Sunteți pe pagina 1din 298

Revista de História da Arte N.

5 2008 Ficha Técnica


instituto de história da arte

O Retrato
faculdade de ciências sociais
e humanas · universidade
Publicação Semestral do Instituto
nova de lisboa
de História da Arte, da Faculdade
avenida de berna, 26 c de Ciências Sociais e Humanas, UNL
1069-061 lisboa
tel. 217 908 300 · ext. 1540
e-mail iha@fcsh.unl.pt
09h00-12h30 · 13h30-18h00 direcção (fcsh/unl) Ramón Rodrigues Llera

n.1 2005
M. Justino Maciel (Universidade de Valladolid, Espanha)

N.5 Raquel Henriques da Silva Thomas Noble Howe

iss n 16 46 -17 6 2
2008
conselho científico (Southwestern University, EUA)
e editorial (fcsh/unl) tradução
fac u l da d e d e c i ê n c i a s s o c i a i s e h u m a n a s – u n l Carlos Moura Michelle Nobre
José Custódio Vieira da Silva secretariado

D
A Revista de História da Arte é uma e acordo com a linha programática da Manuel Justino Maciel Ana Paula Louro
revista académica de teoria e história Revista de História da Arte, o seu nº 5, Maria Adelaide Miranda edição
da arte portuguesa e suas articulações Rafael Moreira Instituto de História da Arte
recolhe a maioria das conferências que
internacionais, publicada pelo Instituto Raquel Henriques da Silva concepção gráfica
estruturaram o XI Curso Livre do Instituto de História
de História da Arte. conselho científico externo e paginação
da Arte, consagrado à temática do Retrato que decor- Etelvina Fernández González Rita Palla
Destina-se predominantemente

n.2 2006
reu, com assinalável sucesso, em 2007. (Universidade de León, Espanha) impressão e acabamentos
à comunidade científica e académica,
Como também é marca distintiva dos nossos cursos Fernando Acuna Castroviejo Heragráfica, artes gráficas lda.
incluindo professores, investigadores
livres, a temática do retrato foi tratada numa crono- (Universidade de Santiago tiragem
e estudantes. Cada número da Revista
logia extensiva, da Antiguidade Romana em Portugal, de Compostela, Espanha) 1 000 exemplares
de História da Arte é dedicado a um tema
Hellmut Wohl depósito legal
específico, tratado em artigos originais.
passando pela Idade Média, percorrendo o Renasci-
(Universidade Boston, EUA) 227 341/05
No entanto, cada número dispõe de mento e o Barroco para terminar nos tempos mais
Joaquin Yarza Luaces issn
secções abertas a outros domínios próximos, do século XIX aos nossos dias. Cumprimos
(Universidade Autónoma 1646-1762
temáticos: Recensões, Varia e Notícias. também outro dos traços da nossa actuação: tivemos de Barcelona, Espanha)
Preço de venda ao público
conferências de docentes do Departamento de His- Luís Moura Sobral
15,00 € (5% de IVA incluído)
tória da Arte e de alguns dos nossos discípulos, mas, (Universidade de Montreal, Canadá)
sobretudo, de colegas que trabalham noutras Univer- Mário Henrique D’Agostino © Copyright 2008
n.3 2007

sidades ou Institutos Politécnicos (Universidade Aber- (Universidade de São Paulo, Brasil) Autores e Instituto de História da Arte

ta, Universidade de Coimbra, Universidade Católica,


Instituto Politécnico de Tomar) e do Museu Nacional
de Arte Antiga, com quem mantemos relacionamentos
Agradecimentos
pessoais e institucionais que são um dos mais estimu-
lantes sinais do excelente estado da história da arte Câmara Municipal de Lisboa – Direcção Geral de Arquivos; Direcção-Geral do Livro

O Retrato
e das Bibliotecas; Museu da Cidade – Divisão de Museus; Fundação da Casa
em Portugal.
de Bragança; Fundação para a Ciência e a Tecnologia; Instituto de Gestão do Património
Arquitectónico e Arqueológico; Instituto dos Museus e da Conservação; Museu Nacional
de Arqueologia; Palácio Nacional de Mafra; Relógio d’Água.

apo i o s A edição nº5 da Revista de História da Arte foi apoiada pela Fundação para a Ciência
© fotografia da capa e contracapa
e a Tecnologia (FCT) e pela Direcção-Geral do Livros e das Bibliotecas (DGLB).
n.4 2007

Costa Pinheiro, D. Sebastião, 1966.


Colecção Manuel de Brito, Lisboa.
Cortesia da Galeria 111 (autoria desconhecida). A Revista de História da Arte encontra-se indexada no catálogo Internacional Latindex.
N .5
2008
Revista de História da Arte N.5 2008 Ficha Técnica
instituto de história da arte

O Retrato
faculdade de ciências sociais
e humanas · universidade
Publicação Semestral do Instituto
nova de lisboa
de História da Arte, da Faculdade
avenida de berna, 26 c de Ciências Sociais e Humanas, UNL
1069-061 lisboa
tel. 217 908 300 · ext. 1540
e-mail iha@fcsh.unl.pt
09h00-12h30 · 13h30-18h00 direcção (fcsh/unl) Ramón Rodrigues Llera

n.1 2005
M. Justino Maciel (Universidade de Valladolid, Espanha)

N.5 Raquel Henriques da Silva Thomas Noble Howe

iss n 16 46 -17 6 2
2008
conselho científico (Southwestern University, EUA)
e editorial (fcsh/unl) tradução
fac u l da d e d e c i ê n c i a s s o c i a i s e h u m a n a s – u n l Carlos Moura Michelle Nobre
José Custódio Vieira da Silva secretariado

D
A Revista de História da Arte é uma e acordo com a linha programática da Manuel Justino Maciel Ana Paula Louro
revista académica de teoria e história Revista de História da Arte, o seu nº 5, Maria Adelaide Miranda edição
da arte portuguesa e suas articulações Rafael Moreira Instituto de História da Arte
recolhe a maioria das conferências que
internacionais, publicada pelo Instituto Raquel Henriques da Silva concepção gráfica
estruturaram o XI Curso Livre do Instituto de História
de História da Arte. conselho científico externo e paginação
da Arte, consagrado à temática do Retrato que decor- Etelvina Fernández González Rita Palla
Destina-se predominantemente

n.2 2006
reu, com assinalável sucesso, em 2007. (Universidade de León, Espanha) impressão e acabamentos
à comunidade científica e académica,
Como também é marca distintiva dos nossos cursos Fernando Acuna Castroviejo Heragráfica, artes gráficas lda.
incluindo professores, investigadores
livres, a temática do retrato foi tratada numa crono- (Universidade de Santiago tiragem
e estudantes. Cada número da Revista
logia extensiva, da Antiguidade Romana em Portugal, de Compostela, Espanha) 1 000 exemplares
de História da Arte é dedicado a um tema
Hellmut Wohl depósito legal
específico, tratado em artigos originais.
passando pela Idade Média, percorrendo o Renasci-
(Universidade Boston, EUA) 227 341/05
No entanto, cada número dispõe de mento e o Barroco para terminar nos tempos mais
Joaquin Yarza Luaces issn
secções abertas a outros domínios próximos, do século XIX aos nossos dias. Cumprimos
(Universidade Autónoma 1646-1762
temáticos: Recensões, Varia e Notícias. também outro dos traços da nossa actuação: tivemos de Barcelona, Espanha)
Preço de venda ao público
conferências de docentes do Departamento de His- Luís Moura Sobral
15,00 € (5% de IVA incluído)
tória da Arte e de alguns dos nossos discípulos, mas, (Universidade de Montreal, Canadá)
sobretudo, de colegas que trabalham noutras Univer- Mário Henrique D’Agostino © Copyright 2008
n.3 2007

sidades ou Institutos Politécnicos (Universidade Aber- (Universidade de São Paulo, Brasil) Autores e Instituto de História da Arte

ta, Universidade de Coimbra, Universidade Católica,


Instituto Politécnico de Tomar) e do Museu Nacional
de Arte Antiga, com quem mantemos relacionamentos
Agradecimentos
pessoais e institucionais que são um dos mais estimu-
lantes sinais do excelente estado da história da arte Câmara Municipal de Lisboa – Direcção Geral de Arquivos; Direcção-Geral do Livro

O Retrato
e das Bibliotecas; Museu da Cidade – Divisão de Museus; Fundação da Casa
em Portugal.
de Bragança; Fundação para a Ciência e a Tecnologia; Instituto de Gestão do Património
Arquitectónico e Arqueológico; Instituto dos Museus e da Conservação; Museu Nacional
de Arqueologia; Palácio Nacional de Mafra; Relógio d’Água.

apo i o s A edição nº5 da Revista de História da Arte foi apoiada pela Fundação para a Ciência
© fotografia da capa e contracapa
e a Tecnologia (FCT) e pela Direcção-Geral do Livros e das Bibliotecas (DGLB).
n.4 2007

Costa Pinheiro, D. Sebastião, 1966.


Colecção Manuel de Brito, Lisboa.
Cortesia da Galeria 111 (autoria desconhecida). A Revista de História da Arte encontra-se indexada no catálogo Internacional Latindex.
N .5
2008
O Retrato

N.5 2008

Instituto de História da Arte


Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
Universidade Nova de Lisboa

Edição
Instituto de História da Arte
abreviaturas
ANTT Arquivo Nacional Torre do Tombo CM L Câmara Municipal de Lisboa DG A RQ Direcção-Geral de Arquivos FC G Fundação
Calouste Gulbenkian F CS H/ U NL Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa FC T Fundação para
a Ciência e a Tecnologia IA D E Instituto de Artes Visuais, Design e Marketing I M C / DDF Instituto dos Museus e da Conservação
Divisão de Documentação Fotográfica IPPC Instituto Português do Património Cultural I P PA R Instituto Português do Património
Arquitectónico M NA A Museu Nacional de Arte Antiga R E Q U I M T E – CQ FB Rede de Química e Tecnologia Centro de Química
Fina e Biotecnologia S NBA Sociedade Nacional de Belas-Artes U C P Universidade Católica Portuguesa •
Índice
Editorial 6

Entrevista com José Gil 8


conduzida por Bruno Marques

O Retrato na Antiguidade Clássica – O Exemplo do Augusto de Mértola 18


M. Justino Maciel e J. M. Peixoto Cabral

Retratos ou Alegorias nos Mosaicos das Estações do Ano 38


da Villa Romana do Rabaçal, Penela, Portugal?
Miguel Pessoa

O Retrato de D. João I 66
José Alberto Seabra Carvalho

O Retrato de D. João I no Mosteiro de Santa Maria da Vitória 76


Um novo paradigma de representação
Joana Ramôa e José Custódio Vieira da Silva

Retrato de D. Manuel na Iluminura 96


Horácio Augusto Peixeiro

A Arte do Retrato em Portugal nos séculos XV e XVI 114


Problemas, metodologia, linhas de investigação
Pedro Flor

Os Pintores de D. João V e a Invenção do Retrato de Corte 132


António Filipe Pimentel

O Grupo do Leão de Columbano Bordalo Pinheiro 152


Margarida Elias

Luminismo e “Tenebrismo” – Malhoa e o Retrato 168


Nuno Saldanha

O Retrato de Dom Sebastião: 188


Costa Pinheiro ou a ‘desmitificação’ da retratística histórica oficial
Bruno Marques

O Fotográfico como Retrato e “Readymade” 208


a propósito de Alfred Hitchcock
José António Leitão

Recensões Críticas 218

Varia 226

Notícias 288
D
e acordo com a linha programática da Revista de História da Arte, o seu
nº 5 recolhe a maioria das conferências que estruturaram o XI Curso Livre
do Instituto de História da Arte, consagrado à temática do Retrato que
decorreu, com assinalável sucesso, em 2007.
Como também é marca distintiva dos nossos cursos livres, a temática do retrato foi
tratada numa cronologia extensiva, da Antiguidade Romana em Portugal, passando
pela Idade Média, percorrendo o Renascimento e o Barroco para terminar nos tem-
pos mais próximos, do século XIX aos nossos dias. Cumprimos também outro dos
traços da nossa actuação: tivemos conferências de docentes do Departamento de
História da Arte e de alguns dos nossos discípulos, mas, sobretudo, de colegas que
trabalham noutras Universidades ou Institutos Politécnicos (Universidade Aberta,
Universidade de Coimbra, Universidade Católica, Instituto Politécnico de Tomar) e
do Museu Nacional de Arte Antiga, com quem mantemos relacionamentos pessoais e
institucionais que são um dos mais estimulantes sinais do excelente estado da histó-
ria da arte em Portugal. Na Varia, divulga-se o notável projecto “A Cor da Iluminura”
que, com financiamento da FCT e sob coordenação de Adelaide Miranda e de Maria
João Melo, manifesta a positividade de um trabalho interdisciplinar que, na mesma
Universidade Nova de Lisboa, reúne a História da Arte da Faculdade de Ciências So-
ciais e Humanas e a Conservação e Restauro da Faculdade de Ciências e Tecnologia.
Destaque também para mais um estudo de perspectiva das pinturas dos tectos de
igrejas setecentistas, da autoria de Magno Mello, e um propositivo artigo de Lucília
Verdelho da Costa que traz novidades para o entendimento da arte de oitocentos,
profundamente influenciada pelos modelos franceses e espanhóis.
Regressando ao tema da revista, há um claro predomínio dos retratos em pintura. No
entanto, outros suportes plásticos estão presentes, sobretudo em relação à antigui-
dade, abordada na arte da escultura (Justino Maciel e João Peixoto Cabral) e nos
belos mosaicos da villa romana de Rabaçal (Miguel Pessoa). Em relação ao tema do
final da Idade Média, foi possível tratar o Retrato de D. João I em pintura (o célebre
quadro do MNAA, analisado por José Alberto Seabra de Carvalho) e em escultura, na
hierática jacente da Batalha, estudada por José Custódio Vieira da Silva. A transição
entre os valores estéticos desse final da Idade Média e a emergência das poéticas
renascentistas, permitiu tratar a iconografia do rei D. Manuel na iluminura (Horácio
Peixeiro) e no contexto complexo das profundas alterações da pintura, segundo a
reflexão de Pedro Flor. Não tendo sido possível dispor do texto da conferência de
Carlos Moura, no âmbito do retrato seiscentista, passa-se ao retrato de corte de D.
João V (António Pimentel) para cortar depois com as heranças académicas, atra-
vés de dois dos mais poderosos retratistas da pintura do século XIX: Columbano
(Margarida Rodrigues) e Malhoa (Nuno Saldanha). Quanto à multiplicidade das vias
de transfiguração do retrato na contemporaneidade, elas surgem através de Costa
Pinheiro (Bruno Marques) e das contaminações disciplinares em que a fotografia é
determinante (José Leitão).

6 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
Editorial
Feita a apresentação dos conteúdos, interessa salientar que este número da Revista
de História da Arte manifesta um renovado empenho do IHA (através de duas das
suas linhas de investigação: “Arquitectura e Artes Visuais” e “Estudos de Museus”)
que, apesar de dispor de modestos recursos financeiros, decidiu renovar o design
da Revista, com o objectivo de a tornar apelativa para públicos não universitários.
Para o bom sucesso desta intenção, foi fundamental o trabalho conjunto com a
Heragráfica artes gráficas, lda, através do seu director, José Ferreira, e da designer
Rita Palla, cuja generosa disponibilidade aqui agradecemos. Como pilar e articulação
fundamental de todos os interventores, temos de agradecer também à Ana Paula
Louro, a dedicada secretária do IHA.
Quanto a apoios, muito há que agradecer. Em primeiro lugar, à Direcção Geral do
Livro e das Bibliotecas (DGLB) que subsidiou a edição dos dois números da Revista
de 2008, através do Programa de Apoio a Revistas Culturais. Em segundo lugar, à
Fundação para a Ciência e a Tecnologia que, através de apoios específicos, mas tam-
bém do financiamento plurianual às referidas linhas de investigação do IHA, constitui
um repto permanente para as nossas atitudes de risco. Em terceiro lugar a todas as
instituições que nos cederam os direitos de publicação de obras de arte à sua guarda
e que são devidamente mencionadas na lista dos agradecimentos. Finalmente aos
membros do conselho internacional de referees que analisaram criteriosamente os
artigos que lhes submetemos e articularam connosco algumas decisões finais.
Os apoios que mencionámos têm importância financeira e científica da maior rele-
vância. Além disso, abrem-nos estimulantes campos de comunicação. Basta pensar
que o subsídio da DGLB tem, como exigência, o envio de 200 exemplares da Revista
para as bibliotecas da Rede Nacional das Bibliotecas Públicas e que “pagamos”.
Também o Instituto dos Museus e da Conservação, contra cedência gratuita das fo-
tografias, recebe 100 exemplares da Revista para as bibliotecas dos museus tutelados
por este serviço. Criou-se assim, um campo inédito de comunicação da História da
Arte com uma diversidade crescente de eventuais leitores que, inquestionavelmente,
constitui uma sementeira para o futuro da nossa área disciplinar, em dinâmica dimen-
são culturalista. Por isso, não podemos deixar de apelar a estes novos leitores, bem
como, naturalmente, àqueles que há muito estão connosco: precisamos de críticas,
de sugestões, de questionamentos que nos podem ser enviados através do e-mail
do IHA. Precisamos também que todos ajudem a divulgar e vender a Revista que,
feita na Universidade, está ao serviço de uma cidadania mais culta e mais amante
dos nossos tesouros artísticos.

A Direcção do Instituto de História da Arte


Manuel Justino Maciel
Raquel Henriques da Silva

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 7
e n t r e v i s ta c o m j o s é g i l

josé gil. fotografia de carlos césar, 2008 (cortesia: relógio d’água editores)

C
onsiderado pela revista france- Filosofia no Liceu Misto de Pontoise
sa Le Nouvel Observateur (Jan. (França) e exerceu funções de coorde-
2005) como um dos “25 grands nador do departamento de Psicanáli-
penseurs du monde entier”, José Gil se e Filosofia da Universidade de Paris
(1939) é incontestavelmente um dos VIII. Actualmente lecciona na Faculda-
filósofos e ensaístas mais proeminen- de de Ciências Sociais e Humanas da
tes da actualidade, com trabalhos fun- Universidade Nova de Lisboa, onde é
damentais sobre temáticas tão diver- professor catedrático. Exerceu docên-
sas como o Corpo, a Dança, a Filosofia cia também noutras universidades, co-
Política, a Literatura ou a Estética, pu- mo o Collège International de Philoso-
blicados principalmente nas línguas phie (CIPh), em Paris, e a New School
francesa e portuguesa. Entre a vasta for Dance Development, em Amester-
panóplia de obras publicadas de José dão. Tem um vasto trabalho científico
Gil podemos destacar: Métamorpho- publicado em revistas especializadas
ses du corps (1985), Fernando Pessoa e em enciclopédias, designadamente
ou a Metafísica das Sensações (1987), a Encyclopédie de la Vie Française , a
Corpo, Espaço e Poder (1988), O Es- Enciclopédia Einaudi , a Análise e os
paço Interior (1994), A Imagem-Nua e Cadernos de Subjectividade (S. Paulo,
as Pequenas Percepções (1996), Me- Brasil). Dirige, desde 1996, a Colecção
tamorfoses do Corpo (1998 - 2ª ed.), de Filosofia da editora Relógio d´Água,
Movimento Total - O Corpo e a Dança e é membro de várias organizações,
(2001), Sem Título-escritos sobre Ar- entre as quais o Gabinete de Filosofia
te e Artistas (2005). Discípulo e amigo do Conhecimento e o Cercle Culturel
de Gilles Deleuze, depois de ter sido Senastianu Costa (França).
aluno do filósofo francês leccionou

8 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
josé gil

Entrevista
com
conduzida por bruno marques*

* Doutorando em História da Arte


Contemporânea na Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas. Bolseiro da Fundação
para a Ciência e a Tecnologia (FCT).

Entre a miríade de campos de pesquisa em que José Gil se vem debruçando nos últi-
mos anos, o que aqui nos merece particular interesse prende-se com um conjunto de
escritos consignados ao tema do “retrato”. O primeiro é o ensaio intitulado “A auto-
representação”, produzido para o catálogo da exposição O Rosto da Máscara (CCB,
Maio 1994), no qual se discorre sobre problemáticas como a reflexividade especular
da visão e a reversibilidade sensível do corpo, a latência permanente do olhar-corpo
voyeurista-exibicionista, a representação/reabsorção do mundo como projecção do
Eu, a relação do pintor com a pintura, a auto-representação como tema de si mesma 1. Cf. José Gil, A Imagem-Nua e as Pequenas Per-
e a relação pintura/campo transpictórico. cepções. Estética e Metafenomenologia. - Lisboa:
Relógio d´Água, 1996, pp. 18-19: Na definição
Segue-se o título “A construção da presença”, publicado no catálogo da mostra O
do projecto que subjaz a este livro, esclarece o
Impulso Alegórico - Retratos, paisagens, naturezas mortas (coord. Manuel Valen-
autor que “não se trata já de fenomenologia, mas
te Alves, ed. Ordem dos Médicos, Nov. 1998), em que, a propósito do Retrato de de metafenomenologia: o estudo do vastíssimo
uma Jovem de Ghirlandaio, se demonstra como se processam os mecanismos de campo de fenómenos de fronteira e de um invisí-
construção do fascínio da presença da imagem pictural assim como do excesso da vel radical, não-inscrito, não-manifesto, mas que
representação da presença. Exercício metafenomenológico1 de detecção de efeitos tem efeitos (por isso mesmo) no visível. Metafe-
subtis, de sensações microscópicas, de percepções mínimas, mediante instrumentos nómenos que se definem como feixes de forças.”

de análise já anteriormente cunhados pelo autor, como são as pequenas percepções 2. De modo algo abreviado, no texto que aqui
e as imagens-nuas2. nos ocupa, o autor define a noção de “peque-
Mais recentemente, surgido por ocasião da importante exposição A Arte do Retrato nas percepções” enquanto unidades perceptíveis
ínfimas, «imperceptíveis» ou «insensíveis», cujas
- Quotidiano e Circunstância (Museu Calouste Gulbenkian, Out. 1999-Jan. 2000), é
associações ou conjuntos dão origem às macro-
de registar ainda o admirável ensaio “O retrato”. Contributo extraordinário que, dada
percepções, e a noção de “imagens-nuas” como
a sua distinta abrangência erudita e poderosa desenvoltura teórica, merece ser consi- imagens que nada dizem mas apelam para, e
derado sem grandes riscos como um dos fundamentais textos jamais escritos sobre a organizam, um sentido. Para um entendimento
temática. Talvez a sua pedra angular assente na definição mesma de “retrato” como mais preciso destes dois conceitos ver José Gil,
construção de um “eterno” enquanto obsessão estético-metafísica em sobreviver Idem, pp. 19-22.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 9
e n t r e v i s ta c o m j o s é g i l

realmente à morte, na justa medida em que este suspende o tempo, torna presente 3. Entrevista efectuada mediante o método de tro-
a ausência, “ressuscita” o modelo morto, porque o fixa numa imagem “viva”. ca de e-mails entre entrevistador e entrevistado.

Foi em particular esta formulação que motivou a presente entrevista que o Professor
José Gil muito amavelmente nos concedeu3. Mas mais do que insistir na fixação de
uma determinada noção, afirma-se aqui a necessidade de repensá-la, especialmente
no quadro das profundas mutações preconizadas pela arte contemporânea no que
ao retrato dizem respeito. Foram abordadas questões da máxima relevância relati-
vamente ao actual debate sobre a temática, e que, de modo muito esquemático,
perspectivam criticamente, por exemplo, os motivos da impossibilidade de, hoje,
se poder retratar segundo os postulados do retrato clássico, os efeitos da queda da
“velha metafísica do Eu, único e idêntico a si mesmo”; as desestruturações avan-
çadas pelo pensamento em torno da Teoria do Género; a desmontagem moderna e
contemporânea do retrato; e as vias que, por seu turno, apontam para a sua “rein-
venção” na viragem do milénio.

1. O Instituto de História de Arte da Faculdade de Ciências Sociais


e Humanas da UNL, publica um número da sua revista especificamente
dedicado ao tema do Retrato. Tendo por base os ensaios que escreveu
sobre esta temática, peço que nos dê uma definição (sucinta) de “retrato”.

Uma definição sucinta do retrato? Com todas as dificuldades que põe a noção de “re-
trato moderno”, não é fácil. Do retrato em geral, ponhamos: é a captação, numa ima-
gem, das forças de um rosto. Para uma definição do retrato clássico teria que se falar
da “imagem mimética de uma face”, o mimetismo com o referente sendo assegurado
pela representação (semelhança, identidade), ou pelo “título” que o designa.

2. No texto “A auto-representação”, invoca a situação em que Picasso,


ao dar por terminado no fim da sua vida um célebre auto-retrato
que se parece vagamente com uma caveira, sai do atelier dizendo:
“Hoje, apanhei ali qualquer coisa”. No seu entender, o artista referia-se
“a esse qualquer coisa de mais real que a vida e que toda a pintura
procura.” No mesmo sentido, no ensaio “O retrato”, ao discorrer sobre
o retrato Fayum, advoga que “a morte realiza a nossa verdade.”
Porque é que a verdade do sujeito só encontra forma ou se torna captável
pelo retrato, não na vida, mas justamente na morte, na não-presença,
ou no fim – no ocaso – da existência física?

Referia-me, com essa frase, ao retrato Fayum, e às crenças na imortalidade da alma


dos antigos Egípcios. Por outro lado, ao escrever que “a morte realiza a nossa ver-
dade”, não estava a negar que a “nossa verdade” possa “encontrar forma” na vida,
noutros modos de expressão. O que é a nossa verdade? Depois dos ataques a que a
noção de verdade foi submetida pelos filósofos – De Niezsche a Heidegger, a Fou-
cault e Deleuze , - é melhor tomar certas precauções quando se a utiliza. Comparei

10 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
e n t r e v i s ta c o m j o s é g i l

a percepção real de um rosto (que esgueira o interior para apresentar signos sempre
equívocos) com a sua imagem artística no retrato, que consegue abolir a equivoci-
dade expressiva – tal como o “rosto da alma”, para além da vida, nos é dado pelo
retrato Fayum. Mas é claro que a “nossa verdade” não é só realizada na morte, nas
condições que descrevi. Um psicanalista francês, muito conhecido, costumava dizer:
“São os nossos amores que revelam a nossa verdade”. Bela frase que significa, afinal,
que os nossos amores põem a nu a nossa mentira, a falsidade da nossa relação, a
ilusão da imagem que forjámos de nós mesmos. A verdade surge como o puro avesso
do falso, não como qualquer coisa de positivo. Se o retrato dá a volta ao esgueire
não seria então porque apresentaria uma verdade sem equívocos, mas porque levaria
ao extremo um outro aspecto de que não falei no texto sobre “A arte do retrato”:
é que os traços expressivos do rosto dizem as forças e os afectos como signos ima-
nentes ao próprio expresso. Aquele sorriso não significa uma emoção separada, o
escárnio, por exemplo, mas a emoção confunde-se com a forma de presença do seu
signo, não é o escárnio em geral, mas aquele escárnio daquele sorriso. A expressão
é imanente ao expresso – e isto no seio de uma relação geral de esgueire/ equívoco.
É que o que se esgueira está aquém de todo o expresso, até porque compreende
o inconsciente. O retrato não diz “a nossa verdade” sem véus, diz a singularidade
desse buraco negro que é um rosto na paisagem. Ou melhor: a tensão, o intervalo,
a diferença entre o buraco negro e a tendência contrária que tende a fazer proliferar
os signos. Viria daí a força de um retrato: do que separa e une uma tendência para o
sentido explícito e a tendência que tende a aboli-la. Poderíamos, no fundo, retomar
as suas categorias: da tensão entre a presença e a infrapresença nasce a multiplici-
dade de forças que emanam de um retrato.

3. Se nos colocarmos, por exemplo, diante das Sombras Projectadas


de pessoas/amigos que Lourdes Castro decalca (a partir de 1963/4)
ou da iconografia de cartas de jogar que serve a Costa Pinheiro para
compor a sua série de retratos de Reis de Portugal (1966), notamos
que falha a ilusão, a aparência e a iminência da fala como critérios
do “retrato vivo”. Estes “novos retratos” não entrarão em ruptura
com o intento essencial que o Prof. José Gil prescreve - a construção
de um «eterno» enquanto obsessão estético-metafísica em sobreviver
realmente à morte -, na justa medida em que parecem definitivamente
já não funcionar mais enquanto dispositivo que suspende o tempo,
torna presente a ausência, “ressuscita” o modelo morto, porque o fixa
numa imagem “viva”.

Não creio que se possa chamar “retratos” às Sombras Projectadas de Lourdes Castro
ou às figuras dos Reis de Costa Pinheiro. Aparentemente, Lourdes Castro repete o
gesto da filha de Busides que desenha o contorno de um rosto de perfil, reiterando
o movimento que funda a pintura segundo o mito contado por Plínio. Mas uma tal
leitura é, de certo modo, irónica – se bem que cheia de implicações. O que faz re-

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 11
e n t r e v i s ta c o m j o s é g i l

almente Lourdes é transformar a sombra num produto, no estádio terminal de um 4. Cf. Giorgio Agamben, A Comunidade que
processo, invertendo o sentido da “origem” segundo Plínio. Mas isso mesmo leva-a vem. - Lisboa: Ed. Presença, 1993 (ed. original
1991), 41-42: “qualquer é uma semelhança sem
a reduzir a tensão da ausência/presença, ou da força/forma, ou do buraco negro/
arquétipo, isto é, uma Ideia. Por isso [...] a be-
signo a uma única oposição: entre a sombra como buraco negro que tende a abolir
leza perfeitamente substituível do corpo tecnici-
toda a forma e a singularidade do contorno, que restitui os signos ausentes, a pre- zado não tem já nada a ver com o aparecimento
sença do rosto que tende a fazer viver a sombra como o seu prolongamento. Lourdes de um unicum”, fenómeno que explica, seguindo
rebate o retrato inteiro sobre o contorno e a sombra, criando um novo tipo de signo o pensamento de Agamben, “o desaparecimento
ambíguo. Quanto a Costa Pinheiro, os seus Reis também não são retratos. Os refe- da figura humana das artes do nosso tempo e o
rentes são os reis e as rainhas das cartas de jogar, e só os títulos dos quadros nos declínio do retrato” (ainda que o pensador res-
salve que “para apreender a «qualqueridade» é
indicam que por detrás deles (e da pintura, como representação da representação) se
necessária a objectiva fotográfica.”).
designam personagens reais. A triangulação entre estes três elementos, os títulos, as
cartas representadas e que ao mesmo tempo são supostas representar, cria um efeito
múltiplo, satírico, “desmistificador”, que perturba, tanto mais que o referente real
é um mito, um tempo mítico, uma história mitificada. A ideia, nos Reis, é fazer com
que esse referente possa tornar-se a expressão ou o signo de um outro referente, o
jogo de cartas. A troca incessante entre o referente real (as personagens históricas) e
o referente “cartas de jogar” dá todo o poder crítico aos Reis de Costa Pinheiro. Mas
de modo nenhum a representação de Dona Leonor Teles pretende retratá-la – só se
for por alusão irónica ou por humor, aproveitando o simples facto que um traço, uma
cor, por mais abstractos que sejam, são expressivos, ou susceptíveis de o ser – por
associação, contágio simbólico ou analogia formal.
Não me parece, pois, que Lourdes ou Costa Pinheiro façam “retratos” ou queiram
“retratar” – fixando, por exemplo, “numa imagem viva” D. Leonor Teles ou o referen-
te de que se projectou ou recortou a sombra numa placa de matéria plástica.

4. Dissertando sobre o modelo do retrato, o Prof. José Gil aporta-se


à “alma”, ao “’interior’” ou àquilo que mais trivialmente se costuma
referir com a “personalidade do indivíduo”. (Refere que “O trabalho
do artista consistirá em restituir numa imagem visível o modelo
invisível.”). Como é que esta determinação reage quando confrontada,
por exemplo, com o retrato da Pop Art. (Lembro-me da constelação
de Marilyns de Andy Warhol, exaurida de qualquer espessura enquanto
intensificação simbólica da estampagem que se desgasta, e que surge
atestada no seguinte statement: “Já não há nada por detrás das minhas
imagens, está tudo na superfície”.) Pensemos então no retrato da pop
art enquanto metalinguagem: nele Warhol inscreve a lógica da mercadoria,
do sujeito exibido pela publicidade que o aliena, desinvestido por ela
da sua capacidade falante e desejante, acabando por pontuar uma
denúncia dessa mesma conversão, do ser em alienação, para parecer
anunciar já a passagem da imagem humanista ao ser qualquer teorizado
por Agamben4. Subscreve este conjunto de nexos e articulações?

12 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
e n t r e v i s ta c o m j o s é g i l

No fundo, o que está subentendido no meu texto é a dificuldade em fazer retratos,


hoje. Como indica, as “posições críticas” contra o retrato multiplicam-se. Porquê? No
meu entender, não é tanto pela insuficiência dos meios (pintura) como pela trans-
formação da percepção do Outro (e de Si mesmo), em particular do rosto do Outro
(e do seu próprio rosto). Porque o retrato clássico implicava dois factores essenciais
evidentes: primeiro, a unidade, a identidade e a unicidade do retratado enquanto
indivíduo deviam ser restituídos; segundo, esses atributos deviam ser focalizados na
representação do rosto. Por isso o retrato exprimia a sua “alma” ou “personalidade”.
Toda uma ontologia do ser singular suportava a legitimidade da representação (se-
melhança, analogia, identidade) no acto de retratar. Quando a cabeça, os ombros, o
busto ou ainda o corpo inteiro (a cavalo, ou noutro contexto) pertenciam ao retrato
eram ainda a cabeça e o rosto que constituíam uma “parte-total” como diriam Hus-
serl e Merleau-Ponty, do indivíduo completo. A cabeça aparecia como metonímia do
corpo inteiro. Ora estas duas condições que o retrato clássico pressupunha foram
destruídas pela modernidade – não só pelo abstraccionismo e pela fotografia, mas
pela própria maneira como todas as correntes modernistas e vanguardistas tratavam
o corpo. Repare como Malévitch destruiu a imagem mimética: apagando, com o
Quadrado Negro, o espaço do “ícone” – porque a cabeça era a metonímia do corpo e
do mundo. Mais fundamentalmente, a arte moderna tirou a organicidade à represen-
tação do corpo, desmembrando-o, analisando-o e expondo as suas partes disjuntas.
A crítica da representação focalizou-se, em muitos artistas, na imagem do corpo (do
cubismo a Bacon). Se a representação orgânica do corpo explodiu, então a cabe-
ça deixou de valer pelo indivíduo total (o que é muito claro em certos quadros de
Magritte, por exemplo). Numa palavra, a identidade e a unicidade do sujeito foram
estilhaçadas e, com elas, a sua expressão no retrato. Descobriu-se um sujeito múlti-
plo, virtual, com um corpo de órgãos virtuais, um corpo em devir (devires-animais e
minerais em Max Ernst, devir-matéria em Beuys, etc). É certamente neste contexto
que os “retratos” de Warhol devem ser vistos: são outras tantas manifestações da
impossibilidade de representar uma identidade (onto-psicológica) una, um fundo
ou um interior coeso e unificador (um Eu, uma “alma”). O fundo desapareceu, só
há imagens à superfície porque só há multiplicidades e movimentos de figuras he-
terogéneas. Para o conseguir, Warhol multiplica as séries de rostos de personagens
mediaticamente auráticas. Por isso ele joga tanto com a imagem publicitária.
Para mostrar como hoje se tornou impossível retratar segundo os postulados do
retrato clássico, bastaria, afinal, perguntar: como retratar miméticamente um esqui-
zofrénico? Mas não só os esquizofrénicos perderam a identidade. Nós também, por-
que somos múltiplos, em devir, em desmoronamento e reconstrução de identidades
construídas e sedimentadas, em júbilo de dissolução do eu, etc.
Na desmontagem moderna e contemporânea do retrato, desponta sim, aqui e ali, a
figura do ser qualquer de Agamben. Mas isso levar-nos-ia demasiado longe, nestas
observações sobre as transformações do retrato.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 13
e n t r e v i s ta c o m j o s é g i l

5. a-) Para este debate, importaria convocar uma quantidade 5. Para apropriar as próprias palavras de Jean
considerável de posições críticas que apontam para o carácter Loisy (“Préface” in À Visage Découvert. - Paris,
Fundation Cartier / Flamiron, 1992, pp. 11-12)
“obsoleto” do retrato, defendendo-se, por conseguinte, a passagem
que figuram na apresentação do projecto À Vi-
para a noção de “rosto”. (Cito apenas dois momentos significativos
sage Découvert: «Le visage est approché par op-
desta história recente: o projecto À Visage Découvert da Fondation position au portrait. C’est-à-dire par opposition
Cartier (1992)5 e a exposição About Face. Photography and the Death à la présentation d’un personnage saisi dans son
of the Portrait / Cara a Cara (2003)6. No seu entender, em que medida contexte selon une conception mimétique de la
subscreve a operacionalidade da noção de “rosto” por oposição ressemblance. Notre vision se construit selon un
ao “retrato” (levando em conta as diferenças dos dois casos aqui rapport au visible et à l’être plus proche de la
phrase d’Emmanuel Levinas: ‘La relation avec le
supracitados), e se corrobora a ideia de que esta nova noção comprova
visage peut certes être dominée par la percep-
efectivamente a obsolescência/letargia do primeiro.
tion, mais ce qui est spécifiquement visage est ce
qui ne s’y réduit pas.’ Levinas ajoute: ‘Le visage
b-) Sem desenvolver muito a questão, a páginas tantas, advoga (1) est signification et signification sans contexte’.
que não é tão certo dizer-se que a fotografia matou o retrato pictórico, Cette signification concerne chacun, bien au-de-
e (2) que a arte do retrato está (ainda) por reinventar. Quais são as lá du portrait d’un individu et en dehors de toute
coordenadas que nos poderão orientar na tarefa de destrinçar os modos ressemblance ou similitude avec le modéle.»

pelos quais se pode processar essa “(re)invenção”? Considerando-se 6. Um número substancial de produtores con-
sobretudo o auto-retrato (em vez do retrato, da imagem do Outro) temporâneos de imagem - veja-se os trabalhos
e a fotografia (em vez da pintura), fala-se da identidade pessoal já não de fotógrafos como Thomas Ruff, Alison Jack-
son, David, Nancy Burson, van Lawick & Muller,
como atributo dado a priori (fixada num ente estabilizado), mas como
Orlan, Gary Schneider, John Hilliard e etc. - são,
efeito, portanto, produzida ou gerada. Para esse auto-retrato enquanto em todos os aspectos, extremamente diversifica-
desmantelador dos pressupostos da “essencialidade”, a série Film Stills dos, mas unânimes no seu repúdio pelo retrato
de Cindy Sherman é um exemplo paradigmático ao demonstrar convencional, considerando-o esmagado sob o
o novo carácter constitutivo do sujeito: o “fazer-se” através dos actos peso de velhas convenções e pressupostos já de-
de representação. Como poderemos equacionar este entendimento sacreditados. Advoga A. William Ewing, curador
no âmbito da problemática da transformação/reinvenção do “retrato”? da exposição Cara a Cara (2003), que “Assume-
se e rejeita-se como mito a crença ainda fervo-
rosa de que um retrato bem conseguido capta
c-) Gilbert Lascault, debruçando-se sobre o “retrato contemporâneo”, e revela a essência, o ser interior - a alma do
caracteriza uma situação em que “vale tudo”7. Ao nível da teoria sujeito retrato.” Cf. William Ewing, “De Caras! O
e história dos “géneros”, passa-se da suprema distinção para retrato está morto! Viva a cara!” in Cara a Cara.
a máxima indistinção, ou seja, quando “tudo é permitido”, não se cai (jornal da exp.) - Exposição de Fotografia, Ga-
inevitavelmente na situação-paradigma da indiferenciação? (Sendo leria 1, Culturgeste/Musée de l’Elysée, 12 Out.
- 28 Dez. 2003. (Publicado originalmente com o
que a indiferença ante as diferenças específicas de cada “género” cresce
título “The Faces in the Mirror” in About Face.
com a redução das fronteiras que os delimitavam.) Mais recentemente,
Photography and the Death of the Portrait. (cat.
Francisco Serraller dissertando sobre o papel do género na arte exp.) - Lausanne: Musée de l’Elysée, 2003.)
contemporânea promove a ideia de que este “ya nunca es nada en sí,
7. Cf. Gilbert Lascault, “Portraits” in “Du Visa-
ni por sí, sino precisamente en tanto que ‘fluido’, algo en permanente
ge”, Presses Universitaires de Lille, 1982 (ree-
tránsito: nunca, por tanto, «género», sino propiamente ‘transgénero’ ditado in Le Portrait dans l’Art Contemporain
o constante transgresión de cualquier género.”8 A contracorrente, 1945-1992. [cat. exp.] - Nice: Musée d’Art Mo-
Derrida, ao abordar o estatuto e função da “Lei do género” em derne et d’Art Contemporain, 3 juillet - 27 sep-
literatura, advoga que nenhuma obra existe sem referência àquela tembre 1992, pp. 45-46.) Nota este autor que
lei, e, no entanto, o seu próprio estatuto implica que ela se lhe não «Tout est permis avec les têtes; tout est permis
avec le passé de l’art [...] Les blasphèmes pictu-
subordine mas que a desloque ao afirmá-la.9 Atendendo aos enunciados

14 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
e n t r e v i s ta c o m j o s é g i l

raux s’effectuent d’ailleurs souvent à partir de supracitados, como devemos pensar o “género” (a Teoria do Género)
portraits: ajouter une moustache à la Joconde, no contexto da arte contemporânea?
faire tourner la tête à Van Gogh.».

8. Francisco Calvo Serraller, Los Géneros La Pin- d-) Pegando nos casos de Lourdes Castro e de Costa Pinheiro que
tura. - Madrid: Santillana Ediciones Generalesd, citei anteriormente, quando as categorias da identidade e da unidade
2005, p. 365. apensas à Teoria do Género “clássica” – assente na ideia de tipologia
9. Cf. Jacques Derrida, “La loi du genre” in Para- de relação entre esquema e motivo para cumprir uma função específica
ges. Paris: Galilée, 1986, pp. 249-287. - são exemplarmente atacadas, transgredidas, parece passar-se
de um antigo paradigma fixado pela Academia para uma espécie
de agente regulador ambíguo ou elástico, forma de concordância dupla
ou indiferenciada. Como pensar o enfraquecimento da força reguladora
do género na situação dos Anos 60: poderemos aqui invocar o mesmo
esforço (de Deleuze) para pensar a diferença para além da negatividade,
salientando a ineficácia do uso de uma identidade prévia, como
determinação de superfície homogénea? Não devemos atender à ideia
da “dissolução do género” (a sua suposta “indefinição”) como uma
maneira mais ou menos “lúcida” de entender a falência dos últimos
resíduos de uma velha “ordem” – falo aqui do laço estreito que unia
a ordem Académica (neo-platónica) à Metafísica –; e que a arte
dos anos 60 não consiste em romper absolutamente com essa ordem,
mas ao expô-la em crise, não regista os seus pontos não só de derrube
mas de ruptura, entrevendo assim as novas possibilidades que tal crise
poderia abrir?

Quando se fala em “arte contemporânea” entra-se logo numa zona de incerteza e


indeterminação. Não há periodicidade estabelecida, vivemos ainda num tempo de
transição em que coexistem imagens do segundo modernismo, do pós-modernismo
dos anos 80 e de qualquer coisa que está nascendo (desde há mais de dez anos para
cá) e que se vai afirmando com características distintas das épocas recentes (anos 80
e 90). Mas por enquanto, nos ensaios sobre, como nas exposições de “arte contem-
porânea” põe-se tudo no mesmo saco. E ninguém sabe ao certo o que é a nossa arte
contemporânea. Esta indefinição (ou “confusão”) radica, em parte, na sobreposição
de camadas temporais que formam hoje o presente. Todos os presentes foram, ou
melhor, constituíram épocas “contemporâneas” para os que neles viviam, e em todas
elas coexistiram camadas diversas de passado, de presente e de futuro. Mas jamais,
talvez, a densidade e a pluralidade dessas camadas foram tão grandes como agora.
Isto tem a ver com a acumulação de imagens por um lado, e por outro com a veloci-
dade cada vez maior da transformação da realidade em imagem (na nossa percepção
e nos factos). Nunca o contemporâneo resultou tão fortemente da contracção des-
sas imagens num presente com uma realidade cada vez mais fugidia. Este factor – e
outros – tornam difícil a caracterização da “arte contemporânea”. Para dizer que as
observações de Gilbert Lascaux que refere são talvez prematuras. Porquê? Porque,
paradoxalmente, o contemporâneo de hoje tarda a formar-se. (Repare que o con-

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 15
e n t r e v i s ta c o m j o s é g i l

temporâneo não é um tempo cronológico, empírico, como o presente, mas um tempo


“transcendental”, condição de possibilidade de uma obra de arte, por exemplo, po-
der ser dita “não datada”, descobrindo possíveis e virtuais que constituem o “hoje”
como abertura ao futuro novo. O contemporâneo é um tempo comum que abre, de
direito, o actual ao futuro, é o futuro-actual ou futuro-do-presente que constitui
presentemente o presente).
Não creio, pois, que o “retrato contemporâneo” se caracterize por uma situação em
que “vale tudo”, à maneira como Thierry de Duve descrevia o eclectismo da arte
contemporânea. O “vale tudo” significa, provavelmente, que já nada vale da mesma
maneira ou, implicitamente, que já nada vale nada (quer dizer, “universalmente”: re-
pare-se no gosto pela blasfémia de muitas obras contemporâneas). Curiosamente, o
“retrato contemporâneo” retoma, sob outros regimes da representação que não o do
mimetismo, algumas das desmontagens que a arte moderna experimentou (Bacon,
o 2º Malévitch, Giacometti, por exemplo). E nisso estou de acordo consigo e com
Francisco Serraller: a estética da diferença (contra a da expressão de uma identidade
una) contribuiu para a crítica da Teoria dos Géneros. Estes, hoje, tendem a dissolver-
se no movimento de passagem, no “entre-dois”, na “hibridação” que os sobrepõe,
confunde, combina, transforma. Interessa mais a tensão do movimento diferenciante
do que o ponto de chegada ou o ponto de partida. No que diz respeito ao retrato,
uma característica da arte contemporânea (dessa que está nascendo) é a violação da
oposição categorial interior/exterior (respeitada pela arte moderna, mesmo quando
abolia simplesmente o interior). Pela primeira vez, talvez, na história da arte, o inte-
rior – como o interior dos corpos – é trazido sistematicamente à superfície do visível.
Sondagens do corpo por raios X, endoscopias, Tacs, etc, tornaram-se meios comuns
de formar imagens artísticas das vísceras ou do esqueleto; mas também do interior
das coisas, das paredes e das plantas. Um crânio com óculos numa placa de raios X
é um retrato? Claro que não, no sentido clássico. Nem pela “matéria de expressão”
nem pela relação expresso (interior) / expressão (imagem) que mudou realmente. A
sondagem contemporânea do interior inverte, em parte, a ordem de subordinação
clássica do exterior ao interior, tornando este último o plano de expressão (e supos-
tamente de verdade) de um sentido singular e humano que, anteriormente, líamos
claramente na imagem exterior visível. A transformação do exterior expressivo (pela
tatuagem, piercing, pela fotografia, pela mutilação, pela imagem do monstro, pela
cirurgia estética - Orlan) e a apresentação de um interior esvaziado ou sem mistério,
cria uma tensão nova, própria da arte contemporânea. As noções de singularidade e
de individuação mudam: se alguma coisa se exprime ainda da unidade clássica nestas
imagens a que já não se podem chamar “retratos”, é a “inquietante estranheza” do
que nos era familiar e que deixou de o ser. O retrato vai desaparecer ou será “rein-
ventado”? No fundo, não sei. Sei apenas que, se o rosto retomar importância, será
de outra maneira, sob outros regimes de imagem e matéria, que surgirá na arte: em
relação com forças naturais, impessoais, cósmicas, inconscientes e outras. Novas for-
mas de subjectivação estão a aparecer – e muitas delas já tiveram tradução artística,
como em Film Stills de Cindy Sherman, que cita. Mesmo as formas actuais, clássicas,

16 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
e n t r e v i s ta c o m j o s é g i l

de retoma do género retrato já se desviam dos cânones tradicionais. As fotografias de


Thomas Ruff, em grande plano, parodiam o retrato-expressão. A inexpressividade do
rosto é, aliás, em muitos artistas contemporâneos, uma constante, que surge como
o avesso simétrico da sondagem do fundo dos corpos: um rosto é uma parede, opõe
uma barragem à interpretação dos signos.(Neste aspecto lembremo-nos da célebre
e impressionante Family Tree, de 2001, de Zhang Huan, em que a expressividade
é substituída por caracteres chineses-tatuagens que progressivamente cobrem de
negro o rosto).
Mais uma vez, o que vem aí? Haverá rostos, sim, haverá corpos, haverá movimento e
forças múltiplas. Mas “retratos”, sustentados por uma velha metafísica do Eu, único e
idêntico a si mesmo, à volta do qual girava um Mundo estável, orgânico e finalizado
… isso, parece-me que realmente acabou. •
Muito obrigado.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 17
Resumo
Na evolução do retrato teve uma influência decisiva a época áurea da civilização palavras-chave
romana, circunstância em que se assistiu à criação e divulgação da imagem de Au-
gusto, o primeiro dos imperadores, protagonista da Pax Romana. Como se construiu retrato
esta imagem, como se propagou até ao território hoje português um modelo que antiguidade clássica
procurou na Grécia a sua fundamentação estética, estudando um busto augustano augusto
oriundo de Mértola, eis o objectivo desta reflexão, que será complementada e es- escultura
clarecida com a apresentação de resultados de análise laboratorial do mármore em mármore
que esta obra de arte foi esculpida. •

Abstract
The golden age of Roman civilization had a decisive influence on the evolution of key-words
the portrait, a circumstance that led to the creation and dissemination of the image
of Augustus, the first of the emperors, the leading man of the Pax Romana. The portrait
object of this essay, which focuses on an Augustan bust originally from Mértola, classic antiquity
is to understand how this image was built and how a model whose basic aesthetic augustus
foundation based on Greece spread to what is now known as Portugal. The study sculpture
will be accompanied by a presentation of the results of a laboratorial analysis of the marble
marble belonging to this piece. •
o retrato na
antiguidade clássica
o exemplo do augusto de mértola 1

m. justino maciel O retrato na Antiguidade Clássica


Instituto de História da Arte / FCSH / UNL
j . m . p e i x oto c a b r a l Podemos dizer que o retrato nasce na época helenística, quando o centro cultural e
Instituto Tecnológico e Nuclear artístico do mundo mediterrânico deixa de ser Atenas e surgem Alexandria, Pérgamo,
Rodes… Então, a Arte como que desce ao real, afasta-se do idealismo helénico,
reproduz situações de desequilíbrio: a dor fisiológica, a angústia e as convulsões
1. Este trabalho foi subsidiado pela FCT (Projecto
extremas do sofrimento físico e moral em personagens-tipo, incluindo bárbaros. Pela
PRAXIS/2/2.1/CSH/819/95).
Os autores agradecem o apoio dispensado pelo primeira vez surgem identificadas na arte essas personagens e cenas de quotidiano.
Director do Museu Nacional de Arqueologia, Dr. Destaque para as estátuas de Gálatas mandadas esculpir no séc. III a. C., em Pér-
Luís Raposo, ao estudo do busto de mármore do gamo, pelos reis Atálidas e, no séc. II. a. C., os baixos-relevos com gigantomaquias
Augusto de Mértola. no Altar de Pérgamo, o mais imponente monumento artístico do mundo grego. E,
2. Plínio, Naturalis Historia, 35, 2: In atriis haec datado já dos meados do séc. I a.C., o célebre Laocoonte, a obra clássica que me-
erant, quae spectarentur; non signa externorum lhor exprime e transmite a exteriorização do sofrimento corporal e psicológico. Os
artificum nec aera aut marmora: expressi cera bustos de Alexandre Magno poderão também ser invocados como contribuindo para
uultus singulis disponebantur armariis, ut essent potenciar o aparecimento do retrato.
imagines, quae comitarentur gentilicia funera,
Em grande parte influenciados pelos Gregos, os Etruscos desenvolveram uma arte
semperque defuncto aliquo totus aderat familiae
escultórica em que a fidelidade ao real era uma preocupação, sobretudo nos con-
eius qui unquam fuerat populus. Stemmata uero
lineis discurrebant ad imagines pictas. Tradução textos funerários. Eles mantinham nas suas casas os bustos dos antepassados, como
do latim, segundo M. Justino Maciel, Da Festa garantia de memória genealógica. As chamadas imagines maiorum eram obtidas
Indo-europeia à Festa Transmontana: o Uso da através das máscaras mortuárias moldadas em cera, como nos conta Plínio-o-Velho:
Máscara na Comemoração do Solstício de Inver- Colocavam-se nos átrios (das casas), a fim de serem observadas, não estátuas de
no, in Revista da Faculdade de Ciências Sociais e
artistas estrangeiros, objectos de bronze ou mármores, mas máscaras moldadas em
Humanas (Lisboa) 17 (2005) 183-208.
cera que se dispunham singularmente em estantes, a fim de que existissem retratos
que acompanhassem as cerimónias fúnebres familiares; e sempre que alguém morria,
todo o conjunto de parentes que um dia já vivera se encontrava presente. As gene-
alogias encontravam-se assim por linhagens até estes retratos pintados2.
Os Romanos tinham consciência de que a sua escultura tinha raízes quer no mundo
etrusco, quer no mundo grego. Mas foi, sem dúvida, a escultura helénica que marcou
os ideais da arte escultural romana. Para tal, o melhor exemplo que se poderá apre-
sentar será o da estátua de Augusto de Primaporta, que copiará em mármore uma

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 19
o r e t r ato n a a n t i g u i d a d e c l á s s i c a

fig.1 augusto de primaporta. museu do vaticano. © j. maciel, 1987

original estátua de bronze3. Observando esta escultura a par com a do Doríforo ou 3. P. Zanker, Augusto y el poder de las imágenes,
Portador de Lança, de Policleto, damo-nos conta imediatamente do paralelismo que Madrid, 1992, p. 225.

o artista, sem dúvida grego, quis fazer com o “Cânon”. Ao mesmo tempo, será possí-
vel, com esta comparação, dar conta das características que tem esta estátua de Au-
gusto em confronto com o seu modelo clássico: o Doríforo é uma estátua idealizada,
anónima, desnuda, apolítica, não direccionada e sem atributos, para além daqueles

20 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o r e t r ato n a a n t i g u i d a d e c l á s s i c a

4. M.J. Maciel, A arte da época clássica (séculos que o definem, in genere, como um atleta. A estátua do primeiro imperador é uma
II a.C – II d. C), in História da Arte Portuguesa escultura de retrato, personificada, vestida, politizada, direccionada e direccionante,
(dir. Paulo Pereira), Lisboa, Círculo de Leitores,
com Eros como atributo tornando presente a descendência mítica de Venus Genetrix.
1995, p. 97.
Esta criação artística passará a ser um referencial para o retrato imperial romano, na
medida em que foi produzida, com uma dinâmica de estética grega, numa época em
que ainda não estavam esquecidos os retratos etruscos e em que ainda as imagines
maiorum, obtidas a partir das máscaras funerárias, tinham lugar de destaque nas
alae das casas. É essa dinâmica que caracterizará a escultura de retrato na época
julio-cláudia até que a original vertente popular, sempre latente, volte a emergir
durante a dinastia flaviana. Será nesta dialéctica entre um idealismo e um verismo,
mas sempre com o mesmo fio condutor que tem presente as duas tendências, que
se expressará no correr do Império a escultura de retrato oficial: mais idealizante
nos períodos julio-cláudio, adriânico e teodosiano, mais realista nas épocas flaviana,
trajânica e constantiniana. Para esta dinâmica, Augusto foi o modelo no governo, no
culto e na pose. Nesta, o lado formal tem muito de grego, porque o ideal de beleza,
também para os Romanos, se encontrava na arte da antiga Grécia4.
Este expressionismo da arte do retrato oficial manifesta-se também nos bustos pri-
vados, e ajuda a contextualizar a sua caracterização social e temporal. E assim se
revelam importantes as leituras dos quadros iconográficos dos diferentes registos
fisionómicos, seja pelas formas dos penteados, sobretudo nos bustos femininos, seja
pelas tipologias das barbas, no caso dos masculinos.
Outra questão essencial é a de escultura em baixo-relevo, na qual se expressa igual-
mente a dinâmica retratística romana, seja de personagens, seja de situações históricas
concretas, políticas, sociais, ou religiosas. Também aqui a época augustana é referência,
com uma realização que, pela sua novidade e tipologia decorativa, marcará não só a arte
comemorativa como a do baixo-relevo: a Ara Pacis Augustae. A primeira, por documen-
tar no mármore o ritual de uma acção de graças que teve lugar numa data concreta, 04
de Julho de 13 a.C., relativa à Pax Romana finalmente conseguida na Hispânia, ritual
em que participa a família imperial e representantes das classes romanae. A segunda,
pelo modo como ali foi conseguida a construção dos volumes e a ponderação dos pla-
nos, assim como pela dialéctica entre o realismo e a estilização dos elementos florais,
numa técnica que fará escola na arte romana, designadamente na época adriânica.
A Ara Pacis leva-nos também a fazer um contraponto com o mundo grego. Também
na Grécia temos um exemplo de fixação em baixo-relevo de um ritual oficial na sua
época áurea, o tempo de Péricles: a Procissão das Panateneias esculpida nos frisos
do Pártenon. Se estes baixos-relevos têm em comum o facto de nos transmitirem
rituais em que as forças vivas da sociedade nos aparecem representadas e de se
inserirem no contexto do sagrado – o da Ara Pacis um altar, o das Panateneias um
templo - , são evidentes as diferenças entre um e outro, ressaltando de imediato
a identificação de personagens no primeiro e o anonimato no segundo. Neste não
vemos Péricles, não vemos membros da sua família, não vemos tipologias de retrato,
mesmo em personagens para nós hoje desconhecidas. Ao contrário, na Ara Pacis,
surgem pessoas retratadas, em primeiro ou em segundo plano, que nós hoje não

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 21
o r e t r ato n a a n t i g u i d a d e c l á s s i c a

reconhecemos mas que os contemporâneos identificavam pelas marcas fisionómicas. 5. Ibidem.


E, depois, é para nós hoje possível identificar, no baixo-relevo do lado sul, Augusto, 6. Suetónio, Diuus Augustus, 79: Oculos habuit
capite uelato, Agripa com o filho de sete anos, Caio César, que usa um torques à claros ac nitidos, quibus etiam existimari uolebat
grega, Lívia, Tibério, com a sua toga de cônsul nesse ano 13 a. C., Druso e a esposa inesse quiddam diuini uigoris, gaudebatque, si
Antónia Minor com o pequeno Germânico. Identificamos os Pontífices, os Áugures qui sibi acrius contuenti quasi ad fulgorem solis
com as suas coroas de louros e os Flâmines com o galerus e a laena sobre a toga. uultum summitteret; sed in senecta sinistro minus
uidit; dentes raros et exiguos et scabros; capillum
No baixo-relevo do lado norte, também é possível identificar os Septemuiri encar-
leuiter inflexum et subflauum; supercilia coniunc-
regados de preparar os banquetes sagrados, mais Áugures, os Quindecemuiri que
ta; mediocres aures; nasum et asummo eminen-
guardavam os Livros Sibilinos e mais familiares de Augusto. Este friso comemorativo tiorem et ab imo deductiorem; colorem inter
da Ara Pacis, em Roma, como que aglutina em si, através do dinamismo do culto aquilum candidumque; staturam breuem – quam
imperial, todo o significado da escultura retratística oficial5. tamen Iulius Marathus libertus et a memoria eius
Os baixos-relevos da Ara Pacis surgem-nos, assim, juntamente com a citada está- quinque pedum et dodrantis fuisse tradit, – sed
quae commoditate et aequitate membrorum oc-
tua de Augusto de Primaporta, como pontos de referência fundamentais para a arte
culeretur, ut non nisi ex comparatione astantis
do retrato na época augustana. Octávio César Augusto surge aí como personagem
alicuius procerioris intellegi potest. Tradução do
central na política e na arte. latim, segundo M. Justino Maciel, A Arte da Épo-
Com outras representações de diferentes etapas da vida do Princeps, tornam-se ca Clássica (séculos II a. C. – II d. C.), in História
modelo dos seus retratos oficiais em todas as capitais de ciuitas do império. Com da Arte Portuguesa (dir. Paulo Pereira), Lisboa,
efeito, é no seu tempo que o imperador passa a ser venerado como divindade nos Círculo de Leitores, 1995, p. 98.
templos municipais e as estátuas e bustos vão acusar sempre, de modo mais ou
menos fiel, e com mais ou menos acabada técnica de cinzelagem, o modelo ou os
modelos originais.

Retrato de Augusto
Descrição do busto de Mértola

Como era, de facto, Augusto? A melhor descrição que nos ficou do primeiro impera-
dor foi-nos deixada por Suetónio: Augusto era muito bem parecido e conservou a sua
beleza durante toda a vida. Não se preocupava demasiado com o seu cabelo, con-
fiando-o mesmo a vários barbeiros ao mesmo tempo… O seu aspecto, quer falasse,
quer estivesse calado, era sempre tranquilo e sereno… Teve olhos claros e brilhantes
e gostava que pensassem existir neles algo de força divina, alegrando-se mesmo
quando, fixando os olhos em alguém, essa pessoa baixava o rosto, como que ofusca-
da pelo fulgor do sol… O seu cabelo era levemente ondulado e um tanto alourado.
Tinha as sobrancelhas juntas, orelhas de tamanho médio, nariz mais saliente do que
achatado, a cor da pele entre o moreno e o branco. Era de pequena estatura, mas tal
era a harmonia e a proporção dos seus membros que se não dava por isso, a não ser
por comparação com outra pessoa de maior estatura que estivesse junto dele6.
Não deixa de ser um desafio verificar até que ponto esta descrição se reconhece nos
retratos que nos ficaram, nomeadamente no território da província romana da Lusi-
tânia. Escolhemos o Augusto de Mértola para esse exercício. Estudámo-lo no Museu
Nacional de Arqueologia, onde se encontra desde os finais do séc. XIX, registado

22 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o r e t r ato n a a n t i g u i d a d e c l á s s i c a

fig.2 augusto de mértola. museu nacional de arqueologia. visão lateral.


© museu nacional de arqueologia.

com o nº. 994.9.2, número antigo 21520. As suas medidas são, aproximadamente,
de altura 50 cm, de espessura máxima em cima 30 cm e de espessura máxima em
baixo 20 cm. Grande parte do lado esquerdo e a área baixa central da testa, o nariz,
os lábios, excepto as suas comissuras, e o queixo chegaram aos nossos dias marte-
lados ou destruídos.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 23
o r e t r ato n a a n t i g u i d a d e c l á s s i c a

fig.3-5 augusto de mértola. museu nacional de arqueologia. visão frontal,


visão a três quartos e visão posterior (© j. maciel, 2005).

Características do busto
Trata-se de um busto preparado para entroncar numa estátua-pedestal de dimensões
colossais. A adaptação era efectuada através de encaixe. Para tal, o busto apresenta
uma base troncónica, tratada a escopro. A modelação inicia-se com a representação
do nascimento dos ombros, mais pronunciada do lado direito do que do lado esquer-
do do representado. A musculatura do pescoço encontra-se sugerida por cordas que
se encontram obliquamente num V descentrado no cimo do peito, com marcação de
ligeira cova, correspondendo a uma ligeira orientação do rosto e inclinação para a sua
direita. A corda direita do músculo do pescoço vai-se esbatendo progressivamente
à medida que sobe. A corda esquerda, mais pronunciada, apenas se esbate sob a
orelha esquerda, na confluência entre a linha do maxilar e a dos caracóis da base da
cabeça, também à esquerda. Uma maçã de Adão pronuncia-se em relevo suave e
ligeiramente descentrada para a esquerda, entre duas rugas horizontais e paralelas
que dela partem, em cima e em baixo, para o lado direito do pescoço, sensivelmente
até à direcção da confluência da linha do maxilar com a dos caracóis da base direita
da cabeça. A distância entre estas duas rugas paralelas é de 3 cm. Uma outra ruga,
de muito menor extensão, desce obliquamente do queixo em direcção à ruga hori-
zontal superior, sublinhando ligeiramente a pequena torção do queixo. Este, como
dissemos, tem a sua modelação escalavrada ou martelada.
Os lábios destruídos deixam ver, intocadas, as respectivas comissuras, marcadas a
trépano. Do nariz restam apenas as linhas de contorno. As bochechas são bastante
pronunciadas, ambas sendo marcadas por sulcos quase simétricos que, juntamente
com os músculos laterais do queixo, definem uma volumetria acentuada e estranha.
Maçãs do rosto também suficientemente destacadas, sobretudo a da direita, mais
descaída. Olhos, maçãs do rosto, bochechas e maxilares desnivelados da horizontali-

24 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o r e t r ato n a a n t i g u i d a d e c l á s s i c a

dade para a direita, o que indica descaimento da cabeça para esse lado e correspon-
dência, na manutenção da frontalidade, com a descentralidade da musculatura do
pescoço. Orelhas destruídas, mais a da esquerda do que a da direita, todavia ainda
com vestígios suficientes para delinear o seu traço.
Os olhos não apresentam marcação de íris e a sua modulação pronunciada para os
cantos, sobretudo verificada no olho esquerdo, sugerem que o retratado olha ligei-
ramente para o alto. As pálpebras são delineadas como orlas. Testa aparentemente
baixa, pois a sua parte superior é coberta pelas madeixas do cabelo. A destruição
que a sua textura sofreu impede uma percepção clara da representação de músculos
ou de rugas. No entanto, restam vestígios de volumetria que indicam que não era
lisa, deixando o modelado sobrevivente constatar que a parte inferior da testa era
mais cheia e enrugada que a parte superior.
Madeixas delineadas em ondas através de largos e rebaixados listéis recurvos termi-
nando em ponta com sulcos mais suaves. Nas têmporas, caem para baixo; no lado
direito, em três pontas direccionadas para a face; no lado esquerdo, em quatro pontas
mais volumosas enrolando para dentro quase em saca-rolhas. Nos lados anteriores do
pescoço, as madeixas apresentam as pontas direccionadas obliquamente, paralela-
mente com as linhas dos maxilares, em cima, e com os contornos do recorte do busto,
em baixo. É patente o tratamento cuidado do cabelo em madeixas, condizente com a
informação, atrás citada, de que Augusto confiava o seu cabelo a vários barbeiros ao
mesmo tempo, apesar de ser também dito que não se preocupava demasiado com ele.
Também a informação de que tinha o cabelo ondulado se pode adequar ao presente
retrato. Este ondeado de madeixas que progressivamente vão ganhando volume à
medida que se aproximam da parte frontal adapta-se perfeitamente à necessidade de
representar o cabelo apenas nos lados e frente da cabeça. No cocuruto, observa-se
uma falha natural do mármore com profundo recorte em bisel, enviesado em relação à
frontalidade da testa. Daí nasce o ondulado dos cabelos para a frente e para os lados.
A parte de trás, desde esta falha até à base do busto, encontra-se apenas sumaria-
mente desbastada a ponteiro, indício claro de que a estátua em que se integrava se
encontrava adossada a uma parede, com certeza a da cella de um templo.
O tratamento do cabelo é aqui, como em todos os retratos deste imperador, fundamental
para a identificação da personagem. Penteado para a frente, seguindo a tradição dos
austeros penteados republicanos, ostenta, no entanto, três madeixas mais pronunciadas
bem características: duas articulando-se em cauda de andorinha quase no centro da
parte alta da testa e outra, à direita, articulando-se em forma de garra voltada para a
esquerda, sugerindo também, em conexão com a madeixa central, um bico de águia. De
tal maneira estas madeixas são pronunciadas que quase pareceriam postiços, não fosse o
caso de o penteado masculino da época augustana ainda não recorrer a essa moda.
A textura do rosto e do pescoço revela um fino polimento. Nos lados do pescoço, até
às madeixas laterais e, na zona mais baixa, até à parte traseira cervical sumariamen-
te desbastada, observa-se o efeito de um leve tratamento com gradim. Além deste
instrumento, é possível identificar também o uso do ponteiro, do cinzel, do escopro
e do trépano, como referimos já.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 25
o r e t r ato n a a n t i g u i d a d e c l á s s i c a

7. K. Fittschen-P. Zanker, Katalog der römischen


Porträts in den Capitolinischen Museen und den
anderen kommunalen Sammlungen der Stadt
Rom, I, Mainz am Rhein, 1994, p. 5, n. 5.

8. L.de Matos, Inventário do Museu Nacional de


Arqueologia, Colecção de Escultura Romana, Lis-
boa, 1995, p. 26, foto na p. 27.

9. R. M. Rosado Fernandes, André de Resende,


As Antiguidades da Lusitânia, Introdução, Tra-
dução e Comentário, Lisboa, Fundação Calous-
te Gulbenkian, 1996, p. 186 e fl. 179: Octo, vel
decem statuas annis ab hinc aliquot terra effos-
sas Myrtilenses homines inde tollere permiserunt
affabre insculptas, sed sine capitibus. Arbitran-
tur capita fuisse aenaea, & insititia, atque adeo
a corporibus in alium usum evulsa (cap. IV, fl.
179). Tradução de R. M. Rosado Fernandes.

fig.6 busto de augusto de mértola em estátua fogada. © museu nacional de arqueologia.

26 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o r e t r ato n a a n t i g u i d a d e c l á s s i c a

10. A. Arrais, Diálogos de Dom Frey Amador Ar- O penteado diz-nos sem restarem dúvidas que a personagem representada é Au-
raiz, Bispo de Portalegre: revistos, e acrescenra- gusto. Todavia, o aspecto geral do busto distancia-se bastante dos restantes retra-
dos pelo mesmo Autor na segunda impressão,
tos que conhecemos do primeiro imperador, apesar de, como veremos, se poderem
Nova Edição, Lisboa, Na Typographia Rollandia-
fazer algumas aproximações. Parece haver uma certa desproporção entre o rosto e
na, 1846, p. 255.
a cabeça propriamente dita. Aquele é proporcionalmente mais pequeno e esta mais
11. G. Pereira, As Estátuas Romanas da Quinta volumosa na estrutura e no cabelo. A explicação para esta discrepância foi avançada
da Amoreira da Torre proximo de Montemor-o-
por K. Fittschen e P. Zanker7, que integraram este retrato num conjunto de bustos
Novo, in Revista Archeologica (Lisboa) 4 (1890)
do imperador Calígula que, após a morte violenta deste e subsequente damnatio
169-171. Cita Faria e Sousa na p. 170.
memoriae, foram reesculpidos com o rosto de Augusto. Parece difícil de justificar uma
12. Idem, p. 169. No Guia de Portugal, II, Es-
modelação sobre o retrato de Calígula, uma vez que não restam quaisquer traços
tremadura, Alentejo, Algarve, Lisboa, 1927 (1ª
das feições deste, de acordo com os bustos e estátuas que dele nos restaram. A ter
edição), pp. 33-34, dizia ainda Raul Proença ao
falar da Quinta da Amoreira, citando Gabriel Pe- sido executada a transformação, ela terá sido total na parte frontal do busto. Seja
reira: Em dois nichos de casa de entrada, duas como for, a sua realidade plástica, apesar dos tratos de polé a que foi submetido,
notáveis estátuas romanas, que parecem ter vin- deixa transparecer a imagem do poder e a relação com o espectador.
do de Mértola no séc. XVII, e a que o povo, sob
a sugestão da tragédia dos Távoras, deu o nome
de marquês e marquesa degolados – de mármo-
Leituras e interpretações
re e com mais de 2 m. de alt., sem cabeça nem
Este busto imperial provirá de Mértola, uma vez que consta no Catálogo do Museu
mãos, homem e mulher, «as mais perfeitas, mais
elegantes, da mais nobre arte que temos em Por- Nacional de Arqueologia como tendo pertencido à Colecção de Estácio da Veiga/
tugal, as roupagens finas, lindamente lançadas, Museu Arqueológico do Algarve8. Desconhecem-se, todavia, as circunstâncias do
de óptima execução» (Gabriel Pereira). seu achamento, como veremos.
13. J. L. de Vasconcelos, Duas estátuas romanas No séc. XVI, André de Resende disse que, havia alguns anos, os habitantes de Mér-
(Dadiva ao Museu Etnológico Português), in O tola permitiram que levassem dali oito ou dez estátuas, escavadas da terra, artisti-
Archeologo Português (Lisboa) 7 (1902) 100- camente esculpidas mas sem cabeça, admitindo-se que as cabeças fossem de bronze
101. Em publicação de 1956, estas informações e inseridas nos corpos e que tivessem mesmo sido arrancadas para outro uso9.
sobre a arqueologia de Mértola são repetidas por Pela mesma altura, diz-nos o bispo Frei Amador Arrais:10 Duram ainda em Mértola
Luís Alves, que também nada nos diz sobre o
coluñas, estatuas, & mármores com letreiros romanos… Em meu tempo nos funda-
busto de que aqui nos ocupamos (L. F. D. Alves,
mentos da Misericordia desta Villa se acharão sinco, ou seis estatuas de mármore,
Aspectos da Arqueologia em Myrtilis, in Arqui-
vo de Beja, Boletim da Câmara Municipal (Beja) que eu vi… Uma delas era de molher, & tam bem lavrada, & galharda, que repre-
13 (1956) 21-104, mais concretamente nas pp. sentava à maravilha a nobreza & gentileza da pessoa…As informações destes dois
59-60). autores não referem a existência de bustos ou cabeças masculinas, mas permitem
14. J. L. de Vasconcelos, Religiões da Lusitâ- documentar a existência de escultura oficial e comemorativa romana em Mértola
nia, III, Lisboa, 1913, p. 333-334, refere também desde há muito tempo.
uma das estátuas togadas provenientes de Mér- Infelizmente, não possuímos qualquer descrição ou mera referência às condições de
tola, que interpreta como representando a deusa achamento deste busto. Em 1890, Gabriel Pereira 11 informa-nos da transferência
Cíbele. Não faz aí, porém, qualquer referência ao destas estátuas mirtilenses para a Quinta da Amoreira da Torre (Montemor-o-Novo) e
togado masculino.
cita a segunda edição, em 1678, da Europa Portugueza, de Manoel Faria y Sousa, no
Tomo I, Parte 1ª, cap. XI, onde se lê que algumas destas estátuas foram nesta Quinta
destruídas para fazer gesso. Gabriel Pereira viu duas que sobreviveram na casa da en-
trada do palácio, em dois nichos feitos a propósito, sem cabeça12. São estas estátuas
que Leite de Vasconcelos também refere como provenientes de Mértola, oferecidas
pelo Visconde de Amoreira da Torre ao Museu Etnológico por volta do ano de 1902 13.
Leite de Vasconcelos também não refere a cabeça que agora estudamos14.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 27
o r e t r ato n a a n t i g u i d a d e c l á s s i c a

Não encontramos publicada qualquer informação que nos diga com clareza de onde 15. J. L. de Vasconcelos, Historia do Museu Et-
veio este busto. Procurámos em vão nas relações e inventários da Colecção de nologico Português, Lisboa, 1915, p. 196.
Estácio da Veiga uma referência a esta cabeça romana. Na sua Historia do Museu 16. Idem, p. 151.
Etnologico Português, Leite de Vasconcelos refere apenas estátuas (decapitadas) e
17. Muito agradecemos à Drª. Ana Isabel Santos
fragmentos de outras; bustos e cabeças de mármore existentes em 1915 no Museu e à D. Luísa Guerreiro Jacinto a localização e a
que dirigia15. Refere que o Inventario ou livro de entrada começou a organizar-se em possibilidade de ter acesso a esta ficha do in-
190616. Foi este Inventário que procurámos e que se nos revelou como o documento ventário antigo.
mais antigo, não assinado, embora nos pareça já bastante posterior a 1906. Trata-se
18. O Inventário número 21.521 documenta
de uma ficha manuscrita, com o número 21.520, que transcrevemos17: uma figura feminina que sempre acompanhou
Estátua marmórea, alvinitente, de romano, togado, mutilada (faltam-lhe as pernas, a figura togada masculina desde o século XVI.
o braço direito e a mão esquerda e tem a cara esmurrada); «as roupagens estão bem Trancrevemos também o seu texto, porque ele
conservadas, as arestas nítidas, de uma elegância, e de execução nada vulgares.» Foi poderá ajudar a contextualizar esta problemáti-
encontrada em Mértola, no século XVI; mas estava na Quinta da Amoreira da Torre, ca: Estátua marmórea, alvinitente, de pessoa do
sexo feminino, vestida de stola e palla. Na cabe-
ao pé de Montemor-o -Novo – servindo de ornato dentro de um nicho - de onde
ça tem corona muralis. Está mutilada (falta-lhe
veio para o Museu, nos princípios deste século XX, oferecida pelo seu proprietário, o antebraço e mão direitos; a mão esquerda e os
o Sr. Visconde da Amoreira da Torre. Altura 2m,30 pés; e tem a cara esmurrada). «As roupagens es-
2m,05 plus minus tão bem conservadas, as arestas nítidas, de uma
1,64 p.m. (sem cabeça) elegância e de execução nada vulgares.». Foi en-
Revista Archeologica, IV, 169.171, est. VII-VIII contrada em Mértola, no séc. XVI; mas estava na
Quinta da Amoreira da Torre, ao pé de Monte-
Archeologo Português, VII, 10018.
mor-o-Novo – servindo de ornato dentro de um
A primeira publicação a dar conta desta cabeça, embora identificando-a somente
nicho – de onde veio para o Museu nos princí-
como Estátua proveniente de Mértola, é a História da Arte em Portugal de Aarão pios deste século XX, oferecida pelo seu proprie-
de Lacerda, publicada em 1942. Mas refere-a também no contexto de duas está- tário, o Sr. Visconde da Amoreira da Torre. Altura
tuas monumentais bem dignas de um templo, provenientes de Mértola e datando 2m,46 plus minus 1,90 p.m. (sem cabeça).
dos sécs. II e III D.C., expostas no Museu Etnológico, bastante mutiladas mas muito Revista Archeologica, IV, 169-171, est. VII e VIII
vistosas nos panejamentos que os dois personagens, homem e mulher, vestem com Religiões da Lusitânia, III, pg. 333, fig. 148 (Ca-
beça de Cýbele)
certa distinção e elegância19. Não fala da cabeça masculina, mas apenas dos pane-
Archeologo Português, VII, 100.
jamentos da estátua-pedestal a que, na altura, se pensava estar ligado este busto.
Na foto que publica na Fig. 75 da pág. 86 já mostra, porém, a estátua com esta 19. A. de Lacerda, História da Arte em Portu-
gal, I, Porto, Portucalense Editora, 1942, p. 87
cabeça. Das fichas do Inventário e do texto e fotos publicados por Aarão de Lacerda
e figª. 75 da p. 86.
se conclui que desde a entrada destas estátuas no Museu, no começo do século XX,
nelas foram aplicadas as referidas cabeças. Mas a origem em Mértola destas cabeças 20. J. L. M. de Matos, Subsídios para um catálo-
não se apresenta totalmente certa, embora isso seja de uma grande probabilidade. go da escultura luso-romana, Dissertação de Li-
cenciatura apresentada à Faculdade de Letras de
Segundo o inventário antigo, as cabeças faziam um todo com as estátuas-pedestal
Lisboa, Lisboa, 1966, pp. 114-117, trata objec-
e, por isso, estando elas em Montemor-o-Novo no século XIX, não poderiam ter per- tivamente esta problemática, numa altura em foi
tencido à Colecção de Estácio da Veiga/Museu Arqueológico do Algarve. Segundo os decidido, estando o Museu sob a direcção de D.
textos publicados desde o séc. XVI, as estátuas estavam decapitadas, mas também Fernando de Almeida, retirar a cabeça de Augus-
nada impede que, sabendo que as estátuas, mesmo em Montemor, eram oriundas to da estátua togada e a cabeça de Cíbele, tam-
de Mértola, se considerasse legítimo completá-las com cabeças também originárias bém por outros então considerada da imperatriz
Júlia, da estátua da figura feminina com túnica e
dessa localidade, recolhidas por Estácio da Veiga20.
stola. Diz, na pág. 115: Muito extranhamente,
A primeira leitura objectiva desta peça só viria a ser efectuada com profundidade por
porém, ambas as esculturas se apresentam ago-
A. Garcia y Bellido21. Considera-a como fazendo parte de um todo, uma estátua com a ra com cabeça. Não há dúvida que são cabeças
altura actual de 2,05 m e que, se não tivesse sofrido destruições, teria de altura 2,30 impostas depois de as estátuas terem ido para

28 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o r e t r ato n a a n t i g u i d a d e c l á s s i c a

o Museu. Àcerca da autenticidade deste arran-


jo levantam-se algumas dúvidas. O assunto está
a ser estudado pelo Sr. Doutor Fernando de Al-
meida e não temos a possibilidade de resolver
a questão nem queremos antecipar-nos às suas
conclusões.

21. A. Garcia y Bellido, Retratos Romanos Impe-


riales de Portugal, in Arquivo de Beja, Boletim da
Câmara Municipal (Beja) 23-24 (1966-67) 280-
291, fig. 1, na p. 286.

22. Idem, pp. 280-281.

fig.7 augusto de mérida, capite velato . museu nacional de arte romano. © j. maciel, 1989

m. Reconhece, todavia, que não parece suficientemente provada22 a hipótese de esta


estátua ser uma das que foram encontradas decapitadas no séc. XVI. Mas acaba por
identificar a escultura como a de um Augusto togado, em pé, de tamanho colossal,
segundo um tipo mui similar ao da Via Labicana, mas com a cabeça descoberta. Diz
ainda que a cabeça é peça à parte, mas pertencente à figura. Faltam-lhe, além da
parte dos pés, do braço direito e da mão esquerda, todo o rosto. No entanto, o pouco
que resta das feições e o penteado com o característico duplo madeixão em forma de
bico de águia, indicam sem quaisquer dúvidas que se trata de uma estátua-imagem
de Augusto. Temos de reconhecer, todavia, que o escultor fez um retrato duro e até

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 29
o r e t r ato n a a n t i g u i d a d e c l á s s i c a

fig.8 augusto da via labicana, capite velato . museo nazionale romano. fotografia
publicada por r. bianchi bandinelli, roma centro del poder, madrid, 1970, p.201, fig.216.

torpe, dando à cabeça um excessivo volume e à face uma dimensão desmedida que 23. Idem, p. 281.
está muito longe do fino rosto dos retratos augústeos ocidentais, mas que se costuma
encontrar nos orientais. Isso me faz suspeitar de que o escultor desta estátua seria
provavelmente um de tantos escultores gregos ou orientais que trabalhavam então
nas províncias ocidentais do Império onde a criação de novas colónias e o desen-
volvimento da vida oficial e particular os fazia necessários. Sabemos que por essa
altura, em Emérita Augusta, alguns destes escultores se empregavam na decoração
do teatro em cujas pedras deixaram a sua assinatura23.
Sublinhando esta leitura do Augusto de Mértola, R.Etienne, G. Fabre, P. e M. Lévê-
que comparam-no com o de Conímbriga, considerando-o, em relação a este, com o
festão das madeixas sobre a fronte com cauda de andorinha mais à esquerda, carne

30 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o r e t r ato n a a n t i g u i d a d e c l á s s i c a

24. R. Etienne, G. Fabre, P. e M. Lévêque, Fou- mais mole, trabalho mais cuidado na modelação da pele. Sublinham também o facto
illes de Conimbriga, II, Épigraphie et Sculpture, de estes dois retratos se reportarem a um Augusto não jovem, mesmo póstumo, o
Paris, 1976, p. 238.
que vai contra a tendência generalizada verificada na Península Ibérica. No caso do
25. J. Alarcão, Portugal Romano, Lisboa, 4ª ed., de Mértola, a dureza do rosto, como sugeriu Garcia y Bellido, poderá indiciar a mão
1987, p. 209. de artistas orientais24. A mesma ideia é sublinhada por J. Alarcão, que afirma que
26. V. de Souza, Corpus Signorum Imperii Roma- esta cabeça de Augusto veio provavelmente de Mértola25.
ni, Portugal, Coimbra, 1990, p.13, fig. 10. Citámos já a nota de K. Fittschen e P. Zanker, propondo uma adaptação de um retrato
de Calígula a um busto de Augusto. Esta mesma opinião é seguida por Vasco de
27. L.de Matos, Inventário do Museu Nacional
de Arqueologia, Colecção de Escultura Romana, Souza, que sublinha a discrepância de proporções entre o rosto e a cabeça, denun-
Lisboa, 1995, p. 26, foto na p. 27. ciando uma transformação da escultura, que terá ocorrido em época do imperador
Cláudio, a ter em conta a modelação da textura da pele e o tratamento das madeixas
28. M. J. Maciel, op. cit., p. 98.
do cabelo. Os característicos caracóis formando garra permitem integrar esta escul-
29. T. Nogales Basarrate e L. J. Gonçalves, Imagi-
tura, segundo o mesmo autor, na tipologia de Primaporta26.
nes Lusitanae: La plástica oficial de Augusta Eme-
Luís de Matos descreve este busto dando conta do contraste entre a rosto e a cabeça
rita y su reflejo en algunas ciudades lusitanas, in
Augusta Emerita. Territórios, Espacios, Imágenes
propriamente dita, sublinha a sua forma realista e integra-a no tipo de Primaporta.
y Gentes en Lusitania Romana (Ed. T. Nogales Aceita a ideia de adaptação de um retrato de Calígula e sublinha a importância do
Basarrate), Monografias Emeritenses, 8, Mérida, seu achamento em Mértola27.
2004, pp. 285-337, fig. 10Aa, na p. 321. Em 1995, um de nós considerou este busto de Mértola, entre os retratos augustanos
encontrados em Portugal, como o que apresentou uma mais acurada modelação de
superfície e o que nos mostra uma personagem mais jovem28.
Mais recentemente, T. Nogales e L. J. Gonçalves aceitam também a ideia de conver-
são, na época cláudia, de um retrato de Calígula, facto que explica o endurecimento
das feições augústeas pela conservação dos sulcos faciais precedentes29.

Algumas reflexões
Como se deduz das várias abordagens, as interpretações iconográficas são progressi-
vamente satisfatórias à medida que se vai alargando o estudo comparativo com outras
representações de Augusto em todo o Império, seja na sua parte ocidental, seja na sua
parte oriental. Destacam-se as leituras de A. Garcia y Bellido e de K. Fittschen-P. Zanker.
Do primeiro, porque identificou a personagem através do tipo de penteado, individuali-
zando os traços representados como pouco comuns à iconografia ocidental do primeiro
dos imperadores e atribuindo o trabalho de escultor a um artifex grego ou oriental. Dos
segundos, pela proposta de um novo enquadramento iconográfico e cronológico. A
hipótese por eles avançada da transformação de um retrato de Calígula, e que parece
desde então aceite como válida, apresenta todavia dificuldades de interacção com os
poucos retratos sobreviventes deste imperador. Com efeito, ou o retrato foi adaptado
e alguns traços permaneceram, ou foi totalmente reesculpido e então esses traços de-
sapareceram. É certo que se constata uma discrepância entre o rosto e a cabeça, mas o
empolamento e a profundidade das madeixas frontais em garra ou bico de águia e em
cauda de andorinha dificilmente se conjugam com uma reelaboração. A grande volume-
tria do busto teria obrigado, na transformação, a uma redução no referido empolamento
das madeixas em relação ao rosto e não o contrário, que é o que se verifica.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 31
o r e t r ato n a a n t i g u i d a d e c l á s s i c a

No nosso entender, o afastamento que se observa em relação aos típicos traços 30. Consideram-se genericamente três os ti-
fisionómicos augústeos – o referido endurecimento da expressão do rosto – deve- pos de retratos de Augusto: o tipo “Actium”, de
criação anterior a 27 a.C.; o tipo “Primaporta”,
se mais à cronologia tardia da sua feitura na época cláudia do que a uma possível
coincidente com a atribuição do título de Augus-
transformação de outro retrato.
to neste mesmo ano 27 a.C.; este e o anterior
Todavia, a leitura de Garcia y Bellido, fundamental para o enquadramento deste busto apresentam realizações póstumas; e o tipo “For-
na iconografia augustana, parece-nos ter sido efectuada com base numa fotografia, bes”, que se pensa ter sido proposto por altura
dada a descrição sumária da cabeça, designadamente do rosto, que é considerado dos Ludi Saeculares de 17 a.C. Segundo C. Rose,
como praticamente destruído, quando conserva ainda traços fundamentais para a a principal marca que diferencia estes tipos tem
sua percepção, seja frontal, seja lateralmente. A leitura de Garcia y Bellido atende a ver com a forma de disposição do cabelo (C.
A. Rose, Dynastic commemoration and imperial
sobretudo à estátua-pedestal em que, na altura do seu estudo, o busto estava en-
portraiture in the Julio-Claudian period, Cam-
caixado, circunstância que, no nosso entender, condicionou então a leitura deste
bridge, 1997).
busto augustano.
31. H. Drerup, Augustusköpfe in Spanien, in Ma-
Procuramos nos corpora de retratos imperiais possíveis aproximações que nos permi-
drider Mitteilungen (Heidelberg) 12 (1971) 138-
tam interrogarmo-nos sobre o enquadramento iconográfico deste busto de Augusto
146, Raf. 32-33, 36-38.
proveniente de Mértola. Referimos no início o modelo fundamental de Primaporta,
cujas características marcantes são os pronunciados madeixões em garra e em cauda 32. A. Garcia y Bellido, Esculturas Romanas
de España y Portugal, Madrid, 1949, 23.
de andorinha. A ele se reporta também este retrato de Mértola, assim como outros
que lhe estão próximos geograficamente, como é o caso dos de Itálica, de Coním- 33. Idem, pp. 20-21.
briga e de Mérida30. 34. Garcia y Bellido, Arte Romano, Reimpresion
De Itálica são provenientes duas cabeças augustanas, hoje no Museu Arqueológi- de la segunda edición, Madrid, 1979, p. 196.
co Provincial de Sevilha31. A primeira, em mármore branco, também pertencente a
35. Idem, p. 21.
uma estátua colossal, aproxima-se da de Mértola num idêntico tipo de madeixas
laterais ao rosto, junto às têmporas. Apresenta um aspecto idealizado e sereno, mas
voluntarioso. Todavia, o que mais aproxima esta cabeça da de Mértola é o muito
semelhante tratamento da musculatura em V no pescoço, a mesma torção do rosto
para a direita e a mesma marcação horizontal paralela das rugas sob o queixo. Há
autores que a contextualizam na época Cláudia32. A segunda, igualmente em már-
more branco, também se poderá comparar com a de Mértola pelos seus traços mais
duros e, sobretudo, pela tipologia das madeixas em cauda de andorinha e em garra
ou bico de águia33. Pensamos que, apesar das evidentes diferenças, são estas duas
esculturas as que mais se aproximam iconograficamente da de Mértola, o que se
justificará dada a maior proximidade geográfica.
Comparável é também a do Augusto de Conímbriga, igualmente de uma estátua co-
lossal. As maçãs do rosto pronunciadas, os sulcos junto ao nariz, o direccionamento
para a direita, a musculatura do pescoço e a maçã de Adão, eis algumas das marcas
comuns ao busto de Mértola. Mas é no tratamento das características madeixas
frontais que é mais visível a aproximação.
Quanto ao de Mérida, por ser representado em atitude ritual, capite uelato, e por
isso aproximado ao Augusto da Via Labicana34, não deixam de ser também evidentes
as semelhanças com o de Mértola. Para tal não deixou de ser importante a influên-
cia que a capital da Lusitânia teve em toda a província, designadamente no culto
imperial e na iconografia que o acompanhou. A torsão à direita, visível também na
musculatura do pescoço, a pronunciada maçã de Adão, a severa expressão35, o tra-

32 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o r e t r ato n a a n t i g u i d a d e c l á s s i c a

36. V. Souza, op. cit., p. 54, fig. 150. tamento das pálpebras e, sobretudo, do cabelo, eis as marcas também patentes na
37. Cabral, J.M.P., Vieira, M.C.R., Carreira, P.M., cabeça proveniente de Mértola.
Figueiredo, M.O., Pena, T.P. e Tavares, A. (1992). A partir daqui, poderíamos estender o leque de exemplos, dentro da tipologia de Pri-
“Preliminary study on the isotopic and chemical maporta, a que pertence, aliás, o outro exemplo de retrato de Augusto existente em
characterization of marbles from Alto Alente- Portugal, hoje no Claustro da Lavagem, em Tomar que, apesar da grande destruição
jo (Portugal)”. In M. Waelkens, N. Herz and L. a que foi sujeito, guarda ainda as inconfundíveis marcas do típico penteado36.
Moens (eds.), Ancient Stones: Quarrying, Trade
Para ir mais além no estudo da cabeça de Augusto de Mértola, procedemos à deter-
and Provenance. Acta Archaeologica Lovanien-
minação da proveniência do mármore.
sia, Monographiae 4, Leuven University Press,
191-8.

38. Os autores agradecem a Dina Nunes, do Ins- Proveniência do mármore


tituto Tecnológico e Nuclear, o apoio dispensa-
do na realização do ensaio de espectrometria Para determinar a proveniência do mármore fez-se a análise isotópica de dois dos
de massa. seus elementos constituintes – carbono e oxigénio – a partir de uma amostra extraída
da base do busto. A amostra foi recolhida com uma broca de carboneto de tungsténio
39. Cabral, J.M.P., Maciel, M.J., Lopes, L., Lopes,
J.M.C., Marques, A.P.V., Mustra, C.O., e Carreira,
tendo o cuidado de, previamente, retirar as camadas superficiais alteradas na área
P.M. (2001). “Petrographic and isotopic charac- onde se fez a colheita e de usar uma velocidade de brocagem reduzida de modo a
terization of marble from the Estremoz Anticline: não deixar subir demasiado a temperatura da broca.
its application in identifying the sources of Ro- Na análise recorreu-se à espectrometria de massa utilizando o processo usado num es-
man works of art”, Journal of Iberian Archaeolo- tudo anterior37. O resultado obtido foi o seguinte38 : δ13C = 1,55 ‰; δ18O = -5,33 ‰.
gy, vol. 3, 121-8.
Este resultado foi depois representado num diagrama de δ13C em função de δ18O
40. Moens, L., De Paepe, P. e Waelkens, M. (Fig.9), onde se representaram também os campos característicos das composições
(1992). “Multidisciplinary research and coopera- isotópicas dos mármores do Anticlinal de Estremoz39 e de diversos mármores bran-
tion: keys to a successful provenance determina-
cos de várias pedreiras situadas na Itália, Grécia e Turquia, exploradas durante a
tion of white marbles”. In M. Waelkens, N. Herz
Antiguidade Clássica40.
and L. Moens (eds.), Ancient Stones: Quarrying,
Trade and Provenance. Acta Archaeologica Lo-
Como se pode ver na figura, o ponto AM representativo da amostra situa-se dentro
vaniensia, Monographiae 4, Leuven University do campo EA característico dos mármores do Anticlinal de Estremoz, o que permi-
Press, 247-52. te inferir que o mármore do busto do Augusto de Mértola pode ter vindo de uma
pedreira deste Anticlinal. Note-se porém que, em virtude de o campo EA se sobre-
por parcialmente a alguns campos característicos de mármores brancos oriundos de
certas pedreiras da Grécia e da Ásia Menor, aquele ponto situa-se também dentro
do campo D característico dos mármores de Dokimeion (Turquia). É, pois, legítimo
inferir ainda que o mármore do busto do Augusto de Mértola pode também ter vindo
desta última pedreira.
Note-se, além disso, que o ponto AM se situa fora do campo C característico dos
mármores de Carrara, o que mostra claramente que o mármore do referido busto não
é com certeza proveniente de Carrara.
Assim, atendendo a que a pedreira de Dokimeion está localizada muitíssimo longe
de Mértola, parece razoável concluir com base no presente resultado que o mármore
do busto do Augusto de Mértola deve provir muito provavelmente de uma pedreira
do Alto Alentejo.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 33
o r e t r ato n a a n t i g u i d a d e c l á s s i c a

fig.9 projecções dos pontos representativos das amostras referidas no quadro 1,


bem como dos campos característicos das composições isotópicas dos mármores
do anticlinal de estremoz, ea, e de diversos mármores brancos das pedreiras
mais importantes exploradas na antiguidade clássica: a - afrodisíade; c - carrara;
d - dokimeion; n - naxos; pa-1 - paros stefani; pa-2 - paros chorodoki; pe - monte
pentélico; pr - proconeso (mármara); t-1, t-2, t-3 - tasos; u - usak.

Conclusões
Neste busto de Mértola, apesar das destruições e das marteladas sofridas, é a perso- 41. M.J. Maciel, Vitrúvio, Tratado de Arquitectu-
nagem do Princeps líder da chamada Pax Augustana que se destaca na sua realidade ra, Tradução do latim, introdução
e notas, Lisboa, IST Press, 2006, p. 153.
plástica. A sua colocação no foro, mais concretamente na cella do templo desta praça
comercial, cívica e religiosa, terá sido, em princípio, uma realidade. Quando se procedia 42. J. L. M. Matos, Subsídios…, op. cit., p. 115.
ao culto do imperador divinizado, abriam-se as portas do espaço sagrado, como diz
Vitrúvio: o templo e a estátua que estiver colocada na cela devem estar voltados para a
vespertina região do céu, de forma que os que se aproximam da ara para imolar ou fazer
sacrifícios olhem para a parte do sol nascente e para a imagem que estiver no templo
(De Arch. 4, 5, 1)41. O tratamento sumário da parte posterior da cabeça indicia o seu
adossamento, bem como da estátua-pedestal em que se integrava, a uma parede.
Que esta cabeça terá vindo de Mértola parece evidente, se bem que não haja uma
documentação clara sobre o seu achamento. Por outro lado, a sua relação com uma
estátua togada, apesar de o mármore parecer idêntico e a proporcionalidade acei-
tável, também pode ser discutida42.
O resultado da análise de isótopos de oxigénio do mármore em que o busto foi es-
culpido aponta, como se disse, para que ele tenha sido muito provavelmente extraído
de uma pedreira romana da região de Estremoz-Vila Viçosa e, portanto, numa oficina
local, apesar de o ou os artistas poderem ser de origem grega ou oriental.

34 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o r e t r ato n a a n t i g u i d a d e c l á s s i c a

43. M. J. Maciel, Arte romana e pedreiras de már- Mértola era, com efeito, um dos portos do Sul da Lusitânia mais concorridos nas
more na Lusitânia: novos caminhos de investiga- relações com todo o Mediterrâneo e a presença ou trânsito de artistas orientais é
ção, in Revista da Faculdade de Ciências Sociais
perfeitamente admissível.
e Humanas (Lisboa) 11 (1998) 233-245.
A exploração de mármores locais na Lusitânia é incrementada com a chamada mar-
J. M. Peixoto Cabral et alii, Petrographic and
isotopic characterization of marble from the Es-
morização das cidades no tempo de Cláudio e de Nero, nomeadamente no melho-
tremoz anticline: its application in identifying the ramento dos centros urbanos e seus monumentos. A escultura beneficiou também
sources of roman works of art, Sep. de Journal of desta disponibilização de mármores locais, como o provam o resultado das análises
Iberian Archaeology, 3, Porto, 2001. feitas a este busto e a outras obras de arte43.
M.J. Maciel, J. M.Peixoto Cabral e D. Nunes, Bai- Não há dúvida de que se trata de um retrato de Augusto, pelas razões aduzidas.
xo-relevo em mármore com representação de um
Também se aceita que se integra dentro da tipologia de Primaporta, a mais represen-
grifo, in Trabalhos de Antropologia e Etnologia
tativa da imagem pública construída ou, pelo menos, oficializada pela própria família
(Porto) 42 / 1-2 (2002) 193-202.
M.J. Maciel, J. M.Peixoto Cabral e D. Nunes, Os do imperador44, embora posta in actu em liturgias póstumas45, muito provavelmente
sarcófagos tardo-romanos do Museu Nacional de na época claudiana. Não temos modo de provar se se trata ou não de reformulação
Arqueologia. Novos dados para a sua interpreta- de um retrato de Calígula, apesar de alguma estatuária deste imperador ter sido
ção, in O Arqueólogo Português (Lisboa) IV Série transformada, não só em imagens de Augusto como até de Cláudio46. O que é facto,
- 20 (2002) 161-176. é que este último imperador procurou sublinhar a sua descendência de Augusto, para
M.J. Maciel, J. M.Peixoto Cabral e D. Nunes, O
legitimar a sua acção política. Em Volubilis, no actual Marrocos e, portanto, dentro
sarcófago romano das Musas (Valado, Alfezei-
de um relativamente próximo relacionamento geográfico de Mértola, na antiguidade
rão). Nova leitura iconográfica e análise do már-
more, in Arqueologia e História, Revista da As- romana, uma inscrição classifica Cláudio como diui f(ilius) (filho do divino Augusto),
sociação dos Arqueólogos Portugueses (Lisboa) ou seja, este imperador considerava Augusto como seu pai47. Tal ideologia expressa-
55 (2003) 63-70. se também na arte do retrato e justifica a manutenção e o incremento das imagens de
M.J. Maciel, J. M.Peixoto Cabral e D. Nunes, A Augusto no tempo de Cláudio. Este facto, associado a outros já referidos, permitirá
estátua de Apolo na Villa do Álamo (Museu Na-
enquadrar a feitura de um retrato póstumo de Augusto em Mértola entre os anos
cional de Arqueologia), in O Arqueólogo Portu-
41 e 54 d.C., ou seja, nos meados do séc. I.
guês, (Lisboa) IV Série - 24 (2006) 349-367.
O grande destaque, diríamos empolamento, das madeixas frontais poderá também
44. P. Zanker, op. cit., p. 225. indiciar o carácter tardio deste busto de Mértola. O artista sentiu necessidade de
45. C. Rose, op. cit., p. 60. avolumar estes caracóis, características fundamentais da identificação formal de um
imperador que já havia desaparecido há décadas.
46. Idem, p. 66.
Muito mais se poderia equacionar e ponderar olhando para este rosto que deixa ainda
47. Idem, p. 45.
ver algo do que o escultor tentou exprimir, rosto que, a julgar pelos valores texturais
sobreviventes, se plasmava numa modelação de superfície de grande qualidade, a
melhor conseguida entre os retratos augústeos até hoje conhecidos em Portugal.
Através da dialéctica evidente entre o ideal da perfeição formal grega, ainda sentido
na relação que hoje se estabelece com o espectador, e o concreto das marcas reais
de uma personagem que imediatamente identificamos, damo-nos conta do poder
da imagem para o cidadão romano nos múltiplos espaços do Império – neste caso na
Myrtilis do séc. I da nossa era - e, ao mesmo tempo, da consciência que o retratado
procura exprimir da sua função social e cívica.
Esta escultura, que guarda em si as feridas da História, é um documento valioso para
a percepção do quadro iconográfico augustano, nos diferentes níveis que assinalá-
mos, valendo como imagem do poder romano no nosso território e como retrato de
uma personagem que indelevelmente marcou o seu tempo até à actualidade. •

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 35
o r e t r ato n a a n t i g u i d a d e c l á s s i c a

Bibliografia

J. Alarcão, Portugal Romano, Lisboa, 4ª ed., 1987.

A. Arrais, Diálogos de Dom Frey Amador Arraiz, Bispo de Portalegre: revistos,


e acrescenrados pelo mesmo Autor na segunda impressão, Nova Edição, Lisboa,
Na Typographia Rollandiana, 1846.

J. M. Peixoto Cabral et alii, Petrographic and isotopic characterization of marble from


the Estremoz anticline: its application in identifying the sources of roman works of art,
Sep. de Journal of Iberian Archaeology, 3, Porto, 2001.

H. Drerup, Augustusköpfe in Spanien, in Madrider Mitteilungen (Heidelberg)


12 (1971) 138-146.

R. Etienne, G. Fabre, P. e M. Lévêque, Fouilles de Conimbriga, II, Épigraphie


et Sculpture, Paris, 1976

R. M. Rosado Fernandes, André de Resende, As Antiguidades da Lusitânia, Introdução,


Tradução e Comentário, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1996.

K. Fittschen-P. Zanker, Katalog der römischen Porträts in den Capitolinischen Museen


und den anderen kommunalen Sammlungen der Stadt Rom, I, Mainz am Rhein, 1994.

A. Garcia y Bellido, Esculturas Romanas de España y Portugal, Madrid, 1949.

A. Garcia y Bellido, Retratos Romanos Imperiales de Portugal, in Arquivo de Beja,


Boletim da Câmara Municipal (Beja) 23-24 (1966-67) 280-291.

A. Garcia y Bellido, Esculturas Romanas de España y Portugal, Madrid, 1949.

Garcia y Bellido, Arte Romano, Reimpresion de la segunda edición, Madrid, 1979.

A. de Lacerda, História da Arte em Portugal, I, Porto, Portucalense Editora, 1942.

M. J. Maciel, A arte da época clássica (séculos II a.C – II d. C), in História da Arte


Portuguesa (dir. Paulo Pereira), Lisboa, Círculo de Leitores, 1995, pp. 76-101.

M. J. Maciel, Arte romana e pedreiras de mármore na Lusitânia: novos caminhos


de investigação, in Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (Lisboa)
11 (1998) 233-245.

M. J. Maciel, Vitrúvio, Tratado de Arquitectura, Tradução do latim, introdução e notas,


Lisboa, IST Press, 2006.

M. J. Maciel, J. M. Peixoto Cabral e D. Nunes, Os sarcófagos tardo-romanos do Museu


Nacional de Arqueologia. Novos dados para a sua interpretação, in O Arqueólogo
Português (Lisboa) IV Série - 20 (2002) 161-176.

36 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o r e t r ato n a a n t i g u i d a d e c l á s s i c a

M. J. Maciel, J. M. Peixoto Cabral e D. Nunes, Baixo-relevo em mármore com


representação de um grifo, in Trabalhos de Antropologia e Etnologia (Porto) 42 / 1-2
(2002) 193-202.

M. J. Maciel, J. M. Peixoto Cabral e D. Nunes, O sarcófago romano das Musas (Valado,


Alfezeirão). Nova leitura iconográfica e análise do mármore, in Arqueologia e História,
Revista das Associação dos Arqueólogos Portugueses (Lisboa) 55 (2003) 63-70.

M. J. Maciel, J. M. Peixoto Cabral e D. Nunes, A estátua de Apolo na Villa do Álamo


(Museu Nacional de Arqueologia), in O Arqueólogo Português (Lisboa) IV Série - 24
(2006) 349-367.

M. J. Maciel, J. M. Peixoto Cabral e D. Nunes, Cinco Esculturas Romanas em mármore


importado, achadas no Algarve e em Mértola, in ArteTeoria (Lisboa) 11 (2008) 75-87.

J. L. M. de Matos, Subsídios para um catálogo da escultura luso-romana, Dissertação


de Licenciatura apresentada à Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, 1966.

L. de Matos, Inventário do Museu Nacional de Arqueologia, Colecção de Escultura


Romana, Lisboa, 1995.

T. Nogales Basarrate e L. J. Gonçalves, Imagines Lusitanae: La plástica oficial


de Augusta Emerita y su reflejo en algunas ciudades lusitanas, in Augusta Emerita.
Territórios, Espacios, Imágenes y Gentes en Lusitania Romana (Ed. T. Nogales
Basarrate), Monografias Emeritenses, 8, Mérida, 2004.

G. Pereira, As Estátuas Romanas da Quinta da Amoreira da Torre proximo


de Montemor-o-Novo, in Revista Archeologica (Lisboa) 4 (1890) 169-171.

C. A. Rose, Dynastic commemoration and imperial portraiture in the Julio-Claudian


period, Cambridge, 1997.

V. de Souza, Corpus Signorum Imperii Romani, Portugal, Coimbra, 1990.

J. L. de Vasconcelos, Duas estátuas romanas (Dadiva ao Museu Etnológico Português),


in O Archeologo Português (Lisboa) 7 (1902) 100-101.

J. L. de Vasconcelos, Religiões da Lusitânia, III, Lisboa, 1913.

J. L. de Vasconcelos, Historia do Museu Etnologico Português, Lisboa, 1915.

P. Zanker, Augusto y el poder de las imágenes, Madrid, 1992.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 37
Resumo
A localização, entre 1985 e 1987, de dois conjuntos de mosaicos exibindo o tema palavras-chave
das Estações do Ano, na pars urbana da Villa romana do Rabaçal, datados da 2ª
metade do séc. IV, suscitou desde logo a atenção, na medida em que trouxe ao retrato
nosso conhecimento uma maior variedade artística entre as representações da fi- alegoria
gura humana conhecidas até hoje nos mosaicos romanos de Portugal. Constituem, mosaico romano
em nosso entender, um exemplo de prelúdio de arte bizantina, cuja chamada Idade villa
de Ouro será alcançada no reinado de Justiniano (527-565). De facto, estas figuras rabaçal / penela / portugal
são”embaixadoras” das suas congéneres ravenatico-bizantinas. •

Abstract
The two groups of mosaics with the Seasons of the Year, discovered between 1985 key-words
and 1987, in the pars urbana of the Roman Villa of Rabaçal, dating from the second
half of the 4th century, is of great interest to us, as it has brought to our knowledge portrait
a wider artistic variety of human representations in Roman mosaics in Portugal. We allegory
believe that they constitute the beginning of Byzantine art, whose golden age cul- roman mosaic
minated during the time of Justinian (527-565). In fact, these figures are considered villa
“ambassadors” to the Byzantine and Ravennatic Art. • rabaçal /penela /portugal
retratos ou alegorias
nos mosaicos das estações
do ano da villa romana do
rabaçal, penela, portugal?

mig u el pe ssoa Introdução


Arqueólogo / Museólogo.
Villa Romana do Rabaçal, Município A localização, entre 1985 e 1987, de dois conjuntos de mosaicos exibindo o tema
de Penela. Conímbriga, Instituto
das Estações do Ano, na pars urbana da Villa romana do Rabaçal, datados da 2ª
dos Museus e da Conservação.
metade do séc. IV, suscitou desde logo a atenção, na medida em que trouxe ao nos-
so conhecimento uma maior variedade artística entre as representações da figura
humana conhecidas até hoje nos mosaicos romanos de Portugal. Constituem, em
nosso entender, um exemplo de prelúdio de arte bizantina, cuja chamada Idade de
Ouro, será alcançada no reinado de Justiniano (527-565). De facto, estas figuras
são”embaixadoras” das suas congéneres ravenatico-bizantinas.
Esta Villa está situada na Região Centro, Beira Litoral, distrito de Coimbra, concelho
de Penela, freguesia do Rabaçal, lugar da Ordem e no território da antiga ciuitas de
Conímbriga. Nela foram identificadas, para além da pars urbana ou palácio romano
(de peristylum central octogonal, do qual irradiam o triclinium, decorado com baixo-
relevos, os cubicula e outros espaços, perfazendo um total de 25 compartimentos), o
balneário, a pars rustica e as nascentes, em espaços apropriados, não se conhecendo,
por enquanto, a extensão da propriedade ou fundus que lhe pertencia.
Um dos conjuntos das Estações do Ano foi localizado no mosaico do corredor oeste
do peristylum. Apresenta-se organizado sob a forma de quatro painéis, envolvendo
um motivo central com o que resta da representação de uma quadriga vencedora.
Num outro conjunto, localizado no mosaico do triclinium, as figuras (das quais se
conserva parte de duas das quatro inicialmente existentes) aparecem-nos colocadas
sobre os ângulos da cercadura do painel do meio da sala, cujo motivo central é o
que resta de uma figura feminina sentada, vestida de túnica azul, envolta por uma
palla espessa, segurando sobre o braço esquerdo um ramo de cereal. Representa-
rá Ceres, Tellus, a Fortuna ou a proprietária? Estaremos perante dois conjuntos de
trabalhos com características de retratos ou perante alegorias? Qual a sua origem,
desenvolvimento e significação?

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 39
r e t r ato s o u a l e g o r i a s n o s m o s a i c o s d a s e s ta ç õ e s d o a n o ?

Desenvolvimento e diversidade
de abordagens ao tema
da figuração humana

Sabemos que o desenvolvimento da figuração do ser humano na civilização ocidental


tem um dos seus momentos chave na passagem do fim da época arcaica e o começo
da época clássica, na Grécia, entre os séculos VI e V a. C. Da rigidez, geometrismo
e frontalidade perfeita das figuras dá-se lugar a uma lenta e fértil conquista de for-
mas corporais expressivas, próprias da realidade (PROST, 2006, p. 26), cujas causas
histórico-sociais são motivo de crescentes estudos e debates (BODIOU, FRÈRE,
MEHL, 2006). A mais recente explicação, e certamente não a última, destaca o facto
de o avanço da medicina grega, naquela época, ter levado à observação minuciosa e
precisa das articulações corporais, identificando a repartição das veias, os princípios
da respiração e a organização assimétrica dos gestos (PROST, 2006, p. 27).
Estas características inicialmente evidenciadas na escultura e na pintura estão igual-
mente retratadas nos mosaicos. Tomemos como exemplo a cena figurada de caça
ao leão de Pella, no norte da Grécia, datadas do início do século III a.C.. O efeito
pictural da representação é conseguido através da colocação das figuras claras sobre
um fundo escuro e o recurso a finas lâminas de cerâmica bem visíveis nos cabelos
e na juba da fera (LAVAGNE, BALANDA, ECHEVERRIA, 2000, fig. 41 - 42, p. 208).
Estamos perante uma virtuosa decomposição pontilhista das formas e um conhe-
cimento da anatomia humana e animal que só uma escola pode proporcionar. Um
outro exemplo coevo é o do mosaico dos Erotes caçadores, de Alexandria, da mesma
época, também executado na técnica de seixo rolado. O mosaico de Morgantina,
na Sicília, com a cena de Zeus transformado em águia levando Ganimedes, datado
de meados do século III a. C., e o mosaico com a cena da Batalha de Alexandre e
Dario, cujos retratos são executados a partir de modelos, datável do século II / I a.
C., encontrado na Casa de Fauno, em Pompeia, são, por outro lado, bons exemplos
da técnica da tessela talhada à vontade. Neste segundo mosaico observamos, à
esquerda, o retrato de Alexandre, com uma modelação pictórica do rosto e cabelo
brilhantes, como que cobertos de suor, de cabeça descoberta no meio do inquieto
exército macedónio; Dario, à direita, relança em vão os Persas destroçados (BER-
TELLI, 1993, p. 24 - 25).
De facto, a representação de pessoas comuns desprende-se, conforme os exemplos
apresentados, da lei da frontalidade e ganha no movimento uma poderosa afirma-
ção de vida e de vontade. Paralelamente, assiste-se ao apuro técnico na produção
artística, o que vai permitir o tratamento de temas diversificados, e, de acordo com o
espírito prático dos romanos, uma orientação para o real e não para o imaginário.
Os retratos esculpidos em Roma, no século I a. C. são, quase sempre, de um realismo
impressionante, sendo esta influência tão grande que veio a reflectir-se na pintura,
de que são exemplo os retratos de bustos de Fayoum, no Egipto, datados do século I

40 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
r e t r ato s o u a l e g o r i a s n o s m o s a i c o s d a s e s ta ç õ e s d o a n o ?

fig.1 retrato de mulher jovem de pompeios de estilo romano-helenístico. mosaico


pertencente à série dos emblemata , que se encontrava inserido num pavimento
de opus sectile de mármore. século i d. c. museu de nápoles (in lavagne, balanda,
echeverria, 2000, fig. 56).

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 41
r e t r ato s o u a l e g o r i a s n o s m o s a i c o s d a s e s ta ç õ e s d o a n o ?

e II d. C., executados ao gosto pictural helenístico-romano. A atenção dada à cabeça,


onde os traços sobressaem graças aos efeitos de luz, retratam fisionomias com um rea-
lismo intenso. As roupagens, pelo contrário, são representadas num estilo mais sóbrio.
Os exemplos apresentados são seguramente obras executadas com o modelo à vista.
Francisco Rodrigues, no seu Dicionário de Pintura, cita Plínio, o Antigo, e a sua obra
História Natural, na qual é referido que o Pintor Apeles executava o retrato “com
tal arte e semelhança que os astrólogos pela simples vista dos quadros tiravam o
horóscopo das pessoas representadas” (RODRIGUES, 1875).
Também, como nos refere José Gil, quando Plínio, na História Natural, trata do mito
da invenção da pintura, identifica-a com o retrato, pois deve-se ao desejo de conser-
var a presença de um ser amado que vai partir, como se com o inesgotável afecto que
nele se acumula se conseguisse uma fórmula mágica de sobrevivência (GIL, 1999, p.
11, 12, 13). De igual modo, segundo Guilhem Scherf, Diderot aconselhava a Pigale,
ao retratar Voltaire em estatuária, a nudez heróica como meio de representar um
homem ilustre, pois, referindo Plínio e a obra atrás citada, “o costume dos gregos é
de nada taparem” – “Graeca res est nihil uelare” (SCHERF, 2007, p. 208).
O conhecido retrato feminino de Pompeios, um quadrinho que é um eco da arte do
mosaico de época helenística, representando uma jovem mulher sobriamente vestida
de túnica e manto, simplesmente ornada com um colar e brincos de ouro nas orelhas,
é uma das obras maiores do género que chegaram aos nossos dias (Fig.1). Como é
por demais evidente nesta imagem, o mosaico obriga à decomposição pontilhista das
linhas e das superfícies (como acontece hoje nas imagens pixelizadas), a fim de alcan-
çar o figurado, atingindo a densidade de tesselas o número de centenas por dm2. É
um trabalho individual de um “pintor”, sendo que o desenho base “desaparece” com a
cor. Trata-se de um emblema, feito de pequenos cubos minúsculos, reproduzindo, na
maior parte das vezes, temas tratados em pintura, fixados em grandes telhas planas.
Estes mosaicos portativos, realizados em oficina, eram depois integrados no conjunto
de pavimentos ou revestimentos parietais. Deve tratar-se do retrato de uma poetisa,
princesa real ou da senhora da casa, fazendo lembrar certos rostos de Fayoum, Egipto.
O colar e o manto rebordado de ouro indicam que esta matrona era de um alto nível
social (LAVAGNE, BALANDA, ECHEVERRÍA, 2000, fig. 56, p. 210).
Celebrizado é também o retrato de Virgílio, o poeta maior dos romanos, acompanha-
do pelas musas Clio, da História, segurando um manuscrito enrolado, e Melpómene,
da Tragédia, segurando uma máscara, representados num mosaico proveniente de
Adrumeto e hoje no Museu de Sousse, na Tunísia. Trata-se de um retrato de corpo
inteiro com o poeta sentado, identificado pelo verso 8º da Eneida, escrito sobre o
rolo que ele tem nos joelhos, e que retrata o vivo interesse pela cultura romana em
meio africano no século III d. C. (BERTELLI, 1970, p. 236). Este mosaico, obra de
síntese e composição perfeitas, à base do rectângulo e diagonais, reporta-se a uma
filiação de retratos de homens de letras aparecidos no século III a. C. e contou com
adeptos até ao fim da Antiguidade. Estes temas exprimiam a ligação da burguesia
imperial à cultura clássica que aparecia como a base e frutificação da ordem romana
(PICARD, 1978, p. 29).

42 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
r e t r ato s o u a l e g o r i a s n o s m o s a i c o s d a s e s ta ç õ e s d o a n o ?

fig.2 retrato feminino. pedrosa de la veja, villa de la olmeda, palencia, espanha.


fim do século iv d. c. in situ (in idem, fig. 52).

O “Busto de Atleta”, de Aquileia, do século I d. C., é importante por retratar uma


pessoa comum, provavelmente de uma etnia oriental, de cabelo apertado para não
embaraçar na luta, e de um tipo físico no qual o olhar intenso, a boca bem marcada,
ombros musculados e peitorais desenvolvidos realçam ferocidade e são sinónimos
de força, perante a perplexidade do desfecho do duelo obrigatório.
Vejamos agora o mosaico de “Os Coristas”, de Cápua, datado dos séculos II / III
d. C.. Dado o realismo dos rostos e os diferentes penteados, o artista pode ter-se
inspirado num grupo real, numa composição na qual o sombreado dos pés e o fac-
to de os corpos se taparem ligeiramente uns aos outros contribuem para a criação
da perspectiva. Tratar-se-á dos célebres jovens cantores, retratados um a um, com
subida honra, acompanhados pelo maestro, ao fundo, louvando Diana, referidos no
poema 34 de Catulo? De realçar a impressão de vida intensa em toda esta cena, em
resultado da gravidade da expressão individualizada de cada uma das personagens
(LAVAGNE, et alii, 2001, p. 126 - 127).
O mosaico da Villa de la Olmeda, de Pedrosa de la Veja, Palência, na Tarraconense,
apresenta-nos a série mais completa de retratos femininos de família, de tipo realista,
até hoje descoberta (LAVAGNE, BALANDA, ECHEVERRÍA, 2000, fig. 52, p. 210).
Apresentamos um retrato feminino (Fig.2) entre os dezoito retratos masculinos e
femininos, descobertos numa cercadura ornamental (emoldurando um sumptuoso

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 43
r e t r ato s o u a l e g o r i a s n o s m o s a i c o s d a s e s ta ç õ e s d o a n o ?

quadro figurado que apresenta Aquiles a ser reconhecido por Ulisses em Scyros)
(LANCHA, 2000, p. 128). Trata-se de um obra bem executada própria de um deter-
minado atelier. São também conhecidos três retratos de busto, do tipo aristocráti-
co, representando muito provavelmente a domina acompanhada de suas filhas, no
mosaico da Villa romana de Olivar del Centeno, em Milhanes de la Mata, Cáceres
(Idem, p.128).

Alegorias
Vejamos agora alguns exemplos de um outro tipo de representação corporal - a ale-
goria, ou seja, a figuração simbólica de ideias e realidades abstractas por meio de
imagens que as tornam compreensíveis.
É celebre, neste género, a personificação da cidade de Alexandria, proveniente de
Thmuis, no Egipto, datada de circa de 200 a. C. (Fig.3). Trata-se da idealização, a
partir de um modelo real, da Senhora dos Mares, com um olhar de exaltação, pró-

fig.3 personificação de alexandria ou retrato da rainha berenice ii do egipto, que


terá vivido entre 222 e 246 a. c. mosaico de thmuis, cópia de um original mais antigo.
circa 200 a. c. museu greco-romano de alexandria. ( in ferguson, 1973, fig. 16)).

44 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
r e t r ato s o u a l e g o r i a s n o s m o s a i c o s d a s e s ta ç õ e s d o a n o ?

fig.4 personificação de ambrósia. mosaico da villa romana del casale, de piazza


armerina. sicília. finais do séc. iii d. c. in situ ( in capizzi, galati, s. d. fig. p. 68).

prio da actividade intelectual, com a qual aquela cidade cosmopolita se afirmava


(DASZEWSKI, 2001, p. 266 - 281). Esta figura foi, entretanto, recentemente inter-
pretada como sendo o retrato da Rainha Berenice II. Esta Thea synnaos personifica
os diferentes pólos do poder dos Ptolomeus sobre o mar – na guerra e no comércio
–, e sobre a terra, enquanto garante da prosperidade e do bem-estar (Idem, p. 267).
Neste mosaico foram usadas tesselas de pedra, vidro e cerâmica.
Observemos, ainda, mais alguns exemplos de mosaicos com personificações conhe-
cidas no mundo romano. A “Província de Ásia”, de El Djem, século II / III, idealizada
com base num modelo real, apresenta como atributo um arco e coroa torreada no
cabelo, o que indica simbolicamente a sua riqueza em cidades (LAVAGNE, BALANDA,
ECHEVERRÍA, 2000, fig. 49, p. 209). A dita “Dama de Cartago” é uma figura idealiza-
da, de composição esquemática e simétrica, conferindo-lhe um ar majestático. É obra
de um artista de menos recursos. Poderá representar a alegoria da Magnanimidade,

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 45
r e t r ato s o u a l e g o r i a s n o s m o s a i c o s d a s e s ta ç õ e s d o a n o ?

fig.5 soteria . alegoria da salvação


identificada com legenda. provém
do frigidarium das termas de apolausis,
de antioquia ( in berteli, 1993, fig. p. 33).

fig.6 mnemósine . villa romana de els


munts (altafulla, tarragona). terceiro
quarto do século ii d. c. museu nacional
arqueológico de tarragona. espanha
( in lavagne et alii, 2001, fig. p. 171).

46 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
r e t r ato s o u a l e g o r i a s n o s m o s a i c o s d a s e s ta ç õ e s d o a n o ?

da Renovação (ou outra personificação muito frequente na Antiguidade Tardia) ou a


própria Imperatriz Teodora? O nimbo foi primeiro do Imperador antes de ser de Cristo
e dos Santos. Podemo-nos interrogar se estamos perante um contexto político ou
religioso. Os ricos brincos com pendentes suspensos das orelhas indicam-nos, em
todo o caso, que estamos perante uma dama da corte que pertence certamente ao
mundo bizantino (LAVAGNE, BALANDA, ECHEVERRÍA, 2000, fig. 50, p. 209). A ca-
beça de Oceano do Museu de Sousse, datada do século III, apresenta rosto tranquilo,
majestoso, representado de frente, próprio de um deus. O acabamento pictórico da
imagem, de um naturalismo impressionante, onde ressalta o brilho dos olhos e da
cara molhada, foi realizado com tesselas extremamente finas (de 3 a 5 milímetros de
lado), sendo um reflexo da excepcional mestria e refinamento da arte clássica (LA-
VAGNE, et alii, 2001, p. 160 - 161). A personificação de Ambrósia, num mosaico da
Villa romana del Casale, de Piazza Armerina, Sicília, datada de antes do fim do séc.
IV d. C., e in situ, apresenta-se-nos sob a forma de uma figura feminina idealizada,
semi-nua, na qual sobressai o tratamento pictural da cabeça e da representação do
peito (Fig.4). Por outro lado, a figura de Soteria, a Salvação, de Antioquia, na actual
Turquia, datada do séc. IV d. C. (Fig.5), é um exemplo do carácter refinado da arte
do mosaico nesta cidade e do grau de desenvolvimento da escola síria (BERTELLI,
1993, p. 15 - 16, 33). É apresentada como uma dama da corte, em dia de festa,
adornada de colar de pérolas e bracelete, brincos e diadema de ouro e roseta cra-
vejada de pedras preciosas, mostrando como a cabeleira era considerada como um
elemento ao serviço da beleza, da sedução, da charis feminina (FICHEUX, 2006, p.
187). Esta representação é um sinal da exuberância barroca da arte do mosaico num
importante pólo difusor do fim da Antiguidade. As características orientais tenderão
para o apagamento do naturalismo helenístico. A renovação do uso das alegorias em
época tardia poderá ter a ver com o facto deste tipo de representação não ofender
nem o culto cristão nem os outros cultos existentes na sociedade romana.
Entre os mosaicos portáteis, do tipo emblema, normalmente executados sobre tijo-
leira, são conhecidos, por exemplo, os bustos de Mnemósine (Fig.6), a personificação
da Memória e mãe das musas, e de Euterpe, musa inspiradora da Música, datados
do século II d. C., expostos no Museu Nacional de Arqueologia de Tarragona e pro-
venientes da Villa romana de Els Munts, Altafulla (TARRATS, 2001, p. 170 - 173).
Estamos perante um bom domínio da técnica e do modelado dentro de um esque-
ma de representação artística que se repete. O mosaico parietal de Mnemósine é
raro por conservar a tijoleira de suporte, apesar de ter estado sob o efeito de um
incêndio. A figura exibe lúnula branca, sobre a farta cabeleira, que se estende sobre
os ombros, atributo este caro a Afrodite (LAVAGNE, et alii, 2001, p. 170 - 171). O
mosaico portativo de Euterpe conserva toda a policromia e exibe auloi e penacho
de plumas azuis no alto da cabeleira (LAVAGNE, et alii, p. 172 - 173). De assina-
lar, ainda, a existência de um terceiro retrato com a representação da Musa Talia e
um quarto emblema que, provavelmente, oferece o retrato do próprio proprietário,
identificado como governador da Tarraconense (LANCHA, 2000, p. 127, nota 211).

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 47
r e t r ato s o u a l e g o r i a s n o s m o s a i c o s d a s e s ta ç õ e s d o a n o ?

Estações do ano
Vejamos agora o caso particular de algumas representações da figura humana, ser-
vindo de símbolos relacionados com a temática do tempo, em particular com as
Estações do Ano.
De facto, com a Paz de Augusto o prestígio e o poder imperial eram infindáveis e
pareciam assegurar ao “mundo civilizado” uma paz duradoura.
As figuras centrais de contextos iconográficos em mosaicos relacionados com a noção
de tempo, tais como Fortuna Romanorum, Sol Innictus, Apolo, Auriga Vencedor e
Orfeu, são evocadoras do bem-estar e do equilíbrio cósmico, em associação com as
Estações do Ano, o ciclo zodiacal e os planetas. Ajudam, ainda, a transmitir a ideia
da unidade e da ubiquidade do Corpus Imperii, pois são numerosos os textos que
estabelecem íntimas relações entre a constituição do Império Romano e a noção de
Cosmos. No século II d.C. foi acentuado o carisma sobrenatural do soberano, asso-
ciado a Fortuna Romanorum, representada normalmente com uma cornucópia de
abundância (QUET, 1980, p. 79).
O elogio a Roma chega mesmo a transformar-se, então, em hino cosmológico. Ao
evocar a regularidade dos ciclos cósmicos e a sucessão do tempo, evocam a Aeter-
nitas que lhe é inerente.
Na verdade, o rigor e o progresso da ciência matemática nos finais da República
romana e no início do Império, coincidentes com os reinados de César e Augusto,
permitiram calendarizar, através de uma rigorosa contagem dos ciclos lunar e solar,
horas, dias, meses e anos normais e bissextos, sendo esse contributo civilizacional vá-
lido para todo o “mundo da pax romana”. O acerto ao mínimo pormenor só viria a ser
conferido mais tarde pelo calendário gregoriano (GRENIER, 1969, p. 212 - 215).
Estava, assim, anunciada e clarificada a ideia da recíproca dependência entre o ho-
mem e o universo e aumentava o interesse pela representação das noções abstractas
do tempo em forma humana, ou seja, pelas alegorias (DUNBABIN, 1978, p. 161).
As Estações do Ano, que assumiam para os Gregos um sentido espiritual e religio-
so, por evocarem o ciclo mitológico e cronológico do tempo, passam a ter, com os
romanos, um sentido prático, apotropaico e evocativo de um ciclo vegetativo anual
ininterrupto. O amor pelo Cosmos, suscitado pela ordem e beleza do universo, parece
indissociável do amor por Roma e de Felicitas Temporum.
As Estações do Ano são derivadas das Horae, divindades da natureza, porque presi-
dem ao ciclo da vegetação, e divindades da ordem, dado assegurarem a estabilidade
social, e das Gratiae (Cárites ou Graças) que espalham a alegria na natureza e no
coração dos homens e até dos deuses (GRIMAL, 1991, p. 17, 235). A sua represen-
tação, quando assume a forma de busto, sobretudo feminino, leva, por vezes, apesar
da técnica do mosaico apresentar grande dureza do traço, ao pormenor da figuração
do ser humano observado simplesmente como tal.
Observemos, como exemplo da variedade de recursos técnicos e artísticos, as Estações
do Ano em alguns mosaicos tanto a ocidente como a oriente do mundo romano.
A Primavera da Casa da Procissão Dionisíaca, do Séc. II d. C., do Museu de El Djem,

48 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
r e t r ato s o u a l e g o r i a s n o s m o s a i c o s d a s e s ta ç õ e s d o a n o ?

aqui apresentada, é uma das Quatro Estações que figuram no triclinium (Fig.7).
Trata-se da representação de um mulher jovem, exibindo grinaldas de rosas sobre o
cabelo, que se prolongam em caracol sobre os ombros. Folhas verdes, provavelmente
de loureiro, decoram o alto da cabeça (LAVAGNE, BALANDA, ECHEVERRÍA, 2000,
fig. 47, p. 209). Trata-se de obra de um artista que domina o desenho ao natural.
Como numa aguarela “apaga os contornos para dar leveza”. Vejamos, em contraponto
outra representação da Primavera, da Casa do Sileno, datada de meados do séc. III,
do Museu de El Djem, faz parte de um conjunto em que a figura central é Saturno
(remetendo para o Génio do Ano), o que explica a presença das Estações do Ano à
sua volta. Aqui o traço é duro, sendo os contornos marcados a negro. O tratamento
dos olhos com pesadas olheiras e a simplificação do desenho são características do

fig.7 primavera. casa da procissão dionisíaca. século ii d. c. museu de el djem. tunísia


( in lavagne, balanda, echeverria, 2000, fig. 47).

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 49
r e t r ato s o u a l e g o r i a s n o s m o s a i c o s d a s e s ta ç õ e s d o a n o ?

estilo da época dos Severos (LAVAGNE, BALANDA, ECHEVERRÍA, 2000, fig. 48, p.
209). Vejamos as Quatro Estações de um mosaico de Tripoli (Fig.8), sob a forma de
quatro painéis figurativos em opus uermiculatum, alternando com outros tantos em
opus sectile, de motivos geométricos, compostos de mármores africanos, datado
do séc. III d. C., presente no Museu Arqueológico daquela cidade. O mimetismo
da forma e expressão das quatro figuras aladas é contrastado com o tratamento
pictural e pormenorizado da carnação, adornos, vestuário e atributos, o que lhes
confere individualidade (BERTELLI, 1993, p. 37). Há aqui um estilo e uma solução
de conjunto, apesar do esquematismo das imagens, da dureza do traço e do aspecto
quase assustador de figuras aladas com asas de ave rapina. A Estação do Inverno
do mosaico de Quintana del Marco, Léon, do séc. IV d. C., exposto no Museu Ar-
queológico Nacional de Madrid, é um emblema com busto de mulher ligeiramente
inclinado para a direita, olhando para cima. Apresenta olhos muito expressivos que
denotam alguma tristeza, acentuada por grandes olheiras e um ramo seco de caules
dobrados, sobre o ombro esquerdo, símbolo da estação invernal. O fundo branco
de escamas monocromáticas à esquerda é típico dos mosaicos do Baixo-Império
(LAVAGNE, et alii, 2001, p. 62). Tem muito de convencional esta representação.
São muito marcados os olhos, a boca, as olheiras e o atributo. De assinalar alguma
desproporção entre o tronco e a cabeça. Nas Estações do Ano, na Casa dos Repuxos,
em Conímbriga, datadas do último quartel do século II, primeiro quartel do século
III, conservadas in situ, o Outono (Fig.9) é representado pela figura de um jovem
coroado com cachos de uva branca e tinta e folhas de parra, de forma empastelada
e pouco precisa, vestindo túnica amarela sem mangas, debruada a preto e com fai-
xas a amarelo escuro, que é presa no ombro direito por uma fíbula circular. A quase
ausência de atributos e o modo simples do tratamento das figuras não impedem,
porém, que possam identificar-se as personificações uma vez que correspondem a
fórmulas estereotipadas (OLEIRO, 1992, p. 118, 121). Neste mesmo conjunto, o
Inverno (Fig.10) apresenta-se como uma mulher vestindo túnica negra com vivos
vermelhos e orla branca. A pele é tratada com tesselas de cor rosa e os contornos
do nariz, queixo, boca, olhos e sobrancelhas com linhas negras. Os olhos a branco,
com a íris a amarelo e a pupila a preto, dão lugar à utilização de algumas tesselas
de vidro. A expressão da figura é grave, triste e a cabeça coberta constitui-se como
um dado atmosférico, com valor de atributo, próprio de uma estação fria (OLEIRO,
1992, p. 117, 121). Estas imagens de Conímbriga, apesar do seu esquematismo,
são consideradas obras notáveis pela sua extrema simplicidade, modelação e brilho.
Observemos de seguida, um género de representação mais liberto, devendo corres-
ponder a uma festividade por altura das colheitas, no mosaico da Dança dos Génios
das Estações, do Palacete bizantino da Via d’Azeglio, em Ravena, Itália, datado do
séc. IV e conservado in situ. Trata-se de um grupo de dança em círculo, ao som de
uma siringe, tocada por um músico, que se encontra em segundo plano. Em primeiro
plano, de costas, mas com a cabeça de perfil, o Outono veste túnica branca ornada
de bordados e exibe uma coroa de banquete. À esquerda, a Primavera apresenta-se
de túnica rosa e coroa de flores na cabeça. À direita, vemos uma lacuna onde es-

50 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
r e t r ato s o u a l e g o r i a s n o s m o s a i c o s d a s e s ta ç õ e s d o a n o ?

fig.8 estações do ano. quatro painéis figurativos de mosaico em opus vermicvlatvm alternando com outros tantos em opvs sectile ,
de motivos geométricos, compostos de mármores africanos. século iii d. c. museu arqueológico de tripoli ( in berteli, 1993, fig. p. 37).

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 51
fig.9 outono. conímbriga.
casa dos repuxos. último quartel
do século ii, primeiro do século iii d. c.
in situ . © fotografia de delfim ferreira.

fig.10 inverno. conímbriga.


casa dos repuxos. último quartel
do século ii, primeiro do século iii d. c.
in situ . © fotografia de delfim ferreira.
r e t r ato s o u a l e g o r i a s n o s m o s a i c o s d a s e s ta ç õ e s d o a n o ?

tava a figura do Verão. Desta figura restam as mãos, as pernas e parte da coroa de
espigas que tinha na cabeça. Em segundo plano, apresenta-se a figura do Inverno,
completamente envolta num manto, com capuz verde-azul e coroa de canas. Todos os
figurantes calçam sandálias, menos o Inverno que se apresenta de botas. O tocador
apresenta-se, à semelhança do Outono, de túnica branca bordada. O instrumento
que utiliza é a siringe (flauta de cana pluritubular) ou flauta de Pã, ainda hoje utili-
zada pelo capador e pelo amolador ambulante. O restauro evidenciou o número de
tubos de que é composto. A cena passa-se num espaço fechado, como indicam os
cordões de banquete na parte superior do painel. Esta cena, onde intervêm cinco
figuras masculinas, é pouco tradicional e realista, sendo, presumivelmente, derivada
de uma pintura de cavalete produzida na área de Constantinopla. O desenho é es-
quemático mas o efeito é luminoso, sendo que as sombras ajudam a dar movimento
à dança. A técnica musivária é excelente, fazendo recurso, para além da pedra, à
tessela de vidro e de ouro (no instrumento musical) e a vários artifícios dentro do
claro-escuro (CALVANI, MAIOLI, 1995, p. 24 - 25).

Retratos ou alegorias nos mosaicos


do Rabaçal ?

Detenhamo-nos um pouco na análise dos dois conjuntos das Estações do Ano que
chegaram até nós na Villa romana do Rabaçal (PESSOA, 1998, p. 29 – 36).

Estações do corredor oeste do Peristylum


O conjunto que encontramos no corredor oeste do peristylum é constituído por qua-
tro bustos femininos que se apresentam de frente, bem contrastados sobre fundo
branco. Os seus atributos encontram-se de um lado e outro das figuras. As linhas e as
sombras do desenho vão do preto ao amarelo, passando pelo cinzento, o vermelho,
o castanho, o rosa, o verde e o azul.
As figuras encontram-se dispostas duas a duas, para serem vistas no sentido da largu-
ra do corredor do peristilo, respectivamente a Primavera e o Inverno, a Norte, ao fun-
do do corredor, e o Outono e o Verão, a Sul, mais perto da entrada da habitação.
A figura da Primavera apresenta uma lacuna ao nível do lado direito do pescoço, do
ombro e do braço e lacunas menores ao nível da cabeça e na parte superior, do mes-
mo lado. A figura do Verão está quase intacta, excepto ao nível da face e do seu olho
direito. A figura do Outono está completa e a do Inverno também.
Os painéis das figuras são quadrados, medindo 55 cm de lado. Foram utilizadas uma
média de 250 tesselas por dm2 na sua elaboração.
O material utilizado, nos fundos e nas figuras, foi o calcário local. O vidro foi esco-
lhido para representar as jóias.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 53
r e t r ato s o u a l e g o r i a s n o s m o s a i c o s d a s e s ta ç õ e s d o a n o ?

fig.11 e 12 primavera e verão. mosaico do corredor oeste do peristylvm da pars vrbana da villa romana do rabaçal,
penela, portugal. segunda metade do século iv d. c. in sitv (in pessoa, 1998, p. 33 e 34. fotografias de delfim ferreira, 1991).

Primavera
A Estação apresenta-se sob a forma de representação de busto, de frente, com a
cabeça voltada ¾ para a sua esquerda e olhando na mesma direcção (Fig.11).
Os cabelos são castanhos e estriados de cor-de-rosa, e terminam em ondulações ao
nível das orelhas, colocando em evidência uma pequena madeixa dirigida à maçã
do rosto, do lado direito. A cara é oval, cor-de-rosa pálido, e a expressão é séria; os
olhos são redondos, grandes, abertos e em vermelho-escuro, com pequenas pupilas
brancas, bem visíveis; as sombras estão distribuídas por todo o rosto, sendo que
uma sombra mais escura acentua o queixo; o nariz é longo, direito e fino, mostran-
do pequenas narinas em cor de cinza esverdeado; o clauus é largo, de cor vermelho
terracota, e decorado ao centro com um galão em vermelho-rosado e dois galões
laterais em cinza-esverdeado. Os ombros são delicados e descaídos.
A figura exibe, sobre a fronte, um diadema em forma de lua, o qual foi objecto de
restauro na Antiguidade; pontos brancos sobre os cabelos sugerem o uso de alfinetes;
dois brincos, constituídos por grandes pérolas brancas, adornam as orelhas; sobre o
pescoço, um colar de pérolas brancas dá ao conjunto uma unidade estética. À sua
esquerda, destacam-se duas rosas selvagens, de um tipo muito comum nesta região
(cistus albidus ou roselha grande), sendo que a flor é composta por quatro pétalas e
um centro amarelo. Por cima, três botões fechados terminam o ramo. À sua direita,
vê-se uma fita de toucado, pronta a receber flores para embelezar o penteado.

54 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
r e t r ato s o u a l e g o r i a s n o s m o s a i c o s d a s e s ta ç õ e s d o a n o ?

fig.13 e 14 outono e inverno. mosaico do corredor oeste do peristylvm da pars vrbana da villa romana do rabaçal,
penela, portugal. segunda metade do século iv d. c. in sitv (in pessoa, 1998, p. 34 e 35. fotografias de delfim ferreira, 1991).

Verão
Esta Estação apresenta-se sob a forma de representação de busto visto de frente,
com a cabeça ligeiramente inclinada, voltada ¾ para a sua esquerda, sendo que o
olhar segue na mesma direcção (Fig.12). Os cabelos castanhos-escuros, estriados
de castanho mais claro e espessos, ligeiramente ondulados, estão penteados com
risca ao meio. O rosto é redondo, de cor morena rosada. Os olhos são redondos,
as sobrancelhas direitas e o nariz é triangular com narinas bem marcadas. A boca é
acentuada por uma linha robusta e direita. O pescoço é largo, os ombros são arre-
dondados e cobertos por uma túnica sem mangas, cinzenta esverdeada, drapeada
em vários tons de cinza. Esta túnica apresenta ainda uma gola larga, adornada por
uma fíbula redonda, sobre o seu ombro direito. O outro ombro está coberto com um
manto de tecido vermelho, decorado por uma orla de quadrados amarelos. A cabeça
está adornada com um diadema de pedras pretas incrustadas, rodeando a cabeça
e ligado igualmente, a meio, por uma tira central. Das orelhas pendem brincos re-
dondos, em metal amarelo, com pedras quadradas e pretas no centro, e outras mais
pequenas, também pretas, em cada vértice do quadrado central. Sobre o pescoço
vê-se um colar estreito de pedras, alternadamente pretas e castanhas; ao cimo do
braço desnudado, vêem-se duas braceletes estreitas de metal amarelo. À sua es-
querda é exibida uma cornucópia, sinal de abundância, de cor cinzenta esverdeada,
dividida em cinco partes por linhas horizontais pretas, decoradas por pontos pretos

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 55
r e t r ato s o u a l e g o r i a s n o s m o s a i c o s d a s e s ta ç õ e s d o a n o ?

ovais e adornadas por duas protuberâncias laterais, dispostas alternadamente de um


lado e do outro da mesma. Uma larga abertura bordejada termina a parte superior,
de onde saem dois frutos redondos de cor amarela, assemelhando-se a maçãs, figos
ou pêras. Por cima, observa-se uma folha amarela, difícil de identificar, à qual estão
ligadas duas espigas de trigo em posição horizontal. À direita, a superfície está de-
corada com duas flores amarelas, em forma de cálice tubular, e formas vegetais do
tipo trepadeira, em cinzento-escuro, contornadas a preto. O preenchimento de todo
o espaço disponível com motivos lembra o horror uacui.

Outono
Apresenta-se, de frente, com a cabeça voltada ¾ para a sua esquerda, olhando na
mesma direcção (Fig.13). Os cabelos castanhos-escuros estão apanhados em cima e
atrás, por um grande laço amarelo ocre. Ao nível das orelhas o cabelo está entrançado
e enrolado sobre si mesmo, para formar caracóis (madeixas enroladas em espiral)
presos por ganchos. O rosto é oval com grandes olhos, que se apresentam meio fe-
chados pelas pálpebras, de íris cinzentas e grandes pupilas pretas, e envolvidas por
círculos de sombras por baixo de cada olho, e sobrancelhas castanhas, encurvadas e
espessas. O nariz triangular com narinas bem marcadas e a boca direita esboçando
um sorriso leve, transmitem uma imagem doce. As linhas do rosto são marcadas por
um jogo de luz e sombra. Veste uma túnica cinzenta esverdeada, cuja gola aberta
deixa visível o pescoço e a parte superior dos ombros, sendo contornada por um
largo galão guarnecido de grandes pedras quadradas, pretas e castanhas, dispostas
em linha sobre uma armadura de metal amarelo e pequenos pingentes, igualmente
formados por pedras pretas, verdes, amarelas e brancas dentro de pequenos me-
dalhões redondos de metal amarelo. Cobre-lhe os ombros um manto ou palla, de
cor vermelho-bordéus, engalanado por uma orla mais clara. Sobre a cabeça usa um
diadema em forma de cruz, decorado com pedras quadradas cinzentas e brancas.
Ao meio do diadema, uma pedra quadrada preta e maior está engastada em metal
amarelo e marca o centro do penteado. Os cabelos estão cuidadosamente apanhados,
ao nível das orelhas, por ganchos decorados por grandes pedras quadradas pretas,
engastadas em metal amarelo, e pérolas brancas em cada canto. Usa um colar justo,
formado por grandes pérolas brancas, que se apresenta elegante e fino. Do seu lado
esquerdo, ao nível do rosto, repousa um cesto de entrançado vegetal, com frutos e
legumes amarelos e brancos, lembrando pêras. Por detrás do cesto surge-nos uma
folha larga de acanto cinza-esverdeada, sendo o contorno do desenho da folha
acentuado por nuance de cor mais escura. Do seu lado direito, apresenta-se-nos
um cacho de uvas, de forma triangular, desenhado de modo muito geométrico, com
bagos de cor clara cinza-esverdeada, pontuados pelo hilo, e ligados uns aos outros
por traços amarelos, encimado por duas folhas de videira, uma vista de frente e a
outra de perfil.

56 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
r e t r ato s o u a l e g o r i a s n o s m o s a i c o s d a s e s ta ç õ e s d o a n o ?

Inverno
Esta Estação do Ano está representada de frente com a cabeça voltada ¾ para a
sua direita, olhando na mesma direcção (Fig.14). Os cabelos são curtos, penteados
de forma irregular e de cor castanho-ruivo, virados para trás, divididos por um risco
ao meio, sendo que uma pequena madeixa avança sobre a maçã do rosto, do lado
esquerdo. O rosto é oval, cor-de-rosa pálido, a testa estreita e grandes olhos amen-
doados, contornados na parte inferior por sombras vermelhas. O nariz é longo, de
forma triangular e com pequenas narinas bem marcadas, a boca é pequena e fechada,
e o queixo é largo e redondo. O tronco apresenta-se-nos de ombros largos e está
coberto por uma túnica cinzenta esverdeada, que termina com uma “gola aberta”,
acentuada por uma linha branca. Quanto aos ombros, vêmo-los cobertos por duas
faixas largas do clauus de cor vermelha-acastanhada, contornadas por galões deco-
rados com pequenos triângulos amarelos. Sobre a cabeça, usa um largo diadema de
pedras pretas quadradas embutidas em quadrados de metal amarelo, em baixo, e, por
cima, vemos pontos brancos, semelhantes a alfinetes de pérola. Das orelhas pendem
brincos de pérolas brancas e, à volta do pescoço estão dispostos três colares, sendo
um justo ao pescoço, constituído por grandes pérolas brancas, e os outros dois por
pedras azuis ou pretas, alternando com outras pedras acastanhadas ou vermelhas.
Ao seu lado foi representado um cipreste (ou um pinheiro), sob a forma de um tron-
co estreito e ligeiramente encurvado, do qual saem pequenos rebentos. Tratar-se-á
de uma variedade do cipreste Cupressus semper virens ou Cupressaceae, que tem
ramagem de forma piramidal em direcção ao alto, ou do pinheiro de praia, Pinus
pinaster maritima ou Pinaceae, que também pode apresentar uma forma piramidal?
Foi ainda representada, do lado direito do busto, uma alcachofra do tipo Cynara
scolymus ou Cynara cardunculus. Exibe folhas em rebentos de escamas, rebentos
esses bem marcados a amarelo, cinza, verde e castanho. Este legume apresenta-se
contornado a preto e exibe caule robusto e verde, ao qual se liga uma folha lateral
vista de perfil, cortado obliquamente. A alcachofra está representada com grande
realismo, como que pronta a ser consumida.

Análise e interpretação do conjunto


A identidade das quatro figuras é-nos dada graças aos seus atributos. Três delas apre-
sentam atributos mais recorrentes, passíveis de identificação sem qualquer dúvida:
as flores, na Primavera, símbolos do dom da natureza; a espiga de trigo, no Verão,
o cacho de uvas, no Outono, dois produtos próprios de grandes colheitas do ano.
Alguns dos atributos são mais raros: para a Primavera, a faixa tecida com a qual se
pode fazer uma grinalda de rosas, possível evocação da festa dos Rosalia; para o
Verão, a cornucópia da abundância, vaso em forma de chifre, que se representa cheio
de flores e frutos, símbolo da força criadora da natureza e da Fortuna Romanorum;
para o Outono, o cesto cheio de frutos e para o Inverno, a alcachofra evoca os xenia
com os quais o anfitrião presenteia os convidados. Por fim, temos o pinheiro ou a

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 57
r e t r ato s o u a l e g o r i a s n o s m o s a i c o s d a s e s ta ç õ e s d o a n o ?

fig.15 primavera / verão e verão / outono, na cercadura do painel central de mosaico


do triclinivm da pars vrbana da villa romana do rabaçal, penela, portugal. segunda
metade do séc. iv d. c. in sitv ( in pessoa, 1998, p. 38, fotografia de delfim ferreira, 1991).

pinha do pinheiro, indicativa da estação invernal. As características dos atributos são


ainda reforçados através do vestuário, o qual vai mudando de acordo com o ciclo do
ambiente atmosférico, quente ou frio.
Por outro lado, podem ainda observar-se diferenças subtis demonstrativas da evo-
lução da idade, como sejam: a Primavera e o Verão apresentam um rosto mais claro
enquanto o Outono e o Inverno, envolvidos em sombras pronunciadas, em particular
em volta dos olhos, sugerem uma idade mais avançada.
A Primavera apresenta-se fisicamente fina, delicada e de ombros gráceis.
O Verão exibe o rosto e os braços cheios, em correspondência com o bem-estar e
a alimentação abundante própria desta época do ano, enquanto o Outono mostra
sombras no rosto, sinais de inquietação e de fadiga. Quanto ao Inverno, os seus
ombros largos, as sombras escuras à volta dos olhos, contrastando com a palidez da
pele, revelam ao mesmo tempo força e fadiga física.
Antes de mais, o que sobressai nas Estações, aqui representadas, é o ambiente de
riqueza e prosperidade que rodeia os actores que deram corpo a estas personagens,
pertencendo a estratos sociais elevados, pois exibem jóias, penteados elaborados e
roupas finas, também exuberantemente decoradas.
Observemos que diferentes modelos foram utilizados pelos criadores dos mosaicos

58 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
r e t r ato s o u a l e g o r i a s n o s m o s a i c o s d a s e s ta ç õ e s d o a n o ?

para a execução do conjunto das Quatro Estações. A Primavera e o Inverno mostram,


contudo, semelhanças na representação do rosto, na postura e penteados, o mesmo
acontecendo com o Outono e o Verão, que exibem um acentuado género feminino,
sobretudo no desenho dos olhos.
Comparando os quatro mosaicos constata-se, ao primeiro olhar, uma ampla pale-
ta de cores, uma diversificação do tipo de jóias e uma exuberância de penteados
e vestuário. Este facto confere uma grande unidade à obra, apesar da diversidade
das imagens que serviram de base à sua realização. A posição dos atributos (flores,
frutos, legumes, cereal, cestos, grinalda, árvore e cornucópia) sobre os espaços late-
rais sugerem que estes foram a última coisa a acrescentar à composição, sendo isto
original no quadro da representação simbólica das Estações do Ano.

Estações do ano do centro do triclinium


Do conjunto de imagens representadas no centro do triclinium (Fig.15), só uma parte
chegou até nós, nomeadamente dois bustos representados de frente, sobre um fun-
do negro e cinza escuro. As estações apresentam, provavelmente, sobre a cabeça,
atributos que encontramos repetidos nas cercaduras com enrolamentos de folhas de
acanto: rosas, espigas e frutos não identificados (PESSOA, 1998, p. 39 – 41).
As cores dominantes são o rosa, o beige-amarelado, o verde e o azul. As figuras
encontram-se dispostas no sentido do movimento dos ponteiros do relógio.
A maior parte dos motivos figurativos dos painéis não chegou ao momento da esca-
vação, sobretudo a parte superior dos rostos e também a maioria da cercadura vege-
tal, sobre fundo negro. Conservam-se das Quatro Estações do Ano, apenas a parte
superior da cabeça e o peito de uma figura, identificada como sendo a Primavera /
Verão e a parte esquerda da cabeça (lado direito) da figura identificada como sendo
o Verão / Outono. Sobre o lado esquerdo da composição, as duas outras estações,
Outono / Inverno e Inverno / Primavera, desapareceram na totalidade.

Primavera / Verão
Esta figura apresenta-se sob a forma de busto feminino, de frente, olhando para a
sua direita (Fig. 15). A cabeça encontra-se coberta de cabelos cor-de-rosa pente-
ados, descendo até parte da face e mesmo à maçã do rosto. O penteado é de risco
ao meio, terminando o cabelo apanhado no alto da cabeça com uma espécie de
laço, feito de uma fina fita cor-de-rosa, de onde sobressaem duas espigas de trigo
amarelo, do lado direito da cabeça.
A figura chegou até nós em mau estado de conservação. Resta-nos, do rosto, um
olho cinzento e parte das sobrancelhas. Da túnica observamos, ainda, parte da orla
do decote, decorado com uma linha de pontos brancos, lembrando pérolas.
Por fora do enrolamento vegetal de folhas de acanto, que envolve a figura, são bem
visíveis flores e botões de rosa, saindo um deles do cálice que decora o referido
círculo vegetal.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 59
r e t r ato s o u a l e g o r i a s n o s m o s a i c o s d a s e s ta ç õ e s d o a n o ?

Verão / Outono
A figura apresenta-se sob a forma de busto feminino, de frente, com a cabeça ligei-
ramente baixa e voltada ¾ para a sua esquerda, olhando nesta direcção.
Os cabelos penteados com risco ao meio, cor-de-rosa, rodeiam o rosto e estão apa-
nhados ao nível das orelhas, terminando sob a forma de uma trança em laço, no alto
da cabeça. Vemos, ainda, sobre a fronte, uma faixa verde horizontal, à qual se prende
uma pequena fileira de pontos brancos, podendo representar flores, uvas ou as péro-
las de um diadema. Conserva-se do rosto, de cor rosa-amarelado, uma parte do seu
lado direito, o olho, em forma de amêndoa, de cor cinzento azulado, a sobrancelha
arredondada, o nariz e uma parte da boca, em jeito de sorrir. O rosto está modelado
de luzes e sombras de forma pictural. Sobressaem do enrolamento vegetal que rodeia
a figura, mais concretamente do seu lado direito, ornatos em forma de cornucópia,
da qual extravasam espigas de cereal e gavinhas, de cor amarela.

Análise e interpretação do conjunto


Identificamos este conjunto, ainda que nos faltem dois dos quatro bustos, como
sendo o da sucessão das Estações (Fig.15).
Os atributos visíveis são rosas e botões, anunciadores da metamorfose da natureza
na Primavera, e as espigas de cereal, evocando o período de colheitas próprias do
Verão, sendo que estas se encontram profusamente representadas junto dos en-
rolamentos de folhas de acanto, vistas de perfil. Antecederão os atributos, repre-
sentados ao longo das cercaduras (rosas, na de cima, espigas de trigo, na do lado
direito, uvas e fruto, na de baixo), a figura da Estação seguinte, ou estão dispostos
após a mesma?
A sucessão das Estações pode ser interpretada começando pela Primavera, daí a
representação das rosas, decorando a cercadura de acantos enrolados, em cima, en-
volvendo no enrolamento do canto a figura da Primavera / Verão. Esta apresenta-se
decorada, por fora, para além dos acantos e cálices, com flores e, por dentro, com
pequenas espigas de cereal. A cercadura da direita é claramente evocativa da época
das colheitas, dado que do enrolamento de folhas de acanto se soltam espigas de
cereal maduro, repetindo-se este motivo até ao canto onde se encontra a figura que
interpretamos como sendo Verão / Outono, à volta da qual, para além das referidas
espigas maduras, parece estar representado um cacho de uvas e fruto carnudo.
Parece-nos, assim, que os atributos (rosa, espiga de cereal e, porventura, cacho de
uvas, fruto carnudo), ocupando cada ângulo, são repetidos ao longo da cercadura
de enrolamentos de folhas de acanto, simbolizando a continuidade e a renovação
perpétua das Estações. Interpretam-se, portanto, como sendo a expressão do mo-
vimento do tempo em forma de antevisão do futuro.
O rosto da Primavera / Verão, muito danificado, é mais pequeno e mais jovem que o
Verão / Outono, sendo comum evocarem-se as Estações através dos ciclos da idade.
Este último apresenta largo sorriso, respirando bem-estar. Os penteados, ricamente

60 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
r e t r ato s o u a l e g o r i a s n o s m o s a i c o s d a s e s ta ç õ e s d o a n o ?

ornados de efeitos e pérolas, revelam-nos a presença de damas elegantes e conferem


um valor claramente social às imagens. Estas representações resultam do emprego
de um modelo comum e constituem-se como uma unidade ao nível da forma, cor
e execução.

Alegorias ou retratos ?
O que nos é dado ver retratado nos mosaicos da Villa do Rabaçal são figuras mito-
lógicas (Horae) ou personagens reais?
Sem dúvida que estamos perante as alegorias das Estações do Ano, dada a presença
inequívoca dos atributos que lhe são próprios. Mas o realismo do vestuário, das jóias
e ornatos, bem como a expressão dos rostos destas figuras femininas, leva-nos a
interrogar se estamos ou não perante o retrato de personagens reais que interagiram
com a família e a vida da Villa.
De notar que o uso do laticlavo (faixa ou banda larga de púrpura usada pelos pa-
trícios sobre a toga, e mais estreita, o angusticlavo, usado pelos cavaleiros), pelas
figuras da Primavera, Outono e Inverno, no mosaico do corredor oeste do peristilo
da uilla do Rabaçal, poderá ser considerado como uma apropriação nobilitante dessa
parcela de veste de cerimónia do mundo do poder temporal e espiritual. Trata-se do
reforço da postura feminina que dignifica as retratadas e pode ser um sinal de valo-
rização do estatuto social da mulher, próprio do Baixo Império. Sabe-se que nesta
época, por exemplo, no direito romano os actos jurídicos passam a ser abertos à
mulher, independentemente de qualquer autorização (VILLEY, 1973, p. 100).

Epílogo
O que parece estar subjacente nas imagens das figuras dos mosaicos do Rabaçal e no
“barroquismo” decorativo das molduras que as envolvem (Figs. 11-14) é o anúncio
de um processo de mudança que atravessa a sociedade romana da 2ª metade do
séc. IV d. C. No período imediatamente anterior a este, no qual Bizâncio se tornou
Constantinopla, a partir de 330 d. C., os imperadores resplandecentes em ouro e
jóias dominavam os cortesãos, cuja categoria era assinalada pela grandiosidade dos
seus trajes (RACINET, 1994, p. 130). Estes elementos aqui presentes caracterizam
um período de formação de uma corrente artística pré-bizantina, do séc. IV e V (que
aqui será interrompida pelo domínio suévico nos séculos V e VI), cuja evolução ajuda
a explicar o período da primeira idade de ouro da arte bizantina do séc. VI (CHICÓ,
GUSMÃO, FRANÇA, 1962, p. 80). Esta apresenta-nos como exemplo paradigmático o
mosaico da “Imperatriz Teodora e o seu séquito” (Fig.16), que se conserva na abside
do altar-mor da basílica de S. Vital, em Ravena, Itália, datado de meados do século
VI d. C. De notar, neste mosaico, que o peitoral de pendentes de uma das aias (a
terceira da direita) é semelhante ao representado na figura do mosaico do Outono

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 61
r e t r ato s o u a l e g o r i a s n o s m o s a i c o s d a s e s ta ç õ e s d o a n o ?

fig.16 imperatriz teodora e o seu séquito. mosaico da abside do altar-mor da basílica


de s. vital, em ravena, itália. meados do século vi d. c. in sitv . © fotografia cedida
pela scuola del mosaico di ravenna, 2007.

(Fig.13), no corredor oeste do peristylum da Villa romana do Rabaçal (BERTELLI,


1993, p. 80-81).
De facto, no Rabaçal, já não estamos perante apenas as figuras magico-propiciatórias
da preservação do equilíbrio cósmico e de renovação do ciclo anual da natureza terra-
fruto. É a corte reunida e o novo modelo de corpus imperii que aqui nos são evoca-
dos, aproveitando como suporte as figuras das Estações do Ano. O porte altivo, o
traje cerimonial e a riqueza de jóias representadas constituem um importante meio de
comunicação, reforçando o carácter áulico desta residência. Trata-se de um proprie-
tário, provavelmente, com cargos, títulos, poderes e honras. Por esta altura, entre os
costumes pagãos, o hábito da palestra dá lugar ao protocolo e à escolha de ambientes
luxuosos, fechados, e o gosto da nudez sublime (que irá ser retomado na Renascença)
dá lugar ao envolvimento do corpo por complicados vestuários e jóias magnificentes.
Parece-nos, no entanto, que no Rabaçal o artista não está ainda separado do seu mo-
delo. Estamos aqui, porventura, perante o retrato de familiares do encomendador.

Voltemos ao mito da criação da pintura, segundo Plínio, que, como nos lembra José
Gil, associa o poder de sobrevivência das imagens retratadas à sua carga afectiva
(GIL, 1999, p. 13). Os “retratos” dos mosaicos da Villa romana do Rabaçal, desco-
bertos em sucessivas campanhas de trabalhos arqueológicos com a participação de
muitos voluntários, chegaram até nós graças ao abraço de afecto com que o tempo
e a terra generosa os enlaçou. •

62 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
r e t r ato s o u a l e g o r i a s n o s m o s a i c o s d a s e s ta ç õ e s d o a n o ?

Bibliografia

ALLARD, Sebastian. SCHERF, Guilhem. STEVENS, Mary Anne. Et alli. 2007. Portraits
publics. Portraits privés 1770-1830. Paris : Réunion des Musées Nationaux, Catalogue
d’Exposition du Grand Palais.

ARCE, Javier. 2004. “El mosaico cosmologico de Augusta Emérita y las Dionysiaca
de Nonno de Panopolis / Mérida Tradorromana (300-580 d.C.)”. Cuadernos
Emeritenses, 22, p. 117-136. Mérida: Museo Nacional de Arte Romano, Asociacion
de Amigos del Museo. Fundacion de Estudos Romanos.

BERTELI, Carlo. 1993. Les Mosaïques. Paris: Bordas.

BRUNEAU, Philippe. 1976. Quand la Grèce inventait la mosaïque. Les dossiers


de l’archéologie. nº 15, p. 16-25. Paris.

CALVANI, M. Marini. MAIOLI, M. G. 1995. Mosaici di via d’Azeglio in Ravenna.


Longo Edictore Ravenna.

CAPIZZI, Carmelo. GALATI, Francesco. S. d. Piazza Armerina. Les mosaïques


et Morgantina, Contrada palermi, Piazza Armerina.

CHICÓ, Mário Tavares. GUSMÃO, Artur Nobre de. FRANÇA, José-Augusto. 1962.
Dicionário da Pintura Universal. Lisboa: Estúdios Cor. Bizantiana, p. 78-81.

CORREIA, Vergílio. 1941. “Las mas recientes excavaciones romanas de interes


en Portugal. La ciudad de Conímbriga”. Archivo Español de Arqueologia, XLIII,
p. 257-267. Madrid.

CUNHAL, Álvaro. 1996. A arte, o artista e a sociedade. Lisboa: Editorial Caminho.

DASZEWSKI, Wiktor Andre. 2001. “Un atelier “royal” de mosaïques à Alexandrie”.


Actes du VIIIème Colloque International pour l‘Étude de lo Mosaique Antique et
Médiéval, 1997, AIEMA, Vol. I, p. 266-281. Lausanne: Cahiers d’Archeólogie Romande.

DUNBABIN, Katherine M.D. 1978. The mosaics of roman North Africa – Studies
in iconography and patronage. Oxford Monographs on Classical Archeology. Oxford:
Clarendon Press.

FERGUSON, John. 1973. A herança do helenismo. História da Europa Ilustrada.


Lisboa: Editorial Verbo.

FICHEUX, Gaelle. 2006. La chevelure d’Aphrodite et la magie amourense. Cahiers


d’histoire du corps antique, nº 2: p. 181-194. Presse Universitaires de Rennes.

GIL, José. 1999. “O Retrato”. A Arte do retrato. Quotidiano e circunstância, p. 11-13.


Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 63
r e t r ato s o u a l e g o r i a s n o s m o s a i c o s d a s e s ta ç õ e s d o a n o ?

GRENIER, Albert. 1969. Le génie romain dans la religion, la pensée et l’art, 1ª edição
1925. Paris: Ed. Albin Michel.

LANCHA, Janine. ANDRÉ, Pierre. 2000. Corpus dos Mosaicos Romanos de Portugal.
1- Torre de Palma. Conventus Pacensis. Lisboa: Instituto Português de Museus.

LAVAGNE, Henri. BALANDA, Elisabeth de. ECHEVERRÍA, Armando Uribe. 2000.


Mosaïque Trésor de la Latinité – Des origines à nos jours. Paris: Ars Latina.

LAVAGNE, Henri. Et alli. 2001. Mosaico Romano del Mediterráneo, p. 63, 127, 160,
171, 173. Madrid: Museo Arqueológico Nacional.

MACIEL, Justino. 1990. Antiguidade tardia e paleocristianismo em Portugal. Lisboa:


Universidade Nova de Lisboa.

MARTIN, Herve. SAINTCLIVIER, Jacqueline. 2006. L’expression des corps – Gestes,


attitude, regards dans l’iconographie antique. Cahiers d’histoire du corps antique, nº 2.
Presse Universitaires de Rennes.

OLEIRO, João Manuel Bairrão. 1986. “Mosaico romano em Portugal”. História da Arte
em Portugal, Vol. I, p. 111-127. Lisboa: Alfa.

OLEIRO, João Manuel Bairrão. 1992. Conímbriga – Casa dos Repuxos, Corpus
dos Mosaicos Romanos de Portugal. Conventus Scallabitanus, Vol. I. Lisboa: Instituto
Português de Museus.

PESSOA, Miguel. 1998. Villa romana do Rabaçal – Um objecto de arte na paisagem.


Penela: Câmara Municipal.

PESSOA, Miguel. 2005. Arte sempre nova nos mosaicos romanos das Estações do Ano
em Portugal. Penela, Portugal: Espaço-museu do Rabaçal, Município de Penela.

PESSOA, Miguel. 1999. “Os motivos botânicos nos mosaicos da Villa romana do
Rabaçal, Penela, Coimbra, Portugal”. II Congreso de Arqueología Peninsular. Tomo IV,
p. 303 – 314. Zamora: Universidade Alcalá / Fundación Rei Afonso Henriques.

PESSOA, Miguel. PONTE, Salete. 2000. “A colecção de jóias representadas nas figuras
das Estações do Ano nos mosaicosda Villa romana do Rabaçal, Penela, Portugal”. V
Reunió d’Arquelogia Cristiana Hispánica (1998). Cartagena, p. 541 – 549. Barcelona:
Institut d’Estudis Catalans.

PROST, Francis. 2006. Gestes des hommes, gestes des dieux. La représentation
des gestes dans la plastique grecque archaïque et classique. Cahiers d’histoire du corps
antique, nº 2: p. 25-38. Presse Universitaires de Rennes.

QUET, Marie Henriette. 1979. “La mosaïque cosmologique de Mérida. Propositions


de lecture”. Conimbriga, XVIII, p. 5-103. Coimbra.

QUET, Marie Henriette. 1980. “La mosaïque cosmologique de Mérida. Propositions


de lecture”. Conimbriga, XIX, p. 5-127. Coimbra.

64 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
r e t r ato s o u a l e g o r i a s n o s m o s a i c o s d a s e s ta ç õ e s d o a n o ?

RACINET, A. 1994. Enciclopédia Histórica do Traje. Lisboa: Republicação.

RIBEIRO, José Cardim, et alii. 2002. Religiões da Lusitânia: Loquuntur Saxa. Lisboa:
Museu Nacional de Arqueologia.

RODRIGUES, Francisco Assis. 1875. Dicionário Técnico e Histórico da Pintura,


Escultura, Arquitectura e Gravura. Lisboa: Imprensa Nacional.

ROSSUM, Gerherd Dohrn-Van. 2001. Os relógios e a hora temporal moderna. História


da hora. Lisboa: Temas e debates.

STERN, Henri. 1976. Découverte de la Mosaïque. Les dossiers de l’archéologie. nº 15,


p. 8-15. Paris.

VILLEY, Michael. 1973. O Direito Romano. Lisboa: Arcádia.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 65
Resumo
O Retrato de D. João I é um caso típico de obra indocumentada cujo destino por- palavras-chave
tuguês, como noutros casos, tem sido marcado por uma “fortuna crítica” tímida de
perspicazes cometimentos analíticos face à peça mas plena de conjecturas e palpites retrato
gratuitos principalmente em termos autorais e cronológicos. O que proponho é uma joão I
breve revisão das contradições e subjectividades metodológicas desses exercícios aljubarrota
historiográficos e uma abordagem da pintura segundo aquilo que nela efectivamente cópia
se vê, no verso e no reverso do painel. Para além disso, contribuir ainda para um
aprofundamento do conhecimento do seu processo criativo através do que nela só
se vê através de exames fotográficos à radiação infravermelha. Os novos dados e
argumentos creio que hipotecam a possibilidade de a obra ser tão cronologicamente
recuada como geralmente se tem dito e fragilizam também a sua usual consideração
como pintura executada em Portugal. •

Abstract
The Portrait of D. João I is a typical case of an undocumented work whose Por- key-words
tuguese fate, like so many others, was determined by a timid “critical success” of
clever analytical undertakings and yet was full of conjectures and free guesses, es- portrait
pecially in terms of its author and date. I suggest a brief review of the contradictions joão i
and methodological subjectiveness of these historiographical exercises, as well as aljubarrota
an approach to painting based on what is ultimately seen on the front and back copy
of the panel. Furthermore, I propose to contribute to a better understanding of its
creative process, by what is seen through photographic exams by infrared radiation.
The new information and arguments, in my opinion, cast aside the possibility of the
work dating so far back in time as is usually considered and the idea of it having
been made in Portugal. •
o retrato de d. joão i
revisão crítica

j o s é a l b e rto se a b r a c a rva l h o
Técnico do Museu Nacional de Arte Antiga,
conservador da colecção de Pintura.

fig.1 retrato de d. joão i , 41 x 32 cm, mnaa, inv. 2006 pint. © imc/ddf. fotografia
de josé pessoa.

Iconograficamente valioso, o Retrato de D. João I (Fig.1), só “descoberto” em 1877


por Joaquim de Vasconcelos num Museu de Viena e só incorporado na colecção
do Museu Nacional de Arte Antiga em 1952, subsiste como um grande ponto de
interrogação no quadro de problematização da pintura portuguesa do século XV,

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 67
o r e t r ato d e d o m j o ã o i

já de si fustigado pelo costume historiográfico local de que quanto menos se sabe 1. João COUTO – “O retrato de D. João I no Mu-
mais se especula... O radical desconhecimento de informação histórica sobre a ori- seu Nacional de Arte Antiga”, Boletim do Museu
Nacional de Arte Antiga, vol. II, fasc.4, Lisboa,
gem e percurso antigo da obra (o Kunsthistorischen Museum Wien nada sabia, ou
1953, pp. 3-6.
nada disse, acerca do seu percurso anterior), conjugado com o rarefeito conjunto de
dados que possuímos acerca da prática da pintura no longo reinado do Mestre de 2. Para a actividade documentada de Mestre Já-
Avis (1385-1433), não a têm porém eximido a uma “fortuna crítica” de considerável come ver o recente artigo de Luís U. AFONSO –
“Uma nota sobre Mestre Jácome, pintor régio de
extensão, demasiado assertiva e lamentavelmente delirante em múltiplos aspectos
D. João I”, Artis, nº5, Lisboa, 2006, pp. 471-480.
­– ou melhor, e para ser mais exacto, em dois aspectos mais recorrentes: quem foi o
autor da pintura e que datação é que se lhe deve atribuir. 3. É esta a original posição de Maria Julieta RUI-
VAL – “O ‘Retrato de Senhora’ do Museu Me-
Confesso desde já, modestamente, não ter resposta cabal e esclarecedora para as
tropolitano de Nova York e as suas relações com
duas questões. João Couto, museólogo prudente e sabedor, também a não tinha
o ‘Retrato de D. João I’ do Museu Nacional de
quando recebeu a peça no MNAA há já meio século, não deixando no entanto de Arte Antiga”, Belas Artes, 2ª série, nº 27, Lisboa,
frisar que não concordava com o seu antecessor, José de Figueiredo, numa atribuição 1972, pp. 103-109. Cf. também na mesma publi-
do retrato a António Florentim (um dos dois documentados pintores italianos que cação o artigo de Jorge SEGURADO – “O Retra-
estiveram ao serviço de D. João I). E que, acrescentava ele, se a pintura reflectia to de D. João I existente no Museu Nacional de
“algumas relações de parentesco com correntes picturais estrangeiras”, seria talvez Arte Antiga”, pp. 5-14.

para a “franco-flamenga” que se deveria dirigir a atenção dos estudiosos 1. Estes 4. Cf. Dagoberto L. MARKL – “Mestre Jácome,
geralmente não seguiram a sugestão do antigo director do MNAA, antes se ocu- pintor italiano, e o retrato de D. João I do Museu
pando em palpites sobre qual dos mestres escassamente referenciados em torno do Nacional de Arte Antiga”, Poetas & Trovadores,
Lisboa, 1983, pp. 3-4.
fundador da dinastia de Avis teria sido o autor do retrato, partindo geralmente do
princípio de que este fora executado do natural, ou logo depois da morte do retra- 5. História da Arte em Portugal, vol. 6 (Dir. Dago-
tado, e em Portugal. Uns seguiram o partido do Florentim; outros do régio pintor berto Markl), Edições Alpha, Lisboa, 1986 p. 140.

Jácome, que já estava activo em Santarém por 13902 e fora colocado por Francisco
de Holanda entre a plêiade das “águias” da pintura (como calhou a Nuno Gonçalves);
outros ainda preferiram uma execução mais “nacional”, entregando a atribuição ao
pintor Gonçalo Anes3; um outro historiador, por fim, creditando-o a um mestre de
prosaico apelido chamado Diogo Gomes da Rosa, unicamente nomeado num dis-
cutido e anónimo documento dito “Do Rio de Janeiro”4. É esta última a tese mais
curiosamente intrincada, pois que Diogo da Rosa seria afinal, por certas pretensas
evoluções linguísticas, não outro senão o próprio… Jácome! – um mestre que de-
veria ser lombardo, isto é, uma espécie de italiano especial, dito mais permeável a
influências pictóricas “franco-flamengas” (assim se integrando a sugestão de João
Couto…). Em suma: a obra configurar-se-ia ao estilo “nórdico-francês”, de mão
lombarda e executada em Portugal. Donde que, numa muito popular História da Arte
em Portugal, editada nos anos 80, Mestre Jácome surja já aí classificado como um
pintor “ecléctico”5 – classificação deveras extraordinária para um mestre de quem
se não conhece, positivamente, obra alguma!
Quanto ao problema da datação, creio que metodologicamente as abordagens não
se apresentam mais perspicazes. Ora se adoptou o ingénuo processo do cálculo de
idade do retratado fazendo coincidir a execução da obra com tal estimativa, ora se
seguiu a hipótese de se tratar de um retrato póstumo conforme à inscrição latina
que a moldura do painel apresenta referindo a condição defunta do rei (Haec est
vera digne ac venerabilis memorie Domini Joannis defũcti quond(am) Portugalie no-

68 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o r e t r ato d e d o m j o ã o i

6. Agradeço a observação ao parecer técnico de bilissimi et illustrissimi regis ymago quippe qui dũ viveret de juberot victoria potitus
Miguel Garcia. est potentissima). A tradução da frase, num certo passo, não é porém unívoca. Lá
7. Cf. Saúl António GOMES – “A memória da Ba- estará dito, traduzindo, que “Esta é a vera imagem do defunto Dom João de digna
talha Real de 1385”, Tempos e História, Colec- e venerável memória outrora mui nobre e mui ilustre rei de Portugal que em sua
tânea de Autores, Comemoração dos 500 anos vida obteve a muito poderosa vitória de Aljubarrota”; noutra versão, adoptada em
do Con celho e da Vila da Batalha, Leiria, CML certas abordagens da obra, a palavra “outrora” é substituída por “até há pouco”. A
e Magno Edições, 2000, pp. 37-75. Agradeço a
coisa faz a sua diferença, já que conduziu, neste último caso, a considerar o painel
Maria Antónia Amaral a indicação deste artigo.
do reinado de D. Duarte (1433-1438)…
Constituída, como o painel, por madeira de carvalho, a moldura pode bem ser con-
temporânea da pintura, revelando uma execução de muito boa qualidade, quer na
perfeição dos encaixes, quer por apresentar arestas internas traseiras chanfradas 6.
Porém, se a moldura pode ser original, a inscrição que corre ao longo de dois dos
seus lados pode não partilhar esse estatuto. E não por razões de análise material,
tecnológica ou de anacronismos de grafia, mas antes por uma invulgar opção pouco
“artística”... Longa e descritiva, a inscrição latina da obra não é, com efeito, um ele-
mento integrado na composição da pintura, um elemento organicamente equilibrado
relativamente à imagem do retratado, como sucede em múltiplos retratos flamengos
do século XV. Nestes casos (de Van Eyck a Memling), as inscrições originais pintadas
nas molduras criam muitas vezes efeitos de trompe l’oeil e de mimesis epigráfica, são
exercícios de realismo pictural bem calculados, dispondo-se sempre ou ao centro dos
lados horizontais da moldura (em baixo, ou em cima), ou percorrendo a totalidade
da moldura, adoptando uma centralidade clara e participando nas componentes
de simetria da composição, conferindo à moldura um estatuto de campo de repre-
sentação. Não é, de modo algum, o que se verifica no Retrato de D. João I. Aqui,
a inscrição que identifica a personagem e faz o seu panegírico assume um carácter
de “tabela” descritiva que desatende a estrutura compositiva da própria imagem,
parecendo, na verdade, um acrescento à obra.
Por outro lado, a nomeação, aí, da batalha de 14 de Agosto de 1385 como juberot
victoria (“vitória de Aljubarrota”) é claro indício de que o teor da inscrição é bem mais
tardio que tais acontecimentos e que a sua fonte não foi certamente portuguesa.
De facto, como exemplarmente demonstrou Saúl António Gomes 7, o célebre embate
entre castelhanos e portugueses foi sempre designado entre nós, desde a documen-
tação das chancelarias às crónicas régias, desde o reinado do mestre de Avis até ao
século XVII, como “Batalha Real” ou, simplesmente, a “Batalha”. As fontes espanho-
las também aludem à derrota militar sem mencionarem qualquer topónimo. Gomes
atribui a génese da designação “Batalha de Aljubarrota” ao cronista francês Jean
Froissart, que nas suas Crónicas se refere por vezes à “ville de Juberot” como local
do confronto, demonstrando porém um conhecimento muito indirecto do assunto
e carregando a descrição do acontecimento com muitos erros e inexactidões histó-
ricas e geográficas – depois ampliadas, por repetição, na produção historiográfica
europeia. O baptismo da Batalha como “de juberot” ocorre assim fora das fronteiras
portuguesas, em círculos exteriores e distantes — “Exteriores à micro-história do
local e exteriores (…) às próprias realeza e aristocracias cortesãs portuguesas, quer

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 69
o r e t r ato d e d o m j o ã o i

fig.2 figura heráldica pintada no reverso do retrato de d. joão i . © mnaa.


fotografia de teresa viana e susana campos.

de gerações que participaram corporalmente no evento, quer de algumas outras 8. GOMES, ob. cit., p. 73.
que lhe sucederam no decurso do século imediatamente seguinte”8. Incorporando
a fórmula froissartiana, a génese da inscrição no retrato do MNAA assume também
essa condição exterior e distante. Distante, provavelmente, também no tempo: a
primeira edição das Crónicas de Froissart só ocorre c. de 1498, em Paris. Para recuar
dessa data, o desconhecido mentor da inscrição teria de conhecer alguma das versões
manuscritas que circularam durante o século XV.
No centro do reverso do painel há também uma figuração interessante e que, dada
a sua natureza heráldica, estranho nunca ter visto assinalada. Trata-se de um escudo
de Portugal, pintado em proporções e cores fiéis à norma, e encimado por coroa
real (Fig.2). Apresenta os escudetes laterais deitados e inclui na bordadura as quatro
pontas da cruz flordelizada de Avis, por aqui se podendo qualificar como “espelho”
heráldico da personagem representada na frente do painel. Mostra, todavia, uma
disposição invulgar dos cinco besantes de cada escudete, que em vez de dispostos
em aspa se distribuem em cruz grega, e uma forte incorrecção, inverosímil em âm-
bito português de realização, na forma e distribuição dos castelos, quais “peões de
xadrez” surgindo deitados na parte horizontal da bordadura. Se o primeiro aspecto

70 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o r e t r ato d e d o m j o ã o i

9. Muito agradeço a Susana Campos e Teresa Via- não é absolutamente singular (os besantes no escudo do Anjo Custódio da Charola de
na, técnicas de conservação e restauro do MNAA, Tomar, de c. 1510-1514, também adoptam a rara disposição crucífera), já o segundo
a realização destas imagens.
configura uma incapacidade de entendimento “gráfico” da forma, uma interpretação
distante e deformada do reportório canónico da heráldica portuguesa, um tanto à
imagem do que sucede nas iluminuras de Jean de Wavrin, na Crónica de Inglaterra,
reportadas a acontecimentos do reinado de D. João I, ou, para dar um exemplo ac-
tual, na bizarra interpretação dos castelos do escudo português, como uma espécie
de pagodes, pelas fábricas chinesas de bandeiras durante o Euro 2004. Deste modo,
creio poder concluir que, tal como a inscrição na moldura, o escudo real pintado no
reverso do retrato deverá ser uma marca não só adicionada à obra como também de
feitura “exterior”, estranha ao conhecimento corrente, dentro das fronteiras portu-
guesas, dos preceitos e costumes heráldicos aqui adoptados. Ambos funcionam como
signos de mera identificação do retratado, não como elementos de “representação”
do monarca, antes como “legendagem” da iconografia da peça.
Se pode ter coisas “a mais”, a pintura também não está isenta de poder ter coisas “a
menos”… A pose do retratado, em busto, a três quartos, de mãos postas em atitude
religiosa de veneração, o olhar direccionado para o lado esquerdo do observador,
orientam para esse lado, vazio, o potencial fulcro comunicativo do próprio modelo.
Na verdade, se as tipologias do retrato de devoção quatrocentista aqui fossem apli-
cadas como critério, forçoso era então concluir-se que esta figuração do monarca
português não seria, originalmente, uma obra isolada, devendo tratar-se do painel
direito de um díptico onde, à esquerda, figuraria um imagem da divindade – uma re-
presentação de Cristo ou da Virgem Maria, como era de uso. Não me arrisco contudo,
além desta alusão de possibilidade, por caminhos do que agora pitorescamente se
chama de “cripto-história”. A peça não apresenta, na sua estrutura material, indícios
dessa possibilidade – não há vestígios de dobradiças na moldura (os dípticos eram
portáteis e um painel fechava sobre o outro) – e a taxonomia dos dípticos de devo-
ção não é uma ciência exacta estabelecida por Panofsky… A sua tipologia corrente
é conhecida, mas o pragmatismo formal e compositivo da produção pictórica nos
séculos XV e XVI, em função das modas e dos mercados, é também proverbial.
Porém, será ainda na dimensão material da obra que podemos recolher novos dados
para a exploração interpretativa do seu processo criativo. Pela primeira vez, a pintura
foi analisada através de uma série de fotografias de infravermelho9, dispositivo que
geralmente permite observar, com mais ou menos nitidez, o desenho subjacente à(s)
camada(s) cromática(s) e que foi executado sobre a preparação aplicada ao suporte
para regularização da respectiva superfície. O tipo de desenho que tal exame veio
desvendar é exclusivamente do género “poncif”, isto é, constituído por uma série
de pontos dispostos segundo uma orientação linear que define o contorno de uma
forma. Esse desenho é obtido pela aplicação de um desenho autónomo ou molde
perfurado e ao qual se aplica um pigmento em pó quando disposto sobre a prepara-
ção. Trata-se de um antiquíssimo processo de copiar um motivo figurativo para outro
suporte através de um desenho picotado. No Retrato de D. João I, esse processo é
amplamente identificável em todos os pormenores essenciais constitutivos da fisio-

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 71
o r e t r ato d e d o m j o ã o i

fig.3-7 pormenores do retrato de d. joão i em fotografia de infravermelho. © mnaa.


fotografia de teresa viana e susana campos.

nomia do personagem (desenho dos olhos, da orelha, do nariz, da boca, de grande


parte do contorno do rosto), bem como na definição da forma e contorno dos dedos
das suas mãos postas (Figs. 3 à 7). Para além disso, não há vestígios de outro tipo
de desenho, mais espontâneo ou “à mão levantada”, usual para definir volumes ou
valores de luz e sombra na composição e orientadores do processo criativo na fase
de execução pictural.

72 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o r e t r ato d e d o m j o ã o i

10. Cf. Luís KEIL – “Os retratos de personagens Esta nova evidência significa que o retrato foi executado a partir de um modelo
portuguesas da colecção do Arquiduque Fernan- exterior, que a sua criação resulta de um processo de cópia do essencial da compo-
do do Tirol”, Belas Artes, XV, Lisboa, 1946, pp.
sição, da sua componente, por assim dizer, mais especificamente individualizada – a
18-22.
imagem do retratado. E indicia a forte probabilidade de esta pintura não ser uma
11. Henrique de Campos Ferreira LIMA – “Dois composição original, de que se trata afinal de uma cópia. Essa circunstância vem
retratos de D. João 1º em Viena d’Austria. Breves naturalmente questionar e fragilizar, radicalmente, a ideia de poder tratar-se de um
notas iconográficas”, Arqueologia e História, vol.
retrato do “natural” e coloca agora novas interrogações quanto à cronologia provável
I, Lisboa, 1922, pp. 183-188.
da obra (possivelmente bem mais tardia do que se tem dito).
É conhecida uma outra versão deste retrato em Viena de Áustria, divulgada por Fer-
reira Lima em 1922 (Fig.8). Foi executada sobre papel ou pergaminho, tem dimen-
sões mais reduzidas (13,5 x 10,5 cm) e pertencia, como parece ter também sucedido
ao painel do MNAA, à colecção de Ambrás do arquiduque Fernando do Tirol. Esse
pequeno retrato de D. João I integrava uma galeria de idênticas representações de
vultos ilustres das casas europeias aparentados com os Habsburgo, e nela se incluíam
outros protagonistas da história de Portugal entre os séculos XV e XVI10. Diz Ferreira
Lima acerca dos dois retratos joaninos: “A tradicção de Vienna dá-os ambos como
copiados no século XVI, de um original que, nesse tempo [de Maria de Borgonha]
existiu no mosteiro da Batalha”11. A asserção é demasiado vaga e não merece, como

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 73
o r e t r ato d e d o m j o ã o i

fig.8 retrato de d. joão i , 2ª metade do século xvi (1575?), 13,5 x 10,5 cm,
museu histórico de viena de áustria. © arquivo do mnaa

nunca mereceu, especial crédito. Mas não deixa de ser intrigante, à luz dos novos
dados, a menção ao painel de Lisboa como uma cópia do século XVI – a contra-
corrente do que sempre foi a tendência historiográfica dominante de atribuir à obra
uma datação recuada à primeira metade do século XV. O próprio estilo de execução,
esquemático na rigidez da figuração e muito pobre de subtilezas pictóricas quanto
ao modelado e à luz, creio que deve ter induzido a tal cronologia recuada, à consi-
deração da obra como um “primitivo” dos mais antigos do património português.

74 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o r e t r ato d e d o m j o ã o i

12. Comentário da ficha da peça no catálogo da Não se levou em conta que tais características podiam, em vez disso, indiciá-la como
XVII Exposição de Arte, Ciência e Cultura, Con- uma cópia algo mais tardia, onde outros supostos elementos de cronologia – a ins-
selho da Europa, Lisboa, 1983, Núcleo da Casa crição na moldura, o escudo no reverso, glosando as armas portuguesas ainda antes
dos Bicos.
da sua reforma por D. João II – não são, como já acima ficou explicado, parâmetros
validamente operativos nesse domínio.
Recordo muitas vezes, quando tenho de me pronunciar sobre este obscuro Retrato
de D. João I, o breve comentário de Vítor Pavão dos Santos acerca do essencial da
representação: “A expressão do monarca é mais de apatia que de concentração”12.
Sempre estive de acordo com esta incisiva observação, mas é agora, no desenho de
decalque que quase irredutivelmente qualifica a pintura como uma cópia, que per-
cebo melhor as razões da desinteressante apatia devota deste mestre de Avis. •

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 75
Resumo
O bem conhecido programa, tanto arquitectónico quanto iconográfico, concebido por palavras-chave
D. João I para o seu monumento sepulcral e de D. Filipa de Lencastre, indicia algumas
originalidades que rompem decisivamente com as práticas seguidas em Portugal ao d. joão i
longo do século XIV. A construção de uma capela autónoma, destinada exclusivamen- tumulária
te a panteão de uma linhagem régia, a representação dupla do casal sobre a tampa retrato
da arca, a ausência de qualquer sinal de sagrado e a figuração do rei como soldado, o soldado
miles chiristianus, são algumas das principais novidades concretizadas pela exemplo arca conjugal
joanino, tornado assim paradigma no contexto tumular quatrocentista. • batalha
paradigma

Abstract
The well known programme, both architectural and iconographic, requested by D. key-words
João I for his and D. Filipa de Lencastre’s sepulchral monument, emphasizes some of
the novelties that definitively break through from the practices followed in Portugal d. joão i
in the 14th century. The building of an autonomous chapel, dedicated exclusively to sepulchral monument
a royal pantheon, the double representation of the couple on top of the sepulcher, portrait
the lack of any sacred sign and the representation of the king as a soldier, the mi- soldier
les christianus, are some of the main innovations displayed here, thus becoming a couple
paradigm to 15th century sepulchral monuments. • battle
paradigm
o retrato de d. joão i
no mosteiro de santa
maria da vitória
um novo paradigma de representação*

j oa n a r a môa
Bolseira da Fundação para a Ciência
e a Tecnologia (F.C.T.).

j o s é custó d i o v i e i r a da si lva
Docente da Faculdade de Ciências Sociais
e Humanas (Universidade Nova de Lisboa).

* Este artigo resulta da investigação decorrente do O bem conhecido programa, tanto arquitectónico quanto iconográfico, concebido
projecto Imago (POCTI/EAT/45922/2002), finan- por D. João I para o seu monumento sepulcral, indicia algumas originalidades que
ciado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia rompem decisivamente com as práticas seguidas em Portugal ao longo de todo o séc.
(F.C.T.), e em que os autores são participantes.
XIV. Aliás, o próprio modo escolhido para o revelar constitui também, desde logo, uma
originalidade, se não no instrumento usado – o testamento – ao menos na invulgar
1. É o caso das capelas de Bartolomeu Joanes,
na Sé de Lisboa (c. 1324); de João Gordo, na forma, feita de grande minúcia e detalhe. De facto, no seu testamento, redigido no
Sé do Porto (c. 1333) e de Domingos Joanes paço de Sintra a 4 de Outubro de 1426, D. João I, a par da explicitação, na forma
e Domingas Sabachais, em Oliveira do Hospital costumeira, das suas derradeiras vontades, alonga-se também em minuciosas consi-
(1341), ou da Capela dos Mestres da Ordem de derações relativas tanto ao Mosteiro de Santa Maria da Vitória quanto ao processo a
Santiago, em Alcácer do Sal (de 1333). Em re-
seguir no seu enterramento e ainda aos usos e restrições a dar à capela funerária.
lação ao clero, o caso mais notável (até porque
A construção de raiz de uma capela autónoma, destinada exclusivamente a panteão
mais facilmente os bispos se mandavam tumular
no interior das respectivas sés, como sucede de
de uma linhagem régia, é uma inovação relativamente ao costume até aí seguido
forma exemplar em Coimbra) é, sem dúvida, o do pelos monarcas portugueses. Na verdade, e ao contrário de vários membros da no-
arcebispo de Braga D. Gonçalo Pereira, que insti- breza que, ao longo do século XIV, se haviam antecipado na erecção de capelas,
tui e manda construir, em 1334, na sua catedral, anexas a templos, com funções funerárias exclusivas1, os reis da primeira Dinastia
uma capela funerária, a Capela da Glória, para tinham-se limitado a aproveitar espaços, tanto externos quanto internos, de igrejas
seu uso exclusivo.
pré-existentes: é o caso das galilés à entrada dos templos (a de Santa Cruz de Coim-
bra utilizada por D. Afonso Henriques e D. Sancho I, a de Alcobaça por D. Afonso
II e D. Afonso III), de espaços interiores de igrejas – a nave central (de S. Dinis de

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 77
o r e t r ato d e d . j o ã o i n o m o s t e i r o d e s a n ta m a r i a d a v i tó r i a

2. Consulte-se, a este propósito, SILVA, José Cus-


tódio Vieira da, «Da Galilé à capela-mor: o per-
curso do espaço funerário na arquitectura gótica
portuguesa», O Fascínio do Fim, Lisboa, Livros
Horizonte, 1997, pp. 45-59; e, do mesmo autor,
«Memória e Imagem. Reflexões sobre Escultura
Tumular Portuguesa (Séculos XIII e XIV), Revista
de História da Arte, 1, Instituto de História da
Arte-Faculdade de Ciências Sociais e Humanas,
2005, pp. 52-55.

fig.1 túmulo duplo com jacentes de d. joão i e d. filipa de lencastre. batalha.


mosteiro de santa maria da vitória. capela do fundador. © projecto imago.
fotografia de josé custódio vieira da silva.

Odivelas pelo rei D. Dinis, de Santa Clara-a-Velha de Coimbra, pela rainha D. Isabel),
a capela-mor (da Sé de Lisboa, por D. Afonso IV), o transepto (de Alcobaça, por D.
Pedro e Dona Inês de Castro) ou, finalmente, o coro monástico (de S. Francisco de
Santarém, por D. Fernando)2.
O rei D. João I, ao optar por construir uma capela destinada exclusivamente a pan-
teão da sua linhagem, inovava em relação a todos os reis seus antecessores, circuns-
tância que ganha maior amplitude pelo facto de, não estando prevista no projecto

78 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o r e t r ato d e d . j o ã o i n o m o s t e i r o d e s a n ta m a r i a d a v i tó r i a

3. Do testamento de D. João I parece poder de- inicial do Mosteiro da Batalha, denunciar de forma clara a intencionalidade cons-
duzir-se que é nesse preciso ano de 1426 que ele ciente da sua edificação3. É o que se depreende também das palavras muito firmes e
se decide pela construção de uma capela para se
incisivas de D. João I, constantes uma vez mais do seu testamento, para se restringir
sepultar, quando afirma «…E esto seja na cappe-
o uso da capela apenas a outros reis de Portugal, os únicos autorizados a usufruir
la moor, assy como ora ella [a rainha] jaaz, ou
na outra que nos ora mandamos fazer, despois
desse espaço para se sepultarem em alto ou no chão, e a filhos e netos de reis, nos
que for acabada». Testamento de D. João I, de 4 jazigos das paredes4.
de Outubro de 1426. Publ. in GOMES, Saúl An- A par desta originalidade, esse espaço (que ficou conhecido por Capela do Funda-
tónio, Fontes Históricas e Artísticas do Mosteiro dor) assumia-se também, no requinte da sua arquitectura concebida e executada
e da Vila da Batalha (séculos XIV a XVII), Vol. I, pelo segundo arquitecto do Mosteiro da Batalha – mestre Huguet, como primícias do
Lisboa, IPPAR, 2002, p. 135.
tardo-gótico que em vários países da Europa há mais tempo se vinha desenvolven-
4. «…nymguem se lamçe nem soterre demtro no do. A sua planta quadrangular, evoluindo ao centro para um octógono, proporciona
jaziiguo que nos mandamos fazer em a nossa ca- a elevação de uma abóbada estrelada em cuja chave central pontificam as armas
pella, em alto nem no chãao, salvo se for Rey
de D. João I: assim disposta sobre o túmulo conjunto dos dois esposos régios, essa
destes rregnos. E mandamos que pellos jazyguos
abóbada transforma-se em autêntico dossel glorificador das suas pessoas. Ainda
das paredes da capella todas em quadra, asy
como sam feytas se posam lamçar filhos e ne-
hoje impressiona a atmosfera de luminosidade serena que ilumina o grupo escultó-
tos de rreix e outros nom. (…) E doutra guisa se rico do casal régio, à volta do qual, sob amplas janelas e respeitando a organização
nom posa nehuum lamçar nos jaziiguos da dita definida por D. João I, se dispõem, na parede virada a norte, as arcas tumulares de
nossa capella asy dos de cima que apropriamos quatro dos seus filhos5.
para os rreix como dos outros darredor della que
apropriamos aos filhos e netos dos rreix, salvo
leixamdo aa dita capella o terço de todollos bens
e cousas que asy quiserem leixar ao dito Moes-
teiro pella guisa suso dita.» (Testamento de D.
João I, id., pp. 138-139). Apesar de tudo, as úl-
timas palavras deste excerto testamentário pare-
cem deixar em aberto a possibilidade de outras
pessoas, que não reis ou filhos de reis, poderem
usufruir da capela de D. João I como espaço de
tumulação, desde que legando o terço de todos
os bens ao Mosteiro da Batalha.

5. São eles, da direita para a esquerda, o infante


D. Pedro (1392-1449) e sua mulher Dona Isabel
de Aragão, o infante D. Henrique (1394-1460), o
infante D. João (1400-1442) e sua mulher Dona
Isabel, e o infante D. Fernando (1402-1443). As
edículas da parede virada a nascente estavam
ocupadas pelas capelas de cada um destes infan-
tes, enquanto na virada a poente se dispunham
armários para repositório das respectivas alfaias
e paramentos litúrgicos. No final do século XIX e
inícios do século XX, trasladaram-se para túmu-
los colocados nesta última parede e mandados
então executar à semelhança dos originais qua-
trocentistas, os restos mortais dos reis D. Afonso fig.2 túmulo duplo com jacentes de d. joão i e d. filipa de lencastre.
V (1432-1481) e D. João II (1455-1495) e do jacentes-pormenor. batalha. mosteiro de santa maria da vitória.
príncipe D. Afonso (1475-1491). capela do fundador. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 79
o r e t r ato d e d . j o ã o i n o m o s t e i r o d e s a n ta m a r i a d a v i tó r i a

A arca tumular de Dom João I 6. “Item mandamos que noso corpo se lamçe no
Moesteiro de Samta Maria da Vitoria, que nos
e de Dona Filipa de Lencastre mandamos fazer com a rrainha dona Felipa, my-
nha molher, a que Deus acreçente em sua glorya,
em aquell moymento em que ella jaaz, nom com
O moimento ou monumento funerário mandado executar por D. João I para acolher, os seus ossos della, mas em huum ataude, asy e
em arca única, os seus restos mortais e os de D. Filipa de Lencastre, sua esposa, em tall guisa que ella jaça em seu ataude e nos
constitui a segunda originalidade que importa desde logo assinalar. Trata-se de um em o noso, pero jaçamos ambos em huum moy-
sarcófago exento, de pedra calcária, constituído por uma grande arca paralelepipé- mento, asy como o nos mandamos fazer”
dica assente sobre oito leões, com os dois jacentes dos tumulados sobre a tampa (GOMES, Saúl António, ob. cit., pp. 134-135).

única, extensos epitáfios laudatórios de cada uma das personagens nos dois faciais 7. Esta deposição das ossadas em dois ataúdes
maiores e decoração heráldica e fitomórfica nos dois menores. distintos – em conjunto com a individualização
As dimensões da arca, verdadeiramente excepcionais – 375cm (de comprimento) X dos dois baldaquinos e a grande altura da arca,
que não permite visualizar do solo os dois jacen-
170cm (de largura) X 107cm (de altura), sem contar com os suportes, que lhe acres-
tes – poderá ser a razão pela qual Frei Luís de
centam com esta última medida 77cm –, ajustam-se convenientemente à realidade de
Sousa se refere à presente arca tumular como
nela se reunirem, mais até do que dois corpos, dois ataúdes distintos (no cumprimento sendo “dous moimentos tão juntos, que pare-
de uma determinação expressa exarada em testamento pelo próprio rei D. João I6), se- cem hum só” (História de São Domingos, Por-
paração que, contudo, dada a composição do monumento numa arca e tampa únicas, to, Lello e Irmãos, p. 637). Esta observação tem
apenas transparece nos jacentes e nos baldaquinos individuais que os cobrem7. sido tomada à letra por alguns historiadores que,
em continuidade, afirmam ser o actual sarcófa-
go uma segunda versão do túmulo primitivo de
D. João I e de D. Filipa de Lencastre: “Os túmu-
los reais seriam outros no passado”, afirma, sem
margem para dúvidas, Maria Helena da Cruz Coe-
lho (D. João I, Rio de Mouro, Círculo de Leitores,
2005, p. 290), na linha do que já anteriormente
avançara Maria José Goulão:
«duas arcas tumulares encostadas uma à outra,
unidas por uma tampa comum e posteriormen-
te refeitas num só bloco» (“Figuras do Além. A
escultura e a tumulária”, História da Arte Portu-
guesa, vol. II, Lisboa, Círculo de Leitores, 1995,
p. 171), por sua vez seguindo na esteira de Saúl
António Gomes (“Percursos em torno do Panteão
dinástico de Avis”, Biblos, vol. LXX, Coimbra,
1994). No entanto, nenhum destes historiadores
avança com qualquer indicação cronológica para
essa hipotética segunda versão do monumento
ou para as razões da sua feitura, limitando-se a
aceitar a observação de Frei Luís de Sousa. A cla-
reza da ordem de Dom João I, deixada no seu
testamento, relativamente à feitura de “huum
moymento”, a trasladação dos seus restos mor-
tais e da esposa em 1437, um ano após o pas-
samento do rei (significando com probabilidade
que a arca estava já pronta), a ausência aparente
fig.3 d. joão i. jacente-pormenor. batalha. mosteiro de santa maria da vitória. de quaisquer motivos para o incumprimento de
capela do fundador. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva.

80 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o r e t r ato d e d . j o ã o i n o m o s t e i r o d e s a n ta m a r i a d a v i tó r i a

tal determinação régia, a observação atenta (e Apresentadas numa comunhão que se quer sublinhar e é reforçada pelo toque das
fundamental) do próprio moimento, impedem- respectivas mãos direitas, as estátuas jacentes dos monarcas fundadores da dinastia
nos de aceitar aquela opinião. De resto, se as-
de Avis não deixam de marcar, na sua individualidade não menos óbvia de autênticas
sim fosse, porque razão se aproximariam deste
figuras retabulares – cada qual sob seu baldaquino e apoiada em mísula própria – as
segundo modelo que hoje podemos observar, de
arca e tampa únicas, e não desse outro primitivo,
duas metades de um conjunto, harmonizado pela moldura contínua que, envolvendo-
composto de duas arcas, todos os outros sarcó- as, define os limites da tampa e assim sublinha a sua unidade. O rebordo da tampa
fagos em que reconhecemos a influência mais ou encontra-se decorado com motivos vegetalistas (como vegetalista é também o friso
menos directa do novo paradigma inaugurado na que o separa, na base, da arca propriamente dita) entre que se interpõem as divisas
tumulária por D. João I? Note-se, de resto, que repetidas – por bem e y me plet – de D. João I e Dona Filipa de Lencastre, respec-
o corte visível entre os jacentes na tampa de um
tivamente, tornadas por este recurso simultaneamente singulares e indissociáveis,
dos monumentos de mais exacta cópia do mode-
num jogo que é o que anima, de resto, todo o discurso iconográfico e ideológico
lo joanino – o túmulo de D. Duarte e de D. Leo-
nor de Aragão –, foi feito aquando da deslocação corporizado neste túmulo.
da arca para as Capelas Imperfeitas já no século A decoração da arca tumular limita-se, sob o ponto de vista iconográfico, conforme já
XX, não relevando, por isso, de qualquer propos- avançámos, aos temas heráldico e vegetalista, concretizando-se o primeiro nas armas
ta inicial de individualização. da Ordem inglesa da Jarreteira, que ocupam o facial da cabeceira, e o segundo num
8. SOUSA, Frei Luís de, ob. cit., pp. 663-664 e desenho leve de caules entrançados de frondosa folhagem, inciso no facial dos pés.
668-669. A extensão dos dois epitáfios, que Frei Os lados maiores da arca encontram-se, por sua vez, cobertos em toda a extensão por
Luís de Sousa transcreve na totalidade (tanto na longos epitáfios laudatórios de cada um dos reis (em referência individual disposta no
língua latina original quanto na correspondente lado do monarca respectivo), mandados «entalhar n’ella por el-Rei dom Duarte seu
tradução para a língua portuguesa), não permite,
filho», conforme adianta Frei Luís de Sousa, na referida História de S. Domingos8.
pela economia deste artigo, que aqui proceda-
Sobre a tampa, que os ampara como se de uma parede vertical se tratasse, encon-
mos à sua transcrição.
tram-se, em decúbito dorsal, os jacentes de D. João I e de Dona Filipa de Lencastre.
9. Cfr. BARROCA, Mário Jorge, «Armamento
O jacente masculino enverga armadura completa, o chamado arnês branco, situação
medieval português. Notas sobre a evolução
que define uma nova originalidade protagonizada pelo túmulo de D. João I.
do equipamento militar das forças cristãs», Pera
Guerrear. Armamento Medieval no Espaço Por-
É a primeira vez, com efeito, que um jacente se apresenta totalmente revestido de
tuguês, Palmela, Câmara Municipal de Palmela, armadura, correspondendo à novidade da introdução no país do arnês integral, fe-
2000, p. 67-67. Apenas falta, compreensivel- nómeno verificável apenas no fim do século XIV, inícios do século XV9.
mente, na representação do arnês completo de Sobre a armadura, D. João I enverga um tabardo (também ele novidade na represen-
D. João I, a manopla ou guante da mão direi- tação de jacentes) que lhe desce até aos joelhos, decorado, no peito e nas mangas,
ta, por receber com ela a mão de Dona Filipa de
com as armas de Portugal (assim repetidas três vezes), formadas pela cruz flordeli-
Lencastre, e a protecção da cabeça, por ostentar,
sada, os castelos e as quinas – representação que resulta da decisão de transformar
em seu lugar, a coroa de rei.
a heráldica régia, levada a cabo por D. João I, de acordo com a informação de Fer-
10. LOPES, Fernão, Crónica de Dom João I, Barce-
não Lopes: «Este foy o Rey que enhadeo a cruz nas armas de Portuguual, porque a
los, Livraria Civilização-Editora, 1983, vol. II, p. 2.
ordem de que elle era Mestre traz huũa cruz verde em campo branco por armas»10.
11. CORREIA, Vergílio, “A Arte do Século XV”, A cabeça, coroada e sem cabelo visível, de orelhas pequenas e olhos abertos, repousa
Obras, vol. II, Coimbra, Universidade de Coim- sobre duas almofadas idênticas no tamanho, sem decoração nem borlas.
bra, 1949, p. 126.
Reconhecível «pela massicez, a espessura da gorja, o volume do rosto, a nitidez da
12. DIAS, Pedro, “O Gótico”, História da Arte em arquitectura facial», conforme a descrição que dela faz Vergílio Correia – afirmação
Portugal, vol. 4, Lisboa, Publicações Alfa, 1986, sustentada pelo contraste que reconhece entre este jacente e o de D. Filipa de Len-
p. 131.
castre –, a cabeça de D. João I resulta de uma opção realista do escultor, desejoso
de «bem retratar os fundadores da dinastia de Aviz»11.
Este entendimento de que se trata de um realismo assumido, continuando a ser su-
blinhado por Pedro Dias12, ganha contornos algo ambíguos na afirmação de Maria

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 81
o r e t r ato d e d . j o ã o i n o m o s t e i r o d e s a n ta m a r i a d a v i tó r i a

José Goulão, quando entende por tratamento realista a preocupação do escultor em 13. «…os jacentes, apesar de terem um trata-
fornecer um retrato dos monarcas13. mento cuidado de espelharem a preocupação de
retratar os monarcas...» (GOULÃO, Maria José,
É precisamente a necessidade de desfazer esta ambiguidade que leva Maria Helena
ob. cit., p. 170). Em continuidade, Maria José
da Cruz Coelho a afirmar que o rosto de D. João I é perfeitamente idealizado, não
Goulão levanta o problema dos prováveis restau-
tendo nada de realista, na medida em que não reflecte de modo nenhum a doença ros sofridos pelos jacentes que, por essa razão,
e a idade avançada (76 anos) que fariam decerto a realidade da face do rei aquando pouco terão a ver com o seu aspecto primitivo.
da sua morte14. De qualquer modo, e para além de alguma con-
Neste ponto, importa dizer que, se se pode falar de um certo grau de idealização, no tradição com a afirmação anterior, não se adianta
sentido de uma preferência dada ao tratamento da figura do monarca na plenitude nenhum argumento ou prova concreta para esta
última observação.
da sua vida e das suas faculdades (mais do que da sua juventude, pois trata-se da re-
presentação de um homem maduro, de meia idade), sobretudo se compararmos este 14. COELHO, Maria Helena da Cruz, ob. cit., p.
retrato com outros produzidos na mesma época, nomeadamente em França (onde se 290. Esta observação estende-se também à re-
presentação de Dona Filipa de Lencastre, cujo
explora já o realismo da representação através da modelação da máscara funerária),
rosto, segundo Maria Helena da Cruz Coelho,
não poderemos, por outro lado, deixar de referir a qualidade estética do rosto de D.
não possui ‘realismo’, uma vez que em nada con-
João I, representado com detalhes que lhe imprimem um extraordinário sentido de diz «com uma morte devido à peste».
vida, numa evolução clara relativamente ao tratamento estereotipado dos fácies dos
15. É o caso, por exemplo, do belo jacente de
jacentes do século XIV, mesmo dos de mais elevada qualidade15. É, portanto, uma
Domingos Joanes, na Capela dos Ferreiros da
expressão de grande serenidade, humanidade e maturidade de decisão, aquela que
igreja matriz de Oliveira do Hospital.
transparece neste rosto real, o rosto de um líder que «não era sanhudo nem cruell,
16. LOPES, Fernão, ob. cit., pp. 2-3. Importa su-
mas mança e byninamente castiguava: asy que ambas as virtudes que no Rey deve
blinhar que Fernão Lopes, no retrato literário que
daver, a saber, justiça e piedade, eraõ em elle compridamente»16. Esta é, em síntese,
traça de D. João I, nem por uma vez refere qual-
a imagem que Fernão Lopes, parco em palavras, constrói, literariamente, de D. João quer característica física, qualquer minudência ou
I; esta a imagem que o escultor eternizou porventura na mais expressiva memória sinal individualizador da aparência física do rei.
material deixada do rei – o seu jacente, em seu túmulo.
17. Conforme já escrevemos, «a figuração dos ja-
Estamos, de qualquer modo, perante uma das ambiguidades (ao menos em relação à centes é realizada não através de um retrato (no
forma como se entretecem hoje as nossas representações mentais) que caracterizam sentido moderno do termo) mais ou menos con-
o mundo da representação medieval. O naturalismo que se pressente nos rostos de D. seguido, mas por meio de uma imagem que pro-
João I e D. Filipa de Lencastre não tem a ver com o sentido de fidelidade na reprodu- cura fornecer a idealização que cada uma des-
ção dos fácies dos retratados, antes no realismo da imagem social, simbólica e ideo- sas personagens entende ser, perante os olhos
da sociedade, a mais adequada a si própria e
lógica destes personagens. O que está em causa não é a representação do indivíduo
ao grupo a que pertence» (SILVA, José Custódio
como hoje, em termos de retrato, a concebemos; o que está em causa é a sua caracte-
Vieira da, «Memória e Imagem – Reflexões so-
rização social, dada através da imagem/retrato evocativa do poder e da memória que bre Escultura Tumular Portuguesa (séculos XIII e
lhe corresponde e que assim é eternizada. XIV)», Revista de História da Arte, 1, Lisboa, Ins-
Naturalismo e idealização, unidos em aparente paradoxo, são, pois, duas faces re- tituto de História da Arte-Faculdade de Ciências
presentativas de uma só e mesma realidade17. Sociais e Humanas, 2005, pp. 56-57.
Esta dualidade de opostos parece aplicar-se também à representação do jacente 18. Não se trata de uma espada propriamente
propriamente dito. Com efeito, aquela vivacidade quase familiar do rosto de D. João dita, como tem sido várias vezes escrito, muito
I contrasta, em certa medida, com o formalismo da composição corporal. A pose do menos de um ceptro, como escreve Mário Bar-
rei, se bem que propiciada pela dureza do arnês completo que enverga, é uma pose roca (ob. cit., p.100). Pensamos que se trata de
um estoque de cerimónia ou estoque real, insíg-
de estado, algo rígida. A mão esquerda segura um estoque colocado ao centro do
nia que representava o poder e a justiça e que o
corpo, com folha de secção quadrangular18 e punho decorado com as armas de Por-
Condestável levava ao alto e fora da bainha dian-
tugal e da Ordem de Avis, envoltas num encordoado; o braço direito estende-se para te do rei, em cerimónias de maior aparato (cfr.
receber, na sua mão, a mão direita que D. Filipa de Lencastre lhe oferece. Enquanto

82 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o r e t r ato d e d . j o ã o i n o m o s t e i r o d e s a n ta m a r i a d a v i tó r i a

Enciclopédia Universal Ilustrada, vol. 22, Madrid-


Barcelona, Espasa Calpe, 1978; Grande Enciclo-
pédia Portuguesa e Brasileira, vol. X, Lisboa-Rio
de Janeiro, Editorial Enciclopédia).

19. CORREIA, Vergílio, ob. cit., p. 126. A propó-


sito do baldaquino, convém dizer que ele não
é (pelo menos no caso português) atributo de
realeza, como por vezes vem referido em diver-
sos historiadores. Os dois únicos jacentes de reis
conservados do século XIV – o de D. Dinis, na
igreja de Odivelas, o de D. Pedro, na igreja de
Alcobaça – não possuem esse atributo, ao con-
trário exactamente de um número considerável
de jacentes de damas e cavaleiros que, esses sim,
o ostentam.

fig.4 d. filipa de lencastre. jacente-pormenor. batalha. mosteiro de santa maria da


vitória. capela do fundador. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva.

os pés assentam sobre uma mísula de formulação vegetalista tardo-gótica, a cabeça


é protegida por um desenvolvido e elegante badaquino, cuja proposta de microar-
quitectura imita «interiormente, pelas nervuras das abóbadas, e exteriormente pela
sobreposição de corpos fenestrados e contrafortados de botaréus e arcobotantes,
uma construção ogival de quatrocentos, que sugere um modelo miniatural da pró-
pria Capela do Fundador, desprovida da agulha que primitivamente a dominava»19.
Baldaquino e mísula contribuem, em conjunto, para claramente conter a imagem de
D. João I num espaço bem delimitado da tampa da arca em que se expõe.
Colocado à direita do rei, o jacente feminino de D. Filipa de Lencastre veste túnica
sob manto, uma e outro decorados com um desenho levemente inciso de motivos
vegetalistas, o segundo preso no peito por um pequeno firmal de composição tam-
bém floral. A cabeça, coroada e sem véu (numa representação de grande novidade,
senão mesmo inédita), que permite a visibilidade dos cabelos curtos da rainha, re-
pousa sobre duas almofadas, maiores do que as de D. João I, mas, tal como estas
últimas, totalmente despojadas em termos decorativos. A expressão de D. Filipa
de Lencastre, de olhos abertos e lábios finamente lavrados, acompanha a do rei
no sentido da serenidade e no naturalismo dos pormenores, aspectos que tornam
ainda mais evidente a articulação do rosto com o tronco, ligados por um alto pes-

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 83
o r e t r ato d e d . j o ã o i n o m o s t e i r o d e s a n ta m a r i a d a v i tó r i a

coço que Vergílio Correia considera marca inequívoca da ascendência britânica da 20. «A cabeça da rainha, pequena e regular, en-
rainha20; no entanto, ele repete-se de forma mais ou menos pronunciada nas figuras quadrada por massas de cabelo ondeado desci-
das até à nuca, emerge sobre um pescoço alto
femininas dos túmulos conjuntos derivados do dos primeiros reis de Avis, como um
de britânica, a face simpática e uma serenidade
sinal modelar de elegância. É de novo um sentido de beleza ideal e de dignidade da
amável, como que contendo um sorriso.» (COR-
função social aquele que transparece neste rosto, de qualidade muito próxima, na REIA, Vergílio, ob. cit., p. 126).
sua modelação, do de D. João I.
De resto, o tratamento de toda a figura conforma-se a uma imagem convencional
de grande formalismo, ou seja, como esposa devota e fiel (os dois grandes atribu-
tos de uma rainha cristã), D. Filipa de Lencastre segura, com a mão esquerda, um
livro de orações – o atributo da devoção piedosa –, para com a direita tocar a mão
do marido – o sinal da fidelidade conjugal. Contrariando até um certo naturalismo
na disposição das vestes que fora conquistado já em alguns jacentes no século XIV,
o sentido de verticalidade no tratamento plástico do jacente da rainha é absoluto,
constituindo-se como manifestação, uma vez mais, desse jogo dúbio que constrói
largamente o fascínio da escultura tumular medieval, entre a ambiguidade da repre-
sentação horizontal do jacente e o hieratismo de alguém que é apresentado, ao alto,
em atitude de vida. Por contraste, no caso de D. Filipa de Lencastre esta formulação
ambígua é total, uma vez que não se verifica qualquer cedência à noção de uma
posição horizontal do jacente.

fig.5 armas de d. joão i e d. filipa de lencastre. extradorso dos baldaquinos. batalha, mosteiro de santa maria da vitória.
capela do fundador. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva.

84 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o r e t r ato d e d . j o ã o i n o m o s t e i r o d e s a n ta m a r i a d a v i tó r i a

21. LOPES, Fernão, ob. cit., vol. II, p. 3. Sugerindo um enquadramento idêntico ao de D. João I, um desenvolvido baldaqui-
no, de igual formulação arquitectónica e decorado também no extradorso com as
armas da rainha, protege-lhe a cabeça, enquanto uma mísula, de base vegetalista,
lhe suporta os pés, totalmente escondidos pela longa túnica.
A perfeita união dos monarcas de que este monumento quer ser expressão inequí-
voca, ainda que contida nos limites de um formalismo conveniente à elevada condi-
ção daqueles personagens, dá, em larga medida, sentido, nos elementos em que se
manifesta, ao novo paradigma que esta peça inaugura na escultura tumular medie-
val portuguesa. Com efeito, a apresentação dos reis num túmulo conjunto, por um
lado, e o elemento de afirmação conjugal que as mãos dadas corporizam, por outro,
constituem, no campo da referida produção escultórica, para além de uma novidade,
um verdadeiro modelo de representação que inspirará a perpetuação da memória de
outros casais, inclusivamente de casais nobres exteriores à realeza – como é o caso
(talvez, entre todos, o mais exemplar) de D. Pedro de Meneses e D. Beatriz Coutinho,
tumulados na Igreja da Graça, em Santarém, num monumento formal muito próximo
daquele mandado executar por D. João I.
De um modo geral, os historiadores têm reconhecido esta adopção de um modelo
tumular conjugal, inusitado em Portugal, como o resultado de um escolha deliberada
com finalidades propagandísticas – a afirmação do casal como exemplo de virtude
marital e base sólida de uma nova dinastia, igualmente modelar e virtuosa, que os reis
continuam a tutelar depois da morte, através da sua reunião na Capela do Fundador
do Mosteiro de Santa Maria da Vitória. Significativo parece-nos, de qualquer modo, o
facto de Fernão Lopes, hesitante no traçar do retrato do rei (o que faz sob um ponto
de vista meramente psicológico, de pendor moralista e apoiando-se nas palavras de
outros autores, mais próximos do monarca), reservar lugar considerável à caracteriza-
ção da relação matrimonial que D. João I manteve com D. Filipa de Lencastre, acom-
panhando, nesta preocupação, o programa do próprio túmulo: «Não se pode dizer
deste o que feamente se repremde em alguũs Reix que como asy seja quue nenhuũ
homẽ adur he abastamte pera hũa molher, pero elles leixamdo as suas e naõ sendo
de nenhuũaa, poes lhe huũa naõ avomda, emborulhamse com outras em gramde
periguo de suas almas e escamdolo do povo; mas ho louvor deste em semelhante
feito he muito de notar, porque tanto se austeve e castiguou de tall viçio, despoes
que tomouu por parceira a [muy esplamdeçente per linhagem e costumes] Rainha
dona Felipa, posto graõ casa de fremosa molheres trouvese quoanto livremẽte em
semelhante feyto poderá cumprir seu desejo. Homrou muito e amou sua molher de
onesto e saõ amor»21, conclui Fernão Lopes, em tom perfeitamente moralista.
A inexistência de qualquer modelo anterior de tumulação conjugal (embora, como
já dissemos, se possa reconhecer, em certa medida, como antecedentes a coloca-
ção conjunta de esposos em capela funerária própria, ao longo do século XIV), tem
orientado os historiadores de arte na procura de um referente estrangeiro que, de
modo mais directo, possa ter inspirado a opção seguida por D. João I. No quadro
dessa investigação, e apesar da aproximação morfológica apontada por Vergílio Cor-
reia relativamente ao túmulo de Carlos o Nobre de Navarra e de Leonor de Castela,

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 85
o r e t r ato d e d . j o ã o i n o m o s t e i r o d e s a n ta m a r i a d a v i tó r i a

fig.6 túmulo com jacente de fernão gomes de góis. oliveira do conde. igreja matriz. fig.7 túmulo com jacente de fernão teles
de meneses. coimbra. tentúgal. igreja do mosteiro de são marcos. © projecto imago. fotografias de josé custódio vieira da silva.

sua mulher, obra de Janin de Lome, de Tournai, existente na Catedral de Pamplona 22. CORREIA, Vergílio, ob. cit., p. 125.
(e que, segundo explicita o autor, Dieulafoy supõe inspirado, por sua vez, no moi- 23. «Como se sabe, D. Filipa de Lencastre era
mento de Felipe o Ousado)22, tem sido comum identificar aquele modelo com o país inglesa e o peso da cultura e dos costumes bri-
de origem da rainha D. Filipa de Lencastre, a Inglaterra, onde era vulgar este tipo tânicos foi intenso na corte de Lisboa, devido à
de túmulo conjunto23. De qualquer modo, a verdade é que foi sob a influência do sua acção. Não é de estranhar que também na
modelo inaugurado em Portugal pelo túmulo de D. João I e de D. Filipa de Lencastre construção do túmulo, o que só aconteceu depois
da morte da rainha, se tenha optado por um tipo
que outros casais se tumularam, originando a constituição de um grupo específico
muito divulgado na sua pátria» (DIAS, Pedro, ob.
e significativo da escultura funerária portuguesa quatrocentista. Representativos
cit., p. 131).
desta realidade são, para além do já referido monumento de D. Pedro de Meneses e
D. Beatriz Coutinho (Santarém, século XV - meados), os túmulos do rei D. Duarte e
da rainha D. Leonor de Aragão (Mosteiro da Batalha, século XV - primeira metade),
de Pêro Esteves Cogominho e Isabel Pinheiro (Igreja da Oliveira, Guimarães, século
XV - segundo quartel) e de D. Fernando de Meneses e D. Brites de Andrade (igreja
de Santa Clara, Vila do Conde, século XV - segundo quartel).
Uma outra importante novidade desta composição tumular dos reis fundadores da
dinastia de Avis é o facto de nela se encontrar praticamente ausente, pelo menos
numa referência imediata, qualquer sinal identificador do sagrado. Desapareceram,
sobre a tampa, os anjos que, ao longo do século XIV, muitas vezes surgiam a acom-
panhar ou a amparar com delicadeza o tumulado; desapareceram, nas faces da arca,
as iconografias do sagrado que, naquele mesmo período (e prolongando-se pelos
séculos XV e XVI), quase sempre introduziam, total ou parcialmente, este referente
do sagrado nos monumentos tumulares. No caso do túmulo conjunto de D. João I
e de D. Filipa de Lencastre, a sacralidade apenas é sugerida, em pequeno aponta-

86 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o r e t r ato d e d . j o ã o i n o m o s t e i r o d e s a n ta m a r i a d a v i tó r i a

fig.8 e 9 túmulo com jacente de rui valente. faro. sé. © projecto imago. fotografias de josé custódio vieira da silva.

24. Os restauradores oitocentistas do Mosteiro da mento, pelo Livro de Horas fechado, que a rainha segura com a sua mão esquerda,
Batalha retiraram, de forma consciente, todos os e também pelos baldaquinos que, apesar de tudo, encerram alguma (mesmo que
elementos definidores da religiosidade do espaço
ambígua) noção de sagrado24.
da Capela do Fundador, a começar pelo altar que
As novidades e a projecção do moimento dos primeiros reis de Avis não se esgotam,
se situava aos pés do túmulo do casal régio, en-
tre as colunas do octógono, e os restantes alta-
contudo, na inauguração de um novo paradigma de tumulação conjugal, nem a sua
res, situados nos arcossólios da parede esquerda conformação se revela subsequente, em exclusivo, de uma importação estrangeira.
da capela, dedicados aos infantes, de que resta Assim, note-se como a própria apresentação do monarca, revestido, como dissemos
somente um vestígio de pintura mural naquele já, de arnês completo, configura uma nova imagem do rei: ele é agora, por excelên-
outrora associado ao infante D. Pedro. cia, o chefe militar, porque foi em campos de batalha, em particular no de Aljubar-
rota, que D. João I ganhou em definitivo a legitimidade de se sentar no trono de
Portugal. Esta imagem de rei-soldado amplia-se e adquire uma maior profundidade
quando expressão do miles christianus, actor excelso na luta em defesa da fé que,
de modo expressivo, se concretiza, neste período específico da História portuguesa,
nos confrontos mantidos com os muçulmanos no Norte de África, particularmente
numerosos entre os anos de 1418 e 1419.
É, portanto, este contexto novo, historicamente iniciado com a tomada de Ceuta,
que dá sentido, complementarmente àquele de afirmação das virtudes maritais de
que falávamos, ao novo modelo de representação proposto no túmulo de D. João I,
cuja figura jacente se apresenta com armadura completa (e não já de túnica e manto,
como no século anterior), com estoque de cerimónia (que, embora tipologicamente
diferente da espada empunhada pela nobreza no século XIV, aprofunda esse sinal de
poder e de justiça que os senhores reclamavam para si) – em suma, “armado asim
como andaua na guerra dos mouros”, conforme se expressa, numa afirmação de

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 87
o r e t r ato d e d . j o ã o i n o m o s t e i r o d e s a n ta m a r i a d a v i tó r i a

enorme significado (até porque relativamente tardia), Rui Valente, no seu testamento, 25. Com túmulo na Sé de Faro, o respectivo ja-
em 146425. Este é, assim, o modo de apresentação mais usual que vemos concretizar- cente faz jus ao seu desejo, já que se apresenta
também de arnês completo, nos mesmos moldes
se nos jacentes masculinos da nobreza quatrocentista (apenas o estoque do jacente
do de D. João I. O monumento de Rui Valente,
batalhino, por que atributo régio, é substituído pela espada), quer os de túmulos
que constitui uma das descobertas mais recentes
conjuntos, quer os tumulados em situação individual: no primeiro caso, estão D. Pedro da arte medieval portuguesa, tem a originalida-
de Meneses (Santarém, m. 1437) e o rei D. Duarte (Batalha, m. 1438); no segundo de de ser feito em gesso, situação que, até ao
caso, estão Fernão Gomes de Góis (Oliveira da Conde, m. 1459), o infante D. Henri- presente, é de um ineditismo total; ao mesmo
que (Batalha, m. 1460), Rui Valente (Faro, c. 1460), D. Duarte de Meneses (Santarém, tempo, coloca a região algarvia na rota dos mo-
m. 1464), Fernando Casal (Alhos Vedros, m. 1476), D. João de Albuquerque (Aveiro, numentos medievais com jacente. Sobre este as-
sunto consulte-se, na Revista Monumentos, 24,
m. 1485-1486) e Fernão Teles de Meneses (Tentúgal, finais do século XV).
Lisboa, Direcção-Geral dos Edifícios e Monumen-
Analisando este fenómeno artístico, cujo alcance se projecta muito para lá da pura dinâ-
tos Nacionais, 2006, os artigos de José Custódio
mica das formas, deparamo-nos, afinal, com a demonstração porventura mais expressiva Vieira da Silva (A Capela de São Domingos e o
da abrangência e da eficácia, na sociedade portuguesa quatrocentista, de todo um ideal monumento funerário de Rui Valente da Sé de
de cavalaria medieva tardiamente ressuscitado que, no século XV, entra em contradição Faro, pp. 84-91) e de Fátima de Llera (A Capela
(constituindo mesmo um autêntico paradoxo) com a modernidade que a abertura ao de Rui Valente na Sé: estudo para a salvaguarda
mundo desconhecido proporciona, para construir uma dimensão fundamental e absolu- do monumento funerário, pp. 92-97).

tamente original da realidade portuguesa no dealbar da empresa dos Descobrimentos.


Neste contexto de determinação das novidades expressas e enraizadas pelo túmulo
dos primeiros reis da dinastia de Avis, não podemos deixar de insistir, ainda que em
breve apontamento, sobre o inusitado da representação da cabeleira descoberta
de D. Filipa de Lencastre, numa assumpção definitiva da proposta mais tímida do
jacente de Domingas Sabachais (em Oliveira do Hospital), cujo véu não cobre a to-
talidade dos cabelos, bem como a valorização do livro como único atributo. Embora
este último não represente por si só qualquer originalidade, uma vez que os jacentes
femininos trecentistas (como os existentes na Sé de Lisboa) são representados, nor-
malmente, com Livros de Horas abertos, a articulação do livro fechado com a pose
do jacente de Dona Filipa de Lencastre apela directamente para a imagem da Rainha
Santa Isabel, com túmulo na igreja de Santa Clara-a-Nova de Coimbra.

A arca tumular de D. Pedro de Meneses


e de Dona Beatriz Coutinho

Entre os túmulos que com maior fidelidade reproduzem o novo paradigma fundado
pelo monumento funerário de D. João I e D. Filipa de Lencastre, conta-se, como
dissemos, o de D. Pedro de Meneses e D. Beatriz Coutinho.
Situado na Igreja da Graça, em Santarém, no braço direito do transepto, compõe-se
de uma arca paralelepipédica, com decoração heráldica nos quatro faciais, assente
sobre oito leões e com os dois jacentes sobre a tampa, única e de rebordo cuida-
damente trabalhado com motivos heráldicos (o mote do tumulado), vegetalistas
(entrançados de ramos de carvalho) e figurativos (de que são exemplo os anjos
representados no lado da cabeceira).

88 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o r e t r ato d e d . j o ã o i n o m o s t e i r o d e s a n ta m a r i a d a v i tó r i a

26. É Dionísio David quem propõe esta cronolo- Foi este túmulo mandado executar por D. Leonor de Meneses, filha de D. Pedro de
gia, citando Carlos da Silva Tarouca que se apoia, Meneses e de D. Margarida de Miranda, sua primeira esposa, tendo-se concretiza-
por sua vez, na leitura do testamento de D. Leo-
do provavelmente entre os anos de 1455 e 146226. Falecida em 1452, Dona Leonor
nor: datado de 1452, nele se percebe que o tú-
não terá acompanhado a execução do monumento mas teve o cuidado de deixar
mulo não fora ainda sequer iniciado àquela data,
facto que Dionísio David conjuga com a realidade
expressas as suas intenções e os moldes em que aquele devia ser composto, no tes-
de D. Fernando, marido de D. Leonor (portan- tamento que mandou redigir poucos dias antes da sua morte: “...no mesmo lugar
to genro de D. Pedro de Meneses), ser referido que eu ordeno, porão suas armas tôdas e letreiro de boa memoria e da muita merce
nos epitáfios inscritos no túmulo como Conde que Deos lhe fez, em boas andanças que lhe deu, e como sempre venceu e nunca foy
de Arraiolos e Marquês de Vila Viçosa, título que vencido, segundo tudo cumpridamente e melhor puder ser. E suas bandeiras e armas
apenas recebeu a 25 de Maio de 1455 (DAVID,
d’estandarte sobre o muimento estem pendurandas (...) o qual muimento seja de
Dionísio M. M., Escultura Funerária Portuguesa
obra de suas batalhas e guerras dos mouros e seja da pelleja do terço d’Alemanha
do Século XV, Dissertação de Mestrado (polic.),
I Parte, Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e e desbarate que elle fez e grande fazanha”27.
Humanas, [1989], pp. 26-27). O verdadeiro programa iconográfico desejado por D. Leonor, explicitando a sua
preocupação com a perpetuação das virtudes militares de D. Pedro, vemo-lo cum-
27. TAROUCA, Carlos, «A Graça de Santarém»,
Brotéria, Vol. XXXV, 1942, pp. 409-10, cit. in
prir-se, afinal, quase só na imagem jacente do tumulado, numa apresentação de
Dionísio David, ob. cit., pp. 26-27. clara inspiração no túmulo joanino (e, de resto, sem qualquer dado específico de
individualização ou qualquer inovação relativamente a este último), e na cabeça de
28. Vários foram os autores a insistir na aproxi-
negro representada entre as patas de um dos leões de suporte do túmulo, que alude
mação (evidente) entre os túmulos de D. Pedro
de Meneses e de D. João I. Vergílio Correia (Três directamente às suas funções militares desempenhadas no mundo africano onde o
Túmulos, Lxa, Portugália, 1924, p. 44) e Afonso conde vivera muitas das suas «boas andanças» e consolidara, em grande parte, o
Dornelas (História e Genealogia, Lxa, Typogra- seu prestígio como guerreiro e estratega28.
phia da Livraria Ferin, 1913-24, vol. 4, p. 55)
consideraram mesmo a existência de artistas co-
muns na realização das duas peças. Em 1995,
Maria José Goulão continuou a atribuir a feitura
daquele primeiro túmulo a um qualquer artista
da Batalha, datando-o de cerca de 1437 (ob. cit.,
p. 173), apesar da tese, em nosso entender bem
fundamentada e convincente, acerca da consu-
mação do mesmo na década de 50, exposta por
Dionísio David, em 1989 (vd. nota supra 27). O
que é verdadeiramente surpreendente é este tú-
mulo apresentar semelhanças tão profundas com
o de D. João I, atendendo às (sensivelmente)
duas décadas que os separam na sua execução.
Certamente que não terá sido o mesmo artista,
antes o modelo foi seguido muito de perto.

fig.10 túmulo com jacentes de d. pedro de meneses e d. beatriz coutinho. santarém.


igreja da graça. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 89
o r e t r ato d e d . j o ã o i n o m o s t e i r o d e s a n ta m a r i a d a v i tó r i a

29. Assim se compõe o brasão do tumulado: «cor-


tado de um traço, partido de dois, o que faz seis
quartéis: o I, III e IV [de oiro], dois lobos passan-
tes sotopostos [de púrpura] (Vilalobos); o II, IV e
VI [de oiro], quatro palas [de vermelho] (Lima);
e sôbre o todo de [oiro] liso (Meneses). Timbre:
cabeça de cervo esfolada, com sua pele, forman-
do esta uma sorte de paquife. (...) A divisa repe-
tida em várias partes do mausoléu era o famoso
ALEO. (...) O novo brasão foi adoptado por êstes
Meneses, evidentemente, para se distinguirem
dos outros Meneses de Cantanhede». Quanto
ao brasão de Dona Margarida «é um escudo em
lisonja, partido, ao I as armas do Conde, ao II
uma aspa acompanhada de quatro flores de lis
(Miranda), e o de D. Beatriz, tambêm em lisonja,
só difere do precedente em ter no II cinco estrê-
las de cinco pontas (Coutinho)» (FREIRE, Ansel-
mo Braamcamp, Brasões da Sala de Sintra, vol.
I, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda,
1966, pp. 122 e 127, respectivamente).

30. ZURARA, Gomes Eanes de, Crónica do Conde


Dom Pedro de Menezes, Porto, 1988 [reprodução
fig.11 túmulo com jacentes de d. pedro de menezes e d. beatriz coutinho. santarém.
fac-similada do exemplar existente na Biblioteca
igreja da graça. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva.
Pública de Braga (cota H.G. 1065 P.)], p. 18.

No que respeita à decoração da arca, podemos considerá-la circunscrita ao tema da


heráldica, já que os entrançados vegetalistas que preenchem os espaços deixados
vagos pela representação das armas integram, afinal, a repetição continuada do
mote de D. Pedro, constituído pela palavra aleo e repetido pela arca num total de
dez vezes. A decoração substantiva, embora em articulação com este motivo, é re-
presentada pelos brasões de D. Pedro de Meneses (nos faciais menores e no facial
maior da direita)29, de D. Margarida de Miranda, primeira mulher de D. Pedro, e de D.
Beatriz Coutinho, segunda mulher (no facial maior da esquerda), ambas tumuladas
com o conde neste monumento. Sobre a tampa, dispõem-se as figuras jacentes de
D. Pedro e de D. Beatriz, numa definição de verticalidade e com uma palpitação de
vida muito próximas das que conformam as estátuas dos primeiros reis de Avis, de
cuja qualidade não só igualmente se aproximam como até, porventura, suplantam.
D. Pedro de Meneses, filho de D. João Afonso Telo de Meneses, Conde de Viana, e neto
do Conde de Ourém, foi 1º Conde de Vila Real e 2º de Viana, títulos que, contudo, o
rei só lhe reconheceria depois de algum tempo de regência bem sucedida em Ceuta, de
que foi o primeiro capitão. Foi ainda Alferes do infante D. Duarte, futuro rei, «e sempre
amado delle, e honrado, ante que fosse Capitão, e muito mais depois que o foi»30.
O jacente de D. Pedro de Meneses, de corpo forte, pescoço curto e cabeça maciça,
enverga armadura completa, com tabardo até aos joelhos, decorado com as suas ar-

90 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o r e t r ato d e d . j o ã o i n o m o s t e i r o d e s a n ta m a r i a d a v i tó r i a

31. Idem, ob. cit., p. 16. mas pessoais, no peito e nas mangas, numa apresentação, como dissemos, não só
32. Idem, ob. cit., pp. 17-18. concordante e muito próxima da de D. João I, como também – e curiosamente – fiel
à descrição que de D. Pedro deixou Zurara, na crónica que lhe dedicou, onde o refe-
33. Em relação à representação da face do mes-
re como «homem em que ouve meãa estatura, corpo largo, e fortes membros»31. Em
mo, aparentemente idealizada e modelar, a ava-
liação mais correcta fica demasiado limitada pelo
continuidade, o cronista narra o papel activo que o conde desempenhou na defesa da
elevado grau de deterioração em que o calcário presença portuguesa em África, de tal modo cheia de peripécias «que dezasseis annos
de que é feita se encontra. trouxe huma cota vestida continuadamente, até que a rompeo per alguns lugares, como
se fôra sayo de pano, porque muitas vezes se acertava pelejar duas vezes no dia, e
assy porque rondava casy todallas noites a Cidade, e assy acabou em ella com grande
honra»32. É, portanto, como imagem evocadora de todo este brilhante percurso militar
e da correspondente ascensão social que podemos falar de realismo na composição do
jacente de D. Pedro de Meneses33. A cabeça, de cabelo curto e orelhas pronunciadas,
repousa sobre duas almofadas, isentas de qualquer decoração, sendo protegida por
desenvolvido baldaquino de delicada composição micro-arquitectural, com o extradorso
decorado com a divisa do tumulado. Os pés, por sua parte, assentam numa mísula cuja
base, embora já muito desfeita, acolhe o que parecem ser três figuras antropomórficas
masculinas que se entrelaçam numa combinação complexa com elementos vegetalistas.
Finalmente, e rematando com coerência todo um discurso fiel à proposta do túmulo de
D. João I e D. Filipa de Lencastre, refira-se o facto de D. Pedro de Meneses se apresen-
tar em pose de grande dignidade, o braço esquerdo dobrado sobre a cintura, supondo
o agarrar de qualquer objecto que se perdeu (uma espada, certamente), enquanto o
direito se volta para D. Beatriz, cuja mão direita recebe na sua.

fig.12 túmulo de d. pedro de menezes e d. beatriz coutinho. santarém. igreja da graça.


© projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 91
o r e t r ato d e d . j o ã o i n o m o s t e i r o d e s a n ta m a r i a d a v i tó r i a

D. Beatriz Coutinho, segunda mulher de D. Pedro, apresenta-se em atitude idêntica


à da rainha D. Filipa de Lencastre. Vestida com túnica sob manto, este último preso
no peito por um firmal de composição floral, e ambos caindo em pregas volumosas
sobre os pés, cobertos na totalidade e assentes sobre mísula idêntica à que suporta
o jacente do marido (decorada com o que aparentam ser figuras femininas), segura,
com a mão esquerda, um grosso Livro de Horas, fechado. A cabeça, assente sobre
duas almofadas não decoradas e protegida por baldaquino de formulação idêntica ao
de D. Pedro de Meneses, concretiza, nos cabelos totalmente cobertos por um véu,
a única diferença que a separa da figuração similar da rainha D. Filipa de Lencastre
– um dado que, longe de se esgotar em mero apontamento, e atendendo ainda à
elaboração consideravelmente mais tardia do jacente, revela a recuperação de um
tratamento mais tradicional. A face de D. Beatriz é serena, como a de D. Filipa de
Lencastre, mas esculpida com traços marcados de uma seriedade e compenetração
novos, que acompanham, no fundo, a maior austeridade que, no geral, se reconhece
na representação da sua figura.
Refira-se, finalmente, a novidade dos leões de suporte da arca, relativamente àqueles
em que se apoia o túmulo de D. João I e D. Filipa de Lencastre: não só apresentam,
cada um deles, detalhes individualistas de um naturalismo apelativo que acompa-
nham o nível estético da peça, no geral mais exuberante e surpreendente até do que
a dos primeiros monarcas da dinastia de Avis, mas também as suas funções simbó-
licas de guardiães e protectores dos corpos dos personagens inumados ganham um
surpreendente realismo nas presas, inteiras ou despedaçadas, que seguram entre as
patas dianteiras, entre as quais avulta, como já referimos, uma cabeça de negro. Nes-
te caso, os valores simbólicos exprimem-se por imagens apelativas da vida heróica,
passada em terras africanas, de D. Pedro de Meneses, cuja vitória definitiva sobre a
morte – através da memória perpetuada no seu monumento – celebram. Detalhes
deste realismo e, sobretudo, propostas iconográficas tão complexas, talvez só te-
nham equivalente nos suportes dos túmulos do rei D. Dinis e de D. Inês de Castro,
executados nos inícios e nos anos sessenta do século XIV, respectivamente.

A arca tumular de Dom Duarte


e Dona Leonor de Aragão

O túmulo de D. Duarte e D. Leonor de Aragão ocupa um lugar secundário nesta nossa


reflexão com centro no moimento de D. João I e D. Filipa de Lencastre, não só pela
evidência da distância que o separa da qualidade e da projecção deste último, como
também pela muitas dúvidas que a sua composição suscita.
É preciso, no entanto, destacar desde logo a opção de D. Duarte em construir uma
nova capela funerária, no Mosteiro da Batalha, para guardar a sua memória e da sua
linhagem: com esta atitude, autonomiza-se do progenitor, o rei D. João I, que previra
a Capela do Fundador como espaço destinado a outros reis e filhos de reis. Ao não

92 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o r e t r ato d e d . j o ã o i n o m o s t e i r o d e s a n ta m a r i a d a v i tó r i a

aceitar essa solução, demarca-se com clareza de seus pais e irmãos, afirmando, de
forma convincente, a sua identidade régia e a da sua progénie.
A capela que mandou construir, e que teve como arquitecto Huguet, desenha uma
planta octogonal, colocando-se as diferentes capelas funerárias (que assim ganham
uma autonomia que na Capela do Fundador não existe) numa disposição radiante
que torna mais dinâmico este espaço. Se Huguet tivesse logrado concluir esta obra
(só as mortes quase simultâneas do rei D. Duarte e do próprio arquitecto, em 1438,
impediram que tal se concretizasse), a abóbada que a cobriria deveria constituir um
outro momento de grande arrojo e criatividade, atentas as dimensões do vão, ainda
hoje impressionantes. Assim, essas capelas ficaram incompletas ou imperfeitas, nome
que a história lhes consignou.
O sarcófago em que repousa D. Duarte e sua esposa, colocado (apenas nos inícios do
século XX) na capela axial, concretiza-se, tal como o de D. João I, numa peça exenta,
composta de uma arca paralelepipédica sem decoração (exceptua-se, no facial dos
pés, uma muita tardia composição a enquadrar a inscrição com os nomes dos reis
aí sepultados), sem suportes e com dois jacentes sobre a tampa única, mais larga e

fig.13 túmulo com jacentes dos reis dom duarte e dona leonor de aragão. mosteiro da batalha. capelas imperfeitas.
© projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 93
o r e t r ato d e d . j o ã o i n o m o s t e i r o d e s a n ta m a r i a d a v i tó r i a

fig.14 túmulo com jacentes dos reis dom duarte e dona leonor de aragão. mosteiro da
batalha. capelas imperfeitas. © projecto imago. fotografia de josé custódio vieira da silva.

comprida do que a arca propriamente dita. Deste conjunto, contudo, apenas fazem 34. Ob. cit., p. 132.
parte do túmulo original, segundo Pedro Dias34 e Maria José Goulão35 a tampa e os 35. Ob. cit., p. 171.
jacentes que sobre ela se dispõem e que Vergílio Correia atribui ao terceiro mestre
36. Ob. cit., p. 39. A aceitar-se esta teoria, a
de obras do Mosteiro da Batalha, Martim Vasques (activo entre 1438-1448), ape-
responsabilidade da realização do túmulo de D.
nas por desempenhar esse cargo na altura da morte de D. Duarte. Partindo desta Duarte, atendendo à sua morte prematura, po-
tese, que aceita, e considerando o período de permanência do artista no cargo, que derá ser atribuída, com muita razoabilidade, a
relaciona com o ano de morte de D. Duarte (1438), Dionísio David propõe as datas seu irmão o infante D. Pedro, quando regente
de 1438 e 1442 (altura em que o escultor se encontrava já ocupado na execução do Reino.
dos sarcófagos dos Océm, destinados à Igreja de S. Domingos de Santarém) para 37. CORREIA, Vergílio, ob. cit., p. 126.
balizamento cronológico da feitura do túmulo36.
A filiação mais do que evidente dos jacentes de D. Duarte e de D. Leonor de Aragão
numa escultura com antecedentes nas figuras de D. João I e de D. Filipa de Lencastre,
não deixa, contudo de revelar muitas perplexidades. Com efeito, «imitação pouco
feliz, réplica incaracterística que não depõe a favor da continuidade ou progresso
artístico da escultura da Batalha»37, aqueles jacentes apresentam-se com uma rigidez
e uma frieza que não escondem uma execução infeliz, que ainda mais se evidencia
quando comparados com o modelo que supostamente os terá inspirado.
O jacente de D. Duarte, deitado de costas, enverga armadura completa, com tabardo
até aos joelhos, decorado com as armas de Portugal, no peito e nas mangas. A cabe-

94 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o r e t r ato d e d . j o ã o i n o m o s t e i r o d e s a n ta m a r i a d a v i tó r i a

ça, coroada e de cabelo curto, repousa sobre duas almofadas do mesmo tamanho e
sem qualquer decoração. A expressão é no geral bastante rígida e dominada por um
nariz muito vincado, por contraste com uns lábios quase imperceptíveis, de reduzi-
do volume. Supondo uma repetição do modelo de seu pai, é obtida numa execução
mecânica desprovida de inspiração, sem qualidade nem naturalismo. A própria forma
como repete os pormenores de envelhecimento dignificante que na figura de D. João
I exalavam um sentido marcante de naturalismo, como se nota com evidência ao nível
do tratamento do pescoço, é, na face da D. Duarte, de uma infelicidade surpreendente.
A pose de D. Duarte segue igualmente a de D. João I: a mão esquerda segura um es-
toque (aparentemente todo refeito), com o punho decorado com as armas de Portugal
e da Ordem da Jarreteira, a direita volta-se para receber a de Dona Leonor. Os pés
assentam sobre uma mísula de base trapezoidal, desprovida de qualquer decoração.
O jacente de D. Leonor veste túnica sob manto, este último preso no peito por um
desenvolvido firmal, ambos sem decoração e desenrolando-se num pregueado re-
lativamente rígido, que tende a naturalizar-se na direcção dos pés, que cobre na
totalidade. A cabeça, coroada e sem véu, de longos cabelos lisos que se prolongam
para trás das costas, repousa sobre duas almofadas lisas. O rictus facial está muito
próximo do de D. Duarte, destacando-se pela acusada inexpressividade e por uma
passiva frieza. A pose cumpre-se com o mesmo sentido da de D. Filipa de Lencas-
tre: a mão direita sobre a direita do marido, a esquerda segurando um livro. Os pés
assentam igualmente numa mísula de base trapezoidal, sem decoração.

Analisados, por esta forma, os problemas colocados pela Capela do Fundador e pelo
mausoléu de D. João I e de D. Filipa de Lencastre, ganharão sentido, assim pensamos,
todas as novidades a que nos referíamos na abertura destas reflexões, sobressaindo,
de modo particular, as que se relacionam tanto com o túmulo conjugal quanto com
o jacente de D. João I no Mosteiro de Santa Maria da Vitória (e, por extensão, com
os de outros nobres que mais se lhe aproximam).
De facto, a invenção joanina, quer ao nível da arquitectura quer ao nível da escultura
quer, sobretudo, ao nível das propostas iconográficas presentes no seu túmulo de
fundador da dinastia de Avis, rompe abruptamente com as tradições perseguidas
pela arte tumular portuguesa ao longo de todo o século XIV.
O túmulo duplo, a relação cúmplice expressa pelos jacentes dos dois esposos, a au-
sência de qualquer sinal do sagrado, os extensíssimos panegíricos lavrados em latim
nas faces maiores da arca, os cabelos visíveis de D. Filipa de Lencastre, o arnês bran-
co que veste pela primeira vez o corpo régio de D. João I (e também, por imitação,
os dos nobres seus vassalos), soldado/miles de uma idade nova, de um mundo em
mutação acelerada, em cuja transformação participa de forma consciente – eis as
propostas mais evidentes desta radicalidade profundamente inovadora.
Perante este quadro, uma vez mais as palavras visionárias de Fernão Lopes, no capí-
tulo CLXIII da Crónica de D. João I, parecem encontrar uma correspondência precisa:
«…fazemos aqui a septima hidade; na quall se levamtou outro mundo novo, e nova
geeraçom de gemtes». •

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 95
Resumo
Damião de Góis, na Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel, retrata o rei com alguma palavras-chave
minúcia mostrando-nos como era fisicamente mas também o que vestia, o que comia,
quais os seus gostos e hábitos, a sua forma de agir e de se mostrar. Mas é escassa a retrato
iconografia manuelina e não deixa de ter algum significado que, uma boa parte das renascimento
imagens identificadas com o rei Venturoso se encontrem em livros. Damião de Góis pintura
refere que “foi muito inclinado a letras, e letrados, e entendia bẽ ha lingoa Latina em q nuno gonçalves
fora doctrinado sendo moço (…)”; e também que “era mui entendido nas historias, e francisco de holanda
sobretudo nas Chronicas dos Reis destes Regnos, nas quaes se deleitaua tãto, que pe-
rante sim as fazia ler aho Prinçipe dõ Ioam seu filho (…)”. A importância da sua livraria
(Viterbo), atesta o seu amor pelos livros e o apreço que devotava à iluminura, gosto
documentado desde o início do seu reinado e que faz parte duma política de fausto,
dignificadora da imagem e da função real. Assim, vemo-lo representado nos livros das
Crónicas, recebendo-as das mãos do cronista, na Leitura Nova, onde, acima de tudo,
se revê nos seus símbolos, e em dois missais, o Missal Polifónico, datado de 1500, que
assinala o seu segundo casamento com D. Maria, o mais longo e mais prolífero, que
evidencia, também, o seu lado de melómano na escolha dos melhores compositores do
século XV, e o Missal Rico de Santa Cruz, do final do seu reinado, onde é figurado como
rei David. Ao fazer-se representar no livro litúrgico, juntamente com as suas armas, o
rei introduz a sua imagem em ambiente densamente sacral, em estreita união com a
palavra e a acção litúrgica, tornando-a objecto de culto e veneração. •
Abstract
Damião de Góis, Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel, portrays the king with some key-words
detail, showing us how he physically would look like, as well as the garments that he
wore, what he ate, his tastes and habits, his way of acting and of showing. However, portrait
Manueline iconography is rather rare and the fact that a good part of the images iden- renaissance
tified as belonging to the Venturous king are found in books surely has some significan- painting
ce. Damião de Góis mentions that he “was much inclined to letters, and literates, and nuno gonçalves
understood well the Latin language in which he was educated when he was a young francisco de holanda
boy (…)”; and that he “was knowledgeable of stories, especially the Chronicles of the
Kings of these Kingdoms, which he thoroughly enjoyed and would ask to read to him
and the Prince (…)”. The importance of his bookstore (Viterbo) attests to the love he
had of books and the appreciation towards illuminated manuscripts, a taste that was
documented from the beginning of his kingdom, part of a policy of ostentation, which
dignified his image and royal function. Thus, we see him portrayed in Crónicas, receiving
the illuminated manuscripts from the hands of the chronicler, in Missal Polifónico, dating
from 1500, which marks his second marriage to D. Maria, his longest and most prolific
marriage, illustrating his love of music due to his choice of 15th century composers, and
in Missal Rico of Santa Cruz, dating from the end of his reign, where he is represented
as King David. By portraying himself in a liturgical book, together with his weapons,
the king introduces his own image into a densely sacred environment, in a deep union
between word and liturgical action, making it an object of cult and reverence. •
retrato de d. manuel
na iluminura

h o ráci o au g u sto pe i x e i ro Entrada – A Imagem


Instituto Politécnico de Tomar.
“Foi el Rei D. Emanuel homẽ de boa statura, de corpo mais delicado que grosso, a
cabeça soblo redondo, hos cabelos castanhos, a testa aleuãtada, e bem descoberta
1. GÓIS, Damião de, Crónica do Felicíssimo rei D.
delles, hos olhos alegres, entre verdes, e brãcos, aluo, risonho, bẽ assõbrado, os
Manuel. Coimbra, 1955, IV, p. 223.
braços carnudos, e tã cõpridos q hos dedos das mãos lhe chegauã abaixo dos ge-
2. GÓIS, Damião de, ob. cit., p. 230.
olhos, tinha as pernas tão cõpridas, e tão bẽ feitas, segũdo a proporçã do corpo, q
nenhũa cousa mais se lhes podia desejar. (…) Foi muim limpo de sua pessoa, ga-
lante, e bem vestido, do que se prezaua tanto que quasi todolos dias vestia alg ũa
cousa noua (…)”1.
Na porta principal da igreja do mosteiro dos Jerónimos que fundou, pela sua devoção
a Nossa Senhora de Belém, para que fosse prestado auxílio espiritual aos marinhei-
ros e para aí fazer a sua sepultura, da sua mulher e dos seus filhos, “mandou elRei
(D. Manuel) poer ha sua imagẽ, de hũa parte, assentada em geolhos, em hũ setual,
cuberto de vestidos roçagantes, e da outra banda, também em geolhos, em outro
setual ha rainha donna Maria sua molher. Estas duas imagẽs são talhadas de vulto
em pedra lioz, e os rostos ambos tirados assaz bem aho natural.”2
Damião de Góis, na Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel, retrata o rei com alguma
minúcia mostrando-nos como era fisicamente mas também o que vestia, o que comia,
quais os seus gostos e hábitos, a sua forma de agir e de se mostrar. O cronista, que
faz esta descrição em 1567, quarenta e seis anos após a morte do rei, consegue ainda
ver, na escultura que Nicolau de Chanterenne havia feito, muito tempo antes, para a
porta principal da igreja dos Jerónimos, grandes semelhanças com as feições reais.
Mas não é por acaso que utiliza a palavra imagem para indicar as representações do
rei e da rainha. Anteriormente, na Idade Média, o retrato andava associado ao con-
ceito de imago, que, por meio de elementos geralmente identificáveis, estabelece
correspondência com a pessoa que se quer representar. Não era tanto a semelhança
que se procurava mas o sentido que se pretendia evocar.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 97
r e t r ato d e d . m a n u e l n a i l u m i n u r a

“A função mais elementar da imagem é criar um substituto que representa uma de- 3. NASCIMENTO, Aires do.. “Texto e imagem: au-
terminada realidade na sua ausência, ainda que apenas o faça parcialmente”3. tonomia e interdependência em processo de lei-
tura”, in BRANCO, António (dir. de), Figura. Fac.
Quando se autonomizou o sentido em ambiente sacral de culto, gerou-se a idolatria.
de Ciências Humanas e Sociais – Univ. Algarve,
S. Tomás de Aquino afirma que a imagem é um signo fundado sobre a relação de
Faro, 2001, p. 47.
similitude ordenada4. Isto quer dizer que se identifica mais pelos atributos conven-
cionais que pelos artifícios do desenho e da cor. No entanto, destinada a ensinar, 4. Cf. WIRTH, Jean, “Structure et fonction de
l’image chez Saint Thomas d’Aquin”, in BAS-
lembrar e sensibilizar5, transporta consigo uma intenção: transmitir uma mensagem
CHET, Jérôme, e SCHMITT, Jean-Caude (dir.
que ultrapassa o mero conteúdo temático integrando outros sentidos que lhe advêm
de), L’Image – Fonctions et usages des images
da cor, do brilho, da matéria e da forma, do enquadramento espacial, da profusão dos dans l’Occident médiéval. Paris, Le léopard d’Or,
ornatos decorativos mostrando o fausto, a riqueza, o poder, do uso que se faz dela. 1996, p. 44
Por exemplo, o uso da imagem do rei no livro litúrgico acrescenta-lhe significado e
5. Estas são as três funcionalidades da imagem
remete para funções inesperadas, como se verá. Ela participa mais ou menos estrei- medieval que o pensamento escolástico desen-
tamente dum contexto e da função do objecto em que se integra. Não é de somenos volveu. Ver S. Tomás de Aquino, In III Sententia,
importância perceber que a imagem no livro, num portal ou num retábulo é sempre d. 9, q. 1, a. 2, qla. 2, cit. In WIRTH, J., ob. cit.,
uma imagem situada. Na empaginação do livro manuscrito, o ornato e a imagem p.51, nota 35.
intervêm ao lado da palavra, cuja clareza lhe advém não só da lógica do discurso, 6. PACHT, Otto, Buchmalerei des Mittelalters.
mas também da construção da página, em que a estrutura se torna num importante Eine Einführung. Trad. ital. consultada: La mi-
elemento facilitador da leitura. Contribuem, pois, para o contínuo aperfeiçoamento niature medievale – Una introduzione, Torino,
do discurso escrito como simulacro da palavra proferida. É assim que, “na iluminura Bollati Boringhieri editorie, 1987, p. 189.

medieval cada motivo figurativo tinha uma dupla função, como parte da organiza- 7. NASCIMENTO, A. do, ob. cit., p. 14
ção ornamental da página e como elemento de representação”6, interferindo ambos
8. Ver DIDI-HUBERMAN, Georges, “Imitation,
no significado. Nesse sentido, a imagem fala, isto é, provoca um discurso, induz no représentation, fonction. Remarques sur un
leitor “graus de expansão de conhecimento”7. mythe épistémologique”. In BASCHET, J. e SCH-
As imagens, segundo a concepção que o Renascimento desenvolverá, são imita- MIDT, J.-C., L’image – fonctions et usages dans
ções, servem para imitar. É na boa imitação que se encontra a significação clara, l’Occident médiéval. Paris, Le léopard d’Or, 1996,
facilmente visível. A Idade Média, segundo Vasari, ao descurar o bom desenho e, p. 65-68.

portanto, a imitação, isto é, a imitação da natureza que confere a semelhança, a


referência reconhecível, atribui à imagem um significado não natural, alegórico ou
simbólico, permitindo todas as variações bizarras, o bestiário, a ausência de pers-
pectiva. Portanto, a imagem no Renascimento devia narrar com clareza opondo-se
à obscuridade da imagem medieval. Esta torna, contudo, evidente que a eficácia
ultrapassa a função.8
Para compreender a imagem do rei no livro teremos, com certeza, que pensar nas
suas funcionalidades diversas. Mas, como veremos, ela não é uma mera represen-
tação, um retrato, não tem apenas a função de ser cópia física do rei; mas torna-se
eficaz naquilo que narra, que rememora, que provoca.
É escassa a iconografia manuelina e não deixa de ter algum significado que uma parte
das imagens identificadas com o rei Venturoso se encontre em livros.
Damião de Góis refere que “foi muito inclinado a letras, e letrados, e entendia bẽ ha
lingoa Latina em q fora doctrinado sendo moço (…)”; e também que “era mui enten-
dido nas historias, e sobretudo nas Chronicas dos Reis destes Regnos, nas quaes se
deleitaua tãto, que perante sim as fazia ler aho Prinçipe dõ Ioam seu filho (…)”9.

98 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
r e t r ato d e d . m a n u e l n a i l u m i n u r a

9. GÓIS, D. de, ob. cit., p. A importância da sua livraria 10 atesta, também, o seu amor pelos livros, que envia
10. Ver VITERBO, Sousa, A Livraria Real especial- em grande quantidade, como valioso presente, ao Preste João.
mente no reinado de D. Manuel. Lisboa, Acade- É sabido o apreço em que, no tempo de D. Manuel, se tinha a iluminura, equiparada
mia Real das Sciencias de Lisboa, 1901. à pintura, “celestial maneira de pintar em este mundo” 11. O reinado do Venturoso
11. HOLANDA, Francisco de, Da Pintura Antiga.
parece ter-se iniciado sob o signo desta arte de ornar os livros, ainda que a outra
Lisboa, INCM, 1983, p. 201. “arte de escrever artificialmente” tivesse sido já inventada há cerca de quarenta
anos. O Livro das Sentenças e a Bíblia dos Jerónimos assinalam o seu primeiro ca-
12. Cf. DESWARTE, Sylvie, Les Enluminures da la
samento em 1497. Os Livros da Leitura Nova são empresa a que se abalança, logo
Leitura Nova . 1504-1552 – Études sur la culture
artistique au Portugal au temps de l’Humanisme. desde o início, e que não chega a completar. É a era de ouro, o cume da iluminura
Paris, F.C.Gulbenkian, 1977, p. 9-12. em Portugal que, segundo S. Deswarte, resulta de novas condições criadas, entre
as quais a riqueza da corte, a atracção de artistas estrangeiros e a opulência osten-
13. Damião de Góis, nascido em 1504 ( ?), o mes-
mo ano do príncipe D. João, depois D. João III, tada que rodeava as empresas do rei. A iluminura faz parte duma política de fausto,
foi pajem na corte desde os sete anos de idade. dignificadora da imagem e da função real12. Assim, vemo-lo representado nos livros
das Crónicas, recebendo-as das mãos do cronista, na Leitura Nova, onde, acima de
14. Vejam-se, por exemplo, os vitrais da Igreja de
Santa Maria da Vitória, na Batalha, onde o rei e a
tudo, se revê nos seus símbolos, e em dois missais, o Missal Polifónico, que assinala
rainha são representados de joelhos, em atitude o seu segundo casamento com D. Maria, em 1500, o mais longo e mais prolífero,
e aspecto semelhantes ao do portal. que evidencia, também, o seu lado de melómano na escolha dos melhores compo-
sitores do século XV, e o Missal Rico de Santa Cruz, do final do seu reinado, onde é
15. “Eu sou a porta. Se alguém entrar por mim
estará salvo”. Jo. 10, 9. figurado como rei David. Vamos ver que, ao fazer-se representar no livro litúrgico,
juntamente com as suas armas, o rei introduz a sua imagem em ambiente densamente
sacral, em estreita união com a palavra e a acção litúrgica, tornando-a objecto de
culto e veneração.

1. Ele é o Rei – a verdade da presença


Regressemos ao portal dos Jerónimos, uma boa entrada para esta nossa reflexão.
Dizíamos atrás que Damião de Góis, apesar do longo tempo de quarenta e seis anos
decorridos entre a morte do rei e o momento em que descreve o seu retrato no por-
tal da igreja de Belém, ainda vê nele a semelhança com a imagem que conservava
na memória e que havia sido construída durante alguns anos de convívio na corte 13.
É, pois, a referência fisionómica mais fiel, tirada ao natural, obra do francês Nicolau
de Chanterenne, transformando-se em modelo utilizado em outras obras14 e para
comparações fisionómicas com possíveis representações do rei. Se apontarmos para
o ano de 1515, altura em que o escultor foi contratado, D. Manuel teria quarenta e
seis anos de idade, em pleno vigor físico.
As imagens do rei e da rainha estão inseridas num dispositivo espacial que nos apro-
xima, de forma precisa, da sua função. É a porta axial do templo, virada a poente,
que, na simbólica cristã, é identificada com Cristo, que disse de si mesmo: “Eu sou a
porta…”15; por isso aí O vemos muitas vezes em majestade, rodeado pelos santos,
os apóstolos e toda a cúria celeste. O espaço da porta ocidental da igreja de Santa
Maria de Belém é acanhado, já o tinha sentido Damião de Góis, por causa duma
galeria que lhe servia de alpendre. Mesmo assim, aí coube um conjunto de imagens

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 99
r e t r ato d e d . m a n u e l n a i l u m i n u r a

que se distribuem no espaço à semelhança de um retábulo: as relativas à dedica- 16. As imagens dispõem-se em registos sobre-
ção da igreja – a Virgem da Anunciação, a Natividade, os Reis Magos; as imagens postos, podendo ver-se, ainda, para lá dos referi-
dos: em baixo, os quatro Evangelistas. S. Mateus
do rei e da rainha, ricamente vestidos, postos de joelhos e de perfil, um de cada
e S. Lucas, à esquerda, S. João e S. Marcos, à
lado, acompanhados pelos santos protectores – S. Jerónimo e S. João Baptista –
direita; a seguir, flauqueando a porta, S. Pedro
funcionando como doadores que, curiosamente não aparecem na parte inferior da pela esquerda e S. Paulo, pela direita, ladeados,
composição mas sensivelmente ao meio, postos em uma mísula com as respectivas respectivamente, por S. Tomé e Santo André, S.
insígnias, bem acima do comum dos mortais. A sua escala, idêntica à das imagens Filipe (?) e S. Tiago Menor, aparecendo em des-
dos santos protectores, é muito superior à das outras figuras: da Virgem, dos anjos taque, nos extremos, S. Bartolomeu, à esquerda
e dos santos16. Estão intencionalmente ali, daquela forma bem visível e clara, para e S. Vicente à direita.

garantir a sua protecção à instituição por eles fundada. Destacam-se, pois, pela 17. PASTOUREAU, Michel, “Les sceaux et la
posição, pela escala, pelo vestuário, pela atitude devota, afirmando a sua presen- fonction sociale des images”, in BASCHET, Jérô-
ça e, de certo modo, a propriedade, como uma imagem sigilar17, substituto do rei, me, e SCHMITT, Jean-Caude (dir. de), L’Image –
Fonctions et usages des images dans l’Occident
função atribuída também às insígnias, manifestando a sua santidade de ungido, de
médiéval. Paris, Le léopard d’Or, 1996, p. 294.
escolhido por Deus como David. A imagem e as insígnias do rei atestam a verdade
da sua presença, isto é, revelam o rei na sua verdade profunda de rei. Na mesma 18. HOLANDA, Francisco de, Do tirar polo natu-
igreja, onde queria ter sepultura em campa rasa, sem imagem, ficará vivo e presente ral (cap. I). Introd., notas e comentários de José
Felicidade Alves. Lisboa, Livros Horizonte, 1984,
para sempre. É essa a função da imagem do rei e das pessoas ilustres, como escreveu
p. 14 (edição com ortografia actualizada).
Francisco de Holanda: “Digo que estimo somente os claros príncipes e reis ou impe-
radores merecerem ser pintados e ficarem suas imagens e figuras e sua boa memória 19. D. MANUEL I, Rei de Portugal. Carta, 1511,
Jan. 10, determinando que os livros que vierem
aos futuros tempos e idades”18.
de fora do Reino não paguem sisa nem dízima.
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Chancelaria
de D. Manuel, L 2 11, fls. 18. Cópia fac-similar.
2. Eu sou o Rei – majestade e memória 20. ANTT, Casa Forte 136. Este Livro de Ho-
ras, provavelmente proveniente da Livraria do
Conservar a memória foi uma preocupação de D. Manuel quando mandou registar Mosteiro dos Jerónimos, foi impresso na oficina
e por em boa ordem a documentação que havia nos arquivos reais e organizar as parisiense de German Hardouyn c. de 1510 (ver
crónicas dos reis de Portugal. FRANCO, Anísio, Jerónimos – quatro séculos de
(Fig.1-3) Aí o vemos representado no prólogo das crónicas de D. Duarte, D. Afonso pintura. Sec. Est. Da Cult., 1992, v. II, p. 30).
V e de D. João II, da responsabilidade de Rui de Pina, em que se exalta o amor do
rei aos livros e à história, espelho dos bons exemplos do passado de que os livros
são os tesoureiros. O rei está sentado no trono, rodeado pelas suas insígnias, com a
coroa e o ceptro na mão, tal como nas xilogravuras das Ordenações Manuelinas que
mandou abrir e que começaram a ser impressas por Valentim Fernandes em 1512.
Ricamente vestido, de joelhos, o cronista entrega nas mãos do rei o fruto do seu
trabalho esperando a recompensa pela sua obra. O rei é, também, o mecenas que
patrocina as artes e que fomenta a elaboração e a publicação de livros, gozando
dalgumas regalias como a isenção de certas taxas, como pode ver-se numa carta de
D. Manuel de 10 de Janeiro de 1511, em que declara “que hos liuros deforma que
vierem de fora de estos Regnos se nom pague delles dizima nem sisa”19. Patrocinou
também a edição de livros dentro e fora do reino, como o célebre livro de horas edi-
tado em Paris e com as suas armas impressas no final, de que existe um exemplar
iluminado em velino na Torre do Tombo20.

100 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
r e t r ato d e d . m a n u e l n a i l u m i n u r a

fig.1-3 d. manuel no trono e cronista entregando o exemplar da crónica – prólogos das crónicas de: d. duarte. pt-tt-crn/16;
d. afonso v. pt_tt-crn/17; d. joão. pt-tt-crn/19. © imagens cedidas pelo antt.

21. Sobre o tema da representação em posição A figura do autor entregando a obra ao monarca pode ver-se, também, em duas das
frontal e de perfil, veja-se PASTOUREAU, M., xilogravuras que acompanham a edição das Ordenações.
Couleurs, images et symboles. Paris, Le Léopard
A majestade do rei, semelhante à Majestas Domini, é evidenciada pela entronização
d’Or, s. d., p. 160. O autor, depois de referir que
e posição frontal a que corresponde o texto do Prólogo, nas Crónicas, e o mote “Deo
os primeiros retratos do s. XIV não representam
um progresso artístico em relação às “imagines” in coelo tibi autem in mundo”, nas Ordenações21.
convencionais e às efígies da figuração medieval,
chama a atenção para a natureza heráldica, em-
blemática do rosto de perfil, diferente da vista 3. El-Rei – música e aparato
frontal que reenvia para o símbolo, representa-
ção duma ideia através da imagem sensível.
(Fig.4) Vamos agora demorar-nos um pouco mais em três obras em que a presen-
22. Los reyes bibliófilos, p.93. Outros nomes po- ça do rei se revela não apenas pelos seus símbolos, como é o mais frequente, mas
deriam ser atribuídos – Cantoral, Livro coral… também pela sua imagem.
23. SMEYERS, Maurits, Flemish illuminated A primeira é o Liber Missarum de D. Manuel I, também designado Missal Polifónico22
manuscripts – 1475-1550. Gent, Ludion Press, e Graduale23. É um livro de canto litúrgico da missa que contém a parte do Ordinário
1996, p. 38. cantada pelo coro: Kyrie , Gloria, Credo, Sanctus e Agnus Dei.
24. Alguns desses compositores são: Jacobus O Códice 1783 – Viena, OsterreichischeNational Bibliotheck, Liber Missarum, de 255
Barbirianus (Obretch) , Jean Jaspart , Alexandre, fls – 395 x 275 mm – contém dezoito missas polifónicas completas e duas incom-
Pierre de La Rue, Marbrianus de Orto, Josquin pletas dos mais importantes compositores do séc. XV24.
Desprez, Johannes Ghiselin (Verbonnet), Antoi- A construção da página tem em conta a distribuição das diferentes vozes (entre 3 e
ne Brumel.
9), tendo duas ou três vozes por página. Cada uma abre com iniciais, em geral cali-

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 101
r e t r ato d e d . m a n u e l n a i l u m i n u r a

fig.4 d. manuel de joelhos – missa virgo parens christi – liber missarum – códice 1783
© viena, osterreichische national bibliotheck.

grafadas – litterae cadassae25 –, por vezes ornadas com motivos feitos à pena, como 25. São letras ornadas, cujos traços, feitos à
coroas, folhas e flores, grotescos e filactérias legendadas. O trabalho do copista que pena, se entrecruzam como se fossem fitas. Ver
SMEYERS, Maurice, La miniature. Turnhout, Bre-
é, também, provavelmente, o anotador musical e o calígrafo das iniciais, precede a
pols, 1974, p. 40.
iluminação das seis páginas, como pode ver-se pela adaptação das cercaduras aos
grafismos preexistentes26. Pelas irregularidades e as faltas parece que o processo de 26. Sendo um trabalho oficinal, como se verá, a
elaboração do códice seria assim: primeiramente eram traçadas as pautas de acordo presença de vários intervenientes na realização
do códice é perfeitamente admissível. Esta pri-
com as vozes por página, depois as iniciais caligrafadas, (nem sempre), por fim o
meira análise, baseada no microfilme integral do
texto e a iluminura.
códice, a preto e branco, permite apenas formular
O Gradual abre com a missa Virgo Parens Christi de Jacobus Barbirianus, missa de algumas hipóteses, como, por exemplo, a relativa
cantus firmus, a cinco vozes e que em divisi chega a nove. No fl. 1v. existem duas ao copista, de que à frente se dirá.
iniciais historiadas com cercadura, inscritas em cartelas recortadas. A primeira é o
K do Kyrie eleison que emoldura uma cena representando a Virgem com o Menino,
entronizada sob um dossel onde paira a pomba do Espírito Santo, acompanhada por
anjos revestidos de dalmática, um tocando viola e outro sustentando um livro aberto.
O espaço é delimitado por um muro alto, ameado, alusão à invocação litânica da

102 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
r e t r ato d e d . m a n u e l n a i l u m i n u r a

27. “Daqui em diante, Burgos”. A fazer fé nesta Virgem – Torre de marfim (Turris eburnea). Na inicial U, correspondente ao tema e
pequena indicação, Martin Burgeois terá escrito que introduz o mote Uirgo Parens Christi, está inscrito o escudo do rei de Portugal,
o texto, anotado a música e desenhado as letras
em fundo de duas cores com 10 castelos. O iluminador não recebeu informações
caligrafadas a partir do fl 83v, Kyrie da Missa Pas-
correctas do ponto de vista da heráldica. A cercadura tem elementos da flora – cra-
chale de Allexander Agricola. A notícia do copista
vem em SMEYERS, Maurits, Flemish illuminated
vos, miosótis, ervilhas-de-cheiro, boninas, dedaleiras (?), morangos – e um pavão,
manuscripts. 1475-1550, ob. cit., p. 120. pintados em tromp-l’oeil, à maneira ganto-brugense.
Na página seguinte temos a mesma tipologia de iniciais com as armas da rainha D.
28. As informações são muito parcelares, baseadas
Maria, ladeadas por dois M maiúsculos – Manuel e Maria – e a esfera armilar com
em poucas e deficientes imagens disponíveis.
a legenda SPERA MUNDI. Ao alto, vemos a figura do rei ajoelhado num coxim em
29. SMEYERS, Maurits , Flemish illuminated ma-
atitude orante, com um livro aberto, sob um dossel, tendo por trás de si uma esfera
nuscripts. 1475-1550, ob. cit. , p. 120.
armilar com uma escala descomunal. No panejamento que recobre o genuflexório,
está várias vezes desenhada a inicial M maiúsculo. O rei veste cota de armas e es-
pada, com elmo à sua esquerda. Os escudos reais repetem-se no início das missas
seguintes de Barbirianus – Faux Perverse – e de Jean Jaspart – Princesse d’amorette.
Na quarta missa – Salve Sancta Parens, de compositor não identificado, a inicial S
historia o presépio, estendendo-se na margem de cabeça e de goteira tarjas com
elementos florais semelhantes aos da portada do Gradual.
Não existem referências sustentadas para a identificação dos artistas produtores do
livro. Sabemos que pertenceu ao rei D. Manuel, que o terá encomendado por ocasião
do seu segundo casamento, celebrado em 30 de Outubro de 1500, com D. Maria,
filha dos Reis Católicos. Assim o atestam as armas do rei e da rainha com as iniciais
M maiúsculos. O mesmo rei o doou a sua filha, a imperatriz Isabel, mulher de Carlos
V, tendo permanecido, desde então, na biblioteca imperial.
Uma possível indicação da autoria do trabalho do copista poderá encontrar-se numa
das litterae cadassae com a inscrição “hinc Burgos”, talvez Martin Bourgeois, que foi
calígrafo, compositor e organista, sendo-lhe atribuído o Gradual, semelhante a este,
de Filipe o Belo, arquiduque de Áustria, e Joana a Louca de Castela, executado em
Bruges ou Gand cerca de 1504-0627.
São várias as semelhanças dos dois Graduais 28: A escrita e a notação musical são
provavelmente da mesma ou das mesmas mãos, dadas as parecenças formais até do
registo musical. A composição da figura do rei Manuel e do arquiduque Filipe é idên-
tica: Vestem armadura, de cabeça descoberta, com o elmo, no chão, à sua esquerda;
os genuflexórios têm as iniciais dos respectivos nomes, bem como os escudos de
armas, o que permite supor que poderão ter sido feitos na mesma oficina. O mote do
Arquiduque Filipe Qui Voudra e Moi tout seul e ainda dive Austria, aparece escrito
em três iniciais caligrafadas na quinta missa, composta por Alexandre Agrícola – La
messe de malheur me bat – do Gradual de D. Manuel, o que faz supor que o texto
e a música e as iniciais caligrafadas foram copiadas do Gradual de Filipe, que serviu
de modelo. Por essa razão, as datas dos dois códices deverão aproximar-se. Ora o
códice da Biblioteca de Alberto I – ms. 9126 (o Gradual de Filipe e Joana a Louca) –
foi datado com alguma precisão entre 1504 e 1506, altura em que o arquiduque se
intitulou rei de Espanha, depois da morte de Isabel a Católica – o códice tem uma
missa em honra desse facto – e a sua morte que ocorreu em 150629. Poderia, pois,

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 103
r e t r ato d e d . m a n u e l n a i l u m i n u r a

o Gradual de D. Manuel ter sido encomendado por altura do seu casamento, vindo 30. Id. ibidem, p. 38.
a estar pronto apenas mais tarde, numa data próxima daquela. 31. MARKL, D.,, Lisboa, INCM, 1983, p. 32.
A iluminura do Gradual de Filipe tem sido atribuída ao mestre de Jaime IV da Es-
32. “An illuminated gradual containing polypho-
cócia, anónimo iluminador, activo em Gand e Bruges onde terá sofrido influências
nic masses was purchased from Flandres in 1500
de Simão Bening30. to mark the wedding of King Manuel I the Great
Quanto ao Gradual de D. Manuel, a única informação de que dispomos, neste mo- (d. 1521) to Mary, the daughter of Ferdinando
mento, sobre a sua autoria, é incorrecta: No catálogo da exposição Los Reyes and Isabella (Vienna, Osterreichische National-
Bibliófilos, organizada em Madrid, na Biblioteca Nacional, em 1986, em pequeno bibliothek, Cod. 1783).” SMEYERS, Maurits, ob.
brevete, indica-se como autor Francisco de Holanda que, em 1500, ainda não tinha cit., p. 38.

nascido. Nessa altura, seu pai António de Holanda teria, segundo Dagoberto Markl, 33. D. Manuel segue o gosto de monarcas euro-
cerca de 20 anos de idade. O mesmo autor pensa que, em 1500, poderia estar já em peus como o imperador Maximiliano, apreciador
Portugal depois de fazer a sua aprendizagem na oficina dos Bening 31. Num outro de livros iluminados, um dos quais foi ofereci-
do, mais tarde (1528-1530), a D. João III. Ver
catálogo, mais recente, de 1996, Flemish illuminated manuscripts, 1475 a 1550, da
SMEYERS, Maurits, ob. cit., pp. 126-127.
responsabilidade de Maurits Smeyers e Jan Van der Stock, refere-se este Gradual e
a possível data da encomenda, mas nada é dito sobre a autoria32. 34. Idem, p. 56. MARKL, D., o.c., p. 24-26.
As imagens da Virgem com o Menino e da Natividade, se bem que, com estas re- 35. GÓIS, D., ob. cit., p. 224.
produções não seja fácil estabelecer comparações, lembram-nos a pintura de Gand
e Bruges, nomeadamente Van der Goes ou Memmling, bem como a oficina dos Be-
ning. Mas estas sugestões ficam a aguardar ocasião mais favorável para poderem ser
devidamente aprofundadas. A realização desta pequena obra, quanto à iluminura e,
eventualmente, os projectos do rei, poderão ter trazido para Portugal, mais cedo do
que se pensava, o jovem António de Holanda, entre 1500 e 1506.
Como outras, esta é uma obra de série. É um livro comemorativo em que a imagem
do rei é, antes de mais, simbólica, necessitando de ser complementada pelos em-
blemas reais: a esfera armilar e as armas de D. Manuel e de Dona Maria, bem como
as iniciais dos seus nomes. É uma obra de prestígio33. As grandes encomendas ma-
nuelinas, entre as quais se conta provavelmente o Breviário Mayer Van den Berg34,
e o programa interno, atraindo artistas estrangeiros, é um gigantesco projecto sem
paralelo ao tempo. É uma obra que evidencia, também, a faceta de melómano, des-
crita por Damião de Góis ao fazer o retrato psicológico do rei: “Foi muito musico de
vontade, tanto que as mais das vezes que estava em despacho, e sempre pela sesta,
e depois que se lançava na cama, era com ter musica, e assi pêra esta musica de
câmara, quomo pêra sua capella tinha estremados cantores, e tangedores, que lhe
vinham de todalas partes Deuropa (…) pelo que tinha hua das melhores capellas
de quãntos reis e príncipes então viviam”35. Ao jantar e à ceia, nas festas e serões
que organizava, na caça ou quando se passeava pela cidade, fazia-se acompanhar
de música ruidosa de trombetas, cornetas, pandeiros, alaúdes, charamelas, harpas,
rebecas, para lá de cantores e bailadores.

104 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
r e t r ato d e d . m a n u e l n a i l u m i n u r a

36. S. Deswarte organiza os frontispícios em sé- 4. Rex Pacificus – aurea aetatis


ries e sub-séries. Para tipificar uma série tem em
conta “uma sequência homogénea, unificada pela
(Fig.5) O livro I de Além Douro, LN 1, mostra outra imagem do rei, que revela as
presença de elementos comuns a todas as ima-
suas aspirações messiânicas preditas nos sinais proféticos que acompanharam a sua
gens” (DESWARTE, ob. cit., p. 72): para caracteri-
zar a sub-série considera “a ocorrência do mesmo
escolha e que auguravam um movimento favorável da roda da fortuna.
vocabulário decorativo, composições e tratamen- É um dos 43 frontispícios iluminados da Leitura Nova, classificado por Silvie Deswar-
tos estilísticos semelhantes, em pelo menos duas te na II série36 que se caracteriza pela influência mista da Bíblia dos Jerónimos e
imagens,” (DESWARTE, ob. cit., 75-76). do estilo ganto-brugense – margens compartimentadas por tondi e com elementos
37. DESWARTE, ob. cit., p. 78. naturalistas (ramagens, figuras híbridas, candelabros)37. Ainda que o artista domi-
nante nesta série seja Álvaro Pires, este e mais três frontispícios, de técnica menos
38. Idem. p. 85. Os 43 frontispícios iluminados da
elaborada, são atribuídos a artista menor38.
Leitura Nova, “a mais honrada cousa de seme-
lhante calidade que em parte alguma do mundo O modelo mais próximo foi encontrado na Bíblia dos Jerónimos. A página é dividida
se possa ver”, (COSTA, Pereira da, Livro das Ilhas, em duas partes assimétricas, correspondendo sensivelmente ao rectângulo de pro-
1987, p. 53) apresentam-nos, de diferentes mo- gressão das diagonais. À cabeça, com 4 anjos portantes, dois no solo e dois esvoa-
dos, a imagem do rei. As suas intenções, expres- çando, centram-se as armas reais com 8 castelos e a coroa com 7 jóias que podemos
sas no Prólogo, de registar e conservar a memória ver, também, no chapéu da figura do rei, no fundo da letra D, e que são semelhantes
do passado para ordenar melhor o presente, es-
às iluminadas na Tabuada e no Prólogo de Nicolau de Lira da Bíblia dos Jerónimos,
tão enquadradas por variados e profusos ornatos
nas festas da Invenção da Santa Cruz – fl. 175r – e da Assunção de Nossa Senho-
e pelos seus símbolos. Iluminados à parte, falta
por vezes o texto do Prólogo, porém o nome do ra – fl. 206r - , no missal de Santa Cruz 28. Dois pares de putti sustentam esferas
rei está sempre presente como o verdadeiro texto armilares em paisagem campestre, com rosas em primeiro plano. Ao alto, rompendo
desta folha de rosto, escrito e iluminado desde as nuvens, a figura de Deus Pai, com a tiara e o globo, abençoa, sugerindo o mote
o início. que nos aparece nas Ordenações Manuelinas – Deo in coelo, tibi autem in mundo.
39. J. Baltrusaitis encontra a origem destes mo- Na parte inferior, o texto do prólogo, com a inicial D de D. Manuel, fitomórfica, em
tivos de tranças e entrelaços na arte e na escri- forma de balaústres divididos sob fundo rosa, enquadrando a figura do rei em frente
ta árabes, chegando ao Ocidente através dos de reposteiro, sobre uma paisagem, de perfil, vestindo pelote com pelica nos ombros
manuscritos, dos tecidos e, entre nós, também, e nos punhos e barrete adornado com uma jóia. Segura na mão esquerda um rolo e
pelos estuques, as decorações cerâmicas e os
aponta com a direita para o seu nome. Os diferentes espaços são bordejados com
esmaltes. Estes entrelaços cúficos passam mais
um filete construído com um motivo sugerindo um entrançado. No livro de LN 20, 4º
tarde para as litterae cadassae, tornando-se fre-
quentes no livro impresso. Ver J BALTRUSAITIS, da Estremadura, que nos mostra a Charola e o Convento de Tomar, pode ver-se este
La Edad Media Fantástica. Madrid, Cátedra, motivo, bem como na delimitação dos panos de muro lateral no interior da mesma
1994, 3.ª ed., p. 86-96. Portanto, estuques de- Charola39. As margens laterais e de pé apresentam motivos variados: flores, frutos,
corados e ornatos de livros repetem motivos fa- ramagens, aves e putti em fundo de cor alternada, rosa e azul. Vemos, ainda, dois
miliares e do gosto manuelino que tem também
óculos com músico junto ao rei e, à direita, uma figura repetindo simetricamente o
outras formas de manifestação na música e nos
seu gesto de apontar, tendo na mão uma filactéria em que se escreve: Rex pacificus
instrumentos musicais mouriscos.
manificatus est. Duas mulheres, pássaros e putti caçando enquadram o medalhão
40. Cancioneiro Geral. T. 2 (Coimbra, 1910), p. com moldura de inspiração renascentista com a cruz e os símbolos da paixão e um
58-75. A alegoria do paraíso está ligada, segundo
escudete sustentado por dois anjos com as cinco chagas. Semelhante motivo pode
Mário Martins, à espiritualidade franciscana que
ver-se no Missal Rico de Santa Cruz – fl.206r.
muito influenciou a vida espiritual portuguesa. A
Crónica dos Frades Menores (T. I, p. 280-282), Eis, pois, a figura do rei de perfil, deixando-se ver num ambiente paradisíaco que
refere que “o céu é um campo cheio de flores e evoca também a Paixão de Cristo. Glosando o texto do Génesis, no Cancioneiro Geral
de árvores de fruto”. Cf. MARTINS, Mário, Ale- descreve-se o Paraíso como um lugar verdejante onde não há sofrimento: «Da terra
gorias, símbolos e exemplos morais da literatura só nasciam ervas odoríferas e árvores de fruto»40. A cruz é esta árvore da salvação
medieval portuguesa. Lisboa, 1980, p. 300.
– Inter omnes arbor única – que S. Bernardo compara à videira mística que é Cristo

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 105
r e t r ato d e d . m a n u e l n a i l u m i n u r a

fig.5 d. manuel e a sibila – frontispício de além douro i – ln 1 – antt (pormenor). (in a luz do mundo - oceanos, 26, abril-junho, 1996, p. 27)

– Vitis vera lignum vitae – que aqui vemos frondosa e carregada de uvas. Parece 41. A Sibila prediz o futuro, a volta da Roda da
ecoar ainda o Libello de Aurea Aetate, de Egídio de Viterbo, que anuncia o advento Fortuna que exaltará o rei Manuel. A interpreta-
ção messiânica da IVª Bucólica de Virgílio, que
de uma nova idade de ouro, a idade de Cristo, e o papel do rei Manuel – Emanuel.
prevê a vinda de um salvador, tem acolhimento
O Rei Pacífico ( rex pacificus ) por excelência é o Messias, o Emanuel, anunciado por
em Gil Vicente, no Auto da Sibila Cassandra, e na
Isaías. O mensageiro ou mensageira, se se interpretar como figura feminina, poderia iconografia Manuelina, nomeadamente, no portal
ser a Sibila que vaticina, em fundo celeste, o advento do novo Messias – Rei Pacífico Manuelino da Igreja do Convento de Tomar, onde
que deve ser engrandecido41. a Sibila tem lugar ao lado dos profetas.
A associação da Paixão de Cristo, com a exuberante e refulgente Idade de Ouro,
42. Veja-se PEIXEIRO, H. e DIAZ FERRERO, “o
tem outras versões em duas obras manuelinas: no missal de Santa Cruz, fl. 217v., Horto do Esposo”, in LANCIANI, Júlia e TAVANI,
festa da Exaltação da Santa Cruz, em que a cercadura, que enquadra a página e so- Giuseppe (dir.), Dicionário da Literatura medieval
leniza a grande festividade crúzia, funciona como a deleitosa pradaria, prémio dos galega e portuguesa. Lisboa, ed. Caminho. 1993,
bem-aventurados, como se lê no Horto do Esposo42, lugar pacífico, simbolizado pela p. 315-317.

convivência de todos os animais, onde a dor, o sofrimento e a morte não têm lugar, 43. PEIXEIRO, H., “Um missal iluminado de Santa
visão idílica do paraíso primordial restaurado pela árvore da cruz,43 e na Charola Cruz”, in A Luz do mundo - Oceanos , 26, Abril-
do Convento de Tomar, que o rei mandou pintar toda de novo, refulgente de ouro, Junho, 1996, p.64-68

106 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
r e t r ato d e d . m a n u e l n a i l u m i n u r a

44. Paulo Pereira vê no conjunto ornamental da como se fosse uma obra nova, renascida, povoada com os seus símbolos, profusa
Charola de Tomar um programa cristocêntrico co- decoração simbólica e os instrumentos da Paixão de Cristo44. Aí, curiosamente, existe
mum a todo o edifício. Ver PEREIRA, Paulo, De
uma pintura, atribuída a Jorge Afonso, que poderá ser contemporânea da imagem
Aurea Aetate – O Coro do Convento de Cristo em
Tomar e a Simbólica Manuelina. Lisboa, IPPAR, dos Jerónimos, cujo tema é a Ressurreição de Lázaro. Em recente restauro, esta pin-
2003. Pode, também, ver-se aí uma alegoria do tura revela alterações significativas em dois pontos importantes: a figura de Lázaro,
claustro, lugar do apartamento do mundo, do que foi revestida com rica indumentária e a substituição da figura feminina, situada
combate em que o monge está empenhado e imediatamente atrás dele, por uma masculina, mais alta, que coloca o braço direito
onde encontra Cristo na contemplação, anteci-
sobre o ressuscitado e tapa o nariz com um lenço.
pando a visão beatífica que o espera, ideal ascé-
tico de todo o cristão, comum à literatura espiri- A razão destas alterações poderá ser a vontade do rei de se ver associado ao acto,
tual contemporânea, como a Regra dos Monges, taumatúrgico da ressurreição de Lázaro e homenagear, naquele lugar, a rainha Maria,
o Bosco Deleitoso, o Horto do Esposo, o Livro da talvez já falecida, que aí se vê no papel de Maria Madalena, santa venerada entre os
Vida Solitária. A abreviatura grega do nome Cris-
Templários, provavelmente por influência de S. Bernardo.
to XPS (Christos), a coroar a abóbada da charola,
rodeada alternadamente por esferas armilares e
cruzes da Ordem de Cristo, reforça esta ideia e
acentua o papel do rei nesta obra.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 1 07
108
r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
r e t r ato d e d . m a n u e l n a i l u m i n u r a

fig.6 início do temporal – missal rico – bpmp – sta. cruz 28, fl. 1. (in a luz do mundo - oceanos , 26, abril-junho, 1996, p. 53)
r e t r ato d e d . m a n u e l n a i l u m i n u r a

45. O estudo deste missal e a identificação do 5. O Ungido – david lusitanorum


provável retrato de D. Manuel foi pela primeira
vez publicado em Oceanos 26; ver nota 43.
O missal rico de Santa Cruz45
Um dos códices do programa manuelino é, assim o cremos, o Missal iluminado de
Santa Cruz de Coimbra (Sta. Cruz, 28/37), também denominado Missal Rico (Fig.
6 e 7). Possui 295 fls. agrupados em 37 cadernos, todos inicialmente quatérnios,
com assinatura na margem de pé do primeiro fólio. A regularidade desta construção
foi alterada pelas mutilações sofridas e pela introdução dum fólio no caderno 28,
contendo uma iluminura do Calvário, não prevista no plano inicial pois aparece-nos
no verso do fólio, quando a construção da página indicaria o recto, obra prova-
velmente devida a António de Holanda, pela semelhança com algumas páginas do
Livro de Horas dito de D. Manuel. Pertenceu à Livraria de Santa Cruz e foi, com
certeza, expressamente encomendado para o mosteiro de Coimbra, como se de-
preende do incipit, da iconografia e do Santoral. O explicit permite-nos formular a
hipótese de ter sido escrito no scriptorium crúzio. Na verdade, a invocação a Santo
Agostinho e a cruz floretada, em remate, são como que a assinatura do anónimo
copista conimbricense.
Este scriptorium está activo desde a fundação do mosteiro, como o prova a sua rica
livraria, mas esta obra quinhentista evidencia uma qualidade e um apuro formal
que, então, Santa Cruz já não possuía, como se poderá ver confrontando-a com o
Colectário Sta. Cruz 618, que copia, com alguma fidelidade, ainda que de forma um
tanto ingénua, algumas iniciais e cercaduras do Missal Rico.
O códice apresenta-se organizado com rigor, na regularidade dos cadernos, na de-
finição meticulosa da empaginação, com diferentes momentos identificáveis da sua
construção, denotando uma oficina com tarefas diferenciadas e artistas especiali-
zados: o copista, o rubricador, o filigranador, o anotador musical, os iluminadores.
Na iluminura das letras iniciais incompletas, podemos seguir o trabalho de vários
artistas, à semelhança das grandes oficinas flamengas, provavelmente diferentes
dos que executaram as páginas com cercaduras e o Calvário. Notamos, em primeiro
lugar, que a nítida e organizada compartimentação do espaço, com o texto dividido
em duas colunas e margens amplas, confere a este missal uma solenidade acrescida
própria do acto litúrgico e da importância da encomenda; depois, que os motivos
filigranados, ramagens, flores e aves, estendendo-se pelas margens, se assemelham
aos utilizados no programa da Leitura Nova; que a iluminura deste missal parece
ser obra dum conjunto de artistas externos, como pode depreender-se do exten-
so programa de iniciais filigranadas, fitomórficas, floreadas, historiadas, vinhetas
e cercaduras, desenhos no interior de letras do texto e nas margens e, por fim, a
iluminura do Calvário, de página inteira; que este programa ornamental, iniciado
provavelmente em 1517, sendo o rei D. Manuel viúvo, se aproxima dos trabalhos de
António de Holanda e Álvaro Pires. Se o primeiro trouxe à iluminura portuguesa o
gosto ganto-brugense, foi Álvaro Pires que mais rapidamente assimilou a maneira
italiana. O seu nome (Álvarus) aparece no Livro 11 da Estremadura, datado de 1527;

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 109
r e t r ato d e d . m a n u e l n a i l u m i n u r a

contudo, o seu estilo pode ser referenciado na Leitura Nova a partir de 1510. O nome 46. Ver MOREIRA, Rafael, Jerónimos. Lisboa, Ed.
de Álvaro Pires “luminador” é referido também no caderno de despesas das obras Verbo, 1987, p. 20-21.

de Belém, no ano de 1514, por “caligrafar e illuminar, juntamente com o escrivão 47. BNL, Alc. 26, fl. 5r.
João Rodrigues, os livros de Coro e de Missa.”46 Agentes importantes do programa
48. I Sam., 16; II Sam., 2, 5 e 7; Sl. 88.
régio, no que respeita à iluminura, Holanda e Álvaro Pires poderiam ter colaborado
no Missal Rico de Sta. Cruz, onde são visíveis, por um lado, semelhanças de estilo 49. Is. 7, 13-14; 9,7

e de motivos quer com o Livro de Horas dito de D. Manuel quer com o conjunto de 50. Is. 11, 1.
códices da Leitura Nova atribuíveis a Álvaro Pires.
Olhemos, então, para o frontispício – fl. 1r – em que se inicia a missa do primeiro
domingo do Advento, cuja iluminura segue o programa ornamental, constando de
uma cercadura e de uma inicial historiada, reservado para assinalar os momentos
mais importantes do ano litúrgico, o cânone da missa, o início do Santoral e as três
festividades do calendário crúzio – a Invenção e a Exaltação da Santa Cruz e a As-
sunção da Virgem.
A inicial historiada do intróito – “ Ad te levavi animam meam…” – ocupa cinco UR
e está inscrita num quadrado de fundo azul alinhado com a justificação. O corpo da
letra fitomórfica (tronco, ramos, folhas de acanto secas) enquadra uma figura de meio
corpo, posta de perfil, com barba, revestida com manto de brocado guarnecido com
pelica e tendo na cabeça um chapéu de aba posterior levantada com uma coroa que
é igual à que acompanha o escudo real na margem de pé. Destacando-se sobre um
fundo azul celeste, os olhos levantados para o alto de onde raia uma luz divina, esta
figura, tocando harpa, representa o rei David. O iluminador revela um bom domínio
das técnicas de claro-escuro e um tratamento da figura de forma naturalista, como
se fora um retrato.
É vário o programa iconográfico do primeiro domingo do Advento. O mais frequente
relaciona-se com o sentido literal do intróito: uma alma, em forma de figura nua, a
desprender-se do corpo ou a ser elevada para Deus – anima clypeata –, tal como
aparece no missal alcobacense do séc. XIV47.
A ligação de David com o Advento tem a ver com o duplo sentido que este adqui-
re. O primeiro designa, tal como o Natal e a Epifania, a vinda de Cristo na carne,
inaugurando os tempos messiânicos, e o seu regresso glorioso no fim dos tempos,
coroando a sua obra redentora; o segundo sentido, introduzido na liturgia romana
no séc. VII, é o de tempo de espera que os textos proféticos de Isaías e os referidos
a João Baptista alimentam. David, oitavo filho de Jessé, natural de Belém, pastor,
foi escolhido por Deus para ser ungido rei. Fundador da dinastia de Israel, é o mo-
delo de todos os reis. O Messias, segundo a profecia de Natan, havia de sair da sua
descendência48; e Isaías profetiza que o Emanuel estabelecerá o seu império eterno
sobre o trono de David49. Tal como João Baptista, preparou o advento do Messias
que sairá como um rebento do tronco de Jessé50.
É, então, adequada a presença do rei David no início do Advento, tocando o saltério,
introduzindo o ano litúrgico. Esta figura sagrada no espaço e tempo sagrados, poderá
ser a vera efígie do rei D. Manuel I. De facto, este missal faz parte, com toda a proba-
bilidade, do programa deste monarca para Santa Cruz, que compreendia a construção

110 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
r e t r ato d e d . m a n u e l n a i l u m i n u r a

51. Este modelo de mascarão, por vezes coroado, da igreja, a recolocação e reedificação dos túmulos reais, a pintura do retábulo do
pode ver-se na decoração escultórica dos edifí- altar mor e, à semelhança de Belém e Tomar, a iluminura de livros litúrgicos, sendo,
cios manuelinos, como no portal poente e pilares
talvez, um daqueles códices de “cantoria” e “muitos outros”, encomendados por D.
da igreja dos Jerónimos.
Manuel, a que Thomé Lopez se refere e que estavam incompletos ainda em 1526,
cinco anos após a morte do rei.
A cercadura contém elementos iconográficos que permitem estabelecer aquelas re-
lações: na cabeceira, duas figurinhas aladas, de joelhos, sustentam a lança e a es-
ponja, atributos da paixão, e um escudo recortado em forma de bucrâneo com o
sinal da cruz, emblema dos cónegos regrantes conimbricenses; na margem de goteira
desenvolve-se um motivo de grotescos renascentistas do tipo da coluna candela-
bro, iniciando-se num mascarão e rematando com cornucópia, símbolo da fortuna
e um botão de rosa, que poderá ser equivalente à arvore que, nascendo na cabeça
de Jessé51, é coroada pela rosa virginal a que se associam as virtudes e qualidades
próprias do rei, completadas, na margem de pé, com as armas reais: o escudo, so-

fig.7 d. manuel como rei david – inicial do intróito do 1.º domingo do advento
– missal rico – bpmp – sta. cruz 28, fl 1 (pormenor). (in a luz do mundo - oceanos , 26,
abril-junho, 1996, p. 53)

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 111
r e t r ato d e d . m a n u e l n a i l u m i n u r a

brepujado pela coroa e ladeado por duas esferas armilares com a legenda SPERA 52. BARROS, João, Crónica do Imperador Clari-
MUNDI. A simbologia manuelina está aqui claramente representada, caracterizando mundo. 1953, vol. I, p. 102.

esta obra como uma empresa régia, acompanhada pela imagem do rei, que algumas 53. Sobre o messianismo manuelino ver também
vezes se fez representar como rei David e até com ele identificado, como no discur- COSTA, João P.O., D. Manuel I, Lisboa, Círculo de
so de Egídio de Viterbo, proferido perante o Papa Júlio II, em que é apelidado de Leitores, de 2005, p. 175-179.
David Lusitanorum.
A presença do rei na portada do missal, na entrada do ano litúrgico e no intróito
da missa, prefigura, ainda, o ritual da entrada real, manifestando a legitimidade do
monarca, de várias maneiras reafirmada, pela sua descendência mas especialmente
pela sua santidade, atestada no acto da coroação e da unção real, sinais visíveis da
escolha divina, recaindo no presente sobre D. Manuel, tal como no passado sobre
o rei David.
Assim, por meio deste retrato pintado, com semelhanças a D. Manuel, viúvo pela
segunda vez, posto em ambiente sagrado, a imagem do rei oferece-se como objecto
de culto e devoção tal como as insígnias reais que João de Barros achava dignas de
serem “adoradas por amor e temor”52.

6. A porta
Fica, assim, completo um percurso que iniciámos no portal de Santa Maria de Belém
onde o régio casal, rodeado pelos seus santos protectores S. Jerónimo – o Padro-
eiro da Ordem Hieronimita – e S. João Baptista – o Precursor –, está presente, em
imagens de rostos “assaz bem tirados ao natural”, para terminar na portada dum
missal que, provavelmente, o rei não terá visto concluído, pois não será a ele que
se refere no seu testamento onde se indica um “ livro de pergaminho enluminado
douro, cuberto de veludo cremesym com hua imagem del rey Davit, sem brochas, e
andava na recepta de Álvaro Costa por livro de rezar”.
Não deixa de ter significado o facto de as imagens do rei, que estivemos a contem-
plar, aparecerem estruturalmente associadas ao portal, a prólogos, ao frontispício,
ao intróito, ao começo por onde obrigatoriamente se tem de passar.
É na qualidade de rei que D. Manuel se faz representar aí, qual porta de entrada
na nova idade, imagem eficaz, cujo sentido se revela na intencionalidade da sua
construção e das relações sugeridas, com o propósito, a um tempo, de tornar claro
o significado e de mostrar que nela se realiza aquilo que anuncia.
Nos livros, como na arquitectura, na pintura ou na escultura, o programa de D.
Manuel revela coerência desde o início, ainda que, como bem nota Paulo Pereira,
se torne evidente uma espécie de investidura messiânica a partir do discurso que
envolve e interpreta a sua missão53 que vai para lá da ventura, das voltas da roda da
fortuna. A imagem do rei adquire, daí em diante, novos significados. •

112 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
fig.8 d. manuel e a sibila – frontispício de além douro i – ln 1 – antt. (in a luz do mundo - oceanos, 26, abril-junho, 1996, p. 27)

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
r e t r ato d e d . m a n u e l n a i l u m i n u r a

113
Resumo
Estudar a arte do retrato em Portugal, em particular a produzida entre o final da palavras-chave
Idade Média e o Renascimento, constitui o objecto da actual reflexão. Ao longo
do período considerado, vários espécimes de retrato foram executados sob os mais retrato
diversos formatos, materiais, tipos e qualidades. A identificação e a análise dos prin- renascimento
cipais testemunhos da arte do Retrato entre nós e o estabelecimento de paradigmas pintura
e práticas de representação serão inquietações que nos acompanharão ao longo do nuno gonçalves
nosso trabalho. A contextualização histórica e o estabelecimento de vocabulário es- francisco de holanda
pecífico sobre a retratística moderna nacional, bem como de uma tipologia flexível
mas rigorosa, assumirão particular destaque durante o presente artigo. •

Abstract
The art of portraiture in Portugal, particularly that of the Middle Ages and the Re- key-words
naissance, is the main object of this study. Various examples of portraits were made
under the most diverse formats, materials and types. The identification and analysis portrait
of the main portraits produced and the establishment of practises of representation renaissance
are concerns that will be focused in this work. The historical context and the setting painting
up of specific vocabulary in the study of portraiture, as well as a flexible yet rigorous nuno gonçalves
typology, are also key issues of this essay. • francisco de holanda
a arte do retrato
em portugal
nos séculos xv e xvi
problemas, metodologia,
linhas de investigação

p ed ro f lo r O presente trabalho centra as atenções na principal produção retratística portu-


Universidade Aberta. guesa desenvolvida durante o período coincidente com o Gótico tardio e com o
Renascimento pleno.1 Numa primeira parte, dedicar-nos-emos a aspectos gerais, à
contextualização histórica e a questões de ordem teórica, como o estabelecimento
1. Este artigo resulta, em parte, da intervenção
de vocabulário específico sobre a matéria e de uma tipologia de retrato, flexível
que realizámos a 2 de Maio de 2007 na Faculda-
mas rigorosa. Numa segunda parte, procuraremos analisar alguns exemplos entre
de de Ciências Sociais e Humanas da Universi-
dade Nova de Lisboa, no âmbito do XI Curso de a realização dos apelidados “Painéis de São Vicente”, um dos primeiros conjuntos
História da Arte, dedicado em exclusivo ao Retra- característicos da modernidade em território nacional, e a partida de Portugal, em
to. Agradecemos à Doutora Raquel Henriques da 1553, do pintor flamengo Anthonis Mor (c. 1517-1577), após ter desenvolvido entre
Silva o convite endereçado no sentido de partici- nós o Retrato de Corte, tão apreciado e sintomático do Renascimento europeu. Não
par nessa iniciativa. desejamos efectuar análise pormenorizada sobre esta temática, campo científico de
2. Devemos neste contexto salientar os trabalhos investigação demasiado vasto para ser abordado aqui exaustivamente. Importa sim
de Annemarie Jordan-Gschwend, Joaquim de Oli- traçar as principais linhas de força caracterizadoras da arte do retrato em Portugal,
veira Caetano, José-Augusto França e Vítor Serrão entre o fim da Idade Média e o Renascimento.
devidamente citados na bibliografia final. A nossa
O estudo da retratística nacional, produzida na época considerada, constitui tarefa
tese de Doutoramento, apresentada em Outubro
urgente, ainda não merecedora de suficiente atenção por parte da comunidade cien-
de 2006 na Universidade Aberta, intitulada A
Arte do Retrato em Portugal: entre o fim da Idade tífica.2 O desenvolvimento de pesquisas, baseadas na mera identificação do modelo
Média e o Renascimento, insere-se precisamente representado, questão pouco válida na tarefa de abordar a retratística no tempo do
neste núcleo restrito de trabalhos, dedicados em Renascimento, não tem criado resultados satisfatórios, prendendo a historiografia da
exclusivo ao estudo da retratística nacional. arte a um aspecto relevante mas de somenos importância.3 Se os estudos dedicados
3. Devemos recordar neste âmbito a vasta litera- à arte do retrato se relacionassem apenas com tal tarefa, correríamos o sério risco de
tura produzida em torno da “verdadeira” icono- nunca avançar para um trabalho de natureza mais alargada, dado o carácter icónico,
grafia do Infante D. Henrique, do rei D. João II, simbólico e generalista que, tantas vezes, as figuras apresentam.
de Vasco da Gama e de Luís de Camões, só para Para a elaboração do presente trabalho, tornou-se essencial conhecer a produção
citarmos os casos mais flagrantes.
historiográfica internacional. Obrigados a proceder a criteriosa selecção, dada a
vastidão de instrumentos bibliográficos e iconográficos existente, elegemos como

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 115
a a r t e d o r e t r ato e m p o r t u g a l n o s s é c u l o s x v e x v i

directivas metodológicas as protagonizadas pelos contributos estrangeiros de Ga- 4. Cf. com referências completas na bibliografia
lienne e Pierre Francastel, Enrico Castelnuovo, John Pope-Hennessy e Lorne Cam- final.

pbell.4 Acima de tudo, tentámos produzir um discurso crítico coerente sobre a arte 5. Sobre o conceito de cripto-história da arte, ver
do Retrato em Portugal através da convergência de perspectivas de abordagem e Vítor SERRÃO, A Cripto História da Arte, Lisboa,
da complementaridade de cada um destes modelos de análise. Livros Horizonte, 2001.
Como vimos, a baliza cronológica que criámos para o nosso trabalho contempla o
sucedido no século XV, centúria coincidente com a estabilização dos cânones de re-
presentação da figura humana, através das primeiras tentativas de individualização
do modelo, sobretudo por influência estrangeira. Com efeito, o panorama nacional
parece debater-se nesta época com a escassez de mão-de-obra especializada na arte
de retratar, tendo a Coroa de recorrer, com frequência, a executantes estrangeiros
para satisfazer as suas encomendas. Por seu turno, o século XVI é período relativo
ao triunfo da arte do Retrato e onde assistimos a menor idealização dos modelos e,
por consequência, a maior naturalismo dos mesmos. A procura e o gosto pela arte
de Retratar aumentam significativamente e, tal como no século XV, a mão-de-obra
continua a ser estrangeira na sua maior parte.
A metodologia a adoptar num estudo sobre a arte do Retrato em Portugal, no período
considerado, deve basear-se, por um lado, na análise da obra de arte, nas suas variadas
dimensões, material, plástica e iconográfica. Este tipo de abordagem permite, não só
determinar com maior rigor a datação das peças, sobretudo quando complementado
com exames de fotografia e de laboratório, como também apurar com maior rigor a pro-
veniência artística da obra, caracterizando e, se possível, estabelecendo a autoria.
Por outro lado, deve ter-se em conta a pesquisa cuidada de fontes manuscritas e
impressas, com o firme propósito de atingir a tão ambicionada leitura iconológica
do objecto artístico, não reduzindo a pesquisa sobre a peça a mera descrição física
e formalista. O trabalho de arquivo, a releitura de documentação há muito publicada
e o estudo da bibliografia específica permitirão, em conjunto, responder melhor às
dúvidas suscitadas e, acima de tudo, conhecer o ambiente sociocultural que rodeou
a criação da obra de arte.
Infelizmente, o escasso número de obras chegado até nós, que constitui um corpus
que não excede a centena, impede o estabelecimento de regras e práticas de pro-
dução de retratos, situação contrastante com a abundância de espécimes na Europa
do tempo. Nem a abordagem cripto-histórica, a partir de testemunhos escritos e/
ou visuais de obras entretanto desaparecidas, consegue preencher tal lacuna. 5 Além
disso, assiste-se a atraso considerável na implementação das novas metodologias
e técnicas de abordagem à obra de arte, utilizando para tal os meios laboratoriais,
aliado à insuficiência de bibliografia primária sobre a matéria, situações que provo-
cam o atraso científico e a leitura menos profunda do objecto.
Todavia, é possível hoje estudar a arte do retrato, entre o fim da Idade Média e o Re-
nascimento, apoiados nos meios e na metodologia enunciada anteriormente, sendo
obrigatória a determinação de uma tipologia estável e credível dos retratos a analisar.
Com efeito, o termo ‘retrato’ pode torna-se vago e, por isso, insuficiente para ca-
racterizar ou definir uma determinada obra. Por este motivo, procurámos reunir, em

116 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
a a r t e d o r e t r ato e m p o r t u g a l n o s s é c u l o s x v e x v i

6. Sobre os conceitos a aplicar no estudo da arte torno de um conjunto de traços característicos, os vários tipos de retrato possíveis,
do retrato, ter por exemplo como referências es- tendo em conta o contexto espacial e temporal dos mesmos.6 Deste modo, devem
senciais os trabalhos de Lorne Campbell, Enrico
considerar-se como categorias de retrato as seguintes designações: retrato individual,
Castelnuovo, Édouard Pommier e Pope-Hennessy
retrato integrado, retrato alegórico, retrato equestre, auto-retrato e, por último, o
citados na bibliografia final.
criptorretrato. O retrato individual diz respeito ao tipo retratístico mais usual e que
7. Se procedermos a tratamento estatístico da figura o modelo individualmente sobre fundo variado e apresenta-o pelo busto ou
tipologia de retratos utilizada na arte portugue-
pela cintura, consoante o gosto vigente. Este tipo de retrato foi muito utilizado quer
sa dos séculos XV e XVI, verificamos que mais
na celebração de contratos matrimoniais, uma vez que a distância dos noivos era ul-
de 50% é retrato integrado, contrastando com
os 30% de retrato individual, e os 12% do su- trapassada através do intercâmbio de imagens, quer nas colecções privadas, formato
matório dos restantes. Não foi possível até agora ideal para fazer apresentar e salientar alguém. O retrato individual esteve na origem, já
detectar com segurança nesta tipologia de retra- no século XVI, do chamado retrato de corte ou de aparato que, não obstante tratar-se
to quatrocentista e quinhentista, nenhum retrato de um individual pelo seu aspecto, distancia-se deste pelo facto de representar um
equestre, tão ao gosto do tempo.
modelo em suporte de maiores dimensões e o apresente como ente de grande poderio
político e social, bem como modelo de virtudes inspiradoras da conduta humana.
O retrato integrado, geralmente a representação do comitente da obra, aparece quase
sempre em contexto devocional e articulado, muitas vezes, com a presença de um
Santo como patrono ou intercessor, diante figuras santificadas. Numa primeira etapa,
os retratos integrados ocupavam os extremos das composições retabulares e, numa
segunda etapa, tais imagens passaram a participar activamente no desenrolar dos
episódios onde estavam inseridas.
Ao assistirmos à complexificação dos mecanismos e usos das representações, é pos-
sível detectar novas variantes de retrato, nomeadamente o alegórico, em que o
retratado perde a própria identidade, encarnando numa outra e chamando a si as
virtudes e as qualidades morais dessa nova personagem.
Tal como a própria designação indica, o retrato equestre, de raízes greco-romanas,
mostra a figura montada a cavalo, num autêntico monumento de homenagem e de
exaltação da personalidade. Já o auto-retrato, ligado à visão narcísica de contem-
plação da própria imagem, lembrada por Alberti, parece encontrar explicação no
ascendente social que os artistas conheceram nos séculos XV e XVI, pela tomada de
consciência da sua categoria estatutária.
Refiram-se, por último, todas as representações que, apesar de possuírem caracte-
rísticas fisionómicas bem vincadas, não devem ser apreciadas como autênticos re-
tratos, pois constituem imagens de inspiração em figuras da vida real e que serviram
de modelo figurativo ao artista. São tão somente retratos de época e, portanto, não
se trata de representações específicas desses indivíduos. Ainda assim, embora esta
categoria seja deveras abrangente, não deveremos cair na tentação de designar todas
as imagens presentes na arte como passíveis de ser apelidadas de criptorretratos.7
Além de uma categorização flexível dos vários tipos de retrato assinalados, impõe-se
igualmente o estabelecimento de terminologia específica capaz de abarcar as varia-
ções que a arte do retrato pode assumir. Para tal, foi imprescindível a leitura atenta
das fontes coevas, em particular do tratado de Francisco de Holanda Do Tirar polo
Natural... [1549], para utilizarmos alguns dos vocábulos empregues no tempo e que
exprimem com fidelidade as orientações possíveis de um retratado face ao observador.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 117
a a r t e d o r e t r ato e m p o r t u g a l n o s s é c u l o s x v e x v i

Ao descrever um retrato, em vez de empregar expressões como ‘retrato de frente’, ‘re- 8. Francisco de Holanda chega ainda a ponde-
trato de perfil’ e ‘retrato a três quartos’, preferimos as de Holanda, portanto, ‘retrato rar o ‘retrato recursado’ que, segundo ele, “uns
são tendo o rosto erguido e o modo que olha
fronteiro’, ‘meio rosto’ e ‘retrato terçado’, esta última a preferida do teórico.8
para o céu, com os olhos altos e as feições vis-
O domínio destes conceitos e a correcta aplicação, bem como o conhecimento alar-
tas por baixo parecendo as ventas e a boca e
gado das práticas de retrato do tempo, dos materiais utilizados e de determinadas toda a barba, e todo o pescoço; e este é mui-
tradições vernaculares proporcionam melhor descodificação das representações. Esta to dificultoso e nobre. E outro é olhando o rosto
metodologia de abordagem ao estudo da arte do Retrato, também ela inerente à para baixo inclinado com os olhos no chão, e as
História da Arte, será de seguida ensaiada no caso nacional, tendo em conta o âm- feições vistas por cima, parecendo somente par-
bito cronológico expresso. te da cabeça e da testa e um pouco do nariz, e
parecendo pouco da boca, e pouco da barba, e
Os antecedentes do retrato quatrocentista em Portugal são, ainda hoje, difíceis de
quase nada do pescoço...”. Do Tirar polo Natural
definir com precisão. Durante os tempos da primeira dinastia, não devemos sequer
[1549], introdução, notas e comentários por José
falar de ‘Retrato’, quando nos referimos às figurações de personagens de maior ou da Felicidade ALVES, Lisboa, Livros Horizonte,
menor estatuto social, uma vez que estamos na presença de meras representações 1984, p. 24.
convencionalizadas, rígidas e até tipificadas. Mesmo as imagens presentes na escultu-
9. O antigo retábulo da Capela dos Reis Magos
ra funerária, a partir do século XIII, apresentam graus diminutos de individualismo. na igreja do Mosteiro de São Domingos de Lisboa
Durante o século XIV, as representações humanas, devedoras da estética do Gótico, continha uma “imagem de nossa Senhora com o
indiciam timidamente as primeiras tentativas claras de individualização de expres- Menino nos braços; o rosto da Senhora foy tirado
sões e atitudes, sobretudo no contexto da arte funerária, sem esquecer também a ao natural pelo da Rainha, Santa Izabel, & o do
arte da pintura.9 Lançavam-se assim algumas das bases iconográficas estruturantes Menino se retratou natural tamem ao do Infante
D. Affonso, seu filho”. Fr. Luís de SOUSA, Histó-
para que a representação da figura humana tendesse, mais tarde, para a verdadeira
ria de São Domingos, Lisboa, Porto, Lello. 1977
autonomização. A possível existência de uma gelaria de retratos no Paço da Alcáçova
(1623,1662,1678). p. 327 e ss.
em Lisboa, começada a reunir por D. Afonso III e continuada por D. Dinis parece in-
10. Cf. José-Augusto FRANÇA, O retrato na Arte
dicar tal crescente interesse pela retratística. 10 Ainda a este propósito, refira-se que,
Portuguesa, Lisboa, Livros Horizonte, 1981, p. 13.
de acordo com o testemunho Seiscentista de Frei Bernardo de Brito, terá existido
também um retrato individual do monarca D. Fernando. Embora não seja certa a sua 11. Cf. por exemplo Édouard POMMIER, Théo-
composição, talvez fosse comparável morfológica e plasticamente com o retrato de ries du Portrait. De la Renaissance aux Lumières,
Paris, Gallimard, 1998.
João II, o Bom, rei de França, do Museu do Louvre.
Teremos, pois, de esperar pela centúria de Quatrocentos, para detectar a introdução 12. Cf. por exemplo Jacques PAVIOT, Portugal et
da arte do Retrato de raiz moderna, já de acordo com as novas correntes estéticas Bourgogne au XVe siècle, Paris, Centre Culturel
Calouste Gulbenkian, 1995.
em voga na Europa que derivavam sobretudo do pensamento de Petrarca e dos con-
selhos de Cennino Cennini.11 No decorrer da segunda dinastia, o panorama artístico
nacional, ainda muito marcado na arquitectura, na escultura e nas outras artes pelo
Gótico, recebe as primeiras influências do Renascimento, sobretudo por via flamenga,
mercê do estreito contacto mantido com a região da Flandres ao longo de todo o sé-
culo XV e grande parte do XVI.12 No que concerne a arte do Retrato, é precisamente
logo nas primeiras décadas da segunda dinastia que as novidades plásticas de cariz
flamengo parecem chegar a Portugal. A oferta de um retrato de João sem Medo,
Duque da Borgonha, de autoria de Jean Malouel (act. 1397-1415), como modo de
reconhecimento de um serviço militar prestado pela Coroa portuguesa; a estadia
entre nós do pintor Jan Van Eyck (cª 1390-1441), a mando do Duque Filipe, o Bom,
da Borgonha, com o propósito de retratar a futura esposa, a Infanta D. Isabel, filha
de D. João I e de D. Filipa de Lencastre (Fig.1); e a chegada ao mosteiro de Santa
Maria da Vitória de um retábulo de Van der Weyden oferecido pela então Duquesa

118 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
a a r t e d o r e t r ato e m p o r t u g a l n o s s é c u l o s x v e x v i

13. Sobre o retrato de autoria de Malouel, nada


se sabe a não ser que foi enviado à coroa por-
tuguesa. Sobre o retrato de Van Eyck, e pesar
de ainda não ter sido localizado o exemplar ori-
ginal, existe uma cópia Seiscentista aguarelada
desse retrato, à guarda do Arquivo Nacional da
Torre do Tombo, e que nos revela um retrato de
grande qualidade e de acordo com a iconogra-
fia mais actual do tempo. É possível que o rei D.
João I tivesse mandado copiar este retrato para
manter junto de si uma reprodução da sua filha
que abandonava agora a corte de Lisboa para a
Borgonha. Relativamente ao retábulo de Van der
Weyden, conhecemo-lo apenas através de um
desenho oitocentista de autoria de Domingos
Sequeira, pertencente à colecção do Museu Na-
cional de Arte Antiga.

14. Cf. Artur da Motta ALVES, Os Painéis de São


Vicente num códice da Biblioteca Nacional do Rio
de Janeiro, Lisboa, Academia Nacional de Belas-
Artes, 1936 e Luís Urbano AFONSO, Convento
de São Francisco de Leiria - estudo monográfico,
Lisboa, Livros Horizonte, 2003.

fig.1 autor desconhecido - infanta d. isabel - reprodução aguarelada - séc. xvii - ian/tt.

da Borgonha, D. Isabel, onde se representavam três retratos integrados de doado-


res, são episódios de uma história do retrato que, em nosso entender, estão longe
de ser apenas esporádicos.13 O antigo retábulo do altar-mor da primitiva igreja de
Santo António de Lisboa, o retrato de D. Duarte existente na sacristia do mosteiro de
São Domingos de Lisboa ou o mural da igreja de São Francisco de Leiria constituem
exemplos bem elucidativos dessa história que pode bem ser enriquecida com novos
episódios, através de novas descobertas no futuro.14
O intercâmbio cultural entre Portugal e os centros europeus mais avançados permi-
tiu seguramente para que o horizonte nacional se moldasse, ainda que lentamente,
à modernidade. Não deveremos esquecer neste contexto de permuta artística, a
estadia entre nós de retratistas estrangeiros que terão introduzido novas práticas
e modelos de execução. São conhecidos os casos de Van Eyck ou de Lluis Dalmau,
ou ainda do enigmático Holfowander, que fora incumbido pela corte germânica de

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 119
a a r t e d o r e t r ato e m p o r t u g a l n o s s é c u l o s x v e x v i

fig.2 autor desconhecido. infanta d. joana – cópia de original perdido


museu de aveiro. © imc/ddf.

retratar a infanta D. Leonor, filha de D. Duarte, futura esposa do Imperador Frederico 15. É bem provável que o retrato de D. Joana,
III. É bem provável que a infanta D. Joana (Fig.2), filha de D. Afonso V, tenha sido hoje exposto no Museu de Aveiro e proveniente
do Mosteiro dominicano de Jesus da mesma ci-
igualmente retratada por ocasião dos projectos de consórcio, ainda que frustrados,
dade, seja uma cópia desse original, entretanto
do casamento com Francisco II, Duque da Bretanha, ou com o príncipe Carlos, futuro
perdido.
Carlos VIII, filho do rei de França Luís XI. 15

120 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
a a r t e d o r e t r ato e m p o r t u g a l n o s s é c u l o s x v e x v i

16. Sobre a “Questão dos Painéis”, ver obrigato- Deixando de parte, por ora, outros exemplos efectuados durante o século XV, casos
riamente Paula FREITAS e Maria de Jesus GON- do conjunto fresquista da igreja de São Francisco do Porto (com modificações poste-
ÇALVES, Painéis de S. Vicente de Fora - Uma
riores), do retábulo do Infante Santo do Museu Nacional de Arte Antiga, proveniente
questão inútil ?, Lisboa, Imprensa Nacional Casa
do Mosteiro da Batalha, ou do retrato de D. Nuno Álvares Pereira, outrora no Mos-
da Moeda, 1987 e Albino LAPA, História dos Pai-
néis de Nuno Gonçalves, Lisboa, 1935.
teiro do Carmo em Lisboa, importa salientar a singularidade do conjunto retabular,
dedicado a São Vicente (Fig.3) e de autoria do pintor régio Nuno Gonçalves, dantes
17. Sobre o estudo iconológico da obra ver os
na capela-mor da Sé de Lisboa e hoje no Museu Nacional de Arte Antiga (cª 1460-
trabalhos recentes de Fernando António Baptista
1470). Este retábulo, integrado no altar das relíquias do Santo mártir, parece aglu-
PEREIRA, Imagens e Histórias de Devoção - Es-
paço, Tempo e Narrativa na Pintura Portuguesa tinar as duas principais orientações, predominantes na arte do retrato em território
do Renascimento (1450-1550), tese de Doutora- nacional. Por um lado, o carácter informativo e propagandístico da situação social
mento policopiada, Lisboa, Faculdade de Belas- do representado, que se destaca dos demais membros da comunidade que observa a
Artes da Universidade de Lisboa, 2001 e Pedro imagem. Por outro, a integração próxima do retratado com as personagens relativas
FLOR, A Arte do Retrato em Portugal - entre o
à dimensão do sagrado. A apelidada “questão dos painéis” não tem cabimento no
fim da Idade Média e o Renascimento, tese de
presente artigo e, por isso, deixamo-la de parte, remetendo o leitor para bibliogra-
Doutoramento policopiada, Lisboa, Universidade
Aberta, 2006.
fia especializada na matéria.16 Somos de opinião que este políptico, de que fazem
parte as seis tábuas alusivas à série dos Milagres e da Veneração do Santo e a tábua
18. Cf. Francisco Pereira PESTANA, Repartição Q.
e meia da série dos martírios, foi encomendado, durante o reinado de D. Afonso V,
fés Frco. Perª Pestana Pª Se Cõquistar o Reyno
não só como enaltecimento das guerras travadas pelo rei no norte de África, como
de Fez, [cª 1531]. Sobre a tapeçaria da Conquista
de Tunes, ver, por exemplo, Annemarie JORDAN, também em agradecimento a São Vicente pela protecção divina dispensada nessas
Portuguese Royal Collections (1505-1580), dis- campanhas gloriosas (Alcácer Ceguer 1458, Arzila e Tânger 1471).17 A importância
sertação de Mestrado policopiada, Washington: simbólica e o peso político deste majestoso retábulo lisboeta foram de tal modo
George Washington University, 1985. A presença marcantes no tempo que, ainda no século XVI, em pleno reinado de D. João III, era
do Memorial da Batalha do Salado numa das ca-
costume rezar frente ao altar de São Vicente, antes de uma campanha militar. As-
pelas da Sé de Lisboa reforça o sentido simbó-
sim se justifica também que a memória colectiva da cidade de Lisboa relacionasse
lico deste templo no contexto da guerra contra
os infiéis.
o espaço catedralício, nomeadamente a capela-mor, com a comemoração dos feitos
guerreiros na conquista de novos territórios e na evangelização além fronteiras, atra-
19. Cf. Ana Paula ABRANTES e Ignace VAND-
vés da colocação da série de tapeçarias da Conquista de Tunes de autoria de Willem
VIVERE, Nuno Gonçalves - Novos Documentos
de Pannemaker, por ocasião da cerimónia de bênção da bandeira do exército na Sé
- Estudo da Pintura Portuguesa, Lisboa, IPM,
1994 em 1578, vésperas da campanha de Alcácer Quibir.18
Tem-se incorrido, entre outros erros, na tentativa de identificar todas as personagens
20. Referimo-nos em concreto, no painel do
representadas no conjunto pictórico de Nuno Gonçalves, esquecendo-se os auto-
Infante, à figura que se encontra ajoelhada em
frente a São Vicente, ao homem do chapeirão e res que nem todas as figuras nele presentes são retratos, conforme ficou provado
à figura de mulher mais idosa. No painel do Ar- através da análise do desenho subjacente das seis tábuas da Veneração.19 Como se
cebispo, o próprio Arcebispo e o rosto de perfil pode observar, apenas certas personagens, cujo desenho subjacente, obtido através
que o ladeia. No painel da Relíquia, a figura que do processo de decalque, denunciam a evidente vontade de representar um rosto
a exibe e a que se encontra por detrás dela, a exacto, num espaço reservado, e previamente estabelecido, na fase da execução
folhear um livro.
pictural.20 As restantes figuras, que revelam marcações genéricas e pouco definidas
(geralmente resumidas aos globos oculares e aos contornos das faces) não foram
talvez colocadas neste retábulo com a intenção de se apresentarem como retratos
concretos, mas apenas como figuras de expressão personalizada ou criptorretratos.
Antes da execução pictural, e talvez na fase de projecto, Nuno Gonçalves esboçou a
maior parte dos rostos, reservando para os retratos lugares bem definidos que, com
certeza, obtiveram a anuência dos encomendantes.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 121
a a r t e d o r e t r ato e m p o r t u g a l n o s s é c u l o s x v e x v i

fig.3 nuno gonçalves - painéis de são vicente - cª 1460-1470 - mnaa. © imc/ddf.

Outro dos aspectos, que nos parece fulcral para promover uma leitura segura dos 21. Cf. por exemplo com as já citadas obras de
“Painéis”, é a figuração conjunta de personagens ainda vivas ao tempo da realização Lorne Campbell e John Pope-Hennessy indicadas
na bibliografia final.
dos mesmo, em estreito convívio com outras, já falecidas há mais anos.21 A pintura
do século XV europeu, e em Portugal não terá sido excepção, admitia a convivência
entre defuntos e vivos, tendo em conta a estratégia utilizada pelo artista no processo
de narração da obra. A data de óbito de qualquer personagem não deve constituir
factor de exclusão para que possa figurar neste conjunto retabular.

122 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
a a r t e d o r e t r ato e m p o r t u g a l n o s s é c u l o s x v e x v i

Não sendo agora oportuno analisar em profundidade todo o programa artístico do


antigo retábulo do altar vicentino na Sé de Lisboa, resta-nos sublinhar que, no der-
radeiro quartel do século XV, o fiel que se acercasse desse altar, poderia não só rece-
ber o ensinamento da vida do Santo e dos seus milagres, como também reconhecer
os verdadeiros comitentes da obra, a saber, a Coroa, em conjunto com a Vereação
da Câmara de Lisboa e o Cabido catedralício. Tal manifestação propagandística por
parte de D. Afonso V, só foi possível através do recurso ao género artístico que, por

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 123
a a r t e d o r e t r ato e m p o r t u g a l n o s s é c u l o s x v e x v i

fig.4 nicolau chanterene - d. manuel i e são jerónimo - 1517 ? - mosteiro de santa fig.5 mestre da lourinhã - príncipe d. joão
maria de belém (lisboa). © igespar. ip dida af. fotografia de luís pavão. e s. joão baptista. cª 1515 - mnaa. © imc/ddf.

excelência, comemora os vivos e os conduz à eternidade terrena e celeste. O forte 22. Cf. Francisco de HOLANDA, Da Pintura An-
pendor individualista do olhar de cada uma das figuras atinge mesmo o patamar do tiga [1548], ed. Angel GONZÁLEZ GARCIA, Lis-
boa, INCM, 1983. p. 352.
retrato psicológico, nem sempre conseguido pelos artistas do tempo, e que traduz
as influências da corrente flamenga e da corrente catalã, de sabor transalpino, bem
sintetizadas na arte de Nuno Gonçalves, uma verdadeira águia da pintura moderna,
no dizer de Francisco de Holanda.22
Chegaram-nos escassos testemunhos elucidativos da arte do retrato em Portugal
do período relativo ao reinado de D. João II. As notícias esporádicas, intimamente
relacionadas com a retratística, pouco ajudam na tarefa de compreender o sucedido,

124 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
a a r t e d o r e t r ato e m p o r t u g a l n o s s é c u l o s x v e x v i

23. Cf. Artur da Motta ALVES, op. cit., p. 7. embora indiciem mais a continuidade da época anterior do que a ruptura. A juntar
24. Por exemplo, os casos presentes nas Orde- a este cenário, devemos lembrar que o desconhecimento total da obra dos artistas
nações Manuelinas (1512-1514), no 1º Livro de activos no derradeiro quartel do século XV, como os pintores Afonso Gomes, Fer-
Além-Douro da Leitura Nova (1º quartel do sé- não Afonso, Fernão Cerveira e, possivelmente, Nuno Gonçalves, não nos permite
culo XVI) e ainda no Missal Rico do Mosteiro de tirar mais conclusões a respeito da arte do retrato da época. O episódio da troca de
Santa Cruz de Coimbra (cª 1517-1526). retratos entre as coroas de Portugal e de Castela, por ocasião do matrimónio entre
25. Francisco Henriques, António de Holanda, Frei o infante D. Afonso, filho de D. João II e D. Leonor, e a infanta D. Isabel, filha dos
Carlos ou o Mestre da Lourinhã são faces eviden- Reis Católicos, não é suficientemente esclarecedor sobre a matéria, indicando-nos
tes dessa corrente flamenga na pintura e, de todos apenas a prática corrente, a que já nos referimos acima. Na mesma sequência dos
eles, temos registo de terem praticado a modali-
modelos executados na primeira metade da centúria, deriva o desaparecido retábulo
dade de retrato. No campo da escultura, refira-se
que ornava a capela do altar de Jesus no mosteiro de São Domingos de Lisboa (cª
o caso de Nicolau Chanterene que terá recebido,
numa primeira fase, a sua formação artística nos 1480-1490 ?), onde se podia admirar a presença de retratos integrados de doador
ateliers borgonheses, como deixámos escrito em do casal régio, custodiados por São Jorge e São Domingos.23 A avaliar pela descrição
outro lugar. Cf. Pedro FLOR, O Túmulo de D. João e pelo que fica dito anteriormente, podemos afirmar que a arte do Retrato parece
de Noronha e de D. Isabel de Sousa na igreja de não sofrer grandes alterações morfológicas, quer no seu sentido iconológico, quer
Santa Maria de Óbidos, Lisboa, Ed. Colibri, 2002. na sua vertente estilística de sabor flamengo.
No início do século XVI, verificamos que a encomenda de retratos se mantém, quase
sempre, ligada à elite cortesã. D. Manuel I e a entourage mais próxima afiguram-se
como os principais comitentes de obras, onde surgem representados retratos.
Comecemos por caracterizar o caso do monarca Venturoso. Dele chegaram-nos dois
tipos de registo distintos: um de carácter simbólico e outro de carácter retratístico.
O primeiro traduz-se em imagens plenas de idealismo, apresentando-se de modo
simbólico e icónico.24 Por sua vez, o segundo tipo expressa-se em figuras bem ca-
racterizadas e individualizadas. Neste último caso, que importa agora examinar, os
exemplos presentes nos vitrais da capela-mor da igreja do Mosteiro da Batalha e
na porta axial da igreja do Mosteiro dos Jerónimos em Lisboa (Fig.4) são bem elu-
cidativos daquilo que constituiu a arte do retrato no período manuelino. A antiga
série de retratos reais do convento de Nossa Senhora da Serra de Almeirim, de que
resta apenas um D. João, futuro D. João III (Fig.5), e um seu irmão (D. Luís ?), mas
onde sabemos existia um retrato de D. Manuel e da sua segunda esposa D. Maria;
o Fons Vitae da Misericórdia do Porto, onde o casal régio se fez representar com
a respectiva prole; o tríptico da Misericórdia do Funchal, obra presumivelmente de
importação e, também, as esculturas do portal da igreja da Conceição Velha em
Lisboa entre outros espelham bem as preocupações manifestadas pela coroa na
acção propagandística de uma imagem de poder. Podemos afirmar que D. Manuel
quis deliberadamente insistir na sua representação, e na de sua família, no sentido
de demonstrar aos súbditos dois factos distintos: a legitimidade que teve em assu-
mir o trono, após a morte de D. João II, e a inexistência de qualquer problema na
respectiva sucessão. Salientem-se as influências do Norte da Europa nos exemplos
referidos e que demonstram a tamanha aceitação recebida entre nós. Além de uma
preferência acentuada pelos modelos flamengos, não nos podemos esquecer que a
maior parte da mão-de-obra que executou as empreitadas artísticas, onde figuram
retratos, tinha origem ou formação estética no mundo nórdico.25

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 125
a a r t e d o r e t r ato e m p o r t u g a l n o s s é c u l o s x v e x v i

Apesar de conseguirmos detectar alguns exemplares de retrato em vários lugares, não 26. Cf. por exemplo Nuno Vassalo e SILVA, As
nos foi possível detectar o registo de obras deste género artístico na colecção privada Colecções de D. João IV no Paço da Ribeira, Lis-
boa, Livros Horizonte, 2003.
de D. Manuel. A documentação sugere-nos que a colecção deste monarca contava
antes com a presença de objectos preciosos variados, fruto de aquisições ou de ofer- 27. O desenvolvimento de oficinas de pintura em
tas, tais como peças de ourivesaria, joalharia, tapeçarias, armaria, livros iluminados e regiões como, por exemplo, Viana do Castelo,
objectos exóticos, provenientes de África e do Oriente.26 Embora tal não signifique Guimarães, Aveiro e Coimbra reflecte essa procura
crescente de obras de pintura, onde, quando ne-
que os retratos fossem inexistentes, uma vez que nem sempre os inventariadores
cessário, se incluía um retrato do encomendante.
os descreviam, é difícil entender qual o verdadeiro peso da retratística na colecção
de D. Manuel que, em colecções similares na Europa, marcavam já presença, lado 28. O retábulo da igreja de São Pedro de Mi-
ragaia no Porto, o tríptico da Descida da Cruz
a lado com outras preciosidades reunidas. Os contactos comerciais e institucionais
do Museu de Arte Sacra do Funchal, proveniente
entre cortes, a banalização do gosto pelo Retrato, sem esquecer os vários consórcios
da igreja do Convento da Piedade de Santa Cruz
matrimoniais negociados durante o reinado de D. Manuel poderão ser argumentos (ilha da Madeira), ou ainda o retábulo dos Reis
que desmentem a aparente falta de retratos nas colecções reais. Magos da capela da mesma invocação na Calheta
A arte do retrato no tempo de D. Manuel não foi um exclusivo da corte. As classes são exemplos demonstrativos desta situação. A
sociais mais abastadas da sociedade portuguesa, sobretudo elementos afectos à realização de exames laboratoriais e fotográficos
nobreza e ao clero, socorreram-se com frequência de tal género artístico para a auto- a estas pinturas poderá esclarecer-nos sobre o
processo criativo destes retratos integrados.
promoção e para ornamentar espaços religiosos. Apesar de existir entre nós artistas
capazes de realizar retratos de qualidade, essencialmente junto aos centros urbanos 29. Juntem-se a estes dois exemplos, os presen-
de maior expressão, é preciso reconhecer que tal disponibilidade laboral nem sempre tes na igreja de Santa Iria da Azóia (cª 1530),
filiável na arte de Gregório Lopes, e na colecção
se verificava nas regiões periféricas.27 Os artistas locais, quase sempre detentores
Palmela, outrora na igreja de Santa Maria da Al-
de menores recursos, eram os eleitos para satisfazer as exigências pretendidas. Por
cáçova de Montemor-o-Velho (cª 1525-1530),
vezes, a importação de obras de arte procurou colmatar a falta de mão-de-obra es- de autoria presumida de Garcia Fernandes.
pecializada e a encomenda de retratos, sobretudo integrados, não foi excepção.28
Esta tipologia de retrato parece ter sido, de facto, a mais apetecida, reforçando o sen-
tido da arte do Renascimento em Portugal que se mantém fiel à sua matriz religiosa,
acumulada ao longe de vários séculos. Será durante o reinado de D. João III que assis-
tiremos ao percurso da arte do retrato em direcção à progressiva laicização do seu sig-
nificado intrínseco, sem contudo abandonar definitivamente o sentido devocional.
Nos primeiros anos da governação joanina, as práticas representativas da figura
humana mantêm a maior parte das características formais e plásticas assinaladas na
época anterior, situação reveladora do sucesso atingido por esses esquemas de com-
posição e pelas tonalidades cromáticas e brilhantes de cariz flamengo e perpetuada
pelas gerações artísticas subsequentes, formadas nas oficinas mais destacadas do
país, em especial a de Lisboa.
Ainda assim, verificamos algumas modificações na introdução de retratos de doa-
dores na disposição geral da obra, nomeadamente na diluição dentro do episódio
representado em vez de uma presença destacada na ribalta. Tanto na Adoração dos
Magos (Fig.6) do antigo retábulo da capela do Salvador na igreja do Mosteiro de
São Francisco de Lisboa (cª 1520-1525), de autoria de Gregório Lopes e Jorge Leal,
como na Deposição de Cristo no Túmulo do antigo conjunto retabular da igreja do
Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra (cª 1520-1530), de autoria de Cristóvão de Fi-
gueiredo, ambas no Museu Nacional de Arte Antiga, vislumbramos a presença de
retratos, verosimilmente os encomendantes, em segundo plano. 29 Esses retratos,

126 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
a a r t e d o r e t r ato e m p o r t u g a l n o s s é c u l o s x v e x v i

30. Se a comparação plástica entre os dois gru- de fisionomia bem vincada e de soberba execução, capazes de captar a dimensão
pos de retratos não for suficiente para pressen- psicológica do modelos, são apontamentos retratísticos de elevada qualidade. Da-
tirmos o mesmo pincel, a presença de Cristóvão
das as semelhanças plásticas e as coincidências documentais, podemos aceitar que
de Figueiredo como testemunha no contrato de
Cristóvão de Figueiredo seja o responsável por tais momentos retratísticos, fazendo
acrescentamento da marcenaria retabular parece
autorizar a colaboração deste pintor na emprei-
dele um pintor e debuxador de inegáveis recursos.30
tada, nomeadamente ao nível da execução dos Quando necessita de importar obras de pintura, o gosto nacional mantém a pre-
retratos. Uns anos mais tarde, tal como a leitura ferência pelo mercado flamengo e pelo modo como é apresentado o doador: rosto
cuidada da documentação deixa antever, volta- terçado, ajoelhado, de mãos postas, e com o Santo patrono bem por perto. 31 Esta
remos a encontrar Figueiredo envolvido na reali- receita, repetida por artistas nacionais, prolongou-se para lá do reinado de D. João
zação de um retrato, desta vez de D. Pedro Gon-
III e parece ter conhecido adeptos, ainda no século XVII.
çalves, Arcediago da Sé de Lamego, no retábulo
para a igreja de Valdigem, onde colaborava tam-
bém o pintor Bastião Afonso. Cf. Vergílio COR-
REIA, Pintores Portugueses dos séculos XV e XVI,
Coimbra, 1928, p. 67-69. Sobre a possível inter-
venção do pintor Jorge Leal no conjunto de São
Francisco de Lisboa, ainda não foi hoje possível
determinar exactamente o seu contributo.

31. O retábulo da igreja do Porto da Luz (cª


1555-1560), atribuível a Diogo Contreiras, pode
integrar-se neste gosto prolongado e, por que
não tardio, do modo quatrocentista flamengo de
representar os doadores. O conjunto de retratos
reais, aproximáveis à arte de Lourenço de Salzedo
na Madre de Deus em Lisboa, mais tarde inspira-
dor do retrato seiscentista de D. Maria Francisca
de Sabóia no convento lisboeta das Francesinhas
(actualmente no Museu dos Coches) é teste-
munho dessa continuação de formas e soluções
plásticas, reunindo-se num só retrato os pressu-
postos da retratística em contexto religioso com
os do retrato de corte.

fig.6 gregório lopes e jorge leal ? - adoração dos magos - cª 1520-1525 - mnaa. © imc/ddf.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 127
a a r t e d o r e t r ato e m p o r t u g a l n o s s é c u l o s x v e x v i

Tanto na escultura, como na iluminura, os exemplos de retrato obedecem aos câno- 32. O retábulo de Nicolau Chanterene na igre-
nes definidos pela arte da pintura, repetindo quase sempre o mesmo formulário. A ja do Mosteiro de São Marcos em Tentúgal (cª
1522) e o retábulo de João de Ruão, dedicado
representação dos doadores das obras surge, quase sempre, como se de volantes se
a São Marcos, na igreja do Salvador em Coimbra
tratasse, sobretudo no primeiro caso.32 Por vezes, os doadores surgem apenas diante
(cª 1545?) revelam bem a influência sofrida pe-
da figura sagrada (quase sempre uma Virgem com um Menino), sem a intercessão do los trípticos de pintura que povoavam amiúde os
Santo patrono, o que denota maior arrojo iconográfico e simbólico.33 interiores nacionais.
No que diz respeito à retratística de corte, verificamos que é no reinado de D. João III
33. Destaquem-se, entre outros, o retábulo da
que se assiste ao incremento acentuado de encomendas. A presença de um retratador
igreja matriz da Ega (1543?) de Diogo Contreiras
com as capacidades de António de Holanda, muito louvadas por seu filho Francisco (?) ou o painel do Pentecostes (cª 1540-1550)
de António Vaz (?), outrora na capela da Casa
do Senado da Câmara de Guimarães e hoje no
Museu de Alberto Sampaio, são exemplos desta
morfologia de retrato.

fig.7 antoine trouveron ? - infanta d. maria - cª 1541-1543 ‑ museu condé (chantilly).

128 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
a a r t e d o r e t r ato e m p o r t u g a l n o s s é c u l o s x v e x v i

34. Cf. Pedro FLOR, A Arte do Retrato.... 2006.


p. 545-566 em particular. Sobre este pintor fran-
cês, ver mais recentemente Annemarie Jordan-
-Gschwend, “Antoine Trouvéon, un portraitiste
de Leonor d’Autriche récement découvert”, Re-
vue de l’Art, nº159, 2008, pp. 11-19.

fig.8 anthonis mor - d. catarina de áustria. 1552 - museu do prado.

de Holanda, a vinda a Portugal na década de 40 do pintor francês Antoine Trouveron


a mando da rainha de França D. Leonor de Áustria para retratar a filha, a Infanta D.
Maria (Fig.7), e o gosto coleccionista e legitimador de poder, demonstrado por D.
Catarina, mulher de D. João III, fizeram da corte portuguesa um local de confluência
de experiências e de renovação estética que modificaram a paisagem retratística e
que não cabe aqui desenvolver com pormenor.34 É, pois, neste contexto de novida-
de que devemos entender a criação de uma galeria de retratos no Paço da Ribeira,
por parte de D. Catarina de Áustria, de acordo com uma tradição familiar, onde po-

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 129
a a r t e d o r e t r ato e m p o r t u g a l n o s s é c u l o s x v e x v i

díamos admirar as imagens dos familiares mais próximos da rainha, como meio de 35. Cf. Annemarie JORDAN, O Retrato de Corte
afirmar o poder da casa de Habsburgo que conseguira, no meado do século, sentar em Portugal - O legado de Anthonis Mor, Lisboa,
Ed. Quetzal, 1994, p. 79-103.
um elemento da dinastia em cada trono europeu.35 Este acervo de retratos foi cons-
tituído progressivamente e, em 1557, contavam-se já vinte e nove retratos, alguns 36. Além destes pintores, existiram provavelmen-
dos quais ainda existem, embora dispersos por núcleos museológicos estrangeiros. te obras de Francisco de Holanda, Cristóvão de
Tal como ficou comprovado, os quadros desta colecção eram originais ou réplicas Morais e Jooris Van der Straeten, artistas particu-
larmente activos na corte portuguesa, sobretudo
devidas a mestres tão prestigiados como Jan Gossaert, Jan Vermeyen, Barend Van
nos meados do século XVI.
Orley, Hans Holbein, Ticiano, Alonso Sánchez Coello e Anthonis Mor.36 De resto, é
a visita deste último pintor, acompanhado de alguns colaboradores e possivelmente 37. Entre outros exemplos que poderíamos dar,
escolhemos o do Retrato de Jovem Cavaleiro, do
do carpinteiro de marcenaria Martim de Bruges, que se assiste ao triunfo do retrato
Museu Nacional de Arte Antiga, datável de 1557,
de corte em Portugal. A vinda deste pintor ao nosso país, durante o ano de 1552 e
e que representa o Condestável do reino D. Du-
parte do de 1553, possibilitou à coroa portuguesa ocasião única para lhe encomendar arte, sobrinho de D. João III e filho de D. Duarte
vários retratos, além dos que tinham sido pedidos por Maria da Hungria, irmã de D. e de D. Isabel de Bragança. Independentemen-
Catarina, e Regente dos Países Baixos, que enviara Mor a Portugal para retratar os te da autoria a encontrar num futuro próximo, o
familiares mais chegados (Fig.8). modo de compor esta obra, bem como a paleta
O retrato de estado, ou de aparato, sobretudo repetido no seio da corte imperial por cromática utilizada, são fortes sintomas da influ-
ência exercida pelos modelos de Anthonis Mor.
pintores como Ticiano e Mor, visava apresentar um modelo, em suporte de maiores
dimensões do que um mero retrato individual, como um ser de enorme poderio social
e influência política. Assim, o retrato de corte deixa de fazer representar a pessoa
enquanto indivíduo, apresentando-o antes como evocação de princípios de natureza
abstracta de poder e de nobreza, que deverão reger a sua conduta e a de quem ad-
mirar o retrato. Tais valores traduzem-se não só no fundo negro de onde sobressai a
imagem, como também no traje opulento, nos atributos ostentados, na pose retórica
e até na expressão grave do rosto que assim impõe a sua imagem perante o obser-
vador. A galeria de retratos de D. Catarina de Áustria no Paço da Ribeira patenteia
pois um discurso afirmativo da autoridade soberana da dinastia Avis/Beja, unida por
laços profundos à toda-poderosa casa dos Habsburgo. Depois da estadia de Mor e
seus colaboradores no nosso país, o horizonte da paisagem retratística jamais voltou
a ser a mesma e os modelos do pintor flamengo perpetuaram-se na arte portuguesa
ao longo de várias décadas.37 •

Bibliografia
CAETANO, Joaquim de Oliveira, “O Retrato e a Paisagem”, in O Tempo de Vasco
da Gama, CURTO, Diogo Ramada (dir.), Lisboa, Difel, 1998, pp. 99-111.

CAMPBELL, Lorne, European Portrait-Painting in the 14th, 15th and 16th Centuries,
New Haven-London, Yale University Press, 1990.

CASTELNUOVO, Enrico, Portrait et Société dans la Peinture Italienne, Paris,


Gérard Monfort, 1993.

130 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
a a r t e d o r e t r ato e m p o r t u g a l n o s s é c u l o s x v e x v i

FLOR, Pedro, “Historiografia da arte do Retrato renascentista em Portugal”,


in II Congresso Internacional de História da Arte 2001 – Actas, Coimbra, Almedina,
2004, pp. 205-216.

IDEM, A Arte do Retrato em Portugal: entre o fim da Idade Média e o Renascimento,


Lisboa, tese de Doutoramento apresentada à Universidade Aberta, 2006.

FRANCASTEL, Galienne e Pierre, El Retrato, trad. espanhola, Madrid, Cátedra, 1998.

FRANÇA, José Augusto, O Retrato na Arte Portuguesa, Lisboa, Livros Horizonte, 1981.

HOLANDA, Da Pintura Antiga [1548], ed. Angel GONZÁLEZ GARCIA, Lisboa,


INCM, 1983.

IDEM, Do Tirar polo Natural [1549], introdução, notas e comentários por José
da Felicidade ALVES, Lisboa, Livros Horizonte, 1984.

JORDAN, Annemarie, O Retrato de Corte em Portugal: O legado de Anthonis Mor,


Lisboa, Quetzal Editores, 1994.

PEREIRA, João Castel-Branco e SILVA, Nuno Vassallo e (coord.), A Arte do Retrato.


Quotidiano e Circunstância, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1999.

POMMIER, Édouard, Théories du Portrait. De la Renaissance aux Lumières, Paris,


Gallimard, 1998.

POPE-HENNESSY, John, El Retrato en el Renacimiento, trad. espanhola, Madrid,


Ed. Akal, 1985.

SERRÃO, Vítor, “A imagem de Vasco da Gama e as representações do mar e da guerra –


Sobre pintura & pintores do tempo da descoberta”, in O Centenário da Índia (1898)
e a Memória da Viagem de Vasco da Gama, Lisboa, CNCDP, 1998, pp. 185-201.

IDEM, História da Arte em Portugal - O Renascimento e o Maneirismo, Lisboa,


Ed. Presença, 2002.

IDEM e MOURA, Vasco Graça, Fernão Gomes e o Retrato de Camões, Lisboa, CNCDP /
Fundação Oriente / INCM, 1989.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 131
Resumo
A profunda renovação da imagem do poder levada a cabo por D. João V — por palavras-chave
razões estratégicas de afirmação interna e externa do Reino e, por conseguinte, do
monarca que o protagonizava — projectar-se-ia, necessariamente, numa renovação d. joão v
da imagem do Rei e da cenografia em que se move, que se pretendiam pautadas pe- retrato
los critérios europeus, que o mesmo é dizer de matriz versalhesca. A sua afirmação, barroco
porém, como a sua difusão, impunham um investimento sistemático nas diversas imagem do poder
áreas artísticas que poderiam codificá-la, fixá-la e projectá-la em círculos de maior ou escultura
menor amplitude. É neste contexto que — a par de outros géneros, como a gravura,
a medalhística e a numismática ou o monumento (e com eles se inter-relacionando)
— se afirma a importância estratégica do retrato de Corte. Neste artigo procura
analisar-se esse processo, bem como a conjuntura em que se desenvolve. •

Abstract
The profound renovation of the image of power led by D. João V – due to strategic key-words
reasons of internal and external affirmation of the kingdom and, consequently, of the
monarch – would lie in renewing the King’s image and setting, marked by European d. joão v
criteria, which at the time would have come from Versailles. The affirmation, however, portrait
as well as the dissemination, imposed a systematic investment in the most diverse baroque
artistic areas which would create and establish a code, which in turn would be disse- image of power
minated among circles of smaller or larger range. It is in this context that – along with sculpture
other genres, like engraving, medals and numismatics or monuments (which would
interrelate) – that the Court portrait gains strategic significance. This article proposes
to analyze this process, as well as the conjuncture in which it develops. •
os pintores de d. joão v
e a invenção
do retrato de corte

a ntó ni o f i l i pe pi m e n t e l “Não há poder sem imagem, mas o que leva mais tempo a perfazer
Instituto de História da Arte é a imagem do poder.”
da Universidade de Coimbra. José-Augusto França

1. Cfr. PIMENTEL, António Filipe, Arquitectura e A profunda renovação das estruturas do Estado e do País levada a cabo no reinado
Poder: o Real Edifício de Mafra, Lisboa, Livros de D. João V e que teria na pessoa do monarca o seu protagonista central, assenta,
Horizonte, 2002, pp. 29-35.
como é sabido, em dois pilares fundamentais: o reforço do poder real e da visibilidade
2. Cfr. APOSTOLIDÈS, Jean-Marie, Le Roi-Ma- da Coroa, no plano interno e, no externo, a reivindicação de um lugar de primeira
chine, spectacle et politique au temps de Louis grandeza para o seu Reino, no concerto das nações1. Uma visibilidade que, em tempo
XIV, Paris, Minuit, 1981. de Barroco, passava necessariamente pela construção de uma imagem de poder, con-
3. Cfr. PIMENTEL, A. F., ob. cit., pp. 75-100. figurada a um modelo de apresentação também ele barroco e que, consabidamente
codificado por Luís XIV, se difundira entretanto, mais ou menos uniformemente, pela
4. Cfr. em geral HESPANHA, António Manuel,
“Para uma teoria da História institucional do An- chamada Europa das Cortes: essa, onde o Rei trabalhava por alcançar um lugar de
tigo Regime”, Poder e instituições na Europa do primeiro plano. E, no centro dessa imagem (porque no centro do sistema) situava-
Antigo Regime, Lisboa, Fundação Calouste Gul- se, naturalmente, a imagem do Rei, por seu turno objecto, também ela, de uma
benkian, 1984. codificação internacionalmente difundida2. O retrato de Corte (entendido como o
retrato barroco de aparato) adquire, pois, em tal contexto, protagonismo especial,
não somente enquanto objecto estético, mas como objecto político e importante
instrumento de domínio. É, assim, neste plano que tem de situar-se a sua invenção
no Portugal da primeira metade de Setecentos, num tempo e num contexto que
assiste à invenção da própria Corte3.
De facto, o Estado Absoluto gera-se num tempo de instabilidade e de conflitos,
assente sobre uma sociedade complexa e rigidamente organizada, onde o seu domí-
nio se dilui na trama obscura dos poderes periféricos4. Radica aí a dependência que
fatalmente ostenta em relação a uma imagem que funciona como a ficção necessá-
ria de um poder, mais ambicionado e afectivo que verdadeiramente efectivo e real.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 133
o s p i n to r e s d e d . j o ã o v e a i n v e n ç ã o d o r e t r ato d e c o r t e

A Monarquia joanina, em rota de aproximação cultural e política com o universo 5. Cfr. ELIAS, Norbert, A sociedade de Corte, Lis-
das suas congéneres europeias, entre as quais se procura afirmar, não poderia, na- boa, Editorial Estampa, 1987 e LE ROY LADURIE,
Emmanuel, “Auprés du Roi, la Cour”, Annales,
turalmente, distanciar-se do modelo geral e a grande novidade — em consistente
économies, societés, civilizations, 38e Année, nº
construção, porém, desde os tempos de D. Pedro II (quando o ciclo da Restauração
1, Paris, 1983.
lentamente se fecha) — reside, justamente, na crescente abertura a um horizonte
de ambições putativamente universal.
É, pois, o mesmo arquétipo geral de mobilização totalitária, a partir da Corte (assu-
mida como núcleo de visualidade central)5, do universo das disciplinas artísticas (das
artes maiores ao artesanato de luxo, como já foi chamado) e, de um modo geral, dos
dispositivos cerimoniais, que progressivamente se convoca, de molde a envolver, num

fig.1 claude laprade, busto d. pedro ii (coimbra, gerais da universidade). © fotografia de antónio filipe pimentel.

13 4 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o s p i n to r e s d e d . j o ã o v e a i n v e n ç ã o d o r e t r ato d e c o r t e

6. Cfr. PIMENTEL, A. F., ob. cit., pp. 83-100. halo de magnificência e pompa, a pessoa do soberano e o cenário em que se move
7. Cfr. STAROBINSKY, Jean, L’Invention de la Li- e onde leva a cabo a representação do Estado que personifica.
berté, 1700-1789, Génève, Skira, 1964, p. 14. O modelo luíscatorziano de grandeur funcionaria, assim, em Portugal como em toda
a parte, como eixo estruturante de um discurso que, todavia, naturalmente se adapta
8. Testamento Politico, Lisboa, 1820, p. 61.
ao recorte específico de uma situação original concreta (a nossa): essencialmente
9. Sobre a utilização dos agentes diplomáticos na através das limitações espaciais impostas a uma visualização áulica de matriz estri-
aquisição do guarda-roupa real, numa actividade
tamente laica, politicamente inviável no quadro sócio-cultural onde o Magnânino
hoje surpreendente, que chegaria a incluir episó-
deve inscrever a sua acção — e que conduz a uma hipertrofia estratégica da ver-
dios de verdadeira espionagem, veja-se PIMEN-
TEL, A. F., ob. cit., pp. 67-68. tente eclesiástica da Corte lusitana, consubstanciada na instituição da Patriarcal6.
Apesar disso e em termos gerais (em Portugal como em toda a Europa do Barroco),
10. Description de la ville de Lisbonne, oú l’on trai-
é sempre a constatação do valor eminentemente simbólico e político da ostentação
te de la Cour, de Portugal…, Paris, 1730, pp. 66.
do luxo que se verifica, enquanto sinónimo da majestade de um poder que se ma-
terializa sob as espécies sensíveis, ao mesmo tempo que se revela capaz de renovar
em permanência as suas manifestações7: convertendo-se, por isso, não somente em
elemento imprescindível da sua exaltação, como, mesmo, no ingrediente central da
própria imagem.
De facto, emergindo, pouco a pouco, do declinar do século XVII, onde, no epílo-
go do Portugal Restaurado, brota e se movimenta, com crescente à-vontade, um
círculo estrangeirado com importantes ligações internacionais e progressivamente
consumidor de produtos europeus (entre o qual, evidentemente, o próprio Rei se
educa e vai, pouco a pouco, desenhando o que virá a ser o seu projecto de poder),
este conjunto de ideias projectar-se-á, desde logo, numa verdadeira metamorfose
da aparência da própria pessoa do monarca (e, por sua influência, do círculo que o
rodeia e onde se leva a cabo a sua exibição), sob o impacte daquilo a que D. Luís da
Cunha chamaria “a primeira droga, que França nos manda, que he a moda” 8. Altera-
ção radical, essa (com necessário impacte ao nível das práticas sociais e das próprias
mentalidades da classe dirigente) que, mesmo que preparada desde o declinar da
anterior centúria, atingirá o carácter de uma verdadeira revolução, justificando, por
isso mesmo, não somente que o soberano assuma pessoalmente a sua direcção, mas
que, em seu benefício, mobilize os instrumentos diplomáticos que o Estado coloca
ao seu dispor9. E que, na verdade, não tardaria a projectar-se na visão que colhem
os próprios forasteiros, eles mesmos, agora, veículos difusores de uma imagem régia
plenamente integrada no padrão internacional: “Ce Prince (escreverá alguém) est
d’une taille au dessus de la mediocre; & fort bien fait; il a le visage beau, quoiqu’un
peu plombé, & l’air três majestueux; il est habillé à la Française, il fait venir de Paris
ses habits qui sont superbes”10.
Porém, esse efeito de uma magnificência sem limites, que se espera agora que o
monarca irradie em seu redor — porquanto consubstancia, na sua pessoa, os atri-
butos inerentes ao poder que personifica —, não pode, para ser eficaz, limitar-se
ao pequeno círculo onde a régia personagem se desloca e se torna sensível pela
presença física: a lógica do poder impõe-lhe, assim, que se propague de imediato,
não apenas ao conjunto dos seus domínios, mas ao universo inteiro, onde se situa,
de igual modo, uma parte significativa das suas ambições políticas. É nesse processo

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 135
o s p i n to r e s d e d . j o ã o v e a i n v e n ç ã o d o r e t r ato d e c o r t e

que intervém, desde logo, o mecanismo da lisonja, sob a modalidade literária do 11. Cfr. FERRO, João Pedro, RÊGO, Manuela,
panegírico11, veiculando, no plano cultural, uma representação sublimada e centrí- “D. João V e a lisonja”, Congresso Internacional
Portugal no Século XVIII. De D. João V à Revolu-
peta da realeza. Contudo, numa sociedade onde o poder apenas se pressente no
ção Francesa, Lisboa, Sociedade Portuguesa de
momento em que se torna sensível, um espaço de particular relevo é confiado à sua
Estudos do Século XVIII – Universitários Editora,
representação visual: donde a importância central detida pelo retrato; donde, tam- 1991 e MOTA, Isabel Maria H. F. da, “A imagem
bém, o carácter retórico que necessariamente reveste, porquanto, mais que a fixação do Rei na História Genealógica da Casa Real
da verdade física ou fisionómica do seu protagonista, lhe compete a transmissão, Portuguesa. Um estudo preliminar”, Revista de
de modo transversal, das qualidades que é suposto deter — e por isso o retrato de História das Ideias, vol. 11, Coimbra, 1989.
aparato, mas igualmente o seu sucessivo desdobramento em múltiplas variantes, 12. Cfr. ALEWYN, Richard, L’Univers du Baroque,
do retrato alegórico ao retrato-monumento: marcando a cidade por ruas e praças, Hambourg, Gonthier, 1959, pp. 51-55.
circulando universalmente nos cunhos das moedas, assinalando a medalhística co-
memorativa, integrado entre os grandes da História nos thesauri de coleccionado-
res. Retrato-monumento, sempre, na sua explícita teatralidade, onde a retórica da
representação consagra e eterniza a virtus do modelo. Retrato-propaganda, pois,
em cuja divulgação a arte da gravura ocupará lugar central, de tanto maior impacte
numa sociedade iconófila, que projecta na volúpia do consumo e organização de
acervos de imagens o seu espírito enciclopedista.
Essa a razão porque o retrato barroco se concebe como uma fachada: como um palco,
onde é sempre implícita a presença do espectador, e em cujo interior, graças ao efeito
mágico do cenário, se processa a transposição da personagem, do nível individual
ao alegórico, movimentando-se com à-vontade num ambiente heróico, composto
de panejamentos e arquitecturas monumentais e dos atributos que a distinguem e
identificam e ajudam a representá-la, talvez não exactamente como é, mas como
deveria ser ou, mesmo, como acredita ser 12. Não admira, por conseguinte, que o
desenvolvimento de uma retratística de Corte eficaz acompanhe o investimento de
D. João V na própria estrutura curial e, de um modo geral, na sua imagem de poder
e que este não possa dissociar-se da expansão, de igual modo ressentida, pela disci-
plina paralela que, através da gravura, desenvolveria o tema do retrato alegórico, em
íntima conexão com o panegírico, enquanto género literário e prática laudatória.
O incremento do papel mecenático da Coroa, propiciaria, assim, a integração da
imagética real entre os mecanismos da liturgia sacralizadora do poder, em géneros
e suportes tão diversos quanto o permitiria o is lado meio artístico português (que
o Rei herda e se esforça por romper): da pintura à gravura e à escultura e, desta, à
medalhística e à numismática.
Caberia, assim, ao retrato de Corte, nas suas múltiplas versões, a elaboração do
paradigma oficial de representação individual do soberano — e, por extensão, da
família real e do círculo áulico que o rodeia —, ao serviço do qual e na lógica dos
desígnios que o alimentavam, se apropriam atitudes e fórmulas já consagradas no
contexto internacional, com vista a enquadrar a régia efígie nos padrões europeus
da representação cortesã: desígnio central que explica, desde logo, a utilização, em
seu benefício, dos serviços de artistas estrangeiros, contratados adrede ou atraídos
pela fama de generosidade do soberano português e, em qualquer caso, sempre
familiarizados com os modelos que se visa adoptar.

136 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o s p i n to r e s d e d . j o ã o v e a i n v e n ç ã o d o r e t r ato d e c o r t e

fig.2 peter van den berg, alegoria ao casamento de d. joão v


(lisboa, biblioteca nacional).

13. Cfr. SOBRAL, Luís de Moura, “Os retratos de Objecto de uma progressiva atenção por parte da historiografia artística, não tem
D. João V e a tradição do retrato de Corte”, Cla- esta deixado, todavia, de sublinhar uma certa penúria deste género pictórico13: sur-
ro-Escuro, nº 2-3, Lisboa, 1989, p. 31 e FRAN-
preendente se for tida em conta a importância de que se revestia, enquanto veí-
ÇA, José-Augusto, O retrato na arte portuguesa,
culo privilegiado da retórica do poder. Contudo, mais talvez do que qualquer ou-
Lisboa, Livros Horizonte, 1981, p. 39.
tro, ressentir-se-á este aspecto da politica artística do monarca, seguramente, pela
fragilidade do material, das sequelas da grande catástrofe de 1755 que, ao quase
destruir o Paço da Ribeira, subtrairia aos investigadores o núcleo central do espólio
acumulado em quase meio século de activo mecenato: a que se acrescentariam as
destruições causadas, já em finais da centúria, pelo incêndio da Real Barraca e a

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 137
o s p i n to r e s d e d . j o ã o v e a i n v e n ç ã o d o r e t r ato d e c o r t e

dispersão do património mobiliário da Coroa decorrente da transferência, em 1808, 14. Cfr. PIMENTEL, A. F., ob. cit., pp. 77-83.
da Corte para o Brasil. Será, assim, um universo provavelmente pouco representati- 15. Cfr. VITERBO, Sousa, Noticia de alguns pin-
vo, constituído por obras albergadas em edifícios periféricos, o que se oferece hoje tores portugueses e de outros que, sendo estran-
à análise do investigador — desse modo, pois, sempre parcial. Apesar disso, não geiros, exerceram a sua arte em Portugal, Lisboa,
deixará de justificar que sobre ele se projecte um olhar crítico. 1903, vol. I, p. 38.

16. Cfr. SOARES, Ernesto, História da Gravu-


Com efeito, remontarão ao declinar do reinado de D. Pedro II os primeiros esforços ra Artística em Portugal. Os artistas e as suas
consistentes da adopção em Portugal de uma retratística áulica de aparato, suscep- obras, Lisboa, Livraria Samcarlos, 1971, vol. I,
tível de produzir uma imagem renovada e internacional da Corte portuguesa, em pp. 145-147.

aberta ruptura com a tradição ibérica que, por longo tempo, a enformara: mesmo 17. Cfr. PIMENTEL, António Filipe, “Claude de
que tais esforços se ressintam, naturalmente, nas suas hesitações e timidez, dos Laprade”, PEREIRA, José Fernandes (dir. de), Di-
próprios ritmos de consolidação do poder em função do qual se mobilizavam 14. cionário da Arte Barroca em Portugal, Editorial
Presença, Lisboa, 1989, pp. 253-257.
Com esse desiderato se relacionará, decerto, a presença documentada, junto do
monarca, do retratista francês Claude Le Bault (cuja obra se terá perdido) 15, bem 18. Cfr. FRANÇA, José-Augusto, ob. cit., pp.
como a renovação iconográfica que então se opera na retórica compositiva de obras 38-39.
gravadas de exaltação régia do seu tempo (incluindo já as primícias iconográficas
do herdeiro D. João), essencialmente pela mão de gravadores flamengos, como os
famosos Bouttats (Gaspar e Philibert16) e, por regra, com carácter ilustrativo de
publicações mais ou menos directamente panegíricas, expoentes, também elas, da
cultura literária do Barroco.
Desígnio esse, porém, que se projectaria, na viragem do século e com eficácia quase
inusitada, no busto do monarca, marcial e retórico, modelado, em 1701-02, na sobre-
porta do vestíbulo dos Gerais universitários de Coimbra, por Claude de Laprade: um
francês (de Avignon), cuja chegada a Portugal, em condições ainda obscuras, marca
também, no processo artístico, um ponto simbólico de retoma em relação a uma tradi-
ção de imigração artística que o longo século XVII havia interrompido. Nele se retoma
(e se apropria), com efeito, o que de Luís XIV compusera Puget, seu putativo mestre
(por esta via obtendo, em fim de contas, Laprade, uma indirecta confirmação ofici-
nal), na esteira, por seu turno, do modelo que, para o mesmo monarca, em anos mais
precoces concebera Bernini17. E com ele entrava na retratística real, sem transição e
pela mão da escultura (até pelo seu carácter em certo modo monumental e público),
uma linguagem nova que era também uma nova atitude cultural: configurando um
azimute que, entre avanços e recuos, delinearia, nos anos que se seguem, o patamar
onde a imagem do poder tentaria firmar-se — desenvolvendo, consequentemente,
uma prática sistémica de recurso a mão-de-obra internacional, mesmo que, de início,
sem contrato ad hoc e dentro da disponibilidade do mercado interno.
O busto de D. Pedro II do palácio escolar coimbrão, estará, de resto, ao que tudo
indica, na origem de outro, encomenda ao artista em apoteose ao novo Rei, as-
cendido ao trono em finais de 1706: uma vez mais em contexto arquitectónico, em
medalhão de sobreporta, na nova sacristia do cenóbio real de S. Vicente de Fora
de Lisboa18. Datável dos anos iniciais do seu reinado, ambicioso na sua exaltação
de um poder imperial que se figura no imenso orbe que o soberano exibe ao termo
de um braço inverosímil, patenteia, contudo, no exacerbado decorativismo onde se

138 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o s p i n to r e s d e d . j o ã o v e a i n v e n ç ã o d o r e t r ato d e c o r t e

19. Cfr. ARRUDA, Luísa d’Orey Capucho, “O re- refugia, os limites de um artista a quem a sorte proporcionaria, em terras lusas, uma
trato de D. João V na portaria de S. Vicente de visibilidade improvável no local de origem. E dos limites do ambiente estético local
Fora: um retrato barroco a azul e branco”, Claro-
fala também, ainda em S. Vicente, o retrato do monarca em azulejos, na nova por-
Escuro, nº 2-3, Lisboa, 1989, pp. 13-17.
taria, em projecção agiornatta da sua representação gravada, como jovem Príncipe
20. Cfr. PIMENTEL, A. F., Arquitectura e Poder…, do Brasil, expandida no quadro de tímida abertura estética a que se assistira com o
pp. 83-86 e 101-104. virar da centúria — mas mobilizando já os recursos cenográficos da retratística áulica
21. Cfr. QUIETO, Pier Paolo, “Cópia de um retra- internacional (arquitectura, mesa, panejamentos teatrais). Como fala dos limites do
to de D. João V”, SALDANHA, Nuno (coor. de), poder encomendante (do poder em função do qual se construía a imagem) a carga
Joanni V Magnifico, Cat., Lisboa, IPPAR, 1994, fortemente ideológica do programa em que se insere, em confronto com os seus
p. 406.
antecessores D. Afonso Henriques, D. Sebastião, D. João IV e D. Pedro II19, destinado
22. CARVALHO, Ayres de, D. João V e a arte do a afirmar (ainda) a bondade histórica da nova dinastia, em referência aos seus pilares
seu tempo, Lisboa, 1962, vol. I, p. 309. genealógicos. E o todo decorativo do recinto, na sua síntese de azulejos e embre-
23. Cfr. SOARES, Ernesto, ob. cit., vol. I, pp. 125- chados de mármores, sob tecto de quadratura pintado pelo Baccherelli, fala também
127 e TEIXEIRA, José Monterroso, Triunfo do dos limites culturais da encruzilhada donde, pouco a pouco, há-de emergir, uma vez
Barroco, Cat., Lisboa, 1991, p. 161. firmado o seu poder, uma genuína ideologia estética da arte de Corte promovida por
D. João V. Mas essa é outra e mais ampla questão: mesmo que nesta subjacente.
De facto, são anos difíceis estes que se vivem — e onde um Rei adolescente busca
firmar os seus primeiros passos —, no rescaldo das decisões políticas do reinado
anterior, que se projectarão até à paz de Utreque. Mas que se não compadecem
com as urgências propagandísticas da sua afirmação, tanto no plano interno como
externo. Com a chegada da Rainha nova, em 1708, acelera-se e cimenta-se, na re-
forma da Corte como na do paço20, a consolidação visual desse poder e esse processo
não deixará de reflectir-se, de igual modo, na imagética real: dois belos retratos do
Palácio da Ajuda, de D. João V e D. Maria Ana de Áustria, recém-casados e tradicio-
nalmente atribuídos a Pompeo Batoni, que os teria copiado de outros anteriores (de
mão italiana, em todo o caso)21, produzem, na sua sobriedade, uma imagem decidida
de alinhamento no padrão ambicionado. E a eles foi já (mesmo que sem confirma-
ção documental), associado o nome de Baccherelli, tido também por retratista e
activo em Lisboa até 171822, podendo, pois, por essa via, preencher interinamente
as apetências representativas da Corte de Lisboa, antes que esta pudesse lançar-se
em maior salto.
A mesma situação protagonizará, de resto, pelos mesmos anos, outro duplo retrato
dos soberanos, pelo buril de Peter Van den Berg, em faustosa alegoria das monar-
quias nacional e austríaca, entre as figurações heróicas da Religião, Vitória, Nobreza
e Fama, a pretexto dos régios esponsais. Recurso flamengo de continuidade, porém,
com as práticas da anterior centúria, a um obscure Dutch engraver, mais hábil no
efeito genérico que rigoroso e feliz na arte do desenho (e responsável já, de facto,
de anteriores encomendas lusitanas) 23, onde à figuração das régias personagens
não parecem ser de todo estranhos os dois retratos já referidos (ou outros afins que
a diplomacia lhe terá feito chegar). Como quer que fosse, a lenta viragem que, no
declinar da anterior centúria, se levara a cabo em direcção a paradigmas estéticos
ultra-pirenaicos – e que tivera especial projecção ao nível da escultura e de um
relacionamento progressivamente intenso, por parte da elite ilustrada portuguesa,

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 139
o s p i n to r e s d e d . j o ã o v e a i n v e n ç ã o d o r e t r ato d e c o r t e

fig.3 domenico duprà, retrato do


príncipe do brasil, d. josé de bragança
(madrid, museu do prado).

fig.4 domenico duprà, retrato


da infanta d. isabel luísa josefa
de bragança (vila viçosa, paço ducal,
sala dos tudescos).
© fundação da casa de bragança.

140 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o s p i n to r e s d e d . j o ã o v e a i n v e n ç ã o d o r e t r ato d e c o r t e

24. Cfr. VALE, Teresa Leonor Magalhães do, Es- com o mercado italiano da especialidade (em adesão crescente aos valores de um
cultura italiana em Portugal no século XVII, Lis- Barroco decorativo e teatral)24 –, favoreceria uma orientação também ela italiana dos
boa, Caleidoscópio, 2004.
instrumentos imagéticos da realeza lusitana, de tanto maior conveniência quanto a
25. Cfr. PIMENTEL, A. F., ob. cit., pp. 95-100. rápida assunção da importância estratégica do incremento litúrgico da Capela Real
26. Cfr. VALE, Teresa Leonor M., “As estátuas de
colocaria a Itália (e, com o tempo, essencialmente Roma) no próprio coração do
Santo Antão do Tojal. Contributo para um pano- investimento diplomático nacional25.
rama de importação da escultura barroca geno- Nesse contexto se enquadrará, pois, decerto, a encomenda, ainda pelos mesmos
vesa para Portugal”, Artis – Revista do Instituto anos (1708-10?), de um busto pouco divulgado do monarca, em mármore branco de
de História da Arte da Faculdade de Letras de Carrara (exibido hoje e após vicissitudes várias, no Palácio da Ajuda), de armadura,
Lisboa, nº 5, Lisboa, 2006, pp. 255-257.
manto e farta cabeleira, atribuído aos genoveses Domenico Parodi e Francesco Biggi
e com provável origem (de novo) em aparato arquitectónico entretanto perdido 26:
imagem coerente de fausto cortesão, elucidativa, na sua encomenda, da consciência
desenvolvida pelo poder da inevitabilidade do recurso externo na consecução eficaz
dos seus desígnios representativos. Consciência essa que, por finais da década de
1710 (talvez pela partida do florentino Baccherelli), uma vez resolvidos os problemas
conjunturais herdados da anterior governação e consolidadas as grandes linhas de
orientação do reinado novo, haveria de materializar-se no convite endereçado em
Roma, em 1718, a Giorgio Domenico Duprà, pelo embaixador marquês de Fontes,
para ocupar, de forma estável, as funções de pintor da Corte de Lisboa: estabilizando,
por sua vez, a imagética real.
Originário de Turim, mas formado em Roma, com Trevisani, que introduzira no retrato
romano, iniciado por Carlo Maratta, uma poética nova, sem questionar o primado
académico do desenho, privaria nessa oficina com Vieira Lusitano — a formar-se na
cidade papal por encargo do monarca português —, rumando a Lisboa em 1719,
depois de obtida a láurea na Academia de S. Lucas, na companhia de Filippo Juvara,
de igual modo contratado pelo embaixador-marquês a fim de resolver outra questão
central da imagem do poder: o novo complexo de Palácio Real e Basílica Patriarcal,
que D. João V ambicionava construir. Nos quase doze anos que se seguiriam, até
ao regresso a Roma, em 1730, Duprà seria responsável por numerosos retratos do
soberano e da família régia, de que uma parte, somente, terá chegado aos nossos
dias (sendo que alguma repetitividade de atitudes, nos que se conhecem, indicia a
pressão das encomendas e que nenhum deles tem por origem o acervo do Paço da
Ribeira, onde, por razões óbvias, deveria albergar-se o seu núcleo central). E neles
alcançaria fixar (e afirmar) uma aliança feliz de dignidade e graça, permeável também
à influência francesa de Rigaud e Nattier e que adopta como sistema representativo,
em que se compraz, particularmente nos retratos femininos e infanto-juvenis.
Respondendo a imperativos de índole diplomático-familiar, como os retratos dos
quatro infantes portugueses, pintados logo em 1719, com destino à Imperatriz-viúva
da Alemanha, sua avó e por localizar, ou, quase uma década mais tarde, os do casal
régio e de seus filhos, D. Maria Bárbara e D. José a pretexto da troca das princesas,
realizada em 29 (perdidos os primeiros e os últimos, respectivamente, no Museu do
Prado e no Palácio Real de Madrid); celebrativa, como o de D. João V contra a bata-
lha do Cabo Matapã (base politico-militar da instituição do Patriarcado de Lisboa),

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 141
o s p i n to r e s d e d . j o ã o v e a i n v e n ç ã o d o r e t r ato d e c o r t e

142 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o s p i n to r e s d e d . j o ã o v e a i n v e n ç ã o d o r e t r ato d e c o r t e

fig.6 pierre-antoine quillard, retrato do engenheiro-mor manuel de azevedo fortes


(mafra, palácio-nacional). © imc. fotografia de henrique ruas.

ainda por 1719 (também perdido, depois de figurar por anos na embaixada do Brasil
em Haia); ou de exaltação do seu patrono e da régia estirpe (como o da Biblioteca
da Universidade de Coimbra e a monumental série ducal, culminando em D. João V e
sua prole, no tecto da Sala dos Tudescos do Palácio de Vila Viçosa: todos de cerca de
1725), Duprà consegue responder com eficácia ao quesito central que lhe fora pedido:
a criação de um sistema representativo, coerente e homogéneo, para a Corte portu-
guesa, susceptível de ombrear com êxito entre a forte concorrência internacional.
Na sua obra de retratista, com efeito (muito vasta, se houver conta às gravíssimas
fig.5 (à esquerda) domenico duprà
perdas que decerto sofreu), faria prova de qualidades seguras de composição e de
e (ou) pierre-antoine quillard,
retrato equestre do duque de cadaval, desenho (bastaria, para demonstrá-lo, o belo estudo para um retrato da Infanta Maria
d. jaime (évora, palácio cadaval). Bárbara, de Vila Viçosa e, no mesmo paço, esse outro esboço para um retrato de D.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 143
o s p i n to r e s d e d . j o ã o v e a i n v e n ç ã o d o r e t r ato d e c o r t e

João V: obra precoce, identificada por Ayres de Carvalho como referente ao retrato de 27. Ob. cit., vol. I, pp. 220, 225-228.
D. José da Sala dos Tudescos27), sem negligenciar, de resto, o valor semântico da cor 28. Veja-se, em geral, idem, ibidem, vol. I, pp.
e mesmo um certo gosto por um intimismo, elegante e velado, herdado do seu mes- 214-235; CALADO, Margarida, “Giorgio Dome-
tre e das correntes francesas precedentes de Rigaud e Nattier, em derrota para uma nico Duprà”, PEREIRA, J. F., Dicionário…, pp.
tímida aproximação ao gosto Rococó: atributos bem visíveis, ainda em Vila Viçosa, 150-152; SALDANHA, Nuno, ROCCA, Sandra
nos retratos da Infanta Isabel Luísa Josefa, do Príncipe do Brasil, D. José ou de seus Vasco, “Giorgio Domenico Duprà”, Joanni V…,
pp. 241-243 e verbetes respectivos.
irmãos; em outro, que faz do mesmo príncipe, contemporâneo, em sóbrio traje de
veludo negro, da colecção de D. Manuel II e exposto, em anos recentes, no mercado 29. Cfr. SOBRAL, L. M., “Os retratos de D. João
antiquário de Lisboa e mesmo no que, do Rei, elaboraria para a biblioteca coimbrã. V…”, p. 29.

Da eficácia ao êxito comercial seria um passo e não tardaria que Duprà fosse soli-
citado a fixar em retrato, de igual modo, os grandes da Corte: o cardeal-patriarca
D. Tomás e os da Mota e Cunha, o marquês de Penalva, o conde de Tarouca, o de
Vimioso, os duques de Cadaval, velho novo, e outros vários, que o tempo consumiu
ou dispersou, beneficiariam da sua arte, obtendo, por seu intermédio, também eles,
uma imagem de poder (ou, quando menos, de prestígio social), que denuncia, no
seu consumo, a difusão no círculo régio dessa cultura imagética que o monarca se
esforçava por implementar em seu redor, como metáfora de uma nova cultura e de
uma nova mentalidade. Destes, merece obviamente destaque o esplêndido retrato
equestre de D. Jaime, o duque novo, na posse particular dos descendentes, cuja sin-
gularidade na obra do pintor (dificilmente verosímil) informará sobre as perdas que
sofreu, ao mesmo tempo que, a ser verdade a colaboração especulada de Quillard
(outro pintor da real câmara entretanto aportado) na realização do fundo, mais ci-
mentará a convicção sobre a sua extensão, pela necessidade de recrutar auxílio. E
não será, decerto, irrelevante, na fortuna que o espera no seu regresso a Roma (onde
continuará ao serviço do Rei de Portugal), primeiro como retratista dos exilados
Stuart, depois da Corte de Turim, o palmarés obtido na Corte de Lisboa e o título
honroso, que conservará, de Pintor de Retratos de S. M. Port.ª 28.
Entretanto, porém, uma facto da maior monta ocorreria nesta matéria e haveria de
repercutir-se poderosamente, seja na sedimentação, seja na difusão da nova imagem
do poder: a fundação, em 1720, da Academia Real da História, dotada de imprensa
e para cuja actividade editorial o monarca convocaria uma plêiade de gravadores
franceses e flamengos, que iriam marcar os anos que se seguem. Por aí passam,
com efeito, Pierre e Charles de Rochefort (pai e filho), Théodore Harrewyh e, muito
especialmente, Michel Le Bouteux e Guilherme Debrie, além do português Vieira
Lusitano, após o seu regresso definitivo em 1734. E, por seu intermédio — quer
por via da ilustração das obras de iniciativa académica, quer em produções avulsas
de carácter comemorativo ou alegórico (mal estudadas, ainda, no seu conjunto)
—,­ a imagem régia alcançaria, finalmente, dotar-se de um eficaz instrumento de
propagação, tanto ao nível da exaltação retórica (em complemento ao penegírico
literário), como da difusão do retrato pintado, como, mesmo, da eternização de mo-
mentos especialmente simbólicos, onde a pessoa do Rei, directa ou indirectamente
convocada, ocupa sempre o seu lugar central29: como em D. João V na cerimónia
do lava-pés, gravada por Debrie em 1731 ou, de Quillard, O lançamento ao mar da

14 4 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o s p i n to r e s d e d . j o ã o v e a i n v e n ç ã o d o r e t r ato d e c o r t e

30. Cfr. Soares, E., ob. cit., vol. II, pp. 136-144, nau Lampadosa, de 1727, ou as ilustrações dos fogos de artifício dos festejos da
205-238, 332-336, 492-506, 527-536 e 631- troca das princesas, de 1729 e do mesmo autor30.
650; CARVALHO, Ayres de, Artistas e gravadores
A importância deste último artista, todavia — Pierre-Antoine Quillard —, não se
franceses (séc. XVII-XVIII): de Callot a Quillard,
limitaria ao domínio da gravura, de algum modo periférico em relação ao seu múnus
Coimbra, Museu Nacional de Machado de Castro,
1984; CALADO, Margarida, “Gravura”, PEREIRA,
central de pintor. De origem francesa e génio precoce, seguidor de Watteau, arriba-
J. F., Dicionário…, p. 211-212; idem, “Vieira Lu- do ao Reino, ao que tudo indica, em 1726 — por iniciativa própria, acolhendo-se à
sitano”, ibidem, pp. 525-526. protecção de D. João V (e com bons apoios no meio politico e diplomático portu-
guês) —, coabitaria com Duprà na Corte joanina, onde viria a falecer, subitamente,
31. Cfr. CARVALHO, A. C., ob. cit., p. 32; CALA-
DO, Margarida, “Pierre Antoine Quillard”, PEREI- em 1733, dois anos após o regresso a Itália do pintor saboiano. E, nela, além das
RA, J. F., Dicionário…, pp. 394-395; SALDANHA, fêtes galantes que o celebrizaram e denunciam a rápida abertura da elite nacional
Nuno, “Pierre-Antoine Quillard”, Joanni V…, pp. aos valores emergentes do rocaille, não deixaria de cultivar a arte do retrato, a par
261-265; idem, “Pierre-Antoine Quillard”, Jean da pintura religiosa (de encomenda régia ou particular) e de programas decorativos
Pillement e o paisagismo em Portugal no século
integrados nas ampliações paçãs promovidas então pelo arquitecto Ludovice. Naque-
XVIII, Lisboa, Fundação Ricardo Espírito Santo
le domínio, com efeito, retrataria a família real, em obras hoje perdidas, à excepção,
Silva, 1994, pp. 189-196.
talvez, de um retrato de D. João V com o Tejo em fundo (nas Necessidades) e do
32. Cfr. CARVALHO, A. de, D. João V…, vol. I, belo quadro que lhe tem sido atribuído, figurando o Príncipe do Brasil em corpo
pp. 247-248; CALADO, Margarida, “Jean Ranc”,
inteiro e sem pose de Estado (Palácio de Mafra). E, como Duprà, não tardaria a ser
PEREIRA, J. F., Dicionário…, p. 396; MORALES
solicitado para fixar igualmente o círculo cortesão: actividade que documenta em
Y MARÍN, José Luís, “Jean Ranc”, SALDANHA,
N., Joanni V…, pp. 289-290. especial o esplêndido retrato (gravado por Rochefort) do engenheiro-mor Azevedo
Fortes (duas versões: Palácio de Mafra e colecção particular), tendo-lhe a oscila-
ção pendular da opinião historiográfica (ante a escassez documental) atribuído já
a magnífica tela, atrás referida, figurando o 2º Cadaval (seu mecenas também), em
pose equestre, composição nervosa que, de facto, não parece conciliar-se facilmente
com a serenidade habitual no pintor de Turim31.
E serão os avatares politico-diplomáticos a aproximar da Corte de Lisboa outro retra-
tista de origem gaulesa: Jean Ranc, discípulo de Rigaud e estabelecido em Espanha
ao serviço de Filipe V. Deslocar-se-ia a Portugal uma vez somente, em 1729, com o
fito concreto de retratar a família real lusitana por ocasião do duplo consórcio cele-
brado nesse ano. E após ter retratado a ... Princesa das Astúrias, Bárbara de Bragança,
em Lisboa retrataria, além dos soberanos e do Príncipe do Brasl, os infantes-tios, D.
António e D. Francisco: quadros conservados no Palácio Real de Madrid (os infantes)
e no Museu do Prado (Bárbara e seus pais, expostos hoje na embaixada espanhola
em Washington), à excepção do de D. José, perdido provavelmente em 34, no incên-
dio do velho alcazar de Madrid. E neles deixaria Ranc uma síntese feliz dos padrões
criados para o retrato francês pela geração de Rigaud, De Troy e Larguilière, com
que se formara, fixando os seus modelos numa visão de esplendor gracioso, apoia-
da numa paleta mais fresca e alegre que as usadas por Duprà ou Quillard: imagens
eficazes mas sem complexidade, de evidente comprazimento nos efeitos voláteis da
composição (vestes, adereços, fundos) 32. E que, curiosamente, experimentariam o
mais feliz acolhimento junto dos seus circunstanciais protagonistas.
De facto, passados (provavelmente todos) a gravura, dez anos mais tarde (são co-
nhecidas as dos Reis, por Debrie e a de D. António, amputada nas assinaturas), se-
riam os dos monarcas (ao menos) objecto de reprodução literal (Museu dos Coches),

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 145
o s p i n to r e s d e d . j o ã o v e a i n v e n ç ã o d o r e t r ato d e c o r t e

sendo o do Magnânimo, em particular, nos anos que se seguem, convertido em vera


efígie de uso oficial: seja em variantes de meio corpo (Torre do Tombo, Museu da
Cidade de Lisboa, etc.), seja em adaptação de corpo inteiro, como o que incorpora a
galeria régia da Sala dos Capelos da Universidade de Coimbra. Operação essa à qual,
abalado Duprà em 1730 e morto Quillard em 33, não serão porventura estranhos,
tanto a inexistência de alternativa eficaz local (que as sempre citadas palavras da
nova Princesa do Brasil, D. Mariana Vitória, a sua mãe, desse ano, testemunham:
ao responder, sobre o quesito de um pintor que fizesse o seu retrato, “não há ago-

fig.7 jean ranc (cópia), retrato de d. maria ana de áustria


(lisboa, museu dos coches). © imc/ddf.

146 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o s p i n to r e s d e d . j o ã o v e a i n v e n ç ã o d o r e t r ato d e c o r t e

fig.8 jean ranc, retrato do infante d. francisco de bragança (madrid, palácio real).

33. Pud FRANÇA, J.-A., ob. cit., pp. 41-42. ra nenhum bom”33), como o próprio desejo do soberano de cristalizar no tempo a
sua imagem áurea, face à decadência física que já se anunciava: e lhe dominaria a
derradeira década.
Mas é certo que, com Duprà, Ranc fora o mais eficaz construtor da imagem régia,
nesse desígnio de grandeur que a alimentava e impunha a estratégia afirmativa de
um poder real ainda fatalmente barroco na sua formulação ideológica e cultural. De
facto e mesmo que a perda da generalidade do seu espólio imponha prudência numa
avaliação, tudo indica que a vibratilidade e mesmo uma certa melancolia presentes na
paleta de Quillard (onde o Rococó já se prenuncia), propiciariam menor adaptação a
tal desígnio. Mas o retrato e, sobretudo, a propagação da imagem régia, conheceriam
ainda, no Portugal joanino, mais episódios, que importa perscrutar.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 147
o s p i n to r e s d e d . j o ã o v e a i n v e n ç ã o d o r e t r ato d e c o r t e

Efectivamente, o sistema barroco de poder impunha, pela sua própria lógica polar, 34. Cfr. PEREIRA, José Fernandes, “João António
uma projecção transversal da sua imagem no interior da comunidade social, como Bellini”, Dicionário…, p. 78: VALE, Teresa Leonor
M., “João António Bellini de Pádua: a mobilidade
presença omnímoda e centrípeta. Deve, pois, derramar-se sobre o território, numa
de um escultor italiano em Portugal no século
apropriação de valor semiótico, que metaforiza o próprio carácter da organização
XVIII – parcerias artísticas e encomendadores”,
jurídica e social. Será esse o espaço da gravura, desde logo, difundindo o discurso Artistas e artífices e a sua mobilidade no mundo
laudatório da lisonja cortesã; mas também o de uma outra forma de retrato — o de expressão portuguesa, Actas, Porto, Faculda-
monumento público — cujo valor semântico, em associação a um poder absoluto, de de Letras da Universidade do Porto, 2005, pp.
entendido como referência central do bem-comum, adquire, em tal contexto, in- 505-518.
controversa pertinência, ao mesmo tempo que a genealogia formal em que se apoia 35. Cfr. D. João V e o abastecimento de água a
favorece o objectivo central de heroicização que alimenta a imagem do poder: e, Lisboa, Cat., Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa,
com ela, o retorno ideal da retórica exaltante do retrato alegórico. p. 113; TEIXEIRA, J. M., ob. cit., p. 181.
Donde (na sua lógica de incorporação do paradigma representativo internacional) 36. Cfr. TEIXEIRA, J. M., ob. cit., p. 131.
os testemunhos de projectos de monumentos públicos em louvor de D. João V que
37. Cfr. idem, ibidem, p. 166.
viram a luz no seu reinado: concretamente o que concebeu o escultor italiano, es-
tabelecido em Portugal, João António Bellini, em 1737, de uma marmorea estatua 38. Cfr. FRANÇA, J.-A., ob. cit., p. 46.
do sempre Magnifico Rei, a erguer em Lisboa e jamais realizada34 (que se saiba),
ou o que, dez anos mais tarde, idealizaria Carlos Mardel (igualmente sem sucesso),
conhecido de desenhos, figurando o monarca, equestre, ao topo de uma fonte que
derramaria as águas livres na cidade. Mas é certo que, em descrição anónima da
urbe, de 1730, se regista uma enigmática estátua equestre do monarca, junto ao
Arsenal (e portanto anterior)35, por controverso crédito que mereça tal afirmação,
que nenhum outro testemunho corrobora.
A esses anos, aliás — a década de 20 — pertencem outras representações reais
do foro retratístico, de carácter igualmente monumentalizador e que não poderão
silenciar-se em tal matéria: e dizem respeito às áreas da numismática e da meda-
lhística. Na primeira, com efeito, destacar-se-ia o labor de António Mengin, ao
serviço da casa da moeda, criando, com as ricas dobras portuguesas (de circulação
internacional), ornadas da efígie do monarca, dignamente modelada, um dos mais
universais, prestigiosos e eficazes meios de projecção, tanto interna como externa,
da imagem do poder36. Na segunda, não poderá omitir-se (perdidas as medalhas que
assinalaram a fundação de Mafra) o excelente retrato modelado por Vieira Lusitano,
por 1722, para a medalha comemorativa da instituição da Academia Real da Histó-
ria37. E ainda, neste domínio de uma retratística miniatural (mas nos antípodas da
retórica exaltante do poder), convirá incorporar outro exemplar, até pela manifesta
raridade: a miniatura assinada Castriocto, conservada no Museu Nacional de Arte
Antiga e que, por tradição, se aceita figurar o Rei, em ambiente informal, tomando
chocolate no estúdio de um pintor 38: versão negativo do retrato de Corte, na sua
ilustração negligée de uma pintura de género que o reinado (aparentemente) não
legou, mas que documentará, por isso mesmo, o desígnio mais amplo de reforma
cultural que o enquadrou.
O retrato por antonomásia, todavia (e o retrato-monumento também), que assinala
o epílogo do reinado — e que, de algum modo, consubstancia um testamento mo-
ral do Rei Magnânimo — será, porém, o que em 1747 esculpiu Alessandro Giusti,

148 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o s p i n to r e s d e d . j o ã o v e a i n v e n ç ã o d o r e t r ato d e c o r t e

39. Cfr. idem, ibidem, p. 39; PEREIRA, José Fer- aportado a Portugal no quadro da instalação da régia e sumptuosa Capela de S.
nandes, “Alessandro Giusti”, Dicionário…, p. 203. João Baptista em S. Roque, com destino à livraria das Necessidades e que haveria
de dispor de versão tripla, em mármore, bronze e madeira dourada39: imagem pode-
rosa, teatral, quase obsessiva, na sua ilustração voluntariosa do monarca absoluto,
senhor de auctoritas e potestas.
Mas que, simbolicamente, quis legar-se à posteridade no papel de protector das
letras, artes e ciências, figuradas na panóplia que rodeia a base, em óbvia sintonia

fig.9 alessandro giusti, busto de d. joão v (mafra, palácio nacional). © imc/ddf.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 149
o s p i n to r e s d e d . j o ã o v e a i n v e n ç ã o d o r e t r ato d e c o r t e

fig.10 fonte. monumento ao rei d. joão v. projecto de carlos mardel.


planta e alçado. c. 1747. nº inv. mc.des.587 © cml – museu da cidade.

da retórica gravada das alegorias: assim hierarquizando, em fim de contas, delibe-


radamente, virtus e utilitas.
Os nomes de Bellini, Mardel e Giusti, todavia, dominando a informação disponível
sobre o historial da representação real ao longo dos anos 30 e 40 do reinado (as
décadas finais) — e mesmo que ao serviço de projectos de controversa materiali-
dade —, continuam, assim, a configurar a estratégia desde cedo delineada, tanto

150 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o s p i n to r e s d e d . j o ã o v e a i n v e n ç ã o d o r e t r ato d e c o r t e

40. MERVEILHEUX, Charles Fréderic de, “Me- por razões directas de eficácia, como indirectas, de projecção exterior: o recurso
morias instrutivas sobre Portugal”, CHAVES, metódico e sistemático a artistas de formação internacional, por isso mesmo fami-
Castelo-Branco, O Portugal de D. João v visto
liarizados com as formas e fórmulas da retórica representativa que se tinha em vista
por três forasteiros, Lisboa, Biblioteca Nacional,
aqui reproduzir (claramente ilustrada pelo aproveitamento imediato dos serviços do
1983, p. 219. Valerá a pena esclarecer que é com
esta acepção de câmara do tesouro, constituída
último, à margem do patamar técnico contratual que lhe ditara a vinda). Entre eles,
por uma ou mais dependências, que a palavra porém, parecem tornar inverosímil o hiato detectado entre as primeiras figurações
guarda-roupa surge na geografia dos espaços na escultóricas (Laprade, Parodi/Biggi) e os quase vinte anos que o monarca teria apa-
arquitectura áulica da Época Moderna, em asso- rentemente demorado a beneficiar dos recursos de um escultor. Mais controverso é,
ciação aos aposentos principais — e não com o certamente, o panorama da pintura, após a morte, súbita e precoce, de Quillard. Mas
sentido literal contemporâneo e que faria traduzir,
é certo que, como em tantos sectores do mecenato artístico joanino, será sempre
de modo ingénuo, merchandises por vestuários.
desconhecida a verdadeira extensão da catástrofe de 55 e, com ela, dos tesouros
que, por quarenta anos, obsessivamente acumulou — e que fariam Merveilleux dizer
que “Sua Majestade deve ter mais mercadorias no seu guarda-roupa que todos os
mercadores de Lisboa, juntos, nas suas lojas. Seguramente é o mais rico guarda-
roupa do universo”40.
Em tal contexto, será sempre ferido de parcialidade qualquer juízo crítico que parta
unicamente do espólio que o tempo nos legou. Apesar disso, parece certo poder
afirmar-se que, dentro dos limites disponíveis a um país periférico — e dos limites
reais de que dispunha (mais apertados do que o mito supõe) —, o esforço joanino
de integração da imagem áulica portuguesa no paradigma de referência internacio-
nal alcançou consecução assinalável. E a prová-lo não estará só o salto imenso que
promove em relação ao patamar donde partia (e é dado que não poderá depreciar-
se): mas, de igual modo, a distância a que haveria de quedar-se, por seu turno, a
imagem cortesã no período posterior. E são estas, certamente, premissas em que
há-de atentar o historiador. •

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 151
Resumo
O Grupo do Leão foi pintado em 1885, na altura em que se fez uma remodelação palavras-chave
da Cervejaria Leão de Ouro, onde se costumavam reunir os pintores e intelectu-
ais que aí trocavam ideias e planeavam exposições. Estes eram os representantes grupo do leão
do Naturalismo português, liderados por Silva Porto. Para a génese desta pintura naturalismo
é importante a comparação com os retratos do século XVII, levando-nos a pensar pintura século xvii
que Columbano pensou nos exemplos da história da arte para os retratos de grupo retratos de grupo
e modernizou-os. Noutro ponto de vista, o Grupo do Leão está associado a uma homenagem aos artistas
temática do século XIX que separa os artistas do resto da sociedade e, nesse senti-
do, este quadro é uma homenagem aos artistas do Naturalismo, figurando o Grupo
com ironia, um pouco ao estilo de Eça de Queirós nas suas descrições da sociedade
portuguesa de oitocentos. •

Abstract
In 1885, as the brewery “Leão de Ouro”, a place where painters and intelligentsia key-words
would meet to exchange ideas and plan common exhibits, was being refurbished, the
“Grupo do Leão” was painted. At the time, the men portrayed in this painting were grupo do leão
the representatives of the Portuguese Naturalism, led by Silva Porto. We find the naturalism
comparison between this painting and portraits of the 17th century rather relevant, 17th century painting
leading us to believe that Columbano chose particular group portraits from the art group portraits
history and modernized them. On another account, the “Grupo do Leão” is linked to artists homage
a 19th century theme which separated artists from the rest of the society and, in that
sense, the painting is a homage to Naturalist artists, where the Group’s members are
shown with quite some irony; much to the style of Eça de Queirós’s descriptions of
19th century Portuguese society. •
o grupo do leão
de columbano
bordalo pinheiro

ma rg a r i da e l i a s O Grupo do Leão (Fig.1), uma das obras mais significativas de Columbano Bordalo
Instituto de História da Arte Pinheiro e aclamada por Eça de Queiroz como o melhor trabalho do artista, foi pin-
Universidade Nova de Lisboa tado em 1885, na altura em que se fez uma remodelação da Cervejaria Leão de Ouro,
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
onde se costumavam reunir os pintores que formaram o Grupo do Leão ( Almeida
margaridaelias@sapo.pt
1885; Ramalho 1885 e Cristino 1923).
Exposta no café, logo «á entrada da porta, lado esquerdo» (Almeida 1885), cedo esta
pintura foi aclamada e, como prova disso, no Diário Popular alguém escreveu que «ha
muito não vimos entre nós um trabalho de tão largo folego, tão amplamente conce-
bido e executado». Fialho de Almeida (1857-1911) felicitava o artista dizendo que
este era o seu mais «surpehendente trabalho» (Almeida 1885). Um dos retratados,
Ribeiro Cristino (1858-1948) afirmou, quarenta anos depois, que este quadro era
«uma magnífica e até histórica pintura». Tinha um enorme valor como documento,
«pois ali figuram todos os artistas de aquele celebre grupo artístico, reproduzidos
do natural, com extraordinária semelhança e aspecto dos retratados» (Cristino 1923,
27-38). Em 1924, no Guia de Portugal, podia ler-se que, dos quadros da Cervejaria,
o «mais notável (...) é aquele em que Columbano representou o famoso Grupo do
Leão» (Proença et al. 1979, 201).
Varela Aldemira, antigo aluno do pintor, alvitrou que O Grupo do Leão era a perpe-
tuação da Lisboa mundana do último quartel do século XIX, numa «tela invulgar»
que fazia a crónica «cintilante de uma geração privilegiada» (Aldemira 1941, 35).
O escultor Diogo de Macedo, que como Columbano foi director do Museu Nacional
de Arte Contemporânea, entendia que ele era a proclamação de uma nova pintura
(Macedo 1952, 50), um documento de génio de um dos maiores pintores portu-
gueses (Macedo 1946, 9).

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 15 3
o grupo do leão de columbano bordalo pinheiro

fig.1 columbano bordalo pinheiro, o grupo do leão , 1885, óleo sobre tela, 201 x 376 cm, museu do chiado. © imc/ddf.

José-Augusto França escreveu bastante acerca desta obra. Para ele, tinha algo de co-
memorativo (França 1990, 269), era uma espécie de manifesto dos pintores da gera-
ção de 80 (França et al. 1988, 221). Representava a «melancólica boémia de cervejaria
da Baixa» de «maneira assaz trocista» (França 1979, 30). Ainda segundo França, este
quadro era «o grande retrato colectivo da pintura nacional» (França 1981, 73).
Por seu lado, Margarida Acciaiuoli afirmou que o Grupo do Leão qualificava Columba-
no como um dos pintores mais conscientes da sua época (Acciaiuoli 1988, 66). Mar-
garida Matias classificou-o como «o grande acontecimento da pintura de Columbano»
(Matias 1986, 97). E, mais recentemente, Pedro Lapa, em dois textos publicados
respectivamente em 1994 e 2007, considerava-o como a «obra de referência deste
período» da carreira do artista (Lapa 2007, 132). Por fim, Raquel Henriques da Silva
observou, nesta obra de Columbano, a manifestação de uma «tranquila postura de
triunfo» e um «optimismo tingido de ironia». (Silva 2000, 427).
Como referimos, o título do quadro remete para os pintores e intelectuais que se
costumavam reunir na Cervejaria Leão de Ouro, trocando ideias e planeando exposi-
ções. Os membros iniciais foram, entre outros, os pintores Silva Porto (1850-1893),

154 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o grupo do leão de columbano bordalo pinheiro

João Vaz (1859-1931), António Ramalho (1859-1916), Ribeiro Cristino, o carica-


turista Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905), o entalhador Leandro Braga (1839-
1897), o actor João Anastácio Rosa, os escritores e jornalistas Alberto de Oliveira
(1861-1922), Mariano Pina (1860-1899), Monteiro Ramalho (1862-1949), Emídio
de Brito, Fialho de Almeida, Abel Botelho (1854-1917) e o poeta romântico Bulhão
Pato (1829-1912) (Cristino 1923, 30 e 31 e Ramalho 1897, 8-13). Columbano só
se reuniu a eles quando voltou de Paris, em 1883, mas participou nas exposições
desde 1882.
A história relativa à encomenda do Grupo do Leão é conhecida e foi relatada pelos
seus contemporâneos. De acordo com Ribeiro Cristino, na «primavera de 1885 numa
noite das costumadas reuniões do «Grupo» (…) constou que a cervejaria ia acabar,
porque se separavam os dois co-proprietários Monteiro-Varela». Sendo «chamado o
estimado Manuel, que (…) era o criado que nos servia, explicou que um dos donos
ficaria na mesma casa e outro abriria novo café ao lado (…). Perguntámos ao Ma-
nuel com qual dos dois ficaria, ele ainda o ignorava, mas assentou-se desde logo,
(…) que nós (…) continuaríamos a reunir aonde ele continuasse a servir». «Pouco
depois sabia-se que o Manuel passava para o novo estabelecimento, o qual iria
entrar em obras, e alvitrou-se que seria interessante se déssemos á nova casa um
aspecto ornamental». Ficou «resolvido, que cada um de nós pintasse um quadro de
assumpto á escolha (…), mas todos eles de idênticas dimensões; trabalhos que se
ofereceriam em homenagem ao Manuel, limitando-se o proprietário (…) a custear
o material necessário» (Cristino 1923, 35).
Sendo a abertura do café marcada para o Sábado de Aleluia, ficaram os artistas ape-
nas com cerca de vinte dias para a obra. O novo espaço recebeu o nome de «Leão
de Ouro», denominação que ainda hoje persiste. À data da inauguração, Monteiro
Ramalho escreveu que tinham conseguido transformar uma «loja acachapada, de
tosca estructura, n’ uma espécie de interessante museu livre» (Ramalho 1885, 98).
Nessas actividades participaram José Malhoa (1855-1933), Ribeiro Cristino e Sil-
va Porto com pinturas de paisagem, João Vaz com uma marinha, Rodrigues Vieira
(1856-1898) com um quadro de flores e Moura Girão (1840-1916) com uma compo-
sição animalista. Maria Augusta Bordalo Pinheiro (1841-1915) – irmã de Columbano
- foi autora de um bordado com um leão para o reposteiro e Leandro Braga entalhou
um leão dourado. Rafael Bordalo Pinheiro realizou uma caricatura do grupo, sobre
uma tela imitando azulejo. Columbano pintou um retrato do dono da casa, o senhor
António Monteiro, mas a sua colaboração foi sobretudo marcada pelo importante
retrato colectivo que compôs para a ocasião, onde ficaram representados os com-
panheiros do grupo.
Os pintores retratados foram os criadores do Naturalismo português, liderados por
Silva Porto, chegado há seis anos de Paris. Ele trouxera um novo fôlego para a arte
portuguesa, uma alteração na forma de pintar, desenvolvida, sobretudo, em con-
tacto com a natureza.
N’O Grupo do Leão as figuras dispõem-se em torno de uma mesa, ficando ao centro
Silva Porto, rodeado pelos pintores António Ramalho, João Vaz, Henrique Pinto,

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 155
o grupo do leão de columbano bordalo pinheiro

fig.2 fferrotipo, 1883-1884; espólio de columbano, museu do chiado. © imc/ddf.

Ribeiro Cristino, Cipriano Martins (m. 1888), José Malhoa, Moura Girão, Rodrigues
Vieira e o próprio Columbano. Aparecem ainda Rafael Bordalo Pinheiro, Alberto de
Oliveira, o criado Manuel Fidalgo e um desconhecido, cuja identidade tem gerado
certa polémica. Esta figura, pouco definida, era por certo um dos criados, provavel-
mente o criado Dias como foi descrito por Ribeiro Cristino (Cristino 1923, 37), pois,
no Diário de Notícias de 16 de Abril de 1885 pode ler-se: «Columbano pintou-os a to-
dos n’uma tela originalíssima com Alberto de Oliveira, e os criados que os servem».
Não obstante Ribeiro Cristino dizer que, apesar de haver pouco tempo, cada um
dos retratados foi «posar, por escala, ante o Columbano, para o seu grande quadro»
(Cristino 1923, 35), é provável que Columbano se tivesse inspirado em fotografias
para alguns dos retratos. Pelo menos, António Ramalho, Henrique Pinto e Cipriano
Martins não deviam estar em Lisboa, e, talvez por isso, não participaram nas deco-
rações da Cervejaria. Nesse sentido, concordamos com Pedro Lapa que refere que
algumas poses podem ter sido tiradas de uma fotografia (ferrotipo) (Fig.2) que hoje
se encontra no espólio de Columbano (Museu do Chiado), cuja data é atribuída a
1883-1884 (Lapa 2007, 133). Nela se podem ver, entre outros, António Ramalho e

156 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o grupo do leão de columbano bordalo pinheiro

Alberto de Oliveira, em poses muito próximas daquelas em que figuram no Grupo do


Leão. Surge também uma figura que talvez seja José Malhoa, mas que nos parece
mais distante do retrato do Grupo, apesar de também estar sentado e de perfil.
O quadro foi pintado na década de oitenta, um dos períodos mais profícuos da
carreira de Columbano, em que este procurava experimentar caminhos modernos. A
composição constrói-se em tonalidades de castanhos e dourados, com uma economia
cromática que faz lembrar a estética fotográfica. O fundo é claro e abstracto, dando
destaque aos retratados, cujas formas são reduzidas silhuetas, lembrando a pintura
de Manet. Outro aspecto a considerar é a espontaneidade das pinceladas, sem dar
demasiado detalhe aos pormenores.
Ao observarmos esta obra, temos a impressão que Columbano procurou capturar um
momento real, como se o pintor (ou pretenso fotógrafo) tivesse interrompido uma
reunião habitual. Corroborando essa hipótese está o diferente comportamento de
cada uma das personagens e o facto de Cipriano Martins parecer espreitar atrás de
uma coluna. Contudo há enquadramento e as poses são estudadas.
A composição divide os retratados em dois grupos (Fig.3). Essa divisão parte da ban-
deja trazida pelo criado, que se sobrepõe às cabeças de Silva Porto e António Rama-
lho. Cada um deles, junto do centro, tem atrás de si duas personagens em diagonal,
formando um V, que são Alberto de Oliveira, do lado de Silva Porto e o criado, do
lado de António Ramalho. Deste modo, prevalece uma estrutura simétrica através da
correspondência de personagens, sendo a mesa o elemento estabilizador da composi-

fig.3 esquema

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 157
o grupo do leão de columbano bordalo pinheiro

ção. Contudo, há uma ligeira assimetria causada pela maior preponderância da coluna
do lado esquerdo, contrabalançada pelas figuras, mais claras e de pé, do lado direito.
Através dessa assimetria, Columbano pretendeu dar uma aparência de naturalidade,
embora mantivesse uma base tradicional na estrutura da composição.
Como numa cena teatral, um «espaço cénico» (Lapa 1994, 116), as figuras dispõem-
se de maneira a que os seus rostos sejam visíveis para o espectador. O balcão separa
o observador dos retratados, mas a atitude de alguns deles parece convidar-nos para
a sua reunião, nomeadamente a de Rodrigues Vieira, que se vira para o espectador
enquanto ergue uma caneca em sinal de brinde. Porém, a aparente bonomia não
está presente em todas as personagens e alguns parecem pensativos, como Silva
Porto e Moura Girão.
Aprofundando a análise, verifica-se que no Grupo do Leão há quatro retratados que
estão juntos e interagindo entre si: Silva Porto, Alberto de Oliveira, João Vaz e Antó-
nio Ramalho. É possível que Columbano quisesse dar importância àquele que fora o
conjunto iniciador da revolução naturalista da arte portuguesa (Ramalho 1882, 19),
pois, como relata Ribeiro Cristino, fora numa das noitadas de concorrência intermédia
que «se começou a projectar uma pequena exposição de quadros (…). A conjura
tomou rapidamente folego; e, ao fim de mais algumas conversas sobre o caso, Silva
Porto, António Ramalho, e Vaz resolveram definitivamente apresentar à cidade os
seus trabalhos». Os outros logo se juntaram para a primeira exposição, que se deu
em 1881. Foi Alberto de Oliveira quem tratou do catálogo (Ramalho 1897, 11-13)
e de arranjar uma localização para o evento (Cristino 1923, 32-33).
No quadro, Alberto de Oliveira está retratado de cartola e bengala, numa tipologia
próxima do dandy (Lapa 2007, 133). Parece que acabou de chegar, sugerindo que
afastara a caneca de Silva Porto, para lhe mostrar uma das revistas francesas que os ti-
nha inspirado. Como referiu Pierre Grassou, estas reuniões animavam-se com a chegada
dos números da Vie Moderne habitualmente trazidos por Oliveira (Grassou 1882, 6).
Apesar de ter a revista à sua frente, Silva Porto parece ausente, enquanto olha
tristemente o espectador (ou quem o retrata). A sua expressão coaduna-se com as
palavras de Monteiro Ramalho, descrevendo-o como um «poeta ligeiramente me-
lancólico» (Ramalho 1897, 40-41). A posição central no quadro deve-se ao facto de
ter sido ele quem «guiou e animou os artistas, que por aí andavam desorientados
e abatidos» (Ramalho 1897, 40-41). Contudo, parece contrariado pelo seu papel
fulcral nesta homenagem.
O lado esquerdo do quadro é o menos agitado, preenchido sobretudo por pintores
de paisagem. João Vaz, que se afirmou como marinhista, mostra-se introspectivo.
Malhoa, serenamente sentado à frente da mesa, tem algum destaque. Nesta altura,
ele começava a ganhar importância no panorama artístico português, particularmente
depois de ter executado o quadro O Viático do Termo. Junto de Malhoa ficou Ma-
nuel Henrique Pinto, que parece dormitar. Encostado à coluna e de pé, está Ribeiro
Cristino, fitando o espectador. Este era filho e discípulo do pintor Cristino da Silva,
que trinta anos antes pintara uma homenagem aos pintores do Romantismo, Cinco
Artistas em Sintra.

158 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o grupo do leão de columbano bordalo pinheiro

O lado direito do quadro é composto por artistas menos ligadas à paisagem. Ao lado
de Silva Porto, que o apoiara na sua formação, está António Ramalho. Definiu-se
sobretudo como retratista, realizando notáveis obras neste domínio (França 1990,
59). A sua cabeça vira-se para trás, para se dirigir a Alberto de Oliveira e o seu olhar
liga-o ao grupo da esquerda.
De pé, atrás de António Ramalho, está o criado Manuel Fidalgo, vestido de preto, de
avental branco e compridas suíças negras, tal como era descrito na época (Ramalho
1897, 10 ou Almeida 1885). Aparenta ter chegado com comida para servir os convi-
vas e a sua posição é também central, o que está de acordo com o facto de Ribeiro
Cristino dizer que estes quadros seriam em sua homenagem.
Rodrigues Vieira, que fora colega de escola de Columbano e que este já retratara em
1876, está sentado junto à coluna direita, mas virando a cabeça para o espectador
(ou quem o retrata). Parece bem-disposto, o que se harmoniza com a descrição
de Monteiro Ramalho que o caracterizou «com a sua gorducha cara alegrada pela
sempiterna risada» (Ramalho 1885, 107). Vieira foi, além de escultor, um pintor que
se dedicou à pintura de flores e à paisagem, representando a região de Leiria, de
onde era natural.
Moura Girão era o mais velho do grupo e afirmou-se como animalista, sobretudo de
galináceos. Mostra uma atitude nada entusiasta e a sua posição próxima do centro,
em frente da mesa, dá-lhe um certo destaque. Está melancolicamente sentado, mas
o seu corpo sublinha a diagonal imposta por Alberto de Oliveira e quebra aquela
que é proposta pelo criado Manuel Fidalgo, num jogo de forças que acaba por in-
duzir agitação, a qual é ampliada pelos semblantes galhofeiros de António Ramalho
e Rodrigues Vieira.
A pose melancólica de Moura Girão traz à memória o São Jerónimo de Dürer (Fig.4),
um quadro que, em 1880, «foi comprado à família dos Almadas, por intermédio de
Alberto de Oliveira e iniciativa do conde de Almedina, passando a fazer parte da
colecção de pintura que ficou instalada no antigo palácio Alvor, às Janelas Verdes»,
hoje Museu Nacional de Arte Antiga (Santos 1965, 70). Provavelmente Columbano
inspirou-se nessa obra para a pose do pintor Girão, numa citação da arte do passado
que denota alguma ironia – em vez de uma caveira, Girão segura uma bengala.
Serenamente sentado, olhando para o espectador, está o caricaturista Rafael Bordalo,
uma das figuras «mais admiraveis do quadro, e das mais fieis» (Almeida 1885). Ele
enveredara pela arte cerâmica, estando a iniciar a montagem da fábrica de faianças
nas Caldas da Rainha. Está de chapéu, quiçá indicando que estava um pouco à parte
neste grupo. Columbano já o retratara, em 1884, numa pose semelhante à do Grupo
do Leão, dignamente sentado, de luvas e bengala.
De pé, atrás de Rafael Bordalo, está Columbano, que se figurou de cartola e bengala,
«exactamente como elle passeava este inverno pelas ruas de Lisboa» (Almeida 1885).
Escreveu José-Augusto França que ele se auto-representava, como quem vai sair ou
não deseja sequer entrar (França 1979, 30), apontando, nesta atitude, a separação
que existia entre ele e os restantes artistas da sua geração. Columbano não era o úni-
co que estava de pé, mas retratou-se próximo do lado direito do quadro, virado nessa

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 159
o grupo do leão de columbano bordalo pinheiro

fig.4 albrech dürer, são jerónimo , 1521, óleo sobre painel, 59,5 x 48,5 cm,
museu nacional de arte antiga. © imc/ddf.

direcção, o que acentua a sensação de estar a sair. Porém, a sua saída foi travada
por outros dois personagens, como se estivesse a a falar com eles. Em contrapartida,
talvez por coincidência, colocou-se, juntamente com o irmão Rafael, na linha de ouro
da composição, o que lhes dá algum realce entre os restantes retratados.
Duas personagens estão mais à parte e de pé. Uma delas é o criado Dias, a outra é
Cipriano Martins, que está quase escondido atrás de uma coluna. Este era um pintor
de retrato, ligado ao ensino, que iria falecer pouco tempo depois, em 1888.
Note-se ainda, sobre a mesa, a natureza-morta constituída por copos quase vazios,
um jarro, um pequeno prato, a revista e uma toalha branca, tudo num aspecto de

160 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o grupo do leão de columbano bordalo pinheiro

desalinho lembrando que a reunião já decorria e dando naturalidade ao momento. A


qualidade das transparências e das texturas recordam que Columbano foi um exímio
pintor de natureza-morta.
O quadro traz à memória o jantar descrito por Eça de Queirós na Capital, quando é
feita uma homenagem a um jovem escritor chegado a Lisboa, reunindo-se para isso
escritores e outros artistas, em torno de uma mesa, aproveitando os alimentos e a
bebida como pretextos para o convívio. Margarida Acciaiuoli afirmou que o Grupo do
Leão reconstitui uma «realidade arquétipa de uma época que não se justifica senão
em torno de uma mesa, como se da «Ceia» se tratasse» (Acciaiuoli 1988). A sugestão
iconográfica vem de Fialho de Almeida, que comparou o quadro a uma «ceia chocar-
reira», de que o Cristo seria o tristonho Silva Porto (Almeida 1885). Também Juvenal
Esteves encontrava aqui o cânone davinciano da Ceia do Senhor (Esteves 1987, 44).
A lembrança é pertinente, particularmente se notarmos a atitude de Silva Porto ro-
deado pelos restantes artistas, quase como Cristo entre os apóstolos. A citação da
Ceia cristã para uma reunião de amigos acrescenta alguma ironia a esta obra.
Fialho de Almeida também comparou este trabalho aos Bêbedos de Velásquez, pro-
vavelmente devido ao «convivio galhofeiro» que se respira entre este grupo de ami-
gos (Almeida 1885). Porém, para a génese da composição, é importante o paralelo
com os retratos de grupo do século XVII. Na época, já Monteiro Ramalho dizia que o

fig.5 eustache le sueur, portrait de groupe dita réunions d’amis , ca. 1640/42, óleo
sobre tela, 127 x 195 cm, museu du louvre - inv. 8063, copyright a. dequier - m. bard.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 161
o grupo do leão de columbano bordalo pinheiro

Grupo do Leão trazia à memória os retratos de grupo de Frans Hals (ca. 1582-1666)
ou de Rembrandt (1606-1669) (Ramalho, 1885). No Louvre, Columbano podia ter
visto a Réunion d’ amis (1640/42) (Fig.5) de Eustache Le Sueur (1617-1655), cuja
estrutura compositiva se assemelha à do Grupo do Leão. As pinturas seiscentistas
tendiam a figurar estas reuniões no final do banquete, com os retratados na sua
atitude pessoal e habitual (Abélès 1987, 21). No caso do Grupo do Leão, pouco se
pode ver sobre a toalha. Esta reunião parece ser mais animada pelo vinho ou pela
cerveja do que pelos alimentos, o que acentua o aspecto boémio do grupo. Tal como
nos quadros de Frans Hals ou Rembrandt, comunica-se a naturalidade das atitudes,
como se os retratados tivessem sido surpreendidos pelo pintor num dado momento
da sua reunião. No Grupo do Leão parece que esse momento é o da chegada de
Alberto de Oliveira, com uma revista, e do criado, com a comida.
Por outro lado, o quadro está associado a uma temática do século XIX que reivindi-
ca, para os artistas, um estatuto específico. Há uma relação entre os actores, o local
das suas acções e as consequências valorosas dos seus actos (Brilliant 1991, 96). O

fig.6 cristino da silva, cinco artistas em sintra , 1855, óleo sobre tela, 86,3 x 128,8 cm, museu do chiado. © imc/ddf.

162 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o grupo do leão de columbano bordalo pinheiro

acontecimento era uma reunião dos artistas que haviam conseguido revolucionar a
arte portuguesa e, de uma forma por certo heróica, organizado exposições que viriam
a ser aplaudidas pelo público, pela crítica e pela própria família real.
Mas pode ainda referir-se que a noção de consagração dos heróis num banquete tem
reminiscências desde a Antiguidade, «na medida em que através dele se represen-
tam deuses, heróis ou mortais cuja Virtus se pretendia destacar» (Maciel 2000, 19).
Tal como definiu Linda Nochlin, os heróis realistas podem definir-se como aqueles
indivíduos que «parecem encarnar em maior grau os principais valores do seu tem-
po e da sua cultura: políticos e filósofos, artistas e escritores, cientistas e músicos»
(Nochlin 1991, 155). Este foi o tipo de homens que Columbano retratou ao longo
da sua vida, formando uma galeria que o tornou célebre.
O quadro tem ligação, pelo tema escolhido, com outras obras, nomeadamente os
Cinco Artistas em Sintra (1855) (Fig.6) de Cristino da Silva (1820-1877), retrato
colectivo dos artistas do Romantismo, tendo como pano de fundo Sintra e a Pena,
o seu espaço de eleição. O Grupo do Leão tem como cenário um interior, um bal-
cão ladeado por colunas, que fecha ironicamente os artistas do ar livre. Margarida
Acciaiuoli escreveu que o desprezo de Columbano pelo poder redentor dos pintores
de ar livre se reflectia na escolha do espaço em que os representou, enclausurando-
os no interior de uma cervejaria (Acciaiuoli 1988). Devemos, no entanto, lembrar
que o destino do quadro era a Cervejaria onde se reuniam, que era também o seu
espaço de eleição.
Na pintura estrangeira contemporânea há algumas obras célebres que devem ser re-
cordadas a propósito do Grupo do Leão, mas julgamos que Columbano dificilmente
as conhecia. Entre essas pinturas sobressaem as homenagens a Delacroix (1864) e a
Manet (Un atelier aux Batignolles, 1870) pintadas por Fantin-Latour (1836-1904).
Estas obras representam as pessoas solenemente, em pose para o retrato (com maior
naturalidade de atitudes no segundo caso), recriando um ambiente silencioso e in-
trospectivo, característico dos retratos deste pintor francês. Apesar da semelhança do
tema, a pose é mais descontraída no quadro português. As homenagens do pintor
francês colocam os artistas num ambiente ligado à arte, enquanto que Columbano
os arruma numa cervejaria. Essa seria a maneira como Fantin-Latour iria figurar os
poetas em Coin de Table (1872) (Fig.7), mas ainda assim imperando uma solenidade
introspectiva que difere da aparente bonomia dos artistas portugueses.
Diogo de Macedo asseverou que, para este retrato de grupo, Columbano pensara nos
quadros de Fantin-Latour (Macedo 1952, 50), ideia posteriormente secundada por
Pedro Lapa (Lapa 1994, 116). Consideramos difícil que tal tenha acontecido, pois
estes quadros devem ter estado em colecções particulares até ao século XX (Orsay
1998, 46, 47 e 57). Por seu lado, José-Augusto França afirmou que as semelhanças
com as «homenagens» de Fantin não têm pertinência, pois o Grupo do Leão não
tinha «comparação na pintura famosa do tempo» (França 1979, 30).
Independentemente desta polémica, é nossa opinião que o quadro de Columbano
pode considerar-se, tal como os de Fantin-Latour, um manifesto em favor de uma
nova escola de pintura. Cremos que as semelhanças compositivas resultam sobre-

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 163
o grupo do leão de columbano bordalo pinheiro

fig.7 henri fantin-latour, coin de table , 1872, óleo sobre tela, 160 x 225 cm, museu
d’orsay. copyright: agence photographique de la réunion des musées nationaux.
référence de l’image: 94de61416/rf1959.

tudo de fontes históricas comuns. Fantin inspirou-se nos quadros de confrarias do


século XVII, pintando os retratos de grupo em tamanho natural. O que é curioso é
que a crítica francesa recebeu mal a ideia. Victor Cherbulliez, em Le Temps, chegou
mesmo a afirmar que há uma contradição entre as dimensões ambiciosas da tela e
o tema tratado, dizendo que nos quadros antigos as roupagens das personagens
tinham uma majestade digna de um grande quadro. Um quadro como Coin de Table
apenas deveria ornar um salão privado (Abélès 1987, 21).
Ora, os quadros do século XVII destinavam-se a imortalizar as confrarias no exercício
das suas funções e em traje de aparato. Fantin queria renovar esta tradição e, para
conferir um valor histórico às reuniões que pintava, necessitou de empregar um gran-
de formato (Abélès 1987, 21). De igual modo, Fantin e Columbano põem em prática
a ideia promovida por Baudelaire, sobre o heroísmo da vida moderna: «o verdadeiro
pintor, que saberá arrancar à vida actual o seu lado épico, e nos fazer compreender
(...) o quanto nós somos grandes e poéticos com as nossas gravatas e as nossas bo-
tas envernizadas» (Baudelaire 1992-1999, 120-121). Jean Aicard, um dos figurantes
do Coin de Table, afirmou que «a maneira de ser moral e intelectual de uma época
implica um aspecto particular dos rostos, uma forma de usar a barba e de vestir a
roupa: o espírito do século manifesta-se nos mínimos detalhes» (Abélès 1987, 21).
Representando os artistas e os poetas nos seus fatos cerimoniosos contemporâneos
os pintores davam-lhes dignidade, mas num contexto moderno. Ou, como afirmou

164 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o grupo do leão de columbano bordalo pinheiro

Raquel Henriques da Silva, o Grupo do Leão empenhou-se em «celebrar o estatuto


liberal da profissão de artista», sublinhado pela «informalidade (...) dos trajes» que
enunciavam o seu «estatuto burguês» (Silva 2000, 426-427).

Entretanto, a génese do Grupo do Leão, a nosso parecer, é a dos retratos holandeses


do século XVII, pelas poses e enquadramento, mas figurando os membros do Grupo
com alguma ironia, ao estilo de Eça de Queirós nas suas descrições da sociedade
portuguesa. Columbano pegou nos exemplos da história da arte para os retratos de
grupo e modernizou-os, enclausurando os pintores de paisagem numa Cervejaria.
Da relação destes com a arte só fica a revista, quase esquecida. Porém, ao mesmo
tempo que, sem solenidade, retrata os artistas, destaca Silva Porto e reverencia o
Grupo do Leão e a pintura por este praticada.
O Grupo do Leão esteve exposto na cervejaria até 1945 (Lapa 2007, 132), sendo
leiloado pelos donos do estabelecimento e adquirido «pelo Estado a Ramos Costa,
por verba extraordinária do Ministério das Finanças em 1953» (Lapa 1994, 116 e
Soares, 2007). Sendo enviado para o Museu de Arte Contemporânea, foi retirado do
espaço a que se destinava e auferiu um carácter museológico.
Representando os principais artistas de Lisboa do final do século XIX, este quadro
fixou para a posteridade um momento em que o grupo se estava a reunir, mantendo-
os unidos para os tempos vindouros, convidando-nos a conviver com eles. •

Bibliografia
Abélès, Luce, ed. lit. 1987. Fantin-Latour, coin de table, Verlaine, Rimbaud
et les Vilains Bonshommes. Paris: Réunion des Musées Nationaux.

Acciaiuoli, Margarida. 1988. Malhoa et Columbano.


Paris: Fondation Calouste Gulbenkian.

Aldemira, Luís Varela. 1941. Columbano, Ensaio Biográfico e Crítico. Lisboa:


Livraria Portugal.

Almeida, Fialho de. 1885. «Os Quadros do “Leão de Oiro”», Correio da Manhã,
Supplemento Literário, 20 de Abril. 3-4.

Baudelaire, Charles. 1992-1999. Écrits sur l’ Art. Paris: Librairie Générale Française.

Brilliant, Richard. 1991. Portraiture. London: Reaktion Books.

Costa, Lucília Verdelho et al. 2003. Amar o Outro Mar, A pintura de Malhoa. Lisboa:
Ministério da Cultura.

Cristino, Ribeiro. 1923. A Estética Citadina – Anotações sobre Aspectos Artísticos


e Pitorêscos de Lisboa. Lisboa: Imprensa Libano da Silva.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 165
o grupo do leão de columbano bordalo pinheiro

Diário de Notícias, 16/4/1885.

Diário Popular, 16/4/1885.

Espólio do Conde de Arnoso, Biblioteca Nacional.

Esteves, Juvenal. 1987. «Columbano, o Positivismo e os Vencidos da Vida».


Colóquio/Letras. n. 96. Março/Abril. 44.

França, José-Augusto. 1981. O Retrato na Arte Portuguesa. Lisboa: Livros Horizonte.

França, José-Augusto. 1979. «Columbano – os véus e os espectros». Colóquio Artes.


n. 43. Dezembro. 24-33.

França, José-Augusto et al. Março-Maio 1988. Arte Portuguesa do Século XIX.


Lisboa: Palácio da Ajuda, IPPC.

FRANÇA, José-Augusto. 1990. A Arte em Portugal no Século XIX. Vol. II. Lisboa:
Bertrand Editora.

Grassou, Pierre, 1882. «O salão da Sociedade de Geographia». Chronica Illustrada.


n.1.6.

Lapa, Pedro. 1994. «Columbano Bordalo Pinheiro». Museu do Chiado. Arte Portuguesa
(1850-1950). Instituto Português de Museus. 103-127.

Lapa, Pedro. 2007. «O Grupo do Leão». Columbano Bordalo Pinheiro (1874-1900).


Lisboa. Museu do Chiado. 132-133.

Leandro, Sandra, 1999. Teoria e Crítica de Arte em Portugal (1871-1900).


Dissertação de Mestrado em História da Arte Contemporânea. Lisboa: UNL – FCSH.

Macedo, Diogo de. 1946. Grupo do Leão, 1885-1905. Lisboa: Editora Litoral.

Macedo, Diogo de. 1952. Columbano. Lisboa: Artis.

Macedo, Diogo de. 1954. António Ramalho, João Vaz – Um retratista,


Um Marinhista. Lisboa: Museu Nacional de Arte Contemporânea.

Maciel, M. Justino. 2000. «Banquete e Apotheosis em alguns signos artísticos


da Antiguidade Tardia portuguesa». Propaganda e Poder. Lisboa: Edições Colibri. 19-29.

Matias, Maria Margarida Marques. 1986. «O Naturalismo na Pintura». História da Arte


em Portugal. Vol. XI. Lisboa: Publicações Alfa. 29-183.

Nochlin, Linda, 1991. El Realismo. Madrid: Alianza Editorial.

Orsay, La Peinture. Paris: Éditions Scala. 1998.

Proença, Raúl et al. 1979. Guia de Portugal, Lisboa e Arredores. Vol. I.


Fundação Calouste Gulbenkian.

166 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o grupo do leão de columbano bordalo pinheiro

Ramalho, Monteiro. «Salão de quadros I». O Occidente. 21/1/1882. 19.

Ramalho, Monteiro. «Uma Cervejaria Museu». O Ocidente. 1/5/1885. 98-99.

Ramalho, Monteiro 1897. Folhas d’ Arte. Lisboa: M. Gomes – Editor.

Santos, Armando Vieira. 1965. Obras Primas da Pintura Estrangeira no Museu de


Arte Antiga. Lisboa: Artis.

Silva, Raquel Henriques da et al. 1996. O Grupo do Leão e o Naturalismo Português.


São Paulo: Pinacoteca do Estado.

Silva, Raquel Henriques da. 2000. «Dos Cinco Artistas em Sintra de Cristino da Silva
ao Grupo do Leão de Columbano Bordalo Pinheiro: afirmação do estatuto do Artista na
segunda metade do século XIX». Propaganda e Poder. Lisboa: Edições Colibri. 421-428.

Soares, Clara Moura. 2007. «A Galeria de Pintura do Restaurante “Leão de Ouro”:


Percursos de uma Colecção», Artis. Revista do Instituto de História da Arte
da Faculdade de Letras de Lisboa, n.º 6, 269-307.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 1 67
Resumo
O Retrato foi uma das temáticas mais frequentes na obra de Malhoa, circunstância palavras-chave
decorrente das necessidades crescentes do mercado, e da sua própria subsistência
financeira. Ela desenvolve-se entre duas modalidades, oscilando entre o Luminismo e malhoa
o “Tenebrismo”. E, talvez daí, resulte grande parte do seu sucesso, ao tornar-se mais retrato
susceptível do agrado generalizado, promovendo uma resposta eficaz às “oscilações pintura
do gosto”. Logo depois do Género, foi justamente no Retrato que obteve alguns dos séc. xix
seus maiores êxitos e galardões internacionais. Se, por um lado, se mostra devedor luminismo
das influências dos mestres do passado, como Velásquez, Frans Hals, Rembrandt, ou
Murillo, por outro, a própria obra não deixa de indiciar referências mais modernas,
estilísticas ou técnicas. A corrente luminista da arte do retrato, atinge níveis excep-
cionais, constituindo assim a vertente mais moderna da sua obra. •

Abstract
The Portrait was one of the most common themes of Malhoa’s work, a result of the key-words
market’s growing needs and its own financial sufficiency. It evolves into two types,
between Light and “Darkness”. This may be the cause for its success, by becoming malhoa
more susceptible to general approval, promoting an efficient response to the varia- portrait
tions of taste. Following the Genre, the Portrait was the most successful and received painting
more international prizes. If, on the one hand, it is influenced by the masters of the 19th century
past, on the other, the work itself shows more modern stylistic and technical refe- light
rences. The luminous tendency of the art of the portrait reaches outstanding levels,
this being the work’s most modern aspect. •
luminismo
e “tenebrismo”
malhoa e o retrato

nu n o sa l da n h a O Retrato foi uma das temáticas mais presentes na obra de Malhoa, aliás, à seme-
Escola das Artes / U.C.P. lhança do que sucedeu com a maioria dos seus colegas, circunstância decorrente
Escola Superior de Design / IADE das necessidades crescentes do mercado, assim como das razões inerentes à sua
nunosaldanha@netcabo.pt
subsistência financeira.
Na realidade, para muitos pintores, era uma possibilidade de ganhar a vida, mormente
pelo crescente incremento deste tipo de pintura, dado que a nova burguesia aspirava
1. Perkinson, Stephen. Set. 2005. From curious a criar a ilusão de uma tradição dinástica.
to canonical: Jean Roy de France and the origins Efectivamente, o interesse que o Retrato suscitou foi bastante consensual, não apenas
of the French School. The Art Bulletin, London.
por parte da clientela, mas também pela crítica da época. Aquilo que durante séculos
parecera servir apenas para perpetuar a memória de reis, governantes, alto clero, aristo-
cracia e alta burguesia, tornava-se agora acessível a círculos sociais mais alargados.
A partir de meados do século XIX, este género pictórico começa a emergir do anterior
estatuto de “menoridade”, levando a um aumento significativo da sua importância
e, tanto os críticos como os artistas, vão apontando novas vias de renovação1.
Considerado um perfeito exemplo da expressão da individualidade humana, e o ob-
jectivo mais elevado a que um pintor deveria aspirar, segundo defendia Jules Cas-
tagnary no Salon de 1857, o Retrato alinhava modelarmente com a noção moderna
de individualismo, capaz de representar, tanto o retratado, como o retratista.
Mas o caminho para a reforma não parecia consensual. Entre o realismo e o idealismo,
a técnica mais “fotográfica”, e a pincelada mais solta, entre a modernidade e a tradi-
ção, as possibilidades que se ofereciam, tanto a clientes como artistas, revestiam-se
de grande diversidade, e mesmo de alguma ambiguidade.
Paradoxalmente, uma das vias de renovação, levaria a um reavivar de interesses pelo
passado, voltando-se para os grandes mestres da Pintura Antiga, como Velásquez,
Franz Hals, Van Dyck, ou Rembrandt, recuperando assim os valores tonais da pintura
seiscentista. Esta reabilitação do “Tenebrismo” barroco, obteve sucesso consensual
entre retratados e artistas. De Léon Bonnat a Zuloaga, passando por Sargent, Whis-
tler ou Eackins, depressa o género se vulgariza, atravessa fronteiras, tornando-se
numa tendência internacional.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 169
l u m i n i s m o e “ t e n e b r i s m o ” – m a l h o a e o r e t r ato

No campo oposto, estavam os valores cromáticos e lumínicos, que a vanguarda Im- 2. Saldanha, Nuno. 2006. José Vital Branco Ma-
pressionista elegera como base da sua “revolução”. Para os menos “arrojados”, embora lhoa (1855-1933). O pintor, o mestre e a obra.
[texto policopiado] Dissertação de Doutoramen-
perfilhando interesses comuns, difunde-se uma corrente menos “radical”, mais ligeira,
to em História da Arte apresentada à Universi-
de Juste milieu. Era a vertente Luminista, tão característica do retratismo espanhol
dade Católica Portuguesa. Lisboa: Faculdade de
levantino, particularmente popularizada por Ignacio Pinazo ou Joaquín Sorolla. Ciências Humanas / U.C.P.
Foi precisamente entre estas modalidades do retratismo que se desenvolveu a pin-
3. Naturalmente que o número de obras produ-
tura de Malhoa, oscilando invariavelmente entre o Luminismo e o “Tenebrismo”,
zidas por Malhoa está sujeito a constante ac-
entre tradição e modernidade. E talvez daí, resulte grande parte do seu sucesso, ao
tualização, dado que se trata de uma temática,
tornar-se mais susceptível do agrado generalizado, promovendo uma resposta eficaz frequentemente fruto de encomenda, e cujo re-
às “oscilações do gosto” da época. Foi justamente no Retrato, a temática que se sultado foi directamente para a posse dos clien-
revelou de maior importância, logo depois do Género, que o pintor obteve alguns tes, sem ter passado pela sua apresentação pú-
dos seus maiores êxitos e galardões internacionais. blica, não deixando portanto qualquer registo da
sua existência.

1. O Retrato na obra de Malhoa


Embora não tenha sido a sua temática de eleição, é um facto que Malhoa produziu
um elevado número de retratos, tanto a óleo, como a pastel ou a carvão. Segundo
referem alguns dos seus biógrafos, o artista teria produzido cerca de 800 a 900
retratos (Sousa Pinto 1928, 41). Trata-se naturalmente de um número empolado,
mormente porque ali se incluíam, tanto obras que efectivamente pertencem à pintura
de História, à pintura de Género, ou àquilo a que se designava de “retrato de prazer”
ou “cabeças de expressão”. Segundo pudémos inventariar até à data, contam-se
em 240, os retratos (óleo e pastel) realizados por Malhoa2, o que é já de facto um
número significativo, para quem esta temática não foi uma prioridade, mormente se
tivermos em conta que, um dos mais conceituados retratistas do seu tempo, John
Singer Sargent, terá produzido cerca de 4003.
Para enquadrarmos a produção retratista de Malhoa no conjunto da sua obra, sabe-
mos que ela ocupou cerca de 28% do total, a par da Paisagem, e abaixo de Género
(30%). Estes dados, mudam consideravelmente, se observarmos as percentagens
relativas à obra exposta. De facto, ela não ultrapassa os 18% das presenças em
certames nacionais (Grupo do Leão, Grémio Artístico, Sociedade Nacional de Belas
Artes, etc.), embora, em termos internacionais, ela possa ascender aos 23% da sua
representação. Portanto, muito abaixo da pintura de Género, que atinge os 70%.
Números à parte, o certo é que Malhoa gozou de grande popularidade, como o
comprovam as referências da época. Essa “galeria janota das fuças citadinas”, como
a designava Emídio de Brito Monteiro, era resultante da grande quantidade de
clientes que fazia bicha à porta do atelier de Lisboa, durante o Inverno, “à espera
da solenidade mundana dum retrato de Mestre”, consoante ironizava Brás Burity
(Burity 1928, 83-84).
As razões do seu sucesso, derivam também em grande parte, tanto da flexibilidade
de Malhoa, como do espírito marcadamente comercial subjacente à sua obra. Sin-
tomático disto, são as oscilações técnicas e estilísticas da sua pintura, bem como as

170 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
l u m i n i s m o e “ t e n e b r i s m o ” – m a l h o a e o r e t r ato

fig.1 josé malhoa - almeida garrett , 1881 (conservatório nacional) © nuno saldanha

sucessivas alterações que introduzia nos quadros, a pedido dos retratados. O caso
do retrato de Palmira Feijão é um bom exemplo disso. Consoante referia o próprio
artista, depois dos ditos “aformoseamentos” o retrato estava tal e qual ela era...
“quando tinha 18 anos!” (Saldanha 2006, 403-404).
Esta atitude (em clara oposição à produção retratística de um Columbano, por exem-
plo), revela uma concepção do retrato pouco meditada, confiada ao acaso das cir-
cunstâncias, e de quem não pretendeu fazer dele uma especialização.

2. A experiência da História
Os inícios da actividade de Malhoa como “retratista”, situam-se mais próximas da
pintura de História, naquilo a que podemos designar como “retrato histórico”. Isto é,
não se trata de retratos no verdadeiro sentido da palavra, dado que se representam
personagens históricas, já falecidas, e não “tiradas do natural”. No entanto, este
tipo de produção em muito contribuiu para o exercíco da pintura de figura, e no
desenvolvimento de experiências na representação de fisionomias.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 171
l u m i n i s m o e “ t e n e b r i s m o ” – m a l h o a e o r e t r ato

fig.2 josé malhoa - júlia malhoa , 1883 (museu josé malhoa), © imc/ddf.

A sua primeira encomenda data de 1881, quando Malhoa é convidado, com Eugénio
Cotrim, a decorar o tecto do Real Conservatório de Lisboa. Para além da deslava-
da alegoria que ocupa o medalhão central, figurando Euterpe, o pintor executa 4
medalhões circulares, “retratando” Almeida Garrett, (Fig.1) Domingos Bomtempo,
Francisco Xavier Migoni, e Passos Manuel. Naturalmente fazendo recurso a gravuras
que circulavam na época, quer na sua directa transposição ou servindo de modelo,
estas pinturas pouco mais representam do que simples exercícios de academia.
Dois anos depois, em 1893, a experiência repete-se, agora para o Supremo Tribunal
de Justiça de Lisboa, numa obra de maior fôlego, que se concretiza na realização

172 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
l u m i n i s m o e “ t e n e b r i s m o ” – m a l h o a e o r e t r ato

4. Sobre este assunto veja-se Vicente, António de 14 medalhões figurando os personagens mais importantes do Direito ou da Ju-
Pedro. 1984. Carlos Relvas fotógrafo 1838-1894: risprudência nacionais: Álvaro Velasco, António Gouveia, D. Dinis, Duarte Nunes
contribuição para a história da fotografia em
de Leão, João das Regras, João Pedro Ribeiro, Jorge Cabedo, Marquês de Pombal,
Portugal no século XIX. Lisboa: Imprensa Nacio-
Mouzinho da Silveira, Rui Boto, Pascoal de Melo Freire e Rui Fernandes. Embora
nal Casa-da-Moeda.
se note alguma evolução na capacidade técnica da execução, estamos ainda muito
longe dos níveis de maturidade e qualidade que a sua obra viria posteriormente a
revelar. Apenas 6 anos depois, seguem-se os 16 medalhões que decoram o salão
nobre da Câmara Municipal de Lisboa, de factura desigual e, em muitos casos, de
execução inferior.
Seria precisamente em 1883, que Malhoa produz os seus primeiros retratos a óleo,
no pleno sentido do termo - o de Manuel Augusto Brito Chaves, e o de sua mulher,
Júlia Malhoa (Fig.2). O primeiro, fruto natural de encomenda, poderia figurar entre
as dezenas de medalhões já produzidos, quer no formato, como no estilo. O segundo
caso, revela-se mais original, tratando-se de uma obra nascida da sua inspiração,
o que motivou Malhoa a apresentá-la no 3º certame do Grupo do Leão. Era o seu
primeiro retrato exposto, embora os resultados tenham ficado bastante aquém do
esperado. De facto, a reacção da crítica foi contundente. Emídio Brito Monteiro,
questionava-se mesmo se “aquilo” poderia ser considerado arte: “...não passa de
uma coisa colorida, bonita e vistosa, mas só isso... O que aquillo é, é tela pintada
e nada mais. Mas agrada e foi isso que o artista quis conseguir. Agora querer que
aquillo seja arte, isso não.” (Brito Monteiro, Fev. 1884).
Apesar do desaire da estreia, Malhoa não desiste, continuando a trabalhar e a apre-
sentar retratos, em número crescente, nas exposições seguintes. Em 1890, o artista
verá coroados os seus esforços, ao ser seleccionado para retratar o rei D. Carlos.
Trata-se da sua estreia, em termos de encomendas para a Casa Real, e o início de
uma relação que se prolongará até ao fatídico ano de 1908. Durante este tempo, o
pintor produziu 6 retratos de D. Carlos, 2 de Dona Amélia, 2 de D. Luís Filipe e outros
2 de D. Manuel II. A pintura mais interessante do rei é sem dúvida a executada em
1905, para a Escola Médica (actual Faculdade de Ciências Médicas da Universidade
Nova de Lisboa). Ali, diversamente do que sucede nos outros exemplos, o soberano
é representado numa pose menos convencional, tendo como fundo as escadarias do
Palácio Foz, sem estar rodeado do imaginário retórico dos símbolos de poder.

3. Malhoa e a Fotografia
A partir de 1882, Malhoa inicia uma relação profissional com a família Relvas, que
virá a ter inúmeras repercussões no desenvolvimento da sua carreira (Saldanha 2001;
2006). Ela inicia-se com Carlos Relvas, célebre cavaleiro tauromáquico, músico, e
uma das figuras pioneiras no desenvolvimento da Fotografia em Portugal, com ate-
lier próprio na Golegã, estabelecido desde 18714. Naquele ano, o artista pintou um
pequeno registo de temática animalista, figurando Solero, cavalo favorito de Relvas,
entretanto exposto no 12ª certame da Sociedade Promotora de Belas-Artes. Seguir-

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 173
l u m i n i s m o e “ t e n e b r i s m o ” – m a l h o a e o r e t r ato

se-íam inúmeros retratos, da mulher, da filha, do filho, da nora, dos netos, etc. 5. Este retrato revela-se particularmente interes-
Para além das consequências que se farão sentir, mormente a partir do estreito rela- sante, e inédito, dado que o artista, embora re-
correndo a um cliché fotográfico, pinta o próprio
cionamento entre Malhoa e o seu filho, José Relvas, dos contactos com Carlos deve
quadro como se fosse ele mesmo uma fotografia,
sobretudo destacar-se o início das suas experiências com a Fotografia, e o recurso
em tons sépia.
recorrente a esta técnica, na elaboração dos seus retratos.
Em 1887, entre os 7 retratos que o pintor apresenta no salão do Grupo do Leão, encon-
trava-se uma tela oval, representando Carlos Relvas toureando a cavalo, na praça de
touros de Setúbal (que posteriormente seria baptizada com o nome daquele cavaleiro).
Trata-se de uma obra de interesse especial, uma vez que é um “retrato equestre”, muito
ao gosto das tipologias celebrizadas por Velásquez, único no seu género.
Embora seja ainda um “retrato de pose”, é o seu primeiro retrato ao ar-livre, e onde
se associa aquela temática à pintura de Género, num processo de “trans-tematiza-
ção”, justamente uma característica que marcará o futuro da sua obra.
Embora ainda não localizada até à data, trata-se indubitavelmente de uma pintura
assente numa fotografia, como se pode perceber pelo desajustamento entre o ca-
valeiro e o cenário, nomeadamente no que diz respeito à projecção das sombras - a
luz da praça vem do canto superior esquerdo da composição; a do cavaleiro e sua
montada, do lado oposto, e de um ângulo menos acentuado.
Nos posteriores exemplos de trabalhos executados para esta família, este recurso
está perfeitamente documentado com o cliché original. De facto, são conhecidas as
fotografias que serviram para a execução de Carlos Relvas montando o Rollito (1890);
Luísa Relvas (1896); D. Eugénia, João e Carlos Relvas (1899) (Saldanha 2001; 2006).
Para além destes exemplos, são também conhecidos, pela existência de fotografias,
ou por referência explícita de Malhoa nas suas cartas, os de João Relvas em criança
(1900), Conde de Alto Mearim (1901), Jerónimo Bravo (1903), ou Rafael Bordalo
Pinheiro (1904)5.

4. Tradição e Modernidade
O peso da tradição – o “Tenebrismo”
Um ano após a apresentação do “retrato equestre” de Carlos Relvas, Malhoa expõe
o célebre retrato de Laura Sauvinet, (Fig.3) filha de seu amigo Henrique Sauvinet,
e que posteriormente se tornaria sua discípula. Mais tarde apelidada, por alguns
dos seus biógrafos, como a Gioconda de Malhoa, a obra foi alvo de crítica variável,
apesar do pintor a considerar como a sua “obra-prima”.
Embora se trate efectivamente de uma pintura que revela algumas qualidades de
execução, tanto na técnica, ao centrar-se mais nos rostos e descurar os elementos
secundários (já patente em Franz Hals, ou Fragonnard), e no olhar penetrante vol-
tado para o observador, o seu sucesso torna-se de facto efectivo já depois da morte
do pintor, pelas leituras historiográficas que dela foram feitas, mormente a propósito
de exposições comemorativas da obra de Malhoa.

1 74 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
l u m i n i s m o e “ t e n e b r i s m o ” – m a l h o a e o r e t r ato

fig.3 josé malhoa - laura sauvinet , 1888


(museu josé malhoa), © imc/ddf.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 175
l u m i n i s m o e “ t e n e b r i s m o ” – m a l h o a e o r e t r ato

fig.4 josé malhoa - retrato de novais ,


1901 (museu do chiado), © imc/ddf.

fig.5 josé malhoa - d. teresa avelino


pereira da costa , 1900 (museu do chiado),
© imc/ddf.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
l u m i n i s m o e “ t e n e b r i s m o ” – m a l h o a e o r e t r ato

6. Veja-se, por exemplo o retrato de D. Luís I, Por um lado, em termos de tratamento, ela revela as influências ainda fortes do
executado por Lupi em 1864. estilo do seu mestre, Miguel Ângelo Lupi6, embora, ao mesmo tempo, em termos
de composição e de pose, não deixe de transparecer modelos clássicos da pintura
europeia, como o célebre Senhora vestida de vermelho, retrato executado por Pon-
tormo em 1532.
No entanto, as fontes de inspiração de Malhoa, tendem progressivamente a voltar-se
para a pintura seiscentista, flamenga e espanhola, nomeadamente Franz Hals e Ve-
lásquez, de acordo com as tendências da pintura ocidental a que fizémos referência,
cuja difusão internacional em muito se deve a Carolus Duran.
Os mais importante retratos executados por Malhoa em 1904, Cavaleiro de Santiago
e Retrato de Novais, (Fig.4) são dois bons exemplos da importância que aqueles
mestres ainda exercem nos inícios de Novecentos.
Um curioso exemplo deste interesse por modelos do passado da pintura europeia, e
do peso da tradição, podemos encontrá-lo no Retrato do menino Artur Isaac Abe-
cassis, de 1895, exposto no salão do Grémio Artístico onde obteve algum sucesso.
A pintura denota um interesse múltiplo, dado que nele podemos presenciar uma
curiosa junção dos vários géneros temáticos a que Malhoa se dedicou. Trata-se de um
retrato, mas associado à pintura de Género, e à pintura de História, de tipo Casacón.
Este tipo de obras que Malhoa também praticou, a chamada “pintura de gabinete”,
designado em França por Tableautin, e em Espanha por Casacón, era uma versão
mais comercial e burguesa da pintura histórica, que triunfou em Paris no final de
Oitocentos, nomeadamente com Mariano Fortuny, ou Jean-Louis Ernest Meissonier.
Caracterizava-se por quadros de pequena dimensão, com figuras vestidas à moda
do século XVIII, executadas com efeitos retóricos e técnicos fáceis, muito ao gosto
da burguesia da época, sobretudo iniciada no coleccionismo de arte. Muito popular
em França, Itália e Alemanha, também em Portugal encontramos ecos deste género,
desde Alfredo Keil, a Columbano, passando pelos vários aguarelistas, como Casanova,
Roque Gameiro ou Alberto de Sousa.
Embora pareça derivar directamente da pintura de História, o Tableautin acaba por
se concretizar numa reacção a ela, tanto na dimensão como na função, espécie de
síntese entre aquela temática e a pintura de género. Em vez de retratar os grandes
temas heróicos da História, esta pintura resumia-se assim à representação de cenas
elegantes e frívolas, de ambientes caseiros, e dos costumes do passado.
Grande parte das obras deste género foi executada por Malhoa no século XIX, pelo
menos desde 1895 (Um Compasso difícil / Lição de Violino), algumas delas acabando
por se tornarem parte integrante de grandes composições decorativas alegóricas,
mormente relacionadas com a Música.
O triunfo deste tipo de pinturas de tendência “tenebrista”, culminará com o retrato
de D. Teresa Avelino Pereira da Costa, (Fig.5) executado em 1900, que inaugura a
presença de Malhoa nos certames expositivos europeus do século XX, bem como os
mais recentes êxitos e prémios atribuídos por júris internacionais.
Mais uma vez, não podemos deixar de constatar as afinidades com o estilo do seu
antigo mestre Miguel Ângelo Lupi, embora levando os contrastes de claro-escuro

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 177
l u m i n i s m o e “ t e n e b r i s m o ” – m a l h o a e o r e t r ato

ao limite, fazendo sobressair o essencial da figura – o rosto e as mãos. Concebendo


uma silhueta de grande presença e profundidade interior, marcada por uma pro-
fundidade psicológica intensa, o que assinalaria grande parte da sua obra retratista
novecentista.
Entre Maio e Julho de 1901, o quadro foi apresentado na Exposição de Belas Artes
de Madrid, sendo muito apreciado pela crítica espanhola, e obtendo o 2º prémio da-
quele certame. Rapidamente a imprensa portuguesa faria eco deste sucesso (também
ampliado pela Menção Honrosa obtida no Salon de Paris), dando-lhe visibilidade ao
longo do ano, o que em muito contribuiria para o crescente prestígio de Malhoa.
Curiosamente, 10 anos depois, o retrato será novamente apresentado na Exposición
de Bellas Artes da mesma cidade, renovando o sucesso anterior. Recebe novamente
uma medalha de prata, fazendo dele o maior sucesso obtido por Malhoa com um
retrato, mormente a nível internacional, constituindo-se assim na sua obra mais
premiada até aquela data.
O vincado “tenebrismo” de grande parte da sua arte retratista, que se arrasta pelo
século XX, continuava a fazer sucesso, nomeadamente em terras de Espanha, cujas
tradições seculares mantinham viva a sua aceitação. E Malhoa sabia-o. Daí os ga-
lardões recebidos, e a aposta do pintor, quando ali expõe, na selecção sistemática
de obras deste género. (Saldanha 2006, 421)
Apesar deste recurso à tradição, ele não deve ser entendido como conservadorismo.
Trata-se de um novo entendimento do passado, e não de um revivalismo ou acade-
mismo. Como é sabido, Malhoa sempre se mostrou aberto a diversas experiências
artísticas ao longo da sua carreira (Romantismo, Naturalismo, Realismo, Luminismo,
Impressionismo) e, esta abertura, não deve ser entendida como um eclectismo (de
que foi acusado por alguns críticos na época).
Pelo contrário, estamos perante uma noção de modernidade, que incorpora tanto a
tradição como a inovação. As largas centenas de pintores que se integram nesta ver-
tente, ao contrário das vanguardas, eram historicistas, no sentido de que acreditam
não ser possível haver modernidade sem consciência histórica. Eles visitam museus,
estudam a história da arte e seus artistas, folheiam revistas e jornais ilustrados em
busca de modelos visuais, como nunca o haviam feito antes. Em vez de romper com
a tradição, hà uma procura da renovação através dela, e uma sede de estilo acompa-
nhada por uma vontade estusiástica de aprender com a História. (Llorens 2006)

Modernidade e Luminismo
Se, por um lado, Malhoa se mostra devedor das influências dos mestres do passado,
como Velásquez, Frans Hals, Rembrandt, ou Murillo, a quem se refere recorrentemen-
te na sua correspondência, por outro, a própria obra não deixa de indiciar referências
mais modernas, tanto estilísticas como técnicas. Efectivamente, podemos encontrar
afinidades pontuais com a obra de artistas contemporâneos como Guillaume Dubufé,
Vitorio Corcos, Charles Chaplin, Carolus Duran, Richard Miller ou Joaquín Sorolla.
Aquela que se constitui precisamente como a sua vertente mais moderna do retrato,

178 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
l u m i n i s m o e “ t e n e b r i s m o ” – m a l h o a e o r e t r ato

fig.6 josé malhoa - roque gameiro , 1904 (museu josé malhoa), © imc/ddf.

é a do Luminismo, cujas origens remontam pelo menos a 1895, data do excelente


retrato da sua discípula Zoé Wauthelet, aos 28 anos de idade.
Estamos perante um retrato ao ar-livre, mais natural, que revela uma procura do ins-
tantâneo, onde os indivíduos aparecem como elementos dentro de outros elementos,
num clima de instrospecção e melancolia.
Embora só exposto em 1928, foi considerado por Brito Monteiro, como o melhor
dos seus retratos. Destaque para o brilhante enquadramento da figura na paisagem

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 179
l u m i n i s m o e “ t e n e b r i s m o ” – m a l h o a e o r e t r ato

fig.7 josé malhoa - retrato de minha mulher , 1914 (museu do chiado), © imc/ddf.

de fundo, só esboçada, quase Impressionista, a importância dada aos efeitos de


luz, sobre as “ondas de cetim” (a que se referia Sousa Bandeira), e os contrastes de
complementares. Cortês Pinto tece-lhe um longo elogio, chamando-lhe um “milagre
de frescura de epiderme”, e dá-nos uma importante descrição do mesmo, mormente
pelas indicações da técnica utilizada por Malhoa: “frescura tão sabiamente introdu-
zida na carnação magnífica da retratada pela irradiação de esmeraldas dos coloridos
vegetais, complementares daquela cor rosada, que o Artista distribui habilmente
em manchas raspadas à espátula ao redor da saudável e juvenil figura!”. (Cortês
Pinto, 1956: 56).

180 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
l u m i n i s m o e “ t e n e b r i s m o ” – m a l h o a e o r e t r ato

7. Geralmente considerado como um retrato do O século XX traz novo fôlego à obra retratista do mestre, marcado por uma paleta mais
pintor Ezequiel Pereira (1860-1943), é mais pro- rica e variada, mormente pelo recurso, cada vez mais frequente, à técnica do pastel.
vável que se trate do seu amigo e colega Manuel
Por outro lado, os seus retratos continuam a misturar-se, cada vez mais, com a pintura
Henrique Pinto (1852-1912), e sua filha Julieta
de género, inserindo as personagens em ambientes naturalistas, com fundos de paisa-
Pinto (afilhada de Malhoa).
gens ao ar livre, em vez dos fundos escuros que dominaram as décadas anteriores.
8. Veja-se, por exemplo, o quadro deste artista Malhoa começa então a substituir progressivamente as tendências “tenebristas” pelas
levantino Mi mujer y mis hijas de 1910, cujas se-
luministas. A isto não será estranha a influência do pintor norte-americano Richard
melhanças técnicas se tornam evidentes, nomea-
E. Miller, artista elogiado por Malhoa por ocasião do Salon de 1904. E talvez não
damente na prioridade dada à luz e à cor.
seja simples coincidência que o seu primeiro retrato conhecido, dentro deste estilo
(exceptuando naturalmente o de Zoé Wauthelet, acima referido), date precisamente
desse ano, o do popular aguarelista Roque Gameiro. (Fig.6) Inserido num ambiente
luminoso de beira-mar, o estilo será retomado por diversas vezes, nomeadamente
no Retrato de Agostinho Fernandes, pastel de 1925.
Impressionante, é o quadro Os colegas, pintado em 1905, misto de pintura de Género
e Retrato, outro exímio exemplo desta vertente luminista, sem dúvida uma das suas
melhores e mais modernas obras dentro desta temática7.
A modernidade da sua pintura atinge novamente níveis excepcionais com o Retrato
de minha mulher, (Fig.7) de 1914, que parece assumir algumas afinidades com o
Impressionismo de Renoir ou Mary Cassat. No entanto, ele filia-se, uma vez mais, na
vertente luminista, de Richard Miller, e sobretudo de Joaquín Sorolla8.
Ele revela um novo modo de percepção do mundo exterior, onde a pose e a estabili-
dade são substituídas pelo movimento e pelo efémero, o instantâneo. A atenção não
se fixa no recorte dos objectos, mas na sua percepção. Influênciado pela Fotografia,
nomeadamente na capacidade de perceber o movimento, e sobretudo nos novos
modos de compor e cortar a imagem. Esta obra está para o Retrato, como o célebre
Outono de 1918 estará para a Paisagem.

5. O “retrato psicológico”
Outro importante aspecto que podemos presenciar na obra retratista de Malhoa, é a
tónica que, a partir de dado momento, recai sobre a representação da profundidade
psicológica dos retratados. Esta tendência atravessa as tipologias enunciadas ante-
riormente, não sendo exclusivas das vertentes “tenebrista” ou luminista.
No mesmo ano em que pinta o Retrato de minha mulher, Malhoa executa outra das
suas obras-primas dentro desta temática, e que paraece retomar as tendências tene-
bristas anteriores. Referimo-nos ao retrato de Alberto Teles Utra Machado, exposto
no salão da SNBA em 1915.
Executado um ano depois de ter contactado, pela primeira vez, e directamente, com
a pintura de Franz Hals, o artista parece ter-se deixado arrebatar novamente pela
grandeza dos mestres do passado. No entanto, as suas referências são de artistas
bastante mais recentes, mas que efectivamente se aproximaram dos antigos mestres.
Entre eles, podemos mencionar Henri Fantin Latour (1836-1904), e o seu “realismo

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 181
l u m i n i s m o e “ t e n e b r i s m o ” – m a l h o a e o r e t r ato

fig.8 josé malhoa - desalento , 1915 (casa museu fernando de castro, porto) . © imc/ddf.

psicológico”, ou Leon Bonnat (1833-1922), e a sua pintura de introspecção, de


influência espanhola.
Uma vez mais associado à pintura de género, Malhoa parece ter captado o momento
preciso em que o poeta e bacharel açoriano interrompe a leitura, para se perder na
profundidade dos seus pensamentos. Repare-se também como o pintor descentra
a composição, atirando a figura para a direita do quadro, tal como havia feito em
1895, no Retrato da Condessa de Proença-a-Velha, ou no referido retrato de sua
mulher. As pesquisas de Malhoa sobre o “realismo psicológico” adquirem aqui um

182 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
fig.9 josé malhoa - o ventura , 1933 (museu josé malhoa), © imc/ddf. l u m i n i s m o e “ t e n e b r i s m o ” – m a l h o a e o r e t r ato

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 183
l u m i n i s m o e “ t e n e b r i s m o ” – m a l h o a e o r e t r ato

domínio perfeito, revelando plena maturidade, onde o estilo tende para o abandono
progressivo dos fundos “tenebristas” e dos contrastes de claro-escuro.
Em 1915, podemos encontrar outro belo exemplo deste “retrato psicológico”, quando
o artsita executa a pastel o retrato de uma senhora desconhecida, a que deu o título
de Desalento (Casa-Museu Fernando de Castro, no Porto). (Fig.8)
Aqui se assiste novamente à junção de um retrato de esfera privada, à introspecção
psicológica de uma figura da burguesia nortenha. O ambiente é novamente de in-
terior, o que permite assim acentuar o aspecto melancólico da composição, numa
corrente de introspecção urbana. O olhar penetrante e gelado da figura, aproxima-se
às personagens decadentes dos inícios do século, e do clima moderno de introspec-
ção melancólica que caracteriza alguns aspectos do Simbolismo.
No final da sua vida, em 1933, Malhoa pinta O Ventura, (Fig.9) curiosa espécie de
versão rural do Desalento. Mais que um simples retrato, ele revela-se como um re-
trato social, retrato-tipo de humilde camponês, espécie de reverso do espelho da
obra anterior. De facto, as duas figuras poderiam estar frente-a-frente, pondo em
confronto as atitudes e poses da sociedade burguesa urbana - orgulho e preconceito
- e do campesinato rural - humildade e resignação. Este pastel constitui também uma
excelente síntese da obra retratista de Malhoa do século XX. Nela podemos, efecti-
vamente, observar a síntese temática, entre retrato, paisagem e género, o realismo
da figura, assim como o “realismo psicológico” da sua expressão.
Os retratos em pastel assinalarão, aliás, o trabalho de Malhoa dentro da temática
retratista durante a década de 20, integrando as figuras ora em interiores, ora em
ambientes paisagísticos, muitos dos quais facilmente identificáveis
À medida que avança o século XX, Malhoa vai deixando de apresentar retratos nas
diversas exposições em que participa, mormente a nível internacional, ao mesmo
tempo que a crítica parece cada vez menos interessada naquela temática.
No entanto, o artista não deixará de prosseguir a sua actividade neste campo, seja
a óleo ou a pastel, embora já sem energia para quaisquer renovações.
Um aspecto que por vezes tem sido referido a propósito da sua obra retratística, é a
invulgar ausência de um auto-retrato, apenas esboçado por duas vezes em desenhos
a carvão (1906, 1928).
Se efectivamente Malhoa não se auto-retratou numa pintura a óleo, não podemos
no entanto deixar de perceber que ele se insere no ideal do retratar-se, retratando,
ou seja, o verdadeiro e mais completo auto-retrato de Malhoa, encontra-se na to-
talidade da sua obra. •

184 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
l u m i n i s m o e “ t e n e b r i s m o ” – m a l h o a e o r e t r ato

Bibliografia
Arte Portuguesa do Século XIX. Lisboa: IPPC 1988.

Artistas do Grupo do Leão: Exposição do Centenário. Caldas da Rainha: MJM, 1981.

Artistas Portuguesas, Lisboa: S.N.B.A., 1977.

BERUETE, A. 1998. La Pintura Moderna. El Neoidealismo. Sorolla / Zuloaga.


Dos visiones para un cambio de siglo. Madrid: Mapfre Vida.

Brito Monteiro, Emídio. (João Sincero) 6 Fev. 1884 . A exposição de bellas Artes
do Grupo do Leão. Diário Popular. Ano 19º. 6084. Lisboa.

Burity, Brás. [Joaquim Madureira]. 18 Jun. 1928. Uma Homenagem. O mestre


Malhôa é o mais português de todos mestres que em Portugal tem pintado as gentes
portuguesas. Diário de Lisboa. Ano 8º, 2206. Lisboa.

Carolus-Duran 1837-1917. Mar.-Sep. 2003. Lille et Toulouse: RMN

Catálogo da Grande Exposição de Homenagem a José Malhoa. Jun. 28. Lisboa:


SNBA, 1928.

Cortês Pinto, Américo. 1956. Digressões ao longo da pintura, a partir da obra


de Malhoa – Malhoa entre os Impressionistas e os Fauves. Da Estremadura. Lisboa:
JPE Edições.

CORTÊS PINTO, Américo. 1955. Digressões ao longo da pintura a partir da obra


de Malhoa: Malhoa entre os Impressionistas e os Fauves. Caldas da Rainha: MJM.

COSTA, Lucília Verdelho da (comiss.). 2003. Amar o Outro Mar - A Pintura de Malhoa,
s.l. [Rio de Janeiro]: Ministério da Cultura/GRCI.

COUTO, Matilde Tomás do, TAVARES, Cristina Azevedo (comiss.). 2005.


Malhoa e Bordalo - Confluências de uma geração (Cat. Exp.). Caldas da Rainha:
Museu José Malhoa.

Exposição José Malhoa (Retrospectiva). 1955. Museu Nacional de Belas Artes.


Nov. 55, Rio de Janeiro.

Exposição Nacional de José Malhoa. Caldas da Rainha: MJM, 1950.

Exposição Nacional do Centenário de José Malhoa. Caldas da Rainha: MJM, 1955.

Exposição Nacional do Rio de Janeiro em 1908, Secção Portuguesa: Catalogo


dos objectos expostos. Lisboa: Imprensa Nacional, 1908.

EISENMAN, Stephen F. 2001. Nineteenth Century Art. A Critical History. London:


Thames & Hudson.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 185
l u m i n i s m o e “ t e n e b r i s m o ” – m a l h o a e o r e t r ato

FOCILLON, Henri. 1991. La Peinture au XIXéme Siècle. 2 vols., Paris: Flammarion.

FRANÇA, José-Augusto. 1966. A Arte em Portugal no século XIX. 2 vols. Lisboa:


Livraria Bertrand.

FRANÇA, José-Augusto. 1975. O Impressionismo e a Cultura Portuguesa. Colóquio.


Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

FRANÇA, José-Augusto. 1981. O Retrato na Arte Portuguesa. Lisboa: Livros Horizonte.

FRANÇA, José Augusto. 1981. O Grupo do Leão – 1880 e 81. Caldas da Rainha: Museu
de José Malhoa.

FRANÇA, José-Augusto (dir.). 1983. Cinquentenário da morte de José Malhoa:


Malhoa, Pintor de Costumes de Paisagem e de Historia. SNBA e MJM, 28 Out.28 Nov.
Lisboa e Caldas da Rainha: SNBA/ M. José Malhoa.

FRANÇA, José Augusto (comiss.). 1988. Arte Portuguesa do Século XIX (Cat. de exp.).
Palácio Nacional da Ajuda, Mar. – Maio, Lisboa: IPPC.

FRANÇA, José-Augusto. 1984. A Arte em Portugal no século XX. Lisboa: Livraria


Bertrand. [1ª ed. 1974]

FRANÇA, José-Augusto. 1987. Malhoa, O Português dos Portugueses & Columbano,


o Português sem Portugueses. Lisboa, Bertrand Editora.

HASKELL, Francis. 1987. Past and Present in Art and Taste: Selected Essays. Yale:
Yale University Press.

HENRIQUES, Paulo. 1996. José Malhoa. Lisboa: Edições Inapa.

Llorens, Tomàs. 2006. Sargent, Sorolla y el arte moderno. Sargent / Sorolla.


Museo Thyssen-Bornemisza, Madrid: Turner.

MONTÊS, António. 1943. Malhoa e o Museu das Caldas. Revista Ocidente, Lisboa.

MONTÊS, António. 1950. Malhôa íntimo. Lisboa: s.n.

MONTÊS, António. 1950. Malhôa. Caldas da Rainha: MJM.

MONTÊS, António. 1957. Malhoa e o Museu das Caldas. 2ª ed., Caldas da Rainha: MJM.

MONTÊS, António. (s.d. [1959]). Malhoa no Museu das Caldas. BARRETO, Costa
(org.), Estrada larga. vol. 2, Porto: Porto Editora.

Perkinson, Stephen. Set. 2005. From curious to canonical: Jean Roy de France
and the origins of the French School. The Art Bulletin, London.

PERNES, Fernando (coord.). 1999. Panorama da Arte Portuguesa no Século XX. Porto:
Campo das Letras / Fundação de Serralves.

186 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
l u m i n i s m o e “ t e n e b r i s m o ” – m a l h o a e o r e t r ato

PELÁGIO, Humberto. 1928. José Malhoa (Pintor). Lisboa: s.n.

PEREIRA, Acúrcio. 1955. As Três Idades de Malhoa. Caldas da Rainha: MJM.

Saldanha, Nuno. 2001. Os Malhoas dos Relvas. José Malhoa – Na colecção


de José Relvas, Alpiarça: Casa-Museu dos Patudos.

Saldanha, Nuno. 2006. José Vital Branco Malhoa (1855-1933). O pintor, o mestre
e a obra. [texto policopiado] Dissertação de Doutoramento em História da Arte
apresentada à Universidade Católica Portuguesa. Lisboa: Faculdade de Ciências
Humanas / U.C.P.

SILVA, Raquel Henriques da. 1995. Romantismo e pré-naturalismo. História da Arte


Portuguesa. Vol.3. Lisboa: Temas e Debates.

Sousa Pinto, Manuel de. 1928. Malhoa: O Pintor e a Sua Obra. Livro da Homenagem
ao Grande Pintor José Malhoa. Lisboa: SNBA.

SOUSA PINTO, Manuel de. 1934. Últimos Anos de Malhoa. Caldas da Rainha:
Tip. Caldense.

Vicente, António Pedro. 1984. Carlos Relvas fotógrafo 1838-1894 : contribuição


para a história da fotografia em Portugal no século XIX. Lisboa: Imprensa Nacional
Casa-da-Moeda.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 187
Resumo
Na série dos Reis, Costa Pinheiro desvirtua uma amálgama de signos provenientes da palavras-chave
estatuária, da heráldica e da iconografia das cartas de jogar, em função de um jogo
poético que confunde ironicamente lenda, memória e história no mesmo horizonte costa pinheiro
de representação. Desígnio que antecipa a verve “anti-zarco” de João Cutileiro, ao d. sebastião
exortar uma desmitificação dos estereótipos naturalizados pelos esquemas icono- retrato
lógicos que a estatuária oficial estadonovista veicula. Como alternativa à dissolução neo-figuração
do género, corrompido na sua “lei” (efeito da arbitrariedade radical que liberta o pintura (anos 60 do século xx)
significante neo-figurativo do lastro do sujeito/referente que o consubstanciava),
supõe-se uma ideia de retrato expansivo e permeável, que se firma em permanente
extravasamento. Estatuto que não o nega, antes o desloca ante as suas estipulações
históricas mais ortodoxas. •

Abstract
In the series of the Reis (Kings), Costa Pinheiro misconstrues a mixture of signs from key-words
sculpture, heraldry and playing cards iconography, so as to create a poetic game that
ironically intertwines legend, memory and history in the same horizon of represen- costa pinheiro
tation. A name that anticipates the “anti-Zarco” of João Cutileiro by prompting a d. sebastião
demystification of stereotypes created by iconological schemes which official statues portrait
of the Estado Novo conveyed. As an alternative to the dissolution of the genre, cor- neo-figurative
rupted by its own “law” (an effect of the radical arbitrariness that frees the subject painting (1960 s )
/ referrer), we find the portrait expansive and pervious, defining itself in constant
expansion. A status it does not deny, but instead places it amongst its more orthodox
historical stipulations.•
o retrato
de dom sebastião:
costa pinheiro ou a ‘desmitificação’
da retratística histórica oficial 1

bru no m a rq u e s Diz a profecia: Insperate ab insperato redimeris. Que seria remido


Doutorando em História da Arte Portugal não esperadamente por um rei não esperado. Segue-se logo,
Contemporânea na FCSH/UNL. evidentemente, que não podia el-rei D. Sebastião ser o libertador
Bolseiro da FCT.
de Portugal, porque o libertador prometido havia de ser um rei não
esperado: Insperato ab insperato; e el-rei D. Sebastião era tão esperado
1. O presente ensaio actualiza e desenvolve uma vulgarmente, como sabemos nós.
investigação iniciada em Bruno Marques. 2004.
Para o estudo da “crise” do retrato nos anos 60 Pe. António Vieira, Sermão dos Bons Anos
em Portugal. (Dissertação de Mestrado em His-
tória de Arte Contemporânea, sob a orientação
de Margarida Acciaiuoli). Lisboa: UNL / FCSH. El-rei D. Sebastião consubstancia, em matéria de mito, o mais paradigmático exemplo
do modo como um povo lida com a sua história.2 Arquétipo universal do Salvador
2. “Personagem lendária, personagem ideoló-
gica, no quadro da mentalidade portuguesa do
escondido, do Herói imortal que sempre regressa e ressuscita. Exposto, diversamente
romantismo e do tardo-romantismo da geração percebido e encarnado, o mistério construído em redor da sua figura será por diversas
de 90, e ainda no nacionalismo dos anos 20 do vezes celebrado por teólogos, historiadores e poetas.3
nosso século, o rei de Alcácer-Quibir foi símbolo Integrado na série dos Reis (1966) de Costa Pinheiro, esse topos sobejamente revi-
da fatalidade e de esperança, sucessivamente ou sitado não só encontrou um outro registo como ainda mudou de sentido. De algum
simultaneamente. A «bem nascida segurança» da
modo exterior e ao mesmo tempo interior à esfera do fascínio que converte a ico-
coroa portuguesa de um Camões que, por causa
dela, morreu com a Pátria, foi discutida, sempre, nografia sebastiânica em lugar de eleição da própria aventura do nosso imaginário
mais em termos de mito do que em termos de contemporâneo, o retrato de D. Sebastião de Costa Pinheiro resulta fulcral para o
história, e por razões partidárias. [...] E o resulta- entendimento de uma série pictórica que se firmará como um dos mais notáveis e
do desastroso do sonho havido e enterrado pesa seguramente inventivos exemplos daquilo que, na esteira da pioneira obra de José-
gravemente na balança de uma história sempre
Augusto França consignada à história do retrato em Portugal, se poderá designar
aposteriorística...”. (FRANÇA, José-Augusto.
1973. “O ‘D. Sebastião’ de João Cutileiro”, in
como tratamento heterodoxo da retratística (França 1981, 93).
Colóquio-Artes. Lisboa, n.º 14, pp. 41-44). “Como pode o actual tempo português entender um príncipe como D. Sebastião?”
– pergunta J.-A. França para de imediato responder:
3. Para uma sistematização a que poderíamos de-
signar de Evolução do Sebastianismo, por não ra-
ras vezes ensaiada, citemos apenas nomes a este Mais perto ainda, de nós, Costa Pinheiro meteu-o entre os seus reis e príncipes de
respeito incontornáveis, como António Bandarra, um heráldico jogo de cartas e bonecos que a própria saudade da pátria lucidamente
António Vieira, Teófilo Braga, Oliveira Martins, lhe fez pintar, numa série de retratos irónicos e sentimentais. D. Sebastião debruça-
Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa. se sobre uma vaga carta astrológica; pela janela vê-se um cavaleiro de brinquedo.
4. FRANÇA, José-Augusto. 1973. Op. cit., p. 43. Na mão que se espalma, desenha-se um coração como um às [sic.] de copas.4

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 189
o r e t r ato d e d o m s e b a s t i ã o

Importa examinar com mais detalhe este retrato. Uma pequena figura no lado esquer- 5. Sobre a correlação entre o recurso destes
do da composição, de braço estendido e com “dedos-seta”, aponta obsessivamente “écrans” e a adesão de Costa Pinheiro à lingua-
gem neo-figurativista em inícios da década de
na direcção de D. Sebastião (o “Desejado”). O coração inscrito na palma da mão
60, ver Almeida 2002, 165: “A sua pintura deste
deste (com o coração nas mãos) invoca a personalidade pouco calculista e racional
período, que se seguiu às experiências informa-
do monarca. Em baixo, um campo horizontal circunscrito (“écran” neo-figurativo5) listas dos anos cinquenta, consistiu numa surpre-
plasma uma sequência desdobrada a dois tempos, na qual se vê um “brinquedo” feito endente exploração de um espacialismo poético,
de bico-de-ave e com asas (chamemo-lhe “passarola”). Com rodas, arrasta consigo ainda hoje actual, em que os quadros eram fre-
um fio que o une a uma pequena circunferência. E voando da direita para a esquerda, quentemente divididos em vários planos internos
isto é, do futuro para o passado, este brinquedo parece premonitoriamente consumar com acontecimentos diversos jogando entre si
como se em ecrãs simultâneos.”
um desvanecimento que se adivinha pelo dissipar das formas. Contrastando com a
maioria dos restantes monarcas retratados na série que nos ocupa, aqui o símbolo 6. A Mensagem, o único livro de poemas em por-
das espadas encontra-se obliterado (empreendimento militar logrado – falhanço de tuguês que Fernando Pessoa publicou em vida
(ver Pessoa 1985, 97-123), visa na sua essência
“perfeito asno”).
a criação de um Portugal mítico, constituindo a
Cremos não arriscar muito se, depois de fazer confluir este esparso punhado de nexos
obra-prima onde o poeta lapidarmente imprimiu
e articulações, ensaiarmos a ideia de que nesta passarola-de-brincar ecoa distinta- o seu ideal patriótico, sebastianista e regenera-
mente o “sonho, no erguer da asa” – as palavras que Fernando Pessoa escreveu no dor. É um poema nacional, uma versão moderna,
poema “Quinto Império” da Mensagem6. Esta “passarola” parece assim voar, levando espiritualista e profética dos Lusíadas.
de arrasto consigo o sonho de alguém que saiu positivamente apelidado, num outro
7. Ver o poema D. Sebastião, Rei de Portugal
poema à sua pessoa erigido, de louco (“Louco, sim, louco, porque quis grandeza / (datado de 20-2-1933) que integra a Mensa-
Qual a sorte não dá”)7. Pois fora justamente essa Loucura que, na miríade das desa- gem (Pessoa 1985, 106). Nestes versos Pessoa
gradadas vozes lançadas ao seu vulto, justificou o fim trágico, quiçá irresponsável, encontra na loucura que atribui ao rei D. Sebas-
do rei D. Sebastião, tal como é usual ver no seu governo uma época de declínio do tião uma força positiva que provém de uma ne-
gatividade que contém em si a energia necessária
“Império”. A sua imagem ficou então irremediavelmente enlaçada a esta visão emo-
para transcender a condição frágil e quotidiana
tiva dos acontecimentos e alvo de críticas assaz contundentes, por vezes até cruéis,
da humanidade (“sem loucura que é o homem,
como estão exemplarmente plasmadas nas de António Sérgio, que o qualificou de mais que besta sabia, cadáver adiado que pro-
“egoísta, bronco, torpe”, ou simplesmente de “ tonto” ou “pateta”.8 cria”). Que essa loucura trágica sofra aos olhos
Mas o aspecto mais desconcertante acaba por provir do facto deste D. Sebastião do poeta uma inversão de valores - é essencial-
encarnar literalmente os traços de um tosco “boneco”. Esta apropriação, vinda do mente essa energia “positiva” que promove uma
grafismo algo moderno das cartas de jogar, quadra esteticamente não só à obra em transcendência - resulta no ponto de chegada
que ressalta do final do poema: “por isso, onde
questão como ainda se replica ao longo de todo este cortejo de reis, rainhas e infan-
o areal está, ficou o seu corpo que houve, não o
tes que compõem os Reis. Bonecos articulados também, numa criação de formas em
que há”. Em suma, entrevê-se um Fernando Pes-
anatomias imaginárias. No entanto, no caso do Desejado, a configuração imposta ao soa que, deleuzianamente, encontra na “loucura”
corpo contrasta com a planificação que estrutura os restantes quadros, construídos a uma “intensidade” ou “força” capaz de criar um
partir da inscrição, no centro da composição, da Cruz de Cristo, símbolo da dinastia corpo sem orgãos. Isto é, um corpo que é antes
de Aviz. Dinastia essa cujo fim D. Sebastião precipita... de mais a imagem do rei sublimado (Encoberto/
Assim, bem fora do enquadramento heráldico que irmana os retratos, entrevê-se no Desejado), e, em última instância, a do próprio
país (como utopia que se encontra por cumprir).
seu treslido fitar, em fixos olhos rasos de ânsia, a situação de sujeito abstraído da
sua realidade, para exortar um deslocamento norteado pela autoridade guerreira de 8. De entre os vários ensejos, de que não vale a
um passado primordial. Legado consignado aos alvores da nacionalidade através da pena aqui enumerar exaustivamente, ver a título
de exemplo o artigo originalmente publicado na
sinalização na janela da “figura-brinquedo”, também ela sobejamente mítica (codi-
Águia (Julho-Agosto de 1917), intitulado “Inter-
ficada pelo advento da Reconquista), de um D. Afonso Henriques cavaleiro, de elmo
pretação não romântica do Sebastianismo” (ree-
e armadura medievais, vitoriosamente de braço estendido com espada em riste.9 ditado em Sérgio 1971, 239-251).

190 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
costa pinheiro, d. sebastião , 1966. óleo s/ tela, 150 x 110 cm. col. manuel brito, lisboa. © cortesia da galeria 111 (autoria desconhecida)

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o r e t r ato d e d o m s e b a s t i ã o

191
o r e t r ato d e d o m s e b a s t i ã o

9. Esta leitura reporta-nos para o poema “D.


Afonso Henriques” que figura na Mensagem
(Pessoa 1985, 116) - “Pai, foste cavaleiro. / Hoje
a vigília é nossa. / Dá-nos o exemplo inteiro / E
a tua inteira força! // Dá, contra a hora em que,
errada, / Novos fiéis vençam, / A bênção como
espada, / A espada como bênção!”.

10. “D. Sebastião fecha este cortejo trágico com


o coração nas mãos. Os dois retratos mostram-no
no seu trilho suicida, povoado de sombras que o
assolam na sua imaginação desenfreada de rei-
menino, que confundida as armas com os brin-
quedos.” (Almeida 2005, 13). Podemo-nos alar-
gar aferindo que D. Sebastião parece aqui algo
alucinado em seu anseio desmedido próprio,
como criança que se entretém com os seus brin-
quedos, mas sem capacidade de medir o que tem
entre mãos. Leitura assaz devedora das palavras
supracitadas de Bernardo Pinto de Almeida.

11. FRANÇA, José-Augusto. 1973. “O ‘D. Sebas-


tião’ de João Cutileiro”, in Colóquio-Artes. Lis-
boa, n.º 14, p. 44.

joão cutileiro, maquete de d. sebastião – i , 1972 · mármore, 46 x 15 x 15 cm.


colecção particular. © joão cutileiro jr.

O “Pai” da nação encontra-se de costas voltadas para o semblante incerto do “rei-


menino”. Aparato “cenográfico” não inócuo. Simbolizarão, em conjunto, um início e
um fim10. Eis um retrato que antecede, na sua amplitude corrosiva, aquele que João
Cutileiro nos presenteará sete anos mais tarde, e que o mesmo J.-A. França viria a
descrever do seguinte modo:

Assim foi possível imaginar, em 1973, o rei “desejado”. Inquieto e falso herói. A sua figura
confessa-o assim, como um fantasma vindo do fundo do tempo, espantalho da História,
caricatura do Mito. Boneco dado à nossa piedade e oferecido à nossa meditação...11

192 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o r e t r ato d e d o m s e b a s t i ã o

12. Comentando a série Os Reis de Costa Pi- Costa Pinheiro, mesmo antes de Cutileiro, já nos tinha dado então um Sebastião
nheiro, J.-A. França (França 1989, s/p) discorre: como enigma intrínseco tanto à ordem do mito como à da história, fazendo do En-
“Identificamos nós, por observação ou palpite,
coberto, a sua figura, a sua mitologia, um objecto de criação em toda a esfera do
as figuras anunciadas, seria empenho vão: se
simbólico. Aquele para o qual a aparência corporal é um enigma ou uma cifra de
uma ou outra tem traços conhecidos (o bacine-
te e a cota de malha nas pernas de D. Afonso
outro tipo de existência, anterior e mais alta, merecia este duplo investimento do
Henriques, o chapelão na cabeça do infante D. imaginário pictural. Costa Pinheiro, para quem a realidade de D. Sebastião se con-
Henrique), já nelas o restante da indumentária verteu em interpelação segundo um modo muito próprio de apreender o universo
e dos símbolos que a ornamentam parece ale- da pintura, fê-lo em função do carácter da estranheza do objecto, da sua vacilação
atória. Porquê este escudo ou esta cruz ou esta enquanto verdade histórica, de mito. Tanto a sua imediata banalidade como o seu
mão ou este pássaro, porquê este naipe - e não
mundo misterioso e extravagante, foram apreendidos na sua evidência insólita e em
outro, para outro nome? [...] O jogo dos símbo-
última análise como objecto já originalmente imaginário.
los inventados, pela liberdade de humor que tem,
rodeia qualquer código (com fintas de cigano
alentejano - direi?..) e torna-se inteiramente ab-
surdo, ou faz do absurdo a sua razão de ser pin- Nos antípodas da estatuária oficial
tura. Daí que estas cartas, de reis, damas, rainha
e valetes ou príncipes, possam ser deitadas como ou do academismo monumentalista
nos apetecer, para traçarem dédalos de destino,
ou fazerem vazas, por aleatória decisão.”
Não pretendi pintar retratos num sentido tradicional. As figuras centrais
13. Nas palavras do próprio pintor (Pinheiro et têm a rigidez da estatuária, mas há pormenores movimentados,
al 1989, s/p): “Era minha intenção alcançar um
uma compartimentação do espaço e um diálogo das cores que lhes imprime
certo humor, uma certa ironia, e talvez por isso
um outro carácter plástico. Se quisermos chamar retratos a essas figuras,
a temática das cartas de jogar. Esta veio a ser
desenvolvida a partir de quadros que pintei em não nos esqueçamos que são imaginárias e não precisaram de nenhuma
1964, os assim chamados ‘quadros históricos’. documentação histórica. Isto é um privilégio do artista, cuja liberdade
Num desses quadros, a batalha de Alcácer-Quibir de imaginação coincide por vezes com a imaginação popular.
utilizei, pela primeira vez, o motivo das cartas.
Para mim tratava-se de não apresentar os reis Costa Pinheiro, em entrevista, 1966
dentro do aspecto formal do retrato ou de os en-
quadrar num ambiente convencional. [...] As car-
Com a série dos Reis Costa Pinheiro toma uma situação histórica e retradu-la em múlti-
tas de jogar são uma coisa simbólica. Vendo bem,
elas representam possibilidades lúdicas. Podem plas leituras sobrepostas de condições passadas e presentes. Nos seus “signos-oscilan-
surgir no quadro sob formas muito diferentes.” tes”, híbridos, é possível identificar uma série de símbolos nacionais e históricos de um
modo ironicamente anti-categórico.12 Estes estereótipos, colhidos na grandiloquente
estatuária, na severa heráldica e na prosaica iconografia das cartas de jogar13, são tra-
tados através de uma paródia de si mesmos, perturbando uma cultura que depende de
lugares-comuns estritos e linhas de estabilidade. Amálgama de cânones repisados numa
homogeneidade inabalável feita de hábitos, de repetições e de clichés. Como acto algo
espontâneo e inocente, estes “retratos” poderão ser vistos como um desapego aos afi-
velados códigos que a estatuária oficial veicula. Não nos mostra os reis como estaríamos
habituados: encimando um plinto, de semblante dignificante, bafejados pela eloquência
do pathos heróico, revestidos por um aparato iconológico devidamente identificado…
Presenteia-nos antes meros Reis, Valetes e Damas, numa iconografia de cartas de jogar,
em gosto infantil de as repetir, de as usar à vista de todos, de as proclamar ironicamente
como esquema invulgarmente eleito para retratar os nossos símbolos nacionais.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 193
o r e t r ato d e d o m s e b a s t i ã o

14. Ver FRANÇA, José-Augusto. 1973. op. cit, p.


41. “D. Sebastião elevou Lagos a cidade em 1573
e de lá partiu, cinco anos depois, a sua expedição
que as areias de Alcácer Quibir haviam de absor-
ver. Um facto festivo e outro bem triste justificam
a estátua que a Câmara Municipal agora inau-
gurou na praça principal da cidade. Já defronte
das suas muralhas já se perfilavam duas estátuas,
de Diogo Cão (Canto da Maia) e do Infante D.
Henrique (Leopoldo de Almeida), obra de série
a primeira, obra de concurso para um dos go-
rados monumentos ao Infante, em Sagres, a se-
gunda - ambas integradas no grande movimento
de estatuária pública iniciado em 1928 com o
Zarco de Francisco Franco, para o Funchal, e de-
pois multiplicado por cidades e vilas do país em
comemorações várias de estilo comum, numa
pretendida ‘idade de ouro’ da escultura nacional.
O ‘D. Sebastião’ de João Cutileiro situa-se fora
de tal movimento; a bem dizer, é o primeiro mo-
numento que ousa fazê-lo, dentro dos limites da
figuração iconográfica.” (O negrito é nosso.)

15. Ver Barthes 1973, 83. “[...] qualquer lingua-


gem se torna antiga a partir do momento em que
é repetida. Ora a linguagem encrática (aquela
que se produz e se difunde sob a protecção do
poder) é por estatuto uma linguagem de repeti-
ção; todas as instituições oficiais de linguagem
são máquinas repisadoras: a escola, o desporto,
a publicidade, a obra de massa, a canção, a in-
formação, redizem sempre a mesma estrutura, o
mesmo sentido, muitas vezes as mesmas palavras
- o estereótipo é um facto político, a figura maior
da ideologia.” Sobre o caso específico dos Reis
de Costa Pinheiro, ver Almeida 2005, 10: “Os
Reis de Costa Pinheiro foram [...] o anti-retrato
mítico da situação efectiva, real, que o país vivia,
costa pinheiro, d. afonso henriques , 1966. óleo sobre tela, 150 x 110 cm.
colecção manuel brito, lisboa. amesquinhado e sem grandeza nem projecto. Ou
seja, o avesso de uma representação oficial, que
se esboroava a pouco e pouco, sem que alguém
O retrato de personalidades históricas não é obviamente novo. O que muda em re- se lembrasse de lhe dar uma nova espessura ou
lação à produção oficial academizante sua contemporânea de meados de 60, fixada consciência, uma dignidade, em que os portu-
sob a alçada de um poder político ancorado num nacionalismo serôdio fora da hora gueses se reconhecessem diversos.”
internacional, não foi nem a sociedade nem os mitos. O que muda sim é o modo 16. À pergunta “Qual o motivo que te levou a pin-
de ler esses mesmos mitos. E, aqui, no universo das imagens que enformam as re- tar os reis?”, Costa Pinheiro responde: “Bem, um
presentações que detemos da História, Costa Pinheiro auspicia uma via que irá ser deles foi o interesse muito pessoal em realçar al-
ulteriormente abalizada pela verve “anti-zarco” de João Cutileiro (que o seu emble- gumas personagens históricas e contar sobre elas
coisas boas e coisas más.” (Pinheiro 1966, s/d).
mático monumento erigido a D. Sebastião, na cidade de Lagos, em 1973, inaugura14).

194 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o r e t r ato d e d o m s e b a s t i ã o

17. Segundo Catherine Millet (Millet 1987, 71),


para além do desígnio ideológico desta pintura
“engajada”, onde algo do Maio de 68 já se fer-
menta, percebe-se que a Nova Figuração provém
também, em larga medida, de um Abstraccionis-
mo que no pós-guerra se vinha dando conta cada
vez mais de uma espécie de crise semântica dos
seus signos. A utilização da expressão “Nouvel-
le figuration” para designar os pintores do Co-
bra, ou a eles próximos, permite destrinçar uma
ligação genealógica indirecta mas esclarecedora
com o Surrealismo, enquanto as duas exposições
organizadas sucessivamente em 1961 por Jean-
Louis Ferrier e em 1962 por Michel Ragon na Ga-
leria Mathias Fels faziam a apologia do termo.
Rui Mário Gonçalves advoga que o neo-figurati-
vismo implica uma abordagem plástica das formas
que, numa situação extrema, as realiza enquan-
to figuras puras, não identificáveis com objectos
concretos. Para este crítico é a utilização impul-
siva dos materiais que condiciona o seu apareci-
mento, numa relação inversa à pintura figurativa
tradicional, mas que não exclui a possibilidade do
surgimento de figuras reconhecíveis. Liberta-se,
portanto, de uma subordinação estreita ao real:
“O Neo-figurativismo corresponde a um novo in-
teresse plástico pelo elemento figura e pelo ob-
jecto que a figura pressupõe. No caso da figura
pura, esse objecto não existe na consciência do
pintor antes da elaboração do quadro [...] A di-
ferença entre esta pintura e a pintura figurativa
tradicional, é que [...] o objecto aparece à cons-
ciência da utilização livre dos materiais pictóricos
- surge com a figura, ou seja, a figura e o objecto
são-se” (GONÇALVES, Rui Mário. 1963. “Lourdes
Castro e René Bertholo in Colóquio, nº 31, Dez.,
p. 39). A respeito da entrada do termo e da pro-
posta da “Neo-figuração” em Portugal ver tam- costa pinheiro, d. pedro i , 1966. óleo sobre tela, 150 x 110 cm.
bém Gonçalves 1986, 90 e Pernes 1990, s/p. colecção kurt egger, mannheim, r.f.a.

Nessa empresa está subjacente uma imagem alternativa à retórica grandiloquente


dos monumentos aos heróis nacionais, difundida por fórmulas ritualizadas, expres-
sões fossilizadas, estereótipos bolorentos15, com que se pretendia “en-formar” uma
realidade e erguer respeitáveis fachadas em torno da dignidade das figuras da nossa
história. (Neste ponto, o pintor pretende também aludir ao lado negro dos monarcas,
às histórias e estórias suprimidas por baixo das comemorações oficiais.16).
Contemporâneo dos ventos estruturalistas provenientes dos territórios da semiologia
(enquanto “ciência geral dos signos”) e integrado na designada Neo-figuração17 (que

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 195
o r e t r ato d e d o m s e b a s t i ã o

18. Afiança Roland Barthes que “[...] não há


clareza sem uma concepção clássica do signo, o
significante de um lado, o referente do outro, o
primeiro ao serviço do segundo.” (cit. p. Coelho
1974,16).

19. Se partirmos das considerações aqui já cita-


das de J-A. França (França 1989, s/p), não arris-
camos muito se alegarmos que a série dos Reis de
Costa Pinheiro é povoada de significantes órfãos,
que se autonomizam, porque menos dependen-
tes de um significado agora insubstanciado (mu-
tilado) na sua suposta integridade originária. No
fundo, Costa Pinheiro demonstra que o referente
é, logo à partida, impuro, permeabilizado, pilha-
do na sua unidade de fachada.

costa pinheiro, dona leonor teles , 1966. óleo sobre tela, 170 x 135 cm.
colecção kurt egger, mannheim. r.f.a.

podemos interpretar em traços largos como triunfo do significante perante o signifi-


cado na pintura moderna por contrariar veemente a concepção clássica do signo18),
Costa Pinheiro não pretende pois deter-se somente na análise do signo, mas no
ponto da sua vacilação.19 A respeito deste fenómeno, paradigmático e conjuntural,
Roland Barthes (cit. p. Coelho 1974 , 16) adverte que:

Não são os mitos que é preciso denunciar (a doxa encarrega-se disso), é o próprio
signo em si que é preciso abalar: não revelar o sentido (latente) de um enunciado, de
um traço, de uma narrativa, mas estilhaçar a própria representação do sentido; não
mudar ou purificar os símbolos, mas contestar a própria “simbólica”.

196 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o r e t r ato d e d o m s e b a s t i ã o

20. Mediante um tão inédito como “poderoso Tomando de empréstimo esta programática demanda, talvez esteja subjacente na
levantamento mitográfico-simbólico da história proposta de Costa Pinheiro o seguinte enunciado: A nós portugueses, compete um
ancestral do País” (Almeida 2003, 167), que in-
uso libertário de toda a linguagem mitográfica/mitológica que durante longos anos
clui as inevitáveis ressonâncias de longa duração
nos esmagou.20 E, assim, ao inaugurar uma irónica afronta ao academicamente es-
que se vêm perpetuando no imaginário popular,
Costa Pinheiro apresenta uma amálgama propo-
tabelecido, Costa Pinheiro exorta a passagem dos atávicos códigos e imagens este-
sitadamente difusa de estereótipos permanente- reotipadas21 que tipificam a produção pública oficial, presa às exigências e prescri-
mente edificados/repisados, para serem agora ções propagandistas, para a transbordância e humor do imaginário popular. Dessa
ironicamente recriados em nome de um imagi- forma, o pintor promove que o retrato surja sempre como linguagem viva e movida
nativo jogo poético que, de modo tão ingénuo pela imaginação livre daqueles que a falam, e que nela se dissolvam os mitos que
como mordaz, confunde lenda, memória e histó-
fomos construindo.
ria no mesmo horizonte de representação. Insu-
Abolindo o fetichismo da unidade do sujeito-referente, o seu/nosso prazer pode mui-
bordinando-se contra a homogeneidade inabalá-
vel da estatuária académica estadonovista, Costa to bem tomar a forma de uma deriva.22 E neste auspicioso ponto, a lógica do prazer
Pinheiro converte assim a figura histórica do barthiana (formulação já pós-estruturalista) serve-nos aqui operatoriamente para
monarca em território de devaneio hermenêuti- explanar a proposta de Costa Pinheiro enquanto discurso dissidente; nomeadamente
co, tomado como enigma dirigido ao espectador, no que concerne ao modo como ela escapa às regras que tipificam a representação
onde os nexos e articulações referenciais apare- (as prerrogativas do Retrato), às leis da exposição (os cânones apensos à estatu-
cem invariavelmente subvertidos ao tornarem-se
ária oficial e os mecanismos de significação na pintura figurativa), aos critérios da
cifras pessoais que dão largas à reinvenção liber-
verdade (do documento histórico23). Verifica-se um arrebatamento desvairado que
tária dos signos.
pode chegar à destruição do discurso submetido à repetição em que predomina o
21. Ver Coelho 1974, 20. “[...] não há discurso
estereótipo e a mais inquietante seriedade. Linguagem que afasta a fruição, recalca
político que não seja repetitivo, que não se ali-
o inconsciente, recusa a textualidade.
mente de estereótipos.”
Partindo desta base enunciativa, Costa Pinheiro propõe uma fórmula alternativa,
22. Alega Roland Barthes que “A deriva aconte-
mesmo marginal, de representação e interpretação dos mitos nacionais. Apresenta-
ce sempre que eu não respeito o todo [...] Há
nos ironicamente formas estáticas, estatualizadas, em virtude de serem castradoras
deriva sempre que a linguagem social, o socio-
lecto me falha.” (cit. por Eduardo Prado Coelho
para a mobilidade imaginativa da colectividade e da fantasia pessoal de quem se
1974: 28). propõe a meditar sobre as mesmas.

23. José-Augusto França (FRANÇA, José-Augus-


to. 1972. “(A Série dos Reis)”, in Colóquio-Artes,
Lisboa, n.º 10, p. 9) nota que “as figuras de Cos- O discurso mítico para desmitificar o
ta Pinheiro são menos figuras do que figurações
de um mundo inventado – documentos não de
mito ou a criação de um mito artificial.
uma memória histórica mas de uma imaginação
poética.”. No mesmo sentido, Rui Mário Gonçal-
Desejo ser um criador de mitos, que é o mistério mais alto que pode obrar
ves (Gonçalves 1986, 168) assevera que a série
alguém da humanidade.
de retratos de reis de Portugal surgem “não como
resultado de alguma investigação científica, mas Fernando Pessoa, num texto solto, c. 1930
segundo uma recriação, lírica ou irónica, das len-
das populares.”
Combato certas ideias que continuam vivas entre nós. Eu queria fazer
um estudo anatómico desta realidade: no fundo não é realidade nenhuma,
mas uma espécie de mitologia que se foi instalando na imaginação popular.
Talvez também por isso me tenha surgido a ideia de pintar estas figures mortes...

Costa Pinheiro, “Reis como ‘Figures Mortes’”, 1966

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 1 97
o r e t r ato d e d o m s e b a s t i ã o

No espaço político que assim se desenha, o texto surge no pólo oposto 24. Ver Almeida 2002, 165: “António Costa Pi-
do mito, definindo duas zonas: ao mito corresponde a zona da linguagem nheiro vivia então numa espécie de exílio. A Ale-
manha desses anos, ainda na época laboriosa da
estereotipada, repisada, repetida, fossilizada nas suas fórmulas
sua reconstrução, acolhia favoravelmente a arte,
e referências; ao texto corresponde a zona utópica que se perfila onde quer
a sua indisciplina. E esse país culturalmente dis-
que a linguagem assume a sua vocação significante, conquista o seu amor tante do nosso, queria entender o trabalho de
da liberdade, e se projecta “numa região aérea, leve, espaçada, aberta, Costa Pinheiro e aceitá-lo, vitoriá-lo até com os
descentrada, nobre e livre.” seus mecenas, galerias, críticos que jamais Por-
tugal poderia ter conhecido na mesma época.
Eduardo Prado Coelho, “Aplicar Barthes” (prefácio de O Prazer do Texto), 1974. Os Reis foram, na obra de Costa Pinheiro, não
apenas um momento decisivo de medição com
essa outra realidade cultural como, também, um
Digamos que se entende o desafio de Costa Pinheiro, ou seja, a sua vontade, que é
modo de ajustar as contas com a memória do seu
também o prazer do pintor, de renovar a figuração e o retrato encurralados no mito, próprio país.”
pelo único meio que lhe é possível: a tentativa de o re-figurar, de o representar de
25. “A relação que une o conceito do mito ao
outro modo. No seu sebastiânico retrato, Costa Pinheiro mostra que a pintura pode
sentido é essencialmente uma relação de defor-
aproveitar-se da contextura volúvel de uma dada figura, para traduzir nela, no seio mação.” (Roland Barthes 1984, 192). “A defor-
da sua antiga unidade geral, as hesitações e as variações inerentes às peripécias de mação é evidentemente inerente às línguas de
um drama contínuo que, no seu caso particular, se tornou concomitante a um povo conotação: é porque a forma do mito é constitu-
e à condição de artista auto-exilado24. ída por um sentido que o mito pode deformar.”
Inquirido com a questão “Em que medida é necessário conhecer as várias persona- (Louis-Jean Calvet 1996, 56).
Na esteira destas determinações, podemos en-
lidades históricas para os interpretar?”, ressalva Costa Pinheiro que:
saiar o seguinte exercício: no caso em análise,
o significante prévio (imagem de D. Sebastião)
A meu ver não se deve esperar encontrar nestes quadros todo um mundo ambiente fora desviado do seu sentido (heróico). O que
(como em El Greco). Estes retratos, se assim lhes quisermos chamar, são muito imagi- equivaleria a dizer que é na passagem da deno-
nários, não são a representação dessas figuras como corpos e contornos. Eles não cor- tação (pessoa de D. Sebastião) para a conotação
respondem, por assim dizer, a um modelo histórico linear; aliás isto não é um privilégio (Salvador) que assenta a deformação (a distorção
do artista: também entre o povo (e não só entre o português) se transformam através ideológica) que gera o mito. Ora, e para simplifi-
car, Costa Pinheiro ao apropriar o mito, imprime
da memória, as lendas, ideias ou imagens de reis, por exemplo. (AA.VV. 1989, s/p.).
uma deformação segunda que tem como efeito
desvelar a distorção primeira, sancionada pela
Tratar-se-á então menos de uma desmontagem do mito do que recriação do mesmo. ideologia estadonovista.
Mas ao recriar não está Costa Pinheiro justamente a “desmitificar”? Se considerar-
mos a decisiva tese de Roland Barthes, de que “o mito é uma fala [...] é um sistema
de comunicação, uma mensagem [...], não pode ser de modo nenhum um objecto,
um conceito ou uma ideia; é um modo de significação, uma forma” (Barthes 1984,
203), então, nos retratos de Costa Pinheiro, o objecto jamais será a pessoa do Rei. Ao
tornar objecto do retrato o mito (a despeito do sujeito do monarca), Costa Pinheiro
propõe uma crítica ao discurso da arte académica e oficial enquanto metalinguagem
de uma linguagem-objecto que é já em si por excelência mitificadora.
Se aceitarmos esta abordagem, poderemos asseverar então que Os Reis de Costa
Pinheiro procedem a uma mitificação do mito, e por isso são - usando a formulação
estruturalista do pensador francês - um mito artificial. Essa premissa pressupõe que o
sujeito histórico, a sua pessoa, seja duplamente deformado.25 Ou seja, Costa Pinheiro
caricatura a deformação que a mitificação da figura do rei fez ao sujeito histórico ao
logo do tempo, levando-a ao limite.

198 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o r e t r ato d e d o m s e b a s t i ã o

26. “[...] o mito é constituído pela perda da quali-


dade histórica das coisas: as coisas perdem nele a
memória da sua fabricação” (Barthes 1984, 209-
210). Louis-Jean Calvet (Calvet 1996, 56-57) co-
mentando esta passagem de Barthes, refere que
“O mito, no sentido clássico do termo, é eterno.
O mito do semiólogo pretende a esta eternidade,
quer dizer, evacua o aspecto histórico do sis-
tema primeiro sobre o qual se constrói [...].
Na falsa oposição entre Natureza e Cultura (não
será própria natureza cultural?), o mito preten-
de ao natural, isto é, aparenta deshistorizar-se,
despolitizar-se. É isso o que se dá como eviden-
te de que falava Barthes no seu prefácio, a fuga
funcional da História. Formalmente parasita, se-
manticamente ambíguo, o mito assume portanto,
uma função deformante: distorce a história para
melhor a poder negar, vai buscar ao cultural para
pretender ao natural. Será assim o lugar privile-
giado da ideologia que, cultural por definição,
não pode sobreviver senão fingindo ser natural.
É uma tendência característica do discurso oficial
por exemplo que, sendo evidentemente histórico
e contigente, procede por afirmações gerais e de-
finitivas, por especificações exclusivas e policiais
(isto é isto) para se apresentar como uma marca
de eternidade. O mito constrói-se em primeiro
lugar sobre a ideia de que é definitivo: não his-
tórico. É essa a sua função primeira, que procede
da sua forma, como vimos, mas também das suas
utilizações.” (o negrito é meu).

27. Exemplo paradigmático são as palavras de


Teixeira de Pascoaes no capítulo dedicado ao
“Espírito Messiânico”, quando discorre sobre a
dimensão “transcendente” que enforma a “per-
sonalidade lusitana”, e que segundo o autor de
A Arte de Ser Português, se encontra explanado
através de uma messianismo onde se encontram
costa pinheiro, infante dom henrique , 1966. óleo sobre tela, 150 x 110 cm.
espiritualizados os “caracteres religiosos da Raça,
colecção particular, munique, r.f.a.
nos quais o amor familial e o pátrio amor se divi-
nizam” (Pascoaes 1917, 90-91).

Por aqui compreendemos como um país, um determinado imaginário pátrio vigente


(ou dominante), encabeçado por poetas, intelectuais e agentes do Estado, esconde
o aspecto histórico das produções ideológicas que, assim filtradas, se apresentam
como naturais26, confundindo histórico (e contingência) com essência, para deificar
uma personalidade lusitana ingénita firmada à imagem do sebastianismo mediante
critérios idealizantes e transcendentalistas.27

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 199
o r e t r ato d e d o m s e b a s t i ã o

28. Para invocar a corrente do anti-humanismo


teórico que anuncia o fim de todas as filosofias
tradicionais (antropocêntricas) da linguagem e
da interpretação, há uma eloquente passagem de
Michel Foucault frequentemente citada, em As
Palavras e as Coisas (Foucault 1998, 422), que
descreve o “homem” - ou o imaginado sujeito
autónomo do discurso humanista - como uma fi-
gura traçada na areia na margem do oceano, que
prontamente será apagada pela maré. No campo
mais estrito da produção artística internacional,
a historiografia actual americana (Foster et al.
2004, 671) advoga que a “des-psicolização” le-
vada a cabo pelas neo-vanguardas - preconizada
por Cage, Rauscehnberg, Johns e os Minimalistas
- é paralela ao “anti-subjectivismo” estruturalis-
ta dos anos 60. Efeito da “aversão para com o
ego privado” que, por sua vez, reage à prática
artística da década de 50 (fundamentalmente ao
Expressionsimo Abstracto, ao Cobra e ao infor-
malismo europeu).

costa pinheiro, dom manuel i , 1965/6. (estudo). óleo sobre tela, 81 x 65 cm.
colecção do artista

Ora, aquilo que Costa Pinheiro toma como referência não é outra coisa senão o
mito. Não é a extensão psicológica, ou o desfolhamento da verdade do ser que ca-
tiva o pintor - Costa Pinheiro mostra cinicamente que a sua origem em carne e osso
é anónima, pois a representação oficial apagou o real -, mas antes o folheado da
significancia. Neste ponto teremos que considerar que, como instituição, no exacto
paradigma dos Anos 60, o “sujeito morreu”: a sua pessoa civil, passional, biográfica,
desapareceu.28 Desapossado, já não exerce sobre o (seu) retrato a formidável pater-
nidade/referencialidade que a história da arte, o ensino, a opinião tinham por função
estabelecer e renovar. É por esta via que devemos relevar o alcance que a proposta

200 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o r e t r ato d e d o m s e b a s t i ã o

29. Sobre o termo “figura pura” - e atendendo neo-figurativa de Costa Pinheiro detém quando entendida à luz de um movimento
ao já referido na nota 17 - Rui Mário Gonçal- geral de disrupção/dissolução do significado, de arbitrariedade e justaposição dia-
ves (Gonçalves 1986: 90-91) lança alguma luz:
léctica dos fragmentos, de desvinculação entre significante e significado.
“O conceito de figura pura teria interessado aos
O que interessa a Costa Pinheiro neste desígnio é verificar como um modo de re-
surrealistas, para além da inicial proposta de
‘modo interior’, feita por Breton. As pinturas de
presentar se cristaliza, se torna espesso, se sobrecarrega de estereótipos, se fossiliza
Kandinsky, Klee e Miró abrigaram novas possi- pela repetição até adquirir a consistência das coisas evidentes (“naturalizadas”). Com
bilidades, transformando a figura em signo, ou isto, o pintor abstrai os significados específicos de cada significante deixando-os
seja, um automatismo psíquico puro cumprido como que leves, soltos, libertos para se dissolverem, para se tornarem quase “fi-
no próprio momento de execução pictural. / A guras puras”29, des-simbolizando tudo o que remete para a uma cultura agarrada a
concentração na figura pura e no signo convi-
insígnias e marcos de referência supostamente seguros (instâncias aqui sinalizadas
ria em especial ao surrealismo, tal como a forma
de modo lapidar pela alusão jocosa à severidade da heráldica). Em suma, contra a
pura tinha sido essencial para o cubismo e para
a abstracção geométrica e tal como a cor pura apropriação fascista de símbolos nacionais, Costa Pinheiro contrapõe o que Barthes
caracterizava o fauvismo em certos aspectos da propôs à lógica capitalista: uma contra-apropriação. Lembremo-nos da revolucionária
abstracção geométrica.” asserção do pensador francês: “A falar verdade, a melhor arma contra o mito é talvez
No entanto, a respeito da noção de “figura pura” a de, por sua vez, o mitificar, é produzir um mito artificial: e este mito reconstituído
aplicada à pesquisa neo-figurativa em Costa Pi- será uma verdadeira mitologia. Já que o mito rouba a linguagem, porque não roubar
nheiro, ver Margarida Acciaiuoli (Acciaiuoli 2001,
o mito?” (Barthes 1984, 203). Partir em pedaços o signo mítico, inscrevê-lo numa
448). “Remetendo para si próprios, não se pare-
montagem crítica e depois fazer circular este mito artificial sob a etiqueta de “retrato
cendo com nada e não sendo representação de
coisa nenhuma, esses elementos que apareciam de um monarca”, é direccioná-lo para uma interpretação pelo menos algo neo-dada,
primeiro nos seus desenhos passam a habitar as tanto pela via da arbitrariedade do signo como pela via do absurdo poético. Esta foi,
suas telas como abertos a tudo, por um movi- grosso modo, uma das estratégias da arte apropriacionista que floresceu em finais
mento de apagamento criador que se trata e que, dos anos 50 e inícios de 60.30
por conseguinte, deixa circular a imaginação que
lhes dá a vida. Neste sentido, estas figuras não
são imagens de outras. Elas são, pelo contrário, a
sua manifestação.” O retrato como avesso de si
30. Sobre a dissolução neo-dadaísta do signo
ocorrida nas décadas de cinquenta e sessenta ver
ou a violação do género como efeito
Hal Foster (Foster 1996, 78). “Mas justamente da “extensão” do mesmo
quando a autonomia semiótica parecia estar as-
segurada de uma vez por todas, a arbitrariedade
semiótica foi por seu turno reafirmada, primei- Ao contrário de toda a tradição que via o retrato a partir do retratado, Os
ro com figuras neo-dadaístas como John Cage Reis de Costa Pinheiro parecem sustentar que a imagem conduz à figura em
e logo, o âmbito na pintura, por figuras como
vez de partir dela. Verdadeiros ícones em irónico modelo de cartas de jogar,
Robert Rauschenberg e Jasper Johns. De facto,
estas “figuras mortas” como lhes chamou o pintor, emanam de uma outra
ambos artistas levaram a arbitrariedade do signo
ao ponto da dissolução sublinhada por Jameson,
vida para quase exigirem a vida de quem as olha.
ou seja, ao ponto em que os significantes (letras,
Margarida Acciaiuoli, D. Dinis (ficha de obra), 2001, p. 451
números, etc.) se tornaram literais, ‘libertos do
lastro dos seus significados’.” (A tradução do in-
glês é minha). Esta série de retratos nada tem a ver com os cânones tradicionais de conservação
da memória (enquanto luta contra a voracidade do tempo), de monumentalização
(de cariz heróico, áulico ou propagandístico), de afirmação de classe (emblema/
ostentação de estatuto social), muito menos de revelação da subjectividade. Para
estas almas despossuídas, a (des)mitificação do mito parece ser uma força devora-

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 201
o r e t r ato d e d o m s e b a s t i ã o

dora. O rompimento do corpo, o “não-olhar” do esquema impessoal que devora o 31. Também José Gil (Gil 1999, 13), num fasci-
sujeito, faz com que este se converta em espaço de deriva; nada mais nada menos nante texto dedicado ao retrato, vai ao encontro
desta determinação, quando afiança que: “De
que devaneio lírico irresoluto dirigido ao espectador.
uma maneira geral, os textos sobre a função do
Desse modo, não vemos senão uma “re-aparição na pintura de um espectro”, uma
retrato insistem sobre a virtude que ele possui
“cara da História” (Acciaiuoli 2001, 449), que se iconificou segundo os traços de de prolongar a imagem dos vivos para além da
marca identificadores promulgados pela interpretação pessoal que o pintor faz do morte. [...] Um laço misterioso une a imagem do
imaginário popular. E na condição de ícone (Acciaiuoli 2001, 451) - apropriado rosto à morte. O adjectivo talvez mais usado, na
sobretudo dos modelos da iconografia das cartas de jogar -, imiscuiu-se qualquer literatura sobre o retrato, para elogiar a obra fei-
sentido de presença (a “cena”), o sentido fisico-contextual (“o espaço-tempo”). ta, é ‘vivo’. O retrato suspende o tempo, torna
presente a ausência, ‘ressuscita’ o modelo morto,
Costa Pinheiro não poderia, com efeito, ter copiado literalmente, “traço por traço”
porque o fixa numa imagem ‘viva’. ‘É tão seme-
- seguindo a definição ritrarre do século XVI - a figura do monarca. Logo, não se
lhante que parece vivo. Só lhe falta falar.’”
trata da “figura tirada do natural” de Filipo Baldinucci, formalizada no século XVII
32. José Gil, tratando do rosto no âmbito do
(cf. Pommier 1998, 16 e 17). Com isto inviabiliza-se a certificação da verdade do
tema do retrato, fala de um esgueire por parte do
processo (legitimação e autentificação), pela via que garantia a fidelidade para com
interior, o que faz com que o exterior o exprima
o modelo visível (mimetismo do rosto empírico) ou invisível (captação do espírito/ necessariamente em equívoco, mesmo quando a
personalidade), que por sua vez pressupunha conhecê-lo previamente em pessoa. expressão é parcialmente fiel ao expresso. Para
Talvez o mais importante a referir seja mesmo o facto destes reis não pretenderem o filósofo português, aquilo que se exprime no
simular vida alguma. Por isso foram propositadamente investidos com o evacuado ou pelo rosto mostra-se dissimulando-se, porque
olhar, não propriamente da morte, mas do defunto. A efígie que lhes advém da res- não é directamente visível: “O sorriso terno que
vemos naqueles lábios é sempre mais ou menos,
sonância longínqua do perfil hierático egípcio serve-lhes de máscara mortuária, o
e outra coisa ainda, diferente da emoção interior
que lhes faz merecer o nome com que o pintor os baptizou nos bastidores: “figures
que o fez nascer. / Então o rosto manifesta, de
mortes”. E se partirmos deste pressuposto (pelo pintor assumido), também por aqui modo eminente, o esgueire, a esquiva do interior
se entra em contradição com as prerrogativas do género. Tal como Jean-Luc Nancy à expressão directa” (Gil 1999, 15).
assevera (Nancy 2000, 54), quando nos aproximamos da máscara mortuária - que
apresenta o morto - afastamo-nos irremediavelmente do retrato propriamente dito
- que representa a morte em pessoa, ou que “imortaliza a pessoa na morte”, por
esta aparentar continuar “viva” para lá da sua existência.31
Esta condição - de figura morta - confere-lhe uma presença sem hipótese de esquiva
(ou de esgueire32). O silêncio mudo da petrificação que os perpassa é disso signo: dali
desapareceram os sinais substitutivos, os traços de uma expressividade que esconde
(Gil 1999, 16), aplacando a ilusão, a aparência, a iminência da fala, como critérios
do retrato vivo (Gil 1999, 14). O decesso aqui é (simbolicamente) declarado, facto
que contraria a obsessão estético-metafísica em sobreviver realmente à morte, que,
para José Gil (Gil 1999, 14), define a essência do retrato enquanto dispositivo par-
ticular de fabricação de um tempo real eterno dentro do tempo.
Depois de somar todas as subtracções supramencionadas (incluindo as que partem
directamente do enunciado subversor de Acciaiuoli - agora a imagem conduz à fi-
gura em vez de partir dela...), desembocamos numa espécie de avesso do Retrato.
Conjecturamos uma nova ideia degenerativa do mesmo por demover o género das
suas determinações históricas, quando este já não se pretende fiel, com base na
semelhança, ao modelo (à sua fisionomia), nem comprometido com a essência (es-
pírito do sujeito), que o define idealmente. O que está em jogo nos Reis é, pois, a
inflexão da própria natureza do referente. Não se trata do sujeito empírico (centrado

202 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o r e t r ato d e d o m s e b a s t i ã o

33. Daí Margarida Acciaiuoli (Acciaiuoli 2001, no reconhecimento do rosto), nem de uma ideia a si associada (de beleza, de virtude,
451) também asseverar tratar-se de “retrato”, de majestade...). Trata-se já de uma outra coisa: o imaginário popular filtrado pelo
mas aqui de um retrato com um sentido e função
crivo mneumónico e poetizado do pintor33.
muito peculiar: desígnio para um “exercício plás-
Posto isto, parece que os retratos que Costa Pinheiro concebe destroem até ao
tico sobre a compreensão de um monarca como
mitologia de uma situação histórica”.
fim, até à contradição, a sua própria categoria discursiva, a sua referência socio-
linguística, o seu “género”. Ele é o retrato que não retrata, tal como um cómico que
34. “Num primeiro momento [o da linguística es-
não faz rir cai no fracasso. Trata-se de fazer aparecer, por transmutação - e já não
trutural da tardo-modernidade], a reificação ‘li-
por transformação ou inovação -, um novo estado filosofal da matéria do retrato
bertou’ o signo do seu referente, mas esta não é
uma força que se possa libertar sem impunidade. enquanto linguagem, fora da origem e fora da comunicação: quebrou-se a unidade
Agora, num segundo momento [da semiótica e genérica do “género” que a sociedade exige a qualquer produto humano.
da pós-modernidade pós-estruturalistas], con- Com Costa Pinheiro a teoria moderna do retrato, que Pierre Francastel define ainda
tinua o seu trabalho de dissolução, penetrando como fidelidade ao modelo (Francastel 1978, 228), é resolutamente posta entre
no interior do mesmo signo e libertando o sig-
parêntesis. Ou seja, do referente em suspenso desaguamos irremediavelmente na
nificante do significado, ou do significado pro-
designada ruptura pós-moderna do signo que Jameson formaliza34. E, assim, diante
priamente dito. Este jogo já não é o do âmbito
dos signos mas antes dos significantes puros ou
da corrosiva imagem que Costa Pinheiro a todos nós, portugueses, presenteia, resta-
literalmente libertos do lastro dos seus signifi- nos contemplar, de maneira indiferente ou cúmplice, o modo como a desvalorização
cados, dos seus significados anteriores, gerando do mundo enquanto entidade referencial primeira participa na desvalorização da
agora um novo tipo de textualidade em todas as “imagem” desse mesmo mundo tal como foi construído e apresentado.
artes.” Cit. de Hal Foster (Foster 1996, 77) a Ja-
meson, “Periodizing the 60s”, in The 60s Without
Apology, ed. Sohnya Sayres et al., Mineápolis,
University of Minnesota Press, 1984, p. 200. (A Uma mudança de paradigma:
tradução do inglês é minha).
heterodoxia do retrato (transgressão,
diferença e deslocamento)
Na ausência de adequada inovação teórica corre-se o risco de analisar a permanência
do retrato na situação dos Anos 60 pela negativa, por aquilo que ele não tem quando
comparado com as noções tradicionais. Tal negatividade é precipitada porque cega
a um diferimento que uma série de mutações estruturais de fundo consubstanciam,
e por isso campo fértil para análises redutoras, como os sentenciosos atestados de
“crise” ou de “morte” (ver Francastel 1969, 228), em larga medida efeitos da ina-
dequação/desactualização dos instrumentos analíticos.
A incursão teórica que se ensaia visa captar a especificidade de novas propostas
artísticas que lidam com a imagem do homem enquanto sujeito desembaraçando-se
dos ditames rigorosos do retrato académico, de molde a convertê-las em potencia-
lidades, num período histórico (Anos 60) militantemente votado ao ataque geral à
univocidade, ao advento da multiplicidade de modos de ser, à expansão da identi-
dade ou à ausência de fixidez (cf. Celant 1999: 183-191).
Nesta linha de pensamento devemos propor uma revisão acerca do modo como a
mutilação de algumas das estipulações essenciais do retrato nos coloca numa espécie
de impasse “ontológico”.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 203
o r e t r ato d e d o m s e b a s t i ã o

35. Sobre a articulação entre a passagem de uma


lógica da contradição (que pressupõe a postula-
ção da identidade prévia) para uma lógica da di-
ferença, e das consequência teóricas que advêm
da “morte de Deus” no âmbito do pensamento
que se instaura nos anos 60, ver Michel Foucault
(“Préface à la transgression” in Crítique n.º 195-
196, Agosto-Setembro 1963). Apropriando o re-
sumo de Eduardo Prado Coelho ao supracitado
ensaio do filósofo francês, “Para o pensamento
dialéctico, havia a experiência da contradição.
Para o pensamento actual, há a experiência da
transgressão [...] A transgressão não tem a ver
com a força do negativo. Ela não se opõe a coisa
nenhuma: não é nem violência (no plano ético),
nem qualquer modo de se afirmar a relação aos
limites que anula (o que corresponde à marca re-
volucionária do pensamento dialéctico). A trans-
gressão nada tem de negativo. Mas também nada
tem de positivo (se tivesse um conteúdo, nega-
va-se a si própria, porque ela é a passagem para
além de todos os conteúdos). A transgressão não
pressupõe um corte: aqui o limitado, para além
do ilimitado. Ela pressupõe um ser de diferença.”
(Coelho 1999, 65).

36. Referimo-nos aqui, essencialmente, às lógicas


da diferença pós-estruturalista (de Deleuze, Fou-
cault e Derrida) enquanto processo de des-dia-
lectização que visa a superação da contradição. A
possibilidade aberta pelo pensamento deleuziano
(ver Deleuze [1968] 2000) que assenta na ideia
de que a diferença está em primeiro lugar relati-
vamente à identidade (e à negação) encontra-se
amplamente explanada na obra axial Diferença e
Repetição. É entroncando nessa exacta genealo-
gia de pensamento que Germano Celant (Celant
1999, 183), caracterizando o paradigma da arte
que gravita em torno do Maio de 68, se refere a
um “Exaltar-se com a expansão da própria identi-
dade que a partir de então se apresenta sem limi-
tes.” Dito de outro modo, logo que a proibição da
violação do código inerente a cada género deixa
de ser pensada enquanto escândalo – as trans e
interdisciplinidades dos Anos 60 e 70 do século
XX fizeram de tal exercício num lugar comum –
deixamos de operar no plano dos conceitos tradi-
cionais e accionamos uma zona que escapa a tais
costa pinheiro, dom manuel i , 1966. óleo sobre tela, 150 x 110 cm. conceitos, nomeadamente no que concerne ao
colecção dr. g. zundel, salzburg, áustria

204 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o r e t r ato d e d o m s e b a s t i ã o

que forma sistema com a lógica da oposição e da Num primeiro momento, trespassados por um misto sentimento de nostalgia e re-
identidade do e pelo Mesmo. Trata-se de multi- signação, somos assolados pela dissolução do género, quando este aparece putati-
plicar o entendimento no interior do seu campo,
vamente violado/corrompido na sua “lei”. Prostrada sequela proveniente tanto da
patenteando, agora, mais radicalmente, em toda
morte do homem estruturalista (que assinou friamente e sem pudor o desvaneci-
a sua heterogeneidade, uma visão estilhaçada e
polimorfa do seu conceito.
mento da pessoa civil, passional, biográfica), como da extravagância do significante
pictórico neo-figurativo (por este surgir liberto do lastro de um sujeito/referente
37. Em suma, subscreve-se aqui uma noção de
que classicamente o consubstanciava).
género imutavelmente estruturado e no entan-
Num segundo momento, depois de entrever a energia que esta mesma “crise” des-
to infinitamente renovável e extensivo. A esse
propósito ver o capítulo “La loi du genre” de poleta, desenha-se subitamente no horizonte a via que a nova dimensão conferida
Jacques Derrida (Derrida 1986, 249-287), para à transgressão auspicia na exacta situação dos Anos 6035. Autorizando que o letár-
quem o género vive em permanente extravasa- gico sistema dialéctico de oposições, regulador estruturante das “velhas” formas de
mento. Abordando o estatuto e função da “Lei pensar, ceda lugar a um tratamento mais livre e heterogéneo do retrato. Posto isto,
do género” em literatura, o filosofo francês ad-
a célebre categoria disciplinar que em tempos abrilhantava os ínvios corredores das
voga que nenhuma obra literária existe sem re-
Academias de Belas-Artes, acaba por se demitir do ortodoxo sistema binário e exclu-
ferência àquela lei, e, no entanto, o seu próprio
estatuto implica que ela se lhe não subordine
sivista da identidade/negação, para se inscrever num regime outro, consignado já à
mas que a desloque ao afirmá-la. “Ainsi dès que irremediável dilatação/diluição instaurada pelas chamadas lógicas da diferença.36
du genre s’annonce, il faut respecter une norme, Trata-se, em suma, de supor uma ideia-outra de retrato, simultaneamente expansiva e
il ne faut pas franchir une ligne limitrophe [sic.], permeável, que aglutina no seu espaço específico de nomeação as próprias investidas
il ne faut pas risquer l’impureté, l’anomalie ou que perturbam uma definição outrora austeramente fixada pelos rigores da Academia,
la monstruosité [...] Et s’il leur arrive de se mê-
mas que, no momento em que se desdobra o paradigma entretanto tecido, se firma
ler, par accident ou par transgression, par erreur
ou par faute, alors cela doit confirmer, puisqu’on
em permanente extravasamento. Estatuto que não o nega, antes o desloca.37 •
parle alors de ‘mélange’, la pureté essentielle de
leur identité.» (p. 253) ; «C’est précisément un
principe de contamination, une loi d’impureté,
une économie du parasite. Dans le code de la Bibliografia
théorie des ensembles, si je m’y transportais
au moins par figure, je parlerai d’une sorte de
participation sans appartenance. Le trait qui AA.VV. 1989 (ed. original 1966). “Reis como ‘Figures Mortes’” (improvisações
marque l’appartenance s’y divise immanquable- sobre um tema entre Hubert Buda (B), Jürgen Claus (C) e António Costa Pinheiro
ment, la bordure de l’ensemble vient à former (P) no dia 12 de Novembro de 1966 no atelier do pintor.” in Os Reis, Costa Pinheiro:
par invagination une poche interne plus grande Retrospectiva, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Centro de Arte Moderna,
que le tout, les conséquences de cette division Novembro 1989 a Janeiro 1990, s/p.
et de ce débordement restant aussi singulières
qu’illimitables.» (p. 256). AA.VV. 2004. “Roundtable / The predicament of contemporary art” in Hal Foster,
Rosalind Krauss, Ive-Alan Bois e Benjamin Buchloh, Art since 1900. Modernism,
Antimodernism, Postmodernism. Nova Iorque: Thames & Hudson, pp. 671-679.

ACCIAIUOLI, Margarida. 2001. Fichas das obras (análise e história): D. Dinis, D. Manuel
I, D. João III, D. Sebastião, Ladainha Para Um Rei de Costa Pinheiro, in KWYParis
1958-1968 (cat. exp.). - Lisboa: Centro Cultural de Belém, pp. 451-453.

ALMEIDA, Bernardo Pinto de. 2002 (ed. original 1993). Pintura Portuguesa
no século XX. Porto: Lello Editores.

ALMEIDA, Bernardo Pinto de. 2005. Costa Pinheiro. Ensaios de psicomitografia.


Lisboa: Caminho.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 205
o r e t r ato d e d o m s e b a s t i ã o

BARTHES, Roland. 1984 (ed. original 1957). Mitologias. Porto: Ed. 70.

BARTHES, Roland. 1983 (ed. original 1973). O Prazer do Texto. Porto: Ed. 70.

CALVET, Louis-Jean. 1996 (ed. original 1973). Roland Barthes. Um olhar político sobre
o signo. Lisboa: Vega.

CELANT, Germano. 1999. “1968. em direcção a uma diversidade global” in Circa, 1968.
Porto: Fundação Serralves.

COELHO, Eduardo Prado. 1974. “Aplicar Barthes” (prefácio) in BARTHES, Roland.


1983 (ed. original 1973). O Prazer do Texto. Porto: Ed. 70.

COELHO, Eduardo Prado. 1999. “Anos 60: As Clausuras Infinitas” in Circa, 1968.
Porto: Fundação Serralves.

DELEUZE, Gilles. 2000 (edição original 1968). Diferença e Repetição. Lisboa:


Relógio D’Água, (com prefácio de José Gil).

DERRIDA, Jacques. 1986. “La loi du genre” in Parages. Paris: Galilée, 249-287

FOUCAULT, Michel, 1998 (ed. original 1966). As Palavras e as Coisas.


Uma arqueologia das ciências Humanas. Lisboa: Ed. 70.

FRANCASTEL, Galienne e Pierre. 1978 (ed. original 1969). El Retrato. Madrid: Cátedra.

FRANÇA, José-Augusto.1972. “(A Série dos Reis)”, in Colóquio-Artes, Lisboa, n.º 10, p. 9.

FRANÇA, José-Augusto. 1973. “O ‘D. Sebastião’ de João Cutileiro”, in Colóquio-Artes.


Lisboa, n.º 14, pp. 41-44.

FRANÇA, José-Augusto. 1981. O Retrato na Arte Portuguesa. Lisboa, Livros Horizonte.

FRANÇA, José-Augusto.1989. “Um prefácio”, “Outro Prefácio” e “Mais Outro


Prefácio” in Os Reis, Costa Pinheiro: Retrospectiva, Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, Centro de Arte Moderna, Novembro 1989 a Janeiro 1990, s/p.

FOSTER, Hal.1996. The return of the real. - Cambridge, Massachusetts / London:


MIT Press.

GIL, José. 1999. “O Retrato” in A Arte do Retrato: Quotidiano e Circunstância.


(cat. exp.) Lisboa: Museu Calouste Gulbenkian.

GONÇALVES, Rui Mário Gonçalves. 1964. “Lourdes Castro e René Bertholo


in Colóquio, nº 31, Dez. 1964, p. 39.

GONÇALVES, Rui Mário. 1986. “Costa Pinheiro” in 100 Pintores Portugueses do Século
XX. Lisboa: Alfa, pp. 168-169.

206 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o r e t r ato d e d o m s e b a s t i ã o

MARQUES, Bruno. 2004. Para o estudo da ‘crise’ do retrato nos anos 60 em Portugal.
(Dissertação de Mestrado em História de Arte Contemporânea, sob a orientação
de Margarida Acciaiuoli). Lisboa: UNL / FCSH.

MARQUES, Bruno. 2006. Mulheres do Século XVIII. Os Retratos. Lisboa: Ela por Ela.
(Publicação subsidiada pela FCT).

MILLET, Catherine. 1987. L’Art Contemporain en France. - Paris: Flammarion.

NANCY, Jean-Luc. 2000. Le Regard du portrait. Paris: Galilée.

PERNES, Fernando.1990. Os Reis, Costa Pinheiro 1964-1966, Retrospectiva.


Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Centro de Arte Moderna (exp. apresentada
na Fundação de Serralves, Porto, Nov. 90 - Jan. 91).

PESSOA, Fernando.1934. “Mensagem” in Obra Poética de Fernando Pessoa.


Mensagem e outros poemas afins. (Introdução, organização e biobliografia de António
Quadros). Lisboa: Europa América, s/d, pp. 97-123.

PINHEIRO, Costa. 1969. “Este é o ‘meu-seu’ escrito” (reprodução de parte


de uma carta que C. P. escreveu em 1969 dirigida a Manuel de Brito) in Costa Pinheiro.
O modelo e o pintor. Paisagens do atelier. Paisagens do pintor. Lisboa: Galeria 111,
Janeiro 1987.

POMMIER, Édouard.1998. Théories du Portrait. De la Renaissance aux Lumière.


Paris: Gallimard.

SÉRGIO, António. 1971. «Interpretação não romântica do Sebastianismo».


Ensaios, vol. I, Lisboa: Livraria Sá da Costa, pp. 239-251.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 2 07
Resumo
Sempre que se fotografa alguém faz-se retrato. Retrato, precisamente segundo os palavras-chave
critérios tradicionais da análise formal: representa-se alguém concreto com fidelidade
ao visível. Se a fotografia faz, sempre, mesmo que secundariamente, retrato, isso fotografia
acontece pela “natureza” do fotográfico: a fotografia é “retrato” do mundo - seu pintura
duplo mimético exacto. Não é a Verónica que faz do ícone retrato e, portanto, “ver- readymade
dadeiro” (verum Eikôn)? Não é a fotografia, numa das suas mais antigas e perduráveis retrato
ficções, verdadeiramente fundadora, uma verónica da Natureza? Este Mandilion, hitchcock
esta cópia automática do mundo, não é, também, readymade? Apropriação, ficcio-
nalmente sem outra intervenção senão a da escolha. •

Abstract
Each time a photograph of someone is taken a portrait is made. Portrait, according key-words
to traditional criteria of formal analysis: a person is portrayed with acute likeness to
what is seen. If the photograph is always, if only in a secondary manner, a portrait, photography
this is due to the photograph’s “nature”: a photograph is a “portrait” of the world – painting
its own exact double mimicry. Is it not Veronica who makes the portrait an icon and, readymade
therefore, “true” (verum Eikôn)? Is not the photograph, in one of its oldest and las- portrait
ting fictions, truly founding, a verónica of Nature? Is this Mandilion, this automatic hitchcock
copy of the world, not also a readymade? Appropriation, fictionally with no other
intervention than that of choice. •
o fotográfico como
retrato e “readymade”
a propósito de alfred hitchcock

j o s é a n tó n i o l e i tão O genérico inicial de North by Northwest (1959) termina com um figurante a perder
Departamento de História e Teoria da Arte, o autocarro: a anónima e insignificante personagem é desempenhada por Alfred
Ar.Co - Centro de Arte e Comunicação Visual Hitchcock, numa das frequentes, fugazes e características participações nos filmes
que dirige. Retrato. Auto-retrato – comprometido pela ficção? E por ela confirma-
do: será necessário lembrar o Giorgione que se apresenta a si mesmo como “David”
1. Cf. Francis Ames-Lewis, The Intellectual Life (1509-10) – ou Rembrandt representando-se, em companhia da mulher Saskia,
of the Early Renaissance Artist, New Haven-Lon- como o “filho pródigo na taberna” (c. 1635) 1? O outro, exterior, pode revelar a
dres, Yale University Press, 2000 e Simon Scha-
intimidade do próprio: o senhor gordo que perde o autocarro corre imediatamente
ma, Rembrandt’s Eyes, Londres, The Penguin
atrás da legenda que atribui a “direcção” a “ALFRED HITCHCOCK”. Insignificante
Press, 1999.
personagem? “O modo e o lugar em que aparece são cuidadosamente estudados e
2. Maurice Yacowar, “As Aparições de Hitchcock” a natureza dessa aparição fornece, muitas vezes, uma pista crucial para o sentido do
in AA.VV., In Alfred Hitchcock’s, s.l, Cinemateca
filme no seu conjunto”2. Crucial, por vezes, para a própria definição de uma identi-
Portuguesa-FCG, s.d., pág. 132. Catálogo do ci-
dade, pelo menos na sua dimensão pública. Em Topaz (1969), Hitchcock atravessa
clo dedicado a Hitchcock (Lisboa, Fevereiro-Abril
de 1982). o campo visual numa cadeira de rodas: “É a imagem do velho acabado e indefeso,
que os críticos dão da sua pessoa. E, então, levanta-se alegremente e vai-se em-
3. Maurice Yacowar, op. cit., pág. 141.
bora pelos seus próprios meios…”3. Em Family Plot (1976) é uma silhueta atrás de
uma porta de vidro: a silhueta emblemática do Hitchcock ícone “pop”. Claramente
auto-referencial. No seu último filme, essa silhueta não pode deixar de ser sombra:
a sombra do manipulador de medos, orquestrados pelas sombras que constroem a
fotografia animada, para um público na sombra – a sombra do maestro das sombras
que escorrega para a última das sombras. O outro revela-nos. E ao contexto em que
nos inserimos: Cindy Sherman, ao encenar-se, mais ou menos equivocamente, em
poses e situações familiares, de origem cinematográfica ou pictórica nem sempre
identificável, revela, através de um outro, os contextos sociais que nos constroem
a todos – e que fazem o fazedor de imagens, este (esta, porque o género sexual
é, aqui, relevante) fazedor de imagens e pré-formatam estas imagens. Seguindo a

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 209
o f oto g r á f i c o c o m o r e t r ato e “ r e a d y m a d e ”

tradição do instantâneo, Nan Goldin utiliza a(s) sua(s) própria(s) história(s), até 4. Beate Söntgen, “Inner Visions”, Tateetc., nº
uma confessionalidade brutal que se faz perto da morte, marginalidade última. É 10, Summer 2007, http://www.tate.org.uk/ta-
teetc/issue10/
ela mesma, as suas histórias, os seus amigos e aqueles que com ela partilham uma
cultura marginal. Operação mais verdadeira? Logo, mais retratística? Mas não há 5. Fulya Ertem, “The Pose in Eearly Portrait Pho-
nenhuma verdade em contarmo-nos como um “David”? Contarmo-nos como um tography: Questioning Attempts to Appropria-
“David” é menos verdadeiro do que contarmo-nos como um “viciado em sexo” ou te the Past”, Image [&] Narrative, July 2006,
http://www.imageandnarrative.be/painting/
em drogas? “The photographs that Nan Goldin has been taking of drag and glamour
fulya.htm
queens on their own territory since the 1970s (…) do not seek to unmask the real
person behind the glamour. On the contrary, they confirm that identity is formed 6. “Anónima segunda mulher de Max”, na for-
mulação de J. Bénard da Costa em “Da Vida e
only through role-playing, by figures that are at one with their made-up faces”4. As
Obra de Alfred Hitchcock” in AA.VV., In Alfred
imagens de grande intimidade do casal Koons (Made in Heaven, 1990-91), materia-
Hitchcock’s, s.l, Cinemateca Portuguesa-FCG,
lizadas em fotografia, pintura e objectos “kitsch”, falam-nos mais de Jeff, de Ilona s.d., pág. 56.
e da relação que encenam como filme porno, ou da cultura de massas que definiu
aquele tipo de imagens – e de objectos?
Toda a tradição retratística se estende, em tensão, entre verdades e mentiras, em
frequentes trocas de papéis: visível-invisível, superfície-profundidade, interior-exte-
rior, material-imaterial, duradouro-passageiro, ficção-realidade. Em troca de papéis
porque a autenticidade do retrato se desloca entre os termos – e não só de um para
o outro, mas, literalmente, no meio deles, em territórios contaminados por ambos,
por vários, por todos. Julia Margaret Cameron frequentemente fotografou amigos
e familiares, dando-lhes a forma de imagens do passado – veiculadas pela pintura.
A pintura legitima a representação fotográfica como artística e profunda. E fá-lo,
exactamente, enquanto representação: representação como mediação e como en-
cenação. De ambos os modos, como mediação e como encenação, procura garantir
um estatuto artístico à imagem. A encenação fá-lo pela presença evidente de uma
criação e de uma tradição de pose e de composição que elevam as personagens à
alta cultura. A mediação garante a intervenção de um sujeito criador, por oposição
a um mero apropriador. Em Sherman, esta “representação da representação” põe
em causa a ligação entre a imagem e o seu referente como uma “conexão estável
e definitiva”5.
Em Hitchcock, inúmeras vezes as imagens veiculadas pela pintura, as suas histórias e
personagens, revelam: a nova Mrs. de Winter, sem nome próprio6, é levada a imitar,
sem o saber, um vestido que a defunta Rebecca usara num baile de máscaras anterior,
ao aceitar para modelo o retrato de corpo inteiro de Lady Caroline de Winter, que
habitava as imponentes escadarias de Manderley (Rebecca, 1940). Segundo modelo
pictórico, retratístico, torna-se Rebecca, como Madeleine (uma falsa Madeleine, na
realidade Judy Barton) fingirá tornar-se Carlotta, não só segundo modelo pictórico,
mas segundo identificação pictórica, já que é o quadro que alerta (não pelo rosto,
mas pelo penteado do cabelo – e pelos adereços) Scottie e os espectadores para
essa adopção de identidade – de um outro (Vertigo, 1958). Rebecca e Carlotta são
trazidas, pelo retrato, do lado da morte. Marion é conduzida à morte pelas pulsões
inconscientes de Norman, reveladas, ao espectador, pelos quadros de mulheres nuas,
violadas pelo olhar, o toque e o desejo de homens (Psycho, 1960). Em The Trouble

210 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o f oto g r á f i c o c o m o r e t r ato e “ r e a d y m a d e ”

7. R. Barthes, A Câmara Clara, Lisboa, edições With Harry (Hitchcock, 1956), só o desenho mostra a face do morto em posição
70, s.d, pág. 135. “normal”: como se só o desenho-pintura pudesse dar conta do retrato, da verdade
8. Em The Wrong Man (1957), Hitchcock surge – e da morte. As fotografias de Julia Cameron fazem o que toda a fotografia, todo o
no início do filme para apresentar a história como retrato, faz: resgatam ao tempo. E fazem-no sublinhando esse resgate ao suspende-
tendo uma origem verídica. rem o tempo através da própria presença da representação: fora do tempo no tempo
9. José Gil, “O Retrato” in José Gil, Sem Título, das lendas, ao fazer representar (por exemplo) Lancelote e Elaine (1874) – e sempre
s.l., Relógio d’Água, s.d., pág. 23. no presente, porque essas histórias e essas personagens são actualizadas por cada
representação. Resgate equívoco, às escondidas com a morte, resgatando ao tem-
10. José Gil, op. cit., pág. 26.
po, entregando à morte, na formulação de Barthes: “há sempre nela [na ‘fotografia
11. G. Deleuze, F. Guattari, Mille Plateaux, Paris,
histórica’] um esmagamento do tempo; isto está morto e isto vai morrer”7. As parti-
Les Éditions de Minuit, s.d.
cipações de Hitchcock nos seus filmes são (quase8) sempre mudas. Mudez que José
12. G. Deleuze, F. Guattari, op. cit., pág. 216. Gil aproxima da morte9 e da infância10, num texto, precisamente, sobre o retrato.
Os “cameo” de Hitchcock são (auto-)retratos mais do corpo do que do rosto, fre-
quentemente a corpo inteiro. É a silhueta (em busto) de homem gordo, de perfil, que
caminha até se encaixar no desenho que a caricatura e precede no genérico da série
televisiva Alfred Hitchcock Presents (1955-62). Sombra bidimensional, corpo desma-
terializado, ocupando um lugar pré-definido pelo desenho – mas, também, sombra
que revela a presença de um corpo que convive com o desenho (o ícone “pop”), em
ambígua legitimação, e, depois, o substitui. Não é tanto o rosto que constrói a imagem
pública de Hitchcock, aquela que o identifica perante as audiências, como o seu corpo.
Mas um corpo que, utilizando ferramentas de Deleuze e Guattari11, podemos pensar
como dando a ver a sua codificação pelo rosto: corpo bidimensionalizado, escura som-
bra contra a superfície clara. Em Orlan, sob a face pulsa um corpo, pulsa precisamente
através da matéria carnal – e esse rosto feito de carne é também feito na carne, na me-
dida em que à carne, àquela carne particular que constitui aquele indivíduo, se impõe
um modelo exterior, um outro, uma vez mais social. “Le visage n’est pas un universel.
Ce n’est même pas celui de l’homme blanc, c’est l’Homme blanc lui-même, avec ses
larges joues blanches et le trou noir des yeux. Le visage, c’est le Christ. Le visage,
c’est l’Européen type”12. Orlan representará, performativa e fotograficamente (e um
no outro “medium”), personagens de Ingres ou de Manet, mas, em 1990, conterá, na
sua própria carne, o queixo da nascente Vénus de Botticelli ou a testa da Mona Lisa
de Leonardo. Carne sem personagens, corpo sem cabeça, cabeça sem face, na obra
pictórica e fotográfica de Jenny Saville, onde a (eventual) dimensão (auto-)retratística
se aproxima da irrelevância, numa interrogação do corpo enquanto carne, sexualidade,
estrutura mutante, ser histórico. O eu (Self, 1991) de Marc Quinn enforma, por con-
gelamento, o seu sangue (4,5 litros) na semelhança do seu rosto-cabeça. Impressão
directa do(s) corpo(s) no suporte, nas Anthropométries que Yves Klein realiza a partir
de 1960. Uma curta-metragem de Ângelo de Sousa (A Mão, 1972) mostra uma mão
em muito grande plano, entre a luz e a sombra, o focado e o desfocado, o reconheci-
mento e o desconhecimento; toda corpo: eriçada de pêlos, enrugada, tridimensional,
táctil – enrugada, tridimensional, táctil, a pálpebra de Buster Keaton, prolongando-se
na tactilidade material da parede, no Film (1965) de Beckett: olho-corpo de um homem
que, obsessivamente, esconde o seu rosto – num filme mudo.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 211
o f oto g r á f i c o c o m o r e t r ato e “ r e a d y m a d e ”

A identidade procura-a o retrato entre o individual e o colectivo, o privado e o pú- 13. Cf. W. Benjamin, The Arcades Project, Cam-
blico, o interior e o exterior, o eu e o outro, o singular e o plural, o construído e o bridge (MA)-Londres, Belknap-Harvard Univer-
sity Press, 1999 e T. J. Clark, The Painting of
apropriado, o rosto e o corpo. A identificação do Bilhete de Identidade faz-se, visual-
Modern Life: Paris in the Art of Manet and His
mente, pela fotografia do rosto e pela marca do dedo indicador direito: rosto e corpo,
Followers, New York, Knopf, 1985.
corpo bidimensionalizado, rostificado. Kiki de Montparnasse retratada, por Man Ray,
de costas e como um objecto – um violino, “de Ingres” (1924). Ocultada e revelada 14. E.T.A. Hoffmann, “Der Sandmann”, publicado,
em 1816, no primeiro volume de Nachtstücke.
pela História da Arte, pelo violino e pelo trocadilho: mas toda corpo – com o rosto
a caminho da invisibilidade (entre a ocultação e a revelação). O rosto todo corpo de 15. Pierre Daix, “On a Hidden Portrait of Marie-
Le Viol (1934), de Magritte, transpondo para o visível o que as roupas habitualmente Thérèse”, Art in America, nº 8, September 1983,
pp. 124-129.
escondem, tornando desconhecido o rosto que habitualmente identifica.
Roupas que revelam e constroem, ou ficcionam, identidades – que fazem, ou fazem 16. R. Barthes, op.cit., pág. 53.
que fazem, o monge. Mrs. de Winter e as roupas que Rebecca copiara de um retrato
(Rebecca, 1940), Norman vestido de Mãe para assassinar Marion (Psycho, 1960)
– Kaplan existindo apenas pelos seus adereços e pelo nome que faltava a Mrs. de
Winter. Roupas que recusam a Roger O. Thornhill a identidade de Kaplan (como
lha recusa o apelido judeu): são pequenas demais (North by Northwest, 1959). O
chapéu de Joseph Beuys é-lhe tão próprio como o de Buster Keaton ou o coco e
a bengala de Charlot. Os rendeiros de Let Us Now Praise Famous Men (1936-41),
fotografados por Walker Evans, estão tão retratados nas suas casas e objectos (e
roupas) como nos seus rostos e corpos em pose. Os rostos enormes, sobre tela mas
de origem fotográfica, de Chuck Close, são pessoas ou objectos? Os objectos das
naturezas-mortas de Manet interpelam e seduzem o espectador: seduzem-no, como
os objectos expostos nas montras da nova Paris oitocentista, a Paris das “passages”,
seduziam os transeuntes 13. Objectos do capitalismo consumista em formação. O
corpo humano torna-se objecto consumível na pintura de Tom Wesselmann: corpos
sobre a mesa de café, seios e laranjas - tudo brilhante e colorido, só superfície, como
no “packaging” e na publicidade. Um brioche de Manet (1870), sobre panejamento
branco, expõe-se tão feminino, sedutor e interrogador como o retrato de Victorine
Meurent representando uma prostituta (“Olympia”, como a rapariga-autómato do
conto de Hoffmann14) para revelar a verdade social escondida sob as olímpicas Vénus
nuas do Renascimento (1863). Picasso escondeu, numa natureza-morta de 1925-26,
um retrato de Marie-Thérèse, nua e reclinada15.
Mortas ou vivas, estas naturezas? “Tão viva que se esforçam por a conceber (…),
a foto é (…) a figuração do rosto imóvel e pintado sob o qual vemos os mortos”16.
Carlota, como Rebecca, é um fantasma. Presença sem outra figura senão o seu re-
trato. Sem outra matéria senão os seus adereços. As roupas da mãe de Norman – e
o seu corpo ausente marcado na sua cama. Fantasmas. O invisível da fotografia
também os procurou: correu atrás das “almas” dos mortos como correu atrás da
“psicologia” dos vivos. Os mortos povoam as fotografias com os seus corpos: os
seus corpos ainda vivos, convocados em fotografia (tornada natureza-morta) para
o interior de outras fotografias de vivos (hoje mortos) – e os seus corpos já mortos,
encenando a vida ou aceitando a morte. Mas os mortos povoam as fotografias até
sem os seus corpos: plasmas, hesitando entre o visível e um invisível que se podia

212 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o f oto g r á f i c o c o m o r e t r ato e “ r e a d y m a d e ”

17. José Gil, op. cit., pág. 22 acreditar acessível à fotografia. Em Skull & Milky Way (1966), a radiografia do seu
18. Johann Caspar Lavater cit. por R. Brilliant, próprio crânio não revela a Lucas Samaras nada mais senão o seu próprio corpo,
“The Metonymous Face”, Social Research Jour- mantendo o maravilhoso pela conjugação com um pontilhado luminoso que a le-
nal, vol. 67, nº 1, Spring 2000. “Online” em genda interpreta como a “via láctea” – e inserindo-se na tradição da “vanitas” pela
http://findarticles.com/p/articles/mi_m2267/ imagem (e palavra) do crânio.
is_1_67/ai_62402549/print Se, no seu corpo, Norman Bates luta com a Mãe morta que o habita, numa das suas
19. Cf. a nota anterior. Photo-Transformation(s), dos anos de 1970, Samaras luta com ele mesmo numa
Polaroid manipulada (“September 9, 1976”): um eu múltiplo, em tensão. O retrato
20. Helmut Gernsheim, Julia Margaret Cameron:
Her Life and Photographic Work, Londres, Gor- procura um interior invisível, múltiplo, complexo, fugidio – que se “esquiva” 17 no
don Fraser, 1975, pág. 159 rosto. “Each perfect portrait is an important painting, since it displays the human
mind with the peculiarities of personal character. In such we contemplate a being in
21. J. H. Pais da Silva, Margarida Calado, Dicio-
nário de Termos de Arte e Arquitectura, s.l., Pre- which understanding, inclinations, sensations, passions, good and bad qualities of
sença, s.d., pág. 320. mind and heart, are mingled in a manner peculiar to itself. Here we see them better,
frequently than in nature herself; since in nature nothing is fixed, all is swift, all tran-
22. Man Ray citado em L’Art Surréaliste, um dos
“Dossiers Pédagogiques” do Centre Pompidou,
sient”18. O transitório, o complexo, o peculiar, o invisível, podem conduzir o retrato
http://www.centrepompidou.fr/education/ para lá da imagem mimética. Uma espiral figura James Joyce (1929) e volumes curvos
ressources/ENS-surrealisme/ENS-surrealisme. retratam Nancy Cunard (1925-27), nas interpretações geométricas de Brancusi. El
htm#image03 Lissitzky interpreta-se a ele mesmo como “construtor” (1924), já não como artista
burguês, fotograficamente sobrepondo ao seu olho direito a palma da mão direita
que contém o olho no centro e segura um compasso aberto. Atracção da imagem
para fora das aparências para melhor retratar. Interior invisível, complexo, múltiplo.
Multiplicidade com correspondência exterior. Se Orlan inscreve modelos históricos
vários na sua face corporalizada, Francis Galton procurou identificar o colectivo no
indivíduo, construindo indivíduos múltiplos, plausíveis monstros de Frankenstein
fotográficos, acreditando revelar, na assemblage de retalhos particulares, aspectos
universais de crimes, de patologias ou de grupos sociais – em Galton, a “mistura
peculiar” do fisionomista Lavater19, já não revela o individual fugidio, como na tra-
dição do retrato, mas identifica permanências colectivas.
“Julia Margaret Cameron, Lancelot and Elaine, William Warder and May Prinsep,
1874”20: o título, em itálico, informa sobre o tema da imagem fotográfica e os nomes
masculino e feminino identificam os “actores” – os retratados. Se os “cameo” de
Hitchcock são retratos isso não decorre, apenas, das estratégias do realizador: é que
o fotográfico é fatalmente retratístico. “Retrato – Imagem de uma personagem viva
(…), em que o artista procura reproduzir as feições, atitude e expressão do mode-
lo”21. De outra maneira e em redução ao mínimo: representa-se alguém concreto com
fidelidade ao visível. Fatalidade fotográfica: “un photographe n’enregistrait que la
réalité”, na objecção de Kiki que obstaculizava a pose para Man Ray22. A fotografia,
como o “perfeito retrato” de Lavater, fixa o fugaz – mas não, necessariamente (como
bem o sabe a fotogenia), no momento certo. O “registo da realidade” terá podido
parecer, por vezes, a alguma fotografia modernista, um património desfavorável –
mas, esteve, certamente, entre os desejos originários do retrato: “Butades, a potter
of Sicyon, was the first who invented, at Corinth, the art of modelling portraits in
the earth which he used in his trade. It was through his daughter that he made the

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 2 13
o f oto g r á f i c o c o m o r e t r ato e “ r e a d y m a d e ”

discovery; who, being deeply in love with a young man about to depart on a long 23. Plínio, o Velho, História Natural, L. XXXV,
journey, traced the profile of his face, as thrown upon the wall by the light of the cap. 43, na tradução de J. Bostock, H. T. Riley,
The Natural History of Pliny, Londres, Henry
lamp. Upon seeing this, her father filled in the outline, by compressing clay upon
G. Bohn, 1857, vol. VI, pág. 283. “Online” em
the surface, and so made a face in relief, which he then hardened by fire along with
http://books.google.com/books?id=IEoMAAAA
other articles of pottery”23. A história está na origem do retrato, mas também da IAAJ&printsec=frontcover
pintura, e assim foi entendida pela cultura humanista. Em grande voga a partir dos
24. Web Gallery of Art, http://www.wga.hu/fra-
anos de 176024, foi representada por Jean-Baptiste Regnault no “grand cabinet”
mes-e.html?/html/r/regnault/1dibutad.html
da rainha, em Versailles (1785). Ainda antes de nos narrar a invenção de Butades,
asseverava Plínio: “We have no certain knowledge as to the commencement of the 25. Plínio, o Velho, op. cit., L. XXXV, cap. 5,
pág. 228.
art of painting (…); but they all agree that it originated in tracing lines round the
human shadow”25. Que tipo de imagem consegue a filha de Butades, originando, 26. J. H. Pais da Silva, Margarida Calado, op. cit.,
simultaneamente, a pintura (como desenho) e o retrato? Em primeiro lugar, uma re- pág. 320.

presentação directa, isenta de interpretação subjectiva. Através dela agarra a imagem 27. “A foto é literalmente uma emanação do refe-
do amado: o que significa apropriar e parar. Parar a fuga, constante, dessa presença rente” (R. Barthes, op. cit., pág. 114).
que lhe fará falta durante a longa ausência, mas que fora, sempre, fugidia – deslo- 28. Elizabeth Barrett em carta, de 1843, a Mary
cando-se no espaço tridimensional do quotidiano e no espaço emocional. Ultrapassa Russell Milford, citada em Susan Sontag, Ensaios
as ausências, as mudanças, a esquiva: o transitório, o fugaz. Finta o tempo e pára a Sobre Fotografia, Lisboa, Dom Quixote, 1986,
relocalização constante da presença, relocalização geradora de ausências. Imobiliza pág. 159.
a presença e, como o oleiro logo compreendeu (e disso é ele o inventor), permite 29. Geoffrey Batchen, Burning With Desire - The
multiplicá-la. Finalmente, a operação da jovem enamorada legitima, pela sombra Conception of Photography, Cambridge (MA)-
que a luz, na sua ausência, projecta na parede, a autenticidade da imagem, porque Londres, The MIT Press, 1999, pág. 177.
fiel a essa presença fugidia daquele que ela ama – e, podemos supor, daquilo que 30. Susan Sontag, Ensaios Sobre Fotografia, Lis-
a rapariga no amante amava. A técnica que utiliza não necessita de aprendizagem: boa, Dom Quixote, 1986, pág. 14. e pág. 16.
era seu pai, e não ela, o artesão experimentado e sapiente – e a técnica acabara de
ser inventada. Consiste numa individuação profunda: fixa o indivíduo concreto, “a
personagem viva” de Pais da Silva26, e fá-lo circunscrevendo pela linha – delimitan-
do, separando, individualizando. A representação torna-se presença, a imagem não
é meramente um substituto, mas, legitimada pela linha que capturou a sombra, uma
emanação27, imobilizada, do ausente.
Agarrar o outro pela sua marca luminosa, com uma intervenção mínima do sujeito
que “captura” e segundo uma técnica tão simples que parece automática – e que
possibilita a reprodução. Falamos de fotografia? “Desejo possuir a recordação de
todos os seres do mundo que me são queridos. Não é só a semelhança que é pre-
ciosa em tais casos, mas a associação e a sensação de proximidade (…), o facto de
a própria sombra da pessoa estar ali fixada para sempre!”28. Physaute ou autophuse,
hesitava Niépce, no baptismo da nova técnica de produção de imagens: a natureza,
ela mesma, ou uma cópia29 ? Acabaria por decidir por “fotografia” – desenho-escrita
com luz. A mediação está, neste sistema cultural (nesta ficção constitutiva do fo-
tográfico na nossa cultura), reduzida ao mínimo: “Fotografar é apropriarmo-nos da
coisa fotografada. (…) Embora, num certo sentido, a câmara, não só interprete, mas
capte de facto a realidade, as fotografias são tanto uma interpretação do mundo
como as pinturas e os desenhos”30.

214 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o f oto g r á f i c o c o m o r e t r ato e “ r e a d y m a d e ”

31. Ovídio, Metamorfoses, Livro X.243. “Online” Também aqui, nesta tensão entre “captura” e “interpretação”, o paralelo é antigo – e
em http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/ptext interior à tradição pictórica: se Regnault oferecia a história de Butades como origem
?doc=Perseus%3Atext%3A1999.02.0028;query=
da Pintura, era numa das metamorfoses narradas por Ovídio que encontrava a da
card%3D%2399;layout=;loc=10.220
Escultura, que representaria no quarto de dormir da rainha em Versailles (1785).
32. Man Ray citado em L’Art Surréaliste, http:// Pigmaleão, ao ver as Propétides obrigadas a prostituírem-se pelo insaciável apetite
www.centrepompidou.fr/education/ressources/ sexual com que foram castigadas por terem negado a divindade de Vénus, revoltou-
ENS-surrealisme/ENS-surrealisme.htm#image03
se contra os muitos defeitos impostos pela natureza às mulheres e decidiu viver uma
33. “As fotografias parecem provas. Qualquer vida celibatária. Acabará por esculpir a estátua de uma jovem belíssima, em marfim,
coisa de que se ouve falar mas de que se duvida, pela qual se apaixona e que, por graça de Vénus, irá ganhar vida31. Galateia, como
parece ficar provado graças a uma fotografia” (S.
lhe chamarão autores posteriores, é a criação de Pigmaleão, filha do seu talento de
Sontag, op. cit., p. 15).
escultor e da qualidade do material esculpido, criada, pela vontade do seu criador,
34. Louise Norton, “Buddha of the Bathroom”, para corrigir (e substituir) a natureza. Onde a filha de Butades agarra uma presença,
The Blind Man, nº2, Nova Iorque, Maio de 1917,
Pigmaleão cria, a partir do nada, o até aí ausente. A tradição cristã deu continuidade
pp. 5-6. “Online” em http://sdrc.lib.uiowa.edu/
à tensão entre “captura” e “interpretação” em dois modelos de retrato sagrado: se
dada/blindman/2/index.htm
Cristo nos deixa a imagem do seu rosto (e do seu corpo, no Santo Sudário – e o seu
próprio corpo, na hóstia, segundo o dogma católico) por impressão directa no pano
que lhe estende Verónica, a Virgem, sua Mãe, lega-nos a imagem do seu busto por
intermédio pictórico de S. Lucas. O ícone sagrado torna-se retrato: só possível na
religião centrada não na palavra de profetas, mediadores da verdade divina, mas num
Deus incarnado – feito Homem, feito carne. Todas as imagens de Cristo descendem
dessa imagem impressa directamente na tela, imagem que só podia ser verdadeira:
“verum Eikôn”. A fotografia é a verónica da natureza, impressa, pela luz, no suporte
– “physaute”. À objecção de Kiki, respondia Man Ray: “Pas moi… je photographiais
comme je peignais, transformant le sujet comme le ferait un peintre. Comme lui,
j’idéalisais ou déformais mon sujet”32. O que ganha, a fotografia, em autenticidade33
arrisca-se ela a perder em “Arte”. Para mais, a fotografia separa a imagem do seu
suporte, torna-a reprodutível, logo múltipla, logo inserida numa série, logo próxima
do objecto industrial, objecto sem valor em si, universalmente intercambiável, des-
cartável. A imagem fotográfica ganha uma dimensão de ausência, ao não pertencer
a nenhum lugar-objecto – cabendo, virtualmente, em todos e ao mesmo tempo.
Em 1980, Sherrie Levine fotografou seis fotografias de nus do consagrado Edward
Weston – retratos do seu filho Neil. Apropriou-se de algo que já estava feito: ready-
made. A cultura novecentista desmontou e desvalorizou a autoria e deixou de re-
conhecer o artístico como uma qualidade inerente: se a Fountain (1917), de Marcel
Duchamp, puder ser uma obra de arte não é, certamente, por poder ser “bela”, um
“Buda” da casa de banho34, não é, certamente, por ter sido fotografada por Alfred
Stieglitz sobre um pedestal ou, sequer, por ter sido proposta por um “artista” – é,
apenas, por poder ser apresentada como “arte”: porque se lhe pode colar esse rótulo.
O artístico passa a ser um rótulo, capaz de, virtualmente, servir a todos os objectos e
de servir a todos ao mesmo tempo. Uma proposta – recusável. Através do readymade,
tudo pode ser, virtualmente, arte: assim como tudo é, virtualmente, uma fotografia
por fazer – por “tirar”. As fotografias de Levine são apropriações perversas: tomam
imagens de imagens já famosas, já “artísticas”, e tomam-nas enquanto objectos (já

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 215
o f oto g r á f i c o c o m o r e t r ato e “ r e a d y m a d e ”

que ela fotografa fotografias, não imprime negativos), mas objectos que só lhe in- 35. Susan Sontag, op. cit., pp. 31-32.
teressam enquanto imagem – e se levantam dúvidas quanto ao estatuto “artístico” 36. Katarzyna Ruchel-Stockmans, “Impossible
é, precisamente, porque já o tinham. Levine apropriou-se de apropriações: porque Self-representation”, Image [&] Narrative, July
a captura faz parte do imaginário fotográfico – a fotografia já é uma apropriação. 2006, http://www.imageandnarrative.be/pain-
Como o readymade, que muda de função, de contexto e de estatuto mantendo ting/kasia_ruchel.htm
traços do estado anterior, a imagem fotográfica é, sempre, reconhecível enquanto
tal – mesmo transformada em pintura. A fotografia pulsa, óbvia, sob as Marylin, as
Jackie ou as Mona Lisa de Warhol. Os retratos de Chuck Close, apesar do suporte
em tela, da imagem a acrílico ou óleo e das grandes dimensões, “monumentais”,
não escondem a origem fotográfica. Não conseguiriam escondê-la: parecem, até,
retratos de “Photomaton” – retratos automáticos, mecânicos, sem nenhum desejo
de “Arte”. O paradigma do retrato contemporâneo é a fotografia.
E é a fotografia o garante da autenticidade do retrato. O retrato do B.I é esse re-
trato sem mediação subjectiva e formalmente neutro: objectivo, igual aos outros,
comparável. Se Julia Margaret Cameron legitimava as suas imagens fotográficas pela
pintura, Chuck Close confronta as suas pinturas com a imagem fotográfica. Pensar o
retrato contemporâneo é pensar a fotografia – ou a partir dela, ou passando por ela.
Se é a pintura que traz de volta Rebecca ou Carlotta, é porque Hitchcock desconfia
de uma fotografia demasiado próxima do jornalismo, da publicidade, da propagan-
da – das aparências e da mentira. Em Lifeboat (1944), o seu “cameo” é fotográfico:
Hitchcock surge em duas fotografias de um jornal – antes e depois, gordo e magro.
A sua identidade “pop” desmente a afirmação “pop”. O “verum Eikôn” de Harry
só podia ser feito por um pintor – neste caso, abstracto (The Trouble With Harry,
1956). “O extremo ensinamento da imagem fotográfica é poder dizer: ‘Aqui está a
superfície. Agora pensem, ou antes, sintam, intuam o que está por detrás, como
deve ser a realidade se esta é a sua aparência’. As fotografias, que por si só nada
podem explicar, são inesgotáveis convites à dedução, especulação e fantasia.”35. A
fotografia não necessitou do “digital” para oscilar entre a verdade e a mentira – as-
sim como a imagem não precisou da fotografia para entre esses termos escorregar.
Colagens, fotomontagens, múltiplas exposições – antes, muito antes dos “píxeis”.
Lucas Samaras lutava com ele mesmo numa Polaroid de 1976. No livro de 1972 10
Portraits Photographiques de Christian Boltanski 1946-1964, Boltansky identifica-
se erroneamente: aquelas crianças não são (não foram) ele, não tinha aquela idade
na única imagem que o retrata. Como mentem estas fotografias? Através da pala-
vra – das legendas36. Joan Fontcuberta encena-se em personagens múltiplas, em
tom documental. Yasumasa Morimura torna-se Mona Lisa, Cindy Sherman ou Sylvia
Kristel: imagens de mulheres “brancas” no seu rosto de homem japonês, pela pose,
maquilhagem, roupas – e pela manipulação digital, óbvia em imagens como as da
Mona Lisa nua e grávida (1998), uma delas segundo modelo anatómico, em corte
que exibe um desenvolvido feto. Em Morimura, toda a imagem apropria – e é apro-
priada por imagens que se lhe impõem e a invadem: como Norman, habitando as
roupas da Mãe e por ela habitado. O “digital” reintroduz a mediação de um sujeito,
mas numa técnica acessível a todos, sem virtuosismo – o que garantia o estatuto

216 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
o f oto g r á f i c o c o m o r e t r ato e “ r e a d y m a d e ”

“artístico” era a ligação a um referente: tratava-se de uma relação não só fiel (e ver-
dadeira) mas hierárquica, numa hierarquia em ascensão do quotidiano contingente
para a imagem-símbolo, até ao mistério escondido. O digital manipula, reintroduz
a mediação e o sujeito, mas não restaura essa hierarquia. Não recupera o “artístico”
e perde a autenticidade. Paradoxalmente, o digital é, no presente, prefigurando-
se como futuro, o principal meio de captar, preservar, identificar, catalogar e fazer
circular as imagens – como “informação”.
A fotografia prolonga, ambiguamente, a tradição do retrato e da pintura humanis-
tas, entre a imagem fiel e o anti-humanismo do readymade. A fotografia não só é
retratística no mais profundo do seu imaginário, como é o paradigma do retrato no
século XX. É um retrato para as massas: reprodutível, acessível a todos (enquanto
retratados e retratistas), colectivo (para todos e incapaz de manter fora os contextos
em que se insere), legível por todos e identificado com a própria identificação (o B.I.)
e com o próprio retrato (“tirar o retrato” refere-se ao retrato fotográfico – como se
na fotografia se esgotasse o retrato). •

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 217
r e c e n s õ e s · p e t e r k l e i n - b e ato d e l i é b a n a

218 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
Recensões
Breves pensamentos em torno
dos Mirabilia Aqvarvm
Maria Teresa Caetano

Alexandra Barradas:
Ourém e Porto de Mós. A Obra mecenática
de D. Afonso, 4º Conde de Ourém.
Joana Ramôa
r e c e n s õ e s · b r e v e s p e n sa m e n to s e m to r n o d o s m i r a b i l i a aq va rv m

breves pensamentos
em torno dos
mirabilia aqvarvm 1

De todos os cantos do mundo


Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua,
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.
Cheiro a terra as árvores e o vento
Que a Primavera enche de perfumes
Mas neles só quero e só procuro
A selvagem exalação das ondas
Subindo para os astros como um grito puro 2.

A Arte, independentemente da época em que foi criada é – e será sempre – con-


temporânea, desde que, mesmo desprovida da razão primeva que conduziu ao acto
gerador, o objecto artístico desperte sentimento ou emoção no observador. Por isso,
a História da Arte, enquanto disciplina fruto da razão e da análise concreta (ain-
da que, por vezes, tal objectividade permaneça encoberta pelo diáfano manto do capa do livro mirabilia aqvarvm –
tempo), está permanentemente em (re)construção. Nesta perspectiva, a substância – motivos aquáticos em mosaicos
da antiguidade no território português .
imbuída do fundamento poderá – ou melhor, deverá – ser entendida e registada sob
múltiplos pontos de vista.
Métodos que não só contribuirão para a preservação do objecto sensorial, mas,
sobretudo, porque os distintos raciocínios possíveis de efectuar, como as devidas 1. Mourão, Cátia (2008) – MIRABILIA AQVAR-
correlações com outras áreas do saber, dinamizam a História da Arte e potenciam VM. Motivos aquáticos em mosaicos da Anti-
guidade no território Português. Lisboa: EPAL –
o seu crescimento como ciência operativa. Por conseguinte, ao historiador da arte
Empresa Portuguesa das Águas Livres, S.A.
compete ler a obra artística, interpretá-la e devolver-lhe (na medida do possível) o
sentido original, não só do ponto de vista estético e funcional, mas também do seu 2. Andresen, Sophia de Melo Breyner (1991) –
enquadramento histórico, tal-qualmente afirma a autora de Mirabilia Aquarum, pois «Mar» in Obra Poética, vol. I. Lisboa: Editorial
Caminho, 18.
encontra, também nos opera musiua, em:
«conjunto com a língua latina e outras expressões artísticas (…) um dos principais 3. Mourão 2008, 23.
veículos de propaganda do Império Romano, funcionando como espelho do requinte
da sua civilização»3.
Talvez por isso, decerto entre outras razões, a História da Arte tem vindo a enveredar
na procura de novos caminhos, de forma cada vez menos casuística e mais segura de si
própria. Por isso, enveredou também, para além do recurso às novas tecnologias, pela
releitura das fontes secundárias, procurando, assim, encontrar uma reaproximação à
obra de arte. Terá sido neste contexto que Cátia Mourão, ao ter tido a percepção de

220 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
r e c e n s õ e s · b r e v e s p e n sa m e n to s e m to r n o d o s m i r a b i l i a aq va rv m

4. Mourão 2008, 8-9. Vide ainda as notas 1, 2 e 3. quão importantes são as novas didácticas, as adianta como basilares no entendimento
5. Maciel, Justino (1996) – Antiguidade Tardia e do objecto artístico, como, aliás bem expressa no prefácio da obra em apreço:
Paleocristianismo em Portugal. Lisboa: Edições «A sensibilidade e consciência de historiadores de arte como Adriano de Gusmão, Luís
Colibri, 82. Moura Sobral e, especialmente Vítor Serrão, contemplaram pontualmente, no caso
6. Vide, por exemplo, Blázquez, José Maria dos dois primeiros, ou deram particular atenção, no caso do último, à problemática
(2002) – «Cultos e devoções de cariz aquático em causa, lançando novas pistas para a construção de uma Cripto-História da Arte
no Ocidente em contextos paleohispânicos», in que se pode revelar de grande utilidade numa tentativa de preenchimento de lacu-
Religiões da Lusitânia: Loquuntur Saxa (catá- nas provocadas pela ausência de peças, das quais dificilmente poderemos vir a saber
logo). Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia, qual a importância que teriam assumido na altura da sua produção ou da chave que
21-24; Fernandes, Luís da Silva (2002) – «As
poderiam fornecer para o entendimento cultural da época. Porém, casos como o do
Virtutes. Seu culto e representação no âmbito da
fragmento de mosaico de Quintos alertam-nos para a necessária prudência ao lidar
Província da Lusitânia», in Religiões da Lusitâ-
nia: Loquuntur Saxa (catálogo). Lisboa: Museu com fontes de carácter secundário (registos como o desenho deixado por Leite de
Nacional de Arqueologia, 165-174. Vasconcelos), que por vezes transmitem informações imprecisas ou mesmo incorrectas
sobre as obras a que se referem»4.
7. Vide os exemplos de Maciel, M. Justino
(1993-94) – «A propósito das chamadas “Con- Ao contemplar-se nesta perspectiva global, à qual se deverá aduzir o facto de a autora
servas de Água da Rua da Prata”», in Conimbri- de Mirabilia Aquarum não ter olvidado no seu catálogo a obra de arte fragmentária
ga, vol. XXXII-XXXIII. Coimbra: Universidade de (desde que a sua inclusão traga uma mais-valia que o justifique), designadamente
Coimbra, 145-156; Idem (1994), «Lisboa roma- na perspectiva da Micro-História da Arte – de molde a atingir-se o nível de síntese
na», in Olisipo (Número especial Comunicações desejado –, contribui para o aprofundamento do universo estético que caracterizou
ao Simpósio Lisboa em Discussão), II série, n.º
a ars antiga e que evolucionou e se renovou ao sabor das circunstâncias conjunturais
1. Lisboa: Boletim do Grupo “Amigos de Lisboa”,
e/ou estruturais.
33-42; Ribeiro, José, (1982-83) – «Estudos his-
tórico-epigráficos em torno da figura de L. Iulius Nesta perspectiva, Cátia Mourão, discorre acerca da importância da água no quo-
Maelo Caudicus» in Sintria, I-II (1). Sintra: Gabi- tidiano do Mundo Antigo, desde a gorgolejante fonte que sacia a sede, passando
nete de Estudos de Arqueologia, Arte e Etnogra- pelas águas que alimentam os balnea e sustentam a poderosa indústria do garum,
fia, 151-476; Étienne, Robert (1974) – Le Culte até às nascentes de águas lustrais, pois, como Justino Maciel bem referiu, «os mira-
Imperial dans la Péninsule Ibérique d’Auguste a bilia aquarum eram um tema caro aos romanos, sobretudo no contexto da cidade e,
Dioclétien. Paris: Editions E. de Boccard; Idem
nessa medida, seria impensável imaginar-se, sequer, a planificação de uma cidade,
(2002) – «Novidades sobre o Culto Imperial na
Lusitânia», in Religiões da Lusitânia: Loquuntur
onde a água não jorrasse abundantemente»5.
Saxa (catálogo). Lisboa: Museu Nacional de Ar- Foi pena que, no capítulo dedicado à água como pilar civilizacional do Império Ro-
queologia, 97-104. mano, a autora tivesse optado por se espraiar somente por concepções de génese
filosófica, sem intentar uma aproximação factológica às especificidades históricas
8. Mourão 2008, 21.
do território que se propôs estudar. E que, por isso, tivesse olvidado, não só as de-
voções aquáticas paleohispânicas no ocidente peninsular6, mas também a relação
primordial que terá existido entre a água e o culto imperial7, valorizando através da
análise desses fenómenos o seu estudo. Todavia, parece ter plena consciência destes
limites, decerto auto-impostos, porquanto, no final deste capítulo, deixa claramente,
em aberto, a possibilidade de se explorarem outros trilhos:
«O imaginário romano sobre a água, comprometido entre a mitologia e a pré-ciência,
corporalizou-se, foi divulgado e galvanizado por todo o Império através da poesia, da
literatura épica, da numismática, da cerâmica gravada ou pintada, da arquitectura,
da escultura, da pintura e do mosaico»8.
Adepta de uma História da Arte “musculada”, Cátia Mourão embrenhou-se profunda
e meticulosamente na análise dos vinte e um mosaicos de temática marítima e/ou

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 221
r e c e n s õ e s · b r e v e s p e n sa m e n to s e m to r n o d o s m i r a b i l i a aq va rv m

fluvial que constituem o catálogo «Motivos aquáticos em mosaicos da Antiguidade 9. Infelizmente, neste trabalho, ressalta a au-
no território português». Elenco que a autora divide em Mosaicos Romanos do Alto sência do laborioso trabalho aristotélico, na
sua monumental obra: a História dos Animais
Império e Mosaicos Romanos do Baixo-Império, abrangendo, por isso, parte das
[(2006) tradução de Maria de Fátima Sousa e
antigas províncias romanas da Lusitania e da Gallecia.
Silva, 2 vols. Edição CFUL/IN-CM: Lisboa], em
Apresenta, não só pormenorizado estudo acerca dos pavimentos e/ou revestimentos cuja «Introdução», nota 3, se refere a razão pelo
parietais, estes sobretudo em tanques ou piscinas, contemplando vários itens, os qual este tratado de zoologia ficou conhecido:
quais, para além da descrição minuciosa sob o ponto de vista da iconografia (atenden- «Importa, a este propósito, salientar que o títu-
do, com minúcia, ao desenho subjacente e à paleta cromática), procuram ser exaus- lo original – Ton peri ta zoa historion – melhor
tivas na interpretatio dos motivos figurados, mesmo daqueles que se apresentam equivaleria a uma tradução de Investigação so-
bre os Animais do que àquele que o consagrou
incompletos ou de morfologia duvidosa. Para além do já referido detalhe descritivo,
de História dos Animais, que disfarça a referên-
a autora completa o seu catálogo com uma vasta série de outras cláusulas que com-
cia fundamental a um processo de pesquisa que
plementam de modo eficaz o presente estudo. Estas afiguram-se, aliás, fundamentais lhe está subjacente» (Carlos Almaça). Obra que
para quem se interessa por estas “coisas da Antiguidade”, como sejam, a Datação, – acreditamos – apesar do seu cariz pré-cientí-
Localização, Dimensões, Materiais, Cromatismo, Esquema compositivo, Descrição e fico, decerto poderia esclarecer alguns aspectos
Análise do conjunto, Referentes, Estado de conservação e Bibliografia. menos claros que, por vezes, pontuam no pre-
Como a própria autora refere algures, este não é, de modo algum, um trabalho aca- sente corpus.

bado, mas, tão-somente o início de uma ordenação metódica de tal matéria. Aqui 10. Em relação a este papiro – recentemente
aportados, relembramos, uma vez mais, que o edifício teórico da História da Arte dado à estampa – parece-nos oportuna que se
está em permanente renovação – e, por isso, decerto, enfermará de algumas lacunas efectue uma leitura do mesmo, na qual perpasse
uma atenta observação dos animais marinhos ali
por se tratar de um trabalho pioneiro. Estas falhas apenas poderão ser colmatadas
desenhados [Almoguera Sánchez, José Manuel
com a continuação do estudo e aprofundamento desta matéria. Mas, por outro lado,
(2008) – «Documentación Catastral en Roma», in
ser-lhe-á inegável o carácter pioneiro e, nesse sentido, por mais que se renovem as Arte Arqueología e Historia. Cordoba: Asociación
leituras e se acrescentem outros elementos, há, porém, uma certeza: o carácter pri- “Arte, Arqueologia e Historia”,”n.º 15, 207-220)],
mevo deste corpus, pelo qual será sempre uma referência incontornável, no âmbito mais não seja, como um complemento visual ao
da História da Arte da Antiguidade e da Antiguidade Tardia. corpus que analisámos, ainda que sumariamente.
Por tudo isso, Mirabilia Aquarum é, sem dúvida, um livro fascinante, pois revela-nos
muito acerca do conhecimento que na Antiguidade existia acerca da morfologia dos
habitantes e dos pseudo-habitantes das águas – e aqui chegados não podemos omi-
tir, decerto entre outros estudos, a História dos Animais, de Aristóteles9, ou o De Re
Coquinaria, de Apício ou, ainda, os desenhos de animais marinhos que se conservam
no papiro de Artemidoro10 –, seja em rios, seja no mare nostrum ou, para além das
colunas de Hércules, num oceano imenso que corria ao longo da fachada ocidental
do Império, a finisterra do Mundo Antigo.
Para finalizar, não podemos olvidar dois aspectos: primeiro, a apresentação gráfica
irrepreensível do livro, contemporânea e arejada, texto profusa e qualitativamente
ilustrado; segundo, o exemplo do mecenato da EPAL – Empresa Portuguesa das
Águas Livres, S.A., pelo interesse e empenho que demonstrou na publicação de uma
obra de inequívoco cariz científico, demonstrando, assim, uma notável apetência
para a divulgação cultural. •
Maria Teresa Caetano
Doutoranda em História da Arte da Antiguidade

222 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
recensões · alexandra barradas - ourém e porto de mós

alexandra
barradas:
Ourém e Porto de Mós
A obra mecenática de D. Afonso, 4º conde
de Ourém – Lisboa: Edições Colibri, 2006

“A acção mecenática do 4º Conde de Ourém e Marquês de Valença é no século XV


a excepção à regra – enquanto a nobreza portuguesa continuava a construir as suas
torres ou modestos paços sobradados, D. Afonso nos seus domínios ergueu dois edifí-
cios de feição e sentido gótico erudito que se afirmavam na paisagem e se impunham
no local, repletos de novos elementos, curiosas novidades que o seu cosmopolitismo
e cultura permitiu apreciar e a sua fortuna adquirir. A grandiosidade e simbolismo
que assumiram poderão ser entendidos à luz da caracterização que António José
Saraiva faz do Condestável e que pensamos não andará muito longe da persona-
lidade do neto, D. Afonso: ‘Nunca lhe passou pela cabeça ser rei, mas não queria
ser dependente nem do rei. (…) Graças a circunstâncias excepcionais, Nun’Álvares
conquistou uma posição que qualquer homem dotado de espírito senhorial invejaria:
não era rei, mas o rei devia-lhe a coroa; não herdara grandes bens, mas o que tinha
por doação eram-lhe devidos, porque ele era o principal conquistador da terra do
Reino. Só Deus mandava nele, só perante Deus respondia’”1. É com estas palavras,
seguidas de poucas mais, que Alexandra Barradas encerra as reflexões que dedica a
uma figura marcante do panorama político e artístico (conforme procura justificar a
cada passo, em cada capítulo) do Portugal de Quatrocentos, e que expõe na recente
capa do livro “ourém e porto de mós – obra Ourém e Porto de Mós. A obra mecenática de D. Afonso, 4º Conde de Ourém,
– a obra mecenática de d. afonso, resultante da Dissertação de Mestrado, discutida em 2005 na Faculdade de Ciências
4º conde de ourém”.
Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e orientada pelo Professor Doutor
José Custódio Vieira da Silva – trabalho cuja seriedade e aprofundamento dá cumpri-
mento de forma notável a um interesse pela arte e, em particular, pela arquitectura,
1. Alexandra Barradas, Ourém e Porto de Mós. A sempre presente e crescente no percurso da arquitecta e professora.
obra mecenática de D. Afonso, 4º Conde de Ou- Publicado em Dezembro de 2006, pelas Edições Colibri, este é o segundo volume da
rém – Lisboa: Edições Colibri, 2006, p. 313.
colecção ESTUDOS, promovida pelo Instituto de História da Arte da referida facul-
dade, a quem se deve a publicação desta mesma revista.
D. Afonso (1403?-1460) foi o filho varão do também D. Afonso, Conde de Barcelos
e 1º Duque de Bragança (1370?-1460), e de D. Brites Pereira (1378?-1408/9 ou
1414?). Tratando-se o Duque do filho mais velho do rei D. João I, ainda que ilegítimo
porque nascido anteriormente ao casamento do monarca com D. Filipa de Lencastre,

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 223
recensões · alexandra barradas - ourém e porto de mós

de uma relação do ainda jovem D. João com Inês Pires (filha, por usa vez, de Pêro 2. Idem, p. 308.
Esteves da Fonte Boa e de Maria Anes), D. Afonso era, pelo lado paterno, neto do 3. As missões diplomáticas levaram D. Afonso,
próprio fundador da dinastia de Avis e, pelo materno, de D. Nuno Álvares Pereira, entre outros lugares, à Flandres e a vários es-
cuja importância e singular posição social no Portugal do início do século XV foram tados da península itálica, que no século XV se
brilhantemente resumidas nas palavras de António José Saraiva com que, parafra- afirmavam como as regiões mais importantes do
seando a autora, abrimos o discurso. As suas competências diplomáticas, aliadas à mundo. Aí terá contactado com alguns dos mo-
delos que, num ou outro aspecto, o inspiraram
ligação particular que a ascendência lhe dava à casa real – pelo sangue paterno e
na orientação da construção dos paços.
pela responsabilidade do avô materno na sua própria fundação –, valeram, assim, a
D. Afonso, para além de bens e uma influência apenas equiparáveis aos membros da
Casa de Avis, os títulos de 4º Conde de Ourém e, posteriormente, de 1º Marquês de
Valença. O cargo de Condestável do Reino, por um lado, e o Ducado de Bragança,
por outro, nunca os logrou assumir: o primeiro por decisão do infante D. Pedro que,
ao tempo da sua regência, o fez pertença do seu filho mais velho; o segundo por
ter falecido posteriormente a D. Afonso, seu pai, que gozou da excepcionalidade de
uma vida de 90 anos. De qualquer modo, cerca dos 20 anos de idade, D. Afonso vê,
por iniciativa do avô materno, D. Nuno Álvares Pereira, que decide repartir os seus
bens pelos netos antes de se retirar para o Convento do Carmo, ser-lhe colocado à
disposição um património considerável (que viria continuamente a engrandecer) e um
prestigiante título, que lhe permitiu fundar casa própria e tornar-se independente.
Este e os demais privilégios fizeram de D. Afonso, 4º Conde de Ourém, uma perso-
nalidade de excepção e, segundo Alexandra Barradas, um verdadeiro infante entre os
infantes (como, em última instância, o parece denunciar a novidade que constituía,
à época, a construção de uma cripta destinada a receber o seu túmulo, como a que
mandou edificar na colegiada de Ourém): apesar de hierárquica e oficialmente não
o ser, D. Afonso era afinal o neto mais velho do rei e descendente directo daquele a
quem o monarca devia a governação, para além de avultar como “referência erudita,
sendo-o em cultura, cosmopolitismo e acção mecenática, num patamar que julgamos
só equiparável ao do Infante D. Pedro, com quem curiosamente D. Afonso, a partir
de determinada altura, se incompatibilizou”2.
É fundamentalmente esta ideia que Alexandra Barradas parece perseguir, com empe-
nho, na análise exaustiva que faz da ascendência e da acção política e diplomática de
D. Afonso (que servem de base à compreensão da sua actividade mecenática), com
vista à justa consideração desta personagem, longe das exageradas depreciações de
que foi alvo tendencial, mas próxima de uma fascinação vibrante a que o seguimento
próximo, que a autora levou a cabo, das viagens do Conde (acompanhada de uma
procura exaustiva de modelos para as obras do seu mecenato) e o envolvimento
tornado assim pessoal nas deambulações e iniciativas de D. Afonso não terão sido
alheios. Da leitura da presente obra ressalta, assim, a visão de um quase príncipe que
nunca o quis ser (como dizia António José Saraiva relativamente ao Condestável)
nem se limitou à preponderância que lhe davam naturalmente o sangue, os bens e os
títulos de que cedo se tornou possuidor, mas que, em parte por circunstâncias que
lhe são alheias3, em parte por iniciativa própria, acresceu a essa superioridade uma
erudição acima do comum, valendo-lhe as viagens uma cultura visual inusitada que

224 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
recensões · alexandra barradas - ourém e porto de mós

4. Alexandra Barradas segue na linha de Rafael se plasma nas novidades (ainda que sempre intimidadas pelo poder da tradição) que
Moreira que considera D. Afonso, 4º Conde de apresentam as duas obras maiores de que foi encomendante, e que constituem o prin-
Ourém e 1º Marquês de Valença, como o intro-
cipal objecto artístico de análise da autora – os paços de Ourém e de Porto de Mós4.
dutor das primeiras formas “à romana” em Por-
O primeiro no interior, o segundo pelo exterior, denunciam, contudo, um apego no-
tugal, nomeadamente por via da contratação de
um artífice italiano (scalpellino ou marmoraro) tório ao tardo-gótico, que se harmoniza com as referidas propostas modernizantes,
que as terá aplicado no paço de Ourém. trazidas nomeadamente da península itálica e da Catalunha, para construir a imagem
pura de uma época animada pelos desconcertos próprios da transição. De resto,
tratando-se do iniciador de uma casa senhorial, num momento de reafirmações e
redefinições entre a nobreza, e, de certo modo, de um dos principais herdeiros da
Batalha de Aljubarrota (com todas as necessidades de refundação daí decorrentes),
D. Afonso jamais poderia ter negligenciado os antigos sinais de poder e a imagem
tradicional que dava ainda ao Portugal do século XV a certeza do estatuto do se-
nhor – os principais caracteres, quanto a nós, por que lutou verdadeiramente para
se consolidar como possuidor.
A sensibilidade própria de quem projecta traduz-se, nesta investigação, numa pre-
ocupação evidente com a envolvente das obras em estudo (o que leva a autora a
analisar com minúcia a história dos lugares e as suas características geológicas e
naturais), que, aliada a um investimento notável na figura agora menos enigmática
do 4º Conde de Ourém e 1º Marquês de Valença, dotam a presente obra de uma
completude irrepreensível e a colocam num meio caminho satisfatório entre o campo
da História e o da História da Arte. Esta publicação impõe-se, assim, como exemplo
de como partindo da obra deixada é possível aproximar do investigador uma indi-
vidualidade pouco documentada e de como, pelo estímulo da arte, se enriquece o
discurso histórico.•
Joana Ramôa
Bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (F.C.T.)

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 225
va r i a · p e t e r k l e i n - b e ato d e l i é b a n a

226 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
Varia
A Cor na Iluminura Portuguesa
uma abordagem interdisciplinar
Adelaide Miranda, Ana Lemos, Ana Claro, Catarina Miguel e Maria João Melo

O Tecto da Igreja do Menino-Deus:


um “processo operativo” na construção
do espaço perspéctico
Magno Mello

Jóias, retratos e a iconografia


das elites portuguesas de oitocentos
Gonçalo de Vasconcelos e Sousa

Modernidade e Academismo
França, Espanha e Portugal: diálogos cruzados
Luísa Verdelho da Costa

...................................................................................

Mosaico da “Casa da Medusa” Alter do Chão


Jorge António e Maria Teresa Caetano
va r i a · a co r n a i lu m i n u r a p o rt u g u e sa

a cor na iluminura 1. Cólofon do Livro das Aves “Ad honorem dei

portuguesa
et sancti Mametis in monasterio laurbanense est
scribtus [sic] liberiste IN Dlebus Iohanis abbatis
FINITO LIBRO DONA DENT~ LARGIORA m a g i

uma abordagem s tro (data entre as letras de m,a,g,i,s, de magis-


tro)” (ANNE DE EGRY, O Apocalipse do Lorvão

interdisciplinar e a sua relação com as ilustrações medievais do


Apocalipse. Lisboa, F.C.G., 1972, p.32) ; cólofon
do Comentário ao Apocalipse do Lorvão “Iam li-
ber est scriptus / qui scripsit sit benedictus / qua
… … / ERA MCCXIIa [1189] / Ego egeas qui
Homenagem ao investigador e amigo
hunc librum scribsi si in aliquibus / a recto tramite
Fernando Galván Freire (Universidade de León)
exivi, delinquenti indulgeat / karitas que omnia
superant.” (HORÁCIO AUGUSTO PEIXEIRO, Um
olhar sobre a iluminura do Apocalipse de Lorvão.
Tomar, Instituto Politécnico de Tomar, Escola Su-
perior de Tecnologia, Departamento de Tecnolo-
gia e Artes Gráficas, 1998. Dissertação de provas

Preâmbulo públicas para professor coordenador, p.71).

2. Tendo como coordenadora Maria Adelaide


A cor na iluminura medieval portuguesa: uma abordagem interdisciplinar, foi o nome Miranda (FCSH-UNL) e como bolseira investi-
gadora da Fundação para a Ciência e Tecnologia,
dado ao projecto que começou pelo estudo de dois manuscritos datados, do fundo
Ana Lemos.
do Mosteiro de São Mamede do Lorvão, os designados, Livro das Aves e o Apocalipse
do Lorvão: apesar da diversidade do fundo a identificação destes dois manuscritos 3. Tendo como coordenadora do projecto Maria
João Melo (FCT-UNL), membros da equipa na
com cólofons1, em que surge referência à datação e ao local de produção, torna-os
FCT-UNL: Ana Claro e Fernando Pina; e como
especialmente importantes. Foi em torno deles que se juntaram duas equipas de
bolseira investigadora da Fundação para a Ciên-
investigação, a de História de Arte2 e a de Conservação e Restauro3. Para os histo- cia e Tecnologia, Catarina Miguel.
riadores de arte, apesar destes manuscritos terem sido objecto de vários estudos,
4. Uma tinta é constituída essencialmente por
permaneciam dúvidas quanto à sua genealogia, à existência de um scriptorium com
uma cola e um colorante. A cola, o ligante, serve
capacidade para os produzir, à constituição e qualidade da paleta de cores e às op- para fixar a cor e habitualmente quer-se trans-
ções estéticas dos iluminadores. À partida estávamos conscientes da originalidade parente quando seca; o colorante pode ser um
que estes manuscritos apresentavam no contexto da iluminura do românico. Con- mineral, um composto inorgânico sintético ou
tudo, era necessário um estudo rigoroso que só uma caracterização material podia um corante natural. Outros compostos, os aditi-
dar resposta; um estudo dos materiais pictóricos e técnicas que permitisse obter o vos, podem ser adicionados para melhorar a cor,
certas características como a adesão, a fluidez
máximo de informação, no estado actual dos conhecimentos, nomeadamente quanto
na aplicação e a resistências mecânica, ou ainda
à composição das tintas4 e construção da cor5. Assim nasceu o grupo interdisciplinar
a estabilidade e tempo de vida.
que partindo destes dois manuscritos estendeu a sua pesquisa aos restantes do fundo
do Lorvão, conservados na DGARQ / Torre do Tombo, pertencentes ou atribuídos ao 5. A abordagem das teorias da cor é obviamen-
te complexa, tentar quantificar e racionalizar
século XII – 1º quartel do século XIII.
algo que produz emoções e interpela os nossos
Com base no período cronológico estabelecido foram seleccionados nove manuscri- sentidos de forma tão directa será sempre um
tos6, representativos de uma grande riqueza artística e de uma diversificada paleta desvendar de enigmas. [J. Seixas de Melo,
de cores, a partir dos quais foram elaborados estudos codicológicos bem como uma M.J. Melo, Ana Claro, “As moléculas da cor
análise dos dados estilísticos e iconográficos. Esta análise será ulteriormente apro- na Arte e na Natureza” in Boletim da socieda-
fundada no âmbito do projecto “A cor da iluminura medieval portuguesa no contexto de Portuguesa de Química, nº100, 2006, pp.
33-44] No entanto, poderemos escrever que a
Europeu: partilha e singularidade”.

228 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
va r i a · a co r n a i lu m i n u r a p o rt u g u e sa

cor resulta da interacção da luz com a matéria; O Mosteiro do Lorvão e o seu scriptorium
consequência desta interacção, são fotões que
incidem nos nossos olhos e activam um sinal,
A forma como se procedeu, no início do século XIII, ao afastamento dos monges do
posteriormente processado pelo sistema ner-
Lorvão conduzido pelo próprio bispo de Coimbra, D. Pedro Soares, cujo desfecho
voso e traduzido numa cor. Quando uma tinta
é aplicada numa superfície a cor final depende levará à expulsão destes e à entrada, em 12067, das primeiras monjas cistercienses,
de um número considerável de variáveis; ainda transformando-se num mosteiro feminino, pertencente à ordem cisterciense8, coloca-
que o colorante (pigmento ou corante) seja o nos várias interrogações, nomeadamente quanto à possibilidade dos monges terem
componente principal, o ligante e os aditivos levado consigo alguns dos manuscritos existentes e também quanto aos motivos
como as cargas, desempenham um papel impor- inerentes ao facto de terem deixado no mosteiro alguns dos livros essenciais à lei-
tante. Igualmente relevante é a forma como a
tura, entre os quais o De avibus de Hugo de Folieto9 e o Comentário ao Apocalipse
cor é construída, se por mistura se por aplica-
de Beato de Liebana10.
ção de camadas. Por exemplo, um verde pode
ser obtido por um só pigmento, pela mistura de A fundação do Mosteiro11 remonta, muito provavelmente, ao século IX, altura em que
um pigmento azul com um amarelo ou ainda por se dá a reconquista de Coimbra (878) e a partir do século XI, até aos inícios do séulo
aplicação de uma tinta amarela e transparente XIII, os monges aí existentes terão seguido a litúrgia hispânica, resistindo à introdu-
sobre um azul opaco. Os verdes mais “puros”, ção da regra beneditina. Apesar de alguns autores apresentarem documentação que
com mais croma e luminosidade, são os obtidos prova a sua ligação à regra beneditina, Aires A. do Nascimento12 põe em causa esta
a partir de pigmento puro ou por camadas. A
tese, segundo um trabalho de investigação em curso. Durante o século XII, o mosteiro
mistura “rouba” sempre cor.
receberá várias doações que acentuam a sua importância no contexto da estratégia
6. Sendo cinco atribuídos ou pertencentes ao política da reconquista que passava pela criação de mosteiros para colonização, sob
século XII e quatro atribuídos ao século XIII.
domínio cristão, do território recém-conquistado aos muçulmanos, assumindo uma
7. “A primeira referência à presença das monjas função de manutenção da paz e de articulação da ordem social. Em 1106, o próprio
data de 1206; no entanto, só em 1211, após in- D. Henrique e D. Teresa fazem uma importante doação ao Lorvão. Uma notícia de
terferência do próprio Inocêncio III, terminou o
1138 dá-nos conta de um pagamento anual a efectuar por um denominado Nuno
litígio que opunha D. Teresa e o mosteiro e, de
Mendes, consistindo numa “pele de cordeiro”, material essencial ao funcionamento
direito, a rainha e quarenta religiosas se insta-
laram no Lorvão segundo o estatuto da ordem de um scriptorium. O primeiro rei de Portugal, D. Afonso Henriques, conceder-lhe-à
de Cister.” Dir. BERNARDO DE VASCONCELOS inúmeras benesses que atestam da sua crescente importância no decorrer do século
E SOUSA, Ordens religiosas em Portugal: das XII. É durante o governo do abade João (1162-1192), considerado um período de
origens a Trento. Guia histórico, Lisboa, Livros “desafogo financeiro” e de actividade “do scriptorium laurbanense” segundo Nelson
Horizonte, 2005, p.117. Correia Borges13, que serão executados 3 dos manuscritos cujo colofão nos dá a sua
8. NELSON CORREIA BORGES, Arte Monástica datação e/ou identidade: as Enarrationes in Psalmos de Santo Agostinho (1183),
em Lorvão. Sombras e realidade. Das origens a De avibus de Hugo de Folieto (1183/1184) e o Comentário ao Apocalipse (1189).
1737. F.C.G., 2002. Em 1199, numa data posterior à da execução dos manuscritos supra citados e numa
9. DGARQ – Torre do Tombo, Lorvão 5 (C.F. 90). época em que este é ainda não é cistercienge, temos notícia duma importante doação
por parte da rainha D. Teresa, filha de D. Sancho I e neta de D. Afonso Henriques.
10. DGARQ – Torre do Tombo, Lorvão 43 (C.F.
160).

11. A tese de NELSON CORREIA BORGES (Ob.


cit.) relevou-se essencial para a compreensão
Manuscritos objectos de estudo
deste período da história do mosteiro através dos
documentos analisados por este historiador. Do conjunto de manuscritos seleccionados que abrangem o período entre os séculos
XII e XIII do mosteiro e que se estende ao período cisterciense, chegaram até nós dois
12. Consultor do projecto “A cor na iluminura
Leccionários (um Temporal e um Santoral), um Passionário, um Saltério, as Enarratio-
Portuguesa: uma abordagem interdisciplinar”.
nes in Psalmos de Santo Agostinho (1183), um Gradual, o códice que contém o Livro
13. Ob. cit., p.91.
das Calendas e a Regra de São Bento e os dois manuscritos sobre os quais incidiu a

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 229
va r i a · a co r n a i lu m i n u r a p o rt u g u e sa

investigação no âmbito deste projecto, o Livro das Aves (1183/84) e o Apocalipse


do Lorvão (1189). Deste fundo foi elaborada uma análise na sua relação com a cor14.
Como já foi referido, este estudo encontra-se em curso, no âmbito do projecto “A cor
da iluminura medieval portuguesa no contexto Europeu: partilha e singularidade”, e
permitirá testar, numa abordagem interdisciplinar, a hipótese da existência de uma
evolução dos sistemas da cor para a iluminura medieval portuguesa. A diversidade
cromática que constatamos verifica-se na genealogia dos manuscritos e nas ligações
artísticas que pudemos estabelecer. Neste sentido, podemos confirmar algumas con-
clusões interessantes e de grande relevância para a História da Iluminura em Portugal:
os manuscritos Lorvão 12, 13, 15 e 17, que terão sido produzidos quando o scripto-
rium era já cisterciense, apresentam uma relação muito próxima com os manuscritos
do fundo alcobacense, lançando mesmo, nós, a hipótese de terem sido produzidos
neste mosteiro15; o Passionário Lorvão 16 apresenta semelhanças consideráveis com o
manuscrito Homiliário Santa Cruz 4 (datado de 1139), estando incluído numa tradição
artística que nos leva à iluminura ibérica peninsular e aos manuscritos dos scriptoria
de Moissac e de Limoges (sécs XI-XII) 16. Um aspecto importante neste conjunto é
a tendência clara para privilegiar o desenho face à pintura, esta utilizada sobretudo
nos fundos. A biblioteca do Lorvão apresenta claramente, nesta sua característica,
uma ligação aos manuscritos ibéricos. A partir de 1206, período a que aderiu à ordem
cisterciense, as relações com Alcobaça são bem visíveis.
Como já foi referido, estas hipóteses serão ulteriormente testadas, tendo também em
consideração a caracterização dos materiais e técnicas utilizados na construção da cor.

Apocalipse do Lorvão
Este manuscrito foi já objecto de estudo de numerosos historiadores de arte17 desta-
cando-se os trabalhos de Yarza Luaces, Horácio Augusto Peixeiro e Peter Klein bem
como a contribuição de Aires Augusto de Nascimento e de Maria Adelaide Miranda.
O Apocalipse do Lorvão faz parte de um vasto grupo de manuscritos denominados
Beatus, nome derivado de Beato de Liébana, monge que viveu na transição do século
VIII para o século IX, em Liébana e que redigiu um comentário ao Apocalipse de São
João, num ambiente de crença de Fim do Mundo, acentuado pelo aproximar do fim
do milénio. O Livro do Apocalipse é o último livro da Bíblia, cuja leitura era obrigatória
entre a Páscoa e o Pentecostes. A sua iluminura transmitia ao religioso a mensagem
visual dos acontecimentos que se desenrolam desde a Revelação de Cristo, através
da entrega do Livro a João, até ao momento da reconstrução da Nova Jerusalém.
No século XII, razões de ordem histórica ligadas ao avanço Almóada na Península
Ibérica, a par de um renascer do espírito apocalíptico, dão origem a um novo surto de
comentários historiados ao Apocalipse no qual o nosso manuscrito se insere, sendo a
única cópia desta época que se encontra datada. Pertence ao Ramo I18, que copia a
tradição mais antiga dos Beatos. O mundo monástico reage mais uma vez ao confronto
de religiões e culturas através de uma obra em que imagens fortes e abstractas exor-
cizam as forças demoníacas e prometem a salvação aos eleitos. Está escrito em >>

230 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
va r i a · a co r n a i lu m i n u r a p o rt u g u e sa

14. Século XII: Lorvão 50 (Enarrationes in Psal- o Lorvão 15 e o 17; o laranja surge em cinco 2004. Acerca do tema dos Beatus consultar a obra
mos de Santo Agostinho, 1183) – utilização de dos manuscritos: três pertencentes ao século XII de dois eminentes investigadores, Yarza Luaces
6 cores (amarelo ocre, azul, laranja, rosa salmão, (Lorvão 50, 43 e 16) e dois ao século XIII (Lor- e John Williams, que se têm debruçado sobre
verde e aplicação de folha de ouro); Lorvão 5 vão 13 e 15); o preto e o branco foram aplicados o estudo do conjunto destes manuscritos, com
(Livro das Aves, 1183/1184) – utilização de 9 em apenas três dos manuscritos: dois pertencen- um capítulo dedicado ao Apocalipse do Lorvão
cores (amarelo ocre, azul, branco, castanho, tes ao século XII (preto: Lorvão 5 e 43; branco: (JOAQUÍN YARZA LUACES, Beato de Liébana:
grená, verde, vermelho, preto e aplicação de fo- Lorvão 5 e 50) e um ao século XIII (Lorvão 15); Manuscritos iluminados, M. Moleiro Editor, S.A.,
lha de ouro); Lorvão 43 (Apocalipse do Lorvão, a folha de ouro foi aplicada unicamente nos dois 2005; JOHN WILLIAMS, The Illustrated Beatus :
1189) – utilização de 5 cores (amarelo, casta- manuscritos mais antigos: Lorvão 50 (1183) e a corpus of the illustrations of the commentary
nho, laranja, preto, vermelho); Lorvão 3 (Salté- Lorvão 5 (1183/1184); destacamos o pigmento on the apocalypse. London, Harvey Miller Publi-
rio, atribuído ao séc. XII) – utilização de 5 cores amarelo (ouropigmento) aplicado unicamente shers, 2003. Volume V). No domínio da análise
(azul, castanho, amarelo ocre, verde, vermelho); no Lorvão 43 (Apocalipse). Salientamos, no en- iconográfica não podemos esquecer os trabalhos
Lorvão 16 (Passionário, 1176-1200) – utiliza- tanto, que este resultado, embora confirmando levados a cabo por MARIA ADELAIDE MIRAN-
ção de 7 cores (azul, castanho, laranja, amarelo uma grande heterogeneidade na paleta de cores DA sobre a iluminura românica em Portugal com
ocre, rosa, verde, vermelho); Século XIII: Lorvão do scriptorium do Lorvão, não é por si um dado referências ao Apocalipse do Lorvão (“A ilumi-
12 (Leccionário Santoral, atribuído ao séc. XIII) – conclusivo dado o número reduzido de manus- nura românica em Portugal”, in A iluminura em
utilização de 5 cores (grená, amarelo ocre, rosa, critos representativos, que chegaram até nós. Portugal: identidade e influências. Lisboa, B.N.,
verde, vermelho); Lorvão 13 (Leccionário Tem- 1999). Por último não podemos deixar de referir
15. FERNANDO GALVÁN FREIRE refere acerca
poral, atribuído ao séc. XIII) – utilização de 7 co- a contribuição do Prof. Doutor Aires Augusto do
da origem alcobacense do Antifonário de Las
res (azul, branco, grená, amarelo ocre, rosa, ver- Nascimento, nomeadamente na leitura que este
Huelgas Reales de Burgos a importância deste
de, vermelho); Lorvão 15 (Gradual, 1201-1250) faz da iluminura do fl.153v do Apocalipse do
mosteiro português, na produção de manuscri-
– utilização de 9 cores (azul, castanho, grená, Lorvão, no qual o dragão, símbolo do diabo, in-
tos “de tal menara que las fórmulas del centro y
laranja, amarelo ocre, preto, rosa, verde, verme- vade a esfera do celeste, salientando que “neste
norte de Europa no habrían llegado de manera
lho); Lorvão 17 (Livro das Calendas, atribuído ao mundo ordenado de criaturas, não existe apenas
directa a la corte castellana, sino via Portugal,
séc. XIII) – utilização de 6 cores (azul, castanho, o “alto”, isto é , o valor, o céu, mas também o
donde se estaba desarrollando uma importantísi-
grená, rosa, verde, vermelho); Os manuscritos “baixo”, a privação de valor, a terra, os infernos.
ma actividad de copia e ilustración de manuscri-
deste conjunto com uma paleta de cores mais A invasão da esfera superior é símbolo da sub-
tos en cenóbios cistercienses” (El Monacato en
alargada são o Lorvão 5 e o Lorvão 15 com a versão dos valores, de desregramento, próprio do
los reinos de Léon y Castilla (siglos VII-XIII). El
aplicação de 9 cores. Verifica-se uma predomi- demónio” (AIRES AUGUSTO DO NASCIMENTO,
processo de Internacionalización de la miniatura
nância de manuscritos com uma paleta reduzi- “O sufrágio: o trinitário gregoriano”, in A Ima-
en torno al año 1200 en la Península Ibérica:
da a 5 cores: o Lorvão 43 e o Lorvão3, ambos gem do tempo: livros manuscritos ocidentais, Ca-
el Antifonario y el martirologio de las Huelgas
do séc. XII e o Lorvão 12, já do século XIII. Dos tálogo da exposição, Lisboa, Fundação Calouste
Reales de Burgos. Fundación Sánchez-Albornoz,
restantes, dois manuscritos possuem uma paleta Gulbenkian, 2000, pp.432-434).
Universidad de Léon, s.d., pp.448-450). Esta
com 6 cores (Lorvão 50 e Lorvão 17) e dois com
mesma relação havia sido já estabelecida por 18. O conjunto dos Beatus encontra-se dividido
7 (Lorvão 16 e Lorvão 13). Deste levantamen-
MANUEL PEDRO FERREIRA (“Early Cistercien em dois Ramos principais, o Ramo I e o Ramo II,
to constatámos que o verde só não se encontra
Polyphony: A New-Discovered Source”, Lusita- que por sua vez se subdividem em diversas rami-
presente no Apocalipse do Lorvão; o amarelo
nia Sacra, 2ª série, XII-XIV, 2001-2002). ficações. Este stemma, proposto por Peter Klein
ocre e o azul não foram aplicados no Apocalipse
(Joaquín Yarza LUACES - Beato de Liébana: Ma-
do Lorvão (1189) e no Lorvão 17 (atribuído ao 16. Hipótese estudada por MARIA ADELAIDE
nuscritos iluminados, M. Moleiro Editor, S.A.,
século XIII); o rosa, cor aplicada no conjunto dos MIRANDA in O Mosteiro de Arouca: pergami-
2005, p.45) com base num preexistente elabo-
manuscritos atribuídos ao século XIII surge, no nhos. Arouca: Irmandade da Rainha Santa Ma-
rado por Wilhelm Neuss, resulta da análise dos
contexto dos manuscritos do século XII, apenas falda, Museu de Arte Sacra, 1995, pp.8-9.
Beatus existentes e das relações intrínsecas es-
numa inicial do Lorvão 16 e no Lorvão 50 (rosa
17. Autores que dedicaram uma monografia ao tabelecidas entre eles. O Apocalipse do Lorvão,
salmão); o vermelho não é aplicado em apenas
Apocalipse do Lorvão: ANNE DE EGRY, Ob. cit., único manuscrito português do conjunto dos Be-
dois dos manuscritos: o Lorvão 50 (1183) e o
1972; HORÁCIO AUGUSTO PEIXEIRO, Ob. cit., atus, para além de ser o único do século XII que
Lorvão 12 (atribuído ao século XIII); o casta-
1998; PETER KLEIN, Beato de Liébana: La ilus- se encontra datado (1189), pertence ao Ramo I,
nho não surge em apenas um dos manuscritos
tración de los manuscritos de Beato y el apoca- considerado o mais próximo do protótipo.
do século XII, o Lorvão 50, tendo sido aplicado
lípsis de Lorvão, Valência, Património ediciones,
apenas em dois dos manuscritos do século XIII,

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 231
va r i a · a co r n a i lu m i n u r a p o rt u g u e sa

>> latim, em letra gótica-primitiva e assume as dimensões (345x245mm) de um 19. Nesta análise não foram tidos em conta os
manuscrito executado para ser exposto em determinadas alturas do ano, inserindo-se fragmentos de Beatus.

na média dos Beatus dos séculos IX a XI. Constatamos que no contexto dos Beatus 20. Ver nota 1.
do século XII19, apenas o do Lorvão e o de Navarra seguem a média das dimensões
21. Nesta contagem estão incluídas as tábuas,
daqueles manuscritos pré-românicos, porventura respeitando as dimensões do mo- esquemas e marginália.
delo. O cólofon20, aposto no fl.219v, dá-nos o nome do escriba bem como a data da
22. As imagens que circulam na bibliografia dis-
sua execução. Neste caso supomos que o escriba Egeas não será o iluminador, já que
ponível não abonam a favor destas característi-
um programa narrativo desta envergadura pressupunha uma especialização artística cas cromáticas.
que, na maior parte dos casos, não era própria do copista.
23. Investigação em curso para caracterizar com
As especificidades do nosso manuscrito no contexto da iluminura românica em Portu-
maior precisão o ligante.
gal, para além da paleta de cores utilizada que será de seguida apresentada, devem-
se também ao facto de ser o único manuscrito (dos que chegaram até nós) com um 24. Fls. 177, 178v e 179.

programa iconográfico desenvolvido e coerente. O carácter simbólico e escatológico 25. Também presentes nos restantes manuscritos.
do texto e da imagem, na tradição literária do comentário ao Apocalipse, e a ne-
26. Um pigmento trazido do actual Afeganistão,
cessidade de divulgar uma mensagem no contexto político-religioso da expansão e que foi uma das cores mais apreciadas e pre-
cristã peninsular, terão levado o artista do Apocalipse do Lorvão a criar um progra- ciosas da Idade Média. O azul representa, por
ma iconográfico que se traduz em 8821 imagens, optando pela utilização de cores excelência, o transcendente e espiritual da na-
contrastantes e luminosas nos fundos22 e corpos transparentes que parecem exaltar tureza divina. O lápis-lazúli será o azul do manto
a espiritualidade presente no texto. da Virgem, sempre que o artista e o seu cliente
podiam adquirir o pigmento, nem sempre dispo-
As cores da luz foram aplicadas com uma tinta proteica, possivelmente cola de per-
nível quer pelo seu elevado preço, quer pela sua
gaminho misturada com clara de ovo23. Os pigmentos que estão na base das tintas
relativa raridade.
utilizadas no Apocalipse são o ouropigmento (As2S3), o vermelhão (HgS) e o mínio
27. Ver nota 13.
(Pb3O4), sendo o primeiro um mineral e os outros dois obtidos por síntese (al)química
(ver Anexo). Tanto as cores vermelha como laranja são tintas complexas, obtidas por 28. Segundo Yarza Luaces (Beato de Liébana:
mistura de pigmentos e aditivos, como as cargas. O vermelho utilizado nas imagens Manuscritos iluminados, M. Moleiro Editor, S.A.,
foi construído com vermelhão em mistura com mínio e giz; os dados obtidos por mi- 2005, p.269), “El Beato de Lorvão pertenece al
grupo de manuscritos apocalípticos donde el di-
croespectrometria de fluorescência de raios X dispersiva de energias (microEDXRF, ver
bujo es el protagonista principal (…)”.
Anexo) permitiram calcular que a percentagem de mínio na mistura, mínio+vermelhão,
fosse de cerca de 25%; o giz, carbonato de cálcio, é utilizado como uma carga, que 29. Constatamos igualmente, tal como noutros
manuscritos que compõem o fundo do Lorvão,
não alterando o tom da cor, acentua-a, tornando-a mais opaca, e melhorando ain-
a articulação entre fundos policromos e figuras
da a sua resistência mecânica. A cor laranja, baseada no mínio, apresenta alguma
apenas desenhadas em que a cor adquire ca-
degradação visível na transformação do laranja forte num acastanhado. Nesta cor rácter simbólico ao determinar os espaços em
foi também detectado o uso de cargas, mas raras vezes se detectou a presença de que a cena se desenrola (exemplo marcante é
vermelhão, pigmento mais dispendioso. Os poucos castanhos24 do Apocalipse do a cena do fl.54 Mensagem a Esmirna em que
Lorvão são uma mistura de vermelhão com mínio e um terceiro componente rico em a cor funciona como elemento de interligação
entre registos diferentes, destacando o desenho,
ferro (ainda não caracterizado).
essência da mensagem veiculada).
Tendo como base a caracterização dos materiais e técnicas podemos afirmar que, com
excepção da alteração acima descrita para o laranja, as tintas encontram-se em bom 30. PETER KLEIN, Beato de Liébana: La ilustra-
ción de los manuscritos de Beato y el apocalípsis
estado de conservação. Para além disso, a aparente simplicidade plástica escolhida
de Lorvão, Valência, Património ediciones, 2004.
para a paleta do Apocalipse do Lorvão terá sido uma opção estética, não condicio-
nada pelo know-how tecnológico ou recursos materiais. Assim, este estudo permitiu 31. Sobre esta problemática ver ANA LEMOS,
Dez. 2004 “Peter K. Klein – Beato de Liébana:
constatar que, nesta época, o uso de apenas 3 cores predominantes (amarelo, laranja e
La ilustración de los manuscritos de Beato y el
vermelho) não se deveu a uma pobreza do scriptorium, na medida em que o Lorvão 16

232 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
va r i a · a co r n a i lu m i n u r a p o rt u g u e sa

Apocalipsis de Lorvão, Valência, Património edi- com uma datação alargada de 1176-1200 (período de 24 anos durante o qual foram
ciones, 2004. Recensão crítica” in Revista de executados três dos manuscritos que se encontram datados através de cólofon: o Lor-
História da Arte, nº 4, 2007, Lisboa, Instituto de
vão 50, o 43 e o 5) utiliza todos os pigmentos disponíveis na época25, nomeadamente
História da Arte da FCSH-UNL, pp. 323-328.
o muito precioso lápis-lazúli26. De salientar ainda o uso do pigmento ouropigmento,
32. Já salientada, nomeadamente por ANNE DE As2S3, que no conjunto dos manuscritos do fundo do Lorvão dos séculos XII-XIII, como
EGRY in Ob.Cit.
já referimos na análise da paleta utilizada27, surge apenas neste manuscrito.
33. (Ap 6, 1-8) “Seguia mirando cuando el Corde- Simbolicamente, as cores predominantemente aplicadas (amarelo, laranja e verme-
ro abrió el primero de los siete sellos. Oí al primei- lho) poderão sim, relacionar-se com a persistência de uma paleta que privilegiava o
ro de los cuatro vivientes que decía com voz como
amarelo e o vermelho, e por uma opção do iluminador que utilizou as cores que mais
de trueno: vem y mira. Y había un caballo blanco;
se adequavam a uma estética da luz que desperta no Ocidente a partir de meados
el que lo montaba tenía un arco; se le dio una
corona y salió como vencedor para seguir vencien- do séc. XII. Constatamos, no Apocalipse do Lorvão, a primazia do desenho28 sobre
do. Cuando abrió el segundo sello, oí al segundo a cor que surge em determinados espaços com uma intencionalidade muito precisa
viviente que decía: vem y mira. Entonces salió ou- revelando um carácter simbólico mas também fundamental para definir a composição
tro caballo, rojo; al que lo montaba se le concedió e determinar os espaços em que a cena se desenrola29. A aplicação desta paleta de
quitar de la tierra la paz para que se degollaran
cores não constitui um caso isolado, embora seja uma particularidade do Apocalipse
unos a otros; se le dio una espada grande. Cuando
do Lorvão no contexto dos Beatus Ibéricos. Num manuscrito existente na Biblioteca
abrió el tercer sello, oí al tercer viviente que de-
cía: vem y ve. Y había un caballo negro; el que lo Nacional de Madrid (Ms 5780, CASSIANUS, ABBAS MAXILIENSIS: De Incarnatione
montaba tenía en la mano una balanza. Y oí como libri septem-S-) do séc. XII verificamos, igualmente, a utilização duma reduzida paleta
una voz en medio de los cuatro vivientes que de- de cores cingida ao laranja e amarelo. Estas cores presentes no nosso Comentário
cía: un litro de trigo por un denario, tres litros de ao Apocalipse estão presentes igualmente em Göreme (Capadócia), centro religioso
cebada por un denario. Pêro no causes daño al
dos cristãos no início da Idade Média, onde o laranja e o amarelo foram aplicados
aceite y al vino. Cuando abrió el cuarto sello, oí
nos frescos das igrejas datadas do séc. XI (Igreja Yusuf Koc, de meados do séc. XI; a
una voz que decía: vem y mira. Y había un caballo
pálido; el que lo montaba se llamaba muerte y el Igreja das Sandálias, do séc. XI).
infierno le seguia. Se les dio poder sobre la cuarta O estudo destas iluminuras demonstra-nos que nem sempre o iluminador seguiu o
parte de la tierra, para matar com la espada, com texto, na disposição espacial das figuras bem como ao ajustar elementos com a sua
el hambre, com la muerte y com las bestias de la própria criatividade o que, por vezes, levanta problemas de interpretação ao his-
tierra. (JOAQUIN GONZALEZ ECHEGARAY, AL-
toriador do século XXI, e que serão seguidamente abordados com mais pormenor.
BERTO DEL CAMPO, LESLIE G. FREEMAN, Obras
Parece-nos ser o caso de investigadores tal como Peter Klein30 que considera todo o
completas de beato de Liebana. Madrid, Estudio
teologico de Santo Ildefonso, Biblioteca de los au- desvio iconográfico como um erro do iluminador, ao mesmo tempo que atribui a um
tores cristianos, 1995, pp.346-351). outro artista a capacidade de introduzir novos elementos iconográficos31.
Nos comentários ao Apocalipse iluminados românicos torna-se mais difícil estabe-
lecer com rigor uma genealogia, já que estamos num período de internacionali-
zação onde se cruzam múltiplas influências. Contudo, as tradições artísticas e o
contexto histórico marcam a iluminura deste manuscrito destacando-se o episódio
dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse, a representação do Cordeiro 32 e a represen-
tação da figura de Cristo imberbe. (Fig.1) Nos Quatro Cavaleiros do Apocalipse33
(fl.108v) as diferenças iconográficas presentes no nosso manuscrito, assinaladas por
alguns autores como erros iconográficos, poderão ser explicadas se tivermos em
conta o contexto histórico e a importância da afirmação do cavaleiro cristão face
ao islâmico no processo da reconquista com os seus símbolos mais poderosos: a
espada e a cruz. Deste modo se justifica a substituição da balança pela espada
como significado de justiça e da espada do quarto cavaleiro pela cruz, acentuan-
do assim a ideia de salvação que está associada ao cavaleiro da expansão cristã.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 233
va r i a · a co r n a i lu m i n u r a p o rt u g u e sa

fig.1 e 2 apocalipse do lorvão, torre do tombo, lorvão 43 (c.f.160), fl.108v e fl.115. © imagens cedidas pelo antt.

(Fig.2) Da mesma forma podemos associar a imagem do primeiro cavaleiro à do 34. Associação esta já estabelecida por PETER
fl.11534, identificado como o Anticristo, representativa de uma homologia negativa KLEIN (Ob. Cit., p.79).

perturbadora da sua leitura, já que este cavaleiro, prefigurando o mal, apenas se 35. Ob. Cit.
distingue do anterior pelos seus cabelos frisados. Numerosos autores têm lançado
36. PATRÍCIA RAQUEL FERREIRA LOPES, Tím-
hipóteses sobre a interpretação desta imagem como foi referido por Ana Lemos35. O panos Românicos Portugueses. Temas e proble-
impacto visual é dado através da representação rigorosa do equipamento militar de mas. Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e
um cavaleiro do século XII bem como a sua forma de montar, demonstrando igual- Humanas, Universidade Nova de Lisboa, 2006.
mente uma grande capacidade artística. Dissertação de Mestrado, pp. 52-57.
(Fig.3) O Cordeiro que suporta a cruz (o Cordeiro apocalíptico) assume na arte por-
tuguesa características específicas e um lugar de destaque que leva a que esteja pre-
sente num número considerável de tímpanos de igrejas românicas36. No Comentário
ao Apocalipse do Lorvão o iluminador representa-o como um Cordeiro adulto com os
chifres recurvados (por exemplo, fl.90 Visão do Cordeiro e dos quatro seres).
(Fig.4) A representação de Cristo imberbe, mais uma vez, integra este manuscrito
em ambiente laurbanense, podendo ser associado ao Cristo que surge no interior do

234 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
va r i a · a co r n a i lu m i n u r a p o rt u g u e sa

37. A representação da Cidade de Jerusalém na cedro do Livro das Aves, assumindo assim uma genealogia que remonta ao período
forma de um rectângulo surge igualmente no fl. paleocristão e que, possivelmente, estaria presente na representação iconográfica,
253v do Vitrina 14-2, também pertencente ao
em manuscritos deste fundo. (Fig.5)
Ramo II. No entanto, deste último manuscrito, não
No contexto ibérico apresenta afinidades com alguns dos Beatus (facto esse já re-
foram estabelecidas outras analogias comparativas
das iluminuras com as do Beato do Lorvão. alçado pelos investigadores que abordaram esta temática), nomeadamente o Beato
de Osma; do ponto de vista iconográfico, foram estabelecidas relações inovadoras
com o Beato de Seu de Urgell pertencente ao Ramo II e anterior ao Apocalipse do
Lorvão, e que permitiu a percepção da utilização de certos elementos, embora não
a sua justificação. Um exemplo marcante é a representação da Jerusalém Celeste na
forma de um rectângulo37 (Beato de Seu d’Urgell, fl.198v) e não de um quadrado
como é visível nos restantes Beatus.
Para além dos aspectos referidos que permitem integrar o Apocalipse do Lorvão num
contexto histórico e ideológico preciso, algumas particularidades iconográficas justi-
ficam a diversidade de fontes para além da sua integração na família I.

Livro das Aves


De bestiis et aliis rebus é um texto escrito por Hugo de Folieto, prior agostinho, entre
1130-1140, dedicado a Rainerus, irmão converso. Baseia-se nos antigos Fisiólogos
tardo-romanos ilustrados. De edificação espiritual usa as aves em alegorias morais
para servirem de exemplo a monges e a cónegos, assumindo uma função de carácter
moralizante. A Bíblia é a fonte principal da primeira parte, onde aparece frequen-

fig.3 e 4 apocalipse do lorvão, torre do tombo, lorvão 43 (c.f.160), fl.90 e fl.217. fig.5 livro das aves, torre do tombo, lorvão
© imagens cedidas pelo antt. 5 (c.f. 90), fl.25. © imagens cedidas pelo antt.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 235
va r i a · a co r n a i lu m i n u r a p o rt u g u e sa

fig.6 a paleta utilizada na iluminura medieval portuguesa, a partir de fotografias de pormenor de iluminuras de manuscritos
medievais do fundo do mosteiro do lorvão; com excepção dos pormenores para a azurite e malaquite, retirados do foral
manuelino de vila flor (1512). na primeira linha, fotografias de microscópio com ampliações entre 63 e 80 vezes;
na segunda linha, ampliação entre 7 e 32 vezes; na terceira linha nome comum dos pigmentos e na última linha a cor obtida.

temente mencionada. Na segunda, o autor utiliza como modelos, particularmente 38. WILLENE B. CLARK, The Medieval Book of
o bestiário presente nas Etimologias de Santo Isidoro e A Natureza das Coisas de Birds Hugh of Fouilloy’s Aviarium, Medieval &
Renaissance Texts & Studies, Binghamton, New
Rábano Mauro.
York, 1992.
Desse texto existem várias cópias espalhadas pela Europa, três das quais se encontram
em Portugal. Apesar dos três manuscritos do Livro das Aves existentes em Portugal 39. Exceptuando as aves representadas no
(Lorvão 5, DGARQ – Torre do Tombo; ALC.238, Biblioteca Nacional de Portugal; prólogo.

Ms.34, Santa Cruz, Biblioteca Pública Municipal do Porto) terem sido incluídos, por 40. Por exemplo, “A coroa da vida”, fl.54; a com-
Willene B. Clark38, no grupo que tem como protótipo o manuscrito da abadia de posição em círculos da “Visão do Cordeiro e dos
Heiligenkreuz, ms 226, datado também ele de finais do séc. XII, o Livro das Aves do Quatro Seres”, fl.90; a representação do “Silên-
cio no céu”, fl.134; a representação do inferno
Lorvão e o de Santa Cruz apresentam especificidades entre si pelo facto das aves se
na cena “O quinto anjo toca a trombeta e abre
encontrarem na totalidade inseridas em círculos39 e pelas afinidades plásticas do de-
o abismo com a chave”, fl.140v; na “Descrição
senho. Na generalidade, apenas o manuscrito do fundo do Lorvão e o de Santa Cruz das cores das pedras preciosas”, fls. 208v-209;
aplicam o círculo a todas as aves (no ms 177, Troyes, fl.141, uma das aves encontra- na “Nova Jerusalém”, fl.209v; e ainda nos fls.
se inserida num círculo, enquanto as restantes surgem representadas no espaço do 112, 115, 118, 139, 142, 153v, 169, 172v, 180v,
fólio deixado livre para o efeito), elemento geométrico que se encontra igualmente 196v, 199, 202v, 207, 210, 217).
presente, de forma dominante, no Apocalipse do Lorvão40.
O De avibus pertencente ao fundo do Lorvão possui dois cólofons que nos indicam
que foi produzido no referido mosteiro, fornecendo duas datas diferentes, respecti-
vamente 1183/1184.
No Livro das Aves encontramos aquela que poderemos descrever como uma paleta
medieval completa, (Fig.6). Para além dos já descritos vermelhão e mínio, encontram-
se presentes o azul de lápis lazúli, o verde (pigmento sintético de cobre), o grená de
goma laca, o branco de chumbo (2PbCO3.Pb(OH)2) e o negro de carvão. O lápis-lazúli
foi o pigmento mais cobiçado na Idade Média, sendo o seu preço superior ao do ouro
e a sua procura muito superior à oferta. É profusamente utilizado no Livro das Aves,
tanto puro como em mistura com o branco de chumbo, na obtenção de tons de azul
mais claro. O verde utilizado no Livro das Aves é aplicado nos fólios 20v (Palmeira) e
95v (A Criação). No primeiro, na Palmeira, o tom verde não é o habitual da paleta do
Lorvão. O tom “verde garrafa” é encontrado no manto de Cristo, e obtido com verde
de cobre sintético. O grená encontrado é obtido com um corante, o grená da goma

236 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
va r i a · a co r n a i lu m i n u r a p o rt u g u e sa

41. Constable, O. R., 2003, Trade and traders laca, proveniente da Índia e introduzida, à época, na Península Ibérica pela civilização
in Muslim Spain, Cambridge University Press, muçulmana41. Os pretos são normalmente tintas à base de carvão. O ligante utilizado
Cambridge.
em todas as cores do Livro das Aves foi, tal como no Apocalipse, uma cola proteica.
42. Prólogo do Livro das Aves, fl.5. O programa iconográfico que acompanha o texto começa no prólogo com a pomba e
43. The Medieval Book of Birds Hugh of o falcão, enquadrados por uma arquitectura em arco ultrapassado e que pode, muito
Fouilloy’s Aviarium, Medieval & Renaissance bem, estar relacionado com a arquitectura da Coimbra contemporânea, elemento
Texts & Studies, Binghamton, New York, 1992. igualmente visível no Comentário ao Apocalipse do Lorvão e ausente nos restantes De
44. Fl.17.
avibus. Seguidamente, no fl.5v, o iluminador representa dois arqueiros com bestas de
caça, muito provavelmente uma alusão “às pessoas da nobreza”42, tal como podemos
45. AIRES AUGUSTO DE NASCIMENTO, Texto
ver no Ms.226 onde aparece o cavaleiro com o falcão (Fig.7). Observamos que no
e imagem: autonomia e interdependência em
Ms. 226 (Heiligenkreuz), na base do stemma proposto por Willene Clark43, onde se
processo de leitura. In Figura. Coord. António
Branco, Faro: Departamento de Letras Clássicas encontram inseridos os De avibus pertencentes a mosteiros portugueses, bem como
e Modernas, FCHS-UA, 2001, pp.26-27. no Ms. 253 (Abadia de Zwettl), ambos atribuídos a finais do século XII, o prólogo tem
início com a representação da pomba e do falcão sob arcadas e do clericus e do miles
46. Livro das Aves: Pelicano (fl.30v), Noitibó
(fl.32), Corvo (fl.33), Galo (fl.36v), Avestruz colocados sob a ave que os representa. Interessante é a representação do cavaleiro
(fl.40), Abutre (fl.46v), Grou (fl.48), Milhafre com um falcão pousado na sua mão esquerda que se encontra protegida por uma
(fl.49v), Andorinha (fl.50v), Cegonha (fl.52v), luva bem como a figura do cão segura pelo seu outro braço, elementos iconográficos
Melro (fl.54), Gralha (fl.56v), Ganso (fl.58v), alusivos à actividade da caça. Ao representar apenas a pomba e o falcão, símbolos
Garça (fl.59v), Carádrio (fl.60v), Fénix (fl.61), do clérigo e do cavaleiro, no prólogo do Livro das Aves do Lorvão, o iluminador vai
Perdiz (fl.62v), Codorniz (fl.63v), Poupa (fl.64v),
realçar a importância deste grupo social através da representação dos arqueiros no
Cisne (fl.65v), Pavão (fl.66v), Águia (fl.69). O
fl. 5v bem como do preenchimento com lápis-lazúli do corpo do falcão, nos fls. 5 e
mocho, presente no manuscrito de Santa Cruz
(fl.104v), encontra-se ausente no do Lorvão, 16, ave que simboliza a nobreza. (Fig.8)
apesar de ter um texto que lhe é dedicado. O iluminador continua o programa com a representação da pomba assumida agora no
seu sentido místico (fl.6, diagrama) e moral (fls.7v-8). O falcão volta a ser representa-
47. Quatro outras aves surgem com o corpo pin-
tado na sua totalidade: o corvo (fl.33), pintado do (fl.16), batendo as asas que, segundo o texto, representa uma mudança de penas
a preto, a andorinha (fl.50v), pintada a preto e associada simbolicamente ao cavaleiro militar que deixa a vivência antiga para ingressar
vermelho com realces a branco, o melro (fl.54), na vida clerical tornando “a um voo tanto mais leve quanto mais novo”44. A palmeira
pintado a preto com o bico vermelho, e o cis- (fl.20v), bem como a rola (fl.21v) representam uma reflexão, em que, na primeira o justo
ne (fl.65v), com o corpo pintado de branco e é associado à palmeira que, por sua vez, representa o próprio Cristo e cujos frutos são o
as patas e o bico a vermelho. Destas aves ape-
resultado da conversão através da fé. A rola surge como sendo o penitente. A anteceder
nas a andorinha tem uma conotação positiva no
a representação das várias aves, nos De avibus, o iluminador dá um destaque especial
texto de Hugo de Folieto. Ela é “a alma peniten-
te, que sempre anseia pelo início da Primavera, ao cedro do Líbano (fl.25), árvore que segundo o Cântico dos Cânticos, representa
porque em tudo mantém a medida da discrição o próprio Cristo e os pássaros que nela se encontram são consideradas as almas dos
e da temperança. Eis como uma simples ave en- pregadores. O iluminador do Lorvão, tal como o de Santa Cruz, terá representado uma
sina os que a Divina Providência faz prudentes iconografia mais próxima do texto na qual Cristo surge no centro da árvore dispondo-se
desde o início” (MARIA ISABEL REBELO GON- em torno d’Ele sete aves que podem ser interpretadas como os sete dons do Espírito
ÇALVES, Livro das Aves, Lisboa, Edições Colibri,
Santo45. As restantes 22 aves46 são indicadas por Hugo de Folieto ao monge, como
1999, p.133).
exemplo moral, através das virtudes e vícios que, elas próprias, simbolizam.
48. Cf. Michel Pastoureau (Bleu. Histoire d’une Constatamos que o artista, através da utilização da cor, nomeadamente no falcão
couleur. Éditions du Seuil, 2002, p.43) “Bien au
(fl.5, prólogo e fl.1647), transmite uma das ideias-chave do texto de que o miles quan-
contraire [le Bleu] devient rapidement [à partir
du XIIè siècle] une couleur à la mode, une cou-
do entra no mosteiro deve despojar-se de todos os bens terrenos, ou seja, mudar de
leur aristocratique, et même déjà la plus belle pelagem. Assim se justifica também, tal como já referimos, que o falcão, símbolo da
des couleurs selon certains auteurs”. nobreza, surja pintado na totalidade com lápis-lazúli48.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 237
va r i a · a co r n a i lu m i n u r a p o rt u g u e sa

fig.7, 8 e 9 livro das aves, torre do tombo, lorvão 5 (c.f. 90), fl.5v, fl.16 e fl.36v. © imagens cedidas pelo antt.

O iluminador individualiza as aves do ponto de vista morfológico, através de um bom 49. Encontra-se em fase de preparação um arti-
go de um estudo monográfico dos três De avi-
desenho, inserindo-as em duplos círculos com inscrição a vermelho49. É possível, na
bus onde as questões técnicas ligadas à execu-
maior parte delas, identificá-las na sua relação com o mundo natural, sendo neste
ção do desenho serão postas em relevo.
exemplar de destacar igualmente o carácter decorativo que estas assumem, bem
como a força do gesto associando a sua representação ao texto que as acompanha
(é o exemplo do galo, fl.36v). (Fig.9)

Conclusões
O trabalho de investigação levado a cabo pela equipa interdisciplinar acima mencio-
nada permitiu esclarecer, quer as dúvidas levantadas no que diz respeito ao lugar de
produção material quer as opções estéticas e simbólicas dos iluminadores. As corre-
lações estabelecidas entre o Apocalipse do Lorvão e o denominado Livro das Aves de
Hugo de Folieto ao nível do desenho – estruturas arquitectónicas, utilização sistemá-
tica do círculo como enquadramento das aves e das figuras humanas, figura de Cristo
jovem seguindo uma via de representação paleocristã – e os dados fornecidos pelo
próprio manuscrito permitiram confirmar a produção deste no mesmo scriptorium.
Da análise destes dados materiais, podemos concluir que, com excepção do lápis-

238 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
va r i a · a co r n a i lu m i n u r a p o rt u g u e sa

50. The Medieval Book of Birds Hugh of lazúli e do ouropigmento, os restantes pigmentos utilizados nestas duas obras foram
Fouilloy’s Aviarium, Medieval & Renaissance obtidos por síntese. Ainda que não se tenha discutido a construção da cor nos res-
Texts & Studies, Binghamton, New York, 1992.
tantes manuscritos do fundo do Lorvão, podemos adiantar que, de uma forma geral,
observa-se uma profusa utilização da cor grená, encontrando-se aplicada directa-
mente sobre o pergaminho, como no Diagrama da Pomba, ou sobre o mínio, para o
escurecer, criando um efeito de relevo (incidire); ou ainda misturada com branco de
chumbo para matizar e construir a escala do escuro ao claro, fígura 6. Este vermelho
orgânico, goma laca no Livro das Aves, poderá ser característico da Iluminura me-
dieval portuguesa. Também característico é o uso do branco de chumbo para a cor
branca, já no século XII, ao contrário do encontrado na iluminura anglo-saxónica,
que utiliza o carbonato de cálcio (giz). Comum à produção europeia, é o uso do lápis
lazúli na criação de azuis, do vermelhão como base para o vermelho e a existência
de mínio na paleta, este tanto utilizado puro, para a cor laranja, como sombreado
com uma laca vermelha.
A análise formal e iconográfica dos De avibus permitiu-nos abrir novas perspectivas
que suscitam algumas interrogações quanto ao stemma proposto por Willene Clark50
pensando nós que o exemplar de Santa Cruz de Coimbra terá uma relação directa com
um exemplar veiculado através dos agostinhos e que o do Lorvão seguirá este mode-
lo adaptando a iluminura ao estilo do próprio mosteiro. São conhecidas as relações
dos cónegos regrantes portugueses com o mosteiro de São Rufo de Avinhão, centro
agostinho de importância relevante no sul de França de onde provém igualmente um
De avibus deste mesmo período. Neste caso, a via de transmissão terá sido através
dos agostinhos e não dos cistercienses, uma vez que o Livro das Aves do Mosteiro
de Alcobaça tem uma relação privilegiada com Claraval.
Relativamente ao Apocalipse do Lorvão foram estabelecidas relações iconográficas
com o Ramo II, nomeadamente com o Beato d’Urgell. Ao mesmo tempo, foi no con-
texto cultural e político português que se encontraram respostas para uma represen-
tação iconográfica específica ao nosso manuscrito. •

Adelaide Mirandaa, b, Ana Lemosa, Ana Claroa,c,


Catarina Miguelc e Maria João Meloc

a
Instituto de Estudos Medievais, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas,
Universidade Nova de Lisboa.
b
Departamento de História da Arte, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas,
Universidade Nova de Lisboa.
c
REQUIMTE-CQFB e Departamento de Conservação e Restauro,
Faculdade de Ciências e Tecnologia – UNL, 2829-516.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 239
va r i a · a co r n a i lu m i n u r a p o rt u g u e sa

Anexo 51. Com o conhecimento do século XXI é pos-


sível aprender mais sobre materiais e técnicas
analisando o objecto, do que lendo os tratados
A informação sobre os materiais pictóricos é obtida a partir da caracterização científica
técnicos medievais
dos materiais51, tendo como ponto de partida a informação presente em fontes históri-
cas, tratados técnicos, receituários, etc. A análise da informação destas fontes permite a 52. BRUNELLO, F., (Ed) – De Arte Illuminandi e
construção de reproduções históricas das várias cores. Estas reproduções são, por sua vez, altri trattati sulla miniatura medievale. Vicenza:
analisadas e caracterizadas com os mesmos métodos de análise utilizados no estudo da Neri Pozza Editore, 1992.
iluminura medieval. A análise crítica desta informação permite não só obter mais e melhor
53. BLONDHEIM, S. – An Old Portuguese Work
informação aquando da análise da obra, contribuindo para uma melhor caracterização do
on Manuscript Illumination. JQR, 19 (1928) p.
estado tecnológico da época. 97-135.

1. Tratados e fontes da época utilizados


De forma a optimizar a análise destes dois manuscritos, o Livro das Aves e o Apocalipse,
o trabalho realizado iniciou-se com uma pesquisa bibliográfica de fontes, nomeadamen-
te tratados, receituários e registos do comércio que se praticava no século XII-XIII, entre
Portugal e o resto do mundo.
Os receituários e tratados que chegaram até aos dias de hoje datam, principalmente, de
datas posteriores ao século XIII. No entanto, podem ser referidos alguns anteriores a essa
data como Historia Naturalis (século I) de Plínio, o De Coloribus et Mixtionibus, o Mappae
Clavícula e o De Diversis Artibus (sec. XII), todos eles descrevem a produção de pigmen-
tos, mas não da sua aplicação em iluminura. Posteriormente ao século XIII, surgem outros
tratados e receituários, principalmente dedicados à pintura, mas com referências à técnica
de iluminura como O Libro dell’arte de Ceninno Ceninni (séc. XV) e o De Coloribus (séc.
XIII-XIV). Dedicados só à iluminura existem pelo menos dois tratados com edição critica,
um do século XIV: De arte illuminandi, provavelmente escrito por um monge italiano52 e
outro datado do século XV, um tratado português, O livro de como se fazem as cores, escri-
to em antigos caracteres hebraicos, editado em 1928 por Blondheim53. Estes dois tratados
são fontes importantes, pois foram escritos por praticantes, de uma forma clara, simples e
detalhando minuciosamente os principais passos dos processos descritos, de forma a que
qualquer um pode aprender a criar as suas próprias cores e a usá-las na arte da iluminura.
Os pigmentos e os corantes descritos nestes dois tratados são quase idênticos, com algumas
excepções, por exemplo nos azuis inorgânicos: no De Arte Illuminandi o lápis lazúli é con-
siderado “o melhor dos azuis”, referindo também a azurite e o verdigris; n’O Livro de como
se fazem as cores, só a azurite e o verdigris são citados. No tratado italiano é rara a descri-
ção de receitas de pigmentos inorgânicos sintéticos, com excepção do ouro musivo, sendo
apenas mencionados os materiais necessários para a sua produção, por exemplo enxofre e
mercúrio para vermelhão; é ainda referido que vermelhão, vermelho e branco de chumbo se
encontram tão facilmente que “não se demora no seu modo de preparação”. Por outro lado,
no tratado português as descrições destes pigmentos são muito pormenorizadas, principal-
mente para o vermelhão, mas o branco de chumbo não é referido. Em ambos os tratados,
os ligante recomendados são proteicos, no entanto o modo de a fazer é mais detalhado no
De arte illuminandi. O douramento é também relatado em ambos os tratados.

240 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
va r i a · a co r n a i lu m i n u r a p o rt u g u e sa

54. Moura, Laura, Melo, Maria João, Casa- 2. Métodos de análise utilizados
nova, Conceição, Claro, Ana, “A Study on
Portuguese Manuscript Illumination: The Char- Os métodos de análise escolhidos tiveram como objectivo o estudo da construção da cor
ter of Vila Flor (Flower Town), 1512”, Journal of e da composição das tintas. Uma cor é construída com uma ou várias tintas; por sobre-
Cultural Heritage, 8(2007), pp 299-306. posição de camadas ou mistura (efeitos sobreposição/gradiente/matiz/incidir). Por sua
vez uma tinta, é pelo menos, constituída por uma cola e um colorante. A cola, designa-se
55. Lupa acoplada a uma câmara digital Leica
como ligante, serve para fixar a cor, e habitualmente quer-se transparente quando seca; o
Degilux 1, com fibra óptica Leica KL 1500 LCD.
colorante pode ser um mineral, um composto inorgânico sintético ou um corante natural,
extraído de certas plantas ou de insectos parasitas.

Composição das tintas / construção da cor:


os materiais da cor e sua quantificação
Foram escolhidas três técnicas de análise não invasivas ou de micro-amostragem no es-
tudo da composição e construção da cor: uma técnica elementar, micro-EDXRF (micro-
fluorescência de raios-X de energias dispersiva); e duas técnicas moleculares: micro-Raman
(micro-espectroscopia de Raman) e micro-FTIR (micro-espectroscopia de Infra-Vermelho
com Transformada de Fourrier)54. A análise molecular permite uma identificação rápida do
composto, ao passo que a análise elementar dá uma informação dos elementos presentes
nos compostos, não sendo por isso tão conclusiva. No entanto, o microRaman não permite
uma análise quantitativa e assim, a micro-EDXRF foi fundamental para determinar quanti-
tativamente a percentagem dos diferentes pigmentos presentes em cada cor.
A complementaridade das informações fornecidas por estas técnicas de análise foi opti-
mizada seguindo uma estratégia de análise que começou pela observação do manuscrito,
fazendo uma selecção das iluminuras mais representativas da paleta de cores. Após esta
selecção, observou-se minuciosamente cada iluminura ao microscópio55, apurando quais
as áreas mais representativas para analisar com as restantes técnicas. Seguiu-se a análise
por micro-EDXRF, in situ, que permitiu um primeiro rastreio da composição das tintas/
cores, indicando ainda algumas das áreas de análise para o microRaman. O micro-Raman
é também uma técnica in situ, que permite analisar áreas de 4µm (com a objectiva 50x).
Baseia-se na incidência de um laser monocromático (no presente estudo, 633nm) sobre
a área de análise, obtendo-se um conjunto de raios difusos a diferentes comprimentos de
onda – espectro de Raman. É especialmente eficaz na análise de pigmentos inorgânicos,
porque cada composto permite a obtenção de um espectro/imagem característicos – a
impressão digital do pigmento. A identificação do composto pode então ser feita por com-
paração com espectros de referência, aliada à interpretação do próprio espectro.
Uma vez que as técnicas anteriormente referidas não permitem a análise de materiais orgâ-
nicos, como lacas e ligantes, foi necessário proceder à micro-amostragem sob observação
ao microscópio e micro-ferramentas de amostragem, com posterior análise por micro-FTIR.
Esta técnica permite identificar ligantes, corantes e cargas com base nas respectivas impres-
sões digitais resultantes das vibrações inter-atómicas causadas pela absorção da radiação
infravermelha. Para além disso, permite obter informação crucial sobre a composição das
tintas, sendo a única das técnicas utilizadas que calcula as razões relativas entre pigmentos,
cargas, ligante e ainda corantes.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 241
va r i a · a co r n a i lu m i n u r a p o rt u g u e sa

3. Fólios analisados 56. Espectrometro ArtTAX de Intax GmbH, com


um ânodo de molibdénio (Mo), detector Xflash
No Livro das Aves foram analisados por microEDXRF56 17 fólios, num total de 205 pontos refrigerado por efeito Peltier, com resolução es-
(três pontos por cada área de análise), que permitiram caracterizar a paleta utilizada neste pecial de 70 mm. Os parâmetros usados foram
manuscrito. Esta caracterização foi complementada pelas análises feitas com o microRa- 40kV de voltagem, intensidade 300 mA, 100 se-
man57. A micro-amostragem, de 46 amostras, realizada in situ, de 14 fólios seleccionados gundos, com hélio.
permitiu caracterizar, através do microFTIR58, os componentes das tintas, como o ligante,
57. espectrómetro Horiba Jobin Yvon, Labram
a laca utilizada, as cargas utilizadas, os azuis e os verdes.
(Laser He-Ne 632.817 nm, 17 mW) acoplado a
No Apocalipse do Lorvão, foram estudados 24 fólios por microEDXRF, num total de 271
um microscópio confocal com câmara de vídeo
pontos (5 pontos/área de análise) para caracterização da paleta de cores. Por micro-
e fibra óptica integradas. Ampliação de 50x, po-
Raman foram estudados 10 fólios. Procedeu-se ainda à recolha de 35 micro-amostras em tencia de feixe incidente 1.7 mW , tempo de ex-
sete dos fólios. • posição (5-20 segundos) e número de ciclos de
acumulação (5-20 ciclos) variável com os pig-
mentos em análise.

Glossário 58. Espectrómetro Continuµm e Nexus, com 128


Os materiais pictóricos do Livro das Aves e do Apocalipse do Lorvão59 varrimentos e uma resolução de 4 cm-1.

59. Para um glossário completo da iluminura


Azurite (2CuCO3.Cu(OH)2) medieval consultar glossário do “À descoberta
Até ao século XVII a maior jazida europeia encontrava-se na Hungria60. Este mineral apre- da Iluminura medieval com o Apocalipse do Lor-
senta-se na Natureza, quase sempre, associado à malaquite (carbonato de cobre básico, vão e o Livro das Aves”, acessível em formato
mais abundante na Natureza do que a azurite). Na idade média torna-se um dos pigmentos pdf em http://www.dcr.fct.unl.pt/upload/de-
mais utilizados, sendo a rota mediterrânica, nomeadamente Veneza, um ponto fundamental partment/Cadernos%20em%20Anexo.pdf
no abastecimento deste mineral na Península Ibérica.61 60. ROY, Ashok, (Ed) – Artist’s pigments, a
Apresenta a particularidade de não poder ser demasiado moído, sob pena de perder o handbook of their history and characteristics.
croma azul que lhe é tão característico. Washington:National Gallery of Art, 1993. vol. 2

Lápis lazúli (Na8[Al6Si6O24]Sn) 61. GLICK, Thomas, LIVESEY, Steven J., WALLIS,
Existem registos da sua utilização desde a Antiguidade, apesar de não existirem evidências Faith, (Ed) – Medieval Science, Technology, and
da sua utilização nem por egípcios, nem por gregos ou romanos.57 Medicine – an encyclopedia. Nova Iorque: Rou-
Com um valor equiparado ao do ouro na Idade Média, o lápis lazúli era considerado, à tledge, 2005.
época, o mais prestigiado dos pigmentos. Importado do norte do Afeganistão, adopta no 62. MERRIFIELD, Mary – Medieval and Renais-
início do século XIV o nome de azul ultramarino, para se distinguir da azurite62. sance Treatises on the arts of Painting. New
York: Dover Publications, Inc., 1999.
Branco de Chumbo (2PbCO3.Pb(OH)2)
Conhecido desde a Antiguidade, foi o pigmento branco mais importante e descrito como
ideal para iluminura, por ter uma óptima consistência. Tanto Plínio como Vitrúvio descre-
veram como era preparado, colocando o chumbo em contacto com vapores de vinagre,
num ambiente aquecido, o chumbo desintegrava-se dando lugar a um pó branco 57 - o
branco de chumbo.

Clara de ovo
A clara de ovo é utilizada como ligante proteico desde a Antiguidade, tendo como período
auge de utilização a Idade Média, não só pela sua transparência, mas também pelo bri-
lho que conferia à camada pictórica. Contudo, a ausência de lípidos leva a que o filme se
torne frágil e quebradiço com o tempo. Assim, era muitas vezes adicionada à clara de ovo
um plastificante (como a cera), para aumentar a resistência mecânica do filme. O ligante
utilizado é o soro obtido após repouso da clara “batida em castelo” .

242 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
va r i a · a co r n a i lu m i n u r a p o rt u g u e sa

63. EASTAUGH, Nicholas, WALSH, Valentine, Cola de Pergaminho


CHAPLIN, Tracey, SIDDALL, Ruth – Pigment A cola de pergaminho foi um ligante muito utilizado na Idade Média pela sua transparência
compendium – A dictionary of Historycal pig- pela fácil produção, já que é obtida por fervura de aparas de pergaminho em água. O colagénio
ments. Oxford: Elsevier Butterworth-Heine- extraído forma um gel razoavelmente rígido, que ao secar adquire propriedades adesivas.
mann, 2004.
Grená de goma laca
64. BAT-YEMOUNDA, Monique Zerdoun, Les
Começou por ser usada como corante, na Índia, por volta do século XVI a.C., existindo
encres noires au Moyen Age (jusqu’á 1600),
registos segundos os quais deverá ter começado a ser exportada para a Europa no início
Centre National de la Recherche Scientifique,
do século XIII57. O material corante encontra-se na excreção de insectos fitoparasitas que
Paris, 1983.
crescem na Índia e no Sudoeste Asiático. Desta excreção pode ser separada uma resina,
65. NICHOLSON, Paul T., SHAW, Ian, (Ed) – An- uma cera e a matéria corante.
cient Egyptian Materials and Technology. United
Kingdom: Cambridge University Press, 2000. Ligante
Vulgarmente designados por “colas” ou “adesivos”, os ligantes são os materiais utilizados
para fixar a cor a um suporte. Para além de colar os pigmentos ao suporte, o ligante deve
permitir a obtenção de um revestimento coeso, homogéneo, de espessura fina e duradouro,
ao qual se dá o nome de filme, película ou camada pictórica. Estes filmes obtêm-se por
aplicação de uma tinta mais ou menos líquida. Após evaporação do solvente (processo
físico), ou por reacção química, obtém-se uma matriz composta pelo ligante e por grãos
de pigmento, dispersos o mais homogeneamente possível, coesos entre si e aderindo ao
suporte. Os ligantes são, normalmente, longas cadeias moleculares, que designamos de
polímeros, podendo ser de origem animal: proteínas, ou vegetal: polissacarídeos (gomas
vegetais) ou triglicéridos (óleos).

Mínio (Pb3O4)
O mínio, ou vermelho de chumbo, é conhecido desde a Antiguidade. Segundo Vitrúvio,
foi um produto obtido acidentalmente por aquecimento do branco de chumbo. Tal como o
vermelhão, foi muito utilizado na elaboração de manuscritos desde o século VIII.

Negro de carvão (C)


Utilizado desde a pré-história nas pinturas rupestres, podia ser produzido a partir da com-
bustão de matéria vegetal (carvão vegetal) ou de pó de osso, chifres ou dentes queimados
(carvão animal), com posterior moagem do carvão formado. Tanto Plínio como Vitrúvio
classificaram-no como negros artificiais63. Usado frequentemente como tinta para escrever
quando misturado com um aglutinante, foi sendo substituído pela tinta ferrogálica, ainda
que nos países orientais ainda seja correntemente usado. No entanto o seu uso como tinta
para pintar não caiu em desuso.64

Ouropigmento (As2S3)
Utilizado já na civilização egípcia como pigmento artístico na pintura mural e na decoração
de sarcófagos65, foi especialmente utilizado na iluminura, em grande parte, graças à sua
luminosidade como pigmento. A sua toxicidade foi aproveitada no período medieval como
insecticida para tratar e proteger o pergaminho. A sua tendência para reagir com pigmentos
à base de chumbo e cobre, aliada à elevada toxicidade, acabou por limitar o seu uso.

Verdes sintéticos
Um exemplo bem conhecido é o verdete (Cu(CH3COO)2[Cu(OH)2].2H2O), também designado
por verdigris. Estes pigmentos sintéticos, baseados em acetato de cobre, podem apresentar
diferentes tonalidades, dependendo da sua estrutura química ou do ligante utilizado; estas

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 243
va r i a · a co r n a i lu m i n u r a p o rt u g u e sa

cores variam desde o verde, verde garrafa, verde-azulado até ao azul-esverdeado. Foram 66. CABRAL, J. M. Peixoto – “História breve dos
utilizados na Antiguidade não só como pigmentos (Plínio), mas também como cosméticos pigmentos: II – Da Arte Egípcia”. Química, 66
e medicamentos66. Na Idade Média e no Renascimento continuaram a ser muito usados, (1997) p. 17-24.
sendo produzidos, p.e., por exposição de placas de cobre a vapores de ácido acético (vina-
67. CENINNI, C. – Il Libro dell’ Arte, Fabio Fre-
gre)57, o que origina o acetato de cobre básico, no entanto se este for dissolvido em ácido zzato (Ed). Vicenza: Neri Pozza Editore, 2003.
acético transforma-se em acetato de cobre neutro, verdigris. Muitas vezes substituiam a
malaquite, já que não apresentavam problemas de alteração ou perda de cor64. Apresentam,
contudo, um efeito corrosivo quando aplicados em pergaminho ou papel.

Vermelhão (HgS)
Considerado o vermelho por excelência, começou por ser utilizado como pigmento na
Antiguidade por moagem do mineral (cinábrio)64, estando sua principal fonte europeia
localizada em Almadén, Espanha67. A partir do séc. IX começou a ser produzido por síntese
a partir dos elementos que o constituem (mercúrio e enxofre). Por se tratar de um semi-
condutor, quanto mais moído for, mais bonita a cor que apresenta. •

Bibliografia
BORGES, Nelson Correia – Arte Monástica em Lorvão. Sombras e realidade.
Das origens a 1737. F.C.G., 2002.

CLARK, Willene B. – The Medieval Book of Birds Hugh of Fouilloy’s Aviarium, Medieval
& Renaissance Texts & Studies. Binghamton: New York, 1992.

ECHEGARAY, Joaquin Gonzalez, DEL CAMPO, Alberto, FREEMAN, Leslie G.,


Obras completas de beato de Liebana. Madrid, Estudio teologico de Santo Ildefonso,
Biblioteca de los autores cristianos, 1995.

EGRY, Anne De – O Apocalipse do Lorvão e a sua relação com as ilustrações medievais


do Apocalipse. Lisboa: F.C.G., 1972.

FERREIRA, Manuel Pedro – Early Cistercien Polyphony: A New-Discovered Source”,


Lusitania Sacra, 2ª série, XII-XIV, 2001-2002.

FREIRE, Fernando Galván – El Monacato en los reinos de Léon y Castilla


(siglos VII-XIII). El processo de Internacionalización de la miniatura en torno al año
1200 en la Península Ibérica: el Antifonario y el martirologio de las Huelgas Reales
de Burgos. Fundación Sánchez-Albornoz, Universidad de Léon, s.d.

GONÇALVES, Maria Isabel Rebelo – Livro das Aves. Lisboa: Edições Colibri, 1999.

A iluminura em Portugal: identidade e influências. Lisboa: B.N., 1999.

KLEIN, Peter – Beato de Liébana : La ilustración de los manuscritos de Beato


y el apocalípsis de Lorvão. Valência: Património ediciones, 2004.

244 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
va r i a · a co r n a i lu m i n u r a p o rt u g u e sa

LEMOS, Ana – “Recensão crítica. ‘Peter K. Klein – Beato de Liébana: La ilustración


de los manuscritos de Beato y el apocalípsis de Lorvão. Valência: Património ediciones,
2004’” In Revista do Instituto de História da Arte da FCSH-UNL, nº4, 2007, pp.323-328.

LOPES, Patrícia Raquel Ferreira – Tímpanos Românicos Portugueses. Temas e problemas.


Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, 2006.
Dissertação de Mestrado.

LUACES, Joaquín Yarza – Beato de Liébana: Manuscritos iluminados. M. Moleiro Editor,


S.A., 2005.

MIRANDA, Maria Adelaide – O Mosteiro de Arouca: pergaminhos. Arouca: Irmandade


da Rainha Santa Mafalda, Museu de Arte Sacra, 1995.

NASCIMENTO, Aires Augusto do – “O sufrágio: o trinitário gregoriano”, in A Imagem


do tempo: livros manuscritos ocidentais, Catálogo da exposição, Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, 2000.

NASCIMENTO, Aires Augusto de – Texto e imagem: autonomia e interdependência


em processo de leitura. In Figura. Coord. António Branco. Faro: Departamento de Letras
Clássicas e Modernas, FCHS-UA, 2001.

PEIXEIRO, Horácio Augusto – Um olhar sobre a iluminura do Apocalipse de Lorvão.


Tomar: Instituto Politécnico de Tomar, Escola Superior de Tecnologia, Departamento
de Tecnologia e Artes Gráficas, 1998. Dissertação de provas públicas para professor
coordenador.

WILLIAMS, John – The Illustrated Beatus : a corpus of the illustrations of the


commentary on the apocalypse. London: Harvey Miller Publishers, 2003. Volume V.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 245
o tecto da igreja
do menino-deus:
um “processo operativo”
na construção do espaço perspéctico

La pittura è una arte mostruosa, ma accuratissima per


l’imitazione delle cose naturali, la quale è composta
di descrizzione, di lineamenti e di debita accomodazione di colori.
Questa fu anticamente in tanta stima, ch’ella teneva
il primo grado della arti liberali. Ella è però non
meno libera che la poesia, come be disse Orazio (...)

In Paola Barocchi, Scritti D’ Arte Del Cinquecento, tomo I, p. 751

Ainda não se conhece a data precisa de nascimento do pintor-decorador João Nu- 1. Cirilo Volkmar Machado, Colecção de Memó-
nes de Abreu. No entanto, é provável que tenha nascido entre a década de oitenta rias (...), Lisboa, 1922, p. 145 e F. A. Garcez Tei-
xeira, A Irmandade de São Lucas, Lisboa, 1931,
e noventa do século XVII. De um modo geral a historiografia não acrescenta muito
p. 88.
sobre a vida pessoal deste pintor e apenas Cirilo comenta alguns aspectos sem muitas
informações, ao contrário de José da Cunha Taborda que nem o cita. Apelidado de 2. F. A. Garcez Teixeira, op. cit. pp. 92, 93 e 95 e
Abreu do Castelo ou somente do Castelo, por residir dentro das muralhas do Castelo Cirilo Volkmar Machado, op. cit. p. 146.

de São Jorge,1 entraria para a Irmandade de São Lucas em 22 de Outubro de 1719, 3. Cirilo Volkmar Machão, op. cit. p. 146: esta
e é constantemente citado entre 18 de Outubro de 1726 e 30 de Outubro de 1735. última observação vem referida por Cirilo que
Nesta confraria teria feito os pagamentos até Dezembro de 1737, interrompidos no deve ter consultado o manuscrito deste pintor-
decorador e filho do lendário António Lobo.
ano de sua morte em 1738.2 Poderíamos pensar que esta ocorreu de modo inespe-
Segundo informações deixadas por Reis Santos
rado, pois os pagamentos aconteciam sistematicamente e de modo linear.
este importante manuscrito pertenceu à Biblio-
Pouco se sabe da sua aprendizagem. Calcula-se que a sua formação como pintor ou teca da Academia de Ciências de Lisboa, mas ac-
como decorador tenha sido iniciada ainda nas últimas décadas do século XVII e ama- tualmente encontra-se desaparecido.
durecida no começo do século seguinte através do contacto com a nova linguagem
decorativa, além do relacionamento com os seus colegas. Segundo Cirilo, era quase
pintor universal, mas o seu forte era a perspectiva e ornatos (...) pintou bem figuras
e floresceu no princípio do século XVIII; segundo Francisco Xavier Lobo, morreu de
muito estudar.3

246 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
va r i a · o t e c to da i g r e ja d o m e n i n o - d e u s

fig.1 joão nunes de abreu, tecto da igreja do menino deus, lisboa, c. 1738.
© cml/dmcru. fotografia de henrique ruas.

O contacto com a gramática decorativa de Vincenzo Bacherelli na primeira década


do século XVIII foi crucial para a sua formação e desenvolvimento da decoração dos
seus tectos pintados do tipo arquitecturas fingidas, tornando-se um dos melhores
discípulos do mestre florentino. No circuito português, conviveu e participou em
trabalhos conjuntos quer com quadraturistas quer com figuristas de grande peso
durante as primeiras décadas de Setecentos.
Ao longo da sua actividade teria travado conhecimento e parceria com muitos pintores,
dos quais se destacam Vitorino Manuel da Serra, Jerónimo da Silva e André Gonçalves.
João Nunes de Abreu é referido como o responsável pelos ornatos e figuras do tecto
da portaria da Igreja da Graça (desaparecido), junto com Jerónimo da Silva e Vitorino

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 2 47
va r i a · o t e c to da i g r e ja d o m e n i n o - d e u s

4. Cirilo Volkmar Machado, op. cit. p. 145; Fran-


cisco Liberato Telles de Castro da Silva, Pintura
Simples, Lisboa, 1898, p. 161; Fernando Pam-
plona, Dicionário de Pintores e Escultores, Lis-
boa, Livraria Civilização Editora, 2000, pp. 14-15
e Margarida Calado, “Abreu, João Nunes (Lisboa
- 1738)”, in Dicionário Da Arte Barroca em Por-
tugal, Lisboa, Editorial Presença, 1989, p. 13.

5. Francisco Liberato Telles de Castro da Silva,


op. cit. p. 161.

6. Nuno Saldanha, “Jerónimo da Silva (act. C.


1700-1753)”, in A Pintura em Portugal Ao Tem-
po de D. João V – 1706-1750, Lisboa, IPPAR,
1994, p. 138.

7. Ayres de Carvalho, D. João V e a Arte do seu


Tempo, vol. II, 1962, p. 265 e Margarida Cala-
do, “Abreu, João Nunes (Lisboa? – 1738)”, in
fig.2 joão nunes de abreu, parte lateral do tecto da igreja do menino deus, lisboa, c. Dicionário da Arte Barroca em Portugal, Lisboa,
1738. © cml/dmcru. fotografia de henrique ruas. Editorial Presença, 1989, p. 13.

8. Citado por Margarida Calado, op. cit. p. 13.

Manuel da Serra.4 Ainda no mesmo templo, o historiador Francisco Liberato Telles viu
no século XIX outras figuras (provavelmente painéis) da mão deste artista.5
Não se conhece a data destas intervenções na igreja da Graça, mas deve ter sido uma
das primeiras obras já dentro da gramática baquereliana, provavelmente como ajudan-
te de Vitorino Manuel da Serra (apesar de Cirilo afirmar que este teria feito somente
as flores), artista mais experiente e um exímio preparador de cenas perspectivadas,
que aqui poderiam ter sido executadas por João Nunes de Abreu e complementadas
com figuras de Jerónimo da Silva.
Outro trabalho realizado com Jerónimo da Silva e com outro figurista, André Gonçal-
ves, vem referido em duas encomendas do ano de 1729. Trata-se em primeiro lugar
de pinturas para os Arcos das Entradas Régias e depois, no mês de Maio deste mesmo
ano, de outros doze painéis com cenas da Vida da Virgem para o corpo da Igreja de
Nossa Senhora da Pena em Lisboa.6
Ayres de Carvalho, com base em documentos indicados pelo Dr. Manuel Rodrigues
Simões, afirma que João Nunes de Abreu e outro lisboeta, Manuel Cerqueira Mendes,
teriam dourado o retábulo da capela-mor da Igreja do Mosteiro de Arouca, em 1733.7
O Conde Raczyski lança a hipótese de um certo João Nunes de Abreu Gorjão, ser o
autor de um desenho datado de 1734, que se encontra nas “Memórias de Malta.”8
A obra de maior destaque atribuída a este artista e que envolveu outros bons pinto-
res do reino, foi a decoração do tecto da nave da Igreja do Menino-Deus (Fig.1 e 2),
em Lisboa. Não se sabe a data precisa do início das obras de preparação da pintura
e nem quanto tempo teria gasto para a sua total realização; todavia, pensamos que
até o ano da morte de João Nunes de Abreu, toda a decoração deveria estar con-

248 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
va r i a · o t e c to da i g r e ja d o m e n i n o - d e u s

9. Honório Manuel Pereira Bonifácio, “Menino- cluída para a inauguração em 1737,9 faltando apenas complementar o frontão e as
Deus, Igreja de”, in Dicionário da Arte Barroca torres da fachada.
em Portugal, Lisboa, Editorial Presença, 1989,
Situada no Largo do Menino-Deus junto ao Castelo de São Jorge, na freguesia de
p. 269.
Santiago, a Igreja do Menino-Deus foi mandada construir pelo rei D. João V e a
10. Filipe Blanch Diniz, “A Igreja do Menino primeira pedra posta em 4 de Julho de 1711, antes da fundação do Convento de
Deus. Algumas especulações à volta do seu mo- Mafra. Esta Igreja é também conhecida por Recolhimento da Ordem Terceira de São
delo geométrico”, in Vértice, .......pp. 41-45.
Francisco de Xabregas, tendo o nome Menino-Deus origem a partir do momento
11. idem, ibidem, p. 41. que a escultura de um Menino Jesus foi oferecida ao templo por uma religiosa do
12. José Alberto Gomes Machado, André Gon- Mosteiro da Madre de Deus. A catástrofe de 1755 respeitou este edifício e permitiu
çalves – Pintura do Barroco Português, Lisboa, abrigar os cónegos da Sé.
Editorial Estampa, 1995, p. 192. O projecto arquitectónico é atribuído ao mestre-pedreiro João Antunes (1645-1712),
13. José da Cunha Taborda, Regras da Arte da aluno na Aula do Paço fundada em 1647. É polémica a sua efectiva participação nas
Pintura, Coimbra, 1922, p. 247-248 e Cirilo obras desta Igreja um ano antes de falecer, pois não teria muito tempo para acompanhar
Volkmar Machado, Colecção de Memórias (...), os trabalhos de execução, podendo apenas ser referido como provável autor do risco.
Coimbra, 1922, pp. 70-73. Veja ainda José Al- A fachada principal está virada para Nascente junto ao edifício do recolhimento,
berto Gomes Machado, André Gonçalves – Pin- considerada mais vigorosa no seu traçado e mais próxima dos formulários italianos
tura do Barroco Português, Lisboa, Editorial
de sabor romano. Não só a pintura do tecto deste templo apresenta um elabora-
Estampa, 1995, pp. 191-198, com uma leitura
iconográfica. Sobre este o artista ver também
do sentido geométrico, mas todo o seu projecto assenta-se num modelo espacial
Nuno Saldanha, Artistas, Imagens e ideias na profundamente coerente sob o ponto de vista da idealização e sistematização do
Pintura do Século XVIII, Lisboa, Livros Horizon- espaço interno, pois a planta desenvolve-se a partir de um quadrado regular, cujos
tes, 1995, pp. 15-37. lados delimitam a nave e a profundidade das capelas inscritas e de outro quadra-
14. Cirilo Volkmar Machado, Colecção de Memó- do, com dimensões idênticas, com o mesmo centro rodado a 45º.10 Naturalmente,
rias (...), Coimbra, 1922, p. 75 e José da Cunha e para uma imediata visão do seu interior, apresenta uma planta cortada nos cantos
Taborda, Regras da Arte da Pintura, Coimbra, transformando-se num octógono alongado: um rectângulo com ângulos cortados,
1922, p. 249-250. que viria a ser moda.11
Além de toda esta estrutura externa acima mencionada e a coerência espacial do
seu projecto, a riqueza do templo complementa-se não só pela decoração do tecto,
numa das pinturas mais significativas do reinado de D. João V, mas também em toda
a decoração pictórica que dá força monumental ao interior. A sua decoração interna
iniciou-se a partir de 1730 e teve como responsável o artista lisboeta Vieira Lusita-
no, contando ainda com a participação do sevilhano André Rubira, em Lisboa desde
1733.12 As pinturas com os temas A Educação da Virgem (St.ª Ana), São Miguel,
As Beatas Teresa, Sancha e Mafalda, A Estigmação de São Francisco e o Milagre
das Rosas (Rainha Santa Isabel), são todas de André Gonçalves.13 Segundo Cirilo e
Taborda, o painel de São Francisco recebendo as chagas é obra de Inácio de Oliveira
Bernardes, completando o ciclo à Ordem Terceira franciscana.14
A iluminação de todo o interior da nave conta com oito pequenas janelas transforma-
das em espécie de tribunas por uma pequena balaustrada. Constitui-se num segundo
andar decorativo antes da sanca que delimita o espaço da cobertura. A entrada de
luz faz-se não só por estas janelas, mas também pelo óculo que se encontra acima
do coro alto, tornando o lado da capela-mor mais claro e, portanto, alterando todo
o sentido cromático deste lado em relação ao seu oposto. (Fig.3)
Neste segundo andar, logo a seguir à primeira sanca na linha acima das capelas en-

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 249
va r i a · o t e c to da i g r e ja d o m e n i n o - d e u s

contram-se espécies de pilares ou colunas entre cada uma das janelas, que não têm
a função de dar sustentação à parede, mas somente criar mais um efeito decorativo.
Trata-se apenas de uma saliência em forma de voluta em sentido oposto, num detalhe
decorativo que terá a sua continuidade reflectida em alguns momentos na decoração
pictórica do intradorso da abóbada.
A construção da cobertura deste templo apresenta-se de modo muito complexo,
não se caracterizando por uma abóbada cilíndrica. Trata-se de uma abóbada pouco
arqueada, rebaixada e que por isso teria dificultado muito o trabalho do preparador
da cena perspéctica. Não se deve esquecer que as dificuldades estariam também
relacionadas com a grossa moldura da parte central do tecto, talvez impedindo uma
progressão maior a toda a cena, sempre no que diz respeito à visualidade a partir do
ponto de vista do espectador.
Contudo, numa descrição mais detalhada podemos dizer que todo o tecto (...) está
como que suspenso numa intrincada mas belíssima rede de madeira de eucalipto que
forma a grande altura várias “estrelas” entrecruzadas (...) a parte plana é formada
por uma caixa-de-ar, ou seja, uma estrutura dupla de madeira, com tábuas corridas
formando soalho, separada por frequentes e grossas traves ou barrotes de madeira
das tábuas inferiores onde está colada a tela e executada a pintura. Estas últimas

fig.3 joão nunes de abreu, interior da igreja do menino deus, lisboa, c. 1738. © cml/dmcru. fotografia de henrique ruas.

250 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
va r i a · o t e c to da i g r e ja d o m e n i n o - d e u s

15. Ângelo Costa Silveira, Carmem Olazabal Al- têm uma largura de 42 cm. e uma espessura de 3 cm., em madeira de castanho.15 A
mada e Luís Tovar Figueira, “Igreja do Menino aplicação de uma tela colada no suporte de madeira foi um sistema frequentemente
Deus”, in Monumentos, n.º 10, Lisboa, 1999,
utilizado em igrejas de Lisboa.16
pp. 77-85.
Ainda não se conhece a razão pela qual alguns artistas optaram por este sistema
16. Magno Moraes Mello, A Pintura de Tectos de tela aplicada à cobertura de madeira. Devido à sua grande dimensão, a tela era
em Perspectiva no Portugal de D. João V, Es- subdividida em tiras de pano (não necessariamente iguais) e depois aplicada ao su-
tampa Editorial, 1998.
porte. Assim, era impossível antecipar a preparação do esboço da cena pretendida
17. idem, ibidem, pp. 183-192. sobre a tela, antes da sua fixação no tecto, de modo a evitar algumas dificuldades
na execução do trabalho em áreas pouco cómodas, como, por exemplo, nos quatro
ângulos onde a deformação anamórfica era mais evidente.
As questões relativas ao suporte são cruciais para o estudo da decoração dos tectos
pintados em qualquer cultura artística. Através da sua análise é possível determinar a
técnica, o modo de projecção das falsas arquitecturas, como ainda identificar o meca-
nismo de distribuição nas diversas etapas do trabalho.17 Estas questões esclarecem o
grau de conhecimento específico para a realização desta forma decorativa e permitem
avaliar a capacidade operativa dos artistas numa determinada época. A decoração
perspectivada era um trabalho essencialmente executado por pelo menos cinco artis-
tas, desde o quadraturista até o figurista, sem esquecer os respectivos auxiliares. No
caso deste tecto da nave da igreja do Menino-Deus, este foi o esquema seguido.
Ora, se a simples elaboração de um painel retabular exigia uma atenção especial por
parte do pintor, além da presença de alunos ou discípulos, a preparação e execução
de um tecto necessitaria da participação não só de um ou dois artistas, mas de um
grupo de especialistas com tarefas bem definidas. No ordenamento das actividades
impõem-se novas prioridades numa inédita subdivisão e participação para o bom
andamento da obra. A presença do carpinteiro para a construção do andaime e a
escolha do seu modelo era um factor indispensável e estabeleceria a fase inicial, pois
era nesta estrutura que os artistas determinariam as dimensões das figuras e o seu
escorço, além de construir uma estrutura que lhes permitisse controlar a evolução dos
trabalhos não só no próprio local mas também a partir do pavimento. Daí seguem-se
os trabalhos do preparador das cenas perspectivadas, os douradores, alguns mestres
artesanais e aprendizes, e, por fim, a intervenção do figurista. Não obrigatoriamente
nesta sequência, acreditamos que no tecto do Menino-Deus não só existiu tal espe-
cialização dos trabalhos, como também deve ter seguido uma linha muito próxima
da que acima referimos.
Dentre os diversos investigadores que se ocuparam em esclarecer alguns aspectos
sobre a decoração do tecto do Menino-Deus, nota-se uma maior preocupação em
relação à autoria e à cronologia. O cuidado em procurar entender o funcionamento
destas especialidades que se formavam no seio da pintura decorativa; o sentido de
imaginação que fundamenta e materializa um modelo específico; o conceito de uma
nova espacialidade onde a perspectiva tornava-se o instrumento da pintura conver-
tendo em realidade a imitação ou, neste caso em especial, transformando arquitectura
em efeito pictórico e em espaço cenográfico, são questões que ficam em segundo
plano ou mesmo esquecidas.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 251
va r i a · o t e c to da i g r e ja d o m e n i n o - d e u s

Além destes dois itens acima sublinhados, a crítica de arte de um modo geral, e em 18. Cirilo Volkmar Machado, op. cit. pp. 145-
detrimento de alguns dos tópicos enumerados por nós, acentua essencialmente ape- 147. Muito importante é notar que as Virtudes
teologais apresentam-se muito pequenas em
nas uma interpretação iconográfica. Ora, sabe-se que para além da interpretação te-
relação à arquitectura pintada. O artista, neste
mática e do seu estudo, o conhecimento das formas e sua função ou mesmo entender
caso, não soube dar a real dimensão geométrica
a ideia de espaço construído, é também conhecer parte do fenómeno cultural. Não se para uma visão a partir de baixo. De modo pouco
deve esquecer que a perspectiva como representação do mundo sensível tem a capa- técnico tencionava criar “espaciosidade” entre o
cidade única de deixar no espectador um estigma. Este tipo de pintura está associado espectador e o mundo pictórico para mostrar
a um espaço homogéneo e contínuo, ou seja, um espaço físico mensurável. que as figuras estavam localizadas distantes do
Sabe-se que a Igreja do Menino-Deus foi consagrada em 1737, mas que ainda não observador. Repare-se que os balcões angulares
praticamente absorvem todas as figuras que ali
estaria completamente pronta. Acreditamos que nesta altura toda a decoração do
se localizam e em certa medida sente-se que o
tecto estava terminada, pois a morte de João Nunes de Abreu vem referida um ano
verdadeiro tecto se prolonga verticalmente num
mais tarde, e como principal responsável é bem provável que tenha terminado a deco- sentido ascendente.
ração antes mesmo da sua morte. Todas as fontes consultadas apontam este lisboeta
19. Ângelo Costa Silveira, Carmem Olazabal Al-
como principal responsável pela realização dos trabalhos decorativos.
mada e Luís Tovar Figueira, “Igreja do Menino
Entretanto, o risco teria sido realizado pelo preparador de cena, Vitorino Manuel da Deus”, in Monumentos, n.º 10, 1999, p. 81.
Serra. As fontes ainda referem Jerónimo da Silva como figurista responsável não só
20. Cirilo Volkmar Machado, op. cit. p. 147.
pelo painel central com o tema da Alegoria da Ordem Franciscana, mas também na
elaboração das quatro virtudes cardinais: Temperança, Justiça, Força e Prudência.18
Em relação a estas figuras não parece haver dúvida sobre a presença de mãos diferen-
tes, pois após o restauro chegou-se a conclusão que a pintura de falsa arquitectura
apresenta uma cor quente e a pintura do quadro recolocado cores suaves e uniformes
sobre ocres e castanhos.19
Quando Cirilo fala das obras de Vitorino Manuel da Serra, afirma ser sua a pintura
deste tecto, juntamente com a da Igreja do Rato. Contudo, vimos que o panegirista
Jerónimo de Andrade afirmava que este artista teria feito apenas o esboço para pos-
terior execução da pintura, acrescentando que nunca dirigiu nenhuma obra, apesar
de ter participado em todas aquelas de maior significado. Cirilo ainda nos diz que
Pedro Alexandrino e José António Narciso, artistas de grande expressão na segunda
metade do século XVIII, afirmavam que a decoração do Menino-Deus foi obra do
quadraturista João Nunes de Abreu e que o tecto do Rato teria a assinatura de José
António Narciso, conhecido na época pela alcunha de Bochecha.20
Desta confusão de autorias e diante do que em epígrafe se disse, acreditamos que
Vitorino Manuel da Serra teria feito o esquiço e ajudado a preparar as projecções da
falsa arquitectura, especialidade que o fez célebre nesta primeira metade do século.
A presença de Jerónimo da Silva é bem determinada como figurista mais importante
do reino nesta época, e, portanto, teria realmente feito ou dirigido a maior parte dos
trabalhos de figuras neste tecto.
Tal subdivisão dos trabalhos vem confirmar o facto de que nesta primeira metade
do século XVIII a pintura decorativa em Portugal evoluiu em dois sentidos. Primeiro,
passa por um processo de transformação formal e segundo, por uma especialização
das tarefas junto à obra. Surgem o quadraturista e o figurista com funções diversifi-
cadas, mas interligadas entre si, como também os demais ajudantes e membros duma
verdadeira equipa de trabalho.

252 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
va r i a · o t e c to da i g r e ja d o m e n i n o - d e u s

21. idem, ibidem, p. 145. Não se pode deixar de lembrar que, enquanto Vitorino Manuel da Serra é sempre
22. idem, ibidem, p. 155. referido como homem que nunca dirigiu obra, João Nunes de Abreu é mencionado
não só como pintor de perspectiva e ornatos,21 mas como mestre do pintor-decorador
23. Inácio Vieira, Tratado de Perspectiva, Linha
Feliciano Narciso (c.1710-1777), artista da segunda geração, mas com grande ca-
3.ª, ponto 1º, modo pratico de delinear e o que
nelle se deve acautelar, parágrafo 596: (...) para pacidade na produção de falsas arquitecturas, ocupando-se também de preparações
este uzo se por em praxe não requer no OPE- cenográficas.22 Assim, é importante ver o desenvolvimento da arquitectura do enga-
RANTE mais que boa inteligencia, boa vista e no em Portugal como um processo operativo23 muito mais que aplicativo em relação
mão firme e constante; e nesta praxe que o ins- a regras pré-concebidas. A pura aplica de tais disposições (teóricas) regulares não
trumento mudo ensine a qual quer erudito mestre encontra em Portugal uma estrutura linear. Esta operatividade está sedimentada no
pintor e o estilo escritor não consinta que a mão
desenvolvimento cultural do panorama da pintura portuguesa entre os séculos XVI
de quem não sabe, nem entende as letras se des-
e XVIII. É este o conceito de espaço que temos que compreender e perceber junto
vie de formar muito bem os carateres supostos.
ao processo inventivo dos preparadores de cenas perspécticas. Procurar um sistema
pronto e vê-lo aplicado em pinturas setecentistas portuguesas é um engano.
É neste sentido que, antes de confirmar a autoria a João Nunes de Abreu, é impor-
tante reforçar o papel de todo o grupo de pintores e decoradores que participaram
activamente nesta empreitada. Quadraturistas, figuristas, ornamentadores e respon-
sáveis pela direcção dos trabalhos, formam a estrutura necessária para a elaboração
e finalização desta quadratura. Assim, devemos considerá-la a mais importante obra
da primeira metade do século XVIII, sobrevivente da catástrofe de 1755.
A pintura que se estrutura no intradorso da cobertura desta igreja organiza-se num apu-
rado sistema de construção perspectivada dos elementos arquitectónicos. Num espaço
octogonal, a quadratura é operada a partir da cornija em sentido verticalista, como se
fosse romper o centro da abóbada numa abertura de grande porte. O espaço que seria
dedicado ao arrombamento atmosférico transforma-se numa potente visão planimétrica
como um nítido quadro recolocado. E este é envolvido por uma elaborada e real moldura
de madeira com grande espessura, ocupando toda a parte do centro do tecto.
O tipo de arquitectura escolhida distingue-se de algumas produções que a partir de
1740 se apresentam no panorama da pintura decorativa e que aqui, devido à esco-
lha do modelo baquereliano, manifesta uma função bem mais delineada: ampliar o
espaço interno e prolongar a espacialidade religiosa coroada no quadro recolocado,
que substitui bem o arrombamento perspéctico.
A composição escolhida pelos artistas para preencher a imensa tela que foi colada no
suporte de madeira apresenta certas individualidades típicas da época, concernente
aos elementos reais da arquitectura. Não se encontra, aqui os tradicionais fustes com
capitéis compósitos, responsáveis pela pseudo ascensão da membrana arquitectónica,
nem as corriqueiras soluções angulares copiadas do tecto da portaria de São Vicen-
te de Fora (Fig.4) ou em duas salas do MNAA: a sala dos Alabastros e a da pintura
Flamenga, esta última coberta e não visível.
João Nunes de Abreu preferiu reutilizar os mesmos elementos que foram usados
pelo arquitecto nas soluções aplicadas nas paredes laterais e também nos ângulos.
Assim, a continuidade entre espaço real e fictício tornava-se evidente. As mísulas,
o entablamento, os balcões no eixo longitudinal, os quatro arcos abatidos, os qua-
tro balcões semicirculares nos ângulos chanfrados e as pilastras rectas ornadas em

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 253
va r i a · o t e c to da i g r e ja d o m e n i n o - d e u s

fig. 4 vincenzo bacherelli, pormenor da cartela e arco do tecto da portaria do


mosteiro de s. vicente de fora, lisboa, 1710. © cml/dmcru. fotografia de henrique ruas.

grotesco, são os elementos que constituem a opção deliberada de João Nunes de 24. Martin Kemp, La Scienza Dell’Arte – Pros-
Abreu, sem dúvida influenciado pelos desenhos e esquiços apresentados por Vitori- pettiva e Percezione Visiva da Brunelleschi a
Seurat, Firenze, Giunti, 1994, p. 121.
no Manuel da Serra, artista que dominava perfeitamente o risco perspéctico. Todos
estes elementos antecipam o que poderíamos chamar de plano superior em forma de 25. Alfonso E. Pérez Sánchez, Pintura barroca
terraço: este elemento aqui usado não aparece nos outros tectos que encontramos en España – 1600-1750, Cátedra, 1996, p.342.
em Lisboa após a primeira metade do século XVIII. Este pintor morre em 1683 e foi o mais hábil
pintor de fresco da corte espanhola. No entan-
São formas que podem ter certa lembrança dos relevos da Antiguidade Clássica, rea-
to, não há nenhuma obra actualmente que possa
proveitados no período renascentista e pós-renascentista por quadraturistas italianos,
ser seguramente comprovada como sua.
como por exemplo, o genovês Giovanni Andrea Carlone, que antes de 1630 usa estes
mesmos elementos na decoração do Palácio Rosso, em Génova. Vamos reencontrar
estas mesmas formas de preenchimento dos espaços na decoração do tecto da Ca-
pela dos Reitores, em Coimbra, obra de António Simões Ribeiro entre 1723 e 1725.
A função deste elemento, se é que o podemos chamar assim, é apenas a de ocupar
espaço e fazer sobressair o centro atmosférico, que aqui está isolado pela pesada
moldura. Não tencionamos relacionar a obra de Carlone com a decoração dos tectos
em Lisboa: fica apenas um ponto de referência
O que pretendemos afirmar é que estes modelos ou fragmentos decorativos circula-
vam por toda a Europa e Portugal não ficou à margem. As mesmas estilizações po-
dem ser vistas no desenho preparatório para um tecto no Palácio do Buen Retiro,24
executado em c. 1658 por Angelo Michele Colonna e Agostino Mitelli, desenho este
conservado no Museu do Prado em Madrid. Estes elementos são novamente visíveis

254 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
va r i a · o t e c to da i g r e ja d o m e n i n o - d e u s

25. Alfonso E. Pérez Sánchez, Pintura barroca na decoração da escadaria do Convento das Descalças Reais em Madrid, obra do
en España – 1600-1750, Cátedra, 1996, p.342. pintor régio Dionisio Mantuano executada em 1668.25
Este pintor morre em 1683 e foi o mais hábil
Retomando o discurso específico em torno da análise da decoração da nave da Igreja
pintor de fresco da corte espanhola. No entan-
do Menino-Deus, nota-se que logo a seguir à sanca projecta-se para o espaço do
to, não há nenhuma obra actualmente que possa
ser seguramente comprovada como sua. espectador uma forte e pictórica balaustrada, que circunda toda a cobertura. Mais
elaborado nos vértices do que no corte transversal, o fragmento da balaustrada acima
26. Magno Moraes Mello, op. cit., pp.128 e 194
da capela-mor apresenta uma tonalidade mais escura e nitidamente sombreada, pois
encontra-se do lado oposto ao do óculo. Desprovida de iluminação directa, este lado
foi intencionalmente banhado pela sombra, salientando a sensibilidade de observa-
ção por parte dos executores para compensar a dimensão interior e o real equilíbrio
cromático de toda a cena.
Individualizam-se, neste caso, dois planos: o circundante da balaustrada, povoada
por putti e figuras alegóricas e a projecção em alçado por trás dela a criar verticali-
dade ao cenário. A invenção desta quadratura reflecte os ideais formais e estéticos
presentes na obra de Vincenzo Bacherelli e que foram promotores de duas gerações
de pintores-decoradores. Repare-se como o arco abatido no eixo transversal, forma-
do por duas volutas ladeadas por dois putti, ornado com grinaldas e vasos de flores,
assemelha-se muito ao modelo usado em São Vicente de Fora.
Desviando a atenção dos elementos de estrutura formal e voltando o nosso olhar ao
tema figurativo do quadro recolocado, assistimos à manifestação de Cristo a Santo
António. Esta aparição acontece num aglomerado de nuvens, figuras de monjas, anjos
e putti rodeados por uma luz celestial, mais luminosa e atmosférica próxima de Cristo.
Todo o resto do painel desenvolve-se num cromatismo de maior contraste, menos lu-
minoso, mas caracterizando-se por efeitos de vibração de todo o conjunto das formas.
Uma dualidade entre o mundo divino e o dourado da luz celestial (espaço místico)
em relação ao plano terreno com uma luz natural e mundana (espaço físico). Todo
este grupo figurativo está condicionado a uma visualidade frontal e plana, onde nem
mesmo o efeito de tridimensionalidade ou os efeitos de distanciamento são vistos ou
acentuados.26 Como já salientámos, a moldura que separa a quadratura do quadro
recolocado não é pictórica e nem estucada, mas real. O jogo de visualidade encerra-
se simplesmente no facto do espectador ver a moldura como pintura e a pintura de
falsa arquitectura como real prolongamento do interior do edifício.
O sentido da planimetria era inevitável, pois com uma moldura nestas dimensões
seria (quase) impossível dar sentido de verticalidade e arrombamento atmosférico
com figuras escorçadas num sentido de transgressão espacial. Todas as figuras apre-
sentam-se do mesmo tamanho e, portanto, sem nenhum conceito ou aplicação de
grande afastamento. No caso da pintura de tectos com representação de elementos
arquitectónicos falsamente construídos, é importante observar três modos. Um em
que a figura mantém uma integração com a falsa arquitectura, muitas vezes inserida
nos próprios elementos arquitectónicos outro em que estes elementos flutuam em
diversas direcções e não se inscrevem directamente na quadratura. Não necessaria-
mente um modo ou uma tipologia, é a presença das figurações expostas no quadro
central, que algumas vezes aparecem numa disposição oblíqua ou frontal e, neste

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 255
va r i a · o t e c to da i g r e ja d o m e n i n o - d e u s

último caso, organizados num eixo perpendicular ao olho do espectador no centro 27. Martin Kemp, La Scienza Dell’Arte – Pros-
do espaço e com visão zenital. Nesta última situação muitas vezes as figuras só apa- pettiva e Percezione Visiva da Brunelleschi a
Seurat, Firenze, Giunti, 1994, pp. 93, 121.
recem no quadro central, onde a quadratura apresenta-se como pesada moldura ou
uma espécie de separador entre duas realidades. 28. dem, ibidem, p. 155.
É o caso da decoração do tecto da Igreja do Menino-Deus, em que a força figurativa
acontece somente no centro do suporte, apesar de nos quatro ângulos apresentar
representações de figuras alegóricas. Ora, quando observamos este tecto como um
todo, o que chama a atenção em primeiro lugar não são estas figuras situadas nos
balcões semi-circulares, mas a força expressiva da dinâmica do centro figurativo.
É que para uma correcta análise destes elementos compositivos temos que ter em
mente a diferença entre visão frontal e visão escorçada. Aqui, a quadratura está
rigorosamente escorçada e as figuras do centro figurativo estão rigorosamente em
visão frontal, não indo nem mesmo a variação entre as figuras que estão num plano
mais afastado e outras que se apresentam num plano mais próximo do espectador. A
falsa arquitectura está em escorço, mas as figurações no centro do painel são apre-
sentadas ao espectador de modo frontal. Numa tentativa de entender a construção
perspéctica desta pintura, deixando de lado os elementos figurativos que foram agora
vistos, este tecto organiza-se numa composição com quatro pontos de fuga. Uma
escolha deliberada, sem o rigor da tratadística e da geometria, mas de acordo com
a organização do espaço interno do ambiente. Era a necessidade de mostrar toda a
cena não apenas para um único espectador. Na verdade, a intenção dos artistas era a
de permitir que um número maior de fruidores integrassem uma ilusória participação
no plano divino, mesmo que isso significasse uma visão menos correcta geometrica-
mente: não se pode esquecer que o centro figurativo optou por uma visão frontal e
sem o compromisso com figuras escorçados.
Esta sistemática de pontos de fuga era uma preocupação constante por parte dos
mais prestigiados quadraturistas, e aparece na tratadística especializada desde os
séculos XVI e XVII. Apenas como título de lembrança, as obras de Tommaso Laureti
(1530-1602), considerado um dos grandes pintores de perspectiva do fim do século
XVI e autor de um instrumento para a demonstração do princípio perspéctico, ilustra-
do na publicação do Due Regole de Vignola-Danti em 1585, pode ser considerado o
mais significativo estudo e que mais influenciaria uma enorme gama de perspécticos
ao longo dos tempos.
Na sucessão dos grandes quadraturistas pode-se citar o nome de Girolamo Curti
(1570-1632), che incorporava motivi architecttonici barocchi entro schemi ostina-
tamente impostati su único punto di fuga, como gli era stato insegnato, invece di
adottare i sisteme più sciolti di Annibale Carracci e Pietro da Cortona.27 Segundo
Martin Kemp, posterior a esta primeira fase dirigida por Girolamo Curti, il compito di
fondere la tradizione bolognese com le nuove idee romane fu lasciato ai suoi suces-
sori, Angelo Michele Colonna e Agostino Mitelli.28
O ponto de fuga central era na pintura de falsa arquitectura do século XVI e XVII
confundido com um sinal de rigor geométrico, além de uma nítida proximidade com
a tratadística coeva. Girolamo Curti formou-se nos tratados de Vignola e de Sebastia-

256 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
va r i a · o t e c to da i g r e ja d o m e n i n o - d e u s

fig.5 antonio palomino, el museo pictórico y escala óptica , lamina 1.ª, tomo ii, figura iv.

29. Francesco Negri Arnoldi, “Prospettici e Qua- no Serlio, transmitindo aos seus sucessores um modelo arquitectónico teoricamente
draturisti”, Enciclopedia Universale dell’Arte, aplicável.29 No entanto, quando não era possível condicionar a superfície pintada
Vol. XI, p. 107.
a uma coerência unificada, subordinando todas as formas a um correcto ponto de
fuga, ou seja, sempre que o espaço a representar fosse demasiado largo ou longo
criando a obrigatoriedade desta centralidade única das linhas de fuga, Colonna usava
sistemas menos rígidos para atenuar o escorço arquitectónico e figurativo. Para tal,
usava elementos arquitectónicos curvos, para evitar a leitura mais definida de todo
o espaço representativo. Este sistema pode ser usado em qualquer tecto que incor-

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 257
va r i a · o t e c to da i g r e ja d o m e n i n o - d e u s

pore as mesmas características materiais acima mencionadas. Assim, a sua intenção


era a de criar volume e certa plasticidade onde os elementos perspectivados do lado
longo não ficassem escorçados para o ponto de fuga central, mas reencaminhados
para dois pontos de fugas laterais. Este esquema parece reaparecer em algumas das
obras portuguesas, como é o caso da pintura do tecto da Igreja do Menino Deus,
onde pretende recriar a simulação proposta pelos artistas: uma quadratura aplicada
a partir da sanca real que cria uma abertura rectangular no cimo do suporte, com
certos preciosismos para desfrute de observadores cultos.
Deve notar-se que a construção do espaço perspéctico com quatro pontos de fuga
foi exemplificada muito bem pelo tratadista espanhol Antonio Palomino, na obra El
Museo Pictórico y Escala Óptica, publicado em 1724 (Fig.5). Na lámina 1º, tomo II da
figura IV, do capítulo IV, o tratadista espanhol trata especificamente da perspectiva
dos tectos. Neste ponto Palomino justifica o uso de quatro pontos de fuga organi-
zados no eixo longitudinal e transversal. É possível pensar que este texto tenha cir-
culado em Portugal entre a década de trinta e quarenta e que João Nunes de Abreu
poderia ter usado o mesmo sistema criando um processo operativo mais próximo
da cultura portuguesa daquela primeira metade do século XVIII. Esse perspéctico
português conheceu bem este princípio de construção arquitectónica e o exemplo
da pintura do intradorso da igreja do Menino Deus é um dos mais significativos es-
pécimes da apropriação do modelo baquereliano em Lisboa. •

Magno Mello
Instituto de Estudos Medievais, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas,
Universidade Nova de Lisboa.

258 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
jóias, retratos
e a iconografia das
elites portuguesas
de oitocentos

Introdução
1. *Professor Auxiliar com agregação da Escola O significado atribuído pelas elites aos diversos objectos de que se rodeavam vem
das Artes da Universidade Católica Portuguesa. merecendo um crescente interesse por parte de alguns sectores da comunidade cien-
Vd. o nosso SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e
tífica. Às pratas, às jóias e aos tecidos vêm também juntar-se os retratos dos próprios
– A colecção de retratos de malteses do Paço de
ou as galerias dos seus antepassados 1, em figuração real ou imaginada 2. De facto,
Gominhães. Filermo. Porto: Assembleia dos Ca-
valeiros Portugueses da Ordem Soberana Militar
a encomenda de retratos esteve reservada às elites mais elevadas, especialmente
de Malta. 2 (1993), pp. 51-84. até ao final do século XVIII, tendo-se assistido a uma abertura do perfil social dos
retratados a partir do século XIX3. Tomar a percepção da importância da joalharia
2. Em algumas famílias, nomeadamente da
figurada nos espécimes oitocentistas 4 femininos e masculinos é o propósito deste
província, foram mandadas fazer galerias de
antepassado, por iniciativa de algum dos seus artigo, objectivando-se a relevância de determinados espécimes de joalharia nesta
membros (sécs. XVIII/XIX). Um destes exemplos ou naquela fase e de que modo funcionam como expressão de classe social.
pode ser encontrado nos Melo Pereira de Sam- A vontade explícita de deixar para a posteridade a imagem da pessoa retratada, asso-
paio, do Paço de Pombeiro de Riba Vizela, em ciada ao prestígio em vida que o retrato – ou até uma série de retratos5 – evidenciava,
Felgueiras, e da Casa de Sabadão, em Ponte de
constitui um dos meios mais curiosos de apurar o potencial simbólico desta expressão
Lima, tendo sido realizado um conjunto de mais
artística. Estas representações de homens, mulheres ou crianças, sozinhas ou em
de duas dezenas de pinturas de sucessivas gera-
ções de membros masculinos desta família, pro-
grupos mais ou menos numerosos, eram também passíveis de ser contempladas pelos
vavelmente na primeira metade do século XIX. seus contemporâneos, que com eles conviviam. Noutros casos, tratar-se-ia de objecto
Esta colecção foi depois levada para a Casa de de memória junto dos filhos6 que se ausentavam de casa, funcionando como uma
Sezim, em Guimarães, onde permanece em par- recordação dos pais7, sobretudo na época em que a fotografia ainda não existia.
te, encontrando-se a restante parte em distintos São muitos e diferenciados os objectivos que norteariam a execução de um retrato por
membros da família Pinto de Mesquita. Pode-
uma personagem das elites. Para além da pujança das jóias que nele podem figurar,
riam ser igualmente referenciados casos distintos
o retrato é naturalmente revelador da personalidade daquele que nele se encontra
de uma verdadeira mitificação dos antepassados,
fruto de uma mitomania nobiliárquica vigente representado – ou da intencionalidade de alguém por ele(a) –, dos seus gostos e
em algumas famílias ou personagens, mas por convicções, para além, naturalmente, das suas próprias características físicas. Dois
uma questão de reserva não nos alargaremos na exemplos do século anterior ao que este estudo versa podem ser referenciados como
abordagem desta interessante matéria. casos paradigmáticas. Neles estão presentes duas senhoras coevas, mas cuja figuração
revela, contudo, posturas muito diferenciadas:

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 259
va r i a · j ó i a s , r e t r ato s e a i c o n o g r a f i a d a s e l i t e s p o r t u g u e s a s d e o i to c e n to s

3. Vd., a título exemplificativo, a dissertação de


MORAIS, Maria Antonieta Lopes Vilão Vaz de –
Pintura dos séculos XVIII e XIX na galeria de re-
tratos dos benfeitores da Santa Casa da Miseri-
córdia do Porto. Porto: [s.n.], 2001. Dissertação
de Mestrado em História da Arte apresentada à
Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
3 vols; ou MAGALHÃES, João de Noronha e Tá-
vora – A colecção de retratos de benfeitores da
Ordem Terceira do Carmo [Porto]. Porto: [s.n.],
1998. Trabalho apresentado à disciplina de «Me-
todologia de Investigação II», da Licenciatura em
Arte da Universidade Católica Portuguesa.

4. Uma parte deste artigo toma por base a in-


vestigação sistematizada in SOUSA, Gonçalo
Mesquita da Silveira de Vasconcelos e – A joa-
lharia em Portugal no século XIX. Porto: [s.n.],
2006. Plano de aula apresentado no âmbito das
provas de habilitação ao título de agregado, na
especialidade de História da Arte, pelo Departa-
mento de Ciências e Técnicas do Património da
Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

5. Veja-se o caso do negociante de grosso trato


da cidade do Porto Constantino António do Vale
Pereira Cabral, de que se conhecessem, pelo
menos, quatro retratos, sendo dois deles minia-
turas. Cfr. FERREIRA, Damião Vellozo; SOUSA,
Gonçalo de Vasconcelos e – Os fundadores do
Club Portuense e a sua descendência. Porto:
[s.n.], 1997, vol. 3, extratexto entre pp. 42-43
e pp. 48-49.

6. Os retratos dos 1.ºs marqueses de Ponte de


Lima hoje presentes no acervo de D. Maria João
de Lancastre e Távora (Abrantes) podem ter a
sua origem no casamento celebrado em 1780
entre o 5.º Marquês de Abrantes, D. Pedro, e a
fig.1 retrato de senhora da família dos marqueses de alorna, apresentando jóias
em pérolas e pedraria e com um medalhão oval preso ao vestido, finais do séc. xviii sua mulher, D. Maria Joana Xavier de Lima. Vd.
(vendido na leileoira palácio do correio-velho, em dezembro de 1996). a sua publicação in SOUSA, Gonçalo de Vascon-
celos e – A joalharia em Portugal: 1750-1825.
Porto: Livraria Civilização, 1999, pp. 68 e 159.
Retrato da Marquesa de Pombal, D. Leonor Ernenstina Wolfanga Daun (1721-
7. Outro caso existia na Casa de Sezim (hoje dis-
1789), que, na pujança do seu estatuto de quase primeira senhora do Reino, se fez persos entre os descendentes), com elementos
apresentar pejada de jóias, espalhadas por várias zonas do corpo e também, como da família da casa da Fábrica, no Porto, nome-
hábito na época, cosidas ao vestido8. adamente os retratos do Doutor Domingos Luís
Retrato da Marquesa de Ponte de Lima, D. Eugénia de Bragança (1725-1795), de da Silva Souto e Freitas (colecção de D. Marga-
uma família puritana, facto evidenciado na simplicidade do traje, mesmo daquela que rida Cabral de Moncada) e de sua mulher D. Ana
da Natividade e Faria (vd., por exemplo, SOUSA,
seria, pelas funções de seu marido e pelo seu nascimento, uma das mulheres mais

260 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
va r i a · j ó i a s , r e t r ato s e a i c o n o g r a f i a d a s e l i t e s p o r t u g u e s a s d e o i to c e n to s

Gonçalo de Vasconcelos e – A joalharia no Porto


nos finais do século XVIII: Aspectos socioartísti-
cos. Porto: [s.n.], 1996. Dissertação de Mestra-
do em História da Arte apresentada à Faculdade
de Letras da Universidade do Porto. Vol. 1, figs.
151-152, da colecção de D. Maria José Pinto de
Mesquita). A sua presença deriva da circunstân-
cia do casamento de José de Freitas do Amaral
(1748-1813) com D. Antónia Genoveva da Silva
Souto e Freitas († 1802). Os retratos deste casal
possuem inclusivamente molduras idênticas aos
que ficaram na Casa da Fábrica e que ainda hoje
perduram na posse dos descendentes desta casa
portuense (Ferrão de Tavares e Távora e, tam-
bém, na casa da Boa-Viagem, na Areosa, Viana
do Castelo).

8. Retrato publicado inicialmente em GALVÃO-


TELLES, João Bernardo; SEIXAS, Miguel Metelo
de – Sebastião José de Carvalho e Melo 1.º Con-
de de Oeiras e 1.º Marquês de Pombal: Memó-
ria genealógica e heráldica nos trezentos anos
do seu nascimento (13 de Maio de 1699-13 de
Maio de 1999). Oeiras: Universidade Lusíada;
Câmara Municipal de Oeiras, 1999, pp. 26 e 92;
posteriormente, em SOUSA, Gonçalo de Vascon-
celos e – A joalharia em Portugal: 1750-1825.
Porto: Livraria Civilização, 1999, pp. 170-171.

fig.3 retrato a óleo sobre tela representando a viscondessa de menezes, d. carlota


emília de mac-mahon pereira guimarães, pintado em 1859 por seu filho, o pintor
visconde de meneses. a titular apresenta o retrato de seu marido, o 1.º visconde,
ao peito (antiga colecção do dr. ricardo do espírito santo silva, vendido na leiloeira
palácio do correio-velho, em 6 de dezembro, s/ind. ano).

importantes da Corte; possui apenas algumas flores no cabelo e diadema simples.


Na generalidade dos retratos femininos do século XVIII, as jóias desempenharam um
papel muito relevante, seja pela sua presença – por vezes em excesso –, seja pelo
significado da sua ausência. Torna-se perceptível pela observação de numerosos retra-
tos de personagens femininas de famílias da província do século XVIII e de transição

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 261
va r i a · j ó i a s , r e t r ato s e a i c o n o g r a f i a d a s e l i t e s p o r t u g u e s a s d e o i to c e n to s

para o século XIX, que a figuração com vasta quantidade de jóias funcionava como 9. Publicada em SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos
factor de dignificação social, o que não sucedia tão amiudadamente nas famílias da e – A ourivesaria no Porto nos séculos XVIII e XIX:
I – As jóias (séc. XVIII). O Tripeiro. Porto: Asso-
Corte. Os retratos de D. Ana Cândida Veloso de Azevedo Ferreira (Colecção da Santa
ciação Comercial do Porto. 7.ª s., 14 (1-2) (Ag.
Casa da Misericórdia do Porto9) e de D. Joana Quitéria Pereira de Barros, como a
1995), p. 24; posteriormente analisada em SOU-
extraordinária quantidade de jóias com que se fizeram retratar, fazem eco de uma SA, Gonçalo de Vasconcelos e – A joalharia no
vontade provinciana de expressar a sua preponderância social – ou vontade de a Porto nos finais do século XVIII: Aspectos socioar-
possuir – através de uma vasta quantidade de peças de joalharia, ao jeito de uma tísticos. Porto: [s.n.], 1996. Dissertação de Mes-
quase montra de ourivesaria. trado em História da Arte apresentada à Faculda-
Mas como interpretar, neste contexto, a atitude referida supra da segunda mulher de de Letras da Univ. do Porto. Vol. 1, fig.147.

de Pombal; pretender-se-ia expressar como uma Rainha? É que, de facto, as perso- 10. No catálogo do leilão do Palácio de Correio-
nagens da Família Real eram retratadas com múltiplas jóias. Se tal é visível em Sete- Velho de Dezembro de 1996, em que figura com
centos em diversas representações de membros da Família Real, podemos continuar o n.º 361, surge referenciada como a 2.ª Marque-
sa D. Isabel de Lorena, mas as datas do quadro
a percepcioná-lo em alguns casos na centúria de Oitocentos, com especial destaque
não coincidem com os dados desta titular, já que
para, no início da centúria, da figura de D. Carlota Joaquina, e, já nos últimos reina-
este exemplar é claramente neoclássico e, portan-
dos dos Bragança, de das rainhas D. Maria Pia e D. Amélia. to, dos finais da centúria de Setecentos. Poder-
se-á tratar de um retrato de natureza evocativa?

11. Vd. diversas representações de D. Carlota Jo-


Os retratos de personagens femininas aquina, apresentando em figuração uma miniatu-
ra de seu marido, D. João, in SOUSA, Gonçalo de
Nos retratos femininos, há que diferenciar os exemplares de influência neoclássica e Vasconcelos e – A joalharia no Porto nos finais
Império, dos puramente românticos. Nos primeiros, é ainda clara uma ideia de sim- do século XVIII: Aspectos socioartísticos. Porto:
plicidade, como se pode observar no retrato de uma senhora da família Alorna 10 (vd. [s.n.], 1996. Dissertação de Mestrado em Histó-
ria da Arte apresentada à Faculdade de Letras da
Fig.1), em que, para além das pérolas, não só nos brincos como igualmente no colar,
Universidade do Porto. Vol. 1, fig. 62; ou, noutro
se salienta uma jóia representando provavelmente seu marido, e que pende do peito
exemplar, IDEM, A joalharia em Portugal: 1750-
da retratada. De facto, nos retratos de finais de Setecentos – como sucede neste e 1825. Porto: Livraria Civilização, 1999, p. 114.
num de D. Carlota Joaquina11, em que figura seu marido, o príncipe D. João – e no
dos primeiros tempos de oitocentos, são visíveis jóias com figurações dos maridos,
tanto em pendentes ovais, como rectangulares.
Do primeiro quartel do século XIX, a miniatura da indomável marquesa de Chaves, D.
Francisca Xavier Teles da Silva, permite perscrutar a figura de seu marido, Manuel da
Silveira Pinto da Fonseca, 1.º marquês de Chaves e 2.º conde de Amarante. O general
absolutista encontra-se presente numa miniatura rectangular, rodeada de pedraria,
pendendo do vestido ainda de sabor Império envergado pela titular. Por entre uma
rica jóia de cabeça, ao jeito de diadema e decorado com motivos florais, e um colar de
rosetas florais, muito provavelmente em diamantes, esta peça figurativa enquadra-se
na produção da joalharia portuguesa do primeiro terço de Oitocentos.
Esta tradição da representar a imagem do ser amado em alfinete ou pendente não se
extingue no primeiro terço de Oitocentos, havendo exemplos posteriores observáveis
em retratos pertencentes a diversas colecções particulares e datáveis de um período
que se prolonga até ao último quartel da centúria, inclusive. É deste facto evidência
o retrato da Viscondessa de Meneses, D. Carlota Emília de Mac-Mahon Pereira Gui-
marães, pintado em 1859 por seu filho, o pintor Visconde de Meneses (vd. Fig.3).
A persistência deste hábito justifica-se plenamente à luz da mentalidade da época,

262 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
va r i a · j ó i a s , r e t r ato s e a i c o n o g r a f i a d a s e l i t e s p o r t u g u e s a s d e o i to c e n to s

12. Publicado in SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos


e – A joalharia feminina e o seu significado social
e económico em Portugal. Museu. Porto: Círculo
Dr. José de Figueiredo, 4.ª s., 13 (2004), p. 28.

fig.4 retrato da condessa de alpendurada, com adereço formado por jóias seguindo
o modelo em pampilles (colecção da casa da companhia, paço de sousa).

pois se nas primeiras manifestações deste género o que estava em causa era uma
expressão de um pré-romantismo, nos exemplares dos finais do século XIX a matriz
revelava-se já de um romantismo maturado e assumido.
Estas jóias podem ter sido oferecidas em ocasiões especiais, transmitindo uma ideia
de sentimento, fenómeno muitas vezes imperceptível no próprio objecto, pelo que
se perdeu na memória do tempo. Outras vezes, o sentimento amoroso aparece re-
ferenciado na própria peça, através de uma legenda. Tal é visível no medalhão em
ouro baixo com o retrato miniatura de D. Ana Margarida de Freitas do Amaral e Melo,
através da legenda «SENTIR-SE, OH! DEI, MORIR; É NON POTER MAI DIR = MORIR
MI SENTO!», e na objecto precioso figura igualmente o monograma de seu marido,
João de Melo Pereira de Sampaio12.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 263
va r i a · j ó i a s , r e t r ato s e a i c o n o g r a f i a d a s e l i t e s p o r t u g u e s a s d e o i to c e n to s

13. Vd. a sua reprodução parcial in SOUSA, Gon-


çalo de Vasconcelos e - Da joalharia setecentista
aos eclectismos do século XX em Portugal. In
MARQUES, Maria da Luz Paula, coord. – Colec-
ção de jóias: Marta Ortigão Sampaio. [Porto]:
Câmara Municipal do Porto; Casa Museu Marta
Ortigão Sampaio, [1997], p. 44.

14. Vd. a sua reprodução in RIBERA, José António


Moya; MAGALHÃES, Artur Monteiro de – A des-
cendência do 1.º barão e 1.º visconde de Alpen-
durada. Lisboa: Dislivro Histórica, 2004, p. 34.

fig.5 miniatura da viscondessa da regaleira, d. ermelinda allen monteiro de almeida


(1768-?), com diversas jóias em diamantes (colecção da casa de vilar d’allen, porto).

Dentro das jóias das elites, alguns retratos apresentam as personagens com vasta
quantidade de jóias de dimensão aparatosa. É disso exemplo claro a pintura de cor-
po inteiro, presente na Casa de Infías, em Braga, e em que se encontra figurada a
Condessa de Vila Pouca, D. Maria Antónia Leite Pereira de Melo. Saída do pincel do
pintor retratista António Augusto da Silva Cardoso, será posterior a 187013. A velha
nobreza também pretende passar à posteridade adornada de peças valiosas, mas,
no que se nos tem sido dado verificar, esses casos começavam, nesta época, a ser
cada vez mais raros.
Tal não é, no entanto, de estranhar, em algumas figuras de pergaminhos de fresca
data. Nos titulares recentes e de origem marcadamente burguesa, mas de expressão
possidente, podemos observar a presença de imponentes adereços de diamantes.
Vejam-se os casos do retrato daquela que surge identificada como a segunda mulher
do 1.º Visconde de Alpendurada, D. Maria das Neves Correia Leal14, com um impo-
nente alfinete de pampilles, muito ao gosto do 3.º quartel do século XIX.

264 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
va r i a · j ó i a s , r e t r ato s e a i c o n o g r a f i a d a s e l i t e s p o r t u g u e s a s d e o i to c e n to s

15. Vd. a sua reprodução in SOUSA, Gonçalo de Da década de 1860, a pintura matriarcal da condessa de Alpendurada, D. Josefina
Vasconcelos e – A joalharia em Portugal nos sé- Augusta Vieira de Magalhães15 (vd. Fig.4), acentua o que havíamos observado na-
culos XVIII a XX: análise socioartística. In SOU-
quela sua familiar, o que se percepciona através do grandioso adereço de diamantes
SA, Gonçalo de Vasconcelos e, dir. – Reais jóias
formado por alfinete de peito (será o mesmo da anteriormente referida viscondessa
no Norte Portugal. Porto: [s. n.], 1995, p. 31
(parcial); RIBERA, José António Moya; MAGA- de Alpendurada?), colar com centro em pingentes e brincos semelhantes. A titular
LHÃES, Artur Monteiro de – A descendência do apresenta ainda duas pulseiras de dimensão considerável.
1.º barão e 1.º visconde de Alpendurada. Lis- Havíamos já constatado esta explosão diamantífera numa miniatura da primeira meta-
boa: Dislivro Histórica, 2004, p. 181 (total). de da centúria de Oitocentos, representando a Viscondessa da Regaleira, D. Ermelinda
16. Publicada no nosso SOUSA, Gonçalo de Vas- Allen Monteiro de Almeida16 (vd. Fig.5). Rica, com grossos cabedais, a titular fez-se
concelos e – A joalharia em Portugal nos sécu- retratar repleta de peças de joalharia executadas com essa gema.
los XVIII a XX: análise socioartística. In SOUSA,
Gonçalo de Vasconcelos e, dir. – Reais jóias no
Norte Portugal. Porto: [s. n.], 1995, p. 31.

fig.8 pormenor do retrato de d. lucrécia júlia doroteia teixeira de figueiredo, pintada por
almeida santos, em 1848 (colecção da casa do casal de s. nicolau, em cabeceiras de basto).

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 265
va r i a · j ó i a s , r e t r ato s e a i c o n o g r a f i a d a s e l i t e s p o r t u g u e s a s d e o i to c e n to s

Outra pedra com figuração habitual nos retratos oitocentista é a ametista, presente 17. Vd. os exemplares publicado in SOUSA,
em algumas jóias de porte assinalável. A partir da primeira metade do século XIX, Gonçalo de Vasconcelos e – A ourivesaria no
Porto nos séculos XVIII e XIX: III – As jóias (séc.
esta gema começa a ser utilizada em larga escala17, sendo especialmente visível em
XIX). O Tripeiro. Porto: Associação Comercial do
peças actualmente em colecções do Norte de Portugal, e mesmo até na cidade do
Porto. 7.ª s., 14 (8) (Ag. 1995), p. 231; MAR-
Porto. Exemplo disso surge no retrato da condessa de Camarido, pertencente à Casa QUES, Maria da Luz Paula, coord. – Colecção de
de Santo Antonino, em Alvite, Cabeceiras de Basto18. A pintura apresenta um adereço jóias: Marta Ortigão Sampaio. [Porto]: Câmara
formado por colar de pedras de grandes quilates, brincos e alfinete oval, e, conquanto Municipal do Porto; Casa Museu Marta Ortigão
a pintura não se afirme de grande minúcia pictórica, permite evidenciar a importância Sampaio, [1997], pp. 96-97.
das gemas. Na representação iconográfica da baronesa de Mogofores, D. Ana Felícia 18. Vd. SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e – Da
de Seabra e Sousa (1791-c.1872), irmã do 1.º visconde de Seabra19, abundam estas joalharia setecentista aos eclectismos do século XX
mesmas pedras, sendo o colar formado por gemas ovais, com pendente central em em Portugal. In MARQUES, Maria da Luz Paula,
coração. Uma ametista encontra-se ainda como pedra central da pulseira – neste coord. – Colecção de jóias: Marta Ortigão Sam-
paio. [Porto]: Câmara Municipal do Porto; Casa
período era habitual as pulseiras formarem um par. Ao peito, um alfinete rectangular
Museu Marta Ortigão Sampaio, [1997], p. 34.
com orla rendilhada em ouro e motivo central formado por ramo possivelmente de
diamantes, já ao jeito romântico e típico da década de 1840. Na cintura, a titular en- 19. Publicado in REIS, José Manuel de Seabra
verga uma fivela de cinto lavrada e, nas orelhas, um par de brincos de ouro lavrados, da Costa; CALHEIROS, Gonçalo Ferreira Bandei-
ra – A Família Seabra de Mogofores. Porto: Ed.
em fuso, tudo peças coevas. De facto, o uso de peças antigas é apenas uma tradição
de Olga Costa Reis, 1998, p. 303.
na fotografia e no retrato a partir dos inícios do século XX, em função de um espírito
romântico mais avançado. São muito provavelmente também ametistas as gemas que 20. Vd. a sua reprodução in BRANDÃO, Júlio
– O pintor Roquemont. Porto: Livraria Morais,
se podem perscrutar no quadro de D. Ana Correia Leite e Almada, dos vimaranenses
1929, entratexto entre pp. 20-21.
Condes da Azenha, e saído das mãos de Auguste Roquemont20.
Na figuração oitocentista, surgem igualmente representadas personagens femini- 21. Vd. SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e - Da jo-
alharia setecentista aos eclectismos do século XX
nas adornadas com jóias em esmalte. Um dos casos mais paradigmáticos pode ser
em Portugal. In MARQUES, Maria da Luz Paula,
observado no retrato de D. Lucrécia Júlia Doroteia Teixeira de Figueiredo (vd.Fig.
coord. – Colecção de jóias: Marta Ortigão Sam-
8), da Casa de Urros, perto de Vila Real, pintado por Almeida Santos, em 1848, e paio. [Porto]: Câmara Municipal do Porto; Casa
pertencente actualmente ao acervo da Casa do Casal de S. Nicolau, em Cabeceiras Museu Marta Ortigão Sampaio, [1997], p. 39.
de Basto. O meio-adereço com que se encontra adornada esta senhora insere-se
22. Vd. SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e – Da
dentro de uma produção tipicamente nortenha, em que a filigrana se conjuga com joalharia setecentista aos eclectismos do sé-
os esmaltes. Tipologicamente, o colar apresenta um laço central com pendente em culo XX em Portugal. In MARQUES, Maria da
forma de borboleta, o que permite aferir a ligação entre as técnicas tradicionais e os Luz Paula, coord. – Colecção de jóias: Marta
motivos zoomórficos, em voga em termos internacionais21. Ortigão Sampaio. [Porto]: Câmara Municipal
A partir da segunda metade do século XIX, encontramos a figuração de camefeus em do Porto; Casa Museu Marta Ortigão Sampaio,
[1997], p. 233.
alguns retratos, nomeadamente na pintura de D. Teresa Andresa Pereira da Silva Lopo,
que mais tarde seria Condessa de Moser, e existente na Casa da Caneira, na Murtosa.
Nestas jóias, constituídas por um alfinete de peito e por uma escrava22 de dimensões
consideráveis, exalta-se o gosto pelos camafeus, um dos mais significativos motivos
das peças preciosas oitocentistas.
Os retratos de casais não são em grande número, no que se refere a exemplares
publicados. Da autoria possivelmente do pintor Auguste Roquemont, o quadro de
um casal desconhecido (vd. Fig.9), de assinaláveis dimensões, apresenta a figura
feminina sentada, nela se destacando o alfinete rectangular de ouro com esmalte e
pedraria, desenhando uma ramagem, comum, como vimos, na produção portuguesa
da década de 1840 e demonstrativo do início da produção romântica portuguesa.

266 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
va r i a · j ó i a s , r e t r ato s e a i c o n o g r a f i a d a s e l i t e s p o r t u g u e s a s d e o i to c e n to s

23. Vd. SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e – Li-


vros de desenhos de jóias do séc. XIX. In FER-
NANDES, Maria Luísa Garcia; RODRIGUES, José
Carlos Meneses; TEDIM, José Manuel, coord. –
II Congresso Internacional de História da Arte:
actas. Coimbra: Almedina, 2004, p. 423.

24. Publicada no nosso SOUSA, Gonçalo de Vas-


concelos e – A ourivesaria no Porto nos séculos
XVIII e XIX: III – As jóias (séc. XIX). O Tripeiro.
Porto: Associação Comercial do Porto. 7.ª s., 14
(8) (Ag. 1995), p. 233.

fig.9 retrato de casal desconhecido atribuído a roquemont, década de 1840


(colecção particular).

Cremos que este tipo de peças foi muito apreciado no Norte de Portugal, podendo ter
sido executada em oficinas portuenses23. Acresce a esta jóia uma corrente de relógio,
encontrando-se este preso ao vestido. No marido, de pé, ressalta a elegância de um
alfinete de gravata em forma de flor, vislumbrando-se a habitual corrente, que deixa
adivinhar um relógio no bolso do colete.
Em relação aos retratos de grupo, mencione-se o exemplar de 1850 e pintado por
João Almeida Santos, da família de D. Clotilde Faria Fernandes24 (vd. fig. 10), pre-
sente no centro do quadro ainda menina, e pertencente à colecção da Santa Casa da
Misericórdia do Porto. Na representação do senhor, à esquerda, exalta-se o botão

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 2 67
va r i a · j ó i a s , r e t r ato s e a i c o n o g r a f i a d a s e l i t e s p o r t u g u e s a s d e o i to c e n to s

fig.10 retrato da família de d. maria clotilde de faria fernandes, pintado por almeida santos, em 1850 (colecção da santa casa
da misericórdia do porto).

da camisa e a corrente presa ao colete, muito provavelmente do relógio. Na senho- 25. Publicado in SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos
ra, as peças de joalharia são simples: brincos de flor, alfinete também com motivos e – A joalharia feminina e o seu significado social
e económico em Portugal. Museu. Porto: Círculo
vegetalistas e um par de pulseiras com fechos de pedraria e várias fiadas de aljofres;
Dr. José de Figueiredo, 4.ª s., 13 (2004), p. 27.
nas mãos, usa diversos anéis, aparentemente coevos do quadro. Um par de pulsei-
ras muito semelhante encontra-se representado no retrato da Visconde de Guiães, 26. Tivemos a ele acesso pela cedência de um
D. Maria Antónia D. Maria Antónia Adelaide Taveira de Sousa de Lira e Meneses exemplar de reprodução antiga que nos foi ce-
dido pelo Arq. Jorge de Brito e Abreu, a quem
de Sousa e Alvim (1821-1907), pintada por João de Almeida Santos, em 184425, o
agradecemos. Encontra-se reproduzido no des-
mesmo pintor daquele quadro de família. A menina, a referida D. Clotilde, possui
dobrável e no cartaz da 1.ª Pós-graduação em
um alfinete triangular ao peito, com pingentes, um colar de três fieiras de pequenas História da Família, que organizámos na Univer-
pérolas e um par de pulseiras de contas de ouro. No fundo, são jóias típicas da pro- sidade Moderna do Porto.
dução portuguesa da primeira metade do século XIX, salientando-se a singeleza das
27. Na pousada de Santa Marinha da Costa, em
envergadas pela criança. Guimarães, encontram-se dois retratos de crian-
Outro exemplar pouco conhecido e de paradeiro por determinar26, é o da família do ças com cordões de ouro e outras pequenas
visconde do Pinheiro, General D. Miguel Ximenes de Sandoval e Castro, e da vis- jóias. Seria interessante desenvolver um estudo
condessa, D. Maria José de Azevedo e Silva. Nessa pintura, os membros femininos sobre as pinturas de crianças, essencialmente a
envergam jóias de um quotidiano requintado, nela se salientando, à semelhança do partir dos finais do século XVIII, e de que forma
nelas se articulam o traje com as peças de ador-
retrato de D. Clotilde Faria Fernandes referido supra, as peças de adorno precioso
no de joalharia.
usadas pelas crianças, visto que as filhas do casal eram ainda novas27.

268 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
va r i a · j ó i a s , r e t r ato s e a i c o n o g r a f i a d a s e l i t e s p o r t u g u e s a s d e o i to c e n to s

28. Publicada no nosso SOUSA, Gonçalo de Vas- Retratos masculinos


concelos e – A ourivesaria no Porto nos séculos
XVIII e XIX: III – As jóias (séc. XIX). O Tripeiro.
Nos retratos masculinos, há a notar a presença de diversas tipologias de jóias, apesar
Porto: Associação Comercial do Porto. 7.ª s., 14
de, em muitos deles, nenhuma peça de joalharia poder ser encontrada. Mas não se
(8) (Ag. 1995), p. 227.
pense que a ausência de jóias era a regra. Alfinetes de gravata, botões de camisa,
29. Vd. FERREIRA, Damião Vellozo; SOUSA, correntes de relógio mais ou menos elaboradas revelavam-se as peças mais simples
Gonçalo de Vasconcelos e – Os fundadores do
passíveis de visualizar neste tipo de pinturas oitocentistas. A estas vinham-se juntar
Club Portuense e a sua descendência. Porto:
[s.n.], 1997, vol. 2, extratexto entre pp. 62-
um rol de insígnias mais ou menos vasto, com especial destaque para a de Ordem
63; SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e – Pratas de Cristo e de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa. Vamos deixar aqui alguns
e Jóias dos 1.ºs barões de Ancede. O Tripeiro. casos, sem a preocupação de que constituam referências últimas, mas tão só para-
Porto: Associação Comercial do Porto. 7.ª s., 23 digmáticas do que acabámos de mencionar.
(1) (Jan. 2004), p. 10. Nos exemplares da primeira metade da centúria, salientam-se os alfinetes de gravata,
30. Vd. MORAES, Maria Adelaide Pereira de – essencialmente de natureza fitomórfica. Em geral tratava-se de uma flor em esmalte
Velhas casas de Guimarães. Porto: Centro de ou em pedraria, que os cavalheiros usavam na sua gravata, quebrando a monotonia do
Estudos de Genealogia, Heráldica e História branco. Era quase uma expressão de dandismo. Um destes espécimes preciosos pode
da Família da Universidade Moderna do Porto, ser observado no quadro de Manuel de Freitas do Amaral (1797-1856)28, senhor da
2001, p. 785.
Casa de Sezim, em Guimarães, em que a figura do fidalgo vimaranense, usando elegante
31. Vd. A ARTE em família: Os Almeida Furtados. colete amarelo, deixa ver uma flor presa à sua camisa, provavelmente de diamantes.
[S.l.]: Ministério da Cultura; Instituto Português Maria Adelaide Pereira de Morais, na história que escreveu29 sobre esta bonita casa de
de Museus,; Museu de Grão Vasco, 1998, p. 70.
papéis pintados, descreve-o «A julgar pelo seu bonito roupão de seda, ainda hoje exis-
32. Da colecção do Eng.º Bernardo de Azevedo tente em Sezim, foi alto, muito alto e magro Manuel Freitas do Amaral, o novo senhor
Coutinho de Vasconcelos e Sousa, Lisboa. da Casa. Tinha olhos esverdeados, sonhadores e um nada repuxados, as mãos finas,
33. Vd. a sua reprodução in FRANÇA, José-Au- delicada. E um ar romântico, triste, no seu fato negro, camisa de folhos»30. Outro alfine-
gusto – O retrato na arte portuguesa. Lisboa: te de gravata com motivo floral é ostentado pelo 1.º barão de Ancede, num quadro em
Livros Horizonte, cop. 1981, fig. 52. que se destacam igualmente insígnias de Cristo e de Nossa Senhora da Conceição, com
que foi agraciado aquele que ocupou a Presidência da Direcção da Associação Comercial
do Porto entre 1841-1844. No entanto, as peças mais habitualmente representadas
nos retratos masculinos revelam-se as correntes do relógio e, no início do século XIX,
a châtelaine, como nos anuncia a pintura do filho de Francisco Assis Marinho, passado
à posteridade pelo pincel de José de Almeida e datável do 1.º terço de Oitocentos31.
Quanto às correntes de relógio, mais ou menos elaboradas, vejam-se dois dos retratos
de Constantino António do Vale Pereira Cabral, o primeiro por Roquemont e o segundo,
já mais velho (vd. Fig.13), apresentando a corrente que ostenta um pendente com uma
gema de bom quilate. De facto, as correntes são muito comuns na pintura masculina
e também na fotografia, sobretudo na segunda metade do século XIX, em que se tor-
naram uma constante nos usos dos cavalheiros portugueses.
No que diz respeito aos militares ou altos dignitários, podemos fazer menção, logo em
1822, do retrato de corpo inteiro de Francisco da Silveira Pinto da Fonseca32, saído das
mãos do pintor João Baptista Ribeiro. O herói das guerras de resistência contra os fran-
ceses surge representado com a expressão vitoriosa, salientada pelas suas numerosas
condecorações33, nomeadamente o hábito de Cristo de lançar ao pescoço.
O retrato de João Baptista Felgueiras, secretário das Constituintes de 1820, faz também
apelo às insígnias, se bem que em número mais modesto, neste caso da Ordem de Nos-

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 269
fig.13 retrato de constantino antónio
do vale pereira cabral, mais velho,
por joão antónio correia, 1876,
com corrente e pendente com pedraria
(colecção particular).

fig.17 retrato do conde da estrela,


joaquim manuel monteiro, com diversas
insígnias e corrente, com pendente
(paradeiro desconhecido).

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
va r i a · j ó i a s , r e t r ato s e a i c o n o g r a f i a d a s e l i t e s p o r t u g u e s a s d e o i to c e n to s

34. Nesta colecção existe um retrato de sua mu- sa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, nomeadamente do hábito de lançar ao pescoço
lher, D. Maria Teresa Frederica de Sousa Holstein e do placar, que jogam notavelmente com a riqueza dos dourados da sua farda.
(1786-1841)., com um alfinete de peito oval,
Novo retrato. Desta vez trata-se do 1.º Conde de Vila Real, D. José Luís de Sousa
com ametista.
Botelho Mourão e Vasconcelos (1785-1855), pertencente à colecção das herdeiras de
35. Vd. a sua reprodução in SILVEIRA, Maria de seu descendente, D. José de Saldanha Oliveira e Sousa (Rio Maior)34. A grande experi-
Aires; TAVARES, Cristina Azevedo – Miguel Ân- ência deste diplomata traduz-se na pujança e quantidade de condecorações pintadas
gelo Lupi: 1826-1883. Lisboa: Museu do Chiado;
no quadro. Às três bandas de grã-cruz, às cinco placas e a outras condecorações vem
Instituto Português de Museus, 2002, p. 111.
juntar-se a cruz de Cristo, em que figura o Coração de Jesus, pendente do pescoço.
Igual atitude, mas pelo brilhantismo da sua carreira política, ostenta a pintura de
Miguel Ângelo Lupi35, invocando a representação do político, a meio corpo e trajando
com um sem fim de condecorações.
Duas últimas obras da pintura de retrato oitocentistas merecem referência. A primeira,
do barão de Ermida, presente na galeria da Santa Casa da Misericórdia do Porto, em
que o titular surge com um hábito de Cristo de lançar ao pescoço, pendente de vis-
tosa fita vermelha. Complementam o cromatismo da pintura os placares das Ordens
de Nossa Senhora da Conceição e de Cristo, que o titular traz ao peito. No segundo
retrato, do conde da Estrela, Joaquim Manuel Monteiro (vd. Fig.17), ressaltam as in-
sígnias de Cristo (placa e cruz de lançar ao pescoço), de Nossa Senhora da Conceição
(placar) e da Torre e Espada (colar e placar). Muito interessante e numa representação
plena de pormenor, dispõe-se uma corrente com pendente em sinete.

Conclusão
A pintura de retrato funciona como forma de perenização da memória iconográfica
das personagens que, em diferentes épocas, posaram para a tela do pintor. A percep-
ção da personalidade retratada constitui um repositório de atitudes perante diversas
realidades e contextualizações mentais da sociedade em que inserem. Nos caso dos
retratos analisados neste estudo, representam um testemunho privilegiado da ima-
gem das elites do Portugal de Oitocentos, seja no espectro da capital, do Porto ou
das terras de província, e anunciam-nos, para além do gosto trajar, o modo como
lidavam ou se faziam representar com as peças de joalharia.
Parece-nos importante tomar a percepção, para o retrato feminino, das distintas tipo-
logias de jóias utilizadas pelas senhoras portuguesas do século XIX e da variedade de
peças observadas nas diversas fases da centúria. Tal constitui uma forma privilegiada
de perceber de que modo as elites portuguesas fizeram incidir no retrato a adesão às
correntes internacionais que nortearam a produção de jóias oitocentistas. No maior
recato – ou não – do retrato masculino, vamos perscrutar idênticas atitudes, se bem
que, em termos de variedade de peças representadas, aí se verifique um número muito
menos acentuado. O brilho cabe agora às expressões públicas de reconhecimento que
o Estado emana, de que as insígnias dão claro e generoso testemunho. •
Gonçalo de Vasconcelos e Sousa

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 271
modernidade
e academismo
França, Espanha e Portugal:
diálogos cruzados

A difusão da pintura flamenga e italiana em França, e a viragem que trouxeram à


evolução do gosto e das correntes artísticas, foi uma consequência lógica das invasões
napoleónicas e dos ideais que espalharam sobre as nações ocupadas: única nação
livre, era em França que deviam permanecer as obras-primas do génio europeu, então
ofuscadas pela servidão dos povos.
Tal foi o fundamento ideológico que permitiu à França reunir, no espaço de poucos
anos, os tesouros artísticos da actual Bélgica, da Alemanha, da Itália, do Egipto e de
Espanha. O Louvre, que desde o tempo de Luís XVI começava a ser organizado como
Museu, passara a denominar-se Museu Central das Artes e, à sua frente, encontrava-
se, entre outros, o pintor David. A partir de 1803, Dominique Vivant Denon foi no-
meado director e começou a sistematizar as colecções por países e por escolas.
Das nações pilhadas por Napoleão, a Itália ocupou, naturalmente, um lugar àparte.
Em 1797, partiram de Roma com destino a Paris muitas obras-primas da Antiguidade,
e ainda de Rafael e de Caravaggio, que pertenciam ao Vaticano. O movimento neo-
clássico, elegendo simultaneamente a beleza ideal e a veracidade naturalista como o
cânone do Belo absoluto, levara a idolatrar Rafael como o modelo a seguir na Pintura.
David, e, sobretudo, Ingres, viram no pintor o exemplo máximo do equilíbrio e da
harmonia, a conciliação do ideal e do natural, da verdade e da poesia.
Dividida entre o neoclassicismo e o Romantismo nascente, com o seu culto dos valo-
res heróicos, a sociedade do Consulado e da Restauração teria mais dificuldades em
apreciar a pintura espanhola. Na época das invasões napoleónicas, existiam apenas,
no Louvre, algumas obras de Murillo e o Retrato da Infanta Margarida, do atelier de
Velázquez, que pertencera à colecção real. Velásquez tinha, no entanto, dois impor-
tantes cultores: o coleccionador Pierre-Jean Mariette, que, em 1817 e em 1818, se
instalara em Viena, onde existia uma boa colecção de retratos do mestre espanhol, e
o marchand Jean-Baptiste-Pierre Lebrun, marido da pintora Elisabeth Vigée-Lebrun,
que organizara uma venda de quadros de pintura espanhola em Paris, em 1810.
Os únicos pintores espanhóis relativamente conhecidos em França eram Murillo e
Ribera. Este último, que se havia instalado em Nápoles e fora um fervente segui-
dor de Caravaggio, era sobretudo apreciado pelos artistas franceses que viajavam a
Roma e que acabavam por prolongar a sua estadia em Nápoles. Porém, muitos dos
quadros atribuídos a Ribera eram, na realidade, de outros pintores, nomeadamente
italianos, como Luca Giordano.

272 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
va r i a · mo d e r n i da d e e ac a d e m i s mo

A pintura espanhola era, assim, quase ignorada em França. E, todavia, muitos dos
embaixadores franceses em Madrid eram homens de gosto e estetas, como Ferdi-
nand Gillemardet que, nomeado embaixador em 1792, se fez retratar por Goya e
levara consigo para Paris, em 1800, um exemplar dos Caprichos que teria um grande
impacto na carreira de Delacroix. Lucien Bonaparte, que lhe sucedera no cargo, em
1801, levou para França 90 obras de pintores espanhóis. Mas Lucien Bonaparte partiu
de imediato para Roma, onde ficou até 1814, sendo a sua colecção dispersada em
Londres, dois anos mais tarde.
Foi o adido da embaixada, Alexandre Louis Joseph de Laborde, na obra Voyage pito-
resque et historique de l’Espagne (1806-1820), o primeiro a chamar a atenção para
a excelência da pintura espanhola do século XVII, definindo-a como uma síntese da
escola italiana e flamenga. Mais naturalista que a primeira e mais nobre do que a
segunda, a pintura espanhola distinguia-se, segundo Laborde, pela sua sensualidade,
o seu colorido e o seu misticismo. Em 1816, o marchand Frédéric Quilliet, que se
havia instalado em Madrid, viria a editar uma espécie de manual, o Dictionnaire des
peintres espagnols, tendo como principal referência o Diccionario de Ceán Bermúdez,
publicado em Madrid em 1800.
Em 1807, depois de ter consolidado a sua posição a leste da Europa e de ter ce-
lebrado o tratado de paz com a Rússia, Napoleão pretendeu isolar definitivamente
a Inglaterra e invadiu o aliado luso. Conhecemos a sequência dos acontecimentos:
Junot chegou a Portugal, mas a família real exilara-se no Brasil. No ano seguinte, foi
a Espanha que foi invadida devido às hesitações de Carlos IV, dividido entre a cola-
boração com Napoleão e a entrada em guerra. Carlos IV abdicou em favor do filho,
Fernando VII, que, por sua vez, abdicou em seguida, e Napoleão tomou finalmente
posse do reino espanhol.
À sua frente, foi José Bonaparte, o irmão mais velho, que o imperador colocou no
trono, depois de uma resistência renhida do povo madrileno, e da violenta repressão
que se lhe seguiu e que Goya imortalizou nos quadros das revoltas do Dois e Três
de Maio de 1808, do Museu do Prado. Este último quadro em particular, executado,
como o Dois de Maio de 1808, em 1814, terá uma importância determinante na
obra de Edouard Manet.
De acordo com as ordens do imperador, Vivant Denon deslocou-se a Espanha para
escolher uma cinquentena de quadros, mas José Bonaparte não se mostrou muito
cooperativo. Rodeando-se de conselheiros, entre os quais Goya, José Napoleão criou,
em 1809, um Museu de Pintura em Madrid com os quadros confiscados às ordens
religiosas e à nobreza. Entretanto, Soult, em Sevilha, reuniu uma verdadeira colecção
de arte espanhola, que levou para Paris. Foram, no total, 180 quadros, entre os quais a
Imaculada Conceição de Murillo, adquirida após a dispersão da colecção do Marechal,
em 1852, para o Museu do Louvre. Delacroix estudou de perto esta obra no palacete
de Soult, situado na rua de l’Université em Paris. Depois de negociações diplomáticas,
após a guerra civil de Espanha, o quadro passou a integrar a colecção do Prado.
Quando José Napoleão deixou a Espanha, em 1813, levava consigo um espólio de
cerca de 165 quadros, que Hugo Wellesley, Duque de Wellington, confiscou na bata-

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 273
va r i a · mo d e r n i da d e e ac a d e m i s mo

fig.1 velásquez, as meninas , 1656 - 1657.

lha de Vitória e que, em seguida, Fernando VII lhe ofereceu. Entre eles, encontrava-se
o célebre Vendedor de água de Sevilha de Velásquez, que faz parte da colecção do
seu antigo palácio em Londres, actualmente museu (Wellington Museum). Quanto
aos quadros requisicionados por Napoleão para o Museu do Louvre, foram uma de-
cepção para Vivant Denon, que os considerou sem mérito artístico de maior. E, no
entanto, expostas em 1816, num museu Napoleão rebaptizado Museu Real, estas
obras causaram uma viva impressão, como foi o caso da Mulher com barba, de Ribera,
bem como outras, que Soult havia doado ao Louvre, e entre as quais se destacavam
a Apoteose de S. Tomás de Aquino e as decorações de Murillo para a igreja de Santa
Maria de la Blanca, de Sevilha.
Após esta exposição, o Estado francês restituiu parte dos quadros trazidos para Vivant
Denon, bem como alguns dos da colecção Soult. Mas, antes de ganharem novamente
a Espanha, estas obras foram estudadas pela nova geração de artistas. Géricault, por
exemplo, copiara a Mater Dolorosa de Ribera, Gérard a Santa Teresa de Zurbáran.
A influência de Zurbáran manifesta-se na obra de Delacroix, entre 1824 - 1827,

2 74 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
va r i a · mo d e r n i da d e e ac a d e m i s mo

como na cópia de uma Santa Catarina, que pertence ao Museu de Belas-Artes de


Béziers, e do quadro Jesus no jardim das oliveiras, da igreja de S. Paulo e S. Luís, em
Paris; Ribera inspirara, dois anos antes, o Cristo na Cruz de Pierre-Paul Proudhon,
que pertence ao Museu do Louvre. E o próprio David encontrara, em 1800, num
dos numerosos quadros equestres de Velásquez, o modelo para o célebre Napoleão
atravessando os Alpes, do Museu de Rueil-Malmaison.
Ao seu regresso a Madrid, os quadros que não pertenciam às instituições religiosas
foram depositados numa ala do palácio do Bom Retiro. Ficou, assim, constituído o
primeiro núcleo do Real Museo de Pintura y Escultura, que abriu as suas portas em
1819, e que, cinquenta anos mais tarde, seria denominado Museu do Prado. Ironia
do destino, o novo museu vinha dar corpo ao projecto de José Bonaparte, que pre-
tendera reunir um núcleo de pintura espanhola tendo por centro as obras da colecção
real, segundo a herança do Renascimento e, em particular, de Ticiano. A abertura do
Real Museu de Pintura teve consequências importantíssimas para a evolução artística
do século XIX: a partir dos anos 30 e 40, uma nova geração de pintores podia estudar
directamente as obras de Murillo, de Ribera, de Zurbáran, e, sobretudo, de Velázquez,
de cujo atelier o Louvre guardaria apenas o pequeno retrato da Infanta Margarida.
Em 1831, Prosper Mérimée, que ficara perplexo com a quantidade de obras-primas do
museu espanhol, afirmava que As Meninas, de Velázquez (Fig. 1), eram a obra-prima
do artista. Vinte anos mais tarde, Velázquez, ignorado ao princípio do século, era já
considerado como o primeiro pintor europeu, depois de Ticiano – e já não de Rafael.
Este sucesso encorajou Luís-Filipe de Orleães, casado com uma prima de Fernando
VII, Marie-Amélie de Bourbon-Sicile, a adquirir uma colecção de arte espanhola. Em
1837, com a ajuda do barão Taylor, que havia publicado um guia de viagem pitores-
co de Espanha e de Portugal, adquiriu 400 quadros, aos quais vieram juntar-se, em
1842, um legado inglês, de mais 120, que passaram a ser expostos em permanên-
cia no museu do Louvre. A grande novidade da colecção, além dos 80 Zurbáran de
qualidade excepcional, consistiu na revelação do pintor El Greco, com cerca de oito
telas. Uma dessas obras, que pertence ainda ao museu do Louvre, é o Cristo na Cruz
com o retrato de dois doadores, de cerca de 1585 - 1590. Outra novidade foram os
quadros de Goya, de uma qualidade excepcional, como a Forja, da Frick Collection
de Nova Yorque, ou ainda As Velhas ou o Tempo (1808 -1812), do Museu de Lille.
Mas, após a queda da monarquia de Julho, a colecção, que a jovem República doou
aos Orleães, foi vendida em hasta pública, em Londres, em 1853. Com esta venda,
a arte espanhola foi enriquecer as colecções de Londres, de Viena, de Berlim, de
Dresde, de Munique, de S. Petersburgo, de Budapeste e da América do Norte. Um
dos quadros que pertencera à colecção de Luís-Filipe é o Retrato de dom Andrès
de Andrade y la Cal, de Murillo, do Metropolitan Museum de Nova Yorque. Outro,
atribuído a El Greco, é a Mulher com casaco de peles, da Pollock House de Glásgua,
que influenciou consideravelmente a arte do retrato.
Com a galeria de Luís-Filipe, a escola espanhola conquistara definitivamente os seus
títulos de nobreza, a par da flamenga, da italiana e da francesa. Mas o mais impor-
tante é que, depois de ter influenciado a geração romântica, a “maneira” espanhola,

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 275
va r i a · mo d e r n i da d e e ac a d e m i s mo

com o seu modelado e o seu colorido, ia provocar uma importante viragem estética
e marcar definitivamente a geração realista. Jean-François Millet foi o primeiro a
assumir esta filiação, ao pintar santas com uma religiosidade doce e austera, como
uma Santa Bárbara de 1841, do Museu de Angers. Na mesma década, Corot imitou
o estilo dos frades de Zurbáran e os retratos da galeria espanhola de Luís - Filipe.
Chassériau, a Vélazquez, Zurbáran, El Greco ou Ribera, preferiu, pelo contrário, a
maneira de Pacheco e de Luís de Morales.
A escola espanhola foi uma fonte de anticlassicismo que veio responder às aspirações
da jovem pintura, que rejeitava o Belo ideal herdado de Rafael e a dramaturgia, o co-
lorido e o dinamismo das composições românticas. A Espanha abria, assim, as portas
a uma nova maneira de captar a realidade, com o seu gosto pela veracidade e a sua
abertura às emoções humanas. Ao mesmo tempo, a pintura espanhola prestava-se,
do ponto de vista da execução, a uma grande economia de meios e o seu colorido
escondia, subjacente, um gosto sensual pela matéria pictural. Courbet foi o primeiro
a assumir a ruptura, ao introduzir, a par do naturalismo da representação, a técnica
da pintura de Velázquez. O célebre quadro-manifesto do Atelier de pintura, de 1854
-1855, que pertence ao Museu de Orsay, é, antes de tudo, uma reflexão sobre a re-
presentação do espaço, em emulação com As Meninas de Velázquez.
Encorajado pelo pintor Léon Bonnat, Edgar Degas começou a interessar-se pela es-
cola espanhola nos meados dos anos 50. Em 1857-1858, encontrando-se em Roma,
Degas executou uma Variação sobre As Meninas de Velázquez ou Homenagem a
Velásquez. Este pequeno quadro a óleo de Degas, que se encontra na Bayerische
Staatsgemäldesammlungen de Munique, reflecte o seu interesse pela pintura espa-
nhola na pátria de Rafael, onde existia apenas, como obra original de Velázquez, o
Retrato de Inocêncio X, da galeria Doria-Pamfili.
Em 1861, Manet estreia-se no Salon, isto é, no local onde se divulga e oficializa a
cultura artística, com o quadro o Cantor espanhol (Fig. 2), que executara no ano
anterior. Esta obra, que pertenceu ao barítono Jean-Baptiste Faure, foi adquirida,
em 1906, pelo galerista Durand-Ruel – que já a tinha vendido a Faure –, e que de
imediato a vendeu a William Church Osborn, membro influente do Trustee do Me-
tropolitain Museum de Nova Yorque, ao qual legou o quadro, em 1949. O Cantor
espanhol, que foi premiado com uma menção honrosa, chamou a atenção, não tan-
to pelo assunto, mas pela maneira, inovadora, da pintura. Em 1862, Manet travou
conhecimento com Degas, na galeria do Louvre: os dois artistas encontraram-se a
copiar o Retrato da Infanta Margarida.
Decididamente, a Espanha andava na moda. O teatro, a música, a pintura e, mesmo,
a imperatriz, Eugénia de Montijo, vinham de Espanha. O conde James-Alexandre de
Pourtalès e o duque de Morny eram grandes coleccionadores de pintura espanhola.
Ao duque de Morny pertencia o Retrato da Infanta Maria Teresa, de Juan Bautista
del Mazo, que pertence actualmente ao Metropolitain Museum de Nova Yorque.
Mas Manet não necessitara de visitar as colecções particulares, pois a colecção de
Luís Filipe só deixou a França nos finais dos anos 40, quando o pintor, que nascera
em 1832, já havia iniciado a sua aprendizagem artística.

276 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
va r i a · mo d e r n i da d e e ac a d e m i s mo

fig.2 manet, o cantor espanhol , 1860.

1. Manet, Velasquez, La manière espagnole au O quadro de Manet trouxe-lhe uma certa popularidade nos círculos artísticos pois,
XIXe siècle. Catálogo, Paris, Réunion des Musées ainda em 1868, um crítico, referindo-se ao Cantor espanhol, sustentava que o gosto
Nationaux, 2002, p. 70.
pelos tons negros se tinha agravado no artista. Degas foi, sem dúvida, um dos seus
maiores admiradores de tal modo que passaria a década de 60 a confrontar-se com
Manet na técnica de assimilar a pintura espanhola. O Retrato de Lorenzo Pagans e
Auguste De Gas, de 1871 - 1872, do Museu de Orsay, pode considerar-se como uma
meditação, dez anos depois, do Cantor espanhol de Manet.
Na sua viagem a Espanha, em 1865, Manet diria, numa carta a Fantin-Latour, que
Velázquez era o “peintre des peintres” 1. As Meninas, mas também os retratos de
Alonzo Cano e do bufão Pablo de Valladolid, de 1636 -1637, do Museu do Prado,

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 277
va r i a · mo d e r n i da d e e ac a d e m i s mo

com o seu fundo uniforme, onde o ar circula, foram as obras de Velásquez que mais
admiração lhe causaram. Elas inspiraram-lhe, entre outros, o Retrato do actor Rou-
vère da National Gallery de Washington, que executou ainda em 1865 - 1866.
Mas não foram só os pintores “modernos” que contribuíram para ditar a moda de
um realismo revisto à luz dos valores picturais e cromáticos espanhóis. Esta visão da
pintura do século XIX, que considera o impressionismo como uma vanguarda iso-
lada, em ruptura com a arte académica, necessita de ser revista. Numerosos foram
os artistas ditos oficiais, ou académicos, que adoptaram o exemplo dos modelos
espanhóis redescobertos em meados do século XIX. Entre eles, destaca-se o pintor
Léon Bonnat, que habitara em Madrid de 1846 a 1856, e frequentara a Academia
de Belas-Artes de S. Fernando. Bonnat, que contou como discípulos a maior parte
dos pintores portugueses que foram estudar para Paris, foi um fervente admirador
dos mestres espanhóis. À sua cidade natal, Bayonne, deixou não só uma importante
colecção de obras de Goya, de El Greco e de Ribera, mas ainda cópias do Retrato de
Inocêncio X de Velázquez e de um S. Paulo eremita de Ribera, de cerca de 1652. Este
último, entre outros, serviu-lhe de modelo para o quadro de pintura histórica Job,
também do Museu de Bayonne, que expôs no Salon de 1863, no mesmo período em
que Degas e Manet se lançavam mutuamente no desafio da maneira espanhola. Degas
viajará em Espanha apenas em 1889 e, nessa altura, dar-se-à conta da extraordinária
fluidez da pintura de Velásquez, ao mesmo tempo que descobre a obra de El Greco,
já então admirado quanto o mestre espanhol.
O Retrato de Thèrése De Gaz do Museu de Orsay, executado por Degas em 1863, e
construído habilmente entre várias verticais sobre um fundo de paisagem realizado
em pinceladas fluídas, documenta a mesma obsessão do tratamento do negro e uma
pesquisa sobre o retrato em movimento que Manet não cessara de estudar na obra
de Velásquez, na qual vira também uma solução para a modelação dos volumes sem
recurso ao claro - escuro.
Por outro lado, a influência da pintura espanhola verificou-se igualmente na compo-
sição das obras, com um tipo de enquadramento inovador dos temas e dos motivos,
privilegiando a ilusão de instantâneo, à semelhança da fotografia, o movimento e
as situações do quotidiano. Quadros célebres como Le balcon (1868 - 1869), de
Manet (Museu de Orsay), não podem compreender-se sem uma comparação com as
Majas à varanda (1808 - 1812), de Goya ou de um próximo de Goya (Metropolitain
Museum de Nova Yorque).
Renoir, James Whistler e Sargent renovaram a arte do retrato graças, em parte, à
confrontação directa com a pintura espanhola, ou à sua audaz interpretação por Ma-
net. Se Renoir, no Retrato de Mademoiselle Romaine Lacaux, de 1864, do Cleveland
Museum of Art, se inspira ainda directamente no Retrato da Infanta Margarida do
Louvre, já James Whistler, no Retrato de Mademoiselle Cicely Alexander, de 1872-
1874, da Tate Gallery, Londres, trabalhou os modelos espanhóis à luz de Manet. Ou-
tro pintor americano, William Merritt Chase, preferiu, pelo contrário, a confrontação
directa com os mestres espanhõis. O quadro Hall at Shinnecock, de 1892, da Terra
Foundation for the Art, Chicago, é uma reinterpretação das Meninas de Vélásquez.

278 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
va r i a · mo d e r n i da d e e ac a d e m i s mo

O tema do retrato colectivo, posto em perspectiva no espaço que rodeia as figuras,


fora já tratado por John Singer Sargent. Filho de um médico americano que emigrara
para a Itália, e tendo feito a sua primeira educação artística em Roma e em Florença,
Sargent estudara em Paris com Carolus-Duran, o qual, por sua vez, foi um grande
admirador do mestre espanhol. A influência das Meninas na obra de Sargent é patente
no Retrato das Filhas de Edward Derley Boit, de 1882, do Museu de Belas-Artes de
Boston, e influenciará, por sua vez, Joaquín Sorolla no Retrato da Família de Rafael
Errázuriz, de 1905, da colecção Masaveu (Fig. 3).
Mas voltemos a Carolus-Duran: mestre de Sargent, admirador de Velásquez, a sua
obra marcou igualmente a de um outro pintor, português, Columbano Bordalo Pi-
nheiro, cujo colorido se compara, por contraste, à do seu contemporaneo Malhoa,
como o sol e as sombras da arte portuguesa de finais do século XIX. Na realidade, a
reflexão sobre a influência da maneira espanhola na pintura da segunda metade do
século XIX, permitir-nos-à analisar que tipo de modernidade pôde veicular através
destes dois artistas: Columbano e Malhoa.
Sobre a admiração de Carolus-Duran por Espanha, ela deve-se, em parte, à sua ami-
zade com Manet. Se este último visitou o Prado em 1865, Carolus-Duran empreendeu
a viagem a Madrid logo no ano seguinte (e fá-lo-á novamente dez anos depois),
copiando numerosos quadros de Velázquez. A sua influência na obra de Carolus-
Duran reflecte-se quer na técnica pictural – paleta reduzida, pincelada fluída, gama
de cinzentos -, quer no modo como dispõe e enquadra os modelos. O Retrato de
Hector Brane, de 1871 (colecção particular), inspira-se claramente no Retrato do
Príncipe Baltasar Carlos em traje de caça de Velásquez, de 1635. Do mesmo modo,

fig.3 joaquín sorolla, retrato da família de rafael errázuriz , 1905.

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 279
va r i a · mo d e r n i da d e e ac a d e m i s mo

fig.4 carolus-duran, estudo para lilia , 1887.

os numerosos retratos femininos que executou nas décadas seguintes poderiam ser
o de princesas espanholas em trajes modernos.
Todavia, a arte de Carolus-Duran assimila não só a lição de Velásquez no tratamento
dos negros sobre um fundo uniforme, como também uma certa elegância mundana
proposta por Manet, mas que Carolus-Duran transforma em postura aristocrática,
como no magnífico Retrato de Senhora com luva, de 1869, do Museu de Orsay.
Columbano estreou-se na Sociedade Promotora de Belas-Artes com um Bódegon,
em 1872. Não sabemos onde se encontra o quadro, mas a designação de Bódegon,
ou natureza-morta em espanhol, são sem equívoco relativamente à sua fonte de
inspiração. Durante os anos 70, Columbano continuou a pintar cenas de género,
que já os seus contemporaneos declararam influenciadas por pintores espanhóis co-

280 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
va r i a · mo d e r n i da d e e ac a d e m i s mo

2. Ver O Ocidente, n.° 53, 1/3/1880, p. 38. evos, nomeadamente Eduardo Zamacóis e Zabala (1842-1871), e Vicente Palmaroli
y Gonzalez (1834-1896)2. O quadro que destinara à Exposição Universal de Paris em
1878, e que foi recusado pelo júri, o D. Quixote y Sancho Pança depois do jantar em
casa do fidalgo que se encontra no Palácio da Pena, mostra-nos uma cena de interior
onde as personagens, reunidas em torno de uma mesa, fariam mais pensar na pintura
holandesa, se não fosse a pincelada fluída e a natureza-morta sobre a mesa.
Mas foi, certamente, a ida de Columbano para Paris, em 1881, que veio a afirmar a
maneira espanhola do pintor. Diz-se que Columbano preferiu, ao ensino artístico de
Carolus-Duran, visitar museus e estudar em liberdade. Ora, mesmo se a tendência
de Columbano se manifestava para a pintura de interiores, à maneira espanhola ou
holandesa, cremos que foi o estudo de Velásquez através do mestre Carolus-Duran
que lhe permitiu avançar para a sua maturidade artística.
Com efeito, em 1882, Columbano estreou-se no Salon como discípulo de Carolus-Du-
ran. A obra aí apresentada foi a Soirée chez lui, do Museu do Chiado. Se Columbano
já tratara vagamente o tema em Convite à valsa, quadro exposto em Lisboa em No-
vembro de 1880, e que faz parte do acervo da Casa-Museu Anastácio Gonçalves, na
Soirée chez lui a influência de Carolus-Duran é flagrante. De facto, como não pensar
no Retrato de Madame Georges Petit do Museu de Lille, executado por Carolus-Duran
em 1879, como modelo do retrato feminino da Soirée chez lui de Columbano?...
A influência de Carolus-Duran perdurará na obra de Columbano, já que o seu estilo se
formou e se consolidou nos anos 80. A cabeça, notável, de Carolus-Duran intitulada
Estudo para Lilia, de 1887, que pertence à National Gallery de Washington (Fig. 4),
revela afinidades estilísticas evidentes com a célebre Chávena de chá de Columbano
de 1898, do Museu do Chiado.
Em 1889, Columbano, de visita à Exposição Universal de Paris, pôde apreciar, pela
primeira vez, os pintores espanhóis do Museu do Prado. O mais curioso é que data
também deste ano o famoso Retrato de Antero de Quental do Museu do Chiado, no
qual se pode entrever uma maior liberdade de factura, e a quase diluição da figura no
fundo sobre uma paleta de tons quase monocromáticos. Porém, na mesma ocasião em
que Columbano se encontrava em Paris, o pintor norueguês Frits Thaulow, que se des-
locara igualmente à capital francesa para a Exposição Universal, posou para Carolus-
-Duran, que realizou então um notável retrato do artista que se encontra no Museu de
Oslo. As afinidades entre o Retrato de Antero de Quental de Columbano e o Retrato
do pintor Fritz Thaulow, de Carolus-Duran, não deixam de ser interessantes.
Em 1899, Columbano voltou a repensar a pintura de Velásquez num quadro espa-
nholizante, uma Cabeça de cavaleiro do Museu Nacional Soares dos Reis, que mais
nos parece um curioso Auto-retrato. Se, neste tipo de obras, Columbano revela uma
maior ligação aos modelos do século de oiro, a sua passagem pelo atelier de Carolus-
-Duran, cuja pintura admirava, permitiu-lhe adquirir uma emancipação dos modelos
académicos, rejeitando definitivamente a pintura com aspecto de “acabado”, o “fini”
que aumenta a ilusão da realidade, ou seja, o efeito tridimensional que é o objectivo
da pintura académica. A pincelada fluída, a negação do modelado pelo claro-escuro,
a primazia do psicológico em relação à convenção, e a vontade afirmada de captar,

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 281
va r i a · mo d e r n i da d e e ac a d e m i s mo

com a expressão e a cor – mesmo se a sua paleta é sombria –, a sociedade que o 3. Cf. VERDELHO DA COSTA, Lucília da, Amar
rodeava, permitiram a Columbano afirmar uma modernidade inspirada, directa ou o outro mar. A pintura de Malhoa, Lisboa / Rio
de Janeiro, Ministério da Cultura / GRCI, 2003.
indirectamente, na pintura espanhola.
Quanto a Malhoa, ele vai prestar, em duas obras emblemáticas, Os Bêbedos (1907)
e O Fado (1910), uma brilhante homenagem a Velásquez. No entanto, neste último,
onde também se pode apreciar a influência indirecta de Velásquez através de Manet,
o seu eclectismo, a meio caminho entre tradição e modernidade, dá provas dos seus
limites no entendimento da ruptura com o academismo que Manet, e os impressio-
nistas, provocaram meio século atrás, e a sua vontade de elevar uma cena trivial ao
nível de uma pintura de História – ou seja, de assumir deliberadamente uma postura
naturalista e académica.
Malhoa veraneou em Toledo em 1884 e visitou, cremos que pela primeira vez, Madrid,
e, sobretudo, o Museu do Prado, como era a tradição. Data, sem dúvida, desta estadia,
a sua descoberta da pintura espanhola, e provavelmente de Velásquez, que sabemos
que era o pintor que mais admirava, como confessou numa carta de 1913, possivelmen-
te endereçada ao amigo Cruz Magalhães3. Foi, também, depois desta visita que Malhoa
começou a pintar cenas de género, nomeadamente o quadro que o lançou, o Viático ao
termo, que apresentou, no final do ano, na 4.a Exposição do Grupo do Leão. Todavia,
a influência da pintura espanhola, sem dúvida colhida através de gravuras, havia-se já
revelado no Retrato de Carlos Relvas montando Salero, da Casa-Museu dos Patudos,
Alpiarça, de 1881, inspirado nos numerosos quadros equestres de Velásquez.
Malhoa não perdeu o contacto com a Espanha, onde se demorou, novamente, em
1901. Desta estadia, podemos colher ecos no Retrato do Fotógrafo Novais, do mesmo
ano, exposto no Museu José Malhoa de Caldas da Rainha, e, sobretudo, do Retrato
do Barão do Alvito, António Lobo da Silveira, sob o título de Cavaleiro de Santiago,
de 1904, que lhe trouxe um grande sucesso no Salon e que acabou por vender para
o Chile, em 1911. Sem falar ainda do Retrato de Júlia Malhoa, com leque e traje de
espanhola, executado possívelmente já nos anos 10, e onde é palpável a influência
de Velásquez através da obra de Manet.
Mas é em 1907 que a pintura espanhola lhe fornece o modelo para uma das suas
obras mais famosas, o quadro Festejando o S. Martinho ou Os Bêbedos, em exposição
no Museu de Caldas da Rainha. A filiação d’Os Bêbedos nos acólitos de Dionísio do
quadro Bacchus, do Museu do Prado, executado por Velásquez em 1628 - 1629, é
incontestável. Em vez de uma cena de ar livre, num Olimpo edénico, Malhoa inseriu
os protagonistas no interior de uma adega, o grupo reunindo-se em torno de uma
mesa, que marca as diagonais sobre as quais se constrói o quadro, num processo aná-
logo ao que utilizará n’O Fado, três anos mais tarde. Dionísio, ou Baco, desaparece,
para só ficarem os bêbedos, executados com um grande realismo, numa espécie de
natureza-morta à maneira holandesa, mas cuja técnica pictural, em massas fluídas,
e com uma grande sobriedade de meios, imita a de Velásquez.
Outra homenagem ao pintor espanhol, e que parece menos evidente, é a que resulta
de uma análise mais aprofundada d’O Fado, de 1910. Ao mesmo tempo, este qua-
dro de Malhoa apresenta estranhas afinidades com O Cantor espanhol de Manet, do

282 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
va r i a · mo d e r n i da d e e ac a d e m i s mo

4. SALDANHA, Nuno, José Vital Branco Malhoa Metropolitain Museum de Nova Yorque, reunindo assim, directa e indirectamente,
(1855-1933). O pintor, o mestre e a obra, Tese duas influências espanholizantes.
de Doutoramento apresentada na Universidade
Não me restam dúvidas de que Malhoa, que descobriu a obra de Manet numa época
Católica, Faculdade de Ciências Humanas, De-
tardia da sua carreira, conhecia o Cantor espanhol, o problema principal consistin-
zembro de 2006.
do no como e no quando Malhoa teria visto uma reprodução do quadro. Graças à
5. DURET, Théodore, Histoire de Edouard Manet correspondência de Malhoa com José Relvas dada à luz por Nuno Saldanha 4, pôde
et de son oeuvre avec douze illustrations, Paris,
apurar-se que José Relvas, que em parte influenciou a sua cultura artística, lhe em-
Librairie Charpentier et Pasquelle, 1902.
prestara dois livros, um sobre Manet, outro sobre Courbet, em 1907.
6. MOREAU-NÉLATON, Etienne, Manet Gra- Ora, a obra mais interessante publicada sobre Manet nesta época é a de Théodore
veur et Lithographe, Paris, Éditions du Peintre-
Duret, editada pela primeira vez em 1902, e novamente num pequeno formato em
Graveur Illustré, Chez Loys Delteil, 1906.
1906, e intitulada Histoire de Edouard Manet et de son oeuvre avec douze illus-
7. BAZIRE, Edmond, Manet, Paris, A. Quantin, trations5. Neste livro, extremamente bem documentado, mas no qual não vem re-
1884. Obra ilustrada, com um apêndice de 8 fo-
produzido o quadro O Cantor espanhol, Théodore Duret relata o início da carreira
lhas com estampas.
artística de Manet e a sua decisão de romper com a tradição académica e de pintar
a vida moderna, como preconizava o seu amigo Baudelaire, bem como os combates
aguerridos que tal ruptura iria suscitar.
Este olhar privilegiado de Théodore Duret sobre a obra de Manet explica-se pela
amizade que os uniu a ambos. Quando, em 1865, Manet partiu para Espanha, travou
conhecimento, num restaurante madrileno, com este grande viajante, negociante
de conhaque, e grande amador de arte e escritor. Manet e Théodore Duret não só
acabaram por descobrir Madrid juntos, mas também Toledo, onde se deslocaram
propositadamente para apreciar a pintura de El Greco. Três anos mais tarde, Manet
executaria o Retrato de Théodore Duret, que pertence à colecção do Museu do Pe-
tit Palais em Paris, e onde surge em pé, sobre um fundo uniforme. O quadro acusa
a influência dos retratos de bufões de Velázquez, ou ainda do Esopo do Museu do
Prado, mas uma das suas inovações é também a natureza-morta, com um colorido
de tons ácidos, executada sobre o pequeno banco junto do retratado.
Quanto ao quadro O Cantor espanhol, ele era bem conhecido dos meios artísticos, já
que, tendo obtido uma medalha no Salon de 1861, foi largamente divulgado através
da gravura da obra executada por Manet em 1861-1862 – e editada várias vezes em
vida do artista e, ainda, em 1905, pelo editor Strölin. Ora, em 1906, Etienne Moreau-
Nélaton publicou um livro sobre a obra gravada de Manet6, na qual é reproduzida uma
primeira prova da gravura do Cantor espanhol da colecção de Degas, não assinada
por Manet, e ainda uma terceira prova da mesma gravura, com a indicação de que
o quadro fora exposto no Salon sob o título Espanhol tocando guitarra. Esta última
gravura pertencia ao editor Loys Delteil. Todavia, Manet não só não copia servilmente
o seu próprio quadro, como também não procura inverter a posição do cantor para
que, uma vez impressa, a estampa retome a composição original.
Outra obra sobre Manet, dada à estampa em 1884, foi a de Edmond Bazire, sob o
título Manet 7, e na qual apresenta um calque do Cantor espanhol a partir da gravura
de Manet, bem como o célebre comentário à obra de Théophile Gautier publicado no
Moniteur Universel de 1861 em que refere que o Cantor espanhol é uma invenção
de atelier, bem como o são os diversos elementos heterogéneos que serviram para

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 283
va r i a · mo d e r n i da d e e ac a d e m i s mo

caracterizar o guitarrista – a jaqueta, o lenço e o chapéu, e ainda o banco, o jarro 8. BAZIRE, Edmond, Manet, op. cit., p. 22.
e as cebolas –, guitarrista que não era mais do que um parisiense de Montmartre8. 9. Ver Manet. 1832 -1883 (Catálogo), Paris,
Quanto à verdade da cor, o quadro havia sido pintado na gama de cinzentos e de Ministère de la Culture, Éditions de la Réunion
negros de Velásquez e que viria a ser a paleta dominante de Manet, mas ainda sem des Musées Nationaux, 1983, pp. 63 - 67. Ver
a virtuosidade técnica que adquiriria mais tarde. também The Metropolitain Museum of Art New
No entanto, tanto Carolus-Duran, como Fantin-Latour, como ainda outros jovens York. Chefs-d’oeuvre de la peinture européenne
(Catalogue), Martigny, Fondation Pierre Giana-
artistas, compreenderam o quanto era estranha a nova maneira de pintar, o próprio
dda, 2006, n.° 43.
Manet contando com orgulho que tinha executado a cabeça com uma rapidez ex-
traordinária, em duas horas, sem mais um único retoque. Os jovens teriam então re- 10. Cf. ADLER, Kathleen, Manet, Phaidon,
Oxford, 1986, p. 33.
solvido ir ao atelier de Manet para o questionar. Mais tarde, teriam trazido um poeta
(Baudelaire). Nascera, assim, a pintura moderna e Manet como seu chefe-de-fila9. 11. Ver ARASSE, Daniel, On y voit rien. Descrip-
Baudelaire saudou o génio espanhol que finalmente encontrara refúgio em França10. tions, folioessais, Editions Denoël, 2000, p. 177
e segs.
O quadro tinha o seu quê de provocador, pois o guitarrista toca, com a mão esquerda,
uma guitarra feita para tocar com a outra mão. E, uma vez observada esta incon-
gruência, o seu vago lado romântico, associado à tradição dos músicos na pintura,
desaparece completamente.
O tema já havia sido tratado por Courbet e por Couture, que fora mestre de Manet. A
título de curiosidade, Gauguin irá também pintar Um guitarrista, em 1894 (colecção par-
ticular, Suíça), mas, nessa época, já o modernismo de Manet havia sido ultrapassado pelo
sintetismo cromático dos nabis, em substituição do desenho e da tradição académica.
Mas voltemos a Malhoa e ao Cantor espanhol. Em nossa opinião, Malhoa teve nas
mãos, em 1907, um exemplar da obra de Bazire sobre Manet, e, durante a sua estadia
em Paris no ano seguinte, teria tido curiosidade em observar as suas obras. Na rea-
lidade, n’O Fado, encontramos ecos da técnica dos negros de Manet, em particular
no tratamento dos adereços da saia, dos chinelos e das meias da figura feminina,
bem como da indumentária do fadista.
Malhoa, porém, não pôde, ou não quis, captar o que fez a modernidade de Manet e
que foi o seu declarado anti-academismo. Na realidade, n’O Cantor espanhol, Manet
renuncia à teatralidade clássica da pintura, fundada sobre a perspectiva e o assunto
literário. É o que os anglo-saxões denominam de facingness, ou face-à-face. O quadro
deixa de ser algo que se olha para se transformar em algo que nos olha, ou, dito de
outra maneira, não é o espectador que observa o quadro, é o quadro que se transforma
em espectador, revolucionando, assim, os mecanismos da percepção da pintura.
N’O Fado, Malhoa acaba, assim, por cruzar duas correntes da pintura completamente
opostas, uma, moderna, através de Manet e da interpretação deste da pintura espanho-
la, outra, académica, através do olhar de Malhoa sobre a obra-prima de Velásquez.
O quadro As Meninas (1656-1659), que o rei guardou no seu gabinete de Verão até
1736, foi considerado por Luca Giordano, em 1692, como a “Teologia da Pintura”.
Mas, até 1843, o mesmo chamava-se El cuadro de la Familla, só a partir desta data
se intitulou As Meninas11.
Palomino, o biógrafo de Velásquez, afirmou que esta obra é um “capricho”. Ora, o
que parece ser um “capricho” é a representação de um retrato do rei e da rainha
reflectidos no espelho, pois este retrato nunca existiu – a prática consagrada neste

284 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
va r i a · mo d e r n i da d e e ac a d e m i s mo

género pictural consistindo na execução de dois retratos separados, en pendant.


No quadro de Velásquez, a imagem reflectida no espelho não representa o ponto de
fuga da perspectiva, como no retrato dos esposos Arnolfini de Van Eyck, que o pintor
conhecia bem porque pertencia à colecção real. O ponto de fuga d’As Meninas é, na
realidade, a porta aberta atrás do personagem em pé, ao fundo do quadro. Porém,
o facto de Filipe IV se encontrar reflectido no espelho confere ao rei um estatuto de
omnividência. Mas o que verdadeiramente dá força a esta estrutura imaginária é o
hiato, o espaço, que separa o ponto de fuga da mera organização geométrica, e o
espelho. O olhar omnividente e omnipresente do rei é essa linha horizontal, invisível
mas extremamente presente, que vai do espelho ao ponto de fuga da porta. Deste
modo, só o rei se encontra no horizonte do quadro.
Ao desviar a atenção do objecto representado – teoricamente, o rei e a rainha –, para
as condições da sua representação, o espaço ou a sala onde o pintor se encontra,
pintando, hipoteticamente, um retrato do rei e da rainha, acção que é perturbada
pela presença da Infanta e das damas de companhia, Velásquez torna incerto o ob-
jecto do quadro. A presença objectiva dos reis não pode, portanto, ser certificada.
O pintor elimina, deste modo, o assunto, ou os assuntos do quadro. Ele representa
as condições da representação.
Ora, no quadro O Fado (1910), do Museu da Cidade (Fig. 5), Malhoa utiliza o mesmo
artifício na representação do espelho e do cortinado que separa a alcova do espaço
onde se situa a meretriz e o fadista. O quadro constrói-se numa pirámide cujo vértice

fig.5 josé malhoa, o fado , 1910

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 285
va r i a · mo d e r n i da d e e ac a d e m i s mo

corresponde à linha do horizonte, ou seja, o que se não vê – a cama –, ou o que se


vê reflectido no espelho, a janela, como traço de união entre o exterior e o interior,
e a cadeira vazia da meretriz, que espera o cliente ou o fadista.
O que é interessante é que Malhoa, contrariamente ao seu projecto inicial, colou,
no mesmo quadro, dois tipos de linguagens: uma, moderna, que inverte o papel tra-
dicional do espectador e na qual é o fadista que nos olha em face, o facingness de
Manet. Ao mesmo tempo, destruindo completamente este efeito de modernidade,
introduziu uma personagem que observa o fadista, sendo obrigado, por isso, a criar
a ilusão de um espaço geométrico, solidamente construído, em linhas diagonais, em
torno da mesa, do banco e da cadeira.
Aproveito para chamar a atenção para a disparidade total das peças de mobiliário, o
banco, do mesmo tipo do do Cantor espanhol de Manet, não apresentando nenhu-
ma afinidade com a mesa e a cadeira, e parecendo ter sido executado inteiramente
sem modelo. De resto, a diferença da pincelada, do banco e do resto do mobiliário,
é flagrante. Outra novidade são os elementos da parede, o leque, uma gravura de
um fadista e uma imagem, com uma cruz, bem como as bandarilhas e um ex-voto,
tratados como elementos de japonesismo, como no fundo do célebre Retrato de
Emile Zola de Manet, de 1868.
Quanto ao espelho da cómoda, desafio qualquer pessoa a encontrar a lógica do
reflexo dos cortinados e da cadeira. Se a cadeira e o cortinado estivessem defronte
ao espelho, impossível vê-los, dada a construção geométrica que o levou a colocar
a personagem feminina sobre uma diagonal, dando uma ilusão de perspectiva no
cruzamento com a mesa e o banco, na linha da qual se situaria o espectador. E evi-
dentemente, nem sequer falo da hipótese de o cortinado e a cadeira se encontrarem
na parede contígua, pois aí o cortinado ver-se-ia de lado e não de frente. O que é
invisível, segundo as leis da perspectiva, torna-se, assim, visível, através do espelho
da cómoda, do mesmo modo que n’As Meninas o que escapa ao nosso olhar porque
fora do espaço da perspectiva, é-nos revelado graças ao espelho.
Devo também salientar que, àparte a esquadria rigorosa com que são representados
os elementos do mobiliário e em cuja grelha se integram as personagens, não existe
um único ponto de fuga no quadro à parte o do espelho – mas este ponto de fuga é,
como vimos, absolutamente arbitrário, é pura ilusão. Como no quadro de Velásquez,
Malhoa representou um “capricho”, mas esta representação – com a perspectiva da
cadeira em diagonal – diagonal que se reflecte no “bisauté” do espelho –, é mais
subtil, porque tem como objectivo a ilusão naturalista, ou, o que o mesmo é dizer,
os códigos da representação da tradição académica.
O espelho é, por isso, um quadro no quadro que nos envia para a sua construção,
como uma espécie de perspectiva que vem reforçar a falsa perspectiva, ou a ausên-
cia de perspectiva, do primeiro plano. Na realidade, Malhoa nega a modernidade da
pintura de Manet, na qual se inspirara, para introduzir a ilusão de um efeito cénico
de perspectiva clássico.
Como afirmou Foucault a propósito da imagem do espelho d’As Meninas, “la fonction
de ce reflet est d’attirer à l’intérieur du tableau ce qui lui est intimement étranger: le

286 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
va r i a · mo d e r n i da d e e ac a d e m i s mo

12. FOUCAULT, Michel, Les mots et les choses. regard qui l’a organisé et celui pour lequel il se déploie”12. Do mesmo modo, o espelho
L’archéologie des sciences humaines, Paris, Édi- d’O Fado não mostra, não pode mostrar, o visível; ele não reflecte nada do que se en-
tions Gallimard, 1966, p. 30.
contra no espaço em que se encontra representado. A sua função não é o visível mas o
objecto, intencional, mas elipsado, da representação. Como n’As Meninas, só o olhar
do pintor, que organiza o nosso olhar sobre o mundo, pode aferir da sua veracidade.
Como Velásquez, Malhoa dá-nos uma imagem das condições da representação.
Encontrando-se na nossa linha do horizonte, o espelho d’O Fado afirma, assim, a sua
omnipresença, em relação ao que mostra e ao que induz, através da força do olhar,
que nos dirige em direcção ao centro, à cortina aberta sobre o vazio – ou seja, à
melancolia do Fado, à fatalidade, como um inquietante enigma. A janela, como eco
da solidão sobre o mundo, ou no mundo, a cadeira e a cama acabam, deste modo,
por ter mais força do que a cena do primeiro plano, como uma imagem da nostalgia
e do Desejo. É lá que o Fado exerce a sua força secreta e que se afirma o estatuto do
pintor omnividente e organizador da nossa relação ao mundo – a concepção renas-
centista da Pintura tal como a definiu Alberti: a Pintura é outra coisa senão a arte de
assim abraçar a superfície de uma fonte?
Substituamos as palavras fonte, por espelho, e aí encontraremos a chave da arte
de Malhoa: uma arte académica que não soube desembaraçar-se das tentações de
Narciso. •

Lucília Verdelho da Costa


Doutorada em História da Arte, Universidade Nova de Lisboa

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 287
notícia

mosaico da casa da medusa com representação de uma cena do canto xii


da eneida de vírgilio. alter do chão. fotografia de jorge antónio. 2009.

Mosaico Antiguidade Tardia (séculos VI/VII). A


intervenção arqueológica efectuada na
da “Casa da Medusa”
“Casa da Medusa”, uma habitação de
Alter do Chão grandes dimensões, revelou, entre ou-
tros mosaicos, o pavimento do triclinium
Em 1954, os trabalhos de construção do (com 53 m2), onde se destaca um me-
campo de futebol municipal da Vila de dalhão apresentando, no centro de um
Alter do Chão colocaram parcialmente a escudo, a cabeça da Górgona. Em volta,
descoberto as ruínas do povoado romano uma cena do Canto XII da Eneida, com a
de Abelterium, referido no Itinerário de qual Virgílio concluiu o seu poema épico
Antonino Pio numa das vias que ligavam e que se assemelha ao episódio da Ilíada,
Olisipo à capital da província romana da de Homero (Canto XXI), em que Aquiles
Lusitânia, Emerita Augusta. Bairrão Olei- vence Licáon.
ro efectuou, entre em 1956 e 1957, duas A figura principal será Eneias, portador
campanhas de escavações, contando com do escudo em que está representada a
a colaboração de Jorge Alarcão. Medusa. O penacho característico do seu
Cinquenta anos depois da sua desco- capacete encontra-se quebrado pela lan-
berta, foi iniciado um projecto de recu- ça de Turno que, derrotado, implora ao
peração e valorização, durante o qual herói pela sua vida. Por detrás de Eneias
foram identificadas umas termas, uma estão três soldados troianos com barre-
habitação e uma necrópole datada da tes frígios, armados de lanças e escudos

288 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
va r i a · n ot í c i a

pormenores do mosaico da casa da medusa . alter do chão. fotografia de jorge antónio. 2009.

e, no lado oposto, três combatentes rú- Eneias – a pedido de Vénus, sua mãe.
tulos, igualmente armados com lanças A cronologia proposta para o mosaico
e escudos, que assistem, cabisbaixos, à circunscreve-se ao século IV d. C., mas Jorge António
cena dramática que se desenrola à sua a sua importância primordial advém do Gabinete de Arqueologia da Câmara
Municipal de Alter do Chão
frente. Na base estarão representados, facto de surgir como um exemplar raro
possivelmente, o génio do rio Tibre e o em todo o território que outrora consti- Maria Teresa Caetano
deus Vulcano, que fabricara as armas de tuiu o Império Romano.  • Instituto de História da Arte/FCSH/UNL

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 289
normas de redacção regulations in the writing
Normas de redacção de artigos /recensões Regulations in the writing of articles /critiques

01. objectivos 01. aims


A diversidade de autores, que colaboram com os seus trabalhos, na preparação Due to the sheer diversity of authors that contribute with their articles to the
desta publicação, exige o cumprimento de regras de normalização que têm como magazine, we find that it is necessary to have rules and regulations to maintain
objectivo homogeneizar os conteúdos produzidos. Desta forma, torna-se premente a sort of consistency of the contents of each publication. Thus it is imperative
o cumprimento destas normas aplicadas aos documentos produzidos, contribuindo that these regulations are followed in regards to the documents produced
para a qualidade da informação e documentação. so as to contribute to the quality of the information and documentation.

02. publicação de artigos 02. publishing of articles


02.1 formatação 02.1 format
aplicação : Microsoft Office Word application: Microsoft Office Word
tipo de letra : Times New Roman; tamanho 12 pt. font : Times New Roman; font size 12 pt.
numeração das páginas : Sequencial page numbering: Sequential
notas de rodapé: Numeração automática footnotes: Automatic numbering
parágrafos: Alinhamento à esquerda com duplo espaçamento, não indentados. paragraph: Left side alignment with double spacing, no indentation.
02.2 tamanho 02.2 size
Não deve exceder as 5000 palavras, ou cerca de 30 000 caracteres (com espaços). Should not exceed 5000 words or about 30 000 characters (with spaces).
02.3 língua 02.3 language
Aceitam-se artigos em Português, Espanhol, Francês ou Inglês. We accept articles in Portuguese, Spanish, French and English.
02.4 título 02.4 title
Claro e sintético em maiúsculas. Clear and concise in capital letters.
02.5 subtítulo 02.5 subtitle
Opcional. Optional.
02.6 resumo 02.6 abstract
Os resumos dos artigos não devem exceder o máximo de 1200 palavras, ou cerca Abstracts to the articles should not exceed 1 200 words, or around 7 500
de 7500 caracteres (com espaços), em português e, sempre que possível, em inglês. characters (including spaces), in Portuguese and, if possible, in English.
02.7 palavras chave 02.7 keywords
Para cada artigo deverão ser indicadas até 5 palavras chave. For each article a maximum of 5 keywords should be selected.
02.8 nota biográfica sobre o autor 02.8 small biography of the author(s)
• Assinatura a acompanhar o artigo • A signature to go with the article
• Afiliação Institucional • Institutional affiliation
• Contacto de email (opcional) • Email contact (optional)
02.9 citações 02.9 quotes
Devem ser apresentadas entre aspas e acompanhadas por: Should be presented between quotation marks and accompanied by:
(apelido do autor, data de edição da obra citada, nº da página). (Author’s last name, date of edition of the quoted text, page number).
02.10 sistema abreviado autor-data 02.10 abbreviated system author-date
As referências no texto seguirão o sistema abreviado Chicago (autor data, página). The references in the text will follow the Chicago abbreviated system (author date,
Por exemplo (Grimal 1988, 65) ou (Hauschildt e Arbeiter 1993, 47). page). For example (Grimal 1988, 65) or (Hauschildt e Arbeiter 1993,47). In case
No caso de mais de dois autores, utiliza-se et al. (Laumann et al. 1994, 262). of two or more authors the use of et al is applicable. (Laumann et al. 1994, 262).
Artigos de imprensa, entrevistas e comunicações pessoais devem ser citados News articles, interviews and personal communications must appear in footnotes,
como notas finais, e não como referências bibliográficas abreviadas. rather than in abbreviated bibliographical references.
02.11 bibliografia 02.11 bibliography
Toda a bibliografia segue as seguintes normas: exemplos (Monografias): All bibliography should abide by the following rules: examples (Monographs):
• Silva, J.C.Vieira. 2003. O Fascínio do Fim. Lisboa: Livros Horizonte. • Silva, J.C.Vieira. 2003. O Fascínio do Fim. Lisboa: Livros Horizonte.
Artigos de publicação em série. Articles published in series.
• Moreira, Rafael. 1983. A Acção Mecenática de Dom Miguel da Silva. • Moreira, Rafael. 1983. A Acção Mecenática de Dom Miguel da Silva.
O Mundo da Arte, Iª série: 111-123. O Mundo da Arte, Iª série: 111-123.
Para esclarecer os casos não considerados nestes exemplos, os autores deverão In cases not considered by these examples, the authors should consult the rules
consultar as normas de publicação no site: www.chicagomanualofstyle.org of publication at the site: www.chicagomanualofstyle.org
02.12 ilustrações 02.12 images
• Fotografias, desenhos, quadros, gráficos, mapas, devem ser fornecidas em papel • Photos, drawings, tables, graphs and maps should be give either in paper format
ou digitalizadas a 300 dpi’s, em formato jpg ou tif, com o máximo de 28x22 cm; or digitalised in 300 dpi’s, in jpg or tif format, with a maximum of 28x22 cm;
• Cada imagem digital deverá ser gravada num ficheiro; • Each digital image should be saved in a different file;
• Todas as ilustrações não digitalizadas, deverão ser entregues em papel, • All non-digitalised images should be handed in on paper, sequentially numbered
numeradas sequencialmente, e acompanhadas da respectiva legenda; and accompanied by an inscription;
• No texto deverá ser mencionado o local exacto onde cada ilustração deve entrar, • The text should mention the exact location where the image is to be inserted
do seguinte modo: fig.1; fig.2; etc.; in the following manner: fig.1; fig.2; etc.;
• Deverá ser entregue um ficheiro independente com a relação de todas as imagens, • A distinct file should be handed in with the relations between all the images,
legendas, e respectivos ficheiros que contêm essas mesmas imagens. the respective inscriptions and files that contain the images.
exemplo: Fig. 1 > Amadeo de Sousa Cardoso – Pintura, 1913 (CAM-FCG) exemple: Fig. 1 > Amadeo de Sousa Cardoso – Pintura, 1913 (CAM-FCG)
> Foto001.jpg > Foto001.jpg

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 291
02.13 créditos das ilustrações 02.13 credit for the images
• No caso de os autores incluírem qualquer material que envolva a autorização • If the authors include any material which involves the authorization of others,
de terceiros, é da responsabilidade destes obter a autorização escrita e assumir it is their responsibility to obtain a writing authorization and to take on the costs
os seus eventuais encargos. No entanto, excepcionalmente, e a analisar caso that it may imply. However, in certain situations to be analysed case-by-case,
a caso, o IHA pode intervir no pedido de autorização assumindo os custos. the IHA may intervene in the authorization by taking on the costs.
• Os créditos devem ser fornecidos para cada uma das ilustrações do seguinte • Credit should be given for each image by this order: author, date, copyright.
modo: autor, data, copyright.
03. publishing critiques
03. publicação de recensões 03.1 reviewed work
03.1 obra recenseada • Should be identified in the following way: Author, date of publication, title,
• Deverá ser identificada com: autor, data de edição, título, local de edição e editora. place of publication and publisher.
• A citação de outras obras para além da recenseada será feita somente no texto. • Quotations from other works, besides the one reviewed, should be done in the text.
03.2 tamanho 03.2 size
As recensões não devem exceder as 1000 palavras (aprox. 6500 carac. com espaços). All critiques should not exceed 1000 words (around 6 500 characters with spaces).
03.3 outras regras 03.3 other rules
As recensões deverão seguir as restantes normas dos artigos, designadamente: The critiques should follow the aforementioned regulations, namely:
02.1, 02.3, 02.7, 02.8. 02.1, 02.3, 02.7, 02.8.

04. direitos de autor 04. author’s rights


No caso de os autores incluírem nos seus artigos qualquer material que envolva In case the authors include any material involving a third party, it is entirely his
a autorização de terceiros, é da responsabilidade do próprio obter a respectiva or her own responsibility to acquire its authorization in writing and to assume any
autorização por escrito e assumir os eventuais encargos associados a essa costs. However, in exceptional situations to be analysed case-by-case, the Institute
autorização. No entanto, em casos excepcionais, e a analisar caso a caso, of History of Art may intervene in the authorization by taking on the costs.
o IHA pode associar-se ao pedido de autorização com a assunção de encargos.
05. proofreading
05. revisões de provas The author will receive proofs of his or her article to guarantee that the final draft
O autor receberá provas do seu artigo, de forma a garantir que a versão final to be published coincides with the article submitted, as substantial alterations
a publicar coincida com a submetida a apreciação, não sendo possível alterações are not permitted. The final proofreading is entirely the responsibility of the
substantivas. A revisão final das provas é da responsabilidade do Conselho Publishing Committee, who will guarantee that the reproduction of the texts
Editorial, que garante a reprodução fidedigna dos textos. is faithful to the original.

06. envio dos trabalhos 06. delivery of articles


06.1 material em formato digital 06.1 material in digital format
Todo o material digital deverá ser enviado para: iha@fcsh.unl.pt All digital material should be sent to the following email: iha@fcsh.unl.pt
06.2 material em formato não digital 06.2 material in non-digital format
Todo o material não digital deverá ser assinado, e enviado para: All non-digital material should be signed and sent to:
Instituto de História da Arte – Revista de História da Arte Instituto de História da Arte –Revista de História da Arte
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
Av. de Berna, 26 C · 1069-061 Lisboa · Portugal Av. de Berna, 26 C · 1069-061 Lisboa · Portugal

07. selecção e publicação de artigos/recensões 07. selection and publication of articles/critiques


07.1 Todos os artigos/recensões propostos para publicação na Revista de História 07.1 All articles/critiques applied for publication in Revista de História da Arte
da Arte serão submetidos à apreciação do Conselho Editorial, cujo parecer will undergo an appreciation of the Publishing Committee, upon whose judgement
fundamentará a decisão de publicação. Este poderá, caso entenda necessário, the decision of publication will be based. If necessary, it may resort to its referees
recorrer ao seu conselho de referees, solicitando parecer científico. Em qualquer committee, which will provide a scientific analysis. In any case, an evaluation sheet
dos casos, é obrigatoriamente preenchida a “Ficha de Avaliação” (ver Anexo 1). (see Appendix 1) must always be filled out.
07.2 Na avaliação, o Conselho Editorial privilegia dos artigos propostos para 07.2 During evaluation the Publishing Committee will always favour articles
publicação, a sua originalidade científica. for their scientific uniqueness.
07.3 O Conselho Editorial e a Direcção da Revista de História da Arte reservam-se 07.3 The Publishing Committee and Board of the Revista de História da Arte are
o direito de proceder à uniformização das referências bibliográficas, bibliografia entitled to proceed with the uniformity of bibliographical references, bibliography
e a alterações formais, consideradas indispensáveis, sempre que estas não alterem and formal alterations, considered essential, as long as they do not change the
o sentido do texto. meaning of the text.
07.4 O Conselho Editorial e a Direcção da Revista de História da Arte 07.4 The Publishing Committee and the Board of the Revista de História da Arte
reservam-se o direito de proceder à: are entitled to:
• reprodução, qualquer que seja o suporte • reproduce the work, regardless of format
• colocação à disposição do público universitário ou outros • place the work at the disposal of the academic community and others
• divulgação, nas suas várias modalidades: redes digitais, sites... • disseminate the work, in various ways: digital networks, sites...
• distribuição e venda de exemplares da obra • distribute and sell copies of the work
07.5 Os autores serão informados no prazo de 3 meses, qual a data da publicação. 07.5 Authors will be informed of the date of publication in the space of 3 months.
07.6 Após a publicação, cada autor receberá um exemplar da revista. 07.6 After publication, each author will receive a copy
Para os autores de artigos receberão ainda 30 separatas dos mesmos. • of the magazine. Authors of articles will receive 30 addendums of their article. •

292 r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8
anexo 1 appendix 1
Ficha de Avaliação das proposta de artigos a ser preenchida Evaluation sheet for any proposal of articles to be filled out by
pelos membros do Conselho Editorial e/ou do Conselho de the members of the Publishing Committee and/or the International
Referees internacional, em face das respectivas especialidades. Referees Committee, in regards to their respective specialities.

título do artigo title of article

recepção do original reception of the original


envio ao referee sent to referee
código de referee referee code

01. O artigo cabe no âmbito de um número da revista Revista 01. Does the article fall under a number of the Revista
de História da Arte centrado nas questões metodológicas? de História da Arte, focusing on the methodological questions?
Sim Não Sim Não

02. O artigo parece-lhe: 02. Does the article seem:


Publicável na forma actual Publishable in its current form
Publicável com ligeiras modificações Publishable with some minor modifications
Publicável se for refeito Publishable if it is rewritten
Não publicável Not publishable

03. O artigo é: 03. The article is:
Demasiado longo (indicar onde deve ser encurtado) Too long (indicate where it can be shortened)
Demasiado curto (indicar onde deve ser desenvolvido) Too short (indicate where it should be more elaborated)
Apropriado Appropriate

04. Apresentação do artigo: 04. Article’s presentation
Estrutura Structure
Bibliografia Bibliography

05. Conteúdo do artigo 05. Article’s content


(utilizar uma folha anexa, inserindo sugestões ao(s) autor(es), (use a sheet as attachment and insert suggestions to the
recorrendo, se necessário, a alguns dos tópicos seguintes): author(s), by using some of the following topics if necessary):
• Tema, novidade, pertinência • Theme, novelty, relevance
• Revisão do estado da questão • Review of the state of the theme
• Teoria (domínio pelo(s) autor(es), confronto teórico, • Theory (the author’s grasp of the subject, theoretical
problematização, profundidade, etc.) confrontation, questioning, depth, etc.)
• Metodologia (formulação do problema, delimitação do objecto, • Methodology (problem formulation, object delimitation,
modelos, hipóteses, estratégias de investigação, procedimentos, models, hypothesis, investigative strategies, procedures,
definição de conceitos, tratamento de dados,desenvolvimento definition of concepts, treatment of data, development
da análise, fundamentação das conclusões, etc.) of the analysis, validity of the conclusions, etc.)
• Dados empíricos (sustentação da análise, fontes, informação • Empirical data (analysis support, sources, selective
seleccionada) information)
• Exposição (planos, equilíbrio, sequências, concisão) • Exposition (plans, balance, sequences, conciseness)
• Sugestões pontuais (feitas a lápis no texto original) • Suggestions (written in pencil on the original text)

06. Comentários (não assinados) • 06. Remarks (not signed) •

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 293
Ourivesaria e Joalharia
IV Curso Monográfico
OUTUBRO 2008
a MARÇO 2009

Museu Nacional
de Arte Antiga
Auditório

Coordenação Científica
Luísa Penalva
ficha de assinatura
revista de história da arte
Assinatura 1 ano (2 números) = 25 €

Para receber em casa as duas próximas edições da Revista de História da Arte,


preencha este formulário com os seus dados e junte um cheque*
no valor total de 25 € **.

enviar para
instituto de história da arte
faculdade de ciências sociais e humanas
avenida de berna, 26 c
1069-061 lisboa · portugal

nome

morada

código postal

telefone

telemóvel

e-mail

profissão

* cheque passado à ordem de faculdade de ciências sociais e humanas / unl.


** inclui portes de envio

r e v i s ta d e h i s t ó r i a d a a r t e n º 5 - 2 0 0 8 295
Instituto de História da Arte
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
Universidade Nova de Lisboa
Revista de História da Arte N.5 2008 Ficha Técnica
instituto de história da arte

O Retrato
faculdade de ciências sociais
e humanas · universidade
Publicação Semestral do Instituto
nova de lisboa
de História da Arte, da Faculdade
avenida de berna, 26 c de Ciências Sociais e Humanas, UNL
1069-061 lisboa
tel. 217 908 300 · ext. 1540
e-mail iha@fcsh.unl.pt
09h00-12h30 · 13h30-18h00 direcção (fcsh/unl) Ramón Rodrigues Llera

n.1 2005
M. Justino Maciel (Universidade de Valladolid, Espanha)

N.5 Raquel Henriques da Silva Thomas Noble Howe

iss n 16 46 -17 6 2
2008
conselho científico (Southwestern University, EUA)
e editorial (fcsh/unl) tradução
fac u l da d e d e c i ê n c i a s s o c i a i s e h u m a n a s – u n l Carlos Moura Michelle Nobre
José Custódio Vieira da Silva secretariado

D
A Revista de História da Arte é uma e acordo com a linha programática da Manuel Justino Maciel Ana Paula Louro
revista académica de teoria e história Revista de História da Arte, o seu nº 5, Maria Adelaide Miranda edição
da arte portuguesa e suas articulações Rafael Moreira Instituto de História da Arte
recolhe a maioria das conferências que
internacionais, publicada pelo Instituto Raquel Henriques da Silva concepção gráfica
estruturaram o XI Curso Livre do Instituto de História
de História da Arte. conselho científico externo e paginação
da Arte, consagrado à temática do Retrato que decor- Etelvina Fernández González Rita Palla
Destina-se predominantemente

n.2 2006
reu, com assinalável sucesso, em 2007. (Universidade de León, Espanha) impressão e acabamentos
à comunidade científica e académica,
Como também é marca distintiva dos nossos cursos Fernando Acuna Castroviejo Heragráfica, artes gráficas lda.
incluindo professores, investigadores
livres, a temática do retrato foi tratada numa crono- (Universidade de Santiago tiragem
e estudantes. Cada número da Revista
logia extensiva, da Antiguidade Romana em Portugal, de Compostela, Espanha) 1 000 exemplares
de História da Arte é dedicado a um tema
Hellmut Wohl depósito legal
específico, tratado em artigos originais.
passando pela Idade Média, percorrendo o Renasci-
(Universidade Boston, EUA) 227 341/05
No entanto, cada número dispõe de mento e o Barroco para terminar nos tempos mais
Joaquin Yarza Luaces issn
secções abertas a outros domínios próximos, do século XIX aos nossos dias. Cumprimos
(Universidade Autónoma 1646-1762
temáticos: Recensões, Varia e Notícias. também outro dos traços da nossa actuação: tivemos de Barcelona, Espanha)
Preço de venda ao público
conferências de docentes do Departamento de His- Luís Moura Sobral
15,00 € (5% de IVA incluído)
tória da Arte e de alguns dos nossos discípulos, mas, (Universidade de Montreal, Canadá)
sobretudo, de colegas que trabalham noutras Univer- Mário Henrique D’Agostino © Copyright 2008
n.3 2007

sidades ou Institutos Politécnicos (Universidade Aber- (Universidade de São Paulo, Brasil) Autores e Instituto de História da Arte

ta, Universidade de Coimbra, Universidade Católica,


Instituto Politécnico de Tomar) e do Museu Nacional
de Arte Antiga, com quem mantemos relacionamentos
Agradecimentos
pessoais e institucionais que são um dos mais estimu-
lantes sinais do excelente estado da história da arte Câmara Municipal de Lisboa – Direcção Geral de Arquivos; Direcção-Geral do Livro

O Retrato
e das Bibliotecas; Museu da Cidade – Divisão de Museus; Fundação da Casa
em Portugal.
de Bragança; Fundação para a Ciência e a Tecnologia; Instituto de Gestão do Património
Arquitectónico e Arqueológico; Instituto dos Museus e da Conservação; Museu Nacional
de Arqueologia; Palácio Nacional de Mafra; Relógio d’Água.

apo i o s A edição nº5 da Revista de História da Arte foi apoiada pela Fundação para a Ciência
© fotografia da capa e contracapa
e a Tecnologia (FCT) e pela Direcção-Geral do Livros e das Bibliotecas (DGLB).
n.4 2007

Costa Pinheiro, D. Sebastião, 1966.


Colecção Manuel de Brito, Lisboa.
Cortesia da Galeria 111 (autoria desconhecida). A Revista de História da Arte encontra-se indexada no catálogo Internacional Latindex.
N .5
2008
Revista de História da Arte N.5 2008 Ficha Técnica
instituto de história da arte

O Retrato
faculdade de ciências sociais
e humanas · universidade
Publicação Semestral do Instituto
nova de lisboa
de História da Arte, da Faculdade
avenida de berna, 26 c de Ciências Sociais e Humanas, UNL
1069-061 lisboa
tel. 217 908 300 · ext. 1540
e-mail iha@fcsh.unl.pt
09h00-12h30 · 13h30-18h00 direcção (fcsh/unl) Ramón Rodrigues Llera

n.1 2005
M. Justino Maciel (Universidade de Valladolid, Espanha)

N.5 Raquel Henriques da Silva Thomas Noble Howe

iss n 16 46 -17 6 2
2008
conselho científico (Southwestern University, EUA)
e editorial (fcsh/unl) tradução
fac u l da d e d e c i ê n c i a s s o c i a i s e h u m a n a s – u n l Carlos Moura Michelle Nobre
José Custódio Vieira da Silva secretariado

D
A Revista de História da Arte é uma e acordo com a linha programática da Manuel Justino Maciel Ana Paula Louro
revista académica de teoria e história Revista de História da Arte, o seu nº 5, Maria Adelaide Miranda edição
da arte portuguesa e suas articulações Rafael Moreira Instituto de História da Arte
recolhe a maioria das conferências que
internacionais, publicada pelo Instituto Raquel Henriques da Silva concepção gráfica
estruturaram o XI Curso Livre do Instituto de História
de História da Arte. conselho científico externo e paginação
da Arte, consagrado à temática do Retrato que decor- Etelvina Fernández González Rita Palla
Destina-se predominantemente

n.2 2006
reu, com assinalável sucesso, em 2007. (Universidade de León, Espanha) impressão e acabamentos
à comunidade científica e académica,
Como também é marca distintiva dos nossos cursos Fernando Acuna Castroviejo Heragráfica, artes gráficas lda.
incluindo professores, investigadores
livres, a temática do retrato foi tratada numa crono- (Universidade de Santiago tiragem
e estudantes. Cada número da Revista
logia extensiva, da Antiguidade Romana em Portugal, de Compostela, Espanha) 1 000 exemplares
de História da Arte é dedicado a um tema
Hellmut Wohl depósito legal
específico, tratado em artigos originais.
passando pela Idade Média, percorrendo o Renasci-
(Universidade Boston, EUA) 227 341/05
No entanto, cada número dispõe de mento e o Barroco para terminar nos tempos mais
Joaquin Yarza Luaces issn
secções abertas a outros domínios próximos, do século XIX aos nossos dias. Cumprimos
(Universidade Autónoma 1646-1762
temáticos: Recensões, Varia e Notícias. também outro dos traços da nossa actuação: tivemos de Barcelona, Espanha)
Preço de venda ao público
conferências de docentes do Departamento de His- Luís Moura Sobral
15,00 € (5% de IVA incluído)
tória da Arte e de alguns dos nossos discípulos, mas, (Universidade de Montreal, Canadá)
sobretudo, de colegas que trabalham noutras Univer- Mário Henrique D’Agostino © Copyright 2008
n.3 2007

sidades ou Institutos Politécnicos (Universidade Aber- (Universidade de São Paulo, Brasil) Autores e Instituto de História da Arte

ta, Universidade de Coimbra, Universidade Católica,


Instituto Politécnico de Tomar) e do Museu Nacional
de Arte Antiga, com quem mantemos relacionamentos
Agradecimentos
pessoais e institucionais que são um dos mais estimu-
lantes sinais do excelente estado da história da arte Câmara Municipal de Lisboa – Direcção Geral de Arquivos; Direcção-Geral do Livro

O Retrato
e das Bibliotecas; Museu da Cidade – Divisão de Museus; Fundação da Casa
em Portugal.
de Bragança; Fundação para a Ciência e a Tecnologia; Instituto de Gestão do Património
Arquitectónico e Arqueológico; Instituto dos Museus e da Conservação; Museu Nacional
de Arqueologia; Palácio Nacional de Mafra; Relógio d’Água.

apo i o s A edição nº5 da Revista de História da Arte foi apoiada pela Fundação para a Ciência
© fotografia da capa e contracapa
e a Tecnologia (FCT) e pela Direcção-Geral do Livros e das Bibliotecas (DGLB).
n.4 2007

Costa Pinheiro, D. Sebastião, 1966.


Colecção Manuel de Brito, Lisboa.
Cortesia da Galeria 111 (autoria desconhecida). A Revista de História da Arte encontra-se indexada no catálogo Internacional Latindex.
N .5
2008

S-ar putea să vă placă și