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OMAR KHOURI

TEXTOS BREVES SOBRE


COMUNICAÇÃO, SEMIÓTICA,
ARTES, (EX-) VIVENTES ETC ET AL

SÃO PAULO
NOMUQUE EDIÇÕES
2011
Copyright © 2011 Omar Khouri

Capa e projeto gráfico


Fábio Oliveira Nunes

Organização
Omar Khouri
omarckhouri@gmail.com

Nomuque Edições
www.nomuque.net

KHOURI, Omar
O livro das mil e uma coisas: textos breves sobre
comunicação, semiótica, artes, (ex-) viventes etc et al /
Omar Khouri. São Paulo: Nomuque Edições, 2011.

ISBN 978-85-902139-4-9

1. Artes 2.Comunicação 3. Poesia 4.Semiótica


5.Biografia 6.Crônica
ste (agora) livro-eletrônico reúne artigos de
divulgação, pequenos ensaios e comentários
críticos publicados de 29 de janeiro de 2000 a
21 de junho de 2008 no semanário o alfinete,
de pirajuí sp br, a convite do editor Marcelo
Pavanato. Nesses anos todos, essa colaboração
sofreu, por um motivo ou outro, algumas
pequenas interrupções e, muito embora estivesse
escrevendo para um hebdomadário de pequena
cidade interiorana, foi-me concedida toda liberdade para tratar de
quaisquer assuntos e eu abordei temas de minha preferência com maior
ou menor aprofundamento, sem a oca sofisticação que de mim exigiria
a Academia à qual, de qualquer maneira, pertenço e de bom-grado.
Procurei ser simples, sem rebaixar o repertório, colocando minha alma
professoral a serviço de um tipo especial de informação, dentro de minha
especialidade, que é a das Comunicações e Artes, teorias e práticas. Estão
aqui reunidos os textos, na ordem de publicação original, com pequenas
correções e ajustes mínimos, acréscimos, os quais comparecerão entre
colchetes, e alguma supressão, que também estará indicada. A ortografia
original foi mantida. Estas cerca de 700 laudas dariam, caso fossem
reunidas por assuntos, 4 pequenos volumes, coisa que, por ora, não
entra nas cogitações do autor. Em tempo: alguns textos, por motivos
vários, foram republicados – incluindo, aí, a mídia eletrônica - porém,
não chegaram a fazer parte de volumes ou sites autônomos.

Omar Khouri
São Paulo, junho de 2010.
ÍNDICE 22 de julho de 2000. o signo fotografia
29 de julho de 2000. de pirajuí para o
mundo: fins dos anos 50 e os 60
2000 05 de agosto de 2000. o/a poeta
12 de agosto de 2000. o bom poema. o que
seria?
29 de janeiro de 2000. tarsila do amaral
19 de agosto de 2000. e pra essa dor tem
05 de fevereiro de 2000. paulo miranda
cura?
12 de fevereiro de 2000. de olho no livro
26 de agosto de 2000. manifestos
19 de fevereiro de 2000. de olho na poesia
02 de setembro de 2000. dona amábile
26 de fevereiro de 2000. são paulo: capital
09 de setembro de 2000. god bless the
cultural do brasil
teachers
04 de março de 2000. jorge luis borges
16 de setembro de 2000. erthos albino de
11 de março de 2000. tito madi
souza
18 de março de 2000. a linguagem em estado
23 de setembro de 2000. quem é poeta?
de poesia
30 de setembro de 2000. joão cabral de melo
25 de março de 2000. poesia/poema
neto
01 de abril de 2000. maud pires arruda
07 de outubro de 2000. futebol
08 de abril de 2000. marcel duchamp
14 de outubro de 2000. poesia: ver ouvir
15 de abril de 2000. revistas
pensar
22 de abril de 2000. tradução de poesia
21 de outubro de 2000. livros de poemas
29 de abril de 2000. um fragmento de safo
28 de outubro de 2000. poesia e teoria: o que
06 de maio de 2000. poesia fora do poema
ler?
13 de maio de 2000. verso
04 de novembro de 2000. masp – museu
20 de maio de 2000. revolução na poesia
de arte de são Paulo “assis
27 de maio de 2000. recomendações
chateaubriand”
03 de junho de 2000. ritmo
11 de novembro de 2000. (errâncias de)
10 de junho de 2000. recomendações ii
décio pegnatari
17 de junho de 2000. métrica
18 de novembro de 2000. josé lino
24 de junho de 2000. RIMA
grünewald
01 de julho de 2000. um soneto de camões
25 de novembro de 2000. Uma certa
08 de julho de 2000. sem título
fotografia
15 de julho de 2000. santo de casa


02 de dezembro de 2000. LIVROS: POR QUE LÊ-LOS 28 de abril de 2001. bossa nova
09 de dezembro de 2000. MEU AVÔ: O CHICO 05 de maio de 2001. são paulo. futuro.
TURCO futurismo
16 de dezembro de 2000. A ESCOLA DO FUTURO 12 de maio de 2001. um verso de eurípides
23 de dezembro de 2000. DO DIREITO À 19 de maio de 2001. neologismos
BELAMORTE 26 de maio de 2001. manuel bandeira e o
30 de dezembro de 2000. ENFIM, O FIM DO sonhar poemas
SÉCULO 06(?02) de junho de 2001. mallarmé e degas:
com quantas idéias se faz um poema?
2001 09 de junho de 2001. a maldição de cassiano
16 de junho de 2001. interferência dos
06 de janeiro de 2001. informar-se deuses?
13 de janeiro de 2001. tv/censura 30 de junho de 2001. o caso do mensagem, de
20 de janeiro de 2001. maria yolanda lopes f. pessoa
manso da costa reis 07 de julho de 2001. o idioma do poeta
27 de janeiro de 2001. uma estirpe em extinção 14 de julho de 2001. perturbações/ruídos
03 de fevereiro de 2001. acaso e necessidade 21 de julho de 2001. cinco minutos é tempo
10 de fevereiro de 2001. o quibe pouco!
17 de fevereiro de 2001. minha mãe 28 de julho de 2001. a semana de arte
24 de fevereiro de 2001. o kitsch moderna de 1922
03 de março de 2001. augusto de campos: um 04 de agosto de 2001. manuel bandeira
poeta para muitos e muitos séculos versus oswald de andrade
10 de março de 2001. sim e não (anfitriões e 11 de agosto de 2001. tradução
convidados) – parte a 18 de agosto de 2001. quantos meses há
17 de março de 2001. sim e não (anfitriões e para a poesia?
convidados) – Parte b 25 de agosto de 2001. decifração
31 de março de 2001. vilela: a dimensão 01 de setembro de 2001. pound: o poeta não
trágica de uma existência modesta mais enxerga? o poeta envelhece?
07 de abril de 2001. dona cida 08 de setembro de 2001. albano: néctar para
14 de abril de 2001. ranchinho: presente de os poetas!
deus 15 de setembro de 2001. braga e a produção
21 de abril de 2001. josé pancetti presente


22 de setembro de 2001. a prolixidade de 26 de janeiro de 2002. mário de andrade
xisto tarsila mário de andrade
29 de setembro de 2001. drummond e os 02 de fevereiro de 2002. regina silveira
concretistas 09 de fevereiro de 2002. lothar charoux
13 de outubro de 2001. qualidade da 16 de fevereiro de 2002. re - capitu – lando
produção artística/poética 23 de fevereiro de 2002. ivete curi
27 de outubro de 2001. herrmann tripulando 02 de março de 2002. edgar (allan) poe
um ovni 09 de março de 2002. sobre a escravidão
03 de novembro de 2001. dona célia 16 de março de 2002. adentrando são paulo
10 de novembro de 2001. turco? quem é que é pela vez primeira
turco? 30 de março de 2002. roberto miguel attuy
17 de novembro de 2001. minha avó lula 13 de abril de 2002. ainda a fotografia…
24 de novembro de 2001. o poeta necessita 27 de abril de 2002. além da semântica
conversar? 04 de maio de 2002. paulo leminski
01 de dezembro de 2001. de olho (-ouvido) 11 de maio de 2002. a bienal de são paulo
no vídeo 18 de maio de 2002. julio plaza
08 de dezembro de 2001. santaella: a 25 de maio de 2002. sede de fábula
padroeira da semiótica 01 de junho de 2002. distúrbios na
15 de dezembro de 2001. uma biblioteca comunicação
pessoal 08 de junho de 2002. o rei édipo: OIDUPOUS
22 de dezembro de 2001. poemas: sob a égide TURANNOS

de eros 15 de junho de 2002. o que é atuar ou não a


29 de dezembro de 2001. crônica da partir de um centro hegemônico
passagem do ano 22 de junho de 2002. se é velho é bom?
29 de junho de 2002. a façanha da código
13 de julho de 2002. futebol: algumas
2002 reflexões em tempo de copa
20 de julho de 2002. sofrimento e resignação
05 de janeiro de 2002. o signo na semiótica
ou deus abençoe os que padecem
peirceana
03 de agosto de 2002. A fotografia-arte
12 de janeiro de 2002. um certo grupo de
10 de agosto de 2002. antonio lizárraga:
poetas dos anos 70
rigor e busca
19 de janeiro de 2002. signos são signos


17 de agosto de 2002. noigandres e 25 de janeiro de 2003. tarsila: um pouco
invenção mais – parte ii
31 de agosto de 2002. ronaldo azeredo 01 de fevereiro de 2003. divulgação e a
07 de setembro de 2002. polem academia
14 de setembro de 2002. artéria . parte i 08 de fevereiro de 2003. isso e aquilo (parte
21 de setembro de 2002. artéria . parte ii i)
28 de setembro de 2002. navilouca 15 de fevereiro de 2003. isso e aquilo (parte
05 de outubro de 2002. balalaica e artéria 4 ii)
(arteriv): as fitas 22 de fevereiro de 2003. walter silveira
12 de outubro de 2002. zero à esquerda 01 de março de 2003. tadeu jungle
19 de outubro de 2002.artéria . parte iii 08 de março de 2003. uma atuação conjunta:
09 de novembro de 2002. artéria . parte iv walter e tadeu
16 de novembro de 2002. poesia em greve e 15 de março de 2003. observando i
qorpo estranho 29 de março de 2003. os modernistas de são
23 de novembro de 2002. muda paulo e a (re-) descoberta do barroco
30 de novembro de 2002. atlas – parte i
07 de dezembro de 2002. jornal dobrábil, 19 de abril de 2003. os modernistas de são
revista dedo mingo e agráfica paulo e a (re-) descoberta do barroco
14 de dezembro de 2002. surpresa, pólo – parte ii
cultural/inventiva e viva há poesia 26 de abril de 2003. os modernistas de são
21 de dezembro de 2002. caspa, i, paulo e a (re-) descoberta do barroco
almanaque… bric a brac e paranga hum – parte iii
28 de dezembro de 2002. 2002 ad 05 de julho de 2003. dos percalços de nossa
efemeridade : julio plaza passou por
2003 aqui . JP ii
12 de julho de 2003. do celibato como uma
04 de janeiro de 2003. DeSignos, através e das belas artes
tantas outras revistas 26 de julho de 2003. observando ii
11 de janeiro de 2003. um balanço das 09 de agosto de 2003. observando iii
revistas 16 de agosto de 2003. observando iv
18 de janeiro de 2003. tarsila: um pouco 06 de setembro de 2003. haroldo de campos
mais – parte i 13 de setembro de 2003. observando v


27 de setembro de 2003. observando vi 28 de fevereiro de 2004. júlio mendonça
04 de outubro de 2003. arte/poesia 06 de março de 2004. john cage
e tecnologia: asa novas mídias- 13 de março de 2004. arnaldo antunes
linguagens (a internet) 20 de março de 2004. tito madi ii
11 de outubro de 2003. observando vii 27 de março de 2004. josé luiz valero
18 de outubro de 2003. klebher inforzato figueiredo
01 de novembro de 2003. observando viii 10 de abril de 2004. villari herrmann
08 de novembro de 2003. observando ix (a 17 de abril de 2004. observando xv
propósito de algumas fotos) 01 de maio de 2004. observando xvi
15 de novembro de 2003. observando x 08 de maio de 2004. arte e publicidade
22 de novembro de 2003. observando xi 15 de maio de 2004. mãe é mãe
29 de novembro de 2003. edgard braga 22 de maio de 2004. observando xvii
06 de dezembro de 2003. protéica: uma 29 de maio de 2004. colecionismo e
metamorfose arterial (editorial de uma dinheiro
revista eletrônica) 05 de junho de 2004. aster . artes
13 de dezembro de 2003. observando xi 12 de junho de 2004. tadeu jungle ii:
(xii?) artista 24h por dia
24 de dezembro de 2003 (quarta-feira). 19 de junho de 2004. dois filmes memoráveis
observando xii (xiii?) 26 de junho de 2004. observando xviii
10 de julho de 2004. priscilla davanzo : uma
2004 mulher : uma vaca (uma artista de corpo
e alma)
03 de janeiro de 2004. o caso do cavalo 17 de julho de 2004. um filme é um filme
10 de janeiro de 2004. observano xiv 24 de julho de 2004. observando xix
17 de janeiro de 2004. o líbano é aqui i 31 de julho de 2004. madame bovary
24 de janeiro de 2004. o líbano é aqui ii 07 de agosto de 2004. para impressionar
31 de janeiro de 2004. judith lauand alunos
07 de fevereiro de 2004. a teimosia burra 14 de agosto de 2004. fenícios: história e
ou da insistência em se emitirem maus mito
juízos 21 de agosto de 2004. pelé eterno: o filme
14 de fevereiro de 2004. aldo fortes 28 de agosto de 2004. observando xx
21 de fevereiro de 2004. lenora de barros 04 de setembro de 2004. observando xxi


18 de setembro de 2004. observando xxii 16 de abril de 2005. observando 27 (28?)
25 de setembro de 2004. observando xxiii 23 de abril de 2005. observando 28 (29?)
02 de outubro de 2004. nomuque edições: à 30 de abril de 2005. julio plaza iii
margem do sistema editorial brasileiro 14 de maio de 2005. poesia: considerações
09 de outubro de 2004. arte e política gerais sobre a arte da palavra
16 de outubro de 2004. poesia (ruminando idéias)
intersemiótica: uma exposição 28 de maio de 2005. poesia e ensino
23 de outubro de 2004. observando 23 (24?) 04 de junho de 2005. ainda em torno da
06 de novembro de 2004. nina hagen poesia i
13 de novembro de 2004. uma biblioteca, uma 11 de junho de 2005. ainda em torno da
casa. uma bibliocasa poesia ii
20 de novembro de 2004. noigandres e 18 de junho de 2005. ainda em torno da
invenção: revistas-portavozes do poesia iii
concretismo paulista 25 de junho de 2005. marcelo pavanato
16 de julho de 2005. Sobre o que estou
2005 mesmo escrevendo?
23 de julho de 2005. São paulo ao rés do
15 de janeiro de 2005. artéria: está chão
pintando o 7 30 de julho de 2005. Bom ou mau poema?
29 de janeiro de 2005. observando 24 (25?) 06 de agosto de 2005. o conhecimento acima
05 de fevereiro de 2005. observando 25 (26?) de tudo
12 de fevereiro de 2005. observando 26 (27?) 13 de agosto de 2005. matheus josé da
19 de fevereiro de 2005. anita malfatti: costa: do desdizer do desenho ao
pintora despudor da cor
05 de março de 2005. a (s) academia (s) 20 de agosto de 2005. haicai: parcimônia e
12 de março de 2005. poesia: ilustração X prodigalidade
intersemiose . parte i 27 de agosto de 2005. lenora de barros: a
19 de março de 2005. poesia: ilustração x fotografia como recurso expressivo
intersemiose . parte ii 03 de setembro de 2005. paulo ludmer:
02 de abril de 2005. poesia: ilustração x falésia
intersemiose . parte iii 17 de setembro de 2005. erivelto busto
09 de abril de 2005. marineide de moraes garcia: mínimalâmina

10
01 de outubro de 2005. vítor mizael: 08 de abril de 2006. poesia em todos os
liberdade e busca da forma lugares: os ditos populares/provérbios
08 de outubro de 2005. anotações 15 de abril de 2006. o signo novo e a
15 de outubro de 2005. pop art: um pouco comunicação
29 de outubro de 2005. blaise cendrars: 22 de abril de 2006. arte: um pouco
um suíço-francês no modernismo 29 de abril de 2006. mais que o melhor: o
brasileiro extraordinário i
05 de novembro de 2005. modernismo 06 de maio de 2006. mais que o melhor: o
brasileiro: o editorial de klaxon 1 extraordinário ii
12 de novembro de 2005. modernismo 13 de maio de 2006. cinema, de vez em
brasileiro: o manifesto da poesia pau- quando
brasil 20 de maio de 2006. sérgio buarque, o pai
19 de novembro de 2005. o plano-piloto para do chico
poesia concreta 27 de maio de 2006. degas no masp
26 de novembro de 2005. considerações 03 de junho de 2006. meus primeiros
sobre televisão contatos com o concretismo i
03 de dezembro de 2005. cinema, um pouco i 10 de junho de 2006. meus primeiros
10 de dezembro de 2005. cinema, um pouco ii contatos com o concretismo ii
17 de dezembro de 2005. cinema, um pouco 17 de junho de 2006. tanto barulho por tão
iii pouco: comentários a propósito de um
24 de dezembro de 2005. revistas do nosso filme
concretismo i: noigandres 24 de junho de 2006. villa-lobos em pirajuí?
01 de julho de 2006. saber, saberes i
2006 08 de julho de 2006. saber, saberes ii
15 de julho de 2006. repertório e
14 de janeiro de 2006. revistas do nosso performance i
concretismo ii: invenção 22 de julho de 2006. repertório e
21 de janeiro de 2006. alfredo volpi i performance ii
28 de janeiro de 2006. alfredo volpi ii 29 de julho de 2006. repertório e
25 de março de 2006. coisas do coração performance iii
01 de abril de 2006. culinária: 05 de agosto de 2006. repertório e
perturbações/ruídos performance iv

11
12 de agosto de 2006. repertório e 09 de dezembro de 2006. ouvir (vacinado) as
performance v críticas
19 de agosto de 2006. rio de muitos 16 de dezembro de 2006. o poético na fala
janeiros i cotidiana
26 de agosto de 2006. rio de muitos 23 de dezembro de 2006. são paulo, sempre
janeiros ii 30 de dezembro de 2006. feliz ano novo
02 de setembro de 2006. comentários (Vários)
09 de setembro de 2006. oswald de andrade: 2007
alçar alturas sem sair dos pés
16 de setembro de 2006. escrever e o 03 de fevereiro de 2007. tarsila cronista ou
projetar-se para o futuro uma cosmopolita confinada
23 de setembro de 2006. poesia e prosa. 10 de fevereiro de 2007. o aquecimento
teoria e prática global: mais essa!
30 de setembro de 2006. comentários 17 de fevereiro de 2007. outros (tantos)
(Vários) ii carnavais
07 de outubro de 2006. espaço dos satyros 24 de fevereiro de 2007. comilança aqui e no
14 de outubro de 2006. acaso e criação cinema
artística i 03 de março de 2007. reverberações
21 de outubro de 2006. acaso e criação modernistas: os descendentes
artística ii 10 de março de 2007. encontros
28 de outubro de 2006. parreiras brotando modernistas na paulicéia
de novo: feliz ano novo 17 de março de 2007. ler ou não ler livros:
04 de novembro de 2006. rogério duprat: eis a questão
era uma vez 24 de março de 2007. para que serve saber
11 de novembro de 2006. a são paulo dos isso?
modernistas (finados) 31 de março de 2007. a coleção adolfo
18 de novembro de 2006. ronaldo azeredo: Leirner
poetas são eternos? 07 de abril de 2007. anita malfatti, vida-
25 de novembro de 2006. comentários obra: o livro
(vários) iii 14 de abril de 2007. tuta, meu tio, faz 80 anos
02 de dezembro de 2006. mais um prêmio na 21 de abril de 2007. criadores: viajar é
praça preciso?

12
28 de abril de 2007. aracy amaral e os 08 de março de 2008. lição de professores
estudos sobre o modernismo no brasil 22 de março de 2008. tarsila do amaral e
16 de junho de 2007. a estrela dalva (re-) lasar segall à mostra
desponta 05 de abril de 2008. uma santa semana
23 de junho de 2007. ainda a estrela dalva 19 de abril de 2008. fragmentos de
30 de junho de 2007. conversa captada num pensamentos
trem (o som não pede licença) 03 de maio de 2008. língua-linguagem
07 de julho de 2007. pathé baby, o livro 17 de maio de 2008. reuniões lítero-
14 de julho de 2007. a fome fez o homem artísticas
falar 31 de maio de 2008. andarilho : exposição
21 de julho de 2007. rubai, rubaiyat de leopoldo ponce
28 de julho de 2007. flashes 14 de junho de 2008. poetas da era pós-
04 de agosto de 2007. décio pignatari: 80 verso: um mapeamento por meio de
anos! algumas constantes
11 de agosto de 2007. barroco mais além 21 de junho de 2008. poetas da era pós-
18 de agosto de 2007. concretismo verso: um mapeamento por meio de
brasileiro em revista algumas constantes (cont.)
01 de setembro de 2007. das agruras da
ancianidade
08 de setembro de 2007. o caso do pato
15 de setembro de 2007. ah! os livros
22 de setembro de 2007. obrigado. gracias.
grazzie. thank you. merci beaucoup!

2008

02 de fevereiro de 2008. benfeitores da


humanidade
23 de fevereiro de 2008. zéluiz valero
figueiredo: o difícil adeus
01 de março de 2008. zéluiz valero
figueiredo: o difícil adeus (cont.)

13
2000
curiosidade de procurar seu nome na lista
telefônica e achei! Dos contatos telefônicos
resultaram três visitas ao apartamento da
rua Albuquerque Lins, bairro de Higienópolis,
nos anos de 68 e 69, das quais participei
de duas. Compartilharam desse estranho
encontro Paulo Miranda, [Antônio Eduardo]
Pinatti e Arnaldo Caiche.
Na época, nós jovens, com forte dose
de ambição artística, não tínhamos uma
real medida da grandeza da pintora, mas
a admirávamos. Rolou um papo agradável
entre aquela velha senhora presa à cama e os
2000 jovens curiosos. Ainda se encontravam com
ela quadros como o auto-retrato “Manteau
Rouge”, “Operários”, um retrato de Oswald de
Andrade - seu marido nos anos 20 - e alguns
outros que se encontram hoje distribuídos
TARSILA DO AMARAL pelos museus brasileiros. Desenhos seus se
encontravam sobre uma mesa aguardando
Não me lembro bem, mas, parece- montagem para a grande retrospectiva que
me, ouvi o nome de Tarsila do Amaral pela aconteceu no Rio e em São Paulo nesse final
primeira vez numa das memoráveis aulas da dos sessenta.
professora Maud Pires Arruda, nos anos 60. Com o tempo, pude saber pelas
O nome incomum e a obra minhas próprias pesquisas que Tarsila era
personalíssima me atraíram prontamente. mais importante para a evolução das formas
2001

Numa de minhas idas a São Paulo, tive a na arte brasileira, do que o tão falado

15
Cândido Portinari. Há alguma originalidade vida de Tarsila, perdi-os. Valho-me de minha
na leitura que ela fez do Cubismo, no uso da memória e de um ou outro livro, como o que
cor. É admirável a economia de meios que encerra a grande pesquisa feita por Aracy
notamos em seus desenhos feitos em 1924, Amaral.
por ocasião da viagem feita a Minas. Sempre que falo de Tarsila, nunca
É lamentável que a parte realmente deixo de mencionar sua ambição artística,
importante de sua obra se restrinja aos anos seu refinamento intelectual e sua grande
20, o mesmo podendo ser dito da obra de beleza física, presente mesmo depois dos
seu marido mais famoso, o genial Oswald quarenta anos, o que podemos atestar
de Andrade. Seu quadro mais famoso - por meio de fotos. Porém, Tarsila é antes
“Abaporu” - acabou indo parar numa coleção de tudo capítulo importante da história do
argentina e, ironicamente, tem sido mostrado Modernismo brasileiro.
com alguma freqüência em São Paulo. (29 de janeiro de 2000)

2000 Por ocasião do cinqüentenário da


Semana de 22, da qual Tarsila não participou,
ela foi muito requisitada pela mídia impressa.
Era o ano de 1972. Em janeiro de 73 ela
veio a falecer, tendo sido enterrada no PAULO MIRANDA
Cemitério da Consolação, o mais célebre da
Paulicéia, onde já se encontravam Mário e Imagine alguém que passe uma vida
Oswald de Andrade; no cemitério contíguo, inteira tentando disfarçar que possui uma
o dos Protestantes, encontra-se o corpo inteligência privilegiada, cultivada e, como
da pioneira Anita Malfatti. Por ocasião da conseqüência, um repertório raro, de um
morte de Tarsila, Dona Maud comentou nível elevadíssimo. Imagine alguém que,
com estranheza o fato de o caixão da por outro lado, não faça a mínima questão
pintora ser branco. Meus recortes de jornal, de se mostrar poeta, no mínimo muito
2001

documentando momentos derradeiros da bom e, quase sempre, excepcional. Pois é,

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esse alguém se chama Paulo José Ramos pudesse estabelecer, fazia com que alguns
Miranda, nascido em Pirajuí, no ano de dos mestres chegassem a pôr em dúvida a
1950, signo: Escorpião. Paulo Miranda, o autoria de seus textos. Não os amigos, que
Paulinho para aqueles que, aficionados da sabiam que um simples bilhete seu dava
poesia, conhecem-no e o reconhecem como gosto ler, tinha sempre algo de inventivo.
um dos maiores fazedores, dentre aqueles Bem, Paulo Miranda fez questão de
que começaram a publicar - embora muito não obter nenhum diploma universitário.
pouco - a partir de meados dos anos 70. Foi cada vez mais elevando o seu repertório
Meu conhecimento de Paulo Miranda específico acerca da Poesia, principalmente
data de fins dos anos 50: ele declamando as expressas em Português e Inglês, língua
com uma desenvoltura espantosa nas esta que ele aperfeiçoou com a estada de
festividades de escola, poemas de Gonçalves um ano nos EUA, inúmeras passagens curtas
Dias, entre outros. Porém, amizade mesmo por Londres e Nova York e muita leitura: de
2000 começou quando eu, atrasado nos estudos, Shakespeare a Ezra Pound.
dadas algumas reprovações, encontrei-me Desde muito cedo começou na Arte da
com ele na então segunda série ginasial - Poesia, escrevendo versos (um poeta se faz
era o ano de 1963. Um garoto prodígio no lendo/ouvindo outros poetas) o que culminou
que diz respeito ao domínio do código verbal. com um prêmio importante em 1968, ano em
Dizer que escrevia bem, era pouco. Seus que fixou residência em São Paulo e em que
professores sempre ficaram embasbacados começou a trabalhar como aeroviário. Seu
frente aos trabalhos que apresentava: do domínio técnico e sensibilidade fazem com
Grupo Escolar Anexo ao IEDAP, passando que até hoje possamos ler os versos daquele
pelo Ginásio e Clássico, até a Universidade. adolescente, com bastante interesse.
Passou duas vezes pela LETRAS da USP e A seguir, houve um período em que
uma pelo Jornalismo da FAAP, de 1969 à cada vez produzia menos, até que cessou
segunda metade dos anos 70; o fato de por completo a produção. Quando voltou a
2001

estar muito acima de qualquer média que se produzir, já operava dentro de um universo

17
intersemiótico, ou seja, fundindo o verbal DE OLHO NO LIVRO
com outros códigos. Porém, passou a fazer
pouquíssimos poemas: menos de vinte em Um livro, hoje, só pode ser pensado como
um quarto de século! Conhecimento da uma forma de entretenimento - o que não
tradição, senso crítico, sensibilidade à flor exclui atividade com esforço mental até
da pele, fina ironia e humor possibilitaram sofisticado - a consumir o mínimo possível do
poemas como o reviravolta, o soneto-fita- tempo do destinatário, ou seja, a brevidade
métrica, o poema de valor, a crônica da continua na ordem-do-dia. Produzir hoje um
passagem do ano etc. É de se notar que livro significa despender um grande esforço
poucas pessoas - leitores privilegiados - têm para fazer algo denso e de aparência leve e
tido acesso a essas faturas admiráveis. que ofereça vários níveis de leitura: desde
“A Poesia viveria muito bem sem nós”, aquela superficial, consumindo apenas, no
disse-me certa vez Paulo Miranda, para máximo, uma hora e vinte do leitor (se tanto)
2000 detonar qualquer pretensão minha e dele até a que se transforma num verdadeiro
mesmo quanto à realização de uma obra trabalho de garimpagem e decifração frentre
de invenção, como pregavam os nossos ao material riquíssimo, mas que não se
amigos poetas concretos. Tendo horror ao mostra a um repertório qualquer (trata-se
gênero vida de artista, Miranda vai liberando de uma viagem: do texto ao hipo-texto
o seu finíssimo humor e ironia e fazendo - a coisa palimpséstica - que acaba por se
cada vez menos ou, simplesmente, nada configurar em hiper-texto). Você saberia
produzindo… distinguir entre dois pratos bem feitos qual
(05 de fevereiro de 2000) seria o melhor e por quê? É esse grau de
sutileza que possui o leitor ideal, mas
nenhum pode ser excluído (lembro-me de
poemas aparentemente difíceis, que eram
decodificados satisfatoriamente por pessoas
2001

com baixo repertório específico em termos

18
de poesia tradicional, coisa que não era (e isto significa: 400, 700, 1000 páginas).
alcançada pelos de alto repertório, pois só Um livro, hoje, deverá oferecer outros
eram capazes de uma leitura viciada). De atrativos: brevidade, tactilidade, visualidade
qualquer modo as coisas têm sido sempre trabalhada, disposição para algo outro,
assim: possibilidade de vários níveis de deverá despertar, num primeiro momento, a
leitura, dependendo do repertório do fruidor. satisfação que fornece um desses CLIPS tão
Esse livro-de-hoje pode ser um livro-objeto, na ordem-do-dia. Um livro-papel, hoje, deve
livro-de-artista, exemplar único, porém, ser um não-livro, para poder ser de fato um
que possa ser recodificado, sem perda de LIVRO. Julho de 1999
qualidade/informação, para ser CD ROM, [Manifesto]
vídeo, performance, fatura disponível na (12 de fevereiro de 2000)

Rede. Como os poemas da era pós-verso,


esse livro (com a aparência tradicional) poderá
2000 transformar-se, adaptando-se, possibilitando
a veiculação das mensagens de que é o
portador, por outros meios; deixa que aquilo DE OLHO NA POESIA
que contém migre... Um livro eletrônico, ou
melhor, um texto eletrônico não deverá ter É consagrada e persistente a idéia de POESIA
mais que doze ou quinze minutos de duração, como a ARTE DA PALAVRA, por excelência,
sob pena de desinteressar o destinatário. o que não deixa de corresponder à verdade,
O livro tradicional é o livro tradicional, não a uma parte da verdade, digamos. De fato
desaparecerá, forma sábia que é, mas se mesmo, a poesia sempre esteve envolvida
transformará, sofrerá, como vem sofrendo, com outros códigos/outras artes, em alianças
o impacto dos novos meios, mas também mais ou menos explícitas. Com a eclosão
atuará sobre eles, além de embasá-los. dos modernismos e seus desdobramentos, a
Quem quer que venha a se interessar por poesia se assume como arte intersemiótica,
2001

volumes, deverá entrar na sintonia da coisa invadindo outros campos, casando-se com

19
outros universos, rompendo com quaisquer POESIA: é poesia toda forma de organização
delimitações, o que, de resto, aconteceu sígnica com certo grau de complexidade
com as outras áreas da criação artística. que, visando a um fim estético, traz consigo
POESIA E VISUALIDADE: embora a questão uma carga conceitual, própria do mundo das
não seja nada nova e muita água já tenha palavras. É poesia tudo aquilo que o poeta
rolado desde fins do século passado, provoca quer que o seja [parafraseando Mário de
discussões acirradas e a reprovação por parte Andrade quanto (des)definiu CONTO]; pelo
daqueles que, verbalistas conservadores simples fato de ele ser poeta, suas faturas
(fazedores de versos, livres ou não) pensam serão poemas. Voltando à questão POESIA/
ser seu o território e se julgam no direito OLHO: há três formas principais de visualidade
de reservar para si o rótulo POETA. (Quem na poesia: 1. Aquela evocada pelas palavras
estaria interessado na disputa?) Discussões (a projeção de uma imagem na retina da
infrutíferas à parte, fazedores (poetas) mente - “fanopéia”, Pound). 2. A emprestada
2000 operam, tomando os códigos da visualidade ao poema, necessariamente, pelo registro
(onde se inclui a escrita) como elementos da escrita. 3. A visualidade que entra como
constitutivos estruturais da fatura (poema). um propósito do fazedor, que explora os
Daí, que a denominação POESIA VISUAL recursos da escrita, do desenho, da cor etc.
seja insuficiente, porque essa poesia é mais, Ela comparece tanto nos poemas figurativos
nem sequer exclui sonoridades! Melhor seria como nas verdadeiras fusões de códigos. E
chamá-la POESIA INTERSEMIÓTICA INTER/ a poesia que aqui se situa não teme as mais
MULTI-MÍDIA DA ERA PÓS-VERSO, pois utiliza avançadas tecnologias; transita pelos vários
vários códigos e meios e já é concebida para meios; poesia aberta às possibilidades-mil
ser veiculada do papel ao CD ROM, passando do hoje. POESIA INTERSEMIÓTICA MULTI/
pelo vídeo. Essa é a poesia que nos últimos INTERMÍDIA: a POESIA DA ERA PÓS-VERSO.
vinte e cinco anos vem provando que a 1997
experimentação é companheira inseparável [Manifesto]
2001

do exercício artístico. Retomando a questão (19 de fevereiro de 2000)

20
SÃO PAULO: CAPITAL CULTURAL DO USP. Abrigando o mais importante conjunto
BRASIL internacional de obras de arte do Brasil,
tais museus tiveram importante papel na
A cidade de São Paulo, no século XX, formação global de gerações que se seguiram
abrigou eventos e processos de fundamental e, em particular, dos artistas e estudiosos de
importância para a cultura brasileira, o que Arte.
a fez tomar para si o papel que até então . As Bienais Internacionais de Arte, tendo
coubera à ex-capital, o Rio de Janeiro. sido realizada a primeira, em 1951.
Vejamos o que há de mais relevante nessa . O Concretismo, nos anos ‘50, com o Grupo
história: Noigandres [e o Ruptura, ambos em 1952],
. A primeira exposição de pintura moderna sendo que a Exposição Nacional de Arte
em solo brasileiro, foi realizada em São Paulo Concreta foi realizada em São Paulo, em
(e Campinas), em 1913, pelo judeu lituano dezembro de1956 (deslocando-se, depois,
2000 Lasar Segall. para o Rio de Janeiro).
. Em 1917, Anita Malfatti inaugurou a célebre . O Tropicalismo eclodiu em São Paulo, na
exposição, que é considerada o ponto segunda metade dos anos ‘60, com criadores
de partida para o Movimento Modernista não só, mas principalmente do Nordeste
Brasileiro. [Bahia], não se resumindo ao fenômeno
. A Semana de Arte Moderna de 1922: São conhecido como parte integrante da MPB
Paulo: centro de irradiação do Modernismo (nesse tempo todo, o Rio de Janeiro continuou
no Brasil. tendo um papel privilegiado na cultura
. Fundação do que seria a Universidade de brasileira, muito embora tenha perdido
São Paulo, que se tornou a maior e a mais sua hegemonia. Dos processos culturais de
importante do País. grande importância, saídos de fato da Cidade
. Fundação, na segunda metade dos anos Maravilhosa, temos o da Bossa Nova, que
40, do MASP e do MAM, cujo acervo (o eclodiu na segunda metade dos anos ‘50 e
2001

núcleo principal) acabou formando o MAC- alcançou o mundo).

21
. Nos anos ‘70, São Paulo também foi centro das manifestações culturais de ponta do
de irradiação da poesia mais empenhada País.
com a experimentação, embora o País (26 de fevereiro de 2000)

possuísse centros outros, ou focos mais


ou menos direcionados para o mesmo
objetivo, como era o caso de Salvador-
Bahia, Curitiba, Rio de Janeiro, Brasília,
Belo Horizonte, numa época em que a JORGE LUIS BORGES
poesia parecia pipocar por todo o Brasil,
não só nas capitais, mas até em cidades Minha primeira saída do Brasil se deu
interioranas, como é o caso, por exemplo, tardiamente, em 1984, época em que eu
de Pirajuí. já adentrara a casa dos trinta. Em janeiro
. Dos 70 aos 90, no âmbito da MPB, São daquele ano resolvi ir até à Argentina,
2000 Paulo ainda abrigou as manifestações Buenos Aires, mais especificamente. Pois
de Walter Franco, de Arrigo Barnabé, de justamente nesta primeira viagem para o
Itamar Assumpção e de Arnaldo Antunes. exterior, embora um exterior tão próximo,
O Rio de Janeiro continuou a promover estive por duas vezes com aquele que era,
o seu espetaculoso carnaval, hoje, mais então, o maior narrador vivo do mundo:
uma espécie de “macumba pra turistas” e, Jorge Luis Borges.
como escreveu Décio Pignatari, a cidade A aventura que foi localizá-lo na cidade
só tem uma real existência porque sedia a mereceria um escrito à parte; entre outras
Rede Globo. coisas, o telefone de seu apartamento na
Não só pelo fato de São Paulo ser Calle Maipú com a Marcelo T. de Alvear
o centro do capitalismo no Brasil, mas ainda se encomtrava no nome da mãe -
por possuir uma elite artística/intelectual Leonor Acevedo de Borges - pessoa que o
verdadeiramente cosmopolita, tem acompanhou desde que ficou cego, tendo
2001

desempenhado o papel de centro irradiador morrido aos 99 anos de idade.

22
Bobagem, nas vezes que estive a sós tramar sua literatura”. Esse incrível escritor,
com ele, ter evitado falar em visualidade na que não escondia a paixão que tinha pelas
poesia e coisas mais que se referissem à enciclopédias (eu cheguei a ler verbetes para
visão, já que ele tratava do assunto cegueira ele) trazia consigo um saber imenso, que
com a maior naturalidade, tendo dado até reunia Ocidente e Oriente e elaborou uma
conferência sobre ela. Além do mais, ia a obra além de admirável. O poeta não foi tão
cinemas, visitava lugares... grande quanto o narrador e o comentador
Borges foi um grande prosador. Por de Literatura e outras coisas mais, mas era
detrás de uma aparência tradicional de no mínimo finíssimo.
narrativa, há todo um trabalho envolvendo É óbvio que, já com idade bastante
tramas surpreendentes, numa escrituração avançada e solitário momentaneamente
cheia de artifícios, o que chegava a exacerbar naquele escaldante verão portenho, ele
o ficcional da ficção (fingimento): o foco receberia qualquer pessoa, porém quem
2000 narrativo, o trânsito entre o sono/sonho estava lá era eu e ansioso para ver o gênio.
e a vigília, a metalinguagem... Sua prosa Tudo colaborou para que eu viesse a conhecer
possuía uma espécie, não de ritmo, como o autor de Ficciones, o homem que disse
se entende o ritmo na poesia, mas uma ter lido primeiramente em inglês o Quijote
respiração marcante. Daí que é fundamental e, quando leu o texto espanhol, este lhe
lê-lo no original espanhol. Parerce-me parecer uma obra mal traduzida!
que seus tradutores para o Português não Guardo ainda, com cuidado, as
perceberam isso. cerca de trinta fotos que fiz dele naquela
Ficcionista acima de tudo, Borges ocasião [e volume de suas Obras Completas
elaborou em torno de si uma nuvem autografado].
ficcional, a ponto de se ter duvidado mesmo (04 de março de 2000)

de sua existência. Num belíssimo escrito


Borges e Eu, ele chega a afirmar: “Vivo,
2001

eu me deixo viver para que Borges possa

23
TITO MADI suave, com uma afinação irrepreensível,
sem trejeitos nem cacoetes daqueles
Se alguém me perguntasse quem é a que, ainda pensando estar na era dos
pessoa mais simpática do mundo, eu diria: a captadores dinossáuricos, não perceberam
mais, não saberia dizer, mas, dentre as que que o microfone havia evoluído a ponto de
conheci e conheço, posso citar uma moça que permitir maviosos cantos configurados por
há muito reside nos EUA, a Soninha Gaiani e vozes pequenas, mas sábias. Era o caso
dois rapazes da família Madi: Reinaldo, que é de Tito Madi, que teve os seus precursores
meu primo e Tito, o músico-cantor. Tito Madi e que entra, ele mesmo, como precursor
é possuidor de um beleza/bondade que brota da Bossa Nova, que estouraria nacional e
de dentro e que parece ser uma marca da internacionalmente.
sua família. Amor e Alegria de Viver sempre Tão pouco ou quase nada daquele
acompanharam seus pais - é o que me conta bel canto que insistia em massacrar os
2000 deles minha mãe. ouvidos dos radiouvintes e, também dos
Bem, Tito Madi aprendi a gostar desde telespectadores. Tito Madi, que chegou a
muito cedo, primeiro pelo fato de ele ter conviver com o admirável João Gilberto (este
nascido em Pirajuí e por ser cantor, também radicalizou a coisa que chegou às últimas
autor, de maravilhas com “Não diga não” e conseqüências com o canto-sussurro de
“Chove lá fora”, composições que parece que Walter Franco), criou escola: muitos dos
sempre soube de cor; em segundo, por ser cantores cuja contenção chega a ser a marca
descendente de árabes libaneses como eu e registrada, têm apontado Tito Madi como o
ser parente de meus pararentes (uma das seu mestre.
irmãs de minha avó materma era casada Tito Madi, há tempos anda mais ou
com um Madi). menos fora da mídia - entenda-se: TELEVISÃO
Do Rio de Janeiro, anos 50, Tito Madi - mas é sempre evocado por aqueles que de
chegou ao sucesso nacional, cantando fato conhecem a MPB e o papel importante
2001

composições suas de uma forma terna, que teve para ela esse rapaz, que canta na

24
noite, como é tão comum entre grandes A LINGUAGEM EM ESTADO DE POESIA
nomes que atuam fora do Brasil (aqui, é
aquela coisa de programas de televisão e os .O que chamamos POESIA é algo geral, que
mega-shows, com suas coisas de sempre). engloba toda uma arte: A ARTE DA PALAVRA,
Lembro-me das passagens de Tito por excelência, como normalmente se afirma
Madi por Pirajuí, quando ele, já famoso, e ela se configura num território específico
ainda solteiro, vinha visitar parentes e (não exclusivamnte): o POEMA.
amigos. Vi-o algumas vezes - poucas - na .A linguagem está preparada para que nela
TV, presença de classe, cantor impecável. se configurem FUNÇÕES, dependendo, isto,
Nos anos 80 ele estava se apresentando em dos fatores que estarão sendo colocados
São Paulo, numa casa noturna, à Rua Santa em evidência e isto vai da necessidade
Isabel, chamada VIVA MARIA; encontrei-o, nos processos de comunicação. A Função
à noite, ali perto, numa banca de revistas Poética é uma entre outras funções. Só que
2000 da Amaral Gurgel. Aproximei-me e me no poema ela é a dominante, convivendo
apresentei; ele me recebeu calorosamente com outras.
e perguntou de algumas pessoas de Pirajuí .Todo idioma está apto a produzir poesia da
e me convidou para ver a sua apresentação. melhor qualidade.
Despedimo-nos. Eu não fui ver o seu show. .Um poeta pode até dominar vários idiomas,
Andei comprando os CDs encontráveis nas mas opta por um: nesse é que ele vai
lojas. Cada vez mais penso no como ele é concentrar todo o seu poder de fogo - um
um fino intérprete e quando terei - de novo poeta só é excepcional num único idioma.
- oportunidade para ver uma apresentação .A função poética se configura quando
sua... a seleção se superpõe à combinação
(11 de março de 2000) e determina o arranjo, evidenciando a
mensagem-ela-mesma, o que significa que
em poesia a forma é fundamental, sendo
2001

que a função poética expõe a materialidade

25
dos signos (verbais: as palavras). principalmente de Roman Jakobson - autor
.Embora o território por excelência da de um dos mais importantes textos teóricos
FUNÇÃO POÉTICA seja o poema, ela aparece sobre poesia, desde Aristóteles - tendo
em outros territórios, como na fala cotidiana sido escrito em fins dos anos 50, é o último
(Maria Miranda? Deus sabe onde anda!), grande texto teórico sobre poesia entendida
na publicidade (quem compara compra como a arte da palavra por excelência. Quem
cônsul), em manchetes de jornais (Viola tiver a oportunidade que o leia: “Lingüística
sai no pau com torcedor pentelho). Isto e Poética”.
daria um bom artigo... (18 de março de 2000)

.O fato de o poético comparecer nos


territórios acima mencionados, não significa
que ali você tenha poesia, da melhor; só que
a função poética ali interfere e de forma até
2000 exagerada, jogando um pouco de areia na POESIA/POEMA
referencialidade.
.Procure o poético em poemas. Veja como É muito comum entre nós o uso indistinto
exemplo o trecho final de famoso poema de de poesia e poema para designar o
Sá de Miranda, poeta português que viveu mesmo fenômeno, ou seja, a fatura
de fins do século XV a meados do XVI: em que predomina a função poética da
[...] linguagem. É claro que ambas as palavras
Que meio espero ou que fim têm a mesma origem grega, passando pelo
Do vão trabalho que sigo, Latim e vindo até nós: do verbo grego que
Pois que trago a mim comigo, significa fazer, daí que POESIA significa o
Tamanho imigo de mim? ato de fazer e POEMA a feitura, a fatura,
o fazimento (ΠΟΙΕΩ= POIÉO = EU ESTOU
As reflexões acima tiveram por base FAZENDO) donde se conclui que POETA é
2001

trabalhos de inúmeros estudiosos, mas aquele que faz. Muitos dizem: “Esta poesia

26
de Manuel Bandeira é a minha preferiada”. Sob o azular do luar...
Ou: “Naquele sarau foram lidas muitas E ouve-se no ar a expirar -

poesias dos modernos”. Até alguns eruditos


A expirar mas nunca expira -
chegam a utilizar os termos indistintamente Uma flauta que delira,
para não destoarem da maioria. Porém, é
bom saber que há diferenças e que o mais Que é mais a odéia de ouvi-la
correto (...os erros se consagram...) é dizer Que ouvi-la quase tranqüila

POESIA quando se trata de algo mais geral.


Pelo ar a ondear e a ir...
Exemplos: “A POESIA é a arte da palavra,
Silêncio a tremeluzir...
contaminada de outros códigos”. “ A POESIA
Grega”. “A POESIA épica”. “A POESIA (25 de março de 2000)
simbolista”. “A POESIA de Drummond”. Por
outro lado: “Meus POEMAS preferidos”. “Li
2000 um belo POEMA de Camões”. “O POEMA mais
conhecido de Manuel Bandeira é o ‘Vou-me
embora pra Pasárgada’”. Sempre que se
MAUD PIRES ARRUDA
trata de uma unidade, por mais extensa que
seja, eu devo dizer POEMA.
Talvez que ela não se lembre, mas eu
Agora, dentro da tradição da POESIA
a conheci antes mesmo de ser seu aluno -
em Língua Portuguesa, transcreverei o
por muitos anos - no IEDAP: passava com
POEMA “Plenilúnio”, de Fernando Pessoa:
a cabeça protegida do Sol por uma toalha -
voltando da natação no Parque Clube - a qual
As Horas pela alameda
Arrastam vestes de seda, fazia as vezes de um tarbuch, componente
do vestuário árabe típico e ela me chamava
Vestes de seda sonhada da varanda do casal Poli, onde conversava,
Pela alameda alongada e me falava coisas bonitas, como se fala a
2001

27
uma criança, no mínimo curiosa. Também, conhecimentos faziam com que ela pudesse
de tanto ouvir alunos seus que eram de transitar pelas mais diversas das Artes, do
minha família. Ainda, de apresentações Desenho à Música, da Arquitetura à Poesia,
teatrais inesquecíveis, peças de Maria Clara da Pintura ao Teatro e ao Cinema. Sabia o
Machado, como “Pluft, o fantasminha”, no que era um Michelangelo e um Matisse, um
palco do Cine São Salvador e “A bruxinha Vivaldi e um Stravinsky, Camões e Bandeira,
que era boa”, no salão nobre do IEDAP Shakespeare e Suassuna, Chaplin e Fellini.
(não me lembro se, em fins dos anos 50, Seus conhecimentos permitiam comentários
já possuía esse nome). Teatro de fantoches, pertinentes, como os de alguém que sabe
coro falado, exposições anuais de quadros o que diz: tanto era capaz - como sempre
pintados por seus alunos normalistas (eram fazia - de analisar a estrutura composicional
mais ALUNAS, mais de 95%). Anos depois, de um quadro como de citar e tocar ao piano
cheguei a fazer um dos papéis principais - o alguma peça de compositor famoso. Ia do
2000 do Burro - na peça por ela dirigida: “O Boi comentário sobre a atuação de uma certa
e o Burro a caminho de Belém”, da mesma atriz num dado filme à encenação - dirigindo
Maria Clara Machado, apresentada na Sede - de algum texto teatral, principalmente
Cristo-Rei. infantil, que era o público a quem mais visava.
Bem, mas vamos ao que mais O que havia de mais surpreendente no dia-
interessa. A excepcional professora que a-dia de suas aulas eram as análises que
foi Dona Maud, numa época em que as fazia das tarefas artísticas que determinava:
escolas estaduais eram as melhores, as todos os cadernos eram expostos na frente
mais fortes, as que possibilitavam um mais da sala (tendo por suporte o aparador de giz
elevado repertório a seus alunos e ainda do quadro) e ela comentava um a um!
mais os Institutos, como era o caso da que Nos anos 60 ela trouxe dezenas de
ela acumulava duas cadeiras: a de Desenho filmes 16 mm, principalmente versando
e a de Desenho Pedagógico. Seu alto sobre arte; lembro-me de que os de
2001

repertório específico e a amplitude dos seus procedência holandesa eram os que mais

28
me entusiasmavam: daquele que tratou ela me estimulou a criação, entregando-me a
exclusivamente de Rembrandt ao que reprodução em xerox de uma sua fotografia,
trouxe a obra de Appel. Muito do que vim a ao que respondi fazendo um soneto visual,
desenvolver mais tarde, descobri nas aulas um dos meus trabalhos sempre citados pelos
de Dona Maud. Minha inclinação para as aficionados do tipo de poesia que eu faço.
Artes Plásticas encontrou muito incentivo de Sempre em atividade, mil atividades
sua parte. (assistência social, pedagógica, religiosa),
Como desenhista e pintora, parece- Dona Maud intensificou, após sua
me que preferiu renunciar a uma carreira aposentadoria como professora, a atividade
individual em prol do Ensino, o que fez dela de escritora-cronista e, há cerca de três
uma das melhores professoras que este décadas, tem brindado semanalmente os
nosso país já conheceu. Sempre aberta pirajuienses com seus textos.
às novas tecnologias de então, recebeu Para mim, é impossível estudar Arte,
2000 de braços abertos a reforma, a partir dos coisa que faço praticamente todo dia, sem
70, que pedia um professor polivalente que me venham à mente aquelas bases que
no ensino das Artes, ao invés de um para adquiri em suas aulas. Sempre que posso,
Música, outro para as Artes Plásticas; isto estando em Pirajuí, eu a visito e me sinto
porque ela possuía um repertório incomum um privilegiado por ser recebido por ela.
e já antecipara de muitos anos o que muitos (01 de abril de 2000)

pensavam ser novidade. Suas qualidades,


porém, eram raras e, portanto, não estavam
presentes em mais de 90% dos professores
da área disponíveis na Rede Estadual. Mas
esta é uma outra história. MARCEL DUCHAMP
No ano de 1974, ano fundamental
em minha vida de artista gráfico/poeta, pois O que pensar de alguém que determine
2001

passava de pintor a fazedor intersemiótico, para o seu túmulo o seguinte epitáfio: ALIÁS,

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SÃO SEMPRE OS OUTROS QUE MORREM! O tal Nu, participando de importante mostra
Pois é, o artista francês Marcel Duchamp nos EUA, Nova Iorque, em 1913 - Armory
(1887-1968) fez isso... Duchamp, ao que Show - causou sensação e transformou
me consta, era uma pessoa feliz, possuía Duchamp numa celebridade entre os artistas
essa vocação e um dos motivos que tenho e aficionados das Artes daquela cidade.
para desconfiar de que era feliz, é o fato de Poderia ter pintado mais de uma centena de
ele não ter o dinheiro como algo importante. quadros que seriam variações do “Nu”, mas
Teve tudo para ficar rico rapidamente: não não o fez. Célebre antes nos EUA, este país
se interessou, pois nunca passou por sua acabou ficando com o núcleo principal de sua
cabeça ser um moderno acadêmico ou um obra, que se encontra no Museu de Arte de
vanguardista profissional. Possuía, sim, uma Filadélfia. Da pintura puramente retiniana,
grande ambição artística talvez a maioir das àquela que comporta uma fortíssima dose
ambições artísticas deste século. Quase de conceptualismo, trabalhou durante anos
2000 nunca se repetiu. Em 1912 pintou um quadro no “Grande Vidro”, que acabou danificado
a que nomeou “Nu descendo uma escada”. por um acidente, tendo sido incorporado
Quanto à forma/estilo, os estudiosos o têm tal acaso. Mas o que de mais notável há
classificado como cubo-futurista. Além do que na obra duchampiana é ter ele chegado
tem de formalmente espetacular, o quadro a assumir como arte algo já pronto, com
traz o seu nome inscrito na parte inferiror: ou sem algumas alterações: concebeu os
Duchamp fez com que os títulos de suas obras READY-MADES. O projeto - Duchamp foi um
entrassem como elementos constitutivos artista-pensador - contém a anulação do
estruturais, além do grande impacto que gosto pessoal: isto norteava a escolha de
alguns trazem, pois fazem trocadilhos, criam um determinado objeto ao qual imputava
uma aparente distância - muito grande - com o teor estético, de par com a possibilidade
relação àquilo que se vê, são a incorporação de reprodução, evitando, assim, a coisa do
de valores propriamente literários numa obra objeto único. Se é ou não possível zerar-se o
2001

que pertence ao universo das Artes Plásticas. gosto pessoal, não importa tanto; o que mais

30
importa é ter isso como projeto. Tem de se ser masculina, a fonte: um liberador de água
radical. Há momentos que pedem o máximo ou de qualquer outra coisa. Formalmente,
de radicalidade. E a ambição duchampiana esse objeto faz lembrar a genitália feminima
não deixava por menos. Alguns ready- agigantada, exposta, remetento, esta
mades são objetos industriais, fabricados configuração, ao quadro do pintor realista
em série, podendo ser feitos outros iguais. do século XIX Gustave Courbet L’ORIGINE
Com isto, Duchamp dá um tiro certeiro no DU MONDE = uma mulher de pernas abertas
artesanato. (A revolução picassiana na arte, com o sexo exposto, porém encimado por
por outro lado, foi diferente: sempre esteve uma pelugem: uma fonte. De VIDA. Na
calcada no artesanato. Picasso, um produtor última obra de Duchamp, uma instalação
compulsivo de objetos de arte, nunca abriu que foi montada no Museu de Arte de
mão do artesanal em prol de um conceitual, Filadélfia, após sua morte, em 1968, o
embora todo ato que resulte em arte tenha voyeur, pela fresta de uma velha porta
2000 muito de cérebro; Picasso necessitava do [em verdade, através de dois orifícios] vê
empenho braçal que o artesanato exige). O uma mulher deitada, tridimensional, com o
mais famoso Ready-Made de Duchamp foi sexo, sem pelugem expoxto, mas não vê o
por ele nomeado FONTE e trata-se de um rosto, como no quadro de Courbet. É dia,
mictório masculino, desses parafusados na mas a mão esquerda sustenta um lampião
parede. Ele o descontextualizou, assinou-o, aceso. ÉTANT DONNÉS. A FONTE. Duchamp
datou-o e o colocou numa posição que não é desses artistas inventores, dos que abrem
é aquela que permitiria um uso adequado picadas para serem trilhadas pelos que vêm
(na concepção do ready-made, não consta em seguida. Duchamp e seus intermináveis
mudança de função, mas a função-nenhuma caminhos...
a não ser a estética que é imputada ao (08 de abril de 2000)

objeto pelo artista). na FONTE, Duchamp,


conceptualmente inverte as funções: de
2001

mictório, portanto, sorvedouro de urina

31
Revistas intersemiótica/intermídia e chegou ao nº 6.
Justamente a revista de nº 6 constituiu-se na
Num artigo publicado em 1982, o de mais longa gestação na história da cultura
poeta Paulo Leminski colocava o conjunto de brasileira: mais de dez anos, da concepção
revistas de invenção como o maior poeta dos ao lançamento no MIS-SP, em abril de 1993.
anos 70. De fato, aquelas publicações eram o POESIA EM GREVE continuou em
maior barato e traziam grande alegria para os QORPO ESTRANHO, que teve o seu melhor
que as faziam, colaboravam ou simplesmente no nº 1.
liam. Em verdade, não eram bem revistas, MUDA pretendeu marcar uma mudança,
pois nunca mantiveram uma periodicidade, a começar, cortando os concretistas históricos,
mesmo aquelas que conseguiam passar do que haviam colaborado em todas as outras
nº 1. revistas. Em verdade, MUDA revelou de vez
Das tais “revistas”, três saíram em os que estavam empenhados na restauração
2000 1974: POLEM, CÓDIGO e NAVILOUCA, depois do verso e os que pretendiam uma verdadeira
vieram ARTÉRIA, POESIA EM GREVE, QORPO fusão de códigos em poesia.
ESTRANHO, MUDA e outras. Na segunda metade dos anos 80,
POLEM foi publicada porque se pensou ATLAS pretendeu reunir todos os que haviam
que NAVILOUCA não sairia. Mas saiu. CÓDIGO colaborado nas famosas revistas. Quase
foi um verdadeiro prodígio, pois conseguiu conseguiu realizar tal ambição: foi a maior
chegar ao nº 12, sempre editada – financiada em formato e a que teve o maior número de
– por Erthos Albino de Souza. colaboradores, mas lá não estavam todos.
ARTÉRIA começou ser editada pela Alguém que hoje for pesquisar tais
Nomuque Edições em Pirajuí e continuou revistas vai ter várias surpresas, vai poder
em São Paulo, capital. Das revistas mais delinear toda uma época da melhor poesia
empenhadas com a experimentação, foi que se fazia no Brasil! E isto é assunto para
ARTÉRIA a que mais se metamorfoseou, um outro escrito.
2001

a que mais se especializou numa poesia (15 de abril de 2000)

32
tradução de poesia veio, entre humorístico e sério, tenho dito
translusificação.
Em escrito anterior, expus as Mas voltemos aos problemas envolvidos
peculiaridades da linguagem poética. Entre pela tradução de poesia. Jakobson chegou
outras coisas escrevi – calcado em teorias de a afirmar que a tradução de texto poético
outrem – que todo idioma possui qualidades é tarefa impossível, a não ser que haja re-
tais que lhe possibilitam poesia e da melhor criação, donde se conclui que, por ser o
qualidade. Por outro lado, veio a afirmação de poema uma obra de arte, a tradução também
que um poeta só pode ser excepcional num deverá sê-lo; daí que o tradutor de poesia só
único idioma: nesse ele vem a concentrar poderá ser, também, um poeta.
todo o seu poder de elaboração do texto Calcado principalmente em Haroldo de
poético. Hoje eu acrescentaria: a não ser que Campos – nosso maior teórico de tradução
ele conte com um tradutor-recriador, como de poesia – trago algumas afirmações.
2000 poetas de vários idiomas têm podido contar: Tradução de poesia é recriação. Resulta,
com o trabalho de tradução, para o português, desse trabalho, uma obra de arte: ela
dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos, terá autonomia enquanto tal, porém, trará
os irmãos Campos do Concretismo. sempre a memória da obra que a motivou.
Nós podemos saber quando um poema Considerando as peculiaridades dos idiomas,
está bem traduzido, principalmente se ele nem tudo, em termos formais, poderá
continua a ser poema na nova língua. É o ser conseguido numa tradução: daí que
que, através dos irmãos Campos, se tem a compensação entrará como um recurso
visto com peças de Safo, Horácio, Catulo, importante (perde-se num lugar, ganha-se
Arnaut Daniel, Guido Cavalcanti, Dante noutro).
Alighieri, John Donne, Mallarmé, Cummings Para os amantes da poesia, nenhum
e tantos outros. A esse trabalho de recriação, idioma é suficiente enquanto formação ou
Augusto chama de tradução-arte; Haroldo mesmo satisfação. O amante de poesia tem
2001

prefere chamar de transcriação. Nesse de transitar por várias tradições. Por outro

33
lado, boas traduções são fundamentais Safo viveu entre os séculos VII e VI
para esse conhecimento e entram até como a.C. na ilha de Lesbos, Mundo Grego. Quase
um estímulo para o aprendizado de outros nada se sabe com certeza sobre ela: a lenda
idiomas. Boas traduções acabam sendo parte penetra o pouco de que dispomos sobre sua
integrante da poesia das várias tradições vida; sua obra – tão admirada e louvada na
idiomáticas. Antigüidade – chegou até nós aos pedaços:
Vejamos, agora, o trabalho de fragmentos de um canto lírico que mantêm
recriação, ou melhor, de transcriação feito um frescor e beleza admiráveis. Somente
por Haroldo de Campos com um fragmento um poema chegou até nós integralmente: a
da poeta grega Safo: intraduzível “Ode a Afrodite”.
em torno a Selene esplêndida E aqui não posso deixar de mencionar
os astros
(de novo) Haroldo de Campos, que coloca o
recolhem sua forma lúcida
seguinte: quanto mais difícil, quanto mais
quando plena ela mais resplende
2000 alta impossível a tradução do poema, mais
argêntea instigadora será a tarefa do tradutor-poeta.
(22 de abril de 2000) Re-criar é a questão.
Um certo fragmento de Safo – apenas
dois versos – fascinou-me desde o primeiro
contato: caco precioso a me perturbar, a me
desafiar. Li muitas traduções do tal texto;
um fragmento de safo nenhuma, porém, dava conta, mesmo em
parte, da beleza do original grego (Safo
Na semana passada escrevi sobre operou no dialeto eólico). O primeiro verso
tradução de poesia, de sua especificidade e traduzi com alguma facilidade, até imitando
dificuldades. Hoje, trago mais um fragmento a sonoridade grega. O segundo, porém,
da poeta grega Safo, desta vez, por mim perseguiu-me por dois anos e meio, até
2001

traduzido. que saiu inteiro, de modo a me satisfazer.

34
Daí, assumi a tradução (translusificação)
publicando-a diversas vezes.
Uma observação: na tradução de textos
que nos chegam fragmentários, costumamos
fazer com que a seqüência tenha uma poesia fora do poema
completude, inexistente no original, posto
que pedaço. Embora o poético se configure, por
Eis o texto de Safo (Sapphó): excelência, no poema, ou seja, na feitura
assumidamente poema, como colocou
1. texto grego: Roman Jakobson, não é exclusividade dele.
EROS DHUTE M’O LUSIMELHS DONEI, E exemplos disso teríamos às dezenas, mas
GLUKUPIKRON AMAXANON ORPETON vou me deter em apenas dois, nos quais,
Transliteração: o que seria secundário, passou como que
2000 Eros deute m’o lusimeles dónei, para o primeiro plano: a função poética
Glukúpikron amákhanon órpeton sobrepujando a conativa e a referencial. Eis
os dois exemplos (sendo que o primeiro foi
3. Tradução literal: ligeiramente alterado):
O amor, o que deixa bambos os membros, 1º Junto ao viveiro de carpas (Casa
de novo me atormenta, Japonesa, Parque do Ibirapuera, SP) uma
monstro doceamargo, contra quem não tabuleta dirigida aos visitantes:
se pode lutar
DEIXE
4. A re-criação: O PEIXE
(o lesamembros) EM PAZ
Eros deu de m’infernar de novo, 2º Na primeira página do jornal
Doceamara feramá queaferra notícias populares de 18-11-1991, uma
2001

(29 de abril de 2000) manchete secundária:

35
passaram pirama”, de Gonçalves Dias.
a broxa Nesse exemplo, extraído de NOTÍCIAS
no Cristo POPULARES, o dístico em redondilhas
carioca menores traz o par de rimas toantes broxa/
Nos dois casos temos pentassílabos carioca e a aliteração bem a propósito
perfeitos, apesar da quebra representada Cristo carioca, pois, não se falou em Cristo
pela disposição gráfica das palavras que Redentor ou Cristo do Corcovado (o que
compõem os textos. No primeiro exemplo: manteria a aliteração mas quebraria metro
Dei xeo pei xeem paz e ritmo). O fato, em verdade, diz respeito à
1 2 3 4 5 grafitagem feita por dois paulistas na base
com o seguinte esquema rítmico: / . / . / do Cristo (não propriamente no corpo da
(acentos na primeira, terceira e quinta estátua gigantesca) e que foi notícia até do
sílabas). FANTÁSTICO, da Rede Globo de Televisão.
2000 No segundo exemplo, as quatro linhas A destacar, também, a malícia, como que
formam, em verdade, dois pentassílabos profano-sacrílega, ao tratar tão vulgarmente
ou redondilhas menores: a. passaram a a figura sagrada, valendo-se de um
broxa; b. no Cristo carioca, observando vocabulário com conotações que remetem
no segundo pentassílabo a sinérese em ao chulo, fazendo lembrar certas expressões
carioca, ri ó formando uma única sílaba. comuns (o termo “broxa”, espécie de pincel,
Então, temos: que pode remeter a pênis, mas também
ao adjetivo broxa = impotente, incapaz
Pa ssa ram a bro (xa) / no Cris to ca rio (ca) de ereção. E a expressão toda: passaram
1 2 3 4 5 1 2 3 4 5 a broxa – instrumento não utilizado pelos
autores da façanha – profanação maior que
com o seguinte esquema rítmico: . / . . / a dos menores grafitadores – não-artistas,
para ambas as partes (versos), música no caso). No primeiro exemplo, o da
2001

que remete a uma certa parte do “I: Juca tabuleta, há toda uma riqueza sonora que

36
acaba por obscurecer as funções conativa maior era desconsiderar o Oswald de
e referencial: o deixe passa para o peixe Andrade poeta.
que, de distinto tem apenas uma letra/ (06 de maio de 2000)

fonema, configurando a aliteração quando


aparece a última palavra: paz. Jakobson
gostaria disso.
De brinde, trancrevo outras pérolas
do NOTÍCIAS POPULARES. Entenda-se:
isso não é POESIA (aquela arte nobre…):
trata-se apenas do poético interferindo verso
em algo que seria meramente referencial,
colocando umas pedrinhas no caminho do Sempre que falamos em verso, versos,
leitor comum. Pedrinhas enriquecedoras, versinhos, a POESIA vem à nossa cabeça.
num jornal que tem como ingredientes E nem imaginaríamos poesia sem verso. O
2000
principais sexo, humor e violência: que é VERSO, afianal? Verso não é uma linha
1. dou meu feto por um teto qualquer, com um certo número de sílabas.
2. viola sai no pau com torcedor VERSO é uma linha perpassada de RITMO.
pentelho
É, de 2700 anos para cá, falando apenas
3. raia quer fazer nenê na grécia
na tradição ocidental escrita. Veja-se, de
4. Doença no Bráulio/derruba tim
maia Camões (séc. XVI):
5. bimbo do capado levantou Leva-lhe o vento a voz, que ao vento
sozinho deita.
Leitor, passe a prestar mais atenção Versos há com várias extensões,
na fala cotidiana, nos anúncios publicitários respondendo às necessidades da tarefa a que
e nas manchetes de jornais. se propõe o poeta. O nosso sistema é silábico
Dedico este escrito ao grande poeta e o ritmo é o resultado da combinação/
e cronista Manuel Bandeira, cujo defeito
2001

distribuição de sílabas fortes e fracas na linha-

37
verso. O verso é uma unidade, o que implica do verso. O ritmo associado a uma medida
numa certa completude da linha; porém, é elemento que auxilia na memorização
isso nem sempre acontece e o sentido de do poema e sua em reprodução oral - via
um verso acaba se completando no início do de regra - com um máximo de correção
verso seguinte, ocorrendo o que chamamos (fidelidade à peça original).
de cavalgamento (enjambement) como É interessante observar que
por exemplo, em Sá de Miranda: etimologicamente, a palavra VERSO tem a
Agora já fugiria ver com a lida no campo: o ir e vir do sulcar
de mim se de mim pudesse
a terra, preparando-a para o plantio.
Como, então, poderíamos definir Num próximo escrito, tratarei do
verso, agora que já contamos com algumas destino do verso nos últimos 150 anos, ou
informações importantes sobre o mesmo? melhor, da revolução pela qual passaram as
Vejamos: VERSO vem a ser a linha/unidade várias ARTES, destacando a POESIA.
que, perpassada de ritmo (donde deve (13 de maio de 2000)
2000
resultar uma eurritmia/eufonia) ao seu
término, como que exige outra unidade
análoga. Veja-se, por exemplo, esse trecho
do poema de Manuel Bandeira “Vou-me
embora pra Pasárgada”: REVOLUÇÃO NA POESIA
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a louca de Espanha Toda uma revolução - das linguagens
Rainha e falsa demente e das Artes - começou a se processar
Vem a ser contraparente
no século XIX, sendo que seu apogeu se
Da nora que nunca tive
deu neste século que está por terminar:
Todos os fenômenos observáveis no
revolução na Pintura, na Música, na Poesia -
verso servem para reiterar a importância
nada ficou fora das transformações radicais
do ritmo, elemento propriamente definidor
2001

que se observaram numa época em que se

38
verificou uma grande aceleração no próprio produção poética.
andamento das mudanças. Embora desde antes já se observasse
Na Poesia, essa revolução representou a ausência de verso em Poesia, foi em 1958
mudanças estruturais que apontaram que isto foi assumido, alto e bom som, pelos
na direção da abolição do verso! Ou poetas concretistas de São Paulo: Augusto
seja, apontaram para uma poesia que e Haroldo de Campos e Décio Pignatari:
sobreviveria sem o verso, aquela unidade era publicado na revista NOIGANDRES 4
rítmico-formal do poema, de tradição o Plano-Piloto para Poesia Concreta.
milenar (a Pintura marchou em direção ao Este, um dos mais importantes manifestos
banimento do referente externo, chegando poéticos do século, inicia-se assim: “poesia
aos abstracionismos; a Música chegou ao concreta: produto de uma evolução crítica de
atonalismo etc) [e ao desmantelamento formas. dando por encerrado o ciclo histórico
das fronteiras entre sons musicais e não- do verso (unidade rítmico-formal), a poesia
2000 musicais]. concreta começa por tomar conhecimento
Essa revolução foi, em verdade, um do espaço gráfico como agente estrutural”.
processo que se estendeu do século passado Os poetas concretos assumiram teórica
ao terceiro quartel do século presente. Foi e praticamente o esgotamento do verso,
do verso livre e do poema em prosa, fazendo poemas sem verso, não abdicando,
passando pela experiência gráfico-poética de porém, da utilização das palavras. E olha
Mallarmé, cuja obra Um Lance de Dados... que antes da revolução concretista eles,
(1897) funda toda uma vertente: a mais muito jovens, tinham demonstrado que eram
conseqüente das poéticas do século XX. E, grandes verse makers.
depois, adentrando os Modernismos, houve De fato mesmo, muito embora tenham
as experiências futuristas, dada, as de sido feitas verdadeiras obras-primas de
poetas como Cummings e de alguns outros. poemas sem a utilização da unidade verso, o
Do verso ao verso livre e, deste, ao não- “fazer versos” foi um know how que nunca
2001

verso, chegou-se à abolição desse modo de perdemos. 1º Porque muita gente continuou a

39
fazer versos como se faziam antes da eclosão vinte e cinco anos para cá, a uma completa
dos Modernismos. 2º Grandes poetas, como volta ao verso. Um verso apequenado, diga-
João Cabral de Melo Neto, um dos maiores se. Seria possível, hoje, fazerem-se grandes
artistas da palavra deste século, em âmbito versos? Só vendo ... e ouvindo!
internacional, continuaram com seus versos (20 de maio de 2000)

raros e vivos; Cabral publicou seu maior


livro em 1966: A Educação pela Pedra. 3º
Os próprios concretistas, que dominavam a
arte do versejar, como grandes tradutores
de poesia de vários tempos, faziam seus RECOMENDAÇÕES
versos em português (sempre encararam a
tradução de poesia como uma categoria da Como alguém sempre me pergunta -
criação. Como traduzir um poema em versos geralmente jovem que pretende adentrar o
2000 se não se sabe fazer versos?). complexo universo da Arte da Poesia - vão,
Mas a revolução processada pelos aí, algumas dicas, sugestões, recomendações
Modernismos na Poesia deixaria marcas que, espero, venham a ser de alguma
significativas. Hoje se fala em Pós- utilidade:
Modernidade e há aqueles que a encaram 1. Tenha em casa, sempre à disposição,
como uma época do vale-tudo em que até obras de autores como: Manuel Bandeira
atitudes reacionárias, como voltar a uma (imprescindível o Estrela da Vida Inteira.
poética pré-22 (para ficar apenas no Brasil) Bandeira é um de nossos maiores poetas e
são aceitáveis. Reacionários como foram sua obra é uma espécie de síntese de toda
aqueles ledos e ivos, poetas da Geração de a Lírica Ocidental), Drummond, Oswald de
45. Andrade, João Cabral, Fernando Pessoa,
Muitos voltaram ao verso, desde, já, os Gregório de Matos, Camões, Gonçalves Dias,
anos 70, abandonando qualquer vestígio de Augusto dos Anjos, Cruz e Sousa, entre alguns
2001

experimentação. Assiste-se, de fato, de uns outros poucos no âmbito de nossa língua.

40
2. Leia, pelo menos, um poema por está abaixo da crítica. Se disser não está
dia (de preferência em voz alta), muito mal é porque não está mesmo mal, mas
bem lido ou, até mesmo, tente decorá-lo (é tampouco está bem; porém, há algo, há
importante ter memorizados certos desenhos indícios de que você poderá melhorar e até
rítmicos, certas conformações sonoras). Ao chegar a fazer um bom poema! Se disser
final de um ano você terá lido, pelo menos, está bom, é porque está bom mesmo!
365 poemas e saberá que “Pneumotórax” Se perguntar se você leu obra de autores
é muito mais que simplesmente um poema (poetas): Drummond, por exemplo, é porque
autobiográfico de M. Bandeira. ele acha que você não leu. Então, leia! O
3. Anote (você, candidato a poeta) que é que você está esperando? A pergunta
toda e qualquer idéia - num caderno, ou ele a fez com base no que leu de você e acha
abra um arquivo exclusivamente para isto que falta você enriquecer, e muito, o seu
em seu computador - trabalhe essa idéia ou repertório poético. Um lembrete: nunca leve
2000 guarde-a. Ela poderá, um dia, resultar num calhamaços para alguém mais experiente ler,
poema, de fato. você o deixará, de saída, desesperado e o
4. Tenha contato com pessoas que entediará com a sua imaturidade volumosa.
possuam interesses semelhantes aos seus e Leve, no máximo umas dez pequenas peças,
discuta com elas. Mostre as suas realizações, coisa que ele possa ler rapidamente e até
veja e comente as delas. Se conversar com reler e possa dar uma opinião, que é o
alguém mais velho e que já tenha produzido que você está esperando. Nunca o aborde
algo digno de nota, ouça com atenção os em lançamentos e festas (esse negócio de
conselhos. Porém, pense bem antes de os levar pastinhas recheadas de textos e ficar
seguir, pois, às vezes, trata-se de um mal- cercando famosos): são as ocasiões menos
humorado que fala qualquer coisa para adequadas para se conversarem coisas
se ver livre do jovem inoportuno. Só que, sérias, como Poesia e projetos, por exemplo.
outras vezes, ele aconselha mesmo! Se Nem Augusto de Campos, com toda sua
2001

disser interessante é sinal que seu poema paciência, suportaria.

41
5. Atente para outros códigos,
linguagens. Utilize-os se acha que
acrescentam algo ao seu poema.
6. Ligue-se nos novos meios/
linguagens. Mesmo que você venha a
utilizar o verbal e os meios tradicionais, não RITMO
pode ignorar os progressos por que passa
o Planeta. São muitas as possibilidades Fala-se normalmente em ritmo, tanto
gráficas que alguns programas oferecem, na Poesia como na Música e RITMO nem é
assim como, em termos de sonoridade, um exclusividade dessas duas artes nem da arte,
estúdio modesto: coisas incríveis podem ser sequer. Acontece que, primordialmente,
feitas! as mencionadas artes estiveram ligadas: a
Por último, procure revistas de escola, poesia era feita para ser cantada, entoada,
2000 dos C/DAs etc. e publique seus melhores como, às vezes, até hoje. Ritmo, de qualquer
poemas, mesmo que depois você venha a se modo, é o elemento propriamente essencial
arrepender. De qualquer modo, as correções ao verso, por sua vez, unidade rítmico-formal
poderão ser feitas: corrija-os. Você não será do poema. A linha-verso é perpassada de
o primeiro poeta a fazer isso (as obras dos ritmo e este é como que um desenho, que se
grandes poetas estão cheias de poemas repete... Ritmo: a palavra é grega, porém de
ruins. O que interessa, mesmo, são os bons, etimologia difícil, mas o que importa é tentar
em última instância). Rejeite aquilo que defini-lo (interessante é que compreender,
for conveniente rejeitar (sempre haverá todos nós compreendemos, pois nós o
um excelente e chato pesquisador que irá percebemos, sentimos e vivemos). RITMO: é
encontrar as peças indesejáveis. Portanto, a ocorrência de algo no tempo (e até espaço)
não se aborreça). Ou, acolha certos poemas a intervalos regulares.
como provas de como você já era bom!!! Diferentemente da poética clássica
2001

(27 de maio de 2000) (grega e romana) onde o ritmo era construído

42
através da disposição de [sílabas] longas e 6. Os deuses vendem quando dão, . / . / . /
breves (que formavam na seqüência, pés, . / (F. Pessoa)
que formavam versos), o nosso sistema Na seqüência, como que naturalmente,
é silábico, sendo que o ritmo se configura sílabas fracas tornam-se fortes e sílabas
por meio do jogo de sílabas fortes e fracas. fortes tornam-se fracas em função do ritmo,
Porém, a terminologia da poética clássica assim como acrescentam-se ou suprimem-
contamina a nossa. Por exemplo: uma breve se sílabas, através de inúmeros artifícios,
e uma longa formavam um pé chamado em prol do ritmo, pois o metro (a medida
iambo; entre nós, quando jogamos com utilizada) está a seu serviço. Por outro lado,
fraca e forte, fraca e forte, fraca e forte... temos acentos principais e secundários. Por
dizemos que o ritmo é iâmbico. exemplo, n’Os Lusíadas, de Camões, todos
Na seqüência, que é o verso - seqüência os versos são decassílabos heróicos, ou seja,
de extensão variável, diga-se - o jogo de são versos de dez sílabas, sendo que seus
2000 fortes e fracas faz configurar no poema um acentos principais recaem na sexta e décima
desenho, espécie de coluna dorsal da peça. sílabas:
Convencionemos sinais: . para fraca e / para As armas e os barões assinalados
forte. Vejamos exemplos concretos desse Que, da Ocidental praia Lusitana,
jogo: Por mares nunca dantes
1. E assim então, amor, tu explodirias: . / . navegados,
/./././. Mas isso tudo vai-se aprendendo à
2. Tu choraste em presença da morte? . . / . medida que se toma gosto pela poesia. O
. / . . / . (G. Dias) menos importante é a terminologia ligada à
3. Meu canto de morte, . / . . / . (IDEM) poesia em geral, mas, dominá-la não faz mal
4. Reconheci Homero, o mero mercenário, . a ninguém (um repertório mais amplo não
../././.../. faz pesar a cabeça). Livros sobre o assunto,
5. A Terra erra pelo espaço afora: . / . / . / há muitos. É só consultá-los. Por agora, só
2001

././. resta lembrar que há ritmos agradáveis e não

43
tão agradáveis. Se a linha é perpassada por cuja leitura é o melhor a se fazer. Esse é
um ritmo agradável, dizemos: há eurritmia: um trabalho para alguns anos e até para
Busque Amor novas artes, novo toda a vida. Se tem conhecimento de algum
engenho, outro idioma, mergulhe, se não, vá devagar,
para matar-me, e novas começando pelo Espanhol, passando pelo
esquivanças; Italiano, Provençal, Francês. O Inglês nos
que não pode tirar-me as rodeia: adentre a poesia dos muitos autores
esperanças, desse idioma.
que mal me tirará o que eu não Não se imponha, de saída, leituras sem
tenho. (Camões) fim. Limite o que vai ler. Pegue antologias,
[...] mesmo as criticáveis – em verdade, todas
o são. Mais tarde você organizará as suas
(03 de junho de2000) antologias [pessoais]. À medida que for
2000 tomando gosto pela poesia, você, por conta
própria, procurará ler as obras completas de
muitos poetas.
Leia, sempre que puder, em voz
recomendações ii alta. Embora o poema crie o seu próprio
vocabulário, sempre existe o referencial,
Nenhuma tradição idiomática, a rigor, é mesmo que ambíguo. Portanto, não deixe
suficiente para alguém que queira ir além de passar palavras desconhecidas: consulte o
um conhecimento limitadíssimo da matéria dicionário.
POESIA. É importante entrar em contato Leia um poema de todas as maneiras
com outras tradições poéticas, a começar possíveis: você sempre encontrará coisas
pelas das línguas próximas da nossa. Uma novas a cada leitura. O complexo sígnico
coisa boa é utilizar edições bilíngües, para que é o poema é inesgotável. Novos leitores:
2001

se ir preparando e entendendo o original, novas leituras: novos significados. O poema

44
pode permitir leituras diferentes porque o _) para a obtenção de um certo ritmo, a
signo artístico traz uma interpretabilidade extensão dos versos dependia do número e
que não se esgota. O Camões de agora, não tipo de pés que o compunham. Pé era uma
é o do século XVI, bem como seus leitores unidade formada por duas ou mais sílabas.
são outros, com outros repertórios etc. Por exemplo: o iambo era composto de uma
Nunca sucumba à primeira dificuldade breve e uma longa; troqueu: longa, breve;
na leitura. Há sempre um ponto através dátilo: longa, breve, breve; anapesto: breve,
do qual você poderá adentrar o poema. breve, longa. Então se fala, por exemplo, em
Insista. versos hexâmetros datílicos, o que significa
Critérios para julgar obras você só terá um verso com seis pés dátilos; pentâmetro
depois de muita leitura e todo um trabalho iâmbico etc etc etc. Mas isto não serve
de comparação entre poemas, poetas. para nós, para a nossa versificação. Nosso
Portanto, o tempo bem empregado nas sistema de versificação é silábico e joga com
2000 leituras é a condição indispensável para que sílabas fortes e fracas para fazer configurar
você possa, algum dia, emitir juízos sobre um certo ritmo e a medida existe em função
poetas e poemas. do ritmo e não o contrário. Daí, dependendo
(10 de junho de 2000) das necessidades que tem o poeta para a
feitura de uma peça, ele optará por uma
medida - verso com um certo número de
sílabas - ou até poderá combinar medidas
diferentes. Do mesmo modo, poderá blocar/
MÉTRICA agrupar versos em estrofes que podem
ser de dois (dístico), três (terceto), quatro
O metro, a métrica, como o próprio (quadra ou quarteto), oito (oitava) mais ou
nome já diz, é uma medida para a linha- menos. Cada medida comporta um certo
verso. Em outro sistema, o quantitativo, número de configurações rítmicas - número
2001

que jogava com breves (U) e longas (_ limitado, diga-se. No poema, no verso,

45
sílabas se juntam em prol do metro/ritmo, alexandrino), só a partir de duas sílabas
suprimem-se, ou, pelo contrário, separam- a coisa vem a funcionar, assim mesmo,
se, acrescentam-se. Pelo nosso sistema, compondo cada dois versos. Além de doze
a contagem (que é o mesmo do francês, sílabas, há o problema de o verso não se
porém diferente do espanhol e do italiano, sustentar enquanto tal, desfazendo-se em
que são também idiomas neolatinos), conta- dois ou mais versos menores; porém, não
se até a última sílaba tônica, desprezando o é proibido tentar. Versos podem ter divisões
restante na contagem (não na leitura!). De precisas, do mesmo modo que certas pausas
fato, para a configuração rítmica, as sílabas são obrigatórias. Num certo dodecassílabo,
finais fracas quase nada pesam. Assim, por temos a divisão (cesura) mediana, sendo ele
exemplo, temos: composto de duas metades que se equivalem
Uma orquídea forma-se (os hemistíquios), como em:
Vou-me embora pra Pasárgada Eu hoje estou cruel, frenético,
2000 Lá sou amigo do rei exigente; (Cesário Verde)
Escandir um verso significa desdobrá- Bem. Veja tudo isso, começando -
lo em suas sílabas constitutivas. E isto se talvez - pela obra de manuel Bandeira, que,
aprende com muita prática e é melhor por sinal, foi quem introduziu o verso-livre
fazer a escansão de um verso em seu no Brasil.
contexto, ou seja, no poema, para que o (Um poema em versos livres é aquele
trabalho seja feito com mais segurança e, que não obedece a uma medida única para
para tal, usam-se os dedos da mão. Veja suas peças componentes: os versos já não
isto com alguém experiente nesta matéria. têm sequer uma contagem de sílabas, nas
Embora se fale em versos de uma a doze fluem sob uma eurritmia. Bandeira fala que
sílabas (monossílabo, dissílabo, trissílabo, é mais difícil de fazer, Eliot diz que não é tão
tetrassílabo, pentassílabo, hexassílabo, livre assim. Décio Pignatari chamou a atenção
heptassílabo, octossílabo, eneassílabo, para a importância do corte da linha-verso).
2001

decassílabo, hendecassílabo e dodecassílabo/ (17 de junho de 2000)

46
RIMA provençais (Baixa Idade Média). A rima,
porém, além de elemento embelezador e
O fenômeno RIMA pode ser definido mnemônico, como foi tratado a partir de
como uma identidade sonora entre palavras, uma certa época, é como que reiterador do
ou melhor, partes delas: seus finais. A rima que de fato é essencial ao verso, que é o
consoante na total correspondência de sons RITMO. A RIMA não é elemento essencial
entre palavras, a partir da última vogal ao verso, ao poema, à POESIA, embora seja
tônica, como um sorriso e conciso (sons um recurso poético que exige até muito
vocálicos e consonantais). Rima toante é engenho na aplicação - a POESIA viveria
aquela em que a identidade/correspondência muito bem sem a RIMA, ou muito bem
diz respeito aos sons vocálicos, sem que as com ela. Os gregos e latinos não a tinham
consoantes sejam as mesmas, como em como um recurso do qual viessem a lançar
açúcar e fruta: trata-se de uma rima menos mão. Utilizavam outros recursos sonoros,
2000 perceptível, mais sutil e refinada, a não ser como a ALITERAÇÃO, por exemplo, que
naqueles casos surpreendentes de rimas consiste na repetição de sons não só, mas
consoantes, como no poema “Visita à Casa principalmente nos começos das palavras
Paterna”, de Luís Guimarães Filho, em que duma seqüência (“Leva-lhe o vento a voz
quem há-de, rima com saudade! que ao vento deita.” Camões). Dentro
Quando se fala em rima pensa- de nossa tradição, que tem a rima como
se geralmente em rimas finais, naquela recurso importante, poema sem rimas finais
identidade que ocorre nos finais dos versos, consoantes é chamado de poema em versos
mas as rimas podem podem acontecer em brancos.
qualquer lugar do verso, no mesmo verso Toda aquela classificação das rimas
- meio e fim, por exemplo. Há esquemas em “pobre”, “rica”, “rara” etc. pode ser
de rimas nos poemas. Há poetas que desprezada em prol da rima que informa ou
elevaram a utilização desse recurso poético não, da rima que traz consigo um elemento
2001

a um máximo grau, como os trovadores de surpresa, como por exemplo:

47
Verme sonhando o impossível,
Sapo com ares de símio!

Rimas adivinháveis são ruins, têm um alto
UM SONETO DE CAMÕES
grau de redundância, são KITSCH, como a
maior parte do que se obseva nas letras de
O soneto, nos seus muitos séculos
música pupular.
de existência (nasceu no complexo cultural
Vejamos como trabalhou, em termos
itálico, na Baixa Idade Média e seu nome
rímicos, João Cabral de Melo Neto, nesta peça
vem do provençal sonet, que significa
intitulada AS FRUTAS DE PERNAMBUCO:
“sonzinho”, “cançãozinha”) é a forma
fixa de maior sucesso dentro da lírica
Pernambuco tão masculino,
Que agrediu tudo, de menino, ocidental. Em Portugal, foi introduzido por
Francisco de Sá de Miranda, depois de ter
2000 É capaz das frutas mais fêmeas viajado para a Itália, na primeira metade
E da femeeza mais sedenta. do século XVI. Com Camões, no mesmo
século, o soneto português alcança nível
São ninfomaníacas, quase,
No dissolver-se, no entregar-se, estratosférico, ou seja, vai além daquilo que
poderíamos chamar de excelência. Não se
Sem nada guardar-se, de puta. sabe exatamente quantos sonetos Camões
Mesmo nas ácidas, o açúcar, deixou (este poeta, que nos bancos de escola
é lembrado principalmente por ser autor do
É tão carnal, grosso, de corpo,
De corpo para corpo, o coito, épico Os Lusíadas, foi um grande lírico;
Que mais na cama que na mesa além dos sonetos, deixou outros tipos de
Seria cômodo querê-las. composição, com peças admiráveis). Talvez,
com certeza, uns cento e cinquënta, talvez
(24 de junho de 2000) um pouco mais... É muitíssimo difícil fazer
2001

48
uma seleção de dez, por exemplo. Porém as considerando apenas as rimas consoantes.
seleções são necessárias, constituindo-se Aí, há a ocorrência de rimas toantes). Como
num desafio para o crítico. em todo o soneto que se preza, nas quadras
Hoje trago apenas um, do qual gosto muito é lançda uma questão, é criada uma tensão,
e quereria que fosse lido com o máximo de que encontra uma resoluçnao, nos tercetos.
atenção: O tema é fundamentalmente o da beleza de
uma mulher, cuja contemplaçnao não tem
Quem vê, Senhora, claro e manifesto
preço. Mas, diga-me o leitor: de que cor são
o lindo ser de vossos olhos belos,
seus olhos? Para facilitar, releia este verso:
se não perder a vista só com vê-los,
já não paga o que deve a vosso gesto. o lindo ser de vosso olhos belos.
Ainda não deu para ter certeza? Então
Este me parecia preço honesto; veja:
mas eu, por de vantagem merecê-los,
dei mais a vida e alma por querê-los,
2000 o lindo SER DE VOSSOS olhos belos
donde já me não fica mais de resto.
o lindo sER DE VossoS olhos belos
SER DE VOSSOS = VERDES!
Assi que a vida e alma e esperança
e tudo quanto tenho, tudo é vosso,
e o proveito disso eu só o levo. Alguém poderia dizer que isto é forçar
a barra e eu diria que não: 1º porque a coisa
Porque é tamanha bem-aventurança está expressa no poema, embora camuflada;
o dar-vos quanto tenho e quanto posso,
2º Camões é siderado em olhos e claros; 3º
que, quanto mais vos pago, mais vos devo.
a cor VERDE para olhos é recorrente na lírica
camoniana.
Bem, esse é um soneto do tipo italiano:
Com isso tudo quero dizer que há
formam-no duas quadras e dois tercetos.
leituras e leituras de poemas e que doravante,
Os versos são decassílabos (de acordo
com o nosso sistema) e obece ao segujinte para utilizar uma expressão que quase
ninguém mais usa, o paciente leitor tenha
2001

esquema de rimas: abba/abba/cde/cde (isto

49
um pouco mais de cuidado com as leiturar suas obras, entrando mesmo como parte
que vier a fazer. integrante estrutural das mesmas.
(01 de julho de 2000) Daí é que, hoje, muito me estranha
ver em exposições obras até avançadas em
cujas etiquetas de identificação consta SEM
TÍTULO.
Que chance perde o artista de
SEM TÍTULO enriquecê-la com algo interessante. A não
ser em casos extremos, em que o título
As obras das artes plásticas via de regra visse a empobrecer o trabalho, pois traria
prescindiram de título, embora para efeitos um direcionamento indesejável para a
de catalogação sempre se inventou um título, leitura da obra. Há já algum tempo o poeta
sugerido pela carga de referencialidade Paulo Miranda coleciona títulos para poemas
pelo tema, tal como: “Natureza-morta com a serem feitos. De um, por exemplo, ele
2000
maçãs”. No caso de poemas originalmente se apropriou: “Nem por Todo o Petróleo do
sem título, inventa-se um: o primeiro verso, Iraque” e que pertencia a um desenho do
parte dele ou o tema central, como o único início dos anos 70, de Arnaldo Caiche de
poema de Safo que veio para nós na íntegra: Oliveira. Outro, com ambigüidades, “Movido
costuma ser chamado “Ode a Afrodite”. Mas, a Álcool”. Um outro, ainda, ele enviou como
em se tratando de obra de Poesia e das Letras colaboração à revista ATLAS, por falta do
em geral, a coisa parece mais pertinente. poema que havia sido solicitado: ERRAR NA
Nas Artes Plásticas, Marcel Duchamp, MOSCA. Foi um sucesso. A integração do
DADA antes de DADA, começa a impregnar título à obra é a chance que o artista/poeta
suas obras de elementos literários, poéticos, tem, a mais, para mostrar o quanto é bom.
conceituais, a começar pelo “Nu descendo Tudo isto já estava pensado quando,
uma escada”, de 1912. Cada vez mais os em visita a uma exposição no Instituto
2001

títulos foram ficando imprescindíveis em Cultural Itaú (Programa Rumos Visuais

50
Itaú Cultural 1999/2000, seção Pintura: SANTO DE CASA
Repertórios Alternativos), topei com
um trabalho de Luiz Flávio Silva , que não Inúmeras vezes, em minha vida de
existia, mas existia: eram cem etiquetas de professor, tem acontecido de eu ter dito
identificação em formato grande, dispostas coisas para as quais os alunos não atentaram
na parede formando um painel retangular, muito: eu estava ali mesmo, à disposição,
sendo que em cada uma delas havia escrito para que prestar atenção? Porém, em
o nome do autor (LFS), “Sem título”, mais seguida a coisa era martelada na mídia ou
a técnica utilizada , as dimensões e datas, por alguém com trânsito na mídia que era
despontando aqui e ali o humor. Ao lado a convidado para falar para os alunos, como
etiqueta que identificava a façanha: Cem foi o caso de duas passagens comigo e meus
Títulos ou Cem Identificações para Cem alunos do Jornalismo da PUC-SP.
Obras Não Realizadas. 1998. Impressão Disse, eu, certa vez aos alunos:
2000 gráfica sobre cem placas de material um jornalista tem de saber muito bem o
plástico. 204 X 279 cm. Coleção do português e isto só é possível lendo muito os
artista. A coisa parodístico-trocadilhesca ficcionistas e cronistas; tem de saber História,
- cem/sem título - dá força ao trabalho e pois como poderá entender o presente de
mostra como o artista plástico sempre foi um que se ocupa se não compreende o passado?
ser pensante sendo que, de um tempo para E tem de saber inglês, para poder dispor
cá, explicita e até exacerba essa necessária de muito mais facilidade para ter acesso à
atividade. informação, já que a língua inglesa é a de
(08 de julho de 2000) trânsito internacional (hoje eu acrescentaria
a coisa da informática como uma necessidade
primária).
Noutra ocasião, falei do espaço de
liberdade que a PUC oferecia e sobre o
2001

favorecimento à pesquisa e liberdade de

51
pensamento; enfim a PUC oferecia aos O SIGNO FOTOGRAFIA
seus alunos algo essencial a todo cidadão
para exercer plenamente a tão propalada A palavra fotografia significa
cidadania: a vivência universitária. literalmente escrita com a luz luzescrita
Foi preciso que, numa certa semana luzescritura, já que é formada pelos radicais
de jornalismo eles, os meus alunos de gregos de luz e escrita. FOTOGRAFIA é,
Comunicação Comparada ouvissem, em verdade, o processo mecânico de
primeiro, de Octavio Frias Filho, que eram captação da imagem, o que pressupõe algo
essenciais a qualquer pretenso jornalista: a ser captado, fotografado: ondas luminosas
saber português para poder escrever, saber que impressionam uma superfície foto-
história e ter um certo domínio da língua sensível. O princípio da câmara-escura já
inglesa... Depois, de Bárbara Gancia, que era conhecido há séculos, porém, somente
lhes disse o seguinte: “Cheguei aqui muito durante a terceira década do século XIX,
2000 antes da hora marcada para esta conferência na França, é que a fotografia foi inventada,
e fiquei andado por aí: rastreei o campus. passando por progressos, chegando ao
Que maravilha! Vocês não têm idéia da negativo e dando origem na última década
riqueza de que dispõem. Essa liberdade, do mesmo século, na mesma França, ao
a possibilidade de uma vivência rara, essa cinema (irmãos Lumière, Paris, 1895: 1ª
energia incrível. Isso tudo não tem preço!” sessão). O advento da fotografia mexeu
Estando, nesta ocasião, na platéia, com tudo, principalmente com as Artes
experimentei um certo sabor de vitória. Plásticas. Imaginem: um processo mecânico
(15 de julho de 2000) de captação da imagem. A fotografia foi o
primeiro processo revolucionário de produção
de imagem: acontece em pleno processo
de Revolução Industrial, que se espalhava,
então, pela Europa (processo que tivera
2001

início,no século anterior na Inglaterra).

52
Processos de reproduçnao registram-se credibilidade que ela empresta a uma
desde tempos remotos, mas a fotografia, de mateeria jornalística, diferente se a mesma
fato vai provocar profundas transformações matéria viesse ilustrada com um desenho.
no que diz respeito à imagem (veja-se, de Essa credibilidade é dada justamente pelo
Walter Benjamin: A obra de arte na época de fato de a fotografia ser um signo que mantém
sua reprodutibilidade técnica.). A fotogarfia e com seu objeto uma conexão física. Hoje
sua conseqüIencia inevitável, o cinema, eles é relativamente fácil forjarem-se imagens
mesmos se tornam arte e atentam contra no computador, alterarem-se fotos. Bem,
aquela coisa do objeto único, portador de aí já entra em jogo uma outra questão: a
uma aura. Mas isso é assunto para uma da ética jornalística. A alteração já existia
outra ocasião. Agora vamos nos deter no desde antes do advento da info-imagem
signo FOTOGRAFIA. (um outro modo de produção de imagens),
Tudo pode funcionar como um signo: embora precária, através de retoques,
2000 uma palavra, um som musical ou não, fotomontagem, truques de laboratório.
um rabisco, um gesto, uma fotografia. Por outro lado, os modos de produção da
Na Semiótica fundada pelo filósofo imagem, misturam-se, sobrevivem todos: do
estadunidense Charles Sanders Peirce, o que se originou, acreditamos, no Paleolítico
signo FOTOGRAFIA, principalmente as fotos Superior , passando pela revolucionária
instantâneas tem uma conexão física com seu fotografia, no século XIX, às info-imagens
objeto (com aquilo que foi fotografado), pois que, prescindindo de um objeto (o que não
trata-se da impressão de ondas luminosas acontece com a fotografia), brotam de um
sobre uma superfície foto-sensível. Portanto, matriz algorítmica. A Fotografia eterniza
com relação ao seu objeto, a FOTOGRAFIA um momento, fixando-o e tornando, esse
é um índice. Um ÍNDICE com forte grau de signo passível de reprodução, sem perda de
iconicidade, ou seja de semelhança com informação.
o tal objeto. Para melhor entendermos a (22 de julho de 2000)
2001

Fotografia como índice, é só vermos quanta

53
de pirajuí para o mundo: fins dos embora nem todos atentassem para elas,
anos 50 e os 60 coisas aconteciam: uns aproveitavam bem,
outros, nem tanto, outros, ainda, nada.
A memória expressa é o passado Passemos pelos anos 50 (parte deles) e
editado: o essencial, nem sempre bom, 60, sem observar uma ordem cronológica
quase sempre ótimo, MEMORÁVEL. Quando rigorosa.
alguém diz: no meu tempo, é óbvio que se As brincadeiras no coreto do Jardim
refere à época em que gozava do máximo dos Turcos (Praça Luís Gama/João Augusto
que as coisas do corpo podem proporcionar: Ribeiro). Na rádio Pirajuí: “O telefone é
adolescência e juventude, pois se ele está seu amigo” e “As mais belas histórias para
vivo, sempre o tempo será seu também. crianças”. Bailes e “brincadeiras” no Parque
Concordo com o argumento de que as Clube, aos sábados. No carnaval, o corso na
citadas fases sejam ótimas, mas não as Rua 13. Uma canção de Tito Madi entoada por
2000 únicas boas: outras também proporcionam ele mesmo. A quentura da musica cubana.
coisas que justificam o estar vivo. De minha A Bossa Nova pelo rádio e orquestras que
parte, lembro, sem aquela saudade aflita, abrilhantavam os bailes freqüentes. O
das coisas de minha infância e adolescência, Rock’n’roll made in USA e sua reverberação
porém, nem por nada gostaria de retornar. no Brasil.Celly Campello [afinadíssima] e
Só desejaria ter hoje, da infância, aquele turma no rádio do Elery Ghiotto. As fanfarras
sono maravilhoso. De resto… nada. Bem, nos desfiles comemorativos (Ah! O desfile
mas o título desta crônica põe em evidência comemorativo dos 40 anos de nossa cidade:
o final de minha infância, minha pré- PIRAJUÍ!!!QUARENTÃO!!!) Os simulacros de
adolescência e toda a adolescência em cidades egípcias feitos por Roberto Miguel
Pirajuí. Nossa cidade, que experimentava Attuy no quintal da casa de sua avó. A
um longo período de decadência econômica saída da missa das 10h00, aos domingos.
e estagnação, nem por isto estava isolada A orquestra BLUE STAR. Os festivais – a TV
2001

do mundo. As informações aqui chegavam, chegando em Pirajuí – de MPB, revelando

54
Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, As intermináveis conversar com os amigos,
Os Mutantes. A audição de cada novo LP dos na Praça Rui Barbosa/Dr. Pedro da Rocha
Beatles. Uma camisa feita por Dona Virgínia Braga, à noite, qualquer dia da semana.
Travalon. Uma refeição tomada no Hotel Idas a Bauru, Cafelândia, Lins, para assistir
Pirajuí, cozinha sob o comando de Dona a filmes que aqui demoravam a chegar. A
Olga. As estórias – sim, estórias – contadas mudança de hábitos em nossa cidade, com a
por Maria Batalha, agregada da casa de chegada da TV. As cores vivas que passaram
minha avó Lula. As balas de coco de Dona a ser normais nas roupas masculinas. As
Amábile. A inauguração do campo de aviação mini-saias mostrando as lindas pernas das
de Pirajuí, o atraso, a minha sede e eis que meninas. Shows em lugares improvisados,
chega o avião da REAL! A criação dos galos de artistas hoje históricos na MPB, como
de briga do Sr. Galeno Loureiro. Um quibe Germano Matias, Nora Ney, Jorge Goulart. O
frito feito por minha avó, naquele sempre Cinema Velho, memória de um tempo que não
2000 domingo. Uma aula da Dona Yola. Uma era o meu. A Biblioteca Municipal: freqüência
panela de charutinho de folha de uva feita diária, com a Lourdinha Chade Franco a
por minha mãe. Um sundae de morango das me receber. O café do Bar Bandeirantes.
Lojas Americanas de Bauru. O Bauru feito no A lembrança do Bar Paulista. A quadra do
Bar do Jacinto. A comida do Hotel Central, Pirajuí C. C. que, parece-me, estão demolindo
Rua 1º de Agosto, Bauru. Um banquete e aqueles Jogos Noroestinos aqui sediados.
preparado por Dona Ida. Meu pai ao volante, A beleza inesquecível de Nidelce Britz. As
em direção a qualquer lugar. As sessões de Feiras Agro-Pecuárias no Mercado Municipal.
durante a semana no Cine São Salvador, As épocas de eleições (pré-Período Militar) e
quando eram exibidas obras-primas: de a passagem de políticos famosos com seus
Bergman a Antonioni. As vesperais, as comícios lotados. As rivalidades políticas. A
sessões de domingo, à noite. As encenações anfitriã irrepreensível que era a Detinha. Os
dirigidas por Dona Maud. As partidas de tênis poemas de Paulo Miranda. Minha descoberta
2001

no Parque Clube, nas manhãs de domingo. do MASP. A poesia de Bandeira, Drummond

55
e Oswald. O sonho indigenista de Marco POETA e vem para nós nessa mesma forma.
Paterlini. Um vislumbrar da Poesia Concreta. Poeta; indivíduo artista da palavra; aquele
A minha sede de São Paulo, para onde haviam que faz do banal algo raro ou que causa
migrado, em sua maioria, meus amigos do estranheza frente ao coloquial, à linguagem
IEDAP. O pensamento numa carreira de do dia-a-dia (isto quando ele não a utiliza
pintor. E eis que despontam fulgurantes propositadamente!). As normas dizem
Hendrix e Joplin; Woodstock; e… passam… e de POETA, que se trata de uma palavra
ficam! masculina (ao longo da história, a maioria
Toda época é rica. Principalmente esmagadora de artistas da palavra, como
depois que passa. Tudo depende de onde de outras áreas era de homens), sendo o
você se coloca – mesmo enquanto espectador seu feminino POETISA. Melhor seria tratar
– frente aos acontecimentos. O passado, a palavra como sendo comum de dois
condensado que é - em nossa memória, gêneros, ou seja, utilizar a mesma forma
2000 nos livros – sempre desperta interesse e se para homem e mulher, variando apenas o
mostra, principalmente em épocas de vacas- artigo: o poeta, a poeta. Faz muitos anos
magras, mais atraente do que o presente. O – que eu me lembre, desde os anos 70 –
presente é rico! Sempre. que assim faço e muita gente, até da mídia
(29 de julho de 2000) impressa faz. Cecília Meireles é uma poeta,
das maiores que a nossa tradição já produziu.
É dela a afirmação de sua condição de poeta,
em peça famosa, que ora transcrevo:

o/a poeta MOTIVO

Eu canto porque o instante existe


Poeta: termo que vem do grego E a minha vida está completa.
POIHTHS (poietés), significando “aquele Não sou alegre nem sou triste:
2001

que faz”, o fazedor. Passa para o latim Sou poeta.

56
artesanato de sua poesia, que oscilou entre
Irmão das coisas fugidias, lusa e brasílica. Presença um tanto arcaizante
Não sinto gozo nem tormento.
na panorâmica do nosso Modernismo. De
Atravesso noites e dias
No vento. qualquer maneira, uma fina presença.
(05 de agosto de 2000)
Se desmorono ou se edifico,
Se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo. o bom poema. o que seria?


Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo: Um jovem amigo perguntou-me,
- mais nada.
entre irritado e desafiador: “Mas o que é,
2000 para você, um bom poema?” Primeiro, fiquei
Há outros termos para significar aquele
preocupado, pensando que o teria ofendido
que opera milagres com as palavras, tais
de alguma forma, através desta coluna, em
como CANTOR, VATE, AEDO, TROVADOR,
alguns dos meus rompantes professorais,
CANTADOR. Porém, nenhum é tão exato
enquanto escrevia sobre a Arte da Poesia.
como POETA. Penso que a palavra POETA,
Em seguida, pensei que seria útil deixar
como algumas outras de nossa língua
claras algumas idéias e que ele até estaria
deveria ser, quanto ao gênero, substantivo
interessado em saber o que penso sobre
sobrecomum, como a palavra criança.
poemas serem bons ou não. Por último, a
complexidade da questão exigiria muitas
Em tempo: Cecília Meireles nasceu no Rio
horas para ser apenas contornada. Como
de Janeiro em 1901, onde também veio
quem é capaz de horas, também o seria com
a falecer em 1964. Uma bela mulher, foi
relação a alguns poucos minutos, tentarei
poeta extremamente habilidosa quanto ao
2001

dizer com centenas de palavras, o que teria

57
de dizer com muitos milhares. encaixa nesta categoria) é aquele que,
1. Um bom poema é o que se nos chegando à excelência, ultrapassa-
apresenta perfeito, perfeito no sentido a, trazendo inovações, acrescentando
de que nada falta e nada sobra a ele e coisas à tradição à qual pertence.
isto é o que sentimos ao lê-lo. Seria o Para sabermos o que é bom, é preciso
caso, por exemplo, do “Plenilúnio” de que tenhamos um alto repertório específico
Fernando Pessoa, já estampado nesta em poesia – muita leitura/audição, de toda
coluna. a tradição idiomática e de outras, até: daí
2. Um bom poema é aquele que, malgrado é que sai o discernimento. O bom é bom
a data da composição, sobrevive através relativamente a outro que lhe é comparável,
das décadas, dos séculos e continua ou a outro que não chega a sê-lo, ou a outro,
e continua despertando o interesse ainda, que o ultrapassa. Então, para alguém
das sucessivas gerações, como os ambicioso, não basta ser apenas bom:
2000 fragmentos da poeta grega Safo. é preciso ir além, romper (nem sempre é
3. Um bom poema é aquele que, dentro possível; sempre é muito difícil), inovar,
da tradição na qual se insere, alcança o acrescentar um mínimo que seja ao já feito
nível de excelência enquanto fatura, ao e assimilado pelos fruidores/ aficionados.
mesmo tempo em que exala um certo O que é bom depende do nível de
frescor. Peças da lírica camoniana. exigência de quem julga – e, diga-se, todos
4. Um bom poema pode ser aquele que julgam, mesmo quando a coisa fica só
nos paralisa e entra em nossa corrente em pensamento. Ou seja, é uma questão
sangüínea, acompanhando-nos onde de repertório: quanto mais alto for o seu
quer que estejamos e que sempre o repertório em poesia, maior será a sua
recordamos com satisfação, pois ele exigência em tal campo (e assim acontece
continua novo para nós. em todos os outros). Vinicius de Moraes é um
5. Um poema além de bom (e tudo bom poeta? A resposta é sim. SIM naquilo em
2001

o que foi citado aqui até agora se que ele é (foi) bom, pois, apesar do grande

58
domínio do métier do verse maker, há seu trabalho. Mas poesia – como qualquer
obras em que ele barateou de fato, fazendo arte - sempre envolve algo de pesquisa/
concessões, ganhando público. experimentação e devo encontrar sinais
Por outro lado, posso provar por A + disso num poema.
B que um certo poema é ruim, redundante, Espero que de tudo isto que aqui foi
cheio de defeitos e, assim mesmo, gostar falado, tenha ficado o mais importante:
dele (às vezes, algo assim não sai da nossa a questão do empenho na aquisição de
cabeça). Gosto pessoal está dentro, mas é um repertório elevado para poder estar
outra coisa. Estamos falando de crítica, de exercendo, de modo conseqüente, o
discernimento. discernimento, a crítica. Comparar peças,
Goste do que gostar. Leia o que lhe der diria o poeta Ezra Pound.
alegria. Os textos mais elaborados (difíceis, (12 de agosto de 2000)

mesmo) lhe proporcionarão alegria se o seu


2000 repertório estiver afinado com eles.
O grande poeta e crítico estadunidense
Ezra Pound elaborou uma classificação para
escritores (poetas) que também serve para
quaisquer dos artistas (pintores, escultores, E PRA ESSA DOR TEM CURA?
músicos…): inventores, mestres,
diluidores etc. Um inventor pode também Há vários tipos de exposições,
ser um mestre e, num certo momento, ser considerando as individuais e as coletivas.
diluidor da própria obra. Um mau poeta pode As coletivas têm sido as mais interessantes,
ter, em meio ao entulho, uma preciosidade. desde aquelas em que pessoas com
No fim das contas, é tão pouco o que sobra afinidades formais se reúnem para motrar
(o tempo se incumbe de fazer a melhor seu trabalho, até as que, organizadas sob
das críticas). Poucos são aqueles, de longa grandes patrocínios, envolvendo um curador
2001

vida, que mantêm um nível apreciável em geral e vários sub-curadores para cuidarem

59
de seções específicas. Essas exposições são e acha que pesquisou sobre a jovem
as mais interessantes porque costumam produção cearense. Artista que não tenha já
trazer muitos nomes ainda não consagrados. ingressado no circuito comercial das artes,
As grandes retrospectivas individuais são mesmo que apenas na província, não tem
importantes, porém, já trazem - pelo menos chance de ser escolhido. O artista tem de
em quase 100% dos casos, perguntas (se batalhar, dizem. Mas eu pergugunto: Onde
tanto) com as devidas respostas. está a pesquisa que a curadoria deveria
No mundo hoje, das grandes exposições fazer? Daí, o resultado que essas exposições
de Artes Plásticas, temos a Bienal de Veneza, de abrangência nacional realizadas no eixo
a de São Paulo e a Documenta de Kassel. Rio-São Paulo, não dão sequer uma pálida
Grandes vedetes têm sido os curadores, que idéia da produção artística do Brasil. Aos
procuram aparecer muito mais do que aquilo injustiçados, por terem sido ignorados, resta
que se propõem mostrar. Se assim nas mega esperar que o tempo venha a revelar os reais
2000 exposições coletivas, o mesmo nas menos valores...
grandes, mas também coletivas e recheadas Coisa desse tipo já aconteceu e tem
de muito dinheiro. acontecido no glorioso e pobre mundo
Ao curador cabe fixar uma linha a partir da POESIA: antologias da “nova” poesia
da qual a exposição será montada. É óbvio brasileira em que poetas fundamentais
que tudo deveria partir de um conhecimento de nossa contemporaneidade. Têm sido
o mais completo possível do que se está sistematicamente ignorados por não terem
produzindo no âmbito que a mostra deseja publicado em volume os seus poemas.
abranger. Porém, uma pesquisa de fato em Se publicar em volume é critério, onde
que se vai atrás da produção não chega a chegaremos? Onde está a pesquisa que
existir. O que se vê é curadodores pedindo o crítico/antologista deveria fazer? Que
sugestões a donos de galerias e críticos estudioso é esse?
regionais. Por exemplo: chega em Fortaleza Hoje, o artista que está fora da mídia
2001

e, bem instalado, aciona os seus contatos é alguém semi-morto. Admiro aqueles

60
que desenvolvem um trabalho - poetas e e, portanto à “política das artes”. Conclama à
artistas plásticos - quase anônimo, tendo ação. Pode vir assinado por uma pessoa, um
um compromisso apenas com a Linguagem grupo (quando se trata de um grupo, deve
e a Humanidade, não se importando com haver concordância geral, pois para fazer
a politicagem que existe no meio, onde se parte de um grupo - de qualquer natureza -
observam exércitos (lobbies) a serviço de tem de se renunciar ao meramente individual,
artistinhas que não passa, às vezes, de em prol do coletivo, ou seja tem de se estar
esécie de 14 Bis de chumbo - não há o que de acordo com o programa do grupo) ou
os faça alcar vôo! toda uma comunidade. Um manifesto é
(19 de agosto de 2000) uma tomada de posição pública frente a
destinatários específicos, tendo portanto de
ter o seu repertório adequado, visando a
esse público (a adequação repertorial é tão
2000 necessária como num anúncio publicitário.
MANIFESTOS Um manifesto pode ter de uma lauda a cento
e oitenta páginas: tudo vai depender do que
Muita coisa pode ser considerada como um se pretende expor e do público para quem
MANIFESTO: de um discurso improvisado se destina o tal texto. Um manifesto tem
(oral) a um texto político ou poema que de ser publicado e isto varia de um simples
explicite uma estratégia, que seja uma folheto/panfleto, passando por um livreto,
plataforma de ação. Manifestos existem há um volume, parte de um página de jornal,
muito tempo, mas dentro dos chamados revista etc. O que justifica um manifesto
Modernismos - e é no compo das artes que é a proposta que a pessoa, o grupo ou a
a coisa nos interessa por agora - tornaram- comunidade têm a fazer: uma proposta
se mais do que comuns: obrigatórios. Um que traga alguma novidade! Um manifesto
MANIFESTO é um texto que torna pública conclama à ação. Os manifestos, tanto os
2001

uma posição: diz respeito à arte de programa políticos como os artísticos, têm um mesmo

61
teor, espírito e podem ter a mesma estrutura DONA AMÁBILE
enquanto texto.
Num manifesto clássico, de cartilha as coisas Quando de um de seus retornos da
estariam assim dispostas: Europa, o grande poeta Décio Pignatari,
Uma introdução: situação da questão/ reunido com amigos (eu incluído) falava
problema. Às vezes, o próprio título já faz sobre qualidade de produtos e começou
esse papel. a discorrer sobre a qualidade interna
O histórico da questão (um corte do que era oferecido a consumidores.
cronológico). Não nos EUA (que ele conhecia) mas da
Análise da situação presente, com forte teor Europa, e nas coisas mínimas que eram
crítico. oferecidas, havia a tal qualidade interna.
Apresentação das soluções apresentadas Naquele exato momento lembrei-me de
para o problema por outrem, seguida de duas grandes mulheres artesãs de Pirajuí,
2000 crítica pesada. as quais tive o prazer de conhecer e ter até
Apresentação da solução dos signatários do amizade durante décadas: Dona Amábile
manifesto, como sendo a melhor. (em italiano, sem acento) a dos doces
Conclamação à ação. incomparáveis e Dona Virgínia Travalon,
Hoje? das camisas impecáveis, que duravam o
Manifesto do Partido Comunista tempo de uma geração. Duas mulheres
Manifesto Futurista de 1909 admiráveis, dois sorrisos tão diferentes:
Manifestos Oswaldianos o de Dona Virgínia, a alegria pelo simples
Plano-Piloto para Poesia Concreta fato de existir; o de Dona Amábile, de
(26 de agosto de 2000) uma tristeza nobre... É bom lembrar que
o artesão é alguém que domina todo o
processo de feitura de uma determinada
coisa, é dono de seu estabelecimento
2001

e ferramentas e, às vezes, ele mesmo

62
comercializa o seu produto. Mas hoje o iguarias?) era uma finíssima artesã: tudo o
espaço é de Dona Amábile. que fazia tinha um aspecto dos melhores,
Soube da morte de Dona Amábile por um acabamento perfeito, de fazer inveja a
terceiros e, mesmo assim, tempos depois. qualquer dessas confeitarias famosas dos
Nos últimos anos de sua vida eu não a vi. grandes centros urbanos. Quem seria digno
Nem sequer sabia se ela se encontrava em de tanto? E cobrava pelo seu trabalho o que
Pirajuí, na casa da rua Riachuelo, ou se estava considerava justo. E eu digo: esse justo era
morando com algum filho ou filha... Quase muito pouco! Quem terá herdado esse talento
nunca vi um nome cair tão bem para uma e o terá desenvolvido? Nos últimos tempos,
pessoa: Amábile. Amável figura. Amábile quando ainda trabalhava, passou a aceitar
Romano Ghiotto Bonadio sempre delicada cada vez menos encomendas, só acolhendo
ao receber-me, como era de costume, na os pedidos dos fregueses mais antigos, como
varanda de sua casa, para as constantes era o caso de minha mãe, através de mim.
2000 encomendas, geralmente daquela deliciosa Dona Amábile, alquimista-artesã, pessoa
bala de coco, ou da cocada branca, como rara. Trabalhava como um ourives. Uma
nunca provei de outra igual. Isto durante maga. Delírio dos diabéticos. Uma educação
muitos, mas muitos anos, mesmo depois de irrepreensível. Pensando em quem, Dona
eu já estar morando e estudando em São Amábile fazia aqueles doces e salgados?
Paulo. Lembro-me: um halo de santidade Concluo que ela fazia o melhor possível (e
envolvia a sua figura... a suavidade de o seu melhor era elevadíssimo), como se
sua voz, a fala pouca. Raramente um fosse oferecer aos deuses olimpianos. Mal
riso iluminador. Bolos de casamento e poderia ela saber que nós, os consumidores
aniversário. Salgados cuja aparência e sabor de suas delícias, éramos simples mortais.
não encontravam rivais. Bem, aqui cheguei Ambrosia para os humanos!
ao ponto: além de grande alquimista (quem Em tempo: Recentemente conversei por
sabe juntar matérias diversas e compor uma telefone com seu filho Antônio Carlos, que
2001

maravilha - quem mereceria comer daquelas reside em Bauru. Ele me passou algumas

63
informações. Poucas. Em verdade eu já sabia Paulo. E, diga-se, foi governo reeleito por
o que queria dizer sobre essa tão querida voto direto. É impressionante: os governos
pessoa. Precisava de algumas confirmações. democráticos, a partir de Montoro, têm sido
Amabile Romano Ghiotto, depois, Bonadio cada vez piores e Covas vem a coroar, com
nasceu em São Joaquim da Barra em 1916, sua Secretária da Educação, Dona Rose
vindo a falecer em Pirajuí, em 1994. Dona Neubauer, esse vergonhoso processo de
Amábile merece um lugar de honra na sucateamento do ensino de 1º e 2º graus,
história de nossa cidade. Seu lugar no ceú cujos nomes foram novamente mudados:
- se é que há céus, como disse um famoso para Ensino Fundamental e Ensino Médio.
poeta estadunidense - já estava garantido. Achatamento salarial e diminuição de aulas
(02 de setembro de 2000) para “enxugar a folha de pagamento”: de cada
sala-de-aula foi surripiada uma aula por dia,
o que significa que cada criança que estuda
2000 em escola estadual perdeu 25 aulas por
GOD BLESS THE TEACHERS mês! E a arrogância frente aos professores,
como se não devessem satisfação ao povo.
Pobre do país que, desprezando a Atitudes autoritárias se viram, como nem na
Educação, maltrata seus professores. Isto época dos governos indiretos e o Governador
significa que ignora o óbvio: que somente ainda vem dizer que foi vítima da Ditadura.
através da Educação se pode elevar o Foi e foi premiado em seguida, como muitos
repertório médio da população a níveis outros sobreviventes do Regime Militar.
consideráveis, elevando o nível de exigência, Que necessidade é essa que o
o que obriga mudanças que venham a Governador tem de ser agredido física e
favorecer a grande maioria... moralmente? Que misteriosa culpa ele quer
Foi com enorme tristeza que vi - de expiar? Expôs-se aos professores, mas
novo - a profunda humilhação impingida aos estes, pacíficos em sua quase totalidade,
2001

professores pelo Governo do Estado de São mal esboçaram agressões. Mas ele queria

64
mais, muito mais! Por que essa medição de não nos deixarmos enganar por aqueles
forças? falsos democratas, que nunca perdem uma
Se o Governador pensa que ganhou chance de exercer o autoritarismo e mostrar
a parada, enganou-se. Ninguém ganhou, o quão arrontes são.
a população é que perdeu. A tendência do Somente um povo com elevado
ensino é cair ainda mais. Quando é que repertório médio apresenta, também, um
teremos condições de reverter o processo? alto grau de exigência e daí, exige, e daí,
Tem faltado aos governos um empenho de as coisas necessariamente mudam. Diga-
fato, um compromisso com a Educação e, se: mesmo o grau de manipulação por que
enquanto isso, sofrendo, porém reagindo, passa a população (e isto ocorre até nas
esperamos por dias melhores. sociedades mais avançadas) pode diminuir
Reposição de aulas? Não há reposição em função da elevação do repertório do povo.
que reponha. Castigar professores com E é aí que a Educação - Escola, Professores
2000 corte de vencimentos, tampouco diminui o - desempenha o papel fundamental.
problema. Ao contrário: agrava-o. Para lugar de honra na História rumam
Durante e depois do período de greve, mestres maravilhosos como Dona Yola, Dona
que atingiu também as três universidades Maud, Donas Cida, Nancy e Nair Manso,
públicas estaduais paulistas, o articulista da José Conti, Célia Gomes da Silva Barros,
FOLHA DE SÃO PAULO, José Simão, dentro Deca Cury, as Leilas Cury (Ah! a epopéia da
de suas peculiaridades escriturais apontou docência nas escolas rurais) Jeanete Cury
coisas exatas, acertou sempre na mosca Rachid, Lolita Ramos Miranda, Anna Lia
em tudo o que abordou sobre a greve e Amaral de Almeida Prado e tantos outros.
a política educacional do governo Covas. A História possui uma espécie de saco-
Mas os nossos dirigentes não levam a sério sem-fundo que se constitui numa lixeira.
o maior bobo da corte que o país já teve. Muitos de nossos dirigentes (em todos os
Resta-nos, não apenas impedir o acesso ao níveis) terão um lugar garantido no LIXO DA
2001

poder das crias da Ditadura, mas também, HISTÓRIA.

65
Em tempo: Fui professor em escolas de 1º ERTHOS ALBINO DE SOUZA
e 2º graus durante quase trinta anos e por
vocação. Só em escolas estaduais trabalhei .Nasceu em Ubá (MG), em 1932.
23 anos. Era feliz como profissional - embora Poeta e estudioso da Literatura.
o salário nunca tivesse sido bom - trabalhava Editor da revista CÓDIGO que, desde
naquilo que queria. Duas dezenas de greves 1974, veicula parte da produção mais
- justas, mas desgastantes e mal sucedidas experimental da poesia brasileira. Vive
- levaram-me à exaustão. Sempre estive em Salvador (BA).
na ativa, quero dizer, em sala-de-aula. Na Assim dizia o verbete que elaborei
mídia são sempre os mesmos burocratas os para uma publicação coletiva sobre poesia
que dão opinião. Façamos esforços para que visual brasileira, que sairia publicada (1991)
as coisas mudem, se quisermos, de fato, um na Alemanha, mas que ficou inédita. Pois é,
país melhor, pois tudo passa necessariamente Erthos Albino de Souza, sofrendo há alguns
2000 pela Educação. E mais: pobre País (Estado) anos do mal de Alzheimer, veio a falecer em
o nosso em que, num passado recente uma julho último e isto eu vim a saber pelo amigo
autoridade declarou: “A greve é justa mas Walter Silveira que soube de outro amigo...
é ilegal”. E em que o governador do Estado Uma das marcas maiores dessa figura
mais rico disse que o professor que o agrediu, singularíssima foi a generosidade: sendo ele
por receber mensalmente R$1.200,00, está mesmo um poeta visual e dos bons, sempre
entre os 25% mais ricos do País! Por hoje preferiu publicar a obras de outros à sua. Foi,
chega! entre nós um pioneiro na poesia que veio
(09 de setembro de 2000) a utilizar o computador, quando ainda uma
máquina primitiva, mas com a qual - ele que
era engenheiro de formação - chegou a fazer
peças admiráveis. Porém, a grande façanha
de Erthos foi editar a revista CÓDIGO, a qual
2001

financiou sempre sozinho e que teria tido mais

66
números se ele tivesse podido contar sempre Não tendo tido resposta liguei pra Salvador e
com alguém que fizesse o projeto gráfico (a ele: “Omar, quem é Omar?” Isto foi em 1995.
falta de alguém que se dispusesse a tal era De lá para cá, poucas notícias. Parece que
a sua mais constante reclamação). Mesmo uma irmã acabou indo cuidar dele, trazendo-
assim, de 1974 a 1990, saíram 12 números o de volta para Minas. Erthos sempre será
de CÓDIGO! Um prodígio em se tratando lembrado como o editor da CÓDIGO, como
de revista que acolhia parte da poesia mais colecionador de livros - um verdadeiro
experimental que se fazia no Brasil. Conversei bibliófilo - como alguém que dava assessoria
algumas vezes com Erthos por telefone (ele sobre assuntos literários - Euclides da Cunha
residia em Salvador-Bahia); trocamos poucas e Pedro Kilkerry, por exemplo - para muita
cartas, bilhetes diria de algumas; cheguei a gente: de Walnice Nogueira Galvão a Augusto
participar, com um poema gráfico, do nº 10 de Campos. Este último, o grande poeta, em
de CÓDIGO (1985). Esteve em São Paulo recente conversa comigo disse que guarda
2000 no começo dos anos 90 para o lançamento muito material produzido por Erthos e que, a
de ARTÉRIA 5, revista da qual fui editor, partir do próximo ano pretende organizá-lo e
juntamente com Paulo Miranda. Na ocasião editá-lo. Erthos merece ter uma bem cuidada
fizemos - inclui-se aí Walter Silveira - uma edição de seus belos poemas.
grande exposição da NOMUQUE EDIÇÕES no (16 de setembro de 2000)

MASP, possibilitada pela anuência do então


diretor técnico Fábio Magalhães. Erthos, uma
finíssima presença, tudo observava. Pouco
falava. Chegamos a ir jantar num restaurante
chinês da Liberdade. Quando escrevi sobre
QUEM É POETA?
as revistas em minha tese de doutorado,
ainda cheguei a falar com ele por telefone.
No início do século, mais precisamente
Quando da distribuição do meu primeiro livro
em sua primeira década, o grande poeta
2001

de prosa ficcional, enviei um exemplar a ele.

67
de língua alemã Rainer Maria Rilke dirigiu então, construa a sua vida de acordo com
(respondendo) cartas a um jovem poeta, esta necessidade. Sua vida, até em sua hora
donde podem ser pinçadas algumas dicas mais indiferente e anódina, deverá tornar-se
incríveis. O tal jovem era Franz Xavier o sinal e o testemunho de tal pressão. [...]
Kappus, que veio a publicar as tais cartas. 17.02.1903.
Para os que têm dúvidas quanto à prática (23 de setembro de 2000)

de alguma arte, aí vai trecho de carta. A


tradução é de Paulo Rónai.
[...] Pergunta se os versos são bons. Pergunta-
o a mim depois de ter perguntado a outras
pessoas. Manda-os a periódicos, compara-
os com outras poesias e inquieta-se quando
suas tentativas são recusadas por um ou
JOÃO CABRAL DE MELO NETO
2000 outro redator. Pois bem - usando da licença
que me deu de aconselhá-lo - peço-lhe que
Não cheguei a conhecer João Cabral
deixe tudo isso. O senhor está olhando para
(Recife 1920, Rio de Janeiro 1999 e, nesse
fora, e é o que menos deveria fazer neste
interregno muitas, mas muitas cidades
momento. Ninguém o pode aconselhar ou
também fascinantes, como Sevilha,
ajudar, - ninguém. Não há senão um caminho.
Barcelona, Porto). Não pessoalmente e
Procure entrar em si mesmo. Investigue
isto parece uma trama do destino, que
o motivo que o manda escrever; examine
não permitira o encontro. Porém, houve
se estende suas raízes pelos recantos
três ocasiões - excluindo-se as várias e
mais profundos de sua alma; confesse a si
excepcionais sessões de leituras feitas
mesmo: “Sou mesmo forçado a escrever?”
pelo poeta Luiz Antônio de Figueiredo que,
Escave dentro de si uma resposta profunda.
dizendo poemas como “O sim contra o
Se for afirmativa, se puder contestar àquela
sim”, explicitava as maravilhas do trabalho
2001

pergunta severa por um forte e simples “sou”,

68
de um verse maker que alcançava níveis entregasse um exemplar da CAIXA PRETA,
estratosféricos: ninguém leu João Cabral obra sua e de Julio Plaza. Acontece que
como LAF, nem o próprio João Cabral - em de Portugal só conheci Lisboa e Sintra. Da
que o encontro com a poesia cabralina se simpática capital lusitana enviei o material
efetivou, sendo que o cara-a-cara quase por correio para o Porto. Depois, soube por
aconteceu em duas delas : Augusto de Campos, que ele havia recebido
1. Nos anos 60 o seu “Auto de Natal as publicações...
Pernambucano”: MORTE E VIDA SEVERINA, 3. Quando do lançamento de suas obras
tedo sido musicado por Chico Buarque de completas pela Nova Aguilar, em São Paulo
Holanda e encenado pelo grupo do TUCA - meados dos anos 90 - ele compareceu e
(Teatro da Universidade Católica de São era a chance que eu tinha de vê-lo. Porém,
Paulo) ganhou prêmio no Festival de Teatro obrigações profissionais me impediram de
de Nancy, na França. De Volta ao Brasil, ir ao evento. Minhas amigas Vilma Maggio
2000 grande sucesso e muitas apresentações. O e Samira Chalhub foram, compraram um
grupo excursionou pelo interior e, quando da exemplar que ele autografou e me ofereceram
apresentação em Marília, tive a oportunidade como presente de aniversário.
de ver a encenação, com aquele elenco Mesmo dispondo de seu endereço no
original. Foi lindo! Mais tarde vim a conhecer Rio de Janeiro, bairro do Flamengo, onde veio
melhor a obra de Cabral e percebi que o a residir depois que se aposentou do serviço
“Morte e Vida Severina” era o menos bom diplomático, não cheguei a procurá-lo. A
de seus textos, o menos difícil... fama do mau humor cabralino me impediu
2. Viajando para a Europa em 1985 e de fazê-lo, muito embora eu o admirasse
sabendo que ele se encontrava na cidade do sobremaneira.
Porto, em Portugal, como Cônsul, pensei em Cabral ultimamente era considerado
procurá-lo e levar-lhe material poético do por muitos o maior poeta do mundo. O que
meu grupo, no que fui ajudado por Augusto eu sei é que ele foi um dos maiores poetas
2001

de Campos que o conhecia e pediu que lhe de língua portuguesa de todos os tempos e

69
que considero A EDUCAÇÃO PELA PEDRA, de Sim, é isto. O time brasileiro sempre
1966, seu maior livro. Preciosidade maior fala um repertório futebolístico altíssimo, de
entre outras tantas preciosidades. Eis aí quem já teve Leônidas, Garrincha, Ademir
um poeta cuja leitura pode ser tida como da Guia, Pelé entre outros tantos; de quem
indispensável! já foi tetracampeão do mundo; de quem já
(30 de setembro de 2000) teve um Santos FC; de quem já contou com
seleções como a de 1970 e a de 1982 que,
sendo a melhor equipe do mundo e tendo
feito uma campanha irrepreensível, perdeu
para a Itália e voltou para casa antes do
FUTEBOL esperado; de quem começa na prática do
“esporte bretão” antes mesmo de se iniciar
“Os outros times entram em campo nas primeiras letras. ALTO REPERTÓRIO.
2000 para destruir. O Brasil, ao contrário, entra É aí que, encontrando pela frente times
para construir. Os outros vão com tudo, a de baixo repertório, mas com vontade de
ponto de agredir o adversário Brasil: vale vencer, a seleção brasileira acaba sendo
um gol. Glória. Se perderem para o Brasil, derrotada, por lhe faltar o famoso “jogo de
tudo bem, mas se vierem a ganhar, será o cintura” (adequação do repertório à situação
máximo”. Foi mais ou menos isto que eu específica). Disparidade repertorial. Quem
ouvi de meu jovem amigo Alexandre. Eram conhece estratégia acaba sendo derrotado
considerações sobre o Brasil, com seu futebol pelo que não a conhece e por isso mesmo!
de resultados ultimamente deploráveis, e Na cabeça do brasileiro o gol é
isto me fez pensar nas razões para os tais importante, mas é apenas o coroamento de
resultados e a explicação a que cheguei um processo que consiste em belas jogadas
pode parecer paradoxal, mas é para pensar: - fala-se em futebol-arte. Acontece que, no
o Brasil perdeu (tem perdido) porque não final das contas o que conta são os gols e,
2001

tem tido adversários à altura. como se diz: “Quem não faz, toma!”

70
Eu compreendo as derrotas de Pound falou em três espécies de poesia: a
seleções brasileiras (inclusive a da seleção que é perpassada de forte musicalidade e
principal, recentemente, frente ao Paraguai) que é denominada melopéia; a que consiste
mas não me conformo. Fico triste. Nem numa espécie de “dança do intelecto entre as
gosto de pensar. Só espero que, com todo o palavras”, a logopéia e a que evoca, através
know how que têm com relação ao futebol, das palavras, uma imagem visual ( a que
nossos times não dêem chance ao acaso que “projeta uma imagem na retina da mente”),
desfavorece e que venham a proporcionar a fanopéia.
ao povo brasileiro - independentemente A primeira quadra - hiper-famosa -
de governos oportunistas que costumam do poema “Autopsicografia”, de Fernando
capitalizar os feitos dos meninos - grandes Pessoa contém, de maneira clara, as duas
alegrias. Pé na bola! primeiras:
Em tempo: Lembro-me da Copa de 1974,
2000 quando o time holandês forçou mudanças O poeta é um fingidor.
em tudo - impôs uma nova estratégia - e, Finge tão completamente
entre outras coisas, fez o Brasil voltar cedo Que chega a fingir que é dor
pra casa. Os holandeses, naquele ano, não A dor que deveras sente.
levaram a Taça. E nem depois. [...]
(07 de outubro de 2000) Ou, do mesmo poeta, o verso
logopaico:

[...]
Nem sei bem se sou eu quem em mim
sente.
POESIA: VER OUVIR PENSAR
O já citado “Plenilúnio” (As horas pela
2001

O poeta e crítico estadunidense Ezra alameda...) reúne as três águas: MELOPÉIA

71
LOGOPÉIA FANOPÉIA. roupas!
O “Comigo me desavim”, de Sá de [...]
Miranda, já citado na íntegra nesta coluna, é (Cesário Verde)
perpassado de elementos de musicalidade e
de jogos cerebrais. longo da linha
Gostaria de, agora, destacar a
ocorrência da Fanopéia que, como já foi dito Coqueiros
evoca imagens: o poeta torna-se um pintor, Aos dois
pinta com palavras, transforma o leitor Aos três
num espectador de cenas, faz com que ele Aos grupos
veja com os olhos da mente. Vejamos três Altos
exemplos: Baixos
(Oswald de Andrade)
2000
SATÉLITE (14 de outubro de 2000)

Fim de tarde.
No céu plúmbeo
A Lua baça
Paira
Muito cosmograficamente
LIVROS DE POEMAS
Satélite.
[...]
Há livros e livros de poemas. Há
(Manuel Bandeira)
alguns que são simples reuniões de poemas
[...] em volumes, coisa que muitos poetas
fazem periodicamente, dada uma produção
2001

Pobre esqueleto branco entre as nevadas

72
incessante. Outros livros, porém, são ser feito por você! Porém, compare, você já
inteiros, pensados, são redondos, como os terá critérios. Poema isolado é uma coisa,
de João Cabral de Melo Neto, que concebia conjunto é outra.
um livro como um todo, com unidade, Em tempo: Mensagem é uma espécie de
mesmo sendo composto por poemas curtos. épico: o épico possível apresentado num
Da produção poética em Português, no concurso por Fernando Pessoa. Épico
século XX, tenho alguns poucos livros em estranho, pois que é feito de quadros
alta conta, justo aqueles que proporcionam congelados, não tendo, portanto, a
prazer por inteiro, e vou enumerá-los movimentação que caracteriza os épicos.
agora: Tem, sim, muito de histórico, de referencial,
mesclado a um lirismo sutil, que se utiliza
.De Oswald de Andrade: Pau-Brasil (1925) de poemas curtos, com versos de diferentes
e Primeiro Caderno do Aluno de Poesia medidas que não chegam a seiscentos
2000 Oswald de Andrade (1927); (contra os mais de oito mil decassílabos
.de Manuel Bandeira: Libertinagem dos Lusíadas, de Camões!). São quadros
(1930); precisos da saga lusitana, só que estáticos...
.de Fernando Pessoa: Mensagem (1934); Peças pequenas, os poemas que compõem o
.de Carlos Drummond de Andrade: Alguma livro são verdadeiras jóias. Foi o único livro
Poesia (1930) e A Rosa do Povo (1945); de poemas que Fernando Pessoa publicou
.de João Cabral de Melo Neto: A Educação em Português (1934), pois muito de sua
Pela Pedra (1966). obra poética saiu em revistas. Pessoa veio
São Livros que podem ser lidos em a falecer em 1935, aos 47 anos de idade.
uma hora e meia ou em duas horas, mas Bem, e o tal concurso? Pela obra-prima da
depois ocuparão muitas horas do resto Mensagem Fernando Pessoa recebeu um
de nossas vidas, tão belos são: trazem a prêmio de “segunda categoria”...
poesia em versos, da melhor. É claro que (21 de outubro de 2000)
2001

essa lista poderá ser ampliada e isto pode

73
POESIA E TEORIA: O QUE LER? úteis: dos de rimas aos que trazem toda a
terminologia do mundo da Poesia (figuras
Em matéria de poesia, é melhor etc).
começar com poemas e esta recomendação Quanto aos textos que refletem,
já foi feita anteriormente. A partir daí, um teríamos de começar pelos gregos e chegar
pouco de teoria não faria mal a ninguém. à segunda metade do século XX. Porém, não
No universo do teórico, há dois tipos é para ninguém se assustar, são poucos os
de leituras: as que são técnicas, como os textos realmente fundamentais, os quais
tratados de versificacão e as que refletem podem esperar até que o seu repertório
sobre o fenômeno poético; aí, um atalho possa dar conta deles. Depois, lê-se tudo.
diria respeito a comentários e à crítica Bem, os textos são os seguintes: a Poética de
propriamente dita e quem melhor faz isso Aristóteles (deixar Platão para depois, com
são os próprios poetas - de Manuel Bandeira, seus textos que tocam a questão da poesia
2000 passando por Borges e Octavio Paz, a Décio e dos poetas, pois, num primeiro momento,
Pignatari. É importante ler sempre o que aquela discussão toda não interessa). “A
dizem os poetas sobre poesia, além daquela Filosofia da Composição”, de Edgar Allan
que eles fazem. Essa reflexão poderá estar Poe. “Poesia e Pensamento Abstrato”, de
num artigo (numa prosa metalingüística) ou Paul Valéry. “Os caracteres da escrita chinesa
até num poema (vide “Poética”, de Manuel como um meio para a poesia”, de Ernest
Bandeira, “Procura da Poesia”, de Drummond, Fenollosa. ABC da Literatura, de Ezra Pound.
“Anti-ode”, de João Cabral, por exemplo). “A Arte como Procedimento”, de Chklóvsky.
Tratados de versificação, temos de recorrer “Lingüística e Poética”, de Roman Jakobson.
ao de Olavo Bilac e Guimarães Passos e ao E, especialmente para os de lusilíngua,
de Said Ali (este, com um certo cuidado, pois mormente os brasileiros, “Texto e História”,
o sistema que ele adota não é o que acabou de Haroldo de Campos.
ficando consagrado entre nós, o de contar Isto já é um material que dará o que
2001

até a última sílaba forte...).Há dicionários pensar por, pelo menos, uma década. Parta,

74
depois, para outros autores, pois você já penso que mais de quatrocentas vezes (em
terá parâmetros teóricos para julgá-los. algumas para ver três ou quatro peças, as
(28 de outubro de 2000) minhas preferidas: um Toulouse-Lautrec, um
Cézanne, um Monet, um Manet, a “Bailarina
de Catorze Anos”, bronze de Degas). O MASP
é um pequeno grande museu. Isto quer dizer
que possui um acervo pequeno, se formos
MASP – MUSEU DE ARTE DE SÃO compará-lo com museus da Europa e dos
PAULO “ASSIS CHATEAUBRIAND” Estados Unidos, mas grande no sentido de
que as obras que lá se encontram são da mais
Criado em 1947, o maior museu alta qualidade: qualquer museu do mundo
de arte da América Latina, o MASP, traz desejaria tê-las. Um museu, em verdade não
consigo o peso de três nomes, a saber: precisa ter cem mil peças. Com quinhentas
2000 Assis Chateaubriand Bandeira de Mello, obras se faz um grande museu, bastando
Pietro Maria Bardi e Lina Bo Bardi. Mortos, para isto que elas tenham qualidade. Um
já, os três, o Prof. Bardi recentemente, aos museu serve para dar uma idéia de como a
99 anos. Pietro e Lina cheguei a conhecer Arte se comportou num determinado período
pessoalmente, ainda que pouco. Conversei ou desde sempre, mas, antes de tudo, serve
com ambos, mais com ele, pois era comum para possibilitar o acesso de todos ao que
que o encontrasse no elevador do museu e de melhor se produziu em termos de arte,
isto era oportunidade para cumprimentá- além da preservação e conservação das
lo. Visito o MASP desde os anos 60, quando obras. Mas um museu, que não precisa ser
ainda se encontrava no prédio dos Diários necessariamente completo, tem como papel
Associados, na 7 de Abril, centro de São principal possibilitar ao fruidor a experiência
Paulo. Talvez que, excetuando-se as pessoas que é aquele de estar frente a frente com um
que trabalham no museu, eu seja quem objeto único, aurático. Todo Museu interessa
2001

mais tenha estado em suas dependências: porque é constituído de objetos únicos.

75
Mário Pedrosa , grande crítico de arte, em o museu como um todo. Para se estudarem
carta de 1958 a Oscar Niemeyer, propõe um certas fases da Arte Ocidental, é preciso
museu para Brasília que seria feito, não de sair-se do Brasil, porém o MASP já oferece
obras, mas de cópias e reproduções, dada aos aficionados um mínimo que não é nada
a impossibilidade de se formar, na nova pouco.
capital, um museu realmente importante. (04 de novembro de 2000)

Com toda a grandeza e sabedoria de que


era portador, Mário Pedrosa não pensou que
as coisas mais importantes que um museu
pode oferecer são - mesmo que poucos -
objetos únicos que possibilitem a experiência (ERRÂNCIAS DE) DÉCIO PIGNATARI
acima mencionada. Em outras propostas
o crítico foi mais feliz. Hoje falamos em Se conheci pessoas absolutamente
2000 banco de dados, banco de imagens. Nada geniais e que tive a sorte de ter uma longa
disso substitui a tal experiência. Quanto ao convivência, Décio Pignatari é uma delas.
MASP, continuo um seu admirador, só não Uma coisa que chega a incomodar em Décio é
concordo com o processo de kitschização o excesso... de inteligência. Sim, excesso de
por que tem passado, pois as curadorias têm inteligência. Em tudo o que diz e/ou escreve:
construído um museu (falso) antigo dentro formulações claras e contundentes, sempre.
do moderno, destruindo o projeto original Tudo isto me vem à cabeça a propósito da
de Lina Bo e expondo as obras de uma leitura de seu último livro (terminei de lê-
maneira tradicional. Cada vez gosto mais do lo ontem, 23 de maio de 2000) Errâncias,
projeto de exposição da arquiteta italiana: publicado pela Editora do SENAC. Belo
sem paredes, suportes de vidro, uma visão volume, bem cuidado graficamente, mas
geral do que está sendo exposto. O MASP sem nenhum arrojo. Textos são escritos a
de Lina Bo: arquitetura e exposição, eram propósito de fotografias curtidas ou tiradas
2001

elementos diferenciadores que valorizavam pelo próprio Décio. Elas seriam o ponto

76
de partida para digressões e para uma 1 (1975) e nunca mais publicou. Não o
escrituração maravilhosa. Décio tem assumiu em se POESIA POIS É POESIA
uma escolha lexical e uma articulação do PO&TC:
verbal raras. Os textos ficam entre a prosa
histórica - à maneira de uma crônica - e
a prosa ficcional artística, de uma força Ai!cai
não encontrada na atual prosa de ficção
brasileira. Tem cara de testamento, em que signos que ficam - faço!
o autor aborda pessoas - principalmente porém, signo dos signos,
- que mereceram a sua atenção. E estas não fico - passo.
acabam sendo bem poucas, pouquíssimas,
dentre as milhares com quem Décio (11 de novembro de 2000)

conversou mais de meia dúzia de vezes


2000 nesses seus mais de setenta anos. Muito
embora alguns resenhadores tenham
colocado livros outros como antecessores
do de Décio, para mim, o livro mais próximo
de Errâncias é o Atlas (1984) de Jorge Luis JOSÉ LINO GRÜNEWALD
Borges. A prosa de Décio, ali é tão refinada
que chega às alturas de um Machado de
Assis, assim como sua poesia se aproxima Com quantas palavras se faz um
muito da de E. E. Cummings, por serem poema? O que a poesia tem a ver com o
ambos( Décio e Cummings) os maiores espaço em branco - o silêncio - da página?
olhos tipográficos deste século. Um poema pode induzir a brincadeiras e
Bem, a propósito da obra de Décio jogos? As respostas podem ser obtidas
Pignatari, veio-me à memória um poemeto olhando o poema que se segue, de autoria
2001

que ele mandou para a revista ARTÉRIA de José Lino Grünewald:

77
- ambos nascidos em 1931: Zélino dia 13 e
vai e vem Augusto no dia 14 de fevereiro.
José Lino, além de importante poeta,
e e foi jornalista, crítico de cinema, tradutor,
grande conhecedor de poesia além da
vem e vai tradição de Língua Portuguesa e um expert
em música popular brasileira e outras, que
Este é o mais famoso poema concreto conhecia como poucos (principalmente a
de José Lino Grünewald, de 1959 (primeira que foi feita antes da Bossa Nova).
publicação em NOIGANDRES 5, de 1962) Faleceu, José Lino Grünewald, em
poema que espanta pelo que nele há de julho deste ano. O corpo não agüentou tanta
simplicidade, economia e sabedoria. Correu extravagância e se desincumbiu da alma...
o mundo. É um dos cariocas mais ilustres deste século
2000 Morando no Rio de Janeiro - carioca e isto não é pouco. Gostava das frases de
que era Zélino - poucas vezes estive com efeito, como que sentia prazer em chocar
ele: que eu me lembre duas: uma em 1975, ouvintes menos avisados. Teve o grande
logo depois de lançada a revista ARTÉRIA 1. mérito de produzir poesia boa e pouca.
O encontro foi num bar de Copacabana e ele Numa época de excessos, teve a coragem
ficou impressionado com o poema reviravolta de ser parcimonioso e simples.
de Paulo Miranda que, por sinal possuía uma (18 de novembro de 2000)

grande afinidade com o seu “vai e vem”,


porém o que o outro obrigava em termos
de passeio do olho, o de Miranda exigia em
termos de manuseio. Em ambos a dimensão
lúdica importante. O segundo encontro se
deu nos anos 80, em São Paulo, em casa de
2001

Augusto de Campos, companheiro e cunhado

78
UMA CERTA FOTOGRAFIA de 2000, falando com meu irmão Válter
ao telefone, ele me disse: “O Volpato me
Aquela fotografia havia me provocado entregou uma foto sua, talvez dos anos 60
náuseas: tal compleição física me causava e que ele encontrou entre os encalhes da
repugnância e o maior desejo meu era firma. Não sei se você se lembra dela. Deve
não vê-la e, a seguir, esquecê-la. Como?! ter sido em sua formatura. Está guardada.
Como poderia o fotógrafo ter flagrado algo Quando você vier para Pirajuí, eu lha darei”.
inimaginável? Não, não era eu aquele ser Estremeci, mas nem tanto. Aquela fotografia
puro nariz, que faria mirrar o poemeto célebre me veio à lembrança como, nada mais nada
de Bocage (Nariz, nariz e nariz), parodiado/ menos, que uma FOTOGRAFIA: a prova da
recriado belamente por Juca Chaves. Uma minha feiúra juvenil. Mesmo assim, fiquei
magreza de fazer dó: um nariz amparado ansioso para revê-la. Aquele esqueleto
por um esqueleto andante (ou supostamente coberto com panos de cor cáqui!
2000 andante). Um braço-só-osso estendido, Examinando a foto calmamente,
apanhando das mãos da paraninfa aquele percebi que não sentia nenhum asco, não
diploma. Era o ano de 1969 e eu acabava de tinha nenhum pejo. Sem problemas, eu
concluir o Curso Clássico, no IEDAP. a mostraria a qualquer pessoa, dizendo
É, a fotografia como um signo que era eu e como eu era magro e como
indicial, ou seja, como um signo que traz parecia deprimido naquela solenidade de um
as marcas físicas do seu objeto (no caso, dezembro escaldante. Guardei-a com muito
eu) incomodou-me além do normal. Fosse cuidado, do mesmo modo que conservo
um desenho, uma caricatura (um nariz com fotos, para mim, preciosas.
uma pessoa por detrás) seria tolerável, mas Já que fiz referência ao grande Bocage,
uma fotografia?! Abominei aquele registro, poeta português que viveu de 1766 a 1805,
não o adquiri do fotógrafo e releguei o fato vai aí, como brinde aos meus leitores, seu
(a foto) ao esquecimento. precioso poema por mim acima referido:
2001

Eis que um dia, neste Ano da Graça

79
Nariz, nariz e nariz pela estante, olhar com desprezo e sequer
Nariz que nunca se acaba, tocá-lo. Por outro lado as pessoas esperam
Nariz que se ele desaba
que, se você está na posse de um livro é
Fará o mundo infeliz!
porque deve tê-lo lido.
Nariz que Newton não quis Engano. Um livro pode esperar anos,
Descrever-lhe a diagonal, até décadas ou até mesmo não ser lido por
Nariz de massa infernal, aquele que o possui. Às vezes temos um
Que, se o cálculo não erra
livro pelo simples prazer de termos ao nosso
Posto entre o Sol e a Terra
Faria eclipse total. alcance uma fonte de conhecimentos: a
coisa fica ali, disponível. Mas por falar em
(25 de novembro de 2000) disponibilidade, eis aí a INTERNET. Então,
não é necessário ter em casa um volume ou
muitos, que venham a ocupar um grande
2000 espaço e até atrapalhar (não para quem ama
livros e não apenas o seu suposto conteúdo:
LIVROS: POR QUE LÊ-LOS? gosta, curte o livro enquanto objeto e fatura
gráfica).
Para que serve um livro? Para ler, diriam Bem, livros eu os adquiro desde a
todas as pessoas que têm a palavra livro adolescência e gosto de possuí-los. Alguns
como parte integrante de seu vocabulário. adquiro para uso imediato, outros para suprir
Porém, eu diria diferente: um livro não deve a falta, completar conhecimentos específicos,
necessariamente ser lido: ele até pode ser porém, alguns outros compro na certeza de
lido. poder lê-los no futuro. E o futuro chega e
É muito bom saber que as coisas são se torna presente e passado, bastando que
ou podem ser assim. Acontece que os livros estejamos vivos para ver (ler).
“querem” ser lidos e o pior desafio que se De todos os casos de livros que em
2001

pode fazer a um deles é não lê-lo: passar minha estante esperaram muito para

80
serem lidos, um é o mais interessante: de quem passou por anos de psicanálise,
As Palavras, do filósofo existencialista com alguns acertos de contas e injustiças
Jean-Paul Sartre. Trata-se de um texto - com Rogério Duprat, o grande arranjador
autobiográfico, permeado de refexões da Tropicália, por exemplo - bom porque
complicadas sobre o existir. Diria: um texto Caetano é bom em quase tudo o que fez e
difícil, não tanto pelo emprego lexical como faz, mas, convenhamos, ninguém tem tanto
pela complexidade da carga semântica e de para dizer, que precise de 510 páginas!).
sua articulação narrativo-pensamental. Um Na obra, Caetano faz referência ao texto
texto pesado. Bem, durante meu Curso sartreano, mostrando a maior consideração
Clássico li, juntamente com alguns amigos, por ele.
textos de Sartre, principalmente os de ficção: Foi aí que me lembrei de procurar a
contos, teatro etc. Textos propriamente obra em casa de minha mãe. Lá estava o
filosóficos, pouca coisa. Foi nessa época, volume intacto, aguardando ainda que eu
2000 segunda metade dos anos 60, numa de me dispusesse a lê-lo. E foi o que fiz, sem
minhas viagens a São Paulo, que adquiri nenhum prazer e eu o li na íntegra. Percebi
vários volumes do filósofo francês, entre os que, se por um lado, literariamente, não
quais o mencionado As Palavras. Era o ano de era uma escritura excepcional, por outro, o
1967 (na época, tinha o costume de colocar pensamento de Sartre era uma coisa datada
meu nome nos volumes que comprava, mais e, portanto, out of date, demodé(e).
o ano. Hoje - de duas décadas e meia, para Essa experência de ler uma obra
cá - deixo que o livro seja um objeto ao adquirida trinta anos depois, eu a relato aos
portador...). De sua leitura, não passei da alunos que me olham, via de regra, descrentes.
décima página. Abandonei a empreitada. Mas é esta a verdade verdadeira.
Tudo transcorria normalmente quando, Amo os livros. Faço-os, compro-os,
lendo, em 1997, o volume autobiográfico ofereço-os de todas as maneiras. Porém
de Caetano Veloso Verdade Tropical (diga- penso que um livro não deva necessariamente
2001

se: interessante, excessivo, narcísico, obra ser lido, mas a leitura entra como uma

81
possibilidade. Porém, um livro quer mesmo fez com que a região se fosse povoando de
é ser lido! gente de todo o mundo, a qual se superpôs
(02 de dezembro de 2000) ao estrato nativo - o dos indígenas (havia
muitos índios em nossa região; a maioria
acabou perecendo) - e da população de
origem luso-brasileira. Vieram italianos,
espanhóis, portugueses, árabes cristãos,
MEU AVÔ: O CHICO TURCO principalmente do que depois seria o
Líbano (antiga Fenícia), russos, poloneses,
Pirajuí é das cidades que nasceram japoneses (1908, Santos: a primeira leva de
nesta Noroeste do Estado de São Paulo, na imigrantes nipônicos).
virada do século XIX para o XX e nasceu em Há mais ou menos cem anos, chegava
função do café, que se alastrava por estas ao Brasil meu bisavô, pai de minha avó Lula,
2000 paragens, chegando a ser precedido pela fixando-se na região de Pederneiras, São
estrada-de-ferro, café que atingiria o norte Paulo. Meu avô, pai de minha mãe, nascido
do Paraná, mas que, antes, trouxe muita no Líbano em 1888, época em que a área
glória para esta região - toda aquela glória estava sob o domínio do Império Turco (daí
que o dinheiro pode proporcionar, na sua o equívoco de chamar os de cultura árabe de
exata medida. Pirajuí chegou a ser o maior turcos, erro que se consagrou em nosso país,
município cafeeiro do mundo. mas não só) chegou ao Brasil em inícios do
Uma das coisas a se notar (e o café, século XX (1910) e acabou por se fixar em
que fez com que a gloriosa São Paulo dos Pirajuhy, abrindo firma já em 1912: a que
desbravadores, sempre pobre, começasse a veio a ser a CASA ÚNICA (é o que consta
conhecer a cor do dinheiro quando atingiu no registro da Associação Comercial de São
a Província, ainda na primeira metade do Paulo).
século XIX): o cheiro do dinheiro propiciado Rachid Cury, que ficou conhecido como
2001

pelo ouro-verde despertou interesse, o que Chico Turco, casou-se com sua prima-irmã

82
Lula Neme, em 1915. Constituiu família - continuou freqüentando a loja diariamente,
numerosíssima: o casal teve 12 filhos - e mesmo depois da morte de meu avô. Havia
manteve lojas em Pirajuí e no Balbinos. uma cadeira sempre esperando por ele, que
A mais antiga loja ainda viva de Pirajuí era recebido pelo Mude - Edmundo - irmão
(a Casa Única resiste!) já teve de tudo: de de minha mãe).
arroz e feijão a tecidos e gasolina. Casa de meus avós: uma mistura de
A casa (que, como de costume, ficava Líbano com Brasil paulista: quibe com arroz
acoplada ao estabelecimento comercial) e feijão. Café: a síntese Arábia-Brasil.
sempre aberta: não havia dia em que Meu avó Rachid Cury: o Chico Turco,
duas ou três pessoas de fora não ficassem como todos o conheciam. Não éramos
para almoçar e/ou jantar. Muitos dos que turcos (trata-se de uma outra etnia) e sim
chegavam da terrinha lá se hospedavam. pertencentes a povo de cultura árabe não-
Hóspedes? De três dias a três semanas, a islâmica que adotou o Brasil como moradia
2000 três anos!... Já não existe essa hospitalidade perene: descendentes em linha direta de
ou generosidade - são outros os tempos. Abraão, árabes cristãos, em definitivo nos
Ninguém mais se dispõe a tanto! Quando trópicos.
nasci, em 1948, ainda foi em casa de meus Pirajuí era um fragmento da cidade que
avós. se tornava uma metrópole nacional. Pirajuí,
Lembro-me de alguns dos grandes como muitas outras cidades paulistas, era
amigos da casa, como o Dr. Jorge Meirelles uma espécie de miniatura da Capital: São
da Rocha (conduta irrepreensível: correto, Paulo de Piratininga.
sempre disposto, generoso, simpático. A Em tempo: Era numerosíssima a colônia
conta: uma vez por ano e bem aquém do árabe em Pirajuí (talvez que só perdesse
que deveria ser) os Santaroza (fazendeiros para a italiana e a portuguesa) que chegou
de café, família muito numerosa, cuja a ter uma escola onde se ensinava a língua
amizade com minha família se conserva até árabe. Hoje, muitos dos nomes de famílias
2001

hoje) Sr. Chico de Góes (pessoa finíssima, já não existem em nossa cidade. Meu avô

83
chegou a fazer fortuna, mas, num único A ESCOLA DO FUTURO
negócio (por confiar na palavra dos
outros: ele era um homem de palavra), Em fins do ano passado, alunas
perdeu sete mil sacas de café: todo o seu minhas do IA-UNESP, não sei se para se
capital móvel. Porém caiu de pé. Seus desincumbirem de uma tarefa vieram me
filhos mais velhos (Salim, Miguel, Carlos, perguntar sobre como eu achava que seria
o “Gidala”) chegaram a estudar em São a escola do futuro. Sendo alguém que
Paulo, em escola árabe. Chico Turco não sempre gostou de questões e tendo sido
chegou a ficar muito velho: um diabetes quase sempre professor, atrevi-me a lhes
aliado à má vontade com relação a regimes responder, embora calmamente, sobre
alimentares fez com que perdesse uma como eu pensava o problema ESCOLA.
perna e em seguida morresse. Foi no ano O problema. Sim. Numa sociedade que
de 1956. cresceu como cresceu a nossa (refiro-me à
2000 Obs.: Interessante seria se, neste sociedade do Planeta) nos últimos duzentos
periódico, pessoas de Pirajuí escrevessem e cinqüenta anos, a escola foi-se tornando,
sobre suas respectivas famílias. Que a cada dia que passava, mais e mais
os muitos relatos fossem formando importante. Porém, a sua configuração e o
uma certa história do Município. Que a processo de ensino/aprendizagem poderão
memória dessas famílias fosse preservada estar mudando radicalmente. E tudo tem a
pelos depoimentos, incluindo os registros ver com as mais avançadas tecnologias, com
fotográficos e outros. aquilo que está tão em moda falar, que é a
(09 de dezembro de 2000) chamada EDUCAÇÃO À DISTÂNCIA. Bem,
tudo de que necessitará a escola do futuro
já está aí, mas a viabilidade econômica para
uma aplicação geral terá de esperar mais
algum tempo . Por isso dizemos, ainda,
2001

ESCOLA DO FUTURO. Numa tal escola , o

84
professor ou instrutor continuará a ter um de não escrever, não falava? A escola tem de
papel fundamental, só que, de uma central, julgar o aluno, mas sempre julga com uma
que cobrirá uma pequena cidade, ou parte única medida, quando sabemos que há tipos
de uma megalópole, dará intruções a um diferentes de inteligência. Como reprovar
número muito maior de alunos que terão um aluno numa única disciplina? Ele poderá
a chance de perguntar ou responder no ser tão bom em outras... Não subestimo
ato a estímulos. Ao mesmo tempo, vai ser meus alunos. O tempo me ensinou que, às
visto pelo mestre e demais participantes do vezes, o melhor não é o que sempre se saiu
processo: da AULA. TV e INTERNET, tudo bem nas coisas escolares, embora até possa
acoplado, com telão plano de alta definição vir a ser. Atualmente, nas duas instituições
nas casas. Periodicamente, um encontro de de ensino superior onde trabalho, encontro
participantes com aula cara-a-cara, até ao alunos com repertório acima de qualquer
ar livre, como eram as preleções socráticas média e sei que eles contam com muitas
2000 na Antiga Grécia. A abrangência, de tempos fontes para obter informação: do convívio
em tempos poderá aumentar até uma escala com os colegas (onde brotam discussões)
nacional, ou mesmo mundial, dependendo ao livro, INTERNET, discos, TV, rádio, aulas,
dos conteúdos a serem ministrados e dos conferências, viagens freqüentes... Por quais
interesses que estiverem em jogo. razões eu complicaria a a vida dos alunos
.......................................................... com provas dificílimas se, no presente e
Sempre fui contra reprovações. num futuro próximo, eles disporão de toda
Difícil foi a vez que não tive problemas em informação essencial para que tenham um
conselhos de classe nas escolas estaduais bom desempenho na vida? Minha grande
onde trabalhei. Sempre considerei uma preocupação é dar boas aulas. Quando
barbaridade alguém falante e pensante do avalio através dos instrumentos tradicionais,
Português, aluno freqüentador das aulas procuro medir a aplicação, pois a inteligência
vir com zero ou E em Língua Portuguesa. - muito embora transpareça em tudo o que
2001

Como seria possível? Afinal, o aluno, além ele fizer - poderá sonegá-la e só mostrá-

85
la plenamente em ambiente completamente do fim. Na Holanda, mesmo não legalizada,
outro. Que a avaliação tradicional não seja já era praticada e agora se encaminha para
algo intimidador ou o melhor juiz. ser um procedimento legal. Permissão para
Espero que a ESCOLA DO FUTURO provocar a morte.
resolva esse tipo de problema. O desempenho Não quero fazer média com religião,
na vida é que fará a melhor avaliação. Que o nem ser politicamente correto, tampouco
diga Einstein! moderninho, mas a Holanda, país que nós
(16 de dezembro de 2000) pirajuienses conhecemos, principalmente
pelos padres católicos que de lá vieram
para nossa paróquia, permanecendo
durante anos – e, é claro, o Padre João,
inesquecível figura, sobressai – Holanda que
já esteve na vanguarda de tanta coisa de
2000 ordem comportamental, vem agora reiterar
DO DIREITO À BELAMORTE sua posição com o encaminhamento da
legalização da eutanásia.
Assim como euforia, eufemismo, Doença é coisa dura, o envelhecimento
eufonia, eurritmia, evangelhotêm algo de é terrível. Tudo se torna suportável desde
positivo, bem belo, bom, agradável, dado que a pessoa possua a alegria de viver: o
pelo prefixo grego EU, eutanásia significa a bem-estar-no-mundo é fundamental para
morte agradável, bela, ou, pelo menos, morte qualquer idade, onde quer que se esteja
que vem para bem. Sabemos que a palavra nesse nosso pequeno planeta. A velhice traz
tem a ver com uma certa ação, que esbarra consigo uma série de desvantagens: processo
em questões éticas e religiosas e que consiste de enfeamento, enfraquecimento,perda da
no abreviamento do sofrer: a EUTANÁSIA objetividade, perda da curiosidade (ou sua
(THÁNATOS = morte) seria a indução à morte diminuição), indisposição, falta de vontade,
2001

frente ao inevitável sofrimento a caminho tédio. Dizem que se ganha em sabedoria

86
(se tanto). Isso consolaria alguém? De pessoas levantarão a bandeira do direito
qualquer modo, velhos são fundamentais nas à morte, mesmo gozando de plena saúde.
comunidades, assim como crianças e jovens. E haverá departamento especialmente
Só que poucos são os que têm paciência com destinado a examinar os pedidos e executá-
os idosos, que ficam sem interlocutores. los. A realidade estará se encontrando com
O escritor argentino Jorge Luis Borges o que já expusera a ficcão. Isto não será
falava com tranqüilidade sobre a morte, bom nem mau. Será o inevitável.
dizendo estar pronto para desacontecer. Eu, por meu turno, louvo os que
Contava também sobre uma sua avó e sua suportam até o fim natural uma existência
mãe, Dona Leonor Acevedo de Borges, que medíocre, inútil e entediante. Já basta a
esperando morrer durante o sono, chorava angústia da certeza da morte. E que vivam
ao se dar por viva no dia seguinte. Só os vivos!
desencarnou, a velha mãe, aos 99 anos. (23 de dezembro de 2000)

2000 Pessoas velhas podem chegar a um estado


de tédio total e apenas suportar a existência.
Mas suportam! Pessoas louváveis essas
que suportam o tédio por anos a fio e não
provocam a própria morte (não foi o caso ENFIM, O FIM DO SÉCULO
do filósofo Sócrates que, no ano de 399 aC,
preferiu tomar a cicuta a que foi condenado, A história é construída. Construída por
mesmo ante a possibilidade de fugir). aqueles que selecionam temas sobre os quais
Porém, num futuro não muito distante, dada vão escrever e escrevem. Escrevem com
a superpopulação da Terra e ao aumento base em documentos por eles selecionados e
da média de vida (dizem que, em alguns interpretados à luz de teorias que funcionam
países, passará dos cem anos. Deus me com uma espécie de “filtro”. O que escrevem
livre! Minha parte eu quereria em céu, um passa, obviamente, pela visão de mundo,
2001

céu católico) o tédio grassando as cidades, pela visão da classe social/comunidade a

87
que pertencem os historiadores. Eles, então, um categórico não. Porém, sempre havia
constróem. aqueles mais rápidos no gatilho, como foi
Tempo: está intimamente ligado à o caso de um certo Germano – inteligência
História (o nome e a origem do campo de fulgurante – que me respondeu: “É claro,
estudo são gregos). “História é a ciência que professor, senão, como é que eu estaria aqui
estuda o homem no tempo” (sem deixar hoje?” Isto servia para detonar qualquer
de considerar o espaço). O termo grego preconceito em relação à antigüidade no
khronos, significando tempo, entra em Planeta. Já bastavam as questões que
muitas palavras por nós utilizadas, a começar envolviam a aristocracia nos vários lugares
por cronologia. E a cronologia foi e é uma e, em São Paulo, os quatrocentões, já tão
preocupação das mais variadas civilizações. decadentes e mesmo os apenas centenários.
Tendo sido formado em História e tendo Acontece que, às vezes, não temos à mão as
exercido por quase três décadas o ofício de referências quanto à origem… Quando temos,
2000 professor,, sempre tive preocupações com nós as usamos com orgulho. Como, por
a questão tempo – não com a péssima exemplo, eu me colocar como descendente
obrigação de decorar datas, pois o importante em linha direta de Abraão – pelo menos,
é saber das coisas, se se colocam antes é o que diz a tradição – já que os árabes
ou depois de outras que lhes são postas e judeus, semitas que são, descendem do
como referências. As próprias questões que Patriarca. E para chocar principalmente os
envolvem o ser humano sobre a face da evangélicos (sempre sabidos nas questões
terra eram por mim cogitadas. E nós? E a das Sagradas Escrituras) eu dizia: “Jesus
nossa família? Quanto tempo tem a nossa Cristo é meu primo!” Bem, as brincadeiras
família? Uma pergunta que eu fazia sobre eram bastante sérias. O que não diriam os
isto para as quintas séries no primeiro dia de de ascendência africana, então? Tudo indica
aula: “Alguém, aqui, tem algum parente que que o ser humano surgiu primeiro na sofrida
viveu há cinco mil anos?” Fazia, geralmente, e gloriosa África!
2001

um grande silêncio, seguido, às vezes, de Bem, mas retomemos a coisa da

88
cronologia: cada civilização tem a sua,
estabelece (determina, escolhe) seu ano
1. Este é diferente para chineses, judeus,
cristãos, muçulmanos, assim como o foi
para os gregos da Antigüidade. O nosso
ano 1 – nós, pertencentes à Civilização
Cristã Ocidental – corresponde ao ano do
nascimento de Cristo. Mesmo aí, porém,
houve problema, pois quem tardiamente
calculou, calculou errado o nascimento de
Jesus Cristo. Este teria nascido cerca de
quatro anos antes e, portanto, já teríamos
mudado de século e milênio, bem antes.
2000 Mas, do jeito que as coisas ficaram, é melhor
deixar… O erro se consagrou e é o que vale.
Já que vale isto, é bom saber
que o ano que termina em zero encerra a
década, em zero zero, o século, e, em zero
zero zero, o milênio. Porém, toda a graça
estava na coisa dos três zeros de 2000 e até a
mídia cometeu erros em função disto. 2000,
em verdade, está encerrando a década, o
século (XX) e o milênio (2º dC). 2001: novo
milênio, século década.
SALVE! AUGURI! XAIPE!
(30 de dezembro de 2000)
2001

89
2001
significa que basta estar em São Paulo para

2000
se estar por dentro das coisas. O informar-
se requer esforço. Possuir alto repertório dá
trabalho.
Democracia quanto ao conhecimento
é permitir o acesso de todos à informação
e não obrigá-los a engolir informações
altamente complexas. Nem todos estão a
fim de adquirir certas informações, aquelas
que uma elite presunçosa acha que o povo
deva ter. Ser bem informado não significa
ter lido três mil volumes etc etc etc. Ser bem
informado é ter o conjunto das informações
2001 necessárias para um bom desempenho no
campo em que se atua.
Oswald de Andrade, acusado de ler
pouco, dispunha, no entanto, das informações
informar-se necessárias (sabia onde buscá-las) para
ter uma performance das mais destacadas
Alguém pode viver em meio a um em nosso Modernismo, tendo feito obra
mar de informações e não ter interesse em substancial no campo da Poesia, da Prosa
absorvê-las. O contrário pode ocorrer: num Ficcional, da Teoria/Crítica e do Teatro. A
lugar afastado do burburinho dos grandes tão propalada pouca leitura de Oswald não
centros, dependendo do interesse e das correspondia à verdade; ele simplesmente
fontes necessárias, uma pessoa poderá não era um rato de biblioteca, mas informava-
estar bem informada. São Paulo é a mais se também nos livros. É importante destacar
2002

bem informada cidade do País, o que não que o livro é apenas uma dentre as muitas

91
fontes de aquisição de conhecimentos, não emprestada de outrem, ganhou colorido

2000
a única, embora importantíssima. poundiano). Organizar um paideuma significa
Se, em outros tempos, era difícil dar selecionar tão rigorosamente peças da
conta das informações disponíveis, hoje, tradição, que o leitor iniciante, com o mínimo
é impossível: somos bombardeados pelas de esforço, venha a ter em mãos o melhor do
mídias. É óbvio que 90% do que aparece é que se produziu. O máximo de informação
lixo cultural, na melhor das hipóteses. Mas estética num mínimo, quantitativamente
aí é que está: não é fácil selecionar, extrair falando.. Um mínimo em quantidade com
as pérolas em meio ao estrume. Precisamos o máximo de qualidade. Non multa sed
contar com quem nos ajude na seleção multum. Não muito mas muito. Pouco, mas,
daquilo a ser digerido: professores e críticos o melhor!
(aqueles que têm prazer em transmitir (06 de janeiro de 2001)

conhecimentos e os que fazem uma crítica


2001 iluminadora). Sempre se pode contar com os
mais velhos próximos de nós, que deverão
nos auxiliar no trabalho de seleção estética e
outros. Nisso tudo, algo de muita importância
é o domínio da língua, no sentido de uma tv/censura
expressão clara e correta do pensamento, o
que não se confunde com a mesquinhez dos Liberdade de expressão. Você já pensou
purismos. sobre isto? Hoje, no Brasil, há liberdade de
O poeta e crítico Ezra Pound, muitas expressão? Há limites para a tal liberdade?
vezes citado nesta coluna teve, entre outras, A TV apresenta qualidade? A censura é
a preocupação da transmissão do melhor da legítima? Todas essas são questões que
tradição poética. Como passar adiante tais acabam por envolver todos nós e deveríamos
conhecimentos? Daí ter trabalhado a noção nos preocupar com as possíveis respostas.
2002

de Paideuma (a palavra é grega e a noção, Eu diria que hoje, no Brasil, há

92
liberdade de expressão, legalmente falando mundo todo. A mediocridade, o KITSCH não

2000
e de fato (quem viveu a recente Ditadura têm fronteiras, diga-se.
Militar, principalmente a época do Governo A TV não tem obrigação de levar ao ar
Médici, haverá de concordar comigo). “papos cabeça” mas até chega a fazer isto.
A liberdade, porém, tem limites. Um Para certos tipos de informação devemos
é mais prosaico e diz respeito ao próprio procurar livros, filósofos, jornais e desligar
emprego: uma pessoa (jornalista etc) não a TV. Cultura de massa é isso mesmo: pura
pode se posicionar contra a linha editorial diluição de quaisquer complexidades, mas,
do órgão de imprensa onde trabalha. Outro, às vezes, há abuso no sentido de se ser
mais importante e mais difícil de observar, é ruim e a-ético, num desrespeito flagrante
o limite de caráter ético. A questão ética é ao telespectador que quase nunca tem a
sempre a mais delicada… consciência disto. Pior que o sábado, na
Como disse um desconhecido filósofo: TV brasileira, é o domingo. Na guerra pela
2001 “Liberdade é como dinheiro: melhor tê-la. audiência, ganha quem conseguir fazer o
Não é bom usá-la em sua totalidade”. pior.
Isso tudo também me faz lembrar Porém, a nossa TV é das melhores
de um aforismo/título de Millôr Fernandes: do mundo e tem sido, de fato, um sucesso.
“Livre pensar é só pensar”. Daqueles mencionados 10% salvam-se
Adentrando a questão da TV brasileira: trechos de novelas, reportagens, noticiários,
a TV é, hoje, o mais importante dos veículos mini-séries, entrevistas etc. A qualidade
de comunicação do Brasil e já faz algum tempo televisual (a maioria diz televisiva) existe e
(a 1ª transmissão ocorreu em São Paulo, é pouca, mas, para os que podem ver TV
no ano de 1950). Na melhor das hipóteses, (os que têm tempo para), a não ser que se
salvam-se 10% de toda a programação. E, contentem com muito pouco ou quase nada,
em se tratando de TV comercial, que depende predomina a salsicharia.
de anunciantes, que exigem retorno em Um desafio para os alunos de
2002

termos de audiência, é assim mesmo e no Comunicação era o de selecionar, numa

93
semana, o pior da TV brasileira, condensando- MARIA YOLANDA LOPES MANSO DA

2000
o em 50 minutos. Seria um trabalho com COSTA REIS
chances a prêmios. Veneno de cascavel!
(Alguém se lembra da série “Mondo Cane” Só quem assistiu durante alguns anos
dos anos 60?) às suas aulas pode ter uma idéia do que seja
A censura, pensada como uma uma AULA fora do comum e da magnífica
instituição superior, ditando regras, nunca é professora que foi Dona Yola, pessoa ainda
legítima – “legitima-se” pela força. Não deve bastante ativa na comunidade católica de
existir. Chega de arbitrariedades! Esse filme Pirajuí.
eu já vi (nós já vimos). O melhor a fazer Era uma professora pra ninguém botar
será a pressão exercida através de cartas, defeito: porte imponente (uma mulher alta,
telefonemas, e-mails etc, ou mesmo a corpo cheio sem obesidade e bonita; roupas
atitude extrema de desligar o aparelho de TV. geralmente neutras, nunca chamando a
2001 O público que é quem , em última instância, atenção) com uma desenvoltura de fazer
paga, é que deve exigir o aprimoramento da inveja a qualquer repórter de televisão. Dona
programação. Yola tinha tudo: uma inteligência perceptível
Recentemente, gente boa cometeu em tudo o que fazia, conhecimento profundo
o deslize de falar, sugerindo algo como a dos assuntos sobre os quais discorria, um
volta da censura, de uma certa censura, timbre especial de voz, que teria feito
mas corrigiu a tempo. Vade retro! Abaixo a sucesso em rádio e que, dada a maneira
censura! E que viva a qualidade. como articulava as mensagens, passava
(13 de janeiro de 2001) a necessária credibilidade. Geografia era
a sua disciplina e ela honraria todos os
que se ocuparam do estudo desse Nosso
Planeta, desde os gregos, até seus colegas
contemporâneos, como é o caso do Professor
2002

Aziz Nacib Ab’Sáber.

94
Eu era simplesmente siderado em alunos) com as descrições das paisagens

2000
suas aulas no “Pujol”. Fascinavam-me naturais: formações florestais homogêneas,
seus conhecimentos que eram originários heterogêneas, savanas, estepes, tundra,
de leituras de livros, jornais, revistas desertos… Nas tarefas: mapas que, com um
especializadas que ela assinava, como a simples olhar, ela detectava falhas e dizia
National Geographic, ainda em inglês (língua um “refaça!” Assim, aprendíamos.
que ela dominava, assim como espanhol e Lembro-me do meu vestibular, em
francês, passando pelo latim), da observação, inícios de 1970: das 25 questões de Geografia
das viagens que fazia sistematicamente pelo do exame de Conhecimentos Gerais, só errei
Brasil, o que foi ampliado com viagens para uma e por mera distração… As aulas de Dona
outros países sul-americanos, para países Yola estavam vivas em minha cabeça.
da Europa e para os Estados Unidos. Quando Seu amor pelo Rio de Janeiro, sua
explicava, portanto, sabia do que estava paixão pela Civilização Estadunidense davam
2001 falando: conhecia por ter visto/estado, além um colorido especial às suas aulas. Dona
das informações hauridas em livros e outros Yola, em seu ofício de docente fez sempre o
fontes. Isto me faz lembrar das viagens do melhor que pôde. E ela sempre pôde muito.
“pai da história”, Heródoto, que resultaram Muitíssimo!
nos famosos e fascinantes “nove livros”. (20 de janeiro de 2001)

Dona Yola utilizava um mínimo


de recursos didáticos, com um máximo
de rendimento: sua presença, com a
irrepreensível comunicação verbal-oral, giz,
quadro-negro. Neste, uma quase taquigrafia
ilustrada… Suas aulas: verdadeiras uma estirpe em extinção
reportagens. Aulas quentes. Quentura como
a que coloca McLuhan com relação aos meios Uma estirpe em extinção. Conheço
2002

de comunicação. Sonhávamos (nós, seus algumas mulheres que, parece-me,

95
pertencem a um pequeno grupo que já não não era preciso pedir nem lembrar: uma

2000
terá mais razão de ser. Mulheres que foram percepção (desconfiômetro, em termos algo
educadas para servir – dos pais, aos irmãos, vulgares) aguda fazia dela um radar que,
marido, filhos e netos. Têm a vocação – como uma vez detectando problemas, fazia tudo
os santos – de viver em função do bem-estar para extirpar ou minorar a dor. Hospitaleira.
dos outros. Como os santos! Servir. O que Chegar em sua casa era certeza de
para elas importa é saber se o outro está acolhimento: recebia sempre com alegria
bem, se se alimentou, se precisa de algo. e como que revivendo séculos de tradição,
Em minha família existiram muitas oferecia água para abluções e, em minutos,
e ainda há algumas. É claro que não é uma farta mesa estava posta.
privilégio [exclusividade] de minha família, Chegou a ser, embora por pouco tempo,
mas esta eu observo desde sempre e de bisavó. Não suportou a morte do marido,
bem perto e posso, portanto, falar com com quem experimentava uma espécie de
2001 propriedade. Algumas dessas mulheres já se simbiose, de quem cuidou com esmero nos
foram, outras mantêm acesa essa chama, últimos anos.
estranha em época de egoísmo desenfreado. Tia Salime faleceu numa tarde
Generosidade é pouco para nos referirmos à de domingo, num leito de hospital, em
sua melhor qualidade. Pederneiras. Naquele dia, eu, com dois irmãos,
Mas hoje, a homenagem vai para uma lá estivemos, visitando-a. Agonizante, ela
tia – Tia Salime – irmã mais velha de minha nos reconheceu, dizendo os nomes dos três,
mãe e que, tendo nascido em Pirajuí, aqui demonstrando surpresa e alegria. Sedada,
se criou, residindo, após o casamento, no parecia querer dormir.
Balbinos, Guarantã, Bauru e, por último, em Eu ainda fiquei alguns minutos com
Pederneiras (cidade onde, há cerca de cem ela. Num momento, deu a prova extrema de
anos, se estabeleceu um seu avô libanês, sua rara educação: pediu-me desculpas por
pai de sua mãe Lula Neme Cury). Um anjo- não poder me dar atenção, não conseguia
2002

da-guarda, era daquelas pessoas a quem evitar o sono que estava chegando. Cerrou

96
os olhos. Dormiu. Saí do quarto do hospital. invenções que, patenteadas ou não,

2000
À tardinha, já em Pirajuí, recebemos acabam sendo patrimônio da Humanidade.
o telefonema comunicando a sua morte, Não importa que uma empresa que financie
enquanto dormia. Fui a última pessoa a falar um grupo de cientistas esteja pensando
com ela. apenas nos lucros que os resultados
E nós, sobreviventes, vamos nos trarão. Uma vez chegando a resultados
lembrando desses seres maravilhosos, que satisfatórios, estes acabarão sendo de
pediram demissão da vida e não deixaram todos. Conquistas da Espécie. Agora, o
substitutos. acaso: é preciso estar atento, é necessário
(27 de janeiro de 2001) que se tenha repertório para percebê-lo e
para vislumbrar a sua importância. Alguém
envolvido em alguma pesquisa estará
sempre atento a tudo e considerará as
2001 ocorrências e procurará saber das causas
e das implicações advindas dali. Que o
acaso e necessidade diga Alexander Fleming!
(03 de fevereiro de 2001)
Acaso e necessidade têm sido os
motores dos progressos humanos. Acaso
envolve uma discussão complexíssima, que
não caberia aqui desenvolver – há livros
inteiros tratando disso. Acaso pode ser
qualquer fenômeno (fenômeno: aquilo
que se nos apresenta), aquilo com o que
não se contava. Acaso existe. Por outro
lado, a necessidade que obriga à busca,
2002

à pesquisa que resulta em descobertas,

97
O QUIBE São Paulo. Lá, carne de carneiro, aqui, sem

2000
perda da qualidade, carne bovina, que pode
É óbvio que eu não me lembre da ser coxão mole, patinho ou alcatra. Para
primeira vez em comi quibe - eu, descendente uma porção de trigo, um pouco menos de
de árabes libaneses, que mantiveram no carne (há quem iguale as porções). Trigo de
Brasil alguns de seus hábitos alimentares molho na água, no máximo, uma hora antes
e pratos típicos. Da riquíssima e deliciosa do preparo, o qual será espremido com as
culinária árabe libanesa, é o quibe o mais mãos, para poder ser misturado com a carne
famoso dos pratos, bastante divulgado no moída e sal a gosto (há quem não coloque
Brasil, também entre os não-árabes. ainda os demais temperos, para conservar
(Não só o Brasil tem a maior colônia a cor da carne, mas podem ser juntados,
de japoneses fora do Japão, mas a maior nessa massa, cebola, pimenta e erva-de-
colônia de árabes libaneses fora do Líbano. E cheiro).
2001 a maior concentração de descendentes, tanto Em outros tempos (mesmo no Brasil,
de japoneses como de libaneses, encontra- embora apetrechos tenham sido trazidos de
se no Estado de São Paulo. Asiáticos do lá da terra dos fenícios) o quibe, essa massa,
Próximo-Oriente os libaneses, do Extremo- era socada num pilão de pedra com mão de
Oriente, os japoneses.) madeira. A seguir, foi utilizada a máquina de
QUIBE: trigo, carne, sal. Erva-de- moer carne, tração muscular humana. (Minha
cheiro (aqui, mais o hortelã), pimenta (dita) avó Lula fazia quibe, religiosamente, aos
síria. Cebola. Para o recheio: carne, cebola, domingos. Eu era um dos que ficavam para
sal, pimenta e snobar (pinholes). Varia o moer duas, três vezes aquela massa. Como
modo de preparar e temperos, de região compensação, porções generosas daquela
para região do pequeno país do Mediterrâneo delícia. Poucos quibes se comparavam ou
Oriental, que nasceu modernamente em se comparam ao que minha avó fazia. O
1945 - de uma civilização milenar, o Líbano de minha mãe, que cozinha desde os doze
2002

caberia cerca de 24 vezes no Estado de anos (ou antes) iguala-se em sabor, mas é

98
diferente...) Depois, veio a máquina elétrica tiver os pães árabes, a experiência estará

2000
para facilitar as coisas. Há quem só moa enriquecida. A tal ráchua (recheio) pode ser
bem a carne e depois mistura-a com o trigo comida junto (assim sempre foi em minha
deixado de molho, sovando o conteúdo. casa): carne moída refogada na manteiga e
Água fresca ou mesmo gelada deve estar à temperada com cebola branca, sal, pimenta
disposição para o ir umedecendo. mais os pinholes, se houver. Delícia das
Não há segredos para se obter um bom delícias, mas sendo uma comida pesada,
quibe. Trigo bom, carne boa, temperos: é é bom rogar a Deus pela boa saúde, para
só preparar... Porém, muitas pessoas diziam que se possa comê-lo sempre. Pode ainda
que as mulheres árabes não davam a receita acompanhar o quibe cru, para se ter uma
completa, o que não corresponde à verdade. refeição completíssima, coalhada seca com
A questão é a seguinte: além da receita, azeite e zattar, azeitonas pretas curtidas no
deve-se fazer tudo o que um verdadeiro óleo, uma salada de folhas (alface, rúcula)
2001 mago da cozinha faz: observar em ação com tomate, cenoura crua, pepino. Limão,
alguém que saiba fazer. Aí é que se dará o tanto para a salada como para o quibe cru.
aprendizado. Enrolar o quibe para que seja O quibe ainda pode ser cozido numa
frito (e, além do formato mais conhecido, sopa de coalhada - labania - ou numa sopa
há outros dois) é preciso, pelo menos, uns comum de arroz com caldo de carne. Pode
três anos de prática - é como o candidato a ser assado em forma: é o o chamado quibe
ceramista, para poder fazer com perfeição de assadeira. E, por último, frito.
um certo tipo de vaso. Atenção: muita carne Não sei dos limites do quibe no mundo
na massa, o quibe estoura, abre, na hora de árabe, nem mesmo sei se é conhecido em
fritar. todos os países de cultura árabe: no Líbano
O quibe pode ser cru - é servido com e na Síria, é certeza. Sei que é um prato
cebola crua branca. Pode-se adicionar, na delicioso e nutritivo e que não chega a fazer
hora, manteiga derretida ou azeite. Pode mal àqueles que são parcimoniosos no
2002

ser comido com qualquer pão, mas se comer.

99
No Brasil, o quibe tem sido um Santa dos árabes cristãos. Daí se conclui

2000
sucesso há mais de cem anos e os árabes que, para os árabes, o trigo paira acima de
e descendentes são identificados com a todas as coisas (comestíveis)!
iguaria e até chamados de “comedores de 2. O quibe, mormente o que se assemelha a
quibe”. Eu colocaria o quibe como uma das uma bolacha redonda, o quibe chato, pode
melhores comidas do mundo, assim como ser assado na brasa. Deve ser colocado sobre
a combinação do arroz com feijão mais uma esteira metálica própria, creio.
acompanhamentos (bife, batata frita, salada 3. Essa coisa do braseiro para certas comidas
de alface com tomate e cebola branca, árabes é algo que só comendo para saber.
abóbora verde refogada). Mesmo com todos os confortos, no interior
Interessante é que o Líbano é o país do Estado de São Paulo, minha avó Lula
das frutas. As frutas típicas de lá, dizem, são (LÚLO, em árabe = PÉROLA) manteve por
incomparáveis. Porém, no Brasil, nenhum muito tempo fogão a lenha, na cozinha de
2001 libanês trocaria a banana nanica por qualquer fora, e o braseiro. A panela de charutinho
outra fruta. Quanto à comida, os libaneses de folha-de-uva ficava cerca de quatro
souberam apreciar a riqueza dos pratos horas cozinhando, nos domingos, em que
típicos brasileiros, assimilando-os, sem abrir tampouco faltava o quibe.]
mão de sua tradição, também tão rica. (10 de fevereiro de 2001)

Em matéria de comida, eu prefiro


todas as melhores do mundo! Do vatapá,
passando pelo risotto e arroz com feijão, ao
quibe...

[PS. 1. Há uma espécie de quibe que é MINHA MÃE


feito com peixe, ou seja, ao invés da carne
vermelha, usa-se o cação, por exemplo. Ela não se sentava à mesa conosco
2002

Parece-me que tem a ver com a Semana quando tomávamos as refeições. Porém,

100
estava sempre à disposição, trazendo os as mais diversas: uma casa com doze filhos,

2000
bifes, fritos um a um; as batatas: fritas na mais agregados e visitas. Às vezes, exercia
hora, por etapas. Água gelada ela trazia a a autoridade da mãe no comando da casa,
um pedido - era o líquido que tomávamos estando já casada a irmã mais velha. Aos
durante as refeições, coisa que eu, indiferente doze anos já podia cozinhar (contou-me
ao álcool, considero a bebida mais acertada Pedro Rachid que, quando nasceu a Odetinha,
para acompanhar pratos, já que não altera nos anos 30 - que recebeu o nome em
o seu sabor. Ela era a última a se sentar e homenagem à minha mãe - ela foi cozinhar
isto parecia a coisa mais natural do mundo. em lugar de tia Ramzia, que era prima de
Normalmente atarefada com as coisas da meu avô Chico Turco, mas que veio do Líbano
casa, costumada desabafar: Sou escrava com meu pai, tio Daud e seu irmão Elias,
do dever! tendo desembarcado em Santos, em 1º de
Nascida em Pirajuí, em 1925, minha fevereiro de 1930. Para que a menina pudesse
2001 mãe (Salme no registro, Odete para todos cozinhar, teve de colocar junto ao fogão um
os demais efeitos e por gosto de minha avó caixotinho para que ela subisse e alcançasse
Lula) foi educada para servir e da melhor as panelas). Casou-se, em outubro de 1945,
maneira possível. Desde sempre soube que depois de recusar pedidos muitos: todos de
seria uma dona-de-casa e tudo giraria em pessoas de origem árabe libanesa e, hoje,
torno disto, inclusive a não-necessidade todos mortos, inclusive o felizardo Sáber,
de prosseguir com os estudos: já sabia o o escolhido. As bodas, não representaram
suficiente para um bom desempenho no propriamente um desligamento da casa
lar, quando resolveu não mais freqüentar paterna: dos cinco filhos que minha mãe
as aulas, com a anuência dos pais. Daí que, teve, os dois mais velhos (sou o segundo)
apesar de muito mimada por seu pai, o nasceram lá. De todos os netos de meus
Chico Turco, preparou-se para o futuro papel avós Lula e Rachid, os filhos de minha mãe
e, naquela casa, grande e povoada, não foram os que mais presentes estiveram em
2002

faltaria a oportunidade para viver situações todos os momentos daquela casa.

101
Nas raras vezes em que meu pai tinha que minha mãe fazia). Delicioso café. É claro

2000
convidados, geralmente para o jantar, que que, nessas ocasiões, minha mãe jamais se
começava cedo - 19h00 - era mais ou menos sentava à mesa - apenas servia, com aquela
assim: Mesa arrumada sem excessos, mas sua timidez frente a pessoas de cerimônia,
com alguns requintes: toalha e guardanapos mas exalando a beleza e refinamento de
de linho, da Ilha da Madeira, louça inglesa, maneiras que a acompanharam sempre e
talheres - os melhores da casa (de um sempre. Belos jantares!
faqueiro para ocasiões especiais). Água A lembrança mais antiga com relação
gelada. Como entrada: tomate cortado em às letras é a de minha jovem mãe lendo
quatro, pepino (como só os de origem árabe para os então quatro filhos, na casinha da
sabem escolher) azeitonas pretas, coalhada Rua 7 de Setembro, todos acomodados
seca, pão, azeite. Quibes fritos. Uma canja em sua cama de casal, crônicas de David
feita com galinha caipira (naquela época só Nasser e de Rachel de Queiroz, da revista
2001 se comia frango, galinha provindos da roça) O CRUZEIRO (RQ tinha, no periódico, uma
que podia ser tomada ao mesmo tempo em página, a “Última Página”). Porém, grande
que se comiam quibes. Uma salada simples saudade da infância é de como eu dormia
de folha, tomate e cebola branca. Arroz à bem - como um anjo, dir-se-ia. Todas as
moda árabe (feito na mateiga - derretia- tardes íamos para a casa de minha avó Lula
se manteiga para se fazer comida - com e, na volta, já noitinha, eu vinha dormindo
carninha moída e snobar, quando tivesse) em pé e Dona Adiba Tuma, com uma porta
carneiro aos pedaços, feito na panela. Senão, da loja levantada, uma cadeira para fora,
costela de carneiro recheada com arroz. ainda parava minha mãe para conversar
Sobremesa simples: um creme que era um pouco. Eu chorava de sono, mas tinha
comido com algum doce de fruta em calda de esperar. Minha mãe, com sua sempre
e frutas frescas da estação. O infalível café presente amabilidade, conversava com a
que não era coado, mas assentado depois anciã libanesa; mais respondia às perguntas
2002

de passar por uma peneirinha (era assim que ela lhe fazia. Enfim, chegávamos em

102
casa! Bendito o sono que eu dormia... gustativo!). Ou:

2000
Minha mãe, felizmente vive. Suas - São Paulo tem tudo, mas nada que se
grandes qualidades esmagam seus poucos compare com essa sua comida!
defeitos. É generosa, o que faz dela uma E trata-se da verdade mais verdadeira.
pessoa popular na cidade, principalmente (17 de fevereiro de 2001)

entre os mais humildes. É uma muralha.


Espero que dure muitos anos e gozando de
boa saúde.
Esta é a minha visão da mãe que
tenho. Presente no meu dia-a-dia. Cada um
que esteja lendo que tente encontrar na
O KITSCH
minha a sua.

A palavra KITSCH é de etimologia


2001 Em tempo: Sempre que como em casa
meio complicada, mas, de qualquer maneira,
de minha mãe - e, invariavelmente, é uma
vem do alemão e já é utlizada, desde algum
comida pra lá de boa, costumo elogiar, no
tempo, pelas pessoas de um certo repertório,
ato:
em várias partes do mundo (afinal, não é
- Isto não é comida de gente! Esta comida é
só o português, mas outras tantas línguas
para deuses. Ou:
utilizam o conceito eficaz de KITSCH). Em
- Este é o melhor arroz-feijão que comi nos
português, não temos palavra que dê conta
últimos dez anos! Ou:
de tudo o que a dos alemães abrange.
- Hoje, no mundo, ninguém comeu melhor
BREGA: é apenas um aspecto do fenômeno.
do que nós. Onde este quibe? Onde este
JECA. CAFONA: de origem italiana, foi muito
charutinho de folha de uva com frango?
utilizada por nós nos anos 60, é pobre.
(Certas comidas chegam a um sabor tal,
limítrofe: dali para diante, o desconhecido. KITSCH: existe desde tempos remotos,
mas se tornou marca definidora de uma
2002

Impossível ultapassar aquele nível de prazer

103
época que, emergindo com as Revoluções de alto repertório: certas composições

2000
Industriais, elevou o consumo à categoria musicais eruditas, poemas, pinturas. E aqui
de valor maior. KITSCH envolve tudo: de poderíamos citar Portinari, entre outros, que
um objeto, passando por um texto, até uma possuía um grande talento e domínio técnico
atitude. Pode existir em tudo, porém, às extraordinário, mas que utilizava estilemas
vezes, não se mostra tão facilmente: é uma do cubismo sem vivê-lo e fora de época, o
questão de grau, a incidência. KITSCH pode mesmo fazendo, quando artista já maduro,
ser a diluição de estruturas complexas e aí com o “Guernica”, de Picasso: sua série
temos um barateamento, uma facilitação, “Bíblica” (acervo do MASP) é quase cópia da
como das composições de música erudita famosa obra do pintor de Málaga. Bom gosto
para toda a música popular (e aí teríamos também carrega sua parcela de KITSCH,
vários graus de KITSCH: de Zezé de Camargo pois gosto é coisa convencionada, portanto,
e Wando, a Chico Buarque e Caetano redundante. Não sem razão Marcel Duchamp
2001 Veloso). Exagero/ostentação: coisa de novo considerava o gosto - o bom e o mau - o
rico, o qual tem todo o dinheiro necessário, maior inimigo da arte. E todos consomem
mas falta-lhe repertório. Exibicionismo/ arte, alguma forma ou modalidade de arte,
intimidação (coisa para impressionar os nem que seja algo extremamente diluído.
menos favorecidos): torneiras de ouro (uso de Para se perceber o KITSCH é preciso que
materiais luxuosos, sem melhoria das funções o fruidor, o leitor, o apreciador tenha um
- Bruno Munari). O decorativo suplantando certo repertório específico, senão, ele não
o funcional (de uma xícara enfeitada a um estará nem aí. Consumirá gato por lebre, na
texto com excesso de adjetivação). Mentira maior.
estética, como colocou Umberto Eco: como Se a coisa é KITSCH, não significa
exemplo: traços modernóides numa pintura que seja barata, pecuniariamente falando.
de alma (estrutura) acadêmica. KITSCH não Condomínios de alto luxo, concreto armado
é necessariamente mau gosto. Mau gosto em estilo neoclassicóide: KITSCH. A tal
2002

é KITSCH de baixo repertório. Há KITSCH torneira de ouro. Uma “perua” (que peca

104
sempre pelo excesso). Uma limousine

2000
branca. A chegada, de helicóptero, em uma
festa. A festa do Oscar. Casamento em
Las Vegas. Todas as cartas de amor (“são
ridículas”, disse Pessoa/Campos). O AMOR
não é KITSCH, natureza não é KITSCH. A
AUGUSTO DE CAMPOS: UM POETA
tradução do sentimento em palavras é que é
PARA MUITOS SÉCULOS
KITSCH: baba-se mel. Filosofias baratas são
KITSCH. Seção souvenir em posto de beira
Conheci pessoalmente Augusto de
de estrada: um museu não-intencional, um
Campos no ano de 1974 (era o mês de
mostruário exemplar do KITSCH.
novembro). Foi a propósito do meu livro de
O KITSCH pode ser apropriado
poemas Jogos e Fazimentos, que lhe havia
criticamente: a obra daí resultante não
entregue pouco antes mas, principalmente
2001 é KITSCH, propriamente, mas utiliza-
devido à grande vontade de conhecer o autor
se do KITSCH, como no caso da POP ART
de poemas que eu admirava sobremaneira.
estadunidense, de Warhol a Lichtenstein e
Tendo entregue o livrinho, fui ter com ele
Rauschenberg. A POP é grande arte.
algumas semanas depois e o poeta foi
Não devemos temer o KITSCH, pois
direto ao que havia de melhor naquela obra
ele impregna tudo em maior ou menor
imatura e fez comentários precisos. Deu-
grau. É bom que tenhamos repertório para
me inúmeros trabalhos (edições de autor)
poder abordá-lo - e, por que não? - adotá-lo
dele e de outros poetas, mostrando - de
criticamente.
cara - o grande divulgador que era e é das
Em tempo: Quanto mais básica for uma
coisas novas. Num dado momento me falou
coisa, menos kitsch ela será. [O afastar-se
das dificuldades do caminho que eu havia
das essencialidades implica um aproximar-
escolhido, pois, se fazer poesia já não era
se do kitsch.]
fácil, aquela pela qual eu havia optado e que
2002

(24 de fevereiro de 2001)

105
envolvia experimentação, era mais difícil de EXTRAORDINÁRIO que ele fez e tem

2000
ainda. Na saída, como era noite e chovia, feito.
acompanhou-me com guarda-chuva à rua, Preocupado com inventar, Augusto
até que eu pudesse pegar um táxi. De lá em de Campos foi co-fundador da Poesia
diante, tornamo-nos amigos e ele, assim Concreta, movimento que nasceu no Brasil
como seu irmão Haroldo de Campos (se e na Alemanha, espalhando-se pelo mundo.
os Andrades do Modernismo sequer eram Em 1953, o poeta já elaborara a série
parentes, os Campos do Concretismo são POETAMENOS, poemas onde a utilização
irmãos, ambos geniais) e Décio Pignatari da cor entrava como elemento de ordem
sempre colaboram com as publicações estrutural, o que bastaria para lhe garantir
coletivas da NOMUQUE, editora que fundei um lugar entre os poetas-inventores do
com Paulo Miranda, naquele mesmo ano de século XX. Mas não parou por aí, continuou
1974, e que sempre funcionou à margem produzindo poemas que formaram um corpus
2001 do sistema editorial brasileiro. fundamental, indispensável em termos de
Já me referi, nesta coluna, ao fato Planeta Terra. Foi co-fundador e colaborador
de que toda época é rica, dependendo do das célebres revistas NOIGANDRES e
lugar onde nos colocamos, com relação aos INVENÇÃO, portavozes da Poesia Concreta
acontecimentos. Pois é: em minha época no Brasil. Como teórico/crítico, exerceu
de juventude, em São Paulo (e nunca desde cedo uma metalinguagem mais do
deixei de estar - no mínimo mensalmente que conseqüente: iluminadora, assinando,
- em Pirajuí) pude conviver e ter, portanto, entre outros, o importante e coletivo Plano-
como interlocutores, alguns dos maiores Piloto para Poesia Concreta, de 1958.
poetas do século XX, donde destaco, agora, Quando escreve sobre Poesia e Música –
Augusto de Campos. E é apropósito dos duas de suas paixões - é aquela maravilha
70 anos que o poeta completa: nasceu, de texto, texto de quem, além de saber o
AC, em São Paulo, em 14 de fevereiro que está dizendo, faz a coisa com o máximo
2002

de 1931. Data comemorável por tudo de prazer. O tradutor de poesia Augusto

106
de Campos mereceria ser abordado com a século/milênio a todo vapor, pesquisando as

2000
maior atenção e o será oportunamente. AC mais avançadas tecnologias, colocando-as a
já foi considerado o maior tradutor de poesia serviço do seu ofício de poeta . Poeta maior,
para o Português, de todos os tempos. eu diria. God bless the Poet!
Sendo grande poeta e encarando a tarefa (03 de março de 2001)

impossível da tradução como uma categoria


da criação, ele tem recriado, desde os anos
50 do século que passou (!): Mallarmé,
Dante, Cummings, Donne, Arnaut Daniel,
Rilke, Hopkins, Maiakóvski, Rimbaud e tantos SIM E NÃO (ANFITRIÕES E
outros. CONVIDADOS) – PARTE A
Grande divulgador da poesia mais
avançada e o melhor interlocutor que um Há muitas culinárias em que você
2001 outro poeta possa ter, Augusto de Campos pode passar três, quatro meses sem repetir
sempre primou pela generosidade. Quando o cardápio. Porém, o que temos observado
habitava, com sua bela, atenciosa e sensível é que nenhuma delas mata seus detentores
esposa Lygia Azeredo Campos (irmã do de fome. Bem ou mal, os membros de uma
poeta Ronaldo Azeredo) o apartamento 63, certa comunidade sobrevivem, pois podem
do número 23 da Rua Bocaina, nas Perdizes, ser determinantes, numa dieta alimentar,
em São Paulo, eram constantes as reuniões as condições locais somadas ao estágio de
que promovia com os amigos poetas, onde a desenvolvimento cultural. Há cozinhas de
conversa rolava por horas sempre agradável uma sofisticacão e criatividade admiráveis
e proveitosa, com almoços e jantares (e é isto que aqui nos interessa): a francesa,
memoráveis. a italiana, a chinesa, a japonesa, a árabe,
Nesses seus setenta anos, Augusto de a espanhola, a brasileira… Nesses casos,
Campos produziu uma obra que só honra mesmo com poucos recursos, fazem-se
2002

o Brasil e a Humanidade. Adentra o novo pratos dignos de figurarem na memória. Há

107
todo um know how, que integra a tradição são desagradáveis em 97,5% dos casos.

2000
e que garante qualidade com um mínimo Uma refeição deve ser uma espécie de ritual
de recursos. Para quem aprecia, belos e em que se celebra o bem-comer. Deixe as
saborosos pratos. aventuras gustativas para os muito jovens
Trago este texto pensando no Estado e/ou para quando você estiver viajando.
de São Paulo, onde se observa uma grande Refeição: reiteração de experiências
diversidade étnica, valores mil, mistura… O agradáveis. Informação tendente a 0.
que vai escrito abaixo destina-se, não aos .Não há falta maior de imaginação do que
que tendo muito, delegam tarefas a outrem, um almoço em que se conversa acerca de
mas aos que tendo o suficiente, põem a mão negócios. Certos assuntos não deveriam ser
na massa. São conselhos não solicitados e tratados durante uma refeição. Incluem-se,
que podem ser encontrados no livro Cru aí, aqueles que reviram o estômago.
ou Cozido : uma aproximação à arte do .Você que adora um álcool: não faça com
2001 bem-comer, do Dr. Ângelo Monaqueu, autor que dez pessoas fiquem em função de sua
pirajuhyense, desconhecido em sua própria bebericagem.
terra. .Você que conversa demais. Procure comer
Em sendo anfitrião ou convidado, há mais - embora devagar - e falar menos. Não
coisas com relação às quais se deve estar deixe que o seu papo excessivo atrapalhe a
atento. Senão, vejamos: degustação alheia.
.Se você sabe que terá problemas, dê um .Não vá a refeições sociais (nem a recitais
jeito de evitar o almoço ou jantar: recuse e concertos) se estiver gripado, com
polidamente o convite. Em último caso, tosse indiciadora de catarro. Volte no mês
marque-o em um território neutro, num seguinte… e são!
restaurante, de preferência. .Sal: melhor pouco. Melhor não colocar que
.Uma refeição - almoço, jantar, ou mesmo um colocar demais. Comida salgada - a não
lanche (como nós brasileiros entendemos) ser aquelas que requerem o sal a mais (e
2002

- não pode ser uma aventura. Surpresas existem as tais) - não tem conserto: você

108
aumenta os ingredientes e, pela quantidade, de sua etnia, qualquer que ela seja (veja

2000
a comida acaba perdendo a qualidade. Pior a que os franceses comem escargot, além
emenda que o soneto. de não cultivarem certos hábitos básicos
.Nunca convide para um jantar em sua de higiene) principalmente se ela diferir
casa se você não domina o métier: melhor fundamentalmente da dos convidados.
trazer um cozinheiro, encomendar de fora a Haverá tempo para isso, sempre com aviso
refeição completa ou levar a visita a um bom prévio.
restaurante (com algum dinheiro tudo isso .Alguns répteis, ou mesmo mamíferos
é possível, em São Paulo ou Pirajuí). Agora, roedores, cérebros (miolos) não importa de
se você é um mago da cozinha, com pouco que animais, moluscos, crustáceos, testículos
fará muito. de carneiro, peixe cru, rim bovino, fígado
.Nunca teste prato novo com visitas. cru de carneiro, bucho de boi ou carneiro,
.Se você estiver fazendo regime alimentar, língua… Delícias para quem aprecia de longa
2001 não tente impingi-lo às visitas (ódio será o data, não devem entrar como prova de
mínimo que elas poderão sentir por você). amizade dos comensais.
.Não deixe animais circulando junto à mesa (10 de março de 2001)

de refeições (o argumento de que em casas


nobres etc etc etc, não vale - é coisa de
outros tempos, tempos em que a higiene
não era valor maior, ou era considerada de
modo diverso). SIM E NÃO (ANFITRIÕES E
.Tenha uma pia para abluções (num lavabo, CONVIDADOS) – PARTE B
de preferência).
.Não repare em gafes imperdoáveis à mesa. .Uma abóbora refogada feita com ciência é
Da próxima vez, escolha melhor os seus mil vezes melhor que um filé mignon mal
convivas. preparado (em que tenha minado água).
2002

.Não queira mostrar as maravilhas culinárias .Pimenta: na maior parte dos casos - há

109
exceções - deverá ser servida à parte. máximo, duas vezes.

2000
.Água fresca ou gelada é o melhor .Se se convida alguém para uma refeição,
acompanhamento para refeições, mas se sonda-se o seu gosto ou se elabora um
você é conhecedor de vinhos etc, pode servi- menu bastante variado.
los, sem obrigar os convidados. Geralmente .Você, visita, elogie na medida do mérito
os que apreciam o álcool, não têm medida. culinário, mas nunca deixe de elogiar.
CUIDADO! Por outro lado, não mencione, na ocasião
.Quando tiver convidados, não os mate presente, banquetes memoráveis em que
de fome em função de uma espera: à sua você esteve. Evite as comparações: pense,
chegada, comeretes já deverão estar à apenas.
disposição, por simples que sejam. Refiro- .Não coma demais, nem de menos.
me a gente saudável e não anoréxica. .Música: não é necessária para pessoas que
.As crianças pequenas deverão comer em estão à mesa trocando cordialidades.
2001 separado: porque têm os seus horários, .Temperos fortes: cuidado (não mascare,
sempre dão trabalho e requerem uma nem disfarce o verdadeiro sabor dos
atenção em excesso e as visitas não poderão alimentos ou suas deficiências em termos
ficar à disposição, à sua mercê. Por outro de dotes culinários).
lado, o paladar infantil é muito diferente do .Comidas que favoreçam a formação de
de um adulto, assim como os interesses na gases: cuidado. As que, mesmo saborosas,
tagarelagem. Para se ser um bom apreciador fedem: evite-as.
de comida é necessário ter, pelo menos, .Não coloque os mesmos temperos em
duas décadas e meia de Planeta Terra. tudo. Perdem-se as sutilezas do paladar.
.Não coloque na mesma mesa pessoas que É importante perceber o sabor dos
não se toleram. As pessoas à mesa devem componentes de um dado prato.
estar à vontade, pois que a conversa deve .Embora o alimentar-se envolva os cinco
fazer parte da celebração. sentidos, a audição é o menos importante.
2002

.Nunca insista com visitas: ofereça, no Não exagere naqueles alimentos - como

110
cenoura crua, por exemplo - que dão a

2000
impressão que o Universo estará ouvindo a
sua mastigação.
.Comidas - algumas - podem ser preparadas
com antecedência, outras, não.
.Cuidado com excessos. Variedade é bom,
mas não exagere. Senso, muito senso no VILELA: A DIMENSÃO TRÁGICA DE
que disser respeito a: quantidade, variedade UMA EXISTÊNCIA MODESTA
e qualidade. Com pouco você poderá fazer
muito: arroz feito na hora, uma carne, Dentre as tragédias sofocleanas que
um molho ou creme ou feijão, uma salada nos chegaram, Édipo Rei é a mais célebre
simples. e a que tem rendido o maior número de
.Nunca peça a receita, para ser agradável. comentários ao longo do tempo. Texto
2001 Por outro lado, não insista em dar a escrito para ser encenado, no século V aC,
receita. sobreviveu por obra do feliz acaso. Estudos
.Não leve convidados quando o convidado é e mais estudos foram feitos: de Sigmund
você, a não ser que a coisa esteja liberada. Freud a Foucault, a admiração por aquela
.Não apareça sem avisar. Avise se você tem que, no século IV aC, Aristóteles colocou
a liberdade de se convidar, mas avise. como um modelo dentro do gênero. Pois é,
.Em última instância, o que vale mesmo é na fala final do referido texto, diz o Corifeu
o prazer de estar com pessoas, podendo que ninguém pode ser considerado feliz
despender um tempo enorme com o antes de chegar ao termo da existência e
degustar, mesmo que sejam os pratos mais sem ter provado do amargor do infortúnio.
simples do mundo. Às vezes, a companhia E o exemplo era daquele Édipo que caíra em
enriquece e justifica o ato da refeição. E desgraça.
bom, mesmo, é quando isso acontece. Isso tudo me vem à mente motivado
2002

(17 de março de 2001)


pelo sucedido com o gráfico (sim, gráfico!)
111
Paulo Vilela, pessoa que quando eu estava na UTI de um hospital de Bauru e

2000
freqüentava as oficinas do “jornal” do saudoso falou-me sobre o ocorrido. Fiquei espantado
Basílio Autran lá estava, mas que me passou com o fato de Pirajuí possuir violência digna
completamente despercebido e que vim de da pior periferia de São Paulo ou do Rio
fato a conhecer a propósito d’O ALFINETE, de Janeiro. Como poderia acreditar que o
semanário em que passei a ser colaborador. Vilela, que não era de briga, acabasse sendo
Vilela, sempre uma presença leve, sem aquela vítima do pior vandalismo? Como pode
de ocupar espaço: uma pessoa simples, de alguém, neutralizando uma pessoa, agredi-
uma modéstia que acabava por chamar a la fisicamente, com socos e pontapés na
atenção. Com a maior calma fazia revisão cabeça, até levá-la ao coma? Não há motivo
de textos ou escrevia pequenas matérias. que venha a justificar tal atitude. Como se
Numa certa ocasião, quando mencionei poderia esperar esse desfecho para uma
Mário Alves dos Santos Júnior, o Marinho, vida tão modesta, simples, despojada? Vilela
2001 figura singular, inteligentíssimo e que teve deixa este nosso insensato mundo sem o
morte prematura, envolvida até num certo peso de alguém que teria tido demais: ele
mistério (teria sido atropelado ou se deixado sempre sobreviveu com a medida certa,
atropelar?) Vilela se lembrou de muitas sem a apropriação do que poderia ser útil
coisas e falou do Mário como colaborador a outrem. É lamentável que o termo de
do “jornal” do Seu Basílio e até da última sua existência tenha ganho essa dimensão
matéria que ele havia escrito para aquele, trágica: morto a pontapés!
em verdade, semanário. Pretendia até obter No início da tragédia mencionada de
mais informações sobre o meu amigo, com Sófocles, aguarda-se uma mensagem que
o Vilela, pois queria escrever uma matéria vem do deus Apolo, cujo portador é Creonte
para lembrar a inteligência que foi o nosso e ela tem a ver com as dificuldades pelas
Mário. Quem diria que, agora, seria o Vilela quais Tebas está passando: dizia o oráculo:
o meu assunto?! Marcelo Pavanato contou- “É preciso punir o assassino do rei Laio!”
2002

me, por telefone, da situação do Vilela, que E a tragédia se desenrola em torno dessa

112
questão, o que faz com que concluamos nas coisas do verbal. Dos irmãos que

2000
que se trata de uma trama policial. E é. E conheci, três possuíam uma voz de timbre
o assassino do rei Laio, ninguém menos mais que interessante, dicção impecável,
era que Édipo, também seu filho, descobre- correção admirável: Dona Yola, Dr. Zinho
se. No caso trágico do nosso amigo Vilela, (inteligência prodigiosa, advogado brilhante,
o aspecto policial fica na lateralidade. É poderia muito bem ter sido um diplomata;
preciso que o Ministério Público aja e não se não foi, é porque não o quis) e Dona
deixe impunes atitudes brutais, como essa Cida. Dona Cida: aquela mesma, amada por
a que nossa cidade acabou de assistir. Nada seus alunos e alunas, que disputavam para
poderá repor aquele sopro de vida ao Vilela, resolver quem levaria, ao final das aulas,
porém, nossa sociedade não deverá ficar o material da professora até sua casa. Sua
à mercê de indivíduos que agem como se beleza física impressionava os meninos, a
fossem leões ensandecidos. mesma beleza que causou admiração no
2001 Vilela: descanse em paz! pintor José Pancetti, em encontro fortuito,
(31 de março de 2001) num saguão de hotel. Disse-lhe o artista ter
encontrado a sua Musa!
O domínio verbal de Dona Cida, sua
desenvoltura, eram coisa incomum: de a
ouvir falar, aprendia-se um português vivo
e correto. Quando contava um caso para
DONA CIDA ilustrar algum item do programa, a narrativa
era viva e não dava para não prestar atenção.
CIDA MANSO, Maria Apparecida Lopes “Por que não escreve?”, eu pensava, “alguém
Manso da Costa Reis... Sim, irmã das demais que articula tão bem”… Ainda hoje fico a
professoras: exemplares todas elas: Dona pensar se Dona Cida não possui cadernos
Yola, Nair (não fui seu aluno e considero isto e cadernos com belos textos. Que grande
2002

uma pena) Nancy. Uma pessoa tão articulada cronista ela não seria? Em classe, a elevação

113
do Rio de Janeiro como sendo o máximo

2000
dos máximos, criava alguma indisposição Ao Omar
Com os meus parabéns pelo brilhante curso que
(leve) em alunos, que tentavam contra-
você vem fazendo, os meus votos de contínuo
argumentar; mas ela sempre vencia com progresso no futuro.
sua capacidade de articulação do discurso. Sua professora muito amiga
A uma brincadeira ou deslize de aluno, Maria Aparecida
ela dizia, carinhosamente: “Dou-lhe um Pirajuí, 12 de outubro de 1965.

murro!”, ou: “Seu cara de gato!” E as coisas


ficavam amenizadas como convinha num Lá se vão 35 anos!
relacionamento professor-aluno, numa Aproveito este espaço para enviar um
época em que cerimônia ainda era algo para grande abraço para Dona Cida e reiterar o
ser observado. Dona Cida jamais foi flagrada que ela com certeza sempre soube: que fez
em atitudes que não fossem de refinamento um importante trabalho como professora:
e bom humor. presença marcante nas vidas de centenas e
2001
Ainda hoje conservo intacto o centenas de alunos, …ex-alunos.
(07 de abril de 2001)
exemplar do Memórias Póstumas de
Brás Cubas, de Machado de Assis, com que
ela me presenteou, o qual sempre releio.
A dedicatória, que mostro com orgulho
para meus alunos universitários, foi muito
importante para mim e tenho a obra como
marco do meu despertar para a literatura e RANCHINHO : PRESENTE DE DEUS
do amor que tenho por Machado, que nasceu
no mesmo 21 de junho que eu. É, para mim, Sebastião Theodoro o seu nome.
um desafio essa obra: é a prosa que eu Ranchinho porque - esclarece seu sobrinho
gostaria de ter escrito. É uma meta-desafio Juvenil - viveu durante algum tempo em
2002

para minhas ambições literárias. uma casa muito modesta, um ranchinho. O

114
apelido, antes detestado, passou a ser aceito interesse vinha tardiamente, já que o

2000
e adotado pelo pintor. Ranchinho descobriu artista havia morrido há mais de dois anos.
na pintura a sua maneira de dialogar com o Lamentei. As imagens sempre voltavam
mundo. à minha cabeça. Foi então que agora, em
Vi pinturas suas pela primeira vez no fevereiro, dia 21, quarta feira, estando no
setor ARTE POPULAR da exposição dos 500 Instituto de Artes da UNESP com a Profa.
ANOS, realizada em São Paulo, no Parque Claudete, eu disse: “Claudete, tinha algo a
do Ibirapuera e fiquei impressionado: num lhe perguntar, mas não me lembro o que.
desenho vigoroso, uma pintura forte! Voltei Não era sobre o Ranchinho, penso”. Ela me
mais duas vezes à mostra e fui rever os olhou com um ar entre espantado e contente,
seus trabalhos. Nasceu, daí, o meu interesse dizendo: “Omar, você nem sabe: encontrei o
pelo pintor. Havia naqueles trabalhos, além Ranchinho no Shopping, em Assis. Ele está
de talento, o que chamo de “inteligência vivo! Em verdade, ele tinha estado doente um
2001 artística”. tempo e deixado de pintar, mas está bem e
Daí, então, fui descobrindo que muita pintando”. Nem saberia dizer como fiquei feliz
gente o conhecia ou sabia dele: A Profa. com a notícia. Sabendo que estaria em Pirajuí
Claudete Ribeiro, que havia morado por na semana seguinte (Carnaval) dispus-me a
muitos anos em Assis - cidade onde atuou o dar uma chegada em Assis. Claudete me deu
pintor - meu aluno Vanderlei Lopes Richarde, o telefone de Oscar D’Ambrosio, pessoa que
grande desenhista, Jorge Anthonio e Silva, me forneceu as coordenadas para executar
estudioso e crítico de arte, que possuía um a empreitada.
seu trabalho… Foi então que me lembrei de Em Pirajuí, pensei em alugar um táxi,
uma conversa que tive com minha colega mas Heloísa Leal Lopes se dipôs a levar-me
Marina Goldman, que havia feito referência até Assis, que eu já conhecia de outras vezes
a um pintor, de quem possuía trabalhos, que e outros motivos. A marca da viagem foi um
agora eu sei: era Ranchinho. calor insuportável (mas que suportamos) na
2002

O que me haviam dito é que meu segunda-feira, dia 26 de fevereiro. Fomos,

115
eu e Heloísa (tinha já estabelecidos Disse seu sobrinho que Ranchinho

2000
contatos através do telefone) recebidos (Sebastião Theodoro Paulino da Silva)
pelo sobrinho do pintor e, em seguida, nasceu em Oscar Bressane, em 07 de
pelo próprio. Recebeu-nos, Ranchinho, janeiro de 1923, mas certos dados estão
alegre como uma criança, mostrando envolvidos na incerteza. Theodoro, nome
quadros, fotos, livros. Estava incansável grego, significa dom, dádiva, presente de
na recepção às suas visitas. Eu olhava Deus - ou dos deuses - e é o que ele é: um
as dezenas de quadros dependurados presente que Deus deu a nós mortais, para
nas paredes de seu atelier e notei que enriquecer visualmente com suas pinturas
apresentavam uma grande diferença com as nossas vidas (Sebastião, também de
relação aos que havia visto na exposição origem grega, significa augusto, magnífico,
dos 500 ANOS, nas continuavam com venerável. Sebastião Theodoro= magnífico
grande vigor. Um colorido, às vezes, algo presente de Deus!).
2001 impregnado. Citações, como a do “Caipira Foi, para mim, uma grande alegria
picando fumo” de Almeida Júnior, tema saber saber que ele estava vivo. Conhecê-
recorrente, recriado e identificado com o lo e relacioná-lo com o trabalho que fez e
Jeca do Mazzaropi/Lobato. Dos cartões ao faz, levou-me mais uma vez a acreditar
duratex, agora pinta em telas preparadas em milagres. Ranchinho pintor: presente
pelo sobrinho. Pedi para fotografá-lo, de Deus.
no que recebi prontamente a resposta (14 de abril de 2001)

afirmativa. Fiz 28 fotos, boas em sua


maioria. Consegui comprar seis de seus
quadros e ganhar uma pintura sobre
cartão. Enquanto fotografava, o pintor
continuava em sua faina de mostrar coisas
à Heloísa por quem ficou encantado. Sua
2002

alegria infantil era de admirar.

116
JOSÉ PANCETTI consistiu num processo de despojamento,

2000
que quase chegou à abstração. Reduziu a
Dentre os artistas dum Modernismo um mínimo os elementos da paisagem. O
brasileiro já avançado, Giuseppe, ou melhor, difícil estava aí: ser simples, e Pancetti soube
José Pancetti ocupa um lugar de grande fazê-lo.
importância, não se encontrando entre Quando morreu - relativamente cedo
os notórios - não fez obra monumental - em 1958, a abstração no Brasil, que
patrocinada por Governo, nem foi de badalação dera seus primeiros passos em fins dos
como muitos de antes, mas principalmente anos 40, estava em sua época de grande
os de hoje, que comparecem com freqüência florescimento, com os concretistas, Volpi -
nas chamadas “colunas sociais”. De pai que viria a ser considerado o maior pintor
e mãe italianos, como muitos de nossos brasileiro de todos os tempos - chegava ao
pintores - e Portinari é o mais notório, um máximo de depuração de formas e cores,
2001 exato contemporâneo de Pancetti; Volpi com uma abstração peculiar e, logo mais,
nasceu na Itália e veio muito cedo para o com os neo-concretistas, sediados no Rio
Brasil - nasceu Pancetti em Campinas, no de Janeiro. Pancetti nos trouxe uma pintura
ano de 1902 (faleceu no Rio de Janeiro, em limítrofe que, sem chegar a ser abstrata,
1958). Tendo sido marinheiro, isto marcou reduziu-se a um mínimo dos mínimos de
a sua vida, comparecendo como tema - as elementos gráficos e picturais, alcançando
MARINHAS - na maior parte de seus quadros. uma qualidade rara entre nós, que só gente
Pancetti chegou a estudas pintura, ganhou como Tarsila, Guignard e alguns outros
prêmios, pintou, principalmente paisagens poucos alcançaram.
e, quando retratos, era melhor nos que fazia Esta exposição que aconteceu
uma auto-abordagem. recentemente na FAAP (de 06 a 28 de
Pancetti, como paisagista, deu o melhor fevereiro) depois de ter estado na Bahia
de si. Tendo recebido influências várias, (Salvador - Pancetti chegou a morar na
2002

acabou por descobrir um caminho prório, que Bahia e a produzir muito lá) e Rio de Janeiro

117
só vem a confirmar, com suas cem telas, anos 50, possuía a cara de São Paulo (e os

2000
a excelência de um pintor chamado José paulistas, freqüentemente, eram acusados de
Pancetti. serem por demais racionalistas, cerebrais).
(21 de abril de 2001) Bem, a Bossa Nova nasceu na Zona Sul
do Rio de Janeiro e teve em São Paulo
uma receptividade sem par. Interessante
relembrar que o pirajuiense Tito Madi,
uma das vozes mais contidas e bonitas da
BOSSA NOVA música popular brasileira, residindo no Rio
de Janeiro, entra como um dos precursores
Em um artiguete sobre São Paulo, daquela tendência musical.
neste mesmo semanário, referi-me ao Rio Época linda na memória daqueles que
de Janeiro como cidade que vinha, desde a a têm - para me referir à Bossa Nova algo
2001 2ª década do século XX (século passado!) pessoanamente.
perdendo a hegemonia cultural para a Para alguém que gostaria de começar
Paulicéia e que, das coisas notáveis que a entender um mínimo de Bossa Nova eu
a Cidade Maravilhosa havia produzido, indicaria apenas cinco canções (que depois
em termos de “movimento”, teria apenas serão cinqüenta ou mais):
a destacar a BOSSA NOVA. Continuo a 1. Chega de Saudade . Jobim-Vinicius
2. Desafinado . Jobim-Newton Mendonça
pensar quase assim, porque acrescentaria,
3. Samba de uma Nota Só . Jobim-Newton
nas Artes Plásticas, o Neo-Concretismo que, Mendonça
diga-se, não é superior ao Concretismo 4. Corcovado . Jobim
paulista, mas, da mesma forma, grande. 5. Garota de Ipanema . Jobim-Vinicius
E o Neo-Concretismo, puxado pelo poeta Jobim, como se vê, está em todas e
maranhense Ferreira Gullar, apresenta- será um dos músicos mais tocados no mundo
se como uma dissidência da Arte Concreta depois da conquista dos EUA pela Bossa Nova,
2002

Brasileira, que àquela altura, 2ª metade dos a partir de inícios dos anos 60. Seu disco

118
com Sinatra é magnífico e demonstra o como entrar numa História da Bossa Nova: dos

2000
a Bossa Nova, que nasceu sob a influência precursores, passando pelos protagonistas,
do Jazz (do cool jazz) se casava bem com aos filhos da Bossa. Porém, na sua
o espírito estadunidense. Excelente letrista configuração diferenciada dentro do universo
Newton Mendonça, que teve morte prematura. da Música Popular, bastaria citar dois nomes
Vinicius, que já era uma celebridade dentro mais um: Tom Jobim, João Gilberto mais
da poesia erudita, diplomata, acabou sendo Vinicius de Moraes.
o maior dos letristas da Bossa, tendo em (28 de abril de 2001)
Jobim seu melhor parceiro. O próprio Tom
Jobim chegou a fazer letras belíssimas para
sua canções (entre outras, a tardia e bela
“Águas de Março”).
Volta e meia entra na moda a curtição
2001 da Bossa Nova. João Gilberto é festejado SÃO PAULO. FUTURO. FUTURISMO
dentro e fora do Brasil por um público
refinadíssimo. João mostrou, como alguns Lembro-me de que, lá pelo ano de
já vinham percebendo - dentro e fora do 1959, numa aula no Grupo Escolar “Olavo
Brasil - que a tecnologia existente à época, Bilac”, tendo feito um desenho não-figurativo,
possibilitada performances vocais sutis como algo multifacetado e colorido, a professora -
a sua, não necessitando, o cantor, de volume Dona Nancy Manso - olhou com admiração e
considerável para se fazer ouvir e trazia, disse: “É um desenho futurista”. Aquilo ficou
com a batida de seu violão, originalidade. em minha cabeça e percebi depois que, no
Isto é o que muita gente que se considera Brasil, dentre os de um certo repertório,
cantor hoje, não compreende, quando se Futurismo era praticamente sinônimo de
aventura a cantar as acima referidas peças Modernismo e não simplesmente uma
antológicas. escola, uma tendência de origem italiana
2002

São muitos os nomes que podem que teve larga influência no Mundo e

119
que, entre outras coisas, fazia o elogio da italiano nascido no Egito, deitaria enorme

2000
máquina, do progresso, tendo como uma de influência, muito embora sua posterior
suas palavras-chave VELOCIDADE. Além opção por ideologia de direita - o Fascismo
disso, tirei uma lição para a minha vida de de Mussolini - tivesse empanado um pouco
professor: nunca reprimir o aluno que está o seu brilho e prejudicado o seu julgamento
desenhando em aula (ao que juntei, depois: como poeta e agitador cultural, precursor
deixe dormir aquele que tem sono). de tanto que se viu depois de suas famosas
Bem, o Futurismo nasceu com T. F. Marinetti, investidas e as de seus companheiros. O
ao publicar no jornal LE FIGARO, em Paris, Futurismo atingiu tudo: da poesia às artes
o seu famoso manifesto que, não sendo o visuais, ao teatro, happenings, música
primeiro manifesto artístico/poético, teve, (Luigi Russolo propôs um “rumorismo” que
no entanto, larga influência sobre todos os antecipou muita coisa, inclusive um certo
manifestos que vieram depois. Em Paris, John Cage). Todo o elogio do progresso,
2001 porque publicar em órgão da imprensa de da máquina e de multidões agitadas nos
lá, era publicar para o mundo (como seria grandes centros, reverberaria no Brasil e em
publicar, hoje, no NEW YORK TIMES). Mas especial na cidade de São Paulo e não à toa.
era para a Itália que ele se dirigia, visando Não só São Paulo havia recebido um grande
à situação daquele país, que, no momento número de imigrantes italianos, que já
(1909) estava atrasado com relação a outros possuíam até filhos nascidos no Brasil, jovens
países europeus. O país de Garibaldi se e adultos, mas, principalmente a partir da
apresentava de norte a sul como um museu, segunda década do século XX, a riqueza que
infestado de professores e cicerones, contra o começou a namorar São Paulo no século XIX
que se deveria lutar. E Marinetti brada contra (graças ao café) e que tendeu a aumentar
tudo isso. O Futurismo, diferentemente de cada vez mais, começa a se mesclar de
outros movimentos que foram batizados à indústria e crescimento urbano acelerado.
revelia e pejorativamente, escolheu o próprio Então, toda aquela apologia do progresso,
2002

nome. O rico e agitado Marinetti (1876-1944) da máquina, da velocidade, mais a maneira

120
como Marinetti expôs o seu programa para a de se encontrar com ele, para não cair em

2000
poesia, encontrou aqui terreno fertilíssimo. “malentendidos”! Interessante é que o
O Modernismo no Brasil, diferentemente trabalho mais belo e consistente que conheço
daquelas histórias que dão importância muito sobre VELOCIDADE, é o poema do então
grande a uma tal transição - que até chegou jovem concretista (1957) Ronaldo Azeredo,
a existir - desembarcou na base da paulada, carioca residente em São Paulo: uma
chutes e pontapés, com o Expressionismo obra prima. O VELOCIDADE, de Ronaldo,
de Anita Malfatti. Já tínhamos pinceladas de responde magistralmente a um apelo
Futurismo e a terceira grande influência veio futurista e o Futurismo foi uma das muitas
a ser a do Cubismo, com Tarsila e outros, influências recebidas e reconhecidas pelos
nos anos 20. Bem, o Futurismo aportou poetas do Concretismo. Da arte italiana do
cedo no Brasil: no mesmo ano em que saiu começo do século XX, o MAC-USP (Museu de
o manifesto de fundação do movimento, o Arte Contemporânea da Universidade de São
2001 mesmo é traduzido e publicado em jornal da Paulo) possui duas obras-primas (duas das
Bahia. Porém, seria São Paulo o lugar para peças de escultura mais importantes de todos
sua frutificação, mesmo que, pouco depois, os tempos e em âmbito mundial) justamente
modernistas como Mário de Andrade, se do Futurismo, do seu mais importante artista
empenhassem em se livrar da pecha de plástico: Umberto Boccioni (1882-1916):
futurista. No editorial de KLAXON - primeira “Formas únicas de continuidade no espaço”,
revista modernista do Brasil, editada em de 1913 e “Desenvolvimento de uma garrafa
São Paulo 1922-23 - o grupo modernista no espaço”, de 1912. De ambas, as matrizes
propõe-se a construir - diferentemente em gesso e cópias em bronze. Doações
da destruição da tradição, apregoada por de Francisco Matarazzo Sobrinho. Isto faz
Marinetti - e diz textualmente: Klaxon não de São Paulo, uma referência obrigatória
é futurista. Klaxon é klaxista (valendo a em termos de Arte e arte do Futurismo.
negação e o trocadilho). Marinetti chegou a Quando leio o famoso manifesto de 1909,
2002

estar em São Paulo e houve quem evitasse não consigo deixar de pensar o que diria

121
Marinetti hoje, estando em São Paulo, se se apresentada na 2ª metade do século V a.C.)

2000
encontrasse na 25 de Março, em pleno dia de Ei-la:
semana (trabalho), na Ladeira Porto Geral,
na General Carneiro, na Direita, na Estação
Sé do Metrô, às seis da tarde! Como não dores, dores!
pensar no trecho do manifesto que evoca as
multidões agitadas pelo trabalho etc? São pra os mortais, grande mal:
Paulo, com seu crescimento desenfreado,
estando sempre num “por enquanto”, “nunca amores.
fica pronta” e encarna, como nenhuma
outra, uma dinâmica - mesmo que não Explicação necessária:
tão desejável - quase sem par neste nosso
mundo. Texto grego:
(05 de maio de 2001) FEU FEU, BROTOIS ERWTES WS KAKON MEGA
2001

Transliteração:
PHEÛ PHEÛ! BROTOÎS ÉROTES HÓS KAKÓN
MÉGA.
UM VERSO DE EURÍPIDES
Tradução tanto o quanto literal:
Das minhas incursões pelo mundo AAI AAI! PARA OS MORTAIS, COMO OS
helênico, resultaram algumas traduções- AMORES (SÃO UM/O) GRANDE MAL.
recriações. Poucas. Poucas mesmo, mas que
considerei muito felizes, todas feitas em fins Traduzir de um idioma para outro é
dos anos 80 e durante os 90 do século XX sempre tarefa difícil, quando não impossível,
d. C. Dentre elas, destaco a do verso 330 em se tratando de poesia: como fazer de
2002

da Medéia, de Eurípides (tragédia escrita e uma obra de arte, uma outra obra de arte

122
em novo idioma? Pois é, o problema todo de formas, mas pelo achamento de

2000
é este. O tradutor deverá ser, também, um equivalências lusas para a materialidade
artista da palavra, um poeta. Tradução de dos signos na língua original (grega)
texto poético só é possível recriando-se, signos estes em estado de poesia. Mas fui
achando equivalências no outro idioma (é adiante, conseguindo, além da eufonia, a
claro que é sempre melhor estudar, curtir aplicação de um recurso muito caro à nossa
poesia no original, porém, a tradução entra tradição, mas não à civilização grega, que
como um desafio para o fazedor, uma dela não fazia uso: a rima. E, aí, uma rima
categoria - mesmo - da criação). Daí que, surpresa: se é intolerável a rima amor e
vivendo o original, o tradutor transcria. dor, amores e dores, causa surpresa: e
Trabalho resultante: obra autônoma que é como está no grego - amores, plural:
traz, ao mesmo tempo, a memória daquela ERWTES. A interjeição FEU, indica dor e vem
que a motivou. Em outras palavras: o novo reiterada - daí, utilizei, com o mesmo valor,
2001 texto tem vida própria, ao mesmo tempo em o substantivo no plural: dores, repetido. A
que aponta para o original. não necessidade do uso do verbo em grego,
No mais, o que têm sido esses coincidiu com a possibilidade de tampouco
milênios de prática artística, senão um utilizá-lo em português.
constante diálogo entre artistas/fazedores A referencialidade do original transita,
e obras? O que é a intertextualidade senão outrossim, quase que inteiramente para a
esse dialogar que forma um tecido chamado língua de Camões.
patrimônio artístico? O próprio inserir-se Deixo públicas, aqui, minhas dívidas
numa tradição, para produzir algo já implica, artísticas e intelectuais, ao mesmo tempo em
necessariamente, esse diálogo. que agradeço a Ezra Pound, Roman Jakobson,
Faço aqui, de uma linha (verso) Augusto de Campos, Décio Pignatari, Haroldo
da referida tragédia euripidiana, uma de Campos, Paulo Miranda, Luiz Antônio de
peça autônoma em português. Trabalhei Figueiredo, Anna Lia Amaral de Almeida
2002

considerando a impossibilidade da tradução Prado e Filomena Yoshie Hirata Garcia.

123
Recriação ou tradução-arte ou eficácia: ou porque para algo novo (desde

2000
transcriação, para ficar com os Campos, uma invenção, até um novo comportamento/
irmãos do Concretismo ou, à maneira algo procedimento) é preciso um novo termo, ou
paródica, de minha lavra: translusificação. porque expressões antigas perderam a sua
Se traduzir um verso é difícil, imagine- eficácia; então, necessita-se de uma nova
se uma peça inteira! maneira para abordar aquelas questões.
Num arroubo de desgosto, num Gíria é neologismo, porém condenado
desabafo, a preterida Medéia maldiz o que já pelos gramáticos, onde podemos incluir os
havia sido a mola de seus prazeres, então, professores de português (no nosso caso
motivo das suas dores. Amor, amores. específico de nossa língua): gramáticos,
Vida. acadêmicos, uma certa mídia e a escola
(12 de maio de 2001) fazem o papel de polícia do idioma e sua
atuação não é de todo má. Um certo controle
2001 é importante, senão cairíamos num caos
total, proliferariam os idioletos (idioleto:
modo particular de um indivíduo se expressar
NEOLOGISMOS verbalmente, ou de um grupo específico: as
tribos urbanas, por exemplo) e se chegaria
O termo “neologismo”, de origem a uma incompreensão total, insuportável.
grega, significa, literalmente, “palavra De qualquer modo, há uma fala média, há
nova”. Porém, envolve desde a palavra nova, a erudita e até mesmo solene; há uma fala
propriamente, até a antiga a que se deu vulgar e aquela permeada de termos chulos:
um novo sentido; também, as expressões para alguém de alto repertório quanto ao
criadas, as quais sempre abrigam uma verbal, é importante ter domínio sobre todos
metáfora. Um neologismo responde a uma esses campos. Bem, os idiomas vivos são
necessidade do indivíduo, da comunidade, organismos crescentes e mutantes. Portanto,
2002

da sociedade de se expressar com maior evoluem, modificam-se, mesmo que à revelia.

124
Línguas mortas - citem-se, entre outras, o para o dicionário e acaba fazendo parte

2000
grego antigo e o latim - ficam onde pararam. “oficialmente” do idioma. Geralmente nem
A quem pertencem os idiomas? - Aos seus temos idéia de quem criou determinado
falantes e escreventes - e, portanto, aos neologismo; de outros, é fácil saber quem
seus pensantes. Por outro lado, os idiomas introduziu: é o caso de termos e expressões
vivem sendo bombardeados por palavras criados por jornalistas, escritores, cientistas
novas (via de regra, nem tão novas assim): (que publicam em revistas especializadas).
o caso da Informática, por exemplo: o Eu mesmo tenho criado centenas de palavras
inglês se torna onipresente e, ironicamente, e expressões, desde a adolescência, mas
com palavras, às vezes, de origem grega e principalmente agora, na maturidade e para
latina e que passam pelo crivo da língua de fins literários e/ou poéticos, com um certo
Shakespeare. Não adiantam leis regulando teor humorístico (porém, nem sempre).
ou proibindo palavras estrangeiras: tais leis Vejamos alguns: dormidouro, eroto-
2001 permanecerão “letra morta”. Não devemos anorexia, erotografia, amnêmico, 14 Bis
temer novas maneiras de expressão, que de chumbo, síndrome de Frankenstein ou
entram e saem de uso. Perguntem aos de MEDENSTEIN (Medéia com Frankenstein)
seus pais e avós quais as expressões que etc. Para se criarem palavras, há muitas
se usavam em sua época de adolescência maneiras, como transliterar de outros idiomas,
e juventude: tudo parecerá tão engraçado! dando uma roupagem local, tirar do nada
Há pessoas que têm facilidade para inventar uma seqüência fônica, emprestando-lhe um
expressões e cunhar palavras ou introduzir significado etc. Porém, a maneira erudita de
novos sentidos em palavras de uso comum. proceder, a tida como boa pelos gramáticos
Para que um neologismo se consagre é é a de recorrer a radicais gregos e latinos. É
preciso que seu uso seja difundido: de o caso, entre tantos outros, de FOTOGRAFIA
boca em boca ou através das mídas - dos e CINEMATOGRAFIA (referindo-se a
livros ao rádio, TV, Internet etc. Mas sua invenções técnicas do século XIX). A língua
2002

consagração definitiva se dá quando entra evolui, quer se queira, quer não. Portanto,

125
não é recomendável o dispêndio de energia pedantes o português do Brasil, isto, para

2000
policiando-a ostensivamente. Deixe essa não falar do uso de puras expressões latinas,
tarefa aos professores de línguas. Por outro para impresionar os menos inteirados de um
lado, para fazer uma verdadeira revolução na repertório lexical sofisticado). DEIXE O PEIXE
língua-linguagem é preciso conhecê-la bem e EM PAZ! Que as pessoas possam se expressar
este foi o caso de muitos escritores-artistas, com eficácia e conhecimento de causa. Mais
como Lewis Carroll, James Joyce, Guimarães grave são pessoas que têm acesso às mídias
Rosa, Décio Pignatari. As investidas contra e fazem mal uso delas (e ganhando salários
as normas ditas cultas constituiu-se numa milionários para vomitar um português todo
luta travada no Brasil pelos modernistas do coalhado de erros crassos). Um português
primeiro momento, como Oswald e Mário inventivo deve ser visto com admiração:
de Andrade, Manuel Bandeira e outros. O do escritor-poeta ao menino que procede à
mais radical, teoricamente, foi Oswald que, desmontagem de um sistema inadequado
2001 em seu Manifesto da Poesia Pau-Brasil, para a sua expressão verbal, mesmo que
de 1924, chegou a escrever: “A língua temporariamente. A língua, embora mesma,
sem arcaísmos, sem erudição. Natural e nunca mais volta a ser a mesma.
neológica. A contribuição milionária de todos
os erros. Como falamos. Como somos”. No NEOLOGISMO
Brasil, ensinava-se um português como M. Bandeira
Beijo pouco, falo menos ainda.
se estivéssemos no país de Camões.
Mas invento palavras
Ignoravam - gramáticos e professores - as Que traduzem a ternura mais funda
transformações pelas quais havia passado o E mais cotidiana.
português no Brasil, desde o século XVI. Hoje, Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
alguns poucos se revoltam contra os falares Intransitivo:
Teadoro, Teodora.
de “tribos” e contra a invasão de termos da
língua inglesa (antes, era o francês a língua
(19 de maio de 2001)
2002

que povoava de termos chiques, eruditos e

126
HISTORINHAS DE POETAS 1: MANUEL poema continuasse bom ou excelente! Se

2000
BANDEIRA E O SONHAR POEMAS Manuel Bandeira era capaz de sonhar bons
poemas, é porque ele era capaz de fazê-los
Manuel Bandeira (1886-1968) poeta quando acordado. E sempre fez bem melhor
essencialmente lírico, construiu uma quando acordado. O seu lindo “Oração no
solidíssima obra dentro do Modernismo do Saco de Mangaratiba” seria final de um longo
Brasil. O poeta conhecia várias línguas e poema, a única parte em versos regulares
havia visitado praticamente toda a tradição (eneassílabos) poema que ele concebeu
poética do Ocidente, e alguma coisa de num estado de semi-demência (dormência)
Oriente. Isto quer dizer que possuía um como narra em seu Itinerário de Pasárgada.
repertório invejável em termos de Poesia Ou seja: você só sonha mesmo um poema,
(um poeta se faz lendo/ouvindo outros quando tem repertório para sonhá-lo e até
poetas) o que lhe possibilitava, somando a reconstituí-lo quando em estado de vigília.
2001 tudo isso, o seu talento/sensibilidade, fazer A inspiração, entendida como momento
poesia, e da melhor. Pois é, Bandeira sonhava em que tudo contribui para que a obra se
poemas inteiros ou os concebia em estado perfaça, só acontece quando a pessoa possui
entre o sono e a vigília - num quase delírio, já a informação, quando tem repertório
eu diria. Após conceber poemas nessas para isso. Intuição, IDEM: não se intui do
circunstâncias, Bandeira ou conseguia nada: já se possui repertório e a intuição,
reconstituí-los inteiros ou parcialmente. portanto, é informada. Nada vem do nada,
Seria possível a qualquer pessoa sonhar assim como nada garante nada. Dados
uma obra de arte de qualquer natureza? emergem do Inconsciente, principalmente
Poderia - alguém - sonhar um grande em sonhos: Freud colocou o sonho como a
poema, por exemplo, ou, mesmo, um poema porta de entrada para o Inconsciente, mas
simplesmente bom? Eu diria que a resposta até acordado pode acontecer um fluxo do
é não. A não ser que o sonhador fosse capaz Inconsciente (atos-falhos...). Se você vier
2002

de reconstituí-lo quando acordado e o tal a sonhar um poema tão lindo como aqueles

127
de Safo, que nos chegaram aos pedaços, HISTORINHAS DE POETAS 2:

2000
reconstitua-o e publique-o. Divida-o com MALLARMÉ E DEGAS: COM QUANTAS
os outros mortais e… tenha bons sonhos! IDÉIAS SE FAZ UM POEMA?
Em tempo: Na relação Poesia-Sonhos,
podemos considerar fundamentalmente Mallarmé (1842-1898) poeta francês
três aspectos: 1. O sonho enquanto tema associado ao Simbolismo, tido como poeta
para poemas: registro de lembranças hermético, foi daquelas sensibilidades para
do universo onírico. 2. O poema que é a poesia, como raros o foram ao longo da
sonhado e que se é capaz de reconstituí- tradição ocidental. Já era uma celebridade
lo total ou parcialmente, porque se é no meio literário quando publicou seu
capaz de elaborá-lo em estado de vigília. poema Um lance de dados jamais abolirá
3. A utilização tanto quanto possível, nos o acaso, no ano de 1897, poema fundante,
poemas do modo como se organizam os pois que está nas origens das poéticas mais
2001 sonhos. Isto tudo eu tentei desenvolver radicais que se desenvolveram no século
numa conferência na PUCSP, durante XX. E, mesmo depois de morto, deixou
semana de comemoração dos cem anos claro que tinha muito mais coisas a mostrar,
do advento da obra de Sigmund Freud para intrigar o mundo. Incompreendido
Interpretação dos Sonhos, época em que por alunos (foi professor de inglês) mas
Samira Chalhub, grande amiga, estudiosa amado e cultivado por colegas da poesia e
da psiquê e das linguagens, já não doutras artes, assim como por discípulos,
desfrutava dos ares deste nosso Planeta. Mallarmé viveu numa época de grande
A ela dedico este escrito. efervescência, numa França com grande
(26 de maio de 2001) densidade de gênios, em todos os campos,
sendo o próprio Mallarmé, gênio maior
entre gênios: Degas, Cézanne, Debussy,
Rimbaud, Zola, Rodin, Irmãos Lumière,
2002

Monet… Precisaria citar mais alguém? Bem,

128
conta o grande poeta-pensador Paul Valéry HISTORINHAS DE POETAS 3: A

2000
que, certa feita o pintor Degas comentou MALDIÇÃO DE CASSIANO
com o amigo Mallarmé que possuía boas
idéias, mas que as mesmas acabavam por Cassiano Ricardo (1895-1974) esteve
não resultar poemas. Mallarmé, certeiro, sempre na rabeira dos acontecimentos
disparou que poemas não se faziam com poéticos: de 22 ao Concretismo. Nos anos
idéias, mas com palavras! É óbvio que 60 esteve associado à página “Invenção”, do
palavras são entidades prenhes de idéias, CORREIO PAULISTANO e, temporariamente,
mas o que Mallarmé quis dizer - é a à revista INVENÇÃO, porta-voz dos
interpretação mais plausível - é que para Concretistas e chegou a colaborar em seus
se fazerem poemas é preciso que idéias se dois primeiros números. Mas a raposa velha
corporifiquem em palavras. Que o código - famosa no meio literário, bi-acadêmico,
de domínio de Degas não era o verbal, com alguma força junto às autoridades
2001 mas o gráfico, o das linhas, formas, cores - não tardaria a mostrar o seu verdadeiro
e que ele - Degas - não dizia ter idéias lado: conservador com vernizes reformistas:
para quadros: ele simplesmente os fazia foi rompida a amizade/colaboração entre
(e, genialmente, diga-se). Ou seja, Degas o ancião e os jovens Décio, Haroldo,
não era um poeta, no sentido de que poeta Augusto… Nesse fim de romance, durante
é aquele que, manipulando palavras faz uma discussão, Cassiano disse : “O arco não
delas obras de arte: os poemas. Degar pode permanecer o tempo todo teso; uma
era um desenhista-pintor. Então, que hora tem de afrouxar” (A maldição: Um dia
pintasse! vocês terão de afrouxar). Ao que detonou
(02 de junho de 2001) Décio Pignatari: “Na geléia geral brasileira
alguém tem de exercer as funções de medula
e de osso”. O contato com os concretistas
possibilitou alguns poemas curiosos da Raposa
2002

Velha que, no mais, possuía algum talento.

129
Diferentemente, Manuel Bandeira, poeta HISTORINHAS DE POETAS 4:

2000
célebre em fins dos anos 50, compreendeu INTERFERÊNCIA DOS DEUSES?
em parte e fez belas e poucas experiências
dentro de um repertório concretista; chegou Poesia, Inspiração, Musa. Como toda
a defender os então meninos em crônicas, Arte, a Poesia resulta de um processo
hoje publicadas em volume. Bandeira nunca dialético em que, de um lado temos a pura
deixou de ser bandeiriano. A trazida de sensibilidade e do outro a mais completa
Cassiano para o seio do grupo concretista racionalidade/cerebralismo. O poeta, ou
foi obra de Décio Pignatari, que apontou fazedor, é o artista que tradicionalmente
o fato como uma grande jogada política trabalha com palavras, elevando-as à
de sua autoria. Opinião da qual discordei, categoria de ARTE. Para que possa vir a fazer
sempre que presente em ocasiões em que isto, um poeta teve toda uma formação que
Décio afirmava isso. Talvez que a presença dependeu de muito ouvido ou muita leitura de
2001 da Raposa tivesse ajudado na divulgação do textos poéticos. Portanto, ele tem o domínio
movimento. Eu penso que mais atrapalhou. de toda uma tecnologia que lhe possibilita, de
Senão, por que o promotor da façanha teria quando em quando, uma composição feliz.
dado, no velho bardo, a tacapada mortal? Contribui, ele, para o enriquecimento de sua
Como todos os jovens empenhados em criar- tradição poética e os poemas são a mais
inventando, os concretistas não tolerariam elevada manifestação que o código verbal
alguém que viesse tentar lhes cortar o possibilita. Platão colocou o poeta como
barato (entenda-se: ENTUSIASMO). alguém que recebia, via divindade, a poesia:
(09 de junho de 2001) o poeta era meramente um meio através
do qual a divindade se manifestava. Uns
fazedores evocavam a Musa, a começar pelo
insuperável e fictício Homero. Inspiração?
Bem, pouca inspiração e muita transpiração
2002

disse o cientista-inventor Thomas Edison.

130
Inspiração só acontece para quem possui acontece”. E meu amigo e grande poeta

2000
repertório e, portanto, os meios para - um quase desconhecido - Aldo Fortes,
fazer corporificar o poema. Alguns poetas recentemente elogiando uns versos disse:
colocaram a inspiração como o momento “Um grande achado, sabe, um daqueles
ou processo em que tudo colabora para presentes dos deuses”… Pois é, mesmo
que a obra aconteça. Todo poeta é um ser acreditando que tudo depende do repertório
pensante, cerebral, porém há os que pensam e que intuição é coisa informada, não
tudo e explicitam esse pensamento através deixamos de recorrer a antigos expedientes
do exercício da metalinguagem - não têm para explicar ocorrências fora do comum
problemas para falar sobre seus poemas, a em Poesia (que já é linguagem fora do que
começar pelo querido Edgar Allan Poe (1809- ordinariamente acontece)!
1849) que, através do seu “A Filosofia da (16 de junho de 2001)

Composição”, explicou o processo de feitura


2001 de “O CORVO”. No Brasil, de Drummond
aos Concretistas, passando por João Cabral
de Melo Neto - da metalinguagem nos
próprios poemas, à prosa metalingüística
militante. Os concretistas se caracterizaram HISTORINHAS DE POETAS 5: O CASO
por serem muito cerebrais. Os paulistas DO MENSAGEM, DE F. PESSOA
sempre foram acusados de cerebralismo
exacerbado. Concretista paulista?! Cérebro Fernando Pessoa (1888-1935)
puro! Certa vez, conversando com Augusto aliás, PESSOAS. Trata-se de Fernando
de Campos, sobre soluções geniais que ele António Nogueira Pessoa, do festejado,
encontrava para suas traduções-recriações, do grande poeta poeta poertuguês dos
ele disse entre sério e brincando: “Tudo heterônimos. Todos sabem dizer, nem que
pode estar dando certo, mas se não houver seja alguma sua estrofe, como a primeira do
2002

uma interferência dos deuses, a coisa não “AUTOPSICOGRAFIA”, uma quadra:

131
excepcional. Nem tudo, porém são flores no

2000
O poeta é um fingidor. Jardim das Musas. No ano de 1934, Fernando
Finge tão completamente Pessoa concorreu a um prêmio de poesia:
Que chega a fingir que é dor
enviou nada, mais nada menos, que o seu
A dor que deveras sente.
Mensagem: uma espécie de épico possível
em seu tempo, impregnado de lirismo: um
Sempre lembrada a questão da
épico anti-épico, feito de poemas curtos
heteronímia (vários poetas por um só, que,
com medidas diversas: quadros congelados
de vez em quando, era ele-mesmo). Numa
de um Portugal já ido, mas contaminado
Lisboa provinciana, sem interlocutores à
de messianismo. Eu diria que esta obra-
altura, o aparentemente pacato Fernando
prima (e prima sempre o é em termos
era um vulcão por dentro. Produzia
qualitativos) constitui-se num dos mais
compulsivamente e não se contendo em
belos livros de poemas do século XX: um
si, desdobrou-se em vários: era Pessoa-
2001 livro inteiro, com uma cara única, não um
ele-mesmo, Alberto Caeiro, Ricardo Reis,
ajuntamento de poemas em volume. Pois
Álvaro de Campos e muitos outros. É
é, foi criado um prêmio de 2ª categoria e
elevada a qualidade de sua produção
atribuído ao poeta. Foi o único livro seu, de
poética. Também produzia teoria e era
poemas, publicado em português. Poemas,
muito bom tradutor de poesia. Enchia a
ele publicou em revistas várias: ORPHEU,
cara: preferiu morrer de cirrose a esperar
PORTUGAL FUTURISTA, ATHENA e tantas
que o tédio o detonasse em mais alguns -
outras. Tive chance de consultar a 1ª edição
talvez muitos - anos. Morreu aos quarenta
de Mensagem, em inícios dos anos 90, da
e sete anos e meio, mas nunca deixou de
biblioteca da LETRAS-USP. Foi uma emoção
dar trabalho aos que se dedicaram à sua
para mim, eu que possuo umas oito edições
obra. Sabendo perfeitamente o inglês e
diferentes do livro. Se alguém se lembra
tendo inclusive escrito nessa língua, fez
do nome do poeta que recebeu o primeiro
opção pelo português e foi, nesta, um poeta
2002

prêmio, é em função do Pessoa injustiçado.

132
Os contemporâneos são, geralmente, os HISTORINHAS DE POETAS 6: O IDIOMA

2000
que menos compreendem a obra dos grandes DO POETA
artistas, dos artistas excepcionais. Vejamos
com que poema (conservo a grafia original, Poderia um poeta ser excepcional em
como ele quis que fosse) F. Pessoa abre o mais de um idioma? Não é o que a vida e a
seu mencionado livro: história nos têm mostrado. Um poeta está
sempre ligado a um idioma e este é, via de
A Europa jaz, posta nos cotovellos: regra, aquele da comunidade na qual ele
De Oriente Occidente jaz, fitando,
nasceu e se criou. Um poeta se faz lendo/
E toldam-lhe romanticos cabellos
ouvindo outros poetas e, nisto, tem muita
Olhos gregos, lembrando.
importância a leitura de textos originais,
O cotovello esquerdo é recuado; quero dizer, no idioma em que os poemas
O direito é em angulo disposto. foram originalmente escritos. Daí que muitos
Aquelle diz Italia onde é pousado;
2001 poetas são, por esse motivo ou por outro,
Este diz Inglaterra onde, afastado,
versados em vários idiomas. Alguns até
A mão sustenta, em que se apóia o rosto.
chegam a escrever também num segundo
Fita, com olhar sphyngico e fatal, idioma, ou num terceiro, ocasionalmente.
O Occidente, futuro do passado. Temos notícias de escritores, poetas que
escrevem num para, em seguida, escrever
O rosto com que fita é Portugal.
noutro, como que traduzindo a própria
(30 de junho de 2001) criação. Prevalece aquele com o qual tem
muito maior familiaridade, aquele dentro
do qual nasceu. O nosso - dos portugueses
e do mundo - Fernando Pessoa possuía um
grande domínio do idioma inglês, escreveu
em inglês: poesia e prosa, teoria. Porém, no
2002

idioma de Shakespeare ele é apenas bom.

133
Excepcional, Pessoa é na língua de Camões, PERTURBAÇÕES/RUÍDOS

2000
que honrou como ninguém, lá em Portugal,
depois do autor de “Amor é fogo que arde Em Teoria da Informação e da
sem se ver”. Foi uma opção mais do que Comunicação RUÍDO vem a ser toda e
consciente, de Pessoa, a língua portuguesa: qualquer perturbação no processo de
“Minha pátria é a língua portuguesa”, disse. E comunicação, podendo, em verdade, afetar
fez obra monumental. É que um poeta, para todos os cinco sentidos, não apenas a
exercer em sua plenitude o seu ofício, tem audição. Daí termos ruídos visuais, táteis,
de operar em um idioma, a partir do qual ele gustativos, olfativos, além dos auditivos.
irá concentrar todo o seu poder de trabalhar Em todo processo de comunicação há ruídos
a linguagem, criando, a partir de um léxico em maior ou menor grau. A coisa só é de
e de uma sintaxe conhecidos, um idioma fato problemática quando o nível de ruído
novo: POESIA. Um poeta só é grande em um vem a ser tal que inviabiliza o processo
2001 único idioma. A não ser que ele conte com comunicacional. É, por outro lado, impossível
a graça de tradutores recriadores, como foi comunicação sem ruído, por menor este que
o caso de Vladímir Maiakóvski, entre outros, seja. Em processos altamente satisfatórios,
que contou com o maravilhoso trabalho de o teor de ruído tenderá a zero. Bem, tato,
recriação - tradução-arte - dos irmãos Haroldo olfato, e paladar não chegam a constituir
e Augusto de Campos, assistidos por Bóris códigos verdadeiros, diferentemente da
Schnaidermann. Maiakóvski em português, visão e da audição, mas há linguagens
não só se tornou legível, como pôde vir a ser originadas desses sentidos e, portanto,
considerado um poeta excepcional! comunicação. Daí, termos, nos processos
(07 de julho de 2001) que envolvem linguagens que tomam por
base aqueles sentidos, também a incidência
de ruídos, elementos perturbadores dos
processos, podendo até ainviabilizá-los.
2002

No que diz respeito à alimentação, trago a

134
seguinte relação de perturbações, de coisas . Sal em excesso, o que obriga as pessoas

2000
indesejáveis: a se socorrerem na água (além de nocivo à
. Um espirro sobre a travessa com comida. saúde, o excesso de sal pode inviabilizar a
. A tagarelice que faz respingar saliva, como refeição).
uma garoa. Isto é visível e horrível. . Semente de cítricos na salada ou no
. Uma pedra no feijão (de quebrar dente, refresco.
dir-se-ia). . Gente colocando comida em seu prato, sem
. Um caruncho no arroz. que você a solicitasse.
. Uma mosca na carne de panela. . Comida que é servida quente e está gelada
. Um fio de cabelo na sopa ou em qualquer por dentro.
outra iguaria. . Qualquer iguaria que não tenha sido
. Uma lesma na verdura de folha. apurada: da feijoada ao doce de abóbora.
. Cartilagem no recheio da coxinha. . Gás que acaba momentos antes de concluído
2001 . Pedaço de osso no recheio da torta. o cozimento.
. Cheiro de um alimento passado para outro . Acabou o azeite!
dada a proximidade (o melhor/pior exemplo: . Convite aceito e não cumprido.
pão impreganado do odor de banana . Chegar a um evento que não irá mais se
nanica). realizar.
. Telefone toca, há mais pessoas à mesa e . Notícia corta-barato que vem provar que
você vai atender e se demora. há coisas mais urgentes que uma celebração
. Gente fumando à mesa, enquanto outros gratuita.
comem. . Estar na berlinda, alvo dos comentários de
. Gente chegando fora de hora e interrompendo toda a mesa, quando na verdade o que você
a todos com cumprimentos efusivos. quer é comer.
. Pimenta inteira na comida, sem aviso .Vasilha com cheiro/gosto de rato/barata.
prévio. . Mãos lavadas com sabonete perfumado,
2002

. Nervos no quibe cru ou na almôndega. odor que passa para a comida.

135
. Discussões familiares enquanto se come. não teriam importância para a minha vida

2000
Sei que isto tudo é apenas aperitivo e de poeta e de professor, portanto eu os
que você tem muito mais coisas a acrescentar desprezava, assim como os concretistas o
a esta lista inicial. faziam. Daí é que, às vezes, topava com
(14 de julho de 2001) parte de obra de um desses autores que
- notava - possuía algum interesse, como
era o caso de Gonçalves Dias, Olavo Bilac,
Raimundo Correia e até Castro Alves.
Foi aí que, um dia, estando com o poeta
Haroldo de Campos, que sempre batalhou
- teorizando - pela organização de uma
HISTORINHAS DE POETAS 7: CINCO antologia da poesia brasileira de invenção,
MINUTOS É TEMPO POUCO! “antes feita de fragmentos que de poemas
2001 inteiros”, resolvi perguntar-lhe sobre Castro
Os poetas concretistas tiveram uma Alves: - Haroldo, você poderia me expor
enorme influência na minha formação. Isto o que pensa sobre Castro Alves, em cinco
nunca me deixou angustiado, antes, pratiquei minutos? (Hoje, eu diria: “em dois minutos
um ato de antropofagia, oswaldianamente e meio”). Haroldo, com todo o seu polimento
(como diria José Celso Martinez Correia): e erudição, mais a calma intelectual que os
tudo o que eu não possuía mas que desejava e anos lhe emprestaram, levou meia hora,
que via que eles (os concretistas) possuíam, numa bela explanação, para me justificar
degluti. Assimilei. “Só me interessa o que porque é que ele não poderia me resumir
não é meu”… ( O. de Andrade, Manifesto Castro Alves em apenas cinco minutos!
Antropófago . 1928) deles absorvi aquela Fiquei satisfeito e, entre as conclusões que
coisa do rigor extremo na elaboração de pude tirar disto ficou a de que, em certas
seleções, de antologias. Daí que, como eles, épocas - como já observara Ezra Pound
eu refugava muitos autores. Alguns criadores
2002

- é preciso ser-se radical ao máximo… Em

136
outras, sem que haja a perda do rigor, há lugar, a partir de inícios do século XIX, ao

2000
que se ponderar e encontrar a qualidade Neoclassicismo, que chega oficialmente ao
onde quer que ela esteja, mesmo que em País com a Missão Artística Francesa de
poemas/poetas anteriormente ignorados de 1816, encomendada pelo Príncipe Regente
maneira proposital, em prol de um programa D. João (futuro D. João VI).
poético, de uma postura coerente. Com algumas insignificantes
(21 de julho de 2001) variações, o Academismo Neoclássico,
incentivado principalmente pelo nosso
segundo imperador, deu seus melhores
frutos justamente durante a segunda metade
do século XIX e, com a República, adentra o
século XX.
A SEMANA DE ARTE MODERNA DE 1922 Costuma-se apontar uma transição
2001 dessa arte acadêmica crepuscular para
No Brasil, país integrado à Civilização a Arte Moderna, no Brasil, colocando
Ocidental por obra dos portugueses, a Arte principalmente as obras de um Almeida Júnior
se desenvolveu como uma necessidade, não e de um Eliseu Visconti - ambos pintores
dependendo de qualquer planejamento ou admiráveis, que já traziam algo de diferente:
boa vontade por parte dos colonizadores o primeiro, em termos de uma atmosfera
(o episódio holandês do século XVII escapa mais naturalista e, portanto, menos próxima
destas considerações). Como se diz: a Arte de um cenário teatral, tão caro à Academia;
se desenvolve apesar de, ou, mesmo que à o segundo, por meio de um impressionismo
revelia. tardio e não tão bem digerido.
O Barroco, identificado como arte Em verdade, a Arte Moderna chega
colonial, pois o seu desenvolvimento ao Brasil, aos tapas e pontapés, não com
coincide - em termos de Artes Plásticas - as exposições de Lasar Segall, de 1913,
com essa divisão da História Brasileira, cede
2002

em São Paulo e Campinas (que certamente

137
não mostrou o que havia produzido modernização que vinha desde a segunda

2000
de mais radical na Europa, dentro do metade do século XIX e que muito tinha a
repertório expressionista) mas com a de ver com o café, a riqueza que ele trazia,
Anita Malfatti, de 1917-18. Esta exposição com a imigração, com o enriquecimento de
causou espanto e, se por um lado trouxe uma aristocracia que se formara ao longo
problemas insanáveis à artista, por outro, dos séculos, o surgimento de um mercado
serviu para despertar alguns jovens quanto interno, mesmo que incipiente, o despontar
à necessidade de se renovarem as Artes no de uma burguesia. Ou seja, em nenhum
Brasil: Artes Plásticas, Poesia, Música. outro lugar do Brasil se observava tanto
Naquela exposição realizada em São dinamismo como na cidade de São Paulo.
Paulo e que dera ensejo ao famoso artigo A Arte Moderna chegou ao Brasil
de Monteiro Lobato, desqualificando a Arte com a chegada de tendências européias,
Moderna e a pintora, Anita Malfatti havia como o Expressionismo, o Futurismo e o
2001 apresentado algumas das pinturas mais Cubismo (este último, principalmete a partir
fortes de quantas foram realizadas até então dos anos 20). Quem detonou o processo
por artistas brasileiros, obras de sua “fase conhecido como Modernismo, no Brasil,
americana” (ela passara parte dos anos de foi Anita Malfatti, com a já mencionada
1915 e 1916 nos Estados Unidos, estudando exposição e, muito embora se detectassem
pintura e desenho). sintomas de mudança em outras Artes, o
Sintomaticamente, a exposição Malfatti nosso Modernismo teve início, mesmo, com
se realizou em São Paulo, assim como foi a as Artes Plásticas.
paulicéia o centro irradiador do Modernismo Em torno de Anita Malfatti foram
no Brasil. São Paulo era, à época, o centro se reunindo pessoas que viriam - com o
urbano mais dinâmico do País, o lugar onde apoio de uma aristocracia endinheirada e
se observavam as maiores transformações inteligente (à qual pertencia Paulo Prado e
e uma maior necessidade de fazer chegar outros) - promover, em fevereiro de 1922,
2002

às Artes as conquistas de um processo de no Teatro Municipal de São Paulo, a SEMANA

138
DE ARTE MODERMA (a SEMANA DE 22, Lobos.

2000
como é conhecida). Há quem, como Yan de Almeida Prado,
A Semana constituiu-se num detrate a Semana: puro despeito e/ou
marco importante dentro do processo incompreensão. A Semana de Arte Moderna
modernista brasileiro - foi o coroamento teve importância fundamental no processo
de uma fase, podemos até dizer. Constitui- modernista, como arregimentadora de forças
se na demonstração de que as linguagens e divulgadora das já consumadas conquistas
estavam mudando, no Brasil. A Semana de de linguagem.
Arte Moderna contou com a participação Após a Semana, saiu (maio de 1922)
de representantes das mais diversas áreas o primeiro número da primeira revista
artísticas: alguns estiveram no Municipal, modernista do Brasil: KLAXON, editada
em pessoa, outros, com obras. Na seção de em São Paulo, que foi seguida por outras
Artes Plásticas, a pintura de Anita Malfatti em outras cidades brasileiras. Como revista
2001 continuou a ser o que de melhor havia, porta-voz dos modernistas, KLAXON foi a
mas participaram da mostra: Di Cavalcanti mais bela graficamente falando, mas durou
(um dos idealizadores da Semana, carioca apenas 9 números em 8 volumes (o último
residente à época em São Paulo, desenhista foi duplo 8-9).
de humor e pintor, que teve, após o famoso Tarsila do Amaral, embora já
evento, um maior desenvolvimento de pertencente ao círculo de modernistas
sua carreira de artista), Vicente do Rego- de São Paulo, não participou da Senama,
Monteiro, Vítor Brecheret, John Graz, Yan nem com obras - estava em Paris, onde
de Almeida Prado (mais por troça que por bebia de muitas fontes, naquela que era,
crença) e outros. Das Letras, Mário e Oswald então, a capital cultural do mundo, mas
de Andrade, Menotti del Picchia, Manuel absorvia tenazmente o repertório cubista,
Bandeira, Guilherme de Almeida, Graça que lhe serviria (juntamente com Oswald de
Aranha e outros. Da música, o maior nome Andrade), a partir de 1924, para proceder
2002

era o do compositor e maestro Heitor Villa- a uma peculiar leitura do Brasil. Uma das

139
façanhas dos Modernistas de São Paulo foi a fato de Oswald de Andrade se intrometer

2000
retomada da herança colonial - entenda-se: nos negócios da Poesia. Nunca admitiu,
do Barroco - a partir de viagem de 1924, Bandeira, o Oswald poeta. Sempre acusado
que ficou famosa. de ler pouco - injustamennte, pois lia, muito
A Semana de Arte Moderna de 1922 embora não fosse um rato de biblioteca -
fica como marco fundamental de nosso Oswald sabia donde extrair as informações
Modernismo: encontro das Artes/Linguagens, adequadas para as suas performances. Ou
certeza de que as mudanças haviam chegado seja, era alguém bem informado. Quando
para continuar. Também, ajudou a colocar OA lançou seu manifesto da poesia pau-
a cidade de São Paulo como grande centro brasil (1924), Bandeira escreveu um artigo
irradiador de cultura no Brasil. detonando, dizendo, entre outras coisas que
(28 de julho de 2001) não suportava poesia de programa (ou seja,
não assinaria um manifesto). Então, digam-
2001 me: o que seria o seu posterior “Poética”,
publicado no livro Libertinagem? No livro
Apresentação da poesia brasileira,
HISTORINHAS DE POETAS 8: MANUEL Bandeira desconsidera o Oswald poeta,
BANDEIRA VERSUS chamando o seu trabalho de “versos de
OSWALD DE ANDRADE um romancista em férias”; por outro lado,
exclui o autor de Pau-Brasil, da antologia
Manuel Bandeira (1886-1968) poeta que figura no final do volume, mas premia
essencialmente lírico, construiu uma mediocridades. Mesquinhezas dos grandes.
solidíssima obra dentro do Modernismo do É bem provável que a briga de Mário com
Brasil, tendo sido o introdutor do verso-livre Oswald deva ter contribuído para piorar as
entre nós. Sua obra pode ser considerada coisas: Oswald era do tipo que arriscava
uma espécie de resumo da Lírica Ocidental. perder o amigo, mas não a piada e tinha
2002

Uma coisa sempre irritou Bandeira: o grande verve humorística. As paródias

140
brilhantes do Romantismo também devem dos 80 anos de Bandeira, em 1966, saiu o

2000
ter contribuído para o agravamento da Estrela da vida inteira; POESIAS REUNIDAS.
situação. De passagem, diria que a influência Dois grandes poetas, mais vivos que nunca
oswaldiana na poesia brasileira foi enorme no panorama da poesia brasileira, porém, o
(é claro que o grande poeta de 22 foi Mário, piadista Oswald, sempre desponta com mais
aliás seu livro Paulicéia desvairada, mas força, dando o ar de sua graça. Bandeira é
salvo um ou outro poema posterior, muito o introdutor do verso-livre no Brasil, porém,
bom, a poética marioandradina se constituiu Oswald foi o autor dos primeiros versos
num grande equívoco, o maior do nosso verdadeiramente modernistas entre nós,
Modernismo. Bandeira não chega a chamar sem ranços virtuosísticos. Leiam a bela
o amigo Mário de grande poeta, mas, de paisagem tarsiliana escrita por Oswald de
grande artista), inclusive na obra do próprio Andrade:
Bandeira. Livros como Pau-Brasil e Primeiro
longo da linha
2001 Caderno do aluno de poesia Oswald de
Coqueiros
Andrade continuam no centro das cogitações Aos dois
de quem faz poesia no Brasil, hoje. Bem, o Aos três
outro Andrade, o Carlos Drummond, super- Aos grupos
poeta do segundo momento modernista, Altos
Baixos
em seu livro de estréia - Alguma poesia,
1930 - obra em que a influência oswaldiana
(04 de agosto de 2001)
é notória, dedica poemas a todo mundo,
menos a Oswald … sintomaticamente…
Em 1945, Oswald de Andrade reuniu sua
produção poética e deu o título de POESIAS
REUNIDAS OSWALD DE ANDRADE, dizem
que parodiando as IRFM (Indústrias Reunidas
2002

Francisco Matarazzo). Na comemoração

141
TRADUÇÃO na passagem de uma obra, de um código para

2000
outro. (Esse terceiro tipo foi desenvolvido, à
Tradução pode ser considerada um luz da Semiótica peirceana, por Julio Plaza,
expediente que viabiliza um processo de em um estudo que se constituiu em sua tese
comunicação verbal e nós, no dia-a-dia, de doutorado.)
fazemos traduções o tempo todo, sem Versando sobre as dificuldades da
nos darmos conta disto, muito menos nos tradução interlingual, Jakobson chama a
preocupando com teorias. Mas elas existem atenção para a impossibilidade de tradução
e são importantes. Tanto é verdade, que há de textos poéticos, a não ser que haja uma
quem delas se ocupa em tempo e dedicação re-criação, ou mesmo, uma transmutação.
exclusivos. Por pensar a linguagem, o O grande problema que se coloca quando o
código, toda operação tradutora é também texto a traduzir é poema é o de se entregar,
uma operação metalingüística. Segundo o após o labor da tradução, também uma obra
2001 pensador da linguagem Roman Jakobson (em de arte no novo idioma. Ou seja: um poema
um célebre ensaio: “Aspectos lingüísticos da é uma obra de arte e o tradutor, ao fim de
tradução”), há três tipos fundamentais de seu labor, deverá apresentar, também, uma
tradução, a saber: obra de arte. Daí que o tradutor de poesia
1. tradução intralingual ou reformulação, deva ser - preferentemente - um poeta.
como acontece nas paráfrases, por exemplo, Há quem encare a tradução de poesia
nas adequações repertoriais ou, mesmo, como uma categoria da criação (nesse
barateamentos (kitschização); afazer, paira, acima de todas, a figura de
2. tradução interlingual ou tradução Ezra Pound): é o caso dos irmãos Haroldo
propriamente dita - de um idioma para e Augusto de Campos, tradutores de poesia
outro. Do grego antigo para o português, (só traduzem peças por eles escolhidas) nos
por exemplo; e últimos cinqüenta anos. Haroldo fala em
3. tradução intersemiótica ou transcriação. Augusto prefere tradução-
2002

transmutação, quando a operação consiste arte.

142
Haroldo de Campos, nosso maior tarefa como uma categoria da criação.

2000
teórico da tradução de poesia, diz que a obra Vejamos um exemplo desse trabalho
traduzida deverá ser autônoma e recíproca. numa peça de Augusto de Campos: recriou
Ou seja: a obra resultante de tradução em português - sem perder o que havia de
deverá ter autonomia como obra de arte essencial na peça em inglês: a efemeridade
e trazer consigo a memória da obra que a do processo vida - texto de Edward FitzGerald
motivou: o original. Fala, também, em lei (poeta inglês do século XIX- 1809-1883)
da compensação: o que o tradutor - em sua apresentado, por sua vez, como tradução de
busca de equivalências formais - perder num um rubai (dos Rubaiyat) de Omar Khayyam.
certo ponto, compensará em um outro. Isto Seguem os textos inglês e português do
tudo sem a perda da dimensão semântica. Brasil:
Obviamente, a melhor maneira de
apreciar poesia é o exame dos originais, Edward FitzGerald

2001 porém há traduções que vêm a enriquecer


Oh threats of Hell and Hopes of Paradise!
a tradição poética na qual desembocam. É One thing at least is certain - This Life flies;
o caso de tudo o que os Campos, Haroldo e One thing is certain and the rest is Lies;
Augusto, irmãos do Concretismo têm feito: The Flower that once has blown for ever dies.
traduções de Homero, Cummings, Arnaut Augusto de Campos
Daniel, Dante Alighieri, Donne, Mallarmé e
Inferno ou Céu, do beco sem saída
outros tantos.
Uma só coisa é certa: voa a Vida,
Esses poetas-tradudores, repudiam e E, sem a Vida, tudo o mais é Nada.
contrariam a máxima traduttore traditore. A Flor que for logo se vai, flor ida.
Também mostram que, diferentemente do
que disse Robert Frost - poesia é aquilo que (11 de agosto de 2001)
se perde na tradução - a poeticidade pode
migrar de um idioma a outro, quando quem
2002

faz o trabalho procura equivalências e tem a

143
HISTORINHAS DE POETAS 9: QUANTOS com os meses todos, sendo um poema para

2000
MESES HÁ PARA A POESIA? cada um dos doze, explorando o que cada
um tivesse de mais característico… Passou
Não me lembro bem se em fins o tempo e o Paulo nada. Certo dia, vendo
dos anos 70 ou inícios dos 80 (do século que o Paulo nada dizia e tendo, Reinaldo,
passado!). Reinaldo Rizzo dava aulas numa de dizer alguma coisa à moça-professora-
escola estadual, em São Paulo, bairro da noiva-do-poeta, sua colega, perguntou ao
Casa Verde. Morava, então, à rua Dr. Villa amigo:
Nova, repartindo apartamento com Paulo - E então, Paulo, o que você achou do
Miranda (eu já não morava com eles naquela livro? O que eu digo para Fulana?
república - “Consulado de Pirajuí”). Reinaldo, - Diga que está faltando o décimo-
na escola, comentou que seus amigos terceiro!
eram poetas e gráficos, o que despertou o Quando Reinaldo me contou, dias
2001 interesse de uma professora, cujo noivo, depois, quase morremos de rir. Não me
além de poeta, era um poeta de obra recém- lembro se ele passou o recado à moça.
publicada. Conversa vai, conversa vem, (18 de agosto de 2001)

Reinaldo prontificou-se a levar a publicação


do tal poeta para o Paulo, com quem se
encontrava diariamente (já que habitavam
o mesmo apartamento) e arrancar dele um
parecer, uma opinião. (Até me pareceu que DECIFRAÇÃO
Reinaldo desconhecia Paulo Miranda. Paulo
sempre detestou esse negócio de ficar Somos todos leitores de tudo. Do
dando opinião, embora fosse das pessoas Mundo. Os signos (os complexos sígnicos) se
mais categorizadas do País para fazê-lo.) nos impõem: obrigam-nos a lê-los. Estamos
Paulo examinou o volume: era nada mais, constantemente fazendo leituras, mas raras
2002

nada menos, que uma espácie de folhinha, vezes nos apercebemos disto. Tudo pode

144
vir a funcionar como um signo (lemos, enigma, livrando Tebas da Esfinge, aquele

2000
por exemplo, pessoas: a primeira leitura é que interpretou o sonho de Alexandre o
sempre a da aparência - físico, vestimentas, Grande, Champollion, William Legrand-Poe e
gestos etc; a segunda é a leitura de sua eu acrescentaria, entre outros tantos, Décio
fala: timbre, modo, vocabulário empregado, Pignatari. Há, é certo, leitores - como os acima
sotaque - esta chega a ser mais importante e citados - privilegiados. Ainda bem! Assim,
corrige ou reitera a primeira, já que o código sempre poderemos contar com quem se
verbal, sendo o código hegemônico, impõe- desincumba dessas tarefas complexíssimas,
se a outros fatores em nossa leitura de quando nós mesmos não somos capazes.
pessoas. Ex: “É um cara tão alinhado, bonito Porém, nós também podemos ser leitores
e arrogante e tem um português vergonhoso. privilegiados em campos específicos: desde
Deveria calar a boca!” Ou, então: “Ninguém ler almas, até analisar fatos que envolvam
dava nada por ele e veja como é alguém o nosso dia-a-dia, passando por poemas
2001 diferenciado, culto!”). Nossas leituras, e outras coisitas mais. Alguns conselhos,
nossa leitura do mundo está diretamente como sempre, de graça: 1. Nunca tomar
subordinada ao nosso repertório. Todos atitudes precitadas e recusar-se à leitura,
temos repertório, com carências específicas, frente a algo que se nos apresenta com
elevado em alguns campos. Para se ter um dificuldades intransponíveis; 2. começar
repertório elevado num dado assunto é procedendo a um exame cuidaoso da coisa
preciso um grande empenho: tempo para como se nos apresenta: na sua aparência
despender grandes esforços, o que pode (exterioridade) mesma; 3. ir detectando
também implicar gastos em pecúnia. A indícios de coisas mais ou menos conhecidas
leitura ou decodificação de tudo aquilo que e ir testanto a sua veracidade, assumindo
se nos impõe - os signos querem ser lidos - o certo e descartando o inverossímil; 4. ir
é o mesmo que uma decifração. Temos visto num crescendo até chegar a resultados
ao longo da história (e também da estória) satisfatórios - aceitáveis - em termos de
2002

grandes decifradores: Édipo, que decifrou o decodificação. Tenha sempre em mente que

145
ninguém tem a resposta definitiva para tenha sido dissecado e temporariamente se

2000
nada; signos não se esgotam no que têm de mostre sem interesse. Obras de arte têm
interpretabilidade (num dia desses tentarei sido lidas ao longo de suas existências.
expor o conceito de SIGNO de Charles Sempre sobra algo para um leitor a mais
Sanders Peirce, detendo-me na questão do descobrir. Nem que seja em termos de uma
Interpretante). O que se pode ter é, não a relação do signo em questão com outros.
verdade absoluta, mas parcelas satisfatórias Quanto à Arte Moderna, há problemas:
de uma verdade maior, que estará sempre esta exige, para uma apreciação/fruição,
num futuro, como meta a ser alcançada. um certo conhecimento a mais, o que vale
O importante é que, de algum modo dizer uma visão geral de como evoluíram
nós venhamos a ter leituras que possam as coisas da Arte no Ocidente. (Não é
satisfazer, embora temporariamente nossa que as coisa fossem fáceis na época de
sede de compreensão do mundo. Não há Rafael, ou de Rubens, ou de Vivaldi, ou
2001 nada que não possa ser lido por algum de Mozart. É que aquelas artes ofereciam
representante de nossa espécie (Poe- mais elementos de aproximação para
Legrand, em “O Escaravelho de Ouro”, diz com os possíveis fruidores. Porém, eles -
que não há nada de tão engenhoso que certamente - não compreendiam aquelas
tenha sido elaborado por um ser humano, obras na sua mais completa complexidade.
que outro ser humano não possa decifrar), E a Arte Moderna oferece bem menos
nem que seja arranjando uma explicação elementos de aproximação, mas oferece,
de como é impossível até o momento de qualquer modo). Mas as coisas estão aí
a compreensão de um dado fenômeno. e não devemos fugir de nossa obrigação
Ninguém esgota um signo, mas consegue de proceder a leituras. Por exemplo: como
explicações satisfatórias para o mesmo. entender o “Branco sobre branco”, de
Leitores diferentes em épocas diferentes Kasimir Maliévitch? Ou o poema de E. E.
= leituras diferentes. Sempre sobra um Cummings que se segue?
2002

pouco para nós, por mais que o signo

146
l(a HISTORINHAS DE POETAS 10: POUND:

2000
O POETA NÃO MAIS ENXERGA?
le O POETA ENVELHECE?
af
fa Ezra Pound (1885-1972) o grande
poeta estadunidense, crítico de suma
ll importância, tradutor-inventor, protetor de
poetas, pintores e músicos, teve uma das
s) influências maiores no século que acabou de
one passar. Vanguardista, no início do século XX,
l é um dos fundadores do Imagismo, entre
outras tendências artísticas; teve um papel
iness importantíssimo na divulgação da cultura
2001 oriental (mormente a chinesa, no Ocidente).
Ezra Pound: um dos valores maiores para o
Uma dica: começar sondando o movimento da Poesia Concreta brasileira: o
que há fora e dentro dos parênteses. Um poeta, o crítico, o tradutor de poesia. Pound
incentivo: trata-se de uma obra-prima de passou por mil e uma aventuras, inclusive
poesia do não-verso, em que o olho gráfico prisão-humilhação (preço por ter apoiado
do poeta, norteado pelo cerebralismo e idéias do fascismo italiano, num equívoco
pela sensibilidade, constrói uma obra limite que, aliás, caiu muita gente boa) e prisão
entre as Artes Plásticas (Gráficas) e a Poesia em manicômio judiciário. Terminada a pena,
propriamente dita. voltou para a amada Itália. Pound, com toda
(25 de agosto de 2001) a sua incomparável grandeza, na elaboração
de seu Paideuma (conjunto mínimo de
poemas, com um máximo de informação
2002

poética, objetivando facilitar as coisas

147
para as novas gerações) exclui Mallarmé, da tirada genial de Eric Satie, que disse

2000
em prol de outros simbolistas, também que quando era jovem as pessoas lhe
enormes poetas. Mallarmé é o autor do diziam que, aos cinqüenta ele iria ver e
Lance de dados, poema fundamental para que, tendo chegado àquela idade, não via
as poéticas mais radicais dos Modernismos. nada, ou seja, continuava com a mesma
Estando, já, velho, rapazes do Brasil, irreverência da juventude. A perda da
fundando um movimento poético radical, curiosidade, mais do que a flacidez e as
escrevem-lhe e obtêm resposta. Mas parece rugas, é o principal sintoma de que se está
que Pound não gostou muito da Poesia velho. Pound queria sossego. Espero que
Concreta, que o colocava com destaque a curiosidade persista nos nossos amigos
em muitos de seus escritos teóricos (talvez concretistas (Décio, Haroldo, Augusto), que
que o de que menos gostasse fosse o que já entraram na casa dos setenta. Saúde!
havia de Pound na Poesia Concreta: não
2001 queria se reconhecer naquilo que era ele- [Na ocasião da feitura deste texto, houve um
mesmo!) O poeta estava velho. As pessoas engano: Haroldo de Campos falou em Volpi,
envelhecem, as plantas envelhecem, as na convesa que teve com Pound, porém, a
instituições envelhecem. Cansaço, tédio… referência ao cansaço do velho bardo veio
Haroldo de Campos chegou a estar com quando HC tentou falar-lhe de Francisco de
o poeta, na Itália, em fins da década de Sá de Miranda, o poeta português, autor
50. O velho já não demonstrava vontade do “Comigo me desavim”.]
de conhecer coisas novas (isto a propósito (01 de setembro de 2001)

de Volpi, citado por Haroldo na conversa


que tiveram, e que depois se transformou
num belo escrito que foi publicado com o
título de “Ezra Pound: I Punti Luminosi”).
O direito à velhice sem perturbações… As
2002

pessoas envelhecem, diferententemente

148
HISTORINHAS DE POETAS 11: teriam direito ao néctar. A verdade é que,

2000
ALBANO: NÉCTAR PARA OS POETAS! salvo raras exceções, os grandes poetas têm
colhido mais sofrimento que glória e que esta
José de Abreu Albano (1882- vem, quase sempre após a morte (poesia
1923) excelente poeta que, dadas certas não dá dinheiro). Albano, por quem acabei
circunstâncias de sua vida e obra (a vida nutrindo enorme simpatia, deixou alguns
descuidou, não das faturas, mas de sua belíssimos poemas - a língua do poema, para
divulgação. A obra ficava num fim de linha, ele, tinha de adentar o sublime e o solene -
com todo o perfeccionismo que caracteriza entre os quais aparece um longo: “Triunfo”
poéticas de decadência) ficou relegado ao (em parte, um diálogo com a célebre “Ode
ostracismo, só saindo do esquecimento total a Afrodite”, de Safo) em decassílabos,
graças, principalmente, à admiração que a utilizando a terza rima e do qual transcrevo
ele devotou Manuel Bandeira. Este soube apenas três versos:
2001 apreciar o seu trabalho permeado de cores Ó meu sonho de amor, tu me
arcaizantes, mas de um fatuta artesanal acompanha
admirável. Bandeira o recolocou através de Por esta vida às vezes tão escura,
crônicas e de estudo crítico que acompanhou Por esta vida às vezes tão
volume de sua poesia completa. Os poetas estranha.
e seu lado folclórico. Albano transitou No mais só poderia dizer que José de
por paragens, entre as quais se destacou Abreu Albano teve a fortuna de encontrar
Paris, onde vivia dissipando tudo o que em Manuel Bandeira um admirador. E eu, a
ocasionalmente consiguia sob a desculpa sorte de contar com Paulo Miranda que foi
de subscrições para a edição de suas obras quem me revelou Albano.
completas. Certa vez, flagrado bebemdo (08 de setembro de 2001)

champagne, por Graça Aranha, o poeta teria


dito que era só champagne e que numa
2002

sociedade de fato evoluída os poetas

149
HISTORINHAS DE POETAS 13: BRAGA E pela concisão que poemas poderiam ter e

2000
A PRODUÇÃO PRESENTE fez coisas como:

Edgard Pimentel Braga (1897-1985) ilha


alagoano que se radicou em São Paulo. brilha
Médico obstetra, criou fama no meio tranqüila
médico de São Paulo. Milhares de crianças
nasceram em suas mãos, incluindo filhos ou o admirável ungarettiano:
de muitos poetas hoje célebres. Disse acordei de rolar brancura!
Braga que, ainda estudando, Oswald de
Andrade não o deixou participar da Semana A Poesia Concreta dos jovens de
em 22, pois ele deveria cuidar é de ser quem passou a ser amigo, frutificou em
médico. Verdade verdadeira ou não, Braga sua obra. Sua poesia, além da projeção
2001 foi grande amigo do autor de Memórias que passou a ter entre os experimentalistas
sentimentais de João Miramar, até que este brasileiros, ganhou o mundo, participando
veio a falecer, em 1954 e ainda chegou de várias antologias. Mas Braga ainda faria
a assistir o filho Paulo Marcos, menino mais: descobriria um caminho seu dentro
poeta que desencarnou tão cedo! Braga se do universo de experimentação instaurado
mostrou poeta desde cedo, mas sempre pela poesia concreta. Seus grafismos - um
esteve atrás dos acontecimentos poéticos garfismo “sujo” - passaram a ser a sua
mais importantes. Publicou, além de livros marca, já que traziam a incorporação do
de Medicina, muitos de poesia. Mas o que há gesto. Braga conseguiu uma legião de fãs
de mais interessabte é que Edgard Braga, entre os muito mais jovens, em fins dos 70 e
à medida que foi envelhecendo, foi também inícios dos 80: Walter Silveira, Tadeu Jungle,
aguçando a sua sensibilidade poética e Arnaldo Antunes e Gilberto José Jorge,
ficando cada vez mais arrojado, o contrário entre outros. Conheci-o em fins de 1975,
2002

do que comumente se vê. Acabou fascinado por recomendação de Augusto de Campos.

150
Sempre me tratou com a maior cortezia, dos anos 70, fortemente gráficos com a

2000
chamando-me de Khouri. Cheguei a fazer, incorporacão do gestual, assemelhavam-se
com Paulo Miranda e Sônia Fontenezi, edição a projetos para garffiti. Seus trabalhos mais
de alguns de seus poemas - tão visuais importantes estão reunidos em Soma, Algo,
- em serigrafia. Nas nossas publicações Tatuagens e Murograma. Desbragada,
coletivas, sempre colocávamos trabalhos reunindo quase toda a sua produção poética,
seus, tão apreciados por nós. Uma coisa merecerá uma edição mais bem cuidada
nos espantava em Braga: enquanto poetas graficamente.
e mais poetas brigavam em prol do recuo [Houve uma troca do 13 pelo 12, o que em
das datas de seus poemas, na tentativa de nada prejudica uma possível seqüência.]
provar alguma primazia, Braga chegava (15 de setembro de 2001)

a raspar a data original, mais antiga para


colocar, por cima data mais recente, a do
2001 ano então presente. Talvez, a necessidade
de mostrar que continuava - septuagenário
e mesmo octogenário - a produzir poemas.
Braga chegou a produzir mais do que publicar HISTORINHAS DE POETAS 12: A
e, sempre que desejava fazer a edição de PROLIXIDADE DE XISTO
um conjunto de poemas, o árduo trabalho de
seleção ficava a cargo de alguém: geralmente Pedro Xisto Pereira de Carvalho (1901-
um amigo poeta. Ainda guardo alguns 1987), poeta pernambucano radicado em
inéditos seus com que me presenteou. São Paulo, possuía grande afinidade com a
PS. Era comum, quando alguém que não o cultura japonesa, o que resultou na produção
conhecesse, falavasse de seus poemas, se de centenas de haicais, alguns muito bonitos.
referisse a ele como o jovem Edgard Braga, Sua melhor produção teve a ver com sua
pensando tratar-se de um adolescente, descoberta das possibilidades gráficas que a
2002

já que alguns de seus trabalhos, a partir poesia concreta oferecia e data dos anos 60

151
e teve repercussão internacional. Conheci na Pós da PUC-SP, iniciou uma conferência

2000
Xisto em casa de Edgard Braga, que se às nove da manhã: todos muito satisfeitos
tornara meu amigo e soube que se tratava com a sabedoria do poeta e crítico. Meio-
do poeta Pedro Xisto, num momento em que dia. Meio-dia e meia, uma da tarde. A
ele, tendo falado incessantemente sobre a fome foi vencendo a platéia que, pouco a
cultura japonesa - falava dos três alimentos pouco se retirou do recinto, o que deixou
sagrados no Japão: o arroz, o peixe e o Xisto furioso e sem saber do porquê de tal
chá, mas ainda não havia saído do arroz! atitude. De outra feita, recebeu em sua
- pediu licença para ir ao banheiro. Disse- casa o casal Clüver, Claus, um professor e
me Braga: Esse é o Xisto, grande pessoa e pesquisador alemão radicado nos Estados
poeta, mas é um falador compulsivo e isto Unidos e que estava estudando a Poesia
até faz com que os meninos das Perdizes Concreta Brasileira; Maria, sua simpática
se afastem dele (os meninos: Décio esposa, que era brasileira. Sabia-se que
2001 Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos). havia um bolo na geladeira, na cozinha, o
Retomando a conversa, a explanação qual, em algum momento, seria servido.
continuou e se mostrava interminável. Eu, Porém, a entrevista foi-se arrastando,
tendo hora para tomar ônibus com destino arrantando por horas e nada do Xisto
a Pirajuí, desculpei-me e saí. A outra vez lembrar que os visitantes eram humanos
que vi Xisto (a última) foi no lançamento, e necessitavam de alimentos. Num dado
no Centro Cultural São Paulo, do livro momento, a doce Maria, desesperada,
Desbragada, de E. Braga, ocasião em que levantou-se e se dirigiu à geladeira onde a
houve uma grande exposição de poemas estava esperando o bolo mais desejado do
do velho Braga. Pedro Xisto era um erudito. mundo.
Estimulado, seria capaz de falar horas Toda grande figura carrega consigo
sobre um assunto, o que se convertia em algo de folclórico. Esse é o folclore do Xisto
problema para os ouvintes, já que suas que, e é isto o que conta, deixou alguns
2002

explanações eram intermináveis. Certa vez poemas de qualidade gráfico-semântica

152
fora do comum (veja-se o livro de obra ensaio sobre livro do veterano, Décio fez

2000
completa Caminho): patrimônios da a mais bela análise de quantas já li sobre
Humanidade. poema do itabirano: sua “leitura” do Áporo
(22 de setembro de 2001) é um modelo e coloca o poeta Drummond
em alturas consideráveis. Augusto, num
soneto satírico - SONETERAPIA - escreve
(1º verso): drummond perdeu a pedra:
é drummundano. Porém, críticas, mesmo,
HISTORINHAS DE POETAS 14: não faltaram e as mais terríveis vieram da
DRUMMOND E OS CONCRETISTAS parte do mesmo Décio Pignatari, em diversas
ocasiões: em verdade, bofetadas e afagos.
Quando, nos anos 50 do século Nos oitenta anos do poeta, não poupou
passado, surgiu o movimento concretista, críticas em artigo de suplemento da FOLHA
2001 muitos figurões (não todos) se posicionaram DE SÃO PAULO, jornal em que, por ocasião
contra aquelas ousadias que aqueles rapazes da morte, escreveu um artigo denominado
propunham e entre os opositores estava “O enigma Drunmmond”, fazendo alusão
Carlos Drummond de Andrade (1902- clara ao Claro Enigma, livro de poemas
1987) cuja obra o coloca como um dos do poeta em questão. O enigma consistia
grandes poetas do século XX, em âmbito numa pergunta que era a seguinte: Como
mundial. Mas como todo grande tem as suas pôde tão grande poeta ter sido um
mesquinhezas, Drummond não seria uma intelectual tão medíocre? Pois é, Décio
exceção. Posicionou-se contra aquela poética, é assim mesmo. Nunca deixa por mesnos,
porém, não se livrou da influência, que lhe como não deixava de ter razão. E isso me fez
rendeu alguns poemas, até importantes. lembrar de uma conversa que tive com ele
Mesmo não deixando as coisas baratas, o em sua casa, então nas Perdizes, São Paulo.
trio concretista sempre teve olhos para as Lamentava ele o fato de os poetas brasileiros
2002

grandezas de Drummond. Haroldo escreveu - onde o trio concretista não se incluía - não

153
serem capazes de demonstrar consistência abstrato é condição indispensável para que

2000
intelectual em seus escritos extra-poéticos, ele seja, de fato, um poeta.
como havia demonstrado um Edgar Poe, um (29 de setembro de 2001)

Paul Valéry, um Ezra Pound, por exemplo.


Daí, citou Octavio Paz, o poeta e ensaísta
mexicano, ainda vivo na época. Disse-me:
“Veja você, o Paz é um ensaísta de uma
grandeza que não encontramos entre os
poetas brasileiros. Ele é capaz de escrever HISTORINHAS DE POETAS 15:
coisas substanciais sobre culturas orientais, QUALIDADE DA PRODUÇÃO ARTÍSTICA/
culinária mexicana, sobre Marcel Duchamp POÉTICA
e Mallarmé. Drummond, por exemplo, nas
crônicas que escreve, é uma lástima, não Seria mera ilusão pensar que tudo o
2001 demonstra grandeza intelectual”. Fez uma que os geniais poetas escreveram é coisa
pausa e sentenciou: “Mas, enquanto poeta, digna de nota. Há peças bastante ruins de
Drummond é infinitamente superior a Octavio grandes poetas e artistas em geral. Cheguei
Paz!” Cheguei a adivinhar o que Décio iria até a sugerir, numa prosa de ficção meio
dizer e concordava inteiramente com ele. humorística fazer-se uma antologia dos
Bobagem achar que artistas - e aí incluo os piores poemas dos melhores poetas do
poetas - não devam fazer teoria. Uma das mundo. Nessa coisa de obra ruim, ninguém
marcas dos grandes artistas, desde o século que tenha produzido obra vasta - de Camões
XIX é essa capacidade de teorizar. Evoco, aqui, e Shakespeare a Bandeira e Fernando Pessoa
mais uma vez, o poeta francês Paul Valéry, - escapa. Porém, é óbvio, o que interessa
também grande teórico que, em célebre é o que o poeta, artista tenha produzido
ensaio - “Poesia e Pensamento Abstrato” - de melhor. Lembro-me de ter visto, no
afirmou que um poeta não só é capaz de Guggenheim, em NYC dois dos piores Renoirs
2002

pensamento abstrato, como o pensamento do mundo (o MASP possui uns dois ou três

154
horríveis e uns outros tantos bons). É claro pouco o que realmente conta, ou seja, o

2000
que, numa obra de muitas páginas, escapem que acrescenta algo à tradição em que se
coisas menos boas e até mesmo ruins. Afinal, insere a obra. É um mínimo que fica. No
é tão pouco o que realmente vale, para ficar mais, há é um exercício de reiteração do
com Pound e o préoprio Pessoa que, sendo talento. É fazer, porque aquilo responde a
um escrevedor compulsivo, primou pela uma necessidade interior, como a linguagem
qualidade, mas deixou escapar peças que com informação estética responde a uma
não fariam a grandeza de nenhum poeta. Por necessidade específica da comunicação, do
outro lado, poetas tidos como menores em mesmo modo quando a linguagem encarna
seu tempo, produziram uma ou outra peça qualquer outra função que não a função
isolada que acabam por ser antológicas e, poética.
nisso, equiparam-se aos melhores, mesmo (13 de outubro de 2001)

não tendo um número grande de poemas


2001 com aquele qualitativo. Há os que aproveitam
a carona e vão na onda da qualidade dos
companheiros. Há os que mesmo sendo
excelentes, ficam minimizados pela grandeza HISTORINHAS DE POETAS 16:
de alguns companheiro de aventura (e aqui HERRMANN TRIPULANDO UM OVNI
citaria o caso dos fauves: Vlaminck, Derain,
Marquet, Dufy que, mesmo sendo mais Lá pelos idos dos 70, nas muitas
que bons, ficaram pequenos diante da obra reuniões que aconteciam em bares da
monumental e genial de Henri Matisse. O Paulicéia - e o Chrystal Chopp, Perdizes,
mesmo se diria dos outros cubistas frente esquina da Cardoso de Almeida com a Dr.
a Picasso. E Picasso sempre teve como Homem de Mello - poetas e artistas plásticos
parâmetro contem-porâneo ninguém mais, se reuniam para trocas de idéias e desfrute
ninguém menos que Matisse!). Daí é que, do prazer da bebida e do privilégio de se
2002

de tudo o que alguém produz, é muito terem interlocutores. Jovens e veteranos

155
conversavam e polêmicas sempre pintavam, instigar para ter o que falar. Numa dessas

2000
bastando que para isto estivessem presentes noites, no Chrystal Chopp, Villari Herrmann,
pessoas como Décio Pignatari (um dos aproveitando a presença de Décio Pignatari,
maiores poetas brasileiros e terráqueos de começou a sonhar acordado, falando de
todos os tempos) e Villari Herrmann (criador OVNIs, de passeios em naves com ETs etc.
raro, autor de alguns dos mais belos poemas Décio, incrédulo e irônico, porém, sem baixar
intersemióticos de quantos foram roduzidos o tom e nem subir o volume lhe retrucou:
nos últimos trinta anos, no mundo!). Daí, “Pois é, você sai num passeio de nave
polemizava-se pela polêmica. Um dos extraterrestre e capta tantas informações
expedientes mais recorrentes era insultar - inimagináveis para nós - que, na volta,
Décio para que ele, numa investida genial, também estará fazendo poemas jamais
dissesse as verdades para quem tivesse sonhados por qualquer terráqueo!” O mal-
desferido o golpe. Por exemplo: um pintor estar que se seguiu dispensa comentários.
2001 como Fiaminghi precisava saber a opinião de Não se falou mais em poesia naquela noite.
Décio sobre sua última produção e o Décio Nem em Discos Voadores…
nada. Então, o jeito era atacá-lo para que (27 de outubro de 2001)

ele disparasse suas setas mortíferas, porém,


nem sempre. Havia sempre os maledicentes
que, sob o pretexto da coragem e da verdade
diziam coisas que até cheiravam a grosseria.
Por exemplo: “Fulano entregou o ouro (está
fazendo concessões, facilitando as coisas)”, DONA CÉLIA
“Aqueloutro passou a falar o brasileirês,
agora fará sucesso junto à oficialidade”, ou Célia Gomes da Silva, a Celita de Dona
“Nesses poemas ele faz concessões ao verbal” Amélia e do Seu Silva. A caçula de nove
etc. Às vezes, eram meras provocações, irmãos, a sétima mulher da família. Aquela
2002

de quem nada tinha a fazer, que não fosse moça bonita - tão parecida com Martha

156
Rocha - que tocava piano divinamente e Arte da Leitura e Escrita, possibilitar-lhes

2000
que se tornou Célia Gomes da Silva Barros, a interiorização de estruturas essenciais
mãe de três filhas e um filho, avó de nove para uma boa performance nesta nossa
netos: quatro meninas e cinco meninos. sociedade.
Dona Célia - nascida em 21 de outubro de Trabalhando por trinta e um anos, dez
1931 - é exatamente da geração de Tito dos quais na zona rural (com todos aqueles
Madi, a quem chegou a acompanhar muitas problemas: desde o de ter de morar no local,
vezes ao piano, em Pirajuí, e a transcrever até lecionar, numa mesma sala, para 1ª, 2ª e
suas composições, transformando-as 3ª séries); depois, no “Olavo Bilac”, fez o seu
em partituras. Até hoje ela conserva um mais importante trabalho, só se afastando
precioso caderno contendo letras do cantor- por motivo de um grave problema de saúde
compositor pirajuiense (Chauki, como é o que, felizmente, foi sanado. Dedicou-se
seu nome verdadeiro) sendo que as melodias fundamentalmente à alfabetização. Tanta
2001 se perderam quase todas e que nem mesmo delicadeza, empenho e talento fez dela uma
o próprio autor delas se lembra. Tendo, alfabetizadora como poucas neste País, pois,
Dona Célia, começado os estudos de piano além de tudo, chegou a elaborar um método
com Dona Maria Baptista, quase chegou a próprio para introduzir as crianças na leitura e
completá-los no conservatório, em Bauru. escrita: um método muito pessoal e com forte
Celita foi do grupo das chamadas originalidade, em que mobilizava historinhas
Normalistas: moças que faziam uma espécie - “historinha do Maneco” - cores, gestos,
de Colegial, que formava professoras para desenhos, o próprio alfabeto e formação de
ensinar da primeira à quarta série do Grupo sílabas e palavras, orações. A criança estava
Escolar. Foi das que se formaram em Pirajuhy alfabetizada. De sua eficácia, que o digam
e se tornaram, turma após turma, professoras os seus ex-alunos: privilegiados, antes de
admiráveis, no mínimo. O Magistério: questão mais nada.
de vocação. A obediência ao chamamento Lembro-me de Dona Célia, ainda
2002

de uma voz interior. Iniciar as crianças na solteira, morando na casa da mãe, ali na

157
ex-Pedro II, hoje Rua Rachid Cury. Cheguei TURCO? QUEM É QUE É TURCO?

2000
a ir várias vezes - criança inconseqüente -
pedir para que ela tocasse piano e cheguei Os árabes são um povo de origem
a ouvi-la tocar em algumas ocasiões. Que semita, como alguns outros que habitaram
simpatia, que mulher prosa e educada, de o Oriente Médio. Conta a tradição que
uma atenção tão rara, mesmo para aquela descendem do Patriarca Abraão, com Agar:
época em que uma moça tinha como que a o filho Ismael deu origem ao povo árabe,
obrigação de tratar bem a todos. (Quando que habitou por muitos séculos a Península
um rapaz era distintamente polido, dizia-se: Arábica. Porém, só a partir de Maomé –
“É uma moça”. E isto era tomado como um Muhammad
elogio. Um baita elogio!) (570-632 dC) - e a codificação do Islamismo
Esse meu escrito vai para homenagear é que os árabes tiveram o seu [grande] papel
aquela que foi uma das melhores professoras na História.
2001 que o Brasil já conheceu: Dona Célia: a Celita, Árabes no Brasil: grande parte dos
como a ela se referem os seus contemporâneos árabes vindos para o Brasil veio antes de
de escola e os entes queridos. Hoje, voltou 1918, época em que o Líbano e Síria estavam -
à ativa como professora, dando aulas de juntamente com outras áreas - sob o domínio
reforço aos pequenos, atuando no Olavo do Império Turco. Esta a razão pela qual -
Bilac, como ‘amiga da escola’. Não cheguei a erroneamente - os árabes do Brasil ficaram
ter a sorte de ser seu aluno, porém, possuo sendo chamados de turcos, mesmo sendo
duas sobrinhas que são suas netas. Dona de uma outra etnia; os árabes são de origem
Célia: saúde! semita, os turcos são mongóis e saíram da
(03 de novembro de 2001) barbárie absorvendo muito da cultura árabe
islâmica (mas esta já é uma outra história).
Embora se utlizassem do alfabeto árabe -
que depois foi trocado pelo latino - falavam
2002

uma outra língua. (Nem todo país islâmico

158
é árabe. Nem todo árabe é muçulmano). algum tipo de preconceito (em área do Brasil

2000
Na Argentina ocorreu o mesmo: os árabes com tanta diversidade étnica!) Eu, por meu
foram chamados de turcos - revelou-me turno, sempre me senti brasileiro e jamais
o escritor Jorge Luis Borges, no janeiro pensei em ir morar em outro país. Nasci
escaldante de 1984, em Buenos Aires. aqui e procurei fazer aqui o que teria de
O erro se consagrou e penso que hoje fazer. Dediquei-me a ensinar e a escrever,
seria impossível corrigi-lo. Mas é sempre utilizando o português e, se fiz algo por
bom esclarecer as coisas. Eu mesmo fui, aqui, foi com o espírito construtivo. Afinal,
como muitos outros descendentes de meu avô, o Chico Turco, ajudou a construir
árabes cristãos, discriminado e vítima esse interior do Estado de São Paulo,
(leve eu diria, porém inesquecível) do assim como o seu tio, pai de minha avó
preconceito de pessoas de outras etnias, Lula. Diferenças sempre haverá. O homem
desde a mais tenra idade, aqui em Pirajuí: sempre estará sujeito às pulsões de vida
2001 turco, rabatacho, comedor de quibe e de e morte - Freud dixit. Mas, discriminação,
criancinha, nariz de tucano!… etc etc etc. com toda a história da Humanidade como
Desde cedo, porém, aprendi em casa a ter lição, é o fim da picada. Todas as etnias são
orgulho de minhas origens e é o que sempre agraciadas com o dom da inteligência: é só
ensinei aos meus alunos, principalmente uma questão de cultivá-la. A beleza está
os do ensino elementar. Procurei estudar a em toda parte, mas tem uma preferência
Civilização Árabe e tive surpresas. Só sinto quase exclusiva pela juventude. O resto são
meus pais não terem ensinado a língua coisas de importância menor. Com tudo o
dos nossos ancestrais para nós, os filhos, que a Grécia Antiga é louvada e endeusada,
que possuímos daquela, apenas algumas por estar nas origens de nossa civilização,
noções. Seria todo um universo que para o que aconteceria se hoje um Platão
nós se abriria. Talvez que quisessem desenbarcasse na costa leste dos Estados
que nossa integração fosse mais eficaz e Unidos, entre os WASPs? Seria discriminado,
2002

completa aqui no Brasil, mesmo sofrendo segregado, a não ser que revelasse sua

159
grandeza: então, seria contratado por uma sem ter perdido, ao logo dos séculos, sua

2000
daquelas universidades! identidade. O Islamismo é uma força e
Na atualidade, no mundo, dois fatos em expansão, na atualidade. Joguete no
impedem uma melhor e, talvez, definitiva Ocidente (uma certa Europa e os Estados
avaliação da Civilização Árabe, de sua Unidos), que nunca permitiu um governo
importância para o mundo que está aí: decente nos países que estão sob sua
1. Preconceito com relação ao Islamismo, influência, apoiando títeres que eternizam
religião que causou terror na Europa o atraso naqueles países, tão ricos em
principalmente a partir do século VIII dC, petrodólares.
fazendo com que ela temporariamente Sou brasileiro que traz marcas de
se recolhesse na defensiva e, depois, uma etnia que só não foi mais discriminada
pelejasse na expulsão dos muçulmanos porque a maioria se enriqueceu e se ilustrou
de parte do território europeu (os árabes e se destacou. Por outro lado tenho orgulho
2001 permaneceram na Península Ibérica por da visibilidade - obviedade - de minha
muito tempo, a Reconqista durou séculos. origem semita e de ser reconhecido como
Portugal nasceu dentro desse processo). tal, quanto mais velho vou ficando: um
Após a Reconquista, que se completou descendente em linha direta de Abraão,
com a tomada de Granada, em 1492, o costumo dizer. Que come muito quibe. E
anti-islamismo se planta em definitivo arroz com feijão.
naquela área e isto repercutiu na avaliação Em tempo: Este artigo foi escrito em julho
da civilização maometana na Espanha e do corrente ano.
em Portugal. E, mesmo com a onda de (10 de novembro de 2001)
estudos árabes nos mencionados países,
falta muito, ainda, para se chegar a fazer
justiça a essa cultura dos descendentes
em linha direta de Abraão. 2. Pelo fato
2002

de os árabes continuarem um povo vivo,

160
MINHA AVÓ LULA prefeito de Pederneiras e veio a falecer com

2000
quase cem anos de idade, recentemente.
Em verdade Lúlo = Pérola, em árabe. Minha avó Lula, que chegou a freqüentar por
Lula Neme Cury. Formas possíveis de pouco tempo a escola, que lhe possibilitou
pronúncias muito difíceis para um falante a leitura em português, que ela gostava de
do português que não tenha sido treinado, praticar, principalmente a leitura de jornal,
desde a infância, naqueles sons corriqueiros/ casou-se com seu primo Rachid Cury, no ano
peculiares na/da língua árabe. Peculiaridades de 1915 e passou a morar em Pirajuí, onde
têm todos os idiomas. Como um árabe, ou um teve doze filhos, vindo a falecer em dezembro
escocês diria Pindamonhangaba, Umuarama de 1983. Na ocasião, desloquei-me de São
ou Jequitinhonha? Ou muiraquitã, coração, Paulo para o enterro e tive a surpresa de
pães, mãe, grãos, pinhões? assistir ao velório em sua casa, época em
Bem, minha avó nasceu ao sul do Líbano que, em Pirajuí, já não era mais usual velar-
2001 em 10 de outubro de 1896 (supostamente). se o morto em sua própria casa. Insistência
Seu pai chegou ao Brasil na passagem do de meu tio Edmundo, o Mude. Muito se
século XIX para o XX, estabelecendo-se em chorou a sua morte. Quanta memória não
Pederneiras, interior de São Paulo. A família estaria indo junto, irremediavelmente!
já constituída no Líbano - então em posse do Das coisas memoráveis que envolveram
Império Turco - veio em seguida, não sem a sua pessoa:
antes viver peripécias inesquecíveis, como a 1. Uma gravidez e um aborto espontâneo:
da menima Lula se perder em Beirute e ser continuou grávida, tendo perdido uma das
encontrada por um milagre e a de tia Naíma, crianças gêmeas - a outra: tia Salime!
irmã mais nova, quase ter sido atirada 2. Quando do nascimento de um dos meus
ao mediterrâneo por um padre italiano, irmãos mais novos, penso que do Richard.
por causa de um menu não resolvido na Eu e o Tanel por conta de minha avó. Ela
embarcação: macarrão ou mjádara? Apenas deve ter perdido a paciência com os pirralhos
2002

o irmão Michel nasceu no Brasil, chegou a ser e os trancou num banheiro de fora da casa,

161
ao que os dois diziam num tom desafiador: charutinho de folha-de-uva cozinhava num

2000
RABUGENTA! Sem ter idéia do significado, braseiro durante umas quatro horas e dizer
mas sabendo tratar-se de xingamento. que era delicioso é dizer pouco!
Meu primeiro xingamento, justo com quem Passada já dos oitenta, ainda gostava
menos mereceria tal tratamento. Mas de ir ao quintal tratar de sua hortinha. Sua
as lembranças de minha avó são sempre parcimônia no comer lhe permitiu uma
positivas. Ela nunca alterava a voz, quanto elegância rara para aquela idade. Seu sorriso
ao volume. sempre iluminador acontecia mais do que
3. Um tal doce que tia Norma levou para uma a fala. Fiz algumas belas fotos dela nessa
festa de escola e que foi instantaneamente época. Sua presença me fazia acreditar em
devorado e que ninguém, nem minha avó seres superiores dentre os humanos, tal a
tinha a receita. Seu pudim-de-pão, por sua postura respeitosa ao mesmo tempo que
outro lado, era incomparável. altiva. Vigilante. A tal superioridade, que
2001 4. A carne de panela que ela preparou em não advinha da arrogância proporcionada
minha casa, enquanto minha mãe dava à pelo poder, tampouco tem a ver com etnia,
luz meu irmão Válter. mas com a conformação distinta na biosfera
5. O pão com erva-doce, ao qual, ainda desse nosso planeta: presença respeitável e
quente, foram acrescentados nata e respeitadora. Outras raras pessoas conheci
açúcar e que meu amigo, o historiador assim.
Modesto Florenzano, provou e nunca mais Quando minha avó Lula morreu, um
esqueceu. pedaço da eternidade pareceu desabar sobre
6. Até o Roger de tia Norma, os primeiros minha cabeça, por mais que eu soubesse que
banhos eram sempre dados por ela. Somente aquela biografia estivesse se aproximando
ela possuía a prática e merecia a confinça de um desfecho. Absorvi algumas de suas
para tal tarefa, tão delicada. lições, mas seu repertório único foi-se para
7. Uma alquimista: não apenas sabia cozinhar sempre. Aqui, tento recuperar alguma idéia
2002

sem receita, mas inventava maravilhas. Seu do que ela foi. Vigilante. Mulher pertencente

162
àquela já mencionada estirpe. Tudo em mulheres, não perdia a piada, muito embora

2000
função do bem-estar do outro. esta pudesse vir a lhe valer a perda de uma
(17 de novembro de 2001) amizade, como foi o ocorrido com Mário
de Andrade - ninguém nunca esclarece os
reais motivos da briga, mas devem ter sido
as piadas de Oswald envolvendo o autor
de Macunaíma, mexendo certamente com
a sua sexualidade. Mário jamais perdoou
Oswald, nunca aceitou reatar a velha e boa
HISTORINHAS DE POETAS 17: O POETA
amizade. Quando em 1945 Mário morreu,
NECESSITA CONVERSAR?
Oswald recebeu a notícia chorando, contou-
me certa vez Edgard Braga, que conheceu
Dizem que o pior da velhice não é bem
os dois e que foi muito amigo de Oswald.
o enfraquecimento, enfeamento ou coisas
2001 Pois é, em fins dos anos 40, Décio,
mais por aí, mas a falta de interlocutores,
Haroldo e Augusto de Campos estiveram com
coisa que - diga-se - pode até acontecer bem
Oswald de Andrade, tendo sido muito bem
antes de idade provecta (veja-se o caso de
recebidos e até foram presenteados, cada
Fernando Pessoa em Lisboa, principalmente
um, com exemplar das Poesias Reunidas
depois que seu amigo, o poeta Mário de Sá-
Oswald de Andrade. Oswald chegou a se
Carneiro, cometeu suicídio em Paris, em
referir a eles num “Telefonema”, crônica
1916). O principal preço da longevidade é
que manteve durante anos (1945-1954)
a solidão e a pior solidão é a ausência de
no jornal CORREIO DA MANHÃ, do Rio de
interlocutores.
Janeiro. O que mais se notou e continuou
Oswald de Andrade, o mais radical de
se notando até a morte do guerreiro Oswald
nossos modernistas do Primeiro Momento
de Andrade, foi a sua falta de interlocutores
era, além de tudo, um piadista que não
enquanto poeta, o desprezo com que muitos
poupava ninguém: de amigos a ex-
2002

medíocres das Letras o tratavam, a solidão,

163
muito embora estivesse casado e bem. tecnologia? Invasão de ETês ou evasão de

2000
Aquele declínio, doente, longe da agitação vocês? Até parece que as tais tecnologias
de que tanto gostava, quase sempre excluído sejam artifícios transplantados do planeta
dos debates. Saturno, entrando como um corpo mais que
Com base nos fatos acima observados, estranho nas sociedades humanas. Artifícios
parece, os concretistas aprenderam uma sim, porém, criados pelos próprios humanos,
grande lição e resolveram não permitir que respondendo a necessidades específicas,
aquilo viesse a acontecer a eles. Décio, certa ou induzidas por um acaso construtor. As
vez me disse (em verdade, chegou a dizer tecnologias são parte integrante disso que
também outras vezes): se chama Cultura e resultam justamente
- Combinamos - eu, Augusto e Haroldo da capacidade que o ser humano tem de
- que jamais brigaríamos, por mais que entre compensar suas carências. Da mesma forma,
nós houvesse desacordos de ordem poética, mensagens que veiculam informação estética
2001 para que não ficássemos como o Oswald: respondem a necessidades específicas. Estão
sem interlocutores. nos objetos de arte: do poema à vídeo-
Triste fim de um grande criador. instalação, passando pelos graffiti e facturas
(24 de novembro de 2001) que envolvem imagens infográficas. É a
linguagem em estado de poesia, em estado
de arte. Toda arte utiliza tecnologia: esse
domínio é importante para que o objeto se
conforme, se plasme no tempo-espaço: das
DE OLHO (-OUVIDO) NO VÍDEO pinturas nas cavernas aos poemas inscritos
com raios laser. Os artistas, em todos
Sim. Constitui-se num antigo e falso os tempos, valeram-se das tecnologias
problema aquele de que a tecnologia rouba o disponíveis para corporificar as suas idéias.
lugar do ‘humano’. E mais: o que acontecerá Idéias? Vídeos não se fazem com idéias,
2002

com a Arte no futuro? Será destruída pela mas com imagens em permanente estado

164
de mutação/movimentação - tal qual o rio dentre as muitas opções de ferramentas/

2000
heraclitiano - com ou sem cores, reforçadas tecnologias, o vídeo atende a muitos dos
por sons ou prescindindo destes. É preciso requisitos de uma época que quer imagem
que as idéias se manifestem através de em movimento e som sintonizado com o
imagens videográficas, incorporando - processar-se das coisas. Para quem lida com
inclusive - os ruídos inerentes ao meio- a elaboração de imagens, as possibilidades
linguagem. O vídeo, já disponível como oferecidas pelo vídeo (videoarte) vêm a
tecnologia há algumas décadas, continua calhar: cinema sem ser cinema, o vídeo
na ordem-do-dia, absorvendo sofisticações é escrita desenhada no ar pela câmera e,
que vêm dos avanços na área das enquanto escrita-desenho, acasala-se com
tecnologias digitais. Vídeo: fatura artística a dança. A técnica do corte borrifa formas-
intersemiótica, por excelência. Embora não cores, de dentro para fora: chuva eletrônica
seja uma obrigatoriedade, a duração curta a nos massagear a retina. A concentração e
2001 responde a necessidades do hoje, em que dispersão da atenção, definidas pela visão
não há disponibilidade de horas ou mesmo centrada na telinha (ou telão) e a visão
dias para a fruição de uma única obra. periférica afetada por outras imagens. Na
Brevidade tornou-se uma palavra-chave. disputa, ganha a imagem reticulada que,
Uma prática recomendável. Numa época em parece, está com os dias contados (a retícula).
que todas as tecnologias se encontram à Vídeo: um recorte, uma delimitação dentro
disposição dos fazedores - de remotas eras, do nosso campo de visão. O som. O som?
até hoje - o vídeo-ele-mesmo ou compondo O som simplesmente aparece, adentra,
com outras linguagens-meios um complexo invade. Videoarte: campo firmado e aberto,
que pode ser uma instalação, dá respostas que convida à experimentação. Tecnologia
adequadas à necessidade que a nossa cada vez mais acessível. Numa época em
psykhé tem de mensagens portadoras de que a dificuldade de selecionar, de discernir
informação estética. Necessidade de Arte, é agravada pelo excesso, pela avalanche
2002

que se corporifica nos objetos artísticos. Uma de dados envolvendo linguagens muitas,

165
apelando - mormente na megalópole - para as aulas poemas do grupo dos concretistas,

2000
os nossos sentidos todos, o vídeo, ou melhor, o que dava um colorido especial às letras
a videoarte nos dá, em minutos, comprimidos puquianas de São Paulo e fazia dos alunos
de informação com teor estético. Mata nossa pessoas com repertório mais amplo, elevado,
sede do inútil-essencial. Informação de refinado e arejado. Repertório distinto no
encher os olhos. E - quem sabe? - os ouvidos. Brasil. Pois é, Maria Lúcia Santaella desde
Afine o olhar. Foque os ouvidos. Vide o vídeo. cedo mostrou-se ousada: um (a) intelectual
Vide-o-poema. Videoarte. Sim. tem de ter coragem. Se Lúcia (é assim que
[Manifesto] gosta de ser chamada de uns anos para cá)
(01 de dezembro de 2001) já possuía uma disposição para a polêmica,
isto se acentuou depois de inúmeros cursos
feitos como aluna na Pós da PUCSP (então,
Teoria Literária), com o poeta Décio Pignatari.
2001 Grande professor-poeta-teórico. Brilhante a
SANTAELLA: A PADROEIRA DA aluna que, dado o devido tempo, tomou rumo
SEMIÓTICA próprio para se tornar grande conhecedora
da Semiótica peirceana - introduzida no
Conheci Lúcia Santaella lá pelos Brasil por seu mestre Décio Pignatari -
idos de 1975, através de minha grande a maior do Brasil e uma das maiores do
amiga Samira Chalhub: ambas lecionavam mundo, sendo muito respeitada lá fora,
na PUCSP e, como Maria Rosa Duarte de onde tem participado de praticamente todos
Oliveira e Dirce Ceribelli, eram docentes os grandes congressos, discutindo de igual
incomuns: eram capazes, em suas aulas, para igual com os maiores especialistas.
de ousadias teóricas e de abordagem de Ela é até mais ousada, pois, sendo grande
textos extraordinariamente avançados, o comentadora, vai além, apontando
que ninguém ainda fazia no Brasil. Sendo importantes desdobramentos da teoria geral
2002

professoras da área de Letras, traziam para dos signos. E o que a diferencia, é o fato de

166
não se limitar ao campo da Semiótica - o fazer algo, vai até o fim): na manhã do dia

2000
que já seria demais - mas interessar-se por 20 de agosto de 2001, uma segunda-feira,
Comunicação, Mídias, Artes, que ela conhece na FAAP, daria uma conferência, espécie de
em profundidade, desde a poesia, passando Aula Magna de abertura do semestre, com
pela pintura, até a música e as faturas multi o tema Comunicação e Semiótica. Mal
e intermídia, que têm caracterizado a Arte começou a sessão, acabou a energia elétrica
ultimamente. É brincadeira falar da produção no Bairro, o que não pôde ser contornado
intelectual de Lúcia Santaella: professora pela luz de emergência. Não deu outra: ela
e conferencista na Pós-Graduação em pediu silêncio, pois assim, falando alto como
Comunicacão e Semiótica, que ela ajudou a era capaz, todos no auditório poderiam
criar e se empenhou para que se tornasse ouvi-la. E foi o que aconteceu: mesmo no
um dos programas de Pós mais conceituados escuro ela falou tudo o que teria de falar e
e produtivos do Brasil, orientou dezenas de brilhantemente, como são brilhantes as suas
2001 pesquisas (talvez que ninguém em nosso aulas. Conhecendo-a de longa data, como
país tivesse tido um númeuro tão alto de aluno da Pós e seu orientando no Mestrado e
comandos de defesa pública de Dissertações no Doutorado, eu sabia que ela não deixaria
de Mestrado e Teses de Doutorado). Livros por menos. Falou menos de Semiótica e mais
teóricos: mais de duas dezenas, em que o da Comunicação Humana, mais uma fala de
assunto soberano é a Semiótica de Charles quem pensa semioticamente o mundo. O
Sanders Peirce. Santaella é hoje uma das que ela sabe não a deixa satisfeita: continua
maiores inteligências do Brasil e isto porque pesquisando como há vinte e cinco anos.
ela sempre a cultivou - inteligência é coisa A nossa Santa padroeira da Semiótica. A
que se cultiva. Sempre teve uma capacidade Santaella.
de trabalho incomum e uma determinação
admirável. Um fato ocorreu recentemente, Em tempo: Lúcia desenvolve há muitos
o qual vem a comprovar a determinação e o anos um trabalho de prosa ficcional, o qual
2002

empenho de Lúcia (quando ela se propõe a mantém inédito e quase que em segredo. Em

167
1975 já havia escrito uma longa prosa - um milionário (bibliófilo: aquele que ama os

2000
romance? - experimental, que permaneceu livros e os coleciona e os lê e estuda). Para
inédita. Espero que ela venha a publicar - e formar uma Biblioteca - de uma instituição,
logo - esse texto que, certamente, revelará por exemplo - mobilizam-se intelectuais e
o seu lado de artista da palavra. verba; aceitam-se doações, compram-se
(08 de dezembro de 2001) bibliotecas formadas de pessoas a um passo
da eternidade - o livro aspira à condição
do eterno - ou de herdeiros sedentos de
dinheiro e doidos para se livrar do entulho-
papel-couro etc. Pois é: ENTULHO. É assim
UMA BIBLIOTECA PESSOAL que os herdeiros de dez mil volumes
encaram o legado: um estorvo, quase que
Uma biblioteca é uma biblioteca. Lugar um presente de grego (e não deixam de ter
2001 onde se depositam e/ou colecionam livros. As razão). Livros: a pior herança possível. Mas
bibliotecas podem ser públicas, particulares o LIVRO não é fonte de conhecimentos? As
de instituições ou de indivíduos. Da palavra BIBLIOTECAS não são necessárias? O livro o
grega BIBLION= livro + TIQHMI= colocar, é; as bibliotecas o são. Porém, carregar dez
donde sai o TECA. Uma biblioteca pode mil volumes é como ser obrigado a cursar
ser especializada, geral ou mesmo eclética Medicina, quando o que se queria era fazer
(não ter propriamente uma ‘cara’). É um Artes Cênicas. Diferente seria, entre dez mil
pouco museu quando tem sob sua guarda volumes, poder escolher apenas 30. Mas,
obras raras, edições esgotadas ou mesmo dez mil?! É demais. Mesmo para aqueles
livros (-objeto) únicos: livros manuscritos que gostam de ler. Não é bom deparar com
remanescentes, da era pré-Gutenberg. dez mil volumes, ainda mais quando não se
Com o advento da tipografia - meados do teve o trabalho e a satisfação de escolhê-
século XV - os primeiros livros impressos: los e comprá-los. Suponhamos que alguém,
2002

os incunábulos: raridades, coisa de bibliófilo amigo da leitura e dos livros, de repente

168
herdasse dez milhões de reais e, já morando o acesso àquele material precioso. Não

2000
confortavelmente, resolvesse formar uma queira mal a seus parentes por isto. Afinal,
biblioteca de cinco mil volumes em apenas ninguém estará disposto a ceder espaço a
três meses. Consultando pessoas e com livros, nem a ficar a vida inteira a tirar-lhes
dinheiro, isto é possível em até menos tempo. a poeira!
O tal dono-dos-cinco-mil-volumes teria a seu (15 de dezembro de 2001)
dispor, depois de ter despendido o tempo de
três meses, uma bela biblioteca, com livros
bem acomodados em estantes adequadas,
tudo catalogado e no computador… e teria,
também, o resto da vida para se arrepender. POEMAS: sob a égide de Eros
Por quê? Porque uma biblioteca pessoal é
algo para ser formado lentamente, ao longo Fosse eu espírita e acreditaria ter recebido,
de uma vida, na medida das necessidades durante aqueles três meses e meio - fins
2001
intelectuais: é por isto que as bibliotecas de 1996, inícios de 1997 - alguns ilustres
têm as caras de seus respectivos donos poetas já idos e tidos como representantes
e deixá-las por herança é transformar o máximos da poesia fescenina ou um pouco
legado em pena. Ninguém gostaria de herdar menos que isto ou nada disto, tais como
tantos livros. As pessoas têm preferido Mimnermo, Catulo, Marcial, Villon, Aretino,
dinheiro, jóias, imóveis e obras de arte de Góngora, Gregório de Mattos, Bocage - sem
fácil comercialização. Portanto, antes de ter esquecer a onipresente Safo - assim como o
sua ex-biblioteca vendida por peso ou por magno bruxo Machado e o finíssimo portenho
unidade a um alfarrabista (dono de loja de Jorge Luis, o Borges, prosadores-ficcionistas
livros usados; sebo como se diz de ordinário e o furacão-encoberto Pessoa, nas suas
no Brasil) destine-a você mesmo, enquanto várias pessoas, mormente na de Álvaro
está vivo, a uma instituição que conservará os de Campos; Bandeira e Oswald - brigando
- se me apresentaram. Acreditasse, eu,
2002

livros e possibilitará a pessoas interessadas

169
em Platão e me menosprezasse enquanto passou por uma elaboração, às vezes pelo

2000
ser-pensante e diria ter recebido os versos crivo de uma poética em que se observam,
- sim, versos! - de uma entidade, sendo ainda, procedimentos, como por exemplo, o
eu um mero meio através do qual ela, a do metro regular. E o autor se mostra um
divindade, viria se manifestar. Porém, sei que exímio verse-maker, um virtuose do verso
possuía o repertório, o qual maturou e foi-se e d’outros recursos que têm caracterizado
enriquecendo durante mais de vinte anos, poemas nos últimos 2700 anos - pelo
desde que os latinos Catulo e Marcial foram- menos, a partir dos gregos. Aos eus líricos
me revelados por Luiz Antônio de Figueiredo dos poemas, junta-se o eu do comentador
- Bocage eu já conhecia razoavelmente que se assume enquanto pessoa: Prof. Omar
e os demais - posso dizer - amigos meus Khouri. Para mim, pornografia e erotismo
conquistados em horas diversas… Foi tudo são até a mesma coisa: sexo explícito. Não
inspiração, ou seja, um momento privilegiado, quero ver o erótico como diferente do
2001 de grande facilidade, em que tudo contribuiu pornográfico ou o erótico como um mero
para que a obra acontecesse. Foi o momento eufemismo ou como sendo o lado sutil das
certo. Intuição informada; ninguém intui coisas do Reino de Eros. E nem quero que o
do nada: nada vem do nada. Deixei pornográfico tenha a ver com o mercadejar
mais uma vez que Dr. Ângelo Monaqueu do corpo, muito embora isso de prostituição
assumisse o meu trabalho. Em verdade, esteja contido na etimologia da palavra
uma metalinguagem sobre poemas fictícios, PORNOGRAFIA. Gosto de putaria total.
uma ficção metalingüística. Os comentários Costumo falar em Reino de Eros (de par
sobre os poemas acabam por formar uma com Ares, o deus da guerra. Guerra aos
ficção de retalhos - chegando a ter uma certa malquistos) em que mimos e cacetadas
autonomia. O tema: coisas do erotismo e da podem conviver naquele universo em que,
maledicência, que dizem respeito menos ao quem comanda é o corpo, o tesão. Você já
autor e mais - cerca de 95% - a experiências ouviu dizer de alguém que anunciasse um
2002

a ele narradas por outrem, material que livro, filme, poema, peça de sexo implícito?

170
Para mim é só uma questão de elaboração crônica da passagem do ano

2000
e não propriamente de utilização de um
léxico, baixo ou não. Fenda. Aranha. Boceta. Na passagem de 1977 para 1978,
Xoxota. Vulva. Chav(b)asca. Perigosa. Onde Samira Chalhub, organizando a publicação da
cabe o quê? Eis a questão. O que é a peça PUC-SP, PORANDUBAS, pediu um trabalho a
enquanto fatura? É isto o que importa. Paulo Miranda, o qual fosse alusivo à ocasião.
Nunca se sabe do público que lerá o livro. Paulo não disse “não” e ficou a matutar. Na
Digo que é um mais-que-bom livro para data marcada, entregou a Samira um “texto”
muitos sexos e idades, mas principalmente intitulado CRÔNICA DA PASSAGEM DO
para os que possuam a maturidade de depois ANO, que apareceu em PORANDUBAS, sem
dos 25 anos. Quem o saberá? O volume, os devidos créditos. Reproduzo o referido
juntamente com muitos outros, forma um trabalho, em sua segunda versão:
corpus significativo dentro do universo das
2001 Letras Eróticas, sendo o conjunto, a obra
do Dr. Ângelo Monaqueu. Um autor, ainda,
quase desconhecido, além de desaparecido,
mas que, ao que tudo indica, estará na
berlinda, assim que seus trabalhos vierem a
ter edições maiores e mais bem distribuídas,
como a que ora apresenta a Nomuque
Edições. XAIPE!São Paulo, 15 de setembro
de 2001.
(22 de dezembro de 2001)


A ironia, para quem conhece Paulo Miranda
– autor, também, do soneto-fita-métrica e
2002

171
do poema de valor, valor transitório, sem

2000
esquecer da Torre de Pisa: entorta-se o
mundo e endireita-se a torre – não é algo
estranho, ao contrário. A fina ironia de Paulo
Miranda (de uma raridade planetária, sendo
parte constante dos poucos poemas que
tem feito nos últimos anos). Esta fatura,
com aquele sutil 32, indicia a mesmice que
tem sido a vida, apesar dessa impressão
de mudança que um ano novo sempre
traz. Porém, é possível uma outra leitura:
a de que mudanças de fato, rápidas, são
difíceis de acontecer e requerem um esforço
2001 extraordinário. Difícil é bem-administrar o
processo vida e mais difícil ainda é mudar
radicalmente de direção, com o propósito de
melhorá-la. Feliz 2002!
(29 de dezemvro de 2001)
2002

172
2002
a admiração por Edgar Allan Poe. Peirce

2001
foi um grande pensador e um escrevedor
compulsivo, que deixou mais de cem mil
páginas, muitas das quais permaneceram
manuscritas. Falei dele e de sua Semiótica,
a propósito do signo FOTOGRAFIA, como
sendo um índice, com fortes traços de
iconicidade. Agora, aos poucos, falarei de
tópicos importantes dessa teoria.
SIGNO. Alguns pensam que signo só
tem a ver com os do Zodíaco. Estes também
são signos, mas signo é muito mais do que
isto. Signo pode ser tudo: toda e qualquer
2002 coisa. Melhor dizendo: tudo pode funcionar
como um signo, pois signo ou representame
é tudo aquilo que em certa medida ou sob
algum aspecto, representa alguma coisa
para alguém (o signo representa alguma
O SIGNO NA SEMIÓTICA PEIRCEANA coisa, substitui-a, está no lugar da coisa). Tal
entidade (signo) cria na mente de alguém um
Já me referi à Semiótica peirceana signo equivalente ou melhor desenvolvido,
- Teoria Geral dos Signos, do filósofo ao qual Peirce chamou de interpretante
estadunidense Charles Sanders Peirce do primeiro signo (não confundir com o
(1839-1914): exato contemporâneo de intérprete, que é aquele ‘alguém’, o leitor,
nosso Machado de Assis (1839-1908) tendo, a inteligência que se debruça sobre o
inclusive, coisas em comum com o autor do signo para lê-lo, para decodificá-lo). O
2003

Memórias póstumas de Brás Cubas, como interpretante é parte do signo e diferere um

174
pouco do significado do signo língüístico de objeto e interpretante. O tal objeto dinâmico

2001
Ferdinand de Saussure. Diferentemente, do pode ter uma existência real ou fictícia. No
signo saussuriano que se apresenta como caso da fotografia, por exemplo, o fundamento
uma entidade dúplice, formada por uma será a conexão dinâmica, portanto, o objeto
imagem acústica (significante) e um conceito dinâmico da fotografia, assim como o dos
(significado), o signo peirceano envolve três demais índices, será sempre um existente.
partes, das quais já me referi a duas. Bem, Há três tipos de interpretante: 1.
voltando ao assunto: o que é que o signo interpretante imediato: é tudo aquilo que
representa? O seu objeto, não sob todos os um signo poderá suscitar numa mente
aspectos, pois um signo não tem por função interpretadora, é a interpretabilidade do
cobrir o objeto, mas representá-lo. O signo signo; 2. interpretante dinâmico: o que,
representa o seu objeto segundo o seu de fato, é suscitado no intérprete, é o
fundamento, ou seja, o que fundamenta um desdobrar de um signo pela ação da leitura,
2002 signo pode fazer com que ele se assemelhe que desencadeia a semiose (ação do signo,
ao objeto (sendo um hipo-ícone), com que processo de significação) - dependendo
haja uma conexão dinâmica com o objeto do repertório do leitor eu terei uma leitura
(índice) ou que o signo esteja fundamentado mais ou menos satisfatória: ele poderá ficar
numa convenção (símbolo). Esse objeto que apenas no nível do interpretante dinâmico
está fora do signo, mas que o determina e, emocional, mas poderá empreender um
portanto, o signo o representa é o objeto esforço, gastar uma energia considerável,
dinâmico e está em algum lugar do passado, para chegar ao interpretante dinâmico lógico,
pois já determinou o signo. O signo tem um ou seja, dar respostas satisfatórias quanto à
outro objeto, que é o objeto imediato: que leitura daquele signo ou complexo sígnico.
é como o objeto dinâmico está presente Porém, ele, nesse processo conhecido como
no signo (isto se assemlha um pouco ao semiose, estará sempre no meio do caminho.
significante saussuriano). O intérprete/interpretante dinâmico
2003

Quando se fala em signo, já se inclui encontram-se no presente; 3. interpretante

175
final: estará sempre no futuro, como uma exemplo para que se certifique de que muitas

2001
meta a ser alcançada. Nunca se chega ao leituras - desde que fundamentadas podem
interpretante final, que equivaleria à verdade ser feitas de um mesmo complexo. A teoria
absoluta, muito embora, às vezes, se tenha também pode dar prazer àqueles que têm a
a ilusão de se ter chegado lá - daí arrisco um sede de ler, de modo mais conseqüente, o
“interpretante final temporário”, pois logo Mundo!
será desbancado por novas leituras. Não (05 de janeiro de 2002)

se chega ao interpretante final, à verdade


absoluta, mas pode-se alcançar parcelas
satisfatórias de uma vedade maior sempre
a ser atingida. Então, no passado, temos o
objeto dinâmico, no futuro o interpretante
final e, no presente, o intérprete/interpretante
dinâmico. HISTORINHAS DE POETAS 18:
2002
A definição, o conceito de Signo de UM CERTO GRUPO DE POETAS DOS
Peirce (em verdade ele cunhou inúmeras, ANOS 70
umas mais complexas que as outras, que
não chegam a ser contraditórias) é a mais Às vezes, uma revolução está a
geral possível e comporta signos das mais acontecer em nossa frente e dela não nos
diversas naturezas, de todas as linguagens. apercebemos. Às vezes, estamos na periferia
Muito útil para leitores especiais dos signos a dos acontecimentos, às vezes, em seu centro
noção de interpretante, que vai de tudo o que e como participantes, até protagonistas.
o signo possa despertar no leitor, passando Nos anos 70, retomava-se uma
pelo que de fato desperta, até à verdade certa atitude de experimentação na poesia
- interpretante fianal, caso a semiose se brasileira, atidude essa tão cara a 22 e
esgotasse. Os signos, principalmente os que que teve o seu paroxismo com a Poesia
Concreta. Eu descobri a poesia enquanto
2003

veiculam informação estética, são o melhor

176
fazedor - pois como apreciador isso é já eram feitas, na linha das revistas

2001
anterior - nos ditos 70 e, além do grande experimentais, como NOIGANDRES,
amigo, o poeta Paulo Miranda, enturmei-me INVENÇÃO, NAVILOUCA.
com criadores de Presidente Alves, rapazes Nós, então jovens, tínhamos a
muito bem informados e talentosos, como oportunidade de conviver com poetas e
os irmãos Figueiredo (Valero Figueiredo) - intelectuais que considerávamos os maiores
Luiz Antônio, Carlos e Zéluiz - mais Renato e do mundo. Das casas dos famosos, a sempre
Roberto Ghiotto, Beto Xavier e outros tantos aberta aos jovens poetas, às discussões,
de São Paulo e doutras paragens. era a de Augusto de Campos - Rua Bocaina,
São Paulo já havia vivido grandes Perdizes - com sua esposa, a sensível
períodos de efervescência criativa na 2ª Lygia, sempre presente e participativa. Dos
e 3ª décadas do século XX. Os anos 50 mais jovens: a república onde eu morava,
haviam sido o máximo, com as Bienais entre outros, com Paulo Miranda, todos de
2002 e o Concretismo. Nos 70, jovens poetas Pirajuí, a de Renato Ghiotto e, depois, o meu
tinham como principais referências vivas apartamento à Rua Dona Veridiana, onde
os concretistas Décio Pignatari, Augusto moro até hoje e que, tendo montado uma
e Haroldo de Campos e Ronaldo Azeredo mesa para impressão serigráfica, fizemos
e, procurando-os, tornaram-se amigos e (uma equipe) belas edições de poemas,
interlocutores. revistas, cartazes.
Havia encontros semanalmente, no Algo de muito interessante, mais do
mínimo: nas Perdizes (Krystal Chopp), no que a teoria que discorre sobre as relações
Centro (Amigo Leo, Amaral Gurgel), em entre Arte e Ciência e que ocupou parte
Moema etc. As conversas rolavam até altas das preocupações de Décio Pignatari, entre
horas e sempre produtivas, informativas outros, foi a convivência com aficionados
- havia a chance da entrega de trabalhos: da poesia e das artes em geral, mas que
poemas editados autonomamente e que eram, em primeira instância, cientistas em
2003

eram distribuídos de mão em mão. Revistas formação, principalmente ligados à Física. Era

177
o caso de Renato Ghiotto e Roland de Azeredo intermediação: espessa cortina de signos.

2001
Campos, que chegaram a produzir e ainda O realismo não é o real. O Realismo na
produzem belos poemas intersemióticos. Literatura, no Cinema (mesmo em se tratando
Ivan Pérsio de Arruda Campos, químico, de um documentário, ou do antigo cine-
pouco participou desses papos, mas também jornalismo), na Pintura é sempre construído,
chegou a mostrar o seu lado criativo (Pérsio é resultante de toda uma elaboração de
de Arruda) como poeta. linguagem com um determinado propósito.
Já disse, certa vez, que toda época A História é construída, muito embora com
é rica, principalmente depois que passa… base em documentação - pretendendo não
Nós, naquele momento, tínhamos plena o verossímil, mas o verdadeiro - resulta de
consciência da importância de nossos escolhas: temas, os próprios documentos, o
interlocutores e de nossos próprios trabalhos. tipo de enfoque. Daí, que o texto de História,
Não tínhamos necessidade de manifestos. por mais bem feito que seja e por mais
2002 Nós éramos o nosso público! que pretenda uma objetividade, sempre
(12 de janeiro de 2002) estará respondendo a exigências de uma
classe, de uma categoria, de um grupo de
indivíduos. Nunca ninguém fala por todos,
apesar de a habilidade com o discurso
fazer transparecer que sim. Documentos
não falam por si: é preciso que alguém os
selecione e os apresente e os interprete. A
SIGNOS SÃO SIGNOS História é sempre construída, pois resulta
de todo um trabalho de historiadores que
Signos são signos. Tudo pode vir a tentam recuperar o passado, reconstituir
funcionar como signo. Signo não é a realidade. processos, interpretando-os. Mas é sempre
A realidade é a realidade, muito embora a visão do presente sobre o passado o que
só venhamos a percebê-la com toda uma
2003

temos, pois que, de outra maneira, não seria

178
possível. A História é sempre reescrita, noticiosos da TV? Não, o que você vê são

2001
não apenas porque pesquisas trouxeram signos, é um texto elaborado a partir da
novos dados, mas porque novos tempos observação do que está acontecendo, do
exigem novas leituras. É por isto que que o jornalista está recebendo de alguma
eternamente se escreve sobre Grécia e que agência ou de algum colega da empresa.
muitas das interpretações que vêm desde Mesmo que o escritor-jornalista tivesse
o século XIX são postas abaixo, em prol liberdade completa, mesmo assim, seria a
de novas leituras. Há tendências de época visão que ele tem dos fatos e processos e não
que fazem com que tudo seja revisto e algo que estivesse acima do Bem e do Mal.
reinterpretado, como comentava comigo, Os intérpretes estão sempre condicionados
ainda há pouco, a arqueóloga Maria Beatriz por valores de época, que dizem respeito
Borba Florenzano, minha contemporânea à classe social a que pertencem etc. Por
na História-USP, de 1970 a 73. Os signos, isto é que um mesmo signo em épocas
2002 ou melhor, os complexos sígnicos não se diferentes ou não, suscitará novas leituras,
esgotam: o Interpretante Final é nosso diferentes leituras. Um mesmo leitor,
objetivo, mas estará sempre no futuro. O dependendo do momento, poderá fazer
Jornalismo - o texto jornalístico - trata do leituras completamente diferentes de
presente-hoje, porém só pode fazer isso um mesmo complexo sígnico. “Eu nem
com um grande conhecimento do passado. O sempre sou da minha opinião”, afirmou
jornalista precisa saber muito História para certa vez o poeta-pensador Paul Valéry.
poder abordar esse presente e ele também Considerando ainda o Jornalismo, alguém
constrói o texto jornalístico, selecionando poderia perguntar: “Há, hoje, liberdade
e considerando o que interessa a seus de expressão no Brasil?” A resposta é
propósitos ou aos da empresa jornalística “Sim”. A própria Constituição garante isto.
em que trabalha ou para a qual trabalha. Porém, essa liberdade tem limites: 1. a
Então, não é a realidade que eu vejo garantia do seu emprego (não se pode
2003

nas páginas de jornais, nos programas bater de frente com a linha editorial da

179
empresa na qual se trabalha. Daí, jogo de

2001
cintura, auto-censura); 2. o limite imposto
pela Ética, que é aquela que vale naquele
momento específico (isto é bem mais difícil
de ser observado. Vide sensacionalismo das
mídias, não só no Brasil: tudo é feito para se MÁRIO DE ANDRADE TARSILA MÁRIO
alcançar audiência). Como disse um amigo DE ANDRADE
meu, um meio-filósofo: “Liberdade é como
dinheiro: importante ter; mais importante, Ouso dizer que depois do Macunaíma
ainda, é não usar na sua totalidade”. Dados (publicado em 1928) o melhor de Mário de
são dados e tudo depende de como são Andrade são suas cartas. Destas, diria que
utilizados. E sempre sofrem um processo as mais deliciosas são as que escreveu para
de manipulação, mesmo que o manipulador o amigo-poeta Manuel Bandeira, por pouco
2002 não tenha, disto, consciência plena. Estamos mais de duas décadas. Mário, em São Paulo
fadados a ter da realidade apenas indícios, (principalmente); os destinatários, no Rio de
os quais acabam passando, apesar de Janeiro, em Paris, Belo Horizonte etc. Grande
toda a intermediação que existe. Mesmo escrevedor de cartas o Mário de Andrade.
a Fotografia - que empresta credibilidade Sua correspondência epistolar forma um
ao texto jornalístico - não é o real, apesar corpus considerável, em grande parte já
da conexão dinâmica (exige como objeto publicada - o ativo da correspondência.
dinâmico um existente). Fotografia é signo. Agora, de 1995 para cá, que é quando o
Signos: frutos do trabalho de construção: seu legado inédito pôde ser publicamente
leituras do mundo. De Homero a Sófocles vasculhado, pesquisado, passados cinqüenta
e Heródoto, a Platão a Cervantes a Marx a anos da sua morte, também o passivo
Mallarmé a Benjamin e a Borges: leituras da correspondência, ou seja, as cartas,
do Mundo. Belas e importantes leituras. bilhetes, cartões-postais que recebia o autor
2003

(19 de janeiro de 2002) de Namoros com a Medicina, pôde também

180
vir a público, para o enriquecimento das Drummond de Andrade, Anita Malfatti (já

2001
informações de que já dispúnhamos. falecida na ocasião da publicação do volume
… de cartas recebidas do amigo Mário, contou
No último ‘Finados’, estive no complexo com o empenho de Marta Rossetti Batista).
Consolação de Cemitérios - Cemitério da As cartas de Mário a Manuel Bandeira, a
Consolação, o da Venerável Ordem Terceira primeira edição, Bandeira vivo (a edição é dos
do Carmo e o dos Protestantes; estes dois anos 50 e o autor de Libertinagem durou até
últimos com entrada pela Rua Sergipe; 1968) eu as li na primeira metade dos anos
aquele, pela própria Consolação, é a mais 70, época em que concentrei meus estudos
consagrada das necrópoles paulistanas. No no Modernismo brasileiro. Por problemas
Cemitério dos Protestantes visitei o túmulo do momento, Bandeira omitiu trechos e
de Anita Malfatti, Krugg (protestantes: nomes.
alemães com passagem pelos EUA) por As atuais edições das cartas, que
2002 parte de mãe. No da Consolação visitei os incluem o passivo da correspondência,
túmulos de Oswald de Andrade e de Mário - saem a partir do IEB e da EDUSP (ambos
na mesma rua 17 - e o de Tarsila do Amaral. partes integrantes da Universidade de São
Faço esse ritual há tempos, quando não Paulo, a USP). A edição da Correspondência
estou em Pirajuí na referida data, ou mesmo Mário-Manuel já está em segunda edição
independentemente da data. Emocionei-me eduspiana e somente agora adquiri o volume
no de Anita e no de Oswald: como que senti que, pareceu-me é, além de portentoso,
o peso de suas histórias particulares… uma edição bem cuidada, com mil e uma
… notas esclarecedoras. Na ocasião da compra,
Mário de Andrade, polígrafo, como adquiri o que mais me interessava: o volume
dele se diz, morreu em 1945. Foi tendo suas da correspondência Mário-Tarsila.
cartas publicadas pelos destinatários ilustres Pouco volumosa, é mais Mário quem
- uns mais, outros menos - dentre os quais escreve. Algumas informações interessantes
2003

(mais-que-ilustres) Manuel Bandeira, Carlos do tipo Mário encomendando e Tarsila

181
comprando e enviando para ele - da Europa - de Mário e a disposição de Tarsila. Depois

2001
Picasso, Lothe, e sobre pessoas. O que há de de 1929, as coisas mudaram para todos,
mais interessante mesmo é a documentação principalmente para o casal, que passa a
fotográfica e as reproduções facsimilares ser ex-casal Tarsiwald. Outros tempos.
de cartas-cartões: Tarsila possuía uma bela Mário nunca quis reatar a velha amizade
grafia e escrevia bem. Mário escreve mais, com Oswald. Contou-me o velho Edgard
porém o volume de escrita a Tarsila é bem Braga que Oswald chorou quando soube da
menor do que o que teve por destinatário morte de Mário, em 1945.
Anita Malfatti - circunstâncias explicariam As notas de Aracy Amaral,
isto. A carta dirigida a Tarsila, em que organizadora do volume, são mais extensas
Mário expõe o caso do rompimento com que os textos das cartas. Esclarecedoras,
o companheiro dos tempos heróicos do porém, repetitivas às vezes. Especialista
Modernismo Oswald de Andrade (marido em Modernismo e, especilmente, em
2002 mais célebre de Tarsila), carta da qual Tarsila, Aracy Amaral, como os demais
se esperavam grandes esclarecimentos, especialistas, não se contém e não resiste
uma possível verdade fica no que não a ir além do necessário. Mas é sempre um
foi dito, ou seja, é mais uma justificativa trabalho feito com grande base documental
para a amiga Tarsila, única que poderia e seriedade.
compreender integralmente a mensagem De qualquer modo, esse volume
(Mário mais expõe a sua alma que os fatos, de cartas Mário-Tarsila. Tarsila-Mário -
que poderiam fazer as delícias de curiosos que, traz também um conjunto de textos
décadas depois). A tal carta é de 1929 (na escritos por Mário de Andrade sobre Tarsila
edição que fez da pesquisa efetuada sobre do Amaral, uma cronologia e uma seção de
Tarsila, Aracy Amaral havia omitido a carta, documentação - vem a proporcionar poucas
por motivo de ordem ética, justifica). boas horas de leitura para os aficionados de
Bem, provavelmente, a ligação de nossas Letras Modernistas.
2003

Tarsila com Oswald tenha inibido a pena (26 de janeiro de 2002)

182
REGINA SILVEIRA ‘geração Basquiat’) que contaram com

2001
todo um lobby de galeristas e críticos de
Ontem - 18-01-2002 - estive na arte, Regina teve um percurso de longo
famosa Speranza, incrível pizzaria de São aprendizado, desde os tempos em que foi
Paulo, Bairro da Bela Vista (o Bixiga), aluna de escola de Belas Artes e aprendiz,
comemorando o aniversário de Regina em curso livre, do pintor Iberê Camargo,
Silveira (nascida em Porto Alegre no Ano da até a longa convivência com o raro artista
Graça de 1939). Presentes os amigos, entre Julio Plaza (de quem foi esposa por muitos
os quais Gerty Sarué - uma grande artista anos). Viagens muitas, estudos, prática
gráfica - Guto Lacaz, Nelson Leirner - cada docente com muito empenho (daí o amor
vez melhor, quanto mais velho fica - críticos, dos ex-alunos por ela) a devoção à gravura.
professores, poetas (Paulo Miranda, Walter Regina passou do figurativismo tradicional
Siveira e, mesmo, este que ora escreve), a um abstracionismo lírico-expressionista,
2002 artistas jovens, de talento, pupilos de chegando, numa curta fase, à abstração
Regina e que por me parecerem um tanto geométrica. Daí, uma longa pesquisa
arrogantes, irritam-me (um dias desses com imagens encontradas prontas nas
eles melhoram. Talvez espelhando-se no mídias impressas e que eram retificadas,
exemplo da artista Regina, espécie de mãe- descontextualizadas e recontextualizadas.
de-todos e que é toda disciplina e empenho, Crítica social profunda, transitando por
norteados pelo talento e por um projeto de um repertório que remetia à Pop Art.
vida-arte, por um pensamento maior. Talvez Metalinguagem: a arte abordada na arte.
que essa minha indisposição vá pelo que de Interferências em imagens cristalizadas
mim reconheço neles e não suporto. Ou, que se tornavam novas pelo que de
quem sabe?, até ciúme, de minha parte). estranhamento colocava nelas a artista.
Com seu largo conhecimento da história
Diferentemente dessas crianças dos da arte - de Altamira e Lascaux a Duchamp,
2003

anos oitenta (hoje não tão crianças assim, Escher, Bacon e Rauschenberg - Regina

183
passou a subverter os códigos ocidentais de porém, esse diálogo rende quando é Marcel

2001
representação: perspectiva e sombra. Daí, Duchamp o seu interlocutor, que embasa, é
todo um trabalho que se desenvolveu durante citado e homenageado com originalidade.
anos, sempre evoluindo, e que, extrapolando Regina é uma incansável trabalhadora, uma
o bi-, passou ao tridimensional: objetos, já trabalhadora compulsiva, uma workaholic,
não apenas recortados, mas em suas três como se diz… Regina não encontrou nada
dimensões. Um trabalho não-aurático: de mão-beijada. Regina Silveira conquistou
trabalho passível de ser reproduzido, sem com arte o seu espaço. Salve Regina!
perda da informação estética. (02 de fevereiro de 2002)

Essa obra, há anos, extrapolou as


fronteiras do Brasil: a artista ganha o mundo:
de São Paulo a Nova Délhi, Toronto, Nova
Iorque e Rio de Janeiro.
2002 Regina Silveira tem um trabalho LOTHAR CHAROUX
diferenciado, nesse mar de mesmice que se
observa no meio erudito das artes plásticas, O primeiro contato que tive com a
de algumas décadas para cá. Um trabalho obra de Lothar Charoux se deu em Santos,
que chama a atenção pelo engenho e ciência. em 1968, quando eu participava do 1º Salão
Regina já possui o que poderíamos chamar Oficial de Arte Moderna daquela cidade. Seus
de “uma obra”. É uma mestra, em qualquer trabalhos chamaram-me a atenção pela
dos possíveis sentidos dessa palavra. utilização de um mínimo de elementos: linhas
Pensa e faz. Os trabalhos apresentados aos sobre um fundo escuro detonavam formas.
públicos resultam de inúmeros estudos que Vi-o, em pessoa, num seminário na ECA-
são - eles-mesmos - obras dignas de serem USP, promovido pela crítica e historiadora da
mostradas. Lembram os estudos de Leonardo arte Aracy Amaral, se não me engano no ano
da Vinci. Trazem a memória de toda a história de 1973 (ou 74?): era sobre o Concretismo.
2003

da arte. Dialogam com muitos artistas, Estavam presentes os convidados Décio

184
Pignatari (brilhante como sempre), Willy minimizar o papel dos artistas de São Paulo.

2001
Correa de Oliveira, Hermelindo Fiaminghi Porém, seu lugar na história não poderá
e o Charoux, tão simples ao falar sobre os ser negado por muito tempo. Este, por
seus trabalhos; até havia trazido alguns sinal - o TEMPO - se incumbe de revelar,
múltiplos quadrados (serigrafia sobre cartão inteira, a verdade, já diziam os gregos da
prensada em chapa de acrílico protetor). Dos Antigüidade.
concretistas artistas plásticos era, talvez, o A Poesia Concreta mostrou-
mais modesto (Sacilotto era uma outra figura se imbatível, entrando como a grande
de aparência humilde: havia sido um operário contribuição do Brasil para a poesia planetária
e, velhinho, está vivo e morando em Santo no século XX. Poesia Concreta é São Paulo,
André). Nunca alardeou a sua grandeza que a cara e a alma de São Paulo. Os artistas
cada vez mais se evidenciaria com o passar concretos de São Paulo, liderados por
do tempo pelo menos para os apreciadores Valdemar Cordeiro não eram muito dados
2002 de uma arte de invenção e pesquisa formal. a teorizações por escrito. Valdemar era um
É impressionante como esse pessoal do polemista, cérebro e ação. Talvez que não
Concretismo paulista nas artes plásticas - fosse tão bom como os companheiros em
os de São Paulo - tem sido injustiçado pela termos das faturas plásticas, mas era quem
história oficial das artes plásticas do Brasil: discutia e abria picadas, chegando a ser um
o Neo-Concretismo, irradiando-se a patir dos pioneiros, em termos internacionais, na
do Rio de Janeiro, roubou a cena. Não que arte por computador - máquinas aquelas,
não possua grandes artistas: possui, porém, para nós, hoje, dinossáuricas - a então dita
nesse odioso confronto Rio-São Paulo, o ARTEÔNICA. No Rio de Janeiro, o poeta
Neoconcretismo nas artes plásticas levou a maranhense Ferreira Gullar, acabou liderando
melhor: contou com um lobby mais eficaz, uma ruptura (manifesto assinado por vários
congregando até nomes importantes da artistas, em 1959): a do Neoconcretismo,
crítica, provenientes de São Paulo, como é acusando os paulistas de excesso de
2003

o caso de Aracy Amaral. Muito se fez para cerebralismo. Promovendo os artistas que

185
operaram a partir do Rio de Janeiro, criou uma paisagem como que expressionista,

2001
diferenças formais que um apreciador de ainda dentro do que poderíamos chamar de
hoje verá que são apenas mínimas. “a grande pintura”.
Mas voltemos ao nosso artista: a Os concretistas pintores de SP merecem
grandeza de Charoux reside, penso, no uma avaliação, alguns já estão tendo. O
menos, na recusa de excessos, no simples grande Charoux merece ser estudado e
- “o menos é mais”, para ficar com Mies van deverá ocupar o verdadeiro lugar que lhe
der Rohe - em pontos que se tornaram linhas, cabe na [história da] arte do Brasil. E, por
que compõem uma estrutura e que tomam certo, será um lugar distinto, elevado. E
para si coloracões: sutileza de linhas sobre para começar, irei colocar na parede as duas
o preto. O difícil é justamente - dispondo belas serigrafias dele, que guardo há anos.
de inumeráveis recursos plásticos/visuais - Lothar Charoux fecit.
ser simples. Era simples [aparentemente]
2002 a arte de Charoux. Uma arte difícil, pois Em tempo: Lothar Charoux nasceu em
esconde complexidades calcadas em toda Viena, Áustria, em 1912, vindo a falecer em
uma sabedoria acerca da arte e do fazer São Paulo, em 1987. Trabalhos seus podem
arte. O trabalho de alguém que não forçava ser vistos na Pinacoteca do Estado SP e no
circunstâncias para aparecer. MAC-USP. Coleções particulares guardam a
Na única vez que estive na residência maior parte do que produziu.
de um outro grande artista concretista de (09 de fevereiro de 2002)

São Paulo (estava eu, então, com a artista


Sônia Fontanezi), Hermelindo Fiaminghi,
este me mostrou, na parede, uma pintura
sobre duratex e disse: “Este quadro do
Charoux eu o salvei. Estava no tempo,
estragando, servindo de tapume para a casa
2003

do cachorro”. Era ainda um quadro figurativo:

186
RE - CAPITU – LANDO como da melhor prosa que já se fez em

2001
língua portuguesa.
Volta-e-meia aparece alguém que, no Vejamos seus melhores romances e
estrangeiro, descobre Machado de Assis com alguns de seus melhores contos (é como
suas maravilhas do narrar. Joaquim Maria querer escolher os cinco melhores sonetos
Machado de Assis nasceu e morreu no Rio de Camões): Memórias póstumas de
de Janeiro (1839-1908) sendo, portanto, um Brás Cubas (maravilha de livro; ainda
homem do século XIX. Mesmo vivendo a era conservo o exemplar com dedicatória que
de grandes romancistas, percebeu que um me foi oferecido por Dona Cida Manso), Dom
romance, malgrado sua complexa trama, Casmurro, Quincas Borba, Esaú e Jacó
não precisaria ter 1000, 700 ou 500 páginas (para quem quiser saber o que é escrever
e escreveu romances bem mais curtos, bem em português, ou, quando o português
divididos em capítulos curtos (necessidade é a língua mais eficiente do mundo para
2002 de publicação aos pedaços, em jornais e uma prosa ficcional artística), Memorial de
periódicos). Aires (romance em forma de diário: uma
Escreveu, também, contos. Nem vem beleza!); dentre as obras-primas de contos:
ao caso, aqui, falar do poeta e do cronista, O Alienista, A causa secreta (o orgasmo
mas do prosador: fazedor de uma prosa pela dor do outro), A cartomante (que traz
ficcional artística de babar! Aquela de um um incrível índice do desfecho e que valeria
Machado com o senso do EPOS (ÉPOS) já um estudo comparativo com Famigerado,
amadurecido. Há quem o coloque - com de João Guimarães Rosa), A Missa do
justiça, diga-se - entre os maiores prosadores Galo (a sensualidade no ar… sem nenhuma
do século XIX, em âmbito internacional vulgaridade).
(muito embora tivesse contra si o fato de No ginasial do IEDAP, Pirajuí, mas
escrever em Português, língua solenemente principalmente no Clássico, o assunto Capitu
ignorada por leitores de outras línguas). Há (personagem do romance Dom Casmurro)
2003

quem coloque os seus melhores escritos, estava sempre em evidência nas aulas de

187
português, ministradas pela professora inquiridor-narrador não chega a nenhuma

2001
Chainy João Racy, que apresentava a questão conclusão de fato. E essa é uma dentre
com entusiasmo e se recordava das aulas de as grandezas do livro, a de terminar sem
Literatura Brasileira na USP - a Faculdade de conclusão-solução para o problema lançado.
Filosofia Ciências e Letras ainda se situava à O resto todo é a maravilhosa escritura
rua Maria Antônia - com o professor Antônio machadiana, que tem conquistado geração
Soares Amora, genro do filólogo Fidelino de após geração de leitores. Machado: um autor
Figueiredo. Na sala do Clássico, no Pujol, para ser lido principalmente depois dos 20
colegas inteligentíssimas, como a escritora anos, até os noventa. Quanto mais velhos
Marineide de Moraes, a artista plástica e vamos ficando, mais Machado nos parecerá
escritora Selma de Oliveira, a sensibilíssima maior/melhor.
para as coisas da poesia Kikue Uski. Bem, essas reflexões me vieram a
Capitu, alvo da desconfiança do propósito de Machado, mas do Machado
2002 marido - o Bentinho - talvez seja a figura discutido nas salas de aula do Pujol. O que
mais celebrada (discutida, lembrada) de veio depois, só acrescentou ao já sabido.
toda a prosa brasílica de ficção, porque Naquela época, a classe já havia chegado a
justamente cria-se - o narrador-personagem- interpretantes satisfatórios acerca do Dom
protagonista cria - uma dúvida sem chance Casmurro.
de solução em torno dela: Capitu teria ou Machado é a medida para quem escreve
não traído Bentinho? prosa ficcional em português. Machado é
Acontece que muito se conjecturou parâmetro.
em torno disso. Até julgamentos - dignos de (16 de fevereiro de 2002)

um Tribunal do Santo Ofício - se fizeram nas


escolas do Ensino Médio: erro de princípio!
Pois que a dúvida do leitor é a dúvida
do narrador-personagem-protagonista-
2003

suposta-vítima. Apesar dos indícios (?), o

188
IVETE CURI infra-estrutura proporcionada pela família

2001
para fazer um excelente curso, sem outras
Nascida em Pirajuí, em 17 de agosto preocupações além do estudo).
de 1954, Ivete Curi chegou a residir, com Um dado interessante e conflituoso
seus pais, por algum tempo, no Balbinos. envolvia a questão religiosa: por parte do
Depois, nesta nossa cidade, passou a morar, pai: batizada na Igreja Católica, embora
pois seus pais se tranferiram definitivamente a família fosse tradicionalmente (desde o
para cá. Seus pais eram: Salim Curi - o Líbano) Grega-Ortodoxa; por parte de mãe,
primogênito do Chico Turco - aqui nascido e também cristã, era neta de David José
sua mãe, Lídia Ashkar Curi, natural de Novo Ashkar, um ministro muito culto da Igreja
Horizonte. Presbiteriana Independente, libanês que se
Era a mais nova de três filhos, tendo sido havia fixado em Novo Horizonte. Não sei até
criada, desde o berço, como um ser precioso. que ponto isto poderia ter sido um problema
2002 O pai, em especial, a tinha como um bem para ela, pois eu, um de seus primos mais
acima de qualquer outro e ela correspondeu chegados e um interlocutor contumaz, não
sempre em amor e dedicação. Como todos me lembro de ter conversado com ela sobre o
da família - e isto inclui outras crianças: assunto. De qualquer maneira, dentro de um
os seus primos - foi amamentada por um Cristianismo coração-de-mãe, sem nenhum
longuíssimo período, o que fez - penso - com fanatismo, ela vivia a oscilar, de acordo
que se sentisse atada eternamente à casa com as poucas obrigações de celebrações
dos pais (não sei o quanto esta afirmação religiosas.
teria um respaldo científico). Em Pirajuí fez As complementações dos estudos
os seus estudos, até o Colegial, sempre da Medicina cursada em Marília, ela as fez
como uma aluna exemplar; daí, resolveu os principalmente em São Paulo, passando,
seus estudos superiores pela Medicina, que como era obrigatório, pela Santa Casa
cursou em Marília (os pais a queriam mais e outros hospitais. A Cardiologia foi o
2003

ou menos perto e a boa aluna teve toda a departamento por ela escolhido e aí,

189
recebeu instruções, que eu me lembre, dos brilhantemente me falou de Pneumotórax,

2001
Doutores Adib Jatene e Michel Batlouni, que em termos médicos, pois que eu deveria saber
se tornaram seus amigos e que chegaram disso para poder estar prepado para perguntas
a insistir para que ela fizesse carreira em de alunos-crianças quando estivesse falando
São Paulo, o que ela não quis. Acabou por de Manuel Bandeira e seu famoso poema
se fixar definitivamente em Pirajuí. Porém, autobiográfico PNEUMOTÓRAX.
sempre participava, como observadora, de Além de uma ligação de amadora
Congressos de Cardiologia (em Campos do com a música popular - e eu, durante anos
Jordão, entre outros lugares, cidade que ia à sua casa ouvir Beatles e depois da
ela adorava. Seus antigos mestres, quando separação dos componentes do grupo de
também presentes, vinham lhe dar um Liverpool, os discos de Paul, John, George
afetuoso abraço). Seu medo extremo de avião e Ringo, separadamente - às vezes se
a impediu de viagens ao exterior e, talvez, de maravilhava com algum conto, filme, poema
2002 alguma especialização dentro de sua área, e me comunicava. Surpreendeu-me, certa
nos Estados Unidos, por exemplo. Excelente vez, sua referência, com grande admiração,
médica, ficava, às vezes, aflita ao ver que não ao Ficções, de Jorge Luis Borges. Doutras
poderia fazer uso de todos os procedimentos feitas, chegou a descrever, emocionada - ela
com relação a um paciente, pois nem sempre que passava a idéia de possuidora de uma
certos recurcos se encontravam disponíveis. fria objetividade - episódios de vida-morte
Tinha grande paciência, principalmente com experienciados por sua atividade de médica
os mais humildes, para os quais explicava as e que eu, com modificações, utilizei em meu
coisas adequando o repertório, reformulando trabalho ficcional.
para tornar inteligíveis as coisas. Nisto, Há pessoas que não aceitam o desligar-
lembrava um pouco o Dr. Dráusio Varella. se do núcleo familiar de origem. Não aceitam
Professoral às vezes: sempre que eu para si outra família além daquela dentro na
precisava de explicações, recorria a ela que qual nasceram. Não aceitam vir a formar um
2003

as dava pacientemente. Lembro-me de quão outro núcleo, apartado daquele originário.

190
Conheço, de perto, muitas pessoas assim e assistiu nos últimos momentos, no Hospital

2001
elas são tudo o que, em última instância, da Beneficência Portuguesa, em São Paulo
um pai, uma mãe podem esperar, pois são (para onde fora transferida de Bauru, por
os filhos que têm os maiores cuidados com avião!), às 15h45 do dia 14 de fevereiro deste
os seus genitores. Era o caso de Ivete que, a 2002. As causas da morte, relacionadas pela
partir do momento em que o pai apresentou médica foram: a. Parada cárdio-respiratória;
problemas delicados de saúde, não poupou b. Insuficiência respiratória aguda; c. Infarto
esforços. O pai era uma espécie de ente cerebral extenso; d. Acidente vascular
superior, amado, idolatrado e ela fez tudo encefálico embólico maciço; e. Hipertensão
o que pôde para mantê-lo vivo e sem muito arterial sistêmica.
sofrimento (não permitiu, por exemplo, uma Tudo indica que houve resistência ao
cirurgia de risco, o que veio a provar que tratamento por parte da paciente: teria ela
ela tinha razão, pois o pai sobreviveu por consciência da extensão do problema? No
2002 muitos anos, tendo chegado aos 84). hospital, nas visitas que fiz a ela na UTI,
Ela não suportou a morte do pai, pelo menos em três vezes ela pareceu ter
ocorrida em julho de 2001, tendo sido melhorado e reconhecido a mim, ao Carlos
acometida de uma tisteza que, aliada ao Cury, à Jamila Neme e ao Camal Rachid.
descuido com relação a si própria (que Depois, desandou a dormir, sedada ou não.
necessitava de cuidados) acabou causando Na visita de 5ª feira à tarde, dia 14 de
os problemas que a levaram à morte. Com fevereiro, não pudemos, eu e Jamila entrar,
seus pacientes - basta perguntar a qualquer e tivemos de aguardar a médica, que veio
um deles - continuava com o mesmo rigor com a notícia-bomba.
nas prescrições. Desespero. Choro. Telefonemas.
Pouco mais de duas semanas sofridas Comoção geral na cidade. Dor da mãe e
para ela e para seus familiares, amigos demais familiares e dos amigos e amigas
e clientes bastaram para levá-la de nós. e clientes-amigos. O choro sentido das
2003

Faleceu, segundo relatório da médica que a pessoas que estavam sob os seus cuidados

191
pôde ser visto nas várias horas que durou pouco mais de quarenta anos, em Baltimore,

2001
o seu velório em Pirajuí. A Profilaxia é mais em 07 de outubro de 1849, encerrando um
importante. As Terapias (terapia quer dizer processo vital que acumulou glórias (mais
cuidado com alguém) sempre envolvem póstumas) e dissabores - menos alegrias
perigos maiores… que sofrimento.
Jamais saberão os Beatles, do amor de Os muito jovens ouvem falar dele como
Ivete por sua música. Seus clientes, parentes de alguém admirado por algum rock’n’roller
e amigos, ao contrário, terão motivos para que o cita, assim como cita o misterioso
dela se lembrar sempre e sempre. Suas Rimbaud, o menino-poeta que fez tudo - e
qualidades maiores: Honestidade, Dedicação, esse tudo foi muito - antes de completar 20
Competência, Discrição. anos de idade, embora tenha morrido com
Ela sobreviverá rigorosa, aflita e trinta e tantos. O papa das comunicações,
amorosa em nossas memórias! Mas deixa Marshall McLuhan fala de Poe como sendo
2002 um pouco mais vazias as nossas vidas, nós o inventor do moderno conto policial e do
que a amávamos. REQUIESCAT IN PACE. poema simbolista.
(23 de fevereiro de 2002) Há muito de verdade nessas afirmações.
Poe foi descoberto, amado, traduzido e
cultuado na França, a começar, por Charles
Baudelaire - o poeta e comentador de seu
tempo, que inaugura a Modernidade - e,
EDGAR (ALLAN) POE daí, por toda uma plêiade que se estende de
Mallarmé a Barthes, passando por Verlaine,
Nascido em Boston (EUA), em 19 de Rimbaud, Debussy, Lacan e muitos outros. O
janeiro de 1809, esse exato contemporâneo nosso Machado de Assis, não só leu e amou
de Chopin - o músico polonês romântico, Poe, como traduziu seu mais célebre poema:
gênio de composições para piano - Edgar O Corvo, também traduzido magistralmente
2003

Poe (Edgar Allan Poe) veio a falecer com por nosso irmão luso Fernando Pessoa.

192
Porém, o mundo veio a conhecer Poe geração, coleciona aficionados de suas arte

2001
através da França, ou melhor, do trabalho e manhas.
de tradução e divulgação feito por poetas É interessante que Edgar Poe, em sua
franceses, do quilate de um Baudelaire e ficção, quando coloca inteligência extraordinária
de um Mallarmé. numa personagem, esta é sempre francesa (ou
Más línguas pensam ser Poe um de origem francesa). É o caso de seu detetive
escritor menos grande do que o que diz (pai de Sherlock Holmes) Auguste Dupin,
a sua fama, chegando a dizer que sua francês que opera em Paris e que resolve
grandeza - suposta - seria invenção dos problemas aparentemente insolúveis (veja-se
franceses, que gostariam em Poe o que “A Carta Surripiada”). No maravilhoso conto “O
há de francês nele. Falta de sensibilidade Escaravelho de Ouro”, a personagem principal
seria o que se poderia dizer para essas decifra uma mensagem criptografada e chega
pessoas, sem precisar ter de ofender. Poe a um fabuloso tesouro: trata-se, o decifrador,
2002 foi um grande escritor, ou melhor: foi um de William Legrand, natural da Luisiana (área
grande narrador (contos sempre escritos de colonização francesa incorporada pelos
em primeira pessoa), poeta e teórico Estados Unidos) e descendente de protestantes
(seu texto “A Filosofia da Composição” calvinistas franceses (huguenotes). O próprio
é obrigatório para quem estuda Teoria nome Legrand é francês (legrand = le grand =
Literária, em especial Poesia). o grande).
Seu inglês, tido como pedante, é Não se pode saber até que ponto isso
carregado de francesismos e de expressões tudo influenciou o juízo dos franceses. O que
de cunho erudito; o ritmo em sua poesia é é óbvio é que aquela legião de admiradores
um tanto monótono, dizem; na teoria, ele não estaria enganada com relação ao valor de
é por demais cerebral! Poe. Antes, percebeu a genialidade do criador
Defeitos para uns, qualidades estadunidense, genialidade da qual também
para outros. Acontece que Poe foi (e é) compartilhavam!
2003

absolutamente genial e, geração após (02 de março de 2002)

193
SOBRE A ESCRAVIDÃO normal a sua condição… até que surge a

2001
revolta: da antiga Roma ao Brasil-Colônia
A escravidão foi (e pode até estar e Independente: houve muitas formas de
sendo) uma instituição de muitas das resistência à escravidão: da conservação
sociedades humanas de que possuímos de traços da cultura original às rebeliões,
documentação. Existiu com maior ou passando pelo aborto.
menor intensidade, em diversas épocas e A guerra é uma das máquinas de
lugares. Temos dela muitos registros na se fazerem escravos: já em Heráclito de
Antigüidade: no “Código de Hamurábi”, Éfeso, Frag. 53: “A guerra é pai de todas
que é da 1ª metade do II milênio aC (e as coisas, de todas, rei. Alguns revelou:
não é o primeiro código escrito de leis da deuses; outros: humanos. De uns fez
História - pois que já havia leis escritas - escravos; de outros, homens livres”. Veja-se
mas é a primeira grande compilação de leis o comércio de escravos ao longo dos séculos
2002 que se conhece), nas sagradas escrituras do na costa africana: europeus (a começar
“Velho Testamento”, nos textos dos filósofos pelos portugueses) incentivavam guerras
gregos: de Heráclito de Éfeso a Aristóteles entre tribos para conseguirem os escravos:
(interessante dar uma olhada no que disse objeto de um lucrativo comércio. Perder
Aristóteles da escravidão) - a escravidão uma guerra: ó infortúnio. Veja-se a tragédia
corria solta na civilizadíssima Grécia Antiga de Eurípides As Troianas. Pobres mulheres.
(ou melhor, no Mundo Grego). Realezas, nobrezas, ralé: todo perdedor é
As sociedades que possuíam escravos, um desgraçado e se torna um cativo. Da
achavam aquilo a coisa mais mormal do África, príncipes e princesas vieram para o
mundo e desgraça mesmo era, por um Brasil: escravos!
motivo ou outro, tornar-se um escravo (gente O que faria de alguém, um escravo?
famosa era ou se tornou escravo, mas isto É bom logo dizer que não é a etnia, a cor
já é uma outra história). O escravo, como da pele, a falta de refinamento intelectual.
2003

os despossuídos, podem acabar achando O que seria, então? O poder que uns têm

194
de subjugar os outros. É isto: o poder. Agora, como é que alguém poderia

2001
Quaisquer outras explicações entram como se tornar escravo? De muitas maneiras:
meras justificativas de ordem ideológica. Ao a. Perdendo uma guerra. Prisioneiros:
longo da História, as mais variadas etnias escravos. b. Sendo filho de escravos. c.
foram vítimas da escravidão: brancos, negros, Por endividamento. d. Através do rapto:
vermelhos e amarelos. O poder de subjugar! pessoas eram raptadas e vendidas em
Imaginem em outros tempos: escravas lugares distantes do de origem. e. Crianças
jovens e belas como, por exemplo: Carolina abandonadas poderiam ser acolhidas como
Ferraz, Tânia Nomura, Cléo Brandão, Isabel escravas. Felizmente a escravidão acabou,
Valença, Letícia Sabatella, Luísa Brunet! tendo sido o Brasil, no Ocidente, um dos
(Quem se interessar, poderá procurar as últimos países a aboli-la. Nossa Constituição
versões masculinas para esses monumentos garante que somos todos livres.
femininos). Pois é, muitas etnias foram Porém, de vez em quando aparecem
2002 vítimas do jugo dos mais poderosos. notícias estarrecedoras de escravização de
O que caracterizaria um escravo? No pessoas em fazendas da Amazônia brasileira
sentido mais geral, um “escravo de cartilha” e outras tantas áreas de nosso País. É óbvio
seria assim: 1. Ele é tido como propriedade do que, uma vez detectado o problema, a coisa
seu senhor (e, aí, difere do servo medieval, é debelada pela polícia. Mas é inconcebível
que era um explorado que estava preso que deixemos a coisa chegar a esse ponto.
à terra), uma mera mercadoria, passível A Profilaxia é o melhor dos remédios.
de compra, venda, troca, podendo até ser Como se pode ver, a Humanidade, tão
libertado pelo seu senhor. 2. Todo o fruto do capaz das mais belas coisas, é, também,
seu trabalho pertence ao seu senhor (que capaz das maiores vilezas!
até, caso queira, pode destinar-lhe uma (09 de março de 2002)

pequena parte). 3. A condição de escravo


é transmissível aos filhos (ou seja, filho de
2003

escravo: escravo).

195
ADENTRANDO SÃO PAULO PELA VEZ qual ou pouco modificados - as pessoas,

2001
PRIMEIRA porém, em grande parte, já se foram,
inclusive meu pai.
Foi em 1954 a primeira vez em que O elevador do hotel. Minha primeira
estive na cidade de São Paulo. Era o ano refeição, em que, aperitivando um tomate,
do IV Centenário da capital do Estado (de o prato foi recolhido pelo garção enquanto
sua fundação oficial). Tínhamos ido: minha eu, curioso, debruçava-me na janela do
mãe, eu e mais meus três irmãos - éramos restaurante para apreciar a festa que era o
quatro irmãos; o quinto só viria a nascer movimento de rua. O Largo do Paissandu,
em 1961. Meu pai já se encontrava na onde meu pai mantinha um apartamento
Paulicéia e nos esperava. num edifício recém-inaugurado, prédio
De Bauru a São Paulo, uma divertida cujo saguão, decorado com pinturas,
e confortável viagem (pareceu-me. Talvez impressionou-me.Revisitando-o
2002 não para minha mãe, sempre preocupada recentemente, vi que o aspecto mantém-
com tudo). Trem da Companhia Paulista. se o mesmo: as tais pinturas ainda estão
Desembarque na Estação da Luz, uma lá. Os bondes e automóveis pelas ruas. A
maravilha para meu universo visual: a Praça Buenos Aires, em frente à casa de
grandeza, a beleza, o movimento de gente, uma irmã de meu pai (hoje há um alto
como até então eu não havia visto. De lá edifício no lugar) e a empregada de nome
para o hotel, Palace Hotel, cuja entrada Clara - nome estranho, para mim, que logo
principal dava para a Rua Florêncio de o associei com gema… de ovo! O Largo do
Abreu. Centro de São Paulo! Café, no centro velho (hoje restaurado),
Dessa estada, numa São Paulo já onde o caríssimo tio Daud possuía um
impressionante, mas tão diferente daquela pequeno bar. A conversa que tive com ele,
em que vivo hoje, ficaram-me lembranças irmão de meu pai e companheiro de viagem
muitíssimo vivas de gentes e lugares, de Judaida Mardjayun a Tiro a Beirute a
2003

sendo que alguns ainda remanescem - tal Santos e a Bocaiúva, hoje Macatuba. A

196
minha agressividade com relação a uma enfrentar. Depois, fui estudar lá: foi um

2001
moça que pensei ser, em São Paulo, a período muito sofrido, em que era infeliz
namorada de meu pai: desarrumei, num e sabia, mas durante o qual procurei tirar
rompante de raiva, uma cama do tal o maior proveito em termos de angariar
apartamento do Paissandu, ao que ela me informações adequadas para minha
disse: “Nem te ligo, a cama é do seu pai sobrevivência futura.
mesmo!” No Instituto Butantã com meu Voltei para Pirajuí formado em
pai: os fossos e as cobras; vitrines ao ar História pela FFLCH da USP e não consegui
livre com aranhas, cobras etc. Em casa me encaminhar profissionalmente como
de um outro tio, o Michel: televisão; foi professor. Daí é que, retornando, encontrei
a primeira vez em que vi um aparelho o meu lugar e vivi dois dos períodos mais
de TV ligado e parece que não fiquei tão felizes de minha vida: 1º lecionando numa
curioso (lembro-me do chuvisco próprio escola de Vila Granada (a EEPG “Almirante
2002 da televisão em pb dos primeiros tempos; Custódio José de Mello”) e 2º cursando
ou talvez fosse momento de intervalo na Comunicação e Semiótica na PUC, em nível
programação que, naquele tempo, não era de pós-graduação (Mestrado e Doutorado).
contínua). As brincadeiras no elevador do São Paulo, para mim, passou a ter um
hotel (minha mãe deveria estar louca com outro sentido: voltei a amar a cidade e
meninos tão levados). Não me lembro de a fazer coisas, além de simplesmente
nada que não tivesse sido agradável, a não trabalhar para o meu sustento: toda uma
ser as caixas coloridas que eu colecionei atividade como poeta, editor e impressor.
no hotel e que, vindo embora, lá ficaram. Amo São Paulo. Amo Pirajuí.
Nos anos 60, fui inúmeras vezes a Dificilmente deixei de vir para cá, pelo
São Paulo, quase sempre sozinho, embora menos uma vez por mês, ou telefonar
menor de idade: pegava a autorização toda semana, ou até mesmo diariamente,
no Juizado de Menores e me mandava e para minha mãe. Aqui fica metade do
2003

adorava a cidade, que nunca tive medo de meu coração. A outra está em São

197
Paulo. Lá estão os meus mais pacientes a Via Dutra? O que teria ido fazer no Rio

2001
interlocutores… de Janeiro e por tão pouco tempo? Por que
Pirajuí, 27 de janeiro de 2002. levou consigo entes queridos? Quereria que
(16 de março de 2002) eles conhecessem a Cidade Maravilhosa? O
acidente aconteceu na volta, quase chegando
em São Paulo e até virou notícia de 1ª página
de jornal sensacionalista.
Em conversa com o pai (que
chorava sentidamente), no dia do trágico
acontecimento, ouvi a seguinte história:
O automóvel - um fusca - havia saído da
ROBERTO MIGUEL ATTUY estrada em alta velocidade e mergulhado
em cheio numa árvore, o que causou a
2002 Egito Antigo. Gauguin. Billie Holiday. morte instantânea dos três ocupantes.
Como abordar os três mencionados assuntos Porém, no tal fusca, havia marcas de tinta
sem me lembrar, imediatamente de Roberto de um outro veículo, o que fazia crer que
Attuy? Mal completou vinte e três anos e se havia sido abalroado e, daí, Roberto ter
foi, tragicamente, por conta de um acidente perdido o controle e ter saído da estrada.
de automóvel que levou mais dois: a tia O dono do automóvel - provavelmente um
Leontina (Nenê), que o tinha como filho e o amigo que eu não conhecia - parecia muito
irmão René, menino adorável e amado por mais preocupado em reaver uma bolsa que
todos que o conheciam. continha documentos do que com a tragédia
Mistérios cercaram os acontecimentos: em si: isto intrigou o pai e irmão das vítimas,
Como é que alguém (um amigo) empresta um o Xixo. Ninguém nunca se preocuparia em
automóvel para um motorista que, embora verificar e talvez que nem desse para fazê-lo:
habilitado, não possuía prática de volante, houve mesmo o abalroamento? Quem teria
2003

principalmente em se tratando de enfrentar feito isso sem prestar socorro às vítimas? O

198
pior já havia acontecido. Era o ano de 1972 saímos de automóvel com Roberto - um

2001
(31 de julho), eu havia acabado de regressar Sinca - da Rua Dr. Villa Nova à Consolação:
das férias de julho, de Pirajuí, e a notícia me susto após susto: demos a ele uma grande
chegou como uma bomba. Estive na casa prova de amizade. Ele era decidido, arrojado,
onde então morava com a família, em Santo mas estava longe de ser considerado um
Amaro: a mãe, Dona Neusa, em estado de motorista, sequer razoável.
choque, estava sendo assistida por médico; o Nascido em Andradina (SP), em 1949 (28
pai, desesperado, contava-me coisas e fazia de julho), criou-se em Pirajuí, principalmente
observações - sempre chorando - como que na casa da avó Dona Miriam Attuy e sob os
querendo recuperar, agarrar com as mãos cuidados da tia Nenê, aí permanecendo até
da memória, algum fato… mostrou-me seu o início da adolescência (fez até a 2ª série
último quadro: um paredão vermelho, uma ginasial no IEDAP, em 1963), quando partiu
grade simples de cela com barras dispostas de vez, com a tia, para São Paulo, juntando-
2002 na vertical, uma tênue fumaça branca saindo se ao restante da família (pai, mãe, mais
e, embaixo (se bem me recordo), escrito três irmãos), retornando de raro em raro
pequeno: “aqui estamos, até quando?” para rever a avó, tios (as queridas tias
Parecia algo profético e que evocava o título Helena e Edith; esta, uma grande mulher,
de uma pintura do seu amado Gauguin. falecida há pouco), primos e amigos. Seu
Na república em que eu morava, a talento para o desenho, a pintura, mais a
última pessoa a ver Roberto foi Reinaldo modelagem apareceram desde muito cedo:
Rizzo. Roberto - grande amigo meu, desde chegou a construir complexos arquitetônicos
a infância - havia ido me procurar e eu não em miniatura, contendo figuras, os quais
estava. Conversou com Reinaldo e este me evocavam o Antigo Egito. Seus desenhos
disse que ele falava com a tranqüilidade de sempre causavam surpresa e admiração em
um deus, como alguém que havia encontrado nós, os amigos, e na professora, Dona Maud
a (ou, pelo menos, uma) verdade. Dias Pires Arruda. Recentemente, conversando
2003

antes, porém, eu com meu irmão Richard com Paulo Miranda, este me disse que

199
Roberto seria mais um grande publicitário rara amizade, que terminou com sua morte

2001
que um pintor, numa época em que a pintura há alguns anos.
já era uma ilustre e finada arte. Roberto chegou a trabalhar como
Extremamente simpático, publicitário, projetista e pintor decorador,
possuía, também, como qualidade, uma executando painéis que não sei se ainda
generosidade rara. Em tudo que fazia se existem em estabelecimentos comerciais da
notava diferenciação: era uma espécie de cidade de São Paulo. Tão novo e desapareceu
Midas, que valorizava tudo o que tocava. assim, tão tragicamente. Penso que a sua
Era uma figura bela e elegante, de uma morte tenha sido determinante para que eu
beleza mais árabe que lusa. Gauguin: o seu abandonasse a pintura - sempre sonhei ser
pintor preferido e grande influência (seguido pintor - o que de fato ocorreu em 1974.
do Van Gogh dos girassóis). Billie Holiday, No ano passado, quando da realização
uma descoberta, quando já vivia em São da exposição sobre arte do Antigo Egito, na
2002 Paulo e que procurou passar para quantos FAAP, fiquei a imaginar coisas, como a de
freqüentassem a sua casa, sempre aberta um encontro marcado com ele em frente ao
e acolhedora. Tinha grande estima por Prédio 1 daquela instituição, para visitarmos,
mim e procurou me colocar no circuito das juntos a mostra… (sempre que penso no
artes, através de exposições em galerias, ocorrido, tento fantasiar como a coisa teria
como a Vila Rosa e a Scala, e de contatos sido: não fosse a tal árvore e todos estariam
que possuía em jornais. Foi através dele sãos e salvos; não fosse a imprudência de ter
que conheci o casal João Jorge Rosa Filho voltado à noite, cansado - o acidente se deu
e Samira Chalhub: ele, na época, um dono de madrugada; se vivo, hoje, Roberto seria,
de galeria, além de artista plástico; ela sem dúvida alguém de sucesso, cavador e
uma ainda estudante universitária, mas já talentoso, como era. Mas - aprendi - em
professora de literatura. Seriam grandes História lidamos com o ocorrido, não há
amigos meus, mais Samira que, depois de se…). O sonhar conforta e não é proibido!
2003

encontros e desencontros, cultivamos uma Cheguei a organizar uma exposição

200
com trabalhos seus no Salão Nobre do IEDAP, considerando a classificação da Semiótica

2001
lá pelos idos dos anos 70; foi um mínimo (o Signo com relação ao seu objeto) como
que pude fazer, por Roberto Attuy, pessoa um símbolo (um 3º) mais do que como um
que, de fato, deixou um grande vazio com Índice (um 2º), justificando que a captação
o seu passamento. Paulo Miranda chegou a da imagem real tem tanta intermediação até
escrever para o JORNAL DE PIRAJUÍ (dirigido se corporificar signo (fotografia), que está
pelo Sr. Basílio Altran) um belo artigo, que mais para símbolo. Arlindo Machado não
eu gostaria de ver republicado agora, neste é, de fato, um semioticista e não chegou a
semanário. perceber que o que interessa aí é a questão do
Numa próxima oportunidade, enviarei fundamento do signo e o que fundamenta
reproduções de desenhos seus, que conservo a fotografia (estou falando numa “fotografia
em meu arquivo e talvez uma preciosa foto de cartilha”) é a conexão dinâmica com
que fiz dele à Rua 7 de Setembro, em frente o objeto, daí a necessidade de um objeto
2002 à extinta Riachuelo. Ao fundo pode-se ler o dinâmico real, existente. Nem é o caso de
texto: CORES FIRMES. Ah! a memória… evocar as mais avançadas tecnologias,
(30 de março de 2002) capazes de manipular e alterar a imagem
captada. Fotografia é fotografia, mesmo sem
negativo, utilizando equipamento digital.
A fotografia é um índice porque
tem por fundamento a conexão dinâmica
AINDA A FOTOGRAFIA… exigindo, portanto, como objeto dinâmico,
um existente. É claro que é um índice com
No último ensaio de seu último forte teor de iconicidade (semelhança
livro - uma reunião de ensaios: O quarto com o objeto, mas não é isto, porém, que
iconoclasmo e outros ensaios hereges - a fundamenta enquanto signo); todo índice
Arlindo Machado, um dos maiores estudiosos é fortemente icônico e mais, no caso da
2003

das comunicações/meios coloca a fotografia, fotografia, há fortes traços de simbolicidade

201
pelo fato de ela mobilizar, como os hipo- estaria bem próxima, já que teria de ser algo

2001
ícones imagens, muitas convenções até se de dentro de sua própria casa; em terceiro
corporificar signo. Porém, o que importa é lugar, veria que Historia é tudo e todos têm
o seu traço indexical: é isto que faz com a sua, que pode ser reconstituída tendo por
que fotografias emprestem, por exemplo, a base uma variada documentação.
matérias jornalísticas, credibilidade. Porém, Uma aluna, certa vez, selecionou como
o signo fotográfico - mesmo no caso do documento uma foto de família que retratava
fotojornalismo - é apenas um signo, não o real, um jovem rapaz, de pijama, reclinado, numa
mas um signo especial, porque traz marcas cama. A pose indiciava alguém que sabia
físicas do seu objeto (o jornal também não é que estava sendo fotografado - olhava,
a realidade: são apenas signos intentando, então, para a lente da câmera e consentia.
através de uma linguagem referencial, Tratava-se de um belo rapaz, tipo do William
apresentar um recorte da realidade, daquela Holden jovem dos filmes que eu havia visto.
2002 que a linha editorial do jornal admite). Discorrendo sobre o documento, a aluna-
Bem, em minhas aulas de História, menina disse tratar-se de um seu tio. A foto
no antigo primeiro grau, determinava aos fora tirada num certo dia… Uma semana após
alunos trabalhos que não dessem chance a a fixação da cena, ele morria! A foto do rapaz
cópias: o que é mais cômodo fazer, já que doente foi feita como que prevendo o triste
nem é preciso pensar. Alguém mais velho até desfecho. Não é de se estranhar isto: o fato
poderia auxiliar (feliz de quem dispõe, em de se posar para a posteridade, contando,
casa, de um leitor contumaz e palpiteiro), é claro, com alguém que tenha interesse
porém, o aluno deveria compreender a em preservar aquela memória. Documento
tarefa. Um dos trabalhos era localizar um privilegiado, a fotografia tem a vantagem de
bom documento fotográfico envolvendo a trazer as marcas mesmas do objeto que a
própria família. Em primeiro lugar, o aluno determinou (a tal menina tivera, de fato, um
compreenderia que documentos não eram tio…). Em outros tempos - nem tanto assim
2003

apenas os escritos; em segundo, a coisa - faziam-se máscaras mortuárias: o molde

202
era feito por contato direto com o morto, ALÉM DA SEMÂNTICA

2001
processo indexical, portanto. Era muito
comum, também, fotografarem-se crianças As obras de arte possuem qualidades
mortas, costume que acabou caindo em tais que, sem que haja delas um entendimento
desuso. Hoje, quando tenho chance, digo às global - o que, de qualquer maneira, não
pessoas que se deixem fotografar bastante, as esgota - é possível apreciá-las naquilo
para que tenham documentada a sua beleza que elas têm de mais evidente, que é a sua
jovem - a beleza tem preferência quase forma. FORMA é fundamental em se tratando
exclusiva pelos jovens. Mas esse é apenas de Arte, muito embora não se possa separar
um dos múltiplos aspectos da fotografia que, conteúdo de forma, mormente nas artes.
de técnica, passou a ser ela mesma arte, A poesia, tida como a arte da palavra,
recusando o papel de mero documento, de por excelência, põe em destaque o aspecto
simples, embora privilegiado registro de material dos signos lingüísticos, como
existentes. colocou Roman Jakobson, que escreveu
2002
Lembrando-me da foto daquele jovem o último (até agora) dos grandes textos
trazida pela aluna, inevitável ocorrer o “a teóricos sobre poesia. Diz ele que a função
vida inteira que podia ter sido e que não foi”, poética se configura quando se dá a projeção
para ficar com Bandeira, que não teve a vida do eixo de seleção sobre o de combinação,
desejada, mas sobreviveu até se tornar um determinando o arranjo. Isto significa que o
octogenário. É correto pensar assim? som é fundamental em poesia e que, a rigor,
(13 de abril de 2002) textos poéticos são intraduzíveis, a não ser
que - como diz ele em outro ensaio - haja
uma re-criação.
Muitos autores, alguns poetas-
teóricos, outros apenas teóricos sensíveis
(Pound, Eliot, Steiger) têm dito quer a poesia,
2003

principalmente a Lírica, apresenta qualidades

203
tais que podem ser apreciadas mesmo conteúdo e não percebem que a forma é

2001
por pessoas que desconheçam o idioma que atrai e convence. Quem quiser que tire
no qual o texto poético está expresso. Ou a prova ouvindo textos poéticos em línguas
seja: estabelece-se um tipo de comunicação estranhas, tentanto perceber belezas.
em termos de uma seqüência significante Belezas além de uma semântica, que às
especial, que resulta de um trabalho especial vezes pode vir a parecer tão banal. Digam
com as palavras, especialidade dos poetas. em voz alta:
Ou, em outros termos: há uma seqüência de Tyger, tyger burning bright, de William
tal modo eufônica, que um ouvido sensível vai Blake ou o Comigo me desavim, de Sá de
logo perceber: essa beleza - som agradável. Miranda, esquencendo-se de que sabem o
E a tal beleza é percebida desvinculada da inglês e o português!
dimensão semântica. Recapitulando: a poesia, especialmente
É isto que muitos não percebem e a lírica, apresenta qualidades tais que vão
2002 criticam os jovens que, mesmo não sabendo além da dimensão semântica das palavras,
inglês, por exemplo, podem apreciar qualidades que possibilitam algum tipo de
dezenas de composições cantadas e até comunicação com todos, o que - desconfio
cantam junto, como que num processo de - faz muito bem para a alma.
captação onomatopaica (repetem o que (27 de abril de 2002)

ouvem ou o que pensam ouvir, criando


um estranho idioma). Isto demonstra que
há uma comunicação de sonoridades que
se estabelece, independentemente de um
sentido que corre junto e mesmo que sem
os atrativos propriamente musicais. PAULO LEMINSKI
Isso que eu estou dizendo com base
no que li e vivi costuma ser abominado Paulo Leminski (Curitiba.PR.1944-
2003

por aqueles que vivem em busca de um 1989), precocemente contava com um

204
repertório, em termos de cultura geral, acima Oswald de Andrade, de mistura com o haiku,

2001
da média e muito cedo entrou em contato do Japão, que tanto admirava. Aí, acabou
com a poesia e crítica mais avançadas que se tendo alguma afinidade com os poetas ditos
faziam no Brasil, pois travou conhecimento marginais, mas muito superior a eles em
com os poetas concretos (o encontro, anos qualidade, pois que era muito mais bem
‘60, em MG). Publica poemas em INVENÇÃO informado e com coragem artística. Aliás, dos
4 e 5 (1964-67), porém, foi nos anos ‘70 poetas de linha construtiva mais verbais, ele
que realmente alçou vôo como poeta e como foi o que realmente encontrou um caminho
autor de uma prosa experimental, de fato e um público. Sua poesia (engenhosa e sem
admirável, do livro Catatau, que tem como hermetismos) e sua metalinguagem (sem
ponto principal do argumento o transplante propriamente originalidade, trocando em
do filósofo René Descartes para o Brasil claros miúdos complexidades de outrem)
tropical holandês, à época de Maurício de encontaram o público que o Catatau não
2002 Nassau. Prosa densa, posto que muito havia encontrado.
trabalhada, o Catatau não teve até hoje Agitador cultural, publicou nas revistas,
muitos leitores, embora tenha sido feita uma das marginais às não tão marginais e nas
segunda edição do livro. Porém, juntamente do Sistema e editou suplementos. Chegou
com algumas poucas obras, o Catatau, de a freqüentar a mídia; havia sido publicitário
Leminski se integra ao melhor conjunto de e esteve apaixonado pelo métier de letrista
prosa que se fez no Brasil, depois de 1950. de música popular. O melhor Leminski
Leminski publicou livros de poemas poeta: aquele dos poemas os mais breves,
(dizia-se que estava inflacionando a arte de verdadeiros tiros, golpes de ar e caratê. Em
João Cabral), nem sempre mantendo o nível MUDA, recebeu dos editores um tratamento
de excelência que ele conseguiu firmar: uma de grande poeta (era visto como a grande
dicção cada vez mais distante das conquistas figura), opinião que nem sempre foi mantida
dos amigos concretistas, uma redescoberta depois.
2003

de um certo Modernismo, com Bandeira e Nos anos ‘70, quando editava o PÓLO

205
CULTURAL/INVENTIVA, chegou a articular o que tivéssemos laços de amizade mais

2001
que acabou sendo um esboço de movimento estreitos, mesmo ele passando temporadas
ou de grupo, encontrando afinidades que na capital paulista, onde eu residia e resido.
justificariam, já, uma poesia bem diferenciada Foi pena. Poderíamos ter trocado mais
das anteriores, ao que ele proclamou em figurinhas. Penso que quem mais perdeu fui
artigo no PÓLO: o “X poetas & uma geração eu, mas, o que fazer diante do irremediável?
possível”. Possível, mas inviável. Como o Leminski se foi prematuramente por descuido
Tempo veio a mostrar pouco depois. próprio. Deixa uma obra que necessita de
MUDA e a ANTOLOGIA que foi maior exame para que se chegue, de fato,
organizada no PÓLO constituíram-se no a uma avaliação global da mesma. Fica -
coroamento de todo um processo: as coisas sem dúvida alguma - uma obra de grande
se tornaram claras: dentre os poetas que importância para a Literatura Brasileira da
nos anos ‘70 mais se empenhavam com segunda mentade do século XX. Curitiba,
2002 a experimentação, havia como que duas sem Leminski, parece erma e sem graça.
vertentes - uma mais ligada às coisas Em tempo. O livro de Toninho Vaz ( Paulo
do verbo e outra mais envolvida com a Leminski: o bandido que sabia latim.
fusão de códigos, mais, digamos assim, Rio de Janeiro, Record, 2001) - em muitos
intersemiótica. momentos, mal escrito, mas que, apesar
Conheci Leminski pessoalmente nos das várias incorreções (como a de colocar
anos 70 e cheguei a encontrá-lo algumas Augusto de Campos como organizador da
vezes, sempre em São Paulo (conheci, revista MUDA!) consolida o mito Paulo
também, sua esposa, a poeta Alice Ruiz e, Lemiski. Décio é visto pelo autor com
depois, suas lindas filhas: Áurea e Estrela). nenhuma simpatia; chega a utilizar de
Houve uma espécie de empatia entre nós, que maneira pejorativa o título de “professor”:
se traduzia em algumas gentilezas dele com o professor Décio Pignatari… Décio
relação a mim, como o envio de trabalhos, é colocado como uma espécie de vilão,
2003

principalmente. Interesses outros impediram entidade repressora, cortadora de baratos.

206
O biógrafo opta por traçar um percuso, diga-se) a Ciccilo Matarazzo (o idealizador),

2001
mais de envolvimento de Leminski com agora estamos apenas na 25ª, quando
vários tipos de droga, do que enfatizar deveríamos ter a 27ª em 2003. É uma das
grandezas e pequenezas literárias do moço mega-exposições do mundo e já foi mais
das araucárias. O delicado assunto drogas importante do que é hoje, muito embora
acaba sendo viável com o objeto de estudo ainda tenha importância. A 1ª realizou-se no
morto. Não chega a tecer um juízo - tarefa antigo Trianon (onde foi construído o MASP,
do crítico - sobre a obra do artista da palavra projeto arquitetônico de Lina Bo Bardi),
Leminski. Apesar de tudo isso, a leitura não porém, a partir da 2ª, já contou com prédio
deixa de ser obrigatória para quem queira próprio, projetado por Oscar Niemeyer, no
conhecer o autor do Catatau. Parque do Ibirapuera, onde até hoje se
Pirajuí, 06 de junho de 2001. realiza. Entre outras tantas coisas, as Bienais
(04 de maio de 2002) de São Paulo colocaram o Brasil no circuito
2002 internacional das Artes e serviram para
reiterar a importância cultural da Paulicéia
no País, importância esta que se impôs
desde a exposição de Anita Malfatti de 1917-
18 e da Semana de Arte Moderna de 1922.
A BIENAL DE SÃO PAULO Essa 25ª não traz grandes furos, apenas
evidencia que a mostra empobreceu, que as
Tendo sido a 1ª Bienal realizada no mega-exposições se encontram em crise e
ano de 1951, era de se esperar que todas se que há uma grande diversidade dos fazeres
realizassem de dois em dois anos, portanto, artísticos no mundo. Embora não a tenha
em anos ímpares. Mas não: primeiro porque visitado inteiramente, percebi que é marcante
houve um pulo e, segundo, tendo sido a presença da fotografia, assim como do
realizada a Mostra dos 500 Anos e, em vídeo, configurando vídeo-instalações. A
2003

seguida, uma espécie de homenagem (fraca, área com mais status, climatizada e que

207
abriga não mais celebridades museológicas, da Cultura passa o chapéu. Instituições

2001
mas ainda assim, celebridades, tem como poderosas ficam no chove-não-molha,
ponto alto, não os trabalhos dos que vieram contentando-se com realizações-anãs,
de fora, mas as realizações de Nelson como fazem o Itaú e a Fundação Moreira
Leirner (cada vez melhor) e de Fajardo. Salles (entenda-se: UNIBANCO). E o
Ao longo da mostra, nas áreas plebéias, Bradesco? Vai continuar a fingir que faz
alguns excelentes trabalhos convivendo caridades na área educacuional? O que faz a
com coisas de uma medianidade irritante. Votorantim escondida atrás de sua capa de
Um mega-espaço, nem sempre bem benemerência? Sem saudosismo (pois penso
aproveitado, sequer artefinalizado: como que todo presente tem lá suas riquezas),
sempre, a Bienal abriu sem que as obras eu perguntaria: Onde aquela coragem e
de montagem fossem ultimadas. Alguma grandeza de projetos dos anos 40 e 50, que
diversão com artistas estrangeiros e suas viram nascer o MASP, o MAM de São Paulo
2002 performances, requisitando brasileiros que e do Rio de Janeiro, a Bienal de São Paulo,
acharam o máximo tirar a roupa em meio a a Arte e a Poesia Concreta, a Bossa Nova?
uma multidão que se formou. Qualquer coisa Onde estarão pessoas que, como Ciccillo
para aparecer (ou desaparecer naquele Matarazzo, adquiriram obras como as que
anonimato). De qualquer modo, a mostra fazem a grandeza do MAC-USP (herdeiro
continua com importância, hoje tão menor. do acervo do 1º MAM-SP) e permitem que
Faltam, no Brasil, pessoas empreendedoras aqui no Brasil se vejam obras das melhores
do estilio - mesmo que passível de produzidas pela Humanidade do século XX?
críticas - de um Ciccillo Matarazzo e de Onde é que estão os riquíssimos homens
um Assis Chateaubriand, com um projeto de indústria que, mesmo tirando vantagens
mega. Há empreendedores hoje em São de seus atos de bondade (pagando menos
Paulo, mas com projetos e mentalidade impostos) deixaram sair do País obras
“micro”. Milionários mesquinhos dão suas como o Abaporu, de Tarsila do Amaral?
2003

contribuições quando alguém em nome Talvez que tudo isso esteja por aí - o óbvio

208
ululante - sem que eu tome conhecimento, grande conhecimento das artes gráficas,

2001
mas onde? a curiosidade e a capacidade de trabalho
(11 de maio de 2002) de Julio Plaza, que promoveu inúmeros
eventos, mormente os que dizem respeito
a Arte e Tecnologia, já desde os anos ‘70,
teve importância considerável no florescer
poético da ERA PÓS-VERSO (“era” à qual já
me referi nesta coluna).
JULIO PLAZA No que tange o livro-objeto, livro de
artista, Julio Plaza é teórico e prático, tendo
O artista plástico/gráfico e teórico Julio operado nesse universo desde os anos ‘60.
Plaza González sempre colaborou nas revistas Nos ‘70, entrou como co-autor (dividindo
que veicularam trabalhos de poetas da Era com Augusto de Campos) de obras que
2002 Pós-Verso. No caso de POESIA EM GREVE, tiveram fundamental importância para
QORPO ESTRANHO, além do projeto gráfico, as artes gráficas e suas relações com a
cuidou de aspectos de ordem técnica, como poesia no Brasil: Poemóbiles, Caixa Preta e
a feitura de fotolitos, encaminhamento para ReDuchamp.
a gráfica etc, o que implicava barateamento Considerado inicialmente um artista
de custos. QORPO ESTRANHO 3, já é CORPO plástico, com trabalho onde o conceitual e a
EXTRANHO e bancada pela Ed. Alternativa. metalinguagem têm um peso muito grande,
Em MUDA, Plaza não teve participação no Julio Plaza pode também ser considerado um
projeto gráfico, que ficou por conta de José poeta em qualquer dos sentidos implicados
Augusto Nepomuceno. No jornal/revista pela palavra, ou melhor, um maker. Lidando
VIVA HÁ POESIA (editado e financiado com palavras e imagens, criou trocadilhos
totalmente por Villari Herrmann), Julio Plaza surpreendentes (intersemióticos, diga-se).
fez todo o planejamento gráfico, dentro Muitos de seus trabalhos são, ou
2003

dos limites impostos pela forma jornal. O invendáveis, por não atenderem em nenhum

209
aspecto às exigências mercadológicas, que alguns artistas fazem. Não suporta

2001
ou por serem instalações, ou, prevendo a redundância. Aposentado da ECA-USP e
reprodução sem perda da qualidade, dão um afastado da UNICAMP, viaja, elabora, de vez
golpe de misericórdia na “aura”, pois evitam em quando, algo ligado às mais avançadas
o culto pelo objeto único. tecnologias e curte o seu filho. Sua presença
Seus títulos fazem parte dos trabalhos, no Brasil honra a todos nós que valorizamos
chegando a desempenhar papel fundamental a qualidade artística e o rigor.
para a sua fruição. Num programa de TV, (18 de maio de 2002)
Décio Pignatari disse que a POESIA não era
um meio de vida, mas um modo de vida; para
Julio Plaza, a ARTE é um modo de vida.
Ele é autor de uma exposição/instalação
que foi das mais belas e inteligentes de
2002 quantas São Paulo já pôde assistir no
século que acabou de passar: LA(O)S SEDE DE FÁBULA
MENINA(O)S, na Galeria Arte Global, em
1977: um diálogo trans-espacial/temporal O ser-humano (em grego ou latim eu
com Velázquez, um outro espanhol (Julio usaria apenas ANQRWPOS ou HOMO, já que,
Plaza nasceu em Madrid, em 1938. De três HOMEM, em português, denota o machismo
casamentos - que eu saiba - do primeiro, da civilização) é sedento de fábula. FÁBULA:
teve a filha Elisa que reside na Espanha; estória, estorinha, narrativa, processo
nas segundas núpcias, viveu com Regina verbal com um encadeamento de causa e
Silveira, a grande artista e tudo indicava efeito, organização hipotática do discurso,
que seria para sempre; agora, no terceiro linear preferentemente, uma epopéia ou um
casamento, veio-lhe um menino, Ángel, que causo, digamos, enfim. Sim todos somos
deve estar fazendo um aninho). Artista raro, ligados numa estorinha e desde a mais tenra
2003

Plaza quase não faz. Tem horror ao gênero idade.

210
Quando alguém vem nos contar algo, indiscretos. Porém, quem conta em público,

2001
se percebemos coisas além da parlapatice quer mais destinatários do que aqueles que
compulsiva, botamos atenção e mergulhamos estão mais próximos e percebe que conseguiu
com vontade naquela onda de palavras, despertar o interesse das demais pessoas e
atrelando-nos aos detalhes, deixando-nos se compraz com isto. Se temos de deixar
levar pelos momentos de suspense, até que um local antes que o narrador encaminhe
um desfecho completa o processo, o qual as coisas para um desfecho, sentimo-nos
pode nos deixar espantados, contentes, roubados, subtraídos de uma espécie de
gratificados por aquela comunicação inútil, catarse (ah! Artistóteles…).
mas que - parece-me - é essencial para Quando, ao telefone, pegamos uma
suportar essa vida, tão cheia de verdades linha cruzada, desligamos e retomamos o
que se nos impõem. processo e a linha continua cruzada e se
Há os que sabem, têm o dom de percebemos algo sendo contado, atentamos
2002 contar. Há os ouvintes, por excelência, e que para a coisa e esperamos para saber onde
são sempre requisitados pelos que gostam aquilo vai dar. Essa indiscrição é apenas uma
de contar. É óbvio que, daí a ser um grande resposta à nossa sede de fábula, senão, o
narrador, vão muitos anos-luz de distância, que nos interessaria saber que uma certa
já que, entre o falar e o escrever, existe Maria, num bairro distante, talvez esteja
muito mais do que uma simples questão de facilitando as coisas para os rapazes ou que
tempo. Quem escreve crê na eternidade. o etc etc etc…?
Crê, no mínimo, na perenidade emprestada Sempre fui um bom ouvinte e as
pelas letrinhas que, organizadas, garantem pessoas, por seu turno, sempre tiveram
permanência. prazer em me contar coisas, até íntimas.
Quando, num ônibus ou elevador ou Colecionei muitas histórias nesse saco-sem-
sala-de-espera, pecebemos um fio narrativo, fundo chamado memória, as quais tenho
prestamos atenção, mesmo que, às vezes, utilizado em minhas narrativas ficcionais e
2003

tenhamos de disfarçar para não parecermos poemas (porém, sempre mudando nomes

211
ou não nomeando e reelaborando). Desde as (his)estórias já contadas e inventar

2001
criança - como toda criança - adorava ouvir outras, até a partir de fatos reais. Mesmo
estorinhas: das que Maria Batalha (uma como professor universitário, tenho-me
agregada muito querida da casa de meus valido de minha capacidade de narrar para
avós maternos) me contava, às que ouvia tornar mais digeríveis aulas que poderiam
na rádio Pirajuí, às 17h30, pela boca de ser maçantes, meramente técnicas. Sei de
Dona Maud Pires Arruda, num programa pessoas com essa mesma capacidade e via
diário chamado “As mais belas histórias de regra paro para ouvi-las.
para crianças” (a Rádio ficava - eram, então, Dos poemas homéricos fixados em
os anos 50 do século passado - no porão escrita - a Odisséia, principalmente (em
da Sede Cristo-Rei). Eu era feliz e sabia e verdade, desde muito antes, pois havia
pedia mais e mais estórias (parece-me que toda uma tradição oral da epopéia grega
hoje só se utiliza a forma HISTÓRIA, com e, por outro lado, o tal do Homero bem
2002 “H” - diz-se, por exemplo, histórias em provavelmente nem tenha existido) ao
quadrinhos - mesmo existindo a outra Guimarães Rosa do Famigerado, sem
para a ficção, exclusivamente). desprezar as narrativas televisuais - bem
Certo dia li para alunos de 1º grau menos artísticas, por certo - a mesma
- EEPG “Almirante Custódio José de Mello”, sede de fábula. A mesma curiosidade com
São Paulo capital - O Gato Preto de relação a um processo que exige um final.
Edgar Allan Poe: … Silêncio total. Atenção. Nem que seja um FELIZES PARA SEMPRE!
Um interesse raro. Percebi que, sempre (25 de maio de 2002)

que propunha uma estória, o alunado


se dispunha a ouvir. E assim, ao mesmo
tempo em que obtinha colaboração no
meu ofício de docente (professor de
História!), aperfeiçoava-me na arte de
2003

contar. Hoje, posso dizer que sei contar

212
DISTÚRBIOS NA COMUNICAÇÃO profecias, não o é em outras ocasiões. Se a

2001
Sibila de Delfos dissesse: “O futuro lhe fará
Em todo ato de comunicação verbal justiça”, você entenderia assim: “o futuro
ou não, entra - inevitavelmente - o ruído. lhe fará justiça”, mas qual? a justiça que
Toda comunicação é permeada de ruídos apequena ou a que engrandece?
(ruído pode ser considerado toda e Porém, há outras perturbações
qualquer perturbação num dado processo de propositais ou não, que levam a um completo
comunicação tendo, portanto, uma conotação desentendimento. Vejamos algumas falas
de negatividade, de anti-informação; e que conduzem a uma decodificação errada,
aqui, não estou querendo entrar nos casos colhidas aqui e ali:
em que os ruídos/acasos, são incorporados Luz apaga…
por artistas, entrando como elementos (Lusa paga…)
constitutivos estruturais das obras). Um ato A bicha já era célebre nos EUA, mas
2002 de comunicação jamais abolirá o ruído, pouco conhecida no Brasil…
para ficarmos com Mallarmé, o grande (A Bishop [Elizabeth Bishop] já era célebre
poeta-autor de Um lance de dados jamais nos EUA, mas pouco conhecida no Brasil…)
abolirá o acaso. Só que, se o nível de ruído Deus apagando os relânpagos…
ultapassa um certo patamar, isso inviabilizará (Deusa pagã dos relâmpagos… Iansã)
o processo comunicacional. Acontece que o O Professor Edipiano
que se procura fazer é diminuir o seu teor, (O Professor de piano)
quase zerá-lo, para se alcançar um certo O ânus dele
qualitativo. Todo planejamento e cuidado (O ano deles)
existem em função de não dar chance a um Lis… Luís?
acaso indesejável e, portanto evitar ruídos (Ulisses)
(que podem existir no nível do suportável). Sonho. Que mera ilusão!
A ambigüidade, desejável em certas Sonho, quimera, ilusão…
2003

mensagens, como as poéticas e a das Delfim…

213
(Fidel) que comparece com a intenção de assistir a

2001
O que atrasa o Oriente? uma representação) - não a dramatização,
(O que a traz ao Oriente?) que é bem mais antiga e esteve ligada à
Tenho má notícia para vocês! religião e às narrativas de mitos - foi criação
(Tenho uma notícia para vocês!) grega e, na sua origem, esteve também
O soneto é um ultraje ao rigor do ligada à religião (ao culto do deus Dioniso),
pensamento. porém, depois se desprendeu, ganhando
(O soneto é o traje a rigor do pensamento.) autonomia.
E poderia colecionar um outro tanto de A tragédia - TRAGWIDIA (TRAGOIDIA) =
frases, até engraçadas. Porém, vou deixar CANTO DO BODE - é criação do gênio grego:
essa tarefa para você, Leitor, que deve suas origens estão no século VI aC, na região
estar ansioso para comunicar exemplos que do Peloponeso, porém, o seu florescimento
já vivenciou vida afora. Boa Sorte! Sem se deu em Atenas, no século V; depois, a
2002 ambigüidades… decadência. Isto quer dizer que, à época
(01 de junho de 2002) de Aristóteles, a tragédia já era um gênero
decadente, justo no momento em que o sábio,
mestre de Alexandre, o Grande, penetra em
sua estrutura, como se pode depreender da
Poética, que nos chegou fragmentária, mas
O REI ÉDIPO : OIDUPOUS TURANNOS que tem uma importância fundamental para
os estudos de poética e estética em geral.
Calcula-se que, de tudo o que os Aristóteles, além de apontar as
gregos antigos escreveram, apenas uns partes constitutivas de uma tragédia -
dez por cento - se tanto - chegaram até ‘de cartilha’, diria Paulo Miranda - fala
nós. O teatro como nós o entendemos em verossimilhança e em cartarse,
(texto especialmente concebido para ser coisas que os que vieram depois usaram e
2003

representado por atores para um público, discutiram à exaustão. O sábio grego chega

214
a apontar como modelo de tragédia a do rei conformem-se os helenistas, pois Jocasta

2001
Édipo a qual, felizmente chegou até nós na foi tomada como esposa pelo herói Édipo e
íntegra, assim como outras seis, de Sófocles ela possuía, no mínimo, idade para ser sua
(enquanto que de muitas outras só temos mãe…
referências ou fragmentos). Bem, mas uma das coisas mais
Mesmo assim, das tragédias instigadoras na trama do Édipo (que significa
remanescentes, muita coisa não sabemos, ‘pés inchados’) é que esta se configura uma
como por exemplo a parte de música (a trama policial completa, detetivesca, poderia
melopéia) que se perdeu inteiramente. assim dizer: há um problema central, que
Apenas atores homens tomavam é o de se descobrir o assassino do rei Laio
parte nas encenações, mesmo para os e tudo - as insvestigações - gira em torno
papéis femininos e sabe-se que, à época disto, até que se descobre que não só Édipo
dos festivais, na Atenas do século V aC, até é o assassino, como filho de Laio, o que se
2002 escravos tinham acesso às apresentações, complica quando também se dá conta de
mas não se sabe ao certo se mulheres eram que é casado com a própria mãe, com quem
permitidas. teve filhos. Ela - Jocasta - se mata, ele -
Houve mais do que uma versão do Édipo - cega-se e parte para o exílio.
mito de Édipo, mas a que prevaleceu foi a O filósofo francês Michel Foucault
versão sofocleana, onde se baseou Sigmund - disseram-me - possui um estudo que
Freud para batizar aquela fase de nosso diz justamente da trama policial do Édipo
desenvolvimento bio-psicológico e o famoso de Sófocles, texto ao qual até hoje não
complexo - Complexo de Édipo. tive acesso. E por falar em trama policial,
É claro que os helenistas (que são os impossível não lembrar de Edgar Allan Poe, o
especialistas em Grécia Antiga) abominam criador do gênero policial - em contos como
a atitude de Freud, apontando enganos no A carta surripiada, Os assassinatos da
basear-se no mito (versão de Sófocles) para Rua Morgue, O mistério de Marie Roget
2003

nomear a tal fase. Mas Freud tinha razão - - Poe que era um edipiano (Ed Poe, como

215
notou certa vez o poeta Luiz Antônio de limites, mesmo que ela não tenha um nome

2001
Figueiredo). que seja Jocasta!
Da única vez que vi encenado o Édipo (08 de junho de 2002)

Rei em São Paulo, detestei (em verdade, só


apreciei a música, composta especialmente,
por Lívio Tragtenberg). Textos gregos
dramáticos: prefiro lê-los.
Quando professor de escola de 1º
Grau - EEPG “Almirante Custódio José de O QUE É ATUAR OU NÃO A PARTIR DE
Mello” - dava o texto sofocleano como leitura UM CENTRO HEGEMÔNICO
obrigatória para os alunos de 7ª série.
Nem todos liam, mas todos participavam O aluno me pergunta na sala-de-aula: -
das discussões que, de qualquer maneira, Professor, é difícil colocar um brasileiro
2002 acrescentavam algo ao seu repertório. Os na História da Arte? A pergunta, assim de
que que liam, liam até mais: passavam supetão, poderia parecer descabida, porém,
para a tragédia de Antígone e alguns iam com um pouco de cautela, percebe-se que
ainda mais adiante. Penso que, das aulas tem sua razão de ser. Como, lendo as Histórias
de História comigo, esta foi das experências da Arte, principalmente as que tratam da
inesquecíveis para aqueles alunos, que eu Arte do século XX, não encontramos nenhum
acompanhava da 5ª à 8ª série, num dos brasileiro? …a não ser que, abordando a
períodos mais felizes de minha vida. Arquitetura e o Urbanismo mencionam-se
Somos - penso - todos um pouco Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, a propósito
edipianos: uns mais, outros menos. Mãe é de Brasília.
mãe. Filho é filho e é sempre bem menos É, além de ser considerado país
que a genitora e do que esta pensa dele. Não periférico - exceções feitas ao futebol
há filho que esteja à altura da mãe. Amor de e à música popular (se tanto) como à
2003

mãe é incomparável, sem restrições e sem poesia erudita: caso da Poesia Concreta,

216
especificamente - o Brasil fala uma língua lugares levam a vantagem do espanhol,

2001
solenemente ignorada fora do âmbito dos língua muito mais falada e até ensinada em
países lusófonos. Sabem muito pouco de escolas de países não-hispânicos (vejam-
nós e quando sabem, sabem mais das coisas se as diferenças dos destinos de obras de
exóticas, como a Amazônia, por exemplo, um Machado de Assis e de João Cabral, por
área que cobiçam para si, disfarçando a um lado, e de um Borges ou Cortázar, por
coisa sob a capa da internacionalização. outro. É claro que há sempre uma elite da
Veja-se: até hoje não conseguimos elite intelectual que conhece Drummond,
impor Santos Dumont como um dos Guimarães Rosa e outros tantos, mas o país
inventores do avião! E ele o foi de fato: pessoa é ignorado e até mesmo a sua geografia,
genial, um inventor por excelência; e olha país tão óbvio, pelas dimensões, num
que desenvolveu suas pesquisas na França, mapa-múndi! Todos estão interessados no
incluindo aí o vôo do 14 Bis em Paris, Campos que acontece em Nova Iorque, Paris, Milão,
2002 de Bagatelle, em outubro de 1906, vôo visto Frankfurt, Londres, Amsterdam, enquanto
por milhares de pessoas e documentado por que o Rio de Janeiro - para citar um centro
cinema (uma outra injustiça acontece com urbano brasileiro mundialmente famoso - só
o santista Bartolomeu de Gusmão, inventor aparece enquanto cidade cercada de belezas
dos balões, no século XVIII). naturais, praias, sensualidade e… carnaval!
Digo que é diferente quando se é Para responder ao aluno referido
representante de país poderoso, hegemônico acima, argumentei da maneira que se
mesmo (que tem papel fundamental na segue: Já possuímos artistas plásticos de
condução do mundo ou de parte dele), como primeira categoria, que precisam ser melhor
é o caso dos estadunidenses. Ser lançado a avaliados - e serão - no circuito internacional
partir de Nova Iorque é diferente de querer das artes, tais como Alfredo Volpi, Mary
aparecer para o mundo a partir de São Paulo, Vieira, Lygia Clark, Hélio Oiticica, entre
Buenos Aires ou Santiago do Chile, se bem outros tantos. Porém, isto levará tempo. Por
2003

que os representantes desses dois últimos enquanto, ocupemo-nos de nosso trabalho e

217
façamo-lo com ambição e seriedade, porque com relação às obras do período e, depois

2001
o que é bom acaba aparecendo. Um dia, os ainda, com relação à evolução das formas
críticos e historiadores dos países que ditam na tradição a que pertence, a qual ultrapassa
as verdades olharão para além de seus limites de país e, mesmo, continente. Não é
próprios umbigos. porque a obra tem trezentos anos que lhe
Como alguém já disse: Quando será dado um atestado de qualidade que ela
guaraná for coca-cola… realmente não possui (a velhice não confere
(15 de junho de 2002) atestados de idoneidade artística).
Refugos não são privilégio da
Contemporaneidade. Toda época é pródiga
em bagulhos, da Antigüidade Grega,
passando pela Renascença Italiana, até o
SE É VELHO É BOM? século XIX. Numa exposição que teve lugar
2002 na FAAP, em São Paulo, há cerca de dois anos
O que é bom, é bom segundo - “Nins” (penso que “Crianças”, em catalão)
parâmetros de que dispomos, segundo - só havia refugos de época, do século XVI
medidas que, estando ao lado, ajudam-nos ao XIX. Nem tudo era Velázquez no século
a avaliar, são as nossas maiores referências XVII espanhol. Machado era único no Rio de
para operarmos comparações: um quadro Janeiro do final do século XIX.
ou um poema, por exemplo, serão bons se A maior parte do que se produz é, no
resistirem às comparações. mínimo, desprezível. É pouquíssimo o que
Assim, quando vamos apreciar alguma realmente conta, como sabiam Ezra Pound e
obra, mais do que a sua idade (tempo de Fernando Pessoa, entre outros tantos que se
feitura), dois, três ou mais séculos, iremos pre-ocuparam com o destino das obras de
ver como é que ela se comporta diante de arte, dos poemas, especificamente.
uma comparação, primeiro, com relação No Brasil, em época mais recente,
2003

às outras obras do próprio autor e, depois, tem sido assim: pessoas que tiveram uma

218
certa atividade dita artística, se resistiram eles na sua sabedoria, conferida pela

2001
e sobreviveram, estão dando entrevista na longa vivência. Seria a sabedoria o prêmio
TV, mesmo que as realizações do passado invariável para a velhice?
não passem no teste da qualidade. Tudo (22 de junho de 2002)

acaba virando CULT. De Jerry Adrianni e Rita


Cadilac ao Zé do Caixão (este é idolatrado
por cineastas experimentais dentro e fora
do Brasil e talvez até chegue a ter algum
mérito). A recente onda de bundolatria da TV A FAÇANHA DA CÓDIGO
brasileira fez com que até a Gretchen fosse
“reavaliada” e reconsiderada e ela volta toda
Num artigo publicado no ano de
recauchutada para a mídia e… dá-lhe BUM
1982, no FOLHETIM, suplemento dominical
BUM!
do jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Paulo
2002 Felizmente, por outro lado, grandes
Leminski apontou as “revistas” como sendo
valores esquecidos ou semi-esquecidos têm
o maior poeta dos anos 70 (os humanos
sido recolocados no centro das cogitações,
que segurassem essa!). Bem, ele não deixou
como foi a o caso de Souzândrade e será o
de ter razão, pois as chamadas “revistas
de Walter Franco e está sendo o do nosso
de invenção” foram o fenômeno de maior
admirável Tito Madi (bela a recente recepção
destaque, numa época em que as coisas, em
feita na cidade para o artista. Parabéns
termos de poesia, pululavam e se retomava,
aos organizadores! Fiquei admirado ao ver
após o encerramento da feitura da revista
a atenção dada ao cantor-compositor e o
INVENÇÃO - o nº 5, de 1967, marca esse
contentamento dos bem jovens, motivado
fim - portavoz dos concretistas. O espírito
pela presença de Tito em Pirajuí).
de investigação, a ânsia de experimentação
Feliz da sociedade que trata com
e tudo o mais eram perpassados de grande
reverência os seus velhinhos ou não tão
alegria e embasados por uma notória
2003

velhos ainda, podendo vir a contar com

219
ambição poética dos integrantes dos grupos - o outro era Waly (Sailormoon) Salomão -

2001
que tramavam aquelas publicações. Entre depois, com a falta de dinheiro, o que foi
as revistas editadas a partir dos anos 70, resolvido em fins de 1974, pela intervenção
ainda em sua primeira metade, CÓDIGO da Polygram, que desenbolsou a grana e
desempenhou um importantíssimo papel NAVILOUCA dividiu o final de 1974 com POLEM
e teve força e resistência para chegar ao (que foi criada para cobrir NAVILOUCA, que
número 12! não havia meio de sair, mas saiu) e CÓDIGO.
As revistas, seguidas das edições Depois vieram outras como ARTÉRIA,
autônomas de poemas, foram responsáveis POESIA EM GREVE, QORPO ESTRANHO etc.
por boa parte da melhor produção poética MUDA, de 1977, deliberadamente excluiu o
do Brasil, porém o fenômeno havia sido trio concretista (sempre presente nas outras
observado em outras épocas, aqui e fora. publicações da mesma estirpe).
Isto mostra que não há ineditismo no tipo de O que animava as tais “revistas” era a
2002 procedimento, mas que publicações coletivas crença de que algo novo, desvestido de toda
e as de poemas isolados são expedientes aquela conotação propriamente Concretista,
de que se valem poetas - e artistas em Processo etc., apesar da presença do trio
geral - em momentos específicos, quando concreto, composto por Décio Pignatari,
a criação não só não se contém, mas que Augusto e Haroldo de Campos. Era como que
quer escoar e encontra, inevitavelmente, um uma retomada pública da experimentação
tipo de veículo que não é o livro, meio que que havia sido cara às vanguardas.
aspira à eternidade. A REVISTA fica entre o O Brasil, ainda sob a ditadira militar,
eterno, corporificado pelo livro, e o efêmero, já podia começar a sonhar com uma maior
encarnado pelo jornal. liberdade que viria gradativamente. Participar
NAVILOUCA teria sido a primeira das de uma publicação coletiva era ter a chance
revistas experimentais dos anos 70, mas de, além de divulgar seu trabalho - junto a
andou complicada, primeiro com a morte um público pequeno, mas muito especial de
2003

de um de seus idealizadores: Torquato Neto aficionados da poesia - ter interlocutores com

220
preocupações semelhantes. Era uma época Um dos primeiros poetas a utilizar programa

2001
em que tinha início uma festa, que não era de computador, num momento ainda
só dos experimentais, mas de outros poetas ante-diluviano: fazia um uso estrutural
e poéticas menos comprometidos com os da visualidade em seus poemas, de uma
aspectos propriamente formais. CÓDICO, linhagem Pedro Xisto. Tendo nascido em
nessa festa que se armava, estava já na 1932, Erthos teve na generosidade uma de
largada. suas marcas distintivas: preocupou-se mais
O nome CÓDIGO: de um poema com a obra de outrem do que com a sua
gráfico - CÓDIGO . GOD . DOG . CODE - própria. A última conversa que tive com ele
de Augusto de Campos, de 1973, enviado sobre a revista, ele simplesmente falou:
a Erthos Albino de Souza e que acabou por “[CÓDIGO] está parada”. Não demonstrou
dar nome à publicação, bem como servir de interesse en continuar a revista, alegando a
capa [e quarta-capa] ao número 1, de 1974, falta de pessoas com quem pudesse contar
2002 ao mesmo tempo em que corporificava um na parte de organização e programação
logotipo/logomarca, que compareceu nos visual (26-11-1995).
demais números: a partir do nº 2, adentrou Para aqueles que se interessam por
a segunda capa, depois compareceu como poesia e experimentação, CÓDIGO entra
logomarca dentro e fora da publicação, como um documento de grande importância,
respondendo a uma necessidade gráfica não apenas em termos de Brasil, mas do
mesmo, variando as dimensões da mancha que era produzido no Planeta, nos anos 70
por ela ocupada). O poema acabou integrando e 80 do século passado. Outras “revistas”
a Caixa Preta, de Augusto de Campos e Julio também se integram nessa tradição de
Plaza, obra portentosa, editada em 1975. rigor e ousadia e serão por mim abordadas,
Erthos Albino de Souza, editor de oportunamente, nesta coluna.
CÓDIGO, seu único financiador, mineiro (29 de junho de 2002)

de Ubá radicado em Salvador-Bahia,


2003

engenheiro, foi funcionário da PETROBRAS.

221
futebol: algumas reflexões em professor, tive de fazer uma opção, por

2001
tempo de copa cobrança dos meus alunos, e fiquei com
o São Paulo FC. Mas torço para qualquer
Ser vice-campeão é mau, porque se é time de São Paulo contra o de qualquer
segundo, perdendo o último jogo. Campeão, outro Estado do Brasil e, pelo Brasil, contra
bi-, tri-, tetra-, pentacampeão! Isto é bom. qualquer outro time do mundo.
Não é de se estranhar que o Brasil tenha Dificilmente vejo trechos de jogos
aí chegado e que até venha a ser hexa-, transmitidos ao vivo – nem a final, agora,
hepta, octo-, enea-campeão, alcançando o contra a Alemanha, a fim de evitar uma
decacampeonato! Afinal, este é o país do indesejável taquicardia – mas percebo a
futebol, deixando a inventora Grã-Bretanha beleza que se tornou a coisa, com muitas
para trás. E dificilmente algum outro câmeras, o que possibilita a repetição de
país poderá alcançar o nosso nível médio um mesmo lance por inúmeros ângulos,
2002 em termos de futebol. E, num país rico- enriquecendo ainda mais o espetáculo (e
paupérrimo, o tal esporte (podosfera?!) a TV encontra aí o melhor que pode dar
tem propiciado a alguns ascensão sócio- a sua linguagem). Sim, um verdadeiro
econômica de embasbacar. Nem o rei Pelé, espetáculo.
uma glória brasileira e mundial, ganhou Uma das conclusões que tirei das
tanto dinheiro como jogador do Santos; partidas que eu mais ou menos segui é
ganhou dinheiro, mas, muito mais como a de como, além de belo, o futebol é um
garoto-propaganda, de três décadas para jogo difícil. Dificílimo. O que faz com que
cá, rosto dos mais conhecidos do Planeta. o melhor time do mundo possa temer um
Pelé. adversário medíocre.
Eu nunca fui um aficionado do futebol Antes dessa surpreendente copa ter
– em casa não se ouviam pelo rádio, desde tido início, conversei com meus alunos,
a infância, as transmissões das partidas, principalmente com os da FAAP, sobre
2003

naquele narrar empolgante… Como futebol: alguns deles eram verdadeiros

222
experts e até havia um (de 19 anos) isto conseguiu encobrir por mais horas a

2001
excelente cronista. Falei numa sala: “A crise em que o Brasil está mergulhado!
minha impressão é a de que o Brasil vai estar Antes do jogo contra a Inglaterra, eu
jogando na final”. E contra o argumento da disse: “Não consigo ver nada de diferente
debilidade da equipe enquanto tal, mesmo de 2 X 1; para o Brasil, é claro! E foi o que,
tendo cinco dos melhores jogadores do coincidentemente, aconteceu.
mundo, eu disse que em 1982, na copa da Na FAAP, quando os jogos eram pela
Espanha, o Brasil não só possuía a melhor manhã, a Escola colocava à disposição dos
equipe do mundo, como estava fazendo alunos, professores e funcionários um telão,
a melhor das campanhas: perdeu para a num auditório que, lotado, dava gosto de
itália e voltou para casa. ver: uma torcida a se exaltar de alegria!
Quanto ao uso do Tricampeonato de Quando em casa, mesmo nas madrugadas,
1970, no México, pela ditadura Médici, eu eu não via os jogos, mas o Brasil inteiro,
2002 disse que a ditadura, realmente, usou o ligado, não me deixava dormir com aquelas
fato para se engrandecer, mas que isto não explosões de fogos e contentamento.
tirava o mérito da equipe: foi o maior time Há quem diga que o futebol aliena.
de todos os tempos e fez por merecer o Seria de se perguntar se o basquete, o vôlei,
título, que alcançou brilhantemente. Todos a música de concerto, a grande literatura
os governos – ditaduras ou não – procuram e as teorias, os bailes e baladas também
capitalizar esses acontecimentos, tiram não alienariam. Alegria e arrebatamento e
todo o proveito possível dos méritos que satisfação e êxtase alienam? Revigoram.
possam ser creditados ao país, através (13 de julho de 2002)

de seus filhos. E completei, dizendo que


mesmo agora, se os meninos trouxessem
o Penta, o governo FHC procuraria tirar a
sua casquinha. Dito e feito! Ainda bem que
2003

o nosso futebol foi premiado. Porém, nem

223
SOFRIMENTO E RESIGNAÇÃO OU DEUS do qual consumimos até hoje os resíduos

2001
ABENÇOE OS QUE PADECEM ou até muito mais do que isto. O Homem
nasceu para viver bem, porque, tendo uma
Algum dia já se perguntou a uma inteligência privilegiada, pode planejar a
formiga, a uma coruja, a uma vaca se existência e defender-se dos predadores.
ela é feliz? Por que é que se pergunta ao Aí é que está: seu maior predador
semelhante humano, escravo de uma psykhé é o próprio Homem. Mas, vá lá… Ele pode
complexíssima, se ele é feliz? Porque é a administrar a existência e minimizar o
coisa mais difícil de se encontrar: alguém sofrimento, enfim, poderá se encontrar no
feliz. estar-bem-no-mundo-sempre-e-sempre.
Entre os gregos, a felicidade Porém, a Felicidade é uma outra questão,
(eudaimonía) era cogitada e já se sabia que um estado a que poucos têm acesso, porque
era tão rara como encontrar uma agulha num é uma vocação, uma pré-disposição. É para
2002 palheiro. A última fala da tragédia sofocleana quem tem vocação e não para quem acha
do Édipo, que é do corifeu, traz a máxima de que a quer.
que não se pode considerar feliz qualquer Felicidade não passa pelo dinheiro,
pessoa, antes que, tendo chegado ao termo nem pelo sexo (embora ambos sejam
de sua existência, não tenha conhecido o imprescindíveis). Mas se o bem-estar-no-
infortúnio. mundo é o que interessa, isto deve ser
Pois é, quando algo é muito cogitado procurado, não individualmente, mas pela
é porque não existe ou é raríssimo. Fala-se sociedade que consentiu em ser organizada,
em governo, quando ele não funciona, em com governo e tudo o mais.
cidadania quando nem todos - ou mesmo a Uma sociedade digna do nome deve
maioria - dela está excluída. organizar-se de tal maneira a permitir
Dizer que o Homem nasceu para ser que os seus componentes tenham acesso
feliz é uma besteira e das maiores e isto a todas as benesses que ela venha a
2003

é herança principalmente do Iluminismo, oferecer. Socialismos históricos à parte, uma

224
sociedade não pode permitir que muitos fazer. A sociedade como um todo é que

2001
de seus integrantes não disponham de um deveria cuidar de ter os seus componentes
mínimo para uma existência suportável. em condições, no mínimo, aceitáveis de
Daí que, quando vejo em São Paulo, por existência (o Ser-Humano não se contenta
exemplo, indigentes numa espécie de “pátio com o básico, nem que seja para trocar o azul
dos milagres”, filas para albergues, gente pelo amarelo. Tampouco quer fazer parte de
mexendo no lixo à cata de algo aproveitável, uma massa amorfa). Porque a FELICIDADE,
favelas feitas com sobras de caixas e aquela Felicidade-estado-de-graça-perene
caixotes, passo a execrar a Espécie, sinto é privilégio dos raros que têm tal vocação.
vergonha pela minha Condição Humana e, se Vocação para a Felicidade! Em toda a minha
pudesse, até renunciaria a ela: não chego a existência tive notícia de uns dez humanos
me orgulhar por ser gente. Outrossim, penso felizes, incluindo os de séculos passados.
que a sociedade brasileira se encontra num Marcel Duchamp - penso - era um deles.
2002 estágio de organização aquém do desejável Observações. Frente à injustiça que a
e além do deplorável. sociedade, como um todo, comete podem
Não creio no Juízo Final, mas a idéia me existir (e isto tem base histórica) quatro
é simpática. Nos meus 54 anos de existência, principais conseqüências/atitudes:
vejo em Pirajuí pessoas que, há décadas, 1. A resignação frente ao sofrimento
sofrem privações e têm um ar conformado, material-moral, geralmente facilitada por
resignado, sem revolta, como se aquilo algum “ópio do povo”.
fosse mesmo uma sina. Seria deles o Reino 2. O banditismo desenfreado, que, mesmo
dos Céus? Mas que céu compensaria tanto terminando mal, provoca grandes estragos
sofrimento, vendo, à sua volta, semelhantes e faz com que a sociedade despenda muita
vivem uma fartura digna das Mil-e-uma- energia para freá-lo, porém, sem resolver os
noites? problemas de base.
Às vezes choro pelos resignados- 3. Uma revolta organizada, dirigida por
2003

sofredores-perenes e quase nada posso mentores que têm poder muito grande

225
sobre as massas e as manipulam. Isto A FOTOGRAFIA-ARTE

2001
resulta em revoluções, banhos de sangue
que, temporariamente, dão cor à desforra De simples técnica - revolucionária,
para, a seguir, permitirem todo um novo diga-se - a Fotografia detonou um processo,
processo de injustiças. Todo PODER quer se mormente afetando a pintura, que culminou
manter poder. Infelizmente, os Socialismos, com o total banimento do referente externo
como foram implantados a partir de 1917, das faturas pictóricas, no 1º quartel do
não conseguiram se firmar de fato e se século XX.
desvincular do autoritarismo/totalitarismo. A Fotografia, signo indexical que é
Daí, concluímos que o maior dos problemas - o que a fundamenta enquanto signo é a
que as sociedades humanas enfrentam é o conexão dinâmica, física com o seu objeto:
do Poder que uns querem exercer ou, de exige como objeto dinâmico (para utilizar
fato, exercem sobre os outros. a terminologia/conceitos da Semiótica
2002 4. Uma oposição pacífica à sociedade, Peirceana) um existente. Índice impregnado
saindo-se por aí a vagar, ou formando de iconicidade, tem toda a intermediação
comunidades apartadas do sistema (como de aparatos técnicos para se corporificar
foi o caso ainda recente dos Hippies). signo, mas seu fundamento a coloca - a
Deus abençoe os que sofrem, mas que FOTOGRAFIA - como Índice, um 2º (todo
os que sofrem, não se contentando com tal índice traz consigo forte iconicidade: de uma
estado de coisas, lutem por transformações impressão digital à fotografia, passando
na sociedade, transformações estas que pelas pegadas de um animal no solo).
venham beneficiar a todos. Auguri! Além de revolucionar os modos de
(20 de julho de 2002) elaboração de imagens, a Fotografia fascinou
artistas que a utilizaram enquanto técnica de
fixar momentos e, o que é mais importante,
fonte inesgotável de abordagem de ângulos,
2003

alguns dos quais nunca dantes pensados.

226
Daí é que a Fotografia-ela-mesma mostrou Numa época em que a info-imagem

2001
(antes mesmo de ser considerada algo ‘cult’) maravilha a todos, colocando-se no centro
suas possibilidades enquanto arte autônoma, de cogitações dos artistas mais antenados,
em namoro ininterrupto com a pintura. a Fotografia continua na ordem-do-dia,
No século XIX isso já é percebido: apresentando-se como uma possibilidade
acaso e busca contribuindo para que a para aqueles que se comunicam pelas faturas
Fotografia adentrasse o reino das faturas que veiculam informação estética. Artistas.
que trazem consigo informação estética. Aí
é que o seu caráter indexical (traz as marcas Em tempo: Este texto constitui-se na
físicas de seu objeto) passa a ser secundário primeira parte de um texto maior sobre o
porque, ela aspirará à condição de hipoícone- trabalho do fotógrafo-artista Peter de Brito,
imagem: técnica através da qual se obtêm a propósito da exposição LUCESCRIPTURA:
formas, mesmo que isto implique a captação fazimentos foto-gráficos de Peter de
2002 de existentes. Brito e constou do catálogo da mostra,
Do mesmo modo que a Fotografia que aconteceu no mês de maio de 2002,
repercutiu na Pintura, esta teve sua influência em São Bernardo do Campo. O artista,
naquela, desde as origens. É um toma-lá-dá- oportumamente, exporá seus foto-poemas
cá sem fim. Todo objeto artístico é fruto de em Pirajuí.
um processo dialético, em que entram em (03 de agosto de 2002)

jogo sensibilidade e racionalidade. O artista é


alguém que, tendo inclinação para o trabalho
com a linguagem, passa por um aprendizado
para que chegue a dominar técnicas e
materiais e possa fazer corporificar o objeto ANTONIO LIZÁRRAGA: RIGOR E BUSCA
artístico. O fazedor (artista, poeta) faz por
sentir, pensar e ter a posse da tecnologia Conheci-o pessoalmente no estúdio-
2003

necessária para tal. casa de Regina Silveira e Julio Plaza, há

227
aproximadamente duas décadas, ocasião linhas, fundamentalmente. No mais,

2001
em que percebi seu incomum senso de passei a ter um conhecimento maior do
humor, o qual se indiciava em toda e seu trabalho em exposições pós-AVC
qualquer de suas observações, numa (sofreu um sério derrame, que o deixou
conversa que versava sobre generalidades. tetraplégico): desenhos, pinturas, faturas
Nada daquela coisa do gênero ‘vida de tridimensionais. Vontade e rompimento de
artista’: uma pessoa como as outras, limites/limitações.
aparentemente. Interessei-me cada vez mais por seu
Antes, já tinha conhecimento de trabalho, procurando saber das condições
sua obra através da capa e programação da concepção, projeto e execução, em
visual do livro Panaroma do Finnegans que entravam técnicos (quase sempre
Wake, trabalho feito em associação com mulheres) sensíveis, que viabilizavam uma
Gerty Sarué, artista gráfica admirável obra de um rigor cada vez mais notório. E
2002 como ele, o Lizárraga. Naquela empreitada notável, acrescentaria.
dos Irmãos Campos a partir de Joyce (o Observando a obra de Lizárraga, de
Panaroma), as faturas gráficas de Gerty fins dos anos 50 até os dias de hoje, percebo
se integravam ao volume, rompendo com o quanto já trazia algo construtivo que se
os limites impostos pela forma-livro e foi acentuando, rigor sempre presente: os
faziam do livro um livro-objeto: aqueles fenômenos linha, forma, cor, volume.
complexos sígnicos - da maneira como Lizárraga, em seu não-figurativismo
foram concebidos e programados - não geométrico, apresenta grande afinidade
ilustravam, mas falavam a linguagem com os pintores concretos que floresceram
experimental do texto verbal. nos anos 50, porém, mesmo sendo daquela
Tive, outrossim, o privilégio de geração de artistas (Lizárraga nasceu
participar de uma que outra exposição em 1924), não chegou a compor com
de poéticas visuais onde Lizárraga eles. Antes, possuía uma mesma filiação,
2003

também expunha a sua poética de pertencia a uma mesma linhagem: a da

228
vertente mais radical que operou nas Artes NOIGANDRES E INVENÇÃO

2001
Plásticas, no século que acabou de passar.
Primado de uma sensibilidade inteligente. Foi ainda nos anos sessenta do século
Parece que, quanto mais passa o tempo, o que acabou de passar (!), lá por 68 que tomei
trabalho de Lizárraga fica mais consistente conhecimento da Poesia Concreta, numa
e digno de admiração. aula de Português em que, um professor
De uma estirpe rara e que valoriza convidado - docente em Marília, Faculdade de
a invenção no âmbito da linguagem. O Letras - professor Ataliba Teixeira, num certo
terráqueo Antonio Lizárraga, argentino momento de sua preleção falou em poesia
de nascimento, só faz honrar, com sua avançada e mostrou o poema Organismo,
presença, as Artes no Brasil, país que de Décio Pignatari. O poema era encarte de
escolheu para viver. INVENÇÃO 5.
Aquilo me impressionou, bem porque,
2002 Em tempo: Este texto, com ligeiras logo após, a professora insistiu em mostrar
diferenças, foi escrito para constar de o cine-livro-poema e tentar uma análise,
orelha de livro sobre Antonio Lizárraga: ainda que breve. A professora Chainy João
Quadrados em quadrados, de Maria Racy, mostrou, comentou, tornou a mostrar.
José Spiteri, pesquisadora-artista que Aquilo ficou em minha cabeça como uma
conhece como poucos o seu trabalho (um fotografia.
bom crítico se vê pela escolha do objeto, Porém, meu grande interesse pela
para ficar com Ezra Pound) vem trazer Poesia Concreta e por toda a atividade que
mais esclarescimentos - mormente no que seus integrantes vinham desenvolvendo
respeita ao processo de feitura - sobre um em termos da própria poesia, da teoria e
fazedor do maior interesse. Lizárraga. crítica e da tradução de textos poéticos só
(10 de agosto de 2002) me ocuparam sistematicamente a partir de
1973-74.
2003

A Poesia Concreta foi uma grande

229
descoberta para mim, que passei a me PAULISTANO. A Revista INVENÇÃO, que

2001
dedicar à apreciação-estudo da obra manteve a forma-livro em seus cinco
concretista e, na medida do possível, tornei- números, traz encartes que demonstram
me um colecionador de livros, poemas em o quanto os textos, ou melhor, as faturas,
edições autônomas e revistas. Tornei a não mais se adequavam a amarras daquele
ver INVENÇÃO e descobri NOIGANDRES, tipo: os números quatro e cinco são os mais
a primeira publicação coletiva dos poetas belos, num crescendo.
concretos. NOIGANDRES teve o seu primeiro INVENÇÃO, encerrando as atividades
número em 1952, data da fundação do em 1966-67, deixou uma lacuna; as revistas
grupo do mesmo nome, formado por Décio mais empenhadas com a experimentação só
Pignatari e pelos irmãos Campos: Augusto seriam retomadas na primeira metade dos
e Haroldo. O nome estranho - noigandres anos 70, com NAVILOUCA, POLEM e CÓDIGO
- vem do Provençal, língua do sudeste da (da qual já tratamos nesta coluna). Em São
2002 França - da região da Provença - na qual Paulo, centro de irradiação do Concretismo
trabalharam grandes poetas líricos: os e das poéticas mais radicais dos anos 70
trovadores, que maravilharam (a começar (poéticas intersemióticas) essa retomada
pelo mais célebre Arnaut Daniel) de Dante se deu primeiramente com ARTÉRIA (1975)
Alighieri a Ezra Pound e Augusto de Campos editada em Pirajuí, seguida de POESIA EM
que o traduziu magistralmente e na íntegra. GREVE E QORPO ESTRANHO.
A palavra enigmática, maravilhou os então De NOIGANDRES, consegui os dois
jovens que se constituíram em grupo (há últimos números. De INVENÇÃO só não
cinqüenta anos!). Houve cinco números da obtive o primeiro, mas pude sempre contar
revista, sendo que na de número 4, de 1958, com a boa vontade de amigos, com seus
saiu o famoso plano-piloto para poesia acervos particulares, em especial com a
concreta. paciência do poeta Augusto de Campos que,
Entre NOIGANDRES e INVENÇÃO, por diversas vezes, franqueou a mim sua
2003

houve a página INVENÇÃO, no CORREIO biblioteca e coleção de objetos-poemas.

230
Meu estudo, propriamente, dessas se as rápidas passagens dos notórios (que

2001
revistas, teve início em 1974, com maior ou participaram da 1ª Exposição Nacional de
menor intensidade, até a presente data e Arte Concreta em 1956-57, São Paulo-Rio de
pretendo concluí-lo e publicá-lo. Pelo que me Janeiro) Wlademir Dias-Pino e Ferreira Gullar,
consta, não há nenhum estudo sistemático juntaram-se ao grupo pessoas de geração
publicado sobre NOIGANDRES e INVENÇÃO. mais velha que fizeram obra importante a
Se houver algum em andamento, ótimo! partir da assimilação da Poesia Concreta,
Essas publicações merecem a atenção de encontrando caminhos próprios: Edgard
historiadores da cultura e de críticos literários Braga e Pedro Xisto de Carvalho. O namoro
e das Artes em geral. com a velha raposa Cassiano Ricardo durou
NOIGANDRES E INVEÇÃO foram pouco: do afastamento à inimizade foi um
publicações dos concretistas de São Paulo, passo. Muito embora se comemorem os 50
que tiveram um alcance mundial, já que a anos do Grupo Noigandres, inclusive com
2002 Paulicéia e os referidos poetas foram dos exposição no Centro Cultural Maria Antônia
criadores de uma das tendências poéticas (da USP), o Concretismo (que ainda provoca
mais importantes do século XX: a da POESIA polêmicas em nosso País) merece ser mais
CONCRETA. bem estudado no Brasil e São Paulo deveria
abrigar um grande centro: O Centro de
Em tempo: O GRUPO NOIGANDRES Estudos das Artes Construtivas e Poéticas
foi fundado em 1952 pelos já amigos, da Visualdade (Museu, Biblioteca, Centro de
estudantes de Direito (Largo São Francisco) Pesquisas). Já estou pensando num site:
Décio Pignatari, Augusto de Campos e antecipação do projeto ambicioso.
Haroldo de Campos (irmãos Campos). (17 de agosto de 2002)

Juntaram-se, depois, a eles Ronaldo Azeredo


(que já aparece em NOIGANDRES 3) e
José Lino Grünewald (NOIGANDRES 5: do
2003

verso à poesia concreta). Excetuando-

231
RONALDO AZEREDO deixando, portanto, de ser poesia.

2001
(Os poemas de Ronaldo Azeredo e o Ronaldo Azeredo, nos anos ‘70, aqui
episódio do seu livro ‘obra completa’). em São Paulo, era dos poetas veteranos, dos
mais admirados pelos então jovens poetas.
Passada a fase inicial da Poesia Alguns de seus poemas, trabalhando com
Concreta, em que Ronaldo Azeredo, o mais semi-transparência, tecido etc, assim como
jovem integrante do grupo Noigandres, seus livrinhos, nem trazem títulos, sendo
já se tornara célebre, com poemas como conhecidos por algum sinal/aspecto. Outros
“velocidade”, e “ruasol”, ambos de 1957, ele têm título, como o “Labirintexto”, um mapa
partiu cada vez mais para uma poética de biográfico, impresso em serigrafia, por
incansáveis experimentações, incluindo, aí, Julio Plaza, de 1976. “CÉU MAR”, de 1978,
novos materiais para a poesia, poemas sem poema-cartazete, traz impressas palavras
palavras, livros-poemas etc. Embora tendo que se acoplam a imagem, podendo ou não
2002 manipulado palavras e continuado, até certo ser encaradas como título de poema, em
ponto, a utilizá-las, Ronaldo Azeredo não verdade, não-verbal.
chegou a fazer versos, não chegou a passar Um de seus últimos trabalhos dados
por esse exercício que, se por um lado é a público foi exposto na mostra POESIA
necessário (disciplina para um determinado INTERSIGNOS, exposição organizada por
tipo de coisa) por outro pode colocar Philadelpho Menezes, no Centro Cultural São
limitações castradoras ao poeta. Paulo, em 1985, e constava de uma frase:
Como podemos observar em toda a “enquanto durou” com algumas flores vivas
obra de Ronaldo Azeredo, o não fazer versos fazendo as vezes de letras e que foram,
não implicou a insensibilidade para as obviamente, murchando. Uma maneira que
sutilezas do verbal, que ele utilizou, quando o poeta encontrou para capturar uma espécie
utilizou, com propriedade. Porém, sua obra de tempo. Mais recentemente, editou, com
tendeu para algo em que a visualidade, número limitado de exemplares, um poema-
2003

de par com o conceitual, predominou, não objeto em alumínio, com impressão serigráfica

232
colorida: “noite noite noite” (1989), poema O que eu gostaria mesmo é de ver a

2001
este republicado em ARTÉRIA 6. obra de Ronaldo Azeredo editada com todo
Com sua radicalização, Ronaldo o cuidado e refinamento gráficos que ela
Azeredo, afastado da mídia, cada vez merece. Assim, muito mais pessoas teriam
mais ficou restrito a um grupo pequeno a chance de entrar em contato com um
de ardorosos admiradores. Em 1985, foi trabalho raro no mundo e que, juntamento
lançado um volume com sua obra completa: com alguns outros poucos, só tem dignificado
Pensamento Impresso; 1984-1954 que, a poesia no e do Brasil. E olha que no século
dado o fato de em nada corresponder às passado, poucos países tiveram a glória de
exigências, em termos de cuidado gráfico contar com tantos poetas extraordinários
que a sua obra exigia, foi desautorizado como o nosso. E que viva Ronaldo Azeredo!
pelo autor, sendo que a editora não pôde Em tempo: Ronaldo Azeredo lança, agora,
distribuí-lo. novo trabalho, na terça-feira, 20 de agosto de
2002 Realmente, considerando a grande 2002. Diz o convite de lançamento: ronaldo
importância da obra de Ronaldo Azeredo e azeredo convida para o lançamento de
os cuidados que a mesma sempre exigiu, seu poema-álbum lá bis os dois - de
foi um verdadeiro desrespeito o que se leitura tátil - que será realizado no dia
observou por parte dos editores de sua poesia 20 de agosto de 2002, às 20:00h, na
completa. As Artes do Brasil é que perdem mercearia do Jockey Club. Certamente
com isso. Meu exemplar, eu o adquiri na mais um de seus poemas-bomba, como já
noite do lançamento: 11-12-1985. Por isto é disse deles, certa vez, o poeta Wlademir
que o possuo. Nem Erthos Albino de Souza, Dias-Pino. Ronaldo Azeredo, nascido no Rio
pelo que me consta, havia conseguido um de Janeiro, em 1937 (irmão de Lygia Azeredo
exemplar (sua grande biblioteca na Bahia, Campos, esposa de Augusto de Campos e de
parece-me, foi vendida, após sua morte, a Ecila Azeredo Grünewald, mulher do Zélino
José Mindlin, outro bibliófilo, possuidor da Grünewald, falecido em julho de 2000 e,
2003

maior biblioteca particular do País). também grande poeta, que acabou fazendo

233
parte do Grupo Noigandres, a partir da revista suas mais de noventa páginas, bicrômicas

2001
NOIGANDRES 5) reside em São Paulo, há (porém, predomina o preto-e-branco), nos
décadas. Décadas, também, de uma prática seus cerca de 18 X 25 cm.
rigorosa da poesia. (Este texto foi escrito em Na capa, complexo urbano de edifícios
dois momentos diversos, sendo que alguns com interferências de tiras coloridas,
anos os separam). jogando com verticalidade e horizontalidade,
São Paulo, 19 de agosto de 2002. contendo dados técnicos. O nome da revista
(31 de agosto de 2002) em caixa alta, tipo fantasia, imitando certos
luminosos (pequenos círculos amarelos
formando as letras, contra um céu fabricado,
meio azul, meio roxo, servindo de fundo para
os edifícios recortados).
POLEM POLEM não existiria se a NAVILOUCA
2002 não tivesse existido, foi o que me disse Duda
POLEM 1 saiu em 1974, publicação Machado, poeta e, juntamente com Hélio
da Editora Lidador, tendo tido apenas esse Santos, um dos mentores da publicação, que
número, apesar de ter sido pensada para possuía, também, uma editoria internacional.
sair semestralmente. O fracasso de vendas, Então, POLEM, idealizada em função da não-
embora ela tenha sido melhor distribuída que saída imediata da NAVILOUCA, acabou sendo
a NAVILOUCA, e o conseqüente não-retorno lançada antes desta.
financeiro, impediram a continuidade; mas o Embora o planejamento gráfico seja
mais importante foi que a repercussão zero de outra autoria (Ana Maria Silva de Araújo),
na mídia afugentou os poucos anunciantes, tem grande afinidade com NAVILOUCA, cujo
que compareciam no número 1, (depoimento espaço procurou cobrir, porém, mais contida
de Duda Machado, a mim, por telefone, em (até sob o aspecto físico, já que seu formato
30-10-95). A publicação apresenta capa e era bem menor), mais “clean”. Interessante
2003

quarta-capa em quadricromia e algumas de que, além de participantes da NAVILOUCA

234
(mantendo o trio NOIGANDRES), incluía obra que marcou definitivamente a

2001
Erthos Albino de Souza e Antonio Risério minha passagem da pintura para a poesia
Filho, como poetas-colaboradores. intersemiótica.
Para o relativamente pequeno público Diga-se: a nomuque jamais recebeu
(principalmente de poetas) que a consumiu, patrocínio: foi sempre financiada pelos
POLEM trouxe alegria, informação e incentivo seus editores/colaboradores. De todas as
para que outras publicações brotassem, revistas que estou abordando, ARTÉRIA foi
assim como também tiveram esse papel de a que mais se metamorfoseou, a que mais
estimuladoras, NAVILOUCA e CÓDIGO. se comprometeu com uma poesia de cunho
(07 de setembro de 2002) mais experimental e intersemiótico, a que
mais valorizou, ao longo de seus mais de vinte
anos, a poesia que coloca a visualidade como
algo realmente estrutural. No mais, é aquela
2002 que se considera ainda viva, preparando o
seu sétimo número, que deverá ser lançado
ARTÉRIA . PARTE I Deus sabe quando.
Após a publicação de INVENÇÃO 5
ARTÉRIA começou sendo publicada (1967), ARTÉRIA foi a primeira revista
em Pirajuí, em 1975 (o seu nº1), deslocando- experimental que saiu em São Paulo, seguida,
se, depois, para São Paulo. Tudo tem a imediatamente de POESIA EM GREVE. Isto
ver com a fundação por mim e por Paulo significava a retomada coletiva daquela linha
Miranda da nomuque, edições, editora à de experimentação poética tão característica
margem do sistema editorial brasileiro, que da Poesia Concreta.
não visava lucros mas previa despesas e ARTÉRIA 1, tendo sido planejada por
que, modestíssima, operou e opera até hoje, mim, Paulo Miranda, Luiz Antônio de Figueiredo
cada vez mais raramente, porém. Nasceu e Carlos Valero, contando com o apoio de
2003

em função de meu livro Jogos e Fazimentos, José Luiz Valero de Figueiredo, o Zéluiz

235
(que, fotógrafo, acabou por se embrenhar da dos editores, do Trio Noigandres: Décio

2001
no mundo das artes gráficas, tornado-se um Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos,
expert, dominando toda uma parte prática que haviam, generosamente, fornecido
que envolvia, desde diagramação, passando colaborações, frente a solicitações de nossa
pela feitura de fotolitos, até impressão offset parte (Luiz Antônio de Figueiredo já possuía
e serigráfica. Fina sensibilidade, operou, relações de amizade com Décio Pignatari,
como alguns outros, num mundo de sutilezas desde a segunda metade dos anos ‘60,
que exigiam alto repertório, a Bauhaus nos também, a partir de uma época posterior, com
Trópicos - costumo dizer - assim como seus os irmãos Campos; meu conhecimento com o
irmãos mais velhos Luiz Antônio e Carlos. Trio começou a partir de fins de 1974, quando
Do lápis, régua e papel, Zéluiz chegou ao conheci pessoalmente Augusto de Campos, a
computador, instrumento para o seu talento propósito de meu livro Jogos e Fazimentos).
de artista gráfico, que se aplica mais na feitura Num artigo que publicou (JORNAL DA TARDE)
2002 de trabalhos alheios do que no próprio). em 1976 sobre as revistas, J. J. de Moraes fala
ARTÉRIA 1 sofreu bastante a influência/ no não-provincianismo de ARTÉRIA, apesar
incentivo, principalmente de CÓDIGO 1 e de ser revista editada no interior de SP.
POLEM, mas também de NAVILOUCA e, já (14 de setembro de 2002)

em seu primeiro número, mostrou a sua


vocação anti-acadêmica, pois, mesmo sendo
um modesto caderno, de formato pequeno,
visando a um melhor aproveitamento do
papel, traz, solto, em meio a suas páginas, o
poema “reviravolta”, de Paulo Miranda. ARTÉRIA . PARTE II
Impressa na gráfica Souza Reis, em
Bauru, ARTÉRIA 1 teve seu lançamento oficial Daí, para a de nº 2, ARTÉRIA sofreu
em 15 de julho de 1975, em São Paulo, no grandes mudanças, pois se pretendia fazer
2003

Krystal Chopp, Perdizes, com a presença, além algo completamente diferente em termos

236
de revista, algo que estourasse os limites offset, carimbos, tipografia e serigrafia.

2001
daquele veículo acadêmico; então, planejou- Apesar de possuir, ainda, um caderno, o
se uma sacola, que saiu por milagre, pois corpo principal da publicação era composto
teve mil contratempos: desde dificuldades de poemas soltos. A grande lição que se
financeiras, passando por censura de gráficas tirou daí foi a de que era possível, com
que se recusaram a imprimir trabalho de muito esforço, viabilizarem-se projetos mais
Julio Plaza (“Alechinsky-Lichtenstein”, depois ou menos ambiciosos, já que a serigrafia,
impresso em serigrafia por nós editores, para processo artesanal e barato, possibilitava
ser veiculado em ZERO À ESQUERDA, 1981) isso (havíamos conseguido viabilizar o
até a refeitura do caderno que acompanhava “Soneto” colorido - quatro impressões - de
os trabalhos soltos, mais a questão da Paulo Miranda. Em seguida, procuramos nos
embalagem. Os envelopes que constituiriam interar dessa técnica: eu, Paulo Miranda e
o receptáculo para os trabalhos soltos, Zéluiz).
2002 passaram por uma odisséia, nas idas e vindas Interessante é que o formato não-
São Paulo-Bauru. No caderno, consta o local convencional de ARTÉRIA 2, encontrou
Pirajuí, mas ARTÉRIA 2 foi realizada a partir resistências por parte de algumas livrarias de
de SP, utilizando os serviços de gráficas da São Paulo, que não a aceitaram (geralmente
Paulicéia, de Pirajuí e Bauru. deixávamos essas publicações em
Constando a data de 1976, seu consignação). Dado o fato de ser ARTÉRIA,
lançamento, ou melhor, sua liberação ao das revistas, a mais empenhada com a
público só pôde se dar em abril do ano POESIA VISUAL, vou-me deter mais nela,
seguinte, embora já estivesse praticamente não abordando todo o seu percurso num só
pronta em fins de 1976. ARTÉRIA 2, cuja fôlego, mas interrompendo e voltando.
evolução se deve mormente graças às ARTÉRIA 3, ART3RIA, praticamente
pressões dos irmãos Figuiredo, Luiz Antônio não existiu: Carlos Valero encomendou,
à frente, utilizou papéis e formatos diversos, numa empresa, caixas de fósforos, dessas
2003

assim como processos de impressão: que se dão como brinde, com a impressão,

237
em ouro, do logotipo que acima comparece KATALOKI, ATLAS.

2001
em negrito. Tendo sido distribuídas, as caixas Umas mais, outras menos, publicaram
incendiárias acabaram por não causar muitos a poesia mais instigadora, mais inventiva
danos, nem na vontade de novas edições que se produziu no Brasil, a partir dos anos
pelos então editores. ‘70, seguindo o exemplo de suas precursoras
(21 de setembro de 2002)
NOIGANDRES e INVENÇÃO, dos anos ‘50 e
‘60, portavozes/portatraços dos poetas do
Concretismo.
NAVILOUCA tornou-se uma lenda.
Seu projeto marca, primeiramente, no mundo
NAVILOUCA da poesia, uma preocupação em reunir num
mesmo veículo, poetas experimentais (não
Muitas e variadas foram as revistas só poetas; daí, explícito está o seu caráter
2002 interdisciplinar-intersemiótico) muito jovens,
que apareceram a partir da primeira metade
dos anos ‘70, pipocando ainda pelos ‘80 e, com poetas que, continuando sua pesquisa de
também, atingindo os ‘90, das quais citarei linguagem, já eram verdadeiras celebridades
apenas as que mais interessam para os que (embora com público diminuto), como era
curtem o trabalho com a linguagem, ou o caso dos concretistas; a música popular
seja, aquelas que veicularam uma poesia brasileira mais ousada comparecia na pessoa
mais comprometida com a experimentação: de Caetano Veloso e de outros letristas/
NAVILOUCA, POLEM, CÓDIGO (que já foi poetas, alguns dos quais despontavam.
apresentada nesta coluna), ARTÉRIA, POESIA Há toda uma história envolvendo
EM GREVE, QORPO ESTRANHO, MUDA, essa nave muito doida, essa NAVILOUCA,
JORNAL DOBRABIL, ZERO À ESQUERDA, planejada por Torquato Neto e Waly Salomão
CASPA, AGRÁFICA, VIVA HÁ POESIA, I, (Sailormoon, como assinava na época),
com programação visual de Óscar Ramos e
2003

PÓLO CULTURAL/INVENTIVA, ALMANAK ‘80,

238
Luciano Figueiredo, começando pelo precoce já, no mundo da mitologia: um “mistério”

2001
falecimento de Torquato Neto e terminando de que se ouve falar. Projeto ambicioso de
com o grave problema de ordem financeira, Waly Salomão e Torquato Neto, teve formato
que impedia a liberação da revista, grande - 27 X 36 cm - e não só teve número
impossibilitando a sua circulação. único, como se concebeu e pretendeu ser
Lúcio de Abreu, proprietário da assim: NAVILOUCA; almanaque dos
pequena Ed. Gernasa, quase falida, aparece aqualoucos, primeira edição ÚNICA,
na página de rosto como “editor responsável” com distribuição pela capa, em que uma
(depoimento de Waly Salomão a mim, estrutura/malha geométrica de retângulos
por telefone, em 02 de julho de 1995). com medidas diversas alterna reproduções
Em verdade, a revista teve o início de sua de fotos dos participantes (poetas/artistas),
gestação, em fins de 1971. A idéia de Waly com os textos nada convencionais: nome da
e Torquato, o nome: NAVILOUCA, daquele. revista, subtítulo etc. O vermelho e laranja do
2002 Dada a questão financeira, W. Salomão título NAVILOUCA, todo em caixa alta (fundo
entrou em entendimento com Caetano vermelho/ texto laranja), lembram de longe
Veloso, que conseguiu apoio de Midani, da as capas da revista MANCHETE. Entre o rigor
Polygram; isto (os acertos) assegurou a sua e a algazarra (a Bauhaus e o trash proposital,
saída em 1974, podendo ter sido brinde de a contracultura), corporificou-se uma
publicação, uma antologia, uma nave doida,
Natal. Em 1975, melhor distribuição e pôde
louca-varrida, que marcou grande presença
ser encontrada em algumas livrarias de
na primeira metade dos anos ‘70, uma revista
grandes cidades do País.
que bagunçava o coreto, apresentando, de
Das revistas onde a experimentação
cara, as caras dos poetas, antes mesmo dos
teve voz e vez, NAVILOUCA acabou por se
poemas, uma revista que, embora tivesse
tornar a mais célebre, tendo sido também, de
afinidades, contrastava enormemente com o
toda uma leva de publicações dos anos ‘70, a
último número da revista INVENÇÃO. Porém,
primeira a ser concebida, tendo ingressado,
2003

o diálogo estava estabelecido: a questão de

239
uma visualidade (embora diversa) importante do que estava à margem da margem, luxo

2001
e a participação, como colaboradores, dos e lixo, macumba em palácio de cristal. Esse
três componentes iniciais/fundadores do espírito e essa gráfica comparecem, em
“Grupo Noigandres”: Augusto e Haroldo de parte, em publicações posteriores, ou seja,
Campos e Décio Pignatari, experimentadores NAVILOUCA foi uma espécie de matriz. Alguns
de um tempo anterior, que continuavam dos colaboradores comparecerão muitas
experimentando e jovens experimentadores vezes em muitas publicações coletivas que
(isto, sem falar nos artistas plásticos Hélio se seguiram e que também tiveram, como
Oiticica e Lygia Clark). Poderíamos até falar figuras admiradas, os poetas concretos.
num “Concretismo Pós-Tropicália”, onde sub Além de NAVILOUCA, no Rio de Janeiro,
e superjaz o riso oswaldiano. idealizada por não-cariocas, saiu, em 1974,
Com capas, externas e internas POLEM, uma publicação importante e bem
quadricrômicas e corpo com páginas mono aparentada com aquela. Desse mesmo ano é
2002 e bicrômicas, a hoje lendária NAVILOUCA a CÓDIGO nº 1, editada em Salvador-Bahia,
escancarou textos e imagens, numa estética revista que realizou a proeza de chegar ao
que não era bem a depois explicitada pelos número 12; ambas foram distribuídas já
poetas visuais que começaram a publicar a desde antes de a NAVILOUCA ser liberada. No
partir da primeira metade dos anos ‘70. O ano seguinte saem em São Paulo, ARTÉRIA
que nela comparece, além de experimental, e POESIA EM GREVE, das quais me ocuparei
dessacralizador por si só, recebeu um num futuro próximo.
tratamento gráfico, teve uma programação (28 de setembro de 2002)

que, propositadamente, dialogava com as


primeiras páginas de jornais sensacionalistas
e cartazes de divulgação de filmes.
NAVILOUCA foi um encontro de águas:
de um rigor geométrico a um informalismo
2003

aparentemente descuidado, do marginal e

240
BALALAICA e ARTÉRIA 4 (ARTERIV): e estudiosos do “grupo”, muito ligado às

2001
AS FITAS avançadas tecnologias, procurando estar
atualizado com equipamentos audiovisuais,
As pessoas que se empenharam, de entre o caseiro e o semi-profissional.
fins de 1974, mas principalmente a partir Grande era a seriedade com que
de 1975, no projeto ARTÉRIA, malgrado o Carlos Valero conduzia seus projetos,
fato de não constituírem propriamente um alguns dos quais eram veiculados como que
grupo, com coesão interna (mesmo que subterraneamente, numa época em que a
temporária), pois já se vivia um período repressão ainda estava à solta e que havia
pós-vanguarda, “pós-tudo”, mantiveram- perigo, mesmo para um trabalho tido como
se, com empreendimentos comuns por mais formalista e que atingia um número muito
seis ou sete anos, antes que houvesse uma limitado de pessoas.
dispersão do grupo inicial. Desde cedo se Dessa época (segunda metade dos
2002 colocou a questão da não-repetição, se anos ‘70) são alguns audiovisuais, como
não de poemas, pelo menos, dos projetos o que fez sobre a Revolução Russa (este
coletivos, como as revistas (Luiz Antônio audiovisual, excetuando-se o que preparou
de Figueiredo bateu-se por uma ARTÉRIA 2 para divulgação de ARTÉRIA 4, foi o único
que não fosse mero caderninho e, enfim, ela que eu vi na íntegra, de fato, pois certos
saiu, como já expus, feito sacola de poemas, procedimentos eram mantidos em segredo
uma quase caixa-de-surpresas). ou quase - eu percebia - mesmo para mim
O nível de exigência de si e dos que, embora amigo, entrava mais na área
outros era muito grande: tudo em nome do propriamente poética, apesar da formação
rigor. Então, de saída, ARTÉRIA se mostrou de historiador. A coisa era tão bem feita
mutante, metamorfoseante... Foi assim que que parecia profissional) com preocupação
veio a idéia de uma obra coletiva, que seria didática. Por outro lado, Carlos era um
uma fita cassette, engendrada a coisa por estudioso da obra de Eric Satie.
2003

Carlos Valero de Figueiredo, um dos poetas BALALAICA, cassette, reuniu peças de

241
muitos poetas: desde trabalhos já gravados de Estúdio OM e Nomuque Edições. Foram

2001
até - principalmente - peças sonorizadas feitas as gravações e as cópias em casa de
especialmente para a publicação: era a poesia Carlos Valero, situada em Vila Mariana, São
fortemente visual, mostrando a sua face Paulo, à Rua Madre Cabrini, 22. Carlos Valero
sonora; era a dimensão sonora da poesia, ainda fez uma fita MUSAS, onde tocavam
num momento em que ainda não era moda, e cantavam futuros integrantes dos TITÃS,
entre nós, discorrer sobre “poesia sonora”. inclusive Arnaldo Antunes.
Corria o ano de 1979 e já estava pronta e A segunda fita - ARTERIV - era ainda
parcialmente distribuída. Seu lançamento mais ousada pois, além de trazer também
“oficial”, porém, se deu em 08 de maio de uma audionovela de teor tétrico-erótico,
1980, na livraria Muro, no Rio de Janeiro (no redimensionava até poemas não-verbais,
convite consta: BALALAICA : o som da numa verdadeira façanha de transmutação
poesia). ou tradução intersemiótica, como colocou
2002 O que havia de mais ou menos Roman Jakobson. Todo um trabalho
novo, além de certos trabalhos serem experimental comparece, como o poema
surpreendentes, era o fato de ser uma fita “você eu”, de Tadeu Jungle, até simples
(revista) coletiva de poetas. No ano de 1980, oralizações, como a que fiz de um poema de
no final, foi lançado um estojo de papel, José Lino Grünewald.
com impressão em serigrafia, contendo um O lançamento foi algo à parte, com
caderno/índice cuidadosíssimo (em xerox) apresentação de um audiovisual produzido
que valia por uma revista, e uma fita cassette: por Carlos Valero, que já podia ser
era ARTERIV - ARTÉRIA 4 - tecnicamente considerado trabalho multimídia.
superior à primeira. Esse trabalho com as fitas teve grande
Ambas as fitas foram um importância, não que houvesse novidade em
empreendimento fundamentalmente de poeta gravar poema (em disco etc.), pois
Carlos Valero, com participação vária dos dentro, mas principalmente fora do Brasil,
2003

colaboradores; elas trazem as indicações esse procedimento era comum. Sua grande

242
importância reside em três pontos: 1º) o de como foi o caso do lançamento/happening

2001
evidenciar a dimensão sonora de poemas de ZERO À ESQUERDA (revista-caixa), em
(não só poemas) tidos, à primeira vista, maio de 1981.
como ilegíveis, posto que valorizavam até (05 de outubro de 2002)

em excesso, a visualidade; 2º) ter sido um


trabalho pioneiro no Brasil enquanto obra
realmente coletiva e 3º) ter mostrado a todos
quantos se interessavam em fazer obras
coletivas, que esse era mais um caminho, ZERO À ESQUERDA
uma possibilidade a mais (o vídeo coletivo,
outra e, mais recentemente o CD ROM, como Para nós da nomuque, edições,
o que o poeta André Vallias chegou a pensar essa revista marcou, praticamente o
em 1995). encerramento de toda uma atividade ligada
2002 Esses feitos - as fitas - quase sempre à edição de poesia sobre papel, pois seu
têm sido ignorados pelas pessoas que, em formato rompia praticamente com tudo o
época recente, têm-se interessado pela que até então se havia feito em termos de
chamada “poesia sonora” [a exemplo de publicação coletiva.
Philadelpho Menezes que, na introdução Em ZERO À ESQUERDA, que teve como
que fez a um livro por ele organizado, não idealizadores Omar Khouri e Paulo Miranda,
menciona as fitas como um feito precursor mais toda uma equipe de realização (pois,
que foi no Brasil: BALALAICA e ARTÉRIA 4, em grande parte os trabalhos foram por
trabalhos coletivos. P. Menezes (org.). Poesia nós impressos em serigrafia, técnica que
Sonora; poéticas experimentais da voz no aprendemos a executar), a liberdade dos
século XX. São Paulo, Educ, 1992]. colaboradores foi quase total, sendo que, em
As publicações da Nomuque Edições termos de formato, cada um fez o que bem
continuaram em sua metamorfose e o quis e o invólucro é que teve de se adequar
2003

aspecto multimídia chegou a se acentuar, aos trabalhos: ou seja, não se impôs aos

243
colaboradores o formato final e, no final de (1975), de Augusto de Campos e Julio Plaza.

2001
tudo, ainda apareceu o trabalho de Villari Foi difícil pensar publicações coletivas depois
Herrmann que, com a embalagem já pronta dessa, mas, no mesmo ano, já começamos
e não cabendo, teve que ser diminuído na a fazer projetos para quatro revistas, duas
guilhotina. das quais só sairiam nos anos ‘90.
A apresentação de ZERO À ESQUERDA, (12 de outubro de 2002)

a caixa-capa recebeu, por motivos de ordem


prática, uma grande etiqueta auto-adesiva:
fundo laranja, letras azuis, helvética caixa-
alta, a palavra ZERO, invertida a ordem dos
grafemas, para que o “o” (zero), ficasse ARTÉRIA . PARTE III
mesmo à esquerda: OREZ, idéia de Walter
Silveira. ARTÉRIA 5 e 6. Quando do
2002 A festa representada pelos trabalhos lançamento de ZERO À ESQUERDA, no
se prolongou no espetáculo multimídia primeiro semestre de 1981, pensou-se, por
(como se entendia, então: com a utilização um lado, que revistas do tipo convencional,
de vários meios/linguagens) em que se de virar página, já não teriam razão de
constituiu seu lançamento, na discoteca ser, mas, por outro, foram pensados vários
“Paulicéia Desvairada”, em 06 de maio de projetos, considerando um longo prazo
1981, em que a música popular e a erudita que, em verdade, ficou longuíssimo. Alguns
estiveram presentes, a dança, um som ficaram no papel e talvez até possam vir
ambiente preparado especialmente, um a ser concretizados; outros, porém, foram
vídeo que passava em dezoito monitores de descartados, como o da revista, projetada
TV e cerca de mil pessoas. por Zéluiz, que chegou a ser iniciada (reunião
A revista se constituía numa exposição de colaborações...), e que consistia de três
portátil, tendo como antecessoras, no Brasil, grandes folhas - cartazes - 96 X 66 cm, nas
2003

NOIGANDRES 4 (1958) e a Caixa Preta quais estariam impressos trabalhos vários,

244
com diagramação adequada no sentido de bem recentemente quando, em sua maior

2001
preservar a individualidade, ao mesmo tempo parte, foi doado.
em que o conjunto não destoaria formando, 3. Uma revista que teria o formato de 31 X 31
verdadeiramente um todo; a impressão cm, toda em serigrafia, a cores, encadernada
seria em offset. Hoje nós, os editores, não com espiral, podendo funcionar como objeto
teríamos problemas em aceitar patrocínio, porta-poemas (exposição-de-poemas-um-
mas, naquele momento, ninguém se dignou por-vez). Esta demorou quase dez anos
a procurá-lo, única forma de viabilizar o para ser impressa (mais de dez, do projeto
projeto. ao lançamento) e acabou sendo ARTÉRIA 6,
Os outros projetos, todos coletivos, lançada em abril de 1993.
foram os seguintes: 4. Uma revista que compreenderia trabalhos
1. Uma revista em que, primeiramente, o dos mais diferentes formatos, bem como
destinatário receberia um invólucro, e, aos papéis; em serigrafia, porém não excedendo
2002 poucos, os trabalhos, sendo que, por fim o ao tanho “oficício” ou aproximado (isso tudo
índice (relação de colaboradores/trabalhos, dava aos autores uma liberdade controlada).
indicações técnicas etc.). O projeto ficou Por outro lado, essa revista abrigaria
apenas no papel. trabalhos que, por um motivo ou outro não
2. Uma que seria a “maior revista do Brasil” coubessem no QUADRADÃO (ARTÉRIA 6)
(talvez recebesse, mesmo, esse nome), e, também, haveria o aproveita-mento das
formato 65 X 47 cm, em papel kraft, toda em sobras de papel. Esse projeto foi concluído
serigrafia, com poemas-cartazes a cores; a em 1991. Deu em ARTÉRIA 5 (FANTASMA),
peça, incômoda, seria até indesejada pelos lançada no MASP, com grande exposição dos
destinatários, não tendo como ser guardada. trabalhos editados ao longo de dezessete
Papel comprado (dinheiro que havia sobrado anos pela nomuque, edições (abril de
das vendas de ZERO À ESQUERDA), 1991). ARTÉRIA 5 (FANTASMA) constituiu-se
permaneceu apenas projeto. Incômoda ficou numa verdadeira exposição portátil, tal como
2003

a guarda do papel, esperando utilização até pretendeu ser NOIGANDRES 4 (de 1958,

245
dos poetas concretos daquela “fase heróica”, A nomuque estava se especializando

2001
com seus poemas-cartazes impressos em edições demoradíssimas, o que já havia
tipograficamente e capa, invólucro, com sido o caso de ARTÉRIA 5 (FANTASMA).
serigrafia de Hermelindo Fiaminghi). Nessa leva de revistas, das que acabaram
(19 de outubro de 2002) saindo, NAVILOUCA havia tido problemas,
atrasando; porém, tempo não tão extenso
(o número três de ORPHEU - revista do
Modernismo português - ficou apenas em
provas, que depois foram recuperdas, mas
ARTÉRIA . PARTE IV o número não saiu). Projetada inicialmente
para conter vinte ou vinte e dois poemas
Aqui, seria interessante deter-me um (um por folha, utilizando-se apenas uma das
pouco mais em ARTÉRIA 6, não apenas pelo faces, ficando a outra em branco), o tempo
2002 fato de nela predominar a visualidade, mas foi passando, o projeto se foi modificando
também pelo fato de ter sido (o que não e as páginas-poemas chegaram a mais de
lhe garantiria idoneidade poética caso não trinta. Como ZERO À ESQUERDA e ARTÉRIA
tivesse qualidades) a revista de mais longa 5, ARTÉRIA 6 teve como idealizadores Omar
gestação da história da Cultura Brasileira, Khouri e Paulo Miranda, mas contou com uma
que eu saiba. Se ARTÉRIA 5 teve nome equipe de realização onde estavam Sônia
duplo, a seguinte teria triplo: 31 X 31 Fontanezi, Walter Silveira, Zéluiz, Arnaldo
(QUADRADÃO) ARTÉRIA 6. Mais de dez Antunes, Júlio Mendonça e outros.
anos entre projeto e lançamente; quase A demora em sair foi tanta, que
dez anos para a impressão. Se a poesia alguns colaboradores até se esqueceram de
realmente aspira à eternidade e os poemas que eram colaboradores. Trabalhos inéditos
veiculados na publicação merecem mesmo o quando do envio, deixaram de sê-lo. Como
nome poema, o que serão esse míseros dez o número anterior, ARTÉRIA 6 foi totalmente
2003

anos, ou cerca de? impressa em serigrafia, em minha casa,

246
em condições as mais improvisadas, mas mas sempre atual no Brasil (aqui, parece,

2001
que eram o suficiente para que a coisa se os problemas se eternizam).
concretizasse. A demora deveu-se a vários De qualquer maneira, com pausas de,
fatores, exceto dinheiro, que é o que se às vezes, um ano, o trabalho prosseguiu e foi
pensaria em primeiro lugar (quase nunca concluído. Edgard Braga, com cujo trabalho
deixamos que a falta de recursos financeiros iniciamos a impressão da revista e o artista
fosse desculpa para a não-realização de plástico e grande serígrafo Omar Guedes,
projetos): desapareceram; também Paulo Leminski,
1. Transtornos por falta de espaço adequado com quem não chegamos a estabelecer
para a feitura dos trabalhos em serigrafia (a contato, mas conseguindo um seu trabalho,
secagem dos mesmos era um dos problemas em parceria com João Virmond Suplicy, em
enfrentados); 1991 (o autor de Caprichos e relaxos havia
2. uma certa dispersão do grupo (que nunca falecido em 1989) - pela primeira vez Leminski
2002 se configurou movimento) que se encontrava era publicado pela Nomuque. [Por ocasião
mais ou menos coeso até a feitura de ZERO do lançamento de ARTÉRIA 5 (FANTASMA),
À ESQUERDA; em 1991, no MASP, Erthos Albino de Souza,
3. um certo cansaço com a falta de perspectiva que se encontrava em São Paulo, referiu-
frente à conclusão de algo que parecia cada se, como que espantado, ao fato de nunca
vez mais interminável; havermos publicado Leminski. Na mesma
4. algumas dificuldades de ordem técnica ocasião, Glauco Mattoso reclamou pelo fato
desanimavam, já que certos resultados de não ter sido convidado para colaborar.
gráficos não satisfaziam; De nossa parte, nunca houve problemas
5. uma depressão - embora a conciência com relação a ele, que tanto admirávamos,
não fosse tão clara - uma angústia frente mas nenhum dos editores tinha intimidade o
ao desmoronamento das perspectivas de suficiente para solicitar a colaboração, o que
modificação mais globais da sociedade; acabou sendo feito. Glauco enviou trabalho,
2003

coisa superada, já, em outras paragens, que foi publicado em ARTÉRIA 6 e, em

247
seguida, forneceu mais um para o próximo tirar o maior proveito, resolvendo da

2001
número, que será (espero que se concretize) seguinte maneira: o índice traria todas as
em offset, um caderno tradicional, que está especificações, pela ordem de aparecimento
sendo preparado há anos. Pela primeira vez na dos trabalhos, com numeração de 1 a 35, só
nomuque, também o raro Ronaldo Azeredo, que as páginas não eram numeradas e, para
com um poema-objeto (com indicações para saber a autoria, o leitor teria de contar! Porém,
ser montado) “noite noite noite”, não inédito, a grande vantagem da solução imposta pelo
mas, assim mesmo, pouco conhecido]. problema, é a anonimização aparente do
Com trinta e cinco trabalhos de trinta material que comparece na revista - coletiva
e oito poetas (incluindo aí Safo de Lesbos, que é, a revista, não importaria, pelo menos
poeta da Antigüidade Grega, transcriada por num primeiro momento, saber quem seria
Haroldo de Campos), dispostos de maneira autor do quê.
tal a formar uma sintaxe interna ditada pela A capa já havia sido pensada desde
2002 configuração dos trabalhos: as analogias muito tempo por Paulo Miranda, que chegou a
determinando o arranjo: a seqüência foi algo fazer rascunhos, os quais foram aproveitados.
estudado e executado a várias mãos. Daí, por ocasião dos trabalhos de conclusão
Algo que pode causar incômodo à da revista, a capa foi reelaborada com
primeira vista, é o fato de os trabalhos não Arnaldo Antunes, utilizando um Macintosh.
terem as especificações, a começar pela Foram feitos testes de cores no computador;
autoria, na própria página e essa não era a porém, quando da impressão em serigrafia
primeira revista que fazia isto. Antes, entre - verde, azul e magenta - esta última causou
outras, MUDA e KATALOKI já haviam feito. péssima impressão, uma coisa escandalosa,
Acontece que, problemas de ordem técnica o que nos fez parar os trabalhos no décimo
impediram as indicações, pois, imprimir os exemplar. Só retomamos os trabalhos
dados no verso da página, poderia arruinar quando, com Sônia Fontanezi, olhando
o trabalho seguinte, já que se tratava de o já feito com luz natural, achamos uma
2003

serigrafia. A partir do problema, procuramos beleza. Sônia Fontanezi deu novo ânimo, o

248
que foi reiterado por Júlio Mendonça. Daí, Presidente Alves colaborou com soluções

2001
concluímos o trabalho de impressão. gráficas preciosas para a revista. O nome de
As demais tarefas (acabamento) foram Zéluiz só viria e vem a engrandecer toda e
feitas e a revista - finalmente! - ficou pronta qualquer publicação. Salve, salve Pantera!
em dezembro de 1992. Eram apenas cento (09 de novembro de 2002)

e oitenta exemplares. ARTÉRIA 5 havia


tido apenas cento e sessenta e o cassette
ARTÉRIA 4, cerca de cem. Não só pela fato
de ser edição artesanal, mas as próprias
dificuldades de distribuição faziam com
que não se sonhasse com edições de mil POESIA EM GREVE e QORPO ESTRANHO
exemplares ou mais.
ARTÉRIA 6 é uma publicação que POESIA EM GREVE (alusão a Mallarmé,
prima pela excelência na escolha do que nela o “poeta em greve”: uma homenagem,
2002
comparece e quase sempre pelos resultados certamente) em verdade, POESIAEM G,
em termos de impressão/configuração dos como consta da capa e página de rosto,
trabalhos. Rara não apenas por já surgir contingências de uma época: ainda se vivia
com tiragem reduzidíssima e por ter sido no Brasil a ditadura militar naquele 1975 e
feita artesanalmente, mas pela qualidade de certas palavras eram tabu. Daí o perigo e
fato que traz consigo e pela dificuldade de a camuflagem. Na quarta capa, espelhada
se encontrar quem se digne a editar uma REVE de G R E V E, que se pode ler E VER
revista/álbum/antologia verdadeiramente de / RÊVE (capa de autoria de Julio Plaza e
poesia visual (intersemiótica) de tal porte. Pedro Tavares de Lima). Os editores: Lenora
Em Tempo: Por um lapso de nossa parte, de Barros, Pedro Tavares de Lima e Régis
o nome de Zéluiz Valero Figueiredo não Rodrigues Bonvicino; projeto gráfico de Julio
aparece no rol dos realizadores de ARTÉRIA Plaza.
2003

6. Em verdade, o competentíssimo rapaz de Costuma-se dizer: trata-se do nº 0

249
de QORPO ESTRANHO. Forte a presença CORPO EXTRANHO. QORPO ESTRANHO

2001
de artistas plásticos, como o próprio Julio 1; revista de criação intersemiótica.
Plaza, mais Hermelindo Fiaminghi, Geraldo Editores: Julio Plaza, Pedro Tavares de
de Barros e Regina Silveira, artista que Lima e Régis Rodrigues Bonvicino. QORPO
sempre fez questão de enviar colaborações ESTRANHO 2; criação intersemiótica.
para as revistas, assim como Julio Plaza. O Editores: Julio Plaza e Régis Bonvicino.
Trio Noigandres, mais o quarto componente (Nesse ínterim saiu MUDA, que anunciou
Ronaldo Azeredo, com Edgard Braga (e o mudanças; o PÓLO CULURAL/INVENTIVA,
seu belíssimo “uivôo”) e José Paulo Paes. suplemento editado por Paulo Leminski,
Os jovens comparecem e destaque-se a lançou o manifesto-proposta “X poetas &
“Homenagem a George Segal”, de Lenora de uma geração possível”). CORPO EXTRANHO
Barros e encarte de Pedro Tavares de Lima. 3; revista semestral de criação (sem
Podemos concluir que POESIA EM GREVE especificação, talvez vista como limitadora
2002 realmente evoluiu para QORPO ESTRANHO, ou direcionadora). Coordenação editorial:
bem porque, tratava-se, em boa parte, da Julio Plaza e Régis Bonvicino, pois a nova
mesma equipe de realização. A mais “clean” revista formato pocket book, é bancada
das revistas de invenção, POESIA EM GREVE, pela Editora Alternativa, chegando quase a
chega a ser de uma assepsia irritante. QORPO duzentas páginas.
ESTRANHO, enquanto fatura gráfica, estará Dos três números que a revista teve,
mil passos à frente. o 1 foi o mais belo, um primor gráfico,
QORPO ESTRANHO teve três perfeita, não fora a interferência dos
números, sempre trazendo subtítulos, nos anúncios publicitários. De qualquer modo,
anos de 1976 (números 1 e 2) e 1982 (o os dois primeiros números estiveram mais
nº 3), transformando-se, mais no que diz em sintonia com alguma irreverência, o que
respeito ao formato. Foi diminuindo de não ocorre com o terceiro, apesar de trazer
tamanho, sempre com projeto gráfico de entre os seus colaboradores, a maior parte
2003

Julio Plaza. A de número 3 aparece como dos que haviam colaborado em revistas

250
dos anos ‘70. Aí, também a metalinguagem mudança de peles pelos penas

2001
comparece com mais força. Há algum tempo, de certos animais e aves
MUDA quer dizer
Julio Plaza vinha com um projeto de reunir
cavalos ou muares folgados
ARTÉRIA e QORPO ESTRANHO num único e colocados de distância a distância
elaborado volume, o que acabou por não se para substituir os animais cansados
concretizar. ao longo de longas jornadas
(16 de novembro de 2002) MUDA quer dizer
arranhar a lira da laringe
vozes da voz
planta que sai do viveiro

para se plantar além

Nem seria preciso reiterar a que


MUDA
veio a revista, o desdobramento acima dá
conta de suas pretensões, num momento
2002 MUDA: o feliz nome foi sugerido aos
decisivo de explicitação das duas principais
editores Antonio Risério e Régis Bonvicino,
vertentes da poesia jovem experimental,
pelo poeta Paulo Leminski. A revista, editada
que se encontravam mormente em São
em 1977, traz na primeira capa interna,
Paulo, seu centro de irradiação: uma linha
uma espécie de manifesto/palavras-de-
mais verbalista (que é a que predomina
ordem, desdobramento do vebete “muda”,
na revista) e a outra, que colocava a
constituindo-se poema, um ready-made
visualidade com um peso muito grande,
retificado:
como um elemento estrutural no poema.
Os editores e boa parte dos colaboradores
MUDA quer dizer
acharam por bem cortar um possível
um silêncio uma aventura
mudar mudar-se mudança cordão umbilical com a Poesia Concreta,
transportar a mobília tanto que, propositadamente, os mestres,
MUDA quer dizer que naturalmente participavam de outras
2003

251
revistas, não foram convidados, foram da poesia e traz um poeta que destoaria,

2001
deliberadamente excluídos, não implicando, não fora a sua inclusão no rol de estrelas de
o fato, em inimizade. NAVILOUCA: Chacal.
Por outro lado, o projeto gráfico, desta Além da arregimentação de poetas
vez, não ficou por conta do veterano Julio do maior número possível de unidades
Plaza, como havia sido em outras revistas da federação brasileira, MUDA, salvo em
em que Régis Bonvicino entrava como algumas páginas, para registrar alguma
editor, mas foi entregue a José Augusto diversidade, tentou ser anti-concreta ou, de
Nepomuceno, poeta sensível, possuidor de alguma forma, pós-concreta. De qualquer
know-how gráfico, mas que, como era um forma, marcou momento importante, como
caso de mudanças, tentou fazer algo que se já disse, de explicitação de diferenças e, o
distanciasse daquela limpeza gráfica, como que é muito importante, mostrou, como já
era encontrada em outras publicações - ficou se vinha percebendo, que, apesar da grande
2002 algo impessoal e inexpressivo, salvo apenas admiração que se tinha pela Poesia Concreta
pela excelência de alguns dos trabalhos que e a consciência do seu peso na Cultura
comparecem na revista. Brasileira, o que se estava fazendo era outra
A capa é de Marcelo Nepomuceno que, poesia, mesmo tendo, com aquela, afinidades.
autor também do logotipo MUDA, fez algo MUDA deixou claro que as diferenças poéticas
cursivo, manual, distanciando a publicação afastavam pessoas. Aparece, aí, um encarte
do “paulistismo” verificável em outras serigráfico de Walter Silveira (“entanto”) e,
revistas. sintomaticamente, Lenora de Barros não
Revista em que, além dos poemas, está entre os colaboradores.
encontramos alguns manifestos. Dá (23 de novembro de 2002)

especial destaque a Paulo Leminski e traz,


pela primeira vez impressos coloridos, os
“Babilaques” de Waly Salomão. Marca a
2003

entrada de Aldo Fortes no público mundo

252
ATLAS acabou alcançando um nível mais alto

2001
de sofisticação, o que foi favorecido pela
ATLAS (teve seu lançamento no MASP, utilização de um papel de qualidade - um
em 15 de dezembro de 1988). A revista cuchê fosco - pelas dimensões - 30,5 X 44,5
de maior formato dentre as revistas de cm - e pelo número de páginas: 144, somado
invenção, ATLAS (ALMANAK 88) pretendeu o fato de não sonegar cor ao que possuía
ser a “revista das revistas” e conseguiu o cor.
seu intento, ou seja, pretendeu reunir todo Mesmo sendo uma “revista-de-virar-
o pessoal, ou a maior parte dos poetas/ a-página”, cada poema apresentava a feição
artistas que haviam participado das revistas de um cartaz, dadas as referidas dimensões.
dos anos ‘70 e 80. Com número de trabalhos/páginas variando,
Projeto gráfico ambicioso, tendo como colaboraram: Arnaldo Antunes, Paulo
editores: Arnaldo Antunes, Beto Borges, Leminski, Júlio Mendonça, Mário Ramiro, León
2002 Gilberto José Jorge, João Bandeira, Sergio Ferrari, Gilberto José Jorge, Filipe Moreau,
Alli, Sergio Papi, Walter Silveira e Zaba Duda Machado, José Guilherme Rodrigues
Moreau, mais a colaboração de Moneya Ferreira, Walter Silveira (Walt B. Blackberry),
Ribeiro e Tadeu Jungle. A capa foi concebida Augusto de Campos, Edgard Braga, Régis
por Arnaldo Antunes, Beto Borges e Zaba Bonvicino, Leonardo Fróes, Brenda Novak,
Moreau. Cristina Fonseca, Jac Leirner, Tunga, Mônica
Conseguiu a sua realização, reunindo Bonvicino (Costa), Júlio Bressane, Sebastião
um elenco de fazer inveja a qualquer editor Uchoa Leite, Sergio Papi, Helena Kolody,
mais comprometido com a experimentação Alice Ruiz, José Lino Grünewald, Marcelo
em artes gráficas e poesia, tendo como Tápia, Beto Borges, Anna Muylaert, Lívio
suporte o papel. Teve patrocínio, o que Tragtenberg, Décio Pignatari, Paulo Miranda,
a viabilizou. Supera suas antecessoras Hélio Oiticica, Erthos Albino de Souza, Regina
ALMANAK 80 e KATALOKI, dada a excelência Silveira, André Vallias, José Agrippino de
2003

gráfica: das revistas em offset, foi a que Paula, Glauco Mattoso, Go, Nuno Ramos,

253
Haroldo de Campos, Fausto Fawcett, Omar inédito, o que era uma exigência (houve

2001
Khouri, João Bandeira, Antonio Cícero, falecido participando e falecido ausente).
José Simão, Luciano Figueiredo, Vitória A ausência mais flagrante dentre os vivos
Taborda, Zaba Moreau, Francisco Costa, foi a de Lenora de Barros, participante de
Marcelo Dolabela, Pedro Xisto, João Carlos outras publicações, desde 1975, e uma
de Carvalho, Sergio Alli, Sérgio Britto, Tadeu poeta verdadeiramente intersemiótica.
Jungle, Matinas Suzuki Jr., Noris Lisboa, Villari Herrmann e Zéluiz, raramente se
Alberto Marsicano, Fernando Zarif, Carlos interessaram em participar de publicações;
Rennó, Tastin Nühr, Carlos Ávila, André também, considere-se o fato de primarem
Toral, Fábio Moreira Leite, Ana Tatit, Alex pela produção pouca: não estão entre os
Cerveny, Waly Salomão, Luiz Antônio de colaboradores de ATLAS.
Figueiredo, Renato Maia, Maria Sofia Nunes (30 de novembro de 2002)

Camargo, Guto Lacaz, Luis Dolhnikoff, Gisa


2002 Bustamante, Maria Cardoso, Marta Nehring,
Nina Moraes, Renato de Cara, José Thomaz
Brum, Aldo Fortes, Carlos Matuck, Aguilar,
Laura Vinci e José Guilherme Rodrigues
Ferreira.
JORNAL DOBRÁBIL, REVISTA DEDO
Embora possa parecer excessiva,
MINGO e AGRÁFICA
foi em verdade, uma festa, um encontro
onde estiveram, não todos, mas boa parte
JORNAL DOBRABIL. Página
dos colaboradores de revitas anteriores,
datilografada numa Olivetti, como o
de NAVILOUCA, passando por CÓDIGO e
ARTÉRIA, até o KATALOKI. Algumas ausências trabalho de ourivesaria, operando como que
um milagre com as letras “o”, por Glauco
justificam-se, ou pelo fato de os poetas não
Mattoso, pseudônimo de Pedro José Ferreira
terem enviado colaboração a tempo, ou por
da Silva - Pedro o Podre (São Paulo, 1951-),
2003

não possuírem, naquele momento, material

254
de 1977 a 1981. Folhas soltas reproduzidas na Antologia do Poema Pornô, organizada

2001
em xerox, no Rio de Janeiro e em São Paulo por Cairo Trindade e Eduardo Kac.
(a maior parte). Depois, tais folhas foram REVISTA DEDO MINGO. São Paulo,
reunidas em volume, com programação Ed. Glauco Mattoso, 1982 (dois fascículos).
visual de Julio Plaza, bela edição em papel Espécie de extensão do JORNAL DOBRABIL.
cuchê (São Paulo, Ed. do Autor, 1981), com AGRÁFICA: Álbum contendo poemas-
tiragem de 500 exemplares. cartazes onde o gráfico-gestual é a marca
O poeta, escritor, pesquisador, letrista dominante. Trabalhos todos impressos
e designer Glauco Mattoso, é presença com a técnica da serigrafia, nas oficinas
singular no panorama das “Letras” do da Entretempo, tendo à frente o grande
Brasil a partir dos anos ‘70, pertencendo serígrafo e artista plástico Omar Guedes
a uma linhagem de escritores-poetas que Abigalil, então, um dos melhores, senão, o
seguem o veio erótico-escatológico, porém, melhor serígrafo do Brasil.
2002 indo além disso, mum trabalho pensado, Idealizada por Gilberto José Jorge,
elaboradíssimo, onde inclusive a questão da AGRÁFICA colocou como exigência aos
autoria é posta em questão, contribuindo convidados a participarem da publicação, a
para isto, desde o uso de pseudônimo, até dimensão caligráfica da fatura. Juntou poetas
citações, que tanto podem ser como não ser e artistas plásticos/gráficos; a bela capa é
de fato citações, comparecendo com ou sem de Walter Silveira (São Paulo, Entretempo
créditos. Edições Serigráficas, 1987). Entre outros
Na época em que surgiram os ditos importantes trabalhos poéticos realizados
“poetas pornô”, Glauco Mattoso foi elevado serigraficamente por Omar Guedes (falecido
à condição de guru, porém era bem melhor prematuramente em 1989), temos o álbum
do que eles, sempre fez um trabalho mais de poemas de Augusto de Campos EX-
elaborado, preocupado com a linguagem e POEMAS.
mais contundente. Para certificar-se disto (07 de dezembro de 2002)
2003

basta ver o que comparece de outros e dele

255
SURPRESA, PÓLO CULTURAL/ principalmente do grupo experimental de

2001
INVENTIVA e VIVA HÁ POESIA uma linha mais verbalista.
O acesso à mídia em capitais fora do
SURPRESA, de 1978, Ed. dos eixo Rio-São Paulo é coisa mais simples. Em
Autores, é de São Paulo e se constitui num São Paulo, por exemplo, há dificuldades quase
envelope, trazendo um caderno e folhas que intransponíveis, se não se conta com
soltas, com textos teóricos - espécie de “apoios” de dentro da própria mídia. Por outro
manifestos - e poemas, dos makers: lado, acontecer no Brasil, obter notoriedade
Júlio Mendonça, Maurizio Prati e Lívio em termos nacionais, só ocorre se se acontece
Tragtenberg. na mídia do eixo Rio-São Paulo. Felizmente
Houve lançamento no “Café sabemos que há grande diferença entre o
Maravilha”, Bairro do Paraíso, São Paulo, notório e o notável. O trabalho de Leminski, aí,
em que compareci, com Augusto de foi, de qualquer maneira, muito importante.
2002 Campos e mais duas ou três pessoas, além VIVA HÁ POESIA foi uma coletânea de
dos autores. Júlio Mendonça mostrou ser poemas, ensaios e até manifestos e palavras-
um dos melhores poetas intersemióticos de-ordem, publicada em 1979, em São
do Brasil, Lívio um músico importante. Paulo, sendo editor-financiador o poeta Villari
Maurizio, fina sensibilidade, de raro em Herrmann, com projeto gráfico de Julio Plaza.
raro aparece com algum poema. Reunindo poetas e artistas plásticos,
apresentava-se sob a forma de jornal. Por
PÓLO CULTURAL/INVENTIVA. sinal, foi impressa nas antigas oficinas do
Suplemento editado em Curitiba (PR), tendo DIÁRIO DE SÃO PAULO. Diagramação muito
à frente o poeta e agitador cultural Paulo interessante, mais tudo o que os trabalhos
Leminski como editor, mentor. Aconteceu possibilitavam, já que muitos possuíam forte
nos anos ‘70, em sua segunda metade. carga de visualidade ou tinham aí a sua razão
Constituiu-se num importante veículo de ser.
2003

da poesia e metalinguagem, não só, mas Como muitas outras publicações, foi

256
muito mal distribuída VIVA HÁ POESIA. Por estudantes da Letras e ECA-USP, mas não

2001
outro lado, foi bastante grande a tiragem. só.
A destacar, trabalhos que têm como crédito Em grande parte, sua importância
“anônimo século XX”, mas que são de reside no fato de fazer circular no campus
autoria de Carlos Valero, que hoje podem uspiano um tipo de informação que ali não
ser encarados como verdadeiros projetos era comum - entre anárquica e construtivista
para serem feitos, utilizando computação - já que um certo tipo de sociologismo
gráfica. dominava a área.
(14 de dezembro de 2002) I: foi uma revista publicada em Belo
Horizonte (MG), possibilitada pelo Conselho
Estadual de Cultura, tendo como editor/
organizador o poeta Carlos Ávila. Essa
publicação reúne quase duas dezenas de
2002 colaboradores, alguns dos quais presentes
CASPA, I, ALMANAQUE… BRIC A BRAC em outras revistas (excetuando-se o “Trio
e PARANGA HUM Noigandres”), como CÓDIGO, QORPO
ESTRANHO, MUDA etc. e que mantém o
CASPA: anos ‘70 CAEL/CALC -USP, caráter de antologia coletiva. É de 1977.
durou três números [teve, também um nº ALMANAQUE BIOTÔNICO
0]. Tendo à frente Walter Siveira, [Cristina VITALIDADE 1 e 2, Rio de Janeiro, Nuvem
Fonseca, Mônica Costa] Tadeu Jungle e Dulce Cigana, 1976-77. Publicação ligada ao
Horta. Formato pequeno, as duas primeiras pessoal da “poesia marginal”, é um festival
em papel kraft e a última num sulfite. de imagens do mundo da visualidade, que
Caspa publicou poemas, outros tipos chega a predominar nos dois números,
de texto experimental e entrevistas, como, numa configuração algo anárquica. Tem
por exemplo, com Paulo Leminski e Antonio um parentesco óbvio com a gráfica da
2003

Risério. Circulou principalmente entre NAVILOUCA, porém não o seu nível em termos

257
de colaborações, tampouco possui a magia. Um pouco de contracultura,

2001
Seu modo como que descuidado, inclusive construtivismo e establishment, deram o
o “informalismo” do logotipo da editora, colorido a essa publicação, que chegou a
chegou a fascinar editores mais formalistas ser bem distribuída, tendo sido encontrada
radicados em São Paulo, preocupados em em livrarias de grandes cidades. Pode voltar
evitar um certo geometrismo asséptico (pelo a ser editada (foi o que sugeriu a mim,
menos sob o ponto de vista de pessoas que recentemente, Antonio Risério).
ansiavam pelo diferente). PARANGA HUM. Teve, parece-me,
BRIC A BRAC. Revista em formato um número único. Vem datada “Verão de
grande, vinda de Brasília, editada de 1985- oitenta&um”, sob a responsabilidade editorial/
86 a 1991, tendo durado seis números, de arte de André Luyz e Antonio Risério. Papel
organizada/editada por Luís Turiba e sulfite, sendo a capa branca com impressão
outros. vermelha e o miolo, papel amarelo-claro
2002 Apesar de possuir um certo ecletismo, com impressão vermelha. Visualmente
a revista, a partir do segundo número, foi-se meio confusa, meio festeira, insere-se na
aprimorando graficamente e enriquecendo- categoria de publicações que se rebelevam
se com colaborações de peso, como as dos contra uma certa assepsia verificável em
irmãos Campos, e de poesia experimental publicações paulistas do mesmo gênero. De
dos mais jovens, a exemplo de Arnaldo qualquer modo, arejada.
Antunes, Roland de Azeredo Campos (físico (21 de dezembro de 2002)
e poeta) e outros.
Trouxe poesia, prosa, metalinguagem e
matéria do tipo jornalístico, como entrevistas.
Deve ter encerrado suas atividades por
dificuldades em obter patrocínio, presente
em todos os números.
2003

258
2002 ad de se esperar, neste ano em que os eventos

2001
excederam.
O ano de 2002, para mim, pode ser 3. Eleições: Lula no poder. Lula foi
sintetizado em alguns pontos, de vivência, eleito presidente do Brasil. Era o melhor e
por um lado, de observação, por outro. o único que possuía – de fato – propostas.
1. Vulnerabilidade: a morte de minha Propostas do seu partido – o PT – diga-
prima Ivete Curi mostrou-me, entre outras se. Um ex-operário é sempre um ex-. Um
coisas, o como vamos ficando sozinhos, sem operário no poder é um poderoso e não
interlocutores e o quanto somos vulneráveis! um operário que se encontra no poder. E
Sim, vulneráveis. Até então, embora tivesse Lula é político profissional há mais de duas
sofrido imensamente com muitas mortes, a décadas. Todos sabemos que não poderá
de Ivete inaugurou as mortes na geração dos fazer grandes coisas, dadas as conjunturas
netos de meus avós Rachid (o Chico Turco) interna (jogo entre forças conservadoras e
2002 e Lula. Não se registravam perdas nessa progressistas) e externa (Globalização etc).
geração da família, sequer de criancinhas – Concessões já começaram a ser feitas – não
coisa tão comum em outros tempos – e isto sendo assim, não haverá possibilidade de
me fazia crer que éramos (nós, os netos) governar. Porém, o que se espera é que
imortais deste lado de cá. Vulneráveis somos, haja sensível aprimoramento no sistema de
embora não o aceitemos. distribuição dos dinheiros. Mais empregos.
2. Copa do Mundo: para essa Copa do Melhor atendimento nas áreas de Saúde
Mundo, cheguei a antecipar, para alunos da e Educação… para todos! Resolução do
FAAP, que o Brasil estaria jogando na final problema agrário. Auguri!
(“Vejo o Brasil jogando na final”). Mas, o que 4. Gilberto Gil ministro. É e não é uma
tivemos de espantoso foi que o pior time boa. Ele não é um artista médio. Ele está
do mundo se metamorfosou no melhor e muito acima de qualquer média. Talentoso,
faturou a copa. Brasil pentacampeão! A festa inteligente, belo, finíssimo: um príncipe na
2003

da vitória não foi tão expressiva como era terra dos homens! Negro. Dado o fato de ser

259
um afro-brasileiro, Gil não pode e não pôde uma aula, mas um curso inteiro, como disse

2001
dizer não ao convite, principalmente porque um colega professor. O ABAPORU de Tarsila
será mais um representante afro a ocupar do Amaral está lá. Menções devem ser feitas
cargo de destaque no Governo Federal. É também à exposição do MAM: “Tarsila e Di
vergonhoso o pequeno número de negros e Cavalcanti” e a da “Coleção Fadel”, no Centro
mulheres, no Brasil, ocupando altos cargos Cultural Banco do Brasil. Lindos Modernismos
na vida política. Que Gil faça pela Cultura o do Brasil!
que fez em particular pela MPB: um de seus 8. Mundo de mentiras. Estamos
maiores criadores, em qualquer tempo. submersos num mundo de mentiras que,
5. Pobre País Rico. A miséria visível nas obviamente, dada a insistência acabam
ruas de São Paulo me entristece e incomoda. passando por verdades. O atual governo dos
Quando é que nossa sociedade vai tomar EUA é um dos maiores (ou melhor, o maior)
vergonha na cara? responsáveis por este mar de engodo no qual
2002 6. Mudança. Mudei de casa nos afogamos. Mas a mentira promocional
(apartamento, São Paulo) depois de vinte não é exclusividade da terra de Tio Sam.
e quatro anos: da Rua Dona Veridiana para Como já diziam os gregos da Antigüidade:
a Piauí. Setecentos metros separando uma O TEMPO, SOZINHO, SE ENCARREGA DE
da outra. Numa das aulas que ministro no REVELAR TODA A VERDADE. Haja paciência,
IA-UNESP, perguntado por um aluno sobre Santo Deus!
a casa velha, emocionei-me e tive de me 9. Fábio Tardin poeta. Muito boa,
retirar de sala. Em trinta e dois anos como pareceu-me, ao longo do ano, a produção
professor, chorei pela primeira vez em sala. poética de Fábio Tardin, com qualidades
Porém, já me adaptei à nova situação. evidentes, principalmente no que diz respeito
7. Belíssima a exposição que se à economia de meios. Já deve ter pronto um
encontra na FAAP: DA ANTROPOFAGIA A livro inteiro que, espero, venha a publicar
BRASÍLIA, que aconteceu anteriormente na logo.
2003

Espanha. Uma surpresa atrás da outra. Não 10. O direito ao bem-estar-no-mundo

260
é coisa que precisa ser observada e que

2001
depende do esforço da sociedade como um
todo (senão, sempre haverá uma maioria
de mal-viventes). NINGUÉM MERECE VIVER
MAL. Sociedade desenvolvida, evoluída é
aquela que não permite o viver-mal entre
os seus componentes. Possui mecanismos
de funcionamento que não deixam que isso
venha a acontecer. Se não se pode garantir
a felicidade, que é uma questão de vocação
de cada um, que cada um possa dispor das
condições para uma existência digna. Que
todos possam ter as condições para um
2002 bem-viver!
Um feliz 2003 para todos!
(28 de dezembro de 2002)
2003

261
2003
Muito embora tenha veiculado mais

2002
metalinguagem produzida na Universidade,
essa, às vezes, tinha alguma ousadia. Trouxe,
também, trabalhos de criação, destacando-
se algumas faturas intersemióticas (poemas
visuais).
Do zero, em meados dos anos ‘70, ao
seis, em 1981, primeiro semestre, DeSignos
foi publicada mais pela força que lhe davam
Samira Chalhub e Maria Rosa Duarte de
Oliveira. Teve como programadores gráficos
Marcelo Nepomuceno, Omar Khouri e Julio
Plaza.
2003 ATRAVÉS foi uma publicação da
Livraria Duas Cidades, na segunda metade
dos anos ‘70 e que chegou ao número 3,
tendo em seu conselho editorial Bóris
Schnaiderman, Décio Pignatari, Leyla
DeSignos, ATRAVÉS e tantas
Perrone-Moisés e Lucrécia D’Alessio Ferrara,
outras revistas
com programação visual de Julio Plaza.
Apesar de ser editada por uma
DeSignos: Foi uma publicação do
empresa (de pequeno porte), a revista
Departamento de Arte da PUC São Paulo,
apresentou bastante abertura em termos de
que teve seu número 0 (ao qual não tive
material de colaboração - metalinguagem e
acesso) e, do 1, chegou ao 6, assumindo,
poemas. Porém, nem de longe tinha o sabor
neste último, o formato da ATRAVÉS, edição
de irreverência saudável das publicações
2004

da Duas Cidades.

263
bancadas total ou parcialmente por poetas. poderão ganhar relevo e até protagonizar a

2002
Nem Julio Plaza com seu know-how em História. Sem me prender a detalhes, citaria:
matéria gráfica pôde fazer muita coisa. Mas JOSÉ (Ed. Fontana), ESCRITA (como a
a revista (formato livro/brochura) chegou primeira, mais institucional, embora mais
a publicar muita coisa importante, como o eclética e menos rigorosa), POETAÇÃO (da
texto “A ilusão da contigüidade” (nº 1) e FAU-USP, circulou no meio universitário),
“Teleros” (nº 3), de Décio Pignatari. ANIMA, MALASARTES, GAM, A PARTE
Depois, o nome ATRAVÉS foi passado DO FOGO, QUAC!, GANG (esta, dos poetas
à Livraria Martins Fontes Editora, que fez um pornô, do Rio de Janeiro, tendo à frente Cairo
generoso e único nº 1 - janeiro de 1983 - Trindade e Eduardo Kac), ON/OFF e LEI
, com o mesmo conselho editorial, sendo o SECA (EN-CARTE) pubicações de artistas
projeto gráfico de Alexandre Martins Fontes plásticos cujas obras possuíam forte carga
e Alexandre B. Moreira. conceitual, daí a grande afinidade com os
2003 Tantas outras revistas poderiam ser poetas que, por sua vez, eram intersemióticos
citadas, tendo sido editadas nos anos 70 e nos e que abriram suas revistas para artistas
80, algumas mais, outras menos arejadas; dessa estirpe, ESCRACHO (poetas pornô),
algumas feitas na raça, outras tendo uma ARJUNA, NICOLAU, ÍMÃ, POESIA LIVRE,
editora/empresa na retaguarda; umas quase K’AN e, talvez, muitas outras.
que totalmente teóricas, com pouca abertura (04 de janeiro de 2003)

para a criação propriamente; às vezes, mais


Artes Plásticas do que Poesia, mas com
abertura para esta. Porém, considerando
o objeto deste trabalho [minha tese de
Doputorado], sua relevância não chega a UM BALANÇO DAS REVISTAS
ser considerável, mas fica aí o registro para
estudos futuros em que, dependendo do As revistas cumpriram um
2004

enfoque que se queira dar, tais publicações importantíssimo papel, nos anos ‘70 e

264
‘80, no trânsito da informação poética no áreas, mas principalmente das chamadas

2002
Brasil, da informação mais “quente”, da “Artes Plásticas”, porém, sem excluir os
poesia mais empenhada com o novo, com músicos e mesmo cientistas, como alguns
a experimentação. Depois, esse papel físicos! Agora, alguém poderia dizer que isto
diminuiu, o que não chega a tirar a razão de não constitui novidade em publicações desse
existir de certas publicações que persistiram tipo e eu diria que realmente: na história de
e persistem. nosso Modernismo, isso é observável desde
Essas revistas, assim como as edições KLAXON (1922-23), entre outras, sendo
autônomas de poemas, possibilitaram a algo por demais notório em INVENÇÃO
divulgação, mesmo que entre um pequeno (anos ‘60). Porém, no caso das revistas que
público de aficionados, de novos valores, brotaram a partir dos anos ‘70, mais uma
alguns dos quais, com o passar do tempo, vez se evidenciou o caráter intersemiótico do
reiteraram a excelência de seus primeiros fazer artístico, agora, com uma muito maior
2003 trabalhos ou se mostraram melhores que consciência disso, que veio se acentuando
antes (alguns poucos desistiram, sentindo- no extenso processo chamado Modernismo
se menos poetas do que se julgavam e seus desdobramentos pós, na segunda
anteriormente, ou, simplesmente optaram metade do presente século [XX].
por outra “linha de produção”). Além disso, as revistas se nos
As primeiras revistas do período, apresentam como que em bloco: não seria
incentivaram o aparecimento de outras, NAVILOUCA, CÓDICO, ARTÉRIA, QORPO
assim como, veiculando uma produção ESTRANHO, mas, simplesmente, AS
poética instigadora, estimulavam novos REVISTAS! No mais, aquela sintaxe interna
valores. Embora em outras ocasiões a coisa ditada pelos trabalhos, lhes dá um toque
fosse possível, nas revistas, mesmo naquelas singular.
em que, em se tratando de POESIA, o visual As revistas, de qualquer maneira,
não era colocado como primordial, houve guardam, ou mais precisamente, preservam
2004

felizes encontros com makers de diferentes toda uma produção que acabou por se

265
restringir a elas e que, de qualquer maneira, as edições autônomas de poemas, para que

2002
estimulará, assim como surpreenderá futuros não corramos o risco de, em pleno final do
pesquisadores. segundo milênio depois de Cristo, contarmos
Enfim, as revistas cumpriram, para com referências a obras, sem que possamos
toda uma geração de fazedores, um papel encontrá-las para examiná-las; penso
de primordial importância, assim como em edições reduzidíssimas de poemas de
outras revistas cumprirão relevante papel Ronaldo Azeredo (concreto histórico), de
para outras gerações (revistas em vídeo, CD Paulo Miranda, de Carlos Valero, de Zéluiz e
ROM e até utilizando o suporte papel. Por que de outros tantos, que operam nesse universo
não?). O coletivo, em termos de veiculação, do já raro pela qualidade que traz, tornando-
empresta uma grande força, o que nem se ainda mais raro, pelas diminutas tiragens.
sempre ocorre quando da publicação de um De qualquer modo, uma desafio para críticos
trabalho autonomamente, ou de livro de e historiadores.
2003 autor único. AS EDIÇÕES AUTÔNOMAS DE
No mais, devo reiterar o que, de POEMAS. Em verdade, não foram apenas as
alguma forma já deve ter ficado claro acima: revistas as responsáveis pela divulgação de
as R E V I S T A S são, de qualquer maneira, uma certa poesia, mas também, as edições
as principais fontes para o estudo de uma autônomas de poemas. Variando de 10, 22,
certa poesia, na recente história brasileira. a 1000 exemplares, tais edições acabavam
Formam, em seu conjunto, o principal banco circulando, como as revistas, num meio
de dados estéticos de todo um pessoal que muito restrito, de pessoas que estavam
começou a operar poeticamente no Brasil enfronhadas nesse mundo que compreendia,
a partir da primeira metade dos anos ‘70 em sua maioria, aqueles comprometidos -
e daí para diante. Necessário estudá-las; ainda que temporariamente - com certo tipo
necessário preservar esse material para de fazer.
futuros pesquisadores. Quanto a essa Deve ficar claro, também, que essas
2004

última advertência, é também válida para edições autônomas de poemas eram

266
bastante comuns, não se restringindo aos como problemas, o que diríamos das revistas

2002
poetas da vertente por mim estudada. Os não-acadêmicas e dos poemas em edições
poetas da chamada “poesia marginal”, autônomas? Enfim, editar autonomamente
tinham isso como uma prática “normal”, da poemas, era e é prática corrente, que, como
mesma forma que elaboravam e imprimiam, as revistas, deixa a obra no estágio do “por
no geral precariamente (essa foi até uma enquanto”, aguardando uma edição em
de suas características) seus livrinhos moldes tais, que possa vir a assegurar sua
(que eram, geralmente de fomato muito preservação, assim como permitir o acesso
pequeno). Só que, em alguns casos, as a um número maior de pessoas.
tiragens e edições sucessivas chegam a (11 de janeiro de 2003)

espantar, como no caso de Nicolas Behr que


teve livro que ultrapassou a casa dos quinze
mil exemplares, um espanto para um meio,
2003 como o brasileiro, onde as tiragens de livros
de poemas, mesmo daquelas celebridades,
figuras já históricas, não ultrapassam a casa
TARSILA: UM POUCO MAIS – PARTE I
dos três mil exemplares. Isto, os poetas
“marginais” conseguiram, um público muito
Tarsila do Amaral (1886-1973) deixou
maior para a poesia, a que faziam.
gravada, em cerca de uma década, trajetória
Até para fins de armazenamento, os
das mais importantes dentro do desenho e
poemas veiculados autonomamente são
pintura brasileiros. Em verdade, menos de
problemáticos, pois requerem cuidados
uma década, que começaria em 1922-23 e
especiais. Com aquelas exceções dos que
terminaria em 1929. Esta data, emblemática
colecionam, ou mesmo dos próprios autores,
para o Brasil e para o mundo. Para Tarsila
que guardam com cuidado, poucos se dão
também: não só marca a grande crise
ao trabalho de preservar tais peças.
financeiro-econômica que grassou o mundo
2004

Se as revistas já se apresentavam

267
a partir do crash da Bolsa de Valores de dinheiro que milionários brasileiros não

2002
Nova York, mas a derrocada do setor cafeeiro quiseram despender - e tudo indica que não
paulista/brasileiro. haverá mais chance de reavermos a obra,
Tarsila e a travessia do deserto: de fundamental para a compreensão de nosso
1930 até à morte, em janeiro de 1973, um Modernismo, que se encontra integrada
ano depois do festejado cinqüentenário da ao acervo do MALBA, Coleção Costantini,
Semana de Arte Moderna, da qual ela nem Buenos Aires).
participou, mas, sendo uma importante Consta que a obra foi feita para
modernista do primeiro momento, tomou presentear Oswald de Andrade - seu mais
parte - mesmo em cadeira-de-rodas - das famoso marido - pelo aniversário. A partir
comemorações. Uma que outra obra é sempre disto, teria inspirado o movimento da
evocada depois de 1929 - OPERÁRIOS (1933), Antropofagia, cujo manifesto (Manifesto
por exemplo - mas nada se compara à sua Antropófago) saiu publicado em maio de
2003 produção dos anos 20. Parece que, de par 1928), na REVISTA DE ANTROPOFAGIA
com a perda do dinheiro e, gradativamente, 1. Inaugura Tarsila, também, sua fase
da beleza, Tarsila perdeu o ímpeto criativo, antropofágica - antropófaga que já era,
sem nunca ter abandonado a arte: prática desde que que ingeriu/digeriu a lição cubista
artística e exercício crítico… que norteou sua leitura do país, na fase que
Bem, em 1928 (11 de janeiro), levou o nome de Pau-Brasil. Também fase
Tarsila pintou aquele que seria o quadro de Oswald, que escreveu o brasílico-não-
mais famoso da Arte Moderna brasileira: nacionalista Manifesto da Poesia Pau-Brasil,
ABAPORU (= homem que come, em em 1924 e que inaugura a re-descoberta do
tupi). Trata-se de uma pintura não muito Brasil pelos brasileiros do Modernismo.
grande: 85 X 73 cm, óleo sobre tela e que Porém, A NEGRA, de 1923, pintado em
hoje faz parte de coleção na Argentina (foi Paris, antecipava aspectos da Antropofagia,
arrematada num leilão, em Nova York, por como A CAIPIRINHA, do mesmo ano, já
2004

cerca de um milhão e trezentos mil dólares, dava o tom Pau-Brasil de geometrização

268
via Cubismo, mas como que retornando aos Cendrars acompanhando e cujo documento-

2002
conselhos de Paul Cézanne, no que respeita marco é o já mencionado MANIFESTO
à redução das formas a cones, cilindros, DA POESIA PAU-BRASIL, de Oswald de
esferas. Tarsila volta os olhos-cérebro para a Andrade (“A língua sem arcaísmos, sem
fonte. Na questão do Cubismo, por exemplo, erudição. Natural e neológica. A contribuição
penso que Tarsila fez até o caminho inverso: milionária de todos os erros. Como falamos.
do Cubismo, chegou até Cézanne, em sua Como somos. “. E isto pode ser passado
geometrização/simplificação de formas, na tranqüilamente para o âmbito da pintura…).
dita fase Pau-Brasil (numa de suas voltas É de Tarsila a capa do livro do suíço-francês,
da França, completando tardiamente sua do mesmo ano de 1924 (Paris, Au Sans
formação de pintora, com mestres em Paris, Pareil): Feuilles de route . I. le Formose:
ligados ao Cubismo, disse que a mencionada magnífico desenho de A NEGRA.
escola era uma espécie de exercício militar, Na fase que tem início a partir de
2003 pelo qual todo artista deveria passar). Não 1928, encontramos Tarsila com alguma
repetiu o Cubismo dos mestres. Antes, influência da Metafísica/Surrealismo (sem
digeriu a lição e desenvolveu uma obra os exageros deste), mas tão melhor que a
com um considerável grau de originalidade, produção pictórica do Surrealismo (salvo
como apregoaria mais tarde, no famoso uma ou outra obra dessa escola), dada a
MANIFESTO ANTROPÓFAGO, Oswald de parcimônia na utilização de recursos gráficos
Andrade: Só me interessa o que não é e pictóricos. É antes a coisa do onírico que
meu. Lei do homem. Lei do Antropófago. o do malabarismo/virtuosismo e metáforas
Tupy or not Tupy: that’s the question. retumbantes de alguns representantes da
Pau-Brasil é fase resultante da re- Escola de Breton. Veja-se o espantoso O
descoberta do Brasil, cujo fato motivador SAPO, 1928, coleção do MAB-FAAP: sapo
maior foram: viagens ao Rio de Janeiro/ solitário sob um arco: claridade; sobre o arco
carnaval e a viagem famosa a Minas Gerais um céu escuro carregado; cactus com base
2004

- às cidades históricas - 1924, com Blaise na pedra do cometimento arquitetônico que

269
lembra os arcos romanos da arquitetura da Europa que ela freqüentava (era detentora,

2002
metafísica de De Chirico. junto com Oswald de Andrade, de um dos
Como Tarsila foi grande naquilo em melhores trabalhos da melhor fase de Giorgio
que foi grande! Os anos 20: tudo se resume De Chirico - ENIGMA DE UM DIA, 1914,
praticamente, como já disseram alguns hoje parte integrante do acervo do MAC-
estudiosos, aos anos 20. Para Oswald, USP - e, em Paris, teve conhecimento da
também, em grande parte. origem e desenvolvimento do Surrealismo,
(18 de janeiro de 2003) juntamente com a teoria que o motivou -
Freud por detrás).
Mas Tarsila é de uma economia de meios
admirável; parcimoniosa quanto à utilização
de recursos. No ABAPORU, predomina a
forma cilíndrica, seguida da esférica e da
TARSILA: UM POUCO MAIS – PARTE II cônica, que é insinuada. Sol, céu, chão.
2003
figura humana e cactus. As formas que
Mas, voltemos ao ABAPORU, quadro definem o humano/humanóide não diferem
que já voltou pelo menos três vezes ao Brasil essencialmente das que definem o vegetal.
para participar de exposições - agora, para a Cores: amarelo, laranja, azul, verde o que,
exposição DA ANTROPOFAGIA A BRASÍLIA, inevitavelmente remete ao Brasil, às cores
na FAAP - 1ª dez. 2002 a 2 de março de convencionais do nosso País. Uma leitura,
2003). O quadro mais famoso de nossa um retrato do Brasil, diria. Uma figura de
pintura moderna (e Tarsila muito contribuiu cabeça mínima, pé e mão direitos enormes,
para a formação de uma “visualidade encontra-se sentada e é como que abordada
brasílica”), ABAPORU lembra, dada a sua por uma câmera/olho em contre-plongée.
atmosfera estranha e onírica, a Pintura Daí, deformações decorrentes e a cabeça
Metafísica e o Surrealismo, informações minúscula, que, apoiada no braço esquerdo,
que Tarsila possuía, hauridas na fonte: a
2004

faz lembrar O Pensador, de Rodin -

270
referência óbvia (citação como dizem). feio. Admirável é a palavra!

2002
Porém, o pensador de um pensar pequeno: Como Santos-Dumont e Oswald,
uma pessoa que pensa, mas pensa pequeno, Tarsila tinha tudo e mais um pouco para ser
que está a matutar. Um país que pensa uma libélula deslumbrada. Porém - como
pequeno? Sentada num chão que indicia um eles - portadora de um cérebro, possuía um
precipício e que faz simetria com as costas projeto para a sua arte. Pensava o Brasil e
da figura. Um país à beira do precipício? um Brasil integrado ao mundo, cosmopolita
Uma ante-visão do desastre de 1929 que, que era. O resto era lamentar. Os anos vinte
afetando gravemente o setor cafeeiro, se constituíram em sua glória e o resto
afetaria fatalmente Tarsila? Premonição? O foram tentativas e lembranças. Admirada
fundo: um cenário com sol/olho/rodela de e admirável. Salve, salve Tarsila, a do
laranja que fita antes o espectador: não é a Amaral!
fonte de luz que inside sobre a figura, sobre (25 de janeiro de 2003)

2003 o cactus, que projeta uma quase-sombra


no céu-cenário, ou uma espécie de aura.
Nenhum compromisso com uma suposta
verdade, sequer com a verossimilhança. Um
máximo de informação com um mínimo de
recursos gráficos/pictóricos. DIVULGAÇÃO E A ACADEMIA
Noutros quadros da mesma fase, a
mesma parcimônia e a mesma grandeza, O professor é um diluidor do
mas ABAPORU - humanóide-cabeça-de-tênia conhecimento - considerando-se as estruturas
- permanece insuperável e imbatível (nem a mais complexas do saber - porque um dos
própria pintora conseguiu igualar esse feito pontos básicos para se assumir o papel de
em pinturas posteriores, a propóisito de docente (aquele que conduz: um pedagogo)
Antropofagia) pela sua estranheza e beleza é o de ser capaz de uma operação - às vezes
2004

extraídas daquilo que poderia ser o mais complicadíssima - que é a da adequação de

271
repertório: quem seriam os destinatários mensagem viabiliza o trânsito da informação.

2002
da mensagem (o público-alvo, como diriam O bom professor sabe disto. Conta histórias
os publicitários, outros que também têm para tornar as coisas compreensíveis (esse
a obrigação de saber a quem se destina a expediente - de Sócrates, mesmo antes,
mensagem, assim como os jornalistas. Isto a Jesus Cristo, nossa avó e outras tantas
é dito porque artistas, por exemplo, não têm pessoas - tem sido recorrente ao longo
essa obrigação, porém, isto não foi sempre da história). As sociedades necessitam de
assim e nem a Arte foi como passou a se professores: desde aqueles da família - os
configurar a partir do Romantismo. E há mais velhos da casa - àqueles profissionais
quem assim não pense). do ensino, que trazem consigo algo de
Os bons professores não são sacerdotes - não que devam trabalhar de
aqueles grandes intelectuais (podem até graça, mas que acreditem no ensino como
ser) que se sentam à mesa e dali lêem uma missão. Os que divulgam, tornam mais
2003 seus textos originalíssimos (pensam) de popular o conhecimento, são mal olhados por
uma complexidade de espantar filósofos, aqueles que se sentem habitando o Olimpo,
numa atitude de semi-deuses-donos-da- diga-se: a Academia.
verdade. Mesmo os que nada entendem Da mesma forma, textos de divulgação
- eles não fazem concessões de repertório em periódicos e jornais: não têm de ser
- maravilham-se frente aos jogos verbais hiper-complexos, mas ter uma linguagem
por eles ostentados. Professor não é isso: decodificável por um determinado público
professor é diluidor no melhor sentido, (lembro-me de Manuel Bandeira, em artigos,
pois, visando a um determinado público, criticando a sofisticação do crítico Mário
ele descomplexifica a informação para Pedrosa: “ele não escreve para o homem de
torná-la acessível a repertórios que ainda rua”). Não são, por outro lado, necessárias
não estão preparados para recebê-la, mas grandes demonstrações como num escrito
que se encontram a caminho de. Uma acadêmico, científico ou pretensamente
2004

certa porcentagem de redundância numa científico. Um texto de divulgação em que

272
se possa dizer: “Marcel Duchamp mudou porque tais diluições têm um propósito maior.

2002
a concepção de objeto artístico”, ou coisa Há mais coisas por detrás dos conhecimentos
que o valha, não necessita de grandes do que possa imaginar nossa arrogância
demonstrações, porém não deverá indiciar intelectual. Alguém, por exemplo, se lembra
leviandade intelectual, pois tem de parecer de agradecer-indicar fontes, no final de uma
informação leve, mesmo que venha a tese, aos Fenícios pela invenção do alfabeto?
esconder enormes complexidades, levando Um médico se lembra de que grande parte
o leitor sutilmente a pensar um mínimo, de sua terminologia específica vem da língua
mas não necessita de dezenas de páginas dos Helenos e agradece? E aos Chineses?
de justificativa. Só é capaz de ser simples E aos povos de África as maravilhas dos
aquele que possui grande conhecimento ritmos e cantos que desenvolveram na
e maturidade intelectual. É preciso ter América? E aos Italianos? A partir de um
coragem intelectual ou, como disse Ezra dado momento, as coisas passam a ser bens
2003 Pound, em certos momentos tem de se da Humanidade.
ser arrojado. É assim que as coisas vão Até hoje, lembro-me de todos os meus
para a frente. Uma dada informação não professores, a quem sou muitíssimo grato:
foi simplesmente haurida numa fonte que de Dona Zélia Genovez (a personificação da
estaria sendo escamoteada, mas possui por delicadeza, no Jardim da Infância, no “Olavo
detrás 25 ou 30 anos de estudo, pesquisa, Bilac”) a Dona Maud, Cida, Yola, Olavo Pereira
reflexão. Se necessário, pode-se explicar… Eça (Pujoj) e a Lúcia Santaella, Fernando
academicamente. Segolin e Décio Pignatari (PUCSP), passando
Professores, assim como os que fazem por Pedro Moacyr Campos e Mariano Carneiro
trabalho de divulgação em jornal, estão nas da Cunha (História-USP).
origens de todo grande pensamento e de Sou professor e tenho consciência
toda obra e descoberta. Preparam para as do meu papel, assim como o de escritor-
complexidades maiores. Professores são os divulgador de idéias através das publicações
2004

diluidores mais necessários da sociedade, deste hebdomadário O ALFINETE (além

273
de artista gráfico, poeta e ficcionista). corpo atlético perfeito (perfeito = aquilo com

2002
Escolhi minha profissão. Sou dotado da relação ao qual nada falta… nada sobra)!
generosidade daqueles que, não só divulgam Com sua rara ironia Samira (saudosa) dizia
conhecimentos com prazer, mas que os em seu texto: “Andei por toda Atenas e
tornam viáveis. não vi ninguém parecido!” Óbvio, mas nem
(01 de fevereiro de 2003) no século V aC encontraria, pois aquilo,
embora partisse da observação de corpos
reais (e os gregos é que deram esse grande
passo em termos de representação, no
Período Clássico) era idealizado, reunindo
as maiores qualidades de várias pessoas.
Beleza é algo convencionado. Hoje vemos
jovens - semi-divindades - nos anúncios
2003 da Ellus, por exemplo; ou aquelas figuras
ISSO E AQUILO
deslumbrantes dos anúncios de cerveja.
Será que daqui a mil anos alguém dirá:
1. Belezas. Fico pasmo ao ver como as
“Como eram belos os brasileiros! Deveriam
pessoas se deixam levar pelos padrões
ser todos assim”… Bem, mas nossa época,
impostos pelas mídias. Todas as épocas
que elevou o consumo à categoria de valor
impõem suas belezas. Para o caso da Antiga
maior, cria a cada ano um padrão diferente.
Grécia tenho uma anedota exemplar: recebi,
Vaidade é própria do ser-humano. Não há mal
há muitos anos, um cartão postal de minha
nenhum em ser-se vaidoso, porém quando,
amiga Samira Chalhub da terra de Sócrates,
a partir de modelos impostos pelas mídias,
o filósofo, que trazia estampada uma figura
se chega a sacrifícios inimagináveis, é de se
em bronze - Zeus ou Posseidon - há dúvidas.
lamentar. A beleza sempre esteve e estará
Dúvida não há no que diz respeito à beleza
com os jovens (é a Beleza uma qualidade
física daquela figura masculina com seu
2004

quase que exclusivamente dos jovens,

274
portanto, tem seu prazo de validade). Um e do orientador da Joana Prado?… Ceder às

2002
jovem não precisa de quase nada para se pressões da mídia é uma demonstração de
fazer notar: a juventude tem luz própria. fraqueza, pouca inteligência, futilidade. A
É de se lamentar que jovens de vinte anos beleza é importante. Beleza não se confunde
enfrentem mesas de cirurgia para atingir um com aquilo que nos é imposto pelas mídias
certo padrão imposto pelas mídias. Por outro (se assim fosse, a maior parte das etnias
lado, os de mais idade tentam ludibriar o seria excluída desse território) e felicidade é
tempo. Isto adianta muito pouco, pois o que vocação e não pode estar calcada na mera
deveria saber - e que a Medicina está longe aparência física. A Beleza maior é a que brota
de resolver - é como se repõem aquelas de dentro, vindo a compor com a de fora.
gordurinhas subcutâneas que emprestam 2. As escaramuças de Paulo Herkenhoff.
esplendor ao corpo! Esticar a pele, só faz No ano que acabou de passar e em que se
com que se insinue mais o esqueleto. Com comemorou o octogésimo aniversário da
2003 o avançar dos anos, o que acontece é que o Semana de de Arte Moderna, muita gente
esqueleto quer passar à frente, até que vem falou, re-falou, foi perguntada e depreciou o
a conseguir, de fato. Por outro lado, como papel daqueles dias de fevereiro de 1922. De
é que médicos concordam com as loucuras fato, comemorações a cada dez anos acabam
de seus pacientes. A sociedade brasileira saturando, porém, até hoje digerimos a
deveria processar o médico que arrancou herança do primeiro tempo modernista, que
parte do nariz de Fábio Júnior - o cara ficou teve em São Paulo - quer queiram ou não
desfigurado. O mesmo para o dentista de Gal os seus invejosos detratores - o seu centro
Costa, a moça do sorriso-gengiva, da rara de irradiação. Falar em transição para o
voz - uma Gal só aparece de 50 em 50 anos. modernismo é montar uma passagem
A dona ficou dentuça e isso afetou o seu gradativa, do acadêmico ao moderno que,
canto o que, somando-se a outros fatores, de fato, não houve. O que houve foram
como o cansaço pela idade, destruíram a indícios, sinais de algo diferente do que era
2004

sua voz. O que se diria, enfim, do médico costumeiro no Brasil e não é só no campo

275
artístico, mas até da Medicina e Saúde consistentes. Quer se queira, quer não, São

2002
Pública, passando pelo Jornalismo. Dizer Paulo - paulistismos à parte - a partir da
que Belmiro de Almeida ou mesmo Eliseu Exposição Malfatti, esteve e está no centro
Visconti já haviam chegado lá não é bem da vida cultural brasileira.
verdade. Visconti, um talento extraordinário, (08 de fevereiro de 2003)

um quase-genial pintor, digeriu mal o


Impressionismo francês e está mais para
século XIX que XX. A Belmiro de Almeida
- artista de méritos - faltou um pensamento
modernista. Anita Malfatti é que, de fato,
introduziu, de supetão (parafraseando isso e aquilo (parte ii)
a estudiosa Martha Rossetti Baptista) o
Modernismo no Brasil, com suas pinturas 3. O ‘suicídio’ de Roland Barthes. Já tive
e desenhos que falavam um repertório a oportunidade de me referir a livros nesta
2003
fundamentalmente expressionista. Dizer que coluna, e ao fato de um livro não ter de ser
o Modernismo não começa em São Paulo, necessariamente lido: ele até poderá ser
para apresentar uma opinião diferente, é lido. Também me referi ao fato de, às vezes,
uma bobagem para atrair as atenções e ter ter lido um livro muito tempo depois de tê-
mais espaço na mídia impressa. Desde os lo adquirido. Pois é. Recentemente li pela
anos 40 do século XX, Mário de Andrade primeira vez um livro que havia comprado
explicou o porquê de ter sido São Paulo e não há muitos anos, uma obra famosa do não
a capital Rio de Janeiro o centro propulsor e menos célebre Roland Barthes: lingüista,
propagador do Modernismo no Brasil. Resta, crítico, escritor. Sim, escritor Roland Barthes
agora, rever as questões, mais no sentido de - quanto refinamento, civilidade e até
buscar um entendimento maior do processo sabedoria em seus textos. Bem, o texto em
e não simplesmente com o intuito de se ser questão é A câmara clara, livro que traz
2004

original, mesmo que não haja argumentos reflexões sobre a fotografia. O interessante

276
é que, quando, a propósito de fotografia outro, não ultrapassou o limiar da alcova,

2002
começa a comentar uma em que aparece sua não se consumou. Esse fica para sempre;
mãe e o assunto mãe toma conta, Barthes existe para sempre na memória daqueles
se mostra um edipiano sem reservas. Como que o vivenciaram e isso implica uma
aquela mãe era importante para ele e que vivência mental. Esse é que costuma ser
como a vida dele não fazia sentido sem ela eternizado pelos grandes artistas em suas
etc. Acontece que, por ocasião da morte obras. Mas ninguém vive de utopias e o que
de Roland Barthes, em 1980, em Paris, precisamos é de experiências que tragam o
atropelado por uma caminhonete, Décio amargor da realidade. Porém, doçura… às
Pignatari afirmou: “Foi suicídio! Não houve vezes. Felicidade é felicidade. Afortunado
acidente. Ele não pôde suportar a morte aquele que tem o privilégio de tal vocação:
da mãe!” Lendo a obra acima referida, a de ser feliz.
escrita em 1979, compreendi o que disse (15 de fevereiro de 2003

2003 Décio e percebi que havia fundamento na


afirmação.
4. Felicidade não é prática sexual.
Felicidade não é o que passam os jovens ou
mais ou menos jovens casais de artistas de
TV: aquele entusiasmo dos primeiros dias. WALTER SILVEIRA
Nem digo semanas, meses ou anos. São
amores meteóricos. Amores de televisão!
Walter Silva Silveira nasceu em São
As ‘crianças’ expõem seus amores - eternos
Paulo, SP, em 1955, onde vive e trabalha
enquanto duram e duram tão pouco! Antes
como homem de televisão. Formado pela
se dizia: lágrima de cinema. Hoje podemos
ECA-USP em “Comunicação Social”, com
dizer: amor de TV. Fogo-de-palha, amor
especialização em Rádio e TV, atua, desde
efêmero. Propaganda enganosa. O amor
os anos ‘70, como poeta, tendo sido um
2004

maior é aquele que, por um motivo ou

277
dos pioneiros da arte dos graffiti, na e é executada com muito rigor, o qual

2002
Paulicéia. atinge as raias do perfeccionismo e que,
Teve participação, como poeta, em por outro lado, traz necessariamente a
revistas, dentre as quais destaco: CASPA, dimensão sonora: as caligrafias, que devem
MUDA, DeSignos, que publicaram seus ser vistas, são sonorizáveis e sonorizadas
primeiros trabalhos poéticos, e mais: em pelo poeta, cujas leituras são admiráveis
ZERO À ESQUERDA, KATALOKI, ARTÉRIA, (isto se observa, também, em trabalhos de
AGRÁFICA, ATLAS. Tadeu Jungle e Arnaldo Antunes).
Videomaker com importante Walter Silveira, então, valoriza a palavra
atuação no Brasil, pensa o vídeo enquanto enquanto signo portador de uma dimensão
singularidade no âmbito dos fazeres: pensa sonora, visual (escrita) e semântica, criando,
o vídeo como arte, a arte do vídeo e por com seus grafismos, uma pertinência
isso mesmo, sabe que vídeo não é cinema, entre significante e significado (para usar
2003 não é teatro, não é pintura - a câmara-na- a terminologia da Lingüística saussuriana,
mão-no-olho é instrumento que desenha o que desagradaria aos semioticistas
no espaço, corta-o com sua movimentação, peirceanos, entre os quais me incluo).
captando o movimento com o movimento. O seu rigor extremo, já mencionado,
Essa linha-desenho, ela mesma é o a busca da (ou de uma) perfeição faz com
resultado que se tem ao apreciar a coisa que ele execute cem vezes um grafema,
num monitor de TV: o vídeo é o vídeo. por exemplo o “a”, para aproveitar apenas
Isto, obviamente, tem tudo a ver um gesto caligráfico, uma única ocorrência.
com a arte da caligrafia, da qual Walter Também, isto explica o pouco que ele publicou
Silveira é, sem dúvida, um dos maiores até agora, apesar do aparentemente muito
representantes do Brasil, em qualquer que produz. Tendo horror à imperfeição,
tempo. Porém, deve-se ressaltar que essa não percebe que a perfeição não existe
caligrafia não se confunde com “artes neste mundo dos mortais ou, se existe, só
2004

decorativas”: é pensada com profundidade o tempo - a sua passagem - é que a torna

278
reconhecível enquanto tal (perfeito é aquilo Performer nato, vem atuando desde

2002
ao qual nada falta, sequer sobra!). fins dos anos ‘70 (uma de suas performances
Walter Silveira tem sido promotor memoráveis foi o lançamento de um seu
de eventos, como o espetáculo multimídia trabalho que, por correio ele anunciava:
OUVER, que tem sido apresentado “lançamento neste local”, e não trazia o
praticamente em todo o Brasil. Sendo um endereço do tal lugar; até que um certo dia
homem de mídia - é diretor de programação chega, pelo correio, o tal trabalho: Suruba
da TV Cultura - dificilmente comparece na (1980, dentro das práticas correntes da
mesma enquanto poeta. Dessas ironias que “mail art”). O local era a própria residência
até compreendemos, mas não aceitamos. O do destinatário, que não havia atentado
tempo se incumbirá de pôr em destaque o para o texto “lançamento NESTE local”!
poeta Walter Silveira. E, com o livrinho, um anel de papel
(22 de fevereiro de 2003) com o texto: “******LANÇAMENTO A
2003 DOMICÍLIO******”).
Foi um dos pioneiros, juntamente com
Walter Silveira, da arte dos graffiti [em
São Paulo], numa época em que a coisa
ainda não se havia tornado moda/mania nos
centros urbanos brasileiros. Seu primeiro
TADEU JUNGLE trabalho foi veiculado autonomamente, em
1977: poema em papel auto-adesivo “FURE
Tadeu Jungle (Junges), nasceu em FILA”.
São Paulo, SP, em 1956, cidade onde reside. Além de poeta-performer, Tadeu Jungle
É formado em “Comunicação Social” (ECA- é videomaker, editor e promotor de eventos,
USP), com especialização em Rádio e TV. Lida homem de televisão e publicitário. Publicou
com palavras, assim como com elementos em veículos coletivos, como CASPA, ZERO
2004

da pura visualidade: funde-os. À ESQUERDA, ARTÉRIA, ATLAS e outras.

279
Participou, também, de mostras nacionais valor estrutural em seus poemas (também

2002
e internacionais, como a MULTIMEDIA nos vídeos), adquirindo dimensão estética.
INTERNACIONAL, ECA-USP, 1979, da qual No poema “O lance do gago”, publicado em
foi um dos organizadores, juntamente com ARTÉRIA 6, além da gagueira tipográfica,
Walter Silveira, e da TRANSFUTUR, em diálogo em alto nível com o Mallarmé do
Kassel, Alemanha, em 1990 (organizada por “Um lance de dados”: O LANCE DO GAGO
André Vallias), exposição que se repetiu em JAMAIS ABOLIRÁ O RUÍDO”. Poetas como
Berlin. Tadeu Jungle colocam a poesia brasileira
Entre seus trabalhos em vídeo, notável num patamar muito elevado.
sua vídeo-instalação “Sleep Television”, (01 de março de 2003)

apresentada no MIS-SP, que explorou um


quase-nada, o momento em que, num
piscar de olhos, figuras famosas da mídia
2003 televisual, se deixam flagrar no ar com os
olhos fechados, momento prolongado com
os recursos disponíveis no meio. E, da
UMA ATUAÇÃO CONJUNTA: WALTER E
instalação, constam peças de dormitório,
TADEU
entre as quais, uma cama toda branca,
realçada por luz-negra.
Walter Silveira (Walt B. Blackerry) e
É muito forte o peso da caligrafia
Tadeu Junges (Ted Jungle), nos anos ‘70,
em seus poemas que, de resto, podem
foram, como já foi dito anteriormente, dos
ser perfeitamente oralizados. No que há
primeiros a fazer uso artístico dos graffiti
de gráfico, nos trabalhos de Tadeu Jungle,
em São Paulo. Walter Silveira é autor de um
notamos o seguinte: ele persegue a gralha,
dos que ficaram mais famosos, já reunindo
o defeito, a gagueira, o ruído... persegue
a beleza do gestual caligráfico com os níveis
mesmo! Busca freneticamente os ruídos para
sonoro e semântico:
2004

incorporá-los. Daí que os ruídos acabam tendo

280
do texto poético, num espaço desfrutável

2002
por um número muito grande de pessoas/
HENDRIX passantes e, jogando com o verbal escrito,
poético-humorístico, nas paredes/muros da
MANDRAKE cidade, o que nada tinha a ver com o veículo
livro, individualizado e acanhado quanto às
MANDRIX dimensões, impressionados com Oswald de
Tadeu Jungle, é autor de: Andrade, que estavam descobrindo enquanto
teórico: O RECLAME PRODUZINDO LETRAS
MAIORES QUE TORRES... (“Manifesto

ORA H e da Poesia Pau-Brasil”, 1924). Essas


performances dos graffiti atingiram o seu

édificil ápice em 1980-81, quando trabalharam


com José Celso Martinez Correa no projeto
2003 (o escrito em cursiva, seguido pelo perfil de
Usyna Uzona, nas dependências do ex-
uma cidade, numa incursão trocadilhesca
Teatro Oficina, situado na Bela Vista, à Rua
edifício/é difícil).
Jaceguai (São Paulo, capital), tendo sido o
O ser consumido por milhares de
prédio totalmente “decorado” internamente
passantes fascinava os makers (fazedores,
com letras/créditos do filme “O rei da vela”,
poetas), que programavam as façanhas.
baseado em peça de Oswald de Andrade,
Como sempre, era o gráfico, valendo,
encenada nos anos ‘60, com estrondoso
também, a oralização. Tradição e coragem,
sucesso, com direção do mesmo José Celso
domínio e espírito adolescente (como, de
Martinez Correa.
resto, possuía o velho/jovem Edgard Braga,
No lançamento, no TBC, do envelope
que a novíssima geração admirava e com
de Tadeu Jungle Freqüência das Aranha
cujo trabalho tinha afinidades). Entre outras
(SIC), teve lugar uma exposição em que
coisas, perseguiam a corporificação gráfica
2004

havia um trabalho/poemaço: uma porta de

281
madeira colocada na parede, na horizontal, as mais “vulneráveis”. Atrás, o calendário

2002
com um enorme coração vermelho, tendo propriamente com a interferência dos dois:
em si cravado um machado de verdade e texto em provençal, de Bernart de Ventadorn,
o texto grafitado: FISSURO NAQUELA com a tradução de Augusto de Campos,
BUCETINHA. constando os seus nomes, com prováveis
Foi um momento de grande produção datas de feitura:
em que, a quatro mãos, Jungle e Silveira
fizeram o cartaz de lançamento do filme SIse eunãoNOUS VveEIjo
“O Rei da Vela”, bandeira do Brasil, onde aDOMNAmulher
o informalismo corrói aquele geometrismo DONqueeuPLUSmaisMICALdesejo
NEGUSnada queVEZEReuveja
provinciano rígido, dialogando com a bela
MON BELvale o PENSARque
capa, pré-Jasper Johns, feita por Tarsila para euNnãoO VALvejo
o livro de Oswald de Andrade, Pau Brasil,
2003 impresso em Paris, em 1925.
encimando dias e meses; assinado: Ted e
Dessacralizadores, às vezes
Waltão - c. 1981, numa flagrante paródia ao
trabalhando em dupla, Walter e Tadeu
trabalho de Augusto de Campos.
possuíam o dom de desestabilizar os lugares
Tentando evitar possíveis
onde quer que se apresentassem, com um
constrangimentos, aconselhei Walter (exerci
humor que chegava a ferir suscetibilidades.
uma espécie de censura) a não distribuir o
Por ocasião do lançamento de ZERO À
trabalho, do qual eu havia gostado bastante
ESQUERDA, eles apareceram com um novo
e do qual guardo alguns exemplares. Penso
trabalho, o qual pretendiam distribuir no
que até hoje Augusto de Campos não conheça
espetáculo multimídia que teria lugar na
essa versão de seu trabalho e ficamos sem
discoteca Paulicéia Desvairada - um quase
saber qual seria a sua reação caso a visse na
ready-made: um daqueles calendários
pequeninos, com reproduções de fotos época.
Muito embora não tenham mais
2004

coloridas de mulheres nuas, em poses,

282
trabalhado conjuntamente, estão entrando esta venha a durar cem anos!

2002
sempre em cooperação na feitura de vídeos, 2. Leitura. Decodificação. Fruição.
principalmente. Essa dupla do barulho Interpretação. O que seria uma boa leitura?
trouxe muita alegria e ajudou a engrossar o Seria aquela norteada pela curiosidade
caldo poético da equipe que fazia a revista (a mesma de que era acometido Leonardo
ARTÉRIA. da Vinci), pelo amor (amor pelo objeto
(08 de março de 2003) de estudo, de investigação, por aquilo que
está no centro de nossos interesses) e
pelo rigor (um cuidado extremo no trato
com o objeto de abordagem). Cada cabeça
uma leitura, mesmo que haja afinidades
observando i entre as abordagens. Épocas diferentes,
leituras diversas. Leituras: possíveis tantas
2003 1. Aquisição de repertório dá trabalho. quantas se queiram (vide o Interpretante
Não existe Van Gogh sem dor nem é possível Peirceano). Os signos não se esgotam.
ser-se o Gauguin do acaso. Ou seja, é Nós é que interrompemos, por fadiga,
preciso um projeto conduzido com a firmeza temporariamente, o processo da Semiose. A
de alguém que, flagrando-se na vocação, verdade absoluta, o Interpretante Final, tem
seja uma espécie de santo ou, no mínimo, o seu lugar no futuro. Sempre. Inalcançável.
um sacerdote. Sem um empenho fora do Temos de nos contentar com parcelas da
comum, no sentido inclusive da aquisição verdade. Embora satisfatórias, parcelas.
de um repertório específico, nada feito! Os 3. Das agruras da ancianidade. A.
artistas acima citados - assim como outros Processo de enfeamento físico. Quem vai
tantos e até não-artistas - levaram o seu acreditar que aquela pessoa já foi dona de
projeto às últimas conseqüências e fizeram uma beleza de fechar o comércio, como se
obra admirável e imortal. Ninguém é herói dizia? Mas, nem o Alain Delon, aquele moço
2004

impunemente: paga-se com vida, nem que que trabalhou com o Luchino Visconti, é

283
mais nenhum Alain Delon. Nem a Bardot inteligentes). Tenho muito dó dos cachorros,

2002
uma Bardot. Nem a Martha Rocha uma pois, além de dependerem dos humanos
Martha Rocha! B. Cansaço físico e mental. para alimentá-los, dependem do carinho
Taedium vitae. C. Deficiências hormonais que lhes devotam os descendentes de Adão.
e grande fragilidade, muito maior que a dos Eles querem carinho! E, no mais, como seus
humanos jovens. D. Emotividade a toda donos, adoram passear de automóvel…
hora. E. Falta de interlocutores. F. Perda (15 de março de 2003)

da objetividade. O outro lado: sabedoria


ou, no mínimo, um banco de dados que a
memória se incumbe de guardar e editar,
sempre que ela se manifestar em forma de
narrativa (principalmente). Velhos e crianças
são essenciais numa sociedade: garantia OS MODERNISTAS DE SÃO PAULO E A
da permanência da tradição mais viva e de (RE-) DESCOBERTA DO BARROCO -
2003
continuidade da mesma (a sua identidade) PARTE I
em crianças que serão jovens, adultos,
velhos etc. ocaso
4. Tenho muito dó dos cachorros. Sim,
No anfiteatro de montanhas
morro de dó dos cachorros, mamíferos
Os profetas do Aleijadinho
como nós. Tudo indica que foi o cachorro Monumentalizam a paisagem
o primeiro animal a ser domesticado pelo As cúpulas brancas dos Passos
Homem. Meus Deus!, como dependem, os E os cocares revirados das palmeiras
cachorros, de nós humanos. São de fato São degraus da arte de meu país
Onde ninguém mais subiu
fiéis, quando somos deles donos e seu
amor por nós é incondicional. São muito Bíblia de pedra sabão
amorosos (esqueço, aqui, daquelas raças de Banhada no ouro das minas
2004

cães que nada respeitam - e são os menos

284
e mais alguma produção tardia, inclusive

2002
Oswald de Andrade . 1924 paisagens retomando aquelas da fase Pau-
Pau-Brasil . 1925
Brasil, anos 20, em que Tarsila começava
- de par com uma especial leitura que fizera
do Cubismo de seus mestres em França,
Quando, em 1968, estive pela mais um colorido inusitado para aqueles
primeira vez com Tarsila do Amaral, em com um repertório pictural impregnado das
sua residência, um apartamento à Rua chamadas “Belas Artes” - o melhor de sua
Albuquerque Lins, bairro de Higienópolis, carreira como pintora.
na cidade de São Paulo, quase nada havia Cores caipiras? Bem, era necessária
das impressões que eu guardara de algumas toda uma essencial coragem para que
leituras sobre a época “maravilhosa” do Tarsila, assim como Oswald de Andrade,
primeiro momento modernista, fase sobre a seu companheiro de aventuras artísticas,
2003 qual se debruçaram muitos pesquisadores, amorosas e intelectuais, operasse uma
com resultados que se configuraram livros, leitura do Brasil, com um nacional que não
que se tornaram “clássicos” sobre o assunto. descambava para o nacionalóide. Tarsila
Os anos 20 haviam sido importantíssimos contribuiu enormemente para fundar,
para a renovação das Artes no Brasil e a dentro de um repertório modernista, uma
“caipirinha vestida por Poiret” se apresentara visualidade brasílica, de um Brasil-parte-da-
como uma das figuras mais proeminentes civilização-ocidental.
dessa história. Alguns indícios da época Quanto mais fui aprofundando meus
de produção mais conseqüente da artista, estudos sobre Modernismo brasileiro (e
como o lindo auto-retrato: “Manteau mundial) fui descobrindo com pessoas (-
Rouge”, desenhos e mais desenhos sobre a obras) como Oswald e Mário de Andrade,
mesa, aguardando arrumação para a grande Tarsila do Amaral e Manuel Bandeira um
retrospectiva que seria realizada no Rio e Brasil interessante e belo.
2004

em São Paulo, logo mais. “Os Operários” No mesmo ano em que morreu Tarsila

285
- 1973 - fiz uma viagem a Minas e fiquei diversas manifestações artísticas.

2002
boquiaberto com uma Ouro Preto ainda Bem, o maravilhamento dos
inteira (praticamente) e fiquei a imaginar modernistas frente à herança barroca das
com que deslumbramento a comitiva de 1924 Minas Gerais daria os seus frutos, chamaria
não teria flagrado aquela cidade! Por outro a atenção dos próprios mineiros para os
lado, veio-me o barroco anterior, literário tesouros escancarados que possuíam. Era
(poesia não é bem literatura, diria Ezra como se os paulistas estivessem tentando
Pound) de Gregório de Matos que - através recuperar para o Brasil um Barroco maior,
dos escritos de Haroldo de Campos, poeta e que a pobreza paulista dos séculos XVII e
estudioso, tradutor, um dos fundadores da XVIII não permitira - a não ser em migalhas
Poesia Concreta, manifestação (a última?) - à terra bandeirante. Também, como já
ainda dentro do Processo Modernista - fora referido pelos Andrades: a memória
redimensionou-se para mim. O enfoque de uma façanha paulista na área das
2003 haroldiano era embasado pela formulação de Minas. Um Mário, antes, referindo-se aos
Roman Jakobson de uma Poética Sincrônica bandeirantes descobridores, um Oswald
(“A descrição sincrônica considera não após, poeticamente registrando os fatos:
apenas a produção literária de um período
dado, mas também aquela parte da tradição
literária que, para o período em questão, [...]
Ide a São João del Rei
permaneceu viva ou foi revivida.”). Embora
De trem
eu já conhecesse algo de Gregório desde a Como os paulistas foram
época da adolescência, aquilo foi para mim A pé de ferro
uma revelação: um novo Gregório, um novo
Barroco. Um Barroco viável, cogitável como (29 de março de 2003)

valor artístico para o meu presente. Esse tipo


de enfoque - o de uma Poética Sincrônica
2004

- serviria, de qualquer modo, para as mais

286
OS MODERNISTAS DE SÃO PAULO E A às áreas coloniais. Esse mesmo Barroco que

2002
(RE-) DESCOBERTA DO BARROCO - aqui se adapta, manifesta-se até com alguma
PARTE II majestade e, necessariamente, acaba sendo
considerado o “estilo da época colonial”.
Uma coisa é inventariar um legado, Esse Barroco aportou no Brasil e deu
conservá-lo, até classificá-lo, desenvolver frutos admiráveis, nas Letras e nas Artes
estudos exaustivos sobre etc. Esse trabalho Plásticas e a maior ou menor riqueza das
é importante. Outra, porém, é perceber o manifestações seguiu o roteiro das riquezas
que tal legado traz de grandeza e, num ato da colônia lusa: Bahia, Pernambuco, Minas
de ousadia e mesmo coragem, emitir opinião Gerais. Não deixa de existir em outras áreas,
sobre, tecer um juízo verdadeiramente mas existiu sem a pujança daquelas acima
crítico. Mesmo o historiador da Arte, mencionadas.
especificamente, tem de fazer um trabalho Marcante, no primeiro quartel do século
2003 crítico, um esforço de discernimento, saber XIX é a chegada oficial do Neoclassicismo
o que realmente é informação estética nas ao Brasil, durante a estada de D. João no
obras remanescentes de um dado período. Rio de Janeiro. A herança da Missão Artística
Sabe-se que o Barroco foi mal julgado por Francesa, mais o reforço obtido por artistas
um longo tempo - internacionalmente - brasileiros que iam estudar na Europa,
tendo sido considerado uma arte menor, até trouxe, podemos mesmo dizer, um novo
que todo um processo de re-consideração paradigma para nossas Artes Plásticas: a
dessa tendência aconteceu, processo esse coisa da Academia - da transição para a
que se prolonga aos dias de hoje. independência política, ao fim do Segundo
Nem é mais cabível, hoje, discutir Reinado, mais parte da República Velha.
sobre a importância do Barroco. No caso da O cansaço/esgotamento da herança
América Ibérica, então, a coisa é vital: trata- neoclássica, as transformações econômicas
se da consideração de séculos de história em e sociais por que passavam algumas áreas
2004

que o Barroco, através das Metrópoles, chega do Brasil e mudança de paradigma que se

287
observava na Europa desde a Revolução do sem premeditação, sem desejo de fazer

2002
Romantismo, mais os avanços técnicos, como escola, realizei, em 1924, a pintura a
que chamaram Pau-Brasil.
o das técnicas de reprodução, a começar pela
Impregnada de cubismo, teórica
Fotografia, acabaram ecoando aqui e dando e praticamente, só enxergando Léger,
frutos. Dos tímidos indícios que se notam, Gleizes, Lhote, meus mestres em Paris;
de um Almeida Júnior a um Visconti, chega- depois de diversas entrevistas sobre
se à Exposição Malfatti de 1917-18. o movimento cubista, dadas a vários
jornais brasileiros, senti, recém-chegada
Nosso Modernismo, preocupado num
da Europa, um deslumbramento diante
primeiro momento com a atualização das das decorações populares das casas de
Artes no Brasil, vai voltar-se, a seguir, para a moradia de São-João-del Rei, Tiradentes,
descoberta de um país quase desconhecido e Mariana, Congonhas do Campo, Sabará,
isto significava voltar-se para outras áreas e Ouro Preto e outras pequenas cidades de
Minas, cheias de poesia popular. Retorno
olhar para o passado, não o passado próximo,
à tradição, à simplicidade.
2003 mas aquele distante, que produziu coisas Íamos num grupo à descoberta
antes da chegada do neoclassicismo, o que do Brasil, Dona Olívia Guedes Penteado
vale dizer “olhar para a herança barroca”. à frente, com a sua sensibilidade, o seu
É aí que o ano de 1924 entra como marco encanto, o seu prestígio social, o seu
apoio aos artistas modernos. Blaise
fundamental de renovação e re-descoberta
Cendrars, Oswald de Andrade, Mário de
do Brasil para os modernistas paulistas, que Andrade, Goffredo da Silva Telles, René
recebiam ilustre visitante: o poeta suíço- Thiollier, Oswald de Andrade Filho, então
francês Blaise Cendrars, cuja obra poética e menino, e eu.
pensamento muito pesaram nesse processo As decorações murais de um
modesto corredor de hotel; o forro das
sobre os brasileiros. Passemos a palavra a
salas, feito de taquarinhas coloridas
Tarsila do Amaral: e trançadas; as pinturas das igrejas,
simples e comoventes, executadas com
Foi por ocasião da visita de amor e devoção por artistas anônimos; o
2004

Blaise Cendrars à nossa terra que eu, Aleijadinho nas suas estátuas e nas linhas

288
geniais da sua arquitetura religiosa, tudo Não se tratava apenas da abordagem das

2002
era motivo para as nossas exclamações Minas Gerais enquanto tema: o referente aí
admirativas. Encontrei em Minas as cores
vem corporificado numa nova forma.
que adorava em criança. Ensinaram-
(19 de abril de 2003)
me depois que eram feias e caipiras.
Segui o ramerrão do gosto apurado...
Mas depois vinguei-me da opressão,
passando-as para as minhas telas: azul
puríssimo, rosa violáceo, amarelo vivo,
verde cantante, tudo em gradações mais
ou menos fortes, coforme a mistura de
branco. Pintura limpa, sobretudo, sem
OS MODERNISTAS DE SÃO PAULO E A
medo de cânones convencionais. [...]
Tarsila do Amaral, de PINTURA PAU- (RE-) DESCOBERTA DO BARROCO -
BRASIL E ANTROPOFAGIA. In: RASM, PARTE III
1939.
2003
Por essa época, Tarsila, que já vinha longo da linha

passando por todo um processo de mudança


Coqueiros
em sua obra, produziu algumas de suas mais Aos dois
importantes pinturas, assim como criou Aos três
o melhor de sua obra gráfica: desenhos Aos grupos
de uma simplicidade admirável, onde a Altos
Baixos
economia de meios faz a grandeza, obtém
o máximo de expressão. Isso tudo vai de Oswald de Andrade
par com o que de melhor produziria Oswald In: Pau Brasil, seção “Roteiro das Minas”
de Andrade. No poema que transcrevo a
seguir, Oswald de Andrade pinta um quadro, Fanopéia, como apontaria Ezra Pound,
ou melhor, desenha uma paisagem. A obra para denominar o tipo de poema em que as
2004

de Tarsila remete à de Oswald e vice-versa. palavras remetem a uma imagem visual,

289
evocam-na. Tem tudo a ver: essa paisagem anos 20 até os dias de hoje! O Barroco se colocou

2002
que pinta Oswald de Andrade como os de lá para cá como um valor viável, colocou-
desenhos de Tarsila da mesma fase, mesma se no centro das cogitações de alguém que
época: o extremamente pouco, o máximo se preocupa com as Artes Plásticas no Brasil:
da parcimônia na utilização de recursos enquanto historiador/crítico ou enquanto
com um máximo de rendimento: linhas/ artista/fazedor, independentemente de uma
palavras sem aquela impregnação poético- onda programaticamente neo-barroca, de
acadêmica, ou mesmo parnasiana, como essência conservadora. O Barroco está aí,
pôde ser observado no belíssimo soneto vivo!
“Vila Rica”, de Olavo Bilac, que pinçava Ouro Interessante é notar que um outro
Preto como tema. Os desenhos de Tarsila do estrangeiro, pessoa muito especial, andou
Amaral, dessa fase, são admiráveis tendo, pelas Minas Gerais, agora em fins dos anos
alguns, servido como ilustrações para o livro 60, e ficou muitíssimo impressionado com
2003 Pau-Brasil, de Oswald de Andrade, cuja a obra do Aleijadinho, que havia merecido
capa também é dela, como que antecipando dos Andrades tanta reverência: o lingüista-
coisas da Pop Art, o que já foi notado por pensador Roman Jakobson.
muitos críticos (o trabalho desenvolvido
por um Jasper Johns, decênios após, com a No anfiteatro de montanhas...
bandeira estadunidense), livro que traz um
(26 de abril de 2003)
prefácio indispensável de Paulo Prado.
Tarsila com sua obra plástica, Oswald
com seus poemas, Mário com poemas,
mas principalmente com o estudo sobre
o Aleijadinho (1928) foram os grandes
responsáveis pela onda de revalorização do
Barroco das Minas Gerais.
2004

Quanto já não se caminhou daqueles

290
DOS PERCALÇOS DE NOSSA filha adulta, Elisa, que deve se encontrar na

2002
EFEMERIDADE : JULIO PLAZA PASSOU Espanha. Deixa-nos aos 65 anos.
POR AQUI . JP II Julio Plaza nasceu em Madrid, em 1º
de fevereiro de 1938, essa figura enigmática
São Paulo, 18 de junho de 2003. que, como disse hoje Paulo Miranda, parecia
Já tive a oportunidade de escrever de pedra e Sonia Fontanezi - como que
nesta coluna sobre o artista-pensador Julio numa antevisão da morte - (quando lhe dei
Plaza González, em melhores momentos. a notícia do derrame, devendo ele já estar
Hoje, de volta do Crematório de Vila Alpina, morto) ex-aluna da FAAP e amiga: “Que
onde tentei lhe dar um adeus (não estive repertório o mundo está perdendo!”
em seu velório na capela do Cemitério O bem-apessoado Julio Plaza,
São Paulo, onde estiveram Donato Ferrari, falante do portunhol, muito desejado pelas
Milton Sogabe, Inês Raphaelian e Ronaldo mulheres. Tristeza. Do trabalho - tendo
2003 Entler, entre outros amigos), é com imensa sabido do ocorrido às 13h30 - rumei para o
tristeza e sentimento de perda que faço este Crematório de Vila Alpina e, do táxi, avistei
registro. Paulo Miranda, com quem eu havia falado no
Na madrugada de ontem Julio Plaza dia anterior. Em seguida, chegou o cortejo e
sofreu um AVC irreversível e veio a falecer o corpo. Ana Bela (a viúva), Regina Silveira
no Hospital Universitário da USP, cerca de (que foi sua companheira por cerca de duas
21h. Soube agora que, tendo pessão alta - décadas), Gilberto Prado, Jorge Carvajal,
como dizemos nós, os mortais comuns - não Mônica Tavares, Evandro Carlos Jardim,
se cuidava, fumando três maços de cigarros Walter Zanini e mais umas dez pessoas. Eis
por dia, mais o seu indispensável whisky (por que aparece Augusto de Campos, amigo e
ser um europeu do contimente, pensei que com quem Julio fez alguns de seus melhores
apreciasse mais o vinho). O que ele mais trabalhos nos anos 70 - Poemóbiles e
curtia ultimamente era o seu filhinho de Caixa Preta, por exemplo, referências
2004

apenas dois anos, Ángel. Julio possuía uma internacionais de intersemioticidade - que

291
soube por mim (pela metade) do ocorrido. o pioneirismo: do vídeo-texto à INTERNET,

2002
Não chegou a haver uma cerimônia passando pelos mais avançados programas
na sala do crematório em que o caixão foi de computador. Em todo caso, escreveu
exposto por alguns minutos, ao sons de muito, fez teoria saindo, desse exercício,
música triste - Villa Lobos etc. Fim do ritual: livros hoje indispensáveis para aqueles se
despedidas e volta para casa. preocupam com questões de linguagem,
A última vez que estive com Julio Plaza como Tradução Intersemiótica, sua tese
foi numa banca de Mestrado na ECA-USP, de Doutorado. Fizemos, em 05 de agosto de
acho que de sua última orientanda na Pós- 2000, eu e Peter de Brito, fotos suas em sua
Graduação, ele já aposentado (cheguei a residência e na pracinha em frente, à Rua
participar de várias bancas por ele presididas Agissê, Bairro do Sumaré e que pretendo
e ele participou da de uma orientanda minha publicar um dia.
no IA-UNESP). Julio Plaza era um mistério aparente,
2003 Figura firme em seus propósitos, já que sabia que as essencialidades eram
nunca falou português sem um forte sotaque tão diminutas, que não valeria a pena o
espanhol. Artista dos melhores que o Brasil estar-se manifestando sobre efemérides.
adquiriu (só o tendo perdido, por algum Havia absorvido, além de toda a tradição da
tempo, para Porto Rico, onde esteve como Arte Ocidental - enveredando pelo Oriente,
artista-professor), construiu uma obra seca, em especial, China e Japão - as linguagens
inventiva, com forte teor metalingüístico - dos modernismos: Duchamp, Bauhaus, Pop
teve uma atuação impecável como poucos. Art, Arte Conceitual, Grupo Fluxos, as Novas
De muitos anos para cá, deu as Tecnologias (a começar, como já foi dito,
costas para a mídia e para a crítica em pelo hoje dinossáurico videotexto). Não
geral e passou a fazer uma arte ligada às dava a mínima para críticos e para o mundo
mais avançadas tecnologias, que ele tinha frívolo das galerias. Abandonou em grande
em alta conta e não como algo que, como parte os fazeres tradicionais, ligados ao
2004

alguns tratam, era feito apenas para constar artesanato, que ele dominava como poucos:

292
desde o simples desenho de observação, à que ele, até pouco, impediu que se fizesse).

2002
feitura manual de um livro. Deixou (talvez Artista que ora adentra a eternidade. Fazedor
nem tenha começado) de ganhar dinheiro que preferiu abandonar o Perecível em prol
com a Arte (objetos) que produziria, assim do Reprodutível e do Disponível. Julio Plaza:
como acontece com todos aqueles que fica um vazio que se aproxima do quase-
conseguem criar um estilo pessoal marcante nada a que pretendeu chegar.
(como Duchamp, fugiu do estilo pessoal, Em tempo:
adentrando o mundo dos conceitos e da São Paulo, 23 de junho de 2003:
reflexão). Missa de 7º dia, pela alma de Julio Plaza,
Foi professor, por muitos anos, na na Igreja de Nossa Senhora do Rosário de
FAAP e marcou gerações com seu rigor e Fátima, à Rua Dr. Arnaldo, Sumaré, São
crítica do fazer. Produziu ao mesmo tempo Paulo cap. Que é quando, tendo encontrado
uma arte metalingüística e conceitual, amigos, concluo este escrito.
dialogando com artistas da tradição - de (05 de julho de 2003)
2003
Velázquez a Duchamp. Valorizou a palavra,
maravilhando-se com os jogos por elas
propiciados, em casamento com as formas
visuais. Casou imagem e palavra e, sob esse
aspecto, era um verdadeiro poeta. Como
gráfico, participou de muitas produções do celibato como uma das belas
coletivas e/ou individuais, contribuindo para artes
elevar o nível das publicações que se faziam
à margem do sistema editorial brasileiro. Você já pensou em coisas
Produziu e teorizou sobre o livro-de-artista. desinteressantes? Eu já. E concluo que uma
O futuro próximo poderá avaliar a das coisas mais desinteressantes do mundo
singular e importante contribuição de Julio é um solteirão (celibatário): um homem
2004

Plaza para o Brasil e para o Planeta (coisa solteiro, avançado nos anos, sem filhos,

293
mas com algum dinheiro (alvo da cobiça uma relação sexual e este é um sintoma

2002
principalmente de sobrinhos gananciosos), de que o esqueleto está tentando passar à
com um passado rico em acontecimentos no frente, ou seja: o que em nós é vida começa
âmbito de Eros e Afrodite (quem acreditará a mostrar sinais de cansaço).
que Don Juan foi, de fato, Don Juan, se Das solteiras, nem é direito falar, já que
hoje não passa de uma bem posta galinha o senso comum as aceita como solteiras, pelo
depenada? Nem o Alain Delon é nenhum Alain fato (contestável) de não terem encontrado
Delon hoje-em-dia!), cheio de sobrinhos, alguém que as quisesse. Daí que a figura da
enfim, um solteirão clássico. solteirona é mais assimilável pelas famílias,
Desinteressante! Só mesmo Machado comunidades e pela nossa sociedade. A
de Assis para fazer de algo como a vida virgindade lhes é permitida. Não aos homens,
de um solteirão uma obra-prima da arte que passam a ser tidos como anormais, com
da narrativa ficcional. O seu Brás Cubas é tendências a beatos – o que necessariamente
2003 o retrato do dito solteirão que, com muita não são. Ah! O direito à virgindade! (Há mais
ironia – a do próprio Machado (e aí eu virgens – homens inclusive – sobre a face da
lembraria que um casado sem filhos – caso Terra do que possa imaginar a nossa vulgar
de Machado de Assis – avançado nos anos, erotomania).
assemelha-se ao solteirão e, se for viúvo, A pressão com relação aos homens
a coisa se aproxima ainda mais. Porém, solteiros é muito grande, a começar pela
é mais fácil encontrarem-se viúvas. Um própria família. E os de fora perguntam: Por
viúvo é raridade digna de ser festejada. As que não se casou? É santo, putanheiro ou
mulheres têm a mania de sobreviver aos seus veado?
respectivos maridos) sobrevive, enquanto Às vezes, por detrás de um solteirão,
ele sobrevive, passados os anos de glória, existe um amor que não se viabilizou, porém
em que o pênis apontava para as estrelas não deixou espaço para remédio – uma
(a idade vai fazendo com que o ângulo de doença de amor se cura com outro amor.
2004

ereção vá diminuindo, até tornar impossível A certeza que fica no que respeita

294
a condição do celibato é que atrás de um solteiros, homens que desempenharam,

2002
solteirão existe um mãe forte, fortíssima, com excelência, a arte de ser solteiro e
mesmo que ele não seja veado. Isto quer cujos nomes não citarei, mas que honrariam
dizer que os edipianos (homens ligados à qualquer grande romance e cujas histórias se
mãe, uma hiperprotetora) dividem-se em perderão, assim que os que as guardam na
machos e misóginos (os que têm aversão a memória também desaparecerem. Algumas
mulheres… na cama, posto que para eles, celebridades têm registro garantido: Jorge
uma mulher nessas circunstâncias, equivale luis Borges era, em essência, um solteirão,
à mãe e, por ser o incesto um tabu…): os um edipiano evidente: Dona Leonor Acevedo
machos são trepadores compulsivos e os de Borges, que acompanhava o filho cego e
misóginos se trancam ou optam pelas que morreu aos 99 anos de idade, é quem
práticas homoeróticas (Décio Pignatari, em poderia falar melhor sobre isso. Porém, o
nada edipiano, disse algumas vezes que o portentoso escritor portenho se casou duas
2003 cara muito ligado à mãe acaba se tornando vezes: uma, já passado dos sessenta e
bicha e que Oswald de Andrade [que teve outra, às vésperas de sua morte, com Maria
inúmeras mulheres] seria o único edipiano Kodama, que o secretariava e acompanhava
que ele conhecia e que desbancava a regra. em viagens, conferências etc (penso que
Com todo o respeito que tenho pelo genial Borges se casou para não deixar bens para
Décio, penso que o seu argumento peca seus sobrinhos).
pelo simplismo. Mas, sobre o edipianismo do Figura social, de qualquer maneira
macho Oswald, vem-me à mente um belo importante, o solteirão é antes de tudo um
poema de Edgard Braga, dedicado ao seu herói. No fim da vida não tem com quem
amigo, autor de Pau-Brasil: miramar/ dividir obrigações, nem as memórias. Quem
miramãe). Mas, os mais interes… digo, as quereria ouvir? Quem choraria pelos
os menos desinteressantes dos solteiros solteirões de sua família? Quem se lembrará
são os heterossexuais, como o Brás Cubas deles depois de algum tempo? Nessa
2004

do nosso Machado. Pirajuí teve célebres sociedade, os papéis vão sendo assumidos

295
pelas pessoas, mesmo que à revelia. Alguns usa. O francês está em baixa há décadas:

2002
têm de encarnar o papel daquele que sobrou. ninguém mais diz avant première!) do que
O solteirão, o celibatário. Seja lá o que Deus a moda do ano passado. E é assim mesmo:
quiser. moda é coisa que passa e é para passar
(12 de julho de 2003) mesmo, principalmente quando se trata
- e é quase sempre assim - do consumo
desenfreado, que faz com que uma menina
classe média abra o seu guarda-roupas
superlotado com oitenta vestidos e conjuntos
OBSERVANDO II e diz “Não tenho o que vestir”, ou “Eu não
tenho roupa”. Se alguém me pergunta se a
1. Andragógico? Fico pasmo ao ver como moda é arte, se os estilistas são designers,
pessoas apressadas se deliciam ao pensar se a moda é kitsch, depois de muitos rodeios,
que são portadoras de uma nova terminologia respondo que a moda é arte e o estilista é um
2003
e que estão fazendo o favor de passá-la para artista/designer quando - de fato - concebe
os outros, pobres mortais. Andragógico em algo que, atendendo a necessidades do
lugar de pedagógico, porque pedagógico momento, seja admirável. Do contrário, o
remete à criança. Mas andragógico se estilista será um mero decorador de corpos,
refere a adultos do sexo masculino! A tal alguém que só responde às necessidades do
da andragogia estaria limitada à condução consumo: atende a esse chamado. Gosto é
de machos adultos? Além de inadequada, a gosto e todo gosto é codificado e, portanto,
palavra é por demais desagradável. Espero sempre tem uma ponta de kitsch e ninguém
que essa não tenha muito trânsito e que se precisa se incomodar com isto, pois é
invente outra que, sendo mais adequada, impossível ter-se 100% de informação.
soe melhor aos nossos ouvidos. Não é à toa que Marcel Duchamp dizia ser
2. A moda. Nada mais demodé (para utilizar o gosto o maior inimigo da arte: tanto o
2004

um termo francês que quase ninguém mais bom como o mau. Porque ele entendia a

296
arte como algo que roça o desconhecido, o questão de descobrir qualidades onde quer

2002
inusitado e gosto é coisa codificada e varia que elas estejam.
conforme a época e a cultura (etnia). Moda: (26 de julho de 2003)

os mais jovens gostam de segui-la para não


serem discriminados. Ou então, atendem ao
chamado de sua tribo. Paciência…
3. Ninguém contesta os murais de
Pompéia. Tudo vira cult. Por mais que em
sua época de feitura tenha sido deplorado OBSERVANDO III
por ser diluição, barateamento repertorial ou
1. Diploma universitário, para quê?
coisa que o valha. O tempo acaba conferindo
Lula teve tempo de sobra para ter dois ou
uma certa “nobreza” ao que era abaixo do
três diplomas universitários, mas não quis:
plebeu. Porém, salvo os casos de obras que
talvez que não tivesse tempo para perder
2003 tenham sido incompreendidas em sua época,
com a garotada de 17, 18, 19 anos. Talvez
nós teremos sempre parâmetros, termos
tenha faltado paciência a alguém que já
de comparação. A própria pornografia de
freqüentava as altas rodas intelectuais e uma
lupanar acaba se tormando algo digno de
suposta vanguarda política. Por outro lado
nota, principalmente quando, além de velha,
seria dar muita importância para aqueles
seja composta por obras raras (dos únicos
que, tentando desqualificá-lo, exigiam dele
remanescentes), testemunhos de hábitos e
um diploma universitário. Não me comovi
costumes etc. Mas, em meio ao entulho pode
com o seu choro, quando do recebimento
haver alguma preciosidade. Dos murais de
do diploma de Presidente da República do
Pompéia, às gravuras japonesas, chegando
Brasil. Lula é mais inteligente que a maioria
a Tom of Finland e aos poemas de Glauco
dos brasileiros de sua idade, justamente
Mattoso, é difícil separar o criativo da simples
diluição. De qualquer forma, o tema atrai e porque cultivou a inteligência através de
papos, discussões com as celebridades com
2004

distinguir o erótico do pornográfico é uma

297
quem conviveu. Precisaria tão somente de mais distante do herói do que um homem

2002
algumas aparas. Mas tem grande mérito: vivo. Heróis vivos, só os anônimos!
chegar onde chegou… Agora ele começa a 3. CLARA LUZ. É este o título da exposição
ter idéia do abacaxi que FHC deixou para ele que abriu ao público, recentemente no
e para o PT. E está vendo que é necessário Centro Cultural Banco do Brasil (e já fechou,
fazer concessões, ter jogo de cintura, como já que este escrito não sai do computador
se diz por aí. O PT, enquanto parte atuante do para o semanário!), à Rua Álvares Penteado,
Legislativo, foi um sucesso. No Executivo está no centro velho de São Paulo. Pois é, Regina
vendo que as coisas são diferentes e… Porém Silveira, reiterando sua excelência com um
a Direita apoiará as suas próprias reformas e exemplo fantástico de ocupação de espaço.
assim, matará o PT enquanto partido que se Regina não faz trabalhos para serem
apresentava como agremiação progressista. expostos, seja lá onde for. Faz trabalhos
Infelizmente, Lula, atualmente fascinado após ter estudado o espaço a ser por eles
2003 com o poder desfrutável do Presidente da ocupado. Vale a pena ir até o belo centro
República e toda a pompa que isto possibilta da Paulicéia para ver esse exemplo de
(viagens e mais viagens, dona Marisa na capa ocupação do espaço. Um belo espaço, diga-
da VEJA etc), estará servindo, com todos os se. Sensibilidade e cérebro se encontram
seus correligionários à Centro-Direita. Com nesse novo cometimento de Regina Silveira,
mais poder (à Direita) que Pedro I e o Médici como já era de se esperar - não os trabalhos,
e mais pompa que D. Pedro II, lá vai o Lula. mas a inteligência etc etc etc.
Deus nos acuda! (09 de agosto de 2003)

2. Herói? O herói é herói por uma propiciação


do acaso, por uma conjunção de fatores,
não porque ele tenha planejado ser herói.
E o que quase sempre acontece é que ele é
herói post mortem. Essse negócio de bon-
2004

vivant bem intencionado está por fora. Nada

298
OBSERVANDO IV boa reprimenda. Bem… Nem vou falar aqui

2002
de como esses anglófonos que movem tal
Alugam-se salas. Pois é, isto deveria estar guerra vêem os iraquianos: ratos terão
afixado no prédio-sede da ONU em Nova maior consideração. O mesmo espírito
Iorque. Melhor: Alugam-se salas para Truman, que despejou as bombas sobre
fins comerciais. Depois desse desrespeito o Japão e que fez os estragos no Vietnã,
flagrante por parte dos EUA. Eles queriam sem contar outros tantos, detona bombas
a guerra e a fariam de qualquer modo. Que de nove e meia toneladas no Iraque. O
moral terá a ONU daqui pra diante quando que move essa guerra? Penso que quatro
resolver alguma coisa? Exigir o quê? De são os principais fatores: 1. O interesse
quem? Abominável guerra contra boa parte pelo petróleo iraquiano; o lobby pretolífero
da opinião pública mundial. O Iraque não estadunidense quer ter acesso a essa riqueza.
está guerreando: está sendo guerreado. 2. Interesse da indústria bélica que vive da
Daí, frente à arrogância do poder, além desgraça alheia e que quer vender e sair do
2003
dos protestos, só poderemos esperar pela vermelho. Que importariam vidas árabes? 3.
vingança dos deuses mesopotâmicos. Não Bush percebeu que estragos o colocam na
se tratra de Saddam Hussein, mas de toda mídia. Ele, cuja eleição esteve envolvida em
uma população civil, que vem padecendo dúvidas, desde o 11 de setembro, com seus
em função de guerras, em grande parte arroubos de psicopata, quer continuar a ser
insufladas pelos interesses pecuniários/ notícia e está continuando. A guerra contra
estratégicos do Ocidente. Saddam é cria o Iraque é, portanto, um prato cheio. 4.
do Ocidente. Príncipes árabes muçulmanos Uma grande demonstração de força, calcada
são a favor do Ocidente (EUA). Esses num domínio tecnológico sem par, para
machos abichalhados, trejeitosos, vestidos deixar claro que os EUA são a única grande
a caráter, hipercivilizados que estudaram na potência do Planeta. Abomino essa guerra e
Inglaterra e que confundem cofres públicos todos que a ela conduziram, um dos berços
2004

com bens familiares, deveriam receber uma da Civilização que é o Iraque/Mesopotâmia

299
(temo pela população civil pobre; temo pelos nascido em São Paulo, em 19 de agosto

2002
tesouros arqueológicos - parte substancial de 1929, irmão de Augusto de Campos,
da memória da Humanidade). Mesmo sem também poeta/criador múltiplo, sempre foi
poder impedir tal ato agressivo, devemos o mais erudito dos concretistas: um dos
protestar contra o mesmo. Como colocou há maiores intelectuais que o Brasil já teve,
muitos anos, num desenho, um amigo, hoje pois reunia em si inteligência, alto repertório
diplomata: NEM POR TODO O PETRÓLEO DO e criatividade. De todos, o mais ligado à
IRAQUE. Deus salve o Planeta! palavra. Um homem de Letras, como poucos
Em tempo: Este texto foi escrito logo que em nosso País e no mundo.
teve início a tal guerra. Haroldo agora se foi, deixando uma
(16 de agosto de 2003) obra cuja avaliação deverá ocupar gerações,
mas que para aqueles que com afeição o
acompanharam nos últimos trinta anos
2003 (pelo menos) não há dúvidas: trata-se de
uma obra de gigante: um Pound, um Pessoa
HAROLDO DE CAMPOS podem se comparar a ele que, como seus
companheiros de aventura concretista da
Conheci Haroldo de Campos lá pelos linguagem, acabou por ter muitos inimigos
idos de 1975, quando estava preparando, (tão menores que ele, que nem valeria a
com Paulo Miranda e os irmãos Figueiredo, pena mencionar). Porém, por outro lado,
o número 1 da revista ARTÉRIA. O poeta, possuía amigos-companheiros que honrariam
generoso, enviou um fragmento de Galáxias, qualquer complexo artístico, em qualquer
inédito e depois outro, já que a CÓDIGO 2, parte do mundo.
saindo antes, publicou o primeiro. Então, Visitei pouco Haroldo em sua casa à
ficamos com dois fragmentos do texto de Rua Monte Alegre, Bairro de Perdizes (ou,
prosa inventiva de HC e os publicamos. quando ia para entregar-lhe algum trabalho
2004

Haroldo Eurico Browne de Campos, novo, chegava sem avisar e nem entrava,

300
apesar da insistência), mas fui sempre hospital, evitou a divulgação do fato), o

2002
bem recebido, inclusive na última vez cortejo seguiu até o Crematório de Vila
em que estive em sua casa - uma casa Alpina. Um frio, que compunha com fina
pequena, pois nunca aceitou morar em goroa, tornava a situação ainda mais difícil,
apartamento, uma bibliocasa de fato, para todos nós, abalados com o ocorrido.
como costumava dizer - fazendo umas Parecia mentira o desaparecimento de um
fotos (fotografei-o em pelo menos três poeta cuja exuberância no falar era o que
ocasiões diferentes). Ele estava triste, de nos vinha à mente.
uma tristeza profunda: o diabetes havia Sua última grande empreitada (de
minado sua saúde; um problema de coluna um homem que pensava grande e que
trazia-lhe dores constantes. A isto, foram- produzia muito e de um qualitativo sempre
se somando outros problemas, até que, elevado): tradução integral da Ilíada, de
tendo ficado por cerca de duas semanas Homero, trabalho em que foi assistido pelo
2003 na UTI do Hospital Alemão Osvaldo Cruz, jovem helenista Trajano Vieira.
veio a falecer na madrugada do último dia É tão grande o seu legado (poesia,
16 de agosto, um sábado. Faria, poucos teoria/crítica, tradução de poesia -
dias depois, 74 anos. Eu havia estado no transcriação como batizou a tarefa) e tão
hospital dias antes e vi-o no leito, rodeado frágil o fio que prende alguém à existência.
de aparelhos: dormia, sedado (numa Haroldo: o mais cerebral dos concretistas
segunda vez, os encarregados do HO não (os cerebrais paulistas, como gostavam de
autorizaram a minha entrada, já que não se referir a eles os desafetos de fora - Rio
era parente. Seu estado - disse-me o rapaz de Janeiro…).
do guichê - era grave, continuava grave). Se é que há o Além, ele é aguardado
Do velório (no final havia umas por Jakobson, Pound, Maiakóvski,
cinqüenta pessoas - não era um homem de Mallarmé, Octavio Paz e tantos outros que
mídia, apesar da celebridade internacional; mereceram a sua devoção de estudioso
2004

a família, durante o grave período de e amante da arte da Poesia e doutras.

301
Haroldo de Campos: o mundo sente esta OBSERVANDO V

2002
grande perda. Um homem que ainda tinha
projetos. 1. Solidão. Certa vez, Dona Maud [Pires
Hoje, 21 de agosto de 2003, a missa de Arruda], em conversa comigo, contestava
sétimo dia na capela da PUC, Perdizes, Bairro os reclamos de uma senhora que, em um
sempre ligado à sua atuação de poeta e de suplemento feminino - se não me engano, do
professor, que ministrou belas aulas na pós- ESTADÃO - reclamava de uma solidão doída,
graduação daquela instituição. Padre Edênio muito doída. Dona Maud chegou a escrever
- um filósofo com sensibilidade para a poesia para a tal senhora (endereçando a carta à
- celebrou a cerimônia que contou com dois seção do jonal) perguntado o que que ela
integrantes da colônia judaica de São Paulo havia plantado durante a vida. Não tinha feito
e que leram texto hebraico do Qohélet e amizades? Não havia preparado a velhice?
tradução famosa de HC (trechos). Haroldo, Por quê? Muito embora os argumentos de
2003 católico, gozava de grande prestígio entre Dona Maud parecessem plausíveis - e eram
os letrados das colônias judaica e japonesa inteligentes - a questão era um pouco mais
desta Paulicéia, que ele muito amava. São complicada e envolvia peculiaridades da
Paulo é como uma mulher, uma mulher velhice, tais como a perda da objetividade,
difícil - dizia - ela só se entrega aos poucos… o cansaço e a falta de pessoas da mesma
portanto, para gostar da assustadora São geração com quem conversar. O que nós
Paulo de Piratininga, há que se ter paciência, temos mesmo é de nos preparar para a solidão
leva tempo. Haroldo de Campos. São Paulo. e que esta seja suportável na companhia dos
Galáxias. livros ou coisas mais, que possam vir a nos
(06 de setembro de 2003) ocupar na vigília.
2. Post Scriptum a Do Celibato como uma
das Belas Artes. Tanto é desinteressante a
vida de um solteirão que morre aos sessenta
2004

e poucos anos e com posses, porém, sem

302
filhos, que o Brás Cubas, para garantir sua espanta mais na TV (veículo do qual eu até

2002
posteridade, narrou sua vida depois de gosto) não é bem a falta de qualidade, às
haver morrido. (É óbvio que eu sei que se vezes total, mas a falta de originalidade,
trata de ficção! Porém, o próprio Machado de mesmo no que há de pior. Programas -
Assis já havia pensado no desinteresse por muitos - além de péssimos, são cópia do que
tal biografia e quis homenagear o homem há de mais reles e torpe na TV dos EUA e de
nas ditas condições. E, diga-se, dedicou-lhe outras paragens. O que tem de bom é tão
uma obra-prima!) Por que gostaríamos de pouco, mas basta. Pelo menos para nós que
ser lembrados pelos outros humanos? Por dispomos de inúmeras fontes para obtenção
vaidade. Pura vaidade, é claro. de informação.
3. Dona Amábile e a questão do qualitativo 5. Comida. Não sei se é um sintoma da idade
perene. Logo que publiquei, neste que se vai avançando, junto com o fato de
semanário, um artigo sobre a memorável as coisas irem se tornando proibitivas com
2003 Dona Amabile Ghiotto Bonadio, fui saudado o avançar dos anos (os exames de sangue
por minha amiga Iolanda Barbanti, que costumam nos denunciar), mas a comida vai
concordara com tudo o que eu havia escrito ficando cada vez melhor: o simples refogado
e comentou: - Você apenas se esqueceu de de abobrinha torna-se um banquete!
dizer que tudo o que Dona Amabile fazia, Acontece que a vida nos prega boas peças,
mantinha a extrema qualidade sempre e vivemos a sua ironia: no momento em que
sempre e isto durante décadas. É verdade e estamos com o paladar afinadíssimo, no
fica aí a informação complementar. Manter momento em que nos encontramos aptos a
o qualitativo ao logo do exercício de uma degustar, é justo o momento de fecharmos a
atividade: eis a questão. boca. Temos de regular, de medir tudo. Ah!
4. TV. Mediocridade sem fronteiras. um ovo por semana, frito na manteiga! Para
Chacrinização e cópia nos programas de mim, cada refeição, por mais simples que
auditório, sem a grandeza do Chacrinha. seja, tem sido um acontecimento: o melhor
2004

Informação? De raro em raro. O que me acontecimento do dia. De qualquer dia.

303
Poder comer de tudo e até exageradamente vivido um sonho: como eram excelentes e o

2002
é uma bênção. quanto de sabedoria cosmopolita tinha aquela
6. Ranchinho. Sebastião Teodoro da Silva, mulher! Eram aulas que me alimentavam,
o Ranchinho, pintor naïf (do francês, que atendiam, de fato, a necessidades espirituais
significa “ingênuo”) de Assis (SP) faleceu, minhas - saciavam a minha curiosidade, o
em 2 de fevereiro de 2003. Tinha oitenta meu interesse pelo Mundo das Artes e como
anos e deixa um trabalho que emociona ela trazia coisas e participava, através de
e causa admiração, pelas condições em seus alunos, de eventos os mais variados,
que foi produzido. Estive em Assis com alguns até no exterior, como foi o caso dos
meu irmão Válter e acabei adquirindo, de desenhos que foram enviados ao Japão,
seus sobrinhos, mais alguns quadros, que para um concurso, sendo que alguns alunos
enriquecem artisticamente a minha pequena faturaram prêmios. De Paim, que decorou
coleção. Os ingênuos do Brasil - assim como a Igreja Nossa Senhora do Brasil, nesta
2003 Ranchinho - deverão ser melhor avaliados Paulicéia, ao genial holandês Rembrandt,
pela crítica. Espero que o prometido MUSEU Dona Maud possuía uma desenvoltura rara.
NAÏF de São Paulo venha a colaborar para Pudesse voltar àquele tempo e procuraria
que isso aconteça. aproveitar muito mais, aprender mais coisas
(13 de setembro de 2003) com ela. Mas o passado existe na memória
daqueles que o tenham vivido e nas coisas
remanescentes e só persiste em forma
de relato. Dona Maud marcou com sua
generosidade de mestra a minha existência
e dizer-lhe que eu lhe sou muito grato seria
OBSERVANDO VI
muito pouco. Deus salve a mestra!
2. Arte Abstrata. Por mais que se queira
1. Dona Maud Pires Arruda. Cada vez que
explicar a difícil Arte Abstrata - cujas bases
me lembro das aulas de Dona Maud, penso ter
2004

são Kandinski, Maliévitch e Mondrian -

304
através de teorias filosóficas de fato, ou fotografia (FOTOFORMAS) em fins dos anos

2002
teorias um tanto barateadas, mas que 40 e inícios dos 50 do século passado;
ocuparam as mentes de nosso gênios depois, veio a integrar o grupo Ruptura
acima referidos (uns místicos, diga-se), (1952) de tendência abstrata geométrica
ou remontando ao Neolítico, com aquelas (o concretismo paulista).
decorações abstratas geométricas ditadas 3. beba coca cola. Pois é: o antigo
pela trama da tecelagem (o que não deixa slogan da Coca-Cola foi traduzido do
de ter o seu papel para o advento da inglês ao pé-da-letra. E ficou melhor em
abstração no século XX, a partir de 1910), português. Muito melhor. Em português
o Abstracionismo vem a ser o coroamento ficou perfeito: três unidades sígnicas
de todo um processo deflagrado pelo (duas, sendo uma composta) dissílabas
advento da fotografia na primeira metade paroxítonas, com quatro letras cada,
do século XIX. A pintura teve de evoluir criando um ritmo trocaico / . / . / . O “a”
2003 muito rapidamente a partir da referida aberto perpassando a frase - comparece
invenção (primeira técnica revolucionária nas três unidades - e sempre participando
de reprodução, no dizer de Walter Benjamin) da sílaba átona. Às vezes, uma tradução
e mostrar que a mimese era apenas literal é a melhor solução. Os slogans são,
um detalhe dessa milenar arte, ou mero via de regra, difíceis de serem traduzidos,
pretexto para se distribuírem cores por uma justamente porque fazem uso de recursos
superfície. No mais, a própria fotografia se poéticos. Aí, a questão não é apenas
tornou arte e quando pôde, até se livrou traduzir, mas encontrar, na nova língua,
da obrigação de ser meramente figurativa equivalências formais, transcriar (vide
ou reprodutora de objetos reconhecíveis: Haroldo de Campos…). Décio Pignatari,
muitas são as experiências não-figurativas o grande poeta do Concretismo, partindo
com a fotografia e o Brasil não ficou de do famoso slogan em português, criou,
fora: Geraldo de Barros, pintor, fotógrafo, não acrescentando uma letra diferente,
2004

designer fez belas experimentações com um poema-anti-anúncio, com caco, cola,

305
babe e cloaca!

2002
4. você
está
aqui
Tadeu Jungle foi muito feliz em seu trabalho:
o readymade acima transcrito. Mais uma arte/poesia e tecnologIA : AS
vez, melhor no português. Perfeito! Três NOVAS MÍDIAS-LINGUAGENS
palavras (dissílabas) de quatro letras cada, (A INTERNET)
oxítonas, encadeadas pelas vogais: eeaa.
Do acento circunflexo, passando pelo Toda arte implica utilização de
agudo, até o pimgo do “i”, uma diminuição Tecnologia: a da sua época e a que a tradição
dos apêndices. O ritmo: jâmbico: . / . / . conserva. E, diga-se, é importante que
/ Essa frase-esclarecimento, comumente não se percam as tecnologias do passado:
2003 encontrada em mapas de edifícios etc. foi elas sempre estarão modificadas pela nova
transposta por Tadeu Jungle em pequenos visão das coisas e só poderão apresentar
e grandes cartazes, em caixas de fósforos, acréscimos à sociedade. Isto tudo para dizer
em pequenas etiquetas auto-adesivas. Onde que o uso de tecnologia não significa apenas
quer que você esteja, você estará lá. Ou seja, a utilização das mais avançadas existentes
qualquer lugar poderá ser o seu aqui. Tendo em nossa época.
sido contemplado por Tadeu com um cartaz Uma nova tecnologia pode transformar
de 2 X 2 m, coloquei-o no hall do andar do a prática artística; uma necessidade
edifício onde resido. Quem chega - e vê o específica das artes poderá gerar uma nova
escrito branco sobre fundo vermelho - tem tecnologia. Ainda se pode praticar a técnica
a plena consciência de onde se encontra. do afresco e do óleo, da “cera perdida” etc,
VOCÊ ESTÁ AQUI. E esta afirmação sempre assim como a da revolucionária fotografia e
corresponderá à verdade. os mais atuais dos programas de computador.
2004

(27 de setembro de 2003) Conhecimentos só enriquecem.

306
Muito embora o exercício consciente surpresa. É necessário fazer uso adequado

2002
e conseqüente das Artes hoje exija o do meio (-linguagem) específico. Um erro,
conhecimento da tradição, mais o das mais de saída, é, por exemplo, querer usar o
avançadas tecnologias, a utilização destas videotexto (hoje, um tanto dinossárico e
nem sempre é necessária: basta uma parede já absorvido pela internet) para veicular
branca e um carvão, uma folha de papel e sonetos em alexandrinos. Uso adequado do
um lápis, madeira e goiva… Uma utilização meio é o que fez Walter Siveira, no vídeo “ O
inadequada de uma tecnologia resulta em Elogio da Xilo” que, utilizando a linguagem
obra inconsistente. Como sempre, aquele que do meio, fez de um poema verbal (de Haroldo
desejar alcançar numa certa arte, no mínimo, de Campos) um videopoema. De qualquer
o nível de excelência, deverá conhecer modo, os meios aí estão e não podem ou
profundamente materiais e técnicas e ter o não devem ser ignorados pelos multimídia
que chamaria consciência de linguagem, o ou não de agora em diante, capazes que são,
2003 que não faltou a Monet, Mallarmé, Debussy, se for o caso, de operar com lápis e papel.
Machado de Assis, Picasso, Marcel Duchamp, A INTERNET aí está e, como qualquer
Alfredo Volpi e tantos outros. dessas maravilhosas bancas de revistas da
Reiterando: Os artistas não devem e cidade de São Paulo, contém mais de 95%
não podem ignorar o progresso técnico (às de lixo. LIXO. A questão maior é justamente
vezes eles até o antecipam ou o exigem...), a de selecionar - em meio à avalanche -
que não vem sozinho, mas com toda uma a informação que de fato virá a contribuir
série de modificações, até da própria noção para que se tenha uma boa performance no
de Arte/Criação/Poesia. Porém, as técnicas campo de atuação.
e os meios novos, por si sós, não garantem Bem, todos dizem com orgulho e vaidade
obras realmente sintonizadas com o tempo; que possuem um site etc etc etc. Porém,
a simples utilização de um meio não é na maior parte das vezes, principalmente
suficiente para produzir algo novo, com alto os que atuam como artistas/poetas, não
2004

teor informativo, com o necessário grau de sabem muito bem do que se trata, do que

307
cabe na REDE ou do que pode simplesmente Comunicação Social, ouvem falar no mestre,

2002
ser da conta de um livrinho tradicional, de no teórico das comunicações, no tradutor
uma simples carta ou de uma conversa de McLuhan - Understending media - no
informal. É preciso adequar a linguagem, é debatedor de idéias brilhantes, no poeta). O
preciso pensar em termos de internet, ou poder da palavra. Sim, Décio tem o poder da
seja, em termos planetários. Um poema na palavra. Ou seja, a palavra, o código verbal
INTERNET deve ser aquele que visa a um quando utilizado por ele é poderoso. Sabe
público certo/incerto: o dos usuários do falar, possui um repertório lexical invejável
sistema em todo o Planeta que, como disse e - embora advogado formado que nunca
há décadas Marshall McLuhan, transforma- tenha exercido a profissão, pois, foi professor
se numa “aldeia global”. Destinatários de e publicitário - possui o dom da persuasão.
um poema da REDE: terráqueos do Brasil, Muito do que ele falou era novidade para
da Rússia, do Japão, do Líbano, do Vietnã, os alunos. Para mim, em parte: Décio
2003 da Lituânia, do Senegal, de Angola, Nova sempre surpreende pela variedade dos seus
Zelândia, Zâmbia… conhecimentos e pelas opiniões (juízos), às
(04 de outubro de 2003) vezes, paradoxais. Continua residindo em
Curitiba, para onde rumou há alguns anos,
porém tem freqüentado mais São Paulo. Ele
acha que o século XXI, o presente século, será
do Brasil e da Rússia e, indagado por uma
professora por quê o Brasil, ele respondeu
OBSERVANDO VII que todos os países com mais de 4,5 milhões
de km2 fatalmente se tornam potências - o
1. Décio Pignatari na FAAP, em 19 de que era o caso dos dois mencionados. (A tal
setembro de 2003. Décio Pignatari, um mito afirmação ele a havia feito a um jornalista,
vivo (principalmente para os alunos da FAAP, que ficou estupefato e perguntou: “Por que
2004

que desde os primeiros dias do curso de a Rússia?!”). Não houve tempo para maiores

308
explicações, porém, eu, otimista, fiquei com a que o velho já ficou - glorioso - para trás.

2002
sua (dele Décio) opinião. Havia feito algumas Freud não curtiu o Surrealismo, que sugou
fotos logo na chegada, à FAAP, de Décio (que muito de sua teoria do Inconsciente (muito
conheço desde 1974) que ficaram até boas discursivo o Surrealismo, trabalhando
e que virão a integrar o meu arquivo. Tanta qualquer dos códigos. Vejo o Surrealismo -
defesa do Ícone (sob a forma de diagrama) Décio Pignatari é da mesma opinião - como
por parte de Décio e isto há décadas, quando uma subcorrente do Modernismo, que fez
o que se nota é um fascínio pela palavra e muito mal para alguns dadaístas que para
uma cobrança que ele exerce nesse sentido. ali descambaram). O pai não se reconhece
Aos 76 anos, Décio Pignatari está ótimo, no filho para assim sentir-se mais seguro.
mais tendente a filosofar. Sinal dos tempos. Pound estava cansado. Freud viu ali um
Peso dos anos. Tem-se uma medida disto desvirtuamento de suas teorias. Décio não
no maravilhoso livro Errâncias: uma espécie tem muita paciência com os poetas ditos
2003 de livro-de-memórias-livro-testamento que experimentais. Filhos honram seus pais. Um
parte de fotos apreciadas e ou feitas pelo escritor (artista) cria os seus precursores,
próprio Décio. Uma prosa digna de um disse Jorge Luis Borges. Os novos conferem
Machado de Assis. Décio de Jundiaí-Osasco- aos velhos uma existência…
São Paulo-Curitiba-cidadão-do-mundo. 3. Dona Virgínia Travallon. Uma
2. Este filho não é meu. O pai não se costureira sob medida. Nem haveria outra
reconhece no filho. O mentor artístico não igual. As camisas: incomparáveis. Deixavam
se reconhece na obra do seguidor-cultor. qualquer um elegante. Difícil conseguir uma
Justamente por serem tão parecidas as vaga. Semanas ou até meses de espera.
atitudes. Ezra Pound não gostou muito Impecáveis. Muitas camisas fez para mim.
da Poesia Concreta… O mais velho não se Botões: dez anos depois ainda estavam no
vê no mais moço, justo porque, não só é lugar. Eu usava ano após ano as camisas
continuação de atitude, como representa feitas por ela, que sempre me recebeu com
2004

uma evolução na forma, o que significa simpatia em sua casa. Casa? Era um pequeno

309
palácio encantado: tudo arrumado como num KLEBHER INFORZATO

2002
conto de fadas, como se fosse um sacrilégio
tirar alguma coisa do lugar. Uma limpeza Klebher Wagner Nardoto Inforzato
absoluta! Um mundo sem poeira e com muito (Pirajuí . 18-10-1954 / 05-11-1984).
brilho. Dos móveis ao assoalho. A sua figura Klebher se foi tão cedo e em circunstâncias
de um asseio ímpar, parecendo sempre ter inacreditáveis. Não cheguei a ser seu amigo,
acabado de sair do banho e de vestir uma mas nós nos cumprimentávamos. Enfim,
roupa limpa e nova. Impecável. Sua casa nossas relações eram cordiais, pirajuienses
sua figura suas camisas: de uma correção que éramos e com família já há algum tempo
encontrável em tão poucos humanos. Mas no lugar. Tinha amizade, sim, desde os anos
encontrável. Dona Virgínia nos fazia crer 60, com a doce Neusa Vilela - sua esposa e
que nós humanos poderíamos alcançar altos mãe dos seus três filhos - antes mesmo dela
patamares como seres aperfeiçoados. E o vir estudar Artes Plásticas na FAAP.
2003 seu trabalho como costureira nos deixava Klebher era uma espécie de Marcello
exigentes. Como comparar o seu com outros Mastroianni dos trópicos. Era de uma admirável
trabalhos? Um nível de exigência que deveria elegância (natural, diga-se) e de um charme
nortear as nossas vidas. Dona Virgínia: fica indisfarçável, que derramava nos ambientes
o seu sorriso sereno com sua simpatia. por onde passava. Independentemente de
Fica o exemplo de trabalho. Fica o nível de ele namorar ou não às escondidas - mesmo
excelência a que pode chegar um trabalho que quisesse, não daria conta da legião de
artesanal. mulheres que arrastavam as asas para ele -
(11 de outubro de 2003) coisa sobre a qual eu nem sei e nem gostaria
de magoar a delicadíssima Neusa, Klebher,
parece, tinha plena consciência de seu
magnetismo pessoal. Certa vez, presenciei
uma seqüência digna de um filme italiano
2004

dos bons:

310
- Era uma véspera de feriado Foram raras as vezes em que tornei

2002
prolongado em São Paulo (feriado nacional, a ver o Klebher e, num certo dia, soube da
não me lembro de qual), na época em sua morte, acho que por telefone. Porém,
que a estação rodoviária ainda era aquela a imagem dele que me ficou é a do cara
antiga, próxima à praça Princesa Isabel, nos sedutor, que jamais perdia a chance de
Campos Elíseos. E era aquele sofrimento do colocar à prova junto às mulheres o seu
atraso das partidas: três, quatro horas de charme: um Mastroianni que morreu jovem
espera, nas piores condições: milhares de e, portanto, belo.
pessoas nas mesmas condições, sonhando Não conheço os seus filhos (sei que
com uma cidade do interior do Estado. possui até netos), mas espero que estejam
Pois é: lá estavámos nós: eu e o Klebher, bem. Aproveito esta oportunidade para enviar
que gentilmente se deslocou e veio me um abraço afetuoso à Neusa e perguntar-lhe
cumprimentar retornando, depois, ao seu se ainda possui aquela cabeça de gesso feita
2003 posto. Eu, curiosamente, passei a observar na FAAP: um auto-retrato. Auguri!
o que se passava no entorno e era mulher (18 de outubro de 2003)

atrás de mulher que flertava com ele e com


quem ele ia conversar: de adolescentes a
mulheres já maduras, sentiam-se lisonjeadas
com a sua corte, que durou horas e umas
vinte e tantas mulheres! Era de fazer inveja
a qualquer macho interessado em pôr à
OBSERVANDO VIII
prova o seu poder de sedução, através de
olhares, gestos e conversas até ao pé-do-
1. Martha. A sempre Suplicy Martha se
ouvido. Don Juan sentir-se-ia diminuído em
casa. Em seu caso, que não é bem uma obra
sua fama. É claro que, na ocasião, a coisa só
ficou nisto, bem porque finalmente chegou a do acaso, capitalizando a façanha para a
carreira política, o que dá um toque a mais de
2004

hora do embarque.

311
humanidade à mãe do Supla (Martha Suplicy antiga Fenícia e que Beirute está de novo

2002
é uma marca e ela não quererá perdê-la). uma maravilha, o que é confirmado por meu
“Ela também tem o direito de ser feliz”, dirão médico (também de minha mãe) Dr. Michel
os incautos, que pensam estar a felicidade Batlouni. O arquifomoso cardiologista voltou
vinculada a uma vida sexual e a uma gorda agora do Líbano e conta coisas a respeito
conta bancária. Pois é! Tudo indica que, em da reconstrução da capital libanesa: está até
se recandidatando no ano que vem para melhor que em outros tempos e recupera a
as eleições municipais de São Paulo - que confiança dos que têm dinheiro. Um aterro
estará completando 450 anos - ela fatura. será construído com os entulhos-frutos-da-
Martha é uma mulher de pulso. Segura. destruição e formará um jardim, adentrando
Arrogante. Arrogância calcada na suposta o Mediterrâneo. As frutas do Líbano são um
aristocracia da sua família e na riqueza de dislumbro, mesmo, disse ele: incomparáveis,
fato (muito mais tradicional e rica que a do como contavam nossos pais e avós, do
2003 Matarazzo Suplicy, o simpático senador em figo branco à uva e à romã. Deus salve o
quem eu votei e não me arrependo). Pois Líbano, terra de navegadores-comerciantes,
é: a segurança de Martha tem sua origem inventores do alfabeto!
aí. É uma mulher vistosa, como se diria em 3. Sintoma de velhice. Estou ficando velho…
outros tempos e, em pleno mandato, parte Em trinta e dois anos de magistério, chorei
para mais uma aventura. Há quem abomine pela primeira vez em sala-de-aula e justo
a parte argentina do eleito, mas isso é uma com uma formidável turma universitária,
questão menor. Parabéns, ó burgomestra! enquanto discursava pela disciplina POÉTICA
2. Líbano: a volta da Fenix. Pois é, o Líbano E CRIAÇÃO DE TEXTOS. Era quarta-feira, dia
renasce das cinzas em que se tornou, por 14 de agosto de 2002. E tudo a propósito do
causa de uma estúpida guerra (civil?) que velho e pequeno apartamento da rua Dona
destruiu a maravilha que havia sido Beirute. Veridiana, onde residi por 24 anos. Um aluno
Há alguns dias conheci um filho de libaneses, me perguntou a propósito dos livros: “E o
2004

Válter Cury, que disse visitar anualmente a apartamento velho?” Nem pude responder,

312
a memória dos tantos anos em que lá morei ‘84, em Buenos Aires, quando pela primeira

2002
entrou pela minha cabeça e fez estrago. Tive vez deixei o Brasil como turista. Fui recebido
de me retirar da sala e fazer o que sempre no apartamento 6B, da Calle Maipú 994.
sugeria às crianças de 5ª série quando Entre a crença e a descrença, entre o sonho
começavam a chorar: “Vá lavar o rosto e e o estado de vigília, estive com a única
volte”. Funcionou. Retomei normalmente o pessoa do Planeta que, naquele momento,
meu trabalho. Apego ao passado: dizem ser gostaria de conhecer. Recebeu-me como
uma das características do nativo do signo receberia qualquer outro, mas quem estava
de Câncer. E eu que em Astrologia creio na hora e local exatos, era eu (privilégio!).
descrendo… Falamos sobre muitos assuntos; li, para
(01 de novembro de 2003) ele, verbetes de enciclopédia; ajudei-o a
colocar o paletó para fazer as fotos, com o
que, a um pedido meu, havia concordado
2003 prontamente. Fotografei-o, assim como fui
com ele fotografado (por Fanny, a senhora
que cuidava da casa); fiz fotos do edifício em
OBSERVANDO IX (A PROPÓSITO DE que residia - isto tudo, no domingo, 15-01-
ALGUMAS FOTOS) 84; na segunda-feira, 16, ainda voltei para
apanhar autógrafo que me havia prometido
1. Fotos de Borges feitas por mim em (no volume de suas Obras Completas). O
Buenos Aires. (Buenos Aires, manhã de então maior escritor vivo do mundo, não
15 de janeiro de 1984) …”yo vivo, yo me ficou sabendo de minhas ambições poéticas -
dejo vivir, para que Borges pueda tramar evitei falar em “poesia visual”, considerando
su literatura y esa literatura me justifica”. J. a sua cegueira (cuidado desnecessário, pois
L. Borges, no escrito BORGES Y YO. Pois é, que ele a ela se referia, naturalmente…). No
estive com a polêmica figura, já em estágio escrito acima citado, ao término, pode-se ler:
2004

entre a história e a lenda (viva), janeiro de “No sé cuál de los dos escribe esta página”.

313
Seria Borges ou Borges, o outro? No caso acabou por se radicar em São Paulo. Hoje,

2002
das fotos, teria eu flagrado o escritor ou o amarga um exílio em Curitiba. God bless the
filho de Dona Leonor Acevedo de Borges? poet.
Penso ter, numa só pessoa, flagrado os dois. 3. Fotos de Paulo Miranda feitas por
Viva Borges! Viva Borges! mim e que acompanhavam o texto que se
2. Fotos de Décio Pignatari. Esta série segue, comentários acerca de iconografia
de fotos foi feita por mim no ano de 1977, presente em relatório de pesquisa: Nasceu,
constituindo-se, talvez, na melhor de Miranda, em Pirajuí (SP) no ano de 1950.
quantas fiz do autor de LIFE. Décio Pignatari Estas fotos foram feitas por mim em épocas
estreou em livro em 1950, já prometendo diferentes: a primeira, no ano de 1976 e a
não engrossar o ‘coro dos contentes’. segunda, no ano 2000, com o propósito de
Revolucionário nato da linguagem, foi co- enriquecer esta pesquisa. Paulo Miranda é
fundador da Poesia Concreta, tendo tido, um poeta da era pós-verso: intersemiótico e
2003 desde o início, uma presença diferenciada, inter/multimídia. Não faz nenhuma questão
sem aquela de moldar “estilo próprio”, o de ser considerado poeta - menos pelo
que contrariaria os propósitos gerais do ofício do que devido a todo aquele aparato
movimento. Grande teórico e tradutor, como que acompanha a denominação. Diz que
os companheiros Augusto e Haroldo de prefere não fazer a fazer, contrariando “O
Campos, Décio Pignatari criou alguns dos artista inconfessável” de João Cabral de Melo
poemas mais significativos do século XX, Neto. Se tem a chance de não fazer, diz que
tais como TERRA, LIFE, COCA COLA - um não a perde e não faz. Em trinta anos, não
anti-anúncio - ORGANISMO e NOOSFERA. chegou a produzir vinte poemas, levando
Juntamente com E. E. Cummings, pode a questão do rigor ao paroxismo. Mesmo
ser considerado o maior olho tipográfico do assim, obrigatoriamente freqüenta as listas
século que acabou de passar. Décio Pignatari que visam a enumerar os poetas que se
nasceu em Jundiaí (SP) no ano de 1927, ocupam da experimentação em termos de
2004

porém, considera-se, antes, osasquense que linguagem. Prefere ser considerado editor e

314
gráfico-impressor-serígrafo. mais senti é que, sem destruir o prédio do

2002
(08 de novembro de 2003) cinema velho, daria para manter a magnífica
fachada neoclássica [em verdade, eclética]
e o palco, transformando o grande espaço
intermediário: daria um loja em moldes
modernos, dependendo, para isto, de
um bom arquiteto e de algum dinheiro. E
OBSERVANDO X assim, a nossa, como as demais cidades do
Estado de São Paulo, vai trocando de cara e
1. Memória. Ah! a nossa cidade… Tem sofrido assumindo falsos ares modernos (onde aquela
uma descaracterização arquitetônica geral: arquitetura dos anos 30 e 40?). Em verdade,
ou se reformam casas, “modernizando-as”, assiste-se a uma kitschização [arquitetônica
ou simplesmente se as põem abaixo, como e] urbanística que, de qualquer forma, é
aconteceu com tantas e mais recentemente lamentável. Bendita a sociedade que além
2003
com o antigo Hotel Pires e com o cinema de seus velhos, conserva as construções
velho, a antiga sede de sociedade italiana, remanescentes de outros tempos.
cuja colônia vai perdendo a sua memória, 2. Roberto Marinho recebeu o bota-fora em
outrora tão forte em Pirajuí. É óbvio que alto estilo. Nem poderia ser diferente: um
proprietários são proprietários num país homem que teve o prodígio de quase chegar
capitalista. Porém, a comunidade, além da aos cem anos e que, passado dos sessenta,
consciência do valor de certos monumentos desenvolveu o Império Globo! (Penso ter
para a manutenção da memória - sim, sido este o seu maior feito, se bem que havia
monumentos! - deveria ter forças para, sido um herdeiro, ou seja, já encontrou o
através do tombamento, preservá-los (quase caminho preparado, muito embora tivesse
sempre os tombamentos se constituem em um grande senso de oportunidade, para não
processos muito morosos e a ganância age dizer ‘oportunismo’.) Todos quiseram marcar
2004

antes de o tombamento acontecer). O que presença no acontecimento que foi o seu

315
velório e nem seria para menos: de atores de Assis Chateaubriand e Ciccilo Matarazzo

2002
globais a políticos como Lula, o Presidente. que dos feitos da mencionada instituição
Tanto se falou no poder de Roberto Marinho ligada ao finado diretor-presidente. E, por
e se falou certo. Porém, o Brasil teve homens falar em jornalismo, os Mesquita, com todo o
ligados às comunicações e à cultura muito seu conservadorismo direitista, contribuíram
mais importantes que Roberto Marinho: um muito mais para melhor informar o nosso
deles foi Assis Chateaubriand Bandeira de País.
Mello que, além de ter comandado os Diários 3. Avaliação na escola. Este sempre foi
Associados, introduziu a Televisão no Brasil, um problema para mim, desde que comecei
veículo que levaria Roberto Marinho aos a lecionar, pois uma boa avaliação de aluno
píncaros da Glória e do Poder. Além disso - já só poderia ser feita depois de três ou quatro
não importa se à custa de chantagem: os fins anos de convivência. Por outro lado, nunca
justificam os meios, como também pensava me agradou utilizar a avaliação como uma
2003 o empresário global e, em geral, os homens forma de pressão, de poder, armando uma
do Poder - Assis Chateaubriand fundou o espécie de arapuca para o aluno: da criança
melhor museu de arte da América Latina, o ao jovem universitário. Muitas discussões
MASP, no que RM procurou rebater com a tive com colegas, o que nunca serviu para
Fundação que leva o seu nome. E por falar em modificação de atitudes de uma parte e de
cultura, temos Ciccilo Matarazzo que, além outra (nós não nos convencíamos). Tendo
da magnífica coleção que forma o núcleo aprendido com meus melhores mestres,
principal do acervo do MAC-USP, está ligado à procuro avaliar considerando a urgência e
Companhia Vera Cruz e à Bienal de São Paulo, as imperfeições do sistema e com o intuito
evento que colocou São Paulo e o Brasil no de evitar as costumeiras fraudes (cola,
circuito internacional das Artes Plásticas. O em especial). Dentro do que o aluno sabe,
tempo se encarregará de fazer uma melhor interessa-me o como e o quanto ele sabe. O
avaliação, mas já adianto que mais se falará resto, a vida se incumbe de cobrar dele.
2004

de GLOBO que de Roberto Marinho. E mais (15 de novembro de 2003)

316
OBSERVANDO XI dos textos no livro A educação dos cinco

2002
sentidos, Brasiliense, 1985, Haroldo, nas
1. Os concretistas, como eu já disse em explicações acerca dos textos, deu crédito
diversas ocasiões, sempre colaboram com ao arranjo do Paulinho do “Litaipoema”
nossas revistas - desde o número 1 de e nada disse da primeira edição da “Ode”
ARTÉRIA - oferecendo, generosamente, em ZERO À ESQUERDA, trabalho também
trabalhos inéditos. Com Haroldo de Campos tratado por Paulo Miranda. Penso que
não foi diferente e ele sempre muito gentil dificilmente Haroldo tivesse se esquecido
e pronto com suas colaborações a nosso daquela edição, cuja revisão ele mesmo fez.
pedido. Em 1980, quando organizávamos A única coisa que posso concluir é que, dado
(Paulo Miranda e eu) ZERO À ESQUERDA o indesejável arranjo gráfico (Haroldo muito
(que foi lançada em 06 de maio 1981, num se afastou da coisa gráfica-visual, em prol
espetáculo multimídia, na discoteca Paulicéia de uma pureza do verbo) que ele não teve
2003 Desvairada) HC nos deu dois textos: um jeito de denunciar na época, desconsiderou-
“Litaipoema” que Paulo deu um tratamento a e deixou a do mencionado livro - como a
gráfico-cromático que ficou espetacular primeira. Nunca tive jeito para perguntar o
e do qual Haroldo gostou muito. O outro esquecimento ao próprio Haroldo e agora já é
poema, longo: “Ode (explícita) em defesa tarde demais. De qualquer maneira, respeito
da poesia no dia de São Lukács”, Paulo quis a atitude do poeta, dada a sua grandeza e
fazer um caderninho quadrado, com especial recomendo, mesmo, a edição trabalhada
distribuição do texto pelas páginas, já que por Paulo Miranda. Um quase-perfeito e belo
a revista comportava trabalhos soltos nos poema!
mais diversos formatos e papéis. O autor - 2. Modernismo brasileiro (paulista).
era um daqueles belos e inteligentes textos, Quanto ao que determinou São Paulo
feito de citações - procedeu à revisão e como centro de irradiação do Modernismo
aprovou e a edição ficou, de fato, muito brasileiro, o que se deve mesmo considerar
2004

boa. Acontece que, quando da republicação é que os progressos materiais por que

317
passava a Paulicéia também exigiam novas ABAPORU 1928 (Col. Costantini . Buenos

2002
formas, linguagens. São Paulo era então a Aires). Mulher extraordinariamente bela,
área mais dinâmica da economia brasileira. além de elegante, educada, inteligente e
Aquele papo de Mário de Andrade de que culta, seria apenas uma libélula-socialite,
SP possuía uma aristocracia cosmopolita não fora seu grande projeto; não vejo hoje,
é perfeitamente aceitável para justificar o na sociedade paulista e brasileira alguém
fato de ter sido São Paulo e não o Rio de que se lhe iguale. Indispensáveis os textos
Janeiro, então capital da República, o centro de Aracy Abreu Amaral para o entendimento
irradiador do Modernismo em nosso País. de Tarsila e de seu tempo de maior esplendor
Modernismo: exigências do tempo, numa criativo. Imprescindíveis desenhos e pinturas
cidade que crescia a olhos vistos. de Tarsila anos 20 para a formação de quem
3. Ainda Tarsila (à maneira de um pretenda empunhar a bandeira das Artes no
verbete): Provinda da aristocracia paulista Brasil.
endinheirada (café) e cosmopolita, como (22 de novembro de 2003)
2003
alguns outros poucos, Tarsila do Amaral
(Capivari 1886 - São Paulo 1973) canalizou
e concentrou forças para um pensar grande:
pensar o Brasil gráfica e pictoricamente.
Obra indispensável dentro do primeiro
tempo modernista, o trabalho que Tarsila EDGARD BRAGA
desenvolveu nos anos 20 do século que há
pouco findou - em boa parte, lado a lado EDGARD (Pimentel) BRAGA nasceu
com Oswald de Andrade - contribuiu para em Maceió, nas Alagoas, em 1897 e veio a
a criação de uma visualidade brasílico- falecer em São Paulo, capital - onde residiu
cosmopolita: tanto a fase dita pau-brasil, por muitas décadas - em 1985. Edgard Braga
como a da antropofagia, donde destacaria radicou-se desde cedo na cidade de São
2004

as pinturas: E.F.C.B. 1924 (MAC-USP) e Paulo, onde exerceu longamente a Medicina,

318
tendo sido um obstetra de grande projeção. marcaram sua obra a partir dos anos 60.

2002
Quando de sua morte, escrevi uma crônica à Edgard Braga só ganhou importância
qual dei o nome de “Anti-obstetrícia”, em que como poeta a partir do momento em que,
a inumação se apresenta como o inverso do relacionando-se com os concretistas - muito
trazer à luz, que era o que o Dr. Braga fazia. mais jovens do que ele - tornou-se vanguarda
Estranhei, também o fato de não haver em e descobriu um caminho bem próprio, onde o
seu enterro nem trinta pessoas, ele que havia caligráfico gestual foi a tônica. Era, então, já,
feito o parto de muitos milhares de crianças. um senhor que adentrava a velhice. O “jovem
Coisas da vida… Edgard Braga”, diriam os apreciadores de sua
Os contatos de Edgard Braga com a poesia, que desconheciam o detalhe do ano
poesia aconteceram também cedo: desde de seu nascimento (o mesmo da publicação
a época em que morava em sua cidade do Lance de dados, de Mallarmé).
natal, prolongando-se em São Paulo, onde Embora tenha publicado muitos
2003 teve a oportunidade de privar com Oswald volumes com poemas, seus principais
de Andrade, entre outros tantos poetas que trabalhos, além dos que veiculou em revistas,
se tornaram célebres. Chegou a me contar, tais como: INVENÇÃO, POESIA EM GREVE,
o simpático velhinho (conheci-o a propósito ARTÉRIA, QORPO ESTRANHO, ZERO À
de meu livro Jogos e fazimentos e da revista ESQUERDA e ATLAS, são: Soma (1963),
ARTÉRIA 1, em meados dos anos 70), que Algo (1971),Tatuagens (1976),Murograma
Oswald não o deixou participar da Semana (1982) e Desbragada (1984), livro este que
de 22, alegando que ele deveria mesmo é reúne praticamente toda a sua obra elaborada
cuidar da Medicina. Acompanhou a família de sob o signo da experimentação.
Oswald de Andrade, mesmo depois de sua Certamente, o obstetra Edgard Braga
morte, em 1954. (de quem ainda conservo alguns inéditos,
Poesia, produziu-a e muito, tendo que me foram dados por ele) será também
passado por várias correntes: de um parnaso- ou principalmente lembrado como um criador
2004

simbolismo até às experimentações que que ganhou importância já na idade madura,

319
mas que foi um exemplo de vigor para muitos em julho do ano seguinte, não queria nunca

2002
jovens que viam nele uma espécie de “pai ser a mesma: cadernooffsetsulfiteopreto
artístico”, tais como Arnaldo Antunes, Gil, Go, sobreobrancogrampeado etc. A meta: uma
Tadeu Jungle e Walter Silveira. configuração diferente a cada número!
Caderno… sacola, caixa de fósforos, caixa - o
Em tempo: Tive a oportunidade de falar interregno de ZERO À ESQUERDA - (aspirando
do velho Braga, aqui nesta coluna, na série a video-revista), fita cassette (antecedida por
“Historinhas de poetas”. Ele me chamava BALALAICA), caixa-de-poemas-exposição-
de Khouri e havia nascido no mesmo 10 de portátil, album-mostruário de faturas
outubro de minha avó Lula. E ele sabia e intersemióticas aspirando a outros media,
sempre perguntava por ela: “Como está a sua como nos longínquos ‘70 ainda se dizia por
avó?” Logo que ela morreu - em dezembro de aqui. Do sexto número, preparou o sétimo em
1983 - estive com Braga, que já estava nos 86 1994, que fica no aguardo de edição (material
2003 e, à sua pergunta sobre minha avó, respondi- todo reunido) e o nono (preparando-se com
lhe: “Ela está bem”. multiplicidade de suportes). E lança, agora,
(29 de novembro de 2003)
na REDE, o oitavo, ou melhor ARTÉRIA ∞.
Pensar uma fatura na WEB é pensar algo que,
além da adequada utilização dos recursos
disponíveis, seja passível de despertar
interesse em, ou lograr compreensão
em algum nível naquele que acessa, o
PROTÉICA: UMA METAMORFOSE navegante cosmopolita, cosmonauta imóvel
ARTERIAL (editorial de uma revista quirodinâmicovisitantedoplanetaondequer
eletrônica) queesteja.
ARTÉRIA - uma revista pensada a partir de E os poemas de ARTÉRIA ∞ - revista
1974 e lançada (o seu primeiro número)
2004

eletrônica antecipada por SÍGNICA (que

320
trazia obras fundamentalmente de alunos do artista - devem dominar os conhecimentos

2002
IA-UNESP) - de autores que acompanham a que possibilitam um ofício. O artesão é
aventura desde a de nº 1, mais outros que alguém que domina todo o processo de
se foram aproximando, têm essa ambição: feitura de uma certa coisa: sapato ou
a de interessar a um público simplesmente cerâmica, por exemplo. O artista, como o
planetário: é aos terráqueos que ela se artesão, deve dominar métodos, processos,
dirige: da Indonésia ao Canadá, passando técnicas e materiais. O artesão tem de
por Líbano, Rússia, Nigéria, França… Brasil. alcançar um nível de excelência naquilo
Essa vocação mutante de ARTÉRIA, que que se propõe fazer. Ultrapassá-lo não está
se po(pô)de abservar pelo conjunto de em suas cogitações. O artista, além disso,
suas edições, vem agora configurar-se na deverá ultrapassar o tal nível de excelência,
INTERNET, projeto já pensado há alguns superando-o. O artista imprimirá em
anos, porém só agora viabilizado, com o seu trabalho uma marca pessoal e quiçá
2003 trabalho do webdesigner Fábio Oliveira inove e até subverta o código. O artesão,
Nunes. Conserva-se o nome. Muda-se o pura e simplesmente, tem consciência do
meio. ARTÉRIANAWEB. arteria8.net . São ofício. O artista é alguém com consciência
Paulo, julho de 2003 AD. de linguagem. No bojo das revoluções de
(06 de dezembro de 2003) linguagem dos Modernismos no século XX, o
caso duchampiano caminhou na direção do
banimento do artesanato: a idéia é o que
importa. Daí toda a arte dita conceitual.
Porém, os maiores revolucionários das artes
OBSERVANDO XI (XII?) foram exímios artesãos, o que vale dizer:
dominavam técnicas e materiais, tinham
1. Onde termina o artesão e começa o conhecimento profundo de como caminhou a
artista? Esta pergunta ouvi recentemente arte no Ocidente durante séculos. Duchamp
2004

de um aluno na FAAP. Ambos - artesão e não foi, como revolucionário pensador/

321
fazedor, uma exceção. alcançou um elevadíssimo patamar na arte

2002
2. Julio Cortázar em São Paulo. Foi numa de escrever, mas, ao que tudo indica, está
noite, no Chrystal Chopp. Fins dos anos 70. entrando num esquecimento temporário. As
Estava lá o mito Cortázar, argentino radicado futuras gerações o recolocarão em destaque.
na França e depois naturalizado francês. Na Porém, morto não repara nessas coisas.
mesa, entre outros, Bóris Schnaiderman - A obra fica e continua a sua ação, num
um príncipe na terra dos homens - e alguns trabalho de maravilhamento dos humanos
outros. Eu, em outra mesa, com amigos, só que necessitam alimentar o espírito. Espírito,
fiquei observando e comentando. Estranha diga-se, sempre faminto. E dá-lhe comida!
figura a do grande escritor, meio Lincoln, 3. A força da imagem e o peso das
meio ele-mesmo. Soube depois que, tendo palavras. Num dia desses, um outro aluno
visto em show os irmãos Vianna Telles da FAAP me perguntou se, de fato, uma
Velloso, chegou a imaginar que ambos imagem valia mais que mil palavras. Com
2003 eram um-e-o-mesmo: a mesma pessoa minha longa experiência, tendo aprendido
que se metamorfoseava na outra! Caetano a ponderar, eu lhe respondi: sim e não.
era Bethania e vice-versa. Por mais que Quais palavras? Depende das palavras e das
desgoste do tal Caetano Velloso nos uúltimos imagens. Uma imagem tem muita força,
anos (depois da leitura das 510 páginas do porém, as palavras podem ter um peso que
Verdade tropical) devo admitir que ele possui, venha a valer por mil imagens ou mais. As
além de todo o talento que outros também instigações dos alunos é que nos fazem
têm, inteligência artística em que pese o aprender e progredir intelectualmente. O
peso do repertório comercial dos últimos aluno deve fazer a sua parte no processo:
tempos, dando uma certa nobreza ao kitsch brindar a universidade com sua presença e
exacerbado de certas canções. Bethania inteligência. (13 de dezembro de 2003)
semppre foi uma mulher muito inteligente
e uma cantora quase sempre sofrível e, às
2004

vezes, excepcional e maravilhosa. Cortázar

322
OBSERVANDO XII (XIII?) Então, o que poderia ser escrito era resolvido

2002
pelo telefone. Hoje (a escrita nunca deixou
1. Doidos por ciclos. Nós, seres humanos, de ter importância) com a INTERNET e o
somos doidos por ciclos, ou seja, desejamos advento do e-mail, as pessoas voltam a
sempre a chance de um recomeço. É escrever textos, como que cartas. Terão
importante poder recomeçar, considerando tais textos grandeza, como a das cartas que
que sempre fracassamos em algum ponto, Mário de Andrade escreveu para Manuel
ou alguns pontos de nossas vidas. E a crença Bandeira, por exemplo? Será apenas mais
em ciclos nos traz esse conforto: no ano que um material descartável ou alguém se
vem vai ser diferente, farei assim, assim… preocupará em preservá-lo? A epistolografia
Tudo nos faz crer que os ciclos existem e como arte ainda terá vez? Deixemos que o
que sempre um recomeço é possível, mesmo tempo se incumba de resolver essa questão
que só avancemos na idade: as fases da Lua, que talvez não seja questão nenhuma.
2003 a translação daTerra e as estações do ano: 3. Um príncipe das Arábias na Paulicéia.
se neste verão não deu, no próximo dará! Foi desagradável aquela tarde. Muito
É importante que possamos pensar assim e desagradável. Desagradabilíssima. Passeava
que a chance de mudança exista para todos, no centro velho de São Paulo com meu
de qualquer idade. Daí, que nunca é demais irmão Válter, mostrando-lhe preciosidades
desejar um Feliz Ano Novo para as pessoas arquitetônicas e falando das prováveis
de nossa estima e, para os cristãos, um Ano andanças de meu pai por ali, nos anos 50.
Novo precedido de um Feliz Natal! Válter num chiquê de fazer inveja a qualquer
2. Cartas Telefonemas E-Mails. Escrevi milionário paulistano. Eis que, como um raio,
poucas cartas na vida, mas como as cartas alguém subtraiu-lhe a carteira. Ele só sentiu.
são documentos de suma importância! No Estávamos na Barão de Paranapiacaba, bem
momento em que poderia estar escrevendo próximos da Praça da Sé. Muitos ambulantes
adoidado, o telefone se tornou, no Estado no local - era uma tarde de sábado - muitos
2004

de São Paulo, mais eficaz e mais acessível. pedestres. Ninguém viu nada, como de

323
costume. Pelos documentos que a carteira interessa), mais uma vez é cópia do pior que

2002
continha, fomos até à delegacia da região se faz lá fora. Para quem se compraz com
da Sé fazer a ocorrência, o que nos custou a desgraça alheia, meus pêsames e meu
cerca de duas horas e meia e isto porque, desprezo. Felizmente ainda existe a chance
numa tarde de sábado, o movimento numa de utilizar o controle-remoto e, em último
delegacia de polícia é fraco. Fica, aí, a lição e caso, o onoff. Off! Ufa…
o conselho: não vá ao centro da cidade com (24 de dezembro de 2003)

nada que possa ser índice de prosperidade


econômica. Escolha sua roupa mais simples
e até gasta. Não use nada que se pareça com
carteira nos bolsos. Jóias: nem pensar! Fico
devendo ao Válter um passeio mais calmo
pelo centro da Paulicéia, com escala em
2003 alguma churrascaria, que é onde ele gosta
de comer.
4. Pegadinhas. O ser-humano já tem ocasiões
de sobra para, como obra do acaso, cair no
ridículo, provocando, automaticamente, o
riso dos seus semelhantes. Quando o ridículo
é planejado adentra, a atitude, o campo do
inominável. É imoral, desumano e merece
toda a nossa reprovação. São abomináveis
essas pegadinahs que grassam nossos
veículos de comunicação, principalmente
a televisão. Como se não bastasse a falta
de imaginação criativa e a ética (dizem
2004

que a maioria é combinada, mas isto não

324
2004
pertencia ao meu avô, o Chico Turco, que

2003
a havia construído num terreno imenso.
Ou seja, o quintal era algo considerável,
com árvores frutíferas, entre as quais se
encontrava uma cerejeira. O fundo do
quintal fazia limite com a grande construção
da fábrica de ladrilhos Pereira Eça (Manuel
Pereira Eça foi um empreendedor – pai do
excelente professor de inglês Olavo Pereira
Eça – que fundou, também, a Destilaria
Noroeste, fabricante do delicioso Guaraná
Noroeste). O imóvel em que eu morava
com minha família, com quintal e tudo, foi
2004 vendido (parece-me que entrou como parte
do pagamento de uma fazenda adquirida por
meu avô). O novo proprietário Sr. Manuel
Tibúrcio, um português já velho, que se
incumbiu de nos deixar ilhados (ao contrário
o caso do cavalo do conto de Cortázar, “A Casa Tomada”, as
forças nada estranhas nos pressionavam de
Talvez até fosse melhor mudar o título fora para dentro), pois, construiu no terreno
desta crônica para “Ocaso de um cavalo”. Mas, mais três casas, que ali permanecem até
vamos lá. Pirajuí, anos 50 em sua segunda hoje, com modificações. Nossa casa era
metade. Eu, ainda na infância, morando à um primor de limpeza e isto ficava por
rua 7 de setembro, nº 741, fundos. Era uma conta de minha mãe. Dos filhos de meus
casa modesta, porém saudável, que possuía pais, somente um nasceu ali, porém, tenho
2005

à frente um recinto comercial. A propriedade grandes recordações do lugar, que se tornou

326
parte de minha vida. Depois, dali, fomos havia trabalhado por anos e anos puxando

2003
praticamente expelidos (Eh Cortázar!), uma carroça. Indo até lá, nós o adquirimos
pois que o proprietário alugou a parte da por uma bagatela – cinco cruzeiros! Aquilo,
loja para uma gráfica que imprimia um para crianças que então éramos, parecia um
jornal justamente à noite (paredes comuns monumento. Para mim foi o máximo: sinti-
permitiam a invasão daquela parafernália me em posse de um animal que admirava
sonora. Impossível dormir com todo aquele sobremaneira e aquilo fez de mim alguém
barulho). importante.
Bem, nossa casa possuía duas entradas- Entregue o animal, nós o fomos
corredores, uma das quais não usávamos, conduzindo, arrastando-o por uma cordinha
sendo que a outra era também utilizada pelos e tencionávamos colocá-lo em casa, no
vizinhos da nova casa da esquina. Nosso referido quintal cimentado, e dar-lhe água,
quintal praticamente sumiu: o que sobrou tratá-lo com milho e capim, que obteríamos
2004 foi cimentado e só comportava a já existente nas redondezas.
área de serviço e um galinheiro de madeira, Eis que, adentrando o corredor da
que mantínhamos, porque naquela época casa, minha mãe, uma jovem e autoritária
matava-se frango em casa e era o frango senhora, maníaca por limpeza, gesticulando
caipira – pessoas passavam ocasionalmente com a mão direita, nos disse: “Aqui vocês
vendendo as aves (mais tarde cheguei a me não vão entrar com isso!” tremi nas bases (e
dedicar, por pouco tempo, a esse comércio penso que meu irmão também). “Mas, mãe,
– fui frangueiro!). o que é que a gente faz? A gente pagou cinco
Mas, e o cavalo prometido no título cruzeiros pelo cavalo!” dissemos. “Devolvam
deste escrito? Bem, eu e Tanel, meu irmão o bicho!” ela disse, sem deixar chances para
mais velho, soubemos que na Vila Abel argumentações em contrário. “O homem
havia um senhor vendendo um cavalo e a não vai devolver o dinheiro”, dissemos. E
um preço inacreditavelmente baixo, pois se ela: “Não importa! Não me voltem aqui com
2005

tratava de um animal velho, cansado, que isso!”

327
Fomos até à Vila Abel muito tristes e contar o caso do cavalo numa de minhas

2003
aconteceu o que prevíamos: o ex-dono aceitou aulas na FAAP. Quando concluí a narrativa,
o cavalo de volta, porém, sem devolver o uma aluna disse: “Ele [o antigo possuidor]
dinheiro. Foram-se as nossas economias e a matou o cavalo à noite. Foi esta a maneira
pretensão de sermos os futuros possuidores que encontrou para livrar-se do animal.
de um haras. Matou o cavalo a pauladas!” Entre estupefato
No dia seguinte, soubemos que o tal e admirado frente à perspicácia detetivesca
cavalo morrera. Fomos novamente à Vila de minha aluna tive afinal (mais de 40 anos
Abel e nos certificamos do ocorrido: lá estava depois) a solução ou, pelo menos, ou a
o bicho deitado, esticado, já endurecido, hipótese mais plausível para o fim daquele
enorme. Tristeza e estranheza: como, num animal que fez a minha alegria-de-viver por
tão curto espaço de tempo, teria o cavalo alguns momentos.
morrido? Teria sido vítima de alguma doença O saldo de tudo isso é que passei a
2004 galopante? O que teria acontecido ao bicho, considerar os eqüinos os mais belos dos
afinal? animais, inclusive mais belos que os da
Qualquer especulação cessou quando espécie à qual pertenço. Porém, eu os prefiro
vimos um caminhão de lixo da Prefeitura de longe, em fotos e filmes. Deus salve os
Municipal arrastando por uma corda ou cavalos!
cabo-de-aço (não saberia agora dizer) o (03 de janeiro de 2004)

nosso sonho de cavalo. Esse trauma ficou


e nem a lembrança de cavalos árabes me
fizeram querer possuir um – exceção feita a
uma egüinha que cheguei a ter por alguns
dias, negociando-a depois e ao fato de eu
ter tido inúmeras oportunidades de cavalgar
nesses anos todos.
2005

Recentemente, tive a chance de

328
OBSERVANDO XIV porém, com um aproveitamento de espaço

2003
que a torna maior! Do térreo, para primeiro
1. A casa modernista da rua Itápolis, no pavimento, há uma escada que ternina num
bairro do Pacaembu, São Paulo, projeto de conjunto de portas dispostas de tal modo
Gregori Warchavichik, judeu russo que aqui se a quebrarem a angulação das de baixo, o
radicou, concunhado de Lasar Segall (casou- que dá a impressão de um deslocamento de
se com uma irmã de Jenny Klabin, Mina) está plano, de uma torção. Áreas de lazer, jardins
de pé e intacta, conservando até armários com plantas tropicais e edícula completam
da época. Uma casa habitada, mesmo com a construção. De cima, é magnífica a vista
o desgaste do uso, é melhor que uma casa que se tem do Pacaembu. “Embora uma jóia,
abandonada, a qual seria consumida mais não é uma casa de rico”, disse-me a Dulce
rapidamente pelo tempo. Dulce Horta, artista e completou: “Milionário, o proprietário-
e publicitária, ocupa (aluga) a casa, que herdeiro do arquiteto histórico - um Klabin-
2004 foi construída e inaugurada (!) em fins da Warchavchik - me aluga a casa, que tem de
terceira década do século XX e recentemente, ser conservada”. Senti-me, de fato, dentro
por ser minha amiga, mostrou-ma. Sempre de uma obra-de-arte e considerei Dulce uma
há alguém, estudioso de arquitetura, daqui felizarda por poder morar ali. E bem que ela
e de fora do Brasil, visitando o monumento o merece, como também faz jus ao prenome
de Warchavichik, que foi quem introduziu que recebeu dos pais.
o modernismo arquitetônico entre nós. Os 2. Minha proposta de museu. Museu:
móveis da casa modernista (é óbvio que é melhor, mais sensato, cuidar dos que já
não estão mais lá) foram adquiridos há temos e que sempre se encontram - salvo
bem pouco tempo pelo colecionador Adolfo as de sempre exceções - em dificuldades,
Leirner, que os mostrou na Pinacoteca do problemas de manutenção, conservação,
Estado: uma verdadeira arqueologia do atualização de acervo, com necessárias
moderno! A casa fica num terreno estreito e aquisições. O meu: Museu de Arte Construtiva
2005

comprido e pode ser considerada pequena, e de Poéticas da Visualidade. E é para a cidade

329
de São Paulo: Abstracionismo geométrico, uma polícia política (coisa que alguns deles

2003
poesia concreta e visual em geral têm a cara lamentam). Têm, eles, toda a chance de
de São Paulo. Seria, em última instância, errar à vontade, coisa que outros não
um centro de estudos do Construtivismo (no tiveram, nem de acertar! Com toda esta
sentido lato), principalmente o brasileiro. história da guinada do PT (no poder) para a
3. Queimar etapas? Estudamos em qualquer direita, perdeu o sentido dizer que pertence
manual de antropologia que o código verbal é a um partido que vive de um passado de
fundamental nas sociedades humanas (duas luta e com idéias progressistas (como disse
coisas universais: andar sobre dois pés e outro dia, numa assembléia, um aluno: “Eu
fazer uso do complexíssimo código verbal), sou militante do PT” e eu lhe perguntaria
pois é ele que torna possível a explicação, (mas não perguntei): “O que é ser, hoje, um
a qual desempenha um papel fundamental militante do PT?”) Que nos diz a senadora
na aprendizagem humana - que não seria Heloísa Helena? Há que se fundar um novo
2004 viável apenas com o exemplo - pois que tem partido, ou um não-partido que acolha as
a função de antecipar experiências. Isto vale idéias mais humanitárias, mais progressistas,
quase sempre, pois quando lidamos com as que venham a falar a linguagem dos
jovens e nos desesperamos frente ao fato jovens empenhados na luta pela melhoria,
de eles recusarem conselhos, queremos, em de fato, das condições de vida da maioria.
verdade, que eles queimem etapas. Digo isto Há coisas que só o processo chamado vida
pensando naqueles que, achando que fazem ensina.
parte do soviete de Petrogrado, pensam (10 de janeiro de 2004)

estar no ano de 1917. Não adianta falarmos


em repensar o Socialismo, pois seremos
chamados de retrógrados, reacionários.
Deixemos que eles apanhem à vontade:
temos mesmo a certeza de que não serão
2005

- hoje - vítimas da repressão por parte de

330
O LÍBANO É AQUI I ser Espanha e Portugal. Porém, era a cultura

2003
árabe-muçulmana).
Estrangeiros no Brasil? Se Árabes (libaneses) no Brasil e na nossa
considerarmos que a terra foi invadida em região registram-se a partir da segunda
detrimento dos índios, todos os demais serão metade do século XIX (mais para o seu
elementos étnicos estranhos à Terra. E foram final), uma imigração que se diferenciava
estranhos algum dia. Invenção de Portugal, das demais por não se tratar, por um lado,
o Brasil (a Terra de Santa Cruz) superpôs- de mão-de-obra para a grande lavoura, como
se a Pindorama. Já nos primeiros tempos: foi a dos italianos; por outro, tampouco se
espanhóis, lusos, franceses, holandeses e destinava a áreas de planalto tendo como
também ingleses. Mais lusos, que a terra era objetivo o plantio em pequenas propriedades.
deles por direito estabelecido - é óbvio - por Urbanos, por excelência, dedicavam-se
quem possuía poder. A Europa se firmava como fundamentalmente ao comércio e este não
2004 força hegemônica no Planeta e do processo se limitou às cidades: mascates levavam até
de europeização do mundo, que começou às mais longínquas paragens produtos que
com a expansão marítima a partir do século representavam algum tipo de conforto às
XV, os portugueses foram os pioneiros. Mais populações simplórias do Brasil. Registraram-
levas de portugueses foram chegando ao se árabes por todo o País, porém, foi São Paulo
longo dos séculos, como aqueles que vieram que recebeu o maior número de imigrantes
em função do ouro; como os açorianos, que (não só de origem árabe, mas de inúmeras
se dirigiram ao Sul no século XVIII. Século culturas. Isto explica, em parte, o fato de o
XIX: suíços, alemães, austríacos. Italianos Estado de São Paulo ser o mais populoso de
e tantos outros e… portugueses. Árabes nossos Estados.) Os libaneses e sírios que
também aqui aportaram, na ex-colônia lusa chegaram ao Brasil até 1918, vieram com
(davam o troco pelo fato de terem sido as passaporte expedido pelo Império Turco - já
vítimas da Reconquista: a cultura árabe que aquela região do Mediterrâneo Oriental
2005

estivera por séculos no que depois vieram a era dominada pelos turcos, povo não-árabe,

331
mas islamizado - daí a razão pela qual serem promessa de uma correção, o mais breve

2003
chamados (até hoje) de turcos. O escritor possível). A enumeração não tem o rigor da
Jorge Luis Borges, num janeiro escaldante ordem de chegada: Cury (Khouri), Neme,
de 1984, em Buenos Aires, me disse que na Dugaich, Naufal, Madi, Buchahim, Hazar,
Argentina os árabes também eram chamados Jayme, Jubran, Mattar, Bittar, Rached,
de “turcos” e os judeus, de “russos”. Murad, Nahssen, Chade, Gebara, Hamam,
Pirajuí e circunvizinhança receberam Tuma, Ferraz (Haddad, talvez, se bem que
muitos árabes a partir de fins do século XIX o mais comum é traduzir-se por Ferreira,
e inícios do XX (também depois): Piratininga, já que haddad = ferreiro), Buahage, Lage,
Bauru, Macatuba (Bocaiúva), Duartina, Gholmia, Harfuch, Buzalaf, Bechara, Abeid,
Pederneiras, Iacanga, Balbinos, Reginópolis, Chedid, Jabur, Razuk, Abla, Chammas,
Lins, Guarantã, Cafelândia, Cabrália Paulista, Attuy, Hamra, Creiquer, Racy, Samara, Said,
Presidente Alves, Avaí, Pongaí. Famílias, Miguel, Mustafá, Jorge, Cotait, Taiar, Chehad,
2004 com seus respectivos nomes transliterados Chahatit, Tanus, Abdelnur, Ganan, Aruth,
(dentro do que é viável para o português Francisco, Rafael, Abrão, Bayoud, Suaiden,
do Brasil) aqui aportaram (de Santos a São Caiche, Aiach, Achcar, Boutrus…
Paulo e, daí, para o interior; porém, muitos (continua no próximo número)
ficaram na capital). O rol de nomes que se (17 de janeiro de 2004)

segue inclui os das famílias das mulheres


que tiveram suas marcas ofuscadas pelos
maridos (o patriarcalismo árabe é algo notório
e até problemático). Algumas das famílias
ainda permanecem em Pirajuí. Houve as que
O LÍBANO É AQUI II
se extinguiram, as que se transferiram para
outros lugares, principalmente para a capital
e as dos que vieram nos últimos quarenta Algumas famílias árabes, no Brasil,
aportuguesaram o nome ou adotaram
2005

anos (se algumas não forem citadas, fica a

332
o nome luso-brasileiro da mãe (parece- cujas famílias tinham vindo do Líbano, da

2003
me que é o caso da família do Dr. Nenê Espanha, da Itália e ele não possuía essa
Ferraz, entre nós pirajuienses. Lembraria, referência, a não ser a da avó paterna,
também, os Andrade-Vieira, do Paraná). portuguesa de origem. É claro que a remota
Para evitar discriminação, alegavam. Havia, origem da família era lusa. É bom lembrar
de fato, preconceito das tradicionais famílias que o Itamarati, até bem pouco tempo, só
paulistas com relação a imigrantes em admitia como diplomatas de carreira aqueles
geral, até bem recentemente. Acontece que possuíam sobrenome de origem luso-
que o dinheiro acabou passando para as brasileira.
mãos de imigrantes e descendentes: isto Bem voltemos a Pirajuí, que já teve até
quer dizer que essas populações - e São escola árabe (minha querida prima - prima
Paulo foi o Estado que mais imigrantes de minha mãe - Olga Neme chegou a estudar
recebeu no Brasil - passaram a ter poder, nessa escola). Filhos dos bem sucedidos
2004 às vezes até desmedido - vide Mattarazzo, imigrantes iam estudar em escola árabe
Jaffé e outros tantos. A avó de uma amiga de São Paulo, capital. Como a maioria dos
minha, pertencente a uma daquelas famílias libaneses praticava a religião cristã grega-
paulistas, sempre perguntava aos amigos ortodoxa, de quando em quando passava
da neta sobre a sua origem e torcia o nariz por Pirajuí um padre dessa Igreja - que
quando eram descendentes de imigrantes; seria uma Igreja Católica de uns quinhentos
e a neta acabou por se casar com um anos atrás; o cisma se deu no século XI -
italiano nato, por sinal, uma ótima pessoa. para celebrar ofícios. Porém, nunca houve
A bisavó do nosso Paulo Miranda - Dona problemas com relação ao se freqüentar os
Francelina - respondeu à pergunta do então templos católicos. Meus pais, por exemplo,
menino: “Bisa, de onde nós viemos?” E ela se casaram com padre ortodoxo, vindo a
calmamente: “Nós não viemos. Nós sempre Pirajuí especialmente para o evento. Eu e
fomos daqui”…(!!!). Isto porque o Paulinho mais uma dezena de primos fomos batizados
2005

sempre esteve rodeado de amigos e colegas, por um padre católico em Pirajuí, em casa

333
de meus avós, com uma memorável festa à dentro da própria colônia, sendo raríssimos,

2003
qual afluíram convidados, inclusive de fora. naquela época, casamentos com pessoas de
Houve tentativas de se construir em Pirajuí outras etnias.
um templo grego-ortodoxo, mas, revalidades A maioria das famílias árabes saiu de
entre os próprios libaneses, em termos de Pirajuí indo, principalmente para a capital
quem tomaria a frente da coisa, fez com que do Estado, sendo que algumas mantêm
tudo ficasse apenas nos projetos. contatos constantes com Pirajuí. Houve até
Não sei - os velhinhos já morreram quem retornasse à Terrinha.
todos - que família árabe teria sido a primeira O Estado de São Paulo é mais que o
a chegar em Pirajuí. Meu avô, o Chico Turco, próprio Líbano, pelo número de libaneses e
chegou no começo do século XX. O registro descendentes. Temos mais indivíduos com
da loja, na junta comercial de São Paulo, é sangue libanês, hoje, que a Antiga Fenícia
de 1912. Seu casamento com minha avó (sempre que o Libanês necessita marcar
2004 Lula (que era sua prima) deu-se em 1915. a sua diferença no Mundo Árabe, evoca a
A família dela, no entanto, já se encontrava origem fenícia - os antigos fenícios, assim
em Pederneiras - o pai de minha avó lá como os árabes, são semitas). É no Brasil
chegou na virada do século XIX para o XX. que se encontra a maior colônia de libaneses
Bem, mas essa questão ainda apurarei. do mundo! E… mais para a frente falarei
Sendo os cristãos a maioria ainda sobre os nossos árabes e sobre outras
(principalmente da já mencionada Igreja etnias desse mosaico racial que é o Estado
Grega-Ortodoxa) os poucos muçulmanos de São Paulo. (24 janeiro 2004)
acabavam sendo discriminados, ou então,
eles mesmos não se misturavam com os
cristãos. As rivalidades entre cristãos de
cultura árabe e muçulmanos, no Líbano,
era algo gravíssimo. Por outro lado, os
2005

casamentos aconteciam entre cristãos,

334
JUDITH LAUAND Exposição Nacional de Arte Concreta (fins

2003
de 1956, em São Paulo e inícios de 1957,
Conheci-a pessoalmente só agora, de no Rio de Janeiro). Em sua longa carreira,
par com o aniversário do Válter (meu irmão) nota-se primeiro um figurativismo com
que me acompanhou até à sua residência, algo do repertório expressionista e já com
aqui em São Paulo, no bairro de Pinheiros uma tendência construtivista, que teve
- 09 de janeiro de 2004. Uma senhora de como resultante no processo evolutivo
seus 81 anos, que me pareceu bonita e que de sua obra, assim como em muitos
agora se encontra com alguns problemas de outros, um rigorosíssimo abstracionismo
saúde, inclusive uma quase total surdez, o geométrico, com o uso muito parcimonioso
que a incomoda, mais do que aos possíveis de formas e cores. Barras delimitando
interlocutores. Finíssima. Das primeiras áreas que confuguram formas, porém,
coisas que me perguntou: se eu era com uma ambivalência flagrante, o que
2004 descendente de libaneses, porque ela era: pode fazer lembrar o grande Joseph Albers,
de sírios e libaneses. Isto para mim foi uma provavelmente uma de suas admirações.
surpresa, já que me prendia ao prenome Como outros concretistas, nos anos
Judith, considerando hebraica a sua origem. sessenta, Judith Lauand se entusiamou pela
Uma semita árabe cristã: grega-ortodoxa, Arte Pop: um equívoco passageiro, já que
uma herança de família - mais uma afinidade acabou retomando a linha construtiva, na
entre nós. qual permaneceu definitivamente.
Ela nasceu em Pontal, cidade próxima Judith, pareceu-me, está em plena
a Ribeirão Preto, Estado de São Paulo, no atividade. Cheguei a ver alguns trabalhos
ano de 1922, e residiu por cerca de trinta seus bem recentes, assim como os mais
anos em Araraquara. Judith Lauand: Pintora! antigos, que se encontram em suas paredes.
Concretista histórica. Judith juntou-se Esbocei um desejo de comprar quadros
àqueles que haviam se constituído no Grupo seus, porém, os possíveis preços me eram
2005

Ruptura (1952). Participou da Primeira proibitivos (embora bem abaixo do que eu

335
esperaria), mesmo sendo ela quase uma as quais espero que tenham ficado boas.

2003
anônima. Em verdade uma celebridade Tudo nela foi além do que eu esperava, pelo
anônima (ah! o oxímoro): está em todas pouco que, de fato, sabia a seu respeito.
as histórias da arte brasileira e é conhecida Como no caso de Charoux (de quem já tratei
por especialistas e colecionadores; por neste semanário), Fiaminghi, Sacilotto,
outro lado, é ignorada pelas mídias e pela Geraldo de Barros e outros, espero que
população em geral. Ela me respondeu, à os estudiosos sensíveis venham a colocar
minha pergunta sobre se ela sobrevivia de com clareza, no âmbito da história da arte
pintura, que ensinou artes para crianças e brasileira, a importância de seu trabalho e
isto lhe garantiu a sobrevivência (pareceu- dar-lhe publicamente o lugar que ela já tem
me ser uma mulher solteira - não cheguei a por mérito próprio. Judith Lauand honraria
apurar). qualquer História da Arte, assim como honra
Judith Lauand é dessas artistas raras, a brasileira. Salem!
que optaram pelo mais difícil: árduo caminho (31 de janeiro de 2004)
2004
das rígidas formas e cores poucas. Um
pensamento por detrás do que fazem. Uma
heroína, como outras tantas maravilhosas
mulheres produtoras de linguagem e que
se engajaram nos projetos do Modernismo
mundial, como as russas e algumas
brasileiras anteriores a ela. Uma grande
A TEIMOSIA BURRA
mulher-pintora, como lindamente coloca
OU DA INSISTÊNCIA EM SE EMITIREM
Augusto de Campos, num incrível poema
MAUS JUÍZOS
que fez recentemente para ela, mas que ela
ainda não conhece, disse-me o poeta.
Com a consciência da importância MÁS TEORIAS PARA PROVER DE
SENTIDO OU DETRATAR NÃO SE SUSTENTAM.
2005

histórica de Judith, fiz dela algumas fotos,

336
Da mesma forma que observamos como é ficassem bastante conhecidos, discutidos e

2003
inútil alguém investir, de cabeça, contra a ainda mais combatidos. O concretista Augusto
Muralha da China ou mesmo contra o Edifício de Campos, em QORPO ESTRANHO 2 (revista
Martinelli nesta Paulicéia, percebemos o de 1976) publicou um trabalho em que reúne
quanto perdem o seu tempo os detratores de as declarações mais absurdas e desfavoráveis
certos processos realmente importantes ou sobre a Poesia Concreta: “The Gentle Art
autores que já fazem parte de um patrimônio, of Making Enemies”. O poeta e concretista
senão universal, pelo menos nacional. meteórico (depois, neoconcreto) Ferreira Gullar
É o caso, por exemplo daqueles que chegou a se dar ao trabalho de escrever um
procuram minimizar o papel da Semana de ensaio onde, manobrando teorias sofisticadas,
Arte Moderna de 1922 e, por extensão, de mostra que a Poesia Concreta não tinha razão
todo o Modernismo, com os criadores paulistas de existir. Talvez que hoje ele não seja mais
à frente; é o que fez Yan de Almeida Prado, da mesma opinião (o ensaio é de 1969); nada
2004 historiador que, jovem, chegou a participar ficou mais velho que o seu engajamento.
da Semana, mesmo que por troça, como Iumna Maria Simon, em diversas ocasiões,
declarou (vide Aracy Amaral, Artes Plásticas ataca o Concretismo, principalmente Haroldo
na Semana de 22), sendo este o fato pelo qual de Campos, depois de ter-lhe feito a corte
ele é mais lembrado; o historiador publicou (prestado vassalagem). Philadelpho Menezes,
um livro, com escritos em que procura atacar sempre que pôde, a partir de meados dos
principalmente Mário e Oswald de Andrade, anos 80, procurou minimizar o papel da Poesia
livro este intitulado A grande Semana de Concreta na cultura brasileira. Porém, são cada
Arte Moderna. Franklin de Oliveira coloca a vez mais evidentes os frutos do Concretismo...
Semana na contramão da história (!), mas ela Por que se gasta tempo com um objeto que
continua cada vez mais viva e históricamente não se ama? Leituras rancorosas são más por
relevante. natureza (valem episodicamente como parte
Os concretistas receberam muitos de uma polêmica mais vasta). As melhores
2005

ataques, o que fez, inclusive, com que leituras são as amorosas.

337
Voltando a Ferreira Gullar: o poeta outros escritos (antes, por um erro tático,

2003
e ensaísta elabora todo um arcabouço em minha opinião, os poetas concretos
teórico para emprestar à poesia concreta chegaram a fazer poesia participante, porém
uma abordagem desfavorável - é óbvio que sem abandonar as grandes conquistas
muito do que se encontra naquele escrito formais; não precisavam ter dado satisfação
(“Vanguarda e Subdesenvolvimento”) ele a maus criadores, seus detratores; porém,
não assinasse hoje, como reconsiderou como alguns já disseram, eles fizeram
posições em entrevista dada à FOLHA DE poesia de nível mesmo assim, porque eles
SÃO PAULO (anos 90); parece não perdoar: tinham nível). Recentemente Gullar não só
1º a consciência dos poetas concretos com não renegou suas experiências concretistas,
relação às coisas das linguagens; 2º a como acabou por editar o seu famoso
ambição e a certeza de lançar um movimento Formigueiro, famoso e desconhecido, que
de vanguarda considerado em termos havia participado da 1ª Exposição Nacional
2004 mundiais (fora do relativismo informacional de Arte Concreta; a espera não compensou:
de movimentos brasileiros anteriores, com o poema, a mim, decepcionou; melhores
ares terceiromundistas); 3º do fato de, suas experiências concretistas menos
mesmo que por breve espaço de tempo pretensiosas.
ter participado do movimento, não ter tido Boas leituras - aquelas que são
a chance de ser protagonista do mesmo coroadas por juízos importantes - são
(seria sempre considerado subsidiário dos movidas pela curiosidade, pelo amor e pelo
criadores iniciais; como competir com Décio rigor. E curiosidade é colocada, aqui, naquele
Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos?) sentido que aflora quando dizemos que
e não queria ser poeta secundário dentro Leonardo da Vinci era curioso. A curiosidade
daquele universo. que começa a desaparecer quando iniciamos
O Concretismo tem sua grandeza, entre nosso verdadeiro e longo processo de
outras coisas, por não ter seguido o caminho envelhecimento.
2005

apregoado por Ferreira Gullar naquele e em (07 de fevereiro de 2004)

338
ALDO FORTES nos poemas. Embora seu primeiro código

2003
seja o verbal, chegou a elaborar poemas
O poeta Aldo Fortes nasceu em Bananal onde não entra sequer uma palavra, nem no
(SP) em 1950. A pessoa com quem falo, às título (que inexiste), como no “John Cage”,
vezes, por telefone recusa-se a fornecer publicado em nossa ARTÉRIA 5.
dados mais detalhados sobre si, o que poderia Aldo Fortes teve seu primeiro poema
vir a esclarecer certas questões de ordem publicado em MUDA (1977), peça que
biográfica, mais que poética, já que esta se impressionou, pelo cheiro de pastiche (grande
mostra em cada um de seus trabalhos. Auto- o peso de sutis citações), cortes brutais,
exilado em sua própria terra, com esposa e bomba atômica, em que o uso proposital
um casal de filhos, apartado do convívio com do cacófato nocauteia abruptamente:
os poetas amigos, penso que Aldo Fortes seja BOCADELA (a boca dela: ela, a poesia),
um auto-didata no que respeita ao estudo tirou o menos avisado leitor do estado de
2004 da Literatura e de idiomas, com alguns dos letargia! Cultivando um lado Rimbaud, Aldo
quais parece ter muita familiaridade. Aldo é Fortes desaparece, deixa de circular por esta
movido por aquela curiosidade que resulta Paulicéia e, de repente, uma aparição ou, o
em descobertas: se o poema é chinês, vai que é mais certo, um telefonema acontece e
fundo e estuda e discute e curte. aí é uma alegria e um comentar compulsivo
Nota-se que leu muito, pois discorre tendo em mira as coisas da criação artística.
com desenvoltura e brilho sobre poetas Trezentas mil palavras por segundo. Muita
e artistas em geral. E já chegou naquele informação para o mortal comum que sou.
estágio de serena maturidade, em que Sempre a promessa do envio de cartas
se busca a qualidade, onde quer que ela contendo críticas e poemas. Cartas que -
esteja. Sua poesia, em princípio, de um pelo menos para mim - nunca vêm. Porém,
verbo contundente, foi ganhando com nas raras vezes em que nos encontramos
a incorporação de elementos visuais, em São Paulo, ocasiões em que também
2005

elementos estes, cada vez mais estruturais comparecem Walter Silveira e Paulo Miranda,

339
temos a chance de surripiar poemas, os quais contrariado, algumas fotos, das quais poucas

2003
são, como que à revelia, encaminhados para se aproveitam, já que eu não conseguia foco,
publicação em revistas. dada a sua inquietação.
Aldo dizia que vivia entre as cidades Nesse trabalho de elaboração de uma
do Rio de Janeiro e Bananal. Agora (já obra, Aldo vai elaborando, também, uma
há algum tempo) vive em Bananal, cidade biografia singular: antimídia, por excelência.
que, nos áureos tempos do café no Vale Mistérios cercam a vida do poeta. Para os de
do Paraíba - partes dos séculos XIX e XX fora. Que os de dentro talvez nem saibam de
- foi muito próspera e conserva vestígios da sua grandeza como poeta. O poeta trabalha
antiga riqueza. em silêncio. Poesia.
Aldo, recentemente, por telefone, (14 de fevereiro de 2004)

disse-me que havia tido um grave problema


vascular, do qual ainda estava se recuperando.
2004 De qualquer maneira, aproveitava o tempo
de repouso para retomar leituras. Tudo
indica que sempre produziu bastante, mas
quase nada publicou por iniciativa própria, o
que tem sido feito por seus amigos poetas,
entre os quais eu me incluo. Tem trabalhos LENORA DE BARROS
publicados em ZERO À ESQUERDA, ATLAS e
ARTÉRIA 6, o que o faz conhecido num meio
bastante restrito, porém, de grande peso. A poeta (sim, poeta e não poetisa,
Recentemente, colocamos um seu trabalho como quis para si Cecília Meirelles e por que
na Internet, em ARTÉRIA 8. não? A palavra, masculina, vem do grego
Numa das vezes em que Aldo Fortes poietés, que pertence a uma declinação
esteve em minha casa (ainda à Rua Dona cujo grupo de palavras é, em sua maioria, do
2005

Veridiana) fiz dele, que se mostrava muito gênero feminino. Por que não tratar poeta -

340
esta é a forma latina - como comum-de-dois? trabalhos (não muito numerosos), trabalhos

2003
É o que eu e muitos outros têm feito de um esses em que a fotografia (signo onde
tempo para cá. Poeta = fazedor) Lenora de predomina a indexicalidade - dada a conexão
Barros nasceu em São Paulo (SP) em 1953, dinâmica com o objeto - e fortes traços de
e vive atualmente na mesma Paulicéia. Além iconicidade) tem grande relevância. E nisto,
de uma escolaridade regular, do elementar à há que se lembrar, também, o pioneiro
graduação em Lingüística e à pós-graduação trabalho experimental feito no Brasil, por
(que não quis concluir) teve, desde a infância, Geraldo de Barros: FOTOFORMAS, 1948…
o privilégio de conviver com artistas e poetas Lenora de Barros publicou, como todos
de primeira linha, numa época em que, os poetas afins de sua geração (e de outras
nesta São Paulo, havia grande efervescência tantas) seus poemas em revistas (sendo, de
artística (não estará havendo agora toda uma algumas, também editora), como: POESIA
efervescência sendo que nós, cegos para o EM GREVE, QORPO ESTRANHO, CÓDIGO,
2004 presente, não percebemos? Todas as épocas ZERO À ESQUERDA, ARTÉRIA, bem como,
são ricas, principalmente depois que passam: tem participado de inúmeras exposições,
o passado é sempre rico, porque, como os dentro e fora do Brasil. Seu primeiro e único
sonhos, sobrevive em forma de relato). Isto, livro, até o momento, é de 1983: Onde se
dado o fato de ser filha do artista plástico, Vê, pela Editora Klaxon (mas, em verdade,
fotógrafo e designer Geraldo de Barros, um a própria poeta arcou com as despesas de
dos pioneiros do Abstracionismo no Brasil edição/impressão, integralmente).
- pertenceu ao grupo Ruptura, 1952… - o Alguns vídeos, como o feito por Walter
qual, além de seus colegas artistas plásticos, Silveira, de seu poema “Homenagem a George
tinha estreito contato com os poetas Décio Segal”, em 1983, demonstram que certos
Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos e trabalhos seus prevêem outros meios, sendo
outros. o livro/revista, uma simples possibilidade.
Poeta desde cedo, Lenora de Barros Grima Grimaldi realizou, recentemente
2005

valorizou a questão da visualidade em seus (2001), um vídeo, espécie de antologia da

341
obra de Lenora, o qual foi mostrado em uma despontou a partir de meados dos anos 70

2003
sua exposição na Galeria Millan: “O que há do século passado - que congrega, entre
de novo, de novo, pussyquete?” outros, Paulo Miranda, Walter Silveira, Tadeu
De alguns anos para cá, Lenora tem Jungle, Júlio Mendonça, Aldo Fortes. Um
assumido mais o papel de artista plástica, nome obrigatório em qualquer antologia da
fazendo exposições em que, a um trabalho Nova Poesia Brasileira que se preze. Sinto-
visual propriamente, aparece uma porção me um privilegiado por tê-la conhecido, já
fortemente conceitual-duchampiana. Seu em 1975 e continuar sendo seu amigo. Um
recente trabalho PROCURO-ME, exposto brilho intenso e duradouro no panorama
na parte externa do Centro Cultural Maria da criação brasileira das últimas décadas.
Antônia, sofreu agressão de um grupo de Lenora de Barros.
grafitadores/pichadores. Porém, a artista (21 de fevereiro de 2004)

acabou por incorporar o feito como parte de


2004 toda uma performance, com registros foto-
videográficos.
Lenora de Barros, como sempre,
uma mulher belíssima (irmã de Fabiana de
Barros, artista plástica residente na Suíça)
e que cultiva um lado “fashion”, o que torna
JÚLIO MENDONÇA
a mulher notável, notória, onde quer que
esteja. A mais bela das paulistanas, como
Júlio César Mendonça nasceu em São
eu costumava dizer. A Tarsila de agora. De
José do Rio Preto (SP) em 1958. Residiu
uma polidez sem par: Lenora nunca diz
muitos anos na cidade de São Paulo, sendo
não a sugestões, mesmo que não venha
formado em Letras pela USP. Trabalha
a acatá-las. A maior poeta do Brasil de
como promotor de eventos culturais, junto
hoje, como eu também costumo dizer dela.
ao Departamento de Cultura da Prefeitura
2005

Uma presença marcante na geração que

342
de São Bernardo do Campo, onde reside pouco maior, como poderia, ou melhor, como

2003
atualmente. É poeta e editor. No ano 2002 deveria. E esse tem sido o caso da maior
doutorou-se em Comunicação e Semiótica parte dos poetas com os quais tem grande
pela PUCSP, ocasião em que defendeu afinidade.
uma brilhante tese sobre a recente poesia O poeta é, dentro do que conheço no
experimental brasileira. campo de uma poesia experimental, visual,
Embora tenha grande familiaridade com intersemiótica, um dos raros que possuem
o verbal, que utiliza como um conhecedor, uma idéia clara e consistente dos problemas
é um dos poucos poetas que, no Brasil, envolvidos nesse afazer e isto resulta em
têm idéia do que seja um “poema visual”, excelentes faturas, como a que ora se pode
diferente de uma obra de artes plásticas, ver no site arteria8.net: “zoomanosluz”.
pura e simplesmente. Júlio Mendonça faz Júlio, para mim, é um dos mais bem sucedidos
comumente edições autônomas de poemas e poetas visuais, de qualquer tempo. Nota-
2004 tem publicado em revistas/antologias, como se, pelos seus trabalhos, que possui o que
SURPRESA (com Lívio Tragtenberg e Maurizio todo grande artista precisa ter: consciência
Prati) sendo desta co-editor, sua primeira de linguagem. Que o restante acaba sendo
publicação (1978), ZERO À ESQUERDA, óbvio: conhecimento de técnicas e materiais,
ARTÉRIA, KATALOKI, ATLAS etc. Na recente rigor na pesquisa e na realização dos poemas,
ARTÉRIA 8, na REDE. Também participou de sensibilidade.
exposições, como a 1ª Mostra Internacional Quando da conclusão de ZERO À
de Poesia Visual de São Paulo, em 1988 e ESQUERDA, em inícios de 81, Júlio nos trouxe
muitas outras mais recentemente. mais um poema, o qual deveria ser a capa
Júlio Mendonça desenvolve todo um da publicação: um 10 verde ao contrário
trabalho poético de rara sensibilidade, que sobre fundo amarelo, o que imediatamente
tem ficado em grande parte inédito ou evocava as cores do Brasil e a camisa dez da
restrito a edições muito mal distribuídas, não seleção – a do rei Pelé, certamente – o que
2005

chegando, portanto, a atingir um público um era desfeito a seguir, logo que se percebia

343
a inversão. Uma leitura possível: “algo vai A presença de Júlio Mendonça, feito

2003
mal no País do futebol”. Bem, por motivos gente ou feito poeta, só valoriza os ambientes
de ordem técnica, acabamos excluindo esse e obriga as pessoas pensar sobre o próprio
trabalho, o qual foi, muito tempo depois, comportamento. Esse brasileiro nascido em
estampado lindamente em ARTÉRIA 6 (31 São José do Rio Preto é um cosmopolita, ou
X31/QUADRADÃO). melhor, possui uma mente galática, como
Júlio Mendonça tem sido desses poetas a referência que existe em um seu poema
indispensáveis em qualquer publicação que teve um certo trânsito no meio poético
coletiva de poetas visuais que se preze, paulista e brasileiro e que corre o mundo
assim como em exposições de poemas dessa e - quem sabe? - venha a alcançar outras
natureza. Sua exclusão só contribuiria para GALÁXIAS.
apequenar antologias e mostras. (28 de fevereiro de 2004)

Júlio Mendonça passaria, considerando


2004 o seu aspecto físico, por um poeta
português, um exato contemporâneo de
Fernando Pessoa, numa Lisboa pretérita e
misteriosa. Isso tudo choca com o arrojo de
sua poesia que, adentrando o século XXI,
abraça as novas tecnologias com a maior
JOHN CAGE
naturalidade. A tudo isso vem se somar
sua correção, elegância de atitudes, enfim,
John Cage (1912-1992): músico
uma conduta irrepreensível. Júlio Mendonça
estadunidense de vanguarda, dos que
pensa para falar, como se o desperdício
mais contribuíram para o desmanche das
verbal pudesse pesar sobre o mundo. Mede
fronteiras entre sons ditos musicais e sons
as palavras, libera-as com parcimônia. Não
não-musicais. Foi aluno de Schoenberg,
é propriamente triste, porém, ri pouco, e
protagonista de uma revolução na Música,
2005

quando o faz, surpreende o interlocutor.

344
tendo tido em grande conta o iconoclasta no que estava sendo lançado e no Silence.

2003
Marcel Duchamp. Em Cage se observa o Cage na platéia do teatro do MAC-USP-
Acaso desejado, o Silêncio como parte Ibirapuera para assistir ao espetáculo em sua
integrante e explicitamente estrutural, o homenagem e de Augusto de Campos, que é
Ruído como elemento constitutivo e mesmo quem mais entendeu e divulgou o trabalho
definidor de composições. de John Cage no Brasil, tendo escrito sobre
Cage esteve em São Paulo, no ano ele vários artigos e ensaios. No palco, Anna
de 1985 - outubro - por ocasião da XVIII Maria Kiefer e Theofil Meyer (este é capaz de
Bienal e para o lançamento de seu livro De ler/oralizar tudo: de um texto a uma porta
segunda a um ano, tradução de Rogério aberta ou um parafuso!). Cage sentado
Duprat, assistido por Augusto de Campos (o paciente. O espetáculo: competente e chato.
livro foi publicado depois de mais de uma Eu, ao lado de Décio Pignatari, atentava
década de espera por uma editora, que para tudo. Cage a um metro de nós, na
2004 tivesse o mínimo de arrojo, considerando a platéia. Augusto, Paulo Miranda, Júlio Plaza.
não-convencionalidade do autor/obra). Apresentações. ZEN.
Cage: uma presença leve na Paulicéia: Não pude, como quase sempre,
compromissos, homenagens, visitas, assistir aos outros espetáculos, inclusive
lançamento do livro no MAC-USP-Ibirapuera, apresentação do próprio Cage, porque
com tarde de autógrafos e tudo o mais. Lá tinha de trabalhar à noite. Mas, de qualquer
estive com amigos, Paulo Miranda e Julio maneira, valeu a pena poder apertar a mão de
Plaza, entre outros como Décio Pignatari, uma lenda viva: o mais admirado, por mim,
que havia estado muitas vezes com ele em dos músicos eruditos vivos naquela época.
Paris, anos 50. (Décio, comentando sobre Soube de coisas dele aqui em São Paulo,
o fato de o septuagenário músico, poeta como o episódio do espetáculo de Hermeto
e performer ter tirado a barba: “O Cage Paschoal, para o qual ele foi empurrado e
ficou com cara de tia velha”). Apanhei o tão ficou, pacientemente, até o final (“I hate
2005

esperado autógrafo em dois de seus livros: jazz”, teria dito a Atílio, um aluno meu do

345
IA-UNESP, músico, que o acompanhava na (Augusto de Campos) / JC (John Cage). O

2003
ocasião). E o fato de ele cumprimentar até vídeo se constitui em tudo aquilo que não se
os cozinheiros - ou principalmmente - do desejaria ver/ouvir num vídeo: uma coleção
restaurante macrobiótico do Arouche, onde de ruídos, daqueles próprios da transmissão
tomou algumas das refeições na Paulicéia. televisual e os que se configuram numa ilha
Naquela ocasião, Walter Silveira [e Pedro de edição. Ruído, acaso, silêncio: o diálogo
Vieira] se ocupou de colher material, menos com Cage, o músico que mais contribuiu
como registro histórico que como matéria- para dissolver a fronteira entre sons musicais
prima para a realização de um vídeo, que e ruídos. A informação brota justamente
seria premiadíssimo e do qual eu gosto muito. do ruído, elemento constitutivo estrutural
Eis as minhas anotações sobre o mesmo: do trabalho. Informações aparecem
VT PREPARADO: AC/JC . São Paulo tenuemente, insinuam-se, mas logo se
. TVDO 1985. Direção: Pedro Vieira e Walter desfazem ante o mar de ruídos envolvendo
2004 Silveira: Quando da estada de John Cage em oralizações de poemas de Augusto de
São Paulo, em 1985, por ocasião da XVIII Campos, depoimentos de Cage, Augusto de
Bienal, Walter Silveira e Pedro Vieira não Campos, Arrigo Barnabé, Haroldo de Campos,
quiseram fazer um vídeo documentando a Décio Pignatari e Waly Salomão. Som sem
visita do ilustre músico, então uma celebridade imagem; imagem distorcida; interferência
mundial: pretenderam sim e lograram do acaso; silêncio visual e sonoro. As
fazer um vídeo que fosse um trabalho ele- referências às obras de Cage despontam
mesmo, um poema que homenageasse ao a cada momento, de par com citações de
mesmo tempo o autor de 4’ 33” e Augusto Augusto de Campos. Clareza mesmo, só
de Campos, que foi quem mais divulgou quando penetra os ouvidos do fruidor o piano
Cage no Brasil e sempre foi, como Cage, um claríssimo de Eric Satie, músico francês pré-
artista-inventor. O próprio nome do vídeo dada admirado pelos dois artistas: AC e
já indicia a inteligente-sensível paródia: JC. Embora com a duração de apenas doze
2005

VT PREPARADO (PIANO PREPARADO) AC minutos, o vídeo mostra a quantas veio:

346
perturba e faz pensar. Exige do apreciador em 1976/1977, quando ainda trabalhava

2003
um alto repertório específico das coisas dos exclusivamente com a palavra.
artistas nele envolvidos. Portanto, possível Descobriu a importância da
apreciador do vídeo: prepare-se! visualidade, incorporando-a aos seus
Em tempo: Não sei ao certo, mas talvez poemas, que ganharam uma dimensão
que o trabalho de Walter Silveira e Pedro gráfica, caligráfica, diga-se. Para isto, foi
Vieira possa ser encontrado no MIS ou na importante o conhecimento da obra do
TV Cultura. último Edgard Braga. Este, experimentador
(06 de março de 2004) já na maturidade, a partir dos anos 60, foi
uma espécie de guru para toda uma geração:
de Walter Silveira e Tadeu Jungle, a Gilberto
José Jorge, Go e o próprio Arnaldo.
Também editor, Arnaldo Antunes se
2004 ligou a ALMANAK 80, KATALOKI e ATLAS,
ARNALDO ANTUNES sendo esta uma revista que pretendeu juntar
(em 1988) todos os poetas, artistas plásticos
Arnaldo Antunes Filho (hoje, apenas e músicos que participaram de revistas
Arnaldo Antunes) nasceu na cidade de São experimentais no Brasil, a partir dos anos
Paulo, em 1960, onde reside, deslocando- 70 (quase conseguiu o seu intento). Tem,
se sempre e sempre em função de múltiplas Arnaldo, trabalhos publicados em ARTÉRIA
performances que vem realizando há cerca 5 e 6, AGRÁFICA, como em muitas outras
de duas décadas: shows, apresentações edições coletivas, estando presente na REDE,
poético-teatrais, exposições. Chegou a em inúmeros sites, inclusive em ARTÉRIA 8,
cursar Lingüística na USP, curso que não já referida neste espaço. Possui vários livros
concluiu. Poeta desde a adolescência, teve de poemas, mais um vídeo pioneiro: Nome
seu primeiro trabalho publicado em A+, (1993), que vem acompanhado de livro e
2005

espécie de revistinha do Colégio Equipe, CD. Participou da banda PERFORMÁTICA

347
(anos 80), a qual era composta por músicos, Monte - TRIBALISTAS - com um trabalho

2003
poetas e artistas plásticos, sob o comando menos complexo e vendendo o que até então
de José Roberto Aguillar. não vendia, não sei que caminho tomará o
Arnaldo Antunes fez parte como Arnaldo. Só sei que, de qualquer modo, o
compositor, vocalista e performer da Banda trabalho terá nível. Arnaldo Antunes tem
de Rock’n’roll TITÃS DO IÊ-IÊ-IÊ, depois, informação, principalmente a poética.
TITÃS, de 82 (sendo de 84 o primeiro disco), O poeta já, há anos, tem trabalhado
até dezembro de 1992, quando se desligou com computador, explorando as suas
do grupo. Ele não me contou, mas penso potencialidades (a escrita que ele possibilita
que pintou uma grande rivalidade no grupo, - a questão do gráfico - e a animação). Sua
pelo fato de Arnaldo, além da inteligência obra, dos poetas que tenho abordado, tem
e talento diferenciados, ser o mais querido sido a mais divulgada; para isto, é claro,
pela mídia, sempre requisitado para falar pesou muito a sua atuação enquanto músico
2004 pelo grupo, nas entrevistas etc. de banda de Rock, que alcançou grande
Há, na música popular brasileira, popularidade entre os jovens. Sua poesia
compositores/intérpretes que desenvolvem tem podido ser apreciada em inúmeras
(mesmo num campo que tem por detrás a exposições, no Brasil e fora. Tem colaborado
indústria fonográfica, a mídia e o consumismo) com muitos projetos gráfico-editoriais do
um trabalho de ponta, rompendo os limites mundo da poesia. De quando em quando
que existem entre manifestações populares faz boa crítica. Arnaldo Antunes produz
e eruditas, chegando a fazer um trabalho muito e mantém um qualitativo elevado.
até bastante difícil para a média do público; Como almejam os verdadeiros produtores
citaria Caetano Veloso, Walter Franco, Arrigo de linguagem: poetas, artistas plásticos,
Barnabé, e colocaria nesse rol, Arnaldo músicos etc.
Antunes, que dentro da MPB, mantém viva (13 de março de 2004)

a atitude de experimentação. Agora, tendo


2005

emplacado, com Carlinhos Brown e Marisa

348
TITO MADI II de sua educação é difícil falar: não há palavras.

2003
Tito Madi dignifica todo e qualquer ambiente
Foi em São Paulo, sábado à noite, em que esteja, com suas boas-maneiras que
13 de março de 2004, no SESC Pompéia: acontecem como que naturalmente. Perto
apresentação de Tito Madi, acompanhado pelo dele, quem seria educado? Seu estar-no-
pianista Haroldo Goldfarb (que, diga-se, sabe mundo é todo cheio de cuidados, como se
tudo de seu instrumento e sobre acompanhar um gesto brusco, um volume mais elevado
cantores). Tito foi precedido por dois cantores de voz fossem ferir os seus semelhantes. Um
da noite - um deles com 84 anos - e pela príncipe na terra dos homens. Sua modéstia,
ainda bela Dóris Monteiro, amiga de Tito há de fato, chega a ser comovente: apresenta-
décadas. Dóris: uma graça. Cantando antigos se como um cantor - o que certamente é
sucessos seus e composições que foram - interpretando principalmente canções de
sucesso na voz da singularíssima Isaurinha outrem. E que escolha de repertório! Quando
2004 Garcia e que ficaram perfeitas com Dóris canta as canções de sua autoria, refere-se
Monteiro. Tito Madi: um intérprete em estado a elas como se se tratasse de algo simples,
de graça… Eu, Paulo Miranda e minha sobrinha peças que são verdadeiros clássicos: Chove
Maria Laura, que apresentei ao fim do show lá fora e outras tantas, como Não diga não,
como neta de Celita (Dona Célia Gomes da que Paulo Miranda, que estava ao meu lado
Silva Barros), ao que ele alegremente falou: durante o show, lamentou não ter cantado
“Celita, que me acompanhava ao piano”. e disse: “Omar, o Tito mantém a qualidade
Tito: sobre sua simpatia já falei aqui vocal na íntegra!” É verdade. E que grande
nesta coluna e todos os que tiveram o privilégio intérprete ele é: perfeito. Após ouvi-lo
de estar com ele sabem disto. Herança dos temos uma sensação de completude. Tito é
pais, um casal feliz, muito feliz, me fala minha personalíssimo, como personalíssima era a
mãe, reportando-se à Pirajuí de um tempo também paulista Isaura Garcia (sobrinha do
em que a colônia árabe-libanesa era bastante pintor José Pancetti).
2005

expressiva, numericamente falando. Agora, Tito Madi fez escola: quantos cantores

349
não confessariam tê-lo em alta conta! Seu acadêmico que seja. Se pudesse, eu gostaria

2003
canto casa timbre agradável, talento (tem de fazê-lo, com a colaboração do Bonadio
alma, diria) e domínio técnico completo. Costa, que é quem mais conhece a sua obra
Precursor imediato da Bossa Nova, sua e atuação no mundo da canção popular do
modéstia não permite que ele entre em Brasil. Por que não? Colher informações por
disputas mesquinhas de primazias. Mas meio de entrevistas/depoimentos etc, para
a história contada pelos que sabem das que seja reconstituído e preservado o seu
coisas coloca Tito Madi num lugar bastante percurso, um percurso pleno de coisas boas.
elevado, como de alguém que, desde os Tito: parabéns e obrigado pela oportunidade
anos 50, mantém um nível considerável de de poder ouvi-lo cantando mais uma vez!
qualidade. E sempre acima do esperado nível de
Tito canta por profissão e porque ama excelência.
o canto. Felizes dos ouvintes. Nota-se, em (20 de março de 2004)

2004 Tito Madi, nos momentos em que canta,


uma preocupação com o que chegará aos
ouvidos dos presentes: grande respeito pelo
fruidor-ouvinte.
O mais carioca dos pirajuienses: fiquei
a imaginar que, tendo nascido e se criado
em Pirajuí, foi acometido de nostalgia-do- JOSÉ LUIZ VALERO FIGUEIREDO
mar, ainda mais que descende, em parte,
de fenícios, filho que é de libaneses: foi- Foi no ano de 1974, a propósito do
se para o Rio de Janeiro, onde se integrou meu primeiro livro de poemas: Jogos e
perfeitamente. Em verdade, um cidadão-do- Fazimentos, que conheci José Luiz Valero
mundo. Figueiredo (o Zéluiz), seus irmãos Carlos
Um estudo vasto e profundo Alberto e Luiz Antônio e mais: Renato, Roberto
2005

sobre ele se faz necessáro: um trabalho e Rita Ghiotto, o Betinho, Maísa (esposa de

350
Luiz Antônio) e outras figuras admiráveis de em jornal, pesquisador, programador visual,

2003
Presidente Alves. Vilma Negrisoli foi quem operário gráfico. Em todos os casos citados,
possibilitou a aproximação, tendo ouvido uma primou pelo rigor, começando por exigir o
minha conferência sobre Poesia Concreta no máximo de si mesmo.
IEDAP e percebendo as afinidades existentes Da época em que o conheci e por mais
entre nós. Daí, foram agilazados trabalhos da de dez anos, dedicou-se à Fotografia, técnica
recém-criada Nomuque Edições para que, em (e arte) que aprendeu autodidaticamente e
75, saísse o número 1 de ARTÉRIA e outras com a qual experimentou, daí saindo belos
tantas coisas em que Zéluiz teve participação trabalhos, alguns dos quais chegaram a ser
importante. Paulo Miranda presente em quase publicados, principalmente em revistas da
tudo. Nomuque. Imagens memoráveis, algumas
Zéluiz nasceu em Presidente Alves, das quais conservo em minha coleção com o
no ano de 1957, onde estudou, tendo tido maior apreço, como a da paisagem que traz,
2004 uma breve passagem por escola de Pirajuí em zona de sombra um burro preto: sutileza
( o “menino Valero”, como Dona Maud a das sutilezas, o que foi uma constante em
ele se referia). Acabou por se formar em seu trabalho.
Comunicação Visual, na Fundação Educacional Em Presidente Alves ainda chegou a
de Bauru, que foi incorporada à UNESP. Depois trabalhar como fotógrafo profissional, por
de andanças pelo Rio de Janeiro, São Paulo, mais de uma vez. FOTOFORM foi o nome
Bauru, Ribeirão Preto, São José do Rio Preto, de sua “empresa” (parece-me que bolado
fixou-se em Bauru como professor da FAAC- por seu irmão mais velho Luiz Antônio). Ao
UNESP, especializando-se em Tipologia, dando lado disto, Zéluiz cultivava a música, tocando
chance à sua vocação de gráfico e tendo, como violão, cantando e acompanhando amigos,
docente, uma rara performance (perguntem transitando num repertório finíssimo, onde
aos seus alunos - privilegiados, diga-se). se encontravam preciosidades do samba
Antes de assumir a função de professor, tradicional (Luiz Antônio era um grande
2005

Zéluiz trabalhou como fotógrafo, diagramador conhecedor dessa vertente da MPB e trazia

351
até o irmão mais novo toda essa informação) a eu sei o quanto foi relevante a mão que me

2003
Caetano Veloso, Gilberto Gil e Walter Franco. deu em diversas ocasiões, por pura amizade
Sua residência em São Paulo, e graças à referida generosidade.
principalmente a segunda, coincidiu com Zéluiz é um produtor de linguagem que
um momento interessantíssimo, em que os pensa não ser. Ou seja, tem amordaçado o
amigos se reuniam em bares, restaurantes e poeta da imagem que há dentro de si, o qual,
choperias e em que as conversas iam longe, qualquer dia desses, se libertará e nos trará
com idéias de projetos e suas realizações belos trabalhos, como todos aqueles que ele
(porém, nem sempre). Via de regra falando realizou, principalmente nos anos 70 e 80.
pouco, era um ouvinte atento e, como outros Chegou a ter, com Paulo Miranda, uma quase-
raros humanos, pensava antes de falar: aí, empresa de camisetas, em que faziam tudo,
era um acontecimento! Seu rigor gráfico me mas principalmente as estampas bastante
fez ver nele a Bauhaus nos Trópicos. Sua originais, que eles mesmos imprimiam
2004 opinião teve sempre um peso muito grande (serigrafia). A etiqueta aoba só não prosperou
para aqueles que com ele conviviam e, frente porque faltou a eles um sócio honesto e
a dificuldades gráficas, ele sempre vinha com com tino comercial, que viesse a colocar no
a melhor solução, depois de muito estudo. mercado o produto. Ainda conservo comigo
Polimento e generosidade foram e são algumas das belas camisetas produzidas pela
as suas maiores qualidades, perceptíveis já AOBA.
num primeiro contato. Eu, particularmente, Aguardando novos trabalhos de Zéluiz,
devo muito a Zéluiz que, além da amizade de deixo-lhe, aqui um forte foto-gráfico-abraço
trinta anos (agora, neste 2004), auxiliou-me e uma pergunta: - Zé, quando da minha
em muitos projetos. Posso mesmo dizer que sugestão da palavra “tipomorfia” (ao invés
viabilizou com sua sabedoria gráfica alguns de “tipologia” ou “tipografia”), você me achou
de meus trabalhos que estavam apenas em muito ridículo? Pode responder-me por e-
fase de projeto. Sua modéstia (verdadeira) mail. Até…
2005

o fará dizer que não foi bem assim, porém, (27 de março de 2004)

352
VILLARI HERRMANN Nossa turma, que quase chegou a ser um

2003
grupo, reunia-se em bares da Amaral Gurgel
Uma das vantagens de se chegar a uma - centro - e Perdizes, principalmente. E lá
“certa idade” é a de acumular experiências, sempre estava o então Promotor Público
a de ter conhecido pessoas e lugares, a de Villari Herrmann. Da turma, a maioria bebia
alcançar - se tanto - a sabedoria ou uma muito chopp; poucos ficavam numa coca-cola
sabedoria, como a de admitir a qualidade ou guaraná, naqueles memoráveis simpósios
onde quer que ela esteja. O sempre rico (que em grego significa ocasião em que se
passado se nos apresenta em forma de bebe junto). Os destinos da Humanidade
relato editado, editadíssimo. E, às vezes, se resolvem na mesa de um bar…
até cultivamos o passado, rememorando- José Lázaro Geraldo Villari Herrmann
o sistematicamente, fazendo as vezes de nasceu em São Carlos, Estado de São Paulo,
historiador. Quantos milhares de pessoas em 1943. Principiou no gosto pela poesia
2004 não conhecemos em meio século de através da leitura da obra de Fernando Pessoa
existência! Porém, como tão poucas são e reconhece como fundamentais para sua
as dignas de nossa memória ou de nosso visão de fazedor, produtor de linguagem, as
rememorar por escrito… Das pessoas que obras dos poetas concretos, em especial,
cheguei a conhecer na São Paulo, nos anos a de Ronaldo Azeredo. Entre 1967 e 68, fez
70, Villari Herrmann foi das mais admiráveis versos. Poeta e editor, norteado por um rigor
pelo talento poético e pela inteligência (na extremo, sua produção poética, em três
Paulicéia, diferentemente de outras capitais décadas de atuação, é pouquíssima, sendo
em que a nata da intelectualidade se reúne ela mesma, já, a sua antologia: aquilo que a
invariavelmente num determinado bar, há cabeça permitiu fosse posto para fora, fosse
dezenas de grupos que se reúnem em dezenas dado a público. Aquilo que o poeta exige
de lugares diferentes dos Bairros de Santa de si mesmo é tanto, que não se permite
Cecília, Moema, Perdizes, Pinheiros, Cambuci, redundâncias reiterativas de seu talento de
2005

Vila Olímpia, Higienópolis-Pacaembu etc). poeta. O acúmulo de resíduos imprestáveis,

353
no próprio cérebro é banido, empurrado de Campos, que certa vez o convidou a se

2003
para áreas, as mais recônditas. O que sai é, retirar de sua casa (o apartamento da rua
já, seleção, a antologia, poupando trabalho Bocaina, nas Perdizes), juntamente com
para críticos futuros, a quem bastará reunir todo o seu séquito. Por outro lado, tem tido
o disperso e analisá-lo. muitos admiradores.
Tendo sido inicialmente fazedor de Vive entre São Paulo e São Carlos,
versos, seu primeiro poema foi publicado afastado dos antigos amigos, porém, sem
em 1968, em jornal de Campinas chamado inimizades. Nos últimos tempos, tem feito
DIÁRIO DO POVO. No mais, seus poemas segredo de suas atividades no campo da
saíram em edições autônomas, em algumas criação ou, realmente, não tem produzido
das revistas por mim estudadas e já nada (ou - quem sabe - tem armazenado em
mencionadas neste espaço e em seus dois seu cérebro, ou mesmo, descartado, alguns
livros-não-livros: 4 Poemas e Oxigênesis ensaios de poemas). Seus antigos poemas
2004 (este, um primor gráfico que ficou a cargo - o K8, por exemplo - têm participado de
do grande artista Julio Plaza). Formado mostras e publicações: na REDE (ARTÉRIA
em Direito, Herrmann chegou a exercer a 8) e em CD ROM (CÓRTEX).
mencionada função de Promotor Público, Villari Herrmann faz parte de um grupo
da qual se encontra aposentado, há algum raro de poetas, daqueles que, não deixando
tempo. de fazer, fazem o mínimo dos mínimos, gotas
Polemista, travava suas batalhas de poesia, porém com alto teor de informação
sempre oralmente, não se dispondo a redigir estética. Explosões do Admirável.
e publicar metalinguagem. Isto chegava a (10 de abril de 2004)

custar a ele inimizade de alguns, o ódio e o


desprezo de outros tantos, que se sentiam
mortalmente atingidos pela agudeza de
suas observações. Acabava por se indispor
2005

até com gente maravilhosa como Augusto

354
OBSERVANDO XV graficamente vigorosíssimos. Picasso:

2003
plasmador, gênio do gráfico-pictórico,
1. O Cristo de Mel Gibson. É impressionante revolucionário em tudo o que tocou.
como a história do Cristo interessa e comove, 3. Pessoas-lendas. Há pessoas que se
mesmo sendo o filme apenas uma “leitura”, tornaram lendas em minha casa, cultivadas
muito embora justificada nos Evangelhos. por minha mãe, que as elaborou: a de
Deixando de lado, por enquanto, outras Dona Isabel (a espanhola que residia
discussões, como a do alegado anti- numa casinha vizinha à nossa à rua 7 de
semitismo do filme, gostaria de chamar Setembro: a conselheira, por excelência), a
a atenção para a iconografia da Paixão do de Teresa Barbosa (que trabalhou para nós
Cristo. É quase impossível escapar da longa e era a personificação da perfeição), a da
tradição de representação, que se estende da Profa. Clarita de Filippe (professora de língua
Alta Idade Média até, pelo menos, o Barroco francesa que unia refinamento à sabedoria).
(que se constitui no limite da Igreja como Todas as casas cultivam seus mitos… a
2004
patrocinadora da Grande Arte). Porém, as minha não seria exceção. [Acrescente-se o
alusões que o filme faz chegam ao século Dr. Mário Avellar, de Bauru, um excelente
XX, considerando obras de Rouault e de médico pediatra, um verdadeiro semi-deus,
Salvador Dalí. Em outro momento poderei em minha casa.]
abordar os demais aspectos do filme, que 4. Meu amigo Peter de Brito, falando a
não é genial, nem ocupará um lugar de mim: - “Que pena! É espantoso o avanço da
destaque na história do cinema… mas que tecnologia, e como será daqui a cem anos… e
mexe com sensibilidades no Ocidente, com nós já estaremos mortos, não é?” Nostalgia
toda a carga da herança judaico-cristã. de um futuro distante. Só nós, os humanos,
2. Picasso na OCA. Impressionante, nos colocamos esses problemas. Sempre e
também, e mais ainda é observar o vigor que sempre só nos resta o presente. Vivamo-lo.
Pablo Ruiz Picasso conservou até a casa dos 5. Deu pau no computador. É a expressão
2005

80 anos (e passando dos 90), com trabalhos do momento para os alunos relapsos de

355
sempre, principalmente os de curso superior. Abdalla, Abuazar, Banut, Sahadi…

2003
Desculpa esfarrapada para a não feitura de 8. Uma refeição. Quanto mais idosos
trabalhos a tempo. Uma das coisas que eu vamos ficando, mais condições temos de
proibia aos meus alunos do antigo primeiro apreciar melhor as comidas. O paladar vai-
grau era utilizar o verbo esquecer, ainda se apurando e, justamente no momento em
mais que não era empregado com correção. que mais condições temos do desfrute dos
Esqueci… alimentos, é a hora de “fechar a boca”, deixar
6. Alunos atentos e geniais como, de comer. Falar muito durante as refeições
recentemente, dois na FAAP. Um percebeu é certeza de não apreciar muito comida.
no contorno superior das asas da Vitória de Os nossos cinco sentidos são mobilizados
Samotrácia a letra “nü”, de níke (vitória em numa refeição; porém, o menos importante
grego). Outro viu na composição de cabeça e deles é a audição. Olfato, paladar e tato,
braços da Monalisa o contorno do mictório de mais uma vista d’olhos sobre os pratos, que
2004 Duchamp: “Fonte”. Essas contribuições dos o barulhinho da mastigação faz parte, não
discentes só nos trazem satisfação. Ainda incomoda (ou: não deveria incomodar).
escreverei mais detalhadamente sobre isto. 9. ÍO, O QUÊ?
7. Árabes em Pirajuí. Seguem nomes ÍO VÔ!
de famílias de origem árabe de Pirajuí que ÍO VÔ TI INCONTRÁ DOVE TU TIVÉ!
foram esquecidos por mim e lembrados Um estranho dialeto em novelas da Globo,
principalmente por meu irmão Tanel. Alguns que trouxeram como principais personagens,
tiveram passagem meteórica por nossa italianos . Certamente tal dialeto não é falado
cidade (principalmente muçulmanos, que em qualquer parte da Itália. Nenhum italiano
não chegaram a cultivar a amizade dos diria, mesmo no Brasil, “Ío vô”… Mas Anna
árabes cristãos), outros chegaram a deitar Paula Arósio, Raul Cortez e Maria Fernanda
alguma raiz. Ei-los (sem a certeza de que Cândido, sim. VÔ TI CONTÁ!
outros não aparecerão): Antônio, Bussamra, 10. Revoluções nas artes. Penso terem
2005

Marão, Pajé, Sales (!), Keid, Addud, Hadba, havido durante a primeira metade dos

356
século vinte, mais precisamente em seu de Abreu Prado, depois Venina Prado de

2003
primeiro quartel, três importantíssimas Cillo. É lamentável: faleceu, aos 79 anos,
revoluções nas artes do Ocidente, cujos em São Paulo, no dia 10 de abril de 2004,
desadobramentos sentimos/vivemos até tendo sido o seu corpo transladado para
hoje: Pós-Modernidade (ou coisa que valha) Pirajuí, sua cidade natal, onde foi inumado
avançada: no dia seguinte. Ao desespero de Rosana e
A. A revolução picassiana/cubista, calcada no do Sr. Rubens, somavam-se a serenidade
artesanato e que desbancou uma herança que sofrida de Rita e a dor de todos aqueles que
vinha pelo menos desde o Renascimento. a conheceram e sabiam de suas qualidades,
B. A revolução abstrata, com duas vertentes: a começar pela grande simpatia, que é uma
a. a kandinskiana; b. a malievitchiana/ perfeita manifestação de generosidade. Num
mondriânica - que implicou o banimento do certo momento, durante o velório em Pirajuí,
referente externo dos complexos sígnicos, Dona Venina, que conheci melhor nos anos
2004 gráficos/pictóricos [e escultóricos]. 70 e por quem nutria um sentimento de
C. A revolução duchampiana, a caminho do grande ternura, representou todas as mães
banimento do artesanato, com a imputação do mundo, ainda mais que, ao longo de sua
de elementos fortemente conceituais nas existência, acumulou boas ações como mãe,
obras. esposa, irmã, filha, amiga, membro de uma
(17 de abril de 2004) sociedade, enfim. Lembro-me das vezes em
que, a convite de uma de suas filhas, estive
em sua casa no bairro da Moóca, em São
Paulo - casa planejada pelo casal Prado-
de Cillo, uma bela casa, cuja construção
OBSERVANDO XVI havia sido supervisionada pelo pai de Dona
Venina, o Sr. Martinho de Souza Prado -
1. Dona Venina, uma vez. Houve uma vez nas refeições: as entradas que preparava,
2005

uma excepcional mulher chamada Venina comidas maravilhosas, sobremesas incríveis:

357
no mínimo quatro a cada fim-de-semana. amaram e a tiveram em altíssima conta,

2003
A ela dava prazer preparar iguarias que o mundo fica mais pobre. As pessoas são
pudessem ser apreciadas pelos seus e por insubstituíveis, muito embora não possam
ocasionais visitas, como era o meu caso. ser eternas. Ficam as lembranças a nos
Farmacêutica de profissão, Dona Venina alimentar no sono-sonho e na vigília. Dona
estava aposentada e havia, de concordância Venina deixa marido, duas filhas dois genros,
com o marido, resolvido se reinstalar em duas netas, dois netos. E toda uma legião de
Pirajuí, na velha casa de seus pais, a qual admiradores. Requiescat in pace.
adquiriu e transformou num primor. Ela, 2. TVDO. Este foi o nome dado por um grupo
com o marido, fez belas viagens, as quais de jovens com formação em Rádio e TV a
relatava com muito brilho. Há pouco mais uma produtora que estava destinada a fazer
de um ano, quando com ela me encontrei alguns dos melhores, mais criativos vídeos
em Pirajuí, na Praça João Augusto Ribeiro, do Brasil dos anos 80. Tratava-se da segunda
2004 em companhia de Eunice Neme Prado, Maria geração de videomakers do Brasil, a qual
Rosa Prado Negrisoli e Ilka Prado Gholmia, já possuía acesso a aparelhos sofisticados,
ainda exalava aquela simpatia e me pareceu embora ainda caros. Componentes da TVDO:
estar bem. Minha mãe, em algumas ocasiões, Walter Siveira, Tadeu Jungle, Ney Marcondes,
falou-me de seus colegas de classe, Venina e Paulo Priolli, Pedro Vieira (entrou depois,
Rubens, lá pelos idos dos anos 30 do século no lugar de Paulo Priolli). Fundação: 1981,
que acabou de passar e de como eram como produtora, porém, foi pensada desde
determinados. A morte de Dona Venina, 1980. Uma associação de amigos. A TVDO
pegou-me de surpresa. Só agora, enquanto possuía regras básicas, como que dogmas
escrevo, tomo consciência da grande perda (temporários), nos quais todos acreditavam
que significa esse passamento. É claro e, obviamente, seguiam: I. Tudo pode se
que o mundo continua a girar, os ventos a tornar um programa de TV. II. Edição e
soprar e as pessoas a se ocupar das tarefas sonorização são fatores fundamentais na
2005

do cotidiano… porém, para aqueles que a manipulação da informação. III. Cinema e/

358
ou TV: TVDO conforme a tela em que se vê. duas, três palavras se configuram poema!

2003
A “grife” ainda é utilizada, sempre que algum 3. A imposição de um geometrismo extremo
dos rapazes - que já passaram dos 40 anos - aos poemas, pelo menos na Poesia Concreta
faz um vídeo experimental, videoarte, enfim. produzida nos anos 50, a da dita Fase Ortodoxa
(De um depoimento de Walter Silveira, a ou Heróica, momento de seu lançamento
mim, em 31-07-2000). e afirmação. A herança concretista faz até
3. A Poesia Concreta e as Vanguardas do pensar que o Brasil do futuro já estava
início do século XX. Sempre há os que, sem acontecendo. Por sinal, o mais bem realizado
conhecimento de causa, costumam querer poema sobre VELOCIDADE - valor maior
minimizar pessoas e tendências artísticas. para os futuristas, no começo do século XX
A poesia não sempre foi intersemiótica? - é de autoria de um poeta concretista que,
Pergunta a megera despeitada que não tem em 1957, ano mesmo em que foi realizado
idéia do que seja poesia, muito menos a dita o poema, completava 20 anos de idade!
2004 “intersemiótica”. Outros dizem que nada de Sim, o autor, Ronaldo Azeredo era quase um
original tinha a Poesia Concreta, porque as menino. Prodígios de alguns jovens poetas.
vanguardas do começo do século XX, como (01 de maio de 2004)

a do Futurismo por exemplo, já haviam feito


tudo. Eu digo que não. Não! Há três pontos
a considerar, no que diz respeiro à Poesia
Concreta, a qual, por sinal, sinaliza o ápice
das conquistas modernistas em Poesia. São
eles: 1. A grande consciência de linguagem
ARTE E PUBLICIDADE
(que todo artista digno do nome deve ter)
de seus poetas e do grau de novidade que
Em muitas ocasiões, vejo-me
tal poesia trazia, em termos planetários.
constrangido por perguntas de alunos, na
2. A parcimônia. Com tão poucos recursos
Universidade. Constrangido, porque não
2005

operararam verdadeiros milagres: uma,

359
são perguntas quaisquer, mas questões que oferece) e sutilmente impõe produtos

2003
importantes e cujas respostas os alunos aos destinatários, utilizando o modo verbal
realmente esperam: eles querem uma imperativo: Compre!
resposta para algo que os incomoda, por O publicitário é alguém que deve ter
desconhecimento ou insegurança. Vejamos grande conhecimento das Artes Plásticas e
uma das questões que me têm sido colocadas da Poesia (arte da palavra, por excelência)
na FAAP, onde leciono a disciplina Teoria da cujos recursos utilizará para fins específicos.
Comunicação II: Não tem como objetivo deleitar o destinatário
Publicidade é arte? A resposta imediata da mensagem. Os publicitários, via de regra,
é não. E isto porque a publicidade tem fins diluem as grandes conquistas das artes, são
claríssimos, que são os de vender produtos os que maior proveito tiram das conquistas
e/ou idéias e a arte não teria uma finalidade das artes: com o intutito, por um lado, de
a não ser a de atender a necessidades de atrair consumidores e, por outro, possibilitar
2004 cunho espiritual/psíquico (viver-se-ia muito a memorização de slogans etc. Nisto, a
bem sem publicidade e propaganda, porém a Poesia, com seus muitos recursos para
Arte é necessidade para todos os humanos: colocar em destaque a materialidade dos
todos consomem alguma modalidade de arte signos, os quais constroem belezas, entra
e em algum nível). com papel fundamental: os ditos recursos
O publicitário, quem é, afinal? É poéticos têm um importante papel como
alguém que, através da atilização de algumas elementos mnemônicos.
técnicas, cujo funcionamento conhece muito Alguns publicitários desenvolvem,
bem, dominadas ou não por ele mesmo paralelamente ao seu ofício, um trabalho
(tendo idéias pode delegar tarefas) consegue artístico e alguns até vêem nisto uma
persuadir o chamado público-alvo (target, espécie de purgação. Bobagem! Problemas
como se diz no meio) de modo a lhe vender de consciência por ganhar dinheiro? (Pude
produtos. Sim é a única palavra permitida à assistir a alguns depoimentos de gente
2005

publicidade (ela só diz sim com relação àquilo famosa no meio, que via o publicitário como

360
um “lacaio do sistema”. Daí a atividade a ser um bem de toda a Humanidade. Arte.

2003
artística salvadora, já que livre do ganhar (08 de maio de 2004)

dinheiro - porém, nem sempre).


Alguns artistas foram publicitários
ou chegaram a fazer algum trabalho de
divulgação de produtos/idéias: Toulouse-
Lautrec, Maiacóvski, Andy Warhol, Décio
Pignatari, Paulo Leminski. Décio chegou
MÃE É MÃE!
a ter uma agência e até criou marca que
ficou famosa: LUBRAX. Leminski tinha uma
Mãe é instituição tão primordial e nossa
incomum capacidade para criar nomes.
civilização patriarcal-machista, quando
Quase sempre a publicidade dilui a
abarca os genitores diz: meus pais e nunca
Grande Arte. Porém, às vezes, dá o troco:
minhas mães (para os dois). Mãe é mais
2004 exporta técnicas e visualidades para a
especial que pai porque uma certa vez nós
arte de alto repertório, como foi no caso
habitamos dentro dela e dela saímos para
da Pop Art, que utilizou quase sempre
viver uma sucessão de traumas, a começar
imagens - publicitárias ou não - veiculadas
pelo nascimento.
à exaustaão pelas mídias. De qualquer
Todos somos Édipos, uns mais outros
maneira, o publicitário, se for mesmo um
menos, mas mãe sempre ocupa um lugar
artista, desenvolverá seu trabalho artístico
elevado, a não ser que não venha a ocupar
e ganhará ou não dinheiro, coisa que, como
e aí será exceção. Em certas culturas a
publicitário, não poderá se dar ao luxo.
mãe se recusa (a judia, a árabe, a italiana,
A publicidade é imperativa. A Arte
principalmente a do Sul) a se desgarrar
é sugestiva. A publicidade vende. A Arte
dos seus rebentos, porém eles, se bem
oferece. A publicidade acontece para. A Arte
encaminhados se desligarão do núcleo
se faz mesmo que apesar de. A publicidade
familiar primeiro e formarão o seu próprio,
2005

é para um público específico. A Arte já passa

361
onde haverá uma esposa ciumentíssima que quilometragem do filho: ele sempre será o

2003
tratará de afastar o seu marido de maiores “menino da mamãe”.
ligações com a mãe. A mãe, por sua vez, E as filhas-mulheres, como é que
tentará se impor na disputa - quase sempre ficam nesta história? As mulheres são as
perderá a briga - e daí nascerá uma relação de heroínas maiores. Quando da falta da mãe
inimizade com a nora, a qual variará quanto elas encarnam o papel e se tornam mães
ao grau de agressividade: a velha disputa potencializadas: mães-mais-que-mães de
pelo objeto amoroso. Sogra megera. Nora seus filhos-irmãos. Vide a pobre Antígone.
incompetente para cuidar do menino! Num E assim, sem sair do ciclo tebano da
ambiente civilizado, as partes se tratarão Mitologia, chorei as minhas mágoas. Deus
com cortesia e manterão distância, que é a salve as mães, os pais, os irmãos, amantes,
melhor providência para evitar transtornos. amigos. Que todo dia deveria ser dia de
Porém, para os solteirões convictos, a todos…
mãe sempre poderá contar com guardiães (15 de maio de 2004)
2004
exemplares que preferem morrer a assistir
ao passamento do ente querido. Para eles,
a questão sempre presente: “Por que nosso
pais nos deixam?” Pais (mormente a mãe)
deveriam ser eternos. Não deveriam ter o OBSERVANDO XVII
direito de morrer. Aí é que reside o heroísmo
dos solteirões, os órfãos, principalmente. 1. Alienação. Há um tipo de alienação que
Alguns sofrem menos, levando uma vida é fundamental para a sobrevivência do ser-
devassa fora, porém cultivando a mãe, humano e que pode ser chamado de ócio,
mantendo-a num altar. Isto não é “normal”, de lazer, de estar-à-toa na vida etc. Esse
mas existe. Em certas culturas, o filho é tipo de alienação não se confunde com
desligado assim que se inicia sexualmente. aquele outro que encobre comodismo e/ou
2005

Nas por nós conhecidas, não importa a covardia, aquele que se constitui pura e

362
simplesmente na ignorância voluntária, na tenham a liberdade para fazerem com sua

2003
omissão. A alienação necessária constitui- arte aquilo que muito bem quiserem. Mesmo
se num mecanismo eficaz de nossa psiquê que seja para colocá-la a serviço de uma
para a nossa salvaguarda e vai dos sonhos, facção quando, em verdade, ela deveria
quando dormimos, ao embevecimento estar a serviço de toda a Humanidade. A Arte
frente a uma obra de arte. Todos sonham. visa aos humanos, sejam lá quem forem. Em
Todos consomem arte, com esse ou outro última instância, só o tempo poderá fazer o
nome qualquer (nem que seja uma forma melhor dos julgamentos.
barateada de arte). 3. Línguas Vivas. As línguas - idiomas
2. Poesia e Engajamento. Engajamento, - são propriedade dos seus falantes (diria
em termos de uma temática, na poesia e em melhor: pensantes, falantes e escreventes).
qualquer das outras artes, constitui-se num As línguas vivem evoluem, mesmo que à
equívoco. Qual é o problema? Má consciência? revelia, pois, acréscimos se farão necessários
2004 Crença? Dirigismo artístico estatal? É aí que para cobrir lacunas e expressões substituirão
a poesia se torna propaganda e algo menos outras que já não funcionam tão bem - tudo
eficaz que os anúncios publicitários. Estes, envelhece, até as palavras e expressões. O
sim, sabem como fazer a coisa: vender um policiamento exercido pelos gramáticos não
produto ou mesmo uma idéia, que é esta a é de todo mau: tenta manter o caráter do
sua função precípua. A poesia tem a obrigação idioma. Portanto, a língua viva resulta desse
de afetar as pessoas em seus sentidos, como processo dialético em que, por um lado, atuam
mensagem com informação estética que é. as forças progressistas dos que a modificam
Geralmente a poesia comprometida/didática e, de outro, as forças conservadoras e até
se constitui na menos boa (para não dizer a reacionárias representadas pelos gramáticos,
pior) das partes de uma obra: de Maiacóvski professores de língua e até puristas de
a Haroldo de Campos, que são gigantes da vários departamentos. Os termos de gíria,
poesia do século XX. Porém, de qualquer por exemplo, são neologismos, porém
2005

maneira, é importante que as pessoas neologismos considerados plebeus pelos

363
gramáticos: a ralé da língua. Nobres são as

2003
palavras não-híbridas formadas com radicais
gregos ou latinos. De qualquer modo, palavras
e expressões novas vêm em prol da eficácia
na comunicação verbal… e isto as justifica. E COLECIONISMO E DINHEIRO
pensar que a luta em prol de um português
mais condizente com o que era falado no Brasil Colecionismo é compulsão, mania. O
foi uma luta dos modernistas do primeiro colecionador adquire, de uma maneira ou
momento, com Oswald de Andrade, Mário de outra, peças e isto para ele é uma felicidade,
Andrade, Manuel Bandeira à frente. Oswald de ou melhor, é a felicidade. Localizar algo de
Andrade não só defendeu, como praticou um seu interesse causa uma ansiedade que só
português mais brasileiro em seus poemas. se resolve com a aquisição, para logo depois
O Manifesto da Poesia Pau-Brasil (“A língua voltar a viver o processo e assim até o final
2004 sem erudição, sem arcaísmos. Natural e dos tempos…
neológica. A contribuição milionária de todos Alguns colecionadores determinam
os erros. Como falamos. Como somos.”) e os algo e agem a partir daí: colecionadores de
poemas do livro Pau-Brasil são prova disso. livros - os chamados bibliófilos, de selos -
Em oposição aos catastrofistas que dizem os filatelistas (e, em Pirajuí, temos um dos
que o Português marcha para uma inevitável maiores colecionadores do país), de quadros
descaracterização, digo que a língua de etc. Já outros, nem tanto: colecionam coisas
Camões e Manuel Bandeira continuará várias, com algo que seja comum, como,
personalíssima, porém, cada vez mais rica e por exemplo, raridade e valor de mercado.
viva. Que os donos do idioma, que são os Ou seja, investem.
que pensam a partir dele e, por meio dele, Quando é o amor que move esse juntar
se expressam , se incumbirãode mantê-lo coisas sob o mando de um, não se desfaz
eficaz. de nada: o que se pensa é ter a coleção
2005

(22 de maio de 2004)


formando ou integrando um instituição,
364
como um museu, por exemplo. Quando desmembramento é algo que precisa ser

2003
o colecionador morre, o que geralmente pensado.
acontece é que os herdeiros, de olho no valor Colecionismo, via de regra, está
de mercado, colocam tudo à venda. de mãos dadas com o dinheiro, porém, é
Não foi o que aconteceu com as coleções possível formar belos conjuntos de obras
das irmãs Klabin, Ema e Ewa, uma morando com muito empenho e pouco dinheiro.
em São Paulo, outra no Rio de Janeiro: Colecionando arte, por exemplo, de valores
as respectivas residências, mais acervos, jovens, que ainda não foram descobertos pelo
transformaram-se em fundações e poderão pernicioso mercado. Para isto, é preciso ter
ser visitadas (a do Rio já está aberta). Acontece um bom faro. Mário de Andrade, um classe
que, recentemente, a Pinacoteca do Estado média que chegou a viver grandes apertos
mostrou partes dos acervos de ambas. O financeiros formou, ao longo de duas décadas
critério das duas coleções - pareceu-me - foi e meia, uma coleção belíssima, contendo
2004 antes decorativo que artístico, muito embora, principalmente os modernos brasileiros (não
às vezes, as coisas andem juntas. Daí, dado só). Sua coleção (constituída de centenas de
o muito dinheiro disponível, conseguiram itens), com exceção de duas ou três obras
reunir objetos preciosos: das artes egípcia (um Picasso, um Lothe!…) que ficaram com a
antiga e chinesa ao Renascimento italiano, família, foi comprada pela USP e veio a formar
chegando aos modernos, como Chagall, o Museu Mário de Andrade, parte integrante
Soutine e Segall. do Instituto de Estudos Brasileiros.
Disseram-me (eu não cheguei a ler o Enquanto isso, outras coleções se
texto do catálogo) que tudo aquilo - e os que desfizaram, sendo que as principais obras
amam os objetos ficaram boquiabertos com foram parar em museus de fora do Brasil
a qualidade de tudo: imaginem: gravuras de (foi o caso da coleção de Tarsila do Amaral,
Dürer e Rembrandt! - representava apenas desfeita ainda em vida da artista, em 1951).
10% das respectivas coleções. Colecionar Ironicamente, o mais famoso quadro da arte
2005

dá prazer. Eternizar o feito impedindo o seu moderna brasileira, o “Abaporu”, de 1928, da

365
própria Tarsila, foi leiloado em Nova York e funcionou durante um relativamente curto

2003
arrematado por um colecionador argentino. período (cerca de três anos) na cidade
Hoje, o quadro só vem para o Brasil a passeio, de São Paulo, à Rua Cardoso de Almeida
para participar de exposições importantes. 2289, nas Perdizes, em casa que antes era
Raramente, no Brasil, alguém doa habitada por Miriam Chiaverinni, seu então
obras importantes a museus e quando isto marido Donato Ferrari e os filhos Lorenzo, e
acontece, deve-se festejar (recentemente os gêmeos Cristiano e Igor (que foram meus
o MASP recebeu doações significativas de alunos na escola infantil e de primeiro grau
alguém que preferiu se manter anônimo). Pequeno Príncipe, na segunda metade dos
Muito embora as grandes obras - assim anos 70). Miriam foi quem me encaminhou
como os inventos e os aperfeiçoamentos - já à FAAP para que aprendesse, como ouvinte,
sejam de toda a humanidade, que estejam em em seu curso de serigrafia - era assistida,
coleções públicas - os Museus - onde todos na docência, por Paulo Guedes - técnica que
2004 que queiram possam vê-las. Que todos têm me entusiasmou, dadas as possibilidades
o direito de vivenciar a fruição das grandes que oferecia para uma impressão de boa
obras, de elevar o seu repertório. Museus: qualidade e a baixo custo.
parte importante da memória das sociedades Bem, mas voltemos ao ASTER. Tal
humanas. É preciso tê-los e mantê-los. escola foi organizada com o propósito de
(29 de maio de 2004) ensinar técnicas, que iam da litografia
à arte do vídeo (e lá esteve ensinando
Roberto Sandoval, assistido pela sua então
namorada Renata de Barros), passando
por cursos teóricos de curta duração,
ASTER . ARTES envolvendo história e filosofia da Arte,
Comunicação e Semiótica (ministraram
ASTER foi uma espécie de centro de cursos: Walter Zanini, Décio Pignatari, Paulo
2005

estudos teóricos e práticos das artes, que Leminski, Willem Flusser, Nelson Leirner e

366
outros tantos). “ASTER é um espaço para a sido, além de insigne professor de História

2003
produção artística: pensar/fazer arte. Seus da Arte, o primeiro e mais importante diretor
objetivos dirigem-se a atividades docentes e do MAC-USP. Sua gestão deixou marcas
a atividades de pesquisa no campo da arte. ainda perceptíveis na arte de São Paulo). Na
Enquanto centro de estudos para o ensino, época, o professor Walter Zanini desenvolvia
ASTER tem por fim o conhecimento teórico e pesquisa e organização dos dois volumes
teórico-prático das artes visuais, através de de sua História Geral da Arte no Brasil, que
cursos organizados e atividades - orientadas viriam a ser publicados pelo Instituto Moreira
em atelier, de modo a possibilitar tanto a Salles.
introdução como o desenvolvimento, em Do segundo semestre de 1978 ao
profundidade, do pensamento artístico e de primeiro de 1981, o ASTER funcionou, mais
projetos em linguagem visual. Como centro bem que mal (sempre se recente da falta
endereçado ao desempenho profissional, de um administrador honesto para gerir as
2004 ASTER se propõe realizar trabalhos de finanças e organizar as coisas e penso que foi
assessoria artística, a nível teórico e prático, a este o caso) e foi pena que deixou de existir.
exemplo de projetos e edições experimentais, Enquanto que eu o freqüentei para fazer um
bem como constituir-se num ambiente de curso de litografia com Paulo Guedes, Paulo
eventos diversificados, para encontros e Miranda (estávamos envolvidos na feitura de
apresentações.” Assim é que tinha início o uma nova publicação: ZERO À ESQUERDA)
documento de fundação e lançamento do foi aprender serigrafia - aprendia com Omar
centro - uma escola muito especial - ASTER Guedes (falecido prematuramente em 1989.
(= estrela em latim, mas que em português Talvez o maior serígrafo do Brasil à época.
anagramatiza-se em ARTES, como, por Fina sensibilidade artística. Pessoas como
meio de setas, já indiciava o seu logo) e poucas.) e esta troca de nomes rendeu, na
apresentava os membros responsáveis: época, alguns lances bem-humorados.
Donato Ferrari, Dolores Helou, Julio Plaza, Paulo Miranda aprendeu tão bem, que
2005

Regina Silveira e Walter Zanini (que havia chegou a ensinar os primeiros rudimentos da

367
técnica a José Luiz Valero (na época, residindo aquele material e lembro, aqui, um cartão

2003
em Presidente Alves) e até escreveu um belíssimo de fim-começo-de-ano: HAJA LUZ
brevíssimo e útil manual de serigrafia: um EM 1980 - idéia de Paulo Leminski - que
escrito belo e competente, e espirituoso. deixava transbordar a claridade sobre o
ZERO À ESQUERDA, imprimimos destinatário).
no ASTER, utilizando - mediante a devida Estivemos - eu, Paulo Miranda e Sonia
remuneração - atelier livre, e foram muitas Fontanezi (ex-aluna da FAAP, curso de
e muitas horas de trabalho duro, mas Artes Plásticas, e que ali reencontrava os
divertido. Cidinha, espécie de assintente de antigos mestres) - no ASTER, mais do que
Julio Plaza e Regina Silveira, supervisionava quaisquer outros alunos. A nós, juntava-
as nossas sessões (lembro-me de que ela se se todo um pessoal envolvido na feitura
entusiasmara com jogos verbais e até chegou de ZERO À ESQUERDA, revista-álbum feita
a cunhar um “ela bela : belo elo”). Filmagens quase toda em serigrafia: Walter Silveira,
2004 (em vídeo) da finalização da revista foram Zéluiz Valero, Tadeu Jungle. Fizemos uma
feitas lá, bem porque o empacortamento tiragem de 500 exemplares da revista,
havia sido feito em casa do Paulo Miranda, à sendo que cada trabalho chegava à tiragem
rua Doutor Villanova naquela época. de 550 ou 600 exemplares (e isto ia mais
O ASTER realizou muitos cursos e pelo perfeccionismo de Paulo Miranda). Essa
mini-cursos. Por lá passaram muitos artistas época marca uma das melhores de nossas
e alunos que se tornaram gente de prestígio. vidas, tenho a certeza.
A divulgação das atividades da escola era A casa onde funcionou o ASTER ainda
precária - problemas com a veiculação de está lá. Passou por reforma e hoje é uma
material impresso - porém, cartões, cartazes casa comercial, daquelas que invadem
e cartazetes, criados penso que em sua bairros residenciais - limite de Perdizes
maior parte por Julio Plaza eram um primor com Pacaembu, que é onde se localiza. O
de arte gráfica e de inteligência artística ASTER sempre me lembrará as grandes
2005

(tive o privilégio de receber em casa todo pessoas que por lá passaram e que, em sua

368
maioria, eram meus amigos. De lá ficaram dos últimos tempos, no Brasil, juntamente

2003
alguns dos trabalhos mais importantes de com Lenora de Barros, Júlio Mendonça, Aldo
poesia intersemiótica e que fizeram parte da Fortes, Paulo Miranda, Villari Herrmann,
revista ZERO À ESQUERDA ou funcionaram Zéluiz, Arnaldo Antunes, Glauco Mattoso e
como edições autônomas, como foi o caso do alguns outros poucos.
Hitchcock, de Walter Silveira. Esse pequeno Tadeu: poeta, escritor, videomaker,
e importante capítulo das artes em São performer. Tadeu é o maior performer que
Paulo, que foi o ASTER em funcionamento, eu conheço: tudo em Tadeu é performance.
merecerá um bom estudo avaliativo. Que Um encontro fortuito com ele, um encontro
venha e aconteça! (05 de junho de 2004) marcado para um jantar ou visita a casa
de amigos, um telefonema: performances
memoráveis, trabalhos artísticos por si sós.
Em qualquer ambiente em que ele esteja - até
2004 dando uma conferência ou como jurado em
concurso de calouros ou como apresentador
TADEU JUNGLE II: ARTISTA 24H POR de programa de TV ou como membro de
DIA banca de TCC - Tadeu acontece, brilha pela
inteligência, senso de humor, graça.
Em todos os meus cursos e aulas Ultimamente tem acontecido na
comuns, nos quais abordo a poesia REDE, com o envio de uma fotografia a
contemporânea, Tadeu Iunges, ou melhor cada segunda-feira que, se aparentemente
Jungle (que foi como o velho Braga escreveu, inocente (nem sempre é o caso), traz um
certa vez, o seu nome… e ele o adotou!) título insólito, transformando o fato-foto
entra como personagem de primeiro plano. em outra coisa. E isso tudo é parte da
Isto porque, além de artista múltiplo que é generosidade do artista, que é também um
- hoje se diz “um artista multimídia” - pode publicitário de sucesso.
2005

ser considerado dos melhores fazedores Mas, pretendo me reportar a tês

369
performances postais de Tadeu (que tem você estava, de fato, lá - um readymade

2003
utilizado, para a sua arte, os mais diferentes modificado. (Lembro-me de uma exposição
meios: os que se mostram, no momento, de Fabiana de Barros, realizada em São
mais adequados para a veiculação de suas Paulo - em que Walter Silveira e acho que
idéias-poemas): de fins dos anos 70, em também Tadeu estiveram envolvidos - cujos
diante: 1. O lançamento de seu livro de convites chegaram de várias partes do
poemas Suruba: Recebia-se o convite em mundo. O meu veio de Tóquio-Japão. Na
casa, só que, à informação de lançamento galeria, dia da abertura, a artista não se
NESTE LOCAL, não se seguia endereço. encontrava - permaneceu na Suíça, onde
No dia anunciado no convite, recebia-se residia - havia um pedestal básico e sobre
o livro em casa. Ou seja, o NESTE LOCAL ele um televisor que mostrava uma imagem
era sua própria casa! 2. O remetente que fixa de paisagem urbana pintada, da série
era, em verdade, o destinatário. Envelope “Torres do mundo”).
2004 com nome e endereço inexistentes. Correio Tadeu possui uma obra com suportes
faz retornar ao remetente: aí, com tudo duráveis: vídeos, poemas, fotos. Porém,
correto, o envelope chegava dando susto sua atuação-no-mundo, suas performances
em quem o recebia, enfim. Dentro, poema - memoráveis, diga-se - são parte estrutural
gráfico-semântico IDA-VINDA, explorando a dessa obra que se vem constituindo.
semelhança do A e do V com pontas de setas, Permanecerão graças a indícios mas,
que acabavam por indicar direções opostas: principalmente, através de relatos. Como
IDA e VINDA. 3. Recebe-se em casa um belo este que ora registro.
cartão, texto branco sobre fundo vermelho: (12 de junho de 2004)

ONDE ESTÁ VOCÊ? Tratava-se de convite


para uma exposição na Galeria Valu Oria. Lá
chegando, placas etc, às centenas, com os
dizeres VOCÊ ESTÁ AQUI: em branco, fundo
2005

vermelho. E tratava-se da pura verdade:

370
DOIS FILMES MEMORÁVEIS Hollywood - no caso Ginger Rogers e Fred

2003
Astaire - o filme constitui-se num território
A todo momento nossos alunos nos da expressão peculiar felliniana, em que
solicitam coisas. Opiniões, por exemplo. têm voz e vez suas preferências: o gosto
Se eles chegam até nós, é porque nos pela decadência (os imitadores já velhos) e
respeitam e daí a impossibilidade de uma pela recordação em forma de relato fílmico
recusa, de nossa parte. Os comentários que (o passado no presente), mais toda aquela
se seguem me foram solicitados por alunos metalinguagem cinematográfica observável
de Cinema da FAAP, porque necessitavam de em tantos outros filmes do referido diretor.
comentários de aficionados do cinema sobre Algo que nenhuma outra equipe fora da Itália
os filmes-objetos-de-abordagem em seus - diretor à frente - poderia fazer. Os atores
trabalhos de aproveitamento. Entreguei-lhes (as personagens se reencontram depois de
os tais comentários por escrito, assim como muito tempo) têm um desempenho que vai
os reproduzo aqui, sem a preocupação de além da excelência: M. Mastroianni e G.
2004
um cinéfilo ou cinemaníaco ou, mesmo, de Masina. Não é dos melhores filmes de Fellini,
um acadêmico. Eu apenas gosto de cinema. que possui um conjunto apreciável de títulos,
De cinema-cinema. De realizações em que porém mostra que o diretor havia atingido
percebo que o narrador é a câmera. De um nível qualitativo bastante elevado. Cresce
um cinema que se configura, de fato, arte no confronto com o todo da obra felliniana.
cinematográfica. SP 22 maio 2004.
1. Fellini (se bem me lembro…):Ginger 2. De olhos bem fechados (Stanley
e Fred, de Federico Fellini: mais do que Kubrick): De olhos bem fechados, de
uma crítica ao sistema perverso da mídia Stanley Kubrick, impressiona por tudo
televisual - já que mostra todo o processo aquilo que impressiona num filme desse
de preparo e apresentação de um programa diretor: algo de encher os olhos! Há uma
que intenta reviver antigo programa em que visualidade incomum nos filmes de Kubrick,
2005

se imitavam (covers) artistas famosos de mesmo sabendo do padrão hollywoodiano

371
perpassando tudo: padrão que é ditado certos ritos religiosos (ou nos sonhos: há

2003
tanto pelo orçamento milionário, como pelo momentos de clima bem onírico no filme).
excesso de gente ultra-especializada e que Comumente se diz: “O fime de Kubrick” e,
trabalha para que a coisa beire a perfeição: e como em outros casos, se esquece de que
os filmes kubrickianos são perfeitos: naquele centenas de pessoas foram necessárias
sentido de que trazem a sensação de que a para que o filme acontecesse. Bem, mas
eles, enquanto filmes, nada falta. No caso nem o arquiteto assenta algum tijolo ou
específico do De olhos bem fechados (que azulejo, que seja, nos edifícios que projeta.
vi uma única vez), não apreciei a escolha Teria Kubrick, de fato, supervisionado todo
dos atores principais - que não são maus, o trabalho de montagem do filme (já que
diga-se - porém, como discutir com o gênio? morreu antes de seu lançamento)? Os filmes
Tais atores se nos apresentam algo vulgares de Kubrich são coisas do grande cinema e
num filme feito de “lugares incomuns”: dos falam a um certo repertório. Alto. Há que
2004 cenários às estranhas figuras femininas: se ser cinéfilo, minimamente. Considerando
a única mulher verossímil é justamente que Stanley Kubrick não possua filme ruim,
a personagem interpretada por Nicole fica difícil classificar qualquer de suas peças
Kidman. Tudo o mais é mistério… Nem fílmicas. Admiráveis.
sei se se trata de roteiro original ou se foi Embora carregados de juízos e até
uma transposição de texto literário (um audaciosos em certas afirmações, estes são
amigo me disse, depois, que foi baseado apenas comentários. Como eu gostaria de
em obra literária), mas pareceu-me que ser comentador, no sentido em que Jorge
no centro de tudo está a revelação de que Luis Borges era um comentador! Falar
certas coisas que envolvem os poderosos, (escrever) sem o compromisso quase sempre
só aos poderosos concernem: só eles têm desagradável de atentar para as exigências
acesso, só eles compreendem e que basta da Academia. Este espaço tem permitido
tornar-se um deles - se isso é permitido - a mim tal exercício. Por isto mesmo é que
2005

para penetrar em tais mistérios, como em não perco a oportunidade que aqui tenho

372
de emitir os meus juízos. Aqui e em minhas Aquiles, o maior dos guerreiros gregos. Heitor,

2003
aulas na Universidade é que satisfaço a o maior dos guerreiros troianos, encontrou
minha necessidade de exercer a crítica. ator mais adequado), da mesma forma que a
Crítica = discernimento (atentando para a atriz que faz Helena - que no filme passa por
origem grega da palavra “crítica”). E tenho uma simples leviana - bonita e algo vulgar
dito. (maquiada de forma inadequada), sem nada
(19 de junho de 2004) da figura que idealizamos: a mais bela das
mortais, filha de Zeus e Leda. Cenários
interiores inverossímeis. Uma Ilíada
prosaica, em que, além de os deuses terem
sido excluídos, passagens são desvirtuadas.
OBSERVANDO XVIII Citaria, das inúmeras observáveis, apenas
uma: Agamenon morre durante a guerra
1. Tróia, um filme. Lamentável o filme, que sendo que, de acordo com a tradição, vence
2004
não resiste se comparado a outros épicos o conflito (só vem a ser assassinado na volta,
dos anos 50 e 60, que foram os que melhor em seu lar, pelo amante da esposa). Mesmo
vi, da infância à adolescência e depois. o tal cavalo, “presente” dos gregos para os
Não se sustenta como narrativa de feitos troianos, se de início parece interessante
heróicos, porque há falhas nessa narrativa enquanto forma, é desancado… Naquela
cinematográfica. No máximo se salvariam mencionada meia hora de filme colocaria dois
uns trinta minutos de filme, o que daria um momentos de luta (especialmente contra
bom curta. Não li as críticas que saíram em Heitor) de Aquiles-Brad Pitt e encontros das
todos os jornais […]. O belo (e já cansado) infantarias beligerantes. Não tenho dúvida
Brad Pitt não convence enquanto Aquiles de que é um dos piores filmes a que assisti
(puseram uma Grace Kelly para encarnar o nos últimos dez anos (só não perde para
herói grego na guerra contra Tróia, a qual, Striptease e para A Mexicana). Não exigiria
2005

segundo a tradição, teria durado dez anos. que o roteiro fosse ditado exclusivamente

373
pelos poemas homéricos, porém, desvirtuar ele e aos demais fosse mesmo o dinheiro,

2003
aspectos da tradição para se chegar a um que compra coisas: o conforto, por exemplo.
filme de quinta categoria não é feito nada Porém, sempre seria de se esperar mais da
louvável. Cinema é uma outra coisa. E tenho inteligência de Caetano Veloso. Se antes
visto. ele chocava por elogiar publicamente os
2. Pour épater… Desde antes da explosão irmãos Campos e Décio Pignatari (os poetas
da Tropicália, mas principalmente a partir do Concretismo), hoje, Caetano Emmanuel
da, Caetano Veloso gostou de uma polêmica, Vianna Telles Veloso choca por louvar o
de chocar, o que era sustentado pela sua trabalho de uma Sandy, por exemplo. O
inteligência, ousadia e rapidez, por um lado, tempo opera transformações que nos deixam
sendo que por outro, era sempre insuflado pasmos. Menos grave é elevar Peninha à
pela mídia que, via de regra, o provocou categoria de valor maior na MPB!
para ter do que falar e porque, em sua maior 3. São Paulo: 13 de junho de 2004: 8ª
2004 parte, gostou dele. Caetano Veloso teve o PARADA DO ORGULHO GAY. Falou-se em
tempo todo vez e voz nas mídias, além do 1,5 milhão de pessoas ou mais. Presentes
prestígio de que sempre gozou junto aos todos os sexos existentes, principalmente
aficionados da MPB e mesmo de poetas gays e, bem menos, lésbicas. Muitos casais
de importância planetária, como Augusto hetero jovens - simpatizantes? De fora,
de Campos, que viu nele, desde logo, um numa ilha da Consolação, altura da rua
talento, um valor incomum. Excetuando-se Piauí, assisti à grande passeata durante uns
o interregno infeliz de sua prisão e exílio, quarenta minutos e teria ficado mais, não
Caetano Veloso só colheu louros e, de um fora o frio com um vento cortante… Divertido,
tempo para cá, grana, muita grana (em como assistir a um corso carnavalesco. Como
verdade, sempre faturou: pouco com discos, certos homens - gays - ficam fascinados pelo
muito pelos direitos autorais e com shows, glamour permitido às mulheres. Lembro-me
embora faturasse bem menos que outros seus de que, na segunda metade dos anos 50
2005

coetâneos). Talvez que o que interessasse a do século passado, no Grupo Escolar Olavo

374
Bilac, de manhã, antes da entrada em sala, o seu sossego. Saibam todos que as coisas

2003
todo o alunado, disposto em filas por sala de do reino de Eros, para nós humanos, nunca
aula - não havia salas mistas, a não ser no serão pacíficas e/ou fáceis - não importa
Jardim de Infância - ouvia o belo canto de um a qual dos muitos sexos venhamos a
“Desperta no bosque gentil primavera” ou de pertencer. Isso tudo me faz lembrar Medéia
um “Alecrim, alecrim dourado, que nasceu em seu desespero: sentindo-se desamada,
no campo sem ser semeado”. Só às meninas diz: - Como os amores são um grande mal
era dado o direito de cantá-las. Como o que para os mortais! Que nós possamos louvar
há do outro - sexo - em nós é reprimido! os nossos amores, aqueles que envolvem as
Bem, a nossa psiqué é de uma complexidade coisas carnais, que aqueloutro, está acima
que chega às raias do incompreensível. de qualquer mesquinhez da sociedade. Que
As pessoas devem ter assegurados, pelas nos protejam os deuses!
sociedade em que vivem, os direitos de (26 de junho de 2004)

2004 (assumir) ser o que bem quiserem e


essa “parada”, que já assume proporções
gigantescas e vira atração turística, mostra
isso de muito bom: que houve, em algumas
décadas apenas, progresso sensível no trato PRISCILLA DAVANZO: UMA MULHER :
do homoerotismo no Brasil e no Mundo e UMA VACA
que as pessoas têm podido se manifestar, (UMA ARTISTA DE CORPO E ALMA)
muito embora ainda haja problemas. Que
a felicidade é um departamento outro, que Priscilla Davanzo nasceu em São Paulo,
não passa pelo sexo, tampouco pelo dinheiro no ano de 1978. Técnica em edificações
(embora não possamos ser felizes sem os pela Escola Técnica Federal de São Paulo,
mesmos). Que as pessoas possam ativar a acabou indo cursar Eduação Artística, com
sua sexualidade - externa, inclusive, com habilitação em Artes Plásticas, no Instituto
2005

trejeitos e tudo o mais - sem que percam de Artes da UNESP, campus de São Paulo

375
onde, desde o início, se apresentou como O projeto principal de Priscilla Davanzo,

2003
uma aluna diferenciada, não só pelo projeto no entanto, é de longo prazo: para a vida
de vida-arte que começou a desenvolver inteira, mesmo! Trata-se de trabalho em
com embasamento teórico, já no ano 2000, que se observa uma confluência de Body
como também pela sua postura enquanto Art, Arte da Performance, Arte Conceitual,
ser-humano: de uma polidez rara, brilho sendo utilizadas diversas técnicas e tendo o
intelectual e um repertório já admirável. corpo como suporte: tatuagem, branding,
Foi aluna minha em duas disciplinas cutting, implante e piercing. Pricilla
(nos anos de 2002 e 2003) nas quais se Davanzo, lentamente se está transformando
apresentou distintamente: pelo respeito às em VACA, assumindo todas as implicações
disciplinas que cursava e, conseqüentemente, que a coisa traz, o que inclui o modo como o
pelo professor e pelo desempenho que lhe animal é tratado em outras culturas.
valeu um nove e meio e um dez como média Num vídeo que corre o mundo -
2004 (é muitíssimo raro eu atribuir esta nota a Geotomia, de Marcelo Garcia - Priscilla diz
um graduando). Mostrou-se uma escritora que ruma em direção a um suicídio: anula-se
criativa, elaborando textos polilíngües (fala, enquanto ser-humano, assumindo-se vaca.
com maior ou menor desenvoltura: inglês, E a técnica durável da tatuagem garante -
espanhol, sueco, italiano, francês) de caráter diz ela - que será vaca para sempre e não
experimental. por apenas alguns dias. Com o lado body art,
Enquanto artista plástica, sempre Priscilla passa a se configurar - ela-mesma
utilizou o corpo como meio, instrumento e/ - o objeto artístico.
ou suporte. Em 2002 (ou 2003?) apresentou Mas a coisa não pára por aí, pois ela
uma interessante série: “hematogravuras” utiliza certas palavras e frases inteiras, que
que, como o próprio nome já diz, utilizou são tatuadas em partes de seu corpo. Nas
sangue por tinta de impressão, impressão, costas, marcas de asas arrancadas (técnica
esta, do próprio corpo (talvez que fosse mais do branding): o ex-anjo se transformando
2005

um trabalho de somatogravura). na sagrada vaca.

376
O trabalho (em progresso) de Priscilla Acreditando nisto, e sentindo por ela um

2003
Davanzo já passa a ser conhecido fora grande afeto, fiz dela (vestida) algumas
do Brasil, ao mesmo tempo em que ela fotos, as quais já encaminhei à minha
continua ligada à Academia, pois cursa a galeria de amigos-artistas. Priscilla Davanzo
Pós-Graduação em Artes, no IA-UNESP. Já mantém viva a vertente experimental de
foi fotografada nua (como deve ser, para toda verdadeira arte. Fiat opus artis.
mostrar seu trabalho) por celebridades (10 de julho de 2004)

como Gal Oppido e tem recusado tratos


sensacionalistas - ela está fora dessa coisa
de aparecer pelo simples fato de aparecer:
desenvolve um trabalho como artista, no
qual acredita, tendo plena consciência do
que faz. UM FILME É UM FILME

2004 Priscilla pratica, mesmo que à revelia,


a arte da performance, pois, onde quer que Um filme é um filme e um livro é um
vá é notada e seja lá o que vier a fazer ou livro. Há a narrativa verbal e outras, porém,
não fazer, estará chamando a atenção dos a narrativa verbal, que vem da epopéia,
presentes (o que escapa das roupas provoca detectável em todas as sociedades humanas,
grande curiosidade nas pessoas). dá origem à narrativa em prosa e isto num
É importante observar o processo- momento em que a escrita vem em auxílio
projeto de Priscilla Davanzo o qual, acredito, da memória. De uma narrativa com base
prosseguirá e se desdobrará em outros, todos nos fatos ou supostos fatos passa-se a uma
contendo a mesma radicalidade. Priscilla narrativa de ficção (de fingimento) que acaba
Davanzo, nos seus vinte e seis anos de idade, por ganhar foros de arte (muitos dirão que
reúne qualidades que fazem dela uma grande toda prosa, por melhor que seja, sempre
artista: conhecimento (repertório específico), será diluição da poesia, que trabalha com
2005

empenho, inteligência e coragem artísticas. concisões, principalmente a lírica). A essa

377
prosa de ficção procuro chamar de ‘prosa jakobsoniano, aplicando a Semiótica

2003
ficcional artística’. peirceana, o que resultou em sua tese de
Da mesma forma que nas Letras, no Doutorado e em livro publicado: Tradução
Cinema (a Cinematografia é técnica-arte Intersemiótica). É o que se deve observar
tão recente: a primeira sessão de cinema no trabalho cinematográfico que empresta
aconteceu em Paris, em dezembro de 1895 e argumento de narrativa literária. Não
foi coisa dos irmãos Lumière) temos narrativa se trata de simples adaptação, mas de
calcada na ‘realidade’ e a narrativa de ficção. uma transcodificacão, de uma Tradução
A narrativa cinematográfica tem - é claro - Intersemiótica.
suas especificidades. Num filme, o narrador Muitos são os exempos exemplares
deverá ser a câmera (vide Hitchcock, Fellini, de tradução intersemiótica de texto
Antonioni). literário para filme - o narrador é a câmera!
Filmes têm, às vezes, roteiros originais. Recomendaria, para se ter uma idéia clara da
2004 Porém, é muito comum que se adaptem obras tradução intersemiótica, o filme de Federico
literárias para o cinema. Obras-primas da Fellini “Satyricon”, que foi uma recodificação
narrativa ficcional verbal (contos, novelas, da obra narrativa de Petrônio (Antigüidade
romances) quase sempre têm dado filmes Romana), do mesmo nome. Tive a chance
medíocres. Muitas obras literárias medíocres de revê-lo recentemente, em cópia nova,
têm dado obras-primas no cinema e isto integralmente: uma verdadeira maravilha!
porque a transposição é feita de tal modo
que o filme venha a ter autonomia enquanto Como colocou o mestre Haroldo de
obra (de arte). Campos: a obra traduzida (estava falando
Daí que é muito útil a noção de tradução da tradução interlingual de poemas) deverá
intersemiótica ou transmutação, como ser autônoma e recíproca. O mesmo se
traz a nós Roman Jakobson: transposição deve esperar de filme baseado em narrativa
de um sistema de signos para outro (Julio literária: que seja obra de arte por si só,
2005

Plaza desenvolveu à exaustão esse conceito autônoma e que traga consigo a memória da

378
obra que a originou. Hitchcock e Antonioni fundamental, pois chega a ser a única fonte

2003
sempre souberam disto. Um filme é um filme de informação de boa parte da população (e
é um filme é um filme… nem me refiro, aqui, àqueles que dispõem
(17 de julho de 2004) de TV a cabo, que é paga e muito bem
paga). Esperar da TV aquilo que ela não
pode dar só pode trazer desilusão, quando
não revolta (principalmente a TV comercial
aberta, que depende exclusivamente de
patrocinadores, os quais querem mesmo é
OBSERVANDO XIX audiência para colocar - impingir - os seus
produtos). A TV - por outro lado - não é
1. Aprofundamento é processo solitário. profunda e nem poderia sê-lo. Nem uma
TV é entretenimento, é diversão, é cultura aula com um professor-gênio aprofunda
de massa. Isto quer dizer que, em termos muito as questões. É necessário que se
2004
de informação, a TV não deve ultrapassar faça algo mais: o esforço sem esperança de
um certo limiar, sob pena de ter audiência recompensa, a aplicação, a disposição em
nenhuma. TV não tem obrigação de ser despender um enorme tempo com leitura e
educativa - naquele sentido de passar reflexão. Que o verdadeiro aprofundamento
conteúdos formativos. Porém, ela até pode só é possível no recolhimento (vide filósofos,
ser um veículo educativo e às vezes o é, santos, profetas, poetas, cientistas). Que
mesmo que à revelia. A TV é um veículo esse aprofundar-se é um processo solitário.
(agora se diz uma mídia; antes se dizia Que poderá recompensar, às vezes, toda a
um medium) com grande importância Humanidade.
no mundo todo. Porém, essa importância 2. CAZUZA, o filme (2004). CAZUZA
varia: é muitíssimo grande no Brasil. Já na - o tempo não pára (direção de Sandra
França, não é tanto. De qualquer modo, Werneck e Walter Carvalho) é o filme, por
2005

em nosso País, a TV desempenha um papel sinal, um filme médio, dentro dessa média

379
mercadológica que tem caracterizado filmes cantor de feia voz: Renato Russo), que dele

2003
brasileiros, salvo exceções raras (Bressane, fizeram uma espécie de guru, filósofo, coisa
por exemplo). Aquele padrão de filme - global, que, de fato, nunca foi. Um curioso, talvez.
diria - evolvendo desde atores até diretores Penso que o que fica de seus exemplos
da famosa grife televisual e carregando de vida é a possiblidade de uma certa
muitos patrocínios e apoios culturais. O ator liberdade, tão desejada por adolescentes e
que faz Cazuza (Daniel de Oliveira) está pelos muito jovens, que pensam que podem
simplesmente ótimo (Cazuza era um pouco prodigalizar-se no uso da tal liberdade.
mais bonito, mas o ator global chega a ser Isso não desmerece o trabalho de nenhum
bem parecido com aquele). O momento mais dos dois (ou três), naquilo que realmente
interessante do filme é justamente quando o pretenderam: compositores-cantores da
personagem-protagonista corre desesperado canção popular. Dizer que Cazuza foi o poeta
ao saber da doença que o mataria e é visto de sua época é estar por fora de tudo o que
2004 pelo olho do amigo que lhe corre atrás: estava acontecendo no campo da poesia da
uma câmara subjetiva que quebra aquela época. Mesmo na MPB havia coisas bem mais
abordagem fílmica corretinha e, portanto, radicais que o Barão Vermelho e Cazuza-
medíocre. Cazuza foi uma figura interessante, solo e que não tiveram tanto trânsito. Nisso
que virou uma biografia. Em outra situação, tudo, o que mais me comove é o desespero
com o problema que tinha de dicção, nem da mãe Lucinha de Araújo, interpretada
seria admitido como cantor. Porém, foi uma magistralmente no filme por Marieta Severo
figura e vi o filme com atenção. O trabalho (Paulo Miranda sempre reprova a atitude da
passa à juventude a idéia de um sábio, com mãe de Cazuza, por não enterrar, de vez, o filho
seus “aforismos geniais”, coisa que quem leu morto). Lucinha de Araújo se obriga a viver
um mínimo de filosofia - que seja em nível no dia-a-dia a memória do filho, obrigando,
colegial - sabe que não é nada disso, que o também, todos que a ouvem ao mesmo.
pensamento profundo transita bastante mais Semi-morto, Cazuza se expôs e as mídias
2005

acima. Mesmo é o caso de Raul Seixas (ou do disso se aproveitaram, impiedosamente

380
(veja-se a VEJA, por exemplo) e ele acabou sendo bem sucedida - por uma fatia no rico

2003
encarnando uma espécie de mártir. Mártir mercado interno brasileiro e com olhos no de
sem causa, que a doença, infelizmente, foi fora, também. Mas, não é com Bressane que
uma fatalidade. Com tanto infeliz anônimo, isso se dá. Este continua para o deleite de
mães idem, Cazuza teve a sua Jocasta- poucos. É importante que as coisas possam
Lucinha de Araújo. Uma tremenda Jocasta. existir: de Bressane a Guel Arraes. Eu sou
Um misto de Jocasta e Mater Dolorosa a nos mais Bressane.
comover sempre que aparece. (24 de julho de 2004)

3. Júlio Bressane: Filme de amor (2003),


com Bel Garcia, Josie Antello e Fernando
Eiras. Veja rápido antes que saia de cartaz.
O mais belo filme do diretor Júlio Bressane,
plasticamente falando. Um dos melhores MADAME BOVARY
2004 filmes que vi nos últimos dez anos. Como
sempre, mesmo contando com patrocínios, Reli (diz-se que “intelectual brasileiro
Júlio Bressane se situa na contramão do não lê; sempre relê!”; parece-me que vi isto
cinema brasileiro. Referências, aparente n’O PASQUIM, começo dos anos 70) a famosa
nonsense, citações (Courbet e Duchamp), obra de Gustave Flaubert, agora muito
colagem (de clássicos da pornografia). No final bem lida, em suas cerca de quatrocentas
do filme, as coisas se esclarecem e aquilo que páginas. Emma Bovary, centro da narrativa
se pensava serem seqüências desconexas, (a protagonista) termina reduzida a pó, ou
ganha sentido: três personagens: um melhor, ao nada. A figura do marido, o Bovary,
homem e duas mulheres mergulhados numa de fato, o traído é menos que medíocre no
rotina-rotineira-vida-medíocre. Bressane,no texto flaubertiano. Maravilhosa seria uma
mínimo, faz pensar e crer que existe vida narrativa em que as coisas transcorressem
inteligente e sensibilidade no cinema em função dele e ela uma figura acessória,
2005

brasileiro, que ora trava luta - que está pura e tão somente…

381
Bem, mas a obra de Flaubert - história nos obriga a obra de tantas páginas e que

2003
de adultério na província - se chama Mme. percorremos com os olhos letra por letra,
Bovary e não Monsieur Bovary (Charles). palavra por palavra, linha por linha, página
Mas tive vontade de colocá-lo no centro a página.
e fiquei a imaginar coisas (sobre as quais O alunado, hoje, não está preparado
não falarei aqui e agora). A beleza do para tal esforço e constitui um erro do
narrar flaubertiano é, ali, percebido em professor determinar leituras (mesmo na
sua plenitude. É uma narrativa realista Universidade; no Colegial, nem se diga) que
(embora muitos façam questão de falar exijam muito fôlego e depois aplicar provas
em resquícios de Romantismo na obra. para saber se os alunos de fato leram.
Bobagem). Realismo, é bom que se saiba, A maioria não lê, mas sempre dará um
é coisa construída e não simplesmente dada. jeitinho para passar de ano ou semestre. Por
Semioticamente falando, na obra realista ou, outro lado, por mais que alguém venha a
2004 melhor dizendo, no complexo sígnico realista comentar sobre uma obra, não poderá passar
o que se percebe é que os objetos dinâmicos a experiência. Só a terá aquele que se der
(ou seja, aquilo que o signo representa ou ao trabalho de uma leitura que trará prazer,
substitui) são passíveis de serem existentes. mas que é penosa, de qualquer maneira. Só
E é sabendo disso - sem que seja preciso com a leitura é que teremos “experienciado”
conhecer semiótica peirceana - que o escritor a coisa do narrar, com toda a sua beleza.
realista trabalha (trabalhava). Da mesma forma: não há reprodução que
Emma Bovary é verossímil, como cubra uma pintura: a experiência de ver um
verossímil é a “Olympia” de Manet. Sei que quadro original num museu é intransferível.
é piegas concluir coisas do tipo, mas o fim O que se pode fazer é passar o entusiamo
impiedoso de Mme. Bovary me comoveu. pela coisa, é despertar o interesse.
Mas tudo isso vai por conta do excepcional Poucos são aqueles que, com menos de
escritor que foi Gustave Flaubert. Tudo vinte anos de idade podem apreciar narrativas
2005

isso, porém, não diminui o esforço a que escritas muito longas. Há uma verdadeira

382
dessintonia: geração de professores e de paradoxais para provocar o pensar nos

2003
alunos. Professores só sabem reclamar dos alunos. Chego, às vezes, a proferir
alunos dizendo que não sabem escrever, vulgaridades com o intuito de quebrar o
quando até falam bem. Bem, só escreve automatismo de percepção do alunado, criar
bem prosa aquele que escreve diariamente. um clima de estranhamento, poderia dizer.
Há uma sensibilidade outra, da TV para cá, Uma das coisas que já disse em sala-de-
chegando ao computador. aula: “Não existe o melhor filme de todos
Porém o código escrito continua na os tempos”, ou “Não considero o 2001: uma
ordem-do-dia. É melhor dominar bem o odisséia no espaço sequer o melhor filme
exercício da escrita (do texto em prosa, de Stanley Kubrick”, ou “Um corte de meia-
ficcional ou não): o texto com a função hora no 2001, só melhoraria o filme!” E por
referencial predominante. Porém, para se aí vai. São centenas de pérolas e, de quando
ser um escritor é necessário ter, antes de em quando, percebendo as reações eu ainda
2004 tudo, talento. Sim: talento! o qual, depois de digo: “Anotem”.
cultivado poderá resultar em grandes obras. Neste último semestre, falando em
Mme. Bovary: é disto que eu pretendia falar, narrativa cinematográfica e de como, num
como sempre, perco-me em divagações. filme, o narrador tem de ser a câmera eu
(31 de julho de 2004) citei Hitchcock e o coloquei nas alturas,
que é onde ele deve estar. Eu já havia dito:
“Nenhum terráqueo que tenha passado pela
universidade pode ignorar certas coisas
e, em se tratando de um estudante de
Comunicação, as coisas se especificam de
PARA IMPRESSIONAR ALUNOS modo tal que o aluno deverá ter visto, pelo
menos, quinze filmes de Hitchcock!” E passo
É comum eu me utilizar de frases a enumerar as obras…
2005

bombásticas e fazer certas afirmações Nesses últimos meses vim com a

383
seguinte: “Hitchcock: o único cineasta por

2003
quem eu renasceria para ver-lhe os filmes!”
É claro que, a partir disso, eu mesmo fui
desmontando a pérola: “Bem, não é preciso
morrer, para ter de renascer para ver filmes FENÍCIOS: HISTÓRIA E MITO
de Hitchcock: basta vê-los, de novo, agora”.
Porém, a questão era a de dizer o quanto eu Os fenícios, que se fixaram no que
prezava o tal diretor e que seus filmes eu veio a ser o Líbano (e arredores), mas tendo
os tenho em altíssima conta e que o único plantado colônias além, como foi o caso da
cineasta que me faz sair de casa com prazer célebre Cartago (atual Tunísia…), eram um
para ir ao cinema é mesmo o velho Hitchcock. povo de origem semita, que acabou sendo
Com o correr dos anos, nós vamos ficando absorvido, ao longo de séculos, por vários
mais seletivos ao mesmo tempo que mais outros povos que passaram por aquela
2004 serenos: hoje, por exemplo, eu não sairia de região do Mediterrâneo Oriental, ficando sua
casa para comprar disco de ninguém, a não herança genética, em definitivo, nos árabes
ser que fosse por encomenda; por outro lado, que ali se fixaram, durante a Alta Idade
pondero mais e chego a conseguir garimpar Média.
qualidades em autores e obras que antes eu O Líbano, país de cultura árabe, sempre
simplesmente rechaçava. evoca suas raízes fenícias, principalmente
Bem, voltando ao meu cineasta quando é para diferenciar-se das demais
preferido (entre tantos igualmente amados) nações árabes. Afinal, o lugar é o mesmo
eu recomendaria, para começar (sem respeitar e os árabes também são semitas. E como
a cronologia das realizações): “Suspeita”, não se orgulhar de um povo de exímios
“Psicose”, “O homem que sabia demais”, navegantes, comerciantes como nunca
“Janela indiscreta”, “Festim diabólico”, “Os houvera e inventores (ou co-inventores) da
pássaros”, “Intriga internacional”… escrita alfabética?!
2005

(07 de agosto de 2004)


Bem, mas a coisa é muito mais
384
complexa: os libaneses, pelo lado árabe humanos, o charutinho-de-folha-de-uva tem

2003
propriamente, são descendentes, em linha algo de dionisíaco: a folha-de-uva, por ser
direta, de Abrahão, tendo parentesco com de uva! …e pelo fato do sabor levar quase ao
os hebreus, porém, um pouco mais antigos, êxtase! Por tudo isso, os libaneses-fenícios
já que descendem de Ismael, que nasceu têm parentesco com Édipo, o famoso e
antes de Isaac. Primos de Jesus Cristo (e este desafortunado herói de Tebas…
argumento sempre utilizei em salas-de-aula Mas, deixando a megalomania de
de 1º Grau em que havia evangélicos: “Sou lado, os libaneses, como quaisquer outros
primo de Jesus Cristo”; e causava espanto povos, têm um passado rico e diferenciado e
e descrença!), admitido como profeta até registros históricos e mitológicos disso tudo.
pelos muçulmanos e como Filho de Deus De acordo com o que convém, evoca-se a
pelos árabes cristãos, é óbvio. herança.
Pelo lado fenício, a coisa se complexifica, Falta, ainda, uma melhor avaliação
2004 já que acabam tendo até parentesco com o do legado fenício para a Humanidade, como
deus Dioniso, pois, Cadmo, de quem o deus também do legado árabe, em geral (do
descende por parte da mãe, Sêmele, e que Oriente Médio todo, diga-se, pois os gregos,
foi o fundador da Tebas grega, era fenício, que estão na origem da Civilização Ocidental,
filho de Agenor, de acordo com as narrativas beberam daquela água, emprestando-lhe um
do ciclo tebano da Mitologia), porém, roupagem original). Como avaliar o legado
estando o deus ligado à vinha e ao vinho de um povo, que vem de cerca de 1500 anos
e não tendo os libaneses - que eu saiba - (o legado dos árabes, a partir de Maomé,
vinho de uva (cultivaram desde sempre a pois o dos fenícios tem mais de 3000 anos),
videira, pela saborosa fruta), acabam tendo se esse povo ainda está vivo, inclusive
o charutinho de folha daquela planta como representando perigo para o Ocidente? Além
um elo que os une ao deus (provavelmente do mais, o Islamismo (que se identifica com
de origem oriental) do delírio místico: uma o povo árabe em geral, mas não é assim no
2005

das melhores comidas já inventadas pelos caso dos libaneses, que já tiveram nas várias

385
formas de Cristinismo uma predominância) ultrapassa o nível de uma mediocridade

2003
é uma força em expansão. medíocre, o que é mais deplorável ainda
Como a Fênix, o Líbano, e Beirute, quando o tema é Pelé: o mais célebre atleta,
particularmente, renasceu das cinzas em termos planetários, de todos os tempos
provocadas por uma estúpida guerra, - desde as Olimpíadas da Antiga Grécia.
chamada de Guerra Civil e se apresenta Faltou inteligência artística, mesmo
hoje, de novo, como uma belíssima cidade. em se tratando de um documentário. Ou
Que o Líbano possa ser o senhor do seu seja: um imenso material que poderia ter
próprio destino e que os árabes, em geral, sido melhor tratado, com alguma criatividade
continuem fazendo História, inaugurando - enquanto montagem, que é o principal em
quem sabe? - uma nova era não precisando, cinema, quando já em posse de imagens
portanto, continuar dormindo sobre os louros preciosas, como é o caso.
dos tempos da Grande Expansão e de um Pelé por si só vale um, dois, três filmes…
2004 florescimento cultural que até hoje causa figura extraordinária, despontou para o
admiração. mundo na segunda metade dos anos 50 do
(14 de agosto de 2004) século que acabou de passar. Na Copa de
1958, em que o Brasil foi campeão mundial
pela primeira vez, o então adolescente Pelé
começa o seu caminho de glória e, jogando no
Santos Futebol Clube, que teve a equipe das
PELÉ ETERNO: O FILME equipes, alcançou o máximo que um atleta
pode alcançar e, mesmo depois de ter - de
PELÉ ETERNO (Brasil. Aníbal fato - encerrado a carreira, continuou nas
Massaini Neto, 2004. 120 minutos). Trata- mídias, a ponto de ser um rosto reconhecível
se de um documentário que surpreende em qualquer parte do mundo.
nos lances ainda não vistos por nós, porém, Desde os dezoito anos, no mínimo,
2005

decepcionante enquanto feitura, pois não teve tratamento de príncipe (que quer dizer

386
o primeiro; e ele, com o tempo, passaou a a idade (Pelé nasceu em 1940!).

2003
se tratar em terceira pessoa - Pelé, o outro - Seu envolvimento amoroso com
tendo já se tornado uma entidade autônoma: brancas, com tanta negra linda no Brasil, tem
o Pelé desligado do Edson Arantes do a ver não só com o equívoco de ascensão
Nascimento) onde quer que estivesse, o que social, mas - penso eu - com um certo
fez com que ele não pudesse perceber com edipianismo de macho, que pode ver nas
clareza os problemas que os negros vinham negras sempre a figura da excepcional mãe
e vêm sofrendo no Brasil e no mundo. Mesmo que ele tem; daí que uma relação endógena
assim, é um modelo para todos os humanos, poderia parecer incestuosa a ele.
negros ou não, de alguém que vence pelo Há inteligências diversas: ninguém é
talento e aplicação. (E pensar que hoje bom em tudo. A inteligência de Pelé chega a
jogadores medianos ganham fortunas por atingir a genialidade, que pôde ser percebida
ano, muito mais do que ganhava o glorioso em seu senso de oportunidade: cálculo-
2004 Pelé, que faturou, não só com futebol, mas relâmpago de tempo-espaço para uma ação
com os anúncios publicitários que estrelou). exata. E… gooooooooool!
Pelé possuía um físico perfeito e Hoje, mesmo com o melhor futebol do
mesmo não sendo tão belo como outros mundo, tivemos uma seleção de pernas-de-
negros que estão nas mídias, principalmente pau-muitíssimo-bem-remunerados que não
na televisual, possuía e possui um sorriso conseguiu garantir o Brasil na Olimpíada.
raro que abarca o mundo cada vez que Tudo isso - essa oportunidade de
acontece - é a personificação da simpatia. poder estar escrevendo sobre o rei - me faz
Físico perfeito: físico ao qual nada faltava lembrar de uma belíssima crônica de Nelson
para executar aquilo a que se propunha. Rodrigues, de 1958, que trata Pelé como
O bom-mocismo de Pelé, às vezes, um jovem deus e que li no ESTADÃO, por
chega a irritar, mas tudo o levou a isto e ocasião dos 60 anos do gênio, em 2000.
graças a isto é que ele manteve a forma, que E eu que nem gosto muito de futebol
2005

conserva até hoje - nem chega a aparentar (hoje, acho bonitas as transmissões pela

387
TV, como admiro os outros esportes, pelo OBSERVANDO XX

2003
mesmo veículo, que muito aperfeiçoou as
abordagens, com riqueza de detalhes e 1. Mãe e professor. Jamais falar mal de
edições admiráveis) estou a falar de seu um filho para uma mãe: diga a suposta
valor maior, Pelé. Bem, mas voltando ao verdade usando eufemismos, pois nenhuma
filme: de qualquer maneira vale a pena vê- mãe suporta a depreciação de seu rebento.
lo, aguardando alguém como João Moreira Daí que expressões como “É irrequieto”,
Salles para fazer do documentário uma obra “Está tendo problemas com assimilação”,
de arte. Pelé merece. E nós também. “É um pouco desatento” são importantes
e amenizadoras. Assim, a mãe terá tempo
Em tempo: A reabertura de espaço para para assimilar seu juízo (o qual vai bem
cimena, em Pirajuí, merece todos os nossos além daquilo que ela ouviu) sobre o filho.
aplausos e entra como mais uma opção Nunca subestime a inteligência do aluno,
2004 de lazer em nossa cidade. O som, durante muito embora possa criticar a atuação e
a sessão, me pareceu não bem ajustado, a carência repertorial específica dele. A
mas a sala é confortável e acolhedora e o experiência tem mostrado que - às vezes
problema poderá ser facilmente sanado. - maus alunos, quando crianças, revelam-
Coincidentemente, eu passei a escrever sobre se pessoas geniais ou de sucesso no campo
cinema nesta coluna. Não me considero um de atuação escolhido. Há grandes erros
cinéfilo, como era em outros tempos, mas de julgamento. Daí, que o que avaliamos,
tenho, ultimamente, recobrado o gosto pela em verdade, é a aplicacão do aluno, não
Arte do Movimento (Cinematografia). a sua inteligência. Para isto, teríamos de
(21 de agosto de 2004) conviver uns quatro anos com a criança/
adolescente; então, poderíamos emitir um
parecer sensato e próximo da justiça. Por
essa e outras, sempre me posicionei contra
2005

reprovações nas escolas em que trabalhei

388
(públicas e privadas). Tive a chance de poder de conhecimento, pois tem também as suas

2003
avaliar bem alunos, que eu acompanhava da ignorâncias as quais sabiamente oculta. O
5ª série à 8ª. A vida é quem melhor julga. que eu não sei, outro humano saberá por
2. E por falar em eufemismos (do grego mim, assim como eu deverei saber coisas
= o falar agradável). “Carência repertorial que os outros não sabem muito bem. Uma
específica”. Sim, esta a maneira como eu me existência não só não é suficientemente
referia a alunos que tinham grave problema longa, como as pessoas, com o avançar
de assimilação de conteúdos e eu, via de dos anos, vão perdendo a curiosidade e,
regra, dizia isto em reuniões do Conselho portanto, estarão velhas e, talvez até sábias
de Classe na EEPG “Almirante Custódio José desse processo a que chamamos de vida.
de Mello”, em Vila Granada (Penha) nesta Ou seja, com a idade vem o cansaço e daí
Paulicéia. A coisa até virou motivo de gozação já não dará mais tempo e o que não se sabe
por parte de uma professora - Teresinha, fica sem se saber. Manter acesa a chama
2004 muito querida, por sinal - sempre que se da curiosidade - que é aquela que leva ao
configurava a situação em que eu usaria conhecimento - é a questão principal.
a expressão “carência repertorial…”. Em 3. A moça com o brinco de pérola. Um
verdade, eu penso que a ignorância possa belo filme: ficção a partir de dados reais,
ser localizada e/ou difusa e que ninguém coloca a moça retratada por Jan Vermeer,
é totalmente ignorante, mas ignorante em pintor holandês do século XVII (um dos mais
algum departamento (porém, há aqueles que considerados em toda a História da Arte e de
exageram no direito à ignorância, coisa que quem tomei ciência, primeiro, em aulas de
é agravada quando emitem opinião sobre Dona Maud Pires Arruda). A maior parte do
todo e qualquer assunto e ainda frisam bem: que ocorre no filme é ficção, porém a bela
…”eu acho”…, …”na minha opinião”… ). Não reconstituição de época é tão verossímil,
dá para se saber tudo. Ninguém é totalmente que chegamos a pensar que estamos na
sábio, simplesmente a pessoa saberá colocar Holanda da época de ouro de sua pintura. Há
2005

em evidência aquilo que donima em termos momentos de uma poeticidade emocionante

389
e isto você poderá ver quando for assistir ao mãe: “Minha mãe passava por ser uma

2003
filme. Não se trata de um filme importante grande cozinheira, quando na verdade ela
cinematograficamente falando, mas possui fazia muitíssimo bem dois ou três pratos”…
um nível de babar. Encanta. Acontece que ela nunca errava os tais
4. Nélson Leirner. “O dia em que o pratos, o que demonstra que, de fato, ela
Corinthians foi campeão”, para mim, foi o era uma ótima cozinheira, só que, como
mais interessante dos trabalhos que Nelson era uma senhora não muito dada a prendas
Leirner expôs no Centro Cultural Tomie domésticas, delegando tarefas a outrem -
Ohtake, no 1º semestre deste ano de 2004. empregados, geralmente - e só colocando a
Nelson, quanto mais velho vai ficando, fica mão na massa em ocasiões especiais, quatro
melhor. Figura importante da arte brasileira, ou cinco vezes por ano, que é quando ela
principalmente a partir dos anos 60, Nelson executava os tais pratos deliciosos (há trinta
Leirner - que pertence a uma família de anos - 1974 - cheguei a comer um dos pratos:
2004 muitos artistas plásticos - mantém a força o tal Cozido: delicioso! Foi em abril, no dia do
criativa e tudo indica que prosseguirá por casamento dessa minha amiga). Porque uma
muito tempo. Auguri! grande cozinheira, de fato, inventa pratos e
(28 de agosto de 2004) consegue fazer manjares para deuses, mesmo
quando dispõe de pouquíssimos recursos. É
uma pessoa inventiva: cria pratos a partir
de conhecimentos básicos dessa alquimia
que é a culinária. Minha avó, mas também
minha mãe. Uma comida que não fazia
OBSERVANDO XXI mal a ninguém: sem exageros em termos
de gorduras e temperos. O feito: com um
1. Culinária. O que seria uma grande mínimo de variedade de ingredientes operar
cozinheira (ou cozinheiro)? Uma amiga o milagre. Uma comida tem a obrigação de
minha, certa vez, comentou sobre a sua
2005

ser gostosa. Minha mãe sempre cozinhou

390
com o máximo prazer, o que fez com que forma, os ditos populares jogam com

2003
todos os seus filhos comessem, de fato, com atrativos fônicos que nos impressionam e se
vontade. E era toda uma gama de pratos, nos cravam na memória. Poesia (a Arte em
não se limitando à comida árabe ou brasileira geral) não tem compromisso com verdades:
ou italiana, mas sempre exímia em alguns: seu único compromisso é com a beleza.
incomparavelmente boa. Minha mãe, ao Beleza!
contrário da mãe de minha amiga acima 3. Capitalismo e os problemas da
referida cozinhava todos os dias e nunca humanidade. O Capitalismo, de fato,
achou ruim por isto. Hoje ela prefere assistir triunfou, porém, não trouxe e nem trará a
de longe. Assistir: dar assistência para que redenção para a Humanidade. O modo de
outrem tome a frente da cozinha, mas nunca produção que salvaria a espécie: não sei
desistindo. Saúde para dona Salme! qual seja, mas não será o atual, nem os que
2. Arte e publicidade, ainda. Em várias ficaram em tentativas. Falar em mudança de
2004 ocasiões pude dizer aos meus alunos que paradigma não consola: “Vivemos uma época
publicidade não era mesmo arte, mas que de mudança de paradigma”. Porém tudo
eram os publicitários que mais utlizavam indica que, em termos de luta pelo poder,
as conquistas das artes, mas com fins continuará por um bom tempo o que está aí.
específicos: os de vender produtos ou idéias. Só resta à sociedade lutar para que a maioria,
Publicitários: grandes diluidores das artes, a grande maioria, todos possam viver pelo
muito embora, às vezes, se observe o troco: menos bem. Não vejo hoje, no Brasil e no
a publicidade influenciando a arte. Recursos mundo, nenhum projeto alternativo com
poéticos-artísticos impressionam (seduzem, alguma consistência. Só assistencialimo,
atraem) e têm uma função mnemônica. Ou paternalismo, festividades. Um novo projeto
seja, o público-alvo é atraído pelas belezas deverá vir e alimentar esperanças e, como
ou bonitezas da mensagem, ao mesmo sempre, projetará uma sociedade ideal para
tempo em que memoriza textos curtos, o futuro.
2005

principalmente os slogans. Da mesma (04 de setembro de 2004)

391
OBSERVANDO XXII Paulo). Num ambiente asséptico - nada de

2003
negativo nisto - são expostas obras poucas
1. Julio Plaza: uma exposição que de Julio Plaza: serigrafias dos anos 70,
adentra o III milênio. O Mariantônia chocantes pela sensibilidade e inteligência
Centro Universitário da USP, na rua do mesmo no uso da metalinguagem, três hologramas
nome, Vila Buarque, centro de São Paulo, e são mostrados alguns vídeos; também
e que já abrigou a famosa Faculdade de foi refeito um seu trabalho de Bienal: “La
Filosofia, expõe Julio Plaza, o artista plástico Diferencia”. Placas de sinalização - daquelas
espanhol que se radicou em São Paulo e de metal: fundo azul, texto ou desenho em
sobre quem já escrevi nesta coluna por mais branco - dos anos 70 e que foram refeitas
de uma vez (Plaza nasceu em Madrid, em por Inês são distribuídas por lugares
1938 e faleceu em São Paulo, em junho do estratégicos. Subindo-se um lance de escada,
ano passado - 2003). Arte é um bem que chega-se a um outro trabalho, uma obra-
2004 faz mal é o nome que se pensaria ser o prima: trata-se de uma obra-homenagem
da exposição (em verdade, foi um trabalho a Maliévitch, o artista do leste europeu que
em xerox que Plaza fez em inícios dos anos se situa nas origens da Arte Abstrata, com
80 e que praticamente apresenta a mostra), seu Suprematismo. O trabalho, que pude
com curadoria de Inês Raphaelian, grande ver em outras ocasiões, é de pasmar: uma
ceramista e que havia sido aluna e amiga instalação que utiliza chapa de chumbo
do artista. De fato, a exposição se nomeia sulcada e luzes fluorescentes, em duas
Ícones são redondos - um outro trabalho paredes que se encontram num ângulo de 90
de Plaza, impresso em serigrafia, daqueles graus. Adentra-se uma outra dimensão. Só
trabalhos que o artista fez, constituídos de lá estando e vendo, mesmo! Plaza, com seu
frases-impacto (lembro-me de Cítricos para conceptualismo, metalinguagem e apego às
críticos, publicado em VIVA HÁ POESIA, no novas tecnologias é um artista raro e que
ano de 1979, momento em que ele havia deverá ser estudado daqui para diante. A
2005

declado guerra à crítica pseudo-séria de São exposição de Julio Plaza (é a segunda que

392
se faz neste ano de 2004, sendo que a outra Nenhum nunca pensou o porquê dessa

2003
teve lugar no MAC-USP) me faz pensar que necessidade de se ficar durante uma hora
o futuro é hoje… e vinte minutos ao telefone, falando sobre
2. Isto serve para quê? Duas ou três vezes nada (nada de importância prática, mas de
ao semestre vejo-me obrigado a rememorar importância para a vida). Nunca vi nenhum
o episódio ocorrido com Euclides, o geômetra, contestar a importâcia do celular - o bichinho
quando um jovem aluno lhe perguntou sobre de estimação preferido, que atende a boa
a validade daqueles conhecimentos… Pois parte da carência afetiva do usuário - em
é, quando isto ocorre em minhas aulas de que 99% das ligações são para nada. Nada.
Teoria da Comunicação II, entre alunos de Quando estou bravo respondo: se você
Publicidade e Propaganda, sou obrigado a quiser algo de utilidade prática posso lhe dar
pensar uma resposta educada e eficiente ao uma receita de quibe, risotto, feijoada, por
mesmo tempo. Não posso ser grosseiro ou exemplo. A ficha sempre cai, às vezes com
2004 arrasador como foi o sábio antigo, também uns quatro anos de atraso. Conversando
não devo deixar passar a oportunidade de com meu amigo Zéluiz Valero, chegamos à
defender a essencialidade do inútil. Como conclusão de que grande parte do que se
explicar que nós humanos precisamos ensina é feito em época errada, pelo menos
mais do que comer, beber, namorar e para a maioria dos alunos e que esse não é um
dormir? Necessitamos jogar conversa fora, problema das escolas em que trabalhamos,
necessitamos daquela alienação temporária nem apenas brasileiro, mas mundial. A Arte
que alimenta o espírito, necessitamos da é coisa gratuita, mesmo quando vendida a
Arte, temos sede de fábula. Um aluno desses, peso de ouro. Ou seja, aquilo que em um
geralmente é dos menos aplicados, dos que objeto é Arte, não depende de dinheiro, não
chegam para as aulas sistematicamente tem utilidade prática, mas é essencial para a
com atraso, dos que priorizam outras coisas sobrevivência e saúde mental nossas. A Arte,
que não o conhecimento (pelo menos na quando utilizada por publicitários é diferente:
2005

aparência e temporariamente - espero). eles a usam para seduzir e vender produtos

393
e/ou idéias, ou seja, com uma finalidade era muito inteligente e interessado e passou

2003
específica. Aí a utilidade se sobrepõe àquilo a ser assistente-técnico de gravura, muito
que é Arte propriamente. Não se deve pôr competente, por sinal. Quando o ASTER
em questão o ar que se respira. fechou (existiu de 1978 a 1981), Regina
(18 de setembro de 2004) Silveira o encaminhou para a Universidade
de Caxias do Sul, através da artista Diana
Domingues, onde está até hoje. Mário era
a gentileza em pessoa, de uma educação
rara e esteve sempre presente no tempo
em que a equipe da Nomuque, ocupada
OBSERVANDO XXIII principalmente com a feitura de ZERO À
ESQUERDA, lá trabalhava. Lendo meu artigo
1. Mário no ASTER. Quando fiz o registro n’O ALFINETE, Regina Silveira logo me
escrito sobre o ASTER (o centro de estudos falou: “Você se esqueceu do Mário!” De fato:
2004
teóricos e práticos das Artes) nesta coluna ele deveria ser citado e aqui e agora eu o
- e a casa leva hoje o número 2249 da faço. Mário, inteligente como era, estudou
Cardoso de Almeida, nas Perdizes - esqueci- e adquiriu um repertório apreciável no que
me de uma figura proeminente, espécie de respeita a gravura. No tempo de ASTER:
zelador-auxiliar-de-ensino-técnico, que veio uma conduta irrepreensível, um diplomata:
do Nordeste (Pernambuco), trazido pelo sabia o comportamento exato, assim como a
irmão Antônio, que era ajudante-técnico palavra, para as diferentes situações. Mário:
de Julio Pacello (o famoso gráfico, que parte importante da história do ASTER.
executou edições de gente como Julio Plaza, 2. Soluções para os problemas do
Regina Silveira, entre outros). Pois é, Mário Mundo: a política resolve? Assistindo
Albuquerque (irmão, também, de Severina, ao horário político aqui em São Paulo fico
que trabalhou até bem pouco tempo em casa pasmo ao ver como todos têm as soluções
2005

de Regina Silveira, tendo-se aposentado) para tudo: desde os que com dinheiro podem

394
pagar a uma grande agência publicitária Tais textos engrandecem o veículo, pois,

2003
para coordenar o que vai aparecer, até os além de bem escritos, trazem sempre
que, além da pouca inteligência e baixíssimo assuntos substanciosos. Fábio Tardim é
repertório, fazem um negócio que, dizer responsável pelas belezas verbais de que
caseiro, seria ofender os nossos lares. Uma são portadores os seus poemas. Parabéns.
coisa eles todos têm em comum: prometem E digo mais: muita gente compartilha dessa
o mundo, têm projetos (mesmo que sem minha opinião.
base), recursos e tudo o mais. Solução para (25 de setembro de 2004)

os problemas da parte da Humanidade que


habita São Paulo (e a coisa se repete pelos
brasis afora) eles têm. Então, o ideal seria
eleger, de uma só vez, todos os candidatos
a cargos do Executivo e Legislativo. Eles NOMUQUE EDIÇÕES:
2004 têm os remédios precisos para tudo. É só À MARGEM DO SISTEMA EDITORIAL
acreditar! Não tenho visto por aí políticos BRASILEIRO
verdadeiros. Político é uma categoria à parte:
tem de ser um administrador-conciliador, NOMUQUE EDIÇÕES, editora
um observador-legislador. Um político é um fundada por mim e Paulo Miranda, há trinta
político, um professor é um professor. Não anos, em 1974 e que sempre funcionou à
dá para ser duas coisas. Por isto é que não margem do sistema editorial brasileiro,
temos tido verdadeiros estadistas, embora está intimamente ligada à revista ARTÉRIA,
chefes de Estado. O Brasil espera a sua que editou a partir de 1975 e que adentra
vez… o III Milênio - do número 1 ao 8 (na REDE)
3. Colaboradores de O ALFINETE. sem que o 7 tenha saído, embora planejado
Henrique Perazzi de Aquino, Tufão, Piter desde 1994 (sai agora, em outubro) - e
Pereira, Tito Madi. Dá gosto abrir uma vez planejando o 9 para 2005, com materiais
2005

por semana O ALFINETE e ler suas crônicas. inusuais, quando a publicação completará

395
30 anos de existência (a editora é um ano dizer aos meus alunos), transferindo-se para

2003
mais velha). a capital, onde ainda opera (eu me encontrava
Nomuque = no muque (no braço) em Pirajuí, depois de ter cursado História na
- que inspirou nomes de algumas outras Paulicéia e aqui fiquei por dois anos 1974-
editoras marginais - existe à medida que 75. Portanto, tive tempo para pensar alguns
existam trabalhos que ela venha a editar projetos, novos para mim). Do núcleo
e com os recursos provindos dos próprios inicial de editores-colaboradores, composto
editores/colaboradores (nunca contou com, por mim, Paulo Miranda, Luiz Antônio de
nem quis patrocínio empresarial etc). Essa Figueiredo, Carlos Valero e Zéluiz Valero,
atividade editorial ocorre esporadicamente, hoje permanecem os dois primeiros, porém
bem porque, não visando a lucros e não outros se foram juntando, com maior ou
dispondo de infra-estrutura empresarial, menor permanência: Walter Silveira, Tadeu
só poderia mesmo funcionar assim, às Jungle, Sonia Fontanezi, Júlio Mendonça,
2004 vezes, acontecendo de uma publicação Arnaldo Antunes, Fabio Oliveira Nunes
ser lançada dez anos após o início de sua (porém, o Zéluiz continua como uma espécie
impressão que, por sinal, tem sido quase de consultor-mor para as coisas gráficas).
sempre feita por seus editores, os quais, Da reprografia e mimeografia, enveredando
além de poetas, são técnicos em serigrafia, pelo offset e a serigrafia, passou para a fita
programadores visuais etc (os poucos que magnética (em associação com o Estúdio
se dispuseram e se dispõem a este tipo de OM, de Carlos Valero) e para a REDE. Sem
trabalho artesanal-braçal). Portanto, além preconceitos. Sem limites: formas sem
de editora, a NOMUQUE é, também, gráfica fôrmas duradouras.
e, além da serigrafia, tem utilizado outros ARTÉRIA, a “revista” (nome não
processos artesanais de impressão, bem registrado por nós, foi utilizado por revista de
como os industriais. Santos, patrocinada pela Prefeitura Municipal
A NOMUQUE EDIÇÕES nasceu em durante o governo de Telma de Souza. Nós,
2005

Pirajuí (o centro do mundo, como costumo os editores, resolvemos manter o nome

396
que havíamos criado em 1974), antologias, ser artista? Um equívoco é pensar que se faz

2003
edições autônomas de poemas, livros, fitas, para o povo o que, além do mais, é querer
site na REDE. Isto sem contar os inúmeros impingir às massas aquilo que eles, ou
projetos não executados, como o da maior melhor, o partido, acha que é bom. Assim,
revista do Brasil, do VÍDEO-ARTÉRIA, do maneja-se a “massa ignara”. Exceções são
CD-ROM. De edições mínimas - 22 ou 25 ou exceções e serão menos alimentadas por
50 exemplares, que eram distribuídos aos teorias que por um sentimento filantrópico.
amigos/aficionados da poesia intersemiótica São casos privilegiados em momentos idem.
- a 1500 exemplares e à investida no Planeta, O artista - e isto é o que o diferencia - estará
com ARTÉRIA 8 na Internet. preocupado com linguagem. Enquanto isso,
NOMUQUE EDIÇÕES, 30 anos e o político estará ocupado com o poder e
enquanto houver entusiasmo por parte de a manutenção do mesmo em suas mãos (a
seus editores. Pois, publicações como essas, todo custo).
2004 só tendo muita vontade e crença nas coisas O artista caminha para a frente e se
da Poesia. Auguri! maravilha com descobertas que podem vir
(02 de outubro de 2004) a atentar contra o poder estabelecido. Pelo
menos é o que os donos do poder pensam.
E, em certa medida, a experimentação em
arte clama por mudanças mais gerais, de
toda a sociedade. Foi o que se observou nos
Modernismos, mesmo que à revelia de alguns
ARTE E POLÍTICA artistas - a aposta num projeto alternativo
para a sociedade como um todo: por
Pobres dos artistas que se engajam exemplo, os Construtivistas russos (e até os
em causas políticas de corpo e alma e obra: nossos Concretistas, nos anos 50. Pasmem!.
sempre saem perdendo, porque, se a coisa Basta ver a atividade-pensamento de um
2005

se dá em detrimento da obra, de que valerá Cordeiro, Charoux, Sacilotto, Fiaminghi e

397
outros) que acreditavam que uma sociedade crítica antecipadora, como colocou Ezra

2003
nova, como seria a que deu a largada com Pound). Porém, manifestos duraram pouco,
a Revolução Bolchevique de 1917, exigia pois a atividade artística não suporta amarras,
uma arte nova e eles a fizeram. Porém, o mesmo que por pouco tempo e quando
curso das coisas na então União Soviética, colocadas a si pelos próprios artistas.
a partir da era estalinista, tomou um outro O artista tem compromisso com a
rumo e matou qualquer ilusão. A época de linguagem, com a beleza, com o admirável.
Stalin foi repressora sob todos os aspectos O artista não sabe para quem produz (em
e deu a marcha a ré, encaminhando-se verdade, está à espera do “leitor ideal”,
para o chamado “realismo socialista”, que daquele que faça uma boa apreciação de
tratava temas pré-determinados, com sua obra) e nem deve se preocupar com o
moldes do século XIX, sem a grandeza da seu possível público. Um artista cria para
época de Courbet, porém. A morte-suicídio a Humanidade. Dimensão social a obra já
2004 de Vladímir Maiacóvski, em 1930, marca a ganha quando alguma outra pessoa aprecia
morte do grande projeto das vanguardas o trabalho. Quem deve se preocupar com
russas. O que foi feito de um Maliévitch e o público são: publicitários, jornalistas e
de um Einsenstein? Padeceram. Dirigismo professores.
artístico é um problema e quem perde com Isso tudo não quer dizer que o artista
isso é a arte e os produtores de linguagem, deva ser alguém alienado: há participação
que passam a ser meros artesãos: hábeis política em vários níveis. O que ele não pode
(se tanto) e obedientes; as coisas estagnam, é submeter (ou até pode, mas…) a sua arte
quando não regridem. aos mandos e desmandos de gente ignorante
Doutro lado, as vanguardas do século do trabalho com a linguagem. Ele, como
XX fizeram a sua política particular, através artista, sempre perderá se vier a se submeter
principalmente de manifestos, que são a programas de agremiações políticas (no
plaformas de ação e tomadas públicas de poder ou que o almejam). A parte menos boa
2005

posição frente à linguagem (exemplos de da obra de Vladímir Maiacóvski é justamente

398
a que faz propaganda, mesmo acreditando POESIA INTERSEMIÓTICA : UMA

2003
na causa. O artista só perde quando se EXPOSIÇÃO
envolve com política: é seduzido e usado
pelos políticos e políticas. O caso Pound, na Mais uma das poucas exposições de
Itália fascista, é exemplar: só que sua arte, poesia intersemiótica em cuja organização
exercício crítico e atividade de tradução me envolvo, desta vez como curador único e
foram tão grandes que, no futuro, o fato como expositor. E foi um evento promovido
será apenas um biografema desprezível. pela Faculdade de Comunicação (FACOM)
A revolução do artista é aquela da FAAP, como parte integrante da XXVII
operada no nível da linguagem, de Mallarmé Semana de Comunicação, que se desenrolou
e Augusto de Campos a Paulo Miranda. de 14 a 18 de setembro de 2004 (1ª MOSTRA
Linguagem. Nada além de linguagem. Pura DE POESIA VISUAL foi o título). A exposição,
e tão somente linguagem. O resto é material porém, se estendeu por mais três semanas.
2004 para filmes linha B, como Hollywood sabe Ampliações fotográficas permitiram, além de
muito bem fazer. Ou, como é de praxe, maior visibilidade dos poemas à distância, a
material para sociólogos da arte, que estão uniformização das dimensões. Quem sabe,
mais preocupados com temática dita social não leve a exposição até Pirajuí? Seria muito
(o que não seria social-humano do que é feito bom que a cidade abrigasse uma mostra-
por humanos?) que com a arte propriamente. amostragem da poesia que, em parte,
God bless the artists! aconteceu nela, a partir dos anos 70. Vinte
(09 de outubro de 2004) e oito poemas de vinte e oito poetas: um
time da pesada que poderia viajar (como
tem viajado) o mundo. Uns, veteranos desse
tipo de poesia, outros, principiando nesse
universo. Eis os nomes:
Aldo Fortes, André Vallias, Arnaldo
2005

Antunes, Avelino de Araújo, Carlos Valero,

399
Daniele Gomes de Oliveira, Diniz Gonçalves, clareza o encontro da POESIA, propriamente,

2003
Erthos Albino de Souza, Fábio Oliveira com as ARTES PLÁSTICAS, utilizando destas
Nunes, Felipe Martins-Paros, Gastão Debreix, não apenas os recursos formais, mas até
Gilberto José Jorge, Glauco Mattoso, João técnicas e materiais. Esta é uma poesia que
Bandeira, Júlio Mendonça, Julio Plaza, Lenora prima pelo rigor e raridade, vigor e seriedade.
de Barros, Lúcio Agra, Omar Khouri, Paulo É só fruí-la. No mais, são poemas trazidos
Miranda, Peter de Brito, Renato Ghiotto, em primeira mão principalmente pela revista
Sonia Fontanezi, Tadeu Jungle, Tiago Lafer, ARTÉRIA, publicação mutante que existe de
Villari Herrmann, Walter Silveira e Zéluiz 1975 até os dias atuais, operando à margem
Valero. do sistema editorial brasileiro, como marginal
Segue texto que acompanhou o folder é sua editora: Nomuque Edições”.
da exposição: Outras exposições estão a caminho:
“Esta pequena exposição, amostragem de a dos 30 anos da Nomuque Edições, ainda
2004 poesia intersemiótica-da-era-pós-verso (ou em 2004 e, para 2005, uma grande mostra
visual, como é mais comum dizer-se) traz comemorando os 30 anos da revista ARTÉRIA,
ampliações de poemas que foram produzidos que nasceu em Pirajuí. Quanto a ARTÉRIA,
a partir da primeira metade dos anos 70 em outubro estará saindo o seu número 7,
do século que acabou de passar. Como já que o 8 está na REDE desde o segundo
amostragem, pretende colocar em destaque semestre do ano passado. Com os 30 anos
o pouco (pouquíssimo, eu diria) e o melhor de ARTÉRIA, teremos o seu número 9, com
que se fez nas referidas modalidade e época. materiais-suportes inusuias. É esperar para
Essa poesia vem mostrar não só que se pode ver e fruir. (16 de outubro de 2004)
fazer um poema sem versos, mas até poema
sem palavras (com sucesso) abrigando, no
entanto, algum resquício do mundo verbal,
nem que seja apenas no título, por sinal,
2005

imprescindível. Essas faturas assinalam com

400
OBSERVANDO 23 (24?) convivendo com trabalhos dos muito jovens,

2003
que se encontram na casa dos vinte anos:
1. Fidelidade além da conta! A Nomuque quase dez novos colaboradores em ARTÉRIA
Edições e ARTÉRIA têm tido colaboradores 7. Os mortos de uma poesia viva marcam
contumazes, como o trio concretista: presença nas ARTÉRIAS. E que viva a
Augusto de Campos, Décio Pignatari e POESIA!
Haroldo de Campos, além de Regina Silveira 2. O circo de horrores que é a TV
e Julio Plaza, Edgard Braga. Eles mantêm brasileira aberta. A TV aberta do Brasil - e,
uma fidelidade única: sempre contribuem parece, este é um fenômeno mundial - é um
com trabalhos inéditos para a revista e com verdadeiro circo de horrores, naquilo que ela
a maior satisfação. E há os que continuam tem de pior (o programa de João Kleber, por
a colaborar mesmo depois de mortos, como exemplo) porque, por outro lado, apresenta
é o caso do médico-obstetra e poeta Edgard coisas ótimas poucas: de uma entrevista
Braga, Júlio Plaza, Haroldo de Campos e inesperada, à rara apresentação de um
2004
mesmo Erthos Albino de Souza - o editor da cantor (Tito Madi, por exemplo), passando
revista CÓDIGO-Bahia, que teve o mérito por uma uma seqüência de novela em que o
de chegar ao número 12 - que entrou trabalho de câmera chega a se aproximar do
tardiamente para o rol dos colaboradores melhor cinema. Há quem goste daquilo que
de ARTÉRIA. É que nós, os editores, muito os de repertório mais refinado reprovam. A
embora abramos o espaço para novos audiência atestada mantém barbaridades
valores, persistimos numa linha que ainda no ar. E nem poderia ser diferente em se
podemos chamar experimental-construtiva. tratando de meio de comunicação de massa,
E, como temos tido acesso a inéditos, nós que vive de anúncios publicitários. Porém,
os colocamos a cada publicação que sai, é importante que haja liberdade, nem que
como será o caso de ARTÉRIA 7, que vem seja para garantir a existência de programas
agora, depois da de número 8 (na REDE). que em nada contribuem para elevar o
2005

E são ótimos originais de poetas já mortos, repertório geral da população ou que a divirta

401
de fato (redundância, baixo repertório, 3. Concisão e pontualidade. Ouvi, certa

2003
baixa sensualidade, sensacionalismo e nem vez, de um professor na USP (cursava
diria direcionamento - o papo do ideológico História, então) que o professor Sérgio
- porque isso sempre há, aqui e acolá). Buarque de Hollanda - sempre solicitado
Censura: nunca. Porém, é importante que para escrever artigos etc - quando chegava
um juiz tenha força o suficiente para vetar com um calhamaço dizia: “Desculpem-me
algum desmando. Tornou-se lugar-comum pelo excesso. É que eu não tive tempo”. De
intelectual falar mal de televisão. Décio fato: escrever pouco dá trabalho e requer,
Pignatari foi dos primeiros intelectuais- por isto mesmo, muito tempo. A virtude está
artistas de peso que, no Brasil, não encararam no dizer-escrever pouco quando temos a
a TV como um monstro, mas criticando-a de oportunidade de fazer justamente o contrário.
fato. Discernindo. Considerando-a como um Isto tento passar para os meus alunos, mas
veículo com linguagem própria e que poderia certos conselhos só muito mais tarde é que
2004 ser muito boa, como muito ruim. Como em surtirão algum efeito. As pessoas fazem
todos os campos! O seu Signagem da TV, tudo às pressas e, portanto, não restam
esgotado, está aí (em bibliotecas) para condições para a síntese. Tudo é feito de
mostrar isso. Arlindo Machado, comunicólogo, última hora: no dia de entregar um trabalho
em parte herdeiro de Décio, defende a TV, o aluno ainda não digitou (antes se dizia
dizendo que é a única fonte de informação “não datilografou”) parte do texto. Agora me
para a maior parte dos brasileiros e deveria lembro de um fato narrado a mim pelo Paulo
ser tratada com mais cuidado e respeito (A Miranda, de uma das vezes em que esteve
televisão levada a sério), apontando algumas estudando na USP: O aluno de Letras, três
ótimas realizações televisuais no Brasil. A meses antes da entrega de um trabalho de
maior parte do que se produz, em qualquer aproveitamento, pede ao professor Antônio
campo e tempo é desprezível. O tempo se Cândido de Mello e Souza dados sobre o
incumbe de fazer a poda, o discernimento, a mesmo - tema, procedimentos etc - ao que
2005

seleção. Um corte drástico! o ilustre docente respondeu: “Para quê?

402
[referindo-se a toda a sala] vocês só vão e a tal peça - um vinil - era dela, que estava

2003
fazer na véspera, mesmo!” Há de tudo em sempre atualizada em termos de música
trabalho de aluno. Por ser uma obrigação POP internacional, obviamente. Quem ficou
(e o aluno, em geral, nem quer saber se louco pelo disco fui eu que, logo após, tratei
aquilo será essencial para que ele passe de adquiri-lo e ouvir até ficar semi-surdo! E
para um outro estágio), a coisa é vista como daí foi que encontrei minha paixão dos anos
um castigo. Não para todos. Felizmente. 80: sempre que saía disco de Nina eu era
Tenho tido grandes surpresas nesses meus acometido de uma euforia, como nunca mais
muitos anos como professor. E mais: dia do vim a ter com rock’n’roll algum. Comprei
professor, num país ajuizado, deveria ser discos seus anteriores, que considerei
todo dia. Assim como o dia da mulher, o da verdadeiras loucuras e que ouvi centenas
criança, o dia das mães… de vezes, naquele volume que o rock’n’roll
(23 de outubro de 2004) exige e que os roqueiros bem conhecem -
2004 ah! o vinil incomparável! NINA HAGEN BAND
e UNBEHAGEN: duas maravilhas que até
hoje me encantam e que coloco como dos
melhores discos de todos os tempos.
Essa alemã da então Alemanha
NINA HAGEN Oriental (hoje estou na base do “então”),
além do canto incomum - de uma emissão
Tomei conhecimento do nome e do som de cantora com formação erudita, a uma
[musical] de Nina Hagen através de Walter paródia burlesca do chamado canto lírico,
Silveira, que me levou, para ouvir, um disco dentro do universo do rock’n’roll. Nisso,
muito louco: NONSEXMONKROCK na minha uma interpretação embasbacante de
então residência à Rua Dona Veridiana. Era sucesso popuplar mundial, como “My way”.
ele, então, marido de Mae East, uma mulher Seu comportamento era também fora do
2005

incomum, misto de empresária e performer comum e, em muitas ocasiões, deixou

403
entrevistadores e público estupefatos, sem novo trabalho [que, em 2009, meu aluno

2003
ação. Rafael Trabasso me trouxe em CD em que
Nina Hagen esteve no Brasil por duas constavam, também, outros discos].
vezes, que eu me lembre. Na primeira, para o O que foi feito de Nina Hagen? Espero
Rockn’Rio 1 (1985). Depois para uma tournée que ela esteja bem e produzindo. Naquela
que incluiu, além de São Paulo, Sertãozinho, época, valia a pena acordar cedo para ir até
cidade da região de Ribeirão Preto, o que me uma loja adquirir um novo disco de Nina.
deixou pasmo. Problemas com a divulgação Nina Hagen: a maior cantora do mundo do
do seu show fizeram com que houvesse rock, depois (em termos cronológicos) da
déficit de público em São Paulo, no Ginásio do semi-divindade Janis Joplin. Nina Hagen:
Ibirapuera. Foi [no entanto] um espetáculo ninguém mais alcançou tal patamar. Viva
memorável: belo e impecável. Eu estava Nina Hagen!
lá por lembrança de uma ex-aluna (Maria Em tempo: Minha cachorra a Nina Hagen
2004 Vastir, de Vila Granada) que, dispondo de (uma Teckel: salsichinha) é uma glória e
ingressos, ligou-me oferecendo um. Foi um homenageio, com a escolha do nome, minha
grande presente. Inesquecível. última grande cantora do coração. Nas
Nunca fui de seguir de perto a vida coisas da arte - mesmo em se tratando de
dos artistas de minha preferência, mas arte popular, a qual não exclui sofisticações
soube que ela teve uma filha e que estava - não basta ser bom ou mesmo ótimo:
ocupada com coisas além da música. Seu tem de se ser excepcional, como a Nina de
disco STREET, não cheguei a gostar. Depois UNBEHAGEN ou a de NINA HAGEN BAND:
sumiu, a ponto de os mais jovens nunca excepcionalmente cantora. Nina: au au au!
terem ouvido falar dela. Quando soube que, (06 de novembro de 2004)

depois de anos, havia lançado o disco BEE


HAPPY, fiquei contente, mas não o encontrei
nas lojas especializadas de São Paulo e
2005

até cheguei a duvidar da existência desse

404
UMA BIBLIOTECA, UMA CASA. UMA concretistas históricos, como Geraldo de

2003
BIBLIOCASA Barros e Fiaminghi, a Mira Schendel e Tomie
Ohtake.
Enfim, a biblioteca de Haroldo de A biblioteca, porém, vai subtraída de uns
Campos encontrou um destino que parece mil volumes - talvez raridades, como primeiras
digno: ficará na Casa das Rosas, avenida edições, entre os quase cinqüenta mil títulos
Paulista, que passará a se chamar Espaço que possuía - que a família preferiu conservar
Haroldo de Campos de Poesia e Literatura em sua posse. Manuscritos e correspondência
(a doação resultou de um acordo da família epistolar também ficam de fora (Haroldo
com a Secretaria de Cultura do Estado de São deixou viúva e filho). Essa documentação,
Paulo). quando estudada, renderá alguns importantes
A família acabou considerando essa volumes, já que Haroldo cultivou amizade
como a melhor das soluções (pois é um com gente como Max Bense, Julio Cortázar,
problema conservar biblioteca, mesmo que Jakobson, Derrida, Octavio Paz, entre outros
2004
esta seja do pai ou do marido, pois uma tantos.
biblioteca tem sempre a cara do dono, o A morte de Haroldo de Campos, em
que significa que a de Haroldo possuía a agosto do ano passado, pouco antes de
cara de Haroldo e agora, sendo franqueada completar 74 anos, privou o Brasil de uma
a um público de interessados, terá grande grande inteligência, de um dos poetas e
utilidade). intelectuais mais extraordinários e de maior
Porém, o melhor mesmo seria uma produção e produção de um altíssimo nível (na
fundação, como o próprio poeta pretendeu, poesia, numa prosa experimental, na crítica, na
ele que morava numa bibliocasa, como tradução entendida como categoria da criação
costumava dizer. Sim, uma bibliocasa, que - transcriação, como costumava dizer). E ele
também dava chance a objetos de uso ainda possuía muitos projetos. O que ficou
cotidiano e obras de arte: principalmente terminado e inédito ou por terminar, não sei,
2005

pinturas de algumas celebridades: dos mas o poeta deve ter deixado muita coisa.

405
Tive a oportunidade e o privilégio da de efeito-prenúncio do fim do poeta. Por

2003
amizade dos concretistas históricos, onde se outro lado, permitiu-me fotografá-lo em
inclui Haroldo. Nossos encontros não eram sua casa, em ambiente em que não havia
tão freqüentes, mas a amizade era firme sequer um livro: situação rara numa
e a celebridade sempre me recebeu com a bibliocasa. O meu descontentamento se
maior cortesia, assim como colaborou com dissipou com o tempo e acho que as fotos
as publicações que eu co-editava. Fiz fotos vão ficando melhores a cada dia. Cheguei a
de Haroldo em pelo menos três ocasiões. A expor quatro daquelas fotos numa mostra
última vez foi em 2001 em sua bibliocasa na FAAP, em setembro próximo passado.
à rua Monte Alegre, Perdizes, São Paulo. Percorro os livros que tenho de
Ele já estava com a saúde minada, sendo Haroldo e vejo que as dedicatórias que ele
que seus principais problemas vinham me fazia eram belíssimas. Com toda a sua
como desdobramentos de um diabetes. grandeza, ainda achava um modo de ver
2004 Naquele dia estava tristonho, mas me qualidades nos outros. Não sei dos exatos
recebeu com a costumeira polidez. Tendo motivos de a biblioteca haroldiana não ter
concordado com as fotos, preferiu que eu ficado na PUC, que seria seu lugar mais
as fizesse num pequeno compartimento da adequado. De qualquer modo, ganha São
casa, uma espécie de jardim-de-inverno. Paulo com o Espaço Haroldo de Campos.
Telhas transparentes deixavam passar Ganham os que têm amor pelas coisas do
uma luz que me incomodava enquanto saber de que são portadores os livros.
fotógrafo (amador, diga-se), pois uma (13 de novembro de 2004)

indesejável sombra era projetada nos


olhos, escurecendo aquela área. E eu nem
poderia pedir para que ele se transportasse
para local mais adequado.
Porém, no final das contas, essa
2005

sombra acabou entrando como uma espécie

406
NOIGANDRES E INVENÇÃO: REVISTAS- elemento constitutivo estrutural, poemas

2003
PORTAVOZES DO que circularam em cópias feitas à máquina
CONCRETISMO PAULISTA com carbonos coloridos e só publicados
em NOIGANDRES 2, em 1955. Em 1956,
NOIGANDRES e INVENÇÃO foram, dezembro, a Primeira Exposição Nacional
nos anos 50 e 60, as publicações de poetas, de Arte Concreta, que é considerada como
as mais importantes do Brasil, no que diz o lançamento oficial da Poesia Concreta no
respeito à experimentação e invenção. Brasil. 1957, inícios, a Exposição no Rio de
Era o tempo da Poesia Concreta, proposta Janeiro.
revolucionária de poética, que nasceu aqui Primeiro NOIGANDRES, depois
em São Paulo, de par com experiências que, INVENÇÃO, deram continuidade, no Brasil,
na Europa, realizava o poeta suíço-boliviano às revistas de cunho experimental, como
radicado na Alemanha Eugen Gomringer. De o tinham sido KLAXON e a REVISTA DE
conversas com Décio Pignatari, que andou ANTROPOFAGIA (de que aqui tratarei, ainda
2004
pela Velha Europa nos anos 50, evidenciaram- que brevemente, num futuro próximo) e
se concordâncias que resultaram no como o foram, a partir dos anos 70 do século
movimento. O próprio nome para aquelas que acabou de passar, as revistas já aqui
experimentações: POESIA CONCRETA (como estudadas (NAVILOUCA, POLEM, CÓDIGO,
já havia uma Arte e uma Música Concretas) ARTÉRIA e outras).
proposta de Augusto de Campos, aceita por Ambas as revistas, NOIGANDRES
Gomringer. e INVENÇÃO tiveram cinco números e
Eram os meados dos anos 50. Desde não chegaram a manter a periodicidade
1952 formara-se o Grupo Noigandres, desejada. Publicaram quase sempre em
com revista do mesmo nome. Em 1953: primeira mão poemas dos componentes do
POETAMENOS, o primeiro conjunto de grupo, que se foi ampliando: 3+1+1+2 =
poemas propriamente concretos, de Augusto Augusto de Campos, Haroldo de Campos,
2005

de Campos: poemas onde a cor entrava como Décio Pignatari, Ronaldo Azeredo, José Lino

407
Grünewald, Edgard Braga e Pedro Xisto. formato. O nº 5 (66-67) de INVENÇÃO marca

2003
Estes dois últinos, bem mais velhos, quase o fim de uma fase na poesia experimental.
da geração dos modernistas de 22, tiveram, A experimentação retornará com outras
em sua obra poética, destaque já com a revistas, a partir da primeira metade dos
idade bastante avançada: fizeram obra anos 70.
consistente e indispensável, para os que É lamentável o fato de não
se interessam em saber o que de melhor a encontrarmos essas revistas - hoje
poesia (brasileira e mundial) fez na segunda verdadeiras raridades - nas nossas grandes
metade do século XX. bibliotecas. A não ser nas particulares, como
Nas duas revistas compareceu as de José Mindlin, poetas concretistas e
metalinguagem: pouco, mas muito importante aficionados da poesia experimental. Menos
em NOIGANDRES (a introdução aos poemas complicado será encontrá-las em bibliotecas
coloridos de Augusto de Campos, no nº2; de grandes universidades de fora. É preciso
2004 o plano-piloto para poesia concreta, que se crie em São Paulo um CENTRO
no nº 4: o manifesto brasileiro mais DE ESTUDOS DA ARTE CONSTRUTIVA
conhecido fora do Brasil e ao qual dedicarei BRASILEIRA E POÉTICAS DA VISUALIDADE.
um espaço especial neste periódico). Em Aguardemos.
INVENÇÃO, muito mais: ensaios, manifestos, Em tempo: A revista INVENÇÃO foi uma
comentários, os editoriais…). A forma-livro espécie de continuação da página “Invenção”,
predominou em ambas as revistas, exceção do CORREIO PAULISTANO, jornal extinto, dos
feita a NOIGANDRES 4, espécie de álbum, anos de 1960 e 1961. Tal página trazia como
exposição portátil, com poemas- cartazes editores, além dos poetas concretos, outros
e um caderno contendo o poema LIFE, de que chegaram até a ser deles inimigos.
Décio Pignatari. INVENÇÃO, mantém a Um estudo detalhado dessas publicações é
forma-livro do 1º ao último número, porém necessário e, certamente, será realizado por
comportando encartes, já que se tratava de um jovem pesquisador atento e interessado
2005

uma poesia que nem sempre aceitava aquele por qualidades em poesia.

408
[Na Biblioteca Municipal “Mário de Andrade”

2003
e no Instituto de Estudos Brasileiros da USP
podem ser encontradas coleções incompletas
das Revistas NOIGANDRES e INVENÇÃO]
(20 de novembro de 2004)

2004
2005

409
2005
semestre de 2003, antes que saísse a de

2004
número 7, que ora é dada a público, dez
anos depois de sua concepção por Paulo
Miranda e por mim. Tornou-se como que
uma marca de ARTÉRIA a sua transformação
(incluindo nisto o nome da publicação) e a
demora entre um número e outro. ARTÉRIA
6 demorou mais de dez anos, da concepção
ao lançamento, tendo sido, penso, a revista
de mais longa gestação na história da
cultura brasileira. Mas esse assunto já tratei
longamente n’O ALFINETE, tendo virado
livro: Revistas na era pós-verso, da Ateliê
2005 Editorial.
ARTÉRIA 7 é o 7 que vem depois do
8 e deixemos os encarregados de catálogos
quebrar a cabeça! É um caderno em offset,
em 56 páginas, cujo desenho ficou a cargo
ARTÉRIA: ESTÁ PINTANDO O 7 do artista-gráfico Vanderlei Lopes. Toda em
pb, a revista, que será lançada em 18 de
ARTÉRIA é uma revista-não-revista janeiro próximo futuro, traz trabalhos de 51
que nasceu em Pirajuí quase que ao mesmo poetas/artistas plásticos: alguns veteranos
tempo que a Nomuque Edições: 1974-75. de ARTÉRIA, outros muito jovens e até
A de número 1 saiu em 1975 e, de lá até estreando. Os mortos queridos continuam
hoje, tem-se metamorfoseado: do caderno colaborando com trabalhos inéditos ou não
simples, passando pela fita cassete, até à (Edgard Braga, Erthos Albino de Souza,
2006

REDE - ARTÉRIA 8 foi lançada no segundo Samira Chalhub, Waly Salomão, Haroldo de

411
Campos e Julio Plaza). Veja-se o time que é, posso dizer, atualmente, a única revista

2004
comparece em ARTÉRIA 7: experimental de poesia no Brasil. Que
Aldo Fortes . Alice Ruiz . André Vallias . haja outras, porque ARTÉRIA 9 já está a
Antonio Risério . Arnaldo Antunes . Augusto caminho.
de Campos . Avelino de Araújo . Carlos
Rennó . Daniele Gomes de Oliveira . Décio Serviço: A Nomuque Edições comunica o
Pignatari . Denilson Souza . Diniz Gonçalves lançamento da revista ARTÉRIA de número
. Edgard Braga . Edson Pfützenreuter 7, evento que terá lugar no restaurante
. Elson Fróes . Erthos Albino de Souza . SPOT, dia 18 de janeiro de 2005, das 20
Fábio Oliveira Nunes . Felipe Martins-Paros às 22h.
. Fernanda Brenner . Fernando Laszlo . SPOT: Alameda Ministro Rocha Azevedo
Gastão Debreix . Gerty Saruê . Giberto José 72 . São Paulo . SP
Jorge . Glauco Mattoso . Go . Haroldo de No lançamento, a revista, que não conta
Campos . Inês Raphaelian . J. Medeiros . com patrocínios, estará sendo vendida a
2005
João Bandeira . José Augusto Nepomuceno R$20,00. ARTÉRIA 7 poderá ser encontrada
. Júlio Mendonça . Julio Plaza . Lenora de em algumas das melhores livrarias de São
Barros . Lívio Tragtenberg . Lúcio Agra . Paulo, como Duas Cidades, HaiKai, Livraria
Omar Khouri . Paulo Miranda . Peter de da Villa, Cultura e outras. Em Pirajuí,
Brito . Raider . Regina Silveira . Regina encomendas poderão ser feitas junto à
Vater . Samira Chalhub . Sebastião Nunes redação d’O ALFINETE.
(15 de janeiro de 2005)
. Sonia Fontanezi . Tadeu Jungle . Thiago
Rodrigues . Tiago Lafer . Vanderlei Lopes .
Walter Silveira [Walt B. Blackberry] . Waly
Salomão . Zéluiz Valero.
ARTÉRIA, que vem de uma postura
de rigor e experimentação, daquela que
2006

teve início nos anos 70 so século passado

412
OBSERVANDO 24 (25?) seu aluno de segundo ano, por motivo da

2004
morte de meu pai. Ela era ainda uma mulher
1. Dona Zélia Genovez: uma grata muito bonita, com aquela educação fora do
lembrança. Era um tempo em que tudo comum. Amabilidade é a palavra. Depois,
estava por aprender e tudo era grande e soube que, aposentada, ela se mudou para
tudo poderia dar medo, como qualquer coisa São Paulo. Recentemente soube por uma
poderia ser motivo de alegria. Nos meus sua sobrinha-neta - minha aluna na FAAP -
cinco anos, lembro-me de que resisti para que ela havia voltado para Pirajuí. Há pouco
ir ao Jardim da Infância no Grupo Escolar tempo, falaram-me de sua morte aos 86
Olavo Bilac (fui levado por meu Tio Miguel e anos. Fiquei triste e percebi que um pouco
recepcionado por Seu Pedrinho, marido de de mim também havia deixado de existir.
Dona Laura Quatrina). Se não me falha a Seus belos gestos, porém, persistem em
memória, minha primeira professora e por minha memória.
pouco tempo, foi dona Bela. A seguir veio 2.Televisão: veículo de massa. Bobagem
2005
dona Zélia Genovez e penso que por quase pretender uma televisão educativa. Televisão
dois anos. Dona Zélia: a sua polidez era é antes de tudo entretenimento, cultura
algo digno de nota. Era uma rainha! De uma de massa que, às vezes, até se permite
delicadeza que fez com que todos os que sutilezas. E, no caso do Brasil, em especial,
foram seus alunos jamais a esquecessem. a TV tem um peso muito grande e sempre
Lembro-me ainda do meu diplominha de informa um repertório quase sempre baixo:
Jardim da Infância (que conservo até hoje), o que vier é lucro. O que acontece é que
desenhado e pintado a guache, e assinado a televisão, embora não tenha como fim
por ela… Zélia com um Z como já não se faz principal educar, educa mesmo que à
hoje. Eram os meados dos anos 50 do século revelia, a partir do momento em que traz
passado. A última vez que vi Dona Zélia, se algo a um repertório carente de tudo (caso
estou certo, foi em 1969: fui falar com ela da maior parte dos brasileiros e que vêem
2006

a propósito das faltas de Válter, meu irmão, televisão). A TV até pode educar, embora o

413
que ela pretenda é entreter, divertir, auxiliar duas funcionárias). Quem apenas ajuda,

2004
na passagem do tempo, como uma ilusão de vai aos poucos aprendendo tudo e, se for
lazer. Aprofundamento? Nada espere da TV, dotado, se tornará também um cozinheiro.
nem duma mesa de bar, mesmo que você O mestre sabe tudo e dá ordens (ou melhor,
possa estar privando com Antônio Cândido dá instruções). Um dos ajudantes faz os
ou Décio Pignatari. Aprofundamento, em trabalhos pequenos: lavar verduras, legumes
qualquer campo de conhecimento, requer e frutas, descascar cebola, alho, assim como
tempo, dedicação, privação, recolhimento. picar e triturar, lavar e picar cheiro verde etc.
Vida muito boa não dá filosofia, nem O outro cuida de toda a limpeza do que for
revolução de linguagem (porém há quem sendo sujo para que, quando do término da
faça de seu viver uma arte). E quem se comida, a cozinha esteja impecável. Este o
sacrifica em prol de uma causa tira disso a ideal: Todos comem e alguns fazem, outros
sua razão de existir. A TV, principalmente a aprendem um ofício. Ofício dos mais dignos
2005 aberta-comercial, só visa ao lucro, mesmo que eu conheço.
que esse lucro venha a exigir algo de um (29 janeiro 2005)

certo nível, satisfazendo um repertório mais


exigente.
3. Sobre cozinha e cozinhar. Não há
meio de eu terminar o planejado livro
sobre culinária - CRU OU COZIDO - que
não é um livro de receitas, propriamente.
Há cozinheiros e cozinheiras que sozinhos OBSERVANDO 25 (26?)
dão conta do recado, mas o ideal para o
funcionamento de uma cozinha normal 1. Épicos? Ontem (15 jan 2005) fui
seriam três pessoas: um mestre-cozinheiro assistir a um filme o qual, como amante do
e dois/duas ajudantes (que podem vir a helênico-helenístico, não poderia deixar de
2006

ser mãe e duas filhas; dona-de-casa e ver: ALEXANDRE. Sim aquele da Macedônia,

414
filho de Filipe, que teve nada menos que que helênico, que não corresponde - o

2004
Aristóteles como preceptor e que difundiu a rosto - a nada que pode ser encontrado na
cultura grega em áreas mais para o Oriente, iconografia remanescente, supostamente
assim como foi o responsável pela fusão representando Alexandre. O ator, um belo
de elementos da cultura grega com os das rapaz, mais parece um daqueles surfistas
culturas orientais. Mito em vida, Alexandre louros de cabelo parafinado. Contar
foi figura cultuada ao longo dos tempos e um caso, caso por caso, a prosa escrita
o é até hoje: de Alexandria, aos milhões continua fazendo melhor. Muitíssimo melhor.
de Alexandres que povoam todas as etnias Fiquei com vontade de retomar Plutarco
(a foma árabe do nome é SCANDR. Em (séc. I dC) e ler a bela biografia do Mega
grego ALEXANDROS: ALÉXANDROS). Deus Alexandre, mesmo sabendo que muito dali
em vida, Alexandre mostrou-se mortal ao são apenas suposições. Oliver Stone, o
expirar na Mesopotâmia, aos 33 anos: era diretor do filme, em mais de duas horas e
2005 o século IV aC. Tudo passa. Tudo para os meia não consegue mostrar uma nesga da
mortais é efêmero. A sombra de Aquiles genialidade, que nunca possuiu mesmo.
diz a Odisseu que preferiria ser o mais Isto não quer dizer que as pessoas não
humilde dos mortais a habiltar o Reino das devam ir ver o filme que traz, com ênfase,
Sombras: o Hades. O que pensar? Bem, o um aspecto delicado do comportamento de
filme possui algumas seqüências ótimas Alexandre: o homoerotismo, tão corriqueiro
enquanto cinema (uma meia hora, se tanto): no mundo helênico, mas de um modo que
a imagem em movimento, mas nada que não compreendemos hoje e nem podemos
supere - malgrado tudo o que hoje existe julgar. O filme, de qualquer modo, me fez
em termos de tecnologia, com seus efeitos pensar na questão da luta pelo poder, que
especiais visuais e sonoros - os épicos que acomete todas as sociedades humanas, que
nos encantaram nos anos 50 e 60 do século canalizam grande parte de suas energias
passado (sem falar dos de antes). Para variar, para a guerra. E isto me traz Herácilto de
2006

escolheram um Alexandre mais germânico Éfeso: A GUERRA É PAI DE TODAS AS

415
COISAS, DE TODAS É REI. UNS MOSTROU cada cem, um que preste - dos novos). Em

2004
COMO DEUSES, OUTROS, HOMENS. DE sendo assim, consolo-me e já aceito minha
UNS FEZ ESCRAVOS, DE OUTROS, HOMENS ancianidade. Que os velhos tenham o papel
LIVRES. que de fato lhes cabe nas sociedades: o de
2.Leituras e releituras. Odisséia (Homero), memória viva da Humanidade.
Satyricon (Petrônio), Cândido (Voltaire), 3. Watergate, o quê? Parece brincadeira
Frankenstein (Mary Shelley), Memórias que o caso Watergate tenha levado o então
póstumas de Brás Cubas (Machado de presidente dos EUA à renúncia, para não
Assis), talvez os contos de Edgar Allan Poe sofrer o iminente Impedimento. Pensar que o
e dois dos livros de Borges: eis o que eu caso Nixon foi brincadeira, algo inverossímil
levaria para a tal ilha deserta. Esses textos, hoje, quem diria? Perto dos pretextos-
entre outros, têm sido por mim retomados mentiras-deslavadas utilizados por Bush e
em várias épocas de minha vida e sempre Blair para invadir o Iraque, Watergate se torna
2005 com prazer renovado. A maior parte li na brinquedo de crianças. E nada aconteceu com
adolescência, na Biblioteca Getúlio Vargas os dois. Isto é muito grave! O que esperar do
de Pirajuí, quando quem a comandava era povo estadunidense, que deu a vitória que
a Lourdes Chade Franco. Recentemente, deu a Bush em sua reeleição. Os deuses
retomei alguns desses citados livros, além mesopotâmicos não deixarão que a coisa
do chocante A Metamorfose, de Franz Kafka passe em branco. - America: wake up!
e tirei conclusões provisórias diferentes (05 de fevereiro de 2005)

das de outrora, que eu pensava definitivas.


Seria essa persistência em releituras, ao
invés da leitura dos novos (o que às vezes
faço) ou dos antigos ainda não lidos, um
indício da velhice, que está chegando? (O
mesmo tem acontecido com filmes: prefiro
2006

ver os de antes, os já vistos, que arriscar de

416
OBSERVANDO 26 (27?) poder exerce: os políticos se encantam com

2004
o poder e vivem para isto e estão sempre
1. Política? POLÍTICA tem a ver com PÓLIS presos ao jogo político: esse os encanta e eles
(do grego POLIS = estado autônomo, como o vivem 24 horas por dia: o jogo pelo jogo.
Atenas o era, por exemplo). Daí ter afirmado Trama-se, faz-se tudo para se permanecer
o sábio - grego - ser o homem (o ser- poder. Filósofos parecem compreeender
humano) um animal político. A complexidade bem os problemas, mas dariam péssimos
do governo é algo que se detecta desde a governantes. E os governantes? Existiriam
Antigüidade. A famosa democracia ateniense, bons governantes? O que pensamos hoje
para citar o caso talvez o mais célebre, era não é o que pensavam os outros em outros
algo complexo e não beneficiava a todos: passados. Hoje, um governante é aquele
para se ser um polítes (cidadão) havia certas que governa por uma maioria ou suposta
exigências, a ponto de a maior parte da maioria, ou agrada os poderosos (procurando
população da Ática, que é onde se situava disfarçar bem seus atos), sem descuidar
2005
Atenas, não ter a tal participação na tal dos menos favorecidos. A utopia marxista
democracia, que diferentemente da nossa, não deu certo na Rússia e não daria mesmo
além de não incluir todos, ainda era direta e que não tivéssemos tido Stalin et caterva,
não propriamente através de representantes mais o Leste Europeu rodeado de inimigos
eleitos pelo voto. Faca de dois gumes era o tal do regime, porque as coisas deverão tender
do ostracismo, instituição através da qual se para um bem comum, como o que se
baniam pessoas que pudessem representar observa em países nórdicos e não através
perigo para a pólis. Porém, o tal do jogo de imposições totalitárias. Os humanos não
político sempre existiu e implica a presunção suportam o dirigismo totalitário por muito
de uns em tetrimento de outros: ou seja, o tempo. Políticos de primeira grandeza não
político se considera mais e na melhor das revelam os podres meandros do poder, porém
hipótese pensa estar comandando a massa os de quarto ou quinto escalão o fazem e
2006

ignorante. É impressionante o fascínio que o se deliciam e se orgasmam com a exposição

417
supostamente inteligente das tramas nas de Campos e Décio Pignatari. Jurados, via

2004
quais se incluem. de regra, em atitudes perniciosas, premiam
2. Décio inteiro na praça. A Ateliê Editorial coisas inofensivas e isto pode ser atestado no
está reeditando todos os livros de Décio mundo todo. Não foi diferente com Fernando
Pignatari, que eu adquiri, entre os quais o Pessoa, que recebeu por seu Mensagem
Poesia pois é poesia - em sua terceira edição, (1934) um prêmio de segunda categoria.
agora bem mais generosa no formato e na E hoje sabemos que se constitui num dos
qualidade do papel e no aspecto gráfico - maiores livros de poesia do século XX. O
e o Contracomunicação, um grande livro primeiro lugar, hoje, só é lembrado em função
de metalinguagem que ficou mais de duas do Pessoa. Nem sempre o artista que fica é
décadas sem reedição. Os outros títulos reconhecido pelos seus comtemporâneos.
estão já disponíveis e a Ateliê sai com tudo 4. Encontros e desencontros na
editando valores maiores de nossa poesia tradução. No ano passado fui assistir a um
2005 experimental, antes disso tendo reeditado filme intitulado Encontros e desencontros,
(também a melhor edição de três) Augusto que foi como foi chamado em português
de Campos com o seu Viva vaia. Décio é, do Brasil o Lost in translation, o que não o
sem favor nenhum, um dos maiores poetas abona nem desabona, já que se trata de um
do século XX, cuja obra adentra intacta o filme medíocre (embora badalado, porque
século XXI. Do verso à poesia concreta Décio foi dirigido por uma mulher, filha do Copolla),
Pignatari se mostra um gigante e espero que mas até agradável. Para mim, o filme possuía
mais pessoas venham a entrar em contato uma importante mensagem: os japoneses
com sua obra e possam admirá-la, como ela não nos (nós, os ocidentais) entendem
merece. - nós não entendemos os japoneses. Só
3. Prêmio? Não é de se estranhar que um há um entendimento quando se trata da
livrinho menos que medíocre receba o maior linguagem do poder, da luta pelo poder. Aí,
prêmio de poesia do país, o Prêmio Telefônica todos sacam tudo. O poder tem movido as
2006

(cem mil reais), deixando para trás Augusto sociedades humanas e isto está acima e

418
além da específica luta de classes, expressão [parafraseando Marta Rossetti Batista], não

2004
demodée, porém fenômeno observável com as exposições de Lasar Segall, de 1913
sempre que haja opressores e oprimidos. E (que certamente não mostrou o que havia
sempre os há! A luta de classes seria apenas produzido de mais radical na Europa, dentro
uma especificação dessa coisa maior que é do repertório expressionista) mas com a já
a luta pelo poder. O poder: origem de todas mencionada exposição de Anita Malfatti. Esta
as desigualdades. causou espanto e, se por um lado trouxe
(12 de fevereiro de 2005) problemas insanáveis à artista, por outro,
serviu para despertar alguns jovens quanto
à necessidade de renovar as artes no Brasil:
Artes Plásticas, Poesia, Música.
Naquela exposição realizada em São
Paulo e que dera ensejo ao famoso artigo
2005 ANITA MALFATTI: PINTORA de Monteiro Lobato, desqualificando a Arte
Moderna e a pintora, Anita Malfatti havia
Foi a partir de uma sua exposição na apresentado algumas das pinturas mais
capital paulista (dez 1917 - jan 18) que fortes de quantas foram realizadas por artista
se desencadeou a onda de renovação das brasileiro e todas de sua “fase americana”
linguagens no Brasil, como algo programático (ela passara parte dos anos de 1915 e 1916
mesmo, ou seja, instaurou-se o Movimento nos Estados Unidos, estudando pintura e
Modernista. Era, então, Anita, a mais desenho. Antes, estivera por quatro anos na
cosmopolita das cabeças paulistanas e o seu Alemanha).
trabalho demonstrava isto. Sintomaticamente, a exposição Malfatti
Em verdade - diferentemente dos se realizou em São Paulo, assim como foi
que apresentam uma transição como que a paulicéia o grande centro irradiador do
natural - a Arte Moderna chega ao Brasil, Modernismo no Brasil. Singularíssima
2006

aos tapas, chutes, pauladas e pontapés presença nas Artes Plásticas do Brasil, Anita

419
Malfatti (São Paulo 1889-1964) contribuiu Estado de São Paulo. Anita lamentavelmente

2004
para a renovação das Artes no País, se provincianizou. Pintou até à morte e tudo
trazendo um repertório fundamentalmente indica que a solteira Anita morreu intacta e
expressionista, com obras produzidas intangida.
principalmente fora (algumas poucas aqui), Anita vale pelo seu papel pioneiro e pela
durante cerca de dois anos e meio, época, excepcional qualidade de cerca de uns trinta
ainda, de formação/aprendizagem. Sua trabalhos, os quais podem ser encontrados
grande contribuição para nossas artes se em museus e coleções particulares. Anita
resume a trinta e poucos trabalhos. Trabalhos preparou o caminho para a glória de outros:
da melhor qualidade. A Boba, pintura a mais Tarsila do Amaral, por exemplo. Anita
radical de quantas fez e que não foi expoxta Malfatti: a ela coube o importante papel de
em 1917 (sequer na mostra de 22, em que alertar futuros produtores de linguagem de
Anita é, ainda, a grande estrela da pintura), que além das academias e dos parnasos
2005 dá uma medida de sua grandeza, assim havia um mundo outro, pleno de belezas
como Homem Amarelo, A estudante, O farol novas.
etc. (19 de fevereiro de 2005)

Há mais que um juízo sobre o papel da


crítica de Lobato a Anita, porém, prevalece
aquele que garante ter sido Lobato quem
selou a sorte de Anita que, malgrado seu
cosmopolistismo era, por muitos motivos,
suscetível e foi profundamente afetada pelas
palavras do escritor. Sua produção plástica
subseqüente é toda ela sofrível. Passou até A (S) ACADEMIA (S)
por um “processo de reeducação artística”,
tendo permanecido anos na França, na A ACADEMIA (essa instituição de
2006

década de 20, com bolsa do governo do saber regulamentado, quase sempre oficial

420
ou oficiosa) é, via de regra, um antro de tem o seu papel. E assim as coisas se vão

2004
conservadorismo, quando não entidade transcorrendo.
reacionária. Tem um papel importante na Dentro da Academia e adjacências
guarda, classificação e até ampliação dos existem feudos com senhores
conhecimentos, mas, na maior parte das todopoderosos. “Esse território é meu e
vezes, não é graças a ela que as coisas vão eu decido!” Nas instituições que financiam
para a frente. a pesquisa e que possuem pareceristas,
A Academia tem tido por hábito recusar portanto, juízes, diga-se - pois julgam, o
inovações, pois prefere trilhar caminhos que não quer dizer que sejam justos - estes
seguros, aqueles do déjà vu. Inovações são protegidos pelo anonimato, mantido a
significam reestruturação do pensamento qualquer custo. Daí é que se fala o que se
e disto os acadêmicos têm horror, são bem quer sobre uma obra, um projeto e se
neófobos (sentem aversão pelo novo). É tudo conta com a inexpugnabilidade da autoria
2005 uma questão de defender o posto ocupado da sentença. Aí é que o qualificado árbitro
(bem como o território) mantendo, como pode muito bem deixar o metodológico para
um político ditador o poder de que dispõem. considerar o ideológico e reprovar, deplorar,
E, de fato, dispõem. (Entre um candidato ofender com seu parecer assumido em
a assistente bom e ansioso por inovações verdade por um fantasma.
e um bom e conservador, eles optam pelo É muito ruim ser-se vítima dessa
segundo, ou seja, aquele que trilha o caminho inominável atitude, que aqui chamarei de
da medianidade: não querem concorrência). covardia. Ou se dança conforme a música ou
Do parecerista que sentencia um artigo se é expelido - nenhuma consideração pelo
para uma revista acadêmica àquele que inusitado e/ou pelo divergente. E a Ciência,
permite ou não que se tenha uma bolsa como é que fica? Por um lado sofre golpes;
para desenvolver pesquisa, eles - os donos por outro, sobrevive mesmo que à revelia
do poder acadêmico - agem. Mas, no jogo e longe dessas instituições (quase sempre).
2006

dialético jogado pela sociedade, a Academia Já imaginaram um parecer que se pretende

421
científico fazer uso de interjeições, por Na PUC-SP: vários universos

2004
exemplo? Pois é, isto acontece. E tudo em convivendo: esquerda, direita, acadêmicos
nome de uma ideologia que nem os menos e criativos. Até outro dia o programa de
doutos mais defendem. Deus salve os que estudos pós-graduados em Comunicação
verdadeiramente amam o saber! Há os que e Semiótica era o reduto dos que eram
estão na Academia como que forçados, por ávidos por inovações, como em outros
uma questão de sobrevivência e sofrem - às tempos o Departamento de Arte, com
vezes, não, pois sabem dos limites da coisa professoras arrojadas, capazes de colocar
e se imunizam. para apreciação, em sala-de-aula, poemas
Não é graças aos doutos que as coisas experimentais: Samira Chalhub, Maria Rosa
vão para a frente, mas graças aos que têm Duarte de Oliveira, Lúcia Santaella, Dirce
coragem intelectual. Assim também nas Ceribelli. Pela Semiótica andaram Haroldo de
Artes: há que se ter coragem artística. O Campos, Décio Pignatari, Lucrécia Ferrrara.
2005 mais fácil é ter simplesmente competência. Samira se foi, porém Santaella e Fernando
O mais importante é ousar. Segolin continuam por lá.
Já dizia o sábio Décio Pignatari: Quando a Academia dá um salto, este
“Faculdades de Letras não formam está localizado mais no campo da Ciência e
escritores!” E eu, nessa trilha, sempre afirmo: quem o dá, mesmo assim sofre as invejas
“Não há escola para poetas”… E por falar dos conservadores. As Artes é que se
em Letras, a Letras-USP mais parece centro cuidem! Têm perdido sistematicamente para
de estudos arqueológicos: a criatividade a mediocridade e a esclerose. Porém, houve
passou longe de lá; no máximo o que se faz tempo em que…
é preservar o já feito. É o túmulo da Poesia. (05 de março de 2005)

Assim como a História-USP é o sepulcro


das Artes: os acadêmicos só se sentem à
vontade entre os mortos sobre os quais já
2006

existe um consenso.

422
POESIA: ILUSTRAÇÃO X INTERSEMIOSE . O fato de se colocarem, lado a lado,

2004
PARTE I texto (o verbal) e desenhos, ou de se
colocarem, juntamente, cores não significa
Há alguns anos, quando lecionava que as ocorrências venham a se configurar
noutra universidade, a qual tenho ainda como uma fatura com perfeita integração de
em altíssima conta, uma acadêmica- códigos vários, uma fatura vedadeiramente
megera-movida-pela-inveja, que nem sabia intersemiótica, como se costumava dizer
que existiam rimas toantes nos poemas, ainda nos anos 70. Depois começou-se a
mal-ouvindo o que eu falava de poesia e falar simplesmente em POESIA VISUAL, um
intersemiose disse qual maritaca autoritária: balaio de gatos.
“Mas a poesia não foi sempre intersemiótica?” O poeta e teórico Philadelpho Menezes,
Respondi-lhe e para os demais presentes malgrado as falhas de seu estudo sobre a
naquela conversa informal que, no sentido visualidade em poesia, na poesia recente
2005 lato, considerando que a poesia ultrapassa do Brasil, tem o mérito de ter tentado pela
os limites do verbal com o próprio verbal, primeira vez uma classificação da poesia dita
poderia ser, porém, quando eu falava em visual. Desmerecia dois tipos (o do poema
poesia intersemiótica, falava da fusão de ‘embalagem’ e ‘colagem’, como os chamou)
códigos como propósito do poeta: meta a ser e enaltecia um que ele chamou ‘poema de
alcançada. Nem me lembro se me retrucou montagem intersígnica’ ou, como veio a
com alguma coisa ou se simplesmente reiterar depois, inclusive com exposição
rosnou, passando, agora, para o reino dos no Centro Cultural São Paulo, poesia
mamíferos. intersignos, qualificação inadequada,
Tudo isso me vem a propósito dos tudo para não utilizar a expressão ‘poesia
três artigos que publico n’O ALFINETE, cujo intersemiótica’.
primeiro vai agora e é sobre o não-verbal Quando a coisa é mal realizada, ela
que comparece em faturas-poemas de uma própria já se denuncia: soa falso, excessiva,
2006

certa linhagem. carecendo daquela economia de meios que,

423
ao mesmo tempo em dificulta a feitura da obra, (não vou entrar no mérito de ilustrações

2004
acaba, em grande parte, sendo responsável célebres, tão ou mais importantes que obras
por sua grandeza. Incompetência existe por que vieram a acompanhar, tendo, por isto
toda parte, em todas as poéticas possíveis e mesmo, autonomia com relação às obras que
com a poesia visual não seria diferente. as motivaram). Ornamentação, enfeite, não
Numa obra onde a utilização de códigos condizem com uma sensibilidade sintonizada
vários não tenha sido pensada como um todo, com o hoje. Esse hoje que, via de regra,
percebemos que há partes perfeitamente peca pelo excesso, dados os recursos que
dispensáveis. As “ilustrações” tiveram sua oferecem alguns programas de computador,
época e até têm, se elas existem para por exemplo.
exemplificar, esclarecer, reiterar algo que (12 de março de 2005)
comparece no texto verbal: aí, a interação se
dá no campo mais do semântico, sendo até
2005 obrigatórias em textos científicos ou nos de
ficção para o público infantil. Caso contrário
o visual é acessório, decorativo/ornamental
e, portanto, dispensável, ainda mais em se
tratando de obras de poesia e mesmo prosa, POESIA: ILUSTRAÇÃO X INTERSEMIOSE .
produzidas de um tempo para cá. A tal PARTE II
ilustração, de dispensável que é, entra como
um ruído indesejável mesmo, como que Hoje (muito embora a atividade de
interferindo negativamente no processo de ilustrador continue a todo vapor) as coisas já
fruição da obra. Em outras épocas foi prática nascem juntas, como em outras épocas em que
comum e até desejável. Hoje, a ilustração, já houve práticas de um perfeito casamento,
que geralmente é feita por outra pessoa que por exemplo, do grafismo simbólico (no
não o autor da obra principal, por isto mesmo sentido da Semiótica peirceana), tratado de
2006

sendo algo subsidiário, não faz mais sentido forma tal a se configurar coisa outra, antes

424
mesmo de uma leitura: como a arte da recursos, sejam de que natureza forem. Muito

2004
caligrafia nas áreas de cultura islâmica. trabalho se viu - principalmente os lançados
Os caligramas [termo aqui empregado sob a chancela de Massao Ohno Editor que,
no sentido lato, abarcando, portanto, toda na verdade, significava apenas o empréstimo
a produção pré-Apollinaire dos carmina do nome mais o encaminhamento para a
figurata = poemas figurativos] também foram feitura e a distribuição, já que os encargos
praticados no Ocidente desde a Antigüidade, financeiros ficavam sempre por conta dos
porém, sem a mesma persistência, empenho, autores - com formatos incomuns, papéis
grandeza. Naquele sentido, o caligrama especiais, uso de fontes de tipos diferentes,
funde, de fato, códigos. Não apenas impressão impecável, quando, de fato, o
explora certas facilidades de dar formas à trabalho veiculado não exigia tratamento
escrita, código altamente convencional. Não diferenciado, já que primava pela mesmice,
apenas ornamentar o árido grafismo, mas pelo comum, pelo tradicional. Tudo era,
2005 transformá-lo, enveredando por caminhos então, dispensável, decorativo.
que o colocam numa fronteira entre as coisa Nos anos ‘70, quando descobri as
do ícone e as do símbolo, para ficar com possibilidades em termos de intersemiose
a Semiótica peirceana mais uma vez. Daí que a Poesia Concreta oferecia, pensei muito
que, é muito difícil a arte da caligrafia, não a respeito da inutilidade de se ilustrarem
pensada simplesmente como a “belescrita”, - hoje - obras principalmente as poéticas.
mas fazendo-a configurar algo em que seja Pensei que as coisas deveriam caminhar
óbvia a pertinência do que nela comparece. no sentido de se fundirem códigos, tarefa
Cuidado gráfico, não significa dificílima e até cheguei a escrever um
simplesmente uma veiculação adequada e pequeno ensaio (1974), que ficou inédito e
impecável, o que, de qualquer maneira é que tratava claramente dessa questão.
importante. Cuidado gráfico significa, além O fato de ter ficado impressionado com
disto, sondar e seguir o que for adequado. No a Poesia Concreta e pretender uma fusão de
2006

mais, conseguir o máximo, com o mínimo de códigos, fez com que eu me aproximasse

425
de pessoas jovens ou menos jovens publicação no futuro, para a qual fizemos

2004
que, na época, estavam com as mesmas até projeto gráfico, que teve de esperar, por
preocupações. É bom deixar claro que, entre motivos de ordem financeira, já que tudo
poetas que, nos anos ‘70, pertenciam aos teria de ser feito no-muque.
que tinham a Poesia Concreta como grande Quando da proposta, entusiasmei-
feito da poesia brasileira, a fusão de códigos me com a idéia, mas, como desde já bem
era ponto fundamental. antes não acreditava em ilustrações,
(19 de março de 2005) procurei pensar desenhos que viessem,
de fato, a se integrar aos textos: originais
latinos e recriações em Português, desenhos
construídos com formas geométricas, na
fronteira entre o figurativo (até realista)
e o abstrato (simulação de) mas que se
2005 POESIA: ILUSTRAÇÃO X INTERSEMIOSE . colassem ao verbal e pensei: “para quem
PARTE III não lê Latim, nem Português” (poderia falar,
neste caso dos desenhos a partir de poemas
De minha aproximação com os de Marcial, em tradução intersemiótica,
irmãos Figueiredo de Presidente Alves, como colocou Roman Jakobson).
mais especificamente Luiz Antônio é que E era isto mesmo: figurações
surgiu uma série de desenhos - sete ao eróticas, linguagem universal que, embora
todo, tendo publicado apenas seis - porno- com forte carga conceitual, dependiam
eróticos motivados por poemas de Marcial fundamentalmente do olho para a sua
(o poeta latino, de linha fescenina, do século decodificação: fiz uma re-versão, uma
I dC), traduzidos por Luiz Antônio e Enio transmutação a partir do estímulo dos
Aloísio Fonda. Luís Antônio, em verdade, textos de Marcial e recuperei a escrita
foi quem sugeriu os desenhos à maneira de em seus inícios: a da fase pictográfica -
2006

‘ilustrações’, em 1975, para uma possível são realmente pictogramas (hipo-ícones

426
imagens, com alguma contaminação MARINEIDE DE MORAES

2004
simbólica e traços de indexicalidade que,
como vimos, estão nos inícios de nossa É lamentável, para mim, ter de
escrita, numa escrita pictográfica e proto- escrever sobre Marineide (Franzé) de Moraes
alfabética) que possibilitam combinações/ Bini por ocasião de seu passamento. Sim:
arranjos sintáticos. passamento. Em verdade, gostaria de estar
A primeira publicação, um ícone (um comentando um livro seu. Livro que fiquei
hipoícone imagem) com um poema se a esperar desde a época em que a conheci
deu em QORPO ESTRANHO 1, em 1976. A mais de perto, tendo sido seu colega no Curso
segunda, dois desenhos e dois poemas, em Clássico do Pujol, estudando Humanidades:
MUDA, de 1977. De 1978/79 é a publicação Marineide de Moraes, depois Marineide de
integral: um envelope com pranchas soltas, Moraes Bini, se mostrava como um talento
contendo originais em Latim, as recriações incontestável para a narrativa ficcional.
2005 em Português e os desenhos, os quais, Foi tudo tão relâmpago: soube de sua
posteriormente, participaram de várias doença, por telefone, na mesma semana em
exposições. que me noticiaram a sua morte e eu, estando
Para melhores esclarecimentos, espero em São Paulo, nem pude estar presente
que este periódico possa vir a reproduzir para velar o corpo e para a inumação, esse
poemas intersemióticos ou da era pós-verso, desnascer. Marineide: alguém cuja presença
como tenho dito nos últimos anos. Poemas foi marcante naquelas aulas que tivemos de
com suas respectivas análises. Talvez venha 1967 a 1969, das quais participaram, entre
a fazer uma série de artigos: POEMAS DA outros poucos Kikue Uski, Selma de Oliveira,
ERA PÓS-VERSO. Até! Terezinha Naressi.
(02 de abril de 2005) A família dela eu já conhecia há
tempos, pois havia sido colega de seu
irmão Juvelino Celso, no Olavo Bilac, anos
2006

50, assim como de José Eduardo Bini, que

427
viria a ser seu marido. Os pais eram de uma Marineide, se não me engano, já era formada

2004
educação invejável, de uma delicadeza rara em Contabilidade, mas gostava mesmo era
e Marineide herdou deles essas qualidades. de Letras e Ciências Humanas. Falava sem
Nunca presenciei um ato em que faltasse tristeza e com algum humor, de como não
nela a calma: sempre ponderava e emitia havia obtido aprovação no vestibular de
uma opinião que exalava compreensão e Letras em Lins: havia escorregado no exame
inteligência. Encontrava qualidade onde quer de Latim, que então pretendia aprender
que ela estivesse. direito.
Lembro-me de que, certa vez em que Foi uma aluna brilhante em tudo,
todo mundo falava mal de um certo escritor porém quando o assunto era Literatura
e principalmente de sua obra, ela veio e ela se entusiasmava e dizia sempre coisas
se referiu a trechos admiráveis do livro, que iam além do interessante. Numa já
lendo um fragmento. E, da maneira como por mim referida (nesta coluna) discussão
2005 ela o lia, o texto de fato ficava bom, muito acerca de Capitu, personagem machadiana,
bom. Tratava-se de uma descrição e como ela teve papel proeminente e muito do
Marineide era ótima descrevendo! Quando que assimilamos de narrativa ficcional
da doença de meu pai - corria o ano de 1969 artística devemos a ela, que atuava como
- ela mais ou menos participou de minha professora entre os professores, porém,
profunda tristeza, o que culminou com a sem arrogância, simplesmente por amor ao
morte e ela esteve presente ao entererro e saber, movida por aquela curiosidade que
escreveu uma espécie de crônica que depois leva ao conhecimento.
me entregou: era uma decrição impecável. Depois de concluído o curso eu a
Emocionante, porém sem excessos, mais vi poucas vezes. Esteve estudando em
parecia algo abordado por uma câmera de Marília e eu em São Paulo. Casou-se e eu
cinema: seus olhos-câmera aconpanhando o compareci à cerimônia. Morou fora. Retornou
féretro, até o sepultamento, enfim. a Pirajuí. Soube que ela aprofundou seus
2006

Quando foi para o Colegial-Clássico, conhecimentos em idiomas: no Italiano em

428
especial. Teve dois filhos: um casal. E eu fico muito embora o poeta esteja com 74 anos e

2004
a imaginar a falta que ela fará aos filhos e ao nos ofereça uma obra para lá de significativa.
marido. Como se isto não bastasse, Augusto continua
Na última ocasião em que estive com em franca produção, principalmente numa
ela, apressada, ainda me falou algumas coisas atividade que ele tem em alta conta: a
e me lembro principalmente de que, à minha tradução de poesia, a tradução-arte, como
pergunta sobre a narrativa ficcional, ela me costuma dizer. Recentemente, recebeu
respondeu que continuava escrevendo. um prêmio: o da Biblioteca Nacional e foi
Nossos pais deveriam ser proibidos de ao Rio de Janeiro recebê-lo, ele que, via
morrer. Pelo menos deveriam de fato passar de regra, teve a sua poesia vaiada! Foi e
sem morrer, sem nos deixar neste mundo, fez discurso, um belo discurso, tendo sido
cheios de dor. Frente ao irremediável, só nos calorosamente aplaudido por uma platéia
resta a alienação em outros pensamentos principalmente de jovens. O mais amado
2005 e atividades. Não há o desmorrer, como já dos concretistas teria idéia da grandeza de
sugeriu um poeta. Marineide. Requiescat in seu trabalho? Nós, do lado de cá, pensamos
Pace. sabê-lo. Inevitavelmente, de agora em
(09 de abril de 2005) diante, surgirão muito mais trabalhos
abordando aspectos pontuais de sua obra,
já que uma abordagem geral será trabalho
para toda uma equipe ou mais de uma
geração de estudiosos. Eu tive a fortuma de
poder encontrá-lo com freqüência de fins de
OBSERVANDO 27 (28?) 1974 até hoje e isto só enriqueceu o meu
repertório poético. Seu livro de poemas mais
1. Augusto de Campos. É difícil, ainda recente - Não Poemas - dá uma mostra de
hoje, avaliar a contribuição de Augusto de sua grandeza e de como continua em posse
2006

Campos para a poesia do Brasil e do Mundo, plena de seu ímpeto criativo. Auguri!

429
2. Palavras e expressões da moda. inteligente e o divulgou, carregará este

2004
ODIOSAS: agregar valor, cidadania, custo- estigma para sempre, sendo, vez ou outra,
benefício, interface, paradigma (“assistimos obrigado a dar demonstrações, para fazer
a uma mudança de paradigma”), andragogia. jus ao título. “Como ele (a) é inteligente!”,
Sim: a coisa chega a irritar, pois algumas dirão. Considero completamente descabido,
pessoas, para mostrar o quanto se encontram nas argüições das defesas de teses, falarem-
atualizadas, forjam situações para utilizá- se coisas que seriam da alçada do orientador,
las - a ferro e a fogo. Se se fala tanto em dando aquela demonstração de inteligência
governo, é sinal de que as coisas não vão e diligência e correção intelectual. É tão
bem. Em país bem governado (já se disse) fácil detectarem-se defeitos nos trabalhos
nem se percebe que há governantes. Se a dos orientandos dos outros. Inteligência é
palavra “cidadania” é tão utilizada, é porque coisa que se cultiva (com solidão, renúncia,
muita gente está vivendo à margem das aplicação/empenho e até alguma dose de
2005 benesses da democracia brasileira. No tempo sofrimento) e as demonstrações, quando
em que a democracia voltava a se esboçar no necessárias, devem acontecer em doses
Brasil e o MDB-PMDB praticamente liderava homeopáticas. Repertório, assim como
o processo sob a pressão-incentivo do PT dinheiro e liberdade é melhor ter-se. Porém
(que despontava com toda a força) falava- em nenhum caso se deve utilizar a coisa em
se invariavelmente em “comissões”: “Vamos sua totalidade. Dos três, o único inalienável,
formar uma comissão para”… De qualquer que não se perde, é o repertório. Onde
modo, deve ser - essa irritação - um problema quer que você vá o repertório vai junto.
idiossincrático meu, mas… Uma coisa é Em tudo o que você fizer transparecerá a
colocar palavras em circulação, inventá-las, sua inteligência. Sempre coloco para meus
outra é sustentar um modismo imposto pelas alunos que avalio antes a aplicação que a
mídias ou por pseudo-intelectuais. inteligência, porém, que a inteligência se
3. Inteligência é coisa que se cultiva. insinuará em tudo o que ele vier a fazer. Por
2006

Se alguma vez alguém sacou o seu lado outro lado, o processo de emburrecimento

430
em certos casos é fato. É preciso cultivar, grandes festejos os noventa! Pena eu não

2004
ao mesmo tempo que o-bem-estar-no- poder estar presente neste último 29 de
mundo, as coisas do intelecto. Exercícios do março. Porém meu coração estava aí e eu
intelecto podem ser, também, grande fonte vibrei e já pensei nos cem anos de daqui
de prazer. a dez: Pirajuí centenária! Tenho inúmeros
(16 de abril de 2005) textos sobre Pirajuí, os quais pretendo
publicar n’O ALFINETE. Nada, porém, cobre
o que a memória retém da terra onde nasci
e que me possibilitou conhecer tanta gente
linda. Cidade da qual nunca me desliguei.
Auguri!
2. Quando guaraná for coca-cola. Ontem
Observando 28 (29?) (04 de abril de 2005), na FAAP, um papo com
2005 Guto Lacaz. Aliás, uma palestra denominada
1. Pirajuí aos 90 anos. Há cinqüenta anos “Santos-Dumont designer”, que coloca nas
assistia eu ao desfile dos quarenta anos de devidas alturas o nosso gênio da aviação.
Pirajuí: 1915 -1955 e a fanfarra do Pujol Santos-Dumont foi um dos personagens que
(já possuía esse nome ou ainda seria Dr. mais estudei na vida e tudo motivado por
Adhemar de Barros?) juntou à percussão as um texto de Décio Pignatari, que saiu em
vozes em uníssomo: PIRAJUÍ !!! QUARENTÃO 1974 na revista POLEM 1: ele dizia ser SD
!!! Tudo naquela época - eu com seis anos nosso primeiro grande designer e um dos
de idade - parecia grandioso e trazia alegria grandes designers do mundo! Pois é: Guto,
e as pessoas já entradas na adolescência um importante artista plástico-gráfico, nem
pareciam tão distantes das crianças! Como mencionou tio Décio (nem sei se ele sabia
pareciam bem mais velhos os que integravam da antecedência do interesse do concretista
aquela banda… E pensar que se passaram célebre pelo pai da aviação). Em outras
2006

cinqüenta anos e Pirajuí comemorou com ocasiões, falando de seu próprio trabalho,

431
tampouco Guto Lacaz citou Duchamp, sua artistas do quilate de um Antônio Francisco

2004
grande influência, principalmente no que Lisboa - o Aleijadinho - e Augusto dos Anjos,
diz respeito à questão do humor na arte, entre outros tantos. No dia em que guaraná
muito embora Duchamp seja mais sutil, for coca-cola, como já disse muitas vezes o já
Guto mais direto e até tosco, mas mesmo mencionado Décio Pignatari, nossos valores
assim inteligente. Senti-me à vontade serão valores reconhecidamente mundiais,
naquela palestra, bem porque o assunto que qualquer conquista humana é para toda
me interessava sobremaneira. Não sei se os a Humanidade. Se a minha não, que outras
alunos estiveram igualmente interessados, gerações vivam esse pedaço.
já que Guto Lacaz, falando, não possui 3. Oswald de Andrade. Todos devem saber
nenhum brilho. Pelo contrário: fala mal e da solidão em que viveu Oswald de Andrade
até gagueja. Mas seu trabalho como artista na Paulicéia - solidão artístico-intelectual,
é bastante bom, acima da média (se é que entenda-se - no derradeiro período de
2005 assim se pode falar de produção artística). sua vida. É claro que tinha uma vida ativa
Mas, voltando àquele que foi, de fato, um como escritor-jornalista e que possuía ainda
dos inventores do avião, devagar o mundo alguns bons amigos, como o Edgard Braga,
começa a conhecê-lo enquanto tal. Seu famoso obstetra, poeta e que foi amigo da
caso é semelhante ao de outros grandes do família, mesmo depois da morte do patriarca,
Brasil, pelo fato de o nosso não ser um país em 1954 (conheci e travei amizade com o
hegemônico e a História ser algo construído velho Braga em meados dos anos 70, por
e imposto pelos que dão as cartas: quando indicação de Augusto de Campos). Bem,
o Brasil tiver voz no cenário internacional, Oswald sacou de saída a estética reacionária
saberemos que alguns de nossos valores da dita “geração de 45” e a combateu. Numa
são bem maiores do que imaginamos e que certa conferência, não me lembro bem de
como tivemos Gregório de Mattos e Padre quem da tal geração (episódio, parece-me,
Bartolomeu de Gusmão, chegamos até a ter relatado por Mário da Silva Brito) Oswald, na
2006

pensadores nada desprezíveis, assim como platéia, começou a palpitar, o que irritou o

432
conferencista que, reconhecendo-o, proferiu JULIO PLAZA III

2004
a sentença: “Cale a boca Oswald, porque
você é o calcanhar de Aquiles de 22”. Com Julio Plaza González - Madrid 1938
a sua conhecida verve, Oswald de Andrade - São Paulo 2003. Quase nada sei de sua
não hesitou e fulminou: “E você é o chulé formação primeira. Sei, sim, que ele
de Apolo de 45!” Que rasgo de inteligência! aprendeu de tudo dos fazeres e afazeres das
Sem sair da mitologia grega (passando do Artes, tendo tido um domínio artesanal raro,
herói para o deus), ficando no pé (passando o que jamais lhe subiu à cabeça, inquieto que
do de um para o de outro personagem) e era, apresentando, ao longo de pelo menos
alterando a data (sem deixar os números) trinta e cinco anos - que é o que sei dele com
o autor de Serafim Ponte Grande reduziu a certa segurança - uma grande variedade de
pó o empoeirado defensor de fórmulas de interesses, porém sem ecletismo e sempre
outrora. Cada vez mais admiro o talento e norteado pelo rigor. Às vezes, pareceu mais
2005 a inteligência de Oswald de Andrade, que só suíço que suíços; em outras deixou vazar
veio a ganhar respeito e admiração a partir sua cultura latina-hispânica.
dos anos 60, com os trabalhos elaborados Sem graduação completa (que deveria
pelos concretistas e por alguns outros ter sido feita na Espanha) pôde cursar a pós-
poucos. Oswald precursor: cada vez mais graduação em Comunicação e Semiótica,
vivo e influente! na PUCSP, por notório saber. Notório-e-
(23 de abril de 2005) notável-saber. Além de técnicas, métodos
e materiais, Julio Plaza possuía grande
conhecimento da História da Arte. Pouco
falava e quando falava era num portunhol
pleno de afirmações chocantes. Longe do
lugar-comum, Plaza dava a impressão de
estar sempre a descobrir o mundo: como
2006

na época em que, enamorando-se do código

433
verbal, deliciava-se com anagramas e poderiam ser reproduzidos, sem perda de

2004
paronomásias. informação estética.
Do que pude ver de sua produção - e 5. Sua colaboração com revistas de poetas
deverei pesquisar mais, daqui para diante - intersemióticos: de CÓDIGO (pesquisa
detectei momentos nítidos, os quais chegam muito bem realizada por meu ex-orientando
a se entrelaçar e que deverão servir como Felipe Martins Paros) a ARTÉRIA e QORPO
tema para futuros pesquisadores: ESTRANHO, além das que ele ajudou a editar
1. A fase construtiva, em que a abstração e/ou elaborar o projeto gráfico.
geométrica (bi e tridimencional/ 6. Livro de artista: e ele não só realizou
tridimensionável) dá a tônica. alguns importantes trabalhos nesta área,
2. Os trabalhos em parceria com Augusto como teorizou sobre o assunto, elaborando
de Campos: três (Poemóbiles, Caixa Preta e uma classificação.
Reduchamp) mais um que quase não chegou 7. O encantamento pelas palavras:
2005 a sair do projeto: o Inferno de Wall Street, jogos anagramáticos e paronomásicos
de Souzândrade (do qual cheguei a ver uns (trocadilhescos).
ensaios em casa de Julio Plaza). Uma minha 8. Tradução intersemiótica, tese que ele
orientanda de Mestrado, do IA-UNESP - desenvolveu a partir de uma preciosa dica
Daniele Gomes de Oliveira - está trabalhado do lingüista Roman Jakobson.
este tema [abandonou o projeto]. 9. As novas tecnologias: videotexto,
3. Metalinguagem: a que comparece em holografia, computador, foram-se tornando
seus trabalhos artísticos - a arte na arte - e recursos corriqueiros na vida de Julio Plaza.
em seus textos teóricos: do vídeotexto às Foi pioneiro, no Brasil, na utilização do
poéticas digitais. videotexto como instrumento para a arte.
4. Reprodutibilidade: como um valor que 10. O conceptualismo que perpassa toda a
veio a possibilitar a um número muito maior sua obra.
de pessoas o acesso a obras de alto nível. A partir de agora, tem início, de
2006

Ou seja, a elaboração de trabalhos que fato, uma avaliação da obra de Julio Plaza.

434
Pesquisas começam a ser feitas, tendo o POESIA: CONSIDERAÇÕES GERAIS

2004
artista como principal objeto e sondando sua SOBRE A ARTE DA PALAVRA
influência sobre mais que uma geração de (RUMINANDO IDÉIAS)
artistas em São Paulo, dada a sua atividade
como docente na FAAP e na ECA-USP. Julio A POESIA, considerada como a ARTE
Plaza chegou a ensinar em Porto Rico. DA PALAVRA, por excelência, constitui-
Unindo Maliévitch e Duchamp, se numa das mais altas manifestações da
Mondrian e a POP ART mais tecnologia-de- cultura dos povos. Não sem propósito os
ponta, Julio Plaza construiu uma obra - com poetas, representantes dessa arte que
não muitos trabalhos - que acabou sendo um não proporciona dividendos, mas propicia
presente para o Brasil. Julio Plaza González. até a glória, são colocados em patamares
Aguardando uma grande exposição de seus elevadíssimos pelas sociedades de que
trabalhos… fazem/fizeram parte.
2005 Em tempo: A Mostra Anual dos Alunos da Manipulando, lidando, trabalhando
FAAP, fins de 2004, homenageou, desta vez, com um código que pertence à sociedade
Julio Plaza, com a re-montagem do trabalho como um todo, os poetas conseguem com
L(O)(A)S MENIN(O)(A)S, obra conceitual- sua competência (adquirida por meio de
clara-alusão-a-Velázquez. um árduo aprendizado, de muita audição,
(30 de abril de 2005)
exercício e, conforme o caso, de leitura) e
seu talento, transformar em diamantes, os
“dizeres” que, constituídos de palavras etc,
estão disponíveis a todos (os donos dos
idiomas não são os gramáticos, tampouco os
professores de língua vernácula, mas todo
pensante e falante - às vezes “escrevente”
- de um certo idioma).
2006

435
Que estranhas combinações são essas Ezra Pound , “Poesia e Pensamento Abstrato”,

2004
que resultam naquilo a que chamos POEMAS? de Paul Valéry, “Lingüística e Poética”, de
Como é que se consegue, manipulando Roman Jakobson, “Texto e História”, de
um código que, sendo comum a todos Haroldo de Campos. Hoje, eu acrescentaria,
os integrantes de uma sociedade, erigir de V. Chklóvski, “A Arte como Procedimento”
seqüências verbais em verdadeiras jóias, e, talvez uns dois ou três mais.
dentro do universo do inútil-essencial? Roman Jakobson tocou fundo na
Os poemas são isto: JÓIAS DOS questão da Poesia, justo num momento
IDIOMAS (o que não implica a exclusão de em que não fazia mais sentido fazerem-
outros códigos como partes integrantes da se versos (quando Aristóteles abordou, na
peça poema / fatura / fazimento / feitura). Poética, a questão da Tragédia, no século
Como a coisa brota? Em meu trabalho de IV aC, também o gênero havia entrado em
Mestrado, no primeiro capítulo, procurei decadência); Jakobson fala na projeção do
2005 delimitar, com base em textos que julguei eixo paradigmático sobre o sintagmático,
fundamentais, a questão do poético, o que, determinando, assim, o arranjo, o que
penso, satisfez na época. De qualquer modo, podemos compreender perfeitamente,
considerando desde Aristóteles aos dias quando temos algo como ... vestes de seda
atuais, destaquei sete textos fundamentais, sonhada / pela alameda alongada / sob
apontando alguns outros como sendo o azular do luar ... (Fernando Pessoa).
complementares; eram eles: a Poética, de Mesmo tratando a palavra como a
Aristóteles (poderia ter começado por Platão, matéria com a qual trabalha o poeta e
porém, no caso específico de compreensão encarando a poesia como a arte do verbal por
do fenômeno poético, entraria num segundo excelência, a mente semiótica de Jakobson
momento), “A Filosofia da Composição”, apresenta aberturas para outros caminhos
de Edgar Allan Poe, “Os caracteres escritos dentro do universo da POESIA. Questões de
chineses como instrumento para a poesia”, poesia envolvendo outros códigos que não o
2006

de Ernest Fenollosa, ABC da Literatura, de verbal ainda são polêmicas, mas estiveram e

436
estão presentes em qualquer discussão que e adentrar complexidades técnicas e até

2004
se preze, envolvendo a arte de Mallarmé. teóricas. Falar em Estética, por exemplo, que,
Disto já tratei nesta coluna e tornarei a por sinal, tem tudo a ver com a percepção e
tratar, em momento oportuno. Que Poesia com os sentidos.
é assunto que não se esgota. Por outro Sempre que um curso não vier a usar,
lado, certas questões ficam apenas entre os através do professor, mecanismos de pressão/
poetas e a Musa! intimidação, como as avaliações, com notas
(14 de maio de 2005) de aproveitamento e presença obrigatória,
os resultados serão os melhores possíveis.
Um público de não-iniciados, de crianças a
adolescentes (porém, não somente), poderá
assimilar com relativa facilidade conceitos
e entender operações complexíssimas,
poesia e ensino tudo dependendo da maneira como a
2005
coisa é conduzida. Assim, questões como
A poesia pode estar disseminada o próprio conceito ou noção do poético,
por todos os lugares, em doses mínimas, metro, ritmo, rima, paronomásia, metáfora,
homeopáticas, porém, seu território, por “enjambement”, recursos de acréscimos ou
excelência, é o poema: aí é que o poético supressão de sílabas e mesmo a da tradução
se configura em sua plenitude, em doses de poesia, poderão ser tratadas e com muito
cavalares, às vezes. Poesia deveria estar bons resultado.
mais presente na escola – além dos poemas A poesia tem sido deixada de lado.
de sempre, que aparecem principalmente em Talvez que, antes, fosse tratada de uma
datas comemorativas. A poesia mais arejada maneira menos aconselhável. No primeiro
e inventiva poderia ser trazida e apreciada grau (hoje se diz Ensino Fundamental) é
por gente de todas as idades e poder-se- quase esquecida e, no segundo (Ensino
2006

ia até extrapolar o simples entretenimento Médio), o enfoque predominante é o histórico,

437
enfoque meramente diacrônico e, no mais, o não-iniciados, a metalinguagem necessária

2004
chamado “entendimento de texto”, o que há dos poemas deva ser feita oralmente pelo
de referencial no poema, ficando o poético/ professor/instrutor. Por escrito, apenas os
artístico, relegado a um terceiro plano, ou poemas.
mesmo, esquecido. Alguns autores são Há alguns livrinhos que tratam
ignorados e outros, a exemplo de João Cabral da poesia para não-iniciados, como, por
de Melo Neto, em torno de quem existe uma exemplo, o de Décio Pignatari O que é
certa unanimidade, são postos de lado, comunicação poética (editado agora pela
dadas as dificuldades de abordagem. Quando Ateliê), com texto light e inteligente:
muito, no caso de Cabral, menciona-se o toca em questões fundamentais, sem
Morte e vida severina, extraindo do poema entediar o leitor. Já o de José de Nicola e
o que nele há de “conteúdo”… Ulisses Infante – Como ler poesia – teoriza
Sempre pergunto a portugueses demais, trazendo conceitos até bastante
2005 escolarizados que tenho a oportunidade discutíveis, quando não, informações
de contatar, sobre a questão da poesia errôneas, ausências indesculpáveis; excesso
no ensino que antecede a Universidade. de texto metalingüístico. Alguns outros
Todos, quase sempre, acabam por detestar livros subestimam a capacidade dos não-
Camões e mesmo Fernando Pessoa, dada iniciados, barateando o repertório (quanto
a obrigatoriedade e o volume massacrante a textos poéticos propriamente e quanto à
de textos a serem analisados e que, depois, metalinguagem que os acompanha).
serão objeto de avaliação. Uma criança/ Os alunos que vierem a gostar da
adolescente é obrigada a deglutir Os Poesia num curso aparentemente sem
Lusíadas, ao mesmo tempo em que o épico compromissos maiores procurarão mais
é analisado sintaticamente! Disso tudo, e mais informações sobre essa arte, a
sobra a má lembrança, a recordação de um qual antecede a invenção da escrita nas
castigo, do que poderia ser fonte inesgotável civilizações. Todos consomem arte, alguma
2006

de prazer. Penso que, para um público de modalidade, alguma forma de arte. Que

438
venham a consumir (fruir seria o verbo Muito interessantes, mormente porque

2004
correto) da melhor forma o que há de afirmações feitas por grandes poetas.
melhor. Se pintura, que tenham Rembrandt Também, porque tocam fundo na questão,
como parâmetro, se música, Stravinski, se mas não a esgotam. Sempre e sempre,
poesia, Camões. Que a grande arte já não é outras tentativas de definição serão bem-
de ninguém: é de toda a Humanidade. vindas.
(28 de maio de 2005) Agora, tomemos, de dicionário
etimológico, alguns verbetes: POESIA - Do
grego póiesis, ação de fazer alguma coisa,
pelo lat. poese, e suf. it. Em Heródoto ainda
significava feitio; depois aparece como obra
poética. POETA - Do gr. poietés, o que
AINDA EM TORNO DA POESIA I faz, o autor; pelo lat. poeta. Desde
2005 Hesíodo e Píndaro significa o que faz versos
Algo que ainda não fiz neste espaço: ( ... ). A base do vocábulo grego é o ático
trazer definições de Poesia, várias, o que poéo por poiéo, fazer. POEMA - Do gr.
seria, no mínimo, interessante para efeitos de póiema, o que se faz, pelo latim poema. Em
teste, discussão, sondagem, para sabermos Heródoto ainda significa trabalho manual;
em que medida elas cobrem o fenômeno em Platão já era trabalho literário. (Antenor
poético. Nascentes)
Assim teríamos, por exemplo, de Ezra Tais definições/explicações colaboram
Pound: ...”poesia, a mais condensada forma para a nossa ilustração, mas não contribuem
de expressão verbal”. De Fernando Pessoa: para encaminhar ao esclarecimento da
“A poesia é a emoção expressa em ritmo questão. De qualquer maneira, um saber
através do pensamento”... De Paul Valéry, necessário. Poderíamos percorrer obras
que coloca a poesia como o oscilar entre o teóricas, da Antigüidade aos nossos dias.
2006

som e o sentido. Nos últimos 30 anos, dei conta de várias

439
dezenas delas e percebi que algumas, em acredito, realiza a síntese necessária de

2004
nada esclareciam sobre a questão específica um processo dialético, que joga com o que
da poesia, sendo, portanto, inúteis sob este podemos chamar de sensibilidade, por um
aspecto; outras possuíam uma ou outra lado, e cerebralismo, por outro. Não somente
parte aproveitável, pois, além de pensarem isso a que chamamos poesia, mas também
o problema, traziam fartas exemplificações, toda e qualquer manifestação artística
sugestões de leituras etc. Certas obras realiza tal processo. Daí, num poema, o que
eram por demais tendenciosas, embora é captado e selecionado pela sensibilidade,
inteligentes, exigindo do leitor, uma iniciação passa pelo crivo do racional, do puramente
e senso crítico já formado. Por outro lado, cerebral, do controle daquele que faz, o
deparei com escritos teóricos de poetas fazedor, o maker, o poietés.
que, movidos pelo grande amor pelo afazer, Acredito: sempre há algo que
aproximaram-se (teoricamente) bastante escapa ao controle do poeta, senão não
2005 daquilo que na prática faziam mesmo. haveria tanta riqueza de interpretações,
Também alguns teóricos/estudiosos que de maneiras de receber uma mesma peça,
trabalharam inteligentemente e com amor o embora isso também dependa do repertório
tal assunto. e sensibilidade daquele que recebe. A
Cabe aqui, agora, antes de prosseguir arte, em geral, e a poesia, em particular,
na questão central, qual seja, a do poético, evidenciam, ao lado de todo um labor de
uma digressão sobre o que vem a ser o feitura, da elaboração, um lado de não-
poeta, como ele trabalha, o que ele mobiliza racionalidade, o qual está sempre presente,
para elaborar poemas. como que espécie de gradação de formas e
A arte do poeta, a POESIA, esse tipo sub-formas que sugerem (mesmo que não
de manifestação criativo-estética (e é bom se perceba de imediato) conteúdos não-
lembrar aqui que estética, vem do grego verbais e não convencionalizados. Mesmo
áisthesis, que se origina do verbo aisthánomai, um poema concreto da fase dita
2006

que significa: perceber pelos sentidos) “ortodoxa”, apresenta, evidencia uma

440
certa não-racionalidade: a própria opção que pintava o poeta, nesse particular, como

2004
pelo e em prol do fazer poético - coisa inútil alguém que “recebia”, sem saber, na verdade,
- é prova disto... o que fazia (vide Ion e a Defesa de Sócrates):
(04 de junho de 2005) captava o poema por inspiração divina.
Vejamos um trecho da Defesa de Sócrates
(Apologia de Sócrates): (...) “Depois dos
políticos, fui ter com os poetas, tanto os
autores de tragédias, como os ditirambos e
outros, na esperança de aí me apanhar em
flagrante inferioridade cultural. Levando em
AINDA EM TORNO DA POESIA II mãos as obras em que pareciam ter posto o
máximo de sua capacidade, interrogava-os
Inevitavelmente, surge em minha minuciosamente sobre o que diziam para ir,
2005 mente o célebre escrito de Edgar Allan Poe. ao mesmo tempo, aprendendo deles alguma
“A filosofia da composição”, em que, expondo coisa. Pois bem senhores, coro de vos dizer
passo a passo o como concebeu e executou o a verdade, mas é preciso. A bem dizer,
poema “O Corvo” diz não ter deixado que nada quase todos os circunstantes poderiam falar
escapasse ao seu controle: “É meu desígnio melhor que eles próprios sobre as obras
tornar manifesto que nenhum ponto de sua que eles compuseram. Assim, logo acabei
composição se refere ao acaso ou à intuição, compreendendo que tampouco os poetas
que o trabalho caminhou, passo a passo, até compunham suas obras por sabedoria, mas
completar-se, com a precisão e a seqüência por dom natural, em estado de inspiração,
rígida de um problema matemático”. como os adivinhos e profetas. Estes também
Esse tipo de pensamento, dizem muitas belezas, sem nada saber do
importantíssimo, veio ajudar a combater que dizem; o mesmo, apurei, se dá com os
a persistência de certas idéias que, poetas”(...).
2006

comprovadamente, vinham desde Platão, O que depreendemos disso, é a

441
rivalidade plantada, a partir do surgimento ninguém em sua época - o papel da poesia

2004
do chamado “pensamento racional” com os na formação dos helenos...
gregos, entre filósofos e poetas, no que diz Retomando: o poeta, como queria Poe,
respeito ao domínio da linguagem, mais é possuidor de um cérebro e faz uso dele, só
especificamente, ao domínio/manipulação que, penso, o acaso interfere e até beneficia,
do código verbal. Os poetas precederam podendo ser incorporado (e isto, não apenas
os filósofos - os primeiros filósofos, lidando hoje, época em que os criadores têm feito
com as palavras, visando a explicar o uso do acaso programaticamente): intuição,
mundo, fizeram uso de recursos ditos é intuição informada: inspiração é momento
“poéticos”, Platão, distante dos pioneiros, propício, momento de facilidade para a
pode ser considerado filósofo-poeta: valeu- execução, em que as coisas fluem (como
se daqueles recursos em seus escritos, o diriam Paul Valéry e Manuel Bandeira).
que os tornou mais belos (pudemos notar (11 de junho de 2005)

2005 isso num trecho do Banquete, que trabalhei,


no original com colegas e professor, em
curso de Língua Grega). Francisco Achcar
trata a questão Platão/Poesia - o papel da
poesia na formação dos gregos e a atitude
de Platão frente a isto, de maneira muito
clara, em artigo na REVISTA USP 8. Não
é única a atitude de Platão (República. AINDA EM TORNO DA POESIA III
...Livro X); Achcar lembra o fragmento
42 de Heráclito, no qual temos: “Homero Tomo aqui as falas de quatro grandes
merecia ser expulso das competições e poetas (algumas considerações preciosas),
açoitado, assim como Arquiloco” (tradução dois dos quais, brasileiros: Fernando Pessoa,
de Francisco Achcar). Quão importante Paul Valéry, João Cabral de Melo Neto e
2006

havia sido - Platão o sabia, mais que Haroldo de Campos.

442
Fernando Pessoa: “A composição de um João Cabral de Melo Neto: “Eu tenho a

2004
poema lírico deve ser feita não no momento impressão de que a poesia é uma linguagem
da emoção, mas no momento da recordação que se dirige à inteligência, mas através dos
dela. Um poema é um produto intelectual, sentidos”.
e uma emoção, para ser intelectual, Haroldo de Campos: “Poesia para mim
tem evidentemente, porque não é de si, é uma confluência dialética de racionalismo
intelectual, que existir intelectualmente. e sensibilidade, que se decanta num certo
Ora, a existência intelectual de uma emoção momento”.
é a sua existência na inteligência - isto é, Na brilhante análise que fez da última
na recordação, única parte da inteligência, estrofe do poema “O Corvo”, de Poe, Roman
propriamente tal, que pode conservar uma Jakobson, observando o lance RaVeN NeVeR,
emoção” .... mostrou algo que escapou da programação
Paul Valéry: “Mas todos os poetas do poeta, embora conforme àquela.
2005 verdadeiros são necessariamente críticos Na disputa real, que dura séculos, para
de primeira ordem”. (....) “Todo poeta apurar quem diz mais e melhor, fico com
verdadeiro é muito mais capaz do que se os poetas, assim como alguns pensadores
pensa geralmente de raciocínio exato e de da linguagem. Os poetas são aqueles que,
pensamento abstrato”.(....) “observei com a fazendo uso de palavras, conseguem mais
mesma freqüência com que trabalhei como com menos. Reportemo-nos a Jakobson:
poeta que meu trabalho exigia de mim não “Somente quando morre uma época, quando
apenas aquela presença do universo poético se dissolve a estreita interdependência de
do qual falei, mas também uma quantidade seus diversos componentes, somente então
de reflexões, de decisões, de escolhas e é que, no famoso cemitério da História,
combinações sem as quais todos os dons erguem-se, acima de toda sorte de velharias
possíveis da Musa ou do Acaso continuariam arqueológicas os ‘monumentos’ poéticos”.
sendo materiais preciosos em um canteiro Poemas são como jóias que, de uma
2006

de obras sem arquiteto”. maneira ou outra, sobrevivem aos contextos

443
em que foram produzidos, mantendo uma poesia (o fenômeno poético) é, como procurei

2004
beleza apreciável, apesar das diferentes deixar claro, o resultado de um processo
visões das diferentes épocas. dialético em que entram em jogo cerebralismo
T.S. Eliot: “O que mais importa, (racionalidade) e sensibilidade (que no
digamos, ao ler uma ode de Safo, não é poema é inseparável de cerebralismo e vice-
que me imagine numa ilha grega há 2500 versa). O que há de sensibilidade no poema
anos. O que importa é a experiência, que é que impossibilita - a não ser que possibilite
é a mesma de todos os seres humanos de - em se seguindo fórmulas, receitas, que
diferentes séculos e idiomas, capazes de se consigam bons resultados. Um poema é
apreciar poesia: é a centelha que consegue tanto melhor, quanto mais conseguir deixar a
atravessar esses 2500 anos”. E, apontando o impressão ou certeza de que se trata de um
papel da crítica: “Portanto, o crítico a quem todo, uma completude, algo inteiro, em que
sou mais agradecido é aquele que consegue nada falta, nada sobra; de que nele, tudo o
2005 fazer-me ver algo que eu jamais vira antes que há é estrutural, nada tendo que se apare
ou vira apenas com os olhos nublados de ou acrescente, nada a modificar; um todo
preconceitos, aquele que me coloca frente singular. Paul Valéry: ...”Um poema é uma
a isso, para depois deixar-me a sós. Daí em espécie de máquina de produzir o estado
diante devo confiar apenas em minha própria poético através das palavras. O efeito dessa
sensibilidade, inteligência e capacidade de máquina é incerto, pois nada é garantido
discernimento”. em matéria de ação sobre nossos espíritos.
Não seria excessivo lembrar aqui que Mas qualquer que seja o resultado e sua
crítico é, em seu verdadeiro sentido, aquele incerteza, a construção da máquina exige a
que sabe discernir, separar (do verbo grego solução de muitos problemas. (...) a duração
krino: separar ....). da composição de um poema mesmo bem
O poema - feitura, fatura, fazimento curto, pode absorver anos, enquanto a ação
- sendo o lugar onde se manifesta, do poema em um leitor será realizada em
2006

preferencialmente, aquilo a que chamamos alguns minutos”…

444
Como já disse anteriormente, a mente Mas como amava Pirajuí! Procurava colocar

2004
e os sentidos devem estar preparados para em destaque tudo o que o município havia
que se possam fruir essas preciosidades: produzido de melhor. Pesquisava a terrinha
poemas. como um verdadeiro historiador e - parece-
(18 de junho de 2005) me - estava, aos poucos, organizando um
banco de imagens fotográficas, tarefa árdua
e necessária. E isto tudo se relacionava com
o semanário O ALFINETE, que ele começou,
desde fins de 1999, a co-dirigir tomando,
depois, a frente.
MARCELO PAVANATO Notório e notável o seu senso de
organização, seu capricho! Todo o seu
Jamais poderia imaginar que estaria trabalho era sempre impecável e pena
2005 escrevendo sobre meu amigo Marcelo, foi que ele acabou não cursando Design
motivado por acontecimento tão triste. Gráfico, como gostaria de ter feito, na
Nunca pensei que poderia sobreviver a ele, trilha da profissão do pai, que perdera
tão jovem e aparentando muito boa saúde. prematuramente e que tinha na mais alta
Porém, os fatos são esses e, como sempre, conta. Além de gráfico, Marcelo era um
não se pode saber do futuro o que nos aguarda jornalista de talento e pretendia expandir
e os acontecimentos são irreversíveis. o semanário que comandava, porém, a
Conheci Marcelo Pavanato ele ainda necessidade de recursos financeiros fez com
menino, trabalhando como comerciário: que ele ficasse esperando, até que foi colhido
seu pai um gráfico-tipógrafo, sua mãe, pela fatalidade que todos nós sabemos. É
pertencente a uma família que primava uma pena para Pirajuí e para nós todos que
pela beleza de suas mulheres. Italiano acreditávamos nele como um homem de
pelas duas partes, o pirajuiense Marcelo imprensa.
2006

passaria por um nativo da terra de Bernini. A seu convite, em fins de janeiro

445
do ano 2000, elaborei minha primeira SOBRE O QUE ESTOU MESMO

2004
colaboração para O ALFINETE, colaboração ESCREVENDO?
que foi constante nesses anos todos, o que
sempre me deu prazer, pois eu gozava de Volto a escrever neste órgão de
plena liberdade em termos dos assuntos imprensa, exercício semanal que me deu
a serem tratados. O meu primeiro artigo bastante prazer nestes últimos cinco anos
versou sobre Tarsila do Amaral, que voltou a e meio. Marcelo Pavanato deu-me (sempre)
comparecer em outros momentos neste meu plena liberdade quanto a assuntos a
espaço. E aprendi, em parte com Marcelo, a serem tratados, só tendo alguma restrição
respeitar as novas tecnologias, pelas quais quando o texto era muito longo - questão
ele era fascinado. de espaço. Pude escrever sobre assuntos
É difícil, senão impossível, aceitar a que me intrigavam, principalmente Poesia e
morte de um ente querido, principalmente Artes, mas também tocando em temas que
2005 quando se trata do pai da gente. Então, fico nunca tiveram muito a ver comigo, como
a pensar na dor do Pedrinho e no como será por exemplo futebol que, de qualquer modo,
difícil para ele conviver com a idéia de não respeito. Cada tema cabia numa certa seção:
mais ver vivo o pai. Resta-lhe o consolo de “PESSOAS”, “COMUNICAÇÃO”, “POESIA”,
uma mãe dedícadissima, que é Fátima, e “ARTES” etc. A partir de hoje batizo minha
a imagem de um Marcelo no auge de sua coluna de DE TUDO E MAIS UM POUCO e
juventude, prestes a dar o melhor de si para dispenso aquela numeração cansativa.
o jornalismo em nossa cidade e região. Poderia escrever sobre os últimos
Que O ALFINETE possa sobreviver e acontecimentos envolvendo nossa vida
crescer. Era esse o sonho de Marcelo. política, porém todos os veículos estão
(25 de junho de 2005) fazendo isso e exaustivamente. Mas penso
que, apesar de tudo, o Brasil é maior que
alguns de seus maus filhos e sobreviverá,
2006

embora a um preço muito alto, principalmente

446
para aqueles que tradicionalmente sofrem Waldemar Cordeiro, Abraham Pallatinik e

2004
num país tão grande e tão cheio de recursos Julio Plaza. Mas sempre acabo pensando
naturais, humanos e até técnicos. que o Itaú, com todo o seu dinheiro,
As Artes me deixam feliz - sempre! poderia fazer muito mais pela produção
Mesmo quando me ocupo de mostras cultural brasileira (a mostra anterior, sobre
pouco inventivas. Estive, semana passada, o CORPO, pareceu-me meia-boca). Outras
numa mostra de um ex-aluno muito instituições igualmente ricas, no entanto,
talentoso, o artista plástico Vítor Mizael, nada fazem. Legal o bate papo com Walter
ocasião em que Priscilla Davanzo, artista Silveira e André Vallias, com uma espécie de
conceitual e performática do corpo (que mediador que nada sabia sobre o assunto
gradativamente se transforma numa vaca) Arte e Novas Mídias.
fez uma apresentação que chocou muitos Bem, prometo voltar com variados
velhos e novos, que não podiam crer que assuntos e escrever, entre outros, sobre
2005 bordar na própria pele a palavra VAZIO pessoas que me marcaram e marcaram
poderia ser Arte. E tudo acompanhado por Pirajuí, projeto que venho desenvolvendo
excelentes músicos percussionistas e da desde que iniciei meus escritos neste
música eletro-acústica do IA-UNESP. Vítor semanário, em fins de Janeiro de 2000.
e Priscilla prometem e cumprirão: artistas Auguri!
inquietos e pesquisadores que são. (16 de julho de 2005)
Por outro lado, a exposição “O Brasil
de Aguillar” […].
Não fui ver a mostra sobre o CORPO
na Oca, Ibirapuera. Tampouco a de Andy
Warhol, artista genial, no MAM. A atual
exposição no Itaú Cultural, que aposta
nas novas tecnologias, está interessante,
2006

bem porque homenageia os pioneiros

447
SÃO PAULO AO RÉS DO CHÃO tudo o que há de bom (veja-se no filme

2004
Casablanca a comoção geral com o canto
Hoje, o grande feriado na França: o que fez frente à presença do totalitarismo
14 de julho. Lula lá, porém com a cabeça nazista, vencendo-o naquele momento)
por aqui. Isso tudo me faz lembrar a história como se o colonialismo francês tivesse
da infeliz Maria Antonieta, rainha de França sido brando e como se o povo francês não
e que, frente à revelação de que o povo fosse racista (os estragos feitos na África
não tinha pão (no sentido de não ter o que pelos europeus - de belgas e ingleses aos
comer), espantada, indagou porque não nossos portugueses requererão séculos de
comia brioches! Ela acabou por perder a trabalho…). E o Haiti, país americano evocado
cabeça - literalmente, na guilhotina - como pelo nosso presidente, em Paris, nada mais
conseqüência da revolução que teve início é do que cria do colonialismo francês…
“oficialmente” no catorze de julho. Quanto ao Bem, mas o que eu queria mesmo
2005 presidente, não desejo que perca a cabeça, dizer é sobre a exposição - Motion Pictures-
nem metaforicamente (embora tenha traído de Andy Warhol no MAM-São Paulo. São
todas as bandeiras de cunho socialista de retratos filmados: quadros moventes. Por
seu partido e que, com pouca diferença da trás de uma aparente superficialidade, uma
observação da desgraçada rainha propôs penetração na alma humana. Warhol, um
um vergonhoso programa nota zero: fome dos papas da Arte Pop, mostrou que ainda
zero. Nota zero para sua equipe) espero era possível retratarem-se pessoas, depois
que chegue ao fim do mandato, delegado de toda a revolução modernista, e o fez e
pelo povo, que lhe proporcionou a mais bela introduziu uma visualidade que impregna
festa de posse que um presidente já teve no o mundo Pop, com ou sem repertório
Brasil. erudito, até os dias de hoje. A Pop Art não
Como os franceses gostam de sua foi compreendida por muitos intelectuais
bandeira e como ninguém vê mal nenhum ditos de esquerda que, na sua pressa, viam
2006

nisto! A Marselhesa transpira liberdade e tudo aquilo simplesmente como reflexo do

448
imperialismo estadunidense. Bobagem. A Pop têm algum ou muito dinheiro: a Galeria dos

2004
é uma das belas coisas que os EUA legaram Pães, na Rua Estados Unidos, esquina com a
para o mundo. Por sinal, nasceu antes na Haddock Lobo. Inacreditável a variedade de
Inglaterra, chegando rápido e florescendo coisas deliciosas para os que têm dinheiro
nos Estados Unidos. e não precisam fazer regime. Os ricos irão
O artista Andy Warhol não parou nas todos para o inferno - com Daslus, Empórios
imagens apropriadas da mídia impressa, com Santa Maria, Galerias dos Pães etc. E os
especial tratamento - pintura e silk screen - antigos já sabiam disto.
mas evoluiu dentro da “arte do retrato”. Idéias O dinheiro não traz felicidade mas dá
geniais estão presentes em certos retratos, poder e garante conforto. Um pouco bastaria:
como o do rapaz que mostra o rosto reagindo a é só olhar para o exemplo Duchamp. Os
uma sessão de felatio. Jorge Luis Borges disse que perderam a oportunidade de ser pobres
de Oscar Wilde que ele procurava parecer (pobre: aquele que não possui patrimônio,
2005 frívolo, quando em verdade era profundo, mas mora bem, come bem e até tem direito
diferentemente daqueles que tentavam ao lazer) perderam o principal. Que o bem-
aparentar profundidade, quando na verdade estar excessivo deste mundo daqui parece
eram frívolos. Warhol cabe direitinho aí: da excluir o do mundo de lá o qual, de qualquer
aparente superficialidade brotam coisas que modo - dizem - nada tem dessas coisas
vão fundo e que trazem todo o amargor que materiais.
os que estão na berlinda experimentam (o Nem por isto deixei de adquirir duas
artista era ligado em celebridades, sendo ele maravilhosas tortas: maçã e ameixa. É
mesmo uma delas). E isto tudo eu comentei impressionante a exclusão da maior parte
e ouvi ontem enquanto visitava a exposição da população brasileira, coisa que PT algum
no MAM, em companhia de Vanderlei Lopes, fará desaparecer. A sociedade como um
Peter de Brito e Ricardo Barros Sayeg. todo deverá criar mecanismos para garantir
Na volta, passamos por uma das o bem-estar de seu filhos.
2006

maravilhas que São Paulo oferece para os que (23 de julho de 2005)

449
BOM OU MAU POEMA? trazer informações que quinhentas páginas

2004
não trazem e o haicai japonês é uma prova
O jovem e inteligente poeta Jorge disto. Como já disseram poetas como Pound
Chade Ferreira faz-me, agora, em escrito e Pessoa, pouco sobra de uma obra inteira…
neste semanário, uma cobrança quanto ao algumas linhas, se tanto. Isto não quer dizer
que seria um BOM POEMA: uma definição, que se deva destruir a produção dita ruim
indagação que me fez e da qual não me ou média, mas que há uma produção que
ocupei, em termos de uma conversa, na está acima, em termos qualitativos e é isto
ocasião (e isto já faz uns dois anos ou que acrescenta coisas à tradição. Por outro
mais). Porém, diz que não leu meus textos lado, julgamentos são perecíveis e sempre
e, portanto, não sabe se eu respondi ou não. virão aqueles que colocarão em discussão
A sua (dele) pergunta era, precisamente: critérios e re-valorizarão obras até então
“Mas, afinal, o que vem a ser um bom desprezadas. Para o poema, não basta ser
2005 poema?” E isto eu respondi ou tentei bom. Há que ser além de ótimo).
responder. Escrevi, aqui mesmo, penso que Poesia pode ser simplesmente a arte
28 textos especificamente sobre Poesia. da palavra, por excelência. Porém, não se
Principalmente nos três últimos (recentes), pode parar por aí e a única coisa a fazer é ir
procurei trazer definições ou aproximações tentando fechar o cerco, é (e aqui me valho do
feitas por grandes poetas, como Eliot e conceito peirceano de signo) fazer incursões
Pessoa, entre outros, sobre POESIA. exaustivas, tendo em vista o Interpretante
A questão não é nada simples e Final, cujo lugar é o tempo futuro. Às vezes, a
requer, talvez, uma vida toda de estudo e coisa pode vir de uma experiência epifânica,
dedicação à leitura dos próprios poemas como a que o jovem e inteligente Jorge diz
(o bom poema pode ser aquele que ter tido (para outro, a coisa poderia passar
resiste a comparações… É uma questão despercebida). Chegou a uma compreensão
de qualitativo, não de quantitativo e três do que vem a ser o poético em alto grau
2006

linhas poderão encerrar todo um universo, por conta própria. Parece que, daí, a coisa

450
não se calou, mas calou fundo e é isto o que fórmulas, ou seja, de modos consagrados

2004
vale. pelo tempo.
Melhor que tentar definir Poesia - muito Que todos possam fazer o que bem
embora o teorizar seja uma necessidade e quiserem (o fazer poesia é muito difícil e,
até fonte de prazer para nós, os humanos às vezes, compensador: uns constroem uma
- é vivenciá-la. Há alguns anos, o poeta obra ao longo de setenta anos ou mais - veja-
Walter Silveira, um experimentador, ligado se Bandeira, o Manuel; o “caso” Rimbaud é
em frases de efeito, bradou: “poesia: se uma gloriosa exceção, já que realizou tudo
eu quisesse eu faria!” E eu, parodiando-o antes dos vintes anos de idade, não fazendo
vociferei: “poesia: se eu soubesse eu faria!” mais nada depois). Uma vez publicada, a
É óbvio que a “poesia” à qual Walter Silveira obra estará à mercê dos críticos de plantão
se referia era a versificada contemporânea, e estes poderão ser quaisquer pessoas que
pois, em fins dos anos 70 e começos dos se dignem a ler os textos apresentados
2005 80 assistiu-se a uma volta quase geral ao (opiniões sempre há, mesmo que não
verso e isto era uma reação à poesia dita expressas: podem permanecer no nível do
experimental, que se utilizava grandemente pensamento; quando expressas, poderão sê-
de recursos gráficos/visuais. O sistema lo oralmente ou por escrito). O poema não
tentava uma acomodação e o antigo verso tem um leitor determinado, porém, estará
se prestava muito bem a isto (seria, então, o sempre à espera do leitor ideal, daquele
caso de se perguntar, mais do que o que seria que venha a fazer uma leitura movida pela
um bom verso, se seria possível fazerem-se curiosidade, pelo amor e pelo rigor. Aí é que
versos com algum sabor de novidade). o “leitor-ninguém” (João Cabral) passa a ser
Hoje se vive um vale tudo, um salve- “alguém”.
se quem puder, porém, sempre há e haverá (30 de julho de 2005)

lugar para a experimentação, bem porque


esta é uma condição indispensável para que
2006

haja poesia de fato e não mera repetição de

451
O CONHECIMENTO ACIMA DE TUDO dinheiro e liberdade: é melhor ter do que

2004
não ter. Em tendo não se deve usá-los em
Ainda hoje (02 de agosto de 2005) sua totalidade.
falei com meus alunos o que, de alguns anos Para começar, o repertório não pode
para cá, tenho falado sempre que aparece a ser contabilizado ou quantificado com
oportunidade: sobre a preciosidade que é precisão. Ou seja, por mais que saibamos o
o conhecer. O conhecer pelo conhecer, pura que sabemos, sempre saberemos bem mais
e simplesmente. Para isto, costumo utilizar do que pensamos saber.
um artíficio interessante, que é um modo Dinheiro é para ser bem aproveitado,
de atrair a atenção dos jovens: jogo com o que não significa desperdício. O dinheiro,
valores que alguns consideram indiscutíveis. uma vez gasto, se não se o repõe, desaparece
Acontece que tudo é passível de discussão, e não torna. O dinheiro será sempre
principalmente o gosto (o que não se daquele que o detiver no momento. Muda
2005 pode/deve é tentar impô-lo). Mas como dá constantemente de mão e fascina os que
trabalho o angariar conhecimentos! Como têm gana de poder. Pode, portanto, acabar,
esse processo exige um empenho a que a com maior ou menor rapidez.
maioria não está disposta. Liberdade, quando a temos, não
Transpondo para a Teoria da pensamos muito nela e nem a usamos em
Comunicação, isto quer dizer: é importante sua totalidade, pois será sempre regulada:
ter um alto repertório, mas a aquisição deste de fora ou de dentro e, quando abusada,
dá muito trabalho, exige horas de dedicação esbarrará na do outro e daí surgirão
durante anos, pede recolhimento e, portanto, problemas. Portanto, liberdade deve ser
renúncia. Porém há a compensação para sempre utilizada na medida certa, pois pode-
aqueles que descobrem a importância do se perdê-la temporária ou definitivamente.
domínio de conhecimentos. Repertório é coisa que não apresenta
Então - retomando a questão do desgaste, mas sempre acréscimos. Podemos
2006

artifício - digo aos alunos: repertório é como passar adiante nossos conhecimentos e isto

452
não fará com que diminuam ou os percamos. devia ter ouvido de seus maiores, não ocupa

2004
A tendência é a de ampliá-los. Quando o espaço. Pelo menos não sentimos o seu
repertório estabiliza é sinal de que estamos peso, muito embora possamos sentir alguns
perdendo a curiosidade e estamos ficando de seus efeitos. Que o saber não se contenta
velhos, no sentido mesmo da senilidade. com pouco.
Repertório é coisa inalienável. Ninguém pode (06 de agosto de 2005)

roubá-lo de nós.
Alguns conhecimentos exigem uma
certa experiência e são intransferíveis: o ter
lido as quatrocentas páginas de um romance,
por exemplo; por mais que se fale sobre,
não adianta: o ouvinte deverá ter a mesma
experiência para ter o tal conhecimento.
2005 Outros, são facilmente comunicáveis. MATHEUS JOSÉ DA COSTA:
Não há neste nosso mundo DO DESDIZER DO DESENHO AO
conhecimento pleno, ou seja, não há o pura DESPUDOR DA COR
e completamente sábio. Todos temos nossas
ignorâncias, o que eu chamaria de carências
.A primeira vez em que vi trabalhos
repertoriais específicas. Ignorância é coisa
pictóricos de Matheus José da Costa - o
para ser sanada. Sabedoria é coisa para
mais árabe dos não-árabes do Brasil - nas
ser cultivada. E os verdadeiramente sábios
paredes de um antigo claustro, do hoje
são os que, na ânsia de ter interlocutores,
Instituto de Artes da UNESP, no bairro do
não sonegam informação, mas partilham
Ipiranga, nesta São Paulo de Piratininga,
com quem quer que seja os seus
então, estranhamente aluno de Educação
conhecimentos.
Artística-Artes Plásticas (antes, havia feito
O conhecimento paira acima de todas
curso na Escola Panamericana de Arte)
2006

as benesses e, como insistia minha avó, que

453
disse-lhe tratar-se de uma mostra de populares-urbanas, até Basquiat e, daí, de

2004
coisas horríveis. Sim: “Seus trabalhos são volta às pinturas rupestres - que o artista
horríveis!”, disse-lhe. Um misto de espanto e recebe, tendo (talvez) plena consciência da
serenidade, de par com uma certa satisfação coisa [nos seus 24 anos como terráqueo,
acometeram o seu semblante. De fato, eram embora terráqueo es (des) colado] e isto
trabalhos figurativos de uma força incrível, vai de par com projetos alternativos-utopias
força esta que advinha do desdesenho e da arquivados, como a dos hippies etc.
despintura e dos destratos de temas que
.A cor em Matheus fala grita vocifera
criavam um feio notório e notável. Aquilo
berra. O desenho se desdiz - desdesenho
tudo adentrava o campo do admirável. De
- e fala de outras possibilidades, sem
lá para cá, seu trabalho foi ficando cada vez
correspondência entre os existentes,
mais surpreendente, com grandes formatos:
mas com estes mantendo um fio frágil,
a ficção pintada. Mundo da representação?
fragilíssimo, diria. Uma arte figurativa não-
2005 A não-verossimilhança. A criação de um
mimética: uma leitura do mundo… segundo
universo menos referencial, mais auto-
Matheus. Peças de uma fatura visceral, disse
referente. A verdade do próprio complexo
uma outra fera (leonina).
sígnico pictural e gráfico.
.Detritos, sobras, resíduos da
.Mais feracidade que a das feras fauve- civilização ajudam a compor a cena. A Urbe
expressionistas. Feracidade que traz todo
- megalópole antropófaga - deixa as suas
o peso da história dos últimos duzentos e
marcas. Das telas e painéis de madeira, para
poucos anos ou, mesmo, de antes - desde os
os muros - se for o caso - a arte de Matheus
mais radicais cometimentos grafo-picturais
José da Costa não decora nem descora.
de Goya, passando por Daumier e Toulouse-
Não adentra o universo do bom-tom. Joga
Lautrec, Ensor, Munch, Kandinski, Matisse,
pesado. Coloca-se, impõe-se como realidade
Picasso, de mistura com os quadrinhos,
autônoma. No entanto, dialoga com uma
filmes, Anselm Kieffer e manifestações mais
2006

tradição de feras-ferozes do passado e da

454
atualidade. Um cachorro para ele é um cão e inusitado, como a bolha da fição, as pinturas

2004
um cão para ele é nada menos que Cérbero. invadiam tudo: paredes, portas, obstruíam
Muros, quadrinhos, cine trash-terror. A janelas… Nem Schic nem Kitsch. KITSCHIC?!
cultura de massa revisitada, mirada com Corporificações grafo-cromáticas em que o
a lente erudita de quem sabe do ofício de gesto fala alto. Grita. Vocifera. Reverbera!
desenhista-pintor (Matheus, tem ambição Desdém do desenho: desdiz para redizer
artística) e sabe o quanto é difícil pintar como que (re-) inaugurando um modo. A cor
hoje: um desafio. Desafio que ele aceita e ele a comete sem pudor, adentrando as raias
se desincumbe com grandeza. do impossível. Trilhando, com a consciência
de, caminhos do tempo da infância, Matheus
.Em Matheus, o desenho se corporifica José da Costa, paulistano nascido em 02 de
simultaneamente à distribuição das cores
abril de 1979, trata com maturidade a arte
sobre a superfície-suporte ou se impõe na
de ler-o-mundo (carneiro feito fera). E como
pré e pós-colorização. A academia passou
2005 o lê!
por aqui e foi recusada, mesmo num
tempo em que já ocorreu a volta à pintura .Vejo, nos trabalhos de Matheus,
(ao verso, à melodia…). Fica, nesse seu índices de uma grandeza que virá - com
trabalho, o espaço para a experimentação. certeza - no futuro, tendo tido a necessária
Tão jovem e já forte, firmando-se, não como maturação: coroamento de um trabalho já
estilo, porém como fazedor (contumaz que muito bom, boníssimo, porém, em franca
é). Matheus José da Costa se encontra num evolução, abrindo-se, inclusive para novos
caminho que só conduzirá a grandezas meios-linguagens. Está entregue ao público
criativas num tempo a vir - próximo e/ou a primeira fase de um artista-pintor (um
distante. Outsider? Sim, sem o gênero que produtor de linguagem) que promete
se sôme ao currículo. Um marginal? Sim. acontecer. XAIPE!
Produz à margem dos gostos e dos mercados.
Exposições em casa da Xiclet, de modo (Este texto, escrevi a pedido do artista em fins
2006

455
de 2003 e deveria acompanhar uma espécie em se conseguir algo com completude,

2004
de port-folio seu. À época, eu já admirava inteireza.
sobremaneira o seu trabalho e para mim O haicai: forma poética fixa da língua
não foi difícil elaborar esta apresentação japonesa. Por sua concisão, encantou as
crítica, cujo título já indicia as peripécias de sensibilidades no Ocidente, assim como
Matheus). fizeram as xilogravuras, os interiores das
(13 de agosto de 2005) casa, os jardins, os arranjos florais, as artes
marciais. Da estranheza causada pela cultura
nipônica, na primeira expansão do Ocidente
no Extremo-Oriente, ao maravilhamento
causado, a partir da segunda metade do
século XIX, pela mesma cultura, agora já no
HAICAI: PARCIMÔNIA E âmbito do admirável e do espanto - o que era
2005 PRODIGALIDADE mais que apenas pelo Japão. Porém, deste,
o haiku (mais conhecido entre nós sob a
Criar todo um universo com um mínimo forma de haicai) deitou raízes, frutificou. A
de recursos. Construí-lo com palavras. mais visível (audível) das assimilações que
Somente no Reino da Poesia isto é possível permanecem vivas entre nós.
e no âmbito daquilo que no Ocidente se Produtores de linguagem se
convencionou chamar de Lírica. Quando a encantaram pela cultura daquele longínquo
parcimônia é uma obrigatoriedade, aceitar Oriente nipônico: Monet, Van Gogh, Ezra
o desafio é fazer: do pouco muito. Um Pound, Octavio Paz, Haroldo de Campos,
pouco que traz um qualitativo apreciável. Julio Plaza. Este chegou a dedicar-se, em
O Admirável. A poesia acontece quando muitos trabalhos, a utilizar a lição daquela
se conseguem maravilhas com tão pouco, área do planeta, o haicai, em especial.
mesmo dispondo de muitos elementos. Citem-se as variações sobre o mais famoso
2006

Escolha. Renúncia. Brevidade. Dificuldade dos haicais, de Bashô: velho tanque…

456
com base na transcriação feita por Haroldo da natureza). Das vanguardas, nos inícios

2004
de Campos. do século XX, aos dias atuais, o haicai tem
Muitos têm a parcimônia como uma feito adeptos no Ocidente, o que torna essa
condição. E o haicai reforçou esse aspecto. forma comum, quase como as quadras,
A dificuldade da aproximação e do fazer. para os nossos poetas. Trata-se de uma
Como tentar, utilizando uma língua românica modalidade que se integrou às poéticas
- impregnada daquela helênica lógica - do Ocidente, entrando como um campo de
composição tão concisa? expressão e até de experimentação, para
O haicai teve de passar por toda uma muitos.
aclimatação no que respeita à quantidade de Os haicais constantes deste livro:
sílabas de cada linha. Nas línguas românicas, Haikus de los cuatro elementos, de
cuja contagem também difere da nipônica, Luz del Olmo, primam pela excelência de
além de tantas outras gritantes diferenças fatura poética e, do início ao final, a autora
2005 - e a mais bela língua é a da poesia, seja mantém um qualitativo muito elevado:
qual for o idioma no qual venha expressa digno das melhores realizações haicaísticas
- um problema a resolver. Quase nunca que conhecemos. A leitura das peças deste
fica bem o esquema original de cinco-sete- volume nos causa admiração pelo que
cinco sílabas e quando fica, simplesmente há nelas de beleza formal e sabedoria no
fica. Modifica-se o número fixo de sílabas e manipular as palavras: poemas apreciáveis
mantém-se a fonoeurritmia. Aqui e ali uma em espanhol!
rima (que não há no original): consoante Abrindo-se o livro a esmo encontrar-se-á
ou toante. Que isto soa bem aos nossos infalivelmente um bom poema. Experimentar-
ouvidos e amarra a composição. se-á o sabor do poético. Da ‘linguagem em
Haicai é fanopéia (Pound) com algo de estado de poesia’. Como o título já indicia,
logopéia. Haicai é paisagem com reflexão, a obra compõe-se de quatro partes: agua,
em três linhazinhas. Com tudo o que vier a aire, fuego, tierra. Destaquemos um
2006

implicar essa tal paisagem (estado/aspecto poema de cada uma delas:

457
. elementos, de Luz del Olmo, poeta

2004
Agua en el mar espanhola).
agua del agua, (20 de agosto de 2005)

llanto de nubes.
.
Silencio quieto.
Despiertan azucenas,
se mueve el viento.
.
LENORA DE BARROS :
Duermen cenizas.
A FOTOGRAFIA COMO RECURSO
No sueñan nunca, nada.
EXPRESSIVO
Llama a la llama.
.
Lenora de Barros nasceu em São
2005 Con lentitud
Paulo (SP) no ano de 1953. Além de uma
pasa una tristeza.
escolaridade regular, do elementar à
No es mariposa.
graduação em Lingüística e à pós-graduação
(que não quis concluir) teve, desde a
Esta pequena amostragem nos dá a medida
infância, o privilégio de conviver com artistas
da grandeza desses poemas mínimos com
e poetas de primeira linha, numa época em
o máximo de informação estética. Não
que São Paulo vivia grande efervescência
muito, mas muito. Luz n (d) as palavras.
cultural, com produtores-de-linguagem que
Todo um universo em sílabas poucas é o
laboravam em uma Arte para uma nova
que traz com este conjunto Luz del Olmo.
sociedade, com novas exigências, portanto.
Fruir é a ordem. Que poesia é coisa rara.
Isso, dado o fato de ser filha do artista
plástico e designer Geraldo de Barros, um
(Este texto, escrevi para servir como
dos pioneiros do Abstracionismo no Brasil, o
2006

prefácio ao livro Haikus de los cuatro

458
qual, além de seus companheiros de ofício, os trabalhos, à condição de auto-retratos.

2004
tinha estreito contato com os poetas Décio Fotos assim obtidas vão se juntar a outras
Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos e linguagens que comporão o poema.
outros. A poeta é exímia em se tratando do
Poeta (sim: poeta) desde cedo código verbal, mas se orienta cada vez
familiarizada com o rigor do Concretismo, mais para o âmbito das Artes Visuais (com
Lenora de Barros valorizou o aspecto forte dose de conceptualismo). Daí que, de
visualidade em seus trabalhos (não muito 1975, até hoje, tem trazido a nós poemas
numerosos, mas densos), trabalhos esses admiráveis, como: “Homenagem a George
em que a fotografia (signo indexical, com Segal”, “Poema”, “Em forma de família”,
fortes traços de iconicidade) teve (e tem) “See me”, “Procuro-me” e tantos outros em
grande relevância. E nisto há que se lembrar, que a fotografia entra como elemento de
também, o pioneiro trabalho experimental ordem constitutiva estrutural.
2005 feito no Brasil por Geraldo de Barros: Lenora de Barros publicou, como todos
FOTOFORMAS. os poetas afins de sua geração (e de outras
A fotografia para Lenora de Barros tantas), seus poemas em revistas (sendo, de
não é uma técnica-linguagem que basta a algumas, também editora) como: POESIA EM
si-mesma, mas uma dentre as linguagens GREVE, QORPO ESTRANHO, CÓDIGO, ZERO
que utiliza para organizar suas faturas À ESQUERDA, ARTÉRIA. Por outro lado, tem
- intersemióticas, dir-se-ia lá pelos idos participado de inúmeras exposições, dentro
dos anos 70 do século passado - porém, e fora do Brasil, coletivas e individuais. Seu
a “lucescriptura” comparece com um peso primeiro e único livro, até o momento, é de
muito grande. Geralmente ela concebe 1983: Onde se Vê, pela Editora Klaxon. Alguns
trabalho que conta com o auxílio de vídeos, como o feito por Walter Silveira, de
fotógrafos-técnicos que executam a parte seu poema “Homenagem a George Segal”
que lhes compete: Lenora é quem quase (anos 80) demonstram que certos trabalhos
2006

sempre aparece nas fotografias, aspirando, seus prevêem outros meios, sendo o livro/

459
revista, uma simples possibilidade. Ou seja, PAULO LUDMER : FALÉSIA

2004
seu trabalho poético transita de um meio para
outro sem perda de informação estética. Todos falam. Muitos escrevem.
Contrariando, assim como Volpi, a sina Inúmeros pensam fazer poesia ao escrever-
de que artistas brasileiros decaem depois dos falar envolvidos por um sentimento de
quarenta, Lenora de Barros não só manteve ternura. Poucos, pouquíssimos mesmo,
como mantém o nível dos seus trabalhos e os fazem poesia, se a entendemos como a
tem levado ainda mais longe, norteada por arte da palavra, por excelência. Nenhum
uma constante investigação de linguagens. sentimento conduz à poesia e todos o
Lenora de Barros: nossa maior poeta hoje, fazem desde que se seja poeta e, como
eu diria. Atualmente, vive e trabalha em São escreveu Pessoa, um certo Pessoa, depois
Paulo. de as sensações recolhidas passarem pelo
crivo da racionalidade (não o deixam mentir
2005 (Texto de março de 2005, escrito João Cabral e Haroldo de Campos e todos
originalmente para o site www. os poetas que ultrapassaram o limiar da
fotografiacontemporanea.com.br, medianidade). Melhor dizendo: somente
organizado pela fotógrafa Célia Mello). alguém que pensa a linguagem e consegue
imputar-lhe informação estética pode ser
(27 de agosto de 2005) considerado poeta.
Produtor de linguagem: o poeta, o
que explora aquilo que de mais íntimo o
idioma possui. Idioma ciumento, que só
permite consigo a excepcionalidade nessa
arte que remonta à forma escrita. Deixa
exibir aquilo que traz potencialmente de
mais precioso por meio das peças-poemas.
2006

O idioma da poesia cobra caro. No entanto,

460
daí resultam jóias-poemas, que são o que reduzidas composições, que primam pela

2004
de melhor um idioma pode oferecer. sonoridade potente e uma sintaxe-surpresa
O poeta, dentre os que têm estreita que vêm a suprir nossa necessidade
relação com a língua, é quem mais momentânea de arte, nossa carência de
consegue: com um mínimo faz um máximo. forma-sentido.
Do pouco - parcimônia na utilização de Os poemas que compõem o livro
recursos - faz o muito. Em poucas linhas reiteram toda aquela qualidade notória
(uma das marcas da Lírica) cria todo e notável a que assistimos em volumes
um universo. A poesia lida com código anteriores, em que até uma prosa se deixava
comum a tantos, transformando-o em contaminar pela poesia. A aliteração/
algo incomum e até mesmo raro. Chega assonância é a figura fônica que dá o tom
a ultrapassar o verbal com a intromissão à obra. De outro lado, há que se notar a
de outros códigos ou o faz através de sensualidade/eroticidade que perpassa os
2005 processos sinestésicos. poemas (em sua maioria) de uma elevação
Poesia, a arte do verbal, por que só dignifica o fazedor e o leitor (um
excelência. Poema: o território privilegiado privilegiado, diga-se).
(não exclusivo - Jakobson) da função Difícil destacar um único poema
poética da linguagem. E o poeta, seu neste livro de Ludmer, mas eu arriscaria
agente, o fazedor ciente do peso-força das seis: Entrementes, Aurora, Erro, Poeta,
palavras. Labora para ninguém ou para Momento, Falésia, como as peças de
alguém, não se sabe quem ou para toda a minha preferência (formando uma mini-
Humanidade. Melhor assim. antologia, passível de ser modificada a
Todas essas afirmações me vêm a qualquer momento, já que o livro, do
propósito do novo livro de poemas de Paulo começo ao fim, mantém o nível: de um
Ludmer - Falésia - fazedor contumaz que qualitativo alto). Aurora, por exemplo,
atingiu um raro nível de excelência no ilustra a já mencionada parcimônia do
2006

lidar com as palavras, criando belezas em poeta, chegando a ser um quase-haicai.

461
AURORA

2004
(Texto originalmente escrito para ser posfácio
Dormem nas minhas canaletas
ao livro Falésia, de Paulo Ludmer).
As águas dadas demais
(03 de setembro de 2005)
A serviço de florescer
Arvoredos roxos de palavras
nascentes

Nessa aventura cósmica com a


palavra, Paulo Ludmer transita mormente
pela melopéia e logopéia, deixando, aqui
e ali, configurar-se a fanopéia (para ERIVELTO BUSTO GARCIA :
ficarmos com a eficaz classificação de MÍNIMALÂMINA
Ezra Pound). Também, lírico antes de
tudo, o poeta imprime às suas peças um MÍNIMALÂMINA se nos apresenta
2005
quê de eternidade-atemporalidade, tão como um todo: um livro com unidade,
encontrável na Lírica em geral. inteiro, redondo e que, embora comportando
No mais, são poemas que pedem poemas seqüenciais, permite um transitar
uma leitura em voz alta (na ordem dada livre por suas páginas/suportes. Poemas-
pelo autor ou numa ordem outra, colocada faturas que mostram grande familiaridade
pelo leitor): são uma boa resposta a essa com a intersemiose explícita da poesia da
época que recupera o hábito de se lerem Era Pós-Verso (apesar do verso).
poemas. O autor, Erivelto Busto Garcia, transita
Paulo Ludmer, com este novo livro, do verbal ao visual em suas várias facetas.
contribui para o enriquecimento de nosso A palavra, considerada enquanto entidade
acervo poético. Da economia de recursos sonora, semântica e gráfica/visual (onde
à maximização do verbo, esta FALÉSIA comparece com força o elemento cor)
faz tudo a caminho do esgotamento de
2006

chega em boa hora. XAIPE!

462
suas possibilidades (e ele é um expert em é portadora. Pede para estar na REDE, por

2004
tipografia - ou melhor seria ‘tipomorfia’? - exemplo.
posuindo um ouvido também incomum): E é por tudo isso que posso dizer da
paronomásias, anagramas verbo-visuais, sua poesia: responde a exigências do hoje.
sugerindo movimento/animação/ processo/ Uma poesia atual, inclusive no lúdico que
seqüencialidade. Explora, o autor-poeta, oferece. MÍNIMALÂMINA acrescenta algo ao
o que os grafemas trazem em potencial e corpus da poesia brasileira que, hoje, ainda
demonstra naturalidade no manuseio de experimenta. Arrisca (melhor dizendo).
tais recursos e assume os resultados como Salve!
POESIA. Doutro lado, o verbal enquanto
sonoridade tem um peso considerável, a (Este texto, escrevi para constar da quarta
começar pelo título (belo) do volume. capa do livro de poemas Minimalâmina, de
Dos anos 50, época em que a Erivelto Busto Garcia).
visualidade foi assumida/defendida como (17 de setembro de 2005)
2005
elemento estrutural do poema - e é da
Poesia Concreta que estou falando - aos
inícios do terceiro milênio dC, o visual se
tem defrontado com situações adversas,
mas se nos apresenta, agora, como uma
possibilidade entre outras, Erivelto Busto
Garcia se sente confortavelmente instalado:
faz e o faz com a serenidade de quem já VÍTOR MIZAEL : LIBERDADE E BUSCA
se insere numa tradição de rigor gráfico e DA FORMA
ousadia. Além disso, sua poesia é daquelas
que podem transitar pelos vários meios Escrever (crítica = discernimento)
(media ou mídias, como se diz hoje no Brasil) algo sobre a obra de um jovem de 22 anos
2006

sem perda da informação estética, da qual (ele nasceu em São Caetano do Sul, SP, em

463
1982, sob o signo de Aquário) que começa a arte. Os valores viáveis para si, ele os

2004
se insinuar no meio artístico e que já aparece cultua sem vassalagem e pode-se ler, em
com força total: eis o meu propósito. Vítor seus trabalhos, seus pais artísticos - um
Mizael. artista cria seus precursores, parafraseando
O artista passou por um aprendizado Borges, o ficcionista-comentador. Os valores
com vistas à realização de uma obra. Com que elegeu para inserir-se na tradição do
ambição artística, diga-se, comprometida fazer-arte são portadores de inquietação, a
com a forma, uma forma que respondesse mesma observável no artista Vítor Mizael: de
ao chamamento de uma psiqué de agora. Duchamp a Bispo do Rosário, Bacon, Beuys,
Em verdade, Vítor Mizael já tem a atividade Mira Schendel e Leonilson.
artística - vê-se e é visto como produtor Vítor Mizael tem aquilo que todo artista
de linguagem - desde antes dos quinze, deve ter: consciência de linguagem, que é o
dedicando-se a ver, estudar, aprender que o diferencia do mero artesão, que deverá
2005 técnicas, fazer. Fazer arte, elaborar ter a consciência do ofício. Este ir-além: eis
objetos-mensagens - faturas, feituras, a questão. Ultrapassar a excelência técnica
fazimentos - portadores de informação e domínio dos materiais. Arte e forma.
estética, adentrando, portanto, o campo do Os fragmentos autobiográficos de Vítor
Admirável. Mizael (ele chama seus trabalhos de “auto-
Vítor Mizael trabalha com o repertório retratos”) não são pura e simplesmente
de seu tempo, internacional, num mundo fruto de um ensimesmar-se, mas entram
que se tornou aldeia global, como disse como uma séria reflexão morfo-semântica
Marshall McLuhan. Está em sintonia com do próprio ser-humano: o particular que se
procedimentos que se vêm consagrando nas universaliza. Tecendo variação de Gertrude
últimas décadas - uma época “pós-tudo” Stein: auto-retratos de toda-a-humanidade.
- como também se empenha na constante Vítor Mizael fala para repertórios
pesquisa de materiais, os mais adequados sofisticados - referências inevitáveis de
2006

para fazer configurar seu pensamento- alguém que possui repertório específico

464
elevado (e isto exigiu e exige empenho e inquietação. Eis o produtor de linguagem.

2004
a que nem todos estão dispostos) - cria O fazedor. Vítor Mizael adentra o
para o mundo, num planeta em que as milênio com toda a força necessária para
intercomunicações são uma realidade e uma colocar para o mundo uma obra digna de
inevitabilidade. Com materiais da tradição ou nota. Vítor Mizael apresenta o admirável
aqueles inusuais, seu trabalho pode muito de que seus trabalhos são o sustentáculo.
bem estar disponível na REDE. XAIPE!
Num tempo, que já não é bem de
excelências, Vítor Mizael desdiz o fado. (Este texto, escrevi para apresentar o artista
Numa época em que alguns comemoram Vítor Mizael e chegou a ser publicado em
tardiamente o fim das vanguardas e respiram catálogo de mostra no Rio de Janeiro, no
aliviados e cultuam/cultivam uma tradição ano de 2004).
revivida, outros - Vítor Mizael entre estes (01 de outubro de 2005)

2005 - empenham-se na pesquisa: perseguem a


invenção e mostram que a experimentação
sempre andou de mãos dadas com a(s)
arte(s). Desenho, pintura, objeto, uma forte
dose de conceptualismo, a escrita como
forma (a conformação gráfica que deixa
vazar sentidos): enfim, um feliz encontro de
códigos e materiais, eis o trabalho de Vítor ANOTAÇÕES
Mizael.
Vejo em seu trabalho os indícios de uma 1. Exposição na Galeria Virgílio. A galeria
obra importante, que está a se configurar. Seu tem esse nome porque se localiza à rua Dr.
trabalho livre-rigoroso anda de par com um Virgílio de Carvalho Pinto, em sua confluência
comportamento libertário e que respeita as com a Teodoro Sampaio, bairro de Pinheiros.
2006

diferenças. Não entra em disputas. Pesquisa Trata-se de muito amplo espaço em dois

465
estágios, ambos underground com relação traz a inteligente Maria Bethania cantando o

2004
à Teodoro, separados por uma escada. maior dos sucessos da dupla bem sucedida.
Vanderlei Lopes realizou, no estágio inferior, As crianças que fazem Zezé e o primeiro
uma mostra denominada EPHEMERAS, com menino (o que veio a falecer em acidente
vídeo, desenhos com pólvora queimada e na estrada) são excelentes; IDEM os atores
desenhos em pequeníssimo formato em papel que fazem os pais e Zilu. Porém, penso que
especial (stêncil), desenhos que trazem as os dois filhos de Francisco, de acordo com o
marcas de um grande artista, de alguém que que foi apresentado no filme, são Zezé e o tal
já trilha um altíssimo repertório gráfico e que menino desaparecido e não Zezé e Luciano,
promete alcançar os mais altos patamares da figura inexpressiva, tanto lá como cá. Se
criação de formas (um verdadeiro produtor- for assistir ao filme, vá preparado para o
de-linguagem). […] Quando você estiver no choro. No mais, há algo de tremendamente
topo da escada, cairá na tentação de voltar- positivo nessa história: a arte (não importa
2005 se para trás e rever os trabalhos de pequeno de que repertório venha a ser) responde a
formato de Vanderlei Lopes e se certificar da uma necessidade psíquica de quem a frui e
sua grandeza artística. de quem a faz e brota onde quer que seja.
2. Os dois filhos de Francisco. O filme, Ou mesmo que apesar de.
parece, é um sucesso, já que envolve a 3. Estranha Geografia. Na novela das
famosa dupla sertaneja, representante de oito (em verdade, das nove, nove e pouco)
um negócio que movimenta milhões e que percebe-se um mar de mesmice (que
muito difere da chamada música caipira. O só perde para a das seis, em que Valcir
filme é bem realizado enquanto narrativa, Carrasco escreve a mesma novela pela
com boa fotografia e drama não só terceira vez, repetindo até atores!): o
verossímil como baseado na vida daqueles tempero de sempre. Uma coisa me intrigou,
que seriam os seus protagonistas. E o filme nas pouquíssimas vezes em que pude ver
já vem com a bênção de Caetano Veloso, pedacinhos da novela durante a semana:
2006

que se encarregou da parte musical, que uma estranha geografia envolvendo Vila

466
Isabel, no Rio de Janeiro, Boiadeiros, que seu chefe, chegue ao término do mandato.

2004
não sei bem onde fica (certamente no Sim, para o bem maior dos negócios, que
Projac) e, de quebra, Miami, Florida-EUA. vão bem, obrigado. Quando o desmando
A facilidade com que a Creusa passava de se torna trivial, ninguém mais estranha e
Vila Isabel para Boiadeiros para instigar a as coisas passam como se fossem nomais.
sexualidade do Tião era coisa espantosa: Deus nos livre dessa orgia de falcatruas!
nem com o Concorde! Porém, ficção, como o 5. Poesia, um pouco. Na FAAP, o Segundo
próprio nome já diz é fingimento e o que se Encontro de Poesia Faladescrita, que manteve
deve é aceitar a trama, mesmo que peque a força do primeiro encontro e mais: além
pela falta de verossimilhança e de alguma de possuir no geral um qualitativo maior,
novidade. confirmou alguns talentos para a difícil arte
4. Mar de lama. É tanto o estrago, são da poesia (todas as artes são difíceis, diga-
tantas as barbaridades que ouvimos no se). Alunos-poetas classificados no ano
2005 Brasil dos últimos meses, que acabaremos passado classificaram-se também neste
vacinados, correndo o risco de não vermos ano, fato que deixou jurados e espectadores
ninguém recebendo a punição merecida. da sessão-revelação admirados, já que os
É tão extenso o mar de lama, que nem há poetas utilizaram sempre pseudônimos.
bem tempo para refletir sobre uma coisa Algumas peças, de fato, surpreenderam e
que lá vêm dez em seguida. Parece que merecem uma publicacão, que é coisa que
muitos viram em possíveis revelações a certamente a instituição promotora fará.
chance de seus quinze minutos de fama. É Como organizador, dei alguns conselhos,
óbvio que a corrupção anda de mãos dadas inclusive de como se deve fazer para ler bem
com o poder e que o que ora acontece foi um poema. Espero que o encontro volte a
fruto de circunstâncias muito especiais, num acontecer e que os poetas insistam em sua
país (dizem) por si só surrealista. Os mais arte. Auguri!
poderosos economicamente têm interesse (08 de outubro de 2005)
2006

em que o Governo Lula e principalmente o

467
POP ART: UM POUCO fins dos anos 50 e atravessa os 60 e sua

2004
influência se estende até os dias de hoje.
O Centro Cultural Tomie Ohtake Nomes como Andy Warhol,
oferece, no momento, algumas exposições, Jasper Johns, Roy Lichtenstein, Robert
dentre as quais se destaca a de Roy Rauschenberg, Robert Indiana, Tom
Lichtenstein (1923-1997), celebridade da Wesselmann, Claes Oldenburg, entre outros,
Pop Art estadunidense, que deixou suas estão entre as celebridades-produtoras-de-
marcas na tendência, utilizando elementos linguagem da Pop Art. A visualidade plantada
de histórias-em-quadrinhos: simplificação por Andy Warhol (também um cineasta
de formas, utilização de traço, retícula e performer), por exemplo, impregnou
grossa e, quando as cores comparecem, o mundo da publicidade e tudo isso que
estas são chapadas, balões, com textos - chamamos de POP o universo pop.
fala ou pensamento - de uma banalidade Andy Warhol mostrou que ainda era
2005 total (exemplo: “Eu tenho algo na cozinha possível fazerem-se retratos (utilizou técnica
para você comer, querida”… “Não tenho mista de pintura e silkscreen, colorizando
fome, mamãe! Por favor, eu só quero ir para as figuras, apropriadas das mídias, sendo
o meu quarto”. Tudo em inglês, é claro) e algumas até de fotógrafos famosos - depois
isto faz parte, já que o todo opera no erudito começou a trabalhar com polaroyd, tendo
repertório da Arte Pop ( pop de popular). feito milhares de registros). E os seus
A tendência nasceu antes na Inglaterra retratos moventes, filmados, projetados:
(Richard Hamilton…) e, a seguir, nos EUA, uma grande sacada. Warhol passava uma
tendo Nova Iorque como centro irradiador. imagem pública de frivolidade quando, em
Daí, ganhou o mundo, chegando ao Brasil verdade, era um profundo pensador de
e influenciando artistas que já operavam formas (Borges disse mais ou menos isto
ou começaram a operar nos anos 60 (até o de Oscar Wilde).
pessoal de linha construtiva se deixou levar Pois é, a Pop Art, via de regra, fazia
2006

por seus encantos). A Pop Art nasce em uso de imagens veiculadas à exaustão

468
pelas mídias, com todo o seu teor de é sempre corrupto e que massacra e exclui

2004
trash e kitsch; daí sua relação com a dita das benesses o grosso da população.
sociedade de consumo. Ou seja, seu vínculo Agora, retornando ao início: a exposição
com o consumiosmo era mais temático, Lichtenstein no Tomie Ohtake: vale a pena
bem porque, já contando com toda uma vê-la, mesmo sendo algo secundário dentro
promoção a partir de NY, seus clientes eram da obra do artista: são fundamentalmente
selecionados pela conta bancária (parece estudos: do desprezível rascunhozinho até o
que faltou - faltou? - uma certa dose de apreciável, vemos como evolui uma idéia, as
sofrimento aos popartistas). Chamá-la de tranformações pelas quais passa. Daí, temos
neo-dada, não pareceu correto a Marcel parte do processo de criação do artista, algo
Duchamp, bem porque os contextos são por demais relevante. Também percebemos
completamente diferentes, porém, a Arte que ótimos artistas podem dar em nada ou
Pop se utilizou bastante de conquistas permanecer na mediocridade, o que não foi
2005 do movimento Dada e, em especial, do o caso de Roy Lichtenstein, que embarcou
procedimento duchampiano do readymade. nesse universo que deu na Pop Art e deixou
A Pop foi a segunda grande contribuição sua marca pessoal, numa obra que adentra
dos EUA às Artes Plásticas do século XX, o campo do admirável, mas que a presente
vindo depois do Expressionismo Abstrato, exposição não chega a confirmar.
com Jackson Pollock e outros. Antenado, o artista deve, ultrapassando
A Pop Art não foi bem avaliada por a excelência, trilhar caminhos novos, ou com
alguns historiadores e críticos da arte, algum grau de novidade. Que a Arte costuma
principalmente os de esquerda, que viram cobrar e seu preço é sempre muito alto.
nela - erroneamente, diga-se - um mero (15 de outubro de 2005)

reflexo do imperialismo anglo-americano.


Pura bobagem, se formos considerar que
grande parte da arte produzida em todos os
2006

tempos o foi sob o patrocínio do poder, que

469
BLAISE CENDRARS: UM SUÍÇO-FRANCÊS da Europa, importância esta tão grande

2004
NO MODERNISMO BRASILEIRO como a de Guillaume Apollinaire. Como
este, Cendrars esteve envolvido com artistas
Acabei de reler (em Pirajuí) o livro de plásticos: a incrível Sônia Delaunay-Terk
Aracy Abreu Amaral, em segunda edição, das cores simultâneas, por exemplo, com
modificada, Blaise Cendrars no Brasil e os quem fez trabalho conjunto e, com a nossa
modernistas. A outra, a primeira edição, era Tarsila do Amaral que, junto com Oswald
da Martins, esta, da 34, que reeditou outros de Andrade, conheceu-o em Paris, no ano
importantes títulos da pesquisadora do nosso de 1923. Oswald apresentou Cendrars a
Modernismo: Artes plásticas na semana de Paulo Prado (que só não foi escritor maior
22 e Tarsila: sua obra e seu tempo. Aracy por ser tão rico, aristocrata e chefe de
é uma grande pesquisadora, daí seus livros clã; é autor do Retrato do Brasil (1928) e
serem imprescindíveis. Porém, a autora peca do inteligentíssimo prefácio ao Pau-Brasil,
2005 pelo excesso de citações, como se tivesse de Oswald de Andrade), que convida o já
medo de estar perdendo algo; por outro célebre e sem braço poeta para visitar o
lado, falta-lhe uma certa ousadia, como Brasil, o que veio a acontecer em princípios
convém ao grande crítico: a de emitir juízos de 1924 (Cendrars, como muitos poetas e
radicais. De qualquer modo, Aracy Amaral artistas, esteve no front, durante a Primeira
presta relevante serviço à recuperação de Grande Guerra - 1914-1918 - e um estilhaço
tempos outros, como os anos vinte, que de bomba levou-lhe o braço direito).
foram cruciais para a implantação de uma Uma vez no Brasil, viagens: ao Rio
nova linguagem no Brasil, por um lado e o de Janeiro, durante o Carnaval e às cidades
de valorizar os “materiais” brasileiros para históricas de Minas Gerais, por ocasião da
as nossas artes, por outro. Semana Santa. Foi uma verdadeira excursão,
Blaise Cendrars (1887-1961) era da qual participaram, além de Cendrars,
um poeta suíço-francês que teve grande Tarsila, Oswald, Mário de Andrade, Dona
2006

importância no primeiro tempo modernista Olívia Guedes Penteado, Nonê (Oswald de

470
Andrade Filho) e outros. No nesmo primeiro envolviam diretamente o Brasil: um filme,

2004
trimestre de 1924, foi publicado o MANIFESTO um balé e um livro sobre o Aleijadinho, que
DA POESIA PAU-BRASIL, de Oswald de o encantou. Malgrado as frustrações pela
Andrade, documento que marca o início não-realização dos projetos, o Brasil acabou
da redescoberta do Brasil pelos brasileiros, comparecendo com força em sua obra a
juntamente com a citada viagem a Minas, partir de 1924 e Aracy Amaral traz toda uma
a qual teve fundamental importância para relação de poemas que têm o nosso País
todos, principalmente para os produtores de como tema.
linguagem. Cendrars visitou inúmeras vezes
Os olhos de Cendrars foram, para os o interior paulista, hospedando-se
brasileiros, um verdadeiro guia e este se invariavelmente em fazendas de seus
impressionou com o Brasil, que marcou sua aristocráticos e milionários amigos. Orientou
obra posterior e ao qual retornou por duas Tarsila em sua primeira exposição individual,
2005 vezes. Aracy Amaral parece superestimar que teve lugar na Paris de 1926, na galeria
a influência de Cendrars sobre a obra Percier. Nesse mesmo ano, estando em São
poética de Oswald (por sinal, é o capítulo Paulo, teve um encontro com Marinetti, o
em que ela se mostra mais ousada) que, de fundador do futurismo.
qualquer maneira foi muito relevante, sendo Uma das preciosidades que possui a
a recíproca também verdadeira em parte: à seção de Livros Raros da Biblioteca Municipal
prolixidade do escritor em língua farncesa, “Mário de Andrade” de São Paulo é o livro-
contrapõe-se a parcimônia oswaldiana poema-objeto La Prose du Transsibérien…
(Haroldo de Campos chegou a criticar texto dividido em blocos coloridos (1913,
Aracy Amaral por esse motivo, admitindo quarenta anos antes dos poemas coloridos
influência de Cendrars sobre Oswald, mas de Augusto de Campos - Poetamenos - só
falando na deste sobre aquele e destacando que nos dois poetas, os propósitos eram
a originalidade do autor de Pau-Brasil). diferentes: Cendrars dialoga com as cores
2006

Cendrars tinha três importantes projetos que simultâneas que se situam ao lado esquerdo

471
do texto e dentro deste; Augusto de Campos através de sua obra, desde antes de sua

2004
dialoga com a melodiadetimbres de Anton primeira viagem ao Brasil), assim como
Webern; as cores, portanto, indicando timbres para ele próprio e Aracy Amaral, com sua
vocais). O exemplar de nº 119 pertence pesquisa, trouxe uma grande contribuição
à biblioteca de Paulo Prado (integrada à para o nosso conhecimento disso, coletando
Municipal) e foi a ele dedicado pelo autor, e ordenando fatos, os quais interpreta. Os
no ano de 1924. Interessante que o livro anos vinte continuam a nos fascinar e outras
se desdobra como um mapa, sendo que pesquisas e leituras serão necessárias. Que
sua altura foi calculada de modo ao número se façam!
de exemplares dar exatamente a altura da (29 de outubro de 2005)

Torre Eiffel (mas parece que a edição não


se completou para perfazer tal altura). A
famosa torre foi construída para comemorar
2005 os cem anos da Revolução Francesa e se
tornou um signo parisiense que, por sinal,
foi tema de uma magnífica série de pinturas MODERNISMO BRASILEIRO:
de Robert Delaunay (trabalhando dentro do O EDITORIAL DE KLAXON 1
universo cubista), sendo que um dos quadros
fez parte da coleção que Tarsila manteve por Dentre os manifestos mais importantes
muitos anos, até 1951, quando foi desfeita de nosso promeiro tempo modernisma,
por meio de vendas. o Editorial de KLAXON 1 ocupa um lugar
Nunca temos noção, sequer especial, já que traz claramente a tendência
aproximada, do papel histórico de certas internacionalista da publicação, tendo como
ações/processos, os quais, às vezes, preocupação principal a atualização das
ultrapassam a mais fértil imaginação. A linguagens artísticas no Brasil.
presença de Cendrars no Brasil foi fundamental KLAXON foi nossa primeira revista
2006

para nossos modernistas (que o conheciam, modernista: porta-voz do grupo paulista,

472
estendia suas páginas a materiais das mais livro de Blaise Cendrars na capa de KLAXON.

2004
diversas procedências. Foi editada logo após Klaxon: mensário de arte moderma
a Semana de Arte Moderna em 1922 e durou São Paulo, com um único A para todas
apenas nove números, em oito volumes, as ocorrências, A que toma a configuração
sendo duplo o último, contendo os números da Tour Eiffel. Guilherme de Almeida teve
oito e nove. Depois, deixou de ser editada, um papel importante nas tiradas gráficas
menos por falta de dinheiro que por falta da revista. Notam-se, também, aspectos
de vontade do grupo por ela responsável futuristas, já que o futurismo explorou o
(Manuel Bandeira, em 1924, numa crônica elemento tiopográfico em sua poesia etc).
furiosa, em que achincalhava o Manifesto O Editorial de KLAXON 1 vale por um
Pau-Brasil de Oswald de Andrade, que manifesto e vem assinado : A Redacção (é
erroneamente classifica como nacionalista, claro que foi feito a várias cabeças, mas
lança a acusação: Paulo Prado, um milionário tudo indica que pesou mais a de Mário de
2005 estreitamente ligado aos modernistas, deixou Andrade). O texto fala em construção e reitera
KLAXON morrer). Como bem observou o este aspecto, contrapondo-se, de saída, ao
poeta e historiador de nosso Modernismo teor agressivo-destruidor do manifesto de
Mário da Silva Brito, uma revista desse tipo, fundação do Futurismo, escrito por Marinetti
editada pelos próprios colaboradores, deixa e publicado no jornal francês LE FIGARO,
de existir quando acaba o entusiamo das em 1909. Chega a dizer textualmente que
pessoas com ela envolvidas, como foi o caso não é futurista, mas klaxista. Também
de muitas revistas modernistas da Europa e não nega o passado, como o fez o manifesto
daqui. KLAXON não fugiu à sina. marinettiano, porém não o cultua. O que
A capa de KLAXON, assim como o seu interessa é o presente e o que está por vir.
projeto gráfico, eram revolucionários para o Acontece que é evidente a influência do
Brasil daquele momento e foi ela a mais bela Futismo italiano (que tanto marcou o nosso
das revistas do modernismo brasileiro (fala- primeiro modernismo) em toda a apologia
2006

se com propriedade da influência de capa de que faz da vida moderna: enaltece os avanços

473
técnicos e científicos; coloca a cinematografia bancou, junto com a Martins, a edição; daí,

2004
(que não compareceu na Semana de 22) esgotou-se, mas perece-me que foi feita
como a arte mais representativa da época. uma outra tiragem. Quem for amigo de José
Valoriza o humor e se posiciona contra uma Mindlin, poderá apreciá-la em sua magnífica
longa tradição lacrimosa nas nossas Letras. biblioteca. Ou esperar que ela se instale na
Diz-se internacionalista (a questão era Cidade Universitária.
atualizar as linguagens no Brasil) e que não Em tempo: Klaxon quer dizer buzina
fará concessões para ser entendida. em francês [em verdade, a palavra vem do
Uma das coisas mais interessantes inglês], a buzina que se localizava na parte
em KLAXON é que no número 1, na quarta externa do automóvel, tendo tudo a ver com
capa, comparece um anúncio da Lacta, que progresso tecnológico e com vida moderna
pode ser considerado o primeiro anúncio e com algo que produz som que anuncia as
realmente moderno a acontecer no País, sob novas. As boas novas. As novas novas.
o ponto de vista gráfico. Fala-se em poema (05 de novembro de 2005)
2005
pré-concreto, dada a parcimônia no uso do
vocabulário e na função importante que nele
vem a ter a tipografia. Coma Lacta (com
repetições) apenas.
KLAXON merece ser vista. Quem MODERNISMO BRASILEIRO:
tiver oportunidade pode consultar os nove O MANIFESTO DA POESIA PAU-BRASIL
números na seção de Livros Raros da
Municipal “Mário de Andrade” ou no IEB-USP. Oswald de Andrade foi daqueles raros
Por ocasião do cinqüentenário da Semana de ricos que se empenharam num trabalho
Arte Moderna, houve uma edição facsimilar envolvendo linguagem: herdeiro de uma
reunido todos os números num único volume; fortuna, que nunca administrou direito,
acabou sendo vendida a preço de banana veio a experimentar, depois do ano fatídico
2006

pela Secretaria de Cultura do Estado, que de 1929, amargura financeira. Um bon

474
vivant, como se dizia em outros tempos. (nacionalista naquele sentido tacanho

2004
Um gozador, um bem-humorado, daqueles e mesquinho), mas brasílico. Ou seja,
que poderiam peder o amigo mas não valoriza as coisas do Brasil, com sua imensa
perdiam a piada. Porém, foi co-inventor do diversidade, como um importante material
Movimento Modernista no Brasil, borrifando para a poesia. Ao invés de uma poesia de
muito oxigênio por todos os campos em que importação, defasada, tardo-qualquer-coisa,
atuou. uma poesia de exportação: a poesia
Sua prosa experimental tem início pau-brasil.
em 1923, com a publicação de Memórias Clama por um idioma mais condizente
sentimentais de João Miramar. Sua melhor com o português praticado no Brasil: “A
poesia vem um pouco depois. E que poesia! língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural
Principalmente a dos livros Pau-Brasil e e neológica. A contribuição milionária de
Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald todos os erros. Como falamos. Como somos”.
2005 de Andrade. O livro Pau-Brasil é antecedido Aliás, essa foi uma grande preocupação
pelo importante MANIFESTO DA POESIA PAU- dos modernistas do primeiro tempo: a de
BRASIL, que foi publicado no CORREIO DA uma língua menos lusa e mais brasílica,
MANHÃ, em 18 de março de 1924. Esse texto contemplando séculos de uso do idioma de
marca, juntamente com a famosa viagem Camões no Brasil (afinal, o idioma pertence
para as cidades históricas de Minas Gerais aos seus pensantes, falantes, escreventes).
(modernistas brasileiros acompanhados Também Mário de Andrade e Manuel Bandeira
do poeta suíço-francês Blaise Cendrars) a tiveram preocupação semelhante.
descoberta ou re-descoberta do Brasil pelos Lembro-me de que meus jovens
modernistas de São Paulo. amigos Walter Silveira e Tadeu Jungle, dois
Diferentemente do que se possa grandes calígrafos, ficavam fascinados com
pensar e do que já afirmaram alguns poetas o trecho do manifesto que diz: “O reclame
(entre os quais Manuel Bandeira), críticos e produzindo letras maiores que torres”…
2006

historiadores, o manifesto não é nacionalista Infelizmente, pessoas menos

475
competentes artisticamente e politicamente como EFCB, parece uma transposição grafo-

2004
deploráveis acabaram desvirtuando este cromática de um poema de Oswald), assim
e o outro manifesto famoso de Oswald de como terá a fase antropofágica (acredita-se
Andrade: o MANIFESTO ANTROPÓFAGO que o quadro Abaporu, pintado em janeiro
(1928). de 1928 por Tarsila, é que teria inspirado a
O livro Paulo-Brasil foi editado em Paris, ANTROPOFAGIA de Oswald).
em 1925, pela Au sans pareil, editora dirigida A união de Oswald e Tarsila
por Blaise Cendrars. De formato pequeno, (namoraram, casaram-se), Tarsiwald, como
tem bela capa de Tarsila do Amaral, assim a eles se referia Mário de Andrade, deu bons
como as ilustrações: incríveis! Uma capa frutos. Eram os anos 20. Foi a melhor fase
pré-pop, desenhos ultra-parcimoniosos. O para os dois que, entrados na maturidade,
livro traz também inteligentíssimo prefácio guardaram pouco da antiga criatividade.
de Paulo Prado, que vale por um manifesto, De qualquer modo, marcaram o nosso
2005 em que ele deplora a parlapatice poética, modernismo com obras memoráveis. Hoje,
valorizando a economia de meios: “…em são dos produtores de linguagem que
comprimidos, minutos de poesia”. Constitui- continuam no centro de cogitações dos
se (parafraseando Paulo Prado), no primeiro jovens que ambicionam construir uma obra
conjunto de poemas verdadeiramente que venha a ter importância. Felizes anos
modernos do Brasil, sem ranço parnaso- 20! Mas o passado é todo ele sempre muito
simbolista. rico. O passado é recuperado em forma de
Tarsila do Amaral que, como Oswald de relato, aparados os excessos-redundâncias-
Andrade, gastou parte de sua fortuna para mesmices. É editado. História.
adquirir alto repertório (como notou Décio (12 de novembro de 2005)

Pignatari), também teve sua fase pau-brasil no


desenho e pintura (o poema “longo da linha”,
de Oswald parece a transposição verbal de
2006

um quadro de Tarsila; um quadro de Tarsila,

476
O PLANO-PILOTO PARA POESIA é mero fruto do acaso) que foi publicado na

2004
CONCRETA revista-álbum NOIGANDRES 4, em 1958. O
texto vem em português e inglês, garantia de
O Concretismo ou Movimento da que seria lido em outras paragens. E o foi de
Poesia Concreta já nasceu teórico-crítico fato: é, dos manifestos artísticos brasileiros,
e prático: a partir do “Grupo Noigandres” o mais lido fora do Brasil.
(1952), com poetas-pensadores - Augusto O texto já inicia com polêmica,
de Campos, Décio Pignatari e Haroldo dizendo estar encerrado o ciclo histórico
de Campos. Poetas que indagaram o ser do verso e colocando o branco da página
poeta no Brasil e no Mundo, perseguindo como um elemento estrutural da poesia.
a invenção, como colocou Ezra Pound em Critica a linearidade do discurso, propondo
sua famosa classificação dos escritores uma sintaxe espacial. Uma poesia sem
(produtores de linguagem): inventores, versos, sem no entanto abdicar da palavra.
2005 mestres, diluidores… Inventores. Elenca os poetas precursores, de Mallarmé
Manifestos foram muitos: cada artigo, a João Cabral de Melo Neto e valoriza as
entrevista: um manifesto, a defesa de contribuições das artes plásticas e da música,
posições, a crítica ao stablishment poético, as o que evidencia a vocação intersemiótica da
propostas de novos procedimentos. Porém, poesia concreta. Diz ser o poema um objeto
o coroamento da primeira fase da Poesia em si e por si, não um intérprete de coisas
Concreta (nascida com os supra citados e que lhe são exteriores. Coloca a palavra
com Eugen Gomringer, um suíço-boliviano como a matéria-prima do poema, palavra
que se encontrava na Alemanha) se dá com considerada em suas dimensões sonora,
a publicação de uma espécie de síntese de semântica e gráfica (visual).
todos os mais importantes textos escritos O manifesto coroa o Modernismo
pelos “três mosqueteiros”, dá-se com o em poesia, radicaliza algumas propostas
plano-piloto para poesia concreta (e a anteriores e propõe coisas novas. Comprou
2006

lembrança do plano-piloto de Brasília, aí, não alguns amigos e muitos inimigos (sempre

477
que se expõe posição com clareza isto 1956, em São Paulo e, no ano seguinte, no

2004
acontece, tanto na política como nas artes). Rio de Janeiro, o que fez com que - de fato -
As acusações de formalismo foram muitas (as acontecesse na mídia da época, como bem
quais já vinham desde antes) e prosseguem observou Décio Pignatari.
até hoje, incrivelmente. O texto é assinado Mais do que comemorações caretas,
pelos Irmãos Campos e por Décio Pignatari; espero que haja trabalhos de pesquisa e
não por Ronaldo Azeredo, que embora já interpretação e reedições facsimilares, que
integrando o Grupo desde o nº 3 da revista essa poesia é para ser vista/lida e amada!
NOIGANDRES, não era muito afeito a teorias; Concretamente.
questão de temperamento. (19 de novembro de 2005)

No ano de 1961 foi adicionada a frase do


poeta russo Vladímir Maiacóvski “Sem forma
revolucionária não há arte revolucionária”,
2005 o que na opinião de muitos aficionados da
Poesia Concreta foi um dar satisfação aos
inimigos, um vacilo. Mas isto é de somenos
importância. CONSIDERAÇÕES SOBRE TELEVISÃO
A importância da Poesia Concreta foi
imensa - maior que a de 22, no dizer de A primeira vez em que vi Televisão
João Cabral de Melo Neto - porém, ainda - minha primeira ida de Pirajuí a São
está por ser avaliada, num momento em Paulo (de trem, como consagrou em
que alguns de seus poemas já integram as música o nosso Tito Madi e como já narrei
antologias dos livros didáticos. No próximo neste mesmo espaço), 1954 - nada vi, de
ano - 2006 - serão comemorados os 50 fato: em casa de um tio, o primo ligou o
anos do Concretismo Brasileiro, já que este aparelho, para minha curiosidade e, como
foi oficialmente lançado na 1ª Exposição naquela época as transmissões eram de
2006

Nacional de Arte Concreta, em dezembro de poucas horas por dia, só pude ver um

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desinteressante chuvisco, mais o ruído que mosaicada (a retícula grossa faz com

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o acompanhava. que não possamos apreciá-la de muito
Como estudamos, a TV foi introduzida perto), marcha para a alta definição - que
no Brasil em 1950, tendo tido sua primeira no Japão já existe há bastante tempo -
transmissão na cidade de São Paulo, em 18 aproximando-se do cinema. Porém não é
de setembro. Era o que depois viria a ser a cinema, nem será, embora absorva deste
TV Tupi. Francisco de Assis Chateaubriand coisas fundamentais e o veicule através de
Bandeira de Mello, dono dos Diários Associados uma programação de filmes. Acontece que
é que teve essa iniciativa pioneira, o que faz a TV é um veículo de veículos, mas tem
com que ele tenha muito mais importância aquilo que a define enquanto veículo, em
para a história das comunicações no Brasil particular.
do que Roberto Marinho, com tudo o que TV é entretenimento e informação.
as Organizações Globo representam. Misto Sim. É veículo de massa para entreter,
2005 de cafajeste e grande empreendedor, Assis sendo que até pode educar, porém não é
Chaeaubriand teve um rival ilustre em Cicillo este o seu objetivo precípuo. A TV informa:
Mattarazzo… e nos legou o MASP!, malgrado sempre informa. Informa a um certo
as chantagens que fazia com os milionários, repertório e não a outro, o que vale dizer
a fim de obter dinheiro para as compras que muito do que é redundância para as
dos quadros etc, no pós-guerra, momento arrogantes camadas doutas da sociedade
propício para tal. O MASP foi fundado em não será para uma maioria que às vezes
1947 e veio a ter a melhor pinacoteca da dispõe da TV como principal fonte. De
América Latina. informação. Como toda mensagem, a
A TV já nasceu com som: imagem passada pela TV estará em busca daqueles
em movimento e som, que podem ser que carecem daquilo que é veiculado.
transmitidos concomitantemente aos Aprofundamento? A TV não tem obrigação e
acontecimentos, em tempo real. De nem poderia fazê-lo. Aprofundamento exige
2006

baixa definição, possuindo uma imagem recolhimento, solidão, renúncia, empenho,

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reflexão e discussão. A TV informa e até telespectadores de altíssimo repertório. A TV

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educa, mesmo que à revelia. é um dos veículos que nos garantem aquela
A TV e os outros veículos: ela é invasiva: alienação necessária, sem a qual nossa psiquê
está em nossa casa e nos convida a ligá-la não resistiria. O que não podemos é gastar 8
e ficar indefinidamente diante dela. É óbvio ou 10 horas com sua programação, mesmo
que a maior parte - mais de 90% - do que contando com a suposta variedade da TV a
apresenta é lixo cultural, como em todas as cabo. Daí, emburrecemos e o emburrecer é
áreas, pois no cinema e no mundo do livro a um processo que até pode ser contido.
coisa não é diferente (porém só se ataca a TV Retornando à questão da qualidade:
e, agora a Internet, que tem merecido toda nivelando por cima, ela está disseminada
a atenção da garotada). A quantos filmes pela programação, está dispersa. Mas existe,
precisamos assistir para que aproveitemos mesmo para os repertórios mais exigentes. E
um? Quanto do que está mas livrarias que esse qualitativo nem sempre bate com aquilo
2005 mexem com atualidades presta? Best seller que querem aqueles que de fato formam
não é literatura, afirmou-me Décio Pignatari a maioria - a massa, como se diz. Saber
- eu já sabia e não me custou concordar: a selecionar o que a TV oferece: eis a questão.
boa literatura sempre dá trabalho e não é Procurar na TV o que é próprio da TV, com
bem isto que um best seller exige de nós. toda a sua variedade de programação e no
Por que cobrar apenas da TV o que não se livro (o bom livro, porque a maioria do que
cobra de outros veículos? se edita também é lixo cultural) o que é
Não é possível manter-se um elevado próprio do livro. Etc.
nível na programação de uma emissora
que fica 20 horas ou mais por dia no ar. Em tempo: No texto publicado em 12 de
Nem aqui, nem na Inglaterra. A TV sempre novembro de 2005, sobre o Manifesto da
informa, como qualquer outro veículo e isto Poesia Pau-Brasil, de Oswald de Andrade,
já afirmamos. Algum tipo de informação houve um lapso de minha parte: o certo é
2006

sempre é passado, mesmo nos casos de que o livro de prosa experimental de Oswald

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de Andrade - Memórias sentimentais de João em tudo aquilo que ela possuía de potencial.

2004
Miramar - foi ultimado em 1923, tendo sido Assim como fotografia (“ecrita com a luz”),
publicado no ano de 1924. a palavra cimematografia foi pinçada do
(26 de novembro de 2005) grego: kínema significa movimento, donde
temos “escrita do movimento”.
O cinema nasceu mudo (16 fotogramas
por segundo emprestavam aquela peculiar
impressão de movimento), porém, logo se
percebeu que era insuportável imagem em
CINEMA, UM POUCO I movimento sem som. Colocou-se na sala de
projeção um piano, uma pequena orquestra
Filha da fotografia, a cimematografia e, portanto, antes da música de cinema
é uma arte bem recente se comparada às tivemos a música no recinto de projeção.
outras, pois completa neste dezembro de 1927 é o ano do primeiro filme falado:
2005
2005 apenas 110 anos. Cento e dez anos “O cantor de jazz”, mas ainda se fizeram
desde aquela sessão dos irmãos Lumière em muitos filmes mudos. Houve até quem, já
Paris. A seguir, percebeu-se que o cimema celebridade, resistisse ao cinema falado,
poderia ser entretenimento e veio a ser e de como foi o caso do genial Charles Chaplin
massa: durante muito tempo foi a grande (o cinema falado exigiu 24 fotogramas por
diversão, mesmo ou principalmente em segundo, para que houvesse a sincronização
épocas de crise. fala-movimentos labiais; e, assim, o
Como ocorreu no caso da fotografia, movimento pareceu natural).
de simples técnica, embora surpreendente, o Progressos técnicos, no entanto, são
cimema passou a arte, a partir do momento irreversíveis. Tendo nascido na Franca, a arte
em que alguns perceberam que havia uma da narrativa cinematográfica teve grandes
linguagem propriamente cinematográfica e progressos na Rússia: muito do que se faz
2006

esta linguagem começou a ser explorada até hoje - inclusive na parte da TV que é

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tributária do cinema - teve seu aparecimento também moradores e, portanto, tinham lá o

2004
no atrasado e revolucionário país do Leste seu cinema, hoje em ruínas, como o da Usina
Europeu. Nos EUA é que o cinema se torna Miranda e o da Fazenda Bela Vista). E é uma
indústria cinematográfica. fatia desse bolo, que é o mercado do cinema,
No Brasil, antes mesmo de terminar que nossos cineastas querem conquistar,
o século XIX, já aconteceram filmagens, primeiro aqui dentro, mas visando também
porém, até hoje o nosso cinema (malgrado as ao mercado no exterior.
tentativas de implantação de uma indústria, Embora quase sempre só apareçam os
como foi o caso da Vera Cruz) luta por um nomes dos grandes atores e dos diretores,
lugar ao sol que, parece, está por vir. Imagem cinema é trabalho de equipe envolvendo,
em movimento projetada numa tela em sala um filme, de trinta a trezentas pessoas
escura. Porém, essa imagem, até chegar ou mais. Ou milhares, quando é o caso
às telas, passava por muitas etapas: desde de se considerarem os figurantes em
2005 argumento, roteiro, story board, filmagens, superproduções de épicos. O cimena absorve
montagem. Mantagem: nenhum filme é tecnologias e sobrevive. Viva o cinema!
filme antes da montagem: aí é que se opera (03 de dezembro de 2005)

o milagre maior. Hoje com tantos recursos,


há todo um trabalho de pós-produção, que
chega a transfigurar os takes que se fazem
nos sets de filmagem.
Apesar do impacto do aparecimento
da TV no mundo todo, o cinema, com sua
qualidade de imagem, sobrevive como CINEMA, UM POUCO II
indústria de entretenimento (veja-se o que
ocorreu em nossa cidade e nas grandes O cinema já nasce como registro de
fazendas da região que previam essa fatos e processos e, a seguir, descobre-
2006

diversão para os trabalhadores, que eram se que pode narrar uma história (ficcional

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ou não). Se o cinema pode narrar uma chama de Tradução Intersemiótica ou

2004
história, quem a narra? A câmera! Quem Transmutação (poderíamos também dizer
narra é a câmera e o resto é literatura. Vide Transcodificação). Então, um bom trabalho
Hitchcock, Antonioni, Welles. de transformação de uma narrativa
Dessas narrativas, algumas existirão literária em filme pode ser chamado de
em função de um roteiro original: escrito Tradução Intersemiótica ou Transmutação.
especialmente visando ao filme. Outras A utilização dessa terminologia já indica a
migrarão dos livros (romances, novelas, consciência das linguagens do responsável
contos) para as telas tendo, para isto, maior pelo trabalho (que geralmente é o
que passar por toda uma transformação, diretor). Interessante é que de narrativas
porque literatura é literatura e cinema é literárias medíocres podem resultar obras-
cinema. Muitos falam em adaptação: extrai- primas do cinema: é o caso de muitos dos
se o argumento etc até chegar ao roteiro filmes do genial Alfred Hitchcock. Por outro
2005 e filmagens e montagem. A linguagem lado, uma obra-prima literária pode dar
cinematográfica tem as suas especificidades, num filme sofrível.
apresentando a imagem em movimento, Cinema e Literatura (o reino do código
como também a câmera que poderá se verbal) são coisas diferentes. Um lindo
movimentar, explorando o espaço, nos exemplo - entre tantos outros - de tradução
travellings, como dizem os especialitas: intersemiótica é o SATYRICON do diretor
cineastas e cinéfilos (que é como são italiano Federico Fellini, transmutação de
chamados os que amam o cinema). obra do mesmo nome, de Petrônio, autor
Roman Jakobson, lingüista citado latino do século I dC. No cinema cinema,
algumas vezes nesta coluna, a propósito que é arte sempre que é arte (…sempre
de poesia e outras manifestações verbais, que os envolvidos no processo de feitura
apresenta entre os tipos de tradução possíveis do filme tiverem consciência de sua
um terceiro, que consiste na passagem de linguagem específica), o narrador deve ser
2006

um sistema de signos para outro, o qual a câmera, que pode até ser o nosso próprio

483
olho, ou do câmera ou do diretor (câmera é por outro motivo que coloquei aqui este

2004
subjetiva). preâmbulo. É que mais de 90% do que se faz
Aproveitando o ensejo, digo que um em cinema é coisa médio-menos: encontra-
ser-humano adulto, digno representante se abaixo da linha da mediocridade, por mais
de um repertório culto, deverá ter visto, no dispendiosa que seja a produção.
mínimo, uns trezentos filmes fundamentais A Europa vê o cinema como criação
- em meio ao mar dos inevitáveis lixos sua e ARTE. Nos EUA - Hollywood - trata-
culturais - pois não existe o melhor filme se de indústria cinematográfica, indústria
de todos os tempos (poderíamos, para do entretenimento: o que não impede, de
começar, indicar uns trinta). Entre os filmes quando em quando, o aparecimento de uma
imprescindíveis, devem constar alguns dos obra-prima. O que interessa para a indústria
diretores (entre outros): Chaplin, Orson é o retorno pecuniário. O resto é arte… Com
Welles, Alfred Hitchcock (dez filmes, pelo a televisão (que caminhou rumo à arte com o
2005 menos), Michelangelo Antonionni, Federico advento do videotape e os videomakers que
Fellini, Allain Resnais. Tenha um bom filme! se seguiram, já que se teve a consciência
(10 de dezembro de 2005) da linguagem específica do vídeo) todos se
esqueceram de falar mal do mau-cinema
para não diluir forças. Porém, isso não muda
a situação. Quero comentar, en passant,
alguns filmes que vi ultimamente:
A SOGRA. (EUA/2005. Dir. de Robert
Luketic. Comédia romântica). Traz a ex-bela
CINEMA, UM POUCO III Jane Fonda de volta ao cinema e isto me
levou até uma sala de projeção. “Eu a vi
Já fui um cinéfilo. Hoje, continuo a sê- de costas e ela me pareceu bem”. O filme é
lo, mesmo indo pouquíssimo a cinemas. Amo muito ruim. Tudo muito previsível, o que tira
2006

o cinema. Amo o cinema cinema. Bem, não toda e qualquer graça que se pretenda. A

484
Fonda é uma boa atriz, que também chegou ter mais sentimento que o autor e pecam

2004
a fazer coisas importantes no passado. Já [justamente] pela falta de sensibilidade.
vinha de pai famoso e tem irmão menos Vinicius foi um poeta-diplomata que migrou
ator e mais produtor, mas que atuou no da poesia erudita para letrista de música
EASY RYDER, o que lhe garante um lugar popular, em momentos felizes, como o
numa lateral da História do Cinema dos que vem antes da Bossa Nova e na própria
EUA. Estamos à espera de Jane Fonda num Bossa Nova. Vinicius: grande letrista, um
filme que esteja à sua altura. A SOGRA é ouvido privilegiado. Teve grandes parceiros,
um dos piores filmes a que assisti na vida; como Jobim (o maior deles), Carlos Lira,
outros: TRÓIA, STRIP-TEASE, A MEXICANA. Baden Powell [Toquinho]. Era também
E já chega! festivo e festeiro. Não só não acho que São
VINICIUS. (Brasil/2005. Dir. Miguel Paulo seja o túmulo do samba, como ele
Faria Jr. Documentário). Quem disse que afirmou: São Paulo nunca pretendeu ser
2005 atores sabem dizer poemas? Exceções são centro de [produção de] samba; já bastam
exceções. Via de regra, são os piores leitores o Rio de Janeiro e Salvador-Bahia, pátria do
de poesia de quantos a tanto se atrevem. Samba. São Paulo é trezentos, trezentos e
Piores até que certos autores, para quem cinqüenta, repetindo Mário de Andrade. E
só bastaria a autoria. Thomas De Quincey, São Paulo vive homenageando Vinicius que,
escritor inglês do século XIX já sabia disto. de qualquer maneira, merece e ele sempre
Bem, este é um dos defeitos do filme que, teve por aqui o seu maior público. Gostaria
de resto é uma beleza, com filmagens de saber como é que os jovens vêem o
remanescentes de Vinicius, depoimentos de poeta hoje.
quem tem conhecimento de causa e belas O FIM E O PRINCÍPIO. (Brasil/2005.
interpretações de composições em que Dir. Eduardo Coutinho. Documentário). A
o poetinha entra, no mínimo com a letra. começar pelo começo, é a versão sertão
Atores: equívocos como leitores de poemas: da Paraíba do filme EDIFÍCIO MASTER, do
2006

transformam o lírico em dramático: querem mesmo diretor, porém não tão bem realizado.

485
O fim não finda e se tem a impressão de português que está com 97 anos!

2004
que faltaram uns 30 minutos de filme. Crie Claudia Cardinale, outra ex-
fama e deite na cama… bela, hoje não é nenhuma Cardinale,
O JARDINEIRO FIEL (EUA e Reino nem a Bardot nenhuma Bardot, nem o
Unido/2005. Dir. de Fernando Meirelles. Alain Delon é nenhum Alain Delon! Na
Drama). Para quem já viu e reviu, de juventude a Cardinale possuía uma beleza
Hitchcock, O HOMEM QUE SABIA DEMAIS, o extraordinária. Trabalhou com grandes
filme não dirá muito, mas essa transposição diretores e é mais por isto que a ex-beldade
de narrativa de John le Carré tem qualidades, entra para a história do cinema. É o caso de
que trazem, agora em superprodução, as muitas atrizes, de Grace Kelly a Doris Day.
marcas de seu diretor, o brasileiro Fernando O Fantástico a mostrou, mas não a deixou
Meirelles. falar (em francês), já que a tradução dita
EROS (Itália/EUA/CHINA. 2004). por Glória Maria se superpunha à sua voz.
2005 Alinhavando cada uma das três histórias Certas coisas a Globo nunca aprenderá:
que compõem o filme, o canto sedutor de fazer musical e colocar legenda nesses
Caetano Veloso. Das narrativas, a última é casos. Vá a uma locadora e veja os filmes
a mais bela, atraente e… previsível). da juventude de Claudia Cardinale. Uma
Manoel de Oliveira: O ESPELHO bela italiana… nascida na Tunísia.
MÁGICO: aquilo não me pareceu cinema. (17 de dezembro de 2005)

Elogiar um diretor só porque ele é anti-


hollywoodiano é o fim da picada. Nenhum
travelling. Puro diálogo com atores parados.
Uma pobreza baseada em narrativa que
lhe deve ser bem melhor. Da metade da
metade que vi deu para saber que não dá
pé. Cinema é outra coisa. Nem sei se terei
2006

paciência para ver outros filmes do diretor

486
REVISTAS DO NOSSO CONCRETISMO I: no significado, que havia fascinado Ezra

2004
NOIGANDRES Pound e que comparece em poema do
trovador provençal Arnaut Daniel (“il miglior
As revistas, desde antes do fabbro del parlar materno”, no dizer de
Modernismo, foram importantes portavozes Dante Alighieri). O ano de1952 é também
dos poetas-artistas-movimentos. Nos marcado pela exposição e manifesto do
Modernismos, europeu e americano - onde se Grupo Ruptura, com artistas, principalmente
inclui o Brasil - tiveram papel fundamental, pintores, de linha construtiva - abstrata-
veiculando idéias estéticas e trabalhos geométrica - que veio a se constituir no
artísticos, sem perda de informação quando grupo de pintores concretistas, liderado por
se trava de poesia, impressa que era, via Waldemar Cordeiro (o grupo paulista, como
de regra. Tais revistas, em sua quase ficou conhecido pela extrema racionalidade,
totalidade, eram custeadas pelos próprios muito embora comportasse gente nascida
2005 artistas e tiveram vida efêmera: algumas fora do Estado de São Paulo e até em outros
não passaram do número 1. países).
O Grupo Noigandres, nascido em NOIGANDRES, a revista, teve cinco
1952, em São Paulo, com Augusto e Haroldo números, dedicados fundamentalmente à
de Campos e Décio Pignatari (os irmãos poesia. As exceções de metalinguagem-
Campos haviam conhecido Pignatari em fins teoria que comparecem são apenas duas: o
dos anos quarenta, motivados pela poesia texto que antecede os poemas coloridos de
e como que forçados pela aproximação Augusto de Campos, da série POETAMENOS,
que existia entre eles, já que acabaram no número 2, de 1955 (ano mesmo em que
se encontrando na Faculdade de Direito Augusto propôs para a poesia que faziam
do Largo de São Francisco, na Paulicéia). o nome “concreta”, pois já existiam a Arte
Nesse mencionado ano de 52, lançaram o e a Música concretas), porém a série havia
primeiro número da revista NOIGANDRES, sido elaborada em 1953; e o plano-piloto
2006

nome emblemático da invenção e intrigante para poesia concreta, manifesto-síntese do

487
pensamento do grupo, na de número 4, de nos traz informação a mais: acaba por se

2004
1958, por sinal, a mais bela: um álbum com envolver numa aura, perceptível aos que
poemas-cartazes e um caderno contendo o têm sensibilidade para o que está além do
poema LIFE, de Décio Pignatari, com capa de simples bem-estar-neste-nosso-mundo.
Hermelindo Fiaminghi, uma bela serigrafia de (24 de dezembro de 2005)

formas geométricas indiciando uma dinâmica,


em cinza e vermelho e o texto: noigandres
4 : poesia concreta, tudo em caixa-baixa,
futura bold. Ronaldo Azeredo já comparece
na de número 3 e vai até a 5, número em
que encontramos José Lino Grünewald,
que já integrava o grupo, desde a página
INVENÇÃO, no CORREIO PAULISTANO. A
2005 de nº 5 (1962) e que fecha o ciclo chama-
se de antologia: do verso à poesia concreta
e estampa na capa, aproximativamente,
trabalho de Alfredo Volpi, considerado,
então, pelo grupo, como “primeiro e último
grande pintor brasileiro”. Marca, este nº 5
os dez anos do grupo Noigandres e, embora
traga o timbre da Massao Ohno Editora, foi
financiada pelos próprios autores - questão
de distribuição.
Verdadeiras raridades hoje, os cinco
números da revista NOIGANDRES encerram
tesouros, em grande parte já republicados.
2006

Porém, a edição original de revistas sempre

488
2006
anunciando a revista do mesmo nome.

2005
Nessa página, o leque começa a se
abrir, incluindo outros nomes, sendo a
equipe formada por Augusto de Campos,
Décio Pignatari, Haroldo de Campos, José
Lino Grünewald, Edgard Braga, Pedro Xisto
de Carvalho, mais Cassiano Ricardo e Mário
Chamie, que se afastariam depois do grupo
que fez INVENÇÃO (Chamie antes, já não
comparece na revista; Cassiano Ricardo
colabora nos dois primeiros números de
INVENÇÃO, que chegou até o 5 apenas,
como a sua antecessora NOIGANDRES).
2006 INVENÇÃO, enquanto revista portavoz
do Concretismo (editada, como NOIGANDRES,
em São Paulo), inaugura um outro ciclo, em
que a abertura se configura com a inclusão
de outros poetas, artistas de outras artes,
REVISTAS DO NOSSO CONCRETISMO como os músicos e colaboradores de fora,
II: INVENÇÃO muito embora a Poesia Concreta tivesse já
nascido internacional. INVENÇÃO abre com
Antes da criação de INVENÇÃO revista metalinguagem (o nº 1 traz dois ensaios:
de arte de vanguarda, houve a página um de Décio Pignatari, outro de Cassiano
“Invenção” no CORREIO PAULISTANO, de Ricardo) e esta metalinguagem se mantém
17 de janeiro de 1960 a 26 de fevereiro de forte em todos os números: textos teóricos,
1961, que saía quase que semanalmente, aos manifestos, crítica e polêmica - a partir da de
2007

domingos, e que teve o seu encerramento já nº 2 a seção “Móbile” se incumbe das notas

490
sobre o movimento e tacapadas-respostas 5 aparece a única mulher-poeta-brasileira

2005
às críticas de que eram alvo os concretistas. participante das revistas do Concretismo
E isso tudo de mescla com poemas também histórico: Maria do Carmo Ferreira, com
muito importantes, geralmente em suas o contundente “Meretrilho” (na de nº 4
primeiras edições. Haroldo de Campos, por detectam-se as presenças tênues de duas
exemplo, lança o seu projeto GALÁXIAS na poetas estrangeiras).
de nº 4, com várias páginas-fragmentos. As edições apresentam sempre o
E é em INVENÇÃO que se dá o tal “salto mesmo formato, 18 X 25,5 cm na forma-
participante”, um equívoco na opinião de livro. Porém, a partir do nº 2, INVENÇÃO
alguns de seus verdadeiros aficionados. apresenta o poema cartaz (folha
Os editoriais são verdadeiros desdobrável) e outros tipos de encarte. A
manifestos e vão ganhando intensidade até de nº 5 é também a mais bela graficamente.
a culminância na de nº 5: uma jóia de texto As cinco capas trazem, encimando-as,
2006 (escrito por Décio Pignatari) que se utiliza poema-carimbo de Décio Pignatari, com o
de uma passagem com Cassiano Ricardo mome INVENÇÃO, sendo que a cor varia do
- poeta expurgado - para reafirmar a 1 ao 5: Amarelo, vermelho, azul-celeste,
radicalidade dos fundadores do movimento laranja, vinho.
concretista. Financiada pelos próprios autores
Interessantes participações de que se cotizavam, INVENÇÃO traz nos dois
estrangeiros, jovens músicos e poetas primeiros números os nomes de editoras:
como Paulo Marcos, o filho de Oswald 1: GRD; 2: Massao Ohno, o que no nº 3
de Andrade e Maria Antonieta D’Alkmin é substituído por Edições Invenção; no
(falecido muito jovem) e de Paulo Leninski 4: Distribuidora: Editora Obelisco; 5:
(que veio a se tornar celebridade na poesia Invenção. Esta, datada de dez 66 - jan
brasileira). Além de outros de gerações 67, marca o fim das revistas concretistas
anteriores, destaque para Edgard Braga comandadas pelos históricos e por eles
2007

e Pedro Xisto de Carvalho. Na de número financiadas. Vai-se o entusiasmo, de par

491
com o recrudescimento do regime, que ALFREDO VOLPI I

2005
teve o seu coroamento em dez de 68, com
o AI 5. É claro que aquele que quiser se iniciar
Revistas desta estirpe só voltariam a na obra de Alfredo Volpi (1896-1988) deverá
ser editadas no Brasil na década seguinte, procurar por seus trabalhos em primeiro
a partir de 1974: NAVILOUCA, CÓDIGO, lugar e por alguns textos críticos, dos quais
POLEM, ARTÉRIA, POESIA EM GREVE, dois são indispensáveis para a compreensão
QORPO ESTRANHO e outras (assunto já da arte volpiana: um de Mário Pedrosa e
tratado neste espaço). outro de Décio Pignatari, ambos de 1957,
NOIGANDRES e INVENÇÃO que são definidores e definitivos: já colocam
garantiram a experimentação que se viu em Volpi num patamar bastante elevado como
KLAXON e na REVISTA DE ANTROPOFAGIA, pintor que foi: um pintor, por excelência.
de nosso primeiro tempo modernista, Como alguns outros grandes artistas
2006 experimentação que quase minguou por brasileiros, Volpi nasceu fora, na Itália, mais
mais de duas décadas, não fora a atuação precisamente em Lucca e, ainda bebê,
de Flávio de Carvalho, primeiro e João veio para o Brasil, São Paulo capital, onde
Cabral de Melo Neto depois. Essas revistas cresceu, aprendeu, pintou, viveu e veio a
mereceriam edições facsimilares. Estão falecer, passado dos noventa anos de idade.
entre as melhores publicações coletivas de (Eliseu Visconti e Vítor Brecheret também
poetas que se fizeram no mundo nos anos nasceram na Itália. Portinari e Pancetti eram
50 e 60. Experimentar é preciso. brasileiros, filhos de pai e mãe italianos). Na
(14 de janeiro de 2006)
Paulicéia, seu recanto definitivo foi o bairro
do Cambuci, hoje bastante feio, desgastado,
em que falta justamente cor.
Volpi foi, em verdade, um autodidata.
Seu aprendizado se deu como o de um
2007

um operário: praticou pintura em paredes,

492
executando decorações ao gosto do freguês. grupo. A viagem tardia para a Itália, não

2005
Fez estampas para reprodução, estampas foi propriamente um reencontro, mas uma
geralmente de obras famosas, que eram algo descoberta e Volpi, já um pintor-artista
modificadas para que fossem comercializadas firmado, encontra-se com os mestres do
(oleografias), peças decorativas muito mais trecento.
comuns em outros tempos. A maturação de O grande colorista que Volpi foi pode
Volpi se constituiu em todo um processo - ser atestado por qualquer pessoa, mesmo
lento, diga-se. Estava entrando nos 26 anos a não-especializada nas coisas das Artes
de idade quando se realizou, em São Paulo, Visuais. Tem sido considerado o nosso maior
a Semana de Arte Moderna: ele estava com colorista e colorista não é o pintor que utiliza
outras preocupações naquele momento: excessos, ou pinta com cores berrantes,
ao mesmo tempo em que ganhava a vida mas aquele que possui um pensamento-
fazendo coisa menor, desenvolvia-se cor, ou seja, pensa/sente a cor e tem a
2006 autodidaticamente em termos de forma, capacidade de expressar isto nas pinturas:
linha, cor, textura. Observava o que outros a grandeza vem da novidade que brota do
pintores a quem tinha acesso realizavam. estabelecimento das relações entre as cores,
(E hoje um jovem egresso de uma escola pelo pintor. Por isto é que é importante ver
de arte acha que já é um gênio e que está numa exposição trezentas pinturas de Volpi.
pronto para se mostrar como tal… para o Do tema “bandeirinhas”, por exemplo, ver
Mundo). uns sessenta quadros juntos: uma verdadeira
O Grupo Santa Helena (os artistas maravilha! Como o mesmo quadro é outro,
possuíam ateliês no demolido edifício com uma quase-mesma composição pode
do mesmo nome, na antiga Praça Clóvis trazer informação, apresentando sutis
Bevilaqua): era constitituído por amigos modificações cromáticas.
que também cultivavam a simplicidade As retrospectivas de Volpi - e tive a
tardo-natural-impressionista. Mas Volpi, que oportunidade de ver algumas, duas das
2007

freqüentava os pintores, não pertenceu ao quais muito importantes - têm relevância

493
por vários motivos, alguns dos quais mencionado percurso, progressivamente

2005
são: 1. Dar uma idéia de seu percurso, foram sendo abandonados quaisquer
de uma coerência rara na arte moderna resíduos de virtuosismo esclerosado,
brasileira e na internacional, mostrando demonstração de competência etc, apesar
um conjunto apreciável de sua obra; 2. de Volpi ter sido um autodidata, não
apresentar o colorista excepcional que ele ter freqüentado escolas de arte; 6. que
foi, principalmente a partir do momento pintura não é tinturaria, mas algo que
em que passou a utilizar exclusivamente resulta de um sábio estabelecimento de
a têmpera para pintar; 3. como brota relações entre as cores, é a distribuição
uma elementar geometria (questão das da matéria cromática de modo a se
formas) das coisas criadas pelo Homem: configurarem formas. Pintura é forma-cor.
dos casarios às ornamentações de festas E não o contrário. Cor não é expressão de
populares etc; sentimento: é sensibilidade. Pintura é cor
2006 (continua no próximo número) cerebral-sensível.
(21 de janeiro de 2006) Meus encontros com Volpi foram dois
ou três, não me lembro bem. O que tenho
vivo foi um evento em que estive presente
e ele também e todo o grupo concretista:
poetas e pintores. Era a exposição de
um outro pintor concretista, de grande
importância e que hoje carece de revisão:
ALFREDO VOLPI II Hermelindo Fiaminghi. Lembro-me de que,
(continuação) apresentado a ele, apertamo-nos as mãos
4. que não se notam sinais de decadência, e penso que até saí numa fotografia (que
mesmo em se tratando de suas pinturas da eu não cheguei a ver) em que se reuniu
fase final, em que beirava e passava dos todo o grupo dos presentes. Não o procurei
2007

noventa anos de idade; 5. de como, no para conversar, não apenas porque a festa

494
era de Fiaminghi, mas porque nada tinha artista plástica com quem eu nunca estive,

2005
a lhe falar. Falar o quê? Que eu o admirava muito embora o seu amigo Haroldo de
sobremaneira? Todos ali o admiravam. Campos tivesse prometido - por conta
De todos os poetas concretistas, própria - a mim e a Paulo Miranda que nos
Volpi tinha um grande apreço por Ronaldo apresentaria e que nós gostaríamos muito
Azeredo, como pessoa e chegou a financiar dela enquanto pessoa, já que admirávamos
as edições de inúmeros de seus poemas e o seu trabalho tão refinado. Mira logo
livros-poemas. adoeceu e veio a falecer. Nascida na Suíça,
Nunca tive a coragem de procurá-lo com passagem pela Itália, radicou-se entre
em sua casa no Cambuci: certamente seria nós e produziu grande obra que, em alguns
recebido e penso que esse meu desinteresse momentos tem alguma pouca afinidade com
fosse pelo fato de eu não ter dinheiro para a de Volpi. Mira, no que tem de melhor, foi
poder adquirir obras suas. essencialmente gráfica. Como Volpi, está no
2006 Não tenho tempo para pesquisar agora, centro das cogitações das pessoas que, no
mas os jornais da época noticiaram e penso Brasil, se interessam por Artes Visuais).
que minha memória não me trairá: quando, Volpi chegou a ser um concretista,
em 1976, Volpi completou 80 anos, já uma não de programa ou filiação (embora fosse
celebridade, o então governador do Estado o amigo mais velho dos pintores do Grupo
de São Paulo - uma das pessoas públicas mais Ruptura), mas por evolução, ou seja, seu
burras de que tenho notícia - Paulo Egydio caminho se configorou de tal modo a chegar
Martins o convidou para almoçar em palácio, a resultados tão do agrado dos concretistas:
coisa que o velhinho recusou, revidando: “O artistas plásticos e poetas. Era alguém cuja
governador que venha até a minha casa”. E sabedoria não se expressava pelo verbal, mas
Paulo Egydio foi! Acho que esse foi o gesto por linhas, formas e cores. A possibilidade
mais brilhante de toda a sua vida de político de abastança não mexeu com sua cabeça.
(eleito indiretamente, diga-se). Volpi acrescentou muito à arte brasileira e
2007

(Mira Schendel, foi o caso de importante continua a despertar interesse nos jovens

495
que possuem ambição artística. Volpi. Pintor. trabalham junto a hospitais que se firmaram

2005
Cores. como centros importantes de tratamento de
(28 de janeiro de 2006) cardiopatias e doenças afins.
Eu tive muito a meu favor: um médico
que me acompanha, com meu problema (que
deve ser de nascença) e é verdadeiramente
um sábio: Dr. Michel Batlouni (de uma
objetividade rara) que, além de tudo, sempre
COISAS DO CORAÇÃO me animou, colocando o meu caso como
algo que possuía remédio: enquanto se pôde
Aos poucos, retomo minha vida em sua combatê-lo com remédios, isto foi feito;
normalidade, depois de quase dois meses de quando foi preciso fazer-se uma cirurgia -
cuidados especiais, reforçados pela minha e eu nunca, nos meus 57 anos, havia feito
insegurança, dados os traumas de uma
2006 nenhuma - foi o que ele aconselhou: “Você
incursão médica invasiva em meu corpo, estará em excelentes mãos e merece ficar
na região torácica: uma cirurgia cardíaca, bom [sempre admirou o meu empenho
delicada como todas, como todas, perigosa como docente e deixava isto claro]. Quando
(a troca de uma válvula - “valva” seria mais se tem a solução para um problema, deve-
preciso - natural, já gasta, por uma artificial se procurá-la o mais rapidamente possível,
metálica). Isso tudo, mais para os do lado pois que a ansiedade é uma coisa ruim.
de cá (pacientes, familiares e amigos) do Uma cirurgia para sanar o seu problema
que para os médicos, exímios terapeutas de insuficiência mitral, fazendo-se a plastia
do corpo. E, em se tratando de São Paulo, ou colocando-se uma prótese é coisa
as coisas são feitas com uma naturalidade relativamente simples para nossas equipes
muito grande, já que as cirurgias de coração de cirurgiões-cardiologistas; em 15 dias
e adjacências têm sido um sucesso que chega você já irá se sentir melhor”.
a 100%, quase sempre. Grandes equipes
2007

De fato: do hospital, o Hcor, à equipe

496
formada pelo doutor Camilo Abdulmassih, de distribuí-lo às pessoas mais próximas).

2005
assistido pelos doutores Fermando Borges É claro que antes de tudo já havia rezado
e Alexander Guilherme, ao anestesista, - estou em plena paz com Deus, o que
enfermeiros, técnicos e funcionários em significa que não arrasto recentes problemas
geral, estive sempre bem acompanhado, de consciência.
contando com assistência 24 horas de meus Que eu me lembre, arco com os ônus
familiares: minhas sobrinhas, as Marias das conseqüências da insuficiência mitral
Luísa e Laura e de meu irmão Richard, com a desde os doze anos e posso dizer que a coisa
chegada de mais familiares e alguns amigos foi, de fato, um sofrimento: o problema
(Paulo Miranda, com sua experiência familiar (talvez, mais a maneira como afetou a
em termos cardiológicos, acompanhou tudo, minha cabeça) desde cedo modificou para
desde o cateterismo). Minha mãe foi a última pior a minha vida, fazendo-me crer que
pessoa da família a saber e isto quando eu era diferente das demais pessoas, um
2006 já estava ficando bom e assim foi melhor: ser inferior. Só com o tempo percebi que
poupá-la de um sofrimento transitório (coisa poderia levar, como estava levando, uma
com a qual ela não concordou). Passar por vida normal. Porém, o problema me levou a
uma cirurgia dessas não é brincadeira: um uma infelicidade que parecia perene: frente
sofrimento atroz no pós-operatório, mas nada a esforços em demasia, sentia-me cansado
que não se possa suportar. A primeira coisa excessivamente e vim a saber que isto era
que ouvi foi: “Foi tudo muito bem, você está provocado pela refluxo sangüíneo e que,
ótimo”. E quando, de fato, acordei, lembrei- com o tempo, ocorreria uma hipertrofia do
me de um poema que fiz minutos antes de átrio esquerdo e que, em alguns casos, seria
entrar na sala de cirurgia, como teste para recomendada uma cirurgia que poderia ser
saber se me lembraria - o que seria uma muito simples.
prova de que estaria bem mesmo: tratava- Passei por muitos médicos, levado por
se de um poema para duas de minhas três minha mãe: do Dr. Luís Barbanti (um ótimo
2007

cachorras (agora eu o realizo, com o intuito profissional, que nos deixou cedo demais) e

497
que muito me animou ao Dr. Bernardino conversar sobre isto, nas raras vezes que

2005
Tranchesi (o pai) que tranqüilizou a minha o encontrei depois que, por mérito próprio,
mãe, até chegar ao Dr. Michel Batlouni, se tornou uma celebridade como cirurgião-
que considero o máximo. cardiologista.
Em outros momentos, certas cirurgias Dos piores momentos da UTI
estavam ainda no campo do experimental (estranho lugar!), dos quais destaco as
e eram por demais perigosas - essas que muitas horas que tive de esperar até poder
hoje as equipes fazem - graças a Deus - tomar menos de meio copo de água, à
como algo corriqueiro, dada a sua grande comida sem nenhum sal, nem gordura e
competência: a Cardiologia brasileira, aos programas de TV que descobri, sessões
principalmente a de São Paulo, avançou de fisioterapia e com a psicóloga e às
muitíssimo e tem feito coisas admiráveis. agradáveis visitas de parentes e amigos,
Certa vez, conversando com Dona sobrevivi. E bem. Em nenhum momento
2006 Maud Pires Arruda - uma das pessoas mais dos que antecederam a cirurgia no hospital
inteligentes que conheci - ela me disse que tive medo. A insegurança veio depois e só
os cardiopatas, de alguma maneira, eram foi vencida aos poucos e espero ficar bom,
abençoados e, portanto, seriam pessoas de fato, para aproveitar a chance que me
melhores que o comumente encontrado foi concedida de viver mais e com mais
e que elas deveriam, por isso mesmo, qualidade de vida.
sentir-se privilegiadas. De qualquer Agradeço aos médicos que me
modo, queria me tranqüilizar, fazendo da assistiram e a todo o pessoal ligado ao
falha, qualidade. Outros me diziam para Hcor que, de alguma forma esteve comigo.
não me preocupar com o problema, pois Aos meus parentes próximos que fizeram a
algumas pessoas chegavam aos 90 anos coisa certa na hora certa. Aos amigos que
até ignorando a cardiopatia de que eram me seguiram mais de perto: do cateterismo
portadoras. Com meu querido ex-colega à cirurgia. Aos que se preocuparam comigo
2007

Dr. José Pedro da Silva, nunca cheguei a e me visitaram ou ligaram para saber de

498
minha saúde. Aos que oraram para que

2005
tudo saísse a contento, sendo que alguns o
fizeram por consideração à minha mãe ou
aos meus irmãos.
Desejo que ninguém venha a precisar
de uma intervenção desse porte, mas caso
a coisa seja necessária, que possa contar CULINÁRIA: PERTURBAÇÕES/RUÍDOS
com tudo aquilo que contei: uma assistência
competentíssima, científica e tecnicamente e Há já algum tempo, escrevendo para
simpática, com forte dose de humanitarismo. este semanário, tive vontade de elaborar um
Agradeço, enfim, aos que, de alguma forma, livro de culinária, não um livro de receitas,
me animaram naquele momento dificílimo. mas um livro que versasse sobre a arte
Muito embora ache que já tenha visto do bem-comer, sobre o prazer em que se
tudo o que o Planeta poderia me oferecer (e tornou essa necessidade, com sugestões
2006
isto eu disse à psicóloga, que se espantou importantes, conselhos e até algumas
de início), sou muito apegado à vida, não receitas, como foi o caso da do quibe, com
bem às coisas materiais que ela possa trazer, cuja redação fui muito feliz. Não sou um
mas ao próprio processo vital, tomando-o grande conhecedor de comidas: considero-
como um dom e como algo que exige uma me apenas um bom cozinheiro, considerando
performance, excelente performance, de aquilo que faço e um apreciador de comidas
preferência. Hoje, além de dinossáurico, sou - algumas - e isto devo principalmente à
biônico (como tenho dito a meus alunos, minha mãe: todos os seus filhos são bons
tendo já retomado a atividade docente na apreciadores de comida (porque há gente
FAAP). Viver pode ser muito bom. Volto, que realmente não a aprecia de fato e toma
assim, a escrever n’O ALFINETE, retomando o as refeições, por exemplo, como um bom
curso normal de minha existência. Auguri! pretexto para mais falar que comer).
2007

(25 de março de 2006) Uma coisa que reparei ao longo desses

499
anos todos foi que os livros de receitas e ser cru ou, de alguma maneira, cozido,

2005
culinária em geral destimam-se, em 99,9%, sendo sempre uma alegria.
às pessoas que não têm problemas de saúde Foi daí que soube de uma minha amiga,
(colesterol alto, diabetes, hipertensão etc), Dulce Horta, que possuía uma mãe, famosa
tampouco com o abastecimento da casa. banqueteira e grande escritora (e esta é a
Também tive a triste constatação de que respeitável opinião de Paulo Miranda): Nina
justamente quando passamos a apreciar os Horta e li um de seus livros: NÃO É SOPA:
alimentos preparados, em sua plenitude, já um livro primoroso, que traz receitas,
é o momento de fechar a boca: Jejua ou mas que é principalmente um livro sobre
morre! Que pena! o bem-comer. Isto não me fez desistir de
Engraçado: como as verduras e meu projeto-de-livro, mas por uns tempos
legumes plebeus (almeirão, acelga, repolho, esfriou o meu ânimo.
chuchu…), com essa história de dietas Somente agora estou a retomar
2006 saudáveis, elevaram-se à categoria de minhas reflexões sobre culinária para
alimentos santos! De minha parte, sempre expressá-las por escrito, já que falar sobre,
apreciei tais alimentos, e outros tantos: eu o faço todo dia e cozinhar, de vez em
é tudo uma questão de saber preparar (e quando, para mim, é puro prazer e até
isto tudo é cultural). Com a idade - que invenção.
só avança - passamos a apreciar coisas Foi daí que retomei um rol de coisas
antes impensáveis. Como eu gosto de uma ruins, em se tratando de comida, que já
refeição com jiló, hoje! E preparado de que havia escrito, mas que havia ficado sem
modo for. publicação. A lista que se segue procura dar
Bem, meu livro iria se chamar CRU OU conta de problemas de espécie vária que
COZIDO, título paródia-citação do clássico envolvem a coisa da alimentação e assuntos
de Lévi-Strauss O CRU E O COZIDO. É claro afins (abarcando anfitriões e convidados) e
que a alusão também era ao quibe, prato que foram colecionados ao longo da vida:
2007

maravilhoso da culinária árabe, que pode são descuidos, acasos, ruídos (perturbações

500
no processo), que podem e devem ser caruncho) em momento errado (para você

2005
evitados: que está comendo e o encontrou). *Uma
*Um espirro sobre a travessa com comida mosca já cozida ou recém-caída na carne de
(se tiver alguma indisposição, espere. Uma panela ou na sopa. Como disfarçar se se é
gripe forte: não faça o serviço. Uma coceira: visita? Em casa e sem estranhos à mesa,
agüente-a, não se coce, até que, na solidão, dá-se um escândalo, mas aí Inês já estará
possa fazê-lo - garçons não devem se coçar morta! *Um fio de cabelo na sopa ou em
etc. Nem você, em sua casa, perante os qualquer outra iguaria. Intolerável! *Uma
començais). *A tagarelice que faz respingar lesma na verdura de folha. *Cartilagem no
saliva, como uma garoa. Isto é visível e recheio da coxinha. *Pedaço de osso no
horrível. Quem fala muito durante uma recheio da torta. *Cheiro de um alimento
refeição, obrigando outros a pôr atenção passado para outro, dada a proximidade
na conversa, não aprecia verdadeiramente (o melhor/pior exemplo: pão impreganado
2006 comida. Parece que o dito cujo quer tirar, do odor de banana nanica). *O mesmo
também, o prazer dos outros. E tira. *Uma condimento forte em vários dos pratos que
pedra no feijão (de quebrar dente, dir-se- compõem uma refeição. *Telefone toca, há
ia). Como não lembrar do poema de João mais pessoas à mesa e você vai atender e se
Cabral de Melo Neto, o “Catar feijão”? Mas, demora. *Gente fumando à mesa, enquanto
poemas à parte, a pedra leva consigo todo e outros comem. Ou, em caso de restaurante,
qualquer contentamento podendo, também, fumando na mesa ao lado e sobrando sempre
quebrar mesmo um dente, além do vexame o pior para você que não fuma. *Gente
por que se passa perante as pessoas que chegando fora de hora e interrompendo a
compartilham da refeição. *Um caruncho no todos com cumprimentos efusivos. *Pimenta
arroz. Daí: escolhê-lo muito bem. O caruncho em excesso na comida, sem aviso prévio.
não chega a ser nojento como uma mosca, *Nervos no quibe cru ou na almôndega.
a ponto de se abandonar o prato, porém, *Sal em excesso, o que obriga as pessoas
2007

incomoda por estar no lugar certo (para ele a se socorrerem na água (assim como no

501
caso da pimenta). *Semente de cítricos na que é passado para os alimentos durante

2005
salada ou no refresco (alguém ainda utiliza o preparo. *Animais circulando pela sala e
esse termo?). *Gente colocando comida em desejando a sua comida. E fazendo outras
seu prato, sem que você tivesse solicitado. coisas indesejáveis! *Assuntos médicos em
*Comida que é servida quente por fora que são descritos procedimentos com toda
e está gelada por dentro, nessa febre dos a riqueza de detalhes. *A comida rançou
congelados. *Qualquer iguaria que não (muito cuidado com algumas carnes - de
tenha sido apurada: da feijoada ao doce de frango e porco, por exemplo - e batata,
abóbora. *Gás que acaba momentos antes preparadas em dia anterior ao da refeição
de estar pronta a comida. *Acabou o azeite! programada). *Alimentos que provocam
Como ficam a salada, a coalhada seca, o reações alérgicas, intoxicação, desarranjo
quibe? *Minou água no bife! *Convite aceito intestinal, vômito, prisão de ventre. *A carne
e não cumprido (deixar pessoas esperando ficou dura e temos visitas em casa para o
2006 indefinidamente). *Chegar a um evento almoço. *Mais convidados que cadeiras.
que não irá mais se realizar. *Notícia corta- *Temperatura inadequada de comidas e
barato que vem provar que há coisas mais bebidas. *Comida que chega à mesa mexida,
urgentes que uma celebração gratuita, desarrumada (nada tenho contra cada um
como uma bela refeição entre familiares e se servir das panelas, no fogão, quando
amigos. *Ser acometido por forte dor de há intimidade entre os participantes do
dente ao dar uma mordida com os molares evento). *Tempo excessivo entre a chegada
em um certo alimento. Ou uma tosse dos convidaos e a refeição propriamente
interminável à mesa. Um engasgo. *Estar dita. *Uma coisa que diz respeito a todos:
na berlinda, alvo dos comentários de toda a deixar aqueles restinhos de tudo o que foi
mesa, quando na verdade o que você quer servido numa desorganização irritante,
é comer, apenas e tão-somente. *Vasilha como se por ali tivesse passado uma galinha
com cheiro/gosto de rato/barata. *Mãos caipira ciscando. Da mesma forma, numa
2007

lavadas com sabonete perfumado, odor cozinha: concluída a feitura dos pratos, tudo

502
deverá estar limpo e não o contrário, como POESIA EM TODOS OS LUGARES: OS

2005
se por ali tivesse sido travada uma batalha. DITOS POPULARES/PROVÉRBIOS
Após o almoço, no momento que antecede
a lavagem dos pratos etc: o material todo A poesia está em toda parte. A
deverá estar sem restos de alimentos e ocorrência da Função Poética, digamos. E daí,
organizado, para que não haja desânimo voltamos a falar do genial lingüista Roman
da parte de quem se responsabilizar pela Jakobson, que apresentou o último e mais
arrumação de cozinha… perfeito modelo comunicacional e de funções
Você, que até agora leu pacientemente da linguagem, modelo este em que a Função
este texto, poderá acrescentar outras das Poética é apresentada como resultante da
coisas desagradáveis de que se lembrar e paradigmatização do sintagma, ou seja, em
evitá-las, sempre que possível. poesia se observa a prevalência da forma, já
Una refeição, para ser boa, não que em tal processo de comunicação verbal
necessita de ambiente luxuoso ou de o pendor se dá para o fator mensagem.
2006
ingredientes de preços proibitivos. Requer Mensagem entendida como a coisa em
ciência e boa vontade de quem cozinha: sua materialidade. A combinação está na
daí, uma abobrinha refogada será um dependência das escolhas vocabulares:
manjar dos deuses. A paz deverá reinar estas é que deterninam o arranjo. Vejamos:
no ambiente, como numa outra celebração “As horas pela alameda/arrastam vestes de
qualquer. Para mim, uma refeição é sempre seda/vestes de seda sonhada/pela alameda
um acontecimento importante: tiro disto o alongada/sob o azular do luar”… (Fernando
maior proveito. Bom apetite! Pessoa). O texto de Jakobson em questão é
(01 de abril de 2006) o “Lingüística e poética”, um dos melhores já
escritos sobre Poética, desde Aristóteles.
Assim como outras funções da
linguagem podem comparecer no poema
2007

- além da função poética - esta não será

503
exclusividade do poema, mas poderá se la nos poemas: de Safo a Bandeira, passando

2005
configurar nos mais diferentes lugares, por Arnaut Daniel e chegando a Augusto de
obedecendo às exigências dos que estão Campos.
envolvidos no processo de comunicação: Poesia em alto estilo encontramos em
de slogans a provérbios, passando pela fala canções populares (território desprezado
cotidiana (o professor para a aluna: UMA pela maior parte dos músicos eruditos, sob
FALTA EM NADA AFETA!). …”a análise do verso a desculpa de que se trata de diluição de
é inteiramente da competência da Poética, e estruturas mais complexas): de Vinícius de
esta pode ser definida como aquela parte da Morais a Dona Ivone Lara, sem falar em Chico
Lingüística que trata a função poética em sua Buarque e Caetano Veloso. Três exemplos, a
relação com as demais funções da linguagem. seguir:
A Poética, no sentido mais lato da palavra, 1. TU PISAVAS (N)OS ASTROS, DISTRAÍDA,
se ocupa da função poética não apenas na de Orestes Barbosa, que Manuel Bandeira
2006 poesia, onde tal função se sobrepõe às outras considerava um dos versos mais belos da
funções da linguagem, mas também fora língua portuguesa.
da poesia, quando alguma outra função se 2. POIS HÁ MENOS PEIXINHOS A NADAR NO
sobreponha à função poética”. MAR
O fato de Jakobson proceder à análise DO QUE OS BEIJINHOS QUE EU DAREI
séria de slogan político fez com que alguns NA SUA BOCA, de Vinicius de Morais e aí
eruditos-incautos, não compreendendo bem já é covardia, tendo sido Vinicius um poeta
a teoria, a ele se referissem com desdém. verdadeiro e assumido (famoso entre os
Acontece que Jakobson não colocou o bem eruditos, com um ouvido extraordinário e
elaborado slogan como poesia pura, mas domínio incomum - mesmo entre poetas - da
apenas e tão-somente como exemplo do tradição, mesmo antes de ficar célebre como
poético fora do território do poema. É parceiro de Antônio Carlos Jobim e ter feito
claro que quem desejar poesia como a alta algumas das mais belas e famosas letras de
2007

manifestação do verbal que é, deverá procurá- composições pré-bossa-nova e bossa-nova).

504
3. NO MEU CÉU A ESTRELA-GUIA SE PERDEU, ou traduções de outros idiomas, os ditos,

2005
de Dona Ivone Lara, texto que deixou Décio provérbios, adágios vão sendo trabalhados
Pignatari maravilhado, o mesmo Décio que por gerações e gerações, até resultarem
havia desconstruído o slogan da coca-cola, em algo lapidar: têm de calar fundo nos
sem introduzir uma única letra diferente, destinatários e fazer com que estes os
criando um anti-anúncio, posteriormente memorizem instantaneamente.
musicado por Gilberto Mendes (Décio viu em Trago, agora, alguns dos ditos que
COCA-COLA a palavra CLOACA!). tenho ouvido ao longo de minha existência
O poético em slogans (BEBA COCA e até repetido como exemplo e/ou como
COLA, em que a tradução literal ficou melhor ameaça. É óbvio que escolhi aqueles em que
que o original em inglês, O MUNDO GIRA a função poética presente venha a ser algo
A LUSITANA RODA: um decassílabo sáfico notório e até notável:
perfeito, com direito a trocadilho e QUEM a. COMER E COÇAR É SÓ COMEÇAR
2006 TEM FALA BEM, com ambigüidade que só b. QUEM PODE PODE, QUEM NÃO PODE SE
favorece o produto, entre outros recursos da SACODE
arte da palavra) e ditos populares: sedução c. QUEM CONTA UM CONTO AUMENTA UM
e memorização rápida é o que explica aí a PONTO
utilização de recursos ditos “poéticos”. d. DEIXA ESTAR JACARÉ, A LAGOA HÁ DE
Os ditos são portadores de alguma SECAR!
sabedoria e, funcionando como armas e. O PORCO ENGORDA COM O OLHO DO
certeiras dos mais velhos - que sempre DONO
aguardam a ocasião propícia para utilizá-las f. FALAR É FÁCIL, O DIFÍCIL É FAZER
- provocam a ira ou a indiferença dos mais g. CASA DE FERREIRO : ESPETO DE PAU
novos, pois, conservadores que são os tais h. REI MORTO : REI POSTO
“ditos”, costumam cortar o barato e mesmo i. FALAR É PRATA : CALAR É OURO
castrar os muito jovens. j. EM BOCA FECHADA NÃO ENTRA
2007

Originais de uma realidade idiomática MOSQUITO

505
l. DEUS AJUDA QUEM CEDO MADRUGA o seguinte o dito: DECAVÊ PRA COMPRÁ /

2005
m. FAÇA O QUE EU DIGO E NÃO FAÇA O QUE DECAGÁ PRA VENDÊ!] Na Internet há sites
EU FAÇO que cuidam do assunto: cheguei a navegar
n. POR FORA BELA VIOLA, POR DENTRO PÃO por eles, porém, a pesquisa para este texto
BOLORENTO já estava feita e com vistas à questão do
o. QUEM TEM PRESSA COME CRU poético. Paremos por aqui, que a dose já é
p. FICA O DITO POR NÃO DITO por demais sufocante. Todos os ditos acima
q. QUEM TUDO QUER NADA TEM citados são lapidares quanto à forma, pois
r. NADA COMO UM DIA APÓS O OUTRO trazem consigo, além de um ritmo que os torna
s. TUDO O QUE VEM FÁCIL VAI FÁCIL agradáveis (são eurrítmicos), trocadilhos
t. FECHE A BOCA E ABRA A BOLSA (paronomásias), aliterações, assonâncias,
u. SE É FÁCIL, FAÇA! rimas. Temos entre os mesmos, versos
[v. Faça o bem e não veja a quem.] tetrassílabos, pentassílabos, heptassílabos,
2006 [w. Quem usa, cuida.] decassílabos, dodecassílabos. Qualquer um
[x. Quem não te conHece é que te deles daria uma bela análise, sendo que alguns
compre!] possuem até variantes menos perfeitas.
A pesquisa seria interminável. Inclusive Como ficou dito, semanticamente, os
há alguns que são interessantes por fazerem ditos/provérbios sempre trazem algo que
uso de vulgaridades, do baixo-calão e até encerra uma certa sabedoria, ao mesmo
de recursos que provocam o riso (MERDA: tempo em que são portadores de algo
QUANTO MAIS MEXE, MAIS FEDE, entre tremendamente conservador. Porém, nem
outros tantos). [Há uma maravilha, cunhada sempre. Você, paciente leitor, deverá estar
por alguém, nos anos de 1960 e que jogava se lembrando de muitos dos ditos ouvidos
com recursos poéticos, emprestando à fatura, ao longo de sua vida. Acrescente-os aos por
ao mesmo tempo, um teor humorístico - dizia mim citados. Afinal, repertório, quanto mais
respeito a um automóvel alemão bonzinho, elevado, melhor será… e SABER NUNCA É
2007

mas de mecânica complicada, o DKW. Era DEMAIS. (08 de abril de 2006)

506
O SIGNO-NOVO E A COMUNICAÇÃO o processo. A incidência poderá ser mínima,

2005
a ponto de os ruídos ficarem imperceptíveis.
Comunicação: o processo acontece, Quanto maior for o controle sobre o processo
mesmo que insatisfatoriamente, sendo de comunicação, menor será a interferência
quase impossível que não haja comunicação, do acaso, que se relaciona intimamente com
em algum grau, de alguma forma, verbal o ruído, determinando-o, via de regra. O
ou não-verbal entre as pessoas envolvidas ruído poderá ser próprio do canal, do meio
(remetente e destinatário). Porém, muita que transmite a mensagem e daí passa a
coisa entra em jogo no tal processo. No nem ser mais encarado enquanto tal.
que diz respeito a remetente e destinatário, Por outro lado, comunicação está
o repertório se apresenta como elemento intimamente ligada à informação. Sem esta,
determinante: tem de haver uma identidade nada se comunica, tem-se a pura redundâcia,
real ou fruto de concessão de uma das tornando o processo dispensável, posto que
2006 partes envolvidas no processo e este estará inútil. Porém, a redundância, no processo, tem
invariavelmente permeado de ruídos. um importante papel: viabiliza o trânsito da
RUÍDO: toda e qualquer perturbação no informação que, se pura, fica simplesmente
processo de comunicação e não se restringe inviável. Se a mensagem é altamente
ao sonoro, mas abrange o visual, o tátil etc. informativa, torna-se difícil, mas sempre
(Em princípio algo negativo e inevitável, o apresentará pontos de redundância, o que
ruído passou a ser visto diferentemente nas permitirá uma aproximação do destinatário
artes do século XX, que passaram a utilizá- disposto a participar efetivamente do
lo como elemento constitutivo estrutural nas processo. Essa mesma mensagem altamente
obras, assim como o acaso - a ele intimamente informativa, inovadora por isto mesmo, terá
ligado - e o silêncio). Não há processo em fatalmente um pequeno auditório (poucos
que não se verifiquem ruídos: em maior ou destinatários e aqui citaria o UM LANCE DA
menor grau. A incidência de ruídos pode DADOS, de Mallarmé ou um filme de Godard,
2007

atingir índices altos, a ponto de inviabilizar como PIERROT LE FOU); se altamente

507
redundante, terá um mais amplo auditório falar em “carência repertorial específica”.

2005
(vejam-se livros como os best sellers, por As grandes obras (de arte) sempre
exemplo). informam e nunca são fruídas por alguém em
E como, no processo de comunicação, definitivo: invariavelmente trarão novidades
o repertório dos envolvidos desempenha um a cada apreciação. Daí que estão sendo
importante papel, podemos dizer que toda sempre revisitadas e elas formam a parte
mensagem poderá informar sempre: pois se mais viva e importante da tradição. Tradição
não informa a uns, informará a outros, porque e ruptura: os artistas mais revolucionários
o que pode ser pura redundância para uns são os que mais têm conhecimento da
não o será para outros de repertório mais tradição e, por conhecê-la, é que podem vir
carente de informações específicas (glosando a subvertê-la, revolucioná-la.
Norbert Wiener, diria que uma pessoa bem No Ocidente, observou-se uma dinâmica
informada é aquela que está em posse de um não vista em outras áreas do Planeta: uma
2006 repertório tal que lhe permita uma excelente rápida evolução de formas, de par com
performance em sociedade, dentro daquilo uma reflexão sobre a linguagem. Desde os
que ela se propõe fazer, é claro). É o caso gregos, observamos tais mudanças: vejam-
do que é viculado na televisão, meio de se esculturas dos períodos Arcaico, Clássico
massa e que traz de tudo, descontentando e Helenístico. Quando se chega ao século XIX
uns e agradando a grande maioria, carente na Europa Centro-Ocidental, então, a partir
de maiores sofisticações. Acontece que a do Romantismo principalmente, as coisas
intelectualidade sempre nivela as coisas por disparam (trata-se de evolução de formas
cima (a não ser quando isso não venha a e não de “progresso”, muito embora as
interessá-la). Por exemplo, numa História da tecnologias novas costumam ser utilizadas
Arte, sempre comparece o melhor produzido pelos artistas que as vêem como um meio
pelos melhores… Ninguém é totalmente sábio, e até descobrem nelas uma linguagem
nem totalmente ignorante: os saberes e as própria). E é claro que tudo isso vai de par
2007

ignorâncias são localizados. Daí eu preferir com toda uma mudança na economia e na

508
sociedade, dada a eclosão e expansão da O signo-novo incomoda (a sociedade

2005
Revolução Industrial. Manifestações dão precisa de tempo para neutralizar a sua
respostas às condições/exigências de época força revolucionária…), cria problemas.
e até chegam a anunciar tempos novos. Às vezes, ao susto inicial, segue-se uma
Cientistas e artistas costumam chegar antes. grande paixão, principalmente quando se
“Os artistas são as antenas da raça”, afirmou é jovem e se está aberto às mensagens
o poeta Ezra Pound. “Os poetas [artistas] com alto teor informativo. Periodicamente
são os designers da linguagem” escreveu o elas - as mensagens - vêm como uma
excepcional criador Décio Pignatari. avalanche e anunciam uma mudança de
O SIGNO-NOVO vem acrescentar paradigma, como foi todo o processo que
coisas à tradição e um dia ele mesmo será se iniciou na segunda metade do século XIX
parte integrante da mesma tradição. Cria e adentrou o século XX. (Poucos viram LES
dificuldades: faz com que os destinatários DEMOISELLES D’AVIGNON, de Pablo Picasso,
2006 torçam o nariz. Provoca reações adversas. obra fundamental de 1907 e se assustaram:
Conquista adeptos. O signo-novo apanha as Braque estranhou e, em seguida, gamou.
pessoas despreparadas para compreendê-lo O primeiro readymade - 1913 - invenção
ou para dele se aproximar. Falta repertório duchampiana, RODA DE BICICLETA, nem
específico ou até geral para uma aproximação foi percebido como obra de arte, tal era a
(veja-se, por exemplo, a crítica de Monteiro dificuldade de compreensão, dado o seu alto
Lobato à exposição Malfatti, de 1917. As teor informativo e é quase certo que foi parar
obras apresentadas traziam um alto teor no lixo e o que se tem hoje são réplicas dele,
informativo para os destinatários paulistanos. autorizadas pelo próprio Duchamp nos anos
Naquele momento, somente Anita Malfatti 60 do século passado). Trata-se da questão
possuía repertório para apreciar sua própria do repertório mobilizado pela mensagem e
exposição, que acabou por apontar o caminho auditório/destinatários. O problema do signo-
da mudança, em se tratando de linguagem: novo, em qualquer área: arte, moda, ciência,
2007

resultou no Movimento Modernista). provoca reações semelhantes. O signo-novo

509
obriga os destinatários a repensar a tradição racionalidade e da ânsia pelo poder, por

2005
e isto dá trabalho, dói. O signo-novo provoca algum poder, em alguma dose. A felicidade é
modificações no comportamento e o processo vocação de alguns poucos, não é para quem
é irreversível, traz desdobramentos, pode quer. Não passa pelo dinheiro, tampouco
provocar mudança substancial. pelo sexo. Há os poucos que, possuindo
As sociedades e as inovações: ao essa vocação, experimentam perenemente
mesmo tempo em que as inovações são o bem-estar-no-mundo. Alguns outros,
essenciais para que as sociedades não se apenas administram bem o desenrolar dos
esclerosem, para que se revigorem, há processos existenciais. A maioria, ou sofre
um grande conservadorismo que grassa as desmesuradamente ou se aliena naquele
mesmas e isto deve ser importante para que sentido, o mais sórdido. De qualquer modo,
elas não percam suas marcas definidoras. A o signo-novo é um sopro de esperança,
irreversibilidade dos processos é coisa de uma ilusão de que as coisas possam mudar
2006 que devemos estar certos: mais ou menos substancialmente para melhor. Que soprem
lentamente as coisas se encaminham para em nossa direção os ventos da novidade!
as mudanças, geralmente muito lentas (as (15 de abril de 2006)
mudanças de paradigma se arrastam por
séculos. Veja-se, por exemplo, a provocada
pela teoria do heliocentrismo que, embora
cogitada pela antigüidade helênica, foi
lançada em meados do século XVI, em
famosa obra de Nicolau Copérnico).
Mesmo que as coisas melhorem em ARTE : UM POUCO
alguns aspectos, menhuma mudança vem
a representar a redenção da Humanidade. A palavra ARTE para nós vem do
Chego a pensar que não há remédio para Latim arte[m] - ars, artis no dicionário -
e nem sempre teve a acepção que hoje é
2007

a nossa espécie: somos escravos da

510
corrente: de um universo que participa da manifestações artísticas: desde a mais

2005
cultura (arte não é natural, mas cultural) primitiva à mais sofisticada: do batuque
corporificando-se por meio das obras-de- primal e pintura corporal à vídeo-arte e web-
arte, que são mensagens especialmente art. A arte é produzida fatalmente: de uma
elaboradas para atender a necessidades de forma cerâmica à decoração pictural ou incisa
nossa psiqué. Tais mensagens (que se nos do mesmo artefato. O que explica essa coisa
apresentam em forma de pinturas corporais a mais que as sociedades praticam/cultivam
ou rupestres, dança, música, poemas etc) é um chamamento íntimo, uma carência
são portadoras de informação estética espiritual.
(e a palavra ESTÉTICA vem de um verbo Alguns procedimentos ditos artísticos
grego que significa “perceber através dos se perpetuam ou evoluem muito lentamente.
sentidos”). No caso do Ocidente, as formas, a partir
Porém, não são apenas as obras-de- dos gregos (que lançaram os fundamentos
2006 arte que trazem informação estética, só da Civilização Ocidental) evoluíram muito
que o que elas trazem roçam o campo do rapidamente. O ESTILO se caracteriza
admirável. A Arte se localiza no território do pela repetição de elementos formais nas
inútil-essencial. Ou seja, não tem utilidade várias manifestações artísticas e acabam
prática, mas alimenta o espírito - por mais sendo marca registrada de etnias, épocas,
gasta que esta metáfora possa estar/parecer. indivíduos-artistas: H. Wölfflin, teórico da
(A palavra grega que mais se aproxima do arte dos mais importantes, justamente é
que entendemos por arte é TÉCHNE, donde quem fala em estilo étnico (o que justifica
vêm as palavras técnica e tecnologia, entre falarmos em arte da África Negra, do Islão,
outras tantas). arte chinesa…); estilo de época (daí nos
Algumas constatações garantem a referirmos à escultura grega do período
importância das manifestações artísticas nas helenístico, arte da Renascença italiana,
sociedades humanas: pintura impressionista etc); estilo pessoal,
2007

.Todas as sociedades registram que define cada artista em particular (é

511
óbvio o que há de particular na pintura de espiritual, é de fundamental importância,

2005
Van Gogh, entre outros tantos artistas de donde podemos concluir que a Arte como
um estilo pessoal bem marcante: Leonardo um todo - corporificada em todas as suas
da Vinci, El Greco, Amedeo Modigliani…). modalidades - é necessária. Vivemos
.ARTE: uma necessidade. Sim, a arte provando a necessidade da Arte.
responde a uma necessidade de caráter .Todos consomem Arte. Ou melhor,
psíquico, espiritual. Quando Roman Jakobson todos a fruem (o verbo é FRUIR; daí temos
apresenta o seu modelo comunicacional com a fruição e nós somos os fruidores). Todos
os fatores da comunicação verbal e cada uma consomem Arte, alguma forma-modalidade
das funções que os mesmos determinam, a de Arte, Arte em algum nível, mesmo que
Função Poética é apresentada como uma obras de um repertório rebaixado (e aqui
dentre as funções da linguagem, mas uma não entra a admirável arte naïf - ingênua).
função que se caracteriza justamente por Acontece que sempre consideramos o que é
2006 chamar a atenção da forma: os signos tendo produzido de melhor. (Chega-se ao melhor
a sua materialidade ressaltada (o pendor pelas vias da comparação. Um artista
se dando para a mensagem ela-mesma - a necessariamente se insere numa dada
coisa em sua materialidade. Arte é FORMA: tradição. Daí que a abordagem de sua obra
sapateiem, gritem, esbravejem - forma é se dará primeiramente em relação à tradição
fundamental na Arte). Como corolário da a que pertence; a seguir, sua obra será
referida teoria jakobsoniana (herdeira do abordada com relação à produção de seus
Formalismo Russo, do qual Jakobson foi contemporâneos e, por último, uma sua obra
um dos representantes) podemos tirar o em particular será cotejada com o restante de
seguinte: todas as funções são importantes, sua própria produção. Somente a partir disto
pois respondem a necessidades específicas é que poderemos tecer um juízo consistente
daqueles que estão envolvidos no processo sobre o artista em questão). Porém, há
de comunicação: daí que a função poética, toda uma produção menor, barateada, que
2007

respondendo a uma necessidade de caráter não interessa às antologias, aos críticos,

512
historiadores, filósofos-estetas, mas que racionalidade para que a obra aconteça

2005
desempenha para os menos informados, (tendo o necessário domínio técnico, fruto
para os de repertório menos sofisticado, o de todo um longo aprendizado).
mesmo papel de atender a necessidades Arte nada tem a ver com
psíquicas. espontaneidade. Inspiração? Intuição? Nada
Consumimos arte mesmo que à revelia, vem do nada (EX NIHILO NIHIL). Se se tem
pois não é necessário que se proceda a uma repertório, as coisas acontecem: ninguém
reflexão sobre o fenômeno artístico para intui do nada; ninguém sonha grandes obras,
fruí-lo. Quantas vezes, nesta paulicéia, não se não consegue fazê-las quando acordado.
topamos com edifícios-verdadeiras-obras- A inspiração, para aqueles que têm talento e
de-arte que até paramos para admirar: o know-how, nada mais é do que o momento
Niemeyer, Paulo Mendes da Rocha, Rui de extema facilidade, em que tudo colabora
Ohtake? Sem grande esforço, passamos a para que a obra aconteça, já se disse. Por
2006 fruir tais obras. E admiramos o que não é outro lado, não há aditivo que faça de um
utilitário na arquitetura, o que faz de um medíocre um grande artista. Quem faz, faz
prédio uma abra-de-arte. Nem todos são de cara-limpa, ou não, mas faria de qualquer
artistas, porém todos podem desenvolver a maneira.
sensibilidade até para apreciar as obras mais A Arte corporifica-se nas obras-de-arte,
difíceis, aquelas de maior complexidade em as quais resultam de um processo dialético
sua elaboração. em que entram em jogo sensibilidade e
Arte não é expressão de sentimento. racionalidade. Toda grande obra requer alto
Arte tem a ver com sensibilidade. As grau de elaboração, todo um pensamento
sensações recolhidas por nós, nesse verbal ou não-verbal: vejam-se quadros de
nosso estar-no-mundo, ainda não são o Alfredo Volpi e fragmentos das GALÁXIAS de
poema (parafraseando Fernando Pessoa): Haroldo de Campos. Espontânea pode ser a
é necessário que esse “material” colhido reação de algém frente a uma obra (“Que
2007

pelo poeta-artista passe pelo crivo da que é isso?!” por exemplo). A obra sempre

513
estará à espera de um intérprete que venha Dinâmico pode ser Emocional (“Que beleza!”,

2005
a lê-la de maneira satisfatória. Os signos - por exemplo, já é um início de leitura);
complexos sígnicos - estão à espera do leitor Energético (o esforço que se faz no sentido de
ideal. se chegar a uma leitura satisfatória) e Lógico,
Há alguns anos, era bacana alguém quando já podemos fazer generalizações
se recusar a dar explicações sobre o próprio (“Trata-se de uma obra do universo do
trabalho artístico, dizendo: “A obra fala por Barroco”, por exemplo). Caso a Semiose se
si!” E há quem continue a dizer a mesma esgotasse, teríamos o Interpretante Final,
coisa. Acontece que a obra não fala por que equivaleria à verdade; porém seu lugar
si. A obra fala para um certo repertório. O será sempre o futuro. Daí não termos a
signo desperta coisas na mente de alguém possibilidade de esgotar a leitura de uma
(o destinatário, o leitor, o decodificador, o obra. Sempre sobrará algo para outros
intérprete), que poderá apenas pensar ou se leitores. Por isto é que as obras nunca são
2006 expressar em palavras - oralmente ou por lidas em definitivo: toda leitura, por melhor
escrito. que seja, será sempre incompleta, mesmo
Na teoria peirceana do signo, fala-se, que temporariamente satisfatória.
não propriamente de Significado, mas de As grandes obras são impregnadas
Interpretante. O Interpretante peirceano de eternidade. Certas obras estão sempre a
é parte integrante do signo e se divide em despertar interesse de sucessivas gerações
três: Interpretante Imediato, que é tudo de apreciadores. Há um halo de juventude
aquilo que o signo puder vir a despertar na que perpassa tais obras e é isto que faz com
mente do intérprete, é a interpretabilidade que nos interessemos por elas, em qualquer
do signo. O Interpretante Dinâmico: é época. ARTE.
o desdobrar do signo naquilo que ele (22 de abril de 2006)

apresenta de interpretabilidade para alguém


que, portanto, desencadeia o processo da
2007

Semiose (ação do signo); o Interpretante

514
MAIS QUE O MELHOR : O (só que as coisas que envolvem os sentidos

2005
EXTRAORDINÁRIO I do tato, paladar e olfato ficam num plano
secundário. Privilegiados são os sentidos
Já foi dito nesta coluna, a propósito da visão e audição, os quais propiciam
das obras-de-arte, que a única maneira de verdadeiros códigos, possuindo até verbos
separarmos o joio do trigo é comparando: bem especializados, não se limitando ao
somente por meio da comparação é que verbo SENTIR, pura e simplesmente. Dos
poderemos dizer se uma obra é superior cinco sentidos - e deve haver um sexto! -
à outra (e aqui estaremos falando em a visão é o mais considerado, já que cerca
qualidade) e o porquê. Ezra Pound bateu nesta de 70% do que percebemos, percebemos
tecla em textos como o do ABC OF READING através da visão. Porém, mesmo nos outros
(traduzido como ABC DA LITERATURA), dos campos, comparamos: “isto é mais gostoso
anos 30 do século passado. O que resiste que aquilo”, “… possui uma fragrância melhor
2006 a comparações? Em última instância, o que que …”, “… é mais macio que…”).
resiste é o que interessa para o patrimônio Falando em comparação, não à toa
cultural, o qual não chega a excluir o que Safo, poeta grega do Período Arcaico, a
é considerado menor. E isto é bom, porque personificação da Lírica, era tida como uma
todo juízo está sujeito a erros dadas as semi-deusa por aqueles que de fato sacavam
conjunturas e as idiosincrasias: o “menor” de Poesia: de Alceu e Platão a Catulo,
até poderá ser o “maior” no futuro. entre outros (quase nada sobrou de sua
Tenho a impressão de que, em obra, em parte deliberadamente destruída.
qualquer tempo, salvo o critério ideológico Fragmentos. Um poema na íntegra: o
(por sinal, o pior e quase sempre odioso), célebre ODE A AFRODITE. No mais, cacos…
as pessoas sempre compararam: da preciosos cacos. Pound chegou a dizer que
culinária à arte da poesia, comparamos e havia sobrado tão pouco do que ela havia
selecionamos. Aprendemos a discernir, que feito, que tanto fazia lê-la como não lê-la,
2007

é no que se constitui o exercício da crítica mas que, lendo, a pessoa veria que não

515
haveria nada melhor…! que a tal ODE, por Há até quem diga ser Matisse e

2005
exemplo). não Picasso o maior pintor do século XX,
Certos artistas são tão grandes, embora a única obra insubstituível para a
que acabam apequenando outros, que compreensão da pintura moderna seja o
não deixam de ter as suas qualidades. LES DEMOISELLES D’AVIGNON, do pintor
O primeiro exemplo que me ocorre é do de Málaga. Picasso foi também um gigante,
universo “fauve” (o Fauvismo se constituiu mas dá para compreender o pensamento de
na versão francesa do Expressionismo e o Wendy Beckett , autora de uma interessante
nome foi dado pejorativamente à tendência. HISTÓRIA DA PINTURA: grande pintor,
“Fauve”, em francês= fera, já que as cores Picasso fui fundamentalmente um gráfico,
eram utilizadas puras pelos pintores, nuas com incursões importantes em outros
e cruas, sem meios-tons) que, advindo universos. Picasso, no desenho-pintura,
principalmente da obra de Paul Gauguin, é o inventor, por excelência, e provocou
2006 contou com ótimos pintores, só que a mais desdobramentos na Arte, que Matisse.
presença de Henri Matisse foi tão grandiosa, Até dentro do Cubismo o seu gigantismo
que acabou amesquinhando a produção dos apequena os demais, mesmo Georges
outros. Braque, co-criador da tendência do começo do
Todo mundo ficou secundário perto de século XX, que foi realmente revolucionária.
Matisse, um dos maiores pintores de todos Basta falar em quebra do paradigma da
os tempos, verdadeiramente um colorista. representação pictórica provocada pelo
Matisse era o pintor que fazia Picasso Cubismo, na colagem e na assemblage.
repensar os próprios trabalhos, era o pintor Acontece que, numa mais ou menos
de quem Picasso tinha uma certa inveja, por recente pesquisa feita em Londres (uma
quem nutria a maior das admirações: era aluna da FAAP me trouxe a informação que
a sua máxima referência contemporânea. obteve na Internet) sobre as obras mais
Admiração velada, já que o espanhol nunca lembradas do 1º tempo modernista, a que
2007

se conteve em sua vaidade extrema. apareceu em primeiro lugar foi a FONTE (de

516
1917: um urinol masculino fabricado em fato, pense a Arte e sua influência adentra

2005
série, o mais famoso readymade) de Marcel o século XXI.
Duchamp! É claro que Picasso apareceu No Brasil, Machado de Assis foi um
como autor de duas dentre os cinco primeiras desses valores extaordinários na arte da
obras apontadas. narrativa ficcional. Ao lado de sua obra,
(continua na próxima edição) qualquer contemporâneo fica menor, mesmo
(29 de abril de 2006) sendo muito bom, porque Machado - como até
outro dia falavam nossos pais escolarizados
e habituados às expressões francesas - era
“hors-concours”. Alguns de seus contos
assombram os que apreciam a arte do narrar
e cinco de seus romances ultrapassam o
MAIS QUE O MELHOR : O limite da excelência e adentram o campo das
2006 EXTRAORDINÁRIO II excepcionalidades, sendo contribuições para
(continuação) a Humanidade. O terráqueo Machado de
E por falar em Duchamp, o Marcel Assis seria um grande escritor em qualquer
de que já tratei neste espaço há alguns literatura: é um valor mundial.
anos, sua contribuição foi tão grande Na guerra - mais para nós que para
para a Arte do século XX, que seus dois os de fora - que se trava pela primazia na
irmãos mais velhos, excelentes artistas - aviação, o nosso Santos-Dumont desponta
Jacques Villon e Raymond Duchamp-Villon como um gênio. O baixinho (le petit Santos)
- ficaram sendo apenas irmãos do autor do foi um grande inventor e tendo sido, de fato,
GRANDE VIDRO, ou se situaram na rabeira o primeiro a fazer o-mais-pesado-que-o-
do movimento cubista. Duchamp fica como ar levantar vôo com seus próprios meios.
uma excepcional singuladade - muito Santos-Dumont foi um grande designer,
embora dada - na Arte do século XX: está como já notou Décio Pignatari: o 14 Bis,
2007

por detrás de toda obra de artista que, de o Demoiselle (precursor dos ultra-leves):

517
taquara e seda japonesa impermeabilizada! as presenças artísticas e teóricas dos irmãos

2005
Neste 2006, 100 anos do vôo público do Campos e de Décio Pignatari. No Rio ele
14 Bis, documentado pelo cinema. Santos- comandaria, como comandou, até que se
Dumont: extraordinário fazedor. desinteressou da Arte Construtiva. Era
Concretismo: o primeiro movimento uma questão de política das artes. Gullar
internacional de poesia (já existiam os em seus caminhos e descaminhos, vê cada
Concretismos nas Artes Plásticas e na vez menos importante a sua contribuição
Música) co-inventado por brasileiros. para a poesia brasileira, mas não perde
Nunca tivemos um grupo de valores tão a pose, a arrogância e o ódio que nutre,
excepcionais no Brasil: dos iniciais Augusto principalmente por Augusto de Campos, poeta
e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, incomparavelmente melhor que ele. Dos
juntaram-se Ronaldo Azeredo e José Lino últimos livros de Gullar, não li um poema que
Grünewald e mais Edgard Braga e Pedro fosse bom por inteiro. A sua tão aguardada
2006 Xisto de Carvalho. Produziram uma obra publicação do poema FORMIGUEIRO, da
genial, que acabou por apequenar obras fase concretista (neste ano se comemoram
até boas de contemporâneos. A excelência os 50 anos da 1ª Exposição Nacional de Arte
do grupo de paulistas (que comportou Concreta) revelou uma peça fraca, mesmo
outras procedências) feriu suscetibilidades para a época em que foi concebida (ele fez
e provocou rompimento, já nos anos 50: a modificacões para a tal edição). Concretistas:
do Neo-Concretismo, liderado pelo poeta e extraordinários poetas, inventores.
crítico Ferreira Gullar, maranhense radicado Outro excepcional valor brasileiro -
no Rio de Janeiro. ítalo-brasileiro, melhor dizendo - foi Alfredo
Para mim, mais do que preocupações Volpi, de quem se comemoram os 110 anos
formais (os “paulistas” eram acusados de de nascimento (Lucca, Itália, 1896). O MAM-
extremo racionalismo, cerebralismo frio etc. SP apresenta dele uma bela retrospectiva (já
Tenho para mim que Ferreira Gullar, com vi melhor, no próprio MAM) com curadoria
2007

toda sua desmedida vaidade, não agüentaria de Olívio Tavares de Araújo. Obras que ainda

518
não haviam sido mostradas surpreenderam. quando me disponho a tal - a um grande

2005
Quanta inteligência artística! De qualquer filme e raramente deparo com um que seja
modo, o conjunto é maravilhoso e esta é excelente.
uma bela chance para se ter uma idéia da Embora saiba que foi e é diversão de
grandeza da obra do pintor do Cambuci. massa, considero cimema fundamentalmente
Geralmente, só o tempo revela os uma arte e, como tal, deve dele ser exigido
valores maiores. Via de regra, os que mais muito. O que, via de regra, encontro são
freqüentam as mídias são os que fatalmente filmes medíocres, mesmo que as produções
serão relegados ao esquecimento. “O futuro tenham custado milhões de dólares. Impera
lhe (s) fará justiça!”, diria, com toda a sutil o déjà vu com uma roupagem arrojada,
ambigüidade, a pitonisa. O importante não como têm permitido as novas tecnologias.
é ser badalado ou vendido. Construir uma Porém, nada de novo, de surpreendente
obra com consciência de linguagem é o enquanto cinematografia.
2006 caminho, porém, poucos chegarão ao nível De qualquer modo, os novos recursos
do extraordinário. Pouquíssimos. de pós-produção indicam que coisas ótimas
(06 de maio de 2006) serão feitas e até já o foram e estão sendo.
Farto de coisas meramente comerciais e
de muito bom nível técnico, esbravejo.
Hollywood é que o diga, com sua anual festa
mega-kitsch de premiação que é a entrega
do Oscar.
Como tudo, de resto, filmes também
CINEMA, DE VEZ EM QUANDO se comparam, donde podemos saber o que
é melhor que o que e os porquês. Há filmes
Uma das grandes decepções que muito ruins. Há bons filmes. Há excelentes
tenho experimentado ultimamente diz filmes e isto quer dizer que quem fala é a
2007

respeito ao cinema: quase-nunca assisto - câmera. Há os filmes extraordinários: estes

519
são de fato os grandes filmes, os que primas. E isto eu digo para alunos de Rádio

2005
marcaram a história do cinema e que serão e TV e Cinema, sendo que alguns ficam
sempre vistos com interesse e aqui citaria o horrorizados. Porém, meu pensamento é
CIDADÃO KANE, dirigido por Orson Welles. este mesmo: não considero - apesar de
Há os filmes excepcionais por pouco, já apreciá-las - essas obras, tão primas assim.
que, excluindo-se-lhes algumas seqüências Idiosincrasias? Possivelmente.
seriam apenas filmes medianos e aqui E eu, que me considero essencialmente
entrariam películas, do ENCOURAÇADO um formalista, vejo-me, às vezes, analisando
POTIÔNKIN (1925) ao CASABLANCA (1942). conteúdos de obras. É que a coisa é tratada
A seqüência do massacre em escadaria de de tal forma, que acabo enveredando-me
Odessa, do ENCOURAÇADO, é uma das mais por essas paragens. Vi alguns filmes nessas
belas obras de arte de todos os tempos, últimas semanas e teço, a partir deles,
assim como a seqüência final, a do aeroporto, alguns brevíssimos comentários:
2006 de CASABLANCA, com aquele confronto de O SEGREDO DE BROKEBACK
perfis enchapelados. MOUNTAIN (BROKEBACK MOUNTAIN. EUA.
Como já coloquei neste mesmo 2005). Direção de Ang Lee. Drama. Fez uma
espaço, não existe o melhor filme de todos tempestade em copo d’água. Trata-se de
os tempos: o que há são cem grandes filmes, uma história bem contada, porém, não era
se tanto, essenciais para se compreender a necessário um chinês para se terem imagens
chamada sétima arte, por sinal, tão jovem apenas boas, como as que o filme apresenta
- há apenas cento e dez anos era realizada (o diretor já fez coisas mais belas). Filme
a primeira sessão de cinema em Paris, pelos de uma tristeza absoluta, a qual transforma
irmãos Lumière. o tema polêmico em quase-nada. Aborda
Bem, de alguns filmes eu tiraria a homossexualidade masculina em meio
pedaços: faria corte de meia-hora em obras a comportamento heterossexual, como
como 2001: UMA ODISSÉIA NO ESPAÇO e foi o caso do também tristíssimo LONGE
2007

KAGUEMUSHA, considerados como obras- DO PARAÍSO: filmes bem realizados. Do

520
SEGREDO, o que mais me intrigou foram como seria de se esperar. O filme possui

2005
as ovelhas arrebanhadas, conformadas grandes qualidades formais. A narrativa-
com sua condição de ovelhas, escravas dos cinema é boa apenas. Citações são muitas:
humanos; nisto, uma ovelha desgarrada é o autor-diretor é muito sofisticado. O filme
trucidada por lobos. Daí, impossível não re- é tributário de Hitchcock e Antonioni. Seria
cair na questão da metáfora do rebanho e um filme medíocre (apenas bom) não fora
da ovelha desgarrada. Então, o filme ganha o desfecho surpreendente. Diferentemente
em profundidade quando se se compara a do personagem poeano de THE IMP OF
“vida real” dos personagens-homens com o PERVERSE, que comete o crime perfeito,
tratamento metafórico dado às ovelhas do mas que, não se contendo na vaidade que
rebanho. Na sala de projeção você entra o fato lhe trazia, se auto-denuncia e é
de pé, andando, e sai rastejando com os trancafiado numa cela, o personagem de W.
cotovelos… Allen comete um crime todo cheio de falhas
2006 ESTRELA SOLITÁRIA (DON’T COME que apontavam para ele enquanto criminoso,
NOCKING. EUA-Alemanha. 2005). Direção mas é salvo pelo acaso em meio ao medo,
de Wim Wenders. Drama. Com Sam Shepard, porém sem problemas com sua consciência,
co-autor do argumento. Não é um grande, e fica sem punição. Cometeria outros crimes
mas excelente filme, o que reitera a grandeza no futuro?
do diretor, óbvio e confesso discípulo de Bem, em outra oportunidade
Michelangelo Antonioni. Se o leitor quiser comentarei outros filmes. Hoje irei ver
saber o que é um FILME, ou seja, do que se CACHÉ. O que me espera não sei. Chi lo
trata a narrativa cinematográfica (se é que saprà?
já não sabe), vá ser o ESTRELA SOLITÁRIA. (13 de maio de 2006)

PONTO FINAL - MATCH POINT (MATCH


POINT . EUA. 2005). Direção de Woody Allen.
Suspense. WA, neste filme, comparece como
2007

autor da história e diretor, não como ator,

521
SÉRGIO BUARQUE, O PAI DO CHICO entre os historiadores - historiador que foi

2005
- e intelectuais em geral e entre artistas das
Para as pessoas em geral, o nome palavras, traços e cores. Sérgio Buarque,
Buarque de Holanda estourou no País paulista, bem mocinho em 1922, tinha
a partir do momento em que o menino pretensões literárias e foi representante de
Francisco, Chico, como ficou conhecido, KLAXON - nossa primeira revista modernista
começou a aparecer com insistência nas - no Rio de Janeiro. Tendo sido crítico literário,
mídias - televisual e radiofônica - graças ao Sérgio Buarque demonstrou sabedoria
seu talento, por sinal extraordinário para o e sensibilidade: possuía um repertório
universo da música popular, a ponto de ser invejável (grande cultura geral, como se diz
chamado de um novo Noel, o Rosa, o de Vila comumente).
Isabel. Lembro-me de ter lido, numa reunião
Porém, excluindo-se a parte do talento, de crônicas de Manuel Bandeira, uma
2006 Chico nada tinha a ver com Noel, já que era peça muito elogiosa intitulada “Sérgio,
bastante bonito e sem a vocação para a anticafajeste”, a qual me fez admirar ainda
infelicidade, que era o caso do outro, que mais o autor de RAÍZES DO BRASIL, um
veio a falecer muito jovem. Chico, apesar de dos livros mais importantes dos anos 30 do
usos e abusos chega inteiro à maturidada, século passado para se entender esta Terra
sexagenário, já entrado nos anos e, o que de Santa Cruz. Tendo conhecido todo mundo,
está se tornando comum entre os da música de poetas a músicos, os quais freqüentavam
popular, com a carreira continuada e o sua casa, Sérgio Buarque acabou por fornecer
prestígio em dia e coroado pelas benesses as condições básicas para que o seu filho
propiciadas pelo prêmio em pecúnia de uma Chico chegasse a ser o fino poeta da música
carreira de muito sucesso. popular que é, o que me deixa inclinado a
Bem, mas a questão aqui é com o pai, concluir que mais do que Sérgio ser o pai do
o Sérgio, Sérgio Buarque de Holanda (1902- Chico, este é que é o “filho do Dr. Sérgio”.
2007

1982), muito conhecido e figura de prestígio Engraçado é que, com Chico já famoso

522
- e isto se deu muito rapidamente - o pai, do escrito: é que eu não tive tempo”. Ou

2005
que há tempos já era celebridade, quando seja, a síntese exige muita dedicação.
chegava aos lugares, ia dizendo logo de cara, Foi professor na Faculdade de História
antes que alguém perguntasse: “Sim, sou o da USP, tendo desbancado ninguém menos
pai do Chico”. Ou seja, a partir de um certo que Caio Prado Júnior! Porém, não cheguei a
momento, para todos os efeitos, o nome ter aulas com ele, que havia sido aposentado
Buarque de Holanda remetia imediatamente pouco antes de eu começar o curso, que
ao compositor da MPB, o bonitinho-de-olhos- coincidiu com a pior época da ditadura
verdes-amado-pelas-meninas-e-admirado- militar, a do governo Médici. Cheguei a vê-lo
pelos-rapazes, ganhador de festivais e na USP uma única vez [em verdade, duas –
depois vítima de censura, que até chegou a também, num congresso de História do Brasil,
se exilar na Itália. que teve lugar no anfiteatro da Geografia],
Chico é um carioca de pai paulista e foi ocasião em que estava acompanhado de
2006 criado em São Paulo. Certa vez, ouvi Caetano uma senhora e uma criança, penso que
Veloso dizer que achava estranho São Paulo sua esposa e netinha. Depois - incrível! -
não reivindicar o Chico para si. Acontece que no ano de 1972, em que se comemorava
o cosmopolitismo paulista-paulistano não o sesquicentenário da Independência do
faz questão disto: Chico despontou em São Brasil, viajou comigo, sentado ao meu lado,
Paulo, era a época dos festivais (anos 60) e, sozinho em duas poltronas, de Expresso de
cidadão brasileiro, era-o também do mundo: Prata, com destino a Bauru, onde daria uma
amado ele sempre foi, em São Paulo e em conferência na Faculdade das freiras, a do
todo o Brasil. Sagrado Coração, falou-me. Reconheci-o.
Sérgio Buarque de Holanda foi um Estando eu, coincidentemente, com a
intelectual brilhante. Ouvi de um meu edição facsimilar dos números de KLAXON,
professor da História USP que, quando era ele a viu e pediu para examinar: “Ah, então
solicitado para escrever algo e trazia texto saiu?!” disse. Não tive coragem de puxar
2007

longo, dizia: “Desculpem-me pela extensão conversa, mas depois, arrependi-me de não

523
tê-lo feito. Afinal, eu o admirava muitíssimo DEGAS NO MASP

2005
e conhecia parte de sua obra. Devolveu-me
o exemplar da referida edição e, na descida Foi impossível, ao adentrar o recinto
em Bauru, despedimo-nos, fazendo apenas da exposição Degas no MASP, não me
um sinal com a cabeça. lembrar de Dona Maud Pires Arruda,
Soube que ele se hospedou no Hotel professora que teve uma enorme influência
Colonial e que a conferência saiu ótima na educação de meu olhar: em suas aulas
e a invariável pergunta nem chegou a ser pude ter uma amostragem, através de
feita porque ele já foi dizendo que era o pai reproduções, de parte do que de melhor a
do Chico, contaram-me. Sérgio Buarque Humanidade havia feito em termos de Arte
continua a ser o importante intérprete do e tudo vinha acompanhado de comentários
Brasil, já que cidadão-do-mundo e, para mim, inteligentes e sensíveis e de fatos curiosos
ele é ele: o Dr. Sérgio Buarque de Holanda: ligados a artistas e épocas. A tônica era
um expecional brasileiro. E, ironicamente, dada principalmente às Artes Plásticas,
2006
seu acervo de livros e documentos foi parar mas eram também objeto de apreciação a
na UNICAMP e não no IEB-USP, do qual foi música e o teatro.
fundador. Tenho vontade de passar pela Edgar Degas (1834-1917) foi uma
Rua Buri, no Pacaembu, onde havia fixado das glórias artísticas da França no século
domicílio. Sérgio Buarque de Holanda é uma XIX, época em que, incomparavelmente,
das caras de São Paulo. Graças a Deus! o país deu ao mundo uma contribuição
(20 de maio de 2006) substantiva nos mais diferentes campos:
artístico e científico-tecnológico: Fotografia
(uma das paixões de Degas, que absorveu
suas lições), Romantismo pictórico, Realismo
pictórico e literário, Simbolismo na poesia,
Impressionismo (que se constituiu numa
2007

explosão de talentos e beleza), Pós e Neo-

524
Impressionismo, a música de Debussy, a bidimensionais são ótimos (um óleo e duas

2005
Cinematografia…! pinturas a pastel) e nada teria mais a dizer
Bem, a exposição “Degas: o universo de sua coleção completa - 73 peças - de
de um artista” alegra e decepciona. esculturas do mestre: excepcional! Degas
Decepciona porque nos dois estágios do foi desenhista e pintor, dos mais geniais de
subsolo do MASP, a atenção se dispersa com todos os tempos; sendo contemporâneo dos
o tal universo que quer dizer, mais do que o impressionistas tem muito a ver com eles:
que o artista produziu, o que ele admirou o Impressionismo é uma forma de Realismo
e que fez parte do seu repertório e obras (semioticamente falando: o objeto dinâmico
dos contemporâneos, assim como coisas de um signo realista é passível de ser
posteriores que a ele aludem, como uma verdadeiro e é fundamentalmente isto que faz
série de gravuras de Pablo Picasso. Também de uma obra realista, REALISTA). Foi também
há que se considerar a má qualidade de escultor (melhor dizendo: modelador) e
2006 obras que vieram de fora: em 90% refugos daí brotou o conjunto tridimensional de
de museus: há raros trabalhos cedidos por suma importância, do nível de um Rodin.
empréstimo que mereceriam ser mostrados. Sua BAILARINA DE CATORZE anos é uma
É claro que todo grande artista possui coisas verdadeira obra-prima: um pleno-relevo
menos boas e até bastante ruins, o que não verdeiro, sem ângulo privilegiado de visão,
chega a ser grave, já que o artista é avaliado pois todos o são: a obra é bela de qualquer
pelo melhor de sua produção, porém… E isto ângulo que se a observe, rodeando-a em
já acontecera no mesmo museu, quando das seus 360 graus; eu a colocaria entre as 50
exposições Michelangelo e Monet, o que caiu melhores esculturas de todos os tempos.
como uma espécie de propaganda enganosa: Portanto, a exposição vale pelo que nela
tanto se alardeou para quase nada. podemos ver do acervo da instituição que a
O que alegrou, por outro lado, foi abriga.
a constatação, reiterada, da excelência Que bom São Paulo e o Brasil poderem
2007

do acervo do MASP: os seus três Degas contar com obras de tão alta qualidade.

525
Quanto faro na aquisição das obras! O lembranças de meus primeiros contatos com

2005
MASP de fato é um pequeno grande museu a Poesia Concreta e a coisa chega em ondas
que infelizmente atravessa uma crise que, aqui, tento ordenar mais ou menos
interminável. Que possa voltar a ter aquela cronologicamente.
dinâmica da época em que Bardi ditava as Foi ainda nos anos sessenta do
regras, assessorado por sua mulher Lina Bo, século que acabou de passar, lá por 68 que
a arquiteta. Para o meu repertório calejado, a primeiramente tomei conhecimento da Poesia
mostra não acrescentou nada de substancial, Concreta, numa aula especial de Português
porém, para os que não conhecem Degas em que, um professor convidado - docente
“ao vivo” valerá a pena uma ida até o em Marília, Faculdade de Letras - professor
MASP. Afinal, o acervo do próprio museu Ataliba Teixeira, num certo momento de sua
poderá trazer informação suficiente para a preleção sobre Língua Portuguesa falou em
iniciação nas artes e manhas de um artista poesia formalmente avançada e mostrou
2006 fundamental, amigo de Mallarmé. Degas! o poema ORGANISMO (1960), de Décio
(27 de maio de 2006) Pignatari. A peça era encarte da revista
INVENÇÃO 5 (embora já tivesse sido publicada
autonomamente). Aquilo me impressionou,
bem porque, logo após, a professora insistiu
em mostrar o cine-livro-poema e tentar
uma análise, ainda que breve. A professora
Chainy João Racy, mostrou, comentou,
MEUS PRIMEIROS CONTATOS COM O tornou a mostrar: a página ORGASM foi a que
CONCRETISMO I causou maior espanto na platéia de alunos
curiosíssimos, do então IEDAP, em Pirajuí.
Neste ano em que se comemora Pela mesma época, pude ver, nas mãos de
o cinqüentenário da Exposição Nacional Antônio Eduardo Pinatti, o primeiro livro
2007

de Arte Concreta, vêm-me à cabeça de poemas de Luiz Antônio de Figueiredo,

526
trazido por seu irmão Carlos, que estudava quem poderia falar sobre isto é a Professora

2005
na mencionada escola de nossa cidade: Maud Pires Arruda.
os textos eram de um verbo contido, já Porém, meu grande interesse pela
contendo maquinações gráficas e reflexões Poesia Concreta e por toda a atividade que
sobre o poema e vinham acompanhados de seus integrantes vinham desenvolvendo
desenhos abstratos-geométicos (estrutura em termos da própria poesia, da teoria
de triângulos que, num crescendo, e crítica e da tradução de textos poéticos
ganhavam uma bela dinâmica), idéia de só passou a acontecer sistematicamente a
Amauri Machado da Silva. Luiz Antônio, partir de 1973-74, depois da leitura, de forte
estudante de Letras em Marília, havia tido impacto, do livro Contracomunicação, de
contato com Décio Pignatari, que lá lecionou Décio Pignatari (livro que adquiri em 1971, o
por algum tempo e desenhou a capa do mesmo ano de sua primeira publicação). Do
livro POEMÉTICA. Na época, eu não possuía espanto à paixão pela poesia experimental
2006 repertório para apreciar devidamente a obra foi um passo.
que, de qualquer modo, me impressionou. (continua no próximo número)
Anos depois, foi-me oferecido um exemplar, (03 de junho de 2006)
o qual conservo até hoje.
O poema-livro ORGANISMO, de Décio
Pignatari, ficou em minha cabeça como
uma fotografia. Isto me fez lembrar uma
estranha apresentação no salão-nobre da
mesma instituição de ensino, de música e
dança concretas (foi o que gente de fora, em MEUS PRIMEIROS CONTATOS COM O
visita à escola, anunciou), para o espanto CONCRETISMO II
de uma platéia praticamente desinformada (continuação)
do quanto caminhara a arte no século XX Em fins do ano de 1973 (se não me
2007

(estávamos em inícios dos anos 60?). E falha a memória), a convite de Aracy Abreu

527
Amaral (com quem eu pretendia fazer Pós- muito influenciado pelo Concretismo, publiquei

2005
Graduação, como seu orientando), pude precariamente pela Nomuque Edições meu
assistir a uma discussão sobre Arte Concreta primeiro livro: JOGOS E FAZIMENTOS,
por ela promovida na ECA-USP em que, que me possibilitou a aproximação com
além da professora-historiadora-crítica da os irmãos Figueiredo, de Presidente Alves,
Arte e seus alunos de Graduação (penso), rapazes altamente informados em assuntos
estiveram presentes Décio Pignatari, Lothar de vanguardas e outros e com os poetas-
Charoux, Hermelindo Fiaminghi e Willy ídolos: Augusto de Campos, Décio Pignatari,
Correia de Oliveira e outros: duas figuras, Haroldo de Campos, Edgard Braga, Ronaldo
porém, me impressionaram: Décio Pignatari Azeredo e, depois, ainda outros.
(que já conhecera da TV, fins dos anos 60, A Poesia Concreta foi uma grande
defendendo brilhantemente um “mudo” descoberta para mim, que passei a me
Rogério Duprat, num estranho e abominável dedicar à apreciação-estudo da obra
2006 programa chamado “Quem tem medo concretista e, na medida do possível, tornei-
da verdade?”, dirigido por Carlos Manga) me um colecionador de livros, poemas em
por sua clareza e contundência quando edições autônomas e revistas (até 1975,
explicava-argumentava e o artista plástico era praticamente impossível encontrar
Lothar Charoux, pela extrema simplicidade em nossas livrarias obras que trouxessem
enquanto pessoa e pela grandeza daquilo poemas concretos. Em seguida é que vieram
que mostrou tão humildemente. a público obras de Haroldo de Campos, Décio
Ainda na primeira metade dos anos Pignatari e Augusto de Campos: volumes
70, Faculdade de História da USP, meu com poesia completa ou quase).
colega Mário Luís Lima Curvello me mostrou Interessante é que, nos anos 60,
e comentou positivamente o PANAROMA em Pirajuí e em muitos outros lugares, a
DO FINNEGANS WAKE: Joyce e os Irmãos poesia de vanguarda chegava diluída em
Campos: estranhei mas aquilo me marcou. obras como a de Cassiano Ricardo (1895-
2007

Depois, em 1974 e já de volta a Pirajuí, 1974), muito curtida por todos da turma:

528
JEREMIAS SEM CHORAR (1963) que, de Howard) não é um bom filme, tampouco

2005
qualquer maneira, possuía algum mérito. O médio: é um filme ruim, mal realizado. Devo,
verdadeiro encontro com o Concretismo, que de antemão, dizer que não li o livro no qual
se mantinha vanguarda, embora a milhas é baseado, de Dan Brown, um best seller -
de distância do que tinha sido praticado nos e aqui me vem à cabeça uma afirmação do
anos 50, na dita fase “ortodoxa”, veio nos mestre Décio Pignatari ao telefone: - Omar,
anos 70, como coloquei acima. Mas esta já best seller não é literatura! Eu já sabia, mas
é uma outra história, que ficará para outra impressionou-me a veemência com que ele
ocasião. Das revistas do Concretismo (já o disse. Pois se literatura exige engenho e
por mim abordadas neste mesmo espaço), arte, empenho e alguma originalidade, isso
comecei por INVENÇÃO 5 para chegar a caberá a livros como os cinco romances
NOIGANDRES 1: em busca das raízes de maduros de Machado de Assis, ao MIRAMAR
uma poética radical. A do Concretismo. de Oswald de Andrade, ao GRANDE SERTÃO:
(10 de junho de 2006) VEREDAS, de Guimarães Rosa, só para não
2006
sair do Brasil. Isso tudo não quer dizer
que seja proibida a leitura de coisas bem
menores: podemos, de vez em quando, ler
coisas digestivas: leitura de sala-de-espera
ou coisa que o valha. A leitura do sofrível
nos faz ver como o bom é de fato bom e o
porquê de sê-lo. Nem é proibido gostar de
TANTO BARULHO POR TÃO POUCO: coisas ruins, porém, não são autores de best
COMENTÁRIOS A PROPÓSITO DE UM sellers que fazem a grandeza de literaturas e
FILME exceções são exceções e muito raras.
Como um filme é um filme e não um
O CÓDIGO DA VINCI (THE DA VINCI livro, podemos tomar o filme como uma obra
2007

CODE. EUA. 2006. Suspense. Dir. de Ron autônoma, mesmo que recíproca, já que se

529
baseou num livro (evocando, aqui, o Haroldo abordada negativamente - tanto se procupou

2005
de Campos da teoria da tradução). Um com a historinha que se propõe ficcional. A
filme deve ser uma Tradução Intersemiótica figura do Cristo e tudo o que a ela se relaciona
ou Transmutação, como colocou Roman estará sempre envolvida em mistério e
Jakobson: a passagem de um sistema de será sempre alvo de especulações de mal-
signos para outro. Um filme também pode intencionados e mercadores-do-templo (o
ser bom ou não quando o comparamos que não seria tão grave se se tratasse de
com filmes similares. E é aí que o filme O Grande Arte). As especulações em torno da
CÓDIGO DA VINCI - e o artista-cientista fiugura de Maria Madalena podem até chegar
da Renascença deve tremer no além, só de a ser curiosas, porém não convencem. Eram
ver o mau-uso que é feito de sua herança - os deuses astronautas?
desmorona: não resiste a um confronto com Sosseguem os católicos, pois acabaram
filmes como O HOMEM QUE SABIA DEMAIS ajudando a promover ainda mais um filme
2006 e INTRIGA INTERNACIONAL, de Hitchcock menos que medíocre (em verdade, as reações
ou com o comercialíssimo-de-alto-nível OS haviam começado com o livro, enquanto
CAÇADORES DA ARCA PERDIDA. Estes dão assunto e enquanto falta de originalidade,
de dez a um naquele filme mal resolvido e tendo até sido, o autor, acusado de plágio). A
cheio de defeitos, que vão da elaboração do figura do Cristo será sempre intocável e tudo
roteiro à condução da ação, o que se percebe o que vier a contrariar a sua excepcionalidade
por meio do essencial num filme, que é a parecerá ficção barata.
montagem. Meia dúzia de seqüências de Quando se trata da Arte: deixe que os
encher os olhos não fazem a grandeza de artistas façam o que bem quiserem, que a
uma película: é necessário muito mais para Igreja já deu a sua cota como patrocinadora
isto. Nem o desfecho apresenta susto ou da Grande Arte, pelo menos até a época do
surpresa: ficou uma coisa sem graça. Barroco. Abaixo o Índex! Nenhuma censura
Estranho pensar que a Igreja - Opus (impedimento de veiculação), nem para a
2007

Dei em particular, que não é fictícia e que é coisa menor, que o tempo é o juiz maior.

530
Que a Arte, se ainda existe, é leiga e livre, VILLA-LOBOS EM PIRAJUÍ?

2005
mesmo quando aborda temas do Sagrado.
Que corra solta. Pirajuí já teve toda uma tradição
musical, com instrumentistas ótimos,
Em tempo: CACHÉ (CACHÉ . Fr-Áust-Ale- principalmente pianistas. Houve várias
It. 2005. Drama. Dir. de Michael Haneke), professoras de piano, acordeão, violão,
cujo significado é “escondido”, é um bom pelo que me consta e, mesmo que a pessoa
filme, daqueles muito bem realizados, com não tivesse ambição artística em termos de
teor metalingüístico, conteúdo forte (a vir a ser um concertista ou algo parecido,
questão da discriminação, na França, de recebia uma sólida educação musical, que
estrangeiros, brancos e negros de origem poderia ser completada fora, nos chamados
africana). Mistério e suspense, preconceito. conservatórios musicais.
Ambigüidades. Ótimos atores. Porém, não Além do mais, na escola, havia o canto
justifica uma saída de casa para ver algo no início do período, pelas meninas e, a partir
2006
que só traz qualidades de um déjà vu. principalmente do antigo ginasial, tinha-se
Abordo-o aqui devido a uma referência que Música no elenco de disciplinas e conduzida
fiz em um outro escrito, em que colocava por pessoa de grande competência (lembro-
a incerteza quanto à qualidade de filmes: me, por exemplo de Dona Branca Serra
nunca sabemos o que nos aguarda quando Neto, professora de minhas tias, pianista,
vamos ao cinema. compositora e regente, autora do Hino do
(17 de junho de2006) IEDAP; e do Professor Sérgio Miola, um
violinista dos bons). Era uma beleza o Orfeão,
constituído pelas alunas da Escola Normal!
Pirajuí chegou a ter duas orquestras
de música pupular (lembro-me bem da BLUE
STAR), além de conjunto musical com músicos
2007

de formação erudita.

531
Tito Madi começou a exercitar o seu aconteceu antes do ano do meu nascimento:

2005
talento aqui, ainda adolescente, mas se 1948. Dona Maud Pires Arruda certa vez me
tornou nacionalmente conhecido por sua falou da estada, entre nós, de Heitor Villa-
sensibilidade explicitada em composições Lobos, do maestro Souza Lima e doutros.
românticas memoráveis e num canto Fiquemos em Villa-Lobos (1887-1959),
mavioso, a partir da cidade do Rio de o músico erudito brasileiro mais conhecido
Janeiro, onde reside até hoje. Maria Helena fora do Brasil. Aqui também. Teve toda a
Machado Guimarães, cantora do naipe de informação das vanguardas da música e ele
uma Dalva de Oliveira, iniciou uma carreira, mesmo fez composições arrojadas, porém,
até internacional, mas não adentrou o acabou por preferir caminhos mais seguros
mundo das mídias, que seria garantidor de e deixou uma obra monumental em termos
notoriedade. de quantidade.
Lembro-me, penso que nos anos 70, Villa-Lobos esteve ligado ao nosso
2006 de uma desastrada apresentação de quarteto Modernismo e teve importante participação
de cordas no salão nobre do IEDAP que, na Semana de Arte Moderna, realizada no
em verdade, não chegou a acontecer: seis Teatro Municipal de São Paulo, em fevereiro
pessoas na platéia. Uma delas, um garoto, de 1922. Trabalhou muito no Brasil e no
começou a fazer barulho com a cadeira Mundo, sendo que aqui chegou a atuar pelo
vazia ao lado. O violinista se levantou, disse interior, em performances patrocinadas
que daquele jeito era impraticável e saiu pela oficialidade. Foi daí que Heitor Villa-
do recinto, acompanhado pelos outros três Lobos, que era músico compositor, regente
músicos. Foi uma pena. e instrumentista (tocava violoncelo e parece
Pirajuí recebeu visitantes ilustres, no que mal, a dar crédito a Mário de Andrade),
âmbito do popular e do erudito: algumas chegou um dia a Pirajuí. Soube disto
das mais famosas orquestras, daquelas que primeiramente por Dona Maud, que deve tê-
animavam (abrilhantavam, dizia-se) bailes, lo visto atuar.
2007

a cantores e instrumentistas. Muita coisa Aí, um certo dia em que ouvia a Rádio

532
Cultura-SP, num programa que abordava o desempenha importante papel social e

2005
Villa, ouvi o seguinte: “… peça apresentada cultural. Fica aí a sugestão.
pela primeira vez em Pirajuí, no dia …” Aquilo (24 de junho de 2006)

me chamou a atenção, porém, não liguei


para a emissora para saber mais sobre o fato.
Deixo essa dica para jovens pesquisadores e
até faço uma sugestão para o Mestrado: O
Fenômeno Musical em Pirajuí: um estudo de
caso. Avante e boa sorte! SABER, SABERES I

Em tempo: Eu já havia escrito o comentário De um modo ou outro a Sabedoria


sobre a exposição Degas, no MASP, quando é respeitada e ou temida nas sociedades,
se aguçou a crise em que vive a instituição, que cultuam seus sábios, condenam-nos ao
com o corte da luz: um descalabro. Não se ostracismo, eliminam-nos, conforme o caso.
2006
tratava de um bar ou coisa semelhante, mas De qualquer modo, só o tempo revela o valor
de uma instituição cultural de fundamental de um pensamento [ou de um complexo
importância, com um papel especial na pensamental], ou tudo o que vai além de
educação de sensibilidades em nosso País. uma festividade ou de um impacto inicial.
Penso que um juiz poderia determinar a Impressionante como até hoje
re-ligação imediata da energia. Mas faltou evocamos Platão e Aristóteles nas mais
bom-senso para os responsáveis da empresa diferentes situações: desde a abordagem da
fornecedora, por mais que se tenham tradição artística, passando por momentos
argumentos contrários à atual diretoria do de ruptura, até às novas tecnologias,
Museu, a qual se perpetua. A Eletropaulo à organização da sociedade etc. E isto
deveria, isto sim, patrocinar a energia para sem falar no vocabulário que, de modo
o MASP e até tirar proveito disto, com o considerável, vem-nos do grego: a própria
2007

seu nome constando como empresa que palavra tecnologia, por exemplo! Além disso,

533
a sabedoria maior costuma ser associada à Bem, há vários tipos de atuação com o

2005
maturidade e à velhice, o que não significa uso da inteligência e isto se observa em épocas
que todo velho venha a ser um sábio ou que diversas, mas é bom que atentemos para a
os jovens não possam vir a ter algo de sábio. nossa. Daí é que procurei uma classificação
É que o saber mais profundo exige tempo, dos humanos, quanto à sua atuação em
dedicação, recolhimento e até uma certa sociedade como seres pensantes, falantes e
dose de sofrimento, que advém de tudo isso. até escreventes, à maneira de Ezra Pound, o
É que o sábio é movido por um sentimento que passo a expor:
maior que é o do amor pelas coisas do saber, 1. Há os que são sábios pelo
não colocando no centro de suas cogitações conhecimento que têm da tradição, sem
o “para que serve isto?”. aquelas exacerbações, tão ao gosto da
Não é outra coisa que significa a palavra Academia e utilizam o que sabem para
FILÓSOFO: aquele que tem uma relação de chegar a coisas que até então ninguém
2006 amizade, de amor com as coisas do saber. O sabia. Da observação de indícios, formulam
refletir, para o sábio, lhe basta como razão grandes hipóteses, que ficam à espera de
de viver, tem valor em si-mesmo. O que se comprovação, o que acaba por acontecer
sabe de Sócrates (tido como o maior sábio em muitos casos. Isto envolve faro, talento,
da época - século V aC - no mundo helênico ousadia e, portanto, risco. É graças a esses
e que nada deixou por escrito) comprova que as coisas evoluem. Eles é que obrigam
isto e o que dele sabemos é por meio de a sociedade a re-pensar a tradição. São
textos de discípulos: Platão e Xenofonte. movidos pela sede-do-saber-maior, pela
Aristófanes o coloca na comédia AS NUVENS, curiosidade, aquela que obriga à investigação
emprestando-lhe algo de ridículo, como é e conduz ao conhecimento.
próprio da Comédia, enquanto modalidade 2. Há os que se aprofundam num
teatral. Sócrates foi condenado, pela assunto, a ponto de atingir um grau de
sociedade ateniense, a se auto-flagelar com conhecimento raro. Em geral são os que
2007

a ingestão de veneno. E assim ele o fez. vasculham, pesquisam incessantemente e

534
que dão pareceres fundamentados sobre por sorte e senso de oportunidade (ou

2005
o que lhes é solicitado. Via de regra, oportunismo mesmo) numa onda, arrogam-
são os guardiães da tradição e graças se posição superior e agem como superiores
principalmente a eles que as coisas são - já que manipulam o bem-falar como
preservadas. Não demonstram capacidade poucos (seu poder emana de sua capacidade
para a formulação de hipóteses, ou seja, de verbalização: dão demonstração desse
não são capazes de ir além daquilo que se poder, apequenando o próximo com toda uma
pode saber através de um exaustivo trabalho retórica que deixaria invejosos os malandros
de pesquisa, vale dizer, só caminham com refinados), orientando seu discurso conforme
total segurança. Ainda esses têm amor pelo as conveniências. Galgam posições. São
conhecimento e prazer em passá-lo adiante, atravancadores de processos. Ditam.
nem que seja sob uma forma diluída, como Controlam. São os verdadeiros burocratas
fazem - obrigatoriamente - os professores: da cultura. A depender dessa gente, muita
2006 adequando o repertório para que mensagens coisa fundamental não teria acontecido ou
se tornem inteligíveis. não viria a acontecer, ou seja, não é pela
(continua no próximo número) sua atuação que as coisas progridem. Mas
(01 de julho de 2006) progridem, apesar deles.
4. Há os de poucos conhecimentos
e nenhuma sensibilidade, mas que fazem
o pouco parecer muito: tudo indica que
para eles é que foi cunhado o dito “Em
terra de cego quem tem um olho é rei”.
Costumam fazer grandes estragos: emitem
SABER, SABERES II pareceres sem conhecimento nem ousadia,
(continuação) exercendo o poder quando percebem que
3. Há os que, nutrindo-se de alguns terão apoio. Acham-se no direito de decidir
2007

conhecimentos específicos, ou embarcando por outrem. Pegam rápido as coisas, mas

535
da superfície e daí incorrem em erros que Acontece que nem nós sabemos

2005
compete à posteridade sanar. Em certos ao certo onde nos enquadramos. E esta
pontos, confundem-se com os do grupo 3. classificação me sai num momento de semi-
Impressionam os incautos. revolta com relação a atitudes de certas
5. Há os que nada sabem mas que, pessoas. E eu conheci e conheço alguns
dado o poder econômico ou outro de que daqueles que se enquadram em uma ou outra
dispõem, ditam: falam e são ouvidos pelos das modalidades discriminadas acima. Sábio
temerosos. Enganam-se em 99,9% dos ou não, a Ética deve estar no centro de tudo. E
casos em que interferem. o Saber deve reinar acima de tudo. E mesmo
6. Há os que muito, pouco ou sabendo que isto é uma utopia. Filósofos se
nada sabem mas que, por sensatez e/ou mostraram sofríveis, quando não, péssimos
humildade ou algum tipo de temor, calam- nas coisas da vida prática e devemos saber
se. Estão aí os que consideram inútil falar que, no cotidiano, apresentam os mesmos
2006 ou emitir opinião em qualquer circunstância: defeitos do comum dos mortais. Por isto é
pura perda de tempo, ou pensam que não que prefiro a sabedoria dos poetas enquanto
há quem seja digno de ouvir o que teriam poetas. Poesia: a mais elevada forma de
a dizer e, assim, não dizem. De quando em expressão verbal. Oral ou escrita. Poesia.
quando dão indícios de poder de fogo e por (08 de julho de 2006)

isto são respeitados e/ou temidos.


Há quem diga que “O pior pecado é
o da omissão”. Por outro lado lado, temos
uma série de ditos populares que valorizam
o silêncio: “Falar é prata, calar é ouro”,
“Quem fala muito acaba dando bom dia
para cavalo”, “Em boca fechada não entra
mosquito”. Mas, daí a dizer impropérios, vai
2007

uma grande distância.

536
REPERTÓRIO E PERFORMANCE I nos garantiria uma sobrevivência longe dos

2005
outros humanos mais velhos (há raríssimas
Podemos, no sentido específico exceções de sobreviventes do total abandono
da Teoria da Comunicação, chamar de pelos outros humanos: possuíam caracteríscas
Repertório todo o conjunto de conhecimentos comportamentais de animais com os quais
adquiridos e que, a qualquer momento, conviveram) e, ainda por cima, desde o
poderão ser requisitados, à medida que uma nascimento passamos por um processo de
atuação (performance, desempenho) deles repressão dos instintos, para que, racionais
necessitar. que somos, possamos viver em sociedade.
Toda mensagem mobiliza um certo Reprimimos os instintos e, às vezes, somos
repertório de quem a elabora e exigirá outro como que obrigados a “reaprendê-los”. Uma
tanto para ser decodificada por um possível pessoa satisfatoriamente educada é aquela
destinatário. Uma mensagem pode ser mais que, com perfeição, reprime o que há nela
2006 ou menos complexa, pode lidar com os mais de instintivo. Educação, no sentido de
variados repertórios: quanto mais alto for o refinamento comportamental, é isto: auto-
seu teor informativo, maiores dificuldades repressão.
oferecerá e, portanto, menor será o número Voltando ao Repertório: o repertório
de seus destinatários. O contrário acontece dos Humanos é, em sua maior parte,
quando não oferece problemas, quando não aprendido: desde andar sobre os dois pés,
exige a mobilização de um alto repertório até falar e tudo o mais. Há coisas que fazem
da parte dos destinatários: estes se parte do repertório de toda a Humanidade,
avolumarão. como andar sobre dois pés e falar (dispor
Há quem diga que recebemos, já, de um código altamente desenvolvido: o
algum tipo de informação desde antes do verbal, que é responsável por boa parte
nascimento, mas o que interessa aqui é o do nosso aprendizado, já que a explicação,
que é adquirido após a estréia de cada um no que dele necessita, tem a função de
2007

Planeta. A carga instintiva que trazemos não antecipar experiências; a outra maneira,

537
compartilhamos com outros animais: repertórios próprios de segmentos sociais,

2005
aprendemos, também, através do exemplo). de profissões etc. Há, porém, uma fração
E os inúmeros agrupamentos humanos têm o de repertório que diferencia um humano do
seu verbal específico, daí os muitos idiomas outro, por mais que entre um e outro haja
falados, desde tempos remotos, até hoje e muitas coisas em comum.
isto particulariza os universos culturais, as O que nós chamamos de know-how
etnias. diz respeito a repertórios específicos que
(continua no próximo número) implicam domínio tecnológico, o que dá maior
(15 de julho de 2006) ou menor relevo a um país (podendo chegar
à hegemonia), dependendo do que ele tem
ou não tem e todos querem ter. Know-how
se adquire a duras penas: criando o próprio,
sempre considerando toda uma herança que
2006 vem desde os tempos das cavernas (quando
se acende um isqueiro sem pavio, por
REPERTÓRIO E PERFORMANCE II exemplo, aciona-se toda uma herança que
(continuação) vem da época em que o Homem aprendeu a
Há repertórios próprios de etnias, de fazer o fogo, por meio de atrito de pedra com
organizações como os Estados. Os gregos da pedra ou doutros materiais e o tal isqueiro
Antigüidade, por exemplo, não eram unidos repete em parte o feito); podem se importar
sob um único Estado, mas organizaram- livros, cérebros - professores e técnicos
se nas várias Póleis. O que os unia, num - mandam-se estudantes, com bolsas-de-
sentido mais geral era a consciência do estudo para fora, justamente para que
ser-helênico, falando uma mesma língua, adquiram conhecimentos, os quais, na volta,
apesar das variações dialetais. Os outros deverão ser multiplicados. A pirataria (na
povos eram bárbaros, falavam uma língua informática, por exemplo) indica o domínio
2007

incompreensível, língua do ba-ba-bá. Há de um know-how adquirido e/ou surripiado

538
e que não quer pagar royalties. Mas quem

2005
alguma vez pagou os direitos pelo uso do
sistema alfabético aos descendentes dos
fenícios?
Ao longo da História, observou-se uma
assimilação de conquistas alheias, mas que
REPERTÓRIO E PERFORMANCE III
são de toda a Humanidade (nada existe de
(continuação)
invenção de humanos que não sirva para
É sabido o fato de as condições
todos os humanos. Humanos de quaisquer
materiais disponíveis estarem intimamente
etnias poderão dirigir um automóvel, vestir
ligadas ao tipo de vida que a pessoa tem
uma túnica ou saborear uma torta de nozes,
ou vai ter e que as possibilidades de
aprender a tabuada etc). Podemos falar em
aquisição de repertório específico e de
antropofagia cultural, para ficarmos com uma
certos refinamentos dependem do acesso às
2006 teoria defendida por Oswald de Andrade, nos
fontes de conhecimento - o que as condições
anos 20 do século passado. O know-how que
materiais (diga-se: dinheiro) determinam
possuíam alemães e japoneses (e o Japão
em mais de 90% dos casos. Porém não é só
foi o grande antropófago de finais do século
isso: é preciso que haja uma disposição para
XIX, inícios do XX, assimilando tecnologia
essa aquisição de conhecimentos, o que até
ocidental e tornando-se país imperialista)
pode em parte ser inculcado no membro
fez com que, após se verem arruinados com
de uma certa comunidade, de um certo
a Segunda Guerra Mundial, pudessem se
segmento social, para que ele não venha a
reconstruir e se tornar de novo potências
ficar “por fora”. E às vezes até se assimilam
econômicas. Para tanto, não bastariam os
conhecimentos “por osmose”, não sendo
grandes dinheiros dos vencedores neles
este o caso que nos interessa aqui.
injetados.
Mas as coisas são bem mais
(continua no próximo número)
complexas, senão, bastaria ter os meios
2007

(22 de julho de 2006)

539
(e o próprio tempo implica dinheiro) para de vida até subumanas a que estão

2005
se ter um repertório elevado. Ter um alto obrigados e dificilmente chegarão (porém
repertório em termos de conhecimentos alguns chegam) a se ocupar de coisas como
acumulados não diz tudo: é preciso saber a produção de mensagens com informação
estabelecer relações, penetrar além da estética visando ao admirável.
mera aparência das coisas, chegar, com Os muito ricos, por seu turno, estarão
base no aprendido, ao inusitado. Em poucas sufocados pelo agito da vida - são bem-
palavras: é preciso ser criativo. Uma coisa viventes - pelo exercício do poder, pela “luta”
ao menos é certa: podemos não chegar às em prol da preservação do capital e pela sua
raias da originalidade, mas é importante que permanência no rol dos privilegiados. Há
tenhamos elementos para apreciar as coisas exceções e para ficarmos apenas no Brasil,
geniais que os humanos têm criado. E isto apontaríamos Tarsila do Amaral e Oswald
não será exclusividade dos ricos, porque não de Andrade (este não possuía o mínimo
2006 basta estar em posse de bens como livros tino para os negócios e, juntamente com
e quadros, mas apreender dos mesmos a pintora, de quem chegou a ser marido,
parte da informação que contenham. A amargou uma certa pobreza após o crash
maioria dos artistas, cientistas e intelectuais da Bolsa de Valores de NYC e a crise
criativos sai de camadas intermediárias da gerada a partir de então). Oswald e Tarsila,
sociedade e isto talvez possa ser explicado como observou certa vez Décio Pignatari,
pelo fato de, por um lado, tais indivíduos gastaram parte de suas fortunas adquirindo
terem acesso a conhecimentos por poderem repertório, principalmente em suas várias
também dispor do tempo necessário para viagens e permanências em Paris, sem
a aquisição e maturação e, por outro, por abdicar, porém, de uma vida siocial intensa,
não estarem sufocados pelos excessos que cheia dos prazeres que o dinheiro possibilita.
a abastança (o dinheiro-muito) propicia. Os Paulo Prado só não foi um escritor maior,
de recursos muitíssimo precários, via de pelas obrigações que lhe foram impostas,
2007

regra, estarão esmagados pelas condições dada a sua condição social privilegiada e o

540
papel proeminente no clã dos Silva-Prado. deverão estar na escola e estudar, brincar

2005
Felizmente, toda criação de humanos e praticar esportes. E daí é que um bom
pode servir a todos os humanos, se bem governo seria aquele que, de fato, se
que muito do que é criado fica como que preocupasse em ter toda a sua população
exclusividade de poucos - pelo menos por de pouca idade na escola e com um nível de
algum tempo - poucos estes em situação ensino bastante elevado. Somente por meio
econômico-social superior. da Educação é que um país poderá vir a ser
(continua no próximo número) um grande país.
(29 de julho de 2006) Há coisas que obrigatoriamente devem
fazer parte do repertório de todos - além do
que se aprende extra-classe - e é aí que
entra a escola com um papel preponderante.
Democracia não é socar livros e museus
2006 nas pessoas, mas, dotando-as de um
certo instrumental, capacitá-las para uma
REPERTÓRIO E PERFORMANCE IV aproximação com os bens culturais de alto
(continuação) repertório (no mundo inteiro, porém, se
Bens culturais não pertencem a observa - e isto inclui os países de altíssima
ninguém em particular, mas são de toda escolaridade, como o Japão, por exemplo -
a Humanidade (malgrado o fato de alguns um gosto pelas coisas médias: o medíocre
se apossarem das coisas materiais, pelo não tem fronteiras e nem há mal em se gostar
poder de que dispõem: de um excepcional de coisas menores… quando se pode optar).
champagne a um quadro de Van Gogh). Daí é Democracia é dar possibilidade a todos os que
que a Educação desempenha um importante querem ir além do obrigatório (ler e escrever
papel no que diz respeito à elevação do bem, calcular etc). E nosso país está longe -
repertório geral de uma população. Por isto apesar de projetos dos sucessivos governos
2007

é que dizemos que crianças e adolescentes - de atender a população: problemas, aqui,

541
se eternizam, professores são tratados com a oportunidade de conhecer mais de perto.

2005
descaso. Acontece que, se apostarmos na Que seus planos de realizações aconteçam
Educação, os resultados necessitarão de com a atual administração do Município.
mais de dez anos para que se mostrem. Ou (05 de agosto de 2006)
seja, os resultados só aparecerão a médio
e longo prazos e isto afugenta os governos
imediatistas. E, com isso tudo, quem perde
é o País, com o desperdício de todo um
potencial de inteligência, sensibilidade e
talento. Um dia a coisa terá de mudar, como
mudou em outros lugares. A Educação tem REPERTÓRIO E PERFORMANCE V
de entrar, de fato, como prioridade dos (continuação)
governos. É preciso começar ontem! Para um super-champagne você
(continua no próximo número) precisará de dinheiro, muito dinheiro. Para
2006
PS Quando do passamento do prefeito adquirir repertório em termos da arte de
recém-eleito de Pirajuí, o popular Neguito, Van Gogh, você não precisará mobilizar os
estava em São Paulo e fiquei chocado com milhões de dólares, não precisará tê-lo em
o fato - a mim comunicado, por telefone, sua casa: bastará fruí-lo no espaço de um
por meus familiares - pois, mesmo sabendo museu. O repertório adquirido é inalienável.
que estava muito doente, esperava que ele Aliás, repertório talvez seja a única coisa que
resistisse graças à sua determinação. Ótimo ninguém consegue roubar, subtraindo-o.
administrador que vinha demonstrando Há coisas que podem ser passadas, ou
ser, todos sabiam que Pirajuí teria um seja, o conhecimento pode ser multiplicado.
grande prefeito. Pena. Nesta oportunidade, Há coisas que têm de ser vivenciadas, porque
expresso meus sentimentos de pesar (um não há explicação que possa vir a substituir
pouco tardiamente) às queridas Sônia e a vivência: é o caso do quadro de Van Gogh,
2007

Cristina e demais familiares, que não tive que tem de ser apreciado presencialmente: o

542
apreciador deverá estar frente a frente com ao nosso repertório: damos o que temos,

2005
o original (não há reprodução ou explicação o que podemos dar. Ou, melhor dizendo: a
que cubra tal experiência). Podemos ter nossa leitura do mundo está condicionada
um alto repertório em termos de Poesia pelo nosso repertório e ninguém é sábio em
Brasileira ou Cinema Italiano, sem que tudo: os saberes, assim como as ignorâncias
tenhamos uma biblioteca e uma filmoteca são localizados. Ser bem informado significa
em casa (os impressos, assim como os estar em posse de um repertório que nos
filmes se reproduzem, não necessitam de permita ter uma excelente performance.
outros elementos, pois não são objetos Informação custa tempo, empenho
únicos e nem é preciso ambicionar-se a sua e… dinheiro. Mas este nunca dará total
posse, muito embora tenhamos bibliófilos garantia e nem impedirá que a falta dele
e cinéfilos; porém, o objeto-livro é mais possa, também, embora raramente, resultar
passível de ser cultuado, mesmo tendo tido em altas performances, já que coisas
2006 uma edição de mais de mil exemplares). excepcionais podem acontecer “apesar de”.
Para um país, não basta ter uma elite Parodiando o sábio: a psiqué humana
intelectual digna de uma área desenvolvida. tem razões com relação às quais a própria
É necessário que haja todo um esforço no razão se embasbaca. Nós somos, não o
sentido de se elevar a níveis consideráveis que possuímos fora de nós-mesmos, ao
o repertório médio da população como um nosso redor, mas o que temos por dentro,
todo. Quanto mais elevado for o repertório o que está retido em nossa caixa craniana.
geral e o específico da população, maior será Cabeça!
o nível de exigência da mesma. E é a partir (18 de agosto de 2006)

daí que as coisas mudam e podem, em boa


parte, ser como a maioria realmente quer.
É preciso que se invista na Educação. Os
frutos virão.
2007

O nosso desempenho está atrelado

543
RIO DE MUITOS JANEIROS I depois, da República e isto até 1960, quando

2005
a capital foi transferida para o Planalto
A cidade do Rio de Janeiro é um pouco Central: Brasília. Porém, demorou um
mais nova que São Paulo e tem por padroeiro pouco para que a cidade projetada por Lúcio
São Sebastião. A Paulicéia esqueceu-se Costa e Oscar Niemeyer se firmasse como
do lugar (Piratininga) e nomeou-se com o centro político-administrativo, mas firmou-
santo: abraçou o sagrado. A Terra Carioca se e o Rio perdeu prerrogativas, mas não a
ficou com o lugar (não se tratava, de fato, majestade.
de água-doce, mas salgada) e deixou o santo Uma conjunção de fatores naturais e da
de lado: optou pelo profano. ação humana fazem do Rio uma cidade linda
Desde cedo aquela inusitada geografia, e única em sua beleza. Terra, céu e mar. Suas
que abarcava, entre outros acidentes, a Baía formações montanhosas surpreendentes,
da Guanabara, impressionou portugueses, praias (algumas até são o resultado de
2006 assim como os franceses, que tentaram dela aterragem). Por mais que tenha havido a
se apossar, formando ali uma sua colônia. ação modificadora dos humanos, a natureza
Porém, foram expulsos. continua prodigiosa. O Rio de Janeiro é uma
O Rio foi capital do Brasil a partir espécie de Gisele Bündschen: fica bem em
da segunda metade do século XVIII, toda e qualquer fotografia. Todo ângulo
desbancando Salvador-Bahia. Quando para abordá-la acaba sendo privilegiado.
a Corte portuguesa, fugindo da invasão Quase não se tem como errar quando se a
napoleônica do seu território, estabeleceu- fotografa.
se no Brasil, em 1808, manteve o Rio como Pirajuí e Rio de Janeiro: recebemos
capital, que ficou sendo o centro de todo cariocas e enviamos pirajuienses ao Rio de
o remanescente Império Português. Dom Janeiro: muitos. Em outros tempos, havia
João, que ficou sendo rei no Brasil, retornou excursões anuais de estudantes formandos
a Portugal em 1821. Com a independência, para a cidade maravilhosa, porém, não
2007

o Rio de Janeiro foi capital do Império e, cheguei a participar de nenhuma.

544
Só vim a conhecer o Rio em 1975, ao Corcovado: inesquecível! Dos poucos

2005
segundo semestre, quando lá, estive com famosos que vi (e ninguém em especial me
um carioca da gema, grande poeta, José Lino interessaria, a não ser Millôr Fernandes e Tito
Grünewald, ocasião em que lhe entreguei Madi, que eu tencionava fotografar), vi um
um exemplar de ARTÉRIA 1. Sentados paulista-carioca-de-nascimento o célebre
num bar de esquina, em Copacabana, em crítico-professor Antônio Cândido de Mello e
pleno dia, ele apontou para um senhor Souza, num restaurante ótimo do Leblon: O
que caminhava muito devagar na praia, Celeiro (o self-service mais caro que já vi:
octogenário acompanhado e disse: - Vejam R$68,00 o quilo!). É claro que não abordei o
(eu estava com Carlos Valero) uma anta ilustre professor, de quem li alguns livros e
com inteligência extraordinária, como com quem tive algumas aulas, mas vi que o
muitos no Brasil (tratava-se de Eugênio octogenário estava ótimo.
Gudin). Retornei em começos de 1978, de Bem, falemos de alguns pirajuienses
2006 volta de Arraial do Cabo, um belíssimo lugar que se radicaram na cidade do Rio de Janeiro
do litoral fluminense. Fiquei em Ipanema, e atingiram o ápice em seus respectivos
num apartamento cedido por uma amiga. campos de atuação:
Sem conhecer a cidade, nem sabia onde .Walter Lopes Manso da Costa Reis
poderia comer algo corriqueiro! Já em - irmão de nossas grandes e queridas
1984, hospedei-me no Flamengo e passeei professoras Dona Yola, Cida, Nancy e Nair
bastante, esticando até Petrópolis. O que - fazendo jus às origens lusas, fascinado
mais me impressionou no Rio foi o Jardim pelo mar (e aí entra aquela nostalgia
Botânico, fundado à época do Príncipe- digna de mineiros - e ele possuía também
Regente Dom João (o futuro João VI). Para origens mineiras pelo lado paterno - e de
mim, uma das maravilhas do mundo! interioranos como os de Pirajuí) dedicou sua
Estive no Rio agora, em meados de vida à Marinha do Brasil, onde fez carreira e
julho - tendo desta vez viajado de avião - e chegou ao seu ponto mais elevado: o posto
2007

fiz um passeio que ainda não havia feito: de Almirante. Integrou-se ao Rio de Janeiro,

545
que passou a ser a sua casa. Veio a falecer regravada por uma bela-nova cantora:

2005
recentemente, já octogenário. Chegou a Gláucia Nasser): BALANÇO ZONA SUL, que
batizar um navio da Marinha brasileira com descreve linda moça que caminha do Leme ao
o nome de PIRAJUÍ. Leblon! “…Vai caminhando balanbalançando
(continua no próximo número) sem parar…” Tito é um dos ótimos articulistas
(19 de agosto de 2006) deste semanário, reestreitando seus laços
com nossa (e sua) cidade.
.Carmen Therezinha Solbiati Mayrink-
Veiga foi educada e preparada para o Planeta,
fundamentalmente por seu pai, o Sr. Eneas
Solbiati, que foi vice-consul da Itália em
Pirajuí. De uma beleza rara (parece uma
RIO DE MUITOS JANEIROS II figura saída de um vaso etrusco) e elegância
2006 (continuação) notória, Carmen é daquelas pessoas que
.Chauki (Tito) Madi deixou Pirajuí nos nasceram para brilhar, para deixar os
anos 50: ficou um tempo em São Paulo ambientes mais elegantes e apreciáveis.
(1952…) e foi brilhar no Rio de Janeiro (1955) Seu casamento com Tony Mayrink-Veiga
como compositor e cantor, alcançando a levou para o Rio de Janeiro, onde se
notoriedade nacional e integrando-se à destacou como uma espécie de diva do high-
perfeição na Cidade Maravilhosa onde society, tendo sido uma das mulheres mais
fez carreira e família. Pegou o auge de fotografadas do Brasil. É a mais festejada
Copacabana, onde, se não me engano, de nossas socialites nos últimos 50 anos!
ainda mora. Precursor da Bossa Nova com Portinari fez seu retrato, o qual já pôde ser
seu raro e contido canto, com uma afinação visto em exposições, uma delas no MASP.
invejável e um modo que fez escola. Chegou Ela foi e continua a ser o acontecimento em
a compor, dentro do universo bossanovista, qualquer dos raros eventos para os quais dá
2007

uma obra-prima, em 1964 (que agora foi o ar de sua graça.

546
O Rio de Janeiro tem sido fonte de Império Português, a capital do Império e

2005
inspiração para poetas, pintores cineastas da República dos Estados Unidos do Brasil
etc. Sua vida cultural continua enorme, (Município Neutro, Distrito Federal) a capital
bastando citar o carnaval, que já era do Estado da Guanabara e capital do Estado
apontado por Oswald de Andrade em 1924, do Rio de Janeiro, o Rio não perde a sua
no MANIFESTO DA POESIA PAU-BRASIL, grandeza e magia. E o carioca (termo
como “o acontecimento religioso da raça”. originário do tupi “casa do branco”) é cioso
E tem recebido visitantes ilustres alguns da excepcionalidade de sua urbe.
e anônimos muitos outros. Alguns ali se Há um halo - para não dizer uma
radicaram: Manuel Bandeira e Drummond, aura - que deixa mística a ambiência do
por exemplo. E, como já disse Décio Pignatari Rio de Janeiro. Não sei se pensaria assim
(que não deixa de ter razão quando afirma um morador da Zona Norte da cidade. Mas
que o fato de sediar a Rede Globo faz do Rio os bem-viventes da Zona Sul e doutras
2006 algo existente), a cidade faz a síntese de um poucas paragens, têm o Rio como uma das
Brasil rural-atrasado e de um outro urbano- maravilhas deste nosso mundo: a maior,
industrial. Mesmo tendo perdido, quando talvez. E o visitante encantado, não poderá
era ainda a Capital Federal, a primazia da deixar de concordar. Terra de Machado de
produção-de-ponta para São Paulo. Veja-se a Assis e Millôr Fernandes, o Rio de Janeiro
maravilha que foi e é o fenômeno Bossa Nova, tem estrutura para suportar a sua (deles)
que nasceu na Zona Sul em fins dos anos grandeza!
50 e que teve em São Paulo uma recepção (26 de agosto de 2006)

incomparável. O Funk carioca (Zona Norte)


se me apresenta como algo embasbacante
e merece uma avaliação amorosa e rigorosa
enquanto fenômeno cultural.
De cidade portuária que se tornou
2007

capital do Estado do Brasil, a capital do

547
COMENTÁRIOS libaneses no Líbano, e este carrega o peso

2005
(VÁRIOS) da cultura fenícia subposta à cultura árabe,
tudo isto salpicado de Ocidente. O Líbano,
1. Líbano em foc(g)o. Como a Fênix, terra de meu pai e de meus avós maternos,
ave mítica que habitava a Arábia, o Líbano arca com as conseqüências de abrigar
renascerá das cinzas, com a dignidade que Cristianismos vários, mais o Islamismo em
sempre o caracterizou, com seus refinamentos suas muitas facetas. Observa-se todo um
de mistura com os anacronismos e neuroses universo semítico, do qual o Líbano será a
que o rodeiam. Nada, em lugar algum síntese. Deus salve o Líbano!
do mundo, justifica bombardeios sobre 2. No Lixo da História. Abstenho-me
população civil, às vezes, tendo por maioria de maiores comentários sobre o processo
mulheres e crianças. A cultura da guerra político brasileiro (com relação ao qual já
impregna a região e isto vem de séculos, discuti, briguei, defendi, em outros tempos),
porém, é inaceitável o que aconteceu com agora esquentado pelas próximas eleições:
2006
o país. Vítima de interesses excusos, o nada me motiva, embora eu não deixe de
Líbano vem sofrendo terrivelmente: mal votar e em Pirajuí: nunca quis, de fato,
foi reconstruído (disse-me meu médico que transferir meu título-de-eleitor. O voto,
Beirute estava até mais bela que antes) e já numa verdadeira democracia, não deve ser
enfrenta nova destruição. Como os famosos obrigatório, mas, o que fazer? Só queria
cedros e a herança fenícia do alfabeto, dizer que fico estarrecido com a desfaçatez
o Líbano resistirá. Nem quero entrar em de certos políticos, que insistem em se
certos méritos, dada a complexidade da candidatar e até podem vir a ser eleitos.
coisa e porque a grande imprensa - sempre O menos compreensível e imperdoável em
tendenciosa - tem tratado do assunto com certos representantes dos Poderes Executivo
muitos detalhes. As relações Brasil-Líbano, e Legislativo é o desvio de recursos de
como sabemos, são consideráveis: há mais programas sociais para suas próprias contas
2007

descendentes de libaneses no Brasil do que bancárias: mereceriam o inferno! O que eu

548
gostaria, por enquanto, é de vê-los no lugar 5. Crítica é discernimento e a própria

2005
onde merecem estar: no Lixo da História! origem grega da palavra denuncia isto.
3. Exposição no Centro Cultural Tomie Impressionante como grandes instituições
Ohtake (em edifício estranho e impressionante, financeiras, como o Itaú, o Real-Amro, o
projetado por Ruy Ohtake, filho da célebre Santander e a Fundação Moreira Salles
pintora): PINCELADAS é o nome da exposição, (UNIBANCO) primam pela mediocridade em
que prima pela qualidade do que é exposto. Ou suas coleções de Arte (10% de coisas boas
seja, não há obra média ou sofrível de grandes para 90% de obras de qualidade sofrível),
artistas, mas o que há de melhor de cada um as quais fazem questão de mostrar, sempre
dos que ali estão representados (todos com que surge uma oportunidade ou quando esta
obra importante, a partir dos anos 50 do é fabricada (o BRADESCO nem se ocupa
século passado, estendendo-se, a cronologia, disto, mas de outros projetos educativos).
até época mais recente): de Antônio Bandeira Tanto dinheiro e coleções que perdem de 10
2006 e Mabe a Volpi e Mira Schendel, passando por X 1 para algumas coleções particulares de
Waldemar Cordeiro e Lygia Clark. A curadoria é São Paulo e Rio de Janeiro, de afortunados
de Paulo Herkenhoff. Vale a pena visitar. Curtir. que, financeiramennte, estão muito abaixo
Tomar um café na lanchonete, em ambiente de tais instituições. Tantos milhões de lucro
agradabilíssimo. E… voltar a visitar a mostra. e o mesmo tanto de mesquinhez com as
4. Quando da escrituração de meu artigo coisas da Arte, que utilizam para emprestar-
sobre o Rio de Janeiro e suas relações com se um verniz de Cultura. É mínimo o que tais
Pirajuí, artigo este publicado em duas partes empresas devolvem à sociedade que lhes
n’O ALFINETE, citei o santo, São Sebastião, proporciona dividendos astronômicos. E nosso
porém não falei da coisa mais óbvia: que (de Tarsila) ABAPORU foi parar na Argentina,
Pirajuí tem uma importante ligação com o por falta de alguma instituição milionária que
Rio por possuir o mesmo padroeiro, cujo dia fosse arrematá-lo em leilão na cidade de Nova
se comemora em 20 de janeiro. Fica aí o Iorque!
2007

registro. (02 de setembro de 2006)

549
OSWALD DE ANDRADE: e de fazer piadas, mesmo que o preço dos

2005
ALÇAR ALTURAS SEM SAIR DOS PÉS cometimentos fosse alto.
Foram necessários muitos anos para
Oswald de Andrade (1890-1954), um que Oswald de Andrade fosse avaliado em
dos mais importantes criadores brasileiros sua grandeza e chegasse a ser o que é hoje:
do século XX, foi um modernista do primeiro um grande valor, o qual se encontra no centro
momento, tendo atuado na Poesia, Prosa das cogitações de quem queira fazer poesia
Ficcional, Crítica e até escreveu peças hoje no Brasil. Antônio Cândido de Mello e
que poderiam ter revolucionado o Teatro Souza, parece-me, fez o primeiro importante
brasileiro, caso tivessem sido encenadas à estudo da obra de prosa ficcional de Oswald,
época de sua criação. ainda nos anos 40 do século passado. Mário
O seu humor nem sempre era bem- da Silva Brito enriqueceu sua figura com
visto e a coisa chegou a lhe custar a perda texto biográfico interessantíssimo; há que
de algumas amizades, como a de Mário de se citar, também, estudos realizados por
2006
Andrade, companheiro de luta modernista e Benedito Nunes. Porém, o grande trabalho de
que ele havia descoberto e lançado. Oswald avaliação de Oswald de Andrade por inteiro foi
de Andrade (e os Andrades do Modernismo realizado pelos poetas concretistas Haroldo
não eram sequer parentes, diferentemente de Campos, Décio Pignatari e Augusto de
dos Campos do Concretismo, que eram Campos, que o colocaram como precursor no
irmãos) não era um rato de biblioteca e/ou PLANO-PILOTO PARA POESIA CONCRETA, de
de museu, mas sabia onde buscar informação 1958 e lhe dedicaram ensaios fundamentais
e que informação buscar. Acusavam-no de (os estudos de Haroldo são fundamentais
não ser lido etc e tudo piorou quando deixou para a compreensão da obra oswaldiana:
de ter o vidão que o dinheiro herdado do pai tanto da poesia como da prosa).
lhe proporcionava: não tinha o mínimo jeito Em vida, mais para o final, quando o
para negócios e foi um bon-vivant sempre poeta encontra sua mulher definitiva - Maria
2007

que pôde. Oswald gostava de uma polêmica Antonieta d’Alkimim - é que está amargando

550
grande solidão literária, com quase-total jogou certeiramente a data para a frente

2005
falta de interlocutores. Mesmo assim, não (número por número…), ganhando a
deixava de participar de eventos na cidade de parada. À sua classificação como ponto-
São Paulo e de exercer a crítica em jornais. fraco, Oswald de Andrade respondeu com
Uma das mais interessantes passagens coisa que simplesmente desclassificou o
de Oswald de Andrade, com forte dose de literato, comparando-o a algo desagradável
crítica e humor, ocorreu numa conferência a e desprezível.
que foi assistir. Tratava-se de conferencista- “A massa ainda comerá do fino biscoito
poeta da Geração de 45, geração esta que fabrico”. Oswald dixit.
que primou pelo conservadorismo e até (09 de setembro de 2006)
reacionarismo estético. Oswald, tendo sido
um homem de vanguarda, retrucava a tudo
o que o conferencista falava, até que este
2006 perdeu a paciência mandando-o calar a boca
e completando com um: “Você é o calcanhar
de Aquiles de 22!” Sem titubear, adentrando
o universo da famigerada geração e com a ESCREVER E O PROJETAR-SE PARA O
genialidade que o caracterizou em vários FUTURO
momentos, respondeu-lhe Oswald: “E você
é o chulé de Apolo de 45!” Fica no atual Iraque (antiga
Não sei o que ocorreu depois dessa Mesopotâmia), sul do país, o sítio arqueológico
tacapada certeira, mas o feito ficou como de Uruk, cidade onde foram encontrados os
exemplo de uma obra-prima da verve mais antigos documentos que podem ser
oswaldiana. Sem sair do pé, Oswald passou considerados como sendo de uma Escrita:
do calcanhar para o chulé e trocou o herói tabuinhas de argila com caracteres de uma
pelo deus (que, de tão belo, ninguém escrita figurativa, pictográfica, datando
2007

outro o imaginaria com os pés fedidos), de fins do IV milênio aC. O aparecimento

551
da escrita se dá concomitantemente à Alfabeto dos fenícios (do alef e beth fizeram

2005
chegada dos Sumérios à região, o que faz o alfa e o beta), cultivavam a oralidade:
crer que aqueles possam entrar como seus veja-se o exemplo de um Sócrates, que nada
inventores. deixou escrito!
O pictograma, como foi dito em outra Hoje, para se ter o mínimo acesso às
ocasião, é um sinal figurativo, o que vale dizer benesses de nossa civilização é necessário
que é um signo icônico, porém, com algum que se leia e se escreva bem. Ou seja, o
grau, já, de convencionalidade. A Escrita foi analfabetismo é inadmissível e atesta o
evoluindo, a partir da pictografia, até se tornar atraso de qualquer país. Porém, com tudo o
fonética silábica e, em seguida, alfabética. O que temos de progressos: da manuscritura
Alfabeto, que nasceu ali no Próximo Oriente à tipografia e aos mais avançados
- e a tradição aponta os Fenícios como seus processadores de textos, a escrita mantém
inventores - revolucionou a coisa da Escrita, algo que vem de suas origens: TEM UM
2006 que antes era exclusividade de especialistas: PACTO COM A ETERNIDADE…
os escribas. Séculos mais tarde, a invenção Quem escreve por vontade própria,
da Tipogradfia se constituiria numa outra mesmo sem uma plena consciência do
revolução. feito, estará dando ao pensamento uma
A Escrita ajuda a preservar de forma forma perene, pois, palavras, leva-as o
precisa e durável, a memória. Porém, vento… Quando escrevemos para ninguém,
em famoso diálogo (isto é redundância), escrevemos para alguém, mesmo que esse
FEDRO, Platão a condena, argumentando alguém esteja situado num futuro distante.
que atentava contra a memória, no sentido Em verdade, o texto que sai de nós, fica
de dispensar o “exercício mnemônico” - e à espera de um leitor ideal. Que um dia
ele tinha razão: não seria mais necessária a aparecerá! Nossos piores juízes são os nossos
memorização de algo que estaria ali, à mão. contemporâneos, mesmo quando falam bem
Não nos esqueçamos de que os gregos, muito de nós e aquele leitor ideal a que me referi
2007

embora tivessem adotado, adaptando-o, o agora pouco, mora no futuro e terá a seu

552
favor - o que favorecerá também a avaliação Depreende-se daí que a poesia seja

2005
do escrito - o tempo. E esse tempo pode constituída de linhas perpassadas de ritmo,
variar de décadas a séculos. Mas o que vem a que chamamos versos (entra, então, o
a ser isto frente ao sempre da eternidade? ritmo como elemento definidor da linha-
Que haja, no presente, o prazer de verso. Verso: linha perpassada de ritmo e
escrever para aqueles que escrevem e já com uma certa duração e que, uma vez lida,
antecipam material a ser examinadado como que exige outra e outra e outra…).
pelas gerações futuras. Como se isto não A prosa, por sua vez, a narrativa, mais
bastasse, o tempo emprestará uma certa precisamente a narrativa ficcional artística
dignidade e até uma nobreza para o que, no flui, não tendo um ritmo que a acompanhe,
julgar de contemporâneos, pareceu prosaico. a não ser as pausas necessárias, que não
Esperar ou não-esperar é preciso. Escrever chegam a se configurar ritmo, pois se um
é preciso. ritmo é imposto à prosa ela se poetisa e daí
2006 (16 de setembro de 2006) teremos uma prosa poética. Da mesma forma
temos - e este é um legado do século XIX - o
poema em prosa. Mas a prosa, que por sinal
deriva da poesia épica, que é uma poesia
narrativa, carregada de referencialidade,
pode ser perpassada de uma respiração e
aí diria que o narrador tem de fato senso
POESIA E PROSA . TEORIA E PRÁTICA de épos. Na prosa de Jorge Luís Borges, por
exemplo, que deve ser lida em espanhol,
Paul Valéry, poeta e pensador francês nota-se essa respiração insistente.
da linguagem, em um de seus textos Grande narrador o Borges, a quem
estabelece uma distinção entre poesia e tive a chance de conhecer pessoalmente em
prosa, dizendo que a poesia está para a Buenos Aires, em janeiro de 1984, ocasião
2007

dança assim como a prosa para o caminhar. em que, além de mais ouvir do que falar,

553
fiz dele algumas fotos que ainda conservo. que formem escritores (já dizia o Décio).

2005
Alguns de seus contos são obras-primas do Estes deverão aprender lendo e ouvindo e
narrar universal e estou sempre a lê-los, praticando. Só que o prosador, como já disse
como leio textos de Machado de Assis e deverá se ocupar do ofício diariamente,
Edgar Allan Poe. enquanto que o poeta, que trabalha com
A gente lunca lê um bom texto em concisões, ficará buscando mentalmente a
definitivo. Quanto mais avançamos nos anos, forma mais adequada de expressão e quando
melhores ficam para nós certos textos, já a coisa sai, geralmente sai pronta.
que sempre nos revelam novas coisas. Décio Porém, há exceções: poetas que
Pignatari - um experimentador contumaz anotam idéias a serem trabalhadas até que
- que fez grande poesia, teoria, crítica e se tormem de fato poemas. Ler é bom. E
narrativa diz ser a poesia paradisíaca e a é bom que se leiam coisas fundamentais.
prosa infernal. Portanto, mais importante que ler muito é
2006 Interessante que a poesia pode ser ler as coisas certas, daí o papel fundamental
toda maquinada, feita na cabeça, enquanto da seleção. E ainda bem que há quem faça
que a prosa exige, como tocar piano e isto por nós e que nós no futuro possamos
desenhar, exercício diário para se ficar bom fazer o mesmo pelos outros, elaborando
em seu território. É preciso não apenas ler verdadeiras antologias: flores escolhidas, o
os grandes textos em prosa, mas praticá- melhor do melhor.
la com grande constância, senão não se (23 de setembro de 2006)

progride. E só se fica bom de prosa com


idade já um tanto avançada, coisa que pode
até acontecer em poesia, mas não é o que
comumente acontece. É mais comum verem-
se poetas dando grandes contribuições antes
dos trinta anos (e depois até).
2007

De qualquer modo, não há escolas

554
COMENTÁRIOS (VÁRIOS) II Outros tantos, ainda, felizmente, vieram ao

2005
mundo para tornar menos penosa a vida
1. MISSÃO: GLAMOURIZAR O MUNDO. de outrem: vieram para servir, de livre e
Não, não estou me referindo às célebres e espontânea vontade e dignificam os lugares
belas vedetes. Tampouco falo de travestis por onde passam: sua presença é certeza de
deslumbrantes e deslumbrados. De drags, que coisas boas estão acontecendo; já falei
nem pensar! Faço alusão a pessoas que aqui sobre esses seres, que chegam até a
tiveram e têm neste nosso mundo como ser raros e geralmente pertencem ao sexo
missão maior a de encantar e deleitar, com feminino; pensam antes nos outros do que em
sua beleza e/ou performance, aqueles que, si mesmos. De qualquer modo, é importante
por falta de ousadia, charme ou beleza que certas diferenças existam e isto torna
ficaram mais na observação. Desses que menos monótono o nosso mundo.
vieram para ser observados e admirados 2. A EXPOSIÇÃO “CALDER NO BRASIL”.
e que curtiram isso poderia citar, sem Esta exposição está acontecendo na
2006
pestanejar: Jorge Guinle, Carmen Mayrink- sede da Pinacoteca do Estado e é um dos
Veiga, Martha Rocha, Chiquinho Scarpa importantes acontecimentos artísticos da
(por sinal, numa enorme coleção de fotos temporada em São Paulo. Tendo curadoria
que adquiri em São Paulo e que pertenceu a de Roberta Saraiva, responsável pela
uma família pirajuiense, há algumas em que importante pesquisa sobre as relações do
aparece em plena campanha para deputado artista estadunidense Alexander Calder
federal o Sr. Francisco Scarpa pai e, diga-se, (1898-1976) com o Brasil, as quais foram
muito mais bem apessoado que o famoso importantes para ambas as partes. Escultor,
filho. Scarpa pai deve estar hoje com mais Calder contribuiu na grande revolução do
de 90 anos). Outros têm como missão tornar Modernismo, principalmente com a criação
irrespiráveis os mais diversos ambientes de objetos tridimensionais de equilíbrio
em que se encontrem: são desagradáveis o instável, posto que se movimentavam, não
2007

quanto é possível e tratam tudo com desdém. pela ação de algum mecanismo que lhes era

555
exterior, mas pelo deslocamento da massa em nossa cidade se radicaram. Lembro-me

2005
de ar : os MÓBILES (pelo que me consta o ainda de seu casamento, com um primor de
nome MOBILE foi atribuído a tais objetos moça da família Murad que, como muitas
por Marcel Duchamp). E é uma beleza a outras famílias de origem libanesa, deixou
exposição que acontece na Pinacoteca, Pirajuí com destino a São Paulo. Morreu
onde foram reunidos desenhos, pinturas e aos 88 anos e, diferentemente do que me
móbiles, fundamentalmente de coleções disse meu irmão Válter, Michel Chedid não
brasileiras, a começar pelas dos museus. era o último libanês nato que ainda restava
Porém, o mais surpreeendente é o móbile, em Pirajuí: há outros poucos, naturalizados
doado pelo próprio Calder ao Instituto de brasileiros ou não, sendo que alguns
Arquitetos do Brasil, seção São Paulo e residem hoje na vizinha cidade de Bauru. É
que tem por título BLACK WIDOW (VIÚVA triste para nós que chegamos a conhecer a
NEGRA) e que coroa a mostra. O catálogo maioria daqueles que foram envelhecendo e
2006 é portentoso e foi editado pela CosacNaify. partindo. Mas o tempo passa para todos e
A exposição vale uma ida à Praça da Luz 2, as pessoas, como os outros seres (bichos,
bem porque a instituição, em seu “octógono”, árvores), também vão perecendo e isto é
abriga a instalação OBSERVATÓRIO, de inevitável e irreversível. Deixo aqui o meu
Regina Silveira, que evidencia mais uma sentimento de pesar e meu abraço à família,
vez a excelência da artista e o quanto há de a quem compete levar adiante essa herança
sensibilidade e racionalidade na Arte. étnica que se foi aculturando no Brasil. Sálem
3. UM DOS ÚLTIMOS LIBANESES EM (Paz)!
PIRAJUÍ. Muita tristeza me trouxe a morte (30 de setembro de 2006)

do Sr. Michel Chedid, ocorrida recentemente


em Pirajuí. Lembro-me dele e dos irmãos,
que chegaram a Pirajuí há algumas décadas,
procedentes do sul do Líbano, de Judaide
2007

Mardjayoun, a mesma cidade de muitos que

556
ESPAÇO DOS SATYROS fosse necessário tirar a roupa. E atuam

2005
nas peças “Dos Satyros”, desde jovens
Na cidade de São Paulo, uma área que atores e gente bizarra que é convidada, até
abrigava cinema-de-arte e que deteriorou, pessoas com grande quilometragem na arte
recupera importante papel sócio-cultural, codificada pelos gregos (Teatro envolve
com casas teatrais: a lateral da Praça fundamentalmente três elementos: TEXTO
Roosevelt, a da esquerda, para quem especialmente escrito para ser encenado
está em frente à Igreja da Consolação. por ATORES que o representam para um
Entre outras tantas salas - pequenas - PÚBLICO).
há o espaço “Dos Satyros” UM e DOIS, Mas a questão principal para um ator
onde têm sido apresentados espetáculos de teatro não é a de contar com um texto
para pouquíssimas pessoas (os espaços com grandes qualidades apenas, mas a de
são exíguos) dentro de uma linha da ele ter um domínio de palco, uma presença,
2006 licenciosidade, porém, não apenas, já que colocando o corpo por inteiro e impondo
se pôde e pode ver de Sófocles a Sade, uma voz que fala mais alto que tudo e que,
entre outros tantos autores. emitida, ocupa espaço físico, preenche-
Há muita audácia no que lá se o. Quantos valores são tão grandes na
apresenta, tanto de quem banca o teledramaturgia e desaparecem no teatro,
espetáculo, como do diretor e dos atores. justamente por não terem uma voz-que-
Exige-se muito dos atores: desde o uso fala, que quase que se basta a si mesma:
do baixíssimo calão, até o mostrar-se de Regina Duarte a Giulia Gam!
nu, escancarando as parte íntimas e a Bem, o que fui ver ontem (sábado, 30
representação de tudo aquilo que se passaria set. 2006) foi uma adaptação de texto do
melhor entre quatro-paredes. Audácia. Uma Marquês de Sade OS 120 DIAS DE SODOMA,
prova vital para qualquer candidato à arte direção (…e texto) de Rodolfo García
de Marcos Naninni ou Fernanda Montenegro, Vázquez. Sexo, violência e escatologia,
2007

que sempre dominaram o palco sem que entremeados de amargo humor, são os

557
ingredientes da encenação. A adaptação e desagradável - muito embora, em certos

2005
convence e choca aqueles que esperariam momentos, a mesma é convidada a dizer
mais ouvir do que ver. Atores, ótimos quase coisas e a cantar. Já havia assistido a
sempre, e texto incorporando explicitamente outro espetáculo no espaço “Dos Satyros”:
problemas da atualidade brasileira, sendo A FILOSOFIA NA ALCOVA, adaptação de
que alguns, envolvendo a vida política e texto homônimo do mesmo Marquês, que
políticos, poderiam ser de qualquer época. me pareceu ainda melhor e que ainda se
E essas questões, lá pelos fins do século encontra em cartaz.
XVIII, não escaparam - ao contrário - das Quase não vou a teatro e quando vou
preocupações do famoso Marquês a quem quase sempre me decepciono. Não foi o
devemos, entre outras coisas, os termos caso em se tratando das peças apresentadas
SADISMO e SÁDICO. nos espaços “Dos Satyros”. Essa coisa
Os poucos recursos, certamente, fazem underground (às vezes literalmente
2006 da montagem uma montagem de andrajos, UNDERGROUND) ainda me atrai, como
farrapos, o que não lhe tira a grandeza me atraíam, em outros tempos, espaços
enquanto representação. Mas pareceu- musicais como o LYRA PAULISTANA, na
me faltar algo mais arrojado que apenas a Teodoro Sampaio, onde pude ver Itamar
utilização de recursos teatrais banalizados. Assumpção, Tetê Espíndola, Thiago Araripe,
Há mais de 35 anos, no Teatro Ruth Escobar, a banda Sexo dos Anjos etc. É de pasmar
a montagem de O BALCÃO, peça de Jean a coragem que demonstram todos aqueles
Genet, foi de um arrojo espantoso: é o que que estão envolvidos nas montagens do
me vem à cabeça, como contra-exemplo. espaço “Dos Satyros”. Que o público, mesmo
Falta, para dar ao espetáculo motivado por que pouco, compareça a esses eventos.
texto do Marquês de Sade maior grandeza, Raros eventos. Importantes eventos, nesta
um quê de vanguarda. Felizmente, os Paulicéia desvairada.
atores não obrigaram as pessoas da platéia (07 de outubro de 2006)
2007

a uma participação - recurso moderninho

558
ACASO E CRIAÇÃO ARTÍSTICA I Baudelaire, Mallarmé, Valéry e tantos outros)

2005
excluía o Acaso de seu processo de criação,
O Acaso tem sido alvo das mais diferentes em célebre texto que expunha a gênese e
discussões, acertos e incompreensões, o desenvolvimento do poema THE RAVEN
cientificismos e misticismos, apreço e (O CORVO), de 1845, que é a “Filosofia da
aversão. Aqui, não me preocuparei com composição” (1846). Roman Jakobson, em
defini-lo, mas considerá-lo simplesmente brilhantes análises (sendo uma de parte
como uma ocorrência do não-previsto - do referido poema de Poe), mostrou que
explicável ou não. (depreende-se), na batalha empreendida
O tema Acaso - instigador, diga-se - entre Acaso e Controle, este nunca anula o
tem sido alvo de especulações nas Artes, outro, embora prevaleça, e que muita coisa
principalmente depois que o poeta francês escapa às rédeas do poeta. O inconsciente
Stéphane Mallarmé publicou o seu fundante sempre se insinua por meio de seus fluxos,
UN COUP DE DÉS JAMAIS N’ABOLIRA LE já que nem tudo pode ser domado pela auto-
2006
HASARD (UM LANCE DE DADOS JAMAIS repressão/controle. E nem importaria saber
ABOLIRÁ O ACASO), em 1897, poema se o artista-poeta pensou em tudo aquilo de
em que o título já é parte constitutiva do que fala, quando da elaboração do poema,
texto que, por sua vez, distribuindo-se pelo pois repertório para tanto ele possuía.
branco da página, já cria informações extra- A coisa do Acaso sempre aparece
semânticas. O silêncio vocifera. Intrigante fazendo dupla: Acaso e Busca (ditada pela
a preocupação com o Acaso, partindo Necessidade), Acaso e Controle. O Acaso
de alguém que primava pela precisão na a acompanhar as sociedades humanas…
elaboração de suas mensagens verbais, Já se disse que os progressos alcançados
embora mensagens em que a ambigüidade pelos humanos são fruto do Acaso e da
entrava, também, como elemento definidor. Necessidade.
Antes, ainda na primeira metade do Daí que, como todo processo de
2007

século XIX, Edgar Allan Poe (amado por comunicação será, em maior ou menor

559
grau, bombardeado pelo Acaso, a Arte, ACASO E CRIAÇÃO ARTÍSTICA II

2005
que se corporifica nos objetos de arte ou (continuação)
mesmo numa ação em que mais vale a Neste ponto, tocamos naquele território
intenção - não resultando necessariamente que de fato nos interessa, que é o do Acaso
num produto palpável - não estaria livre e suas relações com a Arte.
de sua intromissão. As discussões Arte/ Arte. Acaso. Arte e Acaso. Poéticas
Acaso, Acaso/Controle passam a ter grande do Acaso. Se o Acaso sempre se insinua
relevância no universo das mensagens que nos fazeres e afazeres e aí entra o controle
trazem informação estética e sondam o para domá-lo, porém sem anular suas
admirável e que (acredita-se) resultam de um conseqüências - que nas mais das vezes se
processo dialético que joga com sensibilidade configuram ruídos - produtores de linguagem,
e racionalidade. E isto significa que o Acaso no século XX, não só começaram por admitir
passa a ser valorizado, integrando o conjunto as suas interferências, como passaram a
2006 de elementos estruturais numa obra-de-arte. desejá-las e até persegui-las ou, numa
Vide John Cage, o músico estadunidense que contradição aparente, programá-las (de
além do Silêncio, valorizou o Ruído e o Acaso; qualquer modo, é preciso ter repertório para
foi um dos músicos que mais contribuíram detectar o Acaso que interessa, separando-
para a destruição das fronteiras entre sons o daquele que pode ser desprezado). De
musicais e não-musicais (e isto em parte é Kandinsky a Cage e Klein, passando pelo
herança do Futurismo italiano, do Rumorismo Futurismo, Dada, Surrealismo, Pollock e
de Luigi Russolo). Carlos Fadon Vicente, o Acaso desempenhou
(continua no próximo número) papel importante num dado momento ou
(14 de outubro de 2006) passou a ser - conscientemente - parte
integrante do conjunto de procedimentos
(da poética) de um número considerável
de artistas. Ou seja: de algo que ocorria
2007

mesmo que à revelia, o Acaso passou a ser

560
parte integrante das poéticas de muitos crítico que é Ronaldo Entler. Com este livro,

2005
artistas do século XX. De indesejável, depois o autor enriquece o universo das abordagens
aceitável, o Acaso tornou-se elemento teóricas das Artes, assim como acaba por
constitutivo estrutural das obras, já numa motivar novas pesquisas sobre o assunto,
época de artista não-déspota e de público dadas as aberturas que o trabalho expõe. É
não-passivo. É aí que entra um trabalho de por isso tudo que este livro, editado, trará
Ronaldo Entler: Poéticas do acaso: acidentes alegria aos muitos que, certamente, estão
e encontros na criação artística, fruto de uma à espera de obra consistente sobre o tema
cuidadosa pesquisa, assistida por Julio Plaza, Acaso e suas relações com as Artes e que
a qual resultou em sua tese de Doutorado ponha em destaque parte viva e recente
e que agora será, enfim, editada. Mais que do que hoje já integra a tradição artística.
oportuna, a edição deste livro é necessária Acaso e Criação Artística. Poéticas do Acaso.
e vem a cobrir lacunas em nossa bibliografia Não por acaso.
2006 original, já que são raras as obras que, entre (21 de outubro de 2006)
nós, tratam do assunto ‘Acaso e/na criação
artística’. Neste trabalho teórico nota-se
- como se nota em todo trabalho teórico
importante - ambição intelectual (coragem,
ousadia, risco), embasada por uma erudição
considerável. Erudição sem afetações, a
necessária erudição. Presentes estão: a PARREIRAS BROTANDO DE NOVO:
sensibilidade para enfrentar a questão, a FELIZ ANO-NOVO
curiosidade (aquela mesma que conduz ao
conhecimento), o apreço pelo objeto de Alguém deverá estar pensando, tendo
estudo e o rigor metodológico. Escolhas lido o título desta matéria, que eu me refiro
precisas de material exemplificador e que é a um ano-novo ligado a alguma religião ou
2007

alvo de análise apontam para o excelente coisa parecida, já que nos encontramos em

561
pleno outubro e recentemente se comemorou com arroz e miúdos, como minha mãe fazia

2005
o ano-novo judaico. até pouco tempo atrás (no charuto-de-folha-
Nada disso. O ano a que me refiro de-uva só entram: as folhas, arroz, carne
tem tudo a ver comigo mesmo, com minha moída de vaca, aqui no Brasil - de carneiro,
família e com a comunidade de origem no Líbano - sal, pimenta-de-cheiro, que se
libanesa do Brasil, cristã em boa parte. E costuma chamar pimenta-síria: uma mistura
este ano-novo eu e os meus comemoramos de pimentas várias, manteiga).
em 15 de outubro! Poderia ser noutro dia Bem, minha mãe era capaz de preparar
do mesmo mês. Acontece que justo aí é que sozinha um verdadeiro banquete, nas raras
almoçamos o primeiro charutinho-de-folha- vezes em que meu pai trazia convidados e
de-uva caseiro do ano. o resultado era algo espantoso, a ponto de
Foi a primeira panela do ano, feita com haver casos em que pessoas se arrependiam
folhas colhidas na parreira do quintal da casa de não terem comido mais, pois a chance de
2006 de minha avó Lula. E tudo graças à minha uma comida com aquele grau de excelência
tia Deca (Suad Cury), que colheu as folhas, seria rara, mesmo para aqueles que
enrolou-as e nos mandou de presente. Um dispunham de muito dinheiro. Os charutinhos
presentão! Eu falei a ela, depois do almoço: da Deca - e ela preparou uma panela menor
“Deca, devo dizer-lhe: os charutos não para que eu a trouxesse para São Paulo -
estavam bons…”. Ela me olhou como que estavam ótimos, mas é impossível não me
espantada. Daí eu completei: “Estavam referir aos que minha avó Lula preparava e
simplesmente ótimos, deliciosos!” cozia, aos domingos, durante umas quatro
Quem só comeu dos charutinhos horas, num braseiro sempre disponível, ao
servidos em restaurantes, não tem idéia lado de fogões elétrico, a gás e a lenha (dois:
da delícia que são os feitos em casa, com o um de metal e um de alvenaria). Portanto,
vagar necessário e alguns artifícios, como o minha mãe, como minha tia, tiveram uma
de colocar carne gorda no fundo da panela grande mestra, uma verdadeira maga da
2007

ou um ou dois frangos inteiros, recheados culinária.

562
Dentro da riquíssima e maravilhosa garantia de boa comida, um prosseguir da

2005
culinária libanesa (e nem sei se essas existência.
comidas respeitam fronteiras no mundo Por isto, torno a dizer que meu ano-novo
árabe) o charutinho-de-folha-de-uva é dos começou em Pirajuí, no almoço do último dia
melhores pratos, sempre que é feito com 15. E espero poder comer, por cerca de dois
folhas tenras e por uma exímia cozinheira. meses e meio (e outras temporadas virão, se
Costumo dizer que tal iguaria faz a ligação Deus quiser!), muito charutinho-de-folha-de-
dos libaneses com o deus grego do vinho e uva, com todos aqueles acompanhamentos
da vinha Dioniso que, por sinal, tem muito a a que se tem direito: alface, tomate, pepino,
ver com os fenícios, povo do qual descendem, rabanete, homus, quibe frito, sfiha, coalhada
em parte, os libaneses. mole e pão árabe - principalmente se for de
Mas o charutinho-de-folha-de-uva fabricação Tanel, o melhor kmesh do Brasil.
tem um papel importante a mais na vida de Feliz ano novo!
2006 minha família por parte de pai, já que numa (28 de outubro de 2006)
das fugas a que minha avó paterna e três
filhos - entre eles meu pai - foram obrigados,
por problemas familiares, numa região
conturbada, como sempre foi o pequeno
Líbano, o que ela levou para garantir a
alimentação das crianças foi justamente um
recipiente contendo o charutinho-de-folha-
de-uva que havia preparado pouco antes. ROGÉRIO DUPRAT : ERA UMA VEZ
Entre os libaneses, desde cedo, se
aprende a comer pelo prazer de comer e Hoje pela manhã (27 out. 2006) li no
eis que, vendo uma parreira com brotos e Estadão que o maestro-arranjador Rogério
folhas novas, um imigrante ou descendente Duprat havia morrido (ontem), aos 74 anos,
2007

se flagra feliz: é um bom sinal, bom agouro, vítima do mal-de-Alzheimer e de um câncer

563
na bexiga, tendo passado os últimos três O papel de Rogério Duprat como

2005
meses em leito de hospital. Na FAAP, alunos arranjador e maestro da Tropicália, embora
me disseram que a notícia já havia sido dada não tenha sido o único, foi fundamental:
no Jornal Nacional, da Globo. A informação deu a “cara” ao movimento, com seus
deixou-me um tanto perplexo, já que nada arranjos sensacionais, que denotam
sabia dele há tempos, a não ser de um CD conhecimento profundo de música (ele teve
que sairia com raridades de seu trabalho de formação erudita e foi também compositor
arranjador, de par com a coleção MUTANTES, e instrumentista: tocava violoncelo) e que
versão CD. receberam grande influência dos arranjos
Embora não o tivesse conhecido mais das canções dos Beatles (por George
de perto - só o vi pessoalmente umas quatro Martin), mas que chegaram a ser mais
ou cinco vezes e em situações diversas - arrojados (e Rita Lee já disse isto), posto que
ele foi uma das pessoas que mais admirei adentravam o universo da paródia burlesca
2006 no Brasil, principalmente pelo arranjador (vejam-se os LPs TROPICALIA, em cuja capa
genial que foi da Tropicália, movimento Duprat aparece entre outros integrantes do
musical (e comportamental) que floresceu movimento, sentado, segurando um penico,
na cidade de São Paulo, a partir da segunda os dos Mutantes e um certo disco de Nara
metade dos anos 60 do século passado, Leão: verdadeiras jóias da música popular
tendo como protagonistas gentes de fora, brasileira).
principalmente da Bahia: Caetano Veloso, Eu já via Duprat nos progamas de TV
Giberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, mas também - era o Tempo dos Festivais - em discos, em
da terra paulista, como os componentes jornais e revistas, mas inesquecível mesmo
dos Mutantes: Sérgio e Arnaldo, os irmãos foi a sua aparição num programa abominável,
Baptista e Rita Lee Jones. Rogério Duprat coisa de Carlos Manga, chamado “Quem tem
era carioca, mas adotou ou foi adotado por medo da verdade?” Era um programa em que
São Paulo e durante muitos anos viveu nos os convidados eram vítimas de perguntas-
2007

arredores da Paulicéia. grosserias de toda a espécie, por um corpo

564
de jurados de qualidade variada. E Duprat, lhe passei, como a outros, um exemplar de

2005
na berlinda, nada respondia, apenas, ARTÉRIA 2 (pronta em 76, lançada em 77),
dadaisticamente, mostrava tabuletas que ele examinou com descrença. Depois,
com respostas lacônicas e até nonsense. Décio me falou sobre o seu (de Duprat)
Como era de praxe, a vítima tinha direito ceticismo com relação às artes, porém
a um advogado de defesa e o dele foi destacando o seu valor, sua grandeza,
Décio Pignatari, que flagrei num discurso não adotando para si, mas respeitando a
brilhante, que enaltecia o músico e a sua postura do músico.
genial criatividade. Em 1985, quando John Cage esteve
Em outra ocasião especial, eu - levado em São Paulo, por ocasião da XVIII Bienal,
por Paulo Miranda - o vi num espetáculo foi lançado o seu livro DE SEGUNDA A
neo-dada, no Teatro Ruth Escobar (Teatro UM ANO, que havia sido traduzido por
Galpão), em inícios de 1970. Chamou- Duprat, muitos anos antes, tendo tido,
2006 se PLUG o evento e poucos foram os o texto, revisão de Augusto de Campos,
que o viram: já era algo multimídia, com que também o prefaciou. Colhi autógrafos,
representações do tipo teatral, filme mais na ocasião: de Cage, Augusto de Campos
que underground, audiofotonovela, a risada (que foi quem mais divulgou o trabalho
de Hebe Camargo repetida várias vezes, do músico estadunidense no Brasil) e
performances várias. Era a época dos de Duprat, que milagrosamente esteve
happenings e aquilo tudo me impressionou presente na ocasião. Era o dia 5 de outubro.
bastante, ficando gravado em minha No 3º andar do prédio da Bienal, auditório
memória. do MAC-USP, Anna Maria Kieffer e Theophil
Em 1977, em casa de Décio Pignatari, Maier se apresentaram com obras de Cage
nas Perdizes, numa recepção que houve em e de Augusto de Campos. Eu, com Décio
função da publicação de seu livro POESIA Pignatari, assistíamos ao espetáculo, uma
POIS É POESIA, pela Duas Cidades, vi fileira atrás da de Cage, que se portou
2007

Rogério Duprat, a quem fui apresentado e elegantemente, com toda aquela paciência

565
zen que o caracterizava. “Cage, agora sem mais-que-excelente trabalho de arranjador.

2005
barba, até parece uma tia velha”, disparou Um grande trabalho!
Décio que, ao mesmo tempo, deplorava a (04 de novembro de 2006)
performance que ocorria no palco.
Recentemente, uma aluna minha
da FAAP, que cursava cinema, fez um
documentário sobre Duprat e eu lhe contei
muitas coisas sobre ele e ela fez o mesmo
comigo, inclusive me revelando ser Duprat
primo do cineasta Válter Hugo Khouri, A SÃO PAULO DOS MODERNISTAS
coisa que eu nunca havia sabido. Se não (FINADOS)
me engano, Duprat trabalhou em algumas
trilhas sonoras de filmes seus. Nesse 2 de novembro, a chuva me
2006 Seu contato com com os concretistas se impediu de visitar cemitérios de São Paulo,
deu na fase da revista INVENÇÃO - anos 60 - coisa que sempre faço quando não posso
em que, com outros músicos de sua geração, ir a Pirajuí visitar os meus mortinhos.
assumiu compromissos musicais de caráter Invarialvelmente chove nesse dia, de par
experimental-inventivo. Notoriedade, porém, com um calor quase insuportável que, em
obteve como participante do Tropicalismo, plena primavera, chega a parecer mais-que-
por meio de seus arranjos, cuja importância verão.
já está sendo avaliada há algum tempo. A ida ao cemitério me traz um certo
Duprat, há muitos anos, havia se conforto (e sei que isto não é igual para todos,
retirado do ambiente musical, no qual passou pois há crenças outras, até mais bonitas com
a ver graça-nenhuma e, ironicamente, relação àqueles que se foram), como que
encaminhou-se à surdez, o que mostrou a sua me aproxima dos que trago em pensamento
radicalidade, como observou sarcasticamente e justo num lugar onde foram depositados
2007

um amigo comum. Vai Duprat, fica o seu os seus restos… mortais. A proximidade da

566
matéria, um quase nada que ao pó tornou, da riqueza em que vivia a família: assim

2005
me propicia pensamentos e me alerta para na vida como na morte… Tal túmulo é uma
a fugacidade da existência: tudo passa e projeção da magnífica casa Matarazzo - hoje
é assim que as coisas são. A vida segue o inexistente - na Avenida Paulista (da mesma
seu curso e nem tudo precisa ser tristeza no forma, a pirâmide, túmulo gigantesco, dava
dia estabelecido para os meus (e de todos) uma medida do poder exercido em vida pelo
finados insubstituíveis (enquanto houver faraó). Os Jafet também dão uma medida
alguém para evocar-lhes a memória…). do seu grande poder, em mais de um jazigo
Dos muitos cemitérios de São na Consolação e suas antigas residências
Paulo, um se destaca pela fama de conter se encontram inteiras - porém em poder de
restos mortais de gente famosa (não nos outras gentes - na rua Bom Pastor, bairro do
esqueçamos de que a morte nivela todos… Ipiranga. O túmulo da Marquesa de Santos
por baixo): é o da Consolação. Em verdade, é simples, porém, sempre impecavelmente
2006 há mais dois cemitérios contíguos, cujas conservado, com flores novas e em qualquer
entradas se situam na Rua Sergipe: o da época do ano, sendo o serviço executado
Venerável Ordem Terceira do Carmo e o dos pela própria administração do local (parece
Protestantes. que foi a Marquesa quem doou o terreno
No Cemitério da Consolação, que é para que se tornasse uma necrópole).
do tipo italiano, com toda aquela profusão Mas, das vezes em que estive no
de estátuas, encontram-se verdadeiros Cemitério da Consolação - cuja muralha já
monumentos: pelas dimensões e também impressiona desde o lado de fora - salvo
pelo fato de escultores famosos terem lá uma ou outra vez, foi para visitar os túmulos
alguns de seus trabalhos, como túmulo de alguns modernistas que me são caros. A
de Dona Olívia Guedes Penteado, com começar por Tarsila do Amaral, que cheguei
um complexo escultórico de Victor a conhecer pessoalmente e que faleceu em
Brecheret. Porém, o dos Matarazzo é o janeiro de 1973. Daí, Oswald de Andrade,
2007

mais grandiloqüente, dando uma medida morto em 1954, cujo túmulo (da família), à

567
rua 17, abriga os restos de Daisy, com quem uma passagem da ODISSÉIA em que, em

2005
ele se havia casado in extremis. Curioso é sua cerimônia de evocação dos mortos,
que, ao lado, há o jazido da família Serafim Odisseu (Ulisses) ouve de Aquiles-sombra,
del Grande, o que faz lembrar o Serafim que ele preferiria ser o mais simples dentre
Ponte Grande, de Oswald. Na mesma rua, os vivos que estar ali no Reino de Hades, é
porém não tão próximo, o túmulo de Mário que eu elaborei um epitáfio, também para
de Andrade (morto em 1945), o autor do ser gravado em lápide:
MACUNAÍMA. Anita Malfatti, que foi quem Ó VOS QUE LAMENTAIS DAÍ DO ALTO DE
deu o pontapé inicial para a eclosão do VOSSA EFEMERIDADE: SABEI QUE NÓS
Movimento Modernista no Brasil, morta (CÁ EMBAIXO) PAGAMOS O PREÇO DA
em 1964, está enterrada no Cemitério dos ETERNIDADE.
Protestantes, no jazigo dos Krugg - Anita era É para ninguém ignorar nem esquecer,
Krugg por parte de mãe: família protestante bastando que tenha lido uma única vez. Por
2006 de origem alemã, com passagem pelos EUA, enquanto a ordem é viver a vida. Vivê-la
antes da chegada ao Brasil (lembre-se que bem. Que isto tudo é passagem.
na formação da artista são de fundamental (11 de novembro de 2006)
importância suas estadas na Alemanha e nos
Estados Unidos; neste último é que realizou
o melhor de sua obra).
Isto tudo me faz lembrar Marcel
Duchamp, que até para as coisas da morte
utilizava expedientes de humor: determinou
que em seu túmulo fosse gravado o epitáfio: RONALDO AZEREDO : POETAS SÃO
“Aliás, são sempre os outros que morrem”. ETERNOS?
O que para um passante não deixará de ser
verdade! Retorno à casa, nesta manhã de feriado
2007

Pensando em tudo isso e considerando nacional, 15 de novembro, do Crematório

568
de Vila Alpina, após quase-cerimônia de isto que sentimos, nós que o admirávamos

2005
despedida de Ronaldo Azeredo, que, nos sobremaneira e por quem nutríamos um
últimos três meses e meio sofreu os percalços profundo sentimento de amizade.
de quem, tendo adoecido, permaneceu em Conheci Ronaldo Azeredo em 1975,
hospital (o Professor Edmundo Vasconcellos, época em que, entusiamado pela Poesia
na região do Ibirapuera), tempo em que, Concreta, que trazia ainda forte dose de
mais do que sanar problemas de saúde, os experimentação, editava, já, com Paulo
médicos - parece-me - lutaram para mantê- Miranda, a revista ARTÉRIA. Dos concretistas
lo bem dentro das possibilidades que possuía históricos, Ronaldo era o mais jovem e
alguém com sérios problemas de fígado, os o que apresentava um percurso poético
quais acabaram implicando outros problemas surpreendente: de poeta verbal, mas não
que lhe seriam fatais. do verso, passara pelo Concretismo em
Era, Ronaldo, muito ligado aos prazeres sua época heróica, tendo realizado poemas
2006 da vida e aos afazeres de quem desde cedo que contam para as poéticas do século XX,
se descobrira poeta. Nos últimos dez ou adentrando outros universos e até chegando
doze dias, após rápido regresso à casa, a uma poesia não-vebal, ou seja, com faturas
oportunidade em que pôde ser visto pela mãe em que os elementos de visualidade davam
nonagenária, teve uma crise que o levou de a tônica e a palavra quase não comparecia,
volta ao hospital, já entrando em estado de sendo que, às vezes, nem título o poema
coma e, de lá para cá, apresentando alguma possuía. Poemas-objeto, livros-objeto em
melhora, porém, nada que pudesse de fato que até o aspecto tátil entrava em jogo:
animar a família e os amigos, que viviam em materiais, como papéis especiais, tecido
constante aflição (foi nessas condições que o (suas “panagens” viraram lenda), alumínio
visitei na UTI do hospital, onde permaneci por entraram em trabalhos seus, sempre
cerca de uma hora, juntamente com pessoas admiráveis.
da família). A notícia de sua morte, ontem Ronaldo construiu uma obra rara e
2007

pela manhã, cobriu o mundo de tristeza: foi de difícil penetração, já que exige mais

569
do que sensibildade do fruidor e, por isto Azeredo Campos). Augusto conta que, com

2005
mesmo talvez seja, dos concretistas, o que dezesseis anos, Ronaldo já surpreendia com
mais tempo levará para ser avaliado, muito poemas, que acabaram desembocando no
embora sua obra cative prontamente os Concretismo, a partir do contato que teve
jovens que têm a sorte de entrar em contato com a poesia do “Grupo Noigandres”.
com ela. É preciso conviver longamente com Ronaldo já participa, nos anos 50,
sua obra para que ela se deixe conhecer. do número 3 de NOIGANDRES e entra nos
Lá pelos anos 70, Ronaldo possuía um outros dois números da revista - o poema
grupo dileto de amigos e até houve quem VELOCIDADE, de 1957 (quem, com 20 anos
falasse no ‘Grupo do Cambuci’ (bairro da de idade, ousaria tamanha proeza?), aparece
Paulicéia onde residia Alfredo Volpi, nosso em NOIGANDRES 4. Porém, não afeito a
maior colorista e que tendo muita amizade teorias, Ronaldo não colabora na feitura
com Ronaldo Azeredo, chegou a financiar nem assina famosos manifestos, como o
2006 muitas edições de seus poemas, que Plano-Piloto para Poesia Concreta (1958). É
eram publicados autonomamente; o poeta na segunda metade dos anos 50 que fixa
também residia na região, entre Cambuci e residência em São Paulo, e definitivamente.
Ipiranga). Do tal “grupo” participavam, creio, Ronaldo deixa mulher, filha, filho e
além do próprio Ronaldo, Villari Herrmann três netos, um dos quais, com talento para a
(que se tornou o seu maior amigo), Orlando poesia, foi aluno meu na FAAP. Fica, dele, uma
Marcucci, Fiaminghi, Florivaldo Menezes obra que contribui para a grandeza da poesia
(o pai), aos quais se agregaram os físicos- brasileira e mundial e que será apreciada por
poetas, bem mais jovens, Roland de muitas e muitas gerações, tendo adentrado,
Azeredo Campos e Renato Carlos Ghiotto. já, a história da sensibilidade. Ronaldo Pinto
Porém, isso não implicava desavença entre de Azeredo : Rio de Janeiro, 12 de fevereiro
concretistas, principalmente no que diz de 1937 - São Paulo,14 de novembro de
respeito ao cunhado e descobridor Augusto 2006. Eterna é a obra do poeta.
2007

de Campos (este é casado com Lygia de (18 de novembro de 2006)

570
COMENTÁRIOS (VÁRIOS) III 2. VOLVER: filme dirigido por Pedro

2005
Almodóvar (Espanha, 2006). Penélope
1. São Paulo, 10 de novembro de 2006: Cruz e Carmen Maura, entre outras ótimas
QUALQUER - com Arnaldo Antunes. Trata- atrizes. Como todo cinema de autor, trata-
se do show que inicia a tournée que marca se do mesmo filme feito de maneira diversa.
o lançamento de CD do mesmo nome, do Como sempre, a utilização de elementos
poeta, autor de canções e cantor-performer kitsch, que são apropriados criticamente,
Arnaldo Antunes, que em outros tempos destacando-se a exacerbação do trágico, tão
assinava Arnaldo Antunes Filho e que já arraigado no povo espanhol. Não se trata
participou da Banda Performática do Aguilar, de coisa elevada, como na Tragédia Grega,
dos Titãs do IÊ-IÊ-IÊ, que se tornou TITÃS. mas de algo de mau-gosto utilizado com
O artista saiu da famosa banda para fazer o propósito específico de chocar; o diretor
carreira solo, plena de êxitos, mais artísticos é chegado nessa coisa do exagero: de
que comerciais. Nesse espetáculo se vai indumentária e cenários, a um vocabulário
2006
para ouvir, principalmente o que Arnaldo diz- grosseiro (os palavrões são traduzidos
cantando: letras que encantam pela beleza apenas parcialmente nas legendas) e
formal e pela inteligência que se desprende histórias que beiram o inverossímil. O
do verbo a cada abertura de boca. Letras de trágico mais espanta que comove. Mas disso
uma inteligência poucas vezes observada no tudo, avulta a imagem de Penélope Cruz,
cancioneiro pupular, do Brasil e do Mundo. produzida de tal modo que sua beleza chega
Penso ser Arnaldo Antunes o melhor letrista a ser mais um exagero em sua animalidade.
vivo do Planeta Terra. Canta, também, Ao invés de uma comédia dramática, como
canções de outros autores, emprestando- o jornal classifica o filme, este é um drama
lhes a singularidade do seu estranho canto, do inverossímil, muito bem contado, que até
bem puxado para o grave, uma sua marca. vale a pena voltar ao cinema para rever.
Sua dança sui generis completa o quadro. 3. A 27ª BIENAL DE SÃO PAULO. Estive, logo
2007

Arnaldo Antunes: ver e ouvir. após a abertura, na esposição que teve como

571
curadora-chefe Lisette Lagnado. O tema tem prestigiado Arte e Tecnologia e, no

2005
escolhido pela todo-poderosa foi qualquer próprio Ibirapuera, acontecem mais três
coisa como “viver junto”, o que não se verifica importantes exposições: a de Arte Concreta,
na tal realidade onde esse “viver junto” só A Paralela e a do acervo do MAM, na Oca. De
acontece quando se é forçado ou entre elites qualquer forma, ir ao parque, neste final de
em que o aspecto intelectual prevalece. ano, compensa.
Tampouco na mega-exposição, em cujo seio (25 de novembro de 2006)
se verifica um ajuntamento que até parece
sem critério. E nem seria da competência da
Arte resolver problemas que dizem respeito
a estruturas sociais de poder, poder este
que subjuga uns em benefício de outros. A
coisa é tão flagrante nessa bienal, que até
2006 trabalhos bons ficam menos bons, porque MAIS UM PRÊMIO NA PRAÇA
mal-dispostos (pretendo voltar pelo menos
mais uma vez ao local, para ver se minha Tantos prêmios são atribuídos no
impressão primeira muda). Pareceu-me Brasil e no mundo, contemplando a poucos,
uma bienal de farrapos, uma Bienal Lumpen nas muitas modalidades que abarcam, que
(como é que essas pessoas que exercem resolvi lançar mais um: PREMIO CAGADO
curadorias chegam a obter tanto poder, o DOURADO. A novidade eu a comuniquei
que justifica essa proeminência?), que não a meus alunos há umas duas semanas e,
presta bom serviço às Artes, nem aos artistas pareceu-me, gostaram, achando-o muito
ali contemplados. E pensar que as Bienais divertido e logo começaram com um exercício
de Arte de São Paulo (que eram ligadas ao de atribuição.
Museu de Arte Moderna) colocaram o Brasil Noutro dia vi, pela Globo, parte da
no circuito internacional das artes!… No atribuição do prêmio “Profissionais do
2007

entanto, São Paulo, em inúmeras exposições Ano”, que mais parecia uma brincadeira da

572
emissora. Além da falta de graça na graça, um cagadozinho dourado impresso, haverá

2005
não me lembro de ter visto coisa tão mal a categoria e o nome do agraciado do ano.
editada e estranhei o fato de Juliana Paes, que Embora haja muitas categorias, algumas até
falta pouco para ficar feia, dada a extrema já cogitadas, a premiação aguarda alguns
magreza, olhos saltando pra fora, achar que necessários retoques. Vejamos alguns
estava fazendo algo com alguma seriedade exemplos de categorias:
enquanto apresentadora. - PREMIO CAGADO DOURADO 2006 . PRIMEIRA
Bem, o prêmio por mim instituído tem EDICAO : LETRAS: (por obra individual ou pelo
em mira os piores das Artes e das Mídias e conjunto da obra). CAMPANHA PUBLICITARIA
a concorrência, pelo jeito, será dura: há um NA TV. CANTOR (A). ATOR/ATRIZ. PROGRAMA
excesso de candidatos, bem porque, sendo DE TV. APRESENTADOR (A). DIRETOR (A)
esta a primeira atribuição, o mérito do TEATRAL. POESIA. FILME. E assim por diante,
agraciado não se restringirá ao presente ano, perfazendo uns trinta campos. Interessante
2006 mas abarcará toda a sua vida pregressa. seria realizar uma votação, mas não há
Prêmio Cágado, porque já existe um tempo hábil para tanto. Isso tudo não tem
PREMIO JABUTI que, como o cágado, é um muita originalidade, pois que há anti-prêmios
quelônio. A não-acentuação é justificada por internacionais e há muito tempo, porém, que
uma regrinha que diz ser facultativo o acento seria um bom exercício, seria.
quando se trata de texto todo em caixa-alta Isso também me faz lembrar do
(maiúsculas). CAGADO DOURADO, porque PROJETO TRANSILVÂNIA, bolado por amigos
não é de ouro mas possui do precioso metal meus: um prêmio que consistia na passagem
apenas uma casquinha, o que faz com que o aérea só de ida para a referida região da
kitsch da coisa se avolume ainda mais. Romênia; haveria o avião para pessoas e o
Não haverá estatueta, mem prêmio de carga, para transportar obras indesejáveis
em dinheiro, apenas um diplominha em que, e a coisa envolvia principalmente o mundo
além do nome PREMIO CAGADO DOURADO das Artes Plásticas. Tal projeto faria sucesso
2007

2006 . PRIMEIRA EDIÇÃO, mais a marca: na Internet.

573
Na impossibilidade de mudar as sentido de recuperar uma forma que já foi

2005
coisas e sendo, ao mesmo tempo, a favor melhor.
das liberdades, que possamos atribuir anti- Não temo críticas e dificilmente uma
prêmios, como este agora: o CAGADO tacapada me tirará do sério, pois raramente
DOURADO. Infelizmente teremos dele muitas alguém fará um comentário mais sutil e
edições. Ufa! contundente que aquele que o mesmo Paulo
(02 de dezembro de 2006) Miranda fez há uns 25 anos, a propósito
da minha produção poética e da produção
poética em geral e que só revelarei no final
desta crônica.
Paulo Miranda raramente opina,
mas, quando o faz, causa comoção geral
nos ouvintes. Paulo foi um leitor precoce
2006 OUVIR (VACINADO) AS CRÍTICAS de Machado de Assis. Desde a infância um
leitor também de poesia, compreendendo
“Você já escreveu melhor”. Foi o prontamente a questão do ritmo e trazendo
que me disse noutro dia meu amigo Paulo de cor uma quantidade enorme de poemas e
Miranda e, sendo Miranda quem é, pus até textos em prosa, quando esta esbarrava
atenção naquilo e fiquei preocupado, pois no seu limite com as coisas da poesia. Paulo,
tratava-se de referência às crônicas de O desde sempre espantou professores com a
ALFINETE, que acontecem semanalmente. E excelência do que escrevia: do grupo escolar
achei que ele tinha razão: eu deveria cuidar em Pirajuí à universidade em São Paulo,
melhor de minha prosa, já que pessoas tanto na USP, como na FAAP, instituições em
a lêem e merecem respeito e, por outro que chegou a ser aluno. Alguns docentes
lado, o editor do periódico terá paciência chegavam a duvidar que ele-mesmo é quem
até quando? Bem, fiquei atento, mas não redigia o que apresentava e uma mestra até o
2007

ofendido e digo que farei todo esforço no colocou à prova, sabatinando-o. Porém, com

574
a tranqüilidade de quem é dono da situação, mesmo, que sabia de si muito mais coisas

2005
Paulo nem alterarou o seu humor. Poemas depreciativas. Deveria ser mais uma daquelas
seus, feitos aos 17 e 18 anos, em que operava declarações borgianas, que comportavam
com versos, versos-livres, são inacreditáveis: sempre algo de paradoxal.
muito poeta famoso não chegou no rastro Nos anos 70, época em que eram
do que ele fazia. E quando passou a fazer freqüentes as reuniões de poetas concretistas
poemas intersemióticos, pareceu-me que só e afins, com gente de mais de uma geração,
sabia fazer obras-primas. Seus bilhetes, na costuma-se provocar Décio Pignatari, para
república em que morávamos nos anos 70 ver se ele, reagindo, dissesse “algumas
do século passado, eram disputados pelos verdades” sobre o provocador, que estava
moradores do então chamado Consulado de louco para ouvi-las.
Pirajuí. Todo o repertório que Paulo Miranda Já se disse que nossos piores críticos
adquiriu, nessas últimas décadas, fez dele são os nossos contemporâneos, mesmo
2006 alguém muito exigente, daí que, ouvir um quando falam bem de nós, pelo fato de
seu elogio, seja coisa rara e motivo de não terem o necessário distanciamento
contentamento. Chegou a me dizer, certa para exercer uma crítica plausível. Porém,
vez, que um verso que eu havia feito a partir de qualquer maneira, nós que colocamos a
de um outro da poeta grega Safo era uma público nossa produção artística, pouca ou
das coisas mais belas da língua portuguesa. pródiga, precisamos de um retorno, qualquer
Nem sei descrever a minha reação por que seja e isso chega a nos alimentar.
dentro; por fora, nada demonstrei. Lembro-me de que, nos anos 70, num
Jorge Luis Borges, o escritor argentino, momento em que Mário Chamie voltava a
declarava não ler as críticas que dele faziam, atacar o Concretismo e os concretistas,
justamente porque não o interessavam e passou a desferir golpes em Edgard Braga,
ainda completava dizendo que se alguém muito mais velho, a quem devia muitos
desejasse criticá-lo - crítica no sentido de favores (além de poeta, Braga foi um dos
2007

comentário negativo - poderia solicitar a ele mais importantes obstetras da história de São

575
Paulo…). Na ocasião, um amigo do velhinho lo: “A Poesia viveria muito bem sem nós”. Já

2005
chegou a dizer que aquilo não chegava a não basta?
espantá-lo: primeiro porque a opinião do (09 de dezembro de 2006)
autor de LAVRA LAVRA não interessava e,
em segundo lugar, porque o velho Braga
também se alimentava daquelas investidas:
aquilo o fazia sentir-se vivo.
Julio Plaza, nos mesmos anos 70,
passou a ter uma verdadeira ojeriza em
relação à crítica e aos críticos. Sentia um O POÉTICO NA FALA COTIDIANA
verdadeiro desprezo pela maioria dos que
exerciam aquela atividade. Chegou a compor Continuando com o tema do poético
a frase “Cítricos para críticos”, numa incursão em territórios outros, que não o da Poesia (do
2006 anagramática admirável. poema) propriamente, trago hoje falas da
Bem, só espero não ter registrado vida cotidiana, que causam estranhamento,
de maneira canhestra este desabafo, que ouvidas em épocas diversas.
se direciona em linha-reta ao meu amigo É impressionante como textos
Paulo Miranda. E desejo que ele não se curtos, impregnados do poético, passam
ofenda com este texto. A sua (dele) opinião a habitar rapidamente a nossa cabeça. De
me interessa e interessará a todos aqueles fato, os recursos ditos poéticos têm uma
que sabem do estágio de sabedoria que ele função mnemônica, além daquela sedução
alcançou. Apreciando ou depreciando, Paulo primeira, que fica por conta principalmente
necessariamente coloca algo do seu brilho. do ritmo, melhor dizendo, da eurritmia. Ou
O leitor, nessa altura do campeonato, seja, a coisa de fato funciona: do anúncio
deverá estar curioso para saber do publicitário ao dito popular, passando por
comentário acima referido e que para mim coisas que escapam nas falas do cotidiano,
2007

funcionou como uma vacina anti-crítica. Ei- calando fundo no destinatário que passa,

576
por sua vez, a ser também um propagador 3. “A vítima vem vê e vitima”. Sobre

2005
daquilo que ouviu. Vão aí os exemplos. um algoz que sempre se apresentava como
Alguns se tornaram até clichês, o que não vítima. Observa-se no processar-se da frase
diminui a sua eficácia: que a vítima se transforma em carrasco, na
1. “Toda beleza extrema tem um defeito medida em que vai vitimando, deixando por
grave, que soma, não subtrai”. O contexto onde passa um verdadeiro estrago.
em que a frase foi dita era o de como 4. “Maria Miranda? Deus sabe onde
certas mulheres excepcionalmente belas anda!” Esse tipo de procedimento em que
apresentavam um defeito que, no conjunto, o destaque fica para a rima consoante é
somava à tal beleza, já que lhe emprestava bastante comum.
singularidade. E as mulheres referidas eram 5. “O sangue me sobe à cabeça”… O
ninguém menos que Ingrid Bergman, Julia peso recai sobre a aliteração, que reforça
Roberts e Gisele Bündschen! Formalmente o elemento rítmico. A expressão, diga-se,
2006 a seqüência verbal se apresenta eurrítmico- tornou-se um clichê, o que não lhe subtrai o
eufônica, podendo ser desbobrada em três interesse formal.
hexassílabos: [6. “A um passo do precipício”]
TODA BELEZA EXTREMA Sempre que, em minhas aulas, trato
TEM UM DEFEITO GRAVE, da Função Poética, falando de poesia-poesia,
QUE SOMA, NÃO SUBTRAI. do poético no poema, que é o seu território,
Ressaltem-se as toantes: BELEZA/EXTREMA, por excelência (não exclusivo), exponho o
GRAVE/SUBTRAI. A boa rima deve conter um modelo jakobsoniano, do qual se depreende
elemento de surpresa; rima informa ou não que no texto poético há uma prevalência
informa, para ficarmos com Manuel Bandeira da forma. Daí, vem alguém e diz: “Mas
e Décio Pignatari. conteúdo e forma não são inseparáveis?” Eu
2. “Você acha pronto, pinta e ponto!” digo que sim e que eu não estava separando
Com relação aos belos bambus de Ione as coisas, mas dizendo que em Arte a forma
2007

Saldanha. é fundamental e que este fato potencializa a

577
semântica dos signos, os quais transitam da de São Paulo possui uma forte organização,

2005
ambigüidade à polissemia. É na Arte que a fundamentalmente em função dos mais
Forma reina soberana. favorecidos e que resguardam, de qualquer
(16 de dezembro de 2006) maneira, se não o sossego, pelo menos uma
relativa segurança e um grande conforto.
O conforto que o dinheiro pode comprar. E
pode muito, não tudo. Há muito dinheiro
rolando em benefício de poucos. Mesmo
assim, o despossuído também sobrevive.
O que a cidade pode oferecer de melhor
envolve necessariamente dinheiro e muito!
SÃO PAULO, SEMPRE E a cidade oferece coisas que imaginamos
e as que nem podemos imaginar: de
2006 É impressionante o movimento de certos restaurantes ótimos a lojas de livros usados
logradouros de São Paulo, principalmente em - os sebos ou alfarrábios, como se diz em
épocas especiais como a do Natal, em que Portugal - passando por endereços secretos
as pessoas são acometidas de um frenesi ou exclusivos. E dizem que perto de Nova
consumista assustador (para aqueles que Iorque, Londres e Tóquio, por exemplo, São
se encontrem noutra sintonia). E tudo fica Paulo fica a dever.
potencializado quando o calor chega para Voltando à grande movimentação de
valer. Tudo fica ainda mais difícil porque um gentes, o que dizer daquilo a que se assiste
mal-estar, de mistura com o “espírito de diariamente na Paulicéia? Fico a imaginar o
fim-de-ano”, se apodera das pessoas que, que pensaria Marinetti, o poeta criador do
mesmo assim, não se abalam e partem para Futurismo e que esteve por duas vezes em
as compras. São Paulo no entre-guerras, se saísse numa
Apesar do caos aparente e dos grandes sexta-feita, às duas da tarde rumo à 25 de
2007

problemas sociais que a acometem, a cidade março e arredores! Como ficaria aquele trecho

578
do manifesto de fundação do Futurismo, que FELIZ ANO NOVO

2005
se refere à agitação nos grandes centros
urbanos? Aquilo tudo assusta, desespera, Mais um ano… Assim, eu começaria
desanima. Os mais afortunados livram-se do esta crônica com um clichê de ruborizar
desconforto: ou porque estão em paz consigo o mais redundante dos seres. Mas é isso
mesmos, não têm dinheiro, nem cobiçam os mesmo: na idade em que me encontro
produtos que o comércio oferece, ou porque - e pretendo avançar muito mais - cada
têm dinheiro em demasia e podem delegar dia, cada mês, cada ano constituem-se
tarefas aos seus subalternos ou até comprar em vitórias, considerando que já vivi o
fora do País ou pela Internet, o que não é suficiente para saber como é isto aqui, com
privilégio exclusivo seu. suas dores e prazeres. No mais, eu sou um
Já ouvi alguém dizer (tendo certamente exemplo, um grande exemplo, um exemplo
ouvido de outrem) que nada que o dinheiro de sobrevivência, resistência, persistência e
2006 possa comprar é caro. Claro: desde que se superação de problemas de ordem material
tenha dinheiro. Já Dr. Ângelo Monaqueu, e psíquica.
ilustre professor de Línguas e Literaturas Nada tenho a condenar na minha
Clássicas dizia para uma platéia de jovens, conduta, na minha performance em
estupefata: “Eu não acho nada caro… mas sociedade: na relação com os outros
também não compro nada!” E que viva o humanos, procuro ser ético e até agradável,
Mestre! porém nem sempre e só me deploro quando
(23 de dezembro de 2006) me flagro em alguma atitude mesquinha,
que ninguém é de aço-inox, e isso me
mortifica, me tortura, até que eu possa me
redimir do mal ocorrido. No mais, nunca
desejei estar na pele de alguém-outro, pois,
com ou sem recursos materiais sempre
2007

fui um privilegiado e agora sei disto. E

579
tenho projetos vários, que ainda pretendo pensantes, inteligentes, mesmo quando, por

2005
realizar e o novo ano que se aproxima, de conveniência, se deixam manipular.
qualquer maneira, obriga-me a pensar e a Que as pessoas possam gozar de saúde
re-planejar: livros, exposições, publicações física com uma longevidade considerável,
coletivas, tese, viagens, aulas… E, embora paz-de-espírito e conforto material. Que
não pareça, dado o meu falso-desdém com todos merecemos viver bem. Auguri! Saúde!
relação à vida, sou demais apegado a ela XAIPE!
e aprendi a sobreviver apesar de tudo ou (30 de dezembro de 2006)

por isso mesmo e é o que costumo passar


para os de todas as idades, quando eles se
mostram desanimados.
Tomo a existência como um encargo
do qual devo me desincumbir da melhor
2006 maneira, de preferência, com a consciência
tranqüila e com algum prazer corporal-
material.
Desejo a todos que sejam mais felizes
no próximo ano, muito embora administrar o
processo-vida não seja fácil e felicidade seja
uma questão de vocação individual. Gente
contente, feliz, satisfeita dá menos trabalho.
Porque gente dá sempre trabalho, por causa
da dureza natural da vida e da maneira
particular que cada um tem de sentir. E de
reagir nesse desenrolar de acontecimentos.
Também dada a hiper-complexidade
2007

da psiqué humana. Pessoas são seres-

580
2007
Tarsila do Amaral, artista pela qual sempre

2006
tive o maior apreço e que pude conhecer
pessoalmente em fins dos anos 60 do século
passado. Voltei a tocar no nome de Tarsila
em inúmeras oportunidades, sempre a
propósito de sua atividade como desenhista
e pintora, como criadora.
Agora, venho a escrever algo sobre
a Tarsila cronista, a propósito de um livro
organizado por Aracy Abreu Amaral -
TARSILA CRONISTA - publicado pela EDUSP
e que saiu em 2001! Não sei como isto me
passou despercebido na época, pois tudo o
2007 que se refere à pintora nascida em Capivari
me interessa. Eu já conhecia alguns de seus
escritos (poucos), tanto impressos como
manuscritos (cartas originais que constaram
de exposições). E Tarsila escrevia bem,
TARSILA CRONISTA OU UMA muito bem! Que elegância na escrituração e
COSMOPOLITA CONFINADA quanta informação e vivência!
As crônicas reunidas e apresentadas
Foi exatamente no dia 29 de janeiro do por Aracy Amaral vão de 1936 a 1956
ano 2000 que saiu publicada minha primeira (publicadas originalmente no DIÁRIO DE S.
crônica n’O ALFINETE, motivada pela PAULO e n’O JORNAL, do Rio de Janeiro),
solicitação de meu amigo Marcelo Pavanato época em que a artista, de par com sua
e cheguei a digitar esse texto de estréia em derrocada econômica (conseqüência da
2008

seu computador e o assunto era justamente crise que se instalou no Mundo a partir de

582
1929, com o crash da Bolsa de Valores de hoje integram acervos de museus de fora

2006
Nova Iorque e que afetou grandemente o e do Brasil. É uma Tarsila num estágio que
nosso setor cafeeiro), atravessa décadas já admitia a qualidade onde quer que ela
de criatividade pouca, produzindo o menos estivesse. Uma Tarsila sem radicalismos,
importante dentro de sua obra. O melhor mas ainda com critério, o que se pode atestar
havia ficado nos anos 20. Justamente nos nos comentários que fez com relação à
anos 20, em que muito viajou, estando conferência de seu amigo Mário de Andrade,
diversas vezes em Paris, onde morou, teve de 1942, sobre o Modernismo: onde diz
ateliê, conheceu e recebeu todas aquelas ser descabido o “mea culpa” do autor de
pessoas que revolucionaram as artes do MACUNAÍMA.
século XX: de Picasso a Brancusi, passando Bem, um texto introdutório de Aracy
por Erik Satie. E as crônicas falam muito disso, Amaral auxilia principalmente aqueles
dessa riqueza que foi a vivência na capital que não estão muito familiarizados com
2007 francesa, que era também a capital cultural os assuntos tratados por Tarsila em suas
do Mundo. E, quase sempre, as pessoas crônicas. Muito importante o resgate que
por ela abordadas nas crônicas, tiveram Aracy tem feito do Modernismo brasileiro
uma vivência semelhante, desfrutando do nas últimas quatro décadas. Algumas
ambiente que só Paris oferecia naquela poucas incorreções não comprometem a
época. leitura, coisa que deve ser atribuída, penso,
Quando escreve, Tarsila continua a mais a um cochilo da revisão. As crônicas de
mesma mente cosmopolita, pessoa de alto Tarsila dão uma medida da mulher instruída,
repertório, versando sobre pintura, música, elegante, arrojada e boa escritora que era e
literatura, arquitetura, paisagismo e até só fazem com que nos interessemos ainda
ciência, porém atravessando dificuldades mais por sua obra e… vida.
financeiras, o que fez com que ela fosse (Pirajuí, 03 de fevereiro de 2007)

se desfazendo de sua coleção de obras de


2008

arte, algumas muito importantes e que

583
O AQUECIMENTO GLOBAL: MAIS ESSA! escala. E dizem, também, que a versão

2006
apresentada do relatório foi a abrandada e
Deve ter sido um susto para as pessoas que a coisa seria (é) bem pior.
em geral e o foi para mim em particular, o Não agüento catastrofistas, porém
relatório que elaboraram cientistas e que penso que em boa parte eles têm razão. Uma
a televisão e as outras mídias propalaram das coisas que mais me desesperam, por
(02 fev. 2007) sobre o aquecimento exemplo, é a gradativa destruição da Floresta
global. Os prognósticos dos sábios foram Amazônica, que tão lindamente estudamos
desanimadores e levaram muita gente à com Dona Yola (Maria Yolanda Lopes Manso
depressão, destruindo qualquer perspectiva da Costa Reis) em suas memoráveis aulas
de futuro. Que futuro para mim, para meus de Geografia. Quanto à poluição do ar, como
filhos, para meus tataranetos? deter o processo de poluição atmosférica,
Lembro-me que me contaram (e eu em grande parte provocado pelos Estados
2007 cheguei a ler por mais de uma vez) que lá por Unidos e pela China? Quem conseguiria
1910, com a passagem prevista do Cometa convencer os chineses a diminuir o ritmo de
de Halley e - como espalharam - com o seu desenvovimento desenfreado? Justo na
envenenamento da atmosfera terrestre pela vez deles?!
cauda do corpo celeste, muita gente chegou a Bem, cientistas têm sido capazes
cometer suicídio, adiantando-se à catástrofe das maiores mentiras (com hipóteses mal
iminente. O cometa passou e os viventes fundamentadas e com a desconsideração
puderam apreciar a sua incomparável beleza, de fatores/variantes), como também
coisa que não se repetiu, como se esperava, das maiores verdades. Penso que haja
em 1986. erros nesses prognósticos, porém as
Pode-se, ainda, fazer alguma coisa probabilidades de a coisa ocorrer é muito
pelo Planeta, ou melhor, pela vida no Planeta, grande. E a Natureza não estará nem aí, pois
porém os efeitos previstos acontecerão de já passou por processos bem mais terríveis
2008

qualquer maneira… dizem, talvez em menor e não estará preocupada com o que possa

584
vir a acontecer aos humanos ou a qualquer

2006
outro ser vivo: seguirá o seu curso. Nós é que
deveremos fazer alguma coisa, se ainda for
possível, que os extraterrestres não virão em
nosso socorro.
Deus, para os que acreditam (e eu
nunca me indispus com Ele), deixará (como OUTROS (TANTOS) CARNAVAIS
deixou) as coisas por conta do livre-arbítrio
e acertará as contas conosco, no Juízo Final, Nem bem sei como é o Carnaval hoje
idéia esta que muito me agrada. em Pirajuí, pois há muitos anos não freqüento
Por enquanto, sigo colhendo opiniões os bailes e penso que, na rua, a coisa tenha
de pessoas que acho que sabem mais do que mudado bastante, com grande concentração
eu. Leio pouco sobre o assunto e não deixo de em certo ponto da rua Riachuelo, área bem
2007 cuidar dos alimentos de meu espírito: a Poesia, servida de bares e restaurantes, com trio
a Música e as Artes Visuais, onde incluiria o elétrico ou coisa semelhante. Certamente,
Cinema. para os jovens, a coisa continua ótima, com
Quando criança, com onze anos de tudo aquilo que a ocasião permite, inclusive
idade, na primeira série do ginasial, a grande os problemáticos excessos.
professora supra citada, Dona Yola, explicando Comecei a freqüentar os bailes dos
a questão do Sistema Solar e do envelhecimento adultos com 12 anos (antes, ia às vesperais)
dos astros, disse que o Sol, estrela de quinta- e, para mim, era uma alegria poder ficar até
grandeza e que está no centro do sistema, se às 4, 5 horas da manhã, em função daquela
extinguiria dentro de alguns bilhões de anos. festa no Parque Clube (em cuja decoração
Foi, esta revelação, um dos maiores sustos da se destacavam as máscaras de papel-
minha vida! De lá para cá, tudo se tornou bem machê, enormes). Como em minha casa só
menor para mim. Mas, como incomoda! nasceram filhos homens, toda liberdade nos
2008

(Pirajuí, 10 de fevereiro de 2007) era dada, desde muito cedo: bailes, viagens

585
desacompanhados etc. Só não tínhamos sucessos de sempre. A parte menor, mas

2006
direito à chave da casa, pois minha mãe também deliciosa, era representada pelo
fazia questão de abrir a porta para todos os samba, pelo frevo e por alguma maravilhosa
filhos, fosse a hora que fosse e, com isto, ela marcha-rancho.
possuía o controle [a ciência, melhor dizendo] Nem é preciso dizer que o lança-
da chegada. Havia, na cidade, lugares perfume corria livre e solto, até que, por
outros onde a alegria corria solta, como no motivos que todos conhecem, acabou sendo
Pirajuí CC e numa agremiação pupular, que proibido. Mas, na época, era curtido como
chegou a ter um esboço de escola de samba, brincadeira, mesmo pelas crianças, que o
comandada por Dona Ruth, popularmente ganhavam de seus pais. O carnaval tinha
conhecida como Ruth Preta, figura magra, cheiro de suor, de mistura com o odor do
alta e alegre e que marcou o nosso modesto papel das serpentinas e confetes, álcool
carnaval de rua, representado pelo corso, mais lança-perfume. E olha que essa coisa
2007 com direito a carro alegórico e tudo o mais. de líquido cheiroso já rolava no Brasil do
Porém, predominavam automóveis, que século XIX!
ficavam rodando por horas e horas, cheios Bem, aos vinte anos de idade eu,
de gente. Nas calçadas, muitas pessoas entristecido, já não curtia dançar e o
apreciando e brincando. Carnaval, para mim, perdera a graça. E
Minha mais antiga memória de marcha tenho estado por fora da folia nas últimas
carnavalesca foi “Saçaricando”, que tocou décadas e, mesmo ficando em Pirajuí, ignoro
muito em rádio e que, se não me engano, como as coisas se desenrolam. Vejo um
era cantada por Virgínia Lane. Porém, pouco de televisão e durmo. Que os outros
dezenas de outras marchinhas vieram a se divirtam!
se somar àquela, ano após ano. No salão Houve pelo menos um filme, que eu
do Clube, uma orquetra, que dava poucos saiba, que registra o carnaval em Pirajuí, no
intervalos e castigava principalmente nas Parque Clube. Anos 40? Um tal Sr. Pacheco -
2008

marchinhas: novos e antigos sucessos: de quem penso que o nosso Tito Madi poderá

586
dar um bom depoimento - mostrou-o em COMILANÇA AQUI E NO CINEMA

2006
Santa Isabel do Ivaí, no Norte do Paraná,
numa sessão especial para pirajuienses que Já cheguei a escrever nesta coluna
lá se encontravam. Havia seqüências de sobre comida e sobre como - tristemente - no
foliões na piscina, entre outras tantas. Eram momento em que melhor podemos apreciar
os meados dos anos 60. Onde estará esse os sabores, as sutilezas gustativas dos
filme? Importante que esse fragmento de alimentos, é quando devemos justamente
memória não se perca. fechar a boca e só abri-la após selecionar
Pirajuí deveria se mobilizar no sentido e diminuir o que vamos comer. E os livros
de possuir um departamento para cuidar da de culinária - e isto é cultura - partem da
memória da cidade, departamento, este, que suposição de que todos vão muito bem de
reuniria textos, fotos, filmes, objetos etc, saúde.
com todo o material digitalizado e disponível Como seria bom, em qualquer idade,
2007 na REDE. Um site PIRAJUÍ iria bem. E é coisa podermos ter uma cozinha experimental
que Marcelo Pavanato curtiria imensamente, (um laboratório culinário, como diria
empenhando-se para a sua concretização. Haroldo de Campos). E é bom que se saiba
Para encerrar esta crônica, lembraria que a comida, que tem a obrigação de ser
a afirmação de Oswald de Andrade, no gostosa, depende não só de ingredientes
Manifesto da Poesia Pau-Brasil, de 1924: “O especiais (não necessariamente caros), mas
Carnaval no Rio é o acontecimento religioso do know-how, da magia do (a) cozinheiro
da raça”. Evoé Baco! (a), que deverá contar com ajudantes que,
(Pirajuí, 17 de fevereiro de 2007) se espertos, também se tornarão magos da
culinária. Há quem faça milagres com tão
pouco!
Certa vez - e eu ainda nem cogitava de
cirurgia cardíaca - fiz um plano mirabolante
2008

que, de antemão, já não cumpriria: cometer

587
suicídio a médio-prazo, pela boca. Ou seja, minha seriedade fingida. Porém, é claro que

2006
fazer um regime alimentar, antítese do nem pensei em levar a coisa adiante. Pelo
que pregam os médicos e nutricionistas: contrário, abandonei certos maus hábitos
comer muito e bem, ingerindo coisas que alimentares, mas não de todo, apesar do
hoje são consideradas venenosas, de par aconselhamento das nutricionistas, com as
com alimentos até saudáveis. Muita carne quais tive a oportunidade de conversar no
de porco, todos os embutidos, alho frito na hospital, há cerca de um ano. A recuperação
manteiga, as carnes mais gordas dos bovinos, do meu apetite foi algo muito rápido: voltei
vísceras de carneiro, asas de frango, patês a ter um imenso prazer com comida. As
muitos, principalmente o “foie gras”, [tudo o refeições, para mim, voltaram a ser os
que fosse feito com ovos] feijoada, comida grandes acontecimentos do dia, mesmo com
árabe nadando na manteiga, azeite no a comida mais simples do mundo: tomate
bacalhau, até onde não puder mais, tortas com shoyu, para mim, chega a ser uma
2007 doces e salgadas, compotas, saladas de todo festa, mas nunca paro por aí.
tipo, principalmente as que levam batata, Tudo isso me faz lembrar de filme
churrasco, muito carboidrato de macarrões- que ficou famoso no Brasil, bem antes de
mil, arroz de todo tipo, pães, azeitonas, ser permitido pela então censura e que é
mortadela, presunto, queijos brancos e impressionante: A COMILANÇA (LA GRANDE
amarelos, quibe cru, frituras várias, do pastel BOUFFE), de 1973, dirigido por Marco Ferreri
de feira à coxinha e ao croquete e daí para e que conta a história de três amigos que
diante. Num período de três anos estaria resolvem se recolher numa casa super-
morto, mortinho da silva, não sem ter tido, abastecida e comer, comer, até que não
antes, grande sofrimento, com indisposição pudessem mais. Ao final da comilança os três
e dor física e tudo o mais a que tem direito morrem sem nenhuma glória. Excelentes
um glutão. atores (entre eles Marcello Mastroiani e
Expus o tal plano para uma colega, Michel Picoli) tornam a coisa mais chocante
2008

que chegou a se assustar, tamanha a ainda. Após assistir a esse filme, as pessoas

588
são acometidas de uma anorexia passageira, Modernismo paulista, já que, desde aquela

2006
a ponto de dispensar a costumeira pizza do época - anos 60 - meu interesse pelo
pós-sessão de cinema. assunto passou a ser grande, donde o
Dizem que uma das receitas da estudo na base do “devagar e sempre”…
longevidade é a frugalidade no alimentar-se. sempre mesmo! Porém, daquelas figuras
Porém, são poucos os que conseguem não que poderia ter conhecido pessoalmente
repetir uma comida que esteja deliciosa. O (muitos ainda viviam e eram acessíveis), só
que fazer num inverno canadense ou sueco, estive com Tarsila do Amaral e, de leve, com
por exemplo? Comêssemos os alimentos “in Sérgio Buarque de Hollanda. Por outro lado,
natura” e não teríamos grandes problemas. procurei ler/ver as obras produzidas por
Mas está aí toda essa culinária que, em todos: os do primeiríssimo momento e os de
última instância, é parte integrante da (s) pouco depois. Também, li o que se escreveu
cultura (s). É preciso ser-se culto, também, sobre eles, assim como vasculhei a cidade
2007 em termos da necessidade que é a ingestão de São Paulo em busca de remanescentes
de alimentos. Bom apetite! arquitetônicos etc.
(Pirajuí, 24 de fevereiro de 2007) Eis que, ao longo das décadas,
principalmente como docente, tive a
oportunidade de encontrar parentes ou
aparentados ou até contraparentes daqueles
que estudei, admirei, amei, sendo que, em
muitas ocasiões, sabia até mais sobre os
artistas e intelectuais em questão do que os
REVERBERAÇÕES MODERNISTAS: OS seus jovens - ou nem tanto - descendestes
DESCENDENTES em linha direta ou indireta.
De Oswald de Andrade, conheci um
Adolescente, ainda, poderia ter seu neto: Rudá, filho de Rudá, por sua vez
2008

procurado alguns sobreviventes do filho de Oswald com Pagu, a Patrícia Galvão

589
(Pat para os da família), que se integrou ao enterrada à rua Sergipe, nesta Paulicéia, no

2006
grupo dos modernistas, em fins dos anos Cemitério dos Protestantes, muito embora
20. Pagu, muito jovem, encantou os mais tivesse o lado católico, pela parte italiana
velhos com seu arrojo e conquistou o amor dos Malfatti. Os meninos chegaram a me
de Oswald, que deixou Tarsila por ela. Mais mostrar documentos da família, o que me
que uma mulher-artista-da-palavra, foi uma preocupou, já que transportavam, com a
libertária pioneira, com atuação política maior inocência, um material precioso para
que lhe custou caro. Mas é essa atuação o pesquisadores.
que lhe garante um lugar de destaque na De Tarsila do Amaral, tive notícias, por
História. Ainda com relação a Pagu, conheci, uma aluna da FAAP, de uma sua sobrinha-
como professora, na EEPSG “Prof. Fidelino neta, a propósito do fato de Tarsila ser
de Figueiredo”, Vera Fragoso Taunay, sua assunto recorrente em minhas aulas. Com
sobrinha preferida - filha da irmã Sidéria - parentes mais distantes, tenho tido contato:
2007 pessoa muito inteligente, uma cosmopolita. Aracy Amaral, a grande estudiosa da obra da
De Dona Olívia Guedes Penteado pintora e do Modernismo em geral, com seu
conheci dois tataranetos, que traziam o filho André Amaral de Toral e tenho visto,
nome Silva Telles (que advém do de seu com constância, na FAAP [onde é professora],
genro Gofredo, casado com Dona Carolina): Suzana Amaral, a cineasta, irmã de Aracy.
Thereza Cristina, no CEPE “Pequeno Príncipe” No semestre passado, fui professor, na
e Guilherme, no IA-UNESP, ambos meus FAAP, de Alexandre, bisneto do homem que
alunos. introduziu a arquitetura moderna no Brasil:
De Anita Malfatti, conheci adolescentes Gregori Warchavichik, que era casado com
seus parentes na EEPSG “Prof. Fidelino de uma Klabin, irmã da mulher de Lasar Segall,
Figueiredo”: os Krug, Daniel e Alexandre. de quem cheguei a conhecer uma neta, em
Anita descendia, por parte de mãe, de casa de Samira Chalhub. Segall expôs em
alemães com passagem pelos Estados Unidos, São Paulo e Campinas, em 1913, porém, sua
2008

os Krugg, protestantes, o que explica estar importância para a arte brasileira advém de

590
sua atuação a partir dos anos 20, quando se ENCONTROS MODERNISTAS NA

2006
fixou definitivamente no País. PAULICÉIA
De Paulo da Silva Prado, um dos
patrocinadores da Semana de 22 e escritor É preciso ter muito boa vontade,
de méritos - autor [entre outros textos] do paciência, enfim, disponibilidade para
RETRATO DO BRASIL e do prefácio ao PAU oferecer com freqüência a casa para um
BRASIL de Oswald de Andrade - conheci dois grupo de pessoas que tenham alguma
jovens parentes, que foram meus alunos na afinidade intelectual e artística. Necessária
FAAP. se faz, também, a crença num projeto
Geralmente, nenhuma informação se maior: não o meramente individual, mas
obtém dessa descendência, pois a pesquisa o do grupo. Reuniões não se restringem a
adiantada já revelou muito do que, de bares, clubes, ou lugares muito especiais,
fato, tem importância para a sociedade mas se estendem a residências de pessoas
2007 como um todo. Porém, é quase impossível que aceitam e gostam de receber, mesmo
não ficar curioso quando se topa com um com todo o desgaste físico e mental que isto
nome daqueles. Desencadeia-se toda uma acarreta.
avalanche de fragmentos de memória e daí, No ambiente paulistano das três
as perguntas são inevitáveis. Tudo o que primeiras décadas do século XX, temos
se refira a nosso ídolos nos interessa: das notícia da residência do Senador Freitas Valle,
pequenezas às grandezas. a Villa Kyrial, situada à Rua Domingos de
Em tempo: vai, aí, uma correção: Morais (já demolida, há muito tempo), mas
SAÇARICANDO, com ç! que acolheu muita gente, representante de
(Pirajuí, 03 março de 2007) uma época artisticamente de “fim-de-tarde”
e até pré-modernista, adentrando a época
de renovação das linguagens no Brasil, que
teve como centro irradiador a cidade de São
2008

Paulo. A “garçonière” de Oswald de Andrade,

591
à Rua Líbero Badaró, constituiu-se, por cocheira para fazer o seu salão modernista,

2006
algum tempo, num ponto-de-encontro dos que foi decorado por Lasar Segall. A casa
que fariam a revolução modernista. Porém, senhorial que se situava na esquina das
as principais casas que recebiam pessoas ruas Conselheiro Nébias com a Duque de
(geralmente, os encontros ocorriam num Caxias, foi demolida e hoje, em seu lugar
determinado dia da semana), em função está plantado o decadente Hotel Comodoro
das discussões sobre arte, literatura e que, em seu saguão, traz placa alusiva à
outros tantos assuntos, foram quatro e disso antiga residência de Dona Olívia. Em fins
já tratou Mário de Andrade em textos dos do século XIX, inícios do XX, o Bairro dos
anos 40 do século passado. Mesmo assim, Campos Elísios era aristocrático e aprazível.
discorrerei sobre o assunto, com brevidade, Já procurei a ex-residência do ex-
porém. casal Tarsila-Oswald, à Alameda Barão de
A casa de Paulo Prado - aristocrata- Piracicaba (próxima à antiga rodoviária), em
2007 riquíssimo-inteligente-e-bom-escritor - que houve inúmeros encontros-recepções
situada à Avenida Higienópolis, recebeu e que abrigava, entre outras obras do
muita gente. Muito se discutiu lá. Teve Modernismo europeu, a mais importante
hóspedes ilustres, como o poeta suíço- tela da série “Torre Eiffel”, 1911, de Robert
francês Blaise Cendrars. Mas, como colocou Delaunay, pintor cubista, co-criador do
Mário de Andrade, chegou um tempo em que “Orfismo” (Cubismo Órfico). A casa não
as reuniões se tornaram impossíveis, já que mais existe e, enquanto existiu, teve sua
passaram a ser minadas por parentes do importância ligada ao famoso casal, que se
anfitrião, que havia se tornado uma espécie desfez em fins dos anos 20: Oswald partiu
de patriarca dos Silva Prado. No lugar da para uma outra vivência amorosa, com
casa, hoje, há um edifício residencial. Patrícia Galvão, a Pagu e Tarsila amargou
A casa de Dona Olívia Guedes por algum tempo o abandono e partiu para
Penteado acolhia os artistas e literatos, nos outras ligações.
2008

anos 20 e ela chegou até a reformar a antiga A única das casas famosas que continua

592
de pé é justo a de Mário de Andrade, situada Este, desfez a amizade com Paulo Prado,

2006
na Barra Funda, à Rua Lopes Chaves. Mário, o que reverberou na quebra, também, das
diferentemente dos outros, muito ricos (se relações de amigo com Blaise Cendrars,
bem que Oswald e Tarsila amargaram uma que conhecera em 1923. Caminhos e
dureza brava, a partir de 1929-30), era um descaminhos observaram-se nas artes,
classe média sempre duro, mas isso não no Brasil. As pessoas se indispõem, mas o
o impedia de comprar obras de arte, de trabalho feito junto fica. Mais difícil do que ter
brasileiros e até de gente de fora (chegou a testemunhos da História é poder conservá-
ter obras de Picasso e Lothe) e de adquirir los.
livros e revistas e de manter, à época de sua O Brasil tem, sim, memória, mas
morte, em 1945, intacto o seu acervo que, mantê-la, custa muito dinheiro, boa vontade
em grande parte, foi comprado da família e apreço pelo passado, coisa que somente a
pela USP e se encontra no Instituto de educação - de casa para a escola - consegue
2007 Estudos Brasileiros. Mesmo intacta, a antiga desenvolver. É preciso canalizar parte dos
residência marioandradina (por décadas, esforços da sociedade para que a mémória,
pois Mário havia nascido em outra casa, à que é onde se embasa um povo, possa ser
Rua Aurora) ficou sem graça, já que quase conservada.
nada contém do que possuía à época do (Pirajuí,10 de março de 2007)

criador do MACUNAÍMA e hoje, se não me


engano, abriga um tal Museu de Literatura
e promove algumas oficinas envolvendo o
exercício literário.
A partir de fins dos anos 20, houve
dispersão dos antigos companheiros de luta:
Oswald se separou de Tarsila e ganhou a
antipatia de Dona Olívia Guedes Penteado.
2008

Mário rompeu definitivamente com Oswald.

593
LER OU NÃO LER LIVROS: EIS A ao que dali conhecemos, por mais que o

2006
QUESTÃO conhecido seja pouco e, daí, vamos tentar
uma decodificação. Por outro lado, se uma
Nos processos de comunicação mensagem for totalmente redundante, ela
(humana), toda mensagem mobiliza um será dispensável, pois não possibilitará
certo repertório para ser elaborada e exige, comunicação alguma, já que nada traz
do destinatário, um outro tanto para ser de informação. Temos de considerar a
decodificada. Toda mensagem possui teor estreita relação que há entre informação ou
de redundância, que se constitui em tudo o redundância e repertório do destinatário:
que o destinatário já sabe. Porém, deverá o que é pura redundância para um, poderá
possuir um certo teor de informação, que é trazer alguma informação para outro.
aquilo que o receptor ainda não sabe e que Geralmente - e isto é um vício de nossa
entrará para ele como um acréscimo. civilização - a leitura de livros é vista como
2007 Quanto maior for o teor de informação, altamente positiva e os que lêem são as
mais a mensagem afirmará a sua força. pessoas cultas, de alto repertório. É preciso
Quanto menor, menos importância terá. Se se considerar: 1º, que não é apenas por meio de
eleva muito o repertório, a audiência tenderá leitura de livros que adquirimos conhecimentos
a baixar e, do contrário, ela aumentará. A importantes e 2º, que nem todo livro é de fato
redundância, numa mensagem, desempenha uma fonte de conhecimentos relevantes. A
um importante papel, pois possibilita o maior parte do que se publica é lixo cultural,
trânsito da informação; se contivesse apenas a começar pelos best sellers. Porém, leitura
informação, seria inviável: o destinatário continua fundamental para a aquisição de
não teria onde se apegar para se aproximar um repertório elevado e amplo. E s s a s
do que estaria sendo transmitido. considerações, em grande parte hauridas de
Quando nos deparamos com algo livros e de aulas que tive com Décio Pignatari,
por demais informativo, complexo, Lúcia Santaella, Arlindo Machado e outros,
2008

surpreendente, procuramos logo nos apegar me vêm a propósito de reflexões a que sou

594
obrigado, dado o fato de eu ministrar aulas vergonha, de tanta repetição de coisas que

2006
de Teoria da Comunicação. Daí, lembrei-me eu já sabia de cor: livro feito com base em
de que cheguei a ler livros muito ruins, dos toda uma bibliografia, já por mim visitada.
quais gostei na época e desgostei depois. Bandeira, eu havia estudado muito, desde
Li livros desagradáveis por pura obrigação 1967, ano em que preparei um seminário
do ofício discente e docente e li livros muito para a Profa. Chainy João Racy. Tive,
ruins (posto que redundantes) até o final, também, muito incentivo de Paulo Miranda,
na esperança de que que, nem se fosse na um seu grande conhecedor. Li toda a poesia
última linha, encontraria algo de aproveitável do mestre e passei a me interessar por
e, também, para não me acostumar a tudo o que lhe dizia respeito. Cheguei a
abandonar leituras. desafiar aluninhos meus: “Tentem fazer
De todos os livros que li na vida, gostei uma pergunta sobre Bandeira, que eu não
de muitos: há os que cheguei a ler de três saiba responder!” E nunca cheguei a falhar.
2007 a mais de vinte vezes… acreditem-me! E 2. De Fernando Paixão, O QUE É
sempre com o espírito renovado, descobrindo POESIA. […]
coisas: é o caso de alguns contos de Edgar 3. De Arruda Dantas, DONA OLÍVIA
Poe, de duas das peças restantes de Sófocles, (OLÍVIA GUEDES PENTEADO). Texto
do MEMÓRIAS… de Machado de Assis etc. laudatório, obviamente, que não constrói a
Poemas? Há aqueles que já li mais de uma grandeza de ninguém. Inconsistente no que
centena de vezes e sempre com grande há de factual, numa escrita cheia de adjetivos
interesse. Mas quero falar brevemente dos invertebralizadores de qualquer texto.
três piores livros que li em toda a minha Cheio de transcrições de opiniões alheias,
vida, em tempos diferentes e que me foram parece que faltou mesmo é pesquisa. Dona
inúteis, pura perda de tempo: redundâcia Olívia mereceria, como já mereceu, melhor
total. São: avaliação no contexto cultural de São Paulo
1. De Stefan Baciu, MANUEL BANDEIRA dos anos 20.
2008

DE CORPO INTEIRO. Eu chegava a corar de Se alguém que vier a ler este meu

595
texto, duvidar do que afirmo, procure as tais utilidade prática e nem outra qualquer, mas

2006
obras e tire a prova. Porém, há coisa melhor aprendemos porque a nós agrada o saber
para se fazer do que ler livros desse tipo. e acreditamos que entre saber e não saber,
Não os recomendaria nem para aqueles que mais vale o inútil (?) do saber (parodiando o
desconheçam os assuntos tratados, porque João Cabral de “O artista inconfessável”).
os tais livros só poderiam piorar as coisas. E O saber não sofre desgaste: quanto
eu, que passei por tal experiência, só comento mais o passamos, mais nos enriquecemos.
tais obras para exemplicar a inutilidade de Das coisas que podemos ter: riquezas
mensagens hiper-redundantes. Afinal, cada materiais, liberdade, saúde, só não periga
um lê o que bem quer, ou é obrigado pelas perdermos aquilo que sabemos. Nosso
circunstâncias. Coisas do ofício. repertório é o único bem inalienável e dele
(Pirajuí, 17 de março de 2007) podemos usar e abusar. E onde quer que
estivermos, lá estará o tal, disponível.
2007 É muito melhor aprender, quando
estamos motivados e isto não quer dizer
que vemos no fato, necessariamente,
uma utilidade prática. Do mesmo modo,
é melhor ensinar quando sentimos que
PARA QUE SERVE SABER ISSO? há receptividade. Quando tomamos gosto
pela coisa, não questionamos a validade de
Sempre ouvimos dos mais velhos: conteúdos, a ponto de lançarmos a bomba:
“Saber nunca é demais”, ou “Saber não ocupa “Para que serve saber isso?”, pergunta que
espaço”. E é próprio dos humanos ensinar e muito irrita aquele que está no papel de
aprender coisas, sem sequer pressentir se instrutor, de professor.
terão alguma utilidade (prática) no futuro ou Foi mais ou menos essa pergunta, feita
no tempo presente. Diria mais: a maior parte por um aluno, que, na Antigüïdade, irritou
2008

do que aprendemos ou ensinamos não tem Euclides, o geômetra. E isso se repete com

596
constância, de lá para cá. Eu mesmo, embora No fundo, mesmo, tenho pena dessas

2006
não dê muita chance, já a ouvi muitas vezes pessoas e também de mim, que sou forçado
e houve vez em que foi por pura maldade. a ouvi-las. Em verdade, elas nem bem
Você fala do quanto é importante a boa sabem o que estão fazendo na escola e -
música para o aperfeiçoamento de um ser isto é quase uma regra - costumam ter a
que vive em sociedade, cita Mozart e o aluno pior das performances escolares. Porém, no
de 7ª série pergunta: “Professor, Hitler ouvia meio dessas poderá haver uma genial, mas
Mozart?” Saia dessa! que a tal tenha o mínimo de boas maneiras.
Neste ano de 2007 já ouvi, de alunos de Acontece que, via de regra, são pessoas que
1º ano, cobranças desse tipo. Percebi um certo acham que sabem muito e que devem investir
ar perverso e, ao mesmo tempo em que senti contra um saber já estabelecido, que é o
dó de gente que precisa saber da utilidade das da “Academia” (leia-se: Universidade). Sei
coisas, em plena época de formação, tinha também, que a quase totalidade das pessoas
2007 de dar uma resposta mais ou menos polida. que revolucionaram os saberes no Mundo,
Um queria resultados de ordem intelectual eram aquelas que muito bem conheciam a
imediatos, a partir de proposta que era para tradição, daí o poderem subvertê-la. Alunos
ser desenvolvida durante todo o semestre: não devem ser seres puramente cordatos,
falei que, se quisesse testar algo, que testasse passivos, porém, que tragam questões
uma receita de mingau de maisena (maizena): consistentes e com alguma pertinência. Daí,
dissolver a maisena em leite frio e ir mexendo o professor terá de repensar os seus próprios
até engrossar; quanto maior a quantidade de valores e - quem sabe? - poderá até reformulá-
maisena, mais consistente seria o mingau etc. los. Há que se dar tempo ao tempo. Tempo
Para a aluna que perguntou para que serviria de estudar. Tempo de contestar. Tempo de
saber da origem grega de uma certa palavra, construir.
disse que há coisas que não têm utilidade (Pirajuí, 24 de março de 2007)

prática, mas que alimentam o espírito e que


2008

era este o caso.

597
A COLEÇÃO ADOLFO LEIRNER Minha grande curiosidade era: que

2006
destino o milionário dará à sua coleção?
Há alguns anos, pude ver, no Museu Pensa em constituir um museu para o
de Arte Moderna de São Paulo, a parte precioso acervo, que conseguiu formar
principal da coleção Adolfo Leirner, centrada durante décadas? O nome Leirner, tão ligado
na vertente construtiva da arte brasileira às artes, por causa de Felícia Leirner, Nelson,
(entenda-se: abstracionismo de linha Giselda, Sheila e suas (de Adolfo) filhas
geométrica: Concretismo, Neoconcretismo Jac e Betty, terá um museu de importância
e afins). Admirável a especialização, de par nacional e até internacional? Antes que eu
com a qualidade das peças e a conservação pudesse obter alguma resposta soube, por
do material. um colega, que a parte principal da coleção
Na época, não cheguei a comprar - cerca de cem obras - havia sido vendida
o catálogo que, em verdade, é mais uma para um museu estadunidense, de Houston.
2007 panorâmica da arte de linha construtiva no Fiquei chocado e desesperado, ainda mais
Brasil, com excelentes ensaios, ilustrados que não existe lei que barre a saída de obras
pela dita coleção. A organização do volume que não sejam tombadas pelo Patrimônio
ficou a cargo da crítica e historiadora da Histórico e Artístico Nacional.
arte Aracy Abreu Amaral. No acervo: Judith Plantou-se, no Brasil, a polêmica,
Lauand, Milton da Costa, Hélio Oiticica, com maioria dos aficionados contra a saída
Waldemar Cordeiro, Franz Weissmann, Ivan das obras e uma pequena parte a favor. E
Serpa, Lygia Clark, Fiaminghi, Sacilotto, só agora se fica sabendo que, desde 1993
Geraldo de Barros, Flexor e tantos outros - antes, portanto, da exposição no MAMSP
de igual importância, todos muito bem - Adolfo Leirner vem oferecendo a coleção
representados. Li o catálogo em dezembro de a instuituições brasileiras, sem receber
2006, emprestado da Biblioteca Municipal de nenhuma resposta positiva com relação à
Pirajuí e só depois, em São Paulo, consegui compra.
2008

adquiri-lo de um alfarrabista. O que levaria um homem, que

598
aparentemente não precisa de mais dinheiro, desse tipo, que só vêm para empobrecer

2006
a vender uma coleção tão importante e que, ainda mais nossa maltratada cultura. Que se
para formá-la, se empenhou tanto? Era forme, em Brasília, um acervo para compor
só um investimento inteligente ou teria o o maior museu brasileiro de arte construtiva,
colecionador algum amor pelas obras? Diz pois, em nenhuma de nossas cidades estaria
ele que em Houston as obras terão garantia melhor. Deus salve o Brasil!
de uma boa conservação e exibição e, (Pirajuí, 31 de março de 2007)
portanto, estarão num bom lugar. Daí é que
eu volto a perguntar: o que estão fazendo
nossas grandes instituições financeiras, que
lucram bilhões por ano, que não resolveram
o problema?
É óbvio que, embora as obras sejam
2007 patrimônio dos brasileiros, possuem um ANITA MALFATTI, VIDA-OBRA:
proprietário; afinal, vive-se num país O LIVRO
capitalista, num mundo globalizado. Tudo
bem que sejam vendidas, mas que não Até que enfim, cerca de vinte anos
saiam do país, como aconteceu com milhares após o seu lançamento pela IBM-BRASIL, sai
de peças importantes. É claro, também, o livro de Marta Rossetti Batista sobre Anita
que o fato de as obras passarem a fazer Malfatti, desta vez pela Editora 34 (dezembro
parte do acervo de um museu americano, de 2006): ANITA MALFATTI NO TEMPO E NO
fará com que sua cotação no mercado de ESPAÇO, em dois volumes, sendo o segundo
arte e notoriedade cresçam. Porém, não um catálogo da obra. Não sei que tipo de
me conformo com sua saída do País e peço contrato de cessão de direitos a autora tinha
para que se elabore um projeto de lei, no com a multinacional, mas a demora em
Congresso Nacional, e que se o vote em liberar o texto para edição acessível chegou
2008

regime de urgência, para impedir coisas a cansar. A obra havia sido distribuída como

599
brinde pela própria empresa, a particulares obras realizadas em seu período

2006
e instituições culturais e, quando localizada estadunidense - 1915-1916 - e que motivou
num sebo, o preço excedia possibilidades artigo nefasto de Monteiro Lobato, a pintora
de muitos interessados. Outro exemplo não chegou a ter mais uma produção digna
lamentável é o dos dois volumes da de nota, mas o que já havia feito bastou para
HISTÓRIA GERAL DA ARTE BRASILEIRA, dar-lhe um lugar de honra na Historia das
obra organizada por Walter Zanini, hoje Artes no Brasil. A autora aborda o transcurso
esgotada, mas que, além de distribuída dos anos: de 1918 até a morte, de forma
pela Fundação Moreira Salles (que a editou) muito respeitosa, mas nada consegue elevar
como brinde, era vendida pela própria, por uma produção que sempre ficou muito
um preço altíssimo. aquém de obras como O HOMEM AMARELO,
O livro sobre Anita Malfatti foi resultado A BOBA, O FAROL, A ESTUDANTE etc.
de uma longa pesquisa que a estudiosa fez Anita Malfatti (1889-1964) foi uma
2007 e que, portanto, deveria já estar, há muito sofredora desde o nascimento e nem
tempo, editado de modo a poder ser adquirido pôde, para sua arte mais radical, contar
pelos aficionados das artes no Brasil e, com apoio da família, que foi a primeira a
particularmente os admiradores da pintora, reprová-la em sua volta dos Estados Unidos,
que foi quem de fato trouxe a consciência trazendo obras que falavam um repertório
de uma nova linguagem nas artes plásticas fundamentalmente expressionista. Antes,
brasileiras, atraindo gente de outras artes de 1910 a 1914, havia estado na Alemanha
para o processo que ficou sendo conhecido e, depois da Semana de 22, em que ainda
como Modernismo brasileiro e que teve como foi a principal figura da mostra de artes
centro de irradiação a cidade de São Paulo. plásticas, com as coisas feitas no período
Não à toa as pessoas se centram estadunidense, foi se “reeducar”, com bolsa
na Anita até 1917, que é o que realmente do Governo do Estado de São Paulo, na
interessa. Depois desta data, com a famosa França.
2008

exposição em que mostrou principalmente O livro de Marta Rossetti Batista,

600
embora não traga sequer uma ousadia desempenhou por muito tempo o papel de

2006
crítica, é fundamental para se compreender embaixador da família.
vida e obra da artista, dada a pesquisa Traz na face a marca Neme, sendo-o
exaustiva e cuidadosa que fez, assim como até a sola do pé. De fato, os filhos de meus
foi cuidadosa na organização e notas às avós eram os mais Neme dos Nemes, já
cartas que Mário de Andrade escreveu à que a mãe de meu avô era Neme, assim
pintora e que integram um outro volume. como o pai de minha avó. Enfim, meus
Trabalhos como este são fundamentais para avós maternos eram primos. Dos irmãos de
nossa história e contribuem para os que em minha mãe, ele sempre foi o mais presente,
vierem em seguida para operar uma síntese. o mais disponível em momentos de precisão,
Que terá de ser feita. nunca dizendo não a nada que dele fosse
(Pirajuí, 07 de abril de 2007) solicitado.
Uma fortaleza até à maturidade,
2007 era capaz de levantar duas sacas de 60
quilos, uma em cada mão e diz que foi
fundamentalmente esse o exercício que
fez dele o gigante que foi: o trabalho junto
à loja de seu pai: CASA ÚNICA e filiais.
TUTA: MEU TIO FAZ 80 ANOS Dele pode-se afirmar que foi um atleta a
serviço de Eros, tendo feito a alegria de
Seu nome é Massud, Massud Cury, muitas mulheres, até que optou por uma,
mas desde criança é conhecido como Tuta Ana, quando assentou o facho.
ou, às vezes, é chamado de Massa. Nasceu Era um motorista admirável, no qual
em 24 de abril de 1927, um dos doze filhos se podia confiar cegamente e, dos filhos
de meus avós maternos Rachid e Lula. Um de minha avó Lula, foi o alvo do maior
filho especial, como todos, porém mais ciúme da mãe. Como liberar uma jóia de
2008

especial porque, sociável que sempre foi, pessoa, um cara classudo e respeitador,

601
o representante da família em qualquer

2006
circunstância? Do ótimo filho ao tio boa-
praça, Tuta chega aos 80 anos e, embora
ele mesmo sinta que não é mais o mesmo
- aquela fortaleza invejável - continua um
privilegiado, em boa forma, como comentou
comigo meu irmão Válter: um octogenário CRIADORES: VIAJAR É PRECISO?
ainda com disposição para trabalhar e
trabalhando! Uma das coisas que tenho frisado
Eu, como sobrinho, sempre o tive em minhas aulas nesses anos todos é
em altíssima conta e mereci dele toda a de que, para a aquisição de um alto
a atenção que alguém possa merecer, repertório, os livros, muito embora sejam
não me lembrando de nada que frente a importantíssimos, não se constituem na
2007 mim o desabonasse. Além da simpatia, única fonte ou fonte quase exclusiva:
que é uma de suas marcas, louvo nele o 1º porque tudo depende do que se lê e
comportamento exato em sociedade, com 2º porque há muitas outras fontes e
o maior respeito ao próximo e a alegria processos por meio dos quais se adquirem
que o têm caracterizado. conhecimentos.
Faço votos de que Tuta, o tio Tuta, Um dos principais e mais prazerosos
tenha muitos anos de vida e com saúde é o das viagens que, entre outras coisas,
e com conforto e bem acompanhado, que nos colocam em contato direto com culturas
são coisas que ele merece e das quais diferentes, falando outras línguas que
tem desfrutado. Escrevo este texto em poderemos aprender, principalmente se
nome dos de minha casa em Pirajuí e, em passamos a residir no estrangeiro (como
especial, de minha mãe, sua irmã. Tuta: se dizia antigamente). Uma outra língua é
80 anos. Parabéns! todo um universo novo se abre para nós:
2008

(Pirajuí, 14 de abril de 2007) conhecer a língua de um povo significa estar

602
em posse, pelo menos em parte, de seus os nomes de Machado de Assis (1839-

2006
segredos, de suas particularidades. Se 1908), Mário de Andrade (1893-1945) e
você chega num país estranho falando e Paulo Leminski (1944-1989), os três com
bem a sua língua, via de regra, será mais domínio de outras línguas. Machado foi um
respeitado e conheço várias histórias sobre dos maiores artistas de prosa ficcional do
isto, as quais poderei relatar em outra século XIX e esteve sempre ligado à sua
oportunidade. cidade, o Rio de Janeiro. Mário de Andrade,
Dizem que é essencial fazerem-se em verdade, chegou pela Bacia Amazônica,
viagens e mesmo morar fora, pelo menos até Iquitos, no Peru: nunca saiu da
por um ano. Décio Pignatari sempre me América do Sul - tinha interesse em outras
cobrou isto (também Paulo Miranda), até culturas, porém, com o tempo, se centrou
que resolvi sair do País pela primeira vez. na coisa brasílica, o que conduziu alguns
Porém, saí pouco e penso cada vez mais de seus seguidores a equívocos: nenhum
2007 em viajar menos! Podemos até viajar sem com a grandeza de Mário. Leminski jamais
que saiamos de casa (veja-se o VOYAGE saiu do Brasil, mesmo tendo tido chances,
AUTOUR DE MA CHAMBRE - VIAGEM AO porém, era de fato um cidadão-do-mundo,
REDOR DE MEU QUARTO, de Xavier de interessando-se por civilizações outras,
Maistre, um dos mentores de Machado de com destaque para a japonesa. Outros
Assis), de nossa cidade, de nosso país e isto artistas só saíram do Brasil tardiamente,
sem nenhum “aditivo”, ainda mais agora quando já possuíam uma obra, um nome.
que dispomos de Internet e em segundos Com isto tudo, quero dizer que
acessamos o Mundo! as coisas dependem da disposição,
Antes, por meio de livros e conversas possibilidades e temperamento do artista.
se podia viajar (para isto bastando a Repertório se adquire com empenho, que
imaginação), adquirir conhecimentos e há pode ou não incluir viagens. Cada caso é
pessoas ilustres, cidadãos-do-mundo que um caso, nada garante nada, nada, porém,
2008

nunca saíram do Brasil e agora me ocorrem vem do nada. Um alto repertório requer

603
esforço, muita dedicação e até algum teve São Paulo como centro de irradiação -

2006
sofrimento, que resulta em prazer. Saber. para desespero de muitos que, provincianos,
(Pirajui, 21 de abril de 2007) não suportam as grandezas de que foi
capaz o Estado de São Paulo - espalhou-
se, prosseguiu, mudou de rumo, arrefeceu
etc e tem sido alvo de muitos estudos, por
parte de pessoas que dedicaram sua vida
à pesquisa.
Aracy Abreu Amaral, nesse campo, se
ARACY AMARAL E OS ESTUDOS SOBRE destaca, mormente quando o assunto são
O MODERNISMO NO BRASIL as Artes Plásticas e, desde os anos sessenta
do século passado, tem pesquisado e
Tem sido muito averiguado o publicado textos em forma de artigos
2007 Modernismo brasileiro, porque é justamente e livros, os quais têm contribuído para
nesse processo que começa a se configurar esclarecer inumeráveis pontos do processo
uma visão crítica do Brasil e de seu lugar modernista no Brasil. É claro que Aracy
como parte integrante do chamado Mundo Amaral se ocupou de outros momentos
Ocidental. É com os modernistas de São da história de nossas artes, incluindo as
Paulo que teve início um processo dentro do demais áreas da América Latina e chegando
processo, que é a “redescoberta do Brasil”, até às manifestações contemporâneas,
tendo como marco inicial o MANIFESTO mas o primeiro tempo modernista deve a
DA POESIA PAU-BRASIL, de Oswald de ela muito do que se sabe hoje.
Andrade, o qual não é nacionalista, como Aliás, o Brasil não tem consciência
normalmente se pensa, mas brasílico: do quanto deve à estudiosa, mas sabe
valoriza as coisas do País como um material que deve muito. Entre outros, seus textos
para a poesia. mais importantes saíram em forma de livro
2008

Pois esse Modernismo no Brasil, que e são: BLAISE CENDRARS NO BRASIL E

604
OS MODERNISTAS, ARTES PLÁSTICAS NA que possam conduzir a desavenças e não

2006
SEMANA DE 22 e TARSILA: SUA OBRA E radicaliza nas interpretações. Isto fica,
SEU TEMPO, todos, agora, pela Editora 34, então, por nossa conta.
em republicações. Em fins do ano de 2006, Quando se diz que o Brasil é um
a mesma editora lançou, em três volumes, país sem memória, não concordo. Tem
TEXTOS DO TRÓPICO DE CAPRICÓRNIO, memória que pode estar sendo abafada por
sendo o primeiro dedicado ao Modernismo problemas urgentes que nunca são de fato
(reunião de artigos já publicados e resolvidos. E memória (a sua preservação)
esparsos). custa planejamento, empenho, dinheiro. A
Nos livros de Aracy Amaral, tem- própria Aracy Amaral, em diversas ocasiões
se informação segura (tudo muito bem afirmou não ter, o País, memória, talvez
documentado), num texto que flui escandalizada com descasos observáveis em
prazerosamente. A sua pesquisa sobre toda parte. Porém, o trabalho inestimável
2007 Tarsila, por exemplo, deu um volume que que a historiadora prestou e tem prestado
dá gosto, adentrando, de detalhes como ao povo brasileiro prova que nossa terra
o do vestido de casamento da pintora tem memória. A questão é cultivá-la e
com Oswald de Andrade, em 1926, até Aracy Amaral tem contribuído muito para
à questão de sua prisão, no retorno de isto. Felizmente.
viagem à União Soviética, em inícios dos (Pirajuí, 28 de abril de 2007)
anos de 1930. A própria escolha do objeto
de estudo já mostra as grandes qualidades
da crítica de Arte.
Aracy Amaral não tem interesse em
polêmicas e isto deve ser coisa de seu
temperamento; por isto, mesmo podendo,
já que está munida como ninguém de toda
2008

uma documentação, não faz afirmações

605
A ESTRELA DALVA (RE-) DESPONTA Pery Ribeiro teve todo um calvário a

2006
percorrer, sendo filho de quem era e sendo
Li, recentente, as 350 páginas do os pais quem eram: excepcionais valores no
livro MINHAS DUAS ESTRELAS: UMA VIDA âmbito da música popular brasileira, porém
COM MEUS PAIS DALVA DE OLIVEIRA E gente de carne-e-osso, com todos os defeitos
HERIVELTO MARTINS, de Pery Ribeiro que isso acarreta. Além de carregar os
(auxiliado por Ana Duarte, sua mulher), problemas dos pais, estes se apresentavam
cantor que completa neste 2007 setenta como gigantes a serem superados, pois Pery,
anos. Dalva, há décadas, é uma das paixões que acabou por adotar o sobrenome artístico
de minha vida e eu não poderia deixar de Ribeiro, seria fatalmente comparado a Dalva
ler um livro que tratasse fundamentalmente e a Herivelto.
dela (e também do marido famoso), ainda A separação do casal foi uma novela
mais que escrito por seu filho-cantor Pery, dolorosa, em que Herivelto, associado a
2007 um excelente intérprete, um cantor que David Nasser (que, além de ser capaz de
quase não aparece nas mídias. cafajestadas, fez algumas das mais belas
Também, recentemente, pude assistir e imortais letras de canções que o Brasil já
à bela homenagem que fez à cantora nascida conheceu), tentava denegrir a reputação
em Rio Claro, São Paulo - mas que se radicou da Estrela Dalva (que sobreviveu muito
no Rio de Janeiro - o cineasta Júlio Bressane, bem ou até melhor como cantora, sem o
em seu último trabalho: FILME DE AMOR (o Trio de Ouro de Herivelto) na imprensa,
melhor filme a que assisti nos último 10 anos) em capítulos escabrosos, ao mesmo tempo
em que numa abordagem-cartão-postal da em que compunham respostas à cantora,
orla carioca, incluindo o Pão-de-Açúcar à que se tornou um valor nacional. Dalva,
noite, aparece a versão em português do na briga das canções, levou a melhor, pois
HINO AO AMOR, com uma Dalva fabulosa, grandes compositores lhe ofereceram peças
mais incrível que a incrível Edith Piaf, com que invariavelmente se tornaram grandes
2008

quem costumam compará-la. sucessos e qualquer canção de amor que

606
cantasse era encarada como parte da briga, um pouco culpado por fazer parte dessa

2006
mesmo que não o fosse. sociedade, às vezes tão injusta, mas absolvo-
Muito embora Pery Ribeiro tente ser me, por todo o amor que lhe dediquei e
imparcial, acaba - é claro - pendendo para a atenção que ponho ao ouvir até hoje as
o lado de Dalva que, apesar do sucesso canções interpretadas por ela. Resta o
estrondoso, era uma figura bastante frágil. consolo de saber que já com idade avançada
Há grandes sucessos na voz de Dalva de ela ainda fazia sucesso com as marchas-
Oliveira, que tocam e TOCAM até hoje. Nesses rancho - foi a maior cantora de marchas-
dias, ouvi algo na novela global das seis e rancho do País - de interpretação insuperável,
me certifiquei de que a cantora é marca- como RANCHO DA PRAÇA ONZE, BANDEIRA
registrada de uma época e voz soberana para BRANCA, MÁSCARA NEGRA. Brilha a Estrela
algumas situações. Para conhecer a Estrela Dalva nos céus do Brasil, do Rio (Claro) de
Dalva, o interessado deveria ouvir umas dez Janeiro, de Pirajuí. VIVA!
2007 canções, mas eu recomendaria começar pela (Pirajuí, 16 de junho de 2007)
primeira gravação de SEGREDO (Herivelto
Martins e Marino Pinto).
Pery Ribeiro entra em muitos detalhes
da vida de sua família, parecendo nada
esconder: desde o episódio com Izaurinha
Garcia, expulsa da casa por Dalva, por ter
dormido com Herivelto, até coisas mais AINDA A ESTRELA DALVA
importantes, como a estada de Orson Welles
no Rio de Janeiro e seus contatos com a Há muito o que ouvir para se formar
família Herivelto-Dalva (e, quando se gosta uma idéia de quem foi a cantora Dalva de
do objeto biografado, tudo interessa). Oliveira - 1917-1972, nascida Vicentina
Frente a todo o sofrimento por que Paula de Oliveira - e nem citarei aqui coisas
2008

passou Dalva de Oliveira, sinto-me também de início de carreira ou curiosidades como

607
a de dublê-de-voz de Carmen Miranda ou Marino Pinto), HINO AO AMOR (Edith

2006
de dueto com Francisco Alves em samba- Piaf-Margueritte Monnot. Versão de Odair
exaltação até engraçado para os padrões Marsano), PASTORINHAS (Noel Rosa-João
de hoje (e sempre que me lembro de Chico de Barro), FIM DE COMÉDIA (Ataulfo Alves),
Alves, vem-me à mente a figura de Madi ERREI, SIM (Ataulfo Alves), AVE MARIA
Madi, o Aziz, alfaiate, primo de minha mãe (Jayme Redondo-Vicente Paiva)…
e que possuía uma grande quantidade de É preciso que se faça uma recuperação
discos 78-RPM - do referido cantor, a Nora do legado de Dalva de Oliveira e penso que
Ney - coleção esta, de destino ignorado). o livro de Pery Ribeiro, referido por mim
Sambas, sambas-canção, marchas-rancho, na crônica da semana passada, seja um
tangos, boleros. Muita mágoa de amor, bom ponto de partida. Não gosto de falar
que isto é sempre assunto para mais um em injustiça, ainda mais em se tratando
poema, uma canção, já que a Humanidade, de valores como Dalva de Oliveira, que
2007 masoquista, tem sempre de alimentar-se da conheceram a glória em vida, mesmo tendo
própria dor, fazendo crer que a Felicidade experimentado um certo declínio que, no
esteja invariavelmente em algum lugar caso da cantora de Rio Claro, foi abrandado
do passado. Daí, que indicarei apenas pelos referidos sucessos das marchas-
algumas peças encontráveis em coletâneas rancho, como MÁSCARA NEGRA. Penso que
organizadas por gravadoras: AVE MARIA NO um valor verdadeiro - e é este o caso de
MORRO (Herivelto Martins), OLHOS VERDES Dalva - o tempo se incumbe de recolocar nas
(Vicente Paiva), QUE SERÁ (Marino Pinto- alturas. E é o que irá acontecer, acredito.
Mário Rossi), BOM DIA (Herivelto Martins- Lembro-me de um abominável
Aldo Cabral), ESTRELA DO MAR (Marino programa de televisão, em fins dos anos de
Pinto-Paulo Soledade), TUDO ACABADO 1960, dirigido por Carlos Manga, em que
(J. Piedade-Oswaldo Martins), MENTIRA pessoas famosas, decadentes ou não, lá
DE AMOR (Lourival Faissal-Gustavo de compareciam para serem humilhadas por
2008

Carvalho), SEGREDO (Herivelto Martins- um corpo de jurados um tanto esquisito:

608
comportava tanto valores firmados, como personalidade própria, o que fez com que

2006
verdadeiras fraudes, que acusavam e compositores lhe entregassem canções
expunham particularidaes da vida das inéditas), que fazia parte do tal júri (e nem
vítimas. Era o QUEM TEM MEDO DA importa se era tudo “armação”); Sílvio Luís,
VERDADE? Pois é, lá compareceram, entre em atitude bem cafajeste, teve a desfaçatez
outros: Dalva de Oliveira, Roberto Carlos, de perguntar à grande senhora: “Porque não
Aracy de Almeida, Rogério Duprat. Este pendura as chuteiras?” (vale aí o ato falho,
pisou os jurados que tentavam maltratá- ele, um locutor esportivo de futebol). E pensar
lo, não respondendo a nada, mas exibindo que um dos grandes admiradores de Dalva
pequenos textos em tabuletas. Aracy foi havia sido ninguém menos que Villa-Lobos!
ridicularizada. Roberto Carlos teve sua vida Pery Ribeiro se refere ao tal programa de TV,
devassada, com a revelação de coisas muito com mágoa, mas não entra em detalhes.
íntimas, ele que já era uma glória da Música Tristezas à parte, o que vale mesmo
2007 Popular naquele momento (e pensar que é poder ouvir aquelas canções com um tipo
hoje o mesmo Roberto proíbe de circular de interpretação que já não há mais, nem
uma sua biografia, até amorosa, alegando caberia. Sinto não ter assistido a algum
quebra de privacidade e ainda diz que não é show, ainda naqueles anos 60. Lembro-
censura! O que seria então? Com isso tudo, me de declarações de Dalva de Oliveira,
o autor do livro vai ganhando notoriedade, selecionadas para um disco-homenagem,
com entrevistas em todas as mídias, no ela, com aquele sotaque paulista, mais
aguardo da liberação de ROBERTO CARLOS paulistano do Brás que interiorano. Ficou-
EM DETALHES, que venderá muito mais. me, para sempre, o seguinte: EU AMO. EU
Essa, o Roberto, com seu lado hiper-careta- AMO MUITO. EU ME DEDICO DEMAIS AO
considerando-se-um-semi-deus, já perdeu). AMOR… O AMOR… EU NÃO SEI DIZER O QUE
Dalva foi humilhada, inclusive por Ângela É O AMOR. O AMOR É O AMOR. Só sendo
Maria (que começou a carreira imitando a mesmo uma estrela de primeira grandeza!
2008

intérprete de KALU, porém já possuindo Em Tempo: Já havia escrito este texto

609
quando, navegando pela INTERNET (Google), por um senhor no banco de trás, com um

2006
vi que há muita coisa sobre Dalva de Oliveira, jovem (eu também era jovem à época)
inclusive podendo-se baixar as canções que fez-me atentar para a coisa. Ah…! Nós os
ficaram célebres em sua voz. Soube de sua Humanos e a nossa sede de fábula! Os dois
morte, no mesmo dia, pelo rádio: A VOZ DO tratavam-se pelos nomes: Seu Ambrósio
BRASIL, que fez referência à admiração que e Lourenço (lembro-me bem). A conversa
Heitor Villa-Lobos tinha pela cantora. CDs era dominada pelo mais velho, senhor que,
são encontráveis nas lojas especializadas. em tom professoral, falava sobre o após-
(Pirajuí, 23 de junho de 2007) a-morte e eu, na minha semi-ignorância
de religiões e filosofias e no meu quase-
materialismo (minha mística só envolvia
sacrifícios com o corpo, algo que beirava o
masoquismo dos santos) quis crer que se
2007 misturavam teorias várias e vi ali um pouco
de Platão, de Cristianismo, de Kardecismo…
CONVERSA CAPTADA NUM TREM Uma coisa era certa para o tal senhor: havia
(O SOM NÃO PEDE LICENÇA) vida no Além, um outro tipo de vida, que era
mais um encontro que um desencontro, em
Encontrava-me em trem de subúrbio que o ser - então completo - participava da
da Santos-Jundiaí, cansado, exaurido, prerrogativa divina da onisciência. “Há - dizia
depauperado, na 18ª hora de vigília daquele ele - um ser puro-espírito, portanto abstraído
dia (eram umas 11 da noite). Sentado. Era a de tempo e espaço (que, paradoxalmente,
volta de Santo André para São Paulo. Aulas. capta e converte energia) que é você no
Vagão quase vazio. Quase. O sono tentava Além. Ele tudo sabe de você e tudo vê desta
tomar conta de mim. Esse “mim” sentia vida de cá em que impera a carne, que é
fome, mas teria de esperar até à chegada à onde você se encontra. Mas em nada pode
2008

casa. Eis que um assunto estranho, tratado esse ser superior interferir nesse mundo

610
das coisas passageiras. Porém, quando se PATHÉ-BABY: O LIVRO

2006
morre - quando a ánima se desprende do
corpo - o que há de fato é um libertar-se Em primeiro lugar, o título do livro.
de algo, o perecível. O que se liberta é um PATHÉ-BABY: trata-se de uma máquina de
residual de energia que ainda participa, projeção de filmes de 9,5 mm. E o autor-
embora tenuemente, do mundo material, narrador-repórter-olho-câmera entrega ao
mas que infalivelmente vai se juntar leitor uma prosa cinematográfica e poética.
àquele espírito, que é ele-mesmo e formar Não à toa o livro de Antônio de Alcântara
(completar) algo uno, de sabedoria plena Machado (1901-1935), publicado nessa
e com total satisfação, que é o estado em forma em 1926 (no ano anterior, ano
que se eternizam esses seres”… A conversa mesmo da viagem do autor à Europa, fora
deveria continuar e penso que continuou, publicado em jornal - narrativas de viagem
mas os dois apearam na Estação Concórdia, - com diferenças: JORNAL DO COMÉRCIO,
2007 enquanto que eu prosseguiria até à Estação SP) traz prefácio (“ouverture”) assinado por
da Luz. Isto faz já trinta e cinco anos e até Oswald de Andrade. Tem muito do MIRAMAR
hoje me arrependo de não tê-los seguido. oswaldiano no tema (viagem) e na forma.
Mas como, àquela hora (eram 11 e meia Sem dúvida, este primeiro livro constitui-se
mais-ou-menos). O jeito era me encaminhar no que Alcântara Machado fez de melhor,
para o meu destino de rotina, que no dia sendo esse melhor muito bom mesmo,
seguinte haveria mais. De qualquer modo, podendo ser cotejado com o que de mais
incompleta como ficou, pareceu-me ser conseqüente trouxe o nosso primeiro tempo
aquela uma boa teoria. Uma teoria. Teoria. modernista.
(Pirajuí, 30 de junho de 2007) Essas anotações de viagem pela Europa
- escrituração de um repórter especial -
alcançam um alto nível, o de uma prosa que
adentra o ficcioinal (abandona a primeira
2008

impressão de crônicas de um viajante) mais

611
pela beleza, pois o referencial é bombardeado que teve contatos vários com os modernistas

2006
pelo poético, nas descrições, as quais (chegou a participar da famosa Semana de
predominam na narrativa, configurando-se Arte Moderna de 22, em parceria com Yan
uma espécie de montagem cinematográfica, de Almeida Prado). O artista fez a capa e as
formando uma seqüência não-linear. aberturas dos capítulos, assim como o seu
Outrossim, não se trata de anotações de fechamento. Na capa e abertura de capítulos
um brasileiro simplesmente encantado pelas aparece sempre uma tela de cinema (era a
belezas do Continente Europeu, mas de um época do cinema-mudo) e, ao pé da mesma,
olho-lente tremendamente crítico. (Alcântara quatro músicos desanimados: uma pianista,
Machado participaria, depois, com Oswald de um contrabaixista, um flautista e um violinista.
Andrade e outros, da aventura antropofágica, Em cada capítulo, a tela mostra cenas
que se iniciou em 1928). diferentes, alusivas aos lugares anunciados
O livro PATHÉ-BABY pode ser e abordados. Somente devagar a parte dos
2007 considerado um primor gráfico, levando- músicos vai apresentando modificações
se em conta a tipografia (tipomorfia), que até que reste apenas o contrabaixista, que
chama a atenção desde a capa até o final: segue só até o final da “sessão”. No final,
a página-de-rosto é inusitada para a época, uma pitada de humor, com uma campainha
com ilustração (campainha e moldura) e e moldura (as mesmas da página-de-rosto)
texto disposto com muito arrojo, assim e transcrição de estrofe de Gonçalves Dias,
como as páginas-índice (“Programa: sessões também Antônio, da célebre “Canção do
corridas”): uma orquestração tipomórfica Exílio”, mais a palavra fim. Dados técnicos
digna dos melhores momentos de uma e uma filmadora em tripé arrematam o
poesia futurista e já anuncia o livro de contos volume.
BRAZ, BEXIGA E BARRA FUNDA para breve. Essas considerações foram feitas a
Há, na edição, algo de grande partir da edição fac-similar feita em 1982
importância: as ilustrações de Antônio Paim pela Secretaria de Estado da Cultura do
2008

Vieira, desenhista-caricaturista de talento, ESP, que vem acompanhada de um segundo

612
volume, com comentários e notas preciosos com Ezra Pound, em Fanopéia) temos um

2006
da estudiosa de Cecília de Lara. arranjo (-montagem) que faz a grandeza da
Em PATHÉ-BABY é facílimo encontrar narrativa verbal (-ou fílmica). Esse livro de
uma página donde se possa desentranhar Antônio de Alcântara Machado - elogiado e
um poema. Eis um dos inúmeros e belos criticado à época - se junta àquelas obras do
trechos, aqui blocado (p. 149): nosso Modernismo, que apontaram para a
importância da coisa gráfica. A ordem é ler-
vedere napule… ver!
O mar esconde-se na noite. Ao longe, Capri Em tempo: Um dos motivos que me fizeram
é uma nuvem preta boiando. O archote dos retomar e redobrar a atenção para o referido
pescadores que fisgam ilumina candelabros
livro de AAMachado, foi o texto de Neiva Pitta
dentro do oceano. De Santa Lucia a Posillipo,
Kodota “A grafia imagética de Antônio de
as lâmpadas enfiam na água punhais
Alcântara Machado”, publicado na REVISTA
tortuosos. E a água sangra luz. O Vesúvio,
2007 FACOM-FAAP, 10 e que sai agora em livro:
escuro, é uma pira acesa. O vento toca
mansamente a fumaça, e a fumaça risca uma ESCRITOS DESCONTÍNUOS.
elipse cinzenta sobre o golfo. As estrelas (Pirajuí, 07 de julho de 2007)
são fagulhas que o Vesúvio atira. No fundo,
lado a lado, Sorrento, Castellamare e Torre
Annunziata arriscam olhinhos vesgos. Sob
as árvores da riviera, o bandolim inicia a
serenata. O barítono canta a história do
corsário louro que a sereia fez morrer de
paixão. […]
A FOME FEZ O HOMEM FALAR


Com essa pontuação (-cortes), essas O título acima faz parte de um poema
metáforas agressivas, esse remeter a uma de Décio Pignatari que utiliza o “alfabeto
2008

visualidade (em Poesia poderíamos falar, do franquistém” ou “alfabeto vertical”

613
feito a pedido do poeta de EUPOEMA, pelo - nunca! - utilizar o artifício da demora em

2006
paranaense que se foi prematuramente servir a comida para que os començais
Franklin Horilka, artista que eu não cheguei venham a apreciá-la de qualquer maneira.
a conhecer. Porém, não estou aqui hoje para Quando se tem convidados, o leque de
falar de poemas, mas de fome, ou melhor de opções de antepasto deverá ser proporcional
apetite aguçado, de uma anti-anorexia. à demora que haverá para servir a refeição.
Pois é: às vezes ingerimos algum Chegaram os convidados: já deve estar
alimento com o máximo de voracidade, menos preparada uma mesinha com alguns comes
pelas suas qualidades relativas ao paladar para que as pessoas comam, se já estiverem
do que pela fome que se foi intensificando, com fome. Há os que se alimentam falando
dado o retardamento na hora de se servir a (e atrapalham a refeição dos outros). Há os
refeição. Alguns dizem, brincando ou não: que se alimentam bebendo (idem). Porém,
“A minha comida não estava boa, você é há os que se alimentam, alimentando-se,
2007 que estava com muita fome”. Acontece que literalmente.
o bom apreciador de comida saberá o que Quando éramos crianças (eu e meus
realmente acontece, pois nem todos têm irmãos) e desdenhávamos a comida, minha
um imenso prazer nas refeições, nem todos mãe - excelente cozinheira, diga-se - nos
apreciam comida, de modo a fazer de cada falava, simplesmente: “Barriga cheia, goiaba
refeição um acontecimento. Comem como tem bicho”, querendo dizer que faltava
quem executa tarefas burocráticas. o apetitite, porque o mesmo havia sido
Geralmente quem aprecia comidas, satisfeito pouco antes. E minha mãe, exímia
tirando das sensações gustativas o máximo na cozinha, nunca delegava tarefas: chegava
de aprovitamento, sabe também prepará- a operar milagres, inventar e era capaz
las. É claro que você também deverá estar de realizar um belo jantar, um banquete,
com o apetite estimulado, coisa que pode mesmo, sozinha e tudo saía impecável e
estar comprometida por alguma ocorrência quem comia, chocava-se com o qualitativo
2008

de ordem física ou psicológica. Não se deve da comida. E ela fazia questão de dizer que

614
sua comida não fazia mal a ninguém, ou era coisa rara em meu bolso. Morava numa

2006
seja, ela não era uma cozinheira de “mão república com pessoal de Pirajuí, à Rua Dr.
pesada”, dessas que erram (a mais) no sal Villanova, quase esquina com a Maria Antônia.
e nas gorduras e o seu asseio na cozinha Nesta, havia um casarão onde funcionava
era nada menos que 100%. (Minha mãe era uma pensão (eram muito comuns, ainda, as
maníaca por limpeza, com relação à casa pensões em São Paulo, principalmente as
toda, porém, sabia que a casa possuía valor- que ofereciam comida boa ou até ótima a
de-uso e uma vez arrumada, o inevitável era preço acessível). Quem me levou até lá foi
desarrumá-la e nunca disse para um filho Ricardo Rizzo e pudemos, naquele friozinho,
“Não se sente na cama” ou “Não entre na desgustar - sim, degustar! - um spaghetti
sala que está arrumada” a casa era para ser al sugo, fumegando, com parmesão ralado,
usada. Nunca acumulou trastes: de papéis que foi uma verdadeira delícia: exato, nem
a vasilhames, o que não mais servia era senti a falta de carne a que estávamos tão
2007 desprezado. Se algo quebrava, lamentava, habituados.
mas nunca se desesperava, pois sabia que Até hoje tento recuperar aquela
o que era passível de ser quebrado, poderia incrível sensação, preparando o tal prato e,
simplesmente ser quebrado). cada vez mais, a felicidade parece a mim
Bem, tudo isso não passa de um como algo que tem um lugar no passado.
preâmbulo para que eu possa falar de uma Naquele tal dia - e era no ano de 1970 -
experiência inesquecível, que teve lugar em tudo contribuiu para que aquele macarrão
São Paulo, logo que para cá me mudei, em tão simples fosse uma das minhas refeições
função do meu curso de História na USP. Deve inesquecíveis, muito embora eu tente fazer
ter sido lá pelos meados de maio, quando na de toda refeição um acontecimento. Todas as
Paulicéia o frio já se colocava firme e nosso comidas do mundo. Bem feitas. Saborosas.
apetite se aguçava. Era a hora do jantar e Paladar também se cultiva, se educa.
eu não sabia bem onde tomar uma refeição (Pirajuí, 14 de julho de 2007)
2008

que não custasse muito dinheiro, já que este

615
RUBAI, RUBAIYAT seguinte esquema de rimas: aaba. Mas o

2006
que há de muito importante é a peça trazer
Em muitas ocasiões utilizei em sala- consigo um certo teor filosófico.
de-aula poemas para ilustrar um ou outro A tradução dos RUBAIYAT trouxe fama
tópico, dentro do assunto geral Função duradoura a E. FitzGerald, que entregou em
Poética. Daí, que o rigor a que estou inglês verdadeiras jóias. Qualquer antologia
habituado em matéria de Arte levava-me da poesia em língua inglesa inclui algumas
a Sá de Miranda, Camões, Pessoa e muitos dessas traduções: são verdadeiras recriações
outros poetas do primeiro time. Em algumas ou transcriações como dizia Haroldo de
vezes, para demonstrar o quanto é quase Campos ou tradução-arte, como denomina
impossível traduzir-se texto poético, trazia a tradução criativa Augusto de Campos. A
peça do poeta de língua inglesa Edward gente nunca sabe como seria a coisa no
FitzGerald, século XIX, célebre pela tradução original persa; tem-se acesso apenas a
2007 que fez dos RUBAIYAT de Omar Khayyam, traduções e elas sempre se apresentam tão
poeta e matemático persa, que viveu entre diferentes! Mas vejamos um dos poemas, na
os séculos XI e XII e que ficou conhecido e foi mencionada tradução inglesa:
amado no Ocidente por meio de sucessivas
traduções de seus poemas, que circularam
e circulam e que davam conta de alguém Oh threats of Hell and Hopes of
que, celebrando a vida e os seus prazeres, Paradise!
lamentava justamente a efemeridade da One Thing at least is certain: - This Life
existência. flies;
RUBAIYAT significa quartetos, quadras, One thing is certain and the rest is
um tipo de composição poética curto, de quatro Lies;
versos. O singular da palavra é RUBAI. Um The Flower that once has blown for ever
RUBAI, portanto é uma composição poética dies.
2008

breve: quatro versos, que apresentam o

616
Se traduzirmos o texto ao pé da letra, RUBAIYAT de Omar Khayyam, os alunos

2006
mataremos a poesia (como colocou Robert se lembram do arquifamoso restaurante
Frost) e nos restará apenas algo prosaico paulistano, que deve ter levado o nome
e pseudo-profundo. De qualquer maneira, justamente pela obra do poeta persa. Hoje
veremos que a idéia central do poema é há também – trata-se da mesma empresa
a da efemeridade da existência e que ela – o Figueira Rubaiyat, porque abriga uma
está condensada em THIS LIFE FLIES, que enorme árvore, o que lhe dá um toque
é justamente a parte de maior dificuldade singular e me parece um lugar bastante
para o tradutor, no que diz respeito à busca agradável, uma das preferências dos jovens
de equivalências morfo-semânticas, pois a abonados. Dizem que as carnes ali servidas
vida (LIFE) está contida na flexão do verbo honrariam o poeta dos RUBAIYAT.
voar (FLIES). Daí é que o tradutor, como (Pirajuí, 21 de julho de 2007)
colocou HC, terá de compensar perdas de
2007 uma passagem, noutra. Vejamos o belíssimo
trabalho que fez Augusto de Campos, que
conservou a idéia principal do poema e criou
uma obra de arte em português:

Inferno ou Céu, do beco sem saída FLASHES


Uma só coisa é certa: voa a Vida.
E, sem a Vida, tudo o mais é nada. 1. RIO-SÃO PAULO. Higienópolis é um
A Flor que for logo se vai, flor ida. Leblon sem mar nem morro. O Pacaembu é
uma Ipanema sem mar, com morros… e que
E assim, ao invés da máxima morros! Santa Cecília é Copacabana sem mar
TRADUTTORE : TRADITORE, teremos nem demais encantos, mas acolhe qual mãe
TRADUTOR : TRANSCRIADOR. Vivas à vida! adotiva os filhos. Mais além da São João, o
2008

Em tempo: Sempre que me refiro aos Leme luz em decadência agitada. São Paulo

617
25, não teme São Sebastião 20 do mesmo lindo ver o nosso vôlei vencendo, o basquete

2006
janeiro. O Tietê não teme o Rio. De Janeiro. feminino, a natação, a ginástica, as provas de
Que não é sequer rio, é mar. João Ramalho atletismo. Somente através da Educação – e
e os Padres antecedem o de Sá, Estácio, que os esportes desempenharão um importante
funda em paraíso terrestre a terra que seria, papel nisto – o Brasil será um grande país.
depois, de Machado de Assis. Mais difícil a Os gregos da Antigüidade já sabiam da
subida da serra e a sobrevivência na pobreza importância das práticas esportivas.
empreendera, que soube esperar para comer 3. NOVELAS DE TV. A novela das seis é
dos frutos da abastança. É muito estranho chata, mal escrita, redundante. Tão ruim que
o que têm de grandezas as duas urbes. É até parece (mas não é) escrita por Valcyr
muito estranho. E é admirável. Carrasco, que repete as mesmas histórias,
2. O PAN. É gostoso ver que o Brasil tem personagens-tipos e até atores. O texto
apresentado sensíveis melhoras em certas é tão ruim que até chega a desmerecer o
2007 modalidades esportivas. Na ginástica, evoluiu trabalho de alguns excelentes atores. Todas
muito rapidamente e tem feito maravilhas, as novelas que estão hoje no ar têm o seu
principalmente com aquelas meninas vilão, ou melhor, vilã, que chega ao extremo,
sensacionais. E vão sendo conquistadas atingindo aquela falta de verossimilhança
medalhas nos Jogos Panamericanos e que irrita. Será que os escritores de novelas
cada medalha é uma alegria. Perder para se consideram gênios da Literatura (da
Cuba é uma tristeza, assim como para a Vídeo-Literatura), pelo sucesso que chegam
Argentina. Alegria maior é vencer os dois: a alcançar? Nem venham me falar que
nossos maiores rivais de fato, em algumas grandes escritores também trabalharam
modalidades esportivas. Esporte é vida, em forma de folhetim e que eram lidos
saúde, beleza, inteligência. É preciso nos jornais, aos capítulos. Na TV, quase-
que haja um investimento pesado e não tudo é diferente, já que é um veículo, antes
fiquemos apenas voltados para o futebol, de tudo, de entretenimento e o que vale
2008

que caminharia com as próprias pernas. É mesmo é vender o produto. Não dá para ter

618
uma programação de altíssimo nível com 20 Figura de muitos fazeres e afazeres,

2006
horas por dia no ar. Não dá para ter uma Décio Pignatari exerceu o magistério,
obra-prima de narrativa, com 180 capítulos o jornalismo, foi publicitário-dono-de-
de uma hora cada. No máximo, salvam-se, agência, com algumas criações que ficaram
se tanto, algumas poucas horas de coisa famosas, como a da marca LUBRAX, foi e é
digna de nota, mas que em geral o cinema tradutor. Mas, o que teríamos a destacar é
já fez melhor. O resto é redundância, passa- a sua vocação, desde muito cedo, para os
tempo, sonífero. Uma boa política para a afazeres da POESIA. Pois é, a POESIA. Sua
televisão é deixá-la livre. Os telespectadores produção, iniciada nos anos 40, foi reunida e
é que deverão pressionar por mudanças. Se publicada em livro - O Carrossel, pelo Clube
é isto o que desejam. de Poesia (“Cadernos do Clube de Poesia”),
(Pirajuí, 28 de julho de 2007) em 1950, sendo surpreendente uma espécie
de profecia que comparece na orelha do
2007 volume: “Não sendo propriamente um nome
inédito - pois é conhecido colaborador da
Rev. Brasileira de Poesia e dos suplementos
literários paulistanos, o Sr. Décio Pignatari é
DÉCIO PIGNATARI: 80 ANOS! todavia um dos nossos poetas mais moços
e um dos que se apresentam com melhores
Sempre se fala em Décio Pignatari credenciais para um destino de realizações
como de alguém polêmico e brilhante que, imprevisíveis”.
tendo despertado para a vida em Osasco, Embora, na época, nem tudo fosse
acabou por se radicar em São Paulo. Porém, Geração de 45 no ambiente paulistano e
Décio é natural da cidade de Jundiaí, interior brasileiro, o peso da tal geração, com sua
do Estado de SP (nasceu em 20 de agosto de estética conservadora e mesmo reacionária,
1927, dia em que comemora seu aniversário, dominava o cenário. Nesse meio, a poesia de
2008

muito embora no registro conste 21). Décio Pignatari já surge trazendo índices de

619
uma revolução poética, pensada em termos versos depois do fenômeno João Cabral e, de

2006
universais, que eclodiria poucos anos depois, fato, ele construiu poemas memoráveis em
a partir da junção das forças/talentos de versos, como “Eupoema”, “Fadas para Eni”,
Décio com os irmãos Augusto e Haroldo de “Noção de Pátria”, entre outros) produziu,
Campos, que formaram, em 1952, o Grupo verdadeiras obras-primas, peças antológicas,
NOIGANDRES: foram eles os criadores, num conjunto não muito numeroso, diminuto
juntamente com o suíço-boliviano Eugen até, se formos compará-lo com a média
Gomringer, da Poesia Concreta, movimento do que normalmente produzem os poetas
de vanguarda, ainda dentro do Complexo aqui, como no resto do Mundo; e eu citaria
Modernista, que teve repercussão mundial. apenas, para começar: “terra”, “ beba coca
Assim, dentro desse contexto de cola”, “LIFE”, “Organismo”.
vanguarda, Décio Pignatari teve um papel Tais trabalhos são parte obrigatória de
fundamental como teórico, crítico e poeta. qualquer antologia de poesia do século XX
2007 Como teórico e crítico, sempre se caracterizou digna do nome e foram, juntamente com o
pela contundência de suas afirmações, pela restante de sua obra poética, reunidos em
radicalidade, pensando-se como poeta Poesia Pois É Poesia, depois Poesia Pois É
brasileiro, mas fazendo parte de um contexto Poesia Poetc, agora em portentosa edição da
maior chamado Ocidente; portanto, para Ateliê. Como teórico, juntamente com seus
operar enquanto fazedor, tomou, da mesma companheiros, em famoso texto/manifesto
forma que os demais poetas concretos, de 1958, deu um dos mais espetaculares
como medida (referência), o que o mundo tiros na tradição, aquela parte esclerosada
havia feito até ali, para poder operar dali e teimosa, “dando por encerrado o ciclo
para frente. E foi o que fez. histórico do verso”.
Décio Pignatari produziu, de meados Décio Pignatari foi professor na ESDI
dos anos 50 em diante (antes, já tinha (RJ), em Marília, em São Paulo (COS-PUCSP
sido, como bem salientou num escrito Mário e na FAU-USP) e atualmente em Curitiba.
2008

Faustino, um dos que melhor sabiam fazer Décio foi pioneiro dos estudos da Semiótica

620
Peirceana no Brasil, despertando em muitos impressionado com a defesa que fez de

2006
alunos o interesse pelo assunto, tratado Rogério Duprat, num programa de TV chamado
tão brilhantemente em aula, como tratava “Quem tem medo da verdade?”, em fins
todos os demais assuntos. Seus estudos de dos anos ‘60, assim como me impressionou
Semiótica e Literatura, Semiótica e as Artes, muitíssimo, dada a configuração gráfica, o
são excelentes modelos de abordagem, poema “Organismo”, publicado na revista
abordagem que valoriza sempre o objeto INVENÇÃO 5, folheada por um professor,
de estudo: essa mesma Semiótica acabaria conferencista em aula da Profa. Chainy
sendo um dos traços diferenciadores da João Racy, quando eu era ainda estudante
PUC de São Paulo, dentro do panorama de 2º grau) e uma das coisas que sempre
universitário brasileiro. Décio tem incursão, me impressionaram nele foi a capacidade
também, no campo da prosa ficcional, de transformação, de assimilação das novas
pertencendo a uma linhagem de ficcionistas condições de ordem tecnológica (e nem
2007 experimentadores. Seus contos ficam precisaria dizer que foi dos primeiros artistas
sempre no limite entre prosa e poesia, e intelectuais do Brasil que não tiveram
poesia enquanto densidade (publicou, há problemas em conviver com as novas mídias,
alguns anos, o livro de contos O Rosto a exemplo da Televisão, sobre a qual refletiu
da Memória, muito pouco, ou quase nada e escreveu).
discutido). Mais recentemente, publicou Décio Pignatari completará, logo
um romance experimental – Panteros - e mais, 80 anos, em plena atividade e com
parece que prepara mais coisas dentro muitos projetos e com voz e ânimo de moço,
desse universo infernal, como ele mesmo ao telefone. Um dos maiores criadores do
diz da prosa, assim como tem-se ocupado século XX, dotado da mais aguda percepção
do Teatro. tipográfica da poesia dos últimos 50 anos.
Conheço Décio Pignatari, GOD BLESS THE POET!
pessoalmente, desde fins de 1974 ou (Pirajuí, 04 de agosto de 2007)
2008

começos de 75 (porém, já havia ficado

621
BARROCO MAIS ALÉM aqui a guarida adequada e são abreviadas,

2006
resumidas, decepadas. De qualquer modo,
Houve todo um estardalhaço, mesmo o Centro é importante e colabora para que
antes de estar aberta à visitação, sobre a aquela tão bela área da cidade volte a ter a
exposição enfocando o Barroco brasileiro dignidade de outrora.
no Centro Cultural Banco do Brasil, nesta Pelo pouco que li, a tal exposição
Paulicéia. prometia muito e, por isto mesmo,
Começo pelo Edifício situado à Rua decepciona: poucas peças originais do
Álvares Penteado, no centro financeiro velho Aleijadinho (Antônio Francisco Lisboa),
da cidade. Lá, há edificações primorosas, muitas fotos e vídeos. É constrangedor
cuja sobrevivência está garantida e tudo assinar uma curadoria dessas. Quase não
indica que aquela área estará cada vez mais há o que ver. A mais bela peça do mestre
bonita, com as restaurações que estão em de Ouro Preto (a antiga Vila Rica) é uma
2007 andamento: a antiga pobreza indiciada Nossa Senhora das Dores, que pertence ao
pelas construções de taipa cedeu lugar a acervo do Museu de Arte Sacra de São Paulo
edifícios erigidos sob a responsabilidade de e, de qualquer maneira, vale a pena rever.
engenheiros, utilizando materiais duráveis e No mais… decepção, restando o consolo de
até nobres e isto principalmente a partir de se comprar a um preço altíssimo o catálogo,
fins do século XIX, inícios do XX. que parece estar bem feito, ou dar um
O edifício do Banco do Brasil é da maior pulo até Congonhas do Campo, Ouro Preto,
dignidade e entra nesse rol de construções Mariana….
sólidas e até luxuosas, porém, para ser O Barroco foi uma tendência da arte
um centro cultural, tem as dependências européia que, nascida na Itália, espalhou-
um tanto acanhadas: o espaço expositivo se pela Europa, tendo florescido em áreas
é pequeno, pouco para exposições que, católicas e não-católicas, o que mostra que
procedentes do Rio de Janeiro, onde se não foi propriamente o estilo da Contra-
2008

conta com área muito maior, não encontram Reforma + Absolutismo Monárquico, mas

622
correspondeu, fundamentalmente, a uma produz coisas admiráveis nas Artes Plásticas

2006
evolução de formas, não uma degeneração e na Literatura, área em que se destacam os
do Clássico - como brilhantemente colocou nomes do Pe. Antônio Vieira e de Gregório de
Wölfflin - já que indícios do Barroco podiam Mattos e Guerra. Este foi o primeiro grande
ser detectados na Alta-Renascença (nas poeta brasileiro, tendo recebido, além de
pinturas de Michelangelo, por exemplo) e obrigatórias influências de Camões, as dos
no Maneirismo: mestres maneiristas podem espanhóis Góngora e Quevedo tendo sido,
ser colocados como precursores do Barroco, por isto, até acusado de plagiário durante
que imperou no século XVII e parte do XVIII séculos, mas cuja revisão, por Haroldo de
sendo que, em algumas áreas, como na Campos, repõe-no em lugar privilegiado.
América Ibérica, se arrastou por mais algum A herança barroca em Pernambuco,
tempo. Bahia, Minas Gerais e outros lugares do Brasil,
Na Espanha o Barroco foi algo mostra o como a Arte é necessária e que surge
2007 esplendoroso. Em Portugal a coisa foi mais mesmo que “apesar de”. Os modernistas de
branda e é do Barroco “pobre” de Portugal São Paulo, acompanhados do poeta suíço-
que recebemos a informação do estilo, muito francês Blaise Cendrars, empreenderam
embora influências outras chegassem até por ocasião da Semana Santa de 1924 uma
aqui, como produção poética dos espanhóis viagem às cidades históricas de Minas, que
e gravuras, que eram cópias de obras ficou famosa e até ajudou a redespertar o
famosas e que aqui circulavam e informavam interesse por nossa arte do Período Colonial.
artistas, como o Aleijadinho, na tardia época Oswald de Andrade escreveu o mais belo
da segunda metade do século XVIII. poema sobre a Congonhas do Aleijadinho e
Em verdade, o Barroco aqui aporta Tarsila fez desenhos incríveis abordando as
cedo – nunca houve interesse de Portugal em paisagens de Minas; Mário escreveu um belo
algum tipo de desenvolvimento cultural na ensaio sobre o grande escultor e, se a arte
Colônia, porém, as coisas acontecem mesmo acadêmica fora recusada pelos modernistas,
2008

que à revelia – e já no século XVII o Brasil o Barroco foi enaltecido.

623
Mais do que qualquer exposição sobre inicialmente, espalhando-se depois por

2006
o Barroco das Minas Gerais, visitar essa outras paragens, ainda provoca discussões
Minas barroca será importante. Nenhuma e ódios o que demonstra que nas últimas
mostra dará o prazer que é ver Ouro Preto, décadas não temos tido
por exemplo, com aqueles casarios, aquelas idéias novas, de fato, no campo da
igrejas, aquela configuração urbana única Poesia. Será? Acontece que movimentos
e, de preferência, saboreando a deliciosa poéticos realmente importantes não têm
comida mineira, que tudo isso é cultura. acontecido, mas, o que se observa são
(Pirajuí, 11 de agosto de 2007) inovações aqui e ali levadas a efeito por
indivíduos que até chegam a se associar,
como no caso de trabalhos com novas
mídias/linguagens, porém não há mais
aquela guerra (em grego “pólemos”, daí
2007 “polêmica”), a não ser vez ou outra uma
escaramuça sem maiores conseqüências.
CONCRETISMO BRASILEIRO EM Não se discutem idéias no Brasil, nos últimos
REVISTA tempos. Será um reflexo da falência das
utopias? Mas há gente produzindo e coisas
Impressionante como ainda se ótimas e a qualidade precisa de tempo para
discutem de uma forma agressiva questões maturar e se mostrar. Enquanto isso, as
relacionadas a uma poesia mais experimental- mídias se ocupam de redundar, trilhando o
formalista. Recentemente, Décio Pignatari seguro caminho da medianidade.
destratou levemente Ferreira Gullar em POESIA CONCRETA : O PROJETO
entrevista e este lhe respondeu acusando-o VERBIVOCOVISUAL: uma exposição.
de mero teórico e não-poeta. Inauguração hoje (15.08.2007) no Instituto
A Poesia Concreta, movimento Tomie Ohtake, nesta Paulicéia. Porém, não
2008

instaurado no Brasil e na Alemanha poderei comparecer à abertura e sinto muito,

624
já que amigos meus estarão presentes, a acontecer em grande estilo, como essa mega-

2006
começar pelo curador-mor do evento, o poeta exposição e com o site (www.poesiaconcreta.
Walter Silveira. Espero que a mostra esteja com.br) que está entrando no ar. Que vivam
à altura do que foi o Concretismo no Brasil, os poetas-inventores e que outros grandes
com todo o seu legado no campo poético valores também se alevantem!
propriamente, no da teoria e da crítica e no (Pirajuí, 18 de agosto de 2007)
da tradução de poesia.
Muito embora ainda se reclame, a
Poesia Concreta passa por um lento processo
de avaliação no Brasil e fora, mas é incrível
aceitar que, passados mais de 50 anos de
sua instauração, ainda chegue a ser vítima
de policiamento ideológico. DAS AGRURAS DA ANCIANIDADE
2007 É uma pena não contarmos mais
com figuras sensacionais, como Haroldo Já tratei, brevemente, desse assunto
de Campos, Ronaldo Azeredo, José Lino nesta coluna, referindo-me à velhice, cujo
Grünewald e isto sem falar naqueles conceito tem mudado muito nos últimos
impressionantes velhinhos: Edgard Braga e tempos, dado o aumento da média de vida,
Pedro Xisto de Carvalho. mesmo em países que ainda não alcançaram
Por ocasião dos 30 anos da Poesia um nível de desenvolvimento satisfatório,
Concreta fiz, com o apoio dos amigos Paulo como é o caso do nosso, que continua um
Miranda e Zéluiz Valero uma bela antologia, “país de contrastes”, como já se disse. E um
toda em serigrafia, para brindar meus alunos país pode considerar-se avançado quando a
de 8ª série da EEPG “Almirante Custódio José grande maioria vive bem e tem a chance de
de Mello”, em Vila Granada. Hoje, tornou-se alcançar todas as benesses disponíveis nas
uma raridade e dificilmente poderia repetir sociedades humanas: de moradia, transporte,
2008

a façanha. Porém, as coisas agora terão de saúde, escola em todos os níveis a… lazer.

625
Felicidade é um outro departamento Na velhice existem algumas

2006
e não convém discuti-la agora, mas ter vantagens, mas muitas desvantagens, que
a chance de exercer a profissão escolhida é preciso saber administrar. Na melhor das
para ter uma vida muito boa é o que deveria hipóteses nos tornamos sábios em alguma
acontecer para todos. Ninguém merece coisa. Na pior, tornamo-nos pessoas mais
viver mal, ou seja, ninguém deveria sofrer desagradáveis do que já éramos. Bem, mas
privações materiais, já que os problemas vejamos as principais penas a que estão
de ordem psíquica-espiritual-moral quase expostos os idosos: 1. Passa-se por um
sempre escapam de nosso controle. No processo de enfeamento que é irreversível,
mais, toda sociedade deveria amparar, para o que pode ser minorado com certos
garantir a dignidade existencial, as pessoas cuidados próprios dos vaidosos, mas que
que, por um motivo ou outro se encontrem não devem ser exagerados. Raros são os
impossibilitadas de colocar os seus esforços que até melhoram na aparência, assumindo
2007 em prol do funcionamento das coisas. ares de “bom velhinho”. 2. Problemas de
Bem, há coisas que fogem do nosso saúde aparecem ou se agravam e as dores,
controle e do daqueles que têm a obrigação ora aqui, ora acolá são constantes. Fica-se
de planejar. Por mais que a Medicina muito mais vulnerável às doenças. 3. Há
avance, não consegue deter nosso processo uma perda da objetividade e isto resulta
de envelhecimento: as coisas só vêm em explicações intermináveis: usam-se mil
para remediar e não para sanar: aquela palavras para explicar o que poderia sê-lo
resplandecência própria dos muito jovens com trinta ou menos. Ao mesmo tempo,
não se recupera, nem com plásticas, regimes, nota-se uma perda da curiosidade, o que é
massagens, botox. Maravilhoso seria parar a prova maior de que se está envelhecendo
nos 28 anos: auge da beleza, do vigor mesmo. 4. Certas tristezas se abatem sobre
físico e com um amadurecimento psíquico alguns, que vêem como durante décadas
satisfatório. Impossível desacontecer, perderam tempo com coisas inúteis e que, ao
2008

voltar. invés dos cinco mil volumes de sua biblioteca

626
particular, bastariam cem – essenciais – se depoimento, pois foram testemunhas oculares

2006
tanto. de uma certa história e, se dispuserem de uma
É claro que alguém viria expor as tecnologia mínima, gravem essas conversas.
exceções e até dar explicações científicas, Tenham muita paciência e explorem de seus
discorrendo sobre problemas de ordem velhos a sabedoria, que todos, de alguma
hormonal etc. É até importante ouvir, mas maneira adquiriram. Não deleguem a outrem
isto não consola. Há um cansaço de que os cuidados que deverão ser seus.
somos acometidos e que mostra que, se É alto o preço da longevidade: já
uma eternidade houver, que seja no além: é se disse que o que há de pior é ficar sem
o cansaço mental, o cansaço de uma psiqué interlocutores, já que a maioria dos amigos e
muito especial, esgotada por suas funções pessoas mais próximas e da mesma geração
complexíssimas e que dá o alarme. Se se já se foi. Ah, meu caro Mimnermo, é difícil!
chega à velhice com uma lucidez espantosa, Mas, tudo pela vida!
2007 desemboca-se, por outro lado, no tédio, Em tempo: Ninguém poderá dizer que não
num estado de “tanto faz”, como era o que foi criança um dia, adolescente ou jovem,
demonstrava o escritor argentino Jorge Luis tendo gozado dos 28 anos!
Borges – tædium vitæ. (Pirajuí, 1º de setembro de 2007)
Mas admiro todos aqueles que não
desistem e que levam o processo vida com
a maior dignidade. Para os mais novos diria:
amem os seu velhos, cuidem deles, dêem-
lhes atenção, conversem muito com eles,
pois a falta de interlocutores mata mais
rápido, valorizem tudo aquilo que eles ainda O CASO DO PATO
conseguem fazer, pois já fizeram muito,
perguntem, à maneira de entrevista, sobre Em verdade, são dois os casos que
2008

o “seu” tempo, tomando a coisa como um envolvem a tal ave, tão graciosa quando

627
recém-nascida e que faz a alegria de muita bichinho que já nasceu sabendo nadar. E

2006
criança. Eu já havia contado aqui o caso do era muita bacia com água, para ver o pato
cavalo: uma triste história, cujo desfecho fazer sua performance aquática. A festa,
me intrigou por mais de quarenta anos, porém, não durou muito, pois, dando pela
até que uma aluna da FAAP, num repente falta de um dos patinhos e lembrando-se
detetivesco, encontrou a solução. Fiquei, que tínhamos estado em sua casa a admirar
porém, devendo os fatos no(s) caso(s) do(s) os bichinhos, Dona Judith foi até minha
pato(s) – a seção “historinhas minhas” casa, ao que foi recebida por minha mãe
não chegou a progredir - que ora passo a que, até então, de nada sabia. Não havia
narrar. como negar o fato de nosso “empréstimo”.
Eram os anos 50 do século passado, O pato foi imediatamente localizado naquele
época em que eu morava com meus pais quintal imenso e devolvido à sua dona, que
e irmãos na já mencionada casa da rua 7 ainda nos prometeu agraciar com um ser
2007 de Setembro e que pertenceu a meu avô, o semelhante, em futuro próximo. Minha mãe,
Chico Turco, Rachid Cury, melhor dizendo. que era rigorosíssima conosco, não nos criou
O quintal se estendia, então, até o muro da problemas, provavelmente por sugestão de
fábrica de ladrilhos do Sr. Manuel Pereira Dona Judith, que era uma das pessoas mais
Eça: um enorme terreno. Na mesma Rua 7 simpáticas e agradáveis do mundo. Sempre
residia Dona Judith, casada com um primo que a via, depois, lembrava-me do tal do
de meus avós, o Kalil Neme, de quem pato. Ela, porém, nunca fez referência àquela
tenho ótimas lembranças. Tendo estado em aventura.
sua casa e visto uma pata com toda a sua O outro caso ocorreu no ano de 1970.
ninhada, ficamos – eu e meu irmão mais Morava eu em São Paulo à rua Dr. Villa Nova,
velho – maravilhados e, assim que a dona em uma república, compartilhada com Zé
da casa se descuidou, pegamos um dos Elias Aruth, Ricardo Rizzo e Paulo Miranda.
filhotes e o levamos escondido para casa. Nunca nos desligamos de Pirajuí e as idas
2008

Quanta alegria em poder ter logo ali um para a terrinha eram, se não quinzenais,

628
mensais. E sempre que alguém ia, trazia de AH! OS LIVROS

2006
lá encomenda de mãe, o que geralmente
se tratava de comida e da boa. Nessa vez, Livros, no geral, são tomados como
Paulo Miranda, de volta, trouxe-me como receptáculos de sabedoria em todos os
encomenda um pato assado recheado. O que níveis e essa idéia vem de muito longe e se
ocorreu é que o pato, preparado por minha liga à questão da escrita como, além de uma
mãe, delicioso, foi devorado em momento em tecnologia da inteligência, principalmente
que o Paulinho estava ausente, trabalhando. quando em letra-de-forma (impressa), como
Quando retornou, viu que lhe havia sobrado se dizia, algo que firma um compromisso com
apenas um pouco de farofa, ao que ele a Eternidade. Escrever significa garantir –
reclamou: “Vocês não tiveram um mínimo quase sempre – uma permanência. Observe-
de consideração. Eu vim carregando esse se que o domínio do código escrito tem sido
pato, cozinhando-o embaixo do braço, de uma exigência que se faz para que se tenha
2007 Pirajuí a São Paulo e vocês não me deixam um bom desempenho social (porém, em
sequer um pedaço de carne! Não trago outros tempos não era assim): fica sendo
mais nada de lá.” Passada a raiva, as coisas o código verbal (escrito) a medida de todas
continuaram como eram antes: sempre que as coisas, a ponte entre os demais códigos,
alguém vinha de Pirajuí, trazia encomenda o código tradutor e metalingüístico, enfim,
de mãe: da própria ou da de outro. E como o CÓDIGO HEGEMÔNICO, dominador, como
era bom receber aquelas delícias, numa tão brilhantemente colocou Décio Pignatari
época em que tudo para mim era tão caro e, num escrito, há mais de trinta anos.
comida boa mesmo, era a da casa da mãe! Acontece que a maior parte do que se
(Pirajuí, 08 de setembro de 2007) produz, em qualquer área e que é veiculado
por qualquer das mídias é desprezível (e aí
se toma o juízo das elites intelectuais, que
é quem acaba por decidir – quase sempre
2008

– o que fica e o que não fica): mais de 90%

629
do que se produz é lixo cultural e o que marceneiro, pensava em poder acomodá-

2006
vai nos livros, seja prosa científica, pseudo- los melhor.
científica, didática, poesia, prosa de ficção, É óbvio que são livros bons,
entra nessa porcentagem com igual força fundamentais para certas áreas do
(não é tão diferente do que acontece na conhecimento, mas que não mais me
TV, bancas de revistas ou na Internet). interessam (interessarão a outras pessoas)
Portanto, é errônea a idéia de que se deve e que deverei encaminhar a uma biblioteca
confiar em tudo o que se encontra em livro pública, de preferência. De fato, uma
ou que, por estar em livro é sinal de que biblioteca particular tem a cara do dono,
é bom. No Capitalismo, livro, assim como daquele que a formou e, como já escrevi
disco e filme é produto comercializável nesta coluna, chega a ser um fardo pesado
industrial - independentemente do que para um herdeiro - e não um presente -
tragam, o que interessa para o Sistema receber, por exemplo, dez mil volumes de
2007 é que vendam. Quantos grandes autores um pai ou de um tio. Quem recebe, procura
tiveram de esperar um enorme tempo para livrar-se o mais rapidamente possível
ver os seus trabalhos veiculados de forma desse presente-de-grego, vendendo a uma
eficaz! Muitos, durante décadas, custearam instituição (dependendo da importância do
a duras penas as suas edições. acervo), doando os livros em bloco ou, o que
Ainda tenho um grande respeito é pior, quase pagando para um alfarrabista
pelos livros e até chego a fazer, de vez em levar o “entulho”.
quando algum, porém, cada vez menos Sei que não há originalidade no que
os compro e tenho pensado seriamente vou afirmar, mas é preciso viver 50 anos,
em me livrar de umas três centenas, nos adquirir milhares de volumes, para, no final
últimos meses, em função de espaço (o das contas, saber que o que importa, mesmo,
espaço físico que ocupam e os cuidados que são cerca de 100 volumes, se tanto, os quais
requerem, cansam), no momento em que, deverão nos acompanhar até o fim. É este
2008

tendo encomendado uma nova estante a um o resultado da experiência. Mas ninguém

630
precisa ficar triste por isto, principalmente se OBRIGADO. GRACIAS. GRAZIE. THANK

2006
os livros o ajudaram a ter uma vida mental YOU. MERCI BEAUCOUP!
rica e o aperfeiçoaram enquanto pessoa,
que é o que geralmente acontece. Pior é o Uma das situações mais desagradáveis
caso da pessoa que ficou juntando dinheiro pelas quais passamos é a de alguém quando
a vida toda para perceber, no fim das contas, agradece e insiste nos tais agradecimentos.
que desta vida nada se leva (de material) e Pior do que isto é não agradecer, quando
que deveria ter, pelo menos, experimentado deveria, ainda mais num contexto em que
sensações raras e caras, tudo aquilo que todos são reverenciados, menos nós, que
o dinheiro pode comprar. Mas, daí, será tanto merecíamos (pelo menos é o que
tarde demais e os herdeiros, estes sim, pensamos). Gostoso mesmo é dizer à pessoa:
saberão como se divertir dilapidando todo “Por favor, não agradeça” ou então, quando
um patrimônio, que custou décadas para nos perguntam: “Como poderia agradecer?”
2007 se formar. O patrimônio dos livros, poucos você responde: “Não agradecendo, não
quererão, bem porque, dá muito trabalho dizendo mais nada”.
lê-los. Mas como são fonte inesgotável de Com isso tudo, quero dizer que há
prazer! Repertório amplo e elevado, dá melhor forma de agradecer, se é que cabe a
trabalho adquirir, porém, é o nosso único atitude, e que significa constância nas ações,
bem inalienável. um compromisso moral que é para toda a
(Pirajuí, 15 de setembro de 2007) vida! Por outro lado, como é deplorável a
atitude daqueles que, por um único ato, são
capazes de se esquecer de favores que foram
prestados sistematicamente, durante décadas
ou mesmo durante toda uma existência.
Só mesmo Freud para explicar tamanha
ingratidão, tão grande incompreensão. E esse
2008

último caso é bem mais grave.

631
Mas em verdade, quereria mesmo não as dão quando, em verdade, poderiam

2006
falar sobre o primeiro caso, do esquecimento dar (talvez que se sintam exploradas). Trata-
com relação a pequenos favores prestados. se de caso de mesquinhez intelectual ou
É que, como professor por vocação, percebi outra qualquer e tais pessoas merecem todo
que passar informação é tarefa obrigatória o nosso desprezo. Conselhos, geralmente
e prazerosa e desde sempre fui pródigo recebemos de graça e sem os solicitar, mas
em orientar, dar dicas e expor tudo, mas quando os pedimos, queremos logo uma
tudo mesmo que sabia, sem esconder solução e nessa hora os conselheiros de
nada e a inflacionar o meu tempo para dar plantão ou falam demais, ou desconversam,
assistência, inclusive por telefone a pessoas ou nada falam. Parece que estamos fadados
até em estado de desespero. Talvez que com ao descontentamento. Mas aqui estaria eu
isso tudo me sentisse importante… Acontece enveredando por outros caminhos e não é
que consultas me eram feitas (e ainda o bem isto o que queria registrar.
2007 são) a qualquer hora e eu sempre solícito Bem, tem sido comum abrir trabalhos
(e continuarei sendo). Houve casos em que acadêmicos – Teses e Dissertações – que me
ajudei a resolver problemas teóricos ao colocam agradecimentos até excessivos e,
telefone, análises de poemas, etimologias às vezes, com justificativas, o que sempre
várias etc. E percebia que a pessoa do outro vejo rapidamente. Porém, quando vejo
lado da linha estava a anotar tudo, exigindo, em alguns poucos trabalhos a ausência de
portanto que eu falasse pausadamente, meu nome na relação dos agradecimentos,
como que a ditar. É tão bom poder oferecer fico triste, isto porque, de alguma forma,
coisas às pessoas, mais do que solicitar algo contribui para aquela formação, despendi
a elas, porém, as coisas sempre têm limites tempo de minha vida fazendo indicações,
e quando se esbarra neles a relação toma passando informações e a memória do dito
um rumo diferente. cujo não registrou os fatos. Houve caso em
Notei, também, que há pessoas que dão que a pessoa agradecia até “ao pessoal que
2008

informações pela metade ou simplesmente servia no bar da esquina, em momentos

632
de reflexão à mesa…”, porém se esqueceu

2006
das horas que ocupou do meu tempo para
sanar dúvidas quanto às questões da poesia
contemporânea etc. Tudo bem. Sucesso!
Seja generoso com os demais. Não incorra
na mesquinhez intelectual. Agradeça ao
garção pelo cafezinho que lhe serviu e que
você pagou.
Isto é só um pequeno desabafo.
Sinto-me até mesquinho em me dar a
esse trabalho de cobrança. Afinal, como
intelectual e artista, vim a este mundo para
servir. Incondicionalmente.
(Pirajuí, 22 de setembro de 2007)
2007
2008

633
2008
Alguns seres humanos trazem tantos

2007
benefícios à sociedade a que pertencem, são
tão pródigos na sua bondade, tão generosos
com seus semelhantes, que acabam por se
distinguir, justamente por isto. Não há como
pagar, de algum modo, a sua contribuição e
os que assim procedem, nem sempre têm a
consciência de sua grandeza, ou melhor, da
grandeza de suas ações, dos resultados de
suas ações. Às vezes, são tão injustiçados
em vida e seria o caso de se perguntar:
“Mas, quem vai pagar a conta?” Daí que a
idéia de um Juízo Final chega a parecer até
2008 simpática!
Como agradecer a um Mozart, a um
Edgar Poe, a um Van Gogh? Ouvindo pela
centésima vez a Flauta Mágica, sem entender
alemão, cheguei a pensar que não mereceria
BENFEITORES DA HUMANIDADE ouvir Mozart e que somente Anjos poderiam
se deliciar com tantas belezas. Mas os feitos
O título desta crônica com que estão aí e são para toda a Humanidade, não
retomo minha atividade de colaborador d’O importando se tal obra foi feita sob encomenda
ALFINETE, remete à figura de Prometeu – de nobre, religioso ou burguês. Toda grande
benfeitor dos humanos – já que roubou o obra já pertence a toda a Humanidade: da
fogo e o entregou aos mortais… e foi punido Mona Lisa ao Escaravelho de Ouro, passado
por isto. Mas deixemos de lado a Mitologia pelos concertos Brandenburgueses.
grega e vamos ao que motivou esse título. E eu perguntaria: “Como agradecer

635
às nossas professoras?” Benfeitoras da ser o meu caso, embora já fosse, à época,

2007
Humanidade, elas nos iniciaram em vários um bom aluno) – mantinha a classe, a
saberes e tinham uma enorme satisfação serenidade. Bonita e simpática e com uma
quando dávamos retorno, ou seja, quando performance vocal impecável, ensinava com
assimilávamos aquilo que estavam passando, grande eficácia e só de a ouvir se aprendia,
crentes de que era todo um instrumental com o seu Português irrepreensível e sem
para a boa sobrevivência. E era! E eu me afetações. Poucos meses antes de sua morte,
lembro dos nomes de todas elas (mestras falei com Dona Nancy, sua irmã, uma outra
em mais de 90%): de Dona Bela e Dona grande professora, e até me assustei quando
Zélia Genovez, até Lúcia Santaella e Anna me falou de Dona Cida, bastante preocupada
Lia Prado, passando por Dona Maud, Dona e referindo-se ao fato de ela já ser uma
Yola e Dona Cida. octogenária. Não só não aparentava como,
E essas lembranças me vêm a propósito para mim, ela não poderia ter propriamente
2008 da morte recente de Maria Apparecida Lopes uma idade. Muito ligada à família, penso
Manso da Costa Reis, o que para mim era que desde a morte de sua mãe ela de fato
uma impossibilidade, pois dona Cida já era entristeceu e se preparou para a partida, o
um mito, um mito em vida e penso que era que chocou muita gente, em especial seus
assim que dela pensavam todos aqueles ex-alunos.
muitos que foram seus alunos no Pujol, o Em algum lugar deverá haver um modo
IEDAP de minha época. Pertencente a uma de agradecer às nossas professoras por tudo
ilustre família de grandes professoras, o que nos trouxeram, contribuindo para nossa
Dona Cida se distinguia pelo fato de jamais formação enquanto seres que vivem em
perder a paciência, mesmo lidando com sociedade. Dona Cida nos deixa e adentra,
pré-adolescentes e adolescentes: nas em definitivo, o universo do Mito. Que sua
raras situações em que tinha de enfrentar presença na Terra foi enriquecedora.
uma situação difícil – de um aluno mal (Pirajuí, 02 de fevereiro de 2008)
comportado, por exemplo (e este chegou a

636
ZÉLUIZ VALERO FIGUEIREDO: O só conseguia compor uma imagem de pessoa

2007
DIFÍCIL ADEUS (I) calma, que pensava para falar, e falando:
aquele timbre vocal está presente e insiste:
Para os mais jovens, poderá até um Zéluiz vivo!
parecer exagero, porém, para pessoas como Rumei, pela manhã, para Bauru, com
eu, que estão prestes a adentrar o mundo Paulo Miranda, um outro grande amigo e
dos sexagenários, não. Uma perda vem a nem tínhamos muito o que dizer naqueles
ser algo que não tem reparação, mormente momentos duros, a caminho de um velório,
quando se trata de pessoa que, de fato, fez impossível até há pouco. Lá, as pernas bambas
parte de seu universo, foi parte integrante de quando recebi a notícia deram lugar a um
de sua vida e que ocupa um lugar muito choro incontrolável, mas que me trouxe um
especial: nada pode substituir. Daí, que certo alívio (pelo menos, diminuiu-se-me
um vazio doído fica no lugar que tal pessoa a tensão nervosa). Lúcia, a esposa, estava
2008 ocupava em nossos corações e mentes. transtornada. Pessoas foram chegando:
Este foi o caso da morte recente de José algumas conhecidas e muitos jovens, alunos e
Luiz Valero Figueiredo, um ser-pensante- ex-alunos do Valero (como eles o chamavam).
designer-(gráfico)-docente, aos 50 anos A inumação se deu em Presidente Alves,
de idade, muito embora não parecesse. A após as 16h do mesmo 19 de janeiro, sob
notícia, a qual, diga-se, jamais esperaria uma chuva que parecia não parar mais e que
ouvir, chegou-me, por telefone, aos 35 poderia até ser tomada como um protesto
minutos do dia 19 de janeiro, algumas horas pelo enterramento de alguém tão especial
após o ocorrido (uma queda do 8º andar do entre os terráqueos e que, amado por muitos,
edifício onde residia, em Bauru): “Omar, o partia, contrariando tantas expectativas!
Valero morreu!” disse-me Gastão Debreix Paulo Miranda, num determinado momento,
e eu não acreditei, não podia acreditar… disse algo que, parecendo óbvio, em verdade
O significado daquela frase, para mim, se estava a constatar um fato irreversível:
esvaziou e, tomando na memória o Zéluiz, “Perdemos o Zé para sempre…”

637
Somente agora escrevo sobre o fato zéluiz valero figueiredo: o

2007
e nem me sinto ainda bem para fazê-lo. difícil adeus (II)
Espero poder escrever longamente sobre (continuação)

o José Luiz, que conheci no ano de 1974 e


que era um menino de 17 anos, simpático, Tocava violão muito bem, como instrumento
educado, muitíssimo inteligente, que ligava que acompanhava o canto de uma música
necessariamente a teoria à pratica, com popular, a mais criativa de nosso País
muito talento para trabalhar linguagens e, nos encontros havidos em P. Alves,
e já muito rigoroso. Era uma época muito rolavam Caetano, Gil, Walter Franco, Nelson
especial para mim, para Paulo Miranda e Cavaquinho e tantos outros grandes, e a
para os irmãos Figueiredo (Luiz Antônio, performance do coro de vozes era algo
Carlos e Zéluiz) e mais alguns amigos, como indescritível, de tão mavioso. Muitos dos
Renato e Roberto Ghiotto, Beto Xavier, Vilma encontros eram registrados fotograficamente
Negrisolli, Neoclair. Estava nascente a revista por Zéluiz e, parece que centenas dessas
2008
ARTÉRIA. Zéluiz havia aprendido, sozinho, o fotos acabaram sendo destruídas (e esta é
manejo das coisas relativas à Fotografia e a uma outra história, sobre a qual falarei algum
praticava (inclusive a parte de laboratório) dia). Presidente Alves era a “capital cultural
já fazendo experimentações admiráveis, do mundo” quando havia tais encontros,
algumas das quais chegou a publicar. ocasiões em que se discutiam assuntos
continua… muitos, todos relacionados às Artes: Poesia
............................................................. Concreta, Webern, Caetano Veloso, Mallarmé,
............................................................. Pound, Duchamp, Godard… Luiz Antônio
....... e Carlos Valero, possuíam um repertório
invejável e muita influência tiveram sobre os
mais novos, que absorviam as informações
– esse era o caso de Zéluiz – e iam para
diante. ARTÉRIA nasceu nesse clima e esta

638
foi uma época muito feliz (anos de 1970), a fazer, que é o de reunir principalmente

2007
em que a festa se estendia, de Pirajuí a suas incursões no campo da Fotografia e,
Presidente Alves, acabando por desembocar talvez, publicá-las num número especial de
em São Paulo capital. ARTÉRIA, com a qual ele tanto colaborou.
Zéluiz passou por muitas mudanças: Por outro lado, vou empenhar esforços no
de companheiras, de cidades, de profissão. sentido de publicar, com a devida autorização
De uma grande seriedade, não podia admitir da família, sua tese de Doutorado, um
uma solução para um problema técnico- importante trabalho que versa sobre “Poesia
artístico que não fosse fruto de todo um Impressa no Brasil e Tipografia”.
pensamento. Das coisas práticas que Com a partida do Zé, perdem os
se propunha a fazer, aprendia com uma familiares, os amigos, os alunos, o Brasil
rapidez inacreditável: uma nova técnica ou e o Mundo, pois sua estada no Planeta
processo, de modo a chegar, no mínimo, ao foi altamente benéfica. José Luiz Valero
2008 nível da excelência, não aceitando operar Figueiredo: Presidente Alves, 06.05.1957 –
algo que ele não pudesse compreender em Bauru, 18.01.2008. REQUIESCAT IN PACE.
sua plenitude. Abandonou a Fotografia, a (Pirajuí, 23 de fevereiro e 1º de março de

Música (o violão), a Serigrafia para ser um 2008)

grande designer gráfico (fez para mim,


pacientemente, excelentes trabalhos de
diagramação). Zéluiz se tornou um dos
maiores entendedores de Tipografia no
Brasil, adentrando o campo da Informática
- um professor universitário como poucos:
acabou fazendo da docência sua razão de LIÇÃO DE PROFESSORES
viver. Que falem de sua grandeza seus ex-
alunos… As autoridades do Ensino Público ainda
Agora, terei um trabalho importante não quiseram compreender que, sem elevar

639
o salário dos professores da Rede (Estadual me entrevistar sobre “isto” ou “aquilo” da

2007
de São Paulo), não haverá condição para uma Educação Pública e o que eu via era que,
melhoria da qualidade daquele, já que, sem invariavelmente, os mesmos professores-
o necessário incentivo, o ânimo para levar burocratas estavam na mídia a vomitar
adiante qualquer projeto estará ausente. teorias e soluções milagrosas, sem a noção
Agora, com o argumento de que dos verdadeiros problemas e das condições
falta planejamento e até competência para reais das clientelas (sim, no plural) atendidas
preparar uma aula, a Secretaria de Educação pelas escolas públicas. Comunicavam
manda aulas prontas, impressas, talvez para experiências incríveis, feitas sob condições
um alunado ideal, que só existe na cabeça as mais propícias, com poucos alunos em sala
dos burocratas da Educação, pessoas que, e selecionados rigorosamente, e achavam
via de regra, nunca entraram numa sala- que daria para aplicá-las em salas com
de-aula de escola da periferia de São Paulo. 42 crianças e adolescentes, sem recursos
2008 Até quando teremos de suportar corretores didáticos e isto tudo, sem falar na “questão
de imóveis palpitando sobre estruturas de social” envolvendo o alunado, a qual, via de
edifícios? regra, determina posturas/comportamentos
Tendo trabalhado por 25 anos na Rede e até resultados.
Estadual e tendo dedicado minha vida à Raramente tive problemas com alunos
tarefa de ensinar – eu acreditava na Docência e jamais fiz da avaliação uma arma, mas
como uma vocação, quase um sacerdócio, acreditava que a escola democrática era
porém que deveria ser uma profissão bem- aquela que oferecia, a partir de um mínimo,
remunerada, dada a sua importância e a o caminho para o máximo em termos de
dificuldade do exercício, mesmo com todas as repertório. Pude acompanhar, por muitos
condições materiais que recursos financeiros anos, alunos da 5ª à 8ª série, tendo tido,
poderiam proporcionar (jamais falei sobre daí, condições para fazer uma verdadeira
salário com meus alunos e sempre consegui avaliação – que é um problema mundial, não
sobreviver com o que recebia). Nunca vieram apenas nosso – e, por mim, não atribuiria ao

640
aluno uma nota, mas daria, sobre o mesmo, a crença na importância da atividade

2007
um parecer. docente.
Noutro dia, numa palestra para Creio que professores, como alguns
professores universitários, o palestrante dos que tive e que são até hoje meus ídolos,
pediu à platéia que se manifestasse sobre o existem e precisam ser tratados com o
que de melhor havia aprendido com algum máximo de consideração. Educação é o
de seus muitos professores. As duas pessoas grande remédio para curar o atraso em que
que tiveram a oportunidade de se manifestar nosso País ainda se encontra. É preciso que
disseram que aprenderam a “lição” com o se propiciem as condições para que nossos
sofrimento: um, tendo sido reprovado na mestres possam trabalhar. E isto não só
disciplina de um tal professor, o que lhe serviu inclui, mas exige, excelente remuneração.
de lição para sempre. O outro, por ter sido (Pirajuí, 08 de março de 2008)
desqualificado publicamente pelo mestre,
2008 após ter dado um seminário - o que lhe
quebrou a arrogância - mas, recompensado
com uma ótima nota; indignado, foi tirar
satisfação com o professor e este lhe disse
que havia dado o melhor seminário de toda tarsila do amaral e lasar segall
a classe! à mostra
Eu não me manifestei, mas se tivesse
que falar, estaria pronto para dizer que o Importantes exposições aconteceram
que mais aprendi com algumas de minhas em São Paulo neste último mês e meio:
professoras (aqui, as mulheres dominam a TARSILA VIAJANTE, na Pinacoteca do Estado
cena) foi o amor pelas coisas do saber e e SEGALL REALISTA, na Galeria do SESI-
a boa-vontade em passar conhecimentos FIESP, ambas tocando fundo, obviamente,
para os outros (alunos, entenda-se), na questão do Modernismo no Brasil.
a prodigalidade, mesmo, neste afazer; Tarsila do Amaral (Capivari.SP 1886

641
- São Paulo.SP 1973), embora não tivesse Na exposição que teve lugar na Pinacoteca

2007
participado da Semana de 22, integrou- do Estado faltaram algumas pinturas e
se ao grupo de modernistas de São Paulo desenhos importantes, mas mesmo assim a
e, com e como Oswald de Andrade (São mostra esteve rica e informativa e muitos, que
Paulo 1890-1954), produziu o melhor de mal conheciam Tarsila, puderam apreciar-
sua carreira nos anos de 1920, contribuindo lhe a obra, principalmente as crianças e
grandemente para a formação de uma adolescentes que, vindo por suas escolas,
visualidade brasileira, híbrida, como deveria puderam contar com o cuidadoso trabalho
ser: absorvendo repertório da arte européia, dos excelentes monitores ligados ao serviço
leu singularmente o Brasil. Viajou bastante, educativo da instituição.
mormente nos anos 20 quando, em posse Lasar Segall (Vilna.Lituânia 1891-
de muito dinheiro (pertencia a uma família São Paulo.SP 1957), realizou em São Paulo
da velha aristocracia paulista, que havia (e Campinas), no ano de 1913, a primeira
2008 enriquecido graças ao café), foi inúmeras exposição de Arte Moderna do Brasil, porém,
vezes a Paris e a outros tantos lugares, onde esta não repercutiu, não tendo tido, Segall,
conheceu todo aquele pessoal da pesada: influência na arte brasileira, pelo menos até
revolucionários da linguagem, que deram 1924, que foi quando o pintor retornou ao
uma nova feição às Artes no Ocidente. Após Brasil e por aqui ficou. Essa atual exposição,
a derrocada econômica provocada pela crise cujo título deixa bem elástica a concepção
internacional que teve início em 1929, ainda de Realismo, parece corrigir algumas datas,
viajou, tendo ido à URSS, o que lhe valeu jogando-as para diante, o que faz crer que
um encarceramento doloroso, embora por algumas obras bem radicais de Segall não
pouco tempo. OPERÁRIOS é obra dos anos sejam de 1913, como se pensava, mas de 4
de 1930 e tem uma importância bem menor ou 5 anos depois. Já em 1913, no Brasil, talvez
do que a crítica lhe tem atribuído. O melhor aconselhado por seus anfitriões, não expôs
de seu trabalho se situa nos anos 20: fases nada que pudesse ferir o conservadorismo
da pintura PAU BRASIL e da ANTROPOFAGIA. local – isto coube a Anita Malfatti, na

642
exposição de 1917. No Brasil, Lasar Segall maravilhosas as suas “florestas”, já nos anos

2007
se casou com uma moça, uma intelectual de 1950, perto do fim, onde quase adentra
– Jenny - da família Klabin, já muito rica nos uma abstração rigorosa. Semioticamente
anos de 1920. Os Klabin, como os Mindlin falando, todo signo pictórico que possua
e os Lafer, entre outros, vieram a compor como objeto algo passível de ser existente
uma aristocracia rica e ilustrada, de tradição poderia ser chamado “realista”, porém, aí,
judaica, na Paulicéia e Segall, da mesma a coisa do “realismo” viraria um saco de
origem semita, com o referido enlace, gatos. Talvez que, para não repetir outras
amarrou o burro na sombra e nunca precisou exposições, o curador tenha encontrado
vender quadros, tanto que, com sua morte, esse “veio”, mas penso mesmo que ele tenha
a família estava em posse de quase toda a querido ser diferente […]. Não cheguei a ler
sua obra, o que veio a possibilitar a fundação o seu texto de apresentação. De qualquer
do museu que leva o seu nome, à rua Afonso modo, a mostra Segall chama a atenção para
2008 Celso, em Vila Mariana. O dinheiro muda um artista importante, que escolheu o Brasil
tudo: sua excelente pintura – tão elogiada para morar e deixar [obra e descendência].
por Tarsila do Amaral em crônica dos anos (Pirajuí, 22 de março de 2008)
de 1930 – primeiro ganha cores brasileiras;
depois, mergulha em cores pastéis, o que
faz pensar num expressionismo anêmico
(natural da Lituânia, que era domínio
russo, o artista foi estudar na Alemanha,
onde adquiriu o repertório expressionista),
embora abordando, aqui e ali, temas de UMA SANTA SEMANA
duras realidades. Talvez que a isto é que
Tadeu Chiarelli, o curador da mostra, chama Na Semana Santa que acabou de
de “realista”. De qualquer modo, Segall passar, pude estar em Pirajuí mais uma
manteve um alto nível pictórico, sendo vez, com meus parentes e amigos e esta é

643
uma oportunidade que quase nunca perco, Na Sexta-Feira Santa, meus tios Ana e

2007
pois essas reuniões, em que geralmente se Tuta ofereceram um belo almoço, respeitando
conversa e se come muito são cada vez mais a tradição dos vegetais e peixes. E o bacalhau
raras, e privar com pessoas queridas é coisa esteve ótimo, assim como o pintado, a torta de
que não tem preço. A Paixão do Cristo ficou palmito e muitas outras coisas, numa reunião
quase esquecida, pois lá se vão os tempos menos religiosa e mais ligada às coisas do
em que eu cultivava, junto ao rebanho de mundo dos vivos, com todo o respeito que
católicos, um masoquismo pio. VIDA, PAIXÃO a data merece e cuja tradição em parte se
E MORTE DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO, perdeu ou eu é que estou envelhecendo e
filme que passava todo ano em Pirajuí, no vendo muito distante a fase da infância, em
Cine São Salvador, era algo impressionante, que tudo impressionava, causava espanto
com a iluminação que oscilava, da época do (como o Cristo de Mell Gibson). Entre os
cinema mudo! convidados, o Sr. José Virgílio, o popular
2008 Na quinta-feira, cheguei de viagem e Seu Fordinho, acompanhado da filha Lucy.
um quibe cru me esperava, ou melhor, minha Ele, com 95 anos já completos, dava uma
mãe me esperava com um quibe cru, como demonstração de saúde e disposição, numa
nos velhos tempos: algo magnífico, digno de conversa firme e postura irrepreensível, o
ser oferecido ao Cristo, caso nos visitasse, Ele, que fez com que todos desejassem chegar à
que deve ter comido muito alimento na base sua idade, daquele jeito exato. Educado como
do trigo…. Pena que, com a idade avançando, sempre foi – e eu me lembro dele desde os
não pude me dar ao luxo de exagerar na anos de 1950, quando era amigo dos gêmeos
dose. Maravilha. Quanto ao não comer carnes Hélio e Rui que, por sinal, nunca confundi
vermelhas na Quaresma, guardamos apenas – fez pensar no que seria o segredo de tal
a Sexta-Feira Santa. Um pouco afastada dos longevidade e com tal disposição. É claro
afazeres culinários, minha mãe, de vez em que há uma razão genética, mas também o
quando, dá lá os seus exatos palpites e põe a tipo de vida que se leva; certamente ele vive
mão na massa e opera o milagre. com método, comendo pouco e dormindo

644
bem, caminhando sistematicamente. Tão para São Paulo com comidas deliciosas.

2007
grande a sua gentileza, que disse ler as Há trinta e oito anos comemoro assim a
minhas crônicas n’O ALFINETE, o que me Semana Santa: de modo menos religioso e
deixou orgulhoso, pois, quem pode se dar mais afetivo, com a família no seio da qual
ao luxo de ter um leitor como Seu Fordinho? nasci. E que assim sempre o seja!
Senti-me um privilegiado e penso que agora (Pirajuí, 05 de abril de 2008)
a minha responsabilidade aumentou!
Sábado com quibes divinos: uma boa
fritada – minha mãe enrolou, como só ela
sabe fazer, uns 30 quibes, que meu irmão
Richard se encarregou de fritar. Comi uns
sete, pois era impossível parar no terceiro. Fragmentos de pensamentos
Domingo de Páscoa: ovos para os
2008 menores e os maiores da família. Para >INTERNET: UNIVERSALIDADE DE
alguns, diet. Lembrei-me com muita saudade LINGUAGEM OU INTERATIVIDADE? Sempre
daquela alegria, nos anos de 1950, quando que me ocupava da Internet e de como
minhas tias normalistas Leila, Deca e Norma veicular uma mensagem artística pela REDE,
pintavam ovos de galinha - já cozidos com pensava em algo que mobilizasse linguagens
casca corante de cebola - com guache. Lindos que pudessem alcançar um público planetário
ovos que ganhávamos: todos nós, os netos - todo e qualquer terráqueo - e daí a opção
da vovó Lula. Até hoje o cheiro do guache por carga de alta-voltagem nos códigos da
me deixa feliz e me traz a consciência de um visualidade e, no caso da utilização do verbal,
[bom] tempo ido. uma escolha e um uso inusitados, a ponto de
A volta é sempre dolorosa: por deixar despertar o interesse de público, do Japão
os familiares e por enfrentar uma viagem aos EUA, passando por Gana e pela Romênia.
que continua penosa e interminável. Porém, Daí, fui vendo que, para os mais jovens, que
a chegada foi ótima, ainda mais que voltei têm uma muito maior familiaridade com os

645
novos meios, a questão a ser pensada era a >mercado de arte? No Brasil, algo ainda

2007
da interatividade. O meu pensamento estava incipiente, porém, existe. Lá fora, grandes
correto, mas incompleto, pois o novo usuário negócios. Sim, negócios. Preços são sempre
das mídias não suporta passividade, muito artificiais, pois como seria possível quantificar
embora a interatividade esteja limitada às o qualitativo? Sob o Capitalismo tudo é
possibilidades colocadas pelo mentor da quantificável em libras, dólares ou euros. O
obra a ser examinada. Ontem (12-04) fui assunto, inevitavelmente, entra em minhas
à abertura de uma bela exposição na FAAP: aulas, já que todas acabam por abordar o
NANO: poética de um novo mundo: universo das obras de arte. Daí é que sou
arte . ciência . tecnologia, dos artistas como que obrigado a entrar no assunto,
Victoria Vesna e James Gimzewski, com bem porque, mais cedo ou mais tarde, os
curadoria de Anna Barros, e que recomendo alunos do curso de Artes Visuais terão de
àqueles que vierem à Paulicéia. Nessa entrar no tal circuito, por uma questão
2008 exposição, os trabalhos são apresentados de sobrevivência. É óbvio que, dentre os
e, uns mais, outros menos, exigem alguma critérios que o mercado utiliza, entram
participação do espectador, que volta a ser questões como qualidade, inventividade,
criança, entrando na onda do lúdico, que raridade, mas o resto é especulação, que
é proposto. Fiquei encantado, mas não até chega a estabelecer preço de obra por
me choquei, eu que pude apreciar tantas centímetro-quadrado. A opinião de um certo
outras mostras no Brasil (na própria FAAP) crítico ou a organização de retrospectiva por
e fora, como a LES IMATERIAUX em Paris, um museu, repercutem imediatamente no
no ano de 1985. Mas essa, agora, tem mercado. Papel e gravura não encontram,
altíssimo nível e nem seria de se esperar nesse mercado, uma justa avaliação, daí
algo diferente, em se tratando de curadoria que se pode comprar uma bela gravura de
de Anna Barros. Fico, assim, à espera de mestre por um preço irrisório. Esses milhões
obras-primas, que já pude ver no universo de dólares pagos por um Van Gogh ou um
do vídeo, há já algum tempo. Picasso, por exemplo (artistas excepcionais,

646
diga-se), mostram que se está no mundo dos

2007
negócios e não da Arte propriamente. Quem
ama a arte, mesmo dispondo de bilhões, não
paga milhões numa obra de arte: vai a um
Museu que, certamente, terá muito mais em
termos de quantidade e qualidade. Quem
compra faz, em verdade, um investimento, língua-linguagem
pois conta com a valorização do produto.
Resta, de tudo isso, que artistas necessitam A Linguagem ou, melhor dizendo,
vender suas obras. Em começo de carreira, o Código Verbal (as palavras, mais as
gênios vendiam seus trabalhos a preços maneiras de combiná-las), é uma das
risíveis ou nem conseguiam vender – ver, marcas definidoras dos humanos. A outra é
na Paris do início do século passado, o o fato de andarem sobre dois pés. Estas duas
2008 quanto os Stein [Gertrude e Leo] pagavam características fazem parte do repertório
por um Picasso ou um Matisse, dois dos mais geral da Humanidade e ambas são
maiores artistas do século XX. Ou o que aprendidas, isto é, todos os seres humanos
antes aconteceu com Van Gogh. Ou sobre o têm de aprender pelo convívio com os mais
sofrimento de Amedeo Modigliani na Cidade- velhos e é claro já trazem consigo a coisa
Luz. Lobbies sempre existem em torno de em potencial.
certos artistas, mas nada fará com que uma O Código Verbal, que se manifesta por
mediocridade se eternize. Sempre digo aos meio dos idiomas, acabou por ser o código
meus alunos que eles deverão fazer o seu hegemônico, dominador, central, fazendo a
próprio Lobby, apoiando-se uns aos outros. Só mediação entre os demais códigos, os quais
o tempo dirá quem de fato trouxe qualidade. passam por um processo de verbalização
Quem contribuiu, com acréscimos, para o para que sejam mais inteligíveis. A coisa
patrimônio artístico da Humanidade. não é difícil de compreender, pois, quer se
(Pirajuí, 19 de abril de 2008) queira, quer não, o Código Verbal é o que

647
mais consegue presentificar ausências, ou precoce, garante uma boa performance no

2007
seja, se os Signos substituem, representam, futuro… E, no mais, escrever significa firmar
se estão no lugar de algo, do Objeto, o um compromisso com a Posteridade.
Código Verbal, com poucos recursos é Isto quer dizer que analfabetos e
o que melhor acaba desempenhando o semi-alfabetizados têm quase-nenhuma
papel de explicador do mundo – e estamos chance de “vencer” nesta nossa sociedade,
condenados à intermediação dos signos - a não ser que tenham muita sorte: a de já
mesmo se podendo considerar que existe nascerem ricos, por exemplo. Porém, o mal
um pensamento não-verbal. Pelo menos, é de não dominar o código escrito acontece
essa impressão a que se tem: de que tudo principalmente entre os das classes menos
deve ser verbalizado para que seja de fato favorecidas: “poucas letras”, dir-se-ia. E
compreendido e é assim que as coisas se nosso País ainda vive esse tipo de problema.
dão, pois a sociedade nos cobra a capacidade (Necessária se faz uma política para dotar a
2008 de verbalização, avalia-nos pelo nosso população de um mais elevado repertório.)
desempenho verbal. Somos pensantes, falantes e
Quando se faz a “leitura” de alguém, escreventes do Português, que é uma língua
lê-se primeiro a sua aparência e, a seguir, o neolatina ou românica, o que quer dizer que
seu discurso. Esta última é a avaliação que a Lusa pertence ao grupo indo-europeu dos
acaba pesando mais. E nas sociedades que idiomas. Originou-se do Latim vulgar e se
possuem um avançado sistema de escrita, o enriqueceu nesses séculos todos e continua
sistema alfabético, inventado pelos fenícios a se enriquecer, pois, sendo uma língua viva,
e consagrado em definitivo pelos gregos sofre modificações, acréscimos, evoluindo,
(ainda há sociedades ágrafas, ou seja, mesmo que à revelia, contrariando gramáticos
aquelas que não dispõem da escrita), a e professores. Em famoso manifesto de
avaliação é feita mais pelo desempenho da 1924 – Manifesto da poesia Pau-Brasil
escrituração, o que implica um aprendizado – Oswald de Andrade já dizia: “A língua sem
que, feito adequadamente e em idade erudição, sem arcaísmos. Natural e neológica.

648
A contribuição milionária de todos os erros. há toda uma literatura de alto nível de

2007
Como falamos. Como somos”. E como donos elaboração formal que, no Ocidente, vem
do Português, já que somos dele pensantes, desde os gregos, passando pelos latinos, até
falantes e escreventes, temos todo o direito os dias de hoje e que utiliza o baixo-calão,
de lhe acrescentar palavras e modos. que é a Literatura Fescenina ou Licenciosa).
A gramática dos gramáticos é coisa De qualquer modo, é importante possuir um
posterior ao nascimento e configuração dos alto repertório lexical. Com tal domínio a
idiomas. Pois há uma gramática que vai pessoa poderá transitar nos mais diversos
brotando naturalmente nos idiomas e daí os repertórios, terá um maior jogo de cintura.
gramáticos vêm e impõem as tais regras, que Às vezes, mesmo numa conversa sofisticada,
até têm um papel importante, já que acabam recorremos momentaneamente ao vulgar e
por evitar uma rápida descaracterização da mesmo ao chulo, pois se mostram eficazes
língua, mas não evitam a sua evolução. Esta para determinada situação. Doutras feitas,
2008 existe e se justifica, pois vem em socorro da utilizando o erudito, incorremos no kitsch,
eficácia na comunicação verbal. pela coisa excessiva – na utilização de
Daí, em se tratando do léxico, do adjetivos, por exemplo. Mas paremos por
vocabulário, temos níveis diversos, e todos aqui, que o assunto é interminável e o espaço
têm o seu lugar e a sua vez: o erudito é limitado. Em outra ocasião poderemos
(solene, elevado, hiper-formal, preciosístico), desenvolver mais o assunto. Enveredando
o sofisticado, o médio (poder-se-ia dizer pela simplicidade, que é sempre oportuna.
que a fala média do Português do Brasil foi (Pirajuí, 03 de maio de 2008)

estabelecido pela TV, que se constituiu em


redes de abrangência nacional), o vulgar
(onde se dá a maior incidência de termos
de gíria, tão detestados pelos gramáticos),
o chulo ou baixo-léxico (o mundo dos
palavrões e palavrão também é cultura;

649
Reuniões lítero-artísticas SUMPOSION= simpósio = onde “se bebe

2007
junto”, ou até mesmo BANQUETE, como foi
Receber (pessoas) é uma arte. Não traduzido o arqui-famoso diálogo de Platão
basta ter uma boa e bem equipada casa e sobre o Amor. Em época mais recente havia
bem abastecida e com pessoal com quem se os saraus).
possa contar para delegar tarefas, as mais Há os que preferem marcar reuniões
pesadas, o que há de braçal numa ocasião em bares ou restaurantes, o que facilita o
dessas. É preciso ter disposição para receber trabalho dos de casa, pois, despendendo-se
e isto significa fazer-sala, o que pode se algum dinheiro, fica-se livre das amolações
estender por muitas horas, durante as quais domésticas. Receber dá muito trabalho!
se deve estar presente, como anfitrião. Isto Estudando épocas outras, ficamos
quer dizer que um almoço, por exemplo, sabendo das reuniões paulistanas em
pode vir a durar seis horas ou mais, ou uma casas que ficaram famosas, como as do
2008 reunião noturna, com ou sem jantar, pode ir Senador Freitas Valle, de Dona Olívia
até às 2h da madrugada. (Casas, as Guedes Penteado, de Paulo Prado, do casal
mais simples, às vezes, são as que melhor Tarsiwald (Tarsila + Oswald de Andrade),
recebem, pois, em grande parte, quem faz de Mário de Andrade (que continua de
a casa são os seus moradores. E há aquelas pé, porém oca), de Yolanda Penteado (de
das quais, uma vez dentro, não dá vontade antes e depois de seu casamento com
de sair.) Ciccillo Matarazzo, sendo a grande dama
Essa história de comer e discutir - sobrinha de Dona Olívia - uma mulher
grandes assuntos vem de longe: no Mundo que teve importante papel na fundação do
Grego, por exemplo, havia as reuniões, só MAM-SP e da Bienal-SP). Nessas reuniões
de homens, em que se bebia enquanto se se pensa estar resolvendo os destinos das
discutia, se conversava e misturava-se a Artes no Brasil, no Mundo. E, às vezes,
água ao vinho, dependendo de quanto iria grandes idéias surgem, importantes
durar o encontro (o evento era chamado de desdobramentos acontecem. Mas, para

650
aqueles que participam das tais reuniões, se abrissem ocasionalmente, a de Augusto

2007
a experiência é sempre enriquecedora. de Campos, à Rua Bocaina, em Perdizes, era
Minha geração (e aqui estou a que de fato se abria para reuniões, mais de
considerando as minhas atividades como uma vez por semana, o que ocorria porque
artista gráfico e como poeta [e intelectual]), todos procuravam Augusto e este estava
a partir de meados dos anos 70, reuniu-se sempre à disposição e inflacionava o seu
ocasionalmente em Pirajuí e em Presidente tempo para receber vários grupos (ou quase-
Alves, momentos em que as conversas se grupos) e indivíduos, que tinham interesse
arrastavam por horas e até certo ponto na experimentação, não só em poesia, mas
foram muito agradáveis, pois eram regadas também em música e artes plásticas.
a muita bebida (para os que gostavam…), Nós (eu, Paulo Miranda, Luiz Antônio
alguma comida e muita música, entoada ali, de Figueiredo, Carlos Valero – os mais
ao vivo, via de regra, com o violão do Zéluiz presentes) íamos, pelo menos, a cada 15 dias
2008 Valero e as vozes de todos os presentes, em casa de Augusto que, sempre disposto,
que sabiam de-cor todo um repertório de nos recebia com uma excelente prosa e
MPB antiga e dos últimos lançamentos de novidades, inclusive distribuindo poemas
Caetano, Gil, Walter Franco e outros. em edições autônomas e livrinhos, que
Em São Paulo, havia bares como o os poetas-amigos com ele deixavam e ele
Amigo Leo e o Krystal Chopp, principalmente, pacientemente fazia o papel de divulgador.
além de outros poucos. Essa geração, sem Via de regra, havia um belíssimo almoço
subserviência alguma, era muito ligada aos ou jantar, regado a bons vinhos (Lygia de
concretistas históricos: Augusto e Haroldo de Azeredo Campos, a esposa, também poeta,
Campos, Décio Pignatari e Ronaldo Azeredo da mesma forma possuía grande disposição
(que geralmente freqüentava outros bares), e podia contar com os préstimos de uma
que era muito amigo de Volpi, o Alfredo, excelente cozinheira, que era a Norayr).
o grande pintor do Cambuci. Porém, em Com o passar dos anos, as coisas
termos de casa que recebia, embora todas se foram modificando, com o crescimento

651
da família, o envelhecimento de alguns, mais fácil: não dá despesa, nem ocupa o

2007
encargos familiares, afastamento de outros, tempo que não se quer despender. Faz falta
questões relacionadas à saúde e mudança a presença das pessoas, com ou sem aquilo
de endereço. Augusto mudou-se para outro que tenham de desagradável, que isto
ponto das Perdizes e, dividido em muitos sempre existe. Que ninguém está livre de
encargos familiares, passou a dispor de ter atitudes inconvenientes ou de presenciá-
pouco tempo e as visitas se tornaram cada las. Mas, de tudo o que se vive, no relato
vez mais raras. Porém, a amizade continuou propiciado pela memória – que tudo edita –
sólida e o é até hoje. fica a parte boa, qualquer que seja ela. Que
Augusto de Campos continuou a o bom do passado fica melhor ainda quando
produzir como sempre, em termos de rememorado.
elaboração de poemas e feitura de livros (Pirajuí, 17 de maio de 2008)

(desenhados por ele-mesmo), como crítico [A partir dos anos de 1980, meu apartamento
iluminador e como tradutor-recriador de da Rua Dona Veridiana, em Santa Cecília,
2008
poemas. Quanta coisa memorável foi vivida no passou a ser – e por mais de dez anos – um
apartamento da Rua Bocaina! E, cosmopolita ponto de reunião dos amigos-poetas, já que,
como o poeta sempre foi, as informações tendo nos tornado impressores-serígrafos,
eram de abrangência internacional. Muitas montei uma mesa de impressão/gravação no
vezes cheguei a fotografá-lo em sua casa corredor, que era minúsculo, e muita coisa
e esta documentação estou pronto para importante foi impressa ali, tendo a destacar
divulgá-la na Internet (site DISCERNIR). ARTÉRIA 6, em sua totalidade. Nesse
Hoje, cada vez menos se freqüentam tempo, houve uma pequena modificação
casas para se discutir assuntos artísticos. na composição do grupo (ou turma), com
Pelo menos eu e meus amigos temos subtrações e acréscimos. Manteve-se,
nos encontrado cada vez menos. Mas, porém, o núcleo básico].
certamente, as pessoas estão produzindo
e se contatando pela REDE, que assim é

652
andarilho : EXPosição de em Artes Plásticas no IA-UNESP, de 1996

2007
leopoldo ponce a 2001, período em que aprendeu e pôs à
prova todo o aprendido, confrontando-o
A exposição do jovem artista Leopoldo com o que já havia assimilado e, fazendo
Alejandro Ponce Valdivieso, na Galeria parte duma turma que se distinguiu pela
Virgilio, cuja abertura se deu em 7 de maio inteligência, talento extraordinário e imensa
deste ano de 2008 e se estenderá até o dia 30 curiosidade, aliada à coragem intelectual e
(continuando, talvez, por mais alguns dias) artística, discutiu e desdisse muito do que
é uma quase-individual, já que o múltiplo e era pedido para que dissesse.
amplo espaço da galeria, situada à rua Dr. Mesmo que ele não venha a admitir,
Virgilio de Carvalho Pinto 426, Pinheiros, São o período em que estudou no IA foi de
Paulo, é constituído por 4 áreas expositivas, fundamental importância para a sua
das quais três foram ocupadas por três formação. O que se discute fora da sala-de-
2008 artistas. Leopoldo ficou com os baixos da aula (aulas práticas e teóricas) acaba sendo
galeria, provavelmente por ser o mais alto mais importante do que é colocado dentro,
dos que lá expõem agora. Sem pretender e lá no IA, no Alto do Ipiranga, num sítio
diminuir o trabalho de outrem, Leopoldo é o privilegiadíssimo, tudo sempre favoreceu o
artista que mais diz ali, aquele cuja aura de contato com colegas e as discussões, em
criador é visível e excede nos trabalhos que ambiente configurado pela própria ação
apresenta de modo o mais despretensioso. dos alunos, num espaço que propicia a
Nascido em Quito, no Equador, em aproximação das pessoas. Leopoldo, nesse
27.08.1976, Leopoldo Ponce veio para tempo todo, freqüentou inúmeras oficinas e
o Brasil em 1985, radicando-se em São foi espécie de assistente do artista plástico
Paulo. Esteve na Alemanha, de 1989 a 1991 Dudi Maia Rosa, experiência que deve ter tido
onde, além do idioma aprendido, deve ter grande importância para que enveredasse
absorvido algo daquele rigor germânico na pelo mundo da cor.
realização de coisas. Cursou Bacharelado A primeira exposição individual de

653
Leopoldo (só mais tarde vim a conhecer a parte da banca examinadora, presidida pelo

2007
sua produção figurativa – estranhíssima, professor-artista Norberto Stori e tendo
diga-se – em desenho e pintura: nanquim, como convidado o pintor Dudi Maia Rosa,
aquarela e guache, e quando vi alguns de seus que deve ter acompanhado o seu trabalho de
trabalhos em argila – cerâmica - percebi o experimentação com a cor. Leopoldo montou
quanto de rebeldia e personalidade e talento uma exposição, precariamente, numa das
possuía o aluno-artista, desdizendo a técnica salas do IA (sua 2ª exposição individual foi
que aprendeu, deformando e conformando na Casa da Xiclet, uma galeria alternativa,
um trabalho outro, digno de nota) teve lugar muito-louca, em Vila Madalena, à Rua
no Centro Cultural São Paulo, a qual visitei Wisard, em que trabalhos eram colocados
e ele ainda era meu aluno e eu cheguei de modo precário, não respeitando batentes
a comentá-la em classe (Leopoldo mais de portas e janelas, nem quinas de paredes,
pensava que falava; quase não falava, mais nem cômodos da galeria-domicílio: belos
2008 ouvia, nunca fez o gênero “vida de artista”), trabalhos, trazendo vivas características de
pois me chamou muito a atenção a sua uma nova fase em que formas e cores davam
busca do expressar-se pelo precário, que a tônica: cometimentos morfo-cromáticos,
se mostrava impecável, paradoxalmente, poder-se-ia dizer). Junto ao trabalho prático
e claramente informado por Mondrian e obrigatório veio um texto teórico em que o
Maliévitch. Os trabalhos que evocavam artista apresentava o seu projeto, sem título
o holandês como que o expulsavam dos algum, desafiando as normas da Academia,
limites da área de representação do papel que nem era tão rígida assim, mas que
(Leopoldo produz largamente em papel) e, poderia ter prejudicado o resultado final.
em outros, vislumbrava-se o quase-nada do Porém, seu texto – justificando a sua práxis
suprematista, com o predomínio da não-cor artística – era tão consistente, que acabou
preto. sendo aprovado com a nota 10 e nem poderia
Seu TCC foi um espanto e espantado ser diferente, com tanta qualidade e uma
eu fiquei por ter sido convidado a fazer ponta de ousadia.

654
Depois, houve uma sala do Centro Se alguém estiver procurando artistas

2007
Cultural Mariantônia, onde Leopoldo mostrou jovens que prometem acontecer no universo
trabalhos que eram fundamentalmente as das linguagens, poderá considerar Leopoldo
experiências com formas e cores, mais um Ponce um desses novos valores, que
backlight (ocupou uma sala pequena do prometem deixar um forte rastro no universo
complexo expositivo do Centro). das Artes Plásticas, com obra apreciável e
Agora, na atual fase, Leopoldo consistente, em que sensibilidade e cérebro
prossegue com sua pesquisa de formas e fazem um casamento perfeito, perfazendo
cores, incluindo materiais, que geralmente aquela dialética de que só os grandes artistas
são detritos dessa nossa civilização urbana. são capazes. Que o seu trabalho, a partir de
Na exposição ANDARILHO, apresenta pinturas agora (doravante, diria minha mãe), ganhe
sobre papel, agregação de materiais vários, visibilidade e seja difundido. Salve!
backlights, pesquisa com o tridimensional e (Pirajuí, 31 de maio de 2008)

2008 até objetos-esculturas. De chamar a atenção


é uma ave de rapina, com cerca de 1m20 de
envergadura, dependurada, asas abertas,
toda construída com carvão: chocante! Os
poucos trabalhos que compõem a mostra,
dão uma medida da grandeza do artista
Leopoldo Ponce e mostram a sua ânsia pela POETAS DA ERA PÓS-VERSO:
pesquisa, ao mesmo tempo em que atestam UM MAPEAMENTO POR MEIO DE
o seu diálogo nervoso com toda a tradição ALGUMAS CONSTANTES (I)
moderna e pós-moderna. E, enquanto não
se profissionaliza como artista, Leopoldo faz Já tratei do assunto POESIA
trabalhos de artesanato, monta eventos, INTERSEMIÓTICA ou POESIA VISUAL ou
feiras, exposições e prepara oficinas para POESIA DA VERA PÓS-VERSO neste espaço
iniciantes nas Artes Visuais. d’O ALFINETE. Agora, trago trecho de minha

655
tese de Livre-Docência, em que, penso, – o verso, se feito, deve extrapolar os

2007
cheguei a uma caracterização melhor de limites do livro, explodindo em vociferações
uma certa poesia que floresceu a partir ensurdecedoras, em luminosos gigantescos,
dos anos de 1970, que tem sido objeto de outdoors… - sabem da importância do
minhas pesquisas e com a qual me envolvi domínio de tal tecnologia. É importante
profundamente. que não se percam antigas tecnologias, a
Na tentativa de delimitar ou insinuar exemplo da tipografia, como a praticada
terreno, serão aqui enumeradas algumas das à época de Gutenberg, século XV, o que
características dos poetas que operaram e dota o manipulador de programas gráficos
operam nesse universo intersemiótico, o que no computador de uma sabedoria, uma
os distingue da massa de poetas, todos com consciência maior e mais precisa da técnica-
suas razões-de-ser - há público, por menor linguagem. É importante não esquecer que
que seja, para tudo e todos e as coisas, os artistas que mais revolucionaram as
2008 se existem, terão certamente um motivo linguagens eram os que maior conhecimento
maior para tal – o que os faz produtores de possuíam da tradição, a ponto de poder
linguagem especiais. Ei-las: romper com a mesma. Os concretistas
>São poetas que valorizam as visualidades que, parece, foram os primeiros poetas a
todas, assim como as técnicas que as romper com o verso, por escrito: “dando por
possibilitam, porém, têm uma grande encerrado o ciclo histórico do verso” (A. de
familiaridade com o verbal em estado de Campos et alii Plano-piloto para poesia
poesia, inclusive dominando o métier do concreta. NOIGANDRES 4 1958) eram
versejador (versemaker). Têm domínio exímios versemakers e nunca perderam
desse artesanato, cujo aprendizado é fruto essa tecnologia, nem que fosse no exercício
de longo processo, coisa de autodidatas da tradução criativa - transcriação, como
(não há escolas para poetas, como as há colocou Haroldo de Campos – pois, poemas
para pintores, gravadores etc). Mesmo originais em versos, teriam de resultar em
não acreditando mais no verso tradicional bons poemas-versos em português. A lição

656
da beleza do verbal jamais foi desprezada a produzir revistas inteiras em serigrafia,

2007
pelos poetas que constam das antologias como foi a caso de ARTÉRIA 6 (31 X 31)
elaboradas por este autor. Muitos haviam QUADRADÃO, a revista de mais longa
começado como versejadores, quando gestação na história da cultura brasileira
ainda muito jovens, outros se tornaram (terminada em dezembro de 1992).
versemakers, no processo. >A abertura para as tecnologias de ponta
>A prática do artesanato das chamadas dos vários momentos, sabendo que não
Artes Plásticas, dada a própria necessidade basta dispor de tecnologias tais e tais. É
na execução dos poemas: o desenho da letra, preciso que se as pense enquanto linguagens
a aplicação da letraset, a fotocomposição, o e que se tenham idéias especialmente para
novo artesanato propiciado pelo computador elas. O computador possibilitou um trabalho
- “os novos escribas” (A. Risério) – o uso da de artefinal muitíssimo rápido e perfeito,
cor, o desenho, a colagem, a fotografia: do porém, antes de tudo é preciso ter-se a
2008 registro à pratica laboratorial - do processo idéia. Do videotexto (tempus fugit) aos
fotoquímico à fotografia digital - o vídeo e a computares de última geração disponíveis,
operação com a câmera, a edição, a construção usa-se a ferramenta adequada, que poderá
de objetos. Isto tudo não impede ao autor da ser simples pedaço de carvão e um parede
idéia delegar tarefas a outrem ou trabalhar clara. Ou um aparato tecnológico digno da
em colaboração. Uma das práticas tentadas NASA.
e levadas a efeito por alguns desses poetas >A produção pouca, tendo o claro objetivo
foi a da serigrafia, primeiro como meio de de não redundar, foi radicalizada ao extremo
viabilizar economicamente a impressão de por alguns, como Paulo Miranda e Villari
trabalhos coloridos ou não e quase que, ao Herrmann que, em cerca de trinta anos,
mesmo tempo, pela beleza do resultado- não chegaram a produzir 20 poemas.
cor e pela dimensão tátil emprestada aos Outros, também produziram pouco, mas
trabalhos – isto, principalmente os poetas nem tanto. Outros, ainda, publicaram muito
ligados à Nomuque Edições, que chegaram pouco. Diferentemente do que falou João

657
Cabral de Melo Neto em seu O ARTISTA publicação autônoma de poemas (e isto não

2007
INCONFESSÁVEL (J. Cabral), Paulo era exclusividade desses poetas, mas de toda
Miranda dizia que o difícil mesmo é não- uma época), o que emprestava à coisa uma
fazer e lançava a bomba: “Sempre que certa precariedade, sendo a distribuição quase
tenho a chance de não fazer, não a perco!” sempre de-mão-em-mão, o que dificultava
Nisto, foram até bem mais longe que os a divulgação e inclusive o armazenamento
concretistas históricos que, via de regra, das peças, que se constituíam no terror de
possuíam produção pouca, se comparada toda bibliotecária.
à média do que produziam os poetas no >O grande interesse pelas muitas artes,
Brasil e mesmo fora. incluindo as épocas várias, o que exigiu
(continua ) uma certa erudição por parte dos poetas
(Pirajuí, 14 de junho de 2008) dessa vertente. Têm muita familiaridade
com as várias artes: Pintura, Música,
2008 Arquitetura, Cinema, Design etc, assuntos
que sempre foram discutidos com grande
empenho e rigor, como no caso da Poesia.
Se os parâmetros eram elevados para os
poetas, sê-lo-iam também para as demais
POETAS DA ERA PÓS-VERSO: artes. Daí é que os Inventores e Mestres (E.
UM MAPEAMENTO POR MEIO DE Pound) eram rastreados em todas as áreas:
ALGUMAS CONSTANTES (II) Mondriam, Duchamp, Flaubert, Joyce,
(continuação)
Proust, Mies van der Rohe, Schoenberg,
>Uma preferência pela veiculação em Picasso, Cummings, Welles, Godard…
publicações coletivas, que eram chamadas Outrossim, Paideumas eram pensados
de revistas, mas que em verdade eram mais também para todas as áreas.
antologias, o que trazia invariavelmente >No rastro de Edgar Allan Poe e Décio
grande alegria e, por outro lado, havia a Pignatari, cogitava-se das relações entre

658
as Artes e a Ciência – o que remete a fazendo a poesia mais significativa do Brasil e

2007
Leonardo da Vinci – tentando entender havia como que uma arrogância com relação
o que haveria de comum entre esses aos que possuíam um outro tipo de produção,
tipos de criação/descoberta. Não foi por de linha mais verbalista, diga-se, com um
acaso que jovens cientistas integravam os repertório mais tradicional e até limitado. A
grupos de poetas (na verdade um, só que, Poesia Marginal, por exemplo, nem merecia
de quando em quando, este se bipartia). menção. Porém, o que era discutido em
Eram principalmente físicos, como Roland termos de poesia o era seriamente. O que
de Azeredo Campos e Renato Ghiotto. Não se almejava estava acima da excelência,
se via qualquer incompatibilidade entre as já que as exigências para ser poeta eram
duas grandes áreas, que, no senso comum, muitas, principalmente depois da lição dos
são vistas como antagônicas. Da mesma concretistas. Cobrava-se muito de si mesmo
forma com que Pound colocava os artistas e dos outros.
2008 como as antenas da raça (raça: a Espécie >A intersemioticidade, que é, em verdade,
Humana), os cientistas também podiam o encontro de sistemas vários de signos, era
ser considerados antenas, por captarem algo que estava sempre em mente, assim
“coisas”, como os artistas, antes da maioria como o caráter intermídia dos poemas
dos viventes. (“intermídia” no sentido de um trânsito nas
>Praticamente toda a metalinguagem, no várias mídias, sem perda da informação
que diz respeito a plataformas-de-ação, estética). Os poemas já eram assim
era feita oralmente em reuniões em bares, pensados para enfrentar esse trânsito, do
restaurantes e algumas residências e eram mesmo modo como havia a perseguição de
quase sempre acaloradas. Era uma época, uma verdadeira fusão de códigos, mais que
os anos 70, em que não faziam mais sentido uma justaposição dos mesmos.
os manifestos, como os das vanguardas >Não se cuidou de demarcações de limites
históricas, porém havia uma certeza entre nem de território a ser ocupado. A certeza de
os poetas dessa estirpe: a de que estavam se estar fazendo trabalho de alta qualidade

659
jamais colocava em questão o ser-se poeta,

2007
embora ninguém estivesse interessado em
disputar o título. Outrossim, não se cuidou
da divulgação da própria obra (é óbvio que
há exceções), diferentemente do que faz a
maioria dos que poetam, bem porque Poesia
não é algo que se remunere. (As sociedades
têm louvado até em excesso os seus poetas,
principalmente depois de mortos). Não se
procurou nem se disputou um espaço nas
mídias. Poetas, como Villari Herrmann, Paulo
Miranda e Aldo Fortes, algumas vezes foram
publicados à revelia. Tudo é menos que a
2008 própria obra, pensavam e pensam. Paulo
Miranda, num de seus repentes-desabafos
liberou este aforismo: “Não há um poeta que
valha um seu poema!” Mais que os poetas,
a Poesia. É preciso conhecê-la e todo um
esforço para divulgá-la será feito neste
espaço.
(Pirajuí, 21 de junho de 2008)

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www.nomuque.net

OMAR KHOURI é natural de Pirajuí SP BR, tendo sido dado à


luz no ano de 1948. Em sua terra natal, passou do Jardim da
Infância ao 3º ano do Curso Clássico. Já em São Paulo CAP,
cursou História na USP e acabou por se dirigir ao Ensino nos
então 1º e 2º Graus, principalmente da Rede Pública Estadual,
época (diz) mais feliz de sua vida profissional. Fez Mestrado
e doutorou-se em Comunicação e Semiótica na PUCSP e
ingressou no Ensino Superior, passando pela PUCSP, FIAM,
FAAP, mas optando em definitivo pelo IA-UNESP, campus de
São Paulo. Vagou pouco pelo Planeta. Artista plástico desde
a infância, dirigiu-se, mesmo, para as Artes Gráficas e para
a Poesia, donde brotaram inúmeros livros. Participou com
poemas visuais em inúmeras exposições no Brasil e fora.
Praticou Jornalismo Cultural não-remunerado por quase
10 anos. Há 41, reside na Paulicéia. É fundamentalmente
professor, além de editor, promotor de eventos e crítico
(ocasional) de linguagens.

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