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Vivian Alves de Assis

A dimensão mítica da pureza


metodológica em Kelsen: uma
leitura a partir da proposta
transurrealista de Luis Alberto
Warat

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada como requisito parcial


para obtenção do grau de Mestre pelo
Programa de Pós-graduação em Direito do
Departamento de Direito da PUC-Rio.

Orientador(a): Prof. Rosângela Lunardelli


Cavallazzi

Rio de Janeiro
Maio de 2008
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Vivian Alves de Assis

A dimensão mítica da pureza


metodológica em Kelsen: uma leitura
a partir da proposta transurrealista de
Luis Alberto Warat

Dissertação apresentada como requisito parcial


para obtenção do grau de Mestre pelo
Programa de Pós-graduação em Direito da
PUC-Rio. Aprovada pela Comissão
Examinadora abaixo assinada.

Profa. Rosângela Lunardelli Cavallazzi


Orientador
Departamento de Direito – PUC-Rio

Profa. Gisele Cittadino


Departamento de Direito – PUC-Rio

Profa. Juliana Neuenschwander Magalhães


Faculdade de Direito – UFRJ

Profa. Maria Guadalupe Piragibe da Fonseca


Faculdade de Direito – Ibmec

Prof. Nizar Messari


Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de
Ciências Sociais – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 16 de maio de 2008.


Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e
do orientador.

Vivian Alves de Assis

Bacharel em Direito pela PUC-Rio. Bolsista CNPq

Ficha catalográfica

Assis, Vivian Alves de.

A dimensão mítica da pureza metodológica em Kelsen:


uma leitura a partir da proposta transurrealista de Luis Alberto
Warat / Vivian; orientador: Rosângela Lunardelli Cavallazzi. –
Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Direito, 2008.

94 f. ; 29 cm

1. Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade


Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Direito.

Inclui referências bibliográficas.

1. Direito – Teses. 2. Senso comum teórico dos


juristas. 3. pureza metodológica. 4. obstáculo
epistemológico. 5. dimensão mítica. 6. Luis Alberto Warat.
7.. I. Cavallazi, Rosângela Lunardelli. II. Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de
Direito. III. Título.

CDD 340
Aos meus pais e irmã,
pelo amor, confiança e incentivo
Agradecimento

À minha família, pelo amor incondicional e por me oferecerem a segurança e


tranqüilidade suficientes para a motivação ao trabalho que me dedico.

À minha orientadora, Rosângela Lunardelli Cavallazzi, por ser a principal


responsável pela minha formação acadêmica, pela identificação profissional e
pessoal, pela competência como pesquisadora e pedagoga, por ter aberto os
horizontes da Epistemologia e da Linguagem na pesquisa jurídica. Principalmente
pela paciência, carinho, amizade e por acreditar no meu trabalho.

Ao prof. Luis Alberto Warat, pela humildade, carinho e compreensão quando


considerei que seria melhor a leitura desta dissertação depois da defesa. Pelas
conversas surrealistas sobre projetos, livros, filosofia, arte, qualidade de vida. A
paixão por suas obras permitiu a escolha deste tema.

À CAPES e à PUC-Rio, pelos auxílios concedidos, essenciais para a realização


dessa dissertação.

Ao Fabio Pires Bento pelo amor, compreensão, carinho e revisão do trabalho.

Ao professor Augusto Werneck que me incentivou ao ingresso no mestrado da


PUC-Rio. Pelas aulas magníficas e atenção na realização da minha monografia.

Aos funcionários da Secretaria do Departamento de Direito da PUC-Rio,


Anderson, Carmen, Marcos e Lindinalva, pela atenção e competência.

Aos colegas da turma de mestrado mais polêmica que já se ouviu falar: João
Pedro, Pedro, Marcelo, Orlando, Rodrigo, pelos conselhos e debates; Ana Luisa,
Joana pela amizade e aprendizado; Teresa, Flávia pela identidade acadêmica e
pessoal.

Aos colegas do grupo de pesquisa do CNPq, pela contribuição ao meu


amadurecimento acadêmico e pelo intercâmbio transdisciplinar que me
proporcionou.

As professoras Maria Guadalupe Piragibe da Fonseca, Liane Maria Maia Simoni e


Maria Isabella Bottino do Ibmec, pela confiança e pelo aprendizado pedagógico
constante.
RESUMO

Assis, Vivian Alves de; Cavallazzi, Rosângela Lunardelli . Rio de Janeiro,


2008. A dimensão mítica da pureza metodológica em Kelsen: uma
leitura a partir da proposta transurrealista de Luis Alberto Warat. p.
94 Dissertação de Mestrado – Departamento de Direito, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.

A presente dissertação analisa o postulado da pureza metodológica como


princípio da Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen em sua perpetuação no senso
comum teórico dos juristas, revelando as suas dimensões míticas. A releitura de
Kelsen é realizada à luz das críticas à pureza metodológica desenvolvidas por Luis
Alberto Warat principalmente em sua obra “A Pureza do Poder”. O estudo inclui
referências conceituais de Roland Barthes, Gaston Bachelard e Antonio Negri,
vinculadas a propostas de sistemas ilusórios criativos, como a modernidade
imanente e o transurrealismo. O referido postulado é contextualizado no
arcabouço paradigmático moderno como obstáculo epistemológico para a
produção de um saber crítico que construa novos objetos de conhecimento no
campo jurídico.

Palavras-chave

Senso comum teórico dos juristas; pureza metodológica; obstáculo


epistemológico; dimensão mítica; Luis Alberto Warat
Abstract

Assis, Vivian Alves de; Cavallazzi, Rosângela Lunardelli The Dimension of


Kelsen’s Methodological Purity: A Reading According to the
Transsurealistic Proposal of Luis Alberto Warat Rio de Janeiro, 2008. p.
94 Dissertação de Mestrado – Departamento de Direito, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.

This dissertation examines the premise of methodological purity as a


principle of Hans Kelsen’s Pure Theory of Law, in this perpetuation of the
theoretical juristic common sense, revealing its mythic dimensions. A rereading of
Kelsen is realized in the light of criticism of methodological purity developed by
Luis Alberto Warat, principally in his work “The Purity of Power”. The study
includes conceptual references of Roland Barthes, Gaston Bachelard and Antonio
Negri, related to the proposals of creative illusory systems, such as immanent
modernity and the transurrealism. That premise is contextualized in the modern
paradigms as epistemological obstacles for the production of a critical wisdom
which builds new objects of knowledge in the juridic field.

Keywords

theoretical juristic common sense; methodological purity; epistemological


obstacle; mythic dimension; Luis Alberto Warat
SUMÁRIO

1. Introdução 9

2 Constituição de sistemas ilusórios 16


2.1. O esgotamento da modernidade hegemônica 16
2.2. Modernidade imanente e o transurrealismo: sistemas ilusórios criativos 29

3. Resgatando Kelsen: para uma crítica qualificada 44


3.1. Kelsen em defesa da juridicidade 44
3.2. Crítica waratiana ao postulado da pureza metodológica 53

4. A dimensão mítica da pureza metodológica como obstáculo epistemológico 63


4.1. Processo de mitificação da pureza metodológica 63
4.2. A pureza metodológica: obstáculo epistemológico na perspectiva de um
pensamento crítico 75

5. À guisa de conclusão: rumo a perspectivas no campo jurídico que revelem


dimensões críticas na construção de objetos de conhecimento 85

6. Bibliografia 89
1
Introdução

“É imensa a distância entre o livro impresso e


o livro lido, entre o livro lido e o livro
compreendido, assimilado, sabido!”1

Gaston Bachelard

As reflexões epistemológicas atuais tendem a reconhecer a complexidade


das relações sociais em constante transformação através do surgimento crescente
de perspectivas que sustentam a descontinuidade e a fragmentação contrárias à
concepção moderna.
O postulado da pureza metodológica em Hans Kelsen, como pressuposto
vertebral para o desenvolvimento do projeto da Teoria Pura do Direito, delimita o
campo temático da Ciência do Direito, que é a tarefa fundamental para a
constituição de uma “Ciência do Direito em sentido estrito.”2 Neste sentido, o
referido projeto está incluído no paradigma de conhecimento da modernidade que
apresenta uma visão epistemológica objetivista, ordenadora, homogênea e
totalizante.
Concomitantemente, identifica-se, no campo jurídico, a insuficiência do
ponto de vista normativista e semiológico do positivismo jurídico, no qual a
Teoria Pura do Direito aparece como marco representativo, para atender às
demandas sociais.
Neste contexto, é pertinente adotar a obra de Luis Alberto Warat como
marco de trabalho pelo fato da mesma enfrentar de forma crítica as questões sobre
o poder, o direito e a ciência produzidas na modernidade,3 ainda presentes nos
tempos atuais, perambulando sem respostas dentro dos muros universitários
brasileiros.

1
BACHELARD, G., A formação do espírito científico: contribuição para a psicanálise do
conhecimento, p. 10.
2
WARAT, L. A., Do postulado da pureza metódica ao princípio da heteronímia significativa. In:
WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 236.
3
PANTOJA, L. M. X. P., Fragmentos amorosos de um discurso jurídico – ou fragmento jurídico
de um discurso amoroso. In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou,
p. 12.
10

A leitura do postulado da pureza metodológica em Kelsen é realizada a


partir das críticas a sua pretensa despolitização e na sua perpetuação no “senso
comum teórico dos juristas”4, realizadas principalmente na década de 80 por Luis
Alberto Warat, utilizando como marco a obra A pureza do poder: uma análise
critica da teoria jurídica.5
Os obstáculos na trajetória de basear uma análise em obras de Warat
devem ser reconhecidos, pois o próprio autor considera sua obra indomável
“como um cavalo dos pampas”6, além da possibilidade da mesma gerar
“embaraços intelectuais”7.
Porém, este ponto de referência pode ser visto como um desafio, no qual
um “intelectual inesperado”8, que sempre se encantou pelos temas proibidos, abre
um campo de possibilidades para a reflexão sobre a postura epistemológica e
pedagógica do jurista, incitando a criação de objetos de conhecimento.
Neste ponto, compreende-se ser relevante explicar a preferência por um
autor a partir do encontro de Roland Barthes com o seu fotógrafo favorito,
encontro este explicitado quando o autor diz que “... tinha encontrado o “meu”
fotógrafo; mas não, não gosto de todo Mapplethorpe”9, da mesma forma,
certamente também não são todas as propostas e posicionamentos de Luis Alberto
Warat que serão assumidos no desenvolvimento deste trabalho.
Impossível concordar, considerando o escopo da delimitação deste
trabalho, com todos os entendimentos de um autor como Warat, que tem um
grande volume de produção acadêmica10, em que a reformulação de
posicionamentos é uma constante11, e que “navega” com naturalidade pelas mais

4
Este conceito foi desenvolvido por Warat e será esclarecido adiante.
5
WARAT, L. A., A pureza do poder: uma análise critica da teoria jurídica. Florianópolis: Ed. da
UFSC, 1983.
6
WARAT, L. A., Introdução. In: MONDARDO, D., 20 ANOS Rebeldes: o Direito à luz da
proposta filosófico- pedagógica de L.A. Warat, p.11.
7
Barthes utiliza esta expressão na sua Aula inaugural da cadeira de Semiologia Literária do
Colégio de França para expressar suas dúvidas acerca das razões que levaram a este tradicional
colégio onde reinava a ciência, o rigor e a invenção disciplinada a recebê-lo. Cf. BARTHES, R.,
Aula, p.8.
8
Ibid., p. 12.
9
BARTHES, R., A câmara clara: nota sobre fotografia, p. 32.
10
Em busca efetuada na Plataforma Lattes do CNPq consta que Luis Alberto Warat publicou 53
artigos em periódicos e 39 livros, sem considerar as inúmeras orientações de dissertações e teses
ao longo de sua carreira acadêmica. Disponível em:
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/index.jsp. Acesso em: 15 abr. 2008, 14:30.
11
Antonio Carlos Wolkmer analisa a obra de Warat no mesmo sentido: “Por se tratar de um
pensador em constante processo de criação e recriação de suas idéias, torna-se deveras complexo
demarcar com precisão, em Luis Alberto Warat, não só a extensão de seus horizontes teóricos
11

diversas áreas do saber: do Direito à Psicanálise, do Ensino à Metodologia, da


Filosofia Política à Semiologia, da Arte à Filosofia do Direito.
A referência às obras de Warat na presente análise pode ser ainda
esclarecida pela compreensão de Umberto Eco sobre a relação entre o autor de um
texto e seu leitor, no sentido em que se apreende que no desenvolvimento de um
trabalho teórico a partir da leitura de um autor objetiva-se interpretar o texto e não
as intenções do autor empírico que “deve permanecer em silêncio”.12 Dentro
desta lógica de idéias, busca-se uma interpretação sustentável13, ou seja, ao se
falar de uma leitura waratiana busca-se um equilíbrio entre a intenção do autor e a
intenção do leitor, intérprete.
A escolha do tema e de Warat como marco teórico advém da perspectiva
de produção de um saber crítico no campo jurídico que se coadune ao novo
espírito científico14 proposto por Gaston Bachelard e da percepção que, para tanto,
é imprescindível uma “análise semiológica sobre as capacidades geradoras da
teoria jurídica”.15
Ademais, a maioria das controvérsias levantadas frente a obras de autores
que pretendem desenvolver um saber crítico advém em certa medida do
imaginário jurídico que se limita a pensar o campo jurídico dentro da
normatividade, de forma que qualquer pensamento fora desta referência não
poderia ser considerado jurídico.
Ao se colocar a perpetuação do normativismo no imaginário jurídico não
se deixa de reconhecer as pesquisas de juristas que trabalham fora destes limites,
conseguindo desenvolver um pensamento crítico e alternativo dentro das
universidades. 16

como, sobretudo, o início e o término dos diferentes momentos de sua produção epistêmica.”
WOLKMER, A. C., Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico, p. 116.
12
ECO, U., Interpretação e Superinterpretação, p. 93.
13
A interpretação sustentável é aquela realizada por um leitor sensível e responsável que respeita o
pano de fundo cultural e lingüístico do autor lido. Cf. Ibid.
14
Gaston Bachelard distingue a história do pensamento científico em três etapas: a primeira é
denominada de estado pré-científico (antiguidade clássica até o século XVIII); a segunda
representa o estado científico (fim do século XVIII ao início do século XX); a terceira seria a era
do novo espírito científico (início em 1905). O marco desta nova era para o pensamento científico
seria a Teoria da Relatividade de Einstein. Cf. BACHELARD, G., A formação do espírito
científico: contribuição para a psicanálise do conhecimento, p. 9.
15
WARAT, L. A., O lugar da fala: digna voz da majestade. In: FALCÃO, J.(Org)., Pesquisa
científica e direito, p. 82.
16
Entre os juristas brasileiros que desenvolvem um pensamento crítico podem ser citados: Antonio
Carlos Wolkmer, Gisele Cittadino, Maria Guadalupe Piragibe da Fonseca, Leonel Severo da
Rocha, José Maria Gómez, Carlos Alberto Plastino, José Eduardo Faria, José Alcebíades de
12

Outra possibilidade aberta pelas obras de Warat e outros autores de


diversos campos do saber designados críticos, como Roland Barthes, Foucault,
Deleuze e Antonio Negri, é a de se trabalhar no campo do óbvio que nunca foi
dito. Apenas o óbvio, o evidente, é capaz de estupefar, surpreender.17Assim, o
campo do óbvio deve ser entendido como a exposição do saber reprimido, “do que
negamos ver que vemos”.18
Nesta perspectiva, pretende-se refletir sobre as possibilidades de um saber
crítico como um nível de significação para o campo jurídico que questione a
“mitologia disciplinar instituída”.19Desta forma, o conhecimento crítico do direito
deve ser compreendido como um campo de revisão dos valores epistemológicos
que legitimam a produção de dogmas, ou seja, verdades jurídicas consagradas e,
portanto, inquestionáveis.20
Dogma é uma verdade a priori, é um ponto de partida para o raciocínio.
Ao se tratar sobre a questão do conhecimento deve-se interrogar sobre a
problemática da verdade. Neste sentido, ao ser analisada a história do
conhecimento científico, conclui-se que as verdades não são absolutas, elas são
transitórias ou até consensualmente aceitas.
Nesta tarefa, a crítica ao postulado da pureza metodológica de Hans
Kelsen torna-se necessária para a identificação da perpetuação deste critério
epistemológico no “senso comum teórico dos juristas” como um ponto essencial
para uma crítica sobre a imobilidade do jurista e do ensino jurídico, que
inviabiliza a pluralidade das produções científicas.
Luis Alberto Warat introduz na reflexão jurídica o conceito do “senso
comum teórico dos juristas” como “uma esfera simbólica altamente padronizada,

Oliveira Júnior, Horácio Wanderlei Rodrigues, Roberto Lyra Filho, Luis Fernando Coelho, Luis
Edson Fachin, Ovídio Araújo Baptista da Silva, Edmundo Lima de Arruda Júnior, Joaquim Falcão,
Lédio Rosa de Andrade, o próprio Luis Alberto Warat, entre outros. Estes nomes foram
selecionados entre autores que possuem obras na área, participantes da ALMED ou que possuem
grupos de pesquisa sobre o tema, cadastrados no CNPq. Disponível em:
http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/. Acesso em: 15 abr. 2008, 15:30.
17
BARTHES, R., Aula, p. 46.
18
WARAT, L. A., Por quem as sereias cantam: Informe sobre Ecocidadania, gênero e Direito.
In: Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da
reconstrução da subjetividade, p. 532.
19
Id., El jardim de los senderos que se bifurcam. In: WARAT, L. A. Epistemologia e ensino do
direito: o sonho acabou, p. 469.
20
Id., Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. In: WARAT, L. A. Epistemologia e
ensino do direito: o sonho acabou, p. 27.
13

instituída e capitalizada a favor do modo de semiotização dominante”21 que seria


uma forma de instrumentalizar as obviedades do imaginário jurídico.
A categoria “senso comum teórico dos juristas” é apresentada como
instância privilegiada para que o postulado da pureza metodológica apresente sua
dimensão mítica, daí decorre a sua relevância para o presente estudo.
Deve-se esclarecer que o senso comum teórico não é um privilégio do
campo jurídico, mas está presente em qualquer “ciência”22, por isso será
contextualizado23 o imaginário jurídico dominante a partir da análise de visões
paradigmáticas e pós-paradigmáticas. Para abarcar estas duas visões de mundo e
de conhecimento ao longo do trabalho foi adotada a categoria freudiana
denominada sistemas ilusórios, pela sua abrangência.
Considerada a complexidade da abordagem, com o fim de apresentar as
características do modelo paradigmático moderno, que fundamenta a
inteligibilidade do real do postulado ora analisado, parte-se da idéia de existência
de um duelo entre duas modernidades, desenvolvida por Antonio Negri e Hardt,
como categoria analítica, em que o projeto da Teoria Pura do Direito se apresenta
incluída no projeto mais amplo da Modernidade Hegemônica.
A proposta transurrealista de Warat e a idéia de modernidade imanente
expostas por Antonio Negri e Hardt, são apresentadas como alternativas criativas
para o enfrentamento dos impasses do paradigma moderno.
Especificamente, a proposta transurrealista de Luis Alberto Warat é
apresentada como uma possibilidade para o enfrentamento do sentimento de vazio
contemporâneo. O transurrealismo é adotado como um olhar que apresenta
propostas para o desenvolvimento de um saber crítico que possibilite os devires,
ao invés do sentimento de melancolia frente à condição moderna apresentada por
algumas análises desta condição de conhecimento.
Previamente à crítica ao postulado da pureza metodológica, se desenvolve
um encontro com o projeto da Teoria Pura do Direito, principalmente do princípio
metodológico em foco, com vistas à contextualização do pensamento kelseniano

21
STRECK, L. L., A revelação das “obviedades”do sentido comum e sentido( in)comum das
“obviedades” reveladas. In: OLIVEIRA JUNIOR, J. A., O poder das metáforas: homenagem aos
35 anos de docência de Luis Alberto Warat, p.53.
22
WARAT, L. A., O lugar da fala: digna voz da majestade. In: FALCÃO, J. (Org), Pesquisa
científica e direito, p. 83.
23
“O contexto de um elemento X qualquer é, em princípio tudo o que cerca este
elemento.”CHARAUDEAU, P.; MANGUENEAU, D., Dicionário de análise do discurso, p.127.
14

ao pensamento da sua época e às influências neokantianas da pureza


metodológica. Este resgate da obra mais famosa de Kelsen permite uma maior
qualificação da crítica que se pretende desenvolver, diminui-se assim a
possibilidade de uma crítica fora do lugar.
A análise semiológica do campo jurídico foi considerada a mais adequada
na tarefa de revelar a dimensão mítica da pureza metodológica, por se tratar do
estudo do mito como metalinguagem. Com este fim, foi adotada como referência
a obra de Roland Barthes, que considera o mito um sistema semiológico
correspondente à ideologização, ao estabelecer a deformação de sentido.
A categorização de Barthes será adotada para a articulação do sentido
lingüístico da discursividade na concretude dos signos com o transliguístico em
sua dimensão sócio-histórica. Neste sentido, o referido autor abre novas janelas
para o estudo, ao considerar o discurso como um jogo dialético do signo que está
conectado com o poder.
Assim, pretende-se demonstrar que este processo de mitificação se
apresenta no campo jurídico como o que Gaston Bachelard denominou obstáculo
epistemológico para a implementação de propostas que percebam a ciência
jurídica e o seu ensino a partir de uma perspectiva crítica.
Com isso, surge mais uma “cúmplice”24 de Warat, na tarefa de revelar o
mito da pureza metodológica. Neste contexto, o cúmplice não é aquele que
simplesmente repete um discurso do autor25, mas que compartilha da revelação e
constatação das incertezas e incompletudes como pressupostos para o saber.
Assim, pretende-se “caminar”26 enfrentando as desconstruções e propostas
do referido autor como um aprendizado para enfrentar os obstáculos acadêmicos e
olhar de outra forma os objetos de conhecimento que serão explorados no
percurso acadêmico.

24
Segundo a lógica pedagógica de Warat de não submissão na relação entre professor e aluno, o
primeiro não forma discípulos, mas cúmplices. Cf. MONDARDO, Dilsa. , 20 ANOS Rebeldes: o
Direito à luz da proposta filosófico- pedagógica de L.A. Warat , p. 13.
25
WARAT, L. A. O mestre: sua luz e sombras. In: OLIVEIRA JUNIOR, J. A., O poder das
metáforas: homenagem aos 35 anos de docência de Luis Alberto Warat, p. 13.
26
Lenio Streck fala em “caminar” ao se referir a Warat, ao meu ver, como forma de demonstrar
seu afinco em compreender o autor que fala castelhano. STRECK, L. L., A revelação das”
obviedades” do sentido comum e o sentido (in)comum das “obviedades” reveladas. . In:
OLIVEIRA JUNIOR, J. A., O poder das metáforas: homenagem aos 35 anos de docência de Luis
Alberto Warat, p. 53.
15

O encanto pela caça aos mitos é o ponto de partida para o desenvolvimento


deste trabalho, pois permite que se perambule no campo da transdisciplinaridade
— perpassa o campo da Teoria do Direito, da Filosofia da Linguagem, da
Epistemologia, da Teoria da Argumentação — e das significações normativas,
com o fim de que se construam novos lugares de fala e novas possibilidades para
a linguagem jurídica.
2
A constituição de sistemas ilusórios

Os homens são seres de ilusão.


“Iludo-me, logo, existo!”
Luis Alberto Warat

2.1
O esgotamento da modernidade hegemônica

O postulado da pureza metodológica e a pretensão kelseniana de


constituição de uma Ciência Jurídica em sentido estrito são produtos de uma
época e de uma visão de mundo e conhecimento que se coadunam aos preceitos
do que se designa como modernidade hegemônica.
No presente capítulo, o conceito de modernidade deve ser entendido
inserido em uma construção conflitiva, a partir do marco teórico de Antonio Negri
e Michael Hardt, na perspectiva de questionar a construção unitária e pacífica das
visões de mundo em determinado espaço de tempo. Dessa forma, é possível
identificar uma visão hegemônica vitoriosa e uma proposta contra-hegemônica da
modernidade.
Portanto, neste capítulo, serão apresentadas as diferentes visões de mundo,
contextualizando a pureza metodológica no paradigma moderno hegemônico que
propagou a ideologia cientificista. Posteriormente, serão apresentadas propostas
que abrem um campo de possibilidades para olhares críticos, através da superação
de obstáculos impostos pelo referido paradigma moderno.
17

O conflito como “chave de sentido”1 para a compreensão do conceito de


modernidade representa uma perspectiva dialética2 de compreensão que consiste
no modo de compreendermos a realidade como essencialmente contraditória e em
permanente transformação, percepção que reflete as tarefas impossíveis dos
modernos.3 O conceito de modernidade como crise surge ainda da percepção de
que o impulso imanente inicial, ocorrido na Revolução Humanista, está presente
em diversos momentos posteriores.4
O privilégio às contradições da realidade permite que o pesquisador e o
professor, como sujeito de conhecimento, percebam que são agentes e
colaboradores do processo de transformação constante.5
Neste contexto, a visão de Negri nos permite perceber várias perspectivas
quanto à dimensão da modernidade, em que é possível identificar duas
alternativas de modernidades que duelaram entre si, principalmente entre os
séculos XV e XVII6: a modernidade transcendente e a modernidade imanente.
A modernidade superou o medioevo através da imanência7, com o advento
da Revolução Humanista, inaugurando uma idéia de tempo como potência
criadora que admite a constituição do novo e de um ser infinitamente produtivo. 8
A Revolução Humanista do século XIV produziu uma nova realidade na
qual “seres humanos se declararam donos de suas própria vida, produtores de

1
A chave de sentido se presta a iluminar o processo interpretativo de uma norma ou conceito. Cf.
CAVALLAZZI, R. L., O Estatuto epistemológico do Direito Urbanístico brasileiro:
Possibilidades e obstáculos na Tutela do Direito à Cidade. In: COUTINHO, R.; BONIZZATO, L.
(Coord.). Direito da Cidade: Novas Concepções sobre as Relações Jurídicas no Espaço Social
Urbano, p. 63.
2
“(...) dialética é um vocábulo formado pelo prefixo dia (que indica reciprocidade ou intercâmbio)
e pelo verbo legein ou pelo substantivo logos (o que significa que a palavra dialética tem como
origem a palavra diálogo). Como nota Foulquié, o termo logos tanto significa “palavra” ou
“discurso” como significa razão.” KONDER, L., A derrota da dialética: a recepção das idéias de
Marx no Brasil até o começo dos anos trinta, p.1.
3
“ (...) aspectos essenciais do conceito hegeliano de dialética, isto é, da dialética como
reconhecimento da instabilidade e da contrariedade intrínsecas do real.”Cf. Ibid., p. 4.
4
GUETTI, P., A legitimidade do direito nos horizontes da modernidade/pós-modernidade. In:
Revista Direito, Estado e Sociedade, nº 25, p.93.
5
“Segundo Hegel, a realidade é intrinsecamente contraditória e existe em permanente
transformação; e o modo de pensar que nos permite conhecê-la não pode deixar de ser, ele mesmo,
dinâmico.” KONDER, L., op. cit., p. 4.
6
“No século XV, numerosos autores demonstraram a coerência e a originalidade revolucionária
desse novo conhecimento ontológico imanente.” “No século XVII, o conceito de modernidade
como crise estava definitivamente consolidado.” NEGRI, A.; HARDT, M., Império, p. 89 e 95.
7
“O plano de imanência é aquele no qual os poderes de singularidade são realizados e aquele no
qual a verdade da nova humanidade é determinada histórica, técnica e politicamente.”In: Ibid., p.
91.
8
GUIMARAES, F., O poder constituinte na perspectiva de Antonio Negri: um conceito muito
além da modernidade hegemônica, p. 81-83.
18

cidades e da história e inventores dos céus”9, com isso, o homem assume papel
central na produção de conhecimento.
As referidas alternativas de modernidade refletem o processo de
secularização das doutrinas teológicas, pois tinham em comum a substituição da
referência divina, como autoridade transcendente, por uma concepção de poder
que faz referência ao humano, entretanto apresentavam propostas opostas de visão
de mundo.
O novo conhecimento imanente, surgido nas origens da modernidade, é
considerado revolucionário por trazer para a Terra e aos homens os “poderes de
criação”10 que pertenciam aos céus.
Na disputa silenciosa entre a modernidade imanente e a modernidade
transcendente, esta modernidade reguladora e contra-revolucionária que surgiu
como resposta repressiva às imanentes afirmações de liberdade humana tornou-se
hegemônica.
O desafio deste projeto contra-revolucionário era resolver a crise da
modernidade, que se arrastava nos séculos do Iluminismo, dominando a idéia de
imanência sem reproduzir a transcendência absoluta medieval para conter,
disciplinar, os sujeitos formalmente livres.11
Este retorno da transcendência procurou administrar as forças do impulso
imanente para uma direção mais segura, sem retornar ao estado anterior de
transcendência medieval.12
O ponto principal de divergência é o que cada proposta de modernidade
compreende como fundamentação do poder. De fato, os adeptos da modernidade
hegemônica propõem uma fundamentação transcendental, na qual ocorre a
alienação de potência13 pela figura fictícia do Contrato Social.
Desta feita, a modernidade transcendente buscou equacionar a crise da
modernidade, ao tornar-se hegemônica ao recorrer a um dualismo funcional

9
NEGRI, A.; HARDT, M., Império, p. 89.
10
Ibid., p. 90.
11
Ibid., p.96.
12
GUETTI, P., A legitimidade do direito nos horizontes da modernidade/pós-modernidade. In:
Revista Direito, Estado e Sociedade, nº 25,p.93.
13
Cf. Verbete sobre Baruch Spinoza elaborado por Antonio Negri: “ A potentia, figura geral do
Ser, sustentando a concepção do conatus como impulso de todo o ser para a produção de si e do
mundo, exprime-se então como cupiditas e investe de maneira constitutiva no mundo das paixões
e das relações históricas”. In: CHATELET, F.; DUHAMEL, O.; PISIER, E. Dicionário de obras
políticas, p. 1132 e 1133.
19

através da imposição de mecanismos adequados de mediação nas relações


humanas.14
Portanto, esta concepção adota a mediação como forma de relativização da
experiência e de pôr fim às instâncias do absoluto e imediato no mundo da vida.
Negri aponta como mecanismos de mediação da concepção em questão: o filtro
dos fenômenos, a reflexão do intelecto como única forma de conhecimento
humano e o esquematismo da razão.15
A segmentação do real em dualismos é outro instrumento utilizado pela
modernidade hegemônica: ser e dever ser, corpo e mente, entre outros. 16 Entre
estes dualismos destaca-se o binômio ordem e caos ou — como prefere Zygmunt
Bauman — “o outro da ordem”17, que não existia no mundo ordenado pelo divino
em que o mundo simplesmente era daquela forma e não se questionava sobre a
ordem. 18
René Descartes, Thomas Hobbes e Immanuel Kant são pensadores
representativos desta postura regulatória. René Descartes desenvolveu a primeira
obra de grande repercussão que atendeu à estratégia de restabelecimento de uma
ordem transcendente que caracteriza o pensamento iluminista europeu.19
A posição cartesiana de Descartes20 consolida a racionalidade lógica como
única forma de conhecimento válido, o que implica na separação entre razão e
paixão, na qual a primeira tem a função de regular e limitar o agir e sentir
humanos, pois a razão se configura como o princípio absoluto do conhecimento

14
NEGRI, A.; HARDT, M., Império, p.96.
15
Ibid.
16
GUIMARAES, F., O poder constituinte na perspectiva de Antonio Negri: um conceito muito
além da modernidade hegemônica, p. 42.
17
BAUMAN, Z., Modernidade e ambivalência, p. 15.
18
Ibid., p. 12.
19
NEGRI, A.; HARDT, M., op.cit., p. 97 e 98.
20
René Descartes surge no mesmo século em que Galileu e Bacon traçam suas teorias que visam
consolidar o método indutivo. O referido autor desenvolve o método dedutivo em seu livro
Discurso sobre o método, se afasta assim do processo indutivo. Ao explicitar o método dedutivo,
Descartes postula quatro regras: a da evidência, a da análise, a da síntese e da enumeração. As
referidas regras estão explicitadas no segundo trecho: “O primeiro era o de nunca aceitar algo
como verdadeiro que eu não conhecesse claramente como tal; (...) O segundo, o de repartir cada
uma das dificuldades que eu analisasse em tantas parcelas quantas fossem possíveis e necessárias a
fim de melhor solucioná-las. O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, iniciando
pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para elevar-me, pouco a pouco, como
galgando degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e presumindo até mesmo uma ordem
entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros. E o último o de efetuar em toda parte
relações metódicas tão completas e revisões tão gerais nas quais eu tivesse a certeza de nada
omitir.” DESCARTES, R., Discurso do método; As paixões da alma; Meditações, p. 49-50.
20

humano. Assim, o autor assume a missão de unificar os conhecimentos humanos


em bases seguras através de certezas racionais que levariam à verdade.
Apesar de pretender desenvolver um novo projeto humanista de
conhecimento, Descartes acabou reinserindo perspectivas teológicas no ato de
conhecer, pois “quando trata da centralidade do pensamento na função
transcedental de mediar, ele define uma espécie de resíduo de transcedentalidade
divina”.21
A teoria política hobbesiana é relevante neste contexto regulatório, pois ao
introduzir em seu pensamento o contratualismo para criar o Estado e legitimar o
poder e a idéia de consentimento, sinaliza para aspectos da teoria que substituiu a
tradição do direito divino dos reis.
A interpretação que prevalece considera Thomas Hobbes um secularista
que enfatiza a questão do Contrato Social em sua obra, relegando as leis da
natureza a um segundo plano, apesar de metade do Leviatã e um terço do De Cive
tratarem exclusivamente de religião, o que comprova que a obra hobbesiana
possui elementos jusnaturalistas e teológicos.22
Desta feita, adota-se uma leitura teológica da filosofia política
desenvolvida sobre as referidas obras de Hobbes por considerá-la mais apropriada
para dotar seu fundamento de obrigação política de coerência.
Constata-se, portanto, que a obra de Hobbes não rompe com a tradição do
direito divino nem com o jusnaturalismo a ponto de poder ser denominado “pai da
modernidade”, mas, como foi apontado anteriormente sua obra representa um
passo de suma relevância para o projeto de regulação da modernidade
transcendente. 23
No entanto, o ápice do projeto transcedental se realiza com a obra de
Immanuel Kant, que controla os sujeitos através das três mediações anteriormente
citadas24,apresentando-se como o “precursor epistemológico moderno.”25O
transcedental é então apresentado como único horizonte de conhecimento e

21
NEGRI, A.; HARDT, M., Império, p. 97.
22
Cf. POGREBINSCHI, T. ; PLASTINO, C. A., A obediência em Thomas Hobbes, p. 1-5.
23
Ao interpretarmos o Leviatã, principal obra de Hobbes, optamos por adotar uma interpretação
diversa da oficial, ou em uma linguagem waratiana uma interpretação diferente da adotada pelo
senso comum teórico.
24
O filtro dos fenômenos, a reflexão do intelecto como única forma de conhecimento humano e o
esquematismo da razão. NEGRI, A. ; HARDT, M., op. cit., p.96.
25
CUNHA, J. R. F., Modernidade e Ciência: Algumas Posições Epistemológicas. In: Revista
Direito, Estado e Sociedade, nº 16, p. 92.
21

ação.26 A Crítica da Razão Pura27 kantiana também chamada de “tribunal da


razão”28 teve um importante papel na contenção da razão onipotente da metafísica
dogmática , além de legitimar a razão teorética e científica como verdade.29
Qualquer situação fora deste “mundo ordeiro”30 inserido pelo paradigma
moderno traria um grande desconforto ao homem.31 Assim, o ideal da função
nomeadora e classificadora da linguagem pode ser tratado de forma metafórica
sobre a idéia de tornar real a “Biblioteca de Babel”32 de Jorge Luis Borges33 que
por ser interminável, infinita, aponta para a utopia moderna da sabedoria infinita,
que fornece a idéia de plenitude, já que esta biblioteca imaginária possuiria os
livros com todas as combinações possíveis de palavras.
Esta metáfora se mostra esclarecedora no tratamento do ideal ordenador
moderno que é retratado por Bauman como o esforço em alcançar “uma espécie
de arquivo espaçoso que contém todas as pastas que contêm todos os itens do
mundo”34 imagem totalmente compatível com a biblioteca borgeniana.
O desconforto e angústia do homem frente ao caos (o outro da ordem) é
representado por Borges na inacessabilidade de livros preciosos ser considerado
insuportável e inadmisível pelos homens.35
Esta idéia de plenitude e segurança que está na essência do paradigma
moderno é tratada de forma metafórica por Warat através da idéia de saudades da
primeira mamada36 narrada como momento mítico primordial do homem, em que

26
NEGRI, A.; HARDT, M., Império, p.98 e 99.
27
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Trad Valério Roden e Udo Baldur Mosburger. São
Paulo: Editora Nova Cultural, 1999.
28
CUNHA, J. R. F.,op. cit, p. 113.
29
Ibid., p. 122.
30
BAUMAN, Z., Modernidade e ambivalência, p. 10.
31
Ibid., p. 9.
32
A Biblioteca de Babel é um conto do escritor argentino Jorge Luis Borges que representa a idéia
metafísica de plenitude, pois promete abranger todos os livros em suas galerias hexagonais.
BORGES, J. L., Ficções (1944), 2007.
33
A idéia utilizar o conto Biblioteca de Babel como metáfora à condição moderna partiu de Warat
em entrevista em que se adotou a técnica de entrevista semi-estruturada, a partir de roteiro aberto.
Com isso, buscou-se a narrativa o mais natural possível mediante o incentivo das lembranças da
trajetória acadêmica do pesquisado, além do autor tratar de temas que pretende desenvolver em
futuras obras.
34
BAUMAN, Z., op. cit. , p. 11.
35
A referida angústia do homem moderno está presente no seguinte trecho do conto A Biblioteca
de Babel: “ A certeza de que alguma prateleira em algum hexágono encerrava livros preciosos e de
que estes livros preciosos eram inacessíveis, pareceu quase intolerável”. In: BORGES, Jorge Luis.
Ficções (1944), p. 75.
36
Oficina Arte e Direito ministrada por Luis Alberto Warat e Martha Gama no Congresso: 180
anos do ensino do direito no Brasil e a democratização do acesso à justiça realizado pela ABEDI
na Universidade Nacional de Brasília em Novembro de 2007.
22

o mesmo vive uma ilusão de plenitude que supre sua situação de desamparo e
incertezas.
Com esta metáfora, Warat visa criticar os pesquisadores afetados pelo
paradigma da modernidade, que se colocam como “sábios” privilegiando as
formas abstratas de seus pensamentos à própria experiência.
Para continuarmos no campo das metáforas como forma de esclarecimento
sobre a insuficiência da perspectiva moderna, utilizaremos a obra A paixão
segundo G.H., de Clarice Lispector,37 para demonstrar o sentimento de desilusão
perante o ambíguo vivido contemporaneamente que é o reflexo do medo de não
pertencer mais a um sistema, a uma organização instituída, medo de se entregar ao
devir que faz o homem se interrogar: “ mas por que não me deixo guiar pelo que
for acontecendo?”. 38
A busca incessante por um sistema ilusório que estabeleça uma fuga das
ambigüidades pode ser compreendida ainda no seguinte trecho do livro: “ É difícil
perder- se. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo de me
achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo.” 39
Ainda no campo metafórico, Warat auxilia a compreensão do paradigma
moderno ao apresentar a metáfora advinda da tradição bíblica40 — que representa
a época pré-moderna — em que homens querem construir uma Torre de Babel
para alcançarem o Céu e acabam sendo punidos por Deus com a criação da
diferença de línguas, mas que precisam de uma língua única, um pensamento
único, verdades únicas, para continuarem a construção da torre.
De forma análoga, Warat fala ainda da segunda Torre de Babel para se
referir à proposta moderna, que no campo do direito, seria a torre do
normativismo jurídico, que precisa cumprir a tarefa da ordem e da razão abstrata
para ser erguida e possui as mesmas pretensões onipotentes da primeira torre, que
era erguida a partir da referência divina transcendental.

37
O fascínio pela obra de Clarice Lispector advém da leitura de textos de Warat em que o mesmo
coloca suas impressões sobre a obra da autora, que considera ser a “grande alquimista de las
palabras sus sentidos y sus silêncios”. Cf. WARAT, L. A., Materialismo Mágico XV. Disponível
em: http://luisalbertowarat.blogspot.com/. Acesso em: 15 abr. 2008, 17:20.
38
LISPECTOR, C., A paixão segundo G.H, p. 13.
39
Ibid., p. 12.
40
Entrevista ao autor Luis Alberto Warat, em que se adotou a técnica de entrevista semi-
estruturada, a partir de roteiro aberto. Com isso, buscou-se a narrativa o mais natural possível
mediante o incentivo das lembranças da trajetória acadêmica do pesquisado, além do autor tratar
de temas que pretende desenvolver em futuras obras.
23

A tarefa dos modernos pode ser ainda esclarecida por Bauman, ao


considerar que os mesmos buscavam uma estabilidade e previsibilidade que
caracteriza os sólidos, com este fim operaram o “derretimento dos sólidos”41 do
passado ao destronarem, deslegitimarem a concepção pré-moderna. Ao acabarem
com os sólidos, até então sagrados, visavam instituir novos sólidos aperfeiçoados,
perfeitos e, portanto inalteráveis. A durabilidade destes sólidos garantiria a
previsibilidade do mundo.
Warat delimita o projeto ordenador moderno de forma semelhante à de
Bauman ao descrevê-lo da seguinte forma:“ Una razón productora de un orden
que acaba con las ambivalencias imponiendo la claridad, la certeza, la
transparencia de lo unívoco.”42
O objetivo da modernidade transcendente era acabar com qualquer tipo de
fluidez, através de um projeto ordenador que se mostrou inviável43. No tratamento
da fluidez, Bauman utiliza a ambivalência como conceito chave para esta
percepção:

“A ambivalência, possibilidade de conferir a um objeto ou evento mais de uma


categoria, é uma desordem específica da linguagem, uma falha da função
nomeadora (segregadora) que a linguagem deve desempenhar.”44

Assim, a ambivalência seria um aspecto normal da prática lingüística, que


teria como função nomear e classificar. Bauman entende que classificar seria dar
ao mundo uma estrutura, como se os comportamentos não fossem casuais e,
consequentemente, imprevisíveis.45
Além disso, os efeitos nocivos da classificação das ambivalências
realizada pelos modernos, como muito bem lembra Pierre Bourdieu, podem ser
entendidos no campo jurídico na codificação de normas ao produzir o efeito da
uniformização que viabiliza a restrição da produção de sentido:

"(...)a objetivação operada pela codificação introduz a possibilidade de um


controle lógico da coerência de uma formalização. Ela possibilita a instauração
de uma normatividade explícita, a (...) do direito”. 46

41
BAUMAN, Z., Modernidade Líquida, p. 9.
42
WARAT, L. A., Pálpitos Epistemológicos para el siglo XXI (segunda vuelta). In: WARAT, L.
A.,Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p.16.
43
BAUMAN, Z., op. cit., p. 16.
44
Ibid., p. 9.
45
Ibid.
46
BOURDIEU, P., Coisas Ditas, p. 100.
24

Antes de se adentrar na tarefa de apresentar as propostas de sistemas


ilusórios criativos, dentre elas a proposta transurrealista, se identificará como
Warat assume o momento em que vivemos como “uma modernidade esgotada à
espera de outra sensibilidade (sentidos) organizadora do mundo.”47
O autor em questão descreve o momento em que vivemos recorrendo à
idéia de esgotamento dos sentidos da modernidade48para representar a
inviabilidade do projeto que Antonio Negri e Hardt denominam, de forma
apropriada, como modernidade hegemônica, momento em que se percebe que o
referido projeto não cumpriu a maioria de suas promessas. O esgotamento se
apresenta, assim, como reflexo da multiplicidade de tarefas impossíveis que a
modernidade se atribuiu, principalmente a da ordem. 49
Desta forma, a modernidade hegemônica que teria se esgotado ganha
expressão no mundo jurídico através do normativismo, que privilegiou de forma
excessiva o cognitivo racional, o seu modo de produção de conhecimento, as
simplificações e as certezas.50 O normativismo, como referência do racionalismo
jurídico, de boato tornou-se vencedor, hegemônico, apareceu como um barroco
jurídico em que o jurista fugiu para o “paraíso conceitual”que está mergulhado na
a - historicidade.51
Warat considera normativistas as seguintes teorias: dogmáticas,
sistêmicas, kelsenianas provenientes das correntes apoiadas na analítica ou nas
teorias da argumentação, que pretendem, como Alexy, controlar os usos
pragmáticos da linguagem jurídica a partir de outros dois níveis semiológicos.52

47
WARAT, L. A., Por quem cantam as sereias: Informe sobre Ecocidadania, Gênero e Direito.
In: WARAT, L. A., Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono
do sentido e da reconstrução da subjetividade, p. 422.
48
Ibid.,p 422.
49
BAUMAN, Z., Modernidade e ambivalência, p. 12.
50
Oficina Arte e Direito ministrada por Luis Alberto Warat e Martha Gama no Congresso: 180
anos do ensino do direito no Brasil e a democratização do acesso à justiça realizado pela ABEDI
na Universidade Nacional de Brasília em Novembro de 2007.
51
No seguinte trecho, Warat explicita o esforço de juristas que pretendem a fuga do referido
“paraíso conceitual”: “Os migrantes do paraíso conceitualizador do mundo jurídico, uma vez
renunciado ao esforço histórico, quase bíblico, do entendimento do Direito como dado natural –
retificado e homogeneizado, começam a nos mostrar novas condições de entendimento baseado no
caráter histórico contingente e medular do Direito nas sociedades capitalistas, qualquer que fosse a
sua face.”In: WARAT, L. A., Educação, Direitos Humanos, Cidadania e Exclusão Social:
Fundamentos preliminares para uma tentativa de refundação. p. 26.
52
Entrevista ao autor Luis Alberto Warat, em que se adotou a técnica de entrevista semi-
estruturada, a partir de roteiro aberto. Com isso, buscou-se a narrativa o mais natural possível
mediante o incentivo das lembranças da trajetória acadêmica do pesquisado, além do autor tratar
de temas que pretende desenvolver em futuras obras.
25

O normativismo jurídico obsta a possibilidade de uma inteligência


emocional para o intérprete do direito, transformando-o em “operador do Direito”.
Nesta lógica de pensamento, qualquer tipo de sensibilidade é considerado
arbitrariedade.
Cabe, neste momento, esclarecer a diferença entre sensibilidade e
arbitrariedade, tidas como sinônimos pelos que compartilham do paradigma
moderno (entendido como modernidade hegemônica). Uma decisão arbitrária
será, necessariamente, injusta, assim como uma decisão insensível também é
arbitrária. Esta idéia parte do pressuposto de que uma decisão justa é aquela que
reaproxima vínculos, portanto, a decisão sensível é a mais adequada para a
aproximação do que é justo. 53
Cabe esclarecer que, ao atacar o normativismo, Warat critica o
racionalismo jurídico e não a razão jurídica, que indica a sensatez no ato de
conhecer. Assim, o racionalismo jurídico é considerado uma epidemia da razão
jurídica. Significa que a sensatez se tornou tóxica, cancerígena, consistindo em
um tumor maligno que faz metástase no corpo social.54Esta doença nos torna
insensíveis em nossos vínculos com o outro e na nossa forma de ver o mundo.
A sensatez no ato de conhecer como razão advém da busca do homem de
ordenar o mundo que se apresenta como uma necessidade da sua sobrevivência.
Por isso, tanto o senso comum (geral) como a ciência estão em busca da ordem.55
Os excessos do racionalismo tornam-no perverso, pois uma das
características da perversão é a falta de limites. Esta razão perversa, ao mesmo
tempo, impulsiona e justifica o agir e pensar do homem moderno.
Em uma perspectiva mais ampla que o campo jurídico Warat considera a
pós-modernidade56, terminologia disseminada entre os autores que se atém a
reflexão sobre o momento atual, como designação do sentimento de vazio na

53
Sobre a relação entre a razão e a sensibilidade Warat ensina que: “A razão é só uma forma de
pensamento a sensibilidade é outra. É preciso sempre ir além do princípio da razão para acalmar
um pouco a insatisfação derivada do já definitivamente estabelecido.” In: WARAT, L. A.,
Educação, Direitos Humanos, Cidadania e Exclusão Social: Fundamentos preliminares para uma
tentativa de refundação, p. 35.
54
Ibid., p. 3.
55
ALVES, R., Filosofia da ciência: introdução ao jogo e suas regras, p. 39.
56
Não existe um consenso quanto à designação mais adequada para as mudanças políticas, sociais
e epistemológicas que vivemos hoje. Teóricos como Boaventura, Freakestone, Bauman, Lyotard e
Baudrillard falam respectivamente em “pós-modernidade”, “pós-modernismo”, “modernidade
líquida”, “condição pós-moderna”, “regime do simulacro”.
26

espera de um novo olhar. Mas o principal motivo do autor preferir o prefixo


trans57 ao de pós é que quando os autores falam em pós-modernidade estão
obcecados com a idéia do fim e, portanto, no questionamento do que estamos
sendo obrigados a abandonar. 58Como visto a partir da metáfora da Biblioteca de
Babel de Borges, o sentimento de vazio não era tolerado na condição moderna de
mundo.59
Dentro da lógica de compreender a contemporaneidade por um viés não
melancólico, o sentimento de vazio deve ser considerado, a contrario senso, como
uma plenitude de incertezas em que o homem está entregue ao risco do
imprevisível.
Baudrillard trata de uma forma adequada e esclarecedora a idéia de
plenitude moderna através da ilusão, o erro de que algo terá um fim para que
ganhe sentido, o que aponta para necessidade por finitude do ser humano.60
Este “final de”, “depois de” que carrega de significado o termo pós,
apresentado pelos autores que Warat designa de “teóricos do não adianta”61,
implica um olhar para trás, uma idéia de abandono saudosista, em que os
pesquisadores ao invés de buscarem novas soluções para os problemas
contemporâneos, buscam as soluções apenas nas propostas dos tradicionais
“ilustres filósofos”.
Warat define ainda a pós-modernidade como um dos dois sentidos da
transmodernidade62, que é entendida por um lado como saturação da modernidade
e por outro lado a fuga para novos sentidos, o outro sentido se referiria a
transmodernidade propriamente dita ou, como se prefere designar na presente
análise de transurrealismo, o que não representa o fim da modernidade.63
A inadequação do prefixo pós foi reconhecida até mesmo por Boaventura
de Sousa Santos, autor reconhecido no tratamento desta temática, ao considerar a

57
Veremos adiante que Warat trata o momento atual como transmoderno.
58
WARAT, L. A., A Ciência Jurídica e seus dois maridos. In: WARAT, L. A., Territórios
desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da
subjetividade, p. 86.
59
BAUMAN, Z., Modernidade e ambivalência, p. 16.
60
BAUDRILLARD, J., Senhas, p. 56 e 57.
61
WARAT, L. A.,op. cit., p. 86.
62
O outro sentido seria a transmodernidade propriamente dita, que neste trabalho denomina-se
transurrealismo, um novo olhar proposto por Warat.
63
Id., Por quem cantam as sereias: Informe sobre Ecocidadania, Gênero e Direito. In: WARAT,
L. A., Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da
reconstrução da subjetividade, p. 422.
27

produção científica na época em que vivemos “à falta de melhor designação, (...)


ciência pós-moderna”64, em que, ainda segundo o autor, vive-se em uma situação
de transição, mas a sua utilização permaneceria pela popularidade do termo.
Boaventura de Sousa Santos percebe o período atual a partir do conceito
de crise do paradigma moderno para caracterizar a pós-modernidade, que pode ser
interpretada como uma perspectiva negativa do momento atual que, como
explicitado anteriormente, apresenta mais uma idéia paralisante e melancólica, de
“final de” algo.
Apesar de Boaventura apresentar uma perspectiva que é considerada por
alguns autores como negativa ao falar de crise, sua análise é relevante na
compreensão do posicionamento ora adotado por constatar as mudanças
contemporâneas a partir de duas percepções uma mais ampla e outra mais restrita,
no momento em que delineia as condições para se estabelecer uma crise do
paradigma: a primeira denominada de “crise de crescimento”65, adotando assim
um conceito de Thomas Kuhn, consiste no acúmulo de crises no interior do
paradigma; a segunda, chamada de “crise de degenerescência”66, atravessa todas
as disciplinas, ocorre quando existem condições sociais e teóricas para que se
recupere o que se deixou de pensar por conta do paradigma, através de um
questionamento da própria inteligibilidade do real.67
Transpassando esta análise para a situação atual, a primeira condição é
preenchida pela percepção da insuficiência do paradigma moderno para atender os
questionamentos contemporâneos, já a segunda pode ser percebida na renovação
da reflexão hermenêutica que conjuga no campo cognitivo “o discurso científico,
o discurso poético e estético, o discurso político e religioso.”68
Outra referência essencial para a compreensão do tema em questão é a
obra A condição pós-moderna69 de Jean-François Lyotard, publicado na França

64
SANTOS, B. S., Introdução a uma ciência pós-moderna, p. 11.
65
“As crises de crescimento (...) têm lugar ao nível de matriz disciplinar de um dado ramo da
ciência, isto é, revelam-se na insatisfação perante métodos ou conceitos básicos até então usados
sem qualquer contestação na disciplina, insatisfação que, aliás, decorre da existência, ainda que
por vezes apenas pressentida, de alternativas viáveis.”In: Ibid., p. 17.
66
Ibid.
67
Ibid., p. 36.
68
Ibid.
69
“Nossa hipótese de trabalho é a de que o saber, muda de estatuto ao mesmo tempo que as
sociedades entram na idade dita pós-industrial e as culturas na idade dita pós-moderna.” Cf.
LYOTARD, J., A condição pós-moderna, p. 3.
28

em 1979, que estabelece como marco inicial desta condição por volta dos anos 50
— não coincidentemente no pós-guerra — chamada ainda de “era pós-industrial”.
Na condição pós-moderna seria identificável a crise da ciência e da
verdade, que implicaria em uma mudança da própria ciência, produzindo reflexos
na universidade como produtora da ciência. Neste momento, iniciou-se a
invalidação do enquadramento metafísico da ciência moderna, que acarretou em
uma crise dos dogmas produzidos pela mesma e das suas pretensões
universalizantes e atemporais.70
O pós-moderno, segundo Lyotard, seria a condição da cultura nesta nova
71
era de vocação cibernético-informática e informacional. Na presente análise,
adota-se o entendimento que apenas neste sentido pode-se falar que o momento
contemporâneo é pós-moderno, pois o mesmo não se consolidou como visão de
mundo dominante, nem pode ser percebido como uma crise.
O posicionamento ora assumido se coaduna ao de Antonio Negri e Hardt
que não se preocupam com designações para o período em que vivemos, mas
reconhecem que, apesar de ainda compartilhar muitos elementos da modernidade
hegemônica, é significativa a mudança em relação ao passado recente.72
Tanto Warat, quanto Negri e Hardt entendem a pós-modernidade como a
modernidade disfarçada de si mesmo, já que a “modernidade continua aberta e
viva hoje”.73 Nas palavras de Warat: “a pós-modernidade não é outra coisa senão
a modernidade em sua fase simulada.”74
Segundo Warat, o que mudou foi o sentimento de vazio advindo da
percepção dos excessos cometidos pela concepção moderna, já Antonio Negri e
Hardt desenvolvem uma abordagem política deste fenômeno consideram que a
mudança pode ser percebida pela dissolução da sociedade civil.75
Bauman também trata o período atual de uma forma próxima à ora
apresentada quando fala de “modernidade líquida”76, como a fluidez atual

70
BARBOSA, W. V., Tempos pós-modernos. In: Ibid., viii.
71
BARBOSA, W. V., Tempos pós-modernos. In: Ibid., viii e ix.
72
NEGRI, A.; HARDT, M., O trabalho de Dioniso: Para a crítica ao Estado pós-moderno, p. 31.
73
Ibid., p 34.
74
WARAT, L., A. A condição transmoderna do desencanto com a cultura jurídica. In: WARAT,
L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 37.
75
Ibid.
76
“ Os líquidos, uma variedade dos fluidos, devem essas notáveis qualidades ao fato de que suas
“moléculas são num arranjo ordenado que atinge apenas poucos diâmetros moleculares.”Cf.
BAUMAN, Z., Modernidade Líquida, p. 7.
29

representada pela dificuldade da modernidade de manter a sua forma com


facilidade, pela imobilidade e inconstância da “política-vida”77.
A síntese dos posicionamentos apresentados neste momento sobre a
condição contemporânea de visão de mundo, que inexoravelmente afeta a forma
de produção científica, encontramos na lição de Leandro Konder que cita uma
frase atribuída à Baudelaire que parece primordial para a compreensão do
questionamento ora levantado: “On ne détruit réelement ce qu’on remplace”, ou
seja, só se destrói, realmente, aquilo que se substitui.78
Deste ensinamento, compreende-se que apesar da negação da modernidade
como visão de mundo realizada contemporaneamente não houve uma substituição
por outra forma de olhar, um novo quadro, uma nova realidade, permanece “uma
certa abstratividade na negação”79, em que nenhum projeto se apresenta com a
eficácia transformadora necessária para superar o paradigma moderno.

2.2
Modernidade imanente e o transurrealismo: sistemas ilusórios
criativos

Neste item buscamos articular as categorias modernidade transcendente e


transurrealismo a partir dos autores Antonio Negri e Luis Alberto Warat. Analisar
o transurrealismo80 de Warat apontando para os pontos de encontro com a
modernidade imanente explicitada por Negri e Hardt, adotando conceito de
modernidade como conceito de uma crise, advém da percepção que ambas
perspectivas são pragmáticas, além de se constituírem em sistemas ilusórios
criativos na medida de sua similitude quanto ao reconhecimento da existência de
um processo histórico no ato de conhecer.

77
Ibid., p. 15.
78
KONDER, L., A derrota da dialética : a recepção das idéias de Marx no Brasil, até o começo
dos anos trinta, p.22.
79
Ibid.
80
Prefereu-se utilizar a nomenclatura “transurrealismo” para falar das propostas de Warat pela
primeira vez em um paper apresentado em um painel do Congresso da ABEDI realizado em
Brasília em novembro de 2007, assistido por Warat. Esta opção foi aprovada por Warat que
utilizou esta designação apenas uma vez em seu blog. Em seu texto ou fragmento, como prefere,
designa sua proposta como uma “ (...) reformulación del surrealismo, o bien los fundamentos para
que se pueda, actualmente ir armando un neosurrealismo, possurrealismo,o transurrealismo del
siglo XXI”. (grifo nosso) Cf. em WARAT, L. A., Materialismo mágico XI. Acesso em:
http://luisalbertowarat.blogspot.com/ , 29/09/2007, 14:05.
30

Primeiramente, se esclarecerá a opção por designar as visões de vida, de


mundo e de conhecimento da modernidade hegemônica, da modernidade
imanente, do pós-moderno e da proposta transurrealista de Warat como sistemas
ilusórios.
Assim prefere-se utilizar o conceito de paradigma a partir da noção
proposta por Thomas Kuhn de forma ampliada, por ser um conceito que
aparentemente reduziria a análise às crenças e pressupostos no interior de cada
comunidade científica, já que para o autor:

“Um paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade partilham


e,inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que partilham
um paradigma.”81

Neste sentido, Kuhn identifica o termo paradigma com “a constelação de


crenças, valores, técnicas etc., partilhadas pelos membros de uma comunidade
determinada”82, no qual uma comunidade científica é constituída pelos
integrantes de uma especialidade científica.
O que aproxima o que ora é chamado de sistemas ilusórios dos paradigmas
delineados por Kuhn é que ambos seriam visões de mundo mais abrangentes que
as teorias e não seriam constituídos metodicamente, simplesmente surgem e se
estruturam segundo um padrão significativo.83
Porém, o que torna a noção de sistema ilusório mais pertinente do que a
paradigmática, na presente análise, seria o caráter informativo que esta última
fornece aos pesquisadores sobre o que procurar e o que esperar da pesquisa,
limitando o que pode ser considerado como verdade ao que a “ciência normal”84
reconhece como tal.85 A ciência normal refere-se ao trabalho científico realizado
no interior de um paradigma estabelecido.86
Denota-se ainda, que o conceito de paradigma pode ser considerado
análogo ao senso comum teórico de cada disciplina, proposto por Warat. Neste
contexto, seria inadequado referir-se a paradigmas para designar os projetos da

81
KUHN, T., A estrutura das revoluções científicas, p. 221.
82
Ibid., p 220.
83
ALVES, R., Filosofia da ciência: introdução ao jogo e suas regras, p.198-197.
84
“(...) a “ciência normal” significa a pesquisa firmemente baseada em uma ou mais realizações
científicas passadas da ciência. Estas realizações são reconhecidas durante algum tempo por
alguma comunidade científica específica como proporcionando os fundamentos para sua prática
posterior.” KUHN, T., op. cit., p. 29.
85
ALVES, R., op.cit, p. 199.
86
CHAUI, M., Convite à filosofia, p. 224.
31

modernidade imanente e do transurrealismo, logo se justifica a utilização


redefinida do conceito.
No tratamento dos sistemas ilusórios parte-se do pressuposto de que o
homem necessita de ilusões, como ensina Freud, as ilusões derivam dos desejos
humanos e, diferentemente dos delírios, não contradizem necessariamente a
realidade.87
Adota-se assim o significado dado por Sigmund Freud à palavra ilusão em
que esta se torna fator determinante para a motivação do homem:

“Podemos, portanto, chamar uma crença de ilusão quando uma realização de


desejo constitui fator proeminente em sua motivação e, assim procedendo,
desprezamos sua relação com a realidade, tal como a própria ilusão não dá valor à
verificação.”88

Portanto, o significado que Deleuze e Guattari atribuem ao conceito de


ilusão, quando explicam o plano da imanência, apesar de adequado para expressar
os erros que o plano transcendente inspira, não pode ser adotado da mesma forma
na presente análise. Para esclarecer esta ressalva cabe a transcrição do trecho em
que os referidos autores tratam as ilusões com um significado diverso:

“(...) plano de imanência, isto é o mais puro, aquele que não se dá ao


transcendente, nem propicia o transcendente, aquele que inspira menos ilusões,
maus sentimentos e percepções errôneas (...).”89 (grifo nosso)

Percebe-se então que os referidos autores ressaltam a ilusão em seu


aspecto negativo, a ilusão como um erro, pois estão se referindo a ilusão
provocada pela modernidade transcendente90, que produz uma “ilusão que
domina, intoxica e exclui.”91Enquanto a adoção da referida categoria freudiana
desloca o foco para a motivação humana, principalmente na produção de
conhecimento, seja o cientista movido por concepções limitadas a noções
paradigmáticas ou não.

87
FREUD, S., O Futuro de uma Ilusão. In: FREUD, S., Cinco lições de psicanálise; A história do
movimento psicanalítico; O futuro de uma ilusão; O mal-estar na civilização; Esboço de
psicanálise, p.108.
88
Ibid.
89
DELEUZE, G.; GUATTARI, F., O que é filosofia?, p. 79.
90
A modernidade transcendente é sinônimo da modernidade hegemônica que corresponde ao que
vários autores designam como paradigma moderno.
91
Entrevista ao autor Luis Alberto Warat, em que se adotou a técnica de entrevista semi-
estruturada, a partir de roteiro aberto. Com isso, buscou-se a narrativa o mais natural possível
mediante o incentivo das lembranças da trajetória acadêmica do pesquisado, além do autor tratar
de temas que pretende desenvolver em futuras obras.
32

O foco na motivação humana é ainda uma forma de evidenciar as


articulações das propostas de modernidade imanente, de Negri e Hardt, e
transurrealismo de Warat, pois ambos os autores percebem a estreita relação entre
o conhecimento e a vida, além de considerarem o sujeito como “ser prático, um
ser de vontade e de ação”. 92
Portanto, percebe-se a preocupação de ambos os autores no sentido de
resgatar a necessidade básica presente tanto no senso comum quanto na ciência de
se compreender o mundo, como forma de sobrevivência e de uma melhor
qualidade de vida.93
Este entendimento que aponta para as perspectivas pragmáticas dos
referidos autores está cristalizado no trecho transcrito a seguir, em que Antonio
Negri explicita a “lógica” da sua pesquisa:

“... lógica que implica diretamente a ação, ou seja, que insere o momento da
práxis na epistemologia e, portanto, a ética e política nos processos cognitivos.”
94
(grifo nosso)

Warat acompanha esta posição, ao afirmar que as mudanças trazidas pela


revolução comunicacional produziram a necessidade de mudanças também na
estrutura do saber, em que o pesquisador se torna participante, deixando o banco
dos espectadores, exercita assim a convivência para saber como agir em relação
ao outro.95No mesmo sentido que apresenta Negri, pois “antes tínhamos teorias;
agora se dá a mudança para a práxis.”96 Nesta perspectiva, ambos propõem uma
articulação entre teoria e prática que parta da idéia de que “somos primitivamente
seres sociais e não epistêmicos.”97
Warat chega ao ponto de propôr uma concepção pragmática da
objetividade, que analise a ação epistemológica a partir de processos empíricos
que se preocupem com as condições de produção da racionalidade científica.98

92
HESSEN, J., Teoria do Conhecimento, p. 51.
93
ALVES, R., op. cit.,p. 21.
94
NEGRI,A., Cinco lições sobre Império, p. 10.
95
WARAT, L. A., Metáforas para a ciência, a arte e a subjetividade. In: WARAT, L. A.,
Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da
reconstrução da subjetividade, p. 538.
96
Ibid.
97
Ibid.
98
WARAT, L. A., O lugar da fala: digna voz da majestade. In: FALCÃO, Joaquim (Org).
Pesquisa científica e direito, p 82.
33

Esta concepção pragmática do conhecimento científico também é


compartilhada por Boaventura de Sousa Santos que compreende a ciência como
reflexão do conhecer como prática social.99Segundo o referido autor só existiria
ciência como crítica a realidade com vistas a transformação para uma nova
realidade.100
As propostas de modernidade imanente e transurrealista podem ser
articuladas a partir da percepção do duelo entre as modernidades, em que Antonio
Negri e Hardt consideram que existiria uma guerra entre um poder constituído
transcendente e um poder constituído imanente, ocorreria uma disputa da “ordem
contra desejo”101, tendo em vista que esta mesma disputa é relatada na metáfora
utilizada por Warat, em uma de suas obras mais célebres: “A Ciência Jurídica e
seus Dois Maridos”.102
No livro citado, Warat utiliza a personagem Dona Flor, de Jorge Amado,
como representação da Ciência Jurídica, e os dois maridos como designação de
duas posturas epistemológicas antagônicas. Além disso, atende a necessidade de
misturar ciência e literatura, no caso opta por um romance que é um gênero
literário representativo da “expressão mais evidente da legitimação da
imaginação, da fantasia, ele incomoda o conservadorismo, enfrenta a ‘cobrança’
de pessoas empenhadas em cotejá-lo com a realidade (para assegurar sua
subordinação à ‘ordem’)”.103 O uso da literatura, com o apelo a recursos quase
poéticos, como meio mais efetivo e claro de transmissão de conhecimento.104
Ainda nesta obra Teodoro representa a ordem e Vadinho o desejo, o que
nos permite fazer uma analogia entre estas posturas e as propostas de
modernidade transcendente e imanente, respectivamente. Dona Flor é uma mulher
dividida entre Teodoro e Vadinho, que expressam o contraste entre a “metafísica
dos costumes” e a “metafísica do desejo”.105

99
SANTOS, B. S., Introdução a uma ciência pós-moderna, p.49.
100
Ibid., p.48.
101
HARDT, M.; NEGRI, A., Império, p. 92.
102
WARAT, L. A. Ciência Jurídica e seus dois maridos. Santa Cruz do Sul: FISC, 1985.
103
KONDER, L., As artes da palavra: Elementos para uma poética marxista. São Paulo:
Boitempo, 2005.
104
WARAT, L. A., Derecho al Derecho. In: WARAT, L. A., Territórios desconhecidos: a
procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade, p.
27.
105
Id., Ciência Jurídica e seus dois maridos, p. 21.
34

A imanência, como concepção da realidade está calcada nas forças do


desejo, da liberação e nos valores humanistas. Para encontrar uma postura
epistemológica no plano da imanência, Warat propõe a criação de “uma
semiologia do desejo, que implica na releitura crítica de formas ideológicas da
cultura moderna.” 106
Teodoro e Vadinho se complementam, já que Vadinho se apresenta como
expressão do feminino e Teodoro como expressão do masculino, que é
representado pelo previsível.107 Ao realizar uma projeção para o Direito, Warat
considera que o saber jurídico da modernidade organizou o lado masculino do
imaginário do Direito108, pois se adequou ao modelo de modernidade hegemônico
que, como foi dito, é representado pelo normativismo no campo jurídico. 109
O casamento de Dona Flor com Teodoro deve ser compreendido como
conotação da “realidade culturalmente imobilizada, o desejo legalizado”110 (grifo
nosso). A partir desta metáfora podemos considerar que atualmente a maioria dos
juristas só se casaram com Teodoro, são “juristas instituídos” .
A compreensão do feminino/ masculino na obra waratiana é empregada da
mesma forma que Jean Baudrillard, para quem o feminino contradiz a posição
masculino/feminino, em termos do valor de cada sexo.111O feminino fora da idéia
de identidade sexual, tranversalizaria as referidas noções, assim, pode-se perceber
que ambos fogem de um dos dualismos modernos.
Atualmente, Warat vem tratando em Palestras e Congressos112 os opostos
Vadinho/ Teodoro de forma análoga, respectivamente, às figuras de Dioniso e
Apolo. Neste sentido, Warat se apropria da oposição entre o apolíneo e o
dionisíaco desenvolvida por Nietzsche, que deriva das figuras dos referidos
deuses.113

106
WARAT, L. A., Amor tomado pelo amor: crônica de uma paixão desmedida,p. 28.
107
Id., Ciência Jurídica e seus dois maridos. In: WARAT, L. A., Territórios desconhecidos: a
procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade,
p.71.
108
Ibid., p. 72
109
Cf. item 1.1. da presente análise.
110
WARAT, L. A., Ciência Jurídica e seus dois maridos. In: WARAT, L. A., Territórios
desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da
subjetividade,, p.70
111
BAUDRILLARD, J., Senhas, p. 24.
112
Entre eles a Palestra ministrada pelo autor na Pós-Graduação em Urbanismo da UFRJ sobre
Materialismo Mágico, em 17 de outubro de 2007.
113
JAPIASSÚ, H.; MARCONDES, D., Dicionário Básico de Filosofia, p.73.
35

Vadinho aparece, assim, na figura do Deus grego Dioniso, “deus da


embriaguez, da inspiração e do entusiasmo”114 e Theodoro como Apolo “o deus
da medida e da harmonia”.115
A figura dionisíaca se adequa à proposição de visão de mundo de Warat,
pois “concebe ativamente o devir”116, o que aponta para uma visão cartográfica de
mundo que trabalha nos territórios desconhecidos.
Retomando a metáfora inicial, Warat propõe que o imaginário jurídico
cometa atos de Vadinhagem “um pouco como Dona Flor, ele poderia descambar
em um Vadinho para compensar-se da sobrecarga de deveres que lhe impõe um
Teodoro.”117 Os teóricos críticos, como Warat, esperam que Vadinho volte da
morte, para que os juristas, como profissionais que se debruçam sobre a Ciência
Jurídica, se entreguem ao adultério.118
Neste ponto pode-se comprovar que o campo epistemológico em que se
permitem os atos de Vadinhagem propostos por Warat, se torna possível dentro de
um modelo de modernidade imanente (Negri), em que as forças imanentes,
construtivas e criadoras prevaleçam ao poder transcendente que visa restaurar a
ordem.
Seguindo a proposta de Warat, que se aproxima do modelo de
modernidade imanente, os juristas são chamados a trabalhar no campo da
marginalidade, da ambivalência como possibilidade de renascer 119 , no sentido de
abertura de um campo de possibilidades para os juristas que sofrem com a
“angústia da castração”.120
A castração é entendida por Warat como a ideologia que coloca o desejo
fora da história, com vistas ao controle dos corpos nos distanciando dos nossos
desejos. Deve-se atentar que a ciência, desenvolvida a partir do modelo da
modernidade hegemônica, impõe métodos que impedem que os desejos
“corrompam” o conhecimento objetivo da realidade.121

114
Ibid., p. 73.
115
Ibid., p. 14.
116
Ibid., p. 14
117
WARAT, L. A., Ciência Jurídica e seus dois maridos, p.26
118
Antes que surjam críticas de “Teodoros” guiados por uma “cultura-detergente”, que exige um
pensamento sem sujeira, cabe esclarecer que adultério é empregado pelo autor como “mobilidade
e marginalidade que contêm o novo.” In: Ibid., p. 16.
119
WARAT, L. A. Ciência Jurídica e seus dois maridos, p. 76.
120
Ibid., p.78.
121
ALVES, R., op. cit., p. 41.
36

A ciência moderna considera, para tanto, apenas os aspectos negativos do


desejo como fonte de ilusões (no sentido negativo) e preconceitos. Esta concepção
de ciência esquece que “a música, a literatura, a pintura, a religião, a [própria]
ciência e tudo que se poderia denominar criatividade”122 são fruto dos desejos
humanos.
A proposta de marginalização da ciência jurídica de Warat, que pode ser
equiparada a proposta da modernidade imanente, fica evidente no seguinte trecho
da sua obra “Ciência jurídica e seus dois maridos”:

“Ora, preciso colocar na ciência jurídica a máscara de Vadinho, imaginada por


Dona Flor, para montar minhas instituições subversivas e sublimar a parte
maldita da cultura jurídica”. 123

Após as aproximações entre as propostas de modernidade imanente e


transurrealismo, será apresentada de forma mais detalhada a proposta de Warat,
como visão de mundo que abrange, implicitamente, propostas para a Ciência
Jurídica e a pedagogia neste campo.124
Para tanto, deve-se perceber que a proposta transurrealista, apresentada por
Warat, será apresentada a partir de um resgate de algumas concepções
apresentadas em obras anteriores a explicitação desta proposta, principalmente
suas perspectivas epistemológicas e pedagógicas, pela constituição da referida
proposta se tratar simultaneamente de uma construção e de uma desconstrução de
próprias idéias do autor.125
O posicionamento de Warat demonstra seu auto-questionamento como
autor que adota a autêntica dialética como modo de pensar, o que não retira a
importância da sua obra em relação aos temas em questão.126

122
Ibid., p. 41.
123
WARAT, L. A., A Ciência Jurídica e seus dois maridos. In: WARAT, L. A., Territórios
desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da
subjetividade, p.84.
124
Apesar do referido autor ser um filósofo “que malandramente, faz de conta que nada propõe.”
Porém, quem mergulha na leitura desafiadora e surpreendente de sua obra, identifica rapidamente
a clareza e riqueza de suas propostas.MONDARDO, Dilsa. 20 ANOS Rebeldes: o Direito à luz da
proposta filosófico- pedagógica de L.A. Warat, p. 12.
125
Apesar de Warat ter se dedicado com afinco ao campo de estudos da epistemologia e pedagogia
do direito, em seus últimos escritos o mesmo demonstra uma desconfiança pelo controle
epistemológico e nas possibilidades de ensinar. Este entendimento pode ser comprovado pelo
título de um dos volumes da coletânea de suas obras: Epistemologia e ensino do direito: o sonho
acabou. Cf. WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou. Florianópolis:
Fundação Boiteux, 2004.
126
“A dialética, como modo de pensar, no sentido proposto por Marx, precisa estar sempre
disposta a questionar a si mesma, a se reformular em seus próprios fundamentos, para não se
37

Este entendimento é reforçado pelo enfoque em um projeto de


transformação para o imaginário jurídico dado por Warat à trilogia de textos que
ele escreveu nos anos 80: A ciência jurídica e seus dois maridos; Manifesto do
surrealismo jurídico e Amor tomado pelo Amor. O próprio autor reconhece que
nestas obras aposta na mudança de uma forma de narração como condição
preponderante para a alteração nos significados e no modo de pensar jurídico.127
As propostas de Warat partem da perspectiva de Gaston Bachelard que
consiste na necessária ligação da ciência ao seu ensino.128 Desta forma, a
epistemologia se prolonga com a conexão do saber e do ato que o instituiu, ocorre
assim a simbiose entre a transmissão do saber e do saber em si mesmo.129
Assim, sob a influência de Bachelard, Warat “introduziu a problemática
epistemológica no interior da problemática pedagógica do ensino do direito,
tomando-a como intrínseca à metodologia de ensino”130. Daí decorre a
necessidade da presente pesquisa analisar as propostas epistemológicas e
pedagógicas de Warat conjuntamente.
O autor propõe a carnavalização da epistemologia e da pedagogia, a partir
dos ensinamentos de Bakthin131, em que esta idéia representa o lugar da
criatividade, da fragmentação, da espontaneidade, da recepção dos sinais do
novo.132A carnavalização se presta a descoberta das fissuras da racionalidade
moderna, pois “no campo do saber é preciso envelhecer as verdades instituídas
para que se abra o campo para a presença do novo”.133
A relevância de uma análise mais abrangente dos trabalhos de Warat nos
permite identificar que a idéia de carnavalização bakthiniana é o primeiro passo

desligar do fluxo da história.” KONDER, L., A derrota da dialética : a recepção das idéias de
Marx no Brasil, até o começo dos anos trinta, p. 13.
127
WARAT, Luis Alberto. Introdução In: MONDARDO, D., 20 ANOS Rebeldes: o Direito à luz
da proposta filosófico- pedagógica de L.A. Warat, p. 18.
128
DAGOGNET, F., Sobre una segunda ruptura. In: WUNENBURGER, J. (coord.). Bachelard y
la epistemología francesa, p. 13.
129
Ibid., p. 13.
130
MONDARDO, D., op. cit, p. 81.
131
“(...) de Bakthin tomei emprestada sua idéia de carnavalização e a projetei ao plano
epistemológico(...)”.WARAT, L. A., Introdução.In: Ibid.., p. 18.
132
Ibid., p. 90.
133
WARAT, L. A., Por quem cantam as sereias: Informa sobre Ecocidadania, Gênero e Direito.
In: WARAT, L. A., Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono
do sentido e da reconstrução da subjetividade, p. 472.
38

do autor para chegar ao surrealismo.134 Esta relação é assumida pelo próprio autor
na seguinte passagem:

“A idéia de carnavalização me levou para o surrealismo por entender que existia


um alto grau de semelhança entre o surrealismo e as análises Bakthinianas acerca
dos discursos carnavalizados.” 135

No que tange ao ensino do direito, a modernidade utilizou o cientificismo


para criar uma mentalidade jurídica obscura e coberta de segredos para seus
alunos, o que ajudou a construir “uma montagem mítica que gera uma relação
imaginária entre o saber do Direito e suas práticas”. 136
Warat compreende que o paradigma da transmodernidade requer uma
revolução na “pedagogia oficial da modernidade”137, em que a relação entre
professor e aluno é carregada de soberba e distanciamentos afetivos. Não adianta
um lifting no modelo educacional das Faculdades de Direito, só uma Revolução
educativa seria capaz de atender as demandas por uma sensibilidade que
possibilite a autonomia e a alteridade.138
Warat busca uma nova maneira de ministrar aulas que seja inversa à idéia
do professor autista139 que ignora ou detesta os alunos, assim como o juiz que
detesta as partes, o médico que detesta os pacientes. Professores que preparam um
roteiro de aula inalterável em nome da seriedade. 140
Dentro da narrativa waratiana pode-se dizer que estes professores têm
uma atitude masculina de cálculo prévio de desempenho. Estes professores são
incapazes de uma atitude feminina de administrar o novo, o imprevisível que
aparece quando se permite um diálogo professor-aluno.

134
Adiante será explicitado o que Warat compreende como surrealismo.
135
MONDARDO, Dilsa. , 20 ANOS Rebeldes: o Direito à luz da proposta filosófico- pedagógica
de L.A. Warat , p.18.
136
WARAT, L. A., Por quem cantam as sereias: Informa sobre Ecocidadania, Gênero e Direito.
In: WARAT, L. A., Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono
do sentido e da reconstrução da subjetividade, p. 439.
137
Palestra ministrada por Luis Alberto Warat na Pós-Graduação em Urbanismo da UFRJ sobre
Materialismo Mágico, em 17 de outubro de 2007.
138
Neste modelo moderno de pedagogia, o aluno se transforma em um número na pauta, na
carteirinha, na nota e o professor se preocupa em exibir seu conhecimento, ao invés de estar
comprometido com o real aprendizado. As idéias transmitidas tão são tão intoxicantes quanto um
yogurte vencido. Aulas virtuais vendidas no mercado acadêmico, com o mesmo efeito das vídeo-
conferências. Palestra ministrada por Luis Alberto Warat no PROURB da UFRJ sobre
Materialismo Mágico, em 17 de outubro de 2007.
139
O autista não deve aqui ser compreendido como o diagnóstico psicológico daquele indivíduo
que possui um excesso de sensibilidade que o retira da sociabilidade, apenas pretende-se enfatizar
o aspecto da ausência de escuta do outro. In: Ibid.
140
Ibid.
39

Ademais, na perspectiva pedagógica o autor é um forte crítico ao


isolamento acadêmico e pensa além transdisciplinariedade que, segundo o autor,
seria um diálogo entre elites, propondo uma multidisplinariedade que abrangesse
inclusive o saber popular141, a sala de aula é encarada por ele como uma
possibilidade de construção de um conhecimento coletivo entre alunos e
professores.
Warat propõe uma pedagogia surrealista que rompa a cadeia da opressão
existente entre professor e aluno na pedagogia oficial da modernidade através do
142
uso da imaginação poética. O poético como forma de constituição de um
espírito crítico, criativo que questione o estabelecido, adentrando nos territórios
inacessíveis.
Assim, Warat se considera um surrealista por acreditar que os limites
existem para serem “transgredidos com crueldade”143, no sentido de uma
transgressão rigorosa, determinada e implacável.
A nova sensibilidade proposta para organizar o mundo que ainda não
chegou, Warat denomina de transmodernidade ou transurrealismo, como
preferimos. Este outro regime de sentidos que está na ordem do “entre” devem
144
possibilitar os “devires, os inéditos, os invisíveis” , que implica em uma visão
cartográfica de mundo.
Para concretizar esta idéia de uma nova sensibilidade, Warat elabora uma
proposta surrealista através de um Manifesto145, em que tomou como principal
referência André Breton.146
O surrealismo desenvolvido por Breton influenciou de forma silenciosa o
movimento de maio de 1968. O surrealismo antes de ser um movimento para a
transformação da arte pretende ser um movimento de transformação da vida em
geral147, o que representa uma perspectiva pragmática como pretende Warat.

141
Palestra ministrada por Luis Alberto Warat na Faculdade Nacional de Direito da UFRJ para o
2º Seminário Internacional Direito e Cinema: visões sobre o direito e a ditadura, em 5 de
Outubro de 2006.
142
WARAT, L. A., Por quem cantam as sereias: Informe sobre Ecocidadania, Gênero e Direito.
In: WARAT, L. A., Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono
do sentido e da reconstrução da subjetividade.,p. 432.
143
WARAT, L. A., Materialismo mágico IX e X.
144
Ibid.
145
Id., Manifesto do surrealismo jurídico, 1988.
146
Cf. BRETON, A., Manifestes du surréalisme. Paris: Gallimard Publication, 1924.
147
WARAT, L. A., Materialismo mágico II.
40

Compreende-se que a atualização do surrealismo por Warat se deve


essencialmente pela sua “potencia corrosiva de lo lugares comunes y otras
intoxicaciones”.148
Warat adota a posição que a origem do surrealismo está no dadaísmo, com
sua rebeldia quase despropositada, e na psicanálise. O movimento surrealista e a
psicanálise se apoiaram mutuamente, até porque aparecem historicamente quase
na mesma época, ambos são movimentos de descoberta da subjetividade própria e
alheia.149
Assim, segundo o referido autor, o marco oficial do surgimento do
surrealismo ocorreu com a publicação da Revista Littérature dirigida naquele
momento por Aragon, Breton e Soupault. A referida Revista abriu espaço para a
criação de uma anti-literatura, em que a poesia ganha destaque como forma de
“expresión de la propia sensibilidad inconsciente”. 150
Outro importante marco para o movimento em questão foi a edição do
primeiro Manifesto do Surrealismo que critica pilares do paradigma moderno na
produção dos saberes, como a lógica e os excessos do racionalismo. 151
Em seus mais recentes escritos, Warat está elaborando fragmentos para
compor um outro Manifesto, que acredita ser mais adequado ao paradigma
transmoderno152, em que propõe um “transurrealismo” a partir de um
“materialismo mágico”153 tomando como referência os ensinamentos de Antonin
Artaud.154 A proposta transurrealista cria um novo horizonte deslocado da
melancolia de pensar o novo amparado nas sombras do velho.155
A proposta do materialismo mágico156 visa à articulação dos movimentos
marxistas e surrealistas por “pensar que a transformação das condições materiais

148
Ibid.
149
Ibid.
150
Id., Materialismo mágico III.
151
Ibid.
152
Entrevista ao autor Luis Alberto Warat em que se adotou a técnica de entrevista semi-
estruturada, a partir de roteiro aberto. Com isso, buscou-se a narrativa o mais natural possível
mediante o incentivo das lembranças da trajetória acadêmica do pesquisado, além do autor tratar
de temas que pretende desenvolver em futuras obras.
153
Expressão criada por Warat em um diálogo com uma aluna bahiana, se apresenta como um
movimento cultural para o século XXI. Esta proposta foi apresentada através de fragmentos em
uma coluna virtual. In: Id., Materialismo mágico I.
154
Id., Materialismo mágico XI.
155
Id., Crisis de la democracia y crisis de la modernidad. In: WARAT, L. A., Epistemologia e
ensino do direito: o sonho acabou, p. 316.
156
O materialismo mágico representa ainda uma proposta de um neo-surrealismo como
movimento jurídico-político encabeçado por Warat sob a denominação de Arte e Direito, que
41

de existência depende de uma transformação simultânea das condições de


produção da subjetividade; que por sua vez, não poderá se concretizar plenamente
se não se modificar, conjunta e de modo uníssono, as condições materiais de
existência.”157
Artaud revela o teatro como uma atitude fantástica que consiste em
compreender que o pensamento é poesia, ou seja, vem de dentro para fora.158Para
que seja atingida a “divindade do sensível”159 deve-se praticar o atletismo afetivo
proposto por Artaud para os atores, que deve ser expandido também para os
juristas e educadores do direito segundo o posicionamento de Warat.
O atletismo afetivo de Artaud representa que o ator possui “uma espécie
de musculatura afetiva que corresponde a localizações físicas dos
sentimentos.”160Para que o ator use sua afetividade como o lutador (atleta) utiliza
da sua musculatura, o ser humano deve ser compreendido como um Duplo, “como
um espectro perpétuo em que se irradiam as forças da afetividade”161, assim o ator
se torna consciente do mundo afetivo.
Estes atletas dos sentimentos estão abertos ao amor, no caso dos
profissionais do direito, estes atletas têm maior capacidade para prevenção de
litígios, alcançando inclusive os conflitos, além de interpretações sensíveis às
demandas sociais, se configurariam como “intérpretes duplos”. No campo
pedagógico, os juristas educadores teriam a capacidade de desenvolver uma
relação de troca construtiva e criativa entre alunos e professores.
Assim, pode-se dizer que o transurrealismo de Warat propõe um “barroco
do futuro” 162 para o mundo jurídico que através da produção no devir implique
em uma fuga através da sensibilidade como combate aos excessos racionalistas
modernos.

possui um canal de TV disponível na Internet para a reflexão e diálogo sobre o tema. Este é um
espaço de fuga para o que Warat designa como “pinguinização” dos profissionais do direito.
Disponível em: http://arteedireito.tv/ . Acesso em: 18 out. 2007, 13:40.
157
Id., Materialismo mágico I.
158
Esta idéia contraria a referência “(...)ao pensamento do filósofo que perde o tempo tratando de
ser erudito, especialista em algum outro filósofo (...)”. In: Id., Crisis de la democracia y crisis de
la modernidad. In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 316.
159
WARAT, L. A., Materialismo mágico III.
160
ARTAUD, A.,O teatro e seu duplo, p. 151.
161
Ibid., p. 153.
162
WARAT, L. A., Metáforas para a ciência, a arte e a subjetividade. In: WARAT, L. A.
Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da
reconstrução da subjetividade, p. 534.
42

O barroco deve atuar nos espaços de imprecisão da linguagem, em que a


vagueza e ambigüidade podem ter origens lingüísticas ou ser reflexo do
desbravamento dos intérpretes nos território desconhecidos.
O barroco adentra nestes espaços de imprecisão abrindo as portas para o
poético e metafórico. A invasão da poesia na “ciência” surge como forma de
reação ao conceitualismo, com o fim de transformar o “geral e abstrato em
metáfora”. 163
A linguagem carregada de emoção e de metáforas que querem encantar o
que se pretende dizer não retira o caráter científico da escritura, se entendermos
que a ciência pode ser produzida em espaços diferentes dos tradicionais.164Assim,
a poesia como forma de exposição emotiva, toma o lugar da seriedade científica, e
a metáfora substitui o enunciado teórico. 165
Não foi incidentalmente escolhido o nome do livro que comemorou os 35
anos de docência de Luis Alberto Warat: O poder das metáforas166, o próprio
organizador do livro explica que este título foi escolhido pelo gosto que Warat
tem pelas metáforas em suas obras, em que a metáfora que teve maior repercussão
entre os juristas tradicionais está presente em seu livro A Ciência Jurídica e seus
dois maridos.
Outro motivo da escolha do título do referido livro, apresenta-se como
mais adequado para representar a importância das metáforas na produção
acadêmica:

“Obviamente o emprego de metáforas na obra waratiana não se dá apenas por


razões estritamente literárias. Ao lado do interesse poético de representação do
mundo, elas constituem uma forma de duplicação do espaço de reflexão
sociopolítica sobre o poder.”167

A apresentação de uma narrativa descontínua e ambivalente como forma


de inserção destes valores no imaginário jurídico. O seguinte fragmento reafirma
as colocações sobre a estética do autor, que afirma:

163
Ibid., p. 534.
164
WARAT, L. A., Derecho al Derecho. In: WARAT, L. A. Territórios desconhecidos: a procura
surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade, p. 27.
165
Ibidem.
166
OLIVEIRA JUNIOR, J. A., O poder das metáforas: homenagem aos 35 anos de docência de
Luis Alberto Warat.
167
Id., Apresentação. In: OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades de. O poder das metáforas:
homenagem aos 35 anos de docência de Luis Alberto Warat.
43

O poético como fuga do pensamento alienado. O barroco como forma de


expressão do encontro do novo com a instância do jurídico. Uma exaltação do
poder da metáfora.168(grifo nosso)

O poder das metáforas é reconhecido, e podemos dizer até evidente, para


os escritores de obras literárias como o autor tcheco Milan Kundera que em seu
romance169 A insustentável leveza do ser170 apresenta um exemplo desta
percepção, o que se depreende da seguinte transcrição: “Tomas não sabia que as
metáforas são uma coisa perigosa. Não se brinca com as metáforas. O amor
pode nascer de uma simples metáfora.”171(grifo nosso)
A partir da constatação do processo de constituição de sistemas ilusórios
criativos, que podem utilizar instrumentos políticos, poéticos, epistemológicos,
pedagógicos, entre outros, estes devem ser percebidos como um recurso essencial
para o redimensionamento do jurista no papel de intérprete.

168
WARAT, L. A.. Introdução. In: MONDARDO, D., 20 ANOS Rebeldes: o Direito à luz da
proposta filosófico- pedagógica de L.A. Warat, p. 18.
169
Como dissemos anteriormente o romance tem um papel importante na não submissão à ordem.
170
KUNDERA, M., A insustentável leveza do ser. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
171
Ibid.
3
Resgatando Kelsen: para uma crítica qualificada

3.1
Kelsen em defesa da juridicidade

A presente análise possui um enfoque na pureza metodológica kelseniana,


que pretendia constituir a independência metodológica como a principal tarefa da
Teoria Pura do Direito, o que se comprova quando Hans Kelsen designa que a
referida teoria seria uma “teoría del método específico del conocimiento
jurídico.”1
Além disso, deve ser considerado que este autor representa a principal
“referência do dogmatismo positivista e logicista”2, perpetuado no senso comum
teórico dos juristas e na importância do projeto da Teoria Pura do Direito3 para a
consolidação do campo de conhecimento jurídico como “ciência”.
Como todo discurso, o kelseniano possui diversas denotações, o que nos
permite admitir a existência de diversos “kelsens”4 simultâneos: um Kelsen
kantiano, um Kelsen positivista jurídico, um Kelsen normativista, um Kelsen
formalista, entre outros.
Neste momento, cabe identificar as características comuns das teorias que
estão inseridas no positivismo jurídico5 para, posteriormente, entendermos de
forma específica a Teoria Pura do Direito desenvolvida por Kelsen.

1
KELSEN, H., ¿Qué es la teoría Pura del Derecho ?, p. 9.
2
WARAT, L. A., A pureza do poder: uma análise critica da teoria jurídica, p. 13.
3
Adrian Sgarbi observa que a “Teoria Pura do Direito” não é apenas um nome de um livro, mas
um projeto de que visa a elevação do direito à posição de ciência . O esforço para a consolidação
deste projeto está presente nas seguintes obras: ‘Problemas Fundamentais de Direito Público”,
‘Teoria Pura do Direito” e suas edições até a de 1960, “teoria Geral das Normas”, livro editado
postumamente. In: SGARBI, A., Hans Kelsen: ensaios Introdutórios (2001-2005), p.1.
4
ROCHA, L. S., Epistemologia Jurídica e Democracia, p. 65.
5
“La teoría pura del derecho es positivismo jurídico, es simplesmente la teoría del positivismo
jurídico (...).”In: KELSEN, H., op. cit., p. 31.
45

Para tanto, serão apontados a seguir os pontos fundamentais do


juspositivismo a partir de Norberto Bobbio, pois permitirá reconhecer que Kelsen
se insere nesta pespectiva: abordagem do direito como um fato; o direito é
definido em função do elemento da coação; desenvolvimento da teoria da
legislação como fonte preeminente do direito; considera a norma jurídica como
um comando (teoria imperativista do direito); sustenta a teoria da coerência e da
completude do ordenamento jurídico, a teoria da interpretação mecanicista e a
teoria da obediência absoluta da lei.6
O enquadramento da teoria kelseniana no positivismo jurídico é essencial
para rechaçar a crítica freqüente a este pensamento que interpreta como forma de
pensar o direito que exclui os valores morais. Esta interpretação confunde o
positivismo jurídico com o que Norberto Bobbio denominou de versão extremista
do positivismo ideológico.7
Segundo Bobbio, o positivismo ideológico possui duas versões: uma
extremista ou forte; e uma versão moderada. A primeira afirma o “dever absoluto
ou incondicional de obedecer à lei enquanto tal”8, já a versão moderada estabelece
que o direito tem um valor na realização da ordem, mas isto não o torna justo. Na
leitura do projeto kelseniano depreende-se que o mesmo se adequa ao positivismo
ideológico na sua versão moderada.
Hans Kelsen configura-se como ponto de referência e de contraposição
para os autores que se propõem a elaborar um saber crítico como Warat.9Constata-
se que não são apenas os autores que desenvolvem um saber crítico que partem da
análise do positivismo para, posteriormente, apresentarem suas propostas, o que
se deve à relevância desta corrente teórica no pensamento jurídico.
Albert Calsamiglia é um representante do pós-positivismo que estrutura o
seu trabalho a partir da definição do que é positivismo para depois diferenciá-lo
das teorias que denomina de pós-positivistas.

6
BOBBIO, N., O positivismo jurídico: Lições de filosofia do direito, p. 131-133.
7
SGARBI, A., Teoria do direito: primeiras lições. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2007, p.
716,717.
8
Id., O positivismo jurídico: Lições de filosofia do direito, p. 225.
9
Cf. RUIZ, Alicia E. C. Aspectos ideológicos del discurso jurídico (desde una crítica del
derecho). In: MARÍ, E. E.; CÁRCOVA, C. M. (org.), Materiales para una crítica del derecho, p.
111.
46

Em seu artigo En defensa de Kelsen10, Calsamiglia descreve as posições


positivistas a partir da Teoria Pura do Direito de Kelsen, por considerar que o
mesmo ocupou uma posição de destaque na Teoria do Direito européia,
principalmente no entre-guerras, e permanece sendo um dos autores mais
estudados na Europa e América Latina. 11
Neste ponto, vale apontar algumas características gerais do positivismo
kelseniano, principalmente a Teoria do Conhecimento em que está fundado, para a
melhor compreensão da crítica pontual às conseqüências do predomínio pureza
metodológica no imaginário jurídico.
Kelsen adota o monismo metodológico, com o fim de evitar o seu oposto:
o sincretismo metodológico12 que, segundo o autor, obscureceria a essência do
direito, influenciado pela Teoria do Conhecimento kantiana em que a ciência cria
seu próprio objeto através da inversão da centralidade gnosiológica do objeto para
o sujeito cognoscente.
Apesar de muitos teóricos não compreenderem, Kelsen não nega a
legitimidade de outros campos de conhecimento como a Sociologia e a Teoria
Política, apenas acredita que a Ciência Jurídica deve constituir um objeto de
conhecimento próprio.13 A seguinte transcrição de um trecho da obra Teoria Pura
do Direito esclarece a posição de Kelsen em relação à conexão do Direito a
ciências como a psicologia, sociologia, ética e política:

“Quando a Teoria Pura empreende delimitar o conhecimento do Direito em face


destas disciplinas, fá-lo não por ignorar ou, muito menos, por negar essa conexão,
14
mas porque intenta evitar o sincretismo metodológico (...).”

Disto decorre que, para o positivismo kelseniano, a Ciência Jurídica


produz seu objeto apenas no território gnoseológico15, com o objetivo de buscar a
origem, a natureza, o valor e os limites da faculdade de conhecer dentro de uma
Ciência jurídica em sentido estrito.

10
CALSAMIGLIA, A., En defensa de Kelsen. In: Working Papers- Instituit de Ciències
Polítiques i Socials, n. 19, Barcelona:, 1997.
11
Ibid., p. 6 e 7.
12
Kelsen considera que uma teoria do direito possui o defeito do sincretismo metodológico
quando utiliza métodos que não sejam estritamente jurídicos. Cf. Ibid., p. 10 e 11.
13
WARAT, L. A., A pureza do poder: uma análise critica da teoria jurídica, p. 30.
14
KELSEN, H., Teoria Pura do Direito, p. 1-2.
15
Id., A pureza do poder: uma análise critica da teoria jurídica, p. 28.
47

Para uma melhor compreensão, deve-se expor que Kant em sua Crítica da
Razão Pura distingue duas modalidades de conhecimento: os conhecimentos
empíricos, que são captados a partir da experiência sensível; e os conhecimentos
puros ou a priori, baseados apenas na estrutura interna da razão, independente da
experiência individual.16
Estes dois tipos de conhecimentos se exprimiriam a partir de juízos
analíticos ou explicativos e juízos sintéticos ou ampliativos. Apenas os juízos
sintéticos seriam fonte do conhecimento, pois os predicados acrescentariam dados
novos ao conceito do sujeito. De fato, a questão fundamental a ser respondida por
Kant seria sobre a possibilidade de existência dos juízos sintéticos a priori.17
Kelsen utiliza parcialmente o método transcendental ou crítico de Kant,
para desenvolver a Teoria Pura do Direito como epistemologia do saber no campo
jurídico, já que prescinde dos juízos sintéticos a priori que pressupõem sempre
um dado sensível. O autor escapa, assim, da principal problemática do método
transcendental, ao reduzir o conhecimento do direito à dimensão deontológica das
normas positivas.18
A Teoria Pura do Direito kelseniana utiliza ainda a estratégia da cisão
entre o ser (plano ontológico) e dever-ser (plano deontológico) kantiana.19 Com
isso, a referida teoria se limita à análise do plano deontológico em que se
encontram as normas e seu enfoque técnico jurídico, eliminando a facticidade
como objeto de análise.20
Distingue-se, portanto, a problemática da validade em dois domínios: o
prático ou operativo e o teórico ou epistemológico. O plano prático estaria
comprometido com a política jurídica e estaria excluído das preocupações da
ciência normativa do direito, que se limitaria à esfera epistemológica. 21
Na realidade, o princípio metodológico da pureza adotado por Kelsen
possui influências diretas do neokantismo de Marburgo, por acreditar que o

16
“(...) se há um tal conhecimento independente da experiência e mesmo de todas as impressões e
sentidos. Tais conhecimentos denominam-se a priori e distinguem-se dos empíricos, que possuem
suas fontes a posteriori, ou seja na experiência.” In: KANT, I., Crítica da Razão Pura, p.53.
17
CHAUI, M., Convite à Filosofia, p. 199.
18
WARAT, L. A., Los pressupuestos kantianos y neokantinos de la teoria pura del derecho. In:
WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 246.
19
GUIMARAES, Francisco de. Op. cit., p. 113.
20
Id., Sobre la dogmática jurídica. In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o
sonho acabou, p. 156.
21
Id., La norma fundamental kelseniana como critério de significacion. In: WARAT, L. A.,
Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou., p. 269.
48

conhecimento científico do direito só se tornaria possível “com base em uma


estrutura deontológica precisa e pré-existente”22, o que implica na elaboração de
uma teoria dos sentidos deontológicos das normas purificadas da faticidade, de
elementos axiológicos, políticos ou ideológicos. Nem todo Kant interessa a
Kelsen, mas fundamentalmente a metodologia da Crítica da Razão Pura
influencia a delimitação do postulado da pureza como método específico do
conhecimento jurídico.
O primado do teórico sobre o empírico, na concepção de conhecimento
kantiana também influenciou a Teoria Pura, o que explicita a característica
principal do racionalismo, desenvolvido pela primeira vez por Platão, que exalta
epistemologicamente o papel da razão no conhecimento. Assim, o conhecimento
prescindiria da experiência, pois os “conteúdos da experiência não dão qualquer
ponto de apoio ao sujeito pensante para a sua atividade conceitual.”23
A discordância do empirismo afasta Kelsen dos demais positivistas do
século XIX, apesar de, como eles, rejeitar o direito natural, o mesmo não aceita a
possibilidade de se desenvolver uma ciência real em sentido estrito.24
Neste sentido, Kelsen é influenciado, ainda, pelo aspecto da Teoria do
Conhecimento de Kant, que objetiva superar a idéia de que existe uma
possibilidade de conhecer a realidade das coisas em si (noumenon), pois, para este
autor, a apreensão da realidade só seria possível pelo fenômeno, que é
subjetivamente produzido.
Tem-se, pois, em um momento pré-científico, os dados — no caso da
ciência do direito seriam as normas jurídicas — que carecem de significação, com
a tematização, estes dados adquirem sentido como objeto unitário que compõe a
ordem jurídica.25
Do que foi dito, pode se sustentar que Kelsen é influenciado, para a
produção do método da pureza metodológica, de um lado por Kant e do outro pelo
positivismo científico, que foram respectivamente redefinidos pelo neokantismo e

22
WARAT, L. A., Los pressupuestos kantianos y neokantinos de la teoria pura del derecho. In:
WARAT, L. A.., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 243.
23
HESSEN, J., Teoria do Conhecimento, p. 67.
24
Id., Filosofia do direito: uma introdução crítica. In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do
direito: o sonho acabou, p. 73.
25
WARAT, L. A., A pureza do poder: uma análise critica da teoria jurídica, p. 28.
49

o positivismo lógico, assim, a Teoria Pura seria a síntese das duas posturas
apresentadas26
A Teoria Pura do Direito desenvolve a função ontológica da Filosofia do
Direito.27 Desta forma, ela procura responder sobre a essência do direito, ao se
ocupar de uma teoria do conhecimento jurídico. Neste sentido, se torna inafastável
uma análise epistemológica para a compreensão dos reflexos da referida teoria.
Warat divide o processo histórico da dogmática28 tradicional, identificada
como a tentativa de construir uma teoria sistemática do direito que não envolva
juízos de valor29na aplicação de seu método jurídico-técnico em três etapas. A
primeira etapa pode ser denominada como exegética30, na qual ocorre a
conceitualização dos textos legais, ou seja, visa o estabelecimento de um conteúdo
exato para a lei.31
Nesta instância metodológica a dogmática identifica-se com a lógica
jurídica, que percebe o conceito da seguinte forma:“El concepto sería entonces,
una categoría conceptual estable, indiscutible, con significación cerrada.”32
A segunda etapa representa a fase dogmatização jurídica propriamente
dita, em que são fixados os dogmas jurídicos e os princípios gerais, que
semiologicamente falando, podem ser considerados como esteriótipos — fórmulas
ocas — que introduzem critérios axiológicos de forma mascarada para que o
ordenamento jurídico obtenha a completude tão sonhada.
O positivismo kelseniano está inserido na terceira fase da dogmática
jurídica33, correspondente à sistematização, que culmina com uma Teoria Geral do
Direito ou uma dogmática geral.

26
Id., Los pressupuestos kantianos y neokantinos de la teoria pura del derecho. In: WARAT, L.
A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 241.
27
Bobbio fala de três funções para a Filosofia do Direito: deontológica, ontológica e
fenomenológica. Cf. WARAT, L. A., Filosofia do direito: uma introdução crítica. In: WARAT, L.
A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 66.
28
A palavra dogmática vem de dokein que significa doutrinar, ensinar. As questões dogmáticas
são regidas pelo “princípio da inegabilidade dos pontos de partida”. In: FERRAZ JÚNIOR, T. S.,
Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação, p. 41-48.
29
WARAT, L. A., Sobre la dogmática jurídica. In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do
direito: o sonho acabou, p. 153.
30
A Escola da exegese francesa é uma doutrina subjetivista de interpretação, que se centra na
vontade do legislador (mens legislatoris), para compreender o sentido da lei bastariam análises
lingüísticas e métodos lógicos. Argumentavam que a interpretação não poderia ficar a mercê dos
intérpretes. V. FERRAZ JÚNIOR, T. S., op. cit, p. 267-269.
31
WARAT, L. A., Sobre la dogmática jurídica. In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do
direito: o sonho acabou, p.154.
32
Ibid., p. 155.
33
Ibid., p. 156.
50

Além da preocupação com a questão epistemológica do discurso jurídico,


Kelsen também estruturou o método da dogmática jurídica para elucidá-lo. Como
a dogmática jurídica tradicional, a Teoria Pura procura “alcançar seu resultado
exclusivamente através da análise das normas jurídico-positivas”.34
Por isso, a Teoria Pura seria um aperfeiçoamento da dogmática jurídica se
apresentando como uma dogmática geral por constituir um esquema de conceitos
básicos35, ou seja, estabeleceria as categorias gerais deste modelo de
conhecimento.
Percebe-se, portanto, que a Teoria Pura pretende ser uma Teoria Geral do
Direito Positivo que seja descritiva, ou seja, que descreva o objeto
normativo.36Como Teoria Geral, ela se ocupa da estrutura lógica das normas e não
dos conteúdos específicos das mesmas.37
Segundo Kelsen, a tarefa da Teoria Geral do Direito seria investigar a
essência do direito, sua estrutura típica, independentemente do conteúdo variante
que teve nas diferentes épocas e países. Como epistemologia, a Teoria Pura do
Direito fornece as normas metodológicas para a adequada produção do saber
jurídico dogmático. 38
A Teoria Pura de Kelsen pretende ser uma teoria geral que, para tanto,
precisa de um método específico e conceitos fundamentais que sirvam para
descrever e conceber qualquer tipo de direito.39
Kelsen tenta criar uma teoria do direito autônoma, sistemática e unitária.
Para tornar esta teoria autônoma o autor em questão utiliza como critério
metodológico o princípio da imputação para selecionar seu objeto40, que
corresponde ao nexo lógico apreendido.
A diferença entre o princípio da imputação e o da causalidade, utilizado
pela “teoría metafísica del derecho”41, reside na dependência ou não da vontade
humana na vinculação entre causa e efeito. No princípio da causalidade esta

34
WARAT, L. A., A pureza do poder: uma análise critica da teoria jurídica.,p. 33.
35
Ibid., p. 38.
36
Ibid., p. 15.
37
LARENZ, K., Metodologia da ciência do direito, p. 85.
38
Id., A partir de Kelsen. In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou,
p. 226.
39
KELSEN, H., ¿Qué es la teoría Pura del Derecho ?, p. 8-9.
40
CALSAMIGLIA A., En defensa de Kelsen.,, p. 16.
41
KELSEN, H., op. cit., p.13.
51

vinculação independe da vontade humana, enquanto que, na imputação, o ato


vinculativo ocorre pela vontade humana com base na norma.42
A imputação surge para atender a necessidade neokantiana de uma
“categoria gnósica fundamental do direito”43. Neste aspecto, a teoria kelseniana se
aproxima do jusnaturalismo, ao idealizar uma categoria que possui funções
mitificadoras: no jusnaturalismo se mitifica o conteúdo do direito e no positivismo
a forma.44
Porém, este critério não é suficiente para diferenciar o direito e os outros
tipos de ordens normativas. Então, o autor recorre ao tipo específico de sanção
para dar conta deste problema. Já para diferenciar sanções morais das jurídicas,
afirma que as últimas são heterônomas. E, finalmente, distingue normas jurídicas
das demais normas sociais pelas sanções jurídicas serem organizadas e
institucionalizadas45.
Sendo assim, o projeto da Teoria Pura fornece uma visão cientificista para
o Direito, que considera a ciência como única fonte de conhecimento válido.46
Assim, ele visa tornar o estudo do direito uma ciência consolidada através do
estabelecimento de um método que permita a delimitação do objeto e mantenha o
rigor e objetividade47 que toda ciência deve ter 48. A teoria positivista afirma que o
único objeto da ciência do direito é o direito ditado pelos homens que se
manifestam em fontes sociais determinadas.
Esta obsessão de Kelsen em tornar o saber jurídico uma Ciência autônoma
decorre do mito do cientista, que é um reflexo da idéia de que os cientistas são
“uma classe especializada em pensar de maneira correta (...),os outros indivíduos
são liberados da obrigação de pensar e podem simplesmente fazer o que os
cientistas mandam.”49
Daí decorre o perigo do mito como pressuposto inquestionável, que
legitima o discurso daquele que fala — o cientista — por serem indivíduos

42
KELSEN, H., ¿Qué es la teoría Pura del Derecho ?, p.12 -13.
43
WARAT, L. A., A pureza do poder: uma análise critica da teoria jurídica., p. 13.
44
Ibid., p. 21.
45
CALSAMIGLIA, A., En defensa de Kelsen., p. 18.
46
Id.,Filosofia do Direito: uma introdução crítica. In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do
direito: o sonho acabou, p. 51.
47
A noção de objetividade adotada por Kelsen compreende a racionalidade inscrita no próprio
real.O real estaria limitado aos enunciados considerados verdadeiros pela comunidade científica
jurídica In: WARAT, L. A. A pureza do poder: uma análise critica da teoria jurídica, p. 23.
48
CALSAMIGLIA, A., op. cit., p. 14.
49
ALVES, R., Filosofia da ciência: introdução ao jogo e suas regras,p.10.
52

competentes e especializados em pensar. O cientista deve ser encarado como um


indivíduo especializado, que possui um refinamento de potenciais comuns a
todos.50
Deve-se reconhecer ainda que a proposta de Kelsen visa à superação da
dogmática jurídica dominante até aquele momento, que ganhava expressão com a
escola da exegese francesa, a jurisprudência analítica nos países da common law e
a jurisprudência conceitual alemã.51
A partir da perspectiva kantiana, Kelsen critica os Jusnaturalistas por
buscarem a afirmação de valores absolutos, determinados, como se esses
existissem metafisicamente, como se fossem uma realidade em si, de alguma
forma representável racionalmente e identificável por sujeitos racionais.52
Apesar de Kelsen seguir a direção investigativa da tradição positivista
desenvolvida no século XIX, acreditava que esta precisava do rigor metodológico
e da neutralidade exigida pelo conhecimento científico53.
O próprio Warat explica em seus Quadrinhos Puros do Direito que a
pureza em Kelsen é a pureza no olhar e não a pureza do objeto olhado, no caso o
direito, o que implicaria na produção de uma teoria pura do saber e não uma teoria
do direito puro. 54
O próprio Kelsen afirma que o erro na compreensão do que se trata de
pureza é realizado por alguns dos críticos de sua teoria, como depreende-se do
seguinte trecho: “Pero la teoría pura del derecho es una teoría pura del derecho,
no la teoría de un derecho puro como sus críticos han afirmado erróneamente a
veces.”55
Este olhar puro ordenador do mundo possui uma influência na Teoria do
Conhecimento kantiana segundo a qual a racionalidade residiria no modo como se
tenta conhecer o objeto e não no objeto em si. Com isso, participamos da
construção do conhecimento.56Kelsen olha o direito com os “óculos” de Kant.

50
Ibid.,p. 11 e 12.
51
WARAT, L. A., A pureza do poder: uma análise critica da teoria jurídica, p.13.
52
ROSA e SILVA, Karen Simões. Das Duas Transformações: Por uma análise metateórica (ou
metamorfósica) de Kelsen., p. 11.
53
CALSAMIGLIA, A., En defensa de Kelsen., p. 9 e 10.
54
Id., Os Quadrinhos Puros do Direito. In: WARAT, L. A., Territórios desconhecidos: a procura
surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade, p. 563-583.
55
KELSEN, H., ¿Qué es la teoría Pura del Derecho ?,p. 30.
56
SGARBI, Adrian. Hans Kelsen (Ensaios Introdutórios), p. 17.
53

A pureza em Kelsen visa a não interferência de outros campos de


conhecimento, para que haja uma leitura própria e específica da juridicidade, ou
de outra forma que haja uma descrição jurídica das normas.57
Algumas conclusões podem ser retiradas da leitura do seguinte trecho
retirado do prefácio da primeira edição da Teoria Pura do direito, em que Hans
Kelsen assume que apesar de, segundo ele, não se poder colocar em questão os
objetivos do postulado metodológico, poderia se questionar”(...) até que ponto tal
postulado é realizável.”58
Entende-se, então, que os objetivos do postulado da pureza metodológica
são facilmente legitimados pelo contexto ideológico cientificista em que viveu o
autor, mas o próprio parecia prever os equívocos que poderiam surgir na tentativa
da sua aplicação.

3.2
Crítica waratiana ao postulado da pureza metodológica

O item anterior, concentrou-se na tarefa de desenvolver um quadro geral


sobre a Teoria Pura do Direito, com o foco no postulado da pureza metodológica.
Com vistas a uma leitura mais fiel possível desta teoria partimos das suas
influências de raízes kantianas para, neste momento, introduzir a análise das
críticas de Warat, principalmente sobre o modo como os juristas percebem e
utilizam a pureza metodológica.
Com isso, não se pretende realizar uma interpretação autêntica da teoria
kelseniana, pois esta tarefa se limita a raríssimos acadêmicos que possuem uma
leitura abrangente e contextualizada de sua obra, além de uma formação
epistemológica e filosófica que torne possível compreender o alcance e,
consequentemente, as limitações de suas obras.
Assim, delineou-se previamente uma interpretação sustentável sobre as
pretensões de Kelsen na sua abordagem, para que se percebam as distorções de

57
SGARBI, Adrian. Hans Kelsen (Ensaios Introdutórios), p. 2.
58
KELSEN, H., Teoria pura do direito,, XIV. Este também é o entendimento de Karl Larenz: “(...)
la Teoría Pura del Derecho es como teoría, sugestiva en alto grado, pero escaso su rendimento para
la práctica.” LARENZ, K. Metodologia de la ciencia de lo derecho, p. 84. 
54

sua metodologia no imaginário do senso comum teórico, que se deve em grande


medida à pretensão de Hans Kelsen de delimitar a Ciência Jurídica em sentido
estrito, excluindo do seu campo de análise a praxis jurídica.
A presente abordagem parte das críticas elaboradas por Warat às
conseqüências da perpetuação da pureza metodológica no senso comum teórico
que estão presentes principalmente em sua obra A pureza do poder: uma análise
critica da teoria jurídica, em que o autor aponta “o princípio da pureza
metodológica como o núcleo do pensamento kelseniano absorvido pelo senso
comum dos juristas”.59
Parte-se, assim, da idéia de que um saber institucionalmente conservado
que ao ser adaptado e captado se torna um “discurso esteriotipado”.60Em nome de
um “pudor academicista”, se neutralizam as zonas opacas do discurso criando
interpretações institucionalizadas que não seriam as mais adequadas sobre o
pensamento kelseniano.
Warat está longe de ser mais um crítico despropositado da Teoria Pura do
Direito. Suas principais críticas estão focadas no discurso universitário sobre a
obra kelseniana ao apontar para o estudo sobre o saber jurídico perpetuado e não
da interpretação autêntica da obra do referido autor. 61
Este ponto é crucial para a real compreensão da observação crítica de
Warat. Cabe, assim, a transcrição do seguinte trecho em que o autor justifica sua
posição em relação ao método kelseniano:

“ seus efeitos ideológicos e políticos não provêm, isoladamente, dos valores que
Kelsen propõe para a construção de uma Ciência do Direito em sentido estrito,
senão pelos efeitos de seu discurso como guia e representação da práxis
jurídica.”62

A princípio, cabe esclarecer o conteúdo da categoria analítica “senso


comum teórico dos juristas”, produzida por Warat como conceito que serve como
referência ao conhecimento constituído, designando “a montagem de noções-
representações – imagens - saberes, presentes nas práticas jurídicas, funcionando

59
WARAT, L. A., A pureza do poder: uma análise critica da teoria jurídica,p. 13.
60
Id., A partir de Kelsen. In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou,
p. 225
61
WARAT, L. A., op.cit., p. 26.
62
Id., Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. In: Epistemologia e ensino do direito: o
sonho acabou, p. 30.
55

como um arsenal de ideologias práticas”.63Assim, o autor em questão compreende


o senso comum teórico dos juristas como “um conjunto heterogêneo de hábitos
semiológicos de referência.”64
Portanto, o senso comum teórico representa os hábitos teóricos, as
constantes em determinado campo intelectual, definindo “o horizonte a partir do
qual se articulam as mensagens científicas.”65
Para explicitar melhor o sentido da categoria em questão, cabe traçar um
paralelo entre o mesmo e o costume de uma comunidade científica. Para
esclarecer a comparação entre o senso comum teórico e o costume cabe apresentar
a definição do mesmo e, para tanto, opta-se pela explicação deste conceito
desenvolvida por Hans Kelsen:

“ Quando os indivíduos que vivem juntamente em uma sociedade se conduzem


durante certo tempo, em iguais condições, de uma maneira igual, surge em cada
indivíduo a vontade de se conduzir da mesma maneira porque os membros de
uma comunidade habitualmente se conduzem.”66

Desta forma o senso comum teórico opera em uma determinada


comunidade científica da mesma forma que o costume age na sociedade. A
conseqüência disto é que os pesquisadores que estudam objetos de conhecimento,
temas ou autores que não condizem com o senso comum teórico dos juristas são
censurados, pela vontade que o referido senso comum gera nestes pesquisadores
para que os demais membros incluídos em sua comunidade científica sigam seus
hábitos teóricos.
Outrossim, quando Warat fala do senso comum teórico como um “arsenal
de ideologias práticas”, o significado de ideologia67 é adotado no mesmo sentido
que o infringe Roland Barthes de “idéia enquanto ela domina”68, por esta
interpretação se mostrar a mais coerente com a idéia de senso comum teórico dos

63
WARAT, L. A. Mitos e teorias na interpretação da lei. Porto Alegre: Síntese, 1979, p.19.
64
Id., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, , p. 31.
65
Id., O lugar da fala: digna voz da majestade. In: (Org) FALCÃO, Joaquim. Pesquisa científica e
direito. Recife: Ed. Massangana, 1983, p. 83.
66
KELSEN, H. Teoria pura do direito, p. 10.
67
O termo ideologia possui diversas definições desenvolvidas por autores como Althusser, Arendt,
Marx e Engels entre outros, daí a importância de delimitar o conteúdo deste termo para
desenvolvermos a presente análise.
68
BARTHES, R., O prazer do texto, p. 41.
56

juristas como guia para a atividade dos profissionais do direito. Neste sentido,
ambos autores apontam para “a subversão de toda ideologia”. 69
Além da ideologia se caracterizar como um pensamento hegemônico, a
mesma tem a função de ocultar obviedades e manter o status quo, o que resta
claro a partir da definição de ideologia que oferecida por Marilena Chauí, segundo
a qual“ ideologia é ideário histórico, social e político que oculta a realidade, e
que esse ocultamento é uma forma de assegurar e manter a exploração
econômica, a desigualdade social e a dominação política”70.
Ressalta-se, que desde dos fins dos anos 70 e início dos anos 80, houve um
desprestígio desta categoria no mundo acadêmico, principalmente contra as
significações de ideologia como um “sistema”, abalada pelas idéias da
heterogeneidade e intradiscurso no ordenamento das formações ideológicas e
discursivas.71
O próprio Warat, nos anos 90, desprestigia o uso deste conceito nas
análises contemporâneas, pois, segundo o mesmo, este termo somente poderia ser
empregado se houvesse paixão, solidariedade e princípios idealizados que não
identificamos na sociedade atual.72
Na presente análise, a delimitação do significado da ideologia aos
pensamentos hegemônicos que visam ocultar obviedades para manter o status
quo, servindo aos processos mitológicos, oferece outra conotação a esta categoria
de análise.
Assim, a ideologia pode ser percebida como uma instância fálica da
linguagem, ou seja, uma organização simbólica que se auto-representa como um
fetiche. Isto gera nos receptores dos discursos um furacão de expectativas fálicas
como, por exemplo, comportamentos infalíveis73, “o êxito sem dificuldades, o
triunfo sem batalhas nem conflitos”74.
O próprio Warat, reconhece que vivemos em uma “modernidade
simulada”75,que instaura a reprodução, a repetição. Nesta linha de pensamento, a

69
BARTHES, R., O prazer do texto, p. 41.
70
CHAUI, M., O que é ideologia.
71
CHARAUDEAU, P,; MANGUENEAU, D. Dicionário de análise do discurso, p. 268.
72
WARAT, L. A.,A condição transmoderna do desencanto com a cultura jurídica. WARAT, L.
A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p 43.
73
Id.., Amor tomado pelo amor: crônica de uma paixão desmedida ,p. 38.
74
Ibid., p. 39.
75
Id., A condição transmoderna do desencanto com a cultura moderna. In: WARAT, L. A.,
Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 44.
57

pureza metodológica e sua repercussão no senso comum teórico dos juristas que
serve como um mecanismo de controle da modernidade, e, portanto, representa
uma ideologia das formas jurídicas, hoje pode ser analisada como uma repetição
de uma crença metodológica que se fixou no imaginário jurídico.
A partir desta perspectiva, Warat desenvolve uma crítica ao princípio
metodológico vertebral da Teoria Pura do Direito utilizando uma abordagem
semiológica do campo jurídico que se presta a demonstrar que todo signo tem um
significado, que só pode ser explicitado a partir de um contexto e de suas
interações político-institucionais.
Warat questiona ainda diretamente a crença kelseniana de que se possa
reconstruir um sistema de conceitos controlados logicamente, que esteja liberado
das articulações ideológicas76, pois para ele sobre o pretexto de racionalização dos
dados e da cientificidade se confirmam valores77, que compõem o conjunto de
crenças e representações que configuram o senso comum teórico dos juristas.
Desta forma Warat critica a pretensão de Kelsen em fundar uma teoria
jurídica apolítica e descompromissada, além dos resultados da interpretação do
saber jurídico kelseniano não atingirem a neutralidade pretendida, mas a
legitimação ideológica da ordem social78.Warat constata que a Teoria Pura cria
uma ilusão da posse de um discurso objetivo, fazendo-se crer no funcionamento
anônimo e imparcial do direito79.
Neste momento, cabe fazer uma digressão sobre o que Kelsen entendia
como interpretação realizada pelos cientistas do direito a partir do postulado da
pureza metodológica, para pontuar de forma mais clara as críticas ora formuladas.
Segundo Kelsen o ato interpretativo pode ser desenvolvido por dois grupos
de sujeitos: os órgãos de aplicação normativa; e os particulares, este grupo inclui
os juristas e os destinatários da norma. O primeiro grupo desenvolve uma
interpretação autêntica; o segundo uma interpretação não-autêntica.80
Os juristas, para que pratiquem ciência, devem adotar uma postura
descritiva frente ao conjunto normativo, revelando o campo de possibilidades
semânticas da norma, apresentando, assim, a “moldura interpretativa”. Não

76
WARAT, L. A., A pureza do poder: uma análise critica da teoria jurídica., p. 20.
77
Id., Mitos e teorias na interpretação da lei, p. 137.
78
Id., A pureza do poder: uma análise critica da teoria jurídica. op. cit., p. 14.
79
Ibid., p. 21 e 22.
80
SGARBI, A., Teoria do direito: primeiras lições, p. 445.
58

comporta ao cientista jurídico a escolha de um dos sentidos, esta seria uma função
de uma interpretação política.81
As proposições jurídicas descreveriam que, em determinadas condições,
um ato é lícito ou ilícito, o que permitiria a antecipação do que é aplicável aos
acontecimentos.82 Esta idéia de que bastaria estabelecer as possibilidades
combinatórias da linguagem técnica, pressupõe um controle da linguagem.
Segundo Kelsen, a linguagem dos cientistas do direito é uma linguagem
descritiva, uma atividade de conhecimento que não exclui qualquer possibilidade
semântica.83
Adrian Sgarbi, ao explicar o papel da Ciência Jurídica, esclarece que é
tarefa desta produzir significação a partir do texto legal:

“... a “ciência jurídica” firma uma relação de “conhecimento” (pretende descrever


aquilo que os “legisladores”, como legisladores, produziram validamente, e o que
significa)” 84

Assim, apesar de Kelsen reconhecer a “inevitável pluralidade de


significações”85, não reconhece a dificuldade, poderia até mesmo dizer a
impossibilidade, da interpretação jurídico-cientifíca ser uma “interpretação
simplesmente cognoscitiva”86. Isto se deve a impossibilidade do cientista do
direito revelar “todas as significações possíveis”87 das normas jurídicas, o que
gera uma escolha do campo das interpretações possíveis pelo mesmos. Com esta
escolha inevitavelmente, cria-se direito.
Em defesa de Kelsen, deve-se esclarecer que o autor reconhece os espaços
de imprecisão da língua ou as chamadas lacunas, mas acredita que o
“...preenchimento da chamada lacuna do Direito é uma função criadora de
Direito que somente pode ser realizada por um órgão aplicador do mesmo...”.88
A questão da pretensa neutralidade científica é criticada por Warat a partir
de duas perspectivas: a do cientista neutro ao analisar um objeto de conhecimento;

81
Ibid,p. 446.
82
SGARBI, A., Hans Kelsen: Ensaios Introdutório (2001-2005), p. 24 e 25.
83
Id., Teoria do direito: primeiras lições, p. 448.
84
SGARBI, A., Hans Kelsen: Ensaios Introdutório (2001-2005), p. 26.
85
KELSEN, H., Teoria Pura do Direito, p. 397.
86
Ibid., p. 395.
87
Ibid., p. 396.
88
Ibid., p. 395.
59

e a neutralidade do enunciado científico elaborado com base em pressupostos,


como o da pureza metodológica.89
A neutralidade científica está intimamente relacionada a uma pretensa
objetividade científica que pressupõe que as cadeias explicativas estão imunes a
qualquer tipo de valoração, com o fim de procurar a verdade como o principal
dever científico. 90
Portanto, pressupõe-se que a interpretação científica do direito é neutra. O
topoi da neutralidade é um importante lugar retórico para a atuação do senso
comum teórico dos juristas.91
O topoi da neutralidade científica advém da ideologia cientificista que não
considera que a opção de um cientista por um método e a expectativa pela
obtenção de determinado resultado configura uma atividade realizada a partir de
escolhas precisas.92
Como visto, Kelsen pretende a despolitização da ciência do direito através
da pureza metodológica. O saber científico para o referido autor seria um saber
estrito, que tem como objeto específico o Direito positivo, não se trata de uma
teoria política, nem de política jurídica. Esta idéia pressupõe uma distinção entre
conhecimento jurídico e política.
Kelsen explica a despolitização como pretensão da Teoria Pura do Direito
nos seguintes termos:“ La despolitización que la teoría del derecho exige se
refiere a la ciencia del derecho no a su objeto, el derecho.”93
A questão central para compreender a crítica waratiana reside na tese, que
está na base do pensamento kelseniano, de que o saber científico não condiciona a
escolha das significações pelos órgãos do sistema de Direito Positivo. Esta tese “é
uma condição de sentido do próprio princípio da pureza metodológica.”94.

89
WARAT, L. A., Filosofia do direito: uma introdução crítica. In: WARAT, L. A., Epistemologia
e ensino do direito: o sonho acabou,op.cit. p. 52.
90
Ibid.
91
Ressalta-se que quando falamos de topoi nos referimos à Tópica-retórica a partir do trabalho de
Theodor Viehweg em que os topois são “lugares comuns revelados pela experiência, aptos a
resolverem problemas vinculados a círculos problemáticos concretos. A objetividade e
neutralidade das proposições jurídicas é captada pelo senso comum teórico dos juristas, criando a
idéia de que o discurso dos cientistas jurídicos é “puro”, despolitizado. Cf. Id. Mitos e teoria da
interpretação, p. 86.
92
CHAUI, M., Convite à filosofia, p. 235.
93
KELSEN, H., ¿Qué es la teoría Pura del Derecho ?, p. 29.
94
WARAT, L. A., A pureza do poder: uma análise critica da teoria jurídica., p.38 ou 29.
60

Kelsen se silencia, desta feita, sobre a influência e poder que as


proposições da Ciência Jurídica possuem na produção e sentido das normas
jurídicas, se atendo apenas ao fato destas não serem juridicamente obrigatórias.95
Negligencia, desta forma, o saber jurídico como campo privilegiado das
evocações significativas.96
A pureza metodológica como critério de significação jurídica, ao excluir
os elementos extranormativos do campo temático da ciência do direito, estabelece
o princípio de imanência significativa que enclausura o sistema, limitando-o às
significações derivadas das normas positivas válidas.97
Daí se depreende que a principal crítica de Warat dirigida a Kelsen se
apresenta em relação às conseqüências de o mesmo ter ignorado o valor político
do conhecimento na práxis, ao propor um saber puro como teoria.
A partir da pureza metodológica se constitui a “epistemologia dos
conceitos”, em que na práxis os conceitos são apropriados pelo senso comum
teórico dos juristas, que os reintroduz nos hábitos significativos (dóxa).98Ocorre
assim o que poderíamos denominar de doxalização da episteme, em que o senso
comum teórico se apropria ideologicamente da pureza kelseniana para contaminar
a práxis de pureza.
A primeira é constituída pelas opiniões comuns representadas por “um
conglomerado de argumentos verossímeis, formados a partir de representações
ideológicas, das configurações metafísicas e das evocações conotativas”. Através
da purificação lógica do conhecimento restaria apenas o conhecimento científico
(a episteme).
A racionalidade científica procurou opor a dóxa (linguagem do senso
comum) da episteme (linguagem científica), o que se percebe na afirmação de
Bachelard de que a ciência se opõe absolutamente à opinião99. A ciência seria
construída, desta forma, contra o “senso comum”, o “conhecimento vulgar.”100 A

95
Ibid., p.30
96
Id., A partir de Kelsen..In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho
acabou,op.cit. p. 229.
97
Id., Do postulado da pureza metódica ao princípio da heteronomia significativa..In: WARAT,
L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 236.
98
Id., Saber crítico e senso comum. In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o
sonho acabou, p. 29.
99
BACHELARD, G., A epistemologia, p. 147.
100
SANTOS, B. S., Introdução a uma ciência pós-moderna, p. 31.
61

construção da ciência dependeria da ruptura epistemológica entre ciência e senso


comum.
A referida tarefa é mais árdua no campo das ciências sociais do que no das
ciências naturais, pois o objeto de estudo da primeira fala e se utiliza da mesma
linguagem de base da ciência.101
Em verdade, a episteme se apresenta como um controle fictício do
conhecimento científico do direito, pois ao observamos a práxis jurídica
percebemos que a episteme se converte em dóxa.
Percebe-se então que o postulado da pureza, ao fornecer as bases
epistemológicas para fundamentar o princípio da “imanência significativa”102
acarreta um reducionismo semiológico por não reconhecer a pluralidade de
centros produtores de significação jurídica, “tais como práticas jurídicas, escolas
de Direito, partidos políticos, instituições sindicais, meios de comunicação de
103
massa, etc.” Este efeito ocorre pois a Teoria Pura fornece bases
epistemológicas para fundamentar o princípio da imanência significativa.
A imanência significativa se fundamenta no mito criado pelos juristas que
crêem na ilusão de que a ciência do direito tem a posse de uma ferramenta
lingüística clara rígida e de limites precisos. Segundo este mito, a linguagem
jurídica não possuiria os mesmos problemas de denotação e conotação da
linguagem cotidiana.
Warat propõe a Heteronomia Significativa em substituição ao princípio da
pureza metodológica em diversos textos, principalmente no livro Mitos e teorias
na interpretação da lei104, em que formula uma “teoria sobre a produção da
significação jurídica”105, com o fim de revelar os âmbitos ideológicos e políticos
das significações jurídicas.
O princípio da Heteronomia Significativa é um critério de sentido oposto
ao kelseniano que estabelece que o processo de produção significativa no campo
jurídico não se limita aos “caracteres lógicos e estruturais extraídos da

101
Ibid.
102
WARAT, L. A., A pureza do poder: uma análise critica da teoria jurídica., p. 21.
103
Ibid., p. 236 e 237.
104
Podemos citar também o texto “Los presupuestos kantianos e neokantianos de la teoria pura del
derecho.” In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 241.
105
Id., Do postulado da pureza metódica ao princípio da heteronomia significativa. WARAT, L.
A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 235.
62

interpretação do Direito Positivo”, mas também de sentidos advindos do saber


acumulado e de condições da vida social.106
O significado das normas não pode ter um caráter meramente estrutural
fornecido somente pelo sistema de normas válidas, os elementos extranormativos
devem integrar a produção de significados para a dinamização da interpretação
das leis. As palavras da lei não podem funcionar como fontes exclusivas de
produção da significação jurídica.107
Neste sentido, a presente análise ao se focar no conceito de senso comum
teórico dos juristas privilegia a produção de significação jurídica da ciência do
direito, para apontar a sua influência na formação dos juristas.108
Neste contexto, as críticas de Warat permitem identificar que a coerência e
a vigilância lógico-conceitual pretendidas pelo ideal de objetivação moderno
acarretam uma aparência de rigor e a produção de dogmas, que ao serem
colocados fora de suspeita, exorcizam a detecção dos efeitos políticos do discurso
jurídico.

106
Ibid., p. 238.
107
WARAT, L. A., Los presupuestos kantianos e neokantianos de la teoria pura del derecho. In:
WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou,op.cit., p. 253 e 254.
108
Id., Do postulado da pureza metódica ao princípio da heteronomia significativa.. In: WARAT,
L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 238-239.
4
A dimensão mítica da pureza metodológica como
obstáculo epistemológico

“Ciencia y mito son agentes, con que la


cultura cuenta para dominar el mundo.”1

Luis Alberto Warat

4.1.
O Processo de mitificação da pureza metodológica

A partir da compreensão que o campo de análise ora estudado é o do saber


perpetuado no senso comum teórico dos juristas e de um saber juridicista, adentra-
se para a percepção do postulado da pureza metodológica como espaço
privilegiado para a produção mítica.
Neste sentido, a presente análise atua no campo da crítica jurídica a partir
de uma perspectiva semiológica, fato que estabelece coerência com a adoção de
Luis Alberto Warat como referência, pois o instrumental semiológico perpassa
toda a sua produção acadêmica.2
Com este propósito, esta abordagem semiológica vem sendo realizada para
contextualizar a dimensão mítica do postulado estudado, ainda mais evidente

1
WARAT, L. A., La filosofia lingüística y el discuso de la ciência social. In: Revista CCJ da
UFSC. n. 1.
2
Antonio Carlos Wolkmer estabelece uma periodização do pensamento waratiano, a partir de um
diálogo com o Prof. Horácio W. Rodrigues, em três momentos significativos: “a Semiologia
Analítica (formação); a Semiologia Política (temporalidade inovadora e afirmação) e a Semiologia
dos Desejos (amadurecimento).” In: WOLKMER, A. C., Introdução ao Pensamento Jurídico
Crítico, p. 117.
64

quando se trabalha no campo da mitologia3, desenvolvida por Roland Barthes,


como referência.
A partir do estudo sobre mitos elaborado por Roland Barthes compreende-
se que “tudo pode constituir um mito”4 inclusive um método, um critério, um
postulado como a pureza metodológica de Kelsen, sempre quando pode ser
julgado por um discurso.
No estudo do mito no imaginário jurídico se utiliza os ensinamentos de
Roland Barthes, que trata o mito como um sistema semiológico5. O referido autor
afirma que o leitor do mito naturaliza os conceitos como se o significante criasse
o significado.6 Não percebe assim o autor que o mito é um sistema semiológico de
valores e passa a acreditar que é um sistema indutivo de fatos.7Desta forma, o
postulado da pureza metodológica se torna uma verdade inquestionável no campo
jurídico.
A opção por adotar Barthes como referência para uma abordagem
semiológica se deve também a influência do referido autor nas análises
semiológicas desenvolvidas pelo próprio Warat e na perspectiva de empregar a
semiologia como instrumento de denúncia.8
Ademais, Warat utiliza os ensinamentos de Barthes ao tratar dos mitos na
interpretação jurídica em sua obra, anteriormente mencionada, Mitos e teorias na
interpretação da lei. Nesta ocasião conclui que o mito se identifica com a
ideologia política, ou seja, o processo mitológico coloca suas crenças a serviço da
ideologia.9O discurso mitológico esvaziaria o real criando uma situação de
conformação social.10
Sendo assim, na análise de um processo de mitificação parte-se para a
análise do mito como uma fala através da semiologia ou, para ser mais específico,
da mitologia como fragmento desta última, visando o estudo das formas, as
significações, independentemente do conteúdo.11

3
Roland Barthes desenvolve o referido conceito, adotado neste estudo, em seu livro intitulado
como Mitologias.
4
BARTHES, R. Mitologias, p. 199.
5
Ibid., p.201.
6
Ibid., p.221.
7
Ibid., p.220.
8
Ibid., p. 5.
9
WARAT, L. A., Mitos e teorias na interpretação da lei., p.128.
10
Ibid., p.129.
11
BARTHES, R., Mitologias, p. 201.
65

Porém, para que não se recaia no mesmo equívoco reducionista da pureza


metodológica, ao excluir outras abordagens na análise do fenômeno jurídico, a
mitologia inclui em sua análise, visando mitigar o referido reducionismo, uma
abordagem da ideologia como “ciência histórica”12.
Portanto, a mitologia passa a estudar “idéias-em-forma.”13, por fazer parte
simultaneamente da semiologia e da ideologia considerando que “(...) quanto mais
um sistema é especificamente definido em suas formas, mais dócil é à crítica
histórica.”14
Para atingir estes fins, a semiologia se desvincula da lingüística, como
pólo formal de reflexão, se abre aos campos da Sociologia e Teoria Política, para
que a linguagem seja percebida como lugar de conflito, um espaço de diferenças.
Abre-se então espaço para a transdisciplinariedade, na perspectiva
apresentada por Leonel Severo Rocha, no estudo do mito. Neste sentido, a análise
transdisciplinar com seu caráter pluralista é preferida à análise
“departamentalizada (monolítica)”15, que se limita às análises jurídicas, apesar das
dificuldades ocasionadas pela necessidade do pesquisador ter um conhecimento
amplo em diversas disciplinas simultaneamente.
Roland Barthes utiliza as categorias propostas por Saussure considerando a
linguagem como um sistema de signos em que cada signo é composto por duas
partes: um significante (signifiant) e um significado (signifié), assim, aponta para
a relativa autonomia da linguagem em relação à realidade, ou seja, o signo é
arbitrário16 e mutável dado a possibilidade de desvio da relação entre
significante/significado.17
A análise dos referidos signos pode ser realizada a partir de dois planos
lingüísticos: a linguagem - objeto e a metalinguagem. O primeiro é o plano que se
fala e o segundo onde se fala do que se fala.18 A metalinguagem é um recurso

12
BARTHES, R., Mitologias, p. 203.
13
Ibid., p. 203.
14
Ibid., p. 202.
15
ROCHA, L. S., A problemática jurídica: uma introdução transdisciplinar, p. 18.
16
Segundo Saussure o signo total é a combinação do conceito (significado) e da imagem acústica
(significante). Além disso, considera que o significante e o significado estão unidos por um laço
arbitrário, o que torna o próprio signo arbitrário. SAUSSURE, Ferdinande. Curso de Lingüística
Geral, p. 81.
17
WARAT, L. A., O direito e sua linguagem, p.25.
18
ROCHA, L.S., Epistemologia Jurídica e Democracia, p. 67.
66

essencial para superar as armadilhas da hermenêutica jurídica, Roland Barthes a


explica da seguinte forma:

“Uma metalinguagem é um sistema cujo plano de conteúdo é, ele próprio,


constituído por um sistema de significação; ou ainda, é uma Semiótica que trata
da Semiótica.”19

Barthes revisita sua teoria sobre o mito assumindo-a como uma questão
translingüística incorporada na prática que possui uma relação dialética com o
imaginário, que é o campo de atuação do senso comum teórico dos juristas.
O senso comum teórico dos juristas produz significados no momento da
propagação da pureza metodológica, se configura como metalinguagem, uma fala
sobre este postulado. O mito como segunda língua que fala da primeira, também é
uma metalinguagem,20 com isso propõe-se que o senso comum teórico dos juristas
produz uma fala mítica sobre o postulado da pureza metodológica.
A análise gera, portanto, uma reflexão sobre a metalinguagem, logo tem o
foco no senso comum teórico dos juristas ao invés de se ocupar com a pretensão
da interpretação autêntica, ou ao menos sustentável do postulado da pureza que
representa a linguagem-objeto deste estudo. Neste sentido, cabe o ensinamento de
Roland Barthes sobre a tarefa do semiólogo para definir a tarefa de revelação dos
mitos como uma perspectiva de análise mais ampla sobre o signo global:

“Refletindo sobre uma metalinguagem, o semiólogo já não deve se interrogar


sobre a composição da linguagem-objeto e já não deve se ocupar com o detalhe
do esquema lingüístico: dele só terá de considerar o termo total ou signo global,
e apenas na medida em que este termo se preste ao mito.”21(grifo nosso)

No entanto, quando se reflete sobre o mito como metalinguagem a partir


de uma “linguagem revolucionária”, que “(...) não pode ser uma linguagem mítica
[neste sentido] a revolução se define como um ato catártico, destinado a revelar a
carga política do mundo” 22. Na realidade trata-se de uma outra metalinguagem
por se configurar em uma fala sobre a dimensão mítica de um postulado, em que
se fala para transformar e não para conservar, com o fim que a metalinguagem
seja reenviada a uma linguagem-objeto inviabilizando a reprodução do mito.23

19
BARTHES, R., Elementos de Semiologia, p.96.
20
Id., Mitologias, p. 206
21
Ibid., p. 206.
22
Ibid., p. 238.
23
Ibid., p. 238
67

Esta é a tarefa que se dispõe a executar, quando se busca desenvolver uma


leitura que implique em uma interpretação sustentável sobre as pretensões de
Hans Kelsen em sua obra mais conhecida. Ao elaborar a pureza metodológica
como cerne da Teoria Pura do Direito, além da contextualização desta teoria a
partir do paradigma moderno retorna-se a linguagem-objeto da presente análise,
como forma de deslegitimar o discurso que se apóia na mitificação do postulado
da pureza metodológica.
Este processo de mitificação, que ocorre ao adentrarmos no campo da
práxis jurídica, torna os critérios de purificação metodológica uma crença
vinculada a uma atividade profissional. Com isso, os juristas de ofício se
transformam em meros operadores técnicos da legislação e esquecem que seu real
objeto são as relações sociais.
No momento em que os juristas convertem episteme em dóxa na práxis, os
critérios da pureza metodológica se tornam um mito, ou seja, cria-se uma ilusão
de uma atividade profissional pura.
Esta mitificação decorre da constatação que a epistemologia jurídica
tradicional,24 não considera o valor político do conhecimento na prática, gerando
uma apropriação da idéia de um conhecimento despolitizado pelos juristas de
ofício.
A dimensão mítica da pureza metodológica se revela, quando ocorre a
abstração das condições que presidiam sua produção, ao se tornar um critério
epistemológico institucionalmente legitimado para a Ciência do Direito.
Outro aspecto relevante na análise da dimensão mítica da pureza
metodológica considera a necessária integração das normas jurídicas aos
elementos extranormativos, que dinamizam o acontecer jurídico no ato
interpretativo.25Os sentidos das normas jurídicas são linguisticamente e
socialmente determinados, “não são conteúdos unívocos, nem axiomas de

24
O postulado da pureza metodológica estabeleceu uma proposta epistemológica para a Ciência do
Direito, que implica em uma visão objetiva, rigorosa e metódica da dogmática jurídica. Desta
forma se configura como uma “ciência das ciências jurídicas”. Cf. WARAT, L. A., Filosofia do
direito: uma introdução crítica. In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho
acabou, p. 74.
25
Id., Do postulado da pureza metódica ao princípio da heteronímia significativa. In: WARAT, L.
A. Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 237.
68

automática aplicação, nem premissas inquestionáveis, que mediante o silogismo


lógico, conduzem a conclusões indubitadas”.26
Assim, o processo de produção da significação jurídica não se limita aos
caracteres lógicos e estruturais extraídos da interpretação do direito positivo. A
eliminação do plano cognoscitivo das representações, imagens, costumes,
preceitos valorativos e teóricos não os tornam inoperantes nas práticas jurídicas. 27
Com isso, sob o pretexto da necessária despolitização e neutralização do
conhecimento científico, a pureza metodológica passa a operar como “código
latente”28 que influencia no pensar e agir dos profissionais do campo jurídico.
A dogmática jurídica como teoria geral estabelecida por Kelsen com suas
categorias, dogmas conceitos, classificações e pureza possuem a função
ideológica de manter o status quo. Neste sentido, os juristas são percebidos da
seguinte forma: “O jurista de construtor transforma-se em tutor, guardião, vigia e,
principalmente cúmplice da dogmática jurídica.”29
A mitificação surge no momento em que as problemáticas inseridas na
Teoria Pura30 perdem, ao longo do tempo, a sua singularidade argumentativa
através de mecanismos redefinitórios elaborados pelo senso comum teórico que
vem carregado de crenças e estereótipos da dogmática jurídica clássica. 31
As conotações elaboradas nas proposições jurídicas são facilmente
articuláveis com o sistema de conotações da dogmática jurídica e das doutrinas

26
WARAT, L. A., Do postulado da pureza metódica ao princípio da heteronímia significativa..
In: WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou., p. 238.
27
Ibid.., p. 238.
28
Id., A pureza do poder: uma análise critica da teoria jurídica, p. 55
29
CAVALLAZZI, R. L., O Jurista e as Ideologias. In: Revista de Teoria Jurídica - Práticas
Sociais – NIDS. Vol. 1, p.89.
30
As problemáticas inseridas na Teoria Pura do Direito visavam constituir um sistema conceitual
que fornecesse normas metodológicas e categorias gerais para a produção de um saber dogmático
geral. WARAT, L. A., A partir de Kelsen. WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o
sonho acabou, p. 226.
31
Ibid.., p. 226.
69

jusnaturalistas32. Desta forma, devem-se criticar as apropriações kelsenianas


executadas pela doutrina jurídica. 33
A apropriação da episteme, produzida nos moldes da pureza metodológica,
pelas crenças do imaginário jurídico, que compõe o que chamamos de senso
comum teórico dos juristas, apontam para os equívocos de se considerar o senso
comum e ciência jurídica como opostos.
O senso comum teórico dos juristas como conceito analítico que
representa um consenso que serve de guia para uma comunidade cientifica, deixa
clara a impossibilidade desta oposição, além de evidenciar o óbvio: que o
considerado conhecimento científico no campo jurídico é adquirido através de um
“processo de desenvolvimento progressivo do senso comum”.34
Desta forma procede a seguir uma análise mais detalhada da dimensão
mítica do postulado da pureza metodológica no senso comum teórico dos juristas.
Inicia-se pela identificação do esquema tridimencional35 que pode ser identificado
no mito, abarcando o significante, o significado e o signo.
O mito se constitui como “um sistema semiológico segundo”-
metalinguagem- em que o primeiro sistema semiológico- linguagem-objeto- se
torna apenas um significante.36 Para Roland Barthes hoje o mito é uma fala, uma
linguagem, uma mensagem, um sistema de comunicação, um modo de
significação. Não se trata, portanto, de um conceito, é uma forma.37
Cabe especificar algumas discriminações terminológicas designadas por
Roland Barthes ao tratar do sistema mítico. O signo do primeiro sistema (plano da
língua) se torna apenas um significante no segundo (plano do mito). 38
O signo, na terminologia empregada por Saussure, é composto pela união
de um significante e de um significado, trata-se, portanto de uma realidade

32
Segundo Bobbio, o jusnaturalismo aposta no direito natural que seria obtido através da razão, já
que advém da natureza das coisas. O direito natural é universal, imutável e pode ser percebido a
priori. O jusnaturalismo constitui um ramo da história da filosofia acerca do caráter real do direito
e da sociedade se configurando como filosofia social.Neste sentido, é importante a visão de
Wieacker ao ressaltar que apesar do jusnaturalismo assumir com freqüência um caráter de
movimento de resistência, está relação não é necessária pois o mesmo é por natureza um método
do conhecimento do direito.Cf. BOBBIO, N., O positivismo jurídico: Lições de filosofia do
direito, p. 22.WIEACKER, F., História do Direito Privado Moderno, p. 280
33
WARAT, L. A., A pureza do poder: uma análise critica da teoria jurídica., p.21.
34
ALVES, R., Filosofia da ciência: introdução ao jogo e suas regras, p. 12.
35
Cf. SAUSSURE, F., Curso de Lingüística Geral , 2004.
36
BARTHES, R., Mitologias, p.205.
37
Ibid., p. 199.
38
Ibid.,p.206.
70

bifacial.39 O plano dos significantes consiste em um plano de expressão (a forma)


e o dos significados um plano de conteúdo (a substância). Para se descrever a
forma não é necessário recorrer a premissas extralingüísticas, o que se faz
necessário na descrição da substância.40
O significante – plano de expressão (E)- é uma representação psíquica da
coisa que pode ser imaterial, já o significado – plano de conteúdo (C)- é um
mediador que é sempre material. A significação (R) é um processo que une
significante e significado, ou seja, é um ato que resulta no signo (ERC).41
Além disso, para Barthes no sistema mítico sentido é o significante que se
origina do primeiro sistema semiológico, no plano da língua; no plano do mito,
chama-o de forma.42Nos dois planos, significado denomina-se conceito. A
correlação entre os dois termos – significante e significado (conceito), no plano da
língua; sentido e conceito, no plano do mito – origina o signo no plano da língua e
a significação no do mito.43
O que importa neste ponto é entender que o senso comum teórico dos
juristas, como metalinguagem, toma o significado da Ciência do Direito proposta
por Kelsen, com base na pureza metodológica, para compor um sistema
semiológico mítico, como fuga do conteúdo significativo pretendido pelo autor
com seus limites impostos à interpretação científica do direito, que constituía o
signo de um primeiro sistema semiológico, ou seja, o plano da expressão ou forma
do mito.
O sentido do mito tem uma história, um valor próprio44, uma riqueza que é
afastada pela forma, para que se tenha espaço para a produção de uma
significação.45O sentido perde seu valor, mas não morre se prestando a esconder a
forma do mito.46
O mito atua nos espaços onde o sentido já está diminuído e, portanto,
disponível para uma nova significação. É o que acontece no caso pureza

39
SAUSSURE, F., Curso de Lingüística Geral, p. 81.
40
Id., Elementos de Semiologia,. p. 43.
41
BARTHES, R., Elementos de Semiologia,. p. 46-51
42
Id., Mitologias, p. 206.
43
Ibid., p. 206 207.
44
Ibid., p. 208.
45
Ibid., p. 209.
46
Ibid., p. 209 .
71

metodológico que, por muitos autores, foi entendida como pureza do próprio
direito.47
Além disso, um dos motivos da incompreensão do projeto da Teoria Pura
do Direito seria o fato de Kelsen ter como alvo a mentalidade jusnaturalista, que
prevalecia entre os professores universitários que transmitiram a Teoria Pura do
Direito. Assim o pensamento de Kelsen foi passado aos alunos de forma
equivocada, diabolizada, pois segundo os “jus-professores” 48 o autor buscava a
separação entre o direito e a moral.49
O mito, como fala despolitizada, traz a pureza metodológica como critério
que despolitiza a Ciência Jurídica, para uma despolitização da práxis e
conseqüente a-historicidade. Barthes define política, neste caso, em um sentido
amplo “como conjunto das relações humanas na sua estrutura real, social, no
poder de construção do mundo”.50
O significado do primeiro sistema semiológico, no caso em questão,
advém da importância e repercussão da Teoria Pura do Direito na produção e
consolidação de uma ciência jurídica em sentido estrito. O referido conceito
(significado) é afastado para que surja uma significação que implique na pureza
na práxis em que o “operador do direito” se abriga no paraíso conceitual.
A perpetuação da pureza metodológica no senso comum teórico dos
juristas, como sistema semiológico dominante é impositivo na prática jurídica,
aliás, este caráter impositivo é uma das funções de um mito.51
A captura da pureza metodológica pelo senso comum teórico dos juristas
originou o plano do mito, que tornou o conteúdo dado por Kelsen a este postulado
em um significante - forma do mito - permitindo surgir uma significação que
legitima a purificação da prática jurídica, que se manifesta no âmbito
interpretativo, para que o operador assuma a função de mero técnico,52 “operador
do direito” e não um produtor de significados, ou seja, um intérprete.

47
SGARBI, A., Hans Kelsen: Ensaios Introdutório (2001-2005), p. 2.
48
WARAT, L. A., Os quadrinhos puros do direito. In: WARAT, L. A., Territórios
desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da reconstrução da
subjetividade, p. 570.
49
Como dito anteriormente, o argumento que Kelsen pretendia desvincular o direito da moral é
falso, já que seu objeto de estudo, sua preocupação é com as possibilidades de instituição de uma
Ciência do Direito e não com o direito diretamente. Cf.Ibid., p. 571.
50
BARTHES, R., Mitologias, p. 235
51
Ibid., p. 208.
52
Como se fosse possível a neutralidade da técnica jurídica.
72

Naturaliza-se, pois, o conceito de que o “operador do direito” ao


interpretar está elaborando um trabalho técnico, não considera que a relação entre
significante e significado das palavras contidas nas normas é arbitrário e sim
controlado epistemologicamente.
Aliás, Barthes identifica na sua fase de crítica social a função do mito para
naturalizar as mensagens, quando trata principalmente em seu livro Mitologias da
utilização do mito nas mídias53 na naturalização das mensagens ideológicas da
classe burguesa.54
O conceito (significado do mito) é histórico e intencional, funcionando
como a força que move o surgimento do mito.55 No caso do mito em questão, a
sua força motriz advém da necessidade de manter a ordem estabelecida através de
conceitos unívocos que geram uma imagem de certeza e segurança na atividade
interpretativa dos “operadores do direito”56. A finalidade da fala mítica neste caso
reside na permanência do projeto dos que adotam os paradigmas modernos, de
previsibilidade, segurança e certeza.
O senso comum teórico designa as “normas que disciplinam
57
ideologicamente o trabalho profissional dos juristas” , funciona como um pano
de fundo – forma do plano do mito- que condiciona o trabalho de juízes,
professores, advogados, defensores, promotores, doutrinadores e demais
profissionais da área jurídica.
Pode-se questionar que uma metodologia de uma teoria científica como a
Teoria Pura do Direito - que visa a reconstrução do real - difere de uma teoria
ideológica, que analisa o senso comum teórico como parte da constituição do
real.58 Este argumento só reforça a tese da captação de um método de uma
pretensa teoria científica fundada no senso comum teórico, lhe fornecendo uma
dimensão mítica.

53
Roland Barthes desenvolve uma crítica ideológica a linguagem da cultura de massa, entre elas a
publicidade que, segundo o autor, mascara as verdadeiras funções do produto atribuindo-lhe
significados ilusórios. Barthes exemplifica este uso ilusório da imagem com o produto OMO, que
se utiliza da idéia de profundidade e da espuma em sua maciça publicidade. A profundidade da
limpeza e o luxo da espuma mascaram a função abrasiva do detergente. BARTHES, R.,
Mitologias, p. 39-41.
54
NÖRTH, W., A Semiótica no Século XX, p. 151.
55
BARTHES, R., Mitologias, p. 209.
56
Os operadores do direito são estes seres que habitam o paraíso conceitual de conceitos unívocos.
57
WARAT, L. A., Mitos e teorias na interpretação da lei, p. 19.
58
Ibid., p. 11.
73

O senso comum teórico, como teoria ideológica, organiza os dados da


realidade no intuito de assegurar a reprodução de critérios morais, valores e
práticas dominantes, através do atendimento de seus princípios e diretrizes. 59
A tarefa de “caça ao mitos”, enunciada na introdução do presente trabalho,
só se concretiza com a percepção de que a pureza metodológica kelseniana é
utilizada pela prática jurídica como “álibi”60 para perpetuar valores que atendem
aos objetivos dos normativistas. Assim, Warat detecta a função mítica do senso
comum teórico, no uso de dados como “álibi consolidador de valores”. 61
Para uma melhor compreensão dos reflexos do senso comum teórico dos
juristas sobre os profissionais do direito, é pertinente a metáfora sobre as sereias
que estavam no caminho da embarcação de Ulisses, segundo o relato de Homero.
O senso comum teórico dos juristas representa o eco das vozes das sereias
institucionais, o seu canto advém dos juristas que perpetuam o pensamento
positivista hegemônico.62
Os juristas são, ao mesmo tempo, sereias e marinheiros que se embriagam
e são devorados em razão de seu próprio canto. O eco das sereias institucionais
leva os juristas a se atirarem ao mar, que acreditam ser calmo, com poucas ondas e
ventos o que gera uma segurança, não querendo acordar deste sonho e reconhecer
o mar revolto da imprecisão e incerteza.
Neste momento, retorna-se a análise dos signos para a identificação de que
a dimensão mítica da pureza metodológica se revela não apenas na sua capturação
do senso comum teórico dos juristas na práxis jurídica pelos juristas de ofício,
mas também na sua pretensão de despolitizar a fala dos pseudo cientistas
jurídicos.
Adota-se como ponto de partida a análise dos signos pela sua identificação
em três níveis: o sintático, semântico e pragmático. O nível sintático ocupa-se da
relação dos signos entre si; o nível semântico das relações dos signos com o
mundo; o pragmático com o uso dos signos.63

59
Ibid., p. 20.
60
BARTHES, R., Mitologias, p. 221.
61
WARAT, L. A., Mitos e teorias na interpretação da lei. op. cit., p.21.
62
A idéia utilizar o eco das sereias como metáfora que critica o normativismo partiu de Warat em
entrevista em que se adotou a técnica de entrevista semi-estruturada, a partir de roteiro aberto.
Com isso, buscou-se a narrativa o mais natural possível mediante o incentivo das lembranças da
trajetória acadêmica do pesquisado, além do autor tratar de temas que pretende desenvolver em
futuras obras.
63
ROCHA, L. S. Epistemologia Jurídica e Democracia, p 67.
74

A ciência do direito, proposta por Kelsen, ao ser uma fala sobre as normas
jurídicas - linguagem-objeto - se configura também como metalinguagem64, que
visa somente descrever a norma jurídica, situando-se, apenas, no nível semântico
e sintático do signo (norma jurídica).
Nesta perspectiva a pureza metodológica apresenta uma dimensão mítica
por não perceber que a atividade do jurista constitui necessariamente espaços
políticos que produzem significados que se conformam a uma ideologia, ou seja,
por exclui o plano pragmático na análise dos signos.65
Nesta abordagem, se pretende demonstrar no processo de despolitização
como pano de fundo a “resistência apaixonada a qualquer sistema redutor.”66 O
sistema redutor ora analisado é o modelo reducionista das significações jurídicas,
que funciona como suporte ideológico – também chamado de “epistemologia dos
conceitos”67- resultante da mitificação da pureza metodológica.
Ao se adotar o pressuposto apresentado por Roland Barthes de que todo
discurso está envolvido pelo poder, independentemente do lugar da fala,68 é
possível observar como o saber científico do direito sofre inevitavelmente as
influências do contexto social no momento de produção das significações
jurídicas.69
Com isso, deve-se reconhecer a dimensão do poder não somente na prática
jurídica, mas reconhecê-la na atividade da ciência jurídica que se expressa na “luta
ideológica pelas significações”70. Partindo do pressuposto de Roland Barthes,
apresentado acima, pode-se falar do poder como uma condição de sentido das
proposições científicas.
Delineada desta forma a semiologia, como um instrumento epistemológico
para a análise das significações, torna-se adequada, portanto, para uma
“epistemologia das significações”.71

64
Ibid., p 93.
65
WARAT, L. A., A pureza do poder: uma análise critica da teoria jurídica, p. 35
66
BARTHES, R., A câmara clara: nota sobre fotografia , p. 30.
67
WARAT, L. A. O lugar da fala: digna voz da majestade. In: (Org) FALCÃO, Joaquim.
Pesquisa científica e direito.,p. 82.
68
BARTHES, R., Aula, p.10.
69
WARAT, L. A., A pureza do poder: uma análise critica da teoria jurídica., p. 20 .
70
Ibid., p. 23.
71
Id., O lugar da fala: digna voz da majestade. In: (Org) FALCÃO, Joaquim. Pesquisa científica
e direito, p.83.
75

Nesta ótica, a dimensão mítica da pureza metodológica se apresenta tanto


na sua perpetuação no senso comum teórico, quanto na sua pretensa
despolitização da Ciência no campo jurídico. Esta constatação permite as
reflexões a seguir que percebem a dimensão mítica do referido postulado como
um obstáculo epistemológico para a implementação de sistemas ilusórios
criativos, que permitam o desenvolvimento de um pensamento jurídico crítico.

4.2
A pureza metodológica: obstáculo epistemológico na perspectiva de
um pensamento crítico

Após a demonstração da dimensão mítica do postulado da pureza


metodológica na atividade dos profissionais jurídicos, incluindo os pseudo
cientistas do direito, cabe inserir de forma mais aguda na presente análise a
categoria analítica obstáculo epistemológico72 introduzida por Gaston Bachelard
em seu estudo sobre a história do pensamento científico.
Bachelard coloca o problema do conhecimento científico a partir da idéia
de obstáculo epistemológico, assim esta categoria é o cerne da proposta
epistemológica bachelardiana.73
Este conceito essencial na epistemologia bachelardiana surge no ato de
conhecer e “se incrusta no conhecimento não discutido”74, o que acarreta
estagnação, inércia e até regressão para a pesquisa, já que se pode recorrer a
recursos inadequados para a solução de problemas. O caráter paralisante e
impositivo dos valores e crenças do senso comum teórico dos juristas são, neste
ponto de vista, um conhecimento incrustrado.
Desta forma, o referido autor apresenta os conhecimentos anteriores
incrustrados como um dos obstáculos epistemológicos ao ato de conhecer:

72
BACHELARD, G. A epistemologia, p.147.
73
Ibid., p. 147.
74
Ibid., p. 148.
76

“No fundo, o ato de conhecer dá-se contra um conhecimento anterior, destruindo


conhecimentos mal estabelecidos, superando o que, no próprio espírito, é
obstáculo à espiritualização.”75

Bachelard desenvolve sua teoria com o fim de estabelecer o abandono da


comodidade científica e afirma que se encontrará mais no real oculto do que no
dado evidente, ou seja, ele propõe que se deve trabalhar na zona escura,
desconhecida76. Para o referido autor os novos pensamentos projetam uma luz
sobre os conhecimentos anteriores incompletos, com a utilização de novos
métodos77.
O que se pretende ao adotar a categoria analítica obstáculo epistemológico
de Bachelard, não é travar uma guerra contra qualquer conhecimento que advenha
do senso comum em geral ou no teórico, mas refletir que para que o pesquisador
inove, ou seja, desenvolva um pensamento crítico, deve conhecer contra um
conhecimento anterior, questionando-o, através de uma vigilância epistemológica.
Esta construção teórica de zona clara e escura no ato de conhecer,
desenvolvida por Bachelard está implicitamente presente na metáfora utilizada por
Luis Alberto Warat, em sua obra “A Ciência Jurídica e seus dois maridos”.78
A metáfora que corresponde perfeitamente às idéias de Bachelard é a que
descreve os momentos em que Teodoro e Dona Flor escolhem para se amar, pois
o mesmo sempre apaga a luz79. Este comportamento aponta para a cultura do
pecado, do segredo, “de produções de silêncios que fundam o autoritarismo e a
castração”. 80
Desta forma, Teodoro funciona contra a idéia do novo espírito científico
proposto por Bachelard, por ser uma representação do imobilismo científico, se
prestando a manter escuras as zonas de conhecimento, intuito sempre presente nos
processos de mitificação. Já Vadinho representa o espírito jovem, sem
preconceitos 81, com a sua malandragem, desejos e fantasias permite à Dona Flor
encontrar “a possibilidade de desejar o novo”.82

75
BACHELARD, G., A epistemologia, p. 147.
76
Id., O novo espírito científico, p.33.
77
Ibid., p.16.
78
WARAT, L. A., Ciência Jurídica e seus dois maridos. Santa Cruz do Sul: FISC, 1985.
79
Esta luz representa os novos pensamentos na obra de Bachelard.
80
Id., Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono do sentido e da
reconstrução da subjetividade,, p. 70.
81
BACHELARD, G., A epistemologia., p. 148.
82
WARAT, L. A. Ciência Jurídica e seus dois maridos, p. 20.
77

O desenvolvimento de um saber crítico ao pretender romper com as teorias


tradicionais e criar um novo objeto para os estudiosos do direito atende as idéias
do novo espírito científico, defendidas por Bachelard. Para este autor o caráter
inovador do espírito científico acarreta o alargamento dos quadros de
conhecimento, com uma atitude reflexiva que busca compreender o que não se
compreendera83.
Esta categoria ajuda a confirmar a idéia bachelardiana contra o espírito
(postura) que prefere o que confirma seu saber, prefere, então, responder a
questões84. Diversamente, a proposta de uma ciência de devires, de fluxos
constantes, visa que a pesquisa científica não forneça respostas definitivas, mas
provoque respostas.85
Neste sentido Bachelard coloca ao jurista - como pesquisador- a tarefa de
“pôr a cultura científica em estado de mobilização permanente, substituir o saber
firmado e estático, por um conhecimento aberto e dinâmico”86, tarefa esta que o
próprio autor amplia para o educador que enfrenta “obstáculos pedagógicos”87.
Através da apropriação do significado desta categoria, pode-se falar que a
dimensão mítica da pureza metodológica kelseniana se apresenta como um
obstáculo epistemológico para a implementação das propostas que apontem para
uma “ciência jurídica” e um ensino jurídico críticos como, por exemplo, a
proposta transurrealista waratiana.
Nesta monta, pode-se afirmar que o próprio Warat adota a postura do novo
espírito científico proposta por Bachelard, pois está sempre rejuvenescendo por
aceitar as mutações que contrariam o passado88.
Neste sentido, Agostinho Ramalho Marques Netto na apresentação do
livro escrito por Warat “O amor tomado pelo amor” explica a escritura do mesmo,
corroborando com a idéia de rejuvenescimento do autor:

“Há em Warat uma radical insatisfação perante a própria obra. Ele se ultrapassa
constantemente, redimensionando mais do que negando o que ficou para trás,

83
BACHELARD, G., O novo espírito científico, p. 147 e 148.
84
Idem
85
WARAT, Luis Alberto. Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou,op.cit., p. 108.
86
BACHELARD, G., op. cit., p. 151
87
Ibid., p. 150
88
Ibid.,. p. 148.
78

inscrevendo o futuro na esfera do possível e (re)construindo o passado na


dimensão dos afetos do presente.Deixando-se mergulhar na temporalidade.”89

A tarefa de desvendar mitos produzidos pelo senso comum teórico, que


visam a representação de “um conhecimento moral, que reduz valores mas não os
explica”90, tem um significado de libertação para o pesquisador que, ao invés de
tomar o senso comum teórico como referência, passa a enxergá-lo como “dado
interpretável”.91
Com este fim, a atmosfera de crenças em funções impossíveis para a
ciência criada pelo paradigma da modernidade hegemônica que acredita na
possibilidade da supressão das opiniões (senso comum) e mitos na produção das
significações jurídicas,92 deve ser afastada visando o “rejuvenescimento”93 da
pesquisa e do ensino jurídico.
Constata-se também que o novo espírito científico se encaixa em uma das
principais características dos autores dialéticos, que seria a capacidade autocrítica,
que acarreta uma necessária renovação.94
Autores dialéticos, como Barthes e Warat se utilizam da fragmentação,
estilo de escritura que de fragmento em fragmento anula a si mesmo, como forma
de manter um discurso sem impor95. Estão sempre perseguindo o excesso, visando
romper limites.96A produção em fragmentos gera o deslocamento em temas que
convergem no mesmo pano de fundo, neste caso a não submissão à ordem.
Neste sentido, os autores críticos preservam uma postura condizente com a
autêntica dialética, nos moldes expostos por Leandro Konder, por terem a
consciência da inevitabilidade da mudança, seguindo a atitude reivindicada por
Bachelard, pois mantêm o espírito rebelde que “incomoda os beneficiários de
interesses constituídos e os dependentes de hábitos mentais ou de valores
cristalizados”.97

89
MARQUES NETTO, A. R., Apresentação. WARAT, L. A., Amor tomado pelo amor: crônica
de uma paixão desmedida.
90
WARAT, L. A., Mitos e teorias na interpretação da lei, p. 22.
91
Ibid., p. 22.
92
Id., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou,op.cit., p. 106.
93
O rejuvenescimento é uma proposta epistemológica bachelardiana para o pesquisador científico.
94
KONDER, L., O que é dialética, p. 83-84.
95
BARTHES, R., Aula, p. 43.
96
KRONZONAS, D. E. Warat y yo. In: OLIVEIRA JUNIOR, J. A., O poder das metáforas:
homenagem aos 35 anos de docência de Luis Alberto Warat. p. 11.
97
KONDER, L. O que é dialética., p.86.
79

A consciência de que a sociedade se apresenta em uma constante


transformação, que deve ser acompanhada pelo saber jurídico torna necessária a
denúncia à insuficiência do direito normativo para atender as demandas sociais
dos tempos atuais. Com isso, os pensadores críticos propõem a expansão do
campo jurídico através do acréscimo ao conhecimento jurídico de novas
perspectivas, que nas proposta de Warat seriam as: “ecológicas, pedagógicas,
psicanalíticas, semióticas, poéticas e amorosas”.98
Assim, estas idéias pressupõem uma nova cientificidade que dá lugar ao
pensamento indisciplinado e complexo, abrindo espaço para a produção de novos
objetos de conhecimento através de reflexões transdisciplinares.
Deve-se entender que a perpetuação do normativismo jurídico torna os
juristas avessos à transdisciplinariedade do saber. No meio acadêmico se fala
sobre a adoção de abordagens transdisciplinares99, mas deve-se refletir se estes
trabalhos são efetivamente transdisciplinares, ou seja, se permitem a ampliação da
análise em outras perspectivas além da estritamente jurídica.
Neste contexto, a epistemologia perderia a sua função de fornecer regras
para a produção de verdades e controlar os discursos, e passaria a sugerir modos,
pontos de vista de pensar o mundo “(...) orientada por nosso ser social como
condição de significação”.100
Ao se propor uma atitude crítica, seguindo a postura exigida pelo novo
espírito científico, para o profissional e educador inserido no campo jurídico
compreende-se ainda a relevância dos ensinamentos de Marilena Chaui que trata
da referida atitude no campo da filosofia. Assim, deve ser compreendida a face
positiva e negativa ao se tratar da “crítica”. A face negativa implica uma
necessária desconfiança ao estabelecido, já a face positiva designa um
questionamento do porque das coisas, das idéias e das situações.101
A problemática em questão já foi levantada por outros pensadores críticos
como Michel Miaille que trata do tema no primeiro capítulo do seu livro Uma

98
WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p 13.
99
Em busca realizada no banco de dados de grupos de pesquisa do CNPq foram detectados 15
grupos a partir da palavra-chave “transdisciplinar”. Disponível em:
http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/. Acesso em: 03 abr. 2008, 13hs e 30min.
100
WARAT, L. A., Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do abandono
do sentido e da reconstrução da subjetividade, p. 530.
101
CHAUI, M., Convite à Filosofia, p. 18.
80

introdução crítica ao direito, em que trabalha com os obstáculos epistemológicos


à constituição de uma ciência jurídica.
Neste contexto, na referida obra, o autor critica o pensamento positivista
que se estabeleceu como “atitude epistemológica geral”102, que pode ser
considerado um conceito análogo ao senso comum teórico dos juristas
desenvolvido por Warat.
Assim, o processo de mitificação é um instrumento da ideologia para
naturalizar uma intenção histórica, tornando-a clara, não através de uma
explicação, mas de uma constatação, gerando assim uma sensação de comodidade,
tranqüilidade para o jurista que com a instituição da Ciência Jurídica em sentido
estrito que se fundamenta no postulado da pureza metodológica103.
A pureza metodológica se insere em um “pensamento de raízes” de grande
escala dentro do projeto moderno, que a partir da idéia de cartografia, Boaventura
entende que pode ser compreendido como aquele que cobre vastos territórios
simbólicos durante um extenso espaço de tempo, mas não consegue fugir das
ambigüidades das características do terreno.104
Bachelard propôs a ruptura epistemológica entre o senso comum - que o
autor considera como sinônimo de conhecimento vulgar- e a ciência, assim a
ciência se construiria contra o senso comum.105
Nesta perspectiva o senso comum era compreendido como um
conhecimento superficial que conduzia ao erro, além de sua valorização estar
ligada ao projeto de ascensão da burguesia ao poder.106Neste contexto, as ciências
sociais surgem no século XIX contra o senso comum. 107
Bachelard caracterizava o senso comum como fixista, ou seja, como fator
necessariamente imobilizador da ciência, o que não se comprova, pois o seu
caráter conservador ou inovador depende do conjunto das relações sociais em que
ele é produzido.108

102
MIAILLE, M., Introdução Crítica ao Direito, p. 37.
103
BARTHES, R. Mitologias, p 234 e 235.
104
SANTOS, B. S., A gramática do tempo: para uma nova cultura política, p. 55.
105
SANTOS, B. S., Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal,1989, p. 31.
106
Ibid., p. 36 e 37.
107
Ibid., p. 37.
108
“Uma sociedade democrática, com desigualdades sociais pouco acentuadas e com um sistema
educativo generalizado e orientado por uma pedagogia de emancipação e solidariedade por certo
“produzirá” um senso comum diferente do de uma sociedade autoritária, mais desigual e
ignorante.” SANTOS, B. S. Introdução a uma ciência pós-moderna., p. 38.
81

Na prática comprova-se que as teorias científicas têm um caráter


conservador e imobilizador muito maior que o senso comum geral, já que
possuem um poder institucional e uma legitimidade caucionada pelo paradigma
moderno, que as torna inquestionáveis.
Ao mesmo tempo deve-se considerar que Bachelard reconhece que não é
possível a anulação dos conhecimentos habituais e que os conhecimentos vulgares
podem ser legitimados pela ciência, por razões distintas das apresentadas pelo
senso comum.109
A categoria “senso comum teórico” está inserida nesta percepção de que
os pesquisadores devem se focar contra as teorias científicas inquestionáveis, ao
invés de deslegitimarem imediatamente qualquer conhecimento que advenha do
senso comum, seguindo o paradigma moderno que os considera como irracionais.
Este posicionamento pretende legitimar as demandas do senso comum
geral, que deve ser questionado, mas não imediatamente desconsiderado. Nesta
linha de pensamento Boaventura propõe uma dupla ruptura epistemológica –
ruptura com a ruptura epistemológica- em que o senso comum se transforma com
base na ciência objetivando-se conduzir para a superação da distinção estanque
entre senso comum e ciência. 110Estabelece-se assim uma nova configuração do
saber em que a fala do senso comum e da ciência dialoguem.
Para tanto, as universidades e os intelectuais devem ser deslegitimados
como lugar exclusivo de produção de saber e de fixação de pautas para a produção
acadêmica permitindo ser perpassada pelos problemas de circulam no mundo.111
Estas condições permitem o diálogo com o senso comum e configura um
paradigma de inclusão cidadã na produção dos saberes.
Entende-se que esta proposta é adequada às idéias fundamentais do novo
espírito científico, proposto por Bachelard, como forma de compreender a teoria
da história da ciência como não evolucionista, em que os desenvolvimentos
anteriores não necessariamente explicam o estágio atual, ou seja, a idéia de
descontinuidade entre as teorias e explicações precedentes dos fenômenos em
relação às novas teorias. O novo na ciência como revolucionário.

109
BACHELARD, G. A formação do espírito científico: contribuição para a psicanálise do
conhecimento, p. 18.
110
SANTOS, B. S., Introdução a uma ciência pós-moderna, p. 42, 43 e 71.
111
WARAT, L. A., Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 45.
82

Sendo assim, a ruptura que uma proposta crítica para o campo jurídico
deve realizar é com a ideologia cientificista que entende o saber fora da história,
compreendendo o mundo sem ambigüidades e incoerências. As ambigüidades e
complexidades na produção significativa do direito devem ser reveladas, para
tornar viável a busca de soluções mais adequadas no campo jurídico.
Na perspectiva da superação do obstáculo epistemológico da dimensão
mítica da pureza metodológica no imaginário jurídico não se pode ignorar os
trabalhos de autores que refletem sobre o campo jurídico a partir de um
pensamento crítico.
Neste sentido, a obra A introdução ao pensamento jurídico crítico de
Antonio Carlos Wolkmer é um marco para o entendimento da propagação desta
postura entre os juristas. Wolkmer divide a crítica jurídica em quarto grandes
eixos epistemológicos: Critical Legal Studies (movimento norte-americano com
influência na cultura anglo-americana); Association Critique du Droit (origem na
França com influência na América Latina); Uso Alternativo do Direito (origem na
Itália com penetração na Espanha, possui adeptos europeus e latino-americanos);
Enfoques epistemológicos de pluralismo crítico.112Entre os enfoques
epistemológicos de pluralismo crítico, Wolkmer cita:

“(...) o modelo científico da interdisciplinaridade (Bélgica), a revisão crítica de


inspiração frankfurtiana (Alemanha), a sociologia da retórica jurídica (Portugal),
a crítica jurídica de matriz marxista-ortodoxa (Espanha, México, Chile,
Colômbia, Brasil etc.), a crítica psicanalítica do Direito e a semiologia jurídica
(Argentina e Brasil).”113 (grifo nosso)

A proposta de um pensamento crítico não implica necessariamente na


filiação do jurista ao que se designa como Teoria Crítica do Direito. Segundo
Warat a origem desta corrente de pensamento ocorre na década de 60 quando
surge um pensamento marxista acadêmico que desenvolvia uma reflexão
materialista do direito a partir de uma teoria das ideologias. Os juristas marxistas
que criticavam as formas de dominação da época se auto-denominou Teoria
Crítica do Direito. 114

112
WOLKMER, A. C., Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico, p. 37.
113
Ibid.
114
WARAT, L. A., Filosofia do direito: uma introdução crítica. In: WARAT, L. A..,
Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 78-80.
83

Porém, o movimento crítico no campo jurídico iniciou-se de fato na


década de 70 com professores marxistas franceses que se sentiam ameaçados em
seus cargos. Pelo seu caráter fragmentário, sua falta de coerência, precisão, regras
de correntes da lógica e da não contradição, até mesmo alguns de seus adeptos,
concordam que não se pode falar da produção de uma teoria crítica. 115
Autores que adotam esta atitude desenvolvem um corpo de idéias, que são
produzidas a partir de diferentes marcos conceituais, ou seja, não possuem um
sistema de categorias, estabelecendo assim “contralinguagens”116. Por este motivo
prefere-se falar em um saber, pensamento ou discurso crítico a assumir a filiação a
uma suposta Teoria Crítica do Direito. O principal ponto em comum entre aos
adeptos desta “teoria” seria a crítica às teorias jurídicas hegemônicas,
principalmente o positivismo jurídico.117
O pensamento crítico como contradiscurso, nesta perspectiva, se distancia
dos profissionais que se consideram críticos, que criticam o Direito de forma
superficial quase jornalística e esquecem qualquer obrigatoriedade de um
convencimento ético-legal-racional. Esta preocupação reside na direção ao
irracionalismo tomada por alguns autores que refletem sobre o uso alternativo do
direito, que acabam realizando a mera substituição de dogmas.118
O pensamento crítico para o campo jurídico ora apresentado vai mais além
das propostas epistemológicas bachelardianas, pois não parte apenas de uma
crítica interna do discurso científico, mas de uma crítica do mesmo inserido na
realidade social que abrange a discussão entre o saber e o poder.
Nesta perspectiva, a presente proposta revela a análise do nível pragmático
do signo que implica necessariamente em uma conciliação entre teoria e prática
demonstrando assim a dimensão política do discurso jurídico que visa estabelecer
a pureza da significação jurídica dominante.
O saber crítico pressupõe que o conhecimento é historicamente produzido,
o que impossibilita a sua neutralidade e objetividade na produção científica

115
Ibid. , p. 78-80.
116
WARAT, L. A., A Produção Crítica do Saber Jurídico. In: PLASTINO, C. A. (Org.), Crítica
do direito e do Estado, p. 18.
117
Id., Filosofia do direito: uma introdução crítica. In: WARAT, L. A.., Epistemologia e ensino
do direito: o sonho acabou , p. 78-80.
118
Id., A condição transmoderna do desencanto da cultura jurídica.In: WARAT, L. A.,
Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou, p. 41-42.
84

pretendida pelos modernos. Pode-se falar em objetividade do conhecimento que é


capaz de revelar o que o sistema social produz. 119
Retomando a metáfora de Ulisses e as sereias, a superação deste obstáculo
silenciaria um dos fundamentos de legitimidade das “sereias institucionais”
permitindo que os juristas ouçam os gritos sociais por inovações no campo do
direito.

119
PLASTINO, C. A. Apresentação. In: PLASTINO, C. A. (Org.). Crítica do direito e do Estado,
p. 9.
5
À guisa de conclusão: rumo a perspectivas no campo
jurídico que revelem dimensões críticas na construção de
objetos de conhecimento

A presente dissertação analisou o postulado da pureza metodológica,


princípio da Teoria Pura do Direito, revelando sua dimensão mítica a partir da
percepção de que este postulado se torna uma verdade inquestionável, inoculada
pelo paradigma científico moderno como fundamento da produção científica
dominante no campo jurídico.
A tarefa de desvelar a dimensão mítica permitiu apresentá-lo como
obstáculo epistemológico para a expansão do campo de possibilidades na
produção de um saber jurídico crítico. Este projeto, conforme tivemos a
oportunidade de observar, só se consolidará com a inviabilização da reprodução
da referida dimensão mítica no imaginário jurídico.
Com este intuito, foram adotadas as obras de Warat nas quais o autor
desenvolve uma crítica jurídica, concentrando fundamentalmente nas obras A
pureza do poder e Mitos e teorias na interpretação da lei como principal marco
teórico.
O estudo da dimensão mítica da pureza, à exemplo de Warat, foi norteado
pela referência semiológica de Roland Barthes a partir de uma abordagem
transdisciplinar, na qual o autor aproxima questões sobre o saber e poder. Esta
perspectiva se torna imprescindível neste trabalho para denunciar os efeitos
nocivos dos processos míticos.
Neste sentido, o processo de mitificação da pureza metodológica é
analisado como uma metalinguagem a partir de uma “linguagem revolucionária”
1
, em que se fala para transformar. Assim, a revelação da referida dimensão, no
desenvolvimento das reflexões, tornou possível viabilizar que a metalinguagem
fosse reenviada a uma linguagem-objeto inviabilizando a reprodução do mito e
permitindo a construção de objetos de conhecimento independentes do senso
comum teórico.
1
BARTHES, R., Mitologias, p. 238.
86

A dimensão mítica do postulado da pureza metodológica foi apresentada


em dois planos: um na pretensão de constituição de um saber juridicista, a-
histórico e despolitizado, e outro nos efeitos da perpetuação deste postulado no
senso comum teórico dos juristas.
A pureza metodológica kelseniana é apresentada, portanto, como a base
para a legitimação e perpetuação de um saber juridicista na Ciência do Direito,
dominante nas universidades brasileiras que, pautado pelo paradigma moderno, se
fundamenta na possibilidade da depuração dos aspectos ideológicos para atingir
seus objetivos de neutralidade, sistematicidade, objetividade, universalidade entre
outros.
Ainda no plano no qual a produção científica jurídica se reduz a um saber
juridicista, identifica-se que este não permite a expansão do campo da pesquisa do
direito para o atendimento das demandas sociais, a contrario senso, a perpetuação
deste modelo de saber permite que as formas do direito encubram as relações
sociais.
Ao não admitir que a atividade do jurista constitui necessariamente
espaços políticos e, consequentemente, as influências do contexto social no
momento de produção das significações jurídicas, percebesse ainda que a
dimensão mítica impede a construção do objeto de conhecimento a partir do
objeto real.
A pureza metodológica no senso comum teórico também se mitifica, pois
passa por um processo de julgamento pelo discurso jurídico que esvazia o
conteúdo pretendido por seu idealizador (Kelsen) para preenchê-lo com sua
ideologia representada por suas crenças dominantes que envolvem as conotações
da dogmática e do jusnaturalismo. Revelar a dimensão mítica da pureza
metodológica em Kelsen contribui fundamentalmente nesta análise para
possibilitar a constituição de sistemas ilusórios que atuem no campo jurídico.
Neste sentido, a apresentação dos sistemas ilusórios, conceito ampliado do
paradigma de Thomas Kuhn, serviu para contextualizar e demonstrar a influência
direta dos modos de vida nas formas de produção de conhecimento dominantes
em um dado momento histórico.
Neste contexto, a pureza metodológica kelseniana é apresentada como um
marco para a perpetuação do projeto de modernidade hegemônica, com seus
excessos racionalistas no campo jurídico.
87

Reconhecer a modernidade como um duelo entre duas propostas, a partir


dos ensinamentos de Antonio Negri e Hardt, permitiu uma reflexão dialética
explicitando que na história do conhecimento sempre existiu um modelo
vencedor, que pode se tornar hegemônico, mas que nunca será o único.
Assim, se escapa da matriz moderna universal, plena e unívoca para
encontrar uma percepção da complexidade e das ambigüidades que devem ser
enfrentadas no ato de conhecer.
O contexto contemporâneo foi resgatado de uma forma prudente, assumido
o posicionamento de que a modernidade não acabou, mas também reconhecido
que existem propostas não concretizadas e, em certa medida, viáveis para a
produção de saberes críticos como os sistemas ilusórios criativos apresentados
como áreas de escape do rigor da cientificidade moderna.
Para tanto, foram abertas novas vias no campo jurídico, no sentido de um
modelo de cientificidade distinto da ideologia cientificista moderna calcada na a-
historicidade, coerência absoluta e universalidade.
A Epistemologia Crítica constituiu suporte essencial para esta visão plural
que aponta caminhos, métodos, processos, ao invés de produzir modelos estáticos
e intocáveis para a produção de verdades.
O estudo ganhou densidade ao dar visibilidade a determinados efeitos do
processo de mitificação da pureza metodológica como o esvaziamento do
conteúdo, a naturalização, seu caráter impositivo e a-histórico que tornam o
postulado uma verdade inquestionável para o imaginário jurídico dominante.
Foi observado, que a falta de compreensão da Teoria Pura do Direito e de
seu postulado metodológico pelos profissionais de direito é apontada como um
fator facilitador da tarefa de esvaziamento do conteúdo do referido postulado.
Constata-se então que o postulado da pureza metodológica kelseniano, em
sua dimensão mítica, apresenta uma insuficiência metodológica, na perspectiva da
produção de um conhecimento crítico, por consistir em um modelo reducionista
das significações jurídicas, funcionando como suporte ideológico para a
permanência do status quo.
Neste contexto, é considerado um obstáculo epistemológico para o
conhecimento crítico calcado no novo espírito científico. Desta forma, a categoria
obstáculo epistemológico de Bachelard é apropriada como forma da presente
88

reflexão dos problemas que surgem para o desenvolvimento de um pensamento


crítico.
A superação do referido postulado como obstáculo epistemológico
permite, que o profissional jurídico se adeque à proposta, do próprio Bachelard,
de um novo espírito científico que abrange a necessidade de inovação inserida em
uma ciência que se baseie em devires.
Nesta perspectiva entende-se que não se deve refutar a razão jurídica, mais
os excessos de uma racionalidade que se torna arbitrária, para tanto a abertura dos
profissionais do direito aos sentimentos, percebendo o campo do “feminino”.
Dentro da proposta transurrealista de Warat com base em Artaud, esta perspectiva
permitiria o surgimento de “intérpretes duplos” e educadores dispostos à
estabelecer trocas com os alunos.
Os “intérpretes duplos” seriam capazes de desenvolver interpretações
sustentáveis tanto no campo teórico quanto prático, o que permitiria uma
articulação entre estes dois campos, para que a Ciência Jurídica se consolide a
partir de uma reflexão do conhecer como prática social com a produção de objetos
de conhecimento plurais.
Portanto, os sistemas ilusórios criativos, representados neste trabalho pela
modernidade imanente de Negri e Hardt e o transurrealismo de Warat,
estabelecem um foco no sujeito e na motivação humana abrindo um campo de
possibilidades para a constituição de um saber crítico transdisciplinar, que
reconhece a importância de revelar os saberes dominantes para que se adentre em
outros territórios de conhecimento.
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Acesso em: 14 jan. 2008. 15:30.

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14:30.

http://arteedireito.tv/. Acesso em: 14 nov. 2007, 15:00.


94

Entrevista

Entrevista a Luis Alberto Warat, em que se adotou a técnica de entrevista semi-


estruturada, a partir de roteiro aberto.

Palestras e Congressos

Oficina Arte e Direito ministrada por Luis Alberto Warat e Martha Gama no
Congresso: 180 anos do ensino do direito no Brasil e a democratização do acesso
à justiça realizado pela ABEDI na Universidade Nacional de Brasília em
Novembro de 2007.

Palestra ministrada por Luis Alberto Warat na Pós-Graduação em Urbanismo da


UFRJ, sobre Materialismo Mágico, em 17 de outubro de 2007.

Palestra ministrada por Luis Alberto Warat na Faculdade Nacional de Direito da


UFRJ para o 2º Seminário Internacional Direito e Cinema: visões sobre o direito
e a ditadura, em 5 de Outubro de 2006.
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