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“Eu vim de um lugar, madame, onde gente morre de fome”. Essa frase que a
personagem de Maria Gladys diz em uma das cenas de Cuidado Madame (1970), de
Juú lio Bressane, eú paradigmaú tica do que poderíúamos chamar de uma poeú tica da naã o-
reconciliaçaã o. A empregada domeú stica tem diante de si o corpo ensanguentado de
uma das patroas. E continua perfurando a barriga da madame com uma faca. Ao
fundo, as formas da cidade, entremeadas pelas barras de uma grade. Essa imagem eú
chave para esse filme em que as tensoã es de classe saã o escancaradas de modo
frontal. Somos colocados diante da radicalidade de gestos que tocam o terror nos
bairros de uma burguesia carioca, nas casas das madames, nas amplas salas, nas
coberturas luxuosas. E tudo tambeú m se passa com a força de uma alegria, como
numa comeú dia musical permeada por danças da morte.
Ainda assim, poeú tica da naã o-reconciliaçaã o. Essa forma de fabricar filmes, de fazeê -
los na cisaã o, laú onde existe uma relaçaã o incomensuraú vel de mundos, torna o cinema
o lugar de um embate irresolvíúvel, conflito fundamental para que nos engajemos
em nosso tempo histoú rico. Serge Daney jaú falava dessa dimensaã o da disjunçaã o a
partir do cinema de Huillet e Straub, especialmente inspirado em um dos filmes do
casal, que se chama justo Não-reconciliados. Na luta de classes encenada por
Bressane, estamos diante de problemas histoú ricos e sociais bem diferentes, mas
ainda assim eú a marca da rotura que faz do aparelho cinematograú fico o propagador
de uma pedagogia da transgressaã o.
Digamos assim: o que pode o cinema nos ensinar a respeito dos modos de resistir
ao intoleraú vel? Inescapaú vel considerar que estamos na partilha de obras em um
cineclube abrigado em um espaço formativo, a pensar justo sobre as formas
expressivas do cinema em sua relaçaã o com a transgressaã o. Cuidado Madame, Sobre
o conceito de espetáculo (2013), de Luiz Rosemberg Filho, e Longa vida ao cinema
cearense (2008), dos irmaã os Pretti, podem, entaã o, nos propor uma pedagogia, mas
naã o no sentido canoê nico desse termo. Se o cinema nos ensina algo, eú sempre por
meio de intervalos entre a imagem e os corpos daqueles que veem juntos. A
imagem cria relaçaã o nesse espaço indeterminaú vel que se abre entre os sujeitos do
olhar. Mais do que uma continuidade entre os projetos dos filmes e a mobilizaçaã o
do espectador para uma açaã o, a pedagogia da transgressaã o desses cinemas dispara
itineraú rios singulares, travessias variadas, nas quais cada um se veê confrontado por
um mundo outro que vem da imagem. O cinema como experieê ncia de alteraçaã o,
mais do que de identificaçaã o e reconhecimento.
Uma criança leê um texto, ela gagueja diante de algumas palavras difíúceis, aquelas
que naã o reconhece de imediato, vindas de um escrito que naã o a pertence. Essa
experieê ncia de despossessaã o liga a palavra menos a uma dimensaã o significante do
que a um sentimento de enfrentamento. Haú algo na voz da garota que parece
progressivamente se contagiar por um modo de provocaçaã o. O espetaú culo taã o
combatido por Luiz Rosemberg nesse curta-metragem eú colocado em questaã o,
sobretudo, pelo dizíúvel, mas esse dizíúvel naã o se resume ao significado das palavras
– ele se ampara, de modo muito forte, na tonalidade, no ritmo, e mesmo no
gaguejar, das vozes que enunciam. Sobre o conceito de espetáculo eú um filme
bastante exemplar da poeú tica desse cineasta que, desde aos anos 1960, coloca-se
na linha de frente do confronto. Filme falado, que tambeú m eú incrustado pela praú tica
das colagens taã o cara ao cinema de Rosemberg, especialmente quando se evidencia
o manejo de imagens de arquivo a criar efeitos de estranhamento. Pedagogia
rosemberguiana: se o cinema pode ensinar algo a respeito do intoleraú vel do
espetaú culo, isso precisa se dar pela recusa de que o filme mesmo se materialize
segundo um registro espetacular. Daíú porque eú taã o importante aqui o empenho
quase artesanal da imagem. O fazer cinema tem, entaã o, um princíúpio eú tico bastante
imbuíúdo das formas caseiras, da operaçaã o manual e do gesto de um operaú rio da
imagem. Ao mesmo tempo, ele eú atravessado pela erudiçaã o.
O jogo decisivo desses embates passa tambeú m pela elegia aà investigaçaã o de outras
formas de cinema. EÉ como se a transgressaã o precisasse estar tambeú m na
capacidade de cindir um jeito de fazer a imagem, de desapropriaú -la dos poderes e
de proclamar a liberdade da perambulaçaã o do cinema pelas ruas. Longa vida ao
cinema cearense, visto em conjunto com esses filmes de Bressane e Rosemberg,
parece ressoar ainda mais proclamaçaã o radical de outro espíúrito de mundo e de
arte. Da críútica ao espetaú culo, parece ser possíúvel desdobrar uma espeú cie de
entusiasmo iroê nico que deseja abrir novos possíúveis para a relaçaã o entre corpos,
caê meras e cidade. Se existe um mundo de personagens Miquei e de roteiros
cinematograú ficos avaliados por uma comissaã o, segundo o peso fíúsico, haú tambeú m a
afirmaçaã o de outros caminhos, rumo a um cinema perigoso, divino e maravilhoso.
Esse curta de agitaçaã o, se pudermos dizer assim, parece nos deixar tomados por
uma vibraçaã o muito intensa que engaja o corpo em uma crença nas forças do
mundo. O fundamental aqui eú essa experieê ncia de acompanhar uma caminhada
pelas ruas escuras da cidade, quando todos jaú estaã o livres de maú scaras, e os pontos
de vista entre campo e antecampo se alteram em um soú fluxo da deriva.
Essas forças da cidade saã o a toê nica de Cuidado Madame, que se dedica bastante aos
interiores das casas da burguesia, mas tem tambeú m uma poteê ncia constituinte
quando acompanha suas personagens em meio aà s ruas e se toma pelo
extravasamento do filme com um fora dele, com as intensidades de um
povoamento por contrabando. Atravessado pelas formas da vida social, o filme de
Bressane guarda, ainda nesses momentos de deambulaçaã o, a possibilidade de um
tempo livre e de um passeio desinteressado por parte das trabalhadoras. EÉ como se
fosse possíúvel reencontrar um laço entre o corpo e a experieê ncia urbana, esse
corpo liberto das amarras da dominaçaã o, que exerceu a vingança alegre de classe e
pode agora afirmar um outro tempo, mais cadenciado pelo desejo e pelo livre fazer.
A naã o-reconciliaçaã o, meú todo de fabricar a obra, afirma a impossibilidade de
apaziguar as relaçoã es de dominaçaã o e abre a fresta para que os corpos restituam
para si, e por suas proú prias posturas, a capacidade de habitar a cidade com alegria.
Cinema de Transgressão
A predominaê ncia da palavra em Rosemberg, a praú tica da leitura diante da caê mera, o
filme e o texto, a palavra e a imagem. Força da enunciaçaã o e da voz. Mas tambeú m haú
confronto. A influeê ncia de 68 em Rosemberg. Cineasta e operaú rio, extrair a figura
de uma individualidade, contaminar-se por outros fazeres, a operaçaã o manual. Mas
essa aproximaçaã o eú feita tambeú m com muitos cuidados, jaú as diferenças entre os
mundos eú tambeú m consideraú vel. A voz enuncia um texto bastante combativo da
loú gica do espetaú culo. Retomada de imagens de arquivo, para compor efeitos
disjuntivos e críúticos. Uso de citaçoã es no iníúcio e no fim (Camus, Godard, Rilke).
Espectador, espetaú culo. Colocar em crise a loú gica do espetaú culo, a dimensaã o de um
fazer cinema. Longa vida ao cinema cearense tambeú m se dirige a um confronto no
campo mesmo do cinema.
Longa vida ao cinema cearense: filme de ironia, que tambeú m ressalta um contraste
entre o tíútulo de louvor com o clima da cena. Roteiro dado para um dos
personagens, brincadeira em esquema de alegorias e de cifras. Um roteiro
cinematograú fico para um filme que se intitula “Prisaã o de ventre”. A cena da reuniaã o
com os produtores: socos e pontapeú s. O roteiro eú avaliado pelo seu peso fíúsico.