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Quando

atitudes sociais
se tornam Arte
Trabalho escrito coletivamente por José Lucas Albuquerque da Silva, Mateus
A. Krustx, Ana Clara Simões Lopes, Naima Bibas Silva Vieira, Lucas Sousa, Rayssa
de Oliveira Ruiz, Aline Beatriz Seixas de Souza, Marlon Cesar Merly de Paz, Karla
Gama, Ana Clara Schubert, Caio Couto, Amanda Rezende de França Pizani
Domiciano, Racquel Fontenele Crespo, Emmanuele Russel Salvador, Tayná de
Oliveira Ribeiro, Bruno Awful , Mayara Velozo, Giselle Liberato, Heloize Amaro,
Amanda Accioly Videira Gabriel Caires(coloque seu nome conforme acrescenta
algo).

Quando atitudes se tornam forma: mas o que é forma?

O tema maior desse artigo do qual o meu se inscreve remete, com seu título,
à exposição “Quando as atitudes se tornam forma”, realizada na Kunsthalle de Berna
por Harald Szeemann em 1969, sendo uma das primeiras exposições a exibir
artistas minimalistas e conceituais em uma instituição. Ali, Szeeman discutia o
caráter gestual e processual que uma obra poderia assumir para além de sua
configuração material, imutável e comercial. Além disso, a figura do curador
enquanto propositor de experiências começava a aparecer, despindo-se da figura do
conservador enquanto zelador das obras.

1
Entretanto, antes de pensarmos sobre como essa exposição se mostra
relevante na contemporaneidade e, ainda, pensar em novas articulações e
alterações que a mesma deve passar para abarcar um novo campo artístico que
desponta (seja no fazer do artista, no curador independente que propõe exposições,
ou ainda no pesquisador de arte, campo que se expande no Brasil com a
consolidação dos cursos de história da arte), penso ser fundamental delimitar o que
chamamos de forma para, após, pensarmos arte e sociedade. A palavra tem sido
usada de forma diferente por vários teóricos da imagem, filósofos e artistas ao longo
da história, provando ser um desafio discutir sobre o mesmo sem uma consideração
prévia de suas utilizações. Pretendo aqui estabelecer uma reflexão com alguns usos
que o termo já abarcou, de forma a problematizar sua funcionalidade.

A palavra vem do latim forma, que serve para designar todo objeto feito na
fôrma, ou uma configuração que determinada coisa assume. Em concomitância, o
pensamento oriental que vem atrelado à palavra forma (que tem como escrita o
caractere 形) apresenta pontos de contato com a noção proposta pelo latim. Os
compostos semânticos que formam o caractere são 刑, que denota moldura,
estrutura, enquadramento, e 彡, que denota padrão, corpo, matriz. Apesar da
distância que a cultura oriental e ocidental apresenta nas mais diversas áreas de
pensamento e práticas, fica claro que o termo propõe em ambos uma categoria de
forma como um modelo de enquadramento para determinada matéria.

Analisando o termo por sua antítese, podemos também pensar o que o


mesmo denota a partir do conceito de informe proposto por Georges Bataille.
Durante a confecção da revista francesa Documenta, que ocorreu entre 1929 e
1930, Bataille se propõe a realizar um dicionário crítico que se orienta a partir das
tarefas das palavras, e não em seus sentidos, como ocorre usualmente em um
dicionário. Durante o verbete informe, o autor chama atenção para a tarefa que a
denominação forma supõe, que seria a implicação de que tudo tenha uma forma
classificável. Ou seja, uma maneira de determinar que tudo no universo possui uma
forma ou aparência acessível ao conhecimento descritivo e, portanto, racional.
Entretanto, é insustentável realizar uma análise de um objeto qualquer pensando
forma como composição aparente, recusando uma reflexão acerca das dicotomias
que a mesma pode propor. Robert Kudielka (1998) levanta a definição de forma

2
como uma mediação entre o espectador e a obra, tendo a abstração como instância
articuladora dessa ordem de relação. Portanto, uma visão essencialista e cartesiana
de uma obra torna-se incompleta, já que sempre é necessário pensar sobre a
relação que a forma propõe com a percepção do espectador.
Henri Bergson, filósofo francês do século da transição para o século XX,
utiliza a palavra forma para propor um lugar onde se cristaliza o devir: "Forma é um
instantâneo de uma transição” (1971). Seu conceito se torna muito caro para os
pensadores da fotografia e do cinema, como o francês Deleuze, que articula grande
parte de sua obra a partir de experiências cinematográficas. Estabelecendo uma
relação desse pensamento com o título deste artigo, podemos utilizar como exemplo
a obra “Poder”, da série “Carnaval” realizada por Carlos Vergara entre 1972 e 1976.

“Poder”, de Carlos Vergara. Fonte: O Globo.

Tomando como forma a definição proposta por Bergson, podemos inferir que
a forma-fotografia de Vergara condensa uma série de transições – estas de cunho
social, político e estético – em uma configuração imagética que apresenta três
homens negros fotografados no bloco carnavalesco Cacique de Ramos, ostentando
a palavra “PODER” marcada em seus peitos por uma tinta branca. Os três olham
para o espectador de forma impositiva, recusando a posição de meros objetos da
fotografia, e tomando lugar na imagem como protagonista.

A obra capta, em si, diversas manifestações sociais e momentos históricos,


como a afirmação do movimento negro, que coloca seu cabelo black power1 como

1 Penteado utilizado em grande maioria por afro-descendentes que se tornou um símbolo


afirmativo na luta de interesses políticos e sociais do movimento negro durante os anos 60 e 70 nos
estados unidos.

3
protagonista da fotografia; um Brasil que atravessava um período de ditadura
repressivo, onde já havia sido instaurado o ato mais tirânico de sua constituição, o
AI-5; o período do carnaval como lugar de afirmação étnica e de liberação de corpos
explorados pelo sistema social e econômico, etc.

Já Henri Focillon, historiador da arte francês ativo no início do século XX,


atribui à palavra forma um significado que leva em consideração a relação entre
diversos termos que compõem uma ordem: "As relações formais em uma obra e
entre as várias obras constituem uma ordem, uma metáfora do universo" (1934).
Essa definição de forma enquanto metáfora de um universo é uma premissa muito
importante para a curadoria, que comumente visa a constituição de uma rede de
significantes para, assim, reconstruir dentro de determinado espaço uma expressão
social, podendo essa ser plástica, política ou prática. Tomemos como exemplo a
exposição “O Rio do Samba - resistência e reinvenção”, exposto pelo Museu de Arte
do Rio entre 28 de abril de 2018 a 31 de maio de 2019, e o pequeno texto que
integra a proposição da exposição, que está disponível no site oficial do Museu de
Arte do Rio.

“A exposição propõe um percurso pela história social do samba


— patrimônio imaterial brasileiro —-, da diáspora africana à
atualidade do samba carioca. A perspectiva da resistência e da
reinvenção cultural atravessam a mostra, apresentando a
potência do samba como fenômeno social e estético.”

4
Fotos que demonstram a expografia da exposição “O Rio do Samba - resistência e
reinvenção”. Fonte: TV Brasil e Revista Istoé.

Entendemos, a partir do texto e de sua expografia, que a mostra pretende


apresentar uma narrativa sobre a história social do samba através da questão da
resistência e da reinvenção cultural. Todas as peças ali exibidas têm como função
contribuir para a constituição dessa narrativa e realizar um procedimento metonímico
de expressar uma determinada conjuntura social e histórica – ou, sendo mais
próximo de Focillon, constituir um universo que abarque a perspectiva do conselho
curatorial.

Portanto, antes de pensar sobre a transposição de atitudes sociais para


dentro do campo da arte – sejam estes a partir da aproximação arte e vida e uma
tendência da anulação da obra, como proposto por diversos movimentos de
vanguarda, ou tendo a obra de arte confeccionada a partir de uma experiência no
campo social, devemos pensar o que chamamos de arte e, consequentemente, o
que denominamos forma dentro do campo da arte.

5
Quando atitudes se tornam forma: mas e quando
representatividade se torna arte?

Mateus A. Krustx

Quando atitudes sociais se tornam arte, o emergir da representatividade faz-


se necessário. Sua importância no fazer artístico contemporâneo e tão demandada
quanto à da política. Corpos fazem-se forma e se tornam significado. O corpo, à
política e a forma, trazem seus próprios limites, por isso proponho um pequeno
debate a fim de abalar por alguns instantes este sistema que certamente com o
mínimo de esforço irá se restabelecer novamente.

Como dito por José Lucas Albuquerque da Silva ao início deste artigo;
Szeemann, ao tentar discutir o caráter gestual e processual em algum momento
propôs “Quando as atitudes se tornam forma”, que previa novas possibilidades para
as proposições expositivas. Hoje, no século XXI vemos que as atitudes sociais são
tomadas como novas formas de arte, mas quais são os parâmetros éticos e morais
que permitem este abraçar da arte contemporânea.

Em nosso contexto, a arte brasileira já vem transformando há um tempo as


atitudes sociais como arte. Vemos desde o “Poder”, de Carlos Vergara até às obras
da artista contemporânea paraense Berna Reale2, a busca de questões políticas e
sociais na arte. E isso nos fazem questionar, QUANDO ATITUDES SOCIAIS SE
TORNAM ARTE.

Quando falamos de atitudes sociais, nos vem em mente a palavra “Minorias”;


termo utilizado para definir grupos sociais isentos de “privilégios”; estes que afirmam
a diferença social e a ausência de direitos iguais. Dois termos constantes nos
debates sociais e políticos na atualidade, ao serem utilizados ativam um outra
questão dentro da representatividade “o que é o lugar de fala”.

O lugar de fala é específico e se contrapõe aos privilégio, Djamila Ribeiro,


mestre em Filosofia, feminista e ativista do movimento negro, em seu livro “O que é

2 “Berna Reale (Belém, Pará, 1965). Artista e perita criminal. Licencia-se em artes pela
Universidade Federal do Pará em 1996. [...] Por meio de ações e performances minuciosamente
concebidas, Berna Reale desvenda aspectos ocultos das relações de poder, de caráter individual ou
social.” (ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURA. Berna reale. Disponível em:
<http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa26879/berna-reale>. Acesso em: 14 ago. 2018)
6
o lugar de fala”, propõe à transcrevê-lo afirmando sua origem como vinda do
feminismo negro, deixando claro que este termo surge para afirmar o
posicionamento desta minoria na injustiça dos privilégios concedidos às classes,
gênero e etnias dominantes (2007), a escritora faz de seu livro uma ferramenta de
seu próprio lugar fala. Mas qual a relação do lugar de fala com a atitude social se
tornando forma?

Quando a artista visual não-binária Matheusa Passareli3, propõem seu


processo como Corpo Estranho, não apenas busca firmar suas questões sociais
políticas e simbólicas, mas também traz todo um equiparato próprio de seu lugar de
fala. Matheusa, em suas obras busca firmar seu posicionamentos como BICHA-
PRETA RIOBONITENSE, e traz a tona todo um repertório identitário quanto minoria
de sua forma discursiva própria e individual, e propõe a reciprocidade no contato
com o outro, a troca.
Em uma de suas obras; a artista dispôs esferas com diferentes texturas,
tamanhos e pesos, e as denomina como “corpos estranhos”, assim como a si
mesma. Estes corpos, propunham uma questão com o contato, afeto e alguns
escondiam suas próprias ferramentas contra toques inapropriados; agulhas que ao
serem manuseadas de forma errada poderiam perfurar quem ousasse às pressionar.

Szeemann, em sua entrevista já citada por José Lucas, me surpreendeu a


falar de um tema ao qual abordei em minha monografia Mitologia Individual;

“[...] a expressão nasceu quando organizei uma exposição de


Etienne-Martin, em 1963. [...] O conceito de “mitologia individual”
deveria postular uma história da arte de intenções profundas, que
podem assumir diversas formas: as pessoas criam seus próprios
sistemas de signos, que levam tempo para serem decifrados.”
(SZEEMANN)4

3 Matheusa, Matheus Simões Vieira Passarelli, artista visual não-binária e integrante


do coletivo de artes Seus Putos, foi vítima de um crime violentos e faleceu em 2018;
4 SZEEMANN, Harald. Interview. OBRIST, Hans Ulrich. “Uma breve história da curadoria”.
São Paulo: BEI Comunicação, 2010.

7
Em minha pesquisa a Mitologia do Indivíduo: Autobiografia, relato e outras
ficções5, toma a mesma vertente que a proposta por Szeemann, mas para alcançar
seus significados passei por outras referências como O Herói de mil faces6 de
Joseph Campbell e O homem e seus símbolos7 de Carl G. Jung. Agora vendo que
Szeemann e eu partilhamos deste assunto, posso afirmar que assim como ele
descreve o trabalho de Etienne-Martin, posso afirmar as propostas de Matheusa
Passareli como pertencentes de sua busca pela automitologia e representatividade.

Ao pensar a arte e o seu espaço de fala, podemos notar brechas para as


produções artísticas contemporâneas e uma nova possibilidade para a
performatividade do corpo como representatividade. Assim notamos o despertar
dessa nova possibilidade de discurso político como uma ferramenta de
posicionamento e subversão da arte como representação social.

5KRUSTX, Mateus. Mitologia do Indivíduo: Autobiografia, relato e outras ficções.


Monografia em Artes Visuais - UERJ. Rio de Janeiro, 2018.

6 CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. 14a ed. São Paulo: Pensamento, 1989.

7 Publicado pela primeira vez em 1964 pela Aldus Books Limited em Londres, onde não
constava o capítulo “Os Mitos Antigos e o Homem Moderno”. O livro começou a ser organizado por
Carl G. Jung e após seu falecimento foi finalizado por M. -L. von Franz, com intuito de reunir os temas
principais de suas pesquisas e de seus colegas publicando-os com uma linguagem mais objetiva.
(JUNG et al., 2016.)

8
Quando atitudes se tornam forma: mas e quando se tornam
representatividade? Outras perspectivas da ação.

Ana Clara Simões Lopes

Cuando la fe mueve montañas [quando a fé move montanhas] - Francis Alÿs, Lima,


2002

Em Abril de 2002, quinhentos estudantes voluntários com pás e jalecos se


reúnem em uma duna próxima a Lima, no Peru. Caminhando em fila e cavando
continuamente, a movem alguns poucos centímetros.

Alÿs chegou a essa ideia depois de visitar Lima no final do ano 2000, em meio
a um contexto político singular e inescapável: eram os últimos meses da ditadura
Fujimori8; Lima estava tumultuada com combates nas ruas e um movimento de

8 Alberto Fujimori ocupou a presidência do Peru de 1990 até 2000. Durante seu
governo, o Congresso foi dissolvido, o Poder Judiciário, Ministério Público e Tribunal
Constitucional fechados. É acusado de perseguir, sequestrar e matar opositores com o
9
resistência emergente. “Era uma situação desesperada que pedia uma resposta
épica: organizar uma alegoria social para se adequar às circunstâncias parecia mais
apropriado do que se engajar em um exercício escultural”9. Retorna, portanto, em
2002, para realizar quando a fé move montanhas.

O princípio que guia o trabalho em questão é “máximo esforço, mínimo


resultado”10. Efetiva-se uma mudança aparentemente mínima – através de enorme
esforço coletivo. Ainda que ineficaz, a ação em si (registrada através de fotografias e
vídeo) é visualmente extraordinária. É fascinante observar o esforço coletivo dos
tantos corpos que se movem ordenadamente: e é precisamente esse esforço
coletivo que importa. A ação é completamente transitória (não se movem
montanhas). A “alegoria social”11 do trabalho é o que destaca-se.

Para Alÿs era essencial que os participantes fossem voluntários. Desta


maneira, a ação serviria de modelo para um “gasto generoso de energia,
contrariando os princípios econômicos conservadores de eficiência e produção.”[5]
Em oposição à lógica social que associa tempo e ganho de dinheiro, aqui o tempo
adquire outra qualidade de expressão por ser dedicado à uma atividade inútil-
ineficaz. É através deste gesto negativo – o enorme esforço dedicado à inutilidade –
que revelam-se as potências de ambos.

Assim, o imenso pente humano que move a duna é também tentativa de


traduzir tensões sociais em narrativas que, por sua vez, intervém na paisagem
imaginária daquele lugar.

auxílio do aparato militar e uma rede de veículos de imprensa sensacionalistas], além de ser
responsável pela esterilização sem consentimento de mais de 300 mil mulheres peruanas,
em sua maioria indígenas.
9 (Alÿs n.d.)
10 (Alÿs n.d.)
11 (TATE n.d.)

10
Naima Bibas Silva Vieira

“Reluziu... É ouro ou lata


Formou a grande confusão
Qual areia na farofa
É o luxo e a pobreza
No meu mundo de ilusão

Xepa de lá pra cá xepei


Sou na vida um mendigo
da folia eu sou rei”(...)

- trecho do Samba Enredo “Ratos e Urubus, larguem a minha


fantasia”; Beija-Flor de Nilópolis, Rio de Janeiro, 1989

Cerca de 20 anos depois da fotografia marcante de Vergara, a folia


permaneceu explorando e afirmando a estética carnavalesca - desde carros
alegóricos, figurinos e o famoso samba-enredo que os acompanha - como um
espaço de afirmação étnica e de liberação corporal, frequentemente questionando o
sistema social-econômico do país em que estamos inseridos.

É o caso do famoso desfile idealizado por Joãozinho Trinta batizado


como “Ratos e urubus, larguem da minha fantasia”, em 1989, que garantiu o lugar de
vice-campeã da escola de samba Beija-Flor naquele ano, e deixando sua marca na
história do carnaval carioca. O motivo de tanta popularidade foi o mesmo causador
de sua polêmica: o carnavalesco, que era conhecido por seus trabalhos luxuosos e
grandiosos, escolheu trazer para a avenida o tema oposto, o lixo - e todos os
assuntos ligados a ele, morais ou materiais.

11
Detalhe do desfile “Ratos e Urubus, Larguem a
minha fantasia” da Beija Flor de Nilópolis, 1989

12
A narrativa de “do lixo ao luxo”, como denominou, chocou primeiramente ao
divulgar o convite dizendo: “ATENÇÃO Mendigos, desocupados, pivetes, meretrizes,
loucos, profetas, esfomeados e povo de rua: tirem dos lixos deste imenso país restos
de luxos...Façam suas fantasias e venham participar deste grandioso BAL
MASQUÉ.”, a qual convocava os moradores de rua para inaugurarem a passarela do
samba em seu abre-alas. Segundo Helio Oiticica (1967) uma ação como estas
poderia “introduzir o espectador ingênuo no processo criador fenomenológico da
obra (...) como uma proposição aberta à sua participação total.”, enaltecendo a

importância do coletivo para a compreensão da mensagem-enredo.

Cristo Mendigo em desfile da Beija-Flor, 1989. (reprodução internet)

Eles acompanhariam o gigante Cristo Mendigo, a alegoria principal do


primeiro carro; porém, dias antes da festa na Sapucaí, Joãozinho recebeu a notícia
de que a Igreja entrará na justiça alegando que estavam cometendo um ato de
desrespeito religioso e o impediram de ser apresentado. Deparados com esse
imprevisto e furiosos, Joãozinho não abriu mão de sua produção e seguiu a ideia de
seu amigo e diretor da escola, Laíla: encobriram o Cristo com um pano preto e
incluíram a frase “Mesmo proibido, olhai por nós!”, atingindo então um outro nível de
crítica social, além das que já haviam colocado em discussão.
13
A comoção do público causada pelo desfile se caracteriza então pela surpresa
- seguida por uma tomada de consciência - ao se depararem com uma manifestação
provocativa em vários modos. O impacto ecológico, pela presença de uma grande
quantidade de lixo produzido e que possivelmente seria descartado se não fosse
pelo espetáculo; e ainda, de maneira mais urgente, o lado moral e humanitário, onde
o público não tem escapatória se não lidar com a questão dos inúmeros moradores
de rua, que muitas vezes seriam ignorados ou não vistos na vida cotidiana e que
habitam a Cidade Maravilhosa. O pioneiro do happening, Allan Kaprow (1971) já
dizia que “O an-artista não faz arte real, mas o que chamo de arte como-a-vida
[lifelike art], arte que nos faz principalmente lembrar de nossas vidas.”; e, ao
provocar essa sensibilização no público, nos questionamos o que pode acontecer na
vida real e se tais provocações poderiam ou seriam efetivadas imediatamente ou a
longo prazo.

Além de Laíla, Joãozinho contou com o importante auxílio de Amir Haddad,


dramaturgo e criador do grupo Tá na Rua para a concepção da comissão de frente e
o abre-alas do desfile. O grupo, desde os anos 70, usa de espaços livres que fogem
das instituições e tem um apreço pelo espetáculo que é o carnaval, logo Haddad
aceitou o convite comentando que “quando me chamou para faze nor parte do
desfile, o João me disse que eu carnavalizava o teatro e que ele queria que eu
teatralizasse o Carnaval dele”. Além de Haddad, o filósofo John Dewey – objeto de
estudo de Kaprow – acreditava no papel da arte em relação ao cotidiano e, também,
nos espaços “não-institucionais” de expressão artística e um novo posicionamento
do espectador.

Os outros carros traziam ainda a ideia do “lixo ao luxo” ao lidar com questões
como imprensa, política, igreja, lixo produzido desde os brinquedos até no sexo.
Esteticamente, as cores e figurinos das alas ficariam cada vez mais alegres,
simbolizando essa transição. A Beija-Flor de Nilópolis foi uma das últimas escolas a
desfilarem, então, excepcionalmente, o portão foi aberto e o público pôde se juntar
as arquibancadas para participar da folia que entrou para a memória do carnaval do
Rio e de todos na Sapucaí.

14
15
Uma aproximação entre o gesto e o sensível:

Lucas Sousa

No conto de Jorge Luís Borges, A rosa de Paracelso, o autor aborda a magia


através do diálogo entre um alquimista e um possível pupilo. O jovem, que
caminhará dias e noites a procura dos ensinamentos de Paracelso, dúvida
incessantemente dos conhecimentos do mestre; onde o alquimista responde: “Se eu
o fizesse, dirias que se trata de uma aparência imposta pela magia dos teus olhos. O
prodígio não te daria a Fé que buscas: Deixa, pois, a Rosa. ”

O brilhantismo de Borges, exemplificado no texto, está em trazer à tona temas


contemporâneos sob a ótica do esoterismo. Quando exposta a relação entre o
mestre e o aluno, torna-se explícita a ignorância do viajante— ainda que letrado e
dominante de vários idiomas. O mesmo, ansioso pelo resultado final, ignora por
completo os processos em torno dos ensinamentos.

A sabedoria proposta por Borges não está nos conhecimentos


institucionalizados, no ouro ou no isolamento, mas no entendimento das coisas
dentro de seu contexto, da amabilidade da própria palavra rosa no conto. A
disparidade entre a leitura feita sobre Paracelso por médicos e boticários e o seu
real conhecimento sobre os segredos da rosa, revelam o conflito entre duas
sabedorias, distinguidas pelo que está escondido na palavra e o que está à mostra.

O filósofo Agamben no capítulo Magia e Felicidade do livro profanações12


também argumenta sobre o momento da magia. Nele o autor discorre: “ o nome
secreto é, na realidade, o gesto com o qual a criatura é restituída ao inexpresso”, em
seguida completa: “ em última instância, a magia não é o conhecimento dos nomes,
mas gesto, desvio em relação ao nome”. Assim como Borges, para o escritor italiano
a magia está mais próxima do gesto do que do ato final de transformação. A magia
como gesto, ainda que muitas vezes ditada por certos conhecimentos é
naturalmente democrática. No mesmo texto em que constrói a relação do nome com
o gesto o autor toma como exemplo o personagem da criança que pouco se importa

12 AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.


16
com a ignorância dos nomes mágicos, mas se entristece com o fato de não
conseguir se destituir daquilo que lhe foi imposto: o nome.13

As transições entre gesto e nome, descritas por Agamben, ainda que sob
linguagens distintas, se aproximam em muito do que é proposto como revolução
estética por Jacques Rancière. Nos textos em que analisa a transição da estética
como valor das maneiras de fazer para a “realização sensível de uma humanidade
comum”14 o autor desconstrói a relação entre o sábio e o ignorante—onde o sábio
detém o conhecimento ausente nos ignorantes— ao questionar o valor estético
como o reflexo de um povo e não como o valor da obra em si. Esse questionamento
se torna explícito no livro “O espectador emancipado”, onde Rancière se apropria do
conceito de emancipação intelectual de Joseph Jacotot. Para ambos a emancipação
intelectual é a comprovação da igualdade das inteligências. Portanto, os diversos
saberes dispostos na sociedade passam a ocupar lugar de relevância semelhante ao
se tornarem cruciais para a legitimação dos territórios políticos.

A lógica pedagógica da emancipação é de suma importância para pensar


processos descritos em obras como a de Vergara. A ciência ou não da origem da
palavra black-power ou dos movimentos que o difundiram não diminui a potência da
foto. O poder ainda está ali. As pessoas fotografadas em poder sobre sua própria
imagem diluem as barreiras entre o gesto e o sensível 15, tornam-se protagonistas de
sua própria história, trazendo o artista para um outro lugar; o lugar de tradutor.
Vergara não detém o saber empírico sobre o poder negro, tão pouco se apropria das
questões do movimento para seu trabalho. O artista, portanto, age como mestre
ignorante16, onde aprende e traduz as linguagens e signos distantes de seu intelecto
para uso dos outros.

O mesmo raciocínio pode ser encontrado no desfile de Joãozinho Trinta


“Ratos e urubus, larguem da minha fantasia”. O ato de trazer conhecimentos

13
AGAMBEN, Giorgio. Magia e Felicidade; Pág.25
14
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo:
EXO experimental org.; Editora 34, 2009. Capítulo 2, pg. 39
15 Jacques Ranciere aborda o sensível de diversas maneiras. No livro “A partilha do
sensível”, o autor aproxima a estética da política para conceituar o sensível, partindo de
diversos outros conceitos, como uma nova relação do objeto com o meio.
16RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2012.
17
marginalizados e revelar os mesmos possuidores desses conhecimentos como
proprietários de um espaço elitizado ressignifica o espaço e a proposta de carnaval
que foram tomados dessas mesmas pessoas. É nesse ato que o artista se
assemelha em muito a Paracelso. Da mesma forma que o alquimista traduz a rosa
das cinzas, o carnavalesco faz renascer o carnaval com as palavras: “Mendigos, A
Sapucaí é Vossa”.

Quando gesto tornam-se arte: da remoção à resistência.

Rayssa de Oliveira Ruiz

“É um resgate que através disso nós estamos fazendo uma recuperação das
histórias. Muitas histórias se perderam aqui na Vila e a preocupação é justamente
essa, para que não se perca todas as histórias.” (Informação Verbal – Trecho
retirado do vídeo “O que é o Museu das Remoções?”)17

Esta fala de Sandra Maria, moradora da Vila Autódromo é parte integrante do


Museu das Remoções, representa a intenção da criação deste museu e o que o
mesmo simboliza. Um lugar de memórias que se faz presente como marca de um
território e circula como multiplicador de força, luta e resistência.

A Vila Autódromo, localizada na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, é


marcada pela política de remoções promovida brutalmente pela Prefeitura, na gestão
do Prefeito Eduardo Paes, para a consolidação das intervenções urbanas feitas para
os megaeventos (Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016). Uma vila
que era composta por mais quinhentas famílias, hoje só sobrevive (com menos de
cinco por cento destas) pela resistência de seus moradores.

Embora a criação de um espaço para não se perder histórias parece algo


“óbvio” ao se pensar na trajetória do que hoje conhecemos como museu, muito se
tem a questionar. O uso do colecionismo para demonstração de poder, que pode ser
visto desde os Gabinetes de Curiosidades, no qual peças eram expostas para
“contar histórias” de algo ou alguém, é um exemplo de problemática. A questão é

17 TEIXEIRA, Sandra Maria de Souza. O que é o Museu das Remoções?: vídeo


[maio 2016]. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=WqJg0vNaQTM>. Acesso
em: 28 julho 2018
18
que esses tais contos eram os dos próprios donos, das suas vitórias, dos seus
roubos não declarados, de seu poderio perante as memórias removidas e apagadas.

Ao longo deste percurso, a organização dos espaços foi mudando e dando


lugar a Arte, recinto de fruição e voltado quase que exclusivamente para a elite. O
que continuava sendo contado era (e a atualidade não se desvincula totalmente) o
que essa classe decidia que deveria ser. As minorias só entravam nestes espaços
por meio das histórias de alheios e como objetos de curiosidade e exotificação.
Como então fugir de uma contação que não é sua e ter voz ativa em um espaço
tradicionalmente excludente? A museologia social vem como um ponto de fuga para
essa questão.

No artigo A Museologia Social e os movimentos sociais no Brasil, cita-se:

Esta nova museologia assume-se como um processo de


colocar perguntas pertinentes para as questões relevantes da
comunidade. [...] Pensar a museologia social como um
processo de envolvimento na transformação do mundo em que
vivemos. Um instrumento de transformação.

Assim, o Museu das Remoções se mostra como um exemplo de


instrumento de transformação. Um espaço que foge do cubo branco e exibe suas
obras de arte a céu aberto, oferecendo muito mais do que a Arte grafada com A
maiúsculo. Lugar esse que mostra seu território, conta suas próprias histórias e se
movimenta. É um museu que anda, que multiplica suas vozes a cada novo encontro
com o próximo. Do mesmo modo, a oralidade dos próprios viventes e suas
contações, colocando suas memórias e seus sentimentos, é também o museu.
Sandra Maria, por exemplo, citada no começo deste trabalho, além de moradora e
ativista, é (também) o museu.

Na conferência de encerramento do II Seminário de Práticas em Arte e


Educação: Para que Arte e Educação em tempos hostis?, realizado no Centro
Cultural da UERJ em maio de 2018, Sandra Maria apresentou a trajetória da Vila
Autódromo. Com o uso de fotos, relatos e documentos, contou como começou,
como era sua organização social, as casas dos moradores, suas festas e
divertimentos, seus trabalhos e principalmente, suas memórias afetivas. Explicou

19
todo o processo de remoção e destacou o estado da vila atualmente. Tudo isto
somado a força, luta, perseverança e resistência de seus moradores.

Sandra Maria, portanto, é uma dentre os demais integrantes que multiplicam


este (relativamente) novo formato de museu, que não se perdem todas as histórias e
mostram que atitudes sociais podem se tornar arte. Esta mesma arte que tenta não
ser excludente e que está disposta a ocupar os espaços, inclusive os que foram
negados historicamente, com documentação e demonstração de que é um

instrumento de luta.

Imagem retirada do site RioOnWatch Relatos das Favelas Cariocas. Disponível em:
<http://rioonwatch.org.br/?p=28438#prettyPhoto>. Acesso em: 28 julho 2017.

20
Sandra Maria de Souza Teixeira. Conferência de Encerramento do II Seminário de
Práticas em Arte e Educação: Para que Arte e Educação em tempos hostis?. Imagem
retirada do arquivo da COEXPA/UERJ.

21
Quando representatividade faz-se imagem.

Aline Beatriz Seixas de Souza

Partindo do princípio de que a escrita da história - geral, econômica, artística,


etc - é comumente dada pelos vencidos e que esses vencidos normalmente ocorrem
graças a uma dominação imposta das classes oprimidas, pensar em uma produção
artística e historiográfica feita pelas ditas minorias é uma forma gestual e conceitual
de se impor em meio a uma tradição social que as apagam. “A tradição dos
oprimidos nos ensina que o “estado de exceção” em que vivemos é na verdade a
regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa
verdade.”18 escreveu Walter Benjamin em 1940 em seu texto “Sobre o conceito de
história”, citando como a historiografia é feita pelas classes dominantes, como reis e
imperadores. Ou seja, se faz necessário uma história escrita sobre e a partir das
classes que são ainda hoje ignoradas para que este estado de exceção vire parte da
história geral.

Pensando nisso, podemos olhar o trabalho de três fotógrafas que se


encontram em temporalidades relativamente próximas, mas que se relacionam
principalmente pela temática de suas produções: Dorothea Lange (1895-1965),
Diane Arbus (1923-1971) e Paz Errázuriz (1944-), três artistas mulheres que olharam
as histórias que estavam acontecendo nas margens das sociedades em que viviam
e, como elas também margens de uma historiografia que privilegia a voz masculina,
produziram conteúdo de relevância artística e social.

Dorothea Lange, norte-americana nascida de pais imigrantes alemães,


começou fotografando em estúdio nos anos de 1920 mas já na década de 1930
mudou seu foco para a condição do desemprego que assolava os Estados Unidos
em pelo período da Grande Depressão. A partir de 1935 passou a fazer parte da
equipe da Farm Security Administration (FSA), uma agência do governo que
buscava recuperar a economia rural e agricultura, principal área afetada pela crise,
registrando pequenas cidades ao Sul dos EUA e a vida nas comunidades agrícolas.

18 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: Magia e Técnica, Arte e Política.
Obras Escolhidas Vol.1. Editora Basiliense, 2012, p. 226.

22
Focou, também, na vida dos trabalhadores migrantes, sendo sua fotografia mais
icônica “Migrant Mother” de 1936, em que registrou uma mãe com três de seus
vários filhos em uma área rural de Nipomo, Califórnia, estabelecidos ali
temporariamente antes de seguir o rumo para o Oeste, em busca de melhores
oportunidades de trabalho.

Figura 1: LANGE, Dorothea. Migrant Mother, Nipomo, Califórnia, 1936. / Figura 2:


LANGE, Dorothea. Young Mother, a Migrant, California, 1937 / Figura 3: LANGE,
Dorothea. Child and Her Mother, Wapato, Yakima Valley, Washington, 1939.

Já Diane Arbus teve como foco as figuras marginalizadas no âmbito social


urbano, sendo inclusive conhecida como “fotógrafa dos freaks”, que em tradução
livre seria algo como “fotógrafa de aberrações”. Nascida de uma família judia em
Nova York, começou a fotografar no final dos anos de 1930 após seu recente
marido, Allan Arbus, a dar de presente sua primeira câmera. Inicialmente
trabalhando ao lado dele em ensaios comerciais para revistas de moda e
propagandas, foi no final da década de 50 que os dois optaram por seguir rumos
diferentes e Diane pode seguir a linguagem artística e pessoal que já desejava,
longe da superficialidade dos ensaios publicitários. Assim, passou a registrar as ruas
e suas histórias consideradas anormais e excêntricas: grupos de circos, pessoas
com deficiências visuais, clubes de transexuais e cabarés, e até mesmo as crianças.
Uma de suas fotografias, “Identical Twins” de 1967, em que fez o registro de duas
meninas gêmeas idênticas, foi usada na década de 1980 como inspiração pelo
diretor - e amigo da família Arbus - Stanley Kubrick para uma das cenas do filme de
terror “O Iluminado”, reforçando o carácter do grotesco da condição das gêmeas
contrariando o movimento feito por Arbus de trazer esses corpos para o cotidiano.
23
Figura 4: ARBUS, Diane. A young man in curlers at home on West 20th
Street, 1966.

/ Figura 5: ARBUS, Diane. Identical Twins, Roselle, New Jersey, 1967 / Figura
6: ARBUS, Diane. Stripper with bare breasts sitting in her dressing room, Atlantic
City, N.J., 1961.

E por fim Paz Errázuriz. Nascida em Santiago, trabalhou como professora de


educação primária até perder seu emprego durante a ditadura militar chilena de
Augusto Pinochet, no início da década de 1970. A partir disso passou a focar em seu
antigo interesse, a fotografia, registrando as ruas e a vida oculta e ilegal dos bordéis
chilenos durante o regime ditatorial, que perdurou até 1990. Sendo uma resistência
ao autoritarismo, saia de madrugada apesar dos toques de recolher e acompanhou a
vida de transexuais que viviam nestes bordéis. Seu impulso inicial foi fotografar as
mulheres que viviam nestes ambientes mas, por medo do reconhecimento de
familiares, elas se recusaram. Seu projeto de pesquisa envolveu uma intensa
participação na vida destes ambientes, acompanhando-as no dia-a-dia e nos
processos de transformações. Além disso, foi cofundadora da Associação de
Fotógrafos Independentes (AFI) que objetivava a reunião de fotojornalistas
independentes que faziam coberturas de acontecimentos políticos do período
ditatorial, servindo como uma alternativa aos registros oficiais do governo.

24
Figura 7: ERRÁZURIZ, Paz. Evelyn, 1981 / Figura 8: ERRÁZURIZ, Paz. La
Palmera, Santiago, 1983 / Figura 9: ERRÁZURIZ, Paz. Coral, bordel La Carina,
Santiago, déc. 1980.

O filósofo Didi-Huberman, em uma entrevista com o artista Arno Gisinger, cita


a potência do ato de fotografar19, muito mais do que apenas o resultado obtido. É
pensar o ato dessas três mulheres de olharem para aquilo que a sociedade ignorava
a existência - e até mesmo proibia -, colocando-os a par do cotidiano, ao mesmo
tempo que elas mesmo passam a fazer parte de uma nova história a ser contada.

“O dom de despertar no passado as centelhas da


esperança é privilégio exclusivo do historiador
convencido de que também os mortos não estarão
em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo
não tem cessado de vencer.”20

Sendo assim, pensar na produção artística e social das fotógrafas Lange,


Arbus e Errázuriz é uma possibilidade de “centelha de esperança” citada por
Benjamin. Seus relatos visuais permitem um olhar crítico sobre as histórias paralelas
do passado sendo um gesto que extrapola os limites entre o artístico e o social. São,
ao mesmo tempo, atitudes sociais que se tornam arte e projetos artísticos que
possuem relevância social e política.

19 DIDI-HUBERMAN, G.; GISINGER, A. Compreender por meio da fotografia. In: Revista


ZUM #13. Rio de Janeiro: IMS, out. 2017, p. 94
20 BENJAMIN, Walter. Op. Cit., 2012, p. 224.

25
26
Marlon Cesar Merly de Paz

Arte e contexto social

Quando falamos de arte, não podemos esquecer o contexto social em que ela
é produzida ou, até, onde foi produzida. Nesse contexto vislumbramos que ao longo
da história da arte, artistas vêm criando e produzindo uma arte intimamente
vinculada à realidade social que os cerca. De acordo com o Filósofo Adorno é
impossível controlar os efeitos sociais de uma obra de arte, seja ela autônoma, livre
de críticas sociais, ou engajada, com críticas sociais.
Arte é um fenômeno social, e isso significa que é praticamente impossível situar
uma obra de arte sem estabelecer um vínculo entre ela e determinada sociedade.
Essa relação entre arte e o social está em constante transformação ao longo da
história. Podemos dizer que o artista é um ser social e que existe uma influência
recíproca entre ele e a sociedade, além disso uma obra de arte é percebida
socialmente pelo público tornando-se um elemento social de comunicação, onde seu
criador pode transmitir uma ideia. Queiram ou não queiram os artistas, tenham ou
não disso consciência, toda a arte, todas as obras de arte, estão impregnadas de
significações sociais.
A presença de um conteúdo não estético em toda a obra de arte contrária em
muitos casos as declaradas intenções do artista. A história da arte está cheia de
exemplos desta divergência entre o tema e o conteúdo. Tomemos o exemplo da
Pintura Renascentista que documenta a vitória do ideal profano sobre o ideal
monástico, pois o tema religioso era apenas um pretexto para retratar as
preocupações e problemas de seu tempo e o amor pela vida terrena, cultivado pela
burguesia ascendente, como na imagem abaixo.

27
O Nascimento de Venus, Botticelli,1483.

Para Adorno, a Estética é a única forma que nos resta para criticar o sistema
social e seus agentes, uma vez que o sistema como um todo está dominado pela
falsidade, expressão de uma pretensa harmonia que a ideologia burguesa finge
existir: “é aqui na obra de arte, que se preserva uma pequena área de verdade, aqui
a crítica ainda é possível e é aqui que ela precisa ser feita” (Freitag, 1998: 81).

Um dos exemplos mais marcantes dessa crítica social através da Arte foi Pablo
Picasso e uma de suas mais importantes obras: Guernica.

O contexto histórico e social é essencial para interpretar esta pintura. Neste


momento, a Espanha vivia um conflito entre as forças Republicanas e os
Nacionalistas, liderados pelo General Francisco Franco. Os Nacionalistas contaram
com o apoio do exército Nazista e autorizaram os alemães a bombardearem
Guernica, como forma de testarem novas armas e táticas de guerra, que viriam a ser
usadas mais tarde na Segunda Guerra Mundial. Depois do ataque destruidor, Pablo
Picasso - que estava morando em França na altura - estava trabalhando numa obra
para apresentar numa Exibição em Paris a pedido do Governo Republicano
Espanhol, mas decidiu abandonar a sua ideia original para criar uma obra
relacionada com o ataque em Guernica.

28
Outro exemplo é Cândido Portinari (1903-1962), que produziu em 1944, um
quadro à tinta óleo, chamado Retirantes, com o objetivo de retratar o sofrimento do
povo nordestino. Este que era afetado pela seca, pela desnutrição e pelos altos
índices de mortalidade infantil, representado na obra por pessoas com olhar triste,
partes do corpo à mostra, parecendo não ter pele, apenas ossos e músculos
provavelmente fracos e frágeis, estando à roupa rasgada, vivenciando um momento
de fome e miséria.

29
Portanto, é impossível separar Arte e o social, sendo que este último sempre
estará influenciando a produção artística, dentro de seu contexto histórico.

……………………………………………………………

30
Quando movimentos se tornam arte.

Karla Cristina de Moraes Silva Gama

Pussy Riot

O movimento Riot Grrrl surgiu em meados dos anos 90 e é constituído por


mulheres que usam o rock como instrumento da luta feminista. Além de utilizar a
música como meio de construção identitária, esse movimento também é
particularizado pela constituição de uma esfera pública alternativa (formada por
fanzines, blogs e e-zines) que funciona tanto como uma maneira de divulgar as suas
músicas quanto como propulsores de mecanismos de identificação em relação às
suas causas políticas.

O estilo de música, as roupas utilizadas e os modos de comportamento, assim


como acontece em várias cenas musicais à margem do chamado “mainstream”, são
formas a partir das quais se criam mecanismos de identificação coletiva e adquirem
visibilidade no espaço público, constituindo-se como formas de comunicação a partir
das quais são negociados os seus espaços de sentido na composição social.

31
Pussy Riot é um coletivo feminista russo, pertencente ao movimento citado
acima, sediado em Moscovo, na Rússia, um país que repreende e persegue
indivíduos que vão contra a ordem do estado, as pessoas são proibidas de propagar
e protestar contra o regime opressor. Composto por um grupo, anteriormente apenas
de mulheres, hoje já se tem homens participando, que organiza “Guerrilla gigs” 21 não
autorizados. Essas manifestações artísticas são gravadas, editadas, transformadas
em clipes e disponibilizadas na internet. As letras abordam o feminismo, os direitos
LGBT e o estado patriarcal suscitado pela política de Vladmir Putin e suas
relações com os líderes da Igreja Russa Ortodoxa, Apesar do teor de deboche e da
crítica mordaz à intromissão da Igreja em assuntos do Estado – daí a expressão holy
shit (santa merda!) –, não há uma crítica herética ao sacro, isso fica claro quando o
grupo se refere à Virgem Maria, clamando a ela como intercessora, para que rompa
aquela condição: “Santa Maria, enxote Putin!”, ou clamando-a para que a mãe de
Cristo junte-se a sua luta: “Santa Maria, Virgem, torne-se feminista! Torne-se uma
feminista!”.

Virgin mary, mother of god, put putin away


Рut putin away, put putin away
Black robe, golden epaulettes
All parishioners crawl to bow
The phantom of liberty is in heaven
Gay-pride sent to siberia in chains
The head of the kgb, their chief saint,
Leads protesters to prison under escort
In order not to offend his holiness
Women must give birth and love
Shit, shit, the lord's shit!
Shit, shit, the lord's shit!

21 Um show de Guerrilha é um tipo de show realizado em um ambiente não


tradicional ou organizado de maneira incomum. Tornou-se associado a bandas de punk rock
e noise rock no Reino Unido e nos Estados Unidos durante o início até meados dos anos
2000. As bandas que se apresentam nesses eventos são às vezes chamadas de " roqueiros
guerrilheiros". <disponível em https://en.wikipedia.org/wiki/Guerrilla_gig > acessado em
07/08/2018.
32
Virgin mary, mother of god, become a feminist
Become a feminist, become a feminist
The church’s praise of rotten dictators
The cross-bearer procession of black limousines
A teacher-preacher will meet you at school
Go to class - bring him money!
Patriarch gundyaev believes in putin
Bitch, better believe in god instead
The belt of the virgin can’t replace mass-meetings
Mary, mother of god, is with us in protest!

Durante os shows, organizados em locais inusitados e sem aviso prévio, estilo


“flash mob,” as Pussy Riot usam cores fortes e balaclavas coloridas: gorros
justos que cobrem a cabeça até ao pescoço ou até aos ombros, com
abertura para os olhos, nariz e boca. A palavra “balaclava” surge no final do
século XIX, para nomear os gorros utilizados pelos soldados na Guerra da
Crimeia (1854). (Os gorros ganham o nome do Porto de Balaclava na Crimeia).
Com a balaclava, portanto, as Pussy Riot defendem-se, são subversivas para
com um código regulatório de representação do corpo feminino na esfera pública,
essa atitude assinala a forma como o espaço público age sobre as mulheres. Mas a
balaclava nos fala pouco sobre a forma como as Pussy Riot tentam agir sobre o
espaço público. Neste contexto, poucos notam que, em vez da cara, elas dão a
voz. A ênfase na voz, no se fazer ouvir, e não ver, transfere a percepção de
individualidade e personalidade da superfície corporal para um lugar dentro do
corpo que fabrica o som.

33
O poder performativo da voz múltipla das Pussy Riot, a gritar canções punk nos
telhados das casas e na catedral, é o que lhes permite agir sobre esse espaço,
reconfigurando significativamente o ato de abrir a boca em público. A negociação do
espaço público promovida pelo grupo envolve uma modificação da paisagem
auditiva e visual, é uma ação política, pois contribui para uma transformação da
forma como se olha o corpo feminino subitamente reposicionado na esfera pública,
cria uma dependência entre quem se manifesta e quem assiste, e é essa
dependência que vai produzir o gatilho para a transformação do real. Por outras
palavras, o espaço da aparição (que é também o espaço da mudança e da
revolução) depende de uma simultaneidade: a simultaneidade do espaço a agir
sobre os corpos e dos corpos a agirem sobre o espaço.

Neste ponto, é bastante claro o fato de que a luta política feminista instituída
pela cena musical constituída pelas Pussy Riot difere essencialmente dos
parâmetros postos pelo feminismo tradicional e esta diferença se alicerça, entre
outros aspectos, pelos mecanismos de identificação coletiva postos em uma esfera
pública alternativa de crítica musical. A expressão punk, poderíamos dizer que a
estética punk é marcada por uma atitude de contestação e de transformação. Dito
em outras palavras, pode ser definido como uma atitude de contestação ao sistema
vigente em contraposição ao princípio da submissão ao sistema capitalista. Não à
toa, era marcado pelo princípio de autonomia, do faça você mesmo – do it yourself –
que compreendia muito mais que uma simples apologia ao espontâneo ou ao mero
individualismo das soluções simples. O punk procura desvelar uma nova lógica do
pensar, marcada essencialmente pelo risco, pela abertura de caminhos cognitivos e
estéticos de maneira particular, com ingredientes peculiares. Além de veicular as
suas ideias por meio da música, esses grupos conseguiram constituir uma esfera
pública alternativa de crítica de rock, cujos mecanismos de identificação se
alicerçam, entre outros aspectos, na ênfase do empoderamento feminino e na
adoção de uma estética própria. As identidades coletivas, engajadas no
reconhecimento de um mundo em comum, alocando a identidade enquanto ato
performativo.

34
O lugar da curiosidade na curadoria de arte
Ana Clara Schubert

Em 1997, Cirlan Oliveira, morador da favela Pereira da Silva e na época com


quatorze anos, passou a reproduzir o cenário da favela usando tijolos e outros
materiais recicláveis. Ele afirma não ter começado com a intenção de ser um grande
projeto, mas sim uma brincadeira para recriar o cenário de favela utilizando tijolos
numa tentativa de escapar da realidade de violência. O entretenimento chamou a
atenção de outros jovens e deu origem a uma maquete de pequena escala a qual
hoje mede cerca de 350 metros quadrados.
Segundo Laura Burocco, a partir da pesquisa de Paula Trope e seu trabalho
com o grupo onde fotografa as maquetes com uma câmera pinhole, apresentado na
27ª Bienal de São Paulo, Robert Storr toma conhecimento sobre o Morrinho e os
convoca para a 52ª Bienal de Veneza.

“Nunca pensei que isso fosse arte. Vejo isso como um jogo", diz Maycon Souza de
Oliveira, integrante do projeto há quase uma década - e ele diz se sentir incomodado com o
título de "artista". Assim como para os outros integrantes do projeto, Maycon acredita que
tudo começou com um jogo, como a construção de uma casa de bonecas para recriar a vida
que eles observam ao seu redor.” Agencia Estado, 14 Junho 2007

“Ainda não me considero um artista de verdade”, afirmou Nelcirlan Souza de Oliveira,


de 24 anos, idealizador do projeto com a ajuda do irmão Maycon, de 17 anos. “Hoje, a
brincadeira que nós criamos se tornou um trabalho e respeito muito isso. Estar aqui na
Bienal de Veneza, o evento de arte mais importante do mundo, é uma grande honra. É algo
que jamais vamos esquecer.” Valquíria Rey, da BBC Brasil, 11/06/2007

O Morrinho teve sua primeira exposição no Parque das Ruínas, em Santa


Teresa. Depois, as casinhas ganharam o mundo: foram expostas na Bienal de
Veneza (Itália) e no MoMa, em Nova York (EUA), além de em outros eventos em
Barcelona (Espanha), Paris (França), entre outros. Hoje está permanentemente em
exposição no Museu de Arte do Rio (MAR), fazendo parte de seu acervo.

35
As relações entre uma arte participante, que tem a necessidade de tomada de
posição em relação à problemas políticos, sociais, éticos etc acentuada e uma
escolha curatorial de inserir uma produção marginal dentro do sistema permeiam a
questão do social se tornar arte. Hoje, onde o contexto do meio não persiste quanto
ao caráter social, a arte pode não resolver, mas intermediar até que a subalternidade
esteja inserida.
O grau simbólico é o âmbito onde, por exemplo, Robert Storr chega ao
convocar o Morrinho para a bienal. Ele alcança esse lugar enquanto personagem de
uma perplexidade, porém, em Veneza, o motivo de curiosidade diante da realidade
daquelas casinhas ainda estava vinculada aos gabinetes de curiosidade.

Paula Trope, "Sem simpatia" series, 2004/2005

Ranieri e Nelcirlan
O lugar da afetividade como cura

Ana Carolina Lopes da Silva Pecanha

36
Entre o final dos anos 1970 e início dos 1980, a artista mineira Lygia Clark
deflagra em sua obra o ponto ápice de seu gesto artístico, que também é social:
neste período, por intermédio dos “Objetos relacionais”, a artista se transmuta ao
papel de psicoterapeuta ocupacional, tratando pessoas. Através do conceito de obra
de arte relacional, a artista põe o espectador, agora paciente, em contato com uma
dimensão ‘total’ da realidade. Contato pessoal: através da consciência corporal,
estimulando os sentidos, geralmente deixados de lado no contato com as obras de
arte, em favorecimento à visão. Contato social: muitas vezes, como nas aulas
ministradas pela artista em Sorbonne, na França, em que a ‘terapia’ se dava em
grupo, o participante trocava, de modo extremamente corporal, com os outros
participantes, experiências absolutamente íntimas, como no caso da baba
antropofágica. Lygia cria deste modo um espaço favorável às afetividades. Brígida
Baltar cita Maurizio Catelan, em “Passagem Secreta”, dizendo: “Lembrei novamente
do Maurizio Cattelan, quando ele diz ao que trabalhar de forma instintiva,
respondendo a uma determinada situação de forma pessoal, você pode no final
obter resultados coletivos e afetar o mundo…”
Em um tráfego ambivalente, o que cada paciente troca são particularidades,
que somadas socialmente, resultam em coletividades. E é este exatamente o ponto
de ‘cura’ presente nesta fase de sua obra.

Abaixo, segue a continuação desta contribuição em um texto crítico que


escrevi, a respeito deste aspecto da obra de Lygia Clark.

baba cura

gostaria de te dar agora um objeto, simples, cotidiano e banal, para segurar. talvez
então a gente possa compartilhar algo, como uma baba. botar uma interioridade
minha, particular, para fora. e engolir a sua. gostaria que, com a ajuda de algum
objeto, algo como uma roupa, pudéssemos nos tocar. abraçar o encontro. não só
conceitualmente. não só ver. tocar, sentir, cheirar. gostaria de, ao mesmo tempo,

37
com esse objeto que me toca, conectar-me à parte de dentro. como se, a partir da
ativação de todos os sentidos, chegasse a ser completa.

a extensão da fama da artista brasileira lygia clark, e de seus trabalhos é ampla. de


superfícies moduladas, contra relevos, bichos, máscaras-abismo, objetos relacionais
às babas antropofágicas, sua obra percorreu um caminho de descolamento. a obra
de arte já não se concentra mais no objeto em si. o lugar de fetiche, habitualmente
ocupado pelo objeto, na obra de arte, se desfaz. na verdade, o objeto, na obra de
lygia deslocou-se em direção ao orgânico. beira a imaterialidade. existe o objeto,
mas ele é só um pretexto.

é quase como a tentativa de conter um momento, no espaço. é como um retorno ao


aqui e agora da obra de arte, comentada por benjamim 1. não aura do objeto, mas
aura do encontro. é como se o momento do contato entre os lados, o encontro por si
só passa a ser matéria. então o trabalho toma forma, apesar de sua suposta forma,
acolhida pelo objeto. neste diálogo, o espectador perde sua configuração tradicional.
ele é parte ativa do trabalho. — meu grande ego me fazia dar tudo ao outro, até a
autoria da obra2 — disse lygia.

partindo de objetos, para experimentação dos olhos, passa a incluir o tato. bichos. o
sentido, na obra de lygia, aponta para uma certa completude. foi preciso incorporar o
corpo inteiro. o ser inteiro. o ser inteiro e o mundo inteiro. a obra aqui, agora, é um
filtro para a experiência no mundo. são os olhos livres das imagens. a imagem, em
sua obra, se dilui. como um ziguezague, um movimento intenso de reflexos. interior
e exterior abandonam seus limites. binarismo, bilateralismo, significados únicos,
devem volatilizar, neste fluxo orgânico.

médico e paciente. por fim, lugares tradicionais da arte - artista e espectador - se


rompem e se transformam. bem como o objeto, para lygia, já havia sofrido. em suas
proposições, promove um estado de consciência: física, localizando o corpo e, no
corpo, os sentidos todos; mental, pela ativação do corpo físico, um espelho psíquico.
com a baba antropofágica, os interiores entram numa espécie de simbiose,
monstruosa. é a linha que sai da boca. linha que, babada, cobre o corpo. todos

38
participam. é uma cura: o ser, fragmentado, recolhe-se, recoloca-se, reconstitui-se,
partilha-se.

1. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade


técnica.
2. BASBAUM, Ricardo. Arte contemporânea brasileira. Texto: BRETT, Guy.
Lygia Clark: seis células.

39
Arte para além do objeto artístico

Amanda Rezende de França Pizani Domiciano

Na América Latina, distanciando dos outros continentes, o Conceitualismo


teve um papel diferente nos anos 60. Enquanto na Europa e na América do Norte, se
pensava o Conceitualismo como um estilo, a América Latina o percebia como uma
estratégia. Se propondo a pensar sobre isso, Luis Camnitzer escreve sobre como as
práticas conceitualistas provocaram tensão ao serem usadas como instrumento de
dinâmica política nos países latino-americanos.
A partir de observações dos Estados Unidos nos anos 60, escreve o livro ‘
Conceitualismo na Arte Latino-americana” trazendo pontos principais como a
linguagem e a educação. As obras de Camnitzer possuíam uma estratégia de
micropolítica com foco no mundo, por ter sido criado no Uruguai e morar em Nova
York, considera Montevideo seu objeto de pesquisa e o observa a partir do seu lugar
de residência, questionando a história escrita pelos vencedores.
A década de 60 foi marcada pela arte da experiência estética do espectador,
o meio expressivo, a interação da teoria e a prática. Com isso, uma abertura no
campo do conceito de arte acontece dando espaço para atitudes e experiências
artísticas as quais o domínio da técnica não era tão importante, quanto a linguagem.
Já nos anos 70, a Arte Conceitual foi marcada pela politização. E isso foi notável nos
países da América Latina, que houveram golpes e ditaduras, impulsionando
respostas mais diretas e debates políticos com intervenções na sociedade.
Partindo dessa ideia, Camnitzer propõe uma ruptura dos limites de arte e vida,
para iniciar processos artísticos, esses que teriam seus temas, a política. Pensando
nisso, o coletivo chileno CADA (Colectivo Acciones de Arte) formado no final dos
anos 70, na ditadura do Pinochet, fez diversas ações as quais relacionavam a arte e
a vida, para além dos objetos artísticos, com proposições incisivas na sociedade. O
seu primeiro trabalho, se chama “ Para no morir de hambre em el arte” (Para não
morrer de fome na arte), que aconteceu em 1979. Uma ação que criticou a fome e a
pobreza, a qual chegou de fato a distribuir leite para a população de baixa renda de
Santiago. E teve diversas repercussões gerando outras ações como por exemplo,

40
alertar a população sobre uma performance nos jornais, alterar a fachada do museu,
entre outros.
Esse trabalho trouxe a possibilidade de fazer uma ação incisiva na sociedade,
ela aconteceu na vivência do cotidiano do espectador, dando uma oportunidade de
atingir de fato, o sistema. Uma performance que participou de uma prática artística
provocando o social.
No Brasil a Arte Conceitual tem seu período marcante na ditadura militar, nos
anos 60. Os artistas desse momento possuíam uma pesquisa mais voltada a
reflexão da materialidade da arte, como Cildo Meireles que teve seus processos
focados no questionamento da arte pela arte e não do contexto local, como o grupo
CADA.
Cildo tem um processo artístico que pensa a arte como ação e ideia,
propondo atividades que diminuem o espaço entre arte e vida. Como por exemplo no
trabalho Inserções em Circuitos Ideológicos: Projeto Coca-Cola se apropriando de
garrafas de Coca-Cola, impregnadas de significados. Esta operação confronta o
espaço do capitalismo com a realidade política e social do país influenciada
marcantemente pela ideologia americana. Se enfatiza aqui, questões que abordam o
aspecto formal da linguagem, produzindo um objeto que provoque questionamentos
no modo de pensar criticamente e inspirados nos ready-mades do Duchamp mas
partindo do princípio do objeto de arte que atua no meio industrial.
Dessa forma, Cildo aproximou a arte da vida, não só pelo tema que aborda o
consumismo questionando problemas e o contexto qual se inseria, tornando a arte
mais política. Mas por usar de objetos do cotidiano e também por deslocar o local do
espectador, que é retirado do lugar de apreciação e colocado para interagir.
Aqui possui uma relação com o grupo CADA, quando ambos propõem ações
que visam o social, são práticas para além dos objetos artísticos. A diferença entre
os dois, são suas conotações e os lugares que procuram atingir. Cildo Meireles está
pensando no consumo da sociedade brasileira nessa época, abordando de certa
forma a linguagem. Já o CADA está pensando no político a partir da população
marginalizada do Chile. Essas são as diferenças mais marcantes entre as obras
produzidas nesse período do Conceitualismo.
A relação entre os dois é uma forma de resistir através da arte. A arte desse
período foi atravessada pela situação política e econômica de cada país, seja a

41
relação com o regime ditatorial ou com a condição social de parte da população. Os
artistas encontraram aqui, uma forma de se expressar num período que a
comunicação não era bem livre. Tornando, dessa forma, o contra discurso possível.
Os trabalhos possuíam temas próximos a realidade, dessa forma fez com que as
práticas artísticas se tornassem uma vontade de discursar, se comunicar e se
expressar de uma maneira que não se era possível naquele momento político.
Com isso, Luis Camnitzer elabora o pensamento que o conceitualismo latino
americano absorveu como estratégia, o clima político do local em que moravam,
citando exemplos de alguns artistas. Para o autor, a divisão de narrativa e forma se
torna menos importante nesse momento, com a arte e a política pensada em
estética. Sendo assim, esses artistas tencionaram os limites do que é considerado
arte. Tornando então necessário pensar em outros modos de entender essas
práticas, já que a produção na América Latina se separa das formas disponíveis que
existem para entender o conceitualismo nesse momento, e nesse aspecto Camnitzer
se torna importante, por pensar a arte latino-americana a partir de experiências não
dissociáveis de arte e política, como antes eram pensadas.
O artista passa a tratar de temas que estabelecem contato com o mundo do
expectador, os trabalhos saem do circuito da galeria e vão para as ruas, não
conseguindo mais distinguir o que é arte do que é objeto do cotidiano, com isso
também termina essa áurea que paira sobre objetos de arte.
Com a arte contemporânea, a arte passa a se aproximar do cotidiano e a
distinção entre o que será objeto de arte ou não, não estava mais pautado apenas
no estético. Não se tratava mais da forma como representar o mundo, mas como
expressar nos trabalhos questões pessoais ou política.
Uma busca por um discurso que não se fazia possível, foi o ponto de partida
do grupo CADA que produz suas ações para além de objetos artísticos, produzindo
impacto social, e foram em primeiro momento pensadas como espécies de ações
sociais, o discurso político que através da arte encontra maneira de existir. Já o
Cildo Meireles, aproxima a arte da vida ao colocar seus objetos de fato no mercado,
questionando a interferência dos Estados Unidos no Brasil, naquele momento.
Então, ao propor pensar nesses trabalhos, é entender como eles tencionam a arte, a
vida e a política.

42
Quando a curadoria repensa a história.

Emmanuele Russel Salvador

Em 1992, o artista norte-americano Fred Wilson interviu a convite da curadora


Lisa Corrin no museu histórico da cidade de Baltimore, o Maryland Historical Society.
O projeto, chamado “Mining the Museum” consistia no uso do espaço expositivo pelo
artista, e seu acervo, porém rearranjado para que a exposição gerasse uma nova
discussão acerca da história.

O projeto se iniciou com Fred visitando o local do museu, acervo e reserva


técnica e a partir de sua percepção do espaço e do conteúdo, surgiu a ideia de
reorganizar os objetos do museu histórico de forma a ressaltar as problemáticas
colonialistas e escravagistas da sociedade americana. Wilson descreve que a
sensação experimentada por ele ao circular pelo espaço foi a de desconforto; os
objetos lhe pareciam familiares, mas ao mesmo tempo estrangeiros, não pareciam
tocar diretamente na sua identidade como americano negro.

O artista já possuía certa familiaridade com a crítica às instituições de arte, no


entanto, o projeto marcou a primeira vez em que ele dispôs de um museu inteiro
para realizar seu trabalho. Como artista ativista, Wilson baseia sua crítica no racismo
institucionalizado presente na história americana desde sua fundação.

43
1 Fred Wilson, Cabinet Making 1820–1910, Mining the Museum, 1992.

Fred baseou muito da montagem do seu processo de intervenção no museu


nas conversas que trocou com funcionários, visitantes e pessoas ligadas à
instituição. Isso fez com que as informações que ele obteve sobre a procedência dos
objetos ajudasse a delinear sua narrativa. Na instalação Cabinet Making o artista
posiciona cadeiras voltadas para um poste, como em movimento de contemplação.
Foi somente durante uma das conversas com o staff do museu que Fred descobriu o
uso para o poste do acervo: se tratava de um poste onde os escravos eram
chicoteados em público.

A atitude política de Wilson, através de gestos a princípio simples, porém


muito simbólicos também tocar no limiar do que é o exercício da curadoria na
contemporaneidade, onde não mais pode-se deixar de problematizar questões que
foram por tanto tempo abafadas, como o racismo institucional advindo do
colonialismo. O gesto curatorial neste trabalho está presente também nos jogos de
palavras e uso das legendas como afirmação política: em uma determinada obra,
pilares de madeira que deveriam sustentar bustos são expostos somente com o
nome de negros importantes para a história americana, em oposição aos bustos de
figuras como Napoleão Bonaparte, símbolo do apagamento que os povos negros
sofreram ao longo de sua existência.

44
2 Installation view: Pedestals, Globe, and busts

O pensamento curatorial de Fred Wilson, com suas referências artísticas é


curioso; em seu arranjo de objetos não existe uma preocupação em sintetizar algo,
tudo que é lido de forma subjetiva, mas no seu âmago extremamente assertiva,
como por exemplo no trabalho Metalwork, onde o artista uniu em um mesmo display
a prataria tipicamente nobre e algemas de ferro usadas para manter os escravos
presos. Sobre esse trabalho, Fred sintetiza: “Você tem um museu para a beleza do
mundo da arte e você tem um museu para os horrores do nosso mundo e nunca
você os tem no mesmo museu. Certamente você nunca os teria na mesma base,
mas os dois são tão intrinsecamente ligados em suas histórias. Quem servia a
prataria e quem poderia aprender a fabricar os objetos de prata, e certamente, qual
trabalho poderia produzir a riqueza que produzia a prata? ”

45
3 Fred Wilson, Metalwork 1723–1880, Mining the Museum, 1992.

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50
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América Latina.

CAMNITZER, Luis. Didática de la Liberación. Arte Conceptualista Latinoamericana.


Montevideo, Casa Editorial HUM, 2008.

51
Ainda que proveniente de dois focos distintos e autônomos é
inegável que a fronteira entre atitudes sociais e Arte é muito facilmente
transposta. Em alguns artistas essa mescla ocorre com tanta naturalidade
que é difícil destilar o caráter ativista da sua produção artística. O circuito
de Arte ocidental por si só, já compõe uma instituição social com seus
próprios indivíduos e questões específicas: Artistas, curadores,
mediadores, museólogos, colecionadores. Questões estéticas e criativas.
Entretanto o mesmo circuito tende a buscar para si questões de outros
campos sociais que vão levantar críticas que transbordam além do circuito
artísticos.

Considerando tanto o artista e as instituições de Arte como corpos


sociais, fica mais fácil pensar em Quando Atitudes Sociais se Tornam
Arte. O artista ainda como cidadão com seus direitos e deveres, quando
privilegiado pela capacidade comunicativa e de captação da atenção do
espectador, encontra na Arte o poder de amplificar a sua voz que se
distingue de um ativismo comum. Seria a capacidade criativa como um
potente veículo crítico social, além do aspecto humano já incorporado no
circuito de Arte, de deixar escorrer as aflições e preocupações para que se
materializando obras.

Como é o caso do artista naturalizado brasileiro Frans Krajberg


(1921 – 2017). Que perdeu toda a família em um campo de
concentração na Segunda Guerra Mundial e anos depois, já no Brasil
peregrinou e se isolou nas matas brasileiras, onde encontrou refúgio e
inspiração para produzir suas obras. Como artista e ecologista usou da
fotografia para registrar e denunciar as queimadas e o desmatamento na
Amazônia e no Mato Grosso.

52
TRONCOS (Amazônia). In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e
CulturBrasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2018.

Por sua vez, o interesse do público, pode ser aumentado quando a


produção artística cultiva ao mesmo tempo concepções estéticas e sociais.
O espectador que geralmente não é captado pelas questões provenientes
da Arte, pode se reconhecer e criar interesse em uma obra pelo seu cunho
social. Para instituições como museus e galerias incorporar questões que
não focam no seu campo específico e positivo justamente por aumentar o
público e por consequência a captação de verba. Contudo assim que passa
a utilizar desse atributo, assume a responsabilidade de lidar com o social.
Caio Couto

53
Referências

http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa10730/frans-krajcberg, acesso em 15 de
agosto.

Rosas Reis, Ronaldo. ARTE E CIDADE. CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS SOBRE


ARTE E VALOR NA SOCIEDADE DE CLASSES. Disponível
em>http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-512X2015000200317, acesso
em 13 de agosto.

54
Arte como um veículo de grito e escuta

Racquel Fontenele Crespo

Arte conceitual é um movimento artístico contemporâneo que surgiu entre os anos


1960 e 1970 na Europa e Estado Unidos. Criticavam o formalismo da arte, propondo a
independência da obra, ou seja, a valorização de seu conceito se torna mais significativa do
que sua representação física. Os artistas conceituais se interessavam em gerar reflexões nos
espectadores, sem necessariamente precisar de um objeto que exista, abordando e
questionando temas que vão da violência às questões de consumo da sociedade. Nesta época,
com a Guerra do Vietnã e o movimento hippie, vários pensamentos sobre o funcionamento da
sociedade começaram a ser discutidos, como os direitos da população LGBT, a emancipação
sexual da mulher - com a aprovação do uso de anticoncepcionais nos Estados Unidos - e as
questões de igualdade de gênero. Com o crescimento da segunda onda do movimento
feminista, algumas artistas conceituais acabam tendo muita influência com esses temas em
seus trabalhos, e o uso do termo “arte feminista” também se popularizou. O movimento tinha
como um de seus objetivos trazer a arte como uma forma de mudança positiva e inclusiva
para o mundo, abrindo uma conversa entre o artista e o público e é considerado o movimento
mais internacionalmente influente no período de pós Segunda Guerra Mundial. A arte
feminista representou um distanciamento do modernismo, que frequentemente tipifica a arte
feita por mulheres em um patamar diferente da feita por homens. Foi proposto uma nova
maneira de responder a vida, liberta, sem serem tolhidas por não seguir o que estava sendo
produzido por homens.

A artista e educadora Sheilla Levrant de Bretteville procura sempre falar sobre o


feminismo em suas obras. Com um papel importante na história do movimento, em 1971, foi
a primeira a criar programas voltados para mulheres artistas, influenciando a produção e
fortalecendo a luta pela igualdade de gênero. De Bretteville crê na arte coletiva como uma
peça crucial de aproximação e transmissão de pautas do movimento feminista, e em 1973
produz “Pink”, um texto franco destinado a explorar noções de gênero relacionadas à cor rosa,
para uma exposição sobre cor. A artista reúne quadrados de papel pretendendo criar uma

55
espécie de colcha-cartaz com diferentes relatos e visões sobre a cor rosa e posteriormente
impressos e espalhados por toda cidade de Los Angeles.

Sheila de Brettevile ainda participa de projetos que buscam a inclusão de narrativas


sobre grupos sociais oprimidos dando voz a eles, tanto em seus trabalhos e no apoio a
produção de arte feita por pessoas em seus locais de fala.

Referências

"Sheila Levrant de Bretteville." Wikipedia, The Free Encyclopedia. Wikipedia, The


Free Encyclopedia, 19 Jun. 2018. Web. 15 Aug. 2018.

"Feminist art." Wikipedia, The Free Encyclopedia. Wikipedia, The Free


Encyclopedia, 19 Jul. 2018. Web. 16 Aug. 2018.

ARTE Conceitual. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São
Paulo: Itaú Cultural, 2018. Disponível em:
<http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo3187/arte-conceitual>. Acesso em: 15 de Ago.
2018. Verbete da Enciclopédia.

Despatriarcando com arte


56
Tayná de Oliveira Ribeiro

Imagem como “espaço de luta”, disse o historiador de arte Georges Didi-Huberman,


linguagem como meio de devolver sua força emancipadora.

Na Bolívia dos anos noventa, nasce o Mujeres Creando - movimento que age com
criatividade contra o sistema patriarcal, colonizador. Para a sociedade boliviana é um
corpo que legitima o ativismo político com intervenção artística e pedagogia
feminista.
O grupo liderado por Maria Galindo utiliza principalmente grafite e performance como
expressão. Com duas casas de autogestão, nascente onde desenvolvem suas
atividades políticas e culturais, além de oferecer serviços de alimentação e
hospedagem.
Em uma sociedade extremamente sexista e conservadora como a sociedade
boliviana, para a Mujeres Creando, a arte deve ser feminista e atuar no campo
público. A expressão consolidada desde o princípio o grafite foi/é usado como arma
subversiva, irritante, desconfortável e acima de tudo provocante. Para este grupo de
mulheres polimórficas o poder da linguagem ainda é o poder de revelar as que são
invisíveis, desmascara a aparência. Com essa expressão denunciaram a violência
sexual e institucional, o racismo e o estado. Grafite como forma pacífica e natural de
expressão com capacidade de revolucionar as consciências femininas ao passar
uma mensagem feminista e clara.
As mulheres bolivianas agora possuíam um lugar que respondia as suas
necessidades, um espaço social no qual podiam e eram acolhidas ao buscarem
seus direitos e transgredir as normas que as condenava.
Nos seus 26 anos de existência, o movimento tem a proposta definida como "a luta

criativa através de expressões pacíficas". Com oportunidades para expor sua arte

em diferentes áreas da criação artística em todo mundo assumiu uma evolução que

terminou em ancorar numa opressão sexista, no racismo institucional e de uma

sociedade homofóbica.

Durante todos esses anos, as intervenções das Mujeres Creando não deixaram
ninguém indiferente. Como, por exemplo, na abertura da da 31ª Bienal de Arte
Moderna de São Paulo, em setembro de 2014. Mary, instalou o "Espaço Abort" que
57
possuía diversos ventres gigantes para exigir o aborto livre, enquanto rodava um dos
seis curtas-metragens que estão no filme de Maria, 13 horas de rebelião,
incessantemente projetado. O grupo considerou que o trabalho sofreu censura pela
direção da amostra quando a mesma qualificou a instalação como não adequada
para menos de 18 anos.
Mujeres Creando soube como reverter uma situação que parecia imutável. Fez com
que a mulher boliviana, extremamente reprimida pelos papéis patriarcais, em sua
própria existência se erguesse e saísse para a rua. Julieta, Maria e Monica
estabeleceram uma forma provocativa e transgressiva de suas ideias sociais, éticas
e estéticas. Ensinaram as mulheres de seu país a descobrir e exercer sua autonomia
e com isso decidir em cada uma das questões de que eram protagonistas. A luta
continua.

Referências
Álvarez Virreira, Helen. Mujeres Creando, un feminismo de luchas concretas. 2004.
Disponível em:
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Acesso em: 18 de julho de 2018.
Mujeres Creando forma al feminismo boliviano de cara a sus múltiples luchas. 2017.
Disponível em: <https://www.elnuevodiario.com.ni/internacionales/449107-mujeres-
creando-forma-feminismo-boliviano-cara-sus/> Acesso em: 05 de agosto de 2018.

Quando atitudes sociais se tornam artes.


Bruno Awful

58
O espaço, lugar, a convivência mútua. Pensar atitudes curatoriais como uma

ponte entre indivíduos e as proposições da curadoria, além de poder repensar as

práticas institucionais. Um lugar “como uma estrutura de acontecimento.”.

Segundo a pesquisadora Lívia de Oliveira, “conhecer o lugar é desenvolver um

sentimento topofílico ou topofóbico. Não importa se é um local natural ou

construído, a pessoa se liga ao lugar quando este adquire um significado mais

profundo ou mais íntimo 1.”.

Deste trecho podemos relacionar também as produções da side-specific, onde

claramente – e também institucionalmente já definidos, a conexão com o local é

dada a partir da ligação espacial, ambiental e sensorial.

Entretanto no campo curatorial, nas montagens de exposições, os

desenvolvimentos de conexões de laços entre os trabalhos, primordialmente,

dão-se, além disso, tornando-se agentes de ligação dos trabalhos com o público.

E esse espaço de convivência deve ser concebido além do seu tema expositivo, e

adicionar a seu temperamento, o ambiente ao redor, tanto no campo geográfico –

o local físico que o circunda, como na história que culmina à sua criação – zona

portuária do rio de janeiro, através de um programa de reurbanização da área.

Pensar também em que obras instalativas oferecem ao espectador uma nova

experiência, a nível sensorial, trabalhos como dos neoconcretistas que visava

esse tipo de comunicação. E não só por meio dos artistas está a responsabilidade

de alcançar estes objetivos. Um projeto expositivo deve contar com as áreas de

59
contato, onde entra a monitoria e a mediação. Em geral, um ambiente

formalizado (um cubo branco) carrega esta manta de local sagrado, e cabe aos

agentes de contato a executar talvez, um pequeno “empurrão” à conexão entre

local e pessoa.

Outros tipos de cruzamentos podem ser atingidos quando a manta institucional

não paira sobre um local, que através de seu posicionamento independente frente

as regras, transforma à um hibridismo, uma das definições do autor Néstor

Garcia Canclini, onde a “ hibridização são, processos socioculturais nas quais

estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam

para gerar novas estruturas, objetos e práticas.”.

Os espaço autônomos, podem ser compreendidos como fusões entre estruturas

institucionais e procedimentos artísticos . Para ilustrar isso, o livro Espaços

Autônomos, de Kamilla Nunes, destaca o Torreão como ações iniciais desta

prática. “um dos primeiros espaços autônomos da década de 1990”, o Torreão,

lugar de práticas e intervenções artísticas, que foi, sobretudo, um local “aberto

às investigações”.

Outra atitude, agora artística, pensou sua ação um rebote a condição social e

econômica aplicada à zona portuária de Rio de Janeiro, entre 2010 e 2013. O

trabalho que parte da vontade de se ter um espaço de produção sendo impedido

pelos os altos valores locatários, passa para a vontade de ser um espaço nem

público e nem privado, um espaço que deveria ser um ateliê de produção. Torna-
60
se um local de encontros. “mas 1m2, por 14 reais ao mês seria viável”, diz a

artista Maíra das Neves. Ele se define geograficamente dentro da antiga fábrica

da Bhering, “pela tonalidade

do piso em relação ao original, sem paredes, portas ou janelas, o público ocupa

os espaços vazios ao redor.2”.

Diversas outras ações são descritas no livro entre curatoriais e artísticas, e que

confirmam que ambas as atitudes existiram por necessidade afirmativa no

mundo. É imprescindível manter em mente que as relações mantém suas bases,

mas carecem sempre de um novo meio de existir, exigindo sempre um olhar

mais atento às mudanças do mundo.

1 - OLIVEIRA, Lívia de. “O sentido de Lugar”. In: MARANDOLA, Eduardo Jr.,


HOLZER,
Werther, LÍVIA, de Oliveira (Org.). Qual o espaço do lugar?: geografia,
epistemologia,
fenomenologia. São Paulo: Perspectiva, 2012, p. 12.

2 - NUNES, Camila. “A emergência de lugar”. In: ESPAÇOS AUTÔNOMOS. Rio de


Janeiro: Editora Circuito, 2013, p. 59.

Croche e vertentes transformadoras

61
mayara velozo

O brasil tem a 3 maior populaçao carceraria do mundo,com


726 mil presos. Mais da metade dessa população é de jovens de 18 a 29 anos e
64% são negros. A ressocialização dessa população, porém, ainda é um desafio
para a sociedade.

No entanto, há iniciativas que buscam humanizar o período no cárcere. Uma delas


trata-se de uma atividade pouco comum para homens na prisão, mas que foi capaz
de transformar a rotina de pelo menos 120 detentos da Penitenciária
Desembargador Adriano Marrey, em Guarulhos (SP).

Por meio de oficinas de crochê, os alunos produziram mais de 30 peças que que
passaram na abertura da semana de moda de São Paulo (SPFW ediçao2018) e
depois ficarão expostas no Museu da Resistência dentro da Estação Pinacoteca,
também em São Paulo.

O projeto Ponto Firme foi idealizado em 2015 pelo designer e artesão Gustavo
Silvestre, embaixador da marca de fios para trabalhos manuais Círculo S/A, e
despertou a curiosidade dos detentos para as atividades manuais.

“Para os alunos do projeto, o crochê significa uma janela dentro da prisão, que traz
cor e autonomia. O processo criativo foi conduzido sempre pela visão que eles têm
do mundo”, conta Silvestre, lembrando que a estilista Karlla Girotto deu deu um
workshop sobre criação para os detentos, antes de começarem a produção das
peças.

A mistura alegre de cores, por exemplo, representa a luz e as pessoas que vêm de
fora da prisão, como as mulheres, pais, mães, filhos e amigos. Já a música
disruptiva, com cortes bruscos e zunidos estridentes, causava um desconforto
proposital -- tocou ainda um trecho de Diário de Um Detento, um clássico dos
Racionais MCs. “As composições são 100% dos alunos, que são verdadeiros
artesãos e coloristas. Tudo foi feito de maneira bem autoral” - silvestre

"Observamos algumas mudanças no comportamento de quem está envolvido com


esta iniciativa desde o início, como a socialização, uma vez que incentiva a

62
convivência com os demais encarcerados, a quebra de preconceito,
responsabilidade, empreendedorismo e até autoestima", explica o diretor técnico do
Centro de Trabalho e Educação da penitenciária, Valdinei Freitas – fundador

A arte pode ser considerada uma linguagem universal. Essa linguagem artística
atravessando séculos e milênios, fronteiras geográficas e culturas das mais diversas
consegue preservar significados para os que viverão amanhã. A arte surge com
como uma linguagem natural dos homens. Todos nós dispomos das potencialidades
dessa linguagem e, sem nos darmos conta disso, usamos seus elementos com a
maior espontaneidade ao nós comunicarmos uns com os outros. Partindo disso,
podemos afirmar que esse projeto não só impulsionou os detentos a uma nova
ativiade como teve fator de transformacao social não somente fora, mas dentro do
presidio.São sempre as formas que se tornam não-verbais da comunicação artística
que constituem o motivo concreto da arte ser tão acessível e não exigir a erudição
das pessoas para ser entendida. Exige-se inteligência, sim e sempre sensibilidade. E
a arte continua sendo uma necessidade para os homens, caminho essencial de
conhecimento e realização de vida.

(Universos da Arte – Fayga Ostrower)

& huffpostbrasil.com.br

Quando atitudes sociais se tornam arte: A cidade como espaço


para crítica social
Giselle Liberato

A arte deve ser crítica, de diversas formas, em diversos espaços. Um desses espaços, a cidade,
é palco para diversas manifestações artísticas que envolvem discursos sociais e políticos.
Repensar a cidade é repensar um organismo vivo e suas complexidades. É um espaço que
possibilita diversas formas de interação. Um organismo por onde transitam diversos seres
vivos, sempre apressados para chegar a algum lugar. O coletivo Poro busca, através de

63
elementos simples do cotidiano do cidadão, quebrar esse ritmo apressado, mesclando poesia e
crítica política em seus trabalhos.
O coletivo Poro existe desde 2002 e é formado por dois artistas, Brígida Campbell e Marcelo
Terça-Nada!. O coletivo procura poetizar a cidade e o cotidiano, se utilizando assim de meios
de comunicação populares (como faixas, por exemplo) e fazendo intervenções em lugares
específicos, criando imagens poéticas. Algumas de suas intervenções têm caráter cômico,
outras embelezam a cidade com sua coloração. Defendem uma melhor qualidade do tempo
que se é gasto, de prestar mais atenção a diversidade da cidade como um espaço criativo e um
espaço artístico amplo, são contra a mídia manipuladora, contra o consumismo, defendem a
educação do olhar do espectador, entre outros discursos políticos.

1. Faixas anti-sinalização

Dois trabalhos são interessantes para serem discutidos. Um deles se chama Faixas de anti-
sinalização, onde o coletivo espalha diversas frases pela cidade que causam estranhamento e
reflexão nos transeuntes. São frases que fazem enxergar além da aparência da cidade, além da
correria, da demanda da cidade e que criam um discurso totalmente diferente para o lugar em
que estão sendo inseridas. É o ressignificar do local, trazendo uma nova percepção da cidade,
para o cidadão que vive correndo para atender a demanda capitalista. Uma das frases,
“Enterre a sua TV” seria uma reflexão sobre a mídia e tudo o que é colocado sobre os
espectadores através dela, desde mentiras à verdades parciais. Quase todas as faixas estão
penduradas em postes da cidade, em esquinas. É possível observar que o local e a frase são
64
um só. Não há um texto explicativo enorme acompanhando a obra, a própria frase já explica
tudo, ao mesmo tempo em que ela participa daquele momento de troca de experiências
plásticas com o observador. Não é um texto formal e cerimonioso, onde o texto explicativo
respeita o espaço da obra e roda ao redor dela. É um texto que sai da formalidade e se reduz a
uma frase simples com o objetivo de causar esse impacto no observador e levá-lo a reflexão.
E o discurso de uma das faixas é tão forte que se desdobra em uma intervenção. Se em Faixas
de anti-sinalização eram diversas frases, em Perca tempo se resume a uma. Uma frase que se
tornou um discurso significativamente enorme, que ao invés de ser somente a frase e o local,
o artista passa a estar presente também performando ao distribuir panfletos, broches e explicar
a quem quisesse ouvir como se perde tempo. Na parte traseira do panfleto, há um texto
chamado “10 maneiras incríveis de perder tempo”, fazendo com que mesmo que a pessoa não
pare para ouvir o artista, ela tenha acesso a essa informação depois. A faixa Perca tempo,
chama atenção justamente para o fato da correria do dia a dia, chama a atenção para o quanto
se tem gasto o tempo com algo de qualidade, algo que faça bem para a alma, fazendo com que
as pessoas que perguntavam percebessem que o tempo gasto, na verdade é um tempo ganho.

2. Perca tempo (panfletos e broches)

O interessante nessas obras é o fato de os artistas repensarem a cidade como espaços de


interação, como espaço de discussão política e social. Tudo isso através de materiais simples e
de fácil inserção no cotidiano do cidadão, que por estar sempre apressado, não pensa que a
cidade pode ser mais do que um mero local de passagem. Ela pode ser palco de diversas

65
interações. Os artistas convidam o espectador a se atentar para questões até então
desconsideradas pelos mesmos. Segundo Adorno, a estética seria o único meio viável para se
fazer críticas sociais, já que o sistema como um todo estaria corrompido e interessado em
mostrar uma harmonia inexistente. Adorno ainda afirma que a arte deve ser crítica, deve ser
protesto contra a sociedade, possibilitando que a mesma continue existindo.
Diversas possibilidades de interpretação e fruição se abrem diante dessas obras, mas no
presente momento, nos interessa uma: o discurso social sendo integrado a obra de formas
simples e sutis. Nas obras do coletivo Poro, podemos observar claramente discursos sociais
ganhando força. Eles atravessam a obra e por ela são atravessados. O que estava somente no
papel se difunde com a paisagem, com o meio em que ela é colocada. E assim, o discurso
social, também se torna criação.

Bibliografia

● ARANTES, Priscila. Arte e crítica social em Adorno. Disponível em:


http://revistaprincipios.com.br/artigos/40/cat/1662/arte-e-cr&iacutetica-social-em-
adorno-.html Acesso em: 15/08/2018
● Manifesto Poro. Disponível em: http://poro.redezero.org/publicacoes/manifesto/
Acesso em: 15/08/2018.

66
ARTE COMO INSTRUMENTO DE EMANCIPAÇÃO SÓCIO-COMPORTAMENTAL
Por Carolina Nunes
A arte, que é tida como um modo de expressão das apreensões subjetivas da
realidade vivida pelos sujeitos, apresenta-se como uma possibilidade do ser social
experienciar sua sensibilidade, captada através dos sentidos, e materializá-la
através da construção artística. Ao ser identificada como um modo de refinar a
reflexão e o pensamento, a arte pode representar também a realidade social,
geográfica e política do artista, expressando processos como opressão, violência,
desigualdade social, que fazem parte da vida objetiva.
As profissões que tratam desse tipo de demanda social são estimuladas a
cotidianamente multiplicar os instrumentais de atuação e análise, uma vez que as
múltiplas expressões da questão social se solidificam cada vez mais na realidade do
indivíduo. Seja através da dissolução de vínculos afetivos e familiares ou expressa
nas relações precárias de trabalho, na violência urbana e rural, no enfraquecimento
contínuo da ideia de pertencimento dos locais de origem, violência doméstica, de
gênero, homofobia, racismo, entre tantas outras, geram uma opressão exponencial e
ao mesmo tempo um potente gatilho para as mais diversas formas de resistência.
Mais um aspecto merece destaque: antes de procurarmos
estabelecer as conexões sobre o que vimos refletindo e a arte,
trata-se do processo de formação. Se reconhecermos que o
contexto atual exige o trabalho interdisciplinar e o uso de
estratégias alternativas e criativas, lembremos que criatividade
é um dos critérios de cientificidade. Diante disso, devemos
garantir que estes processos permeiem, de forma cada vez
mais significativa, a formação profissional. Logo, mediações
que exercitem a sensibilidade e a criação podem propiciar o
desenvolvimento de habilidades necessárias ao exercício de
algumas atribuições ou competências que precisam ser
solidificadas na formação [1]

67
Conforme afirma Tolstoi (2002)[2], a Arte é a atividade humana que consiste
em um homem comunicar conscientemente a outros, por certos sinais exteriores os
sentimentos que vivenciou. É correto afirma que a arte é fundamental durante toda
a história da humanidade, uma vez que repassa as informações de transformação
das sociedades, com parâmetros que estão para além de determinações temporais.
Ou seja, pega o fenômeno, propriamente dito e o imprime na história. Essa
característica universal que a arte pode alcançar, extrapola limites culturais e pode
representar uma possibilidade de transição intercultural, em termos de classe,
geração, gênero ou etnia. Por isso, o artista (mesmo que não tenha essa intenção
explícita ou pensada para isso), quando expressa/ executa sua arte, também
comunica traços da sua realidade social, política e identitária.
Ou seja, quando um profissional da área das ciências sociais e humanas
utiliza de uma expressão artística como ferramenta de transformação social, ele vai
poder identificar dados da subjetividade daquele indivíduo, possibilitando transformar
na expressão arte em si como um elemento de transformação daquela realidade.
Por exemplo, uma assistente social que trabalha numa instituição
socioeducativa para menores infratores e promove um slam de rimas de hip hop com
os adolescentes apenados, vai ter ali uma representação da realidade de origem
daquele indivíduo e abrir também um campo de crítica e abstração para que o
jovem, que naquele momento está recluso e cumprindo pena, possa identificar
novas possibilidades dentro da sua realidade, que devido à condição de sua pena, já
conta com o cerceamento do direito fundamental da liberdade, e que muitas vezes
em sua vida, teve seu princípio legal de igualdade ignorado[3].
Nise da Silveira, uma psiquiatra alagoana, discípula de Carl Jung,
revolucionou o tratamento de pacientes psiquiátricos no Brasil e no mundo foi de
uma linha de Terapia Ocupacional que utilizava a arte como elemento de expressão
dos conflitos internos experimentados por pacientes psiquiátricos (mais
especificamente, em pacientes acometidos por esquizofrenia) no Hospital de
Engenho de Dentro na década de 50.
Costuma-se dizer que o Museu de Imagens do Inconsciente se
constituiu desde o princípio como um núcleo de pesquisa da
esquizofrenia – núcleo liderado por sua criadora que, em última
análise, utilizou a expressão plástica como um meio de acesso
à interioridade dos esquizofrênicos e levou ao conhecimento do
grande público as obras de seus pacientes. Essa
caracterização é realista. No entanto, é bastante acanhada se
68
quisermos apreender a complexidade simbólica do campo que
esse museu inaugura, complexidade que surge se tomadas em
consideração as milhares de imagens que aí foram elaboradas,
desde a sua fundação, em 1952. Nessa direção, a trilogia do
cineasta Leon Hirszman intitulada Imagens do inconsciente faz
uma apresentação sintética e muito sensível desse campo de
sentidos que abre a passagem entre o hospício e o mundo das
imagens, campo que articula psicologia, arte e política numa
única trama cultural.[4]

Nesses exemplos, o que podemos identificar, é no poder emancipador da


arte, que da mesma forma que o trabalho e a filosofia, se configura como uma
possibilidade consistente de efetivação do ser social. O indivíduo é lançado em outra
categoria, pois ele sai (mesmo que temporariamente) da categoria de vítima de uma
questão social para o papel de comunicador de uma condição social. Sendo assim,
ao ter a realidade como tema do seu trabalho, é possível abordar temas que são
pouco discutidos em uma roda de conversa, ou até mesmo que são considerados
como tabu, levando os indivíduos a solidificarem sua emancipação através de uma
perspectiva crítica e consciente, conhecendo efetivamente sua história e as
conexões que ela estabelece.

[1] Prates, J. C. A arte como matéria-prima e instrumento de trabalho para o assistente social.
Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6 n. 2 p. 221-232. jul./dez. 2007
[2] TOLSTOI, L. O que é arte? São Paulo: Ediouro. 2002
[3] Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF:
Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. 292 p. BRASIL
[4] FRAYZE-PEREIRA, João A.. Nise da Silveira: imagens do inconsciente entre
psicologia, arte e política. Estud. av., São Paulo , v. 17, n. 49, p. 197-208, Dec.
2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
40142003000300012&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 10/08/18

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Quando atitudes sociais se tornam arte: Tucuman Arde e o problema do
pretexto
Heloize Amaro

Tucumán Arde, 1968. Instalação.

Em 1968, alguns artistas argentinos organizaram nas cidades de Rosário e Buenos


Aires, uma exposição que reunia imagens e documentos que denunciavam a pobreza da
província de Tucumán. Pensando sobre atitudes sociais que se tornam arte, a exibição de
trabalhos de cunho político e crítico ao regime ditatorial e ao neoliberalismo nomeado de
Tucumán Arde, é um episódio importante, o qual artistas e ativistas, traçaram estratégias
práticas para uma manifestação da insatisfação social.
No livro Didáctica de La Liberación: Arte Conceptualista Latinoamericano, Luis
Camnitzer trata do “Primeiro Encontro de Arte de Vanguarda”[1] que ocorreu na Argentina e
tinha como propósito pensar uma forma artística que fosse totalmente nova ética, estética e,
principalmente, ideologicamente[2]. Havia uma preocupação de como essas ações iriam se
desenvolver operando na esfera social. Dessa forma, os participantes criaram quatro tópicos
que dessem conta dos prováveis distúrbios durante a realização dos eventos. O primeiro
princípio era que o desenvolvimento da arte não desencadeasse uma vanguarda, bem como

70
não ser exibido em museus ou galerias. Um terceiro ponto era não se dirigir apenas a um
público de elite, e, finalmente, devia desafiar a sociedade e receber resultados similares as
ações políticas, porém de uma maneira mais duradoura e em um nível cultural mais
profundo[3].
A ocupação interdisciplinar em Rosário ocorreu em quatro pisos de um edifício CGT
que recebeu a contribuição de 40 pessoas. O material exibido incluía trechos de entrevistas
com moradores de Tucumán que combatiam o discurso midiático do governo sobre estruturas
na região que era responsável pela maior produção de açúcar do país. Também apresentava
fotografias que denunciavam o acúmulo de riqueza de famílias ricas, além de servirem café
tucumano nas salas em intervalos de 10 minutos, representando a taxa de mortalidade das
crianças na província[4].

Tucumán Arde, 1968. Registro dos visitantes bebendo café.

Em Rosário, Tucumán Arde durou duas semanas, já em Buenos Aires foi fechada em
dois dias. Ocorreu uma forte repressão policial, responsável pela curta duração do evento.
Luis Camnitzer descreve como um sucesso e um fracasso: mesmo sendo tão curta, criou um
modelo paradigmático para uma ação política/social integral, mas por ter sido planejada
apenas para uma ação específica, não desenvolveu um pensamento ideológico capaz de
provocar outras manifestações. Além disso, os organizadores foram perseguidos após a
finalização do evento, crescendo o sentimento de impotência[5].
Este texto insere-se na proposição em dois aspectos: práticas artísticas mobilizadas por
ações sociais e a concepção de uma exposição em um espaço que fuja da lógica do cubo

71
branco. Os artistas e ativistas que idealizaram o Tucumán Arde reconheciam a necessidade de
envolvimento coletivo, além de um discurso de comunicação clara. Destituíram as relações
que reverberavam a manipulação política do momento, e ainda que tenha sido proposto para o
grande público, afetou diretamente a elite. Importante ressaltar que embates ideológicos entre
os integrantes destruiu o núcleo e gerou ações controversas e uma futura contaminação de
discurso da elite.
Além do grande problema se, na realidade, as produções artísticas foram apenas um
pano de fundo ou pretexto para a denúncia política - como alguns estudiosos de arte
conceitual latino-americana apontam - incluo aqui, a fala de um dos integrantes do Tucumán
Arde, Juan Pablo Renzi que afirma que não havia interesse na formulação dos trabalhos em si,
mas sim um meio para denunciar a exploração[6]. Entretanto, acho relevante analisar esse
episódio, nem que seja para revelar falhas e problemas nas fronteiras entre: arte, sociedade e
política.

[1] CAMNITZER, L. Didáctica de La Liberación: Arte Conceptualista Latinoamericano. 1ª


edição. Casa editorial HUM. Setembro, 2008. p. 89.
[2] Ibid.
[3] Ibid.
[4] Ibid., p. 91.
[5] Ibid., p. 92.
[6] RENZI, J. P. Apud. CAMNITZER, L. Didáctica de La Liberación: Arte Conceptualista
Latinoamericano. 1ª edição. Casa editorial HUM. Setembro, 2008. p. 97. “ [...]. 4. No nos
interessan como trabajos en sí, sino como medio para denunciar la explotación. ”

72
ENCONTRANDO HOMBRIDADE NO TRABALHO INÚTIL
AMANDA ACCIOLY VIDEIRA
Tenho total consciência que questionar a demanda pela função social – mesmo que social –
enquanto uma demanda em si, pode causar bastante desconforto. A própria palavra ‘função’
nos assombrou por aqui algumas vezes: função da arte, função da universidade, função da
vida. Pensando inclusive sob a própria ótica marxista – que vislumbra a libertação da
sociedade mediante a irradicação do trabalho –, a palavra ‘função’ também deveria ser
repensada. A busca pela função aniquila o desejo. O desejo como pulsão de si mesmo.
Penso sobre matemática aplicada; Benoît B. Mandelbrot, por exemplo, um matemático já
morto que pesquisava a geometria natural e a forma geométrica de formas como nuvens,
galhos de árvores e relâmpagos. Anos de pesquisa e trabalho para resolver um problema que,
em si, não tem nenhuma aplicabilidade ou função.
Trago a imagem do Mito de Sísifo para pensá-la através de dois vieses. O mito, bastante
conhecido, trata de um homem que foi castigado a empurrar uma rocha montanha acima. A
montanha era tão íngreme que toda vez que a rocha chegava em seu topo, rolava ladeira
abaixo e assim o trabalho de Sísifo começava todo de novo. Alguns autores como Camus vão
discorrer sobre esse mito fazendo uma alusão aos trabalhadores que ignoram a falta de função
da existência porque são absorvidos pela lógica produtiva de trabalho. Para certas pessoas, se
deparar com a evidente e incontestável falta de função da vida necessariamente significaria a
morte. A morte em diferentes camadas. A morte em si, da matéria. O suicídio. Ou a morte a
nível simbólico, para aqueles que não teriam coragem de tirar a própria vida – essa sendo pior
que a anterior.
A questão que fica: é possível desejar – qualquer coisa – partindo do princípio de que a
existência não tem nenhum sentido ou função? É possível que o ser humano, algum dia, se
veja como um pequenino grão de areia, sem missão de vida, sem destino pré-determinado,
sem sentido de ser e continue de pé? Desejando? É possível desejar uma arte que não tenha
sentido ou função? Uma arte que mesmo tratando de questões da vida, ainda dê conta de
questões da arte? E essa arte, é possível dentro da universidade?
Contudo, esta hipótese sobre a instituição é ainda muito “pesada”; ela parte de uma visão
“coisista” do instituído. Hoje, sabemos que o limite que a instituição opõe ao potencial da
linguagem em “lances” nunca é estabelecido (mesmo quando ele o é formalmente).“ Ele
mesmo é, antes, o resultado provisório e a disputa de estratégias de linguagem travadas dentro
e fora da instituição. Exemplos: o jogo de experimentação sobre a linguagem (a poética) terá
seu lugar em uma universidade? Pode-se contar histórias no conselho de ministros?
Reivindicar numa caserna? As respostas são claras: sim, se a universidade abrir seus ateliers
73
de criação; sim, se os superiores aceitarem deliberar com os soldados. Dito de outro modo:
sim, se os limites da antiga instituição forem ultrapassados. Reciprocamente, dir-se-á que eles
não se estabilizam a não ser que deixem de ser um desafio. Acreditamos que é neste espírito
que convém abordar as instituições contemporâneas do saber (LYOTARD, 2009, p. 32).

O peso da pedra que rola montanha abaixo é o peso da realidade; não posso deixar de lembrar
a célebre frase de Ferreira Gullar de que a arte existe, pois a vida não basta. E que mesmo
tratando-se de ArteVida, que a vida nesse caso seja um sopro de calor no coração, um alento
como quem diz “eu sei como você se sente’’ e que nesse movimento se cura o espectador e o
artista.
Penso inclusive que o maior beneficiado é sempre o artista, que, no fazer, cicatriza algum tipo
de ferida; o espectador vem a rebote, depois, caso a ferida seja comum para ambos. E assim
sendo, antes de o artista se propor a salvar o mundo, que ele salve primeiro a si mesmo.

O Rio do Funk
Waleska Cristina Conceição Oliveira

O fotógrafo francês Vincent Rosenblatt é autor de uma ampla série de fotografias intitulada
Rio Baile Funk! Favela Rap. Nela, exibe uma coleção que já soma mais de quatro
centenas de bailes percorridos, uma verdadeira maratona que teve início em 2005 e não
possui previsão de término.
Sua série apresenta importantes contrapontos aos estereótipos produzidos pelos discursos
hegemônicos, além de subverter o horror das imagens de violência, dor e sofrimento que
operam constantemente em uma redução do real ao surreal.

74
A naturalização da violência reforça cotidianamente uma representação estereotipada dos
aspectos negativos das favelas e demais territórios periféricos. Em contraposição, a
produção do fotógrafo evoca uma pulsão de vida capaz de desestabilizar imagens e
discursos que autorizam simbolicamente a polit́ ica de extermin ́ io em curso no Rio de
Janeiro, que se volta prioritariamente contra jovens pretos, habitantes de favelas e
periferias. Não por acaso, o mesmo perfil sociológico da maioria de encarcerados que
habitam as prisões brasileiras.
Territórios complexos de serem analisados, as favelas ocupam espaço crucial na formação
do imaginário simbólico sobre o Rio de Janeiro e nas diferentes formas de representação do
costumes cariocas. Exatamente por isso, as narrativas a respeito destes espaços são
constantemente disputadas, alternando também os atores que compõem o debate sobre os
diferentes aspectos de construção destes territórios.
Retomamos que a partir da década de 1980, houve uma mudança muito significativa na
conjuntura da cidade. A expansão da cocain ́ a no varejo de drogas ilícitas impactou
significativamente o modelo de vendas, aumentando rendimentos e provocando um
crescente armamento entre os envolvidos nesse comércio. Essa nova conjuntura repercutiu,
principalmente a partir da década de 1990, na construção simbólica das favelas como o
território da violência na cidade, reforçando as estruturas de segregação. Nesse mesmo
período, os bailes que aconteciam nos clubes do “asfalto” foram sendo extintos e os bailes
de favela passaram a ter centralidade na cultura funk.

75
Cheia de percursos e reviravoltas, a historiografia do funk carioca viu o ano de 1995 se
consagrar como um marco para o movimento. Além do sucesso de Endereço dos bailes e
do Rap do Borel, foi nesse mesmo ano que uma dupla de MCs da Cidade de Deus, Cidinho
e Doca, explodiu com o seu Rap da felicidade. Cidinho e Doca cantavam os versos que se
tornariam uma espécie de cartão-postal do movimento funk: “Eu só quero é ser feliz / Andar
tranquilamente na favela onde eu nasci / É! / E poder me orgulhar / E ter a consciência que
o pobre tem seu lugar”.
O funk vinha enfrentando uma sucessão de ataques na imprensa e na opinião pública.
Entretanto, em outubro de 1994, a revista Domingo, do Jornal do Brasil, publicava a matéria
Funk também é cultura, um indić io de que as coisas pareciam mudar. É importante destacar
que, em outubro de 1992, o mesmo jornal havia publicado uma matéria com o tit́ ulo
Movimento funk leva desesperança. Nela, os funkeiros eram apresentados como hordas de
adolescentes desassistidos, alienados politicamente e que tinham como seus heróis outros
artistas do funk e traficantes das comunidades onde moravam.
O funk está inserido em uma ampla rede de tradições afro-diaspóricas capazes de romper
com um imaginário racista e classista de subalternidade dos sujeitos negros, através de um
confronto que desestabiliza a violência do regime de verdade do empreendimento colonial e
sua perspectiva monológica. Na história do Brasil, manifestações culturais populares –
sobretudo aquelas ligadas à tradição afro-brasileira – sempre foram alvo de perseguição do
Estado. Da Festa da Penha (no inić io do século XX) ao Baile da Chatuba, a cultura popular
sempre foi tratada como uma questão de polić ia.
Vincent Rosenblatt assume uma inspiração que vem da tradição do fotojornalismo, mas faz
questão de afirmar que situa seu trabalho com o funk carioca em um espaço intermediário
76
entre o registro documental e o fazer artiś tico. De fato, é inegável sua enorme contribuição
para a construção de uma memória social da cultura do Rio de Janeiro.

As fotografias de Vincent passam longe de qualquer caráter prescritivo. O que o artista


deseja, antes, é construir uma poética do olhar, uma cidade nova na paisagem do possível.
Se a vida nas favelas é quase sempe exposta por sua violência e criminalidade, essas
fotografias fornecem uma visão que raramente circula nos espaços hegemônicos.
Outro problema recorrente consiste no entendimento de que as formas artiś ticas devem ser
orientadas pela preocupação de saírem de si para se tornarem práticas de intervenção
social. Ainda que exista em Vincent um comprometimento político com o campo em que
atua, fazendo dele um espaço de luta, sua obra não apresenta traços de uma redução do
poder artístico de provocação às tarefas éticas do testemunho, e nem resvala em momento
algum em discursos assistencialistas ou paternalistas.

Paula Rodrigues M. Leite:

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Mas e quando atitudes sociais não deveriam se tornar arte? Falar o que a arte deveria ou não
ser é demasiado ultrapassado, no entanto, talvez isso não se aplique as atitudes sociais. De
acordo com Allan Kaprow qualquer um que entenda minimamente de arte verá que qualquer
coisa tem o potencial de se tornar arte
“Em meio aos que disso entendem (e praticamente qualquer estudante de graduação e/ou pós se qualificaria),
todos os gestos, pensamentos e feitos podem tornar-se arte a um capricho do mundo artístico. Até mesmo
assassinato, rejeitado na prática, poderia ser uma proposta artística admissível.”. (KAPROW, 1971, p. 13)
Será que não há nenhum limite? Ainda pensando na fala de Kaprow, a resposta é que não, não
há limites para o que pode vir a ser arte, todavia, é imprescindível refletirmos sobre o que é
que se pretende com isso. Em relação a essa pretensão (e toda arte pretende alguma coisa,
ainda que seja justamente não pretender nada) analisemos o trabalho de Ducha, “Tatuagem
sobre homem mal remunerado” de 2002.

O artista pagou a quantia de 1500 reais fornecida pelo banco Itaú para a produção de sua obra,
no contexto do Projeto Rumos para jovens artistas, para que uma pessoa tatuasse a logomarca
do banco em sua cabeça e que a mesma andasse pela galeria em que o trabalho seria exposto.
Esse trabalho é extremamente interessante, suscita várias questões, é uma crítica sensacional
ao banco, ao sistema de arte, a arte em si, à quanto um artista pode ser mal remunerado e etc.
etc. Porém, se faz necessário aqui o uso da primeira pessoa: eu acho interessante por ser uma
estudante de História da Arte prestes a me graduar, conheço os mecanismos, códigos e
meandros. O que esse trabalho suscita a quem não conhece, ou ainda, a própria pessoa que
teve sua cabeça tatuada? Talvez uma das questões do trabalho seja essa, quem usufrui ou não
da arte, quem a realiza ou não, no entanto, obras como essa tem muito mais chances de
78
reforçar o sistema como ele está do que realmente modifica-lo. Pensando nisso uma pergunta
pode ser feita: será que a arte existe para quem está sobrevivendo? A resposta, pura e simples
é que não, não existe. Quem está sobrevivendo não quer saber de arte, quer uma saída, quer
deixar de sobreviver e passar a viver de verdade. Talvez a arte possa se prestar a ser essa saída
e a oferecer algo semelhante a vida, mas a realidade é que tanto artistas quanto o sistema em
que esses se inserem não têm interesse nisso. Talvez por isso mesmo suas questões estejam,
em um certo sentido, se limitando a mesmice:
“As artes, pelo menos até o presente, têm sido lições pobres, exceto possivelmente para artistas e seus reduzidos
públicos. Apenas esses grupos de interessados alguma vez fizeram qualquer grande reivindicação para a arte. O
resto do mundo não poderia importar-se menos.” (KAPROW, 1971, p. 4)
Voltando a questão do que deveria ou não se tornar arte, dessa vez entrando na problemática
dos valores que a arte assume, Lorenzo Mammì irá dizer que “A permanência de valores na
arte assume assim a figura patológica de bloqueio que esconde um trauma. Tenho a impressão
de que o mundo da arte está recortando para si, a partir disso, um espaço de sobrevida.
Continua existindo enquanto estorvo necessário.” (MAMMÌ, 2012, p. 15). A sobrevida a qual
Mammì se refere está em usar problemáticas das “minorias culturais, políticas e sexuais”
(MAMMÌ, 2012, p. 14) como arte, algo que o autor critica veemente: “Nesse caso, a arte já
não é vista como um fim ou como um meio, mas como sinal de status. Regride à função pré-
renascentista de carregar questões, sem ser, ela mesma, uma questão.” (MAMMÌ, 2012, p.
14). Ainda que essa crítica seja válida na medida em que muitos trabalhos serão feitos nesse
sentido de forma completamente vazia e supérflua muitas vezes por indivíduos que nem ao
menos se interessam verdadeiramente por essas questões; por outro lado, temáticas relacionas
a vida-sociedade já não podem mais deixar de fazer parte do âmbito da arte, e as minorias as
quais Mammì se refere fazem sim parte da vida-sociedade é não serão mais ignoradas; e ainda
trabalhos como o “Poder” de Vergara, que unem questões restritas a imagem mas trazem o
copo negro como presente dentro dessa problemática, e até mesmo a obra supracitada do
artista Ducha nos lembram que pode haver uma junção entre o ‘carregar questões’ e ‘ser uma
questão’. Não obstante, para quem são essas questões todas? A realidade é que a pessoa que
recebeu um pagamento para ter uma tatuagem em sua cabeça (que ficará com ela por toda sua
vida ainda que o cabelo vá cobrir posteriormente) era negro (de pele clara mas negro) e pobre,
e como dito por Kaprow ele não poderia importar-se menos com os problemas trazidos por
Ducha.
Como resposta a esse trabalho é válido e talvez imprescindível que outra obra seja citada, o
conto “Trabalhadores do Brasil” do livro “Contos negreiros” (2005) de Marcelino Freire:

79
Enquanto Zumbi trabalha cortando cana na zona da mata
pernambucana Olorô-Quê vende carne de segunda a segunda ninguém vive aqui
com a bunda preta pra cima tá me ouvindo bem?
Enquanto a gente dança no bico da garrafinha Odé trabalha de
segurança pega ladrão que não respeita quem ganha o pão que o Tição amassou
honestamente enquanto Obatalá faz serviço pra muita gente que não levanta um
saco de cimento tá me ouvindo bem?
Enquanto Olorum trabalha como cobrador de ônibus naquele transe
infernal de trânsito Ossonhe sonha com um novo amor pra ganhar 1 passe ou 2
na praça turbulenta do Pelô fazer sexo oral anal seja lá com quem for tá me
ouvindo bem?
Enquanto Rainha Quelé limpa fossa de banheiro Sambongo bungo na
lama e isso parece que dá grana porque o povo se junta e aplaude Sambongo na
merda pulando de cima da ponte tá me ouvindo bem?
Hein seu branco safado?
Ninguém aqui é escravo de ninguém. (FREIRE, 2005, p. 6)

Tendo em vista o conto de Freire e à obra de Ducha a pergunta principal passa a ser: até
quando corpos negros periféricos serão utilizados como se fossem objetos? Embora Ducha
possa ter pensado em inúmeras questões muito pertinentes para o seu trabalho, é certo que não
pensou nesse último questionamento, pois se assim o fosse não teria feito esse trabalho.

REFERÊNCIAS
MAMMÌ, Lorenzo. O que resta – Arte e crítica de arte. Cap. 1: A arte depois da arte. São
Paulo: Companhia das Letras, 2012

FREIRE, Marcelino. Contos Negreiros. Rio de Janeiro: Record, 2005

A Educação do não artista, parte 1, 1971 – Allan Kaprow

Adriana do Carmo Corrêa Gonçalves

Refiro-me ao sonho utópico com que me lancei sempre


em todas as minhas aventuras pedagógico-políticas.
Meu sonho utópico tem que ver com uma sociedade

80
menos injusta, menos malvada, mais democrática,
menos discriminatória, menos racista, menos sexista.

(Freire)

Na sociedade brasileira, a pluralidade cultural é marcante. Essa diversidade se


explicita nas múltiplas camadas (CANEN, 2007) que perfazem a identidade dos sujeitos. A
legitimação de um único padrão identitário elimina o pluralismo cultural e marginaliza nossa
gente, principalmente quando não se têm suas práticas valorizadas pela sociedade
dominante, sendo assim, a tensão entre o local e o global se estabelece de forma contínua e
ininterrupta. E a globalização assume um aspecto dual, que congrega homogeneização e
diferenças.

A ideia de culturas locais deixa de se referir, portanto, a circunscrições espaciais definidas e


finitas onde comunidades se assentam, estendendo suas bordas para os espaços com os quais
distintos grupos mantêm e ampliam contato, quer por meio do comércio de bens, da
migração de seus habitantes (e pelo acolhimento de imigrantes) ou do fluxo de informações
que enviam e recebem por via eletrônica ANJOS, 2005, (p.14).

A organização de práticas sociais no Brasil seja em qualquer área do conhecimento


não se desenvolve autonomamente, pelo contrário, pensamos e agimos circunscritos em
estruturas reais, que por vezes, se atrelam às desigualdades, diversidades e diferenças. A
epígrafe informa um sonho, uma sociedade menos injusta e mais democrática. Uma
perspectiva partilhada por muitos que se envolvem nas lutas e nos embates por uma
sociedade equânime, não por acaso, Anjos (2005) se refere à relação que se estabelece entre
diferença e exótico, estando o segundo amparado numa relação hierárquica e assimétrica.

Dentre os possíveis movimentos por uma sociedade menos racista, discriminatória,


injusta e sexista, como sonha Freire, enquanto sociedade, enfileiramos diversos movimentos,
em áreas diversas, aqui nos interessa ressaltar o artístico, através de atitudes performáticas
em Arte, através da Arte, ou por Arte[1]. Discutir identidades, diversidades e desigualdades
no Brasil e na América Latina, não deveria gerar estranheza, independente da área de
conhecimento, pelo contrário, para alguns, trata-se de uma demanda urgente, que requer
tomada de decisão e atitudes.

A proposta desse trabalho tem como marco, a atitude de alguns sujeitos sociais que,
assumiram a responsabilidade de / pela arte, provocar reflexões sobre a valorização étnica
racial, adotando no teatro narrativas, elenco e repertórios de empoderamento de uma”
81
minoria” não reconhecida e legitimada na sociedade brasileira, através do espetáculo teatral
O Pequeno Príncipe Preto.

Quando a atitude vira arte, defendemos que vira também representatividade, pois de
uma forma ou, de outra, se desloca, ou melhor, flutua entre campos, podendo estar na
militância ou na arte. No caso em tela, a tensão que envolve as identidades se deslocou para
as Artes, parece-me que um desvio foi criado, ou seja, surge uma nova possibilidade de
articular as vozes que clamam por representação no circuito artístico.

A identidade não é fixa, é mutável. A sociedade contemporânea não admite o


enquadramento atemporal da identidade, ela não tem uma essência e sua constituição é
resultado das forças antagônicas que se chocam no complexo contexto que é a sociedade
brasileira. “As sociedades da modernidade tardia, (...), são caracterizadas pela “diferença”;
elas são atravessadas por diferentes divisões e antagonismos sociais que produzem uma
variedade de diferentes “posição de sujeito” - isto é identidades – para os indivíduos”
(HALL, 2006, p.17).

As sociedades da modernidade tardia, argumenta ele, são


caracterizadas pela “diferença”, elas são atravessadas por diferentes
divisões e antagonismos sociais que produzem uma variedade de
diferentes “posições de sujeito” – isto é, identidades – para os
indivíduos. Se tais sociedades não se desintegram totalmente não é
porque elas são unificadas, mas porque seus diferentes elementos e
identidades podem, sob certas circunstâncias, ser conjuntamente
articulados (HALL, 2006, p.17).

Multiplicidade é uma das dimensões valorizadas, quando nos referimos à constituição


provisória das identidades. Esta formação identitária plural é marcada pela tensão e pelo
conflito. Logo, questionar a formação “sólida” e homogênea da identidade é um
compromisso teórico e político dos que se envolvem com as práticas de valorização e,
também preservação de práticas culturais pouco ou nada valorizadas na hierarquização.
Deste modo, quando a arte põe em xeque essa discussão identitárias, ressaltando noções de
valorização, pertencimento e desigualdade cultural e identitárias, encontramos nesses
movimentos, uma estratégia diferente para legitimar o espaço das diferenças.

Atitudes em arte ganham contornos vultosos, podendo associar e dissociar identidades


marginalizadas, uma vez que subverte o lugar das identidades, como no caso do teatro: O

82
Pequeno Príncipe Preto que para além da reaproriação também cria, num contexto
marcadamente, desigual. “Em vez de ideias de pertencimento que ignoram ou que excluem o
diferente, impõe-se uma noção que não somente o reconheça e o incorpore, mas que dele
dependa para criar, a partir desse contato que confunde conflito e troca (ANJOS, 2005, p.
46). O que seria a atitude como arte, um deslocamento de movimento, que flutua entre
lugares?

Para pensar sobre o assunto, debruçamo-nos na apresentação teatral, O Pequeno Príncipe


Preto[i], com texto e direção de Rodrigo França e atuação de Junior Dantas, em cartaz no
teatro Glaube Rocha, localizado no centro da cidade do Rio de Janeiro. Em nossa análise, o
espetáculo teatral, O Pequeno Príncipe Preto, quando se apropria e cria, a partir de um
clássico, tendo como escopo explicitar questões de valorização étnico raciais, discriminação e
preconceito se organiza por meio de atitudes e posicionamentos na arte que, ressignificam
discursiva e visualmente nosso estereótipo para príncipe e também para negro.
Enquanto, o pequeno príncipe, “original” de Antonie de Saint- Exupérry era representando
próximo de suas características identitárias, homem branco, francês, o novo personagem,
também príncipe, mas negro, se insurge, ou melhor, é reelaborado com base nos marcadores
identitários da etnia negra e traz à tona elementos culturais desse povo.
O clássico infanto-juvenil da literatura internacional, já traduzido em várias línguas, desde
seu lançamento em 1943 na França, ganha no Brasil a partir da criação, recriação, do autor
Rodrigo França, uma versão atravessada pelas subjetividades de um ator negro, que
considerando as especificidades da cultura negra e alguns traços delineia um personagem que
representa boa parte dos brasileiros. Sabemos que tal iniciativa, não modifica a estrutura
social hierárquica, contudo, podemos observar, que mesmo que provisoriamente, produz
reflexões acerca de processos discriminatórios.
O ponto de partida para recriação do artista é o clássico de Antoine, no entanto, as
narrativas são recriadas, pela ideia do empoderamento, colando no centro da apresentação
artística temas que custam caro para os negros e as negras vítimas de todas as formas de
racismos, desde aspectos físicos, como culturais. As vivências e experiências narradas pelo
príncipe negro, ressignificam a árvore Baobá que, na versão negra assume sua ancestralidade
e importância, do mesmo modo, que a palavra ubuntu, também de origem africana. Há todo
um esforço para o reconhecimento da estética negra. Em toda composição cênica do clássico.
Embora muitas podem ser as críticas, na manifestação artística em tela, identificamos
o negro sujeito e não objeto, que durante um longo período esteve marginalizado e coisificado
83
na história nacional e internacional. Neste sentido, mesmo que de forma precária e provisória,
essa iniciativa, quando analisada pelo viés da gambiarra, cumpre uma função política,
explícita na construção da narrativa, no cenário, nos personagens e também na composição
artística. E contribui para as lutas contra o crime de racismo. Soma-se também a valorização
da estética negra, dando visibilidade para um grupo social marginalizado e muito marcado
socialmente no contexto brasileiro.

Referências
ANJOS, Moacir dos. Local/global: arte em trânsito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
CANEN, Ana. O multiculturalismo e seus dilemas: implicações na educação. Comunicação
e política, v.25, nº 2, p. 091-107, 2007.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da
Silva e Guaraciara Lopes Louro.11.ªed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
_______,Da diáspora: identidades e mediações culturais. Organização: Liv Sovik.
Tradução: Adelaine La Guardia Resende. [et. al.]. Belo Horizonte: Editora UFMG, Brasil,
2003.
KAPROW, Allan. A Educação do Não-Artista, Parte I (1971).

[1]A palavra Arte está grafada com inicial maiúscula, tendo por referência a discussão
apresentada em A Educação do Não-Artista, Parte I (1971) A Educação do Não-Artista, parte
I Allan Kaprow.

O imaginário terceiro-mundista
Gabriel Caires

84
Mas e quando atitudes sociais ditam a arte? E Quando um Estado observa o
veículo artístico como forma de consolidação hegemônica, convocando uma minoria
privilegiada para exercer o papel de “messias” de uma nova produção artística, com
a pretensão de assumir uma posição de centro artístico mundial? Nesses termos
que se formara a 1ª Bienal de Veneza. Uma arte a partir da perspectiva dos
“vencedores”, voltada para dentro. Mesmo que naquele espaço a fala seja
intrinsecamente autocentrada, o título da Bienal ainda continha “internacional” no
nome. Acredito que faça sentido a partir de uma visão imperialista, de dentro pra
fora, não de fora para dentro, afinal.
É a partir de Veneza, da experiência italiana de produção, que o termo
“Bienal” assumiu essa função de catalogar a produção artística em nível global. Por
consequente, a criação da “Bienal” mostrou ser um dos meios mais fáceis de
inserção no circuito político, artístico, crítico e turístico. Cuba, ao criar uma “Bienal
de terceiro mundo”, aponta uma produção negligenciada até então. Uma nova
narrativa em desentendimento e contato direto com aquela oficializada. A criação
dessa nova perspectiva do circuito de arte tinha intenção não só na formação de um
público local, mas também na projeção internacional, pretendendo por vez se
emancipar progressivamente da tutela ocidental. Cuba buscava renovar os modelos
de intercâmbio cultural herdados da experiência colonial e, posteriormente, da
Guerra Fria.
No contexto Brasil, a primeira Bienal fora criada nos moldes da Bienal de
Veneza, na fala de Lourival Machado, diretor da 1ª Bienal de São Paulo: “Por sua
própria definição, a Bienal deveria cumprir duas tarefas principais, colocar a arte
moderna do Brasil, não em simples confronto, mas em vivo contato com a arte do
mundo, ao mesmo tempo em que, para São Paulo, se buscaria conquistar a posição
de centro artístico mundial. Era inevitável a referência à Veneza, longe de fugir-se
dela, procurou-se tê-la como uma lição digna de estudo e, também como um
estímulo encorajador.” Se a bienal de Havana se opunha a de Veneza, a bienal da
Bahia era uma resposta direta a bienal de São Paulo, como aponta Frederico
Morais, em “O Vazio, a construção ,o salto”: “Adentrar o fora, integrar o marginal,
preencher os vazios. Multiplicar os centros ou os pólos de atração econômica e
cultural. Após a redução crítica canibal, antropofágica que leva de volta ao zero, ao
nada, dar o salto marcusiano, prospectivo. O problema brasileiro não é o nada dos
países saturados culturalmente ou a coisificação das sociedades afluentes, mas o
tudo por fazer, resolver transformar. A bienal da Bahia é uma reflexão sobre o vazio
brasileiro. É uma proposta de integração cultural”
A formação da Bienal da Bahia vinha no campo do contra discurso. Já que a bienal
de São Paulo se via como receptora de uma produção internacional de arte, do
ponto de vista baiano, a intenção era formar outra estratégia: se colocar como
emissora, privilegiando a arte, os artistas e o pensamento brasileiros, se opondo ao
discurso dominante de qualquer centro local ou internacional. Esse movimento
significou uma tentativa de pensar, imaginar e problematizar o universal a partir de
uma experiência e perspectiva baiana e regional. O nordeste como condição

85
geográfica, construção histórica e ainda como potente peça do imaginário. Bahia
tendo que se reafirmar, tornar-se evidente, demonstrar resistência perante a
hegemonia do próximo. A bienal deve partir dessa ação conjunta com aqueles que
lhe cercam para decifrar essa nova região em que nós compartilhamos. O que é
Nordeste? O Nordeste de hoje é o mesmo do de uns 20 anos atrás? A arte
produzida aqui, nesse chão, seria uma arte Nordestina ou uma arte Brasileira? Se
São Paulo reflete a arte do cheio, a Bahia a do vazio, mas à medida que o fora for
sendo adentrado, o os claros preenchidos, as duas bienais deixaram de serem dois
polos opostos e contraditórios.

Referências:
LLANES, Llilian. Memorias: Bienales de la Habana 1984-1999. Havana: Arte Cubano
Ediciones ; Consejo Nacional Artes Plásticas, 2012.
MOURA, Sabrina. Entre o afro-cubanismo e a Diáspora, Deslocamentos nos
discursos expositivos.

3ª Bienal da Bahia, Manual do Professor, 2014

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