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Capa: DAC
Preparação de originais: Liege Marucci
Revisão: Maria de Lourdes de Almeida
Composição: Dany Editora Ltda.
Coordenação editorial: Danilo A. Q. Morales
Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorização expressa dos
autores e do editor.
© 2004 by autores
SUMÁRIO
Prefácio
2. Algumas destas ideias foram desenvolvidas inicialmente por Cortesão e Stoer, 1999; 2003.
16 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES
dutor é um traidor, o que significa que quem traduz um texto para outra
língua trai quase inevitavelmente o seu significado original. Um exem-
plo da consciência da “traição” a um texto expressa-se na própria dúvi-
da de saber se é possível captar plenamente o pensamento do autor no
livro que este escreveu. Traduzir um texto exige, por este motivo, um
grande domínio das línguas em presença. No caso do professor, a possi-
bilidade de traduzir um texto científico para uma linguagem pedagógi-
ca depende, dentre outros factores, da capacidade de seleccionar a parte
mais importante do texto, de estabelecer as suas sequências lógicas e de
seleccionar as mais adequadas para os seus estudantes. No entanto, a
maioria dos professores raramente faz este trabalho de tradução. Limi-
ta-se frequentemente a reproduzir textos a partir de manuais, tentando
ser o mais fiéis possível aos textos originais, eles próprios já re-contex-
tualizados. O processo pedagógico implica certamente algum tipo de
alteração do texto por parte do professor, mas ao seguir o manual a ten-
dência mais comum é a de desenvolver um tipo de educação monocul-
tural com efeitos predominantemente reprodutivos (o que Paulo Freire
denomina “educação bancária”).
Se o professor procurar uma grande variedade de materiais educa-
tivos, tentando re-interpretar, re-situar e re-focalizar o manual com o
objectivo de se comunicar com os estudantes provenientes de contextos
sociais e culturais diversificados, existe maior possibilidade de o profes-
sor escapar — pelo menos parcialmente — aos efeitos reprodutivos do
sistema educativo e ainda produzir activamente conhecimento que pode
ser de dois tipos. O primeiro é o conhecimento socioantropológico pro-
duzido a partir da observação cuidadosa do grupo de estudantes. Esta
observação pode permitir a identificação de características psicológicas
e socioculturais dos estudantes. O segundo tipo de conhecimento resul-
ta da fertilização cruzada de conhecimentos baseados no currículo e na
pedagogia em interacção com o conhecimento socioantropológico obti-
do a partir das diferentes formas de observação.3
Em suma, os autores deste livro identificam-se, antes de mais, como
“agentes de re-contextualização”, nos termos que usou Bernstein. Toda-
Plano geral
Palavras-chave
Exclusão social, inclusão social, Lugar, corpo, trabalho, identidade, cida-
dania, território, diferença, contextos, espaços estruturais.
Introdução
Este livro está organizado de forma a ser usado, dentro do possível,
de uma forma indutiva. Assim, cada capítulo, seguindo esta lógica, in-
troduz primeiro pequenos textos que levam o leitor a reflectir sobre os
temas principais ou Lugares, que serão depois analisados de forma sis-
temática. São apresentados, a seguir, “pontos-chave para discussão” com
o objectivo de promover a reflexão tanto individual como de grupo so-
bre estes temas e Lugares. Finalmente, surge uma espécie de “estado da
arte” relativo a esses temas, apresentado numa tentativa tanto de resu-
mir abordagens teóricas sobre a exclusão/inclusão social como de abrir
um debate relacionado com as dimensões políticas que estão em jogo.
1º texto:
Numa ordem pós-tradicional, a narrativa do self tem, de facto, de ser
continuamente retrabalhada e as práticas de estilo de vida com elas arti-
culadas, como se o indivíduo quisesse combinar autonomia pessoal com
um sentido de segurança ontológica. Os processos de auto-actualização
são muitas vezes, contudo, parciais e restritos, por isso, não é surpreen-
dente que as dependências sejam tão diversificadas na sua natureza. Quando
a reflexividade institucional atingir todos os níveis da vida social quoti-
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 21
2º texto:
A exclusão das estruturas de informação e comunicação ocorre para as
novas classes mais baixas e não só no seu trabalho. Os seus locais de
residência são igualmente afectados. Os mapas de comunicações organi-
zados geograficamente, mostram os locais onde se situam os faxes, os
grandes emissores e receptores de satélite, os cabos de fibra óptica, as
redes internacionais de computadores e coisas semelhantes. Quando se
analisa este mapa fica-se chocado com a alta densidade informativa e
comunicacional nos bairros centrais das principais cidades, com as suas
concentrações de escritórios, sedes de empresa, serviços financeiros; os
níveis intermediários nos subúrbios, onde se encontram fábricas e mui-
tos serviços de apoio ao consumidor; e a dispersão que se observa nos
guetos e nas áreas economicamente desfavorecidas. O que se vê é um
mosaico de “zonas vivas” ou “zonas domesticadas” nos centros urbanos
e de negócios e “zonas mortas” ou “zonas selvagens” nos guetos. E,
como sociedade civil, é a própria esfera pública que se torna cada vez mais
sobreposta às estruturas de informação e comunicação (I&C), a exclusão
destas estruturas torna-se a exclusão da cidadania que se torna efectiva ao
nível político e cultural na sociedade civil. Isto é, se na modernidade
22 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES
3º texto:
Com as novas características e a nova visibilidade que tem ganho recen-
temente o fenómeno de globalização (fala-se, como é sabido, de modos de
ligação entre contextos sociais ou regionais na forma de redes estendidas
pela superfície da terra — cf. Giddens, 1992), o local ganha uma nova di-
mensão, isto é, torna-se simultaneamente global. Um primeiro importante
resultado desta nova dimensão é o facto do espaço se encontrar separado do
lugar. Por outras palavras, devido à reestruturação do espaço, a ausência
predomina sobre a presença (algumas das implicações deste facto para a
formação das identidades são discutidas em Magalhães, 2000). Por outras
palavras ainda, o professor pode estar presente no local — na escola e na
comunidade — sem estar nele fisicamente presente. Esta é uma das condições
necessárias para o que se pode denominar “a relocalização do professor”.
Um segundo resultado da nova dimensão do local, intrinsecamente
ligado ao primeiro, é o facto do processo de globalização introduzir “no-
vas formas de interdependência mundial, nas quais [...] não existem
‘outros’: o facto de ‘Chernobyl estar em toda a parte’ implica o que ele
(Ulrich Beck) designa por ‘o fim dos outros’” (Giddens, 1992: 138-197).
“O fim dos outros” tem implicações tremendas para o local e também
para o trabalho pedagógico que nele se realiza. Pode afirmar-se neste
sentido que a “relocalização do professor” é, ao mesmo tempo, a sua
globalização. Isto é, o sucesso local (que, como tanto tem enfatizado
Raúl Iturra, era muitas vezes num país como Portugal o insucesso escolar
— e, portanto, o pôr em cheque do nível nacional) não pode existir
independentemente do sucesso global. Como resultado, há um simultâ-
neo reforço e esbatimento da tensão que existe entre a chamada escola
meritocrática, identificada com a democracia representativa, e a escola
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 23
Cada vez mais os conflitos sociais são tratados não como problemas de
ordem (que, por definição, são orientados para a clareza e para a capaci-
dade de decisão) mas como problemas de risco. Estes problemas de risco
são caracterizados por terem soluções ambíguas [...]. Face a uma crescente
falta de clareza (...), a crença na viabilidade técnica da sociedade desapa-
rece quase por necessidade. (Ibid., 1994: 8-9)
O lugar do corpo
“O século do corpo”
Está fora do âmbito deste texto traçar, mesmo em linhas gerais, uma
história do corpo. Este campo, aliciante e complexo, pode ser estudado
em múltiplas obras que descrevem e que interpretam os entendimentos,
significações, controlos e regulações impostos ao corpo nas diferentes
civilizações e culturas. Uma destas contribuições que se assume como
incontornável é a de Michel Foucault, em particular nos seus ensaios
História da loucura, O nascimento da clínica, e Vigiar e punir. Foucault apre-
senta uma concepção sócio-histórica do corpo em que este se apresenta
“totalmente influenciado pela história” e determinado pelos valores so-
ciais e modo de organização económica de cada sociedade. Em particu-
lar, no ensaio Vigiar e punir este autor apresenta em detalhe a emergência
histórica de práticas sociais complexas que influenciam a conduta hu-
mana moldando-a e forçando o portador dessas condutas a assumir res-
ponsabilidade por elas. Na perspectiva de David Levin (1989: 123),
Foucault vê o corpo como um receptáculo passivo de forças históricas e
políticas quando afirma, por exemplo, que “o corpo é moldado por um
grande número de regimes distintos”.
A perspectiva de Foucault é muitas vezes colocada em confronto
com a posição de Maurice Merleau-Ponty. Analisando estas duas pers-
pectivas, Crossley (1996) afirma que se está a gerar uma divisão nas teo-
rias sociais sobre o corpo alicerçadas nestes dois autores. Por um lado,
um corpo historicamente “inscrito” a partir do exterior, que
consubstanciaria a posição de Foucault; por outro, uma concepção de
corpo veiculada por Merleau-Ponty, em que o corpo é apresentado como
tendo uma certa autonomia, como corpo “vivido” e activo. Na verdade,
para Merleau-Ponty, o corpo está em permanente e activa relação com o
seu envolvimento e cria um “espaço funcional” à sua volta. O corpo é
visto como uma entidade activa que usa os esquemas e hábitos que ad-
quiriu para lidar e negociar com o mundo que habita, constituindo uma
unidade de sentido indissociável que se designou por fenomenológica.
Um bom exemplo das diferenças de perspectiva das concepções destes
dois autores poderia ser encontrado na forma como é pensado o espaço.
Para Merleau-Ponty, o espaço é uma construção que o indivíduo faz a
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 35
ordem social que a pessoa ou os grupos não querem aceitar. O que dis-
tingue a actual centralidade do corpo como “resistência” identitária, do
corpo transgressor de Sade, é, por assim dizer, a sua descriminalização,
isto é, o corpo já não é locus do pecado a perseguir nem a simples emana-
ção de um determinismo social, mas sim o locus do desejo pluralizado e
mesmo uma manifestação de autonomia, de que falaremos mais adiante.
1ª situação:
Entraram num café dois homens um andando e outro em cadeira de ro-
das. Dirigiram-se ao balcão e perguntaram se podiam usar a casa de banho.
Foi dito que sim. Quando regressaram à sala, o empregado ajudou a encon-
trar espaço para acomodar a cadeira de rodas na mesa e dirigiu-se ao homem
em cadeira de rodas e disse: “Sabe, fizemos recentemente obras aqui no
restaurante para o tornar acessível a cadeiras de rodas. Mudámos a porta de
entrada, as casas de banho e até o espaço interior. Podemos agora receber as
pessoas em cadeira de rodas que vêm a tratamento ao hospital ortopédico
que existe do outro lado da rua”. De seguida o empregado voltou-se para o
homem que andava e perguntou-lhe: “Então, o que vai tomar?” O homem
disse “Quero um café com leite”. “E ele?” perguntou-lhe o empregado...
2ª situação:
Hora de ponta num banco. Várias filas paralelas de pessoas esperam aten-
dimento. Numa dessas filas, uma mulher idosa procurava incessantemente
uma caneta para preencher um impresso. Voltou-se para a pessoa que estava
atrás — uma mulher com um traje árabe — e perguntou-lhe se lhe podia
emprestar uma caneta. A mulher tirou uma caneta da mala e emprestou-lha.
A mulher idosa verificou então que se tinha esquecido dos óculos e, com a
caneta na mão, dirigiu-se às pessoas da fila ao lado: “Por favor alguém me
podia ajudar a preencher este impresso que me esqueci dos óculos?”.
3ª situação:
Um gabinete de apoio à inclusão de alunos com necessidades educati-
vas especiais recebeu um pedido de ajuda de uma escola. Um técnico des-
locou-se à escola para se inteirar da natureza do pedido. O caso foi-lhe
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colocado como havendo numa determinada classe vários alunos que ne-
cessitavam de terapia de fala. “Porquê tanta concentração de casos a ne-
cessitar terapia?” perguntou ele. A resposta: “Talvez porque estes alunos
são imigrantes de um país africano e a língua da escola não é a sua primei-
ra língua...”.
Ao consultar os processos dos alunos dessa classe, o técnico de apoio
verificou que existia um aluno que tinha frequentado até ao ano anterior
a escola obrigatória de outro país europeu. O técnico perguntou: “E este
aluno não tem dificuldades de linguagem semelhantes aos outros?” E a
resposta foi: “Não, este é um caso diferente: é um caso de bilinguismo”.
O corpo e comunicação
As imagens corporais
Moda/vestuário
Pela sua natureza a moda é instável, efémera e superficial: sendo exacta-
mente estas as características das relações nas democracias políticas con-
temporâneas. Tal não surge como motivo para grande preocupação, na
opinião de [Gilles] Lipovetsky. Quanto menor for o cuidado ou os senti-
mentos que dedicarmos uns aos outros, melhor nos relacionaremos. Uma
estrutura social impessoal é um dispositivo ideal para a tolerância mútua
e para a redução do conflito. Um brilhantemente original argumento tor-
na-se deslumbrante quando os princípios da moda — obsolescência, se-
dução, diversificação — são alargados para analisar a sociedade de con-
sumo onde a inovação é central, e a identidade dilacerada em fragmentos.
Longe de nos homogeneizar, como muitos autores inicialmente profetiza-
ram, a cultura de massas acelerou o processo de individualização. E isso
pode ter aumentado a capacidade para a integração social. New Statesman
& Society
(http://pup.princeton.edu/quotes/q5535.html)
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 43
como é que a coisa foi lá parar. E eu? Eu adoro! Acabei por o colocar em dois
dias. O incómodo foi mínimo. Ouvi dizer que todos têm experiências dife-
rentes no processo de cicatrização. Eu não tive problemas. Quase não se
sente dor, o pior foi quando hoje comi comida sólida e mordi o piercing. Aiii!
Forçou um bocado, mas vi depois que não tinha sangrado nem nada.
Já tive a experiência daquele esgar embaraçoso que, pelos vistos, faço en-
quanto durmo. Mas se tudo correr bem vou acabar por rapidamente corri-
gir isso. Penso que só preciso de me habituar a tê-lo. Lavar os dentes e a
boca não oferece qualquer problema. Contudo, quando tenho que dizer um
preço, tenho de facto algumas dificuldades a dizer “Three” ou “Six” (“Six”
soa como se eu dissesse SEXO. Os homens ficam sempre surpreendidos
com isso). A maior parte das pessoas com quem trabalho acham graça à
ideia de eu ter um piercing. O meu patrão acha giro. (GRAÇAS A DEUS).
Se está a pensar em colocar um piercing, deve fazê-lo. Eu gosto da ideia de
me saber diferente dos outros, porque tenho os meus dois piercings e ta-
tuagens, e que posso expressar a minha individualidade através de jogos
de arte/corpo.
(http://www.bmezine.com/pierce/02tongue/A30104/tngohmyg.html)
A deficiência
Direitos Constitucionais das Pessoas Portadoras de Deficiência
A idade
O que é “ageism”? O termo “ageism” foi criado em 1969 por Robert Butler,
o primeiro director do National Institute on Aging. Ele ligou o termo a outras
formas de estreiteza de espírito como o racismo e o sexismo, definindo-o
como um processo de estereotipização e de discriminação contra pessoas
porque estas são velhas. Hoje, é mais amplamente definido como qualquer
preconceito ou discriminação em favor de ou contra um grupo de idade.
(http://istsocrates.berkeley.edu/~aging/ModuleAgeism.html#anchor)
1º texto:
A festa para que fui convidado era uma miserável petting party de jo-
vens despidas e universitárias impúberes. A luxúria inflexível daquelas
raparigas indesejadas, a oferta negligente que faziam dos seios através da
blusa desabotoada no impulso de um passo de dança, desgostava-me. Esta-
va a pensar já em escapar-me rapidamente daquele local de vulgar comér-
cio de virilhas ainda intactas, quando um som agudíssimo, quase estriden-
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2º texto:
Crash é uma adaptação do livro com o mesmo nome de J. G. Ballard, e
tem a ver com uma seita secreta de vítimas de acidentes automóveis que
realizam prazer sexual do facto de testemunharem e de se envolverem em
intensos desastres com carros.
O filme é marcado por um conjunto de cenas de sexo em cenários onde
os automóveis são motivo central. Muitas das cenas são de sexo explícito,
sendo algumas delas de tipo homossexual. O filme foi considerado bastan-
te controverso quando foi publicitado. A seguir encontra-se um excerto de
uma entrevista feita ao realizador, o canadiano David Cronenberg.
Bem, o outro lado de “Crash” — o que é que pode haver de erótico em
cicatrizes, intervenções médicas, ou ferimentos?
[...]
Quando olho para a personagem de Rosanna Arquette, é-me muito mais
fácil pensar nisso, porque me recorda o tempo em que eu era um adolescen-
te e trabalhava numa loja de fotocópias e um tipo levou para fotocopiar uma
revista artesanal com pequenos desenhos de mulheres amputadas ou de
desastres, por aí adiante, e com pouca história acerca desses desenhos, acer-
ca de como é que ele as salvava e depois as comia. E a sua vulnerabilidade e
a sua fraqueza têm esse intenso erotismo — e a sua timidez combinada com
o couro preto ou seja lá o que for que ela usava.
Trata-se de uma coisa do género, mas é também bastante agressiva. Em
Inglaterra, onde a cobertura do Crash pela imprensa escrita foi completa-
1. No texto de Umberto Eco, “parca” é identificada com mulheres idosas por quem a perso-
nagem tem verdadeira preferência sexual.
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 51
mente louca — mas, bem sabe, é uma doença inglesa — um crítico escre-
veu, “Entre as coisas mais nojentas, repugnantes que acontecem neste
filme é um homem a manter relações sexuais com uma aleijada”. E eu
pensei, espera lá, significa isto que se o teu marido ou a tua mulher forem
ou se tornarem aleijados deixas de ter sexo com ele ou com ela? Por que é
que nos havemos de des-sexuar apenas porque somos aleijados?
Realmente, este é o filme do ano sobre os direitos dos aleijados.
Absolutamente. Quer dizer, neste ponto tornei-me acidentalmente po-
liticamente correcto — embora não o tivesse pretendido. Mas parte do
filme diz que todos se pretendem transformar de uma forma ou de outra.
Uma mulher que foi transformada por um acidente, que diz “vou incorpo-
rar o meu novo corpo na minha sexualidade”, e efectivamente tudo o que
ela tem a fazer é encontrar um amante que lide com isso, porque ela não
vai esconder partes suas que estão deformadas ou aleijadas. Ela diz, “Não,
tudo isto sou eu, este é o meu novo eu, isto é o que eu realmente sou, queres
comer-me? Come isto, sou eu que sou isto”. É assim basicamente que eu vejo
a personagem e penso que foi assim que Rosanna a desempenhou.
(http://www.salon.com/march97/interview970321.html)
Conclusão
O que nos parece importante reter é que o corpo pelas suas caracte-
rísticas é um Lugar de exclusão e de inclusão. Pela intensidade e visibi-
lidade das marcas da sua origem social, estatuto económico, integrida-
de, pertença a uma subcultura e idade é como que um portal de entrada,
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 53
O lugar do trabalho
1º texto:
Numa área semirural como esta (noroeste de Portugal, perto da cidade
de Barcelos), é também de salientar que, no conjunto de 151 alunos do 6º
ano, aproximadamente 1/3 fala do seu desempenho de actividades agríco-
las, e destes um número apreciável trabalha aí entre 10h e 35h. Também
no 8º ano, 1/3 dos seus alunos aparece envolvido no trabalho nesse sector,
embora aqui o grupo com cargas mais elevadas apresente uma latitude
menor (entre 10h e 25h). É este grupo de crianças e adolescentes que
constitui, em parte, na terminologia de Madureira Pinto (1985: 343), “um
exército agrícola de recurso”, “[...] tão dependente como [o exército in-
dustrial de reserva] do processo global de acumulação económica que tem
na dominação do espaço urbano sobre o espaço rural um dos traços mais
salientes da sua lógica e que permite a preservação da maior parte das
explorações familiares locais”. É este facto que leva Ferreira de Almeida a
concluir que, constituída por velhos, mulheres e crianças, se trata de uma
força de trabalho de reservistas “[...] cuja missão está longe de ser fácil
quer porque a idade avançada já lhes roubou boa parte da energia quer
porque acumulam as tarefas agrícolas às suas actividades normais, escola-
res ou domésticas” (Almeida, 1986: 192).
Que “a missão está longe de ser fácil” é extremamente visível quando se
percorrem muitos dos diários, como o daquele rapaz que, com os seus 14
anos (frequentando o 6º ano de escolaridade), levantando-se todos os dias
às 6h30 (mesmo sábados e domingos), trabalha antes da escola (onde
entra pouco depois das 8 da manhã) a carregar erva para alimento das
vacas e a limpar a vacaria, e quando volta da escola vai trabalhar com o pai
durante toda a tarde (quando não há aulas na escola) a cortar erva, a
carregá-la e a descarregá-la do tractor, a limpar novamente a vacaria, a
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2º texto:
O movimento dos testes financiado pelas fundações empresariais ajudou
a responder às necessidades de “medição contínua” e de “prestação de con-
tas”. Foi também um instrumento vital dos mecanismos que ajudaram a
moldar a meritocracia específica desse Estado (Corporativo Liberal). [...]
Entre 1907 e 1928, 21 Estados (norte-americanos) praticaram a esterilização
eugénica em mais de 8500 pessoas. A Califórnia, sob a influência da Funda-
ção para o Aperfeiçoamento Humano, que contava com Lewis B. Terman e
David Star Jordan como membros destacados, foi responsável por 6.200 es-
terilizações. A lei de esterilização de Califórnia baseava-se na pureza da raça
e também na criminologia. Aqueles que eram “moral e sexualmente depra-
vados” podiam ser esterilizados. Através do movimento de esterilização na
América corria um Zeitgeist que reflectia o pendor dos reformadores piedo-
sos, que defendiam uma vida limpa, a temperança, escolas com ar puro e a
esterilização. O uso da esterilização como castigo atingiu um ponto tal que
foram introduzidas leis reclamando a esterilização por roubo de galinhas e
de carros, assim como por prostituição. (Karier, 1977: 224-6)
1º texto:
Num trabalho recente, o actual Ministro da Economia, Augusto Mateus,
afirma o seguinte:
nível mínimo crítico de educação, formação e qualificação que lhes possa permi-
tir percorrer com êxito uma trajectória de adaptação ou protagonismo nos pro-
cessos de inovação [...] (Mateus, 1994)
2º texto:
O trabalho de um electricista já não é concebido como uma ocupação
que implica formação como uma forma de socialização num conjunto de
atitudes, valores, e competências técnicas, mas, antes, como um conjunto
mais ou menos agregado de competências (no campo da manutenção, ilu-
minação de exteriores, etc.), adquiridas directamente através dos proces-
sos de formação e que constituem especializações que não identificam o
indivíduo como um electricista tout court.
Richard Sennett, num trabalho recente (2001), compara uma padaria de
Boston tal como funcionava nos anos 70 e vinte anos depois: “[...] A padaria
unia conscientemente os seus padeiros. O local parecia-se mais, de certo
modo, como a fábrica de papel de Diderot do que a fábrica de alfinetes de
Smith, sendo o fabrico do pão um exercício de bailado que exigia anos de
treino para ficar bem. Todavia, a padaria estava cheia de barulho; o cheiro
de fermento misturava-se com o suor humano nas salas quentes; as mãos
dos padeiros estavam constantemente mergulhadas em farinha e água; os
homens serviam-se do nariz e também dos olhos para avaliar quando o pão
estava feito. O orgulho profissional era forte, mas os homens diziam que não
gostavam do seu trabalho, e eu acreditei. Frequentemente, os fornos quei-
mavam-nos; a batedeira de massa primitiva puxava pelos músculos huma-
nos; e era trabalho nocturno, o que significava que aqueles homens, tão
centrados na família, raramente viam as suas famílias durante a semana”.
Quando regressou à padaria 20 anos depois, Sennett diz que “[...] ficou
espantado com a maneira como tinha mudado. Um conglomerado alimen-
tar gigantesco é actualmente dono do negócio, mas não se trata de uma
operação de produção em massa. Trabalho de acordo com os princípios da
especialização de Piore e de Sabel, utilizando máquinas sofisticadas,
reconfiguráveis. Num dia os padeiros podiam fazer um milhar de cacetes,
no dia seguinte um milhar de argolas, dependendo da procura imediata do
mercado em Boston. A padaria já não cheira a suor e é espantosamente
fresca, enquanto frequentemente os trabalhadores tinham que fugir do
calor. [...] A padaria computadorizada mudou profundamente as actividades
físicas de bailado da oficina. Agora os padeiros não têm contacto físico
com os materiais nem com os pães, acompanhando todo o processo atra-
vés de ícones num ecrã que representam, por exemplo, imagens da cor do
pão provenientes de dados sobre a temperatura e o tempo de cozedura dos
fornos; poucos padeiros vêem realmente os pães que fabricam. Os seus
ecrãs de trabalho estão organizados à maneira familiar do Windows; num,
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 63
aparecem ícones para muito mais espécies diferentes de pão do que as que
eram preparadas no passado — pães russos, italianos, franceses, simples-
mente tocando no ecrã. O pão tornou-se uma representação no ecrã.
Como resultado de trabalhar desta maneira, os padeiros já não sabem,
na realidade, fazer pão [...]. (Sennett, 2001, 101-4)
3º texto:
A entrada massiva de mulheres no mercado de trabalho assalariado deve-
se, por um lado, à informatização, ao estabelecimento de redes e globali-
zação da economia e, por outro lado, à segmentação de género no mercado
de trabalho, tirando vantagem de condições específicas das mulheres para
melhorar a produtividade, o controle da gestão e os lucros. [...] Penso que
se encontra bem documentado na literatura que a socialização do género
no trabalho das mulheres as torna, em geral, mais atractivas para o merca-
do de trabalho. Isto não tem certamente nada a ver com condições bioló-
gicas: as mulheres provaram que podem ser bombeiros e trabalhadores
portuários em todo o mundo [...]. Quero realçar que, na maioria dos casos,
as tarefas manuais não estão a ser reduzidas para as mulheres e menos
ainda estas se encontram delas dispensadas; é exactamente o contrário.
Elas são frequentemente promovidas para empregos com tarefas que im-
plicam múltiplas competências, que requerem iniciativa e educação, tal
como a procura em novas tecnologias implica uma forma de trabalho
autónoma, capaz de se adaptar e reprogramar as suas próprias actividades
[...]. Mas existe algo mais que eu creio que é o factor mais importante na
expansão do trabalho feminino nos anos 90: a sua flexibilidade como tra-
balhadores. Na verdade, as mulheres contribuem para a massa de trabalha-
dores em tempo parcial e temporário e para uma percentagem ainda pe-
quena, mas em crescimento, de auto-emprego. (Castells, 1997: 162-73)
gem e que é dentro deste quadro que a ênfase nas noções de “qualifica-
ções”, “competências” e “excelência académica” pode ser melhor com-
preendida. É interessante sublinhar, a este propósito, o argumento de
Castells segundo o qual
1º texto:
Capitalismo no contexto da globalização
2º texto:
Exclusão social e capitalismo
zação das crianças no mundo; por exemplo, o Brasil tem feito um esforço
extraordinário. Na educação básica, neste momento, 96% das crianças es-
tão na escola. Mas cerca de 40% dos professores não completaram a educa-
ção primária. Por outras palavras, aquilo a que estamos a assistir no mun-
do é ao que eu chamo a armazenagem das crianças mais do que educação
das crianças. [...] Em quarto lugar, a volatilidade da integração financeira
conduz a crises recorrentes que têm efeitos duradouros e devastadores nas
áreas mais vulneráveis. [...] Em quinto lugar, os governos, que costumam
compensar os desequilíbrios do sistema, são muitas vezes ultrapassados
por fluxos de capitais e de tecnologia, e estão cada vez mais restringidos
pelas instituições financeiras internacionais e credores privados. Em sexto
lugar, numa situação de crise, desenvolve-se uma economia criminosa que,
além de retirar a legitimidade aos governos, cria uma economia paralela
que beneficia da globalização. [...]
Será, então, este sistema sustentável? Este processo de globalização
cria valores e taxas sem precedentes num dos extremos das redes e ao
mesmo tempo não consegue integrar uma percentagem substancial da
humanidade? Será isto sustentável? Bem, acredite-se nisso ou não, muitas
pessoas pensam que sim. [...] Penso que o sistema construiu no seu inte-
rior contradições que tornam muito improvável a sua sustentabilidade.
[...] A volatilidade financeira é sistémica e não temos sistemas para a
regular. O comércio electrónico torna isto muito difícil e os governos não
o conseguem controlar de todo. [...] A noção de que este sistema pode
continuar para sempre, apesar de excluir dois terços da humanidade, é
simplesmente ingénua. (Castells, 2001: 17-20)
3º texto:
O paradigma da informação e as epistemologias concorrentes
Conclusão
O lugar da cidadania*
1º texto:
“Um casal de lésbicas surdas concebeu um bebé intencionalmente
surdo”
* Uma primeira versão deste capítulo foi publicado no livro de David Rodrigues (2003).
76 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES
2º texto:
No Sul de Portugal, perto da fronteira espanhola, há uma pequena vila
chamada Barrancos que, recentemente, foi, por assim dizer, colocada no
mapa. Todos os verões acontece na vila uma festa que culmina com a lide
de um touro até à morte. Em Portugal, diferentemente do que acontece em
Espanha, é ilegal matar os touros na arena durante a lide. A tradição
portuguesa manda que o touro seja apenas lidado, sem mais nada aconte-
cer. Durante muitos anos as autoridades fecharam os olhos a esses aconte-
cimentos. Numa vila isolada e pequena como Barrancos não havia necessi-
dade de proibir aquilo que, sendo ilegal, constituía uma importante tradi-
ção local. Nos anos 1990, contudo, os jornalistas e os mass media em geral
começaram a focar a sua atenção nas festas de Barrancos, devido, pelo
menos em parte, à crescente visibilidade e influência de grupos que pre-
tendem preservar os direitos dos animais. Subitamente, a morte do touro
em Barrancos tornou-se numa questão nacional, já não sendo apenas o
terreno onde activistas dos direitos dos animais e tradicionalistas locais se
confrontavam. Passou a ser algo mais do que isso, tornou-se um problema
colocado à própria soberania nacional, pelo menos enquanto esta é
corporizada pelo Estado. Por um lado, defendia-se que a morte do touro
era algo de legítimo devido ao facto de ser parte da tradição local e, por-
tanto, da identidade daquele povo. Por outro lado, tratava-se de preservar
o princípio segundo o qual todo o território nacional deve estar sujeito à
mesma lei, a base da identidade nacional. Este conflito entre identidades
atingiu o seu ponto mais alto no final dos anos 1990. A solução, por parte
do Estado, foi, de facto, reconhecer o carácter excepcional do evento,
justificando-o precisamente como uma excepção. (Exemplo dos autores)
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 77
É paradoxal que numa altura em que toda a ênfase parece ser colo-
cada na questão da inclusão, na educação inclusiva e na chamada “so-
ciedade inclusiva”, a exclusão surja como sendo a norma. E isto parece
ser verdade, a menos que se assuma como ponto de partida a ideia de
que o Mercado é que define a inclusão, substituindo-se dessa forma as
funções do Estado-nação e o seu paradigma de protecção social, sobre-
tudo sob a bandeira do Estado Providência ou État Providence. Naquele
sentido, a inclusão pode ser vista como um dos discursos que permite ao
Mercado desterritorializar as relações sociais ao nível do Estado-nação
para as re-territorializar depois em nível supranacional. Assim, em vez
de regular práticas de exclusão, foi-se criando um espaço global onde
todas as pessoas, independentemente das suas diferenças, são incluídas
como consumidores. O paradoxo reside, é claro, no facto de a inclusão
ser promovida com base na erradicação das diferenças e não com base
nelas mesmas. Este processo é semelhante àquele que é levado a cabo
78 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES
pelo Estado-nação durante os séculos XVIII, XIX e XX, pois também nesse
caso era aquilo que as pessoas possuíam em comum (território, lingua-
gem, religião, grupo étnico, história) que se tornava o factor determinante
para a definição dos incluídos no espaço nacional e, assim, aptos para o
exercício da cidadania. Antes de o Estado-nação ser o organizador central
da inclusão, as igrejas desempenharam esse mesmo papel com base, des-
sa feita, na comunidade da fé. Assim, a ontologia social das sociedades
pré-modernas ocidentais fundava-se na ideia de que todos eram criaturas
de Deus e, como tal, eram incluídas e organizadas no corpus social.
Consequentemente, pode-se argumentar que tanto a concepção
medieval como a moderna de ontologia social definiam a inclusão ba-
seando-a na exclusão — ou mesmo na erradicação — da diferença. Tanto
os infiéis como os sem-pátria eram empurrados para as margens da so-
ciedade como aqueles a quem não era possível considerar legítimos par-
ticipantes na sociedade. Essa construção da inclusão com base naquilo
que as pessoas partilham, no que têm em comum, conduziu inevitavel-
mente a diferentes formas de exclusão económica, social, política, social
e cultural.
No que se segue, procura-se explorar a ontologia social da moder-
nidade, no sentido de a contrastar com a nova ontologia social que apa-
rentemente se encontra a emergir e no âmbito da qual a afirmação das
diferenças torna-se um dispositivo para compreender as formas novas
de cidadania, em que a exclusão social também assume novas formas.
Por ontologia social entendemos a forma como as relações sociais, os
grupos e os indivíduos são, enquanto tal, legitimados, aceites e reconhe-
cidos, quer dizer, a forma como são conceptualizadas e vividas as rela-
ções sociais no âmbito de um dado corpo social.
O contrato social, tal como a modernidade o desenvolveu, funda-
va-se na cidadania delimitada pelo Estado-nação. Este era a base da
arquitectura política, que garantia aos indivíduos e aos grupos um con-
junto de deveres e protecções sociais e políticas em troca da sua desis-
tência das identidades desenvolvidas em nível local. Isto é, a sua lealda-
de já não se baseava em pertenças étnicas, familiares, religiosas e em
outras teias da tradição, mas naquilo que se assumia como algo comum,
como a cultura nacional, o território, a língua, etc.
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 79
Figura 1
1. Foi talvez Nietzsche quem pela primeira vez, de uma forma radical, questionou a moder-
nidade a partir da crítica à Razão feita com base em valores (Nietzsche, 1976), isto é, a partir de
uma instância (a moral) exterior à razão. Tal permitiu desalojá-la da sua centralidade e desvelá-la
enquanto discurso não universal, mascarado pela abstracção e universalidade.
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 81
acção a partir das suas “inclinações” (ibid.: 25) e das suas pertenças mais
imediatas (étnicas, locais) e entregam-se, enquanto acto fundador da sua
cidadania, à justiça do Estado civil, isto é, prescindem da sua soberania
para a endossarem ao Estado-nação. Em compensação, é garantido aos
indivíduos a máxima utilização das suas capacidades.
Estas capacidades são constituídas pelos seus talentos próprios, a
realizar pelo empenho de cada um nos diferentes contextos do Estado,
da comunidade e do mercado. O valor social dos indivíduos é, assim,
pensado a partir da igualdade de oportunidades de exercício dos seus
talentos (cuja realização terá como instrumento e lugar de eleição a esco-
la pública), da liberdade de desenvolver a sua capacidade empreende-
dora no mercado e da participação fraterna na comunidade.
A cidadania enformada por esta forma de legitimação encontra a
sua concretização mais cabal no modelo de democracia representativa.
A atribuição de cidadania aconteceu, num primeiro momento, sobretu-
do em nível formal, pois a determinação de quem se incluía no âmbito
do contrato era feita a partir da posição dos indivíduos no mundo do
trabalho, primeiro restringindo-se ao patronato, alargando-se, depois,
na sequência de um século de lutas políticas em torno da reivindicação
do reconhecimento da importância do trabalho no desenvolvimento do
capitalismo, aos trabalhadores. Num segundo momento, a democracia
representativa torna-se, por assim dizer, “real”, na medida em que o le-
que dos representados alarga-se substancialmente, sendo visível a pre-
sença (representada) de quase todos aqueles que se viram excluídos dessa
representação. Esta “realização” da democracia representativa não acon-
teceu em todo o Ocidente ao mesmo tempo. Por exemplo, os negros dos
Estados Unidos só tiveram a sua representação garantida em meados
dos anos sessenta, e as mulheres de alguns cantões suíços só muito re-
centemente, nos anos 1970, alcançaram esse direito.
A educação no modelo que estamos a analisar fica, assim, essen-
cialmente atribuída à escola, desenhada como a instituição socializadora
por excelência dos indivíduos, dado que é o lugar onde as capacidades
destes se libertam das peias da tradição e onde, ao mesmo tempo, se
reforçam os valores da comunidade, agora dimensionada em termos de
nação. Da escola, contudo, espera-se, além da formação de cidadãos, tam-
82 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES
Veja-se, por exemplo, o caso de dois países que conheço bem, França e
Espanha: 80 por cento da legislação em França e em Espanha tem de ir
para aprovação da União Europeia. Nesse sentido, elas não são Estados
soberanos. (2001: 121)
2. Reconhecemos que nem todas as “comunidades” são do mesmo tipo. Morris (1994), por
exemplo, faz a distinção entre “comunidades de consentimento” (uma espécie de associação vo-
luntária) e “comunidades descendentes” (baseadas, por exemplo, na descendência matrilinear).
86 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES
3. Robert Castel (1995) referiu-se a este fenómeno como “a nova questão social” no âmbito da
qual os excluídos já não são aqueles que, sendo explorados, são indispensáveis, mas, antes, aque-
les que estão em excesso, a mais. Neste sentido, ser explorado torna-se quase um privilégio.
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 89
1º texto:
O homem branco é tão culpado da supremacia branca que não pode
esconder a sua culpa procurando acusar o Honorável Elijah Muhammad
90 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES
2º texto:
Enquanto a primeira declaração pública da NOW (National Organization
of Women) (1966) começava por dizer “Nós HOMENS e MULHERES (com
letras maísculas no original) que agora se constituem como a Organização
Nacional para as Mulheres, acreditamos que chegou o momento para a
criação de um novo movimento no sentido de criar uma igualdade total de
parceria entre os sexos, como parte integrante de uma revolução mundial
ao nível dos direitos humanos que está a acontecer nacional e internacio-
nalmente”, o Manifesto de Redstockings de 1969, que fez emergir o femi-
nismo radical em Nova Iorque, afirmava: ‘Identificamos os agentes da nos-
sa opressão como sendo homens. Todas as outras formas de exploração e
opressão (racismo, capitalismo, imperialismo, etc.) são extensões da su-
premacia masculina, os homens dominam as mulheres, alguns deles domi-
nam o resto”. (Castells, 1997: 177-8)
4. “Malcolm X, baptizado Malcolm Little, em 1925, era filho de um professor baptista. [...]
Abandonou muito cedo a escola e foi para Nova Iorque onde trabalhou durante algum tempo
como criado no Harlem. Em breve envolveu-se com o submundo, começando a traficar marijuana
e tornado-se mesmo viciado em cocaína. Acabou por ser preso por roubo e, em 1946, foi condena-
do a 10 anos de cadeia. Na prisão conheceu a seita muçulmana negra de Muhammad e converteu-
se à sua visão utópica e claramente racista. Saiu em liberdade condicional em 1952 e tornou-se um
conhecido defensor das doutrinas muçulmanas, e, ao contrário de Muhammad, procurou e con-
seguiu grande publicidade. Em 1963, Muhammad afastou-o do movimento Black Muslim e
Malcolm X formou o seu próprio grupo de protesto, a Organização de Unidade Afro-America-
na. O grupo tinha começado a dar os primeiros passos quando, em 1965, Malcolm X foi assassi-
nado” (Haley, 1966).
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 91
víduos e grupos sociais que prefere educar os seus filhos em casa em vez
de arriscar efeitos eventualmente negativos da escola sobre as suas cren-
ças, valores e modos de vida locais. Também é verdade que esse movi-
mento de escolarização doméstica se relaciona com e, em muitos casos,
simboliza uma frustração não tanto com o que existe na escola, mas mais
com aquilo que (diriam eles) não existe, por exemplo, a disciplina, o es-
forço, a avaliação selectiva, etc.
Tudo se parece, então, passar como se os “outros” já não tolerassem
sequer a “tolerância” e a generosidade de que são objecto, precisamente
por se recusarem como objecto e pretenderem assumir a voz de sujeitos
de si. Há nessa atitude uma evidente ligação com a revolta de grupos
sociais que, no passado, punham em causa o desenvolvimento da eco-
nomia capitalista e que reclamavam políticas de redistribuição basea-
das, sobretudo (e como acima já se afirmou) no princípio de igualdade
de oportunidades. Como vimos, a resposta (ainda hoje não só muito in-
completa como ameaçada de novo por um capitalismo de casino indivi-
dualista e imprevisível) desenvolveu-se através da atribuição, pelo Esta-
do-nação, de uma cidadania que era sobretudo social. Mas o que é de
sublinhar aqui é a reclamação agora baseada numa política de reconhe-
cimento da diferença, na reivindicação de uma justiça que não seja sim-
plesmente sócio-económica, mas também cultural. Esta reclamação, ela-
borada com base na(s) identidade(s), repõe uma exigência local que, na
recusa de ser identificada com o território nacional, se assume como iden-
tificável com múltiplos locais estendidos pelo mundo fora.
Apanhados entre o olhar generoso e aparentemente descentrado
face ao “outro” e a recusa deste em ser alvo dessa preocupação, os polí-
ticos e os educadores parecem algo desarmados e desorientados. Desar-
mados porque o sistema de ideias que suportava a sua intenção e as suas
acções parece abater-se sob o seu próprio peso; desorientados porque no
terreno confrontam-se com um sistema educativo cheio de “outros” e de
“outras” aparentemente surdos e indiferentes à generosidade das finali-
dades da educação.
As eventuais saídas dessa situação parecem passar por três consi-
derações. Em primeiro lugar, a “cidadania reclamada” só se pode sus-
tentar sobre a consolidação da cidadania moderna ou “atribuída”. Isto é,
as condições da realização das reivindicações de soberania inerentes à
96 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES
O lugar da identidade
Introdução
Danilo é cantoneiro. Falamos com ele enquanto, com a sachola, vai rapan-
do as ervas daninhas nas bermas ao longo do macadame: “[...] não che-
guei a acabar a terceira classe... Não tinha capacidade... para a escola... O
professor embicava comigo... E eu com ele... Não tinha capacidade... Mas
também trabalhava mais que ele... Desde moço pequeno que o meu pai
me punha ao serviço... Ele era com ovelhas, ele era dar o penso aos coe-
lhos... Carregar o carro com o milho... Fazer as mêdas... Trabalhava mais
que o professor... Se — sei lá? — tivesse tido outra vida...’”. (Entrevista com
Danilo in Magalhães e Stoer, 2003)
Danilo, por um lado, assume que “não era nada bom na escola” um
“facto” que ele utiliza para justificar a sua vida de trabalho árduo desde
tenra idade. Por outro lado, levanta a possibilidade de que, se tivesse
tido oportunidade de escolher, a sua vida teria sido outra... Como desen-
volveremos a seguir, a história que conta sobre si mesmo transporta fre-
quentemente a sua história em negativo, a sua anti-história, a que inclui
as possibilidades impossíveis de surgir como tal.
Os “Lugares”, por sua vez, dado que são abstracções das possibili-
dades enquadradas pelo tempo e pela espaço, só ganham vida, enquan-
to tal, em contextos concretos. Estes contextos incluem, como dissemos
na “Introdução”, a família, a escola, o hospital, a prisão, o tribunal, a
vizinhança, etc. É nestes contextos que as possibilidades e as impossibi-
lidades, traduzidas por “Lugares” são activadas ou desactivadas. Este
processo implica a gestão das escolhas disponíveis para os indivíduos e
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 99
1º texto:
Sentia-me melhor na estrada e nas fazendas. Mas, que poderia realmen-
te compreender? Seria possível explicar a alguém que eu apenas procurava
tornar a ver algo que já vi em tempos? Ver carroças, ver montes de feno,
ver uma pipa, uma persiana, uma flor de chicória, um lenço azul aos qua-
drados, uma cabaça para beber, um cabo de enxada? Também os rostos me
agradavam assim, como sempre os vira: velhas enrugadas, cautos bois,
raparigas na flor de idade, pombais. Para mim haviam passado estações
mas não anos. Quanto mais as coisas e as conversas eram as de então —
mormaças, feiras, histórias de tempos idos, do começo do mundo — mais
me agradavam. Tal como as sopas, as garrafas, as podadeiras, os troncos
depositados na eira. (Pavese, 2002: 52)
2º texto:
[...] sempre vivi aqui. Trabalhava nos campos, nos nossos e nos dos
outros. Aprendi costura, trabalhei como costureira, mas sempre aqui. Tra-
balhei em casa do senhor Conde. Como costureira da senhora Condessa.
Mas trabalhei sempre no campo. Desfolhava, plantava, vindimava, tratava
do gado da casa... O meu pai era lavrador e nós, eu e os meus irmãos fomos
lavradores. Mesmo o meu irmão A, que foi trabalhar para os caminhos de
ferro, era lavrador à mesma. Todos lavradores, tudo gente da terra. (Entre-
vista com M. de Lurdes, in: Magalhães e Stoer, 2003)
• Que relação existe entre o tempo e o espaço? Como influencia essa rela-
ção a construção da identidade?
• Que significa ser parte de uma comunidade ou ser excluído dela?
1º texto:
Lembra-te de que o tempo é dinheiro. Aquele que, podendo ganhar dez
xelins por dia a trabalhar, se passeia ou fica no seu quarto a preguiçar
metade do tempo, embora os seus prazeres, a sua preguiça lhe custem seis
102 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES
2º texto:
Na barreira o patinhar do rebanho continuava no frio da manhã. Distin-
guiam-se os serralheiros pelos seus casacões azuis, os pedreiros pelas ves-
tes brancas, os pintores pelos seus casacos, debaixo dos quais apareciam
longas blusas. Essa multidão apresentava, de longe, um aspecto confuso,
um matiz neutro onde dominavam o azul pálido e o cinzento sujo. De vez
em quando um operário parava para acender o cachimbo, enquanto ao seu
lado outros continuavam a caminhar sem um sorriso, sem uma palavra
dita a um camarada, as faces terrosas, olhando sempre em frente para
Paris que, um a um os devorava, pela rua escancarada do bairro Poissonière.
(Zola, 1977: 9-10)
3º texto:
Segundo esta doutrina fundamental, todas as nossas especulações, quais-
quer que sejam, estão inevitavelmente sujeitas, quer no indivíduo, quer
na espécie, a passar sucessivamente por três Estados teóricos diferentes
que as habituais denominações de teológico, metafísico e positivo pode-
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 103
rão precisar suficientemente, pelo menos aos olhos dos que tiverem com-
preendido bem o seu verdadeiro significado geral. Ainda que, sob todos os
aspectos indispensável, o primeiro Estado deve ser sempre considerado, de
hoje para o futuro, como puramente provisório e preambular; o segundo,
que não constitui, realmente, senão a dissolução daquele, nunca compor-
ta senão um destino transitório, a fim de gradualmente conduzir ao tercei-
ro; é neste, único totalmente normal, que sob todos os aspectos consiste o
regime definitivo da razão humana. (Comte, 1947: 46)
[...] temos o ideal dum mundo perfeito, correcto, eficaz e decente. Mas, em
seguida, cobrimos a terra de imundíces; a vida é um pântano de insectos
debatendo-nos no charco, a fim de que o mineiro tenha um piano na sala
e você um mordomo e um automóvel na sua casa modernizada; e todos,
como nação, podemos divertir-nos no Ritz ou no Empire, com a Gaby
Deslys e com os jornais de domingo. É lúgubre, meu amigo!
[...]
— Não considera você o piano do mineiro (segundo a sua expressão) como
o símbolo de uma ambição verdadeira, o desejo de qualquer coisa mais
alta na vida do operário?
— Mais alta? Sim. Perturbadoras alturas da grandeza absoluta! Eleva-o bas-
tante aos olhos do mineiro seu vizinho. Vê-se refractado no conceito deste
último, como que aumentado através da neblina... umas poucas de vezes o
comprimento do piano... e fica satisfeito. Vive para manter essa ilusão, que
é a sua própria imagem reflectida na opinião pública. Você não faz diferen-
ça. Se, aos olhos dos seus semelhantes é pessoa de importância, não é de
menor importância com relação a si mesmo. Eis a razão pela qual trabalha
tão afincadamente nas minas. Se for capaz de extrair carvão suficiente para
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 105
cozinhar cinco mil jantares por dia, é cinco vezes mais notável do que se
produzisse apenas para o seu próprio jantar. (Lawrence, 1970: 63-4)
1º texto:
Cissako gosta de viver aqui (em Paris). Mas, se pudesse escolher, vivia
no Mali, junto da sua família gigante que partilha a mesma casa: três
mulheres e onze filhos entre os dois e os vinte e três anos. Por ele, a
família não era tão grande, uma mulher bastava-lhe. Mas os pais insistiam
para que casasse de novo e ele, bom filho, não quis contrariá-los: casou
uma vez, mais outra e mais outra. “No Mali é assim, temos de seguir a
tradição e respeitar a palavra dos mais velhos”, diz Cissako. Este africano
que chegou a Paris em 1979 é um fiel seguidor da tradição africana que
aprendeu e nem estes vinte anos em França o fizeram mudar de opinião
em relação a temas como a excisão. Ele mandou excisar as oito filhas uma
semana após o nascimento e explica o porquê: “se as mulheres não forem
excisadas em pequenas, desejam os homem e, aí, nós já não conseguimos
ter três mulheres [...] Temos de manter a nossa tradição familiar e conju-
gal” [...].
O tema da excisão é quente em França como em qualquer país que
acolha no seu seio comunidades com práticas culturais que violem o que
está definido como “direitos humanos”. Cissako sabe-o e é por isso que
defende que, em França, as comunidades estrangeiras não devem praticar
a excisão. “Quem tenha filhas em França deve ir imediatamente ao seu
país fazer a excisão, enquanto elas ainda são pequenas, e depois voltar.
[...] Em França, devemos viver como os franceses”, remata. E é isso mesmo
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 107
que faz sempre que sai do foyer: despe a longa túnica azul com que nos
recebe e enfia umas calças claras, com camisa bem engomada e blusão
beige. “Sempre que ando na rua, visto-me como os ocidentais, porque não
tenho que dar nas vistas, devo ser como a maioria. No foyer é outra coisa,
é como se estivesse em minha casa”, explica. (Godinho, 2002)
2º texto:
Desde que deixei o Líbano, em 1976, para me instalar em França, per-
guntam-me muitas vezes, com as melhores intenções do mundo, se me
sinto “mais francês” ou “mais libanês”, respondo invariavelmente: “Um e
outro!” Não por um qualquer desejo de equilíbrio ou equidade, mas por-
que, se respondesse de outro modo, estaria a mentir. Aquilo que faz que eu
seja eu e não outrem é o facto de me encontrar na ombreira de dois países,
de duas ou três línguas, de várias tradições culturais. É isso precisamente
o que define a minha identidade. Tornar-me-ia mais autêntico se amputas-
se uma parte de mim mesmo?
Aos que me fazem a pergunta, explico pois, pacientemente, que nasci
no Líbano, aí vivi até aos 27 anos, que árabe é a minha língua materna,
que foi na tradição árabe que descobri Dumas, Dickens e As viagens de
Gulliver, e que foi na minha aldeia das montanhas, a aldeia dos meus
antepassados, que conheci as primeiras alegrias de menino e ouvi certas
histórias em que me iria inspirar, mais tarde, para os meus romances.
Como poderia esquecê-lo? (Maalouf, 1999: 9)
3º texto:
Maya é uma japonesa nascida em Tóquio que, “aos quinze anos já
tinha aprendido como ser japonesa”. Foi para os Estados Unidos de onde
o seu pai era natural, depois foi dois anos para Taiwan, apaixonou-se por
um inglês e foi viver para Londres. Elegeu Paris entre todas as cidades
que conhecia por lhe parecer a que melhor enquadrava as suas múltiplas
vidas:
Agora, entre todas as cidades do mundo, Maya escolheu Paris, onde
“tudo o que faço está bem. Em França vale tudo!” Claro que as coisas são
assim porque não tentou ser francesa. “Gosto de me considerar uma ciga-
na... Sinto que sou feita de cores diferentes. Não sei dizer que parte é que
sou: a americana ou a japonesa. Sou a soma, sou o total”. Passou a ser
apresentadora para a televisão japonesa. Quando entrevista um ocidental
108 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES
vem com base na diferença (por isso, a cidadania pode ser reclamada
não só pela afirmação “sou francês”, mas também pela afirmação “sou
homossexual”) (ver também Magalhães e Stoer, 2003). Este processo de
reconfiguração apresenta claras implicações para o processo de plurali-
zação dos indivíduos: por exemplo, é mais ou menos importante para a
estruturação do self ser francês ou ser homossexual?
Como vimos em O Lugar do trabalho, o trabalho, tal como é con-
ceptualizado no capitalismo moderno, é um processo que se está a
reconfigurar. Ao se tornarem flexíveis e imprevisíveis, as carreiras pro-
fissionais já não constituem, como anteriormente, uma base sólida sobre
a qual a identidade se podia construir. As profissões articulam-se com
trajectórias de vida, mas não definem os indivíduos. No espaço domés-
tico, criam-se também condições para a pluralização dos selves. Isto acon-
tece, por exemplo, das seguintes formas: desafios à “estrutura feudal”
(Beck, 1992) da família; crescente complexidade do que é considerado
família, diferenças que invadem a família (ver a esse respeito o exemplo
do casal de lésbicas surdas em O Lugar da cidadania) e a despenalização
dos corpos na família (ver O Lugar do corpo).
É ainda crucial para a formação de identidades a crescente impor-
tância daquilo a que nós nos referimos (na linha de Santos, 1995) como o
lugar mundial. Por um lado, as identidades do Estado-nação são aspira-
das para cima (sem necessariamente perderem a sua soberania) por gran-
des identidades regionais em formação (tais como a União Europeia);
por outro lado, ao mesmo tempo que isto acontece, as identidades locais
são também afectadas e recompõem-se em relação às identidades mais
amplas (frequentemente “a favor” ou “contra”). O crescente protagonis-
mo do Lugar mundial não reduziu forçosamente o papel das comunida-
des locais. O poder da comunidade, em vez de ser paradoxal (no que se
refere à globalização) torna-se, pelo contrário, uma das consequências
do próprio processo de globalização, quer dizer, é simultaneamente lo-
cal e, neste sentido, está a lidar com um processo de “glocalização”. To-
memos, por exemplo, o caso das estátuas de Buda no Afeganistão que se
tornaram o centro de uma crise mundial devido à expressão das identi-
dades religiosas locais que quiseram, assim, fazer valer a sua diferença
face à hegemonia ocidental.
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 111
Conclusão
[...] penso que se pode dizer que a identidade não é auto-suficiente; é neces-
sariamente completada por uma certa ausência, sem a qual não existe. Pare-
ce útil perguntar às identidades o que é que elas implicam e o que é que não
dizem. Ou à volta ou no limiar, o explícito requer o implícito. Tal como no
discurso, para se dizer alguma coisa, há outras coisas que não devem ser
ditas; poderíamos dizer assim: para se ser alguma coisa há outras que se
não pode ser. O que é importante na identidade não é aquilo que se pode
dizer, mas sobretudo aquilo que se não pode ser. (Sarup, 1996: 24)
O lugar do território
1º texto:
O leitor actual pode pegar numa tradução de A República, ou da Política
de Aristóteles; verá Platão a dizer que a sua cidade ideal deve ter 5000
cidadãos, e Aristóteles, que cada cidadão deve poder conhecer de vista
todos os outros; e com certeza que há-de sorrir com estas fantasias filosó-
ficas. Mas Platão e Aristóteles não são fantasistas. Platão idealiza uma
polis segundo a escala helénica normal; de facto, esta afirmação até impli-
ca que muitas das poleis gregas existentes são demasiado pequenas —
muitas tinham menos de 5000 cidadãos. Aristóteles diz, no seu divertido
estilo [...], que uma polis com dez cidadãos seria impossível, porque não
seria auto-suficiente, e que outra com cem mil seria um absurdo, porque
não poderia governar-se convenientemente. (Kitto, 1980: 109)
2º texto:
Para o homem religioso, o espaço não é homogéneo: o espaço apresenta
rupturas, quebras; há porções de espaço qualitativamente diferentes das
outras. [...] há, portanto, um espaço sagrado, e por consequência “forte”,
significativo — e há outros espaços não sagrados, e por consequência sem
estrutura nem consistência, em suma: amorfos. [...] Em contrapartida,
para a experiência profana o espaço é homogéneo e neutro: nenhuma
ruptura diferencia qualitativamente as diversas partes da sua massa. O
espaço geométrico pode ser cortado e delimitado seja em que direcção for,
mas nenhuma diferenciação qualitativa, portanto nenhuma orientação é
dada da sua própria estrutura. [...].
Tal como o espaço, o tempo também não é, para o homem religioso,
nem homogéneo nem contínuo. Há, por um lado, os intervalos de tempo
116 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES
sagrado, o tempo das festas (na sua grande maioria, festas periódicas);
por outro lado, há o tempo profano, a duração temporal ordinária na qual
se inscrevem os actos privados de significação religiosa. Entre estes dois
tipos de tempo, existe, bem entendido, solução de continuidade, mas por
meio de ritos o homem religioso pode “passar”, sem perigo da duração
temporal ordinária para o tempo sagrado. (Eliade, s/d., 35-36; 81)
3º texto:
O estranho e o forasteiro, nas sociedades tradicionais, acabam por se
identificar, surgindo frequentemente com a marca do caos e do não desejá-
vel. Por exemplo, numa entrevista realizada com um cantoneiro, ex-imi-
grante na França, obtivemos o seguinte: “Estive emigrado, eu, a minha pa-
troa, o meu cunhado e a minha irmã. Eu e ele trabalhámos nas obras. Elas
foram servir. Perto de Paris... A maior parte do tempo vivemos perto de
Paris... Sempre mortinho para me vir embora. Nem franceses nem france-
sas. As francesas então... eram umas porcas... A minha mulher e a minha
irmã bem contavam... Lá não há mulheres sérias... Às vezes, à noite dava
a minha voltinha... Uma podridão. Vim em 1980... Deixa ver... Sim, em
1980. Trouxe os filhos... Eles não queriam, já eram meios franceses... Mas
vieram... E vão à missinha como manda a Lei.” (Magalhães e Stoer, 2003b)
1º texto:
O tempo continuou a estar ligado ao espaço (e ao lugar) até que a
uniformidade da medição do tempo pelo relógio mecânico foi igualada
pela uniformidade na organização social do tempo. Esta mudança coinci-
diu com a expansão da modernidade e só foi completada no século presen-
te. Um dos aspectos principais deste processo é a estandardização dos
calendários à escala mundial. Todos nós seguimos, agora, o mesmo sistema
de datação [...]. Um segundo aspecto é a estandardização do tempo de
umas regiões para as outras. Mesmo nos finais do século XIX, regiões dife-
rentes de um mesmo Estado tinham “tempos” diferentes, enquanto entre
as fronteiras dos Estados a situação era ainda mais caótica.
O “esvaziamento do tempo” é em grande medida a pré-condição para o
“esvaziamento do espaço”, tendo, por isso, uma prioridade causal sobre
este. [...] a coordenação através do tempo é a base do controlo do espaço.
O desenvolvimento do “espaço vazio” pode ser entendido em termos da
separação do espaço em relação ao lugar. [...] Nas condições da moderni-
dade, o lugar torna-se cada vez mais fantasmagórico: quer isto dizer que o
local é completamente penetrado e modelado por influências sociais muito
distantes. (Giddens, 1992: 14) (Grifos no original)
2º texto:
A identidade política é baseada na cidadania que se encontra ligada ao
território. Esta assumpção implica dois aspectos. Antes de mais, a cidada-
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 119
3º texto:
[...] as identidades não são aleatórias; encontram-se limitadas por fron-
teiras e limites. Quando os emigrantes atravessam uma fronteira, existe
hostilidade e acolhimento. Os emigrantes (e eu sou um deles) são incluí-
dos e excluídos de várias formas. Enquanto alguns muros são derrubados,
outros ficam ainda mais fortes para manter o emigrante e o refugiado no
exílio. Uma distinção que eu acho útil é a de separar a acção baseada no
espaço — a acção em que a pessoa se pode mover — e a acção limitada ao
espaço que é um agente limitador. (Sarup, 1996: 3)
O território homogéneo
por parte do Estado; por exemplo, aqueles que cometem “más acções” e
crimes, aqueles que circulam erraticamente (os ciganos, por exemplo),
os que chegam ilegalmente do estrangeiro (refugiados e migrantes) e os
que questionam o que, na verdade, é importante para a vida (por exem-
plo, os doentes mentais). Esse controlo implica a criação de territórios
internos, ainda que marginalizados (asilos, prisões, alojamentos sociais,
hospitais psiquiátricos, etc.), de forma a reabilitar os indivíduos enquan-
to cidadãos “saudáveis” e assegurar o ordenamento racional das rela-
ções sociais. Todos os territórios, como territórios potencialmente homo-
géneos, vêm a diferença e a diversidade como uma ameaça que, no mí-
nimo, deve ser disciplinada. Esta disciplina da diferença é articulada, de
uma forma mais ou menos evidente, com as necessidades do mercado
de trabalho e com as preocupações com o crescimento económico. As-
sim, não chega ser um bom cidadão nacional, é necessário ser também
um bom trabalhador (ver O Lugar do trabalho).
2º texto:
A América não é nem um sonho nem uma realidade. É a hiper-realidade.
É uma hiper-realidade porque constituiu uma utopia que se comportou
desde o início como se tivesse realmente tido sucesso. Tudo aqui é real e
pragmático, e mesmo assim, é igualmente o resultado de sonhos. Pode ser
que a realidade verdadeira da América possa ser somente vista pelos euro-
peus, dado que só eles descobrirão aqui o simulacro perfeito — a imanência
e a transcrição material de todos os valores. Os americanos, pelo seu lado,
não têm sentido de simulação. (Baudrillard, 1988: 28)
3º texto:
O caminho mais rápido entre o Céu e o Inferno na América contemporâ-
nea é provavelmente a Fifth Street, na Baixa de Los Angeles. A oeste do
renovado Hotel Biltmore, e estendendo-se ao longo da Harbour Freeway,
um arranha-céus feito de vidro e aço construído depois de 1970, assinala
a chegada à capital da terra de Pacific Rim a quem vem do centro da
cidade. Aqui, mega-construtores japoneses, banqueiros transnacionais e
salteadores de companhias bilionárias conspiram a reestruturação da eco-
nomia da Califórnia. Uns poucos de quarteirões para Leste, através da
terra-de ninguém de Pershing Square, a Fifth Street metamorfoseia-se em o
“Centavo”: uma famosa rua com 750 metros de construções de betão “pato-
bravo” onde vários milhares de pessoas sem abrigo — eles próprios apa-
nhados nas malhas de um inferno de Dante — se tornaram peões de uma
vasta luta local pelo poder. Intersectando estes extremos de ganância e de
miséria encontra-se o eixo de uma terceira realidade: el gran Broadway o
esfusiante centro comercial da burguesia de língua espanhola que vive
numa cidade dentro da cidade e cujos barrios (interpenetrando o gueto na
parte sul) formam actualmente um denso anel à volta da área central de
negócios. Um passeio de dez minutos ao longe da Fifth Street, faz-nos
assim atravessar as divisões abruptas de existências e classes, uma mini-
124 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES
4º texto:
A maior cidade da América do Sul, com perto de 10 milhões de habitan-
tes, é famosa pela presença das formas mais avançadas de desenvolvimen-
to tecnológico e pelo volume de capital financeiro que movimenta. Abriga
bairros ajardinados, mansões suntuosas, edifícios arrojados, centros de
ensino excelentes e hospitais de primeira linha. Por suas avenidas circula,
ou fica parada nos congestionamentos, numerosa frota de automóveis de
luxo e importados. Entretanto, São Paulo convive também com as mais
graves modalidades de privação e sofrimento humano. Uma população ca-
rente e desempregada refugia-se em favelas e cortiços, quando não perma-
nece abandonada nas ruas. É vítima cotidiana da violência e não tem
acesso aos direitos e à Justiça. Pendura-se em ônibus e trens superlotados
e, se adoece, encontra precário atendimento. Seus filhos, quando conse-
guem, freqüentam escolas deterioradas, que abandonam muito cedo. O
Mapa da Exclusão/Inclusão Social da Cidade de São Paulo foi elaborado
para que os habitantes de São Paulo, olhando essa imagem paradoxal de
sua metrópole, refletida nos mapas e tabelas como num espelho, alimen-
tem a vontade de transformá-la. Para isso, o Mapa procura estabelecer
novas relações entre os dados da cidade, de modo a tornar possível uma
nova percepção sobre as condições de vida da população das várias re-
giões. Assim, ao expor a cidade em seus detalhes e contornos, ele preten-
der ser um instrumento que, desvelando a imagem obscura da diferença,
ajude a vencer a indiferença. (Sposati, 1996: 7)
A des/reterritorialização do território
Conclusão
parte dos rituais diários da sociedade. Isso significa que a inclusão tende
a ser ou total ou o seu oposto, isto é, exclusão. Não existe posição
intermédia. Os territórios são independentes uns dos outros, porque o
que os define são as comunidades locais. Na polis, no caso dos gregos, as
mulheres, os estrangeiros (os que nasceram fora da cidade) e os escravos
não eram cidadãos não porque fossem excluídos tout court, mas, antes,
porque tinham um estatuto inferior. Ser excluído era ser um marginal,
desconhecido ou “bárbaro”.
Com o advento do Estado-nação, o território torna-se nacional em
escala global. O espaço do Estado-nação é homogéneo no sentido de que
as particularidades são sacrificadas, de forma a que o universalismo possa
assumir um papel de liderança no projecto de desenvolvimento da mo-
dernização. O que contribui para este projecto é visto como válido, tal
como acontece com a escola pública baseada no princípio da igualdade
de oportunidades. As instituições do Estado-nação, tal como a escola
pública, esforçam-se por se tornarem universais e por se promoverem
na base do que Dale refere como “uma cultura mundial comum” (2000).
O que, pelo contrário, sai fora da norma nacional é visto como ameaça-
dor para o território e, dessa forma, disfuncional. Como resultado, o es-
tranho tende a ser empurrado para as margens da sociedade, para terri-
tórios “especiais” construídos com o objectivo de reeducar, recuperar e
reintegrar indivíduos no território depois de terem reconhecido e de te-
rem aceitado que se desviaram da norma.
Nos territórios heterogéneos e hiper-reais da sociedade em rede,
ser incluído é fazer parte de uma rede. O acesso à comunicação e à in-
formação decide o território — o território físico nacional confunde-se
com territórios fragmentados e virtuais desenvolvido na base de identi-
dades locais e culturais e no fluxo do dinheiro. Dado que se encontra
cada vez mais baseado neste fluxo de dinheiro e no capital financeiro, o
capitalismo desterritorializa radicalmente, por um lado, a produção, a
distribuição e o consumo e, por outro, identidades, o que significa que
vão sendo criadas condições para que as identidades já não sejam poten-
cialmente baseadas num local, mas, antes, cada vez mais fundadas nos
estilos de vida e nas crenças partilhadas. Assim, a re-localização que a
desterritorialização aparentemente implica não é um retorno ao lugar
do território tradicional. É, antes, um lugar re-inventado sem território.
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 131
CONCLUSÃO
Quadro 1
Os cinco Lugares de impacto da inclusão social/exclusão social
isto é, o que funda a relação com o trabalho não é tanto a relação salarial
que define o “empregrado”, mas o potencial de empregabilidade que as
relações, os conhecimentos e os contactos proporcionam aos indivíduos.
A exclusão, em contrapartida, surge marcada pela situação inversa, es-
tar fora da rede.
1. “Etnicidades fictícias” são aquelas que, segundo Balibar (1991), são próprias de meros
súbditos, permanentemente “em desenvolvimento”, e não de cidadãos em pleno dentro do espa-
ço da União Europeia (por exemplo, a comunidade turca na Alemanha ou a comunidade portu-
guesa em França, até muito recentemente). Assim, a etnicidade dos imigrantes é confundida com
a sua menoridade em termos de direitos e deveres, surgindo o reforço da etnicidade não como
algo de real, mas como reflexo de uma situação de exclusão.
OS LUGARES DA EXCLUSÃO SOCIAL 137
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148 STOER • MAGALHÃES • RODRIGUES