarcimento de danos e de prejuízos
às vítimas ou a outros prejudicados por factos diversos48.

Como o legislador refere na Exposição de Motivos, a LORPM tem


natureza sancionatória, pois exige uma verdadeira responsabilidade jurídica
dos jovens infractores, devendo, contudo, estar sempre presente a defesa do
superior interesse das crianças e jovens. Esse interesse deve ser valorado com

43
A LORPM tem a natureza de disposição sancionatória, pois desenvolve a exigência de uma
verdadeira responsabilidade jurídica dos jovens infractores, referida à prática de factos
tipificados no Código Penal e demais leis penais especiais. Ao ter também natureza educativa,
a LORPM socorre-se de outras finalidades essenciais do direito penal dos adultos, como a
proporcionalidade entre o facto e a sanção, evitando todo o efeito contraproducente para o
jovem.
44
Designadamente a especial intervenção do Ministério Público – cabe ao Ministério Público a
defesa dos direitos das crianças e jovens, assim como o controlo das acções a empreender no
seu interesse e a observância das garantias do procedimento, razões pelas quais dirige a
investigação dos factos.
45
A lei acolhe o sistema biológico puro (responsabilidade penal dos jovens entre os 14 e os 18
anos), distinguindo-se duas faixas etárias (dos 14 aos 16 anos e dos 17 aos 18 anos), por se
entender que esses estratos etários apresentam diferenças características que exigem um
tratamento distinto, do ponto de vista científico e jurídico. Por outro lado, a lei poderá também
ser aplicada a maiores de 18 anos e menores de 21 anos, atendendo às circunstâncias
pessoais e ao grau de maturidade do autor e à natureza e gravidade dos factos. Algumas
situações especiais exigem uma resposta específica, designadamente os casos de problemas
mentais ou de ocorrência de outras circunstâncias modificativas da responsabilidade, situações
em que o Ministério Público deve promover a adopção de medidas mais adequadas ao
interesse do jovem.
46
Mediante solicitação das partes e ouvidas as equipas técnicas, o juiz dispõe de amplas
faculdades para suspender ou para substituir as medidas por outras ou para permitir a
participação dos pais do jovem na sua aplicação.
47
A execução das medidas cabe a entidades públicas de protecção e de reforma de crianças e
jovens das Comunidades Autónomas, com o controlo do juiz de menores.
48
Quanto ao ressarcimento de danos e prejuízos, a lei introduziu o princípio da
responsabilidade solidária com o jovem, de seus pais, tutores ou de quem tenha a sua guarda.
98 Capítulo III - A reforma da justiça juvenil em Espanha

base em critérios técnicos, por equipas de profissionais especializados no


âmbito das ciências não jurídicas. A lei, como já referimos, também não
esquece o interesse da vítima do facto, estabelecendo um procedimento rápido
e pouco formalista para o ressarcimento de danos (cfr. nota 7).

A LORPM possibilita, ainda, um amplo direito de participação das vítimas,


dando-lhes a oportunidade de intervir activamente. Além da especial
importância que é atribuída à reparação do dano causado, é também dada
igual importância à conciliação do delinquente com a vítima, recorrendo-se,
para o efeito, à mediação.

1. 2. 2. A competência e o âmbito de aplicação da LORPM

A competência

A competência para a aplicação da LORPM cabe ao juiz de menores do


local onde tenha sido praticado o facto. No caso do mesmo jovem ter cometido
delitos em diferentes zonas, será competente para apreciar os factos o Tribunal
do lugar da residência do jovem, sendo reunidos todos os processos
conhecidos numa única unidade de expediente.

A posição do Ministério Público, como se lê na Exposição de Motivos da


LORPM, é de grande relevância, na sua dupla condição de instituição que
detém, por atribuição constitucional, a função de promover a acção da justiça e
a defesa da legalidade, bem como os direitos das crianças e jovens, zelando
pelos interesses destes.

O advogado do jovem tem participação em todas as fases do processo,


sendo-lhe dado conhecimento do conteúdo de todo o expediente, podendo
requerer provas e intervir em todos os actos relativos à valoração do interesse
do jovem e à execução da medida, podendo solicitar a sua modificação.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 99

O âmbito de aplicação

Nos termos do ordenamento jurídico espanhol, a maioridade penal é


fixada nos 18 anos, ou seja, os menores de 18 anos que tenham cometido um
facto punido como crime não são responsáveis criminalmente, à luz do Código
Penal49.

A LORPM veio completar a ideia expressa no artigo 19.º do Código Penal,


de acordo com o qual a maioridade penal se atinge aos 18 anos e assenta no
princípio de que a responsabilidade penal dos jovens, face à dos adultos,
requer, de forma primordial, uma intervenção educativa, que transcende todos
os aspectos da sua regulação jurídica e determina consideráveis diferenças
entre o sentido e o procedimento das sanções, sem prejuízo das garantias
dispensadas. A idade que constitui o limite superior - 18 anos - precisa de um
limite mínimo a partir do qual comece a possibilidade de exigir tal
responsabilidade, limite esse que foi fixado, em Espanha, nos 14 anos, idade
abaixo da qual não se exige qualquer responsabilidade penal, sendo as
crianças e jovens apenas objecto de protecção administrativa, pois entende-se
que estes jovens carecem de capacidade para compreender o carácter ilícito
da sua conduta. Parte-se também da ideia de que as infracções cometidas por
estes jovens são, em regra, irrelevantes e que nos escassos casos em que
provocam algum alarme social as respostas de carácter familiar e assistencial
são suficientes.

A faixa etária objecto de aplicação da LORPM é, pois, dos 14 aos 18


anos, sendo aplicável às crianças e jovens o processo e as medidas previstas
na LORPM. A partir dos 18 anos o jovem é considerado imputável e
penalmente responsável. Contudo, entre os 18 e os 21 anos, atendendo à

49
Excepcionalmente, e tendo em conta a personalidade e o grau de maturidade, podem
permanecer em centros destinados a jovens aqueles que, tendo cumprido 21 anos, não
tenham ainda alcançado os 25 anos. A lei determina, ainda, que os jovens que ainda não
tiverem completado 21 anos devem cumprir as penas privativas da liberdade separados dos
adultos, em estabelecimentos distintos ou em departamentos separados.
100 Capítulo III - A reforma da justiça juvenil em Espanha

idade e a certas características do indivíduo, é ainda possível a aplicação da


LORPM (cfr. nota 8).

1. 2. 3. As medidas aplicáveis aos jovens

A LORPM estabelece um amplo catálogo de medidas aplicáveis, partindo


da perspectiva sancionatória-educativa, tendo sempre como pressuposto o
interesse das crianças e jovens e a adopção flexível da medida mais idónea,
atendendo às características do caso concreto, da idade do jovem, da
seriedade da transgressão e da sua evolução pessoal durante a execução da
medida.

As medidas previstas na LORPM são as seguintes:

Internamento em regime fechado50

A medida de internamento em regime fechado consiste na vivência num


centro no qual se desenvolvem actividades formativas, educativas, laborais e
de tempos livres. Com esta medida visa-se a aquisição, por parte das crianças
e jovens, de competências sociais que lhes permitam um comportamento
responsável na comunidade, através de um ambiente restritivo e
progressivamente autónomo.

50
O internamento em regime fechado apenas é aplicado nos casos em que na prática dos
factos tiver havido recurso a violência ou a intimidação ou se tiver havido risco para a vida ou
para a integridade física. Esta limitação das situações em que é possível a aplicação de
internamento em regime fechado está de acordo com os princípios internacionais relativos à
privação da liberdade de jovens, inscritos designadamente na Convenção sobre os Direitos da
Criança e nas Regras de Beijing.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 101

Internamento em regime semiaberto

O internamento em regime semiaberto pressupõe a residência num


centro, mas a realização de actividades educativas, formativas e de tempos
livres no exterior. Este regime implica a existência de um projecto educativo, no
qual os objectivos substanciais se realizam em contacto com as pessoas e
instituições da comunidade.

Internamento em regime aberto

No internamento em regime aberto, todas as actividades previstas no


projecto educativo são desenvolvidas nos serviços existentes na zona,
residindo o educando no centro, com sujeição ao programa e regime interno do
mesmo. Não é um regime substancialmente distinto do regime de internamento
semiaberto.

Nos termos da LORPM, na execução das medidas de internamento


existem dois períodos distintos. O primeiro decorre no centro, num dos regimes
de execução referidos, e o período seguinte decorre em regime de liberdade
vigiada, na modalidade escolhida pelo juiz. A duração total dos dois períodos
não poderá exceder os dois anos, contudo, excepcionalmente, o legislador
determinou que, em casos de extrema gravidade, o juiz poderá impor uma
medida de internamento em regime fechado até cinco anos, acrescida de outra
medida de liberdade vigiada com acompanhamento educativo até um máximo
de outros cinco anos.

Internamento terapêutico

O internamento terapêutico é uma medida desenvolvida em centros com


características especiais para o efeito, que consiste no acompanhamento
educativo especializado ou no tratamento específico dirigido a crianças e
102 Capítulo III - A reforma da justiça juvenil em Espanha

jovens que padecem de anomalias ou de alterações psíquicas, estados de


dependência de substâncias psicotrópicas ou alterações da percepção. Esta
medida pode ser aplicada isolada ou em complemento de outra, sendo
indicada para jovens que necessitam de um contexto estruturado para
realizarem um programa terapêutico, por não disporem de condições para
realizarem tal tratamento em regime ambulatório.

Tratamento ambulatório

Esta é uma variante da medida de internamento terapêutico, pois consiste


na assistência no centro designado, com a periodicidade necessária, de modo
a poder ser seguido o tratamento adequado à anomalia ou à alteração
psíquica. Como se lê na Exposição de Motivos da LORPM, é uma medida
adequada para casos de desequilíbrio psicológico ou de perturbações
psíquicas que podem ter resposta positiva sem internamento, bem como para
os jovens que apresentam uma dependência do álcool e de drogas e que
dispõem das condições adequadas para beneficiarem de um programa
terapêutico a decorrer na comunidade. Na execução do tratamento ambulatório
podem ser combinados diferentes tipos de assistência médica ou psicológica e
a metodologia empregue poderá ser, sobretudo, de orientação psico-educativa,
e não tanto clínica.

Também esta medida pode ser aplicada isolada ou em complemento de


outra, designadamente com a liberdade vigiada.

Assistência num centro de dia

A medida de assistência num centro de dia consiste na residência no


domicílio habitual, com deslocações a um centro plenamente integrado na
comunidade, para realização de actividades de acompanhamento, educativas,
formativas, laborais e de tempos livres.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 103

Esta medida visa proporcionar ao jovem um ambiente estruturado durante


grande parte do dia, mantendo-o ocupado com actividades sócio-educativas
que compensem as carências do seu ambiente familiar. O jovem submetido a
esta medida pode continuar a residir com a sua família ou em estabelecimento
de acolhimento.

Permanência em casa ou em centro durante o fim-de-semana

O jovem sujeito a esta medida permanece no seu domicílio ou num centro


até um máximo de 36 horas, entre a tarde ou noite de sexta-feira e a noite de
domingo, com excepção do tempo que deva dedicar às tarefas sócio-
educativas designadas pelo juiz.

Liberdade vigiada

A medida de liberdade vigiada consiste no acompanhamento da


actividade do jovem na escola, no centro de formação profissional ou no local
de trabalho, de acordo com os casos, prestando-se-lhe a ajuda de que
necessite para superar os factores que conduziram ao cometimento do delito.

O jovem submetido à medida de liberdade vigiada fica obrigado a manter


entrevistas com o técnico encarregado de o acompanhar e a cumprir as regras
de conduta impostas pelo juiz, que podem ser as seguintes: assiduidade na
escola, caso o jovem esteja em período de ensino obrigatório; submissão a
programas de tipo formativo, cultural, educativo, profissional, de educação
sexual, de cidadania ou outros similares; proibição de frequentar alguns locais,
estabelecimentos ou espectáculos; proibição de se ausentar do local da sua
residência sem autorização judicial prévia; obrigação de residir num local
determinado; obrigação de comparecer perante o juiz ou perante o profissional
que se designe para prestar informações e justificar as actividades realizadas;
quaisquer outras obrigações que o juiz, oficiosamente ou mediante proposta do
104 Capítulo III - A reforma da justiça juvenil em Espanha

Ministério Público, considere convenientes para a reinserção social das


crianças e jovens, desde que não colidam com a sua dignidade.

Esta medida supõe a submissão do infractor a uma vigilância e


supervisão a cargo de pessoal especializado para que venha a adquirir as
capacidades e atitudes necessárias ao correcto desenvolvimento da sua
personalidade. A eficácia da medida dependerá não apenas da atitude do
próprio jovem, mas também da sua família - que deverá ser idónea - e da
existência, nas Comunidades Autónomas, das correspondentes equipas de
liberdade vigiada e de adequado controlo judicial.

Ao aplicar esta medida, o juiz deve ter em conta a valoração jurídica dos
factos praticados, a idade, as circunstâncias familiares e sociais, a
personalidade e o interesse do próprio jovem. Por essa razão é uma medida
adequada a crianças e jovens que apresentam carências escolares,
educativas, familiares e pessoais, que necessitam de uma intervenção
prolongada no tempo.

Convivência com outra pessoa, família ou grupo educativo

Com esta medida pretende-se que, durante o tempo estabelecido pelo


juiz, o jovem conviva com outra pessoa, com uma família que não a sua ou
com um grupo educativo seleccionado para orientar o jovem no seu processo
de socialização.

Esta medida visa proporcionar ao jovem um ambiente de socialização


positiva, no que diz respeito ao desenvolvimento da vertente sócio-afectiva. A
convivência será, como referimos, limitada temporalmente pelo juiz, pois
decorrido algum tempo, o jovem regressará à sua família de origem, pelo que a
medida não pode implicar uma ruptura radical com os vínculos entre o jovem e
a sua família.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 105

Trabalho a favor da comunidade

Esta medida, para a qual a lei fundamental exige o consentimento do


jovem, consiste na realização de actividades, não remuneradas, de interesse
social ou em benefício de pessoas em situação precária, durante um número
determinado de sessões. Procura-se relacionar a natureza de tais actividades
com a natureza do bem jurídico lesado pelo jovem.

A medida de prestação de trabalho a favor da comunidade é uma medida


adequada para os que cometem infracções de natureza patrimonial, sobretudo
crime de dano, e consiste em actividades de limpeza em hospitais, em
estabelecimentos psiquiátricos ou asilos, trabalhos de reparação ou de
manutenção em igrejas ou em escolas, reparação de danos praticados em
meios de transporte, mobiliário urbano, edifícios públicos ou propriedades
particulares, trabalhos de manutenção de florestas, jardins ou parques e outras
análogas, todas adaptadas à idade e às capacidades do jovem, sem
interferirem na sua actividade escolar e formativa, sempre relacionadas, de
forma preferencial, com a natureza dos factos praticados.

O objectivo da medida é que o jovem compreenda que a colectividade ou


que determinadas pessoas sofreram de forma injustificada as consequências
negativas da sua conduta delituosa e que a prestação do trabalho, que se
exige, é um acto de reparação justa.

Realização de tarefas sócio-educativas

O jovem submetido a esta medida, sem recurso a internamento nem a


liberdade vigiada, deverá realizar actividades específicas de conteúdo
educativo, com o fim de desenvolver a sua competência social e a sua
reinserção na comunidade.

Esta medida pode ser imposta de forma autónoma ou pode ser


combinada com outra medida mais complexa. Nos casos em que é aplicada de
106 Capítulo III - A reforma da justiça juvenil em Espanha

modo autónomo, visa satisfazer necessidades concretas do jovem que


impedem o seu desenvolvimento integral, podendo consistir na assistência e
participação do jovem num programa já existente na comunidade ou num
programa criado para o efeito pelos profissionais encarregados de executar a
medida. Alguns exemplos de tarefas sócio-educativas são a frequência de
oficinas ocupacionais, de aulas de educação compensatória, de cursos de
preparação para o emprego, de actividades estruturadas de animação
sociocultural ou de oficinas de aprendizagem de competências sociais.

Admoestação

Esta medida consiste na repreensão dada, pelo juiz, para que o jovem
compreenda a gravidade dos factos praticados e as consequências que
aqueles tiveram ou que poderiam ter tido, instando-o a não voltar a praticar tais
factos.

A admoestação apenas tem sentido quando o jovem admite ter realizado


a infracção penal. A sua eficácia está dependente da sensibilidade e do
profissionalismo do juiz e da receptividade do jovem à mensagem judicial.

Privação da autorização para conduzir ciclomotores ou veículos com


motor, ou do direito de obter tal autorização ou das licenças
administrativas para caça ou para uso de qualquer tipo de arma

Esta medida pode ser imposta como acessória quando o delito tiver sido
cometido com a utilização de um ciclomotor, de um veículo com motor ou com
uma arma.

É uma medida mais dissuasória do que educativa e não implica qualquer


acompanhamento, deve ser executada pelo próprio juiz sem intervenção da
Administração da Comunidade Autónoma competente, tal como a
admoestação.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 107

Em Espanha, tal como Nieves Mulas refere (2003: 375), desde há alguns
anos, nota-se que a incidência da “era do automóvel” na delinquência juvenil é
muito elevada, designadamente a condução de ciclomotores ou de veículos a
motor sob a influência de drogas e de bebidas alcoólicas e a utilização,
sobretudo de motos, para a prática de roubo por esticão.

Inabilitação absoluta

Esta medida foi introduzida pela Ley Orgánica 7/2000, de 22 de


Dezembro, dirigida aos delitos de terrorismo, e implica a privação definitiva de
todas as honras, empregos e cargos públicos, mesmo que electivos, assim
como a incapacidade para obter os mesmos ou quaisquer outros cargos,
empregos públicos ou honras e de ser eleito para um cargo público, durante o
tempo de duração da medida.

A lei precisa, ainda, no caso da prática dos crimes de terrorismo previstos


nos artigos 571.º a 580.º do Código Penal, sem prejuizo da aplicação de outras
medidas aplicáveis no âmbito da LORPM, a imposição, também, da medida de
inabilitação absoluta a menores de 18 anos, por um período entre quatro e
quinze anos para além da duração da medida de internamento em regime
fechado, atendendo à gravidade do delito, ao número de factos e às
circunstâncias concretas. Nestes casos, até ter sido cumprida metade da
medida, não poderá ter lugar qualquer revisão. Devido à gravidade dos crimes
praticados que desencadeiam a aplicação da Lei 7/2000, a preocupação do
legislador já não incide na defesa dos interesses do jovem, mas sim, na defesa
da sociedade. De acordo com Nieves Mulas (2003: 392), a alteração
introduzida na LORPM pela Ley Orgánica 7/2000 representou uma ruptura com
a coerência interna do sistema da LORPM, pois implicou a quebra dos seus
princípios inspiradores, orientados para a integração social dos jovens. A Ley
Orgánica 7/2000 constitui uma exasperação do rigor punitivo que deixou de
lado a evolução pessoal do jovem e que, portanto, se opõe ao princípio da
ressocialização.
108 Capítulo III - A reforma da justiça juvenil em Espanha

1. 2. 4. A proposta e a escolha da medida

Para a proposta e escolha da medida ou medidas adequadas, o Ministério


Público, o advogado do jovem e o juiz devem atender, de modo flexível, à
prova e à valoração jurídica dos factos, à idade, às circunstâncias familiares e
sociais, à personalidade e ao interesse do jovem, socorrendo-se dos relatórios
elaborados pelas equipas técnicas e, se for o caso, de informações
provenientes de entidades públicas de protecção de crianças e jovens. O juiz,
ao fundamentar a sentença, terá que referir com detalhe a razão da aplicação
de determinada medida, assim como o seu prazo de duração.

Em todo o processo “está presente uma abordagem restauradora da


justiça, considerando-se que ela pode ser mais útil tanto para a vítima como
para o transgressor”. Assim, no caso de transgressões consideradas leves, “o
procedimento pode limitar-se a uma mediação entre vítimas e transgressores,
de modo a estabelecer-se uma compensação para o mal causado, quer
através da reparação à vítima, quer da realização de trabalhos comunitários”
(Fundação da Juventude, 2004: 45)51.

A LORPM esclarece que nos casos em que os factos tiverem sido


praticados com culpa leve ou com negligência apenas podem ser impostas as
medidas de admoestação, permanência de fim-de-semana até um máximo de
quatro, prestações de trabalho a favor da comunidade até 50 horas e privação
do direito de conduzir ou de outras licenças administrativas.

A medida de internamento em regime fechado apenas pode ser aplicada


quando, pela descrição e qualificação jurídica dos factos, se conclua que, na

51
Como refere o estudo “Violência Juvenil – Histórias e Percursos”, de 2004, realizado pela
Fundação da Juventude, a mediação e a reparação são expedientes que exigem especial
formação dos técnicos e que “podem ser muito eficazes na prevenção de futuras transgressões
no caso dos mais jovens”, pois “aumentam a percepção da justiça da vítima e envolvem uma
abordagem das suas preocupações que, provavelmente, têm sido um pouco descuradas na lei
criminal tradicional” (Fundação da Juventude, 2004: 46). Outro objectivo em vista consiste em
encorajar a comunidade, através do voluntariado, para participar na elaboração de medidas e
de programas, mesmo ao nível da detenção, pois acredita-se que em alguns casos seja uma
acção muito eficaz.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 109

sua prática, foi utilizada violência ou intimidação ou que se actuou com grave
risco para a vida ou para a integridade física das vítimas. Esta grande redução
das possibilidades de aplicação da medida de internamento em regime fechado
é coerente com os princípios plasmados na doutrina internacional sobre
privação da liberdade dos jovens, os quais consideram o internamento em
regime fechado como o último recurso e apenas durante o mais curto período
de tempo possível (cf. artigo 37.º, b), da Convenção sobre os Direitos da
Criança).

A duração das medidas não poderá ser superior a dois anos - nesse
período será sempre contabilizado e descontado o tempo já cumprido em
medida cautelar. A prestação trabalho a favor da comunidade não poderá
ultrapassar as 100 horas e a medida de permanência de fim-de-semana não
pode exceder oito fins-de-semana.

Quanto aos jovens que já tenham completado 16 anos, a lei determina


que a duração da medida poderá atingir o máximo de cinco anos, sempre que
o delito tenha sido praticado com violência, intimidação ou com grave risco
para a vida ou para a integridade física de outrem e desde que a equipa técnica
aconselhe o prolongamento da medida, como expressamente refere a LORPM.
Nestes casos, também as medidas de prestação de trabalho a favor da
comunidade poderão atingir as 200 horas e a permanência em fim-de-semana
poderá estender-se até 16 fins-de-semana.

Com a reforma introduzida pela Ley Orgánica 7/2000, de 22 de


Dezembro, referente a delitos relacionados com terrorismo, no caso de factos
que apresentem especial gravidade (homicídio, violação, agressão sexual
agravada, terrorismo ou qualquer outro punido com prisão igual ou superior a
15 anos), o juiz aplicará uma medida de internamento em regime fechado de
um a oito anos, complementada por outra medida de liberdade vigiada até um
máximo de outros cinco anos.

As acções ou omissões negligentes não podem ser sancionadas com


medidas de internamento em regime fechado.
110 Capítulo III - A reforma da justiça juvenil em Espanha

As medidas terapêuticas apenas se podem aplicar aos jovens infractores


com anomalia ou alteração psíquica que os impeçam de compreender a
ilicitude do facto ou de actuar de modo conforme a essa compreensão, nos
casos de consumo de bebidas alcoólicas, substâncias psicotrópicas ou outras
que produzam efeitos análogos, se se encontrarem sob o efeito de síndroma
de abstinência de tais substâncias ou se sofrerem alterações da percepção
desde o nascimento ou desde a infância que alterem gravemente a sua
consciência da realidade.

1. 2. 5. Situações de concurso, de infracções continuadas e de


aplicação de várias medidas

Concurso de infracções

Ao jovem responsável por uma pluralidade de factos será imposta uma ou


várias medidas, de acordo com os critérios para aplicação das medidas.
Trata-se do designado concurso real de infracções.

Quando uma conduta for constitutiva de duas ou mais infracções, ou nos


casos em que uma conduta seja o meio necessário para a prática de outra,
será apenas tida em conta a conduta mais grave para efeitos de aplicação da
medida. Esta é a situação de concurso ideal, na qual será obrigatória a
aplicação de uma medida global.

Infracções continuadas e com pluralidade de vítimas

Nos casos de crimes continuados ou de uma só infracção ter sido


praticada com pluralidade de vítimas, a LORPM determina a aplicação de uma
só medida, tendo como referência o mais grave dos factos praticados, excepto
quando o interesse do jovem aconselhar a aplicação de uma medida menos
grave.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 111

Imposição de várias medidas

Nos casos em que a um jovem tenham sido impostas várias medidas no


âmbito do mesmo processo e as mesmas não puderem ser executadas em
simultâneo, mediante proposta do Ministério Público e do advogados do jovem,
ouvido o responsável da equipa técnica e a entidade pública de protecção, o
juiz poderá substituir todas ou alguma das medidas ou pode determinar a sua
execução sucessiva, sem que, neste caso, o prazo total de cumprimento possa
ser superior ao dobro do tempo de duração da medida mais grave aplicada.

1. 2. 6. A modificação da medida: anulação, redução, suspensão e


substituição

O juiz, oficiosamente, a pedido do Ministério Público ou do advogado do


jovem, com informação da equipa técnica e, se for o caso, da equipa de
protecção, em qualquer momento poderá determinar que fica sem efeito a
medida imposta, pode reduzir a sua duração ou pode substituí-la por outra,
desde que a modificação tenha em vista o interesse do jovem e que exprima a
reprovação face à sua conduta.

A modificação no interesse do jovem não poderá consistir nunca na


imposição de uma medida mais gravosa, nem na ampliação da duração da
medida.

O juiz poderá determinar a suspensão da execução, oficiosamente, a


pedido do Ministério Público ou do advogado, ouvidos o representante da
equipa técnica e da entidade pública de protecção, se a medida imposta não
for superior a dois anos. A suspensão ocorrerá durante um tempo determinado
mas até um máximo de dois anos.

A suspensão pode estar condicionada, designadamente, a um regime de


liberdade vigiada durante o prazo de suspensão ou à obrigação de realizar
determinada actividade sócio-educativa.
112 Capítulo III - A reforma da justiça juvenil em Espanha

Durante a execução da medida, o juiz, ouvidas as partes, a equipa


técnica, o representante da entidade pública de protecção de crianças e jovens,
o Ministério Público e o advogado, poderá determinar que a execução fica sem
efeito ou poderá substituir as medidas por outras previstas na lei que se
considerem mais adequadas, por tempo igual ou inferior ao que reste para o
cumprimento da medida substituída.

A conciliação do jovem com a vítima poderá determinar que a medida


aplicada não seja executada, nos casos em que o juiz entenda que tal acto e
que o tempo de duração da medida já cumprido exprimem suficientemente a
censura que os factos cometidos merecem.

No caso de acto de terrorismo praticado por maior de 16 anos, de acordo


com uma disposição adicional introduzida pela Ley Orgánica 7/2000, para ser
possível a modificação, suspensão ou substituição da medida, é necessário ter
sido já cumprida metade da duração da medida de internamento imposta.

1. 2. 7. A execução das medidas

A LORPM regula a execução das medidas, em especial da medida de


internamento. Nos termos da LORPM, a execução das medidas realiza-se sob
o controlo do juiz de menores, ao qual compete adoptar todas as decisões que
sejam necessárias para proceder à execução efectiva das medidas impostas,
decidir as propostas de revisão das medidas, aprovar os programas de
execução, conhecer da evolução dos jovens durante o cumprimento das
medidas através de informações dos técnicos, decidir os recursos que se
interponham contra as resoluções tomadas sobre a execução das medidas,
tomar conhecimento e actuar na sequência de petições e de queixas
apresentadas pelos jovens que afectem os seus direitos fundamentais, realizar
regularmente visitas aos centros e efectuar entrevistas com os jovens, formular
à entidade pública propostas e recomendações que considere oportunas sobre
a organização e o regime de execução das medidas.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 113

A execução das medidas é da competência das Comunidades Autónomas


e das cidades de Ceuta e Melilla em que se situe o Tribunal de Menores que
tenha aplicado a medida. Tais entidades públicas terão de criar, dirigir,
organizar e gerir os serviços, instituições e programas adequados para garantir
a correcta execução das medidas.

As Comunidades Autónomas podem celebrar acordos de colaboração


com entidades privadas (pretende-se, assim, incorporar no processo de
reeducação e reinserção social do jovem certas iniciativas já existentes na
sociedade civil), tendo em vista a execução das medidas, sendo, contudo,
desejável, na opinião de Nieves Mulas (2003: 404), que as medidas privativas
de liberdade sejam executadas em estabelecimentos públicos geridos pela
Administração.

Regras para a execução das medidas

Uma vez fixada a sentença e aprovado o programa de execução da


medida imposta, o secretário do Tribunal procede à “contagem” da medida,
indicando as datas de início e de termo, descontando o tempo já cumprido em
medida cautelar. Nessa fase é também aberto um dossier de execução, no
qual serão registados os dados relativos ao jovem, decisões judiciais,
incidentes e demais documentação. A “contagem” será notificada à entidade
pública competente para o cumprimento da medida, ao Ministério Público e ao
advogado.

Após ser recebida a sentença e a “contagem” da medida pela entidade


pública competente, esta designará, de imediato, um profissional que se
responsabiliza pela execução da medida. Se se tratar de internamento, a
entidade pública designará o centro mais adequado para a execução da
medida, entre os mais próximos do domicílio do jovem e desde que existam
lugares disponíveis. O internamento em outro centro apenas se poderá
114 Capítulo III - A reforma da justiça juvenil em Espanha

fundamentar no interesse do jovem em ser afastado do seu ambiente familiar e


social e requer sempre a aprovação do juiz de menores.

A execução das medidas privativas de liberdade

A execução das medidas privativas da liberdade - o internamento e as


medidas cautelares de internamento – tem de respeitar dois aspectos
essenciais: os centros de internamento têm de estar completamente separados
dos estabelecimentos penitenciários destinados a adultos e, de um ponto de
vista estrutural e funcional, têm que obedecer a um princípio ressocializador, ou
seja, os centros de internamento devem assemelhar-se mais a centros de
acolhimento do que a prisões para adultos e, antes de mais, devem ser centros
de terapia social, já que a maioria dos jovens internados apresenta déficits de
socialização, cujo sintoma mais visível é o fracasso escolar (Mulas, 2003: 411).
Os centros devem estar divididos em unidades adequadas à idade, à
maturidade e às necessidades dos jovens internados. As medidas de
internamento também podem ser executadas em “centros socio-sanitarios”, nos
casos em que a medida assim exige.

Nos termos da LORPM, todas as actividades nos centros em que se


executam medidas de internamento estão orientadas pelo princípio de
ressocialização e o jovem internado é sujeito de direitos e continua a fazer
parte da sociedade. Assim, a vida no centro deve ter como referência a vida em
liberdade, reduzindo ao máximo os efeitos negativos que o internamento pode
implicar para o jovem ou para a sua família, favorecendo os vínculos sociais, o
contacto com os familiares e a colaboração e a participação de entidades
públicas e privadas no processo de integração social, em especial, as
entidades mais próximas, geográfica e culturalmente.

De acordo com o legislador, o internamento deverá proporcionar o


máximo de liberdade durante a execução da medida. Segundo Cuello Calón
(apud Mulas, 2003: 411), o internamento não se deve limitar a reconhecer os
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 115

direitos plasmados na própria lei, pois estando em causa jovens em período de


formação deve ser dada especial importância ao sentido de responsabilidade, o
que inclui aspectos muito diversos, desde o cuidado e higiene com eles
próprios até à organização do grupo, passando pela disponibilização de
dinheiro de bolso, preparação de refeições, reuniões com o grupo e
organização de tempos livres. Deve, pois, ser objecto de atenção tudo aquilo
que é fundamental para aprender a conviver em sociedade.

As relações com o mundo exterior

Os contactos com o mundo exterior são essenciais para o tratamento do


jovem. A par da liberdade total para manter conversas telefónicas com o
exterior e para receber correspondência sem ser interceptada, os contactos
sociais devem ser estimulados activamente. Como refere Nieves Mulas (2003:
413), este é um novo paradigma terapêutico, nos termos do qual os problemas
resolvem-se em família, ou seja, está implícita a substituição do modelo
psicológico-individual por outro modelo psicológico-social e dinâmico. Como
referimos, a vida no centro deve ter como referência a vida em liberdade,
devendo ser reduzidos ao máximo os efeitos negativos do internamento e
incentivados os vínculos sociais e familiares.

Segurança e ordem

Nos centros há exigências de segurança e ordem, de modo a garantir


uma convivência ordenada, pacífica e integradora. Os jovens internados têm
direito ao respeito pela sua personalidade, pela sua liberdade ideológica e
religiosa e pelos direitos e interesses legítimos não afectados pelo conteúdo da
medida52. Os jovens estão também sujeitos a deveres elencados na LORPM.

52
Os direitos dos jovens internados são, entre outros, os seguintes: direito a que a entidade
pública da qual depende o centro zele pela vida do jovem, pela sua integridade física e saúde;
116 Capítulo III - A reforma da justiça juvenil em Espanha

Regime disciplinar

Nos termos da LORPM, aos jovens internados pode ser aplicada uma
medida disciplinar, desde que seja respeitado o regulamento disciplinar e a
dignidade dos jovens, nunca podendo estes ser privados do direito à
alimentação, ensino obrigatório, comunicações e visitas.

O regime disciplinar admite a imposição de sanções disciplinares devido à


prática de infracções muito graves, graves e leves, atendendo à violência, à
intenção, ao resultado e ao número de ofendidos.

As sanções disciplinares que podem ser impostas devido à prática de


faltas muito graves são a separação do grupo por um período de três a sete
dias em casos de evidente agressividade, violência e alteração grave do
convívio; a separação do grupo durante três a cinco fins-de-semana; a privação
de saídas de fim-de-semana de quinze dias a um mês e a privação de saídas
de carácter recreativo por um período de um a dois meses.

As infracções graves podem dar lugar à imposição das sanções acima


elencadas mas com a duração de dois dias, de um ou dois fins-de-semana, de
um a quinze dias e de um mês, respectivamente.

As infracções leves podem implicar a privação de participar em todas ou


em algumas das actividades recreativas do centro, durante um período de um a
seis dias e, ainda, a admoestação.

direito a receber uma educação e formação integral em todos os âmbitos; direito a que se
preserve a sua dignidade e intimidade, a ser designado pelo seu próprio nome e que a sua
condição de internados seja estritamente reservada frente a terceiros; direito ao exercício dos
seus direitos civis, políticos, sociais, religiosos, económicos e culturais, salvo quando sejam
incompatíveis com o objecto da detenção ou com o cumprimento do internamento; direito a
estar no centro mais próximo do seu domicílio e a não ser transferido para fora da sua
Comunidade Autónoma, excepto nos casos e com os requisitos previstos na lei; direito a
assistência sanitária gratuita, a receber formação básica obrigatória que corresponda à sua
idade, qualquer que seja a sua situação no centro e a receber uma formação educativa ou
profissional adequada às suas circunstâncias; direito dos jovens internados terem na sua
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 117

1. 2. 8. A polícia face à delinquência juvenil

Em Espanha foram criadas unidades especializadas em matéria de


crianças e jovens, na Dirección General de la Polícia, através dos Grupos de
Menores - GRUME, tendo dois tipos de funções: função protectora, quando o
jovem é vítima, designadamente de maus tratos, abusos e agressões sexuais;
função “educadora”, quando o jovem é o infractor da lei penal.

Existe uma nova orientação para a actuação da polícia com jovens,


sobretudo com uma orientação educadora e imbuída do princípio da
intervenção mínima. Quanto aos jovens de 14 anos, ao não serem
considerados responsáveis pelas infracções penais que praticam, a
intervenção policial deve limitar-se à sua protecção, isto é, à entrega do jovem
às pessoas ou entidades competentes. Quanto aos jovens com idades entre os
14 os 18 anos, a LORPM determina o respeito pelos direitos fundamentais,
exigindo-se que o tratamento legal desses jovens não seja de carácter
repressivo, mas preventivo e orientado para a efectiva reinserção e para o
superior interesse dos jovens.

2. Brevíssima reflexão sobre a aplicação da LORPM – Ley Orgánica


Reguladora de la Responsabilidad Penal de los Menores

Apesar de não ser nosso objectivo efectuar uma avaliação da aplicação


do direito juvenil em Espanha, pareceu-nos útil registar neste estudo alguma
reflexão, que nos foi possível obter a partir da informação a que conseguimos
aceder, de natureza necessariamente fragmentária e exemplificativa.

companhia os seus filhos menores de três anos, nas condições e com os requisitos que se
estabeleçam.
118 Capítulo III - A reforma da justiça juvenil em Espanha

2. 1. O regime do internamento fechado – uma medida sempre


controversa

Na perspectiva de Nieves Mulas (2003: 419), o elenco de medidas


previstas na LORPM parece bastante adequado ao fim ressocializador, com
uma excepção – a medida de internamento em regime fechado. A Autora
considera que haverá casos em que é necessária a existência do regime
fechado para afastar, durante algum tempo, o jovem do seu ambiente habitual.
Contudo, refere que é feita uma utilização mais punitiva do que terapêutica do
regime fechado. Nieves Mulas questiona se o internamento num Centro
Educativo será levado a cabo no interesse exclusivo do jovem. Defende que
não está em causa a ressocialização do jovem, tratando-se, na verdade, de
uma verdadeira pena, de uma medida de conteúdo idêntico ao da pena de
prisão, de uma sanção, dada a sua dimensão criminógena e estigmatizadora e
o afastamento familiar que provoca. O regime é, ainda, exacerbado quando
estão em causa factos de extrema gravidade, designadamente delitos
relacionados com terrorismo, homicídio doloso e agressões sexuais, casos nos
quais aos cinco anos de internamento - um dos quais é imperativo - se somam
outros cinco anos de liberdade vigiada com acompanhamento. Se é verdade
que os crimes para os quais se prevê internamento em regime fechado são os
que provocam mais alarme social, a Autora considera que tal alarme é um
limite excessivo ao fim ressocializador da lei. O internamento deve ter em conta
o tipo de crime, mas, também, a ponderação de que nenhuma outra medida
menos grave pode satisfazer as necessidades educativas do jovem. As
medidas tutelares de internamento constituem a ultima ratio da intervenção
tutelar educativa, pois no âmbito do direito juvenil, o direito à liberdade adquire
uma relevância especial que nunca deve ser esquecida.

As maiores críticas dirigidas à lei recaem no que Nieves Mulas considera


a impossibilidade de realizar o interesse do menor a partir de um modelo que,
na sua base, tem, de forma muito especial, o interesse da segurança dos
cidadãos ou de defesa social, dado que a natureza da lei é penal, apesar do
que designa de etiquetas equívocas que pretendem ocultar que se trata de
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 119

direito penal. A lei respeita os direitos fundamentais, o que reduz os efeitos


estigmatizantes decorrentes de toda a intervenção penal do Estado,
especialmente nocivos quando estão em causa crianças e jovens. Contudo,
apesar da lei ter transportado as garantias penais e processuais dos adultos
para o âmbito do direito juvenil, a Autora considera que sem uma adaptação
prévia às especiais circunstâncias e características da justiça de crianças e
jovens está a ser violado o princípio da igualdade, já que é discriminatório
dispensar tratamentos iguais a situações distintas. Para Nieves Mulas (2003:
425), chegou o momento para que a justiça juvenil, num Estado de direito
social e democrático, ponha fim ao internamento em regime fechado.

2. 2. A insuficiência de orçamento para aplicação da lei: uma luta


entre o Estado central e as regiões autónomas

O sistema de justiça juvenil vigente em Espanha “criou uma grande


controvérsia entre o governo central e os governos das RA [regiões
autónomas] em relação aos gastos da justiça juvenil. Uma vez que a
implementação das medidas impostas aos jovens transgressores é da
competência das RA, são estas que devem suportar os custos. Contudo, os
ministros regionais afirmam que apesar de o governo central já não ter custos
com os jovens de idades compreendidas entre os 16 e 18 anos, este se recusa
a transferir essa verba para os cofres regionais. Assim, dois anos após a sua
entrada em vigor, a lei [LORPM] continua sem ratificação via decreto nacional –
já elaborado pelo governo central, mas ainda não aprovado. Esta ratificação
permitiria promover a garantia legal das questões quotidianas da justiça juvenil.
A legislação exige um número considerável de funcionários, recursos públicos
e instalações e é difícil alcançar um nível de qualidade adequado às
necessidades dos jovens transgressores. A lentidão dos procedimentos legais
pode prejudicar tanto os jovens como o sentido geral da justiça e os
programas, instalações e recursos podem ser considerados insuficientes,
especialmente em RA mais pequenas. Isto torna-se ainda mais sério se se
120 Capítulo III - A reforma da justiça juvenil em Espanha

considerar a falta de uma estratégia nacional para a justiça juvenil ou de


programas e instalações a nível nacional. Para algumas RA torna-se realmente
difícil suportar programas regionais para lidar com jovens transgressores
persistentes ou com transgressores violentos ou sexuais”(Fundação da
Juventude: 2004, 48).

2. 3. As medidas aplicadas pelos tribunais ao abrigo da LORPM

Em 2001, a justiça juvenil espanhola aplicou 8 243 medidas de


“responsabilização penal de menores” entre os 14 e os 18 anos (com
possibilidade de abrangerem ainda jovens até aos 21 anos, conforme já
referido anteriormente neste capítulo) – cf. Quadro III.1.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 121

Quadro III.1

Medidas aplicadas ao abrigo da LORPM em 2001 - Espanha

Tipo de medida Número %

Liberdade vigiada 3 653 44,3%

Internamento∗ 2 119 25,7%

Prestações de trabalho a favor da comunidade 1 710 20,7%

Tratamento ambulatório 226 2,7%

Detenção de fim-de-semana 222 2,7%

Tarefas sócio-educativas 152 1,8%

Admoestação 128 1,6%

Assistência em centro de dia 23 0,3%

Convivência c/ família, grupo educativo 7 0,1%

Privação da carta de condução 3 0,1%

Total 8 243 100%


∗Os dados relativos ao internamento apresentam-se de forma conjunta, englobando os
vários regimes (fechado, semiaberto e aberto e o internamento terapêutico).

FONTE: MINISTÉRIO DO INTERIOR, ESPANHA, APUD “VIOLÊNCIA JUVENIL – HISTÓRIAS E


PERCURSOS, FUNDAÇÃO DA JUVENTUDE, 2004:77.

Ora, como veremos no Capítulo IV, no mesmo ano de 2001, a jurisdição


de família e menores, em Portugal, aplicou a jovens entre os 12 e os 16 anos
(com possibilidade de serem abrangidos jovens até aos 18 anos), 1 479
medidas tutelares educativas (Quadro III. 2).
122 Capítulo III - A reforma da justiça juvenil em Espanha

Quadro III.2

Medidas tutelares educativas aplicadas em 2001 – Portugal

2001
Medidas tutelares educativos Nº %
Admoestação 814 55,0

Acompanhamento educativo 368 24,9

em regime semiaberto 34 2,3

em regime fechado 27 1,8

em regime aberto 26 1,8

Internamento
em centro
educativo
em regime semiaberto em fim de
27 1,8
semana

Total 114 7,7


Frequência de programas formativos 43 2,9

Imposição de regras de conduta 35 2,4


Imposição de obrigações 16 1,1
Realização de prestações económicas ou de
15 1,0
tarefas a favor da comunidade
Reparação ao ofendido 22 1,5
Medidas da OTM 50 3,4
Privação do direito de conduzir 2 0,1
Total 1479 100,0

FONTE: GABINETE DE POLÍTICA LEGISLATIVA E PLANEAMENTO

Como se pode ver pelo Quadro III. 1, destaca-se, em Espanha, a medida


de liberdade vigiada, que representa 44,3% do total de medidas aplicadas,
seguida da medida de internamento, com 25,7% e de prestações de trabalho a
favor da comunidade, que, em 2001, correspondeu a 20,7% das medidas
aplicadas. De notar que algumas medidas foram muito pouco aplicadas, a
saber, a convivência com outra família ou grupo educativo, a privação da carta
de condução e a assistência em centro de dia.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 123

Ora, dos dados constantes nos Quadros III. 1 e III. 2, podemos concluir
que a justiça juvenil em Espanha é mais repressiva, recorrendo muito mais ao
internamento do que em Portugal (25,7% das medidas de internamento em
Espanha para 7,7% das medidas em Portugal). Acresce que, em Portugal
aposta-se muito na aplicação da admoestação, enquanto em Espanha a sua
aplicação tem um valor insignificante (ou seja, 55% das medidas em Portugal
para 1,6% em Espanha).

Por último, refira-se que em Espanha as medidas não institucionais


aplicadas são essencialmente a liberdade vigiada (44,3%) e a prestação de
trabalho a favor da comunidade (20,7%); enquanto em Portugal predomina o
acompanhamento educativo (24,9%). A prestação económica ou tarefas a favor
da comunidade representam apenas 1%.

É certo que os jovens destinatários espanhóis são mais velhos que os


portugueses, mas parece-nos que será uma hipótese explicativa admitir que
estes dois diferentes padrões de aplicação de medidas tutelares em Espanha e
em Portugal assentam nas diferentes culturas jurídica e profissional de exercer
a jurisdição de crianças e jovens.

As medidas aplicadas em Espanha merecem, ainda, a seguinte reflexão


crítica a Nieves Mulas (2003: 369 e ss.). Segundo a Autora, a eficácia da
medida de internamento terapêutico carece de comprovação, não dando lugar
a grandes optimismos nesta matéria, dado que praticamente não existem
centros específicos para execução de internamentos terapêuticos nas
Comunidades Autónomas, o que implica o recurso aos serviços sociais e
sanitários gerais.

Já quanto à detenção durante o fim-de-semana, esta medida combina


elementos da detenção de fim-de-semana e da medida de tarefas
sócio-educativas ou de prestação de trabalho a favor da comunidade. Como
refere Nieves Mulas (2003: 371), é considerada uma solução muito adequada
para jovens que cometem actos de vandalismo ou agressões leves nos
fins-de-semana. O legislador terá tido presente, ao criar esta medida, os actos
124 Capítulo III - A reforma da justiça juvenil em Espanha

violentos dos jovens em competições desportivas e em outros espectáculos


que ocorrem, sobretudo, durante os fins-de-semana.

No que se refere à liberdade vigiada, na perspectiva de Nieves Mulas


(2003: 372), na prática, a execução desta medida colide com a falta dos
denominados delegados de liberdade vigiada e com a ausência, em alguns
casos, de uma adequada formação profissional daqueles. A sua tarefa, na
maioria dos casos, limita-se a uma mera fiscalização da conduta dos jovens e a
tarefas meramente burocráticas.

Por último, a aplicação da medida de convivência com outra pessoa,


família ou grupo educativo foi pouco utilizada em Espanha, na opinião de
Nieves Mulas (2003: 373), em grande parte devido à atitude da Administração,
que não seleccionou com diligência e seriedade as pessoas ou famílias que se
deviam ocupar dos jovens. A Autora entende, ainda, que, para esta medida ser
imposta, a lei devia exigir o consentimento do jovem para o efeito.

Nos sistemas anglo-saxónicos, esta é uma medida muito utilizada há já


bastante tempo, havendo seguimento e controlo social da sua execução e uma
certa profissionalização das famílias ou pessoas que acolhem crianças e
jovens e que são retribuídas pela sua colaboração. O êxito da medida passará,
sem dúvida, pela selecção adequada da família com a qual o jovem irá
conviver, que, de acordo com a exigência legislativa, não se deve limitar a
voluntarismo, havendo o necessário controlo e seguimento do próprio jovem e
da sua família de origem.

Já no que se refere à medida de trabalho a favor da comunidade, esta


medida tem assumido protagonismo de forma progressiva na justiça de
crianças e jovens, por acção de diversos programas que têm vindo a ser
desenvolvidos nas Comunidades Autónomas.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 125

2. 4. A mediação no âmbito da justiça juvenil

Na legislação de crianças e jovens, a mediação entre autor-vítima


tornou-se um instrumento habitual em muitos países que, de forma
progressiva, adaptaram as leis às mudanças sociais. Neste processo de
reorientação da política criminal relativamente às crianças e jovens, as Nações
Unidas e o Conselho da Europa desempenharam um papel impulsionador.

Em Espanha, o programa de mediação e reparação, no âmbito da justiça


juvenil, teve início em Maio de 1990, na Catalunha, tendo em conta as
Recomendações do Conselho da Europa de 1987. Tratava-se de um programa
de mediação vítima-autor para jovens infractores, supervisionado pela
Generalitat de Catalunya. O período experimental decorreu de 1990 a 1997.

A Ley Orgánica 4/92, de 5 de Junho, veio proporcionar uma base legal


sólida para o programa de mediação e reparação. O programa tem como
pressuposto a responsabilização dos jovens, tentando estabelecer um espaço
de participação e interacção entre autor-vítima, com vista à resolução do
conflito, sendo orientado por um mediador.

A Ley Orgánica 5/2000, de 12/01, reguladora da responsabilidade penal


das crianças e jovens, apresenta importantes novidades face ao processo
penal comum, designadamente possibilitando a mediação, evitando uma
excessiva acção acusadora da vítima, inserindo-se no modelo penal-educativo
e de orientação ressocializadora para o jovem delinquente. Tal lei oferece ao
jovem e à vítima a oportunidade de participação voluntária num processo de
mediação, centrado na reparação e na reconciliação. Pode recorrer-se à
mediação no decurso do processo, em qualquer momento antes do julgamento
e durante a execução da medida imposta. Porém, apesar da abertura da lei, o
processo de mediação tem-se desenvolvido, em regra, em simultâneo com o
processo judicial. Uma comissão do Departamento de Justiça da Catalunha
está a tentar a implementação do programa de mediação, como complementar
do processo judicial.
Capítulo IV

O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

Introdução

O objectivo central deste projecto de investigação é, como já referimos, a


avaliação da aplicação do novo Direito Tutelar Educativo. Como veremos nos
capítulos seguintes, levantam-se, no âmbito desta problemática, várias
questões, algumas, embora não a sua maioria, relacionadas ou com o direito
legislado ou com a sua interpretação. É, por isso, importante lançarmos um
olhar, ainda que breve, sobre as principais características do regime jurídico da
Lei Tutelar Educativa, quer no que respeita às normas de natureza mais
substantiva, como o âmbito de aplicação da lei e o tipo de medidas, quer de
natureza processual.

Para uma melhor compreensão do novo direito tutelar educativo pareceu-


nos importante traçar, de forma muito breve, a evolução da justiça de menores
em Portugal no último século, registando as principais linhas de ruptura e de
continuidade. É com este ponto que se inicia o presente capítulo.

1. Da Lei de Protecção à Infância à Organização Tutelar de Menores

Apesar de já nas Ordenações se preverem, ainda que de forma imperfeita


e rudimentar, normas de protecção de crianças e jovens em relação ao direito
penal53 ou um direito penal de crianças e jovens, a efectiva protecção judiciária
daqueles surgiu com maior relevo e expressão com a Lei de Protecção à
Infância (LPI), aprovada pelo Decreto-Lei de 27 de Maio de 191154.

53
A título exemplificativo, veja-se o livro 3.º, título 88 das Ordenações Manoelinas, segundo o
qual “quando o dito delinqüente fôsse menor de dezassete anos compridos, em tal caso, posto
que o delito mereça morte natural, nom lhe será dada em nenhüu caso, mas ficará em seu
arbítrio dar-lhe outra menor pena”.
54
Note-se, no entanto, que é com o surgimento dos primeiros Códigos Penais (1837, 1852 e
1886) que aparece a referência à prevenção e correcção educativa dos jovens delinquentes.
128 Capítulo IV - O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

Este diploma foi a expressão em Portugal de um movimento que se vinha


fazendo sentir tanto na Europa como na América, “no sentido de pôr de lado a
distinção entre menores com ou sem discernimento, de rejeitar o regime
repressivo, e de o substituir por um sistema educativo em que se estudasse
profundamente o menor e se tomasse a medida que o seu caso exigisse, sem
preocupações de responsabilidade ou irresponsabilidade” (Santos, 1923-1925:
183). Entendia-se que tais exigências impunham a criação de jurisdições
especializadas. Assim, o Decreto-Lei de 27 de Maio de 1911 introduziu no
sistema judiciário português os primeiros tribunais de menores, designados
tutorias de Infância, e um direito substantivo e adjectivo para menores de 16
anos.

Inicialmente, este regime vigorou apenas em Lisboa e, com a aprovação


da Lei de 24 de Abril de 1912, também no Porto.

Em 1925, o Decreto n.º 10767, de 15 de Maio, estendeu a aplicação do


anterior diploma a todo o país, passando os tribunais de menores a funcionar
em todas as comarcas aplicando-se, desta forma, um regime tutelar e
educativo.

As tutorias de infância estavam divididas em centrais e comarcãs,


situando-se em termos geográficos, respectivamente, em Lisboa e no Porto e
nas restantes comarcas55. A sua finalidade consistia “não só na prevenção dos
males sociais que conduziam as crianças, menores de 16 anos, à perversão e
ao crime, como também remediar os efeitos desses males”, e, por outro lado,
destinavam-se a “guardar, proteger e defender os menores em perigo moral,
desamparados e delinquentes, encarados como seres carecidos de protecção”
(Furtado e Guerra, 2000: 28).

Como refere Beleza dos Santos, “obedecendo a esta nova corrente, as leis começam com
maior ou menor decisão e amplitude a desviar a aplicação da escala penal ordinária aos
menores responsáveis e a substituí-la por medidas educativas. Por outro lado, não se
desinteressam inteiramente dos menores que absolvem por falta de imputabilidade ou de
discernimento; procuram – embora com medidas deficientes, rígidas e acanhadas – remediar a
sua miséria moral, o seu abandono, a sua educação viciosa” (Santos, 1923-1925: 150-151).
55
Com o Estatuto Judiciário de 1944, as tutorias de infância passaram a designar-se tribunais
de menores.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 129

Beleza dos Santos (1923-1925: 192) aponta na Lei de Protecção à


Infância três princípios fundamentais que caracterizam e orientam o seu
regime. Em primeiro lugar, tratar-se-ia de “um direito largamente preventivo,
exercendo-se a acção jurisdicional dos tribunais antes que o menor seja
delinqüente, bastando que haja um perigo sério de que se lance ou seja
lançado no caminho do crime”. Em segundo lugar, estaríamos perante um
direito “protector, tutelar, educativo, procurando defender o próprio menor,
transformá-lo, melhorá-lo, corrigi-lo”. Por último, seria um direito
“essencialmente subjectivo, procurando adoptar medidas determinadas pela
necessidade de defender, curar e educar o menor, e por isso, adaptáveis o
mais possível à sua individualidade, livremente escolhidas pelo Tribunal,
modificáveis durante a sua execução. Numa palavra, flexíveis, individualizadas
e modificáveis”.

Segundo um estudo levado a cabo por Eliana Gersão, em 198456, que


teve por finalidade fazer uma avaliação crítica do sistema de crianças e jovens
vigente naquela data, a LPI tinha um carácter bastante inovador no contexto da
tradição jurídica portuguesa e europeia. Com efeito, distinguia os menores em
perigo moral57 dos agentes de crimes, previa algumas garantias processuais,
os factos praticados por crianças e jovens assumiam relevo para a escolha da
medida das penas e a aplicação de medidas apresentava-se com uma
finalidade maioritariamente educativa, fixando a lei, relativamente a algumas
delas, limites de duração ou a possibilidade de serem substituídas.

Em 1962, a necessidade de reunir num só texto legal as normas


respeitantes às crianças com comportamentos delinquentes ou com outro tipo
de problemas ligados à infância levou à aprovação da Organização Tutelar de
Menores (OTM), através dos Decretos-Leis n.º s 44 287 e 44 288, de 20 de
Abril, de acordo com os quais a intervenção do Estado em relação aos jovens

56
Este estudo intitula-se “Menores agentes de infracções criminais – que intervenção?
Apreciação crítica do sistema português”.
57
A referência à categoria de menores em perigo moral manteve-se com a entrada em vigor,
em 1962, da Organização Tutelar de Menores, tendo, no entanto, sido afastada em 1967, pelo
Decreto-Lei n.º 47 727. O Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro, que operou uma revisão
da OTM, reintroduziu aquela categoria.
130 Capítulo IV - O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

passa a orientar-se por um modelo de welfare, ou seja, por um modelo de


“protecção” maximalista (Rodrigues e Duarte-Fonseca, 2000: 5). Contudo, a
aprovação da OTM não determinou uma alteração substancial do modelo
adoptado. Segundo Leonor Furtado e Paulo Guerra, “os princípios
informadores da Lei de 27 de Maio de 1911 mantiveram-se e foram reforçados
nesta profunda reforma do sistema de justiça tutelar resultante da publicação
dos diplomas de 1962 atrás citados. Com efeito, estes diplomas
consubstanciam uma compilação de legislação relativa à justiça de menores e
uma sistematização de um regime jurídico especialmente previsto para
menores” (2000: 29).

O regime instituído por aqueles diplomas sofreu uma reforma em 1978,


operada pelo Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro. Segundo o preâmbulo
deste último Decreto-Lei, “a revisão da Organização Tutelar de Menores
impunha-se pela necessidade de a ajustar às novas disposições” da Lei n.º
82/77, de 6 de Dezembro, que “introduziu profundas alterações à organização
dos tribunais judiciais. Entre elas, as que se referem à competência dos
tribunais de família e dos tribunais de menores”. No entanto, aproveitou-se “a
oportunidade para proceder a alterações mais profundas”, designadamente no
que diz respeito aos estabelecimentos tutelares e aos centros de observação e
acção social, assim como “no âmbito da assessoria técnica, intentou-se dar-lhe
a operacionalidade que nunca teve”, no respeitante às medidas tutelares,
saliente-se a instituição de “uma medida – a da alínea c) do artigo 18.º
[imposição de determinadas condutas ou deveres] que, apelando para a
capacidade imaginativa do juiz, acentua o carácter protector e educativo que se
pretende imprimir à jurisdição tutelar”.

O modelo assumido pela entrada em vigor da OTM, em 1962, continuou a


vigorar mesmo após a reforma de 1978, até à entrada em vigor das Leis
Tutelar Educativa e de Protecção das Crianças e Jovens em Perigo, em 2001.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 131

Na verdade, a lei de 1962 manteve-se no essencial, ao arrepio das questões


entretanto levantadas relativamente àquele modelo de protecção58.

O modelo de protecção português, assente judicialmente em tribunais de


menores de competência especializada59, tinha como objectivo a protecção
judiciária no domínio da prevenção criminal, através da aplicação aos jovens
com dificuldades de adaptação a uma vida social dita normal ou que
revelassem tendências para a mendicidade, vadiagem, prostituição ou
delinquência, de medidas cujo fim essencial assentava na protecção e
reeducação do jovem e não na sua punição ou reprovação social (Furtado e
Guerra, 2000: 29), não distinguindo na aplicação destas medidas as crianças e
jovens em perigo dos agentes de crimes (artigo 1.º da OTM).

Os factos praticados não eram valorados por si, o que fazia com que as
medidas aplicadas às crianças e jovens agentes de crimes fossem, por um
lado, determinadas exclusivamente pela personalidade e circunstâncias de vida
e, por outro, indeterminadas quanto à duração e à possibilidade da sua
substituição. As situações previstas na lei só tinham valor enquanto sintoma de
inadaptação ou da existência de tendências criminosas, e todo o processo se
caracterizava pela insuficiência de garantias processuais que assistiam ao
jovem. Com efeito, raramente o jovem ou os seus pais e/ou representantes
eram ouvidos; o jovem não tinha a possibilidade de requerer diligências de
prova ou de indicar testemunhas, violando-se assim o princípio do contraditório;
e não lhe era reconhecido o direito de constituir advogado60.

58
Segundo Anabela Rodrigues (1997: 6), “a consagração da finalidade de ‘protecção’ a orientar
a intervenção judicial dos menores nos termos maximalistas em que o faz o nosso direito não é
a solução em geral seguida na Europa”.
59
Estes tribunais também tinham competência em matéria cível, designadamente quanto ao
exercício e regulação do poder paternal.
60
Note-se, todavia, que o Tribunal Constitucional, através do Acórdão n.º 870/96 (publicado no
Diário da República, I série – A, de 3 de Setembro de 1996), declarou inconstitucional esta
norma do artigo 41.º da OTM com força obrigatória geral, por violar os artigos 20.º, n.º 2, e 18.º,
n.ºs 2 e 3 da Constituição da República Portuguesa, na parte em que não admite a intervenção
de mandatário judicial fora da fase de recurso. A questão da inconstitucionalidade do artigo 41º.
da OTM já havia sido levantada através dos Acórdãos n.ºs 488/95, de 27 de Setembro, 556/95,
de 17 de Outubro, de 611/95, de 8 de Novembro.
132 Capítulo IV - O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

Em suma, o processo tutelar de menores era um processo informal que


esquecia os direitos fundamentais do jovem de natureza constitucional e que
não garantia os meios de defesa adequados (Rodrigues, 1997: 6).

Os aspectos positivos deste modelo resumiam-se, à “impossibilidade


absoluta de se aplicarem penas, designadamente a pena de prisão, ou
medidas de coacção próprias do processo penal, como a prisão preventiva, a
menores de 16 anos, à menor estigmatização pela opinião pública dos
menores delinquentes e à melhoria das condições de funcionamento dos
estabelecimentos tutelares, nomeadamente pelo que diz respeito à sua
abertura ao exterior, em virtude de albergarem ao mesmo tempo «menores em
risco»” (Rodrigues, 1997: 7).

Por outro lado, à reforma de 1962 é apontada uma importante alteração


ao atribuir ao Ministério Público a função de representante das crianças e
jovens, competindo-lhe, nessa missão, velar pelos seus interesses (Furtado e
Guerra, 2000: 29-30).

Tal como já foi referido supra, as características de um modelo de


protecção, presente de forma mitigada em sistemas de outros países61, nos
quais não se distinguiam os regimes previstos para jovens em perigo e para os
que praticassem crimes, começaram a ser alvo de duras críticas,
especialmente no que toca às questões da legitimidade de intervenção do
Estado na protecção e educação das crianças e jovens e do tratamento unitário
dos casos de jovens em perigo, de maltratados, de inadaptados, de meninos
de rua, de toxicodependentes, de rebeldes, de infractores ou de delinquentes.

Este tratamento unitário de situações encontrava a sua justificação no


princípio da inimputabilidade das crianças e jovens, que equiparava para

61
Em Espanha desde 1948, na Bélgica, a partir de 1965, e no Luxemburgo, desde 1971.
Entretanto, no contexto de um movimento de evolução e alteração de algumas legislações em
matéria de juventude e delinquência, alguns destes países alteraram as suas legislações: a
Bélgica, através das Leis de 24 de Dezembro de 1992, de 2 de Fevereiro de 1994 e de 30 de
Junho de 1994, que vieram alterar a anterior Lei de Protecção da Juventude; a Espanha, com a
Lei Orgânica 4/1992, de 5 de Junho, sobre a competência dos julgados dos menores. Também,
no Canadá, a Loi sur les jeunes contrevenents/Young Offenders Act, de 1986; e no Brasil, a Lei
n.º 8 069, de 13 de Julho de 1990, que aprovou o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 133

efeitos de protecção face a uma sociedade imperfeita, os delinquentes aos


jovens vítimas de crimes ou de exclusão.

Com o surgimento de novas formas de delinquência e de rebeldia juvenil,


sobretudo a partir da década de sessenta, o tratamento unitário dos jovens em
perigo e dos jovens delinquentes, que caracterizava o ideário proteccionista,
começou a ser alvo de fortes críticas, questionando-se a legitimidade da
intervenção estadual.

Neste quadro, o Ministério da Justiça do I Governo Provisório nomeou


uma Comissão Interdisciplinar com o intuito de proceder à reforma do sistema
de justiça juvenil. Do conjunto de propostas apresentadas pela Comissão é de
destacar aquela que apontava no sentido de articular os tribunais de menores
com comissões administrativas de protecção de crianças e jovens, nos casos
de jovens inadaptados62, cuja intervenção social seria prioritária face à
judiciária.

No entanto, como já se referiu, a revisão de 1978 veio unicamente


reforçar o sistema de protecção existente, com a novidade de introduzir, como
alternativa à protecção judiciária, uma protecção de natureza social destinada a
crianças de idade inferior a 12 anos63, que viria a ficar a cargo de comissões de
protecção. Nos termos do preâmbulo do diploma que veio regulamentar as
comissões de protecção (Decreto-Lei n.º 189/91, de 17 de Maio), pretendia-se
que estes organismos constituíssem “uma intervenção interdisciplinar e
interinstitucional, articulada e flexível, de base local, que traduzisse a sentida
exigência de responsabilização de cada comunidade local pelas suas crianças
e jovens”. Nos termos da OTM, em casos de jovens vítimas de maus tratos ou
em perigo até à idade de 18 anos e naqueles outros, que pudessem
desencadear a intervenção do Tribunal, de crianças de idade inferior a 12 anos

62
Nesta categoria incluíam-se os jovens agentes de crimes, desde que os pais consentissem
na intervenção, e os jovens com idade inferior a 14 anos.
63
Segundo o disposto no artigo 14.º da OTM, “a competência dos tribunais de menores é
extensiva a menores com idade inferior a 12 anos quando: a) os pais ou o representante legal
não aceitem a intervenção tutelar ou reeducativa de instituições oficiais ou oficializadas não
judiciárias; b) as instituições referidas na alínea anterior admitam que o menor agiu com
discernimento na prática de facto qualificado pela lei penal como crime”.
134 Capítulo IV - O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

que cometessem crimes ou que se encontrassem em situação de


marginalidade ou de inadaptação a uma vida social normal, àquelas comissões
era-lhes reconhecida a competência para aplicarem medidas tutelares, excepto
as de internamento em estabelecimentos da justiça. Esta intervenção estava
condicionada ao consentimento dos detentores do poder paternal, em
consonância com o imperativo constitucional que reconhece aos pais o direito e
o dever de educação dos filhos64, só admitindo que estes sejam afastados
daqueles quando não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e
sempre mediante via judicial.

De acordo com os ditames da OTM, o Estado “é o grande tutor que


substitui os pais, a família e os educadores e que pretende dominar
prescientemente a causa das coisas” (Rodrigues e Duarte-Fonseca, 2000: 7). A
intervenção do Estado, cuja herança histórica foi inspirada pelas ideias
positivistas do início do século XX, que propugnavam a sua intervenção
protectora em determinadas matérias do direito, encontrava a sua legitimação,
no contexto de um modelo de protecção, na prossecução do interesse do
jovem, tarefa que lhe é incumbida por força da lei constitucional (artigos 60.º e
70.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa) e de várias normas
constantes de diversos instrumentos de direito internacional público, relativas à
protecção das crianças e dos jovens, ratificados pelo Estado português.

Anabela Rodrigues critica veementemente este modelo protectivo ou de


Welfare, por assentar numa “visão paternalista do estado, como entidade
esclarecida que tudo pode impor em nome do verdadeiro bem dos cidadãos”,
considerando que esta visão “sucumbiu irremediavelmente perante a
instauração do Estado de direito material e a organização constitucional da
democracia participativa, com os inerentes direitos e garantias, não podendo
subsistir pelo simples facto de a concreta actividade estadual se dirigir a
cidadãos menores” (1997: 358).

64
Cf. artigos 36.º n.ºs 5 e 6 da CRP.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 135

A partir da década de oitenta, foram surgindo algumas críticas que


conduziram ao insucesso do modelo de protecção tal qual se apresentava no
sistema jurídico português. Segundo Anabela Rodrigues e Duarte-Fonseca
(2003: 9), “ele caducou quanto aos seus objectivos e finalidade, por estar em
oposição aos valores democráticos e por não se adequar a princípios de
diferenciação moral, social e educacional. Mostrou a vulnerabilidade de certos
grupos sociais, mais expostos à selecção das instâncias formais de controlo,
levando à perversão da filosofia que inspira o modelo [65]. O alastramento da
‘rede’ de protecção está indissociavelmente ligado a uma abordagem
preventiva da criminalidade (…) com a consequência algo absurda de se
encaminharem para a «justiça» menores que não deviam ter qualquer contacto
com ela (os menores em perigo). Quando o sentido do caminho deve ser o
inverso: menores delinquentes obterem resposta ao nível protectivo, por si só
ou em acumulação com a resposta ao nível da «justiça»”.

No entanto, como referem Vera Jardim e Ferro Rodrigues (1999: 4),


“inexplicavelmente, a reforma do direito de menores passou à margem das
reformas levadas a efeito no nosso país após o 25 de Abril”, acrescentando
que, por essa razão, naquela altura constituía “uma reforma urgente,
absolutamente necessária e justificada, quer do ponto de vista constitucional,
quer do ponto de vista institucional e de aplicação da lei, que o Governo
inscreveu, desde a primeira hora, nas suas prioridades fundamentais”. No
mesmo sentido, Lopes da Mota (1999: 11) afirma que a OTM “representa um
modelo inspirado pelo ideário da época, que passou ao lado das profundas
reformas levadas a efeito após o 25 de Abril, desfasado da Constituição e das
normas de direito internacional em vigor no nosso país (…) e incapaz de dar
resposta aos problemas actuais, no quadro de um Estado de direito social e
democrático, quer no que respeita a menores que praticam factos qualificados
por lei como crime”.

65
Segundo Anabela Rodrigues (1997: 367), a OTM depara-se com uma perversão do modelo,
por força da selecção feita dos jovens carecidos de intervenção protectiva: “não os que
cometem factos tipificados pela lei penal como crime, o que pouco interessa para legitimar
essa intervenção; mas os marginais, os carecidos de apoio familiar, os mais desfavorecidos do
ponto de vista sócio-económico”.
136 Capítulo IV - O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

2. O impacto da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das


Crianças na Organização Tutelar de Menores

Como já deixámos dito no Capítulo II, a Convenção das Nações Unidas


sobre os Direitos da Criança, adoptada pela Assembleia Geral das Nações
Unidas a 20 de Novembro de 1989, aberta à assinatura e ratificação em Nova
Iorque a 26 de Janeiro de 1990, resultou da intervenção Grupo de Trabalho de
Composição Ilimitada sobre a Questão de uma Convenção sobre os Direitos da
Criança, criada em 1979, pela Comissão dos Direitos do Homem, e que
elaborou a redacção final da Convenção, tendo por base a proposta de
Convenção apresentada pela Polónia, em 1978.

A adopção desta Convenção, apesar da existência de outros instrumentos


internacionais na área dos direitos da criança, assumiu grande relevo,
porquanto “a Convenção sobre os Direitos da Criança consiste no primeiro
instrumento de direito internacional a conceder força jurídica internacional aos
direitos da criança. A diferença fundamental entre este texto e a Declaração
dos Direitos da Criança, adoptada 30 anos antes, consiste no facto de a
Convenção tornar os Estados que nela são Partes juridicamente responsáveis
pela realização dos direitos da criança e por todas as acções que tomem em
relação às crianças, enquanto que a Declaração de 1959 impunha meras
obrigações de carácter moral” (Albuquerque, 2000: 33).

Portugal foi um dos países que participou activamente no processo de


elaboração e aprovação da Convenção, tendo sido um dos primeiros Estados a
ratificar este instrumento que vigora, entre nós, desde 199066. A participação de
Portugal no processo de elaboração da Convenção permitiu aos vários actores
envolvidos com os direitos das crianças consciencializarem-se da necessidade
da adequação da legislação nacional sobre crianças e jovens aos princípios
plasmados na Convenção.

66
A Convenção sobre os Direitos da Criança foi ratificada por Portugal, através do Decreto do
Presidente da República n.º 49/90, de 12 de Setembro.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 137

Uma das consequências para os Estados-parte da ratificação da


Convenção das Nações Unidas, consiste na obrigação de apresentar ao
Comité dos Direitos da Criança67 relatórios periódicos contendo informação
sobre a forma como a Convenção é aplicada: um relatório inicial, dois anos
após a entrada em vigor da Convenção no país, e os seguintes de cinco em
cinco anos, informando sobre o modo como a Convenção tem sido aplicada
(artigo 42.º da Convenção).

O primeiro relatório foi apresentado ao Comité dos Direitos da Criança,


em 1994, por uma Comissão constituída no âmbito do Ministério da Justiça,
composta por Eliana Gersão, Manuela Baptista Lopes, Miguel Andrade e Rosa
Clemente68. Nesse relatório eram referidas as insuficiências e anacronismos da
legislação em vigor e os aspectos negativos resultantes da sua aplicação, e
também a intenção do novo executivo, que acabara de tomar posse, de
proceder à revisão da legislação em vigor.

A primeira avaliação do Comité ao sistema de administração da Justiça


de Menores português, simbolizado pela Organização Tutelar de Menores de
197869 (OTM), relatou algumas preocupações e insuficiências contrárias aos
princípios defendidos na Convenção. As observações finais apresentadas pelo
Comité enumeravam os aspectos mais preocupantes do sistema português de
Justiça de Menores: a carência das garantias processuais das crianças e
jovens previstas no artigo 40.º, parágrafo 2.º, alínea b) da Convenção70; a não

67
Nos termos do artigo 43.º da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito das Crianças, o
Comité “é composto por dez peritos de alta autoridade moral e de reconhecida competência no
domínio abrangido pela Convenção, eleitos por escrutínio secreto de entre uma lista de
candidatos designados por Estados Partes, podendo cada país designar um perito de entre os
seus nacionais”. No entanto, a Assembleia Geral das Nações Unidas, através da Resolução n.º
50/155, de 21 de Dezembro de 1995, adoptou uma emenda àquele normativo, aumentando o
número de membros do Comité de 10 para 18, sob proposta do Governo da Costa Rica.
68
O relatório foi entregue ao Comité dos Direitos da Criança, em 16 de Setembro de 1994, e a
sua discussão ocorreu a 9 e 10 de Novembro de 1995.
69
O regime de então, como já referimos, estava regulamentado na Organização Tutelar de
Menores de 1978, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro.
70
Segundo este artigo, “(…) os Estados Partes garantem que: b) A criança suspeita ou
acusada de ter infringido a lei penal tenha, no mínimo direito às garantias seguintes: i)
presumir-se inocente até que a sua culpabilidade tenha sido legalmente estabelecida; ii) a ser
informada pronta e directamente das acusações formuladas contra si ou, se necessário,
através de seus pais ou representantes legais, e beneficiar de assistência jurídica ou de outra
138 Capítulo IV - O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

distinção entre as formas de intervenção relativas aos jovens agentes de


crimes e ás crianças necessitadas de protecção; a ausência de um organismo
coordenador e monitorizador que reunisse todos os indicadores e informações
estatísticas sobre o funcionamento do sistema; e a falta de uma política de
informação relativamente às crianças e aos operadores do sistema sobre os
princípios plasmados na Convenção.

Assim, o Comité veio recomendar a adopção de medidas que se


compatibilizassem com o preceituado na Convenção, sugerindo,
designadamente, a revisão das normas sobre a institucionalização e detenção
dos jovens, no sentido da sua aplicação ser sempre de ultima ratio.

Em Outubro de 1998, foi apresentado um segundo relatório, por uma


Comissão autorizada para o efeito, por despacho da Alta Comissária para as
Questões da Promoção da Igualdade e da Família71 - Comissão Nacional dos
Direitos da Criança -, cujo conteúdo fazia referência às propostas de reforma
do sistema judiciário de crianças e jovens que entretanto estava a ter lugar em
Portugal72, e deixava transparecer a intenção do legislador português em
conciliar as vantagens de um modelo de protecção, presente na OTM, com o
modelo de justiça, através de uma terceira via que pretendia conceder aos
jovens todos os direitos inerentes à cidadania (Gersão, 1997: 8).

assistência adequada para a preparação e apresentação da sua defesa; iii) a sua causa ser
examinada sem demora por uma autoridade competente, independente e imparcial ou por um
Tribunal, de forma equitativa nos termos da lei, na presença do seu defensor ou de outrem,
assegurando assistência adequada e, a menos que tal se mostre contrário ao interesse
superior da criança, nomeadamente atendendo à sua idade ou situação, na presença de seus
pais ou representantes legais; iv) a não ser obrigada a testemunhar ou a confessar-se culpada;
a interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e a obter a comparência e o
interrogatório das testemunhas de defesa em condições de igualdade; v) no caso de se
considerar que infringiu a lei penal, a recorrer dessa decisão e das medidas impostas em
sequência desta para uma autoridade superior, competente, independente e imparcial, ou uma
autoridade judicial nos termos da lei; vi) a fazer-se assistir gratuitamente por um intérprete, se
não compreender ou falar a língua utilizada; vii) a ver plenamente respeitada a sua vida privada
em todos os momentos do processo”.
71
Despacho de 13 de Dezembro de 1996 publicado no Diário da República n.º 301, II série, de
30 de Dezembro de 1996.
72
O processo de reforma no sistema judiciário de menores português, justificado em grande
parte pelas orientações presentes na Convenção sobre os Direitos das Crianças, será tratado
de forma autónoma no ponto seguinte.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 139

Neste segundo relatório surge, desde logo, o intento de diferenciar as


formas de intervenção relativas a jovens, através da implementação de um
sistema de protecção para os menores de 12 anos de idade que cometem
crimes e um sistema educativo ou formativo para menores em risco carecidos
de protecção e assistência em virtude de situações de abandono ou
desamparo. Segundo as propostas da Comissão de Reforma73, estas duas
diferentes formas de intervenção deveriam ser regulamentadas em leis
diferentes mas sujeitas à jurisdição de um mesmo Tribunal – o Tribunal de
Menores –, que pautaria a sua actuação de acordo com o respeito pelo
interesse superior da criança, devendo ainda defender-se o princípio da
subsidiariedade no que toca à intervenção judiciária e, prever-se pontes de
passagem da intervenção judiciária para a administrativa (Gersão, 1997: 10).

De acordo com este segundo relatório, as propostas formuladas no


âmbito da reforma do direito de crianças e jovens português orientaram-se não
só pelos princípios plasmados na Convenção das Nações Unidas sobre o
Direito das Crianças, como também pelas normas constantes de outros
instrumentos de direito internacional público, como as Regras Mínimas das
Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores (Regras de
Beijing); as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Elaboração de Medidas
não Privativas da Liberdade (Regras de Tóquio); as Directrizes das Nações
Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil (Directrizes de Riade); as
Regras das Nações Unidas para a Protecção dos Jovens Privados da
Liberdade; e as regras da Resolução R (87) 20, do Conselho da Europa.

No momento posterior à apresentação e discussão do relatório português,


o Comité, em Novembro de 200174, nas suas observações finais, veio felicitar o
Estado português pela reforma levada a cabo no sistema de administração da
justiça de crianças e jovens e no sistema de solidariedade e segurança social.
No entanto, também considerou que a Convenção ainda não estaria totalmente

73
A Comissão para a Reforma do Sistema de Execução das Penas e Medidas. Para mais
informações ver infra.
74
Documento CRC/C/15/Add.162, de 6 de Novembro de 2001.
140 Capítulo IV - O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

transposta para o direito interno português e, assim, recomendou que o Estado


português continuasse comprometido com a reforma do sistema de justiça de
crianças e jovens, de forma a que esta viesse a abranger efectivamente todas
as crianças, a respeitar as normas da Convenção, as Regras de Beijing e os
Princípios Orientadores de Riade e, ainda, a assegurar que os jovens com
idade igual ou superior a 16 anos beneficiassem de total protecção dos seus
mais elementares direitos.

3. O processo de reforma da Justiça Juvenil: os relatórios (Ministério da


Justiça /Ministério do Trabalho e da Solidariedade)

Para alguns Autores, em Portugal, a justiça de crianças e jovens foi, de


início, alvo de um “triunfalismo acrítico que reinou (…) com base no qual as
nossas instituições se fecharam no seu autismo, ignorando ou subvalorizando
toda a experiência estrangeira” (Gersão, 1997: 7).

Face às críticas que apregoavam a caducidade do modelo de protecção


presente no sistema de justiça juvenil português plasmado na OTM e a
ratificação por Portugal de directrizes elaboradas por alguns instrumentos de
direito internacional público, durante o mandato do XIII Governo Constitucional,
o então responsável pelo Ministério da Justiça, Vera Jardim, fez inscrever a
revisão da OTM no Plano de Governo75, onde se defendia que, “no tocante à
política de protecção judiciária de menores deveriam ser aperfeiçoadas e
diversificadas as formas de apoio/tratamento (…), distinguindo situações de
disfuncionalidade ou carência social de outras que se relacionam com a
delinquência juvenil”76, e incumbiu, através do Despacho 20/MJ/96, de 30 de
Janeiro77, uma Comissão – a Comissão de Reforma do Sistema de Execução

75
A intenção de proceder à execução de uma nova política em matéria de Justiça de Menores
já constava do programa do XII Governo Constitucional, tendo, contudo, somente sido dado o
primeiro passo durante o mandato do XIII Governo.
76
Cf. Plano do XIII Governo Constitucional.
77
Despacho publicado no Diário da República, II Série, n.º 35, de 10 de Fevereiro de 1996.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 141

das Penas e Medidas (CRSEPM)78 - de rever o sistema de execução de penas


e de justiça crianças e jovens.

Nos termos da introdução deste Despacho, considerava-se essencial


“obter uma visão integrada do sistema de execução de penas e medidas, em
matéria penal e de justiça de menores, utilizando como critério fundamental o
fornecido pelo quadro legal em vigor, os princípios internacionalmente
estabelecidos e as experiências conduzidas noutros países”, tudo com o
objectivo de “apreciar a forma como estava a ser conduzida a execução das
penas (…) e das medidas aplicadas a jovens e menores, procurando uma
maior transparência perante toda a sociedade e conduzindo a nossa
administração de penas e medidas, (…) a um acerto de passo com o de outras
administrações reconhecidamente mais avançadas”.

Assim, de acordo com o ponto 3 do referido Despacho, o trabalho a


desenvolver pela Comissão tinha como objectivos: “a) fazer uma análise da
situação actual do sistema de execução de penas e medidas, partindo dos
princípios jurídicos básicos que se deduzem dos textos legais e avaliando a
forma como se tem desenvolvido a acção do Estado e das organizações
sociais privadas que com ele cooperam neste domínio; b) analisar a
experiência de outros países em matéria de execução de penas e medidas e
dela colher dados e ensinamento que possam ser úteis para a formulação e
execução da política criminal; c) proceder a uma avaliação das actuais
discussões doutrinais sobre os vários temas em que se desdobra a matéria da
execução das penas e medidas, clarificando as alternativas hoje defendidas e
sujeitando-as a um exame crítico aprofundado, designadamente face à
situação portuguesa e às experiências acima referidas; d) apresentar
propostas, de natureza legislativa e institucional, com base nas avaliações
feitas, que visem aprofundar a conformidade legal e a coerência, efectividade e
eficácia do sistema de execução de penas e medidas; e) apresentar propostas

78
Desta Comissão faziam parte a Prof. Doutora Anabela Rodrigues, que presidia, o Juiz
Conselheiro Dr. J. Gonçalves da Costa, o Juiz Desembargador Dr. J. V. Soreto de Barros, o
Procurador-Geral Adjunto Dr. Rui Epifânio, o Dr. Pedro Caeiro, o Dr. António Ganhão e a Dra.
Eliana Gersão.
142 Capítulo IV - O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

em domínios em que o Ministério da Justiça deva ter iniciativa e que


ultrapassem o sistema de execução de penas e medidas, mas que o
condicionam no seu desenho e dinâmica de funcionamento; f) emitir parecer
(…) sobre reformas que, por razões de urgência ou pelo seu âmbito restrito,
devam ser introduzidas no sistema, sem aguardar pelas propostas finais da
Comissão”.

No decurso dos trabalhos, a Comissão devia proceder a audições de


entidades públicas e privadas que reputasse adequadas, e à elaboração de
relatórios (cf. ponto 6 do Despacho mencionado).

O primeiro relatório da Comissão, apresentado em Julho de 1996,


constituiu o “resultado da análise teórico-dogmática do sistema tutelar de
menores, enriquecida pelo conhecimento possível da experiência do seu
funcionamento real” (1999a: 47).

Nesse relatório, a Comissão começa por afirmar que “a primeira


impressão de quem contacta com os agentes do sistema de menores (…) é a
de um profundo e generalizado mal-estar”, mal-estar esse que “advém da
incapacidade de resposta que atravessa verticalmente todo o sistema: ao nível
legislativo, o enquadramento da intervenção junto de menores apresenta
deficiências profundas e da mais diversa ordem; ao nível da aplicação do
direito, a acção dos intervenientes encontra-se fortemente bloqueada por
factores da mais variada natureza; ao nível da execução das decisões
proferidas, as expectativas que o sistema procura satisfazer esbarram com a
carência de recursos e com a ausência de uma estratégia de utilização racional
dos recursos disponíveis” (1999a: 47).

As conclusões finais presentes neste relatório apontavam diversas


inadequações e ineficiências do sistema, que levaram a Comissão a considerar
urgente a necessidade de reformular de raiz o sistema tutelar de crianças e
jovens, começando pela legislação.

Segundo o relatório da Comissão, “para além das dificuldades de


funcionamento com que deparou, entende a Comissão que os próprios
alicerces sobre os quais assenta a intervenção junto dos menores se
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 143

encontram irremediavelmente atingidos. Assim, uma futura remodelação da


matéria não poderá reduzir-se a meras reformas pontuais dos vários níveis em
que aquela se desdobra. Parece imprescindível repensar toda a questão,
prestando particular atenção à identificação dos fins que devem guiar a
intervenção junto de menores” (1999a: 47). A Comissão tomou, assim, por
base a discussão da legitimação da intervenção estadual no âmbito da
jurisdição de crianças e jovens, criticando violentamente o modelo de protecção
escolhido pela OTM e a sua definição de “interesse do menor”79.

Entre as inadequações referidas é de salientar, designadamente, o facto


das necessidades e das expectativas relativas ao problema dos jovens
desprotegidos serem diferentes das que se prendem com os agentes de crimes
e equiparados; o desrespeito do processo tutelar pelas injunções
constitucionais e de direito internacional, em matéria de garantias das crianças
e jovens; desobediência das medidas tutelares e da sua aplicação a uma
política concertada e racional com vista a certos fins; e o facto do direito tutelar
português não respeitar a função de prevenção criminal, enquanto prevenção
especial, através da responsabilização do jovem autor de um facto qualificado
pela lei como crime80.

No final do ano de 1996, a Comissão entregou um Relatório Final


composto por uma proposta destinada a “instituir um sistema de intervenção
junto de menores jurídico-constitucionalmente legítimo, teleologicamente
ordenado aos problemas sociais que visa resolver, e dotado de coerência
dogmática e de eficácia funcional” (1999b: 70).

Este Relatório é composto por oito secções e uma conclusão que versam
sobre: a) a legitimação, os fins e os pressupostos da intervenção estadual junto
de menores; b) as medidas tutelares educativas; c) processo tutelar educativo;

79
Nas palavras da Comissão: “há que lembrar que o actual modelo de protecção assenta numa
visão paternalista e monolítica do chamado ‘Interesse do menor’ como algo de dado. Assim, à
luz dessa perspectiva, se a intervenção é imposta pelo ‘Interesse do menor’, a oposição do
visado ou de quem o represente não pode prosseguir, logicamente, esse interesse. Desta
forma, a concreta posição do titular do interesse perante a intervenção é pouco relevante, pois
que esta é determinada, precisamente, em atenção ao seu próprio bem” (1999a: 48-49).
80
Cf. Conclusões Gerais do 1.º Relatório da Comissão.
144 Capítulo IV - O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

d) linhas gerais sobre a execução das medidas tutelares; e) a organização e o


sistema judiciário em matéria tutelar educativa; f) os serviços auxiliares da
administração da justiça em matéria tutelar educativa; g) as Comissões de
Protecção; e h) o regime especial dos jovens adultos.

A primeira secção faz uma apresentação do modelo de protecção


subjacente à OTM e dos seus limites, concluindo pela incapacidade de um
modelo monolítico que responda eficazmente ao tratamento de situações de
crianças em risco e crianças infractoras.

De acordo com o entendimento da Comissão, “a inadequação do modelo


vigente [da OTM] deve-se, por um lado, à desatenção a que vota alguns
direitos fundamentais dos cidadãos menores – factor que põe em causa a
legitimidade da intervenção – e, por outro, à sua incapacidade de dar resposta
aos problemas postos pelos menores que praticam condutas socialmente
danosas – factor que põe em causa a eficácia da intervenção” (1999b: 71).

Assim, por um lado, a Comissão defende que a intervenção estadual, ao


se traduzir numa restrição de direitos fundamentais das crianças e jovens, “não
pode deixar de ser vista como excepcional e sujeita aos princípios da
necessidade e proporcionalidade”. Para tanto, “o «Interesse do menor» não
pode hoje conceber-se como categoria cuja densificação pertence por inteiro à
discricionaridade do Estado. A visão paternalista do Estado, como entidade
esclarecida que tudo pode impor em nome do verdadeiro bem dos cidadãos,
sucumbiu irremediavelmente perante a instauração do Estado de direito
material e a organização constitucional da democracia participativa, com os
inerentes direitos e garantias, não podendo subsistir pelo simples facto de a
concreta actividade estadual se dirigir a cidadãos menores” (1999b: 72).

Por outro lado, afirma-se que o sistema de crianças e jovens


representado pela OTM “(…) por não assentar em fundamentos com clara
conformidade constitucional, não tem um desempenho eficaz na satisfação das
expectativas comunitárias. (…) essa incapacidade provém, em larga parte, do
facto de as expectativas da comunidade em relação aos menores infractores
não se satisfazerem hoje com uma resposta de pura protecção, sobretudo em
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 145

virtude do abaixamento do limiar inicial da maturidade” (1999b: 72). Foi


também neste sentido que os operadores jurídicos se pronunciaram nas
audições efectuadas pela Comissão.

Pronunciando-se positivamente acerca de um tratamento diferenciado dos


casos de crianças e jovens em perigo, que necessitariam de uma intervenção
de protecção de forma a desenvolver o seu poder de autodeterminação,
daqueles outros de jovens infractores, a apelarem por uma intervenção
estadual educativa, a Comissão fundamentou a legitimidade desta última em
imperativos constitucionais. Nas palavras da Comissão, “encontrando-se a
personalidade do menor ainda em formação, o Estado tem o direito e o dever
de intervir correctivamente nesse processo sempre que o menor, ao ofender os
valores essenciais da comunidade e as regras mínimas que regem a vida
social, revele uma personalidade hostil ao dever-ser jurídico básico. Torna-se
então necessário responsabilizar o menor pelo dano social provocado,
mostrando-lhe que essa conduta não é tolerada pela sociedade em que se
insere, educando-o para o direito de forma a que a sua personalidade-em-
formação interiorize o respeito pelas normas e valores fundamentais da
comunidade” (1999b: 74-75).

Assim, a aplicação de uma medida tutelar educativa justifica-se, por um


lado, pela prossecução de outros interesses constitucionalmente protegidos,
como aqueles que fazem parte da política de juventude plasmada
constitucionalmente81, por outro, pelas exigências comunitárias de segurança e
paz social e, por último, pela necessidade de uma intervenção estadual
preventiva no início das carreiras criminosas dos jovens (1999b: 75).

A par da questão da legitimação para a intervenção estadual, o relatório


aponta ainda os princípios e pressupostos em que essa intervenção tutelar
educativa deve assentar. Assim, como princípio orientador de toda a
intervenção junto de jovens indica-se “o princípio da mínima intervenção

81
A CRP dispõe no artigo 70.º, n.º 2, que “o desenvolvimento da personalidade dos jovens, a
criação de condições para a sua efectiva integração na vida activa (…) e o sentido de serviço à
comunidade”.
146 Capítulo IV - O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

possível”, justificando-se a aquela intervenção tão-somente “quando o exercício


do poder de autodeterminação por parte do menor viola os limites que definem
o correlativo direito, ofendendo de forma particularmente grave os bens
jurídicos da comunidade” (1999b: 75-76).

Deste modo, indicam-se dois pressupostos para a intervenção tutelar


educativa: a ofensa grave aos bens jurídicos fundamentais da comunidade,
devendo o Tribunal “estabelecer se aquele facto concretamente praticado pelo
menor é susceptível de um juízo de desvalor objectivo pelo menos análogo ao
que é vertido na incriminação típica” e a conclusão em concreto, pelo Tribunal,
da necessidade de corrigir a personalidade deficiente no plano do dever-ser
jurídico que se manifestou na prática do facto. Este último pressuposto,
segundo a Comissão, oferece-nos o conceito agora adoptado de interesse das
crianças e jovens: “interesse fundado no seu direito às condições que lhe
permitam desenvolver a sua personalidade de forma socialmente responsável,
ainda que, para esse efeito, a prestação estadual implique uma compressão de
outros direitos que titula” (1999b: 77).

Para a Comissão, a determinação do conceito normativo que


consubstancia a “necessidade de correcção da personalidade documentada no
facto” não se reveste de um especial melindre para o julgador, uma vez que,
por um lado, “trata-se de corrigir uma personalidade que apresenta deficiências
perante o dever-ser jurídico mínimo e essencial (corporizado na lei penal) e não
meras deficiências no plano moral ou educativo em geral”, e, por outro, nos
termos das propostas da Comissão, “o julgador disporá de um leque alargado
de meios que lhe permitam investigar a necessidade de correcção da
personalidade” (1999b: 77).

A ordenação da intervenção tutelar ao interesse das crianças e jovens,


entendido agora com o sentido supra referido, impõe que aquela, nas palavras
da Comissão, “só deve produzir-se quando a necessidade de correcção da
personalidade subsista no momento da aplicação da medida. Quando tal não
aconteça, a ausência de intervenção representará uma justificada prevalência
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 147

do interesse do menor sobre a defesa dos bens jurídicos e das expectativas da


comunidade” (1999b: 77).

São, também, estes os fundamentos para a não equiparação entre os


jovens que praticam crimes e os jovens em estados de delinquência e de
para-delinquência (por exemplo, abuso de bebidas alcoólicas, prostituição e
consumo de drogas). Na verdade, a Comissão considerou que os “menores em
estados de delinquência e de para-delinquência necessitam da intervenção
assistencial do Estado que contribua para a sua integração social – mas não de
uma intervenção que os eduque para o respeito pelas normas e valores
jurídicos essenciais que nunca desrespeitaram (…) nestes casos, não havendo
prática de um facto ilícito tipificado na lei penal, o comportamento desviante
traduz-se numa autolesão, e não na heterolesão típica do ilícito jurídico”
(1999b: 79). Ainda segundo a Comissão, “admitir o ingresso daqueles menores
no sistema tutelar educativo constituiria uma distorsão dos seus princípios
rectores e uma cedência à tentação de confundir personalidades socialmente
desajustadas com personalidades hostis ao dever-ser jurídico” (1999b: 79).

Na secção relativa às medidas tutelares educativas, a Comissão afirma


que “atendendo à diversidade de situações a que as medidas tutelares podem
dirigir-se, parece conveniente prever um leque alargado de medidas, sem que
o seu número, de excessivo, dificulte as operações de escolha e determinação
no momento da sua aplicação”, defendendo, ainda, que “as medidas tendentes
à reparação efectiva ou simbólica dos danos provocados devem possuir um
âmbito de aplicação bastante alargado, pois, para além de poderem ser
suficientes para o efeito educativo que se pretende, permitem realizar um outro
fim do processo tutelar, qual seja, a pacificação do conflito social” (1999b: 83).

Tendo em conta os pressupostos e fins adoptados para a intervenção


tutelar, a Comissão entendeu indicar quatro critérios para a escolha da medida
a aplicar. Assim, defendeu-se que “o juiz terá em conta a necessidade de
correcção da personalidade do menor manifestada no facto que subsista no
momento da decisão e a concreta gravidade do facto ilícito típico praticado”,
que “a medida deve ser adequada à necessidade de correcção dessa
148 Capítulo IV - O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

personalidade e não pode ser desproporcionada à concreta gravidade do


facto”. Acrescentando que respeitados estes critérios, “o Tribunal escolherá
a(s) medida(s) que signifique(m) a menor intervenção possível” e que “dentro
dos limites dos critérios anteriormente fixados, o Tribunal deve optar pela(s)
medida(s) que obtenha(m) maior adesão do menor, dos seus pais,
representantes legais ou curador especial, oferecendo por isso maiores
garantias de sucesso na sua execução” (1999b: 86).

Na secção do Relatório que trata o processo tutelar educativo, a


Comissão reconhece a semelhança entre o processo tutelar proposto e o
processo penal, advertindo, no entanto, para a divergência dos fins que uma e
outra intervenção procuram alcançar. Assim, afirma-se que “o processo penal
serve de fonte ao processo tutelar por constituir um ordenamento que realiza
de forma particularmente activa as garantias constitucionais da pessoa em face
de pretensões de intervenção estadual na esfera dos direitos fundamentais”
(1999b: 91).

No entanto, a reconformação dos institutos do processo penal não é


dotada de plena elasticidade, devendo, sempre que a diversidade da natureza
da intervenção o imponha, instituir-se “princípios específicos do processo
tutelar – v.g., o princípio do interesse do menor -, claramente incompatíveis
com um processo penal” (1999b: 92). Exemplo claro desta divergência entre
um e outro processo é o da não aplicação do princípio in dubio pro reo no
processo tutelar, que se justifica pela inexistência de um reo no processo
tutelar e também por, no processo tutelar, não se por “a questão da inocência
versus culpabilidade”, ideia à qual está associado aquele princípio no âmbito do
processo penal. Assim, segundo a Comissão, “no caso de o Tribunal se
deparar com uma dúvida insanável sobre a prática, pelo menor, de um facto
típico e ilícito (…), deverá antes adoptar o princípio do interesse do menor e
decidir, de acordo com a avaliação da necessidade de correcção da
personalidade, qual das soluções (a intervenção ou a ausência dela) realiza
melhor, no caso concreto, o interesse do menor” (1999b: 95).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 149

No que diz respeito à execução das medidas tutelares aplicadas, a


Comissão indica como seus princípios orientadores o da “maior
jurisdicionalização da execução” e da “vinculação legal dos termos da
execução” (1999b: 134).

Em 2 de Outubro de 1996, os Ministérios da Justiça e da Solidariedade e


Segurança Social, afirmando a “necessidade de intervir conjunta e
articuladamente na concepção, desenvolvimento e execução de diversas
políticas sociais, nomeadamente de protecção de crianças em risco, de
adopção, de prevenção criminal de jovens e de reinserção”, por despacho
conjunto82, determinaram, “de modo a racionalizar e a tornar mais eficiente a
actuação dos dois Ministérios”, “a constituição de uma comissão
interministerial[83], para estudo da articulação entre os Ministérios da Justiça e
da Solidariedade e Segurança Social”, com a tarefa de apresentar um relatório
preliminar no prazo de 45 dias e um “relatório final e as propostas que entender
por convenientes no prazo de 90 dias”.

Esta Comissão “entendeu que no desenvolvimento do seu trabalho


deveria apreciar, nos termos do seu mandato e face ao enquadramento legal
vigente, a actuação dos dois Ministérios nas seguintes áreas: a) Crianças e
jovens em risco; b) Crianças e jovens com comportamentos desviantes; c)
Jovens agentes de factos ilícitos tipificados como crime; d) processos tutelares
cíveis; e) adopção; f) regime penal especial dos jovens adultos; g) reinserção
de adultos condenados” (1999: 174).

Posto à discussão pública o relatório final elaborado pela Comissão para


a Reforma do Sistema de Execução de Penas e Medidas, o Ministério da
Justiça entendeu urgente “concretizar, em termos legislativos, as propostas
apresentadas em sede de intervenção tutelar educativa, aplicável a menores
agentes de factos ilícitos tipificados como crime e do regime especial dos

82
Despacho conjunto publicado no Diário da República, II série, n.º 262, de 12/11/96.
83
A comissão foi composta pelos Drs. João Pedroso, Maria Cândida Duarte e António Santos
Luís, em representação do Ministério da Solidariedade e Segurança Social, e os Drs. Eliana
Gersão, Gonçalo Melo Breyner e Rosa Clemente, em representação do Ministério da Justiça.
150 Capítulo IV - O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

jovens adultos”. Assim, pelo Despacho n.º 1021/9884, constitui-se uma


comissão de reforma da legislação sobre o processo tutelar educativo85, com o
objectivo de elaborar projectos legislativos sobre o processo tutelar educativo e
sobre o regime especial aplicável a jovens adultos, que deveriam ser
apresentados até 31 de Março de 1998.

Segundo o despacho mencionado, esta “reforma da legislação sobre


processo tutelar educativo” dever-se-ia enquadrar “na reforma mais ampla,
[então] em curso, de direito de menores, envolvendo a legislação de protecção
de crianças e jovens em risco, objecto dos trabalhos da comissão[86] constituída
pelo Despacho Conjunto n.º 524/97[87] dos Ministérios da Justiça e da
Solidariedade e Segurança Social, de 18 de Novembro de 1997, devendo ser
adoptadas as formas de articulação necessárias à harmonização das soluções
legislativas de acordo com os princípios orientadores resultantes do relatório
final da Comissão para a Reforma do Sistema de Execução de Penas e
Medidas”.

O trabalho realizado pela CRSEPM deu origem à Proposta de Lei n.º


266/VII, que na sua Exposição de Motivos optou claramente pelos princípios
orientadores já definidos pela Comissão para a Reforma do Sistema de
Execução de Medidas e Penas no seu Relatório Final.

Apresentada à Assembleia da República sob proposta do Governo, a Lei


Tutelar Educativa foi aprovada em 2 de Julho de 1999, promulgada em 26 de

84
Despacho publicado no Diário da República, II série, n.º 13, de 16/01/98.
85
Esta Comissão foi constituída pela Prof. Doutora Anabela Miranda Rodrigues, que a presidiu,
pelas Dras. Joana Marques Vidal, Eliana Gersão, Manuela Baptista Lopes e Maria Teresa
Rapazote Trigo de Sousa e pelo Dr. António Carlos Rodrigues Duarte Fonseca.
86
A Comissão de Reforma da Legislação de Protecção de Crianças e Jovens em Risco era
composta pelo Prof. Doutor Guilherme Oliveira, pelos Drs. Rui Epifânio, João Pedroso e
António Amaro Rodrigues e pelas Dras. Eliana Gersão, Maria do Rosário Correia de Oliveira,
Maria Carla Fonseca Costa Oliveira e Rosa Clemente. Tinha como objectivo, nos termos do
Despacho Conjunto n.º 524/97, “a elaboração da proposta de lei de protecção das crianças e
jovens em risco”, “a reforma da legislação relativa aos processos tutelares cíveis”, “a reforma
do regime jurídico das comissões de protecção de menores”, “a revisão do enquadramento
legal das famílias de acolhimento e dos lares para crianças e jovens desprovidos de meio
familiar” e “a elaboração do quadro legal de aprovação e implementação de programas e
projectos destinados ao apoio de crianças e jovens em risco”.
87
Despacho publicado no Diário da República, II Série, de 22/12/1997.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 151

Agosto, referendada em 2 de Setembro e publicada em 14 de Setembro,


entrando em vigor em 1 de Janeiro de 2001.

4. A preparação para a entrada em vigor da Lei Tutelar Educativa

Em 27 de Julho de 2000, foi aprovada a Resolução do Conselho de


Ministros n.º 108/200088. O Conselho de Ministros, considerando “urgente a
entrada em vigor da legislação já aprovada de protecção de crianças e jovens
em perigo e tutelar educativa”, resolveu “aprovar o Programa de Acção para a
Entrada em Vigor da Reforma de Direito de Menores”, com a finalidade de
“assegurar a criação de condições jurídicas, técnicas, humanas e físicas que
permitam a integral aplicação: a) Da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em
Perigo, assim contribuindo para a promoção do seu bem-estar e
desenvolvimento integral; e b) Da Lei Tutelar Educativa, assim promovendo a
educação e inserção social de jovens que, tendo cometido factos qualificados
pela lei como crime, tenham revelado necessidade de uma intervenção tutelar,
e prosseguindo objectivos de prevenção da delinquência juvenil e de protecção
da sociedade”.

Ao mencionado Programa foram atribuídas, entre outras, as seguintes


funções: “a regulamentação da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em
Perigo e da Lei Tutelar Educativa”; “a criação de condições para uma aplicação
prioritária das medidas tutelares educativas não institucionais e a sua execução
numa perspectiva de prevenção da reincidência”; “a reestruturação das
instituições de menores do Ministério da Justiça, visando a criação de centros
educativos e o desenvolvimento de programas educativos visando a sua
inserção social e a prevenção da reincidência” e “a condução do processo de
transição entre o actual sistema e o que é enformado pela reforma legislativa”.

No seguimento da adopção deste Programa de Acção, foi aprovado o


Decreto-Lei n.º 190/2000, de 16 de Agosto, que, no seu preâmbulo, salienta a
“necessidade urgente de readaptação dos estabelecimentos existentes, por

88
Resolução publicada no Diário da República, I Série – B, n.º 191, de 19/08/2000.
152 Capítulo IV - O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

forma a possibilitar a criação, a curto prazo, dos centros educativos” e de se


proceder “à aquisição de bens necessários ao funcionamento dos referidos
centros, bem como ao recrutamento do pessoal imprescindível para assegurar
uma eficaz execução das novas medidas”. Assim, dada a urgência em dotar o
sistema de condições mínimas indispensáveis para a entrada em vigor do novo
regime jurídico previsto na Lei Tutelar Educativa, o referido diploma aprovou
medidas especiais, dispensando a realização de algumas formalidades, para a
celebração de contratos para a realização de obras em prédios do Instituto de
Reinserção Social ou a ele afectos, destinados a centros educativos, e para a
aquisição de bens e serviços (cf. artigo 1.º e 2.º). Previu-se, ainda, a
possibilidade de um recrutamento de pessoal não vinculado à função pública
para o Instituto de Reinserção Social, sob a forma de um processo de selecção
sumário, no caso de não ser possível o preenchimento normal dos quadros dos
centros educativos e das equipas de reinserção social para apoio aos tribunais
de família e menores (cf. artigo 3.º).

De modo a “preparar a transição para o regime previsto na Lei Tutelar


Educativa” (cf. preâmbulo), foi publicada, ainda, a Portaria n.º 799-A/2000, de
20 de Setembro, por força da qual se ordenou, “até à conclusão da adaptação
dos actuais colégios de acolhimento, educação e formação ao modelo de
centros educativos em regime fechado, aberto e semi-aberto”, a desafectação
do serviço prisional da área da Directoria de Coimbra da Polícia Judiciária,
colocando-a na dependência do Instituto de Reinserção Social, “destinando-se
exclusivamente ao acolhimento dos menores que lhe estão confiados e quando
razões especiais de segurança o justifiquem” (cf. ponto 1.º).

Como se referiu, a Lei Tutelar Educativa, aprovada pela Lei n.º 166/99, de
14 de Setembro, não entrou imediatamente em vigor, dispondo desse diploma
que o momento da sua entrada em vigor coincidiria com a da legislação que
regulamentasse a criação, organização e competência dos órgãos dos centros
educativos e seu funcionamento, e que aprovasse o regulamento geral e
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 153

disciplinar dos centros educativos89 (cf. artigo 6.º da Lei n.º 166/99, e 144.º, n.º
4, da Lei Tutelar Educativa).

A criação e classificação dos centros educativos, a praticar até 31 de


Dezembro de 2000, foi realizada com a aprovação e entrada em vigor, em 1 de
Janeiro de 2001, da Portaria n.º 1200-B/2000, de 20 de Dezembro, que criou
os seguintes centros educativos: Centro Educativo de Santa Clara, em Vila do
Conde, com regime aberto e semiaberto; Centro Educativo de Santo António,
no Porto, com regime aberto e semiaberto; Centro Educativo Dr. Alberto Souto,
em Aveiro, com regime aberto e semiaberto; Centro Educativo do Mondego,
em Cavadoude, Guarda, com regime semiaberto e fechado; Centro Educativo
de São Fiel, em Louriçal do Campo, Castelo Branco, com regime semiaberto;
Centro Educativo dos Olivais, em Coimbra, com regime semiaberto e fechado;
Centro Educativo da Bela Vista, em Lisboa, com regime aberto e semiaberto;
Centro Padre António de Oliveira, em Caxias, Oeiras, com regime semiaberto e
fechado; Centro Educativo Vila Fernando, em Vila Fernando, Elvas, com
regime semiaberto, todos destinados a acolher jovens do sexo masculino;
Centro Educativo Navarro de Paiva, em Lisboa, com regime semiaberto,
destinado a acolher jovens de ambos os sexos90; Centro Educativo Corpus
Christi, em Vila Nova de Gaia, com regime aberto e semiaberto; Centro
Educativo de São José, em Viseu, com regime aberto e semiaberto; e Centro
Educativo de São Bernardino, em Atouguia da Baleia, Peniche, com regime
aberto, semiaberto e fechado, destinados a acolher jovens do sexo feminino91
(cf. ponto 1.º).

Consideramos que o referido Programa foi ao mesmo tempo positivo e


tímido. Por um lado, representou a consciência de que a aplicação de uma lei
implica condições políticas, económicas e sociais que devem ser

89
O Regulamento Geral e Disciplinar dos Centros Educativos foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º
323-D/2000, de 20 de Dezembro, tendo entrado em vigor em 1 de Janeiro de 2001 (cf. artigo
4.º). Sobre este diploma falaremos mais especificamente adiante.
90
A referida Portaria previa que o Centro Educativo Navarro de Paiva se destinaria, até 31 de
Março de 2001, a acolher, ainda, jovens do sexo feminino em regime fechado (cf. ponto 4.º).
91
Relativamente ao Centro Educativo de São Bernardino, a referida Portaria previa que o
mesmo se destinava a acolher, até ao dia 31 de Março de 2001, também jovens do sexo
masculino em regime semiaberto (cf. ponto 4.º).
154 Capítulo IV - O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

implementadas. Mas, por outro lado, tal Programa ficou aquém do necessário,
como parece resultar dos capítulos seguintes do presente estudo.

5. A Lei Tutelar Educativa: parte integrante de um Novo Direito das


Crianças e Jovens

Na sequência das propostas avançadas pelas Comissões constituídas


para a avaliação e reforma do Direito de Menores, às quais já se fez referência,
a Assembleia da República aprovou, em 1999, três importantes diplomas legais
neste âmbito92, a saber:

- A Lei n.º 133/99, de 28 de Agosto, que alterou o Decreto-Lei n.º 314/78,


de 27 de Outubro, na parte respeitante aos processos tutelares cíveis;

- A Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro, que aprovou a Lei de Protecção de


Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP); e

- A Lei n.º 166/99, de 14 de Setembro, que aprovou a Lei Tutelar


Educativa (LTE).

A Lei Tutelar Educativa e a Lei de Protecção de Crianças e Jovens em


Perigo “constituem os textos fundamentais da reforma do direito dos menores”
(Rodrigues, 2003: 55).

Como se referiu supra, esta alteração legislativa veio substituir, no


essencial, o regime de intervenção estadual previsto na Organização Tutelar de
Menores e, consequentemente, os mecanismos de intervenção do Estado
relativamente aos jovens.

Neste sentido, Eliana Gersão (1997: 150) afirma que a Lei Tutelar
Educativa rompeu profundamente, do ponto de vista processual, com o
estabelecido na Organização Tutelar de Menores, que previa um processo
muito desformalizado, privando os jovens de garantias fundamentais, o que era

92
Norberto Martins chama a atenção para a importância do Direito dos Menores, uma vez que
estes são “(...) os verdadeiros actores sociais (...) cuja protecção deve ser sinónimo de
promoção dos seus direitos individuais, económicos e culturais (...)” (2002: 175).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 155

incompatível com os princípios de um Estado de Direito Democrático e com os


textos internacionais ratificados pelo Estado Português.

Segundo Souto Moura, o novo sistema tutelar educativo pretendia ser


uma terceira via entre o anterior modelo de protecção vigente em Portugal e o
modelo de justiça que se desenvolveu nos anos oitenta e “(...) tenta conciliar
um princípio incontornável de subtracção do menor ao sistema penal dado, e
por aí se aproxima do «sistema de protecção», com uma disciplina mais
garantística do ponto de vista processual e com uma estratégia
responsabilizante, com o que cobra alguma similitude com o modelo de justiça
penal. Sistema «tutelar», porque atende aos imperativos de protecção da
infância e juventude a cargo do Estado, constitucionalmente consagrados.
Sistema «educativo», no sentido de que com ele se pretende conquistar o
jovem para o respeito pelas normas, prevenindo-se ulteriores infracções, assim
se jogando a própria segurança da comunidade” (2000: 114).

6. Princípios Constitucionais e a Lei Tutelar Educativa

A Constituição da República Portuguesa (CRP) de 1976 consagra


algumas normas de natureza programática relativas ao Direito da Família,
postulando a protecção da família como elemento fundamental da sociedade, e
ao Direito dos Menores.

Assim, a Constituição garante o direito de constituir família (cf. artigo 36.º)


e o direito das próprias famílias à protecção da sociedade e do Estado, bem
como à efectivação das condições propícias da realização pessoal dos seus
membros (cf. artigo 67.º).

Quanto ao Direito dos Menores, a CRP, no seu artigo 69.º, sob a epígrafe
“Infância”, estabelece que “as crianças têm direito à protecção da sociedade e
do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra
todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o
exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições” (n.º 1);
que “o Estado assegura especial protecção às crianças órfãs, abandonadas ou
156 Capítulo IV - O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

por qualquer forma privadas de um ambiente familiar normal” (n.º 2); e que “é
proibido, nos termos da lei o trabalho de menores em idade escolar” (n.º 3)93.

Assim, a norma mencionada consagra o direito das crianças à protecção,


visando o seu desenvolvimento integral, ou seja, a garantia da sua dignidade
como pessoa em formação, que impõe ao Estado e à sociedade uma
intervenção social, no sentido de realização, prestação e concretização de
diversos deveres e actividades (Canotilho e Moreira, 1993: 354 e ss.).

Esta ideia de protecção de crianças e jovens consagrada pelo legislador


constituinte foi reconhecida pela Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º
266/VII, de 11 de Março de 1999, nos termos da qual aquela “justifica-se
quando o gozo ou o exercício de direitos cívicos, sociais, económicos ou
culturais do menor são ameaçados por factores que lhe são exteriores (incúria,
exclusão social, abandono ou mais tratos)” (apud Moura, 2000: 97 e 98).

7. O Regime Jurídico da Lei Tutelar Educativa: Breve descrição

7. 1. A entrada em vigor do novo regime

A Lei Tutelar Educativa, aprovada pela Lei n.º 166/99, de 14 de Setembro,


possuiu um período de vacatio legis superior a um ano, tendo entrado em vigor
apenas em 1 de Janeiro de 2001.

O diploma legal mencionado foi dotado de aplicabilidade imediata,


ressalvando, no entanto, por um lado, a validade dos actos realizados na
vigência da lei anterior e, por outro, as situações em que da aplicação de
disposições processuais constantes da lei nova pudesse “resultar quebra de
harmonia e unidade dos vários actos do processo” (artigo 2.º, n.ºs 1 e 2).

O procedimento a adoptar por forma a dar cumprimento à aplicabilidade


imediata da Lei Tutelar Educativa encontra-se consagrado nos n.ºs 3 a 5, e 8 a
10 do artigo 2.º da Lei n.º 166/99. Assim, com a entrada em vigor da Lei Tutelar

93
Sobre a questão da compatibilização dos direitos constitucionalmente consagrados ver Souto
Moura, 2000: 107 e ss.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 157

Educativa, os processos tutelares que se encontrassem pendentes naquele


momento que tivessem por objecto a prática de facto qualificado pela lei penal
como crime, praticado por jovem com idade compreendida entre os 12 e os 16
anos, deveriam ser reclassificados como processos tutelares educativos pelas
secretarias dos diversos tribunais, com vista ao Ministério Público para a
eventual aplicação de medidas cíveis ou de protecção94 (cf. n.º 3 do artigo 2).
Os restantes processos tutelares deveriam ser reclassificados como processos
de promoção e protecção, passando a reger-se pela nova Lei de Protecção de
Crianças e Jovens em Perigo (cf. n.º 5 do artigo 2.º, da Lei nº 166/99, e n.º 3 do
artigo 2.º, da Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro).

Reclassificados os processos em tutelares educativos, as medidas aí


aplicadas deveriam ser revistas, quando formulado um juízo de necessidade
relativamente à generalidade das medidas ou obrigatoriamente no caso de
“medidas de internamento, bem como as situações de menores colocados para
observação ou acolhidos em instituições” (cf. n.º 4 do artigo 2.º, da Lei n.º
166/99).

Quanto às medidas tutelares já aplicadas em processos pendentes com


base na legislação anterior, o legislador equiparou a medida de colocação em
lar de semi-internato prevista na OTM à medida de internamento em Centro
Educativo em regime aberto e as medidas de colocação em instituto médico-
psicológico e de internamento em estabelecimento de reeducação previstas na
OTM à medida de internamento em Centro Educativo em regime semiaberto.

O legislador previu, ainda, que os processos pendentes em Tribunais que,


por força das novas regras de competência previstas na LTE, deixariam de ser
competentes, deveriam ser remetidos para o Tribunal territorialmente

94
Na reclassificação dos processos, a lei manda aplicar o disposto no artigo 43.º da LTE,
segundo o qual “em qualquer fase do processo tutelar educativo, nomeadamente em caso de
arquivamento, o Ministério Público: a) participa às autoridades competentes a situação do
menor que careça de protecção social; b) toma as iniciativas processuais que se justificarem
relativamente ao exercício ou ao suprimento do poder paternal; c) requer a aplicação de
medidas de protecção” (n.º 1). Em caso de urgência, as medidas de protecção “podem ser
decretadas provisoriamente no processo tutelar educativo, caducando se não forem
confirmadas em acção própria proposta no prazo de um mês” (n.º 2).
158 Capítulo IV - O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

competente, ou seja, para o Tribunal da residência do jovem no momento em


que fosse instaurado o processo para apreciação dos factos e aplicação da
medida tutelar (artigo 2.º, n.º 10, da Lei n.º 166/99, e 28.º, 29.º e 31.º da LTE).

Relativamente aos jovens com idades compreendidas entre os 12 e os 16


anos que tivessem praticados factos punidos pela lei como crime antes da
entrada em vigor da LTE, previu-se a possibilidade de aplicação das medidas
tutelares educativas previstas na LTE ou das medidas tutelares previstas na
OTM, com excepção da medida de colocação em instituto médico-psicológico95.

Uma outra preocupação do legislador foi estabelecer que, mesmo nesta


fase de transição, a medida a aplicar ao jovem - quer consagrada na
Organização Tutelar de Menores, quer consagrada na Lei Tutelar Educativa –,
seria aquela que, no caso concreto, se mostrasse mais favorável ao interesse
educativo do jovem. Para tal, o Tribunal teria de ter em consideração a
gravidade do facto praticado e a necessidade de educação do jovem para o
direito, que fora manifestada no momento da prática do acto e que subsistisse
no momento da decisão (artigo 2.º, n.º 7).

7. 2. O âmbito de aplicação

O legislador português consagrou um tratamento diferenciado consoante


a criança ou o jovem tenha 12, 16 ou 21 anos de idade, considerados como
“(...) marcos etários que originam reacções diversas, reacções que atendem ao
diferente desenvolvimento psicossomático da criança, do jovem e do
jovem-adulto. Traduz-se pois na lei o que é um dado empírico indiscutível: a
evolução da capacidade adaptativa do menor” (Moura: 2000, 102). Segundo
Souto Moura, o legislador português optou por “(...) atender à gradação da

95
As medidas tutelares previstas na Organização Tutelar Educativa eram as seguintes:
admoestação; entrega aos pais, tutor ou pessoa encarregada da sua guarda; imposição de
determinadas condutas ou deveres; acompanhamento educativo; colocação em família idónea;
colocação em estabelecimento oficial ou particular de educação; colocação em regime de
aprendizagem ou de trabalho junto de entidade oficial ou particular; submissão a regime de
assistência; colocação em lar de semi-internato; colocação em instituto médico-psicológico;
internamento em estabelecimento de reeducação (artigo 18.º da OTM).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 159

formação da personalidade do menor, recorrendo a medidas não penais mas


mesmo assim responsabilizantes.” (Moura, 2000: 106).

A Lei Tutelar Educativa é aplicada a todo e qualquer jovem com idade


compreendida entre os 12 e os 16 anos de idade, que pratique, em Portugal,
um facto qualificado pela lei como crime e passível de aplicação de medida
tutelar por lei anterior ao momento da sua prática (cf. artigo 1.º e 3.º da LTE)96.
Deste modo, a prática por um jovem de 15 anos de um facto qualificado, pela
lei, como contra-ordenação determina que não lhe seja aplicada a Lei Tutelar
Educativa97 98.

Pese embora a distinção entre crianças em perigo e jovens delinquentes,


o legislador não deixou de criar pontes de articulação entre as duas situações.
Assim, cabe ao Ministério Público participar às entidades competentes a
situação do jovem que careça de protecção social, bem como tomar as
medidas que se justifiquem relativamente ao exercício ou suprimento do poder
paternal e requerer a aplicação de medidas de protecção (artigo 43.º, n.º 1, da
LTE). Nesta última situação, e em caso de urgência, pode ser decretada
provisoriamente no processo tutelar uma medida de protecção, que caduca se
não for confirmada em acção própria proposta no prazo de 1 mês (artigo 43.º,
n.º 2, da LTE).

7. 3. As regras de competência

É ao Tribunal de Família e Menores que compete “a prática de actos


jurisdicionais relativos ao inquérito”; “a apreciação de factos qualificados pela

96
Estes jovens são, nos termos do disposto no artigo 19.º do Código Penal, considerados
inimputáveis para efeitos criminais. Os jovens com idades compreendidas entre os 16 e os 21
anos que pratiquem factos qualificados pela lei penal como crime ficam sujeitos ao regime
especial dos jovens adultos, previsto no Decreto Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro.
97
Este é o caso, designadamente, do consumo de estupefacientes e de substâncias
psicotrópicas. A LTE previa, no artigo 78.º, n.º 2, o arquivamento liminar se o facto qualificado
como crime fosse de consumo de estupefacientes. No entanto, com a descriminalização
superveniente deste tipo de ilícito, aquela norma deixou de fazer sentido.
98
No âmbito da legislação anterior, as medidas tutelares eram aplicadas a jovens agentes, não
só de algum facto qualificado pela lei como crime, mas também como contravenção (cf. artigo
13.º, al. c), da OTM).
160 Capítulo IV - O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

lei como crime, praticados por menor com idade compreendida entre os 12 e os
16 anos, com vista à aplicação de medida tutelar”; “a execução e a revisão das
medidas tutelares”; e “declarar a cessação ou a extinção das medidas
tutelares” (artigo 28.º, n.º 1, da LTE). Esta competência cessa sempre que ao
jovem for aplicada uma pena de prisão efectiva ou quando o jovem completar
18 anos de idade antes da data da decisão em primeira instância. Nestes caso,
quando já haja um processo a correr, o mesmo é arquivado (cf. artigo 28.º, n.º
2 e 3, da LTE).

Mapa IV.1
Localização dos Tribunais de Família e Menores

Fonte: OPJ
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 161

Conforme se pode ver pelo Mapa IV.199, presentemente existem 18


tribunais de família e menores em Aveiro, Barreiro, Braga, Cascais, Coimbra,
Faro, Funchal, Lisboa, Loures, Matosinhos, Ponta Delgada, Portimão, Porto,
Setúbal, Seixal, Sintra, Vila Franca de Xira, Vila Nova de Gaia. A maioria
destes tribunais tem competência na área do respectivo círculo judicial100.

Fora das áreas abrangidas pela jurisdição dos tribunais de família e


menores, aquela competência cabe aos tribunais de comarca, que se
constituirão em Tribunal de Família e Menores (artigo 29.º, n.s 1 e 2).

O Tribunal da residência do jovem no momento em que for instaurado o


processo tutelar é o competente para apreciação dos factos e aplicação e
execução da medida tutelar, sendo irrelevantes as modificações
supervenientes ao momento da instauração do processo (artigo 31.º, n.º 1, e
32.º da LTE)101. Porém, compete ao Tribunal do local da prática do facto
ordenar a realização das diligências urgentes, bem como a realização das
diligências probatórias que entenda como necessárias naquele momento,
independentemente de ser ou não o Tribunal competente. Do mesmo modo o
Tribunal do local onde o jovem for encontrado pode ordenar a realização de
todas as diligências que entenda urgentes (artigo 33.º da LTE).

99
O Mapa IV.1 não contem a representação da competencia territorial dos Tribunais de Família
e Menores do Funchal e de Ponta Delgada por, de momento, não termos tido acesso aos
ficheiros vectoriais cartograficos dos arquipélagos da Madeira e dos Açores.
100
Com excepção dos tribunais de família e menores de Cascais, com competência nos
círculos judiciais de Cascais e Oeiras; de Faro, com competência no círculo judicial e na
comarca de Loulé; do Funchal, com competência somente na área da respectiva comarca; de
Lisboa, com jurisdição nas comarcas de Amadora e de Lisboa; de Ponta Delgada, com
jurisdição nas comarcas de Lagoa, Ponta Delgada, Ribeira Grande e Vila Franca do Campo; de
Portimão, com competência no círculo judicial e comarca de Albufeira; do Porto, com
competência nas comarcas de Gondomar, Maia, Porto e Valongo; e do Seixal, com
competência para o círculo judicial de Almada (cfr. Mapa VI anexo ao Decreto-Lei n.º 186-A/99,
de 31 de Maio, sucessivamente alterado pelos Decreto-Leis n.ºs 27-B/2000, de 3 de Março,
178/2000, de 9 de Agosto, 332/2000, de 30 de Dezembro, 246-A/2001, de 14 de Setembro,
148/2004, de 21 de Junho, e 219/2004, de 26 de Outubro).
101
No caso de ser desconhecida a residência do jovem, o Tribunal competente é, conforme as
situações,ou o da residência dos titulares do poder paternal, ou da pessoa à guarda de quem o
jovem estiver confiado, ou da pessoa com quem resida. Nas situações em que não seja
possível determinar nenhum daqueles casos, o Tribunal competente é o do local da prática do
facto ou, caso este não esteja determinado, do local onde o jovem for encontrado (cf. artigo
31.º, n.º 2 a 4, da LTE).
162 Capítulo IV - O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

O Tribunal competente para a execução das medidas tutelares é o


Tribunal que as aplicou (artigo 38.º da LTE).

7. 4. As regras de conexão de processos

A Lei Tutelar Educativa consagrou, como regra, a organização de um


processo único por cada jovem, relativamente a tantos factos quanto os que
haja notícia, independente do lugar da sua prática, desde que se encontrem
simultaneamente na mesma fase processual (fase de inquérito, fase
jurisdicional ou fase de execução) (artigo 34.º da LTE).

No entanto, nos casos em que vários jovens tenham cometido um ou


diversos factos, em comparticipação ou que tenham entre si uma relação de
causa ou efeito uns dos outros, ou destinando-se uns a continuar ou a ocultar
os outros, o legislador optou pela organização de um só processo
relativamente aos vários jovens, desde que, também aqui, estejam na mesma
fase processual (artigo 35.º da LTE).

Contudo, quando razões de celeridade e de protecção do interesse do


jovem o exijam, a autoridade judiciária pode determinar a separação dos
processos (artigo 36.º da LTE). Nos casos em que não seja possível a
organização de um único processo relativo a um jovem, após o trânsito em
julgado da decisão, os processos são apensados àquele cuja decisão tenha
transitado em primeiro lugar (artigo 37.º, n.º 2, da LTE).

Por último, o legislador determina, ainda, a apensação dos processos,


quando os jovens forem irmãos ou estiverem sujeitos à guarda de facto da
mesma pessoa (artigo 37.º, n.º 1, da LTE).

7. 5. As medidas cautelares

Em qualquer fase do processo tutelar educativo podem ser aplicadas


medidas cautelares, com o objectivo de prevenir a fuga do jovem ou o
cometimento, por aquele, de novos factos qualificados pela lei como crime. A
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 163

aplicação de uma medida cautelar exige o preenchimento cumulativo dos


seguintes pressupostos: “a existência de indícios do facto”; “a previsibilidade de
aplicação de medida tutelar”; e “a existência fundada de perigo de fuga ou de
cometimento de outros facto qualificados pela lei como crime” (artigo 58.º, n.º 1,
da LTE).

As medidas cautelares estão taxativamente previstas na Lei Tutelar


Educativa, podendo consistir na “entrega do menor aos pais, representante
legal, pessoa que tenha a sua guarda de facto ou outra pessoa idónea, com
imposição de obrigações ao menor”, na “guarda do menor em instituição
pública ou privada”, ou na “guarda em Centro Educativo” (artigo 57.º, da LTE).
Assim, requerida a aplicação de uma medida tutelar pelo Ministério Público na
fase de inquérito, ou oficiosamente pelo juiz na fase jurisdicional, cumpridos os
pressupostos para a sua aplicação, o Tribunal, ouvido o Ministério Público, o
defensor do jovem e, sempre que possível, o representante do jovem,
determina a aplicação daquela que, em concreto, se mostre mais adequada às
“exigências preventivas ou processuais que o caso requer” e seja
proporcionada “à gravidade do facto e às medidas tutelares aplicáveis” (artigos
56.º e 59.º da LTE).

No que respeita à medida cautelar de guarda em Centro Educativo, para


além da obediência ao princípio da proporcionalidade e da adequabilidade, e
da necessidade de verificação dos pressupostos gerais de aplicação das
medidas cautelares, o legislador exigiu a verificação de um pressuposto
adicional. O Tribunal só poderá optar pela sua determinação quando o haja
indícios suficientes que o jovem tenha cometido facto qualificado como crime a
que corresponda pena máxima, abstractamente aplicável, de prisão superior a
cinco anos ou que tenha cometido dois ou mais facto qualificados como crimes
contra as pessoas a que corresponda pena máxima abstractamente aplicável
superior a três anos, devendo a medida cautelar ser executada em Centro
Educativo semiaberto quando o jovem tenha menos de 14 anos ou em regime
semiaberto ou fechado quando o jovem tenha idade igual ou superior a 14 anos
(artigo 58.º, n.º 2 e 3, da LTE).
164 Capítulo IV - O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

O prazo máximo desta medida é de três meses, prorrogável por mais três
meses em casos de especial complexidade, devidamente fundamentados
(artigo 60.º, n.º 1, da LTE). Nos restantes casos, o prazo de duração é de seis
meses até à decisão do Tribunal de primeira instância e de um ano até ao
trânsito em julgado da decisão (artigo 60.º, n.º 2, da LTE).

A medida cautelar aplicada é, oficiosamente, revista de dois em dois


meses, podendo o juiz, oficiosamente ou a requerimento, substitui-la se
concluir que a mesma não está a realizar as finalidades para que foi aplicada e
cessando assim que se deixarem de verificar os pressupostos da sua aplicação
(artigos 61.º e 62.º da LTE).

7. 6. As medidas tutelares educativas

Por força do princípio da legalidade consagrado na Lei Tutelar Educativa,


o legislador indicou, de forma expressa e taxativa, as medidas tutelares
educativas que podem ser aplicadas. Para tal, distinguiu medidas não
institucionais – admoestação; privação do direito de conduzir ciclomotores ou
de obter permissão para conduzir ciclomotores; reparação ao ofendido;
realização de prestações económicos ou de tarefas a favor da comunidade;
imposição de regras de conduta; imposição de obrigações; frequência de
programas formativos; acompanhamento educativo; da medida institucional –
internamento em Centro Educativo102. A execução da medida de internamento
em Centro Educativo é aplicada segundo um dos seguintes regimes de
execução: regime aberto103; regime semiaberto104; regime fechado105 (artigo 4.º
da LTE).

102
O artigo 18.º do Decreto Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro (OTM), consagrava as seguintes
medidas tutelares: admoestação, entrega aos pais, tutor ou pessoa encarregada da sua
guarda; imposição de determinadas condutas ou deveres; acompanhamento educativo;
colocação em família idónea; colocação em estabelecimento oficial ou particular de educação;
colocação em regime de aprendizagem ou de trabalho junto de entidade oficial ou particular;
submissão a regime de assistência; colocação em lar de semi-internato; colocação em instituto
médico-psicológico; internamento em estabelecimento de re-educação.
103
Nas medidas de internamento em regime aberto, os jovens, apesar de residirem e serem
educados dentro do Centro Educativo, frequentam no exterior as actividades previstas no seu
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 165

Quanto às medidas não institucionais, a admoestação é a sanção mais


leve e consiste na repreensão solene feita pelo juiz ao jovem. Nessa
advertência, o juiz exprimirá o carácter ilícito da conduta do jovem, bem como o
seu desvalor e consequências, “exortando-o a adequar o seu comportamento
às normas e valores jurídicos e a inserir-se, de forma digna e responsável, na
vida em comunidade” (artigo 9.º da LTE).

A medida de privação do direito de conduzir (ou seja, cassação da


licença) ciclomotores ou de obter permissão para conduzir (isto é, proibição de
obter tal licença) ciclomotores pode ser aplicada por um período mínimo de 1
mês e máximo de 1 ano (artigo 10.º da LTE)106.

A medida tutelar de reparação ao ofendido pode revestir uma das


seguintes modalidades: apresentação de desculpas ao ofendido; compensação
económica do ofendido, totalmente ou parcialmente, pelo dano patrimonial que
sofreu; realização, em benefício do ofendido, de uma actividade que se ligue
com o dano, sempre que for possível e adequado (artigo 11.º, n.º 1, da LTE).

A lei regula a forma de realizar cada uma das modalidades. Assim, a


apresentação de desculpas ao ofendido, que consiste na expressão de pesar
pelo facto, pode ser realizada através da “manifestação, na presença do juiz e
do ofendido, do propósito de não repetir factos análogos” ou “satisfação moral
ao ofendido, mediante acto que simbolicamente traduza arrependimento”
(artigo 11.º, n.º 2, da LTE). A segunda modalidade – compensação económica
do ofendido – pode ser efectuada através do pagamento de uma quantia

projecto educativo pessoal. Podem, ainda, ser autorizados a sair dos centros educativos e a
passar períodos de férias ou fins-de-semana com os seus pais ou representante legal (artigo
167.º da LTE).
104
Nas medidas de internamento em regime semiaberto, os jovens, para além de residirem e
serem educados dentro do centro, desenvolvem as suas actividades também dentro do Centro
Educativo. No entanto, podem ser autorizados a desenvolver certas actividades fora do centro,
normalmente acompanhados por pessoal de intervenção educativa. Podem ainda ser
autorizados a passar fins-de-semana e períodos de férias com os seus pais ou representantes
(artigo 168.º da LTE).
105
A medida de internamento em regime fechado exclui, em regra, qualquer possibilidade de
saída do Centro Educativo, com excepção das estritamente necessárias para cumprimento de
obrigações judiciais, para satisfação de necessidades de saúde ou por outros motivos
ponderosos, sempre sob acompanhamento (artigo 169.º da LTE).
106
Esta medida tutelar não institucional pode ser cumulada com outra medida tutelar educativa
(artigo 19.º, n.º 2, da LTE).
166 Capítulo IV - O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

pecuniária em prestações. Para todos os efeitos, apenas pode ser considerada,


para fixação do montante compensatório e para o montante das prestações, a
capacidade disponibilidade económica do jovem (artigo 11.º, n.º 3, da LTE). A
terceira modalidade não pode exceder dois dias por semana e três horas por
dia, devendo respeitar sempre o período de repouso e de frequência escolar do
jovem, bem como de outras actividades que o Tribunal entenda relevantes para
a formação da sua personalidade. Esta medida não pode exceder doze horas,
distribuídas, no máximo, durante quatro semanas (artigo 11.º, n.º 4 e 5, da
LTE). As segunda e terceira modalidades exigem sempre o consentimento do
ofendido (artigo 11.º, n.º 6, da LTE).

A medida tutelar de prestações económicas ou tarefas a favor da


comunidade concretiza-se na entrega, pelo jovem, de uma determinada quantia
pecuniária ou no exercício de uma actividade a favor de uma entidade, pública
ou privada, de fim não lucrativo, não podendo tal tarefa, contudo, exceder um
total de sessenta horas, distribuídas por um período máximo de três meses.
Também no que diz respeito a esta medida tutelar educativa o montante
pecuniário pode ser pago em prestações, atendendo sempre à disponibilidade
financeira do jovem, e as tarefas têm de respeitar, por exemplo, o período de
repouso do jovem, bem como a frequência da escola e de outras actividades
de formação que o Tribunal considere importantes (artigo 12.º da LTE).

Se for aplicada medida de realização de prestações económicas ou


tarefas a favor da comunidade, o Tribunal fixa, na sua decisão, a modalidade
da medida, o montante e a forma de prestação ou a actividade, a sua duração
e forma de prestação; a entidade que acompanha a execução da medida ou a
entidade a quem deve ser prestada a medida tutelar. O Tribunal pode, no
entanto, deferir ao Instituto de Reinserção Social a definição da forma de
prestação da actividade (artigo 20.º da LTE).

A medida de imposição de regras de conduta visa criar ou fortalecer as


condições para que o jovem se comporte de forma adequada às normas e
valores essenciais da vida em comunidade. A lei enuncia algumas regras de
conduta que o Tribunal pode impor, a saber: “não frequentar certos meios,
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 167

locais ou espectáculos”; “não acompanhar determinadas pessoas”; “não


consumir bebidas alcoólicas”; “não frequentar certos grupos ou associações”;
“não ter em seu poder certos objectos". Estas regras podem ser aplicadas por
um período máximo de dois anos, não podendo representar uma limitação
abusiva ou não razoável da autonomia de decisão e de condução de vida do
jovem (artigo 13.º da LTE).

A medida tutelar de imposição de obrigações visa o fomento do


aproveitamento escolar ou de formação profissional do jovem, bem como o
fortalecimento das condições psicobiológicas necessárias ao desenvolvimento
da sua personalidade, tendo a duração máxima de dois anos. Esta medida
pode consistir na imposição ao jovem de alguma das seguintes obrigações:
frequência de um estabelecimento de ensino, com controlo de assiduidade e
aproveitamento; frequência de um centro de formação profissional ou de uma
formação profissional; frequência de sessões de orientação em instituição
psicopedagógica e seguimento das orientações prescritas; frequência de
actividades de clubes ou associações juvenis; submissão a programas médicos
(por exemplo, médico-psiquiátricos), em instituição particular ou oficial, em
regime de internamento ou ambulatório. Estes programas direccionam-se,
nomeadamente, para o tratamento de casos de habituação alcoólica, consumo
habitual de estupefacientes, doença infecto-contagiosa ou sexualmente
transmissível ou anomalia psíquica, exigindo o consentimento do jovem,
quando tenha mais de 14 anos e idade (artigo 14.º da LTE).

A medida de frequência de programas formativos que se consubstancia


na participação do jovem em programas de ocupação de tempos livres, de
educação sexual, de educação rodoviária, de orientação psicopedagógica, de
despiste e orientação profissional, de aquisição de competências pessoais e
sociais, ou em programas desportivos. A duração máxima desta medida é de
seis meses, excepto quando o programa tenha uma duração maior, que não
pode, exceder, contudo, o máximo de um ano. Se o Tribunal considerar
relevante para a execução da medida pode, a título excepcional, decidir que o
168 Capítulo IV - O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

jovem resida junto de pessoa idónea ou em instituição em regime aberto107, que


lhe forneça “o alojamento necessário para a frequência do programa” (artigo
15.º da LTE).

O acompanhamento educativo, por seu turno, concretiza-se na execução


de um projecto educativo pessoal (PEP), elaborado pelos serviços de
reinserção social e homologado pelo juiz, que abranja as áreas de intervenção
fixadas pelo Tribunal e tem a duração mínima de três meses e máxima de dois
anos (artigo 16.º, n.ºs 1, 3 e 5, da LTE). Segundo o disposto no artigo 16.º, n.º
2, da LTE, “o Tribunal pode impor ao menor sujeito a acompanhamento
educativo regras de conduta ou obrigações, bem como a frequência de
programas formativos”.

No que diz respeito à medida institucional – a medida de internamento –


consiste no afastamento temporário do jovem do seu meio habitual e na
utilização de programas e métodos pedagógicos, de forma a proporcionar ao
jovem “a interiorização de valores conformes ao direito e a aquisição de
recursos que lhe permitam, no futuro, conduzir a sua vida de modo social e
juridicamente responsável”. Esta medida é executada em Centro Educativo
próprio, de acordo com o regime de funcionamento e grau de abertura ao
exterior (artigo 17.º, n.º 1 e 2, da LTE).

Ao contrário das demais medidas tutelares previstas na Lei Tutelar


Educativa, as medidas de internamento em Centro Educativo em regime
semiaberto ou fechado possuem o seu âmbito de aplicação delimitado à prática
de determinado(s) facto(s) e, naquele último caso, pela idade do jovem. Assim,
a medida de internamento em regime semiaberto é aplicável ao jovem que
tenha praticado um “facto qualificado como crime contra as pessoas a que
corresponda pena máxima, abstractamente aplicável, de prisão superior a três
anos” ou que tenha “cometido dois ou mais factos qualificados como crimes a
que corresponda a pena máxima, abstractamente aplicável, superior a três
anos” (artigo 17.º, n.º 3, da LTE). Por seu lado, a medida de internamento em

107
Esta instituição não pode ser dependente do Ministério da Justiça.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 169

regime fechado só é aplicável quando cumulativamente se encontrem


preenchidos o seguintes pressupostos: “ter o menor cometido facto qualificado
como crime, a que corresponda pena máxima, abstractamente aplicável, de
prisão superior a cinco anos, ou ter cometido dois ou mais factos contra as
pessoas qualificados como crimes a que corresponda a pena máxima,
abstractamente aplicável, de prisão superior a três anos”; e “ter o menor idade
superior a 14 anos de idade à data da aplicação da medida” (artigo 17.º, n.º 4,
da LTE).

A Lei Tutelar Educativa fixou ainda a duração mínima e máxima das


medidas de internamento, fixando-a, no que diz respeito à medida de
internamento em regime aberto e semiaberto entre os três meses e os dois
anos, e no que respeita à medida de internamento em regime fechado, entre os
seis meses e os dois anos, podendo atingir os três anos de duração máxima,
quando o jovem tenha praticado um facto qualificado como crime, a que
corresponda a pena máxima abstractamente aplicável superior a oito anos, ou
tenha cometido dois ou mais crimes contra as pessoas a que corresponda a
pena máxima abstractamente aplicável superior a cinco anos (artigo 18.º da
LTE).

Com a entrada em vigor da Lei Tutelar Educativa passou a vigorar o


princípio da duração determinada das medidas tutelares, ao contrário do que
ocorria no regime anterior, dado que no âmbito da Organização Tutelar de
Menores vigorava o princípio da duração relativamente indeterminada das
medidas tutelares de protecção. No que diz especificamente respeito à medida
de internamento em Centro Educativo, a determinação da medida
concretamente aplicável encontra outra baliza, para além do princípio da
proporcionalidade – o da limitação da duração da medida de internamento em
Centro Educativo ao limite máximo da pena de prisão prevista para o crime
correspondente ao facto (artigo 7.º da LTE).
170 Capítulo IV - O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

7. 7. O Processo Tutelar Educativo: suas fases

Como se defende na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º


266/VII, “a primeira nota que ressalta do modelo [processual] adoptado é a sua
semelhança com o processo penal”, servindo o processo penal “de fonte ao
processo tutelar por constituir um ordenamento que realiza de forma
particularmente activa as garantias constitucionais da pessoa em face de
pretensões de intervenção do Estado na esfera dos direitos fundamentais”108.

O processo tutelar educativo é, assim, à semelhança do processo penal,


constituído por duas fases ou momentos principais109, que, nas palavras de
Eliana Gersão, se pautam por “um grau máximo de informalidade, consenso e
discrição” (1997: 150).

A primeira fase – a fase de inquérito –, dirigida pelo Ministério Público110,


inicia-se, por determinação daquele, com a notícia do facto111. Nesta fase,
incumbe ao Ministério Público, assistido por órgãos de polícia criminal e por
serviços de reinserção social, investigar a prática do facto e determinar a
necessidade de educação do jovem para o direito, visando a decisão sobre a
aplicação de medida tutelar (artigo 75.º, n.º 2, da Lei Tutelar Educativa). Esta
fase deverá ter a duração máxima de três meses, prorrogáveis por mais três,
em casos de especial complexidade (cf. artigo 75.º, n.º 3, da LTE). A fase de
inquérito é encerrada pelo Ministério Público com o arquivamento ou com um
requerimento de abertura de fase jurisdicional, quando se entenda que o
processo deve prosseguir (artigos 86.º e 89.º da LTE).

108
Rui do Carmo Fernando indica, no âmbito do inquérito, algumas diferenças e
especificidades relativamente ao processo penal: a prova; o reforço do princípio da imediação
(nomeadamente através da presença obrigatória do juiz), a cooperação das entidades de
mediação (a elaboração e execução do plano de conduta do jovem), a existência de uma
ampla fase de contraditório (relativamente aos factos e à personalidade do jovem) (2000: 126 e
ss.).
Outro elemento relevante consiste no facto de o processo ser secreto até ao despacho que
designar data para audiência (artigo 41.º).
109
Como diferença fundamental de estrutura entre o processo penal e o processo tutelar
educativo destaca-se, desde logo, a ausência, neste último, da fase facultativa de instrução.
110
Artigo 40.º, n.º 1, al. a), da LTE.
111
Artigo 74.º da LTE.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 171

A segunda fase – a fase jurisdicional – é dirigida pelo juiz e compreende a


comprovação judicial dos factos, a avaliação da necessidade de aplicação de
medida tutelar, a determinação da medida tutelar e a sua execução (artigo 92.º
da LTE).

Por último, o processo tutelar educativo pode comportar uma facultativa


fase – a fase de recurso – e uma fase eventual – a fase de execução da
medida tutelar –, caso haja lugar à aplicação de uma medida tutelar educativa.

7. 7. 1. A fase de inquérito

Como se referiu supra, o processo tutelar educativo inicia-se com a


abertura de inquérito, logo que o Ministério Público tenha notícia do facto. A
denúncia pode ser realizada por qualquer pessoa, ao Ministério Público ou a
um órgão de polícia criminal112, sem que haja lugar a qualquer formalismo,
devendo, se possível, indicar os meios de prova (artigo 72.º, n.º 1 e 3, da LTE).
Contudo, relativamente a factos qualificados como crime cujo procedimento
dependa de queixa ou acusação particular, só tem legitimidade para apresentar
a denúncia o ofendido (artigo 72.º, n.º 2, da LTE)113.

Fora daqueles casos, a denúncia é obrigatória para os órgãos de polícia


criminal e para os funcionários públicos, estes últimos relativamente a factos
que tenham tido conhecimento no exercício das suas funções (artigo 73.º, n.º 1,
da LTE).

As denúncias apresentadas aos órgãos de polícia criminal deverão ser


acompanhadas dos dados disponíveis sobre a conduta do jovem e a sua
situação familiar, educativa e social (artigo 73.º, n.º 2, da LTE).

Durante o inquérito, o Ministério Público pode pedir a colaboração dos


órgãos de polícia criminal – em especial quanto aos factos – e dos serviços de

112
Segundo o disposto no artigo 72.º, n.º 4, da LTE, “a denúncia apresentada a órgão de
polícia criminal é transmitida, no mais curto prazo, ao Ministério Público”.
113
Nos termos do artigo 113.º, n.º 1, do Código Penal, considera-se ofendido “o titular dos
interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”.
172 Capítulo IV - O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

reinserção social – quanto à conduta, personalidade e inserção familiar,


educativa e sócio-económica do jovem (artigo 75.º, n.º 1 e 3, da LTE)114. A
solicitação de qualquer tipo de informação pode, também, ser feita a quaisquer
serviços públicos ou privados (artigo 76.º da LTE).

O artigo 77.º, n.º 1, da Lei Tutelar Educativa estabelece que após a


abertura do inquérito, o Ministério Público deve ouvir o jovem, no mais curto
espaço de tempo. Contudo, o n.º 2 deste dispositivo legal esclarece que a
audição do jovem “(...) pode ser dispensada quando for caso de arquivamento
liminar e pode ser adiada no interesse do menor”.

A audição do jovem, no actual regime jurídico, apenas pode ocorrer


perante autoridade judiciária, podendo ser designado um técnico que o
acompanhe e lhe dê o adequado apoio psicológico (artigo 47.º da LTE). A
audição perante autoridade judiciária é erigida em direito do jovem, figurando
entre o catálogo, meramente exemplificativo, de direitos constante do artigo
45.º da LTE. Outro dos direitos do jovem – contrariamente ao previsto na
Organização Tutelar de Menores – é ser assistido por defensor em todos os
seus actos processuais (artigo 45.º, n.º 2, al. e), da LTE).

A Lei Tutelar Educativa conferiu grande relevo à assistência jurídica do


jovem, prevendo não só a possibilidade de o jovem, os seus pais,
representantes legais ou pessoa que tenha a sua guarda de facto constituírem
advogado ou requererem a nomeação de defensor a todo o tempo, como
impôs a obrigatoriedade de nomeação de defensor, no caso de ainda não ter
sido constituído nenhum, pela autoridade judiciária “no despacho que

114
Segundo o disposto no artigo 75.º, n.º 3, a assistência dos serviços de reinserção social ao
Ministério Público durante a fase de inquérito tem por objecto a realização de informação e
relatório social, que constituem meios de obtenção da prova. Nos termos do artigo 71.º da LTE,
tanto a informação como o relatório social “têm por finalidade auxiliar a autoridade judiciária no
conhecimento da personalidade do jovem, incluída a sua conduta e inserção sócio-económica,
educativa e familiar” (artigo 71.º, n.º 2, da LTE). Aquela é solicitada quer aos serviços de
reinserção social quer a outros serviços públicos ou privados, “devendo ser apresentada no
prazo de 15 dias” (artigo 71.º, n.º 3, da LTE). O relatório social, por outro lado, é solicitado aos
serviços de reinserção social, “devendo ser apresentado no prazo máximo de 30 dias”,
podendo “solicitar-se a sua actualização ou informação complementar e ouvir-se, em
esclarecimentos e sem ajuramentação, os técnicos que o subscreveram” (artigo 71.º, n.º 4, da
LTE).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 173

determine a audição ou detenção do menor” (artigo 46.º, n.º 1 e 2, da LTE). O


defensor do jovem deverá ainda ser, sempre que possível, advogado, e no
caso de ser nomeado, a escolha “deve recair preferencialmente entre
advogados com formação especializada, segundo lista a elaborar pela Ordem
dos Advogados” (artigo 46.º, n.ºs 3 e 4, da LTE).

Para além da audição do jovem – acto obrigatório, salvo nas situações


acima identificadas – o Ministério Público, na fase de inquérito, deverá
promover todas as diligências que tiver por convenientes de forma a prover às
finalidades do processo, definindo, de acordo com critérios de conveniência, a
ordem dos actos de inquérito e indeferindo os “(...) actos que não interessem à
finalidade do inquérito ou sirvam apenas para protelar o andamento do
processo” (artigo 80.º da LTE).

Um dos actos de inquérito facultativos é a sessão conjunta de prova, que


“tem por objectivo examinar contraditoriamente os indícios recolhidos e as
circunstâncias relativas à personalidade do menor e à sua inserção familiar,
educativa e social, com a finalidade de fundamentar a suspensão do processo
ou o despacho final” (artigo 81.º da LTE).

A sessão conjunta de prova realizar-se-á com a presença obrigatória do


jovem e dos seus pais, representante legal ou quem tenha a sua guarda de
facto, podendo o Ministério Público determinar que o ofendido, os técnicos de
serviço social e de reinserção social, bem como outras pessoas, possam
também estar presentes, quando tal se mostre pertinente para as finalidades
do acto (artigo 82.º da LTE).

O Ministério Público pode, na fase de inquérito, suspender o processo,


quando se mostrem preenchidos quatro requisitos: a necessidade de medida
tutelar; que o facto qualificado pela lei como crime que seja punível com pena
de prisão não superior a cinco anos; apresentação pelo jovem de um plano de
conduta; e que o plano de conduta evidencie a vontade de evitar, no futuro, a
prática de factos qualificados pela lei como crime (artigo 84.º, n.º 1, da LTE).

O legislador indicou, de forma exemplificativa, em que pode consistir o


plano de conduta: “a) na apresentação de desculpas ao ofendido; b) no
174 Capítulo IV - O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

ressarcimento, efectivo ou simbólico, total ou parcial, do dano, com dispêndio


de dinheiro de bolso ou com a prestação de uma actividade a favor do ofendido
(...); c) na consecução de certos objectivos de formação pessoal nas áreas
escolar, profissional ou de ocupação de tempos livres; d) na execução de
prestações económicas ou tarefas a favor da comunidade (...); e) na não
frequência de determinados lugares ou no afastamento de certas redes de
companhia” (artigo 84.º, n.º 4, da LTE).

O plano de conduta a apresentar pelo jovem pode ser elaborado em


cooperação com os serviços de mediação, podendo estes colaborar ainda na
sua execução (artigo 84.º, n.º 3, da LTE).

A suspensão do processo tem a duração máxima de um ano (artigo 84.º,


n.º 6, da LTE). Se durante o período de execução o jovem cumprir o plano de
conduta, o processo é arquivado. Se, pelo contrário, o plano não for cumprido o
Ministério Público determina o prosseguimento dos autos, com a promoção das
diligências a que houver lugar. É determinado o prosseguimento dos autos,
ainda, nos casos em que seja recebida denúncia, durante o período de
suspensão, da prática de facto qualificado como crime pela lei. Nestes casos, a
denúncia é junta aos autos e o inquérito prossegue, alargando-se o seu objecto
aos factos novos (artigo 85.º da LTE).

A fase de inquérito termina com um despacho de arquivamento ou com


um requerimento de abertura de fase jurisdicional (artigo 86.º da LTE).

O Ministério Público pode pôr termo ao processo tutelar na fase do


inquérito, através do arquivamento liminar, nos casos de crimes de pequena
gravidade – puníveis com pena de prisão de máximo não superior a 1 ano – e
quando se mostrar, perante informação sobre a conduta anterior do jovem e a
sua situação sócio-educativa e familiar, “desnecessária a aplicação de medida
tutelar face à reduzida gravidade dos factos, à conduta anterior e posterior do
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 175

menor e à sua inserção familiar, educativa e social”115 (artigo 78.º, n.º 1, da


LTE).

Para além do arquivamento liminar, que pode ser determinado antes


mesmo da audição do jovem, prescindindo-se dela com base nas informações
recolhidas sobre o jovem, o Ministério Público arquiva o inquérito nos seguintes
casos: quando conclua pela inexistência do facto; pela insuficiência de indícios
da prática do facto; ou quando conclua pela desnecessidade de aplicação de
medida tutelar, desde que o facto qualificado como crime seja punível com
pena de prisão de máximo não superior a três anos (artigo 87.º, n.º 1, da LTE).

Como se referiu supra, o processo tutelar educativo não prevê uma fase
semelhante à fase de instrução no processo penal. No entanto, à semelhança
daquele direito adjectivo, prevê a possibilidade de intervenção do superior
hierárquico do Ministério Público, no sentido de, “no prazo de 30 dias contado
da notificação do despacho de arquivamento, determinar o prosseguimento
dos autos, indicando as diligências ou a sequência a observar” (artigo 88.º da
LTE). Como referem Anabela Rodrigues e Duarte-Fonseca “este preceito
introduz um meio de reapreciação hierárquica (...). A hierarquia pode
determinar que as investigações prossigam – indicando as diligências a
efectuar – ou determinar que o Ministério Público formule o requerimento para
abertura da fase jurisdicional” (2000: 204).

Fora daqueles casos de arquivamento do inquérito, o Ministério Público


deve determinar o prosseguimento do processo, requerendo abertura da fase
jurisdicional (artigo 89.º da LTE). Para tal, deve apresentar requerimento que
contenha, nomeadamente, os seguintes elementos: a identificação do jovem; a

115
Antes da descriminalização do consumo, aquisição e detenção de estupefacientes para
consumo próprio operada pela Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, que entrou em vigor em 1
de Julho de 2001, a LTE previa que se o facto qualificado pela lei como crime fosse de
consumo de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, o Ministério Público deveria arquivar
liminarmente o processo (artigo 78.º, n.º 2, da LTE). Como refere Rui do Carmo Fernando, “o
facto de o consumo, aquisição e detenção para consumo próprio de estupefacientes ou
substâncias psicotrópicas passarem a ser qualificados como contra-ordenação terá como
consequência a derrogação deste preceito da LTE, que apenas se continuará a aplicar no caso
de cultivo para consumo próprio. É que a inexistência do pressuposto prática de facto
qualificado pela lei como crime, deixa de ser legítimo o procedimento tutelar educativo baseado
apenas no perigo do seu cometimento” (2002: 133-134).
176 Capítulo IV - O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

descrição dos factos e a sua qualificação jurídico criminal; a descrição da sua


anterior conduta e da sua condição familiar, educativa e social; a indicação da
medida a aplicar ou das razões porque se torna desnecessária e os meios de
prova (artigo 90.º da LTE).

O regime jurídico da Lei Tutelar Educativa optou pelo princípio da não


adesão ao pedido civil, devendo o mesmo ser “(...) deduzido em separado
perante o Tribunal competente”, nos termos do artigo 91.º da Lei Tutelar
Educativa.

7. 7. 2. A fase jurisdicional

O segundo momento do processo tutelar educativo – a fase jurisdicional –


inicia-se depois de requerida, pelo Ministério Público, a sua abertura. Nesta
fase, presidida pelo juiz, praticar-se-ão os actos necessários para a
“comprovação judicial dos factos”; “a avaliação da necessidade de aplicação de
medida tutelar”; “a determinação da medida tutelar”; e para “a execução da
medida tutelar” (artigo 92.º, da LTE)

Este segundo momento é sempre iniciado por um despacho inicial do juiz,


no qual, em primeiro lugar, verifica “se existem questões prévias que obstem
ao conhecimento da causa” (artigo 93.º, n.º 1, alínea a), da LTE). Neste acto, o
juiz pode pôr termo ao processo, designar dia para audiência preliminar, “se,
tendo sido requerida a aplicação de medida não institucional, a natureza e
gravidade dos factos, a urgência do caso ou a medida proposta justificarem
tratamento abreviado”, ou determinar o seu prosseguimento, notificando o
jovem, seus pais ou representante legal e defensor para no prazo de 10 dias,
requererem diligências ou indicarem os meios de prova a produzir em
audiência e para alegarem ou diferirem as alegações para audiência (artigo
93.º, n.ºs 1 e 2, da LTE).

Como já referimos supra, o Ministério Público, quando conclua pela


desnecessidade de aplicação de medida tutelar, só pode determinar o
arquivamento dos autos quando o facto seja qualificado como crime punível
com pena de prisão de máximo não superior a três anos. Nos restantes casos,
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 177

ou seja, quando o facto seja qualificado pela lei como crime punível com pena
de prisão de máximo superior a três anos, está vedado ao Ministério Público
arquivar os autos, devendo requerer a abertura de fase jurisdicional, indicando
no respectivo requerimento “as razões por que se torna desnecessária” a
aplicação de medida tutelar (artigo 90.º, al. e), da LTE). Recebido o
requerimento de abertura da fase jurisdicional, o juiz, caso concorde com a
proposta do Ministério Público no sentido da desnecessidade de aplicação da
medida tutelar, arquiva, pondo, deste modo, termo ao processo (artigo 93.º, n.º
1, alínea b), da LTE).

Prosseguindo os autos, como já referimos, o processo pode seguir duas


formas distintas: uma forma tendencialmente mais célere, com a realização de
uma audiência preliminar, no termo da qual pode ser acordada a aplicação de
uma medida tutelar, e uma outra mais demorada.

Assim, nos casos em que o Ministério Público propõe no seu


requerimento para abertura da fase jurisdicional a aplicação de medida não
institucional e se justifique um tratamento abreviado do processo face à
natureza e gravidade dos factos, à urgência do caso ou à medida proposta, o
juiz designa dia para audiência preliminar, para a data mais próxima possível,
através de despacho onde devem constar, nomeadamente, a indicação dos
factos que são imputados ao jovem, os pressupostos de conduta e de
personalidade que justificam a aplicação de medida tutelar (artigo 94.º, n.ºs 1 e
3 da LTE).

O despacho que designa a data de realização de audiência preliminar é


notificado ao Ministério Público, ao jovem, seus representantes legais e seu
defensor, com a referência de que os meios de prova podem ser apresentadas
na audiência (artigo 94.º, n.ºs 1, 2, 5 e 6, da LTE). A audiência preliminar é
realizada com a presença obrigatória do Ministério Público e do defensor do
jovem, devendo ser convocadas para a mesma o jovem, os pais ou
representante legal, o ofendido ou qualquer outra pessoa quando a sua
presença se mostre necessária com vista a atingir as finalidades da audiência
(artigo 101.º, n.ºs 1 e 2, da LTE).
178 Capítulo IV - O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

No caso de o jovem não comparecer à audiência, esta é adiada, e sendo


“necessário para assegurar a realização da audiência, o juiz emite mandados
de detenção do menor e determina as diligências necessárias para a realização
da audiência no mais curto prazo que não pode exceder doze horas” (artigos
102.º e 103.º, n.º 1, da LTE). No entanto, o juiz pode, oficiosamente ou a
requerimento, dispensar a presença do jovem em audiência, se for justificado
pelo interesse do jovem (artigo 101.º, n.º 3, da LTE).

O legislador revestiu-se de especiais cuidados na regulamentação da


audiência preliminar, dotando o seu regime de maleabilidade suficiente para a
adaptação às finalidades do processo e para a protecção dos interesses do
jovem. Assim, a título de exemplo, “o juiz pode determinar que a audiência
preliminar decorra fora das instalações do Tribunal, tendo em conta,
nomeadamente, a natureza e gravidade dos factos e a idade, personalidade e
condições físicas e psicológicas do menor” (artigo 96.º, n.º 1, da LTE), pode
restringir a “assistência do público ou determinar que a audiência preliminar
decorra com exclusão da publicidade” (artigo 97.º, n.º 1, da LTE), e “assegura
que a prova seja produzida de forma a não ferir a sensibilidade do menor ou de
outros menores envolvidos e que o decurso dos actos lhes seja acessível,
tendo em conta a sua idade e o seu grau de desenvolvimento intelectual e
psicológico”, podendo “determinar a assistência de médicos, de psicólogos, de
outros especialistas ou de pessoa da confiança do menor e determinar a
utilização dos meios técnicos ou processuais que lhe pareçam adequados”
(artigo 99.º da LTE). Em todo o processo deve ser utilizada uma linguagem que
o jovem entenda e devem ser adoptados os mecanismos para minimizar ao
máximo os inconvenientes trazidos com a produção da prova.

O jovem e os seus representantes legais são inquiridos pelo juiz, contudo


este pode autorizar o Ministério Público e o defensor a interrogarem
directamente os representantes legais do jovem, caso o solicitem e o interesse
deste o não desaconselhe (artigo 107.º, n.ºs 1 e 2, da LTE). As restantes
pessoas são inquiridas directamente pelo juiz, Ministério Público e defensor do
jovem (artigo 107.º, n.º 3, da LTE).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 179

Como se referiu, a audiência preliminar tem como objectivo um desfecho


mais expedito do processo, mas também é um espaço de procura de um
justiça consensual, durante o qual, caso o juiz não considere a medida
proposta pelo Ministério Público desproporcionada ou desadequada, procura
obter consenso na aplicação da mesma, ouvindo o jovem, os pais ou o
representante legal, o defensor e o ofendido (artigo 104.º, n.º 2, da LTE). Caso
não seja obtido o consenso procurado, abre-se uma nova tentativa de
consenso, podendo o juiz procurar consenso para uma outra medida não
institucional adequada, ou “determinar a intervenção de serviços de mediação
e suspender a audiência por prazo não superior a 30 dias” (artigo 104.º, n.º 3,
da LTE).

No caso de o juiz considerar “desproporcionada ou desadequada a


medida proposta pelo Ministério Público ou não existir consenso sobre ela”,
ordena a produção dos meios de prova apresentados. Após a sua produção, se
o juiz estiver na posse de todos os elementos necessários à prolação de
decisão, profere-a, fundamentando-a, com “enumeração dos factos provados e
não provados, indicação da sua qualificação e exposição (…) das razões que
justificam o arquivamento ou a aplicação da medida tutelar” (artigo 104.º, n.º 5,
e 110.º da LTE)116. Caso contrário, o juiz ordena o prosseguimento dos autos,
notificando o jovem, os pais ou representante legal e o defensor para, no prazo
de 10 dias, requererem as diligências que considerem pertinentes ou indicarem
os meios de prova a produzir em audiência, e para, no mesmo prazo, alegarem
ou diferirem alegação para audiência (artigos 104.º, n.º 5, alínea b), 115.º e
93.º, n.º 2, da LTE).

Assim, a audiência realizar-se-á em três situações: quando pelo Ministério


Público tenha sido proposta medida tutelar institucional; quando apesar de o
Ministério Público ter proposto uma medida não institucional, a natureza e
gravidade dos factos, a urgência do caso ou a medida proposta não justifiquem

116
A decisão deve conter obrigatoriamente, sob pena de nulidade, a designação das entidades
a quem é deferida a execução da medida tutelar e o seu acompanhamento (artigo 110.º, n.º 3,
al. b), e 111.º, al. a), da LTE.
180 Capítulo IV - O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

um tratamento abreviado; ou quando, realizada a audiência preliminar, não se


tendo chegado a consenso quanto à medida a aplicar, e produzidas as provas,
o juiz entenda não estar na posse de todos os elementos necessários à
decisão final.

Deste modo, nos casos em que haja lugar a audiência, realizam-se as


diligências que se mostrem adequadas, designando-se posteriormente a data
de realização daquela, disso sendo notificado o jovem, os seus pais,
representante legal ou quem tenha a sua guarda de facto e o seu defensor117,
que podem, no prazo de 5 dias, indicar as testemunhas, peritos ou técnicos de
reinserção social e outros meios de prova (artigo 116.º, n.ºs 1, 2 e 5, da LTE).

No início da audiência, o juiz expõe as questões relevantes, em especial


as que se mostram controvertidas, produzindo-se, de seguida, os meios de
prova indicados e as complementares oferecidas pelo Ministério Público e pelo
defensor do jovem (artigo 117.º da LTE).

Após a realização da audiência, o Tribunal reúne-se para decidir,


competindo ao presidente voto de qualidade, bem como lavrar a decisão, que,
sempre que possível, é lida em acto contínuo à deliberação (artigo 118.º, n.ºs
1, 2 e 3, da LTE). Quando o Tribunal aplique medida de internamento, o
Tribunal deve indicar o respectivo regime de execução (artigo 118.º, n.º 4, da
LTE).

No que diz respeito a esta audiência o legislador teve as mesmas


preocupações de adaptabilidade e maleabilidade às finalidades do processo e
aos interesses do jovem, aplicando-se subsidiariamente as disposições
relativas à audiência preliminar (artigo 120.º da LTE).

Em regra, o Tribunal competente para a decisão no âmbito de processos


tutelares educativos é composto por um único juiz. No entanto, quando esteja
em causa a aplicação de medida tutelar de internamento, “o Tribunal é
constituído pelo juiz do processo, que preside, e por dois juízes sociais” (artigo

117
Os juízes sociais também são notificados deste despacho, juntamente com o requerimento
de abertura da fase jurisdicional, nos casos em que devam intervir (artigo 116.º, n.º 2, da LTE).
Sobre a intervenção dos juízes sociais no processo tutelar ver infra.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 181

30.º da LTE). Nestes casos, a deliberação é tomada por maioria (artigo 119.º,
n.º 1, da LTE).

Assim, e em síntese, podemos esquematizar em traços gerais da


seguinte forma os actos que compõem o processo tutelar educativo:

FASE DE INQUÉRITO

- Denúncia, acompanhada, se possível, de informação sobre a conduta anterior do


jovem e da sua situação sócio-familiar e educativa

- Abertura do Inquérito

- Audição do jovem

- Realização de diligências necessárias para investigar a existência do facto, para


determinar a necessidade de educação do jovem para o direito e para obtenção
dos meios de prova (designadamente, solicitação de informação e relatório social
sobre o jovem)

Suspensão do Requerimento de
Arquivamento Arquivamento
processo abertura de fase
Liminar
jurisdicional

Cumprimento do plano Não cumprimento do plano


de conduta de conduta
182 Capítulo IV - O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

FASE JURISDICIONAL

Despacho inicial com verificação de questões prévias que haja de conhecer

Arquivamento Designação de Determinação do


audiência preliminar prosseguimento dos autos

Aceitação da
Audiência preliminar
proposta do
Ministério Público ou

Não aceitação da Juiz considera


proposta do desproporcionada
Ministério Público ou ou desadequada a Homologação da

de outra medida proposta do proposta do

Ministério Público Ministério Público


ou aplicação da
medida proposta
Mediação

Produção dos meios da


prova

Prosseguimento dos
autos

Audiência

Decisão final
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 183

Da aplicação de medidas tutelares educativas

Segundo o disposto no artigo 2.º, n.º 1, da LTE, as medidas tutelares


educativas têm como objectivo “a educação do menor para o direito e a sua
inserção, de forma digna e responsável, na vida em comunidade”.

A aplicação de uma medida tutelar educativa exige o preenchimento de


quatro requisitos: “que o menor não tenha completado 18 anos até à data da
decisão em 1.ª instância”; “que não tenha sido aplicada pena de prisão
efectiva, em processo penal, por crime praticado por menor com idade
compreendida entre os 16 e os 18 anos”; “a existência de uma ofensa a um
bem jurídico fundamental, ou seja, a prática de facto que a lei considera crime”;
“sendo a finalidade educar o menor para o direito e não a retribuição pelo
crime, só se aplicará medida tutelar se se concluir que aquele adolescente (…)
tem necessidade de ver corrigida a sua personalidade” (Martins, 2002: 107)118.

Assim, cumpridos estes pressupostos, será de aplicar uma medida tutelar


educativa, escolhida de entre as medidas taxativamente enunciadas na Lei
Tutelar Educativa com base no critério, fixado pelo artigo 6.º e 7.º, n.º 1, da
LTE, segundo o qual ao jovem deve(m) ser aplicada(s) a(s) medida(s)
tutelar(es) educativa(s) que represent(em) uma “menor intervenção na
autonomia de decisão e de condução de vida do menor” e que suscite(m) maior
adesão do jovem, dos seus pais, representante legal ou pessoa que tenha a
guarda de facto do jovem, devendo ser proporcionada(s) face à gravidade do(s)
facto(s) e à “necessidade de educação do menor para o direito manifestada na
prática do facto e subsistente no momento da decisão”. Assim, a Lei Tutelar
Educativa apresenta como princípios fundamentais de aplicação da medida
tutelar os princípios de adequabilidade, intervenção mínima, da adesão (dos
jovens e dos pais), da proporcionalidade e da legalidade.

118
Rui do Carmo Fernando refere, também, que “a aplicação de uma medida tutelar educativa
tem (…) como pressupostos: a prova da prática de um daqueles factos [qualificados pela lei
como crime]; a necessidade de educação do menor para o direito, subsistente no momento da
decisão; não ter o menor completado 18 anos até à data da decisão em 1ª instância; e,
relativamente a menor com idade compreendida entre os 16 e os 18 anos, não lhe ter sido
aplicada pena de prisão efectiva em processo penal (arts. 1.º, 7.º, n.º 1, 28.º, n.º 2, 87.º, n.º 1, e
110.º, n.º 2)” (2002: 122-123).
184 Capítulo IV - O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

Em homenagem àquele princípio da menor intervenção, o legislador


revestiu-se de especiais cautelas no que respeita à aplicação de uma medida
de internamento. Assim, exige-se a realização, pelos serviços de reinserção
social, de perícia sobre a personalidade do jovem, quando for de aplicar
medida de internamento em regime fechado (artigo 69.º da LTE), e de relatório
social com avaliação psicológica, quando for de aplicar medida de
internamento em regime aberto ou semiaberto (artigo 71.º, n.º 5, da LTE).

Segundo o disposto no artigo 19.º da LTE, que enuncia o princípio geral


da não cumulação de medidas tutelares educativas, por um mesmo facto não
pode ser aplicada, de forma cumulativa, ao mesmo jovem mais do que uma
medida tutelar educativa, com excepção do previsto para a medida de
acompanhamento educativo que pode comportar a imposição de regras de
conduta ou obrigações, assim como a frequência de programas formativos, e
para a medida de privação de conduzir ou de obter permissão para conduzir
ciclomotores, que pode ser cumulado com qualquer outra medida. Assim, a um
mesmo jovem, num dado processo tutelar educativo, podem ser aplicadas mais
do que uma medida tutelar, desde que tenha praticado mais do que um facto
qualificado pela lei como crime e tal se ache necessário para promover a
educação do jovem para o direito.

Nestes casos, quando haja aplicação de mais do que uma medida tutelar
educativa a um jovem, “o Tribunal determina o seu cumprimento simultâneo,
quando entender que as medidas são concretamente compatíveis”, ou, quando
assim não entenda, ouvido o Ministério Público, “substitui todas ou algumas
medidas por outras ou determina o seu cumprimento sucessivo”, não podendo,
no entanto, o tempo de duração total de cumprimento das medidas exceder o
“dobro do tempo de duração da medida mais grave aplicada” (artigo 8.º, n.ºs 1,
2 e 5, da LTE).

Para além de determinar o regime de execução das medidas tutelares, a


decisão que a(s) aplique deve determinar ainda qual a entidade responsável
pelo acompanhamento da execução da medida aplicada (artigos 110.º, n.º 3,
al. c) e 130.º da LTE). No que diz respeito à medida de prestações económicas
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 185

ou tarefas a favor da comunidade, o Tribunal determina, ainda, na decisão, o


conteúdo da mesma, definindo qual a modalidade da medida, o montante e a
forma da prestação pecuniária ou a actividade, duração e forma da sua
prestação, bem como a entidade que acompanha a execução ou a entidade
destinatária da prestação, conforme os casos (artigo 20.º da LTE). Também no
que concerne às medidas de imposição de obrigações, frequência de
programas formativos e acompanhamento educativo, o Tribunal define o seu
conteúdo concreto, podendo para tal “pedir aos serviços de reinserção social
informação sobre instituições ou entidades junto das quais o menor deve
cumprir a medida, respectivos programas horários, condições de frequência e
vagas disponíveis” (artigo 21.º, n.º 1, da LTE)119.

7. 7. 3. A fase de recurso

O processo tutelar educativo pode, ainda, comportar uma fase de recurso,


que pode ser ordinário ou extraordinário para fixação de jurisprudência ou de
revisão (artigos 121.º e 127.º da LTE).

Assim, a decisão proferida em primeira instância que “ponha termo ao


processo”, “aplique ou mantenha medida cautelar”, “aplique ou reveja medida
tutelar”, “recuse impedimento deduzido contra o juiz ou Ministério Público”,
“condene no pagamento de quaisquer importâncias” ou “afecte direitos
pessoais ou patrimoniais do menor ou de terceiro”, pode ser objecto de recurso
ordinário, interposto para o Tribunal da Relação – última instância de recurso
que decide de direito e de facto –, pelo Ministério Público, pelo jovem, seus
pais, representante legal ou quem tenha a guarda de facto, ou por “qualquer
pessoa que tiver a defender direito afectado pela decisão” (artigos 121.º e 123.º
da LTE).

O regime de recurso consagrado na Lei Tutelar Educativa é dotado de


especial celeridade, devendo o mesmo ser interposto no prazo de 5 dias. Os

119
Os serviços de reinserção social devem prestar estas informações ao Tribunal num prazo
máximo de 20 dias (artigo 21.º, n.º 2, da LTE).
186 Capítulo IV - O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

recursos interpostos de decisões que apliquem ou mantenham medidas


cautelares devem ser julgados no prazo máximo de 15 dias (artigos 122.º e
125º, n.º 2, da LTE).

Como se referiu, para além do recurso ordinário, o legislador português


admitiu os recursos extraordinários para fixação de jurisprudência e de revisão,
aplicando-se, subsidiariamente, o regime consagrado para aqueles recursos no
Código de Processo Penal (artigos 127.º e 128.º, n.º 1, da LTE)120.

7. 7. 4. A fase de execução das medidas tutelares educativas

A fase de execução da(s) medida(s) tutelar(es) educativa(s)


concretamente aplicada(s) inicia-se após o trânsito em julgado da decisão final
que a(s) aplique (artigo 129.º da LTE), competindo ao Tribunal que as aplicou
(artigo 38.º da LTE). A lei consagrou o princípio da jurisdicionalização da
execução das medidas tutelares (artigo 28.º, n.º 1, alínea c), e 39.º da LTE),
atribuindo ao juiz uma série de competências fiscalizadoras e participativas
durante a execução das medidas aplicadas, nomeadamente, “ordenar os
procedimentos que considere adequados face a ocorrências que comprometam
a execução a execução e que sejam levadas ao seu conhecimento”,
“acompanhar a evolução do processo educativo do menor através dos
relatórios de execução das medidas”, “decidir sobre os pedidos e queixas
apresentados sobre quaisquer circunstâncias da execução das medidas
susceptíveis de pôr em causa os direitos dos menores” e “realizar visitas aos
centros educativos e contactar com os menores internados”. Acresce que,

120
O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência é admitido quando, no domínio da
mesma legislação, forem proferidos dois acórdãos de tribunais superiores que estejam em
oposição. Assim, o fundamento do recurso será, somente, a oposição com acórdão
anteriormente transitado em julgado (artigo 437.º do Código de Processo Penal). O recurso
extraordinário de revisão tem como fundamento a existência de factos ou circunstâncias
supervenientes ao momento da prolação da sentença e do trânsito em julgado, como, por
exemplo, a existência de uma outra sentença que tenha considerado falsos os meios de prova
determinantes para a decisão, que tenha provado crime cometido por juiz ou jurado e
relacionado com o exercício da sua função no processo, a descoberta de factos novos que, de
per si ou combinados com os apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça
da condenação (artigo 449.º do Código de Processo Penal).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 187

qualquer decisão tomada durante a fase de execução que imponha ao jovem


restrições superiores às decorrentes da decisão judicial, constitui objecto de
recurso, que será decidido, em último grau, pelo juiz do Tribunal competente
para a execução (artigo 134.º da LTE).

De modo a permitir o acompanhamento pelo Tribunal da execução das


medidas tutelares aplicadas, as entidades escolhidas para assegurar a
execução têm o dever de informar o Tribunal, periodicamente, sobre a
execução da medida, a evolução do processo educativo do jovem e todas as
circunstâncias susceptíveis de fundamentar a revisão da medida aplicada
(artigo 131.º, n.º 1, da LTE).

Como se referiu anteriormente, ao jovem pode ser aplicada mais do que


uma medida tutelar educativa, que podem ser executadas, se assim for
determinado pelo Tribunal, sucessivamente. Nestes casos, o Tribunal fixa a
ordem pela qual deverão ser executadas as medidas. No entanto, o legislador
fixa como regra a execução por ordem decrescente do grau de gravidade121,
admitindo excepções quando o Tribunal entenda que “a execução prévia de
uma determinada medida favorece a execução de outra aplicada” ou que “a
situação concreta e o interesse do menor aconselham execução segundo
ordem diferente” (artigo 133.º, n.º 1 e 2, da LTE).

A Lei Tutelar Educativa regula com mais pormenor a execução da medida


de acompanhamento educativo e de internamento em Centro Educativo. Para
estes casos, é organizado um único dossier (dossier individual), que
acompanha o jovem sempre que haja transferência ou mudança de Centro
Educativo, e onde consta toda a informação sobre o educando. Este dossier é

121
O legislador fixou o critério a atender para a determinação da hierarquia do grau de
gravidade das medidas tutelares educativas. Assim, segundo o disposto no artigo 133.º, n.º 3 e
4, da LTE, consideram-se, por um lado, mais graves as medidas institucionais relativamente às
não institucionais, sendo que de entre aquelas são mais graves as medidas institucionais com
regime mais restritivo. Por outro lado, a hierarquia entre as medidas não institucionais
estabelece-se pela “ordem crescente da sua enumeração no n.º 1 do artigo 4.º, e relativamente
às modalidades de cada uma, pelo grau de limitação que, em concreto, impliquem na
autonomia de decisão e de condução de vida do menor”.
188 Capítulo IV - O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

obrigatoriamente destruído logo que sejam decorridos cinco anos após o jovem
perfazer vinte e um anos de idade(artigo 132.º da LTE).

No que diz especificamente respeito à medida de acompanhamento


educativo, o Tribunal deve enviar ao Instituto de Reinserção Social, no prazo
de três dias após o trânsito em julgado, cópia de todos os elementos essenciais
à sua execução. Perante tais elementos, esta entidade procederá, no prazo de
30 dias, à elaboração do projecto educativo pessoal do jovem – que deverá,
sempre que possível, envolver a participação do jovem e seus representantes –
e, após isso, enviá-lo-á ao Tribunal, para homologação (artigo 142.º da LTE).

Relativamente à medida de internamento em Centro Educativo, são os


serviços de reinserção que têm competência para a definição do Centro
Educativo onde a mesma irá ser executada, tendo em atenção as
necessidades educativas do jovem e a proximidade do Centro Educativo com a
sua residência. Para tal, o Tribunal deve, no prazo de três dias a contar do
trânsito em julgado da decisão, remeter àqueles serviços cópia da decisão,
bem como de todos os elementos necessários a uma correcta avaliação da
situação que se encontrem no processo, designadamente, relatórios sociais,
com avaliação psicológica e perícias sobre a personalidade do jovem. Num
prazo máximo de cinco dias a contar da recepção destes documentos, os
serviços de reinserção social devem informar o Tribunal do Centro Educativo
escolhido (artigo 150.º, n.º 1, 2 e 3, da LTE).

O legislador fixou duas situações diferentes para a apresentação do


jovem no Centro Educativo, atendendo ao regime de execução da medida de
internamento. Assim, se ao jovem tiver sido aplicado medida de internamento
em regime fechado, o mesmo é conduzido ao Centro Educativo por entidades
policiais, munidas de mandados de condução emitidos pelo Tribunal para o
efeito. Caso contrário, se ao jovem tiver sido aplicada medida de internamento
em regime semiaberto ou aberto, incumbe aos pais ou representante legal a
apresentação do jovem no Centro Educativo, recorrendo-se à intervenção das
entidades policiais somente quando o jovem não se apresente voluntariamente
por causa a si imputável ou ao seu representante (artigo 151.º da LTE).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 189

Segundo o disposto no artigo 162.º da LTE, “cada Centro Educativo


dispõe de projecto de intervenção educativa próprio que deve, sempre que
possível, permitir a programação faseada e progressiva da intervenção,
diferenciando os objectivos a realizar em cada fase e o respectivo sistema de
reforços positivos e negativos”. Após a admissão de um jovem em Centro
Educativo, é elaborado, no prazo máximo de 30 dias, um projecto educativo
pessoal, tendo em atenção “o regime e duração da medida, bem como as suas
particulares motivações, necessidades educativas e de reinserção social”, que
deve especificar “os objectivos a alcançar durante o tratamento, sua duração,
fases, prazos e meios de realização”. Elaborado o projecto educativo pessoal,
este é enviado ao Tribunal para homologação, no prazo máximo de 45 dias
após a admissão do jovem (artigo 164.º da LTE).

Durante a execução da medida de internamento, o Tribunal é informado,


periodicamente, da execução da medida e da evolução do processo educativo
do jovem. Para tal, o director do Centro Educativo elabora relatórios trimestrais,
no caso de medidas de duração de seis meses a um ano, e semestrais, no
caso de medidas de duração superior a um ano. Quinze dias antes da
cessação da medida tutelar, deve, ainda, enviar ao Tribunal relatório final da
execução da mesma (artigo 154.º da LTE).

O Tribunal é, ainda, informado da ausência não autorizada do jovem do


Centro Educativo, que determina a suspensão da execução da mesma, não
contando para a determinação da sua duração o tempo de ausência do jovem
(artigo 155.º da LTE).

A medida de internamento cessa com a comunicação do Tribunal ao


director do Centro Educativo da sua cessação, na data prevista de acordo com
a decisão que a aplicou (cf. artigo 158.º da LTE).

A revisão das medidas tutelares educativas

A Lei Tutelar Educativa consagra que as medidas tutelares devem ser


revistas sempre que se verifique, por um lado, impossibilidade superveniente
da sua execução por facto não imputável ao jovem; onerosidade excessiva
190 Capítulo IV - O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

superveniente da execução da medida aplicada; desajustamento da medida ao


jovem, no decurso da sua execução, de forma a que se frustrem
manifestamente os seus fins; desnecessidade da continuação da execução por
força dos progressos educativos alcançados pelo jovem (artigo 136.º, n.º 1, al.
a) a d), da LTE). Nestas situações, e tratando-se de execução de medidas não
institucionais, o Tribunal pode: manter a medida aplicada; substituir a medida
aplicada por outra mais adequada, “igualmente não institucional, desde que tal
não represente para o menor uma maior limitação na sua autonomia de
decisão e de condução da sua vida”; reduzir a duração da medida aplicada; ou
pôr termo à medida (artigo 138.º, n.º 1, da LTE). Quando se trate de revisão de
medida de internamento, o juiz pode: “manter a medida aplicada”; “reduzir a
duração da medida”; “modificar o regime da sua execução, estabelecendo um
regime mais aberto”; “substituir a medida de internamento por qualquer medida
não institucional, por tempo igual ou inferior ao que falte cumprir”; “suspender a
execução da medida, por tempo igual ou inferior ao que falte para o seu
cumprimento, sob condição de o menor não voltar a praticar qualquer facto
qualificado como crime”; ou “pôr termo à medida aplicada, declarando-a
extinta” (artigo 139.º, n.º 1, da LTE).

Por outro lado, as medidas tutelares aplicadas devem, ainda, ser revistas
quando ocorra um outro conjunto de situações, a saber: colocação intencional
por parte do jovem em situação de impossibilidade de cumprimento da medida;
violação, de modo grosseiro ou persistente, pelo jovem dos deveres inerentes
ao cumprimento da medida; ou cometimento pelo jovem com idade superior a
16 anos de infracção criminal (artigo 136.º, n.º 1, al. e) a g) da LTE). Nestes
casos – com excepção do último enunciado –, quando se trate de revisão de
medidas não institucionais, o juiz pode: “advertir solenemente o menor para a
gravidade da sua conduta e para as eventuais consequências daí decorrentes”;
“modificar as condições da execução da medida”; “substituir a medida por outra
mais adequada, igualmente não institucional, mesmo que tal represente para o
menor uma maior limitação na sua autonomia de decisão e de condução da
sua vida”; ou “ordenar o internamento em regime semiaberto, por período de
um a quatro fins-de-semana” (artigo 138.º, n.º 2, da LTE). Quando se trate de
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 191

revisão de medida institucional, o juiz pode: “advertir solenemente o menor


para a gravidade da sua conduta e para as eventuais consequências daí
decorrentes”; “prorrogar a medida aplicada, sem alteração do respectivo
regime, por um período até um sexto da sua duração, nunca excedendo o
limite máximo legal de duração previsto”; “modificar o regime de execução,
substituindo-o por outro de grau imediatamente mais restritivo, pelo tempo que
falte cumprir”, desde que a aplicação da medida de internamento resulte da
prática pelo jovem de facto(s) qualificado(s) pela lei como crime a que possa
ser aplicada um medida de internamento em regime semiaberto ou fechado,
conforme os casos (artigo 139.º, n.ºs 2 e 3, da LTE).

A medida tutelar aplicada deve, ainda, ser obrigatoriamente revista, “para


efeitos de avaliação da necessidade da sua execução” nos seguintes casos:
aplicação de medida institucional ou não institucional a jovem maior de 16 anos
que esteja a cumprir pena de internamento em centro de detenção, pena de
colocação por dias livres em centro de detenção ou pena de colocação em
centro de detenção em regime de semi-internato; aplicação de pena de
internamento em centro de detenção, pena de colocação por dias livres em
centro de detenção ou pena de colocação em centro de detenção em regime
de semi-internato a jovem maior de 16 anos que esteja a cumprir medida
tutelar institucional; aplicação de prisão preventiva a jovem maior de 16 anos
que esteja a cumprir medida tutelar de internamento; e absolvição do jovem
maior de 16 anos em processo penal sujeito a prisão preventiva, a quem foi
aplicada medida tutelar de internamento (artigo 136.º, n.º 2, 25.º, e 27.º, n.º 6,
da LTE).

O legislador fixou, ainda, a obrigatoriedade de revisão da medida tutelar,


oficiosamente, decorrido um ano do início da sua execução, da anterior
revisão, ou da aplicação da medida, nos casos em que a sua execução não se
iniciou imediatamente, assim que forem cumpridos os mandados de condução
do jovem ao local que o Tribunal tiver determinado (artigo 137.º, n.º 2, da LTE).
Para as medidas de internamento em regime semiaberto e fechado, o
legislador estabeleceu prazos mais curtos de revisão obrigatória das medidas.
192 Capítulo IV - O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

Assim, o Tribunal deve proceder à sua revisão seis meses após o início da
execução ou a anterior revisão (artigo 137.º, n.º 4, da LTE).

A revisão das medidas tutelares pode, ainda, ter lugar a requerimento do


Ministério Público, do jovem, dos pais ou representantes legais, do defensor do
jovem, mediante proposta dos serviços de reinserção social ou, oficiosamente,
a qualquer momento (artigo 137.º, n.º 1, da LTE).

8. O Decreto-Lei n.º 323-D/2000, de 20 de Dezembro: o Regulamento Geral


e Disciplinar dos Centros Educativos

A Lei Tutelar Educativa remete a regulamentação de algumas matérias


para o Regulamento Geral dos Centros Educativos (a título de exemplo,
veja-se, artigo 144.º, n.º 2, e 185.º, n.º 1, da LTE). O Regulamento Geral e
Disciplinar dos Centros Educativos (RGDCE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º
323-D/2000, de 20 de Dezembro, que entrou em vigor na mesma data da
entrada em vigor da LTE, regulamenta dois conjuntos de questões. Por um
lado, este diploma regula minuciosamente a organização, competência e
funcionamento dos centros educativos. Por outro, consagra o regime disciplinar
a que a que os jovens internados em centros educativos estão sujeitos.

Como se refere no preâmbulo do RGDCE, “a importância desta


regulamentação foi realçada pelo legislador, ao fazer depender da sua entrada
em vigor o início da vigência das leis que marcam a reforma dos direito de
menores: Lei Tutelar Educativa, aprovada pela Lei n.º 166/99, de 14 de
Setembro, e Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Risco, aprovada pela
Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro”.

Nos termos deste diploma, o internamento em Centro Educativo tem


como finalidade “proporcionar ao educando, por via do afastamento temporário
do seu meio habitual e da utilização de programas e métodos pedagógicos, a
interiorização de valores conformes ao direito e a aquisição de recursos que lhe
permitam, no futuro, conduzir a sua vida de modo social e juridicamente
responsável” (artigo 1.º, n.º 1, do RGDCE), sem, no entanto lhe retirar a sua
qualidade de titular de direitos e deveres (artigo 2.º, n.º 1, do RGDCE). Para
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 193

além destes valores, o centro tem o dever de defender a ordem e a paz social
(artigo 1.º, n.º 2, do RGDCE).

Assim, toda a actuação do Centro Educativo, quer a nível de programas,


quer a nível de métodos pedagógicos e terapêuticos, está subordinada ao
princípio da adequação, que terá em consideração a finalidade e a duração do
internamento e as necessidades do jovem (artigo 2.º, n.º 2, do RGDCE).

O Centro Educativo deve disponibilizar, logo que possível, ao educando


“informação completa e esclarecedora sobre os seus direitos e deveres,
incluindo as formas do seu exercício e as consequências do incumprimento dos
deveres” (artigo 5.º, n.º 1, do RGDCE). Essa mesma informação deve também
ser fornecida aos seus representantes legais, aos quais cabe, por seu lado, um
dever de colaboração com o Centro Educativo, devendo, assim,
designadamente: apresentar o educando no Centro Educativo na data e hora
fixadas pelo Tribunal para o cumprimento da medida; ajudar o educando a
compreender e a aceitar a decisão judicial e demais normas e regulamentos;
prestar todas as informações que lhe forem solicitadas pelo Centro; avisar o
Centro de todas as circunstâncias que se mostrem relevantes para o processo
educativo, saúde e estabilidade do educando; cumprir as normas relativas a
visitas e contactos com o educando; colaborar com o Centro durante o período
das saídas autorizadas e na recondução do educando quando este esteja
ausente sem autorização; e responsabilizar-se por eventuais danos ocorridos
durante as saídas (artigo 7º do RGDCE).

Os centros educativos são estabelecimentos inseridos na orgânica do


Instituto de Reinserção Social, competindo-lhes, nos termos dos artigos 8.º, n.º
2, e 9.º, executar a medida de internamento; executar a medida cautelar de
guarda em Centro Educativo; internar para a realização de perícia sobre a
personalidade, quando compete aos serviços de reinserção social; cumprir a
detenção; internar em fins-de-semana; e executar as decisões judiciais através
de desenvolvimento de métodos e programas adequados.

Os centros educativos classificam-se em abertos, semiabertos ou


fechados, consoante o regime de execução das medidas de internamento e
194 Capítulo IV - O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

grau de abertura ao exterior. Podem, ainda, classificar-se em especiais, se se


destinarem a desenvolver projectos de intervenção educativa e terapêutica
destinados a grupos especiais de educandos (saúde ou comportamento
delinquente). No mesmo Centro Educativo podem coexistir diferentes unidades
residenciais (artigo 10.º do RGDCE).

A execução dos internamentos em regime aberto ou semiaberto pode ser


realizada por entidades particulares sem fins lucrativos, desde que celebrados
os respectivos acordos de cooperação com o Instituto de Reinserção Social.
No entanto, nestes casos, o IRS mantém a responsabilidade no
acompanhamento da execução da medida, designadamente afectando uma
equipa técnica (artigo 8º, n.ºs 3 e 4, do RGDCE).

Cada Centro Educativo tem, ainda, uma lotação máxima, que será fixada
no acto da sua criação, tendo em conta as condições físicas, os meios
humanos disponíveis, e o regime de execução a que se destina. Assim,
segundo o disposto no artigo 11.º, n.º 2, do RGDCE, as unidades residenciais
de regime aberto não podem exceder os 14 lugares, as de regime semiaberto
12, e as de regime fechado, bem como as unidades especiais, não podem
exceder o número de 10 lugares.

O regime de execução é fixado pelo Tribunal e diferencia-se pelo grau de


limitação da liberdade e da autonomia dos educandos, como, por exemplo,
com o seu meio exterior (artigo 12.º, n.º 1, do RGDCE). A intervenção dentro
de cada regime ocorre por fases progressivas ”as quais são definidas no
projecto de intervenção educativa de cada centro e possibilitam ao educando,
de acordo com o grau de cumprimento do seu projecto educativo pessoal,
adquirir maior liberdade e autonomia” (artigo 12.º, n.º 2, do RGDCE).

Caso o educando não cumpra os objectivos que lhe foram definidos, pode
regredir dentro do mesmo regime ou ser proposta ao Tribunal a revisão da sua
medida (artigo 12.º, n.º 3, do RGDCE).

Aquela ideia de progressividade na execução da medida de internamento


surge ainda no grau de abertura ao exterior dentro de um determinado regime.
Assim, no regime aberto, as possibilidades de frequência de actividades no
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 195

exterior depende “das efectivas oportunidades existentes no meio social,


considerando as necessidades educativas específicas do educando, a fase do
seu projecto educativo pessoal e o grau de responsabilização que consegue
assumir” (artigo 13.º, n.º 2, do RGDCE). Do mesmo modo, as saídas para a
realização de actividades no exterior, férias e fins-de-semana são autorizadas
de forma gradual, consoante a evolução do jovem, podendo ser-lhe fixadas
nesse período determinadas obrigações (artigo 13.º, n.º 3, do RGDCE).

Também no que respeita à execução de medida de internamento em


regime semiaberto, consagra-se a possibilidade, se houver uma evolução
positiva do educando, de autorização de férias junto dos seus representantes
legais, podendo-lhe ser fixadas determinadas obrigações (artigo 14.º, n.º 3, do
RGDCE).

No regime fechado, o educando só poderá sair do Centro quando motivos


ponderosos e excepcionais o justifiquem, como, por exemplo, para
cumprimento de obrigações judiciais e necessidades de saúde, sendo sempre
acompanhados por funcionários do Centro, limitados ao tempo estritamente
necessário e sempre precedida de autorização escrita do director do centro
(artigo 15.º, n.º 1 e 4, do RGDCE). No entanto, ainda para estes casos, foi
prevista a possibilidade de “em fase avançada da execução do projecto
educativo pessoal e verificando-se condições que permitam experimentar uma
flexibilização do regime com vista a avaliar da possibilidade de revisão da
medida, (…) os educandos ser [em] autorizados pelo Tribunal a sair, sem
acompanhamento, por períodos limitados, mediante proposta fundamentada do
director do centro” (artigo 15.º, n.º 5, do RGDCE).

Cada Centro desenvolve a sua actividade no âmbito do seu projecto de


intervenção educativa, que identifica, “sempre que possível, a programação
faseada da intervenção, diferenciando os objectivos a realizar em cada fase e o
respectivo sistema de reforços positivos e negativos, dentro dos limites fixados
pela lei e pelo presente Regulamento e de harmonia com o regulamento
interno” (artigo 17.º, n.º 2, do RGDCE).
196 Capítulo IV - O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

A execução da medida tutelar de internamento é pensada e realizada com


base no projecto educativo pessoal do educando (artigo 21.º do RGDCE e
artigo 164º da Lei Tutelar Educativa). A participação do educando na
preparação e avaliação do seu projecto educativo deve ser incentivada, de
modo a que este se empenhe na execução do projecto (artigo 21.º, n.º 2, do
RGDCE). O empenho do jovem na execução da sua medida tutelar pode ainda
ser reconhecida pelo Centro Educativo, através da atribuição de prémios (artigo
33.º do RGDCE).

9. O Decreto-Lei n.º 204-A/2001, de 26 de Julho: a nova Lei Orgânica do


Instituto de Reinserção Social

Na sequência da Lei Orgânica do Ministério da Justiça, aprovada pelo


Decreto-Lei n.º 146/2000, de 18 de Julho, que atribuiu ao Instituto de
Reinserção Social (IRS), entre outras atribuições, o apoio técnico aos tribunais
na tomada de decisões do processo tutelar educativo (artigo 19.º, n.º 3, al. b)),
e a execução das medidas tutelares educativas (artigo 19.º, n.º 3, al. c)), e na
sequência do Programa de Acção para a Entrada em vigor do Direito de
Menores, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 108/2000, de
19 de Agosto, nos termos do qual se assumia o compromisso de reorganizar o
IRS até Dezembro de 2000, foi aprovada a nova Lei Orgânica do IRS (LOIRS)
(Decreto-Lei n.º 204-A/2001, de 26 de Julho). Nas palavras do próprio
legislador, “nesta nova lei orgânica dos serviços de reinserção social mantém-
se basicamente o modelo estrutural existente”, reforçando-se, no entanto, “a
sua organização, para dar resposta a desafios essenciais precisamente no
âmbito (…) da execução da reforma do direito de menores, consubstanciada
pela Lei de Protecção das Crianças e Jovens em Perigo e, com especial
impacte nos serviços de reinserção social, a Lei Tutelar Educativa, que
entraram em vigor em Janeiro de 2001” (preâmbulo do Decreto-Lei n.º 204-
A/2001, de 26 de Julho).

Assim, ao IRS, como “órgão auxiliar da administração da justiça


responsável pelas políticas de prevenção criminal e reinserção social,
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 197

designadamente nos domínios da prevenção da delinquência juvenil, das


medidas tutelares educativas” (artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 204-A/2001),
compete, entre outras atribuições: conceder aos tribunais o apoio técnico
necessário à tomada de decisões no âmbito do tutelar educativo; assegurar a
execução de medidas tutelares educativas; assegurar a gestão dos centros
educativos de jovens; e contribuir para um maior envolvimento da comunidade
na administração da justiça penal e tutelar educativa (artigo 3.º, n.º 1, do
Decreto-Lei n.º 204-A/2001).

No âmbito da execução das medidas tutelares educativas, as actividades


do IRS devem sempre respeitar os princípios da proporcionalidade, da
intervenção mínima e de adequação às suas finalidades, nomeadamente no
respeito pela vida privada do jovem, bem como da sua dignidade e da sua
família (artigo 3.º, n.º 3, da LOIRS).

O Instituto de Reinserção Social é composto pelos seguintes órgãos:


presidente, conselho de gestão, conselho superior de reinserção social,
conselho coordenador e fiscal único (artigo 4.º da LOIRS).

O Presidente do IRS tem competência, nomeadamente, para “emitir


orientações técnicas sobre a actividade operativa, designadamente orientações
pedagógicas para os centros educativos” (artigo 5.º, n.º 1, al. e), da LOIRS).

O IRS possui, ainda, serviços centrais e serviços desconcentrados (artigo


12.º da LOIRS). Os serviços centrais dividem-se em serviços de coordenação e
apoio à actividade operativa e serviços de apoio à gestão e de administração.

Nos serviços de coordenação e apoio à actividade operativa, integra-se o


Departamento de Coordenação da Actividade Técnico Operativa, que
compreende a Divisão de Apoio ao Funcionamento dos Sistemas de Execução
de Penas e Medidas e a Divisão de Execução de Penas e Medidas não
Institucionais, e que tem como função coordenar “a actividade operativa
desenvolvida em apoio técnico, na tomada de decisões no âmbito [do
processo] (...) tutelar educativo (...) e na execução (...) das medidas educativas
não institucionais” (artigo 14.º, n.º 1, da LOIRS).
198 Capítulo IV - O “novo” direito tutelar educativo em Portugal

Ao Departamento de Coordenação dos Serviços de Execução das


Medidas Tutelares de Internamento, serviço central de coordenação e apoio à
actividade operativa, que integra a Divisão de Apoio ao Funcionamento dos
Sistemas de Execução das Medidas Tutelares de Internamento e a Divisão de
Execução das Medidas Tutelares de Internamento, incumbe a coordenação da
“actividade do Instituto na gestão técnica dos centros educativos, em execução
de medida tutelar de internamento e de outros internamentos que devam ser
realizados naqueles centros” (artigo 15.º, n.ºs 1 e 2, da LOIRS).

A Lei Orgânica do IRS prevê, ainda, os seguintes serviços


desconcentrados: direcções regionais; núcleos de extensão; direcção dos
serviços de reinserção social nas regiões Autónomas dos Açores e da Madeira;
e centros educativos (artigo 24.º, n.º 1, da LOIRS).
Capítulo V

Entre dois olhares: a Lei Tutelar Educativa à luz dos dados


oficiais e de um estudo efectuado nos tribunais de família e
menores de Lisboa e Coimbra

Introdução

Neste capítulo analisamos a aplicação da Lei Tutelar Educativa pelos


tribunais de família e menores à luz das estatísticas oficiais do Gabinete de
Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça e dos dados
recolhidos pelo Observatório Permanente da Justiça Portuguesa nos tribunais
de família e menores (TFM) de Lisboa e de Coimbra.

O Capítulo está, assim, dividido em duas secções. Na primeira secção,


considerando o universo de todos os tribunais de família e menores do país,
analisamos a aplicação da Lei Tutelar Educativa, quer na fase de inquérito,
quer na fase jurisdicional, à luz dos dados oficiais disponíveis. Na segunda
secção esta análise é feita considerando os dados de uma amostra recolhida
pelo Observatório Permanente da Justiça Portuguesa através da consulta de
processos tutelares educativos, na fase jurisdicional, nos tribunais de família e
menores de Coimbra e de Lisboa.
200 Capítulo V - Entre dois olhares

Secção I
A Lei Tutelar Educativa à luz dos dados oficiais disponíveis

Como já referimos, nesta primeira secção iremos analisar o movimento do


processo tutelar educativo durante a vigência da Lei Tutelar Educativa, quer na
fase de inquérito, quer na fase jurisdicional. A análise destes dados
permitir-nos-á determinar o volume de processos pendentes, entrados e findos
durante os anos de 2001 e 2002, assim como os motivos que determinaram o
fim, quer dos inquéritos, quer dos processos tutelares que chegaram à fase
jurisdicional.

Após a análise do que convencionámos denominar por movimento


processual procedemos à caracterização do perfil social dos jovens aos quais
foi aplicada uma medida tutelar educativa. Analisaremos a distribuição por
sexo, idade e nacionalidade dos jovens, com quem habitam e onde residem,
qual o seu grau de instrução e qual a sua situação perante o trabalho.

Interessa-nos, também, face aos dados disponíveis, conhecer outros


componentes do processo tutelar educativo, designadamente, quem mobiliza o
processo; quais as taxas de sucesso do novo instituto da suspensão do
processo por parte do Ministério Público (MP) e da mediação; qual o grau de
utilização das perícias sobre a personalidade do jovem enquanto instrumento
auxiliar à decisão; quais os factos praticados pelo jovem qualificados como
crime; qual a duração do processo tutelar na fase jurisdicional; e qual a
percentagem de revisão das medidas aplicadas e em que sentido é efectuada
essa revisão.

O processo tutelar termina com a aplicação de uma medida tutelar e com


a sua execução. Interessa-nos, por isso, estudar, também, quais as medidas
tutelares aplicadas e analisar se existem divergências significativas na
aplicação de medidas tutelares por sexo e idade dos jovens e por tipo de facto
praticado qualificado como crime.

A análise do movimento da fase de inquérito dos processos tutelares


educativos foi elaborada tendo por base os dados da jurisdição tutelar
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 201

disponíveis, publicados no site da Procuradoria Geral da República (PGR)122


referentes aos anos de 2001 e 2002.

A análise do movimento da fase de jurisdicional dos processos tutelares


foi elaborada com base nos dados da jurisdição tutelar educativa recolhidos
pelo Gabinete de Política Legislativa e Planeamento (GPLP) do Ministério da
Justiça, através do mapa de movimento mensal – Modelo 228 – que regista o
movimento processual tutelar.

A caracterização dos processos tutelares findos com a aplicação de uma


medida tutelar educativa foi efectuada tendo por base os dados recolhidos pelo
Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça
(GPLP), com base no boletim de notação estatística para o processo tutelar
educativo – Modelo 329.

Na caracterização dos processos tutelares educativos encontrámos


algumas dificuldades que condicionam a análise efectuada e que passamos a
realçar.

Em primeiro lugar, não dispomos, e, do nosso conhecimento, não


existem, dados referentes aos processos tutelares educativos que, tendo
chegado à fase jurisdicional, findam por outro motivo que não a aplicação de
uma medida tutelar educativa. O boletim de notação estatística para o processo
tutelar educativo – Modelo 329 – é apenas preenchido “para os processos
findos com aplicação de medida”, sendo que relativamente ao mapa do
movimento mensal de processos tutelares educativos, modelo
228/GPLPMJ/DSEJ, “apenas os processos findos com aplicação de medida (1ª
medida ou revisão de medida aplicada – colunas 9 e 10 do quadro III do mapa
modelo nº 228/GPLPMJ/DSEJ) determinam o preenchimento do boletim para
processos tutelares educativos”123. Assim, dos 4 954 processos tutelares
educativos dados como findos, em 2001, as bases de dados correspondentes

122
http://www.pgr.pt/portugues/grupo_soltas/pub/relatorio/indice.htm, consultado em Julho de
2004.
123
http://www.gplp.mj.pt/estjustica/pdfs/metainf/inqueritos/judiciais/Just%20Tutelar/329.pdf,
consultado em Julho de 2004.
202 Capítulo V - Entre dois olhares

ao Modelo 329 apenas contêm a caracterização de 1 387 processos, a que


correspondem 1 399 sujeitos processuais. Em 2002, dos 1 905 processos
dados como findos na base de dados referente ao movimento processual
existe apenas a caracterização de 1 034 processos findos nesse ano, a que
correspondem 1 137 sujeitos processuais.

Em segundo lugar, a construção do boletim de notação estatística para o


processo tutelar educativo – Modelo 329 – apresenta alguns problemas que
dificultam a análise das variáveis. Por exemplo, os casos em que houve
“aplicação da medida” e aqueles em que houve “revisão da medida” são
registados na mesma variável. Este facto, em conjunto com a possibilidade de
preenchimento múltiplo da variável referente à medida aplicada, sem distinguir
se é a medida aplicada pela primeira vez ou a medida aplicada após a revisão,
não permite, a quem analisa, determinar se foram aplicadas várias medidas em
conjunto, ou se a medida foi substituída e, sendo substituída, qual a primeira
medida aplicada e qual a medida aplicada após a revisão (cf. números 6 e 7 do
boletim – Modelo 329).

Em terceiro lugar, devido ao facto de existirem apenas dados relativos à


justiça tutelar referentes aos anos de 2001 e 2002, a análise da aplicação da
Lei Tutelar Educativa está limitada àqueles dois anos.

Apesar destas limitações, a análise possível da caracterização social dos


jovens, do processo e das medidas aplicadas vale como indicador da realidade
da criminalidade juvenil portuguesa, da utilização dos instrumentos ao dispor
do MP e dos tribunais para lidar com essa criminalidade quando ela é
conhecida e, em última análise, como, quando e em relação a quem o sistema
utiliza os meios de reacção que tem ao seu dispor.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 203

1. O movimento dos processos tutelares educativos

1. 1. O movimento processual na fase do inquérito

O Gráfico V.1 mostra os dados do movimento dos processos tutelares


educativos entrados, pendentes e findos, em 2001 e 2002, na fase de inquérito.

Gráfico V.1
Movimento processual – Inquérito
2001-2002

9321
10000

9000
7526
7316
8000 6996

7000

6000
2001
5000 2002

4000 3021
2826

3000

2000

1000

0
Pendentes em 01/01 Entrados Findos

Fonte: Relatórios anuais da PGR

Em 2001, após a entrada em vigor da Lei Tutelar Educativa (LTE) - Lei n.º
166/99, de 14 de Setembro - o Ministério Público iniciou 9 321124 processos
tutelares educativos, finalizou 6 996 e tinha pendentes 3 021, dos quais 107
(3,5%) por aplicação da suspensão do processo (artigo 84.º e ss. da LTE).

124
De acordo com os dados da PGR, o MP recebeu, do ano 2000, 302 inquéritos de processos
tutelares educativos. Dado que só em 2001 entrou em vigor a LTE é de supor que, em bom
rigor, aos 9 321 inquéritos entrados se devem somar estes 302 que, se admite, serão,
provavelmente, conversões dos chamados “processos administrativos” em processos tutelares,
o que necessitará de posterior confirmação.
204 Capítulo V - Entre dois olhares

Em 2002, em consequência do aumento de 7,6% dos inquéritos findos


(de 6 996, em 2001, para 7 526, em 2002) e da diminuição de 21,5% dos
inquéritos entrados (de 9 321, em 2001, para 7 316, em 2002), verificou-se
uma diminuição de 6,5% de inquéritos pendentes (de 3 021, em 2001, para
2 826, em 2002).

Embora não tenha sido objecto de estudo neste relatório, a diminuição de


inquéritos entrados em 2002 pode ser um sintoma relevante no contexto da
justiça de menores. Será importante verificar, em primeiro lugar, se essa
diminuição do volume de inquéritos abertos se manteve e, em segundo lugar,
se se deveu a uma diminuição espontânea da criminalidade juvenil registada
nas instâncias formais, a uma diminuição da criminalidade juvenil provocada
pelos mecanismos preventivos que foram iniciados em 2000125, ou, ainda, a
uma diminuição da intervenção policial enquanto mobilizadores dos inquéritos
tutelares educativos.

Em ambos os anos, a larga maioria dos processos tutelares de inquérito


abertos terminaram com o arquivamento. Em 2001, 79% (5 522) dos processos
de inquérito findaram por arquivamento e apenas 9% (631) por remessa para a
fase jurisdicional e, em 2002, 67,9% (5 113) e 15,5% (1 169), respectivamente.
Há, portanto, uma diminuição do peso relativo dos arquivamentos no total de
processos de inquérito findos (de 79% (5 522), em 2001, para 68% (5 113), em
2002) e um aumento, num ano, de 85,3% no número de processos de inquérito
findos por remessa para a fase jurisdicional.

125
Como já referimos no Capítulo I, em Portugal existem alguns programas e associações que
agem no sentido de prevenir a criminalidade juvenil, assumindo, também, o papel de
mediadores sociais e comunitários de determinados conflitos. Podemos referir, a título de
exemplo, três projectos muito diferentes, mas igualmente importantes: a Associação Cultural
Moinho da Juventude, o Programa Escolhas e o Programa Escola Segura (cf. Capítulo I).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 205

Gráfico V.2
Causas de extinção dos inquéritos tutelares educativos
2001-2002

5522
6000
5113

5000

4000

3000

2000 1244
1169

843
631
1000

0
Remessa para tribunal Arquivado Remetido para outro MP

2001 2002

Fonte: Relatórios anuais da PGR

Nesta fase, é de salientar o aumento muito pouco significativo de


suspensões provisórias no número de processos pendentes em 2002, (de 3,5%
(107), em 2001, para 3,9% (110), em 2002), o que denota alguma resistência
na aplicação deste instituto.

Podemos concluir, assim, em primeiro lugar, que não se verificou um


aumento significativo, de 2001 para 2002, da criminalidade juvenil registada;
pelo contrário, de acordo com os dados da PGR, em 2002, diminuiu o número
dos inquéritos iniciados.

Em segundo lugar, e apesar da quase duplicação do número de


inquéritos tutelares educativos findos por remessa para a fase jurisdicional,
cerca de 70% dos inquéritos terminaram, em 2002, por arquivamento, o que
parece indiciar a pequena gravidade da larga maioria dos actos registados
como criminalidade juvenil ou, eventualmente, a insuficiente recolha de provas
206 Capítulo V - Entre dois olhares

da prática do acto qualificado como crime, por parte das polícias e do Ministério
Público.

Em terceiro lugar, em consequência do elevado número de


arquivamentos, é de notar que, em 2001, 9% e, em 2002, 15,5% dos processos
findaram por remessa para a fase jurisdicional (o que representa, contudo,
como vimos, um aumento de 85,3%).

O conhecimento das razões desta situação exige um estudo


especialmente direccionado para tal, tendo em atenção que toda a lógica do
“novo” sistema processual da justiça tutelar educativa assenta na resolução
dos casos o mais breve possível e sem recurso à via judicial. É importante, por
isso, apurar se, nesta matéria, existe e em que medida uma disjunção entre os
objectivos da lei e a sua prática. Exemplo dessa disjunção, que nos parece
importante realçar, é a escassa utilização dos mecanismos de diversão
previstos na lei. Os dados existentes sobre a suspensão provisória do processo
mostram que os números são muito pouco significativos (como referimos, 107
casos, em 2001, e 110, em 2002).

1. 2. O movimento processual na fase jurisdicional

Como já deixámos dito, a LTE determinou a reclassificação dos


processos tutelares pendentes, classificando como processos tutelares
educativos aqueles que tinham por objecto a prática, por um jovem com idade
compreendida entre os 12 e os 16 anos, de actos qualificados pela lei penal
como crime; e como processos de promoção e protecção os restantes.

Neste ponto, iremos proceder à análise do volume dos processos


tutelares educativos entrados, pendentes e findos que chegaram à fase
jurisdicional durante os dois anos de vigência da referida Lei relativamente aos
quais temos informação estatística oficial.

O Gráfico V.3 mostra o número de processos tutelares educativos na fase


jurisdicional, em 2001 e em 2002.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 207

Gráfico V.3
Processos tutelares educativos pendentes, entrados e findos
(2001-2002)

7000
6030

6000
4954

5000

4000

2470
3000
1905
1731
1495
2000

1000

0
Entrados Findos Pendentes

2001 2002

Fonte: Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça

Como vimos no ponto anterior, o número de inquéritos findos, de acordo


com os dados da PGR, por remessa para a fase jurisdicional aumentou 85,3%
de 2001 para 2002, contudo, atendendo aos dados do GPLP disponíveis
relativamente à fase jurisdicional, apenas se registou um aumento de 15,8%
(de 1.495 em 2001, para 1.731, em 2002)126.

O elevado número de processos pendentes no início de 2001 poderá ter


como explicação a maior duração dos processos ao abrigo da Organização
Tutelar de Menores (OTM) e a conversão daqueles que se referiam a jovens
que houvessem cometido factos qualificados como crime, por força da lei, em
processos tutelares educativos.

126
Note-se que a discrepância entre os dados da PGR relativos aos inquéritos findos por
remessa para fase jurisdicional e os dados do GPLP relativos aos processos tutelares
educativos entrados na fase jurisdicional em 2001 apresentam uma diferença de 136,9% (de
631 para 1 495) e, em 2002, de 48,1% (de 1 169 para 1 731). Haverá, por isso, que analisar,
em detalhe, quais as razões desta discrepância e, se for esse o caso, realizar um esforço de
harmonização destes dados.
208 Capítulo V - Entre dois olhares

O Gráfico V.4 mostra os motivos de extinção dos processos tutelares


educativos nos anos de 2001 e 2002.

Gráfico V.4
Motivos de extinção dos processos tutelares educativos

2001 2002
Arquivamento Liminar Arquivamento Liminar
579 47
12% 2% Arquivamento
Aplicação de Medida 390
1444
20%
29%

Arquivamento
1498
30%
Aplicação de Medida
1071
Remessa para outro 57% Remessa para outro
Tribunal Tribunal
1433 397
29%
21%

Fonte: Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça

Como se pode ver pelo Gráfico V.4, regista-se, igualmente, um elevado


número de processos findos, que se pode justificar pelo número também
elevado de processos findos por remessa para outro Tribunal e por
arquivamento liminar (a variação de 2001 para 2002 relativa a processos
arquivados liminarmente e a processos findos por remessa para outro Tribunal
foi de menos 91,9% (de 579 para 47 processos) e de menos 72,3% (de 1 433
para 397 processos, respectivamente).

É ainda de notar, em 2002, o aumento do peso relativo da extinção dos


processos tutelares educativos por aplicação de medidas (de 29%, em 2001,
para 57%, em 2002).

Uma primeira conclusão que podemos retirar da análise destes dados é


que há na justiça tutelar educativa, devido às regras de competência, uma
elevada percentagem de processos que finda por “remessa para outro
Tribunal”, podendo representar um sinal de elevada mobilidade dos jovens. O
tratamento estatístico desta variável poderá, ainda, implicar uma
sobrerepresentação da criminalidade juvenil registada. A não existir filtragem,
num mesmo ano são dados como findos processos que continuam a correr
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 209

termos noutro Tribunal, ocupando o sistema de justiça, e são dados como


entrados processos que já estão incluídos nos números oficiais. Embora se
reconheça que, em cada Tribunal, a contabilização destes processos deva ser
feita para aferir o volume do seu trabalho, em termos nacionais, tem de se ter
em consideração esta realidade para a correcta representação da criminalidade
juvenil registada. Esta situação implica, ainda, naturalmente, um maior volume
de trabalho dos tribunais.

Uma segunda conclusão que se pode retirar dos dados apresentados é


que se, como já vimos no ponto 2.1, apenas 15,5% (em 2002) da criminalidade
juvenil registada pelo MP chegou a Tribunal, e se desses 15,5% só a um pouco
mais de metade é aplicada uma medida tutelar, a uma grande percentagem
(cerca de 90%) da criminalidade juvenil registada não é aplicada medida.
Consequentemente, só a cerca de 10% da criminalidade juvenil registada pelo
MP é aplicada uma medida tutelar na fase jurisdicional. Como veremos adiante,
esta percentagem de 10% de criminalidade juvenil registada a que é aplicada
uma medida tutelar, é decidida, em grande parte, de forma consensual, na
audiência preliminar, sendo esta uma questão que tem que ser estudada em
detalhe.
210 Capítulo V - Entre dois olhares

2. Os jovens enquanto sujeitos do novo processo jurisdicional127

2. 1. O sexo, a idade e a nacionalidade dos jovens

No âmbito de aplicação da LTE, a grande maioria de jovens que foram


objecto de um processo tutelar educativo que chegou à fase jurisdicional e aos
quais foi aplicada uma medida tutelar é do sexo masculino (88%) (Gráfico V.5).

Gráfico V.5
Sexo dos jovens

2001 2002

172 136
12% 12%

1227 1001
88% 88%

Feminino Masculino Feminino Masculino

Fonte: Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça

Nos anos de 2001 e de 2002, de entre os jovens aos quais foi aplicada
uma medida tutelar, é manifesta a prevalência daqueles que, à data do início
da fase jurisdicional do processo tutelar, tinham 14 ou 15 anos (51,8%, em
2001, e 52,1%, em 2002) (Gráfico V.6).

127
Como já referimos no início desta secção, a caracterização dos jovens sujeitos de um
processo tutelar educativo em fase jurisdicional findo em 2001 e em 2002 foi realizada através
dos dados recolhidos pelo Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da
Justiça, com base no boletim de notação estatística para o processo tutelar educativo (Modelo
329). Conforme já referimos, este boletim, contudo, é apenas preenchido “para os processos
findos com aplicação de medida”, sendo que relativamente ao mapa do movimento mensal de
processos tutelares educativos, modelo 228/GPLPMJ/DSEJ, “apenas os processos findos com
aplicação de medida (1ª medida ou revisão de medida aplicada – colunas 9 e 10 do quadro III
do mapa modelo nº 228/GPLPMJ/DSEJ) determinam o preenchimento do boletim para
processos tutelares educativos”. Assim, dos 4 954 processos tutelares educativos findos em
2001, as bases de dados do GPLP correspondentes ao Modelo 329 apenas contêm a
caracterização de 1 387 processos, a que correspondem 1 399 sujeitos processuais. Em 2002
a discrepância é já menor. Dos 1 905 processos dados como findos na base de dados
referente ao movimento processual é possível fazer a caracterização de 1 034 processos
findos em 2002 a que correspondem 1 137 sujeitos processuais.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 211

Gráfico V.6
Idade dos jovens
(2001-2002)

35,0
31,3

29,0
30,0

25,0 22,8
20,8

20,0 17,7 18,0

15,6
14,1
15,0
11,2
9,2
10,0
6,5

3,7
5,0

0,0
12 13 14 15 16 17 ou mais

2001 2002

Fonte: Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça

Como se pode ver pelo Gráfico, o peso relativo dos jovens que à data do
início da fase jurisdicional do processo tutelar tinham 12 ou 13 anos é ainda
relevante (em média, cerca de 28%) embora, num ano, diminua 10% (de
33,3%, em 2001, para 23,3%, em 2002).

Contudo, é de assinalar que essa diminuição do peso relativo dos jovens


com 12 ou 13 anos não se manifestou num aumento do número de jovens com
14 ou 15 anos mas no aumento do número de jovens com 16, 17 ou mais anos
da idade128. Em 2001, 11% dos jovens tinham 16 anos e 3,7%, 17 ou mais
anos; enquanto que, em 2002, o seu peso relativo subiu para 18% e 6,5%,
respectivamente. Um dos aspectos da nova LTE, que consideramos positivo, é
a possibilidade de acompanhamento dos jovens “mais velhos”, através deste
sistema, ainda que se tenham tornado criminalmente imputáveis.

128
A LTE aplica-se também aos menores de 18 anos à data da decisão em primeira instância,
desde que os factos classificados como crime tenham sido cometidos antes de completar os 16
anos (artigo 28.º da LTE).
212 Capítulo V - Entre dois olhares

No âmbito de aplicação da LTE, a grande maioria de jovens, que foram


objecto de um processo tutelar educativo que chegou à fase jurisdicional e aos
quais foram aplicadas medidas tutelares, é de nacionalidade portuguesa
(97,6%, em 2001, e 97%, em 2002).

Gráfico V.7
Nacionalidade dos jovens
(2001-2002)

97,6 97,0
100,0

90,0

80,0

70,0

60,0
Portuguesa
50,0 Estrangeira

40,0

30,0

20,0
2,4 3,0
10,0

0,0
2001 2002

Fonte: Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça

De acordo com um estudo do Observatório da Imigração, de 2003, de


Maria João Valente Rosa, Hugo Seabra e Tiago Santos, “a população de
nacionalidade estrangeira equivale a 2,2% (Censo de 2001) do total de
residentes em Portugal. À escala regional (NUTS III), apenas três regiões
apresentam percentagens de estrangeiros superiores àquele valor nacional.
São elas a Grande Lisboa (5%), a Península de Setúbal (4%) e o Algarve (6%)”
(Rosa, Seabra e Santos, 2003:48). Atendendo a estes números, a
representação de menores de nacionalidade estrangeira no total de processos
tutelares educativos em fase jurisdicional e a quem foi aplicada uma medida
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 213

tutelar é semelhante à percentagem de população estrangeira a residir em


Portugal (de acordo com os dados de 2001).

Considerando, por seu lado, os dados referentes aos jovens estrangeiros,


sujeitos de um processo tutelar educativo findo em 2001 ou 2002, residentes
na área da Grande Lisboa, aos quais foi aplicada uma medida tutelar
educativa, verificamos que o seu número (16, por ano, em média) representa
cerca de 8% do total de jovens, residentes nessa área, sujeitos de um processo
tutelar educativo findo em 2001 ou 2002, aos quais foi aplicada uma medida
tutelar educativa (196 jovens, em média, por ano) (cf. Quadro V.10). Os dados
parecem, assim, indiciar, uma sobrerepresentação de jovens estrangeiros,
residentes na área da Grande Lisboa, em relação à percentagem de população
estrangeira aí residente.

2. 2. A situação e a residência do jovem

De acordo com os dados do GPLP, a grande maioria dos jovens (92,4%,


em média) sujeitos de processos tutelares educativos findos nos anos de 2001
e 2002, e aos quais foi aplicada uma medida tutelar não era órfão e apenas
1,8% era órfão de ambos os pais. Assim, em regra, a grande maioria dos
jovens que foram objecto de um processo tutelar educativo que chegou à fase
jurisdicional e aos quais foi aplicada uma medida tutelar estava a viver com
ambos ou apenas com um dos progenitores (83,6%, em 2001, e 81,6%, em
2002) (Gráfico V.8).
214 Capítulo V - Entre dois olhares

Gráfico V.8
Situação dos jovens
(2001-2002)

83,6
90,0 81,6

80,0

70,0

60,0

50,0

40,0

30,0

20,0 9,5
7,4
4,5 3,1 4,8
1,5 2,4 1,7
10,0

0,0
2001 2002

A viver com o pai e/ou a mãe Internado em estabelecimento / centro educativo


A viver com outra pessoa de família Abandonado
A viver com outra pessoa

Fonte: Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça

Contudo, os dados estatísticos revelam que, de 2001 para 2002, houve


uma subida, ainda que ligeira, do número de jovens internados em
estabelecimento ou Centro Educativo. Se esta situação se mantiver pode
significar um crescimento da prática de factos qualificados como crime entre os
jovens que, à data do início da fase jurisdicional129 e aos quais é aplicada uma
medida tutelar já se encontram internados em estabelecimento ou Centro
Educativo. Esta situação pode, por sua vez, indiciar, no seu lastro o, eventual,
aumento de medidas cautelares de guarda ou a insuficiência da intervenção
dos organismos de Segurança Social aquando da aplicação de medidas de
promoção ou de protecção de internamento em instituição.

De acordo com os dados do GPLP relativos aos jovens sujeitos de


processos tutelares educativos findos e aos quais foi aplicada uma medida

129
Cf. alínea h) das instruções de preenchimento do boletim de notação estatística referente à
caracterização dos processos tutelares educativos findos (Modelo 329): “Preencher reportando
a informação à data do início do processo”.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 215

tutelar nos anos de 2001 e 2002, a residência da grande maioria dos jovens
delinquentes situava-se no litoral do país (73,4%) (Quadro V.1).

Quadro V.1
Residência dos jovens
(2001-2002)

2001 2002 Total


Nº % % acum Nº % % acum Nº % % acum

Porto 236 17,5 17,5 234 20,8 20,8 470 19,0 19,0
Lisboa 218 16,2 33,7 249 22,2 43,0 467 18,9 37,9
Setúbal 107 7,9 41,6 76 6,8 49,8 183 7,4 45,3
Faro 103 7,6 49,3 67 6,0 55,7 170 6,9 52,2
Braga 96 7,1 56,4 66 5,9 61,6 162 6,6 58,8
Aveiro 97 7,2 63,6 52 4,6 66,3 149 6,0 64,8
Coimbra 43 3,2 66,8 67 6,0 72,2 110 4,5 69,2
Leiria 70 5,2 72,0 33 2,9 75,2 103 4,2 73,4
Funchal 39 2,9 74,9 63 5,6 80,8 102 4,1 77,5
Ponta Delgada 55 4,1 78,9 15 1,3 82,1 70 2,8 80,4
Outros 284 21,1 100,0 201 17,9 100,0 485 19,6 100,0
Total Geral 1348 100 1123 18 2471 20
N.a. ou n.e. 51 14 65

Fonte: Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça

Como seria de esperar devido à sua densidade populacional, os distritos


com o maior número de jovens julgados em processo tutelar educativo aos
quais foi aplicada medida tutelar são os distritos do Porto (236 casos, em 2001,
e 234, em 2002) e de Lisboa (218, em 2001, e 249, em 2002). Em termos
percentuais, 5 distritos representaram cerca de 60% da criminalidade juvenil
julgada: Porto, Lisboa, Setúbal, Faro e Braga.

Dos jovens julgados em processo tutelar educativo findo e aos quais foi
aplicada uma medida tutelar, em 2001 ou 2002, residentes em Lisboa, a maior
percentagem (29,6%) residia no concelho de Lisboa, 12,6% em Loures, 11,4%
na Amadora e 10,5% em Cascais. No que se refere ao distrito do Porto, 33,8%
residia no concelho do Porto, 14% em Matosinhos e 8,7% em Vila Nova de
Gaia.
216 Capítulo V - Entre dois olhares

Quadro V.2
Residência das crianças e jovens – Distritos de Lisboa e Porto
(2001-2002)

2001 2002 Total


Nº % Nº % Nº %
Lisboa 65 29,82 73 29,32 138 29,55
Loures 27 12,39 32 12,85 59 12,63
Amadora 19 8,72 34 13,65 53 11,35
Cascais 17 7,80 32 12,85 49 10,49
Lisboa Oeiras 13 5,96 28 11,24 41 8,78
Sintra 18 8,26 6 2,41 24 5,14
Vila Franca de Xira 20 9,17 4 1,61 24 5,14
Outros 39 17,89 40 16,06 79 16,92
Total 218 100,00 249 100,00 467 100,00

Porto 81 34,32 78 33,33 159 33,83


Matosinhos 30 12,71 36 15,38 66 14,04
Vila Nova de Gaia 23 9,75 18 7,69 41 8,72
Gondomar 15 6,36 8 3,42 23 4,89
Amarante 13 5,51 9 3,85 22 4,68
Porto
Felgueiras 5 2,12 16 6,84 21 4,47
Maia 11 4,66 9 3,85 20 4,26
Paços de Ferreira 4 1,69 14 5,98 18 3,83
Outros 54 22,88 46 19,66 100 21,28
Total 236 100,00 234 100,00 470 100,00

Fonte: Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça

A criminalidade juvenil registada130 é, em termos absolutos, de origem


urbana, em especial, sedeada nas maiores cidades, confirmando-se, assim, a
urbanização desta criminalidade juvenil. Como já referimos no Capítulo I, é nas
grandes cidades e, designadamente, nas suas periferias que as instâncias
sociais de integração dos jovens “à beira de pisar o risco da criminalidade”
(nomeadamente, a família, as relações pessoais entre a família do jovem e o
ofendido, a escola e, eventualmente, a igreja) são mais desestruturados,
inexistentes ou têm pouca influência em relação aos jovens. Esta situação
pode levar a que os factos que são registados como criminalidade juvenil nas
grandes cidades, chegando às instâncias jurisdicionais de resolução de litígios,
podem não ser sequer entendidos como criminalidade em meios mais

130
Consideramos criminalidade juvenil registada como o número de jovens aos quais, sendo
sujeitos de um processo tutelar educativo, foi aplicada uma medida tutelar educativa.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 217

pequenos, ou sendo-o, não necessitam de ser resolvidos por instâncias


formais131.

2. 3. O grau de instrução e a situação perante o trabalho dos jovens

Em 2001 e 2002, os jovens julgados em processo tutelar educativo e aos


quais foi aplicada uma medida tutelar educativa tinham ou frequentavam, na
sua grande maioria, o ensino básico (72%, em 2001, e 69%, em 2002) (Gráfico
V.9).

Gráfico V.9
Grau de instrução dos jovens

2001 2002
Sabe ler Não sabe ler, nem escrever
38 13 Não sabe ler, nem escrever
Sabe ler 15
3% 1%
47 1%
4%

Ensino Secundário
329
24% Ensino Secundário
295
26%

Ensino Básico Ensino Básico


1019 780
72% 69%

Fonte: Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça

131
É possível ainda que, embora sejam resolvidos por recurso ao Tribunal, devido às normas
de preenchimento dos boletins Modelo 329, por findarem sem a aplicação de uma medida
tutelar educativa esses processos não figurem nas estatísticas oficiais de caracterização de
processos tutelares findos.
218 Capítulo V - Entre dois olhares

Contudo, é de assinalar a subida de 3% para 4% dos jovens que apenas


sabiam ler. Se, embora diminuto, este aumento do número de jovens
“delinquentes” sem o ensino básico continuar poderá ser um sintoma do cada
vez maior abandono escolar precoce por parte dos jovens com consequências
na sua actividade criminal.

Por outro lado, dado que o ensino básico compreende 9 anos de


escolaridade, e não existem dados mais detalhados em relação a este facto,
não podemos saber se os jovens que praticam factos qualificados como crime
e aos quais é aplicada uma medida tutelar educativa têm um grau de
escolaridade inferior ou não ao que seria adequado para a sua idade.

Quanto à condição perante o trabalho, no período 2001-2002, em média,


67,6% dos jovens estudava, situação esperada atendendo à sua idade; 9%
estava a trabalhar; e 3,3% a trabalhar e a estudar.

Gráfico V.10
Condição perante o trabalho dos jovens
(2001-2002)

70,0

60,0

50,0

40,0

30,0

20,0

10,0

0,0
A estudar A trabalhar e a estudar A trabalhar Outras, ignoradas ou n.e.

2001 2002

Fonte: Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça


Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 219

É de notar, todavia, a falta de informação concreta sobre a condição


perante o trabalho dos jovens sujeitos a um processo tutelar educativo, dado
que em cerca de 20% dos casos o jovem tinha outra condição perante o
trabalho ou esta é ignorada ou não existente. Assim, traçando um breve perfil
sociológico dos jovens julgados em processo tutelar educativo e aos quais foi
aplicada uma medida tutelar educativa em 2001-2002, estes eram, na sua
maioria, nacionais portugueses, do sexo masculino, tinham entre os 14 e os 15
anos, viviam com ambos ou apenas um dos progenitores, em Lisboa ou no
Porto, e tinham e/ou frequentavam o ensino básico e, como veremos mais
adiante, praticaram factos qualificados como crimes contra a propriedade.

3. O processo tutelar educativo

3. 1. Os mobilizadores do processo tutelar educativo

Actualmente, como já referimos, o processo tutelar educativo inicia-se


com a abertura de um inquérito logo que o Ministério Público tenha
conhecimento da prática, por um jovem, de um facto qualificado pela lei como
crime132.

Como podemos ver pelo Gráfico V.11, em 2001 e 2002, os mobilizadores


do processo tutelar educativo foram, de uma forma bem destacada, as
autoridades policiais.

132
Cf. artigo 74.º da LTE.
220 Capítulo V - Entre dois olhares

Gráfico V.11
Mobilizadores do processo tutelar educativo
(2001-2002)

70,0 67,3 64,7

60,0

50,0

40,0

30,0

20,4
20,0 17,4

10,4
10,0 7,9
6,0
2,9
1,4 1,6

0,0
Partic. de autoridade Partic. de outras Partic. de outra pessoa Partic. da CP de Partic. dos pais ou de
policial entidades Menores familiares

2001 2002

Fonte: Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça

Comparando os dados de 2001 com os de 2002, parece existirem duas


tendências em formação e que, a confirmarem-se, podem significar um maior
peso das participações por parte de outras entidades e de outras pessoas, em
especial, das escolas e dos ofendidos133, e, em sentido contrário, uma
diminuição das participações efectuadas pelas Comissões de Protecção de
Menores.

3. 2. A suspensão do processo por parte do MP

Quando analisámos os números da PGR relativos à suspensão do


processo tutelar educativo por iniciativa do Ministério Público verificámos que o
número de processos que se encontravam pendentes devido a suspensão foi,

133
Cf. infra, secção II, em relação aos dados recolhidos pelo Observatório Permanente da
Justiça Portuguesa no estudo efectuado nos tribunais de família e menores de Lisboa e de
Coimbra.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 221

em 2001 e em 2002, muito reduzido (107 e 110, respectivamente). Embora não


possamos comparar os dados por se reportarem a realidades distintas, o
número de processos entrados na fase jurisdicional, que findaram com a
aplicação de uma medida tutelar educativa, e que haviam antes sido
suspensos é ainda relevante (93, em 2001, e 68, em 2002), o que parece
significar uma taxa de sucesso reduzido da referida medida, pelo menos nestes
dois primeiros anos de aplicação da LTE.

Gráfico V.12
Processos suspensos pelo Ministério Público que chegaram à fase jurisdicional

2001 2002

93
68

1306
1069

Proc. suspensos Proc. não suspensos


Proc. suspensos Proc. não suspensos

Fonte: Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça

3. 3. A mediação

A LTE estabelece a possibilidade do recurso à mediação, no decorrer do


processo tutelar educativo, com vista à realização das finalidades do processo,
isto é, educar o menor para o direito e inseri-lo de forma digna e responsável
na sociedade. Deste modo, o juiz ou o Ministério Público podem, por sua
iniciativa, do jovem ou dos seus pais, determinar a cooperação de entidades
públicas ou privadas de mediação (artigo 42.º da LTE).
222 Capítulo V - Entre dois olhares

O Gráfico V.I.13 mostra os indicadores estatísticos sobre a utilização do


instituto da mediação nos anos de 2001 e 2002.

Gráfico V.13
Recurso à mediação
(2001-2002)

100% 3,7
6,9
90%

80%
96,3
70%
93,1

60%

50%

40%

30%

20%

10%

0%

2001
2002

Não Sim

Fonte: Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça

Se é certo que os dados estatísticos ainda são muito recentes, os que


existem revelam um fraco recurso à mediação. Em 2001, em 3,7% do total dos
processos entrados na fase jurisdicional que terminaram com a aplicação de
uma medida tutelar educativa houve recurso à mediação, aumentando para
6,9%, em 2002. É importante acompanhar esta, eventual, alteração, assim
como estudar as condições do seu funcionamento e avaliar a sua eficácia. É,
contudo, de referir que esta matéria não foi, ainda, regulamentada nem
desenvolvida e nem sequer foram, do nosso conhecimento, criadas entidades
de mediação específicas para o Direito de Menores.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 223

3. 4. Perícias sobre a personalidade do jovem

As perícias sobre a personalidade do jovem podem representar um


auxiliar precioso para o processo de tomada de decisão por parte do juiz134.
Considerando os 1 399 jovens sujeitos a processo tutelar educativo findo em
2001, foram pedidas 1 164 perícias, 998 ao IRS e 176 a outro serviço ou
entidade, ou seja, foram pedidas perícias sobre a personalidade do jovem em
83% dos casos. Em 2002, relativamente a 1 137 jovens foram pedidas 986
perícias sobre a personalidade, tendo o seu peso relativo aumentado para
86%.

Gráfico V.14
Perícias sobre a personalidade do menor
(2001-2002)

988

1000
863

900

800

700

600

500

400

300 176
124
200

100

0
2001 2002

Por serviço do Instituto de Reinserção Social Por outro serviço ou entidade

Fonte: Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça

134
Os artigos 68.º e 69.º da LTE definem o regime dos exames e das perícias, referindo que as
perícias sobre a personalidade do menor são ordenadas pelo juiz aos serviços do instituto de
reinserção social “quando for de aplicar medida de internamento em regime fechado”.
224 Capítulo V - Entre dois olhares

Os dados estatísticos mostram uma generalização dos requerimentos de


perícias sobre a personalidade do jovem. Pode-se questionar a necessidade
destas perícias quando constatamos que, em 81% dos casos em que ao jovem
foi aplicada uma medida de admoestação135 foi, também, requerida perícia
sobre a personalidade136. Da aparente rotinização do requerimento de perícia
sobre a personalidade parece resultar a necessidade de, em estudo posterior,
se aprofundar a necessidade ou pertinência de uma maior selectividade na
mobilização de recursos do Instituto de Reinserção Social, por parte dos
tribunais, para este fim.

3. 5. Factos praticados pelo jovem qualificados como crime

De acordo com o boletim de notação para processos tutelares educativos


(Modelo 329), os dados referentes à “prática de acto qualificado como crime”
devem ser recolhidos considerando apenas o acto correspondente ao tipo de
crime mais grave. Esta limitação do boletim não permite uma análise de todos
os factos praticados pelos jovens aos quais foi aplicada uma medida tutelar
educativa que são qualificados como crimes e não permitirá, depois, ao estudar
as medidas aplicadas aos jovens, determinar se a medida foi aplicada apenas
pela prática de um facto qualificado como crime ou por vários factos.

Atendendo a esta limitação, iremos analisar os factos correspondentes


aos tipos de crime mais graves praticados pelos jovens. O Quadro V.3 mostra
os dez tipos de factos qualificados como crime mais representativos praticados
por jovens sujeitos de um processo tutelar educativo aos quais foi aplicada uma
medida tutelar, em 2001 e 2002.

135
Embora o boletim (Modelo 329) permita o preenchimento múltiplo da variável “medida
aplicada”, a diferença entre medidas aplicadas, revisões de medida em que aquela foi
substituída e o número de jovens não é relevante para a análise em questão.
136
Embora não existam dados oficiais podemos questionar se, para os processos tutelares
educativos findos por outro motivo que não a aplicação de medida tutelar, também são pedidas
perícias sobre a personalidade e se o seu número é, também, tão relevante como para os
casos em que é aplicada uma admoestação.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 225

Quadro V.3
Factos qualificados como crime – 10 tipos mais representativos
(2001-2002)

2001 2002 TOTAL


Prática de Actos Qualificados como Crime
Nº % Nº % Nº %
Furto simples e qualificado 694 49,6 545 47,9 1239 48,9
Dano simples e qualificado 182 13,0 67 5,9 249 9,8
Ofensa à integridade física simples e privilegiada 140 10,0 95 8,4 235 9,3
Condução sem habilitação legal 141 10,1 93 8,2 234 9,2
Roubo ou violência depois da subtracção 53 3,8 154 13,5 207 8,2
Tráfico de estupefacientes e consumo 33 2,4 34 3,0 67 2,6
Crimes contra a liberdade sexual 31 2,2 21 1,8 52 2,1
Outros crimes contra a honra 18 1,3 18 1,6 36 1,4
Violação de domicílio, introdução lugar vedado público 18 1,3 12 1,1 30 1,2
Ameaça ou coacção 17 1,2 9 0,8 26 1,0
Outros crimes 72 5,1 89 7,8 161 6,3
Total: 1399 100 1137 100 2536 100

Fonte: Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça

Os factos qualificados como crimes de furto simples e qualificado foram


os tipos de crime mais praticados (49,6%, em 2001, e 48,9%, em 2002). Os
factos qualificados como crime de dano foram os segundos mais
representativos –– integrando-se, ainda, na categoria de crimes contra o
património. Os factos qualificados como crimes de ofensa à integridade física
simples e privilegiada e como crime de condução sem habilitação legal, foram
os terceiro e quarto mais representativos, respectivamente, com pesos relativos
próximos (9,3% e 9,2%, em média, respectivamente). De notar que os factos
qualificados como crimes relacionados com o tráfico de estupefacientes
apresentam um peso relativo bastante baixo, (em média, 2,6%), assim como os
qualificados como crimes de violação de domicílio e introdução em lugar
vedado ao público (em média, 1,2%). Merece, ainda, referência o aumento, de
2001 para 2002, do peso relativo dos factos qualificados como crimes de roubo
ou violência após a subtracção (de 3,8%, em 2001, para 13,5%, em 2002).

Analisando os tipos de factos qualificados como crime agrupados137 mais


praticados pelos jovens sujeitos a medida tutelar educativa, cujo processo

137
O agrupamento dos tipos de crime foi realizado tendo em atenção a sistematização do
Código Penal, individualizando-se o crime de condução sem habilitação legal devido ao seu
peso relativo.
226 Capítulo V - Entre dois olhares

tutelar educativo findou em 2001 ou 2002, podemos referir que três categorias
englobam, em média, cerca de 87% da criminalidade juvenil: crimes contra a
propriedade (67,8%), crimes contra a integridade física (9,7%) e crime de
condução sem habilitação legal (9,2%).

Quadro V.4
Factos qualificados como crime agrupado
(2001-2002)

Prática de Actos Qualificados como Crime 2001 2002 Total


Nº % Nº % Nº % % acum
Crimes contra a propriedade 937 67,0 782 68,8 1719 67,8 67,8
Crimes contra a integridade física 144 10,3 103 9,1 247 9,7 77,5
Condução sem habilitação legal 141 10,1 93 8,2 234 9,2 86,8
Crimes respeit. a estupefacientes e subst. psicotrópicas 33 2,4 34 3,0 67 2,6 89,4
Crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual 33 2,4 21 1,8 54 2,1 91,5
Outros crimes ou não especificados 111 7,9 104 9,1 215 8,5 100,0
Total 1399 100 1137 100 2536 100

Fonte: Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça

Em 2001 e 2002, os factos qualificados como crimes de furto simples e


qualificado são os mais praticados, quer pelos jovens do sexo masculino
(46,6%, em média), quer do sexo feminino (49,4%, em média) (Quadro V.5).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 227

Quadro V.5
Factos qualificados como crime por sexo
(2001-2002)

Masculino
2001 2002 TOTAL
Tipo de Crime
Nº % Nº % Nº %
Furto simples e qualificado 607 49,5 480 48,0 1087 46,6
Dano simples e qualificado 165 13,4 64 6,4 229 10,7
Condução sem habilitação legal 127 10,4 87 8,7 214 10,0
Ofensa à integridade fisica simples e privilegiada 115 9,4 79 7,9 194 9,1
Roubo ou violência depois da subtracção 52 4,2 130 13,0 182 8,5
Outros crimes 161 13,1 161 16,1 322 15,1
Total 1227 100 1001 100 2228 100
Feminino
2001 2002 TOTAL
Tipo de Crime
Nº % Nº % Nº %
Furto simples e qualificado 87 50,6 65 47,8 152 49,4
Ofensa à integridade fisica simples e privilegiada 25 14,5 16 11,8 41 13,3
Roubo ou violência depois da subtracção 1 0,6 24 17,6 25 8,1
Dano simples e qualificado 17 9,9 3 2,2 20 6,5
Condução sem habilitação legal 14 8,1 6 4,4 20 6,5
Outros crimes 28 16,3 22 16,2 50 16,2
Total 172 100 136 100 308 100
Total Geral 1399 1137 2536

Fonte: Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça

Surge, todavia, uma diferença quanto à segunda categoria de factos


qualificados como crimes mais praticados por cada um dos sexos. Em ambos
os anos, os factos qualificados como crimes de ofensa à integridade física
foram os segundos factos mais praticados pelos jovens do sexo feminino
(14,5%, em 2001s e 12,8%, em 2002) enquanto que em relação aos jovens do
sexo masculino, os segundos factos qualificados como crime mais praticados
são os crimes de dano simples e qualificado, seguidos pelos factos qualificados
como crimes de condução sem habilitação legal (em média, 10,7% e 10%,
respectivamente). Os factos qualificados como crimes de ofensa à integridade
física surge em quarto lugar.

Como podemos ver pelo Quadro V.6, e considerando os cinco tipos de


factos qualificados como crimes mais representativos em 2001 e 2002,
verificamos que, quer os factos qualificados como crimes de furto simples e
qualificado, quer como crimes de ofensa à integridade física, foram mais
cometidos por jovens entre os 14 e os 15 anos de idade (21,3% e 26,7%;
228 Capítulo V - Entre dois olhares

21,3% e 29,8%, em média, respectivamente), embora a percentagem se


distribua sem grandes diferenças por todas as classes etárias, com excepção
da faixa etária “17 anos ou mais”.

Quadro V.6
Cinco tipos de factos qualificados como crime por idade
(2001-2002)

2001 2002 TOTAL


Tipo de Crime Idade
Nº % Nº % Nº %
12 133 19,2 65 11,9 198 16,0
13 133 19,2 74 13,6 207 16,7
14 151 21,8 113 20,7 264 21,3
Furto simples e
15 177 25,5 154 28,3 331 26,7
qualificado
16 74 10,7 100 18,3 174 14,0
17 anos ou mais 26 3,7 39 7,2 65 5,2
Total: 694 100 545 100 1239 100
12 32 17,6 8 11,9 40 16,1
13 41 22,5 17 25,4 58 23,3
14 48 26,4 15 22,4 63 25,3
Dano simples e
15 40 22,0 23 34,3 63 25,3
qualificado
16 17 9,3 3 4,5 20 8,0
17 anos ou mais 4 2,2 1 1,5 5 2,0
Total: 182 100 67 100 249 100
12 19 13,6 14 14,7 33 14,0
13 28 20,0 9 9,5 37 15,7
Ofensa à
14 28 20,0 22 23,2 50 21,3
integridade fisica
15 38 27,1 32 33,7 70 29,8
simples e
privilegiada 16 18 12,9 15 15,8 33 14,0
17 anos ou mais 9 6,4 3 3,2 12 5,1
Total: 140 100 95 100 235 100
12 4 2,8 2 2,2 6 2,6
13 11 7,8 5 5,4 16 6,8
14 35 24,8 18 19,4 53 22,6
Condução sem
15 65 46,1 40 43,0 105 44,9
habilitação legal
16 25 17,7 24 25,8 49 20,9
17 anos ou mais 1 0,7 4 4,3 5 2,1
Total: 141 100 93 100 234 100
12 12 22,6 9 5,8 21 10,1
13 5 9,4 18 11,7 23 11,1
Roubo ou violência 14 12 22,6 32 20,8 44 21,3
depois da 15 21 39,6 53 34,4 74 35,7
subtracção 16 2 3,8 32 20,8 34 16,4
17 anos ou mais 1 1,9 10 6,5 11 5,3
Total: 53 100 154 100 207 100

Fonte: Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça


Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 229

Já o facto correspondente ao crime de dano é menos praticado por jovens


com 16 anos ou com “17 anos ou mais” concentrando-se nas faixas etárias dos
12 aos 15.

Os factos correspondentes ao crime de “condução sem habilitação legal”


e ao crime de “roubo ou violência depois da subtracção” foram mais praticados
por jovens com 15 anos (44,9% e 35,7%, em média, respectivamente).

Resulta, assim, da análise dos dados que os factos qualificados como


crime de furto simples e qualificado foram praticados por cerca de metade dos
jovens sujeitos de processos tutelares educativos findos em 2001 e 2002 com
aplicação de uma medida tutelar. Três categorias de factos qualificados como
crimes (contra a propriedade, contra a integridade física e condução sem
habilitação legal) constituem cerca de 90% da criminalidade juvenil. Embora
não haja diferença significativa nos cinco tipos de “crimes” mais praticados
pelos jovens do sexo masculino e pelos jovens do sexo feminino, os jovens do
sexo masculino praticam, em termos relativos, mais factos qualificados como
crimes de dano e de condução sem habilitação legal. Quanto à idade, verifica-
se que os factos qualificados como crime de roubo e violência após a
subtracção e a condução sem habilitação legal são mais praticados por jovens
com 15 ou 16 anos.

3. 6. A duração do processo tutelar

A duração de um processo tutelar educativo assume grande importância,


uma vez que os sujeitos processuais são jovens (entre os 12 e os 16 anos) e o
tempo para um jovem adolescente tem uma dimensão muito diferente da que
tem para um adulto.

Como se pode ver no Quadro V.7, cerca de 24% dos processos tutelares
educativos em que foi aplicada uma medida tutelar e que findaram em 2001 ou
2002 demoraram, desde o início da fase jurisdicional até à aplicação da
230 Capítulo V - Entre dois olhares

medida138, menos de 3 meses, 17,6%, entre 3 e 6 meses, e 19,1% entre 6


meses e 1 ano, ou seja, cerca de 60% dos processos demoraram menos de 1
ano. Se considerarmos a duração dos processos em geral concluiremos que a
tramitação de uma parte considerável destes processos é razoavelmente
célere. Contudo, se consideramos, por um lado, que só estamos a ter em conta
a duração da fase jurisdicional e, por outro, que mais de 55% destes processos
demoraram mais de 6 meses, a questão da celeridade tem outra leitura,
denunciando os dados, outrossim, alguma ineficácia do sistema no tratamento
desta questão.

Acresce que é preocupante, pelas consequências nefastas que este


período de tempo pode causar no desenvolvimento psicossocial do jovem, a
elevada percentagem de processos que duraram mais de 2 anos (18,6%).

Quadro V.7
Duração dos processos tutelares
(2001-2002)

2001 2002 TOTAL


Duração
Nº % % acum Nº % % acum Nº % % acum
[0, 3 meses[ 214 15,4 15,4 355 34,3 34,3 569 23,5 23,5
[3 meses, 6 meses[ 239 17,2 32,7 188 18,2 52,5 427 17,6 41,1
[6 meses, 1 ano[ 296 21,3 54,0 167 16,2 68,7 463 19,1 60,3
[1 ano , 2 anos[ 333 24,0 78,0 179 17,3 86,0 512 21,1 81,4
[2 anos , 3 anos [ 156 11,2 89,3 90 8,7 94,7 246 10,2 91,6
[3 anos , 4 anos [ 79 5,7 95,0 28 2,7 97,4 107 4,4 96,0
[4 ou mais anos 70 5,0 100,0 27 2,6 100,0 97 4,0 100,0
Total 1387 100,0 1034 100,0 2421 100,0

Fonte: Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça

Como sinal positivo, analisando a variação de 2001 para 2002, parece


desenhar-se uma diminuição da duração destes processos, tendo mais que

138
Seria interessante analisar, embora não disponhamos de dados oficiais a esse respeito qual
a duração do processo tutelar educativo desde o início do inquérito até à decisão em primeira
instância, dado que é esse o tempo em que o jovem está em contacto com o sistema de justiça
sem que a sua situação se encontre resolvida (cf. infra secção II).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 231

duplicado a percentagem de processos que findou em menos de 3 meses (de


15,4%, em 2001, para 34,3%, em 2002). Assim, em 2002, mais 14,7% dos
processos findaram em menos de 1 ano comparativamente a 2001.

Também em 2002, a percentagem dos processos com duração superior a


2 anos cai para 14%, quando, em 2001, tinha sido de 22%. Esta maior
celeridade poderá dever-se, como veremos adiante, ao uso mais frequente, em
2002, do novo instituto jurídico que permite a aplicação de medidas tutelares na
audiência preliminar (cf. Gráficos V.16 e V.17). A LTE, como qualquer nova lei
que entra em vigor, necessitou de um período de ajustamento e de adaptação
por parte dos tribunais para que os novos procedimentos se tornassem mais
céleres e mais “mecanizados”, o que poderá justificar a diminuição da duração
dos processos tutelares educativos em 2002.

Esta situação, a confirmar-se, parece indiciar que a LTE estará a


conseguir uma das suas finalidades: encurtar o prazo entre o início da fase
jurisdicional do processo tutelar educativo e a aplicação de uma medida tutelar,
evitando que estes se arrastem sem que se aplicasse uma medida (cf.
Pedroso, 1998:199 ss.).

3. 7. A aplicação de medidas e a sua revisão

Do universo de 1 399 jovens, em 2001, aos quais foi aplicada uma ou


mais medidas tutelares educativas, 384 (27%) viram a medida aplicada revista.
Em 2002 houve, comparativamente a 2001, um decréscimo de 3% no número
de jovens com revisão das medidas aplicadas.
232 Capítulo V - Entre dois olhares

Gráfico V.15
Casos de aplicação e de revisão da medida aplicada

2001 2002

Aplicação e revisão da Aplicação e revisão da


medida medida
384 275
27% 24%

Aplicação simples de
medida(s) Aplicação simples de
1015 medida(s)
73% 862
76%

Fonte: Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça

Das medidas revistas, em média, cerca de 50% foram extintas após


revisão, 23% mantidas e 13% suspensas (Quadro V.8).

Quadro V.8
Revisão da medida aplicada
(2001-2002)

2001 2002 Total


Nº % Nº % Nº %
Revisão: Extinção da medida 184 47,9 140 50,9 324 49,4
Revisão: Manutenção da medida 101 26,3 53 19,3 152 23,2
Revisão: Suspensão da medida 51 13,3 34 12,4 84 12,8
Revisão: Prorrogação da medida 25 6,5 20 7,3 45 6,9
Revisão: Substituição da medida 17 4,4 23 8,4 40 6,1
Revisão: Mod. das cond. de execução 4 1,0 5 1,8 9 1,4
Revisão: Redução da duração da medida 2 0,5 0 0,0 2 0,3
Total 384 100,0 275 100,0 656 100,0

Fonte: Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça


Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 233

4. A aplicação das medidas tutelares educativas

4. 1. As medidas tutelares aplicadas

A LTE indica, de forma expressa e taxativa, o elenco das medidas


tutelares que podem ser aplicadas ao jovem que praticou um facto qualificado
pela lei como crime. Estas medidas dividem-se, como já referimos no
Capítulo IV, em duas categorias: medidas não institucionais e medida
institucional.

Esta Lei criou um conjunto de medidas específicas para os processos


tutelares educativos, diferentes das medidas previstas na OTM, com excepção
da admoestação e do acompanhamento educativo139.

O legislador português veio, também, estabelecer um critério de escolha


na aplicação das medidas, procurando que seja dada, sempre que possível,
preferência à medida não institucional relativamente à medida institucional.
Neste sentido, a medida tutelar aplicada deve, por um lado, ser adequada e
suficiente para permitir uma maior adesão do jovem, dos pais, do representante
legal ou da pessoa que detém a sua guarda, e por outro, implicar uma
intervenção mínima na condução de vida do jovem e a sua socialização140.

Uma outra inovação da LTE consiste no princípio jurídico da não


cumulação da aplicação de várias medidas tutelares por um mesmo facto ao
mesmo jovem, à excepção da medida de privação de direito de conduzir
ciclomotores ou de obter permissão para conduzir ciclomotores e da medida de
acompanhamento educativo, podendo esta ser apenas aplicada
cumulativamente com a imposição de regras de conduta ou obrigações, bem
como com a frequência de programas formativos141.

O Quadro V.9 mostra as medidas tutelares educativas aplicadas nos anos


de 2001 e 2002.

139
Cf. Capítulo IV.
140
Cf. artigo 6.º da LTE.
141
Cf. artigos 19.º e 16.º n.º 2 da LTE. A OTM consagrava a aplicação isolada ou cumulativa
das medidas tutelares previstas no seu artigo 18.º.
234 Capítulo V - Entre dois olhares

Quadro V.9
Medidas tutelares aplicadas
(2001-2002)

2001 2002 Total


Nº % Nº % Nº %
Admoestação 814 55,0 444 35,0 1258 45,8

Acompanhamento educativo 368 24,9 344 27,2 712 25,9

em regime semiaberto 34 2,3 52 4,1 86 3,1


em regime fechado 27 1,8 41 3,2 68 2,5
Internamento
em centro em regime aberto 26 1,8 34 2,7 60 2,2
educativo em regime semiaberto em fim de
27 1,8 18 1,4 45 1,6
semana
Total 114 7,7 145 11,4 259 9,4
Frequência de programas formativos 43 2,9 91 7,2 134 4,9

Imposição de regras de conduta 35 2,4 54 4,3 89 3,2


Imposição de obrigações 16 1,1 67 5,3 83 3,0
Realização de prestações económicas ou de
15 1,0 61 4,8 76 2,8
tarefas a favor da comunidade
Reparação ao ofendido 22 1,5 49 3,9 71 2,6
Medidas da OTM 50 3,4 6 0,5 56 2,0
Privação do direito de conduzir 2 0,1 6 0,5 8 0,3
Total 1479 100,0 1267 100,0 2746 100,0

Fonte: Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça

Como se pode ver pelo Quadro V.9, a um universo de 1 399 jovens, em


2001, foram aplicadas 1 479 medidas tutelares, na sua grande maioria, de
admoestação (55%). A segunda medida mais aplicada foi a medida de
acompanhamento educativo (24,9%) e a terceira, o internamento em Centro
Educativo (7,7%). Em 2002 é de registar que, num universo de 1 267 medidas
tutelares educativas aplicadas a 1 137 jovens, o peso relativo da admoestação
decresceu para 35%, o acompanhamento educativo subiu para 27,2% e a
medida de internamento em Centro Educativo sofreu também um aumento de
cerca de 4%, tendo sido aplicada em 11,4% dos casos.

O aumento, ainda que discreto, em 2002, da aplicação de medidas


tutelares que obrigam a um acompanhamento ou a um acto ou omissão por
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 235

parte dos jovens142 e a consequente diminuição da aplicação de medidas


simbólicas, como a admoestação (que desceu 20%) pode evidenciar uma
atitude, por parte do Tribunal, mais pró-activa no objectivo da educação do
jovem para o direito e na tentativa de facilitar a sua reinserção social ou, por
outro lado, resultar meramente de alguma alteração, ainda que pequena, na
estrutura dos factos qualificados como crime, no modo da sua prática ou nas
condições psicossociais dos jovens. Merece, também, reflexão, o facto de o
peso relativo do internamento em regime fechado - a medida tutelar
considerada mais gravosa -, ter aumentado para quase o dobro, de 1,8%, em
2001, para 3,2%, em 2002. Não sabemos se esta situação é, sobretudo,
resultado de alterações na estrutura dos factos praticados pelos jovens
considerados crime143 ou, como resulta da informação de alguns operadores,
pela “exigência” da situação sócio-familiar de alguns jovens a par da
insuficiência de respostas da Segurança Social.

4. 2. Momento processual da aplicação da medida

Ao receber o requerimento de abertura da fase jurisdicional, o juiz, não


decidindo pelo arquivamento do processo pode designar dia para a realização
de uma audiência preliminar144 ou determinar o prosseguimento do processo
com vista à realização da audiência. Em ambas as fases, poderá ser decidida a
aplicação de uma medida tutelar educativa.

Os Gráficos V.16 e V.17 ilustram o momento processual da aplicação das


medidas tutelares em 2001 e em 2002.

142
De 2001 para 2002, a aplicação da medida tutelar de acompanhamento educativo cresceu
1%, a frequência de programas formativos, 2%, a imposição de regras de conduta, a imposição
de obrigações, 2,9%, a realização de prestações económicas e a prestação de trabalho a favor
da comunidade, 1,8%, a reparação ao ofendido, 1,1% e o internamento em Centro Educativo,
1,7%.
143
Como se referiu no ponto 3.5, registou-se um aumento muito significativo dos factos
qualificados como crime de roubo.
144
A audiência preliminar ocorre quando tiver sido solicitada a aplicação de uma medida não
institucional, e “a natureza e gravidade dos factos, a urgência do caso ou a medida proposta
justificarem tratamento abreviado” (artigo 93.º n.º 1, alínea c) da LTE).
236 Capítulo V - Entre dois olhares

Gráfico V.16
Medidas aplicadas na audiência preliminar e na audiência de julgamento
(2001)
Audiência
Audiência preliminar - Por
19%
decisão do juíz (Sem
consenso)
2%

Audiência preliminar - Por


decisão do juíz (Com
consenso)
26%

Audiência preliminar - Por


homologação da proposta do
MP
53%

Fonte: Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça

Gráfico V.17
Medidas aplicadas na audiência preliminar e na audiência de julgamento
(2002)
Audiência preliminar - Por
decisão do juíz (Sem Audiência
consenso) 16%
1%

Audiência preliminar - Por


decisão do juíz (Com
consenso)
19%

Audiência preliminar - Por


homologação da proposta do
MP
64%

Fonte: Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça


Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 237

A maioria das medidas tutelares aplicadas aos jovens, quer em 2001,


quer em 2002, foram decididas na audiência preliminar: 81%, em 2001 e 84%,
em 2002. Como referimos, o recurso frequente a esta forma abreviada do
processo tutelar, inexistente na Lei anterior, pode explicar a diminuição da
duração dos processos tutelares educativos em fase jurisdicional. É de notar,
contudo, que a audiência preliminar permite a aplicação de medidas tutelares,
em regra, quando haja a concordância de todos os participantes, em especial,
do jovem, considerando esta participação indispensável a uma execução
eficiente e eficaz da medida aplicada visando a educação do jovem para o
direito.

Na audiência preliminar o juiz procede à audição do jovem, dos seus pais


ou representantes legais, do defensor e, se estiver presente, do ofendido, a fim
de obter o consenso sobre a medida proposta. Se não houver consenso sobre
a medida proposta pelo MP, o juiz pode sugerir a aplicação de uma outra
medida por si determinada ou solicitar a intervenção dos serviços de mediação.
Se não for possível chegar a um consenso quanto à medida a aplicar, o juiz
pode proferir decisão quanto à aplicação efectiva de uma medida ou ordenar o
prosseguimento do processo para a fase da audiência145.

Os dados revelam, também, que a maioria das medidas tutelares


aplicadas em 2001 e 2002 foi decidida por homologação da proposta do MP
durante a audiência preliminar (53%, em 2001, e 64%, em 2002) e que só uma
percentagem reduzida de casos é decidido em audiência preliminar sem o
consenso de todos (2%, em 2001 e em 2002).

Parece, assim, poder inferir-se, pelos dados apresentados, que a justiça


tutelar, para além de ser “decidida” pelo MP na fase de inquérito, é, também,
fortemente influenciada pela acção destes operadores na fase jurisdicional.
Relativamente aos casos em que são aplicadas medidas tutelares, é uma
justiça que recorre, nesta fase, com frequência, à decisão por consenso, o que

145
Cf. artigo 104.º da LTE.
238 Capítulo V - Entre dois olhares

terá, por certo, consequências positivas, não só na eficácia das decisões, mas
também na celeridade processual.

4. 3. As medidas tutelares aplicadas em relação ao sexo e à idade do


jovem

Considerando o sexo dos jovens aos quais foi aplicada uma medida
tutelar em processo tutelar educativo findo em 2001 ou 2002, constatamos que
há duas grandes diferenças (cf. Quadro V.10).

Em primeiro lugar, considerando autonomamente o grupo dos jovens do


sexo feminino e o grupo dos jovens do sexo masculino aos quais foi aplicada
uma medida tutelar educativa, aos jovens do sexo feminino quase não é
aplicada a medida de “realização de prestações económicas ou de trabalho a
favor da comunidade” (0,6%, em média, contra os 3,1% dos jovens do sexo
masculino).

Em segundo lugar, aos jovens do sexo masculino é aplicada mais a


medida de internamento do que aos jovens do sexo feminino (9,9%, em média,
contra 6,4%). O nosso estudo não nos permite tirar qualquer conclusão segura
sobre esta situação. É, contudo, interessante verificar que os jovens do sexo
feminino praticaram, em média, 57,5% do total de factos qualificados como
crimes de furto simples e qualificado e de roubo, contra os 55,1% dos factos
praticados pelos jovens do sexo masculino (cf. Quadro V.5) e que foi a estes
dois tipos de factos qualificados como crime que esta medida foi mais aplicada
(em média, em 10,3% das medidas aplicadas aos factos qualificados como
crime de furto simples e qualificado e, em média, em 17,9% das medidas
aplicadas aos factos qualificados como crime de roubo) (cf. Quadro V.13).

Confrontando estes dados com os do Quadro V.10, concluímos que aos


jovens do sexo masculino são aplicadas mais frequentemente medidas de
internamento em Centro Educativo (9,9%) do que aos jovens do sexo femnino
(6,4%) o que parece indiciar que, pelo menos nalguns casos, para aquela,
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 239

eventual, diferença na aplicação da medida de internamento parece contribuir o


sexo do jovem a quem é aplicada a medida.

Quadro V.10
Medidas aplicadas a jovens por sexo
(2001-2002)

Masculino
2001 2002 TOTAL
Medidas Aplicadas
Nº % Nº % Nº %
Admoestação 715 55,0 390 35,4 1105 46,0
Acompanhamento educativo 319 24,5 283 25,7 602 25,1
em regime semiaberto 33 2,5 46 4,2 79 3,3
em regime fechado 26 2,0 35 3,2 61 2,5
Internamento em em regime aberto 24 1,8 33 3,0 57 2,4
centro educativo em regime semiaberto em fim
23 1,8 17 1,5 40 1,7
de semana
Total 106 8,1 131 11,9 237 9,9
Frequência de programas formativos 39 3,0 79 7,2 118 4,9
Imposição de regras de conduta 32 2,5 46 4,2 78 3,2
Realização de prestações económicas ou de
15 1,2 59 5,4 74 3,1
trabalho a favor da comunidade
Imposição de obrigações 14 1,1 60 5,4 74 3,1
Reparação ao ofendido 20 1,5 42 3,8 62 2,6
Privação do direito de conduzir 2 0,2 6 0,5 8 0,3
Medidas da OTM 39 3,0 6 0,5 45 1,9
Total 1301 100 1102 100 2403 100

Feminino
2001 2002 TOTAL
Medidas Aplicadas
Nº % Nº % Nº %
Admoestação 99 55,6 54 32,7 153 44,6
Acompanhamento educativo 49 27,5 61 37,0 110 32,1
em regime semiaberto 1 0,6 6 3,6 7 2,0
em regime fechado 1 0,6 6 3,6 7 2,0
Internamento em em regime semiaberto em fim
4 2,2 1 0,6 5 1,5
centro educativo de semana
em regime aberto 2 1,1 1 0,6 3 0,9
Total 8 4,5 14 8,5 22 6,4
Frequência de programas formativos 4 2,2 12 7,3 16 4,7
Imposição de regras de conduta 3 1,7 8 4,8 11 3,2
Reparação ao ofendido 2 1,1 7 4,2 9 2,6
Imposição de obrigações 2 1,1 7 4,2 9 2,6
Realização de prestações económicas ou de
0 0,0 2 1,2 2 0,6
trabalho a favor da comunidade
Medidas da OTM 11 6,2 0 0,0 11 3,2
Total 178 100 165 100 343 100
Total Geral 1479 100,0 1267 100,0 2746 100,0

Fonte: Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça


240 Capítulo V - Entre dois olhares

No que respeita à distribuição das medidas tutelares pelas idades dos


jovens sujeitos de processos tutelares educativos findos em 2001 e 2002,
constatámos que, em 2001, a admoestação foi a medida mais aplicada em
todos os grupos etários, representando, em todos, mais de metade das
medidas aplicadas (cf. Quadro V.11).

Em 2002, o peso relativo de admoestações aplicadas em cada um dos


grupos etários é menor do que em 2002 (em média, 35%). Em consequência, o
peso relativo das outras medidas aumentou. Contudo, embora a percentagem
de internamentos tenha aumentado, de 2001 para 2002, na quase totalidade
dos grupos etários, é de notar a diminuição de aplicação em relação aos jovens
com 12 anos. A idade em que esta medida apresenta um peso relativo mais
elevado é a dos 13 anos.

Quadro V.11
Medidas aplicadas a jovens por idade
(2001-2002)
2001
12 13 14 15 16 17 ou + Total
Nº % Nº % Nº % Nº % Nº % Nº % Nº %
Admoestação 117 51,8 144 53,3 189 56,3 238 55,7 95 57,2 31 57,4 814 55,0
Acompanhamento educativo 48 21,2 77 28,5 87 25,9 107 25,1 33 19,9 16 29,6 368 24,9
Internamento em centro educativo 31 13,7 24 8,9 18 5,4 27 6,3 11 6,6 3 5,6 114 7,7
Frequência de programas formativos 7 3,1 10 3,7 5 1,5 15 3,5 6 3,6 0 0,0 43 2,9
Imposição de regras de conduta 4 1,8 8 3,0 8 2,4 9 2,1 5 3,0 1 1,9 35 2,4
Reparação ao ofendido 4 1,8 1 0,4 5 1,5 9 2,1 3 1,8 0 0,0 22 1,5
Imposição de obrigações 4 1,8 1 0,4 6 1,8 3 0,7 2 1,2 0 0,0 16 1,1
Realização de prestações económicas ou
1 0,4 2 0,7 5 1,5 6 1,4 1 0,6 0 0,0 15 1,0
de tarefas a favor da comunidade
Privação do direito de conduzir 0 0,0 0 0,0 0 0,0 0 0,0 2 1,2 0 0,0 2 0,1
Medidas da OTM 10 4,4 3 1,1 13 3,9 13 3,0 8 4,8 3 5,6 50 3,4
Total 226 100,0 270 100,0 336 100,0 427 100,0 166 100,0 54 100,0 1479 100,0

2002
12 13 14 15 16 17 ou + Total
Nº % Nº % Nº % Nº % Nº % Nº % Nº %
Admoestação 45 38,8 48 26,8 98 38,0 148 37,2 75 32,3 30 35,7 444 35,0
Acompanhamento educativo 38 32,8 53 29,6 69 26,7 100 25,1 63 27,2 21 25,0 344 27,2
Internamento em centro educativo 7 6,0 24 13,4 28 10,9 49 12,3 29 12,5 8 9,5 145 11,4
Frequência de programas formativos 7 6,0 13 7,3 13 5,0 27 6,8 22 9,5 9 10,7 91 7,2
Imposição de obrigações 4 3,4 18 10,1 9 3,5 20 5,0 11 4,7 5 6,0 67 5,3
Realização de prestações económicas ou
4 3,4 7 3,9 11 4,3 18 4,5 15 6,5 6 7,1 61 4,8
de tarefas a favor da comunidade
Imposição de regras de conduta 7 6,0 8 4,5 11 4,3 13 3,3 11 4,7 4 4,8 54 4,3
Reparação ao ofendido 4 3,4 7 3,9 17 6,6 16 4,0 4 1,7 1 1,2 49 3,9
Privação do direito de conduzir 0 0,0 0 0,0 0 0,0 5 1,3 1 0,4 0 0,0 6 0,5
Medidas da OTM 0 0,0 1 0,6 2 0,8 2 0,5 1 0,4 0 0,0 6 0,5
Total 116 100,0 179 100,0 258 100,0 398 100,0 232 100,0 84 100,0 1267 100,0

Fonte: Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça


Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 241

Em 2002, o padrão de aplicação da medida tutelar educativa de


internamento em Centro Educativo foi o seguinte: aos jovens com 12 anos o
regime de internamento mais aplicado é o regime aberto, aos jovens dos 13
aos 16 anos o regime de internamento mais aplicado é o semiaberto, enquanto
que aos jovens com 17 anos ou mais o regime mais aplicado é o regime
fechado.

Quadro V.12
Regimes de internamento aplicados a jovens por idade
(2001-2002)
2001
12 13 14 15 16 17 ou + Total
Nº % Nº % Nº % Nº % Nº % Nº % Nº %
em regime semiaberto 11 35,5 6 25,0 7 38,9 7 25,9 3 27,3 0 0,0 34 29,8
em regime fechado 5 16,1 5 20,8 3 16,7 9 33,3 3 27,3 2 66,7 27 23,7
Internamento em em regime aberto 5 16,1 6 25,0 3 16,7 7 25,9 4 36,4 1 33,3 26 22,8
centro educativo em regime semiaberto
10 32,3 7 29,2 5 27,8 4 14,8 1 9,1 0 0,0 27 23,7
em fim de semana
Total 31 100,0 24 100,0 18 100,0 27 100,0 11 100,0 3 100,0 114 100,0

2002
12 13 14 15 16 17 ou + Total
Nº % Nº % Nº % Nº % Nº % Nº % Nº %
em regime semiaberto 1 14,3 12 50,0 11 39,3 14 28,6 12 41,4 2 25,0 52 35,9
em regime fechado 2 28,6 4 16,7 9 32,1 14 28,6 8 27,6 4 50,0 41 28,3
Internamento em em regime aberto 3 42,9 4 16,7 6 21,4 14 28,6 6 20,7 1 12,5 34 23,4
centro educativo em regime semiaberto
1 14,3 4 16,7 2 7,1 7 14,3 3 10,3 1 12,5 18 12,4
em fim de semana
Total 7 100,0 24 100,0 28 100,0 49 100,0 29 100,0 8 100,0 145 100,0

Fonte: Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça

Em suma, a medida de admoestação foi, em média, a mais aplicada a


ambos os sexos e em todos os grupos etários. Comparando o peso relativo das
medidas tutelares de admoestação e de acompanhamento educativo por sexo,
concluiu-se que estas têm um peso maior se considerarmos os jovens do sexo
feminino (76,7%) do que se considerarmos os jovens do sexo masculino
(71,1%). A medida de internamento, consequentemente, é mais aplicada aos
jovens do sexo masculino (9,9%, em média) do que aos jovens do sexo
feminino (6,4%, em média).

Em relação à idade, é de referir que, em 2002, foram mais aplicados


regimes mais “brandos” (regime aberto e semiaberto) aos jovens mais “novos”
e regimes mais “duros” (regime fechado) aos jovens mais “velhos”, sendo
242 Capítulo V - Entre dois olhares

interessante verificar se esta situação se mantém nos próximos anos. Esta


situação, contudo, poderá estar relacionada com o padrão da criminalidade por
grupo etário que, como vimos, parece agravar-se com aumento da idade do
jovem.

4. 4. As medidas aplicadas considerando os cinco tipos de factos


qualificados como crime mais representativos

Analisamos, de seguida, as medidas tutelares aplicadas aos cinco tipos


de factos qualificados como crime mais representativos em 2001 e 2002. Como
já referimos, os jovens cujos processos tutelares educativos findaram, em 2001
e 2002, com a aplicação de uma medida, praticaram mais factos qualificados
como crime de furto simples e qualificado, de dano simples e qualificado, de
ofensa à integridade física simples e privilegiada, de condução sem habilitação
legal e de roubo ou violência depois da subtracção.

Quadro V.13
Medidas aplicadas considerando os cinco tipos de factos qualificados como crime mais
representativos
(2001-2002)

Fonte: Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça


Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 243

Como também já foi referido, as medidas tutelares mais aplicadas, em


2001 e 2002, foram a admoestação e o acompanhamento educativo. A
situação não se altera se considerarmos aqueles cinco tipos de crime. Nos dois
anos, foram aquelas as medidas mais aplicadas com percentagens médias de
aplicação entre os 80,6%, em relação aos factos qualificados como crimes de
condução sem habilitação legal, e os 60,4%, em relação aos factos qualificados
como crimes de roubo ou violência após a subtracção.

Como seria de esperar, no âmbito da criminalidade juvenil, os tipos de


factos qualificados como crimes que registaram percentagens mais elevadas
de internamentos em centros educativos foram os qualificados como crimes de
roubo e violência após a subtracção (20,7%, em 2001, e 17%, em 2002) e
como crime de furto simples e qualificado (10,1%, em 2001, e 10,6%, em 2002)
– os tipos de factos que, de entre os praticados por jovens, são penalmente
considerados mais gravosos. Será de apontar, ainda, o aumento da aplicação,
no que se refere aos factos qualificados como crimes de condução sem
habilitação legal, dos programas formativos (de 0,7%, em 2001, para 18,6%,
em 2002) e da privação do direito de conduzir (de 0,7%, em 2001, para 4,1%,
em 2002).

No que diz respeito à medida institucional internamento em Centro


Educativo, regista-se um ligeiro aumento na sua aplicação, em 2002, aos
factos qualificados como crimes de furto simples e qualificado, dano simples e
qualificado, e ofensa à integridade física simples e privilegiada. Contra o que
seria de prever, o mesmo não sucede quanto aos factos qualificados como
crimes de roubo ou violência depois da subtracção, aos quais foram aplicadas
um menor número de medidas de internamento em Centro Educativo em 2002,
à excepção da medida de internamento em Centro Educativo em regime
aberto. O enfoque parece, pois, ter incidido na aplicação de outras medidas
não institucionais como a imposição de obrigações (7,7%, 14), a imposição de
regras de conduta (7,1%, 13) e a frequência de programas formativos (6%, 11),
medidas quase não aplicadas em relação a este tipo de factos qualificados
como crimes, em 2001.
244 Capítulo V - Entre dois olhares

Secção II
Os tribunais de família e menores de Lisboa e Coimbra: duas
realidades de uma mesma justiça?

Como já deixámos dito, com o objectivo de tornar possível uma análise


sociológica mais fina da aplicação da Lei Tutelar Educativa, procedemos à
recolha, por amostragem, de um conjunto de dados dos processos, na fase
jurisdicional, nos tribunais de família e menores de Lisboa e de Coimbra.

A análise incidiu sobre uma amostra aleatória de cerca de 55% dos


processos entrados na fase jurisdicional, em cada Tribunal, entre 2001 e 2003,
considerando, quer os processos findos, quer os que se encontravam ainda
pendentes. A amostra foi constituída aleatoriamente tendo por base uma lista
facultada pelos respectivos tribunais onde constavam todos os processos
tutelares educativos entrados entre Janeiro de 2001 e Julho de 2003.

Assim, no Tribunal de Família e Menores de Lisboa foram consultados


cerca de metade dos processos entrados em cada uma das três secções dos
quatro juízos do Tribunal, num total de 260 processos. Foram, assim,
analisados 149 (57,3%) processos tutelares educativos (correspondentes ao
julgamento de 262 jovens). No Tribunal de Família e Menores de Coimbra
(constituído por dois juízos com uma secção cada um) foram analisados 49
processos (correspondentes ao julgamento de 75 menores), num total de 88
processos (55,7%).

Dos 149 processos tutelares educativos analisados no Tribunal de Família


e Menores de Lisboa, à data do trabalho de campo, 43% encontravam-se
pendentes e 57% encontravam-se findos. No Tribunal de Família e Menores de
Coimbra a situação era a seguinte: 62% dos 49 processos analisados
encontrava-se pendente e 38%, findos.

Os dados recolhidos permitem-nos caracterizar os jovens aoss quais


aqueles processos dizem respeito, considerando o sexo, a idade, a
nacionalidade, com quem habitam e onde residem, qual o seu grau de
instrução e qual a sua situação perante o trabalho. Recolhemos, ainda, dados
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 245

que nos permitem conhecer os seguintes aspectos da justiça tutelar educativa:


quem são os mobilizadores do processo tutelar educativo, qual a actuação do
advogado, quais os factos praticados pelo jovem qualificados como crime, as
medidas tutelares educativas aplicadas, a quem foram aplicadas e a que tipo
de factos qualificados como crimes foram aplicadas e qual a duração da fase
jurisdicional do processo tutelar educativo nos tribunais analisados.

É a análise destes dados, depois de devidamente tratada, que


apresentamos nesta secção.

1. Os jovens

1. 1. O sexo, a idade e a nacionalidade dos jovens

Passando a uma observação mais detalhada dos dados, começamos por


caracterizar sociologicamente os jovens que mobilizaram a actividade judicial
daqueles tribunais. No que diz respeito ao sexo, idade e nacionalidade dos
jovens não há diferenças significativas quando comparamos os dados dos
estudos de caso com o perfil sócio-jurídico a nível nacional analisado na
secção anterior.

A grande maioria dos jovens que foram sujeitos de um processo tutelar


educativo que chegou à fase jurisdicional, quer no Tribunal de Família e
Menores de Lisboa, quer no de Coimbra, era do sexo masculino (cerca de
90%, em ambos).

Cerca de 60% dos jovens da nossa amostra, quer no Tribunal de Família


e Menores de Lisboa, quer no de Coimbra tinham idades, à data do início da
fase jurisdicional, entre os 14 (34,7%, em Coimbra, e 32%, em Lisboa) e os 15
anos (25,3%, em Coimbra, e 34,4%, em Lisboa).
246 Capítulo V - Entre dois olhares

Gráfico V.18
Idade dos jovens

34,7 34,4
35,0
32,0

30,0
25,3

25,0
21,6
21,3

20,0
16,0

15,0

9,7
10,0

5,0
1,3 1,2 1,3
0,0 0,8 0,4

0,0
10 11 12 13 14 15 16

Tribunal de Coimbra Tribunal de Lisboa

Fonte: OPJ/Amostra processos TFM

Em Coimbra, regista-se, contudo, um peso relativo mais acentuado de


jovens sujeitos de um processo tutelar educativo que chegou à fase
jurisdicional com 12 anos (21,3% de Coimbra contra os 9,7%, de Lisboa).

No que se refere à nacionalidade verifica-se que, ao contrário do que


acontece em Coimbra em que a percentagem de estrangeiros é diminuta
(1,3%), no Tribunal de Família e Menores de Lisboa a percentagem de jovens
estrangeiros é significativa, 21,3%.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 247

Gráfico V.19
Nacionalidade dos jovens

98,7

100,0

90,0 78,7

80,0

70,0

60,0

50,0

40,0
21,3
30,0

20,0 1,3

10,0

0,0
Portuguesa Estrangeira

Tribunal de Coimbra Tribunal de Lisboa

Fonte: OPJ/Amostra processos TFM

Esta diferença resultará da diferente composição social das zonas de


competência territorial dos dois tribunais, sendo que na Grande Lisboa, ao
contrário de Coimbra, o peso relativo de estrangeiros é maior (5%) do que a
média nacional de 2,2%146. Contudo, comparando esses valores com a
percentagem de menores estrangeiros sujeitos de um processo tutelar
educativo que chegou à fase jurisdicional no Tribunal de Família e Menores de
Lisboa (20,9%), verifica-se que há, neste Tribunal, uma
sobrerepresentatividade marcante de estrangeiros na fase judicial dos
processos tutelares educativos.

De entre os estrangeiros, há uma forte representatividade (81%, 43 em


54) dos jovens dos Países Africanos de Lingua Oficial Portuguesa, 34%
cabo-verdianos, 24,5% angolanos e 22,6% guineenses.

146
De acordo com um estudo do Observatório da Imigração, de 2003, de Maria João Valente
Rosa, Hugo Seabra e Tiago Santos, “a população de nacionalidade estrangeira equivale a
2,2% (Censo de 2001) do total de residentes em Portugal” (Rosa, Seabra e Santos, 2003:48).
248 Capítulo V - Entre dois olhares

As condições sócio-económicas em que muitos daqueles jovens vivem e


a falta de respostas institucionais de natureza multicultural serão, por certo,
factores fortemente indutores desta situação.

1. 2. A orfandade, a situação e a residência do jovem

À data da abertura do processo, os jovens da nossa amostra eram, na


sua grande maioria, não órfãos: no Tribunal de Família e Menores de Lisboa,
92% e no Tribunal de Família e Menores de Coimbra, 87%.

Gráfico V.20
Situação dos jovens

80,0 73,2
70,7

70,0

60,0

50,0

40,0

30,0
18,7
17,2
20,0
10,7
6,8
10,0
0,0 1,6 0,0 1,2

0,0
a viver com pai e/ou internado em a viver com outro abandonado a viver com outra
mãe instituição familiar pessoa

Tribunal de Coimbra Tribunal de Lisboa

Fonte: OPJ/Amostra processos TFM

Cerca de 70% dos jovens da nossa amostra - no Tribunal de Família e


Menores de Lisboa (73,3%) e no Tribunal de Coimbra (70,7%) – viviam, assim,
com, pelo menos, um dos progenitores. Merece referência ainda, a
percentagem significativa de jovens (perto de um quinto), que à data da
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 249

abertura do processo tutelar educativo se encontravam internados numa


instituição (18,7% no Tribunal de Coimbra e 17,2%, no Tribunal de Lisboa).

1. 3. O grau de instrução e a situação perante o trabalho dos jovens

No que se refere ao grau de instrução, e como se pode ver pelo Gráfico


V.21, 46% dos jovens da nossa amostra, sujeitos de um processo tutelar
educativo que chegou à fase jurisdicional no Tribunal de Família e Menores de
Lisboa, tinham ou frequentavam o 2.º ciclo do ensino básico (5.º e 6.º anos de
escolaridade).

Gráfico V.21
Grau de instrução dos jovens

50,0 46,2

45,0
38,7
40,0

35,0
28,0
30,0 26,7
25,3

25,0

20,0

12,2
15,0 11,1
8,0
10,0

5,0 1,9 1,9


0,0 0,0

0,0
ensino básico (1.º ensino básico (2.º ensino básico (3.º outro ou não sabe ler nem ensino recorrente
ciclo) ciclo - 5.º e 6.º ciclo - 7.º 8.º e 9.º desconhecido escrever
anos) anos)

Tribunal de Coimbra Tribunal de Lisboa

Fonte: OPJ/Amostra processos TFM

Também os jovens que tinham ou frequentavam o 2.º ciclo do ensino


básico representam a maior percentagem (38,7%) no Tribunal de Família e
Menores de Coimbra. Contudo, note-se que no Tribunal de Coimbra, 28% dos
250 Capítulo V - Entre dois olhares

jovens tinham ou frequentavam o 3.º ciclo, em contraposição com os 12,2% no


Tribunal de Família e Menores de Lisboa. Há, assim, um maior grau de
escolaridade entre os jovens sujeitos de um processo tutelar educativo que
chegou à fase jurisdicional no Tribunal de Família e Menores de Coimbra
(cerca de 67% dos jovens tinha ou frequentava o 2.º ou 3.º ciclos, enquanto
que, no Tribunal de Lisboa apenas 58% tinham ou frequentavam esse grau de
instrução).

Quadro V.14
Grau de instrução dos jovens por idade

COIMBRA

Idade 12 13 14 15 Total

Grau de instrução Nº % Nº % Nº % Nº % Nº %

não sabe ler nem escrever 0 0,0 0 0,0 0 0,0 0 0,0 0,0 0,0

ensino básico (1.º ciclo) 4 25,0 4 33,3 3 11,5 8 42,1 19,0 25,3

ensino básico (2.º ciclo - 5.º e 6.º anos) 7 43,8 4 33,3 11 42,3 7 36,8 29,0 38,7

ensino básico (3.º ciclo - 7.º 8.º e 9.º anos) 3 18,8 4 33,3 11 42,3 3 15,8 21,0 28,0

ensino recorrente 0 0,0 0 0,0 0 0,0 0 0,0 0,0 0,0

outro ou desconhecido 2 12,5 0 0,0 1 3,8 1 5,3 4,0 8,0

Total 16 100,0 12 100,0 26 100,0 19 100,0 73 100,0

Idade 12 13 14 15 Total
Grau de instrução Nº % Nº % Nº % Nº % Nº %

Menores com grau de instrução adequado à idade 10 62,5 4 33,3 11 42,3 3 15,8 28,0 38,4

Menores com grau de instrução não adequado à idade 6 37,5 8 66,7 15 57,7 16 84,2 45,0 61,6

Total 16 100,0 12 100,0 26 100,0 19 100,0 73 100,0

LISBOA

Idade 12 13 14 15 Total

Grau de instrução Nº % Nº % Nº % Nº % Nº %

não sabe ler nem escrever 0 0,0 1 1,8 2 2,4 2 2,2 5 1,9

ensino básico (1.º ciclo) 12 48,0 19 33,9 21 25,3 14 15,7 66 27,0

ensino básico (2.º ciclo - 5.º e 6.º anos) 9 36,0 23 41,1 41 49,4 47 52,8 120 46,7

ensino básico (3.º ciclo - 7.º 8.º e 9.º anos) 0 0,0 5 8,9 13 15,7 14 15,7 32 12,4

ensino recorrente 0 0,0 1 1,8 2 2,4 2 2,2 5 1,9

outro ou desconhecido 4 16,0 7 12,5 4 4,8 10 11,2 25 10,0

Total 25 100,0 56 100,0 83 100,0 89 100,0 253 100,0

Idade 12 13 14 15 Total

Grau de instrução Nº % Nº % Nº % Nº % Nº %

Menores com grau de instrução adequado à idade 9 36,0 5 8,9 13 15,7 14 15,7 41 16,2

Menores com grau de instrução não adequado à idade 16 64,0 51 91,1 70 84,3 75 84,3 212 83,8

Total 25 100,0 56 100,0 83 100,0 89 100,0 253 100,0

Fonte: OPJ/Amostra processos TFM


Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 251

Como se pode ver pelo Quadro V.14, dos jovens da nossa amostra, com
idades compreendidas entre os 12 e os 15 anos, um número significativo não
tinha ou frequentava o grau de instrução adequado à sua idade. Esta
percentagem é menor no Tribunal de Família e Menores de Coimbra.

O Gráfico V.22 mostra os dados da nossa amostra relativos à condição


perante o trabalho dos jovens sujeitos de um processo tutelar educativo que
chegou à fase jurisdicional.

Gráfico V.22
Condição perante o trabalho dos jovens

80,0 73,3

67,6
70,0

60,0

50,0

40,0

30,0
20,6
17,3
20,0
9,5
5,3
10,0 4,0
1,9
0,0 0,4

0,0
a estudar sem ocupação desconhecida a trabalhar a estudar e trabalhar

Tribunal de Coimbra Tribunal de Lisboa

Fonte: OPJ/Amostra processos TFM

No Tribunal de Família e Menores de Lisboa, aqueles jovens


encontravam-se, na sua maioria, cerca de 68%, a estudar. No Tribunal de
Família e Menores de Coimbra, a percentagem é um pouco mais elevada
(73,3%), aliás, em consonância com a maior escolaridade dos jovens sujeitos
de processos tutelares educativos neste Tribunal.
252 Capítulo V - Entre dois olhares

Quadro V.15
Idade dos jovens por condição perante o trabalho

COIMBRA

Idade 10 11 12 13 14 15 16 Total

Condição perante o trabalho Nº % Nº % Nº % Nº % Nº % Nº % Nº % Nº %


a estudar 0 0,0 0 0,0 12 75,0 10 83,3 25 96,2 8 42,1 0 0,0 55 73,3

a estudar e trabalhar 0 0,0 0 0,0 0 0,0 0 0,0 0 0,0 0 0,0 0 0,0 0 0,0

a trabalhar 0 0,0 0 0,0 1 6,3 0 0,0 0 0,0 3 15,8 0 0,0 4 5,3

sem ocupação 0 0,0 0 0,0 2 12,5 2 16,7 1 3,8 7 36,8 1 100,0 13 17,3

desconhecida 0 0,0 1 100,0 1 6,3 0 0,0 0 0,0 1 5,3 0 0,0 3 4,0

Total 0 0,0 1 100,0 16 100,0 12 100,0 26 100,0 19 100,0 1 100,0 75 100,0

LISBOA

Idade 10 11 12 13 14 15 16 Total

Condição perante o trabalho Nº % Nº % Nº % Nº % Nº % Nº % Nº % Nº %

a estudar 1 50,0 1 33,3 21 84,0 40 71,4 56 67,5 57 64,0 1 100,0 177 68,3

a estudar e trabalhar 0 0,0 0 0,0 0 0,0 0 0,0 1 1,2 0 0,0 0 0,0 1 0,4

a trabalhar 0 0,0 0 0,0 0 0,0 0 0,0 0 0,0 5 5,6 0 0,0 5 1,9

sem ocupação 0 0,0 1 33,3 2 8,0 11 19,6 21 25,3 19 21,3 0 0,0 54 20,8

desconhecida 1 50,0 1 33,3 2 8,0 5 8,9 5 6,0 8 9,0 0 0,0 22 8,5

Total 2 100,0 3 100,0 25 100,0 56 100,0 83 100,0 89 100,0 1 100,0 259 100,0

Fonte: OPJ/Amostra processos TFM

De notar, contudo, que uma percentagem significativa dos jovens nos dois
tribunais (17,3% em Coimbra), mas, em especial, no Tribunal de Família e
Menores de Lisboa (20,8%, em Lisboa), embora em idade escolar,
encontrava-se desocupada. Esta diferença é, também, provavelmente,
indiciadora de uma das causas da divergência do grau de instrução entre os
jovens do Tribunal de Coimbra e do Tribunal de Lisboa. Neste Tribunal
regista-se uma percentagem mais elevada de jovens sujeitos de processos
tutelares educativos que tinham entre os 13 (19,6%) e os 14 (25,3%) anos e
que se encontrava desocupada, do que no Tribunal de Coimbra, 16,7% e 3,8%,
respectivamente.

1. 4. Processos anteriores

Interessou-nos conhecer qual o número de jovens que, anteriormente ao


processo em causa, já tinham tido um ou mais processos tutelares educativos
e/ou de promoção e protecção. Os dados recolhidos mostram que a
percentagem de jovens com processos anteriores é, em ambos os tribunais,
bastante elevada (60%, no Tribunal de Família e Menores de Coimbra, e 65%,
no de Lisboa).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 253

Gráfico V.23
Processos tutelares educativos e/ou de promoção e protecção anteriores

45

45 40

40 35

35 31

30

25

16 16
20
13
15

10
4

0
Coimbra Lisboa

com PPP & PTE com PPP com PTE sem PPP ou PTE

Fonte: OPJ/Amostra processos TFM

Note-se, todavia, que a percentagem de jovens apenas com processos de


promoção e protecção anteriores é menor em Lisboa (4%) do que em Coimbra
(13%), ao contrário da percentagem de menores apenas com processos
tutelares educativos (45% e 31%, respectivamente). Estas diferenças podem
indiciar ou um menor recurso aos processos de promoção e protecção em
relação aos jovens julgados em Lisboa, ou, pelo contrário, uma menor eficácia
desses processos, com o consequente “arrastamento” de mais jovens para a
alçada da Lei Tutelar Educativa. Como poderemos ver nos capítulos seguintes,
há, também, a hipótese, de o processo tutelar educativo ser utilizado para
“proteger” jovens que, de outra forma, não poderiam ser ajudados, quer por
falta de mecanismos legais que possibilitem uma intervenção eficaz, quer por
falta de meios humanos e materiais.
254 Capítulo V - Entre dois olhares

Do presente estudo resulta, assim, que o perfil sociológico dos jovens da


nossa amostra sujeitos de processos tutelares educativos que chegaram à fase
judicial diverge um pouco ao compararmos os tribunais de família e menores
de Coimbra e de Lisboa.

No Tribunal de Família e Menores de Coimbra, os jovens sujeitos de


processos tutelares educativos que chegaram à fase judicial são, na sua
grande maioria, do sexo masculino, com idades compreendidas entre os 14 e
os 15 anos, embora se registe uma percentagem significativa de jovens mais
novos. São de nacionalidade portuguesa e vivem com um ou ambos os pais,
embora cerca de um quinto se encontre internado numa instituição. São jovens
que, em regra, encontram-se a estudar e têm ou frequentam, na sua maioria, o
segundo ciclo do ensino básico, tendo uma escolaridade adequada ou quase
adequada à sua idade. De referir, ainda, que a percentagem de jovens com
processos anteriores era, bastante elevada (60%). Cerca de 16% dos jovens
tinham processos de promoção e protecção e processos tutelares educativos
anteriores, 13% apenas processos de promoção e protecção e 31% apenas
processos tutelares educativos.

No Tribunal de Família e Menores de Lisboa, os jovens sujeitos de


processos tutelares educativos que chegaram à fase judicial são, também na
sua grande maioria, do sexo masculino. Têm, também, em regra, 14 ou 15
anos. Mas, cerca de um quinto são estrangeiros, registando-se uma
sobrerepresentatividade de jovens estrangeiros, em relação à população
estrangeira residente na área da Grande Lisboa. Vivem com um ou ambos os
pais, embora, à semelhança do que acontece no Tribunal de Família e
Menores de Coimbra, cerca de um quinto se encontre internado numa
instituição. Têm ou frequentam, na sua maioria, o segundo ciclo do ensino
básico, embora apresentem, numa percentagem significativa, uma
escolaridade desadequada à sua idade. Embora a grande maioria se encontre
a estudar, regista-se, contudo, uma percentagem considerável de
“desocupados”. Quanto aos jovens com processos anteriores a sua
percentagem é elevada (65%), sendo que destes, 45% tinham apenas
processos tutelares educativos, 16% processos de promoção e protecção e
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 255

processos tutelares educativos anteriores e 4% apenas processos de


promoção e protecção.

2. O processo tutelar educativo

2. 1. Os mobilizadores do processo tutelar educativo

Os processos analisados no Tribunal de Família e Menores de Lisboa


foram iniciados, na sua maioria, pelas polícias (53%), enquanto que,
relativamente aos processos analisados no Tribunal de Família e Menores de
Coimbra, os principais mobilizadores foram os ofendidos (41,3%).

Gráfico V.24
Mobilizadores do processo tutelar educativo

60,0
53,0

50,0
41,3
37,3
40,0 35,2

30,0

20,0 16,0

10,0 4,0 4,7


4,0
2,4
1,3 0,0 0,8

0,0
polícias ofendido denúncia feita por escola outro pais
mais de uma
entidade/pessoa

Tribunal de Coimbra Tribunal de Lisboa

Fonte: OPJ/Amostra processos TFM

Verifica-se, assim, uma diferença assinalável relativa à importância das


polícias enquanto mobilizadoras nos processos tutelares analisados em ambos
os tribunais (53%, em Lisboa, e 37,3%, em Coimbra). É possível que para esta
256 Capítulo V - Entre dois olhares

diferença (de 15,7%) contribua o facto de os “crimes” públicos147 que constam


no requerimento de abertura da fase jurisdicional relativamente aos menores
sujeitos de um processo tutelar que chegou à fase jurisdicional no Tribunal de
Família e Menores de Lisboa terem um peso relativo superior em cerca de 13%
em relação ao peso relativo dos “crimes” públicos que constam do
requerimento de abertura da fase jurisdicional relativamente aos processos
analisados no Tribunal de Coimbra (33,4% e 20,6%, respectivamente). A nossa
hipótese de trabalho é que será a natureza da criminalidade subjacente o
principal factor indutor desta situação.

2. 2. O acompanhamento do jovem por advogados

A Lei Tutelar Educativa refere que os jovens necessitam de um


acompanhamento jurídico especializado148. Resulta do nosso estudo que, em
ambos os tribunais, a esmagadora maioria das vezes, o advogado do jovem é
nomeado pelo Tribunal, tratando-se, portanto, de um advogado de nomeação
no âmbito do patrocínio judiciário.

147
Os crimes públicos são aqueles em que “a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura
de um inquérito" (artigo 262.º n.º 2 do Código de Processo Penal) ao contrário dos crimes
vulgarmente designados por semi-públicos e particulares em que o exercício da acção penal
está dependente de queixa para os primeiros e de acusação particular para os segundos.
148
Cf. artigo 45.º e 46.º da Lei Tutelar Educativa, em especial, os n.ºs 4 “O defensor é
advogado ou, quando não seja possível, advogado estagiário” e 5 “A nomeação de defensor
deve recair preferencialmente entre advogados com formação especializada, segundo lista a
elaborar pela Ordem dos Advogados”.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 257

Gráfico V.25
A escolha de Advogado

100%

90%

80%

70%

60%
97,2 97,5
50%

40%

30%

20%

10%
2,8 2,5
0%
Coimbra Lisboa
Constituído Oficioso

Fonte: OPJ/Amostra processos TFM

Como se pode ver pelo Gráfico V.26 e, apesar de a Lei, como já se


referiu, determinar que o jovem deve ter um acompanhamento especializado,
observamos que numa parte significativa dos casos o defensor do jovem é um
advogado estagiário e, por isso, não especializado em questões de Direito dos
Menores.
258 Capítulo V - Entre dois olhares

Gráfico V.26
Quem defende o jovem: Advogado estagiário ou Advogado?

69,4

70,0 58,5

60,0

41,5
50,0

30,6
40,0

30,0

20,0

10,0

0,0
Coimbra Lisboa

Estagiário Advogado

Fonte: OPJ/Amostra processos TFM

Como podemos ver pelo Gráfico, dos jovens sujeitos de um processo


tutelar educativo que chegou à fase jurisdicional no Tribunal de Família e
Menores de Lisboa, 41,5% foram defendidos por advogado estagiário, sendo
que, em relação ao Tribunal de Família e Menores de Coimbra essa
percentagem baixou cerca de 11%, situando-se nos 30,6%.

Para além da defesa ser assegurada, numa percentagem significativa, por


advogados estagiários, acresce que alguns jovens, especialmente do Tribunal
de Família e Menores de Coimbra (40,8%), não são defendidos pelo mesmo
advogado desde o início até ao fim do processo, havendo mesmo uma
percentagem significativa (19,7%, em Coimbra, e 6,7%, em Lisboa) que foram
defendidos por três advogados diferentes ao longo do processo.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 259

2. 3. Factos praticados pelo jovem qualificados como crime

2. 3. 1. Factos ocasionais e plúrimos

A análise dos dados da nossa amostra é, como já referimos na introdução


a este Capítulo, referente aos factos qualificados como crime pelos quais os
jovens, sujeitos dos processos tutelares estudados, foram indiciados como
autores no requerimento de abertura da fase jurisdicional (podendo os
processos estar pendentes ou já terem findado) e não, como na análise das
estatísticas oficiais efectuada na Secção I, referente aos factos qualificados
como crimes pelos quais os jovens foram condenados (processos que findaram
com a aplicação de uma medida tutelar educativa). Também, ao contrário das
estatísticas oficiais, que permitem apenas analisar dados relativos a um facto
qualificado como crime por jovem (o crime mais grave), confrontámo-nos, nesta
análise, com uma média de 2,1 crimes por jovem relativamente aos jovens
sujeitos de processos tutelares educativos no Tribunal de Família e Menores de
Lisboa (539 factos qualificados como crime para 262 jovens sujeitos de
processos tutelares educativos) e uma média de 1,4 crimes por jovem
relativamente aos jovens cujos processos foram analisados no Tribunal de
Família e Menores de Coimbra (102 factos qualificados como crime para 75
jovens sujeitos de processos tutelares educativos).
260 Capítulo V - Entre dois olhares

Gráfico V.27
Número de factos qualificados como crime, relativo a cada jovem, constante nos
requerimentos de abertura da fase jurisdicional

Coimbra Lisboa
5 ou +
4 2,7 5 ou +
2,7 9,9
3
2,7
4
4,7
2
12,2

3
10,7

1
60,5

2
14,2
1
79,7

Fonte: OPJ/Amostra processos TFM

Como resulta do Gráfico, dos jovens da nossa amostra que foram sujeitos
de um processo tutelar educativo que chegou à fase jurisdicional no Tribunal de
Família e Menores de Lisboa, 40% foram indiciados, no requerimento de
abertura da fase jurisdicional, pela prática de mais do que um facto qualificado
como crime relevante para o processo em causa; enquanto que no Tribunal de
Família e Menores de Coimbra essa percentagem foi apenas de 20%. É de
notar que, em Lisboa, uma percentagem ainda significativa de jovens (10%) foi
indiciada, no requerimento de abertura da fase jurisdicional, pela prática de
cinco ou mais factos qualificados como crime, havendo mesmo 5 jovens que
foram foram indiciados, no requerimento de abertura da fase jurisdicional, pela
prática de 10, 11, 12, 16 e 20 factos qualificados como crime, respectivamente.

Para uma análise mais fina desta situação, dividimos a nossa amostra de
cada Tribunal em jovens indiciados, no requerimento de abertura da fase
jurisdicional, pela prática de apenas por um ou dois factos qualificados como
crime (facto ocasional) e em jovens indiciados, no requerimento de abertura da
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 261

fase jurisdicional, pela prática de pela prática de três ou mais factos


qualificados como crime (factos plúrimos).

Gráfico V.28
Percentagem de factos ocasionais ou de factos plúrimos por jovem

91,9

100,0

90,0 74,7

80,0

70,0

60,0

50,0

40,0 25,3

30,0
8,1
20,0

10,0

0,0
Coimbra Lisboa

ocasional plúrimos

Fonte: OPJ/Amostra processos TFM

A nossa análise mostra que a percentagem de jovens que foi indiciada, no


requerimento de abertura da fase jurisdicional, pela prática de factos plúrimos é
mais elevada em Lisboa (25,3%) do que em Coimbra (8,1%). Quanto ao sexo
dos jovens, destaca-se o facto de no Tribunal de Família e Menores de
Coimbra nenhum jovem do sexo feminino ter sido indiciado, no requerimento
de abertura da fase jurisdicional, pela prática de factos plúrimos, ao contrário
do Tribunal de Família e Menores de Lisboa, em que 3% do total de jovens da
nossa amostra naquela situação eram jovens do sexo feminino.

Quanto à idade, no Tribunal de Família e Menores de Coimbra, os jovens


sujeitos de um processo tutelar educativo que foram indiciados, no
requerimento de abertura da fase jurisdicional, pela prática de factos plúrimos
262 Capítulo V - Entre dois olhares

têm, predominantemente, 11, 12 ou 14 anos. Em Lisboa, os jovens sujeitos de


um processo tutelar educativo que foram indiciados, no requerimento de
abertura da fase jurisdicional, pela prática de factos plúrimos têm,
predominantemente, 12, 13 ou 14 anos, notando-se, ao contrário do que
acontece em Coimbra, uma diminuição dos factos plúrimos pelos quais os
jovens foram indiciados no requerimento de abertura da fase jurisdicional à
medida que aumenta a idade dos jovens.

Quanto ao grau de escolaridade, verifica-se uma diminuição, à medida


que o grau de escolaridade do jovem aumenta, relativamente aos jovens
sujeitos de um processo tutelar educativo que foram indiciados, no
requerimento de abertura da fase jurisdicional, pela prática de factos plúrimos
no Tribunal de Família e Menores de Coimbra. No Tribunal de Família e
Menores de Lisboa, verifica-se que quando constam no requerimento de
abertura da fase jurisdicional factos plúrimos estes não são “influenciadas” pelo
grau de escolaridade dos jovens (Gráfico V.30).

Gráfico V.29
Factos ocasionais ou plúrimos por grau de escolaridade
Coimbra

93,1 95,2
100,0 89,5

90,0

80,0

70,0

60,0

50,0

40,0

30,0

20,0 10,5
6,9
4,8
10,0

0,0
primeiro ciclo segundo ciclo terceiro ciclo

crime ocasional crime plúrimo

Fonte: OPJ/Amostra processos TFM


Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 263

Gráfico V.30
Factos ocasionais ou plúrimos por grau de escolaridade
Lisboa

73,5 73,3 75,0


80,0

70,0

60,0

50,0

40,0
26,7
26,5 25,0
30,0

20,0

10,0

0,0
primeiro ciclo segundo ciclo terceiro ciclo

crime ocasional crime plúrimo

Fonte: OPJ/Amostra processos TFM

A variável nacionalidade não tem influência nos dados. A percentagem de


jovens portugueses e estrangeiros sujeitos de processos tutelares educativos
que foram indiciados, no requerimento de abertura da fase jurisdicional, pela
prática de factos plúrimos no Tribunal de Família e Menores de Lisboa é
idêntica.

Em consonância com o que já deixámos dito, é de salientar o facto de a


maioria dos jovens indiciados, no requerimento de abertura da fase
jurisdicional, pela prática de factos plúrimos ter sido anteriormente sujeito de
um processo tutelar educativo e ou de um processo de promoção e protecção.

2. 3. 2. Os tipos de factos qualificados como crime

Considerando os processos em que foi possível recolher este dado, no


Tribunal de Família e Menores de Coimbra os jovens sujeitos de processos
tutelares educativos que chegaram à fase jurisdicional praticaram 16 tipos de
264 Capítulo V - Entre dois olhares

factos qualificados como crimes. Em comparação, no Tribunal de Família e


Menores de Lisboa, esse número foi de 26.

Quadro V.16
Factos qualificados como crime

TFM Coimbra TFM Lisboa

Nº % Nº %

Roubo ou violência depois da subtracção 6 5,9 289 53,6

Furto 28 27,5 52 9,6

Furto qualificado 29 28,4 47 8,7

Ofensa à integridade física grave,


2 2,0 20 3,7
agravada e qualificada

Dano simples e qualificado 7 6,9 15 2,8

Furto de uso de veículo 4 3,9 17 3,2

Condução sem habilitação legal 10 9,8 11 2,0

Ofensa à integridade física simples e


6 5,9 12 2,2
privilegiada
Violação de domicílio e introdução em
1 1,0 15 2,8
lugar vedado ao público

Injúria 0,0 13 2,4

Tráfico de quantidades diminutas, de


1 1,0 9 1,7
menor gravidade ou tráfico-consumo

Ameaça ou coacção 0,0 8 1,5

Substâncias explosivas ou análogas e


1 1,0 7 1,3
armas

Burla simples e qualificada 1 1,0 4 0,7

Contrafacção de moeda ou titulo de


2 2,0 3 0,6
crédito, depreciação do seu valor,
Tráfico e actividades ilícitas, simples ou
1 1,0 4 0,7
agravado ( inclui precursão)
Receptação ou auxilio material ao
2 2,0 1 0,2
criminoso
Incêndios, explosões e outras condutas
0,0 2 0,4
especialmente perigosas
Condução perigosa de veículo rodoviário
0,0 2 0,4
simples e agravada

Resistência e coacção sobre funcionário 0,0 2 0,4

Sequestro, rapto e tomada de reféns 0,0 1 0,2

Violação simples e agravada 1 1,0 0,0

Apropriação ilegítima em caso de acessão


0,0 1 0,2
ou de coisa achada
Crimes contra os sentimentos religiosos e
0,0 1 0,2
o respeito devido aos mortos
Falsificação de documentos ou de notação
0,0 1 0,2
técnica, sua danificação ou subtracção e
Falsidade de depoimento, declaração,
0,0 1 0,2
testemunho, perícia, interpretação ou

Crimes fiscais aduaneiros 0,0 1 0,2

Total 102 100,0 539 100,0

Fonte: OPJ/Amostra processos TFM


Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 265

Para uma análise mais perceptível agrupámos os vários tipos de factos


qualificados como crimes praticados pelos jovens da nossa amostra em “crimes
contra as pessoas”, “crimes contra a sociedade”, “crimes contra o Estado”;
“crimes contra o património (sem violência)”; “crimes contra o património (com
violência)”; e “outros crimes” de acordo com as listas de tipos de crime
agregados, do Gabinete de Política legislativa e Planeamento149 (Gráfico V.31).

149
Na categoria dos “crimes contra as pessoas” considerámos os factos qualificados como
crimes de ofensa à integridade física simples e privilegiada, ofensa à integridade física grave,
agravada e qualificada, ameaça ou coacção, sequestro, rapto e tomada de reféns, violação
simples e agravada, injúria e violação de domicílio e introdução em lugar vedado ao público. Na
categoria “crimes contra o património sem violência”, englobámos os factos qualificados como
crimes de furto, furto qualificado, furto de uso de veículo, apropriação ilegítima em caso de
acessão ou de coisa achada, dano simples e qualificado, burla simples e qualificada e
receptação ou auxilio material ao criminoso. Na categoria de “crimes contra o património com
violência”, incluímos os factos qualificados como crimes de roubo ou violência depois da
subtracção. Na categoria dos “crimes contra a sociedade” incluímos os factos qualificados
como crimes contra os sentimentos religiosos e o respeito devido aos mortos; como crimes de
falsificação de documentos ou de notação técnica, sua danificação ou subtracção e atestados
falsos; de contrafacção de moeda ou titulo de crédito, depreciação do seu valor, passagem e
aquisição de moeda falsa; de incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas;
de substâncias explosivas ou análogas e armas; de condução perigosa de veículo rodoviário
simples e agravada; de tráfico e actividades ilícitas, simples ou agravado e de tráfico de
quantidades diminutas, de menor gravidade ou tráfico-consumo; e, por fim, os factos
qualificados como crimes de condução sem habilitação legal. Na categoria de “crimes contra o
Estado” englobámos os factos qualificados como crimes de resistência e coacção sobre
funcionário e de falsidade de depoimento, declaração, testemunho, perícia, interpretação ou
tradução. Na categoria “outros crimes” incluímos apenas os factos qualificados como “crimes
fiscais e aduaneiros”.
266 Capítulo V - Entre dois olhares

Gráfico V.31
Factos qualificados como crime agrupado
Coimbra Lisboa

crimes contra o património crimes contra o estado


crimes contra a vida em (com violência) 0,6
sociedade 5,9 outros crimes
14,7 crimes contra a vida em
0,2
sociedade
7,4

crimes contra as pessoas


9,8 crimes contra as pessoas
12,8

crimes contra o património


(com violência)
53,6

crimes contra o património crimes contra o património


(sem violência) (sem violência)
69,6 25,4

Fonte: OPJ/Amostra processos TFM

Ao analisarmos o tipo de factos qualificados como crime agrupados pelos


quais os jovens da nossa amostra foram indiciados, no requerimento de
abertura da fase jurisdicional, verificamos que no Tribunal de Família e
Menores de Coimbra predominam os factos qualificados como crimes contra o
património sem violência (cerca de 70%); enquanto que, em Lisboa
predominam os factos qualificados como crimes contra o património com
violência (cerca de 54%). Assim, em Lisboa, os factos pela prática dos quais os
jovens foram indiciados no requerimento de abertura da fase jurisdicional foram
qualificados como tipos de crime mais gravosos (53,6%, crimes contra o
património com violência; 12,8%, crimes contra as pessoas) do que em
Coimbra (5,9% e 9,8%, respectivamente).

Devido à grande maioria dos jovens ser do sexo masculino, não há, em
relação a estes, diferenças significativas em relação à percentagem total dos
factos qualificados como crime em cada Tribunal.

Já quanto à idade, constatámos que, quer no Tribunal de Família e


Menores de Coimbra, quer no Tribunal de Família e Menores de Lisboa, à
medida que aumenta a idade dos jovens diminui o peso relativo dos factos
qualificados como crimes contra as pessoas e aumenta o peso relativo dos
factos qualificados como crimes contra o património com violência e como
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 267

crimes contra a vida em sociedade. Ainda considerando o Tribunal de Família e


Menores de Lisboa, o peso relativo dos factos qualificados como crimes contra
o património com violência regista algum crescimento com o aumento da idade
dos jovens.

Os Gráficos V.32 e V.33 mostram a distribuição do peso relativo dos


diferentes factos qualificados como crimes considerando o grau de
escolaridade.

Gráfico V.32
Factos qualificados como crime por grau de escolaridade150
Coimbra

100% 8,3
19,4 17,9

80%

60%
79,2
64,5 66,7

40%

20% 5,1
12,9
10,3 12,5
3,2
0%
primeiro ciclo segundo ciclo terceiro ciclo

crimes contra as pessoas crimes contra o património (com violência)

crimes contra o património (sem violência) crimes contra a vida em sociedade

Fonte: OPJ/Amostra processos TFM

150
Analisamos apenas os jovens que tinham ou frequentavam o ensino básico (primeiro,
segundo e terceiro ciclo) porque só em relação a esses temos um número adequado de jovens
em ambos os tribunais para que possamos comparar os dados.
268 Capítulo V - Entre dois olhares

Gráfico V.33
Factos qualificados como crime por grau de escolaridade151
Lisboa

1,2 0,4 0,0


7,4 5,5
100%
20,3
13,5
30,5
80%

35,6
60%
58,3

40% 55,5

37,3

20%
19,6
8,2 6,8

0%
primeiro ciclo segundo ciclo terceiro ciclo
crimes contra as pessoas crimes contra o património (com violência)
crimes contra o património (sem violência) crimes contra a vida em sociedade
crimes contra o estado

Fonte: OPJ/Amostra processos TFM

A variável “grau de escolaridade” tem, na nossa amostra, influencia,


sobretudo, nos factos qualificados como crimes contra o património com
violência e contra as pessoas. Como se pode ver nos Gráficos anteriores, em
ambos os tribunais, à medida que aumenta a escolaridade dos jovens, diminui
o peso relativo dos factos qualificados como crimes contra o património com
violência.

Ao contrário do que se verifica no Tribunal de Família e Menores de


Coimbra, no Tribunal de Família e Menores de Lisboa, à medida que aumenta
o grau de escolaridade regista-se uma diminuição dos factos qualificados como
crimes contra as pessoas.

Quanto à nacionalidade, só analisável na amostra dos processos do


Tribunal de Família e Menores de Lisboa, a única diferença significativa

151
Cf. nota anterior.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 269

regista-se em relação aos factos qualificados como crimes contra as pessoas.


Cerca de 14% dos factos constantes do requerimento de abertura da fase
jurisdicional relativos aos jovens de nacionalidade portuguesa tiveram por base
factos qualificados como crimes contra as pessoas, enquanto que apenas 7,8%
dos factos constantes dos requerimentos de abertura da fase jurisdicional
relativamente aos jovens de nacionalidade estrangeira foram baseados em
factos qualificados como crimes da mesma natureza.

Os Gráficos V.34 e V.35 mostram, para cada um dos tribunais, e tendo


como referência os tipos de factos qualificados como crimes, o peso relativo
dos jovens que tinham tido um processo de promoção e protecção e/ou outro
processo tutelar educativo anterior.

Gráfico V.34
Factos qualificados como crime por jovem com processo de promoção e protecção e/ou
outro processo tutelar educativo anterior
Coimbra

80,0 77,8
73,8

70,0

57,1
60,0

50,0
42,9
40,0
40,0

30,0
30,0

20,0
20,0
11,9
11,1 10,0
7,1 7,1 8,3
10,0
2,8
0,0 0,0 0,0 0,00,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0
0,0
crimes contra as crimes contra o crimes contra o crimes contra a crimes contra o outros crimes
pessoas património (com património (sem vida em estado
violência) violência) sociedade

com PPP & PTE com PPP com PTE sem PPP ou PTE

Fonte: OPJ/Amostra processos TFM


270 Capítulo V - Entre dois olhares

Gráfico V.35
Factos qualificados como crime por jovem com processo de promoção e protecção e/ou
outro processo tutelar educativo anterior
Lisboa

70,0

60,5
60,0 55,3

50,0 47,1

40,0

29,9
27,3 27,3 27,3
30,0 25,8 25,6

18,1 18,2
20,0

8,4
10,0 6,6 7,8 7,0
6,2
0,6 0,00,8 0,0 0,0 0,4 0,0
0,0
0,0
crimes contra as crimes contra o crimes contra o crimes contra a crimes contra o outros crimes
pessoas património (com património (sem vida em estado
violência) violência) sociedade

com PPP & PTE com PPP com PTE sem PPP ou PTE

Fonte: OPJ/Amostra processos TFM

Analisando os Gráficos V.34 e V.35, verificamos que, na nossa amostra,


os jovens sujeitos de processos tutelares educativos que chegaram à fase
jurisdicional no Tribunal de Família e Menores de Coimbra, e que foram ou
eram sujeitos de processos de promoção e protecção, foram indiciados, no
requerimento de abertura da fase jurisdicional, pela prática de factos
qualificados como crimes contra as pessoas e contra o património com
violência em percentagens (30% e 20%, respectivamente) bastante superiores
às dos jovens que não foram ou não eram sujeitos de processos de promoção
ou protecção ou de outros processos tutelares educativos (11,1% e 2,8%,
respectivamente).

No Tribunal de Família e Menores de Lisboa verifica-se, também, que há


uma grande percentagem de jovens que eram ou foram sujeitos de processos
de promoção e protecção (27,3%) ou de processos de promoção e protecção e
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 271

processos tutelares educativos (25,8%) que foram indiciados, no requerimento


de abertura da fase jurisdicional, pela prática de factos qualificados como
crimes contra as pessoas. Estes últimos foram, igualmente, indiciados, no
requerimento de abertura da fase jurisdicional, pela prática de factos
qualificados como crime numa percentagem maior do que o resto dos jovens
por actos qualificados por crimes contra a vida em sociedade.

2. 4. A duração do processo tutelar

Como se sabe, uma das questões com se confrontam os tribunais


portugueses em geral é a questão da morosidade processual. Interessou-nos,
também, analisar esta questão à luz dos dados da nossa amostra. Dos
processos em que foi possível recolher dados que permitissem esta análise,
resulta que, em ambos os tribunais, desde a abertura do processo no Ministério
Público até à data da audiência em que é aplicada uma medida, ou à data da
comunicação ao IRS da medida tutelar aplicada152 a duração de mais de
metade dos processos tutelares é inferior ou igual a um ano, (59,3% em
Coimbra, e 57,4% em Lisboa), embora, destes, a maioria tenha durado mais de
6 meses.

152
Durante a recolha de dados nos tribunais de família e menores de Coimbra e de Lisboa,
deparámo-nos com algumas lacunas referentes às datas da audiência em que é decidido o
processo, assim como às datas da comunicação ao IRS da medida tutelar aplicada. Desta
forma, utilizámos as datas da audiência, quando existentes, e as datas da comunicação ao
IRS, quando aquelas não existiam.
272 Capítulo V - Entre dois olhares

Quadro V.17
Duração dos processos tutelares educativos

TFM Coimbra TFM Lisboa

Nº % Nº %

Até 3 meses 0 0,0 3 3,0

3 a 6 meses 11 20,4 17 16,8

6 meses a 1 ano 21 38,9 38 37,6

1 a 2 anos 21 38,9 34 33,7

Mais de 2 anos 1 1,9 9 8,9

Total 54 100,0 101 100,0

Fonte: OPJ/Amostra processos TFM

Acresce que há uma percentagem significativa de processos em ambos


os tribunais, (38,9% e 33,7%, respectivamente) que tem uma duração entre um
e dois anos, o que, considerando o desenvolvimento da personalidade de um
jovem, é um tempo demasiado longo para que a sua situação não esteja
definida. Foi, ainda, possível registar, na nossa amostra, alguns processos no
Tribunal de Família e Menores de Lisboa que demoram mais de dois anos.

O Quadro V.18 mostra a duração daqueles processos desde a data dos


factos até à data de abertura do processo de inquérito, na fase de inquérito e
na fase jurisdicional.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 273

Quadro V.18
Duração dos processos tutelares educativos

Da abertura do processo à abertura da fase


Da data dos factos à abertura do processo
jurisdicional
TFM Coimbra TFM Lisboa TFM Coimbra TFM Lisboa

Nº % Nº % Nº % Nº %

Até 15 dias 22 29,7 54 21,3 Até 3 meses 9 12,2 27 14,3

15 dias a 1 mês 13 17,6 71 28,1 3 a 6 meses 30 40,5 50 26,5

1 a 3 meses 22 29,7 66 26,1 6 meses a 1 ano 30 40,5 62 32,8

3 a 6 meses 8 10,8 35 13,8 1 a 2 anos 4 5,4 48 25,4

Mais de 6 meses 9 12,2 27 10,7 Mais de 2 anos 1 1,4 2 1,1


Total 74 100,0 253 100,0 Total 74 100,0 189 100,0

Da abertura da fase jurisdicional à comunicação ao


IRS153
TFM Coimbra TFM Lisboa

Nº % Nº %

Até 3 meses 30 55,6 53 53,0

3 a 6 meses 17 31,5 35 35,0

6 meses a 1 ano 7 13,0 11 11,0

1 a 2 anos 0 0,0 1 1,0

Mais de 2 anos 0 0,0 0 0,0

Total 54 100,0 100 100,0

Fonte: OPJ/Amostra processos TFM

Como podemos ver pelo Quadro V.18, o tempo que medeia entre a
prática do facto e a abertura do processo é, na grande maioria dos casos,
inferior ou igual a três meses e, em cerca de metade, inferior a um mês. Esta
situação estará relacionada com as circunstâncias do cometimento do facto,
muitas vezes em flagrante delito, e com o exercício do direito de queixa, que
pode ser mais ou menos tardio.

Na fase de inquérito, isto é, considerando a actividade do Ministério


Público, a investigação dos factos praticados por jovens qualificados como
crimes tem uma duração que não podemos deixar de considerar longa. Em
Coimbra, 47,3% e, em Lisboa, 59,3% dos processos que chegaram à fase

153
Cf. nota de rodapé anterior.
274 Capítulo V - Entre dois olhares

jurisdicional demoraram mais do que seis meses na fase de investigação. É,


ainda, de salientar que em Lisboa, 25,4% dos processos da nossa amostra
demoraram entre 1 a 2 anos para chegarem à fase jurisdicional.

Na fase jurisdicional, os processos analisados comparativamente à fase


anterior, registaram durações menos elevadas. A grande maioria dos
processos findaram até 6 meses (mais de metade em três meses - 55,6%, em
Coimbra, e 53%, em Lisboa).

Resulta, assim, do exposto que a análise dos dados da nossa amostra


revela, quanto às variáveis mobilizadores do Tribunal, intervenção de
advogado, factos qualificados como crime de que os jovens são indiciados, no
requerimento de abertura da fase jurisdicional e duração do processo tutelar
educativo, as seguintes divergências, ao compararmos os tribunais de família e
menores de Coimbra e de Lisboa. No Tribunal de Família e Menores de
Coimbra, os maiores mobilizadores do processo tutelar são os ofendidos,
enquanto que no Tribunal de Família e Menores de Lisboa são as polícias.

Se bem que em ambos os tribunais os jovens sejam, na grande maioria


dos casos, patrocinados por advogados nomeados oficiosamente, e, em
percentagem significativa, por advogados estagiários, no Tribunal de Família e
Menores de Coimbra uma percentagem significativa de jovens (cerca de 40%)
é acompanhada por mais do que um advogado em todo o processo.

Neste Tribunal, os jovens foram indiciados, no requerimento de abertura


da fase jurisdicional, pela prática de, em média, 1,4 factos qualificados como
crime, sendo que cerca de 20% foram indiciados, no requerimento de abertura
da fase jurisdicional, pela prática de mais do que um facto qualificado como
crime. Se atendermos à classificação realizada de “factos ocasionais” e “factos
plúrimos”, verifica-se que apenas 8,1% dos jovens, em Coimbra, foi indiciada,
no requerimento de abertura da fase jurisdicional, por factos plúrimos. No
Tribunal de Família e Menores de Lisboa esta situação regista algumas
diferenças. Os jovens foram indiciados, no requerimento de abertura da fase
jurisdicional, pela prática de, em média, 2,1 factos qualificados como crimes,
sendo que cerca de 40% foram indiciados, no requerimento de abertura da fase
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 275

jurisdicional, pela prática de mais do que um facto qualificado como crime


relevante para o processo em causa. Acresce que uma percentagem ainda
significativa (10%) foi indiciada, no requerimento de abertura da fase
jurisdicional, pela prática de cinco ou mais factos qualificados como crime. Em
Lisboa, o peso relativo de jovens que foram indiciados, no requerimento de
abertura da fase jurisdicional, pela prática de factos plúrimos é cerca de três
vezes mais que em Coimbra (cerca de 25%).

Quanto à duração dos processos, a diferença mais significativa,


comparando os dois tribunais, regista-se na fase de investigação. Em Lisboa, o
peso relativo dos processos que, nesta fase, demoraram entre um e dois anos
é superior: cerca de 25%, contra 5,4% em Coimbra.

3. As medidas tutelares educativas aplicadas

O nosso estudo nos tribunais de família e menores de Coimbra e de


Lisboa incidiu, como já referimos, nos processos entrados naqueles tribunais
entre Janeiro de 2001 e Julho de 2003. Dos jovens sujeitos desses processos,
apenas a 202 tinham sido aplicadas medidas tutelares educativas: 67, em
Coimbra, e 135, em Lisboa. O Quadro V.19 mostra quais as medidas tutelares
educativas aplicadas.
276 Capítulo V - Entre dois olhares

Quadro V.19
Medidas tutelares aplicadas

TFM Coimbra TFM Lisboa

Nº % Nº %

internamento em centro educativo 6 9,0 44 32,6

medidas tutelares combinadas 25 37,3 15 11,1

acompanhamento educativo 9 13,4 25 18,5

admoestação 2 3,0 20 14,8

imposição de obrigações 8 11,9 12 8,9

realização de prestações económicas ou


8 11,9 8 5,9
de tarefas a favor da comunidade

reparação ao ofendido 5 7,5 10 7,4

frequência de programas educativos 2 3,0 1 0,7

imposição de regras de conduta 2 3,0 0 0,0

Total 67 100,0 135 100,0

Fonte: OPJ/Amostra processos TFM

Como se pode ver pelo Quadro, há uma grande diferença entre o peso
relativo das medidas tutelares educativas aplicadas aos jovens sujeitos de um
processo tutelar educativo no Tribunal de Família e Menores de Coimbra e de
Lisboa. Essa diferença, resulta, em larga medida, do número e do tipo de facto
qualificado como crime pelos quais são “condenados” os jovens, dado que em
Lisboa, como já vimos, há uma percentagem maior de “condenados” por factos
qualificados como crimes plúrimos e por factos qualificados como crimes contra
o património com violência (roubo) o que implica, por si só, uma adequação da
medida à maior gravidade das infracções. Não surpreende, por isso, que o
peso relativo das medidas de maior gravidade (internamento em Centro
Educativo e acompanhamento educativo) seja maior em Lisboa.

Merece, também, referência o facto de no Tribunal de Família e Menores


de Coimbra os juízes aplicarem mais medidas combinadas, sendo residual o
peso relativo da medida de admoestação, que, em Lisboa, tem uma
percentagem de cerca de 15%.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 277

Em ambos os tribunais é notória a subutilização de medidas como a


reparação ao ofendido, a frequência de programas formativos, a imposição de
regras de conduta e a realização de trabalho a favor da comunidade, embora,
em Coimbra, essas medidas sejam mais aplicadas em conjunção com outras,
nomeadamente, com o acompanhamento educativo.

No que respeita ao tipo de medidas combinadas aplicadas, em ambos os


tribunais implicam, na sua maioria, a frequência de programas formativos.

Das medidas tutelares educativas de internamento em Centro Educativo


aplicadas aos jovens sujeitos de um processo tutelar educativo nos tribunais de
família e menores de Coimbra e de Lisboa, a grande maioria foi aplicada em
regime semiaberto, registando-se um peso maior do regime fechado em
Lisboa.

Quadro V.20
Regime de internamento em Centro Educativo

TFM Coimbra TFM Lisboa

Nº % Nº %

Regime Aberto 2 20,0 1 2,3

Regime Semi-Aberto 8 80,0 34 77,3

Regime Fechado 0 0,0 9 20,5

Total 10 100,0 44 100,0

Fonte: OPJ/Amostra processos TFM


CAPÍTULO VI

O processo tutelar educativo:

a mesma lei e práticas judiciais muito distintas

– análise do discurso dos actores judiciais

Introdução

A reforma do Direito de Crianças e Jovens, globalmente considerada,


pretendeu imprimir uma mudança de orientação normativa e,
consequentemente, de prática, neste âmbito do direito. Esta mudança de
caminho, no entanto, depende não só de alterações legislativas, que se
procuraram solucionar com a aprovação dos correspondentes diplomas legais,
mas, sobretudo, de mudança de procedimentos induzidos pela mudança das
correspectivas normas legais.

Neste Capítulo procuraremos trazer para o debate a visão dos operadores


que trabalham directamente com estas questões (magistrados judiciais e do
Ministério Público (MP), advogados e técnicos do Instituto de Reinserção Social
(IRS) e da Segurança Social), ressaltando aqueles pontos que se foram
revelando ao longo da nossa investigação, de maior importância para a
compreensão do “estado das coisas” no que diz respeito especificamente à
aplicação da Lei Tutelar Educativa.

O conteúdo deste Capítulo não contempla, naturalmente, a opinião dos


autores deste relatório, mas pretende unicamente conduzir-nos pelo olhar e
discurso dos operadores sobre o tema em análise. Limitar-nos-emos a
sistematizar o discurso proferido sobre as diversas questões abordadas, de
modo a que se possam, sobre cada um desses pontos, comparar as diversas
opiniões.
280 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

1. As questões levantadas pelos olhares dos actores do processo tutelar


educativo

1. 1. O Processo de Promoção e Protecção e o Processo Tutelar


Educativo: duas intervenções distintas para duas situações
diferenciadas

1. 1. 1. A ratio legis da LTE e da LPCJP

Com a entrada em vigor dos novos diplomas que regulam o Direito de


Crianças e Jovens, passaram a prever-se dois tipos de intervenções distintas
para duas situações diferenciadas, justificadas pela “legitimidade e a eficácia
do sistema de intervenção estadual junto de menores” (Rodrigues e Duarte-
Fonseca, 2003: 56). Segundo a Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º
265/VII, de 17 de Abril de 1999, da Assembleia da República, que deu origem à
Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP) (Lei n.º 147/99, de
1 de Setembro), tendo a comissão constituída por força do despacho do
Ministro da Justiça n.º 20/MJ/96, de 30 de Janeiro de 1996 diagnosticado “que
a ineficácia da intervenção estadual junto de menores [era] conatural à
indistinção dos fenómenos sociais a que se dirige, tornou-se claro que a
intervenção relativa aos menores infractores não pode ser idêntica à que se
adequa às situações de menores em risco”.

Assim como se referiu no Capítulo IV, o legislador distinguiu situações em


que se torna necessária uma intervenção tutelar educativa (para jovens com
idades compreendidas entre os 12 e os 16 anos de idade, que sejam agentes
da prática de facto qualificado pela lei como crime) de outras em que a
intervenção necessária é uma intervenção tutelar de protecção (para os jovens
que se encontrem em situação de perigo). “A ideia central é distinguir a
situação dos menores agentes da prática de facto qualificado pela lei como
crime da dos menores em perigo e diferenciar as respostas” (Rodrigues e
Duarte-Fonseca, 2003: 55).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 281

As exposições de motivos das Propostas de Lei n.º 266/VII e 265/VII da


Assembleia da República (que deram origem, respectivamente, à Lei Tutelar
Educativa e à Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo) foram
explícitas nas causas que legitimariam uma intervenção num e noutro sentido.

Assim, uma intervenção tutelar de protecção impor-se-ia nas “situações


de risco que ponham em perigo a segurança, a saúde, a formação, a educação
ou o desenvolvimento da criança ou do jovem”, fundando-se tal intervenção,
“desde logo, no artigo 69.º da Constituição, que confere à sociedade e ao
Estado o dever de os proteger contra todas as formas de abandono, de
discriminação e opressão e contra o exercício abusivo da autoridade, com vista
ao seu desenvolvimento integral” (Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º
265/VII).

Por outro lado, a Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 266/VII,


que deu origem à Lei Tutelar Educativa (LTE), refere que “a intervenção
protectora do Estado justifica-se quando o gozo ou o exercício de direitos
cívicos, sociais, económicos ou culturais do menor são ameaçados por factores
que lhe são exteriores (incúria, exclusão social, abandono ou maus tratos)”,
enquanto que a intervenção tutelar educativa “deve confinar-se aos casos em
que o Estado se encontra legitimado para educar o menor mesmo contra a
vontade de quem está investido no poder paternal, o que apenas pode admitir-
se quando se tenha manifestado uma situação desviante que torne clara a
ruptura com elementos nucleares da ordem jurídica”. Deste modo, como
referem Anabela Rodrigues e Duarte-Fonseca, a intervenção educativa “só
pode admitir-se quando se manifesta uma situação desviante que torne clara a
ruptura com o núcleo de valores essenciais da comunidade representado pelas
normas penais. Estas representam o quadro de referência e o mínimo de
obediência devida por qualquer cidadão. O Estado tem, pois, o direito – e o
dever – de intervir correctivamente sempre que o menor, ao ofender as normas
penais, revele uma personalidade hostil ao dever-ser jurídico. Torna-se então
necessário educá-lo para o direito, por forma a que interiorize as normas e os
valores jurídicos (…). Além do mais, esta solução diferenciadora de respostas
282 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

junto dos menores tem a virtualidade de se conformar com exigências


comunitárias de segurança e de paz social, de que o Estado não pode alhear-
se só porque a ofensa provém de um cidadão menor” (2003: 56).

1. 1. 2. O consenso na bondade da diferenciação de respostas

Esta diferenciação de tratamento foi bem acolhida pelos operadores


judiciários e técnicos que, de uma maneira geral, a viram como uma inovação
positiva da nova legislação, considerando que era necessário acabar com o
indiferenciamento de processos:

“[Os processos] andavam aí a «rolar» com relatórios sucessivos sem


nada de concreto (…). Tanto quanto me recordo, os processos
«rolavam» com relatórios sucessivos, com acompanhamentos que
não eram acompanhamentos. Se os miúdos estavam em regime de
internamento também estavam todos misturados, sem nada que os
distinguisse uns dos outros, sem medidas concretas, sem uma
intervenção eficaz (…). E agora parece-me que não” (Ent. 10) 154.

Há, assim, um consenso generalizado de que “foi um passo


fundamental a distinção entre a situação da criança que é vítima da
que é delinquente” (Ent. 45).

Alguns operadores salientam o facto de a LTE ter tornado os jovens em


sujeitos processuais:

“Eu diria como princípio de conversa, que o formalismo é


absolutamente indispensável para nós conseguirmos ajudar os
jovens a ter uma noção de que o direito funciona e de que as regras

154
A identificação dos operadores judiciários faz-se pela expressão Ent., seguida de um
número atribuído a cada um dos entrevistados, de forma a garantir o anonimato.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 283

da vida em sociedade têm princípio meio e fim. E, portanto, quem


trabalhou com jovens antes da LTE e quem trabalha depois da LTE,
e que os ouvia antes e que os ouve depois, percebe que o ganho foi
estrondoso do ponto de vista de os tornar sujeitos processuais (…),
de lhes reconhecer direitos como cidadão e como pessoa e de os
fazer perceber o drama em que eles estão envolvidos. Os menores
não percebiam o drama em que estavam envolvidos. Na OTM eles
entravam no Centro Educativo aos 12 anos e sabiam que, fizessem
o que fizessem, só saiam de lá aos 18 anos, na maioridade. Não
havia duração de medidas, não eram ouvidos, não havia nada disto
e, portanto, quanto a isto eu diria que, eventualmente, precisamos
de ajustar algum formalismo, o formalismo visto na perspectiva de
zelar por garantias processuais e direitos dos menores é uma
conquista irrecusável e eu acho que não podemos andar para trás,
sob pena de, digamos assim, voltarmos a um registo em que o
interesse do menor, não é o interesse do menor, é aquilo que o
adulto entende em cada momento na sua convicção e, se calhar, no
seu moralismo, que é o interesse do menor. Eu estou na lógica do
núcleo duro do formalismo. E, portanto, o núcleo duro do formalismo,
para mim, acho que tem que ser o menor como sujeito de direitos,
com direito a contraditar, com direito a ser ouvido, com direitos
iguais aos adultos” (P-6).

A LTE combina adequadamente o direito com a equidade:

“Em relação à minha experiência anterior [com a OTM] (…), o que


eu notava era o seguinte: nesta área a equidade sobrepunha-se à
legalidade, desde que houvesse bom-senso chegava-se lá, hoje a
Lei é mais formalista (…), mas também tem um campo muito grande
para a equidade (…), para alguma criatividade. Embora mais
formalista, porque é uma Lei com grande pendor de
284 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

regulamentação, deixa um campo para a equidade e para a


criatividade” (Ent. 11).

E se a situação é de um jovem que necessita de protecção e que praticou


um crime, os processos apensam-se:

“A separação entre a LTE e a LPCJP é correcta porque há diferença


entre as situações que cada lei aborda, na maioria dos casos,
apesar de em outros casos não haver grande diferença, por haver
um ponto comum: crianças abandonadas a si próprias e que
enveredam pelo crime. Nestes casos apensam-se os PTE e os PPP”
(Ent. 42).

Um outro magistrado do Ministério Público referia que, apesar de não ter


muito “tempo de experiência com esta Lei, (…) a experiência é muito positiva.
Sei onde vou encaixar na Lei aqueles factos, aquelas providências que
requeiro, aquelas medidas” (Ent. 11).

Todavia, um outro entrevistado, apesar de reconhecer vantagens na nova


legislação de crianças e jovens, entende que a anterior OTM já permitia a
separação entre jovens vítimas e os que praticavam crimes:

“A ideia de tratar de forma diferente realidades diferentes foi-nos


muito cara aquando da aceitação desta «separação de águas».
Apesar de eu entender que a OTM não obrigava à não separação
porque, evidentemente, a um miúdo vítima de maus tratos era
aplicável o artigo 19.º que era uma medida parecida com a inibição
do poder paternal. Era uma medida que visava afastar aquela
criança do meio familiar que lhe era hostil e, portanto, aplicava-se
uma medida limitativa do exercício do poder paternal; ao passo que,
se o miúdo andasse com um comportamento delinquente
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 285

poder-se-ia aplicar desde a admoestação, passando pelo


acompanhamento educativo, até ao internamento em
estabelecimento do IRS, decisão esta precedida de uma audiência
com juízes sociais, o que não sucedia no primeiro caso. Portanto, na
OTM, o que havia era uma forma de processo que se iniciava de
forma igual, mas acabava de forma diferente. Agora, é a própria Lei
que nos empurra para uma situação em que podem estar miúdos
com problemáticas diferentes e que reclamariam tratamentos
diferentes dentro da mesma estrutura” (P-10).

1. 1. 3. O dissenso na aplicação da lei: a aplicação das medidas


tutelares educativas para compensar a “falha” da lei de
promoção e protecção

Apesar de no plano do direito positivo, o legislador ter sido bem claro nas
opções que tomou, e de tal opção ser bem aceite pela generalidade dos
operadores, da investigação por nós levada a cabo notaram-se na aplicação
concreta desvios à orientação definida por lei.

Alguns operadores judiciários evidenciaram, precisamente, esta


subversão do sistema positivado. Um magistrado do Ministério Público,
relatando um caso concreto, refere que requereu a abertura da fase
jurisdicional em que propõe uma medida de internamento por ser a mais
adequada à protecção do jovem:

“Muitas vezes a Lei Tutelar Educativa também acaba por funcionar


como uma Lei de Promoção e Protecção. Estou a pensar que ainda
ontem requeri a abertura da fase jurisdicional relativamente a dois
menores a quem propus medidas de internamento no âmbito da Lei
Tutelar Educativa não propriamente pela gravidade dos crimes que
eles cometeram, sendo certo que também não é esse o critério com
que se deve aplicar o internamento, mas a minha ideia ao propor
286 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

aquela medida era mais no sentido de também os promover e os


proteger e sobretudo isso (…). O crime que um dos miúdos cometeu
foi assaltar uma barraca da feira popular, tirou de lá uma bicicleta e
um rádio, tudo no valor de cerca de cinquenta contos e, portanto,
isso será um furto qualificado, mas dos mais severos com uma pena
até cinco anos. (…) Por ter entrado numa barraca, entrou num
estabelecimento comercial. Não tenho, pelo menos aqui,
conhecimento de outros factos que ele tenha cometido, mas este
miúdo quando cometeu estes factos estava no Colégio (…) onde já
tinha sido colocado pela comissão de protecção de (…). Do Colégio
(…) fugiu e nunca mais o conseguimos encontrar. Antes de estar no
Colégio (…), estava numa família de acolhimento que inicialmente
pensou adoptá-lo, mas a partir de determinada altura, como o
menino começou a dar problemas, «Acabou-se a adopção vai-te
embora e vai mas é para o Colégio de (…) que é lá que estás bem.»

O miúdo fugiu daqui para (…), onde terá estado, mas agora
perguntei pelo paradeiro dele e ninguém sabe. O único relatório que
lá tenho - nem sequer consigo fazer o relatório oficial porque não o
conseguimos localizar - é o último relatório que eu pedi à Comissão
de (…). O último relatório social que lá havia do acompanhamento
daquele menor e onde claramente se diz que é previsível que o
caminho daquele miúdo, se não for enquadrado num ambiente
estruturante com algumas regras, vai ser o caminho da
marginalidade e da delinquência. Ele não tem alternativa, porque
não tem nenhuma espécie de família. Portanto, ontem quando
estava a fazer aquele requerimento pensei: a única hipótese que
tenho de fazer alguma coisa por este miúdo, é metê-lo num regime
aberto num Centro Educativo do Ministério da Justiça, porque se
esse miúdo tivesse uma família normal, estável, não precisava de ir
para uma medida de internamento, nem iria. Mas a este miúdo, cujo
paradeiro se desconhece e que, quando for localizado, vai
desaparecer outra vez, estar-lhe a aplicar uma medida de
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 287

acompanhamento educativo, por exemplo, é a mesma coisa que não


lhe estar aplicar coisa nenhuma porque ele não vai cumprir nada”
(Ent. 10).

Do mesmo modo, um outro magistrado do Ministério Público,


reconhecendo embora as finalidades distintas das duas leis, afirma que “é
evidente que a partir do momento que o processo de promoção e protecção
não deu uma resposta adequada tivemos que ir para a LTE (…). Esticou-se a
corda para aplicar uma medida cautelar de guarda. Era o melhor para o menor”
(Ent. 46).

Um magistrado judicial entrevistado refere, ainda, que:

“nós somos confrontados com situações em que nos surge um


menor, por hipótese, com 14 anos de idade, com uma vivência
familiar dita má, onde até nalguns casos é vítima de maus-tratos e
que terá roubado uns telemóveis. Nalgumas dessas situações
somos tentados a subverter a Lei e a fazer a «justiça» que deveria
ter sido feita em sede de promoção e protecção. O menor deveria ter
sido protegido a tempo. Quando é depois confrontado perante o
Tribunal, este tem o dever de o responsabilizar pelos ilícitos que
praticou, de lhe aplicar uma medida que vise educá-lo para o direito.
Porém, o Tribunal, sabendo do seu enquadramento sócio-familiar,
tende a sobrevalorizar a vertente protectora – que aliás também
deve ser considerada em sede tutelar educativa – e acaba por
subverter a própria Lei, designadamente no âmbito da escolha da
medida e da sua duração. É, por isso, que encontraram (…)
admoestações para furtos vários e internamentos para reduzido
número de crimes menores. Há aqui uma espécie de tentativa de
protecção do menor” (P-4).
288 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

1. 1. 4. As causas da subversão do sistema: da mentalidade dos


magistrados à falta de estruturas da Segurança Social

Os operadores judiciários apontaram causas diversas para esta situação.


Um magistrado do Ministério Público indica a necessidade de “conformar a
mentalidade dos magistrados ao que se pretende com a LTE” (Ent. 23).

No entanto, a causa mais fortemente apontada para a utilização do


processo tutelar educativo como protecção foi, por um lado, a ausência de
medidas eficazes no âmbito de um processo de promoção e protecção:

“A Lei Tutelar Educativa, nesta minha curta experiência aqui, é muito


mais eficaz do que a Lei de Promoção e Protecção, até pelas
medidas que podem ser executadas e as instituições responsáveis
pela sua execução” (Ent. 10).

Acrescentando que as medidas adoptadas no âmbito de um processo


tutelar educativo têm mais hipóteses de eficácia:

“Porque se eu tiver uma criança de doze anos ou treze anos que,


voltando ao crime de furto, que não tem processo tutelar educativo
porque não houve queixa, mas que precisaria de algum
acompanhamento, se eu lhe instaurar um processo de promoção e
protecção que medida lhe vou aplicar? O apoio junto dos pais, em
princípio, se correr tudo bem. (…) Se eu lhe vou aplicar essa medida
- que habitualmente será essa porque na Lei de Promoção e
Protecção também poucas mais me restam - do apoio junto do pai,
do apoio junto do tio, etc, em que é que isto se traduz na prática?
Em que é que se traduz na prática o apoio junto de uns pais deste
género?” (Ent. 10).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 289

Também outro operador salienta a “inexistência de alternativas” no âmbito


da Lei de Promoção e Protecção:

“Se estamos ou não a distorcer ligeiramente o processo tutelar


educativo, é um problema que se coloca ao magistrado. O que é que
é melhor para aquela criança se, apesar de tudo, é o internamento
ou a situação em que está? (…)

E é esta a realidade com que nós nos debatemos. Podemos admitir


que subvertemos, nessas circunstâncias, a Lei mas porque o
sistema subverteu a forma como as coisas estão estruturadas. (…)
se eu peço à Segurança Social: Indique-me uma instituição para
acolher este miúdo com problemas comportamentais gravosos (…) a
Segurança Social diz-nos: “Sr. Dr. não tenho. Nós não temos
instituições vocacionadas...” ou então tenho casos que, aquilo que
vimos, obviamente, é que não aceitam este miúdo porque irá
estragar, irá contribuir para problemas. (…)

De facto, tem de haver um esforço. Não temos resposta e é este o


problema. Portanto, não se trata aqui de darmos a primazia ao
processo tutelar educativo como se ele estivesse a ser utilizado de
forma grosseira para atingir determinados objectivos, é que nós
precisamos que funcione com outro sistema para deixarmos de
continuar a ter estes processos” (P-2).

Por outro lado, é consensual entre os actores judiciários que a Segurança


Social não tem estruturas contentoras para “jovens difíceis”:

“Eu penso que a Segurança Social em Portugal tem que caminhar


para uma situação em que terá de criar estruturas próprias para
miúdos difíceis, ou seja, em que não se permita que no mesmo
espaço estejam miúdos com práticas de consumos, miúdos que
andam na rua e crianças maltratadas. Tem que haver estruturas
290 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

diferentes e a Segurança Social não se pode demitir. No entanto, os


adolescentes que já iniciaram um percurso delinquente deverão
estar noutro tipo de estrutura, no âmbito da Justiça” (P-10).

No mesmo sentido, outro operador chama a atenção para o seguinte


facto:

“A Lei de Promoção e de Protecção não prevê acolhimento


institucional em regime fechado, apenas em regime aberto. Por isso,
não se consegue que o jovem fique na instituição em que é acolhido.
A LPCJP parte da ideia que o jovem em situação de perigo quer
protecção, o que nem sempre é verdade. Esta intervenção não é
nada, devia ser mais contentora – nos Colégios de Acolhimento os
jovens saem quando querem, depois há mandados e regressam (…)

Em casos mais complicados de menores que estão numa instituição


da Segurança Social e fogem, a Segurança Social contacta o
Tribunal para saber se há algum inquérito pendente, para o menor
ser encaminhado para um Centro Educativo” (Ent. 22).

Defende-se, assim, que:

“O que era fundamental é que na promoção e protecção houvesse


uma medida na qual houvesse alguma contenção. Por falta de
estabilidade não se consegue trabalhar com as crianças (…). Podia
ser equacionada a hipótese de no âmbito da LPP haver instituições
com alguma capacidade de contenção na Segurança Social. O
Estado gasta rios de dinheiro a conduzir crianças que fogem
continuamente” (Ent. 45).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 291

Alguns entrevistados assumem a subversão do sistema devido à


representação de que os Centros Educativos funcionam bem, e de que não
existem medidas e instituições de contenção para os jovens com
comportamentos paradelinquentes:

“Esta subversão, que eu continuo a achar que existe, da minha parte


e de alguns colegas, é porque, de facto, o processo tutelar não tem
que ser eminentemente um processo protector e, portanto, nós
subvertemos a Lei quando damos a tónica a essa noção de
protecção. Agora, eu faço-o assumidamente. As razões que me
levam a isso são, precisamente, o facto de nós, em sede de
promoção e protecção, acabarmos por verificar que nem sempre
essas medidas apresentam a eficácia desejada, nem sempre se
mostram adequadas a algumas realidades pré-delinquenciais,
enquanto que os centros educativos revelam-se eficazes. Porque é
que os recomendamos? Porque os centros educativos funcionam
(…).

Esses centros educativos funcionam e estão preparados e


vocacionados para tratarem com menores em situação limite; de
facto, conseguem dar uma resposta muito melhor do que qualquer
outro colégio no âmbito da protecção. Passa-se seguramente isto.
Normalmente, em casos extremos de promoção e protecção em que
o menor furta em casa (não havendo apresentação de queixa por
parte dos familiares), anda a noite toda por fora, mas não tem apoio
familiar estruturado, interrogamo-nos: “ O que é que nós fazemos a
este fulano?”, até parece que estamos à espera que ele seja
apanhado pela polícia para a partir daí intervir. Isso aconteceu. E
depois, é claro: vai para o centro e depois acalma. (...) Dá-me ideia
que em sede de promoção e protecção, para determinadas
situações, devia haver hipótese também de aplicação de medidas
que previssem alguma contenção” (P-4).
292 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

A necessidade de previsão de uma medida que permita maior contenção


no âmbito dos processos de promoção e protecção não gera, no entanto,
unanimidade.

Um magistrado do Ministério Público, apesar de afirmar que “há


efectivamente, a utilização do processo tutelar educativo com intuito de
protecção” e de entender que tal “acontece, fundamentalmente porque (…) as
estruturas de protecção não correspondem adequadamente às necessidades –
estou a falar, designadamente, daqueles casos mais problemáticos, os casos
fronteira, que não são casos em que seja possível aplicar o tutelar educativo”,
defende que “ao nível da promoção e protecção não devem existir instituições
fechadas, ainda que possam ser mais contentoras” (P-5).

1. 1. 5. A desadequação das medidas da LTE e da LPCJP às


situações de comportamentos desviantes não criminais

Outros operadores entrevistados indicaram, ainda, como ponto crítico da


reforma do Direito de Crianças e Jovens, a existência de situações não
acauteladas nem pela Lei de Promoção e Protecção de Crianças e Jovens em
Perigo nem pela Lei Tutelar Educativa.

“Há menores que praticam factos que não cabem na LTE, por não
terem idade ou por não terem cometido crimes graves, nem na
LPCJP, por ser um regime muito aberto. É preciso um regime
intermédio, talvez no âmbito da LPCJP, mas mais fechado. Fica aqui
uma zona de ninguém. As medidas de promoção e protecção não
são suficientes e as da LTE também não são as adequadas” (Ent.
42).

O que leva a que, segundo alguns dos entrevistados, se fique à espera


que o jovem pratique um crime:
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 293

“Todas aquelas condutas que os jovens adoptam e ainda não


consubstanciam a prática de factos classificados na lei como crime,
mas que são um anúncio de (…) comportamentos, esses sim,
delinquentes. E, de facto, e isso é a constatação que se faz (…),
falha a intervenção porque não há resposta ao nível da promoção e
protecção para essa franja de para-delinquência e que é o problema
mais grave, quanto a mim, na área da promoção e protecção (…).
Isto acaba, depois, por passar para a intervenção tutelar educativa
porque o problema vai crescendo, as condutas vão sendo mais
graves e acabam por comprometer a lei penal e, nesta medida, dá
origem à intervenção tutelar educativa. E daquilo que eu tenho
ouvido nos vários tribunais é que, de facto, há situações em que o
Tribunal, as entidades, o IRS, enfim, as polícias, acabam por estar à
espera que o menor cometa factos qualificados na lei penal como
crime e, desta feita, factos mais graves...” (Ent. 47).

Para este magistrado judicial, como consequência desta ausência de


eficácia no âmbito da protecção,

“A intervenção precoce, mínima intervenção, enfim, tudo aquilo que


é apregoado em todo o sistema, cai por terra (…). Acaba por se ver
também já na própria intervenção tutelar educativa, de certa
maneira, esta realidade, embora noutro prisma, que é: quando o
jovem começa a cometer crimes, enfim, factos qualificados na lei
penal como crimes, menos graves, enfim, condutas mais ligeiras
mas que já estão tipificadas na lei como crime, porque as respostas,
como por exemplo, o acompanhamento educativo e outras medidas
não institucionais não estão ou não são muito eficazes (…), logo a
educação para o direito também não se faz convenientemente, e
acabamos por descambar na última medida que é a medida de
internamento” (Ent. 47).
294 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

Segundo o mesmo magistrado esta situação deve-se a uma falta de


“previsão adequada das consequências desta reforma porque, de facto, esta
cisão nas intervenções, coisa que não acontecia na velha OTM, (…) impunha
em sede de promoção e protecção uma resposta que não se queria... Mas
acho que foi falta de previsão, parece-me que nunca houve verdadeira noção
daquilo que representava este tipo de comportamentos que tinham resposta ao
nível da intervenção do IRS.... dos vários CAEFs. E, portanto, não se percebia
muito bem, embora houvesse estudos já, e se percebesse que muitos dos
jovens que estavam nos Centros, nos CAEFs eram jovens que não tinham
cometido factos qualificados na lei penal como crime. Estavam naquele limbo e
que depois tiveram que sair com a reforma. Porque o que estavam era em
situação de perigo.” (Ent. 47).

De acordo com a opinião manifestada por aquele magistrado, a solução


para esta ausência de resposta da Lei de Promoção e Protecção de Crianças e
Jovens em Perigo não passa pela alteração legislativa, defendendo a
necessidade de criar estruturas adequadas para os jovens para-delinquentes:

“( …) implementar convenientemente a lei, criando estruturas. Eu sei


que é uma tarefa difícil, mas é necessário estruturas de resposta a
essas necessidades no âmbito da promoção e protecção e resposta
desde logo institucional, instituições voltadas para essa camada de
jovens (…) com comportamentos para-delinquentes ou com
problemas de consumos e outras práticas que os colocam em
perigo, não só perigo físico mas também na sua formação e que
acabam fazer enveredar por comportamentos delinquentes a breve
trecho. E aí (…) é preciso criar uma resposta ao nível da Segurança
Social, que é ao fim e ao cabo quem deve actuar nesta matéria da
promoção e protecção. Mas não me parece que estejam criadas as
condições para dar uma resposta a este nível. E, então, no plano
das instituições que existem, instituições, enfim, centros de
acolhimento, instituições de acolhimento voltadas para essa camada
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 295

de jovens, são muito poucas e acabamos por ter imensos problemas


que passam por isso” (Ent. 47).

1. 1. 6. A difícil articulação entre o processo de promoção e


protecção e o processo tutelar educativo

A Lei Tutelar Educativa prevê, expressamente, a possibilidade de


existirem, relativamente ao mesmo jovem, simultaneamente processos tutelar
educativo e de promoção e protecção (cf. artigo 43.º, n.º 3). O Ministério
Público pode, ainda, em qualquer fase do processo tutelar educativo participar
“às entidades competentes a situação de menor que careça de protecção
social”; tomar “as iniciativas processuais que se justificarem relativamente ao
exercício ou ao suprimento do poder paternal”; e “requerer a aplicação de
medidas de protecção” (cf. artigo 43.º, n.º 1).

Segundo a Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 266/VII, de 17 de


Abril de 1999, “pela noção de intercorrência entre exigências educativas e
necessidades de protecção, estimula-se uma comunicabilidade permanente
entre sistema de justiça e instâncias de protecção, prevendo-se a aplicação, no
processo, de medidas provisórias de protecção e habilitando-se o Ministério
Público a desencadear iniciativas com vista a assegurar a protecção social do
menor ou a efectivar o exercício ou o suprimento do poder paternal. Não existe,
de resto, qualquer antinomia entre o sistema de protecção e o de justiça”.

Alguns magistrados afirmaram fazer uso destes mecanismos legais de


articulação entre a promoção dos direitos e protecção e o processo tutelar
educativo:

“Os meus processos tutelares educativos têm todos, quase todos ao


lado um processo de promoção e protecção apensado” (P-2).
296 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

“Se da matéria que temos resulta indiciada uma situação de perigo


(comportamento reiterado de infracção de determinadas normas),
convertemos em processo de promoção e protecção e comunicamos
a outras instâncias – CPCJP” (Ent. 45).

No entanto, um magistrado judicial afirma que, em concurso, é mais


adequado que os jovens continuem nos Centros Educativos:

“O problema é que quando se é confrontado com algumas situações


tem que se resolver o problema do crime e nessa fase já é difícil
encontrar medida de promoção e protecção que se adeque ao
menor (...). Repare, muitas vezes faz-se isso conscientemente e até
com o acordo do próprio menor. Nas situações em que o menor
esteve já com medida cautelar e que sabe o que é um Centro
Educativo, tendo tido já contactos com educadores e colegas seus,
pergunta-se-lhes como é que as coisas se estão a passar; qual é a
relação dele com a instituição, com os seus pares e, em metade,
posso garantir, em metade dos julgamentos que realizei, esses
menores verbalizam-me preferir continuar na instituição” (P-4).

Um magistrado do Ministério Público não foge à auto-crítica profissional e


aponta causas para a falta de recurso a estes mecanismos de articulação com
a promoção e protecção, como sejam a falta de uma visão integrada e o facto
de o Ministério Público não exercer as suas competências de articulação:

“Ao nível da protecção, a Lei, desde que seja regulamentada, pode


criar estruturas adequadas, com perspectivas adequadas para a
problemática (…). Porque é que não existe essa ligação do tutelar
educativo e do processo de promoção e protecção? Nuns casos, já
vimos que é porque, no fundo, os magistrados não acreditam nas
medidas de promoção e protecção, a base dessa estrutura. Mas nos
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 297

casos menos graves em que há necessidade de aplicar os dois


processos, porque a visão sistemática do sistema não está integrada
nos nossos pensamentos e continuamos a ter um pouco aquela
visão: ou se aplica a promoção e protecção ou se aplica o tutelar
educativo (…).

E porque é que isto não funciona? Porque efectivamente o Ministério


Público, que tem uma função de articulação neste sistema, tem uma
grande responsabilidade pelas competências que tem e que a Lei
lhe atribui, mas por vezes não as exerce. Obviamente, que esta
ligação entre o tutelar educativo e a promoção e protecção está, na
maior parte das vezes, na mão do Ministério Público” (P-5).

1. 1. 7. A interdependência entre os níveis de eficácia do


processo de promoção e de protecção no processo
tutelar educativo

O processo de promoção e protecção e o processo tutelar educativo são


vistos pelos operadores e técnicos entrevistados como parte da mesma
unidade. Alguns magistrados afirmaram que muitos jovens que tiveram um
processo de promoção e protecção transitam, mais tarde, para um processo
tutelar educativo:

“Muitas vezes também já houve intervenção, muitas vezes os


miúdos já vêm da Lei de Promoção e Protecção ou da antiga OTM,
já vêm com um acompanhamento do IRS ou agora da EMAT,
normalmente aqueles acompanhamentos à família, os apoios à
família (…), e a verdade é que grande parte desses miúdos passam
daquela Lei de Promoção e Protecção para a Lei Tutelar Educativa,
apesar de todos os apoios. Se me pergunta como é que são feitos
os apoios, como é que é feita a intervenção, não faço ideia. Salvo
aqueles casos da Lei de Promoção e Protecção em que é o miúdo
298 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

que falta à escola sem grandes problemáticas, a maior parte dos


miúdos que vêm da Lei de Promoção e Protecção vão passar para a
Lei Tutelar Educativa e eventualmente outros para o Código Penal
(…). O que eu digo é isto, da minha experiência a maior parte dos
meninos que tiveram um processo de promoção e protecção vão
depois ter um processo tutelar educativo, sendo certo que há as
duas coisas. Há miúdos que tiveram um processo de promoção e
protecção e que acabou, poucos, e há miúdos que nunca tiveram um
processo de promoção e protecção e que vão ter um inquérito tutelar
educativo, porque chegaram à escola, porque juntaram-se com
outras companhias, conheceram outro mundo, iniciaram-se nos
pequenos furtos ao colega ou numa rixa qualquer com o colega ou
porque se comportam mal na sala de aula e depois, a seguir, são
expulsos e começam naquele clima, começam a crescer e é uma
bola de neve, começam a tratar mal o professor, o funcionário ou os
colegas, ou a chamar nomes ou a agredir” (Ent. 10).

A eficácia da intervenção tutelar educativa é, assim, segundo alguns


entrevistados, incindível da eficácia do processo de promoção e protecção.

“Outro aspecto que me parece importante na avaliação da eficácia é


que inevitavelmente quando se quiser avaliar a eficácia de uma
medida, tem que se ter em conta que essa eficácia depende não
apenas da eficácia da intervenção tutelar, mas também da eficácia
da intervenção de protecção. Portanto, estamos e bem, acho eu, a
avaliar a Lei Tutelar Educativa, mas temos que avaliar a Lei de
Protecção, porque a eficácia da intervenção tutelar é tanto maior ou
directamente proporcional à capacidade que houve de articular
esforços no âmbito das duas, dos dois sistemas, porque,
inevitavelmente, são raros os casos em que a intervenção tutelar,
tout court e só por si, é suficiente para criar condições de não
reincidir” (P-6).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 299

Assim, é também necessário avaliar a aplicação da Lei de Promoção e


Protecção.

“Há uns meses a esta parte, os governantes têm defendido que é


urgente fazer a avaliação da Lei de Promoção e Protecção. E para
mim era mais urgente fazer essa avaliação da Lei de Promoção e
Protecção antes da Lei Tutelar Educativa, porquê? Porque essas
duas Leis entraram em vigor ao mesmo tempo. Porque
relativamente à Lei Tutelar Educativa foram criadas algumas
condições pelo Estado Português para que ela pudesse ser
minimamente enquadrada e aplicada já em relação à Lei de
Promoção e Protecção não foi feito nada e a estrutura da Segurança
Social e as IPSS estão perfeitamente descapitalizadas. A Segurança
Social tem as suas instituições e as nossas equipas praticamente na
mesma como antes das Leis Tutelar Educativa e Promoção e
Protecção. Só dizer-vos que as nossas estruturas institucionais
continuam, na maior parte dos casos, sem equipas técnicas
qualificadas e sem pessoal em número suficiente, embora já estejam
a ser feitas intervenções nalgumas e isto mesmo antes da situação
da Casa Pia. A Casa Pia é um bom paradigma porque,
efectivamente, de repente, foi possível admitir lá mais 40 monitores
e mais pessoal especializado, coisa que não se tinha podido fazer
nos últimos anos. A Lei de Promoção e Protecção, sobretudo no que
diz respeito às medidas, de uma maneira geral, não está a ser
aplicada e não foram dadas condições nem de dinheiro, nem de
outra natureza para elas poderem ser aplicadas. Mais: houve um
processo perverso, em que obrigatoriamente retirámos os meninos
que não tinham cometido ilícitos penais dos Centros de Reinserção
Social e foram metidos de qualquer maneira e eu digo de qualquer
maneira, em todos os internatos, mesmo que os meninos fossem do
Algarve se não havia lugar para eles no Algarve e se houvesse vaga
no Porto, foram para o Porto. Posso dizer-vos que dos 14 internatos
que Coimbra tem, neste momento, em alguns deles e falo:
300 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

Comunidade Juvenil São Francisco de Assis, Obra do Padre Serra,


Semide e Colégio Tutelar de São Caetano, mais de 70% dos
meninos que estão nestas instituições são da Margem Sul:
Santarém, de Loures. E eu pergunto: como é que se faz a
aproximação do acompanhamento da família, do regresso à família,
o acompanhamento e investimento na prevenção e na aproximação?
Efectivamente, mais do que a Lei Tutelar Educativa, que acho que
tem gente muito atenta, tem um rácio técnico/menino minimamente
adequado e nós nem pouco mais ou menos. Eu creio que há muita
“carolice” por parte dos técnicos da Segurança Social mas essas
coisas não passam por carolice mas passam por políticas sérias,
investimento sério. É necessário criar condições para que as
medidas previstas na lei sejam aplicadas” (P-1).

1. 2. Regras de conexão, separação e apensação de processos: a


mesma lei, práticas judiciais muito diferentes

A Lei Tutelar Educativa possui disposições específicas para regular a


conexão, separação e apensação de processos (cf. artigo 34.º a 37.º).

Nos discursos dos operadores entrevistados ressaltam interpretações do


texto da lei bastante díspares, defendendo alguns entrevistados que tal se deve
a uma certa ambiguidade da lei. Outros operadores entrevistados defendem,
no entanto, que o texto da lei é claro e que posições divergentes resultam
somente de má aplicação da lei.

Assim, uns defendem que a apensação de processo só deve ser feita


após o trânsito em julgado:

“O legislador foi claro no sentido de que quis a separação efectiva de


processos e que apensação só tivesse lugar após o trânsito em
julgado” (P-2).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 301

Outros defendem que a conexão de processos de um jovem deve ser


efectuada a qualquer momento:

“O problema, eu acho que é de aplicação e da Lei, mas é sobretudo


da Lei, na minha opinião. Porque deixar à criatividade do aplicador é
uma coisa muito interessante, mas depois, de facto, se formos olhar
os artigos 34.º, 35.º, 36.º e 37.º, a criatividade do aplicador fica um
bocado limitada (…)

Eu penso que a questão de fundo tem a ver com o que é que nós
entendemos efectivamente da educação para o direito e, isso é que
nós devíamos discutir a fundo. Porque se o objectivo é educar o
menor para o direito, eu acho que a Lei é positiva mas tem,
provavelmente, algum excesso de formalismo, que pode bloquear o
processo. Por exemplo, eu até admito que o juiz com alguma
capacidade e alguma criatividade possa chegar a este objectivo, que
é assim: se eu sei que aquele menor cometeu em sítios diversos,
mas no mesmo contexto, no mesmo contexto de vida, no mesmo
circunstancialismo familiar, determinados crimes e,
independentemente do estado em que o processo está, deveria ser
possível enquadrar globalmente as condutas. Eu acho que era
possível fazer esse enquadramento global para melhor fazer a
análise das medidas a tomar com vista à educação para o direito.
Isto só é possível fazer-se se tivermos uma visão global, isto é, se o
legislador com essa concepção global, desse ao aplicador uma
amplitude e uma liberdade que lhe permitissem enquadrar
globalmente conjunto das condutas do menor e perante elas lhe
aplicasse uma medida. Eu acho que é possível fazer isso com muita
imaginação mas tendo a consciência que não é o que está na lei.
Mais, que será mesmo contra o texto da lei” (P-7).

Segundo uns, deve prevalecer o princípio de um processo por jovem:


302 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

“[O problema] é da Lei. Eu acho que nestes artigos da conexão


processual, no fundo, o legislador teve uma posição ambígua porque
entre a tentativa de dar importância à questão securitária da
comunidade e a tentativa de relevar a educação do menor para o
direito, há uma certa ambiguidade sobre este conceito, e acabou por
colocar na lei os dois critérios, deixando ao aplicador a definição
sobre qual o critério prevalecente em cada situação concreta. No
artigo 34.º estabelece-se o carácter individual do processo,
estabelecendo-se que devia existir um único processo relativamente
a cada menor, mas não se diz qual é o que prevalece em caso de
conflito de critérios. Depois, no artigo 35.º, refere a organização de
um só processo quando vários menores tiverem cometido um ou
diversos factos. E quando se sobrepõem, quando é que se aplica um
e quando é que se aplica outro? Na minha perspectiva, no artigo
37.º, se repararem, a partir do momento em que houver trânsito em
julgado, quando há vários processos relativamente ao mesmo menor
tem que haver, obrigatoriamente, apensação de processos.

A minha opinião, se nós interpretarmos a Lei como devemos


interpretar, tendo em atenção a finalidade da intervenção, - e
sabemos que o objectivo final da intervenção é a educação do
menor para o direito e isso é fundamental, nós sabermos quais são
as necessidades do menor para o direito - é considerar que a
apensação se deve verificar segundo o princípio prevalecente de um
processo por menor, seja quando cometeu vários factos, sozinho,
seja quando cometeu vários factos ou um facto conjuntamente com
outros menores. Eu admito, no entanto, que por razões de
investigação, excepcionalmente, se vá para a separação de
processos relativamente ao mesmo menor, juntando os processos
em função dos factos praticados em comum. Aqui, mais uma vez,
temos um problema resultante de a lei ser demasiadamente
indeterminada, deixando à interpretação dos respectivos aplicadores
a decisão sobre esta questão e, eventualmente, não devia deixar.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 303

Devia aqui ter-se assumido, claramente, qual o critério prevalecente.


Claro que, na minha perspectiva pessoal, consegue-se ultrapassar a
questão através da reflexão sobre as finalidades e a filosofia da
intervenção. Mas há quem não entenda assim e há aplicações muito
diversas.

Esta questão fundamental coloca-se, com mais acuidade, na fase do


inquérito. Mas esta questão que se está aqui a colocar, sobre a
existência de vários processos relativos ao mesmo menor,
espalhados pelo país todo, já em fase de execução da medida sem
ter sido efectuado a apensação, tem a ver com uma inadequada
aplicação da lei. A Lei não prevê uma acumulação das medidas,
mas prevê um instituto semelhante, que, pelos vistos, não está a ser
aplicado” (P-5).

Segundo outros, se não for possível organizar um só processo, correm


separados, com a sua posterior apensação:

“Parece-me que quanto a esta questão, a Lei não deixa margem


para dúvida nem há qualquer ambiguidade. O legislador disse
exactamente o que quis dizer. O que disse foi: no início organiza-se
um único processo, caso não seja possível, logo no início, ter
conhecimento de todos os factos, terão de existir vários processos.

E então, quando se chega às várias fases processuais, exactamente


porque é impossível, na prática, os processos correrem todos em
simultâneo, quando se encontram em fases diferentes, são
apensados e aí procede-se à conexão e, portanto, nesse aspecto,
penso que foi isso que quis dizer.

Depois da decisão transitar em julgado, coloca-se a questão da


execução, e voltamos a apensar os processos para se ponderar uma
execução conjunta, que será de todo o interesse” (P-3).
304 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

“Por exemplo a questão de vários processos tutelares educativos


apensos em relação ao mesmo jovem e que estão em fase
jurisdicional, terá algum sentido fazerem-se várias audiências
preliminares? A Lei não responde a isso e então este jovem vai
trezentas e quarenta vezes ao Tribunal, vai ter medidas umas atrás
das outras (…)” (Ent. 25).

Um outro entrevistado defende que o modelo adoptado em matéria de


conexão e separação de processos pela presente Lei Tutelar Educativa é
exagerado, devendo haver uma visão mais global de todos os processos, no
interesse do jovem.

“Entre aquilo que estava previsto no sistema anterior e aquilo que


hoje está, eu penso que temos que encontrar uma terceira via.
Porque é assim: a solução disto não pode passar pelo sistema
anterior em que tudo era carreado para o mesmo processo e,
digamos assim, em que os factos por si não tinham relevância
autónoma, porque o processo era único, ia acumulando
participações, mas mais nada acontecia e dava um sentimento de
impunidade a partir do momento em que era aplicada a primeira
medida. (…)

Este é o limite ao qual não devemos voltar. Primeiro ponto. Talvez


numa oposição muito forte a este tipo de situações, o legislador foi
para uma situação de extremo oposto que é um delito, um processo.
(…).

Aquilo que nós assistimos, sociologicamente, é que os menores, em


determinados momentos, têm uma actividade delituosa, ainda que
não de muita gravidade, mas de muita frequência e, digamos que, a
avaliação de um desses factos não ficará correcta se não tiver em
conta o contexto, ou seja, avaliar um facto em Condeixa, o outro em
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 305

Coimbra, o outro na Figueira da Foz e o outro em Aveiro, cada um


per si não dá nada, e se se avaliar isto tudo em conjunto,
provavelmente, ter-se-á uma outra noção das necessidades de
intervenção e da necessidade de educação para o direito. Eu devo
dizer que no caso dos jovens que temos em internamento, a maior
parte desses menores passam a vida a correr o país nos Tribunais.
Tem um processo aqui, tem outro processo ali, tem outro processo
acolá. E alguns já têm processos penais conjugados com processos
tutelares. E, é assim, eu já disse isto noutros fóruns, que era
necessário que a questão do defensor aqui até fosse vista numa
perspectiva global, não por processo, mas numa perspectiva de
visão global da situação processual daquele menor, sob pena de
não se conciliar a intervenção. Conjugar tudo no mesmo processo
pode ser grave, pode ser grave, na perspectiva que falei inicial, mas
não haver fórmulas de ir juntando, digamos assim, na mesma fase e
não fazer uma avaliação conjugada, dá, por um lado, esta dispersão
de avaliações, e dá, por outro lado, depois a aplicação sucessiva de
medidas e dá, digamos assim, o invés daquilo que se pretende que
é uma avaliação global do menor, das suas necessidades e da
intervenção adequada a essas necessidades. Podem ser todos eles
factos muito ligeiros, mas se são em grande frequência e num
período muito curto, provavelmente, uma intervenção um bocadinho
mais musculada e no momento certo, provavelmente, poderia
estancar este conjunto de factos” (P-6).

Um magistrado do Ministério Público afirma, no entanto, haver uma


dificuldade prática intransponível para a apreciação conjunta dos factos
praticados pelo jovem, dado que os processos não devem estar à espera uns
dos outros:

“A apreciação conjunta de todos os factos cometidos pelo mesmo


menor, porque isso é que é importante para educação do menor
306 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

para o direito. Obviamente que nós temos que ter em atenção a


personalidade e a adequação da intervenção; é importante no
momento da aplicação da medida... Mas, então em que casos é que
se aplica o artigo 34.º? É só quando há um único caso? Não pode
ser. Ou quando ele está envolvido com outros menores? (…) Tem aí
depois um problema de dificuldade prática - a questão do processo
ter fases muito distintas. Quando se está na fase de inquérito, ainda
não se sabe se o caso vai ser arquivado, ou se vai para a fase
jurisdicional. E não se pode suspender infinitamente o processo
aguardando os restantes entretanto iniciados, porque tal solução iria
atrasar a aplicação das medidas adequadas (…)

Isso na prática é impossível. Eu hoje começo um processo em


Oeiras e o processo segue 3 meses e na altura em que estão na
fase judicial, o menor comete não sei mais quantos factos, e o
Ministério Público tem notícia desse factos e começa um inquérito.
Não pode, não podemos estar constantemente a suspender. (…).

Eu estou a dizer que concordo que se deve ter em atenção todas as


condutas do menor, mas têm que se ter em conta as várias fases
processuais. Nós não podemos estar a suspender os processos
sucessivamente à espera do último. Para quem está nos Tribunais, é
muito claro. Agora, é evidente que a intenção da lei foi essa, tanto
que obriga que na fase após a aplicação da medida, os processos
sejam juntos, e mais, obriga também a uma coisa que,
habitualmente, não se faz muito nos Tribunais, é que a medida seja
revista, possa ser revista e possa ser substituída por uma medida
que o magistrado considere adequada às necessidades actuais de
educação do menor para o direito. E, portanto, esta lei até prevê os
mecanismos, necessários, para os casos de acumulação. Mas, mais
uma vez, temos uma questão do aplicador. A importância que é
atribuída a um processo arquivado? Claro que é importante, o juiz
pode socorrer-se da consulta do processo. Mas, se o processo está
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 307

arquivado, em termos de medida a aplicar não vai poder ser tido em


consideração. Somente poderá ter interesse para a avaliação que
nos é transmitida pelos relatórios quanto à necessidade da
educação para o direito” (P-5).

Outro obstáculo apontado pelos operadores à correcta aplicação da lei é


a falta de um registo informático nacional que permita saber que processos
existem contra um dado jovem em todo o território nacional:

“E a Lei não é aplicada, principalmente porque não há um sistema


informático adequado. Porque não existe um sistema informático ao
nível do país inteiro, que possa sinalizar que aquele menor tem um
processo em tal, tal, tal sítio. Ora, sem tal sistema, relativamente às
diversas fases, nunca vamos ultrapassar esta deficiência” (P-5).

Ainda sobre o não funcionamento em rede dos tribunais:

“Quando entra um processo de inquérito no TFM de Lisboa, é logo


feita uma pesquisa informática para ver se há outros processos em
curso, daquele menor, naquele Tribunal e apenas aí. Não há como
apurar se há outros processos em outros tribunais, falta pois uma
visão panorâmica da situação do menor” (Ent. 22).

“Quanto à questão de saber se como é que é possível fazer tudo


isto, aí, e mais uma vez, não se trata de um problema legislativo,
mas é um problema prático, que é de falta de informatização. Porque
muitas leis estão a partir do princípio que nós temos uma rede
informática distribuída por todo o país e que está a funcionar em
pleno e tal não acontece.
308 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

Nós podemos fazer isso dentro do Tribunal porque temos um


programa que é chamado o Habilus, que toda a gente nos Tribunais
sabe o que é, e o Habilus permite-nos introduzir o nome do menor e
ver se está a correr no Tribunal. E, portanto, aí é fácil ver. Agora a
nível de todos os tribunais do país, a Lei parte do princípio que,
possivelmente, estão a funcionar todos em rede e isso não
acontece” (P-3).

Segundo um entrevistado do IRS, o Tribunal só conhece os outros


processos através das suas informações.

“Somos nós [IRS] que informamos os Tribunais dos outros


processos” (P-6).

Para obviar a esta situação, um advogado entrevistado afirma que


“deveríamos defender mais a intervenção de uma advocacia preventiva,
havendo um advogado de família” (P-8), mas do que se conhece, a
participação de advogados em processos tutelares educativos é quase nula.

1. 3. Uniformização de procedimentos: “cada cabeça sua sentença”


ou um problema de clarificação legal?

Uma das maiores dificuldades que emerge do discurso dos actores no


que respeita ao processo tutelar educativo prende-se com a dificuldade de
interpretação de algumas disposições legais, que originam muitas vezes
procedimentos diferenciados de Tribunal para Tribunal e, mesmo dentro do
mesmo Tribunal, de magistrado para magistrado.

Entre estas situações de dificuldade interpretativa, destacam-se a questão


da (ir)relevância da desistência de queixa quando o jovem tiver praticado facto
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 309

qualificado pela lei penal como crime semi-público ou particular; do desconto


do tempo da medida cautelar na medida tutelar educativa aplicada; da
possibilidade de estabelecer um cúmulo jurídico; e a questão dos
internamentos em fim-de-semana.

1. 3. 1. Da (ir)relevância da desistência de queixa

Segundo o disposto no artigo 72.º, n.º 2 da Lei Tutelar Educativa, a


legitimidade para a denúncia cabe ao ofendido nos casos em que o facto for
qualificado como crime cujo procedimento depende de queixa ou acusação
particular. De acordo com a Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º
266/VII, de 17 de Abril de 1999, “a relevância atribuída à iniciativa do ofendido,
nos casos em que segundo as regras comuns, o procedimento depende de
queixa ou de acusação particular, pode parecer contraditória com as
finalidades do processo. Mas não é, no plano de harmonização de interesses.
Na verdade, as condições de procedibilidade estão ligadas ou à reduzida
gravidade ou a necessidades de tutela de certos direitos da vítima, entre os
quais o da intimidade. Qualquer das razões permanece válida quando o agente
do facto é menor de 16 anos. Quanto à gravidade, porque se tornam menos
imperativas as razões que determinam a necessidade de educação do menor
para o direito e, havendo-as, será razoável atribuir-se a um membro da
comunidade (o ofendido) o primeiro juízo sobre elas; quanto à tutela da vítima,
porque a menoridade não diminui (pelo contrário, pode agravar) o interesse na
disponibilidade do direito à acção”.

Apesar de se prever expressamente a necessidade de impulso


processual do ofendido nestes casos, a Lei Tutelar Educativa não menciona
em nenhum dispositivo legal qual a relevância a dar a uma desistência, por
parte do ofendido, da denúncia apresentada.

Na doutrina vislumbram-se duas posições divergentes.


310 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

Por um lado, Anabela Rodrigues e Duarte-Fonseca defendem que “em


ambos os casos – i. é, nos casos dos factos qualificados como crime cujo
procedimento depende de queixa ou de acusação particular – a promoção
depende de denúncia do ofendido, mas já a prossecução do processo escapa
a qualquer vontade do ofendido, que não lhe pode pôr fim nem determinar a
sua continuação” (2003: 183).

Por outro lado, Rui do Carmo, reportando-se às razões explanadas na


Exposição de Motivos para fazer depender de um impulso do ofendido a
abertura de um inquérito tutelar educativo, defende que “embora a lei não faça
qualquer referência expressa à desistência da queixa, (…) estas mesmas
razões permitem concluir que, a verificar-se [a desistência de queixa por parte
do ofendido], terá como efeito a imediata cessação da intervenção tutelar
educativa e o consequente arquivamento do processo. E coloco mesmo a
seguinte questão: à luz do disposto no artigo 42.º, a cooperação das entidades
de mediação, mesmo quando da iniciativa da autoridade judiciária, não pode
ter por objectivo, nas situações a que nos estamos a referir, conseguir a
composição extrajudicial do conflito, cuja consequência no processo seria o
seu arquivamento por desistência de queixa? Não estará esta opção em
consonância com o princípio da intervenção mínima (que informou
expressamente as opções do legislador) e em conformidade, nomeadamente,
com as Regras de Beijing e a recomendação do Comité de Ministros do
Conselho da Europa de 1987 sobre «As Reacções Sociais à Delinquência
Juvenil», que, na regra 11.1. e no n.º 2 respectivamente, privilegiam o recurso
a meios extrajudiciais na administração da justiça de menores?” (2002: 125-
126).

Esta divergência de posições manifesta-se também na opinião de


diversos actores, que a vêem com especial preocupação.

Os depoimentos que a seguir se apresentam, explanam essas


divergências:
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 311

“Uma outra questão que também queria colocar, e que, aliás, me foi
solicitado que colocasse, é a que se prende com a denúncia e
desistência da queixa de crimes semi-públicos, ao abrigo da LTE.
Isto porque, no mesmo Tribunal, temos três magistrados do
Ministério Público e cada um deles está a fazer de seu modo. Ou
melhor, dois estão a fazer de uma maneira e um está a fazer de
outra maneira. A questão é a seguinte: quando o ofendido desiste da
queixa o que é que se faz? Arquiva-se o processo, não se arquiva?
O Ministério Público tem o dever de iniciar o processo, mas depois
se desistirem, o que é que acontece ao processo? Esta é uma das
questões que se tem colocado com bastante frequência no âmbito
da presente lei (…).

[Esta questão] já se suscitou, como todos nós sabemos, no âmbito


do processo penal, ao nível dos crimes sexuais, quando o Ministério
Público inicia o processo no interesse da vitima e depois vem o
titular de direito de queixa desistir, o que é que acontece? Há
jurisprudência dos Tribunais superiores contraditória sobre esta
matéria e esta mesma incerteza acabou por ser "acolhida" na LTE”
(P-3).

“E a questão da desistência de queixa, se é relevante ou não, a lei


devia dizer de uma vez por todas, para os crimes que dependem de
queixa ou de acusação particular (…) Porque aí a denúncia cabe ao
ofendido para a iniciativa processual. E para terminar?” (Ent. 47).

“Nós temos imensos casos em que está o processo a decorrer e é


aplicada a medida e nem sequer é levantada a questão da queixa...
Por exemplo, na desistência de queixa há dois entendimentos
escritos diferentes. Na questão de desistência, a Professora Anabela
312 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

Rodrigues na anotação que tem à Lei Tutelar Educativa diz que não
deve relevar e eu concordo, por causa da filosofia de intervenção, e
o Dr. Rui do Carmo, num artigo que tem na Revista do Ministério
Público, diz precisamente o contrário, desistiu da queixa tem que
seguir a lógica processual penal, arquiva-se o processo” (P-6).

“Eu, por exemplo, sei que há opiniões divergentes e há quem


concorde com isto, digo que os crimes semi-públicos ou crimes
particulares na Lei Tutelar Educativa, tal como no Código Penal,
dependem de queixa. Realmente, parece-me que neste tipo de
Direito, defender o contrário pelo facto de ser um menor, não tem
que ser tratado de forma mais gravosa do que um maior. Mas a
minha ideia é diferente, isto não é tratar de forma mais gravosa, eu
não estou aqui a tentar condenar um criminoso, eu estou aqui a
tentar, como diz a Lei, educar uma criança para o Direito e, portanto,
tão ilícito é um crime semi-público como um crime público. Em
princípio o crime público é mais grave e o crime semi-público é
menos grave...” (Ent. 10).

A maioria dos entrevistados defende que deveria ser a própria lei a


clarificar a opção a tomar na situação de o ofendido desistir da denúncia
apresentada.

“Tem que ser a lei a esclarecer, se a vontade do ofendido é


relevante, se é clara para o início do processo, deve dizer
expressamente também para pôr termo ao processo.” (Ent. 47).

“Eu acho que era importante serem mais coerentes na atribuição da


figura do ofendido, desde logo no que respeita ao problema da
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 313

queixa. Se dão a possibilidade de fazer a queixa e, embora eu saiba


o que a Dra. Anabela pensa de não ser admissível a desistência de
queixa precisamente por a tal necessidade de educar o menor para
o Direito que não pode estar na mão do ofendido, mas eu não tenho
forma de dar a volta à Lei quando diz que nenhum processo avança
sem queixa nos crimes públicos e particulares. Ora se é assim, se
vai para a persecução, para a instauração do pleito, eu penso que
também lhe é exigível retirar, claro que se o miúdo ficar desprotegido
temos depois a ponte com a Lei de Protecção se ele eventualmente
estiver em situação de perigo. É necessário a Lei especificamente
dizer se é ou não admissível a desistência de queixa, para não estar
cada Tribunal a pensar da sua maneira, assim é um indeterminismo
completo. Então diga-se, queremos educar o menor para o Direito,
então não precisamos de queixa” (Ent. 25).

“Há, segundo creio, que separar aspectos que são diferentes.

Quando se fala natureza das medidas a aplicar ou quando se fala


das penas ou da medida da pena, aí cada um de nós tem o seu
"peso", a sua "bitola" tem e o seu ponto de vista e que toda a gente
haverá de compreender isso.

Agora, quando estamos a tratar de questões processuais e de


questões formais, eu penso que o legislador deveria fazer um
esforço acrescido, em determinadas matérias, para não deixar que
as coisas se passem como se passam, em termos de incerteza e de
instabilidade da lei, não só na Lei Tutelar Educativa, mas também
acontece noutros ramos do direito” (P-3).

Todavia, um magistrado do Ministério Público salienta:


314 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

“Há questões que podem ser mais bem especificadas e, portanto,


acho que deve ser feito um esforço nesse sentido. Agora, o que eu
estava a chamar à atenção é que nós não podemos ter a ilusão de
que a Lei pode prever todas as situações e que não há aqui uma
margem de discricionaridade. Depois, há aqui também um problema
que tem a ver, - e não é só nisto que se reflecte - , com a formação
dos magistrados; que tem a ver com o debate das questões jurídicas
e processuais que se levantam acerca destas questões. E, mais
uma vez, o que está em causa não é a Lei, mas quem aplica a Lei.
Porque há coisas que por mais que estejam escritas, há sempre
determinado tipo de situações jurídicas que têm que ser tidas em
atenção relativamente à finalidade, aos objectivos, à reflexão sobre a
natureza desse tipo de intervenção” (P-5).

Alguns entrevistados entendem, no entanto, que não só a desistência de


queixa não deveria ter relevância, como não devia ser deixado na
disponibilidade do ofendido o direito de acção contra o jovem que praticou
factos qualificados pela lei penal como crime:

“A maioria dos inquéritos entrados é arquivada, isto por razões de


procedibilidade, por resultarem de crimes semi-públicos e
particulares. A lei não devia deixar nas mãos do ofendido a
possibilidade de prosseguir ou não o processo. O arquivamento
depende da sensibilidade do magistrado – se não há formalização
da queixa, alguns magistrados arquivam logo, outros notificam o
ofendido para que apresente queixa, querendo, num prazo
determinado. As grandes superfícies, onde são cometidos muitos
furtos, em regra não apresentam queixa, portanto muitos processos
terminam logo” (Ent. 22).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 315

No mesmo sentido, um magistrado considera que:

“(…) com a filosofia desta Lei, acho que não precisava da queixa
para nada, e por haver o artigo que me diz que precisa de queixa é
que há estes problemas. Há estes problemas, sobretudo, por causa
do fim, que fazer a um processo quando alguém me vem dizer que
quer acabar com esse processo (…).

(…) Tendemos mais uma vez a fazer com que só fiquem no sistema
tutelar educativo aqueles que não têm possibilidade de pagar aos
ofendidos através dos seus pais pelos danos que vão praticando cá
fora, os outros pais até vão pagando. «se pagam eu desisto da
queixa» - que sistema é este? (…) São sempre os mesmos
desgraçados que chegam ao Tribunal e são a esses que vamos
aplicar medidas, quando os meninos que furtam Benetton (…)
também precisavam e se calhar muito, mas nunca lá chegam porque
se há queixa, há desistência de queixa.

Eu se fosse legislador não a punha lá. Da mesma forma que não


preciso da caracterização de crime particular se não há assistente.
Era só preciso para os crimes semi-públicos e como não preciso,
como eu acho que esta filosofia de intervenção é outra, eu bastava-
me pura e simplesmente com a denúncia, e a partir da denúncia
então perceber se preciso ou não de educar este miúdo para o
Direito, independentemente da posição de quem de direito em
termos processuais, sob pena de, aí sim, se calhar o Direito
Processual Penal dos pequeninos acabar por ser uma ideia muito
presente” (Ent. 25).

É esta também a posição de um outro magistrado que questiona a razão


de ser daquela disposição legal:
316 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

“O que me parece é que o n.º 2 do artigo 72.º não pode continuar


(…). De facto, o artigo 72.º n.º 2 não confere legitimidade ao
Ministério Público no caso de crimes de natureza semi-pública para
iniciar o inquérito.

Já se disse aqui que há outras interpretações deste n.º 2. No


entanto, a sua manutenção permitirá interpretações diversas, o que
não é desejável. Aliás, têm sido graves as consequências, que vou
procurar especificar: é um dado absolutamente adquirido, que
quando um adolescente inicia um percurso criminoso, geralmente, é
através da apropriação ilícita que age, é através dos crimes contra a
propriedade. Portanto, o adolescente vai praticando furtos
sucessivos, semi-públicos e, o que se tem verificado, é que não é a
família que pode decidir nada, não é o Ministério Público, não é o
Instituto de Reinserção Social. Quem decide são, muitas vezes as
grandes superfícies comerciais. É a FNAC, o Continente, o Jumbo,
etc. quem decide sobre se o adolescente tem ou não um inquérito
em Processo Tutelar Educativo. Esta situação não pode continuar.
Na verdade, a legitimidade da intervenção do Estado não pode
basear-se apenas na vontade de um ofendido, justamente por causa
do interesse público que subjaz a esta Lei, que é a educação do
menor para o direito. E o que se tem verificado é que, demasiadas
vezes, se arquivam os processos, apenas por ausência de
legitimidade do MP. (…)

A questão deste artigo 72.º não permitir ao Ministério Público


prosseguir um processo ou iniciar um processo sem queixa do
ofendido, penso que isso é uma situação muito grave e que, na
minha opinião, tem consequências nefastas. Porque, muitas vezes,
quando se requer a fase jurisdicional é porque a situação já está
bastante grave, quando evoluiu muito negativamente por ausência
de intervenção atempada e adequada e o miúdo já pertence a gangs
e já anda com facas, por exemplo, e então, assiste-se à aplicação
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 317

demasiado frequente do regime fechado. O miúdo vai directamente


para o fechado sem passar por outras medidas, ou sequer pelo
regime aberto ou pelo semi-aberto” (P-10).

Defendendo uma posição semelhante, um outro magistrado coloca a


questão no âmbito da legitimidade de intervenção do Estado.

“Gostaria de levantar a questão dos crimes semi-públicos que foi


colocada pela Dr.ª ... não pelas razões que ela defende, mas por
outras, Aliás, esta é uma posição minha desde sempre e escrevi-a
várias vezes e defendia-a também na Assembleia da República.
Efectivamente acho que não devia haver essa distinção na Lei
relativamente à intervenção tutelar educativa. E não devia haver
porque nós estamos a discutir a questão da legitimidade do Estado
para intervir face aos objectivos e finalidades da intervenção,
independentemente de um maior aprofundamento e densificação,
como agora se diz, dos conceitos de intervenção tutelar educativa e
da educação do menor para o direito. Mas se o Estado se permite
intervir, em nome do interesse público da comunidade, limitando os
poderes dos pais, constitucionalmente garantidos, se considera que
é essencial intervir quando o menor tem uma determinada
comportamento e atitude, por considerar que é essencial a
interiorização do dever ser jurídico para aquele futuro cidadão, não
pode fazer depender a legitimidade da intervenção da vontade do
ofendido, numa área tão importante como esta. E aí, eu
efectivamente concordo que a questão da desistência de queixa não
devia ser relevante” (P-5).
318 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

1. 3. 2. Do (não) desconto da medida cautelar na medida tutelar


educativa

Outra questão particularmente referida pelos intervenientes nos


processos tutelares educativos, foi a questão da disparidade de procedimentos,
no que respeita à relevância dada ao tempo passado em medida cautelar de
guarda em Centro Educativo, no tempo da medida tutelar educativa aplicada
em decisão final.

“Outro problema que também se me tem colocado, tem a ver com a


questão da contagem do tempo da medida cautelar de guarda na
duração da medida de internamento. (...) No âmbito do processo
penal típico, o tempo da medida de prisão preventiva é descontado
na pena. Em termos da Lei Tutelar Educativa não está nada previsto
a esse propósito, o que significa que há procedimentos dispares a
este propósito... Eu pessoalmente tenho feito repercutir a medida
cautelar de guarda, descontando-a, portanto, na medida de
internamento mas sei que há tribunais onde esse procedimento não
é seguido” (P-2).

A falta de uniformização no procedimento desta operação foi relatada por


alguns entrevistados como altamente prejudicial para os jovens:

“Há uma questão muito pontual, mas que me causa alguma


inquietação. E notei isso na sequência de uma sessão que tivemos
aqui, uma reflexão em que esteve cá o Dr. Pedro Strecht, na qual o
próprio dava conta da experiência daquilo que é transmitido pelo
jovem internado em Centro Educativo, que é a questão do desconto
da medida cautelar de guarda no Centro Educativo, na medida.

Em bom rigor, e esta tem sido a minha perspectiva, dada a natureza


da intervenção tutelar educativa, esta não me parece que se
compadeça com os descontos do Processo Penal, está tudo bem
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 319

previsto na lei penal, prisão preventiva, prisão efectiva. Esta é a


minha leitura. (…)

Se numa determinada medida em que não se diz que tirámos os 3


meses da medida cautelar de guarda (…). Como é que é que o meu
colega faz esse desconto (…)? Para [os menores] isto é mesmo
assim” (Ent. 47).

Acentuando o impacto que esta situação tem nos jovens, um operador


chama a atenção para o facto de se tratar de uma das situações que “mais
revolta os miúdos” e relata um exemplo:

“No mesmo Centro Educativo, na mesma unidade residencial, um


teve 6 meses em cautelar de guarda e a seguir levou dois anos de
regime semi-aberto; o outro, teve 6 meses em cautelar de guarda e
levou ano e meio. E isto é das coisas que mais efeitos perversos tem
naquilo que é a filosofia da Lei” (P-6).

Chamando também a atenção para esse aspecto, um outro operador


considera:

“A lei deveria, igualmente, dar uma resposta concreta no que


respeita ao desconto ou não desconto da medida cautelar de
guarda.

Nestes aspectos processuais, entendo que seria o legislador que


deveria fazer um esforço no sentido de deixar estas matérias
definidas, porque não deveriam ser, para bem da certeza jurídica
(…), deixadas à livre interpretação do aplicador do direito.

(…) Ora, quando num Tribunal, por exemplo é descontada o tempo


da medida cautelar e noutro tal não acontece, os cidadãos comuns,
320 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

que são os destinatários do direito, não compreendem estas


divergências.

Agora, quando um juiz aplica uma medida de internamento por


determinado tempo, e outro já aplica uma medida de
acompanhamento educativo, isso são situações que, efectivamente,
fazem com que os juízes não sejam máquinas, que sejam pessoas
com sensibilidades diferentes e, portanto, toda gente tenta
compreender as diferenças a este nível.

Mas quando se trata de questões processuais, de formalismos, é


difícil.

(…) Penso que os juízes também têm de contar com um certo grau
de certeza das normas, para que não andem todos os dias "a fazer
diferente jurisprudência" (P-3).

A maioria dos entrevistados, apesar de defender uma clarificação


legislativa quanto a esta operação, entende, no entanto, que, atendendo aos
fins do processo tutelar educativo e da medida aplicada, é possível uma
interpretação da lei que leve a uma decisão correcta em consonância com a
filosofia e os objectivos do processo tutelar educativo:

“Perante esta realidade, temos que saber gerir o problema com


especiais cautelas e, mais do que saber gerir, acho que é preciso
mesmo a alteração legislativa da LTE a dizer ou sim ou não. (…)
Sendo certo que não tenho quaisquer dúvidas, pelo menos na minha
prática assim sempre fiz, quando não se faz a operação
objectivamente traçada de desconto de x meses na aplicação da
medida, ela sempre se fará, se for feita uma avaliação conveniente
das necessidades educativas no momento da decisão. (…)
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 321

Portanto, essa operação é feita se, de facto, o diagnóstico das


necessidades educativas tiver lugar no momento da decisão. Já
houve um progresso, há um processo educativo que foi sendo
desenvolvido durante a execução da medida cautelar de guarda em
Centro Educativo, e que tem que ser tido em conta. É porque as
informações também nos são fornecidas pelos centros educativos e
as suas equipas técnicas trazem esse conteúdo. Qual foi o
progresso que o jovem fez durante a medida cautelar (…)

De facto, a lei, tem que clarificar. (…) Para quem entenda que não
há lugar ao desconto, deve fazer ver claramente na decisão ou
transmitir a decisão ao jovem que, de facto, o cumprimento de
medida cautelar de guarda em Centro Educativo, foi considerado
para a medida concreta da medida tutelar. (…)

Portanto, para mim, isso passa por uma alteração legislativa em que
se diga: «É assim ou não é» e, portanto, fazerem todos igual. Não
há este limbo” (Ent. 47).

Recorrendo a uma diferente argumentação, um magistrado chama a


atenção para o disposto no artigo 128.º da Lei Tutelar Educativa.

“Nesta viagem confrontaram-me com uma decisão de quatro linhas.


Vão ao artigo 128.º, como vêem que o artigo 128.º da LTE manda
apenas aplicar as normas do Código de Processo Penal «Aplica-se
subsidiariamente às disposições deste título do Código de Processo
Penal» e como a questão do desconto da prisão preventiva do artigo
80.º está no Código Penal, logo não está no CPP, não aplicam o
mesmo regime de desconto. Não nos esqueçamos que o artigo 80.º
é uma medida adjectiva colocada num código substantivo e que
estamos a falar de medidas que limitam a liberdade. Eu penso que
tem fatalmente que haver desconto. É a minha opinião pessoal sob
322 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

pena de inconstitucionalidade de tratamento de miúdos de forma


mais gravosa” (Ent. 25).

Fazendo, também, apelo aos objectivos subjacentes ao diploma, um outro


operador entende:

“A necessidade de educação para o direito, no momento da


aplicação da medida era uma, no momento da aplicação da medida
cautelar de guarda, e 6 meses depois (…) de se ter estado (…)
privado de liberdade numa medida cautelar de guarda, [o menor] vai
a julgamento e é-lhe aplicado uma medida de internamento e se o
Estado se auto-vinculou a dizer “o limite máximo de privação de
liberdade que eu admito, na situação mais gravosa, em regime semi-
aberto, é 2 anos...”, então quaisquer que sejam as necessidades de
educação para o direito, elas não podem corresponder a mais do
que 2 anos. Se a esses 2 anos já forem gastos 6 meses, a medida
nunca poderia ser mais de ano e meio.

A Lei tem, digamos, um princípio de actualização da avaliação das


necessidades de educação para o direito aferidas no momento da
decisão judicial e não no momento da prática do facto. (…) Este é o
meu entendimento da Lei e alguns magistrados fazem-no, outros
não o fazem, outros, digamos assim, adoptam a lógica do desconto
da prisão preventiva e outros não e, portanto, isto cria problemas
muito sérios. Agora eu diria assim, nesta como noutras matérias, a
questão da intervenção do advogado é gritante, faz falta, temos que
ir desenvolvendo a possibilidade de os advogados poderem recorrer”
(P-6).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 323

1. 3. 3. Do cúmulo ou da acumulação de medidas tutelares


educativas

A execução sucessiva das medidas tutelares educativas é também


encarada pelos operadores judiciários como um problema:

“Também se suscita com grande frequência na aplicação da LTE


questões que se prendem com a realização ou não do cúmulo das
medidas tutelares e, por outro lado, com a liquidação das mesmas.

Esta problemática nota-se também ao nível dos Centros Educativos


onde tive oportunidade de estar há 15 dias, e foi-me transmitido que
tinham esta dificuldade porque nuns tribunais faziam logo a
liquidação, noutros tribunais não faziam e, portanto, eles tinham de
perguntar ao processo quando é que ocorria o terminus da medida”
(P-3).

Mais uma vez se chama a atenção para os efeitos perversos da aplicação


da lei sem que se tenham em conta os seus objectivos:

“A execução sucessiva de medidas, percebendo nós a lógica do


legislador, dá, na prática, efeitos altamente perniciosos. Se temos
uma lógica de execução de medida de progressividade e de ganhos
por patamares até se atingir, digamos assim, um nível óptimo ou
próximo, digamos, do aceitável em termos da progressão do jovem,
não faz nenhum sentido que depois de subir essa escadaria toda, se
tenha de voltar outra vez lá abaixo e começar a subir a escada outra
vez. E qual é a capacidade de um serviço, de um técnico, de um
advogado, de quem quer que seja, de motivar um jovem para aderir
a uma medida, quando ele sabe que tem em fila três outras medidas
para cumprir e que não sai dali senão aos 21 anos” (P-6).
324 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

“(…) depois temos o problema da execução sucessiva das medidas


o que gera imensa confusão. Eu não falo em [aplicar o] cúmulo. (…)
mas o cúmulo é bom no sentido em que de alguma forma tentamos
colocar tudo numa só decisão...” (Ent. 25).

1. 3. 4. Do internamento em regime de semiaberto, por período


de um a quatro fins-de-semana

A Lei Tutelar Educativa prevê, no caso de revisão da medida tutelar não


institucional aplicada por o jovem se ter “colocado intencionalmente em
situação que inviabilize o cumprimento da medida” ou por ter “violado, de modo
grosseiro ou persistente, os deveres inerentes ao cumprimento da medida”
(artigo 136.º, n.º 1, al. e) e f)), a possibilidade de “ordenar o internamento em
regime semiaberto, por período de um a quatro fins-de-semana” (artigo 138.º,
n.º 2, al. d)).

Segundo os entrevistados, o internamento por fins-de-semana é utilizado


pelos magistrados de forma díspar.

“(…) mas aqui, como noutras coisas, também há duas perspectivas.


Há magistrados que aplicam o internamento em fim-de-semana para
muscular o acompanhamento educativo e o acompanhamento
educativo continua e há juizes que aplicam o internamento em fim-
de-semana e arquivam o processo findos os 4 fins-de-semana.
Portanto, há duas interpretações e há duas práticas” (P-6).

“(…) [o menor] tem o fim-de-semana e depois volta ao


acompanhamento educativo...” (P-2).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 325

Reiterando a necessidade da não aplicação isolada da medida, um


magistrado refere:

“Tal como o meu colega Dr. Paulo Guerra escreveu há muito pouco
tempo na revista “Infância e Juventude”, isto é quase um bónus. Se
não se continua o acompanhamento...

Poderá o jovem até pensar: «Bom, passo aqui os fins-de-semana,


mas depois fica terminada a medida»” (Ent. 47).

Vai no mesmo sentido o depoimento de um outro operador.

“Outra questão curiosa é a questão do internamento nos fins-de-


semana. A Lei fala que em certos casos quando o menino não
cumpre as injunções que o Tribunal lhe aplicou, uma das sanções
possíveis é o menor ir para um Centro de um a cinco fins-de-semana
e a partir daí parece que o que os tribunais estão a fazer é a lavar
daí as suas mãos e o menor vai de fim-de-semana e depois não se
lhe exige mais nada. Claro que o crime compensa. A criança sabe
que em vez de fazer aquilo [a que a medida obrigava] até vai passar
uns fins-de-semana fantásticos, sobretudo no Verão, alguns Centros
até têm piscina aberta, como se fosse uma colónia de férias, quando
a minha opinião é que isto é uma sanção em relação ao facto dele
não ter obedecido a uma injunção, mas sem prejuízo de continuar a
medida que não foi aplicada dever ser aplicada. Isso devia estar na
Lei, porque o que está a acontecer é que se substitui, digamos, a
medida pela sanção e depois esquece-se que a medida continua em
vigor. No fundo os tribunais consideram esgotada a sua intervenção
com a aplicação dos fins-de-semana, quando não deveria ser” (Ent.
25).
326 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

1. 3. 5. A difícil uniformização de procedimentos: a falta de


jurisprudência, a hierarquia do MP e as vantagens da
livre interpretação e a incompreensão dos cidadãos face
a soluções diferentes para a mesma situação

Como foi referido, a maioria dos entrevistados entende que a disparidade


entre procedimentos adoptados em diferentes tribunais ou por diferentes
tribunais pode ser solucionada, ou através de uma interpretação da Lei Tutelar
Educativa que tenha em atenção os seus objectivos, ou através de uma
clarificação legislativa expressa. No entanto, foram, ainda, realçadas outras
circunstâncias que poderiam ajudar a solucionar aquela disparidade.

Para um entrevistado, a ausência de tradição de recursos nesta área do


direito agudiza este “estado de coisas”.

“Uma outra questão e eu fiz uma recolha, é o facto de não haver


jurisprudência praticamente nenhuma sobre esta matéria. O que é
significativo. Por exemplo, sobre a forma de descontar as medidas
cautelares não há jurisprudência, porque praticamente não há
recursos” (P-7).

Para outros entrevistados, a uniformização de procedimentos é mais


simples de conseguir na actuação do Ministério Público, dada a sua natureza
hierárquica, do que na magistratura judicial.

Para um magistrado judicial:

“Para o cidadão é muito difícil de compreender. Penso que no que


respeita ao Ministério Público que tem uma estrutura hierarquizada,
tendencialmente, a questão poderia ser resolvida. Por banda da
magistratura judicial, as coisas aí serão diferentes, dada a
independência da função, a sua não submissão a orientações
hierárquicas. Mas aí, temos a jurisprudência que, ao longo do tempo,
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 327

irá tentando uniformizar entendimentos sobre questões que vêm


tendo decisões diferentes. É evidente que nesta área do processo
tutelar educativo, a acção da jurisprudência também sofre muito com
o facto de não se verem muitos casos de recurso, o que poderia
constituir uma verdadeira limitação à tal uniformização” (P-4).

Segundo um magistrado do Ministério Público, a equipa de magistrados


do Ministério Público do seu Tribunal faz reuniões de forma a tentar uniformizar
procedimentos:

“Nós fazemos reuniões para tentar uniformizar algumas questões de


interpretação (ex. apensação de processos; discutir se a amnistia
afecta também o menor)” (Ent. 45).

Já para um magistrado do Ministério Público, a questão é muito mais


complexa:

“A questão (…) não tem só a ver com a Lei Tutelar Educativa. A


discussão seria muito mais longa. Tem a ver com o que é a
hierarquia do Ministério Público. O que é que é susceptível de ser
ordenado em termos superiores? Quais os limites de intervenção
hierárquica? Isto é uma questão bastante mais complicada. Há
quem entenda que o Sr. Procurador-Geral deve emitir orientações
de natureza doutrinária nesta matéria. Mas há quem entenda que
não o deve fazer; ou, pelo menos, não se deve recorrer
frequentemente deste meio (O MP não é propriamente uma tropa).
Não está na nossa tradição, e eu digo ainda bem, que haja
orientações frequentes. Repare, não são orientações de
procedimento, são orientações de interpretação da Lei, o que é um
pouco distinto. Portanto, existe alguma liberdade de interpretação da
328 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

lei por parte do magistrado. E tem-se optado pela liberdade de cada


magistrado na interpretação da Lei de acordo com o caso concreto.

Para além do Processo Penal, em que o Magistrado titular do


inquérito tem competências próprias decorrentes da lei e os termos
da intervenção hierárquica estão definidos, é discutido, relativamente
aos processos de natureza distinta, os limites da intervenção
hierárquica e a forma que devem revestir, bem como quais a
possibilidade de recusa das ordens superiores. Portanto, a questão
das ordens de carácter directo sobre orientação jurídica: “a linha que
o senhor vai seguir é esta” é altamente problemática, embora isso
seja uma questão, como eu digo, ainda em grande discussão. Mas a
questão coloca-se, embora num modo um pouco distinto, também
relativamente à interpretação que os juízes fazem relativamente a
várias questões.

A questão que foi colocada aqui, por exemplo, relativamente ao


desconto da medida de guarda cautelar, é uma das questões que a
Lei poderia claramente definir. Mas há sempre alguma margem para
quem aplica o direito. É, por isso, que os cidadãos em Portugal
descobriram agora que, realmente, o direito é tudo menos preto e
branco, contrariamente ao que estavam convencidos. Realmente, há
várias interpretações, há possibilidade de haver várias
interpretações acerca da mesma coisa. Nalguns casos pode-se
limitar essa possibilidade, mas a questão que se levanta é até que
ponto é bom limitar ou não? Porque disso também pode resultar falta
de credibilidade do sistema e dos próprios magistrados” (P-5).

Em sentido diferente, um advogado defende a segurança resultante da


necessária uniformização de procedimentos:
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 329

“É inadmissível (…) que no mesmo Tribunal (…), haja posições


diferentes sobre questões procedimentais. Não podemos pensar na
independência de uma maneira tão radical, que mesmo em matéria
puramente procedimental, não haja orientações. E, portanto, para
mim não é o problema do menor compreender, o menor não vai
compreender. É que há uma família, está lá uma família, que é
preciso que compreenda para que aceite a decisão. E mais do que
isso: há responsabilidade do Tribunal. Porque isto é uma questão de
cidadania, a justiça é, em si, uma questão de cidadania, a justiça de
menores é mais ainda uma questão de cidadania porque,
exactamente, se está a educar para o direito, pelo menos, é o
sentido da Lei” (P-7).

1. 4. Tribunais de família e menores e tribunais constituídos em


tribunais de família e menores: um problema de formação e
especialização dos magistrados judiciais e do Ministério
Público

Segundo o disposto no artigo 28.º da Lei Tutelar Educativa, é ao Tribunal


de Família e Menores que compete “a prática dos actos jurisdicionais relativos
ao inquérito” (alínea a)), “a apreciação de factos qualificados pela lei como
crime, praticados por menor com idade compreendida entre os 12 e os 16
anos, com vista à aplicação de medida tutelar” (alínea b)), “a execução e a
revisão das medidas tutelares” (alínea c)), bem como “declarar a cessação e a
extinção das medidas tutelares” (alínea d)).

Presentemente existem 18 tribunais de família e menores: em Aveiro,


Barreiro, Braga, Cascais, Coimbra, Faro, Funchal, Lisboa, Loures, Matosinhos,
Ponta Delgada, Portimão, Porto, Setúbal, Seixal, Sintra, Vila Franca de Xira,
330 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

Vila Nova de Gaia. A maioria destes tribunais tem competência na área do


respectivo círculo judicial155.

Fora das áreas abrangidas pela jurisdição dos tribunais de família e


menores, aquela competência cabe aos tribunais de comarca, que se
constituirão em Tribunal de Família e Menores (artigo 29.º, n.s 1 e 2).

Esta opção legislativa tem levantado algumas críticas que se prendem,


essencialmente, com a ausência de formação especializada dos magistrados
em geral, especialmente sentida nos tribunais de competência genérica.

Neste sentido, Anabela Rodrigues e Duarte-Fonseca chamam a atenção


para o facto de que “se vem defendendo, cada vez com maior empenho, dada
a complexidade, especificidade e cambiantes da problemática do menor, a
especialização da intervenção a que esta dê azo. Esta especialização poderia
ser conseguida através de uma preparação dirigida especificamente a
magistrados de família e menores e que não é possível para magistrados com
vocação generalista, como é o caso dos magistrados dos tribunais de comarca.
Tudo a aconselhar, para obviar aos inconvenientes desta carência de
especialização da magistratura, que se insista na necessidade de a sua
preparação continuar a incidir, e de forma acrescida e acentuada, nas
problemáticas da família, da juventude e da menoridade” (2003: 119).

Esta preocupação foi também aventada por alguns operadores durante a


nossa investigação.

155
Constituem excepção a esta regra, como referimos no Capítulo IV, os tribunais de família e
menores de Cascais, com competência nos círculos judiciais de Cascais e Oeiras, de Faro,
com competência no círculo judicial e na comarca de Loulé, do Funchal, com competência
somente na área da respectiva comarca, de Lisboa, com jurisdição nas comarcas de Amadora
e de Lisboa, de Ponta Delgada, com jurisdição nas comarcas de Lagoa, Ponta Delgada,
Ribeira Grande e Vila Franca do Campo, de Portimão, com competência no círculo judicial e
comarca de Albufeira, do Porto, com competência nas comarcas de Gondomar, Maia, Porto e
Valongo, e do Seixal, com competência para o círculo judicial de Almada (cf. Mapa VI anexo ao
Decreto-Lei n.º 186-A/99, de 31 de Maio, sucessivamente alterado pelos Decreto-Leis n.º 27-
B/2000, de 3 de Março; 178/2000, de 9 de Agosto, 332/2000, de 30 de Dezembro, 246-A/2001,
de 14 de Setembro, 148/2004, de 21 de Junho e 219/2004, de 26 de Outubro).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 331

“Num Tribunal de competência especializada de Família e Menores


será muito mais fácil lidar com esta nova Lei e aplicá-la, dado que
existe essa especialização e há uma possibilidade de os colegas
disponibilizarem mais do seu tempo para o efeito (…). É essencial a
especialização, a criação de Tribunais de Família e Menores em
todo país.

É extremamente difícil para um juiz de competência genérica, que


são a grande maioria, pelo menos no interior do país, conseguir ter
o tempo suficiente para frequentar acções de formação a esse nível,
e depois ainda arranjar o tempo e disponibilidade necessários para
visitar os Centros Educativos, tempo para investir na formação, que
é extremamente importante.

Isso tem de ser conseguido com a colaboração do Conselho


Superior da Magistratura e do Conselho Superior do Ministério
Público, ou seja, um esforço no sentido de criação dos Tribunais de
Família e Menores, inclusivamente em círculos que não comportem
um só Tribunal, por exemplo, juntar os círculos da Guarda, Castelo
Branco, e Covilhã, e criar um Tribunal de competência especializada
que consiga dar uma melhor resposta.

Isto porque, provavelmente, nós não conseguimos dar a resposta


ideal, porque não conseguimos ter o tempo suficiente e a
especialização neste aspecto é, para mim, extremamente
importante” (P-3).

Defendendo, também, a existência de tribunais de competência


especializada, um outro magistrado considera que:

“(…) só deveria haver tribunais especializados para essa área de


forma a que nos tribunais de comarca as pessoas não passassem
de um despejo para a Lei Tutelar Educativa (…). Todos os anos
332 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

fazemos o balanço no Centro de Estudos Judiciários e eu às vezes


pasmo, porque sinto que há colegas que ainda não a leram
totalmente, dizem que quando precisam da Lei vão lá, mas falta-lhes
uma ideia de fundo do que diz a Lei. Os mais antigos não estão com
muita paciência: «Eu tinha a OTM no meu tempo, agora há para aí
umas leis novas, eu até já nem tenho muita cabeça para estar a
entrar a fundo nestas Leis». Eu penso que nos tribunais
especializados as pessoas tinham mesmo que se especializar, que
estar muito mais vocacionadas para as funções que vão
desempenhar. Eu luto há muito tempo para termos mais do que
dezoito tribunais de família e menores, claro que isso mexe com
dinheiros, mexe com o quadro da organização judiciária que teria
que ser profundamente mudado, mas eu penso que só assim
teremos a dignificação da jurisdição de família e menores.

Em todos os países que tenho visitado no âmbito do meu trabalho,


há associações de magistrados de família e menores, eles reúnem-
se” (Ent. 25).

Para alguns entrevistados, os magistrados colocados nestes tribunais de


competência especializada deveriam ter formação específica:

“Os magistrados desta jurisdição deviam ter formação específica. A


especialização devia, aliás, verificar-se em todas as áreas, pois a
realidade é cada vez mais complexa, exigindo aos magistrados
sólidos conhecimentos específicos” (Ent. 23).

“Acho que devem ser colocadas nestes tribunais pessoas com


especialização e, sobretudo, com gosto por estas matérias” (Ent.
11).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 333

Considerando que, apesar de tudo, já se regista alguma evolução, um


magistrado relembra:

“Já estão ultrapassadas algumas situações. A anterior situação era


mais grave porque eram os próprios Conselhos que validavam a
colocação de magistrados nestes tribunais, que estavam à espera
de subidas à Relação ou que tinham problemas de alguma índole
que fazia com que não pudessem estar a fazer «estragos» noutras
jurisdições, sobretudo no crime. Recordo-me que quando estive no
Tribunal de Menores de (…) que «espetavam» lá magistrados que
foram autênticos crimes...

Há a ideia que nesta jurisdição não deve haver preconceitos. Eu não


digo tanto preconceitos mas pré-conceitos em relação, por exemplo,
à adopção e vamos ouvindo: «Sou contra à adopção» «Sou
completamente a favor da adopção». Não pode ser (…).

Nestes tribunais só deviam ser colocadas pessoas com dez anos de


serviço e com nota de mérito. Neste momento há pessoas, minhas
alunas no décimo sétimo e do décimo oitavo curso, que já estão
colocadas como auxiliares destes tribunais. Claro que há casos e
casos. Há pessoas excepcionais e excepcionalmente vocacionados
para este tipo de jurisdição, mas de facto não me parece o mais
correcto, se a lei é lei, então que a levemos até às últimas
consequências e não a adulteremos com base em critérios
oportunísticos. Se isso pode ser feito no Cível e no Penal, aqui não
pode nem deve ser feito. (…) Casos de magistrados com quatro
anos de serviço e que já são juízes de círculo, como por exemplo,
em (…), não pode ser. Podem ter sido óptimos alunos no Centro de
Estudos Judiciários mas precisarão de algum tempo mais …” (Ent.
25).
334 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

Defendendo, claramente, a especialização nesta jurisdição, um outro


operador considera:

“Acho essencial que, a nível da organização das magistraturas, se


assuma que as colocações nestes Tribunais especializados, devem
depender da uma especialização prévia. A competência
especializada prevê, na minha perspectiva, a necessidade de ter
uma preparação prévia, uma especialização prévia, por via da auto-
formação ou da formação, ou seja uma especialização prévia que
seja condição de acesso à colocação nesses Tribunais e uma
formação contínua, obrigatória, a título permanente, para os
magistrados. Acho que essa formação tem que ser uma formação
dirigida, com outra avaliação, uma formação dirigida a um
determinado tipo de problemas concretos, com determinado
aprofundamento, que vá para além daquelas “campanhas” de
divulgação, que têm sido as acções de formação permanente. E
acho essencial que a formação permanente esteja ligada à formação
especializada, ligada, necessariamente, à colocação dos
magistrados nestes Tribunais. Porque o que acontece actualmente é
que a formação permanente não é obrigatória, não tem qualquer tipo
de ligação à progressão na carreira e à colocação num determinado
tipo de Tribunais. Portanto fica-se dependente da boa vontade e do
interesse dos magistrados. Com esta nova legislação, deu-se na
minha perspectiva, um avanço que foi relevante na própria
organização dos Tribunais, tendo sido criados vários. O facto de
existirem magistrados a trabalharem especificamente com esta
matéria, ainda que sem a tal formação, também já foi um avanço.
Efectivamente, eu acho que, apesar de tudo, as asneiras, os erros
(…), há a parte boa, o trabalho tem vindo a melhorar e a qualidade
da magistratura, neste momento, naqueles Tribunais é, sem dúvida,
superior aquela que era há 3 ou 4 anos. Isto para mim é um salto
positivo. Obviamente que temos que continuar e aprofundar, no
sentido em que eu já disse” (P-5).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 335

Na opinião deste magistrado do Ministério Público, a falta de formação


nesta área específica provoca algumas incompreensões da lei, por parte dos
magistrados, que analisam a Lei Tutelar Educativa tendo como referência o
Código de Processo Penal e a aplicam como o “Código de Processo Penal dos
pequeninos”:

“Há aqui, o facto de a terminologia [da Lei Tutelar Educativa] ser


muito próxima [à do direito penal] e o facto de os magistrados terem
os paradigmas mentais do penal e do civil, o que determina - como
não houve formação suficiente nem um debate alargado entre os
magistrados efectivamente eficaz sobre esta Lei - aquela tendência
natural por parte dos magistrados para fazerem a colagem ao
processo penal, quando estão a interpretar a lei. Várias vezes, em
discussões com alguns colegas, tive a ideia que eles andavam à
procura na LTE daquilo que não se dizia, em contraponto ao Código
de Processo Penal. «Ah, mas o processo penal diz e aqui não diz.»,
como se fosse obrigatório que dissesse, que fosse tudo idêntico.
Portanto, no fundo, eles estariam a aplicar o processo penal e
subsidiariamente aplicavam a Lei Tutelar Educativa. Isso é, na
minha perspectiva, fruto de falta de formação e falta de reflexão
sobre estas matérias, porque as pessoas têm os quadros mentais do
processo penal e do civil e não saem dali” (P-5).

No mesmo sentido, um magistrado judicial afirma:

“No MP há pouca sensibilidade, o MP está mais sujeito a pressões,


a orientações da PGR, trabalha em equipa. Há magistrados do MP
que vieram do crime há pouco tempo e vêem a LTE como o Código
de Processo Penal dos pequeninos. Então há uma distorção sobre o
que visa a LTE, não vendo que o principal objectivo é a educação
para o direito.
336 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

A angústia da decisão do juiz torna-o mais sensível. Faz o papel de


Deus, por modificar o destino da criança” (Ent. 42).

O mesmo magistrado judicial, apesar de admitir não ter tido qualquer


formação específica, defende a necessidade de formação para todos:

“Não tivemos uma formação especial (…). Há necessidade de


formação para todos, mas não há tempo, os processos
acumulam-se no gabinete. As acções de formação deviam ser
obrigatórias” (Ent. 42).

A mesma ideia é realçada por um outro magistrado:

“Temos outro problema: as nossas formações do CEJ são


autorizadas pelos Conselhos Superiores, mas depois o Conselho
muitas vezes não dá azo a que as pessoas possam vir. Claro que
eles dão autorização, mas as pessoas pensam assim: «vou dois dias
para lá e quando chegar, na segunda-feira, tenho o meu gabinete
pejado de processos, e não acontece nada de relevante à minha
carreira pelo facto de eu lá ir, se eu tivesse um papelinho que
dissesse que participei, e mais do que isso, que me iria servir para,
um dia, quando eu quisesse concorrer para uma especialização e
para fazer curriculum com isso…». E então temos as salas vazias de
magistrados e cheias de técnicos” (Ent. 25).

Um outro magistrado judicial defende que a formação ministrada no


Centro de Estudos Judiciários é suficiente para o período de formação de que
dispõem, enfatizando, no entanto, a necessidade de formação permanente e
de utilização de outros critérios para a colocação de magistrados nestes
tribunais de competência especializada.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 337

“[A formação inicial no Centro de Estudos Judiciários] é suficiente,


agora, isto tem que ser visto em várias frentes. (…) Neste período da
formação, que são 3 meses da fase teórico-prática, (…) não
conseguiríamos fazer mais do que aquilo que já é feito, e parece-me
que é o bastante. Agora, esta formação tem que ser complementada
com outras acções no âmbito da formação permanente. Também
temos feito um esforço no sentido de introduzir a importância da
intervenção multidisciplinar nestas matérias. Tivemos há pouco
tempo, em matéria de adopção, um curso de especialização que era
aberto, não só aos magistrados mas também aos técnicos com
intervenção nesta área. Os próprios formadores eram, não só
juristas, mas também técnicos das outras áreas relevantes. Agora, o
que me parece importante, é não só a questão da formação de base,
que é fundamental, mas também a selecção das pessoas certas
para este cargo (…). Aí o sistema falha (…).

Mais do que qualquer outro tipo de Tribunal de competência


especializada, nestes tribunais só devem ser colocados magistrados
que, efectivamente, tenham aptidão, nas várias dimensões, não só
técnico-jurídica, mas aptidão funcional para desempenhar este
cargo. E isso não acontece. E, portanto, enquanto isso não suceder,
dificilmente vamos conseguir ter uma boa gestão de recursos
humanos em matéria de colocação em tribunais de competência
especializada. Já para não falar nos muitos de competência genérica
que ainda têm esta intervenção (…). Mas ainda assim, pegando nos
tribunais de família e menores que já abrangem uma área
considerável, essa colocação deve ser precedida de uma selecção
em que seja diagnosticada a qualidade funcional do magistrado para
este tipo de função. O magistrado pode ser excepcional para outra
área e não para esta. Só devem ser colocados aqueles que
efectivamente satisfaçam esse conjunto de exigências. E isso não
acontece (...). Esse, para mim, é um dos grandes problemas ao nível
da gestão de recursos humanos” (Ent. 47).
338 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

Um outro magistrado do Ministério Público, apesar de considerar que “o


CEJ está a intervir muito nesta área de família e menores”, enfatiza, também, a
necessidade de colocação de magistrados nestes tribunais com formação
específica:

“Não tenho conhecimento de nenhum magistrado que seja


especialista nesta área. Eu acho que havia necessidade de colocar
nestes tribunais magistrados já com formação nesta área. Há um
conjunto de questões que não é num mês que se entra nelas” (Ent.
45).

1. 5. Os mecanismos de diversão: uma aceitação positiva

A Lei Tutelar Educativa pontuou a actividade do Ministério Público,


durante a fase de inquérito, com alguns momentos de oportunidade,
permitindo-lhe arquivar liminarmente o inquérito, quando o jovem praticar um
facto qualificado como crime punível com pena de prisão não superior a um
ano e “se revelar desnecessária a aplicação de medida tutelar face à reduzida
gravidade dos factos, à conduta anterior e posterior do menor e à sua inserção
familiar, educativa e social” (artigo 78.º, n.º 1); arquivar o inquérito quando
conclua pela “desnecessidade de aplicação de medida tutelar, sendo o facto
qualificado como crime punível com pena de prisão de máximo não superior a
três anos” (artigo 87.º, n.º 1, al. c)); ou suspender o processo, nos termos do
artigo 84.º.

A possibilidade de suspender o processo surge para os casos em que se


revele necessária a aplicação de uma medida tutelar, quando o jovem houver
praticado um facto qualificado pela lei como crime punível com pena de prisão
não superior a cinco anos e “o menor apresente um plano de conduta que
evidencie estar disposto a evitar, no futuro, a prática de factos qualificados pela
lei como crime” (artigo 84.º, n.º 1). Segundo a Exposição de Motivos da
Proposta de Lei n.º 266/VII, de 17 de Abril de 1999, a decisão de cometer ao
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 339

jovem, “acompanhado ou assistido pelos pais, representante legal ou pessoa


que tenha a sua guarda de facto”, a apresentação espontânea do plano de
conduta, tem como objectivo “que, na medida do possível, se devolva a
situação problema ao ambiente familiar ou educativo”.

Estes fenómenos de diversão são entendidos pela generalidade dos


magistrados como positivos:

“Em função da inserção social, escolar, familiar, da capacidade de


autocrítica e do acompanhamento é que se verifica se se justifica ou
não a medida. O próprio confronto com a justiça é, por vezes,
bastante.

Faz-se um juízo de prognose sobre se será necessário prosseguir.


No caso dos factos que ocorrem em estabelecimentos de ensino, se
aí forem sancionados, há, em regra, arquivamento do processo no
Tribunal” (Ent. 45).

“Este instituto processual [a suspensão do processo] é o que mais


se tem aplicado, pelo menos no Tribunal de …, pois, de facto, na
maioria das vezes, é essa a solução mais adequada.

E é também por isso, que posso dizer, que, neste momento, temos
apenas 4 processos pendentes ao abrigo da Lei Tutelar Educativa.
Este reduzida pendência é sintomática daquilo que realmente nos
chega que, já é muito pouco, porque se tenta fazer essa filtragem ao
nível do Ministério Público” (P-3).

Realçando aquele mecanismo, um outro magistrado judicial refere que, de


acordo com a sua experiência, “são raros os casos que chegam à fase judicial”.
Muitos dos processos não passam da fase de inquérito, porque ou:
340 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

“ (…) se entendia que a procedência de queixa era relevante... ou,


ainda que assim não fosse, através de uma suspensão do processo,
fazendo intervir os serviços de mediação. Eu estou a pensar na
experiência que em concreto tive e a esse nível é uma experiência
relativamente positiva, porque, de facto, havia a intervenção da
mediação, de um serviço de mediação em parceria do IRS com o
próprio IAC. Estou a falar de uma experiência de Ponta Delgada e
penso que há esta realidade também noutras comarcas de outras
áreas. E, de facto, funcionava relativamente bem. (…) Há aqui
imensas soluções, que escapam à intervenção formal de uma
audiência” (Ent. 47).

Alguns magistrados entrevistados indicaram, no entanto, alguns


problemas no funcionamento destes mecanismos.

Para uns, a possibilidade de recorrer ao arquivamento e à suspensão


deveria ser alargada a factos qualificados pela lei como crime punível com
molduras penais abstractas maiores156:

“Se se achar que ao miúdo não deve ser aplicada qualquer medida,
então use-se o arquivamento liminar e, mais do que isso, use-se,
cada vez mais, a suspensão do processo. Usem-se os critérios de
oportunidade, o princípio da oportunidade que esta Lei prevê e,
talvez, aumentando a possibilidade de se aplicar a suspensão nos
termos do 84.º que, actualmente, só admite a aplicação daquele
instituto a crimes puníveis com penas não superiores a cinco anos.
Para o juiz, basta que haja uma qualificação, mesmo que ridícula, do
artigo 204.º ao artigo 212.º ou artigo 213.º, para o crime passar logo

156
Segundo o disposto no artigo 84.º, n.º 1, da LTE, a suspensão do processo pode ser
utilizada quando, verificando a necessidade de medida tutelar educativa, o facto praticado pelo
jovem for qualificado pela lei como crime punível com pena de prisão de máximo não superior a
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 341

para qualificado e, só por causa disso, já não podemos aplicar a


suspensão porque temos que avançar para outra medida bastante
mais gravosa, só porque temos este emperro na Lei. Considero, por
isso, que deve haver mais flexibilidade, sobretudo nas molduras
penais abstractas, que estão previstas nos vários institutos que
podem ser aplicados na LTE para poder fazer-se um trabalho
bastante mais fortificante” (Ent. 25).

É este, também, o sentido de um outro depoimento:

“Outra coisa que obviamente também facilitaria é a possibilidade do


Ministério Público arquivar, desde logo, mas não somente
relativamente a crimes puníveis até 1 ano. O artigo 78.º, salvo erro,
deveria poder ser aplicado no caso de crimes até 5 anos.

Depois há outra questão que é a possibilidade do Ministério Público


arquivar quando considerar que, apesar do menor ter cometido um
delito, considerar não haver necessidade, naquele momento, da
aplicação de qualquer medida, por a sua personalidade estar
adequada ao direito. Actualmente, no caso de factos que integram
crimes puníveis com penas superiores a três anos, haver a
necessidade de o processo proposto para arquivamento ter que ir ao
juiz. Ainda estamos na fase do inquérito. Acho que este artigo
também poderia obviamente ser melhorado” (P-5).

Um outro operador considera que o arquivamento liminar não é muito


frequente, “porque diz respeito a crimes de injúrias e difamação. [A LTE só

cinco anos, e se for apresentado um plano de conduta “que evidencie estar disposto a evitar,
no futuro, a prática de factos qualificados pela lei como crime”.
342 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

contempla o arquivamento liminar] relativamente a crimes puníveis com a pena


de prisão de máximo não superior a um ano” (Ent. 25).

Para outros magistrados, a lei deveria prever a possibilidade de ser o


Ministério Público a sugerir não só a suspensão do processo, mas também a
propor o respectivo plano de conduta:

“Há um conjunto grande de casos que são arquivados. Em 2003


houve 3 suspensões de processos, o que é manifestamente pouco.
Nós no início tomamos a iniciativa de sugerir a suspensão, mas os
advogados não aderem.

Devia poder ser o magistrado a propor a suspensão com


apresentação do plano de conduta. Não devia estar dependente do
menor, dos pais ou do advogado. Há um desinteresse grande por
parte dos advogados. É necessário dar ao MP a possibilidade de ser
ele a tomar a iniciativa de suspender o processo.

Há uma postura demasiado passiva dos advogados. Os advogados,


salvo os constituídos – que são raríssimos – fazem aqui um papel de
corpo presente. São raros os casos em que os advogados requerem
informações complementares, em que despoletam a suspensão do
processo. Assumem uma postura imensamente passiva. Têm muito
pouca intervenção. O advogado devia intervir, sobretudo na
suspensão” (Ent. 45).

Um outro operador levanta a seguinte questão:

“Quantas famílias destas que estamos a falar, têm capacidade para


se organizar com o seu filho e para apresentar um plano de conduta
para a suspensão do processo? Façamos isto ao contrário. Assim,
quantos destes miúdos e seus pais conseguem organizar-se para,
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 343

em crimes até 5 anos, apresentar um plano de conduta que permita


ao Tribunal suspender o processo?” (P-6).

Defendendo a possibilidade de o Ministério Público apresentar o plano:

“Eu aí penso que o Ministério Público pode ter um papel importante.


Pode tentar ver se o miúdo adere. É evidente que se ele disser “Não
adiro”, aí... (…) Eu não sei como é que os meus colegas fazem.
Agora em todas as minhas suspensões, o projecto fui eu que o
propus, porque é como a Sr.ª Dr.ª diz, eles não têm capacidade
cultural para apresentar um projecto desses” (P-9).

1. 6. O instituto da mediação: os primeiros passos

A Lei Tutelar Educativa inseriu no sistema jurídico português, pela


primeira vez, a possibilidade de recurso à mediação para resolução de conflitos
no âmbito dos processos tutelares educativos. Assim, determina-se que “para
realização das finalidades do processo, e com os efeitos previstos na presente
lei, a autoridade judiciária pode determinar a cooperação de entidades públicas
ou privadas de mediação”, cuja intervenção pode ser pedida “por iniciativa da
autoridade judiciária, do menor, seus pais, representante legal, pessoa que
tenha a guarda de facto ou defensor” (artigo 42.º).

A cooperação dos serviços de mediação pode ter lugar, quer na fase de


inquérito, quer na fase jurisdicional. Na fase de inquérito, prevê-se
expressamente a possibilidade de intervenção dos serviços de mediação “para
a elaboração e execução do plano de conduta” no âmbito de uma suspensão
do processo (cf. artigo 84.º, n.º 3). Neste caso, segundo Anabela Rodrigues e
Duarte-Fonseca, “a mediação surge como modo extra-processual de resolução
do conflito, supondo a participação voluntária das pessoas envolvidas na
mediação” (2003: 137).
344 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

Na fase jurisdicional, o juiz, na audiência preliminar, não tendo obtido


acordo quanto à medida proposta pelo Ministério Público, pode “determinar a
intervenção de serviços de mediação e suspender a audiência por prazo não
superior a 30 dias” (artigo 104.º, n.º 3, al. b)). Relativamente a este segundo
momento em que é possível recorrer à mediação, Anabela Rodrigues e Duarte-
Fonseca defendem que “esta surge num contexto de coactividade que o
processo significa, o que implica, desde logo, que a participação dos
envolvidos naquele procedimento (…) pode não ser voluntária” (2003: 137).

Para Clara Albino, “o enquadramento legal da mediação não a configura


como uma via extra-judicial de resolução de conflitos tutelares educativos, nem
define claramente os seus contornos, o que tem permitido interpretações
diversas quanto à sua utilização, definindo-se apenas que a mesma possa ser
determinada pela autoridade judiciária para a realização das finalidades do
processo e com os efeitos previstos na lei” (2003: 61).

A Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 266/VII, de 17 de Abril de


1999, dispõe que “tratando-se de uma fórmula com reduzida tradição entre nós
e com suportes institucionais ainda ténues, o diploma deixa uma ampla
margem de discricionariedade na sua utilização que se espera poder frutificar
com a capacidade e a imaginação de instituições públicas e privadas que
venham a criar-se”.

Segundo Clara Albino, “os primeiros passos na mediação entre infractor e


vítima de crime [foram dados] através de um programa criado para o efeito no
seio do Instituto de Reinserção Social” (2003: 62). Ainda segundo a Presidente
do Instituto de Reinserção Social, “na ausência de outras entidades
mediadoras, públicas ou privadas, à excepção de uma experiência nos Açores,
o Instituto de Reinserção Social assumiu-se como serviço de mediação nesta
matéria, tendo iniciado em Janeiro de 2002 um programa experimental com
vista à implementação da mediação em processo tutelar educativo (…). O
Programa de Implementação da mediação em Processo Tutelar Educativo teve
como objectivo central criar e fomentar melhores condições técnicas e
logísticas para a execução de decisões das autoridades judiciárias que
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 345

determinassem processos de mediação, não perdendo de vista que se tratava


de uma assumpção temporária, pretendendo-se que, no futuro, as mesmas
fossem exercidas por entidades privadas ou públicas, externas ao IRS” (2003:
62).

No âmbito de tal programa, “porque a mediação surgiu como um


instrumento novo, quer para os operadores judiciários, quer para os seus
destinatários, e porque a lei não contempla, entre outros aspectos, a relação
dos serviços de mediação com o sistema judicial, (…) previa[-se] a articulação
com as magistraturas, com objectivo de as informar e as sensibilizar sobre as
particularidades do Programa. Assim, e para reforçar a estratégia de
implementação, o IRS concebeu um folheto explicativo sobre o programa que
foi divulgado pelos tribunais de família e menores” (Albino, 2003: 63).

Segundo dados divulgados pelo IRS em Setembro de 2003, “no ano de


2002, o programa abrangeu 183 casos” e “no primeiro semestre de 2003
registaram-se 125 casos, o que se traduz numa subida em comparação com o
ano anterior”. Relativamente ao ano 2002, “os tribunais que mais solicitaram a
intervenção do IRS enquanto serviço de mediação foram, por ordem
decrescente, os seguintes: Tribunais de Família e Menores de Setúbal,
Coimbra, Lisboa, Porto e Póvoa do Varzim”. Nesse ano, “a intervenção do IRS
incidiu, maioritariamente, na fase de inquérito com vista ao apoio à elaboração
e/ou execução do Plano de conduta – 80%, havendo uma percentagem de
17% no âmbito da intervenção mediadora na fase inicial do inquérito e uma
percentagem insignificante da nossa intervenção na fase jurisdicional – 3% (ou
seja, com vista obtenção do consenso quanto à aplicação de uma medida
tutelar educativa não institucional, determinada exclusivamente pelo juiz)”
(Albino, 2003: 63-64).

A opinião dos operadores relativamente ao funcionamento e eficácia da


mediação também não colhe consensos. Assim, enquanto alguns magistrados
entendem que a mediação está a ser utilizada com sucesso, outros afirmam
que ainda há um longo caminho a percorrer.
346 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

Naquele primeiro sentido, um magistrado judicial diz:

“Já utilizamos [a mediação] com bons resultados. Num caso, na


audiência preliminar o ofendido propôs que apenas o
acompanhamento educativo não bastava, pelo que propus que o
menor prestasse tarefas a favor da comunidade. Então encaminhou-
se o menor para mediação e veio a praticar tarefas a favor da
comunidade. A mediação já é usada na audiência preliminar” (Ent.
42).

Em sentido contrário, um magistrado do Ministério Público defende:

“A lei prevê o recurso ao serviço de mediação, que não existe. Quem


tem estado a fazer isso é o IRS, mas o IRS não se envolve. Não se
envolve, por exemplo, em auxiliar na redacção do texto apresentado
no Tribunal – um menor apresentou um plano de conduta em papel
de cartuxo. Nalguns casos a mediação seria importante. Se o
advogado soubesse que podia encaminhar o jovem para quem
fizesse mediação haveria mais casos de mediação e mais
suspensões. Falta preparação técnica ao advogado” (Ent. 45).

Um magistrado do Ministério Público considera que o problema da


mediação se encontra primacialmente na previsão legal, argumentando da
seguinte forma:

“Temos a mediação, que é uma questão que, obviamente, está


regulada em dois ou três artigos da Lei, mas que não está
regulamentada, nem desenvolvida e que, sem dúvida, é uma área
em que considero ser essencial que se comece a trabalhar melhor e,
eventualmente, que a sua aplicação esteja mais clara na Lei. Há,
também, aqui a questão que está ligada à questão do crime semi-
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 347

público, de certo modo, que é a possibilidade de ser dada ao


Ministério Público, logo no início do inquérito, ou até mesmo sem
haver inquérito, (mas, eu acho que devia estar legislado, e não ser
decidido segundo os critérios de cada um), de decidir se
determinado caso é um caso para mediação, e se a mediação
resultar, o caso terminar ali imediatamente. Devia-se prever a
possibilidade de dar ao Ministério Público mais competências nesta
fase. E aí tínhamos a pequena criminalidade pelo menos tratada de
uma maneira muito mais rápida e muito mais célere. No fundo,
talvez aproximar-nos um pouco do sistema espanhol que aí é muito
mais flexível. Na altura em que esta Lei foi feita falou-se nisso, mas
depois houve um certo medo de excesso de poder do Ministério
Público e a mediação era uma coisa que ainda era um “um papão”,
por um certo desconhecimento, e, portanto, a coisa ficou assim
deste modo e a mediação prevê-se como possível só durante o
inquérito” (P-5).

Um outro entrevistado identifica também como problema com


necessidade de resolução, a falta de clarificação legal do regime da mediação,
que dá azo a interpretações díspares:

“Nós desenvolvemos uma experiência piloto de mediação em


Processo Tutelar Educativo, precisamente para começarmos a
desbravar caminho naqueles casos que podem ser, digamos assim,
resolvidos de uma forma mais simples, mais rápida e, se calhar,
menos pesada para a máquina judicial e temos tido algum sucesso
nisso, mas precisaríamos, digamos assim, de várias coisas, uma
delas é uma clarificação do regime legal da mediação; segundo, é
necessário saber qual o entendimento do que é que o Ministério
Público faz com o acordo que se conseguir em sede de mediação,
porque às vezes continua o processo depois de termos o acordo,
porque a Lei não é clara se o Ministério Público pode arquivar ou
348 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

não pode arquivar. E, portanto, lá temos mais uma área em que,


dependendo da interpretação, assim se consegue uma coisa ou
outra. Portanto, na mediação temos vindo a fazer um caminho de
projecto experimental, já temos quase 3 anos desse caminho.
Estamos a avaliá-lo para poder avançar, e a mediação é aqui não
apenas como alternativa ao processo, mas como actividade
mediadora dentro do próprio processo, na ajuda, na suspensão
provisória do processo ou na ajuda que se prevê para a audiência
preliminar” (P-6).

1. 7. O defensor do jovem: um avanço

Uma das mais fortes modificações da Lei Tutelar Educativa prendeu-se


com a consagração expressa da participação activa e permanente do defensor
do jovem ao longo de todo o processo. Contrariando a tradição da OTM, que
recusava ao jovem a constituição de advogado e que viu tal recusa ser
sindicada pelo Tribunal Constitucional, a Exposição de Motivos da Proposta de
Lei n.º 266/VII, de 17 de Abril de 1999 reconheceu que “a ausência de defensor
constitui uma lacuna inexplicavelmente persistente na Organização Tutelar de
Menores, apenas compreensível à luz de uma antropologia da família e do
Estado injusta e ultrapassada”. Em conformidade, a Lei n.º 166/99, de 14 de
Setembro, passou a prever expressamente, não só a possibilidade de “o
menor, os pais, o representante legal ou a pessoa que tenha a guarda de
facto”, em qualquer fase do processo, constituírem ou requererem a nomeação
de advogado (artigo 46.º, n.º 1), como também a obrigatoriedade da sua
nomeação pela autoridade judiciária, quando tal não tenha ocorrido antes, no
despacho em que determine a audição ou detenção do jovem (artigo 46.º, n.º
2).

Da investigação levada a cabo ressaltou passividade na actuação dos


defensores dos jovens nos processos tutelares educativos. Apesar de, de uma
maneira geral, a possibilidade de intervenção de um defensor do jovem no
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 349

processo ser vista como uma inovação positiva, o grau de intervenção e


participação do mesmo não gera consensos.

Um operador judiciário, reportando-se a esta abertura a uma intervenção


mais activa por parte dos advogados nos processos tutelares de crianças e
jovans, afirma:

“Houve, de facto uma coisa extraordinária, nesta Lei, que foi ver os
Srs. Advogados preocupados com matérias relativas às crianças.
Acho que isso é uma coisa muito boa para o processo. Ver não só
os magistrados, mas também os advogados nos Tribunais de
Menores, foi uma coisa pela qual sempre lutei porque a Lei anterior
muitas vezes não o permitia e, portanto, acho que foi um avanço.
Ouvir o que o menor sente, acho que ele tem o direito à audição” (P-
10).

Um magistrado judicial afirma que uma das ideias que “se podem realçar
e que traduzem uma mais valia face ao sistema anterior”, é a “exigência de
maior intervenção dos advogados no âmbito deste processo, o que se traduz
na atribuição da mais garantias para os menores. Com efeito, para além do
papel do Ministério Público, que tem a dupla função de defesa dos interesses
do Estado e do menor, surge o advogado com o estrito fim de defesa dos
interesses deste último” (P-4).

1. 7. 1. A presença do advogado nas audições: (in)dispensável?

Como se referiu, o jovem é obrigatoriamente acompanhado por advogado


durante a sua audição perante qualquer autoridade judiciária, e, assim,
também, na audição do jovem pelo Ministério Público, depois de aberto o
inquérito (cf. artigo 77.º). Esta imposição legal não é, no entanto, bem acolhida
pela generalidade dos operadores judiciários, que a apelidam de excessiva.
350 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

Um magistrado do Ministério Público, apesar de reconhecer a importância


do defensor na audiência de julgamento, manifesta-se, precisamente, naquele
sentido, afirmando que:

“A presença de advogados, para a audição do menor, é


dispensável. Não traz qualquer mais-valia, pois é feita perante o MP.
Já a presença de advogado na audiência de julgamento é positiva”
(Ent. 22).

Esta mesma opinião é partilhada por um outro magistrado do Ministério


Público que refere:

“A imposição da presença de um defensor (em 99,99% dos casos é


defensor oficioso) é chocante em qualquer audição, é um luxo
asiático e desajustado à nossa realidade, sobretudo sócio-
económica e da tramitação processual. A ideia do legislador é
conferir maior solenidade e reforçar a estrutura acusatória, isto é, o
menor tem de ter um advogado porque o MP já não é o seu
curador...” (Ent. 23).

Para realçar esta ideia, o entrevistado aponta como exemplo


paradigmático da desnecessidade da presença de um advogado na audição
perante o Ministério Público, a situação em que foi denunciado um facto
qualificado como crime de natureza semi-pública (pequenos furtos), em que:

“Geralmente o ofendido não apresenta queixa. Logo, o MP não tem


legitimidade para intervir. Mas, passado pouco tempo, o MP
apercebe-se que aquele jovem continua a praticar aqueles actos
com muita frequência – então, o MP decide chamar o menor,
conversa com ele, acaba por o admoestar. Mas para «pedir» ao
menor para ir ao Tribunal, o MP tem que pedir à Ordem dos
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 351

Advogados para nomear um advogado. O advogado depois vem,


está presente, porém não faz nada (nem pode fazer). Por esse acto,
o defensor, caso não seja estagiário, recebe cerca de € 100 ou mais”
(Ent. 23).

Por outro lado, o mesmo entrevistado entende que “logo que é requerida
a abertura da fase jurisdicional ou quando o MP está a encaminhar o processo
para internamento, aí sim, é compreensível a presença de advogado”,
acrescentando que, “por vezes, o advogado desempenha quase o papel de pai
ou de mãe do menor” (Ent. 23).

Em sentido diferente, um outro magistrado do Ministério Público entende


que tais garantias são inevitáveis, afirmando que:

“Pode-nos parecer, por exemplo, que para aplicar uma admoestação


a um menor não é necessário a intervenção de advogado. «É
preciso um defensor? Então mas não está lá o Juiz que é uma
pessoa de bom-senso, não está um Magistrado do Ministério Público
que é uma pessoa de bom-senso, é preciso também um defensor
para aplicar uma admoestação?» Mas, também se compreende,
porque é uma medida tutelar e, portanto, há os direitos e garantias”
(Ent. 11).

1. 7. 2. A formação dos advogados: também, ainda, os


primeiros passos

Como já deixámos dito, a nova legislação realçou a importância da


presença e acompanhamento por um defensor, determinando a sua especial
qualificação para intervir nestes actos. Assim, a nomeação recai
preferencialmente sobre advogado “com formação especializada, segundo lista
a elaborar pela Ordem dos Advogados” ou, “quando não seja possível,
352 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

advogado estagiário” (artigo 46.º, n.ºs 4 e 5 da LTE). Segundo Anabela


Rodrigues e Duarte-Fonseca (2003: 147), “assegura-se o princípio da defesa
técnica (…), numa clara preocupação de uma defesa eficaz dos direitos em
causa”.

A necessidade de formação específica nesta área do direito é, também,


apontada por alguns magistrados como fundamental devido às especificidades
da sua actuação:

“Assim como deve haver magistrados especializados nestas áreas,


também tem de haver advogados especializados, porque se vem
para esta área um advogado do cambão, aquilo que faz no Processo
Penal faz aqui e isso então vai deturpar a filosofia da Lei” (Ent. 11).

Realçando a falta de formação dos advogados, eis o depoimento de um


operador:

“(…) foi bastante bom (…) ter uma sala cheia de advogados e no fim
fui inundado de dúvidas que os advogados têm todos os dias ao
serem confrontados com o processo. Sedentos, porque realmente é
uma área que não está trabalhada. Era bom que, de facto, houvesse
uma especialização na nomeação dos defensores oficiosos e dos
patronos. A Lei diz que deve existir uma lista, mas claro que isso irá
mexer com o Estatuto da Ordem dos Advogados que cada vez
trabalha menos a especialização.

(…) É interessante ver que são sempre os mais novos que vão, por
exemplo, a acções de formação sobre esta matéria no Cestro de
Estudos Judiciários. Eu acho graça porque penso que os grandes
tubarões, peço desculpa do termo, não estão interessados. É desde
logo uma ideia de cultura dizem «Vais tu, é uma Lei nova, estuda-la
melhor». Eu sinceramente agradeço, porque não estão tão viciados
pelos arquétipos dos processos penais e o advogado novo, do
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 353

contacto que vou tendo e do que os meus colegas que estão nos
tribunais dizem, cada vez mais os que aparecem são os mesmos,
especializam-se muito nisto, começam a gostar e ao começar a
gostar começam a trabalhar muito, mas são sempre muitos poucos.
Em Lisboa é o Dr. X, é o Dr. Y, mesmo aqui em Coimbra também
me têm chegado bons ecos, mas é curioso vermos que, a nível do
grande advogado, isto lhe não interessa” (Ent. 25).

A especialização dos advogados é também enfatizada por um advogado


entrevistado, ao afirmar que:

“Não é por acaso que a Lei, e chamo a atenção para o artigo 46.º,
expressamente, refere a necessidade de ao menor ser nomeado um advogado,
ou um advogado estagiário, mas em princípio um advogado, preferencialmente
com formação especializada nesta matéria. (…) a Lei quis que, de facto,
expressamente, o advogado fosse particularmente preparado nesta área
específica” (P-7).

No entanto, este mesmo entrevistado refere que:

“A questão é que a preparação, também já disse isso noutras


circunstâncias, não existe; a Ordem dos Advogados pura e
simplesmente não tem nenhuma preparação. É uma questão que se
tem de corrigir rapidamente porque esse é um aspecto
absolutamente decisivo” (P-7).
354 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

Afirmando ainda:

“Se o advogado tivesse uma intervenção mais activa, se o advogado


cumprisse efectivamente o seu papel, se o advogado tivesse
formação, faria, por certo, a diferença” (P-7).

Segundo o Regulamento Geral de Formação – Regulamento n.º 42-


A/2002 –, aprovado em sessão do Conselho Geral da Ordem dos Advogados
de 25 de Julho de 2002, o estágio de advocacia compreende duas fases: a
fase de formação inicial, que compreende a formação nas áreas de deontologia
profissional, prática processual penal e civil, e a fase complementar (cf. artigo
3.º, n.º 1, e 24, n.º 1, daquele Regulamento).

Nesta fase complementar, os centros distritais de estágio deverão


“promover, em coordenação com os centros de estudos, a realização de
conferências, seminários, colóquios, cursos, visitas de estudo e outras acções
de formação que, pelo seu objecto ou finalidade, se enquadrem nos objectivos
da formação complementar”, bem como “executar os programas temáticos das
acções de formação teórica e prática de natureza complementar que venham a
ser estabelecidos pela CNF [Comissão Nacional de Formação] e promover,
para além deles, os que se lhe afigurarem revestir de interesse relevante” (cf.
artigo 40.º, al. c) e b) do Regulamento Geral da Formação).

Segundo as disposições regulamentares aprovadas em sessão Plenária


do Conselho Geral de 22 de Novembro de 2002, para complemento do
Regulamento Geral da Formação, destinadas a regular a avaliação contínua do
processo de estágio, “cada um dos Conselhos Distritais ou Centros Distritais de
Estágio deverá garantir um programa mínimo de formação complementar a
fixar pela CNF (ouvidos os Conselhos Distritais), ficando desde já estabelecido
que deverão constar de cursos sobre Prática Processual Laboral, Prática
Processual Administrativa, Prática Processual Fiscal, Prática Processual
Contra-Ordenacional e Registos e Notariado” (cf. Regras e procedimentos de
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 355

avaliação do processo de estágio e atribuição da informação final), não


fazendo, assim, qualquer referência à formação no âmbito da Lei Tutelar
Educativa.

Em 16 de Julho de 2004, a Ordem dos Advogados, a Comissão dos


Direitos Humanos da Ordem dos Advogados e o Instituto de Reinserção Social
assinaram um Protocolo de Cooperação, com o objectivo de “estabelecer uma
articulação que garanta uma efectiva intervenção do advogado no âmbito da
aplicação da Lei Tutelar Educativa e o acompanhamento regular dos centros
educativos pela Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados”157.

Segundo aquele Acordo de Cooperação, caberá ao Instituto de


Reinserção Social, nomeadamente “colaborar com a Comissão dos Direitos
Humanos, na prestação de apoio técnico e/ou logístico”; na “realização de
visitas exploratórias programadas no sentido de dar a conhecer, e acompanhar
regularmente, o quotidiano de um Centro Educativo e as condições de vida e
de percurso educacional dos educandos”; bem como na “realização de acções
de sensibilização e formação dirigidas a advogados estagiários e advogados no
âmbito da identificação/caracterização da intervenção do advogado, no âmbito
da Lei Tutelar Educativa” (cf. cláusula 2.ª, n.º 2, al. a) e c)). A Comissão de
Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, por sua vez, obriga-se à “criação
de um pólo de advogados, em regime de voluntariado, que garanta o efectivo
apoio jurídico na aplicação da Lei Tutelar Educativa eventualmente com
recurso ao apoio judiciário” (cf. cláusula 3.ª, n.º 1, al. c)).

1. 7. 3. O papel do defensor: um “papel” ainda em construção

Na Exposição de Motivos da Proposta de Lei que deu origem à Lei Tutelar


Educativa apontam-se como particularidades da defesa em processo tutelar

157
Cf. Ordem dos Advogados 2004. «Acordo de Cooperação entre o Instituto de Reinserção
Social, a Ordem dos Advogados e a Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos
Advogados». http://www.oa.pt/genericos/detalheArtigo.asp?idc=68&ida=22594. Julho de 2004.
356 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

educativo “a de assistir o menor naquilo que é o seu direito irrecusável a opor-


se à imputação do facto”; “assistir o menor perante uma ameaça de intrusão do
Estado que se analisa em dois momentos: o da verificação da necessidade de
medida tutelar e o da determinação da medida”; e, por último, “a função do
defensor não pode deixar de alargar-se ao próprio ambiente familiar porque é
aí que a personalidade do menor se revela ou se oculta e que o facto criminal
se apresentará ou não como determinante”.

Também nesta matéria a opinião dos operadores entrevistados se divide,


não só quanto àquela que deve ser a actuação do advogado no processo, mas
também no que respeita à sua prestação de facto.

Assim, no que diz respeito àquela primeira questão, alguns operadores


entendem que a actuação do defensor do jovem nos processos tutelares
educativos se deve revestir de especiais cautelas, estando-lhe vedada a
utilização de estratégias comummente utilizadas no processo penal.

Um magistrado do Ministério Público interroga-se:

“Qual é a finalidade última desta Lei Tutelar Educativa? É educar o


menor para o Direito. Eu não me parece que educar o menor para o
Direito passe por ele chegar ao primeiro contacto com o Tribunal e ir
mentir sobre aquilo que fez ou que não fez” (Ent. 10).

No mesmo sentido, um advogado entrevistado defende que:

“Uma coisa fundamental nesta Lei foi considerar que o menor é


sujeito processual. Isto é um ponto fundamental e inovador na nova
Lei. Nesta situação, esta é uma coisa em que os meus colegas não
concordam comigo, mas é a minha opinião, (…) o advogado não se
deve cingir àquilo que o próprio menor quer, mas a sua intervenção
deve ter como objectivo precisamente a educação para o direito. O
advogado não deve fazer aquilo que o menor quer. O menor não
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 357

tem noção de que se chegar à Valentim de Carvalho e roubar uns


Cds, local onde há lá tantos, a sua conduta é censurável. E esta
ausência de censurabilidade resulta da falta de interiorização de um
conjunto de valores e normas que estiveram totalmente à margem
do seu precário processo de socialização. O poder distinguir o que é
bom e o que é mau. Não tendo o jovem essa capacidade de
interiorização das normas sociais (se esta lacuna lhe advêm de si
próprio ou da própria sociedade, é um outro problema), não pode ter
noção que a sua conduta é desviante; ele não tem critérios que lhe
permitam distinguir o bem do mal socialmente considerado. O
advogado não pode actuar como se o menor pudera querer desde
que essa actuação seja em sentido contrário à “educação para o
direito”. Cabe ao advogado tentar não fazer o que o menor quer, não
é? Porque é um cliente especial, não é um cliente como outro
qualquer e é essa que o advogado deve ter em mente” (P-8).

Por outro lado, um outro advogado entrevistado afirma:

“A necessidade de comprovação da existência de facto delituoso


para que possa ser aplicada uma medida é algo inovador e
absolutamente essencial. Eu acho que isso ficou claro. Não se pode
criar a ideia, não se pode generalizar a tendência, de que tudo o que
é denunciado se passou efectivamente. E, portanto, eu acho
extraordinariamente grave poder aplicar-se uma pena com base
nessa ideia. E eu digo isto pelo seguinte, ocasionalmente fui
apanhado num Tribunal onde era preciso um defensor para os
menores, (...) e (…) fiquei particularmente sensibilizado para a
questão porque disse ao magistrado: “Bom, primeiro terei de falar
com os menores” porque isso era essencial para saber tudo o que
aconteceu, o que é que eles fizeram, em que circunstâncias é que
as coisas se passaram. Só assim estaria em condições de participar
na diligência. Eu achava que essa minha exigência era natural e
358 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

inquestionável. No entanto, vi que o magistrado ficou um pouco


surpreendido com a minha exigência de falar previamente com os
menores. E constatei que o normal era o magistrado fazer a audição
dos menores sem que o Advogado tivesse falado previamente com
eles. O que é inaceitável” (P-7).

O mesmo entrevistado defende, ainda, que:

“O papel do defensor é muito bem explicitado nesta Lei. E não podia


voltar a manter-se a situação anterior em que o defensor não tinha
papel nenhum. E o defensor é essencial porque educar para o direito
não é uma coisa abstracta. Há muitas maneiras de educar para o
direito e não é, necessariamente, no âmbito deste processo que se
educa para o direito. Ao defensor cabe fazer, em cada caso
concreto, a avaliação correcta dessa questão. Não é acriticamente
que aceita que se aplique uma medida punitiva” (P-7).

No mesmo sentido, um outro operador defende que o jovem é sujeito de


um verdadeiro direito ao silêncio:

“Porque os processos tutelares não podem continuar a alimentar-se


daquilo que hoje se alimentam em 90% dos casos que é da
confissão do menor. O resto das provas quase não existe. E o que
existe é a confissão do menor. (…) E, portanto, (…) muitas vezes
pergunto se ele sabe qual é a consequência jurídica da sua
confissão. E isto tem a ver com direitos dos menores” (P-6).

Relativamente ao direito ao silêncio do jovem, um magistrado judicial


afirma:
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 359

“Creio que nenhum de nós tem uma resposta absoluta sobre isso
porque haverá situações em que o silêncio poderá implicar uma não
procedência do requerimento de abertura da fase jurisdicional e
creio que deixámos, portanto, ali um menor, com fundamento nesse
silêncio, que não foi educado e, provavelmente, irá ter um outro
problema qualquer. Mas haverá situações em que o silêncio possa
ser útil, mesmo em termos de educação para o direito” (P-2).

Um advogado entrevistado defende que, a consideração do jovem como


sujeito processual:

“Vai levar a que haja uma diminuição (…) dos poderes do Ministério
Público que até aí exerciam em relação ao menor. O Ministério
Público deve defender os interesses do Estado e o advogado deve
defender os interesses do menor. Isso implica um maior
acompanhamento, uma intervenção muito maior do advogado em
todo o processo (não só no processo judicial individualizado, mas no
processo de desenvolvimento do menor, no qual, por vezes,
convergem vários processos judiciais)” (P-8).

No entanto, um magistrado do Ministério Público afirma:

“Eu também penso que a intervenção dos advogados nos processos


não se deve cingir ao que o menor quer, deve sim adoptar uma
estratégia que também ajude a educá-lo para o direito. Obviamente
que isto é o que toda a gente quer, portanto, aqui, há uma
complementaridade de funções. Eu sou Procurador da República no
Tribunal de Família e Menores de ... e o que tenho notado, da parte
de alguns advogados, é o propósito, justamente, de levar isso à
prática, quer dizer, colaborarem com o próprio Ministério Público. E
penso que há aqui uma diferença essencial em relação ao que
360 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

acontece no processo penal. No processo penal, obviamente, que o


papel do advogado é o de defender os interesses do seu cliente e os
interesses do seu cliente, se for acusado num processo crime, é,
obviamente, ser absolvido. No processo de menores, não é bem
assim, porque as medidas que lhe são aplicadas não são para o
castigar, mas são para o ajudar um pouco a inserir-se mais tarde na
sociedade como um membro útil. Portanto, se calhar aqui, aquela
divergência de posições que possam existir no processo penal é
muito mais esbatida” (P-9).

Segundo um outro entrevistado, no que diz respeito a esta questão da:

“Convergência ou divergência de posições no processo dos vários


intervenientes e, designadamente, do Ministério Público (…), não
podemos transpor para aqui a lógica do processo de partes ou a
lógica do processo penal acusatório, digamos assim, na perspectiva
mais pura e dura. Mas, há, (…) algumas coisas do processo penal,
daquilo que tem a ver com garantias processuais que não se podem
esquecer. Eu diria o Ministério Público também deve acima de tudo
nortear-se pelo interesse do menor, assim como, o advogado, mas o
Ministério Público ficou, no âmbito do processo tutelar educativo,
com uma outra responsabilidade que, às vezes, na minha
perspectiva e em casos concretos (…) colocar-se algumas reservas,
que é a questão de fazer a prova do delito. E ao apresentar a prova
do delito (…) até que ponto isso não precisa, na minha perspectiva,
que uma outra pessoa seja a intérprete mais próxima daquilo que
são os interesses do menor e que é o advogado. E, portanto, eu
diria, nesta matéria, temos muito a caminhar, temos três anos, acho
que já se fez muito mas temos muito a caminhar” (P-6).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 361

De acordo com um magistrado do Ministério Público, a presença de um


advogado reveste-se de uma vantagem essencial:

“É que o menor vê o advogado como um amigo, e se não vê, devia


ver, e vê o Ministério Público e o juiz como pessoas que estão ali
noutra posição. De modo que se o próprio advogado o aconselha
num determinado sentido que também vai, enfim, no sentido da
educação para o direito, o menor se calhar confia. Imaginem
situações que acontecem em que os menores cometem
determinados delitos, instigados, manipulados por adultos. Se o
menor chega acolá e vê um magistrado do Ministério Público a
tentar que ele, no fundo, se defenda, acusando-o de um facto de que
é verdadeiramente responsável, ele desconfia, ele acha que se está
a tentar «apanhá-lo». Se o próprio advogado o aconselha nesse
sentido, o menor se calhar é capaz de dizer a verdade toda e isso
permite que ele seja ajudado” (P-9).

Para um outro magistrado judicial:

“(…) eu acho que, como temos a necessidade de apuramento da


verdade dos factos, de saber se houve ou não facto típico
caracterizado como crime, é necessário o trabalho do profissional do
foro para discutir as causas de exclusão, para tentar, pelo menos,
dirimir o mais possível a sua responsabilização no caso. Como se
sabe, há uma cultura ancestral de que o Ministério Público tem o
monopólio da representação dos menores: «Somos nós que
representamos, somos nós que sabemos o que é que é melhor em
termos estatutários» e sabemos que, nesta Lei, precisamos de o
educar para o Direito. Agora, como há várias pessoas a tentar opinar
sobre o que é que é melhor no caso concreto, como é que o vamos
educar da melhor maneira possível para o Direito, o Ministério
Público opina de uma determinada maneira e até no requerimento
362 Capítulo VI – Análise do discurso dos actores judiciais

para abertura da fase jurisdicional ou na aplicação de uma


suspensão avança com uma determinada medida, com uma
determinada sugestão. Por sua vez, o advogado pode pensar outra
coisa, pode entender que o melhor para ele é outra coisa e aí pode
haver um conflito de «titãs» que pode ser perturbante,
eventualmente, para o Ministério Público, mas eu acho que cada um
tem o seu papel no caso concreto.

Ainda há pouco tempo num colóquio que fizemos no âmbito do


Congresso da Justiça sobre família e menores, em Aveiro, apareceu
uma senhora advogada a defender que o Ministério Público é
história em relação à defesa do menor numa LTE, que é o advogado
que deve intervir. O papel do Ministério Público enquanto
representante do supremo interesse da criança deve passar à
história, o que provocou a revolta dos senhores magistrados do
Ministério Público presentes na sala” (Ent. 25).

1. 7. 4. A prestação ou a passividade dos defensores no


processo

Como resulta dos vários intervenientes acima referidos, a avaliação que


os actores do processo tutelar educativo fazem da prestação de facto dos
defensores nomeados e dos advogados constituídos nos processos tutelares
educativos também não gera consenso, sendo, para a maioria dos
entrevistados, uma prestação pouco eficiente.

Por exemplo, para um magistrado do Ministério Público, apesar de


considerar que “os estagiários de advocacia mais novos contactam com os
menores” e que “os advogados jovens, estagiários, são interessados e
dedicados aos menores”, afirma que “depois a intervenção no processo é nula.
Apenas por vezes dão algumas pistas de orientação ao menor” (Ent. 46).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 363

Para um magistrado judicial, “é importante a presença de um advogado –


idóneo – até por uma função pedagógica”. No entanto, “o advogado é muito
passivo no PTE. É quase invisível (…) Normalmente é um oficioso que mais
valia não estar ninguém. O problema está no mau funcionamento da função”
(Ent. 42).
Capítulo VII

As medidas tutelares não institucionais: as dificuldades em


encontrar respostas adequadas

Introdução

Como já referimos no Capítulo I, o fenómeno da delinquência juvenil está,


na maioria das situações, directamente relacionado com factores que se
prendem com o próprio contexto sócio-familiar e económico do jovem. Nesse
sentido, alguns autores têm vindo a defender que qualquer resposta à
delinquência juvenil, quer na área da prevenção, quer na área do controlo
social, deve ser integrada, envolvendo vários sectores da comunidade, e em
estreita articulação com políticas sociais, de juventude, de educação e
formação, de desenvolvimento urbano, entre outras. Atentos a esta corrente,
muitos países têm vindo a introduzir alterações no âmbito do direito de
menores, adoptando medidas que pressuponham uma componente
pedagógica, reparadora e reintegradora158. No contexto da União Europeia,
embora haja uma grande diversidade de tendências e reformas, há uma
tendência comum no sentido da adopção de medidas de conteúdo reparador,
do ofendido e da comunidade, e de conteúdo educativo, aplicando-se as
medidas detentivas apenas nos casos mais graves.

Entre nós, com a entrada em vigor da Lei Tutelar Educativa, surgiu um


novo paradigma da justiça juvenil assente na educação para o direito. Este
novo paradigma obrigou a uma adaptação da intervenção, não só dos tribunais,
como das diversas instituições envolvidas, quer na fase da aplicação, quer na
fase da execução das medidas. De entre essas instituições, destacam-se os
serviços do Instituto de Reinserção Social (IRS), aos quais a lei atribui um

158
Foi assim, por exemplo, na Bélgica, Canadá e Espanha.
366 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

papel fundamental, quer na fase de assessoria técnica aos tribunais, prévia à


aplicação das medidas, quer na fase de execução das medidas.

De acordo com o IRS (2000), a entrada em vigor da Lei Tutelar Educativa


teve de ser acompanhada pela percepção, por parte dos seus serviços, de que
se estava a iniciar um processo de transição, sendo necessário “fazer opções
quanto à gestão dos recursos disponíveis”. Considera-se, contudo, que a LTE
demonstra que não compete apenas ao IRS criar as condições para a
execução de todas as reacções previstas na lei, pois outras entidades, públicas
e privadas, devem também ser envolvidas e encarregues pelos tribunais de
acompanhar e assegurar a execução das medidas tutelares educativas, tanto
mais que é fundamental definir e cumprir os prazos, uma vez que a intervenção
tem limitações temporais.

A par da educação para o direito, a lei consagra como finalidade das


medidas tutelares, a inserção do jovem na comunidade, devendo o IRS orientar
a sua actuação de acordo com este princípio, não só no apoio técnico às
decisões judiciárias, como também, e sobretudo, na concretização das
actividades a desenvolver no âmbito da execução das medidas tutelares. É,
aliás, com aquela finalidade de inserção que alguns autores defendem a opção
preferencial pela não institucionalização dos jovens sujeitos a medidas
tutelares.

1. As medidas não institucionais na LTE e as funções do Instituto de


Reinserção Social

Como já referimos no Capítulo IV, a Lei Tutelar Educativa apresenta um


conjunto de medidas que visam assegurar a educação para o direito e a
integração do jovem na comunidade. Algumas delas são medidas executadas
na comunidade, exigindo a intervenção do IRS.

A LTE prevê, no seu artigo 4.º, a aplicação de medidas tutelares


educativas não institucionais tais como a admoestação, a privação de conduzir
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 367

ciclomotores ou de obter permissão para os conduzir, a reparação ao ofendido,


prestações económicas ou tarefas a favor da comunidade, a imposição de
regras de conduta, a imposição de obrigações, a frequência de programas
formativos e o acompanhamento educativo.

No que se refere à execução destas medidas, a lei é clara apenas em


relação à medida de acompanhamento educativo, sublinhando que “compete
aos serviços de reinserção social supervisionar, orientar, acompanhar e apoiar
o menor durante a execução do projecto educativo pessoal” (artigo 16.º, n.º 4,
da LTE). Embora no que respeita à execução das restantes medidas não
institucionais, a lei não indique expressamente uma identidade para
acompanhar esta execução, na prática, e tendo em conta as entrevistas
realizadas, essa tarefa é solicitada ao IRS, ainda que em articulação com
outras entidades, nomeadamente na realização de tarefas a favor da
comunidade, na imposição de obrigações e na frequência de programas
formativos. Em relação a estas medidas é frequente, para além do
acompanhamento da execução da medida e da articulação com as entidades e
instituições envolvidas, as equipas do IRS possuírem uma lista de Entidades
Beneficiárias de Trabalho (EBTs), bem como de programas formativos,
disponibilizados por entidades públicas e privadas, com indicação dos
respectivos horários, condições de frequência, vagas existentes, etc.

É, também, frequente ser solicitado ao IRS que acompanhe a execução


da medida de reparação ao ofendido na modalidade de realização, em
benefício do ofendido, de uma actividade que se conexione com o dano sofrido.
As restantes medidas, tais como a admoestação, a reparação ao ofendido nas
suas restantes modalidades, a imposição de regras de conduta e as prestações
económicas não são, por norma, pelo que nos foi dito, acompanhadas pelo
IRS, uma vez que ou são de execução imediata (caso da admoestação ou do
pedido de desculpas ao ofendido), ou são de difícil avaliação da sua eficácia
por parte do IRS (caso da imposição de regras de conduta).
368 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

1. 1. Admoestação

Como já foi referido no Capítulo IV, a admoestação consiste na


repreensão solene feita pelo juiz, na presença do defensor e do MP, ao jovem.
De acordo com o artigo 9.º da LTE, essa repreensão deve passar por uma
explicação do carácter ilícito da conduta do jovem, bem como as suas
consequências, referindo-lhe que deve adequar o seu comportamento às
normas e valores jurídicos.

De acordo com informação prestada pelo IRS (2001b), a admoestação


parece ser a medida indicada para factos de pouca gravidade em que a
necessidade de educação para o direito não precisa de ser satisfeita através da
aplicação das restantes medidas, mas, existindo, pode ser colmatada com um
mera repreensão.

A intervenção do IRS na execução desta medida é praticamente


inexistente, uma vez que é uma medida de execução imediata.

1. 2. Privação do direito de conduzir

A medida tutelar educativa de privação do direito de conduzir ciclomotores


ou de obter permissão para conduzir ciclomotores pode ser aplicada por um
período mínimo de 1 mês e máximo de 1 ano (artigo 10.º).

A privação do direito de conduzir ciclomotores ou de obter permissão para


os conduzir parece ser, na opinião do IRS (2001b), a mais indicada para factos
de pouca gravidade em que o jovem conduza ciclomotores sem licença ou sob
o efeito de substâncias tóxicas ou os utilize para a prática de factos
qualificados pela lei como crime.

Também nesta medida a intervenção do IRS é mínima, já que esta terá


de ser, em regra, acompanhada pelos responsáveis pelo jovem, bem como
pela força policial.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 369

1. 3. Reparação ao ofendido

A medida tutelar educativa de reparação ao ofendido pode revestir a


modalidade de apresentação de desculpas; compensação económica, total ou
parcial, pelo dano patrimonial que o ofendido sofreu; e realização, em benefício
do ofendido, de uma actividade ligada ao dano sofrido.

De acordo com o artigo 11.º da LTE, a primeira modalidade pode assumir


uma das seguintes duas formas: (1) o jovem manifestar, na presença do juiz e
do ofendido, a intenção de não repetir actos semelhantes; (2) agir
simbolicamente de forma que mostre arrependimento pelo acto cometido.

O pagamento da compensação económica pode ser efectuado em


prestações, devendo o juiz atender às disponibilidades económicas do jovem.

A terceira modalidade – actividade exercida em benefício do ofendido –


não pode ocupar mais de dois dias por semana e três horas por dia, devendo
ter em consideração o período de repouso do jovem e o seu horário escolar.
Esta actividade tem a duração máxima de doze horas.

A reparação ao ofendido é uma medida mais indicada para factos de


pouca gravidade (até 3 anos de prisão) que se traduzam em ofensa moral ou
patrimonial a alguém (pessoa singular ou colectiva privada) facilmente
identificável (IRS, 2001b).

Na prática, o IRS pode ter uma maior intervenção nesta última


modalidade, servindo de mediador entre o jovem, o Tribunal e o ofendido
durante a execução da medida. Ainda assim, a curta duração da medida e a
sua baixa aplicação leva a que sejam reduzidos os casos de medidas de
reparação ao ofendido acompanhados pelo IRS.
370 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

1. 4. Imposição de regras de conduta

A medida tutelar educativa de imposição de regras de conduta procura


criar ou fortalecer as condições para que o jovem se comporte de forma
adequada às normas e valores essenciais da vida em comunidade. A lei
estabelece, de forma exemplificativa, algumas das regras de conduta que o
Tribunal pode impor: não frequentar certos meios, locais ou espectáculos; não
acompanhar determinadas pessoas; não consumir bebidas alcoólicas; não
frequentar certos grupos ou associações; e não ter em seu poder certos
objectos. Tais regras podem ser aplicadas por um período máximo de dois
anos.

Segundo o IRS (2001b), a medida de imposição de regras de conduta é


indicada para factos de pouca gravidade que se encontram associados à
influência exercida no jovem por pessoas, grupos ou produtos. Como já
referimos, esta é uma medida cuja execução depende, sobretudo, das pessoas
responsáveis pelo jovem, pelo que o IRS intervém pouco na sua execução.

1. 5. Frequência de programas formativos

A medida tutelar educativa de frequência de programas formativos visa a


participação do jovem em programas de ocupação de tempos livres; educação
sexual; educação rodoviária; orientação psicopedagógica; despiste e
orientação profissional; aquisição de competências pessoais e sociais; e em
programas desportivos.

A frequência de programas formativos parece indicada para factos de


alguma gravidade que se encontrem associados a carências colmatáveis por
estes programas e desde que tais programas exijam um controle de frequência
e aproveitamento rigoroso e estreito (IRS, 2001b).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 371

Como já referimos, os tribunais solicitam, frequentemente, ao IRS que


seleccione o curso formativo a ser frequentado pelo jovem e que zele pela sua
assiduidade, transmitindo informações regulares ao Tribunal.

1. 6. Imposição de obrigações

A medida tutelar de imposição de obrigações tem como objectivo


sedimentar o percurso escolar ou de formação profissional do jovem, bem
como fortalecer as condições psicobiológicas necessárias ao desenvolvimento
da sua personalidade. Entre as obrigações impostas podemos encontrar a
obrigação de frequentar um estabelecimento de ensino, com controlo de
assiduidade e frequência; um centro de formação profissional, ou seguir uma
formação profissional; sessões de orientação em instituição psicopedagógica e
seguir as orientações que lhe forem prescritas; praticar actividades em clubes
ou associações juvenis; e submeter-se a programas médicos (por exemplo,
médico psiquiátrico) para tratar casos de habituação alcoólica, consumo
habitual de estupefacientes, doença infecto-contagiosa ou sexualmente
transmissível e anomalia psíquica.

A imposição de obrigações é, de acordo com o IRS (2001b), adequada


para factos de alguma gravidade que se encontrem associados a situações
estáveis da situação do jovem no seu meio, como seja a falta de escolaridade,
de formação profissional e de ocupação dos tempos livres e com dependências
ou doenças do foro físico ou psíquico.

Os dados fornecidos pelo IRS, que veremos mais adiante, mostram que
são vários os casos de medidas de imposição de obrigações acompanhados
pelas equipas do IRS. Pelo que nos foi dito, nesse acompanhamento as
equipas tentam que o jovem cumpra as obrigações impostas, assumindo,
também, a articulação entre o jovem, a sua família e a escola ou entidade
formadora.
372 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

1. 7. Prestações económicas ou tarefas a favor da comunidade

A medida de tarefas a favor da comunidade conheceu uma maior


concretização nos anos setenta, através dos programas experimentados no
Canadá e nos EUA, tendo tido, nos anos oitenta e noventa, um progressivo
desenvolvimento na Europa.

Em Portugal, o antecedente histórico desta medida, no âmbito do direito


de menores, pode ser encontrado no artigo 23.º da OTM, sobre imposição de
condutas ou deveres, em especial no seu n.º 2 que refere que esta imposição
pode apresentar a modalidade de “exercício de actividade de carácter e
interesse social, segundo forma e duração que o juiz estabelecerá”.

A LTE consagra no seu artigo 12.º a medida de prestações económicas


ou tarefas a favor da comunidade (TFC), que “consiste em o menor entregar
uma determinada quantia ou exercer actividade em benefício de entidade,
pública ou privada, de fim não lucrativo”. A actividade exercida tem a duração
máxima de 60 horas, não podendo exceder os 3 meses. Embora o objectivo
geral desta medida seja, tal como o das restantes medidas tutelares
educativas, educar o jovem para o direito e a sua inserção, de forma digna e
responsável, na vida em comunidade (artigo 2.º, da LTE), ela pretende também
responsabilizar o jovem pelo facto cometido e pelas suas consequências;
possibilitar a realização de uma tarefa útil para a comunidade; reparar, de
forma simbólica, o dano provocado; e fazer compreender ao jovem o sentido e
a utilidade das tarefas para a comunidade. Esta medida, assente no princípio
da reparação, indirecta ou simbólica, “constitui uma resposta judiciária hábil e
flexível que permite evitar o sentimento de impunidade, muitas vezes
decorrente do uso excessivo da admoestação, sentido pela sociedade civil e
tão veiculado pelos órgãos de comunicação social, evitando também o recurso
a outras medidas conducentes ao afastamento do menor do seu meio social e
à institucionalização” (IRS, 2001c).

Para além disso, são atribuídas às TFC um conjunto de vantagens:


fomentam um discurso mais efectivo de responsabilidade e de respeito pelos
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 373

outros; favorecem atitudes de reparação simbólica, que envolvem o jovem na


prestação de uma tarefa útil para a sociedade; contribuem para a alteração de
preconceitos criados sobre o delinquente juvenil; aumentam o sentimento de
que as comunidades locais participam activamente na gestão do crime;
favorecem a resolução de conflitos de pequena e média gravidade na fase pré-
sentencial; contribuem para reduzir a institucionalização; contribuem para dar
sentido à perspectiva da “justiça de proximidade”; representam um factor de
inserção social dos jovens no meio local, uma vez que favorecem a aquisição
de valores e de estratégias de integração social; e correspondem ao próprio
sentimento dos jovens quanto ao modo como os seus actos devem ser
reprovados e reparados, sobretudo nos casos em que o jovem dispõe de uma
estrutura sócio-familiar e pessoal mais consistente (IRS, 2001c).

De acordo com o IRS, esta medida tutelar é particularmente adequada


para jovens infractores que não revelem necessidades de educação para o
direito significativas; para práticas delinquentes ocasionais; para ofensas
patrimoniais e morais de reduzida gravidade; quando o jovem reconhece os
interesses lesados e demonstra vontade em concretizar uma acção de
reparação; quando o jovem revela défices de competências pessoais e sociais;
quando o jovem não tem rotinas desajustadas; quando as suas condições
sócio-educativas forem minimamente estruturadas; e quando houver
consciência por parte da família quanto aos objectivos a atingir com a medida.

Como já referimos, na decisão, o Tribunal fixa a entidade encarregada de


acompanhar e assegurar a execução da medida aplicada, podendo encarregar
essa mesma execução a um serviço público, instituição de solidariedade social,
organização não governamental, associação, clube desportivo, ou qualquer
outra entidade pública ou privada, ou mesmo uma pessoa, a título individual
(artigo 130.º da LTE). Deste artigo resulta que as entidades beneficiárias das
tarefas (EBTs) são, também, as preferencialmente escolhidas para
acompanhar e assegurar a execução da medida. No entanto, e como é referido
no artigo 141.º da LTE, o Tribunal pode atribuir aos serviços de reinserção
social a função “de acompanhar a execução da medida sempre que esse
374 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

acompanhamento não possa ser adequadamente assegurado pela entidade


destinatária da prestação ou da tarefa”.

Como nos foi dito por parte do IRS, sempre que este acompanha a
execução de uma medida de tarefas a favor da comunidade, o técnico
responsável pelo processo assume não só a função de mediador entre o
Tribunal e as EBTs, indicando e assegurando as colocações dos jovens, como
também procura controlar a execução, visando um acompanhamento
pedagógico tendo em conta as especificidades e expectativas do jovem e as
suas necessidades de educação para o direito.

Pode dizer-se que o papel do IRS na execução das TFC, inicia-se, desde
logo, no apoio à decisão judicial, quando se determina a forma da prestação
(IRS, 2001c). Esse apoio é fornecido mediante a elaboração do relatório social
que é entregue ao Ministério Público e ao juiz e onde constam informações
relativas ao contexto sócio-familiar do jovem, o seu percurso escolar e/ou
profissional e a contextualização da prática dos factos ilícitos, entre outras
informações consideradas relevantes. Nesse relatório é, frequentemente,
apresentada uma proposta de medida tutelar que se mostre adequada e que
represente a menor limitação na condução de vida do jovem. Para a realização
deste relatório, a equipa do IRS elabora um dossier individual do jovem que lhe
permite, então, perceber o seu percurso e recolher elementos para a avaliação
da sua situação pessoal e familiar.

Seguem-se as primeiras entrevistas com o jovem e com o seu


responsável. Com esta(s) entrevista(s) pretende-se, não só avaliar as
competências do jovem de forma a seleccionar as tarefas que se revelem mais
adequadas, como também conhecer a disponibilidade do jovem e as suas
preferências com vista à escolha da actividade mais adequada no respeito pela
sua situação escolar e/ou laboral, de forma a não prejudicar as suas
actividades quotidianas. Para além destas informações, é necessário trabalhar
a motivação e adesão do jovem, bem como o envolvimento dos seus pais (ou
representante legal), para que a medida TFC seja concretizada com sucesso.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 375

Procede-se, de seguida, à selecção da entidade beneficiária da tarefa


(EBT), pública ou privada de fim não lucrativo, e à escolha das actividades e
dos horários.

Ao seleccionar-se a EBT devem privilegiar-se aquelas que tenham


implementação no meio social do jovem e as que ofereçam actividades
compatíveis com as suas características, interesses e carências educativas
evidenciadas no facto ilícito praticado. Para além disso, “para uma eficaz
articulação entre o Instituto e a EBT é de extrema importância que estas
beneficiem de adequado apoio institucional, especialmente quando as mesmas
não disponham de um quadro técnico suficiente e/ou devidamente organizado,
para acompanhar a execução das TFC” (IRS, 2001c: 31). Alguns exemplos de
TFC são: o acompanhamento de idosos, pessoas carenciadas ou deficientes
em actividades de lazer, instituições, etc; a participação em tarefas ligadas à
protecção da natureza; a limpeza de grafities; a participação em tarefas ligadas
à reparação de danos causados por actos de vandalismo; a participação em
tarefas de jardinagem, tratamento e manutenção de espaços verdes e de lazer;
a participação em tarefas ligadas a projectos locais promovidos por
associações juvenis; e a participação em tarefas desenvolvidas pelo sector do
voluntariado (por exemplo, visitas a hospitais, prisões, etc.). Para tal, existe
uma bolsa de entidades beneficiárias das tarefas onde estão incluídas,
segundo informação prestada pelo IRS, algumas entidades como o Instituto
Português da Juventude, escolas, estabelecimentos de ensino pré-escolar,
empresas públicas, centros de saúde, centros de emprego e formação
profissional, câmaras municipais, misericórdias, delegações da Cruz Vermelha
Portuguesa, centros comunitários e sociais, centros sociais e paroquiais,
bombeiros, Prevenção Rodoviária e associações ambientalistas, juvenis,
recreativas, etc.

De acordo com o IRS, cabe ao Técnico de Reinserção Social (TRS)


estabelecer um contacto com a possível EBT de modo a reunir as informações
que lhe permitam avaliar as condições de execução e ver se, de facto, a
376 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

entidade pode acolher o jovem e quais as possibilidades de acompanhamento


e supervisão da tarefa (IRS, 2001c).

Posteriormente, procede-se a uma segunda entrevista com o jovem e


com o responsável pelo poder paternal. Nesta entrevista dá-se conhecimento
ao jovem e aos seus progenitores/ responsável, da EBT seleccionada, do tipo
de tarefa a desempenhar, horários e outros aspectos práticos para a sua
realização (por exemplo, gestão de atrasos, faltas, pedido de alteração de
horários, etc.) e o nome do supervisor designado pela entidade, explicitando-se
o conteúdo da “Carta de Direitos e Deveres do Prestador de Tarefas a Favor da
Comunidade”, elaborada pelo IRS. Nesta entrevista deve-se obter a aceitação
do jovem (por escrito) e, na medida do possível, a concordância dos
responsáveis pelo poder paternal.

O TRS responsável pela execução da medida envia ao Tribunal o


relatório de aplicação, com o plano de tarefas159.

No que respeita propriamente à execução, pode dizer-se que esta fase se


inicia com a apresentação do jovem na EBT. Na data determinada para o início
da execução da medida, o TRS deverá acompanhar o jovem ao local onde
aquela irá decorrer, apresentá-lo ao supervisor e certificar-se das condições em
que o jovem vai desenvolver a actividade. O TRS deve, ainda, esclarecer o
jovem e a EBT dos aspectos práticos inerentes à execução da medida como,
por exemplo, faltas e alterações de horários.

O TRS informa o supervisor que manterá contactos periódicos (contactos


telefónicos regulares e visitas ao local) com a EBT. Fornece também ao
supervisor a folha do relatório de execução, na qual o supervisor registará as
presenças, comportamento e motivação do jovem na realização das tarefas.

159
É importante referir que para a obtenção dos elementos necessários à concreta
determinação da tarefa, o Tribunal pode solicitar ao IRS a informação que considere
necessária, antes da tomada de decisão.
Mas, o IRS também pode definir a forma de prestação de tarefas em momento posterior à
decisão judicial, por iniciativa do Tribunal, dando a conhecer àquele o processo de colocação
do menor.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 377

Cabe também ao IRS, sempre que tal seja indicado pelo Tribunal,
proceder à avaliação da execução da medida, informando o Tribunal através de
relatórios de execução. Para tal, o TRS vai mantendo contactos periódicos com
o jovem, a sua família e com a EBT.

Antes de proceder à avaliação, o TRS deve reunir com o Supervisor, com


o jovem e com o responsável pelo exercício do poder paternal. Na avaliação
deve ser considerada a qualidade do desempenho da tarefa, a assiduidade e a
pontualidade, a adaptação às regras, o relacionamento e integração do jovem
na EBT, a forma como aquele percepcionou a realização da tarefa e também a
reacção da entidade, entre outros aspectos relevantes. É, também, importante
e frequente, proceder-se a esta avaliação em conjunto com os responsáveis
pelo jovem.

Feita a avaliação, é elaborado um relatório de execução e enviado para o


Tribunal160.

1. 8. A Medida de Acompanhamento Educativo

A medida de acompanhamento educativo é uma medida não institucional


que consiste “na execução de um projecto educativo pessoal que abranja as
áreas de intervenção fixadas pelo Tribunal” (artigo 16.º, n.º 1, da LTE). Tem a
duração mínima de 3 meses e máxima de 2 anos.

Na opinião do IRS (2001b), a medida de acompanhamento educativo é


indicada para factos muito graves, devendo ser proposta apenas quando há
razões para crer que se torna desnecessário ou contraproducente retirar o
jovem do seu ambiente sócio-familiar com uma medida tutelar institucional de
internamento em Centro Educativo.

160
Pode haver a elaboração de relatório intermédio com vista à revisão da medida.
378 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

Esta é a única medida tutelar não institucional cuja execução é da


competência exclusiva do IRS (artigo 16.º, n.º 4, da LTE), a quem compete não
só elaborar o projecto educativo pessoal do jovem (PEP), como também
supervisionar e acompanhar o jovem na sua execução.

De acordo com informação prestada pelo IRS (2003d), a intervenção do


IRS na aplicação da medida tutelar de acompanhamento educativo
desenvolve-se em 3 fases (Quadro VII.1).

A primeira fase, desdobrada em três sessões, consiste na elaboração de


um projecto educativo pessoal (PEP). Na primeira sessão, faz-se o acolhimento
do jovem, dá-se informação sobre as regras e os limites da medida tutelar de
acompanhamento educativo e procede-se a uma actualização do diagnóstico
efectuado em sede de relatório social. Na segunda sessão, estrutura-se o PEP
em conjunto com o jovem. O PEP será organizado em função do diagnóstico
realizado, mas também terá necessariamente que ter em conta as áreas de
intervenção fixadas pelo Tribunal, bem como a duração da medida. Contudo,
de acordo com a mesma fonte, a definição pormenorizada de objectivos pelo
jovem e a sua operacionalização só são esperáveis na segunda fase, isto é,
em plena fase de execução do PEP, pelo que o PEP que será enviado ao
Tribunal revestir-se-á de características genéricas e abrangentes. Na terceira
sessão, finaliza-se o PEP e envia-se o mesmo para o Tribunal para
homologação.

Ainda durante a primeira fase deve-se procurar envolver não só o jovem,


como também o seu progenitor ou alguém que seja seu responsável.
Considera-se, também, conveniente proceder à realização de contactos com
outros serviços a envolver ao longo da execução.

A segunda fase, que consiste na execução do PEP, é desenvolvida de


acordo com uma estrutura modular de intervenção constituída por três módulos
de execução. O Módulo I (Comportamento Delituoso) tem uma aplicação
genérica e está orientado para o desenvolvimento do raciocínio moral. Visa
dotar o jovem de um conjunto de competências de descentração e
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 379

comunicação, procurando que o jovem reconheça que os factos que


determinaram a aplicação da medida constituem para si um problema,
compreenda as suas motivações para os factos, conheça os seus próprios
limites, se coloque no lugar da vítima, etc.. Neste módulo apela-se, igualmente,
à definição, por parte do jovem, de um conjunto de objectivos mínimos para a
regularização das suas rotinas diárias (IRS, 2003d).

O Módulo II (Treino de competências específicas) está orientado para o


desenvolvimento de competências de resolução de problemas e de auto-
controlo, integrando, igualmente, a regularização de rotinas (idem).

Finalmente, o Módulo III, (Competências Vivenciais: consolidação da


estruturação do quotidiano), a ser aplicado na fase final da medida, também de
orientação genérica, é orientado para a consolidação de objectivos, de um
projecto de vida (ibidem).

Nestas fases, o IRS procura envolver não só o jovem, mas também a sua
família e a escola ou entidades formativas, uma vez que também estas são
instâncias importantes de socialização e de controlo social.

Ainda de acordo com o IRS, o envolvimento do jovem nestas duas fases


faz-se através da realização de entrevistas motivacionais. Com estas
entrevistas procura-se criar factores de motivação no jovem para a execução
da medida que lhe foi imposta, uma vez que são frequentes os casos em que o
jovem adere de uma forma incipiente à medida, ou se recusa mesmo a
executá-la. A entrevista motivacional tem um estilo de interacção
especificamente desenvolvido para ajudar os jovens a querer mudar e a
envolverem-se num processo de mudança. Os objectivos específicos desta
entrevista são aumentar a auto-estima, a dissonância e a auto-eficácia.

A terceira fase prende-se com a avaliação do PEP que é, no fundo, um


processo contínuo de monitorização. A avaliação pode ser trimestral ou
mensal, em função da duração da medida. Da avaliação periódica do PEP
deve constar um registo das alterações verificadas relativamente aos
380 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

parâmetros da grelha de avaliação utilizada na fase da actualização do


diagnóstico. Quando terminados, os relatórios devem ser enviados para o
Tribunal.

No final da execução da medida há uma avaliação final. Aqui deve


constar um registo das alterações verificadas relativamente aos parâmetros da
grelha de avaliação utilizada na fase de actualização do diagnóstico,
interpretadas em termos do impacto da execução da medida no
comportamento do jovem.

Importa referir, ainda, que, uma vez que este acompanhamento


pressupõe um conjunto de metodologias muito diverso e amplo, defende-se a
especialização do técnico na execução da medida (2 técnicos por equipa,
sempre que possível); a possibilidade de a execução da medida ser efectuada
por dois técnicos (2 TRS ou 1 TRS coadjuvado por 1 TPRS); e a definição de
um número limite de casos em acompanhamento por técnico (IRS, 2003d: 5).

1. 8. 1. Articulação com outras medidas

A medida de acompanhamento educativo pode englobar a imposição de


regras de conduta, obrigações ou frequência de programas formativos (artigo
16.º, n.º 2, LTE). Se o Tribunal não fixar na decisão qual a entidade
encarregada de assegurar a sua execução, deve entender-se que essa tarefa
cabe ao IRS (IRS, 2003d).

Por outro lado, ao jovem pode ser aplicada cumulativamente, por mais do
que um facto, uma medida de acompanhamento educativo e uma qualquer
outra medida não institucional a executar simultamentate. Nesse caso, o IRS,
para além da articulação com o Tribunal, pode articular-se com outras
entidades que assegurem a realização das respectivas acções. Se o
cumprimento de uma outra medida, como, por exemplo, uma medida de
prestação de tarefas a favor da comunidade, for simultâneo à execução de uma
medida de acompanhamento educativo e o Tribunal encarregar outra entidade
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 381

de acompanhar e assegurar a sua execução, ao técnico deve ser dado


conhecimento de todas as acções desenvolvidas pelo jovem no âmbito dessa
outra medida de forma a poder adequar o conteúdo do PEP à execução de
ambas as medidas e não haver sobreposição, inclusive em termos de horários,
entre ambas.

Deste modo, sempre que há necessidade de articulação com outras


estruturas comunitárias, esta deve constar no PEP. No entanto, se até à data
de finalização do PEP não tiver sido possível obter a confirmação da
disponibilidade de colaboração dessa(s) entidade(s), cabe ao IRS efectuar
esforços no sentido de encontrar soluções alternativas, ainda que se continue a
aguardar a colaboração da(s) primeira(s) entidade(s) contactada(s) (idem).

A medida de acompanhamento educativo pode, também, ser articulada,


com uma medida de internamento em centro educativo, quando a revisão desta
última leva à sua substituição. Neste caso, é necessária uma articulação eficaz
entre a equipa do Centro Educativo e a equipa de círculo, designadamente na
preparação da proposta de revisão e na elaboração do PEP (idem: 20-21).

A avaliação da medida, de acordo com os nossos entrevistados, é


progressiva, considerando vários aspectos, nomeadamente, a adesão à
medida, o empenho do jovem na execução da mesma, a sua assiduidade às
reuniões, o cumprimento das tarefas atribuídas, etc.
382 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

Quadro VII.1
Projecto Educativo Pessoal (PEP)
N.º
Fases de intervenção Duração Conteúdo Estratégias
sessões
Familiar
1ª sessão: acolhimento; Envolvência do
informação sobre regras e familiar, ou outro
limites desta medida; elemento
actualização do diagnóstico significativo, que
efectuado em sede de participará na
Diagnóstico/actualização 3 relatório social ou na execução do PEP,
30 dias
e planificação do PEP sessões sequência da revisão de devendo estar
outras medidas. presente na 1ª e 3ª
2ª sessão: estruturação do sessão
PEP em conjunto com o jovem Interinstitucional
3ª sessão: finalização do PEP Individual Contactos/articulação
e sua remessa ao Tribunal. Envolvência com outros serviços
do jovem/ a envolver
Módulo I entrevista Familiar
6
Comportamento Intervenção motivacional Envolvência do
sessões
delituoso de suporte/ familiar, ou outro
Módulo II gestão do elemento
7+6
Competências quotidiano significativo, que
sessões
específicas participará na
Até
Execução do PEP execução do PEP,
2 anos
sempre que
Módulo III
N.º de necessário.
Competências Vivenciais
sessões Interinstitucional
Consolidação da estruturação
a definir Contactos/articulação
do quotidiano
com outros serviços
a envolver
Periódica
- trimestral ou semestral, em função da duração da medida
- Registo das alterações verificadas relativamente aos parâmetros da grelha de avaliação
utilizada na fase da actualização do diagnóstico; elaboração do relatório de avaliação/
execução periódica e sua remessa ao Tribunal.
Avaliação do PEP Final
no termo da medida
registo das alterações verificadas relativamente aos parâmetros da grelha de avaliação
utilizada na fase da actualização de diagnóstico, interpretadas de acordo com o impacto da
execução da medida no comportamento do jovem
elaboração do relatório de avaliação/execução final e remessa ao Tribunal
Fonte:IRS,2003d

2. A revisão das medidas tutelares educativas não institucionais

Como se referiu no Capítulo IV, a revisão da medida pode ser feita


oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, do jovem, dos pais, do
representante legal, de quem tenha a sua guarda de facto ou mediante
proposta dos serviços de reinserção social. Como já vimos, ao contrário da
medida tutelar de internamento, a revisão, a requerimento, das medidas
tutelares pode ter lugar a qualquer altura durante a execução da medida.

Deste modo, se se verificar qualquer circunstância que possa constituir


fundamento de revisão (cf. Capítulo IV), cabe ao TRS elaborar um Relatório de
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 383

Revisão descrevendo pormenorizadamente os factos, avaliando as


consequências dos mesmos na execução da medida e indicado o eventual
grau de responsabilização do jovem na sua ocorrência. Face ao relatório, o
Tribunal pode manter a medida; modificar as suas condições de execução;
substituir a medida por outra, igualmente não institucional, que seja mais
adequada à situação do jovem; reduzir a duração da medida; ou declarar
extinta a medida (artigo138.º, n.º1, da LTE). Se a revisão ocorrer na sequência
de um acto intencional do jovem que inviabilize o cumprimento da medida ou
de uma clara violação dos deveres inerentes ao seu cumprimento, o juiz pode,
ainda, advertir solenemente o jovem para a gravidade da sua conduta e
ordenar o internamento em regime semiaberto, pelo período de um a quatro
fins-de-semana (artigo 138.º, n.º 2, da LTE).

3. As medidas tutelares educativas não institucionais: alguns


indicadores estatísticos

No Capítulo V procedemos a uma análise quantitativa dos dados


referentes à fase jurisdicional do processo tutelar educativo relativo aos jovens
a quem foi aplicada uma medida tutelar. Apresentamos, neste ponto, alguns
indicadores referentes exclusivamente à execução, acompanhada pelo IRS,
das medidas tutelares não institucionais de forma a, posteriormente, podermos
colocar em diálogo os números e as práticas dos operadores por nós ouvidos.
Deste modo, recorremos a dados cedidos pelo IRS para os anos de 2001, 2002
e 2003, referentes às medidas tutelares não institucionais já executadas pelo
IRS e, em 2003, ainda em execução. De salientar que estes dados não
englobam as solicitações dirigidas aos centros educativos que serão
analisadas no Capítulo seguinte.

O Gráfico VII. 1 dá-nos conta do número de medidas tutelares e tutelares


educativas executadas, após solicitação do Tribunal, pelo IRS, em 2001, num
total de 1261.
384 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

Gráfico VII.1
Medidas tutelares educativas não institucionais executadas pelo IRS (2001)

outras medidas

7% 1% 1% 2% Imposição de regras de conduta


6%

acompanhamento educativo

Colocação em família idónea

Colocação em estabelecimento
83% educativo
Colocação em regime de trabalho ou
de aprendizagem

Fonte: Difusão Estatística IRS

Como podemos verificar pelo Gráfico VII.1, as solicitações analisadas


englobam, ainda, medidas tutelares ao abrigo da OTM, e medidas tutelares
educativas. Não nos esqueçamos que foi em Janeiro de 2001 que entrou em
vigor a LTE que ordenou a reclassificação dos processos tutelares pendentes
e, em caso de necessidade, a revisão das medidas aplicadas161. Temos, desta
forma, as seguintes medidas executadas: 1050 de acompanhamento educativo
(83%), 87 de colocação em estabelecimento educativo (7%), 77 de colocação
em família idónea (6%), 21 de imposição de regras de conduta (2%), 16 de
colocação em regime de aprendizagem ou de trabalho (1%) e 10 solicitações
para outras medidas (1 de reparação ao ofendido, 1 de realização de

161
De acordo com a Lei n.º 166/99, de 14 de Setembro (que aprovou a LTE), os processos
tutelares pendentes em 1 de Janeiro de 2001, que tivessem por objecto a prática, por menor
com idade compreendida entre os 12 e os 16 anos, de facto qualificado pela lei como crime,
deveriam ser reclassificados como processos tutelares educativos e as medidas revistas em
caso de necessidade. No caso de medidas de internamento essa revisão era obrigatória (artigo
2.º, n.º 3 e 4, alínea a) e b)). Ao abrigo deste diploma legal, era, ainda, possível aplicar aos
menores com idade compreendida entre os 12 e os 16 anos que tivessem praticado acto
qualificado pela lei penal como crime antes da entrada em vigor da LTE, as medidas tutelares
previstas no artigo 18.º da OTM, com excepção da medida de colocação em instituto médico-
psicológico (artigo 2.º, n.º 6).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 385

prestações económicas, 3 de realização de tarefas a favor da comunidade, 3


de imposição de obrigações e 2 de frequência de programas formativos).

De referir que, em 2001, não foram executadas pelo IRS, 62 medidas por
motivo de ausência, falecimento ou falta de colaboração do jovem, decisão da
entidade solicitante, perda de oportunidade, anulação do registo ou outro
motivo justificado.

O Gráfico VII.2 mostra-nos as execuções de medidas referentes a 2002.

Gráfico VII.2
Medidas tutelares educativas não institucionais executadas pelo IRS (2002)

outras medidas

1% 7% 2% 5% Realização de tarefas a favor da


4% comunidade
Imposição de regras de conduta

Imposição de obrigações

Frequência de programas
81% formativos
acompanhamento educativo

Fonte: Difusão Estatística IRS

Em 2002, O IRS acompanhou a execução de 884 medidas. De acordo


com o Gráfico VII.2, a medida não institucional mais executada pelo IRS a
pedido do Tribunal foi a de acompanhamento educativo, 81% (726), seguida da
realização de tarefas a favor da comunidade, 7%, (64) e da imposição de
obrigações, 5% (42). Estes números, embora provenientes de bases diferentes,
vão ao encontro dos dados fornecidos pelo GPLP e analisados no Capítulo V,
que indicam a medida de acompanhamento educativo como a medida tutelar
educativa não institucional, com excepção da medida de admoestação que tem
uma aplicação imediata, mais aplicada. É, ainda, possível constatar que,
386 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

comparativamente a 2001, houve uma maior diversidade das medidas


executadas, tais como realização de tarefas a favor da comunidade e
imposição de obrigações.

O Gráfico VII.3 distribui-nos estes valores gerais pelas Delegações


Regionais do Instituto de Reinserção Social: Delegação Regional do Centro
(DRC), Delegação Regional de Lisboa e Vale do Tejo (DRLVT), Delegação
Regional do Norte (DRN), Delegação Regional do Sul (DRS) e Açores (DSRS
Açores).

Gráfico VII.3
Medidas tutelares educativas não institucionais executadas pelo IRS, por Direcção
Regional (2002)
400

350

300
Reparação ao ofendido
250 Realização de prestações económicas a favor da comunidade
Realização de tarefas a favor da comunidade
200 Imposição de regras de conduta
Imposição de obrigações
150 Frequência de programas formativos
acompanhamento educativo
100

50

0
DRC DRLVT DRN DRS DSRS Açores

Fonte: Difusão Estatística IRS

Como se pode verificar pelo Gráfico, a medida tutelar de


acompanhamento educativo é aquela com maior expressão em todas as
Delegações Regionais. Já no que se refere à segunda medida, no ano de
2002, a realização de tarefas a favor da comunidade foi a segunda medida
mais executada na DRC e na DRLVT; na DRN foi a frequência de programas
formativos e na DRS a imposição de obrigações.

De referir que, em 2002, não foram executadas pelo IRS 31 solicitações


por motivo de ausência, falecimento ou falta de colaboração do jovem, decisão
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 387

da entidade solicitante, perda de oportunidade, anulação do registo ou outro


motivo justificado.

O Gráfico VII.4 mostra-nos os valores referentes a 2003.

Gráfico VII.4
Medidas tutelares educativas não institucionais executadas pelo IRS (2003)

outras medidas

Realização de tarefas a
2% 13% favor da comunidade
2%
Imposição de regras de
12%
conduta
Imposição de
61% 10% obrigações
Frequência de
programas formativos
acompanhamento
educativo

Fonte: Difusão Estatística IRS

A tendência geral verificada em 2002, no que se refere às medidas


executadas, mantém-se em 2003. Das 637 medidas não institucionais
executadas pelo IRS, a com maior expressão continua a ser o
acompanhamento educativo , 61% (391), seguida da realização das tarefas a
favor da comunidade, 13% (81) e da imposição de obrigações, 12% (77).

O Gráfico VII.5 mostra-nos a distribuição desses valores gerais por


Delegação Regional.
388 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

Gráfico VII.5
Medidas tutelares educativas não institucionais executadas pelo IRS, por Delegação
Regional (2003)

Reparação ao ofendido
250
Realização de prestações
200 económicas a favor da
comunidade
Realização de tarefas a favor da
150 comunidade

Imposição de regras de conduta


100
Imposição de obrigações
50
Frequência de programas
0 formativos
DRC DRLVT DRN DRS DSRS acompanhamento educativo
Açores

Fonte: Difusão Estatística IRS

Olhando para o Gráfico, constatamos que a tendência geral no que se


refere ao acompanhamento educativo se mantém. No que se refere à segunda
medida não institucional com maior expressão há, aparentemente, em relação
a 2002, algumas diferenças. Na DRC e DRLVT, a segunda medida tutelar não
institucional mais executada continua a ser a realização de tarefas a favor da
comunidade. Esta passa, também, a ser a segunda medida não institucional
mais executada na DRS e não, como em 2002, a imposição de obrigações. A
frequência de programas formativos manteve-se a segunda medida não
institucional mais executada na DRN e na DSRS. Em 2003, não foram
executadas pelo IRS 7 solicitações por motivo de ausência, falecimento ou falta
de colaboração do jovem, decisão da entidade solicitante, perda de
oportunidade, anulação do registo ou outro motivo justificado.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 389

3. 1. Caracterização das medidas não institucionais em execução em


31 de Dezembro de 2003

Damos conta, neste ponto, de alguns dados referentes às medidas


tutelares não institucionais, em execução pelo IRS, em 31 de Dezembro de
2003.

Gráfico VII.6
Medidas tutelares educativas não institucionais em execução pelo IRS em 31 de
Dezembro de 2003

outras medidas

3% 7% Realização de tarefas a
19% favor da comunidade
Imposição de
Fonte: Difusão Estatística IRS
obrigações
64% 7% Frequência de
programas formativos
acompanhamento
educativo

Fonte: Difusão Estatística IRS

Os dados constantes no Gráfico VII.6 permitem-nos ver que, num


universo de 858 medidas tutelares educativas em execução no dia 31 de
Dezembro de 2003, a medida de acompanhamento educativo mantém-se como
a medida com maior peso no total das medidas tutelares não institucionais
executadas e em execução, com um total de 539 (64%) casos naquela data. O
segundo lugar é ocupado já não pela realização de tarefas a favor da
comunidade, como acontecia em 2002, que ocupa o terceiro lugar juntamente
com a frequência de programas formativos, mas sim pela imposição de
obrigações (11%).
390 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

Os dados referentes aos três anos em análise demonstram que a medida


de acompanhamento educativo, embora continue a ser de longe a mais
significativa estatisticamente, teve uma quebra significativa de 2001 (83%) para
2003 (61%), começando a denotar-se uma distribuição mais equitativa entre as
restantes medidas não institucionais aplicadas. Tal pode não só dever-se ao
facto de 2001 e 2002 serem anos de adaptação da LTE, e, portanto, as
medidas mais aplicadas foram, sobretudo, as mais conhecidas, como também
indicar uma progressiva abertura do sistema em relação ao conjunto de
medidas não institucionais.

4. A execução de medidas tutelares não institucionais: a análise de dois


estudos de caso

Com o objectivo de melhor ilustrar a execução das medidas não


institucionais, identificando casos de sucesso e bloqueios, procedemos, como
já referimos, à análise de dois estudos de caso. Com esse objectivo, para além
da realização de entrevistas, efectuámos uma análise dos processos em
execução em duas equipas de família e menores do Instituto de Reinserção
Social: a equipa do Centro e a equipa de Lisboa e Vale do Tejo. Esta análise,
realizada com recurso a uma amostra de processos - 50% (26 processos) em
Lisboa e Vale do Tejo e 100% (33 processos) no Centro -, contemplou uma
série de itens previamente definidos de forma a caracterizar, não só o perfil
social dos jovens, como também todo o processo de aplicação e, sobretudo, de
execução das medidas não institucionais. É essa análise que passamos a
apresentar162.

162
De referir que em alguns processos certas variáveis não foram preenchidas já que o
processo não continha a informação desejada.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 391

4. 1. Caracterização sociológica dos jovens

Para cada processo analisado, procedemos, em primeiro lugar, a uma


caracterização sociológica dos jovens, identificando o seu sexo, idade, situação
sócio-familiar, residência, grau de escolaridade, nacionalidade, anteriores
processos de promoção e protecção e outros processos tutelares educativos.

4. 1. 1. O sexo dos jovens

O Gráfico VII.7 diz respeito ao sexo dos jovens nas duas equipas
analisadas.

Gráfico VII.7
Sexo dos jovens

90

80 81,8
76,9
70

60

50

40

30
20 23,1
18,2
10

0
Masculino Feminino

Centro % lisboa e vale do tejo %

Fonte: OPJ/ Amostra de processos IRS


392 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

De acordo com os dados, verifica-se, quer na equipa de família e


menores do Centro, quer na equipa de família e menores de Lisboa e Vale do
Tejo, uma clara predominância de jovens do sexo masculino nos processos
analisados: 81,8% (27) no Centro e 76,9% (20) em Lisboa e Vale do Tejo.

Estes dados podem evidenciar que, pelo menos nas zonas analisadas, a
delinquência juvenil é, ainda, predominantemente masculina, embora com um
peso significativo de jovens do sexo feminino.

4. 1. 2. A idade dos jovens

Mais do que a idade que os jovens tinham à data da consulta dos


processos, interessou-nos saber a sua idade à data dos factos e a sua idade à
data de aplicação da medida (Gráficos VII.8 e VII.9).

No que se refere à primeira, vemos que, na equipa de família e menores


do Centro, 39,4% dos jovens tinham 14 anos de idade quando cometeram o(s)
facto(s) qualificado(s) como crime(s) constantes no processo em análise, logo
seguidos dos jovens com 12 anos (21,2%) e com 15 anos de idade (21,2%). Na
equipa de Lisboa e Vale do Tejo verificámos que a grande maioria dos jovens
(59,1%) tinha 15 anos à data dos factos, e 27,3% 14 anos de idade. Uma
análise comparativa permite-nos constatar que na equipa do Centro, há uma
maior percentagem de jovens com menos de 14 anos a quem foi aplicada uma
medida tutelar não institucional: 39,4% no Centro e 9% em Lisboa e Vale do
Tejo. Esta variável é importante para conhecermos as faixas etárias nas quais
ocorre a delinquência juvenil.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 393

Gráfico VII.8
Idade do jovem à data dos factos

60
59,1
50

40
39,4

30
27,3
20
21,2 21,2
18,2

10

4,5 4,5 0,0 4,5


0
12 13 14 15 16

Centro % lisboa e vale do tejo %

Fonte: OPJ/ Amostra de processos IRS

O Gráfico VII.9 mostra-nos a idade do jovem à data da aplicação da


medida. De acordo com os dados, na equipa do Centro 28,6% dos jovens
tinham 15 anos de idade quando lhes foi aplicada a medida não institucional,
25% tinham 16 anos e 21,4% tinham 14 anos de idade. Na equipa de Lisboa e
Vale do Tejo estes números conhecem algumas variações. 34,6% dos jovens
tinham 16 anos de idade, 26,9% 15 anos de idade e 23,1% 17 anos de idade.
Quando comparamos os processos analisados na equipa do IRS do Centro
com a equipa do IRS de Lisboa e Vale do Tejo, vemos que, tal como o Gráfico
anterior nos mostra, os jovens cujos processos tutelares educativos estão a ser
acompanhados pela equipa do IRS do Centro são mais jovens do que os de
Lisboa e Vale do Tejo.
394 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

Gráfico VII.9
Idade do jovem à data da aplicação da medida

35
34,6
30
28,6
25 26,9
25,0
23,1
20 21,4

15

10 10,7 10,7 11,5

5
0,0 3,8 3,6
0
12 13 14 15 16 17

Centro % lisboa e vale do tejo %

Fonte: OPJ/ Amostra de processos IRS

4. 1. 3. A situação do jovem (com quem vive)

No que diz respeito à situação do jovem, verificamos que, aquando da


aplicação da medida não institucional, a grande maioria dos jovens (78,1%, no
Centro e 76%, em Lisboa e Vale do Tejo) se encontrava a viver com o pai e/ou
com a mãe. Na equipa do Centro, 18,8% estavam internados em Centro
Educativo e 3,1% viviam com outro familiar. Em Lisboa e Vale do Tejo, 20%
viviam com outro familiar e apenas 4% se encontravam internados em centros
educativos. A dimensão do seu agregado familiar, nos casos em que se
aplicava, era, maioritariamente, de três elementos (24,4%).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 395

Gráfico VII.10
Situação do jovem

80
78,1 76,0
70

60

50

40

30

20
20,0 18,8
10 3,1 4,0

0
a viver com pai e/ou mãea viver com outro familiar internado em
estabelecimento
educativo

Centro % lisboa e vale do tejo %

Fonte: OPJ/ Amostra de processos IRS

4. 1. 4. Residência dos jovens

De forma a melhor conhecer a incidência geográfica da delinquência


juvenil, identificámos, também, a zona de residência destes jovens. Quer em
Lisboa e Vale do Tejo, quer no Centro, encontramos alguma dispersão
geográfica. No entanto, há uma predominância, na amostra de processos da
equipa de família e menores do Centro, de zonas periféricas à cidade de
Coimbra, tais como Condeixa-a-Nova, Miranda do Corvo, Penacova e Vila
Nova de Poiares. No que se refere à amostra da equipa de Lisboa e Vale do
Tejo, verificamos que o maior número de jovens com medidas não
institucionais se encontram dispersos pela área metropolitana de Lisboa,
embora alguns se encontrem em bairros com problemas sociais ou zonas
degradadas.
396 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

4. 1. 5. Escolaridade

Procurámos, também, conhecer qual o capital escolar destes jovens.

Gráfico VII.11
Grau de escolaridade do jovem antes da intervenção

50,0
45,0 48,0
43,8
40,0
32,0
35,0
30,0 31,3
25,0
20,0 16,0
15,0
15,6
10,0
4,0 0,0
5,0 6,3
3,1
0,0
não sabe ler ensino básico ensino básico ensino básico ensino
nem escrever (1.º ciclo) (2.º ciclo - 5.º (3.º ciclo - 7.º recorrente
e 6.º anos) 8.º e 9.º anos)

Centro % lisboa e vale do tejo %

Fonte: OPJ/ Amostra de processos IRS

É possível constatar no Gráfico VII.11, algumas diferenças entre os


jovens acompanhados por cada uma das equipas referidas. Na equipa do
Centro, 43,8% dos jovens possuíam o 3.º ciclo do ensino básico e 31,3% o 2.º
ciclo. Em Lisboa e Vale do Tejo, 48% dos jovens acompanhados pela equipa
do IRS possuíam o 2.º ciclo do ensino básico e, 32%, o 1.º ciclo. Curiosamente,
apesar de a idade dos jovens à data de aplicação da medida ser superior em
Lisboa e Vale do Tejo, são sobretudo os jovens acompanhados pela equipa do
Centro que já tinham completado o 7.º, 8.º ou 9.º anos de escolaridade.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 397

O Gráfico VII.12 permite-nos ir além da informação mais convencional que


nos mostra o grau de escolaridade. Dá-nos a conhecer a real situação do
jovem antes da intervenção.

Gráfico VII.12
Situação do jovem antes da intervenção

80,0
77,4
70,0

60,0

50,0
48,0
40,0 40,0
30,0

20,0
16,1
10,0 6,5
0,0 8,0 4,0
0,0
a estudar a estudar e trabalhar a trabalhar desocupado

Centro % lisboa e vale do tejo %

Fonte: OPJ/ Amostra de processos IRS

Dos jovens da amostra recolhida na equipa do Centro, 77,4%


encontravam-se a estudar e apenas 16,1% estavam desocupados. Já na
equipa de Lisboa e Vale do Tejo, a percentagem de jovens desocupados (48%)
era maior que a de jovens que se encontravam a estudar (40%). De referir que,
em ambos os casos, muitos dos jovens que, antes da intervenção tutelar, se
encontravam a estudar, isto é, matriculados num determinado grau de ensino,
apresentavam um percurso escolar marcado pelo insucesso e fraca
assiduidade. Apesar de residual, é de notar a percentagem de jovens que se
encontravam a estudar e a trabalhar em Lisboa e Vale do Tejo (8%).
398 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

4. 1. 6. Nacionalidade

No que se refere à sua nacionalidade, a grande maioria dos jovens é de


nacionalidade portuguesa. Na totalidade de processos analisados na equipa do
Centro, não encontrámos nenhum jovem de outra nacionalidade. Em Lisboa e
Vale do Tejo a realidade é um pouco diferente, o que pode ser explicado por
esta ser uma cidade onde estão localizadas várias comunidades de imigrantes.
Numa amostra de 26 jovens, (21) 87,5% dos jovens em cumprimento de
medidas não institucionais nesta equipa eram portugueses, 2 (8,3%) cabo-
verdianos e 1 (4,2%) brasileiro. De referir, no entanto, que muitos dos jovens
com nacionalidade portuguesa são imigrantes de segunda e terceira geração.

Quadro VII.2
Nacionalidade do jovem

lisboa e vale do
Centro Total
tejo

Nº % Nº % Nº %

portuguesa 33 100,0 21 87,5 54 94,7

cabo-verdiana 0 0,0 2 8,3 2 3,5

brasileira 0 0,0 1 4,2 1 1,8

Total 33 100,0 24 100,0 57 100,0

n.a. ou n.e.: 0 2 2

Fonte: OPJ/ Amostra de processos IRS


Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 399

4. 1. 7. Jovens sujeitos a processo de promoção e protecção


anterior

Com vista a traçar, ainda que de forma muito breve, um percurso destes
jovens, quisemos, também, saber se já tinham tido anteriormente algum
processo de promoção e protecção (Quadro VII.3).

Quadro VII.3
Jovens que tiveram algum processo de promoção e protecção

Centro Lisboa e vale do Tejo Total

N.º % N.º % N.º %

Sim 15 48,4 4 18,2 19 35,8

Não 16 51,6 18 81,8 34 64,2

Total 31 100,0 22 100,0 53 100,0

n.a. ou n.e.: 2 4 6

Fonte: OPJ/ Amostra de processos IRS

Na equipa do Centro, 48,4% dos jovens com medidas não institucionais já


tinham, efectivamente, tido pelo menos um processo de promoção e protecção;
e 51,6% não tinham tido até ao momento qualquer processo de promoção e
protecção. Já na amostra analisada na equipa de Lisboa e Vale do Tejo,
apenas 18,2% dos jovens já tinham tido algum processo de promoção e
protecção. Se tivermos em consideração que foi na equipa de Lisboa e Vale do
Tejo que encontrámos jovens com mais idade, podemos supor que muitos
destes jovens foram “apanhados” tardiamente pelo sistema. Estes dados
podem indicar uma clara falha das medidas de promoção e protecção.
400 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

4. 1. 8. Jovens sujeitos a processo tutelar educativo anterior

Procurámos, ainda, saber se estes jovens já tinham tido, ou tinham no


momento, outro processo no âmbito da Lei Tutelar Educativa.

Quadro VII.4
Jovens com outros processos no âmbito da Lei Tutelar Educativa

Centro Lisboa e Vale do Tejo Total

N.º % N.º % N.º %

Sim 13 44,8 10 45,5 23 45,1

Não 16 55,2 12 54,5 28 54,9

Total 29 100,0 22 100,0 51 100,0

n.a. ou n.e.: 4 4 8

Fonte: OPJ/ Amostra de processos IRS

A percentagem de jovens com outros processos no âmbito da LTE na


equipa do Centro é de 44,8%, não tendo a maioria, 55,2%, qualquer outro
processo. Também em Lisboa, a maioria dos jovens (54,5%) não tinha tido até
ao momento outro processo no âmbito da LTE. Apesar disso merece destaque
o facto de vários jovens terem outros processos no âmbito da LTE, o que pode
indicar que existe uma percentagem significativa de jovens “clientes”
frequentes do sistema.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 401

4. 1. 9. Análise de relatórios sociais: predominância de


famílias desestruturadas

A leitura e análise dos relatórios sociais do IRS sobre a situação destes


jovens permitiu-nos verificar que há uma clara predominância de jovens
oriundos de famílias social e economicamente desestruturadas. São várias as
famílias em que apenas um cônjuge trabalha, diversos casos de pais com
problemas de toxicodependência, alcoolismo e, ainda, famílias marcadas pela
negligência parental e violência doméstica. Muitos destes problemas que, como
referimos no Capítulo I, desencadeiam potenciais situações de delinquência
juvenil, são frequentemente agravados por características inerentes à zona de
residência onde o jovem habita.

Embora sejam predominantes, estes casos não são, obviamente


exclusivos, havendo famílias com uma certa estabilidade sócio-económica e
relacional. Deixamos aqui alguns casos, baseados na leitura e análise que
efectuámos dos relatórios sociais, de forma a melhor ilustrar estas situações163:

Caso 1:

A jovem encontra-se colocada na Casa de Infância e Juventude de...


há já alguns anos. Não dispõe de qualquer tipo de suporte familiar.
Os pais estão separados há bastante tempo, sendo inexistentes os
contactos com o pai e de carácter eventual e com duração de
poucos dias com a mãe. A mãe revela fraca disponibilidade para a
jovem e laços afectivos pouco significativos. O comportamento da
jovem na instituição tem-se revelado bastante problemático, com
fugas constantes, ausências mais ou menos prolongadas e

163
O relato destes casos procura ser o mais próximo possível dos relatórios sociais na sua
íntegra. Contudo, o facto de serem muito extensos, bem como a necessidade de
confidencialidade dos jovens e das suas famílias, levou a que omitíssemos alguma informação
e fizéssemos sínteses.
402 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

dificuldades várias no cumprimento de horários, bem como das


normas e regras vigentes. A jovem encontra-se grávida e motivada
para prosseguir a sua gestação, falando de forma bastante
afectuosa e emotiva do seu bebé. Frequentou o 6.º ano de
escolaridade, não tendo obtido aproveitamento. O seu
comportamento escolar é caracterizado pela desmotivação,
desinteresse e elevado absentismo que são preponderantes no seu
insucesso escolar. Assume a prática dos factos; não revela
capacidades de análise sobre a sua conduta, embora a considere
incorrecta.

Caso 2:

A jovem integra o agregado familiar composto pela mãe, viúva e


desempregada, um irmão de 17 anos e sem emprego fixo, e uma
irmã de 12 anos. Tem ainda dois irmãos mais velhos que já
constituíram agregado próprio. A família vive com sérias dificuldades
económicas, uma vez que a mãe se encontra desempregada (seria
empregada de limpeza; parece, também, ter estado ligada à prática
da prostituição). Terá sido diversas vezes orientada no sentido de
recorrer a apoios como subsídio familiar e Rendimento Mínimo
Garantido mas nunca concretizou a sua candidatura. Os
rendimentos da família são apenas constituídos pela pensão de
sobrevivência da mãe e de cada uma das duas filhas (no total de
160 Euros). A mãe diz estar a tratar do RMG, pois reconhece que
actualmente atravessa um período de grandes dificuldades
económicas. O agregado habita uma casa de renda, com condições
mínimas de habitabilidade, mas sem condições de higiene e de
organização. A mãe não mostra motivação pelas tarefas domésticas
e delega-as nos filhos mais velhos. A família é apoiada pela
Comissão de Protecção de ... desde 1996 e pela Equipa do IRS
desde 1999, contudo não se registou adesão por parte da mãe nem
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 403

dos jovens. A mãe não aceita ter apoio económico para evitar ter de
assumir compromissos a nível de inserção social, continuando a
negligenciar a educação e os cuidados essenciais com os filhos, que
chegaram a passar fome e privações de todos os tipos. A escola
tentou minorar a situação, contudo todos os jovens registavam
elevado absentismo escolar, o que ainda hoje se verifica. A
permissividade, desinvestimento maternal e consequente falta de
autoridade permitem à jovem e seus irmãos uma vida isenta de
regras, sendo frequente a jovem acompanhar indivíduos mais
velhos. A relação entre mãe e filhos caracteriza-se por uma
constante falta de respeito e agressividade.

Caso 3:

O jovem tem testemunhado conflitos e agressões físicas que o pai,


quando alcoolizado, inflige na mãe. Foi visível no seu relato
sentimentos de impotência pelo facto de os seus pedidos e
tentativas para terminar com as agressões físicas não surtirem
qualquer efeito. Este agregado viveu em condições precárias (numa
barraca) até ao seu realojamento na zona de residência que
actualmente habita, tendo necessitado de recorrer ao rendimento
mínimo garantido. Percurso escolar: matriculou-se no 1.º ano com 6
anos; ficou retido no 3.º ano devido a uma intervenção cirúrgica de
que foi alvo. Quando transitou para o 4.º ano tinha cerca de 11 ou 12
anos. Ocupa os seus tempos livres ora em casa, ora com jovens da
sua zona de residência. O seu Bairro é conhecido por problemas
sociais de vária ordem, entre os quais se destacam a desocupação,
insucesso/abandono escolar e marginalidade.
404 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

Caso 4:

Quando tinha um ano a família nuclear desagregou-se com a


condenação do pai a pena de prisão por crime grave, pena que
ainda cumpre. Contexto familiar caracterizado por dificuldades
económicas, por dinâmica familiar instável e com indiferenciação de
papéis e gerações. O pai manifesta preocupação pelo filho,
passando juntos as saídas precárias. Foi colocado em instituição de
acolhimento na segunda infância. De regresso ao meio familiar,
viveu, até Outubro de 2002, desvinculado da escola, desenrolando-
se o seu quotidiano sem objectivos e sem supervisão eficaz

Caso 5:

Nasceu em..., onde residia até ir para a Comunidade... Os pais são


ambos toxicodependentes, estando o pai preso por tráfico de droga
e a mãe internada num centro de recuperação. Não teve
dificuldades de integração na Comunidade, onde se relaciona bem
com colegas e adultos, não existindo grandes queixas sobre o seu
comportamento, apesar de ser um jovem influenciável. Sente-se
bem integrado e não tem criado até ao momento qualquer problema
de comportamento ou de indisciplina. O seu grande desejo futuro é
que os seus pais recuperem para ir viver junto deles com os seus
dois irmãos. Quanto aos factos, pareceu ter plena consciência
destes e arrependimento pela sua prática. Confirmou quase todo o
teor da participação da PSP.

Caso 6:

O jovem está institucionalizado desde os 3 meses de idade. Não tem


recordações da mãe, porque quase não a conheceu, e do seu pai só
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 405

sabe que anda na droga em ....Trata-se de um jovem inteligente e


com capacidades, mas muito irrequieto e traquinas que não
consegue controlar os seus comportamentos. Frequenta o 6.º ano
de escolaridade. Ocupa os seus tempos livres a jogar à bola,
fazendo parte da equipa de Iniciados do Grupo Desportivo ..., onde
tem um bom comportamento e uma boa relação com todos. Gosta
também de fazer grafites, só que os faz em locais impróprios e
quando é repreendido, está sempre disponível para reparar a
asneira, apagando o que fez.

4. 2. Os jovens e os factos qualificados como crime cometidos

Neste ponto analisamos o perfil social dos jovens da nossa amostra,


atendendo ao tipo de facto qualificado como crime cometido.

Na nossa análise relativa aos factos qualificados como crime praticados


por estes jovens a cumprirem medidas não institucionais, começamos por
abordar a denúncia do facto (Gráficos VII.13 e VII.14).

Como nos mostra o Gráfico VII.13, nos processos analisados na equipa


de família e menores do Centro, 97% dos factos qualificados como crime foram
denunciados pela polícia e apenas 3% pelo ofendido.
406 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

Gráfico VII.13
Denúncia do facto qualificado como crime feita por
(Centro)

pais
0%
escola
0%

ofendido
3% outro polícias
0% 97%

Fonte: OPJ/ Amostra processos IRS

Na amostra de Lisboa e Vale do Tejo, a denúncia dos factos qualificados


como crimes foi feita, também, na grande maioria dos processos, por polícias
(61%), mas encontrámos, nesta equipa, alguns casos nos quais a denúncia foi
feita pelo ofendido (10%) ou pela escola (5%). A categoria “outro” (24%), nesta
equipa com alguma expressão, engloba, por exemplo, denúncias feitas por
familiares, responsáveis por instituições de acolhimento e pelos próprios
jovens164.

164
Embora numa percentagem com pouco significado estatístico, encontrámos alguns casos
em que os próprios jovens entregaram os objectos que tinham furtado na esquadra de polícia.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 407

Gráfico VII.14
Denúncia do facto qualificado como crime feita por
(Lisboa e Vale do Tejo)

pais
0%
escola
0%

ofendido
3% outro polícias
0% 97%

Fonte: OPJ/ Amostra processos IRS

Como já referimos, analisámos na amostra o tipo e número de facto(s)


qualificado(s) como crime(s) cometido(s). Esta análise revelou-se complexa,
uma vez que cada jovem pode ter cometido mais do que um facto qualificado
como crime no processo pelo qual foi julgado. Analisámos, por isso, estes
dados sob duas perspectivas: distribuição da totalidade de factos qualificados
como crime cometidos e número de factos cometidos pelo mesmo jovem. Os
cruzamentos entre as diversas variáveis, contemplaram, igualmente, estas
duas perspectivas.

Os Gráficos VII.15 e VII.16 mostram a distribuição do total de factos


qualificados como crime cometidos que nos permite traçar um retrato do tipo de
criminalidade praticado por estes jovens.

Como é possível verificar pelo Gráfico VII.15, no Centro a maioria dos


factos praticados pelos jovens que constituem a nossa amostra foram
qualificados como crimes de furto (furto, 34% e furto qualificado, 31%),
seguidos por crimes de dano simples e qualificado (12%) e por violação de
domicílio/ introdução em lugar vedado ao público (12%).
408 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

Gráfico VII.15
Distribuição dos factos qualificados como crime por tipo
(Centro)

Outros crimes
Injúria 3%
2%
Furto qualificado
Condução sem
31%
habilitação legal
3%

Ofensa à
integridade física
simples e
privilegiada
3%
Dano simples e
qualificado Furto
12% 34%
Violação de
domicílio /
introdução em
lugar vedado ao
público
12%

Fonte OPJ/ Amostra processos IRS

O Gráfico VII.16 dá-nos conta de uma realidade um pouco diferente em


Lisboa e Vale do Tejo. Contrariamente à amostra do Centro, onde não foi
identificado nenhum facto qualificado como crime de roubo, em Lisboa e Vale
do Tejo, os factos qualificados como crime de roubo ou violência depois da
subtracção foram os mais praticados (69%) seguidos, de longe, pelo crime de
furto qualificado (8%).

O facto de na equipa do Centro não termos, contrariamente a Lisboa e


Vale do Tejo, identificado nenhum processo com crime de roubo ou violência
depois da subtracção, pode denunciar, indo ao encontro das teorias analisadas
no Capítulo I sobre a proliferação da delinquência urbana, uma mudança do
tipo de actuação delinquente por parte dos jovens nas grandes cidades, como
Lisboa, que tendem a praticar, então, factos qualificados como crime mais
graves.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 409

Gráfico VII.16
Distribuição de factos qualificados como crime por tipo
(Lisboa e Vale do Tejo)

Outros crimes
7%

Roubo ou
violência depois
da subtracção
Injúria 69%
2%
Condução sem
habilitação legal
7%

Ofensa à
integridade física
simples e
privilegiada
7%
Furto qualificado
8%

Fonte OPJ/ Amostra processos IRS

O Gráfico VII.17 mostra-nos a distribuição da criminalidade agregada


para, posteriormente, podermos proceder a alguns cruzamentos tendo em
conta estas categorias mais abrangentes165.

165
Na categoria “crimes contra as pessoas” consideramos os seguintes factos qualificados
como crime: ofensa à integridade física simples e privilegiada, ameaça ou coacção, injúria,
violação de domicílio e introdução em lugar vedado ao público; na categoria “crimes contra o
património sem violência”, englobámos os crimes de furto, furto qualificado, furto de uso de
veículo, dano simples e qualificado e burla simples e qualificada; na categoria de crimes contra
o património com violência, incluímos os crimes de roubo ou violência depois da subtracção; na
categoria “outros crimes” foram incluídos os crimes de contrafacção de moeda ou título de
crédito, depreciação do seu valor, passagem e aquisição de moeda falsa, tráfico de
quantidades diminutas, de menor gravidade ou tráfico-consumo e condução sem habilitação
legal. Quanto aos crimes contra o património, entendemos que seria conveniente distinguir
aqueles que foram praticados com violência daqueles em que não houve recurso a violência.
410 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

Gráfico VII.17
Distribuição da criminalidade
(agregada)

80
77,6
70 68,3
60
50
40
30
20
17,2
10 12,2 9,8 9,8
0,0 5,2
0
crimes contra as crimes contra o crimes contra o outros crimes
pessoas património (com património (sem
violência) violência)

Centro % Lisboa e Vale do Tejo %

Fonte OPJ/ Amostra processos IRS

Como é possível verificar, e no seguimento do Gráfico anterior, os factos


qualificados como crimes contra o património são mais praticados, quer no
Centro, quer em Lisboa e Vale do Tejo. No entanto, nos processos analisados
no Centro predominam os “crimes” contra o património sem violência (77,6%)
e, em Lisboa e Vale do Tejo, os “crimes” contra o património com violência
(68,3%). O segundo tipo de factos qualificados como crimes com maior
expressão na amostra de processos analisados na equipa de família e
menores do Centro e de Lisboa e Vale do Tejo são os crimes contra as
pessoas (17,2% e 12,2%, respectivamente).

Uma vez que, como já referimos, o mesmo jovem pode ter cometido, no
âmbito do mesmo processo, mais do que um facto qualificado como crime,
decidimos mostrar essa distribuição no Gráfico que se segue:
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 411

Gráfico VII.18
Número de factos qualificados como crime cometidos pelo mesmo jovem

70

60 60,9
56,3
50

40

30
25,0
20
17,4
10 12,5 13,0
6,3 0,0 4,3
4,3
0
1 2 3 4 6

centro % lisboa e vale do tejo %

Fonte: OPJ/ Amostra Processos IRS

Como nos mostra o Gráfico VII.18, a maioria dos jovens cometeu apenas
um facto qualificado como crime, quer nos processos analisados no Centro
(56,3%), quer nos processos analisados em Lisboa e Vale do Tejo (60,9%).
Seguem-se, no Centro, os jovens que cometeram 3 factos qualificados como
crime (25%), e, em Lisboa e Vale do Tejo, os jovens que cometeram 2 factos
qualificados como crime (13%). A percentagem de jovens que cometeu mais do
que três factos qualificados como crime é reduzida, o que não surpreende, uma
vez que estamos a analisar processos no âmbito de medidas tutelares não
institucionais.

Procedemos a alguns cruzamentos para tentar identificar o perfil do jovem


que comete determinado tipo de factos qualificados como crime. Também esta
análise foi feita sob dois olhares, uma vez que, como dissemos, o mesmo
jovem pode ter praticado mais do que um facto qualificado como crime no
mesmo processo. Assim, num primeiro momento, efectuámos alguns
cruzamentos com o tipo de crime e, num segundo momento, considerámos as
412 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

categorias crime ocasional (jovem que praticou um ou dois factos qualificados


como crimes) e crime plúrimo (jovem que praticou três ou mais factos
qualificados como crimes).

Num primeiro olhar, verificamos que, nos processos analisados na equipa


do Centro, do total de factos qualificados como crime contra as pessoas, estes
foram cometidos sobretudo por jovens com as seguintes características: do
sexo masculino (80%), com 13 anos de idade (40%), a viver com o pai e/ou
mãe (100%), e que se encontravam a estudar (100%). A grande maioria nunca
teve nenhum processo de promoção e protecção (88,9%), nem teve outro
processo no âmbito da LTE (55,6%).

O perfil é idêntico na equipa de Lisboa e Vale do Tejo, embora nesta


amostra os jovens que praticaram este tipo de factos qualificados como crimes
tinham, essencialmente, 14 anos de idade (66,7%) e encontravam-se não a
estudar, mas a trabalhar (40%) ou desocupados (40%).

No que se refere aos factos qualificados como crime contra o património


(com violência), estes foram identificados, como já referimos, apenas nos
processos analisados na equipa de Lisboa e Vale do Tejo. Olhando para este
tipo de “crimes”, vemos que eles foram cometidos, sobretudo, por jovens do
sexo masculino (57,2%), embora a percentagem de jovens do sexo feminino
seja, também, significativa (42,9%); por jovens com 15 anos de idade (41,7%);
a viver com o pai e/ou a mãe (85,7%) e que se encontravam sem qualquer
ocupação (46,4%).

Os factos qualificados como crime contra o património sem violência têm


uma maior expressão na equipa do Centro, não se registando grandes
diferenças quanto ao perfil identificado nos restantes tipos de “crimes”. De
notar apenas que estes factos qualificados foram, no Centro, maioritariamente
praticados por jovens com 14 anos de idade (40%), do sexo masculino (86,7%)
e que se encontravam a estudar (78,6%). Comparando este dado com o dos
“crimes” contra o património com violência, analisados anteriormente,
verificamos que as jovens do sexo feminino, ao contrário dos jovens do sexo
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 413

masculino, cometem mais factos qualificados como crimes contra o património


com violência do que sem violência.

Num segundo olhar, introduzimos, como já foi referido, duas novas


categorias nestes cruzamentos: crime ocasional (jovens que cometeram um ou
dois factos qualificados como crimes) e crime plúrimo (jovens que cometeram
três ou mais factos qualificados como crimes), agrupando os dados já
analisados no Quadro VII.19.

Gráfico VII.19
Número de factos qualificados como crime cometidos pelo jovem

80
66,7
60 55,0
45,0
40 33,3
20
0
centro lisboa e vale do tejo

crime ocasional % crime plurimo %

Fonte: OPJ/ Amostra processos IRS

Os cruzamentos de algumas variáveis com estas categorias, permitem-


nos tirar algumas conclusões importantes.

Em primeiro lugar, constatamos que são os jovens do sexo masculino que


mais facilmente se inserem na categoria crime plúrimo, quer nos processos
analisados no Centro (90%), quer em Lisboa e Vale do Tejo (77,8%). De referir,
no entanto, que em Lisboa e Vale do Tejo a diferença entre jovens do sexo
feminino e jovens do sexo masculino que cometeram 3 ou mais factos
qualificados como crimes é menos significativa (uma diferença de 20%), do que
no Centro (cerca de 80%).
414 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

Em segundo lugar, verificamos em ambas as amostras que são os jovens


com idade igual ou superior a 14 anos que mais facilmente se inserem na
categoria crime ocasional (Centro: 63,7% e Lisboa e Vale do Tejo: 100%). No
que se refere ao crime plúrimo, verificamos que, enquanto que em Lisboa e
Vale do Tejo há uma igual distribuição pelas diferentes faixas etárias, no
Centro, são, sobretudo, os jovens de 13 anos que se inserem nesta categoria
(40%).

Aqueles valores permitem-nos verificar que, de facto, as medidas não


institucionais em execução no IRS, quer na equipa do Centro, quer na equipa
de Lisboa e Vale do Tejo, foram aplicadas, sobretudo, a jovens que praticaram
apenas um facto qualificado como crime, na sua maioria, “crimes” contra o
património. De entre estes destaca-se o roubo e o furto qualificado. No entanto,
embora a maioria dos jovens se insira na criminalidade ocasional há jovens
que, como vimos, praticaram três ou mais factos qualificados como crimes no
processo em questão. Importa dar aqui a conhecer dois desses casos e como
é planeada a execução das medidas aplicadas.

Maria (nome fictício)

Maria, 15 anos de idade, vive com os pais. O percurso da jovem


pautou-se por momentos de instabilidade familiar decorrentes da
toxicodependência do progenitor que ocorreu há 7 anos atrás, tinha
a jovem 8 anos. Há cerca de 2 anos a situação estabilizou-se, uma
vez que o pai aderiu a um tratamento cujo acompanhamento
psicoterapêutico ainda mantém. Vivem numa habitação arrendada
em mau estado. A mãe da jovem trabalha numa casa particular e o
pai num café. Actualmente, encontra-se desocupada, reconhecendo
estar arrependida de ter sido excluída da escola por absentismo. Foi
encaminhada para se inscrever num curso de formação profissional
no IEFP e no Centro de Formação do Sector Alimentar em.... Mas os
cursos não irão começar brevemente, prevendo-se que a jovem irá
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 415

ficar em situação de ociosidade por um período longo. A Maria vive


actualmente um enquadramento familiar mais estável, embora numa
fase de alguma reorganização. Por seu lado, e a nível pessoal,
encontra-se sem qualquer tipo de ocupação e sem perspectiva de, a
curto prazo, inverter esta situação, considerando os pais que a
jovem parece estar a adoptar uma atitude de uma certa passividade.
Por outro lado, parece bastante introvertida e com pouca capacidade
de controlar os impulsos agressivos, encontrando-se ainda numa
fase de maturação onde os amigos ocupam um lugar central. Tendo
praticado 3 crimes de roubo na forma consumada, foi proposta por
parte do IRS, uma medida de tarefas a favor da comunidade, já que
esta demonstra interesse em começar a trabalhar e ganhar alguma
autonomia financeira. O MP não seguiu a sugestão do IRS e sugeriu
uma medida de acompanhamento educativo, medida que lhe foi
aplicada, pelo juiz, pelo período de um ano e três meses. As áreas
de intervenção do acompanhamento educativo incidem na escola,
na formação profissional e nas actividades de lazer.

O caso que se segue é o de um jovem que, apesar de ter praticado seis


factos qualificados como crimes, foi-lhe aplicada uma medida não institucional.

João (nome fictício)

João, 16 anos, vive com os pais em Lisboa. A progenitora é


vendedora ambulante. O progenitor não tem nenhuma ocupação e
tem um percurso marcado pelo consumo de estupefacientes durante
cerca de 20 anos. Diz não consumir drogas há cerca de 1 ano.
Família de etnia cigana e com uma grande coesão entre os seus
elementos, onde a atitude parental dos progenitores relativamente
ao jovem é demasiado permissiva e condescendente. Vivem da
416 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

venda ambulante, RMG e de uma bolsa de formação atribuída ao


irmão mais velho. Não frequenta a escola há cerca de 4 anos. A
família denota pouco interesse pela continuidade escolar dos seus
membros e os projectos de vida para o jovem não parecem passar
pela conclusão da escolaridade obrigatória. João possui apenas o
1.º ciclo. A única ocupação do jovem está ligada à venda ambulante
com a mãe, mas para além desta actividade não apresenta
nenhuma ocupação estruturada para o seu tempo, aumentando a
probabilidade de envolvimento em situações problema. Teve um
processo no âmbito da OTM, tendo ficado o IRS de o acompanhar e
vigiar a sua integração psico-social durante 4 meses. O IRS acabou
por pedir a suspensão do processo. O João cometeu 4 factos
qualificados como crimes de roubo e duas ofensas corporais
simples. O IRS propôs, no seu relatório social, uma medida tutelar
de tarefas a favor da comunidade. O MP segue a proposta do IRS,
mas acrescenta a medida de acompanhamento educativo. Na
sentença, é-lhe aplicada uma medida de prestação de tarefas a
favor da comunidade e uma medida de acompanhamento educativo,
abrangendo a área da formação profissional e a obrigação e não
acompanhar qualquer dos indivíduos identificados como co-autores
no requerimento da abertura da fase jurisdicional. O IRS elabora um
PEP para o João que tem como objectivos gerais, procurar a adesão
do jovem ao acompanhamento educativo e promover quer a sua
mudança comportamental, quer o desenvolvimento das suas
competências sociais e pessoais e acompanhar a formação
profissional do jovem. Como objectivos específicos, o PEP definiu:
evitar que o jovem tenha rotinas diárias desajustadas; impedir que o
jovem fique numa situação de inactividade; diminuir as
probabilidades do jovem participar em situações que impliquem
comportamentos desviantes; desenvolver no jovem interesses
alternativos que propiciem o seu afastamento de pares que
apresentam condutas desviantes; e envolver a família no processo
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 417

de mudança. No que se refere à medida de prestação de tarefas a


favor da comunidade, esta decorreu, sem problemas, num corpo de
bombeiros voluntários. No relatório de avaliação final da prestação
de tarefas a favor da comunidade, o responsável pela EBT referiu
que o João teve um desempenho favorável, manifestando um
comportamento assíduo, prestável e colaborante. Durante a
execução não manifestou qualquer problema de comportamento
tendo cumprido sempre as tarefas que lhe foram estipuladas. Deste
modo, cerca de 4 meses após a sentença, esta medida já estava
cumprida. No entanto, no que diz respeito à medida de
acompanhamento educativo surgiram alguns problemas. Cerca de 8
meses após a data da decisão judicial, o jovem continuava sem
qualquer ocupação, não tendo ingressado num programa de
formação devido à sua situação escolar. Veio, um mês depois, a
ingressar num curso de formação de operadores de acabamentos
gráficos. Seis meses após o início do curso o relatório de execução
da medida tutelar de acompanhamento educativo referia que,
embora numa primeira fase o João parecesse estar a adaptar-se de
forma favorável à formação, numa segunda fase começou a
apresentar problemas que vieram a comprometer o sucesso da
mesma. Durante a formação, para além de apresentar problemas de
aprendizagem e um grande desinvestimento, o jovem revelou
problemas nas relações inter-pessoais e dificuldades extremas em
aceitar orientações de terceiros. Faltou sistematicamente à primeira
hora da formação pelo que lhe foi suspensa a bolsa, facto que levou
a um agravamento do seu comportamento. Contudo, os
responsáveis pelo Centro de Formação consideram que a passagem
do João pela formação teve factores positivos, pelo que se
comprometeram em proceder ao pagamento da bolsa que está
suspensa. A título excepcional, a directora do centro aceita a
inscrição do João no próximo ano. Embora o TRS considere que
seria favorável para o jovem o retomar de uma actividade formativa,
418 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

considera que esta será uma tarefa difícil. O João não manifesta
qualquer intenção de retomar qualquer tipo de actividade escolar e
diz que só frequentará um curso de formação se o valor da bolsa for
igual ao do salário mínimo nacional, caso contrário pretende
continuar a ajudar a mãe. Neste contexto, e atendendo à idade do
jovem, o IRS considera que será fundamental assegurar que o
jovem dê continuidade a uma actividade profissional, seja a que ele
desenvolve com a mãe ou outra.

Na altura em que este processo foi analisado aguardava-se a


confirmação da revisão da medida. A medida de acompanhamento
educativo já se encontrava, no entanto, em curso há quase dois anos.

4. 3. Medidas Aplicadas

O Quadro VII.5, mostra as medidas tutelares educativas não institucionais


aplicadas na amostra de processos analisados.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 419

Quadro VII.5
Medidas tutelares não institucionais

lisboa e vale do
Centro Total
tejo

Nº % Nº % Nº %

acompanhamento educativo 8 24,2 13 50,0 21 35,6

imposição de obrigações 13 39,4 7 26,9 20 33,9

prestações económ.ou tarefas+obrigações 4 12,1 0 0,0 4 6,8

reparação ao ofendido+acompanhamento
2 6,1 1 3,8 3 5,1
educativo
realização de prestações económicas ou de
1 3,0 1 3,8 2 3,4
tarefas

regras de conduta+acompanhamento educativo 2 6,1 0 0,0 2 3,4

admoestação+obrigações+programas
0 0,0 1 3,8 1 1,7
formativos

frequência de programas formativos 0 0,0 1 3,8 1 1,7

obrigações+acompanhamento educativo 1 3,0 0 0,0 1 1,7

obrigações+programas formativos 0 0,0 1 3,8 1 1,7

prestações económ.ou
0 0,0 1 3,8 1 1,7
tarefas+acompanhamento educativo

reparação ao ofendido 1 3,0 0 0,0 1 1,7

reparação ao ofendido+regras de
1 3,0 0 0,0 1 1,7
conduta+obrigações

Total 33 100,0 26 100,0 59 100,0

n.a. ou n.e.: 0 0 0

Fonte: OPJ/Amostra Processos IRS

Como podemos ver pelo Quadro VII.5, encontrámos, na amostra,


processos em execução de medidas simples e de medidas combinadas. O
artigo 19.º impõe a regra de não cumulação de medidas tutelares pelo mesmo
facto ao mesmo jovem, salvo nos casos de aplicação de medida de
acompanhamento educativo, relativamente à qual se pode cumular a sujeição a
regras de conduta ou obrigações, bem como a frequência de programas
formativos, e nos casos de privação do direito de conduzir ciclomotores ou de
obter permissão para conduzir ciclomotores, que se pode cumular com
qualquer medida (artigos 16.º, n.º 2 e 19.º, n.º 2). Não obstante, quando no
mesmo processo um jovem é condenado pela prática de mais do que um facto
420 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

qualificado como crime, pode-lhe ser aplicada mais do que uma medida tutelar.
O caso que se segue é um exemplo de tal prática:

Paulo (nome fictício)

Paulo, de nacionalidade portuguesa, tem 14 anos de idade. Vive


com avós e pai, que não desempenha qualquer actividade e subsiste
com o apoio dos pais. Residem numa casa própria, mas em mau
estado de conservação. Terá sofrido maus tratos por parte da mãe.
Até aos 12 anos residiu com os avós e o pai em Lisboa, aí estudou
até ao 5.º ano. O seu comportamento alterou-se no 7.º ano, grande
agressividade para com os avós e exigência de elevadas quantias
de dinheiro (prostituição). A avó é a única pessoa passível de prestar
algum apoio. Cometeu 4 factos qualificados como crimes: ameaça,
coacção, furto e uso de veículo e condução sem habilitação legal. A
denúncia dos “crimes” foi feita pelos próprios avós. Nunca teve um
processo de promoção e protecção, nem tem qualquer outro
processo no âmbito da LTE. Possui o segundo ciclo, mas até à
intervenção não tinha qualquer ocupação. Esteve em medida
cautelar de guarda (durante 6 meses) num centro educativo, onde se
referiu a necessidade de internamento do jovem. No entanto, o
Tribunal Judicial da Comarca de…aplicou ao jovem as medidas de
admoestação; de imposição de regras de conduta, com a duração
de um ano, consistindo estas na obrigação do jovem não
acompanhar indivíduos que habitualmente se dedicam à prática de
factos ilícitos, designadamente aqueles que o acompanhavam na
altura em que praticou os factos ilícitos; e a frequência de um
programa formativo, consistindo este, preferencialmente, na
frequência de um curso de formação profissional, de acordo com as
habilitações e aptidões do jovem, com a duração máxima de seis
meses.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 421

4. 3. 1. As medidas tutelares educativas não institucionais


mais significativas

Olhemos, agora, para o Gráfico VII. 20, que mostra as medidas tutelares
não institucionais simples mais significativas em execução nas equipas
seleccionadas.

Gráfico VII.20
Medida tutelar educativa não institucional simples (mais significativa)

60
57,7
50

40 42,4
39,4

30
26,9
20
15,2
10 11,5
3,0 0,0
3,8 0,0
0
acompanhamento imposição de realização de frequência de reparação ao ofendido
educativo obrigações prestações programas formativos
económicas ou de
tarefas

centro % lisboa e vale do tejo %

Fonte: OPJ/Amostra Processos IRS

Como se pode ver pelo Gráfico, as medidas tutelares não institucionais


mais executadas, confirmando os valores gerais do IRS atrás apresentados,
são o acompanhamento educativo e a imposição de obrigações.

Considerando os dois estudos de caso, verificamos que a medida mais


aplicada na equipa de família e menores de Coimbra, à data em que
concluímos a nossa investigação, foi a de imposição de obrigações (42,4%) e,
422 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

em Lisboa, a de acompanhamento educativo (57,7%). A medida de prestação


de tarefas a favor da comunidade tem uma maior expressão na amostra de
processos do Centro. A explicação avançada para esse facto foi a de que tal se
deve a uma preferência da equipa por esta medida, bem como de uma certa
abertura por parte dos magistrados judiciais à sua aplicação. De realçar que, à
data da pesquisa, a equipa de família e menores de Coimbra não se
encontrava a acompanhar qualquer execução de medida de frequência de
programas formativos, o que se deve, em grande parte, pelo que nos foi dito, à
falta de oferta destes cursos na região do Centro.

Ao proceder a alguns cruzamentos, verificamos que no Centro, as


medidas de acompanhamento educativo, de imposição de obrigações e de
prestação de tarefas a favor da comunidade foram aplicadas exclusivamente a
jovens do sexo masculino. Apenas a medida de reparação ao ofendido foi
aplicada exclusivamente a jovens do sexo feminino. De referir que as medidas
tutelares combinadas foram aplicadas, em número idêntico, às jovens do sexo
feminino e aos jovens do sexo masculino. Na equipa de Lisboa e Vale do Tejo,
verificámos que a medida de acompanhamento educativo foi aplicada
maioritariamente a jovens do sexo masculino, bem como a de imposição de
obrigações. Já a medida de frequência de programas formativos foi aplicada,
na sua totalidade, a jovens do sexo feminino. As medidas tutelares combinadas
foram aplicadas exclusivamente a jovens do sexo masculino.

No que diz respeito à idade à data da aplicação da medida, de referir


apenas que a medida de acompanhamento educativo foi aplicada, quer na
equipa do Centro, quer na equipa de Lisboa e Vale do Tejo, sobretudo, a
jovens mais velhos, com idade superior a 15 anos.

Constatámos, igualmente, uma tendência para algumas medidas, como a


prestação de tarefas a favor da comunidade, serem aplicadas sobretudo a
jovens que vivam com os pais, ou com um outro familiar. Como veremos mais
à frente, esta, juntamente com a de imposição de regras de conduta, são
medidas que, de acordo com as entrevistas realizadas, tendem a ser aplicadas
a jovens com um enquadramento familiar mais estável porque implicam uma
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 423

supervisão e controlo permanentes, sobretudo a imposição de regras de


conduta, por parte, inclusive, dos responsáveis pelo jovem.

Foi, ainda, possível verificar que, quer nos processos analisados no


Centro, quer em Lisboa e Vale do Tejo, a medida de acompanhamento
educativo e a medida de imposição de obrigações foram aplicadas, na sua
maioria, a jovens que se encontravam a estudar ou desocupados. Para tal
pode contribuir o facto do percurso escolar de muitos destes jovens, pelo que
nos foi evidenciado pela leitura dos relatórios sociais, ser marcado, como já
vimos, pelo insucesso e falta de assiduidade. Com a medida de imposição de
obrigações ou de acompanhamento educativo, tenta colmatar-se este défice,
uma vez que a obrigação mais comum é a de frequentar a escola
assiduamente. É, assim, frequente o plano de acompanhamento da medida de
imposição de obrigações ter, tal como indicado numa sentença judicial
analisada, como objectivos, a conclusão com êxito de um determinado ano de
escolaridade ou do curso proposto e/ou a “estruturação do quotidiano criando
rotinas e hábitos saudáveis por forma a manter a motivação para a frequência
escolar”.

No que se refere ao tipo de facto qualificado como crime, verificámos que,


a medida de acompanhamento educativo, tida como a mais gravosa, foi
aplicada sobretudo a factos qualificados como crimes contra o património (no
Centro, “crimes” contra o património sem violência e, em Lisboa e Vale do Tejo,
com violência) e a jovens que cometeram 3 ou mais factos qualificados como
crime.

4. 3. 2. As medidas propostas pelo IRS e a sua aceitação, em


regra, pelo MP e pelo Juiz

No casos em que o IRS indicava uma proposta de medida tutelar a ser


aplicada, esta foi geralmente aceite pelo MP, como nos mostra o Gráfico
seguinte.
424 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

Gráfico VII.21
MP segue sugestão do IRS

60
55,0
50

40 40,0 42,9
38,1
30

20
19,0
10
5,0
0
sim não sem sugestão

Centro % lisboa e vale do tejo %

Fonte: OPJ/ Amostra Processos IRS

Como é possível verificar pelos dados, em ambas as amostras de


processos, quando o IRS faz uma proposta, ela é, geralmente, aceite pelo MP.
No entanto, na nossa análise encontrámos alguns processos nos quais o IRS
não fazia qualquer proposta de uma medida específica a ser aplicada (42,9%,
no Centro e 5%), em Lisboa e Vale do Tejo.

De referir que, em alguns casos, o MP acrescentava uma medida à


proposta pelo IRS, por exemplo, acompanhamento educativo com imposição
de obrigações, ou, então, considerava que o caso podia ser arquivado, dada a
integração sócio-familiar do jovem. O caso que mostramos de seguida, síntese
de um relatório social elaborado por uma das equipas do IRS, é, a este
respeito, elucidativo:

Jovem de 16 anos, do sexo masculino e nacionalidade portuguesa.


“Acusado” de dois factos qualificados como crimes de furto
qualificado, um na forma tentada e outro na forma consumada.
Nunca teve um processo de promoção e protecção, mas já teve um
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 425

inquérito no âmbito da LTE. Os progenitores separaram-se há cerca


de 11 anos. Viveu com a avó paterna cerca de 4 anos, tendo
regressado ao agregado do progenitor quando tinha cerca de 7
anos. Foi na infância uma criança hiper-activa e desobediente. Pai
advogado. Avó professora aposentada. Progenitor indicia interesse e
empenho na educação e bem-estar do jovem. No espaço escolar, o
jovem apresentava um bom relacionamento com os professores,
todavia manifestava dificuldades em acatar ordens. Progenitor
acompanha de perto o percurso escolar do filho. No 2.º período, o
jovem apresentou um rendimento escolar muitíssimo baixo. Tendo
tido conhecimento das faltas, o progenitor solicitou aos funcionários
da escola que o impedissem de sair da escola. Desde Dezembro de
2001 que tem beneficiado de apoio psicológico no centro de saúde
de..., denotando alguma receptividade. Parece ser um jovem
vulnerável a comportamentos de risco, apresentando necessidades
de orientação. Apesar de estar inserido num seio familiar que
apresenta características de estruturação, o jovem denota muitas
dificuldades em conter os seus comportamentos. É reincidente em
participações familiares. Parece que há necessidade de educação
para o direito. Proposta do IRS: prestação de tarefas a favor da
comunidade que poderá surtir no jovem efeitos pedagógicos e
contentores do seu comportamento e contribuir para o
desenvolvimento de sentimentos de pertença e respeito pelas coisas
do outro. Pode ser executada no Banco Alimentar contra a Fome.

A proposta do MP foi a seguinte:

“... Atento o arrependimento manifestado pelo jovem, a capacidade


educativa e estruturação social do respectivo agregado familiar
paterno em que o jovem se insere, ao facto de ter sido tudo
prontamente recuperado pela colaboração do jovem e à ausência de
comportamentos delituosos anteriores ou posteriores, se afigura
426 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

desnecessária a aplicação de medida tutelar educativa, propondo-se


o arquivamento dos autos”.

No entanto, neste caso, o juiz segue a proposta do IRS, aplicando ao


jovem uma medida de prestação de tarefas a favor da comunidade. Esta é,
contudo, uma tendência excepcional no conjunto de casos analisados, uma vez
que na grande maioria dos casos analisados, o juiz seguiu a proposta do MP.

Gráfico VII.22
Juiz segue a proposta do MP

100
95,8
90
88,2
80
70
60
50
40
30
20
10 4,2 11,8

0
Sim N ão

C entro % lisboa e vale do tejo %

Fonte: OPJ/ Amostra Processos IRS

Como vemos, quer nos processos recolhidos na equipa de família e


menores do Centro, quer em Lisboa e Vale do Tejo, a percentagem de
processos em que o juiz não seguiu a proposta do MP é residual.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 427

4. 4. Os tempos da justiça tutelar

Procurámos, também, recolher alguns dados que nos permitissem


caracterizar os tempos da justiça neste domínio.

Um primeiro esforço nesse sentido foi conhecer o tempo decorrido entre


os factos ilícitos e a abertura do processo (Gráfico VII.23).

Gráfico VII.23
Tempo decorrido desde os factos até à abertura do processo

60 58,1
57,1
50
40
30
20 19,4 21,4
16,1
14,3
10 0,0 6,5 0,0 7,1
0
Até 3 meses 3 a 6 meses 6 meses a 1 ano 1 a 2 anos Mais de 2 anos

Centro % lisboa e vale do tejo %

Fonte: OPJ/ Amostra de processos IRS

Apesar de ser considerável o número de processos sem qualquer


informação, na maioria dos casos, esse tempo foi de cerca de 3 meses.

Quisemos, também, calcular o tempo decorrido entre o pedido de relatório


social por parte do Tribunal de Família e Menores e o seu envio por parte do
IRS.
428 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

Gráfico VII.24
Tempo decorrido entre o pedido do relatório social pelo TFM e o seu envio pelo IRS

60

50 51,6
40

30 33,3
28,6 29,0
20 19,0
10 9,7 0,0 9,5
6,5 9,5 3,2 0,0
0
Até 1 mês 1 a 2 meses 2 a 3 meses 3 a 4 meses 4 a 5 meses Mais de 5
meses

Centro % lisboa e vale do tejo %

Fonte: OPJ/ Amostra de Processos IRS

Como é possível verificar pelos dados, na equipa do Centro, em 51,6%


dos casos analisados, o período decorrido entre o pedido pelo TFM e o envio
do relatório social por parte do IRS situou-se entre 1 e 2 meses e, em 29% dos
casos, entre 2 a 3 meses. Não se registou nenhum caso, na amostra recolhida,
em que o tempo decorrido superasse os 5 meses. No que se refere a Lisboa e
Vale do Tejo, constatámos que, em 33,3% dos casos, o IRS enviou o relatório
social entre 1 e 2 meses após ter sido solicitado e, em 28,6% dos casos, esse
período não ultrapassou os 30 dias. É de salientar, no entanto, que, em 9,5%
dos casos, o tempo de espera para a recepção do Relatório Social foi superior
a 5 meses. Estes números denunciam alguma morosidade no envio ao Tribunal
do relatório social por parte do IRS. Foram vários os casos em que verificámos
uma troca de ofícios entre o TFM e a equipa correspondente, quer do Centro,
quer de Lisboa e Vale do Tejo, em que o primeiro insistia no cumprimento do
prazo de envio do relatório e o segundo respondia que o atraso no envio dos
relatórios se devia ao excesso de trabalho a cargo da equipa.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 429

5. A execução de medidas tutelares não institucionais: o olhar e o


discurso dos operadores

Com o objectivo de conhecer as práticas e os bloqueios na execução de


medidas não institucionais, ouvimos vários operadores, do sistema judiciário,
IRS, Centro Protocolar de Formação para o Sector da Justiça, Segurança
Social e Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo.

Muitos dos operadores enfatizaram as vantagens que as medidas não


institucionais apresentam quando comparadas com as medidas institucionais,
das quais destacam o facto do jovem não ser retirado do seu meio familiar:

“(....) Em meio livre seria muito melhor, não é? Não se afastava o


jovem do seu meio, mantinha-se a coesão familiar... Aliás, só se
recorre à medida de internamento mesmo quando não é possível de
todo manter uma medida não institucional... E às vezes não é”
(Ent. 37).

Referem, no entanto, que alguns preceitos legais, bem como certas


práticas, podem dificultar ou mesmo obstruir o sucesso na execução de uma
qualquer medida não institucional. São essas percepções dos vários
operadores envolvidos, directa ou indirectamente, na execução das medidas
não institucionais, que trazemos para o debate.

5. 1. A regulamentação das medidas tutelares educativas não


institucionais: uma necessidade?

Foram vários os operadores que nos alertaram para a necessidade de


regulamentação da execução das medidas não institucionais, concretizando-
se, assim, de uma forma mais completa a possibilidade prevista no n.º 3, do
artigo 3.º da Lei n.º 166/99, que aprova a Lei Tutelar Educativa, onde se diz
expressamente que “a regulamentação da execução das medidas tutelares
educativas consta de decreto-lei”.
430 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

É neste sentido a opinião de um magistrado judicial. Embora considere


que se deve atender à especificidade de cada caso, defende uma maior
flexibilidade na aplicação das medidas, que só é possível com uma maior
regulamentação da lei:

“É óbvio que o Direito não deve regulamentar tudo, mas deve pelo
menos dar armas aos juízes, e digo aos juízes porque são eles que
aplicam as medidas, para poder escolher de entre um maior número
de «alíneas» possíveis mesmo que o juiz num caso concreto
entenda que casuisticamente a situação do João ou do Manuel não
justificará uma tão grande regulamentação. Acho que sofremos
ainda por não ter essa regulamentação cá fora, não é desconfiar de
nenhum serviço, mas de alguma forma ficamos muito à mercê do
Instituto de Reinserção Social que, no fundo, é quem vai de facto
executar as medidas. Talvez fosse melhor que o juiz tivesse na sua
mão uma panóplia maior de possibilidades de intervenção dentro da
moldura exacta que cada medida deve ter para que a sua
intervenção seja bastante mais activa” (Ent. 25).

O mesmo magistrado defende que tal não implica um maior controlo


sobre a actuação do juiz, mas, sobretudo, uma orientação para que essa
mesma actuação seja dotada de uma maior eficácia, quer na escolha e
aplicação da medida, quer na própria relação com as entidades que
acompanham a execução, nomeadamente o IRS:

“Não é um maior controlo, mas pelo menos o juiz ter na Lei a


possibilidade de fazer uma escolha e, mais do que isso, poder impor
ao Instituto de Reinserção Social eventualmente aqui e ali algumas
coisas. Como sabe o acompanhamento educativo precisa de ser
homologado pelo juiz e quando é homologado, parece-me muitas
vezes que os juízes homologam-no, eu não direi acriticamente, mas,
por vezes, num quadro de enorme volume de trabalho, e é isso que
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 431

me assusta. Eu tenho imensa confiança no Instituto de Reinserção


Social, não é por isso, mas por uma questão de princípio (...).

Porque é óbvio que depois entra muito na criatividade e, sobretudo,


muito nas possibilidades que cada serviço oferece ou não ao juiz.
Porque é que não raciocinamos um bocadinho ao contrário, e
perguntar até que ponto é que o Tribunal não pode exigir também
aos serviços «Vão por aí, tentem explorar este caminho». Ficamos
um bocado às cegas e sobretudo ficamos muito sujeitos, volto a
dizer, ao trabalho que nos é oferecido de bandeja e que nós, juízes,
tendemos a homologar um pouco cegamente (Ent. 25).

Acrescenta, ainda, que a falta de regulamentação das medidas e o facto


desta indiciar, na opinião de alguns operadores, um recurso excessivo ao
senso comum e à criatividade, em nada contribui para a dignificação da justiça
juvenil:

“Realmente nesta jurisdição de menores e sendo genericamente


uma jurisdição voluntária antes da entrada em vigor destas leis, de
facto tínhamos um juiz completamente a mandar no processo todo,
era praticamente ele que mandava no processo, era ele que
mandava para trás, que mandava para a frente… mas tem que
haver orientações, penso que em termos escritos, doutrinários, até
para a própria dignificação da jurisdição. Algum indeterminismo
nesta jurisdição pode, por vezes, levar as pessoas a pensar que é
uma questão de jeito, uma questão de sensibilidade ou uma questão
de criatividade” (Ent. 25).

São vários os operadores que defendem uma regulamentação da LTE,


designadamente no que se refere às medidas não institucionais, definindo o
papel de cada operador, em especial do IRS, na execução de cada uma
432 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

dessas medidas, sem prejuízo de uma necessária flexibilidade por parte do juiz
na sua aplicação, bem como do indispensável e vantajoso envolvimento dos
pais ou outros familiares e da comunidade na execução das mesmas.

A ausência de uma maior regulamentação associada a uma não cabal


aplicação da lei traduz-se em bloqueios específicos, como, por exemplo, os
que se prendem com a duração das medidas. Um primeiro problema, segundo
os operadores entrevistados, surge quando o Tribunal não fixa a duração da
medida. Como já referimos no Capítulo IV, a LTE define a duração máxima de
cada medida tutelar. Contudo, a análise dos processos permitiu-nos identificar
vários casos de indefinição da duração da medida a aplicar. Nestes casos, de
acordo com o Despacho n.º 124/PRES/2001, de 30 de Outubro, deve o IRS
deduzir que a medida tem a duração máxima legalmente admissível. No
entanto, o que se verifica na prática, é que o técnico de reinserção social
solicita esclarecimento ao Tribunal sobre essa matéria. Uma vez que a
definição da duração da medida é fundamental para a elaboração do PEP, a
troca de ofícios entre o IRS e o Tribunal contribui para o atraso do início da
execução da medida:

“Uma questão que também é muito, muito sentida pelos miúdos


como injusta e como incongruente e incompreensível é a prática de
alguns tribunais não fixarem um tempo determinado de execução da
medida, fixam entre o mínimo e o máximo: «Vai de regime fechado
entre 1 ano e 3 anos.» Eu tenho vários casos assim. Tenho várias
sentenças, tenho várias situações em concreto assim. E isto
acontece também em acompanhamento educativo. Tenho
acompanhamentos educativos aplicados, mínimo 1 ano, máximo 2
anos. Como é que se consegue fazer um projecto educativo pessoal,
como é que se consegue motivar um jovem para uma situação em
que ele não sabe a que é que corresponde, em termos de tempo, a
sua necessidade de educação para o direito e o grau de gravidade
daquilo que ele praticou. Portanto, penas relativamente
indeterminadas para menores, é o que aqui temos” (P-6).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 433

Nem todos os entrevistados defenderam a necessidade de


regulamentação da LTE. Alguns operadores consideram que se deve atender
sempre à especificidade do caso e que uma maior regulamentação poderia
obstar a essa flexibilidade:

“Regulamentar uma situação dessas... cada um de nós tem a sua


personalidade própria (...) tem que ser adaptado. Podem surgir mais
dificuldades com a regulamentação” (Ent. 33).

Outros defendem, aliás, que o problema não reside tanto na não


regulamentação, mas, sobretudo, na aplicação da lei, como já se referiu, por
parte dos magistrados:

“Eu não sou contra o facto da Lei estabelecer claramente algumas


disposições. Há questões que podem ser mais bem especificadas e,
portanto, acho que deve ser feito um esforço nesse sentido. Agora, o
que eu estava a chamar à atenção é que nós não podemos ter a
ilusão de que a Lei pode prever todas as situações e que não há
aqui uma margem de discricionaridade. Depois, há aqui também um
problema que tem a ver, - e não é só nisto que se reflecte - , com a
formação dos magistrados; que tem a ver com o debate das
questões jurídicas e processuais que se levantam acerca destas
questões. E, mais uma vez, o que está em causa não é a Lei, mas
quem aplica a Lei. Porque há coisas que por mais que estejam
escritas, há sempre determinado tipo de situações jurídicas que têm
que ser tidas em atenção relativamente à finalidade, aos objectivos,
à reflexão sobre a natureza desse tipo de intervenção (...)” (P-5).

A discussão em torno da necessidade de regulamentação no que se


refere à aplicação da lei, assume contornos mais específicos quando nos
centramos em cada uma das medidas não institucionais em concreto.
434 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

5. 2. As práticas e os problemas na execução das medidas não


institucionais

5. 2. 1. A medida de acompanhamento educativo

A medida tutelar educativa de acompanhamento educativo é tida como a


medida não institucional mais. Esta é uma medida que, nas entrevistas
realizadas, suscitou alguma controvérsia, nomeadamente no que se refere à
sua eficácia e aos recursos, materiais e humanos, que a sua execução exige.

Como nos referiram um magistrado judicial e um magistrado do MP, o


acompanhamento educativo é uma medida que está dotada de algum
indeterminismo, necessitando de uma regulamentação para ser mais eficaz:

“O acompanhamento educativo foi sempre uma medida que era


prolixamente aplicada antes de 2001 por nós e muitas vezes sem
sabermos muito bem como é que a iríamos carnificar, que carne é
que íamos pôr naquele esqueleto, e às vezes era a imaginação do
juiz, era imaginação do Instituto de Reinserção Social. Agora de
facto temos aqui um artigo 16.º que diz «consiste na execução de
um projecto educativo pessoal que abranja as áreas de intervenção
fixadas pelo Tribunal», mas parecer-me-ia que era necessário haver
uma maior especificação e, sobretudo, também dar a possibilidade
de se pormenorizar muito mais de forma a que a medida não seja
tão vaga. Por vezes parece-me que as medidas são muito vagas. De
facto eu às vezes compreendo, são vagas porque são miúdos
complicados, como é óbvio, se não fossem complicados não
estavam neste meio, e de alguma forma já a contar com alguma
ineficácia não vamos pôr muitas cláusulas de forma a que elas
também não sejam muito mais violadas” (Ent. 25);

“Tenho pouca fé porque, não é pela medida em si, é por aquilo que a
figura nos oferece no texto da lei” (Ent. 47).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 435

Alguns defendem, mesmo, uma mudança na estrutura de execução da


medida, propondo um conjunto de actividades alternativas e uma maior
articulação com algumas entidades, nomeadamente com a escola, mas
também com a família:

“(...) tem que haver toda uma estrutura, enfim, de actividades e de


formações. Vai havendo alguma coisa, mas penso que ainda não se
apostou seriamente nessas respostas, porque o acompanhamento
educativo tem que ter também esta dimensão. Depois temos aqui
outro problema que é o problema daqueles jovens que ainda estão
dentro da escolaridade obrigatória e a escola, talvez fuja um
bocadinho da participação activa no quadro do acompanhamento
educativo. Não há uma profunda articulação com a escola que tem
responsabilidade em matéria de educação” (Ent. 47);

“Há muito trabalho que tem que ser feito com a família e com a
escola – não há mediação escolar, não há psicólogos; a Escola julga
que o IRS é a tábua de salvação para tudo, porém, o IRS é o fim da
linha e ao chegar à escola está a procurar o que não foi encontrado
na família” (Ent. 7).

Para melhorar alguns aspectos na execução da medida de


acompanhamento educativo, o IRS constituiu um grupo de trabalho com o
objectivo de avaliar, através de alguns casos experimentais, um novo modelo
de acompanhamento educativo. Neste modelo, “está em causa estudar uma
nova metodologia e estrutura e dar mais formação aos técnicos (por exemplo,
despiste vocacional). Foram postos em avaliação três casos por equipa, trata-
se de uma avaliação mais exaustiva. No acompanhamento educativo a
intervenção tem de ser diferente, daí a necessidade de um trabalho mais
exigente. O IRS já detectou que há falhas no acompanhamento educativo – por
436 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

exemplo os jovens levam para casa umas fichas para preencherem com a
concepção que têm de crime, para reflectirem sobre o acto que praticaram, só
que alguns mal sabem ler...“ (Ent. 7).

Pelo que nos foi dito, com este novo modelo, que está a ser
implementado desde Outubro de 2003, pretende-se analisar o comportamento
do jovem, fazer com que este seja capaz de ganhar responsabilidade, de se
colocar no papel da vítima e dotá-lo de algumas competências especiais que
se adquirem através do diálogo com o técnico responsável e do cumprimento
de tarefas específicas (Ent. 36; 37; e 33). Alguns técnicos descreveram-nos,
assim, as principais mudanças que este novo modelo acarreta:

“O anterior modelo era muito mau. Ao aplicar a medida de


acompanhamento educativo, o juiz fixa as áreas de intervenção, e
era um bocado em função daquelas áreas de intervenção que
depois a equipa ia organizar o PEP. (...) Essas áreas podiam ser a
procura de trabalho, podiam ser a imposição de obrigações de
frequentar a escola, etc. (...) E era, de facto, um bocado em função
dessas áreas que a equipa depois organizava o PEP, elaborava uma
calendarização. É obrigatório. Ao longo do PEP, mantinha-se um
contacto frequente com o jovem e com as instituições. Havia toda
esta maneira de trabalhar, toda esta metodologia. (...) É evidente
que o novo método também tem esta parte. Qual é a grande nuance
do novo processo? Experiências do estrangeiro e investigações
efectuadas chegaram à conclusão que estes jovens têm algumas
dificuldades na sua personalidade. Mais em termos de lidar com os
problemas, na resolução de problemas, na aquisição de
competências...” (Ent. 33);

“(...) Entendeu-se que deveríamos juntar, digamos, ao


acompanhamento educativo um trabalho mais estruturado a nível de
pré-competências e até de desenvolvimento de rotinas. E isso é feito
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 437

em sessões semanais, quinzenais, de tal forma que tem que ser


estipulada, através de técnicas mais, digamos, comportamentais.
Técnicas de psicologia que são mais na área comportamental. Nós
temos trabalhos que o jovem realiza. Há discussões com o jovem
sobre determinados temas. Há role plays, etc.” (Ent. 37).

Foi-nos dito que os técnicos que ficaram a acompanhar estes casos


experimentais receberam formação específica para o efeito:

“Recebi formação específica, exactamente para aplicar este novo


modelo. Portanto, não são todos, estes três casos seleccionados
não são aplicados, não são executados aqui na equipa por qualquer
colega, porque são muito graves” (Ent. 37).

Foram, no entanto, apontadas algumas críticas a essa formação,


nomeadamente ao curto tempo de duração e ao facto de, apesar de não haver
uma formação de base exigida, alguns técnicos considerarem que ela é mais
acessível para pessoas licenciadas em psicologia.

Embora ressalvando que este programa está, ainda, numa fase inicial e
de experimentação, alguns entrevistados mostraram algum cepticismo em
relação a este novo modelo:

“Aquilo que a gente está a percepcionar, ao fim e ao cabo, é que


estes jovens não são minimamente capazes de aderir a este tipo de
programa, alguns porque não têm capacidades, outros porque se
desinteressam facilmente. Isso perturba...” (Ent. 37).
438 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

“A filosofia que está inerente ao novo modelo é útil, mas devia ter
menos burocracia, em termos de fichas que eles têm de preencher e
depois torna-se um pouco maçudo e repetitivo” (Ent. 33).

Contribui para este cepticismo o facto de alguns técnicos considerarem


que esta medida é muitas vezes aplicada, não pela gravidade do facto
qualificado como crime cometido ou porque seja a mais adequada no quadro
da LTE, pelas suas potencialidades e especificidades, ao jovem, mas apenas
porque o juiz pretende que o jovem complete a sua escolaridade:

“Confrontamo-nos muito com alguns casos, uma percentagem, diria,


estatisticamente significativa, em que o acompanhamento educativo
é aplicado porque o jovem se encontra desenquadrado da
escolaridade, está fora da escolaridade (...)” (Ent. 7).

Uma das questões salientada pelos vários entrevistados no que se refere


à medida de acompanhamento educativo, em ambos os modelos, mas,
sobretudo, no novo, refere-se às exigências que esta medida acarreta em
termos de recursos humanos. Algumas opiniões, nomeadamente de
magistrados do MP, vão no sentido de que os recursos humanos são
insuficientes para acompanhar a execução desta medida de uma forma eficaz:

“Repare, para ter um acompanhamento educativo como deve ser,


temos que ter quase um técnico por cada jovem. Mas um técnico
que consiga gerir os dados de forma personalizada. E que consiga
acompanhar efectivamente. (...)

Porque esse acompanhamento não é só o técnico andar, digamos


assim, entre aspas, atrás do jovem, longe disso. Mas tem que haver
uma ligação, de grande proximidade, sob pena de então não se
poder designar de acompanhamento educativo. (...)
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 439

Não há esta profunda articulação e há, também, uma falta de meios,


de quadros, ao nível do IRS. É difícil, é complicadíssimo um técnico
que tem não sei quantos casos, poder, efectivamente, traçar um
projecto educativo pessoal interessantíssimo que tem de ter uma
série de estratégias e objectivos, e muitos são interessantes, sem
dúvida. Mas, depois, a concretização e o acompanhar,
efectivamente, cai por terra porque não se consegue dar resposta, e
parece-me que aí falha por isso. Se houver esta boa concretização,
até porque, de facto, não deixo de acreditar, porque sou das últimas
a deixar de acreditar no sistema e nas respostas, pode haver, de
facto, sucesso na intervenção” (Ent. 47);

“Seria uma boa medida se houvesse técnicos no terreno; o controlo


que é feito não é o adequado, há dúvidas sobre o
acompanhamento... Devia haver uma grande e eficaz proximidade
entre o IRS e o jovem” (Ent. 22).

Em sentido contrário, um outro conjunto de entrevistados, nomeadamente


técnicos do IRS, consideram que os recursos humanos são suficientes,
realçando que a medida é que deveria ser reformulada, sobretudo o novo
modelo, uma vez que ocupa grande parte do tempo do técnico responsável:

“Eu acho que deveria ser, se calhar, reformulado. E muito


sinceramente, acho que é assim: uma equipa não pode estar a
acompanhar... nós gastamos quase uma tarde com o miúdo”
(Ent. 36);

“Não sentimos que haja falta de recursos. Sentimos é que se perde


muito tempo a aplicar este tipo de medida” (Ent. 37).
440 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

Alguns técnicos entrevistados consideram, mesmo, que a medida de


acompanhamento educativo é a medida não institucional que implica maiores
dificuldades na sua execução, apresentando, para tal um conjunto de razões,
nomeadamente porque “é a medida mais gravosa, em tempo, em condições,
em exigência, em tudo” (Ent. 37), exigindo muito da equipa e do jovem
(Ent. 35).

Um outro problema que, segundo alguns operadores, surge


especialmente nesta medida, prende-se com as dúvidas acerca do início da
sua execução, que nem sempre está explícito na decisão:

“Raramente vem na decisão. Vem depois a posteriori quando


pedimos esclarecimentos. (...) Agora, desde que temos este novo
modelo é que eles [juízes] vêm a adoptar uma postura diferente
porque é tudo mais planificado” (Ent. 39).

A definição do início da execução é importante, não só para


esclarecimento dos técnicos e do jovem, como também devido à definição dos
próprios tempos, necessariamente diferentes na vida de um adolescente:

“Aqui é a tal questão do tempo, a questão de um mês na vida destes


jovens é muito complicado” (Ent. 40).

Consideram, assim, que é necessário conhecer-se o momento do início


da execução da medida, se deve ser, ou não, a partir do trânsito em julgado da
decisão homologatória do PEP. Na opinião de um magistrado judicial
entrevistado:

“Eu acho que deve ser a partir do trânsito em julgado da


homologação judicial do PEP, porque o juiz aplica a medida, notifica
o Instituto de Reinserção Social para o Instituto de Reinserção Social
dizer qual é o PEP para aquele miúdo e só depois é que o juiz o
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 441

homologa e penso que se deve contar o trânsito em julgado da


decisão homologatória. Portanto, o momento em que se começa a
contar o prazo de duração da medida deve ser a partir do trânsito
em julgado” (Ent. 25) .

Neste quadro, alguns operadores apontam, ainda, para a necessidade de


se preverem prazos para a homologação do PEP.

Importa, também, dar conta de uma outra crítica apontada por vários
entrevistados relativamente aos efeitos da revisão desta medida tutelar. De
acordo com a LTE, e como já referimos, uma medida tutelar é revista quando,
entre outros aspectos, o jovem se tiver colocado intencionalmente em situação
que inviabilize o cumprimento da medida ou o jovem tiver violado os deveres
inerentes ao cumprimento da medida (artigo 136.º, alíneas e) e f)). Nesses
casos, o juiz pode, de acordo com o artigo 138.º da LTE, advertir o jovem para
a gravidade do seu comportamento, modificar as condições da execução da
medida, substituir a medida por outra não institucional mais adequada ou
ordenar o internamento em regime semiaberto por período de um a quatro fins-
de-semana. Uma vez que a medida de acompanhamento educativo é a medida
não institucional mais grave, a opção de revisão é, maioritariamente, aquela
última hipótese, opção que suscita várias críticas e diferentes procedimentos
nos diferentes tribunais, como vimos no Capítulo VI.

A grande maioria dos nossos entrevistados defende que o internamento


por um a quatro fins-de-semana não é eficaz quando substitui a medida não
institucional, pelo que alguns entrevistados referiram que esta medida, mais do
que uma sanção, surge para os jovens quase como um prémio (P–6).

“A Lei fala que em certos casos quando o menino não cumpre as


injunções que o Tribunal lhe aplicou - uma das sanções possíveis é
o menino ir de um a quatro fins-de-semana e a partir daí parece que
o que os tribunais estão a fazer é a lavar daí as suas mãos e o
442 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

menino vai de fim-de-semana e depois pronto, não volta a fazer mais


nada. Claro que o «crime» compensa por esta maneira de pensar; a
criança sabe que em vez de fazer o que devia até vai para uns fins-
de-semana fantásticos, sobretudo no Verão que até tem uma piscina
aberta ali no Centro Educativo, como se fosse uma colónia de férias”
(Ent. 25);

“(...) Se não se continua o acompanhamento... isto é quase um


bónus. Poderá o jovem até pensar: «Bom, isto agora, tenho aqui os
fins-de-semana mas depois fica terminada a medida» (...)” (Ent. 47).

Considerando que este efeito da revisão da medida não é eficaz, um


outro operador refere que “o internamento nos fins-de-semana é,
manifestamente, insuficiente. Não está claro, se o legislador cessa a medida
com o internamento nos fins-de-semana ou não. Por outro lado, é uma
escalada para o internamento” (Ent. 3).

Uma vez que consideram que “o não funcionamento do acompanhamento


educativo deixa um bocado os magistrados «descalços»” (P-9), várias opiniões
vão no sentido de a aplicação do internamento por fins-de-semana não implicar
a cessação da medida tutelar não institucional. É isto que defende um
magistrado judicial por nós entrevistado:

“A minha opinião é que isto é uma sanção em relação ao facto dele


não ter obedecido a uma injunção, mas sem prejuízo de continuar a
medida que não foi aplicada dever ser aplicada. Isso devia estar na
Lei, porque o que está a acontecer é que se substitui, digamos, a
medida pela sanção e depois esquece-se que a medida continua em
vigor. Mas o que está a acontecer é que os tribunais consideram
esgotada a sua intervenção com a aplicação do internamento em
fins-de-semana, quando não deve ser. (...) O que não se pode fazer
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 443

é que o menino vá os cinco fins-de-semana para o Centro Educativo


e depois saia e a medida acabou. Isto, digamos, é um enxerto
sancionatório no meio de uma medida e é isso que deve ficar na Lei,
um enxerto sancionatório de uma medida de apoio” (Ent. 25).

5. 2. 2. A medida de tarefas a favor da comunidade

Embora não haja, ainda, estudos de follow-up que permitam apurar o


sucesso de cada uma das medidas tutelares, a sensibilidade e o conhecimento
prático dos nossos entrevistados apontam a prestação de tarefas a favor da
comunidade como uma das medidas com maior sucesso na sua execução.
Para tal apontam um conjunto de factores, entre eles, o facto de ser uma
medida de curta duração, de envolver o jovem numa tarefa específica não
escolar, de existir um número diversificado de EBT e da dedicação e empenho
com que estas se envolvem no acompanhamento da execução da medida:

“A medida mais pedagógica é a medida de tarefas a favor da


comunidade (...) já percebemos que a medida, de facto, «tem pés
para andar» e, portanto, já estamos a sugeri-la como primeira
medida. Mas, acontece, também, muitas vezes, que ela aparece
como revisão. Portanto, aparece porque uma primeira medida não
teve sucesso” (Ent. 34).

Um outro operador enfatiza a adesão das várias instituições:

“As instituições, elas próprias, aderem muito bem e sentem que


também tiram disso algum benefício e que reforçam a sua imagem
junto da população. E nós consideramos, aqui na equipa, que é
talvez das medidas mais pedagógicas que acompanhamos”
(Ent. 35).
444 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

Há, ainda, quem saliente a potencialidade desta medida no sentido da


aquisição de competências sociais.

“Há outras componentes que são muito importantes. Não é só a


tarefa. Há algumas coisas que sensibilizam. Muitas vezes os miúdos
ficam voluntários e estabelecem laços de amizades nas instituições.
Começam a inserir-se neste tipo de grupos mais alargados para
outros valores, com outras alternativas que eles até aí não
encontravam” (Ent. 39).

Para o seu sucesso contribui, ainda, o facto desta medida ter contornos
de execução explícitos e bem definidos, como nos é relatado por uma técnica
de reinserção social:

“Nas tarefas a favor da comunidade, temos que arranjar uma


instituição que receba o jovem e que nós achemos que é aquela que
melhor se adequa à situação. Depois há todo um acompanhamento
que é feito. Há um contacto com a instituição para ver que tipo de
tarefa pode ser executada. A situação é analisada com o jovem e
com a família. Juntamo-nos depois com a entidade onde a medida
vai ser executada, para se perceber muito bem todos os
procedimentos. Esta é uma medida de sucesso, mas tem também
envolvido, de facto, muito a equipa. Neste momento, há uma
clarificação muito precisa junto da instituição. É-lhe entregue uma
carta de direitos e deveres da entidade beneficiária, portanto a
entidade sabe aquilo a que tem direito, mas também quais os seus
deveres. E o jovem sabe, igualmente, quais são os seus direitos e os
seus deveres. Existe, de facto, uma colaboração muito grande.
Quando as coisas não estão a correr bem ou não estão correr tão
bem, a entidade entra imediatamente em contacto com a equipa, e a
equipa vai mantendo também um contacto, nesta fase ainda que
mais ou menos informal, mas para nos apercebermos de como a
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 445

medida está a ser executada. E no fim, faz-se uma avaliação, outra


vez, em que se juntam todos estes intervenientes: o jovem, a família
e a instituição. E dá-se depois conhecimento ao Tribunal da
avaliação” (Ent. 33).

Contudo, apesar de apresentar indicadores de sucesso significativos, a


medida de prestação de tarefas a favor da comunidade não é muito aplicada,
como vimos pelos dados apresentados. Tal deve-se, segundo os operadores
entrevistados, a um conjunto de factores, designadamente à falta de
sensibilização dos juízes para com esta medida e ao facto de considerarem
que ela não se adequa aos factos qualificados como crime mais graves por ser
uma medida com um curto tempo de execução.

Nesse sentido, um magistrado do MP afirma que as medidas por ele


propostas são, quase sempre, ou a medida de admoestação ou de
internamento em Centro Educativo, porque os jovens “surgem em situações
extremas: ou é suficiente a admoestação ou são casos em que o internamento
é necessário” (Ent. 22). Nos casos que não lhe parecem tão graves, propõe
uma medida de acompanhamento educativo. Dá o seguinte exemplo:

“Um jovem disparou da janela para a rua com uma pressão de ar e


duas pessoas foram atingidas nas pernas. O rapaz foi ouvido,
pareceu arrependido, o pai já lhe tinha imposto uma série de
castigos. O relatório do IRS apontava para prestação de tarefas a
favor da comunidade a desempenhar nos bombeiros. O processo foi
arquivado porque o enquadramento familiar era normal, estável e
não havia comportamentos desviantes anteriores conhecidos, além
da prestação de trabalhos nos bombeiros não ter proximidade com o
«crime» praticado” (Ent. 22).
446 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

Em sentido diferente, alguns juízes defendem a aplicação desta medida


sempre que se julgue necessária e adequada até porque, na sua opinião, há
meios para a sua aplicação, nomeadamente diversos protocolos com EBTs.
Alguns consideram, ainda, que há vantagens, dependendo do facto qualificado
como crime praticado, em o jovem executar uma medida tutelar ligada ao ilícito
cometido, sempre que tal se mostrar possível:

“Há imensos protocolos, fiquei pasmado com a quantidade. (...)


Temos de ver no caso concreto se temos meios ou não. Por
exemplo, o jovem que andou a destruir os parques da cidade porque
é que ele não há-de ir ajudar a recolher o lixo do próprio jardim onde
esteve, desde que não se verifique uma situação que implique
humilhação pública? Tem, naturalmente, que ser visto com algum
cuidado, para não se transformar a tarefa em trabalho infantil. Mas,
também o jovem não pode pensar que se passa por cima do que ele
fez, não é uma sanção-pena, mas é uma sanção e ele tem que se
responsabilizar em relação àquilo que fez. (...) E eles compreendem
este tipo de trabalho” (Ent. 25).

Sobre o modus operandi, um técnico do IRS esclarece:

“Fizemos uma primeira lista das instituições que nos disseram «Sim,
senhor. Nós aceitamos jovens com esta medida para execução
desta medida», e demos essa indicação ao Tribunal. Em geral, o
Tribunal aplica esta medida em breves traços. O Tribunal, em regra,
nem define em que instituição a medida vai ser executada. Define
sempre, isso sim, o número de horas e depois deixa toda a
execução à instituição e à equipa. O que não quer dizer que, por
exemplo, o Tribunal num caso ou noutro diga: «gostaríamos que
medida fosse executada numa família, ou numa escola, etc”. O
Tribunal pode sugerir o local, em função do motivo. O que não quer
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 447

dizer que se consiga sempre essa coincidência. Às vezes acontece


(Ent. 33).

O breve relato que se segue dá, precisamente, conta de um caso em que


foi possível que a medida de tarefas a favor da comunidade fosse executada
pelo jovem no local onde tinha praticado o facto qualificado como crime:

“O trabalho a favor da comunidade tem bons resultados. Por


exemplo, um jovem de ..., com abandono escolar, de uma família
muito carenciada, furou a rede de uma piscina comunitária e foi à
piscina. A medida aplicada foi TFC na piscina. O jovem
desempenhou muito bem as funções que lhe cabiam e no final ficou
a trabalhar durante algum tempo, voluntariamente, na piscina. O
funcionário apegou-se à criança” (Ent. 23).

Para alguns, a medida de prestação de tarefas a favor da comunidade


parece “só servir para jovens com certo suporte de formação e de condições
económicas e sociais” (Ent. 23). Contudo, como nos foi referido,
frequentemente, estando reunidas aquelas condições sócio-económicas
favoráveis por parte do agregado familiar do jovem, e sendo o facto qualificado
como crime de menor gravidade, opta-se pelo arquivamento do processo
(Ent. 22).

Um outro bloqueio prende-se com a duração da medida. Se, para alguns,


deveria ser mais longa, para outros deveria haver uma maior flexibilidade na
duração da medida:

“Há aqui que ponderar duas situações. Haverá situações em que já


foram atingidos os objectivos e revê-se a medida e extingue-se. E
haverá situações em que deveria ser possível uma maior duração
(Ent. 7).
448 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

Foram, também, levantados problemas quanto à definição do início da


execução da medida, tornando-se imperativo clarificar as regras sobre o
momento a partir do qual se começa a contar o prazo de duração da medida.

5. 2. 3. Imposição de obrigações

A execução da medida tutelar educativa de imposição de obrigações


levanta um conjunto de problemas, alguns comuns aos de outras medidas não
institucionais, caso das medidas de frequência de programas formativos e de
acompanhamento educativo, nomeadamente no que se refere à obrigação de
frequentar um curso de formação profissional.

Em primeiro lugar, foi-nos dito que alguns programas formativos e cursos


de formação profissional dependem, em grande medida, não só de
disponibilização de financiamento, como também da existência de vagas ou de
um número mínimo de alunos para funcionarem, o que leva a que o início da
execução da medida possa arrastar-se durante algum tempo. Quando tal
acontece é difícil manter o jovem “em espera” motivado para a execução da
medida:

“No caso da formação profissional, penso que há jovens que iriam


sentir efeitos positivos, mas a medida tem uma determinada duração
e, por vezes, não se consegue em tempo útil, fazer a formação. Eu
cheguei a ter miúdos sem acompanhamento educativo, mas apenas
a aguardar que surgisse um curso. O miúdo fica desocupado e ele
que até estava motivado acaba por perder essa motivação. E a
aguardar vaga durante meses...” (Ent. 39).

Enfatizando este problema, um técnico chama, ainda, a atenção para um


outro:
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 449

“Há algumas dificuldades em resolver algumas questões – por


exemplo, o IEFP cria turmas para formação profissional, mas depois
constata que não há alunos suficientes para colocar nessas turmas e
também são frequentes as dificuldades de calendário, pois não é
fácil colocar um educando durante o Verão, quando começa a
execução da medida” (Ent. 7).

Há, ainda, uma outra condicionante importante que nos foi amplamente
referida pelos técnicos de reinserção social e que diz respeito aos níveis de
escolaridade exigidos pela entidade formadora, que nem sempre os jovens
possuem sendo, por isso, excluídos:

“Muitas vezes, o IRS não pode propor a medida, uma vez que não
há programas adaptados à idade e à escolaridade dos jovens – os
limites etários para trabalhar não permitem que jovens com 13 anos,
por exemplo, frequentem esses cursos, nem jovens com graus de
ensino muito baixos. Porém, alguns jovens nunca vão conseguir o
nível de escolaridade necessário para o efeito” (Ent. 41).

No mesmo sentido, um outro técnico refere:

“Nestas medidas de imposição de obrigação de frequência de


programas formativos, encontramos uma dificuldade muito grande. É
que, de facto, os nossos jovens (...) têm uma idade já entre os 14, os
15 e os 16 anos, mas não avançam na escola. Tentamos arranjar
programas formativos ou formação profissional para ajudar, mas
depende da escolaridade deles...” (Ent. 33).
450 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

“A maior parte deles tem uma escolaridade muito baixa e é difícil


conseguirem com aquela escolaridade ter um curso que os motive...
Portanto, não há resposta para estes jovens” (Ent. 40).

Estes bloqueios levam, algumas vezes, à revisão da medida no sentido


de se conseguir uma alternativa mais viável antes do cumprimento da medida
cessar. O caso que se segue, elaborado com base em informações constantes
no relatório social e relatórios de execução de medida do IRS, é, a este
respeito, ilustrativo:

O jovem ... tinha 15 anos de idade quando praticou um facto


qualificado como crime de roubo. O seu agregado familiar é
constituído por sete elementos. O pai e a madrasta reconhecem que
as companhias do filho não são nada boas, considerando que
naquele bairro o ambiente é muito mau. Tem apenas o 4.º ano de
escolaridade. Reprovou duas ou três vezes no 5.º ano. No ano de
abertura do processo já não se inscreveu na escola. Apenas joga
computador e futebol. De acordo com o pai, o jovem chega a
ausentar-se de casa 2 ou 3 dias. Contrariamente à opinião do pai, o
jovem prefere matricular-se na escola à noite e trabalhar de dia do
que frequentar um curso de formação profissional. O pai considera
que o seu percurso desviante se iniciou quando ele deixou de ir à
escola, o que coincidiu com a separação da mãe. De acordo com o
pai, a mãe impunha respeito ao jovem, mas ele não quer estar com
ela regularmente. O pai diz que ela não se preocupa com o filho. O
IRS sugere a aplicação de uma medida tutelar de imposição de
obrigações, designadamente a frequência de um curso de formação
profissional na área da marcenaria ou serralharia, uma vez que, com
a frequência deste curso, o jovem poderá frequentar o ensino
recorrente, obtendo equivalência escolar ao 6.º ano de escolaridade.
A medida aplicada pelo Tribunal é, assim, a imposição de
obrigações, traduzida na frequência de um programa formativo na
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 451

área profissional, fixando a sua duração de no mínimo de 3 meses e


no máximo de 2 anos. Tendo sido inscrito no curso, a sua
candidatura ficou em apreciação devido à escassez de vagas.
Paralelamente, a equipa do IRS contactou o Centro de Emprego da
zona do jovem, onde foi dito que havia a possibilidade de este
integrar um curo de Carpintaria/Marcenaria com a duração de um
ano. Este curso seria iniciado dentro de um mês, desde a sua
inscrição, no entanto, devido a problemas administrativos, o curso foi
iniciado cerca de 4 meses depois. Após cerca de 7 meses de
frequência de curso, o jovem foi expulso por levantar alguns
problemas e apresentar comportamentos de risco, que incluíam
suspeitas de pequenos furtos e consumo de estupefacientes. Estes
factos pareciam ser agravados pelo facto de, nas imediações das
instalações onde decorria o curso, haver uma zona considerada de
risco. Consequentemente, o IRS propõe, no seu relatório de
execução de medida, a alteração desta para uma alternativa
profissionalizante, devendo o jovem ser, ainda, avaliado
psicologicamente. Quase um ano após a decisão, a medida é,
assim, revogada, devendo o jovem sujeitar-se a acompanhamento
psicológico no seio da Associação... e efectuar-se diligências no
sentido de se conseguir uma actividade profissional. A duração
destas novas imposições é de um ano a partir desta nova decisão.

Situações como esta levantam alguns problemas aos técnicos que se


sentem impotentes para resolver a situação, cabendo-lhes, apenas, solicitar a
revisão da medida:

“(...) se houver uma medida de imposição de obrigação para


frequentar o curso x, se por alguma razão, não estiver a frequentar o
curso x, nós temos que pedir revisão de medida. Isto é, fora da lei,
não podemos fazer nada. Temos que pedir a revisão da medida e
criar alternativas” (Ent. 39).
452 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

A conjunção destas dificuldades, bem como a existência de uma


tendência por parte dos magistrados para aplicarem medidas que obriguem o
jovem a completar o seu percurso escolar, leva a que, na sua grande maioria,
pelo que nos foi dito e possível constatar através da análise de processos
efectuados, a medida de imposição de obrigações e de acompanhamento
educativo implique, muitas vezes, a frequência escolar. No entanto, de acordo
com as entrevistas realizadas, esta nem sempre é a via mais adequada para os
jovens que, já votados ao insucesso e ao abandono escolar, se sentem
afastados da escola:

“Isso aconteceu-me com a medida de acompanhamento educativo.


Como não havia curso, o jovem foi para a escola e eu já sabia que
aquilo ia acabar por não resultar. Estávamos à espera da resposta
do curso, e depois acabou por não fazer aquele curso e foi para a
escola” (Ent. 39).

Defendendo que a obrigatoriedade de frequência escolar nem sempre é a


melhor opção, um técnico do IRS refere que

“ (...) para alguns o projecto não deve ser a escolaridade, porque


provoca insucesso da medida e frustração. Era preferível inscrevê-
los num centro de emprego e trabalharem, realizavam-se mais e
aumentava-se a sua auto-estima, mas os juízes querem é que sejam
inscritos em escolas, o projecto passa sempre pela escolaridade”
(Ent. 7);

É neste sentido, também, a opinião de um advogado:

“(...) Dizer a um miúdo que não vai à escola, que não gosta da
escola, mas que, se calhar, gostava de ter uma profissão manual,
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 453

que não a pode ter porque não tem idade ou a escolaridade


adequada é um contra senso” (P-7).

Deste modo, algumas opiniões vão no sentido de considerarem que


“certas medidas são aplicadas porque os jovens têm necessidades de
educação, só que não de educação para o direito – o que se passa é que não
sabem ler nem escrever” (Ent. 4).

De acordo com os técnicos entrevistados, a aplicação de uma medida,


seja ela qual for, deve ter sempre em conta o perfil do jovem, caso contrário
esta dificilmente será executada com sucesso e, por isso, defendem que, em
grande parte dos casos, a obrigatoriedade em frequentar a escola não é o
projecto mais adequado ao jovem. Nesses casos, os técnicos procuram
“avançar para medidas que, mesmo que não dêem equivalência escolar,
permitam algo extensivo e, portanto, ir ao encontro do objectivo que se
pretende” (Ent. 4). Para tal podem, como já foi referido, pedir a revisão da
medida ou, continuando a medida, procuram “arranjar alternativas, mesmo que
não seja para, de facto, obter uma formação com equivalência académica. Às
vezes conseguimos arranjar cursos de formação que não dão equivalência
escolar, ou programas formativos, ou outra coisa qualquer e nós pedimos a
alteração. É um espaço socializador (...). Porque, muitas vezes, o miúdo está
completamente desocupado, tem menos motivação face à escolaridade. Nós
temos um caso, neste momento, com um miúdo que estamos a tentar pegar
nele só através do futebol que é uma coisa que ele gosta e para a qual tem
talento. Já foi chamado e nós já falámos com o magistrado” (Ent. 39). Estas
alternativas surgem como fundamentais sobretudo em determinados casos:

“Temos agora um miúdo com 15 anos de idade na 3ª classe. Como


é que nós conseguimos manter esse miúdo na escola, na 3ª classe?
Acho que há aqui também uma certa violência... (...) É certo que
está em escolaridade obrigatória. É assim que a lei diz, é assim que
tem de ser. Mas, paralelamente, vamos aproveitar outras vias mais
454 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

motivadoras para o miúdo (...) Para não perdermos tudo, tentamos


oferecer outras alternativas” (Ent. 39).

5. 2. 4. Imposição de regras de conduta

No que se refere à imposição de regras de conduta, e devido à extrema


dificuldade do acompanhamento da sua execução, esta medida tende apenas
a ser proposta quando haja razões para crer que o jovem detém recursos
suficientes para, por si só, poder acatar as obrigações que sobre ele venham a
recair. Como já referimos, a participação do IRS no acompanhamento da
execução desta medida é reduzida, uma vez que é difícil para a equipa
controlar certas condutas do jovem como, por exemplo, fumar ou ingerir
bebidas alcoólicas (Ent. 33, 34). É neste sentido o depoimento de um dos
entrevistados:

“Ao início, aquando da implementação da lei, ainda nos começaram


a pedir o acompanhamento da medida de imposição de regras de
conduta, mas, depois, chegámos todos à conclusão, equipa e
Tribunal, de que era uma medida que, ou a família se
responsabilizava pelo cumprimento e pela execução, ou senão nós
não tínhamos como. O que também muitas vezes acontece é,
quando o Tribunal, por exemplo, diz: «Não pode sair de casa das
tantas às tantas horas», aí o Tribunal pede, em meios pequenos,
normalmente à GNR que tente, de alguma maneira, controlar. Mas,
de facto, é uma medida que não temos como controlar nem
acompanhar” (Ent. 33).

A necessidade de envolver a família na aplicação desta medida, uma vez


que é sobretudo esta que terá de controlar o dia-a-dia do jovem, leva a que,
muitas vezes, o juiz ao aplicar a medida procure, desde logo, obter a adesão
da família do jovem:
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 455

“Muitas vezes, o Ministério Público propõe uma medida e se em


sede de audiência, o juiz verifica que não há a adesão da família, ele
altera, logo naquela altura, a medida por outra que considere que vá
ter a melhor (...) adesão de todos” (Ent. 37).

5. 2. 5. Programas formativos

A grande maioria dos nossos entrevistados considerou que a medida de


frequência de programas formativos tem inúmeras potencialidades:

“Dentro dos programas formativos há, por exemplo, um programa


que é o Programa de Educação Rodoviária, que não tem sido uma
medida muito aplicada, mas é uma medida com grandes
potencialidades. E temos uma boa articulação com a Prevenção
Rodoviária Portuguesa; se lhes dissermos que temos um miúdo a
quem estamos a pensar propor a aplicação desta medida e desde
que o Tribunal, de facto, a aplique, eles são receptivos. Fazem,
normalmente, depois o programa em sessões de grupo. Podem
fazer o programa individual ou em grupo, mas a psicóloga com quem
eu falei da Prevenção Rodoviária, diz que perceberam que o jovem
se sente muito mais motivado, se em vez de sessões individuais,
forem sessões de grupo” (Ent. 33).

Um outro técnico faz referência a outros programas:

“Eu estou-me a lembrar de alguns programas, por exemplo, de um


que era «Aventura e Risco». Desenvolvem-se competências
pessoais e sociais, ligadas à própria prática desportiva, até aos
desportos radicais.. (...), penso ser uma boa medida se for bem
implementada, e eu falo até da experiência que tenho porque houve
alguns casos em que lançámos mão dessa medida, porque havia
456 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

também respostas que nos permitiam utilizar essa medida, com


acolhimento em instituições vocacionadas para essa actividade
formativa, portanto, destinadas à execução desta medida e os
resultados foram francamente positivos. (...) Lembro-me de casos
em que o internamento em Centro Educativo se tornou
absolutamente desnecessário porque esta medida, quando bem
implementada, com programas bem concretizados, é muito eficaz
(Ent. 47).

Apesar das potencialidades, a nossa pesquisa permitiu identificar alguns


problemas na execução desta medida.

A escassez de programas formativos assume-se como um forte bloqueio


à sua implementação. Como nos referiram vários técnicos, com excepção de
alguns programas, nomeadamente do Programa de Prevenção Rodoviária, o
leque de programas disponíveis para estes jovens é muito restrito:

“Para cativar o jovem é necessário ir buscar aquilo que


verdadeiramente é do interesse dele. (...) Tem que se diversificar o
tipo de respostas. Eu acho que não se fomenta a iniciativa da
comunidade no sentido de criar programas, devidamente apoiados.
(...) Ainda não há no nosso país esse sentido de iniciativa e também
o Estado não fomenta o suficiente esse espírito... Isso tem que ser
complementado com um efectivo apoio económico que permita que
esses programas subsistam. Mas, não me parece que haja ainda
essa aposta. As pessoas desligam-se do problema e querem, o mais
rapidamente possível, que o jovem encontre uma instituição...”
(Ent. 47).

O número diminuto de programas disponíveis e a sua pouca diversidade


podem colocar problemas à execução da medida, uma vez que o sucesso
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 457

desta depende, pelo que nos disseram, da sua adequação ao perfil do jovem,
às suas necessidades específicas, ao facto qualificado como crime praticado e
ao seu contexto sócio-familiar (Ent. 7). Na análise que efectuámos de
processos deparámo-nos com o seguinte caso de insucesso desta medida que
nos parece ilustrativo:

A jovem... praticou um facto qualificado como crime de roubo com 15


anos de idade. Vivia com a mãe, após esta a ter recolhido da vida de
rua que fazia. Estava grávida de 4 meses. Aquando da execução da
medida estava inscrita no 5.º ano de escolaridade, embora passasse
os dias em casa sem qualquer ocupação. A medida aplicada foi a
frequência de programas formativos de educação sexual e um
programa de aquisição de competências sociais e pessoais durante
6 meses. Aquando do início do acompanhamento da execução da
medida, e apesar de várias diligências nesse sentido, a equipa do
IRS teve muitas dificuldades em contactar a jovem, só o tendo
conseguido fazer 3 meses após a comunicação da decisão do
Tribunal ao IRS. Nessa fase foram feitos diversos contactos com a
Dra..., no sentido de indagar a possibilidade de a jovem frequentar o
programa formativo de educação sexual e de um programa de
aquisições pessoais e sociais na associação... A Dra... referiu ao
IRS que a jovem já tinha estado a frequentar aquela Associação e
que a deixou quando nasceu o seu filho, mas mostrou total
disponibilidade em integrar a jovem no mesmo programa.

Durante a entrevista, a jovem não mostrou interesse nem vontade


em frequentar o programa formativo, apresentando como
justificações ter de tomar conta da filha e não ter dinheiro para as
deslocações, mantendo, mesmo, uma postura arrogante e
agressiva. A jovem acabou por integrar o programa formativo, tendo
a equipa do IRS oferecido à jovem 2 módulos de autocarro para
efectuar as primeiras deslocações (teria direito, posteriormente, a
passe social). No entanto, a jovem não comparecia à formação, pelo
458 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

que, 4 meses após a comunicação da decisão do Tribunal ao IRS, o


IRS propôs a revisão da medida.

Para além da escassez de programas formativos, os técnicos de


reinserção social referiram que alguns magistrados não têm, na sua opinião,
um conhecimento suficientemente esclarecido em relação a estes cursos e
“nem sequer sabem o que isso é” (Ent. 39). Parece, assim, haver uma certa
confusão entre a medida de frequência de programas formativos e de
imposição de obrigações que passe pela frequência de um curso de formação
profissional (Ent. 5).

5. 2. 6. Reparação ao ofendido

A medida tutelar educativa de reparação ao ofendido, geralmente


executada pelo Tribunal, parece dividir os nossos entrevistados quanto à sua
eficácia. Se alguns consideram que os seus propósitos pedagógicos podem ser
questionados, outros entendem que, sempre que bem aplicada, esta pode ter
sucesso nos fins a que se propõe.

Há duas questões essenciais a colocar em relação à medida de


reparação ao ofendido e que estão directamente relacionadas com duas das
modalidades que esta medida pode assumir: apresentação de desculpas ao
ofendido e compensação económica, no todo ou em parte, pelo dano
patrimonial. No que diz respeito à primeira e, embora a lei não o exija, a opinião
geral é que não deve ser proposta na modalidade de apresentação de
desculpas ao ofendido se este as não quiser aceitar, até porque pode ter um
efeito perverso para o próprio jovem:

“(...) Se o jovem pede desculpa e ainda por cima esse pedido não é
aceite, aumenta mais o ressentimento, então num jovem
adolescente... pedir desculpa a alguém e o outro não aceitar é
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 459

complicado. Nós ainda engolimos, agora um adolescente, eu duvido


muito” (Ent. 7).

“A outra questão é a do pedido de desculpas. (...) Se faz sentido a


este jovens apresentar desculpas, sim senhora. Agora, se a medida
for imposta de fora, quer dizer, o efeito pedagógico cai por terra...”
(Ent. 40).

Com o objectivo de não se perder o potencial pedagógico desta


modalidade, algumas vozes defendem o recurso à mediação no âmbito da
aplicação desta medida:

“Ainda há poucos casos, mas, por exemplo, uma das coisas que eu
acho que se deve chamar à atenção, e já se faz lá fora, é que a
mediação também deve existir no âmbito da reparação. Nós
sabemos como muitas vezes se faz nos tribunais, é ali com a vítima
e com o infractor, sem aquele ambiente que a mediação promove e
que é mais educativo. Ou seja, antes de aplicar uma medida de
reparação ao ofendido, o magistrado juntar vítima e ofensor para
que eles próprios cheguem a um consenso relativamente à
reparação. Isso era muito mais educativo. Tinha efeitos muito mais
pedagógicos do que uma medida imposta (...)” (Ent. 40).

No que diz respeito à segunda modalidade da reparação ao ofendido,


esta só pode ser aplicada se, de facto, o jovem tiver condições económicas
para reparar, monetariamente, o dano causado. Como nos referiu um
magistrado do MP,

“Quando o jovem é acusado de ter tirado dinheiro do bolso a


alguém. Se for um jovem filho do Sr. professor ou de alguém com
460 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

condições económicas, também é fácil aplicar uma medida de


reparação do ofendido e também se forem pequenas quantias. Mas
quando se vê que é um jovem de um bairro menos favorecido não
vou pedir a reparação do ofendido porque ele não tem meios”
(Ent. 10).

5. 2. 7. Admoestação

A medida tutelar de admoestação foi considerada, por vários


entrevistados, como sendo a menos eficaz do conjunto de medidas tutelares
não institucionais, pois consideram que não tem efeitos pedagógicos para o
jovem (Ent. 7), já que não exige, por parte do jovem, qualquer esforço no
sentido da reparação ou reconhecimento pelos actos cometidos. É, sobretudo,
um “raspanete que é dado pelo juiz” (Ent. 12).

5. 3. A Articulação do IRS com outras entidades na execução de


medidas tutelares não institucionais

Como vimos nos pontos anteriores, durante a execução de uma medida


não institucional, são várias as entidades com as quais o IRS tem de se
articular, desde logo a família, mas também a escola, a entidade beneficiária de
trabalho (já amplamente referida nos pontos 1.7 e 5.2.2), a Segurança Social, a
entidade formadora, os serviços médicos, os tribunais, etc. Como nos referiu
um responsável pelo IRS:

“Eu diria assim: primeiro ponto, a execução das medidas tutelares


educativas não institucionais não é tarefa exclusiva dos serviços de
reinserção social, ou seja, o artigo 130.º não o exige, e isto é uma
coisa que parece muito simples mas é muito complexa. É claro que
nunca rejeitamos a execução de nenhuma medida e, efectivamente,
o caminho que estamos a fazer é o do criar melhores condições para
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 461

a execução das medidas não institucionais, mas isto não significa


que todas as medidas não institucionais devam ser executadas pelo
Instituto. É a autoridade judiciária que as fixa, quem as avalia, e que
designa quem deve ser o responsável pela execução das medidas.
Há medidas que podem ser executadas no bairro, no clube de
bairro” (P-6).

Nessa articulação necessária surgem, frequentemente, dificuldades de


comunicação e de definição de competências, como nos explicaram alguns
entrevistados, pelo que a eficácia da medida fica comprometida.

5. 3. 1. A articulação com a família do jovem

A família tem um papel crucial na aplicação de todas as medidas não


institucionais, tendo sido os nossos entrevistados unânimes no que se refere à
necessidade do seu envolvimento para o sucesso da execução da medida.
Consideraram, assim, que para além de ser fundamental criar factores de
motivação no jovem é, igualmente, muito importante, motivar a família e fazê-la
entender a necessidade de participar na execução da medida. Esta motivação
nem sempre é fácil no que se refere às medidas não institucionais porque,
como não implicam o afastamento do jovem do seu meio familiar, “parece que
está tudo igual” (Ent. 7) e é difícil, por exemplo, fazer com que o jovem vá à
escola ou frequente determinado curso de formação. Uma vez que os técnicos
do IRS não podem vigiar o jovem constantemente, é necessário responsabilizar
a família e consciencializá-la que essas medidas são necessárias. Os
exemplos que se seguem são, a este respeito, elucidativos:

“ (...) por exemplo nós tivemos aí um caso do miúdo que anda com
os pais nos carrosséis, hoje estão num sítio e amanhã estão noutro
sítio, é evidente que este miúdo tem todas as condições para não ir
462 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

à escola porque acompanha os pais, até põe as fichas, etc”


(Ent. 10).

O mesmo operador, magistrado do MP, acrescenta que se bem que há


pais que se esforçam para que os filhos vão à escola, mas não conseguem,
outros há que preferem que estes não frequentem qualquer actividade escolar:

“Também há esse género em que os pais insistem e os miúdos vão


jogar futebol e vão fazer tudo menos ir à escola, mas isso é outra
questão. Eu estou a falar mesmo naqueles casos em que os
próprios pais não fazem questão nenhuma, não fazem nada para
que os miúdos frequentem a escola, estão-se nas tintas para a
escolaridade obrigatória, estão-se nas tintas para a escola.

Temos uma situação concreta ali de ... de um pai que era madeireiro
que disse «Fez a 4.ª classe, chega muito bem, não tem nada que
fazer mais coisa nenhuma. Agora fica lá ao pé da minha mãe a
aprender a cozinhar» e vira-se para mim e para o Dr. ... e diz que
«Isto precisava era de trezentos Salazares para acabar com esta
coisa da escola». Chamámos a miúda com dez anos, tinha acabado
a 4.ª classe com dez, onze anos, e perguntámos «Gostavas de ir à
escola?» «Gostava» «Só não vais porque o teu pai não te deixa?»
«Sim só não vou porque o meu pai não me deixa» «Então pronto
vais à escola». E eu disse «tenho muita pena mas esta miúda tem
que ir para uma instituição para poder continuar a estudar e este pai
vai bracejar para onde quiser mas temos que meter a miúda numa
instituição». Penso que as assistentes sociais lhe disseram que
aquela medida já estava promovida e ele, nessa perspectiva, acabou
por condescender e deixar ir a miúda à escola e como não temos
tido nenhuma informação em contrário presumo que ela continue a
ir” (Ent. 10).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 463

Alguns pais demitem-se da responsabilização de obrigar os filhos a irem à


escola porque consideram que esta é um sítio onde eles aprendem
comportamentos desviantes:

“(...) o pai achava que, no fundo, a escola só iria ensinar à miúda os


maus caminhos. Também há muito essa teoria «Esses maus
caminhos, é o que eles vão aprender para a escola é a drogar-se e
fazer coisas horríveis e mais nada».

E depois há esta situação que (...) as mães saem de casa para


trabalhar e os pais saem de casa para trabalhar às sete, oito da
manhã, acordam os miúdos, mandam-nos para a escola, os miúdos
até vão para a escola, porque até gostam de estar na escola só que
vão jogar a bola, depois na escola ninguém os apanha dentro das
aulas” (Ent. 10).

Para combater estas e outras situações semelhantes em que há uma


notória desresponsabilização por parte das famílias, alguns operadores
defendem que “deveria existir uma forma de co-responsabilização dos pais,
eventualmente de âmbito pecuniário” (P-4) e, até, que a própria lei devia punir
os pais (Ent. 11).

Para alguns técnicos do IRS, as estratégias de combate a estas lógicas


de desresponsabilização parental passam por um esforço das equipas do IRS
na definição de estratégias que permitam envolver as famílias e minorar os
efeitos da sua ausência na execução da medida.

Deste modo, como nos disseram, “nós, técnicos, vamos também a casa
do jovem e à escola. Portanto, não são só os miúdos que vêm cá à equipa e as
suas famílias. Nós também vamos ao encontro deles. Quando não colaboram,
pronto, vamos arrancando «cabelo por cabelo». Vamos idealizando estratégias,
formas para que haja alguma implicação” (Ent. 39).
464 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

Não obstante estas estratégias e empenho no sentido de envolver a


família na execução da medida, os técnicos entrevistados referiram-nos que se
esta não se mostrar interessada ou causar constrangimentos, “o jovem é
trabalhado individualmente” (Ent. 39):

“Quando estamos perante um jovem que está em cumprimento de


medida com 16 anos, a família tem de ser implicada, obviamente,
mas quem é o actor da medida é, de facto, o jovem. Portanto, ele
tem que criar alguma autonomia, porque esta é também uma das
competências pessoais. De facto, há uma responsabilização que
tem que ver com o seu comportamento. Os pais são sempre
chamados, sobretudo, por exemplo, ao nível da aplicação de rotina
de regras em casa. Obviamente, que há todo um trabalho também
feito em conjunto com os pais, no sentido de os sensibilizar para
eles entenderem a medida que é aplicada aos filhos. Onde é que
eles estão? Porque é que estão ali? E, claro, qual poderá ser o papel
deles. Obviamente que, nos casos em que as famílias são, de facto,
um factor «entupidor» do sistema, o melhor é ficarem de lado.
Temos que agarrar no miúdo sozinho. Não vale a pena estar a
insistir, porque não temos estrutura e o nosso objectivo não é
trabalhar a família, nós trabalhamos indivíduos. Se ele tem 15, 16
anos, alguns a caminho dos 17 anos, é óbvio que temos que intervir,
sobretudo, ao nível da mudança naquele jovem. Mas não estou a
dizer que não fosse importante também trabalhar com as famílias”
(Ent. 39).

Como o anterior testemunho sugere, foi-nos referido, em geral, que tende


a haver um maior esforço em envolver a família na execução da medida,
tentando que esta tenha uma atitude mais pró-activa nos jovens com 12 ou 13
anos de idade:
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 465

“12, 13 anos é uma idade complicada em que os jovens não têm o


sentido de responsabilidade do cumprimento destas medidas e se
não forem amparados em casa é mais complicado” (Ent. 36).

Para além de diversos entrevistados considerarem que, de facto, a Lei


nada diz quanto aos esforços que devem ser encetados para implicar a família
na execução de qualquer medida tutelar não institucional, alguns técnicos
referiram que, frequentemente, o excesso de trabalho também dificulta um
maior esforço nesse sentido:

“É completamente impossível numa equipa de 8 pessoas em que


temos setenta e tal pedidos de relatórios por mês,
acompanhamentos com medidas, cinquenta acompanhamentos
educativos, mais trinta de outro tipo de medidas... é completamente
impossível. Mais trinta e tal solicitações por mês de avaliações
psicológicas e de relatórios... É completamente impossível. Portanto,
é complicado. E há uma coisa: de facto, aquilo que é definido
também na LTE, é que é o próprio jovem que está em questão.
Obviamente que ele não está exactamente pela qualidade de jovem,
ele não vive sozinho, ele vive em família, só que, muitas vezes,
estas famílias, de facto, têm muita dificuldade em acompanhar
activamente, a execução da medida e, portanto, são chamados em
termos de coisas muito objectivas e restritas” (Ent. 39).

Parece, por isso, resultar da nossa pesquisa que, na maioria dos casos,
não é fácil que a família participe, pelo menos de uma forma mais activa e
menos reactiva, na execução da medida do jovem, até porque, como nos foi
relatado, “são muitos os casos em que são os próprios pais a pedir que o
jovem seja fechado, dizendo «É melhor fechar o menino porque já não temos
mão nele»” (Ent. 47).
466 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

No entanto, também nos foram relatados casos de sucesso:

“Eu estou-me a lembrar de um caso concreto em que houve uma


evolução muito positiva da própria família que, num primeiro
momento, era uma família demitida, uma família que pouco ou nada
investia no filho e nas necessidades que ele apresentava e,
curiosamente, foi adoptando uma postura completamente diferente e
positiva. Muito envolvidos. Penso que interiorizaram também...”
(Ent. 35).

Alguns entrevistados acrescentam, ainda, que, muitas vezes este esforço


que é feito em relação ao jovem acaba por ser inglório, já que a falta de apoios
à família, nomeadamente a nível económico e, até, psicológico, leva a que,
independentemente do grau de sucesso da intervenção junto do jovem, este
mantém-se nas mesmas condições familiares e sócio-económicas:

“(...) independentemente do tipo de intervenção ou medida, nós


mantemos o miúdo exactamente no mesmo, nas mesmas condições
e depois colocam-nos a questão: até que ponto é que vai surtir
algum efeito a nossa intervenção se o jovem continua nas mesmas
condições, se ele depois sai de junto de nós e continua tudo na
mesma?” (Ent. 41).

Assim, apesar do consenso no sentido de que a família do jovem, se


apresentar disfunções, deve, também, ser acompanhada paralelamente, uma
vez que é um interlocutor importante na execução de medidas tutelares, isso
raramente acontece. Para tal, também contribui a dificuldade de articulação
com outros organismos, nomeadamente com a Segurança Social, a quem
compete, na opinião da maioria dos nossos entrevistados, fornecer este tipo de
apoio:
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 467

“Nós fazemos articulações para famílias abandonadas ao nível do


social, quer seja com as comissões de protecção, sejam outras, mas
ainda hoje me disseram: «Se vocês estão a intervir, nós não vamos
intervir»” (Ent. 7).

Estas dificuldades levam a que vários técnicos considerassem que


“deveriam ser criadas estruturas capazes de dar respostas a esse tipo de
pedidos e que seriam importantes. E não há” (Ent. 36).

5. 3. 2. Articulação com os tribunais

Durante a execução das medidas tutelares não institucionais, o IRS e o


Tribunal têm, necessariamente, de estabelecer linhas comunicacionais entre si.
A articulação com estas duas entidades começa, desde logo, com o pedido de
relatório social, no qual o IRS propõe uma medida tutelar para o jovem e
mantém-se durante a execução da medida. As opiniões recolhidas relativas à
fluidez e eficácia dessa comunicação não foram unânimes.

Alguns operadores consideram que a articulação entre IRS e tribunais


funciona eficazmente, havendo uma enorme abertura ao diálogo por parte das
duas entidades:

“Nós propomos, em muitos casos, as medidas e o Tribunal decide


ou não decide, concorda ou não concorda, sendo certo, como já
disse, que é algum risco da nossa parte propor medidas, mas nós
propomos e, portanto, a articulação com o Tribunal, eu diria que é
das coisas melhores que temos. Temos a maior abertura dos
magistrados, quer sejam magistrados judiciais, quer sejam do
Ministério Público, quer com contactos informais, telefonemas,
reuniões, quer àquilo que nós propomos por escrito. E, portanto, não
nos queixamos, antes pelo contrário, achamos que temos a maior
468 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

abertura com os magistrados e também o acesso dos magistrados


aos nossos serviços tentamos facilitá-lo o mais possível. Sempre
que o magistrado entende convocar um técnico para ir a Tribunal ou
à audiência ou para troca de impressões...” (P-6);

É, também, no mesmo sentido a opinião de um magistrado do MP:

“Da minha experiência, os relatórios da Segurança Social e das


equipas do IRS têm sido praticamente vinculativos. Isso não tenho
dúvidas nenhumas. Tanto o juiz como eu em qualquer questão em
que temos dúvida, e às vezes o próprio relatório é num sentido e
penso «Não me parece nada isto, não tenho nada esta ideia» e
telefono ao técnico para discutir a situação. Nunca, nem eu nem o
juiz, tomamos uma decisão neste sentido «Elas dizem isto mas eu
estou-me nas tintas vou fazer assim porque eu acho que é assim».
Nunca fazemos.

Portanto, temos o cuidado de falar, de ouvir os técnicos, às vezes


exageramos neste sentido, obrigando-as a perder muito tempo,
porque elas fazem o relatório e depois são convocadas para vir cá
para o acordo de promoção e protecção, mas falamos sempre com
as técnicas e elas estão sempre presentes no acordo até porque, às
vezes, entre o relatório e o virem aqui já se passou não sei o quê e
«Afinal o que nós tínhamos dito não é bem isto»” (Ent. 10).

Outros operadores defendem, contudo, que “o casamento entre o IRS e


os tribunais ainda não foi feito” (Ent. 7), considerando que as propostas de
aplicação de medida dos técnicos do IRS nos seus relatórios sociais são
desvirtuadas pelos magistrados judiciais e do MP (Ent. 8).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 469

Considerando que o IRS não tem que fazer proposta de medida no seu
relatório social:

“Mais concretamente foram solicitados 4350 relatórios no ano


transacto e foram aplicadas 1058 medidas não institucionais. O
relatório tem como função auxiliar o Tribunal em duas vertentes.
Primeiro, ainda na fase de perceber se há ou não necessidades de
educação para o direito e em que é que elas se consubstanciam.
Segundo, se o pudermos fazer, pudermos dar alguns elementos ao
magistrado ou ao Tribunal no sentido de o juiz poder avaliar quais
são os caminhos possíveis ou adequados para, sendo certo que
esta segunda fase ou esta segunda área de informação tem que ser
muito cautelosa, poder aplicar a medida. Segundo, não é tarefa que
tenha que ser exclusiva do Instituto. Terceiro, às vezes, é mal
percebido. Porquê? Porque pode não se verificar o «crime». Pode
não se provar. Segundo ponto, o magistrado pode ter outro
entendimento completamente diferente. Terceiro ponto, não é
imprescindível que seja o Instituto a executar. E, portanto, estar a
desbravar caminho para um programa formativo para incluir o jovem
numa determinada área ou programa sem que se saiba se essa é a
vontade do magistrado, estamos a dar o passo, digamos assim, à
frente do Tribunal e fora, digamos assim, da nossa legitimidade”
(P-6).

De acordo com algumas opiniões, o facto de alguns magistrados judiciais


e do MP desvalorizarem a informação contida nos relatórios sociais, deve-se a
um desconhecimento da lei por parte dos magistrados, bem como a uma falta
de formação no sentido de melhor conhecerem, quer a LTE, quer,
especificamente, a eficácia das medidas não institucionais:

“A LTE surgiu sem haver discussão, sem as instituições serem


ouvida. (...) É curioso notar que os magistrados que já estavam nos
470 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

TFM no tempo da OTM aplicam a LTE como se de uma lei de


protecção se tratasse, os outros aplicam como se fosse direito penal
(...) Nas formações promovidas pelo CEJ aparecem sempre os
mesmos magistrados, os mais curiosos e estudiosos. Muitos nunca
frequentam tais acções de formação. São os mais curiosos que
demonstram uma maior flexibilidade” (Ent. 7);

“O ano passado fizemos uma sessão que até foi num colégio da
Casa Pia. Fizemos uma sessão de informação de divulgação. Nós
temos vindo a fazer isso. Mas só para terem a noção, por exemplo,
no ano passado, das medidas não institucionais que foram
aplicadas, em todas elas, decresceu o número relativamente aos 2
anos anteriores” (P-6).

Para alguns técnicos do IRS este desconhecimento leva a que surja,


frequentemente, alguma confusão na aplicação das medidas, uma vez que
consideram que nem todos os magistrados sabem, concretamente, no que
consiste cada uma delas, podendo não aplicar aquela que mais se adequa ao
jovem:

“Alguns magistrados têm muita dificuldade em distinguir medidas


tutelares de medidas de promoção e protecção. Alguns
acompanhamentos educativos consistem em verdadeiras medidas
de promoção e protecção” (Ent. 6).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 471

5. 3. 3. Outras articulações necessárias: antes e depois da


execução da medida

Para além das entidades já mencionadas, foi-nos, ainda, referida a


necessidade de articulação com outras entidades, tais como a escola, os
serviços médicos e/ou a Segurança Social.

O sucesso da execução de uma medida está dependente de uma


articulação inter-institucional e, consequentemente, as restantes entidades
envolvidas na execução da medida, para além do IRS, não podem adoptar uma
atitude de desresponsabilização.

A articulação que se impõe deve surgir, não só durante e após a


execução da medida e após o seu término, como também em termos de
prevenção, até porque, como vimos, as desestruturações familiares
contribuem, em grande medida, para a delinquência juvenil. Daí que alguns
operadores entrevistados nos digam que é necessário, também na prevenção,
uma maior articulação não só com a Segurança Social, mas também com
outras instituições:

“Se não apostarmos na prevenção, ou seja se não alterarmos a


estrutura educativa, os conteúdos curriculares, as nossas escolas e
suas formas de actuação, não há intervenção protectora que nos
salve, porque a maior parte dos nossos meninos que têm processo
de promoção e de protecção começam a apresentar atitudes
disfuncionais e a porem-se em perigo quando iniciam a escola
primária. Não são só os professores que não sabem ou não têm
gosto por ensinar. Os conteúdos curriculares não são apelativos. Por
um lado, a sociedade dos media motiva as crianças só para um tipo
de coisas, que tem sobretudo a ver com a imaginação, não há
obrigatoriedade da memorização, começa porque não há
obrigatoriedade de nada, nunca, quase desde que eles entram para
a escola primária. Ainda o único sítio onde começa a haver regras
para os miúdos é no jardim infantil, porque a educadora consegue.
472 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

Mas depois, muitas vezes, eles chegam a casa e os pais estão


cansados e querem é que eles comam rapidamente, dar-lhes banho,
enfiá-los na cama. Quando lhes dão o banho e os enfiam na cama,
porque muitos há que se vão deitar apenas com um copo ou um
biberão de leite. Por isso, quando eu digo prevenção, é prevenção
em toda a linha e envolvendo todos os serviços e instituições e não
só a Segurança Social. É a sociedade civil de uma maneira geral. É
a cidadania. Temos de pensar que, por muito que o Estado invista,
por muitas equipas técnicas que existam, por muito dinheiro que seja
distribuído às pessoas, a situação de risco e disfunção social não
desaparece, é na educação que está o segredo. Nós sabemos que a
nossa classe média alta, e média mesmo, não é por falta de dinheiro
que efectivamente não dá atenção aos filhos. Ora bem, nós, na
prevenção, temos que garantir e manter minimamente colo e afecto,
regras e ambiente protector e segurança. É preciso fazer alguma
coisa nesta matéria, pois podemos ter um batalhão de técnicos nas
instituições da Segurança Social, dos que agora existem e de outros
que viermos a criar alternativamente podemos criar tudo o que
quisermos, e isto irá de mal a pior. De entre o universo de jovens
com pp que a Segurança Social acompanha, 56 apresentam já
práticas de delinquência, consumo e pequeno tráfico de drogas,
roubo e agressão. Desses 56, 90% deles tem famílias
desestruturadas, monoparentais, normalmente mães ligadas à
prostituição, totalmente ausentes. Quando os filhos chegam a casa
não encontram ninguém, quando elas saem para o trabalho da noite,
chegam eles a casa e não está ninguém; entram e voltam a sair”
(P-1).

Enfatizando a prevenção a montante:

“O programa «Escola Segura» é um bom exemplo que devia ser


reforçado. A PSP devia ter uma área que trabalhasse a delinquência
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 473

juvenil, criar programas de prevenção, não apenas programas de


reactividade, sobretudo nos bairros mais problemáticos” (Ent. 12).

Para um outro operador, a escola deve, em alguns casos de menor


gravidade, agir, não só na prevenção, mas inclusive na resolução de alguns
problemas que surjam:

“As escolas são entidades públicas, mas se calhar com esta


questão acabam por elas próprias também ter que se reorganizar
para dar resposta a estes casos. O facto aconteceu na escola. Claro
que se são situações muito graves, a escola não consegue lidar com
isso, tudo bem, chamam-se as instituições. Agora, há um facto que é
praticado na escola, é a escola que faz o relatório, é a escola que é
implicada. Ela deve, pelo menos, dar as informações necessárias
(…) Com essa informação, a intervenção do Instituto pode ser mais
eficaz (Ent. 40).

No que se refere aos serviços médicos, esta articulação é importante,


naturalmente, a montante e durante a execução da medida, mas também após
o seu término. Como nos disseram, se um jovem precisa de acompanhamento
médico, esse acompanhamento deve ser prolongado para além da execução
da medida. No entanto, muitas vezes essa articulação tem de ser feita através
de contactos informais, dada a inexistência de protocolos, e, por outro lado,
nem sempre os serviços de que o jovem necessita estão disponíveis na sua
zona de residência (Ent. 52).

A necessidade de acompanhar o jovem após o cumprimento da medida


tutelar faz-se sentir, também, ao nível da protecção, uma vez cessada a
execução da medida tutelar. Deste modo, os operadores enfatizaram a
necessidade de uma maior articulação entre as equipas do IRS e as
Comissões de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (CPCJP):
474 Capítulo VII – As medidas tutelares não institucionais

“As equipas não institucionais estabelecem relações com instituições


da zona, porém a LTE não impõe que assim seja. Não deve haver
judicialização ad eternum, mas as CPCJP deveriam ter que
continuar o acompanhamento” (Ent. 13).

Vários operadores defendem, ainda, que deve haver uma articulação


mais eficaz com o Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP) e
outras entidades equiparadas durante e após a execução da medida:

“Só queria dizer uma coisa porque do muito que foi dito, considero
pertinente para a discussão, e que era o seguinte: acho que o
Ministério da Justiça devia estabelecer protocolos com outras
entidades para possibilitar que depois as medidas de
acompanhamento educativo possam ter aplicação prática. Falou-se
aqui muito no Instituto de Emprego e Formação Profissional mas não
será só essa entidade que pode dar saídas profissionais a esse
jovens. Portanto, assim há um outro problema. Quer dizer, não se
trata só de não se aplicar uma medida, às vezes os próprios
magistrados comprometem certos jovens, por exemplo, na
subscrição de um plano que constitui uma solução sobre a sua
situação no processo, e depois os jovens sentem-se enganados
porque afinal de contas, no médio prazo, não há saída e o
magistrado também não as pode inventar. Agora isso, pronto, é um
dos problemas que em Portugal, normalmente, existem: há muita
legislação mas depois não há estruturas de suporte” (P-9).

Defende-se, assim, em geral, a necessidade de densificar a intervenção


inter-institucional na execução das medidas tutelares, nomeadamente nos
casos mais graves:
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 475

“Há casos, que podem ser casos fronteira, mas para os quais devia
haver uma perspectiva de intervenção integrada, não só do IRS, na
situação do controlo da medida propriamente dita, mas no plano de
intervenção, por exemplo, de outro tipo, que devia ocorrer
simultaneamente (...) em parceria, numa visão integrada do caso,
com intervenções sistemáticas de diferentes serviços” (Ent. 7).

É consensual entre os operadores entrevistados que, com uma


intervenção sistémica e integrada, qualquer medida tutelar educativa executada
será, por certo, mais eficaz na educação do jovem para o direito.
Capítulo VIII

As medidas tutelares educativas institucionais:

entre a “contenção” e a “educação para o direito”

Introdução

No presente Capítulo debruçamo-nos sobre as medidas tutelares


institucionais previstas na Lei Tutelar Educativa (LTE). Descreveremos, em
primeiro lugar, as competências legais e a visão institucional do Instituto de
Reinserção Social (IRS) sobre a organização da intervenção educativa
relativamente aos jovens internados em centros educativos, com recurso aos
textos e documentos cedidos pelo IRS.

Em segundo lugar, procederemos a uma caracterização do perfil social


dos jovens internados, bem como das medidas que lhes foram aplicadas, isto
é, as medidas tutelares educativas de internamento e cautelares de guarda em
Centro Educativo, o internamento para realização de perícia sobre
personalidade, o cumprimento de detenção e o internamento em fins-de-
semana. Para tal, procedemos à observação de processos de educandos em
dois centros educativos – o Centro Educativo dos Olivais, em Coimbra, e o
Centro Educativo da Bela Vista, em Lisboa. Para a escolha destas instituições
foram determinantes os regimes de execução das medidas de internamento:
regimes fechado e semiaberto no Centro Educativo dos Olivais e regimes
aberto e semiaberto, no Centro Educativo da Bela Vista.

A nossa observação nos centros educativos decorreu entre Dezembro de


2003 e Fevereiro de 2004. Os processos por nós analisados constituem uma
amostra aleatória de cerca de 50% do total dos processos de jovens internados
naqueles dois centros educativos, no período da observação. No Centro
478 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

Educativo dos Olivais consultámos 13 processos e no Centro Educativo da


Bela Vista, 20 processos, num total de 33.

Para complementar a observação, realizámos entrevistas aos directores e


coordenadores das equipas dos centros educativos seleccionados para o
estudo de caso e, também, dos centros educativos Padre António de Oliveira,
em Caxias, e Navarro de Paiva, em Lisboa, assim como a operadores
judiciários. Socorremo-nos, ainda, de dados cedidos pelo Instituto de
Reinserção Social relativos à execução de medidas institucionais e aos dados
estatísticos fornecidos pelo Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do
Ministério da Justiça.

Por último, analisaremos, de um modo crítico, a lei e as práticas na


execução das medidas em centros educativos, recorrendo, designadamente,
às entrevistas e ao painel de debate e reflexão efectuados durante a
investigação.

1. As competências legais e a visão institucional do IRS no âmbito das


medidas institucionais

1. 1. As competências do IRS

A Lei n.º 166/99, de 14 de Setembro – Lei Tutelar Educativa - classifica,


no artigo 4.º, n.º 2, a medida tutelar de internamento em Centro Educativo
como medida institucional.

A aplicação da LTE pressupunha a existência de condições adequadas à


execução das medidas tutelares e demais decisões judiciais, designadamente
as que implicavam o internamento, daí terem sido criados os centros
educativos, pela Portaria n.º 1200-B/2000, de 20 de Dezembro. Os centros
educativos, nos termos do artigo 144.º da LTE, “são estabelecimentos orgânica
e hierarquicamente dependentes dos serviços de reinserção social” que
resultaram da transformação dos antigos Colégios de Acolhimento, Educação e
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 479

Formação, “podendo ser consideradas instituições completamente novas, tanto


nos objectivos, filosofia e modelos de funcionamento por que passaram a
reger-se, como pelas alterações físicas e estruturais a que foram sujeitos” (IRS,
2002: 10). Como se sabe, o IRS, de acordo com o disposto no artigo 2.º, n.º 1,
da Lei Orgânica do Instituto de Reinserção Social (Decreto-Lei n.º 204-A/2001,
de 26 de Julho), “é o órgão auxiliar da administração da justiça responsável
pelas políticas de prevenção criminal e reinserção social, designadamente nos
domínios da prevenção da delinquência juvenil, das medidas tutelares
educativas e da promoção de medidas penais alternativas à prisão”.

1. 2. A caracterização geral dos centros educativos

De acordo com o artigo 145.º da LTE, os centros educativos têm como


finalidade a execução da medida tutelar de internamento, a execução da
medida cautelar de guarda em Centro Educativo, o internamento para
realização de perícia sobre a personalidade quando incumba aos serviços de
reinserção social, o cumprimento da detenção e o internamento em
fins-de-semana. Podem aí ser internados jovens que tenham praticado factos
qualificados pela lei como crime, com idades compreendidas entre os 12 e os
16 anos (apesar de em alguns casos o internamento se poder prolongar até
aos 21 anos).

Como refere o Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 323-D/2000, de 20 de


Dezembro, que aprovou o Regulamento Geral e Disciplinar dos Centros
educativos (RGDCE), o internamento em Centro Educativo “constitui a medida
de último recurso destinada a menores cuja necessidade educativa,
evidenciada na prática de acto qualificado pela lei penal como crime, deva ser
satisfeita mediante um afastamento temporário do seu meio habitual e com
recurso a programas e métodos pedagógicos específicos”. De facto, de acordo
com o artigo 17.º, n.º 1, da LTE, a medida de internamento “visa proporcionar
ao menor, por via do afastamento temporário do seu meio habitual e da
utilização de programas e métodos pedagógicos, a interiorização de valores
480 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

conformes ao direito e a aquisição de recursos que lhe permitam, no futuro,


conduzir a sua vida de modo social e juridicamente responsável”. Ora, tal
afastamento temporário pressupõe a existência dos centros educativos, que
são, sobretudo, instituições educativas que, por meio da utilização de
programas e métodos pedagógicos, pretendem prosseguir os fins das medidas
tutelares: “a educação do menor para o direito e a sua inserção, de forma digna
e responsável, na vida em comunidade” (artigo 2.º, n.º 1, da LTE).

Nos centros educativos foram introduzidos três regimes de execução -


regime aberto, semiaberto e fechado (artigo 3.º, n.º 3 da LTE). O grau de
abertura ao exterior permitido em cada regime de execução, como refere o
Preâmbulo do RGDCE, “condiciona a organização interna dos centros”. Em
cada Centro Educativo funcionam sempre dois regimes de internamento,
devido à progressão faseada dos jovens, como adiante veremos. Os centros
educativos “organizam-se em unidades residenciais, com lotações e regras de
funcionamento diferenciadas consoante o regime de execução que os
caracteriza”, continua o Preâmbulo do RGDCE.

A Portaria n.º 1200-B/2000, de 20 de Dezembro, refere no seu Preâmbulo


que a criação dos centros educativos, o seu número, a sua classificação e
lotação tiveram “como pressupostos as condições físicas e os recursos
humanos existentes, a previsão do número de menores e jovens a ser
abrangidos por decisões de internamento no novo regime legal e ainda, na
primeira fase de implementação da reforma, a ponderação das consequências
da aplicação das normas que regem o processo de transição”. O legislador
considerava, ainda, no Preâmbulo, que com a entrada em vigor e com a
estabilização da nova legislação seria, porventura, necessário proceder a uma
revisão da classificação dos centros educativos, de modo a “ajustar as
respostas de institucionalização às necessidades”.

No final de 2000, como referimos no Capítulo IV, foram criados pela


Portaria n.º 1200-B/2000, de 20 de Dezembro, treze centros educativos: Santa
Clara, em Vila do Conde, Santo António, no Porto, Dr. Alberto Souto, em
Aveiro, do Mondego, na região da Guarda, São Fiel, na zona de Castelo
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 481

Branco, dos Olivais, em Coimbra, da Bela Vista, em Lisboa, Padre António de


Oliveira, em Oeiras, Vila Fernando, na região de Elvas, Navarro de Paiva, em
Lisboa, Corpus Christi, em Vila Nova de Gaia, São José, em Viseu e São
Bernardino, perto de Peniche (cf. Mapa VIII.1 – Localização dos Centros
educativos).

Aquando da sua criação, a maioria dos centros educativos destinava-se a


acolher jovens do sexo masculino, com excepção dos centros educativos
Corpus Christi166, São José e São Bernardino, sendo o Centro Educativo
Navarro de Paiva tradicionalmente vocacionado para receber jovens de ambos
os sexos com necessidades especiais de foro psiquiátrico.

A lotação de cada Centro Educativo oscila entre as 15 educandas dos


centros educativos de São José e de São Bernardino e os 38 jovens do Centro
Educativo da Bela Vista, conforme informação do IRS (2003b).

166
O Centro Educativo Corpus Christi entrou em desactivação, segundo informação do IRS, em
Dezembro de 2001 (IRS, 2002a: 15).
482 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

Mapa VIII.1
Localização dos Centros Educativos e classificação por regimes de execução

V i la d o C o n d e

P o r to
V i la N o v a d e G a ia
V is e u
A v e i ro (F e m in i n o )

C o i m b ra
G ua rd a

P e n ic h e ( F e m in in o )
C a s t e lo B r a n c o

L is b o a (N a v a rro d e P a iv a )

O e i ra s
E lv a s
L is b o a ( B e la V is ta )

Fonte: OPJ

Todos os centros educativos dispõem de um Regulamento Interno, no


qual estão elencadas as regras procedimentais e obrigações que decorrem da
LTE e do Regulamento Geral e Disciplinar dos Centros educativos (Decreto-Lei
n.º 323-D/2000, de 20 de Dezembro). O Regulamento Interno é considerado o
“código” de conduta de todas as pessoas que residem, trabalham ou que
visitam o Centro Educativo; desenvolve o Regulamento Geral, adaptando-o à
situação concreta do centro em causa; pretende garantir a convivência
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 483

ordenada e tranquila, a realização dos fins do Centro Educativo e do seu


Projecto de Intervenção Educativa (PIE) - instrumento no qual estão
perspectivadas as etapas a percorrer pelo educando durante a execução da
medida. A elaboração do Regulamento Interno, à semelhança do PIE,
pressupõe a participação das pessoas que trabalham no centro.

Os órgãos dos centros educativos, de acordo com o artigo 126.º do


RGDCE, são o director e o conselho pedagógico. O director tem as funções de
coordenação, gestão e orientação de todas as actividades desenvolvidas no
Centro Educativo (cf. artigo 127.º do RGDCE), competindo ao conselho
pedagógico “pronunciar-se sobre todas as matérias relacionadas com a
intervenção educativa do centro” (artigo 128.º do RGDCE).

O organigrama funcional dos centros educativos compreende o Director


do Centro Educativo que, nas suas funções, é coadjuvado, apoiado e
substituído pelo Subdirector167, o Sector Administrativo, com as respectivas
Secção de Pessoal (na qual se integra, designadamente, o pessoal de
segurança) e Secção de Contabilidade, Economato e Património168 e o Sector
Técnico-Pedagógico. Todos estes sectores encontram-se na dependência
funcional do Director do Centro.

O Sector Técnico-Pedagógico, ao qual, nos termos do artigo 132.º do


RGDCE, “compete assegurar todas as tarefas relacionadas com o acolhimento
e o enquadramento residencial, educativo, formativo e terapêutico dos
educandos, através da gestão das unidades residenciais e do desenvolvimento
de programas e acções decorrentes do projecto de intervenção educativa do
centro, tendo em vista a execução das decisões judiciais e a reinserção social
dos educandos”, compreende “todos os profissionais directamente envolvidos
na intervenção educativa” desdobrando-se na Equipa de Programas e na

167
No Centro Educativo dos Olivais, à data da realização do estudo de caso, o lugar de
Subdirector não se encontrava provido.
168
Na secção de economato inserem-se as áreas de limpeza, lavandaria e cozinha.
484 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

Equipa Técnica e Residencial, dispondo, cada uma destas equipas de um


coordenador.

Equipa de Programas

A Equipa de Programas, de acordo com o disposto no artigo 134.º, n.ºs 1,


4 e 6 do RGDCE, tem as funções de “assegurar o planeamento, a execução e
a avaliação dos programas educativos previstos no projecto de intervenção
educativa do centro” e pode organizar-se em Subequipa Pedagógica, à qual
cabe, “preferencialmente, o desenvolvimento de programas e actividades de
formação escolar, de animação sócio-cultural e desportivas, de orientação
vocacional e de formação profissional, bem como a articulação com o meio
exterior na perspectiva da inserção sócio-profissional dos educandos”, e em
Subequipa Clínica/Terapêutica, à qual compete “preferencialmente, o
desenvolvimento de programas e acções de educação para a saúde e
terapêuticos de reeducação e de tratamento do comportamento delinquente,
bem como acções individualizadas de diagnóstico médico e psicológico, e
prestar a cada educando os cuidados de saúde e o apoio psicológico de que
carece”. A Subequipa Clínica/Terapêutica está previsto ser composta por
médicos avençados (de clínica geral e pedopsiquiatra) e enfermeiros.

Referimos, como exemplo, que no Centro Educativo dos Olivais, de


acordo com o PIE de 2001, a Equipa de Programas era coordenada pelo
subdirector, contava com 12 professores, com 1 formador/animador, com 1
médico psiquiatra e com 1 médico de clínica geral (PIE, 2001: 9).

Equipa Técnica e Residencial

A Equipa Técnica e Residencial, de acordo com o artigo 133.º do RGDCE,


visa “assegurar todas as tarefas relacionadas com o acolhimento e o
enquadramento residencial dos educandos, bem como com a preparação, o
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 485

acompanhamento e a avaliação das acções necessárias à execução das


decisões judiciais, na perspectiva da sua reinserção social”. Esta equipa, nos
termos do Regulamento Geral, organiza-se em Subequipas de Unidade
Residencial, “competindo a cada uma a gestão e organização da respectiva
unidade, o planeamento diário e semanal das actividades e o
acompanhamento individualizado de cada um dos educandos que a
compõem”. Nos termos do disposto no artigo 133.º, n.º 4, cada um dos
educandos “dispõe de um técnico responsável pelo seu acompanhamento, o
qual deve desempenhar o papel de tutor técnico apoiando, orientando e
supervisionando todo o processo educativo do educando, estabelecendo a
articulação com a família e o meio social de origem deste e preparando as
informações, relatórios e planos necessários ao cumprimento da decisão
judicial que determinou o internamento”.

A lei prevê que nas equipas do Sector Técnico-Pedagógico


desempenhem funções técnicos profissionais de reinserção social (TPRS) e
técnicos superiores de reinserção social (TSRS), que devem acompanhar os
educandos 24 horas por dia. De acordo com os documentos do IRS, em cada
Centro Educativo existem duas equipas do IRS com competência específica.
Os técnicos superiores que integram essa equipas têm formações-base
distintas, variando, sobretudo, entre a licenciatura em Psicologia, em Serviço
Social e em Direito, apesar de existirem alguns licenciados em Educação
Especial e Reabilitação e em Sociologia Aplicada, conforme informação cedida
pelo IRS. A idade desses técnicos superiores situa-se entre os 30 e os 53
anos, predominando a faixa etária dos 30 aos 40 anos de idade.

Como exemplo, damos conta que, no Centro Educativo dos Olivais, o PIE
de 2001 previa os seguintes recursos humanos na Equipa técnica e residencial:
1 coordenador, 6 TSRS (sendo 4 de psicologia, 1 de serviço social e 1 de
filosofia), 36 TPRS e 2 funcionários de apoio administrativo (PIE, 2001: 8-9).
486 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

2. As medidas tutelares educativas de internamento e os regimes de


execução

A medida tutelar educativa de internamento em Centro Educativo é a


medida tutelar educativa mais grave aplicável a jovens entre os 12 e os 16
anos que tenham praticado factos qualificados pela lei como crimes (artigo 1.º
da LTE), sendo a medida que implica maior restrição da liberdade e da
autonomia. A LTE, no artigo 7.º, n.º 1, determina que a medida tutelar “deve ser
proporcionada à gravidade do facto e à necessidade de educação do menor
para o direito manifestada na prática do facto e subsistente no momento da
decisão”. A medida de internamento está, assim, reservada aos casos em que,
encontrando-se reunidos os respectivos pressupostos legais, não é adequada
e suficiente nenhuma medida não institucional, dada a gravidade dos factos e
as necessidades de educação para o direito.

Quanto à duração das medidas de internamento, o legislador determinou,


no artigo 7.º, n.º 2 da LTE, que as mesmas não podem, “em, caso algum,
exceder o limite máximo da pena de prisão prevista para o crime
correspondente ao facto”. Assim, a duração da medida de internamento está
directamente referenciada ao limite máximo da pena de prisão prevista para
aquele facto, esclarecendo o artigo 18.º, n.º 1, do mesmo diploma que a
medida de internamento “em regime aberto e semiaberto tem a duração
mínima de três meses e a máxima de dois anos”, acrescentando o n.º 2 que,
em regime fechado, a medida de internamento “tem a duração mínima de seis
meses e a máxima de dois anos”, apresentando, o n.º 3 a ressalva de que a
medida de internamento “em regime fechado tem a duração máxima de três
anos, quando o menor tiver praticado facto qualificado como crime a que
corresponda pena máxima, abstractamente aplicável, de prisão superior a oito
anos, ou dois ou mais factos qualificados como crimes contra as pessoas a que
corresponda a pena máxima, abstractamente aplicável, de prisão superior a
cinco anos”.

Acresce que, para que seja aplicada a medida de internamento em


regime semiaberto e em regime fechado, é necessário que se verifiquem os
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 487

requisitos definidos na lei - artigo 17.º, n.ºs 3 e 4 da LTE– referentes ao tipo, ao


número e/ou à gravidade dos factos ilícitos cometidos. No caso de
internamento em regime fechado, o jovem tem, também, que ter idade superior
a 14 anos – artigo 17.º, n.º 4, b) da LTE.

Como anteriormente foi descrito, os regimes de execução do


internamento são fixados pelo Tribunal e distinguem-se através do grau de
limitação da liberdade e da autonomia dos educandos, designadamente na
relação com o meio exterior.

Os regimes de execução das medidas de internamento, na Portaria


1200-B/2000, de 20 de Dezembro, foram distribuídos pelos vários centros
educativos da seguinte forma: os regimes aberto e semiaberto existiam nos
centros educativos de Santa Clara, Santo António, Dr. Alberto de Souto, Bela
Vista, Corpus Christi e São José; com regime semiaberto e fechado o
legislador criou os centros educativos do Mondego, Olivais e Padre António de
Oliveira; com regimes aberto, semiaberto e fechado havia o Centro Educativo
de São Bernardino e apenas com regime semiaberto existiam os centros
educativos de São Fiel, Vila Fernando e Navarro de Paiva. A distribuição dos
regimes de execução pelos vários centros educativos sofreu, pontualmente,
alguns ajustamentos, sendo a actual distribuição dos regimes de execução
pelos diversos centros educativos a visualizável no Mapa VIII.1.

De seguida veremos os traços caracterizadores dos três regimes de


execução de medidas.

2. 1. Regime Aberto

As grandes linhas de execução do regime aberto, de acordo com os


artigos 167.º da LTE e 13.º do RGDCE, são as seguintes: os jovens residem e
são educados nas unidades residenciais de regime aberto, podendo,
preferencialmente, frequentar no exterior, as actividades escolares, educativas
ou de formação, laborais, desportivas e de tempos livres previstas no seu
488 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

projecto educativo pessoal. A frequência de tais actividades no exterior


depende, como refere o n.º 2 do artigo 13.º do RGDCE, “das efectivas
oportunidades existentes no meio social, considerando as necessidades
educativas específicas do educando, a fase do seu projecto educativo pessoal
e o grau de responsabilização que consegue assumir”. O n.º 3 do artigo 167.º
da LTE acrescenta que os centros educativos de regime aberto, no
desenvolvimento da actividade educativa “devem incentivar a colaboração do
meio social envolvente, abrindo ao mesmo, tanto quanto possível, as suas
próprias estruturas”.

De forma gradual, atendendo à evolução do projecto educativo pessoal,


os jovens em regime aberto são autorizados a “saídas sem acompanhamento,
para frequência de actividades no exterior, bem como para passar férias ou
fins-de-semana com os pais, representante legal, pessoa que tenha a sua
guarda de facto ou outras pessoas idóneas”, podendo ser impostas obrigações
a cumprir durante o período de saída, de acordo com o n.º 3 do artigo 13.º do
RGDCE.

As unidades residenciais de regime aberto, nos termos do disposto no


artigo 11.º, n.º 2, a) do RGDCE, não podem exceder 14 educandos.

2. 2. Regime Semiaberto

O regime de execução semiaberto caracteriza-se por os jovens residirem,


serem educados e frequentarem actividades educativas e de tempos livres nos
centros educativos, “mas podem ser autorizados a frequentar no exterior
actividades escolares, educativas ou de formação, laborais ou desportivas, na
medida do que se revele necessário para a execução inicial ou faseada do seu
projecto educativo pessoal”, nos termos dos artigos 168.º, n.º 1, da LTE e 14.º,
n.º 1, do RGDCE.

Neste regime de execução, nos termos do n.º 2 do artigo 14.º do RGDCE,


as saídas para frequência de actividades no exterior “são normalmente
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 489

acompanhadas por pessoal de intervenção educativa e estão condicionadas à


avaliação contínua e rigorosa do grau de adesão do educando ao seu projecto
educativo pessoal e ao cumprimento das normas e orientações que lhe são
fixadas, considerando a duração e as finalidades específicas da medida
aplicada”. No caso de se verificar uma evolução favorável do seu projecto
educativo pessoal, de acordo com o n.º 3 do artigo 14.º, os educandos “podem
ser autorizados a passar períodos de férias com os pais, representante legal,
pessoa que tenha a sua guarda de facto ou outras pessoas idóneas,
podendo-lhes ser fixadas obrigações a cumprir nesses períodos”.

A lotação máxima de cada unidade residencial em regime semiaberto é


de 12 jovens, de acordo com o disposto no artigo 11.º, n.º 2, b) do RGDCE.

Em regime semiaberto têm lugar, além de outros, os internamentos em


fins-de-semana (cf. artigo 148.º da LTE). Sobre tal medida que, como já vimos,
decorre da revisão de outra medida tutelar educativa aplicada e não cumprida,
não existe consenso.

2. 3. Regime Fechado

No regime fechado, aquele que mais limita a liberdade de movimento, os


jovens “residem, são educados e frequentam actividades formativas e de
tempos livres exclusivamente dentro do estabelecimento”, de acordo com os
artigos 169.º, n.º 1, da LTE e 15.º, n.º 1, do RGDCE.

Neste regime de execução, nos termos do n.º 4 do artigo 15.º, “as saídas
são estritamente limitadas ao cumprimento de obrigações judiciais, satisfação
de necessidades de saúde ou outros motivos igualmente ponderosos e
excepcionais” sendo os educandos “sempre acompanhados por funcionários
do centro” e as saídas “limitadas ao tempo mínimo indispensável e precedidas
de autorização escrita do director do centro”.
490 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

De acordo com o n.º 5 do artigo 15.º do RGDCE, numa “fase avançada de


execução do projecto educativo pessoal e verificando-se condições que
permitam experimentar uma flexibilização do regime com vista a avaliar da
possibilidade de revisão da medida, podem os educandos ser autorizados pelo
tribunal a sair, sem acompanhamento, por períodos limitados, mediante
proposta fundamentada do director do centro”.

O legislador, nos n.ºs 2 e 3 do artigo 15.º do RGDCE, com o objectivo de


minimizar os efeitos decorrentes do regime fechado, determinou que “o Centro
Educativo deve proporcionar ao educando diferentes opções de actividades
formativas, desportivas e de tempos livres, fazendo intervir, sempre que
possível, elementos da comunidade na animação dessas actividades”,
acrescentando que o apoio psicológico e terapêutico individualizado “deve ser
intensificado neste regime, por forma a ajudar os educandos a ultrapassar as
dificuldades pessoais e sociais que apresentam, nomeadamente as que
motivaram a aplicação do regime fechado”.

De acordo com o artigo 11.º, n.º 2, c) do RGDCE, a lotação máxima de


cada unidade residencial de regime fechado é de 10 educandos.

As opiniões sobre o regime de execução fechado também registam, como


se verá, alguns dissensos.

3. A organização da intervenção educativa

De acordo com o RGDCE (Secção III – artigo 17.º e ss.), a organização


da intervenção educativa é constituída pelos instrumentos fundamentais da
intervenção (artigos 17.º a 22.º do RGDCE) - o projecto de intervenção
educativa, o regulamento interno, orientações pedagógicas gerais e o projecto
educativo pessoal –, pelos instrumentos auxiliares da intervenção (artigos 23.º
e 24.º do RGDCE) – os modelos de suporte da intervenção técnica e o dossier
individual do educando - e pelos programas educativos e terapêuticos (artigos
25.º a 32.º do RGDCE) – designadamente os programas de formação escolar,
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 491

de orientação vocacional e de formação profissional, de animação sócio-


cultural e desportivos, de educação para a saúde e terapêuticos e de satisfação
de necessidades especiais associadas ao comportamento delinquente.

Neste ponto sobre a organização da intervenção educativa, incluímos,


ainda, as áreas do regime disciplinar, da articulação com a comunidade exterior
e damos conta de um programa em curso no Centro Educativo da Bela Vista,
intitulado “Internamento como verdadeira oportunidade de mudança”.

Apresentamos, de seguida, os conteúdos que o legislador e o IRS


definem para cada uma das vertentes que constituem a intervenção educativa.

3. 1. Os instrumentos fundamentais da intervenção

Nos centros educativos toda a intervenção educativa “obedece ao


regulamento geral e a orientações pedagógicas estabelecidas para todos os
centros educativos, com vista à realização uniforme dos princípios fixados na
lei em matéria tutelar educativa” (cf. artigo 144.º, n.º 2, da LTE). A LTE
pressupõe, assim, a existência de alguns instrumentos e princípios,
designadamente o princípio da socialização, de acordo com os quais todos os
educandos são sujeitos de direitos e deveres e mantêm todos os direitos
pessoais e sociais cujo exercício seja compatível com a execução da medida,
devendo o quotidiano ter aí como referência a vida em sociedade, tentando
minimizar os efeitos negativos que o internamento necessariamente implica,
promovendo os vínculos sociais, o contacto com os familiares e amigos, bem
como a participação das entidades públicas ou particulares no processo
educativo e de reinserção social (cf. artigo 159.º, n.º 1, da LTE).

Os instrumentos fundamentais que estão na base da organização da


intervenção educativa, como atrás referimos, são, nos termos da Subsecção I
do RGDCE (artigos 17.º a 22.º), o Projecto de Intervenção Educativa (PIE), o
Regulamento Interno (RI) e o Projecto Educativo Pessoal (PEP).
492 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

3. 1. 1. O Projecto de Intervenção Educativa

Os centros educativos são orientados para a educação e formação,


preocupam-se com a descoberta de capacidades e com o apoio ao
desenvolvimento orientado de aptidões, numa perspectiva de reinserção social
activa. Essas preocupações estão vertidas no Projecto de Intervenção
Educativa, um instrumento próprio de cada Centro Educativo (artigo 162.º da
LTE) que, de acordo com o artigo 17.º, n.º 2, do RGDCE, especifica, sempre
que possível, “a programação faseada da intervenção, diferenciando os
objectivos a realizar em cada fase e o respectivo sistema de reforços positivos
e negativos, dentro dos limites fixados pela lei”, pelo RGDCE, de harmonia com
o regulamento interno de cada Centro Educativo. O PIE, elucida o n.º 1
daquela norma, concretiza a actividade de cada centro, “em função da sua
classificação, das unidades residenciais de que dispõe e dos programas e
métodos pedagógicos que adopta”.

O projecto de intervenção educativa é, pois, progressivo e com fases,


estando sempre presente que os educandos são sujeitos de direitos e de
deveres e que a intervenção deve ser adequada ao seu desenvolvimento
pessoal e social. No âmbito do Projecto de Intervenção Educativa, os centros
educativos prestam aos educandos formação escolar, formação
pré-profissional e despiste vocacional, educação para a saúde e apoios
terapêuticos, desenvolvem competências pessoais e sociais e proporcionam
animação sócio-cultural e actividades desportivas.

Nesse sentido, a Presidente do IRS, no folheto do IRS de 2003, sobre a


Vivência em Centro Educativo, refere que “o quotidiano em Centro Educativo é
um puzzle contínuo de programas educativos e terapêuticos, relacionados
entre si, com o objectivo último e comum de educar para o direito, fomentando
atitudes de responsabilização e prevenindo a prática de novos delitos. O
projecto de intervenção educativa de cada Centro alicerça-se numa estrutura
planeada e coerente de acções e iniciativas que aproximam o Centro Educativo
do exterior e facultam aos educandos contactos com experiências novas em
domínios tão variados como os da cidadania, o do contacto com a natureza, a
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 493

educação para a saúde, o desporto, a sensibilização para a leitura, para o


teatro e para a música. Os horizontes educativos, sociais e culturais abertos ao
longo dos meses de permanência nos centros, permitem ao educando um
melhor conhecimento de si próprio e dos valores que deve aprender a
respeitar, diminuem o peso do afastamento dos amigos e da família e tentam
minorar o clima de contenção. Para muitos jovens trata-se de uma experiência
única e enriquecedora, apesar de difícil. Um período das suas vidas em que
descobrem talentos e afectos”.

Estrutura-base do Projecto de Intervenção Educativa

A estrutura-base de cada PIE obedece a vários pontos. De acordo com a


“Proposta de estrutura-base do Projecto de Intervenção Educativa” elaborada
pelo IRS, o PIE, desde logo, deve conter uma nota introdutória, na qual é
abordado o contexto social, comunitário ou histórico no qual o Centro Educativo
se insere e um breve enquadramento social e jurídico da LTE.

De seguida, de acordo com a “Proposta de estrutura-base do Projecto de


Intervenção Educativa”, o Centro Educativo deverá ser classificado, sendo
referida a sua designação, a dependência orgânica, as finalidades, a
competência (assegurar a execução de decisões que devam ser cumpridas em
Centro Educativo), o(s) tipo(s) de regime(s), o número de unidades
residenciais, a população acolhida e a localização geográfica.

Segundo a “Proposta de estrutura-base”, após a classificação do Centro


Educativo, o PIE deve descrever os recursos humanos e físicos existentes169,
bem como outros recursos disponíveis na comunidade - como espaços físicos,
actividades, pessoal e voluntários -, devendo, de seguida, ser apresentado o
organigrama do Centro Educativo, a planta e vias de acesso.

169
Quanto aos recursos humanos, é descrito o pessoal afecto ao Centro Educativo e o pessoal
contratado ou colocado por outras entidades; no que aos recursos físicos diz respeito, são
descritas as infra-estruturas disponíveis.
494 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

O terceiro grande aspecto a constar no PIE deverá ser, precisamente, a


intervenção educativa, sendo aí focados quais os objectivos gerais e
específicos e os referenciais metodológicos e programas existentes.

Nos objectivos gerais do PIE deve ser referido como se visam alcançar a
promoção e aquisição de competências sociais básicas e a educação para o
direito, bem como a consolidação da coesão da intervenção educativa-
terapêutica, sob a forma de comunidade pedagógica170. Todos os agentes
educativos, de acordo com a “Proposta de estrutura-base”, participam na
elaboração do PIE, sendo co-responsáveis activos na definição de programas,
de actividades e de elementos formativos. Todos os profissionais, educandos e
pessoas externas que visitam o Centro Educativo estão vinculados ao PIE,
como decorre do artigo 19.º do Regulamento Geral, devendo o mesmo ser
divulgado. A intervenção educativa, de acordo com a “Proposta de estrutura-
base do PIE”, pretende desenvolver “processos de reestruturação e retribuição
cognitiva e reorganizar aspectos afectivos e relacionais, facilitadores da sua
inserção social, consciencializando-o de que ele é «sujeito da sua própria
história», permitindo-lhe o confronto consigo próprio, a compreensão do seu
presente e a perspectivação do seu futuro, e ensinando-o a responder
assertivamente aos estímulos sociais, pela aprendizagem de novos
comportamentos”.

O PIE, como referimos, deve descrever quais as metodologias e


programas a utilizar na intervenção educativa. Como cada educando necessita
de ajuda personalizada, a intervenção individual deve promover o
autoconhecimento, a responsabilização, o autocontrole e o (re)iniciar de um
projecto de vida faseado e progressivo, eventualmente, com alguns retrocessos

170
Este último objectivo geral, de consolidação da coesão da intervenção educativa-
terapêutica, sob a forma de comunidade pedagógica baseia-se, de acordo com as orientações
do IRS, num “ambiente acolhedor, securizante, estruturado e organizado, com regras e limites
bem definidos, que se pretende potencializador de alteração de atitudes associais pela
aprendizagem de outras adequadas à vida em sociedade, permitindo a inserção social dos
educandos de forma digna e juridicamente responsável, respondendo às suas necessidades de
educação e formação relativamente à reestruturação do seu funcionamento psicossocial” (cf.
“Proposta de estrutura-base do Projecto de Intervenção Educativa”).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 495

e limitações. Considera-se, assim, essencial o papel de todos os agentes


educativos, sobretudo do técnico responsável pelo acompanhamento do
educando, de forma a orientar e a supervisionar o processo educativo.

Outra metodologia utilizada é o sistema de ganhos ou de expectativas da


sua obtenção, assim como a retirada de ganhos antes adquiridos, associados à
frequência de comportamentos sociais ou associais. Considera-se que em
cada fase importa distinguir um primeiro momento, de aquisição dos
comportamentos e, posteriormente, de consolidação e generalização do
apreendido. É, também, fundamental a modelação de comportamentos pelos
agentes educativos, que se constituem em elementos formativos, facilitadores
da mudança. Defende-se que os agentes educativos devem estimular o
raciocínio crítico e moral, ajudando os jovens a compreender comportamentos,
emoções e pensamentos numa ligação contínua ao seu presente, passado e
futuro. A intervenção educativa baseia-se num conjunto de programas
educativos e terapêuticos, devendo o PIE referir qual a sua natureza, duração e
objectivos.

O Regulamento Geral prevê a existência, nos centros educativos, de


programas de formação escolar, de orientação vocacional e de formação
profissional, de animação sociocultural e desportivos, de educação para a
saúde, programas terapêuticos - de orientação cognitivo-comportamental, de
orientação psicodinâmica, de orientação sistémica, entre outros – e programa
de satisfação das necessidades educativas específicas associadas ao
comportamento delinquente. Devem, também, ser previstos programas para a
execução do internamento em fins-de-semana. No caso de existirem medidas
de duração diferente, será necessário que os conteúdos programáticos sejam
organizados em módulos com duração compatível com os vários períodos de
internamento do educando, o mesmo se passando quanto aos distintos
regimes de execução, quanto aos objectivos a alcançar e às actividades a
desenvolver. Os programas devem-se complementar entre si.

Como o sistema de intervenção é progressivo, os prémios - que devem


ser personalizados - devem ter um suficiente cariz solene e formal e significar
496 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

um reforço positivo dos comportamentos. Os prémios/privilégios devem ser


registados no dossier individual e ser comunicados ao Tribunal, no âmbito da
avaliação periódica da execução da medida, tal como sucede com as medidas
disciplinares. O regime disciplinar deve funcionar como um instrumento de
último recurso para corrigir os comportamentos em relação aos quais as
actuações pedagógicas não foram suficientes, possíveis e adequadas ou não
foram voluntariamente aceites pelo educando.

O PIE, conclui a “Proposta de estrutura-base”, deve conter uma última


rubrica, destinada à sua própria avaliação, uma vez que sendo um documento
dinâmico deve encontrar-se em permanente transformação e construção. A
periodicidade da avaliação do PIE deve, por isso, ser definida, de modo a
poderem ser garantidos ajustamentos ao longo do ano. Os processos de
avaliação devem abarcar vários níveis de análise: avaliação dos resultados da
intervenção (das modificações do comportamento), avaliação dos processos de
ensino e de aprendizagem, avaliação da articulação funcional alargada dos
intervenientes e avaliação do impacto da intervenção educativa.

Para cada educando, como atrás referimos, é designado um técnico


superior de reinserção social responsável pelo seu acompanhamento no
Centro Educativo, que constitui o ponto de referência institucional e é o gestor
de todo o processo educativo e terapêutico relativo ao educando, durante o
internamento.

De acordo com a “Proposta de estrutura-base do PIE”, a intervenção


educativa é uma acção desenvolvida em equipa, na qual se valorizam os vários
saberes e aptidões e a interajuda e comunicação circular é estabelecida entre
todos. As actividades diárias estão todas pré-definidas e programadas e são do
conhecimento de todos, quer dos técnicos, quer dos educandos, sendo
enquadradas por rituais que, de forma simbólica, contribuem para estimular a
estabilidade, a tranquilidade e a confiança dos jovens. A intervenção visa
educar para a responsabilidade, isto é, visa-se fomentar a responsabilização
dos jovens pelos seus comportamentos e actos, levando-os a aceitar as
consequências das acções e a actuar conforme os valores jurídico-penais.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 497

A intervenção desenvolve-se, em qualquer dos três regimes de execução,


por fases sucessivas, como vimos, relacionadas com a conquista de maior
autonomia e liberdade em função do comportamento e de acordo com os
objectivos definidos no PEP e inerentes a cada uma das fases: Acolhimento ou
Integração (Fase 1); Fase Progressiva ou de Consolidação (Fase 2); e Fase de
Saída ou de Transição (Fase 3), como atrás explicámos.

3. 1. 2. O PIE: as fases de intervenção nos centros educativos

De acordo com o disposto no artigo 12.º, n.º 2, do RGDCE, a intervenção


nos centros educativos, em cada regime de execução, desenvolve-se por fases
progressivas, “as quais são definidas no projecto de intervenção educativa de
cada centro e possibilitam ao educando, de acordo com o grau de cumprimento
do seu projecto educativo pessoal, adquirir maior liberdade e autonomia”. O n.º
3 daquela norma determina que o incumprimento dos objectivos de uma fase
pode implicar “a regressão do educando dentro do mesmo regime, ou, sendo
caso disso, a proposta ao tribunal com vista à revisão da medida”.

A intervenção nos centros educativos é progressiva por fases para que,


de acordo com o Projecto de Intervenção Educativa do Centro Educativo de S.
Bernardino, de 2001, durante o internamento os jovens “vão adquirindo maior
liberdade e autonomia decorrente do empenhamento demonstrado no
cumprimento das actividades previstas, do sentido de responsabilidade
manifestado e da avaliação do comportamento individual e em grupo”. Para tal,
continua o PIE, “os ganhos são diferenciados de forma progressiva,
fomentando a motivação com vista a atingir a fase seguinte, estando
subjacente a premissa de que tudo na vida, tem que ser conquistado, exige
esforço e sentido de responsabilidade. Cada fase contém metas claramente
definidas e a progressão para a seguinte está dependente do cumprimento de
determinados parâmetros e da avaliação favorável”. Por outro lado, a prática
“transgressora e reincidente”, conclui o PIE, “implica o retrocesso à fase
anterior por tempo a determinar mediante critérios previamente definidos”.
498 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

A título de exemplo, vejamos o que determina o Regulamento Interno do


Centro Educativo dos Olivais, no seu Anexo IV, relativo ao Regulamento do
Regime Semiaberto, sobre o sistema progressivo por fases. Nos termos do
artigo 36.º, n.º 1, desse Anexo IV, os educandos “podem melhorar as suas
condições de vida no internato mediante a avaliação progressiva, do seu
comportamento individual e relacional”, pois, continua o n.º 2, a “diminuição de
condutas não colaborantes ou agressivas permite melhorar o funcionamento
global da Unidade Residencial, cumprir com maior tranquilidade os programas
planeados e introduzir alterações no comportamento individual de acordo com
os objectivos pretendidos com a medida de internamento”. A atribuição de uma
fase superior, esclarece o n.º 3, “é sempre efectuada em reunião de Equipa de
Unidade (Técnicos Superiores de Reinserção Social [TSRS] e Técnicos
Profissionais de Reinserção Social [TPRS]), a realizar mensalmente. Após
deliberação, a nova situação é comunicada ao educando, pelos técnicos, em
reunião de grupo de educandos, onde lhes explicam os motivos da sua
progressão, as responsabilidades que a nova situação acarreta,
comportamentos a modificar, etc.”.

O artigo 37.º do Anexo IV do Regulamento Interno versa sobre as regras


para a atribuição das fases no regime semiaberto, refere: “a) As progressões e
regressões de fase são sequenciais. Isto é, em caso de mudança de fase,
passa para a fase mais próxima, quer no sentido ascendente quer no sentido
descendente; b) Aquando da entrada na Unidade Residencial de Regime Semi-
aberto o educando é colocado na fase de entrada. A primeira progressão de
fase apenas se efectua após três meses de permanência na Unidade
Residencial; c) A passagem à fase progressiva 2 só é possível após três meses
na fase progressiva 1; d) A atribuição da fase de saída acontece no último
quarto da medida, e necessita de um comportamento por parte do educando
muito positivo para ser concedida (menos de duas regressões nos seis meses
anteriores à atribuição); e) O educando regride de fase caso tenha uma
avaliação negativa (vermelho) ou caso lhe seja atribuído três avaliações
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 499

suficientes (amarelo)[171]. A descida é automática. Após uma descida de fase, o


educando só regressa à fase em que se encontrava se nas duas semanas
seguintes tiver uma avaliação positiva (das 42 avaliações nenhuma poderá ser
amarela ou vermelha); f) Sempre que, após uma regressão de fase, o
educando volta a progredir de fase, ele deverá perfazer pelo menos trinta dias
nessa fase; g) Após uma progressão de fase, todas as avaliações suficientes
(amarelo) anteriores à subida ficam sem efeito para a contabilidade de uma
possível regressão”.

171
Os educandos são sujeitos a “avaliações diárias realizadas pelos TPRS de serviço e pelos
profissionais da área escolar e pré profissional”, através da sinalização por meio de cores em
mapas ou grelhas de avaliação. O código utilizado é o seguinte: a cor vermelha corresponde a
avaliação negativa; a cor amarela significa avaliação suficiente; a cor verde corresponde a
avaliação boa; e a cor azul significa avaliação excelente. A avaliação diária, na unidade
residencial ocorre em três momentos do dia: de manhã, à tarde e à noite, de acordo com o
artigo 14.º do Anexo IV do RI do Centro Educativo dos Olivais. A avaliação semanal “que é da
responsabilidade da subequipa técnica de cada Unidade e da coordenadora de turma na área
formativa, é o resultado das avaliações quotidianas ou seja, é feita em função dos resultados
obtidos diariamente e eventualmente outros relevantes, procurando sempre uma harmonização
de critérios de justiça individual e de justiça relativa” (Regulamento Interno do Centro Educativo
dos Olivais, de 2001).
De acordo com o PIE do Centro Educativo dos Olivais, de 2001, os comportamentos
correspondentes a cada uma das cores utilizadas para a avaliação são os seguintes: a
atribuição da cor vermelha corresponde a “praticar acto de violência física ou de coacção
contra colegas e funcionários; ameaçar colegas ou funcionários; insultar ou faltar ao respeito a
colegas ou funcionários; participar em motins ou em actos colectivos de insubordinação;
instigar companheiros a actos de insubordinação ou desobediência; resistir ou desobedecer às
ordens dos funcionários; não comparecer nas actividades previstas; tentar a fuga da Unidade
Residencial; instigar a fuga de companheiros; destruir ou danificar bens da Unidade
Residencial; escrever em portas, paredes, camas, armários, mesas, cadeiras, etc.; destruir ou
danificar bens de companheiros e funcionários; introduzir, distribuir, transaccionar ou guardar
na Unidade Residencial objectos proibidos; apoderar-se de bens e valores de outrém; práticas
sexuais com companheiro”. A atribuição de avaliação de cor amarela significa: “faltar ao
respeito a funcionário a companheiro ou outra pessoa; não cumprir os horários das actividades;
dirigir-se a companheiros ou funcionários por alcunha; comunicar com companheiro em língua
que não o português; perturbar o normal funcionamento das actividades; entrar no quarto de
um companheiro; estar em zona para a qual não recebeu autorização; entrar no gabinete dos
Srs. Monitores; entrar na arrecadação; sair do quarto, da sala de refeições, da sala de aulas,
atelier e ginásio sem autorização; quarto mal arrumado; quarto mal limpo; cama mal feita;
executar mal tarefas de limpeza que lhe sejam destinadas; esbanjar artigos de higiene a ele
distribuídos; sujar propositadamente as instalações; afixar posters ou outro material em local
indevido; recusa de banho diário”. A avaliação de cor verde significa “bom comportamento das
regras e normas instituídas”. A cor azul tem o significado de “excepcionalmente bom
cumprimento das regras e normas instituídas”, acrescentando o PIE que seguimos que “a
atribuição da cor azul é excepcional. Só deve ser atribuída quando o menor se evidencie pelo
extraordinário: desempenho nas actividades; respeito pelo outro; colaboração com os
funcionários; espírito de interajuda; aprumo pessoal” (Plano de Intervenção Educativa do
Centro Educativo dos Olivais, de 2001).
500 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

Vejamos, de seguida, as várias fases da intervenção em Centro


Educativo, seguindo de perto a informação constante do documento do Centro
Educativo dos Olivais sobre o “Faseamento” dos regimes semiaberto e
fechado.

A fase de acolhimento: a “Fase Regressiva” e a “Fase de Entrada”

A primeira fase do internamento educativo é a do acolhimento, na qual é


feita a recepção física e relacional do educando. Nesta fase, o primeiro
período, de cerca de um mês, é designado como “Fase Regressiva”. Esta fase
tem como objectivos confrontar o educando pedagogicamente com a
desadequação das suas atitudes face ao esperado na fase de entrada, não
existindo quaisquer regalias. Nesta fase é obrigatório ao jovem recolher ao
quarto às 20h30.

A fase seguinte, designada como “Fase de Entrada”, de cerca de três


meses em ambos os regimes em execução no Centro Educativo dos Olivais,
tem como metas o acolhimento, o contacto do jovem com o sistema de justiça,
visa desenvolver a confiança do educando em terceiros, implementar o
cumprimento de regras e normas e em rotinas estruturantes, implementar
regras de higiene e de aprumo pessoal e regras de cortesia e de boas
maneiras, bem como desenvolver o gosto pelas actividades a executar em
Centro Educativo, criar a capacidade de estar privado de ligação com o meio
exterior, desenvolver a convivência com os seus pares e com os funcionários,
conferir significado à medida que está a cumprir e promover contactos com a
família. As regalias da fase de entrada são as seguintes: ter fotografias de
familiares no quarto, utilizar jogos e participar em actividades lúdicas não
programadas, conviver com os pares até às 21h30 durante a semana e até às
22h00 às sextas-feiras, sábados e vésperas de feriados e utilizar, por semana,
€ 1,50 de pecúlio.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 501

Pretende-se, nesta fase, que ocorra a aceitação de uma nova


oportunidade de formação, a diminuição dos sentimentos de rejeição e de
perda e que se transmita o sentimento de pertença a um contexto relacional
tranquilizador e contentor. Na fase de acolhimento tem início a execução da
decisão judicial e desenvolvem-se alguns procedimentos técnicos,
designadamente o diagnóstico da situação psicossocial do educando ou o seu
aprofundamento, avaliação e planeamento, visando a elaboração do Plano de
Intervenção e do Projecto Educativo Pessoal, na qual deve participar o
educando, sendo também desejável a colaboração de seus pais, representante
legal ou de quem tenha a sua guarda de facto172.

A “Fase Progressiva 1”

A fase seguinte que, de acordo com o documento sobre “Faseamento”


que seguimos, ocupa cerca de 1/6 da medida, é a “Fase Progressiva 1”. Esta
fase tem como objectivos, quer no regime semiaberto quer no regime fechado,
consolidar as aquisições da fase de entrada, desenvolver os recursos do
educando para lidar com os problemas do dia-a-dia e com as emoções
negativas, possibilitar o reconhecimento dos sentimentos positivos a respeito
de si próprio e dos outros, permitir a aquisição de padrões de comportamento
com carácter adaptativo, desenvolver a capacidade para reconhecer a
existência de diferentes formas de pensar e de agir e a compreensão e
interiorização do efeito da medida, levar ao reconhecimento da existência dos
danos causados e dos valores e manter e revalorizar a relação entre a família e
o jovem. Como regalias, nesta fase os educandos podem ter objectos pessoais
nos quartos pelos quais ficam responsáveis, desde que salvaguardadas as
normas de segurança, podem utilizar o armário de quarto, usar relógio, anéis,
fio, pulseiras e perfume pessoal, podem conviver com os pares até às 22h00

172
Após a entrada no Centro Educativo, no mais curto prazo possível, o técnico superior de
reinserção responsável pelo seu acompanhamento assegura a respectiva inscrição no centro
502 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

durante a semana e até às 23h00 às sextas-feiras, sábados e vésperas de


feriados e utilizar até € 2,50 de pecúlio por semana. Além destas regalias, no
regime semiaberto os jovens poderão ter a possibilidade de saída com
acompanhamento da família durante o período da visita.

A “Fase Progressiva 2”

Esta fase ocupa, segundo o documento do Centro Educativo dos Olivais


sobre “Faseamento”, cerca de 3/4 da medida, ou 11/12, se a medida tiver
duração inferior a 12 meses. A “Fase Progressiva 2” visa consolidar as
aquisições das fases anteriores, desenvolver a autonomia e o sentido de
responsabilidade, promover o aumento de competências e de autoconfiança
para a mudança, criar a necessidade de reparação, discutir os efeitos da
interiorização da medida e fortalecer os laços familiares. As regalias desta fase
consistem na possibilidade de proposta de revisão da medida, em poder
comemorar com a família o aniversário na Unidade, na participação em
comissões de festas e eventos na Unidade residencial e no acolhimento de
novos educandos destinados à unidade residencial em que o jovem está
inserido, na participação da elaboração do plano de actividades de fim-de-
semana, na possibilidade de utilização da Internet e envio de e-mails, na
possibilidade de assistir a programas da TV Cabo, na utilização, por semana,
até € 5,00 de pecúlio e a hora de deitar passa a ser às 22h30 durante a
semana e às 24h00 às sextas-feiras, sábados e vésperas de feriados. Nesta
fase, consoante o regime de execução do educando, podem ser acrescidas
outras regalias às acima referidas, como, no regime semiaberto, a possibilidade
de concessão de licença de férias, de saídas acompanhadas para actividades
desportivas e outras.

de saúde da área do Centro Educativo, para efeitos de emissão do cartão de utente do Serviço
Nacional de Saúde, como decorre do Despacho n.º 22/PRESS/2001.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 503

A “Fase de Saída”

A preparação da saída dos jovens pode ser desdobrada em mais do que


uma fase, de acordo com o regime de execução em que se encontra o
educando (Fase de Saída 1, Fase de Saída 2, no regime fechado). A fase de
saída ocupa o último 1/4 da medida e tem como objectivos a consolidação das
aquisições das fases anteriores, visa assegurar o processo de reinserção
social, permitir que o educando faça uso das aquisições pessoais e sociais
alcançadas no meio exterior, experimentar autonomia, preparar o regresso ao
meio familiar e social de origem e promover a integração em actividades,
estruturas ou outros recursos existentes na comunidade.

As regalias da fase de saída não são as mesmas nos vários regimes de


execução. Assim, no regime fechado consistem na atribuição de maior
autonomia na Unidade Residencial, no voto de qualidade em reuniões de
pares, na utilização de pecúlio superior a € 5,00 por semana e na possibilidade
de concessão de licença de gozo de fim-de-semana e de gozo de datas
festivas em casa, licenças que não podem ocorrer antes do cumprimento de
11/12 da medida.

No regime semiaberto a fase de saída desdobra-se em duas fases. Na


“Fase de Saída 1”, que corresponde ao último 1/4 da medida, as regalias
consistem em saídas sem acompanhamento, na possibilidade de concessão de
saída de fim-de-semana, na possibilidade de gozo do período de férias pelo
tempo máximo, no voto de qualidade em reuniões de iguais e na possibilidade
de ingresso no mundo laboral. Na “Fase de Saída 2” do regime semiaberto,
que corresponde ao último 1/3 da “Fase de Saída 1”, os jovens são colocados
em Unidade Residencial própria, a sua vida quotidiana desenrola-se com
autonomia, mas é sempre supervisionada pelos técnicos de reinserção social e
os educandos podem sair sem acompanhamento aos sábados, domingos e
feriados das 15h00 às 18h00.
504 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

3. 1. 3. O Regulamento Interno

O Regulamento Interno (RI) dos centros educativos começa por abordar o


sistema organizativo, descrevendo as instalações, as regras de prevenção e
segurança interna, os horários de funcionamento das diferentes áreas
funcionais, a utilização programada de espaços e recursos comuns e os
horários específicos, por Unidade Residencial. De seguida, ocupa-se com a
preparação, recepção, acolhimento e integração no Centro Educativo,
passando às regras de funcionamento geral, a parte mais extensa do RI. As
regras de funcionamento geral vão desde as formas de contacto com o
director, à assistência médica, à alimentação e refeições, às roupas e calçado,
à higiene e apresentação pessoal, à articulação funcional, comunicações
internas e Diário de Unidade, à guarda dos documentos pessoais dos
educandos, às regras de vigilância e controlo, às formas de tratamento entre
educandos e funcionários, às regras sobre gestão do pecúlio, fundo de reserva
e conta bancária, objectos pessoais não permitidos e regras sobre utilização
dos permitidos, lista de objectos e substâncias proibidas e procedimentos na
apreensão. Outro capítulo versa sobre as relações dos educandos com a
comunidade exterior, onde são descritas as regras para o exercício do direito
de visitas, para receber e comunicar com o defensor, regras na execução de
saídas autorizadas, programadas e excepcionais, regras para o exercício do
direito de estabelecer comunicações como telefonemas, correspondência,
encomendas. O funcionamento das unidades residenciais é outro capítulo, bem
como o funcionamento das diferentes áreas formativas e de outros programas
específicos. Por fim, é regulamentada a execução de medidas disciplinares.

A partir do Regulamento Interno é construído o Plano de Actividades


anual, que é aprovado pelos órgãos do Centro Educativo - o Director e o
Conselho Pedagógico. Do Plano de Actividades constam os objectivos gerais e
específicos a cumprir por cada sector, o planeamento de actividades a
desenvolver pelos diversos serviços, entre outras realizações. São, pois,
estabelecidos os objectivos e estratégias sectoriais, quer no sector
administrativo, quer no sector técnico-pedagógico e são planeadas as
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 505

actividades a desenvolver, designadamente saídas ao exterior com os


educandos.

3. 1. 4. O Projecto Educativo Pessoal

A execução das medidas de internamento em centros educativos deve


obedecer, como vimos, aos princípios da socialização, faseamento e
progressividade, os quais devem estar espelhados no Projecto de Intervenção
Educativa (PIE) de cada Centro Educativo. A execução dos internamentos em
centros educativos decorre, assim, da aplicação da matriz que o PIE
representa. Tal matriz condiciona toda a intervenção técnica de planificação e
execução do internamento, consubstanciada no Projecto Educativo Pessoal
(PEP).

Nos termos da LTE, no prazo de 30 dias após a admissão de cada


educando, deve ser elaborado um Projecto Educativo Pessoal, atendendo ao
regime e duração da medida e a particulares motivações, necessidades
educativas e de reinserção social. Como resulta do artigo 164.º, n.º 2 da LTE, o
PEP deve conter os objectivos a atingir, a sua duração, fases, prazos e meios
de realização, de modo a que o educando se possa aperceber da sua evolução
e que o Centro possa avaliar como está a decorrer a sua educação para o
direito e a sua inserção na vida em comunidade. Como refere o IRS em
orientações internas, o PEP pressupõe “um trabalho de efectivo e constante
diálogo com a equipa de reinserção social do meio social de origem do menor,
no sentido de melhor conhecer o seu contexto sócio-familiar e de procurar
implicá-lo, o mais cedo possível, na execução da medida, prevendo,
antecipadamente, a preparação das condições de regresso à vida em
liberdade”.

Após a sua elaboração, o PEP é sujeito a parecer do conselho


pedagógico e à aprovação do director do Centro Educativo, sendo, de seguida,
enviado ao Tribunal, para homologação judicial.
506 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

De acordo com o artigo 21.º do RGDCE, a execução da medida de


internamento é estruturada e desenvolvida com base no PEP de cada jovem. O
educando deve ser incentivado a participar na elaboração e avaliação do seu
PEP, devendo também ser ouvidos os pais, o representante legal ou a pessoa
que detém a guarda de facto do jovem.

O PEP é, assim, um instrumento técnico obrigatório no planeamento da


execução da medida de internamento, expressamente previsto na LTE, no
RGDCE, no RI e no PIE. Dada a importância do PEP, o mesmo deve ser
elaborado com rigor e deve realizar um diagnóstico correcto e actual do
educando e do seu contexto sócio-familiar, deve determinar quais as metas a
alcançar, a escolha das estratégias e uma previsão dos meios e prazos de
avaliação.

O modelo de PEP seguido pelo IRS, de acordo com a proposta para a


elaboração do PEP fruto do Grupo de Trabalho Desp. N.º 2/PRES/2001 do
IRS, “parte da caracterização da medida aplicada (duração, regime de
execução, datas de aplicação e de início da execução) e da análise do motivo
de intervenção, passa por uma sintética descrição do PIE do Centro Educativo
e dos programas educativos e terapêuticos que desenvolve, para se centrar,
em cada área de intervenção a privilegiar na execução, em torno de quatro
itens básicos: a) diagnóstico; b) metas; c) estratégias/meios; d) avaliação”. As
áreas a privilegiar durante a permanência do educando no Centro Educativo
são seleccionadas de acordo com a lei, ao fixar conteúdos obrigatórios a
figurarem no PEP (cf. artigo 171.º, n.º 3), por vezes de acordo com a sentença,
que pode conter indicações para que seja conferida atenção a certas áreas, e
de acordo com o diagnóstico global da situação do jovem. Uma vez
determinadas as áreas a privilegiar, a intervenção é então planeada, sendo as
metas organizadas de acordo com as fases antes definidas, dando-se conta
das perspectivas de progressão no âmbito do regime de execução estabelecido
e prevendo-se, ainda, a possibilidade de serem apresentadas propostas de
mudança de regime ou outras modificações. Numa parte final, onde serão
incluídas informações consideradas pertinentes, será referido o grau de
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 507

participação e de adesão do educando e de seus pais na elaboração do PEP,


outros elementos significativos e o seu contexto familiar e social.

3. 2. Os instrumentos auxiliares da intervenção

Os instrumentos auxiliares da intervenção, de acordo com a Subsecção II


do RGDCE (artigos 23.º e 24.º) são os modelos de suporte da intervenção
técnica e o dossier individual dos educandos. Os modelos de suporte da
intervenção técnica, como dispõe o artigo 23.º do RGDCE, visam “garantir a
qualidade e a uniformização da intervenção técnica, facilitando igualmente as
tarefas de registo e de tratamento da informação, os serviços de reinserção
social”, podendo ser adoptados modelos para as finalidades seguintes:
informação sobre a data do acolhimento e sobre o início de execução da
medida; ficha de acolhimento; relatório social com avaliação psicológica;
perícia sobre a personalidade; informação sobre a medida cautelar de guarda;
projecto educativo pessoal; relatório de execução da medida de internamento;
transferência de Centro Educativo; proposta de autorização de saída;
participação de ausência não autorizada; participação de alterações à situação
do educando; participação de ocorrências; informação sobre a data prevista
para a cessação do internamento; identificação e autorização de visitas; livro
de registo de visitas; diário de unidade; atribuição de dinheiro de bolso e gestão
do pecúlio; participação de infracção disciplinar; registo de medidas
disciplinares e informação sobre a aplicação de isolamento cautelar e sobre a
aplicação de medidas disciplinares. O outro instrumento auxiliar da intervenção
é o dossier individual, no qual são inseridas as decisões judiciais e os
documentos técnicos, devendo estar sempre actualizado e organizado.
508 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

3. 3. Os programas educativos e terapêuticos

3. 3. 1. A formação escolar em Centro Educativo

Entre outras transformações, a LTE tornou necessária a reorganização da


formação escolar e vocacional e/ou pré-profissional no âmbito de internamento
em Centro Educativo, passando os Ministérios da Justiça, da Segurança Social
e da Educação a cooperarem na reformulação de questões educativas,
organizativas e de funcionamento, de forma a responderem às necessidades
educativas dos jovens internados.

Nos termos do Despacho Conjunto n.º 998/2003, de 27 de Outubro, os


Ministros da Justiça, da Educação e da Segurança Social e do Trabalho
determinaram que o Ensino Básico e a qualificação escolar e profissional dos
jovens internados em centros educativos é tarefa a cargo do Ministério da
Educação, através das direcções regionais de educação e de escolas e
agrupamentos. Assim, os cursos dos 1.º e 2.º ciclos do Ensino Básico (isto é,
do 1.º ao 6.º ano de escolaridade) são organizados pelos centros educativos e
leccionados por docentes colocados em regime de destacamento ou por
professores profissionalizados de escola ou agrupamento da respectiva área
em complemento de horário, em regime de acumulação ou outra situação
prevista em acordo de cooperação existente entre o Centro Educativo e a
escola ou o agrupamento (cf. artigos 2.º e 3.º do Despacho Conjunto n.º
998/2003). Já os cursos do 3.º ciclo do Ensino Básico (correspondente aos 7.º,
8.º e 9.º anos) são organizados por uma escola da área do Centro Educativo.
No que diz respeito aos educandos que tenham concluído o 9.º ano, é
permitido o acesso ao Ensino Secundário ou a uma qualificação escolar e
profissional, conforme o artigo 10.º daquele diploma. Nos termos do artigo 27.º,
a Direcção-Geral dos Recursos Humanos da Educação e o IRS poderão
celebrar protocolos com instituições de ensino superior ou com outras que
sejam adequadas à formação de professores para desempenharem funções de
docência em centros educativos. As escolas e os centros educativos podem,
ainda, apresentar propostas de percursos curriculares alternativos, escolares e
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 509

de educação e formação, “incluindo outras actividades educativas, de


ocupação e orientação vocacional e de desporto escolar, tendo especialmente
por objecto a certificação em prazo mais curto de educandos com idade igual
ou superior a 15 anos” (artigo 6.º), além de poder ser ministrado ensino
recorrente (artigo 8.º), componentes de formação pré-profissional ou
profissional, vocacional ou artística (artigo 9.º).

Na perspectiva do IRS, é “essencial a continuidade dos professores,


preferencialmente em regime de destacamento, com horário completo, via
escolas associadas mais próximas dos C.E., a fim de rentabilizar o
investimento necessariamente efectuado na sua integração e formação,
permitindo uma intervenção cada vez mais estruturada decorrente da formação
e de experiência adquirida com este tipo de população” (Despacho Normativo
Interno n.º 7/PRESS/2002, sobre Formação escolar em Centro Eduicativo).

O IRS considera, ainda, “necessária a existência futura de um corpo


docente permanente em C.E., a ser constituído por um número fixo de
professores”, salientando também o relevo da coordenação pedagógica das
estruturas do Ministério da Educação no planeamento e acompanhamento dos
currículos do Ensino Básico leccionados nos centros educativos. Nesse
sentido, também o Despacho Conjunto n.º 998/2003, de 27 de Outubro, nos
artigos 18.º e 19.º, determina que “sempre que se justifique, o ensino em
Centro Educativo é assegurado por professores em regime de destacamento”
e, nas situações em que tal não se justifique, o ensino será ministrado por
“professores profissionalizados da escola ou agrupamento da área do Centro
Educativo aos quais este esteja vinculado por acordo de cooperação”.

O IRS elencou algumas características referentes ao perfil, às funções, ao


sigilo profissional e às bonificações dos professores que leccionam em centros
educativos, em virtude da intervenção educativa que aí tem lugar não ser
compatível com um modelo de formação convencional, implicando, ao invés,
uma cada vez maior especialização na actuação técnica de todos os elementos
da equipa educativa e uma resposta distinta para cada educando. Assim, tal
como o IRS descreve no “Guião de procedimentos da formação escolar em
510 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

Centro Educativo”, a formação escolar é conjugada com a intervenção técnico-


pedagógica, numa articulação mais estreita com a formação profissional, mas
também com as demais componentes da intervenção, designadamente a
lúdica, a desportiva e a terapêutica.

Princípios orientadores da formação escolar

Os centros educativos desenvolvem programas de formação escolar,


seguindo as orientações definidas com o Ministério da Educação, com o
objectivo de “dotar o educando de competências escolares básicas que lhe
permitam o prosseguimento de estudos ou a inserção na vida activa” (artigo
27.º, n.º 1, do RGDCE). Para o efeito, o Ministério da Educação, de acordo com
o artigo 27.º, n.º 4 daquele Regulamento, deverá estabelecer regras concretas
para a formação escolar em Centro Educativo, designadamente quanto à
organização dos currículos escolares, de turmas e da afectação e formação de
professores.

Como decorre do artigo 160.º, n.º 1 da LTE, os jovens internados


“continuam sujeitos aos deveres decorrentes da escolaridade obrigatória,
devendo ser incentivados a prosseguir ou a completar estudos em
estabelecimento de ensino no exterior, desde que o regime de internamento o
permita”. Nos casos em que o regime de internamento não é compatível com a
frequência de escola no exterior, “a actividade escolar oficial desenvolvida nos
centros educativos deve ser orientada de modo a adaptar-se às particulares
necessidades dos menores e a facilitar a sua inserção social”, continua o n.º 2
da referida norma.

A LTE, em várias normas, faz referência à escolaridade obrigatória como


sendo um direito do qual o educando não pode ser privado - cfr. artigos 171.º,
n.ºs 2 e 3, b) e c). Ou seja, a elaboração e concretização de um PEP
individualizado com particular incidência para as actividades escolares é um
direito dos educandos.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 511

Como se lê no “Projecto de Formação Escolar – Ensino recorrente – Ano


lectivo 2003/2004” do Centro Educativo da Bela Vista, os jovens que aí são
acolhidos necessitam de uma “intervenção multifacetada, recorrendo a todas
as valências da equipa multidisciplinar, tendo em conta a sua estrutura de
personalidade, a situação sócio-familiar e o contexto económico, afectivo,
escolar em que se inserem”. Tais jovens, continua o “Projecto de Formação
Escolar” que seguimos, estão, em regra, “marcados pelo absentismo e
insucesso e pela grande resistência em retomar o processo de ensino /
aprendizagem”, apresentando “grande dificuldade de concentração, estão
desmotivados para o processo de ensino / aprendizagem, desistem com muita
facilidade, resistem mal à falha e à perda, necessitam muito da concretização,
da aliança do lúdico ao formal, de grande estimulação do seu espírito crítico”.
É, assim, importante reforçar os seus saberes, aproveitar os seus
conhecimentos para desenvolver aptidões, atitudes e valores. Ora, apenas
“uma escola diferente, com professores motivados, empenhados, capazes de
estabelecerem relações interpessoais desinibidas e positivas poderá devolver a
estes jovens a possibilidade de virem a conseguir algo nesta segunda
oportunidade escolar”. São necessárias pedagogias diferenciadas, materiais
adequados e também avaliação distinta da habitual, pois, além de “tentar
recuperar as matérias escolares em atraso a escola tem que dar o melhor
contributo por forma a que se possa definir em conjunto um projecto de vida
personalizado”. O processo de ensino / aprendizagem deverá, por isso,
constituir um fio condutor à intervenção em Centro Educativo. O “Projecto de
Formação Escolar” em análise acrescenta que o professor deve auxiliar a
turma e o educando individualmente a reflectirem sobre si mesmos e sobre o
meio em que estão inseridos e deve prepará-los para as três dimensões do
saber: o conhecimento (saber), as capacidades (saber fazer) e as atitudes
(saber ser). O Projecto de Formação Escolar que estamos a analisar conclui,
ainda, que, atendendo às características dos educandos, é conveniente que
todos os jovens, “independentemente da idade (...) possam frequentar o ensino
recorrente, propondo-se que seja possível a matrícula de todos os jovens (....)
mesmo que a idade não corresponda à que se encontra legalmente prevista
512 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

para a frequência no exterior do Ensino Básico recorrente: 15 anos à data do


início do curso”.

A intervenção pressupõe uma interligação estreita entre a teoria e a


prática, uma interdisciplinaridade, através de uma articulação entre a formação
escolar e a formação técnico-prática (ateliers de formação pré-profissional e
animação sócio-cultural, entre outros), a qual é tida como fundamental para
uma educação equilibrada dos jovens, pois, a par do desenvolvimento da
sensibilidade, aumenta a criatividade e a capacidade de envolvimento em
projectos. O coordenador da equipa de programas, em reuniões periódicas,
deverá articular com as áreas de intervenção educativa e formativa. De acordo
com o artigo 134.º, n.º 4, do RGDCE, compete à equipa de programas, mais
especificamente à subequipa pedagógica, integrada no sector
técnico-pedagógico, o planeamento, a execução e a avaliação dos programas
educativos previstos no PIE, concretamente o desenvolvimento de programas e
actividades de formação escolar, de animação sócio-cultural e desportiva, de
orientação vocacional e de formação pré-profissional, assim como a articulação
com o meio exterior, com o intuito da inserção sócio-profissional dos
educandos.

A intervenção educativa é empreendida atendendo às características dos


jovens e definida “a partir deles e com eles por forma a que as expectativas e
motivações individuais sejam tidas em consideração, com especial enfoque
para aquilo que cada um tem de mais positivo”. O sub-sistema escolar, como
refere o Projecto de Formação Escolar que seguimos, é uma das áreas
essenciais da intervenção, “quer pela formação pedagógica dos agentes
educativos que aí são actores, quer pela missão que a estes cabe na formação
global dos jovens (...), nomeadamente no que diz respeito ao processo de
acolhimento, à discussão/explicitação das regras institucionais como
instrumento de trabalho, à formação no âmbito das competências sociais
(cumprimento de regras, atitudes, comportamentos, trabalho em grupo, gestão
de conflitos), à formação dos jovens para a cidadania e para o direito, à
abordagem de temas que prossigam objectivos relacionados com as doenças
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 513

sexualmente transmissíveis, ao tabagismo, à toxicodependência, à gestão dos


afectos, à dinâmica de grupos, às relações interpessoais, às vantagens do
internamento”.

Resultados escolares de jovens em centros educativos em 2001/2002

Em 2003, o IRS apresentou uma avaliação dos resultados escolares


referentes ao ano lectivo 2001/2002 dos jovens internados em centros
educativos. As conclusões dessa avaliação foram as seguintes: metade dos
educandos que frequentaram o ano lectivo analisado encontrava-se no 2.º ciclo
do Ensino Básico; 96% dos jovens eram do sexo masculino e 4% do sexo
feminino; quanto ao estabelecimento de ensino, verificou-se que 95% dos
jovens internados frequentaram o respectivo nível de escolaridade no Centro
Educativo, apenas 5% frequentaram uma escola na comunidade e, destes, a
maioria frequentou o 3.º ciclo do Ensino Básico; do total de jovens internados,
93% frequentavam o Ensino Recorrente e 7% o Ensino Regular; 17% dos
educandos não foram matriculados no sistema de ensino, sendo a principal
razão para tal a entrada no Centro Educativo no final do ano lectivo. No que diz
respeito aos resultados escolares, foi no 2.º Ciclo que se registou a taxa de
progressão mais alta, com 44%, seguindo-se o 1.º Ciclo, com 32% e o 3.º
Ciclo, com 23%.

3. 3. 2. A orientação vocacional e a formação pré-profissional


em Centro Educativo

Dado que o objectivo das medidas tutelares é a socialização do


educando, a escola e o trabalho, como vimos no Capítulo I, desempenham um
importante papel neste âmbito. Acresce que o precoce abandono escolar
destes jovens e o consequente baixo nível de escolaridade condicionam as
possibilidades de acesso a actividades e a cursos de formação profissional e a
futura obtenção de emprego. Considera-se, por isso, essencial a oferta e o
514 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

investimento nesta área, durante a permanência dos jovens nos centros


educativos. É importante a criação de objectivos específicos a desenvolver em
curtos períodos de tempo, com flexibilidade e capacidade de resposta distintas
em função de cada caso e com vista à progressão do educando. No Centro
Educativo deverão ser diagnosticadas as áreas nas quais o educando tem
menores déficits, devendo a intervenção ser dirigida para as áreas mais
adequadas ao seu caso, e existir uma oferta diversificada, quer nas áreas de
formação propostas, quer nas estratégias e metodologias a implementar, de
modo a descobrir as motivações dos educandos, “sensibilizando-os para uma
primeira aproximação a diferentes saberes numa perspectiva que se deseja
multidimensional e transversal a toda a formação”, de acordo com a
“Fundamentação Geral da Proposta de Formação Pré-Profissional”, de 2004,
do Centro Educativo da Bela Vista.

De acordo com a mesma fonte, a avaliação dos jovens a frequentarem


ateliers de formação pré-profissional é feita “de forma contínua, de acordo com
a assiduidade dos mesmos, tendo em vista a emissão de certificados de
frequência, pelo que será exigido a cada educando um mínimo de 50% do total
de horas do atelier que o jovem frequente no momento, por forma a que seja
passado o respectivo certificado”. Quanto aos formadores, salienta-se a
“extraordinária importância de que se reveste a estabilização do corpo de
formadores”, para o desenvolvimento mais estruturado dos ateliers e a sua
intervenção na equipa.

A intervenção deve procurar encontrar um projecto de vida para o jovem,


entendendo-se que qualquer área de formação constitui um meio securizante e
que contribui para o seu processo de (re)organização interna. A partir de um
“esquema de rotatividade que coloca cada formando em contacto com vários
pólos de formação possível e com diferentes agentes educativos” visa-se a
valorização das opções pessoais, cedendo aos jovens informações que no
futuro lhes permitam escolher uma determinada via, tendo presentes as suas
aptidões e o seu meio.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 515

A formação pré-profissional em Centro Educativo é, assim, considerada


importante para preparar os educandos para uma futura formação profissional,
criando hábitos e desenvolvendo atitudes de trabalho em grupo, assiduidade,
pontualidade, manutenção de objectos e materiais e de regras no
relacionamento interpessoal. Como é referido na “Fundamentação Geral da
Proposta de Formação Pré-Profissional”, a formação pré-profissional deve ter
como pano de fundo “uma aprendizagem que visa a promoção social dos
educandos no sentido de uma transformação que os leve a actuar em
sociedade, de uma forma participativa, livre e responsável, naquilo que deve
consistir o verdadeiro exercício da cidadania”.

Os centros educativos e as ofertas de formação pré-profissional e


despiste vocacional

Vejamos, agora, as ofertas de formação pré-profissional e de despiste


vocacional apresentadas como disponíveis nos centros educativos, de acordo
com informação do IRS vertida numa pequena publicação intitulada “Educar
para o Direito – Vivência em Centro Educativo”.

O Centro Educativo de Santo António, no Porto, oferece formação


pré-profissional nas seguintes áreas: carpintaria, oficina da arte, oficina do
quotidiano, oficina de electricidade, oficina de espaços verdes e oficina de
espaços circenses. Como actividades sócio-educativas, lúdicas e desportivas,
tem ao dispor trabalhos de pintura, desenho, colagens, máscaras, impressões
de linogravura e xilogravura, cerâmica, dramatização, iniciação à música e
iniciação à dança.

O Centro Educativo de Santa Clara, em Vila do Conde, tem formação


pré-profissional em artes gráficas, em mecânica auto, informática e
electricidade. As actividades sócio-educativas, lúdicas e desportivas
disponíveis são cicloturismo, torneios desportivos na comunidade, futebol,
516 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

jornal de parede, mediateca, atelier de artes plásticas, guitarra, teatro,


acampamentos, acantonamentos e passeios.

As áreas de formação pré-profissional e despiste vocacional existentes no


Centro Educativo Dr. Alberto Souto, em Aveiro, são jardinagem, pintura,
construção civil, barros e novas tecnologias. Por seu lado, as actividade
sócio-educativas, lúdicas e desportivas são remo, canoagem, atletismo, ténis,
futebol, andebol, badmington, circuito de manutenção, acampamentos “Caça
ao tesouro”, peddypaper, fotografia, jornal, reciclagem de papel e realização de
eventos culturais.

No Centro Educativo do Mondego, na Guarda, existe formação


pré-profissional e despiste vocacional nas áreas de informática, carpintaria,
serralharia de alumínios, serralharia civil e electricidade. Este equipamento
proporciona aos educandos actividades sócio-educativas, lúdicas e desportivas
como música, internete, jogos de computador, biblioteca, videoteca, grupo de
teatro, ginástica e futebol.

Em Coimbra, no Centro Educativo dos Olivais, os educandos têm a


possibilidade de frequentar acções de formação pré-profissional e de despiste
vocacional de calcetaria, jardinagem, mecânica auto, carpintaria e um atelier
artístico. Como actividades sócio-educativas, lúdicas e desportivas, existe
musicoterapia, música instrumental, animação cultural, socorrismo, iniciação à
informática, primeiros socorros e aeromodelismo.

No Centro Educativo de São Fiel, em Louriçal do Campo – Castelo


Branco, existe formação pré-profissional de marcenaria, serralharia civil e
alumínios e olaria/decoração. As actividades sócio-educativas, lúdicas e
desportivas disponíveis são ginástica, biblioteca, natação, futsala, informática e
o projecto “A Escola e a Assembleia – A Serra da Gardunha”.

No Centro Educativo de São José, em Viseu, as educandas poderão


frequentar acções de formação pré-profissional e despiste vocacional de
cabeleireiro e informática. As actividades sócio-educativas, lúdicas e
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 517

desportivas existentes são expressão plástica e dramática, trabalhos


artesanais, jardinagem, informática, biblioteca, artes gráficas, ginástica, jogos
tradicionais, andebol, basquetebol, voleibol.

As acções de formação pré-profissional disponíveis no Centro Educativo


da Bela Vista, em Lisboa, são artes gráficas, informática, artes decorativas,
carpintaria e pintura da construção civil. Neste Centro Educativo existem as
actividades sócio-educativas, lúdicas e desportivas seguintes: artes circenses,
expressão plástica, música, capoeira, atelier polivalente (de madeiras, papel e
metal), videoteca, internet, centro lúdico e jogos tradicionais.

O Centro Educativo Navarro de Paiva, em Lisboa, oferece acções de


formação pré-profissional de jardinagem, culinária e informática e actividades
sócio-educativas, lúdicas e desportivas com teatro, música, artes circenses,
“Faz-Tudo”, informática, biblioteca e jornal de parede.

Em Caxias, no Centro Educativo Padre António de Oliveira, os educandos


podem frequentar acções de formação de jardinagem, madeiras, electricidade,
informática, cerâmica, artes visuais e encadernação. As actividades
sócio-educativas, lúdicas e desportivas aí existentes são capoeira, ginástica
acrobática, dança, futebol, atletismo, BTT, culinária, fotografia, biblioteca e
jornal/artes gráficas.

O Centro Educativo de São Bernardino, situado próximo de Peniche,


destinado ao internamento de jovens do sexo feminino, oferece acções de
formação pré-profissional e de despiste vocacional de expressão artística,
oficina da natureza e cabeleireiro. Neste equipamento, as educandas poderão
dispor das seguintes actividades sócio-educativas, lúdicas e desportivas:
música, dança, teatro, biblioteca, jornal/artes gráficas, ginástica, canoagem,
rappel, natação, voleibol, basquetebol e vela.

Próximo de Elvas, o Centro Educativo Vila Fernando, oferece aos


educandos a possibilidade de frequentarem acções de formação pré-
profissional e de despiste vocacional de informática, cerâmica/olaria,
518 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

serralharia civil, electricidade e sala polivalente. Em Vila Fernando as


actividades sócio-educativas, lúdicas e desportivas existentes são desportos de
aventura e risco, ginástica, futebol, natação, biblioteca e jornal/artes gráficas.

Como referimos, estas acções de formação eram aquelas indicadas pelo


IRS como disponíveis nos centros educativos, em 2003.

Resultados da avaliação das acções de formação pré-profissional e


de despiste vocacional de jovens em centros educativos em 2001/2002

O IRS procedeu, em 2003, ao estudo de avaliação das acções de


formação pré-profissional certificada desenvolvidas pelo Centro Protocolar de
Justiça (CPJ) nos centros educativos, em 2001 e 2002.

A avaliação global concluiu que cada formando frequentou mais de uma


acção de formação profissional, sobretudo acções de formação desenvolvidas
pelo CPJ.

Em onze centros educativos, no período considerado, tiveram lugar 36


acções de pré-profissionalização e despiste vocacional e três cursos de
iniciação. Apenas dois centros educativos levaram a cabo acções de iniciativa
do próprio Centro – centros educativos Vila Fernando e dos Olivais. O Centro
Educativo Padre António de Oliveira destacou-se por ter sido o que realizou
maior número de acções, comparativamente com outros equipamentos com os
mesmos regimes de execução e com igual número de educandos.

Nas acções de formação profissional foram inscritos 501 formandos173,


dos quais 96% do sexo masculino e apenas 4% do sexo feminino.

173
Importa referir que dos jovens inscritos, alguns não frequentaram a acção até ao final, em
virtude de terem sido transferidos para outro Centro Educativo ou por terem mudado de acção
de formação na sequência de mudança de regime de execução de medida. Apenas 344
educandos concluíram as acções de formação profissional, ou seja, 66% do total.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 519

Quanto ao aproveitamento, concluiu-se que 44% dos formandos


obtiveram a classificação de “Muito Bom” e “Bom” e que 53% alcançaram um
aproveitamento “Suficiente”. Deste modo, 97% dos educandos, segundo a
avaliação do IRS, tiveram um desempenho positivo nas acções de formação
que frequentaram. Apenas 3% dos formandos não atingiram o resultado
mínimo.

A duração das acções foram muito díspares, dos 12 meses de algumas


aos 3 meses de outras.

Na perspectiva do IRS, o balanço global da formação profissional foi


positivo, tendo sido tecidas algumas considerações a propósito da forma como
decorria a formação: “A diversidade actual da oferta formativa, que tem como
base as motivações e as necessidades dos formandos, deveria ter em conta,
no momento da escolha dos cursos a implementar, as saídas profissionais com
maiores garantias e com possibilidades de continuidade no exterior após a
saída do sistema de justiça. Outros níveis de formação-iniciação e qualificação
deveriam também fazer parte da oferta formativa, sobretudo para educandos
com medidas de internamento mais longas. A possibilidade de implementação
de uma Formação Profissional modular, que garantisse a continuidade da
formação no meio social normal e em consequência, a integração sócio-
profissional dos formandos após a sua saída do sistema”174.

Dado o elenco das acções de formação possíveis nos vários centros


educativos, pensamos que as questões levantadas são muito importantes,
devendo a sua solução ser considerada, a curto prazo.

174
Cf. Formação Profissional - Acções de Pré Profissionalização e Despiste Vocacional”.
520 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

3. 3. 3. Os programas terapêuticos e de educação para a saúde

A intervenção psicoterapêutica é considerada uma abordagem


fundamental como forma de compreender cada jovem como um todo, incluindo
as suas ligações afectivas, o seu meio sócio-cultural e o seu projecto de vida.
Neste âmbito, no Centro Educativo da Bela Vista, em 2003, foi implementado
um programa experimental de “Intervenção psicoterapêutica – Psicoterapia
individual e psicoterapia de grupo”. Esse programa parte do facto dos
comportamentos anti-sociais reflectirem “alguma forma de sofrimento psíquico,
decorrendo daí a importância de se compreenderem as causas inconscientes
subjacentes ao mesmo, tendo em conta ainda que, não raras vezes, os
comportamentos anti-sociais se constituem numa organização psíquica
defensiva com o objectivo único de ocultar e de tornar suportável sofrimentos
internos e vivências emocionais traumáticas” (Intervenção psicoterapêutica –
Psicoterapia individual e psicoterapia de grupo, 2003: 2-3).

Não nos podemos esquecer que, nos Centros educativos, encontramos,


em regra, os casos de jovens que praticam actos delinquentes mais graves e
com estruturações de personalidade mais complicadas, o que requer uma
intervenção institucional que, além de compreender os fenómenos sociais,
dispense também atenção aos fenómenos psicológicos, sendo necessária uma
intervenção clínica, designadamente de foro psicoterapêutico. Fala-se, a
propósito, da necessidade da existência de uma “clínica social da delinquência
juvenil175”, ou seja, de um novo paradigma que comporte um corpo clínico-
social que intervenha junto do jovem delinquente.

Os objectivos em vista com a intervenção psicoterapêutica é que o


educando se comporte, pense e sinta de forma individual a sua história pessoal
e emocional, que saiba gerir os limites internos e externos “sem entrar em
pânico ou apresentar dor ou sofrimento com as interdições e com os limites

175
Segundo expressão de Finkelstein-Rossi, J (1999), in Violence dans la cité – Mineur Délit et
incivilités. Paris: Collection Question du Temps, citado no Programa “Intervenção
psicoterapêutica – Psicoterapia individual e psicoterapia de grupo”, de 2003.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 521

externos, e que possa flexibilizar e alargar os seus limites internos,


possibilitando-lhe a criatividade e o preenchimento das lacunas e dos vazios da
sua história pessoal e familiar” (Programa de Intervenção Psicoterapêutica em
Centro Educativo: 2003).

A intervenção psicoterapêutica compreende a modalidade de psicoterapia


individual e a psicoterapia de grupo de base analítica, que têm dinâmicas de
intervenção distintas.

Como se refere no “Programa de Intervenção Psicoterapêutica em Centro


Educativo”, se o delito é um sintoma (tal sintoma tem que ser analisado numa
perspectiva clínico-social), o jovem “move-se sistematicamente entre o «ter» e
o «ser» e poderá necessitar de um vínculo relacional (...) que favoreça a sua
estruturação dos limites (...) e que possa digerir/elaborar as suas angústias, os
seu medos, as sua «cicatrizes psíquicas e afectivo-emocionais»,
proporcionando ainda uma melhor ligação sócio-comunitária e interiorização da
noção do outro, num ambiente contentor” (cf. Programa de Intervenção
Psicoterapêutica em Centro Educativo).

O psicoterapeuta atribui significado a emoções e sentimentos que estão a


ser vividos pelos jovens, relacionando o que se está a passar na sessão de
psicoterapia com a história passada de cada um, de forma a que possam ser
vividas novas e construtivas relações interpessoais, possibilitando que cada um
possa vir a estabelecer novas relações adaptativas e construtivas ao longo da
sua vida.

3. 4. Os relatórios de execução da medida de internamento

O dever de informar o Tribunal sobre a execução da medida aplicada e


sobre a evolução do processo educativo do jovem recai sobre o Centro
Educativo, assim como a informação sobre as circunstâncias susceptíveis de
fundamentar a revisão da medida, quando as mesmas se verifiquem, nos
termos do disposto no artigo 131.º, n.º 1, da LTE. Tal dever geral de
522 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

informação, especificamente no âmbito da medida de internamento, está


previsto no artigo 154.º da LTE, de acordo com o qual cabe ao director do
Centro Educativo remeter ao Tribunal relatórios sobre a execução da medida e
sobre a evolução do processo educativo do jovem. Tais relatórios terão
periodicidade trimestral no caso de medidas com duração até um ano e serão
semestrais no caso de medidas de internamento de duração superior, podendo
ambos ser acompanhados de propostas de revisão da medida. O relatório final
de execução da medida deve ser remetido com a antecedência de 15 dias em
relação à data da cessação daquela.

A informação sobre a execução da medida deve permitir que o Tribunal


conheça e avalie o modo como o educando está a respeitar o disposto no seu
PEP, designadamente se estão a ser alcançadas as metas antes planeadas, se
se estão a verificar progressos ou retrocessos nas fases previstas, assim como
outros elementos, ou seja, os relatórios de execução consistem em balanços
sobre o processo educativo do jovem.

3. 5. O regime disciplinar

O regime disciplinar dos centros educativos encontra-se previsto na LTE –


artigos 185.º a 205.º - e no RGDCE – artigos 92.º a 119.º. De acordo com o
artigo 185.º n.º 1, da LTE, o procedimento e as medidas disciplinares
“constituem o derradeiro recurso dos centros educativos para corrigir as
condutas dos menores internados que constituam infracções disciplinares, nos
termos da presente lei e do regulamento geral”. O procedimento e as medidas
disciplinares, acrescenta o n.º 2, não têm lugar quando se considere “possível
e adequado reagir perante infracção disciplinar através de outro tipo de
respostas educativas, voluntariamente aceite pelo menor” (designadamente a
reparação do dano, a conciliação com o ofendido ou a realização de uma tarefa
para benefício colectivo do centro).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 523

O regime disciplinar é regido pelo princípio da tipicidade das infracções,


as quais, segundo o artigo 186.º da LTE, “só podem ser corrigidas através da
aplicação das medidas disciplinares previstas” na LTE, sem prejuízo das
infracções atípicas, ou seja, aquelas infracções “cometidas pelo menor durante
a execução da medida de internamento, que não constituam infracção
disciplinar nos termos legais”, que “são corrigidas mediante métodos
educativos, oportunos e exequíveis, não lesivos dos direitos do menor”, de
menor gravidade do que as medidas disciplinares ,de acordo com o artigo 187.º
da LTE.

As infracções disciplinares são classificadas em leves, graves e muito


graves, elencando o legislador as infracções correspondentes a cada uma
destas categorias (artigos 189.º a 193.º da LTE).

As medidas disciplinares são elencadas no artigo 194.º da LTE, num


leque que vai da repreensão até à suspensão do convívio com os
companheiros, por período não superior a uma semana. As medidas
disciplinares são, obrigatoriamente, registadas no dossier individual do
educando, com excepção da repreensão (artigo 200.º da LTE), a qual, ao invés
das demais medidas disciplinares, não é susceptível de recurso pelo jovem,
seus pais, representante legal ou quem tenha a sua guarda de facto e o
defensor (artigo 201.º da LTE).

A aplicação de medidas disciplinares por infracções graves ou muito


graves apenas pode ter lugar após procedimento disciplinar, já a aplicação de
medidas disciplinares por infracções leves é antecedida de procedimento
disciplinar sumário (artigo 204.º da LTE). O procedimento disciplinar, nos
termos do artigo 109.º do RGDCE, “tem como objectivo averiguar da existência
dos factos participados, qualificá-los como infracção disciplinar, analisar as
circunstâncias em que ocorreram, determinar a sua gravidade e o seu autor e
propor a aplicação da medida disciplinar”, devendo ser concluído “no mais
curto espaço de tempo possível, não podendo, em caso algum, ultrapassar 10
dias úteis” (artigo 114.º n.º 5, do RGDCE).
524 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

Da leitura das normas relativas à intervenção disciplinar – na LTE e no


RGDCE – conclui-se que o mesmo tem subjacentes vários princípios: o
princípio da legalidade, o princípio do respeito pela dignidade, pela saúde física
e psíquica do educando, pela prioridade da intervenção educativa e disciplinar,
o princípio da subsidariedade do procedimento disciplinar, o princípio da
mediação, o princípio do contraditório, o princípio da obtenção da verdade
material, da oralidade, da celeridade do processo disciplinar, da adequação,
proporcionalidade e oportunidade, da graduação das medidas disciplinares e
do efeito suspensivo mitigado.

Contudo, como adiante se verá, para alguns operadores, o procedimento


disciplinar deveria ser alvo de alterações.

3. 6. A articulação dos centros educativos com outras entidades

Tal como o legislador determina, na LTE e no artigo 38.º, n.º 1 e ss. do


RGDCE, a vida nos centros educativos deve, “tanto quanto possível, ter por
referência a vida social comum e minimizar os efeitos negativos que o
internamento possa implicar para o educando e seus familiares, favorecendo
os vínculos sociais, o contacto com familiares e amigos e a colaboração e
participação das entidades públicas ou particulares no processo educativo e de
reinserção social”. Ora, o IRS, para pôr em marcha o funcionamento dos
centros educativos, articula-se, necessariamente, com outras instituições e
sectores, designadamente com o Ministério da Educação, com o Centro
Protocolar da Justiça, com o Instituto de Emprego e Formação Profissional,
com o Ministério da Saúde, ou antes, com hospitais e Centros de Saúde, bem
como com organismos da comunidade, como a Ordem dos Advogados176,

176
Em 16/07/2004, o IRS, a Ordem dos Advogados e a Comissão de Direitos Humanos da
Ordem dos Advogados celebraram um Acordo de Cooperação, com o objectivo de definir “uma
articulação que garanta a efectiva intervenção do advogado no âmbito da aplicação e o
acompanhamento regular dos centros educativos pela Comissão dos Direitos Humanos da
Ordem dos Advogados” (Ordem dos Advogados, 2004).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 525

entre outras entidades, embora com limitações, como analisaremos mais à


frente.

Educação

Como atrás referimos, o IRS articula-se com o Ministério da Educação,


devido à vertente de formação escolar desenvolvida nos centros educativos.

Porém, a cooperação estabelecida não é considerada a ideal, já que,


designadamente os professores colocados nos centros educativos raramente o
são em regime de destacamento, antes aí leccionam como se de um qualquer
estabelecimento de ensino se tratasse, isto é, sem terem manifestado especial
apetência por leccionar neste tipo de instituição e sem disporem de especial
formação para enfrentarem alunos com as problemáticas dos jovens
internados. Como consequência, não são raros os casos de docentes que não
conseguem resistir às pressões e que desistem antes do final do ano lectivo ou
aqueles que não se sentem adaptados e, provavelmente, não terão conseguido
dar “o seu melhor”.

Outros professores existem, contudo, que se revelam excelentes


colaboradores dos técnicos do IRS, que se dedicam aos jovens, que os
conseguem cativar e motivar para as aulas. Porém, sucede muitas vezes que,
no ano lectivo seguinte, ao invés de leccionarem, de novo, naquele Centro
Educativo, são colocados num outro estabelecimento de ensino,
desperdiçando-se, assim, todo o “conhecimento” acumulado.

O regime de selecção de professores deveria, por isso, sofrer alterações,


bem como a sua colocação - de preferência em regime de destacamento -
deveria ser objecto de uma cuidadosa atenção, como, aliás, se defende no
quadro normativo, como vimos no ponto 4.3.1.
526 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

Saúde

Quanto à área da saúde, as entrevistas e os documentos analisados


permitem-nos concluir que as carências são muitas, nos centros educativos.
Para fazer face aos problemas mais rotineiros em termos de cuidados de
saúde, o IRS celebrou contratos de avença com médicos e com enfermeiros.
Contudo, nem todos os centros educativos dispõem, actualmente, de apoio
médico e de enfermagem, o que implica o recurso sistemático ao Centro de
Saúde e a Hospitais. Considera-se que este facto tem fortes implicações na
dinâmica interna, já que, para garantir este tipo de saídas com
acompanhamento, os meios humanos no Centro Educativo ficam fragilizados,
como nos foi referido nos centros educativos que visitámos.

Acontece, também, que por vezes os cuidados prestados nos centros


educativos não são os suficientes para responder aos problemas de saúde dos
jovens, pelo que é necessário, sistematicamente, o recurso a consultas de
especialidades médicas que vão para além dos conhecimentos de clínica geral
e de pedopsiquiatria – as valências, em regra, disponibilizadas nos próprios
centros educativos.

Em todos os centros educativos em que efectuámos recolha de dados e


em que realizámos entrevistas, foi-nos dito que a prestação de cuidados de
saúde aos jovens internados, para além dos cuidados disponibilizados pelo
médico avençado de clínica geral, apenas é conseguida com muita “ginástica
orçamental” visto o orçamento disponível não ser suficiente para conduzir os
jovens às consultas necessárias sempre que é pertinente, designadamente
consultas de estomatologia, nem para adquirir os medicamentos prescritos.

Apesar de não existirem protocolos de colaboração estabelecidos com o


Ministério da Saúde, a deslocação aos centros de saúde da área geográfica
dos centros educativos é habitual, assim como, por exemplo, no caso de
Coimbra, deslocações aos Hospitais da Universidade de Coimbra, algo
facilitadas devido a uma rede de contactos estabelecida pelos quadros do
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 527

Centro Educativo. Ainda no caso de Coimbra, foi celebrado recentemente um


protocolo com a Cruz Vermelha Portuguesa, em regime de voluntariado177.

Saúde mental

Um problema com o qual se deparam os centros educativos é a carência


de respostas para os problemas relacionados com a área da saúde mental,
pois a resposta existente é muito escassa e insuficiente.

Os jovens com necessidade de respostas clínicas de foro psiquiátrico são,


sobretudo, encaminhados para o Centro Educativo Navarro de Paiva. Este
Centro Educativo tem já tradição na área da saúde mental. Em termos de
resposta, o que distingue este centro dos demais é a existência, entre os
funcionários, de uma médica psiquiatra e de uma terapeuta da fala. Contudo,
como nos foi relatado, actualmente não desempenha aí funções nenhum
psicólogo clínico.

Apesar da especificidade deste Centro, encontramos aí internados jovens


com problemas psiquiátricos, mas também outros que não requerem
intervenções deste âmbito. Simultaneamente, em outros centros educativos,
encontramos jovens que têm grandes necessidades de acompanhamento
psiquiátrico/psicológico. De acordo com os responsáveis do Centro Educativo
Navarro de Paiva, tal facto é intencional, dado entender-se que não é benéfica
a criação de centros educativos especialmente direccionados para o tratamento
de determinadas problemáticas e por a lei não exigir qualquer especialização
nesse âmbito.

177
Cf. Diário de Coimbra, 15 de Maio de 2004. “Cruz Vermelha voluntária com Colégio dos
Olivais”.
528 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

Centro Protocolar de Formação Profissional para o Sector da Justiça

O Centro Protocolar de Formação Profissional para o Sector da Justiça


(que, abreviadamente, designamos por CPJ) desempenha um importante papel
no âmbito dos centros educativos, uma vez que a formação pré-profissional aí
ministrada é da responsabilidade, em grande parte, deste organismo.

O CPJ, nos termos do artigo 2.º n.º 1, da Portaria n.º 538/88, de 10 de


Agosto, que criou o CPJ178, é “um organismo dotado de personalidade jurídica,
de direito público, com autonomia administrativa e financeira e património
próprio”. De acordo com o n.º 2 da mesma disposição, compete ao CPJ
“promover actividades de formação profissional para valorização da população
jovem ou adulta a cargo dos serviços e organismos do Ministério da Justiça,
com vista à sua integração na sociedade e no mundo laboral, tendo em conta
as suas carências, motivações e aptidões, bem como as necessidades do
mercado de trabalho”179.

Instituto de Emprego e de Formação Profissional

Como atrás referimos, nos centros educativos existe, a par da


escolaridade obrigatória e de outras actividades, uma vertente de formação
pré-profissional, para a concretização da qual foi estabelecida cooperação com
o Instituto de Emprego e de Formação Profissional. Sobre tal actividade,
veremos, adiante, a opinião dos operadores.

178
No protocolo de criação do CPJ estiveram envolvidos o Instituto do Emprego e da Formação
Profissional, a Direcção-Geral dos Serviços Tutelares de Menores, a Direcção-Geral dos
Serviços Prisionais, o Gabinete de Planeamento e de Coordenação do Combate à Droga e o
Instituto de Reinserção Social.
O CPJ tem financiamentos do Ministério do Trabalho e da Solidariedade (85%) e do Ministério
da Justiça (15%). No IRS, porém, paira a incerteza em relação ao apoio futuro do CPJ.
179
Quanto aos centros educativos, o CPJ detém algum do material utilizado em ateliers e paga
a alguns profissionais que aí vão prestar formação.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 529

Outras articulações dos centros educativos

Os centros educativos estabelecem algumas outras parcerias com


instituições da sociedade, designadamente com associações como a Cruz
Vermelha Portuguesa, com Juntas de Freguesia, com o Instituto Português da
Juventude, com a Casa Pia, com a AMI, com grupos de teatro, entre outras.

Os centros educativos articulam-se, ainda e necessariamente, com as


equipas do IRS da área de residência dos jovens, designadamente quando os
jovens se encontram em fases do internamento compatíveis com
fins-de-semana ou períodos de férias no exterior ou aquando da preparação da
saída do Centro Educativo. Considera-se que, contudo, a articulação
estabelecida, em muitas situações, deveria ser mais profunda, sobretudo tendo
em vista o conhecimento da situação sócio-familiar do jovem.

3. 7. O “Internamento como verdadeira oportunidade de mudança”


no Centro Educativo da Bela Vista

No Centro Educativo da Bela Vista, desde Setembro de 2003, está em


curso, em fase experimental, um Programa de formação e acompanhamento
associado ao comportamento delinquente, designado “Educação para a
Mudança” que entendemos ser importante relatar, devido às suas
potencialidades.

Importa relembrar que a LTE tem como finalidade, através da execução


das medidas tutelares educativas, “a educação do menor para o direito e a sua
inserção, de forma digna e responsável, na vida em comunidade“ (artigo 2.º da
LTE). A educação para o direito, recorda Margarida Macedo, que descreve o
Programa, consiste num “processo que leve o jovem a aderir aos valores
básicos da vida em sociedade, reflectidos nos valores jurídico-penais, de forma
a que com eles conforme a sua conduta e não cometa crimes”, sendo, assim,
algo dinâmico e relacionado com diversos aspectos, designadamente com o
contexto social, familiar e cultural. Depende, ainda, do valor atribuído ao
530 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

conjunto de normas e princípios, isto é, à experiência concreta de cada jovem,


pois a orientação moral depende também do desenvolvimento social e
cognitivo, a par dos aspectos culturais e sociais (Macedo, 2003: 1).

Como é descrito na Introdução ao Programa (Macedo, 2003: 1), todos os


jovens possuem valores nos quais acreditam e aos quais conformam o seu
comportamento, sendo a adolescência um período de consolidação da
consciência social, conseguida através do reencontro com eles próprios e da
procura de um papel social. Ora, os jovens internados em centros educativos,
possuem “défices consideráveis ao nível da qualidade das primeiras relações
(figuras parentais ou seus substitutos) que são determinantes na estruturação
da personalidade”, o que prejudica os processos de identificação, a criação de
uma imagem positiva de si e que desenvolve um funcionamento psíquico
incapaz de conviver com a frustração quotidiana, o que pode provocar uma
atitude de desprezo e de violência para com a sociedade. Para fazer face a
estes sentimentos, podem ser feitas intervenções que contemplem a orientação
para actividades criativas, o agir direccionado para actividades socialmente
aceites, tirar partido da boa capacidade motora, a ressocialização através da
interiorização de sistemas relacionais mais equilibrados e melhor imagem de si
próprios (Macedo, 2003: 2-3).

Atendendo às características dos educandos, “uma valência meramente


formativa e de treino de competências não permite ajudar o menor a
compreender o seu comportamento delinquente para melhor o poder modificar
de forma positiva e adequada. A conduta anti-social inscreve-se também num
sintoma de compromisso que tem por fim evitar o sofrimento psicológico num
registo de funcionamento com tendência a tornar-se estrutural. Tornando-se o
treino de determinadas competências, nesta altura, insuficiente para o quadro
da compulsão para a repetição que os jovens a quem foi aplicada a medida de
internamento habitualmente apresentam”. Além disso, “quando o
comportamento agressivo voltado para o exterior é mais uma projecção da
agressividade voltada contra o próprio ou contra as figuras parentais, do que
um verdadeiro ataque à sociedade, torna-se imprescindível que esta mesma
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 531

sociedade deixe de ser uma entidade abstracta para passar a ser uma rede
com funcionamento e vontade própria à qual ele pertence. Ao criarmos um
espaço que contemple a transmissão de determinados conteúdos podemos
contribuir para que o vazio deixado pelo desconhecimento não seja preenchido
com confabulações de ordem afectiva, onde o lugar em que nada existe é
oportunamente preenchido com a revolta e agressividade que oferece quem
pouco recebeu” (Macedo, 2003: 5).

O projecto “Educação para a Mudança” visa interligar metodologias


grupal, individual, formativa, de acompanhamento e um espaço de discussão
com interlocutores da comunidade. O objectivo geral deste programa é a
“prevenção da reincidência, de modo a que o menor não volte a praticar crimes
ou que reduza a sua frequência e gravidade” e a “identificação, compreensão e
interiorização de valores, regras e normas socio-jurídicas fundamentais que
facilitem a convivência social e favoreçam o desenvolvimento integrado do
menor como pessoa e cidadão, com sentido de responsabilidade” (Macedo,
2003: 9).

A intervenção, neste programa, será conseguida através de actuação


direccionada para os factores pessoais e sociais relacionados com a conduta
delituosa, por meio de intervenção em contexto grupal mas com destaque para
as características individuais, designadamente para as necessidades
educativas e para as potencialidades de cada jovem. É, ainda, trabalhada a
vertente da responsabilização, na qual se visa que o educando assuma na
íntegra o seu processo de mudança, de se criar um setting de intencionalidade
terapêutica, por meio da previsibilidade de encontros, da criação de relações
de confiança, ambiente de descontracção potenciador do abrandamento
defensivo, procura do eu individual no grupo, ajuda na determinação do seu
papel social, insistência nos aspectos positivos de cada um para a criação de
uma melhor imagem de si próprios, bem como a existência de módulos
circulares, para permitir a entrada de novo educando a qualquer momento
(Macedo, 2003: 9).
532 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

A metodologia a desenvolver no Programa, que se dirige a dois grupos de


seis educandos cada que se encontrem na 2ª fase de regimes semiaberto180,
consiste numa primeira entrevista individual; em 36 sessões de grupo; em 10
sessões de Encontro; e em sessões individuais de acompanhamento do
Programa (Macedo, 2003:10).

De facto, na perspectiva do IRS, o internamento deve constituir uma


“verdadeira oportunidade de mudança”, meta para a qual deve ser canalizado
todo o tempo de privação de liberdade, responsabilizando o jovem para um
novo projecto de vida, baseado em competências e em oportunidades (IRS,
2003c). Para alcançar tal objectivo, nos centros educativos deve haver uma
avaliação, consolidação e desenvolvimento de estratégias e deve ser
dispensada uma atenção especial às equipas. É fundamental avaliar a
actividade dos centros educativos em vários níveis, designadamente através da
implementação de instrumentos de follow-up e caracterizando periodicamente
a população alvo, assim como analisando, também, a intervenção no âmbito da
assessoria aos tribunais, o efeito que a privação da liberdade provoca nos
jovens, solicitando, para o efeito, a colaboração dos serviços de apoio técnico e
de entidades parceiras. Importa, para além de tudo isso, apurar quais os
métodos de avaliação dos educandos no quadro da progressividade por fases,
com vista a que exista uniformidade de critérios e consequente coerência do
sistema. Outro aspecto a merecer uma especial atenção é o primeiro ano de
vigência do despacho conjunto sobre formação escolar em Centro Educativo
que pretende instituir uma parceria mais efectiva com o Ministério da
Educação, favorecendo o regresso ao sistema de ensino no final da execução
da medida de internamento (IRS: 2003c).

180
Como é descrito no Programa, atendendo “ao carácter progressivo e faseado da
intervenção (...) os educandos que partilhem uma mesma fase estarão mais próximos entre si
ao nível da maturidade e capacidade de compreensão e adaptação a novas realidades” e é na
2ª fase da intervenção “quando se deve materializar toda a função educativa e de tratamento
porque é quando verdadeiramente se está no internamento. Depois de se ter chegado e antes
de se ter partido” (Macedo, 2003: 11).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 533

4. Caracterização da situação e dos jovens internados nos centros


educativos

4. 1. Os internamentos, segundo o IRS (2001 a 2003)

Os dados do IRS constantes dos seus documentos “Difusão Estatística –


Actividade Operativa” de 2001, 2002 e de 2003, permitem-nos lançar um olhar
sobre a situação dos centros educativos nesses anos.

De acordo com esses dados estatísticos, em 31 de Dezembro de 2001,


“os centros educativos encontravam-se com uma ocupação de 58,7%,
destacando-se os femininos por estarem praticamente vazios, pois à data
existiam apenas 9 jovens internadas, o equivalente a 4,1% de todo o universo”.
No total, havia 219 jovens internados em centros educativos, dos quais 53,4%
tinham 16 anos ou mais e 46,5% tinham entre 12 e 15 anos.

Quanto ao grau de ensino, o IRS refere que o 2.º ciclo do Ensino Básico
era o mais frequentado pelos jovens internados – correspondendo a 48,4%,
encontrando-se no 3.º ciclo 21% do total. No que diz respeito às áreas de
formação pré-profissional, 85,4% dos jovens frequentavam alguma das áreas
existentes, sendo as mais frequentadas as de Artes Visuais e Decorativas, por
39,3%; a área de Electricidade, por 29,2% dos educandos e a de Cerâmica,
que ocupava 26,9% do total de jovens internados.

Ao analisarmos a situação jurídica dos educandos constatamos, segundo


os dados do IRS, que 74,4% encontravam-se a cumprir medida tutelar de
internamento, e 11,9% cumpriam medida cautelar de guarda. Merece especial
referência o facto de, àquela data, 11,9% de jovens estarem a aguardar a
transferência para instituições de Segurança Social.

Em 31 de Dezembro de 2002, de acordo com o IRS, encontravam-se


internados nos centros educativos 226 jovens, número ligeiramente superior
face ao ano anterior, dos quais 92% eram do sexo masculino e 8% do sexo
feminino (este valor corresponde a 18 jovens do sexo feminino, encontrando-se
7 no Centro Educativo de São José e 11 no Centro Educativo de São
534 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

Bernardino). Quanto à idade, 46,5% dos jovens internados tinham entre 16 e


17 anos, 42,5% entre 14 e 15 anos, sendo de notar que 7,5% tinham 18 anos
ou mais e apenas 3,5% tinham entre 12 e 13 anos.

Quanto ao grau de ensino, 48,8% dos jovens frequentavam o 2.º ciclo do


Ensino Básico, 29,3% o 3.º ciclo e 20,5% o 1.º ciclo do Ensino Básico. A
frequentar o Ensino Secundário existiam, em 31 de Dezembro de 2002, 1,4%
do total de jovens.

As acções de formação pré-profissional frequentadas por maior número


de jovens foram, em 2002 as de Informática, com 38,5% do total, as de Artes
Visuais e Decorativas, com 25,2% e as de Electricidade, com 21,3%.

Ao analisarmos a situação jurídica dos jovens naquela data, observamos


que 76,5% estavam a cumprir medida tutelar de internamento, que 19,5%
encontravam-se a cumprir medida cautelar de guarda, que 2,2% estavam
internados para realização de perícia sobre a personalidade e que 1,8% dos
jovens internados permaneciam em centros educativos ainda ao abrigo da Lei
de Protecção da Crianças e Jovens em Perigo. Quanto ao regime de execução
das medidas tutelares, constatamos que dos jovens internados, 65,9% estavam
internados em regime semiaberto, 19% em regime fechado e 15% em regime
aberto.

Os dados do IRS relativos a 2002 fornecem-nos, também, informações


sobre os factos qualificados como crime que deram lugar ao internamento.
Assim, os factos qualificados como crime contra o património constituíram
72,5% do total de factos praticados, seguidos dos respeitantes a
estupefacientes, com 8,1%. Os factos qualificados como crime contra a
integridade física representaram 5,8%, os factos qualificados como crime
contra a autodeterminação sexual constituíram 3,6%, os factos qualificados
como crime contra a vida 3,1% e outros factos qualificados como crime
atingiram os 6,7% do total de factos qualificados como ilícitos penais praticados
pelos jovens internados.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 535

Em 2003, o número de jovens internados voltou a aumentar. De acordo


com as informações cedidas pelo IRS, em 31 de Dezembro de 2003 existiam
294 jovens internados, dos quais 6,1% eram do sexo feminino e 93,9% eram
do sexo masculino (Quadro VIII.1).

Quadro VIII.1
Lotação dos centros educativos em 31/12/2003

Centro Educativo Sexo Feminino Sexo Masculino Total

Alberto de Souto 17 17

Bela Vista 39 39

Mondego 33 33

Navarro de Paiva 19 19

Olivais 28 28

P.e Ant.º de Oliveira 23 23

Santa Clara 27 27

Santo António 38 38

São Bernardino 12 12

São Fiel 21 21

São José 6 6

Vila Fernando 31 31

Total 18 6,1% 276 93,9% 294 100%

Fonte: IRS - Difusão Estatística 2003

Do total de jovens internados em 2003, 54% tinham entre 16 e 17 anos,


34,7% entre 14 e 15 anos, 6,8% 18 e mais anos e 4,4% entre 12 e 13 anos.
Comparativamente com o ano anterior, aumentou o peso relativo dos grupos
mais afastados.

Quanto ao grau de ensino, 48,3% dos jovens internados frequentavam o


2.º ciclo, 25,5% o 3.º ciclo, 11,2% o 1.º ciclo e 2,7% o Ensino Secundário.
536 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

No que se refere à formação profissional, de acordo com os dados do IRS


de 2003, a Informática foi a área de formação profissional frequentada por
maior número de jovens, seguida de Carpintaria e de Electricidade. Importa
referir que, na generalidade dos casos, os jovens frequentaram mais do que
uma área de formação profissional e de despiste vocacional.

De acordo com os dados do IRS, em 31/12/2003, os jovens internados


estavam, maioritariamente, a cumprir medida tutelar de internamento, ou seja,
84,7% do total, sendo 14% o volume daqueles que se encontravam a cumprir
medida cautelar de guarda e 0,7% do total estavam internados para realização
de perícia sobre a personalidade. No final de 2003 havia, ainda, 2 jovens
internados em centros educativos a aguardarem transferência para instituições
da Segurança Social.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 537

Quadro VIII. 2
Jovens internados em 31/12/2003 segundo a situação jurídica e o regime de execução

Internamento Para Medida Cautelar de


Medida Tutelar de Internamento
Perícia Guarda
Total
Centro Educativo de
jovens
Regime Regime Regime Regime Regime Regime Regime
Semiaberto Fechado Semiaberto Fechado Aberto Semiaberto Fechado

Alberto de Souto 17 3 4 10

Bela Vista 39 5 12 22

Mondego 33 1 6 20 6

Navarro de Paiva 18 4 14

Olivais 28 1 3 1 16 7

P. António de Oliveira 23 2 14 7

Santa Clara 26 11 15

Santo António 38 7 2 23 6

São Fiel 21 2 19

Vila Fernando 31 2 20 9

Subtotal Masculino 274 2 32 5 27 173 35

São Bernardino 12 3 4 4 1

São José 6 1 1 4

Subtotal Feminino 18 4 5 8 1

Total 292 2 36 5 32 181 36

Fonte: IRS - Divulgação Estatística 2003

Quanto ao tipo de facto qualificado como crime, predominavam, em larga


maioria, em relação aos jovens de ambos os sexos, os factos qualificados
como crime contra a propriedade, com 78,8% do total, seguidos dos factos
qualificados como crime contra a liberdade e a autodeterminação sexual e dos
factos qualificados como crime respeitantes a estupefacientes, ambas as
categorias representando 5,1%. Os crimes contra a integridade física
representam 4,8% e os factos qualificados como crime contra a vida, 2%
(Quadro VIII.3).
538 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

Quadro VIII. 3
Jovens internados, em 31/12/2003 segundo o motivo da intervenção (tipo de ilícitos
penais dominantes)

Motivo da
Crime contra a Crime contra a Crimes
intervenção Crimes contra Crimes respeitantes Outros
integridade liberdade e contra a Total
a propriedade a estupefacientes crimes
física autodet. sexual vida
Sexo

Feminino 12 1 1 1 3 18

Masculino 218 13 15 5 14 9 274

Total 230 78,8% 14 4,8% 15 5,1% 6 2% 15 5,1% 12 4,2% 292 100%

Fonte: IRS - Difusão Estatística 2003

Ao analisarmos os dados estatísticos de 2001, 2002 e 2003 fornecidos


pelo IRS relativamente às medidas tutelares de internamento, constatamos que
o número de jovens internados tem vindo a aumentar gradualmente (de 219 em
2001 e de 226 em 2002 para 294 em 2003) e que o número de jovens do sexo
feminino internadas manteve-se sempre muito aquém do dos jovens do sexo
masculino (4,1% em 2001, 8% em 2002 e 6,1% em 2003). Nos três anos de
aplicação da LTE, a idade predominante dos educandos situou-se entre os 16
e os 17 anos, sendo também estável a prevalência do grau de ensino
frequentado pela maioria de jovens: o 2.º ciclo. Quanto à área de formação
pré-profissional mais frequentada, se em 2001 se destacava Artes Visuais, já
em 2002 e em 2003 a Informática foi a área mais procurada. Ao analisarmos a
situação jurídica, registamos que, no período considerado, o internamento foi
sempre maioritário (74,4% em 2001, 76,5% em 2002 e 84,7% em 2003). A
percentagem de jovens a cumprirem medida cautelar de guarda foi de 11,9%
em 2001, de 19,5% em 2002 e de 14% em 2003. Os factos qualificados como
crime mais praticados por este universo de jovens, segundo o IRS, foram os
factos qualificados como crime contra o património, com a expressão de 72,5%
em 2002 e de 78,2% em 2003.

Quanto à duração das medidas de internamento, são os seguintes os


dados do IRS de que dispomos, com referência a 30 de Abril de 2003: dos
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 539

jovens internados, num total de 194, 1% encontravam-se internados nos


centros educativos há menos de 6 meses, 8% entre 6 e 12 meses, 26% entre
12 e 18 meses, 19% entre 18 e 24 meses, 43% entre 24 e 30 meses e 3%
entre os 30 e 36 meses (Quadro VIII.4).

Observa-se, pois, que grande parte das medidas – 46% - ultrapassavam


os 24 meses de internamento, o que leva a concluir que seriam situações
enquadráveis no artigo 18.º, n.º 3 da LTE, portanto de aplicação de
internamento em regime fechado pela prática de facto qualificado como crime
“a que corresponda pena máxima, abstractamente aplicável, de prisão superior
a oito anos, ou dois ou mais factos qualificados como crimes contra as pessoas
a que corresponda a pena máxima, abstractamente aplicável, de prisão
superior a cinco anos”.
540 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

Quadro VIII.4
Duração das medidas de internamento em 30/04/2003

<6 6 a < 12 12 a < 18 18 a < 24 24 a < 30 30 a < 36


Centro Educativo Total
meses meses meses meses meses meses

Navarro de Paiva 11 _ 1 1 2 7 _

Vila Fernando 17 _ _ 3 2 10 2

P.e António de
16 _ 1 3 3 8 1
Oliveira

Bela Vista 32 _ 3 7 7 15 _

Olivais 22 _ 1 3 7 9 2

Mondego 20 _ 1 8 4 7 _

São Fiel 14 _ 1 5 2 6 _

Alberto de Souto 6 _ 1 2 1 2 _

Santo António 22 1 2 3 6 10 _

Santa Clara 20 _ 4 9 2 5 _

Subtotal Masculino 180 1 15 44 36 79 5

São Bernardino 8 _ _ 4 _ 4 _

São José 6 1 1 2 _ 2 _

Subtotal Feminino 14 1 1 6 _ 6 _

Total 194 100% 2 1% 16 8% 50 26% 36 19% 85 43% 5 3%

Fonte: IRS

No que diz respeito às medidas cautelares de guarda em Centro


Educativo, em 30/04/2003, encontravam-se internados para execução destas
medidas 68 jovens. Quanto à duração das medidas cautelares de guarda, 74%
tinham a duração de três meses, 1% de 4 meses, 3% de 5 meses e 22%
contavam já seis meses de duração (Quadro VIII.5).

A LTE determina, no artigo 60.º, n.º 1, que a medida cautelar de guarda


em Centro Educativo “tem o prazo máximo de três meses prorrogável até ao
limite máximo de mais três meses em casos de especial complexidade
devidamente fundamentados”. Ora, através dos dados referidos, constatamos
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 541

que 26% das medidas cautelares em execução ultrapassavam já o prazo de


três meses, o que implica que seriam casos de “especial complexidade”.

Quadro VIII.5
Duração das medidas cautelares de guarda – 30/04/2003

Centro Educativo Total 3 meses 4 meses 5 meses 6 meses

Navarro de Paiva 6 4 _ _ 2

Vila Fernando 11 6 _ _ 5

P.e António de Oliveira 6 6 _ _ _

Bela Vista 7 6 1 - _

Olivais 6 4 _ 1 1

Mondego 7 6 _ _ 1

São Fiel 2 2 _ _ _

Alberto de Souto 5 4 _ _ 1

Santo António 8 7 _ _ 1

Santa Clara 3 3 _ _ _

Subtotal Masculino 61 48 1 1 11

São Bernardino 4 2 _ _ 2

São José 3 _ _ 1 2

Subtotal Feminino 7 2 _ 1 4

Total 68 100% 50 74% 1 1% 2 3% 15 22%

Fonte: IRS

No que concerne à duração das medidas de internamento por regime de


execução, verifica-se que, em 30/04/2003, no regime semiaberto,
encontravam-se 53 jovens a cumprir a medida de internamento há mais de 24
meses, o mesmo sucedendo com 14 jovens no regime de execução aberto e
com 4 no regime fechado (Quadro VIII.6).
542 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

Quadro VIII.6
Duração das medidas de internamento por regime de execução

Regime de Execução da 12 a < 18 18 a < 24


Total < 6 meses 6 a < 12 meses 24 meses
Medida de Internamento meses meses

Regime Aberto 31 1 6 7 3 14

Regime Semiaberto 132 1 8 39 30 53

Regime Fechado 31 2 4 3 18 4

Fonte: IRS

Outro dado disponibilizado pelo IRS é relativo ao número de ausências


não autorizadas, isto é, de fugas e de não regressos após saídas autorizadas,
entre 01 de Janeiro e 30 de Abril de 2003. Assim, verificamos que nesse
período foram registadas onze ausências não autorizadas, todas de educandos
do sexo masculino. Destes onze casos, quatro ocorreram no Centro Educativo
do Mondego.

Quanto ao volume de situações de isolamentos cautelares, no mesmo


período (01/01 a 30/04/2003), os dados disponibilizados dão conta de 36
situações, todas, também, de jovens do sexo masculino. Destes 36 casos, 23
registaram-se no Centro Educativo do Mondego, o que demonstra alguma
especificidade a ter em consideração na organização e intervenção deste
Centro.

4. 2. Os estudos de caso: o Centro Educativo da Bela Vista e o


Centro Educativo dos Olivais

4. 2. 1. Introdução e nota metodológica

Com o objectivo de tornar possível uma análise mais fina e detalhada da


aplicação das medidas institucionais, entre Dezembro de 2003 e Fevereiro de
2004, seleccionámos dois estudos de caso: os centros educativos dos Olivais,
em Coimbra, e da Bela Vista, em Lisboa.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 543

Nesses centros, procedemos à análise de uma amostra dos processos


existentes relativos ao total de jovens internados no momento da nossa
observação. A amostra de processos é aleatória, correspondendo a cerca de
50% dos jovens internados em cada regime de execução, naqueles centros
educativos, à data do nosso estudo. No Centro Educativo da Bela Vista
consultámos 20 processos (12 processos de regime semiaberto, 6 de regime
aberto e 2 relativos a cumprimento de medidas cautelares de guarda) e no
Centro Educativo dos Olivais analisámos 13 (8 em regime semiaberto, 3 em
regime fechado e 2 referentes a medidas cautelares de guarda). A partir dos
processos dos centros educativos, preenchemos fichas de caracterização para
recolha de dados sobre a caracterização sociológica dos jovens (data de
nascimento, idade à data dos factos qualificados como crimes; idade à data do
internamento; sexo; nacionalidade; situação antes do internamento e dimensão
do agregado familiar; orfandade; residência, grau de escolaridade e situação
escolar ou perante o trabalho), a situação jurídica (designadamente a data dos
factos; data da decisão judicial; tipo de factos qualificados como crimes;
finalidade do internamento; regime de internamento; duração da medida
aplicada; informações sobre o relatório social e acerca dos relatórios de
execução do internamento; revisão das medidas), a existência de outros
processos tutelares educativos e de processos de promoção e protecção, a
articulação com outras instituições e família e o processo de acompanhamento
no Centro Educativo181.

Para complementar a nossa análise realizámos entrevistas aos directores,


sub-directores e coordenadores das equipas técnicas e residenciais dos
centros nos quais realizámos os estudos de caso e dos centros educativos
Padre António de Oliveira, em Caxias, e Navarro de Paiva, em Lisboa, bem
como a outros técnicos do IRS, a magistrados judiciais e do Ministério Público
e a advogados, de modo a melhor compreendermos o funcionamento dos

181
Não foi possível proceder à recolha, em todos os processos consultados, de todos os dados
que tínhamos seleccionado para a nossa análise, por em alguns processos esses elementos
não constarem. Esses casos estão identificados como desconhecido, n.a ou n.e.
544 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

centros educativos e a identificarmos os problemas que levanta a execução da


medida tutelar educativa de internamento em Centro Educativo.

Importa referir que no Centro Educativo da Bela Vista funcionam os


regimes de internamento aberto e semiaberto e que no Centro Educativo dos
Olivais existem em funcionamento os regimes semiaberto e fechado. Estes
centros educativos destinam-se, ambos, ao internamento de jovens do sexo
masculino.

4. 2. 2. A caracterização sociológica dos jovens internados

A idade

Comecemos por analisar a idade dos jovens, quer à data da prática dos
factos qualificados como crimes, quer à data do internamento nos centros
educativos.

Considerando a idade à data da prática dos factos que estiveram na base


de todo o processo judicial que determinou o internamento dos jovens,
constatámos, nos processos consultados no Centro Educativo dos Olivais, que
os educandos tinham, maioritariamente, 15 anos aquando da prática dos factos
(58,3%); que grande parte os praticara com 14 anos (25%) e uma percentagem
mais reduzida com 12 anos (16,7%) (Gráfico VIII.1).

Quanto ao Centro Educativo da Bela Vista, a idade dos jovens internados


cujos processos analisámos, à data da prática dos factos qualificados como
crime, distribuía-se entre os 12 e os 15 anos de forma mais uniforme. A idade
de 15 anos foi aquela em que maior volume de jovens praticaram factos
qualificados como crime (33,3%), seguida daqueles que os praticaram tais
factos com 12 anos (27,8%), dos que tinham 13 anos (22,2%) e 14 anos
(16,7%) (Gráfico VIII.1).

Conclui-se, portanto, que no Centro Educativo dos Olivais os jovens


internados praticaram os factos que conduziram à aplicação das medidas
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 545

tutelares de internamento com mais idade do que os institucionalizados no


Centro Educativo da Bela Vista. De facto, 83,3% dos jovens internados no
Centro Educativo dos Olivais praticaram os factos qualificados como crimes
com 14 e 15 anos; enquanto que no Centro Educativo da Bela Vista apenas
50% dos jovens cujos processos analisámos praticaram os factos qualificados
como crime nessas faixas etárias, tendo os restantes jovens, à data dos factos,
12 e 13 anos. Este facto poderá ser explicado pelos regimes de execução das
medidas de internamento em cada uma destas instituições – os regimes aberto
e semiaberto no Centro Educativo da Bela Vista e os regimes semiaberto e
fechado no Centro Educativo dos Olivais.

Gráfico VIII.1
Idade à data dos factos (centros educativos dos Olivais e da Bela Vista)

60 58,3
50
40
30 33,3
27,8 25,0
22,2
20 16,7
16,7
10
0,0
0
12 13 14 15

Coimbra (Olivais) % Lisboa (Bela Vista) %

Fonte: OPJ / IRS

No que se refere à idade à data do internamento, no Centro Educativo


dos Olivais, nos processos consultados, 46,2% dos jovens foram internados
com 16 anos, 30,8% com 14 anos, 15,4% com 15 anos e 7,7% contavam 17
anos (Gráfico VIII.2).
546 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

No Centro Educativo da Bela Vista, 47,1% dos jovens deram aí entrada


com 15 anos, 29,4% com 13 anos e os restantes distribuíram-se pelos 14 e
pelos 17 anos (representando 11,8% cada uma destas idades) (Gráfico VIII.2).

Gráfico VIII.2
Idade à data do internamento
Centros educativos dos Olivais e da Bela Vista

50
47,1 46,2
40

30 29,4 30,8

20
15,4
10 11,8 11,8
7,7
0,0 0,0
0
13 14 15 16 17

Coimbra (Olivais) % Lisboa (Bela Vista) %

Fonte: OPJ / IRS

Assim, no Centro Educativo de Coimbra os jovens internados com 16 e 17


anos constituíam 53,9% do total da nossa amostra e os que contavam 14 e 15
anos de idade aquando do internamento representavam os restantes 46,2%. Já
no Centro Educativo da Bela Vista, 58,9% dos jovens foram internados com 15
e 17 anos e 41,2% com 13 e 14 anos (Gráfico VIII.2).

De registar que nenhum jovem foi internado com 12 anos, apesar de uma
percentagem considerável (cf. Quadro VIII.1) ter praticado, com essa idade, os
factos qualificados como crime na base do processo tutelar educativo e de nos
processos consultados no Centro Educativo dos Olivais nenhum jovem aí ter
dado entrada antes dos 14 anos.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 547

Analisando a diferença de idade dos jovens entre a data da prática dos


factos e a data em que deram entrada nos centros educativos, podemos retirar
algumas conclusões sobre a duração do processo tutelar desde a data da
prática dos factos e o início da execução das medidas. Como já referimos, o
objectivo da lei e as orientações internacionais vão no sentido que esse
período de tempo deverá ser o mais curto possível. Resulta, contudo, dos
dados da amostra que, pelo menos em 10% dos casos, terá decorrido mais de
um ano desde a data da prática dos factos até à data do internamento.

A nacionalidade

No que diz respeito à nacionalidade, no Centro Educativo dos Olivais,


estavam internados 7,7% de jovens de nacionalidade caboverdiana, sendo os
restantes de nacionalidade portuguesa. No Centro Educativo da Bela Vista, a
totalidade dos jovens sujeitos dos processos analisados eram de nacionalidade
portuguesa.

Importa, no entanto, referir que, apesar de terem a nacionalidade


portuguesa, alguns destes jovens são oriundos de países de língua e de
expressão oficial portuguesa, correspondendo, muitas vezes, a imigrantes de
segunda geração, os quais se encontram desenraizados e inseridos em bairros
problemáticos e mais susceptíveis a terem condutas desviantes.

A área de residência

Quanto à área de residência, resulta do nosso estudo de caso que, à data


da observação, no Centro Educativo da Bela Vista estavam internados,
sobretudo, jovens residentes na área da Grande Lisboa e do sul do país. Já no
Centro Educativo dos Olivais, os jovens internados eram provenientes de
zonas muito díspares, como Coimbra, da área da Grande Lisboa, do interior e
do norte do país (Quadro VIII.7).
548 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

Quadro VIII.7
Área de residência antes do internamento

Centro Educativo da Centro Educativo dos


Bela Vista Nº % Olivais Nº %
(Lisboa) (Coimbra)

Lisboa 6 30,0 Coimbra 2 15,4

Algarve 5 25,0 Amadora 2 15,4

Amadora 2 10,0 Lisboa 1 7,7

Cacém 1 5,0 Vila Franca de Xira 1 7,7

Cascais 1 5,0 Oeiras 1 7,7

Setúbal 1 5,0 Castelo Branco 1 7,7

Loures 1 5,0 Aveiro 1 7,7

Oeiras 1 5,0 Póvoa do Varzim 1 7,7

Palmela 1 5,0 Ponte de Lima 1 7,7

Desconhecida 1 5,0 Salvaterra de Magos 1 7,7

Total 20 100,0 Tondela 1 7,7

Total 13 100,0

Fonte. OPJ / IRS

Apesar de uma das normas da LTE (artigo 150.º, n.º 2) determinar que
deve ser tentada a colocação do jovem no Centro Educativo mais próximo da
sua residência, a verdade é que, não raras vezes, os jovens são internados em
centros educativos muito distantes da sua área de residência e dos seus
familiares. A explicação dada para esta situação resulta da sobrelotação que se
regista em alguns centros educativos, sendo difícil ao IRS enquadrar os jovens
em unidades residenciais com o regime de execução definido pelo Tribunal e
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 549

na fase de internamento adequada, quer para efeitos de cumprimento de


medida tutelar, quer de medida cautelar de guarda ou, ainda, para
internamento em fins-de-semana, para realização de perícia sobre a
personalidade ou para detenção.

Quando a família do jovem colocado num Centro Educativo fora da sua


área de residência tem carências de ordem económica, poderá, segundo o
IRS, usufruir, com alguma facilidade, de uma quantia monetária suficiente para
se deslocar ao Centro Educativo a fim de visitar o jovem internado. Sabe-se,
contudo, que o apoio económico não elimina todas as barreiras.

A situação familiar

Quanto à situação familiar dos jovens cujos processos consultámos no


Centro Educativo dos Olivais, 76,9% viviam, antes do internamento, com o pai
e/ou mãe; 7,7% viviam com outro familiar; e 15,4% encontravam-se internados
em instituições. Este último valor é superior ao dos jovens internados no Centro
Educativo da Bela Vista, pois aí o valor de jovens que antes estavam
institucionalizados correspondia a 10,5% do total da amostra. Neste Centro,
84,2% dos jovens da amostra estavam a viver com o pai e/ou a mãe e 5,3%
viviam com outro familiar (Gráfico VIII.3).
550 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

Gráfico VIII.3
Situação antes da intervenção em Centro Educativo

100
80 84,2
76,9
60
40
20
15,4 10,5
7,7 5,3
0
a viver com pai a viver com internado em
e/ou mãe outro familiar instituição

Coimbra (Olivais) % Lisboa (Bela Vista) %

Fonte: OPJ / IRS

Destes dados, o que se destaca é que a maioria dos jovens vivia, pelo
menos, com um dos pais. Resulta, contudo, de muitos relatórios sociais
consultados que estes jovens eram oriundos de famílias desestruturadas,
vivendo em habitações degradadas, exíguas, habitadas por agregados
familiares numerosos (num relatório social era referido que o jovem em causa
partilhava o quarto com mais dois irmãos e a cama com a avó acamada), sem
qualquer higiene ou conforto, sendo recorrente a designação das suas casas
como “casa abarracada de auto-construção clandestina”, inseridas em bairros
referenciados como muito problemáticos.

Muitos jovens, segundo informação dos relatórios sociais, circulavam,


durante todo o dia abandonados a si próprios, desde muito novos, tomando,
eventualmente, conta de irmãos mais novos e, geralmente, acompanhados por
grupos de pares também carenciados, muitas vezes por os pais serem
incapazes de os orientarem, outras vezes devido aos longos horários de
trabalho a que os pais estavam sujeitos. Assim, muitos jovens foram crescendo
sem qualquer figura adulta de referência, tendo abandonado a escola, apesar
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 551

de ainda se encontrarem no período de escolaridade obrigatória, pelo que,


como nos relatou um psicólogo num Centro Educativo, a proximidade com os
técnicos do IRS, para muitos dos educandos internados, constituía, desde há
bastante tempo, o primeiro contacto referencial com adultos.

Em ambos os centros educativos, a grande maioria dos jovens da nossa


amostra não eram órfãos, sendo de 23,1% o valor dos jovens órfãos de pai ou
de mãe internados no Centro Educativo dos Olivais e de 15% a percentagem
de órfãos de um dos progenitores a cumprirem medida de internamento no
Centro Educativo da Bela Vista. Entre os jovens cujos processos analisámos
nos centros educativos, não registámos a existência de nenhum educando
órfão de ambos os pais.

A situação escolar e/ou profissional

Quanto à situação escolar e/ou profissional antes da intervenção tutelar


educativa, da nossa amostra no Centro Educativo dos Olivais resulta que uma
elevada percentagem de jovens, precisamente 63,6%, encontravam-se
desocupados e apenas 36,4% estavam a estudar. Esta situação inverte-se, se
analisarmos os dados do Centro Educativo da Bela Vista. Aí, a percentagem de
jovens a estudar era de 63,2% e a dos que não tinham qualquer ocupação era
de 36,8% (Gráfico VIII.4).
552 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

Gráfico VIII.4
Situação escolar e/ou profissional antes da intervenção

70
63,2 63,6
60

50
40
36,4 36,8
30

20
10
0,0 0,0 0,0 0,0
0
a estudar a estudar e a trabalhar desocupado
trabalhar

Coimbra (Olivais) % Lisboa (Bela Vista) %

Fonte: OPJ / IRS

Os dados reforçam a ideia de que o abandono escolar e a desocupação


são factores de risco real para a criminalidade juvenil.

O grau de escolaridade

De seguida, analisamos o grau de escolaridade que os jovens tinham


antes do internamento. Dos jovens da nossa amostra no Centro Educativo dos
Olivais, 30,8% tinham o 1.º ciclo do Ensino Básico; 38,5% o 2.º ciclo; 7,7%, o
3.º ciclo; e 23,1% frequentavam o ensino recorrente. Dos jovens internados no
Centro Educativo da Bela Vista, 66,7% possuíam o 1.º ciclo e 22,2% tinham o
2.º ciclo; destacando-se o facto de 5,6% não saberem ler nem escrever, e igual
percentagem apenas saberem ler e escrever (Gráfico VIII.5).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 553

Gráfico VIII.5
Grau de escolaridade antes da intervenção

70
66,7
60
50
40
38,5
30 30,8
22,2 23,1
20
10
0,0 5,6 0,0 5,6 7,7 0,0
0,0
0
não sabe ler sabe ler e ensino ensino ensino ensino
nem escrever básico (1.º básico (2.º básico (3.º recorrente
escrever ciclo) ciclo) ciclo)

Coimbra (Olivais) % Lisboa (Bela Vista) %

Fonte: OPJ / IRS

Face aos dados sobre a escolaridade, e se tivermos presentes quais as


faixas etárias a que nos reportamos (entre os 12 e os 16 anos), facilmente se
verifica que o grau de escolaridade é muito baixo relativamente à quase
generalidade destes jovens, como bem ilustram os Gráficos VIII.6 e VIII.7.

Se considerarmos a sua situação anterior ao período de internamento, no


Centro Educativo dos Olivais, dos jovens da nossa amostra internados com 14
anos, 50% tinham o 1.º ciclo do Ensino Básico, 25% o 2.º ciclo do Ensino
Básico e os restantes 25% frequentavam o ensino recorrente. Os jovens com
15 anos distribuíam-se da seguinte forma: metade tinha o 2.º ciclo e outra
metade frequentava o ensino recorrente. Os jovens com 16 anos
frequentavam, maioritariamente, o 2.º ciclo do Ensino Básico (50%) e, os
restantes, distribuíam-se com igual peso (16,7%) pelo 1.º e 3.º ciclos e pelo
ensino recorrente. Deram também entrada jovens com 17 anos apenas com o
1.º ciclo do Ensino Básico (Gráfico VIII.6).
554 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

Gráfico VIII.6
Grau de escolaridade / Idade de internamento - Centro Educativo dos Olivais

100 100,0

80

60
50,0 50,0 50,0 50,0
40
25,0 25,0
20
16,7 16,7 16,7
0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0
0
ensino básico (1.º ciclo) ensino básico (2.º ciclo) ensino básico (3.º ciclo) ensino recorrente

13 % 14 % 15 % 16 % 17 %

Fonte: OPJ / IRS

No Centro Educativo da Bela Vista, aquando do internamento, 20% dos


jovens da nossa amostra com 13 anos sabiam ler e escrever e 80% tinham o
1.º ciclo do Ensino Básico; 50% dos jovens com 14 anos não sabiam ler nem
escrever e outros 50% tinham o 1.º ciclo do Ensino Básico; dos jovens com 15
anos, 57,1% tinham o 1.º ciclo do Ensino Básico e 42,9% dos jovens que
deram entrada nesse Centro Educativo com essa idade tinham o 2.º ciclo. Dos
jovens que entraram com 17 anos, 50% tinham apenas o 1.º ciclo do Ensino
Básico, e os restantes 50% o 2.º ciclo (Gráfico VIII.7).

Gráfico VIII.7
Grau de escolaridade / Idade de internamento – Centro Educativo da Bela Vista

80 80,0
70
60
57,1
50 50,0 50,0 50,0 50,0
40 42,9
30
20 20,0
10 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0
0
não sabe ler nem escrever sabe ler e escrever ensino básico (1.º ciclo) ensino básico (2.º ciclo)

13 % 14 % 15 % 16 % 17 %

Fonte: OPJ / IRS


Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 555

Dos relatórios sociais, das perícias sobre a personalidade e dos exames


de avaliação psicológica que constavam dos processos consultados, resultava,
com frequência, que os jovens apresentavam debilidade mental e alguns
distúrbios de foro psicológico que, apesar de serem leves na maioria das
situações, pode ajudar a explicar os baixos graus de escolaridade. É, ainda,
referido, nalguns casos, que os pais destes jovens também teriam algum grau
de debilidade mental, o que explicará a falta de capacidade para orientarem os
filhos. Estas situações, aliadas a outras de desestruturação familiar também
descritas nos relatórios, poderão, por certo, constituir causas próximas do
precoce abandono escolar por parte daqueles jovens.

4. 2. 3. Outras intervenções judiciais conhecidas

Processos de Promoção e Protecção

Resulta dos processos analisados nos centros educativos que alguns


jovens aí internados tinham sido sinalizados como jovens em risco e sujeitos de
intervenções no âmbito de medidas de protecção de crianças e jovens em
perigo. De notar que apenas considerámos a informação constante do
processo, admitindo que, em relação a alguns dos jovens, existam processos
de promoção e de protecção dos quais o Centro Educativo não tenha
conhecimento, assim como poderão existir processos em outras instâncias que
não os tribunais, designadamente em Comissões de Protecção de Crianças e
Jovens.

De acordo com os dados recolhidos na nossa amostra, no Centro


Educativo da Bela Vista existiam cerca do dobro dos jovens internados com
processos de promoção e protecção relativamente ao Centro Educativo dos
Olivais, correspondentes, respectivamente, a 31,3% e a 15,4% (Gráfico VIII.8).
556 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

Gráfico VIII.8
Existência de Processos de Promoção e Protecção

90
84,6
80
70 68,8
60
50
40
31,3
30
20
15,4
10
0
Sim Não

Coimbra (Olivais) % Lisboa (Bela Vista) %

Fonte: OPJ / IRS

Acresce que, apesar das respostas negativas quanto à existência de


processos de promoção e protecção ser bastante inferior ao de respostas
positivas, admitimos que muitos dos jovens delinquentes terão tido um passado
marcado por situações de risco, visto os relatórios sociais conterem indícios
nesse sentido.

Outros Processos Tutelares Educativos

Quisemos, também, apurar quais os jovens internados que já tinham sido


sujeitos de anteriores processos tutelares educativos ou que teriam outros
inquéritos ou processos tutelares educativos pendentes noutra fase processual.

Da nossa análise resulta que o número de jovens internados com outros


processos tutelares educativos era muito elevado, correspondendo, no Centro
Educativo dos Olivais, a 76,9% e no Centro Educativo da Bela Vista a 38,9%
(Gráfico VIII.9).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 557

Gráfico VIII.9
Outros processos no âmbito da Lei Tutelar Educativa
Centros educativos dos Olivais e da Bela Vista

80
76,9
70
60 61,1
50
40 38,9
30
23,1
20
10
0
Sim Não

Coimbra (Olivais) % Lisboa (Bela Vista) %

Fonte: OPJ / IRS

Considerando ambos os centros educativos, o volume de jovens com


outras intervenções no âmbito da Lei Tutelar Educativa correspondia a 55% do
total dos dados da nossa amostra, o que nos leva a afirmar que estes jovens
serão já “reincidentes”, e que precisariam de melhores estruturas de apoio na
comunidade, designadamente no “pós-internamento”, o que exigiria que a sua
saída fosse cuidadosamente preparada.

4. 2. 4. A situação jurídica dos jovens

Como decorre da Lei Tutelar Educativa (artigo 145.º), os centros


educativos destinam-se à execução da medida tutelar de internamento, à
execução da medida cautelar de guarda, ao internamento para realização de
perícia sobre a personalidade, ao internamento em fins-de-semana e ao
cumprimento de detenção.
558 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

Aquando da nossa análise, os processos referentes a jovens em


cumprimento de internamento em fins-de-semana eram muitos escassos e
estavam pouco documentados, visto a permanência nos centros educativos
dos jovens sujeitos a essa medida ser muito curta. Por essa razão, não
faremos referência a esses casos, nem a situações de internamento para
realização de perícias sobre a personalidade182 ou a detenções, mas apenas
às situações de internamento para execução de medida tutelar de internamento
e de medida cautelar de guarda.

Medidas tutelares educativas de internamento

Quanto à situação jurídica do internamento, verificámos, na nossa


amostra de 33 processos, que a maioria dos jovens - 29 educandos -
encontrava-se a cumprir medida tutelar de internamento. Em ambas as
instituições nas quais decorreu o trabalho de campo, entre os processos que
analisámos, 4 eram relativos a internamentos para execução de medidas
cautelares de guarda (Quadro VIII.8).

Quanto aos regimes de execução, lembramos que no Centro Educativo


da Bela Vista existiam os regimes aberto e semiaberto e no Centro Educativo
dos Olivais funcionavam os regimes fechado e semiaberto.

À data em que realizámos o trabalho de campo, através da nossa


amostra, constatámos que o maior número de jovens internados encontrava-se
em regime semiaberto - 20. No Centro Educativo dos Olivais, 8 dos jovens
sujeitos dos processos por nós analisados estavam internados para
cumprimento de medida tutelar em regime semiaberto, sendo muito escasso o
número daqueles que estavam em regime fechado – 3. No Centro Educativo da
Bela Vista, o número de jovens a cumprir medida de internamento em regime

182
A propósito de internamento para realização de perícias sobre a personalidade apenas
referiremos os casos dos jovens a cumprirem medidas tutelares de internamento que antes
foram sujeitos a internamento para realização dessas perícias.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 559

semiaberto representava exactamente o dobro daqueles que estavam em


regime aberto, correspondendo, respectivamente, a 12 e a 6 (Quadro VIII.8).

Quadro VIII.8
Medidas tutelares educativas e cautelares de guarda

Coimbra (Olivais) Lisboa (Bela Vista) Total


Internamento
Nº % Nº % Nº %

Medida tutelar -
0 0,0 6 30,0 6 18,2
Regime Aberto
Medida Tutelar -
8 61,5 12 60,0 20 60,6
Regime Semiaberto
Medida Tutelat -
3 23,1 0 0,0 3 9,1
Regime Fechado
Medida Cautelar de
2 15,4 2 10,0 4 12,1
Guarda

Total 13 100,0 20 100,0 33 100,0

Fonte: OPJ / IRS

O regime de internamento semiaberto é, pois, aquele em que estava


internado maior número de jovens, entre os processos que consultámos.

A duração das medidas tutelares de internamento aplicadas

Vejamos, agora, qual a duração das medidas tutelares de internamento


aplicadas aos casos que consultámos.

No Centro Educativo dos Olivais, 4 das 11 medidas tutelares em


execução tinham a duração de 12 meses (sendo 2 executadas em regime
semiaberto e igual número em regime fechado); 3 a duração de 18 meses
(executadas em regime semiaberto); uma a duração de 22 meses (cumprida
560 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

em regime semiaberto); e 2 de 24 meses (sendo uma executada em regime


semiaberto e outra em regime fechado) e, em relação a uma, não dispomos de
dados.

No Centro Educativo da Bela Vista, dos dados da nossa amostra, entre as


18 medidas tutelares educativas em execução, 4 tinham a duração de 18
meses sendo todas executadas em regime semiaberto; e 3 a duração de 24
meses, das quais 2 estavam em execução em regime aberto e uma em regime
fechado. Nos restantes casos, a duração das medidas era de 10, 12, 14, 16 e
20 meses, com a incidência de um caso em cada uma destas situações. Nos
restantes casos não dispomos desse dado.

Resulta, assim, que há uma incidência de medidas mais longas,


sobretudo no Centro Educativo da Bela Vista, com predominância de medidas
tutelares de duração entre 18 e 24 meses. No Centro Educativo dos Olivais, na
nossa amostra aleatória, consultámos maior número de processos com
duração de 12 a 18 meses.

Medidas cautelares de guarda em Centro Educativo

Analisemos, de seguida, a distribuição dos jovens a cumprirem medida


cautelar de guarda, pelos dois centros educativos. Quanto ao regime de
execução de medidas cautelares de guarda, constatamos um panorama
semelhante à distribuição das medidas tutelares de internamento pelos regimes
de execução, isto é, o regime semiaberto era aquele que acolhia maior número
de casos - 2 - encontrando-se em regime aberto apenas um jovem e em regime
fechado um outro educando.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 561

Os jovens a cumprirem medidas tutelares educativas antes sujeitos a


medidas cautelares de guarda

Muitos dos jovens que à data dos estudos de caso realizados estavam a
cumprir medida tutelar de internamento, antes tinham sido sujeitos a
internamento para cumprimento de medida cautelar de guarda. Vejamos como
esses jovens se distribuíam pelos dois centros educativos.

No Centro Educativo dos Olivais, 5 dos 11 jovens em cumprimento de


medida tutelar cujos processos consultámos foram sujeitos à aplicação de
medida cautelar de guarda. Quanto ao regime de execução da medida tutelar
de internamento em que se encontravam esses jovens antes submetidos a
medida cautelar, verificamos que um estava em regime fechado e que quatro
estavam em regime semiaberto

No Centro Educativo da Bela Vista, entre os 18 jovens da nossa amostra


a cumprirem medida tutelar educativa, 10 cumpriram medida cautelar de
guarda, e encontravam-se todos internados em regime semiaberto.

Conclui-se, da nossa amostra, que a maioria dos educandos a cumprirem


medidas tutelares, sobretudo em regime semiaberto, antes foram submetidos a
medidas cautelares de guarda.

A duração das medidas cautelares de guarda em Centro Educativo

A duração das medidas cautelares de guarda em Centro Educativo que


haviam sido aplicadas aos jovens a cumprirem medidas tutelares de
internamento cujos processos consultámos, situou-se entre os três e os seis
meses, não tendo havido nenhuma situação a ultrapassar esse limite máximo,
estabelecido no artigo 60.º, n.º 1 da LTE.

Quanto ao desconto (ou não) do tempo cumprido em medida cautelar de


guarda em Centro Educativo, na fixação da duração da medida tutelar, como
562 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

atrás referimos, não há uma prática uniforme dos tribunais. A nossa análise
detectou que apenas em alguns processos havia referências expressas ao
desconto do período decorrido em cumprimento de medida cautelar na fixação
da duração da medida tutelar educativa, havendo casos em que se referia que
não se procedera a esse desconto.

Internamento para realização de perícia sobre a personalidade

Dos processos em execução de medida tutelar educativa de


internamento, interessou-nos apurar quais os jovens que, anteriormente,
haviam sido submetidos a internamentos para perícias sobre a personalidade.

Dos 13 jovens da nossa amostra internados no Centro Educativo dos


Olivais, verificamos que, de acordo com os dados recolhidos, 2 haviam estado
internados para realização de perícia sobre a personalidade, encontrando-se
esses jovens, à data da nossa observação, a cumprirem, um deles, medida
tutelar de internamento em regime fechado e, o outro, em regime semiaberto.

No Centro Educativo da Bela Vista, verificamos que tinham sido sujeitos a


internamentos para realização de perícias sobre a personalidade 3 dos 20
jovens da nossa amostra e que 2 se encontravam a cumprir medida tutelar de
internamento em regime semiaberto e 1 em regime aberto.

4. 2. 5. Os factos qualificados como crime

Os factos praticados

Vejamos, de seguida, qual ou quais o(s) facto(s) qualificado(s) pela lei


penal como crime(s) praticado(s) pelos jovens cujos processos consultámos,
internados nos centros educativos a cumprirem medidas tutelares de
internamento e cautelares de guarda.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 563

No que se refere ao Centro Educativo dos Olivais, resulta da nossa


amostra que os factos qualificados como crime praticados em maior número
foram os de furto e de furto qualificado, com 10 casos cada, seguidos dos de
roubo ou violência depois da subtracção, com 8 casos e dos de ameaça ou
coacção, com 5 casos (Quadro VIII.9).

Quadro VIII.9
Distribuição da totalidade dos factos praticados por educando, por situação de
internamento e por regime de execução – Centro Educativo dos Olivais

Coimbra (Olivais) medida tutelar de internamento


medida cautelar de
regime guarda
regime semi-aberto regime fechado Total
Jovens aberto
,
Total 1 2 3 4 5 6 7 Total 1 2 3 Total 1 2 Total
Ofensa à integridade física simples
. . . . . . . . . . . .
e privilegiada
Ofensa à integridade física grave,
. . . . . 1 . 1 . . . . . 1
agravada e qualificada
Ameaça ou coacção . . . . 1 1 . 2 3 . . 3 . . 5
Abuso sexual de cianças e
. . . . . . . . . . . .
menores dependentes
Outros crimes contra a liberdade e
. . . . . . . 1 . . 1 . . 1
autodeterminação sexual
Publicidade e calúnia . . . . . . . 2 . . 2 . . 2
Violação de domicílio e introdução
. . . . . . . . . . . .
em lugar vedado ao público
Furto 4 1 . . 1 . . 6 1 . . 1 3 . 3 10

Furto qualificado 4 . 3 . 1 . . 8 . 2 . 2 . . 10

Furto de uso de veículo . 1 . 1 1 . . 3 . . . . . 3


Roubo ou violência depois da
. 1 1 1 . . 1 4 1 . 1 2 1 1 2 8
subtracção
Dano simples e qualificado . . . . 1 . . 1 . . . . . 1

Burla simples e qualificada . . . . 1 . . 1 . . . . . 1

Extorção . . . . . . . . . . . .
Falsificação de documentos ou de
. . . 1 1 . . 2 . . . . . 2
notação técnica, sua danificação ou
Substâncias explosivas ou
. . . . . . . 1 . . 1 . . 1
análogas e armas
Tráfico e actividades ilícitas,
. . . . . . . . . . . .
simples ou agravado ( inclui
Condução sem habilitação legal . . . . 1 . . 1 . . . . . 1

Total 0 8 3 4 3 8 2 1 29 9 2 1 12 4 1 5 46

Fonte: OPJ / IRS

Entre os jovens da nossa amostra internados no Centro Educativo da


Bela Vista, o facto qualificado como crime mais praticado foi o de roubo,
564 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

correspondendo a 24 casos, seguido do de furto, com 15 casos e do de


ofensas à integridade física, com 8 casos (Quadro VIII.10).

Quadro VIII.10
Distribuição da totalidade dos factos praticados por educando, por situação de
internamento e por regime de execução – Centro Educativo da Bela Vista

Lisboa (Bela Vista) medida tutelar de internamento


medida cautelar de
regime guarda
regime aberto regime semi-aberto
Jovens fechado
,
1 2 3 4 5 6 Total 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 Total Total 1 2 Total
Ofensa à integridade física simples
. . . 2 . . 2 . . . 1 . . 1 . . . 1 . 3 1 . 1
e privilegiada
Ofensa à integridade física grave,
. . . . . . . . . 1 . 1 . . . . . . 2 . .
agravada e qualificada
Ameaça ou coacção . . . 1 . . 1 . . . 1 . . . . . . . . 1 . .
Abuso sexual de cianças e
. . . . . . . . . . . 1 . . . . . . 1 . .
menores dependentes
Outros crimes contra a liberdade e
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
autodeterminação sexual
Publicidade e calúnia . . . . . . 1 . . 1 . 1 1 . . . . . 4 . .
Violação de domicílio e introdução
. . . 1 . . 1 1 . . . . . . . . . . . 1 . 1 1
em lugar vedado ao público
Furto . 3 . 3 . . 6 . . . . . . . . . . 1 1 2 . 2 2

Furto qualificado 1 . . . . . 1 . . . . . . . . . 1 1 2 4 . .

Furto de uso de veículo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .


Roubo ou violência depois da
. . . . 1 1 2 1 1 2 1 1 . 5 6 1 1 . 1 20 1 1 2
subtracção
Dano simples e qualificado . . . . . . . . . . 1 1 1 . . . . . 3 . .

Burla simples e qualificada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Extorção . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 . 1
Falsificação de documentos ou de
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
notação técnica, sua danificação ou
Substâncias explosivas ou
. . . . . . . . . . . . 1 . . . . . 1 . .
análogas e armas
Tráfico e actividades ilícitas,
. . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 . 1
simples ou agravado ( inclui
Condução sem habilitação legal . 1 . 1 . . 2 . . . . . . . . . . . . . .

Total 1 4 0 8 1 1 15 3 1 2 5 2 4 9 6 1 2 3 4 42 0 4 4 8

Fonte: OPJ

De forma a facilitar a análise, procedemos à agregação dos diversos tipos


de factos qualificados como crime em quatro categorias: factos qualificados
como crime contra as pessoas, factos qualificados como crime contra o
património com violência e sem violência e factos qualificados como crime
contra a vida em sociedade183. O Quadro VIII.11 mostra os tipos de factos
qualificados como crime agregados.

183
Na categoria “crime contra as pessoas” consideramos os seguintes factos qualificados pela
lei penal como crimes: ofensa à integridade física simples e privilegiada, ofensa à integridade
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 565

Como se pode ver pelo QuadroVIII.11, os factos qualificados como crimes


contra as pessoas tinham menor incidência nos processos dos jovens
internados no Centro Educativo dos Olivais (9 casos, contra 18 em Lisboa),
assim como a prática dos factos qualificados como crime contra o património
com violência (8 situações em Coimbra, e 25 em Lisboa). Ao contrário, os
factos qualificados como crime contra o património praticados sem violência
tinham uma expressão mais elevada junto dos jovens internados no Centro
Educativo de Coimbra (com 25 casos, contra 18 no Centro Educativo da Bela
Vista), sendo igual o número de factos qualificados como crime praticados
contra a vida em sociedade em ambos os centros educativos (4 casos, quer em
Coimbra, quer em Lisboa) (Quadro VIII.11).

física grave, agravada e qualificada, ameaça ou coacção, abuso sexual de crianças e menores
dependentes, outros crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, publicidade e
calúnia e violação de domicílio e introdução em lugar vedado ao público; na categoria “crimes
contra o património sem violência”, englobámos os factos qualificados como crime de furto,
furto qualificado, furto de uso de veículo, dano simples e qualificado e burla simples e
qualificada; na categoria de crimes contra o património com violência, incluímos os factos
qualificados como crime de roubo ou violência depois da subtracção e extorsão; na categoria
dos “crimes contra a sociedade” incluímos os factos qualificados como crime de falsificação de
documentos ou de notação técnica, sua danificação ou subtracção e atestados falsos,
substâncias explosivas ou análogas e armas, tráfico e actividades ilícitas, simples ou agravado
e condução sem habilitação legal. Quanto aos crimes contra o património, entendemos que
seria conveniente distinguir aqueles que foram praticados com violência daqueles em que não
houve recurso a violência.
566 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

Quadro VIII.11
Categorias de factos qualificados como crime – os 2 centros educativos

Lisboa (Bela
Coimbra (Olivais) Total
Vista)

Nº % Nº % Nº %

crimes contra as pessoas 9 19,6 18 27,7 27 24,3

crimes contra o património


8 17,4 25 38,5 33 29,7
(com violência)
crimes contra o património
25 54,3 18 27,7 43 38,7
(sem violência)
crimes contra a vida em
4 8,7 4 6,2 8 7,2
sociedade

Total 46 100,0 65 100,0 111 100,0

Fonte: OPJ / IRS

Ao contrário do que seria expectável, resulta destes dados que os jovens


da nossa amostra que praticaram factos qualificados como crime considerados
como mais graves se encontravam, sobretudo, internados no Centro Educativo
da Bela Vista, portanto nos regimes de internamento aberto e semiaberto, e
que, ao invés, no Centro Educativo dos Olivais, estavam internados aqueles
que haviam praticado factos qualificados como crime de menor gravidade, isto
apesar de nesta instituição funcionarem os regimes de execução fechado e
semiaberto.

O número de factos qualificados como crime

Dos dados globais da amostra recolhida nos centros educativos resulta,


como se vê nos Quadros VIII.9 e 10, que os 33 educandos do nosso universo
de observação praticaram 111 factos qualificados pela lei penal como crimes, o
que significa que o número de factos praticados por aqueles jovens é muito
superior ao número de sujeitos. Assim, a grande maioria dos jovens internados
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 567

nos centros educativos não praticou apenas um facto qualificado como crime,
mas um conjunto de factos qualificados pela lei como crimes, e terá sido esse
conjunto de situações a desencadear a aplicação das medidas tutelares
educativas privativas da liberdade.

Vejamos, nos Quadros VIII.9 e VIII.10, a distribuição do número de factos


qualificados como crime praticados pelo mesmo educando (de um a nove
factos).

No Centro Educativo dos Olivais, 3 dos processos que analisámos eram


referentes a jovens que praticaram apenas um facto qualificado como crime,
havendo 1 educando que praticara nove factos qualificados como crime,
distribuindo-se, os demais jovens, pela prática de dois a oito factos qualificados
como crime (cf. Quadro VIII.9).

No Centro Educativo da Bela Vista consultámos 5 processos que tinham


subjacentes a prática de um facto qualificado como crime, 3 processos a
prática de dois factos qualificados como crime, 5 jovens praticaram quatro
factos qualificados como crime, destacando-se, ainda, um jovem que praticara
8 factos qualificados como crime e outro que praticara nove factos qualificados
como crime (cf. Quadro VIII.10).

Com base no número de factos qualificados como crime praticados,


criámos duas categorias, a dos educandos que praticaram um ou dois factos,
que designámos de “crime ocasional” e outra categoria, de “crimes plúrimos”,
na qual incluímos os jovens que praticaram três ou mais factos.

Vejamos, então, a distribuição dos jovens pelos dois centros educativos


que seleccionámos para estudos de caso, a partir das categorias de crime
ocasional e de crimes plúrimos. Ao fazermos esse cruzamento, constatamos
que, em ambos os centros educativos, os jovens que praticaram mais do que
dois factos qualificados como crime são a maioria, correspondendo a 7 dos 13
educandos cujos processos consultámos no Centro Educativo dos Olivais e a
568 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

11 dos 20 da nossa amostra no Centro Educativo da Bela Vista (Quadro


VIII.12).

Quadro VIII.12
Crimes ocasionais e plúrimos nos centros educativos dos Olivais e da Bela Vista

desconhecido crime ocasional crime plúrimo Total

Nº % Nº % Nº % Nº %

Coimbra (Olivais) 1 7,7 5 38,5 7 53,8 13 100,0

Lisboa (Bela
1 5,0 8 40,0 11 55,0 20 100,0
Vista)

Total 2 13 18 33

Fonte: OPJ / IRS

Os regimes de execução de internamento

Quanto à relação entre o número de factos qualificados como crime


praticados e o regime de execução da medida de internamento, os dados da
nossa amostra permitem-nos afirmar que se encontravam internados em
regime fechado jovens que apenas tinham cometido um e dois factos
qualificados como crime e educandos que haviam praticado 5, 6, 7, 8 e 9 factos
estavam internados em regime semiaberto e aberto, o que nos leva a concluir
que a determinação do regime de execução das medidas de internamento não
estará relacionado com o número de factos qualificados como crime mas,
eventualmente, com a gravidade e o tipo dos factos qualificados como crime
praticados.

Quanto à distribuição dos tipos de factos qualificados como crime


praticados pelos regimes de execução das medidas, constatamos que, entre o
universo da nossa amostra realizada no Centro Educativo dos Olivais, o facto
qualificado como crime de furto foi o mais praticado pelos jovens internados em
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 569

regime semiaberto (14 casos), e, a par dos factos qualificados como crime de
ameaça ou coacção, igualmente o mais praticado entre os educandos em
regime fechado; os factos qualificados como crime de roubo ou violência
depois da subtracção, com 4 casos em regime semiaberto e 2 em regime
fechado (cf. Quadro VIII.9).

Entre os jovens da nossa amostra internados no Centro Educativo da


Bela Vista em regime aberto, verificámos que o facto qualificado como crime de
furto foi o mais praticado – 6 situações -, e que, entre os educandos desse
Centro em regime semiaberto, o factos qualificados como crime de roubo foi o
mais praticado – 20 casos (cf. Quadro VIII.10).

Através destes dados, constatamos que os factos qualificados como


crimes contra o património praticados com violência determinam, em regra, a
aplicação de regimes de execução de internamento mais gravosos (regimes
fechado e semiaberto) e que os factos qualificados como crimes contra o
património praticados sem violência conduzem à aplicação dos regimes de
internamento menos restritivos da liberdade (regimes aberto e semiaberto).

A partir das categorias de factos qualificados como crime ocasional e de


factos qualificados como crimes plúrimos, observemos, agora, quais os traços
sociológicos dos jovens da nossa amostra internados nos centros educativos
da Bela Vista e dos Olivais.

Ao cruzarmos a idade dos jovens à data da prática dos factos pelas


categorias que criámos referentes ao número de factos qualificados como
crime, constatamos que, no Centro Educativo dos Olivais, um jovem com 12
anos praticara factos qualificados como crimes ocasionais e outro, com essa
idade, praticara três ou mais factos qualificados como crime; que 6 jovens aí
internados praticaram factos qualificados como crimes plúrimos com 14 e 15
anos; e que 4 educandos praticaram factos qualificados como crimes
ocasionais também nessas faixas etárias.
570 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

No Centro Educativo da Bela Vista, entre os educandos da nossa


amostra, observámos que 4 jovens internados praticaram factos qualificados
como crimes plúrimos aos 12 anos de idade e que com 15 anos, 3 cometeram
factos qualificados como crimes plúrimos. Quanto à prática de factos
qualificados como crimes ocasionais, 2 dos jovens tinham 13 anos aquando da
prática dos factos qualificados como crime e 3 tinham 15 anos. Assim, os
jovens da amostra internados no Centro Educativo da Bela Vista, começaram a
prática de factos qualificados como crime relativamente mais cedo, já que, com
12 e 13 anos, 6 praticaram factos qualificados como crimes plúrimos e que 3,
com essas idades, praticaram factos qualificados como crime ocasionais.

Ao procedermos à análise conjunta dos dois centros educativos,


constatámos que os factos qualificados como crimes ocasionais ocorrem,
predominantemente, nos jovens com 15 anos, sendo também superiores aos
casos de factos qualificados como crimes plúrimos nos educandos com 13
anos. Já os jovens que praticaram factos qualificados como crime com 12 e 14
anos, cometeram, sobretudo, três ou mais factos.

Antes do internamento em Centro Educativo, como atrás referimos, os


jovens viviam, sobretudo, com os pais. Vejamos, agora, à luz da prática
ocasional ou plúrima de factos qualificados como crime, qual o cenário.

Observamos que os 7 jovens internados no Centro Educativo dos Olivais


pela prática plúrima de factos qualificados como crime viviam todos, à data dos
factos, com o pai e/ou mãe, havendo 9, nessa situação, internados no Centro
Educativo da Bela Vista.

Dos 5 jovens que praticaram factos qualificados como crimes ocasionais


internados no Centro Educativo dos Olivais, 2 viviam com o pai e/ou mãe,
outros 2 encontravam-se internados em instituições e um vivia com outro
familiar. No Centro Educativo da Bela Vista, 7 dos jovens que praticaram factos
qualificados como crimes ocasionais viviam com o pai e/ou mãe e 2 dos que
praticaram factos qualificados como crimes plúrimos estavam
institucionalizados.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 571

Quanto à relação entre a dimensão do agregado familiar e a prática


ocasional ou não de factos qualificados como crimes, verificamos que, no
Centro Educativo dos Olivais, dos 7 jovens que praticaram factos qualificados
como crimes plúrimos, 6 viviam em agregados de cinco a sete elementos.
Quanto aos 3 jovens internados nessa instituição que praticaram factos
qualificados como crimes ocasionais, verificamos que todos estavam inseridos
em agregados de média dimensão, isto é, com quatro e cinco elementos.

No Centro Educativo da Bela Vista registamos que 6 dos jovens que


vieram a praticar factos qualificados como crimes plúrimos viviam inseridos em
agregados de pequena e média dimensão, ou seja, compostos com duas a
cinco pessoas. Quanto aos jovens que praticaram factos qualificados como
crimes ocasionais, verificamos que 6 viviam em agregados familiares de três a
cinco pessoas. Registamos, ainda, 2 casos de jovens que viviam em
agregados muito numerosos, um composto por oito elementos, o outro por dez.

Da análise dos dois centros educativos, quanto à dimensão do agregado


familiar, resulta que 7 dos jovens que praticaram mais de três factos
qualificados como crime viviam em agregados com mais de seis elementos e
que, dos jovens que praticaram um ou dois factos qualificados como crime, 9
viviam em agregados constituídos por três a cinco pessoas. Observa-se, assim,
que em agregados numerosos, com seis e mais elementos, predominam os
jovens que cometeram mais do que dois factos qualificados como crime - com
a excepção dos agregados com 10 elementos (um jovem de um agregado
desta dimensão praticara o que designamos por factos qualificados como crime
ocasional).

Quanto ao grau de escolaridade, verificamos que dos 5 jovens internados


no Centro Educativo dos Olivais que praticaram factos qualificados como
crimes ocasionais, 2 tinham o 1.º ciclo do Ensino Básico, outros 2 o 2.º ciclo,
havendo um a frequentar ensino recorrente. Os jovens que praticaram três ou
mais factos qualificados como crime e que estavam internados nessa
instituição de Coimbra, de acordo com os dados recolhidos, distribuíam-se
pelos 1.º, 2.º e 3.º ciclos do Ensino Básico e pelo ensino recorrente da seguinte
572 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

forma: 2 jovens no 1.º ciclo; 3 no 2.º ciclo; e um frequentava o ensino


recorrente.

Já no Centro Educativo da Bela Vista, observamos que existiam jovens


internados com graus de escolaridade mais baixos aquando da prática dos
factos, pois entre os 8 que praticaram factos qualificados como crimes
ocasionais, um não sabia ler nem escrever, e, outro que praticou factos
qualificados como crimes plúrimos apenas sabia ler e escrever. Os restantes,
distribuíam-se entre os 1.º e 2.º ciclos do Ensino Básico, sendo de registar,
entre os jovens da nossa amostra nesse Centro Educativo, a ausência de
jovens no 3.º ciclo e no ensino recorrente.

Nos dados dos dois centros educativos, quanto ao grau de escolaridade,


observamos que dos 13 jovens que praticaram um ou dois factos qualificados
como crime, 7 tinham o 1.º ciclo do Ensino Básico; que 4 tinham o 2.º ciclo; que
um encontrava-se em ensino recorrente; e que outro não sabia ler nem
escrever. No que diz respeito aos 18 educandos que praticaram três ou mais
factos qualificados como crime, 9 estavam no 1.º ciclo; 5 no 2.º ciclo; um
encontrava-se no 3.º ciclo; outro frequentava o ensino recorrente; e em relação
a um não constava qual o grau frequentado, sendo apenas referido que sabia
ler e escrever.

De acordo com os dados, verificamos que o grau de escolaridade é muito


aproximado entre os jovens que cometeram um ou dois factos qualificados
como crime e entre os que praticaram vários. Saliente-se que, entre os que têm
mais elevado grau de escolaridade já não encontrámos prática ocasional, o que
reforça a ideia de que a criminalidade juvenil estará associada ao insucesso
escolar.

Entre os 5 jovens da amostra internados no Centro Educativo dos Olivais


que praticaram factos qualificados como crimes ocasionais, 3 encontravam-se
desocupados e 2 a estudar, sendo esses valores semelhantes, no que
concerne aos 7 jovens que praticaram factos qualificados como crimes
plúrimos, apesar da maior incidência de jovens desocupados - 4.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 573

No Centro Educativo da Bela Vista, como atrás mostrámos, o número de


jovens que estudavam aquando da prática dos factos qualificados como crimes
é superior ao dos jovens internados em Coimbra, e isto, em relação quer aos
indiciados da prática de factos qualificados como crimes ocasionais, quer de
plúrimos, sobretudo os que praticaram um ou dois factos qualificados como
crime. Entre os que estavam desocupados, é superior o número, no Centro
Educativo da Bela Vista, dos jovens que praticaram factos qualificados como
crimes plúrimos, em relação aos que cometeram o que designamos como
factos qualificados como crimes ocasionais (respectivamente 5 e 2).

Quanto à existência de processos de promoção e protecção, verificámos


que, no Centro Educativo dos Olivais, nos processos que consultámos, 2 dos 5
jovens que praticaram factos qualificados como crimes ocasionais tinham
referência à existência de processos de promoção e protecção, não havendo
registo de processos desta natureza entre os jovens da nossa amostra que
tinham praticado três ou mais factos qualificados como crime.

No Centro Educativo da Bela Vista registámos que 4 dos 11 jovens da


nossa amostra que praticaram factos qualificados como crimes plúrimos tinham
tido processos de promoção e protecção e que um educando que praticara um
ou dois factos qualificados como crime também tinha um passado de risco que
deu lugar a processo de promoção e protecção.

Nos dois centros educativos, 4 dos 18 jovens que tinham praticado factos
qualificados como crimes plúrimos tinham processos de promoção e protecção
e 3 dos 13 educandos que praticaram factos qualificados como crimes
ocasionais também.

Como atrás referimos, admitimos que alguns dos jovens em relação aos
quais não existia qualquer referência a processos de promoção e protecção na
documentação que consultámos no Centro Educativo pudessem, contudo, ter
um processo desta natureza.
574 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

No que diz respeito à incidência de factos qualificados como crimes


plúrimos nos jovens da nossa amostra com outros processos tutelares
educativos conhecidos, verificamos que, no Centro Educativo dos Olivais,
predominam os jovens com outros processos tutelares educativos, havendo,
entre os 5 que praticaram factos qualificados como crimes ocasionais, 4 que
tinham outro(s) PTE. Entre os 7 que praticaram factos qualificados como
crimes plúrimos, 5 também tinham outro(s) PTE.

Já no Centro Educativo da Bela Vista, o número de jovens internados sem


outros processos de promoção e protecção é bastante inferior à dos que são
“reincidentes”. Verificamos que um dos 8 jovens internados naquele Centro de
Lisboa que tinha praticado factos qualificados como crimes ocasionais tinha
outro(s) PTE e que, entre os 11 que tinham praticado factos qualificados como
crimes plúrimos, 6 tinham igualmente outro(s) PTEs.

Nos dois centros educativos, 5 dos 13 jovens que praticaram factos


qualificados como crimes ocasionais tinham outro(s) processo(s) no âmbito da
LTE e 11 dos 18 que praticaram factos qualificados como crimes plúrimos
também, o que reforça a ideia da “reincidência” da criminalidade juvenil e,
eventualmente, da ineficácia das medidas tutelares aplicadas.

4. 2. 6. Análise dos tempos da execução das medidas de


internamento

O internamento em Centro Educativo, como descrevemos, tem,


sobretudo, três fases: o acolhimento, a execução da medida e a preparação
para a saída do Centro Educativo.

Dos factos ao acolhimento em Centro Educativo

Para nos apercebermos da duração de algumas fases, analisámos,


designadamente, o tempo decorrido entre a prática do facto e a data do
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 575

acolhimento dos jovens no Centro Educativo e constatámos que, no Centro


Educativo dos Olivais, esse período temporal, em 4 dos 10 casos em relação
aos quais temos dados, foi de 18 a 24 meses e que em 3 desses 10 casos foi
de 6 a 12 meses.

No Centro Educativo da Bela Vista, verificámos que 9 dos 17 casos da


nossa amostra em relação aos quais temos dados, tiveram uma duração de 6 a
12 meses desde a prática dos factos até ao acolhimento e que 5 tiveram uma
duração de 18 a 24 meses. Neste Centro Educativo a duração, desde o
momento da prática dos factos qualificados como crime até ao acolhimento, foi,
em 16 dos 17 casos, entre 6 e 24 meses.

Nos dois centros educativos, entre a prática dos factos qualificados pela
lei penal como factos qualificados como crime e a data do acolhimento no
jovem no Centro Educativo, em 4 dos 27 casos em que dispomos desta
informação, decorreram entre 12 a 18 meses, num dos casos esse intervalo
temporal foi de 6 a 12 meses, tendo havido 2 casos em que o tempo decorrido
desde a prática dos factos ao acolhimento foi até 6 meses, sendo de salientar
que em 9 situações o período entre os dois momentos foi entre 18 e 24 meses.

Do acolhimento ao envio do PEP para o Tribunal

Como atrás descrevemos, após a entrada no Centro Educativo, dá-se o


acolhimento do jovem e, no prazo de 30 dias, como determina o artigo 164.º,
n.º 1, da LTE, deverá ser elaborado o Projecto Educativo Pessoal (PEP), o qual
é enviado ao Tribunal, para homologação, “no prazo máximo de 45 dias a
contar da admissão do menor no centro”.

Ora, entre a data do acolhimento e a data de homologação do PEP, nos


casos que analisámos, verificou-se que, no Centro Educativo dos Olivais, o
prazo para envio do PEP ao Tribunal para homologação terá sido respeitado
em 5 dos 8 casos em que dispomos desta informação e, no Centro Educativo
da Bela Vista, em 6 das 13 situações em que esses dados foram recolhidos
576 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

nessa instituição, concluindo-se assim que, em ambos os centros educativos, o


prazo de 45 dias não foi respeitado em muitos casos (respectivamente em 3 e
7 situações).

Do acolhimento ao 1.º relatório de execução de internamento

Outra análise à qual procedemos, consistiu na verificação do tempo que


decorreu desde a data do acolhimento até à data da elaboração do relatório de
execução do internamento. Como dispõe o artigo 154.º, n.º 2 da LTE, os
relatórios de execução “são trimestrais no caso de medidas de duração de seis
meses a um ano e semestrais no caso de medidas de duração superior a um
ano”, o que significa que seis meses após a entrada dos jovens nos centros
educativos tem que ser enviado um relatório para o Tribunal na generalidade
dos casos, uma vez que as medidas de internamento inferiores a um ano são
muito escassas.

Ora, nos casos que analisámos no Centro Educativo dos Olivais, em 5


das 7 situações em que dispomos dessa informação, os primeiros relatórios de
execução das medidas de internamento foram enviados no prazo previsto pela
lei, tendo 2 excedido essa previsão, pois apenas foram enviados entre 6 a 12
meses após o acolhimento dos jovens respectivos.

No Centro Educativo da Bela Vista, em 7 dos 16 casos em que temos


esse dado, os primeiros relatórios de execução da medida de internamento
foram enviados no prazo estipulado pela lei, porém, em 9 situações esse prazo
foi ultrapassado, em alguns casos, muito largamente.

4. 2. 7. A revisão das medidas de internamento

Outro dado que recolhemos aquando da análise de processos nos


centros educativos foi se o processo em questão teria sido objecto de revisão
da medida de internamento (artigos 136.º e 139.º da LTE).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 577

Verificámos que, no Centro Educativo dos Olivais, 4 dos 13 processos


que consultámos já tinham sido sujeitos a revisão, o mesmo tendo já sucedido
a 7 dos 18 que analisámos no Centro Educativo da Bela Vista.

4. 2. 8. Análise de dois casos: a “visão” dos processos de


jovens sujeitos a medida de internamento

De modo a ilustrar os percursos de vida dos jovens sujeitos a medidas


tutelares educativas de internamento, passamos a relatar, em síntese, dois
casos que, na nossa perspectiva, merecem destaque, sendo um o de um
jovem a executar a medida em regime semiaberto e o outro, de um jovem
sujeito a regime fechado.

Relato do Caso 1: Regime semiaberto

O jovem protagonista deste processo consultado num dos centros


educativos que visitámos, encontrava-se a cumprir medida de internamento em
regime semiaberto. Passaremos a designá-lo por Alberto (nome fictício). À data
da prática dos factos, Alberto, que residia no Algarve, tinha 14 anos, assim
como à data do acolhimento no Centro Educativo.

Com base no relatório social elaborado pela equipa do IRS da área de


residência, Alberto, “foi o mais novo de uma fratria de cinco, referenciando-se
um sistema familiar marcado por grandes carências de ordem sócio-
económica. Viviam (...) em condições habitacionais exíguas. Dois dos irmãos
(gémeos) faleceram, um à nascença e outro durante a infância por graves
problemas de saúde. No relacionamento familiar sobressaíam indicadores de
disfuncionalidade, pelo alcoolismo do progenitor, violência conjugal e
insuficiente apoio educativo aos descendentes. Na história destas crianças
observou-se sujeição a situações aparentemente traumáticas, em
consequência de uma precoce entrega a si próprias. (...) registava-se também
578 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

um acentuado absentismo escolar, passando os menores a maior parte do


tempo em situação de alguma negligência deambulando pela rua”.

A mãe, empregada de limpeza, “reconhecia as suas limitações


educativas, que explicava em parte pela indisponibilidade face à sua ocupação
laboral, desinteresse do pai na educação dos filhos e a exposição destes à
violência conjugal”, como relata o relatório social. Na sequência de toda a
situação familiar, em 1997 o Tribunal Judicial competente viria a determinar a
colocação de Alberto e do seu irmão um ano mais velho numa instituição, no
Algarve. Ora, “durante a fase de permanência institucional, salienta-se o
constante empenho desta mãe em assegurar o apoio afectivo dos menores
traduzido em visitas muito regulares, atenção aos problemas destes e
disponibilidade para os receber nos períodos de férias”.

Ao invés do que se passou com seu irmão, a integração de Alberto nessa


instituição não foi fácil, tendo sido “traduzida no não cumprimento de regras,
alguma agressividade, fugas e pequenos furtos”, tendo culminado, passados
quatro anos, em 2001, na exclusão de Alberto da instituição, devido a “mau
comportamento”. A mãe integrou então Alberto no seu agregado familiar,
composto por ela própria, por um dos filhos com 22 anos e desocupado e por
Alberto (os pais viviam separados há alguns anos), habitando um apartamento
arrendado no centro da cidade que, apesar do espaço exíguo, se apresentava
“organizado e em boas condições de higiene”.

Quanto à integração sócio-comunitária, o relatório social refere que


Alberto desde muito novo revelava “instabilidade psicomotora”, com “excessiva
impulsividade com passagens ao acto desde muito cedo”. Na idade normal
iniciou a escolaridade, porém demonstrou dificuldade na aprendizagem e
integração, “dada a sua falta de interesse, não cumprimento de regras e
repetidas fugas à escola”. Aos 9 anos foi institucionalizado, sem que tivesse
havido alterações “nas questões de obediência e cumprimento de regras”. Aos
12 anos concluiu o 1.º ciclo do Ensino Básico, “sem que se indiciassem défices
de ordem cognitiva. No início da puberdade agravaram-se os comportamentos
desviantes, inviabilizando-se a adaptação ao regime institucional”.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 579

Ao ir viver com a mãe, Alberto foi inscrito, em 2001, numa escola, porém,
a mudança “não trouxe aparentes alterações, repetindo os anteriores padrões
de comportamento”. O relatório social destaca “alguns sintomas indicadores de
mau estado emocional que, pela sua persistência, se revelam preocupantes:
fugas de casa com episódios de ausências prolongadas por vários dias;
enurese nocturna; episódios de auto-agressão; absentismo escolar e atitudes
provocatórias e perturbadoras dentro da escola; experiências com consumos
de substâncias tóxicas nem sempre assumidas pelo menor (tabaco, álcool e
haxixe); pequenos furtos; agressões físicas”.

Alberto, para se relacionar, escolhe “pares também conotados pela


desviância e comportamentos de risco”, revelando “necessidades de educação
para o direito e cidadania”, de acordo com o relatório social.

Após o regresso de Alberto ao seu agregado de origem, na sequência de


uma “problemática de pré-delinquência”, foram registados “vários processos
disciplinares na escola, queixas na PSP”, e, em 2002, foi instaurado um
processo tutelar educativo, na sequência do qual, em Maio de 2002, foi
aplicada a Alberto a medida tutelar de acompanhamento educativo com a
duração de 1 ano (até Julho de 2003), assim como terapia individual
psicoterapêutica, a decorrer junto dos serviços de saúde. Entretanto, corria no
mesmo Tribunal outro inquérito tutelar educativo, relativo a factos ocorridos em
Agosto de 2002. À data, o jovem era estudante e tinha a frequência do 5.º ano,
tendo a medida imposta, na área escolar, o intuito de o motivar pela frequência
e aproveitamento escolar, de estudar alternativas de aprendizagem junto da
escola e de evitar situações de conflito com colegas e adultos. A medida de
acompanhamento educativo, na vertente de inserção social, visava a
intervenção “no sentido de melhorar competências de descentração e auto-
crítica; prevenção da reincidência de comportamentos desviantes,
nomeadamente através da responsabilização do próprio perante os seus actos;
promoção de melhorias no contexto do relacionamento familiar, com vista a
reforçar competências educativas”.
580 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

Quanto às suas potencialidades individuais, o relatório social refere a “boa


aparência, desenvolvimento físico ajustado à idade e um aspecto vivo”, sendo
Alberto um jovem “comunicativo e simpático (...), bom desempenho em certas
actividades lúdicas como jogar à bola, andar de bicicleta, skate e patins, se
bem que não se encontre receptivo a ser integrado em qualquer grupo
desportivo organizado”.

O acompanhamento do jovem foi iniciado, com as seguintes prioridades:


“estabelecimento de uma relação de confiança com o menor, bem como com a
sua progenitora (...); articulação com outros parceiros de intervenção, como: 1.
Responsáveis escolares; 2. Psicóloga encarregue do acompanhamento
psicoterapêutico (...); 3. PSP, nomeadamente o Sr. (...), que é paralelamente o
seu gestor de processo junto da CPCJ; participação nas sessões de
Intervenção Sistémica em Rede”.

Em Dezembro de 2002, um relatório social solicitado no âmbito de outro


inquérito tutelar, dava conta que, quanto ao acompanhamento educativo a
decorrer, Alberto colaborava com a equipa do IRS mas que, na escola, os
problemas tinham sofrido um agravamento, “criando-se uma situação de total
intolerância de parte a parte”. O relatório acrescentava ainda que, num outro
inquérito, fora proposta a medida tutelar de internamento em regime
semiaberto.

Ora, no início de 2003 teve início a execução da medida tutelar de


internamento, em regime semiaberto, num Centro Educativo situado em
Lisboa. Antes, Alberto esteve internado em medida cautelar de guarda, na
mesma instituição. Os factos qualificados como crime que deram lugar ao
internamento foram os seguintes: dois factos qualificados como crime de roubo
na forma tentada, um facto qualificado como crime de roubo na forma
continuada, dois factos qualificados como crime de roubo, um facto qualificado
como crime de posse de arma proibida, um facto qualificado como crime de
ofensa à integridade física, um facto qualificado como crime de injúrias e um
facto qualificado como crime de dano qualificado.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 581

A medida de internamento em regime semiaberto terá a duração de 20


meses, com termo previsto em Setembro de 2004.

O relatório de execução da medida de internamento, de Agosto de 2003,


referia que Alberto “revelou algumas dificuldades em se adaptar às normas e
regras implementadas na instituição, mas gradualmente foi adquirindo algumas
competências sociais as quais lhe têm permitido fazer uma evolução positiva.
Relativamente aos factos que motivaram o seu internamento (...) o educando
parece ter já desenvolvido algum sentido de responsabilidade, mostrando uma
linha de conduta mais ajustada aos valores e normas vigentes. (...)
relativamente ao grupo de pares onde está inserido, o jovem tem evidenciado
uma melhoria no seu relacionamento, procurando evitar cada vez mais os
conflitos. De salientar que este educando necessita ainda de uma grande
disponibilidade da equipa educativa para a consolidação das competências
pessoais, sociais e relacionais”. No Centro Educativo, Alberto frequentou o 2.º
ciclo do Ensino Recorrente, tendo revelado pouco interesse, fraco empenho e
algumas dificuldades cognitivas, o que terá contribuído para o seu insucesso
escolar no Centro Educativo. Frequentou cursos de formação pré-profissional e
de despiste vocacional de Artes Decorativas, Artes Gráficas / Informática, tendo
demonstrado pouco interesse pelas matérias leccionadas, devido às suas
dificuldades de concentração. Já nas actividades com uma componente de
animação sócio-cultural em que participa, algumas fora do Centro Educativo,
no período de férias, Alberto “tem aderido com sentido de responsabilidade,
relativamente ao cumprimento das orientações estabelecidas pelos agentes
educativos”.

Quanto à inserção sócio-familiar, Alberto “tem mantido com a mãe


contactos telefónicos frequentes, assim como a progenitora tem vindo, com a
periodicidade quinzenal, visitar o filho na instituição, apesar da distância
geográfica que os separa e os custos económicos que daí advêm”. Alberto
passou um período de férias junto da família, tendo havido uma avaliação
positiva desse período. A mãe defende que Alberto estaria melhor com ela do
que na instituição, contudo, a informação proveniente do Centro Educativo é no
582 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

sentido de que Alberto “ainda necessita de apoio para reforçar o seu equilíbrio
e estabilidade emocional”, sendo “importante continuar a envolver a família no
seu processo educativo, mantendo visitas e fomentando o normal
relacionamento, com vista a uma adequada reinserção no seu meio de origem”.

Relato do Caso 2: Regime fechado

O processo de Carlos (nome fictício), foi consultado num Centro


Educativo, quando analisávamos a medida tutelar de internamento em regime
fechado.

De acordo com o projecto educativo pessoal elaborado após o


acolhimento, Carlos, de origem caboverdiana, antes da intervenção vivia com a
mãe e com duas irmãs. Os pais separaram-se durante a primeira infância do
jovem, tendo desde então sido muito esporádicos os contactos com o pai. O
agregado da mãe e filhos, situado num bairro camarário, em Carnide – Lisboa,
“revela uma situação económica deficitária”, vivendo inseridos “em zona
caracterizada como problemática ao nível da delinquência juvenil”. A mãe
revelou-se incapaz de controlar as condutas desviantes de Carlos que, além do
facto que deu origem à situação de internamento, já tivera outro(s) processo(s)
no âmbito da Lei Tutelar Educativa, desconhecendo-se o tipo de ilícitos, datas
e fase processual.

O percurso escolar do jovem, que apenas frequentou o 1.º ciclo do Ensino


Básico, foi “marcado pelo insucesso devido ao elevado absentismo,
desinteresse e indisciplina, associado a problemas de aprendizagem”, não
frequentando nenhum estabelecimento de ensino nem tendo qualquer
ocupação antes do internamento. Como características pessoais, destacam-se
“algumas limitações intelectuais e a facilidade na passagem ao acto”.

Em Dezembro de 2001, com 15 anos, Carlos praticou um facto qualificado


como crime de roubo na forma tentada. Na sequência deste acto foi aberto
inquérito tutelar educativo e posterior processo tutelar, o qual culminou, em
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 583

Junho de 2003, na decisão do Tribunal de sujeitar Carlos a medida tutelar de


internamento em regime fechado, com a duração de um ano. Em Julho de
2003, este jovem deu entrada no Centro Educativo localizado em Coimbra. Em
Janeiro de 2003, Carlos fora sujeito a perícia sobre a personalidade, levada a
cabo pela equipa do IRS da sua área de residência. Nos termos das
conclusões dessa perícia, Carlos apresentava um desenvolvimento psicológico
bloqueado e socialização delinquencial.

O PEP elaborado, de forma sucinta, delineava a intervenção da seguinte


forma: “Numa primeira fase torna-se urgente e importante para o educando o
desenvolvimento de competências pessoais que lhe permitam ultrapassar o
bloqueio emocional em que vive, de modo a conseguir expressar-se em termos
emocionais e afectivos, bem como, a aquisição e interiorização de normas e
regras básicas de convivência em sociedade. O investimento nas áreas escolar
e profissional revelam-se também de extrema importância. O aumento das
suas habilitações e conhecimentos de carácter profissional poderão ser de
muita utilidade numa futura integração no mundo do trabalho e na sociedade”.

O primeiro relatório de execução da medida elaborado dá conta da


adesão de Carlos à dinâmica institucional.

Apesar da distância entre a área de residência do agregado e o Centro


Educativo onde Carlos se encontra internado, as visitas, sobretudo da mãe,
são frequentes, assim como contactos telefónicos e a correspondência
recebida por Carlos.

Análise / comparação

Os dois casos relatados, para além das suas especificidades (no primeiro
caso houve uma institucionalização falhada no sistema de protecção social,
enquanto o segundo jovem não teve institucionalização), têm muito em comum:
famílias carenciadas (uma mais disfuncional outra mais vulnerável
economicamente); uma má relação com a escola e baixo nível de escolaridade;
584 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

vivência em grupos ou zonas de criminalidade juvenil; existência de vários


processos tutelares, sendo que no primeiro caso está apurada uma
“continuidade” de prática de factos qualificados como crime de roubo/furto,
enquanto que no segundo só se conhece que o jovem praticou um facto
qualificado como crime de roubo na forma tentada. Ambos os jovens têm o
acompanhamento/apoio da mãe.

No entanto, o primeiro, com um percurso de prática de factos qualificados


como crime apurada, está sujeito a regime de internamento semiaberto e o
segundo está sujeito a um regime fechado. Assim, haveria necessidade de
investigar que critérios são usados pelos tribunais para optar por um dos tipos
de regimes de internamento previstos na lei.

5. A lei e a prática das medidas executadas em centros educativos

5. 1. A visão de um psicólogo sobre o internamento em regime


fechado

O psicólogo Eduardo Sá, em 2002, referia que o Estado “tem confundido


educar com domesticar e tem imaginado que um qualquer sistema de punições
e de reforços educa, em dois anos, crianças que foram negligenciadas, por dez
ou doze anos, nas suas famílias” (2002: 77). O autor questionava se um Centro
Educativo, “sem uma gestão individualizada da vida de cada jovem, não
representará uma prisão para crianças e, na maioria das vezes, um passo atrás
nos vínculos de substituição que elas encontraram nos grupos (homogéneos)
delinquentes? Um grupo delinquente dá a uma criança um sucedâneo de
cuidados familiares, dá-lhe laços, alguns gestos de solidariedade, sentimentos
(como ternura), dá-lhes autoridade (...). prender crianças, sem um programa
psico-social e jurídico integrado, dá-lhes alguma qualidade acrescida que
represente uma «mais valia» que as leve a transformarem-se para a vida? Não.
Daí que, exigir às crianças que foram crescendo anarquicamente (em função
das omissões repetidas dos seus pais) que, agora em cativeiro, curem, sem um
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 585

critério de intencionalidade clínica, no prazo de dois anos, o que só os cuidados


continuados permitem fazer, parece excessivo. A delinquência não é uma
doença social, é uma doença endémica que resulta da falta de família, da falta
de condições económicas, da falta de recursos sociais, e da falta de
educação... que resultam numa carência de recursos psicológicos que
inviabilizam um crescimento saudável. Um Centro Educativo para crianças,
sem programas de intervenção integrados, pode funcionar como um sanatório,
onde as crianças, afastadas da sociedade, sejam «limpas» do «mal» - à custa
de uma domesticação que pretende modificar comportamentos como se elas
fossem animais de laboratório – em vez de existirem estratégias sensatas que
as ajudem a transformar-se e a «amadurecer» com humanidade”.

Eduardo Sá defende a existência de um “Serviço Nacional de Emergência


Infantil” dotado de mobilidade de meios e “Centros de Emergência Infantil” que
prestem cuidados a crianças, bem como “Unidades de Acolhimento para
Crianças” nas quais convivam crianças em perigo, “quer sejam vítimas de
abandono, quer tenham cometido ilícitos criminais, até que as suas situações
familiares sejam esclarecidas”. Na perspectiva do psicólogo, não deve ser a lei
“um obstáculo à protecção de crianças doentes que, aos olhos de alguma
opinião pública, de alguns políticos, de algumas instituições particulares de
solidariedade social, de muitos magistrados, e de muitos técnicos, têm sido
designados como «delinquentes graves»” (2002: 80).

As crianças às quais é aplicada uma medida tutelar educativa, de acordo


com Eduardo Sá, devem ter direito a um projecto de vida, a relações familiares,
a informações sobre a medida tutelar (designadamente sobre o tempo que falta
para a sua execução e das reuniões de reavaliação marcadas), a um provedor
no Centro Educativo, a um tutor, direito à educação, à associação, a formação
complementar, a relações com a comunidade, a acompanhamento pós-medida
e a uma equipa técnica aberta. A propósito da equipa técnica, Eduardo Sá
entende que os conhecimentos devem ser aprofundados, participando os
técnicos em intercâmbios nacionais e internacionais, em seminários e
congressos, pois como refere, um Centro “só é educativo se for um espaço de
586 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

pessoas educativas, onde crianças e técnicos se vão tornando mais humanos e


melhores pessoas” (2002: 85).

Entre os direitos a observar aquando do internamento, destaca-se o


direito a um projecto de vida, referindo o psicólogo que, nas 48 horas após a
entrada nos centros educativos, a criança deve ser submetida a avaliação
psicológica “por uma entidade independente, exterior ao Centro Educativo”,
com um parecer preliminar “a discutir com a criança observada, no prazo
máximo de seis dias após a sua entrada”, devendo o relatório final estar
concluído oito dias após a entrada no Centro Educativo (2002: 80). Tal
relatório, todos os 45 dias, deve ser objecto de uma reavaliação da equipa com
o supervisor externo, sendo dado conhecimento das reavaliações, quer à
criança, quer ao magistrado. A criança, se assim concordar, deve beneficiar de
acompanhamento psicológico individualizado por entidades exteriores. Deve
ainda dispor de apoio psicoterapêutico complementar, preferencialmente de
grupo, por parte de psicólogos do Centro Educativo.

As relações familiares das crianças devem merecer uma atenção cuidada


por parte dos técnicos durante a permanência nos centros educativos,
promovendo a aproximação de pessoas significativas para a criança. Eduardo
Sá sugere que “um ou outro dos membros da sua família” passem algum
fim-de-semana nas instalações da instituição, designadamente nas datas
significativas de cada família e adianta que os técnicos do Centro Educativo
devem ser disponibilizados para que, futuramente a regulação do poder
paternal seja reformulada, caso seja essa a vontade da criança (2002: 81).

Para Eduardo Sá, são essenciais as relações com a comunidade,


designadamente, por meio de iniciativas, como debates e encontros
desportivos, co-organizadas pelos técnicos e pelos jovens: exposições
prestação de serviços à comunidade, como ateliers de tempos livres para
crianças, entre outras actividades. Para este psicólogo, seria importante
também a existência de medidas de condescendência, isto é, os resultados
escolares, a participação na vida do Centro Educativo e outros parâmetros de
avaliação deveriam ser discutidos entre os técnicos e os educandos. Deveria
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 587

existir, para o efeito, um Conselho Consultivo, “que funcionasse à imagem de


uma comissão de protecção de menores”, composta pelo director do Centro
Educativo, por três crianças e por três técnicos, uns e outros por escolha dos
seus iguais, que emitiria recomendações sobre as repreensões e as medidas
de condescendência a tomar (2002: 84).

Por fim, Eduardo Sá afirma que as crianças têm direito a


acompanhamento pós-medida, ou seja, não devem sair de forma brusca do
Centro Educativo e encaminhadas sem apoio para o seu meio de origem, pois
tal pode comprometer todos os ganhos que tenham sido conseguidos durante o
internamento. Ao invés, devem passar no Centro Educativo para o regime
aberto, “com uma inserção progressiva na comunidade onde estão,
acompanhadas pelo respectivo tutor”, devendo mesmo ser organizados
Centros de Acolhimento Pós-Internamento, onde o tutor esteja presente, para
que a transição seja processada de forma faseada (2002: 84).

5. 2. A visão crítica do IRS: a lei, a prática judiciária e a falta de


meios

No final de 2001, o primeiro ano de vigência da LTE, o IRS constatou “a


redução, mais significativa do que se previa, do número de internamentos de
menores do sexo feminino, a crescente procura de vagas em regime fechado, o
diminuto interesse suscitado pelo regime aberto e a prática, quase
generalizada, de prorrogação sistemática das medidas cautelares de guarda
executadas em Centro Educativo” (IRS, 2002a: 11).

As conclusões do balanço do IRS sobre o primeiro ano de aplicação da


LTE, foram as seguintes: verificou-se uma descida gradual de educandos
internados, sobretudo do sexo feminino, fruto, essencialmente, da
reclassificação dos processos e da revisão das medidas dos casos oriundos da
OTM; a média mensal de casos entrados foi de 7,75 educandos por mês; a
média de idades dos jovens internados pela primeira vez era de 15 anos; foi
588 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

muito baixa a procura de vagas para execução de internamento em regime


aberto; em cerca de 60% dos casos a decisão que deu lugar a internamento foi
uma medida cautelar de guarda em Centro Educativo; em cerca de 50% dos
casos a medida de internamento aplicada/revista teve a duração de 2 anos;
47% dos jovens internados eram provenientes de concelhos da área da Grande
Lisboa. O perfil dominante entre os jovens internados em 31 de Dezembro de
2002 era o seguinte: do sexo masculino, com 16 anos, residentes na área da
Grande Lisboa, tendo praticado factos qualificados como crime contra a
propriedade e em cumprimento de medida tutelar de internamento em regime
semiaberto (IRS, 2002a: 13).

Dois anos após a entrada em vigor da LTE, o IRS, no âmbito das medidas
institucionais, levantou algumas questões.

Quanto ao internamento para realização de perícia sobre a personalidade,


questiona-se o facto de na LTE não estar definido a quem compete determinar
o regime no qual deverá ser executado o internamento para perícia sobre a
personalidade. A LTE devia expressamente referir que não é possível o
internamento, para esse fim, em regime fechado, para jovens com menos de
14 anos.

No que diz respeito ao internamento para execução de medida cautelar


de guarda, alerta-se para o facto de grande parte destas medidas ultrapassar
os três meses de duração, havendo mesmo muitas que alcançam os seis
meses. Por outro lado, como a LTE não refere de forma expressa que o tempo
decorrido em medida cautelar de guarda deve ser descontado no tempo de
duração da medida tutelar posteriormente aplicada, muitos tribunais não
procedem ao desconto desse período, não havendo, pois, uniformidade de
critérios.

A propósito da aplicação de internamentos em fins-de-semana na


sequência de revisão da medida não institucional de acompanhamento
educativo, o IRS nota que, geralmente, o Tribunal não determina a
continuidade da medida antes aplicada – acompanhamento educativo. Diz-se,
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 589

ainda, que não é prevista a revisão no caso de não cumprimento do


internamento em fins-de-semana.

Sobre a medida tutelar de internamento, o IRS refere que,


maioritariamente, a duração das medidas de internamento é de 24 meses,
contudo, acrescenta que alguns tribunais não fixam a duração concreta da
medida, indicando apenas um limite mínimo e um máximo (ex. entre um e dois
anos).

Quanto ao regime em que são aplicadas as medidas tutelares de


internamento, o IRS constata que é sobretudo aplicado o regime semiaberto,
ao invés do que se passou numa primeira fase após a entrada em vigor da
LTE, na qual foi muito utilizado o regime fechado. Dois anos após o início da
vigência da LTE, o regime semiaberto é o mais aplicado, tendo diminuído a
aplicação do regime fechado e aumentado ligeiramente a do regime aberto. Na
perspectiva do IRS, o regime aberto deveria ser reservado, sobretudo, à fase
final da execução das medidas de internamento em regimes semiaberto e
fechado e não tanto aplicado como uma modalidade de internamento.

A propósito da interacção com a prisão preventiva, o IRS questiona, nos


casos em que os educandos se encontram a cumprir uma medida de
internamento e lhes é aplicada a medida de coacção de prisão preventiva, se
os jovens podem permanecer no Centro Educativo até ao termo da execução
da medida tutelar educativa de internamento e se transitam então para o
Estabelecimento Prisional, ou se a regra deveria ser o oposto.

O IRS realça, também, a importância do maior envolvimento e maior


responsabilidade dos pais dos educandos, no quadro da execução de todas as
medidas tutelares educativas, tal como decorre das Recomendações do
Conselho da Europa e conclui que deveriam ser criados mecanismos de
efectivação da responsabilidade civil dos jovens delinquentes e a co-
responsabilização dos pais.
590 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

O IRS refere, ainda, os orçamentos demasiado limitados dos centros


educativos e a carência de recursos humanos, como TSRS, TPRS,
funcionários administrativos, médicos e enfermeiros, motoristas e professores.

5. 3. As opiniões e os olhares dos actores – análise do discurso

Como referimos, para a avaliação qualitativa do nosso estudo, realizámos


entrevistas a dirigentes e técnicos do IRS, a magistrados e um painel com a
participação de vários operadores. De seguida, passaremos a analisar os
discursos dos operadores, no que se refere à questão do internamento em
centros educativos.

5. 3. 1. Um quase consenso à volta da LTE e das medidas


tutelares

Na perspectiva dos entrevistados, a LTE trouxe importantes mudanças na


intervenção junto de jovens delinquentes e das crianças e jovens em perigo,
apesar de alguns aspectos poderem, ainda, ser objecto de alterações.

“Nós sempre sentimos que, talvez com esta lei se tenha criado um
novo elan e um novo impulso (...). O miúdo vai a Tribunal e a coisa
tem o sentido que tem que ter. A seriedade das audiências, do
julgamento, tudo isso é muito importante (...), esta lei trouxe coisas
fundamentais, como a definição do tempo da medida. É
extremamente importante, é organizador do ponto de vista psíquico
para eles. Era terrível não saber nunca quando é que iam embora”
(Ent. 26).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 591

5. 3. 2. Uma perversão: as medidas de internamento aplicadas


por necessidades sociais

Muitos dos operadores que entrevistámos referiram-nos que a LTE,


designadamente a medida de internamento em Centro Educativo é, muitas
vezes, aplicada por necessidades, não de educação para o direito – o objectivo
em vista pela LTE –, mas devido a necessidades de promoção e de protecção:

“(...) a única hipótese que tenho de fazer alguma coisa por este
miúdo, é metê-lo num regime aberto num Centro Educativo do
Ministério da Justiça, porque se esse miúdo tivesse uma família
normal, estável, não precisava de ir para uma medida de
internamento, nem iria. Mas a este miúdo cujo paradeiro se
desconhece e que quando for localizado vai desaparecer outra vez,
estar-lhe a aplicar uma medida de acompanhamento educativo, por
exemplo, é a mesma coisa que não lhe estar a aplicar coisa
nenhuma porque ele não vai cumprir nada” (Ent. 10).

Um outro operador interroga-se:

“(...) para que serve o regime aberto? Porque o regime aberto é, no


fundo, uma instituição de «protecção» da área da justiça. Quando
não é o semiaberto ou o fechado” (P-6).

De facto, quanto à composição do agregado familiar dos jovens


internados, predominam famílias desestruturadas, numerosas e, muitos jovens,
quando entram no Centro Educativo, não têm uma “família nuclear organizada”:

“(...) a composição do agregado familiar dos jovens que estão


internados. Isto são dados de 30 de Abril do ano passado, mas
digamos que não difere muito. 51% dos jovens que estavam
internados, a relação com o agregado familiar era de apenas com
um progenitor. Com ambos os progenitores só 30% dos casos. 10%
592 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

estavam com os avós. Com outro familiar 5%; 1% em famílias de


acolhimento; em outras situações ou desconhecidos 3%. Ou seja,
mais de metade destes miúdos não tinham, no momento em que
foram para a instituição, uma família nuclear organizada. (...) a
composição do número de elementos dos agregados familiares,
também é um elementos importante, é assim: com 4 ou inferior a 4
elementos, 44%; de 4 a 6 elementos, 35%; com mais de 7
elementos, 20%; e desconhecido 1%. Só para dar mais um dado
que pode ser útil, relativamente à cor do crime, 62% dos miúdos são
de etnia branca, europeia, sem problemas de outras cores, sem
outras proveniências; de ascendência africana, 32% e de etnia
cigana 6%” (P-6).

A falha do sistema de protecção faz crescer o recurso à justiça


tutelar

A existência de casos de fronteira entre a LPCJP e a LTE é uma realidade


de difícil solução e, segundo os “actores” da justiça, o sistema de promoção e
protecção está a falhar, enviando jovens para o sistema de justiça:

“Às vezes eles têm ideia que grande parte daqueles miúdos que
têm medida cautelar de guarda são miúdos que passaram para a
Segurança Social, que depois se portaram mal na Instituição, e,
portanto... alguns ficaram muito perturbados com a gravidade do que
fizeram e queriam-se desviar. E a medida aplicada, no fundo, tem
um bocadinho a ver com a tal falta de estruturas da Segurança
Social e familiares (Ent. 28).

No mesmo sentido, um outro operador diz:


Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 593

“O IRS trabalha descontextualizado porque a parte da promoção e


protecção não está a ser suficientemente trabalhada. O sistema
escolar e a Segurança Social não cresceram de acordo com os
objectivos da lei; nós é que crescemos no sentido de os tentar
abranger um pouco. São as duas leis juntas que fazem o todo; nós
trabalhamos descontextualizados. É difícil encontrar interlocutores
nos outros subsistemas. O Ministério Público acaba por funcionar
quase na mesma como curador. A lei de protecção é que pode fazer
a triagem.

A partir dos 12 anos, o IRS apanha tudo o que falhou na promoção e


protecção. Devia haver apoios na área da promoção e protecção,
designadamente apoios na autonomia de vida – houve programas
aprovados que depois não foram implementados (ex. apartamentos
de transição)” (Ent. 52).

É necessária uma intervenção a montante e a jusante do actuação do


sistema tutelar:

“(...) há dois pontos, dois nichos, um a montante, outro a jusante da


intervenção do IRS: a Segurança Social devia ter equipas
multidisciplinares que trabalhassem a delinquência. Estas equipas
podiam ser braços complementares da nossa intervenção; e uma lei
para jovens dos 16 aos 21 anos que permita um estádio mais
próximo da LTE do que da prisão, pois até aos 25 anos ainda se
pode trabalhar os jovens” (Ent. 18).

“ (...) muitas vezes a questão é colocada como se a instituição fosse


uma espécie da nosso utopia da recuperação do indivíduo
delinquente, como se fosse uma espécie de fábrica de reciclagem.
Ou seja, ele entra ali pela porta delinquente e isto tem uns
594 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

programas fabulosos, nós um pouco na linha da «Laranja


Mecânica», temos aqui a capacidade de refundir o indivíduo numa
outra coisa e ele vai sair no fim do internamento por além como
cidadão integrado, como educado para os valores.

(...) só tem sentido virem (para o Centro Educativo) casos em que se


sinta manifestamente que não têm capacidade de estar lá fora” (Ent.
26).

5. 3. 3. A localização dos centros educativos: a possível em


2001

Quanto à localização dos centros educativos, considera-se que a actual


não será a melhor, mas foi a possível, em 2001:

“As instituições que tínhamos, as instituições que herdámos dos


Serviços Tutelares de Menores, quase todas elas eram antigos
edifícios religiosos, com características estruturais dificílimas de gerir
e, digamos assim, com implantação local muito forte em termos de
funcionários. Eram grandes colónias correccionais ou grandes
instituições (...) E, portanto, digamos que não estamos satisfeitos,
não era aquela a localização que nós decidiríamos para a população
que hoje servimos”.

“(...) o internamento se é aplicado, digamos assim, de acordo com o


espírito e a filosofia da Lei, na primeira fase, eu diria não há
problema nenhum estar fora do seu ambiente familiar, pelo contrário.
Na primeira fase. Se é necessário um afastamento temporário do
seu meio porque há necessidades de educação para o direito, numa
primeira fase (no aberto, é outro capítulo), não me choca nada que
seja fora da sua residência habitual” (P-6).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 595

Como alguns operadores referiram, há mais centros educativos onde há


menos procura:

“Na zona Centro é onde há menor procura e onde há mais colégios:


cinco. No Algarve, Açores e Madeira não têm respostas
institucionais; na Madeira poderá haver, em breve. As crianças das
ilhas vêm para o continente, mas algumas ficam lá em centros de
acompanhamento. Em 2002 havia dez menores das ilhas
institucionalizados – mas se lá houvesse centros educativos os
magistrados recorreriam mais a medidas institucionais” (Ent. 1).

Assim, no cumprimento da medida não é respeitado o princípio da


proximidade do Centro Educativo relativamente à residência do educando.

“A maioria dos educandos que estão nesses centros educativos não


tem residência nessa área. A distribuição geográfica dos Centros
educativos impede o IRS de respeitar uma imposição da LTE: «a
maior proximidade do centro relativamente à sua residência». A
distância do Centro Educativo à área de residência dificulta as visitas
de familiares, apesar do IRS ter uma verba para afectar às
deslocações de familiares (se todas as famílias solicitassem essa
ajuda, provavelmente não seria suficiente, mas para as solicitações
actuais, é suficiente. Actualmente as famílias não deixam de visitar
os educandos por dificuldades económicas, caso invoquem a
necessidade de apoio para tal)” (Ent. 32).

O mesmo técnico chama, ainda, a atenção para um outro problema:

“No âmbito da OTM, os principais ocupantes das instituições eram


de zonas rurais; agora, com a LTE, os centros educativos estão
repletos com menores dos grandes centros. Alguns centros
596 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

educativos, designadamente S. Fiel, têm grande carga histórica. Os


funcionários, cerca de 60, são naturais daquela zona rural. Nesse
Centro são colocados menores de zonas sub-urbanas, com uma
cultura muito diferente da dos funcionários, o que, além do aspecto
geracional, levanta também questões culturais. É estatisticamente
impossível todos os menores estarem em centros educativos
próximos da área de residência, importa é minorar as questões da
distância, criar boas condições nos centros e intervenção técnica
muito boa” (Ent. 32).

A gestão de um Centro Educativo levanta vários problemas e questiona-


se a implementação de outro modelo de Centro Educativo, alternativo ao
actual:

“A gestão de centros educativos é complexa, levanta questões


sobre a localização, a dimensão, as condições de habitabilidade
(Olivais é o melhor da região centro), os recursos humanos (há que
determinar o número de técnicos e qual a sua formação). No modelo
do regime de contratação dos recursos humanos há alguns aspectos
a considerar: será correcto o recrutamento nos moldes actuais da
função pública? Dentro de 20 anos esses profissionais terão 45 anos
e os educandos 12; a intervenção é essencialmente de cariz técnico,
a relação empática demora a construir; a contenção/segurança e
monitores – actualmente não há divisão entre as tarefas de
contenção/segurança e as de acompanhamento – quem acompanha
o educando também faz contenção; equipas multidisciplinares
deviam trabalhar nos centros – profissionais de psicologia, serviço
social, direito, sociologia. Há um modelo alternativo ao actual,
constituído por várias unidades de internamento numa área vasta,
com utilização de serviços de apoio comum (pavilhões
gimnodesportivos, salas de aulas, lavandarias,...). A utilização dos
espaços comuns seria feita em alternância, os menores das várias
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 597

unidades nunca estariam ao mesmo tempo no mesmo espaço


comum – a partir de 12 elementos os grupos não funcionam. Assim,
estruturas que no modelo actual são utilizadas por 25 jovens
passariam a poder ser usadas por 100” (Ent. 32).

5. 3. 4. Os regimes de execução do internamento

O regime aberto e o regime fechado foram os regimes de execução da


medida tutelar de internamento em Centro Educativo mais questionados por
parte dos operadores que ouvimos, mas a medida de internamento, em geral,
merece credibilidade:

“(...) parece-me que há uma credibilização (...) acentuada, por parte


dos magistrados, relativamente à medida de internamento, muito
acentuada, por se pensar (...) que é a medida que pode, quase
milagrosamente, salvar aquele jovem” (Ent. 41).

“Esses centros educativos funcionam e estão preparados e


vocacionados para tratarem com menores em situação limite; de
facto, conseguem dar uma resposta muito melhor do que qualquer
outro colégio no âmbito da protecção” (P-4).

O regime aberto: uma aplicação em crescimento e uma “porta para o


exterior”

Muitos operadores questionam a existência do regime aberto de


execução. Consideram que neste âmbito de intervenção do Estado deve
sempre haver, ainda que numa primeira fase, mais contenção quando o jovem
é institucionalizado.

Há quem pense que:


598 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

“(...) é possível que o regime aberto seja uma solução para os


miúdos pequenos” (P-10).

Para outros, há uma maior credibilização do regime aberto:

“Nestes três anos foram aplicadas 70 medidas de regime aberto


como decisão inicial” (P-6).

E, consequentemente, um aumento da sua aplicação, o que é visto como


facto positivo:

“Nós estamos neste momento a ter um sufoco enorme para integrar


casos de aberto (...). Penso que havia a preocupação securitária,
decorrente daqueles problemas que se conhecem, e não se
imaginava que, em semiaberto, os miúdos também estariam
contidos. Havia uma perspectiva de regime aberto como de porta
aberta. «Os miúdos andam na rua e, portanto, é tipo Segurança
Social e não sei quê». Eu penso que estes três anos devem ter
servido para credibilizar o regime aberto...” (Ent. 26).

O internamento em regime fechado: a controvérsia sobre a sua


necessidade

O regime fechado foi o regime que mais controvérsia suscitou e é


entendido, por alguns actores, como exagerado e como um entrave à
socialização dos jovens:

“Do que tenho ouvido do regime fechado, eu acho que é


absolutamente exagerado. (...) Acho que é um modelo de prisão,
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 599

mais grave ainda do que a prisão, se calhar... (...) Em termos


educativos tenho muitas dúvidas sobre a eficácia...” (P-7).

Chamando a atenção para o isolamento social:

“Eu acho que não há necessidade nenhuma de haver um corte, a


criação de uma barreira com a sociedade, é necessário dar
oportunidade de desenvolvimento resultante de uma dialéctica
normal, é extremamente seguro eles reclamarem como cidadãos a
formação da sua personalidade. Como tal, há uma ausência total do
que podia ser o desenvolvimento dentro de medidas... Eles vão estar
num Centro, fechados, com determinadas regras. Mas se não lhe é
dada a possibilidade de uma convivência normal, interactiva entre
vários sujeitos, em que se lhe põe permanentemente escolhas e que
são nessas escolhas, nessas possibilidades de opção, que se vai
normalmente formar a personalidade, estamos a coarctar a própria
socialização” (P-8).

Para outros operadores, o enfoque deve residir na intervenção em fases


progressivas, considerada fundamental no processo de educação para o
direito:

“(...) em situações muito contadas e por tempos curtos, com uma


possibilidade de progressão, eu acho que o regime fechado faz falta.
E devo dizer o seguinte: foi intenção do Instituto, contra o próprio
legislador, que não houvesse regime fechado em Centro nenhum
onde não houvesse um outro regime de progressão, ou seja, o
semiaberto. Para quê? Para que de imediato o jovem perceba que
tem uma alternativa e, portanto, que o pode adquirir de imediato. E,
portanto, este faseamento e a progressividade é um princípio básico
na nossa intervenção. (...) Eu não posso afirmar, porque não tenho
600 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

os dados todos, mas eu era tentada a dizer que nenhum menino que
entrou em regime fechado cumpriu a medida toda em regime
fechado” (P-6).

A importância da expectativa em passar a regime aberto:

“Mesmo no regime fechado eles têm contacto com pessoas e têm


visitas e têm correio e fazem telefonemas, e têm a expectativa de
não ter que cumprir os 3 anos em regime fechado, que é uma coisa
muito importante...” (P-6).

5. 3. 5. O internamento em fins-de-semana: o dissenso total

Como já referimos nos capítulos VI e VII, o internamento em


fins-de-semana é aquele que reúne menos opiniões favoráveis, quer devido à
sua eventual ineficácia, quer à dificuldade de integração dos jovens nessa
situação nos centros educativos, quer, ainda, à falta de clareza da lei quanto à
continuação ou não da medida tutelar de acompanhamento educativo cuja
execução falhou e que deu lugar à aplicação de internamento em
fins-de-semana:

“Não está claro, se o legislador cessa a medida com o internamento


nos fins-de-semana. Por outro lado, é uma escalada para o
internamento” (Ent. 3).

Há quem questione o “bónus” e a eficácia, chamando a atenção para as


posições divergentes:

“O internamento em fim-de-semana é completamente ineficaz. ... É


um prémio. O menor vai de férias, quase (...). Aqui, como noutras
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 601

coisas, também há duas perspectivas. Há magistrados que aplicam


o internamento em fim-de-semana para muscular o
acompanhamento educativo, e o acompanhamento educativo
continua, e há juízes que aplicam o internamento em fim-de-semana
e arquivam o processo findos os quatro fins-de-semana. Portanto, há
duas interpretações e há duas práticas” (P-6).

“O internamento de fim-de-semana pode ser positivo em alguns


casos, mas é uma medida que resulta do agravamento de uma
medida que não foi cumprida. Se o jovem cumprir o fim-de-semana,
cessa a execução da primeira medida. Ora, isto é uma grande falha.
O jovem vê o internamento em fim-de-semana como a ida a um
campo de férias” (Ent. 20).

Questionando-se, também, a possibilidade de efeito criminógeno:

“Internamento em fins-de-semana padece do efeito criminógeno de


medidas de internamento de curta duração” (Ent. 1).

Mas, deverá ser um enxerto sancionatório na medida de


acompanhamento educativo?

“No internamento de fins-de-semana não se estabelece a espiral


comunicacional. Alguns países europeus estão a abandonar esta
medida. No TFM de (...) nota-se maior preocupação, que é visível,
por exemplo, no caso de medidas tutelares de acompanhamento
educativo que não são cumpridas pelos menores e, em
consequência, são posteriormente sujeitos a internamento durante
um fim-de-semana, de seguida é retomado o acompanhamento
educativo. Isto funciona melhor do que apenas sujeitar o menor a
três fins-de-semana” (Ent. 28).
602 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

Em geral, os operadores entrevistados consideram, por isso, que a


medida só fará sentido se o acompanhamento educativo continuar e se forem
criados meios, nos centros educativos, para receber e enquadrar estes jovens:

“Acho que é uma medida altamente discutível, embora das duas


uma: ou a medida desaparece pura e simplesmente, parece-me um
bocadinho folclórica ou, quando muito, fica a título de um cartão
amarelo para depois, a seguir, cumprir a medida que ele
efectivamente não cumpriu. Aquilo que nós temos neste momento é
um cenário um bocado caricato de impunidade: o miúdo «balda-se»
de cumprir dois anos de acompanhamento educativo e resolve o
problema com reclusão ao fim-de-semana. Não vai retomar as
obrigações que não cumpriu. Numa lógica de custos/benefícios é
uma medida que não se justifica. Ou então eu tinha uma equipa,
mas eu não tenho equipa para acompanhar a população que cá está
internada (...), isto exigiria ter, para além dos monitores que eu não
tenho e que deveria ter, depois ainda ter uma «reservazinha»... para
poder acompanhar estes jovens. Há aqui um esforço de parceria
básico, porque vamos talvez ter que coordenar o tipo de programa
de fim-de-semana com a natureza do incumprimento da medida.
(...), talvez tenha mais sentido, mais do que grandes filosofias e
grandes terapias, é pô-lo a trabalhar. Fazer horas aqui... nós depois
não temos é meios para isso” (Ent. 26).

5. 3. 6. A medida cautelar não conta para a duração da medida


definitiva?

Um aspecto da Lei Tutelar Educativa que, na perspectiva de vários


entrevistados, deveria ser clarificado, como referimos no Capítulo VI, prende-se
com o desconto, ou não, do tempo decorrido em medida cautelar de guarda em
Centro Educativo, aquando da aplicação da medida tutelar educativa.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 603

“Outro problema que também se me tem colocado, tem a ver com a


questão da contagem do tempo da medida cautelar de guarda na
duração da medida de internamento. (...) Em termos da Lei Tutelar
Educativa não está nada previsto a esse propósito... Eu,
pessoalmente, tenho feito repercutir a medida cautelar de guarda,
descontando-a, portanto, na medida de internamento mas sei que há
tribunais onde esse procedimento não é seguido” (P-2).

No mesmo sentido, um outro operador enfatiza:

“Na questão da uniformização da jurisprudência (...) a questão do


desconto ou não desconto da medida cautelar de guarda. Isto é das
coisas que mais revolta os miúdos. No mesmo Centro Educativo, na
mesma unidade residencial, um teve seis meses em cautelar de
guarda e a seguir levou dois anos de regime semiaberto; o outro,
teve seis meses em cautelar de guarda e levou ano e meio. E isto é
das coisas que mais efeitos perversos tem naquilo que é a filosofia
da Lei. (...) A Lei tem, digamos, um princípio de actualização da
avaliação das necessidades de educação para o direito aferidas no
momento da decisão judicial e não no momento da prática do facto”
(P-6).

Há quem defenda que apenas com uma alteração legislativa é que a


questão da contagem do tempo da medida de guarda ficaria clarificada:

“(...) acho que é preciso mesmo a alteração legislativa da LTE a


dizer ou sim ou não. Ou se faz o desconto ou não se faz. Sendo
certo que não tenho quaisquer dúvidas, pelo menos na minha prática
assim sempre fiz, quando não se faz a operação objectivamente
traçada de desconto de x meses na aplicação da medida, ela
sempre se fará, se for feita uma avaliação conveniente das
604 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

necessidades educativas no momento da decisão. Portanto, essa


operação é sempre feita se, de facto, o diagnóstico das
necessidades educativas tiver lugar no momento da decisão. Já
houve um progresso, há um processo educativo que foi sendo
desenvolvido durante a execução da medida cautelar de guarda em
Centro Educativo, e que tem que ser tido em conta” (Ent. 47).

No entanto, há quem considere que uma interpretação da lei baseada nos


princípios constitucionais é bastante:

“Vão ao artigo 128.º, como vêem que o artigo 128.º da LTE manda
apenas aplicar as normas do Código de Processo Penal «Aplica-se
subsidiariamente às disposições deste título do Código de Processo
Penal» e como a questão do desconto da prisão preventiva do artigo
80.º está no Código Penal, logo não está no CPP, não aplicam o
mesmo regime de desconto. Não nos esqueçamos que o artigo 80.º
do CP é uma medida adjectiva colocada num código substantivo e
que estamos a falar de medidas que limitam a liberdade. Eu penso
que tem fatalmente que haver desconto. É a minha opinião pessoal
sob pena de inconstitucionalidade de tratamento de miúdos de forma
mais gravosa” (Ent. 25).

Os depoimentos seguintes chamam a atenção para a situação destes


jovens nos centros educativos:

“No caso das medidas cautelares de guarda (como em regra os


menores acabam por ficar internados, é logo elaborado o PEP),
geralmente vão além de três meses, mas não ultrapassam os seis
meses. Se dentro dos seis meses não houver julgamento o menor
sai, vai para casa, tem lugar o julgamento e é então decretado o
internamento. O desconto do tempo já passado ao abrigo de medida
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 605

cautelar não é feito por todos os magistrados. A lei é omissa neste


ponto, apesar de se saber que a filosofia do legislador é que o
menor precisa de educação para o direito e, portanto, deveria ser
descontado o período de “educação” já decorrido” (Ent. 1).

“(...) estar três ou seis meses no Centro Educativo sem uma


actualização do relatório de avaliação do jovem em sede de medida
cautelar de guarda não devia acontecer, essa actualização do
relatório devia ser obrigatória. O que se passa é os jovens estarem
seis meses em medida cautelar de guarda e não ser pedido nada,
de seguida sai e volta de novo – isto é pernicioso para o educando”
(Ent. 28).

5. 3. 7. Os tribunais têm práticas muito diferenciadas na


aplicação de medidas

A aplicação de diversas medidas tutelares educativas de internamento


origina diversas práticas judiciárias, tendo os jovens, nuns casos, de as cumprir
sucessivamente, noutros casos não, o que é destabilizador:

“A sucessão de medidas é destabilizador e compromete certo tipo


de trabalho” (Ent. 28).

E não há uniformização de critérios na escolha do regime do


internamento:

“A OTM acumulava medidas, agora, a cada processo corresponde


uma medida, não há cúmulo jurídico, porém deveria haver «cúmulo»
na educação para o direito, porque não havendo resulta em
desmotivação para o menor e para a equipa. Não há uniformização
606 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

de critérios, pois a diferentes crimes são aplicadas medidas iguais.


Alguns juízes entendem que «internamento é sempre em regime
fechado», outros só aplicam regime semiaberto porque entendem
que isso já é muito mau. As medidas em cumprimento num Centro
Educativo podem ter sido aplicadas por muitos tribunais, por
exemplo, quinze. As crianças comparam os seus crimes e as
medidas com as dos outros” (Ent. 1).

Há, também, tribunais que não fixam a duração da medida tutelar


educativa de internamento:

“Não se consegue que aquele Tribunal decida a medida - «É de um


ano a dois»” (Ent. 26).

Mas os jovens é que não entendem as interpretações e as práticas


diferenciadas dos juízes.

“(...) como é um problema dos juízes contarem ou não com seis


meses de cautelar, e depois nós temos aqui “facturas” que os jovens
não percebem. Então entrou na mesma altura e o outro tem mais
seis meses porque o juiz entende que a cautelar de guarda não
conta? Isto é absurdo” (Ent. 26).

5. 3. 8. A operacionalização da “educação para o direito” e a


formação do Projecto de Intervenção Educativa

Na fase de acolhimento no Centro Educativo, o “primeiro grande banho” é


o contacto com a instituição, com as suas normas e com adultos de referência:
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 607

“O Instituto tentou fazer uma operacionalização do conceito de


necessidade de educação para o direito, em três grandes linhas. (...)
E «o primeiro banho» é o banho de institucionalização. E
institucionalização significa várias coisas: primeiro é lidar com aquilo
que eles não lidam há muitos anos quando vêm para aqui, que é
com adultos de referência, com modelos de adultos. Nós temos aí
adultos desde os monitores à directora, passando pelos professores,
pelo CPJ, pelos técnicos das unidades... Este é o grande banho que
eles têm porque, segundo a nossa experiência, uma parte deles está
afastada da escola, da ocupação de tempos livres... As figuras
adultas são escassas, mesmo na família. Portanto, esse é o primeiro
grande banho que nós lhes damos de educação para o direito, que é
a educação pela relação e a educação pela convivencialidade. E,
têm, realmente, desde que se levantam, essa convivência com
figuras adultas, têm referências com normas, com deveres, com
pessoas convencionais...” (Ent. 30).

A fase de acolhimento dos jovens nos centros educativos requer um


diagnóstico cuidadoso do seu passado, da sua história, com o intuito de
elaborar o seu Projecto Educativo Pessoal:

“ (...) o acolhimento do educando tem que se centrar muito no


passado, num diagnóstico das dificuldades anteriores e no porquê
de estar aqui, no presente. Isto é feito, sobretudo, pelo técnico que
elabora o projecto educativo, articulando com a família. É com este
técnico que, ao longo do tempo de internamento, se faz a supervisão
das metas, dos objectivos, da criação das condições no exterior.
Numa determinada fase em que já tem sentido ir estudar lá para
fora, é esse técnico que acompanha o menor e que vai fazer essa
articulação” (Ent. 26).
608 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

E temos de saber o que é “educação para o direito” - a consciencialização


para não praticar novos factos qualificados como crime através da
interiorização de valores e da responsabilização pessoal e social:

“A educação para o direito ainda é um conceito um pouco vago. No


Centro Educativo, a preocupação que temos tido com estes jovens é
de os consciencializar dos factos cometidos e que eles interiorizem
normas e valores para depois poderem ser validadas lá fora. (...)
Dentro das unidades residenciais, isso é um trabalho diário feito
minuto a minuto, segundo a segundo, com estes jovens, desde o
acordar até ao deitar. Em concreto, desde o mais básico, desde a
higiene, desde a alimentação, ao saber estar e a relacionar-se com
os outros, a saber cumprimentar, a saber levantar, a saber falar, a
saber dirigir-se às pessoas, isso é um trabalho diário com aspectos
de que a maior parte deles não tinha conhecimento, não sabia como
se dirigir às pessoas porque não tinha essas regras, essa forma de
estar. Saber ouvir. Saber escutar. Ter em atenção a opinião dos
outros. Isto já dentro de um âmbito mais estruturado. São estas
aprendizagens que todos os dias é preciso estar a relembrar a
muitos deles” (Ent. 29).

A importância das competências sociais:

“Educação para os valores sociais, morais, para a cidadania, para a


sua situação activa na qualidade de cidadão num Estado de Direito,
para a responsabilização pessoal e social e para a solidariedade
social, que essa é a minha opinião do que é a educação para o
direito de uma forma lata, e é muito importante para a participação
na qualidade de cidadão num Estado de Direito (...). Eles são
cidadãos num Estado de Direito com responsabilidades, direitos e
deveres e isto é muito importante porque às vezes eles são muito
jovens, mas (...) depois eles vão para os seus meios de origem,
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 609

deparam com problemas sócio-educativos, sócio-familiares, e isto


não está lá” (Ent. 28).

Em todos os centros educativos há que criar programas específicos de


educação para o direito moldáveis às necessidades concretas de cada um dos
jovens internados pois, para alguns, a intervenção, para ser eficaz, terá que ser
individualizada:

“(...) o que nós pretendemos é evitar a reincidência e incutir-lhes


regras de respeito pelo outro. Também resulta da prática do dia-a-
dia, porque eles próprios têm de se respeitar uns aos outros, vivendo
aqui dentro. Vamos discutir o porquê dos crimes que eles
cometeram (...), discutimos com eles as causas da sua delinquência
e o que é que vamos negociar com eles ao longo do cumprimento da
medida, para eles adquirirem outras competências que lhes
permitam até a flexibilização da medida, passar para um regime
mais benevolente ou até para irem embora antes do tempo da
medida. (...) Nós temos muito pouco tempo para isso porque, temos
o dia-a-dia dos educandos muito preenchido porque nós não temos
a área escola e a área profissional numa única vertente, eles têm o
seu plano de horário, estão ocupados durante muito tempo e,
portanto, o tal trabalho individual com eles vem sendo feito, também,
no dia-a-dia. A nível destas componentes mais específicas de
programas de educação para o direito não temos nada construído”
(Ent. 28).

“Eles são integrados aqui, o nosso trabalho é um trabalho mais


socializador e, para alguns destes jovens, que não são muitos, a
lógica tinha que ser outra, se calhar uma lógica muito mais de
intervenção individualizada, e em termos de ocupação de tempos
610 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

livres. Poderiam ir à escola, deveriam ir à escola. Realmente, são


indivíduos que têm necessidade de educação para o direito, do
ponto de vista individual, muito sérias e a intervenção que se faz, é
capaz de ser curta. O problema é que não podem ser todos tratados
pela mesma bitola” (Ent. 30).

É fundamental o desenvolvimento de competências básicas (saúde,


higiene), a escolaridade, a formação pré-profissional e a satisfação pessoal:

“Depois há um desenvolvimento das competências mais básicas: há


miúdos que não têm higiene, vêm «piolhosos», vêm sem regras,
vêm com os ciclos trocados, desde o sono, a alimentação... Depois
há outra questão, que é a institucionalização através da
escolaridade. São miúdos que têm, o grosso deles, o primeiro ciclo
feito mas que não frequentam a escola há algum tempo e, portanto,
esse é um nível de competências escolares realmente baixo... O
nosso grande objectivo é que estes miúdos se certifiquem, do ponto
de vista escolar. E isso consegue-se nalguns casos” (Ent. 30).

“A primeira coisa que nós organizámos foram as prestações básicas


que qualquer jovem daquela idade deve ter, independentemente de
estar sob alçada de um Tribunal ou não. Ou seja, escolaridade
obrigatória, despiste e orientação profissional e, se possível, iniciar
algum percurso de formação profissional” (P-6).

“Eu conheço miúdos que entraram para lá e em meia dúzia de


meses completaram o 6.º ano... E depois chegaram cá fora e
conseguiram entrar para o estágio de cursos técnico-profissionais,
porque fizeram a escolaridade lá dentro” (P-9).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 611

A obrigatoriedade de frequentar actividades, independentemente da


motivação, é essencial para a criação de rotinas e, em muitos casos, para o
reaprender inicial de pequenos aspectos fundamentais do quotidiano:

“Olhe, dado o carácter disciplinador que a instituição tem, é muito


normativa, nós começamos por trabalhar a obrigatoriedade de
frequência das actividades, independentemente da motivação. Este
é o primeiro aspecto.

Evidentemente que depois (...), sendo eles obrigados a frequentar as


actividades que estão implementadas, espera-se e procura-se que
eles adiram, ou seja, que pensem porque é que aquilo é importante.
Mas, em termos de ordem, de intervenção, nós não integramos os
jovens nas actividades depois de eles estarem motivados. Eles
chegam e não entram directamente para as actividades, há um
processo de acolhimento de alguns dias em que é feito algum
trabalho (...) e, a seguir, é obrigatório ir para as aulas, tudo é
obrigatório. (...) é evidente que eles trazem uma grande resistência a
tudo o que é actividades formativas” (Ent. 26).

“O que nós fazemos inicialmente, é criar essas rotinas... Há miúdos


que chegam aqui que nem sabem pegar num garfo e numa faca.
Portanto, é quase como que um reaprender ou um aprender inicial.
E eu penso que as actividades que temos aqui, também vão um
pouco nesse sentido, as actividades são obrigatórias, embora
nessas actividades não se faça, talvez, uma aprendizagem como se
faz noutro sítio qualquer. Portanto, tem que ser com estratégias
diferentes para ver se apanham, se se agarram os miúdos ainda...”
(Ent. 27).
612 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

O programa “Internamento como verdadeira oportunidade de mudança” -


a implementação de novas abordagens num Centro Educativo, como meios
para “educar para o direito” de forma transversal:

“A implementação, em Outubro do ano passado, de um programa


específico de educação que nós intitulamos, não de «Educação para
o Direito», mas de «Educação para a Mudança». Vou dar um
exemplo prático: estamos com uma iniciativa neste momento, que é
«Conhecer a PSP», vamos procurar que o grupo que está a
trabalhar neste programa semanal vá visitar uma esquadra da PSP,
para entrarem na esquadra, não como acusados de alguma coisa,
mas como visitantes e acompanhados por nós para perceberem o
papel social da Polícia para além do combate ao crime.(...) Este
projecto é um pequeno exemplo de uma iniciativa que, no fundo, tem
a ver com a raiz dos problemas deles. Portanto, eles todas as
semanas, tal como vão ter inglês, vão ter matemática ou vão ter
olaria ou carpintaria, vão ter o Programa. A educação para o direito
tem de ser transversal, ser trabalhada. Também nos momentos de
entrevista individual; a partir de situações mais negativas, do ponto
de vista do comportamento; quando se verifica algum
desajustamento no comportamento que pode obrigar a intervenção
disciplinar e isto obriga sempre a um exercício de reflexão do que
está a acontecer. Porque é que aquele comportamento é penalizado.
(...) é nestas entrevistas de fundo, de avaliação do que estamos a
fazer e do que estamos a procurar consolidar que, necessariamente,
a educação para o direito vem sempre ao de cima, porque estamos
a falar sistematicamente do mesmo, que é porque é que estamos cá
e o que é que queremos alterar ao nível do comportamento” (Ent.
26).

E dá um exemplo:
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 613

“Por exemplo: um rapaz cometeu um homicídio, vem para o Centro


Educativo, passa aqui dois anos e durante dois anos passamos o
tempo a falar de inglês, da matemática, da olaria, vai jogar à bola ali
para o ginásio... E então o homicídio? Onde é que isso é tratado?
Tem que ser tratado a muitos níveis: pedopsiquiatra, o técnico que
faz o acompanhamento... Portanto, este programa que falámos há
pouco, a par de um outro que também iniciou na mesma altura, de
psicoterapia individual e de grupo, são as duas novidades que nós
estamos a ensaiar este ano no Centro Educativo. Um em relação à
questão da Educação para o Direito e o outro para questões
terapêuticas” (Ent. 26).

O funcionamento dos centros educativos, no que se refere à progressão


dos educandos, exige um envolvimento e uma auscultação de todos os
técnicos, através de um constante “fluir de avaliações dos educandos”:

“Cada sub-equipa é constituída por monitores e pelos técnicos.


Aqui, nós trabalhamos assim: mensalmente a coordenadora técnica
residencial, que é responsável pelos monitores e pelos técnicos
todos, reúne com cada uma das sub-equipas, em separado por
unidade, ou seja, temos três reuniões mensais que envolvem
sempre os monitores e os técnicos. Para além de reuniões só da
coordenadora com os técnicos, e para além das reuniões de
Conselho Pedagógico, que é o órgão máximo por excelência, em
que estamos nós, direcção, com coordenadoras, técnicos e
convidados se for caso disso. Convidados tanto pode ser um
monitor, o pedopsiquiatra... As reuniões são o espaço da
comunicação da equipa, é o espaço em que se assinam
procedimentos (...), é o espaço de pôr em comum, onde se avaliam
os casos. O esquema de avaliação é diário, do ponto de vista do
monitor que faz o turno -, quando sai do turno, deixa uma ficha de
avaliação de todos os miúdos que tem a cargo. Os professores e os
614 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

formadores têm uma ficha para também darem a sua avaliação.


Depois, o técnico que acompanha o caso é quem faz a síntese disto.
O processo de mudança de fase, por exemplo, é uma proposta que
sai da reunião da sub-equipa: aqueles monitores, com aqueles
técnicos fazem a proposta para o jovem mudar de fase, que vai ser
apreciada em Conselho Pedagógico e, em última instância, é
decidida pelo director. Não é um processo de cima para baixo, não é
da direcção para as bases mas é das bases para a direcção. Ora, o
relatório de execução da medida é um relatório que traduz muito
toda esta ideia, porque quando chega a altura do relatório, o técnico
não vai fazer nenhuma reunião especial, porque como há esta
dinâmica, há permanentemente um fluir de avaliações, de
informações... Há, ainda as entrevistas com o miúdo, com a família.
Tudo isso são outros aspectos que também contam... Quanto à
avaliação, aquilo que nós pretendemos é que exista ao máximo um
envolvimento e uma auscultação de todos. Aliás, para nós é muito
importante que o educando perceba, para não furar o esquema, que
a avaliação de toda a equipa é importante no processo de evolução
dele cá dentro” (Ent. 26).

A área escolar

Quanto à área escolar, as críticas são muitas, desde dificuldades com o


Ministério da Educação na colocação de professores nos centros educativos,
ao escasso número de professores colocados por destacamento, à não
continuidade dos professores na instituição, até à falta de formação específica
dos professores para ensinarem os alunos que encontram nos centros
educativos:

“Eles estão sujeitos à escolaridade obrigatória como qualquer outro


jovem. E aí o que é que nós fazemos? Às vezes com muita
dificuldade de compreensão do Ministério da Educação, é ter
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 615

capacidade e inventividade com os professores de fazer currículos


alternativos, ensino recorrente, de conjugar educação escolar com
educação profissional e educação física e desporto, música e artes
circenses, e tudo isso conjugado em algo que possam ser
ferramentas de trabalho para este jovem poder criar condições de
inserção social” (P-6).

“Os centros educativos têm tido alguma dificuldade em encontrar


professores devido a dificuldades de acertos com o Ministério da
Educação. Por este motivo, o início das aulas teve um grande
atraso, só tendo tido início em 20 de Janeiro de 2003” (Ent. 18).

Sobre a formação dos professores para esta actividade, alguns


operadores referiram:

“Os professores, são maus professores. São novos” (Ent. 28).

“Quais são os professores? Quem são? Assumem funções de


grande responsabilidade e são, muitas vezes, professores que não
têm qualquer formação específica, qualquer apetência específica
para lidar com aquele tipos de situações que, de facto, são
diferentes e devem ser tratadas de uma maneira diferente do ensino
normal” (P-3).

“(...) neste momento, só o professor do 1.º Ciclo é que é destacado.


Quando aqui chegam e se deparam com o tipo de população que
têm ..., depois, normalmente, o que se verifica é que quando estão
minimamente treinados e, já com algum traquejo, acabam por ter
que se ir embora porque chegou o fim do ano lectivo” (Ent. 26).
616 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

“Também gostava que se pusesse em prática, de uma forma activa


e pró-activa, as várias medidas, nomeadamente, a pré-formação que
tem que se dar aos professores dentro da escola. Até a formação,
isso é muito importante” (Ent. 28).

A formação pré-profissional: em busca de um modelo

A formação pré-profissional e o despiste vocacional dos jovens internados


são duas das vertentes do Projecto de Intervenção Educativa dos centros
educativos que suscitam alguns problemas na sua implementação:

“A lei também prevê o desenvolvimento de competências pré-


profissionais e de orientação vocacional. Nós fazemos aqui, desde
que eles entram, um pequeno despiste dos interesses vocacionais,
para os encaminhar e para os acolher em quatro áreas pré-
profissionais que nós temos, neste momento: informática,
carpintaria, mecânica e a área que nós chamamos artística” (Ent.
30).

A actual formação pré-profissional consiste na reconversão dos


programas de formação existentes antes da entrada em vigor da Lei Tutelar
Educativa:

“Temos, por exemplo, as outras valências ao nível da formação pré-


profissional: olaria, carpintaria, informática/artes gráficas e artes
decorativas. (...) Para dar um curso de formação profissional à séria,
tinha que ter aqui um miúdo muitos anos... Quando aqui cheguei, o
sistema que estava implementado era de formação profissional à
séria... Tinham informática, era informática, tinham artes decorativas,
era artes decorativas, e passavam a tarde naquilo. Passámos para
um modelo de formação pré-profissional e deixámos a formação
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 617

profissional. O que nós criámos foi um sistema em que, da parte da


manhã é sempre formação escolar e, da parte da tarde e ao serão
(porque alguns dos ateliers de animação são à noite, após o jantar),
criámos um sistema de polivalência e de rotatividade. (...)
Começámos, num primeiro momento, com aquilo que já tínhamos,
que era o mais fácil, era dar apenas uma volta no projecto sem criar
novas áreas, criando com as mesmas áreas que já havia, um
esquema rotativo. Portanto, os menores em vez de terem só uma
área, puderem ter as três.

(...) se me pergunta se a escolha das áreas derivou de algum


estudo profundo, não derivou. Mas que não deriva apenas de uma
variável, também não deriva. Ou seja, isto deriva, primeiro, do que
estava anteriormente instituído (...) Nós hoje sentimos que temos
cada vez mais que adequar a formação ao tipo de população” (Ent.
26).

Para alguns técnicos, há que cativar estes jovens com a realização de


actividades que ofereçam resultados quase imediatos. Apesar de haver
sugestões para a implementação de outras áreas de formação pré-profissional,
até com melhores perspectivas de inserção no mundo laboral, as contenções
orçamentais têm impedido a sua concretização:

“Tenho a ideia de que temos que conquistar estes miúdos que não
têm ritmos de trabalho. Tem havido necessidade de estabelecer uma
relação muito próxima e directa, e isso consegue-se numas aulas,
por exemplo, com uma tábua de madeira porque, passadas duas
horas temos qualquer coisa... E isso é indispensável para conseguir
cativar, envolver, motivar. Estamos com alguma dificuldade na área
da carpintaria e da mecânica-auto, estamos a ver se conseguimos
ligar a mecânica com a parte da serralharia civil. São pequenos
trabalhos em que também ao fim de algumas horas se vê o
618 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

resultado... Nós também estávamos a pensar na área de


electricidade, para ver se conseguimos envolvê-los mais. Eu gostava
de ter aqui a área da panificação, porque é uma actividade que os
interessa e com inserção no mundo laboral, mas criar um atelier
desses tem custos e neste momento parece que não há dinheiro.
Temos jardinagem, normalmente no Verão, que também os ocupa e
de que penso que eles gostam (...).

E, ao nível de lacunas pessoais, eles têm necessidade de satisfação


imediata das necessidades... Tenta-se desenvolver essas
competências, (...) tenta-se, por via da descentração, começar a
pensar nos outros... (...), e isso é muito curioso, por exemplo, na
área de carpintaria, multiplicam-se os pedidos dos miúdos para
oferecerem aquilo que fazem nos ateliers, que é uma coisa muito
interessante mas que descapitaliza o Centro. Estão sempre a pedir
coisas para levar, para oferecer, porque eles têm orgulho nas coisas
bonitas que fazem, mas também estamos a tentar ajudá-los a
perceber que eles têm uma mensagem a deixar para os que hão-de
vir. É uma noção que eles também têm de futuro” (Ent. 30).

Mas, de acordo com algumas opiniões, há que dar o salto para modelos
de formação / educação que dêem certificação escolar e que proporcionem
fácil inserção no mercado laboral:

“Há que dar o salto, até pelas idades, para outro tipo de formação,
pelo menos uma turma para trabalhar os conteúdos escolares. Isto
não se coaduna com as necessidades educacionais que temos.
Precisamos de formação/educação para jovens adultos que dêem
certificação escolar. O problema é que estes cursos demoram muito
tempo e temos de ver o tempo da duração da medida” (Ent. 48).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 619

“O que me choca é que a Lei, com outro tipo de cursos, com outro
tipo de formação, poderia permitir o desenvolvimento do jovem, mas
com estes programas todos, porque os cursos são, neste momento,
carpintaria, olaria, não é permitida tal formação. Há um fosso muito
grande entre essa preparação e a realidade social. Há outras formas
muito mais atraentes aos jovens para se desenvolverem, para serem
ajudados no seu crescimento (...). Deve poder haver essa
ressocialização, que devia ser possível a partir deste sistema
independente dos moldes. Tem que haver um empenhamento muito
maior das entidades para atingirem esse objectivo, e não é, acho eu,
com esse tipo de cursos que se vai conseguir fazer uma preparação
correcta do jovem“ (P-8).

“ (...) a formação não é uma formação exclusiva. O que nós temos


são ateliers polivalentes de despiste em que os menores não entram
para a carpintaria e estão a vida inteira na carpintaria. Cada Centro
Educativo tem cinco áreas formativas em ateliers onde eles vão
passando e, portanto, eles têm desde expressão dramática,
expressão plástica...” (P-6).

Assim, não há um modelo de pré-formação estabilizado:

“(...) é um trabalho que está a ser feito há três anos. Não há um


modelo estabilizado. Não há ninguém que tenha, por exemplo, um
modelo para este tipo de jovens, para o tempo de permanência e
para as suas características. Os Centros educativos têm técnicos
que fazem a avaliação dos jovens que têm e propõem anualmente
um conjunto de acções de formação que nós tentamos viabilizar com
as verbas disponibilizadas para o efeito. Porém, a formação é feita
em função das características dominantes e também dos espaços
620 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

físicos que dispomos. Daí, quando há pouco dizia que as educandas


têm [atelier de] cabeleireiro, de facto, é aquilo que elas mais gostam
de ter e aquilo que lhes permite adquirir conhecimentos importantes
enquanto pessoas e que eventualmente, no futuro, possa ser um
trabalho, uma actividade profissional, contudo nenhuma delas sai de
lá com um curso de cabeleireira, nem nenhuma delas vai sair com
uma carteira profissional. Porque se tenta destacar as apetências
inatas dos formandos, o programa que nós aplicamos é adaptado às
circunstâncias” (P-11).

O Centro Protocolar da Justiça (CPJ) e o Instituto de Emprego e


Formação Profissional

Foram algumas, as críticas sobre a formação pré-profissional


desenvolvida nos centros educativos, que se considera ter um caminho incerto
a percorrer:

“Temos um caminho a percorrer no âmbito da formação profissional.


(...) Não é possível ter competências de certificação, porque essas
competências vêm de tudo, desde a relação que têm uns com os
outros e com o educador. Até competências cognitivas,
competências manuais... Competências relacionais e isso é tratado.
Obviamente que precisamos de melhorar estes programas.
Precisamos de introduzir programas que estão previsto no
regulamento, especificamente orientados para determinadas
problemáticas” (P-6).

Quanto ao apoio futuro do Centro Protocolar da Justiça e do Instituto do


Emprego e Formação Profissional, paira a incerteza:
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 621

“Também há sempre alguma angústia em relação ao futuro do CPJ”


(Ent. 28).

“O CPJ dá-nos financiamento do Quadro Comunitário de Apoio. Até


2006, como todos sabemos, depois não sei. Não sei se haverá uma
tendência maior para colocar nos Centros educativos cursos que já
estejam preparados” (Ent. 28).

Chamando a atenção para as dificuldades de articulação com o Instituto


do Emprego e Formação Profissional:

“Os cursos que estão planificados em termos de formação


profissional pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional e
pelas próprias escolas, como se fez nas escolas profissionais, e
pelas escolas normais ao nível dos conteúdos curriculares (...),
fundamentalmente, são direccionados aos meninos que não têm
rentabilidade escolar, que têm insucesso escolar, que não gostam
da escola e que, efectivamente, querem ir trabalhar. E essa história
do abandono escolar é o trabalho infantil, que muitas vezes tem a
ver com a necessidade que os miúdos também têm de ter dinheiro
próprio, pertencem a famílias muito disfuncionais e que valorizam
apenas o imediato. O Instituto de Emprego e Formação Profissional
faz planificação a três anos, tem que ter previsão orçamental” (P-11).

O regime disciplinar é muito formal: educar é poder “castigar” de


imediato?

O regime disciplinar dos centros educativos é considerado demasiado


formal, muito garantístico e pouco eficaz:
622 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

“O procedimento disciplinar é uma área que, a nosso ver, do ponto


de vista do terreno, merecia uma grande escavadela, porque está de
tal maneira a querer assegurar as garantias todas... que nós ficamos
completamente atados. Vamos dar um exemplo: são 9 da noite, é
Sexta-feira, os rapazes estão a ver televisão e um miúdo começa a
implicar com outro ou já vem implicando com o monitor e agride o
monitor. (...) De imediato não pode ter um castigo, pois tem que
haver uma participação da ocorrência, o director vai analisar se é
passível de instaurar procedimento disciplinar, tem que nomear um
instrutor que tem 10 dias para fazer a instrução, ainda há mais 3 dias
para fazer um relatório... Educar é um bocado como na nossa casa,
quer dizer, porta-se mal tem que haver ali uma oportunidade no
modo como o castigo surge. Todo o articulado em relação à área
disciplinar (...), caiu-se num formalismo muito grande. Percebe-se
que a ideia era realmente acautelar uma série de coisas, mas deixa-
nos imensas dúvidas. Essa é uma área fundamental, precisaria de
ser vista com bom senso. Também não é só aplicar castigos, é
importante registar no processo, agora, tinha que ser uma coisa
mais prática, mais maleável e mais adequada à realidade, não tão
formal” (Ent. 26).

O quarto de isolamento do educando não é consensual:

“Um outro aspecto que não posso deixar de referir, e foi o que me
desagradou, efectivamente, no Centro Educativo, e que mais achei
muito próximo das prisões, foi a questão das «celas disciplinares»,
chama-se quarto de isolamento do menor, quando o menor se porta
mal lá dentro. É, sem dúvida, uma situação que está legalmente
prevista e é uma das coisas que no regime fechado não se devia
suscitar, mas se há uma situação destas em que há um quarto onde
o menor porque fez determinada coisa fica fechado, não posso
concordar... e que é posto lá por um determinado período de horas
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 623

sem ver ninguém, com umas condições que, sinceramente, me


desagradaram imenso (...). São situações que chocam e que são de
evitar, muito mais com menores e penso que essa situação é que
não é nada boa para a ressocialização de ninguém, seguramente”
(P-3).

5. 3. 9. As carências na área da saúde

Na área da saúde, há muitas carências, quer nos próprios centros


educativos, quer na falta de protocolos estabelecidos com hospitais, para
facilitar o acesso dos jovens institucionalizados e, até, no fornecimento de
medicamentos necessários:

“Temos um psiquiatra... O psiquiatra que pode dar algum apoio,


pode medicar. Não temos médico de clínica geral...” (Ent. 26)

“Precisávamos de um enfermeiro a tempo inteiro. Termos mais


dinheiro para consultas de especialidade, que agora só por favor.
Estamos a pagar uma terapia da fala. Temos isso em termos de
consulta... porque não havia no Hospital” (Ent. 28).

Enfatizando a questão da articulação com as unidades do Serviço


Nacional de Saúde:

“Nós estamos muito mal, e vale a pena reforçar, é na resposta


hospitalar pública a vários níveis. Por exemplo, se formos às
urgências, obviamente que nos atendem, e os miúdos são de
imediato atendidos, mas se eu quiser marcar uma consulta de
dentes num hospital... arrisco-me a estar seis meses à espera. Na
oftalmologia, um ano... eu tenho algum orçamento para os levar a
624 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

uma clínica privada, mas não é na clínica privada que temos que
tratar os 38 que aqui estão, a não ser que tenhamos um orçamento
principesco para andar a tratar dos dentes... Agora não há uma
resposta pública decente. Se eu tiver um miúdo com uma dor
apertada, tenho que esmifrar o orçamento para o levar à clínica
porque no hospital não me atendem. E no hospital o que é que
depois lá fazem? É arrancar o dente, agora tratamentos... Portanto,
a resposta é muito fraquinha. Na intervenção que é feita no hospital,
fazem o básico dos básicos” (Ent. 26).

“(...) há que explorar qual é a fundamentação legal para poder ter um


protocolo com os HUC (Hospitais da Universidade de Coimbra), não
só ao nível das várias especialidades, mas até ao nível da farmácia,
porque aqui também despendemos muito dinheiro por mês de
medicamentos. São anti-depressivos, anti-psicóticos, ansiolíticos,
anti-inflamatórios, antibióticos, genéricos, vitaminas, etc. Agora,
estomatologia merecia um protocolo, fizemos não sei quantas
consultas no ano passado” (Ent. 28).

A saúde mental

Quanto à saúde mental, não existe qualquer resposta específica por parte
do Ministério da Saúde, apesar de ser desejável que todos os centros
educativos estivessem, pelo menos, apetrechados com apoio psicológico:

“Há carência de medidas de saúde mental para os jovens – os


menores já não vão à pediatria nem à pedopsiquiatria, não vão para
os hospitais de adultos porque ainda não são adultos, mas também
não vão para os hospitais pediátricos porque já ultrapassaram a
idade para aí serem admitidos... Alguns casos que estão ao cuidado
do IRS deviam estar na saúde mental. O Centro Educativo Navarro
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 625

de Paiva tem trabalhado nesta área, mas devia haver uma resposta
específica do Ministério da Saúde” (Ent. 1).

Mas, esta resposta é considerada manifestamente insuficiente:

“Em termos de recursos humanos a única especificidade do Centro


Educativo Navarro de Paiva é ser o único Centro Educativo com um
psiquiatra e com um terapeuta da fala a tempo inteiro. Do ponto de
vista cultural há um historial de respostas a estas áreas mais por
parte do Navarro de Paiva. Com a entrada em vigor da LTE pensou-
se que o Navarro de Paiva seria uma plataforma de segurança para
os outros centros educativos para estes problemas, mas em termos
práticos não se apetrechou. Os casos de jovens com problemas de
foro psicológico/psiquiátrico não são todos encaminhados para o
Centro Educativo Navarro de Paiva porque a inclusão não deve ser
feita através de «ghettos», não devem ser constituídos grupos na
totalidade, porque os jovens «normais» internados, em muito
contribuem para a integração dos outros” (Ent. 48).

Porém, a vivência conjunta de jovens com necessidades especiais


levanta certos problemas:

“ (...) os miúdos débeis atrasam o percurso escolar dos outros,


porque não há turmas especiais para eles” (Ent. 52).

Pelo facto de em todos os centros educativos existirem jovens com


necessidades de apoio psicológico, entende-se que:

“Todos os centros educativos deviam estar apetrechados com


respostas a nível da psicologia. A delinquência não tem a ver com
problemas clínicos, mas com problemas sociais” (Ent. 52).
626 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

A articulação com a área da saúde é extremamente deficitária no âmbito


da saúde mental:

“(...) não existe qualquer articulação no tratamento dos casos de


saúde mental” (Ent. 20).

Na área da saúde mental as carências em termos de formação dos


técnicos são preocupantes:

“A situação do Centro Educativo é deficitária do ponto de vista do


diagnóstico e da resposta, há menos recursos do que já houve para
diagnóstico e para respostas. Fariam sentido valências que
actualmente aí não existem e que já existiram, designadamente
psicologia clínica, psicologia numa vertente prática” (Ent. 48).

“(...) faz falta o apoio de psicólogos clínicos – já houve esta valência


no Centro Educativo e espero que volte” (Ent. 51).

Mas há boas iniciativas, como a criação de uma sub-equipa de clínica


terapêutica:

“ (...) com vista a essa educação para o direito, nós criámos aqui,
desde Dezembro passado, a sub-equipa de clínica terapêutica. Nós
temos aqui médico psiquiátrico e médico de clínica geral, não é bem
de clínica geral mas faz esse papel, e, entretanto, criámos uma
equipa mais de apoio psico-terapêutico individualizado. Nas reuniões
que temos tido, fizemos um levantamento de alguns jovens que,
entre todos, (...) podiam estar mais necessitados de beneficiar desse
apoio na globalidade. Neste momento, estamos a acompanhar oito e
gostaríamos de alargar mais, com uma outra equipa, para o
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 627

desenvolvimento das tais competências pessoais e sociais, portanto,


uma coisa mais de grupo, porque há miúdos que na relação
individual têm mais dificuldade em verbalizar e às vezes não sabem,
têm dificuldade” (Ent. 30).

5. 3. 10. A formação dos técnicos

A formação ministrada aos técnicos que desempenham funções nos


centros educativos nem sempre será a melhor e a suficiente:

“Isto é uma carreira de Técnico Superior para Reinserção Social


específica e, portanto, vamo-nos formando no terreno. Certamente
formação existe nos Serviços Centrais. Não vale a pena andar a
convidar pessoas de fora para darem formação sem o
enquadramento. Às pessoas de dentro deve-se dar tempo para se
prepararem e sistematizarem o que sabem empiricamente. (...) eu
tive conhecimento, nos anos em que andei por Bruxelas, que lá
sentiram essa necessidade de fazer um tronco comum de formação
para os educadores em função, quer na justiça, quer na deficiência
mental. Havia um tronco comum e módulos de formação de cerca
de uns dois anos de formação. Formação dirigida, específica. O que
cá acontece é aquela formação solta...” (Ent. 28).

Os recursos financeiros, humanos e as carreiras são sempre obstáculos a


considerar:

“A parte financeira é grave. Porque temos que fazer ginástica para


gerir... (...) em termos de recursos humanos, há situações de
concursos que não abrem; há a questão da evolução da carreira (...)
devia já ter havido uma reconversão profissional e a reclassificação
também de algumas pessoas porque já fizeram os testes de
formação necessários. (...) Há disparidades nas carreiras que não
custavam ser regularizadas. E temos indivíduos em contrato a
628 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

termo, em contratos administrativos de provimento. Outros vão


acabar em Janeiro de 2006 e a garantia de estabilidade e de
continuidade é desconhecida. Isso é grave em termos de uma
carreira desta natureza. O orçamento para 2004, é menos 10% do
que o orçamento executado em 2003. O Centro Educativo ___ tem
uma equipa técnica boa (...). Houve aqueles «booms» de
contratação na altura de 2000/2001 mas depois, em 600 candidatos
seleccionámos 10 e foram para a rua. Alguns deles bons técnicos e
estão em situação precária... Precisávamos, no mínimo, de mais
dois monitores. Estamos com 30, precisávamos no mínimo de 32”
(Ent. 28).

5. 3. 11. A escassez de articulações

Na execução das medidas de internamento, um dos problemas dos


centros educativos salientado por vários técnicos, prende-se com a escassez
de mecanismos de articulação e de protocolos estabelecidos com entidades da
comunidade, quer públicas, quer privadas:

“Nós não temos protocolos. Fazemos a articulação (...) com as


entidades que existem, com as que vamos conhecendo,
nomeadamente o Instituto de Emprego e Formação Profissional”
(Ent. 26).

De acordo com os técnicos, seria proveitosa a existência de protocolos


com universidades e com centros de investigação, designadamente na área da
psicologia clínica e do desenvolvimento, para aprofundar o estudo da
delinquência juvenil e para pôr em marcha estratégias de abordagem dos
casos que chegam aos centros educativos, porém,
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 629

“«O direito de menores é um direito menor» - há aqui um chavão


que eu sempre fintei. Não sei se ainda é, não faço ideia. Mas na
psicologia isso é verdade. A escola de psicologia de Coimbra tem
um interesse reduzido. Está lá uma pessoa que realmente faz as
suas investigações, mas não há nada sobre o comportamento de
crianças. E, realmente, não há pessoas com alguma especialização
que venham já dirigidas, apetrechadas, quando acabam a
licenciatura. Nós temos essa dificuldade” (Ent. 30).

Nalguns centros educativos, já está concretizada alguma articulação,


embora precise de maior aprofundamento:

“Temos um protocolo celebrado recentemente com a Associação


Académica de Coimbra, vamos celebrar com a Cruz Vermelha, que
é para darem apoio ao nível de cuidados de enfermagem e até
programas de educação para a saúde. E temos já a articulação,
também prevista, com o Centro de Saúde de Celas. Para já temos
estagiários, do Instituto Miguel Torga, já há uns anos. Com a
Faculdade de Direito não temos nada em concreto” (Ent. 28).

“ (...) ainda agora fiz um contacto com um grupo ligado ao Centro


Integrado de Apoio Familiar (...). Também temos um protocolo
implícito, desde há uns anos, com o CAT. Vamos abrir as portas a
um estagiário, vem da Saúde Mental, os psicólogos têm sido os que
mais fazem estágios aqui. A partir de Setembro vem uma para
trabalhar numa equipa de clínica terapêutica. Foi-nos pedido,
através da Direcção Regional, esse tipo de colaboração” (Ent. 29).
630 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

As articulações entre o Centro Educativo e as equipas do IRS da área de


residência dos jovens - uma relação que deve ser estreita:

“(...) entre as equipas do Centro Educativo e as equipas mais


gerais, há boas práticas e, de facto, os dois coordenadores fazem
sempre excelente articulação, mas há outras que não fazem. (...)
Caminhamos para uma ideia que pode não estar tão interiorizada
entre os nossos técnicos que é a seguinte: o menor é da
comunidade, provisoriamente é que está no Centro Educativo, o
menor não é do Centro Educativo, mas da comunidade. E, portanto,
este trabalho tem que ser iniciado cá fora. (...) O trabalho com a
família, no regresso, perceber que constrangimentos é que levaram
o menor ao Centro... Portanto, há aqui todo um trabalho que tem que
ser feito e que vai ajudar o menor a atingir um determinado
posicionamento em que ele deve estar preparado para vir para fora.
Esta articulação tem que ser sempre feita porque ele entra para o
Centro Educativo e a equipa não institucional deve começar logo a
trabalhar com a família, com a escola... tentando reduzir, de facto,
estes constrangimentos que o levaram ao internamento. O próprio
projecto que é feito no Centro Educativo tem que ser «cosido» com o
de fora. Temos que pegar numa linha de continuidade para este
menor não se sentir solto. O Instituto de Reinserção Social deve
continuar a acompanhá-lo. Este menor é do exterior, não é do
Centro Educativo” (Ent. 7).

O acompanhamento no meio familiar e na comunidade é fundamental:

“Porque um menino quando chega a um Centro Educativo,


normalmente já teve uma intervenção de uma equipa. Enquanto está
no Centro Educativo é preciso que a equipa continue a acompanhar,
porque se ele vai de férias, se é preciso articular com família, e
ainda muito mais quando os meninos não estão na sua zona de
residência, é preciso que aquela equipa continue a apoiar o caso e é
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 631

preciso que aquela equipa prepare condições, antecipadamente,


para a saída do menor do Centro Educativo” (P-6).

A família

A necessidade de “trabalhar” as famílias durante o tempo da


institucionalização do jovem é premente, assim como a sua responsabilização:

“(...) os jovens querem estar com a família, mas depois da execução


da medida, a família já não lhes serve, quando voltam já não se
identificam com a família. Falta um trabalho paralelo com as famílias.
O que acabamos por fazer, e isto é, de facto, uma contradição, é
desadaptá-los, também, do seu contexto de origem. Por exemplo, na
Escócia as famílias por vezes são desalojadas do bairro” (Ent. 49).

Sobre a responsabilização das famílias:

“As famílias deviam ser responsabilizadas – se fossem obrigadas a


pagar alguma coisa pela permanência dos jovens nos centros
educativos – por exemplo € 5 por mês – não sentiriam tanto alívio
quando os filhos são institucionalizados. Sem a responsabilização
das famílias a intervenção não tem eficácia.

Com algumas famílias não adianta falar, porque nada adianta, os


problemas são tais... O que nos centros educativos se faz é ensinar
os miúdos a pedirem ajuda, a autonomizarem-se dessa forma,
pedindo orientação ao colega do IRS. Após saírem do Centro
Educativo, quando estão aflitos, voltam para pedirem ajuda” (Ent.
52).
632 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

A presença de magistrados nos centros educativos

A articulação que se estabelece entre os centros educativos e os


magistrados, quer judiciais, quer do Ministério Público, não é, na perspectiva
dos nossos entrevistados, a mais próxima e não é uniforme, registando-se
casos de maior afastamento e de mais proximidade.

Quanto à competência que a LTE atribui, no artigo 39.º, n.º2, h) e no


artigo 40.º, n.º 1, f), de forma explícita, respectivamente ao juiz e ao Ministério
Público – “realizar visitas a centros educativos e contactar com os menores
internados” – parece ser uma competência que não está a ser exercida, já que
os diversos operadores que ouvimos referiram que o Ministério Público nunca,
ou muito raramente, se desloca aos centros educativos, invocando, alguns
magistrados, a acumulação de trabalho que decorre de um dia fora do Tribunal:

“(...) não com muita frequência (...), mas temos tido visitas de
magistrados judiciais. Magistrados do Ministério Público tivemos
uma visita aqui (...), uma vez, no âmbito de um Seminário que aí
houve, uma visita de grupo. Mas, por mote próprio, nenhum
magistrado do Ministério Público, que eu saiba...” (P-6).

“A fiscalização do Centros educativos deve, de facto, caber ao


Ministério Público, porém, estes magistrados não têm tempo, faltam
magistrados, funcionários de qualidade – para o Ministério Público
têm vindo funcionários eventuais, sem vínculo” (Ent. 22).

Um magistrado do Ministério Público afirma que:

“Eu só fui uma vez, mas não falei com menor nenhum, fomos visitar
o Centro, fomos todos aqui do Tribunal, mas não falámos com
menores. Com a nossa vida no Tribunal é difícil...” (Ent. 10).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 633

Alguns magistrados pensam que se poderá fazer algum “controlo” mesmo


sem ir aos centros:

“Quando vem aí um menor prestar declarações eu para além de o


ouvir sobre a matéria em causa no final pergunto sempre «Então
como é que está a correr aquilo lá no Centro Educativo? Tens-te
portado bem? És bem tratado? Gostas de lá estar?» (...) Tenho
sempre uma conversa no final, no sentido de saber como é que as
coisas estão a correr. (...) De uma maneira geral, tirando o facto de
estarem privados de liberdade, não têm dito mal. Quanto à
fiscalização, eu sei que isto está na Lei e, evidentemente, que
teremos de fazer talvez um bocadinho mais nesse sentido, dar um
bocadinho de atenção nisso, admito que sim, como às comissões de
protecção” (Ent. 11).

Admite-se que haja algumas diferenças em comarcas pequenas e


decorrentes de mais formação:

“(...) as relações entre o IRS e os tribunais são mais estreitas em


meios mais pequenos, aí há boa articulação, mas em Lisboa os
magistrados não estão muito abertos para essa cooperação. Nas
formações promovidas pelo CEJ aparecem sempre os mesmos
magistrados, os mais curiosos e estudiosos. Muitos nunca
frequentam tais acções de formação. São os mais curiosos que
demonstram, na prática, maior flexibilidade. Aquando da abertura do
ano judicial os coordenadores do IRS vão ao tribunal, para se
apresentarem aos magistrados. O IRS dá a conhecer ao tribunal
estudos, relatórios e informações actualizadas, sendo também
auscultada a opinião dos magistrados sobre os temas que ocupam o
IRS. É necessário trabalhar directamente com os magistrados, estão
mais despertos, mais curiosos” (Ent. 7).
634 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

A falta de interesse, por parte dos magistrados, em deslocações a centros


educativos decorre, segundo alguns entrevistados, de “uma questão de
classe”, de “uma cultura judicial de afastamento” e de alguns preconceitos:

“Não nos apareceu juiz nenhum. Nunca conseguimos cá ter um juiz.


O Ministério Público...veio cá quantas vezes? Duas, talvez. (...) Por
exemplo, eu já desisti de convidar os juízes a virem a uma festa: eu
convidava sempre e nunca apareceram... Eu penso que há uma
cultura judicial de afastamento... Até lhe digo mais, se eu quiser falar
com um juiz, ele não me atende o telefone. Eu que sou um director
de um Centro Educativo (...). Eu acho que há aqui uma questão
também de classe. Acho que os magistrados talvez tenham um
pouco a ideia que perdem a isenção, que se calhar nós tentamos
contaminar” (Ent. 26).

“Nunca, nem por convite. Existem muitos preconceitos relativamente


à imagem que o judicial tem dos Centros educativos” (Ent. 18).

Para alguns, não só seria benéfica uma maior articulação, como também
a presença do magistrado no Centro Educativo:

“(...) obrigar que a revisão das medidas seja feita no Centro


Educativo e não no gabinete do juiz. Eu via com muito bons olhos
que, na primeira revisão, o juiz lá estivesse e, sobretudo, que se
apercebesse do que está a ser feito «Ele faz olaria, ele faz isto,
vamos ver trabalhos deles, vamos ver coisas deles». O espaço físico
seria, não as quatro paredes do gabinete, mas as quatro paredes do
Centro Educativo” (Ent. 25).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 635

“O Magistrado judicial devia estar no Centro Educativo, no Conselho


Pedagógico, à semelhança do sistema prisional. Também não seria
vantajoso banalizar a sua presença no Centro” (Ent. 28).

Os advogados dos jovens internados

No que diz respeito ao acompanhamento por advogado, a opinião


generalizada é que os advogados vão muito poucas vezes aos centros
educativos; que os advogados oficiosos nem conhecem os educandos; e que,
por vezes, desempenham o papel do Ministério Público:

“ Tenho um gabinete lá em cima que é para os advogados... Vêm


pouco. Muito raro. (...) Esta área é relativamente menor também
para eles... Os oficiosos então (...) não conhecem os miúdos...
Quando foi implementada a lei, no princípio de 2001, veio um
advogado aqui, ele estava a fazer o papel do Ministério Público...”
(Ent. 26).

Mas, considera-se que os advogados poderiam desempenhar um papel


muito positivo nos centros educativos, estabelecendo articulações com a
família e com os técnicos. À Ordem dos Advogados sugere-se a promoção de
formação na área do direito das crianças e jovens:

“Os advogados fazem alguma diferença, se se interessam pelo


menor. Fazem a ponte para a família. Têm a preocupação de
defender as garantias processuais do jovem. A sua intervenção é um
contributo. A qualidade dos advogados está relacionada com o seu
interesse. Falta talvez uma maior articulação com os técnicos” (Ent.
18).
636 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

“A Ordem dos Advogados devia promover formação na área da LTE,


seria muito benéfica a presença de advogados no Centro Educativo”
(Ent. 28).

A figura dos advogados, na perspectiva de alguns, poderia ser


dispensada se o Ministério Público desempenhasse bem as suas funções:

“(...) de um ponto de vista das garantias do menor, este sistema


trouxe uma coisa que é muito importante: como o sistema se tornou
muito rígido e muito exigente ao nível da contenção, é importante
salvaguardar também todo o outro lado. Sinceramente, acho que se
o Ministério Público fizer bem o seu papel, o menor está mais
salvaguardado. A partir daí dispensar a figura do advogado, a nós
não nos faz confusão nenhuma. Se estiverem aí advogados a querer
falar com os miúdos, façam favor, está lá o gabinete” (Ent. 26).

5. 3. 12. O pós-internamento: a falta de estruturas para o dia


seguinte

Um dos grandes problemas identificados pelos nossos entrevistados é a


preparação da saída dos jovens. Na perspectiva dos magistrados e dos
técnicos, é desejável avançar para a flexibilidade da medida e para um período
de acompanhamento obrigatório aquando da saída do Centro Educativo:

“(...) terminado o período da medida, termina a intervenção do IRS.


Numa situação o IRS pediu ao Tribunal para prolongar a medida
porque estava a chegar ao fim, o menor estava a ir muito bem, mas
era aconselhável que terminasse no Centro Educativo o módulo de
ensino recorrente que estava a frequentar. Porém, o tribunal não
pôde prolongar a medida!” (Ent. 23).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 637

“Quando saem, os menores não querem saber do Instituto de


Reinserção Social para nada e eu diria que a lei tem essa falha
grande, porque se os adultos, quando saem, têm um
acompanhamento obrigatório à saída, com os menores não há esse
acompanhamento” (Ent. 29).

Há quem considere que é uma questão de interpretação:

“Se o jovem mantém necessidades de educação para o direito,


compete ao Centro Educativo, em sede de revisão da medida,
propor a medida tutelar na perspectiva que permite a continuidade
do acompanhamento, que é a medida de acompanhamento
educativo” (Ent. 28).

Há quem defenda a criação de lares de transição, entre a saída do Centro


Educativo e o regresso ao meio de origem, para facilitar o regresso à
sociedade:

“(...) há um aspecto aqui, que por acaso não abordámos – o


chamado lar de transição, porque repare, estes jovens, quando
entram aqui, é porque falhou todo o sistema de protecção
anteriormente. Vão regressar à mesma família, à mesma zona”
(Ent. 31).

“(...) como é que fazemos a passagem? Como é que preparamos a


saída e como é que ele é acompanhado lá fora? Nós estamos a
trabalhar com populações limite, em situações de grande sofrimento”
(Ent. 26).
638 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

De facto, não existem estruturas vocacionadas para o apoio ao jovem


após a saída. E as dificuldades sentidas no regresso ao meio de origem são
inúmeras, como por exemplo, encontrar uma escola onde matricular os jovens.
Uma forma de minorar essas dificuldades seria impor que o período final da
medida de internamento fosse seguido, em todos os casos, de uma fase de
adaptação ao meio exterior, através da medida de acompanhamento educativo,
de forma a rentabilizar as competências adquiridas durante o internamento:

“Há dificuldades em encontrar escolas onde colocar os jovens que


praticaram factos qualificados como crimes naquela escola, são aí
estigmatizados. Mas as outras escolas quando sabem o que se
passou também não os querem receber” (Ent. 52).

“O pouco que se faz após a saída do jovem deve-se ao empenho


pessoal e voluntário dos técnicos, não existem estruturas para o
período de pré-saída. No último dia da medida há que ponderar: o
menor progrediu, cresceu, adquiriu conhecimentos e competências –
então, há que rentabilizar tudo isso e continuar o acompanhamento
no exterior, pelo menos durante três meses (o ideal seria um ano).
Uma das grandes críticas que fazem à lei assenta exactamente na
falta de pontes para a saída. Falta a legitimidade formal para que o
IRS possa actuar no período imediatamente seguinte ao do terminus
da medida de internamento. E daqui resulta a analogia com «o
direito penal dos pequeninos». O pouco que se tem feito é por
voluntarismo e interesse pessoal mas com pouca duração. Estamos
a tentar que os últimos tempos de internamento sejam requalificados
em outra medida como, por exemplo, na medida de
acompanhamento educativo. Todavia, também no desagravamento
existe o perigo de se algo correr mal a situação se tornar
irreversível” (Ent. 19).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 639

“E o que nós desejávamos e já fizemos nalguns casos (...),é que os


últimos três meses de medida fossem feitos com acompanhamento
educativo. Porque eles aqui, no fundo, estão um pouco numa
redomal...” (Ent. 27).

Vão no mesmo sentido outros depoimentos:

“Após o internamento deveria existir uma medida de


acompanhamento. Devia encurtar-se o internamento e apostar mais
na parte final” (Ent. 18).

“(...) devia haver uma fase final de adaptação ao meio exterior. Devia
ser obrigatória uma fase transitória do final da medida até a inserção
na sociedade. Por vezes, os próprios menores pedem para ficar
mais tempo no Centro Educativo. No âmbito da LPCJP, por
exemplo, quando o menor atinge 18 anos pode pedir para continuar
no Centro de Acolhimento até aos 21 anos – ora, isto também devia
ser possível na LTE, como prolongamento do Internamento. A ideia
de que o menor não quer ser internado não é correcta. A transição
do Centro Educativo para a vida completamente autónoma devia ser
feita com acompanhamento” (Ent. 22).

Por outro lado, a progressividade da medida tutelar de internamento devia


ser mais visível, manifestando-se em propostas de revisão do internamento e
em medidas de acompanhamento educativo, em todos os casos:

“(...) internamente, nós estamos a tentar trabalhar no sentido de que


o final da medida tutelar educativa não seja o internamento, ou seja,
que haja sempre, no mínimo 3 meses, por mecanismo de revisão e
por proposta nossa haja acompanhamento na liberdade e, portanto,
640 Capítulo VIII - As medidas tutelares educativas institucionais

que não se saia abruptamente do internamento para a rua. (...) A


orientação que temos, em termos de propostas de revisão da
medida, é no sentido de acompanhamento educativo na última fase”
(P-6).

“Deveria ser dada uma maior expressão à progressividade entre o


internamento e as medidas não institucionais, isto é, a Lei diz que se
deve dar primeiro prevalência às medidas mais graves e depois às
menos graves, mas depois é preciso saber fazer a conta da
progressividade entre as duas, de forma a que esta aplicação seja o
mais eficaz possível” (Ent. 25).

Eis o relato de um problema concreto:

“(...) há um número considerável de menores que saem dos Centros


educativos sem terem a situação da sua nacionalidade regularizada
– há que trabalhar com o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Pode
dizer-se que cerca de 20% dos menores são oriundos dos PALOP´s”
(Ent. 1).

No caso de jovens com problemas de foro psiquiátrico, a ausência de


mecanismos de apoio após o internamento é, ainda, mais preocupante, pois
como foi referido, estes jovens, provavelmente, vão necessitar de apoio
terapêutico ao longo da vida e, se não houver continuidade nos tratamentos,
será destruído tudo o que foi conseguido durante a medida tutelar de
internamento. O seguimento destes jovens após o termo da medida,
designadamente através de equipas que os acompanhassem a consultas, é
fundamental:
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 641

“Com a duração da medida não é possível fazer a intervenção


terapêutica. O problema é o seguimento no exterior, devia haver um
protocolo entre a Justiça e a Saúde” (Ent. 52).

“(...) os miúdos com problemas psiquiátricos, em princípio, vão


precisar de acompanhamento ao longo da vida. Se não tiverem
apoio a nível familiar, vão faltar às consultas, volta tudo ao mesmo.
Faltam, também protocolos formais. Nesse âmbito podiam constituir-
se equipas que acompanhassem esses miúdos às consultas, por
exemplo.

Há imensas dificuldades em arranjar alguma coisa para os miúdos


quando estes saem do Centro Educativo. Falha o papel a seguir à
intervenção, faltam respostas para o dia seguinte. Aqui os casos são
seguidos, controlados e é preparada a saída, contactado o serviço
que vai acompanhar o caso, mas depois os miúdos não vão, não
aparecem nas consultas. O facto de não haver continuidade no
acompanhamento lá fora, destrói o que fazemos aqui dentro durante
o internamento. Há miúdos que simplesmente não podem voltar para
as suas famílias. O que nós fazemos é tentar controlar o controlável
e, depois, assegurar a saída” (Ent. 51).
Capítulo IX

Conclusões e Propostas

Conclusões

O estudo apresentado neste relatório sobre a avaliação da aplicação da


Lei Tutelar Educativa, permite-nos retirar as seguintes conclusões gerais:

1. As transformações ocorridas nas sociedades, bem como uma maior


mediatização da delinquência juvenil levou a que, no contexto europeu,
esta questão passasse a constar das agendas políticas. Em 2001, esta
questão integrou, de forma concreta, as preocupações da Presidência da
União Europeia que considerava que a criminalidade juvenil, no contexto
dos Estados-membro, se caracteriza, em termos gerais, pela existência
generalizada de grupos de jovens delinquentes; pelo aumento do número
de factos violentos cometidos por jovens; pelo aumento de práticas
reincidentes; pelo crescente envolvimento de jovens do sexo feminino em
práticas delituosas; pela diminuição do nível etário dos jovens
delinquentes; pelo acentuar das ligações entre delinquência juvenil,
consumo e tráfico de drogas, e criminalidade de adultos; pelo aumento da
gravidade dos actos de violência racial e xenófoba; e pelo facto de muitos
dos actos qualificados como crimes praticados por jovens terem como
vítimas outros jovens, o que leva a que sejam justamente estes os mais
expostos à violência da delinquência juvenil.

2. O fenómeno da delinquência juvenil levou, ao longo do século XX,


ao desenvolvimento de várias teorias explicativas, das quais se destacam:
as teorias culturalistas, que apareceram nos EUA na década de 20 com a
644 Conclusões e propostas

“Escola de Chicago”; a teoria do controlo social, que atinge o seu auge na


década de 60, e que, em termos gerais, funda-se na ideia de que um
indivíduo torna-se delinquente se os laços que o ligam a outros membros
da sociedade, nomeadamente à família e à escola, estão enfraquecidos; o
paradigma multifactorial, que procura explicar a sucessão de fases de
delinquência na vida de um indivíduo e, para isso, apoia-se no conceito
de “carreiras delinquentes”; o paradigma da acção, já nos anos 70, que
procura explicar a explosão da delinquência não através da motivação do
delinquente, mas pela multiplicação das ocasiões para delinquir; e, nos
anos 80, a teoria do “vidro partido” que conduz ao aparecimento de novas
formas de intervenção policial baseadas, principalmente, na manutenção
de uma ordem de proximidade destinadas a evitar espirais de
deterioração.

Os estudos recentes enfatizam a importância do contexto sócio-


económico e familiar dos jovens, nomeadamente a relação entre a
delinquência juvenil, o crescimento urbanístico desordenado, sobretudo
nas periferias dos grandes centros urbanos, e a exclusão social,
económica e cultural, num contexto de sociedades de elevados padrões
de consumo e de ascensão e sucesso social. Sublinham, também, a
fragilidade das instâncias de socialização: família e escola.

3. O aparente fracasso das estruturas de socialização tradicionais,


designadamente a família e a escola, e o aparecimento de
comportamentos desviantes levaram à necessidade de intervenção de
instituições de controlo formal no processo educativo dos adolescentes e
jovens. Estas instituições inserem-se no sistema de justiça juvenil.
Identificámos vários estudos europeus sobre a justiça juvenil, entre eles,
destacam-se Wilkins (1958), Thomas (1977), Farrington et al. (1978),
Bursik (1983), Breuvart et al. (1974), Leblanc (1976 e 1978), Leomant
(1977), Giménez-Salinas (1981), Amie et Garapon (1987) e D’Ancona
(1992). Muitas das conclusões destes estudos apontam para a ineficácia
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 645

das medidas aplicadas pelos tribunais aos jovens que praticam factos
qualificados como crime. Por um lado, estas medidas não são, em muitos
casos, suficientemente eficazes para evitar a reincidência e, por outro, há
um importante número de jovens, com determinadas características
sociais, que ficam fora deste sistema. Concluem, ainda, que há medidas
tutelares cujas potencialidades na educação para o direito não têm sido
maximizadas.

4. Em Portugal destacam-se os estudos mais recentes de Maria João


Leote de Carvalho (2002), que considera que a capacidade de resposta
do sistema de justiça e de outros sistemas ligados à prevenção da
delinquência é insuficiente face ao número de jovens que são
identificados pelos mecanismos de controlo formal, e os estudos
realizados, no âmbito do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa
(1998), sobre a justiça juvenil em Portugal. Este estudo conclui que, se
em muitas situações a intervenção do tribunal revela um efeito
reeducador e de reinserção social, há, contudo, uma percentagem
significativa de jovens para os quais a intervenção judiciária se revela
absolutamente inoperante, designadamente para aquelas crianças e
jovens que vivem em contextos socialmente vulneráveis e, desde cedo,
manifestam comportamentos desviantes.

5. Em 2004 foi publicado um estudo realizado, entre Maio de 2002 e


Abril de 2004, pela Fundação da Juventude, sobre Violência Juvenil:
Histórias e Percursos. Este estudo incide sobre a realidade portuguesa,
escocesa e espanhola. Os dados estatísticos recolhidos neste estudo
permitiram chegar a algumas conclusões acerca da realidade da
delinquência juvenil e da justiça juvenil naqueles países. Tanto em
Portugal como na Escócia, verificou-se, não só que os processos judiciais
referentes a jovens constituem uma percentagem muito pequena do total
de processos entrados no sistema judicial, como também que, ao
646 Conclusões e propostas

contrário do que é frequentemente veiculado pela opinião pública, não se


registou, no período considerado, um aumento do número de processos
tendo na sua base situações de infracção penal. Em Espanha a situação
é um pouco diferente. As estatísticas referentes à década de 90 reflectem
um incremento na taxa de “criminalidade” entre os jovens.

No que se refere ao tipo de facto qualificado como crime cometido,


os cenários são bastante semelhantes, predominando a pequena
“criminalidade”, sobretudo os crimes contra o património. As medidas
adoptadas nestes países reflectem a tendência para o papel educativo e
reabilitador assumido pelo Estado, com um claro predomínio das medidas
não institucionais. No entanto, no caso escocês parece existir uma
recente tendência política para abordagens mais duras e mais punitivas
no âmbito da delinquência juvenil, fruto de um sentimento generalizado de
insegurança impulsionado, segundo o estudo, quer pelos media, quer
pelo actual clima social deste país.

O estudo considerou, ainda, que os centros educativos, nos moldes


em que funcionam, “mais parecem «depósitos» temporários de jovens do
que verdadeiramente agências vocacionadas para a sua «recuperação» e
cujos resultados, ainda para mais, não parecem ser alvo de avaliação
objectiva”. Recomenda, assim, a criação de mecanismos mais eficazes
que permitam a transição entre os Centros e a vida "real", ajudando os
jovens a procurar alternativas e facultando-lhes recursos adequados.

Todos os estudos enfatizam a necessidade de prevenção como um


eixo fundamental numa abordagem integrada de combate à delinquência
juvenil. Considera-se, por isso, que é função do Estado atacar este
problema em duas frentes, sob pena de qualquer uma delas, agindo
isoladamente, se tornar ineficaz. Por um lado, reagir reactivamente de
forma a oferecer à sociedade segurança e aplicar medidas tutelares aos
jovens que praticam factos qualificados como crimes. Por outro, agir de
modo proactivo com vista à prevenção da delinquência juvenil e inserção
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 647

dos jovens que potencialmente se encontram a caminho da marginalidade


e exclusão.

6. O debate sobre a legitimidade e a capacidade de intervenção


judicial, no que toca especialmente ao problema da juventude e da
delinquência, num momento de crise do Estado Providência e do reflexo
desta no judiciário, levou, a partir da década de oitenta, ao confronto entre
o modelo de justiça (em que se privilegia a defesa da sociedade e o
respeito dos direitos, liberdades e garantias dos jovens) e o modelo de
protecção (em que se privilegia a intervenção do Estado na defesa do
interesse do jovem sem que lhe seja formalmente reconhecido o direito ao
contraditório). Deste confronto, começou a desenvolver-se um modelo
alternativo de justiça, que defende que o sistema de justiça de menores
deverá assentar na atribuição aos jovens das mesmas garantias
constitucionais, processuais e penais dos adultos, mas, também,
aproveitar as virtudes do modelo de protecção, especialmente no que
respeita ao seu carácter educativo e à consideração dos “interesses dos
jovens” ao longo do processo de aplicação e execução das medidas.

É para este modelo que têm caminhado a maioria dos Estados-


membro da União Europeia. O sistema sancionatório vigente na maioria
dos Estados-membro caracteriza-se, essencialmente, por dar prevalência
a medidas de conteúdo reparador, do ofendido ou da comunidade, como
o trabalho a favor da comunidade, e a medidas de conteúdo probatório e
educativo, cumpridas na comunidade, procurando aplicar-se medidas
detentivas somente nos casos mais graves de delinquência juvenil. Para
além destas tendências comuns, considera-se, ainda, importante que, na
aplicação de uma medida a um jovem delinquente, se tenham em conta
os seguintes aspectos: a adesão do jovem ao cumprimento da medida; a
intervenção individualizada, respeitando as características de cada jovem;
os factores de risco de reincidência na preparação de programas
individuais; a celeridade do processo judiciário; a primazia dos aspectos e
648 Conclusões e propostas

conteúdos pedagógicos na aplicação de qualquer medida; e a importância


crescente dos programas de mediação.

7. As respostas dos Estados, quer às situações das crianças e jovens


em perigo, quer à questão da delinquência juvenil, são, em larga medida,
determinadas pela publicação de vários instrumentos de direito
internacional sobre esta problemática ao longo do último século.
Destacam-se a Declaração dos Direitos da Criança; a Declaração
Universal dos Direitos do Homem; o Pacto Internacional sobre os Direitos
Civis e Políticos; e o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos,
Sociais e Culturais, que continham referências aos direitos das crianças.

A partir da década de oitenta, começaram a operar-se alterações


significativas no âmbito da administração da justiça juvenil,
reconhecendo-se a necessidade de separar o tratamento dos factos
qualificados como crimes cometidos por jovens dos crimes praticados por
adultos. Este movimento reformador procurou adoptar políticas de
inserção social em detrimento das tradicionais políticas de
institucionalização, distinguir a criminalidade da delinquência juvenil e
separar as formas de intervenção relativas a jovens agentes de infracções
e as referentes a crianças carecidas de protecção e assistência por serem
vítimas de maus tratos ou de situações de abandono. Para este novo
contexto foram fundamentais os seguintes instrumentos jurídicos: as
Regras Mínimas das Nações Unidas sobre a Administração da Justiça
Juvenil, conhecidas como Regras de Beijing que, em conjunto com as
Regras Mínimas das Nações Unidas para a Elaboração de Medidas não
Privativas da Liberdade - Regras de Tóquio - com as Directrizes das
Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil - Princípios
Orientadores de Riade - e com as Regras das Nações Unidas para a
Protecção dos Jovens Privados de Liberdade, bem como as disposições
constantes da Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989,
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 649

constituem diplomas fundamentais na criação do direito internacional da


justiça juvenil.

8. Esta é uma questão que tem sido, também, objecto das


preocupações do Conselho da Europa. Em 1996 foi adoptada a
Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos das Crianças e um
amplo leque de Resoluções e de Recomendações em matéria de
protecção e de promoção dos direitos das crianças, de que se destacam
as seguintes: a Recomendação (87) 20, sobre Reacções Sociais à
Delinquência Juvenil, que consagra a importância privilegiada das acções
de prevenção da delinquência juvenil através de políticas sociais de apoio
aos jovens, favorecendo a sua integração social e estabelecendo, com o
necessário respeito pelos direitos do jovem, a natureza prioritária das
medidas de diversão, de desjudicialização e de mediação, de modo a
evitar que as crianças e jovens entrem no sistema de justiça criminal; a
Recomendação (88) 6, sobre Reacções Sociais ao Comportamento
Delinquente dos Jovens de Famílias Migrantes, recomendando aos
Estados a necessidade da prevenção de comportamentos delinquentes
dos jovens migrantes, designadamente dos jovens de segunda geração,
oferecendo-lhes as mesmas possibilidades dos autóctones para se
integrarem no seu país de residência; a Recomendação (00) 20 sobre O
papel da intervenção psicossocial precoce na prevenção dos
comportamentos criminais, que recomendou aos Estados-membro a
introdução de estratégias nacionais de intervenção psicossocial precoce,
com o objectivo de prevenir os comportamentos criminais ou encorajar o
desenvolvimento das estratégias que existem, com o fim de combater o
crime em geral; a Recomendação (01) 1532, sobre Uma política Social
Dinâmica em Favor das Crianças e Adolescentes em Meio Urbano,
recomendando aos Estados-membro a introdução de outras formas de
regulação de litígios, quer alternativas aos processos judiciais, quer
alternativas a medidas detentivas; e a Recomendação (03) 20, sobre os
novos modos de tratamento da delinquência juvenil e sobre o papel da
650 Conclusões e propostas

justiça de crianças e jovens, recomendando que os principais objectivos


da justiça juvenil e das medidas àquela associadas sejam a prevenção da
para-delinquência e da reincidência, a (re)socialização e a (re)inserção
dos delinquentes e as necessidade e interesses das vítimas.

9. A delinquência juvenil tem também integrado a agenda das


instituições da União Europeia. Em 1999, no Conselho Europeu de
Tampere, foi decidido implementar, no espaço da União Europeia uma
rede de autoridades nacionais sobre esta matéria e dar prioridade à
cooperação no âmbito da delinquência juvenil. No segundo semestre de
2000, durante a Presidência francesa da União Europeia, teve lugar um
Seminário sobre a justiça juvenil na Europa, no qual se concluiu,
designadamente que: a luta contra a delinquência juvenil tem que
respeitar e promover os direitos humanos e da criança; tem que prever
uma abordagem integrada de cariz preventivo, assistencial, policial e
judiciário e de natureza pluridisciplinar, com intervenção precoce e
inserida em estratégias globais de desenvolvimento social; e que deve ser
dada preferência à aplicação aos jovens de medidas pedagógicas,
reparadoras e não institucionais. Do Seminário resultou, ainda, a
necessidade de se fixar regras mínimas que inspirem e orientem a
aproximação dos vários sistemas jurídicos europeus e que dêem
consistência à perspectiva europeia de tratamento da delinquência juvenil.

Nesse contexto foi criada, em Maio de 2001, a Rede Europeia de


Prevenção da Criminalidade e foram desenvolvidos diversos programas
de prevenção. Em Março de 2004, a Comissão da União Europeia
apresentou ao Conselho e ao Parlamento a comunicação sobre a
prevenção da criminalidade na União Europeia, na qual incluiu a questão
da delinquência juvenil, considerando ser essencial que os Estados-
membro desenvolvam políticas de prevenção da criminalidade e que
respeitem as normas reconhecidas internacionalmente.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 651

10. No âmbito da experiência comparada destacamos o caso espanhol.


A reforma da justiça juvenil foi introduzida em Espanha com a publicação
da Ley Orgánica 5/2000, de 12 de Janeiro, Reguladora de la
Responsabilidad Penal de los Menores (LORPM), cujos princípios
orientadores são, entre outros, os seguintes: a natureza formalmente
penal, mas materialmente sancionatório-educativa do procedimento e das
medidas aplicáveis aos jovens infractores; o reconhecimento expresso de
todas as garantias que decorrem da Constituição e das especiais
exigências do interesse das crianças e jovens; a diferenciação de
diversas faixas etárias com diferentes efeitos processuais e
sancionadores; a flexibilização e adopção de medidas; o controlo judicial
da execução das medidas; e a especial incidência na reparação do dano
causado e na conciliação do delinquente com a vítima através do instituto
da mediação em qualquer fase do processo.

11. A LORPM estabelece um amplo catálogo de medidas aplicáveis,


partindo da perspectiva sancionatória-educativa e tendo sempre como
pressuposto o interesse do jovem e a adopção flexível da medida mais
adequada, atendendo às características do caso concreto, da idade do
jovem, da gravidade da transgressão e da evolução pessoal durante a
execução da medida.

A LORPM prevê as seguintes medidas: internamento em regime


fechado, em regime semiaberto e em regime aberto; internamento
terapêutico; tratamento ambulatório; assistência num centro de dia;
permanência em casa ou em centro durante o fim-de-semana; liberdade
vigiada; convivência com outra pessoa, família ou grupo educativo;
trabalho a favor da comunidade; admoestação; privação da autorização
para conduzir ciclomotores ou veículos com motor ou o direito de obter tal
autorização ou das licenças administrativas para caça ou para uso de
qualquer tipo de arma; e inabilitação absoluta para cargos ou empregos
públicos, em caso de crimes de terrorismo. A medida de internamento em
652 Conclusões e propostas

regime fechado apenas pode ser aplicada quando, pela descrição e


qualificação jurídica dos factos, se conclua que, na sua prática, foi
utilizada violência ou intimidação ou que se actuou com grave risco para a
vida ou para a integridade física das vítimas. A duração das medidas não
poderá ser, em regra, superior a dois anos - nesse período será sempre
contabilizado e descontado o tempo já cumprido pelo jovem em medida
cautelar. A prestação de trabalho a favor da comunidade não poderá
ultrapassar as 100 horas e a medida de permanência em casa ou em
centro educativo durante o fim-de-semana não pode exceder oito fins-de-
semana. A estas medidas há a acrescentar a referência à medida de
inabilitação absoluta, introduzida pela Ley Orgánica 7/2000, de 22 de
Dezembro, dirigida aos delitos de terrorismo.

O juiz, oficiosamente, a pedido do Ministério Público ou do


advogado, com informação da equipa técnica e, se for o caso, da equipa
de protecção, em qualquer momento poderá determinar que fica sem
efeito a medida imposta, pode reduzir a sua duração ou pode substituí-la
por outra, desde que a modificação tenha em vista o interesse da criança
e que exprima a reprovação face à sua conduta.

12. Os dados relativos à justiça juvenil que foi possível analisar


permitem-nos concluir que, por um lado, a justiça juvenil em Espanha é
mais repressiva, recorrendo mais ao internamento do que em Portugal
(25,7% das medidas de internamento em Espanha para 7,7% das
medidas em Portugal), por outro, em Portugal aposta-se mais na medida
de admoestação, enquanto em Espanha a sua aplicação tem um valor
residual (ou seja, 55% das medidas em Portugal para 1,6% em Espanha).
Em Espanha as medidas não institucionais aplicadas são a medida de
liberdade vigiada (44,3%) e a de prestações de trabalho a favor da
comunidade (20,7%).

A baixa aplicação de medidas não institucionais em Espanha tem


sido objecto de críticas. Chama-se, ainda, a atenção, para a ausência de
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 653

centros adequados para o internamento dos jovens, para a falta de


profissionais com adequada formação para a boa execução da medida de
liberdade vigiada e a não selecção de pessoas ou famílias de modo a
permitir o alargamento da aplicação da medida de convivência com outra
família ou grupo educativo.

13. Em Portugal, a efectiva protecção judiciária dos jovens surgiu com


maior relevo e expressão com a Lei de Protecção à Infância, aprovada
pelo Decreto-Lei de 27 de Maio de 1911, que introduziu, no sistema
judiciário português, os primeiros tribunais de menores, designados
tutorias de infância, e um direito substantivo e adjectivo para os menores
de 16 anos.

Em 1962, a necessidade de reunir num só texto legal as normas


respeitantes às crianças com comportamentos delinquentes ou com outro
tipo de problemas ligados à infância levou à aprovação da Organização
Tutelar de Menores (OTM). A intervenção do Estado em relação aos
jovens orientava-se por um modelo de “protecção” maximalista, o que, na
opinião da maioria dos autores, não acarretou uma alteração substancial
do modelo adoptado pela Lei de Protecção à Infância. O regime instituído
em 1962 sofreu uma alteração em 1978, operada pelo Decreto-Lei n.º
314/78, de 27 de Outubro, mas que não alterou o modelo assumido, em
1962, com a entrada em vigor da OTM.

14. Este modelo de protecção, que só viria a ser alterado com a reforma
de 1999, assente judicialmente em Tribunais de Menores de competência
especializada, tinha como objectivo a protecção judiciária no domínio da
prevenção criminal, através da aplicação aos jovens com dificuldades de
adaptação a uma vida social dita normal ou que revelassem tendências
para a mendicidade, vadiagem, prostituição ou delinquência, de medidas
cujo fim essencial assentava na protecção e reeducação e não na sua
punição ou reprovação social, não distinguindo na aplicação destas
654 Conclusões e propostas

medidas os jovens em perigo dos jovens agentes de crimes. Este


tratamento unitário de situações encontrava a sua justificação no princípio
da inimputabilidade dos jovens, equiparando, para efeitos de protecção,
os jovens delinquentes aos jovens vítimas de crimes ou de exclusão.

15. As transformações ocorridas na sociedade, com a emergência de


novas formas de delinquência juvenil, as crescentes críticas ao modelo de
protecção previsto na OTM e a ratificação, por Portugal, de instrumentos
de direito internacional público sobre esta matéria, levou o Governo
português a dar início, em 1996, a um plano de reforma do sistema de
justiça de menores para o qual foi encarregada a Comissão para a
Reforma do Sistema de Execução de Medidas e Penas, cujo relatório foi
apresentado em finais de 1996.

O Relatório concluía pela incapacidade de um modelo monolítico


que respondesse eficazmente ao tratamento de situações de crianças e
jovens em risco e jovens infractores. Como princípio orientador de toda a
intervenção junto de jovens, defendia-se “o princípio da mínima
intervenção possível”, apontando dois pressupostos para a intervenção
tutelar educativa: a ofensa grave aos bens jurídicos fundamentais da
comunidade, devendo o tribunal “estabelecer se aquele facto
concretamente praticado pelo menor é susceptível de um juízo de
desvalor objectivo pelo menos análogo ao que é vertido na incriminação
típica” e a conclusão em concreto, pelo tribunal, da necessidade de
corrigir a personalidade deficiente no plano do dever-ser jurídico que se
manifestou na prática do facto.

Ainda em 1996, os Ministérios da Justiça e da Solidariedade e


Segurança Social constituíram uma Comissão interministerial para estudo
da articulação que se entendeu necessária entre os Ministérios da Justiça
e da Solidariedade e Segurança Social na execução das políticas sociais
relacionadas com o Direito de Menores, nomeadamente com o propósito
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 655

de apreciar a actuação daqueles Ministérios na área das crianças e


jovens em risco e das crianças e jovens com comportamentos desviantes.

Em 1998, o Ministério da Justiça constitui uma Comissão de reforma


da legislação sobre o processo tutelar educativo, com o objectivo de
elaborar projectos legislativos sobre o processo tutelar educativo e sobre
o regime especial aplicável a jovens adultos.

Na sequência das propostas avançadas pelas Comissões


constituídas para a avaliação e reforma do Direito de Menores, a
Assembleia da República aprovou, em 1999, três importantes diplomas
legais neste âmbito: a Lei n.º 133/99, de 28 de Agosto, que alterou o
Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro, na parte respeitante aos
processos tutelares cíveis; a Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro, que
aprovou a Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo; e a Lei n.º
166/99, de 14 de Setembro, que aprovou a Lei Tutelar Educativa, com
entrada em vigor em 1 de Janeiro de 2001, depois de publicada legislação
referente à criação e funcionamento dos centros educativos.

Esta reforma implicou, ainda, a aprovação, em 2000, do Programa


de Acção para a Entrada em Vigor da Reforma de Direito de Menores,
com a finalidade de “assegurar a criação de condições jurídicas, técnicas,
humanas e físicas que permitam a integral aplicação da Lei de Protecção
de Crianças e Jovens em Perigo e da Lei Tutelar Educativa”. Como
resulta deste estudo, há um entendimento geral que este Programa ficou
aquém do necessário.

16. A Lei Tutelar Educativa consagra como princípios fundamentais de


aplicação da medida tutelar os princípios de adequabilidade, intervenção
mínima, da adesão (dos jovens e dos pais), da proporcionalidade e da
legalidade. É aplicada a qualquer jovem com idade compreendida entre
os 12 e os 16 anos de idade, que pratique, em Portugal, um facto
656 Conclusões e propostas

qualificado pela lei como crime e passível de aplicação de medida tutelar


por lei anterior ao momento da sua prática.

Por força do princípio da legalidade consagrado na Lei Tutelar


Educativa, o legislador indicou, de forma expressa e taxativa, as medidas
tutelares educativas que podem ser aplicadas. Para tal, distinguiu
medidas não institucionais: admoestação; privação do direito de conduzir
ciclomotores ou de obter permissão para conduzir ciclomotores;
reparação ao ofendido; realização de prestações económicos ou de
tarefas a favor da comunidade; imposição de regras de conduta;
imposição de obrigações; frequência de programas formativos; e
acompanhamento educativo; da medida institucional: internamento em
centro educativo, que pode ser executada em regime aberto, semiaberto
ou fechado.

O processo tutelar educativo é constituído por duas fases ou


momentos principais – a fase de inquérito e a fase jurisdicional –,
podendo, ainda, comportar uma facultativa fase – a fase de recurso – e
uma fase eventual – a fase de execução da medida tutelar –, caso haja
lugar à aplicação de uma medida tutelar educativa.

17. No Capitulo V deste relatório analisamos a aplicação da Lei Tutelar


Educativa pelos tribunais de família e menores à luz das estatísticas
oficiais do Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério
da Justiça e dos dados recolhidos pelo Observatório Permanente da
Justiça Portuguesa nos Tribunais de Família e Menores de Lisboa e de
Coimbra.

No que diz respeito ao volume processual na fase de inquérito, a


primeira nota é que, de acordo com os dados da Procuradoria Geral da
República, em 2002, diminuiu o número dos inquéritos iniciados. A
segunda é que cerca de 70% dos inquéritos terminaram, em 2002, por
arquivamento, o que parece indiciar a pequena gravidade da larga maioria
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 657

dos actos registados como criminalidade juvenil ou, eventualmente, a


insuficiente recolha de provas da prática do facto qualificado como crime,
por parte das polícias e do Ministério Público. O conhecimento das razões
desta situação exige um estudo especialmente direccionado para tal,
tendo em atenção que toda a lógica do “novo” sistema processual da
justiça tutelar educativa assenta na resolução dos casos o mais breve
possível e sem recurso à via judicial. É importante, por isso, apurar se,
nesta matéria, existe, e em que medida, uma disjunção entre os
objectivos da lei e a sua prática. Exemplo dessa disjunção, que nos
parece importante realçar, é a escassa utilização dos mecanismos de
diversão previstos na lei. Os dados existentes sobre a suspensão
provisória do processo, mostram que os números são muito pouco
significativos (107 casos, em 2001, e 110, em 2002).

Quanto ao volume processual na fase jurisdicional, merece


referência o facto de apenas 15,5% (em 2002) da criminalidade juvenil
registada pelo MP entrar nesta fase processual, e desses 15,5% só a um
pouco mais de metade ser aplicada uma medida tutelar. O que significa
que a uma grande percentagem (cerca de 90%) da criminalidade juvenil
registada não é aplicada qualquer medida tutelar educativa.

18. Traçando um breve perfil sociológico dos jovens julgados em


processo tutelar educativo e aos quais foi aplicada uma medida tutelar
educativa em 2001-2002, estes eram, na sua maioria, nacionais
portugueses, do sexo masculino, tinham entre os 14 e os 15 anos, viviam
com ambos ou apenas um dos progenitores, em Lisboa ou no Porto, e
tinham e/ou frequentavam o Ensino Básico e praticaram, sobretudo,
factos qualificados como crimes contra a propriedade.

19. Na fase jurisdicional merece, ainda, referência o baixo recurso ao


instituto da mediação (do total dos processos entrados na fase
jurisdicional que terminaram com a aplicação de uma medida tutelar
658 Conclusões e propostas

educativa, no ano de 2001, em 3,7% houve recurso à mediação, e, em


2002, 6,9%). Apontam-se, neste estudo, algumas razões para esta
situação. Uma delas tem a ver com o facto de não existir regulamentação
sobre esta matéria e, do nosso conhecimento, ainda não terem sido
criadas entidades de mediação específicas para o Direito dos Menores.

20. Três categorias de factos qualificados como crimes (contra a


propriedade, contra a integridade física e condução sem habilitação legal)
constituem cerca de 90% da criminalidade juvenil. Destes, os factos
qualificados como crime de furto simples e qualificado foram praticados
por cerca de metade dos jovens sujeitos de processos tutelares
educativos findos em 2001 e 2002 aos quais foi aplicada medida tutelar.

21. A duração de um processo tutelar educativo assume grande


importância, uma vez que os sujeitos processuais são jovens (entre os 12
e os 16 anos) e o tempo para um jovem adolescente tem uma dimensão
muito diferente da que tem para um adulto. Cerca de 24% dos processos
tutelares educativos em que foi aplicada uma medida tutelar e que
findaram em 2001 ou 2002 demoraram, desde o início da fase
jurisdicional até à aplicação da medida, menos de 3 meses; 17,6%, entre
3 e 6 meses; e 19,1% entre 6 meses e 1 ano, ou seja, cerca de 60% dos
processos demoraram menos de 1 ano. Se confrontarmos este tempo
processual com o tempo dos processos judiciais, em geral, concluiremos
que a tramitação de uma parte considerável destes processos é
razoavelmente célere. Contudo, se consideramos, por um lado, que só
estamos a ter em conta a duração da fase jurisdicional e, por outro, que
mais de 55% destes processos demoraram mais de 6 meses, a questão
da celeridade tem outra leitura, denunciando os dados, outrossim, alguma
ineficácia do sistema no tratamento desta questão.

Acresce que é preocupante, pelas consequências nefastas que este


período de tempo pode causar no desenvolvimento psicossocial do
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 659

jovem, a elevada percentagem de processos que duraram mais de 2 anos


(18,6%). Há, no entanto, a registar, como sinal positivo, a diminuição, em
2002, da percentagem dos processos com duração superior a 2 anos que
cai para 14%, quando, em 2001, tinha sido de 22%. A confirmar-se este
indicador, parece resultar da análise dos dados, que a LTE estará a
conseguir uma das suas finalidades: encurtar o prazo entre o início da
fase jurisdicional do processo tutelar educativo e a aplicação de uma
medida tutelar, evitando que estes se arrastem sem que se aplicasse uma
medida.

22. A um universo de 1 399 jovens, em 2001, foram aplicadas 1 479


medidas tutelares, na sua grande maioria, de admoestação (55%). A
segunda medida mais aplicada foi a medida de acompanhamento
educativo (24,9%) e a terceira, o internamento em centro educativo
(7,7%). Em 2002, num universo de 1 267 medidas tutelares educativas
aplicadas a 1 137 jovens, o peso relativo da admoestação decresceu para
35%, o acompanhamento educativo subiu para 27,2% e a medida de
internamento em centro educativo sofreu também um aumento de cerca
de 4%, tendo sido aplicada em 11,4% dos casos. É de referir que, em
2002, foram mais aplicados regimes mais “brandos” (regime aberto e
semiaberto) aos jovens mais “novos” e o regime mais “duro” (regime
fechado) aos jovens mais “velhos”, sendo interessante verificar se esta
situação se mantém nos próximos anos. Esta situação, contudo, poderá
estar relacionada com o padrão da criminalidade por grupo etário, que
parece agravar-se com aumento da idade do jovem.

23. A maioria das medidas tutelares aplicadas aos jovens, quer em


2001, quer em 2002, foram decididas na audiência preliminar (81%, em
2001 e 84%, em 2002); por homologação da proposta do MP durante a
audiência preliminar (53%, em 2001, e 64%, em 2002); e só uma
percentagem reduzida de casos é decidida em audiência preliminar sem o
660 Conclusões e propostas

consenso de todos (2%, em 2001 e em 2002). Parece, assim, concluir-se


que a justiça tutelar, para além de ser “decidida” pelo MP na fase de
inquérito, é, também, fortemente influenciada pela acção destes
operadores na fase jurisdicional. Relativamente aos casos em que são
aplicadas medidas tutelares, é uma justiça que recorre, nesta fase, com
frequência, à decisão por consenso, o que terá, por certo, consequências
positivas, não só na eficácia das decisões, mas também na celeridade
processual.

24. Resulta do nosso estudo que o perfil sociológico dos jovens da


nossa amostra sujeitos de processos tutelares educativos que chegaram
à fase judicial diverge um pouco ao compararmos os Tribunais de Família
e Menores de Coimbra e de Lisboa. No Tribunal de Família e Menores de
Coimbra, os jovens sujeitos de processos tutelares educativos que
chegaram à fase judicial são, na sua grande maioria, do sexo masculino,
com idades compreendidas entre os 14 e os 15 anos. São de
nacionalidade portuguesa e vivem com um ou ambos os pais, embora
cerca de um quinto se encontre internado numa instituição. São jovens
que, em regra, encontram-se a estudar e têm ou frequentam, na sua
maioria, o segundo ciclo do Ensino Básico, tendo uma escolaridade
adequada ou quase adequada à sua idade. De referir, ainda, que a
percentagem de jovens com processos anteriores era, bastante elevada
(60%). Cerca de 16% dos jovens tinham processos de promoção e
protecção e processos tutelares educativos anteriores, 13% processos de
promoção e protecção e 31% processos tutelares educativos.

No Tribunal de Família e Menores de Lisboa, os jovens sujeitos a


processos tutelares educativos que chegaram à fase judicial são, também
na sua grande maioria, do sexo masculino. Têm, igualmente, em regra, 14
ou 15 anos. Mas, cerca de um quinto são estrangeiros, registando-se uma
sobrerepresentatividade de jovens estrangeiros, em relação à população
estrangeira residente na área da Grande Lisboa. Vivem com um ou
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 661

ambos os pais, embora, à semelhança do que acontece no Tribunal de


Família e Menores de Coimbra, cerca de um quinto se encontre internado
numa instituição. Têm ou frequentam, na sua maioria, o segundo ciclo do
Ensino Básico, embora apresentem, numa percentagem significativa, uma
escolaridade desadequada à sua idade. Embora a grande maioria se
encontre a estudar, regista-se, contudo, uma percentagem considerável
de “desocupados”. Quanto aos jovens com processos anteriores a sua
percentagem é elevada (65%) sendo que destes, 45% tinham processos
tutelares educativos, 16% processos de promoção e protecção e
processos tutelares educativos anteriores e 4% processos de promoção e
protecção.

25. Regista-se uma diferença assinalável relativamente à importância


das polícias enquanto mobilizadoras do processo tutelar nos processos
tutelares analisados em ambos os tribunais (53%, em Lisboa, e 37,3%,
em Coimbra - neste Tribunal os principais mobilizadores foram os
ofendidos (41,3%)). É possível que para esta diferença (de 15,7%)
contribua o facto de os factos qualificados como crimes públicos que
constam nos requerimentos de abertura da fase jurisdicional no Tribunal
de Família e Menores de Lisboa terem um peso relativo superior em cerca
de 13% em relação ao peso relativo dos factos qualificados como crimes
públicos que constam nos requerimentos de abertura da fase jurisdicional
dos processos analisados no Tribunal de Família e Menores de Coimbra
(33,4% e 20,6%, respectivamente).

26. Apesar de a Lei determinar que o jovem deve ter um


acompanhamento especializado, numa parte significativa dos casos o
defensor do jovem é um advogado estagiário e, por isso, não
especializado em questões de Direito de Menores. Para além da defesa
ser assegurada, numa percentagem significativa, por advogados
estagiários, acresce que alguns jovens, especialmente do Tribunal de
662 Conclusões e propostas

Família e Menores de Coimbra (40,8%), não são defendidos pelo mesmo


advogado desde o início até ao fim do processo, havendo mesmo uma
percentagem significativa (19,7%, em Coimbra, e 6,7%, em Lisboa) que
foram defendidos por três advogados diferentes ao longo do processo.

27. Dos jovens da nossa amostra que foram sujeitos de um processo


tutelar educativo que chegou à fase jurisdicional no Tribunal de Família e
Menores de Lisboa, 40% foram indiciados, no requerimento de abertura
da fase jurisdicional, por mais do que um facto qualificado como crime
relevante para o processo em causa; enquanto que no Tribunal de
Família e Menores de Coimbra essa percentagem foi apenas de 20%. É
de notar que, em Lisboa, uma percentagem ainda significativa de jovens
(10%) foi indiciada, no requerimento de abertura da fase jurisdicional, pela
prática de cinco ou mais factos qualificados como crime, havendo mesmo
5 jovens que foram indiciados, no requerimento de abertura da fase
jurisdicional, pela prática de 10, 11, 12, 16 e 20 factos qualificados como
crime, respectivamente.

É de salientar, ainda, o facto de a maioria dos jovens indiciados, no


requerimento de abertura da fase jurisdicional, por factos plúrimos, ter
sido anteriormente sujeito de um processo tutelar educativo e ou de um
processo de promoção e protecção.

28. Ao analisarmos o tipo de factos qualificados como crime agrupados


pelos quais os jovens da nossa amostra foram indiciados, no
requerimento de abertura de fase jurisdicional, verificamos que no
Tribunal de Família e Menores de Coimbra predominam os factos
qualificados como crimes contra o património sem violência (cerca de
70%); enquanto que, em Lisboa, predominam os factos qualificados como
crimes contra o património com violência (cerca de 54%). Ainda
considerando o Tribunal de Família e Menores de Lisboa, o peso relativo
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 663

dos factos qualificados como crimes contra o património com violência


regista algum crescimento com o aumento da idade dos jovens.

29. Em ambos os tribunais analisados, a duração de mais de metade


dos processos tutelares desde o início da fase de inquérito até ao final da
fase jurisdicional é inferior ou igual a um ano (em Coimbra 59,3% e em
Lisboa 57,4%), embora, destes, a maioria tenha durado mais de 6 meses.
Acresce que há uma percentagem significativa de processos, em ambos
os tribunais, (38,9% e 33,7%, respectivamente) que tem uma duração
entre um e dois anos, o que considerando o desenvolvimento da
personalidade de um jovem é um tempo demasiado longo para que a sua
situação não esteja definida. Foi, ainda, possível registar, na nossa
amostra, alguns processos no Tribunal de Família e Menores de Lisboa
que demoram mais de dois anos.

O tempo que medeia entre a prática do facto e a abertura do


processo é, na grande maioria dos casos, inferior ou igual a três meses e,
em cerca de metade, inferior a um mês. Esta situação estará relacionada
com as circunstâncias do cometimento do facto, muitas vezes em
flagrante delito, e com o exercício do direito de queixa, que pode ser mais
ou menos tardio.

Na fase de inquérito, isto é, considerando a actividade do Ministério


Público, a investigação dos factos praticados por jovens qualificados
como crimes tem uma duração que não podemos deixar de considerar
longa. Em Coimbra, 47,3% e, em Lisboa, 59,3% dos processos que
chegaram à fase jurisdicional demoraram mais do que seis meses na fase
de investigação. É, ainda, de salientar que em Lisboa, 25,4% dos
processos da nossa amostra demoraram entre 1 a 2 anos para chegarem
à fase jurisdicional.

Na fase jurisdicional, os processos analisados, comparativamente à


fase anterior, registaram durações menos elevadas. A grande maioria dos
664 Conclusões e propostas

processos findou até 6 meses (mais de metade em três meses (55,6%,


em Coimbra, e 53%, em Lisboa).

30. Há uma grande diferença entre o peso relativo das medidas tutelares
educativas aplicadas aos jovens sujeitos de um processo tutelar educativo
no Tribunal de Família e Menores de Coimbra e de Lisboa. Essa
diferença, resulta, em larga medida, do número e do tipo de facto
qualificado como crime pelos quais são condenados os jovens, dado que
em Lisboa há uma percentagem maior de condenados por factos
qualificados como crimes plúrimos e por crimes contra o património com
violência (roubo) o que implica, por si só, uma adequação da medida à
maior gravidade das infracções. Não surpreende, por isso, que o peso
relativo das medidas de maior gravidade - internamento em centro
educativo e acompanhamento educativo - seja maior em Lisboa. Merece,
também, referência o facto de no Tribunal de Família e Menores de
Coimbra os juízes aplicarem mais medidas combinadas, sendo residual o
peso relativo da medida de admoestação, que, em Lisboa, tem uma
percentagem de cerca de 15%.

Em ambos os tribunais é notória a subutilização de medidas como a


reparação ao ofendido, a frequência de programas formativos, a
imposição de regras de conduta e a realização de trabalho a favor da
comunidade, embora, em Coimbra, essas medidas sejam mais aplicadas
em conjunção com outras, nomeadamente, com o acompanhamento
educativo.

Das medidas tutelares educativas de internamento aplicadas aos


jovens sujeitos de um processo tutelar educativo nos Tribunais de Família
e Menores de Coimbra e de Lisboa, a grande maioria foi aplicada em
regime semiaberto, registando-se um peso maior do regime fechado em
Lisboa.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 665

31. A reforma do Direito de Menores, globalmente considerada,


pretendeu imprimir uma mudança de orientação normativa e,
consequentemente, de prática, neste âmbito do direito. No Capítulo VI,
procurámos trazer para o debate a visão dos operadores que trabalham
directamente com estas questões (magistrados judiciais e do Ministério
Público, advogados e técnicos do Instituto de Reinserção Social e da
Segurança Social), ressaltando as disjunções entre os objectivos da lei e
sua aplicação prática.

A primeira nota a merecer referência é que a diferenciação de


respostas jurídicas oferecidas a crianças e jovens em perigo (Lei de
Protecção das Crianças e Jovens em Perigo) e a jovens com idades
compreendidas entre os 12 e 16 anos, que praticam factos qualificados
pela lei penal como crime (Lei Tutelar Educativa) é, genericamente,
considerada, pelos operadores judiciários e técnicos que intervêm no
sistema, como muito positiva, considerando que a nova legislação tornou
os jovens verdadeiros sujeitos processuais.

32. No entanto, do discurso dos actores do processo tutelar educativo


resulta algumas disjunções entre as finalidades legislativas e a sua
prática. A primeira é que, muitas vezes, o processo tutelar educativo é, ao
arrepio dos comandos legislativos, utilizado como mecanismo de
promoção e protecção de crianças e jovens. Vários magistrados judiciais
e do MP assumem claramente esta subversão do sistema positivado. A
justificação mais frequentemente apontada pelos entrevistados é a da
ausência de respostas eficazes ao nível da promoção e protecção e das
suas estruturas, o que leva um magistrado a afirmar que “até parece que
estamos à espera que ele seja apanhado pela polícia para a partir daí
intervir”. Para muitos dos entrevistados o sistema de promoção e
protecção está a ser absolutamente ineficaz, defendendo a necessidade
de avaliação da aplicação da Lei de Promoção e Protecção.
666 Conclusões e propostas

Aqueles procedimentos representam, ainda, uma perversão dos


princípios e finalidades que presidem à Lei Tutelar Educativa,
designadamente do princípio da intervenção mínima.

33. Surgem, ainda, como preocupações centrais dos magistrados e


técnicos entrevistados a diferenciação de interpretações e de
procedimentos entre tribunais e, mesmo dentro de um dado tribunal, entre
magistrados, para uma mesma Lei Tutelar Educativa.

Este problema aparece relativamente às regras de conexão,


separação e apensação de processos, à relevância a dar à desistência de
queixa, ao tempo passado em medida cautelar de guarda, à execução de
mais de uma medida aplicada ao mesmo jovem em processos diferentes
e ao internamento em fins-de-semana, cuja aplicação está a fazer cessar
a medida de acompanhamento educativo, o que tem um impacto
disfuncional na aplicação da LTE.

A diferenciação de actuações é atribuída pelos operadores, ora a


deficiências interpretativas, ora a obscuridades e ambiguidades do texto
da lei. No entanto, mesmo para aqueles que defendem a necessidade de
uma clarificação legal, uma correcta interpretação é passível de ser feita
se se tiver em consideração os princípios subjacentes à Lei Tutelar
Educativa.

Reciprocamente, os magistrados atribuem, assim, àqueles que


defendem uma posição contrária, uma falta de maturidade na reflexão
destas questões, sendo certo que há quem assuma que o MP não
desempenha cabalmente as suas funções na articulação entre a
protecção e a lei tutelar e que muitos não têm uma visão integral da lei e
aplicam a LTE como se fosse um “código de processo penal dos
pequeninos”.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 667

34. Alguns magistrados judiciais defendem que, ao nível do Ministério


Público, a solução para as disparidades interpretativas poderia passar
pela definição hierárquica dos procedimentos a adoptar. Alguns
magistrados do Ministério Público, apesar de afirmarem realizar reuniões
entre os magistrados do MP do tribunal, por forma a discutir estas
questões e a definir orientações, rejeitam uma intervenção formal da
hierarquia.

Relativamente à magistratura judicial, a maior uniformidade de


interpretação poderia ser assegurada pela jurisprudência dos tribunais
superiores. No entanto, como resulta do discurso dos próprios
operadores, a tradição de recorrer de sentenças proferidas em primeira
instância no âmbito de processos tutelares educativos é praticamente
nula.

No que especificamente respeita às regras de conexão de


processos, os magistrados indicam, ainda, um problema de ordem
estrutural: a ausência de um registo informático nacional que permita a
consulta da situação processual do jovem em todos os tribunais do país.

35. Resulta, ainda, das opiniões veiculadas pelos magistrados um


discurso, já recorrente, sobre as causas das deficiências do sistema:
ausência de formação permanente; ausência de tempo suficiente para
assistir às sessões de formação permanente que existem; ausência de
relevância dada à participação em sessões de formação para efeito de
inspecção e de progressão na carreira; ausência de critérios que atendam
às especiais qualificações do magistrado na colocação em tribunais de
competência especializada e a falta de mais tribunais especializados.

A falta de formação é especialmente sentida pelos magistrados a


exercerem funções nos tribunais de competência genérica, chegando
alguns magistrados a defender a criação de tribunais de família e
menores que cobrissem todo o território nacional.
668 Conclusões e propostas

36. A questão da falta de formação adequada foi também levantada


relativamente aos advogados que intervêm no âmbito dos processos
tutelares educativos. Esta constatação foi feita, quer por magistrados
judiciais e do MP, quer pelos próprios advogados que reconheceram que
a Ordem dos Advogados não oferece formação nesta área nem privilegia
a nomeação de advogados com formação específica como defensores
oficiosos.

37. A maioria dos magistrados entrevistados é unânime em reconhecer


a bondade da opção legislativa em atribuir um papel mais activo ao
defensor do jovem. Todavia, as opiniões dividem-se no que diz respeito
ao grau e ao modo de actuação do advogado e à qualidade da mesma.

A presença do defensor só merece consenso na fase jurisdicional.


Uma posição defendida por alguns magistrados do MP, mas não
partilhada por todos, é a de que a presença do advogado nas audições
perante o Ministério Público é dispensável, constituindo um encargo
desnecessário para o Estado.

A opinião sobre a prestação em concreto do advogado no processo


levanta muitas reservas, sendo a sua actividade, ora apelidada de
passiva, ora de contraproducente. A passividade dos advogados
intervenientes nos processos tutelares educativos é, ainda, encarada
como causa de uma menor utilização das suspensões do processo.
Segundo magistrados entrevistados, o advogado demite-se do seu papel
e não fornece qualquer orientação para a apresentação de um plano de
conduta ou para a tomada de iniciativa para despoletar uma suspensão
do processo.

38. Os magistrados entrevistados entendem os mecanismos de diversão


como instrumentos fundamentais e defendem o alargamento da
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 669

possibilidade de a eles recorrer em casos de factos qualificados como


crimes com molduras penais abstractas mais altas.

Uma inovação da Lei Tutelar Educativa que, na visão dos


entrevistados, carece de regulamentação e de implementação é a
mediação. Os magistrados que afirmaram já ter solicitado a intervenção
dos serviços de mediação mostraram-se satisfeitos com os resultados
apresentados. No entanto, os serviços de mediação têm sido levados a
cabo, transitoriamente, e, ainda, embrionariamente, pelo Instituto de
Reinserção Social. Na opinião de alguns magistrados entrevistados, a
mediação não deveria ser levada a cabo por esta entidade, carecendo,
assim, de implementação o mecanismo previsto na Lei Tutelar Educativa.

39. Os Capítulos VII e VIII deste relatório dizem respeito à fase de


execução da Lei Tutelar Educativa. A execução das medidas tutelares
educativas, quer as não institucionais, quer as institucionais, levanta
vários problemas de que fomos dando conta ao longo dos capítulos. No
que respeita às medidas não institucionais, um dos problemas é, desde
logo, de natureza legal. A lei é clara apenas em relação à medida de
acompanhamento educativo, sublinhando que “compete aos serviços de
reinserção social supervisionar, orientar, acompanhar e apoiar o menor
durante a execução do projecto educativo pessoal” (artigo 16.º, n.º 4, da
LTE). Embora no que respeita à execução das restantes medidas não
institucionais a lei não indique expressamente uma identidade para
acompanhar esta execução, na prática, e tendo em conta as entrevistas
realizadas, essa tarefa é solicitada ao IRS, ainda que em articulação com
outras entidades, nomeadamente na realização de tarefas a favor da
comunidade, na imposição de obrigações e na frequência de programas
formativos.

40. A análise da execução das medidas tutelares não institucionais em


execução no IRS começou por ser feita com recurso a duas bases de
670 Conclusões e propostas

dados. Uma referente aos dados oficiais, a nível nacional, fornecidos pelo
IRS sobre a sua actividade operativa para os anos 2001, 2002 e 2003;
outra, resultante de dados, recolhidos pelo Observatório Permanente da
Justiça Portuguesa, de uma amostra de processos em execução nas
equipas de família e menores do IRS no Centro e em Lisboa e Vale do
Tejo.

No que respeita aos dados a nível nacional, o IRS executou, em


2001, 1 050 medidas de acompanhamento educativo (83%); 87 de
colocação em estabelecimento educativo (7%); 77 de colocação em
família idónea (6%); 21 de imposição de regras de conduta (2%); 16 de
colocação em regime de aprendizagem ou de trabalho (1%); e 10
solicitações para outras medidas (1 de reparação ao ofendido, 1 de
realização de prestações económicas, 3 de realização de tarefas a favor
da comunidade, 3 de imposição de obrigações e 2 de frequência de
programas formativos). Como é possível verificar, as solicitações
analisadas englobam, ainda, medidas tutelares, ao abrigo da OTM, e
medidas tutelares educativas.

Em 2002, de acordo com a mesma fonte, o IRS acompanhou a


execução de 884 medidas. A medida não institucional mais executada
pelo IRS, a pedido do tribunal, foi a de acompanhamento educativo, 81%
(726), seguida da realização de tarefas a favor da comunidade, 7% (64) e
da imposição de obrigações, 5% (42). Estes números, embora
provenientes de bases diferentes, vão ao encontro dos dados fornecidos
pelo Gabinete de Política Legislativa e Planeamento e analisados no
Capítulo V, que indicam a medida de acompanhamento educativo como a
medida tutelar educativa não institucional, com excepção da medida de
admoestação que tem uma aplicação imediata, mais aplicada. É, ainda,
possível constatar que, comparativamente a 2001, houve uma maior
diversidade das medidas executadas, tais como realização de tarefas a
favor da comunidade e imposição de obrigações.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 671

A tendência geral verificada em 2002, no que se refere às medidas


executadas, mantém-se em 2003. Das 637 medidas não institucionais
executadas pelo IRS, aquela que tem maior expressão continua a ser a
de acompanhamento educativo, 61% (391), seguida da de realização das
tarefas a favor da comunidade, 13% (81) e da de imposição de
obrigações, 12% (77). Apesar do acompanhamento educativo se manter
como a medida com maior peso no total das medidas tutelares não
institucionais executadas e em execução pelo IRS, o segundo lugar é
ocupado, já não pela realização de tarefas a favor da comunidade, que
ocupa o terceiro lugar juntamente com a frequência de programas
formativos, mas sim pela imposição de obrigações.

41. Considerando os dados recolhidos de uma amostra de processos


em execução nas equipas de família e menores do IRS no Centro e em
Lisboa e Vale do Tejo, começámos por fazer uma caracterização
sociológica dos jovens.

Em ambas as equipas, há uma clara predominância de jovens do


sexo masculino nos processos analisados: 81,8% (27) no Centro e 76,9%
(20) em Lisboa e Vale do Tejo, embora com um peso significativo de
jovens do sexo feminino. Quanto à idade do jovem à data dos factos
ilícitos praticados, quer na equipa de família e menores do Centro, quer
na de Lisboa e Vale do Tejo, a maioria dos jovens tinha 14 ou 15 anos de
idade, sendo que o peso relativo dos jovens com 12 anos de idade era
maior na equipa do Centro.

No que diz respeito à situação do jovem, verificamos que aquando


da aplicação da medida, a grande maioria dos jovens (78,1%, no Centro e
76%, em Lisboa e Vale do Tejo) se encontrava a viver com o pai e/ou com
a mãe. Na equipa do Centro, 18,8% estavam internados em Centro
Educativo e 3,1% viviam com outro familiar. Em Lisboa e Vale do Tejo,
20% viviam com outro familiar e apenas 4% se encontravam internados
em centros educativos.
672 Conclusões e propostas

Quanto à escolaridade, na equipa do Centro, 43,8% dos jovens


possuía o 3º ciclo do Ensino Básico e 31,3% o 2ª ciclo. Em Lisboa e Vale
do Tejo, 48% dos jovens acompanhados pela equipa do IRS possuía o 2º
ciclo do Ensino Básico e, 32%, o 1º ciclo.

Dos jovens da amostra recolhida na equipa do Centro, 77,4%


encontravam-se a estudar e apenas 16,1% estavam desocupados. Já na
equipa de Lisboa e Vale do Tejo, a percentagem de jovens desocupados
(48%) era em maior número que a de jovens que se encontravam a
estudar (40%). De referir que, em ambos os casos, muitos dos jovens que
antes da intervenção tutelar se encontravam a estudar, isto é,
matriculados num determinado grau de ensino, apresentavam um
percurso escolar marcado pelo insucesso e fraca assiduidade.

Com vista a traçar, ainda que de forma muito breve, um percurso


destes jovens, quisemos, também, saber se já tinham tido anteriormente
algum processo de promoção e protecção. Na equipa do Centro, 48,4%
dos jovens com medidas não institucionais já tinham, efectivamente, tido
pelo menos um processo de promoção e protecção; 51,6% não tinham
tido até ao momento qualquer processo de promoção e protecção. Já na
amostra analisada na equipa de Lisboa e Vale do Tejo, apenas 18,2% dos
jovens já tinham tido algum processo de promoção e protecção. Estes
dados podem indiciar uma clara falha das medidas de promoção e
protecção.

Merece destaque o facto de uma larga percentagem de jovens ter


outros processos no âmbito da LTE, o que pode indicar que existe uma
percentagem significativa de jovens “clientes” frequentes do sistema.

42. A análise dos relatórios sociais do IRS sobre a situação destes


jovens permitiu-nos verificar que há uma clara predominância de jovens
oriundos de famílias social e economicamente desestruturadas. São
várias as famílias em que apenas um cônjuge trabalha, casos de
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 673

toxicodependência, alcoolismo, negligência parental e violência


doméstica. Muitos destes problemas que desencadeiam potenciais
situações de delinquência juvenil, são frequentemente agravados por
características inerentes à zona de residência onde o jovem habita.

43. Analisámos na amostra o tipo e número de factos qualificados como


crime(s) cometido(s). Esta análise revelou-se complexa, uma vez que
cada jovem pode ter cometido mais do que um facto qualificado como
crime no processo pelo qual foi julgado. Analisámos, por isso, estes
dados sob duas perspectivas: distribuição da totalidade de factos
qualificados como crime cometidos e número de “crimes” cometidos pelo
mesmo jovem. Os cruzamentos entre as diversas variáveis,
contemplaram, igualmente, estas duas perspectivas.

Os factos qualificados como crime com maior expressão estatística


são, sem dúvida, os factos qualificados como crime contra o património.
No Centro, a maioria dos factos praticados pelos jovens que constituem a
nossa amostra foram qualificados como crime de furto (furto, 34% e furto
qualificado, 31%), seguidos por crimes de dano simples e qualificado
(12%) e por violação de domicílio/ introdução em lugar vedado ao público
(12%).

Contrariamente à amostra do Centro, onde não foi identificado


nenhum facto qualificado como crime de roubo, em Lisboa e Vale do Tejo,
o facto qualificado como crime de roubo ou violência depois da
subtracção é o mais praticado (69%) seguido, de longe, do furto
qualificado (8%). A circunstância de na equipa do Centro não termos,
contrariamente a Lisboa e Vale do Tejo, identificado nenhum processo
com facto qualificado como crime de roubo ou violência depois da
subtracção, pode denunciar, indo ao encontro das teorias analisadas no
Capítulo I sobre a proliferação da delinquência urbana, uma mudança do
tipo de actuação delinquente por parte dos jovens nas grandes cidades,
674 Conclusões e propostas

como Lisboa, que tendem a praticar factos qualificados como crime mais
graves.

A maioria dos jovens cometeu apenas um facto qualificado como


crime, quer nos processos analisados no Centro (56,3%), quer nos
processos analisados em Lisboa e Vale do Tejo (60,9%). Seguem-se, no
Centro, os jovens que cometeram 3 factos qualificados como crime (25%),
e, em Lisboa e Vale do Tejo, os jovens que cometeram 2 factos
qualificados como crime (13%). A percentagem de jovens que cometeu
mais do que três factos qualificados como crime é reduzida, o que não
surpreende, uma vez que estamos a analisar processos no âmbito de
medidas tutelares não institucionais.

44. No que se refere às medidas tutelares não institucionais,


encontrámos, nas amostras recolhidas, processos em execução de
medidas simples e de medidas combinadas. No que se refere às medidas
tutelares não institucionais aplicadas isoladamente, as mais significativas,
confirmando os valores gerais do IRS apresentados, são o
acompanhamento educativo e a imposição de obrigações.

Nos casos em que o IRS indicava uma proposta de medida tutelar a


ser aplicada, esta foi geralmente aceite pelo MP. No entanto, em alguns
casos, o MP acrescentava uma medida à proposta pelo IRS, por exemplo,
acompanhamento educativo com imposição de obrigações, ou, então,
considerava que o caso podia ser arquivado, dada a integração sócio-
familiar do jovem. Na grande maioria dos casos analisados, o juiz seguiu
a proposta do MP.

45. No que se refere aos “tempos da justiça”, verificámos que, em


ambas as equipas, apesar de ser considerável o número de processos
sem qualquer informação, na maioria dos casos, o tempo decorrido desde
os factos até à abertura do processo foi de cerca de 3 meses.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 675

O tempo decorrido entre o pedido de relatório social por parte do


Tribunal de Família e Menores e o seu envio por parte do IRS situou-se,
na maioria dos casos, entre 1 e 2 meses. Estes números denunciam
alguma morosidade no envio ao Tribunal do relatório social por parte do
IRS. Foram vários os casos em que verificámos uma troca de ofícios entre
o TFM e a equipa correspondente, quer do Centro, quer de Lisboa e Vale
do Tejo, em que o primeiro insistia no cumprimento do prazo de envio do
relatório e o segundo respondia que o atraso no envio dos relatórios se
devia ao excesso de trabalho a cargo da equipa.

A maior morosidade é sentida no início da execução das medidas


tutelares não institucionais, especialmente quando estas implicam a
frequência de um programa formativo ou curso de formação profissional.

46. Com o objectivo de conhecer as práticas e os bloqueios na


execução de medidas não institucionais, ouvimos vários operadores, do
sistema judiciário, IRS, Centro Protocolar de Formação para o Sector da
Justiça, Segurança Social e Comissão Nacional de Protecção de Crianças
e Jovens em Perigo.

Para vários operadores há a necessidade de regulamentação da


execução das medidas não institucionais, concretizando-se, assim, de
uma forma mais completa a possibilidade prevista no n.º 3, do artigo 3.º
da Lei n.º 166/99, que aprova a Lei Tutelar Educativa, onde se diz
expressamente que “a regulamentação da execução das medidas
tutelares educativas consta de decreto-lei”. Esta regulamentação deveria
definir o papel dos vários intervenientes na execução das medidas, em
especial do IRS, sem prejuízo de uma necessária flexibilidade por parte
do juiz na aplicação da medida, bem como do indispensável e vantajoso
envolvimento dos progenitores e da comunidade. Para eles, a falta de
regulamentação traduz-se em bloqueios específicos, tais como os que se
prendem com a duração das medidas.
676 Conclusões e propostas

Esta matéria está, no entanto, longe de ser uma matéria consensual.


Para outros operadores, deve-se atender sempre à especificidade do
caso concreto e uma maior regulamentação poderia obstar a essa
flexibilidade. De acordo com as suas opiniões, o problema não reside
tanto na não regulamentação, mas, sobretudo, na forma como a lei é
aplicada por parte de alguns magistrados.

47. A medida de acompanhamento educativo é tida como a medida não


institucional mais gravosa. Esta é uma medida que, nas entrevistas
realizadas, suscitou alguma controvérsia, nomeadamente no que se
refere à sua eficácia e aos recursos, materiais e humanos, que a sua
execução exige. Alguns defendem, mesmo, uma mudança na estrutura de
execução da medida, propondo um conjunto de actividades alternativas e
uma maior articulação com algumas entidades, nomeadamente com a
escola, mas também com a família. Vários entrevistados questionaram,
ainda, a formação dos técnicos, considerando que esta nem sempre é a
mais adequada; o facto de ser um processo demasiado burocrático; e
exigir um número considerável de recursos humanos e de tempo.

Contribui para este cepticismo o facto de alguns técnicos


considerarem que esta medida é, muitas vezes, aplicada, não pela
gravidade do facto qualificado como crime cometido ou porque seja a
mais adequada no quadro da LTE, pelas suas potencialidades e
especificidades, mas apenas porque o juiz pretende que o jovem
complete a sua escolaridade.

Alguns operadores referiram, ainda, que surgem, especialmente


nesta medida, dúvidas acerca do início da sua execução, que nem
sempre está explícito na decisão.

Foram, também, apontadas críticas no que se refere à revisão desta


medida. Uma vez que a medida de acompanhamento educativo é a
medida não institucional mais grave, a opção de revisão é,
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 677

maioritariamente, o internamento por um a quatro fins-de-semana, opção


que suscita várias críticas. A grande maioria dos nossos entrevistados
defende que este internamento não é eficaz quando substitui a medida
não institucional, pelo que alguns entrevistados referiram que esta
medida, mais do que uma sanção, surge para os jovens quase como um
prémio.

48. A sensibilidade e o conhecimento prático dos nossos entrevistados


aponta a medida de prestação de tarefas a favor da comunidade como
uma das medidas com maior sucesso na sua execução. Para tal,
enumeram um conjunto de factores, entre eles, o facto de ser uma
medida de curta duração, de envolver o jovem numa tarefa específica não
escolar, de existir um número diversificado de Entidades Beneficiárias de
Trabalho (EBT), a dedicação e empenho com que estas se envolvem no
acompanhamento da execução da medida e o facto desta medida ter
contornos de execução explícitos e bem definidos.

Apesar de apresentar indicadores de sucesso significativos, a


medida de prestação de tarefas a favor da comunidade não é muito
aplicada. Tal deve-se, segundo os operadores entrevistados, a um
conjunto de factores, designadamente à falta de sensibilização dos juízes
para com esta medida e ao facto de considerarem que ela não se adequa
aos factos qualificados como crime mais graves por ser uma medida com
um curto tempo de execução. Alguns operadores referiram, ainda, que a
medida de prestação de tarefas a favor da comunidade parece apenas
poder ser aplicada a jovens com determinadas condições sócio-
económicas.

49. A execução da medida de imposição de obrigações levanta,


igualmente, um conjunto de problemas, alguns comuns aos de outras
medidas não institucionais, caso das medidas de frequência de
programas formativos e de acompanhamento educativo, nomeadamente
678 Conclusões e propostas

no que se refere à obrigação de frequentar um curso de formação


profissional.

Neste sentido, é considerado que alguns programas formativos e


cursos de formação profissional dependem, em grande medida, da
disponibilização de financiamento; da existência de vagas ou, pelo
contrário, de um número mínimo de alunos para terem início; e do grau de
escolaridade do jovem. Estes bloqueios contribuem para que o início da
execução da medida possa arrastar-se durante algum tempo. A
conjunção destas dificuldades, bem como a existência de uma tendência
por parte dos magistrados em aplicar medidas que obriguem o jovem a
completar o seu percurso escolar, leva a que, na sua grande maioria, a
medida de imposição de obrigações e a medida de acompanhamento
educativo impliquem, muitas vezes, a frequência escolar. No entanto,
considera-se que esta nem sempre é a via mais adequada para os jovens
que, já votados ao insucesso e ao abandono escolar, se sentem
afastados da escola. Defende-se, assim, que a medida, seja ela qual for,
deve ter sempre em conta o perfil do jovem, caso contrário dificilmente
será executada com sucesso, e uma articulação mais eficaz entre o
Instituto de Emprego e Formação Profissional e o IRS.

50. No que se refere à imposição de regras de conduta, e devido à


dificuldade de acompanhamento da sua execução, esta medida tende
apenas a ser proposta quando haja razões para crer que o jovem detém
recursos suficientes para, por si só, poder acatar as obrigações que sobre
ele venham a recair. A participação do IRS no acompanhamento da
execução desta medida é reduzida, uma vez que é difícil para a equipa
controlar certas condutas do jovem como, por exemplo, fumar ou ingerir
bebidas alcoólicas. A necessidade de envolver a família na aplicação
desta medida, já que é sobretudo esta que terá de controlar o dia-a-dia do
jovem, leva a que, muitas vezes, o juiz ao aplicar a medida procure,
desde logo, obter a adesão da família do jovem.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 679

51. A grande maioria dos nossos entrevistados considerou que a medida


de frequência de programas formativos tem inúmeras potencialidades.
Não obstante, o número diminuto de programas disponíveis e a sua
pouca diversidade podem colocar problemas à execução da medida já
que o sucesso desta depende da sua adequação ao perfil do jovem, às
suas necessidades específicas, ao facto qualificado como crime praticado
e ao seu contexto sócio-familiar.

52. A medida de reparação ao ofendido, geralmente executada pelo


tribunal, parece dividir os nossos entrevistados quanto à sua eficácia. Se
alguns consideram que os seus propósitos pedagógicos podem ser
questionados, outros entendem que, sempre que bem aplicada, esta pode
ter sucesso nos fins a que se propõe. Há duas questões essenciais a
colocar em relação a esta medida e que estão directamente relacionadas
com duas das três modalidades que a medida pode assumir:
apresentação de desculpas ao ofendido e compensação económica ao
ofendido, no todo ou em parte, pelo dano patrimonial. No que diz respeito
à primeira, e, embora a lei não o exija, não deve ser proposta na
modalidade de apresentação de desculpas ao ofendido se este as não
quiser aceitar, até porque pode ter um efeito perverso para o próprio
jovem. No que diz respeito à segunda modalidade de reparação ao
ofendido, esta só pode ser aplicada se, de facto, o jovem tiver condições
económicas para reparar, monetariamente, o dano causado. Com o
objectivo de não se perder o potencial pedagógico desta modalidade,
alguns operadores defendem o recurso à mediação no âmbito da
aplicação desta medida.

53. A medida tutelar de admoestação, apesar de ser aplicada com


frequência, foi considerada por vários entrevistados como sendo a menos
eficaz do conjunto de medidas tutelares não institucionais, pois
consideram que não tem efeitos pedagógicos para o jovem, já que não
680 Conclusões e propostas

exige, por parte daquele, qualquer esforço no sentido da reparação ou


reconhecimento pelos actos cometidos.

54. Durante a execução de uma medida não institucional, são várias as


entidades com as quais o IRS tem de se articular, desde logo a família,
mas também a escola, a entidade beneficiária de trabalho, a Segurança
Social, a entidade formadora, os serviços médicos, os tribunais, etc,
surgindo, por vezes, alguns problemas. Há um consenso generalizado
quanto à necessidade, em geral, de melhorar os canais de articulação.

No que se refere à família, considera-se que é difícil motivar a


família e fazê-la entender a necessidade de participar na execução da
medida, sobretudo no que se refere às medidas não institucionais. Alguns
operadores defendem, mesmo, que deveria existir uma forma de
co-responsabilização dos pais, monetária ou legal.

A articulação entre IRS e o tribunal começa, desde logo, com o


pedido de relatório social, no qual o IRS propõe uma medida tutelar para
o jovem e mantém-se durante a execução da medida. As opiniões
relativas à fluidez e eficácia dessa comunicação não foram unânimes,
sugerindo-se que a personalidade, a formação e o interesse dos
interlocutores, designadamente do juiz, são preponderantes.

Para a maioria dos operadores, também no âmbito da prevenção da


delinquência, é necessária uma maior articulação, não só com a
segurança social, mas também com outras instituições, designadamente
com a escola.

No que se refere aos serviços médicos, esta articulação é importante


não só durante a execução da medida, como após o seu terminus. No
entanto, muitas vezes essa articulação tem de ser feita através de
contactos informais, dada a inexistência de protocolos, e nem sempre
esses serviços estão disponíveis na zona de residência do jovem.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 681

A necessidade de acompanhar o jovem após o cumprimento da


medida tutelar faz-se sentir, também, ao nível da protecção, uma vez
cessada a execução da medida tutelar. Deste modo, os operadores
reforçaram a necessidade de uma maior articulação entre as equipas do
IRS, as Comissões de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo e a
Segurança Social.

55. As medidas tutelares educativas de internamento, a medida cautelar


de guarda em Centro Educativo, o internamento para realização de
perícia sobre a personalidade quando incumba aos serviços de reinserção
social, o cumprimento da detenção e o internamento em fins-de-semana
são executadas em centros educativos. Os centros educativos são
estabelecimentos integrados na estrutura orgânica do Instituto de
Reinserção Social, sendo dependentes orgânica e hierarquicamente
desses serviços.

56. As medidas de internamento, designadas medidas institucionais, são


executadas nos seguintes regimes: regime de execução aberto, regime
de execução semiaberto ou em regime de execução fechado.

No regime aberto, os jovens residem e são educados no Centro


Educativo, podendo, preferencialmente, frequentar no exterior actividades
escolares, educativas ou de formação, laborais, desportivas e de tempos
livres, sendo, de forma gradual, autorizados a saídas sem
acompanhamento, para frequência de actividades no exterior, bem como
para passar férias ou fins-de-semana com os pais, representante legal,
pessoa que tenha a sua guarda de facto ou outras pessoas idóneas,
podendo ser impostas obrigações a cumprir durante o período de saída.

O regime semiaberto caracteriza-se por os jovens residirem, serem


educados e frequentarem actividades educativas e de tempos livres nos
centros educativos, podendo ser autorizados a frequentar no exterior
682 Conclusões e propostas

actividades escolares, educativas ou de formação, laborais ou


desportivas, na medida do que se revele necessário para a execução
inicial ou faseada do seu projecto educativo pessoal.

No regime fechado, aquele que mais limita a liberdade, os jovens


residem, são educados e frequentam actividades formativas e de tempos
livres exclusivamente dentro do estabelecimento, sendo as saídas
estritamente limitadas ao cumprimento de obrigações judiciais, satisfação
de necessidades de saúde ou outros motivos igualmente ponderosos e
excepcionais, sendo os educandos sempre acompanhados por
funcionários do Centro e as saídas limitadas ao tempo mínimo
indispensável e precedidas de autorização escrita do director do Centro.

A intervenção nos centros educativos desenvolve-se, em qualquer


dos três regimes de execução, por fases progressivas, de acordo com o
comportamento e com os objectivos definidos no Projecto Educativo
Pessoal, um instrumento técnico obrigatório no planeamento da execução
da medida de internamento em relação a cada jovem e que deve
determinar quais as metas a alcançar, a escolha das estratégias e uma
previsão dos meios e prazos da intervenção educativa.

57. Ao analisarmos os dados estatísticos de 2001, 2002 e 2003


relativamente às medidas tutelares de internamento fornecidos pelo IRS,
constatámos que o número de jovens internados aumentou gradualmente
(de 219, em 2001, para 226, em 2002, e para 294, em 2003). São, na sua
grande maioria, jovens do sexo masculino, com idades predominantes
entre os 16 e os 17 anos e, maioritariamente, frequentavam o 2.º ciclo. Os
factos qualificados como crime mais praticados por estes jovens foram
contra o património. A percentagem de jovens a cumprirem medida
cautelar de guarda foi de 11,9%, em 2001, de 19,5%, em 2002 e de 14%,
em 2003.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 683

58. Tal como fizemos para as medidas não institucionais, procedemos à


realização de dois estudos de caso, nos Centros Educativos da Bela Vista
(em Lisboa) e dos Olivais (em Coimbra). Nestes centros recolhemos
vários dados através da análise de uma amostra aleatória de 33
processos de jovens internados e efectuámos entrevistas a vários
técnicos do IRS.

No Centro Educativo dos Olivais os educandos tinham,


maioritariamente, 15 anos aquando da prática dos factos qualificados
como crime. No Centro Educativo da Bela Vista, a idade dos jovens
internados cujos processos analisámos, à data da prática dos factos
qualificados como crime, distribuía-se entre os 12 e os 15 anos de forma
mais uniforme, embora a idade de 15 anos tenha sido aquela em que
maior volume de jovens praticara factos ilícitos.

Nem sempre é cumprida (ou é possível cumprir) a previsão legal de


colocação do jovem no Centro Educativo mais próximo.

Antes do internamento, a maioria dos jovens vivia com os pais – com


ambos ou com um dos pais. Resulta, contudo, de muitos dos relatórios
sociais consultados que estes jovens eram oriundos de famílias
desestruturadas, vivendo em habitações degradadas, exíguas e habitadas
por agregados familiares numerosos.

Resulta da nossa amostra que, antes da intervenção tutelar


educativa, no caso dos jovens internados no Centro Educativo dos
Olivais, cerca de 64%, encontravam-se desocupados e apenas 36,4%
estavam a estudar. Esta situação inverte-se, se analisarmos os dados do
Centro Educativo da Bela Vista. Aí, a percentagem de jovens a estudar
era de 63,2% e a dos que não tinham qualquer ocupação era de 36,8%. A
grande maioria tinha um baixo grau de escolaridade. Dos relatórios
sociais, das perícias sobre a personalidade e dos exames de avaliação
psicológica que constavam nos processos consultados, resulta que,
vários jovens, apresentavam debilidade mental e alguns distúrbios de foro
684 Conclusões e propostas

psicológico. É, ainda, referido, nalguns casos, que os pais destes jovens


também teriam algum grau de debilidade mental, o que explicará a falta
de capacidade para orientarem os filhos. Estas situações, aliadas a outras
de desestruturação familiar também descritas nos relatórios, poderão, por
certo, constituir causas próximas do precoce abandono escolar por parte
daqueles jovens.

Uma percentagem muito significativa, sobretudo no Centro


Educativo da Bela Vista, dos jovens internados tinha tido processos de
promoção e protecção e tinham, no momento, outros processos tutelares
educativos. Estes últimos representavam, no Centro Educativo dos
Olivais, 76,9% e, no Centro Educativo da Bela Vista, 38,9%.

59. De acordo com uma avaliação levada a cabo pelo IRS, foram
levantados alguns problemas no que respeita à execução das medidas
institucionais.

Quanto ao internamento para realização de perícia sobre a


personalidade, o IRS considera que a LTE deveria definir a quem
compete determinar o regime no qual deverá ser executado o
internamento para perícia sobre a personalidade. Na perspectiva do IRS,
a LTE devia, também, expressamente referir que não é possível o
internamento, para esse fim, em regime fechado, para jovens com menos
de 14 anos.

No que diz respeito ao internamento para execução de medida


cautelar de guarda, chama-se a atenção para o facto de grande parte
destas medidas ultrapassarem os três meses de duração, havendo muitas
com duração de seis meses. Por outro lado, como a LTE não refere, de
forma expressa, que o tempo decorrido em medida cautelar de guarda
deve ser descontado no tempo de duração da medida tutelar
posteriormente aplicada, muitos tribunais não procedem ao desconto
desse período, não havendo, pois, uniformidade de critérios.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 685

Quanto à aplicação de internamentos em fins-de-semana, na


sequência de revisão da medida não institucional de acompanhamento
educativo, é de realçar o facto de o tribunal não determinar a continuidade
da medida antes aplicada – acompanhamento educativo – e de não estar
prevista a revisão no caso de não cumprimento do internamento em fins-
de-semana.

Sobre a medida tutelar de internamento, é referido, também, o facto


de alguns tribunais não fixarem a duração concreta da medida, indicando
apenas um limite mínimo e um máximo.

60. Resulta da nossa observação que os 33 jovens da nossa amostra


praticaram 111 factos qualificados pela lei penal como crime, o que
significa que a grande maioria dos jovens internados nos centros
educativos não praticou apenas um facto qualificado como crime e, em
muitos casos, terá sido essa circunstância a desencadear a aplicação das
medidas tutelares educativas privativas da liberdade.

61. Através de entrevistas e da realização de um painel pretendemos


ouvir as opiniões dos actores sobre a aplicação das medidas tutelares
educativas de internamento em Centro Educativo. Há um largo consenso
no que se refere ao melhor relacionamento, permitido pela nova Lei
Tutelar Educativa, entre a administração da justiça juvenil e as crianças e
jovens com idades entre os 12 e os 16 anos que praticaram factos
qualificados como crimes e, ainda, uma mais adequada resposta e
respeito pelos direitos desses jovens.

No entanto, entre os operadores “do lado da justiça” também é


consensual que o sistema de promoção e protecção não está a “conter” e
a evitar que os jovens paradelinquentes contactem com a justiça tutelar
educativa, admitindo alguns magistrados que estão a promover e a aplicar
686 Conclusões e propostas

medidas de internamento para satisfazer necessidades sociais, em


perversão do espírito e texto da lei.

62. Quanto à localização dos centros educativos, considera-se que a


actual não será a melhor, mas foi a possível, em 2001. Como alguns
operadores referiram, há mais centros educativos onde há menos
procura: “na zona Centro é onde há menor procura e onde há mais
colégios: cinco. No Algarve, Açores e Madeira não têm respostas
institucionais”. Assim, no cumprimento da medida não é respeitado o
princípio da proximidade do Centro Educativo relativamente à residência
do educando, pois “a maioria dos educandos que estão nesses centros
educativos não tem residência nessa área. A distribuição geográfica dos
Centros Educativos impede o IRS de respeitar uma imposição da LTE: «a
maior proximidade do centro relativamente à sua residência»”.

63. O regime aberto e o regime fechado foram os regimes de execução


da medida tutelar de internamento em Centro Educativo mais
questionados por parte dos operadores que ouvimos, mas a medida de
internamento, em geral, merece credibilidade. Muitos operadores
questionam a existência do regime aberto de execução. Consideram que
neste âmbito de intervenção do Estado deve sempre haver, ainda que
numa primeira fase, mais contenção quando o jovem é institucionalizado.
O regime fechado foi o regime que mais controvérsia suscitou e é
entendido, por alguns actores, como exagerado e como um entrave à
socialização dos jovens: “do que tenho ouvido do regime fechado, eu
acho que é absolutamente exagerado. (...) Acho que é um modelo de
prisão, mais grave ainda do que a prisão”.

64. O internamento em fins-de-semana é aquele que reúne menos


opiniões favoráveis, quer devido à sua ineficácia, quer à dificuldade de
integração dos jovens nessa situação nos centros educativos, quer, ainda,
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 687

à falta de clareza da lei quanto à continuação ou não da medida tutelar de


acompanhamento educativo cuja execução falhou e que deu lugar à
aplicação de internamento em fins-de-semana. Outro entrevistado alerta
para a possibilidade do seu efeito criminógeno: “internamento em fins-de-
semana padece do efeito criminógeno de medidas de internamento de
curta duração”. Em geral, os operadores entrevistados consideram que a
medida só fará sentido se o acompanhamento educativo continuar e se
forem criados meios, nos centros educativos, para receber e enquadrar
estes jovens.

65. A análise do discurso dos operadores referida também nos permite


constatar que a mesma lei origina diversas práticas judiciárias, ao nível da
aplicação da medida tutelar de internamento, designadamente quanto à
contagem do tempo passado em Centro Educativo ao abrigo de medidas
cautelares de guarda. Existem magistrados que as “descontam” e outros
que não consideram o período de duração da medida cautelar, aquando
da liquidação da medida tutelar de internamento aplicada. O mesmo se
passa com as situações em que os jovens são sujeitos a várias medidas,
de aplicação em diversos processos, tendo, nuns casos de as cumprir
sucessivamente, noutros casos não. Uns entendem que para clarificar
estas situações, é necessário alterar a lei. Já outros defendem que
bastaria uma interpretação coerente e constitucional da mesma. O certo é
que os jovens não compreendem este tratamento diferenciado a que são
sujeitos pelos diversos tribunais.

66. Na execução das medidas de internamento, um dos problemas dos


centros educativos salientado por vários técnicos, prende-se com a
escassez de mecanismos de articulação e de protocolos estabelecidos
com entidades da comunidade, quer públicas, quer privadas.

Quanto à área escolar, chegaram-nos muitas críticas, desde


dificuldades com o Ministério da Educação na colocação de professores
688 Conclusões e propostas

nos centros educativos, ao escasso número de professores colocados por


destacamento, à não continuidade dos professores na instituição, até à
falta de formação específica dos professores para ensinarem os alunos
que encontram nos centros educativos.

A formação pré-profissional e o despiste vocacional dos jovens


internados são duas das vertentes do Projecto de Intervenção Educativa
que suscitam alguns problemas na sua implementação. Apesar de haver
sugestões para a implementação de outros modelos de formação pré-
profissional, até com melhores perspectivas de inserção no mundo
laboral, as contenções orçamentais têm impedido a sua concretização.
Quanto ao apoio futuro do Centro Protocolar da Justiça e do Instituto do
Emprego e Formação Profissional, paira a incerteza.

Quanto à área da saúde, segundo o que nos foi dito, há muitas


carências, quer nos próprios centros educativos, quer na falta de
protocolos estabelecidos com hospitais, para facilitar o acesso dos jovens
institucionalizados e, até, no fornecimento de medicamentos necessários.
É, ainda, apontada a inexistência de qualquer resposta específica para a
área da saúde mental, por parte do Ministério da Saúde, apesar de ser
desejável que todos os centros educativos estivessem, pelo menos,
apetrechados com apoio psicológico.

De acordo com os técnicos, seria proveitosa a existência de


protocolos com universidades e com centros de investigação,
designadamente na área da psicologia clínica e do desenvolvimento, para
aprofundar o estudo da delinquência juvenil e para pôr em marcha
estratégias de abordagem dos casos que chegam aos centros educativos.

Uma relação que deve ser estreita, de acordo com os entrevistados,


é a articulação entre o Centro Educativo e as equipas do IRS da área de
residência dos jovens, sendo essencial “trabalhar” as famílias durante o
tempo da institucionalização do jovem, assim como a sua
responsabilização.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 689

A articulação que se estabelece entre os centros educativos e os


magistrados não é, na perspectiva dos nossos entrevistados, a mais
próxima e não é uniforme, registando-se casos de maior afastamento e de
maior proximidade. Para alguns, não só seria benéfica uma maior
articulação, como também a presença do magistrado no centro educativo.

No que diz respeito ao acompanhamento por advogado, a opinião


generalizada é que os advogados vão muito poucas vezes aos centros
educativos; que os advogados oficiosos não conhecem os educandos; e
que, por vezes, desempenham o papel do Ministério Público. Segundo os
entrevistados, os advogados poderiam desempenhar um papel muito
positivo nos centros educativos, estabelecendo articulações com a família
e com os técnicos. À Ordem dos Advogados sugere-se a promoção de
formação na área do direito das crianças e jovens.

67. Um outro problema identificado pelos nossos entrevistados é a


preparação da saída dos jovens do Centro Educativo. Na perspectiva dos
magistrados e dos técnicos, é desejável avançar para a flexibilidade da
medida e para um período de acompanhamento obrigatório aquando da
saída do Centro Educativo, impondo que o período final da medida de
internamento fosse seguido, em todos os casos, de uma fase de
adaptação ao meio exterior, através da medida de acompanhamento
educativo, de forma a rentabilizar as competências adquiridas durante o
internamento. Há quem defenda a criação de lares de transição, entre a
saída do Centro Educativo e o regresso ao meio de origem, para facilitar o
regresso à sociedade.
690 Conclusões e propostas

Propostas de Reforma

Em resultado da análise efectuada e da literatura consultada parecem-nos


adequadas as seguintes propostas de reforma, com o objectivo de melhorar o
desempenho da Lei Tutelar Educativa (LTE) e, em geral, do “sistema tutelar
educativo” em Portugal.

1. A montante da aplicação da LTE

a. As características da “nova criminalidade juvenil” supra referidas


(urbana, nalguns casos mais violenta, com prática de vários factos
qualificados como crime) e o cumprimento das recomendações
internacionais, designadamente do Conselho da Europa e da União
Europeia, tornam urgente a definição de uma política de prevenção da
criminalidade juvenil que incida na inserção social dos jovens de famílias
socialmente desfavorecidas que vivem na periferia das grandes e
médias cidades, que abandonam precocemente o sistema escolar e que
se encontram especialmente vulneráveis ao início de uma carreira de
prática de factos qualificados como crime. Apesar de algumas
experiências positivas como a do programa “Escolhas”, actualmente não
existem programas específicos de prevenção da criminalidade juvenil,
que ultrapassem a experiência local. É, por isso, fundamental criar mais
programas e alargar a sua rede, quer a uma maior extensão do território
nacional, quer incluindo mais parcerias, em especial, com as escolas.

b. As crianças e jovens que entram no “sistema tutelar educativo” estão ou


estiveram, na sua grande maioria, sujeitas a factores de risco que
justificariam a intervenção mais cedo do sistema de protecção e
promoção dos direitos das crianças ou uma intervenção mais eficaz.
Assim, é urgente:

i. uma avaliação da aplicação da Lei de Promoção e Protecção;


Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 691

ii. um reforço da capacidade de intervenção do sistema de acção social


(Segurança Social, autarquias e instituições particulares de
solidariedade social), das Comissões de Protecção de Crianças e
Jovens (por exemplo, definição de meios e recursos e definição de
prioridades na intervenção) e dos tribunais;

iii. a criação de canais formais que permitam uma melhor articulação


entre as várias instituições que actuam nesta área;

iv. a criação, pelo sistema de segurança social, de respostas eficazes


de acompanhamento e, quando necessário, de acolhimento, para
jovens que ainda não entraram no “sistema tutelar educativo”, mas
que se dedicam já a comportamentos desviantes ou mesmo
paradelinquentes. Ora, tais respostas são praticamente inexistentes,
pelo que “até parece que estamos à espera que o jovem seja
apanhado pela Polícia”.

c. Com vista a “assegurar a criação de condições jurídicas, técnicas,


humanas e físicas” da integral aplicação da Lei de Protecção de
Crianças e Jovens em Perigo e da Lei Tutelar Educativa foi aprovado o
Programa de Acção para a entrada em vigor da Reforma do Direito dos
Menores (R.C.M n.º 08/2000, de 27 de Julho de 2000). É consensual
que o referido Programa foi, ao mesmo tempo, positivo e tímido, dado
que algumas medidas aí previstas, fundamentais para o bom
funcionamento da Reforma, não foram executadas. Assim, é
aconselhável que, com base nas conclusões e propostas deste estudo e
demais reflexão, seja concebido e executado um Programa de medidas
para melhorar a aplicação do direito das crianças e jovens (como por
exemplo, alterações jurídicas, medidas financeiras, recursos humanos e
novas soluções).

2. Alteração da organização judiciária, da formação e da Lei Tutelar Educativa


e da regulamentação
692 Conclusões e propostas

a. A extensão da cobertura a todo o país de tribunais especializados


(Tribunais de Família e Menores).

b. A exigência, para além dos demais requisitos curriculares, de formação


prévia em Direito da Família e Menores e em noções de psicologia e
ciências sociais para se poder ascender às funções de juiz ou de
magistrado do Ministério Público junto de um Tribunal de Família e
Menores.

c. A criação de um programa de formação, nesta área, para advogados.

d. A criação de assessorias técnicas que funcionem eficazmente junto dos


tribunais de família e menores.

e. A exigência da multidisciplinaridade no funcionamento das equipas do


IRS de modo a que essa multidisciplinaridade se reflicta nos relatórios
sociais.

f. No seguimento do direito internacional e do exemplo da Ley Orgánica


Reguladora de la Responsabilidad Penal de los Menores, em Espanha,
a LTE deveria abranger todos os factos qualificados pela lei penal como
crimes praticados por jovens até aos 18 anos, passando para a
maioridade o limiar da imputabilidade penal. Com esta reforma
poderíamos tornar mais eficaz a acção da LTE e evitar que um jovem
aos 16 anos seja “engolido” pelo sistema prisional em que é colocado,
em muitos casos, na mesma situação e em contacto com os adultos
reclusos.

g. A criação de um registo informático nacional de processos tutelares


educativos, que permita, de modo eficaz, a consulta da situação
processual do jovem em todos os tribunais do país, de modo a permitir a
aplicação de uma medida tutelar adequada.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 693

h. Atendendo às práticas muito diferenciadas nos diversos tribunais, há


que proceder a alterações pontuais na Lei Tutelar Educativa, de modo a
clarificar os regimes jurídicos:

i. da conexão, separação e apensação de processos;

ii. da relevância a dar à desistência de queixa pela vítima/ofendido;

iii. da relevância a dar na aplicação da medida tutelar educativa


(desconto ou não) do tempo passado pelo jovem em medida cautelar
de guarda;

iv. da execução sucessiva ou cumulativa de mais de uma medida


aplicada ao mesmo jovem em processos diferentes;

v. do internamento em fins-de-semana, cuja aplicação está a fazer


cessar a medida de acompanhamento educativo;

vi. da competência para decidir o internamento para perícia e da idade


mínima para esse internamento (14 anos).

i. A concepção prevalecente na lei, do menor ser um actor social (sujeito),


deve levar à substituição na LTE do conceito de menor pelo de jovem
(crianças com mais de 12 anos).

j. A actual LTE é considerada restritiva na combinação/cumulação de


medidas. Assim, há que ponderar a viabilidade de o juiz passar a ter
legalmente a possibilidade de maior flexibilidade na aplicação de mais
medidas combinadas/ cumuladas entre si.

k. A regulamentação das medidas não institucionais, definindo o papel de


cada operador, designadamente do IRS na execução de cada uma
dessas medidas.

l. O alargamento da possibilidade de se recorrer a “mecanismos de


diversão” para jovens que tenham praticado factos qualificados como
694 Conclusões e propostas

crimes com molduras penais abstractas mais graves daquelas que


actualmente se encontram previstas na lei.

m. Atendendo a que há satisfação com as experiências de mediação já


realizadas, e considerando todas as recomendações nesse sentido, urge
que seja produzida a legislação regulamentar necessária e
desenvolvidos tais serviços, que têm sido de modo transitório, da
responsabilidade do IRS.

n. A consagração na LTE da presença de advogados, com formação, nos


Centros Educativos e a obrigatoriedade de magistrados do Tribunal de
Família e Menores integrarem os Conselhos Pedagógicos dos Centros
Educativos da respectiva área.

o. A alteração do regime jurídico das medidas tutelares educativas:

i. de modo a prever a realização obrigatória do “cúmulo jurídico” de


medidas tutelares e evitar a desestabilização da aplicação sucessiva
de medidas;

ii. de modo a flexibilizar a sua aplicação (por exemplo, a possibilidade


de passar da medida de internamento à medida de acompanhamento
educativo e, se esta não resultasse, voltar ao internamento);

iii. de modo a proibir a possibilidade de aplicação da prisão preventiva


quando o jovem está a cumprir uma medida tutelar educativa
institucional.

3. Criação e uniformização de boas práticas (benchmarking) de aplicação de


medidas tutelares educativas

a. É actualmente consensual que não basta a alteração da lei para que se


obtenha uma sua melhor aplicação, é também necessário criar boas
práticas para a sua aplicação. Assim, propõe-se:
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 695

i. a realização nos tribunais de reuniões trimestrais de avaliação do


desempenho entre magistrados judiciais, magistrados do Ministério
Público e técnicos do IRS, sendo registados em acta os diagnósticos
e as práticas consensualizadas;

ii. a promoção, pela Ordem dos Advogados, de uma intervenção mais


activa dos advogados no processo tutelar educativo e nos centros
educativos, de modo a eliminar o seu déficit de actuação;

iii. a criação de uma cultura judiciária por acção dos juízes, advogados,
magistrados do Ministério Público e técnicos, designadamente:

(1) de não aplicar medidas (cumuladas ou não) não previstas na lei


ou de duração indeterminada;

(2) o recurso mais frequente à instauração de processos de


promoção e protecção e processos tutelares cíveis, à aplicação
de medida de internamento em regime semiaberto e aberto, em
vez de regime fechado, e, ainda, aos mecanismos de mediação;

(3) a definição de critérios que justifiquem a solicitação de relatórios


sociais e periciais ao IRS (por exemplo, nas referidas reuniões
trimestrais);

(4) de não aplicação de medidas tutelares educativas como se


fossem em substituição das medidas de protecção;

(5) de os magistrados efectuarem visitas regulares aos centros


educativos.

iv. a publicação (por exemplo, na internet, de revistas) das decisões dos


tribunais de família e menores e dos tribunais de recurso na medida
em que possam ser conhecidas.

4. A aplicação das medidas: a superação das dificuldades sempre na busca


da utopia educativa
696 Conclusões e propostas

a. Os Tribunais e o IRS devem melhorar os mecanismos de articulação, de


modo a que possam remeter, de modo mais célere e eficaz,
reciprocamente, todas as informações necessárias ao andamento do
processo e à aplicação das medidas.

b. As medidas não institucionais, pela sua diversidade, pela sua


plasticidade e plúrimas possibilidades para a definição do seu conteúdo,
necessitam de um grande investimento e desenvolvimento,
designadamente, a título de exemplo:

i. a criação de protocolos com o Ministério da Educação, com o


Instituto de Emprego e Formação Profissional e outras entidades de
ensino e de formação, de modo a que se crie uma “bolsa” de
soluções que permita conciliar a idade/nível de
escolaridade/necessidades de formação do jovem e época do ano
em que o Tribunal decrete a medida;

ii. contratualização das medidas entre o jovem, a família e o Tribunal;

iii. com a experiência já adquirida deve ponderar-se a possibilidade de


criação de uma “bolsa” de programas formativos específicos
adequados (atendendo, por exemplo, à idade e situação escolar) aos
jovens sujeitos a esta medida, não podendo esperar-se que a oferta
generalista desses programas seja a solução adequada para as
situações em que se encontram estes jovens (por exemplo,
adaptação dos PIEFs – Programas Integrados de Educação e
Formação dos PEETI);

iv. a experimentação e avaliação do novo modelo de acompanhamento


educativo que o IRS tem estado a desenvolver.

c. A medida de internamento para ser eficaz implica:

i. a alteração da política do Ministério de Educação relativamente à


colocação de professores que aí vão desempenhar funções como em
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 697

outra escola qualquer, passando a colocação a ser efectuada por


destacamento no mínimo de dois anos, devendo os professores ser
recrutados entre aqueles que tenham formação e apetência para
trabalhar com jovens difíceis;

ii. a alteração da política do Ministério da Saúde, no sentido de apoio


aos Centros Educativos através de protocolos, designadamente nas
especialidades médicas e, em especial, na área da saúde mental, em
que as respostas são escassas e insuficientes para o número de
jovens que precisa desse apoio médico;

iii. na área da formação profissional, que o IRS, o Instituto de Emprego


e de Formação Profissional e o Centro Protocolar de Formação
Profissional para o Sector da Justiça criem cursos de formação
adequados a estes jovens, que não sejam descontinuados com o fim
da medida tutelar e sejam necessariamente continuados após a
cessação da medida tutelar;

iv. que a parte final da medida de internamento seja cumprida em


regime aberto - com a consequente necessidade de alterar a lei para
o efeito – ou em regime de acompanhamento educativo através do
procedimento “legítimo e legal” da revisão da medida;

v. um procedimento disciplinar menos burocrático e, no respeito dos


direitos, mais imediato;

vi. a não exclusão de “jovens estrangeiros” não legalizados na inscrição


de cursos de formação profissional, com a consequente alteração
legal, de modo a que tal frequência seja permitida;

vii. a dotação nos Centros Educativos de recursos humanos, materiais e


financeiros adequados.

d. A Segurança Social, enquanto serviço social por natureza (apoio às


famílias vulneráveis), e de apoio aos tribunais nas situações de
698 Conclusões e propostas

desprotecção de crianças e jovens em risco, e o IRS devem celebrar um


protocolo de cooperação de modo a que não continuem na situação de
incomunicabilidade formal e haja efectiva e eficaz colaboração na
relação com as famílias dos jovens, que se encontram a cumprir a
medida.

e. O maior desafio aos jovens é o pós-internamento, dado que saem do


Centro Educativo para a comunidade que não está preparada para os
receber. Era preferível que os internamentos fossem mais curtos e que
houvesse acompanhamento mais alargado no exterior.

f. Por último, o IRS, em colaboração com as universidades e centros de


investigação, devem criar um sistema de follow-up, que seguisse
durante algum tempo (mais ou menos dois anos) os jovens que já
cumpriram a medida, de modo a averiguar o sucesso da educação para
o direito e se se conseguiu evitar que entrassem numa carreira criminal.

De todo o exposto, estamos certos que a ponderação e reflexão sobre as


conclusões deste estudo, bem como a adopção de todas ou algumas das
nossas propostas, encurta de modo significativo o caminho, sempre longínquo,
para a utopia da educação para o direito.
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Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa

Uma avaliação de dois anos de aplicação da


Lei Tutelar Educativa

Boaventura de Sousa Santos


Director Científico

Conceição Gomes (coord.)


Catarina Trincão
Jorge Almeida
Madalena Duarte
Paula Fernando

Equipa de Investigação

Fátima Sousa
Rita Silva
Susana Baptista
Taciana Peão Lopes

Anexo

OBSERVATÓRIO PERMANENTE DA JUSTIÇA PORTUGUESA

CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS

F AC U L D AD E D E E C O N O M I A

UNIVERSIDADE DE COIMBRA

2004
Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei
Tutelar Educativa”

20/02/2004
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar Educativa 1

Intervenientes1:
Dra. Ana Maria Rodrigues, Dra. Clara Albino, Dra. Dulce Rocha, Dr. Fernando
Tordo, Dr. José Augusto Ferreira da Silva, Dra. Isabel Cunha Gil, Dra. Joana
Marques Vidal, Dr. José António de Carvalho, Dr. José Sousa Pinto, Dra. Olga
Maciel, Dr. Paulo Correia.

OPJ: Dra. Conceição Gomes

P-1: Eu só queria fazer um pequeno esclarecimento. Estou aqui em


representação do Sr. Director Distrital da Segurança Social mas, de facto, não
tenho qualquer directiva específica para intervir. Portanto, tudo o que disser é
apenas da minha inteira responsabilidade e não vinculará a instituição que eu
represento se não na estrita medida em que estejam em causa competências
da própria.

P-2: Eu creio que, globalmente, e em termos formais ganhámos todos


muito com esta legislação. Estamos todos hoje mais confortados em termos
técnicos, em termos de trabalho. Agora, em termos estritamente processuais,
há algumas coisas que, de facto, merecem algum reparo. Há pequenas
questões, enfim, pequenas que podem ser contornadas, que podiam ser
resolvidas, de facto, com alguma revisão. Falo, designadamente na audiência
preliminar. Como sabem, normalmente, o Ministério Público indica a prova que
se há-de produzir na audiência preliminar. Quando se trata de medida que não
determine o internamento é marcada essa audiência preliminar e, atrás dela,
vem associada, normalmente, uma carrada de testemunhas, imensas
testemunhas, são convocadas para um acto processual que, em regra, se não
realiza e cujo objectivo é exactamente que não haja produção de prova (...). Na
esmagadora maioria das situações, o que acontece é que as pessoas acabam

1
A identificação dos operadores judiciários faz-se pela letra P, seguida de um número atribuído
a cada um dos intervenientes, em função da ordem da sua primeira intervenção no respectivo
painel. Esta ordem é completamente diferente da que consta da lista de intervenientes, em que
os participantes foram identificados por ordem alfabética.
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 2

por ir e depois são dispensadas. Eu penso que nós não temos o direito de
proceder desta forma. Eu acho que numa futura alteração deveria ser
introduzida uma previsão no sentido da dispensa de testemunhas nessa fase, a
não ser que, à partida, fosse previsível que não houvesse aceitação da parte
do menor ou dos pais, da medida tutelar. Outro problema que também se me
tem colocado, tem a ver com a questão da contagem do tempo da medida
cautelar de guarda na duração da medida de internamento. (...) No âmbito do
processo penal típico, o tempo da medida de prisão preventiva é descontado
na pena. Em termos da Lei Tutelar Educativa não está nada previsto a esse
propósito, o que significa que há procedimentos dispares a este propósito... Eu,
pessoalmente, tenho feito repercutir a medida cautelar de guarda,
descontando-a, portanto, na medida de internamento mas sei que há tribunais
onde esse procedimento não é seguido.
Há outros aspectos de natureza legal como, por exemplo, a falta de
previsão de um regime que permitisse a suspensão da medida de
internamento, que me parecia muito útil nalgumas situações, que servisse
como uma advertência quase, quase uma advertência final ao menor, penso
que seria de alguma utilidade.
Uma outra questão tem a ver com as situações em que, findo o
inquérito, se conclui pela inimputabilidade do jovem e que, face à lei, isso
determina o imediato arquivamento do processo com a remessa do mesmo
para fins de aplicação, se houver necessidade disso, de um regime de
internamento, não já no âmbito da Lei Tutelar Educativa mas, e estou a falar do
artigo 49º da Lei Tutelar Educativa, e no âmbito do internamento, o
internamento de pessoas portadoras de deficiência e portadores de problemas
de natureza psiquiátrica. Parece-me que este sistema não está muito bem
organizado. A meu ver, poder-se-ia aproveitar o processo tutelar educativo
para dar seguimento a esse internamento, não já com fins educativos, mas
com fins de tratamento desses jovens. O que acontece é que um miúdo,
nessas condições, o processo ou termina com a aplicação de uma medida
tutelar de internamento ou com o arquivamento neste caso, e seguir-se-á um
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 3

longo e tortuoso calvário até que se consiga levar a um internamento para


efeitos de tratamento e, na minha perspectiva, isto podia ser resolvido.

OPJ: A Lei Tutelar Educativa deveria ter aqui uma maior flexibilidade? É
ou não excessivamente formal? Há ou não um paralelismo muito forte com a
Lei do Processo Penal?

P-2: Eu creio que essa foi a intenção do legislador e contra isso nós não
podemos fazer...

OPJ: Mas, nós estamos aqui também para reflectir sobre essa questão.

P-2: É verdade, é verdade. A antiga OTM (Organização Tutelar de


Menores) dava-nos uma muito maior liberdade. O processo era tratado como
processo de jurisdição voluntária e, portanto, com um consenso e com algum
equilíbrio conseguiam-se obter provavelmente os mesmos resultados mas,
enfim, é difícil às vezes compaginar os tempos dos miúdos...

OPJ: Quando se fala em excesso de formalismo, maior flexibilização,


não significa a não existência de tratamento legal diferenciado entre as
diferentes situações. Não é isso. Estou a colocar o ênfase no paralelismo com
a Lei Processual Penal?

P-3: Se me permitem, eu estou aqui como juiz de um Tribunal de


competência genérica, e nesta perspectiva penso que esse formalismo de que
a Sra. Dra. está a falar, é mais notório ainda nestes tribunais, porque num
Tribunal de competência especializada de Família e Menores será muito mais
fácil lidar com esta nova Lei e aplicá-la, dado que existe essa especialização e
há uma possibilidade de os colegas disponibilizarem mais do seu tempo para o
efeito.
Mas, para nós, torna-se mais difícil o acompanhamento das novas
situações. Eu, aliás, já conversei com os demais colegas, e a conclusão a que
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 4

nos permitimos chegar foi a de que esta Lei foi feita a pensar, essencialmente,
na vivência das grandes cidades, como Lisboa, Porto, Coimbra, e que está
bastante distanciada da realidade dos menores da nossa comarca.
Na verdade, a realidade dos menores neste tipo de comarcas, e falo da
Guarda, Covilhã, Castelo Branco etc., e por aquilo que tenho constatado,
designadamente na troca de impressões com os colegas, é a realidade dos
factos e as situações ocorridas são totalmente distintas das dos grandes meios.
A nossa realidade é a dos menores que fazem um risco no carro do
vizinho, que tiram umas laranjas, que fazem uns pequenos furtos e, portanto,
conseguir conciliar esta realidade com a nova Lei Tutelar Educativa, torna-se
ainda muito mais difícil.
A OTM, nesse sentido, como a Sra. Dra. disse, dava-nos a possibilidade
de estarmos muito mais próximos dos menores. Aplicávamos uma pena de
admoestação sem termos que estar à espera de todo aquele processo com
audiência preliminar, com audiência final, com prova e só depois decisão.
É certo que há alguns mecanismos que pretendem resolver, de alguma
forma, esta morosidade, desde logo ao nível do Ministério Público, com a
suspensão provisória do processo.
Este instituto processual é o que mais se tem aplicado, pelo menos no
Tribunal da ..., pois, de facto, na maioria das vezes, é essa a solução mais
adequada.
E é também por isso, que posso dizer, que, neste momento, temos
apenas 4 processos pendentes ao abrigo da Lei Tutelar Educativa. Esta
reduzida pendência é sintomática daquilo que realmente nos chega que, já é
muito pouco, porque se tenta fazer essa filtragem ao nível do Ministério
Público.
Por todas estas razões, eu penso que esta formalização e este
paralelismo com o Processo Penal, para nós, ainda é, como já referi, muito
mais notório do que talvez o será no Tribunal de Família e Menores.
Uma outra questão que também queria colocar, e que, aliás, me foi
solicitado que colocasse, é a que se prende com a denúncia e desistência da
queixa de crimes semi-públicos, ao abrigo da LTE (Lei Tutelar Educativa).
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 5

Isto porque, no mesmo Tribunal, temos três magistrados do Ministério


Público e cada um deles está a fazer de seu modo. Ou melhor, dois estão a
fazer de uma maneira e um está a fazer de outra maneira.
A questão é a seguinte: quando o ofendido desiste da queixa o que é
que se faz? Arquiva-se o processo, não se arquiva? O Ministério Público tem o
dever de iniciar o processo, mas depois se desistirem, o que é que acontece ao
processo? Esta é uma das questões que se tem colocado com bastante
frequência no âmbito da presente lei.
Outra questão é a do relevante papel e intervenção das Polícias e a
pouca formação que é lhes dada. Falamos de GNR, PSP, etc., que não têm
realmente a formação necessária para acompanhar todas estas questões que
se levantam, agora de uma forma ainda muito mais premente, na Lei Tutelar
Educativa.
Por fim, também se suscita com grande frequência na aplicação da LTE
questões que se prendem com a realização ou não do cúmulo das medidas
tutelares e, por outro lado, com a liquidação das mesmas.
Esta problemática nota-se também ao nível dos Centros Educativos
onde tive oportunidade de estar há 15 dias, e foi-me transmitido que tinham
esta dificuldade porque nuns tribunais faziam logo a liquidação, noutros
tribunais não faziam e, portanto, eles tinham de perguntar ao processo quando
é que ocorria o terminus da medida.

OPJ: A questão da uniformização de procedimentos ou da


jurisprudência é uma questão que não se coloca só nesta matéria, como sabe,
coloca-se noutras. Ainda há muito pouco tempo estivemos a tratar de matéria
relativa à execução da pena de prisão, e esta questão é também, nesse
âmbito, uma questão muito importante com consequências muito negativas.
Em matéria tutelar educativa essa é, de facto, uma questão que nos foi
levantada várias vezes. Como é que os Srs. Drs. pensam que se pode resolver
este tipo de questões? Porque, muitas vezes como acabámos de ver, o
problema coloca-se dentro do mesmo Tribunal. Nós poderemos compreender
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 6

juridicamente, mas sobretudo dentro do mesmo Tribunal, como é que o


cidadão compreende isso?

P-4: Isso é um problema que nos levaria mais longe. Para o cidadão é
muito difícil de compreender. Penso que no que respeita ao Ministério Público
que tem uma estrutura hierarquizada, tendencialmente, a questão poderia ser
resolvida. Por banda da magistratura judicial, as coisas aí serão diferentes,
dada a independência da função, a sua não submissão a orientações
hierárquicas. Mas aí, temos a jurisprudência que, ao longo do tempo, irá
tentando uniformizar entendimentos sobre questões que vêm tendo decisões
diferentes. É evidente que nesta área do processo tutelar educativo, a acção da
jurisprudência também sofre muito com o facto de não se verem muitos casos
de recurso, o que poderia constituir uma verdadeira limitação à tal
uniformização.

OPJ: De facto, o Ministério Público é uma magistratura hierarquizada,


mas, na verdade, há muitos casos, como acabámos de ouvir, em que há
procedimentos, por parte do MP, muito diferenciados.

P-5: A questão que a Sra. Dra. está a colocar não tem só a ver com a
Lei Tutelar Educativa. A discussão seria muito mais longa. Tem a ver com o
que é a hierarquia do MP (Ministério Público). O que é que é susceptível de ser
ordenado em termos superiores? Quais os limites de intervenção hierárquica?
Isto é uma questão bastante mais complicada. Há quem entenda que o Sr.
Procurador-Geral deve emitir orientações de natureza doutrinária nesta
matéria. Mas há quem entenda que não o deve fazer; ou, pelo menos não se
deve recorrer frequentemente deste meio (O MP não é propriamente uma
tropa). Não está na nossa tradição, e eu digo ainda bem, que haja orientações
frequentes. Repare, não são orientações de procedimento, são orientações de
interpretação da Lei, o que é um pouco distinto. Portanto, existe alguma
liberdade de interpretação da lei por parte do magistrado. E tem-se optado por
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 7

isso, pela liberdade de cada magistrado na interpretação da Lei de acordo com


o caso concreto.
Para além do Processo Penal, em que o Magistrado titular do inquérito
tem competências próprias decorrentes da lei e os termos da intervenção
hierárquica estão definidos, é discutido, relativamente aos processos de
natureza distinta, os limites da intervenção hierárquica e a forma que devem
revestir, bem como quais as possibilidades de recusa das ordens superiores.
Portanto, a questão das ordens de carácter directo sobre orientação jurídica: “a
linha que o senhor vai seguir é esta” é altamente problemática, embora isso
seja uma questão, como eu digo, ainda em grande discussão. Mas a questão
coloca-se, embora num modo um pouco distinto, também relativamente à
interpretação que os juízes fazem relativamente a várias questões.
A questão que foi colocada aqui, por exemplo, relativamente ao
desconto da medida de guarda cautelar, é uma das questões que a Lei poderia
claramente definir. Mas há sempre alguma margem para quem aplica o direito.
É por isso que os cidadãos em Portugal descobriram agora que realmente o
direito é tudo menos preto e branco, contrariamente ao que estavam
convencidos. Realmente, há várias interpretações, há possibilidade de haver
várias interpretações acerca da mesma coisa. Nalguns casos pode-se limitar
essa possibilidade, mas a questão que se levanta é até que ponto é bom limitar
ou não? Porque disso também pode resultar falta de credibilidade do sistema e
dos próprios magistrados.

OPJ: Mas como é que duas crianças que praticam actos muito
semelhantes, podem ter tratamentos diferenciados? Como é que se pode
esperar que essas crianças possam compreender toda esta complexidade de
interpretações dos agentes e, sobretudo, em questões de natureza processual.

P-3: Há, segundo creio, que separar aspectos que são diferentes.
Quando se fala da natureza das medidas a aplicar ou quando se fala das
penas ou da medida da pena, aí cada um de nós tem o seu "peso", a sua
"bitola", tem o seu ponto de vista e toda a gente haverá de compreender isso.
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 8

Agora, quando estamos a tratar de questões processuais e de questões


formais, eu penso que o legislador deveria fazer um esforço acrescido, em
determinadas matérias, para não deixar que as coisas se passem como se
passam, em termos de incerteza e de instabilidade da lei, não só na Lei Tutelar
Educativa, mas também acontece noutros ramos do direito.
Por exemplo, quanto à questão da desistência da queixa, da denúncia,
que também já se suscitou, como todos nós sabemos, no âmbito do processo
penal, ao nível dos crimes sexuais, quando o Ministério Público inicia o
processo no interesse da vítima e depois vem o titular de direito de queixa
desistir, o que é que acontece? Há jurisprudência dos Tribunais superiores
contraditória sobre esta matéria e esta mesma incerteza acabou por ser
"acolhida" na LTE.
Por outro lado, a lei deveria, igualmente, dar uma resposta concreta no
que respeita ao desconto ou não desconto da medida de guarda cautelar.
Nestes aspectos processuais, entendo que seria o legislador que deveria
fazer um esforço no sentido de deixar estas matérias definidas, porque não
deveriam ser, para bem da certeza jurídica, de alguma certeza, pelo menos,
deixadas à livre interpretação do aplicador do direito.
Nestas questões processuais, os cidadãos esperam determinada
resposta dos juizes e dos magistrados do Ministério Público.
Ora, quando num Tribunal, por exemplo é descontada o tempo da
medida cautelar e noutro tal não acontece, os cidadãos comuns, que são os
destinatários do direito, não compreendem estas divergências.
Agora, quando um juiz aplica uma medida de internamento por
determinado tempo, e outro já aplica uma medida de acompanhamento
educativo, isso são situações que, efectivamente, fazem com que os juizes não
sejam máquinas, que sejam pessoas com sensibilidades diferentes e, portanto,
toda gente tenta compreender as diferenças a este nível.
Mas quando se trata de questões processuais, de formalismos, é difícil.
O legislador deixa-nos essa margem para nós nos esforçarmos, e para
nós estudarmos, mas penso também que os juizes também têm de contar com
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 9

um certo grau de certeza das normas, para que não andem todos os dias "a
fazer diferente jurisprudência".

P-5: Eu não sou contra o facto da Lei estabelecer claramente algumas


disposições. Há questões que podem ser mais bem especificadas e, portanto,
acho que deve ser feito um esforço nesse sentido. Agora, o que eu estava a
chamar à atenção é que nós não podemos ter a ilusão de que a Lei pode
prever todas as situações e que não há aqui uma margem de discricionaridade.
Depois, há aqui também um problema que tem a ver, - e não é só nisto que se
reflecte -, com a formação dos magistrados; que tem a ver com o debate das
questões jurídicas e processuais que se levantam acerca destas questões. E,
mais uma vez, o que está em causa não é a Lei, mas quem aplica a Lei.
Porque há coisas que por mais que estejam escritas, há sempre determinado
tipo de situações jurídicas que têm que ser tidas em atenção relativamente à
finalidade, aos objectivos, à reflexão sobre a natureza desse tipo de
intervenção. Agora, se quisermos ligar à questão que se estava a colocar
acerca da ligação com o processo penal e do excesso de formalismo, a minha
opinião é que, realmente, há aqui, por vezes, em termos principalmente de
linguagem e de alguma tramitação de determinados fases processuais, uma
colagem, pelo menos aparente, ao processo penal. Agora, é evidente que
quem se tiver dado ao trabalho de ir ler a motivação e o fundamento desta Lei,
os objectivos que se pretendem atingir, as finalidades da intervenção tutelar
educativa, e fizer um estudo face à finalidade da intervenção do direito penal,
chega rapidamente à conclusão que isto não é processo penal. E que não é
processo penal é muito claro e isso também se verifica, se tivermos, em pano
de fundo, a função filosófica e de estrutura do que é, do que são as finalidades
desta intervenção. Rapidamente chegamos à conclusão de que isto não é
processo penal. Há aqui, o facto de a terminologia ser muito próxima e o facto
de os magistrados terem os paradigmas mentais do penal e do civil, o que
determina - como não houve formação suficiente nem um debate alargado
entre os magistrados efectivamente eficaz sobre esta Lei - aquela tendência
natural por parte dos magistrados, para fazerem a colagem ao processo penal,
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 10

quando estão a interpretar a lei. Várias vezes, em discussões com alguns


colegas, tive a ideia que eles andavam à procura na LTE daquilo que não se
dizia, em contraponto ao Código de Processo Penal. “Ah, mas o processo
penal diz e aqui não diz.”, como se fosse obrigatório que dissesse, que fosse
tudo idêntico. Portanto, no fundo, eles estariam a aplicar o processo penal e
subsidiariamente aplicavam a Lei Tutelar Educativa. Isso é, na minha
perspectiva, fruto de falta de formação e falta de reflexão sobre estas matérias,
porque as pessoas têm os quadros mentais do processo penal e do civil e não
saem dali.

P-6: Mas isso é claro.

P-5: Agora, relativamente ao formalismo, há aspectos que, de facto, têm


que ser melhorados. Mas, em termos gerais, essa falta de flexibilidade é
aparente porque mais uma vez digo, quem vir bem a Lei, quem a ler bem, salvo
alguns casos, esta Lei dá oportunidade a que as pessoas a apliquem de um
modo flexível.

P-6: Não é um problema da Lei, mas da aplicação.

P-5: Claro que a Lei precisa de ser melhorada, concordo integralmente.


Agora, em termos fundamentais, e, ultrapassando várias questões, e algumas
delas até já foram colocadas aqui, esta Lei dá a possibilidade de o magistrado
aplicar aos pequenos delitos, às acções que não têm importância, um
processo, ou melhor um procedimento processual geralmente curto e rápido, e
de aplicar aos outros um processo diferente.

OPJ: Ainda no âmbito desta Lei, neste paradigma, gostaria de


questionar a intervenção do advogado, onde é que ela se situa e como é que
ela se deve situar.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 11

P-7: Eu estou de acordo com muitas coisas que já foram aqui ditas, mas
começaria por dizer o seguinte: esta Lei é, no essencial, positiva. É verdade
que a OTM permitia, provavelmente, uma maior flexibilidade e aproximação,
mas também permitia muitos atropelos. Portanto, a necessidade da
comprovação da existência de facto delituoso para que possa ser aplicada uma
medida é algo inovador e absolutamente essencial. Eu acho que isso ficou
claro. Não se pode criar a ideia, não se pode generalizar a tendência, de que
tudo o que é denunciado se passou efectivamente. E, portanto, eu acho
extraordinariamente grave poder aplicar-se uma pena com base nessa ideia. E
eu digo isto pelo seguinte, ocasionalmente fui apanhado num Tribunal onde era
preciso um defensor para os menores, (...) e, não sei se já disse isto
publicamente, fiquei particularmente sensibilizado para a questão porque disse
ao magistrado: “Bom, primeiro terei de falar com os menores” porque isso era
essencial para saber tudo o que aconteceu, o que é que eles fizeram, em que
circunstâncias é que as coisas se passaram. Só assim estaria em condições de
participar na diligência. Eu achava que essa minha exigência era natural e
inquestionável. No entanto, vi que o magistrado ficou um pouco surpreendido
com a minha exigência de falar previamente com os menores. E constatei que
o normal era o magistrado fazer a audição dos menores sem que o Advogado
tivesse falado previamente com eles. O que é inaceitável.

OPJ: O Sr. Dr. acha que, por exemplo, na perspectiva da defesa do


jovem, este deve poder ficar calado?

P-7: Claro que sim. E, portanto, penso que...

OPJ: E isso é educar para o direito?

P-7: Já lá vamos. E continuando o raciocínio... Eu acho que o papel do


defensor é muito bem explicitado nesta Lei. E não podia voltar a manter-se a
situação anterior em que o defensor não tinha papel nenhum. E o defensor é
essencial porque educar para o direito não é uma coisa abstracta. Há muitas
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 12

maneiras de educar para o direito e não é, necessariamente, no âmbito deste


processo que se educa para o direito. Ao defensor cabe fazer, em cada caso
concreto, a avaliação correcta dessa questão. Não é acriticamente que aceita
que se aplique uma medida punitiva. E isso coloca outras duas questões, que
são: primeira, a questão da formação, porque a Lei inclusive...

OPJ: Estamos a falar dos advogados.

P-7: Estou a falar só dos advogados. Não é por acaso que a Lei, e
chamo a atenção para o artigo 46º, expressamente, refere a necessidade de ao
menor ser nomeado um advogado, ou um advogado estagiário, mas em
princípio um advogado, preferencialmente com formação especializada nesta
matéria e, portanto, quer dizer, a Lei quis que, de facto, expressamente, o
advogado fosse particularmente preparado nesta área específica. A questão é
que a preparação, também já disse isso noutras circunstâncias, não existe; a
Ordem dos Advogados pura e simplesmente não tem nenhuma preparação. É
uma questão que se tem de corrigir rapidamente porque esse é um aspecto
absolutamente decisivo. Uma outra questão e eu fiz uma recolha, é o facto de
não haver jurisprudência praticamente nenhuma sobre esta matéria. O que é
significativo. Por exemplo, sobre a contagem, a forma de descontar as medidas
cautelares não há jurisprudência, porque praticamente não há recursos.

OPJ: Portanto, o Sr. Dr. acha que se o advogado tivesse uma


intervenção mais activa...

P-7: Se o advogado tivesse uma intervenção mais activa, se o advogado


cumprisse efectivamente o seu papel, se o advogado tivesse formação, faria,
por certo, a diferença. O advogado poderia recorrer ou não, mas tem que o
decidir com consciência. É inadmissível, de facto, eu não sabia daquela
situação, mas é inadmissível que no mesmo Tribunal (isto não é o problema de
ser tropa ou não ser tropa), haja posições diferentes sobre questões
procedimentais. Não podemos pensar na independência de uma maneira tão
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 13

radical, que mesmo em matéria puramente procedimental, não haja


orientações. E, portanto, para mim não é o problema do menor compreender, o
menor não vai compreender. É que há uma família, está lá uma família, que é
preciso que compreenda para que aceite a decisão. E mais do que isso: há
responsabilidade do Tribunal. Porque isto é uma questão de cidadania, a
justiça é, em si, uma questão de cidadania, a justiça de menores é mais ainda
uma questão de cidadania porque, exactamente, se está a educar para o
direito, pelo menos, é o sentido da Lei. No geral, eu penso que a Lei é positiva,
constituiu um avanço. Eu acho que, de facto, é um pouco excessiva a
formalização. Acho que há um excesso de formalismo que podia ser
manifestamente evitado nalguns casos.

P-8: Uma coisa fundamental nesta Lei foi considerar que o menor é
sujeito processual. Isto é um ponto fundamental e inovador na nova Lei. E aqui
acho que isto vai levar a que haja uma diminuição, e eu peço desculpa, dos
poderes do Ministério Público que até aí exerciam em relação ao menor. O
Ministério Público deve defender os interesses do Estado e o advogado deve
defender os interesses do menor. Isso implica um maior acompanhamento,
uma intervenção muito maior do advogado em todo o processo (não só no
processo judicial individualizado, mas no processo de desenvolvimento do
menor, no qual, por vezes, convergem vários processos judiciais) e, nesta
situação, esta é uma coisa em que os meus colegas não concordam comigo,
mas é a minha opinião, é que o advogado não se deve cingir àquilo que o
próprio menor quer, mas a sua intervenção deve ter como objectivo
precisamente a educação para o direito. O advogado não deve fazer aquilo que
o menor quer. O menor não tem noção de que se chegar à Valentim de
Carvalho e roubar uns Cds, local onde há lá tantos, a sua conduta é
censurável. E esta ausência de censurabilidade resulta da falta de
interiorização de um conjunto de valores e normas que estiveram totalmente à
margem do seu precário processo de socialização. O poder distinguir o que é
bom e o que é mau. Não tendo o jovem essa capacidade de interiorização das
normas sociais (se esta lacuna lhe advêm de si próprio ou da própria
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 14

sociedade, é um outro problema), não pode ter a noção que a sua conduta é
desviante; ele não tem critérios que lhe permitam distinguir o bem do mal
socialmente considerado. O advogado não pode actuar como o menor quisera
desde que essa actuação seja em sentido contrário à “educação para o direito”.
Cabe ao advogado tentar não fazer o que o menor quer, não é? Porque é um
cliente especial, não é um cliente como outro qualquer e é essa ideia que o
advogado deve ter em mente.

OPJ: Portanto, a Sra. Dra. considera que, neste processo, digamos


assim, é preciso, claramente, separar águas. O Ministério Público está ali,
sobretudo, para promover ou não uma medida...

P-8: Defender os interesses do Estado...

OPJ: Para defender os interesses do Estado e para promover uma


medida, portanto, está ali para isso. O advogado está ali para defender a
posição da criança, que, na perspectiva da Sra. Dra., pode ser aceitar a
promoção daquela medida ou propor outra ou, enfim, defender que o jovem
não praticou aquele facto, seja lá o que for, de acordo com a estratégia e com a
orientação que o advogado assim entender. De um lado, o Ministério Público,
do outro o Advogado. É assim?

P-9: Eu também penso que a intervenção dos advogados nos processos


não se deve cingir ao que o menor quer, deve sim adoptar uma estratégia que
também ajude a educá-lo para o direito. Obviamente que isto é o que toda a
gente quer, portanto, aqui, há uma complementaridade de funções. Eu sou
Procurador da República no Tribunal de Família e Menores de ... e o que tenho
notado, da parte de alguns advogados, é o propósito, justamente, de levar isso
à prática, quer dizer, colaborarem com o próprio Ministério Público. E penso
que há aqui uma diferença essencial em relação ao que acontece no processo
penal. No processo penal, obviamente, que o papel do advogado é o de
defender os interesses do seu cliente e os interesses do seu cliente, se for
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 15

acusado num processo crime, é, obviamente, ser absolvido. No processo de


menores, não é bem assim, porque as medidas que lhe são aplicadas não são
para o castigar, mas são para o ajudar um pouco a inserir-se mais tarde na
sociedade como um membro útil. Portanto, se calhar aqui, aquela divergência
de posições que possam existir no processo penal é muito mais esbatida.

P-8: Peço desculpa interromper. Pode haver divergências num


consenso, numa harmonia.

P-9: Certo. E há uma vantagem. É que o menor vê o advogado como um


amigo, e se não vê, devia ver, e vê o Ministério Público e o juiz como pessoas
que estão ali noutra posição. De modo que se o próprio advogado o aconselha
num determinado sentido que também vai, enfim, no sentido da educação para
o direito, o menor se calhar confia. Imaginem situações que acontecem em que
os menores cometem determinados delitos, instigados, manipulados por
adultos. Se o menor chega acolá e vê um magistrado do Ministério Público a
tentar que ele, no fundo, se defenda, acusando-o de um facto de que é
verdadeiramente responsável, ele desconfia, ele acha que se está a tentar
“apanhá-lo”. Se o próprio advogado o aconselha nesse sentido, o menor se
calhar é capaz de dizer a verdade toda e isso permite que ele seja ajudado.

P-3: Tem a ver com exercício das funções do MP e com a intervenção


que sempre teve nestas matérias. É importantíssima a função do Ministério
Público, como sempre foi.
Além do mais, a Lei expressamente prevê a possibilidade, ou melhor, a
obrigação, do Ministério Público recorrer no interesse do menor. A Lei viu a
necessidade de prever expressamente esta situação talvez por isso mesmo,
porque o Ministério Público não pode, em situação alguma, distanciar-se do
interesse do menor, nesta ou em qualquer aplicação, seja na Lei Tutelar
Educativa, seja no âmbito da Lei da Promoção e Protecção. Aliás, essa é a
nossa tradição.
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 16

P-9: Ministério Público não é só representante do Estado, também


representa os menores.

P-2: Acho que há aqui um problema, há, de facto, um paradoxo. Eu não


consigo perceber qual é o interesse do Estado aqui.

P-3: É o respeito da Lei e é o menor.

P-2: Então é o interesse do processo, é o interesse do juiz. Tem-se


falado, falámos muito do posicionamento diferenciado nesta matéria. Mas, no
âmbito do direito penal, nós sabemos qual é o interesse do Estado, é um
interesse punitivo. Aqui, o único interesse é, efectivamente, a tutela de que
aquele jovem seja educado para o direito e, portanto, estamos todos a
comungar do mesmo objectivo. Obviamente que há aqui uma partilha de
responsabilidade, há responsabilidades diferenciadas, mas para isso não
precisavam de estar lá tantas pessoas. As pessoas estão lá porque, apesar de
tudo, há alguns interesses que não são, obviamente, sendo coincidentes no
essencial, podem não ser coincidentes em termos da estratégia, em termos...

OPJ: Por exemplo, Sr. Dr.

P-2: (...) Dar-lhe um exemplo concreto não é fácil.

OPJ: Quando falamos na flexibilização do processo, e depois queremos


perceber concretamente onde é que queremos chegar, vamos ter dificuldade
porque, realmente, a nossa referência é o processo penal, quer dizer, de um
lado o Ministério Público, do outro lado o advogado...

P-2: Isso não, Sra. Dra., há pouco fez aquela interrupção que eu achei
oportuníssima, quando confrontou o Sr. Dr. ... com a questão “do direito ao
silêncio do menor?”. Creio que nenhum de nós tem uma resposta absoluta
sobre isso porque haverá situações em que o silêncio poderá implicar uma não
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 17

procedência do requerimento de abertura da fase jurisdicional e creio que


deixámos, portanto, ali um menor, com fundamento nesse silêncio, que não foi
educado e, provavelmente, irá ter um outro problema qualquer. Mas haverá
situações em que o silêncio possa ser útil, mesmo em termos de educação
para o direito.

OPJ: A mim parece-me, Srs. Drs., que há aqui uma questão presente,
que, aliás, os Srs. Drs. já falaram, que é a questão da formação. É preciso que
nós tenhamos advogados absolutamente preparados, bem como magistrados
do Ministério Público e magistrados judiciais. Justamente para que possam, por
exemplo, sair do paradigma do processo penal. É preciso haver aqui uma outra
visão dos factos, do processo. E para isso, obviamente, é preciso formação.

P-8: Devia também haver um apoio técnico de outros especialistas nos


Tribunais, de psicólogos, de outras pessoas...

OPJ: Gostaria de ouvir, também, alguém fora do sistema.

P-10: Apesar dos papéis diferentes desempenhados por advogados,


Ministério Público e Juizes, penso que os magistrados do MP não podem
esquecer o que os move. Na verdade a actuação de qualquer agente da justiça
é no Processo Tutelar Educativo a educação do menor para o direito. Pode, por
isso, haver aqui alguma convergência com o defensor. Evidentemente que
cada um tem o seu papel, mas o objectivo do Ministério Público não é fazer
com que aquele adolescente seja alvo de uma medida tutelar educativa porque
pode arquivar o processo, pode suspender, tem muitas possibilidades. O que
me parece é que terão alguma razão aqueles que dizem que se foi demasiado
longe no formalismo e na aproximação ao processo penal dos adultos. Penso
que o mais visível de tudo isto é essencialmente a questão da oportunidade,
consubstanciada no que é permitido, por exemplo, pelos artºs 78º e 87º da
LTE. Mas o que me parece é que o n.º 2 do artigo 72º não pode continuar,
porquanto penso que todos reconhecemos que na apreciação dos casos, não
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 18

podemos substituir-nos à Lei. E, de facto, o artigo 72º n.º 2 não confere


legitimidade ao Ministério Público no caso de crimes de natureza semi-pública
para iniciar o inquérito.
Já se disse aqui que há outras interpretações deste n.º 2. No entanto, a
sua manutenção permitirá interpretações diversas, o que não é desejável.
Aliás, têm sido graves as consequências, que vou procurar especificar: é um
dado absolutamente adquirido, que quando um adolescente inicia um percurso
criminoso, geralmente, é através da apropriação ilícita que age, é através dos
crimes contra a propriedade. Portanto, o adolescente vai praticando furtos
sucessivos, semi-públicos e, o que se tem verificado, é que não é a família que
pode decidir nada, não é o Ministério Público, não é o Instituto de Reinserção
Social. Quem decide são, muitas vezes as grandes superfícies comerciais. É a
FNAC, o Continente, o Jumbo, etc. quem decide sobre se o adolescente tem
ou não um inquérito em Processo Tutelar Educativo. Esta situação não pode
continuar. Na verdade, a legitimidade da intervenção do Estado não pode
basear-se apenas na vontade de um ofendido, justamente por causa do
interesse público que subjaz a esta Lei, que é a educação do menor para o
direito. E o que se tem verificado é que, demasiadas vezes, se arquivam os
processos, apenas por ausência de legitimidade do MP.
Eu tive um caso de um miúdo que já tinha praticado 32 crimes de furto,
era um miúdo que estava num Centro de Acolhimento da Segurança Social,
que desestabilizava toda a vida institucional, por grave indisciplina, que não
aderia a qualquer projecto educativo e que praticava agressões quotidianas
nos seus pares, inclusive em miúdos que aí estavam acolhidos por maus
tratos. Especificamente, um miúdo que tinha sido chicoteado pelo pai e que
insistia em voltar para casa antes de ser entendido que o momento era o
adequado. Quer dizer, isto é absolutamente inadmissível porque a ideia de
tratar de forma diferente realidades diferentes foi-nos muito caro aquando da
aceitação desta “separação de águas”. Apesar de eu entender que a OTM não
obrigava à não separação porque, evidentemente, a um miúdo vítima de maus
tratos era aplicável o artigo 19º que era uma medida parecida com a inibição do
poder paternal. Era uma medida que visava afastar aquela criança do meio
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 19

familiar que lhe era hostil e, portanto, aplicava-se uma medida limitativa do
exercício do poder paternal; ao passo que, se o miúdo andasse com um
comportamento delinquente poder-se-ia aplicar desde a admoestação,
passando pelo acompanhamento educativo, até ao internamento em
estabelecimento do IRS (Instituto de Reinserção Social), decisão esta
precedida de uma audiência com juizes sociais, o que não sucedia no primeiro
caso. Portanto, na OTM, o que havia era uma forma de processo que se
iniciava de forma igual, mas acabava de forma diferente. Agora, é a própria Lei
que nos empurra para uma situação em que podem estar miúdos com
problemáticas diferentes e que reclamariam tratamentos diferentes dentro da
mesma estrutura. Eu penso que a Segurança Social em Portugal tem que
caminhar para uma situação em que terá de criar estruturas próprias para
miúdos difíceis, ou seja, em que não se permita que no mesmo espaço estejam
miúdos com práticas de consumos, miúdos que andam na rua e crianças
maltratadas. Tem que haver estruturas diferentes e a Segurança Social não se
pode demitir. No entanto, os adolescentes que já iniciaram um percurso
delinquente deverão estar noutro tipo de estrutura, no âmbito da Justiça.
A questão deste artigo 72º não permitir ao Ministério Público prosseguir
um processo ou iniciar um processo sem queixa do ofendido, penso que isso é
uma situação muito grave e que, na minha opinião, tem consequências
nefastas. Porque, muitas vezes, quando se requer a fase jurisdicional é porque
a situação já está bastante grave, quando evoluiu muito negativamente por
ausência de intervenção atempada e adequada e o miúdo já pertence a gangs
e já anda com facas, por exemplo, e então, assiste-se à aplicação demasiado
frequente do regime fechado. O miúdo vai directamente para o fechado sem
passar por outras medidas, ou sequer pelo regime aberto ou pelo semi-aberto.

P-9: Não é assim.

P-4: Penso que aqui temos que ser rigorosos com os termos, qualquer
pessoa pode denunciar ao Ministério Público um facto. A legitimidade para a
denúncia não levanta problemas, a denúncia é a comunicação ao Ministério
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 20

Público do facto ilícito, sendo que a Lei exige que nos crimes semi-públicos e
particulares esta seja feita pelo ofendido.
Questão diferente é a de saber se depois é admissível ou não a
desistência da queixa.

P-10: Eu não especifiquei, mas já referi que a interpretação mais comum


é a que considera que o MP carece de legitimidade para a intervenção em
processo tutelar educativo sem queixa do ofendido. De qualquer forma, penso
que outra questão a ponderar é que há demasiado formalismo. Por exemplo,
até para aplicação do regime aberto é necessário um relatório de avaliação
psicológica. Por outro lado, creio que se exagerou nos procedimentos e que há
demasiadas notificações.

P-2: Com agravante que se aplicam as notificações do processo penal e


com uma grande exigência.

P-10: Há uma exigência enorme nos formalismos do processo.

P-2: Mais que no próprio processo penal. De facto, a única notificação


no processo penal é ao arguido e o problema está resolvido porque tem
defensor. Agora no processo tutelar educativo há imensas, imensas
notificações.

P-5: É uma legislação exagerada.

P-2: Há imensas, imensas. Mais, no caso da notificação aos pais, se a


carta vier devolvida é considerada notificada, não é considerada notificada? De
acordo com as regras do processo civil a devolução da carta, desde que já
houvesse uma primeira notificação, não haveria problemas. Em termos do
processo penal não é assim. Cada uma das notificações vale por si própria e
isto levanta problemas complicadíssimos e despesas acrescidas. Um processo
tutelar educativo, hoje, é caro, muito, muito caro.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 21

P-5: Mas é que isto tem uma explicação.

P-9: Posso só fazer uma pergunta? Não é intervenção, é só uma


pergunta. Eu nunca percebi porque é que o artigo 78º, que fala do
arquivamento liminar, quando diz porque é que o Ministério Público arquiva
liminarmente, não inclui também expressamente as situações de falta de
queixa nos crimes particulares e semi-públicos, referidas no art.º 72º, n.º 2.
Quer dizer, acho que há aqui um vazio da Lei...

P-10: E eu também.

P-3: É exactamente por isso que existe essa incompatibilidade.

P-9: É isto, portanto, é uma colisão de normas.

P-3: Acho que a Sra. Dra. tem toda a razão.

P-9: Eu também acho que ela tem razão, só que eu penso que a Lei...

P-3: Do ponto de vista do processo, dos titulares do direito de queixa,


mas, depois, tem é uma natureza híbrida porque nem é semi-público nem é
público.

P-10: Se se confiar no Ministério Público basta que se retire o n.º 2 do


artº 72º.

P-9: Eu só pergunto isto: em casos de crimes particulares e semi-


públicos, se recebemos uma denúncia da polícia não subscrita pelo ofendido, o
que é que se faz? Arquiva-se liminarmente?
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 22

P-10: Houve, de facto uma coisa extraordinária, nesta Lei, que foi ver os
Srs. Advogados preocupados com matérias relativas às crianças. Acho que
isso é uma coisa muito boa para o processo. Ver não só os magistrados, mas
também os advogados nos Tribunais de Menores, foi uma coisa pela qual
sempre lutei porque a Lei anterior muitas vezes não o permitia e, portanto,
acho que foi um avanço. Ouvir o que o menor sente, acho que ele tem o direito
à audição. Portanto, há coisas boas nesta Lei. Agora, não vamos é dizer que
está perfeito, já sabemos que não está, vamos procurar melhorar.

P-6: Sem questionar paradigmas que deixaríamos para segunda fase,


ou questões de aplicação, digamos assim, mais concretas, só ficando na
questão do formalismo, na questão da legitimidade, na questão, digamos
assim, da falta de uniformização da jurisprudência. Pronto, nestas três
questões. Eu diria como princípio de conversa, que o formalismo é
absolutamente indispensável para nós conseguirmos ajudar os jovens a ter
uma noção de que o direito funciona e de que as regras da vida em sociedade
têm princípio meio e fim. E, portanto, quem trabalhou com jovens antes da LTE
e quem trabalha depois da LTE, e que os ouvia antes e que os ouve depois,
percebe que o ganho foi estrondoso do ponto de vista de os tornar sujeitos
processuais, como já foi aqui dito, de lhes reconhecer direitos como cidadão e
como pessoa e de os fazer perceber o drama em que eles estão envolvidos.
Os menores não percebiam o drama em que estavam envolvidos. Na OTM,
eles entravam no centro educativo aos 12 anos e sabiam que, fizessem o que
fizessem, só saiam de lá aos 18 anos, na maioridade. Não havia duração de
medidas, não eram ouvidos, não havia nada disto e, portanto, quanto a isto eu
diria que, eventualmente, precisamos de ajustar algum formalismo, o
formalismo visto na perspectiva de zelar por garantias processuais e direitos
dos menores é uma conquista irrecusável e eu acho que não podemos andar
para trás, sob pena de, digamos assim, voltarmos a um registo em que o
interesse do menor, não é o interesse do menor, é aquilo que o adulto entende
em cada momento na sua convicção e, se calhar, no seu moralismo, que é o
interesse do menor. Eu estou na lógica do núcleo duro do formalismo. E,
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 23

portanto, o núcleo duro do formalismo, para mim, acho que tem que ser o
menor como sujeito de direitos, com direito a contraditar, com direito a ser
ouvido, com direitos iguais aos adultos e muitos destes menores, não estamos
a falar de meninos de 12, 13 anos, ou seja, esta Lei podia começar aos 14
porque de 12, 13 anos temos 10 miúdos, 12 miúdos, não é por aí e, portanto,
podia ser aos 14. E quando eu digo podia, é no sentido de que muitos destes
miúdos quando chegam ao sistema e aos tribunais já sabem muito mais destas
coisas do que era suposto saberem, até porque têm, muitas vezes, até por
força de relações familiares, muito conhecimento do formalismo processual dos
adultos e perguntam: “Porque é que a mim não me é aplicado isto ou aquilo”, e,
portanto, nessa matéria, eu diria o núcleo duro do formalismo é em honra dos
direitos dos menores e das garantias processuais se são reconhecidas aos
adultos, por maioria de razão, têm que ser reconhecidas aos menores. O direito
de estar calado, na minha perspectiva, deve ser um direito, porquê? Porque os
processos tutelares não podem continuar a alimentar-se daquilo que hoje se
alimentam em 90% dos casos que é da confissão do menor. O resto das
provas quase não existe. E o que existe é a confissão do menor. O resto das
provas quase não existe. E, portanto, a confissão do menor, muitas vezes
pergunto se ele sabe qual é a consequência jurídica da sua confissão. E isto
tem a ver com direitos dos menores.

OPJ: A Sra. Dra. está a colocar também a questão da intervenção do


advogado. Admito que possa haver uma estratégia de defesa, que há uma
estratégia de defesa, por um lado, e, por outro lado, que é o Ministério Público
que tem de fazer a prova?

P-6: O que eu quero dizer é que aquilo que se discutiu aqui há pouco de
convergência ou divergência de posições no processo dos vários intervenientes
e, designadamente, do Ministério Público, eu penso que não podemos, naquilo
que é a minha visão da filosofia deste processo, não podemos transpor para
aqui a lógica do processo de partes ou a lógica do processo penal acusatório,
digamos assim, na perspectiva mais pura e dura, mas, há, digamos assim,
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 24

algumas coisas do processo penal, daquilo que tem a ver com garantias
processuais que não se podem esquecer. Eu diria o Ministério Público também
deve acima de tudo nortear-se pelo interesse do menor, assim como, o
advogado, mas o Ministério Público ficou, no âmbito do processo tutelar
educativo, com uma outra responsabilidade que, às vezes, na minha
perspectiva e em casos concretos, digamos assim, coloca algumas reservas,
que é a questão de fazer a prova do delito. E ao apresentar a prova do delito,
digamos assim, até que ponto isso não precisa, na minha perspectiva, que uma
outra pessoa seja a intérprete mais próxima daquilo que são os interesses do
menor e que é o advogado. E, portanto, eu diria, nesta matéria, temos muito a
caminhar, temos três anos, acho que já se fez muito mas temos muito a
caminhar. Na questão da uniformização da jurisprudência e naquilo que se
começou por falar que eu gostaria que ainda que se, talvez se houvesse
tempo, se retomasse que é, por exemplo, a questão do desconto ou não
desconto da medida cautelar de guarda.
Isto é das coisas que mais revolta os miúdos. No mesmo centro
educativo, na mesma unidade residencial, um teve 6 meses em cautelar de
guarda e a seguir levou dois anos de regime semi-aberto; o outro, teve 6
meses em cautelar de guarda e levou ano e meio. E isto é das coisas que mais
efeitos perversos tem naquilo que é a filosofia da Lei.

OPJ: Acha que a Lei devia ser clarificada?

P-6: Isto é um efeito perverso. A Lei, se nós percebêssemos o sentido


da Lei, não precisaria...
Na nossa perspectiva não seria necessário, porquê? Porque a
necessidade de educação para o direito, no momento da aplicação da medida
era uma no momento da aplicação da medida cautelar de guarda, e, 6 meses
depois, depois de se ter estado 6 meses privado de liberdade numa medida
cautelar de guarda, vai a julgamento e é-lhe aplicado uma medida de
internamento e se o Estado se auto-vinculou a dizer “o limite máximo de
privação de liberdade que eu admito, na situação mais gravosa, em regime
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 25

semi-aberto, é 2 anos...”, então quaisquer que sejam as necessidades de


educação para o direito, elas não podem, a elas não pode corresponder a mais
do que 2 anos. Se a esses 2 anos já foram gastos 6 meses, a medida nunca
poderia ser mais de ano e meio.
A Lei tem, digamos, um princípio de actualização da avaliação das
necessidades de educação para o direito aferidas no momento da decisão
judicial e não no momento da prática do facto. Portanto, digamos que este é o
meu entendimento da Lei e alguns magistrados fazem-no, outros não o fazem,
outros, digamos assim, adoptam a lógica do desconto da prisão preventiva e
outros não e, portanto, isto cria problemas muito sérios. Agora eu diria assim,
nesta como noutras matérias, a questão da intervenção do advogado é
gritante, faz falta, temos que ir desenvolvendo a possibilidade de os advogados
poderem recorrer.
Uma questão que também é muito, muito sentida pelos miúdos como
injusta e como incongruente e incompreensível é a prática de alguns tribunais
não fixarem um tempo determinado de execução da medida, fixam entre o
mínimo e o máximo: “Vai de regime fechado entre 1 ano e 3 anos.” Eu tenho
vários casos assim. Tenho várias sentenças, tenho várias situações em
concreto assim. E isto acontece também em acompanhamento educativo.
Tenho acompanhamentos educativos aplicados, mínimo 1 ano, máximo 2 anos.
Como é que se consegue fazer um projecto educativo pessoal, como é que se
consegue motivar um jovem para uma situação em que ele não sabe a que é
que corresponde, em termos de tempo, a sua necessidade de educação para o
direito e o grau de gravidade daquilo que ele praticou. Portanto, penas
relativamente indeterminadas para menores, é o que aqui temos.

OPJ: Nós não nos podemos esquecer que 2 anos quando se tem 14
anos não é a mesma coisa quando se tem 40, não é?

P-6: Ora bem. Uma última questão que eu levantaria também, em sede
de ajustamentos que poderão justificar-se na Lei, é, e alguém já falou também,
é a da execução sucessiva de medidas.
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 26

OPJ: Exactamente.

P-6: A execução sucessiva de medidas, percebendo nós a lógica do


legislador, dá, na prática, efeitos altamente perniciosos. Se temos uma lógica
de execução de medida de progressividade e de ganhos por patamares até se
atingir, digamos assim, um nível óptimo ou próximo, digamos, do aceitável em
termos da progressão do jovem, não faz nenhum sentido que depois de subir
essa escadaria toda, se tenha de voltar outra vez lá abaixo e começar a subir a
escada outra vez. E qual é a capacidade de um serviço, de um técnico, de um
advogado, de quem quer que seja, de motivar um jovem para aderir a uma
medida, quando ele sabe que tem em fila três outras medidas para cumprir e
que não sai dali senão aos 21 anos.

OPJ: Como é que resolveríamos essa questão?

P-2: Não é necessariamente assim.

P-6: Não é necessariamente, mas, na prática, Sr. Dr., é isso que se faz
de facto. Na prática é isso que acontece.

OPJ: Como é que isso se resolvia?

P-2: Se o IRS fornecer ao Tribunal elementos que demonstrem,


inequivocamente, que aquele menor não precisa já do cumprimento da outra
medida, o Tribunal não irá, não irá certamente...

P-6: Diz o Sr. Dr.

P-2: Quer dizer, o juiz pode decidir tudo.

P-6: Mas o Sr. Dr. ...


Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 27

P-10: Mas o Sr. Dr. podia ouvir, na anterior Lei, as pessoas aos 18, mas
sem ser...

OPJ: Srs. Drs., ainda no âmbito das questões processuais, eu gostava


de introduzir aqui mais duas questões. Uma tem a ver com esta questão da
execução sucessiva de medidas que é um problema. Vários dos nossos
entrevistados dizem-nos que esta Lei está feita para um facto e não está feita
para o cometimento de vários crimes, este é um problema que também se
passa a nível dos adultos.

P-6: De crime continuado...

OPJ: De ilícitos em vários locais do país e isso tem a ver, de facto, com
um problema da conexão processual, de juntar os processos, isto é, um jovem
quando é avaliado pelo Tribunal, e é-lhe aplicada uma medida, passado 2 ou 3
meses terá de voltar a ser avaliado para outra medida e por aí fora, e, portanto,
o que leva, provavelmente, a um menor estar a ser sujeito à aplicação de
várias medidas sucessivas desde os 12 até aos 18, até aos 20 anos. Eu
gostava de os ouvir sobre esta matéria. A mim parece-me, de facto, uma
questão em relação à qual devemos reflectir. É um problema da Lei ou é
sobretudo, uma questão no plano da prática?

P-6: Entre aquilo que estava previsto no sistema anterior e aquilo que
hoje está, eu penso que temos que encontrar uma terceira via. Porque é assim:
a solução disto não pode passar pelo sistema anterior em que tudo era
carreado para o mesmo processo e, digamos assim, em que os factos por si
não tinham relevância autónoma, porque o processo era único, ia acumulando
participações, mas mais nada acontecia e dava um sentimento de impunidade
a partir do momento em que era aplicada a primeira medida.
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 28

OPJ: A Sra. Dra. entende que não deve apagar o que está para trás, é
isso?

P-6: Este é o limite ao qual não devemos voltar. Primeiro ponto. Talvez
numa oposição muito forte a este tipo de situações, o legislador foi para uma
situação de extremo oposto que é um delito, um processo.

OPJ: Exacto.

P-6: Aquilo que nós assistimos, sociologicamente, é que os menores,


em determinados momentos, têm uma actividade delituosa, ainda que não de
muita gravidade, mas de muita frequência e, digamos que, a avaliação de um
desses factos não ficará correcta se não tiver em conta o contexto, ou seja,
avaliar um facto em Condeixa, o outro em Coimbra, o outro na Figueira da Foz
e o outro em Aveiro, cada um per si não dá nada, e se se avaliar isto tudo em
conjunto, provavelmente, ter-se-á uma outra noção das necessidades de
intervenção e da necessidade de educação para o direito. Eu devo dizer que no
caso dos jovens que temos em internamento, a maior parte desses menores
passam a vida a correr o país nos Tribunais. Tem um processo aqui, tem outro
processo ali, tem outro processo acolá. E alguns já têm processos penais
conjugados com processos tutelares. E, é assim, eu já disse isto noutros
fóruns, que era necessário que a questão do defensor aqui até fosse vista
numa perspectiva global, não por processo, mas numa perspectiva de visão
global da situação processual daquele menor, sob pena de não se conciliar a
intervenção. Conjugar tudo no mesmo processo pode ser grave, na perspectiva
que falei inicial, mas não haver fórmulas de ir juntando, digamos assim, na
mesma fase e não fazer uma avaliação conjugada, dá, por um lado, esta
dispersão de avaliações, e dá, por outro lado, depois a aplicação sucessiva de
medidas e dá, digamos assim, o invés daquilo que se pretende que é uma
avaliação global do menor, das suas necessidades e da intervenção adequada
a essas necessidades. Podem ser todos eles factos muito ligeiros, mas se são
em grande frequência e num período muito curto, provavelmente, uma
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 29

intervenção um bocadinho mais musculada e no momento certo,


provavelmente, poderia estancar este conjunto de factos.

OPJ: Sra. Dra., acha que este é um problema de Lei, que é um


problema da concepção?

P-5: É da Lei. Eu acho que nestes artigos da conexão processual, no


fundo, o legislador teve uma posição ambígua porque entre a tentativa que
teve, dar importância à questão securitária da comunidade e a tentativa que
teve de relevar a educação do menor para o direito, há uma certa ambiguidade
sobre este conceito, e acabou por colocar na lei os dois critérios, deixando ao
aplicador a definição sobre qual o critério prevalecente em cada situação
concreta. No artigo 34º estabelece-se o carácter individual do processo,
estabelecendo-se que devia existir um único processo relativamente a cada
menor, mas não se diz qual é o que prevalece em caso de conflito de critérios.
Depois, no artigo 35º, refere a organização de um só processo quando vários
menores tiverem cometido um ou diversos factos. E quando se sobrepõem,
quando é que se aplica um e quando é que se aplica outro? Na minha
perspectiva, no artigo 37º, se repararem, a partir do momento em que houver
trânsito em julgado, quando há vários processos relativamente ao mesmo
menor tem que haver, obrigatoriamente, apensação de processos.
A minha opinião, se nós interpretarmos a Lei como devemos interpretar,
tendo em atenção a finalidade da intervenção, - e sabemos que o objectivo final
da intervenção é a educação do menor para o direito e isso é fundamental, nós
sabermos quais são as necessidades do menor para o direito - é considerar
que a apensação se deve verificar segundo o princípio prevalecente de um
processo por menor, seja quando cometeu vários factos, sozinho, seja quando
cometeu vários factos ou um facto conjuntamente com outros menores. Eu
admito, no entanto, que por razões de investigação, excepcionalmente, se vá
para a separação de processos relativamente ao mesmo menor, juntando os
processos em função dos factos praticados em comum. Aqui, mais uma vez,
temos um problema resultante de a lei ser demasiadamente indeterminada,
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 30

deixando à interpretação dos respectivos aplicadores a decisão sobre esta


questão e, eventualmente, não devia deixar. Devia aqui ter-se assumido,
claramente, qual o critério prevalecente. Claro que, na minha perspectiva
pessoal, consegue-se ultrapassar a questão através da reflexão sobre as
finalidades e a filosofia da intervenção. Mas há quem não entenda assim e há
aplicações muito diversas.
Esta questão fundamental coloca-se, com mais acuidade, na fase do
inquérito. Mas esta questão que se está aqui a colocar, sobre a existência de
vários processos relativos ao mesmo menor, espalhados pelo país todo, já em
fase de execução da medida sem ter sido efectuado a apensação, tem a ver
com uma inadequada aplicação da lei. A Lei não prevê uma acumulação das
medidas, mas prevê um instituto semelhante, que pelos vistos não está a ser
aplicado. E a Lei não é aplicada, principalmente porque não há um sistema
informático adequado. Porque não existe um sistema informático ao nível do
país inteiro, que possa sinalizar que aquele menor tem um processo em tal, tal,
tal sítio. Ora, sem tal sistema, relativamente às diversas fases, nunca vamos
ultrapassar esta deficiência. Para além, de que a Lei também deve ser mais
clara. Mas temos aqui problemas de Lei e problemas, mais uma vez, da
formação relativamente ao aplicador; mas temos também problemas de falta de
estruturas práticas, nomeadamente a informatização que é essencial para
ultrapassarmos esta questão.

P-8: Nesta situação, deveríamos defender mais a intervenção de uma


advocacia preventiva, havendo um advogado de família.

P-5: É fundamental.

P-8: É fundamental.

OPJ: Quer dizer, o advogado para o jovem e não para...

P-8: E não para o processo.


Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 31

P-7: A questão essencial é a educação para o direito.

P-10: Exacto.

P-7: O problema, eu acho que é de aplicação e da Lei, mas é sobretudo


da Lei, na minha opinião. Porque deixar à criatividade do aplicador é uma coisa
muito interessante, mas depois, de facto, se formos olhar os artigos 34º, 35º,
36º e 37º, a criatividade do aplicador fica um bocado limitada.

P-2: O Sr. Dr. vê ambiguidade onde não há ambiguidade nenhuma.

P-7: Eu não.

P-2: O legislador foi claro no sentido de que quis a separação efectiva


de processos e que a apensação só tivesse lugar após o trânsito em julgado.

P-7: Exactamente. Mais, no n.º 2 do artigo 34º.

P-9: O art. 37º n.º 2 não permite...

P-7: O n.º 2 do 34º, que é em relação ao processo que se encontra na


fase de inquérito, na fase jurisdicional ou na fase de instrução, é contrariar a
ideia de defesa social, porquê? O menor cometeu vários delitos, denunciados
em épocas diferentes, em locais diferentes, etc., mas até com alguma
proximidade, mas são denunciados em tempos diferentes e, portanto, estão em
fases diferentes, isto é, cria-se aqui uma teia de processos...
Eu penso que a questão de fundo tem a ver com o que é que nós
entendemos efectivamente da educação para o direito e, isso é que nós
devíamos discutir a fundo. Porque se o objectivo é educar o menor para o
direito, eu acho que a Lei é positiva mas tem, provavelmente, algum excesso
de formalismo, que pode bloquear o processo. Por exemplo, eu até admito que
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 32

o juiz com alguma capacidade e alguma criatividade possa chegar a este


objectivo, que é assim: se eu sei que aquele menor cometeu em sítios
diversos, mas no mesmo contexto, no mesmo contexto de vida, no mesmo
circunstancialismo familiar, determinados crimes e, independentemente do
estado em que o processo está, deveria ser possível enquadrar globalmente as
condutas. Eu acho que era possível fazer esse enquadramento global para
melhor fazer a análise das medidas a tomar com vista à educação para o
direito. Isto só é possível fazer-se se tivermos uma visão global, isto é, se o
legislador com essa concepção global, desse ao aplicador uma amplitude e
uma liberdade que lhe permitissem enquadrar globalmente o conjunto das
condutas do menor e perante elas lhe aplicasse uma medida. Eu acho que é
possível fazer isso com muita imaginação, mas tendo a consciência que não é
o que está na lei. Mais, que será mesmo contra o texto da lei.

P-5: A apreciação conjunta de todos os factos cometidos pelo mesmo


menor, porque isso é que é importante para educação do menor para o direito.
Obviamente que nós temos que ter em atenção a personalidade e a adequação
da intervenção; é importante no momento da aplicação da medida... Mas, então
em que casos é que se aplica o artigo 34º? É só quando há um único caso?
Não pode ser. Ou quando ele está envolvido com outros menores? Agora ainda
voltando à questão que o Sr. Dr...... levantou. Concordo inteiramente com o Sr.
Dr. tem aí depois um problema de dificuldade prática - a questão do processo
ter fases muito distintas. Quando se está na fase de inquérito, ainda não se
sabe se o caso vai ser arquivado, ou se vai para a fase jurisdicional. E não se
pode suspender infinitamente o processo aguardando os restantes entretanto
iniciados, porque tal solução iria atrasar a aplicação das medidas adequadas.

P-6: Não se devia suspender...

P-5: Não, não. Não é assim. Isso na prática é impossível. Eu hoje


começo um processo em Oeiras e o processo segue 3 meses e na altura em
que estão na fase judicial, o menor comete não sei mais quantos factos, e o
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 33

Ministério Público tem notícia desse factos e começa um inquérito. Não pode,
não podemos estar constantemente a suspender.

P-8: A discussão de os processos serem juntos no mesmo sítio tem


sido, desde o início, fundamental.

P-5: Mas eu concordo com a Sra. Dra..

P-8: Ainda que arquivado, conhecer que há um processo em Condeixa


de um menor que é objecto de outro processo a decorrer na Figueira, é
extremamente importante para a medida que se venha a aplicar...

P-5: Sra. Dra. estamos aqui a confundir coisas. Eu estou a dizer que
concordo que se deve ter em atenção todas as condutas do menor, mas têm
que se ter em conta as várias fases processuais. Nós não podemos estar a
suspender os processos sucessivamente à espera do último. Para quem está
nos Tribunais, é muito claro. Agora, é evidente que a intenção da lei foi essa,
tanto que obriga que na fase após a aplicação da medida, os processos sejam
juntos, e mais, obriga também a uma coisa que, habitualmente, não se faz
muito nos Tribunais, é que a medida seja revista, possa ser revista e possa ser
substituída por uma medida que o magistrado considere adequada às
necessidades actuais de educação do menor para o direito. E, portanto, esta lei
até prevê os mecanismos, necessários, para os casos de acumulação. Mas,
mais uma vez, temos uma questão do aplicador. A importância que é atribuída
a um processo arquivado? Claro que é importante, o juiz pode socorrer-se da
consulta do processo. Mas, se o processo está arquivado, em termos de
medida a aplicar não vai poder ser tido em consideração. Somente poderá ter
interesse para a avaliação que nos é transmitida pelos relatórios quanto à
necessidade da educação para o direito. Mas isso é evidente, tem esse como
têm todos, não é? Parece-me.
Gostaria de levantar a questão dos crimes semi-públicos que foi
colocada pela Dra. ... não pelas razões que ela defende, mas por outras, Aliás,
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 34

esta é uma posição minha desde sempre e escrevi-a várias vezes e defendia-a
também na Assembleia da República. Efectivamente acho que não devia haver
essa distinção na Lei relativamente à intervenção tutelar educativa. E não devia
haver porque nós estamos a discutir a questão da legitimidade do Estado para
intervir face aos objectivos e finalidades da intervenção, independentemente de
um maior aprofundamento e densificação, como agora se diz, dos conceitos de
intervenção tutelar educativa e da educação do menor para o direito. Mas se o
Estado se permite intervir, em nome do interesse público da comunidade,
limitando os poderes dos pais, constitucionalmente garantidos, se considera
que é essencial intervir quando o menor tem um determinado comportamento e
atitude, por considerar que é essencial a interiorização do dever ser jurídico
para aquele futuro cidadão, não pode fazer depender a legitimidade da
intervenção da vontade do ofendido, numa área tão importante como esta. E aí,
eu, efectivamente, concordo que a questão da desistência de queixa não devia
ser relevante.

P-6: Em alguns tribunais isso não é decidido assim. Nós temos imensos
casos em que está o processo a decorrer e é aplicada a medida e nem sequer
é levantada a questão da queixa... Por exemplo, na desistência de queixa há
dois entendimentos escritos diferentes. Na questão de desistência, a
Professora Anabela Rodrigues na anotação que tem à Lei Tutelar Educativa diz
que não deve relevar e eu concordo, por causa da filosofia de intervenção, e o
Dr. Rui do Carmo, num artigo que tem na Revista do Ministério Público, diz
precisamente o contrário, desistiu da queixa tem que seguir a lógica processual
penal, arquiva-se o processo.

OPJ: Eu gostava de ultrapassar essa questão processual, mas ainda


gostava de falar sobre a questão da conexão, que me parece uma coisa
importante, gostava de ouvir os aplicadores e eu gostava de ouvir um dos Srs.
magistrados.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 35

P-3: Parece-me que quanto a esta questão, a Lei não deixa margem
para dúvida nem há qualquer ambiguidade. O legislador disse exactamente o
que quis dizer. O que disse foi: no início organiza-se um único processo, caso
não seja possível, logo no início, ter conhecimento de todos os factos, terão de
existir vários processos.
E então, quando se chega às várias fases processuais, exactamente
porque é impossível, na prática, os processos correrem todos em simultâneo,
quando se encontram em fases diferentes, são apensados e aí procede-se à
conexão e, portanto, nesse aspecto, penso que foi isso que quis dizer.
Depois da decisão transitar em julgado, coloca-se a questão da
execução, e voltamos a apensar os processos para se ponderar uma execução
conjunta, que será de todo o interesse.
Quanto à questão de saber se como é que é possível fazer tudo isto, aí,
e mais uma vez, não se trata de um problema legislativo, mas é um problema
prático, que é de falta de informatização. Porque muitas leis estão a partir do
princípio que nós temos uma rede informática distribuída por todo o país e que
está a funcionar em pleno e tal não acontece.
Nós podemos fazer isso dentro do Tribunal porque temos um programa
que é chamado o Habilus, que toda a gente nos Tribunais sabe o que é, e o
Habilus permite-nos introduzir o nome do menor e ver se está a correr no
tribunal. E, portanto, aí é fácil ver. Agora a nível de todos os tribunais do país, a
Lei parte do princípio que, possivelmente, estão a funcionar todos em rede e
isso não acontece.

OPJ: Talvez a possibilidade de advogado único do jovem pudesse


ajudar, não?

P-3: Era de toda a conveniência.

P-5: Desculpe. Mas é mais uma vez uma impossibilidade. Há um


processo em Viana do Castelo...
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 36

P-6: O menor sabe.

P-3: O menor pode saber.

P-6: Somos nós que informamos os Tribunais dos outros processos. O


menor sabe.

P-7: O problema é que nós próprios, isso é preciso reconhecer, nós


próprios, Ordem, não temos essa flexibilidade. E isso depois tem a ver com o
que a Sra. Dra. disse agora há bocado, que é o problema dos custos. Isso é
verdade. Como disse há pouco a Sra. Dra. ... anda com menor numa carrinha a
correr o país todo e andava com o advogado atrás?

P-6: Exactamente.

P-7: Esse é que é o problema.

OPJ: Peço desculpa, custa a mesma coisa ou poderá custar menos


nomear vários advogados?

P-7: Pode custar menos nomear vários Advogados ou custar mais. Tem
a ver com a situação concreta. Mas, em regra, nomear vários Advogados
custará mais.

OPJ: Então qual é o problema?

P-6: É que se o advogado trabalhar e se tivesse dentro disso,


provavelmente, não era preciso o menor ir aos tribunais todos. Ia só a um e
resolvia tudo.

P-7: O problema é que isso pressupõe uma concepção global do


património que não temos.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 37

P-6: Não...

P-9: Há uma outra questão que é a dos processos de maiores em que o


investigador chega ao fim do inquérito e apercebe-se que um dos 7 ou 8
indivíduos da quadrilha é um menor. Entretanto já passaram 2 anos porque a
investigação até demorou e esteve na Polícia Judiciária, extrai certidão da
decisão e manda-a para o Tribunal de Menores. E este desfasamento é tal que
nem o sistema informático ajuda, porque mesmo que houvesse um sistema
que pusesse todos os tribunais em rede, não dava para suprir este problema.

P-5: Esses são os casos excepcionais.

P-9: Eu estou a dizer isto porque eu deparo-me com alguma frequência


com este tipo de situações.

P-4: A parte normativa tem aqui incongruências. Tem a vertente prática


que é aquela com que todos nós nos deparamos e que vemos que acaba
muitas vezes por ser inexequível porque há falhas. Mas, eu gostava de chamar
à atenção, para o facto de, se calhar, com alguma imaginação poder-se (...)
fazer com que o menor seja mais responsabilizado perante a medida tutelar
não institucional, e, eventualmente, pensar-se também na possibilidade da
co-responsabilização dos seus pais, nalgumas situações.

P-6: Exactamente.

P-4: Considerando o universo de menores e de famílias que nos chegam


às mãos e o das suas famílias, penso que deveria existir uma forma de co-
responsabilização dos pais, eventualmente de âmbito pecuniário.

P-6: Eu só ia chamar à atenção que, quanto à matéria que o Sr. Dr.


levantou, eu acho que nós ainda temos algum trauma disto, mas na maior parte
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 38

das legislações europeias essa questão está em desenvolvimento. A


responsabilização dos pais é absolutamente indispensável para que este
processo, digamos assim, tenha a volta completa, porque nós vemos que em
actas de audiências...

P-4: As medidas acabam, não é?

P-6: ... e o Sr. Dr. seguramente sabe isso, são os próprios pais que
pedem que os internem, ou seja, “Levem-no daqui. Eu não o quero.” E,
portanto, digamos que temos que inverter isto ao contrário: “Este rapaz é seu
filho.” Portanto...

OPJ: Voltaria à questão da aplicação...

P-6: Deixe-me só dizer isto: basta que houvesse alguma sanção ao nível
da perda de direitos sociais.

P-2: Eu queria só alertar para mais um problema que penso que ficou
aqui solto e creio que toda a gente que intervém nesta área...

OPJ: Antes de terminar esta parte, gostaria de ouvir alguém falar sobre
a questão da mediação.

P-2: O grande problema hoje em dia do processo tutelar educativo não é


a aplicação da medida, é a execução da medida. Os processos andam de
forma célere até à fase da audiência preliminar ou da audiência propriamente
dita para aplicação das medidas de internamento e os problemas começam a
surgir aí. (...) Porque efectivamente a fase de execução da medida está a ter
imensos, imensos problemas. O mais simples é o internamento porque temos
um período de (...) em que o miúdo fica privado de liberdade e nesse período o
problema está resolvido.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 39

Mas, a questão das imposições de obrigações, das actividades, das


frequências em termos escolares, tudo isto é muito complicado.

P-5: Eu ainda queria voltar a uma outra questão: é a questão do tal


excesso de formalismo e daquilo que na actual Lei se podia facilitar. Temos a
mediação, que é uma questão que, obviamente, está regulada em dois ou três
artigos da Lei mas que não está regulamentada, nem desenvolvida e que, sem
dúvida, é uma área em que considero ser essencial que se comece a trabalhar
melhor e, eventualmente, que a sua aplicação esteja mais clara na Lei. Há
também aqui a questão que está ligada à questão do crime semi-público, de
certo modo, que é a possibilidade de ser dada ao Ministério Público logo no
início do inquérito ou até mesmo sem haver inquérito, (mas, eu acho que devia
estar legislado, e não ser decidido segundo os critérios de cada um) , de decidir
se determinado caso é um caso para mediação, e se a mediação resultar, o
caso terminar ali imediatamente. Devia-se prever a possibilidade de dar ao
Ministério Público mais competências nesta fase. E aí tínhamos a pequena
criminalidade pelo menos tratada de uma maneira muito mais rápida e muito
mais célere. No fundo, talvez aproximar-nos um pouco do sistema espanhol
que aí é muito mais flexível. Na altura em que esta Lei foi feita falou-se nisso,
mas depois houve um certo medo de excesso de poder do Ministério Público e
a mediação era uma coisa que ainda era um “um papão”, por um certo
desconhecimento, e, portanto, a coisa ficou assim deste modo e a mediação
prevê-se como possível só durante o inquérito.
Outra coisa que obviamente também facilitaria é a possibilidade do
Ministério Público arquivar desde logo mas não somente relativamente a
crimes puníveis até 1 ano. O artigo 78º, salvo erro, deveria poder ser aplicado
no caso de crimes até 5 anos.
Depois há outra questão que é a possibilidade do Ministério Público
arquivar quando considerar que, apesar do menor ter cometido um delito,
considerar não haver necessidade, naquele momento, da aplicação de
qualquer medida, por a sua personalidade estar adequada ao direito.
Actualmente, no caso de factos que integram crimes puníveis com penas
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 40

superiores a três anos, haver a necessidade de o processo proposto para


arquivamento ter que ir ao juiz. Ainda estamos na fase do inquérito. Acho que
este artigo também poderia obviamente ser melhorado.
Quanto à audiência preliminar, e relativamente àquilo que o Dr. ... disse
no início, - a questão das testemunhas serem todas convocadas - também me
parece que em termos de formalismo da Lei também poderia haver aí alguma
alteração. Só no julgamento é que deveriam estar previstos todos os requisitos
da obrigatoriedade de presença das testemunhas, etc., etc. Portanto, aí, temos
a hipótese de poder conceber possíveis alterações que simplificassem a
tramitação do processo, embora eu considere, como disse, que um magistrado
que queira socorrer-se de procedimentos mais informais, o poder fazer
actualmente. Mas, existem alguns pontos que se estivessem mais claros
dariam essa possibilidade de uma maneira mais clara e, portanto, seria mais
fácil a aplicação e não se ficaria tão sujeito interpretações mais ou menos
criativas na aplicação da Lei.

P-2: Eu não convoco ninguém para a audiência. Eu não convoco...


Convoco o menor, os pais...

P-5: Devia haver uma clarificação.

P-2: Isso é um abuso porque eu reconheço que não há necessidade de


o fazer.

P-5: Obviamente.
Só para terminar com a questão da notificação. (...) Eu penso que teria
sido talvez bom que aqui a Lei especificasse o regime de notificação adequado
a este processo, porque o facto de ter previsto uma aplicação subsidiária
complica bastante a aplicação da Lei. Chamo a atenção para o facto da
notificação aqui não ser uma notificação, em muitos casos, idêntica, à
notificação do processo civil, nem mesmo ao processo penal em determinados
casos. Se as notificações têm a função de dar a conhecer o que foi decidido ou
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 41

de solicitar a intervenção para determinado acto processual, aqui é essencial


que o menor compreenda o que é ou foi decidido e também é essencial e,
constitucionalmente, é obrigatório que os pais saibam o que é que foi decidido
relativamente aos menores. Certamente por tudo isto, obviamente, não se
podem adoptar determinados processamentos que estão estipulados para
outras jurisdições.

P-2: Peço desculpa por interromper, tem que se colocar o problema


relativamente a toda e cada uma das decisões que são proferidas no processo.

P-5: Eu não estou a defender que sejam todas, eu estou a defender que
a questão das notificações devia estar prevista nesta legislação e que devia ter
em atenção, obviamente, esta matéria específica.

P-2: Basta ter grandes exigências em termos de notificação para a


audiência, para notificação do requerimento de abertura da fase jurisdicional, aí
faz sentido. É a essência do processo. Agora quando eu estou a rever uma
medida e com esta revisão determino que ela continue, e que isso tem que ser
levado ao conhecimento dos pais do menor, não faz sentido, não faz sentido...

P-6: O menor deve saber, Sr. Dr., por amor de Deus.

P-2: Como?

P-6: O menor deve saber.

P-2: Não. Tem que ser feita, não tem é que ser feita através dos pais. A
carta é-lhes endereçada, mas a carta vem devolvida e é preciso pormos todo o
aparelho judiciário a funcionar, com polícias a tentar ir atrás daqueles pais para
lhes dizer: “Olhe, afinal o Sr. juiz disse que (...) o miúdo vai continuar na
situação em que estava. Vai continuar a cumprir as obrigações que lhe tinham
sido impostas”, muito bem. E com isto foi um dispêndio enorme de energias de
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 42

trabalho e, enfim, isto ao longo do processo é muito... Agora, que deve ser
levado ao conhecimento, claro.

P-6: Queria deixar só a ideia e podemos discutir depois, que é: (...) 3


anos depois do início da aplicação desta Lei, questiono-me hoje mais do que
me questionava na altura da discussão da Lei, mas já me questionava, qual é a
lógica, qual é a necessidade e qual é o campo de aplicação do internamento
em regime aberto?

P-10: É aos 12 anos, Sra. Dra. ou...

P-6: Não é.

P-5: Não sei se é assim...

P-6: Não tem nada a ver com isso.

P-5: Tem a ver com aplicação da Lei. Tem a ver com a aplicação da Lei,
mas deixávamos esta discussão para o final, mas eu acho que há aqui,
também o Dr. ... já disse, há aqui outros pontos que são importantes, que é
importante ter em atenção. Foi intenção do legislador, entenda-se, do poder
político em geral, que esta Lei não fosse uma Lei isolada face a uma
determinada arquitectura legal relativa à intervenção do Estado face aos
menores, da qual é parte, igualmente essencial, a Lei de Protecção e a as
restantes já existentes, quanto ao enquadramento legal da situação dos
menores. Assim, a aplicação das leis deve ser complementar entre si e nunca
excludentes. A questão é saber até que ponto é que nós conseguimos
estabelecer as pontes que estão previstas em ambas as legislações. Estão ou
não estão a funcionar? Isto depois pode ter a ver com aquela discussão final da
separação...

OPJ: Exactamente.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 43

P-5: Também tem importância a questão da comunicação com a


restante legislação. Aquilo que disse relativamente às questões de saúde
mental - ponto que está completamente a descoberto, na minha perspectiva.
Está a descoberto em termos de legislação, porque a Lei da saúde mental só
se aplica a partir dos 14 anos.

OPJ: Exactamente.

P-5: Está a descoberto em termos de legislação, mas mais importante,


está a descoberto em termos de efectivas estruturas para tratar o menor com
este tipo de problemas.

P-4: Eu só queria complementar uma coisa. (...) Trata-se de algo que


não se encontra previsto, e que tem a ver com acautelar o futuro da situação
dos menores, designadamente daqueles que passam por instituições. Com
efeito, o IRS deveria, numa fase final dessas medidas, começar a fazer a
ligação com a família, com a comunidade, o que é facto é que aquele menor
volta para o mesmo contexto onde estava anteriormente, para uma família,
muitas vezes desestruturada. Penso que a ligação não está a ser
verdadeiramente equacionada.

P-10: Do ponto de vista da aplicação?

P-5: Mas também é uma previsão da Lei.

P-9: Eu gostaria de saber se o artigo 138º, número 2, alínea d),


consagra como possibilidade de castigo pelo menor que não está a cumprir
uma medida não institucional...

P-6: Ah! O internamento em fim-de-semana.


Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 44

P-9: . ... o internamento em regime semi-aberto pelo período de 1 a 4


fins-de-semana. Isto parece-me, isto é um artigo pouco exequível.

P-2: Isso é uma questão que eu tinha suscitado que era justamente, que
tem a ver com a execução das medidas, o não cumprimento das obrigações e
da escassez dos meios existentes.

P-6: O internamento em fim-de-semana é completamente ineficaz.

P-2: Parece-me. Em certos casos, Sra. Dra..

P-6: Não. Posso dizer ineficaz. Até o menor voltar outra vez.

P-2: Obviamente eu não tenho vontade nenhuma de arquivar os


processos nesses casos.

P-6: Sr. Dr. mas aqui, como noutras coisas, também há duas
perspectivas. Há magistrados que aplicam o internamento em fim-de-semana
para muscular o acompanhamento educativo e o acompanhamento educativo
continua e há juizes que aplicam o internamento em fim-de-semana e arquivam
o processo findos os 4 fins-de-semana. Portanto, há duas interpretações e há
duas práticas.

P-9: Mas o não funcionamento do acompanhamento educativo deixa um


bocado os magistrados “descalços” porque se o menor inviabiliza a aplicação
do acompanhamento educativo, eu penso que ordenar o internamento em fins-
de-semana não é que é profícuo...

P-6: É um prémio. É um prémio.

P-9: O menor vai de férias.


Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 45

P-6: Vai de férias quase.

P-9: Agora eu pergunto: o que é que nós fazemos a um caso destes?


Quer dizer, considera-se o processo completamente frustado e arquiva-se?
Mas como é que se pode acompanhar educativamente quem reiteradamente
não aceita a intervenção, por exemplo, do IRS?

P-6: Mas Sr. Dr., o Sr. não está a partir do pressuposto que o
internamento em fim-de-semana é o fim do processo, ou seja, é uma fase de
musculação de voltar ao acompanhamento educativo.

P-9: Eu estou a pôr a hipótese é do menor dizer: “Pá, eu não quero


estudar mais, nem trabalhar, nem quero ter um curso que a instituição me dê.”

P-6: Então ele pretende o quê? O fim-de-semana?

P-2: Ele tem o fim-de-semana e depois volta ao acompanhamento


educativo...

P-9: Havia uma hipótese que era consagrar a possibilidade de passar a


ficar com uma medida de internamento efectiva...

P-2: Não há nada.

OPJ: Vamos agora, numa segunda parte, situar-nos mais na questão da


aplicação das medidas. Uma primeira questão que eu gostaria de ver discutida
é a questão do tempo que medeia entre a aplicação da medida, no caso das
medidas não institucionais, e o início da sua execução. Uma outra questão que
eu gostaria também de ver tratada é a questão da cooperação institucional.
Esta é uma questão que não é típica desta jurisdição, é típica do sistema
judicial, que é a questão da articulação, da solidariedade institucional, da
cooperação institucional, da interacção institucional. Penso que este é de facto,
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 46

um salto qualitativo grande que nós temos que dar no âmbito do sistema
judiciário globalmente considerado, e esta também é uma questão que eu
gostaria de ver tratada pelos Srs. Drs.. Uma outra questão tem a ver com a
filosofia, os objectivos da própria lei. Por exemplo, quando estamos perante
uma criança em que o facto ilícito era o furto de uns chocolates, a Sra. Dra.
referiu o furto de fruta. Nestes casos, porque há um ilícito, deve-se cair logo na
alçada da lei. Não estaremos em muitos casos perante situações a carecer de
protecção, como estabelecer a fronteira entre uma coisa e a outra? E aqui
voltamos à relação inter-institucional e essa relação tem a ver também com a
actuação nas causas, não é? De facto, o furto da maçã é furto, é claro. Mas é
claro que é substancialmente diferente de um assalto, de um roubo, de
violência física.
Por outro lado, detectámos vários casos, e queria vos dizer isto, em que
ao mesmo tipo de ilícito, as medidas aplicadas são muito díspares. Nós
verificamos casos de admoestação para um furto de um telemóvel, mas
também podemos ter internamento. E parece-nos que a diferença tem como
principal causa a situação familiar. Por exemplo, uma criança que praticou um
crime de dano, crime de ofensa à integridade física qualificada, crime de injúria
agravada, crime de abuso sexual de crianças, mas cujo enquadramento
familiar era de classe média alta, teve um tratamento, do ponto de vista
punitivo, muito mais “soft” do que um outro que furtou um telemóvel. A minha
questão é como e para que fim deve ser tido em conta o enquadramento
familiar?
Outra questão que me parece também importante, é o problema de
saber porque determinadas medidas são muito pouco aplicadas, como por
exemplo, pena de prestação de trabalho a favor da comunidade
comparativamente com outras? Nas medidas não institucionais não há, de
facto, uma clara prevalência da medida de acompanhamento educativo. As
outras são ou não são eficazes? Como é que os Srs. Drs. as avaliam? Qual é a
avaliação que se faz, qual a sua eficácia? Depois gostaria que discutíssemos
um pouco a questão das medidas de internamento. Qual é a eficácia das
medidas de internamento, nomeadamente, como é que, e esta é uma das
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 47

questões que eu coloco, como é que fora do contexto social ou


tendencialmente fora de um contexto social, se pode socializar? Eu gostaria de
colocar isso à vossa discussão. Gostaria que questionássemos a aplicação das
medidas de internamento no plano da sua eficácia, isto é, se e como
contribuem para “educarem para o direito”? Naturalmente que estas são
apenas algumas questões que estou a lançar para a discussão.

P-5: Olhe e eu acho que o internamento é uma coisa óptima.

P-4: A Sra. Dra. enumerou, de facto, questões todas elas pertinentes,


sendo certo que focou uma que é a essência de todas elas e que tem a ver, em
última análise, com a questão da relação relacionamento entre a legislação de
promoção e protecção e a Lei Tutelar Educativa. Nós somos confrontados com
situações em que nos surge um menor, por hipótese, com 14 anos de idade,
com uma vivência familiar dita má, onde até nalguns casos é vítima de maus
tratos e que terá roubado uns telemóveis. Nalgumas dessas situações somos
tentados a subverter a Lei e a fazer a justiça que deveria ter sido feita em sede
de promoção e protecção. O menor deveria ter sido protegido a tempo. Quando
é depois confrontado perante o Tribunal, este tem o dever de o responsabilizar
pelos ilícitos que praticou, de lhe aplicar uma medida que vise educá-lo para o
direito. Porém o tribunal, sabendo do seu enquadramento sócio-familiar, tende
a sobrevalorizar a vertente protectora – que aliás também deve ser
considerada em sede tutelar educativa – e acaba por subverter a própria Lei,
designadamente no âmbito da escolha da medida e da sua duração. É por isso
que encontraram, como há pouco referiu, admoestações para furtos vários e
internamentos para reduzido número de crimes menores. Há aqui uma espécie
de tentativa de protecção do menor.

OPJ: Sr. Dr., entende isso como uma protecção da criança?

P-4: Sim. Trata-se de uma forma de protecção do menor que o Tribunal


entende levar a efeito, por anteriormente ter inexistido, ter falhado, a protecção
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 48

devida. A actuação não será porventura a mais correcta sob o ponto de vista
estritamente jurídico, havendo uma espécie de subversão do sistema.

OPJ: E o seu objectivo?

P-4: Conseguir-se por via tutelar educativa o que não foi alcançado por
via de promoção e protecção.

OPJ: Aqueles que já têm mais de 12 anos já não pode mandar para a
protecção?

P-4: Pode. O problema é que quando se é confrontado com algumas


situações tem que se resolver o problema do crime e nessa fase já é difícil
encontrar medida de promoção e protecção que se adeqúe ao menor (...).
Repare, muitas vezes faz-se isso conscientemente e até com o acordo do
próprio menor. Nas situações em que o menor esteve já com medida cautelar e
que sabe o que é um Centro Educativo, tendo tido já contactos com
educadores e colegas seus, pergunta-se-lhes como é que as coisas se estão a
passar; qual é a relação dele com a instituição, com os seus pares e, posso
garantir, que em metade dos julgamentos que realizei, esses menores
verbalizam-me preferir continuar na instituição.

P-1: Eles não têm laço nenhum com a família. Nalguns casos foram
mandados para cem e mais quilómetros para longe da família.

P-8: Peço desculpa, posso levantar aqui um problema? O problema é


que eles existem nestas famílias, existem os laços afectivos nessas situações
de pobreza e de miséria humana. Porque nós e os nossos filhos, e cada vez
mais com os sistemas de planeamento e de realização dos PDMs, nós
formamos guetos dentro da própria cidade.

P-4: Isso é um problema a montante.


Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 49

P-8: As pessoas não têm qualquer oportunidade de poder comparar


outro tipo de valores, outro tipo de condutas, mas afectivamente existe esse
lado forte e que é importante para o jovem. O jovem roubou o telemóvel e quer
continuar a roubar telemóvel porque não tem a mínima noção da
censurabilidade do seu comportamento porque é esse o comportamento
padrão do seu desenvolvimento, é essa a sua situação familiar. E nessas
situações, corta-se o lado afectivo?

P-4: Não... Cada caso é um caso e se digo que em metade das


situações são eles próprios que dizem que estão melhor e que se sentem bem
na instituição, sempre que possam ter meios de não ficar e se entenda que não
há razões para tal institucionalização, então a mesma não deverá ser
determinada.

P-6: Estava aqui a ver alguns dados estatísticos que vamos recolhendo,
para ajudar, sem dar a minha opinião sobre nada disto que a darei mais para a
frente, mas, por exemplo, sobre a composição do agregado familiar dos jovens
que estão internados. Isto são dados de 30 de Abril do ano passado, mas
digamos que não difere muito. 51% dos jovens que estavam internados, a
relação com o agregado familiar era de apenas com um progenitor. Com
ambos os progenitores só 30% dos casos. 10% estavam com os avós. Com
outro familiar 5%; 1% em famílias de acolhimento; em outras situações ou
desconhecidos 3%. Ou seja, mais de metade destes miúdos não tinham, no
momento em que foram para a instituição, uma família nuclear organizada. Só
para dizer, relativamente ao agregado familiar de onde provinham, podendo
51% ser só um dos pais, não obstante isso, a composição do número de
elementos dos agregados familiares, também é um elementos importante, é
assim: com 4 ou inferior a 4 elementos, 44%; de 4 a 6 elementos, 35%; com
mais de 7 elementos, 20%; e desconhecido 1%. Só para dar mais um dado que
pode ser útil, peço desculpa estar a roubar tempo, relativamente à cor do
crime, 62% dos miúdos são de etnia branca, europeia, sem problemas de
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 50

outras cores, sem outras proveniências; de ascendência africana, 32% e de


etnia cigana 6%.

OPJ: Pela nossa investigação, e aliás, os seus dados vêm provar isso, a
maioria são crianças oriundas de famílias com problemas sociais e
económicos. Contudo, se nós olharmos para a comunicação social, muitos dos
crimes ou de violência com alguma gravidade são cometidos por jovens, que
não são só dessas famílias. Eu pergunto, onde é que eles estão? Como
também é óbvio, não chegam ao sistema judicial e porquê é que não chegam
ao sistema?

P-8: Estamos perante jovens que vêm de famílias estruturadas, que são
modelos sociais a seguir, o que leva logo as autoridades a encararem a
situação de modo diverso. A família “ até é boa”, não vale a pena estar a
intervir, é desnecessário e o que ocorreu foi “ um lapso “

P-6: Fazemos a pergunta ao contrário: quantas famílias destas que


estamos a falar, têm capacidade para se organizar com o seu filho e para
apresentar um plano de conduta para a suspensão do processo? Façamos isto
ao contrário. Assim, quantos destes miúdos e seus pais conseguem organizar-
se para, em crimes até 5 anos, apresentar um plano de conduta que permita ao
Tribunal suspender o processo?

P-9: Eu aí penso que o Ministério Público pode ter um papel importante.


Pode tentar ver se o miúdo adere. É evidente que se ele disser “Não adiro”,
aí...

P-5: Isso é a maneira prática de resolver uma coisa que a Lei não diz.

P-7: Eu já lá tenho informação sobre isso.

P-9: Muito fácil...


Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 51

OPJ: Isso o que é, Sr. Dr.?

P-7: Eu já tenho informação sobre isso no geral.

P-9: Eu não sei como é que os meus colegas fazem. Agora em todas as
minhas suspensões, o projecto fui eu que o propus, porque é como a Sra. Dra.
diz, eles não têm capacidade cultural para apresentar um projecto desses.

P-2: Mas o problema tem uma densidade maior. É que nós não
podemos olhar para esta situação com algum cunho paternalista. Muitas vezes,
por razões que as pessoas próprias criaram, não são capazes de se organizar.
E já não se trata de empurrar dinheiro, de empurrar apoios para aquelas
famílias. Por força de todo o conjunto de circunstâncias que atravessaram ao
longo do tempo, criaram uma inércia que dificilmente lhes consegue permitir
dar o impulso.

OPJ: Mas eu pergunto, Sr. Dr., a intervenção a nível de uma aplicação


de uma medida à criança, resolve esse problema?

P-2: Eu compreendo o dilema em termos intelectuais, em termos de


lealdade com a Lei.

OPJ: Tem a ver com as práticas.

P-2: Em termos práticos, tenho muita dificuldade em conseguir


seleccionar o que fazer. O que eu faço diariamente é seguir, mais ou menos,
as regras.

OPJ: O que é que lhe falta para ser diferente, Sr. Dr.? Para poder ser
diferente? O que é que lhe falta para nós termos, de facto, uma resposta
diferente mais eficaz?
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 52

P-1: Falta tudo. Falta tudo.

P-10: O pai na cadeia, a mãe presa, quem é que decide?

OPJ: E a Segurança Social, Sra. Dra.? Onde é que entra a Segurança


Social?

P-1: O problema é esse...

OPJ: Mas aqui é um problema também, de facto, da Segurança Social.

P-1: Não. É um problema de cidadania, Sra. Dra..

OPJ: Então?

P-1: É. Porque só temos uma forma de ultrapassar isto, é apostar na


prevenção e a prevenção faz-se a vários níveis. E apostar na prevenção custa
caro.

OPJ: Mas a aplicação de medidas também custa dinheiro, Sra. Dra..

P-1: Por isso mesmo. É que na aplicação de medidas, na Lei Tutelar


Educativa desconheço, coloco-me apenas como espectadora, mas na Lei de
Promoção e Protecção, a aplicação de medidas custa caro e custa mais caro
do que a prevenção seguramente. Temos os custos resultantes da
disfuncionalidade familiar, da (...) doença mental, da infelicidade, da falta de
colo e de tudo dos nossos meninos. Posso dizer que no universo que
trabalhamos, neste momento em Coimbra, temos 943 processos de promoção
e protecção (dados da semana passada), em cerca de 300, os menores têm
mais de 14 anos. Muitas das crianças são sinalizadas quase a seguir a
nascerem, ou muito próximas disso, mas das medidas aplicadas de pp, a que o
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 53

Tribunal privilegia é a de colocação em família alargada. Ora, é duvidoso que a


melhor resposta encontrada tenha de ser, prioritariamente, na família biológica.
Creio que nós não podemos pensar que a família alargada é o melhor ou que a
família tem mais direitos, ou ainda que a instituição é melhor. Temos que tentar
ver o que é melhor para aquela criança, com aquela estrutura familiar e suas
características definir o seu projecto de vida. Para muitos dos jovens com mais
de 13 anos, com pp, que estão em instituições, temos pedidos do Tribunal para
indicar outra instituição para os colocar, porque aquela onde se encontram diz
que ele está a agredir e a prejudicar os seus pares lá dentro. Muitos deles
foram lá colocados pelos avós, pelos tios, que quando eles eram pequeninos
disseram que gostavam muito deles e queriam ficar com eles, só que a sua
incapacidade, educativa e até de afecto, e de (...) levou a que quando eles
chegam aos 9/10 anos, por força do contacto com a realidade, exterior à
estrutura protectora da avó e do avô, estes não se sentem capazes de
continuar a tarefa educativa a que se propuseram e recorrem aos serviços e
aos Tribunais para o seu internamento em instituição.”

OPJ: Sra. Dra., há, claramente, aqui um problema de intervenção a


montante que, obviamente, tem a ver com a questão de saber como é que o
Estado está a resolver ou a dar resposta, e que tipo de resposta, ao problema
das crianças que não podem crescer na sua família biológica. Como é que o
Estado está a olhar para as instituições de solidariedade social? Como é que o
Estado está a olhar para o problema da adopção? Mas, o que eu lhe pergunto
é: como é que a Segurança Social, se está a articular ou se é que está ou se
deve ou não deve articular no âmbito da Lei Tutelar Educativa. Por exemplo, o
Ministério Público recebe uma queixa de uma criança que furtou um telemóvel
ou fruta ou uma coisa qualquer, já vimos que grande parte dos ilícitos tem a ver
com isto, não violentou ninguém, não há aqui violência física, (...) o Ministério
Público olha para aquela situação e vê que há ali uma situação clara de
problemas sociais, económicos. O que é que o Ministério Público faz?

P-5: Deve abrir um processo.


Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 54

OPJ: Como é que se articula com as outras instituições? Como é que


isso se está a fazer? Eu gostava de vos fazer esta provocação, o processo
tutelar educativo não devia ser, de facto, para casos muito extremos, muito
excepcionais, muito contados, de facto, de situações muito, muito específicas.

P-1: À provocação eu vou-lhe lançar outra. Nós temos uma instância


para-judicial que são as CPCJs. A sinalização, como sabem, é feita à CPCJ e
referindo uma situação recente que foi o caso de uma criança de 5 anos que
estaria a ser objecto de maus tratos chegando ao infantário com nódoas
negras. A equipa da CPCJ procurou informar-se, recolheu todos os relatórios,
verificando tratar-se duma família onde há 3 crianças muito pequenas (3
meses, 3 e 5 anos). Após a recolha de toda a informação, chamou lá os pais e
eles disseram que não autorizavam que a CPCJ interviesse. Ora, a ideia era
que o projecto de intervenção precoce fizesse o acompanhamento daquela
criança, sobretudo das mais pequenas, pegando na família e tentando ver o
que era possível fazer relativamente a estas 3 crianças, considerando que esta
família é conhecida há 3 gerações com disfuncionalidade. Como não
autorizaram a CPCJ a intervir, esta mandou para o Tribunal, este por sua vez
mandou para a Segurança Social, que também está representada na CPCJ,
não é? Mas, neste momento, iremos tentar trabalhar com quem? Com o jardim
de infância onde a criança está, com o projecto de intervenção precoce, que já
estava a fazer acompanhamento do menino de 5 anos e vamos tentar,
efectivamente, perceber qual é a dinâmica e se é possível ainda fazer algum
diálogo com aquela família. Ou os culpabilizamos porque já houve situações
anteriores, de violência, relativamente a um dos filhos mais velho que,
entretanto, foi encaminhado para adopção. Agora temos ali estas 3 crianças e
ninguém pode fazer qualquer intervenção sem os pais autorizarem e aceitarem
a intervenção.

OPJ: Sim, mas a magistratura do MP tem competência para intervir.


Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 55

P-1: Deve-se conseguir ganhar a família e fazer um trabalho de forma a


que não haja necessidade de intervenção judiciária. Essa é que é a questão,
não é? E se nós tivermos meios e conseguirmos poderia a evolução do
processo no Tribunal ficar em stand by. Aqui é uma das tais situações onde os
Tribunais poderiam ter intervenção de 2ª linha.

P-6: Mas maus tratos é crime, que eu saiba.

P-1: Sem dúvida e se não for possível alterar a situação, então sim
suscita-se a intervenção do Tribunal para assegurar outro tipo de protecção. O
que não podemos é ter que estar dependentes de autorização dos pais para
poder intervir.

P-5: Preciso compreender o que é que está a dizer. São dois níveis mas,
obviamente que aqui há um nível que está para além das decisões do Tribunal
que pode passar pelo julgamento do crime. O julgamento de crime não resolve
a questão essencial. Pode ajudar ou não, mas não resolve o essencial.

P-6: Eu acho que a Sra. Dra. tem razão. Nós confrontamo-nos todos os
dias com os colegas que intervêm no terreno em outras áreas. Efectivamente,
a dificuldade é a de conseguirmos conjugar esforços, no tempo e no espaço,
de modo que não se percam as intervenções todas. Porque quando um vai
intervir, o outro já interveio e o outro ainda só daqui a 2 anos é que pode
intervir. E, portanto, andamos a gastar todos dinheiro ao Estado...

OPJ: Exactamente.

P-6: ... para fazer coisas desfasadamente que depois só conjugadas é


que poderiam dar alguma coisa. Isto é um primeiro problema (...) do país que
temos e daquilo que conseguimos ter e do que não conseguimos ser. Mas
digamos que eu concordo aqui com a Sra. Dra. quando fala na prevenção, mas
este discurso eu, peço desculpa, é como o discurso que ouvia há uns anos
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 56

atrás relativamente à toxicodependência. É preciso é fazer prevenção nas


escolas. Temos que tratar os que já estão. E, portanto, é assim: um e outro não
se anulam. E, portanto, o facto de eu também achar que a intervenção precoce
é a que, estatisticamente e cientificamente, está provado que pode dar
melhores resultados, não podemos agora é orientar tudo para ali e, digamos
assim, esquecer aqueles que carecem de uma intervenção actual, mesmo que
tivesse sido muito melhor intervir antes. E isso aqui é daquelas coisas que nós
sentimos que a intervenção do Estado, no âmbito das instituições que directa
ou indirectamente têm essa competência do Estado, no âmbito da
adolescência, é deficiente.

OPJ: Mas, como é que a Sra. Dra. vê esta questão atrás referida da
subversão dos objectivos da Lei Tutelar Educativa?

P-6: Eu há pouco já tinha levantado a questão, quase


provocatoriamente, que é a para que serve o regime aberto? Porque o regime
aberto é, no fundo, uma instituição de “protecção” da área da justiça. Quando
não é o semi-aberto ou o fechado. Mas deixamos agora de lado essa questão.
Eu diria: a idade dos meninos em centro educativo tem vindo a crescer e
continuará a crescer. Neste momento, a faixa dos 16, 17 anos e dos de mais
de 18 anos, já é maior que a faixa anterior. E, portanto, o que nós temos que
fazer é esquecer as famílias. O que nós temos que fazer é dar alguns
instrumentos a estes rapazes para serem alguém na vida.
A medida de apoio à autonomia de vida, por exemplo que, está na Lei de
Protecção, não está regulamentada, é uma das coisas importantíssimas, se
calhar, para conjugar com este esforço. Com o esforço da formação
profissional, com o esforço de algum fortalecimento de competência pessoal e
social que estes jovens têm. Se calhar o que nós temos mesmo que fazer é
dizer assim: “Ok, a tua família é boa. Vem-te visitar, não sei quê, mas tu próprio
reconheces que não há ordem, nem lei, nem arrumação na tua casa. Portanto,
vamos lá ver é se tu consegues um trabalhito, um sítio onde tu consegues
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 57

dormir, organizar a vida...”. O melhor que acontece a estes rapazes é


arranjarem uma namorada, cuja família seja um bocadinho melhor que a deles.

OPJ: Como é que em regime fechado conseguem arranjar uma


namorada?

P-6: Já têm muitas vezes.

OPJ: Como?

P-6: Têm visitas. Sra. Dra. não me pergunte isso que não fui eu que
inventei o regime fechado. Mesmo no regime fechado eles têm contacto com
pessoas e têm visitas e têm correio e fazem telefonemas, e têm a expectativa
de não ter que cumprir os 3 anos em regime fechado, que é uma coisa muito
importante... E, pronto. E o que eu lhe estou a dizer é assim: a família, as
famílias que nós temos são, na maior parte dos casos, famílias em que elas
próprias carecem de intervenção. E carecem de ajuda. É assim: o Instituto fará
alguma coisa mas não pode ir salvar aquelas famílias. Não é para isso que a
justiça serve.

OPJ: E como é que isso se articula com a Segurança Social?

P-6: Neste momento, deixámos de fazer parte das comissões do


rendimento social de inserção. Era uma coisa extremamente importante que a
justiça estivesse no rendimento social de inserção. Na nova Lei, a justiça saiu
fora. Não tem nada a ver com aquilo. Eu pergunto: se não tem nada a ver com
aquilo, como é que nós nos articulamos?

P-10: Os ministros até são amigos.

P-6: Isso não tem nada a ver com as amizades. Tem a ver com uma
filosofia, uma concepção. O rendimento social de inserção deixa de ser
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 58

concedido com o trânsito em julgado de uma decisão condenatória em pena


privativa e não diz que se transfere para o outro elemento do agregado familiar.
O agregado que era chefiado por um adulto que estava no rendimento social
de inserção, deixa de ter rendimento social de inserção com a entrada na
cadeia e, portanto, é esta articulação de políticas que eu acho que temos de
fazer, na prática, no dia a dia, no terreno, mas também ao nível das filosofias,
sob pena de andarmos a gastar muito dinheiro, todos, e esse dinheiro não dar
para 1/10 daquilo que podia dar se houvesse conjugação de esforços.

OPJ: Como é que a Sra. Dra. vê esta questão? Muitas vezes, no âmbito
da aplicação da Lei Tutelar Educativa encontramos situações que deviam voltar
para a protecção. Deveria haver aqui um chapéu. Como é que a Sra. Dra. vê
isso?

P-10: Eu espero que este seja o primeiro de mais encontros. Realmente


algumas das questões obrigam a que nós vamos reflectir para casa. Penso que
essa articulação entre a LTE (Lei Tutelar Educativa) e a LPP (Lei de Protecção
de crianças e jovens em Perigo), apesar de já haver, na Lei Tutelar Educativa,
uma previsão - artº 43º, nesse sentido. Sempre que haja uma situação em que
se mostre adequada uma medida de protecção, o MP tem o dever de requerê-
la, de acordo com este dispositivo.
Penso que quando se chega à conclusão de que o miúdo fica sem
protecção nenhuma, tem de instaurar-se uma acção de promoção e protecção
se ainda não houver nenhuma. No entanto, entendo que esta prática tem de
ser desenvolvida. Da mesma forma deverá haver regulamentação da Lei, por
exemplo, a medida de autonomia de vida, têm que ser criados lares
residenciais nos dois serviços, nos serviços da Segurança Social e nos
Serviços da Justiça. Lares residenciais para que na altura do fim da medida em
que o miúdo ainda não tem a suficiente autonomia e precisar de um certo
acompanhamento, ter uma garantia de suporte enquanto for necessário.
É preciso que sejam criados lares desse tipo, que já havia, mas que,
segundo creio, foram encerrados na altura da transição. Esses lares, criados
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 59

no âmbito da Lei Tutelar de Menores desempenhavam um papel importante.


Eram lares residenciais que serão sempre necessários tanto no sistema de
protecção como no sistema educativo.

P-6: Temos pelo menos 5, não é?

P-10: Até à autonomia de vida, para o êxito dessa autonomia de vida


eles são imprescindíveis.

P-6: Mas não é para execução de medidas tutelares educativas.

P-10: Não. Por amor de Deus. É para preparar os miúdos para a vida.
Para não se prolongar artificialmente nenhuma medida, porque o miúdo pode
estar educado para o direito e não estar preparado e não ter suporte familiar
para a verdadeira autonomia.

P-1: E não ter nada na retaguarda.

P-10: Porque nós temos que contar com algum equilíbrio por parte dos
magistrados. Nós não podemos pensar que eles não fizeram tudo o que estava
ao seu alcance para evitarem a medida de internamento. Portanto, quando se
chega à medida de internamento é porque já não há mesmo mais nada.
O internamento é o final. O que eu penso é que também temos de ver
que há muitas situações em que os miúdos já estão em instituições de inserção
continuamente, não é? E eu lembro-me de um caso que tive de uma
adolescente em que no processo de promoção andavam sempre a pressionar,
a perguntar quando é que eu providenciava no sentido do seu internamento em
PTE (Processo Tutelar Educativo). Os ofícios diziam que ela tinha cometido
crimes de roubo graves. Afinal não tinha cometido nada.

P-6: Essa tem graça.


Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 60

P-10: Eu própria me convenci que a miúda era uma perigosa


delinquente. Através de mandados para interrogatório, durante 15 dias procurei
ouvi-la e um dia a polícia conseguiu trazê-la ao Tribunal e cheguei à conclusão
que ela não tinha praticado nenhum dos crimes que lhe atribuíam.

P-6: Ela foi rejeitada na instituição.

P-10: Ela era rejeitada na instituição, tinha sido abusada por um tio e
tinha fugido de casa porque a madrasta lhe batia, quer dizer, era um caso em
absoluto do sistema de protecção. O certo é que o sistema de protecção não
estava a responder de forma adequada e por isso os Magistrados no processo
de promoção pressionavam a guarda cautelar em inquérito. A rapariga acabou
por voltar para casa porque o pai entretanto se tinha separado. Isto é claro: por
um lado, não devia ir para a instituição onde não a queriam, por outro, também
não devia apenas por indisciplina ir para uma instituição da Justiça.

P-1: Com certeza foi lá colocada pelo pai, não é?

P-10: Como?

P-1: Para a instituição onde com certeza foi colocada pelo pai?

P-10: Não, não. Ela fugia de casa e foi essa a razão da


institucionalização. O que pretendi foi referir que a mera indisciplina também
não deverá fundamentar nunca a medida de internamento em Processo Tutelar
Educativo. Quer dizer, para a enorme pressão por parte do processo de
promoção foi causada em parte por não haver estruturas diferenciadas,
respostas diferentes para situações diferentes.

P-6: Mas Sra. Dra. no terreno é que se faz...


Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 61

OPJ: A relação entre a protecção e digamos assim, mais a parte da Lei


Tutelar Educativa, o que é que falta para que ela exista de facto ?

P-10: Penso que, de facto, há possibilidade de ser feito um grande


investimento nesta matéria do acolhimento institucional e acho que isso é
absolutamente necessário. Tem de haver estruturas mais contentoras,
designadamente para adolescentes em fuga mesmo na Segurança Social.
E há uma questão com a qual as Comissões de Protecção têm agora de
lidar, mas que algumas ainda não se aperceberam, é que têm de dar resposta
aos casos de miúdos que praticaram crimes antes dos 12 anos.

P-6: Se os pais autorizarem.

P-10: Às vezes também é. Como?

P-6: Se os pais autorizarem.

P-10: Pois, exactamente.

P-6: É isso que eu estou a falar...

P-10: É isso que eu queria focar, é, quando a Sra. Dra. ... diz “Para que
é que serve o regime aberto?”, eu acho que há um lugar para o regime aberto,
quer dizer...

P-1: Eu também acho.

P-10: ... se houver uma intervenção precoce, se não se começar a


aplicar as medidas só aos 14 e aos 15, se se começar mais cedo, é possível
que o regime aberto seja uma solução para os miúdos pequenos.
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 62

Há miúdos que já praticavam furtos e que estão, por exemplo, numa


instituição e que não se conseguiu fazer nada. Ouça, eu posso achar que é
errado não se ter conseguido.

P-6: Peço desculpa.

P-10: Nós somos confrontados com uma situação em que, de facto,


porque não se conseguiu actuar, porque é difícil actuar, não se conseguiu e o
miúdo desde os 9 que anda a praticar roubos e já anda com facas, faz
pequenos furtos. Então não tem que ser aplicado um regime educativo?
Porque é aí que está o papel tutelar do Estado.

P-6: Isso aí, Sra. Dra., desculpe lá, é o Estado que tem que actuar.

P-10: O Estado teve a preocupação de dar formação a técnicos na área


do sistema educativo, no Instituto de Reinserção Social, mas não fez isso na
Segurança Social pelo menos tão sistematicamente. As metodologias
adequadas para o tratamento dos casos que reclamam mais contenção e
disciplina têm de ser adquiridas e o pessoal para ser especializado tem de ter
formação específica. E o Estado terá de fazer isto sob pena de ...

P-9: Isso não é exacto. O que a Sra. Dra. disse há bocado é que nós
somos todos irresponsáveis no terreno...

P-10: ... de ser questionado acerca das medidas, do investimento que


vai ser feito...

OPJ: Só um bocadinho... Mas Sra. Dra. acha que a solução...

P-10: Sim...
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 63

OPJ: ...era não fazer, digamos assim, esse investimento a montante


mas...

P-10: Não! Eu acho que deve ser feito. Agora não sei é se podemos
contar com isso porque nós neste momento não temos nada, não é?

P-6: Mas temos de exigir que seja feito, não é?

P-10: Sim.

P-6: E então a solução era despedir as assistentes sociais? Mas, Sra.


Dra. eu para lhe tirar a dúvida das idades, é assim: os meninos que estão em
regime aberto, 12-13 anos, 1; 14-15 anos, 9; 16-17 anos, 16; e mais de 18
anos, 6.

P-10: Pois. O regime aberto, neste momento, tem funcionado como


prémio.

P-9: Quando eles se portam bem, obviamente...

P-6: É uma decisão inicial, como decisão inicial...

P-10: Sim...

P-6: ... não como resultado de modificação do semi-aberto, quando a


decisão inicial...

P-10: Ah! Está bem.

P-6: Nestes 3 anos foram aplicadas 70 medidas de regime aberto como


decisão inicial.
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 64

P-10: Quer dizer, nós ainda não conseguimos, ainda não conseguimos
ter isso completamente esquematizado, como é óbvio. Eu não tenho esses
dados. A reflexão que tenho feito, é de que devíamos incentivar o regime
aberto se conseguíssemos actuar mais cedo.

OPJ: Mas Sra. Dra. deixe-me colocar-lhe uma questão muito concreta; a
Sra. Dra. tem responsabilidades ao alto nível nesse aspecto e deixe-me colocar
uma questão muito concreta. Na sua perspectiva...

P-10: Quer dizer...

OPJ: ... quer dizer, é Presidente da Comissão.

P-10: Eu ainda só reuni a primeira vez com staff há dois dias, portanto...

OPJ: Eu sei, Sra. Dra..

P-10: Só foram nomeados todos os membros há uns dias, portanto, esta


avaliação não tem ainda nada a ver com a minha experiência como Presidente
da Comissão.

OPJ: Deixe-me só perguntar... Mas é uma responsabilidade em termos


práticos que obviamente ainda está a acontecer no seu caso.

P-10: Exacto.

OPJ: O que é que a Sr.ª pensa sobre o assunto... Eu gostaria de lhe


perguntar, na sua perspectiva, nestes casos em que nós estamos aqui a referir
que, de facto, já vimos aqui, não vamos fugir à questão, há várias situações,
realmente, de que, aquilo é claramente uma questão de protecção, digamos
assim, independentemente da existência de um facto ilícito ou não mas, quer
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 65

dizer, o que é que está, o que é que levou àquela situação, do que
propriamente de uma punição no sentido da ...
Sra. Dra. não, não precisamos de alterar a Lei porque repare, já
verificámos que, por exemplo, ao mesmo facto, por exemplo um furto, podem
ser aplicadas medidas muito diferentes.

P-10: Mas é obrigatório que haja um inquérito...

OPJ: Sra. Dra., deixe-me perguntar. Na sua perspectiva, e a relação


intra-institucional tem a ver com isso, na sua perspectiva, deve haver uma
maior canalização de esforços para garantir uma maior, digamos assim, um
investimento maior ao nível da protecção?

P-10: O que eu propus ao Sr. Ministro ainda está em esboço. Entendo


que se devem criar estruturas diferenciadas na Segurança Social para
podermos responder aos miúdos com necessidades especiais de educação,
com problemas de comportamento, quer no âmbito do consumo de
estupefacientes ou outros tóxicos, miúdos de rua, miúdos com problemas de
comportamento e com pequenos delitos. Há miúdos com graves problemas de
indisciplina que todos nós reconhecemos que não devem estar nas mesmas
estruturas onde estão os miúdos que são maltratados. Portanto, porque são
mais velhos, com problemas de adesão aos projectos educativos propostos e
que, por isso, são mau exemplo para os miúdos que lá estão por outras causas
e porque os técnicos, que se reconhece que ainda não têm adequada
capacidade para lidar com essas situações mais pesadas, tem de ser criadas
estruturas na Segurança Social para esses miúdos com dificuldades de
integração. Agora, eu penso que o limite terá de ser sempre a prática de
crimes. A prática de um crime tem de ser o limite para o acolhimento no
sistema da Segurança Social.

P-6: Mas as práticas...


Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 66

P-10: A intervenção do Estado no sentido de educação para o direito é


fundamental, ou então temos de alterar toda a filosofia da lei.

P-6: Mas a prática de crimes, o que é que, repara, a prática... Isso é uma
discussão...

P-10: Sim.

OPJ: Sra. Dra. a prática de um crime...

P-10: Exacto.

OPJ: ... de um furto de uma maçã, é um furto...

P-10: E tem acompanhamento educativo, por exemplo.

P-6: Sra. Dra. mas acha que o furto de uma maçã...?

P-10: Deverá ter a resposta que for entendida adequada e necessária,


mas no âmbito de Processo Tutelar Educativo.

P-1: Sra. Dra. se ele furtou a maçã é porque anda com fome. É essa, é
essa... Quantas vezes... Não diga que nunca colheu uma flor no jardim!

P-10: Já percebi... Se querem retirar alguma coisa que eu não disse


daquilo que eu disse, é convosco, sendo certo que tenho de sair. Agora, o que
eu disse, acho que se deve insistir mais num sistema da Segurança Social,
criando estruturas especializadas para esse efeito, que não há, porque o
sistema da Segurança Social em Portugal está muito na base da rede social
privada, e eu acho que o Estado tem a responsabilidade e tem que conseguir
acolher com qualidade as crianças com diferentes problemas.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 67

OPJ: Mas Sra. Dra. deixe-me precisar para perceber a sua perspectiva.
Mas desde que haja o conhecimento do ilícito, estou-lhe eu a perguntar, não
estou a afirmar que a Sra. Dra. disse isto, estou-lhe a perguntar...

P-10: Sim...

OPJ: Desde que haja o conhecimento de um ilícito criminal, seja ele


educativo ou tutelar, não deve estar nessa alçada, é isso?

P-10: Sra. Dra. se se arquivar o processo por falta de legitimidade, não


há educação para o direito, mesmo que ela seja necessária. Portanto,
enquanto não for alterada a norma relativa à legitimidade não se consegue
aplicar a Lei no que respeita à necessidade de educação para o direito, visto
que os adolescentes iniciam o percurso criminoso através da prática de furtos,
que como já referi revestem natureza semi-pública.

OPJ: Então defende aqui uma maior articulação, quer do Ministério


Público...

(...)

P-2: É evidente que aqui o juiz tem que ter alguma lógica. Nós não
podemos ver se num roubo houve um conjunto de circunstâncias
completamente estranhas, que é um juiz completamente insensível e que
aplica uma medida tutelar extrema, a mais gravosa, a um ilícito até
aparentemente de menor gravidade sem um motivo que pareça especial. Que
haja um magistrado do Ministério Público completamente desatento e que
tenha requerido um internamento, que haja técnicos que tenham colaborado e
que tenham realizado perícias neste sentido e favorável ao internamento e,
portanto, há aqui qualquer coisa que tem que dar unidade a isto. E o que dá
unidade é o facto da inexistência de alternativas e é um problema de eficácia
mais do que estarmos a argumentar com (...) o enquadramento melhor ou pior
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 68

do, da... Se estamos ou não a distorcer ligeiramente o processo tutelar


educativo, é um problema que se coloca ao magistrado. O que é que é melhor
para aquela criança se, apesar de tudo, é o internamento ou a situação em que
está?

P-1: Exactamente.

P-2: E é esta a realidade com que nós nos debatemos. Podemos admitir
que subvertemos, nessas circunstâncias, a Lei mas porque o sistema
subverteu a forma como as coisas estão estruturadas. Se a Segurança Social
não tem, se eu peço à Segurança Social: “Indique-me uma instituição para
acolher este miúdo com problemas comportamentais gravosos”. Para estas
situações, a Segurança Social diz-nos: “Sr. Dr. não tenho. Nós não temos
instituições vocacionadas...” ou então tenho casos que, aquilo que vimos,
obviamente, que não aceitam este miúdo porque irá contribuir para problemas.

P-1: Vai agredir os mais pequenos.

P-2: De facto, tem de haver um esforço. Não temos resposta e é este o


problema. Portanto, não se trata aqui de darmos a primazia ao processo tutelar
educativo como se ele estivesse a ser utilizado de forma grosseira para atingir
determinados objectivos, é que nós precisamos que funcione com outro
sistema para deixarmos de continuar a ter estes processos.

P-3: Só para acrescentar àquilo que o Sr. Dr. acabou de referir, está-se
a partir de um princípio, do meu ponto de vista, errado, que é a necessidade do
processo tutelar educativo e a necessidade do juiz aplicar determinada medida
só para punir o furto de uma laranja ou só para punir uma apropriação ilegítima.
Deu este exemplo, de um crime que não tem grande gravidade, a apropriação
ilícita de coisa achada, nem é crime de grande gravidade para os maiores, e
muito menos para os menores.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 69

Por isso é que eu perguntava à Sra. Dra., porque não vi a decisão, se a


única coisa que se diz na decisão é que o menor praticou esse facto, esse
crime e não se diz mais nada. Não se justifica, porque é que num crime destes
se optou por uma medida de internamento, que é a mais gravosa, se bem que
na sua forma menos gravosa, que é o internamento aberto? Portanto, sem
querer estar a pôr em causa o que a Dra. disse, naturalmente, não vi a decisão,
mas também temos que partir do princípio que as pessoas que estão a aplicar
a Lei, a aplicar o direito, são pessoas que o fazem de uma forma ponderada e
não é por dizer “Há um crime aqui que é punido até um ano" que ao menor
será aplicada uma nova medida de internamento”.

P-6: Sra. Dra. entenda-me nesta perspectiva. Com isto nós nunca
questionamos decisões dos Tribunais na sua execução. Quando eu dou aqui
este exemplo, não é para isso. Nós existimos para servir os Tribunais e
executamos qualquer decisão independentemente do resto. O que não significa
que não compreendamos as motivações, eu disse-o já há bocado e volto a
dizer, e os dilemas que os magistrados têm. Nós próprios às vezes nas
avaliações temos esses dilemas porque não há alternativa e isso não significa
que não executemos o melhor possível e dentro de toda a lógica aquilo que
temos a executar. O que nós questionamos é: como é que explicamos isto aos
miúdos em termos de comparabilidade? Como é que estamos a usar, digamos
assim, o míssil tão alto para um problema que, se calhar não é tão grave.

P-4: Sei que é uma justiça relativamente complicada...

P-6: É complicado de gerir. É só isso.

P-4: Esta subversão, que eu continuo a achar que existe, da minha parte
e de alguns colegas, é porque, de facto, o processo tutelar não tem que ser
iminentemente um processo protector e, portanto, nós subvertemos a Lei
quando damos a tónica a essa noção de protecção. Agora, eu faço-o
assumidamente. As razões que me levam a isso são, precisamente, o facto de
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 70

nós, em sede de promoção e protecção, acabarmos por verificar que nem


sempre essas medidas apresentam a eficácia desejada, nem sempre se
mostram adequadas a algumas realidades pré-delinquenciais, enquanto que os
centros educativos revelam-se eficazes. Porque é que os recomendamos?
Porque os centros educativos funcionam.

P-6: Estão cheios.

P-4: Esses centros educativos funcionam e estão preparados e


vocacionados para tratarem com menores em situação limite; de facto,
conseguem dar uma resposta muito melhor do que qualquer outro colégio no
âmbito da protecção. Passa-se seguramente isto. Normalmente, em casos
extremos de promoção e protecção em que o menor furta em casa (não
havendo apresentação de queixa por parte dos familiares), anda a noite toda
por fora, mas não tem apoio familiar estruturado, interrogamo-nos: “ O que é
que nós fazemos a este fulano?”, até parece que estamos à espera que ele
seja apanhado pela polícia para a partir daí intervir. Isso aconteceu. E depois, é
claro: vai para o centro e depois acalma. (...) Dá-me ideia que em sede de
promoção e protecção, para determinadas situações, devia haver hipótese
também de aplicação de medidas que previssem alguma contenção.

P-1: Claro, claro.

P-2: Plenamente de acordo.

P-1: Eu compreendo que a Sra. Dra. já esteja farta da palavra


prevenção. Eu também estou, se a encararmos como a panaceia universal.

P-6: Aliás, a nossa função é também prevenir.

P-1: Se não apostarmos na prevenção, ou seja se não alterarmos a


estrutura educativa, os conteúdos curriculares, as nossas escolas e suas
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 71

formas de actuação, não há intervenção protectora que nos salve, porque a


maior parte dos nossos meninos que têm processo de promoção e de
protecção começam a apresentar atitudes disfuncionais e a porem-se em
perigo quando iniciam a escola primária. Não são só os professores que não
sabem ou não têm gosto por ensinar. Os conteúdos curriculares não são
apelativos. Por um lado, a sociedade dos media motiva as crianças só para um
tipo de coisas, que tem sobretudo a ver com a imaginação, não há
obrigatoriedade da memorização, começa porque não há obrigatoriedade de
nada, nunca, quase desde que eles entram para a escola primária. Ainda o
único sítio onde começa a haver regras para os miúdos é no jardim infantil,
porque a educadora consegue. Mas depois, muitas vezes, eles chegam a casa
e os pais estão cansados e querem é que eles comam rapidamente, dar-lhes
banho, enfiá-los na cama. Quando lhes dão o banho e os enfiam na cama,
porque muitos há que se vão deitar apenas com um copo ou um biberão de
leite. Por isso, quando eu digo prevenção, é prevenção em toda a linha e
envolvendo todos os serviços e instituições e não só a Segurança Social. É a
sociedade civil de uma maneira geral. É a cidadania. Temos de pensar que, por
muito que o Estado invista, por muitas equipas técnicas que existam, por muito
dinheiro que seja distribuído às pessoas, a situação de risco e disfunção social
não desaparece, é na educação que está o segredo. Nós sabemos que a
nossa classe média alta, e média mesmo, não é por falta de dinheiro que
efectivamente não dá atenção aos filhos. Ora bem, nós, na prevenção, temos
que garantir e manter minimamente colo e afecto, regras e ambiente protector
e segurança. É preciso fazer alguma coisa nesta matéria, pois podemos ter um
batalhão de técnicos nas instituições da Segurança Social, dos que agora
existem e de outros que viermos a criar alternativamente podemos criar tudo o
que quisermos, e isto irá de mal a pior. De entre o universo de menores com pp
que a Segurança Social acompanha, 56 apresentam já práticas de
delinquência, consumo e pequeno tráfico de drogas, roubo e agressão. Desses
56, 90% deles tem famílias desestruturadas, monoparentais, normalmente
mães ligadas à prostituição, totalmente ausentes. Quando os filhos chegam a
casa não encontram ninguém, quando elas saem para o trabalho da noite,
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 72

chegam eles a casa, chegam lá e não está ninguém entram voltam a sair
também.

OPJ: O que a Sra. Dra. defende é fazer aqui uma maior intervenção...

P-1: Uma maior intervenção em contexto educativo.

OPJ: No contexto educativo de quem? Do jovem? Da família?

P-1: Do menor. Nós temos que começar pelos menores porque há


muitos pais que já não vale a pena investir neles, eles não querem.

OPJ: E como é que isso se faz? Os jovens estão ligados a quê? Qual é
a sua estrutura de ligação?

P-1: Pequenas estruturas de lar, pequenos lares, com um referencial


materno e paterno, se possível, enquadrados e apoiados por técnicos
qualificados para o efeito.

OPJ: A Sra. Dra. defende que exista uma rede de casas onde os jovens
sejam acolhidos.

P-1: Exactamente. Pequenas casas. Pequenos apartamentos, onde se


consigam colocar estruturas o mais parecidas possível com o ambiente
familiar, como uma família.

P-6: Eu subscrevo 120% ou 150% o que a Sra. Dra. disse relativamente


à protecção. A minha preocupação é que não deitemos fora o bebé com a água
do banho, quer dizer, temos que prevenir aqueles mas temos que prevenir para
não chegarem ao crime na idade adulta. Ou seja, temos que trabalhar nas duas
frentes.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 73

OPJ: Gostava de ver um pouco, convosco, qual é o balanço que os Srs.


Drs. fazem sobre a eficácia das medidas que são aplicadas. Como é que nós
vamos prevenir que eles não sejam clientes do sistema prisional?

P-5: Penso que existe, e isso já foi aqui dito claramente, que há
efectivamente, a utilização do processo tutelar educativo com intuito de
protecção. Isso acontece, fundamentalmente porque, como já foi dito, as
estruturas de protecção não correspondem adequadamente às necessidades.
Estou a falar, designadamente, daqueles casos mais problemáticos, os casos
fronteira, que não são casos em que seja possível aplicar o tutelar educativo.
Estes são casos que devem ser casos de protecção, devem ser resolvidos no
âmbito da protecção... Curiosamente, só falámos na medida de internamento.
Estamos a falar dos internamentos na área tutelar educativa e estamos a falar
nos internamentos na Lei de Promoção e Protecção. Eu queria chamar a
atenção para, em primeiro lugar, os internamentos e o seu tratamento na Lei de
Promoção e Protecção. Foi referido aqui - e é referido por muita gente porque é
uma discussão que está muito em cima da mesa, - a necessidade de a medida
de acolhimento institucional, aplicada ao nível de promoção e protecção ser
uma medida em que haja contenção. Aí, eu gostava de retomar a questão que
se debate em termos mais profundos: Como é que se socializa? É sempre
importante o internamento para atingir uma determinada inserção, face à
problemática do menor em causa? Agora já não sob o ponto de vista da
promoção e protecção, mas também do processo tutelar educativo. Até que
ponto é que essas coisas são ou não eficazes? Eu deixo-lhes um ponto de
interrogação. Eu acho que ao nível da promoção e protecção não devem existir
instituições fechadas, ainda que possam ser mais contentoras.

P-6: Correcto. Com planeamento e disciplina. Exactamente.

P-5: Ao nível da protecção, a Lei, desde que seja regulamentada, pode


criar estruturas adequadas, com perspectivas adequadas para a problemática.
Eu gostei de ouvir a Dra. ... a defender isso hoje, com técnicos preparados para
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 74

as problemáticas, em que há algumas regras de disciplina e que, obviamente,


são contentoras. Porque é que não existe essa ligação do tutelar educativo e
do processo de promoção e protecção? Nuns casos, já vimos que é porque, no
fundo, os magistrados não acreditam nas medidas de promoção e protecção, a
base dessa estrutura. Mas nos casos menos graves em que há necessidade de
aplicar os dois processos, porque a visão sistemática do sistema não está
integrada nos nossos pensamentos e continuamos a ter um pouco aquela
visão: ou se aplica a promoção e protecção ou se aplica o tutelar educativo.

P-2: Os meus processos tutelares educativos têm todos, quase todos ao


lado um processo de promoção e protecção apensado.

P-5: E porque é que isto não funciona? Porque efectivamente o


Ministério Público, que tem uma função de articulação neste sistema, tem uma
grande responsabilidade pelas competências que tem e que a Lei lhe atribui,
mas por vezes não as exerce. Obviamente, que esta ligação entre o tutelar
educativo e a promoção e protecção está, na maior parte das vezes, na mão do
Ministério Público.

OPJ: E porque é que não as exerce, Sra. Dra.?

P-5: Eu estou a criticar o Estado Maior, não sei se reparou. Eu sou


magistrada mas tenho responsabilidade, mas estou a criticar a hierarquia do
Ministério Público, neste caso.
Só queria colocar aqui uma questão que ainda não foi levantada e que
também tem a ver com a pouca credibilidade que as medidas não institucionais
têm para os magistrados. Estamos aqui a falar do internamento. Então o que é
que se passa com as medidas não institucionais? Aí é porque, realmente, as
medidas não institucionais não estão a funcionar. Não funcionam, e não têm
tido qualquer tipo de eficácia. Estou a falar também de uma maneira exagerada
porque há algumas que funcionam. Mas, efectivamente, temos um grande
déficit de investimento também nas estruturas que foram criadas para a
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 75

aplicação das medidas não institucionais. E aí, eu há bocado estava a dizer e


repito que considero que o Instituto de Reinserção Social foi a única instituição
que se preparou minimamente para a aplicação desta Lei; porque as
magistraturas não se prepararam, a Segurança Social não se preparou.
Efectivamente, houve um investimento, e ainda bem que houve. Mas nesta
área, o Instituto ainda tem muito que caminhar. Houve um grande investimento
naquilo a que se tinha que dar resposta, que era a parte do internamento e a
formação dos técnicos adequados. Mas na área das medidas não institucionais
não houve tanto investimento, portanto, isso reflecte-se. Os magistrados
obviamente no decorrer do processo pensam da seguinte forma: não há
nenhuma instituição no âmbito da protecção, portanto, a protecção e as
medidas não institucionais não funcionam. Acções formativas? Não existem.
Acompanhamento educativo? Aplica-se mas não se tem fé no resultado,
portanto, não se acredita. (...) Eu estou a exagerar, mas a ideia é esta.

OPJ: De facto, esta questão das medidas não institucionais, desde os


programas formativos, o acompanhamento educativo, é claramente uma área,
entre outras, de articulação intra-institucional e, nomeadamente, aqui, o CPJ
(Centro Protocolar de formação para o sector da Justiça) também tem aqui
uma palavras importantes a dar na questão da formação. O que é que vocês
acham sobre isto? Os Srs. Drs. e Srs. magistrados também acham que as
medidas não institucionais, a avaliação que fazem não é de eficácia?

P-4: Eu acrescentava só à sua pergunta, se seria ou não possível,


designadamente dentro dos Centros de Formação Profissional, existirem
quotas destinadas especialmente a estes menores. O que se passa hoje é que
a qualquer momento, surge a necessidade de aplicar uma medida que implique
a formação profissional de alguém e deparamo-nos sistematicamente com isto:
inexistência de vaga e necessidade de esperar vários meses por uma.

OPJ: Sr. Dr. como é que isso pode acontecer?


Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 76

P-11: Eu não posso responder pelo Instituto do Emprego porque eu não


estou como representante do Instituto, mas como trabalhador daquela casa
posso dizer que é uma questão que tem a ver com idade do jovem. Se não
tiver os 16 anos, nunca poderá depois ir obter formação profissional.

P-1: Se não tiver a escolaridade básica também não.

P-11: Nesse caso, também não poderá...

OPJ: Então como é que o magistrado aplica uma medida, se não está
dentro desses pressupostos...

P-9: Repare, além do Instituto do Emprego e Formação Profissional há


outras instituições onde os menores podem ter formação técnico-profissional,
há umas tantas outras instituições mas que, por exemplo, quando admitem
menores enviados pelo Tribunal para cumprimento de medida tutelar, de facto,
tendo uma quota de vinte e tal elementos por ano, só metem 5 ou 6 remetidos
pelo Tribunal, e os restantes ficam sem possibilidade de cumprirem a medida
tutelar.
Faltam cursos técnico-profissionais...

P-2: A Segurança Social tem um problema. Tem a ver com as estruturas


dirigentes, que é de vocacionarem tudo em termos de planos específicos,
independentemente daquilo a que elas se destinam. E o rendimento mínimo
garantido é uma das soluções, os programas de formação profissional é outra
e, voltando um bocadinho atrás com a Lei de Promoção e Protecção, temos
uma das medidas que é, enfim, o apoio junto dos pais, ao conjunto todo
familiar. A Segurança Social aqui o que faz, ou não faz, é verificar se há
alguma forma de enquadrar aquilo dentro das suas próprias estruturas de apoio
social. Não trabalha de acordo com aquilo que é necessário no âmbito da Lei
de Promoção e Protecção. E agora passando para a Lei Tutelar Educativa: a
Segurança Social tem estruturas de apoio profissional e de formação
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 77

profissional que, das duas uma, ou a Lei Tutelar Educativa é suficiente e se


enquadra nesses mecanismos ou então estamos perdidos. O que há aqui,
parece-me, é alguma violência, ou seja, os objectivos que se pretendiam atingir
com a Lei Tutelar Educativa, com a Lei de Promoção e Protecção no âmbito
dos apoios não são alcançados. Na prática isso acaba por não ser dado porque
esbarramos com o problema da idade dos miúdos e com a formação escolar.
Ora o problema desse miúdo é exactamente porque não tem formação escolar
e devia ter formação profissional.

P-7: Só para dizer uma coisa: eu sou do Norte, sou de perto de Paredes,
e havia um problema gravíssimo que era a questão das escolas técnico-
profissionais, as escolas técnicas...

P-6: Centros profissionais...

P-7: Aquilo é uma terra de marceneiros, aos 10 anos havia aqueles que
queriam deixar a escola para ir trabalhar como marceneiros. Foi no tempo do
Roberto Carneiro. Na altura chegaram ao ciclo preparatório, que actualmente
acho que é 5º, 6º ano, e introduziram a vertente técnico-profissional na área de
marcenaria. E a fuga à escola diminuiu em valores absolutamente
inacreditáveis. Os miúdos passaram a ir para a escola.

P-11: Escolas profissionais, provavelmente.

P-7: Não são escolas profissionais, portanto, só que não têm esses
problemas que o Dr. disse. Não entra na escola profissional porque não tem
idade. Eu diria alguns miúdos não conseguem estar a estudar na base
daquelas teorias, daquelas conversas que ali estão a ter mas, se calhar, se
tiver uma coisa com que...

P-6: Aprendem com as mãos.


Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 78

P-7: ... se divirtam, uma experiência prática, o trabalho manual que eles
aprendem, também estão a aprender simultaneamente o inglês, o português,
as contas, etc. Eu acho é que, de facto, não se pode trabalhar assim. Se, de
facto, o Tribunal entende que a medida adequada era aquela, mas, depois não
há possibilidade de a aplicar, por força da idade ou por força da escolaridade,
isso não tem qualquer sentido. Dizer a um miúdo que não vai à escola, que não
gosta da escola, mas que, se calhar, gostava de ter uma profissão manual, que
não a pode ter porque não tem idade ou a escolaridade adequada é um contra
senso.

P-4: Isto são situações que acontecem, geralmente, em sede de decisão


do processo. Ora, em termos de decisão consensual, o que se passa é que há
uma proposta do Ministério Público num determinado sentido, a qual deriva
muitas vezes de prévio relatório de técnicos do IRS, que tal como o menor, vão
à audiência preliminar para se tentar um consenso quanto à medida à aplicar.
A execução da medida é depois acompanhada pelo IRS. Ou seja, tem que
haver, de facto uma articulação, ou seja, quando se vai para ali, tem que se
saber se o que se propõe é possível ou não.

OPJ: O IRS fornece os elementos para o Sr. Dr. saber se isso é possível
ou não, para avaliar?

P-4: Por vezes, não sempre. E o problema surge quando tal não sucede,
arrastando-se depois o caso.

OPJ: O que é que o IRS tem feito para fornecer essas informações?

P-6: Eu diria assim: primeiro ponto, a execução das medidas tutelares


educativas não institucionais não é tarefa exclusiva dos serviços de reinserção
social, ou seja, o artigo 130º não o exige, e isto é uma coisa que parece muito
simples mas é muito complexa. É claro que nunca rejeitamos a execução de
nenhuma medida e, efectivamente, o caminho que estamos a fazer é o do criar
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 79

melhores condições para a execução das medidas não institucionais, mas isto
não significa que todas as medidas não institucionais devam ser executadas
pelo Instituto. É a autoridade judiciária que as fixa, quem as avalia, e que
designa quem deve ser o responsável pela execução das medidas. Há
medidas que podem ser executadas no bairro, no clube de bairro.

OPJ: Mas Sra. Dra. o relatório social é da competência do IRS?

P-6: A elaboração do relatório social é da competência do IRS e,


normalmente, no nosso relatório nós propomos aquilo que nos parece mais
adequado.
O que eu ia tentar dizer é o seguinte: nós fazemos 4 mil relatórios por
ano nesta matéria.

OPJ: Tem falta de meios a Sra. Dra.? O que é que lhe falta?

P-6: Não. Mais concretamente foram solicitados 4 350 relatórios no ano


transacto e foram aplicadas 1 058 medidas não institucionais. O relatório tem
como função auxiliar o Tribunal em duas vertentes. Primeiro, ainda na fase de
perceber se há ou não necessidades de educação para o direito e em que é
que elas se consubstanciam. Segundo, se o pudermos fazer, poderemos dar
alguns elementos ao magistrado ou ao Tribunal no sentido de o juiz poder
avaliar quais são os caminhos possíveis ou adequados para, sendo certo que
esta segunda fase ou esta segunda área de informação tem que ser muito
cautelosa, poder aplicar a medida. Segundo, não é tarefa que tenha que ser
exclusiva do Instituto. Terceiro, às vezes, é mal percebido. Porquê? Porque
pode não se verificar o crime. Pode não se provar. Segundo ponto, o
magistrado pode ter outro entendimento completamente diferente. Terceiro
ponto, não é imprescindível que seja o Instituto a executar. E, portanto, estar a
desbravar caminho para um programa formativo para incluir o menor numa
determinada área ou programa sem que se saiba se essa é a vontade do
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 80

magistrado, estamos a dar o passo, digamos assim, à frente do Tribunal e fora,


digamos assim, da nossa legitimidade.

OPJ: O que é que faz?

P-6: Repare: não é sair ou não sair. Obviamente que, sempre que
possível, e às vezes são os próprios magistrados que nos pedem a avaliação
das hipóteses disto, daquilo ou do outro. E nós avaliamos. Há hipótese ou não
há hipótese. Mas, o Instituto não tem que ter, nem é essa a nossa filosofia,
disponibilizáveis, todos os meios para todas as medidas. Onde nós estamos a
fazer o investimento a sério é em duas áreas: no acompanhamento educativo,
que é a medida mais gravosa no âmbito das medidas não institucionais e que
estamos com um trabalho sério de experimentação de um modelo que nos
parece adequado mas ainda estamos na fase de experimentação e execução...
O nosso investimento sério é no acompanhamento educativo e nas
medidas de reparação ou de mediação. Nós desenvolvemos uma experiência
piloto de mediação em Processo Tutelar Educativo, precisamente para
começarmos a desbravar caminho naqueles casos que podem ser, digamos
assim, resolvidos de uma forma mais simples, mais rápida e, se calhar, menos
pesada para a máquina judicial e temos tido algum sucesso nisso, mas
precisaríamos, digamos assim, de várias coisas, uma delas é uma clarificação
do regime legal da mediação; segundo, é necessário saber qual o
entendimento do que é que o Ministério Público faz com o acordo que se
conseguir em sede de mediação, porque às vezes continua o processo depois
de termos o acordo, porque a Lei não é clara se o Ministério Público pode
arquivar ou não pode arquivar. E, portanto, lá temos mais uma área em que,
dependendo da interpretação, assim se consegue uma coisa ou outra.
Portanto, na mediação temos vindo a fazer um caminho de projecto
experimental, já temos quase 3 anos desse caminho. Estamos a avaliá-lo para
poder avançar, e a mediação é aqui não apenas como alternativa ao processo,
mas como actividade mediadora dentro do próprio processo, na ajuda, na
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 81

suspensão provisória do processo ou na ajuda que se prevê para a audiência


preliminar.
Nas medidas de reparação, temos celebrado protocolos com entidades
beneficiárias de tarefas a favor da comunidade. Temos um programa de tarefas
a favor da comunidade e sempre que um Tribunal entende aplicar a medida de
tarefa a favor da comunidade, nós asseguramos a execução mais rápida e
adequada, possível dessa medida. E avançaremos com mais protocolos, não é
a falta de protocolos que leva a que não se executem, assim elas sejam
aplicadas.

P-4: Essa rede de contactos que têm deveria, quanto a mim, ser
divulgada pelos Tribunais.

P-6: Sr. Dr., o ano passado fizemos uma sessão que até foi num colégio
da Casa Pia. Fizemos uma sessão de informação de divulgação. Nós temos
vindo a fazer isso. Mas só para terem a noção, por exemplo, no ano passado,
das medidas que foram aplicadas, não institucionais, em todas elas, decresceu
o número relativamente aos 2 anos anteriores. Reparação ao ofendido, 9
casos, no país todo. Prestações económicas a favor da comunidade, 2 casos.
Não foi o total que foram aplicados, é das que foram aplicadas aqueles em que
foi solicitada a intervenção do Instituto. Tarefas a favor da comunidade, 122
casos. Regras de conduta, imposição de regras de conduta, 21. Execução de
obrigações, 155 casos. Frequência de programas formativos, 81 casos e
acompanhamento educativo 425 casos. Provavelmente, um dos factores que
leva à não aplicação mais generalizada de medidas tutelares não institucionais
é aquilo que temos estado a falar, que é se o que era adequado como resposta
ao grau de gravidade do ilícito era esta medida. Esta será uma gota no oceano
se a ancoragem, digamos, deste menor e da família não mudar alguma coisa.

OPJ: Mas como verificar-se a articulação com os tribunais?


Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 82

P-6: Nós propomos em muitos casos, as medidas e o Tribunal decide ou


não decide, concorda ou não concorda, sendo certo, como já disse, que é
algum risco da nossa parte propor medidas, mas nós propomos e, portanto, a
articulação com o Tribunal, eu diria que é das coisas melhores que temos.
Temos a maior abertura dos magistrados, quer sejam magistrados judiciais,
quer sejam do Ministério Público, quer com contactos informais, telefonemas,
reuniões, quer àquilo que nós propomos por escrito. E, portanto, não nos
queixamos, antes pelo contrário, achamos que temos a maior abertura com os
magistrados e também o acesso dos magistrados aos nossos serviços
tentamos facilitá-lo o mais possível. Sempre que o magistrado entende
convocar um técnico para ir a Tribunal ou à audiência ou para troca de
impressões...

OPJ: É vulgar os Srs. magistrados visitarem os centros educativos?

P-6: Eu não ia já para esse lado, mas se quer avançar já para esse lado,
o que eu ia explicar é o que é que fazemos relativamente à comunidade.

OPJ: Faz parte dessa articulação, também, essa comunicação.

P-6: A Lei Tutelar Educativa prevê que compete ao Ministério Público


fazer visitas regulares aos centros educativos.

OPJ: Mas faz Sra. Dra.?

P-3: Também diz lá que o juiz também, não é só o Ministério Público.

P-6: A Sra. Dra. não me deixou acabar. É assim: há magistrados, por


exemplo, há uma magistrada dos Açores que regularmente vem ao continente
visitar todos os jovens a quem ela aplicou a medida de internamento.

P-5: Infelizmente já não está lá.


Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 83

P-6: Não. Mas eu diria assim: magistrados judiciais têm ido, não com
muita frequência, digamos assim, muito, muito elevada, mas temos tido visitas
de magistrados judiciais. Magistrados do Ministério Público tivemos uma visita
aqui aos Olivais, uma vez que se organizou, no âmbito de um Seminário que aí
houve, uma visita de grupo. Mas, por mote próprio, nenhum magistrado do
Ministério Público, que eu saiba...

P-2: Não é assim. A Sra. Dra. ainda não estava na altura.

P-6: Ainda não estava na altura. Não havia LTE.

P-5: O Centro Educativo de Caxias está aberto.

P-2: Continua aberto. Mas houve outras visitas onde todos os


magistrados conheceram as instalações, conheceram os técnicos envolvidos...

P-6: Não. Mas eu não me estou a queixar, Sr. Dr.

P-2: ... a questão acertou-me. Eu só falei porque há uma actividade


que...

P-6: Não, não. É o Ministério Público, Sr. Dr. está a ver o titular do
Ministério Público.

OPJ: Da nossa investigação podemos dizer que, de acordo com os


técnicos que foram entrevistados, referem que não é regra, os Srs. Magistrados
visitarem os centros. Porque visitar o Centro num dia de festa, isso não é uma
articulação, não é realmente o cumprimento da Lei. Não podemos considerar a
ida ao Centro num dia de festa, ir lá ao lanche, como o preenchimento do
pressuposto das visitas previsto na Lei. É um convívio saudável, mas não é
disso que estamos a falar. Estamos a falar de uma outra coisa.
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 84

P-6: Aqui a questão são os miúdos.

OPJ: Que haja aqui feed-back, reparem. Em primeiro lugar, é ou não é


importante que o aplicador conheça o feed-back da avaliação da medida? Por
um lado, os Srs. magistrados colocam algumas reservas em relação à eficácia
das medidas não institucionais. Mas a sua linha parece-me no sentido de que
há alguma eficácia, em que é que ficamos? Porque aqui interessa-nos é a
eficácia, portanto, a avaliação que se faz. Como é que é feita essa avaliação?
Os Srs. magistrados precisam ou não precisam deste feed-back? Querem ou
não querem este feed-back? E isto é ou não é importante? Como é que se
deve caminhar também para esta articulação?

P-6: A eficácia tem que ser avaliada segundo parâmetros que têm que
ser bem pensados. Voltando atrás, aquela questão que vimos há bocado da
sucessão de processos tutelares, que acabam por ser decididos em tempos
diferentes, mas relativamente a factos quase todos da mesma altura, são lidos
como reincidentes. Este é o primeiro ponto. Para quem quiser avaliar qualquer
coisa, se não tiver em conta o funcionamento da máquina judiciária e a data a
que se referem os factos que levam à aplicação de determinadas medidas, vai
dizer: isto não tem eficácia nenhuma porque acabou uma medida e foi cumprir
outra e, provavelmente, ambas têm a ver com a mesma situação. Portanto,
vamos avaliar as coisas mas vamos avaliá-las, digamos assim,
contextualizadas.
O segundo aspecto é que parece-me a mim que no âmbito das medidas
da Lei Tutelar Educativa é ainda muito cedo para fazer avaliações. A Lei está
em vigor há 3 anos, as medidas com maior aplicação demoram 2 anos a serem
executadas e, portanto, nós estamos a entrar no princípio do 4º ano, sendo que
o 1º ano foi o ano da transição. Portanto, acho cedo, aquilo que se vai avaliar
ou o que se pode estar a avaliar neste momento são intervenções ainda de
filosofia de OTM. Terceiro aspecto que me parece importante em termos de
cuidados para avaliação de eficácia. Outro aspecto que me parece importante
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 85

na avaliação da eficácia é que inevitavelmente quando se quiser avaliar a


eficácia de uma medida, tem que se ter em conta que essa eficácia depende
não apenas da eficácia da intervenção tutelar, mas também da eficácia da
intervenção de protecção. Portanto, estamos e bem, acho eu, a avaliar a Lei
Tutelar Educativa, mas temos que avaliar a Lei de Protecção, porque a eficácia
da intervenção tutelar é tanto maior ou directamente proporcional à capacidade
que houve de articular esforços no âmbito das duas, dos dois sistemas, porque,
inevitavelmente, são raros os casos em que a intervenção tutelar, tout court e
só por si, é suficiente para criar condições de não reincidir.

P-1: Há uns meses a esta parte, os governantes têm defendido que é


urgente fazer a avaliação da Lei de Promoção e Protecção. E para mim era
mais urgente fazer essa avaliação da Lei de Promoção e Protecção antes da
Lei Tutelar Educativa, porquê? Porque essas duas Leis entraram em vigor ao
mesmo tempo. Porque relativamente à Lei Tutelar Educativa foram criadas
algumas condições pelo Estado Português para que ela pudesse ser
minimamente enquadrada e aplicada já em relação à Lei de Promoção e
Protecção não foi feito nada e a estrutura da Segurança Social e IPSS está
perfeitamente descapitalizada. A Segurança Social tem as suas instituições e
as nossas equipas praticamente na mesma como antes das Leis Tutelar
Educativa e Promoção e Protecção. Só dizer-vos que as nossas estruturas
institucionais continuam, na maior parte dos casos, sem equipas técnicas
qualificadas e sem pessoal em número suficiente, embora já estejam a ser
feitas intervenções nalgumas e isto mesmo antes da situação da Casa Pia. A
Casa Pia é um bom paradigma porque, efectivamente, de repente, foi possível
admitir lá mais 40 monitores e mais pessoal especializado, coisa que não se
tinha podido fazer nos últimos anos. A Lei de Promoção e Protecção, sobretudo
no que diz respeito às medidas, de uma maneira geral, não está a ser aplicada
e não foram dadas condições nem de dinheiro, nem de outra natureza para
elas poderem ser aplicadas. Mais: houve um processo perverso, em que
obrigatoriamente retirámos os meninos que não tinham cometido ilícitos penais
dos Centros de Reinserção Social e foram metidos de qualquer maneira e eu
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 86

digo de qualquer maneira, em todos os internatos, mesmo que os meninos


fossem do Algarve se não havia lugar para eles no Algarve e se houvesse vaga
no Porto, foram para o Porto. Posso dizer-vos que dos 14 internatos que
Coimbra tem, neste momento, em alguns deles e falo: Comunidade Juvenil São
Francisco de Assis, Obra do Padre Serra, Semide e Colégio Tutelar de São
Caetano, mais de 70% dos meninos que estão nestas instituições são da
Margem Sul: Santarém, de Loures. E eu pergunto: como é que se faz a
aproximação do acompanhamento da família, do regresso à família, o
acompanhamento e investimento na prevenção e na aproximação?
Efectivamente, mais do que a Lei Tutelar Educativa, que acho que tem gente
muito atenta, tem um rácio técnico/menino minimamente adequado e nós nem
pouco mais ou menos. Eu creio que há muita “carolice” por parte dos técnicos
da Segurança Social mas essas coisas não passam por carolice mas passam
por políticas sérias, investimento sério. É necessário criar condições para que
as medidas previstas na lei sejam aplicadas.

P-6: Eu estou perfeitamente de acordo e subscrevo o que disse a Sra.


Dra. ... porque é absolutamente indispensável isso. Só queria chamar a
atenção de uma coisa: houve uma Resolução do Conselho de Ministros de
Agosto de 2000, que aprovou o plano de acção para entrada em vigor das duas
Leis e que, nessa Resolução do Conselho de Ministros era criado o programa e
o calendário da transição dos meios e do reforço das instituições para pôr em
prática ambas as Leis. O Instituto e o Ministério da Justiça fez uma parte. Havia
outra parte e essa Resolução do Conselho de Ministros é extremamente
importante em termos históricos. Nessa altura, foi feito um trabalho, na altura
havia o IDS, de caracterização um a um de todos os meninos que estavam em
instituições da Justiça e que deveriam passar para a Segurança Social, com a
caracterização da situação familiar, da zona de origem, de tudo. Foi preparado,
com muito cuidado, essa passagem e foram transitados 5 equipamentos da
Justiça para a Segurança Social, que tinham vaga para todos os meninos,
inclusivamente, na Casa do Lago que era a instituição maior, que era o antigo
Colégio do Infante, nós deixámos o pessoal para a Segurança Social nos
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 87

primeiros tempos poder funcionar. Ao fim de 1 mês, já me estavam a telefonar


a dizer: “Pode levar o pessoal que nós já não precisamos.” E, portanto,
digamos que, não houve e eu sei que as palavras da Dra. não tinham essa
conotação, mas pode ser lido assim no relatório e eu não gostaria que fosse,
não houve aqui entre quem trabalha no terreno nenhum espírito de competição.

P-1: Não. Por amor de Deus...

P-6: Não, mas é... Sra. Dra. eu sei que não tem a ver com as suas
palavras, eu não sei que não tem a ver com as suas palavras.

P-1: Não tem a ver com as minhas palavras, nem com a realidade, Sra.
Dra.. Eu posso-lhe dizer que, efectivamente, houve a passagem de 5
equipamentos a nível nacional mas os meninos realojados foram na sua
maioria para os lares das IPSS.

P-6: O que quero dizer é que as reclamações...

P-1: Nós tivemos um prazo para executar as acções e tivemos que


integrar de qualquer jeito os meninos que vinham dos Centros. Não nos
perguntaram se tínhamos condições para isso, Sra. Dra., e sabiam que não
tínhamos. Não ponho aí a questão. Não foi a reinserção, foi o Governo que
obrigou a fazer sem acautelar a existência dos meios necessários.

P-6: O Estado teve, digamos assim, previu a contratação de técnicos


para a Segurança Social e para o Instituto...

P-1: Eu peço imensa desculpa mas o Estado previu contratação para os


estabelecimentos oficiais. Esses que passaram da reinserção ficaram como
estabelecimentos oficiais, como nós chamamos “Estabelecimentos Integrados”,
mas os lares/internato que acolheram os meninos são das instituições
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 88

particulares que não têm técnicos e não foram preparados para enquadrar e
educar meninos com as características dos existentes.

P-6: Há uma grande carência de meios...

OPJ: Há uma ausência de resposta por parte da Segurança Social.

P-1: Há uma ausência de resposta da Segurança Social mas não só. É


da sociedade civil toda.

OPJ: Bom, Srs. Drs. pegando um pouco na questão da localização


geográfica das instituições e dessa relação com a família e com a comunidade,
eu passava isto agora, novamente, para o âmbito da Lei Tutelar Educativa e
para os regimes de internamento, onde nós vamos encontrar exactamente
essa situação. Como a Sra. Dra. ... sabe, grande parte ou alguma parte, eu
agora não tenho aqui os números mas, de facto, das crianças, dos jovens que
estão colocados em instituições do IRS, não são oriundos do seu espaço
geográfico onde se inserem, quer dizer, a sua família não reside aí. Eu também
gostava de ouvir os Srs. Advogados e os Srs. Magistrados a pronunciarem-se
sobre isso, como é que se faz a educação para o direito, porque a educação
pressupõe uma vivência na sociedade, na comunidade, com crianças em
regime fechado ou jovens em regime fechado?

P-6: No regime fechado é o que menos releva nessa matéria.

OPJ: ... ou regime semi-aberto, sem o contacto com as famílias, sem a


comunidade, sabendo nós que eles vão voltar à comunidade e à sociedade,
como é óbvio, não é?
Não se pode, ainda deixar de se considerar que são jovens em
crescimento. Como é que se faz essa relação com a comunidade e a nível dos
afectos, a nível da vivência na sociedade e em sociedade, como é que se vê?
Como é que vocês vêem isso?
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 89

P-6: Deixe-me dizer-lhe duas ou três coisas e agradecer-lhe essa


pergunta. Primeiro, tomaríamos nós que as instituições tivessem rodas porque
íamos mudando.

OPJ: Mas não têm.

P-6: ... tipo nómadas. O problema é que tivemos 6 meses para adaptar
os edifícios que tínhamos a uma Lei que por força da actriz Lídia Franco teve 6
meses para ser posta em vigor, até porque historicamente, é bom que não nos
esqueçamos como é que estas coisas se fizeram, a Lei foi aprovada, as Leis
foram aprovadas na Assembleia da República em Setembro de 99. Não houve
definição de política, de prazos para a entrada em vigor. Os serviços que
entenderam começar a trabalhar, a preparar-se, foram-se preparando, quem
não pôde não se preparou. Não havia nenhum calendário. Não havia nenhum
programa... Até ao dia em que a actriz Lídia Franco foi assaltada.

P-1: E se não fosse isso...

P-6: E na semana seguinte havia um Programa de Acção aprovado em


Conselho de Ministros, que eu já aqui referi, e que dizia: no dia 1 de Janeiro
entra tudo em vigor. E estávamos em Agosto. E, portanto, para nós é uma
heroína, porque se calhar ainda não teríamos Leis, em vigor. Provavelmente.
As instituições que tínhamos, as instituições que herdámos dos Serviços
Tutelares de Menores, todas elas ou quase todas elas eram antigos edifícios
religiosos, com características estruturais dificílimas de gerir e, digamos assim,
com implantação local muito forte em termos de funcionários. Eram grande
colónias correccionais ou grandes instituições, algumas dos anos 30 e 40,
quase todas elas passaram para a Justiça na sequência da criação da
República e do confisco dos bens às ordens religiosas e era este o património
que nós tínhamos para adaptar porque construir de novo, foi construído aqui o
Centro Educativo dos Olivais, 2 ou 3 anos antes de entrar em vigor a Lei
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 90

Tutelar Educativa mas, ainda assim, o espaço e a quinta era de Santo António
dos Olivais, das Águas Férreas que tinha a ver com também uma congregação
religiosa. E, portanto, digamos que não estamos satisfeitos, não era aquela a
localização que nós decidiríamos para a população que hoje servimos, mas
isso é um problema que a Segurança Social também já falou: tem aqui
meninos de Santarém e de outros lados em Coimbra e é um problema das
cadeias, como a Sra. Dra. sabe, e é um problema, se calhar, de várias
instituições...

OPJ: Sim, mas o problema é que estamos a falar de crianças. Existe um


problema ou não?

P-6: Eu vejo em determinado aspecto e noutro não. É assim: o


internamento se é aplicado, digamos assim, de acordo com o espírito e a
filosofia da Lei, na primeira fase, eu diria não há problema nenhum estar fora
do seu ambiente familiar, pelo contrário. Na primeira fase. Se é necessário um
afastamento temporário do seu meio porque há necessidades de educação
para o direito, numa primeira fase (no aberto, é outro capítulo), não me choca
nada que seja fora da sua residência habitual.

P-8: Peço desculpa, só uma pergunta: é fora da sua residência habitual


e fora de qualquer outro contexto social?

P-6: Exactamente.

P-8: O problema é este.

P-6: Eu não sei o que considera como contexto social. Eu penso que
valia a pena deixar-me explicar como é que os Centros Educativos funcionam e
como é que se relacionam com as instituições da sociedade e da comunidade
envolvente, porque nenhum deles funciona fechado, mesmo aqueles que têm
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 91

regime fechado, e por isso convido todos a ir, em qualquer dia, a um qualquer
Centro Educativo...

P-8: Eu acho que não há necessidade nenhuma de haver um corte, a


criação de uma barreira com a sociedade, é necessário dar oportunidade de
desenvolvimento resultante de uma dialéctica normal, é extremamente seguro
eles reclamarem como cidadãos a formação da sua personalidade. Como tal,
há uma ausência total do que podia ser o desenvolvimento dentro de
medidas...

P-6: Não. Não percebi.

P-8: Para não ter um problema quando voltar.

P-6: Não percebi o que é que a Sra. Dra. me quer dizer com isso.

P-8: Eles vão estar num Centro, fechados, com determinadas regras,
sim senhora, poder-se-á ter nisso um objectivo. Mas se não lhe é dada a
possibilidade de uma convivência normal, interactiva entre vários sujeitos, em
que se lhe põe permanentemente escolhas e que são nessas escolhas, nessas
possibilidades de opção, que se vai normalmente formar a personalidade,
estamos a coarctar a própria socialização. Caso contrário, quando estiverem
para vir cá para fora, e se não lhes foi dada essa possibilidade de escolha, de
optar, não souberam gerir...

P-6: Eu não sei o que é que a Sra. Dra. quer dizer com escolhas. O que
eu posso explicar é como é que funciona.

P-8: Não, as escolhas diárias. O que nós temos e que não nos
apercebemos num processo normal em convívio social.

P-3: Essas escolhas...


Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 92

P-9: Entre os miúdos de casa e os miúdos que estão em reformatórios


tem de haver uma diferença na liberdade de acção. Isso é óbvio.

P-3: Peço desculpa, dá-me ideia que as escolhas...

P-6: Escolhas. De que é que estamos a falar? Alternativas de formação


profissional? Alternativas de relacionamentos em termos de grupos? De que é
que estamos a falar em concreto? (...)

OPJ: O regime fechado no âmbito da Lei Tutelar Educativa deve ou não


deve ser uma medida que deve continuar? O regime fechado tal como a Lei
prevê?

P-6: Sim.

OPJ: Os Srs. Drs. entendem que sim? Deve ser regime fechado ou não
deve ser o regime fechado?

P-7: Eu tenho algum conhecimento do caso... Do que tenho ouvido do


regime fechado, eu acho que é absolutamente exagerado.

P-8: Também acho.

P-7: Acho completamente exagerado. Acho que é um modelo, é um


modelo de prisão, mais grave ainda do que a prisão, se calhar...

P-6: Mais exigente.

P-7: Deixe-me... É mais exigente?

P-6: É muito mais exigente.


Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 93

P-7: Em termos educativos tenho muitas dúvidas sobre a eficácia...

P-6: Sr. Dr., eu penso que nunca nestes 3 anos, o número de menores
em regime fechado nunca ultrapassou os 50, a nível nacional.

P-1: Basta um bocadinho.

P-2: Exactamente.

P-6: Quando eu disse sim, disse sim porque nós precisamos de ter
sempre a válvula de escape. É preciso sabermos de quem estamos a falar.

P-1: Exactamente.

P-6: E de que crimes e de que comportamentos criminais estamos a


falar? Eu diria assim: em situações muito contadas e por tempos curtos, com
uma possibilidade de progressão, eu acho que o regime fechado faz falta.
E devo dizer o seguinte: foi intenção do Instituto, contra o próprio
legislador, que não houvesse regime fechado em Centro nenhum onde não
houvesse um outro regime de progressão, ou seja, o semi-aberto. Para quê?
Para que de imediato o jovem perceba que tem uma alternativa e, portanto,
que o pode adquirir de imediato. E, portanto, este faseamento e a
progressividade é um princípio básico na nossa intervenção.

OPJ: Mas está a acontecer, Sra. Dra.?

P-6: E está a acontecer. Eu não posso afirmar, porque não tenho os


dados todos, mas eu era tentada a dizer que nenhum menino que entrou em
regime fechado cumpriu a medida toda em regime fechado.
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 94

OPJ: E acha que neste momento ele está ultrapassado, que estes casos
estão contados e são excepcionais?

P-6: Nós temos prisão preventiva.

OPJ: Em 2002, o regime fechado foi aplicado a 41 casos.

P-7: Eu gostava de comentar isto, porque eu olho para o tipo de crimes


que aqui estão e não sei a gravidade específica dos crimes...

P-6: Tem é que os somar, Sr. Dr., porque não é só um.

P-7: Eu somo, está bem. Não é.

P-6: É um cocktail.

P-7: Eu sei. Por isso mesmo.

P-6: Já tivemos miúdos em regime fechado com 52 crimes.

P-7: Exactamente. Por isso mesmo eu olhei aqui para aquilo que
inicialmente a gravidade deu, mas num regime desse tipo.

P-6: Sra. Dra. vá lá visitar. Já convidei, o Sr. Dr. sabe, não sabe?

P-7: Sei.

P-5: É cada vez mais exigente em termos, portanto, de Tutelar


Educativo, no Centro Educativo, porque há toda uma, há um plano...

P-6: Você vai individualizar.


Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 95

P-5: . ... para fomentar as suas competências pessoais, prepará-lo para


uma determinada vida, para um determinado tipo de objectivo, que é pedido ali
de uma maneira muito rígida. Portanto, tem toda a diferença relativamente a
um sistema prisional, em que eles são pura e simplesmente fechados. Agora a
questão que se continua a pôr: é uma questão de concepção geral das coisas.
Mas, depois, também temos o problema da prática que é saber se é eficaz, se
o internamento feito nestes moldes ou noutros é eficaz para atingir os
objectivos, de adequação das competências pessoais, e da inserção digna na
sociedade.

P-7: É pouco.

P-5: É pouco. Mas aí existe uma questão filosófica, de concepção,


anterior. Que é a reflexão que habitualmente se faz relativamente à
socialização de uma pessoa. A privação da liberdade, deve ser só para os
casos realmente mais graves.

P-6: Claro.

P-5: Há pessoas que não acreditam sequer que mesmo nos casos mais
graves, a privação da liberdade tenha qualquer tipo de eficácia.

P-6: Há uma eficácia que é...

P-5: Há muitos estudos e há muitos...

P-6: O sistema final...

P-9: Como é que a Lei...

P-6: Sra. Dra. há sempre uma eficácia que é marginal, mas que não é
desprezível e que é...
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 96

P-7: O objectivo é educar para o direito.

P-6: ... a da segurança comunitária até porque...

P-5: Nessa perspectiva.

P-7: É um problema que...

P-5: Não é nessa perspectiva que eu estou a falar, é na perspectiva da...

P-6: Lembrem-se, lembrem-se do que era a insegurança...

P-2: Exactamente.

P-6: Essa insegurança passa pela delinquência juvenil. (...)


Eu por acaso até fico satisfeita que a Ordem dos Advogados tenha esta
posição. Normalmente os advogados são sempre os que concordam com o
internamento, mas até fico satisfeita.
Agora há aqui... Os Srs. magistrados dirão o contrário.

P-9: Porque é que os menores, eles próprios, pedem para ficar nas
instituições, conforme o Sr. Dr. disse, e eu constato que o fazem em cerca de
80% dos casos...

P-6: Sr. Dr., os ingleses têm uma expressão que não é a lógica
finalística, mas ainda assim não é desprezível. Eles usam o termo buying time,
ou seja, enquanto há um acompanhamento, enquanto há uma intervenção,
ganha-se tempo com aquela pessoa, evita-se que aumente a escalada do seu
comportamento criminal e ainda que não exista completamente a reincidência,
se reduzir a frequência, a gravidade e o tipo de delito, isso já é considerado
eficácia.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 97

Eu diria assim: a privação de liberdade é aquilo que há de mais anti-


natural. Portanto, invente-se outro sistema. Enquanto este sistema existir, o
que nós tentamos é humanizá-lo o mais possível, preenchê-lo o mais possível
a nível de uma intervenção que possa ser útil.

OPJ: Vamos agora a questões concretas. Dentro das instituições, nos


Centros Educativos, um dos objectivos é, de facto, criar competências às
pessoas, com medidas especiais, como direitos para a cidadania,
competências/ferramentas, que lhes permitam ter uma condição e uma
actuação e uma vivência, uma vez em sociedade. Eu pergunto: se os Centros
Educativos e, nomeadamente, no que diz respeito à formação e aqui entra
novamente o CPJ, se a formação que os Srs. Drs. têm, que dão, quer a nível
educativo, quer educação para a cidadania, quer o tipo de formação, se é a
formação que vocês acham adequada? Eu tenho aqui um conjunto dos cursos
oferecidos e que não são muito diferentes do que nos aparece no sistema
prisional. A listagem é relativamente a mesma: carpintaria, oficina de
electricidade, oficinas de artes circenses, mecânica auto, jardinagem, olaria,
culinária, artes gráficas e cerâmica, isto é, de facto, interessante. Por exemplo,
no caso das raparigas, é o curso de cabeleireiros, informática e expressão
artística.

P-8: Corte e costura...

P-11: Não. Corte e costura não tem. Essa não tem.

P-6: Não tem.

OPJ: Não tem corte e costura.

P-2: Ela vai buscar.


Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 98

OPJ: Pergunto-vos, se, de facto, o tipo de intervenção, o que se está


oferecer dentro dos Centros Educativos, é na vossa perspectiva, a melhor ou
não? Devia-se fazer outro tipo de intervenção, não há meios, não há dinheiro,
enfim, sejam lá quais forem as razões, a lista está correcta? Deveria ser outra?
Como é que os Srs. Drs. vêem esta questão?

P-11: Relativamente a essa questão gostaria de dizer o seguinte: como


há pouco referi relativamente ao Instituto do Emprego, a formação profissional
é aplicável quando o sistema de educação deixa de ter a exclusividade da
intervenção.

P-1: Excepto agora nos PIFs, em que há a co-responsabilidade pela


educação, não é?

P-8: Com os Centros Educativos, exactamente.

P-1: Quando o indivíduo vai para educação/formação.

P-2: Eu tenho uma impressão acerca disso. Há educação/formação de


adultos ou educação/formação de jovens.

P-1: Exacto.

P-11: Continuando o meu raciocínio: a formação profissional pode entrar


para efeitos de formação profissional. Os cursos de formação profissional
implicam uma unidade, uma idade e uma determinada escolaridade. Para a
frequência de cursos de qualificação profissional no Instituto do Emprego
subentende que todos os formandos têm a escolaridade obrigatória. Para quem
não tem escolaridade obrigatória, existem cursos de educação/formação, quer
para jovens, quer para adultos, que permitem chegar de uma escolaridade
básica e atingir uma escolaridade mais alta. Por exemplo, fazer o equivalente
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 99

ao 6º ano, ao 9º, em que há uma componente de formação profissional que se


chamaria de formação pré-profissional.

OPJ: Sim, mas a minha questão Sr. Dr. é o que está a ser dado neste
momento? Cria ou não cria competências?

P-11: Aqueles que não têm idade para estarem em formação


profissional, portanto, frequentam acções de formação pré-profissional.

OPJ: Alguns têm 16 anos...

P-2: Então e os que têm 12 e 13 anos, são excluídos?

P-9: Alguns podem seguir a escolaridade normal.

P-8: A criação de competências não é só a profissionalização.

P-6: Posso explicar em que consiste o projecto de intervenção educativa


de cada Centro Educativo. As Sras. Dras. estiveram nos Centros Educativos.
Provavelmente tiveram oportunidade de ver o projecto de intervenção
educativa e de constatar se ele tem ou não relação com a prática, porque o que
a Sra. Dra. está a querer dizer é que isso é uma coisa teórica. Não é?

OPJ: Se criam ou não criam competências na sua perspectiva?

P-6: Nós temos 3 anos de caminho numa matéria completamente nova


neste país. Criar caminho tem a ver com criação de condições que sejam as
mais eficazes para dar resposta àquilo que a Lei pretende na execução de uma
medida de internamento. A primeira coisa que nós organizámos foram as
prestações básicas que qualquer jovem daquela idade deve ter,
independentemente de estar sob alçada de um Tribunal ou não. Ou seja,
escolaridade obrigatória, despiste e orientação profissional e, se possível,
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 100

iniciar algum percurso de formação profissional, conjugadamente. Isto acontece


não por ele estar num Centro Educativo, mas por não poder ser excluído de um
projecto de educação que deveria ter tido, ou deveria ter-se mantido no Centro
Educativo. Eles estão sujeitos à escolaridade obrigatória como qualquer outro
jovem. E aí o que é que nós fazemos? Às vezes com muita dificuldade de
compreensão do Ministério da Educação, é ter capacidade e inventividade com
os professores de fazer currículos alternativos, ensino recorrente, de conjugar
educação escolar com educação profissional e educação física e desporto,
música e artes circenses, e tudo isso conjugado em algo que possam ser
ferramentas de trabalho para este jovem poder criar condições de inserção
social.
Temos um caminho a percorrer no âmbito da formação profissional.
Porque é que não se pode criar um grupo, fazer uma acção, e dizer assim:
agora entram todos aqui e saem todos ali. Todos os dias entram e todos os
dias saem. E no dia a seguir a entrar tem que ter um programa de ocupação
das 8 da manhã às 10 da noite.

OPJ: Mas não cria competências, Sra. Dra..

P-6: Não é possível ter competências de certificação, porque essas


competências vêm de tudo, desde a relação que têm uns com os outros e com
o educador. Até competência cognitivas, competências manuais...

OPJ: Naturalmente.

P-6: Competências relacionais e isso é tratado. Obviamente que


precisamos de melhorar estes programas. Precisamos de introduzir programas
que estão previsto no regulamento, especificamente orientados para
determinadas problemáticas.

OPJ: O que é que lhes falta, Sra. Dra. para a execução desse
programa?
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 101

P-6: Falta tempo, capacidade de criar programas específicos, que não


existem. Estão agora as universidades todas a começar a fazer estudos, mas,
por um lado, não existem programas adaptados a esta faixa da delinquência
juvenil e, por outro lado, falta a experimentação para não generalizar erros. E
falta pessoal.

P-3: Eu queria só fazer uma constatação relacionada com aquilo que a


Dra. acabou de dizer. Estive no Centro Educativo do Mondego, onde tive
ocasião de falar com o director e foi-me dito por ele, relativamente a esta
questão que não se sabe exactamente quem é que avalia a eficácia de um
programa que lá é levado a cabo.
Isto porque tanto quanto me referiu, não tem o mínimo de retorno
relativamente àqueles jovens, aos menores que lá estão e que depois vão para
a vida profissional e social.
Penso que poderia haver uma forma de avaliação, não sei de que modo,
no sentido de se aferir se estão a levar a cabo um projecto conveniente, se não
estão, porque depois ninguém sabe o retorno da situação.
Quer dizer, os menores mais tarde saem junto do Centro Educativo não
se sabe se aquele jovem que saiu de lá, se conseguiu inserir-se socialmente,
profissionalmente, o que seria extremamente importante, até para delinear o
futuro.

P-1: Um mínimo de retorno.

P-3: Outra coisa que eu também queria salientar, prende-se com a


formação das pessoas, que são os próprios formadores neste Centro
Educativo, designadamente professores. Foi-me dito que muitos professores
são destacados pelo Ministério da Educação.
Quais são os professores? Quem são? Assumem funções de grande
responsabilidade e são, muitas vezes, professores que não têm qualquer
formação específica, qualquer apetência específica para lidar com aquele tipos
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 102

de situações que, de facto, são diferentes e devem ser tratadas de uma


maneira diferente do ensino normal.
Um outro aspecto que não posso deixar de referir, e foi o que me
desagradou, efectivamente, no Centro Educativo, e que mais achei muito
próximo das prisões, foi a questão das “celas disciplinares”, chama-se quarto
de isolamento do menor, quando o menor se porta mal lá dentro. A Dra. sabe
que isso existe, com certeza...

P-6: Está previsto na Lei.

P-3: É, sem dúvida, uma situação que está legalmente prevista e é uma
das coisas que no regime fechado não se devia suscitar, mas se há uma
situação destas em que há um quarto onde o menor porque fez determinada
coisa fica fechado, não posso concordar....

P-2: Faço a continuação.

P-6: ... e que é posto lá por um determinado período de horas sem ver
ninguém, com umas condições que, sinceramente, me desagradaram imenso,
acho que se esta situação também está prevista, é certo, a Sra. Dra. tem toda
a razão, mas essa situação surgiu provavelmente num caso que eles aplicam
em adultos. São situações que chocam e que são de evitar, muito mais com
menores e penso que essa situação é que não é nada boa para a
ressocialização de ninguém, seguramente. Na minha perspectiva, não é?

P-5: Eu sobre isso gostava de falar.

P-6: Penso que... Não seja injusta, por amor de Deus.

P-8: O que me choca é que a Lei com outro tipo de cursos, com outro
tipo de formação poderia permitir o desenvolvimento do jovem, mas com estes
programas todos, porque os cursos são, neste momento, carpintaria, olaria,
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 103

não é permitida tal formação. Há um fosso muito grande entre essa preparação
e a realidade social. Há outras formas muito mais atraentes aos jovens para se
desenvolverem, para serem ajudados no seu crescimento, porque eles quando
vão para lá têm noção da sociedade que têm cá fora. Deve poder haver essa
ressocialização, que devia ser possível a partir deste sistema independente dos
moldes. Tem que haver um empenhamento muito maior das entidades para
atingirem esse objectivo, e não é, acho eu, com esse tipo de cursos que se vai
conseguir fazer uma preparação correcta do jovem.

P-4: Tem que se confrontar com a realidade dos jovens, que lá estão.
Não se pode querer, com certeza, que saiam jovens licenciados quando não
entram muitas das vezes, sequer, com o ensino básico.

P-6: ... A saber ler e escrever. E é preciso dizer aqui uma coisa: a
formação não é uma formação exclusiva. O que nós temos são ateliers
polivalentes de despiste em que os menores não entram para a carpintaria e
estão a vida inteira na carpintaria. Cada Centro Educativo tem 5 áreas
formativas em ateliers onde eles vão passando e, portanto, eles têm desde
expressão dramática, expressão plástica...

OPJ: Mas Sra. Dra. é possível fazer outro tipo de intervenção? Acha que
precisa de outros meios? Que assim está bem?

P-11: Como há pouco foi dito, é um trabalho que está a ser feito há 3
anos. Não há um modelo estabilizado. Não há ninguém que tenha, por
exemplo, um modelo para este tipo de jovens, para o tempo de permanência e
para as suas características. Os Centros Educativos têm técnicos que fazem a
avaliação dos jovens que têm e propõem anualmente um conjunto de acções
de formação que nós tentamos viabilizar com as verbas disponibilizadas para o
efeito. Porém, a formação é feita em função das características dominantes e
também dos espaços físicos que dispomos. Daí quando há pouco dizia que as
educandas têm cabeleireiros, de facto, é aquilo que elas mais gostam de ter e
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 104

aquilo que lhes permite adquirir conhecimentos importantes enquanto pessoas


e que eventualmente, no futuro, possa ser um trabalho, uma actividade
profissional, contudo nenhuma delas sai de lá com um curso de cabeleireira,
nem nenhuma delas vai sair com uma carteira profissional. Porque se tenta
destacar as apetências inatas dos formandos, o programa que nós aplicamos é
adaptado às circunstâncias.

P-8: Eu pergunto uma coisa em relação a esses cursos, é isso que eles
mais gostam...?

P-11: Não são cursos protótipo, não. São cursos de despiste vocacional.

P-8: Certo. Quais são os critérios para a criação desses cursos?

(...)

P-9: Fiquei aqui com uma dúvida que é a seguinte: em relação à


escolaridade normal, eles podem ficar com as habilitações suficientes...

P-6: Sim. São certificados os cursos que se fazem.

P-9: Eu conheço miúdos que entraram para lá e em meia dúzia de


meses completaram o 6º ano... E depois chegaram cá fora e conseguiram
entrar para o estágio de cursos técnico-profissionais, porque fizeram a
escolaridade lá dentro.

P-1: Os cursos que estão planificados em termos de formação


profissional pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional e pelas próprias
escolas, como se fez nas escolas profissionais, e pelas escolas normais ao
nível dos conteúdos curriculares, são todos dentro deste figurino. São dentro
deste figurino porque, fundamentalmente, são direccionados aos meninos que
não têm rentabilidade escolar, que têm insucesso escolar, que não gostam da
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 105

escola e que, efectivamente, querem ir trabalhar. E essa história do abandono


escolar é o trabalho infantil, que muitas vezes tem a ver com a necessidade
que os miúdos também têm de ter dinheiro próprio, pertencem a famílias muito
disfuncionais e que valorizam apenas o imediato. O Instituto de Emprego e
Formação Profissional faz planificação a 3 anos, tem que ter previsão
orçamental. Posso-lhe dizer que, por exemplo, há 2 anos fizemos um PIF em
Leiria, que teve muito êxito, os miúdos que não tinham escolaridade, alguns
nem sabiam ler nem escrever, conseguimos avançá-los dois anos o 1º e o 2º
ciclo. Neste momento, estamos com um PIF de 3º ciclo para pôr em movimento
e só estamos com a parte curricular escolar, porque todos os miúdos, e são 12,
querem mecânica auto e não conseguimos em Leiria, porque o Centro de
Emprego não tem estruturas para isso, ou seja ter um curso de mecânica auto
ao mesmo tempo que eles estão com o currículo escolar.

OPJ: Uma última questão que eu gostava de levantar...

P-1: A formação de acordo com os interesses e gostos dos miúdos.

OPJ: ... e que tem a ver, de facto, com essa questão, a intervenção...

P-8: Escolhido por eles, não é? Ao nível do emprego.

P-6: Nós temos constituído e está a trabalhar um grupo interno,


passaram lá todos os casos, e, portanto, aquilo que o director sente,
provavelmente outros directores sentirão, e é sempre bom para aferição do que
se está a fazer, ter resultados. E nós estamos a trabalhar nisso. Mas outra
coisa, já agora, que eu penso que pode ser útil é que internamente, nós
estamos a tentar trabalhar no sentido de que o final da medida tutelar educativa
não seja o internamento, ou seja, que haja sempre, no mínimo 3 meses, por
mecanismo de revisão e por proposta nossa haja acompanhamento na
liberdade e, portanto, que não se saia abruptamente do internamento para a
rua.
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 106

OPJ: A Sra. Dra. acha que 3 meses é suficiente?

P-6: Não. Mas depende das situações.

OPJ: Por exemplo, estou-me a lembrar de um dos casos que nós


verificámos, em que a criança, o jovem saiu do Centro Educativo e depois
precisava de fazer a sua continuação na escola, a simples questão da
matrícula numa escola...

P-6: É um calvário.

OPJ: ... Como ficou a cabo da disponibilidade do jovem e eu sei que a


Lei não dá essa obrigação aos Centros Educativos, a Sra. Dra. não entenda
isto como uma crítica, é um problema, de facto, de concepção do modelo.
Obviamente que isto não pode ser deixado à vontade dos jovens, se nós
queremos, realmente, educar o jovem, que por acaso até teve boa vontade e
motivação. Mas tem que haver aqui, de facto, alguma ligação. Como é que
vocês vêem esta necessidade de acompanhamento?

P-6: Nós precisamos muito de críticas porque só com críticas é que se


evolui, não é? Críticas que sejam positivas e que nos ajudem. Positivas não
quer dizer que sejam de elogio.

OPJ: Reflectir algo diferente, que é esse, obviamente, o nosso


propósito.

P-6: Obviamente, que não temos pretensão nenhuma de ao fim de 3


anos estar no melhor dos mundos. Todos os dias encontramos necessidades.

OPJ: Mas isso é um problema, é um bloqueio deste lado, não é?


Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 107

P-6: É um bloqueio, por um lado, e, por outro, também tem a ver com
uma história de desenvolvimento destas coisas. Foi de dois ramos diferentes
que se criou a intervenção tutelar educativa. Um ramo de instituições que vinha
da Direcção-Geral, dos Serviços Tutelares de Menores e um ramo das equipas
do Instituto que já existiam. E estes dois ramos, embora trabalhem em
conjunto, ainda não estão completamente afinados numa lógica de parceria
desde o princípio ao fim. Esse é um projecto que nós temos como prioritário.
Porque um menino quando chega a um Centro Educativo, normalmente já teve
uma intervenção de uma equipa. Enquanto está no Centro Educativo é preciso
que a equipa continue a acompanhar, porque se ele vai de férias, se é preciso
articular com família, e ainda muito mais quando os meninos não estão na sua
zona de residência, é preciso que aquela equipa continue a apoiar o caso e é
preciso que aquela equipa prepare condições, antecipadamente, para a saída
do menor do Centro Educativo. Este é o projecto que nós temos no nosso
plano de actividades deste ano. É um projecto que, para além de boas
intenções exige orientações técnicas. Exige instrumentos de trabalho. Estamos
a trabalhar nisso. A orientação que temos, em termos de propostas de revisão
da medida, é no sentido de acompanhamento educativo na última fase. Por
exemplo, a Lei espanhola prevê, obrigatoriamente, uma liberdade vigiada no
terminus das medidas, ou seja, a Lei prevê isso. Nós não precisamos de prever
porque pelo mecanismo da revisão, os magistrados o farão, se assim o
entenderem e nós achamos que...

OPJ: Os magistrados são receptivos à revisão?

P-6: Muito receptivos. Não temos nenhuma queixa.

OPJ: Srs. Drs., estamos nós a educar para o direito? E o que é que é
isto de educar para o direito?

P-6: Cabe ao Observatório concluir.


Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 108

P-7: Eu já agora queria dizer alguma coisa sobre isso. Nós temos,
obviamente, percebido que todos nós, eu pessoalmente, os advogados que
trabalham mais nisso, se sentem preocupados com a situação. Eu acho que,
de qualquer forma, a ideia que tenho é que se avançou muito. Acho que se
está no bom caminho, acho que é positivo o caminho que está executado.
Acho que é pouco tempo para avaliar. Eu deixava aqui um apelo às pessoas
que estão mais envolvidas neste projecto, que é: há momentos em que é
necessário alterar a legislação. Mas não o façam de forma apressada e
precipitada. As coisas ainda não estão devidamente consolidadas para que se
alterem profundamente. Pode haver necessidade de uma ou outra alteração
cirúrgica. Mas então façam-se essas pequenas intervenções bem pensadas e
bem dirigidas e dentro dos limites estritamente necessários. Se não podem
resultar mais prejuízos que benefícios. E isso há que evitar.

P-6: Quando se abre o doente, nunca se sabe onde é que a operação


pára.

P-7: Mas a ideia que eu tenho é que, de facto, a evolução é positiva.

OPJ: Sim. Nós vimos hoje aqui questões que, naturalmente, precisam,
de facto, de estudo relativamente a elas.

P-4: A nova Lei Tutelar Educativa traduziu-se efectivamente numa


evolução face à Lei anterior. Sucede, porém, que o seu tempo de vigência é
ainda muito curto. Em dois anos não podemos ainda fazer apreciações
absolutas sobre a valia da Lei, sendo importante que a mesma se sedimente
um pouco mais no nosso ordenamento jurídico. Há, contudo, ideias que desde
já se podem realçar e que traduzem uma mais valia face ao sistema anterior.
Falo, por exemplo, da exigência de maior intervenção dos advogados no
âmbito deste processo, o que se traduz na atribuição da mais garantias para os
menores. Com efeito, para além do papel do Ministério Público, que tem a
dupla função de defesa dos interesses do Estado e do menor, surge o
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 109

advogado com o estrito fim de defesa dos interesses deste último. Outro ponto
que interessará realçar é que a nível de estruturas de apoio deparamo-nos
ainda com grandes falhas, importando reduzi-las de forma a que o sistema
possa ser potenciado.

P-8: Uma coisa que eu gostava de dizer é que nós temos que não nos
esquecer da nossa permanente formação neste sentido, para que se possa
atingir uma educação para o direito, esse um objectivo da Lei e penso que de
nós próprios também.

P-5: Eu concordo com aquilo que acabou de ser dito e acho que com
certeza que quem faz os estudos sobre a Lei saberá responder-me a isto, mas
a minha intuição, é que existe um tempo de amadurecimento das próprias Leis
e que isso é necessariamente superior a 3 anos. Portanto, enquanto a Lei
começa a ser aplicada, começa a ser reflectida, começa a ser pensada. E há aí
um tempo que nós temos que dar e acho, sinceramente, que apesar de
algumas coisas que para mim, claramente deveriam ser de molde diferente,
não se deve mexer em nenhuma das Leis neste momento. Acho que é
essencial fazer aquilo, precisamente, que acabou de ser dito - criar as
estruturas que faltam para estas Leis entrarem efectivamente em
funcionamento e indo fazendo, obviamente, a avaliação da sua aplicação,
nomeadamente, se está ou não a dar resultado, fazendo também algum estudo
de aprofundamento doutrinário das matérias. É uma área em que continuamos,
ainda que se tenha melhorado, a ter uma grande deficiência de reflexão
doutrinária sobre estas matérias. É necessário melhorar a aplicação da Lei de
Promoção e Protecção, fazendo a regulamentação das medidas que faltam,
criando instituições, fazendo formação adequada dos técnicos que trabalham
aí. Eu acho que na área do Tutelar Educativo, também é importante continuar a
fazer esse esforço, sendo que na área da Promoção e Protecção está muita
coisa por fazer, nomeadamente as medidas de protecção e a formação.
Relativamente aos Tribunais, numa área que me é mais próxima, penso que se
continua a necessitar de formação, mas de uma maneira diferente daquela que
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 110

existiu até agora. E acho essencial que a nível da organização das


magistraturas, se assuma que as colocações nestes Tribunais especializados,
devem depender de uma especialização prévia. A competência especializada
prevê, na minha perspectiva, a necessidade de ter uma preparação prévia,
uma especialização prévia, por via da auto-formação ou da formação, ou seja
uma especialização prévia que seja condição de acesso à colocação nesses
Tribunais e uma formação continuada, obrigatória a título permanente para os
magistrados. Acho que essa formação tem que ser uma formação dirigida, com
outra avaliação, uma formação dirigida a um determinado tipo de problemas
concretos, com determinado aprofundamento, que vá para além daquelas
“campanhas” de divulgação, que têm sido as acções de formação permanente.
E acho essencial que a formação permanente esteja ligada à formação
especializada, ligada, necessariamente, à colocação dos magistrados nestes
Tribunais. Porque o que acontece actualmente é que a formação permanente
não é obrigatória, não tem qualquer tipo de ligação à progressão na carreira e à
colocação num determinado tipo de Tribunal. Portanto fica-se dependente da
boa vontade e do interesse dos magistrados. Com esta nova legislação, deu-se
na minha perspectiva, um avanço que foi relevante na própria organização dos
Tribunais, tendo sido criados vários. O facto de existirem magistrados a
trabalharem especificamente com esta matéria, ainda que sem a tal formação,
também já foi um avanço. Efectivamente, eu acho que, apesar de tudo, as
asneiras, os erros - e nós hoje ouvimos aqui muitos e eu conheço outros
tantos, - há a parte boa, o trabalho tem vindo a melhorar e a qualidade da
magistratura, neste momento, naqueles Tribunais é, sem dúvida, superior
aquela que era há 3 ou 4 anos. Isto para mim é um salto positivo. Obviamente
que temos que continuar e aprofundar, no sentido em que eu já disse.

P-2: Eu concordo em absoluto com as duas posições, excepto na parte


em que me pareceu ter entendido que não considerava urgente algumas
alterações, ainda que de pormenor, ainda que em pequenas questões, mas eu
aí acho que era importante alterar nesta parte a Lei, quão breve quanto
possível. Enfim, eu não partilho da ideia de que tudo esteja regulado e previsto,
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 111

mas não concordo, manifestamente, com a ideia de que isto esteja a


acontecer, há discricionaridade ou pelo menos há critérios de interpretação do
magistrado, acho que isto cria uma sensação de insegurança em todos nós,
uma sensação de injustiça a que temos que pôr cobro e acho que a regulação,
nalguns aspectos fundamentais, tem que ser feita. A existência de
jurisprudência contraditória não é um fim em si mesma. Ela existe em função
de determinadas necessidades, se essas necessidades forem prementes, e se
não houver responsabilização do poder político, de quem tem possibilidade de
o fazer, provavelmente, encontraremos situações graves. Dentro de algum
tempo estaremos todos a equacionarmo-nos e acho que era preciso atalhar
enquanto é possível.

P-6: Eu diria que estou de acordo com as sugestões. Relativamente à


alteração, eu preferiria uma posição intermédia. Porque sendo uma Lei da
Assembleia da República, ninguém controla o que vai ser alterado ou não.

P-2: Quando se tem maioria, isso controla-se.

P-6: Eu, às vezes, acho que é preferível esperarmos um bocadinho e


irmos aguardando pela existência de alguma doutrina e jurisprudência, do que
propriamente alterar logo, até porque, provavelmente, daqui a 2 ou 3 anos
haverá, seguramente, um consenso maior, independentemente das questões
políticas quanto à valia ou não de algumas soluções que ainda agora estão a
começar a ser experimentadas e que ainda não foram avaliadas.
Relativamente às questões controversas, acho que seria extremamente útil
para todos que se começasse a ter uma prática de divulgação de
jurisprudência comentada. Acho que essa é uma matéria que valeria a pena,
para dignificar este direito e tirar do limbo o direito de menores, porque não é
preciso que haja grande litigiosidade em termos de recursos nos Tribunais
Superiores, mas se cada um defender as suas posições e as comentar, e o
CEJ, por exemplo, pode ter um papel importante nessa divulgação. Nestes 3
anos, da nossa janela, que é uma janela reduzida, o que sentimos foi uma
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 112

grande, numa primeira fase, dificuldade e resistência à própria filosofia da Lei


em alguns magistrados. Progressivamente isso foi-se esbatendo e hoje
sentimos que a situação evoluiu positivamente. As reformas ou alterações
profundas em termos de ramos do direito levam muito tempo a penetrar, ao
nível da jurisprudência e da prática judiciária, pelo que eu diria que, nesta
matéria, se avançou muito e bem. Todos nós cometemos erros. Todos nós
temos perspectivas diferentes, mas eu diria, por esse lado, que estamos todos
bem, porque as coisas avançaram bastante. Acho que se houvesse melhor
formação, se houvesse encontros regulares, se houvesse divulgação de
material e de ideias, o sistema crescia um bocadinho, mais sem que fosse
preciso grandes abanões ao edifício legislativo. Provavelmente, uma
regulamentação das Leis, da Lei de Protecção na área das medidas de
protecção, da mediação fosse suficiente e não era preciso alterar a Lei Tutelar
Educativa. E daqui a algum tempo, se calhar, estaríamos em melhores
condições para fazer uma revisão mais profunda e saber, efectivamente, se
estamos a educar para o direito.

P-3: Deixe-me só dizer-lhe, no seguimento do que está a ser dito,


quanto à formação e à boa aplicação desta Lei por parte dos magistrados, que
é essencial a especialização, a criação de Tribunais de Família e Menores em
todo o país.
É extremamente difícil para um juiz de competência genérica, que são a
grande maioria, pelo menos no interior do país, conseguir ter o tempo suficiente
para frequentar acções de formação a esse nível, e depois ainda arranjar o
tempo e disponibilidade necessários para visitar os Centros Educativos, o
tempo para investir na formação, que é extremamente importante.
Isso tem de ser conseguido com a colaboração do Conselho Superior da
Magistratura, do Conselho Superior do Ministério Público, ou seja, um esforço
no sentido de criação dos Tribunais de Família e Menores, inclusivamente em
círculos que não comportem um só Tribunal, por exemplo, juntar os círculos da
Guarda, Castelo Branco e Covilhã, e criar um Tribunal de competência
especializada que consiga dar uma melhor resposta.
Os Caminhos Difíceis da “Nova” Justiça Tutelar 113

Isto porque, provavelmente, nós não conseguimos dar a resposta ideal,


porque não conseguimos ter o tempo suficiente e a especialização neste
aspecto é, para mim, extremamente importante.

P-1: Eu vou dizer uma barbaridade porque não sei como funcionam as
magistraturas. O que eu gostaria, por exemplo, era, no distrito de Coimbra, que
houvesse só o Tribunal de Família e Menores. Não ter de estar, para questões
de menores, a trabalhar com o magistrado de Oliveira do Hospital ou de
Cantanhede ou da Figueira. Acho que era mais útil, para os menores e para a
aplicação da Lei que, efectivamente, tivéssemos só o Tribunal de Família e
Menores para todo o distrito.

OPJ: Tem a ver com a questão da especialização, não é?

P-1: Tem a ver com a especialização, exactamente. Sobre alterar a Lei


não me sei pronunciar, agora, tenho necessidade que avaliem a aplicação da
Lei de Promoção e Protecção, e com urgência. Eventualmente, ver se isso traz
mais valias no sentido da responsabilidade do Governo, e das estruturas em
geral, ao mais alto nível, não só da Segurança Social mas, fundamentalmente,
da educação e também das famílias. Nós não temos estado a entrar em linha
de conta com a questão da saúde, para aplicação da Promoção e Protecção,
mas é um dos aspectos essenciais. Essenciais. E a saúde, normalmente, na
minha perspectiva, fica muito, muito, muito de lado. Desde a necessidade de
sinalização precoce, se for possível desde a gestação de gravidezes de risco e
assegurando depois o acompanhamento, é fundamental.

P-9: Só queria dizer uma coisa porque do muito que foi dito, considero
pertinente para a discussão, e que era o seguinte: acho que o Ministério da
Justiça devia estabelecer protocolos com outras entidades para possibilitar que
depois as medidas de acompanhamento educativo possam ter aplicação
prática. Falou-se aqui muito no Instituto de Emprego e Formação Profissional
mas não será só essa entidade que pode dar saídas profissionais a esse
Anexo – Painel “A Avaliação da Aplicação da Lei Tutelar Educativa” 114

jovens. Portanto, assim há um outro problema. Quer dizer, não se trata só de


não se aplicar uma medida, às vezes os próprios magistrados comprometem
certos jovens, por exemplo, na subscrição de um plano que constitui uma
solução sobre a sua situação no processo, e depois os jovens sentem-se
enganados porque afinal de contas, no médio prazo, não há saída e o
magistrado também não as pode inventar. Isso é um dos problemas que em
Portugal, normalmente, existe: há muita legislação mas depois não há
estruturas de suporte.

P-8: Já que estamos a pedir, eu pedia só: família e menores, gabinetes


com técnicos especializados, formação auxiliar não só para os magistrados,
como, também, para os advogados. Realmente, técnicos necessários para lidar
com os menores: psicólogos, pedagogos, etc.

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