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Elmer Rice

A máquina de somar
(The Adding Machine)

Elmer Rice
(Tradução de Iná Camargo Costa)

Peça em oito cenas

(Originalmente apresentada no Teatro Garrick, Nova York, 19 de março de 1923)

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PERSONAGENS

(por ordem de Entrada)

Seu Zero
Dona Zero
Daisy Diana Dorothea Devore
O Patrão
Seu e Dona Um, Dois, etc., até Seis.
Policial
Dois Funcionários (Quebra-galho e Guarda)
Judy O'Grady
Moço
Shrdlu
Uma Cabeça
Tenente Charles
Joe
Guia
Homem Um, Dois, Três
Mulher Um, Dois, Três
Oficial de Justiça
Mulher Alta
Gorda
Charles
Criança
Mãe
Rapaz
Guarda Um, Dois

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Elmer Rice

Cena I
Um quarto pequeno com jogo de cama, cômoda, e cadeiras. Uma instalação de luz elétrica
feia em cima da cama, com uma única lâmpada acesa, desnuda; uma janelinha com a
cortina fechada. Paredes empapeladas com folhas cobertas por colunas de cifras. ZERO
está deitado na cama, de frente para o público, sua cabeça e ombros são visíveis. Ele é
magro e pálido, melancólico e parcialmente calvo. DONA ZERO está diante da cômoda
arrumando o cabelo para dormir. Ela tem quarenta e cinco anos, traços duros e o cabelo
com mechas grisalhas. Está com uma camisola de algodão de mangas largas,
desengonçada. As meias soltas caem sobre os sapatos.
Dona Zero [soltando o cabelo]. Estou ficando doente com esses filmes de faroeste. Esse
monte de vaqueiros cavalgando e laçando. Nada disso me interessa. Fico
doente. Não entendo por que eles não fazem mais histórias como Pela doce
causa do amor. Gosto de história de amor. São ótimas. Ontem a Dona Doze
me disse; “Dona Zero, os filmes de que gosto são os que têm histórias boas,
doces, simples histórias de amor.” “A senhora tem razão, Dona Doze”,
respondi. “É disso que eu também gosto.” É, estão passando muito faroeste
no Cine Rosebud. Eu já enjoei deles. Olhe, acho que vamos começar a ir ao
Cine Peter Stuyvesant. Eles ganharam um dinheirão lá na quarta-feira à
noite. Esta em cartaz uma comédia de Chubby Delano chamada Mareado. A
Dona Doze me contou. Ela disse que é ótima. Estão num piquenique e
Chubby senta ao lado de uma velha empregada com uma boca grande. Ele
fica magoado quando ela não olha para ele, pega uma rã e joga na sopa de
molusco dela. Quando ela vai tomar a sopa, a rã salta para sua boca. Imagine
as gargalhadas! Dona Doze ia contando e riu tanto que quase desmaiou. Ele
é um ótimo comediante mesmo. E ele virou cômico naquele filme de Grace
Darling, Lágrimas de Mãe. Ela é uma graça. Mas não gosto das roupas dela.
Não têm estilo. A Dona Nove leu na Revista Cinelândia que ela largou o
marido. Já é o segundo. Não sei se eles estão divorciados ou só separados.
Ninguém diria vendo os filmes. Ela parece tão doce e inocente. Talvez seja
verdade. A gente não pode acreditar em tudo que lê. Eles dizem que um
milionário de Pittsburgh está louco por ela e é por isso que ela não está mais
com o marido. Dona Sete me falou que o cunhado dela tem um amigo que
estudou com a Grace Darling. Ele diz que o nome dela não é Grace Darling,
é Elizabeth Dugan. Ele também disse que é tudo mentira a história que ela
recebe cinco mil por semana. Uma bobagem, ele acha. Mas ela é uma graça.
Dona Oito acha que Lágrimas de Mãe é o melhor filme que ela fêz. “Não
perca, Dona Zero”, ela disse. “É uma beleza” ela disse. “Só amor e decência.
Maravilhoso!” ela disse, “Eu não consegui segurar as lágrimas”. Tem uma
parte onde aparece um grandalhão inglês - um homem casado, é claro - e ela
é uma camponesinha ingênua. Ela está se interessando por ele. Mas um dia
ela está no jardim, olha para cima e lá está a mãe dela olhando, diretamente
das nuvens. Então à noite ela fecha a porta do quarto. E é claro, quando está

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todo mundo na cama, aparece aquele inglês grandalhão. Quando ela não
deixa ele entrar, ele abre a porta com um pontapé. “Não perca Dona Zero”,
me disse Dona Oito. Está no Peter Stuyvesant quarta-feira à noite. Por isso,
não me venha dizendo que você quer ir ao Rosebud. Os Oito viram no
centro da cidade, no Cine Strand. Eles vão sempre ao centro da cidade.
Enquanto nós... Quem me dera! Até adivinho que se eu for ao Peter
Stuyvesant toda a parte do chute na porta será cortada. É só a gente gostar da
cena que eles cortam, como aquela do cabaré em O Preço de Virtude. Estão
tirando as cenas pesadas dos filmes, hoje em dia. “Isso não é lugar para
moças” me disse Dona Onze, outro dia. Quando este filme chegar aqui no
bairro, metade vai estar cortada. Mas você não vai ao centro nem arrastado
por cavalos selvagens. Você pode esperar que eles venham para o bairro!
Mas eu não quero esperar, viu? Não quero ver o filme quando todo mundo
já viu, um mês depois. Agora não me venha com essa que não tem dinheiro.
Você pode pagar, lógico, se quiser. Sei que você sempre tem dinheiro para ir
no futebol. Mas quando é para mim, é sempre assim: “Não tenho dinheiro,
tenho que economizar”. Vai economizar muito, eu é que sei! Tenho de fazer
milagres todos os meses para chegar ao fim do mês, e você falando em
economizar. [Ela se senta em uma cadeira e começa a mexer nos sapatos e
meias.] E não me venha com aquela ladainha de estar cansado. “Trabalho
duro o dia todo e ainda pego dois metrôs por dia, é demais para mim”.
Cansado! Como é que você se cansa? E eu? Onde eu entro? Esfregando
chão, fazendo a sua comida, lavando suas roupas sujas. E você? Fica sentado
numa cadeira o dia inteiro, somando aqueles números e esperando bater
cinco e meia. Para mim não tem essa de cinco e meia. Não espero um apito.
E também não tenho férias. E pior, não recebo nenhum envelope de
pagamento todo sábado. Queria saber onde você estaria se não fosse eu. E o
que recebo em troca? Fui uma escrava a vida inteira para lhe dar um lar. E o
que é que eu ganho com isso? Eu queria saber! Mas sei que a culpa é minha.
Fui uma boba de me casar com você. Se tivesse algum juízo, teria entendido
desde o início quem você era. Queria poder voltar atrás e fazer tudo de novo.
Você dizia que tudo ia ser maravilhoso! Você não ia ser contador por muito
tempo. Ah, não, não você. Espere até você começar, e mostrar o que pode
fazer. Não tinha nenhum trabalho na loja à sua altura. Pois bem, eu estou
esperando. Esperando você poder começar, tá vendo? Tem sido uma longa
espera. Vinte e cinco anos! E não vi acontecer nada. Vinte e cinco anos no
mesmo trabalho. Vinte e cinco anos amanhã! Você está orgulhoso, não é?
Não é todo dia que a gente perde vinte e cinco anos no mesmo trabalho! Isso
é motivo de orgulho, não é? Ficar sentado durante vinte e cinco anos na
mesma cadeira, somando. O que você acha de chegar a gerente da loja, hein?
Eu sei: você esqueceu isso, não é? E eu aqui em casa olhando as mesmas
quatro paredes, trabalhando, trabalhando, esperando um milagre. Já faz sete
anos que você teve o último aumento! Se não receber um amanhã, eu aposto
o que quiser que você não vai ter coragem para ir lá e pedir. Não escolhi
muito, quando escolhi você, o mundo inteiro é testemunha. Não tenho como
me orgulhar de você. [Ela se levanta, vai para a janela, levanta a cortina.
Do outro lado do pátio interior se vêem várias janelas iluminadas. Olha
para fora um instante] Esta noite ela não está rondando, aquela vadia, pode

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apostar sua doce vida. Nem vai rondar nas próximas. Não neste prédio. [Ela
se afasta da janela.] Aquela vagabunda suja! Que atrevimento, que idéia a
dela, vir morar num prédio de gente bem. Eles deviam dar-lhe seis anos, e
não seis meses. Se fosse o juiz, eu a teria condenado à morte. Essa
vagabunda gosta é disso. [Ela se aproxima da cama e fica um pouco
quieta.] Não precisa ter pena, que ela já foi. Sei muito bem que você
gostaria de se sentar aqui todas as noites e ficar vendo ela passar. Como me
orgulho de você! [Ela está na cama e apaga a luz. Alguns finos raios de
luar vêm do pátio. As duas figuras ficam vagamente visíveis. DONA ZERO
se deita na cama.] Seria bom que não se metesse com mulheres, se é que
você sabe o que é bom para você. Posso aguentar muita coisa, mas isso não.
Tenho sido uma escrava durante vinte e cinco anos, fazendo disto aqui um
lar, porque você não faz nada para me ajudar. Se você fosse outro tipo de
homem, teria um trabalho decente e agora eu teria um pouco de conforto na
vida. Ao invés disso sou uma perfeita escrava, lavando panelas e me
consumindo no fogão. Agüentei isto por vinte e cinco anos e acho que vai
ser assim por mais vinte e cinco. Espero que você não comece a se engraçar
com mulheres…

Ela continua falando até a cortina fechar.

Cortina.

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Cena II
Escritório em loja de departamentos. Divisórias de madeira e vidro. No meio da sala, duas
escrivaninhas altas frente a frente. Numa delas, sentado em um tamborete alto, está Zero.
Defronte a ele em outra escrivaninha, também em um tamborete alto, está Daisy Diana
Dorothea Devore, uma mulher sem encantos, de meia-idade. Ambos usam viseiras verdes e
nas mangas protetores de papel. Lâmpadas elétricas penduradas iluminam as duas
escrivaninhas. Daisy lê cifras em voz alta de uma pilha de folhas em sua frente. À medida
que ela lê as cifras, Zero as soma em uma folha grande de papel quadriculado que fica
diante dele.

Daisy [lendo em voz alta]. Três e noventa e oito. Quarenta e dois centavos. Um dólar e
cinqüenta. Um dólar e cinqüenta. Um dólar e vinte e cinco. Dois dólares.
Trinta e nove centavos. Vinte e sete e cinqüenta.
Zero. [Impaciente] Dá para acelerar um pouco?
Daisy. Para que a pressa? Amanhã é outro dia.
Zero. Ah, você me dá nos nervos.
Daisy. Você que me dá mais ainda.
Zero. Vamos. Vamos. Estamos perdendo tempo.
Daisy. Então deixe de ser tão mandão. [Ela lê.] Três dólares. Dois e sessenta e nove.
Oitenta e um e cinqüenta. Quarenta dólares. Oito e setenta e cinco. Quem
você pensa que é, para falar assim?
Zero. Não interessa quem eu penso que sou. Preste atenção no seu trabalho.
Daisy. Então, não me dê tantas ordens. Sessenta centavos. Vinte e quatro centavos. Setenta
e cinco centavos. Um dólar e cinqüenta. Dois e cinqüenta. Um e cinqüenta.
Um e cinqüenta. Dois e cinqüenta. Não tenho que agüentar isto e não vou.
Zero. Ora, cale essa boca.
Daisy. Falo se quiser. Três dólares. Cinqüenta centavos. Cinqüenta centavos. Sete dólares.
Cinqüenta centavos. Dois e cinqüenta. Três e cinqüenta. Cinqüenta centavos.
Um e cinqüenta. Cinqüenta centavos.
Ela segue se inclinando sobre a escrivaninha e passa as folhas de uma pilha para outra.
Zero inclinado na sua escrivaninha, ocupado, anota as cifras.
Zero [sem olhar]. Você me dá nos nervos. Sempre discutindo. Falando, falando e
falando. Como todas as mulheres. Mulheres me dão nos nervos.
Daisy [Ocupada com suas folhas]. Quem você pensa que é para falar assim? Fica o
tempo todo dando ordens. Eu não tenho que agüentar isto e não vou.
Os dois ficam atentos ao trabalho, não se olham. Durante o tempo todo, um anota as
cifras enquanto o outro fala.
Zero. Mulheres me dão nos nervos. São todas iguais. O juiz deu seis meses pra ela. Eu
queria saber o que elas fazem na penitenciária. Devem descascar batatas.
Aposto que ela está muito magoada comigo. Talvez tente me matar quando
conseguir sair. É melhor me cuidar. “Uma jovem mata seu traidor.” “Esposa
ciumenta mata rival.” Nunca se sabe o que uma mulher pode fazer. É bom
eu me cuidar.

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Daisy. Estou ficando doente com essa história. Você está sempre me atormentando com
alguma coisa. Nunca sai uma palavra boa de sua boca. Nenhuminha, o dia
inteiro.
Zero. Acho que ela não se atreveria a tanto. Talvez ela nem mesmo saiba que fui eu. Eles
nem anotaram meu nome no papel, os vagabundos. Talvez ela já tenha
cumprido alguma pena antes. É disso que as vagabundas gostam. Ela não
teve tempo para nada, nada, nem para trocar de roupa. [Levanta o olhar
rapidamente, então se inclina novamente.] Você me dá nos nervos. Estou
enjoado de olhar a sua cara.
Daisy. Ah! Não vai tocar nunca esse apito? Você não era assim antes. Não dá mais bom
dia nem boa noite. Não fiz nada para você. São essas mocinhas. Passando
sem coletes.
Zero. Sua cara está ficando cada vez mais amarela. Por que não passa uma pintura?
Estava pintada daquela vez. Tinha pintura no rosto e nos lábios. E cor azul
nos olhos. Sentou e se pintou. E depois ficou andando ao redor do quarto
com as pernas nuas.
Daisy. Queria estar morta.
Zero. Fui uma besta de deixar minha mulher me seguir. Ela conseguiu seis meses com o
flagrante. A vagabunda suja. Morar num prédio de gente de bem. Ela ainda
estaria lá se minha mulher não tivesse me seguido. Maldita seja!
Daisy. Queria estar morta.
Zero. Talvez apareça outra. Seria ótimo. Mas minha mulher não tira mais o olho de mim.
Daisy. Tenho medo de fazer isto
Zero. Você devia mudar para aquele apartamento. É mais barato do que onde você está
morando agora. Estou dizendo. Não pense que vou ficar te atormentando.
Daisy. Gás. Esse cheiro me faz mal.
ZERO levanta a cabeça e limpa a garganta.
Daisy. [Se levanta assustada.] O que disse?
Zero. Nada.
Daisy. Pensei que tivesse dito alguma coisa.
Zero. Pensou mal.
Se inclinam novamente, voltam ao trabalho,
Daisy. Um dólar e sessenta. Um dólar e cinqüenta. Dois e noventa. Um e sessenta e dois.
Zero. Por que cargas d’água eu deveria falar para ela? É difícil alguém esquecer de fechar
a cortina!
Daisy. Se tentasse comprar ácido sulfúrico, não me venderiam.
Zero. Seu cabelo está ficando grisalho. Você não usa mais roupa apertada. Quando você
se agachava para pegar alguma coisa...
Daisy. Eu gostaria de saber o que você ia achar se lesse: “Mulher toma mercúrio e depois
salta para a morte.”. “Mulher salta para a morte do décimo andar.”
Zero. Queria saber aonde você vai quando sai daqui. Ah, eu gostaria de ficar um dia com
você. Por que não fui naquela noite em que minha mulher foi ao Brooklyn?
Ela nunca teria descoberto.
Daisy. Vi Pauline Frederick fazer isto uma vez. Mas onde eu poderia conseguir um
revólver?
Zero. Não tive coragem.
Daisy. Aposto que você ficaria arrependido de ter sido tão mau comigo. Como saber?
Talvez você não ficasse.

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Zero. Coragem! Tenho coragem como qualquer pessoa. Acontece que estou amarrado.
Sou um homem casado e estou amarrado.
Daisy. Ora, por que não tenho direito de viver? Sou tão boa quanto qualquer outra pessoa.
Sou muito refinada, eu sei. Isso tem lá o seu charme.
Zero. Quando minha mulher teve pneumonia, pensei que ela estava indo. Mas não foi. A
conta do médico é que foi de oitenta e sete dólares. [Olhando] Ah, espere
um pouquinho! Você não disse oitenta e sete dólares?
Daisy. [Olhando] Disse o quê?
Zero. O último valor que você disse não eram oitenta e sete dólares?
Daisy. [consultando o Deslize]. Quarenta e dois e cinqüenta.
Zero. Ih, errei!. Espere um pouco. [Ele apaga com uma borracha. Corrige.] Certo.
Pronto.
Daisy. Seis dólares. Três e quinze. Dois e vinte e cinco. Sessenta e cinco centavos. Um
dólar e vinte. Você fala comigo como se eu fosse uma suja.
Zero. Eu queria saber se posso matar minha mulher sem que ninguém descubra. Na cama
uma noite dessas. Com um travesseiro.
Daisy. Pensei que você gostava de mim.
Zero. Seria descoberto. Eles sempre têm métodos.
Daisy. Éramos bons amigos quando eu vim para cá. Na época, você falava comigo.
Zero. Talvez ela morra logo. Notei que ela estava tossindo nesta manhã.
Daisy. Você me contava tudo. Ia mostrar a eles quem era. Mas ainda está sentado aqui.
Zero. Então poderia fazer o que mais tenho vontade. Ah, cara!
Daisy. Talvez não seja sua culpa. Se tivesse uma mulher amável, de bom senso. Alguém
refinada como eu!
Zero. Bom, mas tenho certeza que me cansaria de andar com uma e com outra. Ia precisar
de um canto qualquer, um lugar para pendurar o chapéu.
Daisy. Tomara que essa mulher morra.
Zero. E quando se começa a sair com mulheres, corre-se o risco de entrar em
dificuldades. De perder o emprego.
Daisy. Daí você podia casar comigo.
Zero. Ah! Eu queria saber por que fui lá naquela noite?.
Daisy. Então podia parar de trabalhar.
Zero. Muitas mulheres ficariam felizes comigo.
Daisy. Você precisaria procurar muito para encontrar uma moça sensata, refinada como eu.
Zero. Sim senhor, teriam que procurar muito tempo até encontrar um homem com
emprego tão seguro como o meu.
Daisy. Eu sei que não tenho mais idade para ser mãe. Eles dizem que é perigoso depois dos
trinta e cinco.
Zero. Podia me casar com você. Você daria uma boa mulher.
Daisy. Eu me pergunto, se quisesse ter filhos, uma criança. Não haveria um jeito?
Zero. [Levantando a cabeça.] Ei! Ei! Não dá para reduzir a velocidade? O que você
pensa? Que eu sou uma máquina é?
Daisy. [Levantando a cabeça.] Resolva duma vez como você quer! Primeiro está muito
lento, depois muito rápido. Acho que você não sabe o que quer.
Zero. Bom, não se preocupe. Vai mais devagar.
Daisy. Estou ficando doente com isto. Vou pedir transferência.
Zero. Continue. Não me faça perder a cabeça.
Daisy. Ah, fique quieto. [Ela lê.] Dois e quarenta e cinco. Um dólar e vinte. Um dólar e

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cinqüenta. Noventa centavos. Sessenta e três centavos.
Zero. Ah, me casar com você! Não, de jeito nenhum! Você seria uma mulher tão ruim
quanto a minha.
Daisy. Você não se importaria se eu pedisse. Estou a fim de...
Zero. Que bobo fui ao me casar.
Daisy. Senão eu nunca o saberia.
Zero. Que chance tem um homem com uma mulher agarrada ao seu pescoço?
Daisy Naquela vez no piquenique da loja... naquele ano sua mulher não pôde ir... você foi
tão carinhoso comigo...
Zero. Vinte e cinco anos preso ao mesmo trabalho!
Daisy. Ficamos juntos o dia inteiro... nos sentamos debaixo das árvores.
Zero. Queria saber se o chefe se lembra que hoje faz vinte e cinco anos.
Daisy. E na volta para casa à noite... você se sentou perto de mim no grande vagão da
secção.
Zero. Tenho a impressão de que vou receber um grande aumento.
Daisy. Queria saber como é que é ser beijada... Porcos homens sujos! Eles sempre
preferem as atrevidas.
Zero. Se ele não falar comigo, vou diretamente ao escritório central e lhe direi umas
verdades.
Daisy. Queria estar morta.
Zero. “Chefe”, vou dizer, “quero ter uma conversa com o senhor”. “Agora?”, ele dirá,
“sente-se. Tome este Corona, ”. “Não”, eu direi, “eu não fumo”. “Como é
que é?”, ele dirá. “Bem”, eu direi, “é assim: toda vez que eu tenho vontade
de fumar pego uma moeda e penso no ditado. Um centavo economizado é
um centavo ganho, é o que penso”. “Ditado sensato”, ele dirá. “Você tem
uma boa cabeça sobre os ombros Zero”.
Daisy. Não suporto o cheiro de gás. Me faz mal. Você podia ter me beijado se quisesse.
Zero. “Chefe”, vou dizer, “eu não estou muito satisfeito. Eu trabalho aqui faz vinte e
cinco anos e se vou continuar neste posto, quero ter um futuro à minha
frente”. “Zero”, ele dirá, “estou contente que você tenha vindo aqui. Faz
muito tempo que estou de olho em você, Zero. Nada me escapa”. “Ah! Isso
eu sei, Chefe”, vou dizer. Isto, claro, vai fazer ele rir muito. “Você é um
homem de valor, Zero”, ele dirá, “e eu quero ter você aqui comigo no
escritório central. Terminaram seus dias de somar. Na segunda-feira pela
manhã você será transferido para cá”.
Daisy. Esses beijos de cinema... tão demorados... na boca!
Zero. Vou continuar a subir depois. Vou mostrar para todos eles quem eu sou.
Daisy. Naquela noite no filme Cartada do Diabo... ele pôs os braços dele em volta
dos ombros dela e encostou a cabeça. Ela fechou os olhos como se estivesse
deslumbrada.
Zero. Aos poucos. Só preciso de uns dois anos para mostrar a eles quem sou eu.
Daisy. Acho que é... assim... um tipo de deslumbramento. Quando vejo um desses beijos,
parece que esqueço tudo.
Zero. Então eles me dão um cargo em Jersey. E talvez um pequeno Buick. Nada de lata
velha para mim. Esperem só eu começar, eles vão ver.
Daisy. É só fechar os olhos que eu vejo. O jeito que a cabeça dela virou para trás. E os
lábios dele nos dela. Nossa, deve ser demais!
Há uma explosão estridente súbita de um apito a vapor.

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Daisy e Zero [juntos.] O apito!
Rapidamente eles arrumam seus tamboretes, removem suas viseiras e os protetores de
mangas e os colocam nas escrivaninhas. Cada um pega um chapéu atrás da escrivaninha.
O dele é de feltro pardo, o dela, de palha franzida. Daisy põe o chapéu e se vira para Zero
como se fosse falar com ele. Mas ele está limpando sua caneta e não presta nenhuma
atenção nela. Ela suspira e vai para a porta à esquerda.
Zero [Levantando a cabeça]. Boa noite, Dona Daisy.
Mas ela não ouve e saí. Zero põe o chapéu e também vai para esquerda. A porta da direita
se abre e o Chefe entra. É um homem de idade mediana, gestos grosseiros, olhar duro,
bem vestido.
O Chefe. [Chamando] Oh! Seeeuuuu...
Zero se volta surpreso, vê quem é, treme nervosamente.
Zero. [Servilmente] Sim, chefe! O senhor me chamou?
Chefe. Chamei. Quer vir aqui um pouquinho?
Zero. Sim, chefe. Imediatamente, chefe. [Ele apalpa seu chapéu, se arruma, tropeça, se
recupera, se aproxima do Chefe, todos os seus nervos tremem.]
Chefe. Seeeuuu...
Zero. Zero.
Chefe. Isso, Seu Zero. Eu quero ter uma conversa com o senhor.
Zero. [Com um riso nervoso] Pois não, chefe, estava mesmo esperando por isso.
Chefe. [Encarando-o] O quê?
Zero. Pois não, chefe.
Chefe. Quanto tempo faz que você está conosco, seeeuu...?
Zero. Zero... Hoje faz vinte e cinco anos.
Chefe. Vinte e cinco anos! É muito tempo.
Zero. Nunca perdi um dia.
Chefe. E todo esse tempo o senhor tem feito o mesmo trabalho?
Zero. Isso mesmo, chefe. Aqui mesmo, nesta escrivaninha.
Chefe. Então, neste caso, uma mudança não há de ser mal recebida.
Zero. Não senhor, claro que não. É verdade.
Chefe. Foi planejada uma mudança neste departamento há algum tempo.
Zero. E acredito que o senhor pensou em mim.
Chefe. O senhor tem razão. O fato é que, para aumentar a eficiência, os especialistas
recomendaram a instalação de máquinas de somar.
Zero. [Encarando-o] Máquinas de somar?
Chefe. Sim, o senhor deve ter visto. Um dispositivo mecânico que soma automaticamente.
Zero. Claro que sim. Eu vi. Teclas... e uma manivela que a gente vira. [Ele faz no ar os
movimentos]
Chefe. Vamos testar. Elas fazem o trabalho pela metade do tempo e uma colegial pode
operar. Agora... é claro que me dói perder um empregado antigo e fiel.
Zero. Desculpe, mas o senhor poderia repetir o que disse?
Chefe. Disse que muito me dói perder um empregado que está conosco há tantos anos...
[Ouve-se música suave, o som é de uma caixa de música alegre e distante. A
parte do chão em que estão escrivaninha e tamboretes começa se revolver
muito lentamente.] Mas é claro que, numa organização como esta, a
eficiência deve ser a primeira preocupação... [A música fica gradualmente
mais alta e as movimentações mais rápidas.] Você receberá seu salário do
mês inteiro. E vou pedir a meu secretário para lhe dar uma carta de

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recomendação.
Zero. Um minuto, chefe. Me dê este direito. O senhor quer dizer que eu estou demitido?
Chefe [Se fazendo ouvir sobre o volume crescente de som]. Lamento muito... mas não há
outra alternativa, é com grande pesar que faço isso... um funcionário tão
antigo... mas buscamos a eficiência... a economia... o negócio... negócio...
negócio...
A voz dele é submergida pela música. A plataforma se move rapidamente agora. ZERO e o
CHEFE se enfrentam um ao outro. Eles estão completamente imóveis exceto pelas
mandíbulas do CHEFE que se abrem e fecham incessantemente. Mas as palavras não são
audíveis. A música aumenta continuamente. Acrescem sons fora do palco por todo o
teatro: o vento, ondas, cavalos galopando, apitos de locomotivas, sinos de trenó, buzina de
automóvel, vidro quebrando, sons do ano novo, sons de noite de eleição, Dia do
Armistício. O ruído vai ficando ensurdecedor, enlouquecido, e interminável. De repente
culmina em um estrondo de trovão. Por um momento há uma luz vermelha e então tudo
mergulha na escuridão.
Cortina.

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Cena III
Os ZERO jantam na sala. A porta de entrada à direita. As portas da cozinha e do quarto à
esquerda. As paredes, como na primeira cena, estão empapeladas com folhas cobertas
com colunas de figuras de cifrões. No meio da sala uma mesa para dois. Ao longo de cada
parede estão enfileiradas sete cadeiras simétricas.
Ao subir da cortina a DONA ZERO está sentada à mesa. Olha a porta de entrada e o
galpão alternadamente. Ela usa um avental por cima de seu melhor vestido.
Depois de alguns momentos ZERO entra pela porta da rua. Pendura seu chapéu em uma
chapeleira atrás da porta, vem para a mesa e se senta no lugar desocupado. Os seus
movimentos são calmos e discretos.
Dona Zero. [Quebrando o silêncio]. Muito bem: acho que devo ficar agradecida por
você ter voltado para casa. Você só está uma hora atrasado, o que não é
muito. A janta não esfria muito em uma hora. É verdade que hoje à noite
receberemos muitas visitas, mas não tem importância. [Eles começam a
comer.] Você não tinha um bom motivo para chegar na hora certa? Não te
avisei que vamos receber muitas visitas hoje à noite? Você não soube que os
Um estão vindo? Os Dois? Os Três? Os Quatro? Os Cinco? E os Seis? Não
te falei para chegar na hora certa? É a mesma coisa que falar com uma
parede. [Eles comem por alguns momentos em silêncio.] Acho que você
deve ter tido negócios importantes para tratar. Como ir ver o placar do
futebol. Ou duas crianças brigando e você foi apartar? Por certo você tem
muitos negócios para tratar. O espantoso é você ter tempo de voltar para
casa. Tem uma vida dura, claro que tem. Entrar, pendurar o chapéu e meter
a cara na ração. E eu me assando na cozinha quente todo o dia e preparando
sua janta e esperando por você, que seja bonzinho e se digne a voltar para
casa! [Novamente eles comem em silêncio.] Talvez o chefe tenha te
segurado esta noite até mais tarde. Dizendo que você é um elemento
fundamental na loja, e que os negócios já teriam fracassado se você não
tivesse passado os últimos vinte e cinco anos rabiscando com a sua caneta.
Onde está a medalha de ouro que ele pôs em você? Deu a alguma velha
ceguinha ou deixou no assento da limusine do chefe quando ele te trouxe
para casa? [Novamente alguns momentos de silêncio.] Aposto que ele te deu
um grande aumento, não foi? Ou então foi promovido do terceiro para o
quarto andar. Aumento? Que chances você tem de conseguir um aumento?
Todos os que precisam põem um anúncio no jornal. Tem uns dez mil iguais
a você no olho da rua. Você vai é estar fazendo o mesmo trabalho daqui a
outros vinte e cinco anos. Isso, se nesse meio tempo você não esquecer como
é que se soma.
Ouve-se um ruído fora do palco, um click cortante como na operação das teclas e
alavanca de máquina de somar. ZERO ergue a cabeça um momento, mas abaixa quase
imediatamente.
Dona Zero. É a campainha. As visitas já chegaram. E não acabamos de jantar. [Ela
levanta.] Mas vou tirar a mesa, tenha você terminado ou não. Se quiser

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jantar sem briga é só estar na hora certa em casa. E não ficar por aí
procurando o resultado do futebol. [Como DONA ZERO está tirando os
pratos, ZERO se levanta e vai para a porta de entrada.] Espere um pouco!
Não abra ainda. Você quer que as visitas vejam toda a bagunça? E vai
limpar esse colarinho. Você conseguiu manchar tudo de tinta vermelha.
[ZERO vai para porta do quarto.] Acho que depois de vinte e cinco anos
trabalhando com uma caneta, você já deveria fazer isto sem manchar o
colarinho. [ZERO sai para o quarto. DONA ZERO leva os pratos para
cozinha e fala enquanto vai.] Acho que vou passar a noite inteira acordada
lavando os pratos. Para que se preocupar? É para isso que um homem se
casa, não é? Ele não compra as roupas dela, não deixa ela comer junto com
ele na mesa? E por acaso ele se incomoda em saber como ela conseguiu
fazer para cozinhar a comida, lavar e esfregar o chão, lavar os pratos quando
as visitas vão embora? Mas anote aí: você vai ter de esfregar bem os pratos
depois que as visitas forem embora!
Enquanto ela fala, ZERO entra no quarto. Ele limpa o colarinho e vai colocando
furtivamente a sujeira no bolso. DONA ZERO entra na cozinha. Ela tira o avental e leva
uma toalha de mesa que estende apressadamente sobre a mesa. O ruído do click é ouvido
novamente.
Dona Zero. A campainha de novo. Quer abrir a porta?
ZERO vai para a porta de entrada e a abre. Seis homens e Seis mulheres entram,
perfilados em uma coluna dupla. Os homens são de todas as formas e tamanhos, mas o
figurino deles é idêntico ao de ZERO em cada detalhe. Porém, cada um usa uma peruca de
uma cor diferente. Todas as mulheres usam vestidos iguais, mas de cores diferentes.
Dona Zero. [Conduzindo a primeira mulher pela mão]. Como vai, Dona Um?
Dona Um. Como vai, Dona Zero?
DONA ZERO repete esta fórmula com cada mulher. ZERO faz o mesmo com os homens,
mas se mantém silencioso ao longo dos comprimentos. As filas se separam. Cada homem
se senta em uma cadeira da parede direita e cada mulher em uma da parede esquerda.
Cada sexo forma um círculo com as cadeiras muito juntas. Os homens - todos menos
ZERO - fumam charutos. As mulheres comem chocolates.
Seis. Tem chovido muito.
Cinco. Nunca se viu coisa igual.
Quatro. Os jornais dizem que é a pior chuva em quatorze anos.
Três. Não se pode acreditar sempre nos jornais.
Dois. Não, isso também é verdade.
Um. A gente sempre esquece da chuva do ano passado.
Seis. É mesmo, eu lembro que no ano passado também foi bem ruim.
Cinco. Não foi mais ou menos como a de dois anos atrás?
Quatro. Mas este ano está bem ruim.
Três. É, não tem jeito.
Dois. Mas podia ser muito pior.
Um. É, a gente pode ver por esse lado. Mas a chuva está pesada.
Dona Seis. Eu gosto de vestidos de organdi.
Dona Cinco. Ah, e com nervurinhas nas mangas.
Dona Quatro. Já eu, gosto dos mais simples.
Dona Três. É, eu sempre digo, quanto mais simples, mais elegante.
Dona Dois. Mas um pouco de enfeite não faz mal nenhum.

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Dona Um. Não, os vestidos ficam adoráveis.
Dona Zero. Bom, eu acho que é questão de gosto.
Dona Seis. Eu vi o senhor no Cine Rosebud quinta-feira à noite, Seu Um.
Um. O filme era muito ruim.
Dois. Os filmes estão indo de mal a pior.
Dona Seis. E quem era a sua encantadora acompanhante, Seu Um?
Um. Epa, está querendo me encrencar? Aquela era a minha irmã.
Dona Cinco. Ah, tá! É o que todos dizem.
Dona Quatro.Tudo bem! Eu tenho certeza que a Dona Um sabe de tudo.
Dona Um. Por mim ele pode fazer o que quiser, desde que se comporte.
Três. Você tem sorte, Um. Não tenho a menor chance de sair sem minha mulher, nem
com minha irmã.
Dona Três. Você devia estar contente, tem uma boa esposa para cuidar de você.
As Outras Mulheres [Em uníssono]. Está certo, Dona Três.
Cinco. Estou sabendo quem usa as calças em sua casa, Três.
Dona Zero. Tudo bem. Eu vi os dois de mãos dadas bem firmes no cinema no outro dia.
Três. Ela devia estar tentando me tirar um dinheirinho.
Dona Três. De que outro jeito alguém pode tirar dinheiro de você?
[Riso Geral]
Quatro. Eles sim, são um casal apaixonado.
Dona Dois. Acho melhor mudar de assunto.
Dona Um. É mesmo, vamos mudar de assunto.
Seis [sotto voce]. Vocês conhecem a do vendedor ambulante?
Cinco. Um sujeito estava em um vagão dormitório.
Quatro. Indo de Albany para San Diego.
Três. E na cabina mais próxima estava uma velha criada .
Dois. Com uma perna de madeira.
Um. Quando era quase meia-noite...
Todos juntam as cabeças e sussurram.
Dona Seis [sotto voce]. Você ouviu falar dos Sete?
Dona Cinco. Eles estão se divorciando.
Dona Quatro. É a segunda vez que ele divorcia.
Dona Três. Eles são tão simpáticos, ninguém diria.
Dona Dois. Um é tão ruim quanto o outro.
Dona Um. Pior.
Dona Zero. Eles dizem que ela...
Todos juntam as cabeças e sussurram.
Seis. Acho que voto de mulher é bobagem.
Cinco. Claro que é! Política é negócio para homem.
Quatro. Lugar de mulher é em casa.
Três. É isso mesmo! Deve cuidar das crianças e não ficar batendo perna pela rua.
Dois. Essa você acertou na mosca.
Um. O problema é que elas não sabem o que querem.
Dona Seis. Os homens me cansam, eu te garanto.
Dona Cinco. Eles são um bando de preguiçosos.
Dona Quatro. E porcos.
Dona Três. Sempre reclamando de alguma coisa.
Dona Dois. Isso quando não estão mentindo!

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Seu Um. Ou bagunçando a casa.
Dona Zero. Vocês podem acreditar: eu percebo quando meu marido sai da linha.
Seis. Os negócios vão de mal a pior.
Cinco. Nunca estiveram tão mal.
Quatro. Não sei aonde vamos parar.
Três. Estou prevendo uma quebradeira nos próximos três meses.
Dois. Não me surpreenderia nem um pouco.
Um. A gente deve se preparar para o pior.
Dona Seis. Minha tia tem cálculos biliares.
Dona Cinco. Meu marido tem joanetes.
Dona Quatro. Minha irmã está esperando para o mês que vem.
Dona Três. O primo do meu marido tem erisipela.
Dona Dois. Minha sobrinha tem dança de São Guido.
Dona Um. Meu filho tem ataques.
Dona Zero. Eu nunca me senti tão bem na vida. Bato na madeira!
Seis. Muita agitação, no fundo é isso.
Cinco. É isso mesmo! Greves demais.
Quatro. Agitadores estrangeiros, é isso.
Três. Eles deviam ser expulsos do país.
Dois. Mas que diabo essa gente quer?
Um. Não se sabe.
Seis. América para os americanos. É o que eu sempre digo!
Todos [em uníssono]. É isso mesmo! Fora estrangeiros! Fora católicos! Fora judeus! Fora
negros! Cadeia para os baderneiros! Forca neles! Lincha! Queima! Pelotão
de fuzilamento! [Cada vez mais alto. Cantando em uníssono] Meu país será
a doce terra de liberdade...!
Dona Quatro. Por que está tão pensativo, Seu Zero?
Zero [falando pela primeira vez]. Eu estou pensando.
Dona Quatro. Cuidado para não dar luxação no cérebro.
Risos.
Dona Zero. Olhem os homens sozinhos, coitados. Não estamos sendo muito sociáveis.
Um. Mas ninguém descuidou das senhoras.
As mulheres atravessam a sala e se unem aos homens, todos tagarelam ruidosamente.
Ouve-se a campainha.
Dona Zero. Psiu! A campainha!
O volume do som diminui lentamente. Novamente a campainha.
Zero [silenciosamente]. Eu vou. É comigo.
Eles assistem curiosos a ida ZERO à porta. Sério, abre e recebe um Policial. Há um
murmúrio de surpresa e excitação.
Policial. Estou procurando o Seu Zero. [Todos olham para ZERO.]
Zero. Eu estava esperando.
Policial. Venha!
Zero. Um minuto. [Ele põe a mão no bolso.]
Policial. O que está fazendo? [Ele puxa um revólver.] Cuidado, você está preso!
Zero. Eu sei, tudo bem. Eu só queria te dar uma coisa. [Ele tira o colarinho do bolso e dá
ao Policial.]
Policial [suspeitando]. O que é isso?
Zero. O colarinho que eu usei.

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Policial. O que vou fazer com isto?
Zero. Tem manchas de sangue nele.
Policial [guardando o colarinho]. Certo, venha!
Zero [virando para a DONA ZERO]. Eu preciso ir com ele. Você vai ter que enxugar os
pratos sozinha.
Dona Zero [correndo para a frente]. Estão te prendendo por quê?
Zero [calmamente]. Eu matei o chefe esta tarde.
O Policial o leva.
Pano rápido.

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Cena IV
Um tribunal. Três paredes brancas nuas sem portas ou janelas exceto por uma única porta
na parede direita. À direita está o recinto do júri onde estão sentados UM, DOIS, TRÊS,
QUATRO, CINCO, e SEIS e suas respectivas esposas. Ao lado do recinto do júri está um
oficial de justiça. Em frente ao júri existe uma mesa de carvalho longa, com pilhas altas de
livros de leis. Atrás dos livros está sentado ZERO, com seu rosto coberto pelas mãos. Não
há nenhuma outra mobília. Um pouco depois de subir a cortina, o oficial passa ao lado da
mesa, toca o ombro de ZERO. ZERO se levanta e acompanha o oficial. O oficial o escolta
para o grande espaço vazio no meio da sala do tribunal e fica em frente aos jurados. Ele
faz sinais para ZERO parar, aponta para os jurados e retoma o seu lugar ao lado da
recinto do júri. ZERO pára e olha os jurados, confuso e amedrontado. Os jurados não dão
nenhum sinal de tê-lo visto. Permanecem todo o tempo com braços cruzados e olhando
impacientes para a frente.
Zero [começa a falar, vacilante]. Claro que eu matei! Não estou dizendo que não, estou?
Claro que eu matei! Esses advogados! Eles me dão muita dor de cabeça, isso
sim. A maior parte do tempo não entendo essa merda que eles estão falando.
Objeção concedida. Objeção rejeitada. Que conversa é essa? Vocês me
ouviram fazendo alguma objeção? Ouviram? Claro que não! Que história é
essa de objeção? Está certo que vocês têm direito de saber. E eu estou
dizendo que, se um cara mata outro, vocês têm o direito de saber o motivo.
É isso que estou dizendo. Eu sei disso muito bem, eu também já estive no
júri. Esses advogados! Não deixem eles encher a cabeça de vocês. E aquela
história da tinta vermelha? Tinta vermelha, coisa nenhuma! Era sangue,
ouviram? Vocês têm que entender isso. Matei o cara, ouviram? Enterrei o
espeto de contas no coração dele, tá bom? Vocês têm que entender isso, cada
um de vocês. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze,
doze. Vocês todos. Eu já fiz essas contas muitas vezes. Seis e seis, doze. E
cinco, dezessete. E oito, vinte e cinco. E três, vinte e oito. Oito e vão dois.
Ai! Não agüento mais! Malditas cifras! Não dá pra esquecer, são vinte e
cinco anos, estão sabendo? Oito horas por dia, fora os domingos. Em julho e
agosto, sábado até meio-dia. Uma semana de férias remuneradas. E outra
semana sem pagamento, se você quiser. Quem quer este inferno? Ficar em
casa e ouvir a mulher perguntando o tempo inteiro por onde você andou.
Não! E os feriados legais. Quase esqueci de todos. Ano Novo, o Aniversário
de Washington, Dia do Soldado Desconhecido, Quatro de julho, Dia do
trabalho, Dia das Eleições, Dia de Ação de Graças, Natal. Sexta-feira é boa
se você quiser. E se for judeu, o Dia do Perdão, e tem um outro... mas
esqueci como eles chamam. Estes judeus sujos… sempre tirando leite de
pedra. E quando um feriado cai no domingo, tem a segunda-feira livre. Mas
quando o Quatro de Julho cai no sábado, não adianta nada por que o sábado
já é meio expediente. Estão vendo? Vinte e cinco anos... Ah! Vocês sabiam
que o Dia do Soldado Desconhecido e o Quatro de julho caem sempre no
mesmo dia da semana? Pois é... Vinte e cinco anos. Nunca perdi um dia,

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nunca cheguei nem cinco minutos atrasado. Quem não acredita, pode olhar
meu cartão de ponto. Oito e vinte e sete, oito e trinta, oito e vinte e nove,
oito e vinte e sete, oito e trinta e dois. Oito e trinta e dois, quarenta e...
Malditas cifras! Não dá pra esquecer. São engraçadas, essas cifras. Às vezes
parecem com as pessoas. Os Oito por exemplo: dois pontos para os olhos e
um ponto para o nariz. E uma linha. É a boca, estão vendo? Outras lembram
outras coisas, mas não posso falar porque há senhoras no recinto. Claro que
matei o cara. Por que ele não calou a boca? Era só calar a boca! Mas não,
ficou falando, falando, dizendo que estava arrependido, que era gente boa.
Tinha vontade de falar pra ele: “Pára! Pelo amor de Deus, fecha essa boca!”
Mas não tive coragem, tá bom? Não tive coragem de dizer isso pro chefe, e
ele continuou falando que estava arrependido, tão entendendo? Ele estava
perto de mim, e o casaco dele só tinha dois botões. Dois e dois dá quatro,
chega! E tinha um espeto de contas na escrivaninha. Ao meu alcance. Sei
que é errado matar. Eu sei isso. Quando eu li no jornal a notícia da morte
dele e os três filhos, eu me arrepiei dos pés à cabeça. O retrato das crianças
estava no jornal junto com o meu. E a mulher dele também… Nossa! Deve
ser demais ter uma mulher assim. Tem gente que tem sorte. E ele deixou
cinqüenta mil dólares só para fazer a sala das funcionárias da loja. Nisso ele
foi legal. Cinqüenta mil. Isso é mais que o dobro do que teria se tivesse
economizado todo o dinheiro que eu ganhei na vida. Vamos ver. Vinte e
cinco e vinte e cinco são... Chega! E os anúncios fúnebres tinham uma tarja
grossa, preta. Diziam que a loja ia ficar fechada durante três dias pela morte
do proprietário. Morri de rir. Todos os inspetores, compradores, todos os
altos funcionários ficam me devendo esses três dias de folga. Claro que não
devia matar o cara. Não tem desculpa. Mas pensei que ele ia me dar um
aumento, entenderam? Por eu ter trabalhado vinte e cinco anos para eles. Ele
nunca falou comigo antes, sabem? Menos uma vez! De manhã nos
encontramos na entrada da loja, segurei e abri a porta, e ele disse
“Obrigado”. Assim mesmo: “Obrigado”. Essa foi a única vez que ele falou
comigo. E quando eu vi ele aparecer na minha mesa, não sabia pra que lado
ir. Um pessoa tão importante vindo até minha mesa. Fiquei meio sufocado e
de repente veio um gosto ruim na minha boca, aquele de quando a gente se
levanta de manhã. Não tinha o direito de matar. O promotor tem razão nisso.
Ele leu para vocês a lei diretamente do livro. Matar alguém não está certo.
Mas tinha aquela menina, sabem? Seis meses foi a pena dela. Foi um truque
sujo denunciar a menina para os policiais. Eu não devia ter feito isso. Mas o
que podia fazer? Minha mulher não me dava sossego. Eu tinha que
denunciar. Ela ficava andando pela casa só com uma camiseta, entendem?
Mais nada. Só de camiseta. E ela só pegou seis meses. Foi a última coisa que
soube dela. Como estes caras fazem para sair com essas mulheres? Só
agarrando mesmo, como nos filmes. Já vi muitas que gostaria de agarrar
assim, mas nunca tive coragem... no metrô, na rua ou na loja comprando
coisas. Bom é ser vendedor de sapato! Todo dia olhando as pernas das
mulheres... Esses advogados! Eles só me dão dor de cabeça! Só dor de
cabeça! Sempre dizendo a mesma coisa, e de novo a mesma coisa, a mesma
coisa. Nunca disse que não matei. Mas isso não é ser um assassino normal.
O que eu ganhei matando? Não ganhei nada! Responda sim ou não! Sim ou

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não, dá um tempo!... Tem coisas que não se pode responder sim ou não. Me
dêem uma chance, amigos. Pareço um assassino? Pareço? Eu nunca fiz mal
a ninguém. Pergunta pra minha mulher. Ela vai falar. Perguntem a qualquer
um. Nunca me meti em encrenca. Só aquela vez no campo de futebol. A
gente estava brincando. Todo mundo gritando, “Matem o juiz! Matem o
juiz”! Sem pensar no que estava fazendo, joguei a garrafa de cerveja. Foi
porque estava todo mundo gritando. Era brincadeira, entendem? Aquele
cachorro! Marcou pênalti quando nossos jogadores estavam a um quilômetro
da área. O que interessa é que a garrafa nã acertou nele. E quando vi o
policial subir na arquibancada, acertei ele. Uma pancada não machuca
ninguém. Só estava brincando, entenderam? Já naquela vez no metrô, eu
estava lendo sobre um linchamento, certo? Foi na Geórgia. Eles levaram o
crioulo e amarraram numa árvore. Espalharam querosene nele e acenderam
um fogaréu por baixo. Preto nojento! Bem que eu queria estar lá, com um
revólver em cada mão, enchendo ele de chumbo. Estava lendo sobre isso no
Metrô, entendem? Bem na Times Square quando entrou um monte de gente.
E de repente um negão enorme pisa no meu pé? A sorte dele foi eu não ter
um revólver naquela hora. Eu matava, com certeza. Acho que não deu pra
ele desviar por causa da gentarada, mas um preto não tem direito de pisar no
pé de um homem branco. Falei umas verdades pra ele quando desceu.
Aquele preto sujo! Mas ninguém se feriu. Sou um cara honesto; isso vocês
têm que admitir. Vinte e cinco anos no mesmo lugar, sem perder um dia.
Cinqüenta e duas semanas por ano. Cinqüenta e dois e cinqüenta e dois e
cinqüenta e dois e... Eles não precisaram me procurar, precisaram? Não
tentei fugir, tentei? Para onde eu ia correr? Eu não estava pensando em fazer
isso, viram? Vou contar o que eu estava pensando. Como ia dizer para a
minha mulher que estava despedido? Ele me despediu depois de vinte e
cinco anos, viram? Os advogados falaram sobre isso? Esqueci. Toda aquela
conversa me cansa, me dá dor de cabeça. Objeção concedida. Objeção
rejeitada. Responda sim ou não. Me dá dor de cabeça. Não consigo tirar as
cifras da minha cabeça. Mas o que estava pensando era como dizer pra
minha mulher que tinha sido demitido. E o que a Dona Daisy ia dizer
quando ela ouvisse que matei o chefe. Aposto que ela nunca pensou que eu
tinha coragem de fazer isto. Se tivesse me casado com ela, se minha mulher
tivesse desaparecido, eu estaria no meu posto de trabalho se ele não tivesse
me demitido. Mas ele continuou falando, falando. E tinha o espeto das
contas bem ali, na minha mão. Vocês entendem? Eu sou um cara normal
como qualquer outro. Como vocês mesmos, meus amigos. [Pela primeira
vez os jurados relaxam, olham um para outro indignados e sussurram]
Ponham-se no meu lugar. Vocês teriam feito a mesma coisa. É assim que
vocês devem encarar este caso. Ponham-se no meu lugar.
Jurados [Levantado-se de uma vez e gritando em uníssono]. CULPADO!
ZERO cai para trás, aturdido com as vozes. Os jurados se arrumam em seus lugares e
saem depressa do recinto do júri em coluna dupla.
Zero [recuperando a fala, enquanto os jurados desaparecem pela porta]. Esperem um
pouco! Só um pouquinho! Vocês não entenderam. Me dêem uma chance e
eu explico tudo pra vocês. Eu estou confuso, tá bom? A culpa é dos
advogados. E essas cifras na minha cabeça. Mas vou explicar para vocês.

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Foram vinte e cinco anos, entendem? E ela só pegou seis meses.

Ele prossegue na arenga dirigindo-se ao recinto do júri enquanto cai o pano.

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Cena V1
No meio do palco, uma grande jaula com grades nos quatro lados. As grades são bem
largas, de modo a deixar visível o interior da jaula. O chão da jaula fica a
aproximadamente um metro e oitenta centímetros do nível do palco. Uma escada de
madeira conduz a uma entrada virada para o público. Zero está no meio da jaula a uma
mesa, sobre qual está pendurada uma simples luz elétrica. Em sua frente está um prato
enorme de presunto e ovos que ele come vorazmente com uma grande colher de pau. Usa
um uniforme de listas horizontais, pretas e brancas muito amplas. Momentos depois de
subir a cortina um homem entra pela esquerda, com uniforme azul e um quepe de Guia.
Ele é seguido por um grupo de uma dúzia de homens, mulheres, e crianças.
Guia [parando diante da jaula]. Agora, senhoras e senhores, por favor aproximem-se
com cuidado, por aqui! [A multidão se espalha e forma um semicírculo em
volta dele.] Um passo à frente, por favor. Mais perto, assim todo o mundo
pode ouvir [Eles se aproximam. Zero ignora-os.] Este, senhoras e senhores,
é mesmo um in-te-res-san-te espécime; o assassino norte-americano,
Gênero: Homo Sapiens, Habitat; América Norte. [Um riso de excitação.
Toda a multidão corre em volta da jaula.] Não empurra. Tem espaço para
todo o mundo.
Mulher Alta. Oh, que interessante!
Gorda [excitada]. Olhe, Charley, ele está comendo!
Charley [chateado]. É. Tô vendo.
Guia [seguindo o seu roteiro]. Este espécime, senhoras e senhores, exibe todas as
características típicas de sua espécie ….
Criança. [em um terninho de Pequeno Lorde, choramingando] Mamãe!
Mãe. Fique quieto, Eustáquio, se não, eu te levo pra casa.
Guia. Tem os polegares opostos, ampla capacidade craniana, e as áreas pré-frontais
altamente desenvolvidas que o distinguem de todas as outras espécies.
Rapaz [tomando notas]. Que áreas o senhor disse?
Guia [mal-humorado]. Áreas pré-fron-tais. Ele se comunica através de imitação e fala
um idioma que, segundo alguns filólogos eminentes, tem notável
semelhança com o inglês.
Adolescente. Pai, o que é um filólogo?
Pai. Fique quieto, pare de interromper e escute o que ele está dizendo.
Guia. Ele se desenvolve e se reproduz livremente em cativeiro; este espécime foi
recolhido vivo de seu habitat natural logo após assassinar o seu patrão.
[Murmúrios de grande interesse.]
Mulher Alta. Oh, que gracinha!
Rapaz [tomando notas novamente]. O que o senhor disse no fim? Não ouvi direito.
Vários [ajudando]. Assassinou o seu patrão.

1
Nota do Autor: Esta cena era parte do manuscrito original. Foi omitida, entretanto, na produção original,
e foi montada pela primeira vez (na forma atual, revisada) quando da remontagem no Teatro Phoenix em
New York em Fevereiro de 1956. (Elmer Rice).

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Rapaz. Ah… obrigado.
Guia. Ele foi julgado e condenado em uma hora, treze minutos e vinte e quatro segundos,
um novo record para o território a leste das Rochosas e ao norte do Mason e
da linha Dixon.
Criança [choramingando]. Ma-nhê!
Mãe. Fica quieto, Eustáquio, olhe que a Mamãe não deixa você fazer tooo, tooo. [N.T.:
tem conotação de sacanagem: sexo grupal]
Guia. Agora olhem bem para ele, senhoras e senhores. É o último dia dele aqui. Ele será
executado ao meio-dia. [Murmúrios de interesse.]
Mulher Alta. Ai que amor!
Homem. O que ele está comendo?
Guia. Presunto e ovos.
Gorda. Ele não é um morto de fome?
Guia. Oh, ele nem sempre come tanto. É que sempre tentamos fazer com que eles se
sintam bem no último dia. Por isso, com mais ou menos uma semana de
antecedência, eles podem pedir o que vão comer no último dia. Podem
escolher oito pratos, pode ser qualquer coisa. Independente de quanto custa
ou da dificuldade de conseguir. Então, como este aqui não conseguiu pensar
em oito pratos até a última noite, ele pediu oito porções de presunto e ovos.
[Todos se ajuntam e o fitam.]
Adolescente. Olhe, Pai! Ele está comendo com uma colher. Ele não sabe usar faca e
garfo?
Guia. [Escutando] Não nos arriscamos a deixar que ele use faca e garfo, Filhinho. Ele
poderia tentar se matar.
Mulher Alta. Ai que maravilha!
Guia. [retomando o tom oficial ] E agora, amigos, por favor, um minuto de atenção. [Ele
tira do bolso um pacote de blocos de papéis.] Eu tenho aqui um bloquinho
de recordação, que certamente todos vocês vão, como eu, querer ter. Contém
doze gravuras coloridas e bonitas relativas ao Assassino da America do
Norte, que vocês acabam de ver. Elas incluem uma imagem do assassino,
uma imagem da esposa do assassino, a arma manchada de sangue, o
assassino aos seis anos, a mancha onde o corpo foi achado, a escolinha onde
ele foi educado, a casa da juventude, no sul de Illinois, ele com seu ar doce,
e em frente a sua velha mãe com os cabelos brancos claramente visível no
primeiro plano. E muitas outras cenas interessantes. Agora vou distribuir
estes bloquinhos para seu exame. [Sotto Voce.] Passem para trás, isso! [Em
tom mais alto.] Não tenham medo de olhar. Vocês só compram se quiserem,
olhar não custa nada. [Para o Rapaz que está manuseando desajeitadamente
uma máquina fotográfica.] Ei, meu jovem, não é permitido fotografar.
Muito bem. Agora, amigos, vocês devem me seguir por aqui. Permaneçam
juntos e me sigam. Uma senhora perdeu o seu filhinho aqui e depois de um
tempo nós o encontramos, ele estava fumando e se barbeando com uma
navalha.
Muito riso entre eles e todos o seguem pela esquerda. ZERO termina de comer e empurra
para longe o seu prato. Enquanto o grupo vai para a esquerda, a DONA ZERO entra pela
direita. Ela está vestida de luto. Carrega um grande pacote. Ela sobe os degraus para a
jaula, abre a porta, e entra. ZERO olha para cima e a vê.
Dona Zero. Oi.

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Zero. Oi, achei que você não vinha de novo.
Dona Zero. Bem, resolvi voltar. Está contente em me ver?
Zero. Claro. Sente-se. [Ela se senta.] Você está toda embonecada, não é?
Dona Zero. É, não gosta? [Ela se levanta e dá voltas imitando modelo.]
Zero. Nossa! Que classe!
Dona Zero. Sempre fico bem de preto. Estou com uns quilos a mais e o preto emagrece;
que se dane. Estou com uma enxaqueca horrível.
Zero. Quanto você gastou?
Dona Zero. Sessenta e quatro dólares e vinte centavos. E ainda tive que comprar um
botton e aquele papel - você sabe, com as bordas pretas.
Zero. Daqui a um ano você vai estar esfregando chão, se ficar gastando seu dinheiro desse
jeito...
Dona Zero. Bom, tenho que fazer tudo direitinho. Não é todo dia que isso acontece. [Ela
sobe e leva o pacote.] Eu trouxe uma coisa para você.
Zero. [interessado] Oba, o que é?
Dona Zero. [abrindo o pacote] Adivinhe.
Zero. Amm... Me ajude.
Dona Zero. É uma coisa que você gosta. [Ela tira um prato coberto.].
Zero. [Com o interesse crescendo]. Parece que é de comer.
Dona Zero. [Se inclinando]. É. [Ela tira o pano e anuncia] Presunto e ovos!
Zero. [Alegremente] Ô, meu! Era o que eu queria comer! [Ele pega a colher de madeira
e começa a comer avidamente.]
Dona Zero [contente]. Está bom?
Zero. [Com a boca cheia] Excelente.
Dona Zero. [um pouco triste] Esses são os últimos ovos que fiz para você.
Zero. [Preocupado em comer] Ahn, hã.
Dona Zero. Tenho uma coisa pra te contar… será que devo?
Zero. Claro.
Dona Zero. [Indecisamente] Bom... enquanto cozinhava, fiquei chorando.
Zero. É mesmo? [Ele se inclina e bate levemente a mão dela.]
Dona Zero. Não deu pra segurar. Pensar nisto tudo me fez chorar.
Zero. Bom... Chorar não adianta nada.
Dona Zero. Mas não deu pra segurar.
Zero. Pode ser que no ano que vem, nesta mesma data, você esteja fritando ovos para
outro preso.
Dona Zero. Nunca na vida.
Zero. Nunca se sabe.
Dona Zero. Não eu. Para mim, basta uma vez.
Zero. Você deve ter razão. Não sei mesmo. Você pode muito bem conhecer alguém...
Dona Zero. Bem, se acontecer, vou ter bastante tempo para pensar. Não me interessa
procurar encrenca.
Zero. Está gostando de ficar sozinha em casa?
Dona Zero. E muito!
Zero. Agora você tem bastante espaço na cama, né?
Dona Zero. É [Uma pausa breve.] Mas fica meio solitário acordar de manhã e não ter
ninguém pra conversar...
Zero. É, eu sei. Comigo também acontece.
Dona Zero. Não que nós sempre tenhamos conversado muito.

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Zero. Não, não é isso. É que só de saber que tem alguém pra conversar se quiser a gente
já fica contente.
Dona Zero. É. [Outra pausa breve.] Mas bem que eu ficava te enchendo com minhas
cobranças. Não é mesmo?
Zero. Não adianta nada ficar falando nisso agora.
Dona Zero. A gente sempre entrava nessa, né?
Zero. Como qualquer outro casal.
Dona Zero. [dúbia] Eu bem que podia...
Zero. Acho que dei motivo.
Dona Zero. Mas também errei muito.
Zero. Ninguém é perfeito.
Dona Zero. Pensando bem, a gente até que se entendeu, né?
Zero. Com certeza! Melhor do que muita gente.
Dona Zero. Lembra daqueles domingos na praia, nos bons tempos?
Zero. Pode apostar! [Rindo.] Lembra daquela vez que eu te dei um caldo? Nossa! Você
ficou furiosa!
Dona Zero. [Rindo] Fiquei uma semana sem falar com você!
Zero. [Rindo] É. Eu me lembro.
Dona Zero. E quando tive pneumonia e você me trouxe rosas. Lembra?
Zero. Lembro. E quando o doutor me falou que você podia morrer, quase chorei.
Dona Zero. Foi?
Zero. Foi sim.
Dona Zero. Bons tempos mesmo.
Zero. Também acho!
Dona Zero. [com súbita sobriedade] Agora acabou tudo.
Zero. Acabou. Não tenho mais tempo.
Dona Zero. [levantando e indo para ele] Talvez... talvez se pudéssemos fazer tudo de
novo, talvez fosse diferente.
Zero. [Pegando a mão dela] É. Vivendo e aprendendo.
Dona Zero. [chorando] Bem que a gente podia ter mais uma chance.
Zero. Agora é tarde demais.
Dona Zero. Mas não está certo, né?
Zero. Não, não está, mas fazer o quê?
Dona Zero. Não tem nada que eu possa fazer por você antes que...
Zero. Não. Nada. Nadinha.
Dona Zero. Nada mesmo?
Zero. Não. Não consigo pensar em nada. [De repente.] Ah, você está tomado conta
direitinho do meu álbum de recortes, né? Com todos?
Dona Zero. Claro que estou. Deixei na mesa da sala. Para todo mundo ver.
Zero. [Contente] Ele deve estar quase cheio, né?
Dona Zero. Só sobraram três páginas.
Zero. Bem, amanhã tem mais. Vai dar para completar. Você vai pegar todas as notícias,
né?
Dona Zero. Claro que vou. Até já encomendei os jornais.
Zero. Nossa Mãe, nunca pensei que teria um livro inteiro de recortes só a meu respeito.
[De repente.] Olha, tem uma coisa que queria perguntar.
Dona Zero. O quê?
Zero. Em caso de você ficar doente ou morrer, o que vai fazer com o álbum?

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Dona Zero. Bom, pensei em deixar de herança para Beatriz Elizabeth.
Zero. Quem? Sua sobrinha?
Dona Zero. Isso.
Zero. O que ela ia querer com ele?
Dona Zero. Bem, deve ser legal ter um álbum desses, não? A quem mais poderia dar?
Zero. Taí: não quero que você dê para ela. Não quero que aquela menininha antipática
ponha as mãos sujas nele.
Dona Zero. Ela não é antipática nem suja. É um amor.
Zero. Não quero que você dê para ela.
Dona Zero. Então para quem?
Zero. Bem, quero que você dê para a Dona Daisy Devore.
Dona Zero. Dona Daisy Devore?
Zero. Sim. Você conhece, da loja.
Dona Zero. E por que justo para ela?
Zero. Ela vai saber cuidar dele. Quero simplesmente que fique com ela.
Dona Zero. Ah, então você quer?
Zero. Quero.
Dona Zero. Pois bem, não vai ficar com ela! Dona Daisy Devore! Por que ela tem que
entrar nesta história, se tenho duas irmãs e uma sobrinha?
Zero. Não estou nem aí com suas irmãs e sua sobrinha.
Dona Zero. Mas eu estou! E a Dona Daisy não vai ficar com ele. Pode tirar seu
cavalinho da chuva.
Zero. Mas por que é que você tem que decidir sobre isso? O álbum é meu, não é?
Dona Zero. Não senhor. Agora é meu... ou será... amanhã. E vou fazer o que eu bem
entender.
Zero. Deveria ter dado a ela logo de uma vez. Isso sim.
Dona Zero. Ah, é, é? E eu? Sou ou não sou sua mulher?
Zero. Por que me lembrar dos meus problemas?
Dona Zero. Então, de repente aparece a Dona Daisy Devore, né? Queria é saber o que
aconteceu entre vocês.
Zero. Pronto! Lá vém!
Dona Zero. Por que não casou com essa Dona Daisy, se tem tenta consideração por ela?
Zero. Pois fique sabendo que casaria se tivesse conhecido antes de você.
Dona Zero [gritando]. Aaaaah! Isso! Assim é que se fala com a própria mulher! Depois
de tudo o que fiz para você! Seu vagabundo! Seu vagabundo nojento! Isso
eu não agüento! Isso eu não agüento!

Num ataque de fúria DONA ZERO pega os pratos e os espatifa no chão. Histérica e
chorando ela abre a porta da Jaula. Estrondos atrás dela. Desce alguns passos e vai para
esquerda. ZERO a contempla pesaroso por um momento, então encolhe os ombros e com
um suspiro começa a apanhar os pedaços da louça de barro quebrada.
Conforme DONA ZERO sai, à esquerda abre uma porta na parte atrás da Jaula e um
HOMEM entra. Ele está com uma beca de seda acolchoada azul-celeste com inúmeros
bolsos. Por baixo ele usa um macacão de seda rosa. Usa sandálias. Usa um chapéu
Panamá com pena vermelha na borda. Tem asas nos ombros da beca e nas sandálias.
ZERO, que está recolhendo os cacos quebrados, não o nota no princípio. O HOMEM tem
um palito de ouro e começa a palitar os dentes cuidadosamente, esperando que ZERO o
note. ZERO pára para observar e de repente, vê o HOMEM. Ele solta um grito de terror,

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se encolhe em um canto da Jaula e treme apavorado.
Zero. [rouco]. Quem é você?
Homem. [calmamente, guarda o palito no bolso] Sou o Quebra-galho… do
Departamento de Reclamações.
Zero. E o que quer?
Quebra-galho. Nada, Zero. Não existem milagres.
Zero. Não sei do que está falando.
Quebra-galho. Não minta, Zero. [Segurando a mão dele.] E agora que o seu tempo
acabou, agora que o fim já chegou, ainda acredita que algum raio, alguma
varinha mágica, alguma aparição celestial possa intervir entre você e a
execução. Não adianta, Zero. Você está acabado.
Zero [veemente]. Não tá certo! Não é justo! Não fui tratado com justiça!
Quebra-galho. [fatigado]. Todos dizem isso sempre, Zero. [Suave.] Mas me diga:
por que foi injustiçado?
Zero. Aquela máquina de somar. Acha justo, depois de vinte e cinco anos?
Quebra-galho. Claro que sim - de qualquer ponto de vista, menos do sentimental.
[Olhando o relógio de pulso.] A máquina é mais rápida, nunca comete um
erro, sempre está lá na hora certa, e não tem problema de moradia,
congestionamento de tráfico, abastecimento de água, ou serviço de limpeza
pública.
Zero. Mas garanto que comprar essas máquinas custa dinheiro!
Quebra-galho. Nisso você tem razão. Num ponto você leva vantagem sobre a
máquina - o custo de produção. Mas nós aprendemos com a experiência de
muitos anos, Zero, que o custo original é irrelevante comparado ao de
manutenção. Veja os dinossauros, por exemplo. Eles literalmente comeram a
própria existência. Eu bem que garanti o abastecimento deles até o último.
Eles eram pitorescos, os danados... Mas quando apareceu o problema do
abastecimento de nitrato, simplesmente fui obrigado a jogar a toalha. [Ele
começa a esvaziar e limpar seu cachimbo.] A mesma coisa vale para você,
Zero. Fica muito caro manter esse mecanismo delicado de olho e orelha e
mão e cérebro, que na verdade você nunca usou direito. Não podemos gastar
para mantê-lo na ociosidade - por isso você tem cair fora. [Ele põe o
cachimbo no bolso.]
Zero. [ajoelhando-se aos pés dele, suplicante] Me dê uma chance! Pelo menos
uma chance!
Quebra-galho. E o que faria se tivesse outra chance?
Zero. Bom - em primeiro lugar, iria procurar trabalho.
Quebra-galho. Somar cifras?
Zero. Mas não tenho mais idade para tentar outra coisa.
Quebra-galho pega um apito de polícia e sopra forte. Imediatamente dois guardas entram.
Quebra-galho. Rápido, amarrem este cara no carrinho [N.T.: é tipo rolimã].
[Ele sai da Jaula, e pegando um cortador de unha do bolso, começa a cortar as unhas
enquanto os Guardas prendem Zero.]
Zero. [Lutando e gritando] Não! Não! Não me levem! Não me matem! Me dá uma
chance! Só mais uma chance!
Guarda. [Ternamente] Ora, pára com isso! Seja camarada! Em um minuto acaba
tudo!
Zero. Não quero morrer! Não quero morrer! Eu quero viver!

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Os Guardas se entreolham. Então um deles caminha com muita timidez para o Quebra-
galho que está ocupado com as suas unhas.
Guarda [limpando a garganta]. Arr ham!
Quebra-galho. [observando]. E aí?
Guarda [timidamente]. Ele disse que quer viver.
Quebra-galho. Não. Não é uma boa.
Guarda[segurando o boné, com deferência]. Sim, senhor! [Ele se vira para o companheiro
e os dois arrastam ZERO da Jaula, que prossegue lutando e gritando.]
QUEBRA-GALHO guarda o cortador de unha, boceja, vai para a mesa e se senta na
ponta. De outro bolso tira um par enorme de óculos. De outro bolso puxa um jornal
dobrado, que desdobra cuidadosamente. É um suplemento cômico colorido. Ele abre e se
absorve na leitura.
Um momento depois a porta de trás da Jaula abre e um homem calmo, musculoso e
barbudo entra. Ele usa uma camiseta de flanela vermelha e leva um enorme machado
manchado de sangue.
QUEBRA-GALHO, absorvido no suplemento cômico, não vê nada.
Homem. [resmunga] O.K.
Quebra-galho. [olhando] O quê?
Homem. O.K.
Quebra-galho. [cabeceando] Ah, tá bom. [O HOMEM se curva em deferência e sai por
trás. QUEBRA-GALHO guarda os óculos e dobra o jornal cuidadosamente.
Enquanto dobra o jornal.] Com esse, chegamos a 2.137 pares de olhos
negros para o Jeff.
Ele guarda o jornal, apaga a lâmpada de cima da sua cabeça e sai da Jaula pela porta da
frente. Então tira um cadeado de outro, prende-o à porta, e cai fora.

Cortina.

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Cena VI
Um cemitério iluminado pela luz do luar. É um cemitério de segunda classe, nenhuma
lápide elaborada ou monumentos, só lápides simples e algumas com uma cruz. Na parte de
trás uma cerca de ferro com um portão no meio. Num primeiro momento não se vê
ninguém, mas há sons ocasionais como o pio de uma coruja, o apito de um trem a vapor
distante, o coaxar de um sapo-boi e o miado de um gato fazendo serenata. Depois de um
tempo, duas figuras aparecem do lado de fora do portão… um homem e uma mulher. Ela
empurra o portão que abre com um rangido enferrujado. O casal entra. Agora ficam
completamente visíveis ao luar: JUDY O'GRADY e um RAPAZ.
Judy. [avançando] Vem, é aqui.
Rapaz. [duvidando] Aqui? Mas aqui é o cemitério!
Judy. Ah, não brinca!
Rapaz. Você não quer dizer que…
Judy. Qual é o problema com este lugar?
Rapaz. Um cemitério!
Judy. Então! O que é que tem?
Rapaz. Tá louca.
Judy. Este lugar é ótimo, te garanto. Venho aqui sempre.
Rapaz. Nem pensar, tô fora!
Judy. Mas não é um lugar bom como qualquer outro? Do que tem medo? Aqui eles estão
todos mortos! Eles não podem fazer nada, não podem perturbar. [Com
interesse súbito.] Oh, olhe, aqui tem um novo.
Rapaz. Vamos sair daqui.
Judy. Espere um pouquinho. Vamos ver o que diz. [Ela ajoelha em um sepulcro no
primeiro plano e aproximando o rosto da lápide soletra a inscrição.] Z-E-
R-O. Z-e-r-o. Zero! Ei! Esse não é o cara...
Rapaz. Zero? É o cara que matou o chefe, não é?
Judy. É, é ele mesmo. Mas fui para a cadeia por causa dele.
Rapaz. Por quê?
Judy. Você sabe… Lei do Inquilinato. [Com afetação] Seção bla-bla-bla do código penal.
Artigo Terceiro. Seis meses.
Rapaz. E este condenado…
Judy [desdenhosamente]. Ele? Ele era um filhinho de mamãe. Moravámos no mesmo
prédio. Via que ele ficava me olhando pela janela. Acho que a mulher dele
também viu. E eles vieram feito feras pra cima de mim. E agora tô fora e
ele está aí.[De repente.] Ah, rá rá…[Ela estoura numa gargalhada]
Rapaz. [nervoso]. Qual é a graça?
Judy. [rachando de rir] Não seria engraçado se…se… - [Ela explode novamente.] Ia ser
uma bela piada, hein? Agora ele não pode fazer mais nada, pode?
Rapaz. Vamos sair daqui. Não gosto deste lugar.
Judy. Ah, você não tem senso de humor, mesmo. Por que não me deixa fazer uma piada?
Um gato mia suavemente.

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Rapaz [meio histérico]. O que é isso?
Judy. São só os gatos. Parece que gostam daqui. Mas vamos embora, já que tem medo.
[Eles vão até o portão de saída.] Vocês homens, quando estão nervosos, não
servem para nada.
Eles saem pelo portão. Enquanto desaparecem, o sepulcro de Zero abre de repente e a
cabeça dele aparece.
Zero. [olhando em volta.] Engraçado! Acho que eu ouvi alguém falando e rindo. Mas não
estou vendo ninguém. O que será que ela podia estar fazendo aqui? Devo
estar sonhando. Mas como posso estar sonhando, se ainda não dormi? [Olha
em volta outra vez.] Bom, não adianta voltar. Mas também não consigo
dormir. É melhor andar um pouco por aqui. [Ele sai da tumba, está muito
rígido. Usa um terno de corte muito antiquado e suas mãos estão presas
rigidamente sobre o peito.] Nossa! Eu estou duro! [Ele dá uns passos
lentamente, e pára.] Nossa! Que lugar deserto! [Ele sente calafrios e
caminha sem rumo.] Devia ter ficado onde estava. Mas achei que tinha
ouvido o riso dela. [Ouve-se um espirro. ZERO fica imóvel e treme
aterrorizado. Outro espirro.] O que é isso?
Voz Suave. Nada. Não há nada para ter medo.
Por trás de uma lápide aparece SHRDLU. Ele veste túnica velha e puída que não lhe cai
bem. Usa óculos de armação de prata e fuma um charuto.
Shrdlu. Espero não ter assustado você.
Zero [ainda abalado]. Não, não foi nada. Mas você vê, eu não estava esperando
encontrar ninguém.
Shrdlu.Você é um recém-chegado, não é?
Zero. Sim, esta é a minha primeira noite. E não consegui dormir.
Shrdlu.Também não durmo. Acho que podemos fazer companhia um ao outro.
Zero [ansiosamente]. Isso mesmo! É uma boa idéia. Estou me sentindo terrivelmente
solitário.
Shrdlu [concordando]. Eu sei. Vamos nos acomodar melhor.
Ele senta num túmulo com facilidade. Zero tenta seguir o exemplo dele, mas está com
todas as suas articulações endurecidas e geme de dor.
Zero. Estou meio travado.
Shrdlu.Não se preocupe com isso. Em poucos dias destrava. [Ele puxa um maço de
charutos.] Quer um Cubano?
Zero. Não, não fumo.
Shrdlu.Isto ajuda a espantar os mosquitos. [Ele acende um charuto. Tirando o charuto de
repente da boca.] O charuto incomoda, Seu…Seu…?
Zero. Não, pode continuar.
Shrdlu. [voltando a fumar]. Obrigado. Não ouvi seu nome. [ZERO não responde.
SHRDLU pergunta com suavidade] Disse que não ouvi o seu nome.
Zero. Eu sei. [Indeciso.] Mas estou com medo de dizer quem sou e o que fiz. Acho que
você vai me deixar sozinho.
Shrdlu.[tristemente] Não me importam os seus pecados, eles não devem ser maiores que os
meus.
Zero. Vamos ver se você adivinha. [Faz pausa dramaticamente.] Meu nome é Zero. Eu
sou um assassino.
Shrdlu.[calmamente concordando] Ah, é mesmo, me lembro de ter lido sobre você, Seu
Zero.

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Zero [um pouco irritado]. E você ainda acha que é pior que eu?
Shrdlu.[jogando fora o charuto] Ihhh, mil vezes pior, Seu Zero… um milhão de vezes
pior.
Zero. O que você fêz?
Shrdlu. Também sou um assassino.
Zero. [Olhando assombrado] Sem essa! Você está brincando!
Shrdlu.Estou dizendo verdade, Seu Zero. Sou o mais terrível, o mais criminoso dos
assassinos! Você só matou o seu patrão, Seu Zero. Mas eu… eu matei minha
mãe. [Ele cobre a cara com as mãos e soluça.]
Zero. [horrorizado] Que absurdo você está dizendo?
Shrdlu.[soluçando] É isso mesmo: minha mãe! Minha amada mãe!
Zero. [de repente] Me diga uma coisa, você não quer dizer que é o Seu…
Shrdlu. [assentindo] O próprio. [Ele enxuga os olhos e ainda treme de emoção.]
Zero. Me lembro de ter lido sobre você nos jornais.
Shrdlu.Então. Minha culpa foi proclamada por todo o mundo. Mas isso não teria a menor
importância se pudesse apagar da alma a mancha desse pecado.
Zero. Foi a primeira vez que ouvi falar de alguém que mata a mãe. O que levou você a
fazer isso?
Shrdlu.Tenho uma alma pecadora, não há nenhuma outra razão.
Zero. Ela sempre tratou você bem e foi uma boa mãe ?
Shrdlu. Ela era uma santa…uma santa, acredite. Cuidava de mim e me atendia como
só uma verdadeira mãe sabe fazer.
Zero. Quer dizer que não teve nenhuma briga ou coisa assim?
Shrdlu.Nunca, nem uma reprimenda ou uma palavra indelicada. Só cuidados amorosos e
bons conselhos. Na minha infância ela se dedicou a me guiar pelo bom
caminho. Ensinou a ser honrado, ser devoto, não ser egoísta, evitar as más
companhias, a fugir de todas as tentações da carne. E mais: me ensinou a ser
um homem virtuoso, respeitável e temente a Deus. [Ele geme.] Mas era
uma tarefa inútil. Aos quatorze anos comecei a mostrar minha natureza
pecadora.
Zero. [sem alento] Você não matou outras pessoas, matou ?
Shrdlu.Não, graças a Deus, só carrego um assassinato em minha alma. Mas fugi de casa.
Zero. Não!
Shrdlu.Fugi. Um companheiro me emprestou um livro profano, o único livro profano que
já li na vida. Eu me orgulho disso. O nome do livro era A Ilha do Tesouro.
Você já leu ?
Zero. Não, sempre detestei ler livros.
Shrdlu.É um livro perverso, uma narração sombria de aventura. Mas acendeu em meu
coração pecador o desejo de ir para o mar. E assim eu fugi de casa.
Zero. O que fêz, conseguiu emprego de marinheiro?
Shrdlu.Nunca vi o mar até o dia da minha morte. Felizmente a amorosa intuição de minha
mãe a advertiu de minhas intenções e me mandaram de volta para casa. Ela
me deu boas-vindas com os braços abertos. Nenhuma palavra rude, nenhum
olhar de repreensão. Mas eu podia ler o mudo sofrimento nos seus olhos
enquanto ficamos rezando juntos a noite inteira.
Zero. [com simpatia]. Deve ter sido horrível. Ai! Os mosquitos não estão incomodando?
[Ele tenta afastá-los batendo com suas mãos endurecidas.]
Shrdlu.[absorvido na sua narrativa ] Pensei que essa experiência tinha me curado de

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minha maldade e comecei a pensar em uma carreira. No começo eu quis
entrar em missões estrangeiras, mas não agüentamos a idéia da separação.
Então acabamos resolvendo que eu deveria ser conferente.
Zero. Então, você não quer me dar um daqueles charutos agora? Os mosquitos estão me
devorando…
Shrdlu.Claro. [Ele dá a Zero os charutos e os fosfóros.]
Zero. [acendendo o seu charuto] Continue. Estou ouvindo.
Shrdlu.Até eu completar vinte anos eu tive um bom trabalho de conferente numa firma de
catálogos impressos. Depois de um ano me promoveram e me especializei
em catálogos de sapatos.
Zero. Ah? Esse deve ter sido um bom emprego.
Shrdlu.Era mesmo. Fiquei treze anos trabalhando nos catálogos de sapatos. E ainda estaria
lá, se eu não tivesse… [Reprime um soluço.]
Zero. Deviam pôr um pouco de citronela no líquido de embalsamar.
Shrdlu.[suspiros] Erámos tão felizes! Eu tinha um bom trabalho. E aos domingos nós
ficávamos na igreja a manhã inteira, até o meio-dia. Era um modo de vida
digno e honrado.
Zero. Acredito.
Shrdlu.Então veio aquele domingo fatal. Dr. Amaranto, nosso pastor, estava jantando em
casa… um dos poucos espíritos puros que existem na terra. Quando ele
terminou de fazer a oração, tomamos a sopa. Tudo seguia como de costume.
Estávamos tomando nossa sopa e discutindo o sermão, exatamente como em
qualquer outro domingo que possa me lembrar. Então veio a perna de
carneiro… [Ele interrompe e retoma em uma voz sufocada.] Vejo a cena
inteira com toda clareza, ela nunca me abandona… Dr. Amaranto à minha
direita, minha mãe à minha esquerda, e a perna de carneiro na mesa em
minha frente, e o relógio cuco na pequena estante entre as janelas. [Ele faz
uma pausa e enxuga os olhos .]
Zero. Ah, mas o que aconteceu?
Shrdlu.Quando eu comecei a destrinchar o carneiro…. alguma vez já destrinchou uma
perna de carneiro?
Zero. Não, nossa especialidade era carne de boi em conserva.
Shrdlu.É muito difícil por causa do osso. E quando tem molho no prato tem o perigo de
derramar. Por isso minha mãe sempre segurava o prato para mim. Ela
segurou como sempre, e dava para ver o medalhão de ouro pendurado no
pescoço dela. Tinha meu retrato com os cabelos cacheados de quando era
nenê. Daí levantei a faca para destrinchar a perna de carneiro… e em vez
disso... cortei a garganta da minha mãe! [Ele soluça.]
Zero. Você devia estar louco!
Shrdlu.[levantando a cabeça, veementemente]. Não! Não tente me justificar! Não estava
louco. Eles tentaram provar no julgamento que eu estava louco. Mas o Dr.
Amaranto sabia a verdade! Ele viu tudo! Ele soube que era minha natureza
pecadora… e contou o que me esperava.
Zero. [tentando confortá-lo] Seus padecimentos acabaram agora.
Shrdlu.[levantando a voz] Ah, acabaram! Você pensa que isto é o fim, é?
Zero. Claro! O que mais podem fazer contra nós?
Shrdlu [tom de voz crescente e mais estridente.] Você pensa que pode haver alguma paz
para… assassinos, pecadores como nós? Não… você sabe o que nos

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A máquina de somar Pagina 32
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espera… chamas, chamas eternas!
Zero. [nervosamente] Fique calmo, amigo… eles não vão fazer isso.
Shrdlu. Não há escapatória para nós, estou te dizendo. Nós fomos condenados!
Sentenciados a sofrer tormentos indizíveis por toda a eternidade. [A voz dele
sobe mais e mais alto.]
Um túmulo abre de repente e uma cabeça aparece.
A Cabeça. Ei ! Querem calar a boca e me deixar dormir?
ZERO levanta com dificuldade por causa dos pés.
Zero [para Shrdlu] Ei, fale mais baixo!
Shrdlu [muito excitado para atender o pedido] Não demora muito, e nós seremos levados
daqui! Nós vamos receber logo a nossa intimação.
A Cabeça. Você vai ou não vai calar a boca? [Ele se dirige ao túmulo.] Ei, Bill, me
empreste sua cabeça um pouquinho. [Tempo. E aparece o braço dele
segurando um crânio.]
Zero. [prevenindo] Cuidado! [Ele arrasta Shrdlu para fora do ângulo em que a Cabeça
está atirando o crânio.]
A Cabeça. [fastigada] Errei, malditos gatos velhos! Eu pego vocês da próxima vez.
[Um bocejo prodigioso.] Ah…! Eu vou é voltar aos vermes!
A CABEÇA desaparece enquanto cai a cortina.

Cortina

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Cena VII
Um lugar agradável. Uma cena de bucólica beleza. Um prado com muitas árvores antigas
e atapetado com uma bonita grama e flores de campo. Ao fundo, várias barracas
enfeitadas com estampas alegres e coloridas, e mais adiante brilham os meandros de um
rio. Ar puro e céu sem nuvens. Uma doce música ao longe.
Quando sobe a cortina, SHRDLU está sentado debaixo de uma árvore no primeiro plano
em atitude de abatimento profundo. Joelhos dobrados e a cabeça enterrada nos braços.
Está vestido como na cena anterior.
Alguns minutos depois entra ZERO pela direita. Caminha lentamente e olha ao redor com
um ar de curiosidade e desconfiança. Ele também está vestido como na cena anterior. De
repente vê SHRDLU. Ele fica parado e olha para o outro com um pouco de medo. Então,
pensa conhecê-lo e se aproxima. SHRDLU não percebe a sua presença. Afinal ZERO o
reconhece, sorri com agradável surpresa.
Zero. Olha só quem está aí…! [Ele bate no ombro de SHRDLU.] Oi, amigo!
Shrdlu. Olha para cima lentamente. Então, reconhece ZERO, levanta solenemente e
estende a mão com cortesia.
Shrdlu. Como vai Seu Zero? Eu estou muito contente em te ver de novo.
Zero. O mesmo digo eu. Eu também não esperava por isso. [Olhando ao redor.] O lugar é
muito agradável. Eu bem que gostaria de descansar um pouco aqui.
Shrdlu. Você pode, se quiser.
Zero. Eu estou meio cansado. Eu não estou acostumado ao ar livre. Eu não caminho há
muitos anos.
Shrdlu. Sente-se aqui, debaixo da árvore.
Zero. Eles deixam sentar na grama?
Shrdlu. Claro!
Zero. [sentando] Ah, que bom! Meus pés estão doloridos. Eu não estava acostumado a
caminhar tanto. Bom… será que eu poderia tirar os sapatos? Os meus pés
estão cansados.
Shrdlu. Pode. Tem gente que anda descalça por aqui.
Zero. Verdade? Esses devem estar loucos. Mas eu vou tirar um pouco os sapatos. Um
pouco só, como deve ser. A grama está fresca e agradável. [Ele se estica
confortavelmente.] Isto é que é vida, uma vida de verdade. Este lugar não
poderia ser melhor. Como se chama?
Shrdlu. Campos Elísios.
Zero. O quê?
Shrdlu. Campos Elísios.
Zero. [dúbio] Tudo bem, não deixa d e ser um lugar agradável.
Shrdlu. Dizem que este é o lugar preferido de todos, mas só os privilegiados ficam
aqui.
Zero. É? Então eu vou ter que sair. [De repente.] Mas o que você está fazendo aqui? Eu
pensei que a esta hora você já estivesse queimado.
Shrdlu. [tristemente]. Seu Zero, eu sou a mais infeliz das criaturas.

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Zero. [com surpresa moderada]. Por quê? Porque você não foi assado vivo?
Shrdlu.[concordando]. Não está acontecendo nada do que eu esperava. Eu vi tudo tão
claro! As chamas, as torturas, uma eternidade de sofrimento como o castigo
justo para meu crime indizível. E tudo tem sido tão diferente!
Zero. Aqui é bom demais para você, não é?
Shrdlu [lamentando-se]. Não, não, não! O justo é que eu devia ser castigado. Eu suportaria
tudo estoicamente. Tudo! Por intermináveis tormentos indescritíveis, eu
teria exultado na magnificência da justiça divina. Mas isto… está me
enlouquecendo! Onde está a justiça? O que resta da moralidade? Onde está o
certo e o errado? É de enlouquecer… simplesmente de enlouquecer! Ah, se
o Dr. Amaranto estivesse aqui para me aconselhar! [Ele cobre o rosto com
as mãos e geme.]
Zero [tentando entender]. Você quer dizer que não foi condenado por cortar a garganta
de sua mãe?
Shrdlu. Não! É terrível, terrível! Eu estava preparado para qualquer coisa…
qualquer coisa, menos isto.
Zero. E o que Eles disseram?
Shrdlu [levantando a cabeça]. Só que era para eu vir aqui e aqui ficar até entender.
Zero. Não estou entendendo. O que Eles querem que você entenda?
Shrdlu [desesperado]. Não sei… Não sei! Se eu tivesse ao menos uma pista do que Eles
querem dizer… [interrompendo.] Escute! Você está ouvindo alguma coisa?
[Ambos ficam em silêncio e escutam com atenção.]
Zero [afinal]. Não, nada.
Shrdlu. Você não está ouvindo a música? Não?
Zero. Música? Não, eu não estou ouvindo nada.
Shrdlu. As pessoas aqui dizem que a música não pára nunca.
Zero. Estão brincando...
Shrdlu. Você acha?
Zero. Claro. Não tem som nenhum aqui.
Shrdlu. Pode ser. Eles são capazes de qualquer coisa. Mas eu ainda não contei a
minha decepção mais amarga.
Zero. Vamos lá, conta. Eu já estou acostumado com más notícias.
Shrdlu. Quando eu vim para cá, só pensava em achar minha querida mãe. Eu queria
pedir perdão. Eu queria que ela me ajudasse a entender.
Zero. E ela não ajudou?
Shrdlu.[com um profundo gemido]. Ela não está aqui, Seu Zero! Aqui onde só os
privilegiados moram, não se encontra em parte alguma o mais sábio e mais
puro dos Espíritos! Eu não entendo isso!
Voz de uma Mulher [ao longe]. Seu Zero! Ei, Seu Zé-rô! [Zero levanta a cabeça e escuta
atentamente.]
Shrdlu [indo em sua direção]. Se você visse algumas pessoas aqui… as coisas que elas
fazem…
Zero [interrompendo]. Espera só um pouquinho? Acho que tem gente me chamando.
Voz [um pouco mais próximo] Seu Zero! Ei! Seu Zero!
Zero. Que é isso agora? Era só o que faltava: minha mulher atrás de mim! Isso seria
muito chato, não acha? Eu achava que ela ia me deixar em paz por no
mínimo vinte e cinco anos.
Voz. [mais próximo]. Seu Zero! Uh, ruh!

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Zero. Não. Não é a voz dela. [Chamando com toda a força.] Uh, ruh. [Para SHRDLU.]
Não é sempre assim? Na hora que a gente está numa boa! [Levanta e olha à
esquerda.] Lá vem ela, seja lá quem for. [subitamente assombrado.] Ora,
vejam só…! Quem explica isso?
Ele se levanta e olha com a expressão assombrada, enquanto DAISY DIANA DOROTHÉA
DEVORE faz sua entrada. Ela usa um vestido de musseline branca enrugada, muito curto,
quinze anos mais novo que ela. Está com o rosto avermelhado e efegante.
Daisy. [Arquejando]. Ah! Eu pensei que nunca ia te alcançar. Estou te seguindo há dias
chamando, chamando. Você não me ouviu?
Zero. Até agora não. Você parece cansada.
Daisy. E estou mesmo. Preciso recuperar o fôlego.
Zero. Bem, sente e descanse. [Ele a conduz à árvore.]
DAISY percebe a presença de SHRDLU e recua um pouco.
Zero. Não se assuste, ele é um amigo meu. [Para SHRDLU.] Amigo, eu quero te
apresentar a minha amiga, Dona Daisy Devore.
Shrdlu [levanta e estende a mão de maneira cortês]. Muito prazer, Dona Daisy!
Daisy [perturbada]. Como vai o senhor?
Zero [para DAISY]. Ele é um amigo meu. [Para SHRDLU.] Você não se importa se ela
se sentar aqui um pouco e descansar, não é?
Shrdlu.Não, não, claro que não.
Todos se sentam debaixo da árvore. ZERO e DAISY estão sem jeito. SHRDLU
gradualmente mergulha nos próprios pensamentos.
Zero. Eu estava descansando. Tirei os sapatos porque os meus pés estavam doendo muito.
Daisy. Ah, eu também estou cansada, [Olhando ao seu redor.] Mas esse lugar é muito
bonito, não acha?
Zero. É sim.
Daisy. Qual o nome daqui?
Zero. Espera um pouco... Ele me disse agora mesmo. Os… estes… eu não sei. Algo como
campos. Esqueci. [Para SHRDLU.] Como é mesmo o nome deste lugar?
[SHRDLU, absorvido em seus pensamentos, não o ouve. Para DAISY.] Não
ouviu. Ele está pensando de novo.
Daisy [em voz baixa]. O que ele tem?
Zero. Ele é o cara que assassinou a mãe, lembra?
Daisy [interessada]. Ah, lembro sim! É ele?
Zero. É. Ele estava imaginando que ir ser assado vivo ou coisa parecida. E, pelo visto,
não vão fazer nada, por isso ele está meio transtornado.
Daisy [com simpatia]. Coitado!
Zero. É mesmo. Ele leva as coisas muito a sério .
Daisy. Ele parece um jovem simpático.
Zero. Você sempre teve coração mole. Eu nunca esperei te encontrar aqui.
Daisy. Eu imaginei mesmo que você ia se surpreender.
Zero. Claro que estou surpreso! Eu pensei que você estava viva. Quando você morreu?
Daisy. Ah, alguns dias depois de você.
Zero [interessado]. É? E o que aconteceu? Foi atropelada por um caminhão ou...?
Daisy. Não. [Indecisa] Bom, foi assim… Eu abri o gás.
Zero. [surpreso]. Que é isso? Que idéia foi essa?
Daisy [com hesitação]. Ah, não sei. Veja você: eu perdi meu trabalho.
Zero. Eu aposto que agora você está arrependida, não está?

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Daisy [com convicção] Não, eu não me arrependo. Nem um um pouco. [vacilante.] Olhe,
Seu Zero, eu estive pensando… [Ela se cala.]
Zero. O quê ?
Daisy [buscando coragem]. Eu acho que seria muito bom se você e eu… enfim, se a
gente…conversasse um pouco.
Zero. Tudo bem. Você quer falar do quê?
Daisy. Bem… não sei… mas você e eu…. nós, bem… nunca falamos com clareza algumas
coisas, não é?
Zero. Não. Tem razão. É verdade. Vamos conversar agora.
Daisy. Eu estava pensando se nós pudéssemos ficar sozinhos … só nós dois, entende?
Zero. Claro que entendo. [Ele vira ruidosamente para SHRDLU e tosse. SHRDLU não se
mexe.]
Zero. [para DAISY]. Ele está morto para o mundo. [Ele vira para SHRDLU.] Ei, amigo!
[Nenhuma resposta.] Ei! Amigo!
Shrdlu. [levanta a cabeça com sobressalto]. Você está falando comigo?
Zero. Estou. Como você adivinhou? Eu pensei que talvez você quisesse caminhar um
pouco e procurar sua mãe.
Shrdlu. [Mexendo a cabeça] Não adianta. Eu já olhei por todo lado. [Ele se desliga
outra vez.]
Zero. Talvez aquele pessoal ali possa saber o paradeiro dela.
Shrdlu.Não, não! Eu procurei por tudo. Ela não está aqui.
ZERO e DAISY se olham com desespero.
Zero. Escute, companheiro, minha amiga aqui e eu… sabe?… nós trabalhávamos na
mesma loja. E nós temos algumas coisas para falar sobre… negócios, sabe?
… tipo confidencial. Assim, se não for pedir muito…
Shrdlu.[levantando-se rapidamente] Claro, claro! Com licença! [Ele se curva
educadamente para DAISY e sai. DAISY e ZERO o observam até que ele
desaparece.]
Zero. [com um riso forçado]. Ele é um cara legal.
Agora que eles estão sós, ficam sem jeito, e por um tempo ficam em silêncio.
Daisy. [quebrando o silêncio]. Este lugar é muito bonito, não é?
Zero. Com toda a certeza.
Daisy. Olhe as flores! São tão perfeitas que até parecem artificiais, não é?
Zero. É, parecem mesmo.
Daisy. E o cheiro delas. Que perfume!
Zero. É.
Daisy. Eu adoro o campo, e você?
Zero. Também. É bom mudar de ares.
Daisy. Lembra dos piqueniques da loja?
Zero. Lembro! Era divertido!
Daisy. Uma vez… eu acho que você não lembra… nós dois… você e eu… nós sentamos
na grama debaixo de uma árvore… do jeito que estamos agora.
Zero. É sim, eu me lembro.
Daisy. O quê?! Aposto que não lembra.
Zero. Pois eu aposto que lembro. Foi no ano que a minha mulher não foi.
Daisy. [com o rosto iluminado]. É isso mesmo! E eu pensando que você não lembrava.
Zero. Na volta nós sentamos juntos no vagão.
Daisy. [ansiosamente, e ruborizada] Isso! Tem uma coisa que eu sempre quis perguntar a

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você.
Zero. É? E por que não perguntou?
Daisy. Não sei. Podia ser indelicado. Mas agora eu pergunto.
Zero. Vamos lá: pergunte.
Daisy. [hesitante] Bom… quando a gente estava voltando para casa… você pôs seu braço
por cima do banco atrás de mim… e eu senti o seu joelho encostando no
meu. [Ela pára.]
Zero. [ficando mais interessado] Sim… sei, e que mais?
Daisy. O queria perguntar: foi... foi por acidente?
Zero. [com um riso] Claro que foi acidente. Acidentalmente de propósito.
Daisy. [ansiosamente] Jura?
Zero. Juro. Vai me dizer que você não percebeu?
Daisy. Não. Por isso eu queria perguntar…
Zero. Então, por que você ficou chateada comigo?
Daisy. Eu? Eu não! Eu não fiquei chateada! Quando eu fiquei chateada com você?
Zero. Aquela noite. Claro que você ficou chateada. Então, por que você tirou o joelho?
Daisy. Só para ver se você tinha feito de propósito. Eu pensei que se você quisesse mesmo
você encostaria o seu outra vez. E quando você retirou o braço, achei que
você tinha posto por distração.
Zero. E eu pensando o tempo todo que você ficou chateada! Foi por isso que eu tirei meu
braço. Eu pensei que, se eu chegasse mais, você podia fazer um escândalo,
desses que a gente lê no jornal todos os dias, sobre tipos que ficam
assediando mulheres.
Daisy. E eu querendo que você pusesse o seu braço em meus ombros. Eu desejei isso
durante toda a viagem.
Zero. Como é que eu podia saber? Que azar! Se eu soubesse….! Sabe o que eu tinha
vontade de fazer… mas não tive coragem?
Daisy. O quê?
Zero. Eu tinha vontade de te beijar.
Daisy. [fervorosamente] Eu também.
Zero. [surpreso] Você deixaria?
Daisy. Eu queria! Eu queria! Oh, por que não me beijou?
Zero. Não tive coragem. Eu sou um idiota mesmo.
Daisy. Eu deixaria você fazer tudo que quisesse. Sem nenhum problema. Eu sabia que
estava errado, mas eu não me importaria. Eu nem estava pensando se estava
certo ou errado. Eu não queria nem saber! Eu só queria que você me
beijasse.
Zero. [sentido]. Ah! Se eu soubesse... Eu queria, eu juro! Mas pensei que você nem
ligava para mim.
Daisy. [apaixonadamente]. Eu nunca me interessei por mais ninguém.
Zero. Você está falando…. sério? Não está brincando?
Daisy. Não, eu não estou brincando. É sério. Eu estou dizendo a verdade. Eu nunca tive
coragem de falar antes, mas agora não tem mais importância. Agora não faz
mais diferença. Cada palavra do que eu disse é verdade.
Zero. [deprimido] Ah, se eu soubesse!
Daisy. Mas ainda tem outra coisa que eu quero dizer para você. Agora eu posso te contar
tudo. Não faz mais diferença. É sobre o meu suicídio… sabe? Você sabe
por que eu fiz isso?

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Zero. Sei, você me contou, porque foi despedida.
Daisy. Eu disse, mas não é esse o verdadeiro motivo. A verdade é que foi por sua causa.
Zero. Não vai dizer que você se matou porque eu morri!!??
Daisy. É isso mesmo que eu estou dizendo. Eu não quis continuar vivendo. Para quê? Por
que eu ia querer ficar viva? Eu não tinha motivo para viver sem você. Eu
pensei em fazer isto muito antes. Mas nunca tive coragem. E também eu não
queria deixar você.
Zero. E eu sempre gritando, reclamando que você lia muito rápido ou muito devagar.
Daisy. [reprovando]. Por que você fazia isso?
Zero. Não sei, te juro.Você sempre me atraiu. E enquanto eu estava somando os números,
eu ficava pensando que, se a minha mulher morresse, eu podia me casar com
você.
Daisy. Eu também pensava isso...
Zero. E então, quando eu me dava conta, já estava começando a gritar de novo.
Daisy. Nessas horas que eu pensava em abrir o gás. Mas nunca abri até que você morreu.
Daí não tinha mais motivo para viver. Mas não foi fácil como eu pensava.
Primeiro que eu nunca suportei o cheiro de gás. E depois, enquanto eu fazia
os preparativos, sabe, né, abrir todas as bocas do fogão, como a gente lê nos
jornais… eu ficava pensando em você e esperando que a gente se
encontrasse novamente. Eu jurei que se algum dia te encontrasse eu te
contava.
Zero. [pegando a mão dela]. Eu fico muito contente com isso. Muito contente. [com
tristeza.] Mas, que diferença isso faz agora ?
Daisy. É... acho que não faz. [Procurando coragem.] Mas tem uma coisa que eu quero te
pedir.
Zero. O que é?
Daisy [em voz baixa]. Eu quero que você me beije.
Zero. É pra já! [Ele se inclina sobre ela e a beija no rosto.]
Daisy. Não gostei! Eu não quero assim. Eu quero um beijo de verdade. Na boca. Eu nunca
fui beijada na boca.
ZERO põe os braços dele sobre ela e aperta seus lábios contra os dela. Um longo beijo.
Depois se separam e sentam lado a lado em silêncio.
Daisy. [pondo as mãos no rosto dele]. Então é assim… eu não sabia que era assim. Nunca
pude imaginar como era…
Zero. [afagando a mão dela] Você ficou vermelha. Parece que está queimando. Seus
olhos estão brilhando. Eu nunca tinha visto seus olhos brilharem assim.
Daisy. [levantando a mão ] Escute… está ouvindo? Está ouvindo a música?
Zero. Não, eu não ouço nada!
Daisy. É… é música. Escute, que você vai ouvir. (ambos silenciam por um momento.]
Zero. [excitado] Sim! Estou ouvindo! Ele me disse que tinha música, mas eu não tinha
ouvido até agora.
Daisy. Não é maravilhoso?
Zero. Maravilhoso! Olha, sabe de uma coisa?
Daisy. O quê?
Zero. Fiquei com vontade de dançar.
Daisy. Eu também!
Zero. (levantando rapidamente]. Então vem! Vamos dançar! [Ele pega Daisy pelas mãos
e a levanta.]

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Daisy. [resistindo entre risos]. Eu não sei mais dançar. Faz vinte anos que eu não danço.
Zero. Isso não importa. Eu também. Venha! Estou me sentindo como uma criança! [Ele a
levanta e pega a sua cintura.]
Daisy. Espere um pouco! Me deixe prender minha saia. [Ela prende a saia com alfinete
acima dos tornozelos.]
ZERO a pega pela cintura. Eles dançam desajeitadamente mas com alegre abandono. O
cabelo de DAISY se solta caindo sobre os ombros. Ela se entrega mais e mais ao espírito
da dança. Mas ZERO começa a cansar e dança com cada vez menos entusiasmo.
Zero [parando afinal, arquejando para respirar]. Espera um pouco! Eu estou
completamente sem fôlego. [Ele solta DAISY mas, antes que ele possa se
virar, ela coloca seus braços no pescoço dele e o beija com paixão na boca.
Se livrando.] Espera um pouco! Me deixe recuperar o folêgo! [Ele manca
até a árvore e senta debaixo dela, com respiração arquejante. DAISY o
ajuda e senta a seu lado muito entristecida.] Ufa! estou sem fôlego! Eu não
estou acostumado a dançar. [Ele tira o colarinho e a gravata e abre a
camisa. DAISY olha-o ansiosa. Mas ele só pensa em recuperar a
respiração.] Nossa, meu coração está batendo a mil kilômetros por hora.
Daisy. Por que você não descansa um pouco? Pode colocar a cabeça no meu colo.
Zero. Boa idéia! [Ele deita a cabeça no colo de DAISY.]
Daisy. [acaricia seu cabelo]. Foi maravilhoso, não foi?
Zero. Foi. Mas a gente precisa estar acostumado.
Daisy. Agora mesmo eu estava imaginando que se nós pudéssemos ficar aqui, para sempre
… você e eu…. não seria maravilhoso?
Zero. Seria. Mas, nós não temos a menor chance.
Daisy. Eles não deixam a gente ficar?
Zero. Não. Este lugar é só para os bons.
Daisy. Mas nós não somos tão ruins assim, somos?
Zero. Como não!! Eu um assassino e você uma suicida. Isso sem falar que eles não
permitiriam que a gente… quer dizer, que nós nos comportemos como
fizemos agora mesmo.
Daisy. Qual é o problema?
Zero. Você não sabe? Você sabe que não está certo. Eu não tenho uma esposa?
Daisy. Não, não tem... Depois que você morre, o casamento acaba. Não dizem sempre:
“até que a morte os separe”?
Zero. Bem, você até pode ter razão, mas Eles não vão deixar a gente ficar aqui.
Daisy. Mas seria maravilhoso… nós dois juntos… nós poderíamos compensar todos os
anos perdidos.
Zero. Sim, oxalá nós pudéssemos.
Daisy. Nós fomos uns cretinos. Mas eu não me importo mais. Agora você é meu. [Ela o
beija na testa, no rosto e na boca.]
Zero. Eu estou loucamente apaixonado por você. Eu nunca te vi tão bonita antes, com a
cara toda vermelha. E com o cabelo solto. Seu cabelo é tão bonito! [Ele
afaga e beija o cabelo dela.]
Daisy [extasiada]. Nós, agora, somos um do outro, não é?
Zero. Sim. Eu estou louco por você. Daisy! Que nome bonito! Parece nome de flor, não
acha? Então… assim é você… uma flor.
Daisy [feliz]. Agora vamos ficar juntos para sempre, não é ?
Zero. Se eles deixarem. Eu estou louco por você. [De repente ele se senta.] Escute os

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passos!
Daisy. [alarmada]. O que está acontecendo?
Zero. [nervoso]. Ele está voltando.
Daisy. Ah, é isso? Por mim, tudo bem.
Zero. Acho que você não quer que ele nos veja aqui deitados assim, não é?
Daisy. Não me preocupa o que ele pode pensar.
Zero. Pois você devia se preocupar. Você não quer que ele pense que você é uma
qualquer, quer? Ele é terrivelmente moralista.
Daisy. Eu não me importo com ele. Eu não me importo com nada, nem ninguém, só você
me importa.
Zero. Eu sei. Mas nós não queremos que as pessoas falem de nós. Prenda direito o seu
cabelo e abaixe a saia. [DAISY concorda tristemente. Eles estão em silêncio
quando SHRDLU entra. Com indiferença fingida.] Ah, então você voltou,
hein?
Shrdlu.Espero não ter voltado muito cedo.
Zero. Não, assim está bom. Nós estávamos conversando. Você sabe… negócios, e coisas
do gênero.
Daisy. [corajosamente] Nós estávamos dizendo que seria muito bom se pudéssemos ficar
aqui o tempo todo.
Shrdlu.Se você quiser, pode ficar.
Zero e Daisy. [surpresos] Como assim?
Shrdlu.É isso. Quem quiser, pode ficar…
Zero. Mas quando você falou, eu entendi que...
Shrdlu.Pois é como eu disse: só os mais privilegiados permanecem. Mas qualquer um
pode.
Zero. Eu não estou entendendo. Aí tem algum mistério.
Daisy. Não importa, contanto que nós possamos ficar.
Zero. [para Shrdlu]. Nós estávamos pensando em casar, sabe?
Shrdlu.Você pode ou não pode, segundo a sua vontade.
Zero. Você quer dizer que a gente poderia ficar, mesmo que não casasse?
Shrdlu.Sim. Eles não se incomodam.
Zero. Aqui tem gente que não está casada?
Shrdlu.Tem.
Zero. [para Daisy]. Francamente, eu não entendo este lugar. Aqui deve ter gente de todo
o tipo, aos montes.
Daisy. Não tem importância, desde que possamos ser um do outro.
Zero. Claro eu sei, mas você não quer se misturar com pessoas que não são respeitáveis,
quer?
Daisy. [para Shrdlu]. Nós podemos casar agora mesmo? Deve haver muitos padres aqui,
não?
Shrdlu.Não tantos quanto eu esperava encontrar. Os dois que parecem muito estimados são
o Decano Swift e o Abade Rabelais. Eles são muito admirados por umas
histórias indecentes que escreveram.
Zero. [chocado]. O quê? Padres que escrevem histórias obscenas? Ei, que espécie de lixo
é isto aqui?
Shrdlu.[desesperado]. Eu não sei, Seu Zero. As pessoas daqui são tão estranhas, o
contrário das pessoas boas que eu conheci. Eles parecem pensar só no prazer
ou em perder tempo em ocupações inúteis. Algumas pintam, imagine, de

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manhã até à noite, ou esculpem blocos de pedra. Outras escrevem canções
ou versos todo dia. Outros ainda só ficam deitados debaixo das árvores
olhando o céu. Tem homens que gastam todo o seu tempo lendo livros e
mulheres que só pensam em se enfeitar. Eles estão sempre contando
histórias, rindo, cantando, bebendo e dançando. Tem bêbados, ladrões,
vagabundos, blasfemadores, e adúlteros. Tem um…
Zero. Para mim chega. Não quero ouvir mais nada. [Senta e começa a calçar os sapatos.]
Daisy. [ansiosa]. O que você vai fazer?
Zero. Vou embora daqui, é isso!
Daisy. Você disse que gostou daqui.
Zero. [a olhando com assombro]. Gostou daqui? Você não vai me dizer que quer ficar
aqui, com jogodores de cartas, vadios e vagabundos, vai?
Daisy. Nós não vamos nos misturar com eles. Nós podemos sentar um pouco aqui juntos e
contemplar as flores ouvindo música.
Shrdlu.[ansiosamente]. Música! Você ouviu música?
Daisy. Claro! Você não está ouvindo também?
Shrdlu.Não, eles dizem que é uma música que não pára nunca, mas eu nunca ouvi.
Zero. [escutando]. Antes eu pensei que tinha ouvido, mas agora não estou ouvindo nada.
Eu devia estar sonhando. [Olhando ao seu redor.] Qual é o jeito mais rápido
para sair deste lugar?
Daisy [suplicante]. Mas você não quer ficar mais um pouco?
Zero. Não me ouviu dizer que eu vou embora? Adeus, Dona Daisy. Eu vou embora daqui.
[Ele desaparece mancando pela direita. DAISY o segue lentamente.].
Daisy. [para SHRDLU] Acho que esse eu não vejo nunca mais.
Shrdlu.Você vai ficar aqui?
Daisy. Agora não faz mais diferença. Sem ele não me interessa viver.
Ela desaparece pela direita. SHRDLU a observa por um momento, então suspira e,
sentando debaixo da árvore, enterra a cabeça nos braços.

Cortina.

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Cena VIII
Antes de subir a cortina se ouve o ruído de uma máquina somando. A cortina sobe dando
lugar a um escritório semelhante ao da Cena II, com a diferença que há na parede do
fundo uma porta que permite ver um corredor externo. No meio da sala, ZERO está
sentado, completamente absorvido na operação da máquina, somando. Ele tecla e puxa a
alavanca com precisão mecânica. Ele ainda usa o mesmo terno antiquado, só que agora
com mangas protetoras e uma viseira verde. Uma tira de papel sai continuamente da
máquina que ZERO opera. A sala está coberta por essa fita, aos montes, em formato de
galhardetes, de festões, etc., por toda parte. Cobre o chão e a mobília, sobe pelas paredes
e entulha as entradas. Depois de um tempo, o TENENTE CHARLES e JOE entram à
esquerda. CHARLES é de meia-idade e propenso à corpulência. Tem um ar muito
cansado. Está descalço e usa um chapéu Panamá. Usa um uniforme vermelho vivo muito
mal costurado, muito apertado em alguns lugares e em outros muito grande e enrugado.
JOE é um rapaz de cara feia, vestido com um macacão azul sujo .
Charles. [depois de contemplar ZERO por alguns instantes]. Está bem, Zero, pare de
bater nesta máquina.
Zero. [levantando os olhos com surpresa]. Que disse?
Charles. Eu disse para você parar de bater nesta máquina.
Zero [confuso] Parar? [Ele continua a trabalhar mecanicamente.]
Charles. [Impaciente] É. Você não pode parar? Vem cá, Joe, me dê uma mão. Ele
não pode parar.
JOE e CHARLES: cada um pega um dos braços de Zero e fazem um esforço enorme para
separá-lo da máquina. Ele resiste passivamente…mera inércia. Finalmente eles conseguem
e o giram em seu tamborete. CHARLES e JOE enxugam a testa de ZERO.
Zero. [irritado] Que é isso? Não me atrapalhem!
Charles. [ignorando o pedido] Quanto tempo faz que você está aqui?
Zero. Vinte e cinco anos, exatamente. Trezentos meses, nove mil, cento e trinta e um dias,
cento e trinta e seis mil …
Charles. [impacientemente] Chega ! Já entendi!
Zero. [orgulhosamente] Não perdi nenhum dia, nenhuma hora, nenhum minuto. Olhem
tudo que eu fiz. [Ele aponta o labirinto de papel.]
Charles. Está na hora de parar.
Zero. Parar? Querem dizer, deixar meu trabalho? De jeito nenhum!
Charles. Você tem que parar
Zero. Por quê? Por quê?
Charles. Está na hora de você voltar.
Zero. Voltar para onde? Do que você está falando?
Charles. Para a terra, seu idiota. Para onde mais poderia ser ?
Zero. Ah, Capitão, você está brincando, né?
Charles. Eu não estou brincando. E não me chame de capitão. Eu sou um Tenente.
Zero. Está bem, Tenente, está certo. Mas, que história é essa de voltar?
Cantos. O seu tempo acabou. Você deve ser bem burro mesmo. Quantas vezes você

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precisa ouvir uma coisa para entender?
Zero. Esta é a primeira vez que eu ouvi falar de voltar. Ninguém nunca me falou nada
disso até agora.
Charles. Você não pensou que ia ficar aqui para sempre, pensou ?
Zero. Claro. Por que não? Eu fiz minha parte, não fiz? Quarenta e cinco anos somando.
Vinte e cinco anos na loja, então o chefe me despediu e eu o matei. Imagino
que você não sabe nada disso…
Charles. [interrompendo] Eu sei de tudo. Mas, o que é que isso tem a ver com o que
vai acontecer agora?
Zero. Bem, eu fiz minha parte, não fiz? Por isso devem me deixar em paz.
Charles. [com ironia] Então você está pensando que acabou tudo, não é?
Zero. Claro que estou pensando. Eu fiz tudo direitinho enquanto eu estava lá e então eu
morri. E agora eu estou bem aqui.
Charles. Você tem uma idéia muito curiosa de como as coisas acontecem. Então,
você pensa que depois do trabalho que dá fabricar uma alma, vão usá-la
apenas uma vez?
Zero. Uma vez costuma ser suficiente, pelo menos para mim.
Charles. Suficiente para você? E o que você é? E o que você sabe disso? Não,
homem, não! Usam a alma inúmeras vezes… uma vez atrás da outra até que
ela gaste.
Zero. Ninguém nunca me contou.
Charles. Então você pensou que estava tudo acabado? Essa é boa!
Zero. [mal-humorado] E como eu podia saber?
Charles. Use o cérebro! Onde a gente ia pôr todo mundo? Nós estamos com a lotação
esgotada. Este lugar é apenas uma espécie de estação de serviço e reparos…
uma espécie de lavanderia cósmica. As almas chegam aqui em lotes. Então
nós cuidamos delas, limpamos e consertamos. Se você visse o estado de
algumas que chegam! Pura sujeira e lodo. Pfhh! Esburacadas feito uma
peneira. Mas nós arrumamos. Nós desinfetamos, passamos querosene,
consertamos os buracos e elas voltam… praticamente novas.
Zero. Então quer dizer que eu já estive aqui antes… antes da última vez, quer dizer?
Charles. Se esteve aqui antes? Coitadinho! Você esteve aqui milhares de vezes… no
mínimo cinqüenta mil. {Proposta de acréscimo da tradução}: Nosso produto
é de primeira. Dura muuiito!
Zero [desconfiado]. Como é que eu não me lembro de nada?
Charles. Bem… isso em parte se explica porque você é estúpido. Mas é,
principalmente, pelo modo como Eles estabelecem as coisas. [refletindo.]
Eles são engraçados… de tempos em tempos fazem uma coisa dessas…
quando menos se espera. Eu acho que no fundo é uma questão de economia.
Eles dizem que as almas se gastariam mais rápido se elas se lembrassem.
Zero. E nenhuma se lembra?
Charles. Ah, algumas sim. Existem tipos diferentes: há os que melhoram cada vez que
voltam… nesses nós damos uma simples lavagem e eles voltam direto. E há
outro tipo… o tipo que piora a cada vez. Você é deste tipo!
Zero [ofendido]. Eu? Você quer dizer que eu pioro cada vez?
Charles [concordando]. Isso mesmo. Vai ficando cada vez pior .
Zero Então… o que eu fui quando comecei? Grande coisa? Rei ou coisa assim?
Charles [gargalhando]. Rei! Essa é boa! Eu te conto o que você foi na primeira

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vez… já que você quer saber tudo:... um macaco.
Zero. [chocado e ofendido]. MACACO???!!!
Charles [concordando]. Sim, senhor… Nada mais que um macaco peludo, tagarela,
de rabo grande.
Zero. Isto deve ter sido há muito tempo.
Charles. Oh, nem tanto. Um milhão de anos mais ou menos. Para mim parece que foi
ontem.
Zero. Então! Você não disse que eu fico cada vez pior?
Charles. Foi isso mesmo que eu disse. Você não era tão ruim como macaco. Claro
que você fazia as mesmas coisas que todos os outros macacos faziam, mas
ao menos ficava ao ar livre. E você não era tímido com as mulheres… Tinha
uma macaquinha bonitinha, de pelo vermelho… Bem, esquece. Sim,
senhor, você não era tão ruim. Mas até mesmo naquela época deve ter
havido algum macaco maior e mais inteligente diante do qual você se
ajoelhou. A marca do escravo esteve em você desde o começo.
Zero [aborrecido]. Você não é muito delicado com as pessoas, né?
Charles. Você pediu a verdade, não pediu? Se houve alma no mundo com etiqueta de
escravo esta alma foi a sua. Porque todos os chefes e reis do mundo
deixaram suas marcas registradas em seu traseiro.
Zero. Eu acho que isso não é justo.
Charles [encolhendo os ombros]. É para mim que você vem falar de justiça? Eu não
faço as regras. Tudo que eu sei é que você foi ficando pior… pior a cada
vida. Porque, ainda há seis mil anos você não era tão ruim. Foi no tempo em
que você carregava pedras para uma grande pirâmide num lugar chamado
África. Você já ouviu falar das pirâmides?
Zero. Aquelas coisas bem grandes, com uma ponta?
Charles [concordando]. Isso mesmo.
Zero. Eu já vi em filmes.
Charles. Pois bem, você ajudou a construir. Você já era um pouco pior que nos dias
felizes na selva, mas pelo menos aquele era um bom trabalho… embora
você não soubesse o que estava fazendo e suas costas ficassem marcadas
pelo chicote do capataz. Mas você só desce, desce na escala. Há dois mil
anos você era um escravo romano de galera. Você estava numa das trirremes
que destruíram a frota cartaginesa. Novamente o chicote. Mas nessa época
você ainda tinha músculos… músculos no tórax, bíceps. [Apalpa o braço de
ZERO cautelosamente e o solta com asco.] Phoo! Músculos de mingau!
[Ele nota que JOE dormiu. Caminhando até ele, chuta a sua canela.]
Acorda, cretino! Onde você pensa que está? [Ele se vira outra vez para
ZERO.] E então, mais mil anos depois e você foi um servo… um monte de
barro cavando outro monte de barro. Você usava um colarinho de ferro
nesse tempo… o colarinho branco ainda não tinha sido inventado... Outros
passos largos para baixo. Mas, pelo menos, onde você cavou, cresceram
batatas, e elas ajudaram a engordar os porcos. O que era alguma coisa. E
agora… bem, é melhor não prosseguir…
Zero. Prossiga! Prossiga! Estou achando que agora vai melhorar. Até agora fui um
injustiçado. Trabalho duro! Foi só isso que eu tive! Sempre!
Charles [insensível]. E para que mais você prestava?
Zero. Bom, não é esse o ponto. O ponto é que para mim chega! Chega! Eles que arranjem

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outro para fazer o trabalho sujo. Eu estou farto de ser o bode! Eu me demito
aqui e agora! [Ele olha desafiante. Há um trovão e um flash luminoso de um
raio. Grita.] Ooh! O que é isso? [Agarra CHARLES.]
Charles. Não é nada. Ninguém vai te machucar. É só o jeito Deles avisarem que não
gostaram do que você falou. Recomponha-se e acalme-se. Você não pode
mudar as regras. Ninguém pode, Eles têm tudo determinado. É um sistema
podre, mas o que se pode fazer?
Zero Por que Eles não param de me atormentar? Eu estou muito bem aqui, fazendo
honestamente o meu trabalho diário. Eu não quero voltar.
Charles Você tem que voltar, eu estou dizendo. Não há como evitar.
Zero Que chance eu tenho… na minha idade? Quem me dará um trabalho?
Charles Grandissísimo estúpido! Você não acha que vai voltar como era, acha?
Zero Mas claro! Como, então?
Charles Você vai ter que começar de novo.
Zero Começar de novo?
Charles [concordando]. Você vai novamente ser um bebê… um animalzinho careca
e coradinho... E depois você vai passar por tudo outra vez. Haverá milhões
como você… todos com as bocas abertas gritando por comida. E então,
quando você crescer, você começa a aprender coisas. Vai aprender tudo o
que é errado e vai aprender tudo errado. Você vai comer comida errada e
usar roupas erradas, e vai morar em habitações superlotadas, sem luz e sem
ar! Você vai aprender a ser um grande mentiroso, um tirano, um fanfarrão e
um covarde. Vai aprender a temer a luz solar e odiar a beleza. Para, então,
estar em condições de ir à escola. Na escola vão te dizer a verdade sobre
muitas coisas que não interessam, e mentiras sobre todas as coisas você
deveria saber… E, sobre todas as coisas você quiser saber, nunca vão dizer
nada. Quando você sair da escola, estará preparado para o trabalho do resto
da vida. Estará em condições de ter um trabalho.
Zero [ansioso]. E qual será meu trabalho? Outra máquina de somar?
Charles É. Mas nada destas máquinas de somar antigas. Será uma soberba, uma
super-hiper-máquina de somar, tão longe deste ferro velho como você está
de Deus. Esta máquina de somar vai te deixar maravilhado. Será uma
máquina de somar instalada em uma mina de carvão para registrar a
produção individual de cada mineiro. Cada vez que um mineiro das galerias
inferiores extrair uma pá de carvão, o impacto de sua pá colocará,
automaticamente, em movimento, um lápis de grafite na sua galeria. O lápis
fará uma marca em branco em um tambor preto e sensível. Aí entra seu
trabalho. Com o dedão do pé direito, você empurra uma alavanca que
dispara um raio violeta no tambor. O raio atravessará a marca branca, e cairá
em uma cela de selenium que, por sua vez, colocará em movimento as teclas
da máquina de somar. E assim a produção individual de cada mineiro será
registrada, sem qualquer esforço humano, a não ser o da leve pressão do
dedão do seu pé direito.
Zero [boquiaberto de admiração]. Nossa! É uma senhora máquina, não é?
Charles. Senhora máquina, claro... Será a cu1minação do esforço humano… o triunfo
final do processo evolutivo. Durante milhões de anos os gases nebulosos
giraram no espaço. Durante milhões de anos os gases esfriaram e então por
idades inconcebíveis eles endureceram e se transformaram em pedras. E

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A máquina de somar Pagina 46
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então veio a vida. Coisas verdes flutuaram nas águas que cobriram a terra.
Mais milhões de anos e mais um passo para cima… um organismo animado
no limo antigo. E assim passo a passo, através das idades… uma conquista
aqui, uma conquista lá… o molusco, o peixe, o réptil, depois o mamífero, e
o homem! E tudo isso para que você possa se sentar na galeria de uma mina
de carvão e operar a super-hiper-máquina de somar com o dedão do pé
direito.
Zero. Bom... então… no fim das contas não é tão ruim.
Charles. Você é um desastre, Zero, um desastre. Um produto desperdiçado. Um
escravo para um aparelho de aço e ferro. Com instintos de animal, mas sem
a força e a habilidade. Com os apetites do animal, mas sem a audácia
desavergonhada. Na verdade, você anda, come, digere, excreta e se
reproduz. Mas qualquer organismo microscópico pode fazer a mesma coisa.
Bem… o seu tempo acabou! Você volta para o seu cortiço sem sol… para a
matéria-prima das ruas sujas e das guerras… a presa fácil do primeiro
patrioteiro, demagogo ou aventureiro político que queira se dar ao trabalho
de manipular a sua ignorância, credulidade e provincianismo. Ah, pobre
diabo amorfo e sem cérebro! Eu tenho é pena de você!
Zero. [Caindo de joelhos]. Então me deixa ficar aqui! Não me mande de volta! Me deixa
ficar!
Charles. Levante. Eu não disse que eu não posso fazer nada por você? Venha, o seu
tempo acabou!
Zero. Não posso! Eu não posso! Eu tenho medo de passar por tudo de novo!
Charles. Você tem que ir, já falei. Vamos duma vez!
Zero. Por que você me contou tudo isso? Você não podia ao menos me deixar acreditar
que tudo ia dar certo?
Charles. Você quis saber, não quis?
Zero. E eu lá tinha idéia do que você ia falar? Agora eu não vou parar de pensar nisto! Eu
não consigo parar de pensar! Vou ficar pensando o tempo inteiro.
Charles. Está bem! Eu vou te ajudar. Vou mandar uma menina para te fazer
companhia.
Zero. Uma menina? Para quê? Que bem uma menina pode me fazer?
Charles. Ela vai ajudar você a esquecer.
Zero [ansioso]. Vai? E onde ela está?
Charles. Um minuto só, eu já chamo. [Chama em voz alta.] Ei! Esperança! Uh-hu!
[Ele desvia a cabeça dele e fala como um ventríloquo que imita uma voz
feminina distante.] O quê? [Então na própria voz dele:] Vem cá, vem? Há
um companheiro que quer que você vá com ele. [Ventríloquo novamente.]
Tá bom, já vou, Charlie querido. [Ele vira para ZERO.] Viu que
intimidade? Charlie querido!
Zero. Como você disse que é o nome dela?
Charles. Esperança. Es-pe-ran-ça
Zero. Ela é bonita?
Charles. Ela é bonita? Oh, meu filho, espere para ver! Ela é loira com grandes olhos
azuis e lábios vermelhos e pequenos dentes brancos e…
Zero. Ótimo, gostei de tudo. Ela vai demorar?
Charles. Ela já vem. Pronto! Já está aqui! Está vendo?
Zero. Não. Onde?

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A máquina de somar Pagina 47
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Charles. Aí fora no corredor. Não, não aí. Um pouco mais adiante. À direita. Você
não está vendo o vestido azul ? E como o sol brilha no cabelo?
Zero. É mesmo! Agora estou vendo! Qual era mesmo o meu problema? Não me importa
mais! Olha, ela é uma beleza! Oh, minha gatinha!
Charles. Ela fará você esquecer das suas dificuldades.
Zero. De que dificuldades você está falando?
Charles. Nada. Vá embora. Não a deixe esperando.
Zero. Não vou mesmo! Oh, Esperança! Espere por mim! Eu vou acertar com você! Eu
estou indo! [Ele sai ansiosamente tropeçando. JOE estoura numa
gargalhada.]
Charles [olhando com surpresa e raiva]. O quê está acontecendo com você?
Joe [rolando de rir]. Você viu? Ele pensa que viu alguém, e foi atrás! [Rola de rir.]
Charles [dando-lhe um tapa na cara]. Cale essa boca!
Joe [esfregando o local do tapa]. Que é isso? Eu não posso mais rir quando eu vejo
uma coisa engraçada?
Charles. Engraçada! Você feche essa sua boca ou eu mostro o que é engraçado.
Anda, saia já daqui e trate de limpar esta bagunça. Temos outro da mesma
categoria para ceifar. Vamos! Depressa! [Ele faz um gesto ameaçador. JOE
sai com pressa. CHARLES senta na cadeira. Ele parece cansado e abatido.
Meneia a cabeça .] Que inferno! Este sim, é um trabalho asqueroso. [Retira
um frasco do bolso, abre e toma lentamente.]

Cortina.

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