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A encruzilhada que levava a Ythaca abriu vaá rias fendas. Quanto mais se
caminha pela estrada, mais caminhos de cinema saã o experimentados. Saã o tornadas
possíáveis novas dinaâ micas de relaçaã o, de invençaã o e de vida com o cinema. No lugar
da oscilaçaã o entre duas vias, podemos falar de uma porosidade maior aà s
bifurcaçoã es, aà s dobras e aos atravessamentos. A figura da encruzilhada eá tomada
por processos de diferenciaçaã o, porque cada ponto do caminho pode abrir-se para
uma outra travessia e fazer surgir toda uma nova intensidade de forças. “ÉÉ preciso
estar atento e forte, naã o temos tempo de temer a morte”.
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Quadro e mistério
ÉÉ na espessura da imagem e na densidade dos sons que alguns dos
trabalhos articulam grande parte das atmosferas e da poteâ ncia mesma de cinema.
Guto Parente e Ticiana Augusto Lima fazem de A Misteriosa Morte de Pérola uma
obra que pinta as sensaçoã es na superfíácie do quadro cinematograá fico. Éstamos aqui
em um filme que coloca em curto-circuito as formas expressivas do cinema e da
pintura: de um lado, eá na passagem entre as imagens, nos ritmos e nas duraçoã es de
cada plano que se desenrolam os climas; de outro, temos na unidade do quadro,
nas camadas que ele cria, no campo que ele abre e na textura que ele tece os
lugares por exceleâ ncia das fulguraçoã es e do povoamento fantasmaá tico. A
heterogeneidade de mateá rias fíálmicas, possibilitada pelas transiçoã es para a
modulaçaã o caracteríástica do víádeo caseiro, reverbera de forma sintomaá tica nesse
trabalho de associar texturas para compor o quadro.
O curto-circuito operado vai sendo progressivamente, tambeá m, entre um
mundo de caá e um mundo de laá da imagem, entre lugares que podem criar vida e
morte, ora recriando uma forma de vida, ora desencadeando a morte. Cineasta bom
eá cineasta morto. Se o cinema se contamina pelas formas pictoá ricas, eá toda a casa
que se transforma em um corpo vivo, repleto de respiraçoã es proá prias, e capaz de
ser um portal para outras forças e energias variadas – passagens misteriosas nesse
universo de co-habitaçoã es e de interpenetraçoã es. Éssas figuras pictoá ricas de Pérola
naã o deixam de reverberar o interesse presente tambeá m no colorismo e nas
velocidades experimentadas em Dizem que os cães veem coisas, tambeá m de Guto
Parente, e nos tons de Doce Amianto (dirigido por Guto em parceria com Uiraá dos
Reis), filme tambeá m permeado pelas experieâ ncias fulgurantes da imagem e pelos
intercaâ mbios da fada Blanche, que vem de outros mundos para tecer relaçoã es com
os viventes.
Os contatos com um cinema de geâ nero, na perspectiva de uma subversaã o,
saã o tambeá m o motor em Medo do Escuro, jaá numa vizinhança maior com a ficçaã o
cientíáfica e segundo um caraá ter poá s-apocalíáptico. Uma cidade desabitada e em
ruíánas eá o que parece desencadear as assombraçoã es e os misteá rios aqui. Jaá naã o
tanto com o rigor formal do quadro fixo, como em Pérola, mas com um interesse
semelhante pela plasticidade e pela superfíácie pictoá rica da imagem, a caâ mera vai
passeando ao ritmo do corpo do personagem central. Tambeá m se trata de um
trabalho de texturas e de intensidades pictoá ricas, criadas pelas escalas de cores, de
brilhos e de vibraçoã es do material fíálmico, mas agora a paisagem que se abre eá
diversa, e a construçaã o do quadro se processa de forma mais delirante. ÉÉ um filme
que pinta a devastaçaã o de um mundo, para o qual soá se pode responder com a
energia vital do movimento do corpo errante, observado na sua ritualidade
performaá tica. Ésse ritual pega delíário especialmente na dança final, em que muá sica,
corpo, luz e caâ mera colocam-se em jogo de imprevisibilidades, numa sequeâ ncia que
faz lembrar a intensidade atingida tambeá m na cena final de Os Monstros (Guto
Parente, Luiz Pretti, Pedro Dioá genes e Ricardo Pretti), quando a performance
musical dos quatro atores e diretores era acompanhada pelo movimento de uma
caâ mera-corpo gestual e igualmente performaá tica.
Filmes selvagens
O empreendimento de estudo das texturas e das formas eá carregado de toda
uma tonalidade políática. Éssa preocupaçaã o naã o eá ineá dita nas estradas dos
realizadores da Alumbramento, especialmente se entendermos como políáticos
pequenos deslocamentos no olhar, micro-acontecimentos que podem desconcertar
uma estruturaçaã o da sensibilidade, como quando Guto Parente observava o lugar
adquirido pela imagem como mediadora da experieâ ncia, em Flash Happy Society,
filme de operaçoã es muito sutis, de uma absoluta simplicidade, e ao mesmo tempo
de uma radical contundeâ ncia no gesto de provocar crises dentro do jogo extremo
de visibilidades da sociedade contemporaâ nea. Éssas tensoã es saã o tomadas por um
interesse em fazer da proá pria forma fíálmica um operador ativo de desestabilizaçaã o
e de ranhura nas constituiçoã es aparentemente dadas do mundo. Fazer filmes
selvagens. Toda uma praá tica composicional que dialoga fortemente com a esteá tica
do víádeo eá posta em açaã o para desencadear descompassos com uma maneira
organizada de gerir a vida, os corpos e as imagens. ÉÉ o Filme Selvagem, de Pedro
Dioá genes, uma expressaã o emblemaá tica dessa toada de assumido manifesto, que
instaura embates com as formas de governança dos sentidos. É a tessitura críática
passa pelo campo das formas que fazem fissura em outras formas, desgoverno que
desvia de uma organizaçaã o modelizante.
Saã o taá ticas de resisteâ ncia que passam a ser experimentadas como taá ticas de
cinema. Ém Com os punhos cerrados, de Luiz Pretti, Pedro Dioá genes e Ricardo
Pretti, ouvimos a leitura do fragmento “Como fazer TNT”, extraíádo do “Livro de
receitas do anarquista”, enquanto as imagens apresentam imensos blocos de
concreto, preá dios emblemaá ticos que dizem muito das estrateá gias dos poderes em
esquadrinhar o espaço urbano. Os ruíádos nas texturas da imagem e do som
deslocam todo um modo de perceber esses lugares pobres de experieâ ncia. É entaã o
o cinema, nas suas taá ticas de montagem e de encenaçaã o, encontra uma forma tanto
de tornar dizíável uma insatisfaçaã o quanto de tornar fazíável uma imagem
insurgente, taã o incendiaá ria quanto TNT. Éxplosoã es de cinema que podem ser vistas
tambeá m em Não estamos sonhando, de Luiz Pretti, que aponta um cinema projeá til
para a cidade, quando o gravador de som vira detonador da fabulaçaã o que abala
estruturas, desfaz coordenadas e leva virtualmente um mundo de concreto ao lugar
de ruíánas. Éssas roturas sensíáveis se daã o no limiar do cinema com um fora, o que
fica ainda mais evidente em O Porto (Luiz Pretti, Ricardo Pretti, Clarissa Campolina
e Julia de Simone), que carrega para a escritura uma conexaã o urgente com o
presente e com os processos de ordenaçaã o do espaço urbano.
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